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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A HORA DOS HELFOS / Jean Louis Fetjaine
A HORA DOS HELFOS / Jean Louis Fetjaine

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A HORA DOS HELFOS

 

O mundo havia caído no caos. Talvez, nos tempos vindouros, se recordasse uma idade de ouro longínqua, uma época feliz onde as quatro tribos da Deusa viviam senão em paz, pelo menos em equilíbrio, quando a sua sobrevivência era garantida pelos grandes talismãs. A Espada do deus Nudd, a arma que os homens chamavam Excalibur, tinha sido dada aos anões. A Fal Lia, a pedra sagrada que gemia diante de um verdadeiro rei, pertencia aos homens. Os monstros possuíam a Lança sanguinária do deus Lug, e os elfos o Caldeirão de Dagda, deus do Conhecimento... Era assim desde o começo dos tempos.

Não acreditem nos contos de fadas: foram os homens que quebraram este equilíbrio, e não os anões malfeitores, acusados de todos os males. Os homens e a sua nova religião, defendendo a unicidade e proclamando a supremacia de uma raça eleita sobre todas as outras: uma só terra, um só deus, um só rei, diziam eles, e é em nome deste Deus que foi cometida a pior vilania que o mundo já conheceu... e depois esqueceu.

Os homens roubaram Excalibur do povo anão, e conseguiram atirar com o peso do seu crime para cima dos elfos. O velho rei Pellehun e depois o seu senescal, o duque Gorlois de Tintagel, pagaram com a própria vida este plano ignóbil, mas o mal já estava feito. Nem Lliane, a rainha dos altos-elfos de Brocéliande, nem o cavaleiro Uter, tornado Pendragon pela força irresistível do amor deles, nem mesmo o druida Merlim puderam evitar as guerras, os ódios, os conflitos que na sequência ensanguentaram o reino de Logres. Sem talismã os anões começavam já a desaparecer. Os seus grandes reinos sob a Montanha tinham-se desmoronado, e viam-se nascer nas aldeias humanas seres estranhos, ao mesmo tempo homens e anões, como se as duas raças se fundissem numa só.

A guerra tinha terminado, de momento, mas o talismã não tinha sido devolvido aos reinos sob a Montanha.

A paz não estava ainda conquistada...

 

 

                       OS CAÇADORES

Pouco a pouco, o vento dissipava as escuras nuvens da noite. Freihr, tronco nu apesar do frio vivo da manhã, afastou com um gesto de mão o tapete de folhas mortas que cobria a água negra duma poça e aspergiu-se bufando como um búfalo. Em toda a sua volta, pesados fios de nevoeiro arrastavam-se ainda sobre os fetos amarelados. Apesar das rajadas súbitas que agitavam os ramos altos, a vegetação rasteira continuava silenciosa, adormecida, longe da agitação do céu. Freihr espreguiçou-se, coçou furiosamente a barba embaraçada com restos de folhas, e depois puxou sobre os ombros a sua camisa de lã e o seu pesado casaco de peles. O dia que nascia, cinzento e baço, anunciava já o inverno. Seria um dia triste e frio, mas pelo menos não choveria. Enfim, era preciso ter esperança...

Os homens do clã tinham dormido ao abrigo de um tronco coberto de heras, enrolados nos seus casacos e encostados uns aos outros como animais, nada diferentes em suma dos ursos que perseguiam há já dois dias. Uma família provavelmente, uma ou várias fêmeas e as crias, demasiado ocupadas em se empanturrarem de provisões para o inverno para sonharem em disfarçar a sua pista. Os animais deixavam atrás deles um sulco de vestígios sanguinolentos, de cheiros e de ramos de sabugueiro carcomidos, mas escapavam-se-lhes sem parar, conduzindo-os cada vez mais para dentro da floresta, a léguas já de Seuil-des-Roches. Todo um caminho por montes e vales que seria necessário fazer de volta, arrastando sobre caminhos improvisados a massa enorme dos seus despojos mortais, isso se eles conseguissem matá-los. Freihr abanou a cabeça com um ar aborrecido, depois deitou um olhar maldoso sobre as silhuetas informes dos seus companheiros. Eles ainda dormiam, incluindo Brude, que devia ter-se deitado sobre um formigueiro, e que ressonava de boca aberta, a barba e o bigode cheia de insetos.

Freihr pegou no seu chuço de caça e remexeu com a ponta do cabo as cinzas frias da fogueira. Nem uma brasa...

— Toca a levantar! — rosnou batendo no ar ao acaso. — Galaad, vai fazer lume, tenho fome!

O rapazinho saiu com dificuldade da massa prostrada dos caçadores, semi endireitou-se e virou para ele uma cara inchada pelo sono. No espaço de um instante, antes de se recompor e adotar a expressão feroz que, pensava ele, o fazia passar por um deles, mostrou-se tal qual era: uma criança, sem dúvida com menos de dez anos (Freihr, tendo-o recolhido logo a seguir a nascer, que poderia saber da sua idade?), cujos curtos cabelos loiros, cortados à moda de Loth lhe davam mais o ar de um pagem que de um guerreiro. Eles trocaram um rápido sorriso e depois Galaad colocou o seu casaco sobre os ombros a tremer e partiu para se encarregar da sua tarefa.

Enquanto os outros acordavam, o bárbaro afastou-se na direção oposta e subiu pesadamente um pequeno cerro que dominava a clareira, de onde contemplou até ao horizonte o conjunto de árvores avermelhadas pelo Outono. A floresta estendia-se a perder de vista diante dele, mais vasta que o mar, brilhando como um espelho à mais pequena brisa, com a lentidão majestosa das ondas. O mundo, nesses tempos longínquos, era coberto de árvores, tão numerosas e densas que formavam entre o céu e a terra uma abóbada imensa, estendendo-se sem parar até às planícies dos homens ou até às montanhas escuras dos reinos dos anões. Mas os homens tinham medo da floresta, e os reinos dos anões sob a Montanha tinham desaparecido...

Freihr respirou fundo e depois, com a alma em paz, despejou a bexiga para saudar o novo dia.

Uma rabanada de vento fez-lhe abanar o casaco de peles e varreu-lhe os seus cabelos loiros entrançados, cobrindo-lhe como um elmo a nuca e o pescoço. Imediatamente, baixou-se e reteve a respiração. Havia um cheiro na brisa. O dos ursos, mas não só. Um cheiro a sangue quente, suave e enjoativo. Um odor de vísceras. Os animais, sem dúvida, acabavam de matar...

Freihr desceu o cerro até ao acampamento. Os homens do clã tinham por fim acordado e espreguiçavam-se, rindo de Brude e dos seus gestos para se livrar das formigas que o cobriam. Um gesto, um olhar do chefe, e todos se calaram, pegaram nas armas e agruparam-se em volta dele.

— Estão ali — murmurou Freihr estendendo o braço no sentido do vento. — Cem toesas [1], não mais. Acabemos com eles.

Os homens lançaram-se atrás deles através dos altos fetos, tão silenciosos quanto elfos. O mau cheiro dos ursos era tal que não havia necessidade de guia para lhes seguir a pista. Curvados sobre as suas peles, eles não paravam senão para farejarem o odor dos animais, os punhos fechados sobre os seus chuços, sorriso nos lábios e coração a bater, esperando de um momento para o outro desembocar no covil. Devia ser uma carnificina, para que o cheiro de sangue e entranhas fosse tão forte... Talvez tivessem morto um gamo ou um texugo. Talvez se tivessem comido uns aos outros. Era possível, se houvesse várias fêmeas e um só macho...

No entanto, à medida que se aproximavam, os homens abrandavam o passo. Havia ali outra coisa. Todos sabem até que ponto os ursos cheiram mal, mas o fedor de cadáveres que lhes subia à garganta ultrapassava tudo quanto tinham conhecido. Freihr, o primeiro, parou ao abrigo dos fetos, tanto para retomar a respiração antes do assalto final como para tentar identificar aquelas emanações pestilentas. Os outros caçadores imitaram-no, cheirando o ar como cães de caça. Mas todos trocaram olhares de impotência e incompreensão.

— Brude, Cian, pela direita — murmurou ele, renunciando a compreender o que poderia exalar um odor tão horrível. — Wid e Eabald pela esquerda. Eu irei pelo centro com...

Freihr interrompeu-se, não descobrindo senão naquele instante a ausência do rapazinho.

— Galaad! Onde é que ele está?

— Tu mandaste-o procurar lenha — resmungou Cian, um colosso de corpo quase azul de tão coberto que estava de tatuagens.

Todos eles as tinham, por vezes mesmo sobre a cara, e esses desenhos estranhos eram suposto protegê-los como armaduras, mesmo que eles não acreditassem verdadeiramente nisso.

Freihr deitou um olhar para trás e hesitou um breve instante. Se tinha ficado no acampamento, Galaad não corria provavelmente risco nenhum, mas ele sonhava de tal forma em tornar-se um homem, que seria capaz de se atirar de cabeça no covil das feras...

— Volta atrás a procurá-lo — disse Brude, com um sorriso desdentado que teria dado pesadelos a todas as donzelas da cidade.

— Há mais ursos no mundo, vai...

Freihr sorriu, abanou a cabeça e depois, com um sentimento difuso de culpa, deu meia volta e desapareceu rapidamente entre os fetos. Brude tinha razão. Havia muitos ursos no mundo e poucas crianças. Sobretudo entre os bárbaros, aqueles a quem chamavam os “homens pintados” por causa das suas tatuagens, e que viviam nas Fronteiras, entre os pântanos dos elfos cinzentos e o País de Gorre, o sombrio império de Aquele-que-não-pode-ser-nomeado.

Os homens trocaram um olhar divertido enquanto ele se afastava, e depois dispersaram-se segundo as indicações do chefe. Não restava mais do que uma tênue cortina de fetos e arbustos entre eles e os cadáveres mal cheirosos que se começavam a adivinhar. Mais alguns passos e eles descobriram a atroz carnificina. Eram homens endurecidos e no entanto o coração apertou-se-lhes. O espectáculo que oferecia a clareira ultrapassava tudo quanto tinham imaginado, uma carnificina nojenta da qual os ursos não tinham sido os autores, mas sim as vítimas. Fêmeas e crias tinham sido decepadas com uma selvajaria pavorosa, salpicando de sangue desde as entranhas aos troncos brancos das bétulas, até à orla da floresta. Decepados e devorados vivos, eles jaziam ali, desventrados, com o sangue fresco ainda a correr, espesso e viscoso, fumegando na geada da manhã. O seu agressor, fosse ele quem fosse, tinha desaparecido. Não havia um único som, nem mesmo o canto de um pássaro. Somente o abanar do vento nos ramos altos, o barulho dos fetos sob os seus passos e o sopro ofegante da sua própria respiração arquejante, indignada. Eles endireitaram-se mas ninguém conseguiu pronunciar uma só palavra de tal forma o espectáculo desta carnificina inútil lhes dava vontade de vomitar.

E depois, subitamente, tudo se agitou em volta deles.

Praguejando, Freihr trepava a custo o pequeno cerro que dominava a clareira. Galaad não estava no acampamento e ele não o podia chamar em voz alta, com medo de alertar os ursos. Chegado ao cume, varreu com o olhar os arredores da floresta e viu-o por fim, arrastando atrás de si um grosso ramo seco e deixando tantos traços quanto uma manada de javalis. Levantava o braço para lhe chamar a atenção quando soaram os gritos. Rugidos pavorosos, inumanos, misturados com os gritos de pavor dos seus companheiros. Embaixo, na clareira dos ursos, os fetos altos tinham começado bruscamente a agitar-se como que abanados por um louco; o seu sangue gelou quando reconheceu os latidos guturais que se escapavam de lá.

Trolls.

É certo, jamais alguém tinha visto um troll (ou melhor, ninguém tinha jamais sobrevivido a um encontro com eles), mas Freihr identificou sem sombra de dúvida as horríveis criaturas dos seus pesadelos. Como todos os bárbaros das Fronteiras, ele tinha crescido no meio do pavor aos trolls, através das lendas contadas pelos velhos sobre aqueles a quem chamavam os “ogres das colinas”. O povo livre dos trolls vivia nas fronteiras das Terras Negras, decepando e devorando quem fosse suficientemente louco para se aventurar a entrar no seu território, homem, elfo, anão ou animal selvagem. Nenhuma narrativa, no entanto, tanto quanto ele se recordava, os mencionava fora das suas colinas áridas. Que faziam eles, então, na floresta?

Petrificado de horror, demasiado apavorado mesmo para se atirar ao chão, Freihr contemplou até o fim o atroz tumultuo dos altos fetos, no barulho de gemidos de agonia dos caçadores e dos berros dementes dos monstros. Mas isto não durou mais do que alguns instantes. O silêncio retumbou tão depressa que de novo só o barulho do vento foi perceptível.

— Freihr!

O grito lancinante de Galaad fê-lo dar um salto. A criança não o tinha visto. Tinha largado o ramo e precipitava-se às cegas em direção à carnificina, correndo como um doido, sem mesmo um chuço para se defender, para ir em socorro daquele que ele considerava, apesar de tudo, como seu pai. Freihr, impotente, deitou um olhar de angústia para a clareira. Já altas silhuetas sombrias saíam de lá e abriam caminho em direção ao rapaz, com a lentidão suave de uma alcatéia de lobos no momento do cerco. Foi como uma chicotada. A toda a velocidade, o bárbaro desceu o cerro e precipitou-se para Galaad, sempre em frente, batendo nos ramos dos arbustos e nas hastes cortantes dos fetos, fazendo voar a cada passo nuvens de gelo à sua passagem, cegando rapidamente, emaranhado nas ervas, ofegante, aterrorizado, Quando por fim o viu, o rapaz estava imóvel e de costas voltadas para ele. Alguns passos à frente, Freihr viu o troll.

O animal, com uma altura superior a quatro braçadas [2], ultrapassava-os por cima da cabeça e dos ombros. Era magro, escanzelado mesmo, coberto de uma pele de um ocre sujo, eriçado com uma juba negra e pelada. A sua cabeça, com exceção de uma crina de longos cabelos pretos que jorravam, hirsutos, da sua fronte e corriam ao longo da espinha dorsal, lembrava a de uma toupeira com o seu focinho curto e os seus dentes proeminentes. No entanto, o seu olhar sombrio tinha qualquer coisa de humano, um brilho de inteligência e frieza que relembrava que os trolls eram em outros tempos um povo, entre a antiga raça dos Fir Bolgs, os “homens raio” vencidos pelas tribos da Deusa, dispersados e expulsos para fora do mundo. Dizia-se que Aquele-que-não-pode-ser-nomeado tinha guardado alguns deles ao seu serviço, mas os trolls tinham-se tornado animais. Como todos os da sua raça, o monstro não trazia roupas nem armas, mas as suas garras, tão longas que quase tocavam no chão na extremidade dos seus intermináveis braços, valiam por qualquer maça, espada ou lança de um cavaleiro do rei Uter.

Freihr não tinha parado. Levado pelo ímpeto, embateu contra o monstro com toda a sua força, tão violentamente que o atirou para o chão. O bárbaro levantou o seu chuço e atacou para manter o animal preso ao chão, mas ele já tinha se esquivado. Com um grito atroz, uma espécie de latido rouco e modulado que lhe zumbiu nos ouvidos, o troll rasgou-lhe a coxa com um golpe de uma tal força que as suas garras negras lhe arrancaram um pedaço de carne do tamanho da palma da mão. Freihr gritou com uma força de rebentar veias, mas o grito calou-se sob o choque de um segundo golpe que lhe dilacerou o ventre e o projetou ao chão, como uma boneca de trapos. O monstro avançava já para ele, retorcendo os beiços sobre uns dentes imundos, quando Galaad apareceu no seu campo de visão. A criança cambaleava sob o peso de uma pedra enorme que segurava com os braços esticados, por cima da cabeça. Houve um clarão de incompreensão, furtivo, nos olhos do animal quando a pedra lhe esmagou o crânio.

Freihr levantou-se precipitadamente, apoiando-se na perna válida, e cravou o seu chuço no dorso do troll, enterrando com todo o seu peso a ponta endurecida ao fogo, até aos últimos sobressaltos da sua agonia. Somente então, levantou os olhos para a criança. Galaad sorria através das lágrimas e veio atirar-se para os seus braços, tremendo de medo, de excitação e de alívio.

— Vem, temos que partir — murmurou Freihr. — Os outros estão a chegar. Ajuda-me...

Galaad enfiou-se debaixo do seu braço e eles arrastaram-se em direção à floresta, deixando atrás um sulco sanguinolento tão visível quanto um rasto de fogo na noite.

Freihr abria desesperadamente os olhos para dissipar os pontos luminosos que o atordoavam, dissipar a náusea e o entorpecimento irreprimíveis que se apoderavam dele. Curiosamente, não sentia dor alguma, somente uma fraqueza crescente e um frio que se apoderava dele pelo ventre e pelas pernas (segundo as velhas lendas, a baba dos trolls entorpecia as vítimas e tornava-as insensíveis, o que permitia aos monstros devorá-las pouco a pouco, durante dias, sem que a carne das suas infelizes presas se deteriorasse. Mas é claro, isso eram lendas...). Repentinamente, latidos roucos por trás deles tiraram-no do seu torpor. Sem dúvida, tinham descoberto o corpo do seu companheiro. Talvez o estivessem já a devorar...

— Não vamos conseguir — gemeu Freihr. — É preciso voltarmos para a clareira...

— O quê?

— A clareira... Escondermo-nos debaixo dos ursos. Misturar o sangue com sangue. É a nossa única chance.

Ele deu meia volta com Galaad e partiram, ele vacilando a cada passo, dobrado sobre o ventre a escorrer sangue, e a criança esmagada sobre o peso do seu braço, com a cara inundada de lágrimas.

Fizeram uma pausa ao descobrirem a clareira, como que arrasada por um furacão, banhada em sangue, salpicada de despojos quase irreconhecíveis, retalhados, esfolados, homens e ursos todos atrozmente esmagados pelas garras dos trolls, meio devorados. Freihr cambaleava, os olhos quase revirados. Mal conseguiu ver os corpos dos seus companheiros, arrastou-se até ao cadáver de um urso gigantesco e, num último esforço, conseguiu voltá-lo. Depois estendeu-se contra a pele ensanguentada, apertou Galaad contra si e deixou cair sobre eles o corpo do animal, tão pesado que a sua massa os esmagou aos dois e que ele perdeu a consciência.

 

 

                     A HORDA

Galaad tremia sem perceber, bem além do choro e da fadiga, além mesmo do pesadelo desse dia. Era noite, nesse momento, e, como todos os homens, a criança tinha medo do escuro. Era noite e fazia frio e os monstros tinham desaparecido. A Lua cheia deitava uma luz fria sobre a clareira, tão calma no seu horror petrificado, que todos aqueles cadáveres retalhados pareciam estar no seu lugar, tão naturais quanto rochedos ou cepos. Galaad olhou para as suas mãos cobertas de terra, as suas unhas lascadas com as quais tinha cavado todo o dia para escapar do peso do urso. Freihr ainda estava lá debaixo...

Pôs-se de joelhos, enfiou-se de novo no intestino semidespedaçado do qual acabara de sair, estendeu o braço ao ponto de deslocar o ombro, até que a sua mão encontrou alguma coisa além da terra e do cascalho. Ela fechou-se sobre uma massa de pelos, cabelos, barba ou peles, que importa, e ele puxou, com todas as suas forças.

Um grito abafado respondeu à sua tração. Galaad puxou ainda com mais força, com tanta força que os cabelos de Freihr cederam e a criança caiu de pernas para o ar, com o tufo arrancado entre os dedos. Depois o chão mexeu-se, as mãos grandes do bárbaro apareceram, os seus braços, um ombro, e Galaad atirou-se com toda a força contra o flanco do urso desventrado para o tentar levantar, até que por fim a cara de Freihr emergiu do magma. Estava com um aspecto horrível, despenteado, cheio de sangue e de terra, mas Galaad agarrou-se ao seu pescoço, rindo e chorando, e saíram assim os dois unidos para fora da sua toca no ar fresco da noite, pai e filho.

Deitado sobre a erva e os fetos pisados, arquejando sob as estrelas e gemendo a cada sopro, Freihr retomava pouco a pouco a consciência, com o ventre ardendo cada vez mais quando respirava. E no entanto ele sorria, feliz por estar vivo, feliz mesmo pela dor crescente, que provava que o veneno do monstro perdia o seu efeito. Então, eles tinham escapado dos trolls! Apesar da luz da Lua, não se via mais para além de algumas braçadas, mas o atroz cheiro dos monstros tinha-se dissipado (evidentemente, ele podia enganar-se: uma estadia prolongada debaixo do cadáver desventrado de um urso tem todas as hipóteses de alterar o olfato!); a clareira, sobretudo, tinha voltado à vida, entre os lancinantes apelos dos pássaros da noite e de milhares de barulhos do pequeno povo das orlas, e toda esta agitação minúscula persuadiu-o de que os trolls tinham partido. Já focinhos farejavam em volta dos cadáveres. Não passavam de momento de insignificantes roedores, mas bem depressa viriam as raposas, depois os lobos, e era necessário não estar ali no momento da encarna. Fazendo um esforço mais penoso do que tinha imaginado, Freihr endireitou-se e percebeu que Galaad tinha adormecido encostado a ele.

— Vem — murmurou ao seu ouvido. — Temos que partir... Brevemente, o sangue chamará os animais selvagens.

A criança obedeceu docilmente, sem dizer palavra. Vencido pelas provas do dia, ele titubeava e ter-se-ia deixado cair no próprio local sem o braço do seu pai. Quase carregando-o, Freihr deixou o local sem olhar para trás, com o corpo e o espírito completamente voltados para um só fim: voltar para a aldeia deles, reunir os seus homens e organizar a defesa, se é que ainda estava a tempo... Mas Seuil-des-Roches ficava a dias de caminho, e cada passo era um suplício. As suas feridas não tinham fechado, ele perdia sangue a cada movimento. Como todos os bárbaros, Freihr conhecia as ervas que curavam, as que acalmam a dor e disfarçam a fadiga, mas precisavam antes de mais de encontrar um abrigo, longe dos trolls e desta abominação. Chegaram ao acampamento onde os caçadores tinham deixado os seus parcos bens, agarraram coberturas e víveres, beberam por fim, avidamente, de um odre tão grande quanto a pança de um boi, e depois subiram até ao alto da colina que os dominava.

A noite, ao longe, brilhava com uma língua de luz acobreada que eles pensaram primeiro ser o começo da aurora. Mas não era o novo dia. Aquilo que iluminava a escuridão era mais tênue, mais sinuoso que o ouro do nascer do dia. Era uma longa fileira de archotes, uma fila interminável de tochas que descia das Fronteiras Negras e se derramava lentamente na floresta. Um exército, um povo inteiro avançando em silêncio sobre um trilho único.

— São trolls? — perguntou Galaad.

— Os trolls vêem no escuro, e além disso têm medo do fogo — respondeu Freihr.

Não eram trolls, e o horror do que representava esta lenta procissão dissipou pouco a pouco o sofrimento do espírito do bárbaro. Ele ficou ali, imóvel, os olhos abertos e o corpo retraído, como se quisesse fugir sem no entanto conseguir desviar-se do espectáculo. Galaad, à luz distante dos archotes, tentava decifrar a cara do pai. Porque é que eles ficavam ali, em vez de fugirem? Dir-se-ia que aquele traço de fogo tinha transformado Freihr numa estátua de sal, como nas histórias dos monges... E, lá ao fundo, de novo, um silêncio total, sem os ruídos da floresta, sem mesmo o silvo do vento, um silêncio tal que a criança ficou com medo e abanou rudemente o braço de Freihr, o qual se assustou, saindo por fim da contemplação mórbida daquele cortejo distante.

— É preciso ir lá — disse ele. — É preciso ir ver o que é...

E imediatamente o bárbaro lançou-se em direção ao pequeno vale, desaparecendo rapidamente na escuridão e não dando outra chance à criança estupefata que não fosse a de o seguir.

Meteram-se de novo no meio dos fetos altos e da lenha seca que rodeava a floresta, apesar das silvas e das raízes salientes, abrindo por vezes passagem a golpes de espada no emaranhado de arbustos, guiados unicamente pela incandescência do horizonte, Freihr com uma raiva crescente, estúpida e cega, Galaad avançando com o espírito vazio, esgotado de cansaço, preocupado unicamente em não se deixar ficar para trás, indiferente a tudo o que lhes pudesse acontecer.

Caminharam até ao raiar do dia, quando a luz da serpente de chamas se misturou com a da aurora, e esta nova claridade, insidiosa, os desconcertou. Como se o nascer do dia o tivesse feito voltar à realidade, Freihr deixou-se cair gemendo ao lado de uma sorveira cheia de frutos maduros, quase apodrecidos, de um amarelo a atirar para o castanho, dos quais fez o seu pequeno almoço. A estranha procissão não era mais visível e no entanto o tojo e os arbustos continuavam mudos. As árvores carregadas de bagas não atraíam um só pássaro, o mato bravo continuava inerte e, para onde quer que se olhasse, nenhum ser voador, trepador, furador ou saltitante se manifestava. A orla da floresta retinha a respiração, como que petrificada, acamada pela coluna de fogo que a tinha atravessado. Freihr e Galaad não ousavam eles próprios pronunciar uma única palavra, com os ouvidos e os olhos alerta, autorizando-se somente a respirar.

E depois alguém espirrou.

Muito perto deles, um bando de pintassilgos dispersou-se no céu num grande bater de asas. Eles ouviram grunhidos, sons de vozes abafados, talvez mesmo o barulho metálico de armas ou armaduras, e depois fez-se novamente silêncio. Com o coração a bater, sem terem combinado, pai e filho tinham-se atirado ao chão num movimento único. A apenas algumas toesas, simplesmente uma cortina de arbustos e silvas devia separá-los daquele cortejo mudo que eles tinham perseguido toda a noite, e que parecia ter-se imobilizado com o dia, semelhante a um exército de fantasmas. Mais três ou quatro passos e eles tinham acertado bem no meio...

Freihr parecia hesitar, depois voltou-se para o seu filho adotivo e, com um gesto, fez-lhe sinal para esperar, ao abrigo da sorveira. Desembaraçou-se do seu equipamento, não conservando mais do que um longo punhal e começou a trepar o tojo. Viu-os quase imediatamente e o coração apertou-se-lhe.

 

Imóvel, sobre a margem do lago, perto do grande salgueiro de que tanto gostava, os pés banhados pelo fraco marulho, Lliane tinha suspendido o gesto de tirar o seu longo vestido de catassol, e estava ali, indecisa e semi nua, enquanto a aurora irisava a sua pele azulada de reflexos rosa ou acobreados. Uma sensação estranha e inquietante tinha-se bruscamente apoderado dela, sem que ela a conseguisse identificar. A aurora estendia langorosamente à superfície de água os seus últimos fios de bruma, as canas vibravam baixinho no seu monótono roçar, as ervas altas da ilha estremeciam de vida, tudo estava perfeitamente calmo na Ilha das Fadas, igual aos outros dias, longe do mundo frio dos homens. Porque sentia ela esta opressão difusa?

Rhiannon... O rosto da sua pequenita passou diante dos seus olhos. Ela viu-a adormecida, encostada contra uma elfo, ao abrigo do pomar. Levantando os ombros, terminou o seu gesto e despiu o vestido. A água do lago estava gelada (pois era inverno, mesmo em Avalon), mas os elfos não são tão friorentos quanto os homens. Ela mergulhou de um salto e deixou-se ir até ao fundo, entre as algas verdes, acordando um casal de tenças que fugiu diante dela. Ela nadava ondulando, com tanta facilidade que podia ser confundida com uma sereia e, a cada movimento, os seus longos cabelos negros espalhavam-se nas suas costas como uma bandeira, ela nadava como voa um pássaro, sem esforço, acariciada pelas águas, os olhos bem abertos para não perder nada do espectáculo turvo do despertar dos fundos. Os elfos vivem sobretudo nas florestas e não têm nunca ocasião de nadar fora dos charcos lamacentos ou dos pequenos riachos unicamente bons para molhar os pés. Desde que se tinha instalado em Avalon, Lliane tinha descoberto a magia silenciosa das fronteiras aquáticas da sua ilha e não cessava de as explorar, por vezes com a sua filha, quando a água não estava demasiado fria. Mas Rhiannon era semi humana, e era raro não ter frio. Ao contrário, Lliane tinha percebido que conseguia estar submersa quase indefinidamente e prolongava por vezes durante várias horas as suas vadiagens entre as águas, tão à vontade que os peixes do lago, as rãs e as salamandras já não lhe prestavam atenção.

No momento em que chegou à penumbra deliciosamente ameaçadora dos fundos, o rosto de Rhiannon voltou a aparecer e ela esteve a ponto de voltar ao cimo. A menina estava acordada, piscando os olhos ao sol nascente, os cabelos acariciados suavemente pela brisa, com um ar intrigado, mas sem sinais de alarme. Por trás dela, as elfos continuavam a dormir, formando um quadro tão tranquilo que Lliane resistiu ao seu primeiro impulso e, de uma braçada, deslizou por debaixo das altas algas.

Contrariamente às humanas, que não tinham outra hipótese senão cuidar dia e noite dos seus bebês tão frágeis estes eram, os elfos cortavam bem cedo os laços com os seus progenitores. Passadas as primeiras semanas, o clã servia de pai e mãe aos recém-nascidos. Os pequenos elfos, como veados, sabiam andar ao fim de alguns dias, e atingiam rapidamente senão a sua altura adulta, pelo menos uma estatura que lhes permitia seguir o grupo através do bosque, nas suas incessantes peregrinações. Rhiannon, apesar da sua parte humana, vivia assim, no rastro da sua mãe. Várias elfos tinham vindo reunir-se à rainha e à filha na Ilha das Fadas, junto do pequeno povo das ervas altas, bem cedo suficientemente numerosas para formarem um clã capaz de tomar conta de Rhiannon. As primeiras a chegarem tinham sido Blodeuwez, a curandeira, e as Ban Drui, aquelas feiticeiras dos bosques que nunca a deixavam. Depois tinham-se junto a elas as jovens mães prestes a darem à luz, e que se vinham colocar sob a proteção da rainha. Lliane tinha-as acolhido com alegria, fazendo-lhes saber que nenhum elfo macho poderia abordar a ilha. Então eles ficavam ali, nas margens, sem mesmo conseguirem ver a ilha perdida nas brumas, esperando durante meses o regresso das suas esposas. Por vezes em vão.

