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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A HARPA DO CRENTE / Alexandre Herculano
A HARPA DO CRENTE / Alexandre Herculano

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A HARPA DO CRENTE

 

A SEMANA SANTA

 

Der  Gedanke  Gott  weckt  einen

fürchterlichen Nachhar auf. Sein Name

heisst Richter.

SCHILLER

 

Tíbio o sol entre as nuvens do ocidente,

Já lá se inclina ao mar. Grave e solene

Vai a hora da tarde! O oeste passa

Mudo nos troncos da alameda antiga,

Que à voz da Primavera os gomos brota:

O oeste passa mudo, e cruza o átrio

Pontiagudo do templo, edificado

Por mãos duras de avós, em monumento

De uma herança de fé que nos legaram,

A nós seus netos, homens de alto esforço,

Que nos rimos da herança, e que insultamos

A Cruz e o templo e a crença de outras eras;

Nós, homens fortes, servos de tiranos,

Que sabemos tão bem rojar seus ferros

Sem nos queixar, menosprezando a Pátria

E a liberdade, e o combater por ela.

Eu não! – eu rujo escravo; eu creio e espero

No Deus das almas generosas, puras,

E os déspotas maldigo. Entendimento

Bronco, lançado em século fundido

Na servidão de gozo ataviada,

Creio que Deus é Deus e os homens livres!

 

Oh, sim! – rude amador de antigos sonhos,

Irei pedir aos túmulos dos velhos

Religioso entusiasmo; e canto novo

Hei-de tecer, que os homens do futuro

Entenderão; um canto escarnecido

Pelos filhos dest' época mesquinha.

Em que vim peregrino a ver o mundo,

E chegar a meu termo, e reclinar-me

À branda sombra de cipreste amigo.

 

Passa o vento os do pórtico da igreja

Esculpidos umbrais: correndo as naves

Sussurrou, sussurrou entre as colunas

De gótico lavor: no órgão do coro

Veio, enfim, murmurar e esvaecer-se.

 

Mas porque sou o vento? Está deserto,

Silencioso ainda o sacro templo:

Nenhuma voz humana ainda recorda

Os hinos do Senhor. A natureza

Foi a primeira em celebrar seu nome

Neste dia de luto e de saudade!

Trevas da quarta-feira, eu vos saúdo!

Negras paredes, mudos monumentos

De todas essas orações de mágoa,

De gratidão, de susto ou de esperança.

 

Depositadas ante vós nos dias

De fervorosa crença, a vós que enluta

A solidão e o dó, venho eu saudar-vos.

A loucura da Cruz não morreu toda (1)

Após dezoito séculos! Quem chore

Do sofrimento o Herói existe ainda.

Eu chorarei – que as lágrimas são dó homem –

Pelo Amigo do povo, assassinado

Por tiranos, e hipócritas, e turbas

Envilecidas, bárbaras, e servas.

 

Tu, Anjo do Senhor, que acendes o estro;

Que no espaço entre o abismo e os céus vagueias,

Donde mergulhas no oceano a vista;

Tu que do trovador à mente arrojas

Quanto há nos céus esperançoso e belo,

Quanto há no abismo tenebroso e triste,

Quanto há nos mares majestoso e vago,

Hoje te invoco! – oh, vem! –, lança em minha alma

A harmonia celeste e o fogo e o génio,

Que dêem vida e vigor a um carme pio.

 

A noite escura desce: o Sol de todo

Nos mares se atufou. A luz dos mortos,

Dos brandões o clarão, fulgura ao longe

No cruzeiro somente e em volta da ara:

E pelas naves começou ruído

De compassado andar. Fiéis acodem

À morada de Deus, a ouvir queixumes

Do vate de Sião. Em breve os monges,

Suspirosas canções aos Céus erguendo,

Sua voz unirão à voz desse órgão,

E os sons e os ecos reboarão no templo.

Mudo o coro depois, neste recinto

Dentro em bem pouco reinará silêncio,

O silêncio dos túmulos, e as trevas

Cobrirão por esta área a luz escassa

Despedida das lâmpadas. que pendem

Ante os altares, bruxuleando frouxas.

 

Imagem da existência! Enquanto passam

Os dias infantis, as paixões tuas,

Homem, qual então és, são débeis todas.

Cresceste: ei-las torrente, em cujo dorso

Sobrenadam a dor e o pranto e o longo

Gemido do remorso, a qual lançar-se

Vai com rouco estridor no antro da morte,

Lá, onde é tudo horror, silêncio, noite.

Da vida tua instantes florescentes

Foram dois, e não mais: as cãs e rugas,

Logo, rebate de teu fim te deram.

Tu foste apenas som, que, o ar ferindo,

Murmurou, esqueceu, passou no espaço.

 

E a casa do Senhor ergueu-se. O ferro

Cortou a penedia; e o canto enorme

Polido alveja ali no espesso pano

Do muro colossal, que era após era,

Como onda e onda ao desdobrar na areia,

Viu vir chegando e adormecer-lhe ao lado.

O ulmo e o choupo no cair rangeram

Sob o machado: a trave afeiçoou-se;

Lá no cimo pousou: restruge ao longe

De martelos fragor, e eis ergue o templo,

Por entre as nuvens, bronzeadas grimpas.

 

Homem, do que és capaz! Tu, cujo alento

Se esvai, como da cerva a leve pista

No pó se apaga ao respirar da tarde,

Do seio dessa terra em que és estranho,

Sair fazes as moles seculares,

Que por ti, mono, falem; dás na ideia

Eterna duração às obras tuas.

Tua alma é imortal, e a prova a deste!

 

Anoiteceu. Nos claustros ressoando

As pisadas dos monges ouço: eis entram;

Eis se curvaram paru o chão, beijando

O pavimento, a pedra. Oh, sim, beijai-a!

Igual vos cobrirá a cinza um dia,

Talvez em breve – e a mim. Consolo ao morto

É a pedra do túmulo. Sê-lo-ia

Mais, se do justo só a herança fora;

Mas também ao malvado é dada a campa.

 

E o criminoso dormirá quieto

Entre os bons soterrado? Oh, não! Enquanto

No templo ondeiam silenciosas turbas,

Exultarão do abismo os moradores,

Vendo o hipócrita vil, mais ímpio que eles,

Que escarnece do Eterno, e a si se engana;

Vendo o que julga que orações apagam

Vícios é crimes. e o motejo e o riso

Dado em resposta às lágrimas do pobre;

Vendo os que nunca ao infeliz disseram

De consolo palavra ou de esperança.

Sim: malvados também hão-de pisar-lhes

Os frios restos que separa a terra,

Um punhado de terra, a qual os ossos

Destes há-de cobrir em tempo breve,

Como cobriu os seus; qual vai sumindo

No segredo da campa a humana raça.

 

Eis que a turba rareia. Ermam bem poucos

Do templo na amplidão: só lá no escuro

De afumada capela o justo as preces

Ergue pio ao Senhor, as preces puras

De um coração que espera, e não mentidas

De lábios de impostor, que engana os homens

Com seu meneio hipócrita, calando

Na alma lodosa da blasfémia o grito.

Então exultarão os bons, e o ímpio,

Que passou, tremerá. Enfim, de vivos,

Da voz, do respirar o som confuso

Vem confundir-se no ferver das praças,

E pela galilé só ruge o vento.

Em trevas não, ficou silenciosas

O sagrado recinto: os candeeiros,

No gelado ambiente ardendo a custo,

Espalham débeis raios, que reflectem

Das pedras pela alvura; o negro mocho,

Companheiro do morto, hórrido pio

Solta lã da cornija: pelas fendas

Dos sepulcros desliza fumo espesso;

Ondeia pela nave, e esvai-se. Longo

Suspirar não se ouviu? Olhai!, lá se erguem,

Sacudindo o sudário, em peso os morros!

Mortos, quem vos chamou? O som da tuba

Ainda do Josafat não fere os vales.

Dormi, dormi: deixai passar as eras...

 

Mas foi uma visão: foi como cena

D' imaginar febril. Criou-se, acaso

Do poeta na mente, ou desvendou-lhe

A mão de Deus o íntimo ver da alma,

Que devassa a existência misteriosa

Do mundo dos espíritos? Quem sabe?

Dos vivos já deserta, a igreja torva

Repovoou-se, para mim ao menos,

Dos extintos, que ao pé das santas aras

Leito comum na sonolência extrema

Buscaram. O terror, que arreda o homem

Do limiar do tempo às horas mortas,

Não vem de crença vã. Se fulgem astros,

Se a luz da Lua estira a sombra eterna

Da cruz gigante (que campeia erguida

No vértice do tímpano, ou no cimo

Do coruchéu do campanário) ao longo

Dos inclinados tectos, afastai-vos!

Afastai-vos daqui, onde se passam

A meia-noite insólitos mistérios;

Daqui, onde desperta a voz do arcanjo

Os dormentes da morte; onde reúne

O que foi forte e o que foi fraco, o pobre

E o opulento, o orgulhoso e o humilde,

O bom e o mau, o ignorante e o sábio,

Quantos, enfim, depositar vieram

!unto do altar o que era seu no mundo,

Um corpo nu, e corrompido e inerte.

 

E seguia a visão. Cria ainda achar-me,

Alta noite, na igreja solitária

Entre os mortos, que, erectos sobre as campas,

Eram á pouco um fumo que ondeava

Pelas fisgas do vasto pavimento.

Olhei. Do erguido tecto o pano espesso

Rareava; rareava-me ante os olhos,

Como ténue cendal; mais ténue ainda,

Como o vapor de Outono em quarto d'alva,

Que se libra no espaço antes que desça

A consolar as plantas conglobado

Em matutino orvalho. O firmamento

Era profundo e amplo. Envolto em glória,

Sobre vagas de nuvens, rodeado

Das legiões do Céu, o Ancião dos dias,

O Santo, o Deus descia. Ao sumo aceno

Parava o tempo, a imensidade, a vida

Dos mundos a escutar. Era esta a hora

Do julgamento desses que se alçavam,

À voz de cima, sobre as sepulturas?

 

Era ainda a visão. Do templo em meio

Do anjo da morte a espada flamejante

Crepitando bateu. Bem como insectos,

Que à flor de pego pantanoso e triste

Se balouçavam – quando a tempestade

Veio as asas molhar nas águas turvas,

Que marulhando sussurraram – surgem

Volteando, zumbindo em dança doida,

E, lassos, vão pousar em longas filas

Nas margens do paul, de um lado e de outro;

Tal o murmúrio e a agitação incerta

Ciciava das sombras remoinhando

Ante o sopro de Deus. As melodias

Dos coros celestiais, longínquas, frouxas,

Com frémito infernal se misturavam

Em caos de dor e júbilo.

                       Dos mortos

Parava, enfim, o vórtice enredado;

E os grupos vagos em distintas turmas

Se enfileiravam de uma parle e de outra.

Depois, o gládio do anjo entre os dois bandos

Ficou, única luz, que se estirava

Desde o cruzeiro ao pórtico, e feria

De reflexo vermelho os largos panos

Das paredes de mármore, bem como

Mar de sangue, onde inertes flutuassem

De humanos vultos indecisas formas.

 

E seguia a visão. Do templo à esquerda,

Mestas as faces, inclinada afronte,

Da noite as larvas tinham sobre o solo

Fito o espantado olhar, e as dilatadas

Baças pupilas lhes tingia o susto.

Mas, como zona lúcida de estrelas,

Nessa atmosfera crassa e afogueada

Pela espada rubente, refulgiam

Da direita os espíritos, banhado

De inenarrável placidez seu gesto.

Era inteiro o silêncio, e no silêncio

Uma voz ressoou: «Eleitos, vinde!

Ide, precitos!» Vacilava a Terra,

E ajoelhando eu me curvei tremendo.

 

Quando me ergui e olhei, no céu profundo

Um rastilho de luz pura e serena

Se ia embebendo nesses mares de orbes

Infinitos, perdidos no infinito,

A que chamamos o universo. Um hino

De saudade e de amor, quase inaudível,

Parecia romper desde as alturas

De tempo a tempo. Vinha como envolto

Nas lufadas do vento, até perder-se

Em sossego mortal.

                    O curvo tecto

Do templo, então, se condensou de novo,

E para a Terra o meu olhar volveu-se.

Da direita os espíritos radiosos

Já não estavam lá. Chispando a espaços,

Qual o ferro na incude, a espada do anjo

O mortiço rubor mandava. apenas,

D'aurora boreal quando se extingue.

 

Prosseguia a visão. Da esquerda às sombras

Ansiava o seio a dor: tinham no gesto

Impressa a maldição, que lhes secara

Eternamente a seiva da esperança.

 

Como se vê, em noite estiva e negra,

Cintilar sobre as águas a ardentia,

Dumas frontes às outras vagueavam

Cerúleos lumes no esquadrão dos mortos,

E ao estalar das lousas, grito imenso

Subterrâneo, abafado e delirante,

Inefável compêndio de agonias,

Misturado se ouviu com rir do Inferno,

E a visão se desfez. Era ermo o templo:

E despertei do pesadelo em trevas.

 

Era loucura ou sonho? Entre as tristezas

E os terrores e angústias, que resume

Neste dia e lugar a avita crença,

Irresistível força arrebatou-me

Da sepultura a devassar segredos,

Para dizer: »Tremei! Do altar à sombra

Também há mau dormir de sono extremo!»

 

A justiça de Deus visita os mortos,

Embora a cruz da redenção proteja

A pedra tumular; embora a hóstia

Do sacrifício o sacerdote eleve

Sobre as vizinhas aras. Quando a igreja

Rodeiam trevas, solidão e medos,

Que a resguardam coas asas acurvadas

Da vista do que vive, a mão do Eterno

Separa o joio ao bom grão e arroja

Para os abismos a ruim semente.

 

Não! – não foi sonho vão, vago delírio

De imaginar ardente. Eu fui levado,

Galgando além do tempo, às tardas horas,

Em que se passam cenas de mistério,

Para dizer: «Tremei! Do altar à sombra

Também há mau dormir de sono extremo!»

 

Vejo ainda o que vi: da sepultura

Ainda o hálito frio me enregela

O suor do pavor na fronte; o sangue

Hesita imoto nas inertes veias;

E embora os lábios murmurar não ousem,

Ainda, incessante, me repete na alma

Íntima voz: «Tremei! Do altar à sombra

Também há mau dormir de sono extremo!»

 

Mas troa a voz do monge, e, enfim, desperto

O coração bateu. Eia, retumbem

Pelos ecos do templo os sons dos salmos.

Que em dia de aflição ignoto vate

Teceu (2), banhado em dor. Talvez foi ele

O primeiro cantor que em várias cordas,

À sombra das palmeiras da Idumeia,

Soube entoar melodioso um hino.

Deus inspirava então os trovadores

Do seu povo querido, e a Palestina,

Rica dos meigos dons da natureza.

Tinha o ceptro, também, do entusiasmo.

Virgem o génio ainda, o estro puro

Louvava Deus somente, à luz da aurora,

E ao esconder-se o Sol entre as montanhas

De Bethoron (3). Agora o génio é morto

Para o Senhor, e os cantos dissolutos

De lodoso folguedo os ares rompem,

Ou sussurram por paços de tiranos,

Asselados de pútrida lisonja,

Por preço vil, como o cantor que os tece.

 

O SALMO (4)

Quando é grande o meu Deus!... Té onde chega

      O seu poder imenso!

Ele abaixou os céus. desceu, calcando

      Um nevoeiro denso.

Dos querubins nas asas radiosas

      Librando-se, voou;

E sobre turbilhões de rijo vento

      O mundo rodeou.

Ante o olhar do Senhor vacila a Terra,

      E os mares assustados

Bramem ao longe, e os montes lançam fumo,

     Da sua mão tocados.

