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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A HOMOSSEXUALIDADE FEMININA / Teresa Castro d’Aire
A HOMOSSEXUALIDADE FEMININA / Teresa Castro d’Aire

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

Tentamos oferecer ao público leitor um momento mais de reflexão sobre a realidade de um grupo de pessoas que entenderam viver uma sexualidade de sinal contrário. Também este é um tema ao qual julgamos que um grande número de leitores não irá resistir, seja qual for o seu sexo e a sua orientação sexual. Porque é um dos maiores tabús da História da nossa Civilização. Um tabú que engloba um mistério indesvendável.

Tal como já tinha acontecido com os homossexuais masculinos, também elas, as sáficas, ao longo dos séculos, e salvo raras excepções, se esquivaram a falar sobre a intimidade dos seus sentimentos e da sua sexualidade.

Tal como se passou com eles, também elas resolveram finalmente quebrar o seu silêncio. Aceitaram falar um pouco de si, rompendo assim com um secretismo que desde sempre as vinha acompanhando.

Tiveram aqui a palavra, disseram o que tinham a dizer. Uma delas quis inclusivamente identificar-se.

São nove entrevistas que se pretenderam informais no tom, mas nem por isso menos sérias na abordagem das questões, e sobretudo despidas de preconceitos. Também aqui a intimidade é chamada pelo nome que tem, sem falsos pudores.

Foram entrevistadas mulheres de grupos etários que vão dos dezanove aos sessenta e cinco anos, com estatutos sócio-profissionais muito diferentes, mulheres diferentes até na cor da pele, com opções políticas e religiosas muito diversificadas. Estão presentes mães de família de aspecto conservador e está uma activista política de esquerda. Estão católicas praticantes, uma delas esteve quase a ser freira, está uma meia-judia, está uma panteísta e uma ateia confessa.

Nalguns pontos assumem, no entanto, posições convergentes: à semelhança dos homens, todos elas entendem que a homossexualidade é uma característica que nalguns casos surge logo na infância, noutros casos só muito mais tarde se revela, mas é qualquer coisa que nasce com o indivíduo. Há quem tenha tido a sua primeira experiência aos dez anos de idade, há quem a tenha tido aos quarenta e oito.

Todas elas garantem que as sáficas portuguesas são muitas. Ninguém sabe quantas serão ao certo, mas de acordo com estes depoimentos são muito mais numerosas do que geralmente se imagina. Algumas foram ou são casadas, três delas têm um ou mais filhos, outras tantas gostariam de os ter tido.

Todas elas têm códigos de valores e todas elas fazem conceitos morais da vida.

Todas elas parecem absolutamente libertas de qualquer sentimento de culpa em relação à sua orientação sexual, todas elas estão perfeitamente satisfeitas com a sua condição de mulheres e com a sua condição de sáficas.

Um ponto em que parecem discordar: a designação a adoptar. Há as que aceitam com agrado a palavra lésbica, há as que não querem nem ouvir pronunciá-la.

Quem são elas? Pessoas comuns. Pessoas, apenas pessoas que quiseram falar um pouco de si próprias. Talvez seja... essa rapariga que vai sentada ao seu lado no autocarro ou no metro.

 

 


 

                       Ana Margarida, 39 anos, bancária

 

- Bom, em primeiro lugar, diga-me qual é a designação que prefere: sáfica, lésbica, mulher homossexual...

- Eu gosto da palavra lésbica, é uma palavra que me soa muito bem, inclusive noutras línguas, lesbian, lesbienne... mas sei que é uma palavra que não agrada a muita gente, inclusive às próprias lésbicas.

- Porque será? Tem alguma explicação para isso?

- Bom, a mim parece-me que as pessoas ainda têm muita dificuldade em encarar as coisas de frente, quer dizer, em aceitar o fenómeno com naturalidade, quando afinal não é nenhum bicho de sete cabeças. É a coisa mais natural desta vida, faz parte de múltiplas culturas, desde os gineceus gregos aos harens árabes...

- Está bem, já vamos falar nisso, mas agora preferia que me dissesse alguma coisa sobre as origens do lesbianismo, no seu caso pessoal. Acha que já nasceu lésbica, ou isso foi uma coisa que só lhe aconteceu mais tarde?

- Olhe, você está-me a dar imensa vontade de rir com essa pergunta, porque de repente lembrei-me de uma fulana que eu conheço que diz que se tornou lésbica por causa de uma anestesia geral. Ela conta que não tinha nenhuma espécie de tendências, nem nunca tinha pensado em semelhante coisa, e que um dia foi operada a uma apendicite, e acordou lésbica. Diz que quando acordou da anestesia olhou para a cara da médica anestesista e de repente apaixonou-se por ela. Você acha que isto pode acontecer a uma pessoa?

- Realmente é um bocado esquisito...

- Pois é... eu não acredito. Olhe, no meu caso eu acho que foi de nascença. Aliás, a mim parece-me que é sempre de nascença. Algumas mulheres demoram é uma data de anos a descobrir a coisa dentro delas. Estou-me a lembrar de uma frase da Jill Johnston “Todas as mulheres são lésbicas, à excepção daquelas que ainda não o sabem”. E é perfeitamente natural que levem algum tempo a descobrir, repare que toda a educação que recebemos desde que nascemos é uma educação aparentemente inspirada nos valores heterossexuais, mas no fundo cheia de convites à homossexualidade, às vezes muito subtis, mas que estão lá, para quem os quiser ver. Repare na Barbie, por exemplo. A beleza feminina para agradar aos homens, não é? Mas antes de agradar aos homens, é para agradar a quem? Às meninas de cinco anos...

- Quer dizer que as Barbies podem ajudar a estimular as tendências lésbicas das meninas de cinco anos?

- Como milhares de outras coisas. Tudo aquilo que as ajuda a desenvolver ajuda a desenvolver todas as suas vertentes, a vertente lésbica também, porque é que havia de ser uma excepção?

- Disse-me que no seu caso é de nascença?

- Bom, se quer que lhe responda muito seriamente, eu acho que em tudo na vida sou a conjugação de três factores: sou uma herança genética, e a esse nível eu acredito que nasci com predisposição para ser lésbica, depois sou o produto da minha educação, de todas as influências que o mundo exterior pode ter exercido sobre mim, e é claro que existiram muitos factores que me encaminharam nesse sentido, e em terceiro lugar sou também o resultado de um acto de vontade, ou seja, eu sou lésbica porque quero, e se quisesse deixar de o ser deixava de o ser nesse mesmo momento. Se a coisa passasse a ser obrigatória, por exemplo, aí eu de certeza que me passava para o outro lado, porque do que eu gosto mesmo é de transgredir, de fazer as coisas todas ao contrário. Mas pronto, quando eu tinha cinco anos havia uma amiga da minha mãe que tinha uns olhos muito pretos, com umas grandes pestanas, que já nessa altura me deixava perturbadíssima. Aos oito anos estava perdida de amores, irremediavelmente perdida, pela minha professora da segunda classe. Nem dormia de noite, está a ver?

- E foram sempre mulheres mais velhas?

- Nessa altura sim. Bem vê, as miúdas da minha idade não tinham gracinha nenhuma, nem tinham maminhas nem nada...

- Quer dizer que nessa altura você já pensava nessas coisas?

- Pensar... talvez não pensasse, mas no subconsciente acho que já gostava. Sempre achei que as mulheres eram muito mais bonitas que os homens.

- E não acha que essa sua atracção por mulheres mais velhas possa ter estado ligada a algum trauma, alguma má relação familiar, uma procura de uma figura materna substituta?

- Pois, o Freud é que disse essas coisas, não foi? Mas não é verdade. Pelo menos no meu caso. Não foi nada disso que aconteceu. A minha mãe não era uma personalidade que me provocasse traumas, até nos dávamos mais ou menos bem. Às vezes discutíamos por isto ou por aquilo, mas nada de grave. Nunca me maltratou, nunca me desleixou mas também nunca me sufocou, está a ver?

- Bem, então e depois? Como é que foi a sua adolescência?

- Aí foi um bocado mais complicado. Tive uma grande paixão por uma rapariga de uma outra turma, mas houve uma cabra de uma colega que nos apanhou um bilhetinho, levou para casa para mostrar à mãe, a mãe foi falar com a reitora, foi uma fita... estávamos a ver que eramos expulsas.

- Então e depois?

- Depois? Então, eles primeiro acharam que aquilo era tudo uma anormalidade, o meu pai esteve dois meses sem me falar, mas depois a minha mãe teve uma conversa comigo e lá me convenceu que o melhor que tinha a fazer era ganhar juizo.

- Ganhar juizo?

- Pois, quer dizer, ser igual a toda a gente... fui a festas com rapazes, dancei com eles, ainda namorei com dois ou três...

- E então?

- Então, olhe, era superior às minhas forças. A voz deles eu ainda suportava. Aliás ainda hoje gosto de mulheres de voz grave. Quando se esganiçam começam-me logo a irritar.

- Mas os rapazes?

- Ah, pois, era a barba que me incomodava, era o cheiro deles que me dava vómitos, acho que era uma aversão visceral. E depois eram as bazófias, estavam sempre à espera que as raparigas ficassem ali embevecidas a olhar para eles, horrorosos, cheios de borbulhas... e elas ali, deslumbradas, horas esquecidas a ouvir-lhes as palermices.

- Mas disse-me que também tinha namorado...

- Pois foi...

- E nunca se deitou com nenhum deles?

- Deitei. E este até era docinho, quer dizer, não foi delicioso, mas também não posso dizer que fosse assim uma coisa insuportável. Fisicamente, quero eu dizer. O problema que se pôs foi mais um problema psicológico. Eu não conseguia aceitar ficar na posição de “objecto dominado”. Se calhar era a minha personalidade que era muito forte, talvez haja em mim um excesso de amor-próprio, independência, chame-lhe o que quiser. Eu por mim chamo-lhe auto-estima e rebeldia, e não me envergonho disso nem um bocadinho, sabe, sou assim uma espécie de Lilith.

- Lilith?

- Pois, foi a primeira mulher do Adão, não sabia?

- Não, desculpe, mas acho que nunca ouvi falar. Está na Bíblia?

- Não, não está, quer dizer, já deve ter estado, no livro de Génesis, acho eu, mas tiraram-na. Agora só está no Talmude. Foi a primeira mulher a rebelar-se contra o poder masculino. Chateou-se com o Adão e deixou-o, foi-se embora.

- Essa é gira...

- Pois, mas olhe que é uma personagem muito venerada entre nós, é uma espécie de protectora, de “fada madrinha” de todas as lésbicas.

- Então e você diz que é uma espécie de Lilith?

- Pois, sabe, no dia em que me deitei com o tal rapazinho, a certa altura apeteceu-me trocar de posição, de forma a que o meu corpo ficasse por cima do dele. E não era por mais nada, era só para experimentar, mas ele amuou, e o namoro acabou ali.

- E depois? Não teve outros namorados?

- Tive, até havia um que vinha de Sintra todos os fins de semana só para me ver.

- E fazia amor com ele?

- Não, com este por acaso não fiz. Quer dizer, havia uns beijinhos e umas coisas assim. Mas não valia a pena, era tempo perdido.

- Não gostava?

- Quer dizer, não gostava muito, mas o problema que se punha continuava a ser sobretudo um problema psicológico. Eu era rebelde demais para aceitar o poder do macho, é uma coisa que me irrita que não tem explicação. Mas até descobrir, até conseguir mergulhar até ao mais profundo de mim própria ainda demorou algum tempo, e ao todo ainda cheguei a ter uns três ou quatro namorados diferentes, salvo erro. Uma vez tive um que era um espertalhão. Representava o papel do homem inseguro, que é uma coisa que eles sabem que as mulheres não resistem, e nesse aspecto eu não fujo à regra. Fazia-se frágil, sabe como é, e eu com os instintos maternais todos a sairem-me cá para fora. Só ao fim de dois meses de namoro é que percebi que ele era igualzinho aos outros, aquilo era tudo ronha, era tudo um jogo para me fisgar. Eu fisicamente sou gira, porque é que não hei-de admitir uma coisa que é verdade? Tenho este nariz de judia um bocadinho grande mas sou gira, e sobretudo sou filha única e os meus pais tinham bastante dinheiro, está a ver? Acho que era por causa disso.

- Quer dizer que nunca foi rejeitada pelos homens?

- Olhe para mim. Acha que sim?

- Não, francamente, acho que não.

- Pois não.

- E os seus pais, entretanto? Conformaram-se?

- A minha mãe já não é viva. O meu pai nunca me falou no assunto, acho que é mais fácil para ele fingir que não sabe. O meu pai é uma pessoa assim, quando as coisas o incomodam prefere não falar nelas. Ele é judeu, e a minha mãe era católica, de maneira que em minha casa nem se ia à Missa, nem se celebrava o Sabbath, pronto, ele às vezes vai à Sinagoga, a minha mãe quando queria ia à Igreja, mas pronto, lá em casa não se discutia religião, que era para ninguém se chatear.

- Olhe, e uma noção de pecado ligada à sua sexualidade, nunca teve?

- Bom, eu prefiro não pensar muito nisso, porque você repare: por um lado a minha mãe ensinou-me que existe um Deus, que é o Deus dos Cristãos, que não nos deixa fazer nada destas coisas. Por outro lado eu também “herdei” um outro Deus, que é o Deus de Israel, que também não acha graça nenhuma à brincadeira, de maneira que eu vou vivendo a minha vida, e quando morrer logo converso com eles.

- Olhe, falou-me de instintos maternais, nunca pensou em ter uma criança? Não gostava?

- Quer dizer, lá gostar, gostava, mas é muito complicado, e também tinha de ter um modo de vida completamente diferente, tinha de ter muito mais tempo livre. Talvez um dia, se os processos de adopção forem simplificados, talvez um dia pense em adoptar uma criança.

- Olhe, agora gostava que me contasse alguma coisa sobre as práticas sexuais...

- Entre mulheres?

- Sim, não sei se quer responder...

- Claro, não tenho problema nenhum, mas não há assim muito para contar. Fazemos aquilo que nos apetece, não há muitas regras...

- E pruridos...

- Eu cá não tenho nenhuns. Mas há mulheres que têm. Aquelas muito machonas, sabe como é? São umas chatas, não gostam disto, não gostam daquilo, eu não tenho pachorra nenhuma.

- As machonas são complicadas, é isso?

- É um bocado. Conheci uma que queria vir para a cama comigo e não se queria despir. E no entanto ela gostava de sentir a minha nudez, está a ver? É por essas e por outras que eu não gosto de “sapatonas”, gosto muito mais de “sandalinhas”. Mas há uma outra coisa que eu gostava de explicar: é que as machonas são muitas vezes caricaturas de homens, e caricaturas grosseiras, dão muito nas vistas, e pela negativa, eu reconheço isso, mas são uma minoria. A grande maioria das lésbicas que eu conheço, aquelas com quem me dou, as minhas amigas, são mulheres iguais às outras, vestem-se como as outras, usam cabelos bonitos e tratados, não fumam à rufião, muitas delas são mulheres casadas e mães de filhos, na maioria casos os maridos nem sonham.

- Você está a dizer que as mulheres casadas e mães de filhos deste País gostam de se deitar com outras mulheres?

- Muitas delas gostam sim senhora. E os maridos nem lhes passa pela cabeça.

- Mas isso é só no Jet-Set, não?

- Que ideia, é em todos os níveis sociais. É claro que num nível mais elevado as pessoas têm mais a noção daquilo que estão a fazer, mas até na província, você nunca viu nos bailaricos como elas gostam de dançar umas com outras?

Olhe, aqui há uns tempos atrás eu assisti a uma actuação de um grupo de folclore, acho que era um grupo do Norte, e então havia uma dança que era a “Dança da Matilde” que era dançada só pelas mulheres. Elas vinham convidar as mulheres que estavam na assistência, de forma que eu também fui, dancei com uma rapariga ainda novinha, por acaso até era muito gira, e então essa dança era uma coisa mais ou menos assim:

 

             “Oh Matilde sacode a saia,

              Oh Matilde levanta o braço,

             Oh Matilde dá-me um beijinho,

             Oh Matilde dá-me um abraço.”

 

Elas punham-se sentadas sobre os calcanhares e dançavam viradas umas para as outras, ainda hoje quando me lembro disso acho que foi uma das coisas mais lesboeróticas que eu já vi na minha vida.

- Eu estou a falar a sério. Você acha que elas dançam umas com outras e estão a pensar nisso?

- Ora bem... a pensar nisso talvez não estejam, eu acredito que nem lhes passe pela cabeça, mas que a dança existe, isso, e que elas gostam de a dançar, lá isso gostam. E tudo isso é perfeitamente natural, não é nenhuma coisa esquisita.

- Mas isso não quer dizer que sejam lésbicas.

- Pois não, sou só eu é que sou... a única diferença entre mim e elas é que eu tenho consciência do meu lesbianismo e elas não. A união dos sexos opostos só serve mesmo para fazer meninos, porque o prazer, o verdadeiro prazer, prazer sensual puro e simples, é com os nossos iguais que o obtemos. Você veja lá se na África Negra, e no Norte de África, e na Índia, os homens não andam de mão dada na rua. Você já viu coisa mais homoerótica do que um grupo de escoceses a tocar gaita de foles, e a dançar em cima das espadas? E os russos, não se beijam na boca? E ninguém tem que ver nisso nenhuma anormalidade, são necessidades naturais e perfeitamente saudáveis do ser humano.

- Bom, mudando de assunto. Existem lésbicas prostitutas?

- Eu só conheci uma, acho que é uma coisa que quase não há. Não iam ter muita clientela, julgo eu, porque não é o tipo de coisa que apeteça comprar. Só se forem os homens, e eu sei que há homens que pagam para ver, e para entrar no esquema, mas parece-me que acabam por “comprar um produto falsificado”. Porque o lesbianismo é um fenómeno que se caracteriza justamente pela ausência do elemento masculino. No momento em que há uma presença masculina deixa de acontecer o lesbianismo genuíno, é outra coisa qualquer, pode ser uma representação teatral, um número de circo...

- Regressando à questão sexual, disse-me que não tinha pruridos...

- Nenhuns.

- Sexo oral também?

- Claro, quer dizer, não é uma obrigação, mas é o melhor de tudo.

- Assim com uma mulher qualquer?

- Eu nunca me deitei com nenhuma que fosse “uma mulher qualquer”. Para mim eram todas especiais, pelo menos naquele momento. Por isso nunca vi motivos para evitar ou para não fazer aquilo que me apetecesse.

- E com os homens, nunca fez?

- Não. Só eu é que sei o nojo que tenho das pilas dos homens. Pois se eu não como salsichas, não como bananas...

- Também lhe metem nojo, é?

- Enfim, seja por uma questão estética, se quiser. Em contrapartida houve uma amiga minha que esteve uma vez nos Açores, e trouxe de lá uma coisa a que chamam as cracas, é um molusco da família das lapas que eles cozem em água do mar, chupa-se directamente com a boca, e tem uma espécie de algas que parecem uma penugem à volta, tem um sabor como o do caranguejo, e deve ter sido a coisa que até hoje mais prazer me deu a comer.

- Mas isso está à venda aqui no continente?

- Não, eu até lhe sugeri que montasse um comércio de importação do dito molusco, o sucesso era garantido. Cá para mim ela ia ter dificuldade era em responder às encomendas. Eu estou a imaginar a cena, a malta aqui do continente toda a encomendar as cracas, eles lá nos Açores a escavarem as rochas, ainda eram capazes de afundar o arquipélago...

- ...

- Acha que os seus leitores vão ficar escandalizados com o que eu disse?

- Se ficarem, paciência, isto são livros para adultos. Bom, mas com isso tudo o que você quer dizer é que os genitais femininos não a enojam. É isso?

- Não, francamente, quer dizer... depende da mulher, claro, mas as mulheres com quem me deitei nunca me enojaram.

