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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A GUERRA DE TRÓIA / Lindsay Clarke
A GUERRA DE TRÓIA / Lindsay Clarke

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

Naquele tempo, o domínio dos deuses estava próximo do mundo dos homens e os deuses eram vistos muitas vezes entre nós, por vezes como eles próprios, por vezes sob a forma de humanos e por vezes sob a forma de animais. Aspessoas que viviam naquele tempo também estavam mais próximas dos deuses do que nós e os grandes feitos grandes prodígios eram mais comuns, razão pela qual as suas his­tórias são mais nobres e mais ricas do que as nossas. Assim, para que essas his­tórias não desaparecessem, decidi escrever tudo o que me contaram sobre a guerra de Tróia    como ela começou, o que aconteceu e como acabou.

Hoje é um bom dia para começar. Estamos no Verão, o céu está azul e o Sol está no zénite. Quando levanto a cabeça, ouço o som de liras por cima do fragor das ondas, o de vozes cantando, na cidade, e o de pés batendo no chão, dançando. É a festa do dia deApolo. Há quarenta anos, Odisseu regressou a Ítaca e eu tenho boas razões para recordar esse dia porque foi quase o meu último dia de vida.

Eu tinha vinte anos e à minha volta tudo era sangue, carnificina e frenesim provocados por um homem vingativo. Ainda me vejo escondido por trás do trono prateado. Lembro-me do gosto fétido do medo, do cheiro do sangue e quando fecho os olhos vejo Odisseu na minha frente, levantando a sua espada sangrenta.

Como não sirvo Ares, aquele dia da festa a Apolo foi o mais próximo que estive ou que desejei estar— de uma guerra. No entanto, as histórias que tenho para contar são histórias de guerra e soube-as por Odisseu... Como é possível? Porque o seu filho Telémaco me salvou da fúria louca da espada de Odisseu, gritando que eu não era um dos que queria apoderar-se da sua esposa e do seu reino. Por isso lá estava eu mais tarde, à lareira no grande salão de Ítaca, muito depois de o frenesim ter passado, quando Odisseu contou estas histórias ao seu filho.

Um dia, talvez outro bardo faça por Odisseu o que eu, Filho de Ítaca, não consegui e componha um grande poema sobre as suas histórias, um poema que os homens cantem para sempre. Até esse dia, que o destino permita que o que eu agora escrevo permaneça como a celebração de um homem honesto das paixões dos deuses e dos homens.

 

 

 

 

O mundo está cheio de deuses e ninguém consegue servi-los a todos. No entanto, é verdade que o destino de um homem depende das escolhas que ele faz entre os deuses e muitas histórias dizem que a guerra de Tróia começou assim quando o herói troiano Páris foi chamado pelas deusas ao topo do Monte Ida, numa tarde quente.

As montanhas de Ida ficam mais ou menos a quinze quilómetros do mar, do outro lado do rio Escamandro, na parte do reino de Tróia conhecido como Dardânia. Odisseu disse-me que existia naquele tempo, no clã de troianos da Dardânia, o antigo culto da Afrodite Frigia e que, como chefe dos pastores, Páris teria crescido numa atmosfera impregnada do poder daquela sedutora deusa. Assim, é provável que ele tenha ido à sua divina presença através de uma visão durante uma prova atlética iniciática no topo do Monte Ida. Mas não é permitido falar directamente de tais rituais secretos, por isso nós, os bardos, temos de usar a imaginação.

Tudo começou com a sensação estranha de que estava a ser obser­vado. Páris estava meio a dormir e tudo o que tinha no seu campo de visão era o seu rebanho. Os animais ainda pareciam menos alerta do que ele. Então, pelo canto do olho, o pastor viu uma ligeira luz cintilante. Quando virou a cabeça, a luz mudou para o outro lado. Perplexo, Páris olhou para a nova direcção e ouviu uma ligeira risada. Mesmo na sua frente, na densa sombra de um pinheiro, estava uma figura masculina. Usando um chapéu de abas largas e uma capa ligeira por cima dos ombros, o homem estava encostado ao tronco da árvore com o polegar de uma mão metido no cinto e segurando na outra um bastão decorado com uma fita branca. A sua cabeça estava zombe­teiramente inclinada, como que avaliando a cara espantada do pastor.

Páris pôs-se de pé, pressentindo que estava na presença de um deus.

Um bútio deslizou pelo céu azul sem mácula. A paisagem fami­liar estendia-se na sua frente, até aos rios que irrigavam a planície de Tróia. No entanto, era como se tivesse entrado num estado de semi--inconsciência, porque sentia tudo alterado. Até o ar parecia mais fino e mais cortante, como se, subitamente, tivesse ido parar a uma altitude superior. E era o deus Hermes que estava na sua frente, ges­ticulando com o bastão.

- Zeus ordenou-me que viesse até aqui. Precisamos de conver­sar, tu e eu.

E sem parecer ter-se mexido, o deus apareceu ao lado de Páris, sugerindo que se sentassem os dois na erva enquanto ele falava da sua missão.

— Primeiro — disse Hermes — talvez queiras ver isto. O deus tirou uma coisa brilhante da bolsa que tinha pendurada no cinto e entregou-a a Páris, que olhou para a maçã dourada que tinha na palma da sua mão. Virando-a, o pastor passou o polegar por umas letras gravadas no fruto e olhou para o deus, desorientado.

Hermes sorriu.

— É bonita, não é? Mas nem imaginas o trabalho que deu e foi esse trabalho que me trouxe aqui. Nós, os deuses, precisamos de ajuda, sabes? — O deus apercebeu-se do ar espantado do jovem. Mas nada disto fará sentido se eu não te contar a história de Peleu.

É possível, suponho, que tudo tenha começado assim, se bem que Odisseu sempre tenha insistido que a guerra de Tróia começou como todas as guerras no coração e na mente dos mortais. Já então ele pensava que a guerra era um património medonho que passava de geração em geração e já culpava os pais dos homens que combatiam na planície ventosa. Peleu era um desses pais.

O próprio Odisseu era um jovem quando travou amizade com Peleu, que era uma das almas mais nobres de uma geração de grandes heróis de Argos. Houve uma época em que Peleu pareceu ser, entre todos os mortais, o mais favorecido pelos deuses. No entanto, para sua consternação, o jovem aventureiro de Ítaca viu-se um homem amargurado, sujeito a longos silêncios numa vida ensombrada por perdas terríveis. No decurso de uma única noite, Peleu contou a Odisseu a maior parte da sua história.

Tudo começou com uma discórdia entre três jovens na ilha de Egina, uma discórdia que acabou com a morte de um e o exílio dos outros dois. Acabados de sair da adolescência, Peleu e Télamon eram os filhos mais velhos de Éaco, um Rei famoso em toda a Argos e não só pela sua grande sinceridade e sentido de justiça. A única fraqueza de Éaco era favorecer o mais novo dos seus filhos, um jovem cha­mado Foco nascido fora do casamento, fruto da união com uma sacerdotisa do culto das focas da ilha.

Longe do afecto daquele pai cada vez mais velho, Peleu e Téla­mon criaram um sentimento de aversão por aquele meio-irmão que era tão untuoso e musculoso como o animal de quem herdara o nome e que os excedia em tudo, especialmente como atleta. O seu ressen­timento transformou-se em ódio quando começaram a suspeitar de que Éaco tencionava nomear Foco como seu sucessor ao trono. Por que outra razão teria ele sido chamado à ilha depois de ter saído dela voluntariamente para manter a paz? Pelo menos era o que pensava a mulher do Rei, que assim incentivou os seus filhos a olharem pelos seus interesses.

O que aconteceu a seguir permanece incerto. Sabemos que Téla­mon e Peleu desafiaram o meio-irmão para cinco provas atléticas e que saíram delas vivos, ao contrário de Foco. Também sabemos que os dois irmãos mais velhos proclamaram que a sua morte fora aci­dental um golpe de má sorte quando o disco de pedra lançado por Télamon lhe bateu na cabeça. Mas também se disse que havia mais do que um ferimento no seu corpo que foi encontrado, por acaso, escondido num bosque.

Éaco não teve dúvidas quanto à culpa dos seus dois filhos e ambos teriam sido mortos se não se tivessem apercebido a tempo do perigo e fugido da ilha. No entanto, os dois irmãos separaram-se, o que me leva a acreditar que Peleu contou a verdade quando disse ao seu amigo Odisseu que concordara relutantemente com o plano de Télamon para assassinar Foco.

Em todo o caso, quando o pai se recusou a ouvir os seus protes­tos de inocência, Télamon procurou refúgio na ilha de Salamina, onde casou com a filha do Rei e lhe sucedeu no trono. Entretanto, Peleu fugiu para norte, para a Tessália, onde encontrou asilo na corte de Actor, Rei dos Mírmidones.

Peleu foi calorosamente recebido por Eurícion, filho do Rei Actor. Os dois homens tornaram-se amigos rapidamente e quando soube o que acontecera em Fona, Eurícion concordou em purificar Peleu da culpa da morte de Foco. A sua amizade foi selada com o casamento de Peleu com a irmã de Eurícion, Antígona.

Pouco tempo depois do casamento, soube-se que um grande javali andava a devastar o gado e as colheitas no reino vizinho de Cálidon. Quando Peleu soube que a maior parte dos heróis de então, incluindo Teseu e Jasão, se estavam a juntar para caçar o javali, e que o seu irmão Télamon estaria entre eles, partiu com Eurícion para se juntar à caçada.

Exceptuando os acasos da guerra, raramente terá havido uma expedição tão desastrosa como aquela caçada ao javali de Cálidon. Como o Rei local negligenciou a observância dos seus ritos, a Divina Artemísia enlouqueceu o javali, de modo que o animal defendeu a vida com um frenesim temível. Quando foi forçado a sair de uma corrente tumultuosa, já dois homens tinham morrido e um terceiro jazia estropiado. A virgem caçadora Atalanta disparou uma flecha que atingiu o javali por trás da orelha. Télamon avançou com a sua lança para acabar coma fera, mas tropeçou nas raízes de uma árvore e dese­quilibrou se. Quando Peleu correu para ajudar o irmão, viu o javali espetar as presas noutro caçador. Apressadamente, o jovem lançou o seu dardo e viu o alojar-se nas costelas do seu amigo Eurícion.

Com duas mortes na consciência, Peleu não conseguiu enfrentar a sua noiva Antígona nem o pai do seu amigo. Assim, fugiu para a cidade de Iolco com um dos caçadores, o Rei Acasto, que se ofereceu para o ilibar da sua nova culpa. Mas as sombras continuavam a pesar, cada vez mais intensas, na vida de Peleu porque, enquanto esteve em Iolco, Astidameia, mulher de Acasto, apaixonou-se por ele.

Embaraçado com os seus avanços, Peleu tentou afastá-la, mas depois, quando se mostrou mais firme, ela, a princípio, amuou, mas depois a sua paixão tornou-se cruel. Para vingar a sua humilhação, mandou dizer a Antígona que Peleu a esquecera e que tencionava casar com a sua própria filha. Dois dias mais tarde, sem ter a mínima ideia do que Astidameia tinha feito e supondo, portanto, que a culpa era sua, Peleu soube que a sua mulher se tinha enforcado.

Durante algum tempo, enlouqueceu de dor. Mas as suas penas ainda não tinham terminado. Alarmado com as consequências da sua malícia, Astidameia procurou esconder as provas dos seus actos dizendo ao marido que Peleu a tentara violar, mas como tinha purificado Peleu, Acasto não quis incorrer num sacrilégio, de modo que se aconselhou com os seus sacerdotes. Algum tempo depois, foi ter com Peleu e fez-lhe uma proposta.

— Se continuares a pensar na morte de Antígona disse ele – enlouquecerás de desgosto. A morte de Eurícion foi um acident Na confusão da caçada, podia ter acontecido a um qualquer e se tua mulher não foi capaz de viver depois de lhe terem dito o que di seram, a culpa não é tua. Tens de viver a tua vida, Peleu. Precisas de ar e de luz. E se fôssemos os dois outra vez para as montanhas? E se eu te desafiasse para uma caçada? Terias coragem de responder ao desafio?

Pensando que o seu amigo só queria o seu bem, Peleu aproveito a oportunidade para se afastar da dor e da sua vida perniciosa. Con binou-se uma caçada. Levando lanças, redes e uma matilha de cães, Peleu e Acasto partiram de madrugada para as encostas escarpadas e arborizadas do monte Pélion. Os dois homens caçaram durante todo o dia e à noite comeram à luz das estrelas. Aliviado por se encontrar na montanha, no mundo simples da camaradagem masculina, Peleu bebeu demasiado e caiu num embrutecido sono de pesadelos.

Peleu acordou às primeiras horas do dia, cheio de frio e descobriu que estava sozinho ao lado de uma fogueira apagada, desarmado e rodeado por um bando maltrapilho de Centauros que cheiravam tão mal como as suas partes equinas e que discutiam no seu sotaque áspero das montanhas o que fazer com ele. Alguns diziam que o melhor era matá-lo mesmo ali, mas o chefe um jovem macho vestido com peles de veado e com os cabelos castanhos eriçados argumentou que talvez pudessem aprender algo com um homem que fora expulso pelas pessoas da cidade e decidiram levá-lo perante o seu Rei. Assim, Peleu levou uns pontapés para se levantar e foi empurrado por falésias rochosas acima, através de bosques cerrados, de giestas, de carvalhos e de vidoeiros, atravessou cataratas e um desffiladeiro profundo onde a água caía a jorros.

Quando o bando se aproximou com o prisioneiro, um grupo de mulheres olhou para eles do sítio onde estavam a bater peles nas pedras lisas de um ribeiro e calou-se. O chefe do grupo subiu a umas rochas e entrou numa caverna a meio caminho da face de uma falésia. Enquanto esperava, em baixo, Peleu olhou para os cavalos atarracados, em liberdade, que pastavam numa encosta escarpada. Das rochas, algumas cabras, com olhos pretos que mais pareciam ranhuras, olha­vam para ele. Peleu não via quaisquer casas, apenas remendos de erva carbonizada cercados por pedras mostravam onde as fogueiras eram acesas e o seu nariz foi assaltado pelo cheiro penetrante de carne crua e leite azedo. Duas crianças, vestidas com peles de cabra, postaram-se a alguns metros dele. Os seus rostos estavam cheios de sumo de amora. Se ele se movesse subitamente, elas teriam fugido espavoridas.

Finalmente, Peleu foi levado ao interior da caverna onde estava um ancião de cabelos brancos escorridos, de ombros descaídos e escuro como uma oliveira, reclinado numa esteira de folhas e erva fresca. O ar da gruta cheirava bem devido às muitas ervas medicinais penduradas nas paredes secas. O homem fez sinal a Peleu para que se sentasse a seu lado e ofereceu-lhe silenciosamente água de um jarro de barro. Em seguida, semicerrando os olhos num paciente sorriso que parecia vindo das profundezas de uma insondável tristeza, falou no sotaque perfeito e requintado do povo de Argos:

— Conta-me a tua história.

Mais tarde, Peleu disse a Odisseu que recuperara o equilíbrio mental enquanto estivera com os Centauros, mas a verdade é que teve sorte em cair nas mãos deles num momento em que o seu Rei, Quíron, estava muito preocupado com a sobrevivência da sua tribo.

Os Centauros sempre tinham sido um povo autóctone, isolado, vivendo a sua vida rude de montanheses, afastados dos habitantes das cidades e dos camponeses da planície. O próprio Quíron era conhecido pela sua sabedoria e poderes curativos e dirigira durante muitos anos, nas montanhas, uma escola para a qual muitos reis man­davam os seus filhos de tenra idade para iniciação. Pirítoo, Rei do povo Lápida, na costa, frequentara aquela escola em criança e sempre gos­tara do Rei Quíron e dos seus Centauros meio selvagens. Por essa razão, convidou-os para a sua festa de casamento, mas alguém cometeu o erro de lhes dar vinho. O vinho, ao qual não estavam habituados, enlouqueceu-os rapidamente. Quando eles começaram a molestar as mulheres na festa, desencadeou-se uma luta sangrenta, durante a qual muitos morreram e muitos ficaram feridos. A partir desse dia, a tribo dos Centauros ficou a ser conhecida entre os não-iniciados como sub-humana. Os que sobreviveram à batalha fugiram para a montanha, onde os homens os caçaram como animais.

Quando Peleu foi conduzido até Quíron, na sua gruta, poucos restavam do povo dos Centauros. Assim, durante as longas horas em que conversaram, os dois homens reconheceram-se a si próprios como duas almas nobres que tinham sofrido injustamente. Peleu não tinha qualquer desejo de regressar ao mundo e assim aceitou de bom grado quando Quíron lhe sugeriu que talvez pudesse curar a alma ferida se levasse uma vida simples entre os Centauros durante algum tempo.

Os dias rudes vividos na montanha mostraram-se proveitosos e à noite Peleu era visitado por sonhos vivos e perturbadores que Quíron o ensinou a interpretar. Peleu também se sentiu melhor ouvindo a música dos Centauros, uma música que parecia ter a melodia selvagem do vento e da água, mas que tinha um encanto muito próprio. Através da iniciação aos mistérios de Quíron, Peleu redescobriu o significado do seu mundo e através da sua ligação com Peleu, Quíron começou a ter esperança de que um dia talvez conseguisse assegurar a sobrevivência da sua tribo restaurando as boas relações com o povo das cidades. Assim, para além da amizade, o ancião e o jovem deram esperança um ao outro. Essa esperança foi reforçada, um dia, quando Peleu disse que, se um dia tivesse um filho, enviá-lo-ia a Quíron para que o educasse e que encorajaria outros príncipes a fazer o mesmo.

— Mas, primeiro, tens de arranjar uma mulher disse Quíron, e quando ele viu o rosto de Peleu fechar-se perante a recordação de Antígona, o ancião estendeu uma mão manchada e rugosa. — Esses tempos sombrios pertencem ao passado — disse ele tranquilamente — tens uma vida nova pela frente. Há algumas noites atrás, Zeus, o Pai do Céu, apareceu-me num sonho e disse-me que era tempo de a minha filha ter um marido.

Divertido por descobrir que Quíron tinha uma filha, Peleu perguntou-lhe qual das mulheres da tribo era ela.

Tétis não vive connosco há algum tempo respondeu Quí­ron. — A minha filha seguiu o ofício da mãe e tornou-se sacerdotisa do culto dos chocos, entre os povos da costa, que a adoram como deusa imortal. Tétis entregou-se como filha ao deus do mar Nereu, mas Zeus quere-a e o culto dela tem de o aceitar. Tétis é uma mulher de grande beleza — se bem que tenha jurado nunca casar, a não ser com um deus. No meu sonho, no entanto, Zeus disse que o filho de Tétis seria ainda mais poderoso do que o seu pai e, por isso, deveria casar com um mortal. — Quíron sorriu. Esse homem és tu, meu amigo se bem que tenhas, primeiro, de a conquistar. Para isso, tens de te submeter aos seus rituais e entrar nos seus mistérios.

Como todos os mistérios, a verdadeira natureza dos rituais das mulheres só pode ser compreendida por aqueles que a eles se sub­metem, por isso só posso dizer o que Odisseu me disse pelo que Peleu lhe disse a ele acerca do seu primeiro encontro com Tétis. Este teve lugar numa pequena ilha ao largo da costa de Tessália. Quíron avisara-o de que a filha atravessava muitas vezes o estreito no dorso de um golfinho. Se Peleu se escondesse entre as rochas, talvez apa­nhasse Tétis a dormir a meio do dia numa gruta.

Seguindo as instruções do seu mentor, Peleu foi até à ilha, escon­deu-se por trás de um arbusto de mirto e esperou até que o Sol esti­vesse no zénite. Então, todos os seus sentidos se sentiram arrebatados quando viu Tétis deslizando na direcção da praia na crista de um arco-íris de espuma provocado pelo golfinho que a transportava. Nua e cintilante de água salgada, a jovem desmontou e caminhou para terra. Peleu seguiu-a à distância, escondido, até a ver entrar na estreita boca de uma gruta para se abrigar do sol do meio-dia.

Uma vez certo de que ela estava a dormir, o jovem rezou a Zeus, deitou-se em cima dela e abraçou-a firmemente. Tétis acordou ao senti-lo tocá-la, assustada por ver os seus membros presos no abraço de um homem. O seu corpo incendiou-se de imediato. Uma torrente de fogo rodeou os braços de Peleu, queimando-lhe o corpo e amea­çando queimar-lhe os cabelos, mas Quíron avisara-o de que a ninfa adquirira do seu pai marinho o poder de se metamorfosear e que não deveria abrandar o amplexo por mais perigosa que fosse a forma que ela adquirisse. Assim, Peleu agarrou-se a Tétis com todas as suas forças, ao mesmo tempo que aquela figura em chamas se contorcia por baixo de si e o transportava numa dança terrível, obrigando-o a lutar contra todos os elementos.

Quando viu que o fogo não conseguia afastá-lo, a ninfa mudou novamente de forma. Peleu viu-se a morrer afogado sob o peso de uma onda. Os seus ouvidos e pulmões pareciam que iam rebentar, mas manteve o amplexo até que a água desapareceu e a goela quente de um feroz leão se aproximou dele para ser logo a seguir substituída pelos colmilhos de uma serpente que silvava e se contorcia, resistindo viciosamente ao seu abraço. Então, diante dos seus olhos exaustos, a serpente transformou-se num choco gigante que lhe projectou no corpo e no rosto um liquido pegajoso. Queimado, meio afogado, mal tratado por presas e garras e quase cego pela tinta, Peleu estava quase a largar a presa quando Tétis, subitamente, disse àquele resoluto mortal que tinha esgotado todos os seus poderes.

Arquejando e quase sem respiração, Peleu olhou, viu a ninfa regressar à sua bela forma original e sentiu o seu corpo suavizar-se sob o seu abraço. O amplexo tornou-se mais premente e terno e na hora de paixão que se seguiu foi plantada a semente do seu primeiro filho.

A boda de Peleu e Tétis foi celebrada na Lua cheia no exterior da gruta do Rei Quíron, numa das encostas escarpadas do monte Pélio. Foi a última ocasião, na história do mundo, em que os doze deuses imortais desceram do monte Olimpo, misturando-se alegremente com os mortais. Foram instalados doze tronos dourados para eles de ambos os lados da noiva e do noivo. Foi Zeus, o próprio Pai do Céu, que entregou a noiva e foi a sua mulher Hera que ergueu o facho nupcial. As Três Fadas compareceram à cerimónia e as Musas canta­ram os hinos nupciais, ao mesmo tempo que as cinquenta filhas do deus Nereu dançavam em espiral pelo desfiladeiro.

Os deuses do Olimpo presentearam Peleu com uma armadura feita de ouro brilhante, juntamente com dois cavalos imortais gerados pelo Vento do Oeste. Quíron deu ao noivo uma lança de caça sem rival cujo ferro fora forjado pelo Rei coxo Efesto, enquanto a sua haste de freixo fora cortada e polida pelas mãos da Divina Atena. Todos os restantes membros da tribo dos Centauros engrinaldados para a ocasião e todos os outros assistentes, festejando com o néctar servido por Ganimedes, o portador da taça de Zeus, concordaram que não havia uma boda tão alegre desde que os habitantes do Olimpo tinham honrado com a sua presença, muitos anos antes, o casamento de Cadmo com Harmonia.

Isolada entre os deuses imortais, Eris não fora convidada. O seu nome significa Conflito, ou Discórdia, e é irmã gémea do deus da guerra Ares. Tal como o irmão, ela delicia-se com a fúria e o tumulto dos con­flitos humanos. Eris é quem despoleta as perturbações no mundo lan­çando rumores. A deusa tem um prazer especial em se servir dos mexericos para criar inveja e ciúme e por isso nenhum dos deuses e deusas, para além do seu irmão, a quer junto de si. Pela mesma razão, o seu nome fora omitido na lista de convidados da boda de Peleu e Tétis. Porém, todos os imortais têm o seu lugar no mundo e nós só os ignoramos por nossa conta e risco.

Furiosa e despeitada por ter sido a única dos imortais a não ser convidada, Eris assistiu aos festejos escondida num bosque próximo, esperando o momento propício para se vingar e o momento chegou quando Hera, Atena e Afrodite davam os parabéns a Peleu. O olhar do noivo foi atraído por algo que rolava pelo solo na sua direcção. As três deusas exclamaram, maravilhadas, quando ele apanhou do chão, a seus pés, uma maçã brilhante, dourada. Excitados com os gritos deliciados das deusas, os outros convidados juntaram-se a eles. Apenas Quíron, para seu desgosto, viu a figura de Eris, com o seu vestido axadrezado, fugir por entre as árvores.

Peleu exclamou:

— A maçã tem uma inscrição. — Segurando na maçã de modo a fazer incidir nela a luz, o jovem leu em voz alta: — Para a mais Bela.

Peleu virou-se para avaliar as três deusas a seu lado e o seu sorriso desapareceu instantaneamente quando percebeu que não podia dar a maçã a nenhuma delas sem ofender as outras.

— Mas, eu estou rodeado de beleza      disse ele, hesitante. — O dilema é enorme.

Afrodite sorriu-lhe.

— Para a mais Bela, dizes tu? Nesse caso é muito simples. A maçã deve ser para mim. — A deusa já estendia a mão para receber o fruto quando Hera disse que, como mulher de Zeus, senhor do Olimpo, a maçã só podia ser para ela.

— Duvido muito — disse Atena. — Qualquer juiz concordaria que a minha pretensão à maçã é tão forte como as vossas — se não maior.

Afrodite riu-se, classificando a pretensão de Atena como ridícula. Quem seria capaz de olhar duas vezes, perguntou ela, para uma deusa que insistia em usar um elmo, mesmo num casamento? Sorrindo para atenuar a ofensa, a deusa disse que Atena podia ser mais sábia do que ela e que não havia dúvidas quanto às virtudes maternais de Hera, mas se era a beleza que estava em questão, então estava em vantagem. Aproximando-se de Peleu, que se mantinha consternado, tentando perceber como se tinha metido naquele dilema e como sair dele, a deusa estendeu a mão.

— Não percebes que estás a embaraçar o nosso anfitrião, exi­bindo-te desse modo à vista da noiva? —protestou Atena. —Talvez um dia percebas que a verdadeira beleza reside na modéstia.

Pressentindo a iminência de uma discórdia indecorosa, Hera inter­veio, avisando as suas duas divinas irmãs para que se contivessem. Em seguida, a deusa sorriu para Peleu e sugeriu que o melhor seria resol­ver a questão rapidamente entregando-lhe a maçã a ela, ao que as duas outras deusas contrapuseram, cada uma delas clamando mais alto do que as outras, até que as trocas de insultos se tornaram rancorosas. As Musas pararam de cantar, as Nereides de dançar, um silêncio nervoso estabeleceu-se entre os Centauros e a noiva e o noivo ficaram a olhar, consternados, enquanto a disputa se tornava cada vez mais amarga.

Hera gritou asperamente, mais alto do que as outras.

— Se vocês as duas não conseguem ser razoáveis, só há uma maneira de resolver o assunto — Zeus decidirá. — Mas nenhuma das outras queria aceitar a solução nem o Todo-Poderoso Zeus parecia mostrar entusiasmo. Se bem que tivesse bebido néctar durante toda a tarde, o deus continuava suficientemente astuto para perceber que a sua mulher lhe tornaria a vida miserável se fosse honesto, ou que as duas outras deusas lhe fariam o mesmo se o não fosse. Espe­rando que a contenda se resolvesse por si mesma, Zeus virou-lhes as costas. Alguns momentos mais tarde, apanhadas num transe de raiva, as três contendoras começaram a insultar-se mutuamente.

— Chega! — gritou Zeus com uma voz que silenciou toda a gente. — Se o que vocês querem é maçãs douradas, podem ter um pomar delas sempre que quiserem.

— Não se trata da maçã! — respondeu Hera calorosamente. — Nenhuma de nós quer saber da maçã para nada!

— É evidente que não — concordou Atena.

— Nesse caso, por que razão nos estais a embaraçar dessa manei­ra? — perguntou Zeus. Quando não obteve resposta imediata, o deus disse que era tempo de as deusas se lembrarem de quem eram e de onde estavam, que tinham de parar com aquela questão, que se sen­tassem e se divertissem para que toda a gente pudesse fazer o mesmo. O deus fez menção de lhes virar as costas de novo, mas Afrodite abriu muito os olhos, protestando que a disputa era sobre uma mera questão de justiça. A deusa não estava disposta a que uma preten­dente qualquer se achasse com direito a um título que toda a gente sabia pertencer-lhe.

Pressentindo que o seu marido hesitava, Hera gritou:

— Não te atrevas a ligar ao que esta estúpida galdéria está a dizer.

— E não deves permitir que a tua mulher te pressione — acres­centou Atena — se queres que toda a gente respeite a tua opinião.

Chegados àquele ponto, Zeus gritou que preferia ser amaldiçoado a escolher entre elas. Olhando em redor, embaraçado, o deus virou-se para as deusas e disse mais calmamente que, na sua opinião, todas elas eram belas. As três. Cada uma inimitável à sua maneira. Tinham de esquecer a maçã de uma vez por todas.

— As coisas já foram demasiado longe para isso — disse Hera. Exigimos uma decisão.

Zeus olhou para a sua mulher com desagrado. Apesar de toda a sua vontade, não via como resolver aquela discussão sem provocar ressentimentos sem fim no Olimpo. No entanto, quando desviou o olhar, reparou que os mortais estavam todos a olhar para ele, horrori­zados e confusos. Em parte, o deus sentia-se incomodado por ter entregado uma ninfa tão bela como Tétis a um simples mortal e agora pensava que aquela discussão toda era o resultado de ter misturado os assuntos dos mortais com os dos imortais. De súbito, Zeus percebeu que Eris devia estar por trás daquilo tudo e que, se assim fosse, não poderia haver uma solução razoável. O mal estava feito, não sabia como desfazê-lo e também não podia permitir que aquela cena tão pouco digna pudesse continuar perante os olhares dos mortais.

—A minha decisão — disse ele finalmente — é que regressemos imediatamente ao Olimpo e que permitamos que esta boa gente con­tinue a divertir-se.

Alguns momentos mais tarde, os imortais estavam de regresso às nuvens, a caminho do Olimpo. Mas quando se tornou claro que Zeus ainda não estava preparado para dar a sua opinião, as deusas recomeçaram a discussão com uma veemência sem restrições e sem qualquer solução à vista.

Entretanto, tendo começado de modo tão alegre, a boda aacabou tristemente. As nuvens tinham começado a acastelar-se por cima do monte Pélion e os deuses tinham desaparecido no meio de um lívido relâmpago. A chuva começou a cair e as pessoas procuraram abrigo por entre as rochas aos tropeções, como se a tempestade tivesse arruinado todas as expectativas de paz e ordem no mundo. Assim que o aguaceiro parou, todos se despediram e dispersaram pela montanha abaixo, a caminho das suas confortáveis vidas nas cidades e na planície.

Consternado por Zeus, o Pai do Céu, não ter sido capaz de conter a turbulenta energia das deusas, Quíron retirou-se melancolicamente para a sua gruta. A última vez que os seus Centauros tinham ido a um casamento, tinham sido pervertidos pelo vinho e perseguidos como lobos. Fora um pecado dos homens: mas, agora, parecia que até os deuses tinham perdido o juízo. Com o mundo naquele estado, o Rei decidiu que o seu povo se manteria isolado a partir dali. Se Peleu e os seus amigos quisessem mandar os seus filhos para serem educados na montanha, cuidaria deles, ensinar-lhes-ia a música, as artes curativas e faria os possíveis para que seguissem o caminho da sabedoria. Mas como os deuses se estavam a portar como verdadeiros patetas e os corações dos homens não se contentavam com uma vida simples e rude, como a que ele e o seu povo levavam, só via maus presságios no futuro.

Os anos passaram e as coisas não iam bem entre Peleu e Tétis. Embora contrafeito, o casal tentara rir do triste fiasco da sua boda, mas em breve Peleu acordava para o facto de que praticamente não conhecia a sua mulher.

Durante algum tempo, na montanha, o jovem acreditou que poderia ser feliz de novo. Animado pelo seu apaixonado encontro com Tétis, começou a ter a certeza. Teriam uma boa vida juntos, criariam os filhos no ar vivo da montanha, longe das ambições e duplicidades do mundo palaciano. Mas Tétis era uma criatura da beira-mar. A ninfa gostava do vento salgado do mar, do dorso dos golfinhos por baixo dos pés, das ondas à luz da Lua, do cheiro da maresia, da maneira como a areia lhe escorria por entre os dedos dos pés e do maravi­lhoso mundo das poças entre as rochas. Na montanha sentia-se enca­lhada. A ninfa ansiava pelas longas extensões de areia e pelo som do mar e ficava furiosa e frustrada com o cheiro a cavalo do povo dos Centauros e os seus modos obstinados e limitados. Tendo discutido com o pai e ofendido o chefe da tribo, Tétis tornou claro a Peleu que, apesar de terem sido unidos pelo próprio Zeus, se ele persistisse em mantê-la naquela triste montanha contra a sua vontade, morreria muito simplesmente.

Peleu já tinha a morte de um irmão e de uma mulher na cons­ciência. O primeiro tinha o nome de foca e também amava o mar. A segunda enforcara-se porque, em vez de ficar a seu lado, fora caçar um javali nas encostas de Cálidon e matara-lhe o irmão. Não conse­guiria suportar outra morte. Assim, já tinha resolvido que abandonariam a montanha no fim do Verão quando apareceu um cavaleiro à sua procura vindo da Tessália.

O mensageiro trazia a notícia de que o Rei Actor, que nunca recu­perara da perda do filho e da filha, tinha morrido. Os Mirmídones os implacáveis soldados-formiga da Tessália — estavam sem chefia e o homem fora enviado para pedir a Peleu para regressar e reclamar os seus direitos como herdeiro de Actor. O jovem podia estar certo de um acolhimento caloroso porque alguns dos Mirmídones tinham estado na caçada do monte Cálidon e sabiam que a morte de Eurícion fora um acidente. Para além do mais, a mulher de Acasto enlouque­cera e fora ouvida a vangloriar-se de que era responsável pelo suicídio de Antígona. Naquelas circunstâncias, os direitos de Peleu seriam inquestionáveis.

Os deuses tinham respondido aos seus problemas. Tanto os seus deveres para com o seu povo, como a sua preocupação com a sua mulher, exigiam que abandonasse a montanha. Mudaria a corte do santuário de Atena, no interior, na cidade de Itonus, para uma outra fortificada, na costa. A sua mulher teria de novo nos ouvidos o som do mar. Ali, Tétis seria feliz.

Peleu começou imediatamente os preparativos para o regresso. Disse solenemente adeus aos amigos que fizera entre os Centauros, prometendo que não os esqueceria e que todos eles seriam bem rece­bidos como hóspedes na sua casa caso decidissem aparecer. Em seguida, passou muito tempo sozinho com Quíron, numa saliência ventosa da falésia por cima do desfiladeiro, de onde os dois homens podiam ver tudo, desde os cumes de Tessália e Magnésia, até ao mar, a leste, e para lá dele. Uma águia planava no céu azul por cima das suas cabeças. Tudo o mais parecia imóvel e antigo à sua volta. Sen­tiam-se fora do tempo e ao ver o vento passar pelos cabelos brancos do velho Rei, Peleu percebeu que Quíron penetrava mais fundo no coração das coisas do que quaisquer palavras. O seu próprio coração também estava sem palavras — não porque não houvesse nada para dizer, mas porque havia demasiado. No entanto, no silêncio da mon­tanha, era como se elas não fossem necessárias.

Após algum tempo, Quíron virou-se para ele.

— Farás o que for preciso pelo meu povo depois de eu morrer? — Nem é preciso dizeres. Mas vós, os Centauros, viveis muito. Penso que ainda tens muitos anos pela frente.

— Talvez. — Quíron virou o rosto para o vento. — Mas a minha filha... suspirou ele. — Quando te falei dela pela primeira vez, não sabia que ela tinha desejos imortais. É difícil um homem viver com isso.

Peleu franziu o sobrolho ao pensar naquilo e disse:

— Eu também não sou um homem com quem seja fácil viver. Tétis ficará contente por ir viver para junto do mar.

O centauro repetiu:

— Talvez.

A águia pairava lá muito no alto com as pontas das asas tensas como um arco, contra o vento. Quíron olhou para aquela silhueta nitidamente recortada à luz sem mácula do Sol. Calmamente, o Rei disse:

— Lembra-te que o teu filho será maior do que tu. Tenta não o culpares por isso.

— Não o farei — porque terá sido o teu sangue o causador. Quando ele tiver idade, mando-to.

Quíron acenou com a sua velha cabeça.

— Nesse caso, viverei até isso acontecer.

Apesar de Tétis ter ficado grávida seis vezes nos anos que se seguiram e ter chegado sempre ao fim das suas gestações, nenhum dos bebés viveu mais de uma semana ou duas.

Peleu ficava cada vez mais triste a cada morte, tristeza agravada pelo facto de a sua mulher se ter habituado a retirar-se para um san­tuário pertencente ao povo da costa entre o princípio do trabalho de parto e o dia em que esperava apresentar ao mundo um filho vivo. Quando Peleu lhe perguntou a razão daquela prática, ela disse-lhe que era um dos mistérios das mulheres e que não devia fazer per­guntas.

Porém, a ninfa regressava sempre pálida e magra, como se tivesse sido derrotada pelo insucesso.

Tétis não dizia nada, Peleu guardava a dor dentro de si, regressava aos negócios do mundo dos homens e a vida de ambos tornou-se cada vez mais carregada de silêncios.

Depois da terceira perda, Peleu argumentou energicamente que seria sensato consultarem o pai dela, que era mais conhecido pelos seus conhecimentos médicos do que qualquer outro homem. Mas Tétis não queria ouvir falar em tal hipótese. A ninfa dizia que era uma mulher, não uma égua doente, que não queria ouvir falar da magia da montanha e que tinha confiança na sua compreensão daquelas coisas como sacerdotisa marinha da mãe-lua. Além disso, não tinha sido profetizado que o seu filho seria mais forte do que o pai? Qualquer filho seu, que não fosse suficientemente forte para sobreviver ao tra­balho de parto, não poderia sobreviver naquele mundo. Peleu não deveria chorar por eles.

A ferocidade dela espantou-o, mas Peleu absteve-se de mais repri­mendas em parte por um desejo de esconder a sua própria tristeza e em parte devido à influência da sacerdotisa de Dólopes, que era com­panhia incessante da sua mulher. Mulher pequena e intensa, de olhos perspicazes e um sinal de nascença cor de morango no pescoço com a forma de um cavalo-marinho, o seu nome era Harpala. Tétis con­siderava-a uma parente, uma das mães do seu povo e tinha-lhe pedido que ficasse com ela na corte de Peleu em vez de se juntar à recente migração do seu povo à ilha de Ciros.

O povo de Dólopes era um povo irrequieto que viera do oci­dente longínquo duas ou três gerações antes e que se estabelecera nas costas da Tessália. Agora, sob o reinado do Rei Licomedes, alguns deles tinham sentido a necessidade de se mudarem para as Ilhas Dis­persas dos mares de leste e tinham-se radicado na ilha ventosa de Ciros, tendo edificado uma fortaleza. A mudança acontecera pouco depois de Peleu ter começado a reinar sobre os Mirmídones e, sen­tindo o forte chamamento da vida nas ilhas, Tétis quisera ir com eles.

Durante algum tempo, a questão foi motivo de discórdia entre o casal. Também ele nascido numa ilha, Peleu conhecia o significado daquele chamamento, mas era Rei de um povo do continente e era dever da sua mulher permanecer a seu lado e fornecer-lhe um her­deiro. Não bastava ter mudado a corte para a costa por causa dela?

Peleu compreendia o anseio dela pelo mar. O jovem sentia-se feliz por ela se agarrar a práticas de um culto que ele não partilhava e no qual se bem que não o dissesse — não confiava muito. Mas ela tinha de respeitar as restrições impostas pelo dever real à sua vida. Ficariam onde estavam, na Tessália.

Entretanto, Peleu andava sempre ocupado. Uma vez seguro do trono, utilizou o poder dos Mirmídones para ajustar contas com Acasto. Uma campanha rápida e brutal levou-os através da Magnésia até Iolco. Acasto morreu na batalha e a sua mulher louca foi morta logo a seguir. Dando graças a Zeus e a Artemísia, que tinha um cen­tro de culto poderoso em Iolco, Peleu foi declarado Rei e nomeou Iolco a sua nova capital na costa.

Tendo aprendido as leis e costumes dos Mirmídones, o jovem Rei decidiu harmonizá-los com os de Magnésia, tentando governar um reino pacífico e julgando as questões que os seus guerreiros desenca­deavam naqueles dias de paz. Havia, também, uma necessidade permanente de dinheiro. Alimentar e vestir a casa real, pagar aos servos, armar os guerreiros, prosseguir os projectos de construção, reparar os barcos e fazer oferendas dispendiosas aos deuses exigia muito dinheiro. O que não podia ser cobrado como impostos tinha de ser encontrado noutro lado qualquer e assim, na companhia do cada vez mais velho Teseu, tornou-se pirata nos meses de Verão e assaltou os navios mercantes e os estados ricos da costa oriental.

Peleu ganhou a reputação de guerreiro valente e Rei generoso nessas viagens, se bem que os seus feitos nunca tenham atingido a fama dos do seu irmão. Télamon tinha embarcado na Argo de Jasão em busca do Tosão de Ouro e tornara-se camarada de Héracles, que era famoso e temido desde o Épiro à Paflagónia como o herói mais corajoso, mais vigoroso e, por vezes, mais louco daquele tempo. Tendo já feito uma expedição à terra das Amazonas rodeando as cos­tas do Mar Negro, Télamon e Héracles estavam a preparar uma cam­panha contra a cidade frigia de Tróia.

Télamon tentou convencer o irmão a juntar as suas forças às dele, mas Peleu não tinha o seu apetite pela guerra e sentia relutância em arriscar o seu reino dificilmente conquistado no que prometia ser um ataque pouco proveitoso a uma cidade arruinada, recentemente atin­gida pela peste e por um terramoto. Mas também não queria parecer fraco aos olhos de Télamon. Finalmente, a decisão foi tomada por um ferimento que ele recebeu durante uma abordagem naquela Prima-vera. Uma espada sidoniana cortou-lhe o tendão do jarrete quando ele saltava para uma galera, colocando-o fora de acção durante meses.

Foi também nesse ano que morreu o seu sexto filho pouco depois de ter nascido e a dor foi quase insuportável. Um casamento que começara sob tão bons auspícios era agora roído por um desa­pontamento mútuo e a paixão diminuía ao mesmo tempo que aumen­tava a tensão. Peleu pensava muitas vezes no que Quíron lhe dissera acerca dos desejos imortais de Tétis, o que parecia ser a causa do seu desassossego e do modo como o seu espírito se entrechocava com as suas preocupações mais práticas de Rei. Naqueles dias, ela só parecia encontrar conforto na companhia de Harpália e Peleu, e começou a sentir ciúmes do poder que a pequena originária de Dólopes exercia sobre a imaginação da sua mulher. Harpália aprendeu rapidamente a manter-se fora do seu caminho, se bem que o seu nome surgisse fre­quentemente nas conversas que tinha com Tétis, quando ela o espi­caçava, qual espinho de um ouriço-do-mar, por causa da vida que lhe era negada nas ilhas.

Tornou-se cada vez mais difícil falar sobre o insucesso de Tétis em lhe dar um herdeiro e assim, quando finalmente decidiu consultar Quíron sobre o ferimento na perna, Peleu foi contra os desejos da sua mulher e levantou outro problema a si mesmo ainda mais grave. Quíron ouviu cuidadosamente o genro enquanto lhe aplicava espessas cataplasmas na perna. O Rei dos Centauros fez-lhe perguntas sobre as práticas do culto do choco e interessou-se particularmente pelo papel desempenhado por Harpália na vida da sua filha. Conhecendo um pouco os naturais de Dólopes, Quíron perguntou a Peleu se tinha havido sinais de uso de fogo nos rituais da sua filha.

No entanto, Peleu foi incapaz de responder porque estava excluído dessa parte da vida da sua mulher. A sua fé ia para Zeus, para Apolo e para as deusas, quer elas fossem adoradas como Atena em Itonus ou como Artemísia em Iolco; quanto aos mistérios mais secretos da sua mulher, era tão ignorante como um cavalo.

Quando Peleu regressou da montanha, trouxe com ele uma mulher dos Centauros chamada Euipe que chorou de tal maneira quando partiram do desfiladeiro que Peleu achou que a enxerga de erva do velho Rei passaria a ser, depois da sua partida, um lugar muito solitário. Euipe era uma mulher pequena e redonda de modos tímidos e com umas mãos surpreendentemente grandes e delicadas. Manifestamente, ia para casa de Peleu para lhe tratar do ferimento, mas este tornou rapidamente claro que Euipe era também uma par­teira habilidosa.

Quando ele regressou a Iolco, Tétis já estava de dois meses. Taci­turna e ainda sujeita a náuseas, ela tornou imediatamente claro que não queria ter nada a ver com a mulher da montanha a quem cha­mou, primeiro, de égua peluda do pai e a seguir, depois de uma cruel olhadela mais de perto, seu cavalo cansado. Peleu protestou. Entre eles, nessa noite, houve uma grande discussão e depois não se fala­ram durante duas semanas.

Depois, as náuseas passaram, conversaram um com o outro e fize­ram amor de novo, recuperando logo a seguir as tréguas escrupulo­sas em que se tinha tornado a sua vida. Tétis continuava a recusar incluir Euipe no seu séquito, mas a mulher dos Centauros conseguiu encontrar um lugar discreto para si própria na casa real e rapidamente as suas capacidades médicas lhe granjearam amigas agradecidas. Depois de ter tratado com sucesso uma mulher de uma erupção cutânea no abdómen e uma outra de uma febre perigosa, ganhou a reputação de mulher sábia e tornou-se na grande favorita entre os barões mirmídones e respectivas mulheres. Apenas Tétis, à medida que a sua barriga aumentava mês após mês, a ignorava.

Se a ninfa temia que Euipe tivesse sido ali colocada para a espiar, os seus receios eram justificados, porque nas ocasiões em que a mulher aparecia para lhe examinar a perna, Peleu fazia-lhe perguntas sobre as actividades da sua mulher. Durante semanas, ela não teve nada para relatar, mas no oitavo mês de gravidez de Tétis, Euipe travou-se de amizade com uma jovem que se queixava de dores intensas sempre que tinha o período. Euipe deu-lhe uma poção feita de rosa-de-guel­dres, escutelária e bagas de pilriteiro para alívio imediato e aconselhou-a a regressar brevemente para mais tratamentos. Quando ela regressou, começaram as duas a conversar e a curandeira soube que a rapariga servia como assistente no culto do choco. Por meio de perguntas cuidadosas, Euipe soube que não houvera aparentemente nada de errado com os bebés de Tétis — nenhuma febre ou defeito, nada que justificasse as suas mortes precoces. Era um mistério, dizia a rapariga, a não ser que a deusa os tivesse chamado a si.

Quando Euipe lhe fez algumas perguntas discretas sobre o papel de Harpália no culto, a rapariga corou um pouco, desviou o olhar, disse que a sua posição no santuário era muito baixa, que ainda era demasiado jovem para ser iniciada em tais matérias e que nem sequer se sentia preparada para fazer especulações.

— Mas havia medo nela decidiu Euipe.  Talvez não saiba muito, mas sabe mais do que deixa parecer e isso deixa-a receosa.

Com as suas suspeitas confirmadas, Peleu pediu a Euipe que man­tivesse os ouvidos bem abertos e, eventualmente, a curandeira soube mais qualquer coisa através da mulher de um dos barões. Esta foi a primeira que se atreveu a falar de feitiçaria, mas muito sombriamente, lançando as suspeitas unicamente sobre a natural de Dólopes, não sobre Tétis e de um modo que Euipe sentiu que a mulher queria que ela relatasse o que ouvira.

Tendo sabido que Tétis tinha, em tempos, ofendido aquela mulher, Peleu sugeriu que talvez ela estivesse, por ódio, a espalhar rumores, mas Euipe limitou-se a encolher os ombros.

— Acreditas mesmo que se passa algo de terrível?   perguntou ele.