Um povo tinha-se formado bem rapidamente em Avalon. Um povo de fêmeas e crianças, sobre o qual reinava Rhiannon, como na profecia das runas. Com elas, a menina estava em segurança... E depois, havia Myrddin, o homem-criança nascido de uma elfo, aquele a quem os homens chamavam Merlim. Sem que ele soubesse verdadeiramente porquê (embora nunca tivesse ousado formular essa questão), Merlim era o único macho admitido na Ilha das Fadas. Como se a rainha obedecendo às predições do velho Gwydion, não tivesse tido coragem de separar a sua filha do único ser que tinha misturado, como ela, o sangue dos homens ao dos elfos...

Tocando por fim no fundo do lago, Lliane afastou com a ponta dos dedos o limo cinzento que cobria as raízes de um tufo de algas e divertiu-se a ver a nuvem de lodo evaporar-se lentamente à sua volta e depois repousar em pó sobre o seu corpo nu. E, subitamente, com um impulso de pés ela atirou-se para a superfície. A estranha sensação tinha-a tomado de novo tão forte quanto um remorso, mais viva ainda logo que ela deitou fora de água a cabeça e o busto. Atingiu a margem em algumas braçadas desordenadas, agarrou febrilmente o vestido e empoleirou-se sobre um rochedo alto que dominava o conjunto sussurrante de canas e juncos. Dali, ela via toda a ilha, até mesmo os contornos do lago. Não havia nada. O perigo era em outro lugar, bem para além da floresta de Éliande.

Foi aí que Myrddin a encontrou, erguida ao sol, nua como uma figura de proa, e esta visão surpreendente perturbou-o a um tal ponto que ele se escondeu entre as ervas altas, como uma criança culpada. Os elfos ignoravam o pudor, mas Myrddin era mais homem do que elfo, e nenhum ser humano, jovem ou velho, homem ou mulher, poderia ter contemplado a beleza irreal da rainha dos altos-elfos sem sentir desejo... Nem sem ficar marcado para sempre pelo desgosto obsessivo de não a ter podido possuir. Magra e esguia como todos os do seu povo, a rainha descendia do antigo clã dos altos-elfos, como se denominavam os que ainda viviam na floresta de Éliande. Ao contrário dos elfos verdes que habitavam os bosques e as colinas, ou os dos pântanos perdidos nas Fronteiras, os altos-elfos eram grandes, por vezes maiores que um homem, e a sua beleza solene tinha para os outros povos algo de assustador. Que dizer então da sua rainha! Havia nos seus longos cabelos negros e nos seus olhos, de um verde tão claro que parecia encobrir uma chama interior, uma força que contrastava com a palidez da pele, uma força animal, um fogo latente. Havia em cada um dos seus gestos, no movimento dos seus longos braços e na curva dos seus rins uma sensualidade indiferente, uma indecência altiva que fazia perder a cabeça; mas também um perigo, uma ameaça. Os homens simples que viviam nas orlas da grande floresta misturavam nas suas narrações as expressões de fadas e de vampiros para designar os elfos, o que correspondia de fato bastante à verdadeira natureza deles.

Na sua absurda procura de espaço, os homens pareciam querer desbravar o mundo inteiro, embora as suas imensas planícies se estendessem já a perder de vista. Mas raros eram aqueles que tinham atacado a floresta de Éliande, e esses não tinham regressado para se gabarem. Era aí, no coração de uma insondável fortaleza vegetal, que se abrigava o bosquete sagrado dos elfos, o pequeno bosque das sete árvores plantado pela própria Deusa. Os antigos acreditavam que estas árvores eram os pilares do universo, juntando através das suas raízes Mitgaard, a Terra Média, ao mundo subterrâneo, extraindo a sua seiva nas trevas e na sujeira para se elevarem para além do campo mortal e unirem este mundo subterrâneo com o dos céus, em direção ao qual se elevavam os seus ramos. Sete árvores chamadas duir, quert, beth, saille, coll, tinne, fearn... o carvalho, a macieira, a bétula, o salgueiro, a aveleira, o azevinho e o amieiro, dispostas em círculo e que, ainda hoje, abrigavam o talismã dos elfos, o Caldeirão de Dagda, Graal do conhecimento, a alma do mundo. Fora aí que Lliane tinha nascido, e onde tinha sido iniciada, há já tanto tempo, pelo velho Gwydion.

O próprio Myrddin, embora fosse dru wid [3] — era assim que os elfos chamavam os seus feiticeiros —, ignorava muitas coisas sobre a magia dos altos-elfos, e ele não podia mais que contemplar, cheio de amor e de medo, a longa silhueta da rainha, esticada, lisa e pálida como uma faia, semelhante a uma árvore, sem dúvida, com os seus braços erguidos e os cabelos voando a cada subida do vento, formando entre eles uma folhagem escura. A doce brisa da aurora não tinha parado de se tornar mais forte, e o céu escurecia um pouco mais a cada instante com pesadas nuvens negras, como uma resposta à oração muda da rainha. Bem depressa, rajadas dobraram as ervas em volta dele, o seu longo fato azul escuro começou a bater como um pano, as águas do lago agitaram-se e varreram as margens. Lliane, imóvel na tempestade, com a cabeça caída para trás, parecia atrair para ela o sopro brutal do vento leste, um vento vindo de longe, para além do lago e da floresta, além mesmo das planícies desbravadas pelos homens. De momento deitado no chão, fustigado pelas súbitas rajadas de chuva, Myrddin percebeu uma mensagem difusa no sopro da tempestade, mas a sua parte humana tremia de frio e apreensão, obscurecendo o seu julgamento. Ensurdecido, cego, aterrorizado por este tumulto surgido do nada, ele era incapaz de compreender as palavras gritadas pelos elementos em fúria. Mas, do mais profundo do seu terror animal, uma imagem impôs-se-lhe apesar de tudo.

Morgana... A menina estava sozinha na tempestade.

Ele levantou os olhos para a rainha, sublime de indiferença no meio do caos. As suas coxas, o seu ventre e os seios brilhavam de chuviscos. Só os seus cabelos batidos pelo vento tinham aspecto de animados por uma vida própria, mas ela não tinha mexido um músculo. Como conseguia ela manter-se em pé sobre aquele rochedo batido pela tempestade e pelas vagas do lago? As rajadas mais violentas quebravam-se sobre o seu corpo sem o abanarem, enquanto que ele se agarrava com todas as forças às ervas para não levantar vôo. De novo, por detrás do gemido louco da tempestade, ele distinguiu a voz do vento e, numa rajada, a da rainha, alto e bom som, imediatamente levada.

— Moegenheardunnd, ofercealdscur, feothanealretheheardingas! Faeger treow gedreoscmfor egle leod! Loethan anmod nith leofian! Hael hlystan!

Era a antiga linguagem das runas, a magia dos quatro elementos... Uma maldição da qual ele não compreendia senão algumas palavras: Oferceald scur, a tempestade gelada. Egle leod, o povo detestado... Lliane combatia, mas Myrddin ignorava se o furacão era a sua arma ou o seu inimigo, e sentia-se mais desamparado do que nunca. Uma nova rajada de vento obrigou-o a abrigar-se, e no entanto ele parou: no espaço de um instante, pareceu-lhe que a rainha o tinha visto, e que lhe tinha falado.

Rhiannon... Era esse o nome que ela acabava de pronunciar?

— Já tinha pensado nela! — gritou ele estupidamente, num tumultuo tal que mal entendia a sua própria voz.

A rainha, é claro, não respondeu. Que importa... Não podia haver outra maneira de a ajudar: encontrar a menina a quem ele chamava Morgana, a pequena elfo que ela tinha baptizado de Rhiannon, o ser único que ambos amavam sob esses nomes diferentes, e pô-la a salvo.

De um salto, levantou-se, cambaleando sob as bruscas rajadas, empurrado por vezes pelas mudanças bruscas de vento ou pelas vagas de chuva, e fugiu a toda a pressa. Insidiosamente, um nó tinha-se-lhe dado na garganta, e as lágrimas perdiam-se sobre as suas faces molhadas. A idéia, insuportável, de perder Morgana tinha-se espalhado dentro dele como um veneno e arrastava-o bem para além das suas forças, numa corrida desenfreada debaixo dos elementos em fúria. Em cada uma das suas visitas à ilha sagrada, ele tinha-a visto crescer, tornar-se cada vez mais semelhante ao ser que ele tanto tinha esperado. Ela não tinha mais de quatro anos, segundo as contas dos homens, mas o tempo era diferente na Ilha das Fadas, e o próprio Uter, seu pai, ter-lhe-ia dado sem dúvida cinco anos mais. Ela era como o próprio Myrddin, frágil em aparência como uma jovem elfo, com, no entanto, um vigor insuspeitável que só se descobria no olhar. E se ela era assim tão parecida com ele, devia ter medo da tempestade...

A princípio, não a viu. O pequeno bosque de macieiras que lhe servia de abrigo parecia vazio, como se todas as elfos tivessem sido levadas pelo vento. Ele gritou o seu nome, mas a folhagem batida pelas rajadas cobria os seus gritos, e Morgana não respondia. Depois, no momento em que ia desistir e correr para a rainha para lhe implorar ajuda, ele viu-a por fim.

O choque fê-lo sem dúvida tremer mais do que o furacão.

A menina estava nua, também ela imóvel, como a mãe, branca, com os braços esticados e a cabeça caída para trás, recebendo a mesma mensagem e rindo, sim, rindo como se o apocalipse não passasse de uma brincadeira, como se a tempestade falasse com ela enquanto que ele não entendia nada, digno de piedade e a tremer, sentindo-se abaixo de cão. Então, agarrou-se às ervas, enterrou a cara no chão e esperou que o furacão se acalmasse.

 

Em volta deles, o tornado arrasava a orla da grande floresta. Em volta deles, ou melhor por trás, sobre eles, com uma energia de besta, uma raiva tal que eles não ousavam olhar por cima do ombro, com medo de verem a morte gritante agarrá-los no seu frenesi cego. Eles corriam com o espírito vazio, como animais, atormentados pelo mais pavoroso dos pânicos. Freihr tinha perdido o seu punhal, já não sentia mais a dor das suas feridas, tinha mesmo esquecido a presença de Galaad a seu lado, e se o rapaz tivesse caído sem dúvida que o teria deixado ali, à mercê do vento, dos lobos negros e dos gobelins, não podendo senão fugir, fugir a sete pés, longe desses horrores.

Repentinamente, as suas botas apertadas com peles enredaram-se nas silvas e ele estatelou-se a todo o comprimento. Instintivamente, voltou-se para trás. A princípio não viu Galaad, insignificante criatura enroscada debaixo do turbilhão de ramos, de folhas e de terra. As copas das grandes árvores tinham-se dobrado quase na horizontal, o tronco vibrava como cordas de uma harpa demente, o céu cinzento chumbo carregava monstruosas nuvens negras, vomitando por espasmos uma chuva fustigante, num rugido ensurdecedor que esvaziava o coração, os pulmões e a alma, rugido esse tão possante que Freihr já nem conseguia respirar. O bárbaro deu um grito de pavor quando uma grande forma negra se abateu bruscamente sobre ele. Não era mais que uma capa, o casaco de lã grosseira de um gobelin, arrastado pelo vento, mas foi assim que ele distinguiu, no meio da tempestade, outras manchas negras, a menos de cem toesas. Deviam ser pelo menos uns vinte, agarrando-se de árvore em árvore com os seus longos braços, lutando contra o furacão, aproximando-se inexoravelmente da frágil silhueta de Galaad, escondido ao abrigo de um rochedo. A criança estava muito perto. Em dez passos ele poderia ter chegado perto dele e tê-lo levantado, mas o furacão mantinha-o preso ao chão, sem lhe permitir o menor gesto. Os gobelins, no entanto, continuavam sempre em frente, talvez porque o seu cérebro minúsculo, invadido pelo ódio, fosse demasiado estúpido para conhecer o medo. Ou, pior ainda, porque se alimentavam dele.

Freihr viu-os aproximarem-se de Galaad, estenderem na sua direção as patas disformes e levarem-no, sem que a criança parecesse reagir. Sem dúvida estava desmaiado. Pelo menos ele esperava que sim. Houve um momento de hesitação nas fileiras dos monstros, e depois as suas caras horrorosas viraram-se para ele e, enquanto dois deles puxavam a pobre presa para trás, um grupo recomeçou a rastejar lentamente contra os elementos.

Freihr fechou os olhos e deixou cair a cabeça. Ele não precisava de ver o brilho escuro dos olhos deles nem o reflexo das cimitarras para saber que ia por fim morrer.

Por trás dos seus olhos fechados, a imagem daquilo que tinha visto no caminho esburacado continuava intacta, sempre precisa, mais medonha ainda do que a própria morte. Alinhados em fila, seguindo o rastro uns dos outros, os monstros tinham deixado as Terras Negras. Havia entre eles gobelins de armadura, orcs e trolls semi selvagens, daqueles homens-cães a quem chamavam Kobolds, vampiros macilentos de uma magreza medonha e criaturas horríveis às quais ninguém poderia ter dado nome. Freihr contemplava, mudo de horror, este rio escuro que corria sem barulho em direção à planície, tão lento quanto gelo fundido, quando o viu. Uma visão fugaz, demasiado insuportável para que não tivesse imediatamente desviado os olhos, para que não tivesse imediatamente fugido, devastado pelo terror, repugnância e vergonha, esquecendo Galaad bem como toda a prudência, com as veias envenenadas e os membros presos pelo horror. Ali, no meio destas legiões medonhas, montado sobre um cavalo negro ao lado de um cavaleiro de aparência humana brandindo uma longa lança de metal escuro e rodeado por uma escolta de guerreiros barbudos, ele tinha visto o Inominável, o Indizível, Aquele-que-não-pode-ser-nomeado. O ser tinha-se voltado para ele, como se tivesse farejado o seu medo, e Freihr tinha visto o seu rosto... Visão insuportável. O seu rosto era exatamente...

A atrocidade desta recordação transtornou-o. Rolou para um lado vomitando as tripas até não passar de uma massa ofegante, vazia de todas as forças, não esperando mais do que a morte. No chão, o vento era menos forte e ele sentia-se quase em paz. A insuportável imagem gravada na sua memória esfumava-se pouco a pouco, enquanto que o seu espírito, quase independentemente dele, se concentrava sobre um detalhe que ele tinha negligenciado, no horror do momento. E, quanto mais ele pensava, mais os guerreiros barbudos, em volta do Senhor Negro e do cavaleiro da lança, lhe pareciam familiares. Uma cara, em particular, evocava-lhe algo de próximo... Freihr abriu os olhos, estonteado de repente com o que tinha acabado de realizar. Eram anões, em volta do Inominável. E a cara conhecida era a de Rogor, príncipe sob a Montanha Negra, herdeiro da linhagem de Dwalin que todos julgavam desaparecido. Não podia haver dúvida... O bárbaro levantou-se com uma careta de dor. Uter. Era preciso que ele soubesse...

No momento em que ele se levantava, um grito selvagem perfurou o barulho do furacão. Os gobelins estavam agora muito perto, vestidos de farrapos e de cotas de malha rotas, tão grandes quanto trolls mas de uma magreza pavorosa, brilhantes de chuva, rosnando ou ladrando como cães, na incompreensível língua das Terras Negras, e as suas capas escuras que batiam ao vento davam-lhes um ar de morcegos. Uter nunca saberia...

— Venham cá, porcos malditos, cães de merda! — gritou Freihr. — Venham, suas ratazanas, venham morrer comigo!

Os monstros hesitaram ainda em percorrer as últimas toesas de terreno descampado, ladraram injúrias e mantiveram-se agrupados quando um estalar enorme lhes fez voltar a cabeça ao mesmo tempo. Foi então que um tronco partido pelo vento se abateu sobre eles, esmagando carne e ossos, malhas e aço. Depois, o tronco rugoso rolou como um feto, não restando dos monstros mais do que uma massa ensanguentada.

Freihr tinha-se atirado para trás, mas a árvore tinha-o evitado cuidadosamente, varrendo tudo à sua frente até algumas polegadas das suas pernas, deixando-o intacto, nem mesmo arranhado pelos ramos mais altos, com o sentimento atroz dentro de si de ter visto um deus esmagar o seu inimigo diante dos seus olhos.

 

 

                 A PURIFICAÇÃO DE YGRAINE

Uter acordou a espirrar, a não ser que fosse o espirro que o tivesse acordado. O grosso da tempestade já tinha passado há mais ou menos uma semana, mas o vento leste úmido e frio levantava ainda a cortina de couro que escondia a única janela do quarto deles. Algumas gotas de chuva tinham mesmo molhado as lajes, por debaixo do vão da janela. Ygraine, a seu lado, gemeu a dormir e enroscou-se no ombro dele, o que o fez sentir-se feliz. Os seus magníficos cabelos loiros cobriam-lhe a cara, da qual ele não conseguia ver, mesmo esticando o pescoço, mais do que a testa e os olhos fechados. Ela tinha, a dormir, um ar de menina, apesar das provas por que tinha passado e apesar do filho que lhe tinha dado na própria noite do furacão. Era como se os céus enfurecidos — trovão, raio e chuva — tivessem vindo saudar o nascimento do novo príncipe. O seu filho. Artur...

Uter desembaraçou-se suavemente do terno abraço da sua esposa, deitou para trás os lençóis de linho e a fina cobertura de pele de esquilo que os cobria, depois saltou para o chão e enfiou os seus borzeguins [4]. Tirou de uma banqueta o seu casaco de peles, enrolou-se nele cheio de frio e, tirando ao passar uma maçã da cesta de frutas colocada sobre a mesa por uma das camareiras, aproximou-se da janela cuja cortina levantou.

O dia demorava a nascer, e já chovia, mas pelo menos o vento tinha amainado. Para lá das ruelas e dos arredores da cidade, para lá das muralhas e das torres, ele contemplou a escura extensão dos campos ceifados. Os camponeses tinham começado a arar a terra para as sementeiras de Inverno, quando mal tinham acabado de festejar Mabon, o equinócio de Outono. Segundo os velhos rituais que os monges se empenhavam tanto em combater e que no entanto ninguém sonharia em esquecer, Mabon, a sexta festa do ano, marcava o final das colheitas, a queda das primeiras folhas e o final do Verão. Era normalmente um período de ócio, um período um pouco triste e propício às conversas e libações, mas o Inverno chegava particularmente cedo, este ano, e a tempestade tinhadado pouco descanso a quem queria estar pronto para a estação fria.

Um novo espirro arrancou o jovem rei dos vestígios da noite. Apesar da enorme lareira que ocupava grande parte do aposento, seria necessário deixarem dentro em breve o quarto de verão, aberto e arejado, e retirarem-se para uma das células situadas nas torres, estreitas e com janelas de vidro grosso, somente translúcido, mas onde pelo menos se dormia ao quente.

Segurou desajeitadamente a cortina de couro no vão da janela, enrolou de novo a capa de peles à sua volta e saiu na ponta dos pés para não acordar Ygraine. Seria um longo dia para ela, a sua primeira jornada pública, quarenta dias depois de ter dado à luz, como o exigiam as Escrituras. O abade Illtud de Brennock, a mais alta autoridade moral do reino depois da morte do bispo Bedwin, que muitos consideravam já como um santo, tinha vindo pessoalmente dar a purificação, como chamavam às cerimônias da igreja quando uma mulher lá entrava depois de ter dado à luz. Bem mais do que o batismo, que era administrado à nascença tão frequente era a morte dos bebês, era nesta ocasião que se festejava, tanto entre vilãos como nobres, a jovem mãe e o recém-nascido. Uter e Ygraine tinham ambos querido dar um brilho especial a este dia. Apesar de muito jovens, este não era o primeiro filho, nem dele, nem dela. Mas tratava-se do primeiro filho desejado, do primeiro filho de ambos. E era um rapaz. O futuro herdeiro do reino de Logres...

Ygraine bem podia dormir. Teria que receber, ao longo de todo o dia, a homenagem dos vassalos de Uter e as bençãos dos padres, manter o seu lugar no banquete, beber e comer sem falhar, com as faces pintadas para que ninguém se alarmasse com o seu tom de pele, e sorrir, sorrir para todos, nobres e burgueses, elfos, homens ou anões, falar com alguns gnomos carregados de ouro e dobrados sob o peso de sedas, como se apresentavam sempre nas grandes ocasiões.

Cá fora, Uter seguiu sem pensar pelo corredor que conduzia ao quarto da ama. No fim do trajecto, deitou fora a maçã que mal tinha encetado, com o estômago vagamente revirado. Apesar de tudo, o dia seria longo, também para ele. Devia aconselhar-se depois da cerimônia, com os grandes dignatários dos três povos livres. Léo de Grand de Carmelide, o irmão de Ygraine de quem Uter tinha feito seu condestável, já estava lá, bem como o abade Illtud. O senhor Bran, herdeiro dos anões sob a Montanha Negra, último príncipe vivo da nação anã depois do desaparecimento do seu irmão Rogor, tinha chegado um pouco antes do anoitecer, bem como Gwydion, o alto-druida dos elfos da floresta, e Dorian, o jovem príncipe dos altos-elfos, irmão da rainha Lliane. Até então, Uter tinha temido, ou esperado, que a rainha tivesse aceito deixar o seu refúgio de Avalon para conduzir em pessoa a delegação dos elfos. Mas ela tinha ficado nas brumas da sua ilha inacessível, perto da sua filha e do pequeno povo das fadas, para sempre longe do mundo...

De momento, Uter não sentia mais do que tristeza e amargura. No entanto, tinha sido por causa dela que tinha convocado o Grande Conselho, por causa dela que, dentro em breve, devolveria aos anões o talismã deles, a Espada do deus Nudd a que eles chamavam Caledfwch e os homens Excalibur... E sem dúvida era uma coisa boa, por muito que dissessem os monges e por muito que lhe custasse. Um rei não devia ser fiel à palavra dada? Depois de tantas provas, tantos ódios e tormentos, talvez o mundo reencontrasse assim o seu antigo equilíbrio. Um mundo que os homens não governariam sozinhos, um mundo onde os anões, os elfos e mesmo os monstros das Terras Negras teriam o seu lugar, desde o começo dos tempos, tal como o tinham querido os deuses... Apesar de tudo, tinha sido por isso que ele tinha combatido o duque Gorlois. Pôr um fim aos sonhos loucos de dominação do mundo, viver em paz. E no entanto, devolver a Espada parecia-lhe uma abdicação, quase uma traição.

Porque é que ela não tinha vindo?

Apesar da beleza de Ygraine, apesar do filho de ambos, apesar do trono que ela lhe tinha oferecido, Uter não conseguia tirar Lliane dos seus sonhos, desde a noite passada. Lliane, cujos olhos verdes tão claros não paravam de o perseguir. Lliane que tinha feito dele o Pendragon, que tinha entrado nele para formarem uma só pessoa, mais intimamente imbricados como jamais o foram nenhuns amantes — uma só carne, uma só alma, e uma força, conjunta, capaz de varrer o universo. Lliane, enfim, que ele tinha traído e que talvez não voltasse a ver, nem ela nem a filha de ambos, Morgana, nascida da união deles.

Hoje, Uter não conseguia visualizar a cara de Morgana. Como sempre, os traços de Artur vinham sobrepor-se aos da menina, e esta impotência de a evocar parecia-lhe a pior das traições. Mas talvez isto fosse normal, apesar de tudo. Ele só a tinha visto durante alguns dias, na ilha de Avalon, e tantas coisas se tinham passado depois... Uter só se lembrava que Morgana era tão bonita quanto Artur era feio. Que idade tinha ela agora? Dezoito meses, mais ou menos, embora o tempo corresse de outra forma sobre a ilha de Avalon. Talvez ela e o seu filho se tornassem amigos um dia? Ele sorriu a este pensamento e ficou quase surpreendido quando percebeu que tinha chegado ao fim do corredor e que os dois cavaleiros armados que guardavam o quarto do recém-nascido lhe sorriam, como se estivessem de acordo com ele. Isto não durou mais do que um instante. A jovialidade deles dissipou-se perante o ar perturbado do rei, um deles bateu à porta segundo uma cadência combinada, e um terceiro cavaleiro abriu a porta do interior, afastando-se respeitosamente à passagem de Uter.

O homem, vestido com uma cota de malha vermelho sangue cunhada com um brasão das suas próprias cores, de ouro com um galgo vermelho em pé [5], era tão grande e maciço quanto a torre que os abrigava. Os seus cabelos loiros entrançados e a sua barba espessa escondiam mal uma grande cicatriz, recordação de uma flecha élfica que lhe tinha em outros tempos partido o maxilar. Era uma cara terrível, mas uma cara amiga.

— Estou feliz de te ver, Ulfin — murmurou o rei pousando-lhe a mão sobre o ombro. — A duquesa Helled já chegou?

— Não sei, senhor. Fiquei aqui toda a noite como me pediste...

— Sim, é claro... Vai procurar o camareiro, e, se ela ainda não estiver, envia cavaleiros para Este à sua procura. Diz-lhe que a esperamos para o Conselho.

— Crês que lhe aconteceu alguma coisa?

Uter sorriu ao amigo. Como sempre, Ulfin estava pronto a alarmar-se, e a duquesa Helled de Sorgalles era-lhe uma pessoa querida, bem como a memória do duque Bélinant.

— Talvez tenha sido surpreendida pela tempestade? – disse num tom tão tranquilizador quanto possível. — Só queria ter certeza de que ela não precisa da minha ajuda. A rainha conta com a sua presença esta tarde...

Os olhos de Uter tinham-se habituado agora à escuridão do quarto, tão mal iluminado por uma estreita seteira, que se mantinham velas acesas durante todo o dia, e quando deitou um olhar em volta o sorriso gelou-se-lhe, apesar dos seus esforços para se mostrar jovial. Enroscada numa das pregas formadas pelo vestido comprido da ama, uma menina de dois anos mamava gulosamente, enquanto Artur tinha adormecido no outro seio e, mal ela o viu, enfiou a cara debaixo do braço da mulher. Era filha de Ygraine e ela amava-a. Por essa simples razão ele gostaria de a amar, mas ela era também a filha de Gorlois, nascida de uma relação forçada, de uma violação brutal entre tantas outras, cuja evocação lhe era insuportável...

Com o decote aberto sob o olhar dos dois homens, um fio de leite escorrendo lentamente do seio grande que a menina tinha acabado de abandonar, a ama tentava puxar sobre ela os lados do seu corpete mas encontrava-se impossibilitada por causa das duas crianças.

— Dá-me Artur — disse Uter.

Pegou o bebê que ela lhe estendia e reparou com o canto do olho num pingo vermelho que lhe rosava o leite, sobre o seio.

— Tu sangras?

— Não é nada — disse ela compondo-se por fim. Ajoelhou-se diante do rei, e depois afastou-se, mantendo sempre agarrada a si a filha de Ygraine.

— Ela morde-me às vezes... Mas não é grave.

À justa, Uter reteve o comentário que lhe tinha vindo à boca: “Ela gosta de sangue. Vem-lhe do pai...”

Um ano ou quase tinha decorrido depois da morte de Gorlois, mas a recordação do senescal-duque mantinha-se tão viva na memória de Uter quanto o ódio que tinha sentido por esse homem. E parecia-lhe que, enquanto a criança vivesse, esse ódio também viveria, semelhante a um verme horroroso carcomendo-lhe as entranhas.

— Ela vai deitar-se agora — disse a ama. — Não é Morgause?

— Não a chames assim.

Ela levantou para o rei um olhar inquieto, assustada com o tom brusco da sua voz.

— Esse nome não lhe convém — continuou ele esforçando-se por suavizar a voz. — Daqui em diante não usareis senão o seu segundo nome, Ana, como eu e a sua mãe exigimos.

A mulher baixou os olhos humildemente, o que não fez mais do que aumentar o mal-estar. Ana tinha os cabelos da mãe, loiros e encaracolados e uma cor de pele tão pálida que se diria ser de um elfo. Ela tinha nascido alguns meses antes de Morgana, e embora não tivessem nada em comum, com exceção do destino as ter feito a ambas suas filhas, duas irmãs por casamento geradas nos mundos mais distintos que se pode imaginar, Uter não conseguia deixar de pensar que elas deviam ser parecidas. Morgana, a criança-fada de Avalon e Morgause a filha do homem mais duro, mais cruel que ele tinha encontrado. Na realidade, a similaridade dos seus nomes era-lhe insuportável.

Desviando estes pensamentos, avançou a mão em direção à menina, mas no momento em que tocou nos seus cabelos ela pôs-se a chorar.

— Sinto muito, senhor — balbuciou a ama. — Ela não está bem, esta manhã.

— Sim...

Uter voltou-se para Ulfin, que evitou o seu olhar.

— Pois bem, se ela acabou, levem-na! — resmungou ele, já desesperado com os choros que lhe davam cabo dos ouvidos. — Ou melhor, não. Confiai-a a uma camareira e voltai para tomardes conta de Artur. Esta criança é muito grande para ser alimentada ao peito. Daqui em diante só vos ocupareis do príncipe.

Ele não viu os olhos da mulher encherem-se de lágrimas. Há mais de um ano que ela nunca tinha deixado Morgause, Ana, fosse qual fosse o nome que ele lhe quisesse dar...

Uter, sem se preocupar mais com elas, avançou para o berço e colocou lá Artur, suavemente. Era um rapazinho, não deixava dúvidas. Tinha nascido com os cabelos mais espessos e mais negros que jamais tinham sido vistos, segundo recordava a parteira. Com a testa enrugada e os punhos fechados contra si, parecia dormir com afinco, quase com seriedade, com um ar tão feroz que se tornava cômico. Como o urso do qual trazia o nome [6], ele era feio mas vigoroso, e parecia estar sempre à defesa. Com um mês, ele pesava as suas nove libras, o que era na verdade prodigioso. Um herdeiro de peso, que ele teria orgulho de levar daí a pouco diante do povo e dos seus barões, no momento da purificação.

Não foi senão quando por fim desviou os olhos do seu filho, que Uter descobriu Merlim, sentado perto do berço, imóvel e tão sombriamente vestido na sua longa túnica azul escura que não se distinguia dele, na penumbra do quarto, senão ao seus cabelos brancos e o brilho irónico do seu eterno sorriso.

— Sabes que não é por modificares o seu nome que lhe modificas o destino — disse levantando-se.

— Ora, Merlim, porque não disseste que estavas aí!

Uter procurou Ulfin com os olhos para o repreender, mas o cavaleiro tinha saído bem oportunamente com a ama.