Se pensou no universo, ei-lo patente

     Ante a face do eterno:

Se o quis, o firmamento os seios abre,

     Abre os seios o Inferno.

Dos olhos do Senhor, homem, se podes.

     Esconde-te um momento:

Vê onde encontrarás lugar que fique

     Da sua vista isento:

Sobe aos Céus, transpõe mares, busca o abismo,

     Lá teu Deus hás-de achar;

Ele te guiará, e a dextra sua

    Lá te há-de sustentar:

Desce à sombra da noite, e no seu manto

     Envolver-te procura...

Mas as trevas para ele não são trevas,

     Nem é a noite escura.

No dia do furor, em vão buscaras

    Fugir ante o Deus forte,

Quando do arco tremendo, irado, impele

    Seta em que pousa a morte.

Mas o que o teme dormirá tranquilo

    No dia extremo seu,

Quando na campa se rasgar da vida

     Das ilusões o véu.

 

Calou-se o monge: sepulcral silêncio

À sua voz seguiu-se. Uma toada

De órgão rompeu do coro (5). Assemelhava

O suspiro saudoso, e os ais de filha,

Que chora solitária o pai, que dorme

Seu último, profundo e eterno sono.

Melodias depois soltou mais doces.

O severo instrumento: e ergueu-se o canto,

O doloroso canto do profeta,

Da pátria sobre o fado. Ele, que o vira,

Sentado entre ruínas, contemplando

Seu avito esplendor, seu mal presente,

A queda lhe chorou. Lá na alta noite,

Modulando o Nébel (6), via-se o vate

Nos derribados pórticos, abrigo

Do imundo stélio (7) e gemedora poupa.

Extasiado – e a lua cintilando

Na sua calva fronte, onde pesavam

Anos e anos de dor. Ao venerando

Nas encovadas faces fundos regos

Tinham aberto as lágrimas. Ao longe,

Nas margens do Cédron, a rã grasnando (8)

Quebrava a paz dos túmulos. Que túmulo

Era Sião! – o vasto cemitério

Dos fortes de Israel. Mais venturosos

Que seus irmãos, morreram pela pátria;

A pátria os sepultou dentro em seu seio.

Eles, em Babilónia, aos punhos ferros,

Passam de escravos miseranda vida,

Que Deus pesou seus crimes, e. ao pesá-los,

A dextra lhe vergou. Não mais no templo

A nuvem repousara, e os céus de bronze

Dos profetas aos rogos se amostravam.

O vate de Anatoth (9) a voz soltara

Entre o povo infiel, de Eloha em nome (10):

Ameaças, promessas, tudo inútil;

De bronze os corações não se dobraram.

Vibrou-se a maldição. Bem como um sonho,

Jerusalém passou: sua grandeza

Somente existe em derrocadas pedras.

O vate de Anatoth, sobre seus restos,

Com triste canto deplorou a pátria.

Hino de morte alçou: da noite as larvas

O som lhe ouviram: 'squálido esqueleto,

Rangendo os ossos, dentre a hera e musgos

Do pórtico do templo erguia um pouco,

Alvejando, a caveira. Era-lhe alívio

Do sagrado cantor a voz suave

Desferida ao luar, triste, no meio

Da vasta solidão que o circundava.

O profeta gemeu: não era o estro,

Ou o vívido júbilo que outrora

Inspirara Moisés (11): o sentimento

Foi sim pungente de silêncio e morte,

Que da pátria lhe fez sobre o cadáver

A elegia da noite erguer e o pranto

Derramar da esperança e da saudade.

 

A LAMENTAÇÃO (12)

Como assim jaz e solitária e queda

Esta cidade outrora populosa!

Qual viúva, ficou e tributária

      A senhora das gentes.

Chorou durante a noite; em pranto as faces,

Sozinha, entregue á dor, nas penas suas

Ninguém a consolou: os mais queridos

       Contrários se tornaram.

Ermas as praças de Sião e as ruas,

Cobre-as a verde relva: os sacerdotes

Gemem; as virgens pálidas suspiram

      Envoltas na amargura.

Dos filhos de Israel nas cavas faces

Está pintada a macilenta fome;

Mendigos vão pedir, pedir a estranhos,

       Um pão de infâmia eivado.

O trémulo ancião, de longe, os olhos

Volve a Jerusalém, dela fugindo:

Vê-a, suspira, cai, e em breve expira

       Com seu nome nos lábios.

Que horror! – ímpias as mães os tenros filhos

Despedaçaram: bárbaras quais tigres,

Os sanguinosos membros palpitantes

       No ventre sepultaram.

Deus, compassivo olhar volve a nós tristes:

Cessa de Te vingar! Vê-nos escravos,

Servos de servos em país estranho.

       Tem dó de nossos males!

Acaso serás Tu sempre inflexível?

Esqueceste de todo a nação tua?

O pranto dos Hebreus não Te comove?

       És surdo a seus lamentos?

 

Doce era a voz do velho: o som do Nablo

Sonoro: o céu sereno: clara a Terra

Pelo brando fulgor do astro da noite:

E o profeta parou. Erguidos tinha

Os olhos paru o céu, onde buscava

Um raio de esperança e de conforto:

E ele calara já, e ainda os ecos,

Entre as ruínas sussurrando, ao longe

Iam os sons levar de seus queixumes.

 

Choro piedoso, o choro consagrado

Às desditas dos seus. Honra ao profeta:

Oh, margens do Jordão, país formoso

Que fostes e não sois, também suspiro

Condoído vos dou. Assim fenecem

Impérios, reinos, solidões tornados!...

Não: Nenhum deste morto: o peregrino

Pára em Palmira e pensa. O braço do homem

A sacudiu à Terra, e fez dormissem

O seu último sono os filhos dela –

E ele o veio dormir pouco mais longe...

Mas se chega a Sião treme, enxergando

Seus lacerados restos. Pelas pedras,

Aqui e ali dispersas, ainda escrita

Parece ver-se uma inscrição de agouros,

Bem como aquela que alertou um ímpio (13),

Quando, no meio de ruidosa festa,

Blasfemava dos Céus, e mão ignota

O dia extremo lhe apontou dos crimes.

A maldição do Eterno está vibrada

Sobre Jerusalém! Quanto é terrível

A vingança de Deus! O Israelita,

Sem pátria e sem abrigo, vagabundo,

Ódio dos homens, neste mundo arrasta

Urna existência mais cruel que a morte,

E que vem terminar a morte e inferno.

Desgraçada nação! Aquele solo

Onde manava o mel, onde o carvalho,

O cedro e a palma o verde ou claro ou torvo,

Tão grato à vista, em bosques misturavam;

Onde o lírio e a cecém nos prados tinham

Crescimento espontâneo entre as roseiras,

Hoje, campo de lágrimas, só cria

Humilde musgo de escalvados cerros (14).

 

Ide vós a Mambré (15). Lá, bem no meio

De um vale, outrora de verdura ameno,

Erguia-se um carvalho majestoso.

Debaixo de seus ramos largos dias

Abraão repousou. Na Primavera

Vinham os moços adornar-lhe o tronco (16)

De capelas cheirosas de boninas,

E coreias gentis traçar-lhe em roda.

Nasceu com o orbe a planta venerável,

Viu passar gerações, julgou seu dia

Final fosse o do mundo, e quando airosa

Por entre as densas nuvens se elevava,

Mandou o Nume aos aquilões rugissem.

Ei-la por terra! As folhas, pouco a pouco,

Murcharam-se caindo, e o rei dos bosques

Serviu de pasto aos tragadores vermes.

Deus estendeu a mão: no mesmo instante

A vinha se mirrou: junto aos ribeiros

Da Palestina os plátanos frondosos

Não mais cresceram, como dantes, belos:

O armento, em vez de relva, achou nos prados

Somente ingratas, espinhosas urzes.

No Gólgota plantada, a Cruz clamara (17)

«Justiça!» A tal clamor hórrido espectro

No Moriá surgiu (18). Era seu nome

Assolação. E, despregando um grito,

Caiu com longo som de um povo a campa.

Assim a herança de Judá, outrora

Grata ao Senhor, existe só nos ecos

Do tempo que já foi, e que há passado

Como hora de prazer entre desditas.

 

Minha pátria onde existe?

                     É lá somente!

Oh, lembrança da Pátria acabrunhada

Um suspiro também tu me hás pedido;

Um suspiro arrancado aos seios d'alma

Pela ofuscada glória, e pelos crimes

Dos homens que ora são, e pelo opróbrio

Da mais ilustre das nações da Terra!

 

A minha triste pátria era tão bela,

E forte, e virtuosa!, e ora o guerreiro

E o sábio e o homem bom acolá dormem,

Acolá, nos sepulcros esquecidos,

Que a seus netos infames nada contam

Da antiga honra e pudor e eternos feitos.

O escravo português agrilhoado

Carcomir-se lhes deixa junto às lousas

Os decepados troncos desse arbusto,

Por mãos deles plantado à liberdade,

E por tiranos derribado em breve,

Quando pátrias virtudes se acabaram,

Como um sonho da infância!...

                            O vil escravo,

Imerso em vícios, em bruteza e infâmia,

Não erguerá os macerados olhos

Para esses troncos, que destroem vermes

Sobre as cinzas de heróis, e, aceso em pejo,

Não surgirá jamais? Não há na Terra

Coração português que mande um brado

De maldição atroz, que vá cravar-se

Na vigília e no sono dos tiranos,

E envenenar-lhes o prazer por noites

De vil prostituição, e em seus banquetes

De embriaguez lançar fel e amarguras?

 

Não! Bem como um cadáver já corrupto,

A Nação se dissolve: e em seu letargo

O povo, envolto na miséria, dorme.

 

Oh, talvez. como o vate, ainda algum dia

Terei de erguer à Pátria hino de morte,

Sobre seus mudos restos vagueando!

Sobre seus restos? Nunca! Eterno, escuta

Minhas preces e lágrimas: sé em breve,

Qual jaz Sião, jazer deve Ulisseia;

Se o anjo do extermínio há-de riscá-la

Do meio das nações, que dentre os vivos

Risque também meu nome, e não me deixe

Na Terra vaguear, órfão de pátria.

 

Cessou da noite a grão solenidade

Consagrada à tristeza e a memorandas

Recordações: os monges se prostraram,

A face unida à pedra. A mim, a todos,

Correm dos alhos lágrimas suaves

De compunção. Ateu, entra no templo:

Não temas esse Deus, que os lábios negam

E o coração confessa. A corda do arco

Da vingança, em que a morte se debruça,

Frouxa está; Deus é bom: entra no templo.

Tu, para quem a morte ou vida é forma,

Forma somente de mais puro barro,

Que nada crês, e em nada esperas, olha,

Olha o conforto do cristão. Se o cálix

Da amargura a provar os Céus lhe deram,

Ele se consolou: bálsamo santo

Piedosa fé no coração lhe verte.

«Deus compaixão terá!» Eis seu gemido:

Porque a esperança lhe sussurra em torno:

«Aqui, ou lá... a Providência é justa.»

 

Ateu, a quem o mal fizera escravo,

Teu futuro qual é? Quais são teus sonhos?

No dia da aflição emudeceste

Ante o espectro do mal. E a quem alçaras

O gemente clamor? Ao mar, que as ondas

Não altera por ti? Ao ar, que some

Pela sua amplidão as queixas tuas?

Aos rochedos alpestres, que não sentem,

Nem sentir podem teu gemido inútil?

Tua dor, teu prazer, existem, passam,

Sem porvir, sem passado e sem sentido.

Nas angústias da vida, o teu consolo

O suicídio é só, que te promete

Rica messe de gozo, a paz do nada!

E ai de ti, se buscaste, enfim, repouso,

No limiar da morte indo assentar-te!

Ali grita uma voz no último instante

Do passamento: a voz aterradora

Da consciência é ela. E hás-de escutá-la

Mau grado teu: e tremerás em sustos,

Desesperado aos Céus erguendo os olhos

Irados, de través, amortecidos;

Aos Céus, cujo caminho a Eternidade

Coa vagarosa mão te vai cerrando,

Para guiar-te à solidão das dores,

Onde maldigas teu primeiro alento,

Onde maldigas teu extremo arranco,

Onde maldigas a existência e a morte.

 

Calou tudo no templo: o céu é puro,

A tempestade ameaçadora dorme.

No espaço imenso os astros cintilantes

O rei da criação louvam com hinos,

Não ouvidos por nós nas profundezas

Do nosso abismo. E aos cantos do universo,

Ante milhões de estrelas, que recamam

O firmamento, ajuntará seu canto

Mesquinho trovador? Que vale uma haspa

Mortal no meio da harmonia etérea,

No concerto da noite? Oh, no silêncio,

Eu pequenino verme irei sentar-me

Aos pés da Cruz nas trevas do meu nada.

Assim se apaga a lâmpada nocturna

Ao despontar do Sol o alvor primeiro:

Por entre a escuridão deu claridade;

Mas do dia ao nascer, que já rutila,

As torrentes de luz vertendo ao longe,

Da lâmpada o clarão sumiu-se, inútil,

Nesse fúlgido mar, que inunda a Terra.

 

NOTAS

Eis o poema da minha mocidade: são os únicos versos que conservo desse tempo, em que nada neste mundo deixava para mim de respirar poesia. Se hoje me dissessem: faz um poema de quinhentos versos acerca da Semana Santa. eu olharia ao primeiro aspecto esta proposição como um absurdo: entretanto, eu mesmo há nove anos realizei esse absurdo. Não é esta a primeira das minhas contradições, e espero em Deus, e na minha sincera consciência, que não seja a última.

Quando compus estes versos, ainda eu possuía toda a vigorosa ignorância da juventude; ainda eu cria conceber toda a magnificência do grande drama do cristianismo, e que a minha harpa estava afinada para cantar um tal objecto. Enganava-me: a Semana Santa do poeta não saiu semelhante à Semana Santa da religião. O que é esta, de feito? Um poema representado, um drama, cuja essência é um facto universal, o maior de todos; o que veio mudar ideias, civilização e destinos do género humano inteiro. Tinha eu forças para o tratar? Não por certo: porque até hoje só houve um Klopstock; talvez só um haverá até à consumação dos séculos.

Assim, eu corri as memórias do passado, e as esperanças do futuro; chorei sobre Jerusalém e sobre a minha pátria: subi aos Céus, e desci aos Infernos: saudei o Sol, e as trevas da noite; em tudo e em toda a parte busquei inspirações, menos onde as devia buscar; porque acima da minha compreensão estava o meu objecto – a redenção e as suas consequências. Foi disto justamente que eu não tratei; e era disto que eu devia tratar, se o Pudesse ou soubesse fazer.

Porque, pois, não acompanharam estes versos os outros da primeira mocidade no caminho da fogueira'' Porque publico um poema falho na mesmíssima essência da sua concepção?

Porque tenho a consciência de que há aí poesia; e porque não há poeta, que, tendo essa consciência, consinta de bom grado em deixar nas trevas o fruto das suas vigílias.

 

(1) A loucura da Cruz não morreu toda:

 

Verbum enim Crucis pereuntibus quidem stultitia est.

 

Porque a palavra da Cruz é, na verdade. uma estultícia para os que se perdem.

 

Paul. ad Corinth. C 1-18

 

(2) ignoto vate / Teceu: ainda que os salmos se atribuam geralmente a David, há cerca disso muita incerteza, e o que, ao menos, parece indubitável é que alguns lhe não pertencem, por falarem no cativeiro de Babilónia e trazerem alusões a épocas mais recentes. Verdade é que se chegou a crer herética semelhante opinião; mas os padres gregos, e com eles Santo Hilário e S. Jerónimo, julgam absurdo atribuí-los todos a David. Esdras, voltando do cativeiro, foi quem reuniu estes hinos, e nessa colecção é provável fizesse entrar todas as poesias hebraicas deste género lírico e religioso.