— Terrível para ti — disse ela.

— Sabes o que é?

— Posso estar enganada.

— Diz-me, de qualquer maneira.

Euipe pensou por uns momentos e depois abanou a cabeça. — Nesse caso — perguntou ele — o que é que eu faço?

— Não precisas de fazer nada, pelo menos até o bebé nascer.

— E depois?

— Tenhamos paciência. Quando chegar a ocasião, veremos.

Só Peleu sabia a verdade sobre o que aconteceu, e o Rei nunca falou no assunto — senão seis anos mais tarde, quando Odisseu che­gou à sua corte pela primeira vez. Então, a criança — o sétimo filho de Peleu e único a sobreviver — já estava nas montanhas com Quí­ron, aprendendo a viver. Peleu vivia só no seu melancólico palácio, sob os cuidados pacientes e silenciosos de Euipe, e durante algum tempo a sua melancolia foi motivo de conversa em Argos. Télamon e Teseu tentaram animá-lo, mas falharam. Quíron estava demasiado velho para descer da montanha e a Peleu faltava-lhe a coragem para ir ter com ele. Assim, o Rei dos Mirmídones perdia o seu tempo na solidão, andando de um lado para o outro no seu palácio, mal falando e delegando cada vez mais os assuntos de estado nos seus ministros de confiança. Os velhos amigos, como Pirítoo e Teseu, morreram. O poder mudou-se para sul, para Micenas. O povo começou a esque­cer-se dele.

Então, Odisseu aportou a Iolco. O Rei Nestor de Pios encora­jara-o a aparecer. Toda a gente gostava do jovem príncipe de Ítaca, dissera ele — e talvez o velho Peleu não fosse uma excepção.

— Por que não o tentas convencer a juntar-se a ti na expedição que vais fazer às costas Mísias? No seu tempo, Peleu foi um bom pirata. Talvez continue a ser.

Odisseu descobriu rapidamente que as hipóteses eram nulas. O homem mal conseguia sorrir, quanto mais manejar uma espada. Encolhendo os ombros, o príncipe já decidira soltar as amarras e par­tir de madrugada quando Peleu olhou por cima da taça pela primeira vez no espaço de algumas horas e disse:

— Foi simpático da tua parte teres vindo. Toda a gente se esque­ceu de como sorrir, à minha volta. Tu, parece que não sabes fazer mais nada.

— Não me custa nada — sorriu Odisseu. — Perturba-te?

Sem sorrir, Peleu abanou a cabeça. Após alguns momentos, come­çou a falar e deve ter entrado um deus no seu espírito, porque assim que começou parecia nunca mais acabar. Aquela noite testemunhou um verdadeiro alívio do espírito porque Odisseu foi a única pessoa com quem Peleu falou sobre o que acontecera entre ele e a sua mulher. Odisseu escutou, horrorizado, o relato atormentado de como, insti­gado por Euipe, ele se purificara perante Zeus, pedira o perdão da Deusa e forçara a entrada no recinto sagrado da gruta onde Tétis levava a cabo os seus rituais. Estava-se na lua nova após o nascimento da criança. Afastando as mulheres drogadas que tentavam impedi-lo, Peleu entrou na gruta e viu as figuras sombrias de Tétis e de Har­pália de pé, na base de uma primitiva estátua da Deusa, ao lago de um altar onde ardiam umas brasas de carvão. Harpália segurava uma rede de malha. Tétis estava a tirar as faixas em que o seu filho estava enrolado e Peleu viu de imediato qual era a intenção das duas mulhe­res. Se não tivesse aparecido, Tétis e Harpália teriam feito o mesmo que das vezes anteriores teriam colocado a criança na rede e tê-la--iam passado sobre as brasas, para trás e para a frente, até que ela ficasse imortalizada.

Com um grito de ódio, Peleu puxou da espada, matou Harpália imediatamente e tirou a criança das mãos da mãe. Se a criança não se tivesse debatido tanto nos seus braços, como uma pequena tempes­tade, talvez tivesse matado também Tétis, mas quando ergueu de novo a espada, o frenesim do momento já tinha passado e não con­seguiu fazê-lo. Tétis viu o conflito no seu rosto. Espantosamente, a ninfa deixou sair uma pequena risada de frustração.

Com o bebé a debater-se nos seus braços, Peleu olhou para ela como se estivesse a olhar para uma louca. Ela aguentou-lhe o olhar e ficaram os dois imóveis na gruta quente a cheirar a maresia, sabendo ambos que a criança fora salva das chamas, mas que o fogo que Tétis acendera consumira todos os vestígios de amor que ainda existiam entre eles.

Com o coração destroçado e não querendo matar a filha de Quí­ron, Peleu manteve-a prisioneira durante algum tempo. O Rei entre­gou a criança a uma ama, uma das amigas de Euipe, uma mulher cen­tauro que fora capturada por ocasião de uma caçada, que fora libertada por insistência de Peleu e que vivia agora com uma das cozinheiras do palácio. Foi ela que lhe deu o nome de Aquiles, aquele que não tem lábios, porque o bebé não mamara no seio da mãe. Peleu tinha dificuldade em olhar para o filho porque os gritos da criança faziam-no recordar o horror daquela noite. No entanto, o Rei estava decidido a fazer uma coisa — Tétis nunca mais se aproximaria da criança ou dele próprio. Assim, finalmente, avisando-a de que morreria se regressasse algum dia à Tessália, libertou-a e ela juntou-se ao povo da sua mãe na remota ilha de Ciros.

— Mas o rapaz sobreviveu disse Odisseu, finalmente, cheio de simpatia pelo homem sentado na sua frente, olhando para o fogo. — Tens um filho e um herdeiro.

— Que mal conheço — respondeu Peleu — e que não sabe nada de mim.

- Isso pode resolver-se. Podes mandá-lo vir para junto de ti em qualquer ocasião.

- Para viver nas trevas comigo?

— Talvez a criança as ilumine.

Suspirando, Peleu procurou o rosto jovem do príncipe de Ítaca. — Felizmente, foi profetizado que o rapaz será um grande homem, maior do que o seu pai.

Odisseu disse:

- Nesse caso, será uma grande alma.

Aquecido pela companhia do seu novo amigo, Peleu pediu a Odisseu que ficasse com ele em Iolco durante algum tempo. O prín­cipe de Ítaca aceitou de bom grado e os dois homens conversaram muito, trocando histórias de antigos feitos e discutindo as mudanças no mundo numa ocasião em que Agamémnon, o filho de Atreu, reclamara para si o trono em Micenas e expandia o seu poder a tal ponto que em breve era aclamado como Grande Rei de toda a Argos. Também falaram de assuntos mais leves e Odisseu conseguiu, finalmente, que o seu anfitrião se risse alegremente quando, uma noite, um outro visitante foi anunciado.

Como filho bastardo do Rei Actor, Menécio era aparentado com Peleu pelo casamento e velejara em redor dos estreitos desde a cidade Opus, na Lócrida, até lolco, em busca da sua ajuda. Menécio tinha uni filho de seis anos que estava metido em problemas visto que tinha morto um dos seus amigos quando uma discussão por causa de um jogo se transformou numa luta.

— O rapaz não tem nada de mal — disse ele franzindo o sobrolho — para além do seu temperamento apaixonado e fico com o coração destroçado, mas não posso ficar com ele em Opus. Ele tem as mãos manchadas de sangue e o pai do rapaz que ele matou gostava tanto do filho como eu gosto do meu.

Peleu acenou com a cabeça.

- O que é que tu queres de mim?

Menécio perguntou se podia introduzir o filho na sala e quando a resposta foi afirmativa, Peleu e Odisseu viram-se confrontados com um rapaz esgalgado de seis anos com uns cabelos espessos e um olhar cabisbaixo fixo nos pés recentemente lavados. Recordando-se de como o seu destino tinha sido forjado pela morte de outrem, Peleu perguntou:

— Como é que te chamas, rapaz?

Por breves instantes, o pequeno rosto olhou ameaçadoramente para ele em ar de desafio e depois olhou de novo para baixo sem dizer nada.

- Chama-se Pátroclo (Do grego «glória do pai») disse Menécio se bem que, até agora, não tenha contribuído com grande coisa para isso.

- Ainda tem tempo disse Odisseu.

Menécio olhou para Peleu em busca de auxílio.

— Ouvi dizer que mandaste o teu filho para junto do centauro?

- Quando Peleu acenou novamente com a cabeça, Menécio acres­centou:  Achas que seria possível ele educar também este?

— Ele educou-me a mim disse Peleu calmamente.

— Mas aquele assunto horrível do casamento de Pirítoo... quando eles se embebedaram... Menécio viu as sobrancelhas franzidas de Peleu, hesitou e continuou: — Quer dizer, tu já eras homem quando foste para junto de Quíron.

- E ainda era mais homem quando saí de lá, tal como Pirítoo e Jasão, se bem que eles tenham ido para lá em rapazes. E talvez eu tivesse sido um homem melhor se tivesse ficado entre os Centauros.

- Peleu abanou a cabeça. Mas não foi esse o meu destino. De qualquer modo, senti-me feliz por ter enviado o meu filho a Quíron. Desde então, alguns dos meus mirmídones têm feito o mesmo. — O Rei virou-se para onde Pátroclo mudava nervosamente de um pé para outro. — Olha para mim, rapaz. — De má vontade, Pátroclo fez o que lhe pediam. — Gostavas de caçar e aprender a falar com cavalos? Gostavas de aprender a magia das ervas, cantar e dedilhar a lira para que os animais saiam das árvores e te escutem?

Pouco seguro, Pátroclo acenou com a cabeça.

— Até eu gostava de ir para essa escola disse Odisseu, sorrindo. Estupefacto, Peleu disse subitamente:

— Nesse caso, vem comigo à montanha, amanhã.

Odisseu olhou para ele, surpreendido com a transformação do seu amigo. Devia andar ali a mão de um deus. O príncipe sentiu a nuca arrepiada, mas sorriu e concordou. Por que não? Sim, gostaria de ir.

Peleu virou-se para Menécio.

— É tempo de eu ir ver como se comporta o meu filho. Fizeste bem. Podes deixar o teu rapaz comigo.

À parte uma árvore que tinha sido atingida por um raio e o número de crianças esfarrapadas a necessitarem de alimento, Peleu encon­trou poucas diferenças no desfiladeiro desde que ali estivera pela última vez, mas Quíron parecia mais velho, as suas faces estavam mais cavadas e as rugas em redor dos olhos mais fundas. Os seus movi-mentos também eram mais lentos, se bem que continuasse ágil, e as suas mãos tremeram quando lhe ofereceu leite de égua como agra­decimento pelo regresso do seu filho e amigo. O ancião deu as boas-vindas a Odisseu e sorriu amavelmente para Pátroclo enquanto lhe fazia algumas perguntas antes de o mandar brincar com algumas das crianças junto do ribeiro. Um rapaz foi procurar Aquiles, que andava pelos bosques e enquanto caminhavam na direcção da gruta Peleu explicou por que razão trouxera Pátroclo para a montanha. Quíron limitou-se a acenar com a cabeça e depois abanou-a ao ver o modo como Peleu se movia por entre as rochas.

— Devias ter vindo ter comigo mais cedo disse ele então como agora.

Enquanto comiam, Odisseu expressou a sua admiração pelo modo de vida de Quíron.

— Em Ítaca, gostamos de manter as coisas simples — disse ele. —Algumas pessoas acham-nos rudes e bárbaros, mas somos hones­tos e temos tudo aquilo de que necessitamos. A única coisa que me leva a sair de lá é o meu desejo de aventura e gosto sempre de regres­sar a casa.

Peleu suspirou.

Nunca devia ter saído daqui.

— Um homem deve seguir o seu destino — disse Quíron — e o teu tem sido bem duro. Já o devia ter visto mais cedo, mas há coisas que coração vê mas nas quais nós não acreditamos. — Peleu insistiu, dizendo que Quíron não tinha culpa por o seu destino ser o que era, nas o velho Rei abanou gravemente a cabeça. — Apesar de ter seguido os costumes da mãe, Tétis é do meu sangue e eu falhei como pai.

Quando Odisseu protestou, dizendo que Quíron fora um bom pai para muitos dos grandes heróis da época, o velho centauro suspi­rou e disse que um homem podia cuidar dos filhos dos outros e Falhar no que respeitava aos seus.

— Hoje em dia só os rapazes é que vêm ter comigo — disse ele — e apesar de o poder no mundo ter passado para o Pai do céu Zeus, 1 Deusa ainda tem direitos sobre nós — se bem que, por vezes, os homens não compreendam os seus mistérios.

O velho Rei olhou para os olhos perturbados de Peleu e respirou Fundo.

— Tu tens um belo filho. Ele já é um grande caçador e corre como vento e tem uma voz capaz de te destroçar o coração. Sentir-te-ás Drgulhoso de Aquiles — assim como ele já se sente orgulhoso de ti. — Quíron apercebeu-se do movimento de dúvida de Peleu. — Oh sim, ele sabe que o pai dele é um grande Rei da Tessália e já levou uns nurros por se gabar disso.

Naquele momento, os três homens ouviram o som ansioso e tur-)ulento de vozes de rapazes no desfiladeiro e tentaram continuar a conversa, mas o barulho continuou até que Quíron se levantou e disse:

— Chegou a hora de eu pôr fim a isto.

Os seus hóspedes seguiram-no até à abertura da gruta, de onde olharam

para baixo, para a extensão de relva áspera entre as rochas, viram dois rapazes a lutar como dois cães de combate no interior de um círculo de jovens espectadores de cabelos desgrenhados que os incitavam. Quando se levantaram, ambos tinham o nariz a escor­er sangue.

Peleu reconheceu Pátroclo pela túnica vermelha-escura que usava.

— O pai dele disse-me que ele tinha mau feitio e o rapaz já começou mal. Espero que o outro seja suficientemente forte para aguent­ar com ele.

— Creio que é. — Quíron virou-se para ele e sorriu. — É o teu filho.

 

                       O Oráculo do Togo

Passou-se uma geração no mundo dos mortais depois do casamento de Peleu com Tétis, mas a discórdia entre as deusas e Zeus não parecia ter fim. Finalmente, já sem paciência para a atmosfera amarga que o rodeava, o Pai do Céu convocou um conselho de deuses e Her­mes, o mais sensato e eloquente dos imortais, concebeu uma possí­vel solução.

Era óbvio, disse ele, que nenhuma das três deusas ficaria satisfeita enquanto não fosse dada uma opinião. Era igualmente claro que nenhum dos imortais estava em posição de escolher entre elas sem as ofender. Portanto, a sua opinião era que a decisão devia ser colocada nas mãos de um mortal imparcial.

Nada desagradado com a ideia de devolver a disputa ao mundo dos mortais, Zeus perguntou a Hermes se ele tinha alguém em mente.

Penso — disse Hermes, sorrindo — que é uma questão para Páris decidir.

Ares sobressaltou-se ao ouvir aquele nome. Aquele deus valen­tão, que regressara todo importante da Trácia onde faziam da guerra um desporto e se deliciavam a cortar cabeças como outros se delicia­vam com as artes, não tinha dúvidas acerca de qual das deusas devia receber a maçã. Há muito que se sentia aborrecido com aquela con­tenda, na qual não havia qualquer tipo de violência e declarou impa-cientemente que Páris era uma excelente escolha, já que o conhecia como um tipo sensato e com bom olho para os melhores touros de combate das Montanhas de Ida.

Apesar de estar ansiosa por regressar à sua solidão, Artemísia real­çou que o facto de gostar de touros talvez não fosse a condição ideal para o assunto em questão. Mas antes que Hermes pudesse respon­der, Ares contou que Páris tinha, uma vez, oferecido uma coroa como prémio ao touro que derrotasse o campeão que tinha criado. Apenas para se divertir, Ares transformara-se num touro e infligira uma pesada derrota ao animal de Páris. Apesar de todas as probabilidades contra, Páris entregara-lhe alegremente a coroa. Portanto, sim, Ares tinha a certeza — Páris era o ideal para dar uma opinião.

— Talvez deva acrescentar — disse Hermes, sorrindo amavel­mente para as deusas que não queriam saber, naquele momento, de nenhuns touros de combate — que Páris também é o mais belo dos mortais.

Zeus emitiu um grunhido. Severamente, o Pai do Céu olhou para as deusas.

— As três submetem-se à opinião desse belo mortal?

Quando elas acenaram com as cabeças em sinal de assentimento, o senhor do Olimpo suspirou de alívio.

— Muito bem, será Páris o juiz. — E pedindo a Hermes que conduzisse as deusas ao Monte Ida, Zeus virou, agradecido, os seus pensamentos para outros assuntos.

Sentado ao sol e vendo o seu rebanho a pastar nas encostas do Monte Ida, Páris não sabia, claro, de que os deuses o tinham elegido para resolver o problema que eles próprios não conseguiam resolver. Mas, nesse tempo, ele também ignorava muitas outras coisas e uma delas era o mistério do seu nascimento porque o jovem a quem era confiada aquela terrível responsabilidade era mais do que o simples vaqueiro que acreditava ser.

Muitos anos antes, poucas horas antes do seu nascimento, a sua mãe acordara aterrorizada devido a um sonho profético e esse sonho começava agora a lançar uma luz sinistra sobre o mundo. No entanto, como os pais geram filhos e uma história gera outra, era impossível saber quem Páris era sem saber também quem eram os seus pais e o seu avô.

Havia muitas Tróias antes da queda da última. Uma delas era gover­nada por um Rei chamado Laomedonte e a história da cidade conta como, como castigo humilhante por ter desagradado a Zeus, os deu­ses Apolo e Poseídon foram, uma vez, forçados a trabalhar durante um ano para esse Rei. Em troca de uma quantia estipulada, Apolo tocava lira e apascentava os rebanhos de Laomedonte, enquanto Poseídon labutava na construção das muralhas em redor da cidade Sabendo que estas nunca cairiam a não ser que na sua construção estivesse envolvido um mortal, Poseídon delegou parte do seu traba­lho a Éaco, que era pai de Peleu e de Télamon. Mas Laomedonte tinha laivos de perfídia na sua natureza e quando o trabalho ficou concluído recusou-se pagar o prometido, que era todo o gado nas­cido no reino no decurso daquele ano.

Não fora ele, mas sim Zeus, argumentou Laomedonte, que dis­tribuíra as tarefas aos deuses e, em qualquer dos casos, para que pre­cisavam os imortais do pagamento? Assim, o Rei mandou-os embora de mãos vazias.

Os deuses não demoraram muito a vingar-se. Sob a forma de deus-rato, Apolo lançou uma praga sobre Tróia, enquanto o tremor de terra Poseídon soltava um enorme monstro marinho para aterro­rizar as suas costas. Quando o povo, já sob os efeitos da peste, des­cobriu que as suas terras tinham ficado estéreis pelos enormes assal­tos da água salgada que o monstro lançava sobre os campos, pediram a Laomedonte que pedisse conselho ao oráculo de Zeus para saber o que apaziguaria os deuses. A resposta foi que só o sacrifício da filha amada do Rei, Hesíone, seria suficiente.

Laomedonte resistiu o mais que pôde, tentando forçar outros a oferecer as suas filhas ao monstro em substituição de Hesíone, mas os membros da assembleia troiana estavam conscientes de que a per­fídia do Rei é que era a causa das suas penas e só estavam dispostos a aceitar que se lançassem as sortes. De acordo com a vontade dos deuses, a sorte calhou a Hesíone. Assim, Laomedonte teve de olhar, impotente, enquanto a sua filha era despida de tudo salvo das suas jóias, acorrentada a uma rocha à beira-mar e abandonada.

O mar já chegava ao corpo nu de Hesíone quando a jovem foi encontrada por Héracles quando ele regressava, juntamente com Télamon, da sua expedição às terras das Amazonas. Usando a sua força prodigiosa, Héracles quebrou as correntes e libertou Hesíone. Mas o monstro marinho continuava ao largo, de modo que o herói fez uma combinação com Laomedonte, oferecendo-se para acabar com a besta em troca das duas éguas brancas imortais que eram o orgulho da manada do Rei.

O Rei aceitou e depois de uma luta que durou três terríveis dias, Héracles conseguiu matar o monstro.

Mais uma vez, Laomedonte provou ser um homem pérfido. Igno­rando os conselhos do seu filho Podarces, substituiu as éguas imor­tais por dois cavalos mortais e Héracles, quando descobriu o logro, declarou guerra a Tróia.

Foi uma guerra que deixou a cidade devastada. Como filho de Éaco, Télamon foi capaz de descobrir quais os troços da muralha de Tróia que tinham sido construídos pelo seu pai e que eram, por isso, as mais fracas. O herói abriu brechas nas defesas da cidade nesses locais, Héracles juntou-se a ele no assalto e o palácio foi saqueado. Acome­tido por uma raiva vingativa, Héracles matou Laomedonte e quase toda a sua família. Apesar de Hesíone ter sido poupada, foi entregue contra a sua vontade a Télamon e levada para a sua fortaleza de Salamina. Mas, antes de deixar Tróia, Hesíone conseguiu pagar o res­gate de um outro cativo. A vida que ela decidiu salvar foi a do seu único irmão, Podarces. ele que Héracles nomeou como Rei de uma cidade reduzida a escombros. O novo Rei passou a ser conhecido como Príamo, o resgatado.

Pelo menos é assim que a história é contada entre os bardos troianos e havia aspectos que Télamon e Héracles gostavam de pro­pagar entre os naturais de Argos. Mas a Odisseu foi contada uma versão diferente pelo irmão de Télamon, Peleu. Foi assim que ele ma contou.

Quando eram rapazes, Télamon e Peleu já sabiam do diferendo que existia entre o seu pai e o Rei Laomedonte de Tróia. Como homem sobejamente conhecido pela sua sabedoria e capacidades, Éaco tinha sido incumbido de reconstruir e fortalecer as muralhas de Tróia. Como a cidade estava num local sujeito a tremores de terra, Éaco pediu a ajuda divina de Poseídon e de todos aqueles que compreendiam os seus mistérios. Também levou com ele um bardo dedicado a Apolo. Foi ele que tocou a música que facilitou o trabalho duro de talhar, mover e erguer os grandes blocos de pedra. Os trabalhos decorriam bem. Foram construídas novas portas soberbas, guardadas por bastiões. Os blocos de pedra calcária eram habilidosamente assentes de modo a que a muralha fosse mais estreita em cima do que em baixo.

No topo, um parapeito ameado e reluzente. Assim, as novas muralhas de Tróia, erguendo-se no monte ventoso sobre a planície, eram ao mesmo tempo belas e robustas.

Porém, antes de os trabalhos ficarem completos, tornou-se evi­dente que Laomedonte estava a ficar sem dinheiro. Quando Éaco viu que o Rei não lhe ia pagar pelo trabalho restante, devolveu as ferra­mentas e regressou a Salamina, deixando um trecho da muralha por acabar e vulnerável, mas antes, furioso pela falta de palavra de Lao­medonte quanto ao dinheiro que ainda lhe devia, chamou a maldição de Poseídon e de Apolo sobre a cidade.

Muitos anos mais tarde, os Troianos foram acordados uma manhã por um som terrível. As águas da baía entre as duas línguas de terra estavam a ser sugadas na direcção do Helesponto, deixando o leito exposto e a cheirar tão mal como um pântano, coberto de rochas, lodo e carcaças de barcos velhos. O solo por baixo da cidade come­çou a mover-se. Os edifícios estalaram, oscilaram e entraram em colapso. As pessoas fugiram das suas casas quando o mar regressou e se abateu sobre a cidade como uma enorme parede de água, maior do que uma casa e que não parou na linha de costa, alagando a planí­cie fértil, destruindo as colheitas e salgando os solos.

Apesar de a muralha construída por Éaco ter aguentado o cho­que, as defesas ocidentais e muitas casas no interior da cidade não aguentaram. Perderam-se, naquele dia, centenas de vidas, encurraladas por baixo das pedras ou afogadas pela vaga. Em breve um fedor a podre poluía o ar da cidade. A peste chegou à cidade no espaço de alguns dias.

Télamon e Héracles foram apanhados pelas águas turbulentas quando velejavam através do mar Negro na direcção do Helesponto no único navio que lhes restava depois da violenta expedição à terra das Amazonas. Quando navegaram ao longo da costa de Tróia, o tempo tinha amainado e as águas estavam um pouco mais calmas. Mas quando percorriam a linha de costa ficaram espantados por ver uma jovem nua presa às rochas e recebendo no corpo a fúria das ondas.

A rapariga estava meio-morta de frio e de medo, mas Héracles libertou-a, levou-a para bordo e reanimou-a. A jovem não era a prin­cesa Hesíone, claro, porque Laomedonte tivera o cuidado de tirar o nome da filha da lista das sortes que tinham sido lançadas na cidade.

Foi pela jovem a quem calhara a sorte que souberam das condições desesperadas da cidade. Reduzido a um primitivo estado de terror pela sua infelicidade, o povo troiano recorrera ao sacrifício humano em busca da clemência dos deuses.

Vendo naquilo uma oportunidade, Télamon navegou até Egina e disse ao seu pai que a sua maldição dera, finalmente, fruto. Se Éaco lhe arranjasse dez navios, regressaria a Tróia e saquearia o que lhes fora recusado como pagamento. Éaco concordou em contribuir ape­nas com metade do pagamento para a frota e Télamon foi ter com Peleu por causa do resto, mas sem sucesso. Finalmente, ele e Héra­cles avançaram contra Tróia apenas com seis navios, mas levando os homens suficientes para abrir uma brecha no trecho mais fraco da muralha e saquear a cidade já devastada.

Em termos de dinheiro vivo e saque, a expedição falhou o seu objec­tivo, mas Laomedonte foi morto e Télamon ficou com a sua filha Hesíone como parte do espólio. O filho mais prudente de Laome­donte, Podarces, sobreviveu à chacina ao resgatar a vida revelando onde Laomedonte escondera o que lhe restava do tesouro. Antes de partir, Télamon colocou uma coroa na cabeça do jovem troiano e aclamou-o como Rei Príamo.

Aterrorizado e humilhado, mas vivo, Podarces jurou a si próprio que usaria o seu novo nome com orgulho, que faria o que fosse pre­ciso para recuperar a riqueza de Tróia e que se vingaria um dia dos bárbaros do outro lado do mar.

Antes desse tempo, o povo troiano tinha tendência para olhar para ocidente, para Argos, no outro lado do mar, de onde tinham vindo os seus antepassados nas gerações anteriores. O jovem Rei Príamo decidiu virar-se para Leste, encetando negociações com o grande regime burocrático dos Hititas, em busca de empréstimos que o ajudassem a reconstruir a cidade e de comércio para os poder pagar. O Rei encontrou uma resposta favorável. Os mercadores das costas da Ásia Menor viram as vantagens de negociarem com uma cidade bem governada num local que dominava o acesso ao comér­cio com o mar Negro. Em breve começavam, também, a chegar navios do Egipto. Começaram a edificar-se novos edifícios no inte­rior das muralhas de Tróia, não apenas palácios e casas, mas também grandes armazéns onde o povo era posto a fabricar têxteis a partir das matérias-primas que chegavam à cidade vindas de leste, assim como dos seus próprios rebanhos nas montanhas. A capacidade de trabalho dos Troianos mostrou-se proverbial, de grande qualidade e, por isso mesmo, proveitosa. No exterior das muralhas, Príamo enco­rajou a habilidade tradicional do seu povo como domadores de cavalos e em breve os compradores começaram a olhar para Tróia e para os seus cavalos. E o Rei também tirava grande prazer da força poderosa dos touros criados pelos seus parentes dárdanos nas pastagens das montanhas de Ida.

Príamo mostrou-se agradecido aos deuses pelos seus favores. Pouco depois de ter subido ao trono, consagrou um antigo santuário da montanha a Apolo Sangário, portador e salvador da peste. Em seguida, deu um novo templo ao deus no interior da cidade e consagrou-lhe outro no local sagrado de Timbre'. À medida que a sua riqueza ia aumentando, ia construindo, tendo edificado uma espaçosa praça para servir de mercado, rodeada por lojas e armazéns e virada para um templo novo que albergava o PaláCio, uma antiga estátua de madeira da deusa com apenas três cúbitos de altura que fora feita pela própria Palas Atena e da qual, dizia-se, dependia a sobrevivência da cidade.

Entretanto, o Rei casara-se. A sua mulher, Hécuba, era filha de um Rei trácio e o casamento selou uma importante aliança militar e comer­cial. Mas também havia amor entre eles e a felicidade de Príamo pare­ceu completa quando a sua Rainha deu à luz um forte rapaz a quem deram o nome de Heitor, / Do grego «que segura firmemente») porque estava destinado a ser o defen­sor da cidade. Pouco depois, Hécuba ficou grávida de novo e parecia ir tudo bem quando uma noite, pouco antes de o novo bebé nascer, Hécuba acordou aterrorizada por causa de um pesadelo.

No sonho, a Rainha dava à luz um tição a arder, do qual saía uma prole de serpentes que enchia de chamas a cidade de Tróia e as flo­restas do Monte Ida. Perturbado com aquele horrível oráculo de fogo, Príamo convocou o seu adivinho que era sacerdote de Apolo em Timbre e que tinha o dom de interpretar os sonhos. O sacerdote confirmou os receios do Rei — se a criança no ventre de Hécuba sobrevivesse, seria o causador da ruína da cidade.

Duas manhãs mais tarde, o vidente emergiu de um transe proféTICo para declarar que um dos membros da casa real daria à luz uma CRiança naquele dia. A má fortuna só seria evitada se a mãe e o resP­ectivo filho fossem mortos. Para horror de Príamo, Hécuba entrou IMediatamente em trabalho de parto.

No entanto, a Rainha não era a única mulher grávida na casa real e durante a manhã Príamo recebeu a notícia de que a sua irmã Cila tinha dado à luz um bebé. Com o coração destroçado, mas aliviado POr se ver poupado à perda da própria mulher e filho, ordenou a morte IMediata da irmã e do respectivo filho. Depois de ter visto arder os seus corpos no recinto sagrado da cidade, Príamo regressou aos aposentos da sua mulher, esperando que os deuses estivessem satisfeitos e que a cidade estivesse salva.

Mas a noite ainda não tinha chegado quando Hécuba deu também à luz um filho.

Príamo levantou o olhar do rosto tranquilo da criança ao ver entrar o sacerdote e a sacerdotisa de Apolo. O Rei soube de imediato o que lhe era exigido, mas não conseguiu decidir aquelas duas mortes suplementares.

— Não chega ter morrido hoje uma mãe real e o seu respectivo filho? — perguntou ele. — Os deuses que se contentem. Solenemente, o sacerdote recordou-lhe o destino terrível que caíra sobre Tróia quando o seu pai Laomedonte tentara enganar os deuses. A sacerdotisa permaneceu implacável na sua convicção de que, pelo menos, a criança tinha de morrer. O sonho de Hécuba não a avisara que transportava no próprio ventre a ruína da cidade? Seria sensato permitir que o seu filho sobrevivesse com um custo tão terrível? — Foste tu que trouxeste esse mal a este mundo — disse ela. — Deves ter a força e a sabedoria necessária para o matar com as tuas próprias mãos.

Quando Hécuba desatou a gritar, recusando, o sacerdote virou o olhar para o Rei.

— Arriscas tudo o que construíste, salvando uma criança maldita? — Eu servi Apolo como deve ser — protestou Príamo. — Que fiz de mal para que ele me persiga assim?

O sacerdote abriu as mãos.

— Apolo está sempre a olhar para o poço do tempo. A sua preocu­pação é com a protecção da cidade.

— Para o teu reino sobreviver — insistiu a sacerdotisa — é pre­ciso que a criança morra.

— A minha irmã e o bebé dela já morreram às minhas ordens lamentou-se Príamo.  Quereis as Fúrias todas empoleiradas na minha mente? Quanto sangue derramado achais que sou capaz de suportar?

O sacerdote desviou o olhar.

— Não somos nós que pedimos este sacrifício. O Rei tem de esco­lher entre a sua cidade e a criança.

Procurando misericórdia onde ela não podia ser encontrada, Príamo ergueu os olhos ao céu.

— Então, que seja a criança. Mas não às mãos da minha mulher. E às minhas também não. O Rei arrancou o bebé a chorar dos bra­ços da sua mulher e entregou-o à sacerdotisa. — Faça-se como que­res — arquejou ele  e deixa-nos com a nossa dor.

Com Hécuba gritando histericamente nos seus calcanhares, os sacerdotes deixaram os aposentos reais e levaram a criança para que fosse morta por um dos guardas do palácio. Mas o homem não con­seguiu fazê-lo e ao consultar os seus amigos, um deles disse:

— Agelau que o faça. Ele está habituado a carnificinas.

Assim, horas mais tarde, na aldeia onde vivia, nas montanhas dárdanas, para lá da planície de Tróia, o chefe dos pastores do Rei foi acordado por um cavaleiro que lhe bateu à porta. Informado sobre o que pretendiam dele, Agelau olhou para o bebé embrulhado em fai­xas na sua frente.

— Parece um rapaz forte disse ele. Por que tem ele de morrer?

— Porque o Rei o ordena - replicou o cavaleiro.

Perguntando a si próprio por que razão lhe tinham destinado aquela tarefa, Agelau abanou a cabeça.

- O Rei disse como queria que a criança morresse?

— Tu é que escolhes — disse o cavaleiro, subindo para a mon­tada e afastando-se. — A morte da criança é por vontade dos deuses — gritou ele por cima do ombro. — Livra-te dela.

Apesar de ter degolado inúmeros animais durante a sua vida, Age­lau não tinha mais estômago do que o guarda para cortar a garganta à criança. Franzindo o sobrolho perante a vida que tinha nos braços, murmurou:

- Se os deuses acham que tens de morrer, eles que tratem disso.

Então, o vaqueiro levou a criança para uma clareira da floresta nas encostas do Monte Ida e deixou-a lá para que o destino decidisse se havia de morrer ou de sobreviver.

Três dias mais tarde, por insistência da sua mulher, Agelau regressou à clareira. Quando viu as pegadas de um urso dirigindo-se naquela direcção, não esperava encontrar nada senão umas faixas ensanguen­tadas, mas quando se aproximou ouviu um choro de bebé transpor­tado pelo vento. Correndo por entre as árvores, Agelau encontrou a criança viva, gritando por comida e quase azul de frio. O seu cora­ção enterneceu-se imediatamente.

Segurando o bebé contra o peito para lhe dar algum calor, o vaqueiro disse:

— Se os deuses mandaram uma ursa para te amamentar, rapaz, devem querer que sobrevivas. - Ternamente, Agelau colocou o bebé na bolsa que levava a tiracolo e levou-o para casa para junto da mulher. Foi ela que reparou no sinal de nascença, parecido com um beijo, no pescoço da criança e o seu coração derreteu-se. Aquela criança fora--lhes enviada, declarou ela, e cuidaria dela. A mulher chamou-lhe Páris, que quer dizer «bolsa», devido à maneira estranha como ela lhe tinha ido parar às mãos.

Os anos foram passando e Páris em breve se distinguia dos outros vaqueiros à sua volta pela sua coragem e inteligência. Mesmo em criança, não tinha medo dos touros e o seu maior prazer era vê-los a lutar uns com os outros para assistir ao triunfo da sua própria bes­tialidade. Sob a tutela paciente de Agelau, em breve se tornou num bom caçador e num excelente arqueiro. E tinha apenas dez anos quando usou o seu arco com outro propósito mortífero, que não o de matar pássaros, apesar de a sua intenção inicial ter sido essa quando partiu para os bosques.

Naquele dia, o Sol estava tremendamente quente e o ar pesado. Páris saíra alegremente de casa, mas ao princípio da tarde já se sentia sonolento e irritado. Procurando entre os fetos as flechas que tinha disparado e perdido, sentia-se como se um trovão lhe tivesse entrado na cabeça e assim, apenas com um coelho e uma perdiz pendurados no cinto, o rapaz descia sem energia a encosta pelo meio das árvores quando ouviu o som de um mugido mais abaixo.

Consternado por o seu pai ter decidido transferir o gado sem lhe dizer, Páris já começava a correr para se juntar à condução da manada quando ouviu homens a gritar — vozes desconhecidas, com um sotaque estranho, gritando ordens. O jovem parou ainda a coberto das árvores e viu um bando de ladrões de gado a destruir uma cerca que Agelau tinha construído na Primavera.

Páris já tinha contado nove, todos armados com lanças e espadas, quando mais gritos lhe fizeram desviar o olhar para a direita, onde Agelau corria pela encosta vindo da aldeia, seguido por dois dos seus vaqueiros. Os homens só traziam chuços e uma lança de caça. Um homem corpulento, usando um elmo e uma jaqueta de pele eriçada de pregos, avançou ao seu encontro, fazendo girar a sua espada e gri­tando pelos outros para que o ajudassem.

Páris agarrou no seu arco. O jovem ainda tinha sete flechas na aljava. Engolindo em seco, colocou uma delas entre os dedos e esti­cou a corda do arco.

Seis dos ladrões enfrentavam Agelau e os seus homens em campo aberto e os outros três aproximavam-se rapidamente. Quando Age­lau arrancou a lança das mãos do homem mais velho a seu lado, o chefe dos ladrões, o do elmo, brandiu a sua espada e ordenou a um dos que transportavam lanças que atirasse. O homem levantou a lança e já ia lançá-la quando uma flecha saiu das árvores e lhe perfu­rou o pescoço. O vaqueiro e os ladrões viram, espantados, o sangue a sair da boca do homem, viram-no largar a lança e cair no chão desamparado. Segundos mais tarde, com um som de metal contra metal, uma outra flecha ricocheteou no elmo do chefe dos ladrões. Tirando partido do choque, Agelau lançou a sua lança com tal força que esta atravessou a jaqueta e pregou o homem ao chão, onde ele ficou, estremecendo e babando-se.

Ficaram todos, de novo, petrificados.

Uma terceira flecha voou e espetou-se, vibrando, na relva. Os ladrões tinham perdido o chefe mas os três vaqueiros estavam agora desarmados perante sete ladrões, afastados apenas alguns metros. Páris disparou outra flecha contra outro dos ladrões, um magricela, que imediatamente largou a sua lança para se agarrar à haste espetada na sua coxa. Os restantes assaltantes olharam em volta, indecisos, sem SABer quantos homens estariam escondidos nas árvores. Quando um quarto homem grunhiu e olhou para baixo para ver uma flecha tremendo-lhe na barriga, três dos outros desataram a correr pela encosta abaixo. Momentos mais tarde, desencorajados pela alteração inesperada da sua sorte e pelos grunhidos dos que morriam à sua volta, os restantes fugiram, detendo-se apenas para ajudar os seus camaradas feridos.

Agelau e os seus companheiros estavam a vê-los descer a encosta quando Páris saiu do meio das árvores com o seu arco. O jovem ouviu chamamentos dos amigos como se vindos de muito longe. Páris sentia a cabeça à roda e tinha a garganta seca.

— Já só tinha mais duas flechas murmurou ele enquanto tentrava libertar-se do abraço de Agelau. Em seguida, Páris olhou para o chefe dos ladrões com a lança espetada nos pulmões. Virando-se, viu o homem com a flecha espetada na garganta e um terceiro, que olhou para ele como que implorando-lhe que lhe arrancasse o projéc­til da barriga.

Uma nuvem sombria surgiu nos olhos do rapaz. Páris estava a ver a agonia do ladrão, com um mar de sangue a sair-lhe da boca quando a sombra aumentou, tornou-se mais espessa e consumiu toda a luz do dia.

O jovem acordou ao som de água a correr por cima de pedras. Páris estava na margem de um rio, à sombra de um alpendre de colmo, deitado numa esteira e o cintilar da água sob os raios do Sol cegou-lhe os olhos. O ar por cima da sua cabeça cheirava bem, a ervas. saboreando os aromas combinados do bálsamo, da camomila e da alfazema, o jovem virou a cabeça e gemeu um pouco, sentindo uma tontura. Então, viu o homem de cabelos grisalhos numa rocha vizinha, passando os dedos pelos longos caracóis da sua barba.

Uma voz de rapariga disse:

— Parece que já acordou. — Páris virou-se para olhar para ela. Sim — gritou ela — já — e o seu rosto abriu-se num alegre sorriso. Os seus cabelos também eram encaracolados, mas eram tão loiros ­e finos que deviam ter sido tecidos pela luz por cima da sua cabeça. Usando uma túnica branca manchada pela relva, brincava com um rato que lhe corria por entre as pequenas mãos. Tinha, talvez, seis anos. À sua retaguarda, a alguma distância, havia dois montículos relvados com portadas de pedra que pareciam dois túmulos.

— Dá-lhe um pouco de água — disse o pai dela, segurando gen­tilmente no ombro do rapaz. — Deixa-te ficar quieto   disse ele,

sorrindo. Está tudo bem.

Páris virou a cabeça para ver a rapariga estender a mão com uma taça e enchê-la de água fresca que corria por entre as rochas. O jovem sentia a cabeça a arder de dor. Era como se os seus violentos sonhos de fogo, fumo e edifícios a arder ainda estivessem presentes.

A rapariga regressou e levou-lhe a taça aos lábios.

— Estiveste muito doente, Alexandre — disse ela com um ar entendido — mas o meu pai tem o dom da cura. Em breve estarás forte de novo.

A água fluiu-lhe pela língua e aliviou-lhe a garganta. O jovem lambeu os lábios secos, bebeu mais e deixou descair a cabeça. Esfor­çando-se por recordar o passado recente, recordou-se das moscas em redor dos ferimentos dos homens que tinha matado. A sua respi­ração arquejou um pouco. Em seguida, disse:

- O meu nome não é Alexandre.

— Não, é Páris, eu sei. Mas foi-te dado outro nome desde que afugentaste aqueles ladrões de gado. Dizem que podes ser apenas um rapaz, mas que te tornaste num defensor dos homens e por isso é que agora te chamas Alexandre. Eu gosto mais.

— Chega — disse o pai dela. — Dá-lhe tempo para recuperar.

O homem sorriu de novo para o jovem. Eu sou sacerdote de Apolo neste santuário. O meu nome é Cébren. O teu pai trouxe-te para aqui há três dias para que eu te curasse da febre que tinhas. Ele vai ficar contente por saber que o deus-rato cuidou de ti. Dentro de dois dias vem-te buscar. Tudo o que precisas é de descanso.

— Está tudo bem, Alexandre — disse a rapariga. -- Não preci­sas de ter medo.

— Eu não tenho medo. — Os braços dela eram tão finos que o faziam pensar em caules de flores. — Como é que te chamas? — perguntou ele.

— Enone — respondeu ela.     Sou a ninfa desta fonte. Um dia também serei curandeira.

Páris sorriu vagamente e, quase imediatamente, adormeceu de novo.

Agelau chegou com uma mula para levar o seu filho adoptivo para casa e trazendo, agradecido, oferendas para o deus e para o sacer­dote que o servia. Recebido como herói entre os amigos, Páris em breve se esquecia de como a sua mente tinha adoecido perante as coi­sas que fizera. Nos anos que se seguiram, o seu rosto de rapaz trans­formou-se no de um jovem de porte nobre, de belas feições e de tra­ços robustos cuja força era semelhante à sua coragem. Conhecido também pelo seu bom senso, era muitas vezes chamado para dar conselhos ou resolver questões entre os vaqueiros. Assim, como Age­lau estivesse a envelhecer e os seus músculos entorpecerem-se, Páris tornou-se o guardião da manada e, apaixonado pelo seu trabalho, começou a sentir um orgulho obsessivo pelos seus formidáveis tou­ros de combate.

Apenas uma vez, ao longo dos anos, foi derrotado num combate. Numa feira de Primavera, um touro selvagem, mais negro de que uma nuvem de trovoada, desceu das montanhas, assustando os aldeões e agitando a manada quando atravessou a cerca e começou a bramir e a dar cornadas por tudo quanto era sítio. O touro combateu com tanto ardor que Páris teve de se limitar a olhar, espantado, enquanto ele derrotava o seu animal favorito, pisando-o e espetando-lhe um corno imenso no corpo, perfurando-lhe os pulmões. Apesar de ter ficado horrorizado com a visão, o jovem não hesitou em honrar tal feroci­dade com a coroa da vitória. Ofegante e coberto de suor, o touro vaci­lou na sua frente, chicoteando o ar com a cauda e com o couro negro cheio de sangue. Páris olhou para os seus ferozes olhos. O jovem ouviu alguém murmurar que o animal devia ser morto antes que pro­vocasse mais danos. Firmemente, Páris abanou a cabeça.

— Não — disse ele, entrelaçando-lhe a coroa nos cornos — este touro merece a liberdade. Ele que percorra as montanhas a seu bel--prazer.

Resfolegando à luz crepuscular, o touro baixou a cabeça orgu­lhosa, como que numa saudação. Momentos mais tarde, com a gri­nalda entrelaçada nos cornos, o animal galopava de regresso às mon­tanhas.

Quando Agelau observou que nunca vira em toda a sua vida de vaqueiro um touro comportar-se daquela maneira, Páris sorriu e disse: — Creio que ele estava possesso por um deus.

Na mesma feira da Primavera, dois anos mais tarde, Páris estava a engrinaldar os cornos esbranquiçados do seu touro favorito quando viu uma jovem a olhar para ele das árvores, do outro lado do recinto. A luz do Sol reflectia-se nos seus cabelos. A jovem era alta e esbelta e tinha uma flor nos lábios. Todos os seus sentidos se sentiram alte­rados perante a sua presença. Em seguida, o seu coração deu um salto ao ver o sorriso com que ela o presenteava de longe. Quando ela des­viou modestamente o olhar, ele sentiu que nunca tinha visto nada tão belo.

Incapaz de dizer uma palavra, o jovem percorreu os poucos metros que o separavam dela e estendeu uma das mãos para receber a flor. Mal respirando, ela viu-o levá-la aos lábios. Em seguida, Páris regressou para onde estava o seu touro, ofegante à luz da tarde, e inseriu a flor na grinalda que o animal tinha nos cornos. Páris olhou para a rapariga.

— Quem és? Não me lembro de te ver antes.

Sorrindo, ela disse:

— Talvez, se eu tivesse cornos, uma cauda e resfolegasse como um touro, te lembrasses de mim.

— Não creio que te tivesse esquecido se já te tivesse visto.

— Mas esqueceste — disse ela, rindo. — E, sem dúvida, esque­cerás de novo.

— Nunca. Juro como verdadeiro homem que sou.

Ela desviou o olhar.

— Talvez ainda tenhas de o demonstrar — apesar da pele de leo­pardo que usas.

O jovem corou ao ouvir aquilo.

— O meu nome é Páris. Ninguém duvida da minha coragem. Ou da minha fé.

— Eu lembro-me de um rapaz cuja bravura prometia muito — disse ela. — Nesse tempo, chamavam-te Alexandre. Nesse tempo, costumavas dormir muito.

Páris aproximou-se, fixando-a, confuso. O canto melodioso da voz dela fê-lo recordar o som da água — água límpida, água a correr por cima de pedras.

— Tu és a ninfa da fonte — disse ele. No santuário das montanhas. O teu pai curou-me da febre e tu deste-me água.

— E nunca mais pensaste em mim!

Páris corou de novo.

- Tu eras uma criança a brincar com um rato!

-      Ao passo que tu eras o grande defensor dos homens! — A jovem riu-se perante o seu evidente desconforto e depois olhou de novo na direcção das árvores, sorrindo.

Não longe do sítio onde estavam, os vaqueiros e as suas mulhere­s estavam a reunir-se por baixo dos alpendres para a festa com as crianças a correrem de um lado para o outro barulhentamente à sua volta.

— Vieste das montanhas para assistir à feira? — perguntou ele. - Dizem que o Rei Anquises e o filho vêm ver os jogos. — Vim porque o rio me disse para vir.

A jovem olhou para ele. Os olhos de ambos encontraram-se. Com uma voz baixa e pouco segura, ela acrescentou:

— Tenho pensado em ti todos os dias desde então.

A jovem virou-se e regressou às árvores, deixando Páris espanta­do. Alguém o chamou para se juntar à festa. O jovem levantou um braço e disse que iria brevemente. Então, recordou-se do nome da rapariga e murmurou-o:

— Enone.