- E foram muitas?

- Algumas, sei lá, umas dez ou quinze, talvez... não foram muitas mais. Mas isso foi nos tempos gloriosos em que eu não tinha juízo.

- E doenças venéreas? Nunca apanhou?

- Olhe, talvez não acredite, mas realmente nunca apanhei. Para já penso que essas coisas se tornam menos contagiosas entre mulheres, e depois também devo ter tido um bocado de sorte.

- E objectos? Nunca usou?

- Os objectos chamam-se dildos. Até sei de uma pessoa que os faz em casa, em silicone, montou uma espécie de indústria caseira, até se pode escolher a cor, e parece que está farta de fazer dinheiro. Mas a maior parte da clientela não são lésbicas, pelo menos pelo que ela me contou.

- Então?

- Então, são gays, são homens impotentes, são mulheres casadas que não estão para aturar os maridos...

- E você?

- Já experimentei, mas francamente não acho que façam falta nenhuma. Não sou uma entusiasta. Prefiro usar os meus próprios recursos naturais e... a inspiração do momento.

- E “ménages à trois” ?

- Também já experimentei, e a quatro, e não é desengraçado, até é giro, tudo às escuras, quando a gente começa a encontrar maminhas, e rabinhos, e “passarinhas”, e ninguém sabe de quem é o quê, mas é só isso, é só para se “curtir”, para se passar um bocadinho agradável. Não é para viver o verdadeiro amor.

- E o 69? Já agora...

- Também já experimentei, a gente nesta vida tem de experimentar um bocadinho de tudo, não é? Mas também não acho que seja uma grande invenção. É muito complicado, sabe, acabam por acontecer duas sensações, dois prazeres muito fortes ao mesmo tempo, e a gente para se concentrar num deles acaba por se distrair do outro... eu por mim prefiro que as coisas vão acontecendo uma de cada vez, sem pressas, saboreiam-se melhor, e dura muito mais tempo. E é o melhor de tudo. Eu agora vivo com esta minha amiga há já algum tempo, há um ano e meio. Antes dela tinha uma outra namorada, mas perdi a cabeça com a ........., foi assim uma paixão... e nunca me senti tão bem como me sinto agora. Estamos horas e horas, só a sentir a pele uma da outra, às vezes já nem há onde dar mais beijos, e talvez não acredite, mas temos noites em que nem fazemos sexo nem nada, é só o gozo de estarmos ali a sentir aquela doçura, o cheiro uma da outra, que é uma coisa deliciosa, e a dizermos coisas bonitas, assim uma baboseiras muito patetas mas que nos fazem sentir muito bem. Depois paramos, fumamos um cigarro, recomeçamos, às vezes ao fim de semana é até de manhã.

- E os bares?

- Há uma data deles em Lisboa, noutros sítios não conheço, mas também deve haver. Uns têm um aspecto assim melhorzinho, outros são muito deprimentes, mas se calhar também são as pessoas que os tornam deprimentes. Há um que tem umas “matinés dançantes” muito kitch que dão pelo nome de “bailinho dos bombeiros”. Eu não vou lá por todas as razões, e também porque é daquela fulana que canta, que é a Dina, e eu acho a fulana um nojo. Uma fulana que tem um bar gay e que a seguir vai fazer o hino para um partido que se não é nazi, para lá caminha... eu se pudesse enfiava-lhe era um penico cheio de uma coisa que eu cá sei pela cabeça abaixo.

- Você acha que ela não tem o direito de pensar à direita?

- Tem, claro, estamos em democracia, não é? Eu acho que a Dina tem todo o direito de pensar à direita, e de ser paga para fazer cantigas para a direita, e de cantar mal, e de ser pirosa, e de cantar aquelas músicas da cor de corno, agora eu é que também tenho o direito de não ir ao bar dela nem comprar os discos dela. Não lhe dou um tostão que seja a ganhar.

- Dá a impressão que há qualquer questão, qualquer problema pessoal entre si e ela...

- Que ideia, só a conheço de vista, nem nunca falei com ela, e há uns anos atrás eu ia lá ao bar, depois deixei de ir, e a única vez que lá fui recentemente até me trataram bem, quer dizer, trataram-me normalmente, pronto, não tenho nenhuma razão de queixa, isto que eu digo é só porque acho que as pessoas não se podem esquecer dos campos de concentração e dos triângulos cor-de-rosa, e eu acho que uma pessoa como a Dina, seja ela homossexual ou não, isso eu não sei se ela é, nem me interessa, mas que ganha a sua vida num bar gay a cantar para as lésbicas, não tem o direito de fazer cantigas para um PP. Você não pode frequentar a Igreja e também a Sinagoga, tem de escolher, não pode servir a dois senhores. Portanto isto que eu disse não tem a ver com nenhuma questão pessoal, é uma questão política. E eu até sou uma pessoa moderada, se quer que lhe diga costumo votar no PS.

- Mas tem outros locais de encontro?

- Claro que sim. Tenho uns jantarinhos que a gente às vezes faz em casa de umas e de outras, é muito mais giro. Estamos muito mais à vontade e divertimo-nos muito mais, dançamos como queremos, não há “mirones”, é muito melhor.

- O panorama não parece mau... dá ideia que há muitas pessoas como você que não só se sentem muito bem na sua pele, como vivem uma vida de alegres folionas...

- Algumas estão bastante bem, mas não se iluda. Há muitos problemas por resolver, nem tudo está tão simplificado, nem tão desmistificado. Há algumas que vivem situações verdadeiramente dramáticas, com problemas de auto-estima, problemas na família, problemas económicos, problemas no emprego, situações até jurídicas, quando entram em ruptura com os maridos, por causa da tutela dos filhos, eu sei de uma que raptou o miúdo três vezes... há situações que são um verdadeiro inferno. Eu própria passei por uma situação muito complicada. Foi um emprego que tive em que o patrão se lhe meteu na cabeça que havia de vir para a cama comigo. Aliás acho que era norma lá na empresa. Um belo dia já estava tão farta daquele jogo do gato e do rato que resolvi dizer-lhe a verdade, julgava eu que era uma maneira de ele me deixar em paz. Eu tinha vinte anos, está a ver?

- Então e depois?

- Ele ficou doido, disse-me que era mais uma razão, ele “tinha de me possuir”. Foi uma chatice, mas felizmente tive um bocado de sorte, porque de repente abriu concurso para umas vagas aqui no Banco, e eu fui prestar provas e fui admitida. É engraçado porque eu acho que o gerente aqui do Balcão é gay, ele nunca me disse, e até é casado e tudo, mas eu desconfio imenso, de maneira que é optimo, não é o melhor emprego do mundo, mas pelo menos não tenho pirilaus a saltarem-me para cima.

- Bom, eu acho que não resisto a perguntar-lhe o que é que pensa do caso Bobbit.

- Acho que não tem propriamente muito a ver com lesbianismo, mas acho que ela teve toda a razão. Se eu mandasse, todos os violadores eram punidos com a castração.

- E as mulheres violadoras?

- Arranjaria uma pena equivalente. Ninguém tem o direito de violar ninguém.

- Para acabar, uma história engraçada que lhe tenha acontecido. Não se lembra de nenhuma?

- Lembro-me de uma vez ter ficado escondida debaixo de uma cama... mas lembro-me de outra mais gira. Foi uma rapariga que eu conheci, e ainda andámos juntas uma semana, ou coisa parecida, e de repente descobri que ela era minha prima. Já não nos víamos há mais de vinte anos, mas era minha prima.

 

 


                                 Luciana, 51 anos, dona de casa

 

- Para começar, Luciana, qual é a designação que prefere? Prefere a designação de mulher homossexual, prefere a designação de lésbica?

- Prefiro a designação de mulher homossezual porque a palavra lésbica é um bocado chocante.

- Em que altura da sua vida é que a Luciana encontrou a homossexualidade dentro de si? Quando é que isso aconteceu, e em que circunstâncias?

- Foi durante a minha adolescência, talvez por volta dos meus catorze, quinze anos. Eu estava num colégio interno, um colégio de freiras, só de meninas, e acho que foi lá que a coisa se foi desenvolvendo progressivamente.

- Olhe, e como é que isso foi vivido por si? Teve dificuldades, problemas?

- Ah, sim, foi muito problemático.

- Mas foi problemático porque os outros lhe causaram problemas, ou os problemas estavam dentro de si?

- Estavam dentro de mim, acho eu. Havia a questão da religião, aliás elas até faziam uma certa pressão para eu ficar lá para ser freira, diziam que havia em mim uma certa propensão para ser religiosa, porque eu era muito meiga, muito submissa, e já se sabe que se eu fosse para freira elas ficavam com a fortuna toda dos meus pais, que é razoável, mas depois o meu pai começou a perceber que elas andavam muito de roda de mim e, toscou-lhes a marosca, e então tirou-me de lá, mas elas não queriam, queriam que eu lá ficasse.

- E a sua família, o que é que diz de tudo isso? Os seus pais ainda são vivos?

- São. E eu preferia que não soubessem, mas acho que eles desconfiam. A minha mãe, sobretudo, porque é uma pessoa bastante perspicaz, e eu acho que ela já sabe há muito tempo, só que rejeita, prefere fingir que não sabe, embora já tenha acontecido uma situação em que houve uma pessoa que tentou fazer chantagem, e ela ficou muito chocada, mas felizmente foi capaz de dar a volta à situação.

- Olhe, Luciana, agora gostava que me dissesse alguma coisa sobre as origens da homossexualidade, no seu caso pessoal. Acha que já nasceu homossexual, ou isso foi uma coisa que só lhe aconteceu mais tarde?

- Acho que se nasce. Acho que é um bichinho que a gente tem cá dentro...

- E os homens, Luciana? Teve muitos namorados, teve poucos, como é que foi?

- Só tive um, que foi o meu ex-marido.

- Quer dizer que a Luciana já foi casada? O que é que o seu ex-marido pensa do assunto?

- Eu acho que ele é um bruto tão completo, apesar de ter uma posição socio-económica de bastante relevo, mas ele é tão estúpido que nem semelhante coisa lhe passa pela cabeça.

- E porque é que a Luciana casou com ele?

- Acho que fui mais ou menos “forçada”.

- Mas porquê? Estava grávida?

- Que ideia, estava completamente virgem.

- Então?

- Era aquela coisa, “porque é que ela não se casa, toda a gente tem noivo, porque é que ela não tem”, a minha mãe às vezes dizia “Parece que tens alergia às calças”, mal ela sabia...

- E teve relações com ele...

- Claro. Mas não gostava.

- E ele? Percebia que a Luciana não gostava?

- Ai, eu acho que sim. Eu tinha uma repugnância pelo cheiro dele... era-me muito desagradável, às vezes nem dava para disfarçar. De maneira que tive de me separar.

- Foi sorte não ter tido filhos.

- Mas eu tive, tive dois filhos.

- E eles sabem?

- Não.

- Olhe, e pensa dizer-lhes algum dia?

- Ao mais novo, sim. Ao outro não. Ele não tem sensibilidade nem capacidade mental para entender.

- E se um dos seus filhos fosse homossexual, como é que a Luciana reagia?

- Aceitava, pois com certeza.

- Luciana, você considera-se uma mulher masculina?

- Não, de maneira nenhuma, sou até muito feminina e é assim que eu gosto de ser.

- E costuma agradar aos homens?

- Acho que sim, pelo menos pela maneira como eles às vezes olham para mim, fazem um ar mais guloso...

- E se pudesse mudar de sexo, mudava?

- Jamais!

- E se pudesse de repente passar a ser heterossexual, passava?

- Não, também não.

- Olhe, e práticas sexuais? Fala-se às vezes de mulheres homossexuais que são activas, e de outras que são passivas, acha que é verdade?

- Acho que depende, não é, vai tudo da disposição do momento, e da parceira que se encontra pela frente. Eu pela minha parte tanto gosto de ser uma coisa como outra, sou uma coisa e outra conforme me apetece.

- E acerca dessa história do orgasmo vaginal e do orgasmo clitoriano, o que é que me diz?

- Digo-lhe que existem ambos, mas talvez para mim o clitoriano seja o mais intenso.

- Luciana, o que é para si um orgasmo?

- Não lhe sei descrever. É tão bom, tão bom... não lhe sei explicar melhor.

- Olhe, e uma sensação de pecado ligada à sua tendência mais íntima?

- Pecado?

- Sim, quer dizer, a ideia de um Deus que amanhã possa vir a puni-la, porque no fundo a Luciana recebeu uma educação muito religiosa, e hoje é uma pessoa que transgride...

- Não, não acredito. Deus é pai, e compreende tudo, nunca me vai pedir contas por isto.

- Olhe, e experiências amorosas com mulheres? Muitas?

- Uma só, que é a mulher com quem vivo hoje. Nunca me tinha deitado com outra, nem penso deitar. Seria impensável.

- Pelos vistos valeu a pena...

- Ah, sim, sem dúvida nenhuma.

- E não pensa voltar-se nunca mais para os homens?

- Ah, não, eu tive uma vida de casada que foi extraordinariamente traumatizante, porque o meu ex-marido é uma pessoa com um perfil muito difícil, e o meu filho mais velho também, porque é a “fotocópia” do pai mas ainda é pior, é do género de partir coisas, e de atirar com tachos à parede, eu fui várias vezes parar ao Hospital Ortopédico, uma vez com um braço partido, outra vez com o queixo partido...

- Ouça, quer dizer que apesar de não gostar do seu marido, nem do contacto com ele, se ele não fosse agressivo, apesar de tudo a Luciana talvez não o tivesse deixado?

- Olhe, não sei. Porque por um lado uma mulher divorciada às vezes ainda é um bocado mal vista, e qualquer um julga que lhe pode faltar ao respeito, e também tinha os filhos pequenos, e depois também havia a questão religiosa. Eu sabia que ele também não gostava de mim, se gostasse de mim não me batia, aliás eu hoje acho que ele só casou comigo por causa do dinheiro, e acho que fiz muito bem em deixá-lo, mas nessa altura achava que tinha de levar aquela cruz, mas por outro lado a sensação de mal estar que eu tinha ao pé dele era tão forte que era capaz de o ter deixado na mesma.

- Mas enquanto durou o seu casamento nunca se sentiu atraída por outro homem?

- Nem homem nem mulher, eu não sou mulher para ser infiel, seja em que circunstâncias for. Nem em pensamentos.

- Costuma-se dizer que a carne é fraca...

- Pois será, mas não a minha. Eu sei muito bem o terreno onde piso.

- Você dá-me um bocado a impressão de também ter tido azar com o marido que lhe calhou...

- Ah, sim, ele era um bruto, repare que eu nem um beijo sabia o que era, um beijo como deve ser, mas mesmo que não fosse, e eu admito que haja homens diferentes do meu, depois de experimentar uma mulher já ninguém se volta outra vez para os homens.

- A Luciana sabe que há mulheres que usam objectos de borracha. O que é que pensa disso?

- Penso que é uma parvoíce. Pois se eu tive um ao natural e não gostava... não gostava do formato, não gostava do aspecto, não gostava do cheiro... não achava graça nenhuma, fazia-me uma impressão horrorosa, para que é que eu vou querer uma cópia, se não gostei do original? Em contrapartida quando via uma mulher despida achava que era uma coisa lindíssima, achava que aquilo devia ser uma delícia.

- Mas não sabia como era...

- Não, não sabia, tive de perguntar à ........., que nessa altura ainda era só minha amiga. Não fazia a menor ideia, de maneira que um dia voltei-me para ela e disse-lhe que ela tinha de me explicar como era, e ela explicou, não sei se está a ver...

- Bom, para acabar, explique-me só como é que uma mulher como você, uma mãe de família de vestido e colar de pérolas, se decide de repente a assumir uma ligação com uma pessoa do seu próprio sexo.

- Olhe, foi muito difícil. Muito difícil mesmo. Comecei por ter uma certa relutância, e sofri bastante até conseguir aceitar aquilo que eu própria sentia, mas havia uma atracção muito grande pela mulher com quem vivo hoje, a ponto de eu ter chegado a dizer-lhe que não sabia o que é que se estava a passar comigo. Era uma pessoa que eu já conhecia, nunca tinha falado com ela mas conhecia-a de vista, e foi muito engraçado porque ia um dia num comboio e adormeci, e de repente acordei e ela estava na minha frente, e eu olhei para ela e senti que tinha de ser aquela pessoa, senti que era o amor da minha vida. Entrei num conflito tremendo comigo própria, porque de facto os homens não me diziam nada, e eu sempre tinha sentido uma grande necessidade de ternura em relação a outras mulheres, desde muito novinha, mas nunca tinha levado isso para o plano do amor, e de repente percebi que estava apaixonada por uma mulher, de maneira que foi um passo muito difícil de dar, eu suava suores frios, enfim... Hoje ela é alguém que é a continuação do meu próprio corpo, do meu pensamento, é a única pessoa com quem eu consigo partilhar tudo, corpo e espírito, e consigo ter com ela uma relação de tranquilidade e de equilíbrio como uma mulher e um homem nunca conseguem atingir. Eu só tenho pena de não poder dizer isto a toda a gente, de cara levantada, mas não posso, primeiro porque o meu filho mais novo ainda é menor, e o meu ex-marido ainda era capaz de arranjar maneira de me levar a tribunal e de mo tirar. E também ia magoar muito os meus pais, mas daqui uns anos, que o meu filho seja maior, e esteja preparado para saber a verdade, e se os meus pais já não estiverem neste mundo, se nessa altura eu tiver a situação financeira desafogada que tenho hoje, que não precise de trabalhar, nessa altura dou a cara e conto tudo, porque todas as mulheres precisam de saber, o mal é as mulheres não saberem o bom que isto é, porque quando elas souberem o mundo dá uma volta, se dá! Isto foi a melhor coisa que eu descobri na minha vida, eu agora só tenho medo é de morrer e não gozar isto por muitos anos. Se eu perco aquilo que tenho agora até sou capaz de morrer, não tenha dúvidas, morro sim! E é por isso que eu digo a todas as mulheres deste País, se não querem ter problemas não experimentem, porque no dia em que experimentarem com uma mulher nunca mais querem um homem.

 

 


     Joana, 24 anos, hospedeira de terra de uma companhia aérea

 

- Joana, em primeiro lugar, qual é a designação que prefere? Lésbica, sáfica, mulher homossexual?

- Eu não gosto muito de catalogar as pessoas. A palavra lésbica não me agrada minimamente, não me agrada a mim nem agrada a ninguém, acho eu. Prefiro mulher homossexual.

- Quando é que a Joana descobriu as suas tendências para a homossexualidade?

- Bom, eu já fui casada três anos, um dia conheci a ............, que estava divorciada, ela veio viver para minha casa por causa das circunstâncias do divórcio dela, e foi nessa altura que começou. Já lá vão três anos.

- E foi só nessa altura que deu por isso?

- Não, eu acho que já sabia, só que tinha medo de assumir. Eu nunca tinha encontrado ninguém que me ensinasse a ver as coisas de outra forma.

- Quer dizer que a sua amiga já se tinha assumido?

- Sim, ela nessa altura até tinha uma amiga, quando eu apareci na vida dela.

- E a Joana, nunca tinha tido uma experiência?

- Não, nunca. Apesar de estar convencida de que no fundo, inconscientemente, nunca quis outra coisa que não fosse aquilo que tenho agora. Porque os relacionamentos que tive com os homens de facto nunca me satisfizeram a nível nenhum.

- E na adolescência, como é que foi vivida essa sua tendência?

- Não foi. Nem sequer ao nível do subconsciente.

- Olhe, Joana, e a sua família? Sabem? Aceitam? Como é?