 

(3) E ao esconder-se o Sol entre as montanhas / De Bethoron: Bethoron inferior, cidade situada perto da Gadara, ou Gazara, e de Bethel, e todas elas em uma série de montanhas no extremo de tríbo de Efraim, ao ocidente de Jerusalém. Cumpre não a confundir com a outra Bethoron, ou Bethra, a quatro milhas de Jerusalém para o norte, no caminho de Siquém, ou Naplusa.

 

 (4) O SALMO:

 

Commota est, et connemuit terra: iundamenta montium cunturbata sunt, et commota sunt, quoniam iratus est eis.

Ascendit fumus in ira ejus: et ignis a facie ejus exarsit: carbones succensi sunt ab eo.

Inclinavit coelos et descendit: et caligo sub pedibus ejus.

Et ascendit super cherubim, et volavit: volavit super pennas ventorum.

 

Comoveu-se a Terra e tremeu: os fundamentos dos montes estremeceram e se abalaram, porque se indignou contra eles.

Subiu fumo na ira dele, e saiu fogo ardente do seu rosto; por ele foram incendidos carvões.

Inclinou os Céus e desceu: e obscuridade debaixo dos seus pés.

E subiu sobre querubins, e voou; voou sobre as asas dos ventos.

 

Salmo 17 – V. 8-9-10-11

 

Quo ib a Spiritu tuo? et quo a facie tua fugiam?

Si ascendero in coelum, tu illic es: si descendero in infernum, ades.

Si sumpsero pennas meas diluculo, et habitavero in extremis maris:

Ete nim illuc manus tua deducet me: et tenebit me dextera tua.

Et dixi: Forsitan tenebrae conculcabunt me: et nox illuminatio mea in deliciis meis;

Quia tenebrae non obscurabuntur a te, et nox sicut dies illuminabitur sicut tenebrae ejus, sicutet lumen ejus.

 

Como me irei do teu Espírito? e para onde fugirei da tua presença?

Se subir ao Céu, tu ali te achas: se descer ao Inferno, presente nele estás.

Se eu tomar as minhas asas, ao romper da alva, e for habitar nas extremidades do mar:

Ainda lá me guiará a tua mão e me susterá a tua direita.

E disse: Talvez me ocultarão as trevas; mas a noite se converte em claridade para me descobrir, entregue às minhas delícias;

Porque as trevas não serão escuras para ti, e a noite será iluminada como o dia; como as trevas daquela, assim são também a luz deste.

 

Salmo 138 – V. 7-8-9-10-11-12

 

...arcum suum tetendit et paravit illum.

 

Et in eo paravit vasa mortis, sagittas suas ardentibus effecit.

 

...armou o seu arco e o tem pronto..

 

Já pós nele os instrumentos da morte; já preparou as suas setas ardentes.

 

Salmo 7 – V. 13-14

 

(5) À sua voz seguiu-se. Uma toada / De órgão rompeu do coro. Assemelhava: o órgão é um instrumento propiíssimo para acompanhar os hinos religiosos. Os protestantes, apartando-se da comunhão romana, e fazendo voltar o culto quase à simplicidade primitiva, conservaram nos seus templos este instrumento, cujos sons melodiosos, e ao mesmo tempo severos, se adaptam tão bem às ideias que suscitam os cantos da Igreja. O primeiro órgão que se viu no Ocidente da Europa foi o que mandou, em 758, Constantino Coprónimo, imperador de Constantinopla a Pepino, pai de Carlos Magno. Depois o seu uso se tornou quase exclusivo nos templos. [Os versos em epígrafe são variantes dos que se lêem n'A Harpa (A sua voz seguiu-se: e um som soturno / De órgão partiu-o; som que assemelhava). A alteração ao texto original não implica a sucessão da nota, porque a palavra que a origina (órgão) mantém-se.]

(6) Modulando o Nébel: o Nébel, que os Gregos traduzem por Psalterion, ou Nablon, era entre os Hebreus um instrumento próprio da música religiosa, como entre os cristãos o órgão.

A sua forma triangular, e o ser instrumento de cordas, fez com que na Vulgata se vertesse a palavra hebraica Nébel, umas vezes por lira, outras por cítara, sem ser nenhuma das duas coisas. Veja-se a Dissertação de Calmet acerca da música dos Hebreus.

 

 Do imundo stélio:

 

O estélio é o lagarto da primeire espécie, ou a salamandra de Lacepede. Stellio manibus nititur et moratur in aedibus regis.

 

 

Migale, et chamaeleon, et stellio, et lacerta, et talpa.

 

 

A saramântiga, que se sustém nas suas mãos, e que mora no palácio dos reis.

 

Prov. 30 – V. 28

 

 

O musaranho, o camaleão, a saramântiga, a lagartixa e a toupeira.

 

Levit. 11 – V. 30

 

(8) Nas margens do Cédron, a rã grasnando: a torrente do Cédron, que passa entre Jerusalém e o monte Olivete, ao oriente da cidade, seca inteiramente no Estio, e no Inverno as suas águas são torvas e avermelhadas. Daí o seu nome, que soa como – Torrente da Tristeza. Alguém lhe chamou Torrente dos Cedros, tomando a palavra hebraica Kedron pelo plural grego Kedron.

 

(9) O vate de Anatoth:

 

Jeremias era natural de Anatoth, cidade sacerdotal na tribo de Benjamim. er Jeremiae filii Helciae, de sacerdotibus qui fuerunt in Anatoth, in terra Benjamim.

 

Palavras de Jeremias, filho de Helcias, um dos sacerdotes que viviam em Anatoth, na terra de Benjamim.

 

 

Jerem. I – V. 1

 

(10) Entre o povo infiel, de Eloha em nome: Eloha, ou Elah, nome de Deus em hebraico, ou antes caldaico, e palavra assaz comum na Bíblia. O autor do Génesis usa do plural Elohim, ou Elahim, para significar ora o Deus uno, ora os deuses dos pagãos. Consulte-se Volney, Recherches sur l'Histoire Ancienne, cap. XVII.

 

(11) Inspirara Moisés: alusão ao cântico depois da passagem do mar Roxo.

 

(12) LAMENTAÇÃO:

 

Quomodo sedet sola civitas plena populo! Facta est quasi vidua Domina Gentium: princeps provinciarum facta est sub tributo.

 

Plorans ploravit in nocte, et lachrymae ejus in maxillis ejus: non est qui consoletur eam ex omnibus caris ejus: omnes amici ejus spreverunteam, et facti sunt ei inimici.

 

Viae Sion lugent, eo quod non sint, qui veniant ad solemnitatem: omnes portae ejus destructae: sacerdotes ejus gementes: virgines ejus squallidae, et ipsa oppressa amaritudine.

 

 

Como assim, solitária, está assentada uma cidade, cheia de povo; chegou a ser uma como viúva a senhora das gentes; a princesa das províncias ficou sujeita ao tributo.

 

Chorou, sem cessar, durante a noite, e as suas lágrimas correm pelas suas faces: não há quem a console, entre todos os seus amados; todos os seus amigos a desprezaram e se lhe tomaram inimigos.

 

As ruas de Sião choram, porque não há quem venha às solenidades; todas as suas portas se acham destruídas; os seus sacerdotes gemendo; as suas virgens esquálidas, e ela, oprimida de amargura.

 

Threni C. I – V. 1-2-4

 

 

Omnis populus ejus gemens, et quaerens panem: dederunt pretiosa quaeque pro cibo ad refocilandum animam.

 

 

Todo o seu povo está gemendo e mendigando pão; eles deram tudo o que tinham de precioso a troco de alimento, para sustentar a vida.

 

Threni C. I – V. 11

 

 

Aegypto dedimus manum, et Assyriis ut saturaremur pane.

 

 

Jacuerunt in terra foris puer, et senex.

 

 

Ao Egipto demos a mão, e aos Assírios, para sermos fartos de pão.

 

Ficaram nas ruas, estendidos por terra, o moço e o velho.

 

Threni C. 2 – V. 21

 

 

Manus mulierum misericordium coxerunt filios suos: facti sunt cibus carum in contritione filliae populi mei.

 

 

As mãos das mulheres compassivas cozeram os seus filhos, serviram-lhes de mantimento na ruína da filha do meu povo.

 

Threni C. 4 – V. 10

 

 

Recordare Domine quid acciderit nobis: intuere et respice oppobrium nostrum.

 

Hereditas nostra versa est ad alienos; domus nostrae ad extraneos.

 

Servi dominati sunt nostri: non fuit qui redimeret de manu eorum.

 

Quare in perpetuum oblivisceris nostri? derelinques nos in longitudine dierum?

 

 

Lembra-te, Senhor, do que nos tem acontecido; considera e olha para o nosso opróbio.

 

A nossa herança passou a forasteiros, as nossas casas a estranhos.

 

Os servos nos dominaram; não houve quem nos resgatasse da mão deles.

 

Por que razão te esquecerás tu de nós para sempre? Nos desampararás tu pela longura de dias?

 

Oratio Jerem. C. 5 – V. 1-2-8-20

 

 

(13) Bem como aquela que aterrou um ímpio:

 

Balthasar rex fuit grande convivium optimatibus suis milli: et unusquisque secundum suam bibebat aetatem. Praeepit ergo jam temulentus ut afferrentur vasa aurea et argentea, quae asportaverat Nabuchodonosor pater ejus de templo, quod fuit in Jerusalem, ut biberent in eis rex et optimates ejus, uxoresque ejus, et concubinae. Tunc allata sunt vasa aurea et argentea, quae asportaverat de templo, quod fuerat in Jerusalem: et biberunt in eis rex, et optimates ejus, uxores et concubinae illius. Bibebant vinum et laudabant deos suos aureos, et argenteos, aereos, terreos, ligneosque et lapideos. In eadem hora aparuerunt digiti, quasi manus hominis scribentis contra candelabrum in superficie parietis aulae regiae: et rex aspiciebat articulos manus scribentis. Tunc facies commutata est, et cogitationes ejus conturbabant eum; et compages renum ejus solvebantur; et genua ejus ad se invicem collidebantur. Haec est autem scriptura, quae digesta est: Mane, Thecel, Phares. Et haex est interpretatio sermonis: Mane: numcravit Deus regnum tuum et complevit illud. Thecel: appensus es in statera, et inventus es minus habens. Phares: divisum est regnum tuum, et datum est Medis, et Persis.

 

O rei Baltasar deu um grande banquete a mais de mil grandes da sua corte, e cada um bebia nele conforme d sua idade.

 Estando, pois, já bem cheio de vinho, mandou que lhe trouxessem os vasos de ouro e de prata que Nabucodonosor, seu pai, tinha transportado do templo de Jerusalém, para beberem por eles o rei e os grandes da sua corte, e as mulheres dele e concubinas.

 No mesmo ponto, foram trazidos os vasos de ouro e de prata que tinha transportado do templo de Jerusalém, e por eles beberam o rei e os grandes da sua corte, as mulheres dele e concubinas.

 Eles bebiam o vinho, e louvavam os seus deuses de ouro e de prata, de metal, de ferro, de pau e de pedra.

 Na mesma hora, apareceram uns dedos, como de mão de homem, que escrevia defronte do candeeiro, na superfície da parede da sala do rei; e o rei via os movimentos das juntas dos dedos da mão que escrevia.

 Então o semblante do rei se mudou, e os seus pensamentos o perturbavam; e as juntas dos seus rins se relaxaram, e os seus joelhos batiam um no outro.

 Esta é pois a escritura que ali está disposta: Mané, Técel, Fares.

 E esta é a interpretação das palavras:

 Mané: Deus contou os dias do teu reinado, e lhes pôs termo.

 Técel: tu foste pesado na balança, e achou-se que tinhas menos de peso.

 Fares: o teu reino se dividiu, e foi dado aos Medos e aos Persas.

 

 Danielis Proph. C. 5 – V. 1 a 6 e 25 a 28

 

 

(14) Hoje, campo de lágrimas, só cria / Humilde musgo de escalvados cerros: vários passos, cem vezes citados, de Tácito e de outros escritores gravíssimos da antiguidade nos provam que a Judeia foi um país feracíssimo. Os viajantes modernos no-la descrevem como uma região árida e inculta. O despotismo, que há séculos tem oprimido a Síria, e a rapacidade dos Árabes são em grande parte causa da aniquilação da agricultura na Palestina; porém, a sua esterilidade não se pode atribuir, por certo, a uma causa política. Os sectários do Crucificado não podem deixar de ver neste fenómeno os efeitos da maldição de Deus sobre a Tema que bebeu o sangue do Filho do Homem.

 

(15) Ide vós a Mambré: o vale de Mambré estava situado junto de Kariath-Arbé (Hébron), na tribo de Judá, e ao Meio-Dia de Jerusalém. O carvalho, ou terebinto de Abraão, que, segundo o testemunho de S. Jerónimo, ainda existia no tempo de Constantino, o tomava notável. Acerca desta árvore célebre existem muitas tradições entre os Judeus; e até para os cristãos dos primeiros séculos era o vale de Mambré um lugar de devoção e romagem. Sozomeno nos descreve o vale de Terebinto como um sítio de festivas reuniões, e foi a sua narração quem suscitou este pedaço de poema.

 

(16) ...na primavera, / Vinham os moços adornar-lhe o tronco: aqui (em Mambré) há um lugar que hoje chamam Terebinto, distante de Cébron que lhe fica ao Meio-Dia, quinze estádios, e de Jerusalém quase duzentos e cinquenta. Os habitantes deste sítio, no tempo do Estio, fazem uma feira, a que concorrem os vizinhos do vale, e ainda povos mais remotos, como os Palestinos, os Árabes e os Fenícios, Sozomeno, História Eclesiástica.

 

(17) No Gólgota plantada, a Cruz clamara: o monte Gólgota, ou Calvário foi o lugar onde crucificaram J. C. Esta palavra significa: lugar onde repousam os crânios dos mortos.

 

(18) No Moriá surgiu: o monte Moriá, onde estava o templo de Salomão, levantava-se no meio de Jerusalém, e ficava-lhe ao norte o monte Sião. Diz-se que neste lugar estivera Abraão para sacrificar seu filho. (Calmet, Diction.).

 

A VOZ

 

É tão suave ess'hora,

Em que nos foge o dia,

E em que suscita a Lua

Das ondas a ardentia,

 

Se em alcantis marinhos,

Nas rochas assentado,

O trovador medita

Em sonhos enteado!

 

O mar azul se encrespa

Coa vespertina brisa,

E no casal da serra

A luz já se divisa.

 

E tudo em roda cala

Na praia sinuosa,

Salvo o som do remanso

Quebrando em furna algosa.

 

Ali folga o poeta

Nos desvarios seus,

E nessa paz que o cerca

Bendiz a mão de Deus.

 

Mas despregou seu grito

A alcíone gemente,

E nuvem pequenina

Ergueu-se no ocidente:

 

E sobe, e cresce, e imensa

Nos céus negra flutua,

E o vento das procelas

Já varre a fraga nua.

 

Turba-se o vasto oceano.

Com hórrido clamor;

Dos vagalhões nas ribas

Expira o vão furor

 

E do poeta a fronte

Cobriu véu de tristeza;

Calou, à luz do raio,

Seu hino à natureza.

 

Pela alma lhe vagava

Um negro pensamento,

Da alcíone ao gemido,

Ao sibilar do vento.