Mas ela já tinha desaparecido no meio das árvores. Levado pelo pensamento de que não podia permitir que tal beleza desaparecesse da sua vida para sempre, seguiu-a. A jovem parou quando ele a chamou. Timidamente, os dois jovens conversaram durante algum tempo. Páris tornou-se mais arrojado. Rindo, Enone afastou-se dele e correu para a segurança das árvores. Ele perseguiu-a, seguindo som do seu riso, até que chegou a uma clareira iluminada pelo sol, na margem de um regato cujas águas saltavam por cima das pedras. Foi ali que ela se deixou apanhar.

Em breve se tornavam inseparáveis. Por vezes, nas manhãs frias, iam juntos caçar veados ou javalis, atravessando os desfiladeiros das montanhas, onde Páris gravou o nome de Enone na casca das árvo­res enquanto as torrentes de água caíam em cascata pelas rochas à sua volta. E no calor do dia deitavam-se muitas vezes nos espaços abertos cheios de flores selvagens enquanto observavam os animais da manada nas pastagens de Verão.

Ignorante das suas origens, livre de quaisquer cuidados, deliciado com a vida enérgica do campo, a única que sempre tinha conhecido, adorado pelos seus pais adoptivos, admirado pelos seus amigos e profundamente amado por Enone, Páris podia ser considerado o mais feliz dos homens. No entanto, à medida que as estações passa­vam, começava a apertar-lhe o coração uma vaga inquietação. Não que lhe pudesse dar um nome, ou que se sentisse perturbado por sentimentos de descontentamento; mas uma obscura sensação de horizontes mais largos do que os cumes silenciosos à sua volta perturbava-lhe, por vezes, os devaneios durante as horas que passava sozinho. E foi numa dessas tardes, enquanto o calor enchia as pasta­gens verdes logo abaixo da linha de neve do Monte Ida, que o des­tino lhe fez uma emboscada.

O Jugamento de Páris

- Portanto, como vês — dizia Hermes — só teremos paz quando esta discussão for resolvida. Precisamos de um juiz imparcial para resolver a questão e a opinião geral é que tu és o homem do momento.

— Eu? — protestou Páris. — Como pode um vaqueiro resolver uma questão entre os deuses?

Hermes deu um piparote na aba do seu chapéu com o bordão e olhou-o bem nos olhos.

— Tu tens olho para a beleza, não tens? E Ares ficou impressio­nado com o teu sentido de justiça. De qualquer maneira, as deusas concordaram em aceitar a tua opinião. Devias sentir-te lisonjeado.

Páris pensava com rapidez.

Como posso eu escolher uma delas sem ofender as outras? Não seria mais simples dividir a maçã em três partes?

Receio que nenhuma das deusas esteja preparada para um compromisso desses. O caso já foi demasiado longe. Elas querem uma decisão.

— Nesse caso, vou precisar dos teus conselhos.

Hermes ergueu as mãos, como se quisesse recuar.

— Se eu não me mantiver imparcial, a minha vida imortal deixará de valer a pena.

— Mas eu sou apenas um humano — protestou Páris. — Tenho medo de errar.

— Mais tarde ou mais cedo, todos os mortais têm de fazer a sua escolha — disse Hermes. — Chegou a tua hora. É sempre um momento solitário, mas não podemos fazer nada. Se fores sensato, terás de concordar. Nunca se sabe, com três deusas ansiosas pela tua opinião, talvez fiques a ganhar.

O deus inclinou a cabeça.

— Estás pronto? Chamo-as?

Tão alarmado quanto excitado com a perspectiva diante de si, Páris acenou com a cabeça. Hermes começou a virar-se, mas depois parou.

— Só mais uma coisa. Estão mais coisas em jogo do que uma simples maçã dourada. — O deus ergueu o bordão e abanou-o para que as fitas brancas se agitassem no ar.

Páris ficou sem respiração quando, subitamente, surgiram instan­taneamente três deusas na sua frente.

Ao meio estava Hera, usando a sua coroa de videiras entrelaçadas, da qual pendiam dourados cachos de uvas. Um vestido de brilho difuso, parecido com uma rede e bordado com espigas e estrelas, caía-lhe pelo corpo, modelando-o. Aquela deusa era, Páris viu imediatamente, extremamente bela e sentia-se perfeitamente à-vontade, com uma espécie de graça tranquila que sabe o poder que tem e que não precisa de o mostrar. Com uma dignidade e autoridade régias, a deusa reconheceu o deslumbramento no olhar do vaqueiro.

À direita de Hera, a mais atlética Atena usava uma armadura fina-mente trabalhada que lhe moldava as formas flexíveis e os tendões tensos dos seus esbeltos membros. Numa mão, a deusa tinha uma lança de bronze e na outra o escudo — o escudo coberto de pele de cabra, na qual estava representada a cabeça de uma górgona. Agora, era o contraste entre o brilho claro dos seus olhos e a beleza sombria, mas sem qualquer nuvem, que Páris contemplava.

Afrodite estava à esquerda de Hera, levemente apoiada numa anca para fazer sobressair as formas por baixo do vestido simples, leve como gaze. A deusa tinha os braços à altura do peito, as palmas das mãos estavam unidas e levava as pontas dos dedos à boca. Os seus cabelos tinham violetas entrelaçadas e umas flores douradas pendiam-lhe das orelhas. Afrodite inclinou ligeiramente a cabeça para sorrir para Páris e depois baixou os braços para ver o jovem prender a res­piração ao aperceber-se do cordão intrincadamente trabalhado que começava por ser um colar no seu esbelto pescoço e que depois des­cia para separar e suportar os contornos dos seus seios.

Achando que talvez tivesse sido demasiado formal, Hera disse:

Estou a ver que Hermes não nos decepcionou quando nos prometeu o mais belo dos mortais como juiz.

Páris desviou o olhar, fazendo um gesto na direcção do seu gado.

— Ele trouxe-vos um vaqueiro. Um homem sujeito a cometer erros. —Ainda aterrorizado, o jovem aprumou-se para enfrentar as deusas. — Se eu concordar com este julgamento, tenho de impor algumas condições.

— Quais são elas? — perguntou Atena.

Páris respirou fundo.

— Têm de me perdoar antecipadamente. Também quero a garan­tia de que nenhuma me fará mal caso o veredicto não a favoreça.

— Parece-me razoável — disse Hera. Atena acenou com a cabeça. Afrodite sorriu e acrescentou:

— Muito sensível, também.

— Nesse caso, se concordam com as condições — disse Hermes — podemos continuar. — O deus olhou para Páris. — Preferes julgar as contendoras juntas ou queres examiná-las uma a uma?

Páris, que estava a ter alguma dificuldade para manter os olhos afastados do cordão de Afrodite, ia responder quando Atena disse com um ar distraído:

— Devo insistir para que Afrodite tire o kestos — disse ela. — Todas nós sabemos que ele faz com que os homens fiquem com os joelhos trémulos.

Afrodite protestou imediatamente, dizendo que o seu kestos fazia parte da sua apresentação, tal como a coroa de Hera ou a armadura de Atena. Quando as outras duas deusas classificaram o seu protesto como ridículo, a questão pareceu descontrolar-se de novo. Hermes já ia intervir quando Páris, que já começava a sentir o poder que tinha, ergueu uma mão imperiosa.

— Penso que é melhor vê-las uma de cada vez — disse ele. — Desse modo, evitamos qualquer discussão.

Como queiras.

No entanto, não vejo como poderemos evitar quaisquer sus­peições de vantagem ou desvantagem, a não ser que as deusas tirem todos os ornamentos e roupas.

— Tu és o juiz — replicou solenemente Hermes. — Tu é que estabeleces as regras.

— Então, que se faça assim.

Hermes tossiu.

— Parece-me que ouvistes o que Páris disse. Importais-vos de vos despir? Virando discretamente as costas às deusas, Hermes perguntou a Páris por que ordem queria ele ver as contendoras.

Páris pensou por um momento.

— Como Rainha do Olimpo, a Divina Hera deve ter a precedên­cia. Depois, talvez Atena e, finalmente, Afrodite.

— Boa sorte, então — disse Hermes, sorrindo.

E desapareceu.

Deixado sozinho num estado de agitação, Páris sentou-se. Um momento mais tarde, pensava: Pai Zeus, perdoa-me, quando se viu sozi­nho a olhar para a Rainha do Olimpo, majestosamente nua na sua frente.

— Estás errado naquilo que disseste. — Hera virou-se para que o jovem pudesse admirar a curva das suas costas. — Tu és muito mais do que um simples vaqueiro. Na verdade, és de nascimento real. — Virando-se de novo, ela sorriu para grande espanto do jovem. — O Rei Príamo é que é o teu verdadeiro pai. Vai ao palácio dele, em Tróia, e anuncia-te. Diz-lhe que os deuses decidiram poupar-te a vida. Ele vai ficar muito contente.

Apesar de aquelas palavras o espantarem, Páris teve um sobressalto de gratidão. Não tinha pensado ele várias vezes num segredo? Não seria por causa daquilo que se sentia diferente de todos os outros à sua volta? Não seria aquela a razão da sua inquietação? Com uma excitação crescente, escutou enquanto Hera lhe contava a histó­ria do seu nascimento.

— E há mais — disse Hera, sorrindo. — Não precisas de te sen­tir feliz pelo facto de seres um príncipe. Concede-me o prémio, hoje, e poderás vir a ser um rei de pleno direito. Farei de ti o soberano mais poderoso da Ásia. Riqueza, império e glória — tudo isso pode ser teu. Como Rainha do Paraíso e mulher de Zeus, posso fazê-lo. Pode­rás ser um dos reis mais ricos e mais poderosos do mundo.

Páris viu-se subitamente transportado da vida simples dos mon­tes para um mundo de cidades — um mundo de príncipes, palácios, ministros, embaixadores, escravos, de domínio imperial e de luxo como nem sequer o seu pai, o Grande Rei de Tróia, alguma vez tivera. Até onde chegaria com um tal poder? Que prazeres seriam capazes de comprar aquelas riquezas? A ambição despertou no seu espírito. O jovem via-se coroado e de ceptro na mão, sentado num trono incrus­tado de jóias, com outros reis menores prestando-lhe vassalagem e com Enone a seu lado como Rainha. Mas a dissonância entre uma tal grandeza e a simplicidade da jovem perturbou-o. O jovem caiu em si. Páris tartamudeou uma resposta.

- Ficar-te-ei grato para sempre, Divina Hera, por me revelares a tua beleza e por me revelares o segredo do meu nascimento. Se te achar a mais bela de todas, terás, certamente, a maçã. Mas... Páris olhou para a deusa e engoliu em seco — a minha decisão não está à venda.

A Rainha do Olimpo olhou para o seu olhar cândido durante um longo momento sem falar. De lábios cerrados, a deusa acenou com a cabeça e desapareceu.

Atena apareceu a seguir na sua frente, o seu corpo vigoroso cin­tilando enquanto se virava. Tudo nela lembrava as suas capacidades de caçadora e, quando o enfrentou de novo, a serenidade do seu olhar límpido entrou-lhe na alma.

- Suponho que Hera tentou subornar-te com poder e riquezas - disse ela. — É só o que lhe interessa. Mas há coisas mais impor­tantes, sabes? Coisas que duram mais tempo e que dão mais satisfa­ção. Se o que queres é satisfação, então o melhor é conseguires sabe­doria e a sabedoria só se adquire com conhecimentos. Sem isso, tudo o resto é pó. A deusa moveu-se de novo para mostrar as suas for-mas flexíveis. O ar à sua volta vibrava como uma lira, com uma ener­gia cinética. — É a lei básica das coisas e apesar de saberes o que és agora, continuas sem saber quem és. — Atena sorriu-lhe. Por isso, sê sábio, hoje. Escolhe bem e ter-me-ás a teu lado a vida toda, tanto na guerra como na paz, cultivando-te a sabedoria, protegendo-te na batalha e fortalecendo-te a alma até atingires a liberdade e o con­trole totais. Um mortal não pode pedir mais.

Páris acenou com a cabeça em silêncio, franzindo o sobrolho e com ar pensativo. Os horizontes abriam-se na sua frente. O jovem começara a perceber que a escolha não era apenas entre três espécies diferentes de beleza feminina, era entre princípios profundos e imortais, princípios esses que moldavam os valores da vida de um homem. Sentindo uma vertigem, já que o seu destino futuro seria determinado pela escolha que fizesse, tremia um pouco ao agradecer a Atena por partilhar a sua beleza e sabedoria com ele. Em seguida, a deusa desapareceu.

No seu lugar apareceu Afrodite.

A terceira deusa não disse nada durante longos momentos. Não havia, ela sabia, necessidade de palavras. Onde a confiança régia de Hera equilibrara a atmosfera em redor do jovem e onde Atena a dei­xara vibrante com a sua firmeza, Afrodite encheu-a com uma fra­grância que excitava os sentidos. Se a beleza extrema fosse a escolha certa — o jovem decidiu-se imediatamente — não haveria necessi­dade de qualquer disputa. Uns minutos antes, teria entregue a maçã a Afrodite e ela que fizesse dele o que quisesse. Mas a sua vida mudara no espaço de uma hora. Já não era o vaqueiro que percorria os mon­tes livremente de manhã à noite, era o filho de um grande Rei com uma herança a reclamar. Talvez fosse um homem moral e espiritual-mente importante. Tinha coisas importantes em que pensar.

Porém, aquela terceira deusa era tão bela que ela mal conseguia pensar fosse no que fosse.

— Eu sei — sussurrou Afrodite e havia uma tristeza comove­dora nos olhos que ela ergueu para ele, olhos de um azul que ele tal-vez só tivesse vislumbrado à distância, na luz dançante do mar. — Mas já não é só uma questão de beleza, pois não?

— Não tenho a certeza — disse ele.

—Já percebi o que aconteceu. — A deusa desviou o olhar. — As outras ofereceram-te coisas. Coisas tremendas. Coisas que tu não tens. Coisas com que nem sequer sonhaste.

— Sim.

— E eu só te posso oferecer amor, que é uma coisa que tu já tens, não é verdade?

— Sim — disse Páris com voz rouca. — É verdade.

Mas o jovem continuava a pensar na possibilidade de poder falhar. Afrodite lançou uma triste.

— Bem, pelo menos podemos conversar um pouco. — A deusa sentou-se com as pernas unidas, com os cotovelos pousados nos joe­lhos e o rosto entre as mãos, como se não valesse a pena mostrar mais o seu corpo maravilhoso. Os seus olhos, porém, continuavam profundamente perturbados.

Perturbado com a sua proximidade, com a presença inconsciente e nua de uma beleza daquelas, de despedaçar um coração, Páris ouviu--a dizer:

— Ela é encantadora, não é? A ninfa da fonte, quero dizer.

Enone. O jovem disse o nome quase melancolicamente, como se a amiga e amante da sua juventude já estivesse a desvanecer--se, sem apelo nem agravo.

— Percebo por que razão ela te é tão querida. — Como a luz do Sol reflectindo-se numa fonte, o sorriso da deusa cegou-o. — Tens muita sorte.Páris acenou com a cabeça. E engoliu em seco.

— No fim de contas, foi ela que te fez compreender pela primeira vez o que significa amar e ser amado.

— Sim.

— Portanto, ser-te-á sempre querida, aconteça o que acontecer. Seguiu-se um momento de silêncio, durante o qual ele percebeu que mal respirava.

Após alguns instantes, a deusa mexeu-se e disse:

O mundo é muito estranho, não é? Quer dizer, basta olhar para ti um simples vaqueiro num momento, filho de um Rei no seguinte e com o mundo inteiro a teus pés. E eu — uma das imortais, sabendo que a maçã é minha por direito e, no entanto, sentindo-me incapaz de a reclamar. — Afrodite suspirou de novo. — Normalmente, não sou assim tão paciente, mas tu tens sido tão bom nisto tudo... e tão honesto connosco! E sei que não deve ser nada fácil para ti, por isso não quero que te sintas mal. De qualquer maneira — ela lançou-lhe outro sorriso triste — só quero dizer que foi um prazer conhecer-te.

Mas assim que ela começou a mexer-se, Páris disse:

— Não, espera... por favor.

A deusa inclinou a cabeça.

— Quer dizer... o que disseste acerca de Enone. É verdade, mas... — Mas?

Bem, ainda esta tarde, antes de tudo isto acontecer, eu pen­sava... é tudo? O amor, quer dizer?

Os olhos da deusa semicerraram-se, pensativos.

— Achas que não chega?

Páris franziu o sobrolho.

— Não é isso.

— Então é o quê? Não compreendo.

O jovem tentou ordenar os pensamentos.

— Eu percebo o que queres dizer. De facto, nunca fui tão feliz como quando Enone e eu nos conhecemos. Só que, por vezes, sinto... — Sim?

O jovem olhou para ela.

— Que pode haver mais qualquer coisa?

Páris desviou de novo o olhar.

— Mais?

Espantado com a sua própria presunção, Páris decidiu segurar o olhar da deusa e disse muito baixinho:

— Sim.

Com um encolher dos seus suaves ombros, Afrodite deu uma pequena risada de entendimento.

— Bem, sim, claro que há. Muito mais. Mas tu pareces feliz. Não pensei que quisesses saber mais.

— De qualquer maneira, diz-me.

Ela voltou a sentar-se, como se surpreendida, franzindo os lábios.

— Bem, não é a espécie de coisa que se possa dizer às pessoas. Tem de nos acontecer a nós. Temos de nos entregar, temos de nos deixar levar. — A deusa pensou por um momento. — É como entre­garmo-nos à força do mar... e, por vezes, é como se nos entregásse­mos a um fogo tremendo.

— Um fogo?

— Oh sim. Um fogo tão intenso que queima tudo, excepto o mais puro prazer da sua própria paixão. E quando isso acontece, tudo o mais desaparece. Depois, começa tudo a fazer sentido... — A deusa sorriu e abanou a cabeça perante a insuficiência das suas pala­vras. — Pensei que soubesses mais sobre o assunto.

As últimas palavras tinham sido acrescentadas gentilmente, mas deixaram-no desorientado. O jovem estava a ponto de clamar mais conhecimentos do que os que revelara até então, mas quando olhou para o sorriso compreensivo da deusa viu que a fanfarronada seria imediatamente descoberta. Assim, desviou o olhar.

A deusa disse:

— Fala-me desses sentimentos.

Subitamente consciente de como os seus sentimentos pareciam pequenos em contraste com a escala a que a deusa sentia e pensava, Páris corou.

— São difíceis de explicar. — Mas a sua imaginação agarrou-se ao que ela dissera momentos antes e o seu coração saltou com um sen­timento simultâneo de admissão e traição ao acrescentar: — É como se uma experiência começasse a parecer-nos familiar e a quiséssemos mudar logo a seguir... para se transformar em algo maior e mais poderoso. E mais estranho.

Ele procurou entendimento nos olhos dela e encontrou-o. A deusa disse:

— Isso é a tua vida a querer sair cá para fora. Devias ouvi-la.

— Tenho ouvido. Suponho que é por isso que estou aqui. De facto, começo a pensar se...

— Sim?

O jovem hesitou. O sorriso amoroso de Enone surgiu diante dos seus olhos e desvaneceu-se perante a aura brilhante da presença de Afrodite.

O que disseste há pouco — achas que me pode acontecer a mim?

— Gostaria de pensar que sim, mas... — Afrodite hesitou, puxou para trás uma madeixa de cabelo, sorriu, abanou a cabeça e desviou o olhar.

— Continua.

Afrodite olhou para ele de novo.

— Tens a certeza que me queres a mim?

— Tenho. — Engolindo em seco de novo, ele aguentou-lhe o olhar. — Tenho a certeza.

A deusa pareceu continuar a interessar-se pelo assunto.

— Estas coisas são sempre misteriosas, sabes? Acontecem entre dois seres especiais. Não acontecem a uma pessoa qualquer. Tem de haver um encontro de espíritos. Dois espíritos que se reconhecem. E quando isso acontece, surge uma súbita e espantosa liberdade de sentimentos e sentidos que... bem, que não encontramos com mais ninguém. É a mais fantástica experiência de todas e não acontece com toda a gente. — A deusa inclinou novamente a cabeça e sorriu-lhe tristemente. — Por isso, receio que não dependa apenas de ti.

Páris acenou com a cabeça e desviou o olhar.

Oh, lamento — disse ela. — Não devia ter dito isto.

Devias, sim. Eu precisava de saber.

Calmamente, Afrodite disse:

— Mas não aconteceu com Enone, pois não? — E suspirou que, franzindo o sobrolho, ele abanou a cabeça.

— Talvez... — começou ele a dizer.

A garganta do jovem ficou tão seca como um regato no Verão.

— Talvez ela não seja a pessoa certa. Para mim, quero dizer. — Olhando para a deusa, Páris acrescentou rapidamente: — Ou eu para ela, claro.

— Bem, tu é que sabes. Mas... — Ela olhou gentilmente para ele de novo. — Tu não tens muita experiência, pois não? Deve custar-te muito dizer-lhe.

Sentindo-se um pouco humilhado com a simpatia da deusa, Páris viu-a desviar o olhar, olhar para ele de novo, abrir a boca para falar e depois fechá-la, como se parecesse mudar de ideias.

— O que é que ias a dizer? — pressionou-a ele.

— Estava a pensar se... Não, não devo interferir.

— Isso não é interferir. Eu gostava muito de ouvir o que tens a dizer.

— É que uma das vantagens de se ser uma deusa — ela sorriu--lhe — é poder ver o futuro, ao contrário dos mortais e, por vezes, damo-nos conta das possibilidades que vocês não vêem.

— Estás a pensar em mim?

Como se fosse tomar uma decisão difícil, Afrodite respirou fundo.

— Acontece que Enone é a criatura mais doce destas montanhas, mas há mais mulheres no mundo, ao lado das quais ela é tão simples como um dos meus pardais e... Bem, parece-me que tu ainda não acordaste para o facto de que és muito atraente e do poder que podes ter sobre as mulheres — se te deres ao cuidado de as conhecer.

Após alguns instantes, ele disse:

— Pensas que pode haver mais alguém para mim?

— Tenho a certeza.

— E sabes quem é?

Afrodite acenou com a cabeça.

— Vais-me dizer?

O pensamento pareceu incomodá-la.

— Na verdade, não devo.

Os olhos de Páris passaram pela maçã dourada, na relva a seu lado.

— Oh não — exclamou ela, erguendo as mãos. — Eu não estou a tentar subornar-te. Não é nada disso. Agora, fizeste-me sentir mal. Muito bem, o nome dela é Helena e vive em Esparta.

— Isso é perto de Tróia?

— É um reino, em Argos.

Ele franziu o sobrolho.

— Também não sei onde fica Argos.

— Argos é um país a quinhentos quilómetros de distância. No outro lado do mar.

O rosto do jovem fechou-se desapontado.

— Nesse caso, ela não pode saber nada de mim.

— Não, ainda não.

— E é estrangeira.

Afrodite sorriu.

— No amor não há estrangeiros.

Mas, quinhentos quilómetros! E eu, que nunca vi, sequer, o mar.

— Não queres saber mais nada acerca dela, portanto?

Eu não disse isso.

Seguiu-se outro silêncio.

— Helena — disse ele. — É um nome muito bonito.

— Fica-lhe bem. Ela é a mulher mais bela do mundo.

Os olhos dele abriram-se.

— Fala-me mais acerca dela.

— Não preferes vê-la? Sim? Nesse caso, olha para os meus olhos.

Mal respirando, Páris aproximou-se até ficar apenas a alguns cen­tímetros de distância do corpo nu da deusa. Afrodite ergueu as mãos e agarrou-lhe nas faces. O jovem estremeceu ao sentir os dedos deli­cados no rosto. Todos os poros do seu corpo pareciam absorver a sua fragrância à medida que erguia os olhos para ela.

E desapareceu, desvaneceu-se, afogando-se suavemente numa íris verde-mar, mais profunda do que o seu coração alguma vez imaginaria, até que se sentiu a olhar para cima, para a superfície ofus­cante. Só que se viu imediatamente a olhar para baixo para o rosto de uma mulher que lhe retribuía o olhar através de uma luz irresistível qualquer — uma mulher com a qual estava a fazer amor com uma ternura e um ardor que nunca sentira antes. O rosto dela estava mais iluminado pela paixão e era mais belo do que qualquer outro que tinha visto antes. Era como se, durante aqueles segundos preciosos, esti­vesse a fazer amor com a própria deusa e mesmo quando a visão se começou a desvanecer sentiu que, se aquilo acabasse, o seu coração morreria de saudade.

Então, regressou à montanha e o rosto gentilmente sorridente na sua frente era o de Afrodite.

— Helena — disse ele simplesmente.

Páris deitou-se na relva e fechou os olhos tentando segurar o sonho, saboreando a delicada dor da sua perda. No entanto, a recordação era tão intensa que ele sentiu a convicção cega de que, tendo olhado uma vez para aquele rosto, seria impossível esquecê-lo. Aqueles olhos estariam presentes sempre que fechasse os seus. Não parecia haver a menor possibilidade de que viesse a sonhar com qualquer outra coisa. Os minutos passaram.

O jovem sentia-se perdido na montanha, perdido até da presença da deusa, e estava absolutamente imóvel — mas movendo-se interiormente com uma velocidade que o espantava. Mudara tudo. Sen­tia o sangue a pulsar-lhe nas veias. Sentia o coração a bater-lhe no peito. A partir daquele momento, qualquer momento menos incan­descente do que aquele não seria considerado vida.

Sem abrir os olhos, Páris disse:

— Tenho de a conhecer. Ela tem de ser minha.

A deusa suspirou:

Há outra coisa que tens de saber.

Ansioso, ele disse:

Sim?

— Helena já tem marido.

Páris sentou-se bruscamente, chocado.

Calmamente, ela estudou-lhe o rosto.

— Sei no que estás a pensar e é um problema, sim, mas há mui-tas coisas que tu ainda não compreendes.

Um sentimento de ultraje e traição escureceu-lhe o olhar. Mais valia não ter visto aquele rosto. Tê-lo visto e tê-lo perdido instantaneamente era insuportável.

— Compreendo o suficiente para saber que ela já é casada, que vive num sítio a quinhentos quilómetros de distância de que eu nunca ouvi falar e que o marido dela é o Rei de Argos, certo?

— Na verdade, o Rei de Esparta.

— Portanto, que hipóteses tenho eu de a conquistar?

— Sem ajuda — disse ela calmamente — provavelmente nenhu­mas.

Mas ele já tinha regressado ao sonho. Aquele rosto continuava intimamente vivo e indelevelmente presente no seu espírito. Parecia-lhe tão inalienável como a sua alma. E toda a sua vida dependia dele, agora. Certamente que era impensável um homem receber uma visão daquelas, a não ser que fosse possível torná-la realidade?

Então, Páris começou a compreender.

Tossindo para clarear a voz, disse:

— E se tu me ajudasses?

Afrodite franziu os lábios enquanto pensava.

Pode ser difícil. — A deusa suspirou. — E pode provocar toda a espécie de sarilhos.

— E se eu te der a maçã?

A deusa fez uma pequena careta ofendida.

De qualquer maneira, é tua — insistiu ele.

Não estás a dizer isso só porque?...Não, é claro que não. Nem me passou pela cabeça... Afrodite tinha desviado o olhar. Agora, olhava de novo para ele, mas sem sorrir.

Bem, pode ser feito, suponho. Mas o caso é sério, compreen­des? Os assuntos do coração são sempre sérios — mesmo quando parecem um jogo. — A voz da deusa deixou-o petrificado.

— Tens de ter a certeza de que a queres mesmo, custe o que custar.

Afrodite deixou passar um momento para que o pensamento lhe entrasse profundamente no espírito. Em seguida:

— Tens?

Páris olhou para a beleza solene do rosto de Afrodite e percebeu que chegara o momento da escolha. O jovem olhou de relance para a maçã dourada, brilhando na relva, e percebeu que era como ela dis­sera — olhara para Helena e tudo à sua volta se alterara. Acontecesse o que acontecesse, nunca mais se sentiria feliz por conduzir uma manada de vacas sonolentas até às pastagens ou sonhar deitado entre as flores silvestres. Não conseguia imaginar o que faria da sua vida se lhe fosse negada a satisfação de um desejo que se estava a tornar numa obsessão.

Páris pensou em tudo o que lhe fora prometido pelas outras deu­sas. Hera faria dele um grande Rei, sim, mas os grandes Reis têm gran­des problemas e ele já era filho de Rei. Para que havia de querer mais riquezas do que as que o seu principado lhe daria? Atena prometera--lhe sabedoria e autoconhecimento, mas o facto de saber que queria Helena não era já autoconhecimento suficiente? Quanto à sabedoria, certamente que tanto era uma questão do coração como do intelecto e a visão de Helena enchera-lhe o coração com um desejo feroz por tudo o que fazia parte do amor.

Toda a lógica do caso apontava numa direcção. No entanto, Páris olhou de novo para o rosto de Afrodite e soube que nenhuma lógica interessava, porque a verdade estava para além da lógica, estava no desespero, não era correspondida, era irreparável e, como um homem sentenciando-se a si próprio, disse:

— Creio que não serei capaz de viver sem ela.

— Muito bem — disse Afrodite, sorrindo. — Dá-me a maçã e eu vou ver o que posso fazer.

 

 

                               O Filho de Príamo

Apesar da sua promessa, Hera e Atena deixaram a cena da sua mútua humilhação unidas numa grande hostilidade a Páris e a Tróia. Felizmente, o jovem não sabia e Afrodite estava demasiado deliciada com o seu triunfo para sentir incomodada com maldade das suas divinas irmãs. Apesar de ser uma deusa pouco preocupada com con­sequências de ordem moral, também tinha os seus poderes. Afrodite faria os possíveis para proteger a cidade se bem que não soubesse muito bem como salvar Tróia da ruína e, ao mesmo tempo, manter--se fiel à promessa feita a Páris. Quanto à segunda tarefa, estava totalmente comprometida e se o preço da paixão fosse a destruição da cidade, paciência.

Entretanto, confuso e apanhado nas malhas da obsessão, Páris só queria saber do que a encantadora deusa prometera dar-lhe, a mulher mais bela do mundo. Não descansaria enquanto o seu destino não se cumprisse.

A noite já caíra quando ele desceu da montanha.

Sabendo que Enone se sentia desorientada pelos seus modos dis­tantes, Páris afastou-se sem lhe dizer nada, a ela ou aos seus pais adoptivos, sobre o que acontecera no Monte Ida. O jovem permane­ceu acordado durante a maior parte da noite, pensando em Helena e na melhor maneira de assumir a sua verdadeira identidade. Porém, a obscuridade da sua rude cabana estava tão afastada da presença visio­nária da deusa na montanha que havia alturas em que ele tinha difi­culdade em acreditar que os acontecimentos da tarde tinham sido algo mais do que um sonho maravilhoso. Um sonho do qual acor­dara com um mundo pequeno à sua volta.

No dia seguinte, como sempre acontecia naquela estação, os servos do Rei Príamo saíram de Tróia para escolher, na manada, um touro para ser oferecido como prémio nos jogos funerários que eram efectuados todos os anos em memória do filho perdido do Rei. Páris nunca gostara de perder alguns dos seus animais daquela maneira. Agora, começava a compreender como o seu próprio destino esti­vera sempre profundamente ligado ao animal escolhido.

De pé ao lado de Agelau, viu os homens da cidade compararem os touros. O jovem sabia qual deles iria ser levado.

Como esperava, o líder, um homem de olhar duro e com uma barba encaracolada em forma de foice, acenou para ele e disse:

— Prende-me aquele branco além. O homem apontava para o touro que Páris engrinaldara uma vez para Enone.

Em anos anteriores, Páris teria simplesmente saltado a cerca e feito o que lhe pediam. Daquela vez, olhou firmemente para o homem e disse:

— Não preferes levar aquele malhado que está ao lado do carva­lho? A carne é igual e vai dar-te menos trabalho daqui até à cidade. O homem virou-se para Agelau.

— O Rei exige sempre o melhor. Levo o branco.

— Nesse caso, o Rei que o venha buscar disse Páris, e afastou--se com a corda enrolada no ombro. Por trás de si, o jovem ouviu o pai adoptivo a murmurar palavras de desculpa. Depois, Páris viu Enone ao longe, à sombra do plátano. Involuntariamente, os seus olhos pestanejaram e desviaram-se do olhar confuso dela. O jovem ouviu o homem barbudo dizer que não tinha ido até ali para aturar a insolência de um labrego e que não podia perder tempo. Em seguida, ordenou a Agelau que prendesse ele próprio o touro. Quando o ancião começou a trepar a cerca, Páris virou-se rapidamente nos calcanha­res, gritando para o pai que o touro era demasiado rápido para ele e que não era de confiança.

— Eu já prendia touros antes de tu nasceres, rapaz — grunhiu Agelau, e desceu para o recinto onde estava o gado. — Dá-me a tua corda. — Um dos touros mais novos emitiu um mugido baixo, des­contente. A manada mexeu-se, nervosa, no recinto apertado. A poeira erguia-se dos seus cascos. Já pesada por causa do cheiro do esterco, a atmosfera parecia tremeluzir entre o ancião e o seu filho.

Páris usou a mão livre para saltar a cerca.

Tu já não és tão rápido de pés como eras. Ele dá-te um coice quando menos esperares.

Agelau olhou para ele.

Também me vais insultar?

Não, pai, mas a verdade é a verdade. O touro é meu. Ele conhece-me. Deixa-o comigo.

— Esqueces que a manada pertence toda ao Rei Príamo? — disse o homem de barba, arrogante e impaciente. Páris olhou para ele por um momento, digno e orgulhoso, mas foi para o seu pai adoptivo que disse:

O Rei Príamo também toma assim conta dos seus? — Em seguida, sem esperar por uma resposta, tirou a corda do ombro e avançou até onde, pestanejando por causa das moscas, com uma tonelada de músculo a estremecer por baixo da pele, o touro esco­lhido escarvava a poeira do solo.

 

Uma hora mais tarde, enquanto observavam os servos do Rei a puxar o animal amarrado, Agelau disse ao seu filho adoptivo:

És capaz de te explicar?

Páris disse calmamente:

Tenciono seguir o touro até à corte do Rei, este ano.

— Enlouqueceste? perguntou o ancião. Não tens trabalho suficiente aqui? É preciso ir arranjar sarilhos a Tróia? Vai dar um mer­gulho no rio, rapaz. Arrefece a cabeça. — E já se ia embora quando Páris disse:

Fala-me outra vez do meu nascimento.

Agelau parou, virou-se, franzindo o sobrolho e respondeu lenta-mente.

Conheces a história muito bem.

Conta-me outra vez.

Aconteceu como já te disse. Encontrei-te no bosque. Uma ursa tinha-te amamentado. Trouxe-te para casa na minha bolsa e criei--te como meu próprio filho.

Espantado por nunca ter feito aquela pergunta antes, Páris disse:

Quem se lembraria, entre os Dárdanos, de abandonar uma criança? — Quando Agelau desviou o olhar, o jovem continuou fir­memente: — Juras-me que não sabes mais nada?

O velho vaqueiro olhou solenemente para Páris. Era a primeira vez que o jovem o desafiava directamente, mas sempre soubera que a pergunta viria um dia e era demasiado honesto para mentir ao filho adoptivo que amava. Respirando fundo, Agelau falou a Páris da noite em que aparecera em sua casa o cavaleiro do Rei e como o seu cora­ção se recusara a obedecer.

— Por isso, em vez de me tornar num assassino, tornei-me no teu pai. Não tens sido feliz connosco? perguntou ele bruscamente. — Que melhor vida poderias desejar?

Nenhuma — respondeu Páris excepto a vida para que nasci. — E se essa vida estivesse amaldiçoada?

Fosse como fosse, pelo menos seria a minha vida.

Páris viu a dor nos olhos do ancião. De imediato se arrependeu da sua rudeza.

Tu sempre foste um bom pai para mim — disse ele mais gen­tilmente e eu amo-te por isso com todo o meu coração. Mas um deus disse-me quem é o meu verdadeiro pai e com esse conhecimento veio também um destino.

Recordando os anos durante os quais vira o rapaz crescer, Age­lau olhou para as feições nobres do jovem estranho que estava na sua frente.

— Nesse caso, quem sou eu para discutir com um deus? — Mor­dendo o lábio, Agelau começou a afastar-se, deixando o jovem sozi­nho. Mas só tinha andado alguns metros quando parou e ficou a olhar para o chão, abanando a sua cabeça grisalha. Em seguida, virou-se para o seu desconsolado filho.

— Se o destino assim o exige, vai a Tróia — disse ele. — Apre­senta-te ao Rei. Diz-lhe que Agelau te deu aos deuses no Monte Ida e que os deuses te devolveram a Agelau. Diz-lhe que, se houve erro, ele não foi meu. Em seguida, o ancião virou-se novamente e foi--se embora.

Enquanto o via afastar-se, Páris viu Enone à sua espera à sombra do plátano. A ninfa ouvira a troca de palavras com a mesma ansie­dade que a mantivera acordada durante toda a noite e já sabia que nada do que dissesse deteria Páris do seu propósito. Sentindo uma grande dor, ela viu-o aproximar-se através da clareira.

Enone escutou em silêncio enquanto ele lhe contava como fora visitado por uma visão de Hera no Monte Ida e como ela o informara da sua condição. Prendendo a respiração, a ninfa acenou com a cabeça quando Páris lhe perguntou se ela compreendia por que razão ele tinha de ir em busca do destino para o qual tinha nascido. Mas quando ele lhe prometeu que nunca esqueceria o amor que existia entre eles, foi como se um ruído maior se desencadeasse na sua cabeça. E quando Páris baixou a cabeça para a beijar, Enone recuou um pouco para o fixar nos olhos.

— Eu recebi o dom da profecia do meu pai murmurou ela.

- Sei que, se te pedisse para ficar, irias na mesma, e sei que o mundo te vai magoar. Mas o meu pai também me deu o dom de curar. A jovem olhou para ele. Um dia, serás ferido de maneira que apenas eu te poderei curar. Vem ter comigo, então. — Enone ergueu-se na ponta dos pés para o beijar suavemente nos lábios, libertou-se do abraço dele e — tal como já fizera antes, no dia em que se tinham amado pela primeira vez - Enone fugiu para o abrigo das árvores.

 

Os tambores rufavam enquanto ele se aproximava da cidade. O som voava nas asas do vento e varria a planície de Tróia, o leito esplendoroso dos rios e as cearas oscilantes. De longe, o jovem podia ver uma grande multidão em redor das muralhas, gritando e sau­dando enquanto incitavam as quadrigas que se viam a correr. Páris olhara muitas vezes da montanha para as muralhas de Tróia, mas nunca as vira brilhar assim. Nem sequer, via agora, à medida que se aproximava, imaginara que aquelas pedras fossem tão maciças, ou tão assustadoramente altas. E também nunca vira tanta gente junta cocheiros verificando os eixos e os arreios, atletas oleando o corpo, domadores de cavalos e ferradores debatendo os méritos das suas montadas, acrobatas e engolidores de fogo, encantadores de serpen­tes, músicos e bailarinas, saltimbancos e mercadores, todos procu­rando aliviar as bolsas da multidão, enquanto, no meio de todos eles, os mendigos mostravam as respectivas chagas e os bêbedos se encos­tavam indolentemente às mulheres ou ressonavam debaixo dos está­bulos provisórios. O ar cheirava a vinho de especiarias e a carne cha­muscada, e a pele das faces do jovem ardia por causa da picada da poeira projectada pelo vento.

Ninguém reparou no camponês que vinha dos montes para se misturar com a multidão e o jovem perguntava a si próprio como fazer notar a sua presença àquela gente toda quando ouviu uma voz chamar mais contendores para um combate de boxe. Aproximando-se do círculo de pessoas, Páris reconheceu o jovem no centro por já o ter visto no festival de Lirnéssios, perto da montanha. Era Eneias, filho de Anquises, Rei dos Dárdanos e se bem que Páris nunca tivesse falado com o príncipe, sentiu-se mais forte ao ver aquele rosto familiar.

Durante algum tempo, o jovem manteve-se junto do círculo de areia, observando enquanto um pugilista após outro era derrubado por um jovem musculoso de cabelos louros vestido com uma saia vermelha que, apesar do peso, dançava levemente na ponta dos pés e despachava olhos negros e narizes ensanguentados com uma habi­lidade espantosa. Páris não tinha aquele talento com os punhos, mas aprendera a esquivar-se e a mover-se entre os touros e a confiar na fle­xibilidade dos seus músculos. Além disso, achava que os seus braços chegavam mais longe do que os do tipo corpulento que oleava agora calmamente os punhos, ao mesmo tempo que o seu último adversá­rio desaparecia com um dente partido. Um grupo de raparigas can­tava o nome do vencedor. Deífobo endereçava-lhes sorrisos altivos, ao mesmo tempo que o árbitro gritava:

— O filho do Rei vence de novo. Mais alguém quer tentar a sorte?

A mais alta das jovens já gritava «Dá-lhe a coroa, Eneias», quando Páris deu um passo em frente, como se empurrado pela mão de um deus qualquer. O jovem ouviu, algures, o mugido sombrio do seu touro.

Eneias sorriu para ele.

— Excelente, mais um desafiante! É um dárdano, pelo aspecto. Um dos meus. Mas serei imparcial!

Páris tinha os olhos fixos na figura musculosa de Deífobo, rindo com as jovens enquanto se limpava.

— Aquele é filho de Príamo? perguntou ele, procurando algo familiar nas feições e atitudes do jovem.

— Deífobo? É pois sorriu Eneias. — É a primeira vez que des­ces da montanha?

Quando Páris acenou com a cabeça em sinal afirmativo, uma das raparigas gritou:

— Não sejas bruto com o vaqueiro, Deífobo. Seria uma pena partir aquele nariz tão bonito. — Uma rapariga mais pequena e mais escura estava ao lado dela, franzindo o sobrolho na direcção de Páris com uma hostilidade perplexa que ele achou ligeiramente enervante.

Mas Deífobo já estava pronto para lutar outra vez. O jovem entrou no círculo para grandes aplausos da multidão, medindo o seu mais recente adversário com um olhar confiante. Páris ficou apenas em calções e em frente dele, separado por uma marca na areia.

Durante algum tempo, Deífobo andou à roda dele, esgrimindo os punhos de tal modo que só os ágeis movimentos de Páris o impe­diram de receber alguns golpes. Crescendo de impaciência perante aquele noviço que se esquivava e mudava de direcção, Deífobo tor­nou-se mais agressivo. Mais por sorte do que por habilidade, Páris conseguiu manter-se de pé e apesar de os seus golpes encontrarem apenas o ar, estava mais fresco do que o outro, conseguiu manter a cabeça fria. O jovem observara, nas lutas anteriores, que Deífobo usava um truque, fingindo baixar a guarda e depois fintando para a esquerda, ao mesmo tempo que o seu punho direito ia direito ao dia­fragma do adversário para no último instante ser substituído por uma rápida esquerda à cabeça. Páris estava à espera daquele momento quando ele chegou. Deífobo viu a sua direita detida por um bloqueio tão firme que o seu próprio peso desequilibrou-o. Então, os seus ouvi-dos começaram a zunir quando Páris lhe acertou um golpe seco na cabeça. Páris fechou-se imediatamente, encostando-se ao corpo do adversário e quando se libertou do abraço, usou o maior alcance do seu braço para lhe acertar um murro no nariz. O sangue salpicou. Deífobo cambaleou, pestanejando. Quando Páris lhe deu outro golpe, as pernas cederam e o jovem pugilista caiu de joelhos na areia.

No meio do silêncio que se gerou na multidão, Páris inclinou-se, oferecendo uma mão ao seu adversário.

— Lutaste bem, irmão — disse ele, ofegante.

Franzindo as sobrancelhas perante o que tomava por um insulto presunçoso, Deífobo limpou o sangue do rosto, afastou a mão que se lhe oferecia e desapareceu no meio da multidão. Todas as jovens o seguiram menos a rapariga de olhos escuros, que ficou ali durante alguns momentos, franzindo o sobrolho para Páris como se já o tivesse visto e estivesse a tentar descobrir onde. Mas quando ele lhe sorriu, ela, carregando ainda mais o sobrolho, girou nos calcanhares e foi ter com as outras.

— Tu também lutaste muito bem — disse Eneias. — O meu primo não te vai agradecer por lhe roubares a coroa de glória. — Em seguida, olhando para Páris mais cuidadosamente: — Não estiveste na feira de Lirnéssios o ano passado? Não foi um dos teus touros que ganhou o primeiro prémio? — E quando Páris acenou com a cabeça em sinal afirmativo, o seu sorriso alargou-se. — Eu sabia. Devem ter sido os touros que te ensinaram a mexer-te assim.

Deífobo é melhor com os punhos — disse Páris.

Eneias era mais quente, mais aberto, como os Dárdanos, nada como os Troianos.

Mas tu és mais rápido de pés. Por que não entras nas corridas, amigo? Talvez conseguisses outra coroa.

 

Três horas mais tarde, Páris era chamado para junto do Rei, ao lado do qual se sentou, junto dos seus cortesãos, na sala do trono ricamente pintada.

O resto da tarde passara-se numa névoa brilhante de calor, tran­quilidade e crescente excitação, durante a qual derrotara os outros dois filhos de Príamo, Antifo numa corrida de velocidade e o favorito do povo, Heitor, na corrida de corta-mato em redor das muralhas da cidade.

Agora, com o coração a bater com toda a força, segurava as suas três coroas, cansado e orgulhoso e olhando pela primeira vez para o homem que era seu pai.

O meu sobrinho Eneias diz-me que és tu que olhas pelos meus touros nas terras dos Dárdanos. Príamo afagou a sua barba perfu­mada enquanto dirigia a Páris o sorriso distraído de um homem que carregava o fardo do reino há mais de vinte anos. Apesar de estar a meio dos quarenta, Príamo parecia mais velho. Os seus cabelos, cada vez mais finos, estavam a ficar grisalhos e o seu rosto magro tinha cada vez mais rugas. No entanto, sentava-se no trono com o ar de um homem habituado ao poder, assim como às preocupações e quando o seu olhar se fixou em Páris deixou o jovem com mais medo do Rei do que desejoso de saber mais sobre o seu pai. Minutos antes, Príamo soubera que uma cidade costeira, pertencente a um dos seus aliados, tinha sido pilhada e queimada por mais um assalto vindo de Argos. Assim, enquanto afagava as orelhas do seu cão de caçar javalis dei­tado a seus pés, a mente do Grande Rei de Tróia estava ocupada com outras coisas para além de um vaqueiro que descera da montanha para ganhar os jogos.

É raro um homem ganhar três coroas. O Rei sorriu ligei­ramente. — Talvez os meus filhos devam passar mais tempo na montanha?

Aguentando-lhe o olhar, Páris respondeu:

— Talvez tenham sorte por ter um pai que não os expôs ao ar da montanha quando nasceram.

— Foi esse o teu destino, rapaz? Príamo arqueou as sobrancelhas. Bem, tenho pena de ti. Mas isso não parece ter-te afectado. Os deuses devem ter-te favorecido. Pouparam-te a vida, deram-te um rosto suficientemente belo e a força suficiente para te fazer ganhar os jogos. Príamo desviou o olhar, sorrindo para o seu conselheiro, Antenor. — Que mais pode desejar um filho da montanha?

Nada — respondeu rapidamente Páris senão a herança a que tem direito.

Surpreendido com a firmeza da sua voz, Príamo olhou aspera­mente para ele.

— Que é?

Ser reconhecido como teu filho.

O Rei, os seus filhos e os cortesãos reunidos estavam demasiado espantados para se atreverem, sequer, a respirar. Antes que alguém se pudesse mover ou falar, Páris continuou:

— Disseram-me que estes jogos são celebrados para honrar um filho que perdeste. Bem, o filho que perdeste acaba de os ganhar. Os que eu acabo de derrotar são meus irmãos. Eu estou aqui para apos­tar a minha vida com a verdade da minha reivindicação.

Naquele momento, a rapariga de cabelos escuros que assistira entre as jovens ao combate de boxe avançou por entre Heitor e Antifo. Estivera sempre a olhar para Páris desde que ele entrara no salão e assim que ele falara, uma pressão familiar que sentia na cabeça e que aumentava cada vez mais, libertou-se com um relâmpago e um trovão.