- Sabem, e aceitam, porque se eu não estava feliz com o meu casamento, e de repente eu encontrei uma pessoa diferente, e as coisas já duram há três anos, e eles vêem que eu agora ando muito mais feliz, eles compreenderam que eu tenho o direito de ser feliz, seja com uma homem, seja com uma mulher. Aceitaram muito bem. Ao princípio foram um bocado renitentes, e é natural, porque isto é uma coisa que nem toda a gente aceita, mas eu abri logo o jogo, e acho que essa minha honestidade também acabou por ajudar, e por funcionar a meu favor. Já com a família dela as coisas não são assim tão simples. Eles toleram mas não aceitam. O pai dela, por exemplo, simpatiza muito comigo e aceita-me muito bem, mas o resto da família já não me aceita assim tão bem. É uma família muito burguesa, muito classe média, enquanto que a minha já são pessoas um bocadinho mais modestas, não têm tantos problemas, e talvez seja por isso.

- Olhe, Joana, você acha que se nasce homossexual, ou isso é uma coisa que se adquire com o tempo?

- Eu acho que se nasce homossexual, como acho que há muita gente que ainda não descobriu a sua própria homossexualidade, e não descobriram por causa da sociedade. Eu acho que há muitos casamentos frustrados como foi o meu, porque as pessoas têm medo de assumir uma relação homossexual, que é a coisa mais natural deste mundo.

- Disse-me que o seu relacionamento com os homens não foi grande coisa, quer falar um bocadinho sobre isso?

- Os meus namoros... quer dizer, não é que tivessem corrido mal, pelo menos até uma certa altura, mas depois de umas semanas as coisas começavam a correr mal. Por exemplo, o meu segundo namorado, é uma pessoa que eu ainda hoje tenho um carinho muito especial por ele, eu era capaz de viver com ele o resto da minha vida, mas como irmãos. Isso é uma coisa que lhes faz muita confusão, pensarem como é que uma mulher se dá ao luxo, e tem o atrevimento, de não precisar de uma pila para nada.

- E como é que você tem esse atrevimento?

- Tenho. Realmente não preciso dos homens para nada. Eles acham que são uns supra-sumos, mas eu de facto governo-me muito bem sem eles.

- Olhe, Joana, e filhos? Nunca teve pena de não ter um filho?

- Eu tenho.

- Ai sim?

- Tenho, tenho um filho que é uma graça.

- E tem a sensação de ser uma boa mãe para ele?

- Tenho. Apesar de estar um bocadinho apreensiva em relação ao futuro. Vai haver um dia em que vou ter de lhe dizer a verdade, e só espero conseguir dizer-lhe na altura certa e da maneira certa.

- A Joana considera-se uma mulher masculina?

- Não, nem um bocadinho. Às vezes lá visto umas calças, lá meto uns sapatos mais desportivos, mas não sou uma mulher masculina.

- E sobre as mulheres muito masculinas, o que é que me diz?

- Bom, eu não aceito isso muito bem, porque eu acho que lá pelo facto de ser ou não homossexual, uma mulher é sempre uma mulher. No momento em que uma mulher resolve cultivar um tipo masculino está a desprezar a coisa melhor que tem, que é o facto de ter nascido mulher. Eu não critico, mas não gosto, como não gosto de ver um homem de saltos altos e pestanas postiças.

- Olhe, Joana, há um bocado a ideia, sobretudo por parte dos homens, e também de algumas mulheres, de que as mulheres quando se viram para outras mulheres é porque foram rejeitadas pelos homens. O que é que tem a dizer sobre isso?

- Eu acho que isso são conceitos que estão completamente ultrapassados. Nem me parece que haja ninguém hoje em dia a voltar-se para as mulheres porque foram rejeitadas pelos homens. Hoje em dia uma mulher que resolve “virar” lésbica é porque descobriu a sua própria sexualidade. Não tem nada a ver com serem ou não rejeitadas pelos homens, porque não há mulheres feias, há mulheres que são menos bonitas do que outras, e há mulheres que não fazem nada para tirar partido da beleza que têm, porque toda a mulher é bonita.

- Acha que as mulheres são mais bonitas que os homens?

- Não.

- Se pudesse mudar de sexo, mudava?

- De maneira nenhuma.

- E se pudesse voltar a ser completamente heterossexual?

- Não voltava.

- Olhe, Joana, o que são as práticas sexuais entre mulheres?

- Bom, para já as coisas são vividas de uma forma muito mais intensa, e depois sabe que duas mulheres são duas iguais, sabem muito melhor o que querem uma da outra do que uma mulher e um homem, porque um homem nunca pode saber o que são as sensações de uma mulher. As mulheres têm outra sensibilidade, têm outra capacidade de dar carinho.

- Sabe que também há um bocado a ideia de que entre duas mulheres há uma que faz o papel de macho...

- Isso é uma tolice, não existe, na cama não existe um homem e uma mulher, existem duas mulheres e pronto. Pode haver um momento em que uma seja mais activa, e a outra mais passiva, mas isso vai da disposição do momento, não tem nada a ver com o esquema heterossexual. Poderá haver uma com um temperamento mais rebelde, ou mais decidido, mas quando chegam à cama desfazem-se como torrões de açúcar.

- Olhe, Joana, e sobre os locais de encontro?

- Bom, há o “Bailinho dos Bombeiros”, mas eu não vou lá muito. Aliás eu não sei se serão lugares de encontro ou de segregação, e de desencontro. Porque os homossexuais estão estigmatizados, e eu acho que se ainda por cima se fecham em ghettos isso não pode ser nada bom para ninguém. As pessoas vão para ali porque pelo menos vão encontrar outras pessoas que também não têm um espaço melhor para conviver, mas é muito engraçado que há muitos não-gays que vão lá só para bisbilhotar, e pensam que vão lá ver os animaizinhos do jardim zoológico, ou não sei o quê, mas de facto não se passa nada nesses bares que não se passe cá fora, as pessoas não estão lá a fazer nada de especial, quando muito podem dar a mão, ou dar um beijinho, mas não se vai para ali para fazer outras coisas. Agora parece que há um esquema no Bairro Alto, que é um bar de prostituição de mulheres e para mulheres.

- A sério? Olhe que é a primeira pessoa que fala nisso...

- É verdade, eu até tenho andado com uma certa curiosidade de ir lá meter o nariz. Obviamente que não é para ir para a cama com nenhuma mulher, mas tenho alguma curiosidade de descobrir onde é, e de ir até lá para ver como é que essas coisas funcionam. E também há algumas, sobretudo miúdas de dezassete, dezoito anos, que gostam de mulheres, mas funcionam nos bares, como alternas, e deitam-se com os homens porque é a única maneira que têm de sobreviver.

- Joana, nós já falámos um bocadinho de sexo, mas eu ainda não lhe perguntei uma coisa: o que é um orgasmo?

- É tão difícil de explicar... é o culminar de tudo, também não lhe sei explicar muito melhor, mas também não é uma coisa que se tenha de atingir sempre, às vezes não acontece, e não é por isso que uma pessoa vai ficar chateada. Eu posso passar horas na cama com a minha amiga, e não atingirmos o orgasmo, ou até nem sequer fazermos sexo, e ser óptimo. Não é que o orgasmo não tenha importância nenhuma, é claro que tem, mas também não é assim tanta.

- Também se fala de orgasmo vaginal e de orgasmo clitoriano, o que é que a Joana me diz sobre isso?

- Eu acho que são diferentes, mas são os dois muito bons, embora eu prefira o clitoriano.

- A Joana foi educada religiosamente?

- Sim, fui à catequese e tudo.

- Nunca teve uma noção de pecado, um certo receio de que haja um Deus que amanhã lhe possa pedir contas?...

- Não, eu acho que as pessoas devem ser felizes, e se realmente Deus existe, Ele quer é que as pessoas sejam felizes, seja de que maneira for.

- Para terminar, quer acrescentar alguma coisa?

- Eu gostava de acrescentar duas coisas. A primeira tem a ver com a imagem pública das pessoas. Duas mulheres não podem dar um beijinho no meio da rua. Mas porquê? É ridículo, e eu espero que num futuro próximo as pessoas estejam mais libertas, e vejam as coisas de outra maneira, porque toda a gente tem o direito de ser como é.

A segunda questão é a questão laboral. Eu passei por uma situação muito chata. Estava a trabalhar numa empresa, toda a gente gostava de mim, os patrões achavam que o meu trabalho era optimo, parecia que era tudo uma maravilha. Um dia descobriram que eu vivia com uma mulher, e daí para a frente passaram a criticar-me, o meu trabalho já não prestava, até que um dia ouvi um colega meu a falar com o patrão. Ele estava a dizer que eu era muito bonita, e o patrão respondeu-lhe: “Oh pá, essa gaja é gado, não presta, tu não sabes que ela está com outra gaja?”. É muito difícil para uma mulher assumir no emprego que é homossexual. Quando as pessoas são artistas, ou quando atingem um determinado estatuto socio-profissional, as coisas tornam-se mais fáceis, mas antes disso é muito complicado. Eu quando saí dessa empresa, as perseguições e as pressões foram tantas que eu tive um esgotamento, estive uma semana a fazer uma cura de sono, de forma que eu nunca mais vou cair na asneira de contar no meu local de trabalho aquilo que sou. Embora existam muitas mais dentro da companhia, e topamo-nos umas às outras, mas a norma é cada uma fingir que não sabe de nada, e que não é nada com ela. O que é que eu vou fazer? Vou-me armar em panfletária, e pôr em risco o meu emprego e a subsistência do meu filho? Não me posso dar a esse luxo. Mas vou lutando, com as forças que tenho. Lutei muito por aquilo que quiz, e arrisquei muito, deixei casa, deixei um marido que ganhava bem, deixei conforto, e não me arrependo. Por isso gostava de dizer a todas as mulheres homossexuais que lerem esta entrevista que não percam a coragem, que não se deixem vencer. Mesmo que cometam erros, que tropecem muitas vezes, levantem-se sempre, porque vale a pena. Acima de tudo, nós estamos neste mundo é para ser felizes.

 

                               Francisca, 36 anos, profissão liberal

 

- Para começar, Francisca, qual é a designação que prefere? Mulher homossexual, sáfica, lésbica?

- Mulher homossexual. Não gosto nada da palavra lésbica, é uma palavra que eu rejeito visceralmente.

- Olhe, quando é que detectou em si as tendências homossexuais, e em que circunstâncias?

- É uma história engraçada. Foi quando fui obrigada pela primeira vez a encarar frontalmente a situação. Tinha dezanove anos. É engraçado porque eu sempre tinha sentido uma certa atracção pelo sexo feminino, sentia uma coisa muito forte por algumas das minhas professoras, e por outras mulheres bastante mais velhas, aliás ainda hoje quase todas são minhas amigas, mas eu até aí nunca tinha visto a questão como uma questão sexual, inclusivamente pensava muitas vezes que gostaria de viver com essas pessoas, para partilhar da vida delas, mas não pensava em sexo nem nada disso. O que me atraía era a ternura, o afecto, e não o sexo, e quando fui confrontada com essa situação lembro-me de ter ficado extremamente chocada, e de ter rejeitado a coisa completamente.

- Quer contar como é que isso aconteceu?

- Foi com uma pessoa por quem sentia uma grande amizade, com quem tinha muitos pontos em comum, só que ela pôs-me as coisas nestes termos: “Ou aceitas também o aspecto sexual, ou a mim não me interessa mais ser tua amiga”. E perante esta situação em que fui colocada, em que tinha pela frente uma pessoa de quem eu gostava e que gostava de mim, e que queria partilhar tudo comigo, mas que me punha as coisas daquela maneira, eu disse que ia pensar. E fui pensar. E acabei por ceder, porque pensei o seguinte: “Bom, isto pode ser que não seja grande coisa, mas mal também não pode fazer, por isso vou experimentar”. E experimentei. Até hoje.

- E então?

- Então, achei que era assim. Achei que era o grau mais profundo de encontro que podia haver entre duas pessoas.

- E a sua família? Sabem, não sabem, e o que é que dizem disso?

- O meu pai morreu há muitos anos. A minha mãe sabe, e teve uma reacção que para mim foi completamente inexperada. Eu até aí tinha tido uma relação estupenda com ela, uma relação de abertura, de amor, e pensei que ela me fosse aceitar tal como eu sou, e que me compreendesse, até porque sou filha única. E quando eu me vi confrontada com a situação de ter de assumir a opção que tinha feito em termos da minha sexualidade, ela reagiu muito mal, e portanto a partir daí as nossas relações alteraram-se, eu deixei de ter por ela os sentimentos que tinha, e a partir daí ela tem interferido sistemática e negativamente nas minhas relações, julgo eu que por uma questão de ciúmes. Eu acho que, no subconsciente dela, ela acha que se eu gosto de mulheres, devia contentar-me com a companhia dela e devia sublimar tudo nela.

- Acha que ela sente isso?

- Acho. E até já lho disse. Já a obriguei a tomar consciência desse facto. Já a confrontei com isso. Ela reagiu muito mal, mas eu não podia deixar de lhe dizer. E não foi só isso. Eu tive de me demarcar em relação a uma série de coisas, porque todos os relacionamentos que eu tive até hoje com outras pessoas foram fortemente afectados pela influência da minha mãe, que tem feito as coisas mais diabólicas, desde telefonemas anónimos até sei lá mais o quê, para conseguir destruír qualquer relação que eu possa ter com qualquer mulher. Por ciumeira pura.

- Olhe outra coisa, Francisca, você acha que nasceu homossexual, ou essa foi uma característica que você só adquiriu depois?

- Comigo houve uma percentagem, digamos assim, que era genética, e outra que foi aprendida. Mas acho que há pessoas em quem a coisa geneticamente estava “programada”, mas o ambiente pode nunca chegar a proporcionar que a coisa aconteça, e essa aprendizagem nunca se chegar a fazer, como pode acontecer o contrário, geneticamente não estar “programado”, mas o ambiente proporcionar essa experiência, e a coisa desenvolver-se. Mas a mim parece-me que na maioria dos casos a tendência genética provavelmente estava lá e o ambiente proporcionou que a pessoa experimentasse, e a pessoa provou, e gostou, e pronto.

- Olhe, e os homens? Teve namorados, ou não teve, como é que foi?

- Não foram muitos. Eu nesse aspecto acho que vivi sobretudo alguns desencontros. Houve uma paixão que foi bastante forte, e era recíproca, mas ele vivia em Angola, e a distância já era um factor que complicava, para não dizer que impossibilitava o relacionamento. Depois houve rapazes que gostaram de mim, mas não havia da minha parte uma correspondência, por isso não podia resultar, e também houve um rapaz de quem eu gostei muito, mas também aí as coisas não resultaram.

- E filhos? Nunca teve pena de não ter filhos?

- Não. Nunca tive. Penso que pôr mais gente neste mundo é um acto de egoísmo. Não acredito que haja ninguém que esteja satisfeito nesta vida, que ache que valha a pena viver, por isso acho que não vale a pena pôr mais gente na terra.

- Você é muito pessimista... Olhe, e nunca pensou em adoptar uma criança?

- Nas duas relações mais duradouras que tive chegou a pôr-se essa hipótese, mas é muito complicado, aliás nem sequer existe em Portugal, julgo eu, uma forma legal de duas pessoas do mesmo sexo adoptarem uma criança. É claro que eu posso ir a um bairro de lata, comprar uma criança recém nascida, registá-la como se fosse minha, e dar-lhe amor, dar-lhe um futuro, dar-lhe tudo, é uma infracção à Lei mas é também um acto de grande humanidade, mas até isso é uma coisa que não se pode fazer com ligeireza, é preciso ter uma capacidade de dádiva muito grande, até porque essa criança pode vir com inúmeros problemas. Eu não sei, por exemplo, se ao fim de um tempo se detectasse que a criança estava infectada com o vírus do HIV, ou com outra doença qualquer, francamente não sei se como é que iria encarar o problema, de forma que teoricamente não rejeito essa possibilidade, mas na prática não sei se tenho essa disponibilidade interior, essa generosidade toda.

- Francisca, você é uma mulher que cultiva um estilo um pouco andrógino. Sente-se bem assim?

- Sinto. Eu sentir-me-ia mal era se tivesse de cultivar outro estilo. Eu sou assim mesmo, e sinto-me muito bem tal como sou.

- Você concorda com aquela ideia que existe de que as mulheres homossexuais são mulheres que foram rejeitadas pelos homens?

- Nalguns casos acho que sim, acho que algumas mulheres fizeram esse percurso, mas isso acontecia mais noutros tempos, e talvez ainda aconteça na província, onde as mulheres ainda não sabem que têm o direito de pura e simplesmente rejeitar os homens. Hoje em dia, e na província também, porque a televisão tem servido para informar as pessoas, e chega a todo o lado, as mulheres já sabem muito bem qual é o seu lugar na sociedade, e quais são os seus direitos, por isso parece-me que elas quando se voltam para as outras mulheres é mesmo porque se sentem mais atraídas e porque gostam mais. No meu caso não fui muito requestada pelos homens porque de facto não cultivo essas situações sociais de encontros heterossexuais. Eu acredito nos encontros entre pessoas, independentemente do sexo, e não no encontro entre pessoas porque se pertence a este ou ao outro sexo.

- Se pudesse mudar de sexo, mudava?

- Não mudava, jamais.

- E se pudesse passar a ser completamente heterossexual?

- Essa pergunta não faz muito sentido para mim. Eu defendo que o equilíbrio mais perfeito se atinge com a bissexualidade. Contra mim falo, porque eu não me posso assumir como bissexual, pelo menos na prática, na medida em que nunca vivi uma relação com um homem, mas teoricamente acho que me devo assumir como bissexual, porque teoricamente não rejeito essa possibilidade.

- E práticas sexuais?

- Aceito tudo, desde que dê prazer às pessoas.

- Francisca, o que é para si um orgasmo?

- É uma situação aflitiva que se começa a desencadear, e tal como ele é descrito em termos fisiológicos, vai crescendo, até atingir um ponto culminante, e quando está lá no cimo a aflição é de tal maneira forte que só se deseja que acabe depressa.

- E o que é isso do orgasmo vaginal e do orgasmo clitoriano?

- São duas formas diferentes de se sentir uma mesma coisa, eu conheço as duas e digo-lhe que o vaginal é bom, mas eu ainda gosto mais do clitoriano, nesse aspecto não tenho dúvidas nenhumas. Aliás eu acho que é por isso que muitas vezes as relações heterossexuais não resultam, é porque os homens não sabem isso.

- E o recurso a objectos?

- Nunca experimentei. Sei que existe, mas nunca vi necessidade de me servir dessas coisas. Prefiro explorar a minha própria habilidade natural. Isso tem a ver com o perfil das pessoas, obviamente. Eu confesso que isso para mim é uma coisa um bocado disparatada, e custa-me um bocadinho a perceber porque é que há mulheres que usam essas coisas, porque para isso então mais vale ir com um homem. Acho que isso está bem para os gays, sobretudo agora com o problema da SIDA, agora para as mulheres acho que não serve para nada.

- Olhe, e uma noção de pecado, ligada à sua sexualidade?

- Eu não tenho esse tipo de problema, porque não cultivo nenhuma religiosidade, de forma que não encaro as coisas por esse prisma. Eu fui educada dentro da religião católica, fiz a Primeira Comunhão e mais não sei o quê, e isso fez-me interiorizar uma certa noção de pecado, mas quando atingi a idade adulta rejeitei tudo isso. Não tenho nenhuma relação com nenhum Deus.

- E quando morremos? Para onde é que vamos?

- Vamos para a terra. Nós somos pó e mais nada. Morremos, acabou. Quando muito poderemos vir a ser alimento para as plantinhas, e para outros seres.

- Olhe, e o que é que pensa dos bares, dos lugares de encontro?