 

Era blasfema ideia,

Que triunfava enfim;

Mas voz soou ignota,

Que lhe dizia assim:

 

«Cantor, esse queixume

Da núncia das procelas,

E as nuvens, que te roubam

Miríades de estrelas,

 

E o frémito dos euros,

E o estourar da vaga,

Na praia, que revolve,

Na rocha, onde se esmaga,

 

Onde espalhava a brisa

Sussurro harmonioso,

Enquanto do éter puro

Descia o Sol radioso,

 

Tipo da vida do homem,

É do universo a vida:

Depois do afã repouso,

Depois da paz a lida.

 

Se ergueste a Deus um hino

Em dias de amargura;

Se te amostraste grato

Nos dias de ventura,

 

Seu nome não maldigas

Quando se turba o mar:

No Deus, que é pai, confia,

Do raio ao cintilar.

 

Ele o mandou: a causa

Disso o universo ignora,

E mudo está. O nume,

Como o universo, adora!»

 

Oh, sim, torva blasfémia

Não manchará seu canto!

Brama a procela embora;

Pese sobre ele o espanto;

 

Que de sua harpa os hinos

Derramará contente

Aos pés de Deus, qual óleo

Do nardo recendente.

 

A ARRÁBIDA

 

Salve, ó vale do sul, saudoso e belo!

Salve, ó pátria da paz, deserto santo,

Onde não ruge a grande voz das turbas!

Solo sagrado a Deus, pudesse ao mundo

O poeta fugir, cingir-se ao ermo,

Qual ao freixo robusto a frágil hera,

E a romagem do túmulo cumprindo,

Só conhecer, ao despertar na morte,

Essa vida sem mal, sem dor, sem termo,

Que íntima voz contínuo nos promete

No trânsito chamado o viver do homem.

 

Suspira o vento no álamo frondoso;

As aves soltam matutino canto;

Late o lebréu na encosta, e o mar sussurra

Dos alcantis na base carcomida:

Eis o ruído de ermo! Ao longe o negro,

Insondado oceano, e o céu cerúleo

Se abraçam no horizonte. Imensa imagem

Da eternidade e do infinito, salve!

 

Oh, como surge majestosa e bela,

Com viço da criação, a natureza

No solitário vale! E o leve insecto

E a relva e os matos e a fragrância pura

Das boninas da encosta estão contando

Mil saudades de Deus, que os há lançado,

Com mão profusa, no regaço ameno

Da solidão, onde se esconde o justo.

 

E lá campeiam no alto das montanhas

Os escalvados píncaros, severos,

Quais guardadores de um lugar que é santo;

Atalaias que ao longe o mundo observam,

Cerrando até o mar o último abrigo

Da crença viva, da oração piedosa,

Que se ergue a Deus de lábios inocentes.

 

Sobre esta cena o sol verte em torrentes

Da manhã o fulgor; a brisa esvai-se

Pelos rosmaninhais, e inclina os topos

Do zimbro e alecrineiro, ao rés sentados

Desses tronos de fragas sobrepostas,

Que alpestres matas de medronhos vestem;

O rocio da noite à branca rosa

No seio derramou frescor suave,

E inda existência lhe dará um dia.

 

Formoso ermo do sul, outra vez, salve!

 

Negro, estéril rochedo, que contrastas,

Na mudez tua, o plácido sussurro

Das árvores do vale, que vicejam

Ricas d’encantos, coa estação propícia;

Suavíssimo aroma, que, manando

Das variegadas flores, derramadas

Na sinuosa encosta da montanha,

Do altar da solidão subindo aos ores,

És digno incenso ao Criador erguido;

Livres aves, filhas da espessura,

Que só teceis da natureza as hinos,

O que crê, o cantor, que foi lançado,

Estranho no mundo, no bulício dele,

Vem saudar-vos, sentir um gozo puro,

Dus homens esquecer paixões e opróbio,

E ver, sem ver-lhe a luz prestar a crimes,

O Sol, e uma só vez puro saudar-lha.

 

Convosco eu sou maior; mais longe a mente

dos céus se imerge livre,

E se desprende de mortais memórias

Na solidão solene, onde, incessante,

Em cada pedra, em cada flor se escuta

Do Sempiterno a voz, e vê-se impressa

A dextra sua em multiforme quadro.

 

Escalvado penedo, que repousas

Lá no cimo do monte, ameaçando

Ruína ao roble secular da encosta,

Que sonolento move a coma estiva

Ante a aragem do mar, foste formoso;

Já te cobriram cespedes virentes;

Mus o tempo voou, e nele envolta

A formosura tua. Despedidos

Das negras nuvens o chuveiro espesso

E o granizo, que o solo fustigando

Tritura a tenra lanceolada relva,

Durante largos séculos, no Inverno,

Dos vendavais no dorso a ti desceram.

Qual amplexo brutal de ardos grosseiro,

Que, maculando virginal pureza.

Do pudor varre a auréola celeste,

E deixa, em vez de um serafim m Terra,

Queimada flor que devorou o raio.

 

Caveira da montanha, ossada imensa,

É tua campa o Céu: sepulcro o vale

Um dia te será. Quando sentires

Rugir com som medonho a Terra ao longe,

Na expansão dos vulcões, e o mar, bramindo,

Lançar à praia vagalhões cruzados;

Tremer-te a larga base, e sacudir-te

De sobre si, o fundo deste vale

Te vai servir de túmulo; e os carvalhos

Do mundo primogénitos, e os sobros,

Arrastados por ti lá da colina,

Contigo hão-de jazer. De novo a terra

Te cobrirá o dorso sinuoso:

Outra vez sobre ti nascendo os lírios,

Do seu puro candor hão-de adornar-te;

E tu, ora medonho e nu e triste,

Ainda belo serás, vestido e alegre.

 

Mais que o homem feliz! Quando eu no vale

Dos túmulos cair; quando uma pedra

Os ossos me esconder, se me for dada,

Não mais reviverei; não mais meus olhos

Verão, ao pôr-se, o Sol em dia estivo,

Se em turbilhões de púrpura, que ondeiam

Pelo extremo dos céus sobre o ocidente.

Vai provar que um Deus há o estranhos povos

E além das ondas trémulo sumir-se;

Nem, quando, lá do cimo das montanhas,

Com torrentes de luz inunda as veigas:

Não mais verei o refulgir da Lua

No irrequieto mar, na paz da noite,

Por horas em que vela o criminoso,

A quem íntima voz rouba o sossego.

E em que o justo descansa, ou, solitário,

Ergue ao Senhor um hino harmonioso.

 

Ontem, sentado num penhasco, e perto

Dos águas, então quedas, do oceano,

Eu também o louvei sem ser um justo:

E meditei, e a mente extasiada

Deixei correr pela amplidão das ondas.

 

Como abraço materno era suave

A aragem fresca do cair das trevas.

Enquanto, envolta em glória, a clara Lua

Sumia em seu fulgor milhões d’estrelas.

 

Tudo calado estava: o mar somente

As harmonias da criação soltava,

Em seu rugido; e o ulmeiro do deserto

Se agitava, gemendo e murmurando.

Ante o sopro de oeste: ali dos olhos

O pranto me correu, sem que o sentisse.

E aos pés de Deus se derramou minha alma.

 

Oh, que viesse o que não crê, comigo,

À vicejante Arrábida de noite,

E se assentasse aqui sobre estas fragas,

Escutando o sussurro incerto e triste

Das movediças ramas, que povoa

De saudade e de amor nocturna brisa;

Que visse a lua, o espaço opresso de astros,

E ouvisse o mar soando: – ele chorara,

Qual eu chorei, as lágrimas do gozo,

E, adorando o Senhor, detestaria

De uma ciência vã seu vão orgulho.

 

É aqui neste vale, ao qual não chega

Humana voz e o tumultuar das turbas,

Onde o nada da vida sonda livre

O coração, que busca ir abrigar-se

No futuro, e debaixo do amplo manto

Da piedade de Deus: aqui serena

Vem a imagem da campa, como a imagem

Da pátria ao desterrado; aqui, solene,

Brada a montanha, memorando a morte.

 

Essas penhas, que, lá no alto das serras

Nuas, crestadas, solitárias dormem,

Parecem imitar da sepultura

O aspecto melancólico e o repouso

Tão desejado do que em Deus confia.

Bem semelhante à paz. que se há sentado

Por séculos, ali, nas cordilheiras

É o silêncio do adro, onde reúnem

Os ciprestes e a Cruz, o Céu e a Terra.

 

Como tu vens cercado de esperança,

Para o inocente, ó plácido sepulcro!

Junto das tuas bordas pavorosas

O perverso recua horrorizado:

Após si volve os olhos; na existência

Deserto árido só descobre ao longe.

Onde a virtude não deixou um trilho.

 

Mas o justo, chegando à meta extrema,

Que separa de nós a eternidade,

Transpõe-na sem temor, e em Deus exulta..

O infeliz e o feliz lá dormem ambos,

Tranquilamente: e o trovador mesquinho,

Que peregrino vagueou na Terra,

Sem encontrar um coração ardente

Que o entendesse, a pátria de seus sonhos,

Ignota, por lá busca; e quando as eras

Vierem junto às cinzas colocar-lhe

Tardios louros, que escondera a inveja,

Ele não erguerá a mão mirrada,

Para os cingir na regelada fronte.

Justiça, glória, amor, saudade, tudo,

An pé da sepultura, é som perdido

De harpa eólia esquecida em brenha ou selva:

O despertar um pai, que saboreia

Entre os bruços da morte o extremo sono,

Já não é dado ao filial suspiro;

Em vão o amante, ali, da amada sua

De rosas sobre a c'roa debruçado,

Rega de amargo pranto as murchas flores

E a fria pedra: a pedra é sempre fria.

E para sempre as flores se murcharam.

 

Belo ermo!, eu hei-de amar-te enquanto esta alma,

Aspirando o futuro além da vida

E um hálito dos Céus, gemer atada

À coluna do exílio, a que se chama

Em língua vil e mentirosa o mundo.

Eu hei-de amar-te, ó vale, como um filho

Dos sonhos meus. A imagem do deserto

Guardá-la-ei no coração, bem junto

Com minha fé, meu único tesouro.

 

Qual pomposo jardim de verme ilustre,

Chamado rei ou nobre, há-de contigo

Comparar-se, ó deserto? Aqui não cresce

Em vaso de alabastro a flor cativa,

Ou árvore educada por mão de homem,

Que lhe diga: «És escrava», e erga um ferro

E lhe decepe os troncos. Como é livre

A vaga do oceano, é livre no ermo

A bonina rasteira ou freixo altivo!

Não lhes diz: «Nasce aqui, ou lá não cresças».

Humana voz. Se baqueou o freixo,

Deus o mandou: se a flor pendida murcha,

É que o rocio não desceu de noite,

E da vida o Senhor lhe nega a vida.

 

Céu livre, Terra livre, e livre a mente,

Paz íntima, e saudade, mas saudade

Que não dói, que não mirra, e que consola,

São as riquezas do ermo, onde sorriem

Das procelas do mundo os que o deixaram.

 

Ali naquela encosta, ontem de noite,

Alvejava por entre os medronheiros

Do solitário a habitação tranquila:

E eu vagueei por lá. Patente estava

O pobre albergue do eremita humilde,

Onde jazia o filho da esperança

Sob as asas de Deus, à luz dos astros,

Em leito, duro sim, não de remorsos.

Oh, com quanto sossego o bom do velho

Dormia! A leve aragem lhe ondeava

As raras cãs na fronte, onde se lia

A bela história de passados anos.

De alto choupo através passava um raio

Da Lua – astro de paz, astro que chama

Os olhos para o céu, e a Deus a mente –

E em luz pálida as faces lhe banhava:

E talvez neste raio o Pai celeste

Da pátria eterna, lhe enviava a imagem,

Que o sorriso dus lábios lhe fugia,

Como se um sonho de ventura e glória

Na Terra de antemão o consolasse.

E eu comparei o solitário obscuro

Ao inquieto filho das cidades:

Comparei o deserto silencioso

Ao perpétuo ruído que sussurra

Pelos palácios do abastado e nobre,

Pelos paços dos reis; e condoí-me

Do cortesão soberbo, que só cura

De honras, haveres, glória, que se compram

Com maldições e perenal remorso.

Glória! A sua qual é? Pelas campinas,

Cobertas de cadáveres, regadas

De negro sangue, ele segou seus louros;

Louros que vão cingir-lhe a fronte altiva

Ao som do choro da viúva e do órfão;

Ou, dos sustos senhor, em seu delírio,

Os homens, seu irmãos, flagela e oprime.

Lá o filho do pó se julga um nume,

Porque a Terra o adorou; o desgraçado

Pensa, talvez, que o verme dos sepulcros

Nunca se há-de chegar para tragá-lo

Ao banquete da morte, imaginando

Que uma lájea de mármore, que esconde

O cadáver do grande, é mais durável

Do que esse chão sem inscrição, sem nome.

Por onde o opresso, o mísero, procura

O repouso, e se atira aos pés do trono

Do Omnipotente, a demandar justiça

Contra os fortes do mundo, os seus tiranos.

 

Ó cidade, cidade, que transbordas

De vícios, de paixões e de amarguras!

Tu lá estás, na tua pompa envolta,

Soberba prostituta, alardeando

Os teatros, e os paços, e o ruído

Das carroças dos nobres recamadas

De ouro e prata, e os prazeres de uma vida

Tempestuosa, e o tropear contínuo

Dos férvidos ginetes, que alevantam

O pó e o lodo cortesão das praças;

E as gerações corruptas de teus filhos

Lá se revolvem, qual montão de vermes

Sobre um cadáver pútrido! Cidade,

Branqueado sepulcro, que misturas

A opulência, a miséria, a dor e o gozo,

Honra e infâmia, pudor e impudícia

Céu e inferno, que és tu? Escárnio ou glória

Da humanidade? O que o souber que o diga!

 

Bem negra avulta aqui, na paz do vale,

A imagem desse povo, que reflui

Das moradas à rua, à praça, ao templo;

Que ri, e chora, folga, e geme, e morre,

Que adora Deus, e que o pragueja, e o teme;

Absurdo misto de baixeza extrema

E de extrema ousadia; vulto enorme,

Ora aos pés de um vil déspota estendido,

Ora surgindo, e arremessando ao nada

As memórias dos séculos que foram,

E depois sobre o nada adormecendo.

 

Vê-lo, rico de opróbrio, ir assentar-se

Em joelhos nos átrios dos tiranos.

Onde, entre o lampejar de armas de servos,

O servo popular adora um tigre ?

Esse tigre é o ídolo do povo!

Saudai-o; que ele o manda: abençoai-lhe

O férreo ceptro: ide folgar em roda

De cadafalsos, povoados sempre

De vítimas ilustres, cujo arranco

Seja como harmonia, que adormente

Em seus terrores o senhor das turbas.

Passai depois. Se a mão da Providência

Esmigalhou a fronte à tirania;

Se o déspota caiu, e está deitado

No lodaçal da sua infâmia, a turba

Lá vai buscar o ceptro dos terrores,

E diz: «É meu»; e assenta-se na praça,

E envolta em roto manto. e julga, e reina.

Se um ímpio, então, na afogueada boca

De vulcão popular sacode um facho,

Eis o incêndio que muge, e a lava sobe,

E referve, e trasborda, e se derrama

Pelas ruas além: clamor retumba

De anarquia impudente, e o brilho de armas

Pelo escuro transluz, como um presságio

De assolação, e se amontoam vagas

Desse mar d'abjecção, chamado o vulgo;

Desse vulgo, que ao som de infernais hinos

Cava fundo da Pátria a sepultura,

Onde, abraçando a glória do passado

E do futuro a última esperança,

As esmaga consigo, e ri morrendo.

 

Tal és, cidade, licenciosa ou serva!