Já sei quem és disse ela. Tu és o sacrifício que não foi aceite. — A jovem ficou a balançar na ponta dos pés. Tu és o tição que arde enquanto a minha mãe dorme. Cheiras a fumo. Não con­sigo respirá-lo. A jovem virou-se para olhar para o pai, muito pálida. — Ele vai trazer a destruição a esta cidade.

Silêncio, Cassandra. — Impacientemente, Príamo fez sinal a algumas das mulheres do palácio para que levassem a rapariga, mas Cassandra resistiu-lhes.

Ele pertence à morte — gritou ela. — Tem de lhe ser devol­vido.

Fazendo um sinal contra o mau-olhado, Páris viu, consternado, a rapariga ser levada do salão, mas quando olhou para as pessoas em redor, elas pareceram-lhe mais embaraçadas do que alarmadas. Hei­tor avançou rapidamente para cobrir aquele embaraço.

— Parece que a coroa de vencedor subiu à cabeça deste vaqueiro

disse ele, rindo. — Parece que as confundiu com uma coroa a sério.

Alguns dos cortesãos juntaram-se à risada, mas Deífobo, cujo nariz se partira na luta, não estava nada divertido.

A mim, parece-me mais um arruaceiro. Ninguém se apresenta perante o Rei e fala como ele. Quem sabe quem é e o que tem em mente?

Ântifo disse:

— Talvez Cassandra, pela primeira vez, tenha razão? Talvez seja melhor matá-lo mesmo.

Páris farejou um murmúrio hostil de assentimento na assembleia, mas Eneias avançou e colocou-se a seu lado.

— Creio que os teus filhos ainda não engoliram a derrota, senhor

sugeriu ele calmamente. Este jovem venceu-os lealmente nos jogos. Certifico-o. Quanto às outras pretensões, só um homem honesto, ou um louco, falaria perante o Grande Rei como ele fez. Não valerá a pena ouvir o que ele tem para dizer?

Príamo pensou na sugestão por um momento. Em seguida, o Rei inclinou-se para a frente para olhar mais de perto para o jovem que estava na sua frente, cauteloso mas de olhar fixo.

É sabido de todos que os deuses exigiram um filho meu. Mas essa criança não foi dada à montanha.

— No entanto, Agelau, o teu vaqueiro, deixou-me lá.

— No entanto, tu estás aqui, na minha frente.

— Uma ursa devia ter-me matado, mas, em vez disso, amamen­tou-me. — Páris ouviu o som de risos, vindo do sítio onde estavam os filhos do Rei, mas os seus olhos estavam fixos nos do seu pai, onde vislumbrou um brilho de conflito, entre a dúvida e a esperança. O jovem continuou: — Quando Agelau me viu, não teve coragem de me matar — tal como o cavaleiro que me levou desta cidade até lá.

Príamo semicerrou os olhos, recusando-se a acreditar no que estava a ouvir, mas perturbado pelo orgulho e dignidade com que aquele jovem vaqueiro aguentava o seu olhar. O Rei olhou pouco seguro para o seu conselheiro, Antenor.

— Qualquer pessoa pode aparecer perante o Rei com uma histó­ria dessas — disse Antenor. — Tens provas? — Mas antes que Páris pudesse responder, ouviu-se a voz de uma mulher junto da porta aberta da sala do trono.

Deixa-me ver esse jovem. Desgastada por muitas materni­dades e demasiado velha para a idade, a Rainha Hécuba caminhou pelo meio da assembleia de cortesãos com as mãos apertadas contra o peito. A Rainha parou a um metro de Páris e estudou o jovem com um olhar tão severo que teria abanado a alma deste se a deusa não lhe tivesse garantido a verdade da sua pretensão. — Tens os ossos lon­gos e os olhos inclinados de um troiano real, mas isso também os bastardos todos do meu marido têm. Que provas tens de que és san­gue do meu sangue?

Certamente que uma mãe é capaz de reconhecer o próprio filho — respondeu Páris calmamente.

— Passaram-se vinte anos desde que me arrancaram essa criança dos braços, mas a sua imagem continua gravada na minha mente. Além disso, o meu filho tinha um sinal de nascença, no pescoço. Lembro-me de pensar que era como se ele tivesse sido mordido por paixão. — Os olhos da Rainha olhavam ferozmente para Páris. — Tens esse sinal? Olha que morres, se não o tiveres. — Hécuba puxou Páris mais para junto de si e estendeu a mão para os caracóis cor de trigo que lhe caíam desde a orelha esquerda até à linha do queixo. Páris inclinou a cabeça ao sentir o toque da mãe. O jovem ouviu o sobressalto quando ela viu o pálido sinal na sua pele. Rapidamente, a Rainha levou uma mão à boca. Um momento mais tarde, a sua testa suave estava encostada ao peito dele e Páris sentia o corpo a tremer.

Príamo levantou-se do trono. A sua Rainha olhou para ele com as lágrimas a escorrérem-lhe pelas faces.

Ele tem o sinal — disse ela. — É o nosso filho.

Ao longo dos seus anos de reinado, o Rei Príamo fizera frente a muitos choques e surpresas, mas nenhum o abalara como aquele. O Rei ficou imóvel, impossível no rosto e querendo acreditar, mas não acreditando que o mesmo destino que lhe tinha roubado um filho lho estivesse agora a devolver.

Tens a certeza? — perguntou ele, ansioso. Não é apenas o teu desejo a falar?

Ele tem o sinal, estou-te a dizer — gritou Hécuba. Vem, abraça o teu filho.

Mas era difícil para Príamo olhar para o filho cuja vida conde­nara. O Rei fechou os olhos e estendeu uma mão para se amparar ao trono. Em seguida, murmurou para si mesmo:

— Os desígnios dos deuses não são os desígnios dos homens e o que resulta do passado nem sempre é o que se espera.

Com o ar confuso de um homem que acorda de um sonho, o Rei Príamo abriu os olhos e olhou para o jovem campeão com as três coroas. Em seguida, endireitou-se e abriu as mãos, como se quisesse apanhar umas bênçãos invisíveis caídas do céu.

Louvados sejam os desígnios dos deuses — disse ele e avan­çou para abraçar Páris.

Com toda a corte, espantada a olhar, o Rei Príamo abraçou o filho perdido durante muito tempo, antes de se virar e dizer:

Meus filhos e filhas, vinde e abraçai o vosso irmão perdido. Tendes de aprender a amá-lo como a vossa mãe e eu já fazemos. Heitor e os outros ficaram na incerteza. Os murmúrios enchiam a atmosfera do salão e, um a um, em obediência ao pedido do pai, os muitos irmãos e irmãs de Páris abraçaram-no.

Confiante no amor do seu pai, Heitor, o mais velho e o mais nobre, foi o primeiro a avançar para dar as boas-vindas calorosas ao recém-encontrado irmão, mas os sentimentos dos outros eram con­fusos e não muito bem dissimulados. Deífobo respondeu com um simples aceno de cabeça quando Páris lhe pediu perdão por lhe ter partido o nariz. Antifo limitou-se a olhar para ele com uma descrença trocista e quando Cassandra regressou ao salão recuou face ao abraço ansioso de Páris, como se a sua pele tivesse ficado irritada ao contacto.

Páris só se sentiu à-vontade com o seu primo Eneias. Foi ele que guiou o receoso jovem através do labirinto de alojamentos pintados até uma espaçosa sala de banhos, onde umas escravas o banharam e massajaram com óleos perfumados e lhe pentearam os cabelos deso­bedientes. O Rei Príamo ordenou que toda a cidade festejasse naquela noite e Eneias foi incumbido da missão de fazer com que Páris apa­recesse no banquete vestido como um príncipe de Tróia. Mas Páris sentia-se incomodado com a maneira como a maior parte dos seus irmãos e irmãs o tinham recebido e enquanto estava no banho parti­lhou as suas ansiedades com Eneias.

Deve ser duro para eles respondeu Eneias. No fim de contas, só Heitor é mais velho do que tu e é óbvio que tu tens um lugar especial no coração dos teus pais. Como poderia ser de outro modo? Os outros precisam de tempo. Mas não têm outra hipótese. Mais tarde ou mais cedo hão-de aceitar.

Crês que Cassandra também aceitará?

— Ah! Cassandra é diferente. Cassandra é...      Eneias hesitou.

Passa-se algo de errado com ela?

É uma história estranha. Ela diz que Apolo veio ter com ela uma noite, quando ela estava a dormir no templo dele, em Timbre. Ela diz que ele prometeu dar-lhe o dom da profecia se ela o deixasse amá-la e que quando ela se recusou ele a agarrou pela cabeça e lhe cuspiu na boca, de modo que ninguém acreditasse nas suas profecias.

Eneias olhou para o amigo e encolheu os ombros.

— Acreditas nela? perguntou Páris.

— Acreditas no que ela disse acerca de ti?

É claro que não.

Eneias sorriu.

Também ninguém acredita. É tudo muito triste. Cassandra é a mais bonita das filhas dos teus pais e consegue levá-los ao desespero. Mas não permitas que os disparates dela te afectem. E agora vamos. Já cheiras mais como um príncipe do que como um vaqueiro. Che­gou a hora de te arranjar umas roupas que dêem com esse cheiro.

Eneias ajudou Páris a escolher uma túnica e um manto finamente tecidos entre a selecção que os mordomos lhe trouxeram e ajudou-o na escolha discreta de uma jóia e, assim, foi como um verdadeiro príncipe que Páris foi recebido no banquete daquela noite. Páris foi levado até uma cadeira de honra, entre os seus pais. O Rei Príamo encheu uma taça de vinho e pediu a toda a assembleia que se juntasse a ele num brinde à longa vida e à fortuna do seu belo filho.

Lisonjeado, preocupado com a sua falta de maneiras e franca-mente confundido com aquela alteração brusca da sua vida, Páris em breve se deu conta de que, olhasse para onde olhasse, era objecto da mais curiosa atenção. O seu coração já estava desorientado com tan­tas emoções. Em breve a sua cabeça flutuava como os golfinhos e os cavalos-marinhos pintados nas paredes por cima de si.

Durante uma pausa no festim, Heitor ergueu uma taça à sua saúde e disse em voz alta:

Andrómaca diz-me que já estás a provocar um tal rebuliço entre as criadas do palácio que elas ainda se magoam umas às outras se não te arranjamos rapidamente uma mulher.

Sorrindo, embaraçado, Páris agradeceu o gesto.

Agradeço à tua dama, mas podes dizer-lhe que tenciono fazer sacrifícios no altar de Afrodite todas as manhãs até que a deusa me traga aquela a quem o meu coração está destinado.

O jovem não perdeu a divertida troca de olhares à sua volta e sen­tiu-se desconcertado. Páris percebeu que tinha de aprender a ser menos aberto entre aqueles homens inteligentes e cultos e aquelas mulheres pintadas e com ricos vestidos que o faziam sentir-se infantil e atrapa­lhado. Com uma ponta de desgosto, o jovem pensou em Enone e na vida simples que tinham vivido juntos na montanha. O seu coração vacilou por momentos, mas a sua mãe Hécuba veio em snu socorro e encostou-se a ele.

O meu filho considera-se um servidor de Afrodite? — É verdade, minha senhora.

Príamo, que estava perdido nos seus pensamentos, olhou para ele e sorriu-lhe.

— Parece que fizeram de ti, lá nas montanhas, um dárdano. A deusa é muito venerada por Anquises e pelo seu povo.

Heitor disse:

Nesse caso, não admira que tu e Eneias se tennhwm tornado amigos. Soube que em Lirnéssios dizem que Afrodite é mãe dele.

O jovem virou-se, sorrindo maliciosamente para Eneias. Não é, filho de Anquises?

Habituado àquilo, Eneias ergueu a sua taça e sorriu perante o espanto na cara do seu amigo porque, apesar de Afrodite não ter estado longe da mente de Páris durante as últimas horas, nunca pen­sara nela como uma mãe.

Eu fui gerado no templo de Afrodite — explicou Eneias. A minha mãe era sacerdotisa dela.

Mas a história é mais interessante disse Príamo. Não ouviste dizer, Páris que o meu primo Anquises foi cego pela deusa por se ter gabado do amor dela por ele? Onde está o meu bardo? Ele que nos cante o poema.

O bardo, que estivera na conversa junto das damas da corte, estendeu a mão para a sua lira e começou a tocar. Quando as cordas começaram a vibrar, os convivas caíram em silêncio. O bardo ergueu a voz e começou a cantar como Zeus decidira uma vez humilhar Afrodite fazendo-a apaixonar-se por um mero mortal. O pai dos deuses fez com que o coração da deusa ardesse com tal ardor pelo jovem Anquises que ela lhe apareceu num estábulo disfarçada de prin­cesa frigia e usando um vestido mais brilhante do que as chamas de uma fogueira. Afrodite entregou-se-lhe numa noite de tremenda pai­xão, mas Anquises tremeu de terror quando acordou de madrugada e viu que não tinha nos braços uma mulher nua, mas sim uma deusa imortal. Afrodite disse-lhe que não precisava de ter medo desde que preservasse o segredo do seu amor, mas o coração dele sabia tanta coisa que ardia de desejo de contar tudo. Quando o fez, ficou cego por um relâmpago.

Páris nunca ouvira o poema, ou a história, que era mais requintado e sofisticado do que os poemas campestres que costumava cantar com os amigos na montanha, e havia algo de perverso nas palavras que o deixaram a pensar se Afrodite e Anquises não estariam a ser alvo de chacota por parte do bardo. Mas Eneias parecia acreditar na maior parte e, assim, Páris descontraiu-se e juntou-se aos aplausos quando o poema acabou.

Hécuba colocou uma mão sarapintada em cima da sua.

A Afrodite Dourada é capaz de ser uma deusa muito gentil — disse ela mas também é capaz de ser bem cruel. Talvez, no fim de contas, tu sejas um rapaz de paixões, mas tem cuidado, para que o seu serviço não te consuma.

A tua mãe fala sabiamente disse Príamo. É melhor um homem tentar honrar os deuses todos, se bem que haja ocasiões em que parece que eles não querem saber de nós para nada.

Olhando muito seriamente para os seus pais, Páris viu como, mesmo naquela hora de comemoração, as questões difíceis de estado continuavam a perturbar a mente do seu pai. O jovem sentiu-se subi­tamente feliz por ter recusado o trono régio que Hera lhe oferecera. E quando estudou a mãe, pôde ver a força de Hera na sua graça maternal e sentir algo da sabedoria de Atena nas suas palavras. Mas a memória da fragrância de Afrodite assaltava-lhe os sentidos ao sentir o aroma das flores-de-lis que subia da mesa do banquete, ao sentir o roçar casual de uma serva enquanto ela lhe enchia a taça de vinho e os olhares do outro lado da sala, brilhantes por um momento mas que logo a seguir se desviavam rapidamente. Para o melhor e para o pior, pertencia agora inteiramente à Deusa Dourada.

- Agradeço a ambos os vossos cuidados respondeu ele, sorrindo — mas o meu voto foi feito antes de vir para junto de vós e confio na divina protecção de Afrodite. — O jovem bebeu um grande gole da taça de vinho com especiarias que tinha erguido. — Acredi­tai-me, o meu destino é ser consumido pela beleza e vou ao encon­tro dele com o coração ansioso.

 

                   Um Cavalo para Poseídon

Um homem tem de fazer as suas escolhas, mas, para um deus, quase tudo é possível. Assim, quando o amoroso Zeus gosta de uma mulher, tem muitos meios para se assegurar de que o seu desejo é satisfeito. Uma vez, tendo posto os olhos em Europa enquanto ela se divertia à beira-mar, ele assumiu a forma de um touro e comportou--se de modo tão inofensivo que ela se atreveu a montá-lo. Um momento mais tarde, a jovem era levada pelas ondas fora e pelo mar aberto até Creta, onde o deus teve o prazer de plantar a semente de Minos entre os seus rins. Outra vez, quando Zeus se encontrou com Dánae, fechada numa torre de bronze pelo pai, o deus dissolveu-se numa chuva dourada e através desse acto incandescente de luxúria foi concebido o herói Perseu.

Mas a mais importante das suas transformações aconteceu num dia fatídico em que o Pai do Céu viu a mulher de Tíndaro, Rei de Esparta, a tomar banho nua e sozinha no rio Eurotas. Inflamado de paixão, o deus transformou-se num cisne e penetrou-a com o seu longo pescoço e as suas asas brancas. Sem forças ou tempo para resis­tir ao ataque súbito do deus, Leda cedeu, arquejando, ao seu amplexo. Por fim, satisfeito, Zeus levantou voo, deixando-a prenhe com as mor­tes de milhares de homens, porque daquela violação nasceu Helena.

A sua beleza era tão graciosa e delicada que os homens diziam que ela tinha nascido do ovo de um cisne divino. Mas Leda fizera amor com o marido naquela noite e assim, quando Helena nasceu, Tíndaro decidiu criá-la como sua filha na corte de Esparta. Pouco tempo depois, levada pelo deus que tomara posse do seu corpo e da sua alma, Leda deixou Esparta e viajou para norte, para a floresta de Dodona, onde se entregou a uma vida ascética de profeta ao serviço de Zeus.

Entretanto, enquanto a criança crescia, também cresciam os rumo­res sobre a sua beleza, até que os homens começaram a sonhar que, um dia, talvez Helena lhes pertencesse. Mas Tíndaro tinha outra filha, mais velha, que tinha dificuldade em suportar a atenção que o porte e a graça de Helena, os seus olhos verdes, da cor do mar e os seus lon­gos cabelos negros atraíam mal entrava numa sala. O seu nome era Clitemnestra e apesar de ser considerada bonita à sua maneira, teve de aprender desde pequena que tinha de viver na sombra do rosto radioso da sua irmã mais nova. O pior era que até o seu próprio pai estava enfeitiçado pela beleza de Helena e, por isso, o amor fraternal entre as duas raparigas era muito pequeno.

O maior prazer de Helena era expor-se à luz do Sol, nadar no Eurotas, ou testar o seu corpo atlético com os outros rapazes e rapa­rigas de Esparta. Acima de tudo, ela gostava de se aventurar por soli­tários passeios pelo campo, descobrindo nascentes escondidas ou caçando com o seu arco nas montanhas arborizadas que circunda­vam a planície laconiana. Talvez para se consolar pela perda precoce da mãe, Helena desenvolveu uma forte afinidade com os animais e numa ocasião -- tinha apenas oito anos provocou uma grande consternação entre os caçadores quando estes a descobriram num aglomerado rochoso afagando as crias de um leão da montanha enquanto a fêmea lambia as grandes patas numa rocha batida pelo Sol, ali perto. Pouco depois, a jovem tornou-se numa devota da Vir­gem Artemísia e era muitas vezes vista a cantar hinos à deusa num altar qualquer ou chefiando as donzelas de Esparta na sua dança.

Pelo contrário, Clitemnestra raramente saía do recinto do palácio e tentava atrair as atenções do seu pai interessando-se pela política do reino e pelas negociações com os embaixadores de outros países. Quando Tíndaro lhe fez notar que as suas opiniões não eram bem--vindas, ela retirou-se para um mundo estudioso muito seu, onde desenvolveu um intelecto agudo e controverso, discutindo as inter­pretações dos oráculos com os sacerdotes, desenvolvendo uma pragmática filosofia muito própria e sonhando com a ocasião em que um homem da sua escolha olharia para ela, em vez de sonhar com Helena.

Um jovem dera mostras dessa preferência, mas era um tipo gros­seiro, taciturno, pouco inteligente e pouco a seu gosto. O jovem era um dos dois irmãos fugidos de Esparta depois de o seu pai, Atreu, ter morrido num combate pelo controlo de Micenas e o seu espírito ficara atingido pelos acontecimentos sangrentos que presenciara. Como era costume, o seu irmão mais novo, Menelau, em breve começava a sonhar com a beleza de Helena, mas o irmão mais velho, Agamém­non, foi atraído pelo fogo sombrio que sentia arder em Clitemnestra. Quando não estava a trabalhar com Tíndaro nos planos da campa­nha para recuperar Micenas, ia observar o trabalho dela no tear, ou ficava a vê-la à distância quando ela passeava sozinha nos jardins do palácio, imersa nos seus pensamentos. As suas atenções eram tanto mais fastidiosas quanto não conseguia, nunca, dizer nada. O jovem limitava-se a corar e apresentar um ar miserável quando ela o despedia com uma observação cruel ou outra coisa qualquer e um dia ela disse-lhe que preferia ser fechada para sempre num castelo sombrio qualquer a suportar o seu rosto deprimido seguindo-a como uma som­bra. Assim, desprezando o pai, ressentida com a irmã, furiosa com a deserção da mãe e desdenhando a companhia, Clitemnestra só queria fugir de Esparta e viver a sua vida.

Então, dois anos mais tarde, quando Helena ainda só tinha doze anos, algo aconteceu que alterou a vida das raparigas para sempre. No norte da Tessália, muito para lá do Istmo de Esparta, a mulher do Rei Pirítoo, o lápida, morrera. Quando o período de luto terminou, Pirítoo embarcou para visitar o seu velho amigo Teseu, em Atenas, que se sentia amargurado por a sua mulher Fedra se ter enforcado depois de se ter culpado pela morte do seu filho Hipólito. Pirítoo tentou levantar o moral de Teseu porque os dois velhos heróis tinham lutado muitas vezes juntos, como reis e como piratas, e sempre se tinham ajudado um ao outro. Em breve, os dois homens falavam sobre a beleza fabulosa de Helena. O vinho fez o resto. Os dois homens andavam ansiosos por um pouco de agitação. Pirítoo tratou de per­suadir Teseu a montar uma expedição para raptar aquele prémio tão desejado. Ambos sabiam que Tíndaro não estava em Esparta, que liderava o seu exército numa campanha sangrenta para devolver Aga­mémnon ao trono de Micenas. As defesas de Esparta estariam enfra­quecidas. A oportunidade era perfeita. Se a tentativa tivesse sucesso, sugeriu Pirítoo, lançariam mais tarde os dados para ver quem ficaria com a rapariga.

No entanto, a empresa era arriscada e ainda se tornou mais arris­cada devido a um acto sacrílego. Quando os dois homens avançavam com o seu pequeno bando de aventureiros pelos desfiladeiros a cami­nho da planície laconiana, deram de caras com Helena num santuário, onde a jovem oferecia um sacrifício a Artemísia com as suas amigas. A oportunidade era boa demais para ser desperdiçada. Pirítoo agar­rou na jovem aos gritos e atirou-a para cima da garupa do seu cavalo. Os raptores fugiram do recinto sagrado, deixando as amigas de Helena aos gritos.

Assim que despistaram os seus perseguidores, os dois homens joga­ram Helena aos dados e Teseu ganhou.

Então, Teseu era quarenta anos mais velho do que a sua prisio­neira. Em tempos, nem sequer teria sonhado em magoar uma rapa­riga daquelas, que podia ser sua filha, e parece que nem toda a sua nobreza de alma tinha desaparecido. Talvez se tivesse lembrado do herói que fora em tempos, quando vivia com Hipólita, a amazona, e lutara com ela na defesa de Atenas contra os invasores Cítios. Talvez a sua consciência guardasse algum insulto infligido por Fedra. Ou tal-vez a maldição da virgem Artemísia estivesse no seu espírito. Fosse como fosse, o bom senso deve ter regressado à mente do velho, porque quando ele olhou para os olhos assustados da jovem nua a seu lado, não conseguiu violá-la.

Após alguns momentos, sentindo-se miserável e envergonhado, afastou-se.

Instantaneamente, Helena cruzou os braços esbeltos no peito, encolheu as pernas e ficou ali, tremendo como uma criança que era. Teseu permaneceu durante algum tempo a abanar a cabeça, espan­tado por ter descido tão baixo.

Não chores — murmurou ele — eu não te faço mal. Está tudo bem, está tudo bem. Teseu podia ouvir os pequenos soluços da jovem e viu que ela estava a tremer. Quando se inclinou para a cobrir com a sua capa, quase desfaleceu de vergonha ao ver aquela beleza tão inocente petrificada de medo. O velho tentou confortá-la, mas ela não queria. Assim, Teseu olhou para ela tristemente, dizendo:

— Ter essa beleza deve ser mais uma maldição do que uma bên­ção. — Apesar de ter falado para si mesmo, as palavras ficaram para sempre gravadas na mente de Helena.

Incapaz de a devolver a Esparta e sabendo que não podia ficar com ela, Teseu confiou Helena a um dos seus barões de confiança, em Ática, e mandou a sua própria mãe, Etra, tomar conta dela. Em seguida, voltou à vagabundagem, até que foi dar, finalmente, à corte do Rei Licomedes, na ilha de Ciros. Foi ali que morreu pouco depois, tendo caído ou saltado — de uma falésia varrida pelo vento por cima do mar.

Pouco depois do rapto de Helena e antes que a notícia lhe tivesse chegado aos ouvidos, Esparta foi visitada por Tântalo, o jovem Rei de Élis. Tendo subido recentemente ao trono, andava à procura de uma mulher e ouvira falar da beleza de Helena. Mas, quando chegou a Esparta, encontrou a cidade num estado de caos com o Rei fora, na guerra e a sua filha favorita capturada. Como convinha ao seu esta­tuto real, Tântalo ficou alojado numa determinada parte do palácio e foi ali, numa das salas, que deu de caras com Clitemnestra.

A jovem aproximava-se da idade do casamento e desenvolvera uma beleza muito própria, morena e de ossos largos. Quando Tân­talo tentou consolá-la pela perda da irmã, ficou espantado por ver que aquela jovem ardente estava num frenesim de culpa, já rezara secretamente para que Helena nunca mais regressasse. Ele encora­jou-a a falar e sentiu a simpatia crescer dentro de si. Quando se lem­brou de que também ele fora a Esparta em busca de Helena sem um pensamento sequer para a sua irmã, os seus sentimentos tornaram--se mais profundos. Os dois conversaram sobre outros assuntos. O jovem Rei ficou de novo surpreendido pelo alcance dos interesses daquela jovem e pela qualidade da sua mente. E enquanto ela falava, ele ouvia com interesse os seus comentários espirituosos sobre si pró­pria e sobre a fraqueza dos que a rodeavam. Em breve o jovem Rei estava apaixonado.

Tântalo falou a Clitemnestra no seu reino. Era para lá da Arcádia, nas costas do mar ocidental, trezentos e cinquenta quilómetros a norte, longe de Esparta. Zeus era lá adorado como primeiro entre os deu­ses e havia todos os anos um festival de jogos em honra do Pai do Céu, na planície de Olímpia. A sua cidade de Pisa ficava perto do san­tuário e apesar de não ser tão grande como Esparta, era culta e prós­pera e só lhe faltava uma Rainha. Se Clitemnestra desse o seu consentimento, mandaria um mensageiro ao seu pai, pedindo que a sua filha mais velha pudesse aceder ao trono de Élis.

Clitemnestra pensou rapidamente. A jovem não tinha ilusões quanto a Tântalo. O jovem Rei não era o mais rico nem o mais belo Rei de Argos. Tântalo tinha um rosto grosseiro, com um nariz e umas orelhas demasiado grandes, que chamavam a atenção. Mas era um homem de sentimentos e tinha um carácter generoso. Era de sangue real e descendia de uma família antiga, mas tinha pensamen­tos interessantes sobre como um estado devia ser governado para bem dos seus súbditos sem necessidade de recorrer a um poder des­pótico. Também tinha planos para renovar a sua cidade e equipá-la com o que havia de mais moderno em matéria de cultura. E era inte­ligente. A jovem achou que poderia falar com ele sobre qualquer coisa e que ele abordaria qualquer assunto com um espírito aberto. Após mais ou menos uma hora de conversa, ela ficou impressionada com o intelecto e o alcance cultural do jovem Rei, de tal modo que se sentiu menos instruída do que pensava se bem que não ao ponto de se sentir humilhada. Tântalo era demasiado amável para isso.

Tudo aquilo era muito importante, mas mais importante ainda era o simples facto de que ele a queria. Ele queria-a a ela, não à irmã. Assim que soubera da sua situação difícil e expressara uma sincera ansiedade pelo seu bem-estar, o nome de Helena mal lhe passara pelos lábios. O jovem Rei parecia tão surpreendido com aquele facto como ela, mas Clitemnestra viu naquela atitude uma grande honesti­dade.

E com um pouco de imaginação, o seu reino poderia ser o paraíso.

Seria possível os deuses terem começado a sorrir para a sua vida enfadonha, finalmente? Podia refazer a sua vida com aquele homem, podia ter uma vida boa, a espécie de vida com que sempre sonhara, uma vida na qual poderia pôr o seu intelecto a uso, uma vida na qual não criaria apenas filhos e não esperaria apenas pelo regresso do marido da guerra com um cortejo de concubinas a reboque.

Porém, ela também sabia que, se Tântalo falasse com o seu pai, só conheceria uma resposta.

Numa época em que Tíndaro só pensava em Micenas, a sua filha favorita fora-lhe roubada. Helena desaparecera algures, entre Esparta e Atenas, e o seu pai deixou de pensar noutra coisa senão em encontrá-la e levá-la para casa, deixando para depois o assunto da vassala­gem de Micenas a Esparta.

Então, quando não havia a certeza, de facto, de que Helena regres­saria um dia, Tíndaro não tinha qualquer interesse em casar a sua filha mais velha com um Rei menor em termos de riqueza e poder, que vivia algures a oeste de tudo o que era importante. Diria não. Di--lo-ia alto e bom som porque, Clitemnestra suspeitava, o seu pai esperava secretamente selar uma nova aliança com Micenas dando-a em casamento a Agamémnon.

Uma coisa que ela nunca permitiria que acontecesse.

Por momentos, portanto, a jovem pensou em fugir. Mas viu de imediato que seria um passo desastroso. Se Tíndaro chegasse a casa e descobrisse que depois de lhe terem raptado uma filha a outra fugira de livre vontade, a sua ira seria terrível. As tropas bem treinadas de Esparta marchariam sobre Élis. Tântalo não viveria o sufi-ciente para defender a sua causa e ela seria arrastada para a casa paterna como viúva. Clitemnestra apercebeu-se disso tudo rapidamente.

A jovem partilhou todas as suas esperanças e receios com Tân­talo. Os dois jovens discutiram as dificuldades e apesar de ele se ter declarado pronto a lutar por ela, ela conhecia melhor do que ele o temperamento e a força do seu pai. Clitemnestra viu que a pressa, por parte de ambos, poria tudo em risco e, assim, teriam de esperar. Ela ainda não estava exactamente na idade de casar, mas estaria em breve. Se ela jurasse pela sua honra de donzela que não concordaria em casar com outro homem Tântalo esperaria por ela? Assim que Tíndaro regressasse da guerra e Helena fosse resgatada, o Rei ficaria de melhor humor. Clitemnestra dir-lhe-ia que casaria com Tântalo e com mais ninguém e que estava preparada para tornar a sua vida miserável até que ele concordasse com o que ela queria. No espaço de dois anos, três no máximo, conseguiria o seu consentimento. Então, ficariam livres para viver as suas vidas como quisessem, sem temerem nada nem ninguém. Não era o mais sensato?

Concordaram que assim era. Tântalo regressou a Élis. Mergulhada num sonho desassossegado de desejo, Clitemnestra esperou.

Passou-se mais de um ano antes que os espiões enviados por Tín­daro a Argos soubessem onde Helena estava prisioneira. O Rei enviou uma força para a resgatar e, antes disso, a fortaleza de Afidna caiu. A mãe de Teseu, Etra, foi feita escrava e Helena regressou a Esparta em triunfo.

À medida que a guerra por Micenas se aproximava do seu termo e Tíndaro continuava na frente, Clitemnestra andava espantada com a mudança operada na irmã. Uma rapariga que fora aventurosa e corajosa era agora uma criatura nervosa que vivia para a sua beleza como uma mulher apanhada por um sonho terrível. A jovem estivera prisioneira numa terrível cidadela, em Afidna, longe dos olhares públicos, apenas com Etra como companhia. E apesar de não ver mais ninguém senão Teseu e Pirítoo, continuava a sentir-se atormen­tada pelas imagens do seu rapto o cheiro a cavalo e a couro quando os cavaleiros galopavam com ela na garupa, o terror de ver dois velhos lançarem os dados com ela entre eles, o peso do corpo de Teseu sobre o seu.

E as palavras que ele dissera ainda lhe soavam nos ouvidos. A sua beleza era uma maldição, fora o que ele dissera e, agora, Helena achava que toda a sua vida era maldita. A jovem tinha medo do mundo. Para além do palácio, até Esparta, os seus montes e bosques pelos quais vagueara tão livremente como um veado, se tinham tornado lugares com imagens sombrias. Helena começou a ter medo do modo como os homens olhavam para ela sempre que punha um pé fora dos alo­jamentos das mulheres, como se cada olhar de passagem fosse uma ameaça de rapto em potência. Os seus olhos, que sempre tinham pos­suído o poder de deixar os homens sem respiração, passaram a ter um ar assombrado. A jovem só se sentia segura na companhia de Etra que se tinha transformado, estranhamente, numa espécie de mãe durante o seu período de cativeiro. Assim, Helena preferiu ficar iso­lada a seu lado, raramente falando e evitando a luz.

Só gradualmente Clitemnestra foi entendendo a extensão dos receios da irmã e quanto maior era o seu entendimento, maior era a sua ansiedade. A jovem tentou persuadir Helena de que os seus receios eram infundados, concedendo-lhe todas as atenções de que era capaz. Fosse qual fosse o ressentimento que pudesse existir entre elas, eram irmãs, no fim de contas, e ela tinha o dever de cuidar da irmã, assim como tinha consciência, horrorizada e complacente, de como todas as mulheres ficavam desamparadas quando os homens lhes entravam na cabeça, comportando-se de maneira a envergonhar os próprios animais. Mas quando tentou encorajar Helena a aventurar-se de novo no mundo com ela, Clitemnestra encontrou apenas recusas envoltas em pânico, recusas que tomou por uma obstinação autodes­truidora e perdeu a paciência quando todos os seus esforços parece­ram não fazer qualquer diferença. Começando a temer que quando o seu pai regressasse quereria que ela continuasse a tomar conta da irmã até que ela ficasse boa de novo, pronta para o casamento, Cli­temnestra disse para si própria que tinha a sua própria vida para viver, longe de Helena, longe de Esparta, uma vida que desejava cada vez mais.

Então, soube-se que a guerra com Micenas fora ganha. O usur­pador Tiestes estava morto. Agamémnon ascendera ao trono. Tín­daro regressaria a casa em breve. O Rei alegrou-se ao pensar na sua amada Helena e tinha notícias que excitariam o coração de Clitem­nestra.

A decisão de fugir de Esparta antes do regresso do pai foi tomada à pressa, mas nunca lamentada, porque o ano e meio que Clitemnes­tra passou a seguir, como mulher de Tântalo em Élis, foi, inquestio­navelmente, o ano mais feliz da sua vida.

Os dois jovens tiveram sorte por lhes ter sido permitido aquele espaço de tempo. A sua vida em conjunto teria acabado mais cedo se não se tivesse produzido um acontecimento que Clitemnestra desco­nhecia quando fugiu. Quando soube do rapto de Helena, Tíndaro caiu por terra, como se tivesse sido atingido por um deus. Durante algum tempo, o Rei andou em círculos, o seu comportamento tão vago e incerto que os seus amigos temiam que ele tivesse perdido o juízo. O Rei também se queixava da perna quando andava e, assim, viu-se forçado a abrandar o ritmo durante algum tempo, confiando a cam­panha a Agamémnon. Tíndaro fumegava como uma nascente de água quente na tenda onde estava confinado, até que, finalmente, devido a uma questão de força de vontade, se pôs de pé e regressou ao combate. Mas as coisas tinham-se alterado durante a sua ausência. Até os seus guerreiros espartanos procuravam a liderança vigorosa de Agamém­non. Ele era o futuro, ao passo que aquele velho cavalo de guerra Tín­daro era o passado. Assim que conquistassem Micenas, os homens não tinham dúvidas sobre quem ficaria com o poder em Argos.

Tíndaro viu que precisava do casamento entre Agamémnon e a sua filha mais do que nunca, não só como um acto de condescen­dência para com o seu aliado, mas também como único meio de man­ter a segurança em Esparta. Só podia agradecer aos deuses o facto de, por razões só dele conhecidas, o filho mais velho de Atreu preferir Clitemnestra a Helena, cujo paradeiro ainda era desconhecido.

Então, os deuses sorriram-lhe de novo. Helena foi encontrada e resgatada. Depois da tomada de Afidna, Menesteu, que sucedera a Teseu como Rei de Atenas, apressou-se a dissociar-se do crime do seu predecessor. E nas semanas seguintes o poder de Tiestes começou, finalmente, a decair. As portas de Micenas foram vendidas, Tiestes tentou fugir e foi morto. Infelizmente, o seu filho Egisto - o assassino de Atreu conseguiu escapar, mas ninguém duvidou de que fora conseguida uma grande vitória, tão grande que assinalava gran­des mudanças.

Tíndaro já estava a caminho de casa quando soube que Clitemnestra tinha fugido para Pisa, em Élis, onde se ia casar com o Rei Tântalo. O Rei entrou numa fúria tal, tão violenta, que o deus atingiu-o de novo e Tíndaro entrou em Esparta, não como um herói conquistador, mas como um deficiente de mãos trémulas e fala entaramelada.

Tíndaro não estava, certamente, em condições de comandar um exército no ataque a Élis. Nem podia contar com Agamémnon para uma ajuda imediata porque o jovem Leão de Micenas andaria ocu­pado durante algum tempo fortalecendo o seu poder na cidade, encar­regando-se das finanças e da administração e afirmando a sua auto­ridade sobre os domínios mais isolados. Assim, Clitemnestra e o marido foram deixados em paz durante muitos meses, apesar de as mensa­gens recebidas de Esparta não darem dúvidas a Tântalo de que se devia preparar para a guerra.

A guerra aconteceu pouco depois do nascimento do seu primeiro filho. Por essa ocasião, Agamémnon estava pronto para expandir o seu império e havia razões urgentes para o facto de se ter virado primeiro para Élis. Quando ele marchou sobre aquele país à cabeça das suas tropas, Tântalo decidiu ir ao seu encontro, em vez de preferir susten­tar o cerco, em Pisa. O jovem Rei escolheu bem o terreno, intercep­tando os invasores numa passagem através das montanhas, onde ele dominava as alturas.

Mas Agamémnon aprendera muito com o facto de Micenas ter caído devido à traição. Tântalo ordenou ao seu exército que carregasse e levou o seu carro na direcção das linhas de Micenas. Só quando já estava demasiado longe é que percebeu que poucos dos seus guer­reiros o tinham seguido. Os restantes, convencidos de que mais tarde ou mais cedo Élis cairia perante o poder de Micenas, tinham-se ven­dido e faziam agora parte do exército de Agamémnon.

Clitemnestra soube da derrota do marido assim que viu as tropas de Micenas marcharem na direcção do palácio de Pisa. Aterrorizada e perturbada, apertava o seu bebé contra o peito quando Agamém­non entrou de rompante no seu quarto. O Rei arrancou-lhe a criança dos braços, deu-a a um dos seus homens com ordens para lhe estoi­rar o crânio e informou Clitemnestra de que era viúva e que voltaria a casar dentro de pouco tempo.

Só dificilmente a jovem Rainha não se matou. Então, durante algum tempo, lutou contra ele como um lince. Mas aquele homem, estranho e severo, que estivera obcecado com ela durante anos, tei­mosamente, pôs-lhe cerco.

Quando Clitemnestra lhe perguntou, ultrajada, como podia ele imaginar que ela se entregaria ao assassino do seu filho, ele disse-lhe que, se lhe tivesse poupado o filho, ele teria crescido e vingado o pai — era assim que as coisas aconteciam na história sangrenta de Mice­nas e que ela, frisou ele, era a primeira mulher a ser confiscada como troféu de guerra e, ao contrário da maioria, não era condenada a uma vida de concubina ou de escrava.

Pelo contrário, ia casar com um homem que a amara como um cão fiel durante anos, tornando-se na mulher mais rica de toda a Argos. Porque se os deuses tinham favorecido a casa de Eaco com poder e a casa de Amítaon com sabedoria, tinham abençoado a casa de Etreu com a riqueza. E onde havia riqueza havia poder e certamente, decla­rou Agamémnon, suficiente sabedoria para qualquer mulher no seu perfeito juízo.

Assim, o Rei deixou-a sozinha para pensar durante algum tempo. Então, uma noite, foi ter com ela com vinho e presentes. Agamém­non estava a tentar fazer de si próprio um pretendente e com cada gesto desastrado seu ela sentia o ódio por ele entranhar-se nas veias. Mas chegou o momento em que ela viu, naquelas fanfarronadas todas, os olhos de um rapaz assustado que, muitos anos antes, fugira com o irmão do matadouro que era Micenas. Nesse momento, ela aper­cebeu-se do poder que poderia ter através dele e sobre ele.

Mais tarde, muito mais tarde, ele montou-a como um touro e ela deixou-o tomar o que já não tinha nenhum valor para ela. Mas o seu espírito — ela jurou-o enquanto jazia de olhos abertos — permane­ceria para sempre e inalienavelmente seu.

Entretanto, Helena encontrara um novo objectivo na vida cui­dando do seu pai. Tíndaro sempre fora brando com a filha mais nova, vergava-se facilmente à sua vontade. Embora também fosse culpado do sofrimento terrível da sua irmã, o Rei sabia que Helena nunca ave­riguaria muito de perto as suas acções e sentia-se grato por poder entregar o seu corpo fraco aos seus cuidados. Assim, com Etra per­manentemente na retaguarda e com a prima Penélope como compa­nhia, Helena sentir-se-ia ia feliz se pudesse levar indefinidamente aquela vida tranquila. Mas o mundo ainda queria qualquer coisa dela.

Como Agamémnon subjugou Élis e afirmou a supremacia de Micenas subjugando também reino após reino, estabeleceu-se um período de paz sobre Argos. Os jovens cujos pensamentos tinham estado virados para a guerra, começaram a pensar em casar e Helena que tinha a reputação de ser a mulher mais bela do mundo estava agora em idade de casar. Quem tivesse a sorte de casar com ela sucederia também, a breve prazo, ao trono de Esparta. Assim, Helena tornou-se, a breve trecho, num objecto de desejo sem rival para todos os grandes príncipes de Argos.

Um a um, apresentaram-se como pretendentes na corte de Tín­daro, cada um deles trazendo ricos presentes, vestidos como pavões ou fazendo exibições impressionantes, como se fossem focas de circo, da sua força e intrepidez.

Entre os mais enfeitiçados pela beleza de Helena estava Diome­des, senhor de Tiríntio, que era famoso por ser um dos homens mais corajosos que havia. Sem se aperceber do seu temperamento nervoso, ou talvez insensível a ele, o príncipe procurou impressioná-la com as histórias do seu triunfo durante a longa e terrível guerra de Tebas. Helena escutou-o pacientemente e enviou-lhe pequenos sinais de que era do seu agrado, mas evitou dar-lhe uma resposta categórica à sua ansiosa proposta de casamento.

Menesteu de Atenas foi recebido com menos calor. Se bem que estivesse a fazer todos os esforços para se distinguir do seu prede­cessor Teseu, reavivou recordações do seu cativeiro em Ática e era muito convencido à sua maneira. Teria sido mandado embora com uma clara rejeição se Tíndaro não tivesse aconselhado a sua filha a não rejeitar nenhum a princípio para não atrair hostilidade a Esparta. Assim, Idomeneu, herdeiro do Rei cretense Deucalião, velejou de Cnossos para fazer o seu pedido e de Salamina partiu Ajax, o valente filho de Télamon, juntamente com o seu meio-irmão Teucro, que fora gerado pela noiva cativa de Télamon, Hesíone. O grande arqueiro Filoctetes partiu de Eólia, levando consigo o maciço arco que Héra­cles lhe dera por troca da sua boa vontade em lhe acender a pira fune­rária no Monte Oeta, e muitos outros fizeram a viagem por terra atra­vés do Peloponeso.

Todos juntos, eram trinta e oito pretendentes à mão de Helena, a maior parte guerreiros veteranos, homens de poder e influência com as reputações feitas. Mas, entre eles, estavam dois jovens da idade de Helena. Ainda sem ter feito dezassete anos, Palamedes, príncipe de Gubeia, provou ser mais inteligente do que qualquer um dos seus rivais, os quais mantinha divertidos ensinando-lhes um jogo novo e complicado que inventara. O movimento de umas pedras através de um tabuleiro igual ao de um de dados proporcionava um jogo alegre, jogo esse que Palamedes parecia ganhar com uma espantosa regula­ridade. O outro jovem tinha menos a dizer sobre si próprio, mas car­regava o seu bom aspecto com uma reserva orgulhosa e arvorava um porte altivo e nobre. Todos concordaram que tinha poucas hipóte­ses, mas aquele aluno da escola de Quíron impressionou toda a gente com o seu comportamento modesto e cortês. O seu nome era Pátro­clo, filho de Menécio.

Helena estava no centro de toda aquela atenção num estado permanente de pânico. A jovem vira o que acontecera à sua irmã, que dera depois um herdeiro a Agamémnon, mas que parecia ter desis­tido de qualquer felicidade na vida, vira o seu tio Icário recusar que Penélope casasse com o homem por quem estava nitidamente apai­xonada e há muito tempo que pergunta a si própria se a sua vida seria algum dia mais do que um simples troféu para ser concedido ao pre­tendente mais forte. Porém, a jovem também via que o seu pai não viveria muito mais tempo e que o mundo não lhe daria paz até que pertencesse a outro homem qualquer. Mais tarde ou mais cedo, a esco­lha teria de ser feita entre aquele bando de pretendentes que recla­mava a sua atenção.

Tíndaro também teria preferido despachar os pretendentes e con­tinuar uma vida tranquila no centro do mundo da sua filha. Com tantos príncipes em luta pela mão de Helena, não sabia qual deles favorecer sem incorrer na inimizade dos outros. E o risco de uma tal inimizade ainda era maior devido ao facto de, entre todos os candi­datos, um poder exigir mais dele do que os restantes e poder exercer mais pressão.

Menelau, o filho mais novo de Atreu, amara Helena apaixonada-mente durante anos e Tíndaro sabia que Helena sentia uma gentileza e uma consideração familiar pelo irmão do meio de Agamémnon, menos ameaçador para ela do que os outros estrangeiros.

Desde os dias da sua infância que ela sempre correspondera com amizade ao sorriso tímido e ligeiramente de soslaio com que ele enfren­tava o mundo, como se ele passasse por ele como uma grande venta­nia. Mas Menelau já não era um rapaz, era um guerreiro experimen­tado que transportava consigo a marca da guerra sob a forma de uma cicatriz que lhe corria pela face direita abaixo e se detinha no canto da boca, encarquilhando-lhe a pele. E se não era um opressivo fan­farrão como o irmão, era, mesmo assim, filho de Atreu. Se ele se tor­nasse Rei de Esparta pelo casamento com Helena, os irmãos contro­lariam o Peloponeso. Alguns dos outros que lutavam pela mão de Helena, e pelo poder que ela lhes concedia, poderiam ficar suficien­temente preocupados com a perspectiva e dar os passos necessários para o evitar.

Assim, Tíndaro tremia e Helena sentia-se contente por isso.

Felizmente, entre aquela turbulenta reunião de galantes pretenden­tes, Tíndaro tinha um amigo de confiança. Odisseu, príncipe de Ítaca, viajara até Esparta, não na esperança de conseguir a mão de Helena mesmo nas barbas de outros homens mais ricos, mas para reivindi­car uma outra. Tíndaro tinha um irmão chamado Icário e também ele tinha uma filha desejável. Se bem que menos bela do que a prima, Penélope tinha uma pose e uma dignidade que encantavam o coração do príncipe de Ítaca e uma inteligência arguta que encantava a sua mente ágil. Mas o pai dela, Icário — um homem orgulhoso que gos­tava de afirmar o pouco poder que tinha — queria um genro mais próspero do que o príncipe de uma pequena ilha no mar Jónio relativa-mente na penúria e tornou claro logo ao primeiro contacto que não gostava nem confiava naquele aventureiro de Ítaca.