- Compreendo que existam, mas não os frequento. Acho que cada uma é livre de lá ir se quiser, mas a mim não me dizem nada. O meu estar na vida não passa por aí. Se calhar há pessoas que não têm outra forma de se encontrar, e nessa medida se calhar os bares são nesmo necessários, mas eu de facto não sou frequentadora. Acho mesmo que esses bares são um factor de deturpação da homossexualidade, de abandalhamento, se quiser, de uma coisa que pode ser vivida com toda a decência. Porque o verdadeiro encontro e o relacionamento sério entre as pessoas não passa por isso. Mas também não “simpatizo” nada com os “lugares de engate” heterossexuais, onde aliás também podem acontecer encontros homossexuais. Porque eu não faço uma grande distinção na vida entre homossexuais, heterossexuais e bissexuais, até porque acho que a postura mais certa, mais equilibrada, é a da bissexualidade. Acho que toda a gente tem a liberdade de fazer aquilo que quiser, desde que não incomode nem moleste os outros. Devia haver um respeito muito maior entre as pessoas. Se todos se respeitassem uns aos outros este mundo era optimo, e quando as pessoas se fecham nos ghettos dos bares estão de certa forma a desvirtuar aquilo que é sério e honesto.

- Olhe, e de experiências amorosas, que tal? Muitas? Poucas?

- Poucas. Necessariamente poucas. Eu só conto três histórias amorosas na minha vida. De facto não são muitas, se se pensar que há mulheres que têm vinte ou trinta ou cinquenta. Tive uma relação que durou nove anos, outra que durou cinco, agora há dois anos que estou com esta minha amiga. Penso que foram relações sérias, qualquer delas, e podiam ter durado mais tempo. Porque para me dar completamente a alguém, eu tenho de achar que de facto vale a pena. Chegar ao aspecto sexual é para mim o último passo no encontro e na partilha, e eu não encontrei assim tanta gente com quem me pudesse partilhar completamente, com quem merecesse a pena chegar à vivência do sexo.

- Já agora, uma história engraçada que tenha vivido, não me quer contar?

- Não sei... olhe, uma vez recebi uma proposta de um encontro a três, que me surgiu como uma oportunidade única, e eu gosto de situações que sejam por um lado quase de um certo risco, e que por outro lado sejam novidade, acho que tenho um espírito de abertura muito grande.

- Desculpe lá, mas olhe que isso contado dessa maneira não tem assim muita graça...

- Pois não, não tem graça nenhuma, porque realmente não teve mesmo graça, porque a minha companheira rejeitou a coisa completamente.

- E depois, o que é que aconteceu?

- Foi-me muito difícil gerir a situação. Ela ficou muito contrariada, mas enfim, lá aceitou fazer a experiência, mas é claro que resultou muito mal. Mas é engraçado, e isso sim, tem realmente graça, é que eu, que tinha aderido à ideia, acabei, interiormente, por achar que era bom, embora não me tivesse aproveitado da situação, e ela, que tinha rejeitado a ideia, aproveitou-se muito mais do que eu, e nós quando nos lembramos dessa história ainda hoje nos rimos. Eu acho engraçadíssimo que ao fim de um certo tempo entrámos em pormenores, e só nessa altura, passados anos, é que percebemos que ela gozou muito mais com a situação do que eu. Quer dizer, chegámos as três à cama, eu estava cheia de vontade, e a terceira pessoa também estava muito mais interessada em mim do que na minha amiga, mas eu estava com imensos problemas em relação à minha amiga, porque ela se tinha fartado de dizer que não queria, e tinha inclusivamente entrado numa situação de conflito aberto comigo, de maneira que eu estava completamente bloqueada e quase que não fiz nada, e ela e a terceira pessoa é que fizeram a festa, e eu fiquei de fora. Portanto, e resumindo, eu aceito esse tipo de prática, embora as pessoas com quem tenho vivido a rejeitem, e acho que é uma experiência gira para se fazer. Acho que quem tiver condições para poder disfrutar de uma oportunidade dessas não deve deixar de experimentar.

- Mas como filosofia de vida, acha que é uma hipótese aceitável?

- Como filosofia de vida acho que é muito complicado. Não é por mim, porque os problemas que se põem são ao nível da partilha, e eu acho que tenho uma grande capacidade de partilha, mas penso que uma relação a três é uma coisa muito difícil de gerir. Há o problema do ciúme, porque as pessoas não têm capacidade de dádiva e de aceitação dos outros. Não é por mim, porque eu acho que era capaz de gerir uma situação dessas, mas a minha experiência ensinou-me que de facto é tão difícil que se calhar não vale mesmo a pena.

 

 

                                     Carla, 19 anos, estudante

 

- Olhe, Carla, para começar, qual é a designação que prefere? Mulher homossexual, lésbica, sáfica?

- A palavra lésbica a mim não me incomoda assim muito, mas também não me importo que me chamem de outras maneiras. Eu não me importo com nada.

- Quando é que a Carla descobriu as suas tendências para o lesbianismo, e como foi que isso aconteceu?

- Ah, isso foi muito engraçado, eu tinha dezasseis anos, foi numa altura em que os meus pais tinham ido à terra, e eu estava em exames, de forma que fiquei em casa da minha vizinha, e então o marido dela é da PSP, e nessa noite estava de serviço, de maneira que ela começou assim com umas coisas, a dizer que eu estava a ficar cada vez mais gira, e a perguntar se eu tinha cuequinhas com renda, e não sei que mais, e eu achei aquilo tudo uma conversa muito parva, mas não liguei. Ás tantas, já devia passar da meia-noite, acordei com ela a chamar-me, que tinha uma surpresa para mim, e então eu lá me levantei, muito espantada, e então é que vi que ela estava com uma lingerie com umas flores azuis, e estava saída do banho, toda perfumada, tinha posto música a tocar, e uns poucos de pauzinhos de incenso, daqueles que se vendem nos indianos, e então puxou-me para ela, e abraçou-me, depois começou a dar-me beijos no pescoço, e eu sem perceber nada, mas ao mesmo tempo aquilo estava a saber-me bem, e perguntei-lhe o que era aquilo, e o que é que ela queria. Ela deu-me um copo com whisky e disse-me: “Olha, eu gosto muito de ti, e gostava muito de passar a noite contigo, mas pronto, se não queres podes ir dormir, mas ficas a perder, por isso vê lá se queres ou não, tu é que sabes.”

Eu aí de repente olhei para ela, achei-a bonita, pensei que se calhar ficava mesmo a perder, e disse-lhe que sim, que queria. Ainda ficámos ali um bocado na sala, na marmelada, depois fomos para o quarto, e pronto. Agora quando o marido dela está de serviço eu vou até lá para lhe “fazer companhia”.

- E ele não desconfia de nada?

- Acho que não, porque é que havia de desconfiar?

- E os seus pais?

- Também não. Noutro dia ligou lá para casa um rapaz que é meu colega da faculdade, e depois à noite a minha mãe pôs-se a fazer-me perguntas à mesa, se era o meu namorado, e umas coisas assim, e eu disse que sim, que era, mais ou menos, e que estava a acabar o curso, e eles ficaram todos satisfeitos.

- Olhe, Carla, a Carla acha que já nasceu lésbica, ou foi uma coisa que só lhe aconteceu depois?

- Eu não sei, porque eu antes nem nunca tal coisa me tinha passado pela cabeça, mas também, se não houvesse lá qualquer coisa dentro de mim, também não tinha ido assim à primeira, não é? Porque ela só me convidou, não me obrigou, eu só fui para a cama com ela porque quis, e ainda por cima gostei...

- Quer dizer que a Carla nunca teve namorados?

- Não, quer dizer, pelo menos assim namorados à séria, isso não tive. Ainda não pensei muito bem se quero ter, porque eu gosto muito da minha vizinha, mas por outro lado não posso estar muitas vezes com ela, é só quando o marido não está, por isso isto é tudo uma grande confusão, eu ainda nem sei o que é que quero fazer da minha vida.

- A Carla gostava de ter filhos?

- Ai, adorava. Por isso é que isto ainda é tudo mais complicado. Do que eu gostava era de poder viver com ela, noutra cidade qualquer, que ninguém nos conhecesse, e podermos ter um bébé, mas como isso não pode ser...

- Pois é, vai ter de fazer a sua escolha.

- Mas eu já fiz, eu quero viver com a ..........., quero que ela deixe o marido. Até podíamos adoptar uma criança, ou ir buscá-la a um bairro de lata...

- Bom, olhe que isso também lhe pode criar uma situação um bocadinho complicada. Mas responda-me a outra coisa: a Carla alguma vez se sentiu rejeitada pelos homens?

- Não, alguns até me dizem que eu sou gira e tudo, mas eu nem perco tempo a pensar nisso.

- E uma rapariga masculina, acha que é?

- Não, nada mesmo.

- Se a Carla pudesse de repente mudar de sexo, mudava?

- Não sei, acho que não. Eu sinto-me muito bem assim. Mas por outro lado também gostava de ser rapaz para poder casar com a ........... É uma paixão tão grande...

- A Carla queria casar com ela?

- Era giro, não era?

- E se pudesse de repente deixar de sentir aquilo que sente pela sua amiga?

- Pois, resolvia uma data de problemas, isso era, mas eu não queria.

- Olhe, Carla, e o que são as vossas práticas sexuais?

- ...

- Não quer contar?

- Não é isso, é que ela é capaz de se chatear...

- Então não conte, pronto.

- Também não há assim muito para contar, mas é assim, eu gosto tanto quando ela passa as mãos pelo meu peito, e pela minha cintura, as mãos dela são tão macias... e depois também fazemos outras coisas... mas pronto. É assim.

- Carla, o que é para si um orgasmo?

- Eu não sei muito bem explicar. Foi uma coisa que eu levei um bocadinho de tempo a aprender, ao princípio nem sabia muito bem lá chegar, foi a ............. que me ensinou. Mas é assim um momento em que se tem um prazer tão grande, tão grande, que ficamos com tonturas, e parece que a nossa “coisinha” vai rebentar, parece que vai explodir.

- E objectos, usam?

- Objectos?

- Sim, pilinhas feitas de plastico...

- Que horror! Eu nem estava a perceber o que é que você queria dizer com isso... Não, não usamos, aliás eu ainda estou virgem, por isso já vê...

- E uma noção de pecado, ligada à sua sexualidade? Tem?

- Eu por mim não tenho, e nem acho que esteja a fazer mal nenhum, mas os meus pais são de uma religião, eu não vou agora dizer qual é, mas é uma religião que não aceita a homossexualidade, nem a feminina nem a masculina, de maneira nenhuma, por isso eu nem quero pensar, se algum dia os meus pais descobrem, aí as coisas vão ficar muito complicadas, até são capazes de ir contar ao marido dela, ou de me pôr fora de casa, é melhor nem pensar nisso.

- E sobre os bares, o que é que me diz?

- Nunca fui. Ando com imensa curiosidade de ir a um que me falaram, só para ver, mas não tenho ninguém que vá comigo, e eu para ir sozinha também não tenho assim muita lata... veja lá, se no seu livro houver alguém que queira vir comigo...

 

 

                                 Alexandra, 29 anos, jornalista

 

- Antes de mais, Alexandra, qual é a designação que prefere? Lésbica? Sáfica? Mulher homossexual?

- A palavra que eu utilizo mais vezes é a palavra lésbica. Porque acho que é o que é, e pronto. Eu sei que há pessoas a quem essa palavra faz muita comichão, mas isso é só porque as pessoas não estão habituadas. Os homossexuais às vezes também são preconceituosos. Alguns até são homofóbicos, se não fossem não se escondiam tanto, não é? Têm um autêntico horror à coisa. Se bem que eu também ache que as pessoas se auto-intitulam lésbicas, ou hetero, ou bi, e fecham-se assim nuns compartimentos estanques em que eu não acredito assim muito, porque ninguém está livre, de hoje para amanhã, de dobrar a esquina e encontrar o príncipe ou a princesa dos seus sonhos, não se sabe, não é, porque esta coisa das emoções e dos afectos não é como os produtos que a gente compra no supermercado, não se escolhem pela cor, pelo tamanho, pelo feitio, não se escolhem porque fazem falta, aparecem quando aparecem, quando dá o click, pronto. De maneira que eu acho que a designação, embora não tenha que se ter medo dela, é um bocado limitativa.

- E quando é que pela primeira vez se sentiu atraída por uma mulher?

- Eu era pequenininha, com quatro, cinco anos, e lembro-me de olhar assim com uma profunda emoção para algumas das amigas da minha mãe. Achava-as o máximo. Davam-me aquelas paixonites que dão nas crianças... e essas coisas foram-se sucedendo...

- E quando é que teve consciência do que se estava a passar consigo?

- Eu não sei, mas era muito miúda, e já sabia que era diferente, porque era assim, quando estas coisas aconteciam, e eu sentia que alguém estava a reparar em mim, eu disfarçava, sentia-me na obrigação de desviar o olhar. Aliás, a páginas tantas, o meu grande sufoco era não ter nascido rapaz. Porque eu gostava de raparigas, não é, portanto achava que se tivesse nascido rapaz isso me teria facilitado muito as coisas, porque o que eu tinha na cabeça era o que me tinham ensinado, o esquema hetero, e portanto para gostar de raparigas eu achava que devia ter nascido rapaz. Eu às vezes perguntava aos meus pais quando é que ia ter as minhas namoradas, e eles ficavam muito indignados, muito entupidos, e diziam-me que não, que quem tinha namoradas eram os rapazes, e então, perante estas coisas, não é, para mim não havia confusão nenhuma, entendi que se os meus pais me diziam que quem tinha namoradas eram os rapazes, como eu queria ter namoradas, eu tinha de passar a ser rapaz.

- Quer dizer que a sua família sabe?

- Muito contrariadamente, não é, mas sabem. Ao princípio não ligavam muito. Depois começaram a oferecer-me bolas de futebol, espingardas, fisgas, luvas de boxe, arcos e flechas, enfim, “aquelas coisas normais de que as raparigas gostam...” e como lá em casa não havia rapazes, éramos todas raparigas, era eu que tinha jeito para brincar com brinquedos de rapaz, era eu que desaparecia horas sem ninguém saber onde é que eu estava, não brincava com bonecas...

- E hoje em dia? Aceitam?

- Hoje em dia se pudessem faziam-me uma lobotomia, para eu ficar quieta.

- Olhe, e como é que tudo isso foi vivido na adolescência?

- Ah, não, não foi de todo, não foi na adolescência, foi muito mais tarde. A primeira vez que me deitei com uma mulher tinha vinte e um anos. Mas a primeira vez que tive consciência de que isto era um problema um bocado complicado foi aos doze anos. Fui para o Liceu, e havia muitas raparigas, e então aquilo era um paraíso, porque de cada vez que mudava de ano arranjava assim uma paixoneta... eram assim umas coisas platónicas, não é, que era assim é que devia ser.

- Alexandra, diga-me outra coisa: você acha que já nasceu lésbica, ou essa foi uma característica que foi adquirindo com o tempo? Acha que é uma coisa genética?

- Não sei, eu não tenho conhecimentos de genética para poder afirmar uma coisa dessas. Mas penso que em muitos casos é apenas uma questão de opção pessoal, e mais nada. Eu acho que muitas mulheres às tantas optam, porque neste mundo agressivo, masculino, estúpido, sem imaginação, às tantas a ternura e o afecto entre duas mulheres acaba por ser a alternativa mais atraente, mais segura, mais tranquilizadora.

- E como é ser lésbica em Portugal?

- É difícil. Há países onde os Gays masculinos estão organizados, e têm poder, e dão cartas, como nos Estados Unidos, no Canadá, em Inglaterra, na Alemanha. Nos Estados Unidos, que é o caso que eu conheço melhor, quando há as Gay Parades, primeiro discursam os gays, depois discursam as lésbicas, depois discursam os bi, depois discursam os travesties e depois então é que discursam os trans-sexuais, e esta é a hierarquia que serve para os desfiles, para as representações, para tudo, e então eu acho que num ambiente desses o que se está a criar é um grupo de tendências totalitaristas, baseado numa hegemonia que não se percebe muito bem qual é, gente que funciona em matilha, e acho que tudo isso deve ser combatido, nos Estados Unidos, em Portugal, onde quer que exista. Porque deve haver imensos Gays com imensas razões para se quererem afastar do mundo hetero, mas o perigo é que esses grupos formam-se para lutar contra a descriminação, mas quando esses mesmos grupos começam a ter demasiado poder acabam por ser eles próprios que praticam a descriminação. Só depois do Hitler já houve centenas de grupos que exerceram poderes totalitários, e eu não me apetece fazer parte de um grupo desses, ou melhor, não quero sequer ser identificada com esse tipo de atitude extremista. Até porque cada vez mais as pessoas têm de entender que não há “o nosso mundo” e “o mundo dos outros”. O mundo é só um, e as pessoas têm de aprender a viver juntas. Eu tenho imensa pena que os outros não percebam nada sobre a minha forma de estar, tenho imensa pena que eles não entendam, e me combatam, e me agridam, mas eu não quero estar do outro lado da barreira. Eu quero é que eles entendam que nós vivemos todos juntos neste planeta e temos de nos aceitar e respeitar uns aos outros.

- Olhe, se se organizasse uma manifestação na Av. da Liberdade, você ia?

- Depende, não é? Se fossem os fulanos da extrema esquerda não ia de certeza.

- Porquê?

- Porque eles acham que a comunidade gay em Portugal está toda com eles, mas isso é um disparate, porque há gente gay em todos os Partidos, e os da extrema esquerda acabam por ser tão repressores como os da extrema direita. Você veja o caso da Dina. Ela não pode pretender estar à frente de um bar que toda a gente sabe que é um bar de lésbicas, e fazer de conta que aquilo é o Casino do Estoril, e exercer uma repressão enorme sobre as miúdas que lá vão porque não têm outro sítio para se encontrar, e chegam ali, deixam lá ficar o dinheiro que têm, que não deve ser muito, não é, mas se calhar para algumas é tudo o que têm, e nem sequer podem dar um beijo.

- Mas a Dina é lésbica?

- Eu não sei se ela é lésbica ou não, isso é uma coisa que eu não posso saber, nunca fui para a cama com ela, aliás... nem que ela me pedisse de joelhos, mas a questão que se põe não é essa, a questão que se põe em relação à Dina é que ela é homófoba, preconceituosa e malcriada. Eu conheço milhares de pessoas como ela, que são pessoas completamente desinteressantes, são pessoas que não levam a lado nenhum, são pessoas que só servem para gerar a confusão, e que ainda por cima dão mau nome à homossexualidade. Mas não é só no bar da Dina, há outros que são exactamente a mesma coisa.

- Bom, vamos deixar isso de parte. E a sua juventude? Teve namorados?

- Ah, não, andava à pancada com os rapazes. As minhas irmãs arranjavam problemas com os namorados e eu é que tinha de andar à pancada com eles.

- Nessa altura pensava que gostaria de casar e de ter filhos?

- Não. E no entanto a minha vida acabou por dar uma volta. É uma história muito engraçada. Porque eu não só não pensava nada nisso como ainda por cima tinha alguns problemas a nível de ovários e de útero, e o médico disse-me que tinha muito poucas chances de ter filhos. E acabou por acontecer. O meu caso foi muito engraçado. Às tantas dobrei a esquina, encontrei um homem que achei o máximo, fiquei instantaneamente apaixonada, ele tinha montanhas de defeitos, mas pronto, naquele momento era o máximo. De maneira que perdi a cabeça com ele, e tive uma criança.

- Foi o único homem da sua vida?

- Não, mas também não acredito que me volte a interessar por outro. Era preciso que viesse o arcanjo S. Gabriel, com aqueles caracolinhos loiros, e com aquela carinha de menina... e mesmo assim ia ter de ficar a olhar para mim durante vinte dias... sabe que eu acho que me tenho tornado cada vez mais selectiva... nós não temos de ser omnívoros, não é?

- Olhe, e em relação à sua filha, acha que tem sido uma boa mãe?