— Aliás, tu sabes, a própria Morgana não se chama verdadeiramente assim — continuou o homem-criança passando diante dele, com aquele tom despreocupado que tinha desde sempre o condão de o irritar ao mais alto nível. — A sua mãe chama-lhe Rhiannon, “a Real”, para que os elfos nunca se esqueçam que ela será a rainha deles, um dia...

— Eu sei — disse Uter. — Mas foste tu que quiseste chamar-lhe Morgana. E por vezes penso que o fizeste de propósito; que sabias que Gorlois chamaria Morgause à filha; e que preparaste mais uma das tuas diabruras!

— A sério? Que estranho que é... Também eu, por vezes, acho que tu dizes a primeira coisa que te vem à cabeça...

Na penumbra, Merlim tinha o ar de um velho, por causa dos seus cabelos brancos e da sua magreza. Mas, mal avançou para a luz das velas, voltou a ser aquele homem-criança de idade indefinida, semi-elfo semi-homem, que só de olhá-lo indispunha a maioria dos que o viam pela primeira vez.

— Tinha-te mandado ocupares-te de Freihr — resmungou Uter.

— Não devias deixá-lo sob nenhum pretexto até ele recuperar a consciência!

— Sim, é por isso que estou aqui. As febres baixaram e ele acordou um pouco antes do nascer do dia... Ah, de fato, ele pediu para te ver.

— Mas, por Deus, podias ter-mo dito!

— Já disse.

Uter abriu a boca para replicar, mas desistiu, e o seu punho já fechado caiu com a sua cólera. Era inútil argumentar com Merlim. Dir-se-ia que ele sentia um prazer maligno em enraivecê-lo, e conseguia com uma tal facilidade que era quase humilhante.

— Fica aqui com Artur — resmungou saindo do quarto.

A voz de Merlim chegou-lhe quando ele já estava no corredor.

— Até que ele recupere a consciência?

Uter respondeu com um grunhido que fez sorrir o homem-criança. Este divertimento, no entanto, não durou muito. Antes mesmo dos passos do rei se deixarem de ouvir no corredor, a cara de Merlim já estava desfeita. Desde a aurora, um nó tinha-se-lhe dado na garganta, abafando-o. Sim, Freihr tinha acordado, mas, apesar de toda a amizade que sentia por aquele bom gigante, teria sem dúvida preferido que as febres durassem um pouco mais, pelo menos até à noite, depois do Conselho... A menos que ele se calasse.

 

Tinha parado de chover, mas continuava a ser um dia de Inverno, frio e úmido, um verdadeiro tempo de cão que tinha empapado os telhados de colmo e entupia as ruelas com um riacho de chuva lodosa e pedacinhos de palha. O tempo não estava nada propício para festas, mas havia tanta gente que a cidade reencontrava pouco a pouco a sua agitação passada, e a perspectiva do banquete aquecia os corações. Cada ruela, no dia anterior abandonada ainda aos cães, aos porcos e às aves de capoeira, transbordava de vida, de gritos, de cores. Todos os estabelecimentos estavam abertos, cordoeiros, armadores, taberneiros, alfaiates e merceeiros e os seus vendedores empenhavam-se em atrair o cliente, até rebentarem com as cordas vocais. Os que eram demasiado pobres para terem um estabelecimento, trapeiros curvados sob o peso dos seus trapos, artesãos de velas escorrendo gordura ou sebo, vendedores de água ou vendedores de hóstias, colocavam as suas bancadas no meio da multidão e gritavam ainda mais. Os camponeses dos arredores acotovelavam burgueses vestidos como príncipes, abriam os olhos diante da falta de pudor das meninas da vida debruçadas nas suas varandas ou gastavam as suas moedas nos botequins onde as pipas eram abertas a um ritmo frenético, e toda esta gente enlameava os seus borzeguins na lama do riacho. O frio, a umidade, o chuvisco que fazia brilhar as ardósias e punha o colmo a fumegar, não penetravam ali. Os homens mantinham-se quentes. O vinho mantinha-os quentes. Os arruaceiros e o jogo mantinha-os quentes. Era um júbilo um pouco forçado, mas poderia julgar-se terem voltado os tempos antigos, antes da guerra. Aliás, havia novamente elfos nas ruas de Loth. Pouco numerosos, é certo, e limitando-se no essencial à escolta do grande druida Gwydion e do príncipe Dorian, mas era apesar de tudo um espectáculo reconfortante e, para grande espanto dos seres azuis, a sua passagem nas ruelas atulhadas tinha mais de uma vez sido saudada com uma cotovelada jovial ou com uma palmada nas costas (e foi preciso explicar a um jovem elfo mais vivaço que se tratavam de demonstrações de amizade, entre os homens do Lago). Podiam mesmo cruzar-se anões, ainda em número menor, mas com menos prazer. Resmungões, brutais e não andando senão em grupo, friorentos e abatidos debaixo das peles, abriam caminho aos berros por entre a multidão, e os homens só se afastavam diante deles resmungando, pois a recordação da guerra não desaparecia assim tão facilmente.

Um pouco antes da sexta [7], os sinos puseram-se a tocar, e toda aquela multidão se dirigiu à igreja. O pátio que se estendia entre as muralhas do primeiro recinto estava já cheio de gente, a ponto dos arqueiros de vigia terem tido as piores dificuldades em abrir caminho para a procissão real.

Apesar dos vivas e dos gestos do povo de Loth, Uter não descerrava os dentes, com o olhar perdido no vácuo e a cara sombria, segurando com força contra ele o pequeno corpo enfaixado de Artur, quase impossível de ver por baixo do seu casaco. Ygraine cavalgava a seu lado, pálida mas reta.

Ela estava ricamente vestida, num tecido branco bordado, fato e manto forrados a arminho, montada sobre um pequeno palafrém todo branco, o mais belo e mais bem feito que se possa imaginar. O freio era de prata pura, bem como o peitoral e os estribos. A sela era de marfim, esculpido delicadamente com imagens de damas e cavaleiros. O caparazão [8] era completamente branco, arrastando pelo chão e feito do mesmo tecido de que a dama estava vestida [9].

Ygraine tinha baixado o véu que lhe cobria o rosto e sorria à multidão, mas o mutismo do rei quase lhe fazia vir lágrimas aos olhos. Há pouco, Uter tinha conversado rapidamente com Léo de Grand, o seu irmão, e quase nem tinha respondido às alegres saudações do senhor Bran, regente dos anões sob a Montanha. A duquesa Helled de Sorgalles não estava, mas esse atraso não era suficiente para explicar o mau humor do rei. Seria aquele Merlim, esse maldito gênio com cara de criança velha, cujo olhar para ele a oprimia a ponto de quase desmaiar, que teria conseguido atormentá-lo a esse ponto? Por um momento ela pensou em Freihr, e temeu que ele tivesse morrido durante a noite. Não podia ser isso... O irmão Blaise, o capelão, tê-la-ia informado e depois os físicos não paravam de afirmar que o bárbaro recuperava as suas forças, desde o dia em que os cavaleiros do rei o tinham trazido inanimado. Mas é claro que a rainha ignorava que Freihr tinha recuperado a consciência, e que tinha falado com Uter.

Diante do átrio da igreja, o casal real abandonou as montarias e a escolta e, somente acompanhados pela alta silhueta do cavaleiro Antor, o homem lígio da rainha, cuja capa vermelha dominava a multidão como uma bandeira, juntaram-se às outras mães que tinham vindo receber a purificação. Segundo o costume, marido e mulher ficavam separados, e cabia aos pais encarregarem-se dos seus recém-nascidos. Uter ficou feliz. Tão desajeitado e orgulhoso quanto os seus companheiros, ele sentia-se no meio deles liberto do peso que o oprimia. Estava ali um homem de armas arvorando as cores do ducado de Carmelide, alguns camponeses vestidos de bragas grosseiras e de túnicas de lã escuras, dois jovens citadinos, um ferreiro trazendo ainda o seu avental de couro, um jovem fidalgote endomingado com um chapéu escarlate cuja longa cauda lhe caía pelas costas como uma flâmula, cada um carregando o seu filho ou filha nos braços, e as suas mulheres comoveram-se de os verem tão felizes. Quase de imediato, Artur começou a chorar, para grande embaraço de Uter, que deitou um olhar de impotência à rainha. Ela sorriu-lhe mas levantou as mãos, como que a dizer-lhe “arranja-te”; o jovem rei embalou-o vigorosamente, o que não fez mais do que aumentar os seus gritos e provocar por contágio o choro dos outros bebês. Bem depressa, toda a criançada chorava a bom chorar, mergulhando os pais na mais total confusão, para grande divertimento das esposas.

Os risos tinham dissipado a tensão que se tinha instalado no séquito do rei, e a praça ressoava de novo num alegre burburinho, numa atmosfera festiva. Tinham sido montados bancos sobre um estrado para acolher os fidalgos e as nobres damas do palácio, bem como os dignatários elfos e anões que tinham vindo prestar homenagem ao príncipe antes de se reunir o Conselho. Sentado na primeira fila (e as suas pernas curtas não tocavam o chão), também Bran tinha reencontrado a sua boa disposição habitual, esquecido da frieza do rei para com ele, e tagarelava com Ulfin.

— Tantas crianças! — gritou fingindo tapar as orelhas. — São todos os que nasceram este ano?

O cavaleiro desatou a rir, mas pelo olhar do anão compreendeu que não era uma brincadeira.

— Claro que não! São os nascimentos mais recentes... Os rapazes têm menos de quarenta dias, as meninas cerca de três meses. É a tradição...

— A sério?

Bran abanou a cabeça, depois olhou pelo canto do olho para o conselheiro Onar, um anão extraordinariamente carrancudo, abafado numa capa que lhe dava ares de um saco. Esperando um comentário que nunca mais vinha, Ulfin deu uma cotovelada a Bran.

— Que é que se passa, meu amigo?

— Nada — resmungou o príncipe. — Mas creio que não nasceram nem metade deles em toda a nação anã desde que perdemos a Espada...

Ulfin não respondeu (e aliás o que é que poderia ter dito?), mas Merlim, sentado a seu lado, debruçou-se para a frente para olhar Bran. Abria já a boca para o interrogar quando o bravo lhe deitou um olhar severo e ele calou-se, guardando as perguntas para si. De qualquer forma, esticou o pescoço para contar rapidamente os bebês presentes no adro. Não eram mais do que uma dezena... Seria verdade o que Bran dizia? Num ano, menos de cinquenta nascimentos, realmente?

Apesar da sua capa de lã grossa, do seu casacão cobrindo-o desde os ombros até meio da perna, da sua camisa e bragas, apesar das altas botas de couro forradas a feltro, Uter começava a ter frio e não era o único, a julgar pela maneira como cada um saltitava de um pé para o outro, o nariz vermelho e os braços cruzados sobre o peito, tanto no seu séquito como no ajuntamento de povo. Apesar disso, os monges pareciam demorar todo o tempo necessário, apesar da maioria deles estar descalço naquele frio, vestidos com fatos simples de burel de lã crua (e não tingida, pois tingir é mentir, “nulla tinctura, nec mendacio defucata”), por vezes remendados, atados à cintura por um cinto de couro, o capuz caído sobre os ombros, a cabeça tonsurada oferecida ao vento, magros, cinzentos e direitos como bétulas. Entre eles, só a altura distinguia o seu superior, o abade Illtud. Depois da morte do bispo Bedwyn e durante a espera da sua hipotética substituição, o clero secular não parava de perder influência no reino, em proveito dos monges de quem ele era o prior, pater monasterii, vices Christi agitw [10]. Sem báculo nem mitra, trazendo uma simples cruz ao pescoço, a cara comprida e a barba escura, ele também se mantinha imóvel de olhos fechados, juntando a sua voz à dos irmãos num Te Deum grave e lento, como se este frio úmido não tivesse nenhuma influência sobre ele.

Pouco a pouco, as conversas pararam no adro. Sem dúvida, a maioria dos que aí estavam reunidos, burgueses, nobres ou mendigos, elfos, homens ou anões, deixava-se apoderar por este fervor ascético e pelo espectáculo fascinante desta mortificação louca. Já não era a mesma religião desde que os monges tinham substituído os padres. A própria igreja tinha sido despojada dos estandartes e das tapeçarias que a enfeitavam em outros tempos. Não havia mais que a pedra nua e o sombrio rosto dos santos esculpidos sobre a fachada. O Cristo glorioso do bispo tinha dado lugar ao crucificado emaciado e ao seu rebanho, vibrando de toda a força da sua magreza. Não havia ali nenhuma satisfação, nenhuma bonomia, e todas as jovens mães que, como Ygraine, tinham vindo celebrar uma festa de alegria, muitas vezes a primeira saída depois do parto, sentiam-se geladas até ao coração por toda esta solenidade.

Um silêncio prolongado sucedeu ao Te Deum, até que, por fim, Illtud abriu os olhos e desceu os degraus para avançar até ao casal real. Segundo a tradição, as mulheres que acabavam de dar à luz não tinham o direito de entrar num lugar santo, obrigando assim toda a cerimônia a desenrolar-se no adro. Mal chegou diante deles, Illtud sorriu, e depois, sem uma palavra, tirou Artur dos braços do rei e confiou-o à mãe. Atrás de si, o “exército” do abade avançava para os outros pais e fazia o mesmo. Nenhum deles falava, o que não fazia mais do que reforçar o sentimento de mal estar, quase de medo, que emanava do seu grupo. E no entanto Illtud dava ordens, usando a linguosi di giti, a linguagem gestual usada nos conventos. Uter sorriu ao vê-lo meter o polegar na boca, o que significava bebês, e depois o abade passou um dedo de uma sobrancelha à outra-gesto que designava mulheres —, formou um círculo com o polegar, o indicador e o médio, e acabou por traçar uma cruz na palma da mão, signos que ninguém compreendeu e que gelaram os sorrisos.

Incomodado, Uter procurou um apoio em volta de si. Cruzou o olhar com Léo de Grand, sentado nas tribunas, mas o seu cunhado era tão pouco instruído quanto ele nas coisas da religião, e o seu ar carrancudo não lhe foi de grande conforto. Por trás dele, um grupo de elfos enrolados nos seus casacos de catassol de diversos reflexos baixaram a cabeça. Até o velho Gwydion estava calado, com os olhos fixos, sem que o seu rosto enrugado deixasse transparecer a mais pequena expressão. Ao fundo, o povo da cidade tinha-se amontoado à distância, semelhante a uma fila cinzenta e densa, numa calma absoluta.

Havia uma força nesta calma. Uma força que Uter jamais tinha suspeitado, bem diferente da fúria das armas, do poder divino do Pendragon, daquele ímpeto guerreiro que ele próprio tinha encarnado e que tinha varrido todo o país. Este punhado de homens mudos, tiritando nos seus hábitos de mendigos, tinha feito calar a multidão.

Num passo lento, segurando por vezes as jovens mães ainda fracas, os irmãos fizeram-nas subir alguns degraus que levavam ao adro, depois convidaram-nas a ajoelharem-se, perto de um grupo de noviços que escondiam uma espécie de gaiola grande de vime. Atados nas suas ligaduras sem poderem mexer um membro, vários bebês choravam agora de cortar a alma, e os seus gritos minúsculos, entre os quais Uter julgou reconhecer os do filho, vinham felizmente quebrar um pouco a compunção solene dos monges.

— Escutai a palavra de Deus! — gritou bruscamente um deles, numa voz de tal maneira forçada que se tornou aguda. — De joelhos para a palavra de Deus!

Uter, como a maioria dos espectadores, teve um momento de hesitação, visto que nenhum estrado tinha sido previsto para os pais e que o local não passava de um campo de lama. Ele ajoelhou-se, no entanto, molhando os borzeguins e o casaco como um vilão, e todos como ele se humilharam diante de Deus. Exceptuando os elfos, é claro, e os anões.

O prior aproximou-se de uma bíblia segura por um noviço, ajoelhou-se para beijar o santo livro, e depois recitou o texto, em língua vulgar:

— “Quando uma mulher se torna fecunda e dá à luz um rapaz, ela ficará impura durante sete dias, ela ficará impura como nos dias da sua sujeira, durante a sua indisposição; depois ficará ainda mais trinta e três dias a purificar o seu sangue; ela não tocará em nenhuma coisa santa nem entrará num santuário até que estejam completos os dias da sua purificação. Se é uma filha que ela deu à luz, estará impura durante duas semanas, como durante a sua sujeira, depois ela ficará ainda mais sessenta e seis dias para purificar o sangue.” [11]

Ele calou-se, e fechou o livro num silêncio pesado, somente perturbado por alguns ataques de tosse abafados ou pelo choro das crianças.

— Está escrito na lei do Senhor que todo o primogênito será consagrado ao Senhor! — exclamou de repente o abade Illtud, tão bruscamente e numa voz tão forte que Uter se assustou. — “Quando estiverem cumpridos os dias da sua purificação”, diz o livro, uma rola ou uma pomba será oferecida em nome de cada mãe, como sacrifício pelo seu pecado!

A sua voz suavizou-se, e os que estavam suficientemente perto do átrio tiveram mesmo a impressão de que ele sorria às jovens mulheres trémulas e cheias de medo, ajoelhadas diante dele.

— Dar à luz não é certamente um pecado, mas o sangue derramado é sujeira, e é esse o sentido desta cerimônia — disse ele. — “Essa é a lei para aquela que dá à luz um rapaz ou uma garota... O padre fará por ela a expiação, e ela será pura.” A própria Maria, mãe de Deus, seguiu a lei do Senhor, como escreveu Lucas, apresentando Jesus Nosso Senhor ao templo. E eis que, tal como ela, vós oferecereis ao Altíssimo as pombas da saudação!

A estas palavras, os noviços abriram a gaiola, libertando imediatamente um bando de rolas, com um sincronismo tal que a multidão deu, como se fosse um só homem, um grito de admiração. Levantando suavemente Ygraine, Illtud pegou em Artur e elevou-o acima da sua cabeça, para que cada um o visse, o que não fez mais que redobrar o seu choro. Depois Uter teve a sensação que o abade o olhava pessoalmente, a ele e a cada uma das pessoas da multidão, quando ele citou os Evangelhos:

— “Eis que este é posto para queda e para levantamento de muitos em Israel, e para ser alvo de contradição — e uma espada trespassará a tua própria alma! — para que se manifestem os pensamentos de muitos corações.” [12]

Uter franziu a testa, interrogando-se sobre o sentido destas palavras, mas o abade entregou a criança a Ygraine e arrastou-a, seguido pelas outras mães agora purificadas, para o interior da igreja.

Ele não tinha outra escolha senão segui-los.

 

                    A TÁVOLA REDONDA

Ao final do dia, tinha sido necessário acender archotes, apesar das janelas tapadas com tela encerada que guarneciam toda a sala. O espectáculo era majestoso. À luz movediça das chamas, os ouros tecidos nos grandes estandartes que cobriam cada pedaço de parede bamboleavam como véus e, a mesma incandescência animava as armaduras de aço dos bravos. Imóveis e silenciosos, todos os doze mantinham-se por detrás de cada cadeira, com as mãos cruzadas sobre o punho das suas espadas, tão rígidos quanto estátuas, como se não fossem mais do que uma parte da decoração. Entre as traves do teto, esculpidas com motivos vegetais e pássaros maravilhosos à maneira élfica, pendiam as bandeiras das casas anãs e as insígnias dos grandes barões do rei. Mas era a mesa que atraía os olhares. Uma mesa de bronze, gravada com entrelaçados e brilhando sombriamente à luz dos archotes, de dimensões tão grandes que a sala parecia ter sido construída em volta dela (o que, com efeito, não estava longe da verdade). No seu centro estava encastrada a Fal Lia, a Pedra sagrada, o talismã oferecido aos homens pelos deuses, e que gemia à aproximação de um verdadeiro rei. Uter contemplava avidamente aquela grande pedra em bruto que tinha feito dele senhor do reino de Logres, tão insignificante de aspecto, cinzenta e baça, calada a partir do momento em que ele se tinha sentado. Poderia ela ser comparada ao talismã dos anões, pousado diante dele? Certamente que não. Quando não estava a vibrar, a Fal Lia não passava de uma rocha mal lapidada, enquanto que Excalibur, a espada forjada por Nuada Airgetlam, o deus Nudd-do-braço-de-prata, era uma verdadeira obra de arte, enriquecida geração após geração pelos mais hábeis joalheiros sob a Montanha. Cada polegada da sua lâmina de ouro pesada e cortante estava finamente cinzelada, o seu botão de punho e o seu punho brilhavam de pedras preciosas e os próprios copos eram trabalhados com fio de ouro. E era este tesouro que ele era suposto devolver-lhes, depois do que Freihr lhe tinha dito nessa manhã?

Sentado a seu lado, Léo de Grand de Carmelide trocava olhares indecisos com o camareiro, não ousando interromper a meditação do seu cunhado. Uter sentia-o bater os pés por debaixo da cadeira, ouvia o seu pigarrear constante, e acabou contra sua vontade por se afastar dos seus lúgubres pensamentos.

— Muito bem — disse ele endireitando-se. — Que entrem...

O camareiro, para quem esta espera prolongada tinha sido um suplício, não esperou pelo sinal de assentimento do duque de Carmelide e bateu nas lajes do chão com um golpe seco do seu bastão de ferro.

A porta abriu-se imediatamente sobre a longa e frágil silhueta de um elfo vestido com uma cota de malha de prata brilhante e uma túnica de catassol com reflexos diversos.

— Dorian, príncipe dos altos-elfos, irmão de Lliane, rainha sob a floresta de Éliande! — clamou um arauto no corredor, com uma voz tão forte que se devia ter ouvido até às cozinhas.

Uter avançou em direção ao jovem elfo para o abraçar, mas no momento em que reparou na sua cara, tão parecida com a de Lliane, não conseguiu deixar de fazer uma paragem. Tal como ela, o príncipe era alto e de uma magreza extrema o que acentuava ainda mais a sua palidez azulada e os seus longos cabelos negros. Os olhos, no entanto, eram diferentes dos da rainha. Olhos sombrios, marcados, apesar da sua juventude, endurecidos por tantas provas. Leria neles uma reprovação? Dorian não ignorava que Uter tinha amado a sua irmã, que haviam tido uma criança a qual tinha provocado a desgraça da rainha e que, por sua culpa, o rei Llandon não passava daquele monarca estropiado, troçado pelos trovadores, pobre cego recolhido pelas feiticeiras da floresta... “Todos nós sofremos”, pensou. O próprio Llandon tinha morto Cystennin, seu pai, e esse crime tinha ficado por punir. Até ao momento...

Uter recompôs-se e apertou-o nos braços, e depois desviou o olhar para saudar, inclinando com deferência a cabeça, o grande druida Gwydion, um velho elfo que, segundo Léo de Grand, parecia mais uma árvore morta que um ser vivo.

— Que o céu te guarde — disse Dorian.

Era a fórmula consagrada, mas Uter ouviu-a com surpresa, quase com gratidão. Não soube o que responder, e bateu afetuosamente no ombro do jovem elfo enquanto o camareiro já batia de novo no chão.

— Bran, filho de Lubdan, sobrinho de Troin, senhor sob a Montanha Negra! Bran, herdeiro da linhagem de Dwalin, príncipe das colinas e das montanhas enterradas! Longa vida, longa barba, vasto tesouro!

Uter reteve um sorriso trocista, já que o ênfase das fórmulas protocolares das casas anãs não era apropriado ao seu aspecto.

Bran não tinha nascido para ser rei. Era o filho mais novo do senhor Lubdan, ele próprio irmão mais novo do rei Troin, e se, indubitavelmente, o sangue real da linhagem de Dwalin corria nas veias do anão, o acesso ao trono sob a Montanha Negra não deveria mesmo, em princípio, fazer parte dos seus sonhos. Era uma situação que lhe convinha perfeitamente, aliás, tão ideal era a vida de um príncipe em todos os aspectos: ao longo da sua juventude despreocupada, Bran tinha passada a maior parte do seu tempo a comer, beber, caçar nas colinas e a virar do avesso criadas e cortesãs anãs no palácio de Ghâzar-Run, enquanto que Rogor, o seu irmão mais velho, se iniciava com o velho Troin e com o seu pai nos mistérios do poder. Quando Lubdan morreu, vítima de um acidente de caça, Bran sentiu muito, mas não modificou a sua maneira de viver. Era Rogor, desde logo, quem devia herdar o título, e que lhe fizesse bom proveito.

E depois tinha vindo aquele dia horrível em que o elfo Gael tinha morto o velho Troin Barba-Longa e roubado a Espada sagrada que a sua linhagem guardava, em nome de toda a nação anã. Com um simples golpe de adaga, o elfo tinha mergulhado todo o reino sob a Montanha no caos e na desonra. Enquanto Rogor partia à procura do assassino (e bem sabemos como morreu Gael), Bran teve que aceitar a regência, o que não era apesar de tudo mais do que um exercício provisório, e lhe trazia algumas vantagens. Mas Rogor estava hoje desaparecido, e sem dúvida tinha morrido durante a batalha da Montanha Vermelha. Só restava ele, Bran, tão pouco inclinado a se encarregar de um tal fardo, para restaurar a honra da casa de Dwalin e devolver a vida ao povo anão...

Ulfin, imóvel por trás da cadeira do rei, ao abrigo do seu elmo com a viseira baixa, sorriu também ao ver a fatiota do jovem príncipe. Alguns meses antes, ele tinha servido de besta de carga, a Uter e a si, e eis que agora se tinha sobrecarregado de peles, jóias de ouro, até mesmo nos cabelos e na barba ruiva! Bran trazia-a em forma de ferradura, espalhada sobre a sua barriga em duas grandes tranças, trabalhadas com fios dourados do mais belo efeito, um refinamento que os homens, com as suas barbichas que mal passavam do queixo (e não falemos dos elfos, calvos como pedras!), eram pouco dados a compreender. No entanto, apesar do ouro, as peles e os tecidos preciosos, Bran tinha conservado o mesmo ar bonacheirão, e as mesmas maneiras de taberneiro. E foi com os braços abertos, não ligando ao protocolo, que ele avançou para o rei.

— Uter, meu amigo! — disse, abraçando-o pela cintura. — É um grande dia! Um grande dia!

Pela primeira vez, depois de ter falado com Freihr, o rei sorriu, vencido pela jovialidade do seu amigo, mas, como se censurasse por isso, libertou-se um pouco bruscamente do abraço, e fez-lhe sinal para que se sentasse sem mesmo conceder um olhar aos dois anões que formavam o seu séquito. Teria sido difícil de perceber se eles se tinham ofendido, tão indiferentes pareciam a tudo — excetuando a espada de ouro brilhando sobre a mesa de bronze —, aferrolhando como era seu dever a expressão de enfado e arrogância habitual aos dignatários anões. A idade deles, no entanto, era realmente pouco comum. O mais velho dos dois devia ter acabado de passar o século, o que era pouco comparado com os trezentos e alguns anos do velho Baldwin, o antigo rei sob a Montanha Vermelha, e bem jovem na realidade para trazer as insígnias de Mestre das Pedras, como os anões chamavam aos seus feiticeiros. Sudri não passava na realidade de um novato, mas era o único iniciado na magia mineral que tinha conseguido escapar ao desmoronamento da Montanha Vermelha. O mesmo se passava com o terceiro anão, Onar, um jovem guerreiro de- barba negra como a noite e olhos brilhantes, que tinha grande dificuldade em mostrar um ar assustador.

— Abade Illtud de Brennock! — anunciou o camareiro.

Não se poderia imaginar contraste mais perfeito: o abade tinha uma barba, também ele, de um castanho claro a atirar para o ruivo, mas era na realidade a única semelhança que se poderia encontrar entre ele e o anão que o tinha precedido na sala do Conselho. Vestido com o hábito simples cinzento dos monges menores da sua ordem, ele era seco e direito como uma faia, trazendo a tonsura e o crucifixo, sem nenhuma das marcas de distinção de que tanto gostavam os padres e os bispos do clérigo temporaL Illtud sorria pouco, falava pouco, não bebia e, ao contrário de Bran, tinha sido um homem da guerra e tingido as suas mãos de sangue antes de se retirar do mundo.

Sem parecer notar o espanto dos elfos sobre a sua presença no local, Illtud saudou o rei e cada um dos membros do Conselho com uma humildade impassível, e depois tomou o seu lugar sem uma palavra. Com a cabeça baixa e as mãos postas, parecia mergulhado nos seus pensamentos.

— Muito bem — disse Uter. — Que se feche a porta e que ninguém entre aqui sem ordem minha. O Conselho...

Interrompeu-se, descobrindo só nesse momento que Merlim estava entre eles, tranquilamente sentado ao lado de Léo de Grand, sem que ele o tivesse visto entrar em ocasião nenhuma. Quando os seus olhares se cruzaram, o homem-criança sorriu levantando as sobrancelhas com um ar interrogador.

— ...O Conselho está aberto — murmurou Uter sentando-se.

 

Ao ver a rainha entrar, Freihr quis levantar-se, mas percebeu a tempo que não trazia nada vestido por debaixo dos lençóis de linho e da cobertura de lã que cobriam o seu estrado. E, aliás, foi Ygraine quem se sentou, ou melhor deixou-se cair, numa cadeira colocada perto do biombo, com tal expressão de alívio que parecia não ser capaz de dar nem mais um passo. Enquanto Antor fechava a porta, ela retomou o fôlego, com os olhos fechados, tomada por uma vertigem. O seu corpo gelado, bem enfaixado, estava no entanto coberto de suor, e o simples esforço de descer a escadaria que conduzia à enfermaria do castelo fazia-lhe saltar o coração pela boca. O nascimento de Artur tinha-a dilacerado, e parecia-lhe que a ferida se tinha reaberto durante o dia, tornando as suas coxas pegajosas de sangue, com pontadas que lhe trespassavam o ventre. O seu rosto, sob o véu de tule branco que lhe sublinhava o oval, estava mais pálido que nunca, apesar do pó de cor. Quando por fim abriu os olhos, o ar alarmado do bárbaro fê-la sorrir.

— Não tenhais medo, senhor Freihr, sobreviverei ainda algumas horas...

Freihr franziu o sobrolho, e ela riu abertamente, pegando-lhe na mão.

— Como estou feliz de vos ver vivo...

Apesar do suor que lhe colava o véu às faces, apesar das olheiras e do cansaço do seu rosto, ela era tão bonita que nesse instante o bárbaro sentiu-se corar e não conseguiu senão balbuciar um agradecimento ainda mais vago por não conseguir exprimir-se na linguagem comum, tão habituado que estava ao obscuro dialeto das Fronteiras. Ele tinha-se endireitado no leito, revelando as ligaduras que lhe envolviam o ventre, bem como as inúmeras feridas e cicatrizes semeadas pelo seu tronco maciço, entre os estranhos desenhos das tatuagens azuis que o enfeitavam. Ygraine sentiu-se perturbada, mas recompôs-se imediatamente.