A sua filha podia chorar à vontade, insistiu ele, mas mais tarde ou mais cedo veria algum bom senso na sua oposição. Por que raio havia ela de passar a vida com uma mão à frente e outra atrás com um homem que pouco mais era do que um pirata num rochedo estéril algures a oeste da civilização quando podia escolher um dos prínci­pes que a sua prima mais obediente recusava?

Penélope só tinha uma razão uma razão que a satisfazia tanto quanto exasperava Icário: a jovem amava Odisseu e sentia-se feliz por passar o resto da sua vida com ele, por mais dura que essa vida fosse. Assim, para grande frustração do seu pai, Penélope recusava-se terminantemente a casar com qualquer outro. Mas a sua natureza era também muito modesta e leal para fazer o que o seu amor lhe pedia e comprometer a sua reputação através de uma fuga impe­tuosa.

Apanhado entre dois teimosos temperamentos espartanos, Odis­seu, finalmente, foi ter com Tíndaro.

— Parece que estamos os dois em dificuldades — disse ele. — Pergunto a mim próprio se não nos poderemos ajudar um ao outro.

Tíndaro suspirou. Conhecendo Odisseu há muito tempo, pen­sara primeiro que aquele magricela de pernas curtas, cabelos hir­sutos e nariz torto andava à pesca de algo a partir do momento em que pedira aquela audiência privada. Mas o sorriso malandro do seu hóspede era o contrário dos ares graves e lacónicos dos que anda­vam à sua volta e podia, pelo menos, descontrair-se, sabendo que o ítaco não andava à caça da mão da sua filha.

Explica-te — disse ele e fez sinal a um servo para lhes servir mais vinho.

Odisseu mediu o homem na sua frente — um homem que já estava na curva descendente da vida, que tinha mais do dobro da sua idade, que fora um guerreiro formidável e que estava agora reduzido à condição de deficiente amimado. Decidindo que uma certa inso­lência jovial poderia servir os seus propósitos, disse:

Parece-me evidente para que lado sopra o vento.

Tíndaro inclinou a cabeça.

— Tenho observado Agamémnon encostar-se a ti. O Leão de Micenas está a pressionar a causa do irmão, claro, mas também quer este casamento para consolidar a aliança entre Esparta e a casa de Atreu. — Odisseu olhou argutamente para o velho Rei espartano. — Eu acho que ele tem ambições no estrangeiro e com Esparta nas mãos do irmão o seu poder em casa estaria assegurado.

Através das palavras pouco claras que conseguia dizer naquele tempo, Tíndaro sussurrou:

— O trono de Esparta já está ocupado.

— E pelo mais sábio dos Reis — disse Odisseu, sorrindo. — Mas tu não viverás para sempre, velho amigo. E quem casar com Helena aquece a sua cama com uma mulher tão próxima da condição de deusa quanto um homem pode desejar e herda o teu reino.

Tíndaro reprovou aquele discurso com um suspiro cansado. — E depois?

— Depois, penso que é o que tu também queres. Casar Helena com Menelau, fazê-lo teu herdeiro e assim Esparta fica inabalável. — Odisseu sorriu para o velho Rei cuja mão trémula brincava com uma pulseira em forma de serpente em roda do pulso. Acrescente-se a isto o facto conveniente de Menelau parecer sinceramente apaixo­nado pela tua filha e Helena saber que ele cuidará bem dela e o casamento já fará sentido.

— Pensas que nada disso me ocorreu?

— Mas não é tão simples assim, pois não? Se um dos outros prín­cipes ambiciosos aqui presentes ficar decepcionado, podes ficar com um sarilho entre mãos.

Tíndaro desviou o olhar.

Odisseu levou as mãos aos lábios.

— Eu penso ter a solução. O príncipe sorriu. - Mas essa solu­ção tem um preço.

Tíndaro olhou para ele de novo com os olhos semicerrados.

— Poupa o fôlego — disse ele. O meu irmão não te quer ver nem pintado.

Odisseu abriu as mãos.

— O Rei vê por mim. Mas há coisas que ele pode dizer ao irmão, coisas que eu próprio não posso dizer. Pode dizer-lhe, por exemplo, que Odisseu de Ítaca levou a cabo recentemente alguns empreen­dimentos arriscados e que está mais rico do que a última vez que esteve em Esparta.

— A pirataria não te fará mais querido!

Odisseu sorriu de novo.

— Mas talvez uma olhadela aos meus cofres faça. E poderá ele nomear uma casa real que não tenha sido fundada com base na ladroa­gem ou na pirataria?

Tíndaro grunhiu.

— Rico como?

— O suficiente para fazer um par de cidades licianas e vários mercadores sidonianos consideravelmente mais pobres. Icário há-de ter o dote que quer e pode ficar descansado que a filha dele não terá falta de nada quando chegar a Ítaca.

Tíndaro abanou a cabeça.

— Icário quer ver a filha como Rainha de Creta.

Odisseu abanou a cabeça.

— Há sangue mau na Casa de Machado. Penélope não se entre­gará ao filho de Deucalião.

Modera a língua disse Tíndaro, franzindo o sobrolho. — O cretense é meu hóspede.

— Como a maior parte da realeza de Argos a comer a tua comida e a esvaziar-te a adega enquanto tu e o teu irmão sonhais com o futuro das vossas filhas.

Odisseu suspirou, impaciente.

Penélope só me quer a mim para marido. Quer-me como Helena quer Menelau e se tu e Icário quereis dormir descansados nas vossas camas faríeis bem em deixá-las fazer o que elas querem.

Mas Tíndaro limitou-se a franzir as sobrancelhas.

É essa a tua solução? Esperava algo mais engenhoso.

— É uma parte — disse Odisseu, sorrindo de novo não toda. Fico com o resto para mim próprio até tu concordares e pedir por mim a Icário.

Tíndaro olhou para o irresistível pirata na sua frente. O Rei cal­culou que Odisseu já tinha conferenciado com Menelau e com Aga­mémnon e que estes dois sabiam dos seus planos, Tíndaro calculou que ele também discutira o assunto com Helena e que os três tinham sentido o que ele estava a sentir: que aquele astucioso vagabundo ins­pirava confiança, mesmo se não se pudesse confiar totalmente nele.

- Que me queres tu dizer? — disse o Rei, suspirando.

— É muito simples — respondeu Odisseu. — Diz-lhe que estiveste a pensar e que decidiste que a única coisa que havia a fazer era deixar que a filha dele escolhesse. Diz-lhe que deixarás que Helena faça o mesmo e que se ele quer ver a filha feliz, deve fazer o mesmo com ela. Diz-lhe que Odisseu se tem esforçado por refazer a sua fortuna a bem da sua filha e que não só ama Penélope apaixonadamente como é um tipo mais engenhoso e mais digno de confiança do que Icário pensa. Conta-lhe o que tu sabes ser verdade, que Penélope me ama e que continuará a fazer-lhe a vida miserável até que ele consinta com o casamento.

E se eu concordar disse Tíndaro, não ouvindo ali nada que lhe provocasse problemas — posso dizer-lhe que o engenhoso Odis­seu me ajudou a encontrar uma saída para as minhas dificuldades?

— Podes.

E que saída é essa?

Estamos combinados? — Odisseu estendeu a mão. Quando Tíndaro acenou com a cabeça e a apertou, o ítaco sorriu. Amanhã é o dia em que o Rei Cavalo é sacrificado a Poseídon, não é?

E depois?

Farás o seguinte. Reúne os teus pretendentes no recinto sagrado e diz-lhes que, com tantos príncipes orgulhosos para escolher, não vês outra solução senão permitir que Helena tome a decisão por si própria. Diz-lhes que será assim. Mas diz-lhes também que antes de a escolha dela ser anunciada exigirás de todos os homens presentes que jurem que defenderão o homem escolhido contra todo aquele que desafie o seu direito de a ter.

Tíndaro encostou-se na cadeira e cofiou a barba. Após um mo-mento, o Rei disse:

Os homens são conhecidos por não cumprirem os seus jura-mentos.

Odisseu sorriu de novo.

Tenho em mente um juramento tão terrível — disse ele - que nenhum deles se atreverá a quebrar.

O Rei Cavalo foi trazido do prado na madrugada do dia seguinte. Com a crina e a cauda entrançadas e engrinaldadas e os cascos pintados de dourado, o belo garanhão branco foi levado para o recinto sagrado onde a estátua de bronze de Poseídon brandia o seu tridente.

Ali, o garanhão foi oferecido ao deus perante a assembleia de pretendentes. Mas o belo animal não seguiu docilmente para o sacrifício. Era como se as suas narinas já cheirassem a morte que se aproxi­mava. O animal resfolgava e relinchava com os olhos esgazeados. As suas orelhas estavam inclinadas para trás e os cascos escarvavam o solo enquanto Tíndaro invocava o deus de cabelos azuis que move os céus e a terra. Foram precisos quatro homens para manter o ani­mal no sítio.

O velho Rei não tinha a força necessária para assegurar uma morte limpa e assim foi o seu genro, Agamémnon, agindo como seu substituto que pegou no machado sagrado e cortou os tendões do pescoço e a traqueia do cavalo com um único golpe. De olhos arregalados, relinchando a sua dor e a sua raiva, o Rei Cavalo ergueu-se nos cascos traseiros, golpeando o ar com os dianteiros. O animal pare­ceu ficar naquela posição longos momentos, como se estivesse a reu­nir as forças necessárias para pisar a morte por baixo de si, mas depois espumou pela boca antes de entrar em colapso aos pés de Agamém­non. O sangue esguichou da carne branca rasgada para uma salva de prata. O vapor ergueu-se no calor da manhã, as moscas começaram a juntar-se e os homens que tinham estado a segurar no animal tira­ram dos cintos os seus próprios machados, começando a desmanchar a carcaça até o majestoso animal não passar de uma fila de pedaços de carne sangrenta no chão do recinto sagrado.

Só então Tíndaro anunciou aos pretendentes os termos do jura-mento que Odisseu tinha imaginado para eles. Antes de a sua filha declarar o nome daquele que seria o feliz contemplado com a sua mão, cada um dos poderosos príncipes tinha que se colocar com um pé em cima de uma das partes desmanchadas do grande garanhão branco que fora oferecido a Poseídon e exigir que o deus depositasse a ruína e a destruição nas suas mãos se não defendesse, até ao fim dos seus dias, os direitos do candidato vencedor à mão de Helena.

Durante alguns momentos, enquanto assimilavam a gravidade do que se lhes pedia, os príncipes reunidos mantiveram-se em silêncio. Um certo burburinho e uma certa excitação percorreu a assembleia de príncipes enquanto todos eles recordavam a terrível devastação provocada pelo encolher de ombros do deus que fazia tremer a terra em Cnossos e em Tróia. Tíndaro olhou para Odisseu, pouco seguro, mas este limitou-se a sorrir e acenou-lhe com a cabeça.

Ora vamos, meus senhores — disse Agamémnon — face a um prémio tão rico, não é um juramento assim tão assustador! O jovem Palamedes foi o primeiro a falar:

Eu não me importo de jurar — se bem que confesse que pre­feria jogar a mão de Helena aos dados! — Um riso amarelo percor­reu a assembleia de pretendentes. Então, Palamedes prosseguiu: — Mas aquele que imaginou o juramento não devia ser o primeiro a jurá-lo?

Apesar de não estar preparado, Odisseu compreendeu o mur­múrio geral de concordância.

Todos sabem que eu aqui não sou pretendente — disse o herói.

Nem eu — disse Agamémnon, ansioso por ver as coisas andarem para a frente mas também sou capaz de jurar. Vamos, senhor Odisseu, mostra-nos como vai ser feita a coisa.

Assim, Odisseu viu-se sem saída, descalçou uma sandália e pou­sou o pé descalço em cima de uma das coxas do cavalo para pôr a sua honra e o destino da sua ilha nas mãos de Poseídon, o deus que fazia tremer a terra.

Agamémnon foi o seguinte a jurar. Depois, Diomedes, ansioso por exibir o seu amor por Helena, avançou. Menelau, Palamedes e o belo príncipe de Creta juntaram-se-lhe rapidamente. Um a um com o medo do deus na língua, os outros seguiram-nos. Só depois de todos os príncipes terem jurado é que Helena avançou no seu vestido de noiva, segurando.a grinalda que fizera para aquela ocasião sagrada para a colocar nos abundantes cabelos ruivos de Menelau que ficou, brilhante de alegria, no meio dos rivais que derrotara.

Os deuses são justos — gritou ele com os olhos rasos de água. — Os meus agradecimentos vão também para a Divina Atena por ter guiado a escolha da minha amada. — Em seguida, olhando para os homens à sua volta e para a inveja e desapontamento nos seus ros­tos, virou-se para a estátua do deus. — Ouve os meus agradecímen­tos, Grande Poseídon, Senhor dos Cavalos é Deus que Sacode as Cidades, por concederes a tua divina protecção a esta união.

Helena disse a si própria que Menelau sempre fora seu amigo. Agora, seria o seu porto seguro no turbilhão do mundo e apesar de, em rapariga, ter sonhado com a paixão, sentia-se feliz por esses sonhos terem desaparecido. A jovem queria acreditar que quando entregasse o seu corpo a Menelau, naquela noite, o acto eliminaria a maldição da sua beleza para sempre. A jovem queria acreditar com toda a força do seu coração. Mas o coração é um órgão profético e pode, durante algum tempo, esconder segredos, mesmo daquele em cujo peito bate.

Entretanto, Tíndaro abriu os braços para abençoar o jovem filho de Atreu. O Rei viu Agamémnon e Clitemnestra juntarem Menelau e Helena no mesmo abraço, irmão com irmão, irmã com irmã. E enquanto assim fazia, o velho Rei reflectia no dia, muitos anos antes, em que, ao fazer um sacrifício aos deuses, se esquecera tolamente de fazer uma oferenda a Afrodite e a Deusa Dourada jurara vingar-se, assegurando-se de que as suas duas filhas seriam, um dia, esposas infiéis.

 

                             O Suplicante

No espaço de um ano, Tíndaro foi encontrado morto no seu quarto. Já governante mas ainda sem título, Menelau ascendeu ao trono lacademoniano de Esparta e pouco depois a sua amada esposa dava à luz uma filha. O trabalho de parto de Helena foi tão longo e difícil que Etra temeu que a luta a pudesse matar, mas Hermíone emergiu daquela angústia com tanta da beleza da mãe que Menelau se sentiu, mais do que nunca, abençoado pelo casamento que fizera.

Helena também se sentia fortalecida pelo casamento. Com a longa provação de ser o objecto de desejo de todos os homens ultrapassada, recuperara a confiança. A jovem descobriu uma nova vida, respon­dendo bem aos prazeres e desafios de esposa, mãe e Rainha. Mene­lau procurava muitas vezes os seus conselhos quando se tratava dos negócios de um reino cujos costumes ela conhecia e compreendia melhor do que ele. Era a primeira vez que alguém lhe pedia a opinião, ela gostou, descobrindo em si um interesse cada vez maior pela vida pública. Os dois soberanos engendraram juntos novos planos para o palácio, ampliando as divisões destinadas aos negócios do estado, os seus alojamentos privados e dando uso útil, por sua suges­tão, ao pórfiro finamente mosqueado das pedreiras locais. O resul­tado impressionou de tal modo Clitemnestra que esta encomendou grandes quantidades da pedra espartana para a renovação do seu sombrio palácio de Micenas. Helena também gostou de redesenhar os jardins em redor da sua casa para que as horas tranquilas que ela e o seu adorado marido passavam juntos com a sua filha pudessem encher-se de fragrâncias, cores e o som da água.

Em tais ocasiões podiam olhar, do palácio, para a Casa de Bronze de Atena no outro lado de uma planície fértil cercada pelos seus mon­tes íngremes defensivos, para um futuro no qual a sua felicidade parecia assegurada. Porque apesar de haver pouca paixão na sua vida em comum, havia muito afecto e Esparta prosperava. Já havia planos para o dia em que Hermíone casasse com o seu primo Orestes, o primeiro filho de Agamémnon e de Clitemnestra, unindo assim os tronos de Esparta e de Micenas para sempre. Os deuses, parecia, eram bons.

Quase quatro anos após o nascimento de Hermíone, Menelau recebeu uma mensagem do seu irmão. Agamémnon requeria a sua presença na corte do Rei Télamon, em Salamina, onde a demonstração conjunta das suas forças ofereceria apoio ao Rei na sua longa querela com Tróia.

Consternada com a perspectiva de uma primeira separação do marido, Helena exigiu saber por que razão aquela missão era neces­sária.

É uma velha querela explicou Menelau. Télamon e Héra­eles conquistaram Tróia há cerca de trinta anos e como parte do espó­lio Télamon ficou com a filha do Rei troiano, Hesíone. A princesa tem estado cativa em Salamina contra a sua vontade desde então e a única coisa que quer é regressar a casa. Quando Príamo sucedeu ao pai, não teve força para ajudar a irmã. Hoje, ele é um dos Reis mais pode­rosos do leste e está decidido a libertá-la, mas Télamon recusou todas as ofertas de resgate.

Firmemente, Helena disse:

— Eu estive prisioneira, uma vez, numa terra estranha e sei o que isso é. Se Hesíone se sente mal em Salamina, Télamon deve deixá-la ir.

Menelau grunhiu e desviou o olhar.

Por que não a deixa ele? — perguntou ela.

Porque é um velho guerreiro teimoso que pensa que é o último dos heróis depois da morte de Héracles e de Teseu. Por vezes, penso que preferia ver arder Salamina a prescindir do troféu que acha seu por direito.

— Mas isso é uma tolice — protestou Helena. — E, de qualquer maneira, não vejo em que é que isso interessa a Esparta.

Télamon pediu a ajuda de Agamémnon e Agamémnon pediu a minha. Ele é meu irmão. Tenho de ir.

O Rei falou como se o caso estivesse encerrado, mas Helena recusou-se a desistir.

Não achas que, para Hesíone, o ideal seria regressar a Tróia?

É evidente que acho. Menelau franziu o sobrolho. Mas não podemos simplesmente permitir que os Troianos a levem, ou começarão a pensar que Argos é fraca.

A Rainha disse:

Isso parece mais uma coisa do teu irmão do que tua. Ele sorriu-lhe, tranquilizando-a, o que lhe fez franzir a cicatriz na face.

Mas eu não sou o meu irmão e é por isso que devo ir a Salamina. Talvez consiga resolver esta querela sem violência. Acho que sou capaz de moderar o debate.

Pouco segura, Helena acenou com a cabeça, esperando que ele tivesse razão.

Entretanto, em Tróia, o Rei Príamo ficara tão exasperado com a recusa de Télamon às suas mais do que generosas ofertas de resgate por Hesíone, que estava pronto a ameaçá-lo com a guerra. O seu conselheiro Antenor, firme na sua convicção de que os interesses de Tróia ficavam mais bem servidos com a paz, opunha-se e pediu o apoio do primo de Príamo, Anquises, o Rei cego dos Dárdanos. Anquises recordou a Príamo o desastre do último conflito com Argos. E desde que Agamémnon fora declarado Grande Rei, as tri­bos guerreiras já não lutavam umas com as outras. Se Príamo inva­disse Salamina, toda a Argos lhe daria nas orelhas.

Apesar de ouvir impacientemente, Príamo compreendia a sensa­tez do discurso e concordou, relutantemente, que seria inteligente não pegar em armas enquanto todas as soluções diplomáticas não esti­vessem esgotadas. Assim, Anquises e Antenor foram enviados como seus embaixadores a Salamina com um pedido novo e final para o regresso de Hesíone.

Menelau chegou à ilha dois dias depois da delegação troiana e já lá encontrou o irmão Agamémnon. Fortalecido pela presença dos dois aliados, Télamon, que ia agora nos cinquenta e engordara, con­vocou um conselho e convidou Anquises e Antenor a apresentarem o seu caso. Tendo-os ouvido sem interesse, o Rei virou-se para Aga­mémnon com um gesto de rejeição.

— Tenho de ouvir, todos os anos, as mesmas gabarolices e as mesmas lisonjas. Desde que engordaram e enriqueceram, os Troia­nos transformaram-se em mulheres choronas — apesar de não me lembrar de ter ouvido Príamo queixar-se quando, por uma generosi­dade de espírito de estou arrependido, permiti que Hesíone resga­tasse a sua vida. Não achas que é tempo de resolvermos este dis­parate de uma vez por todas?

Agamémnon acenou com a cabeça.

— Hesíone foi justamente capturada. Laomedonte faltou à pala­vra — coisa a que Tróia é muito propensa. A sua perfídia custou-lhe a cidade e o respectivo saque. Ninguém pode pôr em dúvida que a mulher te pertence por direito.

Os filhos de Télamon concordaram. Menelau não disse nada até Agamémnon olhar para ele, mas então acenou com a cabeça, se bem que com menos convicção.

Télamon virou-se para Antenor com um encolher de ombros.

Estás a ver? O Grande Rei de Argos e o seu irmão, o Rei de Esparta, estão comigo. Ide para casa e dizei a Príamo que tanto ele como a irmã estariam há muito mortos não fora a clemente galanteria demonstrada por mim e por Héracles. Deviam estar ambos agra­decidos, em vez de me moerem a paciência desta maneira.

A paciência do Rei Príamo também tem limites - disse Anquises calmamente.

Por isso é que um Rei surdo envia um Rei cego como seu embaixador! 

Télamon olhou para Agamémnon, soltou uma risada des­consolada e virou o seu sorriso afectado para a delegação troiana. Se Príamo quer assim tanto o regresso da irmã, que a venha buscar. Entretanto, disponho dela como me apetecer.

— Não há aqui hipótese nenhuma de compromisso? pergun­tou rapidamente Menelau. — Talvez Hesíone possa ir de visita ao irmão durante algum tempo?

Agamémnon olhou para o irmão. Télamon abanou firmemente a cabeça.

Se a deixo ir, nunca mais a vejo. O lugar dela é aqui, ao pé de mim.

E por que há-de Salamina confiar na palavra de Tróia quando a história aconselha o contrário? — acrescentou Agamémnon. Télamon ganhou Hesíone pelo direito das armas. Se decidir conti­nuar com ela, pode contar com o nosso apoio.

Pouco depois, tendo sugerido que Télamon faria bem em se acon­selhar melhor do que com o ambicioso Rei de Micenas, Antenor e Anquises regressaram sombriamente a Tróia.

Menelau regressou de Salamina com o coração pesado e viu que, durante a sua ausência, a peste atingira Esparta. Helena fizera o que pudera para manter elevado o moral do povo, rogando aos deuses e oferecendo a ajuda e o conselho da sua mulher sábia Polidamna. Mas à primeira morte terrível seguiu-se uma outra e em breve o contágio espalhava-se pelos bairros mais pobres da cidade. Temendo pela sua própria família e pelo bem-estar do seu reino, Menelau impôs a qua­rentena em redor da cidadela e enviou mensageiros ao oráculo de Apoio, em Delfos, perguntando qual o remédio para a praga que amea­çava devastar o seu país. Após vários dias, a resposta foi que o Rei teria de encontrar os túmulos de um lobo e de uma cabra, ambos irmãos, e oferecer ali sacrifícios.

Durante algum tempo, os sacerdotes e conselheiros do reino dis­cutiram aquela resposta. Como podiam um lobo e uma cabra ser irmãos e por que razão haviam ambos de ser queimados? Finalmente, depois de muitas horas a ler atentamente as tábuas de argila nos arquivos do templo, um jovem sacerdote emergiu com uma história. Nos tempos antigos, declarou o sacerdote, Prometeu, benfeitor dos homens aquele que se atreveu a roubar o fogo do céu e a dar à humanidade uma parte das qualidades possuídas por todos os outros animais — teve dois filhos da Harpia Celaeno. Ela deu-lhes os nomes de Fico e Chimaerus, o lobo e o bode. Os dois tinham sido servido­res de Apolo Sangário — o Apoio dos ratos o deus que tinha tra­zido e que também podia curar a pestilência.

Onde é que podemos encontrar os túmulos desses dois irmãos? perguntou Menelau.

— No outro lado do Mar Igeu — disseram-lhe — no Escaman­dro, no reino de Tróia.

Menelau ergueu os braços ao céu.

- Por vezes, pergunto a mim próprio se os deuses não estarão a brincar connosco. Não é boa altura para ir pedir seja o que for a Tróia.

Na noite seguinte à interpretação do oráculo, o Rei virou-se na cama durante tanto tempo que Helena também perdeu o sono.

- Queres que peça a Polidamna que te prepare um soporífero?

murmurou ela finalmente.

Não — disse ele, abanando a cabeça e virando-se de novo.

Desculpa por te ter acordado. Tenho demasiadas coisas na cabeça. Passando um xaile púrpura pelos ombros, Helena sentou-se ao lado do marido e pousou-lhe uma mão no ombro.

Conta-me — disse ela.

— Tenta dormir. O Rei guardou para si as suas preocupações. — Já basta um de nós não poder descansar.

Preferes que eu alimente os meus medos no escuro, como tu? Se algo te perturba, deves partilhá-lo comigo.

Suspirando, Menelau virou-se e encostou-se à cabeceira da cama.

— A adivinha do oráculo foi decifrada hoje. Esparta só pode ver-se livre da peste se forem feitos sacrifícios nuns túmulos antigos perto de Tróia.

— Nesse caso, manda para lá os sacerdotes — exclamou Helena. - Ordena que se façam os sacrifícios. Qual é a dificuldade? Calmamente, o Rei disse:

Tenho de ser eu a fazer os sacrifícios.

Tens de ir a Tróia?

Tenho.

Nesse caso, vou contigo.

Menelau abanou a cabeça.

Não, quero que fiques aqui e que veles por Hermíone e pela cidade por mim.

Menelau sentou-se na cama e olhou para a mulher.

— Desejo tanto deixar-te aqui sozinha como tu, meu amor. Mas não posso levar-te.

Sentindo que havia mais qualquer coisa na sua mente do que o que dissera, ela pressionou-o e, finalmente, ele declarou que não queria levá-la porque a viagem poderia tornar-se perigosa.

— Nesse caso, partilharemos os perigos — insistiu ela. Quando ele abanou a cabeça e se virou de novo, ela disse: — O que é que tu não me estás a dizer?

Ele manteve-se em silêncio durante alguns momentos, não querendo alarmá-la. Mas a necessidade de aliviar o peso das suas preo­cupações também era grande e assim, quando ela insistiu novamente, ele disse:

Tenho medo que, mais tarde ou mais cedo, a guerra estale entre Argos e Tróia.

— Por que razão — perguntou ela há-de isso acontecer?

Helena, as razões podem ser muitas. Porque Príamo está velho e zangado e que perdeu a paciência com Télamon. Porque Tróia ficaria mais rica. Porque os homens são loucos, pensam que há mais gló­ria numa questão sangrenta por causa de uma cidade queimada do que em cultivar os campos em paz. Talvez porque os deuses estão aborrecidos e estão desejosos de sarilhos.

— Ou porque o teu irmão é que está desejoso de sarilhos? Menelau desviou o olhar perante aquela pergunta fria.

— Tudo o que sei é que o ar cheira a guerra sempre que Argos e Tróia se encontram. Basta uma faúlha para que toda a costa leste se incendeie.

Helena escutara aquele discurso com consternação crescente. A Rainha ficou sentada a olhar para o escuro.

Por que não me contaste nada disto antes?

Porque não tinha a certeza. Não queria alarmar-te.

— Mas agora tens a certeza.

— Certeza, certeza, não. — Menelau olhou para ela e viu a luz da candeia reflectindo-se nos seus olhos. — Mas tens razão — admitiu ele. — Desde que Agamémnon se tornou Grande Rei que parece que a sua fome de poder se alimenta dela própria. Só o percebi quando estive com ele em Salamina. Para ele, a paz já dura há muito tempo e está a começar a olhar para leste. Há anos que devasta as costas da Ásia com ataques piratas, mas o que ele quer é Tróia.

Helena deu largas à sua ira.

O homem é um monstro. Argos não lhe chega?

Aparentemente, não. Felizmente, não consegue conquistar Tróia sozinho e não sabe se terá todo o apoio de que necessita. Téla­mon e os seus filhos juntar-se-ão a ele, claro e há outros que já estão a pensar no saque. Diomedes, por exemplo. Mas, sozinhos, não con­seguem.

Helena franziu o sobrolho na escuridão.

— E tu?

Menelau virou a cabeça para olhar para a mulher.

Quer goste, quer não, se a guerra acontecer terei de apoiar Esparta.

Porque Agamémnon tem razão? Ou porque ele é teu irmão? Seguiu-se um longo silêncio.

Finalmente, Helena disse:

E o oráculo exige que vás a Tróia numa altura destas? Menelau suspirou.

A única coisa que posso fazer é não te levar.

— Nesse caso, vais devidamente armado? Levas navios e soldados contigo?

Agamémnon iria assim com fanfarronadas, exigindo acesso aos túmulos e abrindo caminho à força se eles se atrevessem, sequer, a pestanejar. Mas isso seria começar uma guerra que estou a tentar evitar. É por isso que não consigo dormir.

Nesse caso, que vais fazer?

- Não sei. Não sei mesmo.

Helena passou-lhe uma mão pela face.

Então, o melhor é dormires sobre o assunto. - A Rainha empurrou-o gentilmente, obrigando-o a deitar-se e colocou-lhe um braço em cima do peito, mas nenhum deles conseguiu dormir e quase se ouviam um ao outro a pensar.

Passados uns momentos, Helena disse:

Qual é que achas que seria o conselho de Odisseu se ele esti­vesse aqui?

Menelau pensou na hipótese.

Antenor sabe que eu estou a tentar evitar o conflito — disse ele finalmente. - Tenho a certeza que o leu no meu rosto, em Salamina. E Anquises não anda à procura de guerra. Por isso, penso que Odisseu me diria para ir a Tróia de maneira a parecer que queria falar com eles.

Parece-me sensato disse ela — mas como pode isso ser feito?

- Talvez apenas com honestidade — disse ele, apercebendo-se de repente. — Talvez seja isso. Penso que resolveste o problema por mim. No fim de contas, vou a Tróia como suplicante e é assim que me devo apresentar, desarmado, como um peregrino a caminho de um santuário.

Menelau sentou-se na cama, subitamente excitado.

- Tenho a certeza que é isso — exclamou ele e abraçou-a ternamente.

- Que faria eu sem ti?

E que faria eu sem ti? murmurou ela. Tens a certeza?

— Absoluta. E ainda mais porque o pensamento me veio por tua causa. E regressarei a Esparta assim que puder. Acredita, um homem que partilhe a sua cama com a mulher mais inteligente e mais bonita do mundo só fica fora dela se for absolutamente necessário.

— Mas os perigos... — disse ela.

A melhor maneira de evitar o perigo é não o provocar. Já o devia ter percebido. Vai correr tudo bem, prometo-te.

Pouco depois, Menelau adormeceu. Mas Helena permaneceu acor­dada durante muito tempo, consciente da escuridão por trás de tudo e receosa de que, apesar de todos os protestos do marido, o mundo girava à sua volta de uma maneira que nenhum deles podia ter espe­rança de controlar.

Entretanto, em Tróia, Príamo tinha convocado de novo o seu conselho. Tendo escutado enquanto Anquises e Antenor relatavam o falhanço da sua missão, disse:

Sinto-me tentado a aceitar o infeliz convite de Télamon. Se ele não quer as nossas ofertas de ouro, demos-lhe, nesse caso, armas de bronze. Quando poderemos ter uma frota pronta para invadir Salamina?

Dentro de quatro meses disse o seu filho mais velho Hei­tor — mas temos de pensar muito bem nisto. O génio de Tróia sem­pre esteve na paz, não na guerra. Se o Grande Rei de Argos for em ajuda de Télamon, perderemos mais do que ganharemos.

Hesíone sofre o cativeiro há mais de vinte anos — disse Príamo, cortando-lhe a palavra. Quanto tempo mais quer este conselho que eu fique aqui sentado à espera, em vez de a ajudar?

— Não duvido da coragem do meu irmão — acrescentou Deí­fobo mas Heitor é demasiado prudente. Nós, os Troianos, somos capazes de lutar tão bem como quaisquer outros, e os nossos amigos apoiar-nos-ão. Os piratas aqueus devastam as nossas costas há tempo suficiente.

Monta essa expedição se achas que tens razão — disse Ante­nor — mas eu receio que o resultado seja a guerra. Eu sei que o Rei gosta da irmã, mas deve estar consciente de que Télamon preferirá vê-la morta a cedê-la.

Franzindo o sobrolho, Príamo olhou para o primo cego.

Anquises, tu estiveste em Salamina. Acreditas que será assim? Anquises levantou a cabeça.

Télamon é um tição com mau feitio. A vida de Hesíone não tem grande significado para ele. Ele já saqueou esta cidade uma vez, não te esqueças. Eu percebi pela voz dele que pensa que o pode fazer de novo.

— Nesse caso, ele que venha e que tente — disse Deífobo. Verá que a situação é diferente.

— Ele está ansioso por vir — disse Antenor — e Agamémnon com ele. E se Agamémnon vier, o irmão dele também vem e os dois não virão sozinhos.

Príamo disse pesadamente:

Quando Agamémnon estiver pronto para a guerra, arranjará as desculpas de que precisar. O destino da minha irmã não significa nada para ele. Ele sabe que Tróia é rica. Ele sabe que nós controla-mos a costa Asiática e as portas do comércio para leste. Essa é a razão pela qual ele mandará os seus navios contra nós, mais tarde ou mais cedo.

— Nesse caso, a guerra está a chegar — declarou Deífobo - e nós devíamos levá-la até ele antes que ele no-la traga até nós. Façamo-lo agora.

Menos impetuoso do que o irmão, Heitor sentou-se ao lado do pai no silêncio da câmara do conselho. Alguns momentos depois, o príncipe olhou para Antenor.

— Disseste que achaste que o filho mais novo de Atreu era capaz de ter dúvidas sobre a guerra?

Antenor sorriu tristemente.

O Rei de Esparta está confortavelmente em casa, na cama com Helena.

Quase todos os homens no salão permitiram-se a si próprios um sorriso, mas Heitor não era um deles.

Nesse caso, falamos com ele? — perguntou ele.

— Mais facilmente do que com Agamémnon. — disse o Anqui­ses, o cego.

Mas não podemos falar com Télamon — declarou Príamo — e Menelau apoiará o irmão se ele for para a guerra. A questão é: vai ser agora, ou mais tarde?

Ouviu-se uma nova voz:

— Pode haver outra maneira.

Todos se viraram para Páris encostado a um pilar com um meio sorriso nos lábios. Era a primeira vez que ele falava no conselho, mas o príncipe escutara ansiosa e cuidadosamente durante meses, ao mesmo tempo que lhe ensinavam os rudimentos da leitura, da escrita e dos negócios de estado. Se bem que os nomes de Argos e de Esparta lhe fossem desconhecidos quando os ouvira pela primeira vez dos lábios de Afrodite, já lhe eram suficientemente familiares e se, para todos os outros, Argos era a sombra do trovão pairando sobre o futuro da cidade, para Páris era a luz da esperança.

Deífobo disse:

— Tenho a certeza de que o nosso pai tem em boa conta a tua opinião, mas não estamos aqui hoje a discutir a melhor maneira de criar um touro.

Paz, primo disse Eneias. — Deixa que o Rei ouça o teu irmão.

Páris clareou a garganta.

Eu penso que o meu pai age com sabedoria ao construir já uma frota para a guerra. Mas, enquanto a constrói, por que não me deixa embarcar para ver se eu consigo arranjar uma princesa qualquer em Argos e mantê-la como refém e usá-la como moeda de troca por Hesíone? Télamon talvez não nos ouça, mas é capaz de ouvir os ami­gos quando eles lhe pedirem que a liberte em troca da mulher que perderam. Desse modo, podemos salvar a irmã do meu pai e, ao mesmo tempo, estar prontos para receber Agamémnon quando ele vier. E quem sabe? — com sorte, talvez consigamos evitar uma guerra dispendiosa.

— Páris pensa com mais clareza do que todos nós - disse Heitor, sorrindo.

Parece-me um plano bem astucioso.

— E que está de acordo com os talentos dele! disse Eneias, rindo. —Assim que as mulheres de Argos puserem os olhos nele, hão-de começar a lutar umas com as outras para ver quem será a rap­tada. Talvez também vá com ele para ver o que acontece.

Nesse caso, que assim seja — disse Príamo solenemente, e virou-se para Antenor. — Chama o construtor de navios Fereclo. Quero uma frota pronta para o ataque a Salamina antes do fim do Verão. O meu filho Páris partirá no primeiro que estiver pronto.

Duas semanas mais tarde, Páris estava na praia vestindo apenas um pano em redor da cintura, trabalhando com os carpinteiros, aju­dando-os a construir o seu navio. A seu lado, Fereclo, acabava de exa­minar com os seus olhos de artesão a cabeça de madeira que um car­pinteiro lhe entregara naquela manhã.

Nunca será tão bonita como a própria deusa — dizia ele — mas esta é a Afrodite mais bela que eu vejo há muito tempo.

Quando Páris não respondeu imediatamente, o construtor olhou para ele e viu que a atenção do jovem estava noutro ponto. Um navio entrara na boca do Helesponto e arriara as velas quando ainda estava algo distante. Agora, aproximava-se a remos com o Sol por trás, dei­xando os barcos da frota de pesca a balançar na sua esteira.

Fereclo levou a mão aos olhos para estudar a aproximação do navio.

— Construído em Argos — murmurou ele uns momentos depois — mas não é um barco de guerra. Quem será?

O navio rangeu e entrou cerca de trinta metros terra dentro. Um dos homens da tripulação saltou da proa com um cabo para o amar­rar. Com um sobressalto no coração, Páris leu as palavras pintadas por cima do olho escarlate da proa. O jovem pronunciou as palavras num murmúrio: Helena de Esparta.

Fereclo ouviu-o e grunhiu:

— Um belo nome para um barquinho bonito!

É mais do que bonito  disse Páris — é lindo!

Quase sem querer, o jovem caiu de joelhos, levou uma mão à boca e depois aos lábios da deusa de madeira amamentando Eros. Com os olhos fechados e com a mente em fogo, Páris disse uma silenciosa prece de agradecimento.

Olhando de novo para o navio, o jovem viu um homem alto de pé à proa a olhar para terra, vestido com uma túnica branca de linho e com o rosto escondido por um chapéu. O seu cabelo brilhava como um farol à luz avermelhada do fim de tarde.

Todos os homens que trabalhavam na construção do navio bai­xaram as ferramentas. A maior parte olhava com uma mistura de admiração e apreensão para o navio estrangeiro, ao mesmo tempo que um ou dois olhava para trás, para a cidade, onde uma companhia de cavaleiros armados já saía pelos portões a caminho da praia.

— Que quer um homem de Argos das águas de Tróia? gritou Páris.

Assuntos pacíficos e sagrados respondeu o homem de cabelos ruivos. - Venho como suplicante.

Páris viu a longa cicatriz deixada por uma espada na face do homem. O jovem disse:

Pedir perdão pelas cidades que assaltaste e saqueaste?

Eu não, amigo — disse o homem, sorrindo. Não sou nenhum pirata. O meu nome é Menelau, Rei de Esparta. O homem olhou de soslaio rapidamente para o grupo armado que se aproximava. Páris sentiu de novo um sobressalto no coração.

És marido da dama que deu nome ao teu barco?

Tenho essa honra.

— E também a inveja de todos os homens, segundo sei. Menelau inclinou a cabeça num sorriso cortês de agradecimento.

- A minha mulher ficará lisonjeada quando souber que a fama da sua beleza viajou até tão longe.

- Se viveres para regressar para junto dela. - Páris manteve a voz leve, cobrindo a agitação do seu coração. - Ainda não nos disseste o que vens aqui fazer.

- Venho a pedido do oráculo de Delfos. O meu país foi atingido por uma praga que só desaparecerá quando eu oferecer um sacrifício nos túmulos de Lico e de Quimereu. Disseram-me que esses túmu­los estão em solo troiano, perto do santuário de Apolo, perto do Escamandro.

Páris sentiu-se atingido por uma dor angustiante. O jovem pen­sou em Enone e nas muitas vezes que ele e ela tinham ido juntos visi­tar Cébren, o pai dela, no santuário de Apolo.

Eu conheço o local — disse ele. Costumava criar touros não muito longe dali.

Nesse caso, os deuses estão comigo. Guia-me até lá, vaqueiro, e eu pagar-te-ei bem, pelo teu serviço e por uma hecatombe dos teus mais belos animais.

Páris sorriu-lhe.

Precisarás da autorização do meu pai para isso.

- O teu pai é esse homem aí?

Não, este é Fereclo, filho de Tecton, o melhor construtor de navios de toda a Ásia. O meu pai chama-se Príamo, Rei de Tróia, - e isto — Páris sorriu na direcção do grupo de cavaleiros que se apro­ximavam é a guarda do palácio que te vem prender.

Menelau ergueu as mãos.

Perdoa o meu erro, príncipe de Tróia, mas foi sem intenção — se bem que eu devesse ter adivinhado pelo teu porte nobre. Impor­tas-te de informar os teus homens que eu venho em paz e completa-mente desarmado?

Juras?

_Juro.

Pela vida da tua mulher?

Isso é um juramento terrível, mas sim, juro pela vida da minha mulher.

Nesse caso, considera-te sob a minha protecção, amigo. O meu nome é Páris, se bem que alguns homens me chamem Alexandre. Sê bem-vindo a Tróia.

Com uma acção de graças pela viagem sem incidentes, Menelau saltou para a água e caminhou para terra. O Rei de Esparta estava a estendera mão a Páris quando o grupo de cavaleiros se deteve, lide­rado por Antifo, que gritou uma intimação ao estrangeiro por baixo do seu elmo emplumado.

Páris sorriu-lhe.

— Temos a honra de receber o Rei de Esparta na nossa cidade, irmão. Antes que os teus homens se excitem demasiado, diz-lhes que baixem as armas e que ajudem a puxar este belo navio. Menelau está sob a minha protecção. A sua pessoa real é sagrada, tanto como supli­cante sagrado como hóspede da minha casa.

Fiel à sua palavra, Páris levou Menelau para o seu apartamento ricamente mobilado do palácio e dispôs-se a si próprio como uma espécie de amortecedor entre o seu hóspede e a maneira polida mas suspeita como a maioria dos seus irmãos recebeu o Rei espartano no interior das suas paredes. Também foi Páris que conduziu Menelau à presença do Rei Príamo no dia seguinte, onde o Rei de Esparta expli­cou a razão urgente da sua missão não anunciada a Tróia.

— O deus Apolo, aquele que vê mais longe, é venerado aqui em Tróia — respondeu Príamo solenemente. — Se o seu oráculo te envia, filho de Atreu, sê bem-vindo. O local sagrado que procuras fica localizado nas terras dárdanas do meu real primo Anquises, que tu conheceste na corte de Télamon. Ela fala bem de ti e nós apre­ciamos os seus sábios conselhos. Não duvido de que o seu filho Eneias te conduzirá aos túmulos.

De boa vontade — disse Eneias e Páris ajudar-nos-á a escolher os touros para o sacrifício.

Nesse caso, considera os animais um presente da nossa parte - disse Príamo. — E agora vem, Esparta. Tu e eu temos de falar de outras coisas. Eu tenho uma irmã que foi levada num tempo de tre­vas e que deseja ardentemente regressar. Télamon não quer ouvir, nem os nossos argumentos nem os nossos pedidos, mas ouve o teu irmão. Não achas que seria bom se Agamémnon e eu fôssemos da mesma opinião nesta matéria?

A minha própria mulher, Helena, foi raptada uma vez — res­pondeu Menelau. Nós dois compreendemos o sofrimento da tua irmã e as tuas preocupações.

— Nesse caso, ajudas-nos?

Télamon está seguro da justiça do seu caso disse Menelau calmamente.

E do poder dos exércitos do teu irmão.

Estou certo — sorriu Menelau que o Grande Rei de Tróia também protege os seus amigos e aliados.

É verdade — disse Príamo em caso de necessidade. Ante­cipas essa necessidade?

Menelau pensou uns momentos antes de responder.

— As querelas de Télamon não me preocupam, para já. Num tempo de pestilência, os meus pensamentos vão unicamente para o bem-estar da minha família e do meu país.

Mas se Agamémnon fosse para a guerra — observou Deí­fobo deixavas que a tua mulher te mantivesse na cama?

O Rei de Esparta é nosso hóspede interveio Páris merece a nossa cortesia. Estou certo que correria em ajuda do irmão tão depressa quanto eu em ajuda dos meus.

- — Tal como eu em ajuda da minha irmã — disse Príamo. - Todos nós lutaremos pelos nossos se necessário. — O Rei estudou o Rei espartano com olhos semicerrados. — Senhor Menelau, o nosso reino há muito que é pacífico, mas não tenhas dúvidas da nossa reso­lução. Quando regressares a Argos, diz ao teu irmão que encontraste em Tróia uma cidade forte e bem defendida, uma cidade que prefere uma solução pacífica a um conflito armado. Mas diz-lhe também que não hesitaremos em usar a força se a razão falhar.

Menelau acenou com a cabeça.

Nesse caso, esperemos que a razão prevaleça com a ajuda de Apolo.

- É o que mais desejo.

O Grande Rei permitiu a si próprio um sorriso.

Estou a ver que o nosso filho Páris fez bem em travar amizade contigo. Foi corajoso da tua parte aparecer aqui como apareceste, desarmado, mas também foi uma atitude sábia. Que Apolo o Curan­deiro, te proteja e ache as tuas oferendas aceitáveis.

Naquela noite, o Rei de Tróia ofereceu um banquete em honra do espartano, mas este comeu à parte e bebeu apenas água de modo a permanecer limpo para o sacrifício que se aproximava. Sendo o homem mais sóbrio no festim, Menelau respondeu com bom humor às ocasionais observações e muitos comentários sobre a beleza inve­jável da sua mulher.

Será verdade o que os menestréis dizem — perguntou Eneias - que ela nasceu do ovo de um cisne?

É tão verdade como o que dizem do teu pai — respondeu Menelau. Que ele foi cegado por Afrodite por se ter gabado de que dormira com ela!

— Então, não acreditas que eu seja filho de Afrodite?

Tanto quanto acredito que a minha mulher é filha de Zeus.

Ah, e estás assim tão certo?

Tanto quanto a beleza de Helena tal como a tua forma humana e masculina tem um não sei quê que é certamente imortal.

Bem respondido, Esparta acrescentou Heitor — mas, sabes, eu também tenho uma mulher desejável e há muitas mulheres lindas nesta cidade. Atrevo-me a dizer que a Ásia tem muito a ensi­nar a Argos nas artes do amor. Seremos capazes de te tentar a expe­rimentar esta noite a habilidade de uma das nossas belezas troianas?

O príncipe fez um gesto na direcção das jovens sentadas junto do tocador de harpa. Elas levantaram-se, sorrindo, para se mostrarem.

Uma oferta tentadora, amigo Heitor — respondeu Menelau — mas estou certo que compreenderás que não quero faltar ao respeito quando digo que não é apenas a minha condição de suplicante que me força a declinar a oferta.

É um homem que se deita todas as noites com Helena acrescentou Páris para o seu embaraçado amigo - não quer mais nenhuma na sua cama. O jovem olhou para Menelau, bebeu um gole de vinho da sua taça e disse:

— Gostaria de ver uma tal beldade.

Então, deves ir a Esparta um dia e eu receber-te-ei tão regia-mente como tu me recebeste aqui. Sei que a minha mulher gostará de agradecer em particular, Páris, por me teres tomado sob a tua pro­tecção. Helena temia que eu pudesse encontrar uma recepção mais fria, aqui em Tróia.

Naquele momento, Cassandra levantou-se de onde estivera até ali a ouvir num silêncio extasiado a conversa dos homens. A jovem permaneceu durante um momento com a mão na têmpora e depois disse em voz alta:

— Não é o frio, Atreides Menelau — não é o frio, é sim o calor e o fumo das chamas que te espera, hóspede de Argos, em Tróia. Vi-as contorcerem-se como serpentes, saindo de uma boca que mamava nas tetas de uma ursa. Vi-as lamberem, espalharem-se e irromperem sem entraves através das janelas e das portas. — Andrómaca e as damas-de-companhia já se estavam a levantar para escoltar Cassan­dra, mas a rapariga continuava a gritar enquanto a arrastavam para fora do salão. — Atenção à tua lareira, Rei de Esparta, ou uma serpente irá lá roubar-te o fogo para incendiar o mundo.