- Eu espero bem que sim, pelo menos faço tudo por isso. Eu acho que ela às vezes se ressente um bocadinho por ter os pais separados, mas temos uma relação optima. Mas eu gostava de falar mais um bocadinho de quando era miúda. Houve um dia em que eu me apercebi pela primeira vez de que o meu lesbianismo era um problema social um bocado complicado. Foi um dia em que eu ia com um grupo de amigos pela avenida, e passaram por nós dois homossexuais, e eles começaram a fazer comentários em relação a eles, e arrasaram-nos da cabeça aos pés. E eu comecei a pensar que se se diziam essas coisas sobre os outros qualquer dia iam começar a dizê-las também sobre mim, e essas coisas ofendem, e magoam, e então eu aí tive a consciência de que a minha alegria de viver nunca mais ia voltar a ser a mesma coisa. Depois fui para o Liceu, e era muito pequenita, devia ter a altura da minha filha, e os outros gozavam comigo, penduravam-me nos cabides, faziam-me aquelas coisas que os miúdos fazem aos mais pequenos. Mas quando cheguei aos treze anos, durante as férias grandes cresci imenso, e a primeira coisa que me aconteceu quando entrei no Liceu foi que uma miúda mais velha que até aí nunca me tinha ligado nenhuma veio ter comigo e perguntou-me se eu queria jogar futebol com elas, de forma que era assim que elas iam formando as equipas de futebol feminino, que acabavam por ser concentrados de lésbicas, aliás no basquet também, e então eu lá fui para a equipa, tive um treinador que se chamava Pedro, tinha um metro e noventa, era lindo, mas era tão burro, tão burro, tão fantasticamente burro que era uma coisa impressionante. Depois passei para uma equipa semi-profissional, depois tive outra treinadora que era o máximo, mas essa era a namorada da guarda redes, e a guarda redes era minha amiga, e essas coisas não se fazem, não é, de maneira que não houve nada, mas ela tinha muitos cuidados comigo, as outras queriam pregar-me partidas e ela vinha e fazia voz grossa, de maneira que eu sentia-me ali o máximo. De forma que passei uma adolescência alegre e divertida, assim com umas paixonites platónicas, nunca confessadas nem pela minha parte nem por elas, um tanto reprimida pelos meus pais, mas se calhar ainda bem, porque se eles não me tivessem reprimido tanto eu não tinha desenvolvido tanto a minha capacidade para “dar a volta” às coisas. Outra coisa gira que nós fazíamos era que íamos à noite para o pé do muro do colégio das freiras, que era para onde iam os rapazes para namorar as meninas, e então quando os rapazes se iam embora chegávamos nós, a equipa de futebol feminino. Assobiavamos-lhes, elas vinham à janela, e era optimo, a gente divertia-se imenso. Faziamos-lhes propostas, e elas não sabiam que éramos nós. Depois vinham as freiras, e mandavam-nas para dentro, e nós riamo-nos que nem umas perdidas, aquilo era uma fita todas as noites... Outras vezes iamos para a messe dos oficiais, quem lá estava eram as mulheres deles, e íamos desafiá-las, e no meio disto tudo alguns “negócios” eram bem sucedidos. Entretanto o que não era lá muito bem sucedido eram os meus estudos, porque eu preocupava-me muito mais com a equipa de futebol, e com as pequenas, não é, do que com os estudos, de maneira que os meus pais acabaram por me arranjar uma explicadora de português com quem por acaso também passei umas ricas tardes. A explicadora oferecia-me cigarrilhas, e eu dizia que não queria. Depois oferecia-me Martinis, e eu dizia que não queria. Mas ela é que queria à viva força enfiar-me pelo menos os Martinis. Depois sentava-se ao meu lado, à mesa da sala de jantar, para me dar as explicações, e às tantas havia sempre qualquer coisa dela em cima de mim. E então eu levantava-me e mudava de lugar. E ela dizia-me: “Não sejas parva, vem para aqui”. E eu “Não!” E então aquela cena normalmente acabava comigo a andar à volta da mesa, e ela com o livro atrás de mim. Eu tinha quinze anos, ela tinha vinte e quatro. Mas a pessoa que era, era filha da pessoa mais importante lá da terra, de maneira que se se descobrisse aquilo ia dar uma barracada tão grande, que eu não arriscava, por muito que me apetecesse.

- Você considera-se uma mulher masculina?

- Não, não tenho nada a ver com isso. Tenho talvez um ar um bocado arrapazado, mas não me considero masculina.

- Sabe que há um bocado a ideia de que as lésbicas são mulheres que foram rejeitadas pelos homens. Acha que é verdade?

- Não. Quer dizer, eu acho que isso talvez aconteça com algumas, mas essas são uma espécie de ”lésbicas de empréstimo”. Mas não há regras para os afectos, não há regras para a forma de as pessoas se compensarem, porque de facto somos todos diferentes, e de facto quando nós aprendemos a gostar dos outros é por causa dessas pequenas diferenças. E eu acho que se isso acontece com algumas mulheres não sou eu que as vou criticar.

- Olhe, Alexandra, e pudesse mudar de sexo, mudava?

- Credo! Não!

- E se durante a sua adolescência arrapazada lhe tivessem oferecido essa possibilidade, tê-la-ia aceite?

- Não, também não.

- E se de repente pudesse passar a ser exclusivamente heterossexual?

- Eu gostava de ver essa proposta feita ao contrário. Aos hetero. Porque é que ninguém lhes pergunta essas coisas a eles?

- Tem razão. Olhe, e práticas sexuais entre mulheres? Essa história por exemplo das activas e das passivas, é verdade?

- Sabe que é a coisa que mais me chateia é quando os hetero descobrem que eu sou, e começam a querer saber coisas, e me vêm com essa história de saber se há uma que faz de homem e outra que faz de mulher. Eu fico a pensar que raio de vida sexual é que essa gente poderá ter, percebe? Eu acho que não pode passar pela cabeça de ninguém, minimamente tranquilo em relação à sua própria sexualidade, fazer uma pergunta dessas. Eu acho que as pessoas chegam aos sessenta anos com ideias acerca da sua própria sexualidade que são de uma pessoa ficar arrepiada, mas enfim, Deus é grande, e se Ele os acolhe, quem sou eu para dizer seja o que for.

- Alexandra, o que é o sexo entre mulheres?

- Bom, há mulheres com quem é muito bom, há outras com quem nem por isso, tudo depende.

- Olhe, Alexandra, e o que é um orgasmo?

- Não lhe sei explicar. Sei que é muito bom, mas não sei explicar. Porque para mim o orgasmo não é só aquele momento, é tudo o que acontece antes, e por que não, é também aquilo que vem depois, de maneira que está a ver, é muita coisa.

- O que é que me diz, por exemplo, sobre orgasmo vaginal e orgasmo clitoriano?

- Olhe, se quer que lhe diga, ainda não descobri de qual dos dois é que gosto mais. Estou como o outro “Eu tenho dois amores...” Sabe que eu acho que as questões sexuais têm toda a importância e não têm importância nenhuma. Tudo depende de tantas coisas... a pessoa tem de estar bem consigo própria, tem de estar bem com a outra pessoa, a outra pessoa não pode ser uma pessoa qualquer, e eu não consigo separar as coisas.

- Olhe, e experiências amorosas, foram muitas?

- Não foram muitas, mas às vezes penso que foram demais.

- A Alexandra alguma vez teve uma noção de pecado ligada à sua sexualidade? A ideia de um Deus que mais tarde lhe possa pedir contas, porque afinal de contas a sua sexualidade é uma sexualidade transgressora...

- Pelo contrário. Eu acredito fortemente na existência de Deus, e acredito que Ele está comigo, e “tem-me posto a mão debaixo do rabinho”, tem-me protegido sempre nos piores momentos. Deus não é homossexual, mas também não é hetero, e jamais me há-de julgar por uma coisa dessas. Deus pode ser tudo o que nós quisermos. Eu tenho uma amiga que inventou uma deusa que é a Lady Clitoressa, e presta-lhe culto e tudo.

- Olhe, e descriminação?

- A discriminação é o abuso do poder, e o que muitas pessoas fazem em relação aos homossexuais é justamente isso, o abuso do poder. E eu acho que esse abuso se está a dar no sentido inverso. Embora na maioria dos casos os homossexuais portugueses sejam pacíficos, e não chateiem ninguém, eu acho que começam a acontecer alguns focos de provocação, alguns focos de extremismo que não é nada bom que existam, são até contra-producentes. Nós tivemos um grupo de reflexão que justamente tentou abranger pessoas de todos os quadrantes, mas não é fácil. Já existiu no passado, depois houve uma cisão, porque houve uma pessoa que fez uma tentativa no sentido de “cilindrar” as outras, mas agora estamos outra vez a tentar organizar as coisas, porque é preciso que haja um grupo dedicado à defesa de determinados direitos fundamentais dos homossexuais.

Porque existe de facto discriminação em relação aos homossexuais, e isso é abuso de poder. Eu fiz parte desse grupo de reflexão que funcionou durante um ano e meio, nós chamavamos-lhe Grupo de Consciência Lésbica, e foi um grupo pelo qual passaram muitas dezenas de mulheres, reuniamo-nos semanalmente em casa de uma, em casa de outra, foi um grupo que fez um trabalho estupendo, e as pessoas que passaram por lá pelo menos falaram, discutiram, escreveram, trocaram ideias, e foi uma experiência extraordinariamente positiva.

- E porque é que acabou?

- Bom, surgiram vários problemas, um deles foi uma tentativa de quebra do anonimato por parte de uma das pessoas que é uma senhora que edita uma revista lésbica que obviamente tem as suas limitações, mas é a única que existe em Portugal, aliás eu acho que ela está a fazer um trabalho óptimo, e que tem um valor extraordinário, mas foi preciso chamá-la à pedra, porque as pessoas se querem o anonimato lá têm as suas razões, e essa pessoa faz muito bem em defender as mulheres do campo que não têm instrução, mas os homossexuais existem, e sempre existiram em todas as camadas sociais, e é preciso defender também as outras. Ela é uma pessoa que se preocupa com as lésbicas das camadas mais baixas, mas há as outras, que têm um nome, uma carreira a defender, um cargo de responsabilidade, e a quebra do anonimato é uma coisa que ninguém pode pedir a ninguém. A opinião dela foi que nós éramos todas umas Betinhas de Cascais, mas não é nada disso, nós participamos nas coisas, não queremos é ser radicais nem panfletárias nem andamos de rótulo na testa.

Outro problema grave que se põe é o da solidão, porque nem sempre temos uma pessoa à nossa medida, e isso cria um problema de consumismo, aliás este não é um problema exclusivamente homossexual, mas a mim faz-me pena que isso aconteça tanto e que de certa forma seja tão má publicidade para os homossexuais. Porque uma acusação que nos é dirigida com alguma frequência é justamente essa: “Se realmente está tudo bem e está tudo certo, porque é que vocês se juntam e se separam tantas vezes?” Eu acho que isso tem a ver com a dificuldade que as pessoas hoje têm em estar sozinhas. No caso dos homossexuais esse problema acaba por se tornar mais grave porque não há um acompanhamento, nem há o enquadramento numa estrutura social e familiar, e é lógico que as pessoas tendem a sentir o problema da solidão de uma forma agravada. Eu acho que em Portugal os casais hetero não se separam muito mais porque as pessoas não têm dinheiro para alugar casas, as pessoas, mesmo quando se dão mal, não têm dinheiro para se divorciar, ou para ficar a viver sozinhas. A maior parte das mulheres em Portugal não tem dinheiro, ganha manifestamente menos do que os homens. Basta ver nos transportes públicos. De manhã, quem vai para o emprego de autocarro ou de metro são as mulheres, quem vai de carro são os homens. Os homens têm mais poder de compra. Aqui entra de novo e flagrantemente a discriminação e o abuso de poder, e no caso das lésbicas há mais factores ainda de agravamento da situação. Mas sabe que eu tento ver sempre um lado positivo mesmo nas coisas mais negativas. Neste caso o que acontece é que tudo isto acaba por dar às mulheres e aos homossexuais uma endurance e uma visão da vida que está talvez mais de acordo com o caminho que terá de vir a ser feito no futuro, socialmente, para melhorar as condições de vida das pessos. As mulheres como ganham menos, e estão habituadas a sobreviver com menos, estão mais “equipadas” psicologicamente para se desenrascar com menos dinheiro e de outras maneiras. Se uma pessoa não pode ter carro não tem, e pronto.

Mas ainda em relação à discriminação, houve noutro dia um encontro Gay, com uma mesa redonda, e então convidaram um advogado que é o Francisco Teixeira da Mota que disse: “Ponham os casos em Tribunal, porque enquanto não puserem não se criam precedentes, não se cria jurisprudência, não se cria um movimento para mexer com a Lei.” Isso é tudo muito engraçado, mas era o que dizia uma das miúdas que vinha comigo “Querem mártires!” Porque de facto uma pessoa normal, com uma vida normal, com um emprego normal, com um ordenado normal, que se meta numa batalha campal judicial em Portugal, pode até nem perder a causa, só que são quatro ou cinco anos de despesas a que uma pessoa não pode fazer face, e são quatro ou cinco anos de problemas que nunca mais acabam. Este advogado disse algumas coisas importantes, só que de facto não se vêem soluções à vista. E no caso das lésbicas a situação é de facto muito difícil.

- É mais difícil do que a dos homossexuais masculinos?

- Ah, sim, claro, basta o facto de qualquer homem em Portugal ganhar mais do que uma mulher, para os gays estarem sempre mais protegidos. Eu no meu emprego ganho menos do que qualquer dos meus colegas homens. Até os estagiários entram para lá a ganhar mais do que eu.

- Mas eles não sabem que você tem uma criança pequena para sustentar?

- Eles não querem nem saber do que é que eu tenho ou não tenho. As mulheres ganham ali menos do que os homens, e ponto final. E quando há aumentos, os homens têm 4%, que é uma ninharia, mas as mulheres têm direito a 2%, pronto, é assim.

 

 

                     Luísa Freitas, 46 anos, comerciante

 

- Luísa, diga-me em primeiro lugar qual é a designação que prefere: lésbica, sáfica, mulher homossexual?

- Olhe, a palavra lésbica é uma palavra que eu aceito muito bem.

- E quando foi que descobriu em si pela primeira vez as tendências para o lesbianismo?

- Ah, isso é uma grande história.

- Optimo, já é um bom começo.

- Bem, eu não sei se isso tem alguma coisa a ver, mas quando eu era miúda, devia ter os meus quinze, dezasseis anos, ou talvez menos, eu gostava muito de recortar fotos de artistas de cinema, e é engraçado que só recortava fotos de mulheres. Havia algumas que eu achava especialmente bonitas. Eu não achava os homens bonitos, mas o que é certo é que aos seis anos eu tive a minha primeira paixoneta, e foi por um rapaz. É claro que estes amores da infância são sempre platónicos e até assexuados. Depois comecei a apaixonar-me pelas minhas professoras, era muito engraçado, andava a segui-las pela rua, e coisas assim.

- Apaixonava-se por elas porque as achava bonitas?

- Não, não era tanto por causa das características físicas delas, aliás ainda hoje eu não me apaixono por ninguém por causa das características físicas, mas sim por aquilo que eu acho que essa pessoa tem lá dentro.

- Ora bem, começou então por ter umas paixonetas por rapazes, umas paixonetas pelas suas professoras, e depois por volta dos quinze anos coleccionava recortes de jornais de actrizes de cinema. Alguma em particular?

- Eram as desse tempo, não é? A Jayne Mansfield, a Elizabeth Taylor, a Romy Schneider...

- Mas explique-me uma coisa: você tinha consciência do que se estava a passar consigo, ou nem sequer se apercebia?

- Não, de todo, nem sequer pensava nisso. Aconteceu tudo de uma forma muito natural, eu nem sabia o que era o lesbianismo. E como ao mesmo tempo ia tendo as tais paixonetas por rapazes, achava que isso é que era o amor, e que o que sentia pelas professoras era uma grande admiração, eu não me preocupava em explicar as coisas de outra maneira, as coisas eram assim e pronto. Depois, mais ou menos por essa altura, vi um filme que se chamava “Raparigas em uniforme”. Era um filme alemão que contava a história de uma rapariga de um colégio que se apaixonava por uma professora, e na altura lembro-me de ter pensado: “Olha, afinal não sou só eu”.

- Por tudo isto que me está a contar, a Luísa não é propriamente lésbica, é mais uma bissexual, ou não?

- Sim, quer dizer, eu não sei muito bem o que é que sou, teoricamente acho que sou bissexual, embora neste momento tenha uma relação lésbica. Não sei por quem me vou apaixonar a seguir, mas também não estou nada preocupada com isso. Agora estou apaixonada por uma mulher, e tenho uma relação com ela, é uma relação que sai um bocado fora do esquema convencional das outras lésbicas, mas enfim... tenho a minha faceta lésbica toda “ao de cima”.

- E quando é que teve verdadeiramente consciência disso?

- Foi em 1980, quando vim para Portugal. Eu tinha estado a viver na Holanda, sabia que havia lá muitas lésbicas, que até faziam manifestações e não sei que mais, mas nunca me deu para aí, foi só quando vim para Portugal. Eu nessa altura estava apaixonada por um homem, mas também estava ligada a um grupo feminista, o IDM, Informação e Documentação de Mulheres, que já não existe, e tinha uma amiga holandesa que era jornalista, e que me disse que queria entrevistar mulheres aqui em Portugal. Então eu indiquei-lhe uma mulher que não conhecia, que nessa altura pertencia a um grupo que era só de lésbicas, mas de quem tinha ouvido falar, e de quem tinha lido escritos dispersos que me levaram a pensar que era um discursos feministas mais coerentes que eu tinha visto em Portugal, que era a ............, que tinha estado na célebre “Manifestação dos Soutiens”. O nosso “Grupo das Bruxas”, que mais tarde se separou do IDM, estava a fazer um livro sobre isso, e essa minha amiga holandesa fez-lhe a entrevista, e disse-me que tinha ficado maravilhada, que a ............ era uma “mulher soberana”, e eu fiquei muito impressionada com o que a Saskia disse acerca dela. Entretanto soube que o grupo dela tinha sido o resultado de uma divisão dentro do IDM, antes de eu entrar, porque havia as lésbicas e havia as não lésbicas, e não se entendiam, isso é uma coisa muito chata que acontece às vezes com os grupos feministas. O IDM promoveu uma plataforma alargada, de vários grupos de mulheres, para lutarmos pelos nossos direitos, quando foi a votação, na Assembleia da República, da actual lei do aborto, e numa dessas reuniões, em que eu era a anfitriã, visto que estava de permanência nesse dia, essa tal ............ apareceu toda vestida de preto, com uns botins pretos de salto alto, extremamente sexy, e eu caí redonda. Eu que sempre tinha pensado que não tinha medo de nada nem de ninguém, senti um medo terrível, e nem sabia de quê, e o meu medo cortou essa paixão que estava a nascer em mim, cortou-a como se fosse uma faca, e isso deu lugar outra vez à minha paixão pelo homem com quem vivia. Ainda hoje somos amigas, e quando a vejo ainda sinto assim “uma coisa”, mas nunca lhe contei que tinha estado apaixonada por ela.

- Olhe, Luísa, você quis dar a cara e o seu nome verdadeiro para este livro. Essa é uma atitude reveladora de uma grande coragem. Quando é que resolveu assumir-se tal como é?

- Eu nunca “resolvi assumir-me”. Quando aconteceu, aconteceu, pronto.

- E a sua família? Sabem?

- Eu já não tenho os meus pais, só tenho uma irmã que está na Holanda. Ela não sabe, mas isso é natural, porque passamos anos sem nos vermos.

- E relações sexuais com homens, teve? A Luísa foi casada...

- Sim, claro.

- E foram-lhe desagradáveis?