— Vistes Uter, não é verdade?

Freihr abanou a cabeça.

— Ele tinha um ar transtornado por causa do que lhe dissestes. Freihr, que vos aconteceu?

— Os monstros...

O bárbaro procurou as palavras.

— Os monstros passaram as Fronteiras... Freihr viu-os. Freihr combateu, mas eles levaram Galaad, o meu... o meu filho.

Assim, como qualquer mãe o teria feito em semelhante momento, Ygraine pensou em Artur, e sentiu-se perturbada pela simples angústia do gigante. As crianças, nesses tempos, morriam em grande número, todos os dias, ao menor golpe de frio ou ao menor acidente, mas isso não significava que as mães não sentissem sofrimento. Ela imaginou Artur, tão pequeno, nas mãos das abomináveis criaturas das Terras Negras, e esse pensamento insuportável fez-lhe virem lágrimas aos olhos.

— Entendo — disse ela.

Freihr abanou a cabeça, depois esboçou um sorriso que depressa desapareceu. Os olhos da rainha brilhavam, ela parecia estar a ponto de chorar. Esta compaixão pouco habitual para um ser tão rude rompeu dentro dele um dique que ele imaginava mais sólido. Com um nó na garganta, virou rapidamente a cabeça para a estreita janela da enfermaria, mas o triste retângulo de céu cinzento não o ajudou em nada. Do outro lado da divisão, duas freiras atarefavam-se entre os leitos quase vazios, esforçando-se para os deixarem sozinhos. Ele respirou fundo para se desfazer do peso que lhe oprimia o coração e tentou sorrir.

— Tentei salvá-lo — murmurou ele na sua linguagem áspera. — Ele chamava por mim... Estendia as mãos na minha direção... Nem sequer consegui me aproximar dele...

Cedendo por fim, agarrou o rosto com as duas mãos; a sua comprida gadelha abateu-se como uma cortina e escondeu-lhe o rosto, mas a rainha viu os seus ombros estremecerem sob os soluços. Pela primeira vez na sua vida, talvez, Freihr chorava, com a cara enfiada nas mãos, entre soluços abafados de animal ferido que partiram o coração de Antor e da rainha.

Ygraine pegou-lhe numa das mãos, tão fortes e escuras comparadas com as suas, e levou-a aos lábios. As ligaduras que lhe ligavam fortemente o peito e o ventre impediam-na de respirar, o véu apertava-lhe a garganta. Desfez-se delas febrilmente, arrancando os alfinetes de ouro, rasgando os preciosos tecidos e desapertando a sua cota até que por fim se sentiu liberta de todos aqueles entraves. Depois limpou a cara de Freihr, coberta de lágrimas, com a ajuda do seu véu.

— Uter encontrá-lo-á — disse ela. — Se ele estiver vivo, Uter encontrá-lo-á.

O bárbaro abanou a cabeça sem dizer palavra, e demorou um bom bocado até se recompor. Depois deitou um olhar de esguelha a Antor, aborrecido por se ter deixado fraquejar em frente de um cavaleiro do rei, mas o homem lígio da rainha tinha-se afastado, com tanta discrição quanto as freiras.

— Os monstros — continuou Ygraine com uma voz doce —, quantos são?

Freihr abanou a cabeça com um ar desolado.

— Demasiado numerosos para serem contados — disse. — Mais que os anões sob a Montanha... Mais que as árvores da floresta...

A jovem rainha recostou-se lentamente na cadeira, tremendo de pavor.

— Então é isso...

Sim, era isso que tinha roído Uter durante todo o dia... Um horror sem nome espalhava-se pela planície dos homens, e eles teriam novamente que pegar em armas, enquanto que o reino só agora se começava a curar das feridas da última guerra. Ela reviu o seu marido a aguentar, durante todo o dia, o desfile de vassalos, os intermináveis discursos do banquete e os sermões de Illtud, com a cara séria mas mantendo a postura, embora o perigo pudesse estar às suas portas.

— Freihr viu-os — disse ele. — Freihr viu Aquele-que-não-pode-ser-nomeado... — ele deitou-lhe um olhar furtivo e levantou uma mão hesitante. — A cara dele... Ele era...

Ygraine esperou, mas o bárbaro parecia perdido no horror das suas recordações. Sem dúvida teria sido cristão ficar ao lado dele, rezar pela salvação da sua alma e pelo repouso do seu corpo atormentado, mas, acima de tudo, ela queria ir ter com Uter, estar a seu lado, falar-lhe, apoiá-lo, talvez mesmo através da sua simples presença. Ela levantou-se, sem que Freihr parecesse notar que ela o deixava.

 

Bran, menos ainda que qualquer outro anão, nada tinha de diplomata. O seu sorriso tinha desaparecido às primeiras palavras de Uter, e no momento a indignação submergia-o completamente. Enfiando as mãos nervosamente debaixo da barba, desfez os cordões da sua capa de peles que o estrangulava e, vendo que todos os olhares estavam postos em si, procurou as palavras, com um esforço considerável para proferir outra coisa que não fossem os palavrões que lhe vinham à cabeça.

— O Conselho...

O suor corria-lhe na testa. Sudri debruçou-se sobre ele e murmurou-lhe algo ao ouvido, mas ele mandou-o passear no dialeto gutural dos anões sob a Montanha, que poucos dos que estavam reunidos em volta da mesa conheciam.

— ...O Conselho reuniu-se precisamente para uma coisa continuou ele na linguagem comum que usavam cada uma das tribos da Deusa, até mesmo os monstros das Terras Negras. Tu deves devolver-nos a espada, só isso.

— Bran, tu conheces Freihr, ele é incapaz de mentir — disse Uter, esforçando-se também ele por se manter calmo. — E aliás, o estado em que o encontraram é a melhor das provas... Se ele diz que os monstros saíram das Fronteiras, é porque é verdade. Não é portanto o momento para nos dividirmos. Pelo contrário, é preciso unirmo-nos, recriar o exército do Pendragon para lhes barrar o caminho e aniquilá-los para sempre. E para isso precisamos de Excalibur.

— É isso! — gritou Bran e o seu punho bateu na mesa de bronze ressoando longamente. — Tu decides e nós temos que te obedecer, não é? Freihr é mais estúpido que um boi! Que é que sabemos? Viu três lobos e perdeu a cabeça!

Uter ia responder, mas, nesse momento, o arauto bateu à porta com o seu bastão de ferro e a rainha Ygraine entrou, deixando o cavaleiro Antor lá fora. Parou na soleira, intimidada por aquela Assembléia, surpreendida pelo tom de Bran e o rosto consternado do seu marido. No entanto, a sua irrupção inesperada restaurou a calma, pelo menos por momentos.

Embora fosse rainha, não era apropriado que assistisse ao Conselho (e nisso os costumes dos homens eram bem diferentes daqueles dos elfos). Ygraine não o ignorava. Tinham-se encarregado de lho fazer compreender desde a sua chegada ao palácio, quando ela estava noiva, apenas com doze anos, do rei Pellehun. Baixando a cabeça, corada, ela sentou-se afastada, por trás de Uter, sem ousar falar-lhe — somente um olhar furtivo para lhe transmitir um pouco do amor que sentia nesse momento. Mal se sentou, cruzou por cima do ombro o olhar do abade Illtud, sentado em frente ao rei, e viu-o inclinar-se imperceptivelmente diante dela, com um sorriso vagamente reprovador. Irritada, desviou o olhar e apertou instintivamente o véu para esconder o estado do seu vestido. E que importava o seu traje! Que sabia ele da ameaça que pesava sobre o reino de Logres? Já tinham abordado a questão, ou continuavam a falar daquela maldita espada? Às primeiras palavras de Merlim, ela compreendeu que os dois assuntos estavam infelizmente ligados.

— Uter diz a verdade, Bran — murmurou ele depois de aclarar a voz para lhe chamar a atenção. — A rainha... (Ele deitou um olhar a Ygraine e achou melhor especificar.) ... A rainha Lliane viu-os, também ela... Não me perguntes como, mas ela viu-os, no soprar do vento. Creio que ela se serviu da tempestade para proteger Freihr. Ele disse-me que as próprias árvores...

— A verdade — cortou Bran — é que todos vós estais prontos a inventar seja o que for para não devolverdes o talismã!

O anão voltou-se de novo para Uter, com um ar tão selvagem que quase parecia o seu irmão Rogor, e os elfos tremeram sem querer diante desta imagem pavorosa.

— Tu tornaste-te como Gorlois, e como Pellehun! — disse ameaçando-o com o indicador. — Ávido de poder, mesmo que nos custe a vida a todos! A culpa é dele!

Ele apontou o dedo acusador ao abade Illtud.

— São os teus malditos monges que te deram a volta à cabeça, como o velho Pellehun, como Gorlois!

Merlim reprimiu um sorriso e deitou um olhar de esguelha ao abade Illtud que, por seu lado, não ria de modo algum. No entanto, o abade não respondeu, e o seu silêncio passivo desesperou Ygraine.

— O rei Pellehun não acreditava em Deus! — lançou ela. — E Gorlois ainda menos!

Todos se voltaram para a olharem, mas ela fez-lhes frente, sustentando o olhar furioso de Bran, a ironia de Merlim e o espanto do seu esposo.

— O nosso Deus é um Deus de amor — disse ela. — Nós só queremos a paz, senhor Bran...

— Sim — resmungou o anão. — A paz para os homens. O amor para os homens... Uma só terra, um só rei, um só deus, é isso?

— Senhor...

A voz pausada de Gwydion, o grande druida dos elfos da floresta, dispensou a rainha de lhe responder.

— O senhor Bran talvez tenha razão sobre um ponto — disse ele.

— Ah!

— O bárbaro estava ferido, enfraquecido... Poderemos ter certeza daquilo que ele viu?

Uter suspirou e passou a mão pela cara. Os gritos do anão e depois o tom de desprezo com que ele se tinha dirigido à rainha tinham-lhe posto os nervos em franja, e ele tinha estado quase a saltar-lhe ao pescoço para lhe fazer engolir aquela maldita barba.

— Sabê-lo-emos bem rapidamente — disse ele, com um sorriso de reconhecimento para o velho elfo. — Foi a duquesa Helled de Sorgalles quem recolheu Freihr e o fez escoltar até aqui. Sei que ela enviou uma patrulha de reconhecimento às Fronteiras, há já bastantes dias, e ela deveria estar hoje entre nós para nos dizer o que se passa... Eu próprio enviei cavaleiros ao seu encontro, mas não tenho notícias.

— São mais de duas semanas de caminho até às Fronteiras — murmurou Léo de Grand, a seu lado, como se devesse justificá-lo.

— Mesmo esgotando vários cavalos, não devemos esperar pelo regresso deles antes de três, ou talvez quatro dias.

— Não se utilizarmos cavalos livres — disse Dorian.

O jovem príncipe sorria, contente de se encontrar finalmente sobre um terreno que conhecia.

— Eu posso lá ir — propôs ele. — Com Lame e a sua horda, iremos mais depressa que qualquer dos vossos mensageiros.

Lame... Uter reviu o garanhão branco do rei Llandon, uma montada de tamanho impressionante, cuja crina imaculada quase tocava no chão. E reviu Lliane montando-o, sem arreios nem sela, agarrando o garanhão com as suas pernas compridas calçadas com botas de gamo. Depois ele sentiu a presença de Ygraine por trás dele e desviou esse pensamento culpável.

— É uma idéia — disse ele.

— Ora, vejamos bem! — gritou Bran. — Os elfos, agora! E querem que confiemos em elfos! Cos diabos, estão a fazer troça de nós!

— Cos diabos, cala-te mas é tu! — berrou Uter. — Se queres saber tudo, Freihr viu outra coisa além dos monstros!

Ele calou-se, mas os olhares insistentes da Assembléia impediam-no de esconder por mais tempo aquilo que o bárbaro tinha visto nos caminhos longínquos. Procurou com os olhos o apoio de Merlim, mas o homem-criança baixou a cabeça, com um ar repentinamente tão triste que ele caiu em si, medindo demasiado tarde o alcance das suas palavras. Ygraine, pálida e minúscula no seu vestido amarrotado, olhou-o perdidamente, e, durante um breve instante Uter voltou-se para ela e retirou do olhar da sua esposa um pouco de força para continuar.

— Bran, suplico-te que acredites em mim... Gostaria muito que Freihr estivesse enganado, que tivesse visto mal. E juro-te que se fosse esse o caso eu entregaria Excalibur ao povo dos anões...

O príncipe sob a Montanha não respondeu, tomado como todos os outros pela angústia daquilo que Uter iria revelar.

— O teu irmão... O teu irmão Rogor e os guerreiros anões sob a Montanha Negra estavam ao lado d’Aquele-que-não-pode-ser-nomeado.

Fez-se silêncio absoluto na sala. Bran, com os olhos muito abertos, olhou Uter com horror, enquanto que os seus companheiros, ambos procedentes do clã sob a Montanha Vermelha, baixavam os olhos e retinham a respiração. Os lábios de Bran balbuciavam palavras sem nexo e a sua barba tremia de indignação; de repente deu-se a explosão:

— Mentira! — gritou ele. — Como podes dizer semelhante coisa!

— É a verdade — murmurou Merlim, e todos se voltaram para ele. — Eu estava lá quando o senhor Freihr acordou, e foi a primeira coisa que ele me disse...

— Mentira!

Antes mesmo de Uter ter voltado a olhar para o anão, Bran tinha saltado da sua cadeira e precipitava-se na sua direção. Ele levantou a mão para aparar o golpe, mas o príncipe bateu nele como um carneiro e atirou-o ao chão. Uter debateu-se, enredado no seu fato preso debaixo da cadeira caída. O brilho de uma lâmina, de repente, na mão do anão, e a sua cara retorcida, pavorosa, prestes a atacar. Uter bateu ao acaso, cortando profundamente a mão sob o fio da adaga, mas conseguiu agarrar Bran pelo pescoço. Ygraine gritou e Uter viu fugazmente o seu vestido, mesmo ao lado dele, e a sua brancura salpicada do seu próprio sangue. No momento seguinte, um braço com uma luva de ferro abateu-se entre eles como um raio. Uma quantidade de murros abateram-se ainda sobre ele, tão fortemente se debatia o anão entre as mãos dos bravos que o tinham agarrado. Uter conseguiu livrar-se, no entanto, e saltou sobre as pernas, branco de raiva. A sala estava cheia de gritos. Onar, o jovem guerreiro anão, tinha conseguido virar um dos bravos e moía-o de pancada. Sudri tinha sido dominado antes de conseguir lançar um sortilégio, mas debatia-se como um diabo. Ygraine tinha sido afastada por um cavaleiro que a protegia com o seu próprio corpo, e ela estendia os braços para o marido, sem que ele percebesse o que é que ela gritava. Os elfos olhavam-no com horror, tão sujo ele estava do seu próprio sangue. Ulfin agarrava Bran e os outros bravos tinham-se espalhado em volta dele como uma cortina de aço, contendo a custo a fúria dos anões. Como Uter se tinha levantado demasiado depressa, estrelas diante dos olhos atordoaram-no e ele cambaleou, sendo agarrado a tempo por Léo de Grand. A sua mão profundamente cortada pingava sangue, o ar faltava-lhe e ele não conseguia recuperar totalmente a consciência.

A cara de Merlim apareceu subitamente à sua frente, enlouquecida e gritando palavras que ele não entendia mas que o ensurdecia. Com o seu punho válido, bateu com todas as suas forças, tão violentamente que o homem-criança foi projetado a várias braçadas, como uma boneca de trapos, até aos pés da rainha.

— Em nome de Deus, parem, todos!

Uma vez mais, a voz potente do abade impôs-se no meio do caos, deixando-os a todos parados, quase que envergonhados. O próprio Bran deixou de se debater, e quando Ulfin lhe deu um bocadinho de espaço afastou-se raivosamente dele.

— Fora daqui — bramiu Uter. — Fora daqui para sempre, tu e os teus! Não tendes mais lugar no Conselho!

Bran acusou o golpe, tremendo ainda de cólera. Os bravos formavam entre Uter e eles uma barreira intransponível, tão alta e maciça que o anão não conseguia sequer ver o rei. Por um breve instante, ele cruzou o olhar com o de Merlim, sempre no chão, com os olhos esbugalhados e a cara ferida.

— É também a minha opinião — murmurou ele. — E aliás, já não existe Conselho... Não vejo aqui mais do que homens e covardes.

Ele cuspiu no chão, e depois o grupo de anões deu meia volta e, como um bloco, saíram da sala do Conselho.

Logo que eles saíram da sala, Uter cambaleou mas segurou-se à mesa antes que o condestável ou a rainha pudessem chegar perto dele.

— Guardo a espada Excalibur — disse numa voz cortante. — E, se alguém tentar me impedir, a fúria do Pendragon abater-se-á sobre ele.

Os elfos, mais pálidos do que nunca, emitiram um zumbido de protestos mudos, mas calaram-se mal o rei levantou para eles um olhar sombrio.

— Senhor, isso não pode ser — disse por fim Gwydion na sua voz trêmula.

— A sério?

Uter abriu na sua direção a mão ensanguentada, e todos viram a poça escura que ela tinha deixado sobre a mesa de bronze.

— Ninguém tem o direito de entrar armado no Conselho, a não ser os bravos. É a lei, tu sabes e ele sabia! No entanto, vê o que ele fez! Diz-me, depois disto, que podemos confiar nos anões!

O velho druida pareceu enrolar-se sob os gritos do rei, desviando os olhos dessa mão cortada que ele brandia em sua direção.

— Não poderá haver paz sobre esta terra enquanto o talismã dos anões não lhes for devolvido — murmurou ele na mesma. — Ninguém pode ir contra a vontade dos deuses.

— Que deuses? — inquiriu Illtud. — O único Deus que manda aqui é Nosso Senhor, e a sua vontade é a do rei!

Gwydion olhou o abade de alto a baixo, e depois abanou a cabeça, e sem dizer palavra, o velho druida abandonou a sala, seguido pelo príncipe Dorian.

— Muito bem! — gritou Uter, depois de eles terem passado a porta. — Parti, vós também! Dizei à vossa rainha que enfrentaremos sozinhos os monstros, para grande glória de Deus! Esta terra é humana, ouviram? Para sempre, esta terra é humana!

As suas palavras ressoaram longamente no corredor onde iam morrendo os passos dos elfos. Uter voltou-se, procurando Merlim com o olhar, mas o homem-criança tinha desaparecido, furtivamente como era seu hábito. Uter não sentiu remorsos.

Assim como Bran tinha dito, não havia agora mais do que homens na sala do Conselho; homens e uma rainha, imóveis e mudos em torno da mesa de bronze, agitados por pensamentos diversos, perdidos ou exaltados, apavorados em todo o caso com o que se tinha acabado de passar. Foi então que Illtud, que tinha sido o único a ficar sentado no meio de toda esta febre, se levantou, foi calmamente fechar a porta na cara do arauto e voltou para o seu lugar.

— De joelhos, meus irmãos, pois é a palavra de Deus que acaba de ser expressa pela boca do rei.

Ele foi o primeiro a ajoelhar-se, inclinou a sua cabeça tonsurada diante de Uter e juntou as mãos, logo em seguida imitado pela rainha. Então os bravos, um a um, puseram o joelho no chão, no meio do tinir metálico das suas armaduras, e cruzaram as mãos enluvadas com as malhas sobre o punho das suas espadas.

Uter ficou parado durante um bocado, varrendo com o olhar esta Assembléia dobrada diante dele. Daqueles gigantes de ferro ajoelhados emanava um apelo mudo, uma esperança, como se todos se quisessem convencer de que o que acabava de se passar não era fruto da cólera ou do orgulho, mas sim a expressão de uma vontade divina, como o havia dito o abade.

Não eram idiotas, no entanto, somente homens, com uma tal vontade de fé que estavam prontos a acreditar em tudo, nele, em Illtud, em Deus e, porque não, neles próprios. Uter sentia-se bem mais perturbado por este fervor, do que pela fúria de Bran ou pela resignação desolada dos elfos. Assim, os homens não aspiravam a nada mais para além de serem homens... Combaterem sós. Vencerem sós. Não baixarem a cabeça senão diante de um só Deus, e não partilharem nada, nunca mais... Os sonhos do Pendragon, subitamente, pareciam-lhe tão diferentes daquilo que ele pensava no mais profundo do seu ser, daquilo que todos eles pensavam.

Uter fechou os olhos, saboreando este momento de comunhão que lhe apaziguava a cólera e lhe lavava a angústia como uma onda lava a margem. Procurou instintivamente a bainha da sua espada e, vendo que estava desarmado, pegou em Excalibur sobre a mesa e desembainhou a lâmina de ouro num longo tinir metálico que lhes provocou a todos arrepios na pele. Depois, como eles, ajoelhou-se e pousou as mãos sobre o punho da Espada Sagrada.

— Meus irmãos, não esqueçais este momento — murmurou Illtud. — Doze bravos, semelhantes aos apóstolos de Nosso Senhor, testemunhas para sempre da vontade de Deus. Prestemos juramento diante de Deus, do rei e da rainha de sermos sempre dignos... Que esta confraria reunida em volta desta mesa se torne instrumento de Deus, a bem ou a mal! [13] Levantai os vossos elmos, senhores, para que ninguém esqueça as vossas caras.

A seu turno, cada um deles obedeceu. O primeiro foi Adragai o Moreno, seguido pelo seu irmão Madoc o Negro, assim chamados por causa dos seus longos cabelos, depois Ulfin, depois Nut, Urien, que mais tarde veio a ser rei, Kanet de Caere, Do e todos os outros... E, diante de todos estes bravos sem elmos, diante do rei ajoelhado como eles e da rainha que, na brancura do vestido, parecia emanar uma luz própria, Illtud pronunciou o sermão da cavalaria.

— Sabei que ao princípio, como o testemunham as escrituras, ninguém era suficientemente ousado par a montar a cavalo, se não fosse um cavaleiro. As armas que ninguém trazia a não ser o cavaleiro não lhe eram dadas sem motivo.

“O escudo que ele põe diante dele para se tapar significa que, como o escudo se mete entre o cavaleiro e os golpes, também o cavaleiro se deve meter diante da Santa Igreja, face a todos os seus malfeitores, sejam eles ladrões ou infiéis.”

“A cota de malha que cobre o cavaleiro e o protege por todos os lados, indica que, da mesma maneira, a Santa Igreja deve ser coberta e envolta pela vigilância do cavaleiro.

“A lança, que é tão comprida que bate antes que se possa chegar ao cavaleiro, ensina-nos o seguinte: do mesmo modo que o medo da lança, cuja madeira é rija e o ferro cortante, faz fugir o ladrão desarmado, o cavaleiro deve ser suficientemente feroz para espalhar para longe o medo, afim de que nenhum ladrão ou malfeitor tenha a audácia de se aproximar da Santa Igreja.”

“A espada, que o cavaleiro traz à cintura, é cortante dos dois lados, mas não é sem razão. A espada é de todas as armas a mais honrosa e elevada, porque nos podemos servir dela de três maneiras. Podemos empurrar de estoque e matar com a ponta. Podemos cortar de lado com os dois trinchantes direito e esquerdo. Os dois trinchantes significam que o cavaleiro deve ser servidor de Nosso Senhor e do seu povo. Um dos trinchantes deve cortar os que são inimigos de Nosso Senhor; e o outro deve fazer justiça sobre os destruidores da sociedade humana. Mas a ponta é de uma outra natureza. A ponta significa obediência, pois todas as gentes devem obedecer ao cavaleiro. E é neste direito que a ponta significa obediência, pois ela aponta; e nada aponta tão duramente quanto obedecer à força do seu coração. Tal é o significado da espada.”

O cavalo, por fim, sobre o qual o cavaleiro está sentado e que o transporta em todas as suas necessidades significa o povo, pois o povo deve transportar o cavaleiro em todas as suas necessidades, e é sobre o povo que o cavaleiro deve estar assente. Pois aquele que está sentado sobre o cavalo esporeia-o e leva-o para onde quer; e da mesma forma o cavaleiro deve levar o povo à sua vontade, através de uma justa sujeição, porque o povo está e deve estar abaixo dele. Assim podeis saber que o cavaleiro deve ser o senhor do povo e o sargento de Deus.” [14]

E foi assim, diante da mesa encastoada com a pedra de Fal e a espada Excalibur brandida pelo rei, que os doze cavaleiros prestaram pela primeira vez o juramento da Távola Redonda.

 

                     A CHUVA E O FOGO

A chuva tinha ensopado a erva dos prados e a terra do carreiro aberto que servia de caminho. Desde que tinham deixado Loth, o exército patinhava numa lama escorregadia onde os cavalos se enterravam até às barbas, e assim todos os cavaleiros tiveram que pôr os pés no chão, pendurar as couraças e os elmos nas albardas das azémolas [15], não conservando mais que as malhas e cotas de armas sob o casaco de chuva. Depois, eles caminharam, pesadões e molhados até aos ossos, no meio dos seus homens. De manhã cedo, tinham penetrado nas terras de Sorgalles, sem verem vivalma. Era um país selvagem e mal desbravado, feito de colinas arborizadas e de pequenos vales, um país sem horizonte, ladeado a sul pela orla da grande floresta e bem diferente da imensa planície que se estendia nos arredores de Loth. Um país de emboscadas, onde não se podiam desdobrar em batalhões, nem abrir convenientemente caminho, o que tornava o duque de Carmelide nervoso.

Léo de Grand, no entanto, tinha nascido na guerra, e ao vê-lo cavalgar nobremente com a sua cota de malha cunhada com o brasão em prata com leão servil lampassado em ouro [16], da casa de Carmelide, maciço como uma torre, os cabelos ao vento e a barba espessa, os pelos castanhos e a cara bem delineada, ninguém teria podido imaginar o que ele sentia.

Ainda jovem escudeiro, tinha conhecido a guerra dos Dez Anos quando Uter ainda nem sequer tinha nascido. A guerra e depois a vitória, quando os povos livres dos homens, dos anões e dos elfos tinham repelido para além das Fronteiras Aquele-que-não-pode-ser-nomeado e as suas legiões medonhas. Mas a perspectiva de marchar novamente contra eles reavivava no mais profundo do seu ser visões de pesadelo. O veneno do medo tinha corrompido o seu sangue, como aquele de todos quantos tinham combatido os monstros. Havia certas coisas que os homens não podiam suportar. Coisas indizíveis, visões medonhas, odores nojentos e gritos atrozes que faziam perder o juízo ou endureciam o coração para sempre. Com o tempo, conseguiam-se dormir noites inteiras sem sonhar, mas não se conseguia esquecer. Léo de Grand tinha passado mais de vinte anos a fugir deste terror que, de momento, subia por ele como uma febre.

Pela morte de seu pai, Léo de Grand tinha herdado o título, de duque de Carmelide, o castelo de Carohaise e a responsabilidade de toda a castelania. Ninguém duvidava que, se por ventura alguém se arriscasse a perguntar-lho, ele teria jurado ter-se ocupado sozinho da educação da sua irmã mais nova Ygraine, pois era o que ele julgava. Na realidade, Ygraine tinha sido educada por um monge pardo, o irmão Blaise, e pelos criados do castelo, enquanto ele percorria as grandes planícies em intermináveis e inúteis cavalgadas, brandindo ao vento o seu estandarte cunhado com o leão negro de Carmelide. A sua própria esposa só o via raramente.

Léo de Grand tinha combatido os anões, os elfos cinzentos dos pântanos, as tropas de Gorlois sem nunca sentir esta apreensão taciturna que lhe apertava hoje o coração. Mas teria sido impensável confiar a alguém este terror surdo que o gelava, ou declinar o comando do exército. Uter tinha perdido demasiado sangue para poder ele próprio ir à cabeça das suas tropas, e esta honra cabia-lhe por direito, como condestável do reino.

Léo de Grand espreguiçou-se, bateu nos rins do seu cavalo e pô-lo a trote. Uter não tinha mesmo tido forças para os ver partir. Talvez a sua ferida tivesse infectado. Talvez a lâmina do anão estivesse envenenada, ia-se lá saber com aqueles sinistros comedores de calhaus... Fosse o que fosse, as febres não tinham baixado, e alguns tinham visto nisso o efeito de uma maldição. Quase sem conseguir ter-se em pé, o rei tinha somente tido forças para convocar o ban [17] e de colocar o duque à frente da hoste real antes de cair na inconsciência. As suas ordens não tinham sido tão claras quanto Léo de Grand teria desejado, mas o rei não estava em estado de explicar as suas dúvidas. Era preciso ir às terras de Sorgalles, ir falar com a duquesa Helled, e depois continuar até às Fronteiras Negras... Era uma missão de reconhecimento, mas à cabeça de um verdadeiro exército reunindo o essencial das forças do reino. Sem dúvida, Uter devia dar crédito à narrativa de Freihr...

Ao fim de várias horas nesta paisagem impossível, a tropa tinha-se espalhado perigosamente sobre a estreita e escorregadia elevação de terra que formava o carreiro. Carmelide bem que tinha tentado enviar grupos de arqueiros e de peões sobre os pontos mais altos como guardas de flanco, mas os homens tinham-se rapidamente esgotado a abrirem caminho nestas colinas tão escarpadas quanto montanhas, escorrendo chuva e muitas vezes cobertas de pinheiros, que ele tinha desistido.

Que importava, eles já não deviam estar longe. Provavelmente chegariam antes do meio dia ao primeiro baluarte avançado [18] do ducado de Sorgalles, e finalmente teriam notícias da duquesa Helled, bem como das tropas que ela tinha enviado para as Fronteiras.

Léo de Grand estremeceu. A sua capa de chuva, as suas botas e até as suas bragas estavam ensopadas, a água corria-lhe pelas costas a cada passo, os seus cabelos e a barba pingavam água. A umidade atravessava tudo, até mesmo as malhas da sua cota e a couraça de couro espesso. E, além disso, ele tinha fome, não comendo há três dias mais que presunto cru e pão escuro, sem conseguir meter nada quente na barriga. Como cada um dos seus homens, ele sentia-se arrasado de cansaço, doente, febril e de um humor terrível. Tinham caminhado durante três dias, o que não era nada de tão terrível, mas o moral da tropa tinha-se rapidamente degradado, e a chuva não ajudava em nada. Seria possível que todos eles tivessem medo?