Outros louvem teus paços sumptuosos,

Teu ouro, teu poder: sentina impura

De corrupções, teus não serão meus hinos!

 

Cantor da solidão, vim assentar-me

Junto do verde céspede do vale,

E a paz de Deus do mundo me consola.

 

Avulta aqui, e alveja entre o arvoredo,

Um pobre conventinho. Homem piedoso

O alevantou há séculos, passando,

Como orvalho do céu, por este sítio,

De virtudes depois tão rico e fértil.

 

Como um pai de seus filhos rodeado,

Pelos matos do outeiro o vão cercando

Os tugúrios de humildes eremitas,

Onde o cilício e a compunção apagam

Da lembrança de Deus passados erros

Do pecador, que reclinou a fronte

Penitente no pó. O sacerdote

Dos remorsos lhe ouviu as amarguras;

E perdoou-lhe, e consolou-o em nome

Do que expirando perdoava, o Justo,

Que entre os humanos não achou piedade.

 

Religião! do mísero conforto,

Abrigo extremo de alma, que há mirrado

O longo agonizar de uma saudade.

Da desonra, do exílio, ou da injustiça,

Tu consolas aquele, que ouve o Verbo.

Que renovou o corrompido mundo,

E que mil povos pouco a pouco ouviram.

Nobre, plebeu, dominador, ou servo,

O rico, o pobre, o valoroso, o fraco,

Da desgraça no dia ajoelharam

No limiar do solitário templo.

Ao pé desse portal, que veste o musgo,

Encontrou-os chorando o sacerdote,

Que da serra descia à meia-noite,

Pelo sino das preces convocado:

Aí os viu ao despontar do dia,

Sob os raios do Sol, ainda chorando,

Passados meses, o burel grosseiro,

O leito de cortiça, e a fervorosa

E contínua oração foram cerrando

Nos corações dos míseros as chagas,

Que o mundo sabe abrir, mas que não cura.

Aqui, depois, qual hálito suave.

Da Primavera, lhes correu a vida,

Até sumir-se no adro do convento,

Debaixo de uma lájea tosca e humilde,

Sem nome, nem palavra, que recorde

O que a terra abrigou no sono extremo.

 

Eremitério antigo, oh, se pudesses

Dos anos que lá vão contar a história;

Se ora, à voz do cantor, possível fosse

Transudar desse chão, gelado e mudo,

O mudo pranto, em noites dolorosas,

Por náufragos do mundo derramado

Sobre ele, e aos pés da Cruz!... Se vós pudésseis,

Broncas pedras, falar, o que diríeis!

 

Quantos nomes mimosos da ventura,

Convertidos em fábula das gentes.

Despertariam o eco das montanhas,

Se aos negros troncos do sobreiro antigo

Mandasse o Eterno sussurrar a história

Dos que vieram desnudar-lhe o cepo,

Para um leito formar, onde velassem

Da mágoa, ou do remorso, as longas noites!

Aqui veio, talvez, buscar asilo

Um poderoso, outrora anjo da Terra,

Despenhado nas trevas do infortúnio;

Aqui gemeu, talvez, o amor traído,

Ou pela morte convertido em cancro

De infernal desespero; aqui soaram

Do arrependido os últimos gemidos,

Depois da vida derramada em gozos,

Depois do gozo convertido em tédio.

Mas quem foram? Nenhum, depondo em terra

Vestidura mortal, deixou vestígios

De seu breve passar. E isso que importa,

Se Deus o viu; se as lágrimas do triste

Ele contou, para as pagar com glória?

 

Ainda em curvo outeiro, ao fim da senda

Que serpeia do monte ao fundo vale,

Sobre o marco de pedra a cruz se eleva,

Como um farol de vida em mar de escolhos:

Ao cristão infeliz acolhe no ermo.

E consolando-o, diz-lhe: «A pátria tua

É lá no Céu: abraça-te comigo.»

Junto dela esses homens, que passaram

Acurvados na dor, as mãos ergueram

Para o Deus, que perdoa, e que é conforto

Dos que aos pés deste símbolo da esp'rança

Vêm derramar seu coração aflito:

É do deserto a história, a cruz e a campa;

E sobre tudo o mais pousa o silêncio.

 

Feliz da Terra, os monges não maldigas;

Do que em Deus confiou não escarneças:

Folgando segue a trilha, que há juncado,

Para teus pés, de flores a fortuna.

E sobre a morta crença em paz descansa.

Que mal te faz. Que gozo vai roubar-te

O que ensanguenta os pés no tojo agreste,

E sobre a fria pedra encosta a fronte?

Que mal te faz uma oração erguida,

Nas solidões, por voz sumida e frouxa,

E que, subindo aos Céus, só Deus escuta?

Oh, não insultes lágrimas alheias,

E deixa a fé ao que não tem mais nada!...

 

E se estes versos te contristam, rasga-os.

Teus menestréis te venderão seus hinos,

Nos banquetes opíparos, enquanto

O negro pão repartirá comigo,

Seu trovador, o pobre anacoreta,

Que não te inveja as ditas, como as c'roas

Do prazer ao cantor eu não invejo;

Tristes coroas, sob as quais às vezes

Está gravada uma inscrição d'infâmia.

 

MOCIDADE E MORTE

 

Solevantado o corpo, os olhos fitos,

As magras mãos cruzadas sobre o peito,

Vede-o, tão moço, velador de angústias,

Pela alta noite em solitário leito.

 

Por essas faces pálidas, cavadas,

Olhai, em fio as lágrimas deslizam;

E com o pulso, que apressado bate,

Do coração os estos harmonizam.

 

Ë que nas veias lhe circula a febre:

É que a fronte lhe alaga o suor frio;

É que lá dentro à dor, que o vai roendo,

Responde horrível íntimo cicio.

 

Encostando na mão o rosto aceso,

Fitou os olhos húmidos de pranto

Na lâmpada mortal ali pendente,

E lá consigo modulou um canto.

 

É um hino de amor e de esperança?

É oração de angústia e de saudade?

Resignado na dor, saúda a morte,

Ou vibra aos céus blasfémia d'impiedade?

 

É isso tudo, tumultuando incerto

No delírio febril daquela mente,

Que, balouçada à borda do sepulcro,

Volve após si a vista longamente.

 

É a poesia a murmurar-lhe na alma

Última nota de quebrada lira;

É o gemido do tombar do cedro;

É triste adeus do trovador que expira.

 

DESESPERANÇA

 

Meia-noite bateu, volvendo ao nada

Um dia mais, e caminhando eu sigo!

Vejo-te bem, ó campa misteriosa...

Eu vou, eu vou! Breve serei contigo!

 

Qual tufão, que ao passar agita o pego,

Meu plácido existir turvou a sorte:

Hálito impuro de pulmões ralados

Me diz que neles se assentou a morte:

 

Enquanto mil e mil no largo mundo

Dormem em paz sorrindo, eu velo e penso,

E julgo ouvir as preces por finados,

E ver a tumba e o fumegar do incenso.

 

Se dormito um momento, acordo em sustos;

Pulos me dá o coração no peito,

E abraço e beijo de uma vida extinta

O último sócio, o doloroso leito.

 

De um abismo insondado às agras bordas

Insanável doença me há guiado,

E disse-me: «No fundo o esquecimento:

Desce; mas desce com andar pausado.»

 

E eu lento vou descendo, e sondo as trevas:

Busco parar; parar um só instante!

Mas a cruel, travando-me da dextra,

Me faz cair mais fundo, e grita: «Avante!»

 

Porque escutar o trânsito das horas?

Alguma delas trar-me-á conforto?

Não! Esses golpes, que no bronze ferem,

São pura mim como dobrar por morto.

 

«Morto!, morto!» me clama a consciência:

Diz-mo este respirar rouco e profundo.

Ai!, porque fremes, coração de fogo,

Dentro de um seio corrompido e imundo?

 

Beber um ar diáfano e suave,

Que renovou da tarde o brando vento,

E convertê-lo, no aspirar contínuo,

Em bafo apodrecido e peçonhento!

 

Estender para o amigo a mão mirrada,

E ele negar a mão ao pobre amigo;

Querer uni-lo ao seio descarnudo,

E ele fugir, temendo o seu perigo!

 

E ver após um dia ainda cem dias,

Nus d'esperança, férteis de amargura;

Socorrer-me ao porvir, e achá-lo um ermo,

E só, bem lá no extremo, a sepultura!

 

Agora!... quando a vida me sorria:

Agora!... que meu estro se acendera;

Que eu me enlaçava a um mundo d'esperanças,

Como se enlaça pelo choupo a hera,

 

Deixar tudo, e partir, sozinho e mudo;

Varrer-me o nome escuro esquecimento:

Não ter um eco de louvor, que afague

Do desgraçado o humilde monumento!

 

Ó tu, sede de um nome glorioso,

Que tão fagueiros sonhos me tecias,

Fugiste, e só me resta a pobre herança

De ver a luz do Sol mais alguns dias.

 

Vestem-se os campos do verdor primeiro:

Já das aves canções no bosque ecoam:

Não para mim, que só escuto atento

Funéreos dobres que no templo soam!

 

Eu que existo, e que penso, e falo, e vivo,

Irei tão cedo repousar na terra?!

Oh, meu Deus, oh, meu Deus!, um ano ao menos;

Um louro só... e meu sepulcro cerra!

 

E tão bom respirar, e a luz brilhante

Do sol oriental saudar no outeiro!

Ai, na manhã saudá-la posso ainda;

Mas será este Inverno o derradeiro!

 

Quando de pomos o vergel for cheio;

Quando ondear o trigo na planura;

Quando pender com áureo fruto a vide,

Eu também penderei na sepultura.

 

Dos que me cercam no turbado aspecto,

Na voz que prende desusado enleio,

No pranto a furto, no fingido riso

Fatal sentença de morrer eu leio.

 

Vistes vós criminoso, que hão lançado

Seus juízes nos trances da agonia,

Em oratório estreito, onde não entra

Suavíssima luz do claro dia;

 

Diante a cruz, ao lado o sacerdote,

O cadafalso, o crime, o algoz na mente,

O povo tumultuando, o extremo arranco,

E Céu, e Inferno, e as maldições da gente?

 

Se adormece, lá surge um pesadelo,

Com os martírios da sua alma acorde;

Desperta logo, e à terra se arremessa,

E os punhos cerra, e delirante os morde.

 

Sobre as lájeas do duro pavimento

De vergões e de sangue o rosto cobre.

Ergue-se e escuta com cabelos hirtos

Do sino ao longe o compassado dobre.

 

Sem esperança!...

                  Não! Do cadafalso

Sobe as escudas o perdão às vezes;

Porém a mim... não me dirão: «És salvo!»

E o meu suplício durará por meses.

 

Dizer posso: «Existi: que a dor conheço!»

Do gozo a taça só provei por horas:

E serei teu, calado cemitério,

Que engenho, glória, amor, tudo devoras.

 

Se o furacão rugiu, e o débil tronco

De árvore tenra espedaçou passando,

Quem se doeu de a ver jazendo em terra?

Tal é o meu destino miserando!

 

Númen de santo amor, mulher querida,

Anjo do Céu, encanto da existência.

Ora por mim a Deus, que há-de escutar-te.

Por ri me salve a mão da Providência.

 

Vem: aperta-me a dextra... Oh, foge, foge!

Um beijo ardente aos lábios teus voara:

E neste beijo venenoso a morte

Talvez este infeliz só te entregara!

 

Se eu pudesse viver... como teus dias

Cercaria de amor suave e puro!

Como te fora plácido o presente;

Quanto risonho o aspecto do futuro!

 

Porém, medonho espectro ante meus olhos,

Como sombra infernal perpétuo ondeia,

Bradando-me que vai partir-se o fio

Com que da minha vida se urde a teia.

 

Entregue à sedução enquanto eu durmo,

No turbilhão do mundo hei-de deixar-te!

Quem velará por ti, pomba inocente?

Quem do perjúrio poderá salvar-te?

 

Quando eu cerrar os olhos moribundos

Tu verterás por mim pranto saudoso;

Mas quem me diz que não virá o riso

Banhar teu rosto triste e lacrimoso?

 

Ai, o extinto só herda o esquecimento!

Um novo amor te agitará o peito:

E a dura lájea cobrirá meus ossos

Frios, despidos sobre térreo leito!...

 

Ó Deus, porque este cálix de agonia

Até as bordas de amargor me encheste?

Se eu devia acabar na juventude,

Porque ao mundo e a seus sonhos me prendeste?

 

Virgem do meu amor, porque perdê-la?

Porque entre nós a campa há-de assentar-se?

Tua suprema paz com gozo ou dores

Do mortal, que em ti crê, pode turbar-se?

 

Não haver quem me salve! e vir um dia

Em que de minha o nome ainda lhe desse!

Então, Senhor, o umbral da eternidade,

Talvez sem um queixume, transpusesse.

 

Mas, qual flor em botão pendida e murcha,

Sem de fragrâncias perfumar a brisa,

Eu poeta, eu amante, ir esconder-me

Sob uma lousa desprezada e lisa!

 

Porquê? Qual foi meu crime, ó Deus terrível?

Em te adorar que fui, senão insano?...

O teu fatal poder hoje maldigo!

O que te chama pai, mente: és tirano.

 

E se aos pés de teu trono os ais não chegam;

Se os gemidos da terra os ares somem;

Se a Providência é crença vã, mentida,

Porque geraste a inteligência do homem?

 

Porque da virgem no sorrir puseste

Santo presságio de suprema dita,

E apontaste ao poeta a imensidade

Na ânsia de glória que em sua alma habita?

 

A imensidade!... E que me importa herdá-la,

Se na Terra passei sem ser sentido?

Que vale eterno vaguear no espaço,

Se nosso nome se afundou no olvido?

 

O ANJO-DA-GUARDA

 

Ímpio, silêncio! A tua voz blasfema

Da noite a paz perturba.

Verme, que te rebelas

Sob a mão do Senhor,

Vês os milhões d'estrelas

De nítido fulgor,

Que, em ordenada turba,

A Deus entoam incessantes hinos?

Quantas vezes apaga

Do livro da existência

Um orbe a mão do Eterno!

E o belo astro que expira

Maldiz a Providência,

Maldiz a mão que o esmaga?

Acaso pára o cântico superno?

Ou apenas suspira

O moribundo,

Que se chamava um mundo?

Quem vai pôr uma campa sobre os restos

Desse inerte planeta,

Que o destrutor cometa

Incinerou na rápida passagem?

E tu, átomo obscuro,

Que varre à tarde a aragem,

Soltas do seio impuro

Maldição insensata,

Porque o teu Deus te evoca à eternidade?

Que é o viver? O umbral, a que um momento

O espírito, surgindo

Das solidões do nada

À voz do Criador, se encosta, e atento

Contempla a luz e o céu; donde desata

Seu voo à imensidade.

Geme acaso o passarinho

De saudade,

Quando as asas expande, e deixa o ninho

A vez primeira, a mergulhar nos ares?

Volve olhos lacrimosos

Aos mares tormentosos

O navegante, quando aproa às plagas

Da pátria suspirada?

Porque morres?! Pergunta à Providência

Porque te fez nascer.

Qual era o teu direito a ver o mundo;

Teu jus à existência?

Olha no Outono o ulmeiro

Que o vendaval agita,

E cujas ténues folhas

Aos centos precipita.

São a folha do ulmeiro o nome e a fama,

E o amar dos humanos:

Ao nada do que foi assim se atiram

No vórtice dos anos.

Que é a glória na Terra? Um eco frouxo,

Que somem mil ruídos.

E a voz da Terra o que é, na voz imensa

Dos orbes reunidos?

Amor!, amor terreno!... Ai, se pudesses

Compreender a amargura,

Com que te choro, ó alma transviada!