- Algumas vezes são desagradáveis. Quando eles são estúpidos e brutos, outras vezes não. Não com o meu marido. Mas eu para ter relações com alguém, seja homem ou mulher, preciso de estar apaixonada.

- A Luísa acha que o lesbianismo é uma tendência com que se nasce, ou é adquirida depois ao longo do tempo?

- Eu por mim acho que toda a gente nasce bissexual. As pessoas apaixonam-se por outras pessoas, sejam elas homens ou mulheres. Depois há pessoas que têm “macaquinhos no sotão” e só se apaixonam por pessoas do seu próprio sexo, e há outras pessoas que têm outros “macaquinhos” diferentes e que só se apaixonam por pessoas do sexo oposto, mas para mim todas as pessoas são bissexuais.

- E filhos? Alguma vez pensou em ter filhos, ou teve pena de não os ter tido?

- Eu cheguei a desejar ter filhos, sim. Não é que goste assim tanto de crianças como isso, porque berram, e gritam, e fazem barulho, e desarrumam... por outro lado tudo o que é pequenino é engraçado, eu gosto de animais pequeninos porque é que não havia de gostar de crianças? Mas não tenho aquela loucura...

- Podia educar uma criança sem família...

- Pois, mas por outro lado também já estou velha para aturar balbúrdias e confusões... nem tenho um desejo assim tão forte de ter uma criança, ou de educar uma criança. Se tivesse tido uma criança minha penso que a teria amado, aliás nunca fiz por não engravidar, só nunca aconteceu, mas também não tenho muita pena.

- Você considera-se uma mulher masculina?

- Toda a gente tem características femininas e masculinas. Eu não sou uma excepção.

- Sabe que há muito quem pense que as lésbicas são mulheres que foram rejeitadas pelos homens. Não é o seu caso?

- Não. Comigo isso não aconteceu.

- Olhe, e se pudesse mudar de sexo, mudava?

- Deus me livre! Era só o que me faltava!

- E se pudesse passar a ser completamente heterossexual?

- Eu já lhe disse que não sei o que sou, nem o que não sou, quer dizer, se eu me apaixonar por um homem, eu sou heterossexual? Eu já me apaixonei por homens, por isso... essa questão não se põe muito para mim.

- Olhe, e práticas sexuais, entre duas mulheres?

- Bom, eu acho que os homens, sobretudo, é que fazem muita fantasia à volta disso, mas enfim, há o contacto de pele, que é o preâmbulo, e é muito bom, aliás tudo é muito bom, eu por mim não tenho limites nem ponho obstáculos de espécie nenhuma.

- E isso das mulheres activas e das mulheres passivas?

- Não sei, mas comigo as coisas não se passam assim. Eu tanto me sinto bem num papel como no outro. Gosto muito de “trocar de papeis”. E há muitas lésbicas que as pessoas pensam que são machos, e depois chegam à cama e “derretem-se” todas. Isso é tudo um bluff.

- E sobre essa história do orgasmo vaginal e do orgasmo clitoriano, o que é que tem a dizer?

- Eu acho que isso é um bocado conversa fiada. Existem os dois tipos de orgasmo, mas um orgasmo é um orgasmo.

- Bom, mas é diferente...

- Claro que é diferente. Mas para mim o orgasmo é um fenómeno que se dá sempre na região vaginal, embora possa ter origem no clitóris. Eu dantes pensava que um orgasmo era uma coisa tão boa, tão boa, que por muito má que fosse a vida, pelo menos eu teria sempre o meu orgasmo, nem que fosse sozinha. Mas houve uma vez em que o orgasmo não me deu aquela satisfação e alívio de que eu estava à espera, e aí eu aprendi que o orgasmo não pode ser a “rocha” à qual nos encostamos cada vez que temos problemas emocionais ou de outra ordem.

- E sobre os “sex-toys”, o que é que me diz?

- Não tenho nada contra, até já tenho usado, eu acho que tudo aquilo que nos dá prazer pode e deve ser usado, até já entrei em esquemas “sado-maso”. É o que lhe disse, eu não ponho limites a nada. Gosto de sexo de todas as maneiras. Ainda não vi nenhuma prática sexual que eu não achasse interessante.

- Disse-me que também já tinha entrado em esquemas “sado-maso”. Quer falar um bocadinho sobre isso?

- Posso-lhe contar que quando estive na Holanda a certa altura organizaram um festival dedicado só às mulheres, com espectáculos e não sei que mais, e havia mulheres de todas as áreas, sei lá, havia umas que tocavam música, havia outras que cantavam, outras que dançavam, havia até uma entertainer americana, e depois havia lá um grupo que eram as mulheres lésbicas sado-masoquistas, que eu achei muita graça, e então elas fizeram lá um workshop integrado no festival. Eu achei extraordinario que elas fossem capazes de discutir isso em público. Enfim, naquela altura eu ainda não estava preparada para abordar determinadas questões, mas se fosse hoje em dia não teria dúvidas em ir até lá conversar com elas, porque é um tema que também me interessa, eu gosto de todas as práticas sexuais, não enjeito nenhuma.

- Você foi educada religiosamente?

- Sim, claro, como toda a gente.

- E uma noção de pecado ligada à sua sexualidade, nunca teve?

- Olhando para trás, acho que a única altura da minha vida em que eu considero que fui católica com pureza no coração, que eu acho que é a única maneira de encarar a religião, foi quando comecei a compreender as coisas e as pessoas que me rodeavam começaram a falar comigo acerca de Jesus, da Paixão e de Deus, devia eu ter uns cinco ou seis anos. Durante a instrução primária fartei-me de cometer pecados, como ir à “doutrina” só porque os padres me davam mais carinho que os meus próprios pais, eu quase que me apaixonei por um deles. Depois de ter feito a Comunhão Solene e a Confirmação achei que já não podia estar na religião com a pureza de coração que era preciso, e saí. Hoje sou Panteísta, o que aliás não é bem uma religião, é mais uma filosofia. Eu acho que se Deus existe, Deus é tudo, inclusive o mal, portanto nesse contexto, a noção de pecado fica um bocado reduzida, não é? Visto que Deus não é só o bem, é também o mal.

- A Luísa teve muitas experiências com mulheres, teve com poucas, como é?

- Experiências físicas só tive com uma, que é esta minha amiga.

- Quer dizer, a Luísa tendo a filosofia de vida que tem, em que aceita tudo e mais alguma coisa, ao mesmo tempo não é uma mulher promíscua...

- Não, não sou, realmente.

- E sobre os lugares de encontro, o que é que me diz?

- Eu nunca gostei de bares. Às vezes vou para acompanhar a minha amiga, mas de facto não gosto. Acho que só servem para as pessoas se aturdirem. Lá fora, na Holanda e noutros Países, há sítios muito interessantes onde as mulheres podem de facto conviver, mas cá não há, pelo menos que eu conheça.

- Para terminar, quer acrescentar mais alguma coisa, ou quer por exemplo dirigir uma mensagem a alguém?

- Eu acho que as lésbicas e homossexuais portugueses têm de começar por se juntar, têm de formar uma associação, sei lá, uma coisa qualquer, que os represente. Têm de ser uma força na sociedade. Os homossexuais masculinos já se assumem publicamente, embora cá em Portugal não haja grande coisa, mas mesmo assim já começam a ser uma força. As lésbicas portuguesas têm de começar a sair da casca, ou não chegamos a lado nenhum.

 

 

                 Eltina, 65 anos, funcionária pública reformada

 

- Eltina, o que é para si o lesbianismo?

- Sabe que eu tenho alguma dificuldade em dar uma entrevista nestas condições.

- Por se tratar deste tema específico?

- Não, não é por se tratar deste tema específico, é porque estou pela primeira vez a falar com alguém com quem nunca troquei impressões sobre esse mesmo tema. Além disso eu tenho demasiados anos para me integrar nos grupos de pessoas que se apresentam como sendo homossexuais ou lésbicas. Porque afinal de contas, o que acontece, e por tudo aquilo que eu tenho visto por aí, é que as pessoas que têm uma opção sexual diferente da heterossexual, sejam homens ou mulheres, são pessoas até aos trinta, quarenta anos, e daí para diante eu não sei se existem. Só que eu tenho muito mais do que isso.

- Sim, de facto não me foi fácil encontrar outras pessoas com a sua idade, e sobretudo que quisessem falar. Quando é que a Eltina detectou em si pela primeira vez a sua tendência para o lesbianismo?

- Eu não sei se detectei alguma coisa em mim, eu acho que foram as outras pessoas que viram em mim aquilo que eu própria desconhecia. As outras pessoas já sabiam com certeza, e não se enganavam, uma coisa que me dizia respeito e que eu própria ainda ignorava. Esta é que é a verdade, nua e crua. Eu devia ter vinte, vinte e um anos, quando pela primeira vez uma mulher me abordou, plenamente convicta de que eu era lésbica, palavra que eu desconhecia na época, e que hoje sou obrigada a usar à falta de outra, mas que rejeito absolutamente.

- Pode usar outras expressões... sáfica, mulher homossexual...

- Nenhuma deles me serve. Essa e outras expressões têm conotações negativas que me incomodam muito, e que são inclusivamente discriminatórias em relação às que são utilizadas para os homens. Ora vejamos, está escrito que Lesbianismo é: relações sexuais entre mulheres. Até aí tudo bem. Aberração do comportamento sexual, e isso é mentira. Também está escrito que a homossehualidade é: prática de actos sexuais entre indivíduos do mesmo sexo, e aí o dicionário já não fala de aberração nenhuma. Tudo o resto veio por acréscimo. O resto é a minha vida pessoal, íntima, e eu não sei muito bem se me apetece falar sobre a minha intimidade. Acho que prefiro falar do assunto de um modo geral. Penso que em primeiro lugar devemos resolver os problemas gerais, de natureza política, humanistica, social, digamos assim, depois é que vale a pena abordar as questões íntimas de cada um, mas primeiro mas primeiro temos de resolver os problema dos direitos humanos em geral, e em particular no que diz respeito às mulheres. Eu digo isto porque sou de facto uma feminista assumida.

- OK, vamos então abordar a coisa sob outro ponto de vista. O direito de as mulheres se inclinarem intimamente, eu ponho isto desta maneira para contornar determinadas palavras que a Eltina considera chocantes, o direito de as mulheres escolherem uma determinada orientação sexual quando ela transgride aquilo que está estabelecido.

- É claro que cada um tem o direito de orientar a sua vida como muito bem quiser e entender, desde que não vá contra os direitos dos outros. A minha fronteira acaba onde começa a fronteira do outro. Eu, por exemplo, sou uma pessoa que a partir de certo momento, não lhe sei explicar porquê, entendi que preferia ter com alguém uma relação de outro tipo, baseada num amor completamente diferente do amor que é vivido nas relações heterossexuais.

- E que idade tinha?

- Quarenta e dois anos. A outra pessoa tinha vinte e um. Mas eu com quarenta e dois anos era muito inexperiente, tinha levado uma vida muito sossegada.

- E como é que isso aconteceu?

- Eu vinha vinte e um, vinte e dois anos, quando fui pela primeira vez abordada por uma mulher. Eu nessa altura nem sequer fazia ideia que era possível existir uma relação de intimidade sexual entre duas pessoas do mesmo sexo. Era ignorância, ou era pureza, não sei. Eram outros tempos, eu vivia numa cidade de província, de forma que só vinte anos mais tarde é que a coisa aconteceu, e aconteceu porque tinha de acontecer, não lhe sei dar outras razões. As mulheres metiam-se comigo... mas a primeira vez que alguém se meteu comigo a sério eu sofri tanto que enlouqueci. Cheguei a estar no Hospital Júlio de Matos. Perdi a razão. Pois se eu nem sabia que o amor entre mulheres existia... E passaram-se os anos, e havia mulheres que me assediavam, elogiavam os meus feitos desportivos, porque eu fui campeã de atletismo, de basket, fui jogadora de futebol, ciclista, vivi no estrangeiro, se fosse hoje diziam que eu tinha tomado hormonas. E então elas metiam-se muito comigo, e eu pensava: “Mas estas fulanas são todas doidas? Elas não vêem que eu sou uma mulher? Porque é que se metem comigo?” Então decidi simplesmente arranjar um namorado, o primeiro que me apareceu, qualquer um me servia, só para andar com ele na rua. Porque eu tinha tido uma grande paixão por um rapaz, mas a coisa não foi para a frente, o namoro acabou, e eu ainda estava muito ferida, e não queria voltar a passar pela mesma coisa, e tinha pensado que não queria mais nenhum. E então estava naquela fase de não querer mais ninguém nem querer sofrer mais por causa de namoros. Queria estudar, fazer a minha vida, mas as pessoas murmuravam, achavam muito estranho que eu não tivesse namorado.

- Começou a ter problemas com a família?

- O problema das famílias é um problema muito complicado. É um assunto sobre o qual já conversei bastante com várias pessoas, e que me preocupa. E que me preocupa sobremaneira porque sei de casos de pais que andaram desesperados à procura de uma solução, porque os filhos de catorze anos pareciam ter alguma tendência para a homossexualidade. Só que eles aos vinte e oito ou aos trinta e oito acabaram por assumir a sua homossexualidade. Num dos casos, os pais até eram bastante ricos, de forma que pegaram nele, andaram a correr médicos por essa Europa toda, a tentar encontrar uma solução, porque eles não entendiam porque é que o filho tinha aquela inclinação para gostar de outros rapazes. Na altura disseram-lhes que aquilo podia ser um problema passageiro da adolescência, mas o que é verdade é que ele hoje é um homem quase da minha idade, e é homossexual. Com as mulheres a coisa sempre foi muito mais recatada, muito mais escondida, e eu com a minha família nunca tive propriamente muitos problemas, até porque eu só me apercebi do facto aos quarenta e dois anos, a luta comigo mesma ainda durou alguns anos, e só depois do cinquenta anos, aí sim, é que eu me assumi perante mim própria, e sinto-me feliz.

- Você acha que a sociedade aceita pior a homossexualidade masculina ou a feminina?

- Eu penso que aceita pior a masculina. Talvez porque o macho é sempre o macho, e é mais “vergonhoso” para a família no sentido em que há um elemento que à partida deveria assumir uma posição de poder e que em vez disso se coloca numa posição diferente, escondendo-se da sociedade. Quando são duas mulheres a coisa passa, pelo menos é o que as pessoas pensam, por uma ternura, um carinho, não se dá tanta importância.

- E os seus relacionamentos com os homens? Teve namorados? Dormiu com eles?

- Eu só dormi em toda a minha vida com um único homem, que foi aquele com quem me casei. Mais nenhum.

- E que tal? Foi agradável?

- Quer dizer... em termos de relacionamento humano foi uma boa experiência. Foram vinte e cinco anos de casamento, que foi para mim extremamente compensador em termos de riqueza humana. Agora na realidade, eu só descobri que era melhor uma intimidade entre duas mulheres depois de a ter experimentado, porque até ali eu julgava que aquilo era muito bom.

- Casou com ele por amor?

- Não. Eu até gostava de um outro. Você vai-se rir, mas eu casei com aquele homem por causa de uma aposta. Eu achava que aquele homem era lindo, e tinha apostado com uma amiga minha que ele havia de ser meu.

- Essa é boa!

- Mas é verdade. Eu não sabia que era sáfica, está a ver? Eu de facto não sabia.

- Olhe, e filhos? Nunca teve pena de não ter tido filhos?

- Fiz tudo o que estava ao meu alcance naquela altura, não olhei ao dinheiro, mas nunca consegui. Até hoje, essa pena ainda me dói.

- Acha que teria sido uma boa mãe?

- Eu julgo que sim.

- Acha que reunia as condições emocionais necessárias?

- Ah, sim, estou perfeitamente convencida disso. Aliás eu criei uma criança a partir dos cinco anos, uma criança abandonada. Ele hoje tem a família dele, eu não sei se terei sido uma mãe perfeita, mas como julgo que a perfeição também não existe por aí aos pontapés...

- E sobre essa história das mulheres muito masculinas, o que é que você me diz? Acha que é assim, ou é folclore?

- Não sei bem. As pessoas cultivam estilos por motivos que se calhar nem elas próprias analisaram ainda muito bem, mas nem sempre é, talvez, uma coisa que se possa propriamente escolher. As mulheres que têm um tipo masculino provavelmente sentem-se muito bem assim, e não sou eu quem as vai criticar. Agora eu a mim, à minha sensibilidade, diz-me muito mais uma mulher feminina. Para ter uma cópia de um homem, então preferia ter um homem verdadeiro, não acha?

- Sabe que há um bocado a ideia de que as mulheres que se viram para outras mulheres é porque foram rejeitadas pelos homens. O que é que você acha?

- Pois, eu sei que há quem diga que as lésbicas são mulheres mal amadas. Eu não vejo o problema assim. Em primeiro lugar, assim como eu, que não sabia que podia ter uma sexualidade diferente daquela que tinha, e até podia ter ficado muito feliz como era, se não tivesse experimentado outra coisa, devem existir mais pessoas nas mesmas condições. Pessoas que têm a sorte de poder optar no momento em que há uma outra coisa que lhes é oferecida. Eu chamo a isto ter sorte. A mim as coisas não me corriam mal do lado heterossexual, o meu casamento não corria mal, pensava eu, aliás ainda hoje somos amigos, vamos jantar fora juntos e tudo. Só que de repente eu tive uma oportunidade de experimentar uma outra coisa, e percebi que gostava mais daquela forma de estar do que da outra. Mas também me podem dizer que eu só conheci um homem na vida. É verdade. Mas eu podia ter conhecido outros homens, acho que isso não vinha mudar coisa nenhuma.

- A Eltina acha que se nasce lésbica, ou é uma coisa que se adquire com o tempo?

- Eu acho que todas nós temos essa oportunidade na vida, só que algumas de nós não sabem aproveitá-la. E então há pessoas que descobrem isso logo em meninas, ou em rapariguinhas, fazem a experiência, têm oportunidade de escolha, gostam e não abdicam mais, nunca mais querem voltar atrás porque realmente foi tão bom... Há outras mulheres que não sabiam que tinham também essa capacidade dentro delas, e então viveram uma vida comum, igual à de toda a gente, e quando um dia na vida dão por elas a olhar com outros olhos para outra mulher ficam muito espantadas. E então experimentam, e gostam, e nunca mais querem outra coisa, ou ficam cheias de problemas, a pensar que estão malucas, enfim... agora também há pessoas que sabem que tudo isto é perfeitamente natural, que é apenas uma questão de oportunidade e de opção de vida, e na primeira oportunidade fazem a sua opção. Mas é claro que os tempos de hoje tornam as coisas muito mais fáceis, quando eu era rapariga era tudo muito mais difícil.

- Olhe, Eltina, e se pudesse mudar de sexo? Queria?

- Em caso algum. Eu adoro ser mulher.

- E se pudesse voltar a ser completamente heterossexual?

- Talvez, eu não sei, porque assim como fiz a opção que fiz porque era mais feliz dessa maneira, voltaria a fazer uma opção, se tivesse novamente boas razões. Só perante a situação é que eu poderia tomar uma decisão dessas, mas não sou de modo nenhum inflexível, nem radical. Eu não sei o dia de amanhã. Quando eu rejeitei todos os convites que as mulheres me faziam, e depois acabei por aceitar, e enlouqueci, porque eu estive louca, alguma vez me passou pela cabeça que num futuro próximo viria a ser aquilo que sou? Com uma experiência destas, como é que eu posso dizer que “desta água não beberei”? Pensando como penso, prefiro deixar-me ficar muito quieta e estou muito bem como estou. O dia de amanhã logo se verá.

- O que são as práticas sexuais entre mulheres? Há quem tenha a ideia de que há uma que é o macho do casal, e outra que é a fêmea, isso é verdade?