Subitamente uma onda de gritos e exclamações alegres chegou até ele. Um cavaleiro, vestindo um saio de couro pintado com as armas de Erbin, azul com ameias de ouro e dragão vermelho [19], galopava na sua direção, fazendo grandes gestos. Carmelide sorriu ao reconhecê-lo. Era o jovem Geoffroy, um dos que tinha tomado o seu partido durante o torneio de Loth, há séculos de tudo isto.

— Então! — gritou o duque. — Que se passa?

— O baluarte avançado, senhor! O baluarte avançado está à vista!

— Graças a Deus, é a melhor notícia do dia!

O condestável esporeou o cavalo e, escoltado pelo cavaleiro, galopou ao longo da coluna de peões e, numa curva do caminho, viram o forte a menos de uma meia légua [20], dominando a estrada do alto de um outeiro desbravado. Não passava de um posto avançado, feito de troncos e argamassa, tendo como único abrigo de pedra uma grande torre quadrada que servia de torre de menagem, mas pelo menos dormiriam ao seco, ou pelo menos comeriam algo quente. No espaço de alguns minutos, a notícia espalhou-se até à retaguarda, dando um novo vigor aos homens desanimados. O passo acelerou-se, e o barulho das conversas aumentou de um extremo ao outro da coluna, sem que os sargentos de armas os conseguissem calar.

Léo de Grand, sempre acompanhado do jovem Geoffroy d’Erbin, tinha galopado até aos batedores. Tê-los-ia passado sem os ver, se um deles, um ladrãozeco hirsuto, com os cabelos tão tesos pela lama que parecia um ouriço, não tivesse surgido, quase debaixo deles, para os parar. Os outros estavam agachados no fosso, por baixo do caminho, com os olhos fixos no forte.

— E então! — lançou o duque.

O ouriço colocou o dedo sobre a boca e apontou para o baluarte avançado.

— Não há fumo — disse ele. — Não há estandartes. Não há movimento...

Imediatamente o entusiasmo de Léo de Grand desapareceu de um sopro e o seu coração acelerou-se. Os homens, por trás, aproximavam-se deles numa massa desordenada e despreocupada. Com um gesto, enviou-lhes o cavaleiro d’Erbin, depois desceu do cavalo e veio agachar-se entre os batedores. Eram todos homens dos bosques, couteiros tão silenciosos quanto os elfos e fedendo como ursos, vestidos de farrapos que mesmo um mendigo teria recusado, não trazendo senão escudos de madeira para se protegerem, mas carregados de armas diversas, arcos, cutelos, machados... sem dúvida teriam feito desmaiar de medo todas as donzelas do palácio. Aqui, no entanto, eles estavam no seu lugar, e conheciam o seu trabalho.

Sem deixar de olhar o forte, Léo de Grand ouviu distraidamente o jovem Geoffroy d’Erbin parar a coluna com algumas ordens enérgicas e reinstalar progressivamente o silêncio. Não havia efetivamente nenhum sinal de vida no baluarte avançado. Era acima de tudo um posto de vigia, e o movimento de tal exército sobre o caminho não poderia escapar-lhes. Então porque não se manifestavam? As fortificações pareciam intactas, não pareciam ter sido tomadas de assalto. Talvez o baluarte avançado tivesse sido abandonado... O burburinho de uma tropa de homens armados chegando perto dele arrancou-o dos seus pensamentos.

— Que se passa, senhor?

Léo de Grand de Carmelide deitou um olhar de lado, reconhecendo entre mil a voz rouca do velho Meylir de Tribuit. Também esse estava com ele desde o torneio, mas, ao contrário de Geoffroy, que com os seus quinze anos fazia figura de galarote, Meylir era um homem experiente, e ele sentia-se seguro de o ter a seu lado.

— Pega em dez cavaleiros — disse-lhe apontando o baluarte avançado com o queixo. — E arqueiros para vos cobrirem, nunca se sabe...

O barão piscou os olhos para tentar descobrir os segredos do forte, depois endireitou-se bruscamente e partiu a trote. Alguns instantes mais tarde o caminho troava sob os cascos da tropa que ele tinha juntado.

Não se via longe, naquela maldita paisagem de colinas e ravinas, mas Carmelide percebeu o movimento do resto da tropa, deixando a estrada para se pôr ao abrigo nas partes baixas. Já os arqueiros se espalhavam em linha e os cavaleiros se preparavam, elmo e peitilho de ferro, e depois montavam os seus cavalos. Não seria certamente o melhor campo de batalha, mas pelo menos estariam preparados, se por acaso... Um dos couteiros, puxou-lhe pela manga da sua cota de malha, e também ele saiu do descampado em volta do caminho para se pôr ao abrigo da vegetação.

A chuva tinha parado. Um tênue raio de sol dava mesmo um brilho às folhas e às silvas encharcadas. Mesmo em frente dele, quase debaixo do seu nariz, viu amoras grandes à farta e começou a apanhá-las. Como as malhas que lhe cobriam as pernas o magoavam na parte de trás do joelho, sentou-se mais confortavelmente, com um punhado de bagas na mão, e foi assim que viu o bando de Meylir subir a trote o carreiro que levava ao forte. Eles desapareceram, durante longos minutos. Cada um no exército fazia silêncio, mas não se ouvia nada, nem gritos nem tumultuo. E depois eles reapareceram e brandiram três vezes o estandarte vermelho vivo, segundo o sinal combinado.

O exército inteiro pôs-se em movimento. As nuvens tinham-se pouco a pouco dissipado, e um belo sol fazia brilhar as poças sobre o caminho. No entanto, o coração dos homens apertava-se um pouco mais a cada passo. Ao aproximarem-se do baluarte avançado, traços de combate apareciam, cada vez mais claros, cada vez mais numerosos. Flechas enterradas no chão, vigas escurecidas, a porta grande forçada, as suas vigas partidas como se fossem pauzinhos, sangue sobre os troncos da paliçada exterior. Mas nem um corpo, nem um sobrevivente, nem mesmo um corvo no céu para se alimentar dos restos humanos...

Carmelide partiu a galope e rapidamente entrou no baluarte. Nem um animal no pátio, nem cão, nem galinhas, nem animais domésticos, nada. O silêncio, mais medonho ainda. Os homens de Meylir, com as armas na mão, inspecionavam o menor recanto, em vão. Já não havia ninguém. Nem uma arma, nem um feixe de feno, nem um só alimento. O forte não era mais do que uma concha vazia, completamente esvaziada do seu sangue e da sua alma...

— Não há nada, senhor duque — disse Meylir de Tribuit juntando-se a ele. — Nunca vi nada assim...

Léo de Grand abanou a cabeça. Os seus olhos voltaram-se para norte, e o velho cavaleiro adivinhou-lhe os pensamentos.

— Sorgalles deve estar a quatro ou cinco léguas no máximo disse ele. — Duas ou três horas a cavalo... O dobro para o exército. Podemos chegar lá antes de anoitecer.

De novo, o duque abanou a cabeça. Era preciso saber.

— Vai. Pega nos batedores e toda a cavalaria. Eu fico com a tropa, iremos ter convosco antes do fim do dia.

Meylir abriu os olhos e murmurou um protesto para dentro, mas Léo de Grand interrompeu-o com um gesto antes que ele formulasse as suas objeções. Como todos os cavaleiros, ele não conseguia conceber que um exército se privasse da sua cavalaria, e sem dúvida devia pensar que o duque corria um risco enorme. Mas o ducado de Sorgalles era demasiado escarpado para os cavalos, e o único trunfo deles, aos olhos do condestável, não passava da velocidade.

— Vai — disse de novo. — E tem cuidado contigo.

 

Uter não tinha recuperado a consciência desde há três dias. O ferimento estava curado, no entanto, grave mas em caso algum mortal, e não justificava o estado do rei. Os físicos que se amontoavam à sua cabeceira não conseguiam confessar mais do que a sua impotência. Aliás, ele não parecia sofrer, com a respiração tranquila, imóvel no seu leito, vigiado pela rainha e pelo irmão Blaise, o seu confessor, a fim de que as suas orações afastassem o Maligno.

A noite tinha avançado e estava-se na segunda candeia depois das matinas [21] quando o rei começou a se agitar. Ygraine tinha adormecido, o próprio Blaise tinha passado pelas brasas, vencidos um e outro pelas longas horas de vigia. Uter começou a gemer, a voltar-se bruscamente, batendo os braços no ar como que para caçar um inimigo invisível, e, quando gritou, a rainha e o monge acordaram em sobressalto. Ele tinha arrancado quase todos os lençóis. O seu corpo inteiro estava coberto de suor e tremia. As suas pálpebras batiam e os seus lábios entreabertos pareciam esforçar-se por formular palavras. A rainha, já se tinha atirado sobre ele, tentando dominar os sobressaltos desordenados.

— Irmão Blaise, ajudai-me! — gritou ela.

— É preciso água — balbuciou o velho monge, ainda meio a dormir. — É preciso baixar-lhe a febre...

De repente, um espasmo violento arqueou Uter, tão brusco e forte que Ygraine foi atirada ao chão. Nesse mesmo instante ele gritou e o palácio inteiro ressoou os seus gritos loucos.

— Feothan beorn gebedda!

— Que diz ele?

— Eu... eu não sei.

Blaise tinha ficado pálido, e Ygraine soube que ele mentia.

— Quero saber o que ele disse.

— É a língua sagrada dos elfos... Creio que ele está a sonhar. Não... É mais do que isso. Creio que ele está de novo dentro dela... Creio que voltou a ser o Pendragon.

 

Sombras entre as sombras, correndo na escuridão da vegetação rasteira através de silvas e ramos como uma manada de veados, os elfos convergiam em direção à orla da Brocéliande. A maioria trazia arcos e aquelas longas adagas élficas de que tanto gosta o povo das árvores. Outros estavam armados de chuços, e alguns iam de mãos vazias, apressados pela sensação de urgência, o mesmo apelo mudo, inconsciente, que os tinha acordado em plena noite, cobertos de suor e com o coração a bater.

A floresta estava a arder. As árvores torciam-se nas chamas, gemendo com todos os seus ramos e fazendo apelos dilacerantes no crepitar das suas cascas.

Lliane, entre eles, corria até perder o fôlego, e via já o atroz avermelhado que desfigurava a noite. Como eles, ela tinha ouvido o choro das árvores, como eles ela tinha-se lançado em socorro da floresta, deixando sem mesmo perceber a sua ilha, as suas companheiras, a sua filha. Como eles, ela sentia-se preparada para matar, para morrer para defender o país de Éliande. Mas o horror desta profanação tinha acordado dentro dela outra coisa além do ódio, ou do pavor. Uma força nova, incomensurável, corria nas suas veias e fazia-a tremer de poder. Todos os elfos viam na noite, mas Lliane não fazia mais que perscrutar na escuridão: ela via muito além, até ao interior das cascas em fogo e às nervuras das folhas torcidas sobre as brasas. Ela adivinhava o borbulhar da seiva e a combustão das silvas. A mão com garras e o archote aceso, os esgares horrorosos dos incendiários, as suas armas negras brilhando à luz das chamas. Ela via o veneno pegajoso com que eles untavam as armas, os seus estandartes rasgados, os lobos e as escuras armaduras de uma tropa espalhada pela orla, rindo diante do incêndio. Todos os elfos corriam depressa, mas ela corria como o vento, cortando arbustos de silvas sem sentir os arranhões na pele, sem esforço, sem mesmo perder o fôlego.

A algumas toesas da orla, ela saltou por cima do corpo torcido de um gobelin, com as pernas presas num monte de silvas e a nuca quebrada contra a raiz de um carvalho. As árvores, por vezes, sabiam defender-se sozinhas...

Ela foi a primeira a desembocar na orla de Brocéliande, atravessando as chamas e pisando as brasas, e jorrou para fora do fogo como uma deusa surgida dos infernos, brandindo a sua longa adaga. De um golpe, sem mesmo ter parado, decapitou um gobelin que a sujou com o seu sangue negro. A sua roupa tinha pegado fogo, mas ela não sentia nada. As silhuetas escuras dos monstros, iluminadas pelos archotes e pela incandescência do incêndio, rodopiavam gritando de raiva em volta dela, e a sua adaga fendia com um brilho de prata as fileiras imundas deles, sem que nenhum a conseguisse apanhar.

Houve um silvo estridente semelhante a uma rajada de vento ou à passagem de um enxame de abelhas, e dezenas de gobelins caíram perfurados por flechas. Os elfos, por trás dela, cuspiam por seu turno fogo gritando com as suas vozes agudas. Muitos entre eles perderam a vida aos primeiros segundos do confronto, ceifados pelas cimitarras dos gobelins ou triturados pelos dentes dos seus lobos. Outros morreram queimados, por não terem atravessado o fogo suficientemente depressa. Mas a onda era demasiado potente para ser quebrada, e os monstros não eram assim tão numerosos. Alguns minutos bastaram para os dispersar.

Lliane ficou parada, com a respiração acelerada, enquanto os elfos se atarefavam em volta dela, arrancando-lhe as roupas em chamas e afastando-a depois daquela carnificina, comprimindo contra as suas queimaduras parches feitos de musgo. Ela viu o rosto do velho Gwydion debruçado sobre ela, depois o de Blodeuwez, e sentiu as suas mãos brancas acalmarem-lhe a pele queimada. No entanto, o seu espírito estava longe percebendo por um lado a fuga desordenada dos monstros na noite, o seu medo animal, mas também um outro medo, humano, aquele, do lado de lá das chamas.

Então ela levantou-se, quase unicamente vestida com as suas botas de gamo escurecidas pelo fumo, o corpo brilhante do sangue dos monstros, tão bela e desejável nesse momento que todos os elfos, machos e fêmeas, entre eles Gwydion, entre eles a própria Blodeuwez, sentiram o pulso acelerar-se-lhes ao verem-na. A gravidez de Rhiannon tinha dado à sua silhueta formas inusuais entre os elfos, normalmente tão magros quanto pauzinhos. As suas pernas compridas tinham ganho carne, as suas ancas tinham alargado e, à luz acariciadora do incêndio, as suas coxas e seios luziam todo o seu esplendor. No entanto, ela nada tinha de uma mulher. Nenhuma delas poderia ter um pescoço tão delineado, um andar tão rápido nem uma tal indecência. Mas ela também não era semelhante aos outros elfos.

Inconsciente dos olhares pousados sobre ela, Lliane percebia um indício, além do crepitar das chamas. Os que estavam mais perto dela perceberam o movimento das suas orelhas e levantaram eles também os cabelos para melhor orientarem os seus pavilhões afilados. Ouviam-se gritos e vozes fracas, por trás da orla em fogo, mas ninguém entre eles conseguiu identificá-los.

Lliane, no entanto, tinha compreendido. Inspirou profundamente e gritou uma ordem, na sua voz de comando:

— Bettacan ar aeghwylc nith, hael hlystan!

Estupefato, Gwydion aproximou-se dela.

— O que é que acabas de dizer?

Ela voltou-se um pouco bruscamente, provocando um movimento de recuo involuntário ao velho elfo. Os seus olhos, nesse instante, pareciam brilhar realmente com todos os fogos do inferno.

Depois, ela voltou a cabeça e o seu corpo pareceu abater-se.

— Desculpa-me — disse ela.

Apertou os braços em volta do corpo tremendo e aceitou reconhecida a comprida capa que Gwydion lhe pousava sobre os ombros. Todo o seu corpo lhe doía, as suas pernas mal a conseguiam suster. Ela sentia as forças abandonarem-na, como grão escorrendo de um saco roto, e agarrou-se ainda aos últimos vestígios da força formidável que tinha estado dentro dela.

— Tu falaste de homens — insistiu Gwydion. — Tu ordenaste aos nossos que tratassem os homens com respeito... Porquê? O que é que tu viste?

— Há... há soldados na floresta — disse ela. — Homens armados... Têm medo, estão feridos. Alguns estão quase a morrer.

 

                 O “GIGANTE DE VIME”

— Alguns estão quase a morrer — disse Uter.

De aflição, Blaise quase deixou cair a bacia de estanho que transportava, cheia de água e ligaduras ensanguentadas, pois tinha acabado de trocar as ligaduras ao ferido. Eram as primeiras palavras inteligíveis que o rei pronunciava em vários dias, com exceção das estranhas ululações élficas que lhe acontecia emitir, e que ressoavam através dos corredores do castelo como os gritos de um demente.

Uter tinha falado tão baixo, desta vez, que Ygraine adormecida à cabeceira do marido, nem sequer tinha acordado. O monge hesitou, mas ela dormia profundamente, esgotada por aqueles dias e noites de vigília, que ele renunciou a preveni-la, pelo menos enquanto o estado dele não o exigisse. Na chama de uma candeia, simples mecha ardendo numa taça de azeite, acendeu uma vela e aproximou-a do leito. Os olhos do rei estavam abertos, mas continuavam ausentes e não reagiam à luz.

— Quem é que vai morrer? — sussurrou o monge.

— O exército, — respondeu Uter e a sua voz tão calma, tão ausente, deu-lhe arrepios — ... O exército ou o que resta dele. Dir-se-ia que não são mais de um punhado...

Blaise abanou a cabeça sem compreender sobre o que é que o rei falava. Uter estava perfeitamente imóvel, com a respiração regular e o corpo calmo, os olhos fixos no tecto com uma tal insistência que, involuntariamente, o monge olhou para lá. Nada mais, é claro, para além de traves mergulhadas na escuridão da noite.

— Que dissestes, senhor? — perguntou ele. — Haveis falado do exército...

— Já não há exército... Eles são uns cem, talvez menos. — Blaise conteve-se para não gritar, agarrar o rei pelo pescoço e arrancá-lo deste torpor de indiferença. Menos de cem homens, sobre vários milhares que tinham partido para a batalha atrás do condestável Léo de Grand?

— Não é possível — murmurou ele.

— Menos de cem, e alguns estão quase a morrer — repetiu Uter.

Sempre aquela voz distante e aqueles olhos abertos contemplando tranquilamente, para lá do quarto, o espectáculo horrível de uma derrota sem precedentes.

— Estais a vê-los, neste momento?

— Eles estão ali, olha... Têm medo, escondem-se, perderam todas as suas armas. Mas o fogo apaga-se. O bosque estava demasiado molhado, sem dúvida...

— Que bosque?

Uter não respondeu. O irmão Blaise esticou um pouco mais o pescoço e viu-o fechar os olhos progressivamente, enquanto o rei caía de novo no sono.

— Que bosque, senhor? — voltou a perguntar ele, num tom mais insistente, ousando mesmo abaná-lo pelo ombro.

— Não há mais nada a temer — murmurou Uter. — Os monstros fugiram, não voltarão esta noite. E nós salvamos a floresta sagrada. O Dagda não teria permitido...

O monge persignou-se e, sem se dar conta, afastou-se do leito real, como se temesse queimar-se ao tocar-lhe. O Dagda era o primeiro dos druidas, aquele a quem os elfos chamavam Eochu

— Pai Poderoso — ou Ruad Rofessa — Vermelho da ciência perfeita —, deus guerreiro e possuidor do caldeirão do qual tinha feito o talismã deles. A floresta sagrada de que tinha falado Uter não podia ser outra senão Éliande, no coração da qual se acoitava o Bosquete das sete árvores e o Caldeirão do conhecimento... Éliande, o país dos elfos... O país de Lliane.

O irmão Blaise sentou-se, pousou a vela e agarrou a cabeça entre as mãos, tomado por uma vertigem diante daquilo que entrevia, à medida que o seu espírito alterado se perdia em conjecturas. O rei, tomado de novo pelo espírito do elfo, despojado da sua alma, o seu corpo jazendo como um embrulho vazio. O exército vencido. Os monstros tinham chegado a Brocéliande. Isto só podia significar uma coisa: todo o ducado de Sorgalles estava invadido. Que teria acontecido à duquesa Helled? E o exército, o que é que restava dele? Quantas tropas poderiam ainda juntar para defender Loth, e quem as comandaria se o rei não recuperasse a consciência? Quanto tempo antes da horda do Inominável chegar até aqui? Quanto tempo antes que os exércitos do demônio varressem para sempre o sopro de Deus sobre esta terra de lágrimas?

O monge levantou a cabeça e olhou com um ar horrorizado o perfil impassível de Uter. Que encantamento, mais forte que todas as orações e toda a medicina dos físicos, o mantinha assim naquele atroz estado de ausência, enquanto o seu reino se desmoronava em torno dele? Pensou, uma vez mais, e outra, em Illtud. O abade, esse saberia arrancá-lo destes malefícios... Tomado por uma inspiração súbita, aproximou-se do leito real e, com o coração a bater, murmurou ao ouvido de Uter uma conjuração das Escrituras.

— Espírito mudo e surdo, sou eu quem ordena. Sai deste homem e não entres mais! [22]

Uter deu no mesmo instante um gemido rouco, enquanto que o seu corpo se arqueava brutalmente num espasmo de uma violência louca. O monge recuou tão rapidamente que caiu ao chão, virando uma estante de coro que ao cair fez o barulho de um trovão na noite.

— Que é que se passa? — balbuciou Ygraine acordando.

E a visão do corpo rígido de Uter arrancou-lhe um grito de pavor. Blaise, brilhando de suor, levantou para a rainha um olhar de louco, segurando entre as mãos o livro caído da estante, e que lhe pareceu ter sido enviado do Céu. Era um modesto breviário forrado de um couro mau, uma cópia mal feita do Enquirídio, a santa compilação das invocações enviada pelo papa Leão ao rei Carlos [23], uma obra que ela não podia conhecer, mas que ele se pôs a folhear febrilmente, como um louco. Quando por fim encontrou o que procurava, o seu rosto iluminou-se com um sorriso medonho.

— Qui Verbum cara factum est... — murmurou ele num tom premente. — O Verbo que se fez carne e foi pregado à Cruz, e que está sentado à direita do Pai para escutar as preces dos que crêem Nele, Ele que pelo seu santo nome, todos se ajoelham, dignai-vos preservar esta criatura Uter de todos quantos lhe possam fazer mal, e dos ataques dos demónios, Vós que viveis e reinais na unidade perfeita...

Ygraine observava o monge com horror, tanto o seu rosto em transe lhe parecia mais possuído por Satã do que pela inspiração divina. No entanto, Uter parecia reagir à invocação do papa. Com o corpo alagado em suor, tinha deitado para trás os lençóis à força de se agitar e parecia de momento sacudido por tremores, os olhos semicerrados e a respiração entrecortada.

— Ele está a voltar — murmurou ela.

— Eis a cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, na qual está a nossa salvação, a nossa vida e a nossa ressurreição, e a confusão de todos quantos nos querem fazer mal e dos espíritos malignos — continuou Blaise sem olhar para ela. — Fugi portanto, partes adversas; pois eu vos conjuro, demónios do inferno e vós, espíritos malignos de qualquer género, até que tenhais deixado a vossa ilusão diabólica, vós partireis sem demora, pelo Deus vivo, verdadeiramente santo, Pai, Filho e Espírito Santo.

Os olhos de Uter abriram-se, a sua cabeça virou-se com esforço e o seu olhar cruzou o do monge.

— Por aquele que foi crucificado enquanto homem e vos fez recuar, à medida que vos aproximáveis, que não possais molestar ou mortificar esta criatura nem no seu corpo nem fora dele, por visões ou por medo, nem de dia nem de noite, ou eu espalharei sobre vós todas as maldições, graus e penas de tormentos, pelo mandamento da Santa Trindade.

Uter acordou. No mesmo instante, na floresta de Éliande, Lliane gritou durante o sono. Um grito tão dilacerante, tão agudo e repentino que gelou o sangue dos elfos.

 

Léo de Grand recuperou os sentidos pouco antes de amanhecer. Foi o frio que o acordou. O frio e a umidade. Percebendo que estava nu, estendido sobre uma camada de fetos, quis levantar-se, mas deu imediatamente um grito de dor. Uma cimitarra gobelin tinha-lhe quase cortado o braço, no encaixe da espaldeira [24], e, quando levou instintivamente a mão ao ombro, descobriu um espesso emplastro de folhas, amassado numa pasta esponjosa e odorante.

— Não te mexas...

Era uma voz feminina, quase uma voz de criança, melodiosa e vinda do alto.

Ele abriu os olhos para tentar distinguir o ser que acabara de falar, mas a escuridão não lhe permitiu mais do que adivinhar uma silhueta clara ajoelhada ao seu lado. Depois sentiu a suavidade de uma mão sobre a sua testa a arder, leve como um sopro de flores.

— Fica em paz, grande, grande homem — murmurou a voz. — O teu ferimento é profundo, mas curar-te-ás. Estas plantas fecharão as carnes.

— Que é que puseste, feiticeira... isto queima!

Ele tentou de novo arrancar o emplastro, mas a mão agarrou a dele no ar e, com uma força que ele não teria podido imaginar, colocou-a firmemente no chão.

— É o veneno que te queima. Eles untam sempre as lâminas, devias sabê-lo... Confia em mim, condestável. Se te quisesse matar, não estarias aqui, na minha cabana, mas apodrecerias lá fora com os outros... E, para teu governo, isso não passa de resina de pinheiro, de folhas de hera e de morangueiro, de tasneira, dormideira... e diversas outras plantas que tu não deves conhecer.

Léo de Grand deixou-se cair para trás. Em massa, as recordações horrorosas da batalha jorravam-lhe na cara. A emboscada, as chamas parecendo chover do céu, as faces de pesadelo das hordas do Senhor Negro surgindo das entranhas da terra, semelhantes a demônios, os seus homens caindo à sua volta, por vezes sem mesmo terem tirado a espada da bainha, depois a fuga, desvairada, até à orla da grande floresta... Excetuando o braço que lhe ardia horrivelmente, ele tremia dos pés à cabeça sobre aquele leito de folhas, e sentia-se envergonhado de estar assim, nu, diante de uma mulher, mesmo sendo uma elfo.

— Quem és tu? — murmurou ele.

Blodeuwez não respondeu logo em seguida. Como todos os do povo do ar, os seus olhos não cegavam com a escuridão das últimas horas da noite, e ela saciava-se serenamente com este corpo forte, tão maciço e tão branco. Os homens eram brutos, grosseiros e barulhentos como uma manada de javalis, mas a sensação de força que emanava deles, tão diferente de tudo o que um elfo teria podido oferecer, não deixava de ser atraente, apesar de tudo. E depois a curandeira tinha-se muitas vezes perguntado o que teria Lliane vivido, nos braços de Uter... Com a ponta dos dedos, ela divertiu-se a aflorar a coxa, o ventre e o dorso do duque e depois, sorrindo dos seus sobressaltos, deslizou até ao sexo que, imediatamente, pareceu reagir à carícia, apesar do frio e do sofrimento.

— Voltarei para te ver — murmurou ela reprimindo um sorriso.

Já se tinha levantado, mas Léo de Grand conseguiu agarrar-lhe a mão, com o seu braço válido.

— Espera! Que aconteceu aos meus homens?

— Os teus homens estão mortos! — atirou Blodeuwez com uma voz brusca. — Os que vivem estão a ser tratados, como tu, pelos meus. Agora deixa-me e dorme!

Ela desprendeu-se dele e saiu da cabana, com as faces coradas daquele súbito ataque de cólera que a deixou espantada consigo mesma. Lá fora, a vegetação rasteira sempre escura vibrava com gemidos de dezenas e dezenas de feridos, em volta dos quais se atarefavam as pálidas silhuetas das bandrui [25]. Nunca a floresta de Éliande tinha visto tantos homens, cavaleiros, arqueiros ou peões, mutilados, retalhados por todo o lado e vertendo o seu sangue sobre a terra sagrada. Os sobreviventes mantinham-se em grupo, assustados sem dúvida pelos zumbidos dos elfos à sua volta, nesta escuridão onde os seus olhos não conseguiam distinguir nada. Eles calavam-se, encostados uns contra os outros como crianças, a cabeça baixa e a respiração acelerada, isolados no horror daquilo que acabavam de viver. Blodeuwez avançou entre eles, tão pálida que alguns pensaram ver passar um fantasma, e o seu coração foi-se apertando cada vez mais a cada passo. De cada um deles emanava um halo quase tangível, quase visível, de medo e de desespero. Alguns choravam em silêncio, outros falavam baixinho, para eles próprios (ou talvez fosse aquilo a que os monges chamavam orações), e havia mesmo alguns que dormiam, caídos sobre o musgo como cadáveres. Onde quer que pousasse o olhar, Blodeuwez só via vencidos, homens quebrados, nada que se assemelhasse ainda a um exército.

Uma visão horrível, de repente, fez-lhe gelar o sangue. Todos estes seres estendidos, todo este medo e sofrimento, davam à floresta sagrada a aparência do Sid, o Outro Mundo onde permaneciam as almas dos mortos. Mesmo as sombras pálidas das bandrui evocavam os banshees das velhas lendas. Era uma imagem insuportável, mas os elfos acreditavam nos sonhos, e ela procurou então com os olhos alguém com quem falar, como mandavam os costumes. Não havia ninguém. Com exceção das druidas da floresta, nenhum elfo, druida, poeta ou guerreiro, como se todo o povo de Éliande se tivesse retirado para longe dos homens, deixando-as sós, a ela e às suas curandeiras, com aquele exército deplorável.

Ela parou, tomada por uma angústia, e o seu olhar pousou sobre um jovem soldado encostado a um freixo, longe dos outros. Com a cabeça nua, trazia ainda vestígios de uma cota de armas tão profundamente rasgada que a sua couraça em couro martelado também tinha sido cortada deixando ver a sua pele. A criança sobressaltou-se quando ela afastou os panos da roupa, mas deixou, demasiado cansado para que ela tivesse necessidade de o acalmar. Três ranhuras paralelas tinham rasgado o tecido e o couro, sem dúvida as garras de um lobo, mas a pele estava intacta.

— Está tudo bem — disse ela. — Tu não tens nada...

Acariciou-lhe a face e já se levantava quando a criança se agarrou a ela.

— Não me deixeis sozinho! Senhora minha, peço-vos, não me deixeis sozinho!

Ele agarrava-a com tanta força, enroscado nas suas pernas, que Blodeuwez quase perdeu o equilíbrio. Conseguiu a custo desenvencilhar-se, sentou-se ao lado dele, e imediatamente ele lançou-se-lhe nos braços. Os elfos não conheciam este abandono, esta necessidade de contato físico tão particular à espécie humana. Os homens sentir-se-iam assim tão sozinhos para terem uma tal necessidade de serem abraçados? Este não tinha mais de uma dezena de anos e parecia já tão grande quanto muitos elfos adultos, mas nenhum elfo da sua idade teria podido manifestar uma tal angústia. Como é que esta raça podia ser tão forte e tão fraca ao mesmo tempo?