Eu, que te amei do berço, e qual doçura

Há no afecto que liga o anjo ao homem,

Rindo despiras esse corpo enfermo,

Paru te unir a mim, para aspirares

O gozo celestial de amor sem termo!

Alma triste, que mesquinha

Te debruças sobre o Inferno,

Ouve o anjo, pobrezinha;

Vem ao gozo sempiterno.

Resigna-te e espera, e os dias de prova

Serão para o crente quais breves instantes.

Tomar-te-ei nos braços no trance da morte,

Fendendo o infinito coas asas radiantes.

Depois, das alturas teu térreo vestido

Sorrindo veremos na Terra guardar

E ao hino de Hossana nos coros celestes

A voz de um remido iremos juntar.

 

A GRAÇA

 

Que harmonia suave

É esta, que na mente

Eu sinto murmurar,

Ora profunda e grave,

Ora meiga e cadente,

Ora que faz chorar?

Porque da morte a sombra,

Que para mim em tudo

Negra se reproduz,

Se aclara, e desassombra

Seu gesto carrancudo,

Banhada em branda luz?

Porque no coração

Não sinto pesar tanto

O férreo pé da dor,

E o hino da oração,

Em vez de irado canto,

Me pede íntimo ardor?

 

És tu, meu anjo, cuja voz divina

Vem consolar a solidão do enfermo,

E a contemplar com placidez o ensina

De curta vida o derradeiro termo?

 

Oh, sim!, és tu, que na infantil idade,.

Da aurora à frouxa luz,

Me dizias: «Acorda, inocentinho,

Faz o sinal da Cruz.»

És tu, que eu via em sonhos, nesses anos

De inda puro sonhar,

Em nuvem d'ouro e púrpura descendo

Coas roupas a alvejar.

És tu, és tu!, que ao pôr do Sol, na veiga,

Junto ao bosque fremente,

Me contavas mistérios, harmonias

Dos Céus, do mar dormente.

És tu, és tu!, que, lá, nesta alma absorta

Modulavas o canto,

Que de noite, ao luar, sozinho erguia

Ao Deus três vezes santo.

És tu, que eu esqueci na idade ardente

Das paixões juvenis,

E que voltas a mim, sincero amigo,

Quando sou infeliz.

Sinta a tua voz de novo,

Que me revoca a Deus:

Inspira-me a esperança,

Que te seguiu dos Céus!...

 

RESIGNAÇÃO

 

No teu seio, reclinado

Dormirei, Senhor, um dia,

Quando for na terra fria

Meu repouso procurar;

 

Quando a lousa do sepulcro

Sobre mim tiver caído,

E este espírito afligido

Vir a tua luz brilhar!

 

No teu seio, de pesares

O existir não se entretece;

Lá eterno o amor florece;

Lá florece eterna paz:

 

Lá bramir junto ao poeta

Não irão paixões e dores,

Vãos desejos, vãos temores

Do desterro em que ele jaz.

 

Hora extrema, eu te saúdo!

Salve, ó trevas da jazida,

Donde espera erguer-se à vida

Meu espírito imortal!

 

Anjo bom, não me abandones

Neste trance dilatado;

Que contrito, resignado,

Me acharás na hora fatal.

 

E depois... perdoa, ó anjo,

Ao amor do moribundo,

Que só deixa neste mundo

Pouco pó, muito gemer.

 

Oh... depois... diz à mesquinha

Um segredo de doçura:

Que na pátria o amor se apura,

Que o desterro viu nascer.

 

Que é o Céu a pátria nossa;

Que é o mundo exílio breve;

Que o morrer é cousa leve;

Que é princípio, não é fim:

 

Que duas almas que se amaram

Vão lá ter nova existência,

Confundidas numa essência,

A de um novo querubim.

 

DEUS

 

Nas horas de silêncio, à meia-noite,

    Eu louvarei o Eterno!

Ouçam-me a terra, e os mares rugidores,

    E os abismos do Inferno.

Pela amplidão dos céus meus cantos soem,

    E a Lua resplendente

Pare em seu giro, ao ressoar nest'harpa

    O hino do Omnipotente.

 

Antes de tempo haver, quando o infinito

    Media a eternidade,

E só do vácuo as solidões enchia

    De Deus a imensidade,

Ele existia, em sua essência envolto,

    E fora dele o nada:

No seio do criador a vida do homem

    Estava ainda guardada;

Ainda então do mundo os fundamentos

    Na mente se escondiam

De Jeová, e os astros fulgurantes

    Nos céus não se volviam.

 

Eis o Tempo, o Universo, o Movimento

    Das mãos solta o Senhor.

Surge n Sol, banha a Terra, desabrocha

    Nesta a primeira flor;

Sobre o invisível eixo range o globo;

    O vento o bosque ondeia;

Retumba ao longe o mar; da vida a força

    A natureza anseia!

 

Quem, dignamente, ó Deus, há-de louvar-Te,

     Ou cantar Teu poder?

Quem dirá de Teu braço as maravilhas,

      Fonte de todo o ser,

No dia da Criação; quando os tesouros

        Da neve amontoaste;

Quando da Terra nos mais fundos vales

        As águas encerraste?!

 

E eu onde estava. quando o Eterno os mundos,

        Com dextra poderosa,

Fez, por lei imutável, se livrassem

        Na mole ponderosa?

Onde existia então ? No tipo imenso

       Das gerações futuras;

Na mente do meu Deus. Louvor a Ele

       Na Terra e nas alturas!

Oh, quanto é grande o rei das tempestades,

       Do raio, e do trovão!

Quão grande o Deus, que manda, em seco estio,

        Da tarde a viração!

Por Sua providência nunca, embalde,

        Zumbiu mínimo insecto;

Nem volveu o elefante, em campo estéril,

        Os olhos inquieto.

Não deu Ele à avezinha o grão da espiga,

        Que ao ceifador esquece:

Do norte ao urso o sol da Primavera,

        Que o reanima e aquece?

Não deu Ele à gazela amplos desertos,

        Ao certo a amena selva,

Ao flamingo os pauis, ao tigre o antro,

       No prado ao touro a relva?

Não mandou Ele ao mundo, em luto e trevas,

        Consolação e luz?

Acaso em vão algum desventurado

        Curvou-se aos pés da Cruz?

A quem não ouve Deus? Somente ao ímpio

       No dia da aflição,

Quando pesa sobre ele, por seus crimes.

       Do crime a punição.

 

Homem, ente imortal, que és tu perante

       A face do Senhor?

És a junça do brejo, harpa quebrada

       Nas mãos do trovador!

Olha o velho pinheiro, campeando

        Entre as neves alpinas:

Quem irá derribar o rei dos bosques

       Do trono das colinas?

Ninguém! Mas ai do abeto, se o seu dia

        Extremo Deus mandou!

Lá correu o aquilão: fundas raízes

         Aos ares lhe assoprou.

Soberbo, sem temor, saiu na margem

        Do caudaloso Nilo,

O corpo monstruoso ao sol voltando,

        Medonho crocodilo.

De seus dentes em roda o susto habita:

        Vê-se a morte assentada

Dentro em sua garganta, se descerra

       A boca afogueada:

Qual duro arnês de intrépido guerreiro

        É seu dorso escamoso;

Como os últimos ais de um moribundo

        Seu grito lamentoso:

Fumo e fogo respira quando irado;

       Porém, se Deus mandou,

Qual do norte impelida a nuvem passa,

       Assim ele passou!

 

Teu nome ousei cantar! Perdoa, ó Nume;

       Perdoa ao teu cantor!

Dignos de ti não são meus frouxos hinos,

        Mas são hinos de amor.

Embora vis hipócritas te pintem

        Qual bárbaro tirano:

Mentem, por dominar com férreo ceptro

        O vulgo cego e insano.

Quem os crê é um ímpio! Recear-te

        É maldizer-te, ó Deus;

É o trono dos déspotas da Terra

        Ir colocar nos Céus.

Eu, por mim, passarei entre os abrolhos

       Dos males da existência

Tranquilo, e sem temor, à sombra posto

        Da Tua Providência.

 

A TEMPESTADE

 

Sibila o vento: os torreões de nuvens

   Pesam nos densos ares:

Ruge ao largo a procela, e encurva as ondas

   Pela extensão dos mares:

A imensa vaga ao longe vem correndo

   Em seu terror envolta;

E, dentre as sombras, rápidas centelhas

   A tempestade solta.

Do sol no ocaso um raio derradeiro,

   Que, apenas fulge, morre,

Escapa à nuvem, que, apressada e espessa,

   Para apagá-lo corre.

Tal nos afaga em sonhos a esperança,

   Ao despontar do dia,

Mas, no acordar, lá vem a consciência

   Dizer que ela mentia!

 

As ondas negro-azuis se conglobaram;

   Serras tornadas são,

Contra as quais outras serras, que se arqueiam,

   Bater, partir-se vão.

Ó tempestade! Eu te saúdo, ó nume

   Da natureza açoite!

Tu guias os bulcões, do mar princesa,

   E é teu vestido a noite!

Quando pelos pinhais, entre o granizo,

   Ao sussurrar das ramas,

Vibrando sustos, pavorosa ruges

   E assolação derramas,

Quem porfiar contigo, então, ousara

   De glória e poderio;

Tu que fazes gemer pendido o cedro,

   Turbar-se o claro rio?

 

Quem me dera ser tu, por balouçar-me

   Das nuvens nos castelos,

E ver dos ferros meus, enfim, quebrados

  Os rebatidos elos.

Eu rodeara, então o globo inteiro;

  Eu sublevara as águas;

Eu dos vulcões com raios acendera

  Amortecidas fráguas;

Do robusto carvalho e sobro antigo

   Acurvaria as frontes;

Com furacões, os areais da Líbia

   Converteria em montes;

Pelo fulgor da Lua, lá do norte

   No pólo me assentara,

E vira prolongar-se o gelo eterno,

   Que o tempo amontoara.

Ali, eu solitário, eu rei da morte,

   Erguera meu clamor,

E dissera: «Sou livre, e tenho império;

   Aqui, sou eu senhor!»

 

Quem se pudera erguer, como estas vagas,

   Em turbilhões incertos,

E correr, e correr, troando ao longe,

   Nos líquidos desertos!

Mas entre membros de lodoso barro

   A mente presa está!...

Ergue-se em vão aos céus: precipitada,

   Rápido, em baixo dá.

 

Ó morte, amiga morte! é sobre as vagas,

   Entre escarcéus erguidos,

Que eu te invoco, pedindo-te feneçam

   Meus dias aborridos:

Quebra duras prisões, que a natureza

  Lançou a esta alma ardente;

Que ela possa voar, por entre os orbes,

   Aos pés do Omnipotente.

Sobre a nau, que me estreita, a prenhe nuvem

   Desça, e estourando a esmague,

E a grossa proa, dos tufões ludíbrio,

   Solta, sem rumo vague!

 

Porém, não!... Dormir deixa os que me cercam

   O sono do existir;

Deixa-os, vãos sonhadores de esperanças

   Nas trevas do porvir.

Doce mãe do repouso, extremo abrigo

   De um coração opresso,

Que ao ligeiro prazer, à dor cansada

   Negas no seio acesso,

Não despertes, oh não! os que abominam

   Teu amoroso aspeito;

Febricitantes, que se abraçam, loucos,

   Com seu dorido leito!

Tu, que ao mísero ris com rir tão meigo,

   Caluniada morte;

Tu, que entre os braços teus lhe dás asilo

   Contra o furor da sorte;

Tu, que esperas às portas dos senhores,

   Do servo ao limiar,

E eterna corres, peregrina, a terra

   E as solidões do mar,

Deixa, deixa sonhar ventura os homens;

   Já filhos teus nasceram:

Um dia acordarão desses delírios,

   Que tão gratos lhes eram.

E eu que velo na vida, e já não sonho

   Nem glória nem ventura;

Eu, que esgotei tão cedo, até às fezes,

   O cálix da amargura:

Eu, vagabundo e pobre, e aos pés calcado

   De quanto há vil no mundo,

Santas inspirações morrer sentindo

   Do coração no fundo,

Sem achar no desterro uma harmonia

   De alma, que a minha entenda,

Porque seguir, curvado ante a desgraça,

   Esta espinhosa senda?

Torvo o oceano vai! Qual dobre, soa

   Fragor da tempestade,

Salmo de mortos, que retumba ao longe,

  Grito da eternidade!...

 

Pensamento infernal! Fugir covarde

   Ante o destino iroso?

Lançar-me, envolto em maldições celestes,

   No abismo tormentoso?

Nunca! Deus pôs-se aqui para apurar-me

   Nas lágrimas da terra;

Guardarei minha estância atribulada,

   Com meu desejo em guerra.

O fiel guardador terá seu prémio,

   O seu repouso, enfim,

E atalaiar o sol de um dia extremo

   Virá outro após mim.

Herdarei o morrer! Como é suave

   Bênção de pai querido.

Será o despertar, ver meu cadáver,

   Ver o grilhão partido.

 

Um consolo, entretanto, resta ainda

   Ao pobre velador:

Deus lhe deixou, nas trevas da existência,

   Doce amizade e amor.

Tudo o mais é sepulcro branqueado

   Por embusteira mão;

Tudo o mais vãos prazeres que só trazem

   Remorso ao coração.

Passarei minha noite a luz tão meiga,

   Até o amanhecer;

Até que suba à pátria do repouso,

  Onde não há morrer.

 

O SOLDADO

 

Veia tranquila e pura

De meu paterno rio,

Dos campos, que ele rega,

Mansíssimo armentio.

 

Rocio matutino,

Prados tão deleitosos,

Vales, que assombravam selvas

De sinceirais frondosos,

 

Terra da minha infância,

Tecto de meus maiores,

Meu breve jardinzinho,

Minhas pendidas flores,

 

Harmonioso e santo

Sino do presbitério,

Cruzeiro venerando

Do humilde cemitério,

 

Onde os avós dormiram,

E dormirão os pais;

Onde eu talvez não durma,

Nem reze, talvez, mais,

 

Eu vos saúdo!, e o longo

Suspiro amargurado

Vos mando. E quanto pode

Mandar pobre soldado.

 

Sobre as cavadas ondas

Dos mares procelosos,

Por vós já fiz soar

Meus cantos dolorosos.

 

Na proa ressonante

Eu me assentava mudo,

E aspirava ansioso

O vento frio e agudo;

 

Porque em meu sangue ardia

A febre da saudade,

Febre que só minora

Sopro de tempestade;

 

Mas que se irrita, e dura

Quando é tranquilo o mar;

Quando da pátria o céu

Céu puro vem lembrar;

 

Quando, no extremo ocaso,

A nuvem vaporosa,

À frouxa luz da tarde,

Na cor imita a rosa;

 

Quando, do Sol vermelho

O disco ardente cresce,

E paira sobre as águas,

E enfim desaparece;

 

Quando no mar se estende

Manto de negro dó;

Quando, ao quebrar do vento,

Noite e silêncio é só;

 

Quando sussurram meigas

Ondas que a nau separa,

E a rápida ardentia

Em torno a sombra aclara.

 

Eu já ouvi, de noite,

Entre o pinhal fechado,

Um frémito soturno

Passando o vento irado:

 

Assim o murmúrio

Do mar, fervendo à proa,

Com o gemer do aflito,

Sumido, acorde soa;

 

E o cintilar das águas

Gera amargura e dor,

Qual lâmpada, que pende

No templo do Senhor,

 

Lá pela madrugada,

Se o óleo lhe escasseia,

E a espaços expirando.

Afrouxa e bruxuleia.

 

Bem abundante messe

De pranto e de saudade

O foragido errante

Colhe na soledade!