Quando viu Menelau fazer o sinal de protecção contra o mau-olhado, Heitor apressou-se a tranquilizá-lo.

— Desculpa a minha irmã. Como Apolo a rejeitou como sua sacer­dotisa, Cassandra ficou perturbada da cabeça. Peço-te que não pen­ses no que ela disse. A minha irmã só diz tolices.

Menelau vira, pelos olhos revirados da rapariga e pelas suas fei­ções atormentadas, que Cassandra não estava bem. Assim, apesar de ter ficado espantado com aquela erupção, estava pronto a esquecê-la.

Por favor — disse ele — a minha família também conheceu a loucura. Não é preciso pedir desculpa.

Mas o convívio tinha-se perdido e não seria facilmente recupe­rado. Uns momentos depois, Menelau bocejou e levantou-se.

— Peço que me perdoeis, meus senhores, mas está a fazer-se tarde. Amanhã tenho deveres sagrados para cumprir e preciso de dormir.

— Vem disse Páris eu acompanho-te. Amanhã mostro-te como a nossa terra é bonita. O jovem deu uma palmada nas cos­tas do seu hóspede. — E, quem sabe? talvez um dia, em breve, me possas mostrar a beleza da tua.

Naquela noite, Páris não conseguia descansar na sua cama.

Desde que Afrodite lhe prometera fazer de Helena sua mulher que fazia oferendas diárias à deusa. Todos os dias, quando o fumo se erguia e as pombas voavam sobre a sua estátua, as suas oferendas eram sempre acompanhadas por uma prece fervorosa para que ela se lembrasse da promessa e lhe mostrasse qual o caminho a seguir para se poder cruzar com a mulher mais bela do mundo. À primeira vista, portanto, era evidente que Menelau devia ter viajado até Tróia por intermédio de Afrodite. Mas quanto mais conhecia o Rei espartano mais gostava dele e menos seguro estava.

Quando Páris concebera a ideia de raptar Helena num reside pirata, Menelau era apenas um nome para ele, e o nome, ainda por cima, de um provável inimigo de Tróia. A ideia de roubar a mulher a um tal homem não apresentava grandes dificuldades. Mas ele e Menelau já não eram estranhos e Páris começava a achar impossível não respei­tar e admirar o homem de coração nobre que viajara inesperadamente até Tróia como suplicante.

Já no primeiro dia ele e Eneias tinham recebido Menelau mais calorosamente e com menos suspeição do que muitos outros na corte de Príamo. No fim do dia seguinte, depois de terem cavalgado com ele até às terras em redor do Monte Ida, os três homens estavam ligados por firmes laços de amizade.

Páris falou a Menelau dos seus primeiros anos como vaqueiro naquelas paragens e este elogiou-o calorosamente pela coragem com que, ainda rapaz, lutara contra o bando de ladrões de gado de Argos. Em troca, o Rei espartano falou-lhe dos tempos de trevas da sua infância como irmão mais novo e do violento turbilhão que atingirá a casa de Atreu. Assim, enquanto escoltava Menelau pelas pastagens da montanha da sua juventude e o ajudava a seleccionar os melhores touros para o sacrifício, Páris imaginava como, conscientemente, se poderia permitir trair a confiança de um homem com uma natureza tão generosa? No entanto, sem uma tal traição, nunca poderia pos­suir a mulher cujo rosto obcecava o seu coração.

Havia muitas razões, portanto, para o facto de ele ter decidido não acompanhar Menelau na última fase da sua jornada ao santuário de Apolo, perto de Tróia. Uma delas era a vertigem que sentia por poder encontrar Enone. Em várias ocasiões, desde a sua ida para Tróia, Páris fizera tenção de lhe enviar uma mensagem, mas sempre falhara nessa intenção e a cada falhanço tornava-se cada vez mais difícil pensar nela e sempre que o fazia a recordação do seu rosto era instantaneamente substituída pela imagem de Helena. A verdade era que Páris abandonara a sua vida anterior como uma cobra abandona a pele e ao pensar no povo que enganara daquela maneira sen­tia-se pouco à-vontade, culpado. Ainda por cima, tinha quase a cer­teza do amor de Enone. Suspeitando que era mais duradouro do que o seu, disse a si próprio que seria melhor evitar a sua companhia, evi­tando assim abrir uma ferida que já devia ter começado a sarar. Assim, com a desculpa de que desejava passar algum tempo com o seu pai adoptivo Agelau e com os seus amigos de juventude, deixou que Eneias servisse de guia a Menelau no santuário. Pouco depois, não se tendo sentido à-vontade entre os vaqueiros, regressou para esperar por Menelau e Eneias no palácio de Anquises em Lirnéssios, na base do Monte Ida.

Naquela noite, Páris jantou sozinho com o Rei dardânido, mas depois da primeira troca de cortesias o silêncio entre eles prolongou--se tanto que ele começou a pensar se Anquises estaria a gostar da sua companhia. No fim de contas, como aquele dia lhe recordara, em tempos não passara de um vaqueiro nas terras do Rei cego. Príamo recebera-o calorosamente e exigira que toda a Tróia fizesse o mesmo, mas ali, na Dardânia, Páris não se sentia bem, nem no palácio real nem nas cabanas dos vaqueiros. Brincando com a comida, o jovem príncipe meditava nas várias ocasiões em que se sentira envergonhado quando Anquises disse abruptamente, depois de secar as mãos após a refeição, disse, deixando-o espantado:

Aproxima-te, rapaz. Deixa que estas mãos vejam o teu rosto. Apreensivamente, Páris fez o que lhe era pedido. O jovem sentou-se a olhar para as órbitas escuras de uma cabeça que podia ter sido esculpida a partir da madeira de uma oliveira enquanto os dedos de Anquises viajavam pelos contornos do seu rosto, pressionando-lhe as pálpebras, sondando-lhe a boca. Nunca na sua vida se sentira tão intimamente observado. Páris tinha de lutar contra o impulso de se afastar, porque se sentia como se aquele contacto poderoso e sen­sível lhe pudesse descobrir cada segredo do seu coração. Finalmente, Anquises baixou as mãos.

Estou a ver que é verdade o que dizem. Os deuses concede­ram-te uma grande beleza, rapaz. Após um momento pensativo, o Rei acrescentou:

Esse dom tem um fado.

Todos os homens devem ir ao encontro do destino que lhes é dado respondeu Páris, pressentindo que ia ouvir mais qualquer coisa.

O ancião acenou com a cabeça.

Disseram-me que te dedicaste a Afrodite, acima de todos os outros deuses.

Um homem tem de escolher.

Seguiu-se um novo e longo silêncio. Anquises tacteou com a mão em busca do bordão dourado que deixara encostado à parede, atrás de si. Pensando que ele queria levantar-se, Páris fez menção de se levantar para o ajudar, mas o velho Rei fez-lhe sinal para que ficasse quieto. Tendo encontrado o bordão, sentou-se com as duas mãos apoiadas na sua ponta e com o queixo apoiado nestas. O seu rosto estava virado para o calor da lareira.

— Na minha juventude disse ele calmamente também me abandonei a Afrodite.Páris esperou.

Durante vários momentos, Anquises pareceu per­dido em pensamentos, como se o passado distante fosse mais vívido para ele do que as trevas do seu dócil presente. Então, o Rei virou o seu temível olhar cego na direcção do local onde Páris estava numa tensa antecipação.

Como vês — disse ele foi uma amante implacável. Anqui­ses exalou um pequeno suspiro trocista e virou o rosto mirrado na direcção da lareira antes de acrescentar, quase como se fosse uma reflexão:

- Não gostaria nada que ela também te cegasse.

Sem saber bem o que responder, Páris disse:

- Acredito que ela quer o meu bem.

- Talvez.

Anquises passou a ponta ferrada do seu bastão pelas pedras da lareira.

- Mas há mais do que uma maneira de se ficar cego.

- Nesse caso, tentarei manter os olhos abertos.

Páris fizera a observação o mais ligeiramente que se atrevera, mas Anquises não sorriu. Batendo de novo com a ponta do bastão na pedra, o Rei disse:

- Estás a ouvir o que eu digo, rapaz?

Páris deu um salto e acenou com a cabeça antes de se lembrar que ele não o podia ver.

Estou disse ele suavemente.

Então, trata de ouvir o que eu não quis quando era novo como tu e tão seguro do meu destino como tu. — Anquises voltou a bater secamente com o bastão na pedra da lareira. Serve Afrodite se é esse o teu destino. Serve-a bem. Mas lembra-te, ela não é a única deusa. Nada de extremos, estás a ouvir? Essa é a sabedoria de Apolo. Nada em excesso nem sequer para com a deusa que te escolheu.

A lenha silvou na lareira. Algures, no exterior do salão, o cama­reiro ralhava a um escravo através de sussurros zangados.

- Estás a ouvir? - perguntou Anquises de novo. E Páris, que estava a pensar que aquele ancião também devia ter sido um homem belo e arrogante, disse:

Estou a ouvir, tio.

- Estás? - O Rei cego resmungou qualquer coisa sem virar a cabeça.

- Estás mesmo?

Nada mais foi dito. Após algum tempo, sem mais explicações ou desculpas, o ancião levantou-se, chamou o seu guarda-costas e foi-se deitar.

Páris ficou sozinho durante mais algum tempo em frente da sua taça de vinho, absorto, bebendo demasiado. A sua disposição piorou. O príncipe nunca tinha tido tantas dúvidas, desde que descera do Monte Ida, sobre o destino que Afrodite lhe prometera.

Na noite seguinte, Menelau regressou ao palácio de Anquises com Eneias depois de ter celebrado o seu sacrifício nos túmulos de Lico e de Chimaerus. O Rei estava exausto mas também extrema-mente entusiasmado porque recebera sinais claros de que a sua ofe­renda tinha sido aceite pelo deus. Eneias insistiu em que deviam cele­brar com um banquete e os três amigos riram a bom rir enquanto comiam bem e bebiam melhor. Então, Anquises, que permanecera silencioso durante a maior parte da refeição, bateu com o seu bastão no chão e ordenou ao seu menestrel que cantasse a Canção de Tróia.

Com um rápido e apologético olhar na direcção do seu hóspede, Eneias sugeriu deferentemente que o dia fora longo e que a canção era demasiado longa e solene para a ocasião. Mas Anquises insistiu e Menelau, polidamente, declarou que gostaria de saber mais sobre a história ancestral daquela terra. Felizmente, a voz do velho menes­trel continuava forte e o seu dedilhar na harpa orgulhoso e talentoso.

A canção contava como aquele país a sul do Helesponto tinha sido fundado, primeiro, sob a égide de Apolo, por Teucro, que partira de Atenas em direcção à Frigia. Depois viera Dárdano da Arcá­dia, que construíra uma cidade nos contrafortes do Monte Ida. Fora o seu neto Trós que dera o nome à cidade e fora o filho deste, Ilo, que trouxera o Paládio a antiga imagem da Palas Atena para o monte de Ate, onde a cidadela de Ilion foi fundada. Em redor do recinto sagrado crescera a cidade de Tróia propriamente dita. A canção atin­gia o clímax com uma história sobre o deus que sacudia as cidades, Poseídon, punindo a impiedade de Laomedonte com a destruição da cidade, que fora depois saqueada por Héracles e Télamon. O menes­trel concluiu a sua canção com um hino de louvor ao Grande Rei Príamo e ao seu real primo Anquises por terem restaurado a glória e a riqueza da cidade.

— Tentei avisar Laomedonte contra a sua loucura disse Anqui­ses, suspirando, quando a canção acabou mas ele não me ouviu. Nós, os Dárdanos, somos um povo pacífico. Se bem que sejamos capazes de lutar por uma causa justa, preferimos caçar, criar bons touros e cuidar das nossas manadas. O Rei abanou a cabeça. — Por uma vez senti o cheiro da morte numa cidade em chamas. Não desejo senti-lo de novo.

Menelau ergueu a sua taça.

— Esperemos que não, meu amigo.

— Mas aquele louco e intransigente Télamon continua vivo disse Anquises sinistramente e ele não é amigo de Tróia. — O Rei virou a cabeça na direcção da voz de Menelau. — E o teu irmão tam­bém não, parece-me.

Seguiu-se um silêncio incómodo que Páris ia quebrar quando Anquises ergueu a mão e falou de novo:

— Escuta o que eu digo, Menelau. Quando Antenor e eu fomos a Salamina, escutei-te a ti e ao teu irmão cuidadosamente. Dos dois filhos de Atreu, estou convencido que a mente de Menelau é mais razoável do que a de Agamémnon. Preferia que fosses tu, e não ele, a governar Micenas.

— O meu irmão sabe que me sinto feliz em Esparta respon­deu prudentemente Menelau.

Anquises acenou com a cabeça.

— Mas ele faria bem se ouvisse os teus bons conselhos. Ainda por cima porque; agora, tu conheces-nos e viste a nossa força. Pensemos nisto juntos, amigo. O meu primo Príamo tem um grande amor pela irmã. No fim de contas, deve-lhe a vida. O seu coração tem pressa e no que diz respeito ao destino de Hesíone, ele está pronto a deixá-lo dominar o seu pensamento. Não te parece, como me parece a mim, que se Príamo e Agamémnon continuarem com os seus projectos são capazes de nos arrastar para uma guerra que nenhum de nós, ou qual-quer homem razoável deseja? Não será boa ideia temperar os seus espí­ritos impetuosos com as nossas reflexões frias?

Consciente de que os outros esperavam uma resposta sua, Mene­lau disse calmamente:

— Em que é que estás a pensar?

Anquises manteve-se silencioso durante algum tempo em frente da lareira antes de responder.

— O meu sobrinho Páris e o meu filho Eneias propuseram fazer brevemente uma viagem a Argos. Não poderão eles reforçar a ami­zade que iniciámos aqui esta noite? Se falares com Agamémnon, como eu vou falar com Príamo, não poderá ele ser persuadido a recebê-los como embaixadores de paz e prosperidade mútua em vez de como arautos da guerra? Certamente que seria no interesse de todos ele embolar os cornos de Télamon, em vez de o deixar soltar a sua raiva para lá dos limites do seu redondel?

Menelau levou tempo para responder. O Rei de Esparta pensava no medo terrível que Helena tinha da guerra e como Esparta preci­sava da paz para recuperar da devastação da peste. O jovem Rei reflectiu na generosidade com que tinha sido recebido em Tróia e como gostava dos seus novos amigos Páris e Eneias. Sentia-se admi­rado com tudo o que Príamo conseguira em Tróia e respeitava muito a apreciação da situação por parte do Rei cego dos Dárdanos. Assim, quando procurou no seu coração, não encontrou apetite pela guerra — apenas o desejo de governar um reino pacífico com a sua amada mulher a seu lado.

Creio que tu e eu temos as mesmas ideias — disse ele final-mente. — Vou falar com Agamémnon assim que regressar e falar-lhe da amabilidade e sabedoria que encontrei aqui. Quanto aos meus dois nobres companheiros — o Rei sorriu para Páris e para Eneias — tor­naram-se meus amigos queridos e, pelo menos, serão recebidos com todo o calor em Esparta. Veremos o que acontece quando eu os apresentar como embaixadores ao Grande Rei de Micenas.

Como uma súbita alteração no tempo, a tensão na sala dispersou.

Nesse caso, esperemos por um novo começo disse Anqui­ses. — Esperemos que a juventude e o vigor tenham sucesso onde Antenor e eu falhámos.

Eneias ergueu a sua taça para brindar à esperança. Depois de os outros se lhe terem juntado, o seu pai retirou-se e apesar de já estarem embriagados, Eneias insistiu no facto de que dez anos era tempo suficiente para que o vinho ficasse guardado nas adegas e pediu mais. Em breve estavam os três ainda mais embriagados e prontos a jurar amizade eterna.

Aparece em Argos — disse Menelau já com a língua entara­melada e eu mostro-te... mostro-te... — O Rei de Esparta pesta­nejou para Páris. — Diz-me, meu belo amigo, de que é que gostas mais neste mundo?

De touros! — disse Eneias, e começou a rir. — Ele adora touros.

— Não, não respondeu Páris, cada vez mais tonto — isso foi há muito tempo.

Mas ainda gostas deles — insistiu Eneias. — Viste-o a fazer-lhes festas ontem, Menelau. Páris gosta deles carnudos e grandes. Quanto maiores, melhor. Podes ter a certeza de que, se Argos tem touros para amansar, Páris é o homem ideal para o trabalho.

— Não — riu-se Menelau. — Eu acho que ele está mais interes­sado em mulheres! Acho que ele é um domador de corações, tanto quanto de touros.

Eneias apontou um dedo ébrio para Páris.

Isso faz-me lembrar uma coisa. Nós ontem demos de caras com uma coisinha bonita em Escamandro. Ela perguntou por ti com muita ternura. Não me lembro do nome dela, mas ela chamou-te Ale­xandre. Lembras-te? Ou houve muitas mais desde então?

Páris olhou para o amigo. Subitamente, o seu coração sobressal­tara-se e o jovem sentia-se ao mesmo tempo sóbrio e miserável.

- Enone disse ele. — O nome dela é Enone.

— Portanto, o coração dela foi o primeiro que tu destroçaste! — Eneias abanou a cabeça numa reprovação trocista. — Bem, terá mais recordações tuas do que as outras. Está com uma barriga enorme. — Quando o jovem troiano viu como o rosto de Páris empalidecera ao ouvir a notícia, acrescentou alegremente: — Não te preocupes, não será o primeiro bastardo sem pai da Dardânia. Estou certo que hás--de deixar outros na tua esteira, tal como o teu pai antes de ti. Hão-de dizer que são filhos de um deus! — Menelau e Eneias desataram a rir, um riso desproporcionado por parte de dois homens cansados e embriagados gozando o espectáculo de um amigo em desgraça.

Oh diabo, parece que pusemos o dedo na ferida — disse Eneias. — Ela deve ter sido o primeiro amor dele!

É verdade, Páris? — perguntou Menelau mais gentilmente. — Ela foi o teu primeiro amor — como Helena foi o meu?

Páris desviou o olhar.

— Foi o vaqueiro que a amou, não o príncipe.

E para este príncipe — Eneias piscou o olho a Menelau — haverá muitas mais. Que mais se pode esperar de um entusiasta pela Deusa Dourada, hã? Bem, a Deusa Que Ama o Riso tem poderes sedutores, garanto-te, mas podes queimar-te no altar dela. Se fores esperto, seguirás o meu exemplo. O meu serviço vai para Atena e para Hera e estou muito satisfeito. Arranja uma boa mulher, Páris. É o que precisas para assentar. Uma boa mulher. Arranja-a o mais depressa que puderes. É o melhor que podes fazer para assegurar o futuro.

Quanto a isso — resfolgou Eneias — tu és a inveja do mundo. Qualquer homem se sentiria satisfeito se soubesse que teria Helena à sua espera na cama. Não é, Páris?

— Se tudo o que dizem for verdade.

Oh, é verdade, sim! — Menelau sorriu. Se vocês tivessem paciência, meus amigos, era capaz de ficar aqui a cantar louvores a Helena durante toda a noite. Mas de que vale se as palavras não con­seguem exprimir a sua beleza e se vocês vão estar dentro de pouco tempo em Esparta para julgar por vós próprios? — O espartano fixou a sua taça, sorrindo afectuosamente, como se estivesse a ver a sua mulher na superfície do vinho. — De facto, tenho a certeza de que a ides achar a criatura mais encantadora que alguma vez vistes. Aposto a minha vida e a minha felicidade.

— Mas isso não seria perder a própria Helena? — disse Eneias, rindo.

Menelau abriu a sua mão livre.

— Exactamente! — e os seus olhos congestionados piscaram na direcção de Páris por cima da borda da sua taça com a serena satisfa­ção de quem se acha privilegiado e o mais afortunado dos homens.

 

                     Embaixada Troiana

Nas semanas anteriores à sua partida para Esparta, Páris passou por tempos difíceis. Tudo começou na manhã seguinte ao dia em que Menelau fez os seus sacrifícios nos antigos túmulos. Em vez de regressar imediatamente a Tróia, Eneias sugeriu que ele e Páris levassem o seu hóspede a caçar nos abismos das montanhas de Ida, onde havia muitos javalis, ursos e leões. Os três homens deram de caras com um dos maiores javalis que algum deles tinha visto, um animal enorme e peludo, musculoso e com longas presas. Quando os três homens chegaram à ravina onde o javali estava encurralado, o animal já tinha esventrado dois cães, pisado outro e enervado os restantes. A criatura sangrava de uma orelha. Páris e Eneias afastaram-se, con­vidando o seu hóspede a dar o golpe final. Mas o javali ainda não estava pronto para morrer. Quando Menelau ergueu a sua lança, o animal guinou subitamente e procurou refúgio no matagal, desaparecendo na verdura.

Para lá da vegetação erguia-se uma parede rochosa que evitava a fuga e os caçadores sabiam que o animal estava nas proximidades. Enquanto Páris usava a sua faca para cortar a artéria de um dos cães feridos, Eneias assobiou aos dois mastins restantes, mas estes tinham ouvido o latido de morte do camarada e tinham provado a ferocidade do javali para se arriscarem num espaço apertado. Eneias incitava-os impacientemente quando, vindo de um lado totalmente inesperado, o javali atacou. O animal surgiu do matagal a toda a velocidade, diri­gindo a sua ferocidade para Eneias, que se desequilibrou ao virar-se e que teria tido a barriga furada se Menelau não tivesse lançado a sua lança, abatendo a besta mesmo a tempo e enchendo as pernas do príncipe dárdano de sangue. O javali exalou o último suspiro sob o peso da lança, pestanejando sombriamente para a morte.

Eneias saiu da situação crítica apenas com um arranhão na bar­riga da perna e já se estava a rir quando agradeceu a Menelau o lan­çamento oportuno. Mas Páris tinha visto tudo do sítio onde estava, ajoelhado junto do cão morto, com a faca na mão e a lança pousada no chão a seu lado, inútil, e continuava a olhar quando Menelau ras­gou um pedaço da sua própria túnica para ligar a perna ferida do prín­cipe. O jovem escutava as observações brincalhonas que eles faziam sem as ouvir porque o dia se imobilizara à sua volta e tinha o pres­sentimento de que tudo aquilo com que sonhara era agora impossível. Já se tinha sentido perturbado com o calor crescente do seu afecto pelo Rei espartano. Agora, devia àquele homem de coração generoso a vida do seu mais querido amigo e tornara-se impensável trair Menelau raptando-lhe a mulher tão manifestamente adorada.

Páris percebeu que vivia há demasiado tempo com uma ilusão. A visão que tivera no Monte Ida, proporcionada pela deusa fora ape­nas um sonho provocado pela sonolência e pela solidão. Agora, estava bem acordado e o mundo tornara-se, subitamente, num sítio muito frio.

Os caçadores regressaram a Tróia naquela noite e o Helena de Esparta zarpou para o Helesponto duas manhãs mais tarde. Mas mesmo antes de Menelau ter partido para junto da sua amada mulher já Páris começara a entregar as suas noites a um frenesim de amor com as mulheres da cidade. A vida proibira-o de ter aquilo com que sonhara e que Afrodite lhe oferecera. Muito bem! Se Helena não podia ser sua, renunciaria à sua tola abstinência e aproveitar-se-ia de todas as outras mulheres que a deusa lhe colocasse à disposição.

E havia muitas.

As apaixonadas filhas de Tróia acharam a sua apaixonada explo­ração dos seus corpos jovens mais dilacerante do que o seu anterior voto de castidade porque o seu interesse raramente durava mais do que uma noite ou duas. A sua modéstia não tinha a inocência pura que ele amara em tempos em Enone e ele cansava-se depressa das suas exigências, das suas queixas e das suas lágrimas. Depois de um encontro amargo com uma jovem cujo comportamento opressivo só era igualado pelo seu temperamento, Páris pensou seriamente em virar as costas à cidade e ir em busca de Enone e do bebé que ela transportava no ventre. Mas a ideia de regressar a uma vida mesqui­nha entre os vaqueiros dárdanos era pouco chamativa, agora que o mundo se abria para ele e o jovem sabia que Enone nunca se sentiria à-vontade entre as mulheres pintadas e perfumadas da corte troiana. Assim, virou-se para as cortesãs da cidade e através delas rapidamente aprendeu a deixar de ser o animal ardente que era para se transformar num amante hábil. Em breve tinha encontros amorosos com as mulhe­res dos burgueses troianos que mostravam interesse nele. O secretismo daquelas relações conferiu-lhes, durante algum tempo, uma certa excitação, particularmente quando ele fazia malabarismos com três ao mesmo tempo, nenhuma delas sabendo da existência das outras, mas rapidamente Páris se viu farto da sua própria duplicidade. O prín­cipe também estava consciente, à medida que se tornava mais des­cuidado, de que estava a fazer inimigos entre os homens que enganava e apesar da sua posição como filho favorito do Grande Rei anular provisoriamente qualquer desafio, não o protegeria de uma faca alu­gada na escuridão.

Consternado com aquelas mudanças no seu comportamento, Eneias avisou-o dos riscos que corria, mas Páris limitou-se a enco­lher os ombros perante as preocupações do amigo. Sem um objec­tivo de futuro, o jovem príncipe já se tinha resignado a uma breve carreira de prazer sensual sem significado quando foi abordado, uma noite, pela mulher de Heitor, Andrómaca. A dama recordou a Páris que sempre fora uma das que lhe desejava o melhor, que se tinha regozijado com Príamo e Hécuba por causa do regresso do filho per­dido, que ela e Heitor tinham acalentado a esperança de que ele tra­ria energia fresca ao conselho do Rei e que provaria ser um corajoso defensor da cidade e dos seus interesses. Imagine-se a sua decepção, portanto, ao vê-lo desperdiçar a juventude e o vigor numa vida dis­soluta. Que acontecera à dignidade ingénua que trouxera com ele das montanhas? Era natural um jovem andar na pândega, mas Páris estava em risco de ofender a decência e a desperdiçar a sua vida. Imaginaria ele que aquela licenciosidade era consoante uma devoção correcta ao serviço do amor? Não conseguiria ela que ele suavizasse a ansiedade coração da sua mãe, alterando o seu modo de vida?

Andrómaca deixou Páris cheio de remorsos. O jovem prometeu a si próprio renovar o seu interesse pela vida política de Tróia e desem­penhar um papel responsável na vida da sua família. Páris começou a comparecer novamente na corte do seu pai, tentando compreender a complexa rede de tratados e acordos de comércio, base da prospe­ridade da cidade. E concedeu algum do seu tempo livre ao desporto com o filho de Heitor, Astíanax, e o seu amigo Anteu, filho de Ante­nor, o principal conselheiro do Rei. Tendo encontrado no rapaz um certo eco da sua própria inocência perdida, Páris liderá-los-ia em expedições aos rios e à montanha, onde excitaria os seus jovens corações com histórias de caça ou de touros de combate e de como, em rapaz, expulsara os ladrões de gado de Argos.

Um dia, perto do fim do Verão, os dois jovens acompanharam-no à costa para uma consulta a Fereclo sobre o seu navio, o Afrodite, que já estava pronto, faltando apenas os pormenores finais. Páris bebera demasiado na noite anterior e a cabeça ainda lhe doía, por isso sentiu pouco prazer na visita a um navio que perdera quase todo o inte­resse para ele. Ao mesmo tempo que os dois rapazes saltavam para bordo e corriam pelo convés, Páris olhou para os olhos da figura de madeira e sentiu saudades dos dias em que aquele era o barco dos seus sonhos, não apenas o navio que o levaria em breve numa prudente via­gem diplomática aos reinos de Argos. Nas agitadas semanas anteriores, o jovem tentara extinguir a visão de Helena da sua mente, mas aquele elegante rosto de Afrodite sorriu-lhe da proa com uma compreensão superior e ele soube que a visão era inextinguível. Iria a Esparta e encontraria Helena, sim. Mas a Helena que encontraria seria a esposa leal do seu amigo e permaneceria para sempre o que sempre fora — uma fantasia para sempre inatingível do seu coração sem sossego.

O acidente aconteceu tão abruptamente que, mais tarde, ele não soube bem como tinha acontecido. Páris estava a conversar com Fere­clo sobre o modo como era armado o toldo. Os dois homens grita­vam por cima do barulho dos serrotes e martelos dos outros barcos do estaleiro onde a frota de Príamo estava a ser construída quando os rapazes se aproximaram entrechocando as suas espadas de madeira enquanto saltavam de banco de remadores em banco de remadores, berrando os seus gritos de batalha. Páris disse-lhes que fizessem menos barulho e eles obedeceram por alguns momentos, mas Anteu agitou a sua espada e em breve as suas vozes gritavam insultos guerreiros um ao outro. Em seguida, os dois rapazes regressaram à sua batalha particular de banco de remadores em banco de remadores, gri­tando como à vinda.

Zangado, Páris gritou:

— Não vos disse para estardes calados? — e estendeu o braço para dar um cascudo no rapaz mais próximo. O golpe foi mais duro que ele pretendia, Anteu foi atirado do banco onde estava empolei­rado e caiu no convés. O seu braço atingiu as pranchas, dobrando sob o impacto de tal modo que a espada de madeira virou-se e penetrou--lhe num olho. A força da queda foi suficiente para levar a ponta da arma ao cérebro.

Páris olhou para onde o corpo magro do rapaz jazia, todo tor­cido, numa poça de sangue, com a espada de madeira espetada na cabeça e esta num ângulo impossível. O príncipe olhou para cima e viu Fereclo de olhos esgazeados. A seu lado, com os dedos de uma das mãos metidos na boca, Astíanax olhava, com ar consternado, para o seu amigo morto.

Ninguém duvidou de que a morte de Anteu fora um acidente e ninguém podia duvidar de que Páris era o responsável. Anteu era o filho mais novo e mais mimado de Antenor e nem o conselheiro do Rei nem a sua mulher, Teano, que era a grande sacerdotisa de Atena da cidade, conseguiram olhar para Páris nos dias que se seguiram à chegada dele a sua casa com o corpo do rapaz nos braços.

A dor terrível dos pais também não conseguiu encontrar o perdão para lhe limpar o sentimento de culpa e ninguém na cidade tinha poder para fazer isso. Incapaz de tirar da mente o rosto destruído da criança, ou silenciar o som dos gritos de Teano nos seus ouvidos, Páris ficava acordado de noite torturado pelos remorsos e com as Fúrias lançando gritos agudos à sua volta.

Parecia que a sua vida não era mais do que um vão amontoado de futilidades e traições. Renegara os pais adoptivos que o tinham rece­bido, esquecera Enone e a criança que transportava no ventre, brin­cara com os corações de mais mulheres do que podia contar e enga­nara muitos bons cidadãos de Tróia. Pior do que tudo, repudiara a visão que lhe enchera a vida de significado e, por causa disso tudo, causara a morte de uma criança — um acto em si terrível e que aumen­tava os agravos que Atena tinha contra ele. Talvez o sacerdote e a sacerdotisa de Apolo tivessem tido razão aqueles anos todos e a sua vida estivesse amaldiçoada desde o princípio?

O único pensamento positivo era que ele e Eneias partiriam em breve para Esparta. No meio do oceano azul, para lá do único hori­zonte que conhecera até então, talvez encontrasse um modo de redi­mir a sua atormentada vida, ou encontrar o fim que os deuses qui­sessem para ele.

Na noite anterior à partida, Príamo chamou-o aos seus aposen­tos privados. O Rei estava sentado numa cadeira que salvara das ruí-nas do palácio do pai em Tróia, muitos anos antes um trono ene­grecido pelas chamas que ele conservou como recordação da loucura de Laomedonte e da justiça dos deuses. Em redor dos ombros, Príamo usava uma capa bordada, apertada rio peito por uma corrente dourada e por uma fivela com dois animais devorando-se mutua-mente, que um ferreiro da Trácia lhe tinha feito. O Rei tinha o queixo apoiado na palma de uma mão. A outra, cheia de anéis, tremia apoiada numa coxa. Príamo parecia e sentia-se muito velho.

Despedaça-me o coração que partas para o mar sem estares purificado — disse ele, suspirando. Acredita-me, eu sei o que é perder um filho, mas tive mais sorte do que Antenor. O filho dele nunca lhe poderá ser restituído. E o golpe que matou Anteu endure­ceu o coração do pai dele. Receio bem que o teu acto imprudente tenha feito do meu velho amigo e conselheiro teu inimigo para o resto dos teus dias.

Os olhos de Príamo percorreram a câmara. Páris limitou-se a ace­nar com a cabeça em sinal de concordância com a opinião. Em seguida, o seu pai acrescentou com ar cansado:

- Antenor é capaz de não ser o único. Correm rumores na cidade. Os meus espiões dizem-me que há maridos que dizem que uma coisa é ser um devoto de Afrodite e outra sacrificar vidas de crian­ças no seu altar.

Páris arquejou e ia protestar quando Príamo o calou.

A morte de Anteu foi um golpe de azar, eu sei. Mas os homens procuram sempre a mão de um deus por trás de coisas destas e tu arriscaste-te muito ao dedicares-te ao serviço da Deusa Dourada. Ainda bem que vais partir. Mas temos de pensar no teu regresso.

Se esta cidade está farta de mim, fico no estrangeiro — res­pondeu Páris taciturnamente. — Mesmo entre os meus irmãos há alguns que gostarão de me ver pelas costas.

Nesse caso, não te armes em orgulhoso com o pai que te ama.

Príamo abanou a cabeça. — Chegou a hora de as tuas paixões serem substituídas por pensamentos frios. Pensa no seguinte: Ante­nor sempre se opôs aos meus planos para um assalto a Salamina. Ele teme que um ataque a Télamon traria toda a Argos a esta cidade e é capaz de ter razão. Por isso, podes fazer algo para te redimires aos seus olhos, se conseguires um tratado de paz com Agamémnon atra­vés da tua amizade com o Rei de Esparta. Príamo suspirou pro­fundamente. — Não tenho grande esperança. O Leão de Micenas está cada vez mais esfomeado e orgulhoso. Creio que ele acha Tróia uma presa gorda e vão ser precisas mais do que umas palavras subtis para o manter afastado das nossas portas. Mas vê lá o que consegues, meu filho. E se como eu prevejo — Agamémnon continuar intransi­gente quanto ao destino da minha querida irmã... bem, lembra-te que já tiveste outro plano.

Os olhos dos dois homens encontraram-se por momentos à luz vacilante da candeia. O ar da câmara estava praticamente imóvel. No meio daquele silêncio, Príamo autorizou o filho, se tudo o mais falhasse, a utilizar os dons que os deuses lhe tinham dado, como amante e como guerreiro, para raptar uma princesa que pudesse servir de moeda de troca com Hesione.

Lembro-me muito bem, pai respondeu Páris. Mas o que ele recordava só aumentou a angústia que já tinha no coração.

O jovem ajoelhou, entorpecido, para receber a bênção do pai. Príamo colocou as duas mãos na sua cabeça curvada e olhou para o filho.

Ocorreu-me mais uma coisa. Menelau é um Rei sagrado em Esparta, tem poderes de sacerdote, é teu amigo e está em dívida para connosco. Ao permitirmos-lhe que oferecesse sacrifícios na Dardâ­nia, possibilitámos que limpasse o seu país da peste. Como verda­deiro Rei que é, não esquecerá este gesto. Assim, quando ele fizer as suas oferendas no templo de Atena, em Esparta, ajoelha-te perante ele tal como te ajoelhas perante mim e pede-lhe que te limpe da impu­reza que te atormenta a mente. Se bem que a sacerdotisa de Atena, em Ilium, só tenha ódio por ti no seu coração, a deusa é misericor­diosa. Menelau não te dirá que não. Que os deuses te acompanhem e te tragam de regresso são e salvo.

Os dois navios zarparam de madrugada. Páris no Afrodite e Eneias no seu próprio barco, o Gorgona. A princípio, o ar estava tão calmo que as tripulações tiveram de se agarrar aos remos, mas à medida que o dia foi clareando a brisa levantou-se e em breve os dois navios cor­tavam, à vela, as cristas das ondas brancas enquanto os golfinhos mer­gulhavam e brilhavam à sua volta. A pálida névoa da linha de costa, na sua retaguarda, desaparecia no horizonte e as duas naves come­çaram a navegar em mar aberto. Deixando o seu imediato de guarda ao leme, Páris ficou sozinho à proa, apanhando com a espuma das ondas no rosto e olhando em frente para o brilho verde-azulado do dia. As horas passaram sem que ele dissesse uma palavra e mais tarde, à noite, permaneceu muito tempo acordado no convés, olhando para a profundeza negra do céu onde as inúmeras estrelas cintilavam e rodopiavam em redor do tilintar do calces. A viagem em si estava a revelar-se rapidamente tonificante. A cada mergulho ou solavanco do barco, o jovem sentia as sombras de Tróia a desvanecerem-se, como se estivesse a decantar tranquilamente o passado da sua alma de modo a enchê-la com o futuro.

Enquanto observava as ondas a quebrarem-se na proa ou a escorrerem, brilhando, pelo dorso de um golfinho, pensava em Afrodite e em como a deusa tirara o seu próprio nome da espuma em que a sua beleza nua nascera.

Estava, portanto, a segui-la através do seu elemento nativo. A deusa era ao mesmo tempo o navio que o transportava e a espuma em que ele flutuava, e a sua presença era manifesta nos golpes rápidos da brisa brilhante e na luz cintilante que se erguia do mar. À medida que as recordações regressavam, tornou-se-lhe evidente que no momento em que a escolhera, Afrodite também o escolhera a ele e o jovem sentia-se seguro no seu abraço, tal como Eros nos seus braços na proa do navio que usava o seu nome sagrado.

No entanto, aquele pensamento fê-lo recordar-se do pequeno Anteu. A sua mente ainda não estava limpa daquela morte, mas sub­meter-se-ia, em Esparta, ao ritual da purificação e uma vez esta feita regressaria ao seu destino. O facto de o sangue de uma criança ter sido derramado no seu navio, talvez tivesse sido uma espécie de sacri­fício. Porque só através da morte de um inocente a sua vida seria intei­ramente consagrada ao serviço da deusa, passando a estar à sua inteira mercê.

A percepção desse facto atingiu-lhe a mente quase ao mesmo tempo que um marinheiro na verga do Gorgona gritava que avistara terra. Eneias acenou alegremente para o Afrodite. Páris ergueu a mão em resposta.

Os dois navios navegaram por entre as ilhas ao largo da costa de Ática e através das águas calmas do Golfo de Argolis até ancorarem num porto da costa laconiana. Enquanto o cordame do Afrodite gemia e o navio encontrava o seu caminho ao longo da praia, Páris manti­nha-se à proa com os dois braços em redor da figura de madeira pin­tada da deusa. O jovem olhava para nordeste, para a muralha de montanhas que circundavam a planície espartana. Algures, para lá daquelas cristas, a uns trinta quilómetros de distância, estava o palá­cio de Menelau e algures no interior das suas muralhas estava Helena a tratar dos assuntos da sua vida, completamente inconsciente de que um mensageiro enviado pela deusa do amor estava naquele preciso momento a pensar nela com um coração que batia tanto como a vela enfunada do navio momentos antes. O ar salgado fustigava o rosto de Páris. Todos os seus sentidos estavam alerta. Cada vez que respirava era como se aspirasse o destino. No entanto, estranhamente, sentia‑se mais em paz consigo mesmo do que em qualquer momento desde que Menelau partira de Tróia. Mais uma vez, colocara a sua vida nas mãos da deusa. Afrodite Pelagaia, a Deusa das Boas Viagens, levara‑o são e salvo até Esparta. Cabia-lhe a ela, agora, decidir o seu destino.

As notícias da chegada da embaixada troiana chegaram ao palá­cio de Menelau muito antes de os visitantes terem atravessado as montanhas e avistarem a fértil planície do Eurotas. Para seu espanto, Páris e Eneias viram como para lá dos campos e dos bosques a cidade de Esparta jazia sem muralhas. Se bem que uma cintilante acrópole coroasse um pequeno monte na margem ocidental do rio, as pro­priedades e as casas da cidade espalhavam-se pelo vale em pequenos aglomerados habitacionais sem quaisquer aparentes preocupações de defesa. Mais para oeste, o Sol do fim de tarde declinava na direc­ção de um conjunto de montanhas mais íngremes do que aquelas por onde tinham passado. Muito para lá da linha de árvores, os seus cumes tentavam alcançar as nuvens lustrosas, duas vezes mais altas — cal­culou Páris com algum temor — do que as suas montanhas de Ida.

Com um carroção puxado por bois carregado de presentes atrás deles, os troianos seguiam a estrada à beira-rio e através do vale quando um carro, puxado por dois cavalos negros surgiu na sua direcção a toda a velocidade vindo da cidade. Os cabelos ruivos do condutor esvoaçavam ao vento e muito antes de o veículo parar já eles tinham reconhecido a figura corpulenta e desarmada de Menelau aos coman­dos.

Achei que devia dar-vos as boas-vindas a Esparta com tanta informalidade como tu me recebeste em Tróia, Páris gritou ele. — E tu, amigo Eneias, reconheces estes cavalos? São os que o teu pai me deu. Agora, são os dois mais rápidos de toda a Argos. Até Aga­mémnon mos inveja. Vinde, deixai o vosso carroção continuar sozi­nho está em segurança. Vinde tomar banho e comer. A minha dama Helena está impaciente por conhecer os meus amigos troianos. — Com um puxão das rédeas, Menelau fez virar o carro, fazendo um gesto na direcção da cidadela. — Dizei lá, que pensais da minha terra? Não é linda?

Mais linda do que eu esperava respondeu Páris. mas Eneias e eu ficámos surpreendidos por não ver muralhas em Esparta.

Para que precisamos de muralhas disse Menelau a rir quando os deuses nos deram um anel de montanhas? Os homens pensam duas vezes antes de invadir Esparta visto que sabem que serão atacados nos desfiladeiros muito antes sequer de porem os olhos no buraco de Lacedemónia. Meus amigos, acabais de entrar no reino mais feliz do mundo. Gozai-o enquanto aqui estiverdes. Peço‑vos, ficai à-vontade.

De modo a permitir-lhes que recuperassem mais rapidamente da viagem, Menelau decidira poupar os seus hóspedes às exigências de um banquete público naquela noite, por isso jantaram sozinhos com o Rei e a sua mulher numa câmara privada. Os troianos deixaram-se ficar durante longos momentos em banhos quentes e deixaram-se mas­sajar com óleos aromáticos antes de se vestirem com os trajes postos à sua disposição. Enquanto esperavam pela Rainha de Esparta, os dois homens passearam com o seu anfitrião pela fragrância nocturna de um agradável jardim que dava para a cidade. Os troianos podiam ver o rio brilhando à luz da Lua, olivais, pomares e cearas estendendo‑se até à base das montanhas que circundavam a planície.

Quando Eneias se virou para fazer uma observação sobre o majestoso templo de colunas por cima do pátio do palácio, Menelau disse--lhe que estava a olhar para a Casa de Bronze de Atena, a divindade protectora da cidade.

Receando que, se deixasse passar aquele momento, deixaria de poder fazer o pedido mais tarde, Páris fez um sinal de respeito e de autoprotecção:

— Nesse caso, estou perto do chão sagrado da deusa. Sem que­rer, ofendi Atena dos Olhos Cinzentos. O jovem apercebeu-se do franzir da testa do seu anfitrião e abriu as mãos. Venho a Esparta, tal como tu foste à cidade de Príamo, em busca de uma dádiva.

Menelau colocou uma mão no ombro de Páris.

Não disse eu já que o que é meu é vosso? Fala livremente. Só não farei o que não puder.

Páris respirou fundo.

O meu pai aconselhou-me a humilhar-me perante ti, como sacerdote sagrado de Atena em Esparta, porque aos olhos da deusa — assim como aos meus continuo poluído por um crime. Rogo-te que me purifiques dele na sagrada casa de Atena através dos rituais que achares propícios.

— Isso é uma má notícia - respondeu Menelau solenemente.

- Vem para dentro, amigo, bebe mais um pouco de vinho e conta-me que partida te pregou o destino desde que nos separámos.

Os três homens sentaram-se juntos à luz vacilante de muitas can­deias e Páris contou os acontecimentos do dia em que Anteu morreu.

O rapaz era o filho muito amado do conselheiro do meu pai, Antenor, que tu conheces bem terminou ele. - O pior é que ele tinha apenas cinco anos de idade.

Lembro-me de Antenor com afecto disse Menelau calmamente. — Um homem sábio, cujas opiniões respeito. Lamento a sua perda. E ainda lamento mais porque não tenho nenhum filho. Mas, como é que essa má sorte ofendeu Atena?

— A mulher de Antenor, Teano, é sacerdotisa da deusa no seu mais sagrado santuário de Tróia. Jurei pela minha vida desprezível que a morte da criança foi um acidente, mas não posso negar que a culpa foi minha e Teano endureceu o seu coração para comigo. Desde esse dia, as Fúrias instalaram-se na minha mente e ninguém, em Tróia, me pode lavar da culpa. Tenho de a carregar para sempre, a não ser que os teus rituais, aqui em Esparta, me possam libertar dela.

Páris olhou para os solenes olhos do seu amigo. Menelau ia responder-lhe quando se ouviu a voz suave de uma mulher vinda da entrada.

— Esse é o filho do Rei Príamo, meu senhor, aquele que te ofe­receu protecção quando puseste o pé em Tróia?

É, minha senhora, e este é o primo dele, Eneias, filho do Rei dárdano. O meu amigo príncipe Páris estava a contar-me...

— Eu ouvi — disse Helena — e, tal como tu, fiquei tão arreba­tada com a sua triste história que não me apercebi de mais nada. — Sorrindo suavemente para o marido, a Rainha acrescentou: — A nossa cidade não está em dívida para com este príncipe, assim como eu?

Páris pusera-se em pé de um salto. O jovem sentia-se como a sala estivesse a flutuar enquanto olhava para a beleza arrebatadora daquela mulher à luz das candeias, usando um simples vestido azul de Tiro que lhe caía em graciosas pregas pelo corpo abaixo. Os seus cabelos negros estavam atados com uma fita dourada que parecia fazer bri­lhar mais ainda os seus olhos azul-esverdeados. Páris esquecera-se de respirar. Tudo desaparecera da sua mente, excepto a presença viva da mulher que vira na sua visão, no Monte Ida. Era como se aquele momento e o presente fossem contínuos no tempo, e o longo espaço entre eles não tivesse passado de um longo sono. Certamente que ela também devia sentir a força daquela confluência?

Mas, se sentia, Helena não o deu a entender e o jovem ouviu a voz de Menelau vinda de muito longe.

— É verdade que está e nós estamos conscientes disso. Creio que tanto a minha Rainha, como eu, somos da mesma opinião. Helena sorriu.

Então, devemos fazer tudo o que pudermos pelo nosso amigo nesta hora de necessidade.

Mas todos os sentimentos de culpa, de vergonha ou de dor tinham desaparecido da mente de Páris.

O príncipe olhava, aterrado, para Helena de Esparta e ouvia o sussurro da sua deusa na fragrância do jasmim na noite suave. «Não é como eu te prometi que seria?» dizia ela. «Alguma vez viste uma mulher mais encantadora à superfície da terra?»

No mesmo instante, Páris apercebeu-se de que já antes dele inúmeros homens deviam ter olhado para o rosto de Helena precisa-mente da mesma maneira. O jovem também sentiu que ela nunca aprendera a reagir com facilidade ao impacto não intencional da sua beleza, porque via perfeitamente a confusão por trás da terna solici­tude nos seus olhos enquanto desviava o olhar, sorrindo, e juntava as mãos mesmo por baixo do pescoço num gesto modesto de autopro­tecção que lhe inundou o coração de ternura. Quando lhe olhou para o rosto, o jovem viu que o sorriso desaparecera por trás de uma máscara de reserva orgulhosa — um orgulho que ele podia tomar por arrogância se não tivesse observado aquele pequeno gesto anterior de vulnerabilidade — e naquele breve espaço de tempo Páris com­preendeu que o resto da sua vida seria inútil, a não ser que fizesse tudo o que estava ao seu alcance para que aquela mulher fosse sua.

Vejo que tudo o que os menestréis cantam é verdade — disse Eneias. — A senhora Helena é tão graciosa quanto bela.