— Acabou — murmurou-lhe ela ao ouvido. — Os monstros foram repelidos, e a rainha está entre nós. Eles não voltarão...

Ela sorriu, emudecida pelas suas palavras. É verdade, Lliane estava ali, em algum lugar, e ela tinha-a seguido, como todos os outros, deixando o seu abrigo de Avalon num ímpeto, sem que uma palavra tivesse sido trocada entre elas.

Blodeuwez não esperava que a criança respondesse, e o som da sua voz sobressaltou-a.

— Nada os pode parar — disse ele. — Éramos um exército inteiro, talvez dois ou três mil homens, nunca tinha visto nada igual... Atacaram durante a noite. De repente, estavam em todo o lado, gritavam por todo o lado. Havia chamas, o acampamento inteiro estava a arder... O senhor Hugues tinha partido antes, com quase todos os outros cavaleiros. Tinha-me dito para tomar conta do seu potro e das suas bagagens, mas eu perdi tudo... Tive medo, entende? Havia lobos, e um dos meus irmãos foi comido pelos lobos, na minha aldeia, durante o Inverno da grande fome... Então eu fugi... E perdi tudo.

Blodeuwez quase riu, mas a confusão do jovem escudeiro, por patética que parecesse em face da carnificina a que ele tinha sobrevivido, era bem real. Um cavalo perdido, alguns víveres e alguns casacos faziam dele um falhado, perjuro ao seu senhor, indigno da sua confiança, e esta perspectiva aniquilava-o.

— Talvez esteja morto, o teu senhor Hugues? — disse ela.

A criança voltou-se para ela e, na penumbra da aurora nascente, olhou-a com um misto de horror e espanto.

— Isso não pode ser — balbuciou ele. — Os cavaleiros não podem morrer assim! Isso seria... Isso seria demasiado horrível.

Blodeuwez sorriu, acariciou-lhe a face e deitou-o suavemente perto da árvore.

— É claro — disse ela. — Os cavaleiros não podem morrer... Dorme agora, repousa.

Pouco a pouco, um dia tímido e cinzento aparecia, afastando as sombras da noite, e os homens revigorados por esta luz tênue levantavam-se agora, ousando afastar-se alguns passos, como se a proximidade dela os envergonhasse. Eles estavam longe, separados dela pela folhagem da vegetação rasteira, e sem dúvida não viam o suficiente para darem por ela, mas Blodeuwez foi-se embora, tomada de repente por um medo que aumentava a cada passada, e um pouco por todo o lado, como ela, as bandrui evaporavam-se nos últimos vestígios da noite, abandonando a floresta a essa soldadesca desfeita. Ela correu sempre em frente, primeiro sem direção e depois para a sua cabana, onde se refugiou como uma criança ao lado do corpo gigantesco de Léo de Grand.

— Voltaste...

A elfo não respondeu, mas aninhou-se mais contra ele. Um pouco da luz do dia entrava através das ramagens entrelaçadas da cabana, suficiente para que ele conseguisse ver os seus cabelos loiros, tão raros entre o povo das árvores. Talvez ele achasse por isso que ela fosse parecida com uma mulher, ou talvez não tivesse nenhuma importância aos seus olhos. Blodeuwez deixou as suas mãos pesadas deslizarem ao longo das suas coxas, levantarem a sua túnica de catassol até à sua cintura fina. E foi ela quem passou para cima dele, apoiando-se no seu dorso maciço.

Na orla da floresta, os elfos confundiam-se com o mato formado pelas árvores pequenas. Imóveis como cepos, estavam ali aos milhares, altos-elfos de Brocéliande, elfos verdes dos bosques e das planícies, jovens e velhos, machos e fêmeas, guerreiros, druidas e povo da floresta, representando as três ordens da sociedade élfica, tão perfeitamente silenciosos, espalhados sobre léguas numa fileira estreita a dois passos da orla, que os próprios pássaros já não se apercebiam da sua presença. E Lliane estava no meio deles.

O dia tinha amanhecido no meio do cheiro a cinzas e a fumo.

Durante as primeiras horas um nevoeiro persistente manteve-se sobre a planície. Depois as brumas dissiparam-se lentamente, e a dúvida cessou de existir: os monstros continuavam ali.

As hordas imundas de Aquele-que-não-pode-ser-nomeado tinham-se retirado para fora do alcance das flechas, tão longe que não formavam mais do que uma linha movediça e escura barrando o horizonte, guarnecidas com estandartes cor de sangue que bamboleavam ao vento. O seu número, na realidade, era impensável. Os exércitos que pensavam estarem derrotados para sempre tinham-se reconstituído, e toda aquela multidão horrorosa de orcs e trolls, de vampiros e faunos, agregados com tudo quanto as terras de Loth contavam de mercenários, elfos renegados, anões fugidos da Montanha Negra e povos menores, amontoavam-se ali como um magma em ebulição. Alcatéias de lobos, por vezes, afastavam-se e lançavam-se em direção à floresta, como que tomados por uma fúria súbita. Alguns aproximavam-se o suficiente para farejarem o odor dos elfos e retorciam os beiços, com o pelo eriçado e o peitoral tremendo de raiva. Mas os elfos não se mexiam. Matilhas de homens-cães, daqueles a que os anões chamavam Kobolds, que só serviam para disputarem o seu alimento nos cadáveres, rodopiavam diante das tropas dando latidos agudos que ressoavam através da pradaria, mantendo através da sua louca agitação uma espécie de frenesi diante das fileiras compactas e organizadas dos gobelins, a única tropa de toda aquela horda que se assemelhava a um exército. De tempos em tempos, por vezes com alguns minutos de intervalo, outras vezes depois de uma hora ou mais, os monstros punham-se a bater nos seus escudos de bronze, bum... bum... bum... a um ritmo lento, obsessivo e avançavam para a orla, batendo o chão com os pés a cada passada, cada vez com mais força, até que o eco do seu martelar se tornava ensurdecedor. Eles avançavam assim algumas toesas, com uma lentidão exasperante, um passo de cada vez, marcado pelo barulho das lâminas sobre os escudos, e paravam, de repente, fazendo um silêncio ainda mais pavoroso, e assim durante todo o dia, aproximando-se sem parar. Mas os elfos não se mexiam.

Ficaram assim desde o crepúsculo até ao cair do dia, imóveis e silenciosos, sem comer nem beber, sem falarem, nem uma palavra. Pouco a pouco os homens de armas tinham vindo ter com eles, e eram de momento várias dezenas, agachados perto dos elfos, contemplando com horror aquela multidão que se estendia diante da floresta.

Subitamente, quando as nuvens negras da noite escureciam já o céu, um grupo de cavaleiros empurrou a ordem das fileiras gobelins, pisando mesmo sem escrúpulos aqueles que não se afastavam com a rapidez necessária. Por trás deles, puxado por uma procissão de bois atrelados, uma silhueta gigantesca fixada sobre um carro largo como o pátio de uma quinta, avançou até à frente das tropas. Era um gigante feito de madeira e de palha entrelaçada, semelhante a uma gaiola enorme, cujos membros e dorso grotescos eram quase tão altos e largos quanto uma torre de menagem. Raros foram aqueles, entre os soldados resgatados da hoste real, que compreenderam aquilo que se preparava, mas os veteranos da guerra dos Dez Anos começaram a gemer de desespero, e os mais novos tremiam de terror ao verem as suas caras descompostas. Os próprios elfos romperam o seu longo silêncio, e um rumor de pavor subiu da orla. Um nome começava a circular, de boca em boca, rebentando como uma corrente de angústia: wicker nith, “o gigante de vime”.

Um silêncio angustiante tinha-se abatido sobre a grande planície, bem depressa interrompido pelo eco longínquo de gritos desesperados que gelaram de pavor os elfos e os homens de armas. Os monstros agitavam-se perto do colosso de madeira, num movimento desordenado que lhes era difícil de perceber, àquela distância. Mas foram colocadas escadas ao longo das suas pernas, dos seus braços, do seu corpo, e bem depressa carregadas de cachos inteiros de seres humanos. Sobre os olhares apavorados de toda a orla, eles subiram as escadas, empurrados pelos piques dos monstros agrupados em baixo do colosso e atiravam-se, uns atrás dos outros, na gaiola de vime. O mais pavoroso era, sem dúvida, a passividade deles. É certo que os infelizes gritavam de medo, como se o seu espírito percebesse a sorte pavorosa que os esperava, mas nem um deles fazia o menor movimento para se debater ou tentar escapar. Enfeitiçados, sem dúvida por algum artifício de Aquele-que-não-pode-ser-nomeado, os seus corpos não lhes obedeciam. Havia entre eles alguns elfos, provavelmente caçadores surpreendidos fora da floresta, mas a maioria eram humanos, soldados com as armas do rei ou as da duquesa Helled, camponeses, mulheres e crianças, capturados no ducado de Sorgahes. No concerto dilacerante dos seus gritos, eles caíam uns sobre os outros, enchendo os membros e o dorso do gigante, esmagando os que estavam no fundo. E quando o último se juntou a eles na prisão de vime, os monstros fecharam os alçapões e depois amontoaram na base uma montanha de feixes de lenha e palha, à qual, com gritos de alegria louca, chegaram fogo [26].

Nenhum daqueles que assistiu a este espectáculo horrível poderia jamais esquecer os gritos de terror e os gritos de sofrimento dos prisioneiros queimados vivos naquele horror, nem a luz das chamas subindo até ao céu, nem o rumor alegre do exército gobelin, saudando esta fogueira macabra com cânticos guerreiros e gestos dementes.

Alguns, entre os elfos, fugiram a correr para a floresta tapando os ouvidos. Outros atiraram-se ao chão enfiando os rostos na terra para não verem nem ouvirem mais nada. O medo espalhava-se em cada um deles como um veneno, marcando para sempre os seus corpos e as suas almas. A própria Lliane sentia-se gelada até aos ossos, e as lágrimas corriam-lhe pelas faces sem que ela notasse. Os gritos, acima de tudo, eram insuportáveis. Os que tinham sido atirados por último na pavorosa prisão ardente suplicavam que os poupassem, esforçando-se desesperadamente por escaparem através dos ramos, esfolando-se vivos para escaparem às chamas, enquanto que os infelizes de baixo se torciam nos suplícios do inferno. Não era possível suportar um tal horror. Era preciso...

— O horror é a arma deles. O medo é a sua força...

Lliane desprendeu-se bruscamente do braço que a segurava, mas acalmou-se ao reconhecer Gwydion. Tinha já desembainhado Orcomhiela, “Fendedeira de gobelins”, a sua adaga lendária, e ter-se-ia sem dúvida lançado ao ataque, arrastando atrás dela todo o povo das árvores para uma morte certa, se ele não a tivesse parado.

O velho druida pegou-lhe na mão, depois agarrou outra, a do jovem Llaw Llew Gyffes, seu aprendiz, o qual estendeu a mão a um outro jovem elfo guerreiro de olhos esbugalhados de terror. E assim uma cadeia imensa formou-se ao longo da orla. Depois Gwydion fechou os olhos e, com uma voz forte, entoou o Teinm laegda, “a iluminação do cântico”, um dos mais poderosos encantamentos druidas, e todos repetiram com ele o cântico do Sid, para apaziguar a alma dos supliciados.

 

Vem comigo

Para o país maravilhoso onde há música.

A cabeleira é aí como a coroa da primavera;

O corpo liso é aí da cor da neve.

Aí, não há mais nada meu nem teu,

Os dentes são brancos e as sobrancelhas negras;

A multidão numerosa é o prazer dos olhos.

Cada face tem a cor da dedaleira,

O pescoço de cada um tem a cor púrpura do goiveiro;

É de um país maravilhoso que eu falo.

A juventude não desaparece antes da velhice.

Rios mornos correm através do país,

Com hidromel e vinhos dos melhores.

O ser aí é bonito e sem defeito;

Aí concebe-se sem pecado e sem culpa.

Nós vemos todos e tudo,

E ninguém nos vê. [27]

 

E cantaram assim até ao cair da noite, muito depois do gigante de vime se ter tornado um mar de chamas. E, quando não sobrou mais nada do que brasas incandescentes brilhando tragicamente no céu escuro, o exército dos monstros retirou-se, deixando atrás dele os vestígios medonhos da sua selvageria.

 

                 “UMA SÓ TERRA...”

Ela estava sentada à beira da água, com o queixo apoiado entre as mãos abertas, perdida nos seus pensamentos a tal ponto que não ouviu Myrddin aproximar-se.

— Estás a sonhar, pequena folha — murmurou ele. Morgana não estremeceu, nem se voltou para ele. Se ele tinha pensado surpreendê-la, tinha-se enganado...

— Não — disse ela —, pensava em ti... E não tinha nada de sonho.

— Obrigado...

— Perguntava-me se sou tão barulhenta quanto tu, já que somos da mesma raça.

O homem-criança sorriu, depois levantou as sobrancelhas com fatalismo e veio sentar-se ao lado dela, um pouco mais para trás no entanto, para não molhar os borzeguins.

— No entanto, os homens dizem que nunca me ouvem chegar, nem sabem nunca onde estou...

— Então os homens são surdos. Não me posso esquecer.

A pequenita voltou para ele o seu olhar travesso, emoldurado por cabelos castanhos ligeiramente ondulados. Os seus olhos verdes brilhavam ao sol como esmeraldas, contrastando com a brancura da pele. Excetuando esta cor de olhos estranha, a sua palidez sobrenatural e as suas orelhas pontiagudas que orientava a seu bel-prazer, assemelhava-se mais a um ser humano do que a um elfo. Mais a Uter do que a Lliane...

— Myrddin, gostaria que me ensinasses todos os teus truques — disse ela com um sorriso sedutor.

— Os meus truques?... Desta vez, és tu que falas como um homem, Morgana. A magia não existe, tu sabes. Aquilo que tu chamas de truques não passa de ilusão, e só servem para os homens. Mas o conhecimento das árvores, do vento e das pedras é uma força imensa, que também tu aprenderás, quando fores grande.

— Eu sou grande.

Myrddin olhou de novo para ela. Ela tinha crescido mais em algumas semanas e tinha quase uma estatura de adulto. Nisso, pelo menos, eles eram diferentes. Apesar da sua idade — e ele era bem mais velho do que poderiam imaginar mesmo os seus amigos mais próximos — Merlim conservava uma morfologia e uma cara de criança.

— Bom, então, se és grande, vou ensinar-te um truque... — Meteu a mão no bolso à procura de uma moeda e, não a encontrando, apanhou na água um pequeno seixo branco e espalmado como uma moeda.

— Olha...

Mostrou o calhau debaixo dos olhos de Morgana, levantou a mão esquerda e estalou os dedos. Quando ela olhou para a mão direita, o calhau tinha desaparecido.

— Magia! — disse Merlim.

Abriu a mão e, o pequeno calhau branco tinha-se transformado em negro.

— Como é que fazes isso?

— Espera...

Estendeu o braço para ela, passou a mão pelos seus cabelos e nuca, e depois tirou de lá uma pequena pedra branca, que acenou com uma certa vaidade.

— Vês? Não estava longe. Foi a tua mãe quem me ensinou este truque. Treina-te Morgana. Quando o souberes fazer, ensino-te o resto...

A menina pegou no seixo que ele lhe mostrava e atirou-o para o lago.

— Porque é que tu me chamas Morgana? O meu nome é Rhiannon, porque sou filha de rainha!

— Mas tu também és Virgen, nascida do mar, porque és filha de homem.

— E tu és filho do diabo!

— É o que dizem os monges... Mas os diabos não existem, a não ser na imaginação deles. É assim, vais ter que te habituar. Os homens vão ter medo de ti, Morgana. Vão chamar-te feiticeira, voltarão os olhos e afastar-se-ão de ti. Os próprios elfos...

Myrddin interrompeu-se, com o coração subitamente oprimido por uma onda de tristeza. Então abriu os braços e Morgana veio enroscar-se nele.

— Somos feitos para viver sós — murmurou ele. — Está escrito nas runas... Mas os tempos mudam, e um dia talvez as quatro tribos de Dana não formem senão uma só. É tudo quanto eu desejo... Bran... Tu não conheces Bran, pois não? Não perdes nada. É menor do que tu e quatro vezes mais gordo. E um feitio desgraçado... No entanto é meu amigo. O ser mais grosseiro e mais fiel que eu conheço. Ele disse-me há algum tempo uma coisa que me deu que pensar. Quase não há nascimentos, entre os anões, desde que eles perderam o talismã. Entendes o que isto significa?

— Que dentro em breve não haverá mais anões, e ainda bem — disse Morgana. — Blodeuwez contou-me histórias horríveis sobre os anões.

— Não é assim tão simples... Os reinos sob a Montanha desaparecem, mas os homens começam a amar o ouro, e a escavar as minas. E depois houve aqueles nascimentos estranhos, um pouco por todo o lado. Bebês humanos com a aparência e a estatura de anões... Creio que os homens se estão a tornar semelhantes aos anões, que as duas tribos se estão a fundir numa só.

— Por causa do talismã?

Merlim olhou para a menina com alegria.

— É exatamente isso. E agora os homens querem dominar o mundo, subjugar todos os outros povos e impor o seu Deus único, a sua lei, a sua maneira de viver. “Uma só terra, um só povo, um só Deus”, dizem eles...

— É preciso impedi-los!

— Achas?

O homem-criança empurrou suavemente Morgana e levantou-se. Depois, sem se preocupar em ver se ela o seguia, afastou-se da margem e enfiou-se no meio das ervas altas de Avalon.

— No entanto eu sou meio homem, e tu também... Qual é o caminho, Morgana? Tu que, segundo as runas do velho Gwydion, deves reinar um dia sobre um povo novo, nem humano nem élfico, poderás dizer-me qual é o caminho? De um lado a guerra... A guerra, sim, uma guerra sem fim, contra os monstros, depois contra os homens, pois eles não entregarão Excalibur. A guerra para restaurar os reinos sob a Montanha e tentar restaurar o equilíbrio de um mundo que talvez já não exista mais. É sem dúvida a escolha que se impõe à primeira vista, mas vejo aí tantos mortos que tremo... E tudo isto em nome de quê, ha? Em nome da Deusa? Mas os anões viraram-lhe as costas há tanto tempo...

— Foi por isso que foram vencidos — lançou Morgana, mas Myrddin não a ouvia.

— Os monstros só obedecem a Aquele-que-não-pode-ser-nomeado, e duvido que agradeçam aos deuses só lhes terem dado a raiva e o medo na partilha. Quanto aos homens, a maioria já não acredita em Dana, nem em nenhum dos antigos deuses. Eles acreditam num ser único, um Deus com cara humana que se assemelha a eles e lhes promete um paraíso terrestre...

— É ridículo!

— Era o que eu também achava... Mas a tua mãe sentiu o seu poder, ontem à noite... Quando os monstros atacaram Brocéliande, ela era o Pendragon, Uter estava dentro dela, e juntos eles eram como um deus, mais fortes que o mundo inteiro. E depois uma força irresistível separou-os, sem eles quererem. “Arrancou-os”, seria a palavra exata. Hei-los tão longe um do outro como se jamais tivessem sido dois amantes, e eu tenho medo...

Ele avançava nas ervas altas da ilha sagrada, falando agora sozinho, pois Morgana tinha parado, com o olhar distante e os olhos cheios de lágrimas.

— Eis a outra escolha — continuou Myrddin sem notar que ela já não o seguia. — Um só povo, um dia, reunindo os quatro talismãs. E a paz, a harmonia, por fim, pois um povo único não pode fazer guerra a si próprio, não é? Os homens ainda o ignoram, mas eles já mudaram. O espírito dos anões está dentro deles... Eles julgam-se vencedores enquanto homens, agora que se tornaram uma raça diferente, e que talvez bem depressa será tão anã quanto humana. Vejo um mundo em que os quatro talismãs estarão reunidos, onde um só povo cobrirá a terra, nem humano, nem élfico, nem anão, nem monstruoso, mas tudo ao mesmo tempo... Um povo tão valente e teimoso quanto os homens, forte e cruel como os monstros, laborioso mas cúpido, à imagem dos anões, com a graça e frieza dos elfos... Todos os defeitos e todas as qualidades de cada uma das quatro Tuatha Dê Danann [28]... E tu serás a sua rainha, como o previu Gwydion.

Voltou-se para Morgana, não a encontrou e renunciou a procurá-la, arrebatado pela sua visão. “Uma só terra, um só povo, um só Deus...” O credo da igreja dos monges tomava assim um novo significado, bem longe sem dúvida da primeira idéia deles, mas tão evidente, de repente, que Merlim, pela primeira vez na sua vida, se sentiu transbordar de alegria e começou a rir, com vontade, a bandeiras despregadas. E, tomado por uma inspiração súbita, começou a correr para a margem, e para a barca que o levaria até Lliane.

 

No coração da floresta, as árvores eram tão altas que as suas arcadas mergulhavam a vegetação rasteira numa penumbra pesada, sobretudo quando o sol era fraco. Era aí que tinham crescido os maiores carvalhos do reino de Éliande, frequentemente já com vários séculos e dominando nas clareiras impostas pelas suas vastas ramagens, não tolerando à sua volta mais do que um punhado de jovens rebentos, faias ou castanheiros. Eram árvores tão duras quanto ferro, tão altas quanto as montanhas dos anões e cuja coroa de folhagem formava uma imensa abóbada, sob a qual se podiam abrigar famílias inteiras. Os elfos veneravam-nas como deuses, vinham falar-lhes e enfeitá-las com colares de flores, como oferendas pela sua proteção. Alguns tinham instalado cabanas nos seus ramos, a várias toesas do solo e, como os javalis e os porcos selvagens da floresta, alimentavam-se das suas bolotas. Era ali, escondido na escuridão secular da velha floresta, que se acoitava o bosquete das sete árvores: quert, a macieira, a mais venerada de todas, símbolo da imortalidade; beth, a bétula mui nobre, que iniciava o ano; saille, o salgueiro, a árvore da sabedoria; coll, a avelaneira cujos ramos serviam de bastões aos druidas; tinne, o azevinho que todos os anos durante Beltane dava guerra ao carvalho; duir, a árvore mais antiga, efearn, o amieiro de coração vermelho que só por ele simbolizava os quatro elementos, terra, ar, fogo e água... No coração do bosquete sagrado, os elfos tinham escondido o seu talismã, o Caldeirão do Dagda, que poucos seres vivos haviam tido a oportunidade de ver, e no qual ainda menos tinham podido saciar-se.

Sentados no chão da clareira formada em volta de um desses carvalhos enormes, os elfos tinham-se reunido aos milhares, machos e fêmeas, velhos e crianças, para assistirem ao Conselho. Sem dúvida estavam ali todos os elfos do país de Éliande, excepto os que estavam de vigia na orla da floresta com o punhado de soldados do rei que tinha sobrevivido ao massacre, assegurando assim que nenhum deles se aproximasse do bosquete. Cada um, aqui, podia falar, fosse qual fosse a sua idade ou condição (o que explicava que o Conselho dos elfos pudesse por vezes durar vários dias), e as decisões não se tomavam sem haver uma maioria razoável. Os mais numerosos eram os Aes Dana — as gentes da arte, como os elfos chamavam aos seus artesãos, caçadores e apanhadores, cujo trabalho fazia viver todo o mundo. Esses raramente saíam do abrigo das árvores e não tinham aprendido a combater (mas todos os elfos, é claro, sabiam manejar o arco). O incêndio da orla e a irrupção dos monstros tinha-os aterrorizado, como se o seu universo ameaçasse de repente desmoronar-se, o que talvez fosse o caso.

Menos numerosos e espalhados em grupos pela multidão, armados de arcos e adagas, por vezes cobertos com as suas cotas de malha em prata, tão leves quanto o couro e tão duras quanto o ferro que os próprios anões lhes enviavam, estavam os guerreiros, a segunda ordem das comunidades élficas, chamada Flaith. Menos numerosos ainda, reconhecidos pelas suas túnicas encarnadas, cor do Dagda, vinham os da terceira ordem dos clãs élficos: os Dru wid, sábios pelas árvores, padres ou médicos, adivinhos ou bardos, que se tinham reagrupado perto do velho Gwydion, formando o primeiro círculo em volta do tronco da árvore.

O rei Llandon, apoiado na sua bengala de cego, estava sentado sobre um cepo a alguma distância, com um bando armado e vários druidas em volta dele, atento ao barulho das conversas à sua volta. E procurava Lliane com os olhos, por fim de volta à Floresta, mas que não se via em parte alguma.

Quando os últimos retardatários tomaram os seus lugares na clareira cheia de gente, e quando o dia já caía, tão cinzento, pardo e úmido quanto tinha começado, uma banfile [29] muito jovem levantou-se do círculo dos druidas e recitou Teinm laegda, “a iluminação do cântico”.

 

Sou filha da poesia Poesia, filha da reflexão, Reflexão, filha da meditação, Meditação, filha da ciência

Procura, filha da grande ciência.

Grande ciência, filha da grande inteligência Grande inteligência, filha da compreensão. Compreensão, filha da sabedoria, Sabedoria, filha dos três deuses de Dana.

 

Um silêncio absoluto seguiu-se às últimas palavras da jovem elfo, e depois a voz trémula do velho Gwydion elevou-se na penumbra.

— Povo das árvores, escutai a minha voz! Grandes perturbações agitam o mundo, e as runas continuam caladas! A calúnia e a traição puseram as tribos da Deusa umas contra as outras, e de novo o Inominável deixou as Terras Negras para espalhar a desolação através do mundo. O povo sob a Montanha foi vencido, a Espada de Nudd está na mão dos homens e, privados do seu talismã, os anões estão condenados a desaparecer...

Houve um burburinho pontuado por alguns risos, que o grande druida preferiu não ouvir.

— Hoje, são os homens que estão ameaçados de desastre, por sua própria culpa. Eles desviaram-se da Deusa, veneram um Deus novo e estão cegos por causa da sua incrível vaidade. O Conselho, povo das árvores, reuniu-se para responder a uma só pergunta, mas a escolha que fizermos, seja ela qual for, terá pesadas consequências! Pois bem: deveremos uma vez mais ir em socorro dos homens, aliarmo-nos a eles para vencer Aquele-que-não-pode-ser-nomeado, ou deveremos ficar fora dessa guerra, com risco de vermos o equilíbrio do mundo desmoronar-se para sempre?

Um ataque de tosse terminou tragicamente o epílogo do velho elfo, e aqueles que estavam mais próximos dele viram o seu jovem ollamh, Llaw Llew Gyffes, correr para o agarrar. Gwydion estava bem velho, na verdade. O Inverno precoce que se anunciava poderia bem ser o último que ele passaria...

Houve de novo um grande silêncio, pontuado pelo piar insolente dos pássaros, no cimo dos ramos. Depois o rumor surdo das propostas trocadas em voz baixa aumentou até cobrir os seus trinados.

— Eu digo que os homens têm aquilo que merecem! — clamou de repente uma voz forte.

Llandon levantou-se apoiando-se na sua bengala, a fim de que todos o vissem. Apesar das órbitas vazias que mostravam ainda as marcas horríveis do sortilégio que lhe tinha queimado os olhos, o rei dos altos-elfos tinha conservado todo o seu porte. A sua ferida mais profunda não era visível no rosto...

— Gwydion falou de traição e calúnia, e falou bem — disse ele. — É a sede de poder dos homens, a sua vontade imbecil de reinarem sobre o mundo, que nos mergulhou no caos, na fúria e na cegueira! Cego era eu em outros tempos, bem mais do que agora, quando me sentava ao lado do rei Pellehun e do duque Gorlois, sem suspeitar das suas manobras. Mas agora vejo claramente. Nada, jamais, voltará os homens para a sabedoria dos deuses. A Espada de Nudd, que eles chamam Excalibur, embriaga-os de poder, e eles espalham-se através do mundo revolvendo a terra e queimando as árvores, bem mais do que o fizeram alguma vez os monstros do Senhor Negro! Quando eu era criança, a Floresta estendia-se até ao infinito, e vejam o que eles fizeram!

Llandon estendeu o dedo para Oeste.

— A menos de três léguas daqui, é a planície — continuou ele.

— O nosso reino não é mais que uma ilha, cercada pelo vazio, e é preciso ir até às Fronteiras e às terras dos bárbaros para se voltar a ver uma floresta digna desse nome. No entanto, todo o tempo, os homens cortaram as árvores, a golpe de machado, para nada, para se aquecerem, para cultivarem o solo, dizem eles, como se a terra não fosse suficientemente grande para todos!

Um concerto de aprovações elevou-se entre os elfos. Ninguém poderia contestar o que tinham visto durante tantos anos com os seus próprios olhos.

— Eu combati, convosco, com eles, durante a guerra dos Dez Anos. Dez anos de sofrimentos infinitos, para fazer recuar os monstros até às Terras Negras. Dez anos no decorrer dos quais milhares entre nós morreram. E o que é que resta, hoje? Restamos nós, povo das árvores, altos-elfos de Brocéliande. Os elfos verdes já não formam um clã, não passam de grupos vivendo em matas que nem merecem o nome de florestas. Os elfos dos pântanos tornaram-se animais selvagens, o rei Rassul está morto, o seu clã já não existe. Eis o que nós ganhamos! E eis aquilo que nos espera se saírmos de Éliande! Aqui ninguém nos pode alcançar, nem os homens, nem os monstros. Vejam como eles foram facilmente obrigados a recuar. Eles nunca ousarão aventurar-se na floresta, e se o fizerem derrotá-los-emos de novo, como ontem, pois a única coisa que importa, neste momento, é salvar o país de Éliande, pela força das árvores e a magia da rainha!