- Não faço a mais pequena ideia. Para mim, amar não tem limites. Porque é que eu hei-de ser obrigada a comportar-me como se estivesse a viver uma cópia das relações heterossexuais? O Romeu e a Julieta são muito bonitos no Teatro, mas eu não me sinto nada obrigada a copiar essas formas de amor.

- Também há quem pense que as mulheres que gostam de outras mulheres recorrem a objectos, os chamados dildos. É verdade?

- Chamados o quê?

- Dildos.

- Nem sei o que isso é.

- São umas pilinhas de borracha...

- Ah, já sei, deve ser a mesma coisa que os vibradores. Olhe, eu nunca usei, mas também não vejo porque é que as pessoas não hão-de usar, se isso lhes der prazer. O amor não deve conhecer limites, e portanto se isso lhes dá prazer, porque é que não hão-de usar? Eu nunca precisei, mas não censuro.

- Eltina, o que é um orgasmo?

- Olhe, um orgasmo não se explica. Um orgasmo tem-se. Um orgasmo não se sabe que se teve, senão quando se tem pela primeira vez, e quando isso acontece, a pessoa tem uma reacção tal que o parceiro, ou a parceira, percebe logo que foi a primeira vez. Ora eu já tinha quase cinquenta anos quando uma noite, estava deitada com uma moça, e dei um grito tão grande que ela me disse: “Ah! Não me digas que é o teu primeiro orgasmo!”. E era verdade.

- Olhe, e uma sensação de pecado, um sentimento de culpa em relação à sua sexualidade? Nunca teve?

- Eu penso que há-de haver um Deus que me há-de pedir contas pelos erros que eu possa ter cometido, ou vier a cometer, ao longo da minha vida, enfim, mas isso era se eu fizesse mal a alguém, agora por causa de umas maroteiras que eu faço de vez em quando, que vou para a cama com umas pequenas, eu penso que Deus tem muito mais que fazer do que andar a pedir-me contas por isso, que não tem importância nenhuma, e não faz mal a ninguém, antes pelo contrário... Acho que essas coisas são do domínio da vida privada de cada um, e Deus não quer saber disso para nada.

- Olhe, e experiências com mulheres, teve muitas?

- Eu não vou atrás de experiências, vou atrás de oportunidades de amar. E eu não devo perder oportunidades de amar, porque esses são momentos que não voltam segunda vez. Nem sempre pensei assim. Quando eu era nova pensava que antes de amar tinha de passar primeiro por muito namoro, muitos ramos de flores. Depois aprendi que o amor pode durar uma hora, pode durar dez anos. O que é preciso é que, o tempo que dura, seja vivido intensamente.

- Quer acrescentar mais alguma coisa?

- Olhe, eu acho que gostava de deixar uma mensagem. Eu julgo que há muitos homossexuais, homens e mulheres, que fazem uma vida que é uma cópia da vida dos heterossexuais. No caso das mulheres, elas queixam-se muito porque passam a vida no emprego, e depois a tratar da casa, a lavar, a esfregar, a cozinhar, e não têm tempo para se visitarem a elas próprias, e serem elas, ou seja, não têm tempo para pintar, escrever, desenhar, tocar música, fazer piruetas, eu sei lá... e depois encontram uma mulher, e julgam que vai passar a ser tudo muito diferente, mas voltam a fazer a mesma coisa outra vez. Voltam a não ter tempo para se visitarem interiormente, para se conhecerem. Como diria a Anaïs Nin, não têm tempo para viajar dentro de si próprias. Não aproveitam a vantagem que é poderem-se compreender muito melhor, como iguais que são, e de poderem partilhar, ao mesmo tempo, um grande número de situações que lhes podiam permitir disfrutar das coisas boas da vida, uma vez que não têm a mesma carga de vida de casa que têm as outras mulheres. A nossa vida tem de ser completamente diferente da das mulheres hetero, ou não valeria a pena ser vivida. Eu não tenho razões de queixa do meu casamento, mas de facto não há comparação possível. Tem a ver com liberdade e tem a ver com capacidade de dádiva.

Na minha qualidade de feminista, quero ainda acrescentar o seguinte: não existe nenhuma relação entre lesbianismo e feminismo. Há mulheres heterossexuais que são feministas, outras que rejeitam o feminismo, outras que não o são. Há mulheres homossexuais que são feministas, outras que rejeitam o feminismo e outras que não o são.

 

 

                     Helena, 42 anos, professora do ensino secundário

 

- Bom, em primeiro lugar, diga-me qual é a designação que prefere: sáfica, lésbica, mulher homossexual...

- Lésbica, prefiro lésbica por tudo o que contém de conotações sem ambiguidades. Lésbica é toda a mulher que se sente emocional, afectiva, física e intelectualmente atraída por outra mulher. É uma sensação única, um envolvimento a todos os níveis com uma força e uma intensidade que é preciso tê-la vivido para se saber o que é. Acho alguma piada ao termo sáfica, mas parece-me que é um termo que está um bocado localizado no tempo, lá para os anos vinte, que foi uma época em que o lesbianismo esteve na moda, e em que foram muito cultivadas e aplaudidas as “amizades amorosas entre mulheres”, sobretudo nas classes socialmente mais elevadas dos países industrializados, a Inglaterra, os Estados Unidos, a França... a Alemanha nos anos 30. Discordo da expressão “mulher homossexual” porque distorce completamente o que se passa de facto numa relação amorosa entre duas mulheres.

- No caso específico das mulheres...

- Homossexual, para mim, e decompondo etimologicamente a palavra, refere-se à prática de um acto meramente sexual entre duas pessoas do mesmo sexo, que certamente não será desprovido de erotismo, mas do qual tudo o resto está praticamente excluído. Ora as mulheres, para além de se relacionarem sexualmente entre elas, adoram praticar "tudo o resto", ou seja, adoram namorar-se umas às outras, às vezes até sem terem plena consciência disso. Até as mulheres que se afirmam heterossexuais o fazem, mesmo quando esse namoro não chega ao ponto de ser vivido na prática, conscientemente. As mulheres em geral, e aqui refiro-me a todas sem excepção, namoram-se de forma muito subtil através da conversa, do olhar, das pequenas cumplicidades do dia-a-dia, das confidências, do toque ao comporem o cabelo, ao arranjarem as roupas umas às outras, nas trocas de vestuário entre elas, nos piropos que dão às amigas, mas como tudo isto se passa entre mulheres, não está dentro dos estereotipos vigentes nesta sociedade, e elas não se apercebem exactamente daquilo que em noventa por cento dos casos está por detrás desses gestos... sei lá, usam de tantos pretextos, porque lá bem no fundo sentem prazer em todos esses rituais. Mas, infelizmente para elas, muitas delas nunca chegam a saltar a barreira das convenções nem a ultrapassar o medo do desconhecido, e é pena, porque não sabem o que perdem. Aquilo que sentem pela sua confidente, ou pela sua melhor amiga, é muitas vezes amor e paixão, mas elas não foram educadas para reconhecer esse facto, para descodificar essa sensação e também não têm a ousadia nem usam a inteligência necessária para o admitir. Mas mesmo assim, olhe que a percentagem de lésbicas em Portugal, assumidas ou não, vivendo sozinhas, formando casais femininos, ou casadas e com filhos mas que não perdem uma oportunidade de estarem em privado, quero dizer, na cama, com a sua amiga, quando a família não está por perto, é bastante elevada e julgo que está a crescer a um ritmo significativo. É talvez o rescaldo e a consequência lógica do feminismo dos anos 60 e 70; elas deixaram-se de teorias decalcadas do modelo de discurso político masculino e de um certo exibicionismo gratuito, para passarem à prática de uma forma mais calma, mais discreta e de longe muito mais compensadora.

- A que prática de que sexualidade é que se referia no início da sua resposta anterior?

- Refere-se à palavra homossexual? Então, é a prática do acto sexual, em qualquer das suas muitas variantes, entre duas pessoas do mesmo sexo. Eu propunha e preferia que o termo homossexual fosse sendo gradualmente substituído pelo termo homoerótico. Porque de facto é isso que define a relação entre duas mulheres que são amantes e vivem uma relação de amor e paixão. E já agora a sensualidade, esse termo tão mal compreendido nas suas múltiplas componentes e tão mais abrangente.

- Com que idade é que a Helena descobriu as suas tendências homoeróticas e em que circunstâncias é que as descobriu?

- Isso é uma pergunta difícil porque a resposta recua tanto no tempo... essa resposta remonta à minha pré-adolescência, ou mesmo à minha infância. Eu comecei a ter paixões por outras rapariguinhas da minha idade e um pouco mais velhas do que eu, não sei precisar... mas aí pelos meus seis, sete anos de idade. Pensava nelas o tempo todo, à noite não dormia. Na altura não sabia adjectivar esse tipo de sentimento que ia muito para além da mera amizade entre duas crianças, só muito mais tarde é que eu percebi exactamente o que se passava comigo, mas para abreviar e sem faltar à verdade, as minhas tendências lésbicas existem desde que eu me lembro de existir.

- Acha então que nasceu com elas, não foi qualquer coisa que tivesse adquirido com o tempo?

- Não sei ao certo, nem acho que isso tenha importância nenhuma. Deixo isso para os psiquiatras e para os psicólogos que fazem disso modo de vida. Mas o que é um facto é que desde sempre me senti atraída fisica e emocionalmente por pessoas do meu próprio sexo, disso não tenho a menor sombra de dúvida.

- E como é que foi vivida a sua adolescência, no que dizia respeito ao seu homoerotismo?

- De uma forma bastante difícil. Primeiro porque as minhas primeiras paixonetas não tinham como objecto indivíduos do sexo oposto, como era esperado, mas sim raparigas, e isso criava uma situação muito complicada, porque me sentia diferente das outras, sentia-me excluída de muitas maneiras, incapaz de representar o papel que a sociedade e a família esperavam de mim, e não sabia de todo como é que havia de lidar com a situação. Nunca pensei que fosse uma anormalidade da minha parte, nunca senti a coisa por essa óptica, mas foi uma adolescência muito solitária, afectivamente falando, com muitas paixões vividas em silêncio e muita angústia. Para as rapariguinhas com uma sensibilidade lésbica essa sensação de isolamento pode ser particularmente dolorosa e acutilante, porque a adolescente não tem referências sobre o amor entre mulheres, não sabe como agir, não sabe como abordar aquela por quem está apaixonada e tem medo. Como dado adquirido, pressente que se der livre curso às suas tendências terá a família e a sociedade a cairem-lhe em cima, e o que é ainda pior, receia a rejeição e o afastamento da amiga se lhe contar francamente aquilo que sente por ela. Isto tanto é válido para as jovens como para mulheres lésbicas que só na idade adulta quiseram assumir a sua verdadeira natureza e passar a agir em decorrência.

- E no seu caso como é que as coisas se passavam?

- Havia aquelas festas em casa de umas e de outras, não há adolescente nenhuma que não goste de ficar a dormir em casa das amigas, e daí aconteciam muitas coisas. Faziam-se vários tipos de brincadeiras já nessa altura muito pouco inocentes. Era o despertar dos sentidos e a descoberta do corpo. Enfim, foi todo um processo que evoluiu muito lentamente e muito difusamente no tempo, mas basicamente eu acho que a quase totalidade das raparigas, ao fim e ao cabo, gosta dessas brincadeiras. Depois, conforme a coisa se torne mais ou menos apelativa para elas, assim as brincadeiras também tenderão a ir mais longe ou não. O que aconteceu comigo é vulgar entre raparigas, mesmo entre aquelas que se julgam perfeitamente heterossexuais. Mais tarde casam, têm filhos, e fazem a parte gaga e hipócrita de se fingirem escandalizadas quando ouvem a palavra "lésbica". Nunca notou que algumas até se engasgam? Naquele tempo eu “brinquei” com algumas que hoje se incluem nesta última categoria.

- Olhe, e o que é que os seus pais dizem disso tudo? Para já, como é que os seus pais reagiram quando souberam? O que é que eles disseram na altura?

- Não disseram nada, porque pura e simplesmente, até hoje, o assunto nunca foi abordado. Mas é provável que a minha mãe desconfiasse, porque sem qualquer explicação plausível, por essa altura ela levou-me a vários psiquiatras. Essas idas ao psiquiatra foram extremamente traumatizantes e humilhantes para mim. Eu andava pelos meus onze, doze anos, não sabia ao que ía, nem porque estava ali, e eles, os psiquiatras, certamente já alertados pela minha mãe, limitavam-se a perguntar-me, por vezes num tom intimidante, se eu não tinha nada que lhes quisesse contar sobre a minha vida. Resultado: silêncio absoluto. Ora eu não estava ali de livre vontade, não tinha nada para lhes contar, faziam-me sentir estúpida e ridícula e depois mandavam-me para casa com uma caixa de tranquilizantes para me drogar. Esta é a situação mais comum nas famílias onde surge de repente um elemento que é gay ou lésbica. Enfiam a cabeça na areia, ou espetam com os jovens no psiquiatra. Tem sido um permanente faz-de-conta tanto da parte dos meus pais como da minha parte... mais da deles do que da minha, porque eu nunca lhes escondi que vivo com uma mulher há mais de sete anos e até já temos ido as duas jantar a casa deles, e eles já foram várias vezes a nossa casa... e viram que só temos uma cama, e que é uma cama de casal.

- E a sua relação com os rapazes, como era? Teve namorados?

- Naquele tempo tive uma série de namoradinhos, não tanto porque eu estivesse muito interessada neles, na realidade não estava, pelo menos a esse nível. Podiam ser bons companheiros de passeios e jogos, mas no aspecto sentimental não tinham para mim o menor significado.

- E muito menos sexual?

- E muito menos sexual. Estava numa fase em que o meu corpo já tinha despertado para o sexo... mas não era neles que pensava, não! Lá tive esses namoradinhos porque sentia a necessidade de pelo menos parecer igual às outras raparigas da minha idade, para de certo modo dar uma satisfação em casa. No fundo eles serviam-me de disfarce para esconder aquilo que eu realmente era. Não posso dizer que estivesse interessada neles como namorados e ainda menos como possíveis futuros maridos.

- Nunca se deitou com nenhum deles?

- Digamos que aconteceu esporadicamente, por volta dos meus dezoito anos, ou coisa parecida, mas nunca foi nada de relevante ou que implicasse uma situação de compromisso. No meu caso concreto eu era uma revelação para alguns deles, os que chegaram a fazer sexo comigo. Como eu tinha um horror pânico à ideia de engravidar, e naquela altura os preservativos eram coisa de que não se falava, eu comecei a impôr as minhas regras: sexo sim, mas anal, uma coisa que eu devo dizer que nunca achei nada desagradável de praticar com a maioria dos rapazes. Devo ter sido gay noutra encarnação... Todos se admiravam porque era uma coisa que eles nem se atreviam a propôr às outras raparigas. Eu nesse aspecto nunca tive barreiras mentais. E eu sei que se por acaso me tivesse voltado para os homens, hoje era um sucesso, porque a maioria das mulheres hetero recusa-se a ter relações anais, uma prática que é muito do agrado masculino, e não só numa atitude activa...

- Sim, mas para si foi uma experiência traumatizante, foi agradável, foi giro, como é que foi?

- Como eles para mim não tinham nenhum significado a nível emocional e eu nem sequer tive nenhuma paixoneta por nenhum deles, acho que teve uma graça muito relativa, para além de algum prazer físico.

- Bom, isso da sua parte. E da parte deles, havia interesse por si?

- Acho que sim, mas foi sobretudo alguns anos mais tarde, já adulta, que se geraram situações em que de facto eu vi que havia verdadeiro interesse da parte deles em estabelecerem uma relação comigo, que poderia levar a um casório ou coisa parecida.

- Nunca se sentiu rejeitada? Ou houve algum homem que tivesse querido e que a tivesse rejeitado?

- Não, nunca, em nenhum dos casos... e depois, como já lhe disse, eu namorisquei alguns, poucos, e só para tapar o sol... com a peneira...

- E quanto às mulheres, com quantas mulheres se relacionou na sua vida?

- Tudo depende do que se entende por relacionar.

- Com quantas mulheres é que se deitou até hoje?

- Não sei ao certo, porque eu comecei muito cedo, por volta dos meus dez ou doze anos. Fazíamos muito aquelas brincadeiras eróticas que são vulgaríssimas entre miúdas daquela idade, e que com o tempo podem evoluir de maneiras diferentes, portanto eu não sei, se eu agora quisesse fazer uma conta... eu nunca fiz essa conta, para quê? Mas se fizesse... ah, foram algumas... foram, sim senhora!

- Mais de dez? Mais de cinquenta? Mais de quinhentas?

- Que ideia! Mais de dez, mas menos de cinquenta.

- Helena, o que é para si o lesbianismo?

- Olhe, é a coisa mais natural deste mundo. É... são duas mulheres, ou duas raparigas, que se sentem profundamente atraídas uma pela outra, que têm uma série de características em comum, e diferenças também, que é bom que nenhuma das duas se esqueça de respeitar, e que além disso têm a maturidade de aceitar esse amor e decidem embarcar na grande aventura de o viver na prática. Só uma mulher pode compreender verdadeira e profundamente outra mulher. É tão simples como isso. Sem pretender ser panfletária, acho que uma mulher só se realiza plenamente nos campos sentimental e sensual, e muitas vezes também no intelectual, quando se relaciona aberta e integralmente com outra mulher. Segundo a lei dos sentimentos não são os opostos que se atraem, mas sim as semelhanças. E que há de mais parecido com uma mulher senão outra mulher?

- E as práticas sexuais? O que é que fazia, ou faz, do que é que gosta mais?

- Eu acho que isso depende do momento, do estado de espírito... é óbvio que as pessoas podem ter uma preferência por esta ou aquela prática sexual... eu por mim não enjeito nenhuma, depende da apetência do momento. Quando estou com uma mulher na cama preocupo-me muito mais em lhe proporcionar a ela aquilo que lhe der mais prazer, do que com o meu próprio prazer. Esse vem por acréscimo. E já agora também aproveito para dizer que é preciso desmistificar essa coisa das práticas sexuais. Duas mulheres apaixonadas que vão para a cama juntas abraçam-se, beijam-se pelo corpo todo, acariciam-se durante horas, olham-se nos olhos, longamente, estimulam-se sexualmente tantas vezes quantas quiserem e das maneiras que lhes apetecerem. Não há um timing para nenhuma delas chegar ao orgasmo, qualquer delas pode ter todos os orgasmos que quiser e que conseguir, ou até não ter nenhum se não lhe apetecer. Mas para mim não há dúvida de que o sexo oral é a coisa mais interessante e mais excitante. Gosto muito de o fazer à minha amiga e companheira e gosto que ela o faça a mim. Resumindo, duas lésbicas na cama fazem o que muitas mulheres hetero gostariam de fazer com um homem, mas que na prática não acontece. E não lhe digo isto numa atitude de proselitismo, não é nada disso, somos todas adultas e cada qual sabe o que é melhor para si.

- E com objectos?

- Aconteceu uma vez ou outra. Nenhuma de nós duas acha graça a brinquedos sexuais. Para quê? Qualquer mulher está devidamente equipada pela Natureza para poder proporcionar todo o prazer possível a outra mulher. Os pénis dos homens servem para fazer bébés, e actualmente com a engenharia genética, já nem sequer para isso são necessários. Duas mulheres só precisam de um forte envolvimento a todos os níveis, de aprender a conhecer muito bem o seu próprio corpo e o corpo da companheira, e já agora, terem também alguma imaginação, que é uma coisa que me parece que falta à grande maioria dos homens. Depois... deixe-me acrescentar, como diz uma personagem num filme sobre lésbicas, e feito por lésbicas: um dildo não tem nada a ver com um pénis. Um dildo tem a ver com o acto da penetração, que pode ser uma coisa muito agradável para algumas mulheres, mas para o qual não é, em absoluto, necessário o recurso à presença do apêndice sexual masculino, seja ele verdadeiro ou falso. Aliás, penso que o comércio de dildos recruta a maioria da sua clientela entre as mulheres hetero e os homens casados. Não me pergunte porquê.