Helena sorriu-lhe e abanou a cabeça.

Se levas os menestréis tão a sério, senhor Eneias, então acreditas que eu nasci do ovo de um cisne!

Como a tua beleza é de uma raridade absoluta — disse Páris num sussurro rouco — eles têm de arranjar imagens que se lhe pos­sam comparar. Mesmo assim, falham, assim como todos os presen­tes que Tróia tentou encontrar para ti também falharão em compa­ração com tanta graça.

Tenho a certeza de que também isso está longe da verdade — disse Helena, estendendo um braço branco e esbelto para segurar na mão do marido. — Além disso, a tua amizade pelo meu senhor Mene­lau já é presente suficiente.

Nesse caso, vem — disse Menelau, sorrindo — bebamos à amizade e alegremo-nos esta noite, porque amanhã viraremos as nossas mentes para coisas mais sérias.

Páris dormiu mal naquela noite e quando conseguia adormecer era para acordar de novo minutos mais tarde. O seu corpo estava tão cheio de fome pela vida que deixava de funcionar a cada instante, perdendo-se na inconsciência. Era tal a agitação no seu coração e nos seus sentidos que não conseguiu permanecer deitado e por isso saiu para a varanda do seu quarto, onde o ar estava impregnado com o perfume das flores e com a estrela mais brilhante de todas — a estrela de Afrodite — suspensa por baixo da Lua, como uma jóia. O jovem tentou recordar cada instante do seu primeiro encontro com Helena, cada alteração do seu rosto enquanto falava com ela, ou como a Rai­nha se apercebia do seu olhar quando a conversa mudava de assunto. Páris tentou recordar cada palavra que ela dissera, auscultando cada sentença em busca de sinais ou significados escondidos, mas apesar de o seu coração se sentir exaltado, chegou sempre à conclusão de que nada do que ela dissera ou fizera lhe dava qualquer esperança de que aquela mulher via nele algo mais do que um simples hóspede que merecia toda a cortesia porque o seu marido era amigo dele.

Pior ainda, para ser honesto, tinha de admitir que a paixão de Menelau pela esposa recebia em troca igual devoção. A divina Hera juntara aquele homem e aquela mulher num casamento tão firme como a própria Esparta e a sua felicidade calma e cerimoniosa era regulada pela sabedoria de Atena como divindade tutora da cidade. Não parecia haver espaço para a intervenção de Afrodite.

No entanto, fosse como fosse, Helena tinha de ser dele. A sua vida dependia desse facto. Helena era a sua vida. Sem ela a seu lado, vaguearia pelo mundo como uma sombra esfomeada, atormentado para sempre pela dúvida do que poderia ter sido. O sentimento era insuportável. Porém, remover os obstáculos que se erguiam entre Helena e o seu desejo, significava desejar a morte de um amigo. Um amigo que consentira em purificar a sua alma.

Assim, enquanto Eneias dormia, imperturbável Páris vagueava pela noite, passando da esperança ao desespero e regressando de novo, não encontrando descanso na alma ou no corpo. A determi­nada altura, incapaz de continuar deitado mais tempo, saiu da câmara e regressou ao salão onde tinham jantado naquela noite. O jovem sentou-se onde se tinha sentado e olhou para o assento de Helena como se ela ainda estivesse reclinada nele, dando pequenos goles na sua taça de prata, ou afastando da fronte uma madeixa de cabelos. Páris recordou o seu sorriso de admiração pelo marido quando Eneias contou a história da caçada ao javali na Dardânia e de como o Rei espartano lhe tinha salvo a vida uma história que, era evidente, ela ouvia pela primeira vez. E o jovem estremeceu ao pensar no seu corpo nu deitado ao lado do marido a alguns metros dali.

Consciente da tolice e impotência do seu acto, Páris atravessou o salão para se ajoelhar em frente do assento que Helena ocupara ao jantar, como se alguma fragrância do seu perfume almiscarado ainda fosse perceptível. Mas não havia ali nada, apenas a madeira esculpida e a pele ornamentada com pregos dourados do triclínio e as almofa­das suaves bordadas com figuras dançando. O seu peito sentiu uma grande angústia.

Páris levantou-se cheio de desespero, recordando a si próprio que tinha uma missão divina e a autorização temporal do seu pai para levar a mulher à força se tudo o mais falhasse. Aquela cidade parecia frouxa e complacente, com poucas defesas. Uma vez fora da cida­dela, não havia portas nem muralhas. Uma rápida fuga nocturna na direcção do mar e Helena seria sua. Era possível.

No meio de um turbilhão de sentimentos conflituosos, Páris ia regressar ao seu leito quando ouviu o som de alguém no salão. O seu coração deu um salto ao pensar que Afrodite reagira instantanea­mente ao seu pedido e acordara Helena do seu sono, levando-a ali. Furtivamente, o jovem colocou-se num sítio de onde poderia ver o salão. O que viu não era a mulher dos seus sonhos, era a figura grande de um homem metido numa túnica larga, afastando-se da porta, que se fechava lentamente nas suas costas e encaminhando-se para a escadaria que dava para os aposentos reais. A luz da pequena candeia que ele levava fazia-lhe brilhar os cabelos, como se fossem de bronze.

 

                       Loucura de Afrodite

Durante o que lhe pareceram horas, suportou a luz do Sol no pátio do recinto sagrado enquanto esperava ser admitido no interior das grandes portas de bronze do templo de Atena. Com Eneias à sua direita e Eteoneu, o ministro do Rei, à sua esquerda, Páris mantinha-se de cabeça descoberta e descalço, usando uma simples túnica branca por cima da tanga. Horas antes, sob o olhar curioso da multidão espar­tana, fizera libações e oferecera sacrifícios à deusa no altar de pedra, na base da escadaria que ia dar ao átrio. Os seus cabelos por cima da testa tinham sido cortados e queimados. Fora ritualmente espancado com ramos de vidoeiro, tomara banho pela terceira vez e fora asper­gido com água e óleo sagrado. Agora, do interior do templo saíam os acordes do hino à divina que saíra completamente armada da cabeça de Zeus e que ia dizer se aquele estrangeiro poderia ser purificado da poluição que trouxera com ele.

Só Páris sabia, entre todas aquelas que estavam reunidas no tem­plo, que ofendera mais de uma vez Atena, a dos Olhos Cinzentos, e que a sua rejeição em favor de Afrodite nas encostas do Monte Ida poderia ter mais peso na sua decisão do que a morte infeliz de Anteu. O conhecimento desse facto enchia-o de um temor crescente.

Finalmente, apareceu um sacerdote no alto dos degraus, chamando-o para o interior do templo. Acompanhado pelos seus dois assisten­tes e com a cabeça curvada em sinal de respeito e submissão, Páris entrou na sombra fria da Casa de Bronze de Atena. O sacerdote fez sinal a Eneias e a Eteoneu para que ficassem junto da porta enquanto Páris caminhava em silêncio por entre os sacerdotes e sacerdotisas, ministros e coristas, para ajoelhar em frente da figura impressionante de Menelau, vestido com os paramentos rituais de um sacerdote e segurando um bastão dourado. Por trás do sacerdote-rei estava a grande estátua da deusa com o elmo, a couraça por cima da túnica, com o escudo com a górgona num braço e a lança de bronze no outro. Páris levou a mão aberta à fronte num gesto de adoração. O incenso enchia a atmosfera do templo.

Menelau dirigiu à deusa palavras solenes de invocação e depois virou-se para Páris, ordenando-lhe que contasse a sua verdadeira his­tória e a história da culpa em que incorrera com a morte de Anteu. Quando terminou a confissão com palavras sentidas de contrição e uma súplica ritual à mercê de Atena, a túnica foi-lhe retirada dos ombros, as mãos foram-lhe atadas atrás das costas e foi-lhe enfiado um capuz negro na cabeça simbolizando a caída súbita da noite. Ao som de uma música e de uns cânticos plangentes, o príncipe foi for­çado a andar de um lado para o outro no interior do templo até perder todo e qualquer sentido de orientação. Páris ouviu uma porta a abrir-se e depois desceu uns degraus de pedra onde o ar à sua volta era frio e húmido. O jovem não estava preparado para aquilo. Sen­tindo um ligeiro pânico, Páris perguntou a si próprio se Menelau não teria adivinhado a sua secreta intenção e se não iria deixá-lo num qual-quer sítio esconso e escuro do seu antigo palácio. O jovem tremia com o ar frio do subterrâneo.

Quando lhe retiraram o capuz, ficou a pestanejar numa gruta rochosa iluminada por archotes, algures no interior do monte. Páris viu, à luz instável, figuras pintadas na pedra e, directamente por cima da sua cabeça, a figura primitiva da deusa em madeira. A divindade elevava-se sobre um altar de pedra mal trabalhada e a sua cabeça parecia ser a de uma coruja. O ar estava cheio de fumo acre e a caverna encheu-se com o que o seu coração atordoado pensou ser o grito de uma criança assustada. Então, Menelau apareceu na sua frente, de cabelos ruivos e de archote na mão, já não vestido como um sacer­dote, mas usando o que poderia ser o traje de um carrasco, um aven­tal, sobre o corpo nu. Uma longa lâmina brilhava-lhe na mão.

Ajoelha-te     ordenou ele e quando Páris hesitou, olhando para ele com os olhos muito abertos, Menelau voltou a dizer por cima do terrível grito: Ajoelha-te.

Com as mãos ainda atadas atrás das costas e não tendo outra hipótese se não pedir a misericórdia da deusa cujo rosto fora em tempos proibido aos rostos dos homens, Páris fez o que lhe mandavam. Algu­mas palavras eram trocadas num dialecto desconhecido para ele. Quando olhou para cima, viu um sacerdote segurando pelas pernas um leitão que gritava estridentemente. O animal guinchava e contor­cia-se enquanto passava para as mãos de Menelau. Então, o sacerdote-rei ergueu o seu corpo em estado de choque, de cabeça para baixo e cortou-lhe o pescoço. Os guinchos cessaram e o sangue quente esguichou para cima da cabeça nua, do rosto e dos ombros de Páris.

No silêncio tenso da gruta, o jovem podia ouvir Menelau a can­tar palavras litúrgicas que não compreendia. O sangue agarrou-se-lhe ao cabelo, escorreu-lhe pelos olhos e pelo rosto sob a forma de gran­des gotas e caiu-lhe do queixo para o peito. De lábios cerrados, tre­mendo sob o seu cheiro quente e adocicado, espantado por um ani­mal tão pequeno ter tanto sangue, Páris pensou que ia sufocar sob aquele horrível chuveiro escarlate.

Subitamente, acabou tudo. O príncipe troiano abriu os olhos para olhar, através de um véu de sangue, para a figura da deusa. Um sacer­dote e uma sacerdotisa despejavam sobre ele jarros de prata cheios de água para lhe tirarem o sangue. Enquanto o líquido lhe corria pelos ombros, Páris acreditou que sentia a poluição da morte do pequenito a sair-lhe da alma. Mas quando olhou para o rosto em forma de coruja e de olhos penetrantes da deusa, sentiu como que uma víbora nas suas garras. Com uma certeza que lhe atingiu o fundo da alma, Páris soube que havia uma ofensa que cometera, tão grave aos olhos severos de Atena que, por mais anos que vivesse, o insulto ao seu divino orgu­lho nunca seria perdoado.

No entanto, não se sentia arrependido. O jovem disse a si próprio que Afrodite estava a seu lado, mesmo naquela caverna que fora escavada na rocha na noite dos tempos e consagrada a Atena. Páris deixou-se secar e enquanto lhe vestiam a túnica, Menelau sorria para ele, dizendo:

- A deusa teve pena de ti, amigo.

Mas o jovem só tinha um pensamento: dentro de pouco tempo estaria de regresso à fragrância da luz do dia e à presença de Helena.

Naquela noite houve um grande banquete no salão do palácio. Perante os aplausos da nobreza espartana presente, na qual havia membros que não tinham gostado de receber a presença impura de Páris na sua cidade, o príncipe troiano apresentou os presentes que trou­xera para Menelau e para a sua Rainha. Estes eram muitos e caros e muitos tinham viajado ao longo da rota das especiarias desde terras longínquas a leste e a sul do Mar Negro. As sedas, os perfumes raros e os vestidos de caxemira finamente tecidos ocasionaram grande espanto e prazer, assim como observações sobre a invejável riqueza do reino de Príamo, e toda a gente ficou encantada com um par de macacos tagarelas vestidos com trajes frígios para se parecerem com Páris e Eneias.

O último presente foi recebido com exclamações de aprovação quando Páris se colocou em frente da cadeira da Rainha para lhe prender ao pescoço uma corrente de ouro da qual estava suspensa uma transparente cascata de jade, de lápis-lazúli e outras pedras pre­ciosas.

- Disseram-me que este colar adornou, em tempos, o pescoço de uma grande Rainha do leste - disse ele. - mas nem que fosse o kestos de Afrodite, não faria a justiça que faz agora à tua beleza.

- Nenhumas palavras podem fazer justiça à generosidade do Rei Príamo - disse Helena, corando de prazer. - Agradeço-lhe de todo o meu coração pelo seu presente.

Por entre as aclamações de aprovação, Páris segredou-lhe ao ouvido:

- O presente é meu. Ofereço-to como resgate pelo meu cora­ção.

Antes que ela pudesse recuperar o fôlego e responder, ele endirei­tou-se, sorrindo para Menelau, e regressou à sua cadeira. O Rei levan­tou-se para expressar a sua gratidão perante tantos presentes. Prometendo que os seus hóspedes não regressariam de mãos vazias, fez um sinal de cabeça a 1 teoneu, que bateu as palmas para que os músi­cos começassem a tocar. Ao ouvir o bater dos tambores e dos gongos, um grupo de acrobatas líbios escassamente vestidos espalhou-se pelo salão aos saltos mortais.

Páris não se juntou aos aplausos. O jovem ainda se sentia sob o efeito da cerimónia turbulenta e emocional da sua limpeza e trémulo pela intimidade do breve contacto com a pele de Helena. O príncipe troiano tentou apanhar-lhe o olhar vezes sem conta, desejoso de apa­nhar um sinal qualquer de resposta à sua abordagem, mas ela olhava atentamente para outro sítio qualquer enquanto escutava Eneias e o seu marido discutindo planos para a sua próxima missão a Micenas. As suas mãos não brincavam com o colar pendurado no pescoço. Nem sequer quando uma mulher se aproximou para admirar as jóias mais de perto, dizendo-lhe como as pedras de jade iam bem com o fogo verde dos seus olhos, ela deu indicação de algo mais do que um pra­zer momentâneo. Podia perfeitamente ser um pechisbeque qualquer comprado numa feira.

Páris bebia pesadamente o conteúdo da sua taça. A música batia-lhe na cabeça. Lutando contra o desejo de saltar para cima da mesa e gritar aos barulhentos estroinas que ele era não só um emissário de Tróia mas também da própria Afrodite, observou a formação de um ziguarte humano por parte dos saltimbancos para regozijo e aplauso da assistência. Páris estava consciente de que a loucura do amor estava a fazer dele uma base ingrata, mas estava capaz de ameaçar aqueles tolos espartanos com a fúria da deusa se não se levantassem imedia­tamente e não exigissem que o seu Rei entregasse a sua Rainha ao homem a quem sempre estivera destinada.

Os saltimbancos foram substituídos por um grupo de bailarinas com braceletes e estas, por sua vez, por um menestrel da Arcádia que cantou primeiro a paixão inútil de Eco por Narciso e depois o amor de Pigmaleão por Galateia. Assim, a noite foi-se passando com Páris a suspirar mais do que falava e a beber mais do que suspirava, ten­tando uma vez e outra apanhar o olhar de Helena. Quando apanhava apenas um sorriso breve e polido, ou um rápido olhar quando se virava para murmurar qualquer coisa ao ouvido do marido, Páris sentia que aquela proximidade tão distante cada vez mais difícil de suportar. A fúria há muito que se extinguira. Esmagado pela tristeza, levantou--se sem se desculpar e saiu do salão para a varanda.

O jovem disse a si próprio que estava possuído por uma espécie de loucura, e que não podia fazer nada. E apesar de as pretensões dessa loucura serem ao mesmo tempo demasiado penosas e dema­siado belas, tinha de as suportar porque a deusa oferecera-lhe amor e ele aceitara o presente, desejara aquele destino e todos os rituais que o acompanhavam, e nem por um momento se sentia arrependido com a escolha se bem que, naquele momento, parecesse abrir uma brecha no seu coração que nunca seria recompensada. Mas se fosse esse o preço pela exaltação que sentira ao olhar para os olhos de Helena, então teria prazer em pagá-lo. E se fosse proibido sabo­rear as alegrias do amor com ela, então saborearia a dor.

Após algum tempo, o jovem ouviu uma ligeira tosse nas suas cos­tas. Quando se virou, Eteoneu disse:

Meu senhor, o Rei está preocupado com a hipótese de o nosso entretenimento espartano não ser do teu agrado.

De modo nenhum, de modo nenhum — respondeu Páris soturnamente. — O vinho é que é forte. Precisava de apanhar ar. Diz ao Rei que regresso para junto dele daqui a pouco. — Mas não lhe apetecia. Minutos mais tarde, ainda olhava para lá do rio, para a pla­nície enevoada quando ouviu as notas suaves da voz de Helena.

Como não vinhas disse ela o meu senhor Menelau pediu-me que te viesse buscar.

Porque nenhum homem no seu perfeito juízo ousaria recusar o teu pedido? — perguntou ele apressadamente com o sangue a bater-lhe nas têmporas.

Helena corou um pouco e desviou o olhar para se recompor.

— Não, porque ele sente falta da tua companhia e teme que as provações do dia possam ter sido demasiado pesadas para ti.

Fixando intensamente os seus olhos perturbados, ele disse:

— As provações do dia não são nada comparadas com as prova­ções desta noite.

Helena recuou um passo, como se se tivesse aberto subitamente na sua frente a porta de um forno.

Alguém te desagradou? perguntou ela.

Tu - acusou-a ele docemente. - Tu é que me desagradaste.

Ela ficou a olhar para ele com a cabeça levemente inclinada e com as faces coradas como se ele lhe tivesse batido. Porém, a sua voz era firme quando disse:

Meu senhor?

— Eu sei que me ouviste quando te prendi essa coisa ao pescoço — disse ele — mas tu recusaste responder-me.

Irritada com a total indiscrição dele, ela aguentou-lhe o olhar.

Tu és amigo do meu marido e eu não te posso recusar nada que a honra permita. Senhor, agradeço-te o teu belo presente, mas não posso aceitá-lo. — A Rainha fez menção de tirar o colar, mas ele estendeu a mão para a impedir.

Fica com ele, peço-te — disse ele. Perdoa-me. Não estou em mim.

Helena tinha a garganta seca e o seu coração, alarmado, batia-lhe com força no peito. Helena olhou rapidamente em volta para ver se o turbilhão que sentia estava a ser observado. Em seguida colocou o seu esbelto corpo de lado para ele.

- Creio que deves estar exausto - disse ela. — Digo ao meu marido que o teu desejo é retirares-te?Diz-lhe que estiveste a olhar para um homem que está louca-mente apaixonado por ti. Diz-lhe que esse homem pode não ter muito tempo de vida se esse amor não for correspondido. Diz-lhe que te tornaste estranha para ti própria e que cada olhar dele exige a inteira atenção da tua alma. Diz-lhe acrescentou ele, agarrando-lhe no pulso quando ela se virou para se ir embora que quando um deus nos chama é loucura recusar.

Ela ficou imóvel, tentando recompor-se, as faces coradas e os olhos brilhantes devido à exaltação do medo.

O príncipe Páris está tão iludido que se julga um deus?

Não. Mas sirvo um, senhora. Uma deusa que, por sinal, é muito poderosa.

Páris ouviu a respiração dela, entrecortada. O jovem pensou ver uma súbita e febril comoção de excitação nos olhos de Helena. A Rainha disse:

Se não me largares a mão, grito que és um traidor na casa do meu marido, um traidor cujo coração mal agradecido não é merecedor da amabilidade e amizade que lhe tem sido demonstrada.

Páris achou intolerável a ideia de que ela pudesse pensar aquilo dele.

- E se eu soltar?  perguntou ele.

O olhar dela desviou-se.

- Esqueceremos o assunto. Não pensaremos mais nele. Tentaremos mais uma vez ser amigos, tu e eu.

Páris apertou-lhe o punho com mais força durante mais um momento antes de dizer:

— Não posso prometer tanto. Diz o que quiseres ao teu marido. A minha vida está na mão que te devolvo neste momento, mas já lá estava, muito antes de vir para Esparta. Esmaga-a ou liberta-a para que te possa amar. De qualquer maneira, o seu desejo por ti não se extinguirá.

Os lábios de Helena estavam abertos. A Rainha agarrou no pulso que ele lhe prendera, ternamente, como se a tivesse magoado. Nada no mundo se comportava como devia. Nem sequer a candeia pen­durada junto da porta, que estava a fumegar.

Então, ela abanou a cabeça e regressou ao salão.

Páris seguiu o seu perfume através do barulho do regabofe, olhando-lhe para a curva das costas, saboreando finalmente o triunfo de saber que ela não dormiria melhor do que ele naquela noite. Encon­traram Menelau e Eneias a rir juntamente com uma mulher de cabelos levemente arruivados cujos seios apareciam, livres, enquanto ela se debruçava para encher de novo a sua taça. Erguendo a sua taça, o Rei levantou-se ligeiramente para a sua mulher.

Que te disse eu, Eneias? gritou ele. — A beleza de Helena é como um íman. Atrai toda a espécie de homens, quer eles queiram, quer não. Páris, sentimos a tua falta. Vem, bebe mais um pouco de vinho connosco. Ou é verdade o que Eteoneu disse?   Que achas leite de Afrodite demasiado forte para a tua cabeça?

Seria a primeira vez disse Eneias, rindo. Houve muitas noites em que eu fui parar debaixo da mesa e ele continuou sentado muito direito.

— Este dia foi muito estranho e muito poderoso — disse Páris, franzindo o sobrolho.

É verdade concordou Menelau. Já totalmente embriagado, o Rei transbordava de preocupação afectuosa. Mas a sombra já passou. Lavámo-la na Casa de Bronze de Atena. Alegra-te, amigo.

Antes de Páris conseguir encontrar uma resposta, helena falou com voz firme:

O príncipe Páris está cansado, marido, e ainda não está totalmente em si. Haverá outras noites alegres. Por agora, creio que ele precisa de dormir.

Menelau fez um gesto de desapontamento. Com os olhos turvos, o Rei estudou o rosto pálido de Páris. Como homem íntegro, Mene­lau sentia-se de certo modo confuso com as mudanças bruscas de emoção dos seus amigos troianos. Então, ocorreu-lhe um pensamento. Fez uma careta a Páris e gesticulou com a taça.

— Passa os olhos pela sala — ordenou ele. — Deve haver uma mulher que gostes de levar contigo para te aquecer a cama.

Fossem as coisas de outro modo... respondeu Páris, desculpando-se rapidamente. Mas a tua senhora esposa é tão sábia quanto bela. É capaz de me ler os pensamentos.

Desapontado, Menelau encolheu os ombros e fez uma careta retorcida para Eneias que franzia o sobrolho a seu lado, perplexo com o comportamento pouco habitual do seu amigo. O Rei espar­tano oscilou um pouco quando se pôs de pé.

— Vai dormir, se é o que queres disse ele. Mas amanhã, Eneias e eu estivemos a fazer planos. Amanhã vamos à caça. Vamos acampar na montanha. O Rei fechou os braços em redor de Páris e, calorosamente, deu-lhe umas palmadas nas costas. Uma noite ou duas de ar livre e ficas logo bom. Vamos ver se conseguimos encon­trar outra ursa para te dar de mamar! — Menelau ria-se do gracejo quando apanhou o olhar da mulher. — Dorme bem, amigo disse ele mais calmamente. As Fúrias foram-se embora. A tua alma está limpa. És livre de novamente viver a tua vida como achares melhor.

Tarde, na manhã seguinte, Páris acordou de um sono pesado por um rude safanão no ombro.

— Que se passa contigo, homem? — disse Eneias. — Falaste a dormir durante a noite e agora já é quase meio-dia e ainda estás para aqui como um bêbedo deitado no meio da rua. Menelau está à nossa espera. Está morto por ir para a caça. Levanta-te, ou ainda ofendes o nosso anfitrião.

Páris levantou-se com dificuldade da cama com a cabeça entre as mãos.

Quando Eneias abriu as cortinas, a terrível luz do Sol entrou-lhe por entre os dedos. Páris ergueu um rosto desvairado para o amigo.

— Pareces uma górgona! — disse Eneias, franzindo o sobrolho. — Estás doente?

Durante um momento imprudente, Páris esteve quase a contar-lhe tudo, mas o jovem abanou a cabeça, sentindo que não era a altura certa. Eneias era demasiado franco e tinha uma alma cândida. Era demasiado amigo de Menelau e não conseguiria esconder a sua perturbação se tivesse conhecimento do plano que ia na cabeça do amigo. E se Páris não conseguisse manter os seus sentimentos controlados, o Rei de Esparta pressentiria sarilhos muito em breve.

- Não sei — grunhiu ele. A minha cabeça parece um sino.

- Arranja-se já uma criada que te atire pela cabeça abaixo um jarro de água. Toca a andar, Páris, compõe-te. Menelau foi muito indul­gente com o teu comportamento de ontem à noite, mas houve outros que não foram tão amáveis até que Helena tomou a tua defesa. Mas o Rei quer ir à caça hoje e estamos ambos ansiosos por partir. Posso dizer-lhe que estarás pronto dentro de uma hora?

Com os olhos fechados por baixo da mão encostada à testa, Páris acenou com a cabeça.

Dá-me tempo para me lavar e fazer a minha oferenda a Afro­dite — murmurou ele — e vou logo ter convosco.

Mas quando chegou ao salão encontrou grande tumulto e confu­são.

No exterior, o ar estava saturado com os latidos dos cães que se mordiam e queixavam, impacientes por partir, mas um grupo de velhas, com os rostos enrugados como nozes, chorava e lamentava-se no salão enquanto batia no peito. Alguns escravos metiam umas arcas numa carroça. Lá fora, no pátio, os ferradores atrelavam uma parelha de cavalos ao carro de Menelau. O Rei falava com Eteoneu e outros ministros enquanto Helena observava tudo, pálida de ansie­dade e apertando nos braços a sua filha Hermíone, muito assustada.

Eneias atravessou o salão para se encontrar com Páris na base da escadaria.

Parece que viemos em má altura disse ele. — Um mensa­geiro de Agamémnon acaba de informar Menelau que o Rei Catreu morreu. Ele tem de partir imediatamente.

— O Rei Catreu?

O avô dele pelo lado da mãe. Um cretense. Os rituais funerá­rios têm de ser celebrados brevemente, por isso ele tem de partir para Creta esta noite. O palácio está todo numa confusão.

— E Helena? perguntou Páris.

Helena? — Eneias pareceu surpreendido com a pergunta. — O que é que tem?

— Ela também vai a Creta? Vai com ele?

— Não sei. — Eneias franziu o sobrolho. — Não sei se isso já foi decidido.

Atraído por um súbito soluço da criança, Páris virou-se para olhar para onde Helena estava, falando insistentemente com Menelau.

A Rainha entregou a filha a uma serva, mas a criança saiu do salão aos berros e aos pontapés. Helena virou-se para o marido pertur­bado, suplicando-lhe.

- Devíamos dar-lhes as nossas condolências - disse Páris. Eneias estendeu um braço para o deter.

— A seu tempo disse ele. Não vês que o Rei está ocupado? Ele fala connosco antes de partir.

Assim, Páris teve de esperar enquanto, no meio de constantes interrupções dos seus conselheiros e intendentes Menelau falava docemente com Helena, segurando-a pelos braços e enxugando-lhe uma lágrima do rosto com o polegar. Finalmente, abraçou-a enquanto deixava vaguear o olhar pelo salão e os seus olhos encontraram os seus amigos troianos. Com o braço em redor dos ombros da mulher, o Rei atravessou o solo de mármore para se juntar a eles.

Perdoai-me, meus amigos, mas circunstâncias penosas exi­gem que parta.

Já sabemos da tua perda disse Eneias e a nossa dor vai contigo. E evidente que tens muito em que pensar. Por favor, não te preocupes connosco. Também vamos fazer os nossos preparativos para a partida.

Nem pensar objectou Menelau. Eu regresso dentro de uma semana e trarei Agamémnon comigo. Então, entregaremos as nossas mentes àquilo que mais nos preocupa no momento. Entretanto, Eteoneu providenciará para que nada vos falte e eu pedi à minha Rainha que vos mantenha entretidos. Não posso ir caçar, hoje, mas vós podeis. Escutai, os cães insistem.

O Rei olhou, sorrindo, para o rosto pálido de Páris.

Se vos apetecer, claro! O que é meu, é vosso. Estai à-vontade até ao meu regresso.

Que os deuses te acompanhem — disse Páris e te confor­tem pela tua perda.

Menelau acenou com a cabeça, deu uma palmada no ombro de cada um dos amigos e virou-se para Helena, que olhou para ele cons­ternada.

Coragem — disse ele. — Confio-te os meus amigos. Honra-os como se me honrasses a mim próprio. — Em seguida, depois de umas últimas palavras com os seus ministros, o Rei partiu.

Seria Afrodite suficientemente cruel, pensou Páris, para matar um velho, permitindo assim que o coração de um homem novo vicejasse? Talvez sim e talvez não. Talvez o Rei Catreu já estivesse há muito pronto para a sepultura.

Mas os mortais não eram capazes de entender os deuses. A única coisa certa era que Menelau estava agora longe do seu palácio e a sua mulher não lhe dissera nada que levantasse quaisquer suspeitas.

Páris fingiu estar doente durante o dia todo. O jovem disse a Eneias que não tinha estômago para ir à caça, mas como o dia estava bonito, como a matilha estava morta por ser solta e como os caçado­res estavam prontos, Eneias devia ir.

- Eu sei que estás morto por ver a caça que estas montanhas espartanas escondem. E quando regressares já eu estou bom. Traz uma pele de urso para divertir Menelau!

Depois de Eneias ter partido, Páris permaneceu na sua câmara durante uma hora que lhe pareceu infinita, antes de ir à procura dela. Helena não estava em parte nenhuma. O jovem passou pelo local onde as mulheres do palácio teciam e fiavam, mas não a viu entre elas e as damas-de-companhia riram-se tanto perante a sua entrada ines­perada que ele retirou-se rapidamente.

A meio da tarde, quando as divisões do palácio estavam mergu­lhadas no silêncio devido ao calor, o jovem decidiu arriscar uma entrada nos alojamentos reais.

Páris encontrou a sala do trono vazia. Um olhar para a câmara ao lado permitiu-lhe ver uma roliça serva num divã com Hermíone numa cama ao lado a dormir agarrada a uma boneca de trapos e com um dedo na boca. O jovem afastou-se silenciosamente. A porta pre­gueada para a outra divisão estava fechada Páris pensou que o tesouro do Rei devia estar ali dentro, talvez num armeiro. Aperce­bendo-se de que devia estar a aproximar-se da câmara real, percorreu o corredor mal se atrevendo a respirar e parou, hesitante, em frente de uma dupla porta de bronze. Páris sabia que não tinha qualquer desculpa se outra pessoa qualquer, para além de Helena, estivesse lá dentro, lavando o chão ou mudando a roupa da cama. Mas parecia improvável àquela hora e não se ouvia qualquer som através da porta. Assim, levantou o trinco, que fez barulho no ar silencioso. As portas abriram-se e ele ficou a olhar para uma câmara arejada e cheia de luz que entrava por uma varanda virada para os jardins, para o rio e para as montanhas ao longe. Uma enorme cama de cedro, incrustada de ouro e marfim e com um par de leopardos esculpidos à cabeceira estava colocada em frente da varanda. O leito estava coberto com almofadas e lençóis esplendorosamente tecidos. Aos pés havia uma arca de madeira. Na parede, por cima da cabeceira, estava pendurada uma tapeçaria representando as Três Graças dançando juntas no meio de um prado de asfódelos e violetas. As outras paredes estavam pintadas de carmim, azul e dourado. Encostado a uma delas, um leque de penas de pavão de cores iridescentes tremulava sob a brisa que entrava pela janela.

Era ali que ela dormia e sonhava. Era ali que o marido fazia amor com ela todas as noites. Páris esperava sentir-se atormentado com o pensamento, mas estava agora tão certo da invencibilidade da sua pre­tensão sobre Helena, que ficou imperturbável. Menelau podia ter-se deitado com Helena e ter-lhe feito, até, um filho. Mas a mulher na sua cama não era a verdadeira Helena de Esparta porque ela própria ainda não sabia quem era na realidade. Como poderia ela quando o segredo da sua verdadeira vida só era com conhecimento da deusa e dele próprio?

Páris atravessou a câmara até onde um par de portas interiores abriam para dois armários separados, um dos quais era o quarto de vestir de Helena. O jovem sentia o perfume dela no ar. Os cabides estavam cheios de roupa. O príncipe troiano segurou no material suave do mais próximo e levou-o ao rosto. Em seguida, aproximou--se de uma mesa com uma rica colecção de cosméticos e os seus res­pectivos pincéis, pufes, limas e pentes, tudo perfeitamente alinhado. Havia ali caixas de sândalo com diversos pós e pequenos frascos de boticário, vários estojos abertos revelando um pequeno tesouro de anéis e pulseiras, colares e brincos, braceletes finamente trabalhados, broches, diademas, redes de cabelo incrustadas de jóias, fivelas e alfinetes. O príncipe troiano procurou o colar de jade que lhe ofere­cera, mas não o encontrou. Helena tê-lo-ia posto de lado ou tê-lo-ia guardado num lugar seguro? Então, os seus olhos caíram no frasco de prata com a forma de Afrodite segurando uma pomba, um dos presentes que lhe dera e que ela tanto apreciara.

Afastando alguns objectos para arranjar espaço no toucador, Páris tirou da parede a placa de bronze polido ornamentada com golfinhos que fazia as vezes de espelho e colocou-a naquele espaço. Em seguida, tirou a tampa ao frasco de perfume e com algumas gotas deste tentou escrever na superfície polida a palavra amo-te, mas as letras recusaram-­se a ganhar forma e começaram a evaporar no ar. Olhando para os diversos materiais, Páris viu um vaso de tinta, o material com que ela devia escurecer as pestanas. O jovem escolheu um pincel, molhou-o na língua e começou a escrever. A palavra ia-se formando grossei­ramente e o príncipe, concentrado, lambia e voltava a lamber o pin­cel sem se preocupar com a hipótese de a tinta ser venenosa. Se fosse, paciência: pelo menos, a palavra sobreviver-lhe-ia. Mas a sua falta de jeito acabou por compensar porque fora tal a quantidade de perfume que usara que a atmosfera do quarto de vestir alterou-se. Deixou de cheirar a Esparta para passar a cheirar a Tróia.

Quando Páris abriu a porta dupla que dava para o quarto de dor­mir para sair, ouviu a criança a chorar no infantário, um choro baixi­nho, mas suficientemente alto para acordar a ama. Furtivamente, o jovem atravessou o quarto, espreitou pela porta meio aberta e viu a ama pegar em Hermíone. Enquanto o fazia, a mulher sussurrava palavras de carinho. Páris saiu rápida e silenciosamente. Já tinha che­gado ao patamar da escadaria, pronto para sair para o jardim quando ouviu uma voz masculina.

— Querias alguma coisa?

Sobressaltado, Páris virou-se e viu Eteoneu a olhar para ele de sobrancelhas franzidas da porta que dava para a cozinha, ao fundo do salão.

Estava... — Páris arvorou o sorriso com que encantava tantas vezes o mundo — estava a ver se descobria a dama Helena.

— A minha senhora pensava que estavas doente — respondeu Eteoneu. — Ela deu instruções para que fossem saber de ti de duas em duas horas se não aparecesses. A curandeira dela, Polidamna, é que ficou encarregue de ti. Ela bateu à tua porta. Como não houve res­posta, pensou que estivesses a dormir.

Páris ia responder que era o caso quando se lembrou que fora visto a passear pelas ruas.

— Já me estava a sentir melhor e pensei em apanhar um pouco de ar — disse ele. — Deve ter sido então que a mulher me bateu à porta. — O jovem sorriu novamente. — Diz-me, onde posso encon­trá-la?

— Polidamna está nos alojamentos das mulheres. Queres que a mande chamar?

— Eu queria dizer a dama Helena.

— Ah! A minha senhora está a fazer oferendas pelo Rei Catreu, cuja morte lamenta muito. Não quer ser perturbada.

— E também está a rezar, sem dúvida, pelo regresso do marido, são e salvo?

Eteoneu acenou com a cabeça, tentando imaginar o que signifi­caria aquele sorriso do troiano.

— Compreendo. Nesse caso, esperarei que ela acabe. — Páris olhou para o exterior, para o Sol brilhante. — Talvez no jardim. Estou a ver que há lá um santuário de Afrodite. Eu também preciso de orar.

Com um aceno cortês de cabeça, o jovem virou-se e atravessou o terraço rodeado de colunas na direcção do jardim. As uvas cresciam, gordas, nas videiras e Páris dirigiu-se ao santuário de Afrodite, num maciço de mirtos, por entre a sombra dos ciprestes e dos plátanos e pelo meio de loendros e hibiscos. Ao entrar no maciço de arbustos, Páris sorriu para a estátua de Príapo, uma figura barbuda e disforme em madeira de figueira com a mão esquerda numa anca enquanto a direita segurava um frasco de óleo com o qual untava o seu enorme membro. Alguém — provavelmente uma apaixonada — deixara junto dele uma oferenda de romãs e marmelos. Um melro cantou ao sentir a aproximação de Páris. Finalmente, o príncipe entrou no recinto sagrado da deusa.

Durante muito tempo, o troiano permaneceu ajoelhado em silen­ciosa meditação perante a pequena estátua de mármore de Afrodite, junto de uma nascente que jorrava de umas rochas. A deusa erguia-se num pedestal, penteando-se no meio de uma profusão de rosas perfumadas. Por cima da sua cabeça, um bando de pombas voava de árvore em árvore através da clareira ou aqueciam-se ao sol. Algures, ao longe, um burro zurrou, queixando-se da carga que levava no dorso. Mas Páris só ouvia os sussurros de Afrodite, encorajando-o e aconselhando-o ao ouvido.

Após algum tempo, o jovem levantou-se e sentou-se num banco por baixo de um caramanchão de mirto. A sensualidade do local, a quietude do ar, o som da água no calor da tarde, tudo conspirava para alimentar o fogo do desejo que sentia por Helena. A sua oração trans­formou-se num encantamento mágico. O jovem começou a chamá-la.

Mas foi a voz de uma criança que lhe chegou por entre as árvo­res, a voz de uma rapariguinha: Hermíone! Se Helena andava a pas­sear a filha pelo jardim, era pouco provável que levasse a criança até ali. Páris pôs-se de pé. Após uma ligeira hesitação, saiu rapidamente do maciço de arbustos e passou pela estátua de Príapo, dirigindo-se para o local onde lhe parecia ouvir a voz da criança.

O jovem passou por entre duas árvores e viu Hermíone brin­cando ao sol e atirando uma bola à gorda ama que se encontrava na sua frente a alguma distância.

Apanha, Crise — dizia a pequenita tens de a apanhar. — Mas a bola não fora lançada com força. Suspirando, a ama baixou-se para a apanhar e quando a devolveu, lançou-a demasiado alto, a bola passou por entre os braços esticados da pequenita, bateu uma vez no chão e foi a rolar até onde Páris estava, na sombra intensa das árvo­res. Com os olhos fixos na bola, Hermíone aproximou-se a correr e gritando por cima do ombro, só reparando nele quando Páris deu um passo em frente para apanhar a bola. Rindo, o jovem fez tenção de lha devolver gentilmente, mas a criança parara, assustada, e ficou a olhar para ele como se para um fantasma.

— Apanha — convidou-a ele, inclinando-se um pouco.

O rosto da criança torceu-se de medo. A jovem levou ambas as mãos à boca e deixou sair um grito assustado. Consternado com a resposta, Páris deu um passo em frente, mas Hermíone girou nos calcanhares e desatou a correr na direcção da ama, gritando:

— Salva-me, Crise, salva-me deste estranho! - e agarrou-se às pernas da ama.

A mulher levou uma mão à cabeça da pequenita, mergulhada nas suas saias e disse:

O que é que se passa? — Hermíone olhou rapidamente para trás e Pâris, que se sentia embaraçado, ficou horrorizado quando a ouviu dizer:

É o homem que mata crianças. Quero o meu pai, quero o meu pai — e desatou a chorar convulsivamente.

A ama olhou para o estranho, consternada, fez um sinal para afas­tar o mau-olhado, pegou na criança ao colo e afastou-se.

Páris ficou a tremer no jardim onde a paz parecia ter desapare­cido.

Ainda lá estava uma hora mais tarde, derrotado por uma série de sentimentos que começavam com a percepção de que o facto de Helena ter uma filha era mais complexo do que calculara, tanto mais que a criança parecia ter um medo irracional dele.

Páris regressou ao maciço de arbustos para pensar no seu pro­blema, mas para além de Eros, que era um caso diferente, apercebeu-se de que Afrodite queria tanto saber das crianças como da morali­dade. A deusa só estava preocupada com a paixão sexual e com o desejo. Os seus deveres terminavam onde começava a concepção.

Como poderia ela ajudá-lo contra uma criança hostil?

No entanto, Páris não acreditava que Afrodite o tivesse levado até Esparta e tivesse afastado Menelau tão rapidamente sem ter um plano em mente. A alternativa — depois de um auspicioso começo, uma criança chorosa interpunha-se como um obstáculo intransponí­vel entre ele e Helena — era um tormento demasiado grande. Teria o encanto suficiente para conseguir atrair a criança?

Páris pensava na melhor maneira de resolver o problema quando ouviu alguém a aproximar-se. Esperando que fosse Eteoneu com uma expressão de desagrado no rosto, levantou-se do caramanchão onde estava sentado e viu Helena caminhar na sua direcção. O rosto da Rainha estava corado e trazia os cabelos em desalinho. A primeira exclamação de surpresa do príncipe transformou-se num sorriso de admiração, mas antes que tivesse oportunidade de falar já ela tinha chegado junto dele, levantado a mão e lhe dera uma bofetada com toda a força. Páris ficou a engolir as lágrimas que teimavam em subir aos olhos e a abanar a cabeça aturdida. A face ardia-lhe como se esti­vesse a pegar fogo.

Espantado com o estalo, um bando de pombas levantara voo.

Como te atreves? — disse a Rainha, excitada. — Como te atreves?

Com os ouvidos a zumbir, ele disse:

Peço desculpa, peço desculpa. Não queria assustar a criança.

Ela fixou-o como se estivesse a olhar para um homem fraco de mente. Os seus olhos verde-azulados como o mar emitiam faíscas como ele nunca vira, nem sequer durante uma tempestade ao largo da costa da Dardânia. O jovem ia tentar dizer que a criança devia ter ouvido qualquer coisa a seu respeito e que compreendera mal, mas Helena apagou-lhe as palavras com um furioso gesto das duas mãos no ar.

Entrar nos nossos alojamentos privados, mexer nas minhas coisas, deixar uma mensagem absurda que podia ser cheirada por uma criada qualquer! Como foi possível fazeres uma coisa dessas? Como te atreves?

Antes que ele a pudesse deter, ela esbofeteou-o de novo.

Ele recuou erguendo os braços para se defender de mais ataques e depois desatou a rir, alto e bom som apesar da dor, enquanto se dei­xava cair no banco do caramanchão.

Ela olhou para ele, espantada com o seu riso, mais fora de si do que nunca antes na sua vida.

Se voltares a fazer uma coisa assim novamente — disse ela, furiosa — espeto-te a minha faca.

O riso deteve-se e ficaram os dois a olhar um para o outro, ofe­gantes.

— Podes fazê-lo. — Páris abriu as mãos e expôs o peito indefeso. — Traz a tua faca e mata-me agora porque, se não és capaz de me amar, prefiro morrer.

As mãos dela estavam cerradas — firmes como dois nós, suficientemente firmes para poderem magoar — como se só assim pudesse sufocar uma fúria que lhe era até ali desconhecida e amea­çava arrastá-la, como a corrente de um rio, para um caos sem regresso. Se tivesse naquele momento uma faca, tê-la-ia usado.

Mas tudo o que podia fazer era dizer entrecortadamente — mais para si própria do que para o homem que tinha na sua frente:

Sou capaz de o fazer e fá-lo-ei.

Após um ligeiro choque por ter percebido que ela estava a dizer a verdade, ele riu-se de novo.

Incrédula e cheia de raiva, ela disse:

Estás louco.

— Acredita-me — respondeu ele de imediato — sou capaz de dizer e fazer tudo para que me ames. Se isso é loucura, então sim, estou louco.

Helena empertigou-se. O coração batia-lhe no peito, como um tambor.

Eu sou Helena, Rainha de Esparta — disse ela — não sou uma troiana qualquer que tu metes na tua cama. Achas que era capaz de amar um homem suficientemente desprezível para trair um amigo quando ele está de costas?

— Sim — disse ele apressadamente. E outra vez sim.

Um homem que finge estar doente, que diz mentiras e que vagueia pela minha casa como um ladrão vulgar?

— Sim.

— Então, não és só louco, és também estúpido.

Que seja — disse ele. — Mas, se sou louco, sou-o por amor. Se sou estúpido, sou-o por amor.

Algures, no topo do caramanchão, uma pomba bateu as asas.

Helena ficou a olhar, tremendo, para a súplica dos olhos dele. Apercebendo-se de que ele ultrapassara todos os limites e que, se continuasse ali poderia perder toda a dignidade e domínio de si própria, ela disse:

— O melhor seria abandonares Esparta. Mas és um hóspede do meu marido, não meu. — A Rainha ouviu a própria voz tremer enquanto acrescentava: — Se preferes ficar, não esperes encontrar-me.

Helena respirou fundo e virou-se para se afastar. Mas dera apenas três passos quando ele disse:

Por que é que não lhe contas o que aconteceu entre nós ontem à noite?

Se tivesse continuado, talvez o mundo se tivesse salvo; mas Helena parou e a acusação na pergunta dele apanhou-a totalmente despreve­nida, como se estivesse presa a uma corda e alguém a tivesse puxado.

Ela virou-se para olhar para ele com um olhar furioso.

Porque tu és amigo dele — disse ela. — Porque Menelau gosta de ti e ficaria com o coração destroçado.

— Sim — ele aguentou-lhe o olhar sem pestanejar — ficaria com o coração destroçado.

Durante alguns momentos ouviu-se apenas o som da água a escorrer por entre as rochas.

Quando viu que ela continuava imóvel, Páris sentou-se no banco por baixo do caramanchão. Como um homem subitamente exausto, colocou os cotovelos nos joelhos e descansou o rosto nas mãos. Com voz rouca, disse:

— É a loucura de Afrodite. Senhora, já te amava muito antes de te conhecer. Foi por te amar que vim a Esparta.

Finalmente, ela escutou-o. Finalmente, escutou as suas palavras. Mas a sua vontade continuava a protestar. Confusa, Helena tentou entender:

— Como era possível amares-me? Nunca me tinhas visto. Não me conhecias. Não era a mim que amavas, amavas um sonho fantás­tico que tinhas na cabeça.

Tu eras o sonho fantástico na minha cabeça. A causadora foi a deusa e quando ela me sussurrou o teu nome ao ouvido, soube que eras o meu destino. O coração entende estas coisas. Agora que te conheci, deixou tudo de ser um sonho.

Por um momento, Helena ficou ali, presa pelo olhar dele, embora soubesse que era imperativo virar-se e afastar-se. A Rainha virou-se. Ele murmurou:

— Dama, tu estás-me prometida desde o princípio dos tempos e o mundo continua a girar.

Helena estava de costas viradas para ele e, quando falou, a sua voz pouco mais era do que um murmúrio, como se o facto de ele ouvir não tivesse importância:

O meu mundo é este. Pertenço aqui, com o marido que amo.

Ele acenou com a cabeça, sorrindo, como se compreendesse:

— Eu tenho-vos observado e durante algum tempo pensei que o amor entre vós era tal que a deusa devia ter-se enganado. Mas tu acabas de me demonstrar o contrário.