 

Para o que a pátria perde

É o universo mudo;

Nada lhe ri na vida;

Mora o fastio em tudo;

 

No meio das procelas,

Na calma do oceano,

No sopro do galerno,

Que enfuna o largo pano.

 

E no entestar coa terra

Por abrigado esteiro,

E no pousar à sombra

Do tecto do estrangeiro.

 

E essas memórias tristes

Minha alma laceraram,

E a senda da existência

Bem agra me tornaram:

 

Porém nem sempre férreo

Foi meu destino escuro;

Sufocou de luz um raio

As trevas do futuro.

 

Do meu país querido

A praia ainda beijei,

E o velho e amigo cedro

No vale ainda abracei!

 

Nesta alma regelada

Surgiu ainda o gozo,

E um sonho lhe sorriu

Fugaz, mas amoroso.

 

Oh, foi sonho da infância

Desse momento o sonho!

Paz e esperança vinham

Ao coração tristonho.

 

Mas o sonhar que monta,

Se passa, e não conforta?

Minh'alma deu em terra,

Como se fosse morta.

 

Foi a esperança nuvem,

Que o vento some á tarde:

Facho de guerra aceso

Em labaredas arde!

 

Do fratricídio a luva

Irmão a irmão lançara,

E o grito: ai do vencido!

Nos montes retumbara.

 

As armas se hão cruzado:

O pó mordeu o fone;

Caiu: dorme tranquilo:

Deu-lhe repouso a morte.

 

Ao menos, nestes campos

Sepulcro conquistou,

E o adro dos estranhos

Seus ossos não guardou.

 

Ele herdará, ao menos,

Aos seus honrado nome;

Paga de curta vida

Ser-lhe-á largo renome.

 

E a bala sibilando,

E o trom da artilharia,

E a tuba clamorosa,

Que os peitos acendia,

 

E as ameaças torvas,

E os gritos de furor,

E desses que expiravam

Som cavo de estertor,

 

E as pragas do vencido,

Do vencedor o insulto.

E a palidez do morto,

Nu, sanguento, insepulto,

 

Eram um caos de dores

Em convulsão horrível,

Sonho de acesa febre,

Cena tremenda e incrível!

 

E suspirei: nos olhos

Me borbulhava o pranto,

E a dor, que trasbordava,

Pediu-me infernal canto.

 

Oh, sim!, maldisse o instante,

Em que buscar viera,

Por entre as tempestades,

A terra em que nascera.

 

Que é, em fraternas lides,

Um canto de vitória?

É delirar maldito;

É triunfar sem glória.

 

Maldito era o triunfo,

Que rodeava o horror,

Que me tingia tudo

De sanguinosa cor!

 

Então olhei saudoso

Para o sonoro mar;

Da nau do vagabundo

Meigo me riu o arfar.

 

De desespero um brado

Soltou, ímpio, o poeta,

Perdão! Chegara o mísero

Da desventura à meta.

 

Terra infame! – de servos aprisco,

Mais chamar-me teu filho não sei;

Desterrado, mendigo serei:

De outra terra meus ossos serão!

 

Mas a escravo, que pugna por ferros,

Que herdará desonrada memória,

Renegando da terra sem glória,

Nunca mais darei nome de irmão!

 

Onde é livre tem pátria o poeta,

Que ao exílio condena ímpia sorte.

Sobre os plainos gelados do norte

Luz do Sol também desce do céu;

 

Também lá se erguem montes. e o prado

De boninas, em Maio. se veste;

Também lá se meneia o cipreste

Sobre o corpo que à terra desceu.

 

Que me importa o loureiro da encosta?

Que me importa da fonte o ruído?

Que me importa o saudoso gemido

Da rolinha sedenta de amor?

 

Que me importam outeiros cobertos

Da verdura da vinha, no Estio?

Que me importa o remanso do rio,

E, na calma, da selva o frescor?

 

Que me importa o perfume dos campos,

Quando passa da tarde a bafagem,

Que se embebe, na sua passagem,

Na fragrância da rosa e alecrim?

 

Que me importa? Pergunta insensata!

É meu berço: a minha alma está lá...

Que me importa... Esta boca o dirá?!

Minha pátria, estou louco... menti!

 

Eia, servos! O ferro se cruze,

Assobie o pelouro nos ares;

Estes campos convertam-se em mares,

Onde o sangue se possa beber!

 

Larga a vala!, que, após a peleja,

Todos nós dormiremos unidos!

Lá, vingados, e do ódio esquecidos,

Paz faremos... depois do morrer!

 

Assim, entre amarguras,

Me delirava a mente;

E o Sol ia fugindo

No termo do Ocidente.

 

E os fortes lá jaziam

Coa face ao céu voltada;

Sorria a noite aos monos,

Passando sossegada.

 

Porém, a noite deles

Não era a que passava!

Na eternidade a sua

Corria, e não findava.

 

Contrários ainda há pouco,

Irmãos, enfim, lá eram!

O seu tesouro de ódio,

Mordendo o pó, cederam.

 

No limiar da morte

Assim tudo fenece:

Inimizades calam,

E até o amor esquece!

 

Meus dias rodeados

Foram de amor outrora;

E nem um vão suspiro

Terei, morrendo, agora,

 

Nem o apertar da dextra

Ao desprender da vida,

Nem lágrima fraterna

Sobre a feral jazida!

 

Meu derradeiro alento

Não colherão os meus.

Por minha alma aterrada

Quem pedirá a Deus?

 

Ninguém! Aos pés o servo

Meus restos calcará,

E o riso ímpio, odiento,

Mofando soltará.

 

O sino lutuoso

Não lembrará meu fim:

Preces, que o morto afagam,

Não se erguerão por mim!

 

O filho dos desertos,

O lobo carniceiro,

Há-de escutar alegre

Meu grito derradeiro!

 

Ó morte, o sono teu

Só é sono mais largo;

Porém, na juventude,

É o dormi-lo amargo:

 

Quando na vida nasce

Essa mimosa flor,

Como a cecém suave,

Delicioso amor;

 

Quando a mente acendida

Crê na ventura e glória;

Quando o presente é tudo.

E inda nada a memória!

 

Deixar a cara vida,

Então é doloroso,

E o moribundo à Terra

Lança um olhar saudoso.

 

A taça da existência

No fundo fezes tem;

Mas os primeiros tragos

Doces, bem doces, vem.

 

E eu morrerei agora

Sem abraçar os meus,

Sem jubiloso um hino

Alevantar aos Céus?

 

Morrer, morrer, que importa?

Final suspiro, ouvi-lo

Há-de a pátria. Na terra

Irei dormir tranquilo.

 

Dormir? Só dorme o frio

Cadáver, que não sente;

A alma voa a abrigar-se

Aos pés do Omnipotente.

 

Reclinar-me-ei à sombra

Do amplo perdão do Eterno;

Que não conheço o crime,

E erros não pune o Inferno.

 

E vós, entes queridos,

Entes que tanto amei,

Dando-vos liberdade

Contente acabarei.

 

Por mim livres chorar

Vós podereis um dia,

E às cinzas do soldado

Erguer memória pia.

 

D. PEDRO

 

Pela encosta do Líbano, rugindo,

         O noto furioso

Passou um dia, arremessando à terra

         O cedro mais frondoso;

Assim te sacudiu da morte o sopro

         Do carro da vitória,

Quando, ébrio de esperanças, tu sorrias,

         Filho caro da glória.

Se, depois de procela em mar de escolhos,

        A combatida nave

Vê terra e vento abranda, o porto aferra,

         Com júbilo suave.

Também tu demandaste o Céu sereno,

        Depois de uma árdua lida:

Deus te chamou: o prémio recebeste

         Dos méritos da vida.

Que é esta? Um ermo de espinhais cortado,

        Donde foge o prazer:

Para o justo ela existe além da campa:

         Teme o ímpio o morrer.

Plante-se a acácia, o símbolo do livre,

         Junto às cinzas do forte:

Ele foi rei – e combateu tiranos –

         Chorai, chorai-lhe a morte!

Regada pelas lágrimas de um povo,

         A planta crescerá;

E à sombra dela a fronte do guerreiro

         Plácida pousará.

Essa fronte das balas respeitada,

       Agora a traga o pó:

Do valente, do bom, do nosso Amigo

         Restam memórias só;

Mas estas, entre nós, com a saudade

         Perenes viverão,

Enquanto, à voz de pátria e liberdade.

         Ansiar um coração.

Nas orgias de Roma, a prostituta,

         Folga, vil opressor:

Folga com os hipócritas do Tibre;

         Morreu teu vencedor.

Envolto em maldições, em susto, em crimes

         Fugiste, desgraçado:

Ele, subindo ao Céu, ouviu só gueixas,

         E um choro não comprado:

Encostado na borda do sepulcro,

         O olhar atrás volveu,

As suas obras contemplou passadas,

         E em paz adormeceu:

Os teus dias também serão contados,

         Covarde foragido;

Mas será de remorso tardo e inútil

         Teu último gemido:

Do passamento o cálix lhe adoçaram

         Uma filha, urna esposa:

Quem, tigre cru, te cercará o leito,

        Nessa hora pavorosa?

Deus, tu és bom: e o virtuoso em breve

         Chamas ao gozo eterno,

E o ímpio deixas saciar de crimes,

         Para o sumir no Inferno?

Alma gentil, que assim nos hás deixado,

         Entregues à alta dor,

Anjo das preces nos serás, perante

         O trono do Senhor:

E quando, cá na Terra, o poderoso

         As Leis aos pés calcar,

Junto do teu sepulcro irá o opresso

         Seus males deplorar:

Assim, no Oriente, de Albuquerque às cinzas

         O desvalido indiano

Mais de urna vez foi demandar vingança

         De um déspota inumano.

Mas quem ousará à pátria tua e nossa

         Curvar nobre cerviz?

Quem roubará ao lusitano povo

         Um povo ser feliz?

Ninguém! Por tua glória os teus soldados

        Juram livres viver.

Ai do tirano que primeiro ousasse

         Do voto escarnecer!

Nesse abraço final, que nos legaste,

         Legaste o génio teu:

Aqui – no coração – nós o guardámos;

         Teu génio não morreu.

Jaz em paz: essa terra, que te esconde,

         O monstro abominado

Só pisará ao baquear sobre ela

         Teu último soldado.

 

Eu também combati: nus pátrias lides

         Também colhi um louro:

O prantear o Companheiro extinto

         Não me será desdouro.

Para o Sol do Oriente outros se voltem,

         Calor e luz buscando:

Que eu pelo belo Sol, que jaz no ocaso,

         Cá ficarei chorando.

 

                A VITÓRIA E A PIEDADE

 

Eu nunca fiz soar meus pobres cantos

      Nos paços dos senhores!

Eu jamais consagrei hino mentido

      Da terra dos opressores.

Mal haja o trovador que vai sentar-se

     À porta do abastado,

O qual com ouro paga a própria infâmia,

      Louvor que foi comprado.

Desonra àquele, que ao poder e ao ouro

      Prostitui o alaúde!

Deus à poesia deu por alvo a pátria,

      Deu a glória e a virtude.

Feliz ou infeliz, triste ou contente,

      Livre o poeta seja,

E em hino isento a inspiração transforme

      Que na sua alma adeja.

 

No despontar da vida, do infortúnio

      Murchou-me o sopro ardente;

E saudades curti em longes terras

    Da minha terra ausente.

O solo do desterro, ai, quanto ingrato

     É para o foragido,

 E nevoado o céu, árido o prado,

     O rio adormecido!

E lá chorei, na idade da esperança,

      Da pátria a dura sorte;

 Esta alma encaneceu; e antes de tempo

     Ergueu hinos à morte;

 Que a morte é para o mísero risonha,

     Santa da campa a imagem

 Ali é que se aferra o porto amigo,

     Depois de árdua viagem.

 

Mas quando o pranto me sulcava as faces,

    Pranto de atroz saudade,

Deus escutou do vagabundo as preces,

    Dele teve piedade.

«Armas», bradaram no desterro os fortes,

    Como bradar de um só:

Erguem-se, voam, cingem ferros; cinge-os

    Indissolúvel nó.

Com seus irmãos as sacrossantas juras,

    Beijando a cruz da espada,

Repetiu o poeta: «Eia, partamos!

    Ao mar!» Partia a armada,

Pelas ondas azuis correndo afoutos,

    As praias demandámos

Do velho Portugal, e o balção negro

    Da guerra despregámos;

De guerra em que era infâmia o ser piedoso,

    Nobreza o ser cruel,

E em que o golpe mortal descia envolto

    Das maldições no fel.

 

Fanatismo brutal, ódio fraterno,

    De fogo céus toldados,

A fome, a peste, o mar avaro, as turbas

    De inúmeros soldados;

Comprar com sangue pão, com sangue o lume

    Em regelado Inverno;

Eis contra o que, por dias de amargura,

    Nos fez lutar o Inferno.

Mas de fera vitória, enfim, colhemos

    A c'roa de cipreste;

Que a fronte ao vencedor em ímpia luta

    Só essa c'roa veste.

Como ela torvo, soltarei um hino

       Depois do triunfar.

Oh, meus irmãos, da embriaguez da guerra

       Bem triste é o acordar!

Nessa alta encosta sobranceira aos campos,

       De sangue ainda impuros,

Onde o canhão troou por mais de um ano

        Contra invencíveis muros,

Eu, tomando o alaúde, irei sentar-me,

        Pedir inspirações

À noite queda, ao génio que me ensina

   Segredos das canções.

 

Reina em silêncio a lua; o mar não brame,

   Os ventos nem bafejam;

Rasas co'a terra, só nocturnas aves

   Em giros mil adejam.

No plaino pardacento, junto ao marco

   Tombado, ou rota sebe,

Aqui e ali, de ossadas insepultas

   O alvejar se percebe.

É que essa veiga, tão festiva outrora,

   Da paz tranquilo império,

Onde ao carvalho a vide se enlaçava,

   É hoje um cemitério!

 

Eis de esforçados mil inglórios restos,

   Depois de brava lida;

De longo combater atroz memento

   Em guerra fratricida.

Nenhum padrão recordará aos homens

   Seus feitos derradeiros.

Nem dirá: – «Aqui dormem portugueses;

   Aqui dormem guerreiros.»

Nenhum padrão, que peça aos que passarem

   Reza fervente e pia,

E junto ao qual entes queridos vertam

   O pranto da agonia!

Nem hasteada cruz, consolo ao morto;

   Nem lájea que os proteja

Do ardente sol, da noite húmida e fria,

   Que passa e que roreja!

Não! Lá hão-de jazer no esquecimento

   De desonrada morte,

Enquanto, pelo tempo em pó desfeitos,

   Não os dispersa o norte.

 

Quem, pois, consolará gementes sombras,

   Que ondeiam junto a mim?

Quem seu perdão da Pátria implorar ousa,

   Seu perdão do Elohim?

Eu, o cristão, o trovador do exílio,

  Contrário em guerra crua,

Mas que não sei verter o fel da afronta

  Sobre uma ossada nua.

 

Lavradores, zagais, descem dos montes,

        Deixando terras, gados,

Para as armas vestir, dos céus em nome,

        Por fariseus chamados.

De um Deus de paz hipócritas ministros

        Os tristes enganaram:

Foram eles, não nós, que estas caveiras

       Aos vermes consagraram.

Maldito sejas tu, monstro do Inferno,

       Que do Senhor no templo,

Junto da eterna Cruz, ao crime incitas,

       Dás do furor o exemplo!

Sobre as cinzas da Pátria, ímpio, pensaste

  Folgar de nosso mal,

E, entre as ruínas de cidade ilustre,

  Soltar riso infernal.

Tu, no teu coração incipiente,

   Disseste: – «Deus não há!»

Ele existe, malvado; e nós vencemos:

   Treme; que tempo é já!