- E no momento da prática do sexo? Consegue atingir um orgasmo com uma mulher?

- Claro, é a coisa mais natural do mundo. Eu fico estarrecida de cada vez que uma mulher hetero me diz que nunca teve um orgasmo com o homem dela. Que diabo de vida erótica mais esquisita será a delas? Eu acho que nem sequer lhes passa pela cabeça que se podem masturbar, por exemplo, e que isso também pode ser delicioso... Eu por mim, a primeira vez que atingi um orgasmo foi através da masturbação, eu devia ter aí uns dez anos de idade. Fazer amor com a mulher que eu amo, a mulher com quem vivo há sete anos, não termina sempre obrigatoriamente num orgasmo para as duas. Damos amor uma à outra, beijamo-nos até adormecermos, depois às vezes acordamos, voltamos a fazer o mesmo... Ela é médica, eu estou no Conselho Directivo da Escola, está a ver, uma e outra temos vidas profissionais muito agitadas, e não estamos imunes ao stress, de maneira que às vezes não vamos até ao orgasmo, ficamo-nos pelas demonstrações de ternura, isto acontece quando estamos muito cansadas, e também é muito bom. Também podemos atingir vários orgasmos, as vezes que nos apetecer, mas quando não acontece isso também não tem nada de frustrante. O que é realmente importante é que o ambiente seja de uma grande envolvência quanto à ternura e à sensualidade. Um orgasmo é muito bom, é realmente bom que se farta, mas numa relação amorosa entre duas mulheres não há a obsessão, nem a paranóia, nem a angústia da obrigatoriedade de se chegar sempre lá. Nós não vivemos situações de sexo contra-relógio, nem nos defrontamos com ejaculações precoces, impotências sexuais, enfim... esses problemas masculinos. Uma mulher não é um homem, passe a Lapalissada, mas é bom que as pessoas não confundam o erotismo masculino com o feminino porque esta é uma área onde as diferenças são enormes e as confusões que as pessoas fazem são enormes também.

- Masturbava-se muito, quando era miúda?

- Ah, sim, durante toda a minha adolescência e ainda hoje se quiser chego ao orgasmo com toda a facilidade. Qualquer mulher pode fazer o mesmo. É só querer e deixar-se de tabús. O nosso próprio corpo, o corpo das mulheres, é maravilhoso e delicioso. O que eu ainda não entendi é porque é que muitas mulheres hetero se deixam influenciar pelas idiotices que lhes ensinaram, e acham nojento tocarem ou acariciarem o seu próprio corpo. Então, porque é que não acham nojento o corpo do homem com quem dormem há anos, e que se calhar teriam muito boas razões para achar?

Eu penso que este problema se resume a uma enorme falta de amor-próprio por parte das mulheres. Elas não cultivam a auto-estima em relação a elas próprias, nem são capazes de olhar criticamente para os homens, a todos os níveis, com olhos de ver. Quando as mulheres se interrogarem, se reavaliarem e acabarem por perder o medo que sentem de se amarem a si próprias, de amarem o seu próprio corpo, então sentir-se-ão livres e com a necessária força para subverter todos os códigos de conduta que conhecemos, ditados por uma sociedade patriarcal e necessariamente heterossexual.

- Desculpe, deixe-me voltar atrás. Disse-me que atingiu o seu primeiro orgasmo aos dez anos, e que a partir daí sempre soube o que é um orgasmo?

- Sim, soube sempre. Não tenho qualquer dúvida em relação a isso. Mas prefiro mil vezes chegar lá pelos dedos da minha companheira, porque aí entram em jogo todas as componentes físicas e emocionais... é indiscritível, só mesmo duas mulheres com uma ligação muito forte entre elas é que podem saber, através da prática. Eu gostava de lhe descrever o que é, mas talvez me fosse mais fácil exprimir essa sensação através da música, ou da pintura... agora por palavras... e depois, será que existe apenas um tipo de orgasmo, ou que eles são sempre todos iguaizinhos uns aos outros, como fotocópias? É claro que não. Olhe, para simplificar, imagine-se uma tempestade que culmina com um relâmpago, ou uma sucessão muito rápida de relâmpagos, que nos atinge de alto a baixo, centrados sobre o clitóris e que se espalham em ondas pelo corpo todo... provocando uma espécie de formigueiro nas extremidades... assim uma espécie de descarga eléctrica de alta tensão... que nos deixa meias aturdidas, mas física e psiquicamente muito bem connosco mesmas, soltas, cheias de energia e de auto-confiança. Faz muito bem ao ego. No meu caso até é intelectualmente estimulante. É uma sensação física indescritível. Tem de ser vivida para se saber o que é, senão é como estar a tentar explicar a um cego de nascença o que é a cor azul. Não sei se respondi à sua questão... Como é que eu lhe vou descrever aqui o que eu e a minha namorada fazemos na cama? Olhe, porque é que não deixa isso em aberto, para as suas leitoras experimentarem?

- ...

- Está admirada? Cada mulher não é livre de fazer o que quiser com as suas emoções e com o seu corpo?

- Sim, é claro. E ménages à trois, já fez?

- Refere-se a três mulheres na cama? Nunca fiz!

- E não gostaria de fazer?

- Não, eu sou perfeitamente monogâmica. Não é por preconceito moral, nem tenho nenhum mérito nisso, sou assim mesmo. Bom, mas chega de falar de sexo. Não foi para isso que eu acedi em dar esta entrevista. Eu acedi em dar esta entrevista porque espero que ela sirva de alento a muitas lésbicas que vivem fechadas na sua concha, têm paixões platónicas por outras mulheres, mas o medo impede-as de serem ousadas e de viverem inteligentemente a vida... porque o tempo passa e depois já é muito tarde. Também não lhes serve para nada andarem quinze ou vinte anos, como eu conheço algumas, a encherem os bolsos dos psicanalistas à procura de uma justificação para uma coisa que só se resolve de um maneira: vivendo a vida de acordo com a nossa própria natureza e as nossas próprias apetências. Somos todas diferentes mas todas nós temos o direito a sermos quem somos e a sermos respeitadas tal como somos. Também faço este depoimento na esperança de que muita gente, seja qual for o seu grau de instrução, sejam quais forem as suas crenças políticas e religiosas, tenha acesso a uma informação correcta e circunstanciada sobre o que é a vivência do lesbianismo. O meu objectivo é só um: abrir-lhes os olhos. O amor pode ser vivido de muitas maneiras diferentes. Nós temos de questionar tudo aquilo que nos é dado pela escola, pela igreja e pela sociedade como se fossem valores adquiridos e definitivos. A função da sociedade e das suas instituições, como a escola e a igreja, por exemplo, é essa mesma, moldar a cabeça das pessoas para as tornar acéfalas e obedientes às normas do Sistema Social a que todas nós estamos sujeitas. Ora o Sistema não é uma coisa que existisse na Natureza, foi criado pelo homem à imagem e semelhança das suas vantagens e conveniências. E há que reagir contra isso em todos os aspectos das nossas vidas. Querer saber, informar-se, reflectir, pôr dúvidas, levantar questões, consciencializar-se, ser inteligente!

- Deixe-me pôr-lhe mais duas ou três perguntas. Sobre os bares gay e lésbicos, o que é que tem a dizer?

- Que eu saiba em Lisboa não há nenhum bar exclusivamente lésbico, como alguns onde já estive em Paris, Bruxelas, Londres e Nova Iorque. O que existe é um ou outro quase exclusivamente gay, onde aparecem uns casalinhos hetero, eu não sei se eles vão lá à procura de um terceiro elemento para emparceirar com eles em esquemas a três, ou se é para “gozarem o prato”. Depois existem mais dois ou três bares onde se pode dançar e onde predominam as lésbicas, mas não são lugares exclusivos. Não faço publicidade, mas o meio lésbico conhece-os, ficam ali para a zona da Escola Politécnica e do Largo de Alcântara. Ultimamente as respectivas gerências, que estão nas mãos de lésbicas que toda a gente conhece, deram em puritanas e quando vêem um casal de duas mulheres a trocar um simples gesto de ternura vão a correr avisá-las para estarem quietas, que aquilo é um sítio para gente séria. Não sei o que é que lhes terá passado pela cabeça... Há indícios de que num ou outro caso talvez estejam à caça de um lugarzinho na política, quem sabe no Parlamento, o que representaria um vencimentozinho certo, mais do que alguma vez conseguiram amealhar - enfim, é o lado sórdido da coisa. Também aparecem por lá gays e heteros dos dois géneros, velhinhos nojentos a comerem as lésbicas com os olhos e a babarem-se todos, mortos por se deitarem com um casal de mulheres, coitados! Há muito tempo que não frequento estes bares, acho que infelizmente são lugares tristíssimos, feiíssimos, altamente deprimentes. O ambiente é idêntico em todos eles, umas caves sempre apinhadas de gente, de fumo, de musicata ensurdecedora, e para mim são lugares sem interesse nenhum.

- Então como é que as lésbicas se conhecem e se encontram?

- Em todos os lados, de todas as maneiras possíveis e imaginárias. A mulher com quem há tanto tempo partilho tudo na vida, conheci-a numa esplanada junto ao mar. Começámos a conversar por mera casualidade... bem, hoje pergunto-me se teria sido assim tão casual... entre mulheres tudo começa pelo olhar, há trocas de olhares entre mulheres que não deixam margem para dúvidas. Mas já que referimos a degradação dos poucos locais de encontro que existem, acho que era muito boa altura de surgir um contraponto, um local onde as lésbicas se sentissem bem, onde se sentissem à vontade, onde o ambiente fosse calmo, naturalmente descontraído e despoluído, onde não fosse obrigatório o consumo de álcool, qualquer coisa tipo casa-de-chá e salão de exposições, com venda de livros sobre a temática lésbica, projecção de videos...

- Nunca teve relacionamentos episódicos com mulheres?

- Muito poucos, não faz o meu género. Eu actualmente vivo com uma mulher há sete anos, mas quando estava “solteira” gostava de namorar, de escrever e receber cartas de amor, de lhes levar flores, de as convidar para jantar à luz de velas, de ir ganhando a confiança delas a pouco e pouco e ir gradualmente estabelecendo o relacionamento físico. Nunca fui adepta de situações de “uma noite”, prefiro apaixonar-me, envolver-me emocionalmente, ter uma namorada a tempo inteiro que me preencha a todos os níveis e que seja a minha grande razão de viver. Aliás, ainda hoje é do que eu mais gosto, namorar com a minha namorada...

- Se pudesse mudar a sua sexualidade, mudava?

- Não, de maneira nenhuma, estou muito bem como estou, e nem me entendia a viver dentro do esquema convencional do casalinho heterossexual, filhos, marido, emprego, casa, sexo a despachar e eu a sentir-me assim uma espécie de penico, visitas periódicas à abortadeira, passeio pelo hipermercado ao fim-de-semana, jantar com os sogros, nunca ter tempo só para mim... eu enlouquecia. Até me espanto que não haja mais mulheres a dar em loucas, aí pelos cantos... se calhar há...

- Em que é que a sua vida quotidiana de lésbica difere da de uma mulher heterossexual?

- Olhe, para começar, a minha companheira e eu não temos a carga de obrigações, responsabilidades, horários rígidos, sobrecarga de trabalho da mulher trabalhadora, dona-de-casa e mãe de família. É claro que temos horários a cumprir, e temos as nossas obrigações profissionais, como toda a gente, e cumprimo-las, uma e outra, com um excelente nível de profissionalismo, acho eu, mas a partir daí dispomos do nosso tempo para estarmos juntas, para namorarmos e partilharmos o que temos em comum, e também para nos dedicarmos individualmente às nossas actividades preferidas. Nenhuma de nós sufoca a outra. Não temos a obrigação de suportar o peso que é a presença da família da outra, nem aqueles horríveis Natais em que por um dia, hipocritamente, toda a gente finge que é uma família muito feliz e unida pela compreensão e respeito mútuo. Nesses dias nós as duas estamos a viajar, ou então ficamos calmamente em casa, sentadas à lareira, de mão dada, a namorar ou simplesmente a conversar e a fazer projectos para o futuro. Às vezes aparecem casais de amigos gays ou lésbicas a passar esses dias connosco. São pessoas que também não alinham no esquema consumisto-carnavalesco em que descambou o Natal. Nenhuma das nossas respectivas famílias de origem teve ainda o savoir faire, ou a delicadeza, de convidar para a festa do Natal o outro elemento do casal, por isso nesse dia abstemo-nos de estar com eles. Se o Natal tem um significado de “família” e de “união de grupo”, nós entendemos que no nosso caso a “família” começa por nós duas, juntas.

- Isso que acaba de dizer remete-me para uma outra pergunta: nunca teve pena de não ter filhos?

- Não, nunca tive, antes pelo contrário. O mundo já está superpovoado e não precisa da minha contribuição para piorar a situação. Nem nos meus sonhos da adolescência em que tentava imaginar como seria a minha vida futura, nunca apareciam crianças. Mas apareciam sempre mulheres, companheiras, amigas íntimas. Foi a elas que sempre dei o melhor de mim mesma.

- Há algum aspecto sobre o lesbianismo que eu não lhe tenha perguntado e que você gostasse de abordar?

- Eu considero que há um desconhecimento generalizado sobre este tema, e que haveria muitíssimo mais a dizer, mas também sei que há outras mulheres a depôr e que o meu espaço é limitado. Por isso vou resumir só alguns pontos-chave, até porque tenho em preparação um ensaio sobre este tema específico e um livro de poesia lésbica que espero que venham a ser publicados. Há temas que só podem ser abordados a partir de dentro, por quem sabe das coisas baseando-se na sua própria vivência. Nunca me passaria pela cabeça escrever um tratado sobre patologia cardíaca, por exemplo. Mas há por aí uns rapazes, literatos, presumivelmente heterossexuais, que ultimamente têm arejado as suas fantasias eróticas incluindo na sua escrita personagens ficcionadas que eles julgam poder fazer passar por lésbicas e cujo resultado final é, no mínimo, hilariante. Bem, mas voltemos à questão que você colocou:

O primeiro ponto é a necessidade de a Lei Portuguesa ser revista no sentido de a Constituição reconhecer a situação dos casais de lésbicas e de gays neste país, permitindo a legalização da sua situação, à semelhança de qualquer outra ligação. Não somos clandestinos. Pagamos impostos a um Governo que aceita o nosso dinheiro mas não aceita a nossa sexualidade. Votamos, trabalhamos e contribuimos para o funcionamento do país tal como qualquer outro cidadão. Se existem lésbicas e gays nos quadros superiores dos partidos políticos portugueses e até têm lugar reservado nas bancadas da Assembleia da República, não percebo porque razão ainda nenhum deles propôs a discussão do problema, apesar de eu saber que o assunto já chegou ao conhecimento dos grupos parlamentares. O que acontece é que essa gente, que nos governa e faz as Leis, geralmente tem uma ligação heterossexual de fachada, e julga que as suas tendências homoeróticas ficam ao abrigo do conhecimento do público, público esse que vota neles. Queremos que a Lei nos garanta os direitos fundamentais de qualquer outro cidadão. Queremos poder legalizar as nossas ligações homossexuais. Não queremos “casar”, nem macaquear o esquema heterossexual, queremos apenas proteger bens materiais que são propriedade comum de duas pessoas que se amaram, e que em caso de morte de uma delas, é a família daquela que desapareceu que vai herdar. Eu sei de casos em que as famílias caíram, em voo picado, como abutres, sobre os bens adquiridos pelo casal homossexual ao longo de anos de trabalho de ambos, retirando ao sobrevivente até a casa em que vivia, que estava no nome do outro, mas que tinha sido paga pelos dois ao longo de mais de vinte anos. Portanto, é urgente que as ligações homossexuais sejam explícitamente contempladas na lei do país, à semelhança do que já acontece em países mais civilizados, membros da Comunidade Europeia. Como já expliquei não queremos “casar”, isso é para os hetero, queremos apenas que as nossas uniões sejam reconhecidas pela Lei do País que também ajudamos a construir.

Em segundo lugar queria mencionar a falta de uma organização regida na base do compromisso e da maturidade que reunisse lésbicas interessadas em reflectir e debater o tema do lesbianismo, e não só. No próprio meio lésbico há uma enorme ignorância sobre esta temática. Elas não têm acesso à vasta literatura lésbica existente, sobretudo nos países anglo-saxónicos, aos filmes de temática lésbica e feitos por lésbicas, etc. Não me refiro, obviamente às inúmeras porno-chanchadas pseudo lésbicas produzidas pela indústria pornográfica para consumo masculino.

Quando uma lésbica se vê perante uma dificuldade devido à sua orientação sexual, não dispõe de apoio solidário de espécie nenhuma, não existe uma linha SOS para lésbicas com problemas, que já existe em toda a CEE, não há um jornal português feito por lésbicas e para lésbicas, numa altura em que por essa Europa e nos EUA já existem livrarias que vendem exclusivamente livros, revistas, jornais, cassetes e videos de temática lésbica.

Lanço ainda o repto às escritoras, poetisas, dramaturgas, ficcionistas, pintoras, escultoras, guionistas, cineastas portuguesas, e que são lésbicas, que já vai sendo altura de terem a ousadia de sairem cá para fora com textos, filmes, telenovelas, obras gráficas, pictóricas, escultóricas, musicais etc., que foquem uma vertente da condição humana que decerto lhes interessa a elas e a nós muito mais do que os amores e desamores heretossexuais.

- Para acabar, quer contar algum episódio engraçado que lhe tenha acontecido, enquanto lésbica?

- Uma vez, já lá vai uma mão cheia de anos, trabalhava num organismo público, num gabinete com muita gente, e havia lá uma mulher cheia de problemas, tinha uma vida familiar muito complicada, ia a consultas de psiquiatria, etc. e tinha muita necessidade de falar dos seus problemas e de quem a ouvisse. Como a mesa de trabalho dela ficava em frente da minha, e ninguém me pode acusar de não ser boa ouvinte, ela acabou por se tornar muito dependente de mim, que ouvia pacientemente os seus problemas e até os debatia com ela, porque sabia que ela não tinha mais ninguém com quem conversar. Passados dois anos resolvi dizer-lhe que era lésbica e tinha uma namorada. Ficou de todas as cores. Começou a evitar-me, mas foi contar ao resto do departamento aquilo que tinha acabado de saber a meu respeito. “Agora é que ela percebia porque é que eu conversava tanto com ela, só podia ser porque eu estava a querer atirar-me a ela”. Passados dias, resolvi esclarecer a situação diante dos meus outros colegas, em voz alta, para que todos ouvissem, e expliquei aquilo que aliás era a mais pura das verdades: a tal colega estava nos antípodas do tipo de mulher que me atrai, de forma que ela podia ser a última mulher à face da terra, que mesmo assim eu não lhe tocava nem com um dedo. Ela, heterossexual convicta, teve instantâneamente uma reacção que pôs toda a gente a rir à gargalhada: virou-se para mim, furiosa, muito vermelha, e perguntou-me em tom de desafio o que é que ela tinha a menos que as outras mulheres que tinham sido minhas namoradas. Resultado: apesar de terem ficado a saber das minhas preferências, ninguém me molestou nunca por causa disso, acho que granjeei algumas simpatias, até do sector masculino. É típico das mulheres hetero, quando sabem das preferências lésbicas de uma amiga, pensarem logo que se a outra se dá com elas é porque está apaixonada por elas! É o disparate mais completo... e quando percebem que se enganaram ficam furiosas... ou humilhadas no seu amor próprio, sei lá... Esquecem-se que há limites para o egocentrismo.

 

                                                                  Teresa Castro d’Aire

 

 

                      

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