Ela virou-se.

— Como assim?

Há mais paixão nas tuas bofetadas do que ódio nos teus olhos. Foi por isso que me ri — não para troçar de ti, ou por estar louco, mas simplesmente devido à alegria de saber que nunca me esbofe­tearias assim se não tivesses a alma perturbada. Creio que me conhe­ces, senhora. Creio que percebeste quem eu era assim que me viste, assim que olhámos um para o outro. Creio que também passaste a sentir a loucura da deusa.

Sempre a falar, ele levantara-se do banco e dera dois passos na direcção dela. Helena recuou perante a sua aproximação, mas o que julgara ser arrogância bem podia ser uma certeza tão clara que podia ser tomada por uma forma de inocência.

— Se houve paixão — disse ela — foi de fúria. Não tens o direito de invadir assim a minha vida.

O jovem disse calmamente:

— E se essa vida tiver acabado? Não podes regressar a ela, agora, tal como ela era. Menelau não está cá e não estás segura de ti mesma. Se a quiseres ter de novo com ele, só encontrarás o tédio e só pensa­rás no que teria acontecido se tivesses respondido ao apelo da deusa. Tens uma nova vida à tua espera. A vida da qual te tens escondido até agora. Sê corajosa e enfrenta-a.

O terror perante aquelas palavras, o aroma a rosas e a mirto, o gri­lar narcótico dos grilos no calor da tarde e o som da água nas rochas, tudo aquilo lhe rodopiava no espírito como a presença de um deus. Helena virou-se para olhar para onde Afrodite penteava os cabelos impudicamente e de seios nus, com as pregas do vestido em redor das ancas, descuidada de tudo salvo do pulsar sensual da vida entre­gue ao amor. Quantas vezes olhara para aquela estátua, inquietante-mente consciente de que a vida tinha de oferecer mais do que as ceri­mónias repetidas do dia-a-dia, os confortos de um papel pouco exigente e o pequeno suspiro de satisfação com que Menelau consumava cada rápido e agradecido acto de amor? Mas reverenciara a casta Arte­mísia quando era nova e agora, esposa e Rainha, honrava Hera e Atena. Helena disse a si própria que era melhor escolher as espigas fartas de Hera e as oliveiras carregadas de azeitonas de Atena do que as rosas espinhosas da Deusa Dourada. Era melhor resistir aos chamamentos da paixão do que ser varrida como sua vítima. Mas fora ela que mandara colocar ali aquela estátua.

Helena abanou a cabeça. Que lhe queria aquele troiano louco? Imaginaria ele que ela arriscaria a vida por causa do seu sorriso devas­tador e daquelas promessas de amor eterno? Páris não passava de um salteador bem-parecido, mais bem-parecido do que Teseu — mas sem a glória daquele grande Rei! A Rainha recordou de novo aquele dia — o terror de fazer parar o coração, sim, mas também a alegria com que se imaginara a ser transportada por um deus momentos antes de cair em si e ver que tinha em cima de si um velho.

— Uma beleza assim é mais uma maldição do que uma bênção - murmurara Teseu, e aquelas palavras tinham-na levado de tal maneira a escondê-la que ficara até para além do alcance do seu marido. Teria aquele homem ali, na sua frente, atingido as profunde­zas da sua alma e tê-la-ia visto? Saberia ele, na verdade, como fazê-la subir à superfície? Por que outra razão, contra a sua vontade, tremia tanto perante as suas palavras?

E perante o contacto, terno e sem exigir nada em troca das suas mãos nos seus ombros?

O rosto dele estava suavemente encostado aos cabelos dela na base do pescoço. Ela sentia a sua respiração.

Eu sei que ainda não tiveste tempo para aprender a amar-me — murmurava ele. — Mas podes aprender. E vais aprender. Ela afastou-o.

Escuta o que te digo — disse ela de novo — eu amo o meu marido. Tenho um marido que me ama, um marido que me ama muito.

Ele pensou durante um momento antes de dizer o que lhe viera à cabeça. Finalmente, deixou-o sair.

— Um marido que troca a tua câmara por outra durante a noite. Os olhos dela abriram-se muito e as suas narinas dilataram-se.

Como é que sabes uma coisa dessas?

Vi com os meus próprios olhos. Desci, durante a primeira noite, à sala onde tínhamos jantado. Não conseguia dormir por pen­sar tanto em ti e vi-o lá.

Respirando fundo, ela ergueu o queixo.

— Aqui, Menelau é o Rei e um Rei tem os seus direitos.

E que direitos o tirarão da tua cama?

— O direito a um filho — disse Helena — que é uma coisa que eu não lhe posso dar.

Páris ficou sem fôlego perante aquela resposta.

Com uma espécie de desafio, as palavras saíram da boca de Helena.

— Como vês, o teu sonho é estéril. Um sonho estéril sobre uma mulher estéril.

Mas antes de ela ter tempo de desviar o olhar, ele viu a angústia no seu rosto e o seu coração entristeceu-se. Durante alguns momen­tos, as vidas de ambos, totalmente expostas, confrontaram-se de um lado e outro do pequeno riacho.

— Lamento muito — murmurou ele.

E ela viu um rosto tão suavizado pela compaixão que quase cho­rou.

Quem era aquele homem? Páris tinha a aparência de um príncipe, mas havia tanta candura no seu olhar que bem podia ser um campo­nês. Talvez fosse, muito simplesmente, o que dizia ser tão apaixonadamente um homem apaixonado por ela há tanto tempo que não queria saber de mais nada.

Incapaz de falar, de se mover, Helena pensava: Se a minha morte está aqui, então foi a deusa que a enviou.

Mas ele estava a falar de vida — uma vida na qual talvez ambos partilhassem a paixão dos deuses. Uma vida que só os eleitos do amor podiam conhecer e desses apenas os capazes de se entregarem por completo.

Páris estendera um braço de novo, ternamente, para lhe tocar. Ela afastou-se imediatamente, como se tivesse aberto os olhos para se ver à beira de um abismo e procurasse agarrar-se a algo conhecido. Ape­sar de ele não se ter aproximado mais, ela estendeu uma mão em sinal de recusa para o manter à distância e repetindo a palavra «Não» qua­tro ou cinco vezes numa espécie de feitiço protector.

Gentilmente, ele abanou a cabeça.

— Creio que estamos nas mãos da deusa. — Páris estendeu um braço para colher uma rosa. Ela só quer o nosso bem. — O jovem picou-se num espinho e levou-o suavemente aos lábios dela, dei­xando-os maculados de sangue.

Helena deu mais um passo atrás, de boca aberta.

Culpas a deusa pelos estragos que fazes?

Páris sorriu-lhe com a calma serena de um verdadeiro crente.

Não. — Solenemente, ele abanou a cabeça. — Eu louvo a deusa.

Aproximando-se, Páris entrelaçou-lhe a rosa nos cabelos.

Espero por ti esta noite — murmurou ele. — Se és capaz de negar o que eu disse, não vás e condena-nos a ambos a definhar. Se não és capaz, vai ter comigo. — Em seguida, afagou-lhe o ombro e afastou-se sem sequer deitar-lhe um olhar.

O navio de Eneias, o Górgona, foi o primeiro a atracar em Tróia. A viagem de regresso fora menos calma do que a de ida devido a uma tempestade que forçou o barco a navegar através de chuva cerrada e violenta ondulação, e a disposição de Eneias não era menos turbu­lenta do que o mar que percorria. Furioso com Páris, estava conven­cido de que o seu amigo apaixonado alterara deliberadamente a rota do seu navio, aproveitando-se da tempestade para se afastar dele. Assim, durante dias, o Górgona lutara sozinho contra os elementos, traçando uma rota através das Cíclades e esperando avistar a qual-quer momento um navio de guerra de Argos no horizonte.

As probabilidades eram contra, bem entendido, porque os troia­nos já estariam em alto-mar, a caminho de leste, quando as notícias chegassem a Menelau, em Creta. No entanto, a disposição normalmente uniforme do príncipe dárdano estava tão alterada devido ao comportamento traiçoeiro do seu amigo, que andava na expectativa diária de uma vingança por parte dos deuses. Os homens da sua tri­pulação, muitos dos quais tinham resmungado contra a partida apres­sada com mau tempo de um porto onde gostavam de estar, já diziam que fora Helena que enviara aquela tempestade sobre eles.

Eneias não estava surpreendido, portanto, por não ver sinais do Afrodite nas águas do l lelesponto. De facto, disse ele sombriamente ao seu imediato, teria apostado toda a Dardânia contra um figo bolo­rento em como o navio de Páris continuava longe, numa baía qualquer, enquanto ele arrulhava e acariciava a mulher por quem pusera tudo em risco.

Assim que pôs pé em terra, Eneias dirigiu-se logo ao palácio do seu pai, nas faldas do Monte Ida, para lhe dar conta do resultado desastroso da sua missão. Anquises escutou-o, impassível como o mármore, por trás dos seus olhos sem vida, enquanto o seu filho ten­tava dar algum sentido ao comportamento insensato de Páris.

— A culpa é minha por não me ter apercebido mais cedo. Quando dei por mim, já era demasiado tarde. Os seus modos no banquete foram tais que quase ofendeu os nossos anfitriões. Nunca o tinha visto doente — nem sequer quando bebia perdidamente durante a noite toda e cobria as mulheres todas do palácio. No entanto, dois dias depois de chegarmos, lá estava ele a queixar-se de dores de cabeça, deitado na cama quando era suposto partirmos para uma caçada. Eu atribuí tudo isso aos rigores da purificação por que passou, mas ele já tinha visto muito sangue para se deixar intimidar pelo cheiro. Páris devia ter-se sentido purificado pela purga, mesmo com o espírito ele­vado. Se eu não estivesse tão ansioso com a caçada, talvez tivesse suspeitado de qualquer coisa quando ele me disse que fosse para as montanhas assim que o Rei partiu. Devia ter percebido...

Eneias interrompeu o seu pensamento auto-recriminatório.      Mas ele já devia estar tão fora de si que não sei se teria conseguido detê-lo.

— Não fora de si disse Anquises. Intoxicado. Reconheci isso nele há muito tempo. A sua adoração por Afrodite foi sempre excessiva. Tentei aconselhá-lo a virar-se para a sabedoria de Apolo. Mas quem era eu para o censurar pelo seu amor pela Deusa Dourada, quando eu próprio fiquei cego ao seu serviço? Suspirando, o velho Rei aconchegou a sua velha capa em redor dos ombros. — Não te censures. Afrodite sempre foi muito fixa nas suas obsessões. Se ela decidiu escolher Páris para instrumento da sua paixão, nada nem ninguém o pode afastar do seu destino.

— Mas Menelau era amigo dele — protestou Eneias. O homem até me salvou a vida! E agora estou dividido entre os dois. Zeus sabe que sempre gostei muito de Páris desde o primeiro dia, quando o vi deixar o nariz de Deífobo a sangrar. Mas acho que a sua traição não seria maior se tivesse raptado a minha mulher.

— Nesse caso, agradece aos deuses por Helena não ser tua mulher, porque Afrodite não te teria poupado a essa traição. — O suspiro de Anquises foi de pesada resignação. — Em todo o caso, Páris traiu-nos a todos. Tu e ele foram a Esparta em busca da paz. O que ele fez fornece a Argos o pretexto ideal para a guerra.

A não ser que alguém mais poderoso do que eu consiga per­suadi-lo a devolvê-la.

Achas que ele é capaz disso?

Eneias pensou apenas durante um momento, antes de abanar a cabeça.

Não. Ele está transtornado. Não acredito.

— E Helena? perguntou Anquises. - Poderá ela ser persuadida a regressar?

Quem pode dizer o que fará uma mulher nestas circunstân­cias? Eu tentei falar-lhe, avisei-a sobre as consequências do seu acto, mas ela é mulher e quando as mulheres sonham... só que havia um bri­lho nos olhos dela que eu só tinha visto em lobos, quando eles sabem que vão morrer, mas mesmo assim vão até ao fim. — Eneias respirou profundamente. Creio que Helena também está possessa por um deus. Como seria possível, de outro modo, abandonar assim a filha?

Ela deixou a filha em Esparta?

É a única que tem. Hermíone, uma criança quase tão bela como ela. Por uma razão qualquer, um instinto profético, talvez, a criança não gostava de Páris. Helena deve ter percebido que tinha de esco­lher entre Páris e a filha. Se tivessem tentado levar Hermíone com eles, a criança teria alertado toda a gente com os seus gritos. Nunca teriam conseguido sair do palácio sem ser vistos.

Confrontaste Helena com esse crime?

— É claro que confrontei! Ela respondeu que Hermíone sempre pertencera mais ao pai e que seria mais cruel levá-la do que deixá-la. Se acreditava ou não no que estava a dizer, não sei. Certamente que já está a sofrer com a escolha que fez.

A paixão tem sempre um preço. Páris vai acabar por pagá-lo a seu tempo. Mas temos de fazer os possíveis para que Tróia não responda pelo seu crime.

Anquises virou o seu olhar cego para o filho e estendeu uma mão para o puxar mais para si. Primeiro, vamos falar com Antenor — ele é conselheiro de Príamo e não é amigo de Páris. Então, os três juntos confrontaremos o Grande Rei com a notícia. Os filhos de Atreu não vão demorar muito para lhe bater à porta.

E toda a Argos jurou defender o direito de Menelau a Helena.

É verdade — suspirou Anquises. Começo a suspeitar que existe, por trás disto tudo, um poder maior do que o de Afrodite. Se Zeus, o pai dos deuses, decidiu que chegou a altura de fazer sofrer os mortais, a guerra é capaz de se revelar terrível. Nós, os Dárdanos, temos de pensar seriamente se estamos preparados para arriscar o nosso reino por Tróia.

Entretanto, que se passava com os dois amantes? Uma vez encontrado o caminho dos braços um do outro, ter-se-iam sequestrado a si próprios durante muitos dias num ininterrupto sonho de amor se tives­sem tido liberdade de escolha; porque durante as poucas horas que puderam passar juntos naquela primeira noite comportaram-se como dois viajantes espantados entrando no reino dos sentidos, um reino que nenhum deles tinha visto antes. Todos os vestígios de hostilidade entre ambos se tinham dissolvido instantaneamente, transformados, por uma alquimia qualquer do amor, num desejo terno e feroz por saberem o outro mais profundamente mergulhado em cada fenda do próprio corpo, por cada gesto, por cada sentimento, por cada pensamento. Depois de fazerem amor, ficavam lado-a-lado, conver­sando sobre as suas vidas, como se as suas almas sempre tivessem sido íntimas, se bem que separadas pelo mundo durante muitos anos.

Enquanto fixava os olhos de Helena, Páris recordou como um sacerdote asceta de visita a Tróia, vindo da Índia, tentara persuadi-lo que a alma humana viaja ao longo de muitas vidas em busca da paz. Apesar de se ter rido daquela filosofia por a ter achado extrava­gante, agora parecia-lhe mais fácil acreditar que ele e Helena se tinham conhecido antes de se terem encontrado em Esparta, numa outra vida, num outro mundo. O jovem murmurou-lhe aquela ideia ao ouvido enquanto permanecia deitado a seu lado e ela, sorrindo, disse-lhe:

Talvez tenha sido nessa outra vida que te deixei esse sinal no pescoço — a não ser que outra mulher qualquer te tenha ferrado os dentes!

Não me lembro de mais nenhumas mulheres      murmurou ele. — Se as houvesse, teriam sido apenas umas vagas sombras tuas. Este sinal está comigo desde que nasci. A minha mãe dizia que era como se eu tivesse sido mordido pela paixão, mas eu juro que nunca conheci antes a paixão. Talvez tu tenhas razão e Afrodite mo tenha deixado para que tu me reconhecesses. Aproxima-te, deixa-me levan­tar-te o cabelo para te deixar no pescoço um sinal igual, para que nos possamos reconhecer em vidas futuras.

— Eu acho que era capaz de te reconhecer — disse ela enquanto ele afastava a sua boca da dela mesmo que estivesse surda e cega e tivesse decorrido uma vida inteira entre esta e a próxima.

Eu também replicou ele mesmo que o Sol morresse e a noite fosse eterna.

Noutros momentos, enquanto olhavam, maravilhados, para os olhos um do outro, o sentimento de união conseguida era tão com­pleto que não havia lugar para qualquer especulação — ou palavras — quanto ao que estava a acontecer entre eles: o universo era, sim­plesmente, um universo de amor.

Houve ocasiões, naquela noite, em que os seus corações pararam, mas o tempo não e muito antes de o galo cantar o de Helena desper­tou, alarmado. Apesar dos argumentos e protestos do seu amante, ela levantou-se antes da madrugada e regressou aos aposentos reais, receosa de ser vista. Sozinha na sua cama de casal, a Rainha estreme­ceu perante o conhecimento do que fizera e do que lhe era, agora, exigido. A sua mente recusava qualquer pensamento. Helena viu nas­cer o dia perfeitamente consciente de que qualquer regresso à sua vida anterior era impossível, mas incapaz de imaginar uma outra.

Quando Hermíone surgiu no seu quarto a correr para lhe contar o pesadelo que tivera, Helena mal conseguiu falar. Cheia de repug­nância por si própria, só queria ver-se livre da criança por mais algu­mas horas e regressar aos braços do amante mais uma vez. Mas pro­curou palavras de conforto e prometeu a Hermíone que o seu pai regressaria a Esparta em breve c que a protegeria de todos os seus medos.

De todas as pessoas à sua roda, só uma notou, naquele dia, a mudança em Helena. Etra, a anterior Rainha de Trézen, sua escrava e companheira há muitos anos, adivinhou instantaneamente o que lhe ia no coração. Foi o seu olhar astuto que notou a mudança súbita na cor do seu rosto quando Páris apareceu na câmara de recepções, mais tarde naquela manhã. E depois de Helena ter desaparecido durante horas, durante a tarde, para regressar corada e perturbada, os cabelos em desordem como uma videira sacudida por uma tempestade, foi Etra, pacientemente à sua espera nos aposentos reais, que ergueu os olhos do seu trabalho de costura e lhe perguntou:

— Então, o troiano também ficou fulminado com a tua beleza, como o meu filho?

Helena viu imediatamente que não valia a pena negar. Pelo con­trário, sentiu uma necessidade urgente de partilhar com ela a alegria e o medo que se entrechocavam no seu coração.

Com a respiração entrecortada, a Rainha disse:

— Páris ama-me — ouviu-se ela a dizer. — Os olhos dos outros homens ficam-se por esta maldição. Ele vê através dela, vê a pessoa que está por baixo. Se não houvesse inúmeras outras razões, amá-lo--ia só por isso. Mas amo-o, Etra. Com Páris, sinto que sei quem sou na realidade. Sinto-me livre.

— Como não te sentes com o marido que te ama?

Helena sentiu toda a dor que havia naquela pergunta e ficou espantada por não a achar importante.

— Agora sei — respondeu ela — que amo Menelau como amigo. Um bom amigo, o amigo mais querido e, sim, um bom pai para a minha filha. E sei que não é esse o amor que ele sente por mim e o meu coração chora por causa disso. Mas o meu amor por Páris é diferente. — Helena procurou o olhar de Etra e o seu rosto abriu-se num sorriso ansioso. — Pela primeira vez na minha vida, compreendo por que razão Penélope não se entregou a mais ninguém senão a Odisseu. Ela foi muito mais corajosa do que eu. Ela estava preparada para viver sozinha, se fosse preciso, mas não a renegar o seu coração. E tinha razão. Eu só agora começo a perceber quanto da minha vida hipotequei ao medo. E continuo a senti-lo, mas acredito que o amor de Páris é mais forte do que o medo. Ele tirou-me do meu esconderijo, trouxe-me para o ar livre onde posso sentir o vento no rosto, onde posso sentir o fogo que arde no interior da terra. Etra, não posso vol­tar atrás.

— Que vais fazer, então? — perguntou Etra. — Ele também quer que vás com ele?

Helena estudou o rosto majestoso da sua escrava — um rosto que, muitos anos antes, despertara para a vida numa simples noite debaixo de um caramanchão, em Trézen; um rosto onde estava escrito todo o sofrimento de uma mulher ao longo de anos. E quando Helena falou, foi como se respondesse a uma pergunta diferente.

Desta vez, se for — disse ela — vou de livre vontade. Etra olhou para a agulha que tinha entre os dedos.

— Estás decidida, então?

— Estou... Não... Não sei. — Helena balouçava como uma planta ao vento na sua incerteza. — Há tantas coisas contra. Hermíone tem um medo terrível de Páris. Conseguirei abandoná-la para me dedicar ao serviço de Afrodite, como a minha mãe fez para se dedi­car a Zeus? Mas, se a levar comigo, destroço o coração do pai dela.

— Já fizeste isso — disse Etra — apesar de ele ainda não o saber.

Eu sei. Menelau vai enlouquecer de dor quando souber. Helena afastou o pensamento. — E eu tenho deveres, aqui... Sou Rainha e sacerdotisa em Esparta... Etra, que faço, que faço?

Por que me perguntas — respondeu Etra calmamente — se já decidiste o que vais fazer? — A escrava ergueu de novo os olhos do bordado. — Não é assim?

É. Que os deuses me ajudem — disse Helena com a voz entrecortada — porque foram eles que me deram este fado. — E como não conseguiu suportar o ligeiro sorriso de cumplicidade, censura e com­preensão nos olhos da outra mulher, desviou o olhar.

Em seguida, fora o difícil encontro com Eneias, que regressara da caça a gabar-se do grande urso que ele e os seus camaradas tinham matado. O jovem príncipe estava a mostrar a Páris o tamanho da sua pele hirsuta, à qual ainda estavam ligados a cabeça com uns dentes enormes e as patas, quando o seu distraído amigo lhe pediu que se calasse e o escutasse.

Escondida para poder ouvir, Helena esperou, mal se atrevendo a respirar durante o longo silêncio que se seguiu à confissão do amor de Páris por ela. Em seguida, ficou espantada ao ouvir os insultos e as pragas que Eneias dirigiu ao amigo e a implacável justeza das perguntas que lhe fez, farpa após farpa, como flechas do seu arco.

Impassível, Páris aguentou tudo, respondendo a cada pergunta com uma candura amarga que não procurava desculpas ou atenuan­tes, apenas a simples aceitação do facto angustiante de que o seu amor por Helena era tal que não tinha outra hipótese senão trair o amigo e anfitrião de ambos e raptar-lhe a mulher.

Essa feiticeira espartana roubou-te o juízo? perguntou Eneias. Esqueceste-te da razão desta viagem? O nosso propósito era trabalhar pela paz, não começar uma guerra desnecessária. Compõe-te. Pensa no que o teu pai vai dizer a tudo isso.

— Eu tenho a permissão do meu pai — respondeu Páris, se bem que pouco seguro.

— Para fazer o quê? É verdade que ele falou na hipótese de rap­tar uma mulher de Argos para trocar por Hesíone se tudo o mais falhasse. Mas eu seja cego se ele estava a pensar em Helena!

Eneias tremia de raiva.

Nem tudo está perdido. A nossa missão ainda agora come­çou. Menelau quer ajudar-nos nas negociações com o irmão dele. Neste momento, deve estar a preparar o terreno em Creta. Eneias olhou para o amigo com os olhos muito abertos. Ou também que­res trair a tua cidade, tal como traíste o teu amigo? Queres pôr todos os nossos anfitriões de Argos a cercar as muralhas de Tróia só por-que decidiste brincar ao amor com uma mulher infiel?

Em seguida, os dois homens começaram a discutir com tal vio­lência que Helena ficou aterrorizada com a hipótese de alguém especialmente Eteoneu — os poder ouvir. A jovem Rainha perma­neceu no seu esconderijo a tremer enquanto os dois amigos quase chegavam a vias de facto.

— É melhor pararmos — disse Páris finalmente — antes que digamos coisas que não possam ser perdoadas ou esquecidas entre nós. Eneias, tu és meu amigo e eu gosto muito de ti, mas neste assunto, acredita-me, a minha escolha está feita. Já não me sinto livre para agir. A única pergunta que te vou fazer, é: estás comigo, ou contra mim? Quer queiras, quer não, tens de escolher.

Fora da câmara onde um silêncio tenso se estabeleceu, Helena ouviu, finalmente, o sussurro rouco da voz de Eneias.

— Menelau salvou-me a vida.

— Eu sei — respondeu Páris eu sei.

E queres que lhe pague nesta moeda?

— Eu só quero que faças o que te vai na consciência, apesar de ficares com a minha vida nas mãos.

— Vem comigo — disse-lhe Eneias. — Deixa essa mulher aqui. Afasta-te dela por uns tempos. Existe um desfiladeiro nas montanhas onde podes clarificar as ideias por baixo de uma queda-de-água. Caçaremos juntos e eu juro não dizer uma palavra que não tenha a ver com caça, abrigo, ou rochas. Pensa, e se depois de uma noite ou duas na montanha continuares a sentir o mesmo, prometo fazer os possí­veis para te ajudar.

Mas quando o príncipe viu o sorriso triste do amigo, percebeu que perdera a partida e ouviu-o dizer:

Escolhe.

A fuga do palácio foi rápida e precipitada, se bem que se tenha mostrado menos perigosa do que temiam. Um dos servos que acom­panhara os príncipes troianos a Esparta deixou a cidade ao fim da tarde, a cavalo, às claras, com instruções para que os imediatos tives­sem os navios prontos. Assim que o palácio adormeceu, os outros servos atrelaram os cavalos às carroças e carregaram-nas com a pouca bagagem que Páris permitiu que fosse levada. A maioria das suas coi­sas foi deixada para trás para dar espaço aos pertences de Helena, a Etra e a uma serva, Filo, que iam seguir a Rainha na fuga.

Tendo feito a sua escolha, Helena espantou Páris com o seu sen­tido prático. Apesar de ele lhe ter assegurado que Tróia lhe provi­denciaria toda a riqueza que ela poderia ambicionar, ela insistiu que a maior parte do ouro do tesouro de Esparta era seu por direito, um legado do seu pai, Tíndaro. A Rainha de Esparta não se ia aventurar pelo mundo sem levar consigo os meios que lhe permitissem todo o conforto e segurança. Enquanto a via encher pequenos estojos com moedas de ouro e pedras preciosas, Páris pensou que Menelau, no regresso de Creta, veria que não perdera apenas a mulher uma considerável parte do seu tesouro teria desaparecido com ela.

Também foi Helena que preparou o soporífero e o misturou no vinho que Filo levou aos dois guardas da porta do palácio. Mas quando Páris foi mais tarde inspeccionar as sentinelas, viu que um dos homens ainda se mexia. Com uma oração a Afrodite, o príncipe cortou-lhe a garganta e depois — com uma crueldade que o surpreendeu deci­diu matar também o outro. Quando regressou para onde Eneias estava, retirando armas do armeiro, disse ao amigo que os dois homens estavam a dormir.

Passara-se uma hora depois da meia-noite e tudo parecia correr bem, mas quando Páris foi buscar Helena, deu com ela lavada em lágrimas depois de olhar uma última vez para a filha a dormir. Temendo que todos os seus planos fossem por água abaixo, o jovem pô-la de pé, ao mesmo tempo que lhe sussurrava:

Trá-la contigo. Havemos de arranjar maneira de a calar se ela fizer barulho.

Com os olhos rasos de água, ela olhou para ele, tentando perce­ber se aquele homem que acabava de lhe transformar a vida num pesadelo era um demónio ou um deus.

— Tens sido corajosa, até agora — incentivou-a ele. Continua a sê-lo. A nossa vida espera por ti.Mas o preço é tão caro disse ela com a voz entrecortada.

- Sim — murmurou ele e o ar entre eles vibrou com aquela sim­ples e inelutável verdade.

Helena olhou mais uma vez para a porta do quarto da sua filha. Depois, agarrou-se aos braços dele com tanta força que ele quase gri­tou de dor.

— Eu sei que não posso levar Hermíone comigo. O destino dela não é este. Mas jura-me que nunca te esquecerás do sacrifício que estou a fazer.

No brilho dos olhos de Helena, Páris viu a urgência da sua exi­gência.

— Juro pela minha vida murmurou ele.

- Vamos, então disse ela — chegou a hora.

A Lua continuava cheia, mas a sua luz através da planície laco­niana era incerta por causa das nuvens negras vindas do mar. Só quando já tinham percorrido uma certa distância e já estavam fora dos ouvidos da cidadela é que subiram para as carroças e desataram à desfilada ao longo da margem do rio.

Com o vento a bater-lhe no rosto e a capa a esvoaçar, Helena seguia ao lado e Páris, agarrando-se à balaustrada da carroça enquanto a paisagem que conhecera desde o seu nascimento fugia rapidamente na direcção do passado. Esparta desaparecera, Hermíone desapare­cera, Menelau desaparecera, só a esperava um futuro incerto para lá das montanhas. As rodas saltavam nas irregularidades da estrada. O luar brilhava, como prata derretida, nos flancos dos cavalos. Ao mesmo tempo que aspirava o ar que lhe chegava à boca com a rapidez de uma torrente, Helena sentia uma alegria arrebatadora no cora­ção. Já estava demasiado longe para esperar qualquer perdão e todo O seu ser gritava, vivo.

Aconteceu outra morte nas montanhas. A sentinela que guardavaO desfiladeiro ia gritar que parassem quando uma flecha do arco de Páris lhe trespassou a garganta. O soldado caiu sobre o baluarte sem um som.

— A primeira morte resmungou Eneias amargamente, de modo a que Páris o ouvisse. — Quantas mais pagarão por isto?

Mas mais ninguém morreu naquela pequena e desleixada guarni­ção e minutos mais tarde, umas quatro horas depois de terem atra­vessado o rio Eurotas, as carroças atravessavam o desfiladeiro e diri­giam-se para o porto sem serem perseguidas.

Os navios já estavam a flutuar depois de as tripulações terem regressado, rabugentas, das tabernas e prostíbulos onde estavam aboletadas. Dois homens, que não foram encontrados apesar de todos os esfor­ços, foram deixados para trás para enfrentar o destino que os deuses lhes destinassem depois de os navios terem levantado âncora e apon­tarem as proas para leste. Assim que os homens se sentaram aos remos, a chuva começou a cair, fria e cortante, no convés onde Páris olhava para a linha de costa acinzentada a desaparecer.

Ficara decidido que, por razões de segurança, os dois navios navegariam juntos, mas quando o mau tempo se levantou e a visibilidade piorou, ficou provado que era mais fácil de dizer do que de fazer. à sua volta, o mundo inteiro ficara de pernas para o ar, o mastro prin­cipal inclinava-se perigosamente, os conveses eram varridos pelas vagas e as proas fendiam cristas brancas, cavalgando grandes buracos negros enquanto o céu era percorrido por nuvens negras, desenfreadas. O Afrodite lutava com o mar há menos de uma hora quando Helena se sentiu desesperadamente enjoada.

A Rainha permaneceu entre conveses, gemendo perante o cheiro que vinha do porão, o rosto branco como a cal, tentando vomitar O que o seu estômago não tinha. Devido à ansiedade, Helena não comera nada durante horas e agora apenas lhe saía da boca uma bílis esverdeada. Enquanto Etra lhe limpava os lábios sujos e Filo pedia a clemência dos deuses do mar, Helena agarrava-se a Páris como um cão moribundo.

As horas passaram sem que a tempestade amainasse e o estado de Helena não melhorava. Temendo tê-La tirado de terra para a ver mor­rer no mar, Páris hesitava entre o risco de ser surpreendido por perse­guidores e a necessidade de encontrar abrigo contra a tempestade. Quando viu que ela já não tinha forças, sequer, para falar, ordenou a Skopas, o seu imediato, para aportar ao primeiro local que avistasse.

Lançaram âncora numa pequena ilha que se erguia, íngreme, das águas, numa enseada suficientemente profunda para que o navio não encalhasse. Em volta, um amontoado caótico de rochas provocado por um qualquer encolher de ombros de Poseídon. Mas a encosta nua, da qual todas aquelas rochas tinham caído, estava de costas para a tempestade. Podiam encontrar ali refúgio.

Páris deu ordem para que fosse montado um toldo em frente da entrada de uma gruta e acendeu-se uma fogueira com madeira dada à costa. Com as suas próprias mãos, o jovem fez uma cama com capas e velas do navio numa plataforma rochosa por cima de uma pequena lagoa. Em seguida, transportou ao colo a sua dama para terra, para a quietude de um lugar que nunca, prometeu-lhe ele, conhecera o mínimo movimento durante milhares de anos. Cheio de amor e ansiedade, o príncipe velou-lhe o sono.

Quando acordou já ela se banhava numa pequena queda-de-água fresca no interior da gruta. A princípio, ele pensou que era madru­gada, mas havia um brilho amarelado e húmido na luz que atravessava o toldo e o céu, a oeste, onde o Sol se punha, estava da cor do âmbar.

Páris apercebeu-se de que aquele ainda era o seu primeiro dia de fuga. Deviam ter dormido durante todo o dia devido à exaustão, depois de terem viajado durante toda a noite no mar turbulento. Apesar de a ondulação ainda ser elevada, a tempestade passara e a mulher que caminhava na sua direcção, enxugando os membros esbeltos a uma capa, brilhava como uma ninfa recentemente saída do mar. O jovem estava esfomeado e aquela visão abriu-lhe ainda mais o apetite. Mas a sua dama sorria debilmente. A sua boa disposição regressara. E havia outros apetites mais urgentes para saciar.

Kranae — o local rochoso — foi o nome que eles deram à ilha sem nome onde, pela primeira vez em liberdade, se entregaram à pai­xão abençoada por Afrodite.

Durante dias, até o mar se acalmar de novo, viveram como sobreviventes de um grande naufrágio, banindo os outros da sua vista, comendo o peixe e os moluscos que apanhavam e mergulhando em busca de ouriços-do-mar aos quais arrancavam a casa antes de os engolir. As gaivotas gritavam por cima das suas cabeças. As rochas, que lhes tinham parecido sombrias através da cortina da chuva, esta­vam agora avermelhadas devido à luz do Sol. Os dois amantes encon­traram figos e melancias nos terraços virados a sul da encosta, arque­jaram na água gelada das suas nascentes, espremeram o sumo dos limões nos cabelos de Helena, riram e fizeram amor muitas vezes, tanto de noite como de dia e nas tardes sonolentas dormiram sestas em que partilharam sonhos ardentes.

Quando Skopas se queixou, uma manhã, de que a sua tripulação estava a ficar inquieta, Páris autorizou-o a visitar o continente que se avistava envolto em névoa, no outro lado do estreito. Deixando ficar a comida e bebida necessárias, o jovem deu ordem para que o navio regressasse no espaço de uma semana e depois os dois amantes fica­ram a ver a embarcação a desaparecer na neblina.

E se eles não voltarem? perguntou Helena.

Nesse caso, ficamos aqui para sempre — disse Páris, rindo-se.

O nosso reino será este. A Ilha de hranae, sem súbditos, sem escravos, sem história e sem outra ambição que não a de permanecer o que é e com uma só lei, a lei do amor.

Mas nós temos inimigos disse ela.

— Esquece-os. Pensarão que já estamos muito longe. Vem, fare­mos desta ilha o santuário da deusa. Não precisamos de mais nenhuma protecção.

Assim, sob o calor do sol, no topo despido da encosta, entrega­ram-se mais uma vez a Afrodite. E tal como o excesso de vinho pro­voca o esquecimento, os dois amantes, através de um excesso de sen­sualidade, tentaram apagar dos seus corpos todas as recordações de um mundo que os obrigaria a pagar, um dia, o preço do seu sonho de liberdade.

 

                 O Pretexto Ideal Para a Guerra

No exterior da Casa do Machado, no calor sufocante do redon­del, a mais de trezentos quilómetros de distância de Esparta através do Mar de Creta, Menelau outorgava prémios por ocasião dos jogos funerários em honra do seu avô quando recebeu a notícia.

O corredor que acabava de chegar do porto, a suar, vinha pertur­bado com mais qualquer coisa para além do calor. O homem espe­rou ansiosamente enquanto o camareiro falava ao ouvido do Rei de Creta. Franzindo o sobrolho perante a interrupção, Deucalião ace­nou com a cabeça e virou-se para Menelau que felicitava calorosamente o ágil toureiro, ao mesmo tempo que lhe depositava nas mãos um anel de opala.

— Acaba de chegar um barco de Esparta — disse ele — e trouxe um mensageiro que quer falar contigo em privado.

Há mais de trinta anos que Deucalião era Rei de Cnossos. Fora ele que reconstruíra o antigo palácio de Minos depois de o labirinto ter ficado em ruínas devido a um tremor de terra e à guerra com Teseu. Mas o poder de Creta era uma sombra do que fora nos mil anos ante­riores a esses tempos perversos E Deucalião não gostava nada que a morte de um dos seus súbditos tivesse levado os filhos de Atreu à ilha. Em tempos, ambicionara casar o seu filho Idomeneu com Helena de Esparta e, assim forjar uma aliança que fortaleceria Creta contra o poder crescente de Micenas. Mas o seu plano falhara e fora obrigado admitir Menelau a seu lado, enquanto aquele Agamémnon grosseiro e fanfarrão montava as mulheres todas do palácio, sonhando com o dia em que toda a Creta estaria sob o seu domínio.

Deucalião apercebeu-se do brilho de ansiedade no rosto do seu hóspede quando Menelau pediu desculpa e se levantou. Observando pelo canto do olho, viu-o inclinar a cabeça com impaciência para escutar a mensagem e ficou espantado ao ver a mudança de cor no rosto do Rei de Esparta.

O denso franzir de sobrancelhas transformou-se num branco-pálido e depois num vermelho feroz à medida que o sangue lhe che­gava às faces. Menelau arquejou involuntariamente, ergueu um punho cerrado e, por um momento, Deucalião pensou que ele ia agredir o mensageiro. Mas a mão do Rei de Esparta deteve-se no ombro do homem, os dedos abriram-se e Menelau apoiou-se no espartano. Demorando alguns momentos para se recompor, o filho de Atreu abanou a cabeça, afastou os selvagens caracóis da testa e olhou, preo­cupado, para as pessoas em redor. Em seguida, deu uma única e incrí­vel gargalhada e disse qualquer coisa ao mensageiro, o qual recuou dois passos e abriu os braços num gesto de impotência. Menelau afas­tou o homem para mais longe. Seguiu-se uma sequência de perguntas e respostas antes de o corredor levar um punho cerrado à fronte, fazer uma vénia e desaparecer a correr.

Cego de fúria, só com dificuldade Menelau pareceu recordar-se do sítio onde estava. Lentamente, o Rei de Esparta regressou para junto de Deucalião. À sua volta, a multidão aplaudia a chegada de uma nova equipa ao redondel e por isso Menelau teve de esperar que o barulho esmorecesse para que a sua voz pudesse ser ouvida.

— Perdoa-me disse ele — mas tenho de partir.

Deucalião franziu o sobrolho, solícito.

— Não são más notícias, espero?

— Um assunto que requer a minha atenção urgente. Sentindo a aspereza da sua voz, Menelau virou-se abruptamente. — Perdoa-me — disse ele de novo, e abandonou o estádio pelo meio da mul­tidão excitada, exigindo que os seus confusos servos o deixassem em paz. Sob os seus pés, o solo oscilava. Parecia que estava em alto-mar. Sozinho na rua poeirenta, Menelau, Rei de Esparta, parou e encos­tou uma mão à parede de uma taberna em que alguém garatujara: Cio é uma puta. O Rei teve de lutar contra a vontade de vomitar.

Duas horas mais tarde, os filhos de Atreu estavam sentados numa sala privada da mansão que fora posta à sua disposição durante a sua estadia em Cnossos. As paredes azuis-escuras estavam pintadas com um cortejo de sacerdotisas de seios nus, vestidas com saias aos folhos e cujos braços, erguidos, estavam cobertos de serpentes. Durante o tremor de terra que destruíra uma grande parte da cidade, uma fenda cortara o seu progresso como se fora um raio, atingindo o campo de íris por onde caminhavam. Um construtor qualquer tentara recons­truir a parede, mas a cor da pintura posterior não era igual. A câmara ainda cheirava demasiado ao incenso que ali ardera aquando da sua chegada a Cnossos. No exterior, o céu estava escuro por causa de uma tempestade que não havia meio de desabar e a luz provocava um brilho pálido nas flores amarelas suspensas do peitoril da janela.

Agamémnon, um homem grande cujo peito cabeludo estava exposto por baixo da túnica solta que tinha vestido para tapar a sua nudez, esperou que o escravo pousasse o vinho e saísse do quarto e só então é que falou. Quando o fez, foi numa voz grossa e baixa.

— Tens a certeza que a mensagem estava certa?

O homem ouviu-a da boca de Eteoneu. As palavras eram exac­tas. Não há dúvida possível.

Agamémnon acenou com a cabeça. Preferindo não olhar para a evidência nua e crua dos olhos do irmão, percorreu com o olhar a desagradável divisão com uma indolência casual que desmentia a velocidade dos seus pensamentos.

— Talvez Eteoneu tenha percebido mal disse ele. O troiano pode tê-la levado contra vontade. Pode tê-la levado como refém con­tra Hesíone. Aliás, estou surpreendido por Príamo não o ter tentado antes. Eu tê-lo-ia feito, se fosse ele.

Achas que não pensei nisso? disse Menelau, irritado. Foi o meu primeiro pensamento assim que comecei a acreditar que isto tinha acontecido. Mas não havia sinais de luta no quarto dela, estava tudo em ordem. As roupas favoritas dela e as jóias desaparece­ram, assim como Etra e uma serva de quem ela gostava particularmente. E se tivessem sido salteadores em busca do que conseguissem apanhar, podiam ter levado o meu maldito tesouro todo! Por isso, Eteoneu pensa que ela levou apenas o que considerava sua proprie­dade.

E quanto seria isso?

Menelau olhou para o irmão, incrédulo.

— Achas que quero saber do dinheiro quando a luz da minha vida me foi roubada? — O Rei de Esparta levantou-se e foi até à janela, onde ficou a olhar para o pátio da casa vizinha. Uma série de cestos cheios de codornizes tinha caído de uma carroça e um bando de mulhe­res, rindo perdidamente, perseguia as aves pelo pátio.

Nesse caso, suponhamos — disse Agamémnon — que a tua mulher teve a coragem suficiente para fugir com esse teu amigo troiano. Que te propões fazer?

Menelau passou uma mão pelos cabelos. Quando esta chegou à base do pescoço, arrepanhou-os com força.

— Já mandei ordens para Esparta. O número de navios à pro­cura deles no mar Egeu vai duplicar. O Rei tinha o pescoço e as mãos a suar e os olhos fechados. - Mas eles levam uma noite inteira de avanço e isto aconteceu há três dias. Podem já estar em Tróia quando o mensageiro lá chegar. Não serve de nada!

Agamémnon resfolegou impacientemente.

— Tu és filho de Atreu ou um cisne apaixonado? Compõe-te, homem, ou serás motivo de troça de toda a Creta! O Rei de Mice­nas respirou fundo. Eu não te disse que não traria nada de bom a tua confraternização com aqueles troianos vigaristas? São de tanta con­fiança como um tanque cheio de crocodilos!

Menelau ficou tão consumido quanto mortificado com a justeza do reparo. Quando não conseguiu responder. Agamémnon fez-lhe outra pergunta:

Em todo o caso, queres aquela puta espartana de volta depois de te ter posto um par de cornos maior do que qualquer um que tenhas visto na arena, hoje?

Aquilo era demasiado. Menelau virou-se para o irmão, furioso, com o rosto vermelho que nem um tomate.

Mais um insulto como esse — gritou ele e eu corto-te a lín­gua e enfio-ta pela goela abaixo!

— Assim está melhor! — disse Agamémnon, sorrindo. — Já que te deram uns cornos, aprende a usá-los. Do que precisamos é de raiva. Raiva boa, limpa, honesta, perigosa! Raiva suficiente para caçar aquele belo bastardo até Tróia, se for preciso. Raiva suficiente para lhe dar um nó nas tripas e atirar os tomates dele aos cães! E se tu não o fize­res, faço-o eu! Ninguém caga na Casade Atreu e vive o suficiente para se gabar disso.

Eu sou capaz de me vingar sozinho disse Menelau.

Portanto, ainda há esperança disse Agamémnon, acenando com a cabeça e sorrindo. — Podemos contar com Télamon. E o nosso astuto amigo Odisseu não fez com que metade dos príncipes de Argos jurassem perante Poseídon que lutariam para defender o teu direito a Helena?

Agamémnon ergueu as sobrancelhas para Menelau, que conti­nuava no meio da sala ainda a tremer, abrindo e fechando os punhos. Em seguida, bebeu um gole de vinho, deixou-se cair para trás no divã e sorriu.

— Os Troianos pensam que arranjaram um troféu, irmãozinho. Em vez disso, arranjaram uma guerra!

 

 

                                                         CONTINUA

 

 

                 Reunião

A notícia da fuga de Helena percorreu Argos mais depressa do que a peste.

Sentados à lareira, nas suas fortalezas, os homens recordaram o juramento terrível que tinham feito em cima do corpo ensanguen­tado do cavalo de Poseídon e pensaram no que fariam quando che­gassem os arautos de Agamémnon — como viriam, certamente para lhes exigir que honrassem a palavra dada. Para os vassalos ime­diatos de Menelau, a questão nem sequer se punha. Para eles, a perda de Helena era pior do que um ferimento supurado. Ela era a sua Rai­nha sagrada, a sacerdotisa dos seus rituais, a alma de Esparta. Ela era o seu símbolo de beleza num mundo muitas vezes feio, e tinham difi­culdade em acreditar que uma tal graça os abandonara. Devia ter sido um acto de feitiçaria, ou alguma malícia por parte dos deuses. Helena fora raptada, ou levada por artes mágicas. Menelau provara ser um Rei generoso e amável e agora, na adversidade, exigia a sua lealdade. Se fosse preciso uma guerra para forçar o regresso da sua Rainha, ela que estalasse. Haveria causa mais nobre para um homem do que arriscar a vida para socorrer a dama Helena?

 

 

 

 

Outros, para lá dos montes lacadonianos, esperavam a chamada com menos entusiasmo. Tróia ficava muito longe, do outro lado de um mar imprevisível, algures a leste de qualquer senso comum. Já tinham sarilhos suficientes, não precisavam para nada de se preo­cupar com a mulher infiel de um irmão mais novo de um Rei. E sim, tinham jurado no altar de Poseídon, mas fora para proteger Menelau da inveja, não para ir atrás de uma galdéria que já não queria partilhar a cama com o marido!

Se um homem não era capaz de olhar pela mulher, que tinham eles a ver com isso? Fora uma loucura ter convidado os troianos para sua casa, uma loucura deixar uma beleza como Helena sozinha com eles. Nem os deuses podiam fazer nada contra tanta estupidez.

Tais sentimentos não eram murmurados na presença do Grande Rei, mas os espiões deste apanharam-nos no vento e em breve Aga­mémnon suspeitava que, apenas com os interesses do seu irmão direc­tamente postos em causa, seria muito difícil reunir uma força suficientemente grande para atacar Tróia.

Algumas das dificuldades apresentaram-se mesmo antes de os dois filhos de Atreu terem deixado Creta. Uma vez a par da situação, Deu­calião bajulara Menelau de tal maneira que o seu comportamento aproximou-se perigosamente de uma espécie de satisfação maldosa — mas quando Agamémnon o sondou a propósito do seu apoio em caso de guerra com Tróia, o Senhor do Labirinto mostrou-se ime­diatamente menos prestável. Sim, sentia no próprio coração o insulto de Tróia, mas os tempos iam difíceis. Teria de pensar cuidadosamente antes de empenhar os já escassos recursos da Casa do Machado numa campanha distante, na qual poderia haver muito a perder. Como Teseu reduzira o seu país a um mero estado vassalo de Atenas, havia pouco apetite para a guerra por parte dos barões de Creta. Estes já lhe conheciam os custos. Mas seria convocado um conselho e apesar de Deucalião prometer fazer os possíveis para influenciar as suas deli­berações, os dois irmãos, filhos de Atreu, teriam de compreender que o poder de um trono de Minos já não era o que fora. Para já, infelizmente, não podia prometer nada.

Agamémnon saiu da reunião a fumegar.

— Aquele velho bastardo é o Rei rato de um país podre...

 

 

 

                      

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