Lliane, encostada à casca do imenso carvalho, sobressaltou-se ao ouvir-se assim interpelada por aquele que tinha sido seu marido. Estendeu o pescoço para o ver, mas Llandon tinha-se sentado de novo sobre o cepo, inundado por uma torrente de aclamações nas quais se misturavam vivas que lhe eram destinados a ela. Com um olhar, a rainha varreu o pequeno grupo que a acompanhava, semi dissimulados na penumbra da árvore. Dorian, como sempre, virou os olhos durante um instante antes de se recompor, quando os seus olhares se cruzaram. Por trás dele, o pequeno grupo dos seus fiéis, Kevin o arqueiro, Hamlin o trovador, Lilian o acrobata e mesmo Till o seguidor de pistas, um elfo verde de estatura pequena, cujo falcão branco se tinha pendurado num ramo baixo do carvalho. Gwydion enfraquecido, sempre apoiado naquele jovem selvagem de quem ele tinha feito seu ollamh, e que lhe dirigia a ela um olhar penetrante, cujo sentido ela não entendia. Myrddin sorria como era seu costume, com os olhos no vácuo, em pé encostado ao tronco, com a sua túnica azul escura que se confundia com a cor da casca, ao ponto da sua cara parecer flutuar livremente no espaço. E perto dele, por fim, acompanhado como sempre pelos seus dois conselheiros, o ser mais incongruente desta reunião, cuja própria presença na floresta constituía um sacrilégio. Decidindo-se de repente, ela caminhou para ele, pegou-o por um braço e, apesar da sua resistência, arrancou-o dos seus companheiros e puxou-o para plena luz, até ao coração do círculo formado pelos elfos.

Devido à sua estatura pequena, e porque numerosos elfos tinham dado um salto quando o viram, foi necessário algum tempo antes que cada um entendesse o que ia passar-se. A rainha estava ali. Ela ia falar. Estava alguém com ela. Pequeno, redondo como uma pipa. Um anão, barbudo e ruivo como o Outono. Bran.

Logo que os elfos perceberam que um anão, ainda por cima príncipe, tinha ousado entrar na mais velha floresta de Brocéliande, uma onda de fúria mortífera sacudiu a Assembléia, tão violenta que a própria Lliane foi empurrada por ela. De imediato, a sua voz fez-se ouvir ao ponto de cobrir todo o tumultuo e de os abafar pela sua força.

— Aeghun! le aelfseon mia ar gorr aetheling! Hael hylstan!

Eles recuaram, pasmados e envergonhados, deixando sozinhos no meio de uma clareira a rainha e o anão deitado por terra e semidesmaiado por causa dos murros.

— Envergonhai-vos, vós que traístes a lei da hospitalidade! — gritou ela na sua voz de comando. — O senhor Bran e o seu séquito foram trazidos aqui por Gwydion e pelo meu irmão, o príncipe Dorian! Tratai-o com respeito e que ninguém se atreva a levantar a mão para ele!

— Escutai a rainha! — clamou atrás dela a voz gasta do velho druida. — Sentai-vos, todos!

Então os elfos recuaram, baixando os olhos, animados ainda pelo fervilhar da indignação, mas não ousando opor-se à sua soberana.

— Doce povo das árvores, escutai-me — disse ela. — O príncipe Bran é o último senhor dos reinos sob a Montanha. Como nós, também ele teve que sofrer com a vaidade dos homens, e é por isso que lhe oferecemos a hospitalidade da floresta. Quaisquer que tenham sido os males que nos fizeram os anões no passado, eles não quiseram esta guerra, e são as primeiras vítimas dela. Pelo anão Credne, que forjou o braço de prata do deus Nudd depois da batalha de Mag Tured, não fecheis os vossos corações às suas palavras...

Bran ignorava a linguagem élfica e não tinha compreendido uma só palavra daquilo que eles tinham dito. Tinha-se levantado, desvairado, a barba e os cabelos em desordem, com um ar furioso. Os olhares, de repente, estavam fixados nele, bem pouco amigáveis em verdade, ordenando-lhe mais que fugisse rapidamente desta Assembléia de pesadelo do que se lançasse num discurso, ele a quem custava dizer três palavras sem acrescentar um palavrão. Nenhum anão digno do seu nome tinha sido tratado assim, empurrado e injuriado, sem lavar imediatamente a afronta a golpes de machado. Sem dúvida morreria, mas não seria uma bela morte, a morte de um herói, digna das velhas lendas, sucumbindo debaixo de tantos no coração da maldita floresta deles? Bran sorriu tristemente e abanou a cabeça. Se ele não falasse, não haveria bem depressa mais ninguém para ouvir as velhas lendas...

— Eu não quero a vossa ajuda! — disse ele levantando o queixo. — Não quero nem vim pedi-la, cos diabos! Ouvi os vossos risos, há pouco, quando o vosso velho feiticeiro nos condenou ao desaparecimento. Pois bem. Talvez não haja anões no mundo futuro, mas não vos alegreis demasiado cedo. Nesse mundo, também não haverá elfos, nem floresta, nem montanha, nem nada por que valha a pena viver! Vós não sois melhores que os homens, monte de cães covardes, escondidos atrás das árvores! Que é que pensais? Que ninguém vos vê?

De novo a Assembléia dos elfos tremeu de cólera. As primeiras filas empurradas pela multidão, comprimiram-se contra eles a tal ponto que Bran, para se livrar, saltou sobre um cepo.

— Não peço a vossa ajuda! — gritou de novo. — Irei sozinho, se for preciso, mas encontrarei a Espada, para que o povo sob a Montanha viva para sempre!

— Pois bem, eu peço a vossa ajuda! — disse Lliane. — Se não interviermos, se a Espada de Nudd não for devolvida ao senhor Bran, o mundo perderá para sempre o seu equilíbrio, e mesmo nós, povo das árvores, seremos levados para o caos e para o esquecimento.

— Mas são os homens que têm a Espada, e é aos homens que nos pedem para socorrer! — lançou um elfo do outro lado da clareira.

— É a única maneira de impedir o desastre — respondeu a rainha. — Se os homens forem vencidos, talvez consigamos defender a nossa floresta, mas nunca tirar os monstros do reino de Logres. Aconteça o que acontecer aos talismãs, nunca viveremos em paz. Se pelo contrário, nos unirmos para vencermos Aquele-que-não-pode-ser-nomeado, poderemos obrigar os homens a devolverem a Espada!

Uma pequena elfo com cinco ou seis anos (e que já tinha atingido a estatura adulta) levantou-se perto dela.

— Tu pedes-nos para ajudar Uter porque o amas — disse ela. — O meu pai combateu com ele quando ele era o Pendragon e está morto. E tenho muitos amigos cujos pais morreram. Uter tinha jurado devolver a Espada aos anões e não o fez. Eu nunca vi um homem, mas não creio que sejam gente honesta!

As palavras simples da rapariguinha tinham dado um nó na garganta de Lliane ao ponto de ela não conseguir responder. Na escuridão do crepúsculo, a sua pequena silhueta direita e minúscula, erguida entre o círculo mudo do povo de Éliande, parecia-lhe a pior das reprovações. Era como se Rhiannon, a sua própria filha, se tivesse levantado diante dela, vítima, também ela, bastarda para sempre, dos seus amores loucos. E o mutismo dos elfos, em toda a volta, apoiava estas palavras tão simples e tão verdadeiras com uma aprovação pesada, mesmo oprimente. Cada um deles tinha perdido um ente querido durante a cavalgada do Pendragon, numa guerra feita pela mesma razão que ela defendia hoje. O que tinham então acreditado ser uma vitória não tinha passado de um sucesso sem amanhã, e quase tudo estava para ser refeito. Nesse instante, ela detestou Uter pela sua inconstância, ela detestou Ygraine, os monges e todos os homens pela sua sede de poder insano que lhe valiam hoje os ressentimentos do seu povo. E como não lhes dar razão?

— Pensei que estava a fazer bem — murmurou ela numa voz cortada, tão baixinho que ninguém a ouviu.

Myrddin, imóvel na escuridão das ramagens, começou a chorar baixinho. Os outros olharam para ele de lado, intrigados e incomodados pelas suas lágrimas. Os elfos só choravam quando estavam mal, fisicamente mal, e ninguém compreendia o que poderia causar uma tal dor. Lliane, tão direita quanto possível debaixo dos olhares do seu povo, voltou para o abrigo da árvore, viu as lágrimas do jovem druida, e sentiu um aperto, uma sensação de opressão que quase a impedia de respirar. Não era cólera que ela sentia, nem fadiga, mas um sentimento novo, terrível, que tomava completamente conta dela, que lhe apertava a garganta e lhe picava os olhos. E quando Myrddin a viu assim, tão próxima de soluçar como um humano, agarrou-a carinhosamente pelos ombros e arrastou-a para fora da clareira.

Quando eles partiram, seguidos por Bran e pelos anões que os tinham acompanhado até ali, o nevoeiro levantou-se, e os elfos foram tomados pela angústia. A bruma não pertencia a este mundo. Somente os deuses a podiam espalhar sobre a superfície da terra, cobrir as árvores, as correntes e os seres vivos com o mesmo véu opaco e gelado. Era um sinal que ninguém podia ignorar. Então, com medo que o frio branco o separasse para sempre da irmã, Dorian levantou-se de um salto e correu a juntar-se a ela. Kevin, que como era seu costume, não dizia nada nem se apressava nunca, pegou seu arco e partiu atrás dele, sem olhar para os que ficavam. Sem dúvida hesitavam todos, de tal forma a tristeza da rainha lhes tinha partido o coração. Alguns levantaram-se, aliás, mas os braços de outros retiveram-nos. Tinha havido suficientes mortes, já...

Só Till lhes seguiu a pista.

 

                         KAB-BAG

Nevava há já alguns dias. Os primeiros flocos começavam a manter-se sobre o solo endurecido pelo frio. A perder de vista, era sempre a mesma paisagem cinzenta, as mesmas colinas salpicadas de branco somente realçadas por alguns pequenos bosques raquíticos, a mesma desolação invernosa. A Leste, no entanto, fumos azuis e negros que se elevavam a direito no céu cinzento, parecendo surgir da terra, e formavam um manto pesado, quase uma coberta, por cima da cidade. Cavada como um poço em campo aberto, a cidade subterrânea dos gnomos era dificilmente detectável em tempo normal, mas seria preciso ser cego para não notar tantas fogueiras no campo cheio de neve. O exército dos monstros tinha feito o seu quartel de Inverno dentro e em volta de Kab-Bag, e nem se tentava esconder. Nem mesmo defender-se, pois eles tinham somente erguido uma escura vedação de silvas e arbustos em volta do seu vasto acampamento ao ar livre.

Quem, aliás, seria suficientemente louco para atacar aquela multidão? Os lobos, libertos do exército de seu senhor, rondavam em alcatéias inteiras a léguas dos arredores, e os homens que haviam tido a sorte de ainda estarem vivos tinham desertado quintas e aldeias para se abrigarem em Loth, abandonando muitas vezes os seus animais domésticos às suas garras e dentes. A maioria dos trolls tinha também deixado o exército para regressar às Fronteiras, mas os outros contingentes de monstros, Kobolds, orcs, vampiros e ogres, bem como uma multidão que não parava de crescer de mercenários de toda a espécie, bandidos das estradas, elfos cinzentos renegados e anões da Montanha Negra tinham ficado lá, aos milhares, aglutinados em volta de Kab-Bag. Fogueiras enormes tinham sido feitas para lutar contra o frio, alimentando leitos inteiros de brasas onde assavam bois, burros ou cordeiros, tudo quanto o país outrora rico comportava de animais domésticos e de carne viva. A terra gelada tinha sido rapidamente aquecida naquela fornalha, e o acampamento não passava de um campo de lama mal cheirosa, coberto de imundices e de carcaças apodrecidas sobre as quais planava o vôo lúgubre dos corvos. Entregues a si próprios, os monstros tinham feito os seus quartéis de Inverno sem qualquer ordem, cada um plantando a sua tenda ou cavando o seu covil segundo a inspiração do momento, e as brigas não paravam de rebentar a toda a hora, por causa de um pedaço de carne ou de algumas braçadas de chão seco. No entanto, quanto mais nos aproximávamos do buraco aberto em espiral na terra, mais a miscelânea infame dava lugar a uma aparente ordem.

Os anões do príncipe Rogor tinham açambarcado uma gruta natural, na ladeira da colina, e tinham já começado a escavar. Os mercenários humanos e élficos, agrupados à parte, vigiavam a sua aldeia de tendas, guardando dia e noite os seus ouros e os seus víveres. Os gobelins, por fim, tinham-se instalado nos arredores mais próximos da cidade subterrânea, protegendo o seu macabro suserano, e tinham levantado uma alta paliçada de troncos para se manterem afastados do exército. Uma guarda de guerreiros magros e sebentos, armados de compridas cimitarras escurecidas ao lume e vestidos com uma cota de malha que lhes chegava aos pés, formavam às portas principais uma longa fileira de ferro e aço quando, a horas fixas, os escravos traziam das profundezas da cidade víveres, vinho e peles em quantidade, sobre os quais se atiravam os miseráveis acantonados na proximidade. Cada dia, pobres comboios de refugiados, gnomos, anões, humanos ou elfos, comerciantes e putas, ourives vergando sobre o peso das suas riquezas que tentavam salvar, mendigos e estropiados, aproveitavam a ocasião para tentar fugir da cidade infestada. Alguns conseguiam sair dali vivos, deixando tudo para atrás, até as suas últimas roupas, mas a maior parte acabava na lama dosbivaques, violados, torturados, devorados vivos, atirados aos dentes dos Kobolds e dos seus cães selvagens.

Nada do que ocorria nas redondezas de Kab-Bag ou em qualquer um dos seus alvéolos cavernosos ficava muito tempo na ignorância dos seus habitantes, e no entanto eles aí estavam todos os dias tentando de novo escapar do inferno em que se tinha tornado a cidade, por vezes à força, a golpes de navalha e de lança, por vezes atirando à sua volta punhados de moedas de ouro (o que não tinha qualquer efeito sobre os cães), por vezes mesmo sacrificando escravos, atirados nus à fúria dos monstros antes de tentarem uma saída. Mesmo que as oportunidades de sobrevivência fossem pequenas, tudo parecia preferível a esperar por uma morte certa na cidade subterrânea.

Os gnomos eram o povo de comerciantes, oportunistas e despidos do menor sentido de moral graças ao que tinham conseguido uma certa prosperidade, mas não eram guerreiros. Os guardas do xerife Tarot, couraçados como tartarugas, escorrendo suor sobre peças de armaduras mal fornecidas e de armas demasiado pesadas para eles, nunca tinham sonhado em opor a menor resistência às hordas inumeráveis de Aquele-que-não-pode-ser-nomeado, nem quando elas se tinham espalhado na planície, nem quando tinham invadido a sua cidade, pilhado as suas lojas, esvaziado os seus cofres e requisitado as suas casas. Em tempos normais, a milícia já tinha dificuldade em reprimir as simples brigas de bêbados, quanto mais fazerem face a gobelins armados e à sua horda de monstros. Mal os primeiros postos de guarda tinham sido derrubados, os gnomos tinham recuado até ao fundo dos seus buracos, escondendo em mil esconderijos tudo quanto podia ainda ser salvo, e depois tinham-se preparado para acolher o invasor, resolvidos a pagar o que fosse preciso para sobreviverem.

Tinham sido sempre assim. Pequenos, barrigudos e mal equilibrados nas suas pernas muito curtas, os gnomos não tinham nenhum valor militar, nenhuma arte, nenhum talento, a não ser o de não constituírem nenhuma ameaça, mesmo para o mais frágil dos reinos. Brigões, emproados, no conjunto bastante estúpidos e mentirosos, tinham-se reagrupado em clãs, aos quais chamavam allyans, e como não sabiam construir tinham-se posto a escavar o solo, com um empenhamento de brutos, até ao centro da terra se fosse necessário. De um lado ao outro do reino, de Bag-Mor a oeste até Ha-Bag, Kab-Bag e os covis trogloditas da costa setentrional, os allyans gnomos tinham-se tornado centros de negócio, abrigando todos os tráficos, atraindo os negociantes do mundo inteiro, tendo rapidamente passado a servir de refúgio aos ladrões, assassinos e receptores de todas as raças, sobre os quais não tinham qualquer poder. A milícia dos gnomos passeava nas ruelas e cobrava taxas sobre tudo quanto pudesse assemelhar-se a um balcão de mercadorias, mas o verdadeiro poder não se situava certamente no palácio do seu xerife. Em Kab-Bag como nos outros locais, era a Guilda, poderosa confraria de ladrões e assassinos, quem ditava a lei. Aqueles que tinham compreendido as regras táticas da cidade podiam fazer aí negócios mirabolantes, mudar de vida, desaparecer do mundo ou delapidar fortunas em casas de jogo de um luxo asfixiante, sob condição é claro de pagarem à Guilda a sua quota-parte, a qual lhes oferecia em troca uma guarda de mercenários bastante dissuasiva. E os gnomos, febris como formigas nos seus poços insondáveis, desenvolviam uma agitação permanente, comprando tudo, vendendo mais ainda, especiarias, escravos, armas e cavalos, juntando fortunas inúteis nos seus buracos dos quais nunca saíam.

Kab-Bag não era a única cidade deles, mas era sem dúvida a maior — ou seja, a mais profunda —, enterrando-se quase uma légua debaixo de terra, num labirinto de corredores e de túneis escavados em volta de um gigantesco poço central, ele próprio atravessado por pontes e plataformas que suportavam os palácios dos mais ricos. A rua principal, atravancada de pontes movediças, de estabelecimentos e tabernas entre os quais ondulavam caravanas carregadas de mercadorias, enfiava-se a saca-rolhas até à cidade baixa, onde o sol e o ar fresco só penetravam raramente, num bairro tão escuro que os seus habitantes lhe chamavam Scâth — o País da Escuridão —, e que é também o nome dado ao reino dos mortos. Era aí que a Guilda tinha estabelecido o seu santuário, tão profundamente enfiado no tufo obscuro de ruelas entrelaçadas que os próprios monstros não tinham descido até lá.

Nenhum muro, nenhuma paliçada marcava a entrada do País da Escuridão. Havia só uma trave, um simples poste gravado com a runa de Beorn, representando uma árvore de três ramos, espetado no chão ao virar de uma esquina. Mas era o suficiente para que todos se afastassem, a menos que tivessem uma boa razão para entrarem.

Depois da morte do senescal-duque Gorlois, o homem que tinha organizado a Guilda dos ladrões e assassinos para fazer dela um instrumento de poder, a velha Mahault de Scâth tinha-se tornado a última soberana. Mas a guerra que destruía a terra de Logres há já dois anos tinha quebrado o seu poder bem mais do que o teria feito um exército inteiro de arqueiros do rei. Já não havia tanto ouro desde que os anões tinham destruído as suas montanhas, nem caravanas de mercadorias a atravessarem as planícies, como quando se arriscavam a todo o momento a serem assaltados por elfos, anões ou homens de Gorlois, nem havia pessoas para assassinarem, quando tanta gente morria sem razão.

Escondida no seu palácio subterrâneo com a sua corte de eunucos, de cortesãs e assassinos, no calor pegajoso dos braseiros e no odor enjoativo do incenso que aí se queimava permanentemente para disfarçar o cheiro dos esgotos que corriam na cidade baixa, Mahault tinha medo. Ela estava tão velha, tão rica e tão feia — de uma fealdade enorme, branca e inchada, gorda e pustulenta que já não esperava grande coisa da vida, a não ser as horas das refeições. Mas o cheiro a morte tinha chegado até si, no silêncio mórbido que se tinha abatido brutalmente sobre a cidade. Kab-Bag tinha-se calado depois dos monstros a terem invadido, e o seu barulho perpétuo dava lugar a um silêncio gelado, por vezes cortado por longos gritos atrozes, quando um gnomo servia de brinquedo às suas abominações. Do alto da sua torre, única construção em pedra em todo o bairro e que dominava os casebres inacreditáveis que aí se tinham amontoado, ela perscrutava o céu inacessível e cinzento, bem lá no alto, por uma clarabóia suja de gordura. E foi aí, nesse instante, que ela ouviu o chamamento.

Mahault já não andava há muito tempo. O seu peso era tal, sem falar nas jóias, nas peles e nos tecidos de brocado, pesados e carregados de ouro, com que ela se revestia em camadas sobrepostas, que as suas pernas eram incapazes de a transportar. Mas a urgência do chamamento era tal que ela deu alguns passos antes de se estatelar. Sem dúvida teria rastejado, como uma lesma monstruosa deixando atrás de si um rasto de fios de ouro arrancados dos seus vestidos, se os seus criados não a tivessem agarrado e colocado sobre a cadeira. Atordoada pelo choque, ficou inconsciente durante alguns instantes, o suficiente para que as suas cortesãs se aglomerassem ao seu redor, mostrando caras desesperadas que não eram completamente falsas. O medo tinha-se espalhado pelo País da Escuridão, e toda aquela miserável corte de assassinos e putas se agarrava desesperadamente à esperança do seu poder, sem perceberem que a Guilda não era nada face ao Inominável. Ela recuperou por fim a consciência, deplorável com o seu boné bordado que tinha caído, revelando uma calvície estriada com raras mechas finas, e passou por eles um olhar perfeitamente vazio.

— O Mestre chama-me — disse simplesmente.

Construído a meia altura de Kab-Bag sobre uma plataforma gigantesca cujos pilares se apoiavam em arcadas por cima dos dois lados da fossa, o palácio do xerife Tarot parecia uma caricatura de um castelo, transbordando de torres inúteis, ameias e palanques, mas tinha uma bela vista sobre a cidade, e o ar que aí se respirava era razoavelmente puro. Em poucas horas, um esquadrão de gobelins tinha destruído o interior, deixando quase que uma concha vazia, arrancando cortinas e cortinados, partindo as paredes finas e os corredores estreitos, escavando o forro dos tectos a uma altura de dois andares, até que conseguiram fazer uma sala bastante grande. Foi aí que o Senhor Negro se instalou.

Perdido no meio da multidão aglomerada ao fundo da sala, por trás de duas fileiras imóveis de soldados de elite, Tarot soluçava em silêncio sobre os vestígios do seu palácio. Dos seus veludos e sedas, das suas esculturas delicadas e dos seus cortinados bordados, não restava mais que uma amálgama de cinzas e entulho. A sala estava nua e escura como uma gruta, iluminada por archotes fixados na parede que projetavam sobre as lajes uma luz vacilante. Ele que em outros tempos tinha reinado, pelo menos de fachada, sobre o mais rico allyan gnomo do país de Logres, estava reduzido a esperar ali, parado como todos os outros apresentadores de pedidos, para que o Mestre lhe concedesse uma audiência. Mas pelo menos estava vivo, o que era um luxo apreciável, nestes últimos tempos.

Tarot era demasiado pequeno para o conseguir ver por trás das fileiras de gobelins, e no entanto sentiu a presença de Aquele-que-não-pode-ser-nomeado. Mal tinha conseguido distinguir, ao descobrir com sobressalto o que restava do seu palácio, um trono cercado por vastos braseiros incandescentes, guardado por monstros de uma altura medonha, envolvidos em capas negras que os cobriam totalmente. Voltando a pensar nisso agora, custava-lhe lembrar-se se o Mestre já lá estava quando ele tinha entrado, ou se tinha esperado que as portas — duas imensas portadas arrancadas da porta principal do seu palácio — se fechassem para os honrar com a sua presença.

Subitamente, um guarda orc semi-nu começou a bater a uma cadência demente sobre um tambor de bronze, até produzir uma ressonância ensurdecedora que dava vontade de fugir ou de enfiar as mãos nos ouvidos. Tarot tinha-se enroscado contra os seus vizinhos, com as mãos sobre as têmporas, e só percebeu mais tarde que o pavoroso martelar se tinha interrompido. Um oficial, vestido com uma longa capa vermelha, gritava as suas ordens na língua gutural e áspera das terras Negras, e depois repetiu-as usando a linguagem comum.

— De joelhos diante do Senhor, Mestre das Fronteiras e das Terras Estrangeiras [30], rei de Gorre e do Ifern Yên[31] Imperador em nome de Lug o Luminoso, Lug da Mão Longa, Lug Grianainech, Samildanach, Lug Lamfada [32], pela Lança e pelo fogo!

Enquanto os seus vizinhos se ajoelhavam docilmente, Tarot aproveitou a ocasião para ir empurrando e conseguir infiltrar-se na primeira fila onde, entre dois guardas, viu um ser de aparência humana, vestido de negro e tão pálido quanto um elfo, com uma longa cabeleira azeviche tombando até meio das costas, em longas tranças que caíam sobre a sua couraça escura. O homem (pois ele parecia mesmo ser um homem) saudou o Mestre com deferência e depois avançou a passos lentos, segurando em frente dele uma lança de ouro brilhante cuja lâmina parecia estar em fusão. E por trás dele, caminhando de cabeça baixa, desfilava uma interminável fila de crianças de todas as raças.

— Honra ao príncipe Maheloas! — gritou o oficial. — Honra à Lança!

O gnomo, ofuscado, não conseguia desviar os olhos daquela ponta incandescente e do ser impassível que segurava na ponta do braço o que não podia ser mais do que o quarto talismã, a Lança de Lug, tão brilhante que parecia um raio de sol. Era um objeto lendário, igual ao Caldeirão dos elfos, à Pedra de Fal ou à Excalibur, a Espada roubada aos anões. E nenhum gnomo, fosse ele príncipe ou xerife, poderia ficar impassível diante desta maravilha...

Gritos pavorosos arrancaram-no brutalmente do seu fascínio. Orcs tinham-se bruscamente atirado às crianças e, apesar dos seus gritos lancinantes, arrastavam-nos para cima de um caldeirão. Aí, com um golpe de sabre, os infelizes eram desventrados, seguros pelos braços e pelas pernas até ficarem vazios do seu sangue. Tarot fechou os olhos e tapou as orelhas, petrificado de horror. Um dos seus vizinhos vomitou sobre Tarot sem que este percebesse, e ele próprio quase que desmaiou tanto a atroz cerimônia se prolongava impiedosamente. Meio inconsciente, enjoado de nojo, mal conseguiu ver o príncipe Maheloas mergulhar a lança incandescente no caldeirão transbordando de sangue e vísceras, indiferente aos corpos à sua volta. Houve um assobio imundo quando o ferro em fusão arrefeceu em contato com aquele magma nojento, e depois o homem levantou lentamente o talismã sagrado dos monstros e brandiu-o na ponta do braço, escorrendo sangue.

— A sede da Lança foi apaziguada! — gritou ele. — Em nome do meu Senhor, proclamo a trégua de Inverno!

O resto foi dito numa linguagem incompreensível, enquanto o tambor de bronze retomava a sua barulheira infernal. Tarot mal se tinha de pé. A sua cara de bolbo, terrosa e inchada, tinha-se tornado vermelho escura e o seu gibão estrangulava-o. O odor a vísceras e sangue morno, o suor acre dos seres aterrorizados que o comprimiam por todos os lados, o calor dos archotes e das imensas braseiras dispostas diante do trono, tudo isso lhe apertava o coração ao ponto das suas pernas curtas não o conseguirem suster, e só se mantinha em pé devido ao amontoado no qual estavam todos confinados.

No entanto, a audiência começava, e o seu nome foi o primeiro a ser chamado.

Com o espírito entorpecido pela abominação a que tinha acabado de assistir, Tarot não ouviu. Foi preciso que alguns dos seus administrados o empurrassem para a frente, até bater contra os guardas gobelins, para que ele reagisse. Então, compreendendo que tinha sido convocado, quase desmaiou de novo, mas os guardas afastaram-se, agarraram-no pela capa e atiraram-no sobre as lajes como um saco de roupa suja. O gnomo levantou-se imediatamente, achincalhado na sua honra por aquele tratamento de indigente, e a sua indignação deu-lhe coragem para avançar, pelo menos durante algum tempo.

Imóvel como uma estátua, Aquele-que-não-pode-ser-nomeado via avançar, passo a passo, o xerife e nutria-se do seu pavor crescente. Nenhum outro soberano teria tolerado que um apresentador de pedidos se aproximasse tão lentamente, perdesse tanto tempo a ultrapassar as poucas toesas que os separavam, mas os monstros alimentavam-se do medo bem mais do que da água e do pão, e o terror fazia parte da etiqueta da corte deles. Tarot sentia-se desmaiar a cada passo, mas continuava a aproximar-se, fascinado e trêmulo, repisando a única questão que queria pôr. Os seus olhos fora das órbitas iam sem parar dos guardas gigantescos par a silhueta altiva do príncipe Maheloas, deslizando sem ousar olhar o trono do Senhor, depois fixaram-se no caldeirão sujo de sangue e no amontoado atroz das miseráveis vítimas dos seus ritos insanos.

— Já estás suficientemente próximo — disse de repente o príncipe da couraça escura, sem mesmo virar a cabeça para ele. — Faz a tua pergunta.

Com a cara a escorrer suor, quase sem conseguir respirar e sentindo-se mal, Tarot levantou os olhos para o Mestre. Não se via mais do que a forma escura de um fato de veludo brilhando à luz das brasas, um grande capuz sobre a cabeça, impassível, inerte, como água estagnada. Só as suas mãos, compridas e cinzentas, eram visíveis, enfeitadas com anéis em todos os dedos ou quase. Mas aquelas mãos não tinham vida, nem o menor movimento. Uma rigidez de cadáver...

— Mestre, vim assim que me chamaste — balbuciou ele.

— Faz a tua pergunta! — latiu Maheloas.

— O meu filho...

O gnomo não conseguiu impedir-se de deitar de novo um olhar de lado para o caldeirão e para os cadáveres sem sangue. Há mais de três anos, gobelins tinham entrado no palácio e levado o seu filho mais velho. Depois uma mensagem tinha chegado, dizendo que lho devolveriam em troca de certos serviços. Ele devia ter hoje em dia mais ou menos a idade das crianças que tinham sido degoladas... Perdendo toda a compostura, desatou a soluçar e caiu de joelhos.

— O meu filho... será que vós o haveis...

— É isso? — troçou o príncipe. — Então não tenhais medo, senhor Tarot. O teu filho continua vivo.

— Mas... estas crianças...

— Não gostaste de alguma coisa, gnomo?

— Senhor, perdoai-me... mas vós não tendes nada a temer. Nós não pegamos em armas contra vós. Eu até vos ofereci o meu próprio palácio. Vós sabeis que não tentaremos nada que vos possa aborrecer... Devolvei-me o meu filho, por piedade.

O príncipe Maheloas, pela primeira vez, dignou-se voltar-se para ele. A sua cara mortiça estava cortada por uma espécie de esgar divertido que devia ser um sorriso.

— Não pegaste em armas contra nós, heim? Foi bem amável da tua parte... É este o teu pedido urgente, gnomo?

Tarot abanou a cabeça, escorrendo agora suor ao lado dos enormes braseiros. Como é que eles podiam suportar um calor assim?

— Aproxima-te...

O gnomo deu um salto involuntariamente. A voz do Senhor não tinha passado de um murmúrio, mas tinha-se imprimido nele, insidiosa, como se lhe tivesse falado ao ouvido. Virou-se para Maheloas, mas este tinha-se virado novamente, não lhe oferecendo mais do que um perfil de desprezo.