 

Mas esses, cujos ossos espalhados

   No campo da peleja

Jazem, exoram a piedade nossa;

   Piedoso o livre seja!

Eu pedirei a paz dos inimigos,

   Mortos coma valentes,

Ao Deus nosso juiz, ao que distingue

   Culpados de inocentes.

 

Perdoou, expirando, o Filho do Homem

   Aos seus perseguidores;

Perdão, também, às cinzas de infelizes;

   Perdão, oh vencedores!

Não insulteis o morto. Ele há comprado

   Bem caro o esquecimento,

Vencido adormecendo em morte ignóbil,

   Sem dobre ou monumento.

C tempo d'olvidar ódios profundos

   De guerra deplorável.

O forte é generoso, e deixa ao fraco

   O ser inexorável.

Oh, perdão para aquele a quem a morte

   No seio agasalhou!

Ele é mudo: pedi-lo já não pode;

   O dá-lo a nós deixou.

Além do limiar da eternidade

   Cl mundo não tem réus,

O que levou à terra o pó da terra

   Julgá-lo cabe a Deus.

E vós, meus companheiros, que não vistes

   Nossa triste vitória,

Não precisais do trovador o canto:

   Vosso nome é da história.

 

Assim, foi do infeliz sobre a jazida

   Que um hino murmurei,

E, do vencido consolando a sombra,

   Por vós eu perdoei.

 

Este fragmento, que segue, e que servirá para inteligência dos precedentes versos, pertence a um livro já todo escrito no entendimento, mas de que só alguns capítulos estão trasladados ao papel. A Guerra da Restauração de 1832 a 1833 é o acontecimento mais espantoso e mais poético deste século. Entre os soldados de D. Pedro havia poetas: militava connosco o autor de D. Branca, do Camões. de João Mínimo; o Sr. Lopes de Lima, e outros: mas a política engodou todos os engenhos, e levou-os consigo. Os homens de bronze, os sete mil de Mindelo, não tiveram um cantor; e apenas en, o mais obscuro de todos, salvei em minha humilde prosa uma diminuta porção de tanta riqueza poética. Oxalá que esse mesmo trabalho, ainda que de pouca valia, não fique esmagado e sumido debaixo do Leviatã da política. Todos nós temos vendido a nossa alma ao espírito imundo do jornalismo. E o mais é que poucos conhecem uma coisa: que política de poetas vale, por via de regra, tanto como poesia de políticos.

Fragmento. – O combate da antevéspera estava ainda vivo na minha imaginação: eu cria ver ainda os cadáveres dos meus amigos e camaradas, espalhados ao redor do fatal reduto, em que estava assentado: ainda me soavam nos ouvidos o seu clamor de entusiasmo ao acometê-lo, o sibilar das balas, o grito dos feridos, o som das armas, caindo-lhes das mãos, o gemido doloroso e longo da sua agonia, o estertor de moribundos, e o arranco final do morrer. Os dentes me rangeram de cólera, e a lágrima envergonhada de soldado me escorregou pelas faces. O Porto estava descercado; mas quantos valentes caíram nesse dia! Eu ia amaldiçoar os cadáveres dos vencidos, que ainda por aí jaziam; porém, pareceu-me que eles se alevantavam e me diziam: «lembra-te de que também fomos soldados; lembra-te de que fomos vencidos!» E eu bem sabia que inferno lhes devia ter sido, no momento de expirarem, as ideias de soldado e de vencimento, conglobadas numa só, como tremenda e indelével ignomínia, estampada na fronte do que ia transpor os umbrais do outro mundo. Então orei a Deus por eles: antes de irmão de armas eu tinha sido cristão; e Jesus Cristo perdoara, entre as afrontas da Cruz, aos seus assassinos. A ideia de perdão parecia me consolava da perda de tantos e tão valentes amigos. Havia nessa ideia torrentes de poesia; e eu te devia então, ó crença do Evangelho, talvez a melhor das minhas pobres canções. (Da Minha Mocidade – Poesia e Meditação.)

 

A CRUZ MUTILADA

 

Amo-te, ó cruz, no vértice, firmada

        De esplêndidas igrejas;

Amo-te quando à noite, sobre a campa,

        Junto ao cipreste alvejas;

Amo-te sobre o altar, onde, entre incensos,

       As preces te rodeiam;

Amo-te quando em préstito festivo

       As multidões te hasteiam;

Amo-te erguida no cruzeiro antigo,

        No adro do presbitério,

Ou quando o morto, impressa no ataúde,

        Guias ao cemitério;

Amo-te, ó cruz, até, quando no vale

        Negrejas triste e só,

Núncia do crime, a que deveu a terra

        Do assassinado o pó:

 

Porém guando mais te amo,

Ó cruz do meu Senhor,

É, se te encontro à tarde,

Antes de o Sol se pôr,

 

Na clareira da serra,

Que o arvoredo assombra,

Quando à luz que fenece

Se estira a tua sombra,

 

E o dia últimos raios

Com o luar mistura,

E o seu hino da tarde

O pinheiral murmura.

 

E eu te encontrei, num alcantil agreste,

Meia quebrada, ó cruz. Sozinha estavas

Ao pôr do Sol, e ao elevar-se a Lua

Detrás do calvo cerro. A soledade

Não te pôde valer contra a mão ímpia,

Que te feriu sem dó. As linhas puras

De teu perfil, falhadas, tortuosas,

Ó mutilada cruz, falam de um crime

Sacrílego, brutal e ao ímpio inútil!

A tua sombra estampa-se no solo,

Como a sombra de antigo monumento,

Que o tempo quase derrocou, truncada.

No pedestal musgoso, em que te ergueram

Nossos avós, eu me assentei. Ao longe,

Do presbitério rústico mandava

O sino os simples sons pelas quebradas

Da cordilheira, anunciando o instante

Da ave-maria; da oração singela,

Mas solene, mas santa, em que a voz do homem

Se mistura nos cânticos saudosos,

Que a natureza envia ao Céu no extremo

Raio de sol, pasmado fugitivo

Na tangente deste orbe, ao qual trouxeste

Liberdade e progresso, e que te paga

Com a injúria e o desprezo, e que te inveja

Até, na solidão, o esquecimento!

 

Foi da ciência incrédula o sectário,

Acaso, ó cruz da serra, o que na face

Afrontas te gravou com mão profusa?

Não! Foi o homem do povo, a quem consolo

Na miséria e na dor constante hás sido

Por bem dezoito séculos: foi esse

Por cujo amor surgias qual remorso

Nos sonhos do abastado ou do tirano.

Bradando – esmola! a um; piedade! ao outro.

 

Ó cruz, se desde o Gólgota não foras

Símbolo eterno de urna crença eterna;

Se a nossa fé em ti fosse mentida,

Dos opressos de outrora os livres netos

Por sua ingratidão dignos de opróbio,

Se não te amassem, ainda assim seriam.

Mas és núncia do Céu, e eles te insultam,

Esquecidos das lágrimas perenes

Por trinta gerações, que guarda a campa.

Vertidas a teus pés nos dias torvos

Do seu viver d'escravidão! Deslembram-se

 

De que. se a paz doméstica, a pureza

Do leito conjugal bruta violência

Não vai contaminar, se a filha virgem

Do humilde camponês não é ludíbrio

Do opulento, do nobre, ó Cruz. to devem;

Que por ti o cultor de férteis campos

Colhe tranquilo da fadiga o prémio,

Sem que a voz de um senhor, qual dantes, dura

Lhe diga: «É meu, e és meu! A mim deleites,

Liberdade, abundância: a ti, escravo,

O trabalho. a miséria unido à terra,

Que o suor dessa fronte fertiliza,

Enquanto, em dia de furor ou tédio,

Não me apraz com teus restos fecundá-la.»

 

Quando calada a humanidade ouvia

Este atroz blasfemar, tu te elevaste

Lá do Oriente, ó Cruz, envolta em glória,

E bradaste, tremenda, ao forte, ao rico:

«Mentira!», e o servo alevantou os olhos,

Onde a esperança cintilava, a medo,

E viu as faces do senhor retintas

Em palidez mortal, e errar-lhe a vista

Trépida, vaga. A cruz no céu do Oriente

Da liberdade anunciara a vinda.

 

Cansado, o ancião guerreiro, que a existência

Desgastou no volver de cem combates,

Ao ver que, enfim, o seu país querido

Já não ousam calcar os pés d'estranhos,

Vem assentar-se à luz meiga da tarde,

Na tarde do viver, junto do teixo

Da montanha natal. Na fronte calva,

Que o sol tostou e que enrugaram anos,

Há um como fulgor sereno e santo.

Da aldeia semideus, devem-lhe todos

D tecto, a liberdade, e a honra e vida.

Ao perpassar do veterano, os velhos

A mão que os protegeu apertam gratos;

Com amorosa timidez os moços

Saúdam-no qual pai. Nus largas noites

Da gelada estação, sobre a lareira

Nunca lhe falta o cepo incendiado;

Sobre a mesa frugal nunca, no estio,

Refrigerante pomo. Assim do velho

Pelejador os derradeiros dias

Derivam paru o túmulo suaves,

Rodeados de afecto, e quando à terra

A mão do tempo gastador o guia,

Sobre a lousa a saudade ainda lhe esparze

Flores, lágrimas, bênçãos, que consolem

Do defensor do fraco as cinzas frias.

 

Pobre cruz! Pelejaste mil combates,

Os gigantes combates dos tiranos,

E venceste. No solo libertado,

Que pediste? Um retiro no deserto,

Um píncaro granítico, açoutado

Pelas asas do vento e enegrecido

Por chuvas e por sóis. Para ameigar-te

Este ar húmido e gélido a segure

Não foi ferir do bosque o rei. Do Estio

No ardor canicular nunca disseste:

«Dai-me, sequer, do bravo medronheiro

O desprezado fruto!» O teu vestido

Era o musgo, que tece a mão do Inverno

E Deus criou para trajar as rochas.

Filha do céu, o céu era o seu tecto,

Teu escabelo o dorso da montanha.

Tempo houve em que esses braços te adornava

C'roa viçosa de gentis boninas,

E o pedestal te rodeavam preces.

Ficaste em breve só, e a voz humana

Fez, pouco a pouco, junto a ti silêncio.

Que te importava? As árvores da encosta

Curvavam-se a saudar-te, e revoando

As aves vinham circundar-te de hinos.

Afagava-te o raio derradeiro,

Frouxo do Sul ao mergulhar nos mares.

E esperavas o túmulo. O teu túmulo

Devera ser o seio destas serras,

Quando, em Génesis novo, à voz do Eterno,

Do orbe ao núcleo fervente, que as gerara,

Elas nus fauces dos bolcões descessem.

Então para essa campa flores, bênçãos,

Ou é saudade lágrimas vertidas,

Qual do velho soldado a lousa pede,

Não pediras à ingrata raça humana,

Ao pé de ti no seu sudário envolta.

 

Este longo esperar do dia extremo,

No esquecimento do ermo abandonada,

Foi duro de sofrer aos teus remidos,

Ó redentora cruz. Eras, acaso,

Como um remorso e acusação perene

No teu rochedo alpestre, onde te viam

Pousar tristonha e só? Acaso, à noite,

Quando a procela no pinhal rugia,

Criam ouvir-te a voz acusadora

Sobreelevar à voz da tempestade?

Que lhes dizias tu? De Deus falavas,

E do seu Cristo, do divino mártir,

Que a ti, suplício e afronta, a ti maldita

Ergueu, purificou, clamando ao servo,

No seu transe: «Ergue-te, escravo!

És livre, como é pura a cruz da infâmia.

Ela vil e tu vil, santos, sublimes

Sereis ante meu Pai. Ergue-te, escravo!

Abraça tua irmã: segue-a sem susto

No caminho dos séculos. Da Terra

Pertence-lhe o porvir, e o seu triunfo

Trará da tua liberdade o dia.»

 

Eis porque teus irmãos te arrojam pedras,

Ao perpassar, ó cruz! Pensam ouvir-te

Nos rumores da noite, a antiga história

Recontando do Gólgota, lembrando-lhes

Que só ao Cristo a liberdade devem,

E que ímpio o povo ser é ser infame.

Mutilado por ele, a pouco e pouco,

Tu em fragmentos tombarás do cerro,

Símbolo sacrossanto. Hão-de os humanos

Aos pés pisar-te; e esquecerás no mundo.

Da gratidão a dívida não paga

Ficará, ó tremenda acusadora,

Sem que as faces lhes tinja a cor do pejo;

Sem que o remorso os corações lhes rasgue.

Do Cristo o nome passará na Terra.

 

Não! Quando, em pó desfeita, a cruz divina

Deixar de ser perene testemunha

Da avita crença, os montes, a espessura,

O mar, a Lua, o murmurar da fonte,

Da natureza as vagas harmonias,

Da cruz em nome, falarão do Verbo.

 

Dela no pedestal, então deserto,

Do deserto no seio, ainda o poeta

Virá, talvez, ao pôr do Sol sentar-se;

E a voz da selva lhe dirá que é santo

Este rochedo nu, e um hino pio

A solidão lhe ensinará e a noite.

 

Do cântico futuro unta toada

Não sentes vir, ó cruz, de além dos tempos

Da brisa do crepúsculo nus asas?

É o porvir que te proclama eterna;

É a voz do poeta a saudar-te.

 

        Montanha do Oriente,

Que, sobre as nuvens elevando o cume,

Divisas logo o Sol, surgindo a aurora,

       E que, lá no Ocidente,

Última vez seu radioso lume,

Em ti minha alma a eterna cruz adora.

 

       Rochedo, que descansas

No promontório nu e solitário,

Como atalaia que o oceano explora,

       Alheio ás mil mudanças

Que o mundo agitam turbulento e vário,

Em ti minha alma a eterna cruz adora.

 

        Sobros, robles frondentes,

Cuja sombra procura o viandante,

Fugindo ao Sol a prumo que o devora,

        Nesses dias ardentes

Em que o Leão nos céus passa radiante,

Em ti minha alma a eterna cruz adora.

 

        Ó mato variado,

De rosmaninho e murta entretecido,

De cujas ténues flores se evapora

       Aroma delicado,

Quando és por leve aragem sacudido,

Em ti minha alma a eterna cruz adora.

 

        Ó mar, que vais quebrando

Rolo após rolo pela praia fria,

E fremes som de paz consoladora,

        Dormente murmurando

Na caverna marítima sombria,

Em li minha alma a eterna cruz adora.

 

        Ó Lua silenciosa,

Que em perpétuo volver. seguindo a Terra,

Esparzes tua luz ameigadora

        Pela serra formosa,

E pelos lagos que em seu seio encerra,

Em ti minha alma a eterna cruz adora.

 

Debalde o servo ingrato

No pó te derribou

E os restos te insultou,

Ó veneranda cruz:

 

Embora eu te não veja

Neste ermo pedestal;

És santa, és imortal;

Tu és a minha luz!

 

Nas almas generosas

Gravou-te a mão de Deus,

E, à noite, fez nos céus

Teu vulto cintilar.

 

Os raios das estrelas

Cruzam o seu fulgor;

Nas horas do furor

As vagas cruza o mar.

 

Os ramos enlaçados

Do roble, choupo e til

Cruzando em modos mil,

Se vão entretecer.

 

Ferido, abre-o guerreiro

Os braços, solta um ai,

Pára, vacila, e cai

Para não mais se erguer.

 

Cruzado aperta ao seio

A mãe o filho seu,

Que busca, mal nasceu,

Fontes da vida e amor.

 

Surges; símbolo eterno,

No Céu, na Terra e mar,

Do forte no expirar,

E do viver no alvor!

 

                                                                                            Alexandre Herculano

 

                      

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