— O teu filho está vivo — murmurava a voz. — Guardo-o comigo até que tu me tenhas rendido o serviço, como combinamos... Mas não tenhas medo, ele gosta bastante de nós... Olha para mim.

Eles não estavam mais distantes do que algumas braçadas. A mão ossuda de Aquele-que-não-pode-ser-nomeado animou-se, e ele fez-lhe sinal para avançar, e, quando Tarot estava suficientemente perto, o Mestre debruçou-se sobre ele, para que ele lhe visse o rosto, à luz das brasas.

A visão fustigou-o tão secamente como uma chicotada. De abalo, o gnomo titubeou, bateu em retirada, e acabou por cair no chão. Aquela cara, era...

— Vejo que me reconheceste — murmurou a voz. — Vês, comigo o teu filho não tem nada a temer.

 

                 UMA VINDA A LOTH

A cidade parecia uma enfermaria. Apesar da neve, os feridos e os doentes espalhavam-se até às ruas e às ruínas das casas incendiadas durante o cerco. Tinham enchido a igreja, o palácio, e homens de armas por todo o lado, requisitavam mesmo os celeiros para se abrigarem do frio. Era como se um reino inteiro se tivesse refugiado em Loth. Havia dificuldade, no momento, em fazer circular uma carroça, e os víveres começavam a faltar, mas aquela multidão, simplesmente pelo seu número, tinha no entanto salvo a cidade do desastre, quando os monstros tinham atacado. Uma noite e um dia, depois outra noite e outro dia, as muralhas tinham dobrado sobre o assalto furioso das suas hordas, as estufas transbordavam dos seus corpos esmagados, as muralhas escorriam do seu sangue, mas eles não tinham nenhuma máquina de guerra, nem trabucos nem catapultas, somente a sua fúria pavorosa e a coragem cega, e Loth tinha-se aguentado. Depois o Inverno tinha-se abatido sobre a planície e um belo dia o cerco tinha terminado, sem que ninguém sentisse a mais pequena sensação de vitória.

Depois dos monstros terem partido, foram precisos dias inteiros para que alguém ousasse avançar para fora das muralhas, depois ainda mais dias para reunirem os corpos, muitas vezes unidos pelo gelo, e fazerem um horrível empilhamento, ao longe, que foi regado com pez, enxofre e azeite antes de lhe pegarem fogo. E semanas para que o cheiro infecto a carne queimada fosse levado pelo vento.

Algumas patrulhas de cavaleiros tinham-se dispersado, a norte e a leste, a fim de limparem os arredores da cidade. Nenhuma delas tinha encontrado traço dos monstros. A esperança começava a renascer, a esperança e a vaidade, pois os homens pensavam terem vencido sozinhos o exército de Aquele-que-não-pode-ser-nomeado. Fora então que os lobos se tinham espalhado pela planície.

No coração da noite, uma alcatéia tinha atacado uma entrada onde dormiam os guardas vencidos pela fadiga, e depois dispersara-se pela cidade adormecida. Tinha sido uma verdadeira carnificina, até dentro da igreja, onde dezenas de animais selvagens tinham surpreendido os monges à meia-noite, durante as matinas. A cidade tinha acordado em sobressalto, entre os gritos de pavor ou de agonia daqueles que caíam sob as suas garras. De repente, parecia que eles estavam em todo o lado, até no palácio, até nos corredores que levavam aos quartos reais... Homens armados calcorreavam a cidade iluminando os menores recantos das mais insignificantes ruelas com uma floresta de archotes, mulheres em pranto gritavam de terror, e os lobos escondiam-se, para surgirem de repente, semelhantes a animais jorrados diretamente do inferno, dilacerando esquadrões inteiros antes de sucumbirem debaixo das suas lanças. Foi assim toda a noite.

Uma semana tinha decorrido depois disso, mas os cidadãos não ousavam ainda sair de casa depois do cair da noite. Ninguém sabia quantos lobos tinham entrado na cidade, ninguém sabia se os tinham morto todos...

O medo era a melhor arma dos monstros.

Como todas as manhãs, Uter fazia o caminho de ronda, abafado numa capa de peles. O ar gelado e a neve que caía em flocos espessos faziam-lhe bem, e ele não voltava a entrar até que as botas rangessem e não conseguisse suportar mais o frio. O campo em redor, cinzento e liso sob o céu de Inverno, não oferecia mais do que um triste espectáculo à vista e um fraco reconforto à alma, mas tudo- era preferível à atmosfera mortífera que reinava no palácio. Para onde quer que se olhasse, não havia senão sofrimento e desespero. Tudo. quanto o reino contava de pequenos barões, camponeses livres e padres tinha fugido, deixando tudo para trás, animais, mortos e por vezes feridos. Ou pior ainda... Alguns tinham cedido ao terror e tinham-se salvo sem olhar para trás, abandonando mulheres e crianças. As cabeças estavam baixas e os olhares fugidios. A vergonha juntava-se à tristeza.

Uter, desde o começo do cerco e da mortandade da hoste real, estava sem notícias dos seus grandes senhores: Sorgalles, é claro, que tinha sofrido o primeiro choque da invasão, mas também Lyonesse, Orcanie, Carmelide... Carmelide, justamente... Nenhum dos homens que tinham conseguido juntar-se à cidade lhe soubera dizer se o duque Léo de Grand continuava vivo. Era como se o exército tivesse desaparecido num instante, como se cada um dos homens de armas, arqueiros, escudeiros e cavaleiros tivesse combatido sozinho, para salvar a própria vida, sem que em nenhum momento tivesse havido batalha. Bastantes tropas tinham vindo para Loth, nos dias seguintes, e aldeias inteiras conduzidas pelo seu barão e pelo padre. Mas, apesar de toda esta gente, não havia em Loth homens suficientes para montarem uma expedição, saírem por fim destes muros e enfrentarem os monstros em campo aberto, em vez de morrerem de frio, de fome e de medo, à espera do ataque final. Pelo menos suficientes homens corajosos. Esperança suficiente, vontade suficiente. Não restavam senão náufragos agarrados aos restos das suas vidas, esperando sobreviver um pouco mais, passar o Inverno.

Um movimento ao longe tirou bruscamente Uter dos seus amargos pensamentos. Com o coração a bater, apoiou-se num merlão, e debruçou-se por cima da ameia para ver melhor, mas não havia nenhuma dúvida: uma pequena partida de cavaleiros, escoltando algumas carruagens, aproximava-se da cidade. O rei endireitou-se, procurou com os olhos um guarda e dirigiu-se ao primeiro que viu, enquanto que no mesmo instante o soar de uma trombeta ressoava de uma torre de ângulo. Os vigias, graças a Deus, não estavam a dormir. Também eles os tinham visto. Dezenas de homens armados jorraram imediatamente de cada praça de armas, e espalharam-se sobre o caminho de ronda cheio de neve e, tal como ele, debruçaram-se para melhor observar o comboio que prosseguia sobre o caminho de terra batida. Passado o primeiro momento de inquietação, gritos de alegria elevaram-se entre os guardas. Era o primeiro sinal de vida fora das fortificações que lhes era dado ver depois de vários dias. Os cavaleiros não eram no entanto suficientemente numerosos para constituírem algum reconforto, não traziam nem bandeira nem estandarte, nem mesmo lanças. Havia duas carruagens, uma das quais era uma estranha atrelagem que parecia mais uma liteira que um carro coberto, mas eram homens, sem dúvida, e se eles tinham podido passar, era porque, talvez, os lobos tivessem partido...

Um sargento, com a cara azul de frio debaixo do capuz de malhas coberto de neve, veio receber ordens, e Uter agarrou-o familiarmente pelos ombros, reconhecendo um velho companheiro de armas (mesmo sendo incapaz de se lembrar do nome).

— Desce à seteira — disse. — Ordena-lhes que baixem a ponte levadiça mas que não os deixem entrar. Vai depressa.

O homem partiu a toda a pressa, com risco de se estatelar no caminho de ronda gelado, enquanto o rei se debruçava novamente na ameia. Os cavaleiros não eram mais de uma dezena, ao todo, bem vestidos para o frio, bem armados e montando sólidos rossins, mas não eram soldados nem cavaleiros de armas. Chegados aos arredores da cidade, cavalgaram mais devagar e alguns chegaram mesmo a desmontar, aliviando os seus cavalos extenuados. Quando não estavam a mais de algumas toesas da seteira que defendia a porta grande, um dos que tinha ficado montado avançou sobre o pátio e levantou a mão em sinal de paz.

— Asilo, em nome de Mahault de Scâth! Trazemos notícias para o rei!

Uter teve um gesto de surpresa, e depois afastou-se da ameia sorrindo. Mahault... Mahault de Scâth... A última vez que se tinham visto, tinha sido no seu refúgio, nas profundezas de Kab-Bag. Tantas coisas tinham acontecido, depois... Ele conteve-se para não correr sob o olhar dos seus homens, mas deixou o caminho de ronda tão depressa quanto possível, entrou na torre de ângulo e desceu as escadas até ao nível do pátio, onde se juntou nalgumas passadas ao posto de guarda da ponte levadiça.

Aí, os seus homens levantaram para ele olhares interrogadores, febris e cheios de esperança.

— Venham comigo — disse ele.

Mais alguns passos e estava lá fora, tomado de novo pelo vento gelado, piscando os olhos sob a neve a cair. Agarrou pelo freio o cavalo do emissário e fez-lhe uma festa no pescoço. O pobre animal parecia esgotado, suado apesar da neve e deitando um bafo quente no frio da manhã.

— Desce — ordenou ele ao cavaleiro. — Levem este cavalo à cavalariça, esfreguem-no com palha e dêem-lhe de beber em menos de uma hora, se não ele vai rebentar!

O homem obedeceu com uma lentidão insolente, deu as rédeas aos guardas e ficou parado a olhar para ele. Os seus olhos, o seu sorriso torvo, as suas roupas de couro escuro, as adagas que trazia à cintura, o anel, no dedo, com a runa de Beorn... Este homem era um assassino, um assassino da Guilda cujo lugar era a forca, sem apelo nem agravo. Não se afastou senão de mau grado do caminho de Uter, com tanto desrespeito quanto possível, e o rei sentiu o tremor de cólera dos seus guardas, por trás de si.

— Qual é o teu nome? — disse Uter.

— Guerri... Guerri o Louco — respondeu o homem levantando o queixo.

— Condiz contigo... Desarmem-no e revistem-no bem. Nenhum deste homens entra armado na cidade!

Depois avançou para a primeira carruagem, uma grande liteira atrelada a quatro cavalos, dois de lança e dois balancins, conduzido por um cocheiro semi coberto de neve e que lhe pareceu gelado até aos ossos. Contornando a carruagem, afastou a cortina de couro que fechava a caixa. Uma baforada de calor perfumado saltou-lhe para a cara. No instante seguinte, um jovem vestido ridiculamente de sedas brandiu um punhal debaixo da sua garganta, com um grito agudo. Uter esquivou-se lestamente, agarrou-lhe o punho e, com um movimento brusco, atirou-o a rolar para a neve. O peralta caiu dando uma cambalhota, de tal forma que todos puderam ver que não trazia nada debaixo do fato, e levantou-se como pôde debaixo das graçolas dos seus companheiros.

— O rei em pessoa! — comentou uma voz grosseira, perdida debaixo de um monte de almofadas, de peles e de estofos. — É uma grande honra para a velha Mahault!

E ela emergiu, gorda e branca, da sua amálgama de tecidos.

— Tu não mudaste, meu pequenino — disse ela dengosamente. — Sempre bonito, sim, sim, sim...

— Tu também não mudaste nada, Mahault de Scâth. A não ser teres deixado a tua torre.

A velha receptora sorriu, e depois enrolou-se friorenta em tudo quanto se encontrava à mão.

— Queres matar de frio a velha Mahault, meu lindinho? Sobe para perto de mim, para me manteres quente, sim, sim.

Uter sorriu, depois deitou um olhar divertido ao jovem transido de frio que se tinha levantado e batia os pés na neve, envergonhado, ridículo.

— Tenho medo que escondas outro dos teus pagens debaixo desse montão de almofadas — disse ele. — Voltaremos a falar em breve, quando já estiveres quente.

Ele baixou a cortina, pondo fim ao palratório da velha, e depois bateu na garupa do cavalo de lança.

— Deixem-nos entrar!

 

Lliane não tinha dito nada desde o seu regresso à ilha. Nem uma palavra, a não ser para Rhiannon. Dorian, Kevin, Till e o senhor Bran tinham ficado na margem, sem que Merlim percebesse, e só ele tinha seguido a rainha até ao seu refúgio de Avalon. Enquanto a barca abria passagem entre as canas, ele tinha tentado falar-lhe mas não tinha encontrado palavras. No máximo, tinha arranjado coragem para lhe pegar na mão. Lliane tinha-lhe sorrido, um breve instante, e depois tinha-lhe virado as costas, e, desde que o bote tinha tocado em terra, ela tinha-se evaporado. Desde então, ele tinha ficado só.

Todas as manhãs, vinha sentar-se no rochedo que a rainha tanto gostava, uma grande rocha saliente das vagas, do cimo da qual se podiam vislumbrar as copas das grandes árvores da floresta, para lá do nevoeiro. O Inverno tinha ficado fora da ilha, como sempre, mas o frio chegava até ele, nas nuvens de bruma que se desfiavam à beira de Avalon. O vai e vem tranquilo do lago e o lento balançar das canas ao menor sopro de ar, alimentavam a melancolia da sua alma. Não havia ninguém com quem falar, de qualquer maneira, nada para fazer além de atirar pedrinhas à água e contar os círculos. A rainha e a filha tinham-se refugiado no interior das terras, onde só o pequeno povo as podia encontrar. Ele não tentara ir ter com elas.

Talvez ele fosse ficar assim durante séculos, enquanto o mundo para lá da bruma escureceria para sempre. E no fim de contas, o que é que isso interessava? Os únicos seres que ele amava realmente estavam ali, na ilha. O resto não passava de caos e batalhas, frio, sofrimento, tristeza... Talvez fosse a vontade dos deuses, já que eles tinham criado assim o mundo, mortal, efémero, fugaz. Um mundo feito de vida, de amor, de beleza, de cantos, de risos, mas também de coisas feias, de gritos, de choros e no final de contas de morte. A morte inelutável. A morte para todos, príncipes e camponeses, ricos e miseráveis, imbecis e sábios. A morte para o anão escavando a sua mina, a morte para o kobold imundo farejando os cadáveres, a morte para a árvore coberta de folhas, a morte para o pássaro e para a doninha, a fonte de água viva, a falésia batida pelo mar. Cedo ou tarde, suave ou violenta. A única questão era saber quando...

A água, por baixo dele, parecia esperá-lo. Merlim levantou-se, despiu a túnica, dobrou-a, pousou-a em cima dos seus parcos bens, e depois avançou até à borda do rochedo. E pronto. Não era preciso mais que um passo em frente para acabar de retardar em vão o inevitável. Ganhar tempo. Ir para o Sid, a paz por fim no Outro Mundo... Durante um longo momento ficou assim, nu na brisa, contemplando o brilhar indiferente das correntes, chorando de si e da sua pobre vida. Demasiado tempo para conseguir dar o passo. Então renunciou, estendeu-se sobre o rochedo e fechou os olhos.

— É tão triste — murmurou ele.

— O que é que é triste?

Ele reconheceu a voz de Lliane mas não se mexeu, nem abriu os olhos.

— Há, apesar de tudo, beleza neste mundo — disse ele. — O sol através da folhagem, a água fresca do riacho, o vinho de Uter, na corte... Há os teus olhos, tão verdes quanto prados, os teus cabelos e a tua pele. Há as tuas pernas, tão compridas quando andas, os teus seios debaixo da tua túnica... Eu vi-te, sabias, no dia do furacão. Nunca tinha desejado tanto uma mulher, fosse ela elfo ou humana...

Merlim sorriu e abanou a cabeça, espantado consigo próprio pelo que acabava de dizer, mas o seu pulso acelerou-se quando ela se deitou a seu lado, sem nenhum tecido entre eles.

— Não tenhas medo...

Ela estava ali, tão doce e quente contra o seu corpo gelado, e a brisa cobria-os a ambos com a carícia dos seus longos cabelos negros. Ter-lhe-ia bastado levantar a mão para tocar a sua pele...

— É verdade, tenho medo de ti — disse baixinho. — Os homens sempre tiveram medo de ti, sabias? E até mesmo Llandon te temia. Creio que só Uter te não conseguiu ver tal como és, que só ele te amou o suficiente para não se assustar com a tua beleza. E depois pronto... Ygraine é muito bela, mas de uma beleza humana, portanto imperfeita, portanto aceitável... Sem dúvida também ele tem medo de ti, finalmente.

Ele interrompeu-se, e durante um longo momento ficaram em silêncio, sob o murmúrio do vento.

— Eu devia detestar este mundo... Desde que nasci, que inspiro medo, desprezo ou ódio. Sei o que dizem de mim. Que sou filho de um diabo, que ninguém se pode aproximar de mim sem se sentir mal, não tenho idade, nem raça, nem povo... E no entanto, sabes, a idéia de ver este mundo desaparecer dá-me um nó na garganta e faz-me vir lágrimas aos olhos. Choro por Bran e pelos seus insultos loucos, por Uter que me atirou ao chão, por Rhiannon que não quer ser parecida comigo. Eu choro por ti, Lliane, que não me amas.

— Ficaste demasiado tempo perto dos homens — murmurou a voz da elfo mesmo perto do seu ouvido, terna e quente. — O que os homens chamam de amor é sofrimento, uma demanda impossível que cega o coração e o espírito. Eles nunca se contentam com o momento presente, com a suavidade da minha mão na tua cara, com o meu corpo contra o teu, com a felicidade que há nisto, com o prazer quando ele chega... Não abras os olhos Myrddin. Nenhuma raça animal, nenhuma tribo da Deusa, conhece o amor dos homens. A ternura, sim, o desejo, o prazer e a embriaguez, a afeição, mas não essa paixão que aniquila tudo em que toca. Não procures amar-me. Agarra aquilo que eu te dou, Myrddin, não aquilo que te não posso dar. Se não tivesse amado Uter...

Ela não acabou a frase mas encostou-se um pouco mais a ele. Apesar disso, apesar do calor do seu corpo e da doçura dos lábios dela na sua pele, Merlim sentiu que o momento se desfazia entre eles. Então abriu os olhos e virou-se para ela.

— Se não tivesses amado Uter, Rhiannon não teria nascido — disse ele. — Não foste tu quem destruiu este mundo, tu sabes, nem tu nem ele. Mas é talvez ela quem o vai salvar...

Lliane sorriu tristemente, depois afastou-se dele e deitou-se de costas, contemplando as nuvens no céu.

— És muito gentil, mas não faz sentido...

— Se não faz sentido, é porque os deuses não sabem o que fazem — respondeu Merlim, num tom subitamente exaltado. — Lembras-te da profecia das runas? Ethel, a runa da casa. “Byth oferleofaeghwylcum... A casa é querida dentro do coração de cada um.” A runa de Rhiannon estava ao contrário, e tu pensaste que era um mau presságio, que ela ficaria sozinha para sempre, longe dos seus... Não é isso que eu vejo, Lliane. Vejo um mundo onde não haverá mais elfos, mais homens, anões ou monstros, mas uma só raça, igual aos deuses, e que nunca mais vai precisar deles. Rhiannon não é nem elfo nem mulher. Ela é aquilo que todos seremos um dia.

— Ela é aquilo que tu já és — disse Lliane. — “Sem raça, sem povo...” São as tuas próprias palavras.

— E tu, qual é o teu povo? — cortou Merlim.

A elfo não respondeu. Ela sentou-se, agarrando as pernas com os braços, e quando pousou a cara nos joelhos, a cortina negra dos seus cabelos escondeu-a quase por completo aos olhos do homem-criança.

— Desculpa-me — murmurou ele. — Não quis magoar-te. Nós acreditamos que o mundo foi feito para durar para sempre, mas é isso que não faz sentido. Nada dura para sempre... O mundo muda, sim, mas é porque os deuses querem que ele mude. E nós somos os seus instrumentos, tu, eu, Uter, Rhiannon...

Ela virou a cabeça e pousou a face sobre o joelho.

— Podiam ter escolhido melhor — disse ela. — Bem depressa, serão os monstros que reinarão sobre o mundo.

— Os monstros obedecem à Deusa, como nós. Os deuses quiseram castigar os homens, já está. Cabe-nos a nós, agora, vencê-los, para que a vontade dos deuses se cumpra, para que todos estes horrores acabem e a tua filha possa finalmente reinar sobre um povo em paz.

Lliane sorriu de novo e voltou-se para ele.

— Tu sonhas, querido Myrddin... Ainda és mais cego que Llandon, e bem mais surdo que o velho Gwydion. Os elfos não combaterão. Com quem é que queres vencer o Inominável? Com Dorian, Kevin e os outros? Um punhado de elfos contra um exército de monstros? Tu falas por falar...

Merlim aproximou-se dela, afastou a sua longa franja que lhe escondia o perfil e puxou-a carinhosamente para ele.

— Não foram os exércitos do rei que venceram os anões — murmurou ele ao seu ouvido, cheirando o seu perfume a erva cortada. — Se eles estão hoje a desaparecer, é porque já não têm o talismã. Aliás, nenhum exército, por mais forte que seja, pode destruir um povo. Vê o exemplo dos monstros... Foram precisos dez anos de batalhas e de massacres para os repelir para as Fronteiras. Julgávamo-los aniquilados, e eis que voltam, mais numerosos ainda do que antes. Não será com uma nova guerra que serão vencidos. Em contrapartida, se deitarmos a mão ao talismã deles...

Lliane levantou para ele o seu olhar verde tão claro e ele soube que ela tinha compreendido.

— Sem talismã — disse ele —, nenhum povo vive.

 

Não havia o menor sopro de ar fresco na sala. As janelas tinham sido escondidas por cortinas de tela encerada, fogueiras enormes ardiam nas chaminés sobre um espesso leito de brasas, e o perfume forte de Mahault dava-lhes bem mais volta à cabeça que todo o vinho que pudessem ter bebido. A velha receptora tivera fome, e tinha sido necessário suportar vê-la a comer (um espectáculo pouco apetitoso), abafada nas suas peles e sedas apesar do calor da sala, até que a mesa ficou vazia de todas as vitualhas. Uter tinha-se divertido com a repugnância com que o abade Illtud a olhava, resmungando entre dentes não ser possível tal quantidade de provisões ser deglutida com uma tal bolimia quando havia tantos pobres a quem faltava o pão. Com o passar do tempo, no entanto, os trejeitos e os barulhos nojentos de sucção que pontuavam a refeição a cada momento, acabaram por esgotar igualmente a paciência do jovem rei, e, quando ela estendeu a taça para que o escanção lha enchesse de novo, ele interceptou a garrafa e pousou-a fora do seu alcance.

— Querias falar comigo, ou vieste só encher a pança?

A velha olhou-o com um trejeito de desaprovação e depois pousou o copo de estanho.

— No tempo do duque Gorlois, éramos mais bem recebidos — sussurrou ela.

— Nunca gostei realmente do duque — disse Uter com um sorriso de conveniência a Ulfin —, mas duvido que ele tenha tido a idéia de te convidar para o palácio...

— Achas?

Durante um breve instante, os olhos de Mahault adquiriram um brilho matreiro que o incomodou profundamente. Ele não ignorava o uso que o rei Pellehun e o seu senescal tinham feito da Guilda, mas daí a receberem uma das suas representantes menos discretas...

— Esta velha louca fez-nos perder o nosso tempo — resmungou Illtud levantando-se bruscamente da mesa. — Tenho bastante que fazer perto dos feridos e dos doentes. Permiti-me que me retire.

— Sentai-vos, abade — disse Uter. — Creio que temos bastante a ouvir dela, ou senão...

— Muito, muito, meu lindo! — gargalhou Mahault. — Tu sabes tão pouco de tudo!

Ela fez uma pausa, limpou o prato com a ponta do dedo e chupou-o pensativamente, com umas caretas que Ulfin achou obscenas, e depois lançou:

— O Mestre está em Kab-Bag.

Foi-lhes necessário algum tempo para perceberem de que é que ela falava, ou para o ousarem perceber.

— Todo o seu exército se instalou lá fora — continuou ela, satisfeita com o efeito. — Há-os por todo o lado na planície, em léguas à volta, e ele próprio está instalado no palácio do xerife Tarot... Ou no que resta dele, sim, sim...

— Os gnomos combateram? — perguntou Ulfin, o que teve o condão de a divertir.

— Combater, combater, combater! Ah! Quem é que alguma vez viu os gnomos a combater?

O cavaleiro deitou um olhar de lado a Uter. É claro, os gnomos da cidade subterrânea pertenciam à terra de Logres e, por isso, tinham teoricamente prestado juramento de fidelidade ao rei, mas a notícia da queda de Kab-Bag não constituía grande surpresa, era mesmo um alívio. Se o Inominável se instalava ali, naquele buraco de ratos gordurosos furado no coração das grandes planícies, era porque tinha posto um termo, pelo menos provisoriamente, à sua pavorosa ofensiva. Sem dúvida ignorava até que ponto o reino estava enfraquecido...

— Dos pobres gnomos já quase não resta nenhum — balbuciou ela num tom subitamente apiedado, acompanhado com um ar de circunstância. — Todos os dias morrem dezenas... Tenho medo que ninguém consiga sair de lá vivo.

— Todos menos tu, Mahault — cortou Illtud. — Ainda por cima com carruagens e uma escolta! De que traição te encarregaram para te deixarem passar?

Por um instante, ela olhou furiosa para o abade, depois encolheu os ombros e instalou-se no cadeirão com um trejeito fatalista.

— Vocês não sabem de nada — disse ela. — Ninguém sai de Kab-Bag, mas Scâth teve sempre as suas entradas próprias, sim, sim!

— Scâth? O que é isso?

— O bairro reservado à Guilda — explicou Uter.

— Não nos julgavas suficientemente parvos para nos instalarmos no fundo daquele buraco sem prevermos uma porta de saída, não ..é meu lindo?

Uter devolveu-lhe o sorriso, recostou-se também no seu cadeirão e serviu-se de um grande copo de vinho, ignorando a taça que ela lhe estendia.

— Muito bem. Que tens a propor?

— Eu? Nada... Sabes, belo rei, eu não passo de uma pobre velha. Tudo o que desejo é morrer em paz, sim, sim, sim. Mas, se tu quiseres, os meus homens podem mostrar-te a entrada do subterrâneo. Os monstros não a conhecem...

— É uma armadilha! — gritou Ulfin.

— É claro que é uma armadilha — disse Uter. — Quem poderia ser suficientemente louco para seguir um bando de assassinos até ao seu covil e depois combater os monstros no fundo de um buraco!

— Não te propus nada — disse Mahault. — E muito menos combaterem, não, não... É sem dúvida preferível esperar que eles venham, quando tiverem decidido...

Uter olhou intensamente para ela, estendeu o braço e serviu-lhe um copo que ela bebeu de um trago, depois outro.

— Um subterrâneo, ha?

— Tu não queres de qualquer modo...

Uter pousou a mão sobre o braço de Ulfin para o calar, sem deixar de olhar para a receptora.

— O Mestre, como tu lhe chamas... Viste-o?

Pela primeira vez o olhar de Mahault perturbou-se. Não havia mais que uma pálida luz nas pregas gordurosas da sua cara, único brilho de vida em todo aquele monte de carnes esbranquiçadas, de vestidos e de jóias de um luxo ridículo, mas ela tinha-se velado, e Uter teve fugazmente a impressão de ver o ser humano que se escondia por trás daquelas barreiras de tecido e gordura. Mahault era incapaz de se movimentar sozinha. Tinha sido preciso levarem-na ao colo até àquela sala e iria ser necessário fazer o mesmo para a tirarem de lá. Apesar de todo o seu ouro, o mais novo dos escudeiros poderia pôr fim aos seus dias com um simples golpe de adaga, e nenhum dos seus mercenários levantaria o dedo para a ajudar. Ao deixar a sua toca para se refugiar em Loth, era a sua vida que ela punha nas mãos dele. Aquela pequena chama, no seu olhar, era uma luz de angústia.

— Viste-o, não é verdade?

Mahault fechou os olhos e abanou a cabeça. A abjeção daquele instante ultrapassava todos os horrores que ela tinha podido ver desde os mercados de escravos que a tinham vendido a uma casa de prazer em Kab-Bag, séculos atrás... A sala devastada e escura, os soldados gobelins e aquela espécie de gigantes magros, todos vestidos de preto, que guardavam o trono, o senhor Maheloas, desdenhoso e belo como um deus, segurando a Lança... Os carregadores da cadeira tremiam tanto, que ela quase caía a cada passo, e sobretudo quando a puseram no chão.

— De joelhos diante do Senhor — tinha assobiado a voz sibilante do portador da Lança.

Ela tinha tentado fazer força nos braços da cadeira, mas só tinha conseguido deslizar para o chão, como um montão disforme de tecidos e carnes.

— Então, eis a senhora da Guilda — tinha dito o Mestre. — Que estranho ar para alguém tão poderoso... Que importa. Estou contente por te ver, velha. Sei todos os serviços que a Guilda prestou ao rei Pellehun e ao seu senescal... Agora é preciso fazer o mesmo por mim. Que os ladrões, que os assassinos se espalhem por todo o reino. Que roubem e que matem. Todo o ouro, todas as riquezas serão vossas, faz delas aquilo que te apetecer. Só quero o medo... Olha para mim.

O Mestre tinha-se inclinado sobre ela, avançando a sua cara para um raio de luz. Ela tinha levantado os olhos e visto...

Uter vislumbrou uma lágrima, ao longo das suas faces.

— Eu não sou... eu não sou assim, — disse ela num tom implorante. — Não sou eu...

— Que é que tu dizes?

Ela levantou a mão e agitou-a diante da cara, depois tentou levantar-se, com a boca muito aberta, respirando como um peixe fora de água. Diante das caras surpreendidas deles, ela foi tomada de espasmos e a sua pele lívida tornou-se carmesim, como se asfixiasse bruscamente. Antes que pudessem intervir, um estremecimento maior que os outros fê-la deslizar para o chão, enrolada nas suas peles, e rolar para debaixo da mesa agarrando-se à toalha, o que fez cair sobre ela os restos do seu repasto.

Illtud foi o mais rápido a reagir. Pegando num jarro de água, despejou-lhe sobre a cara e depois, com uma força de que Uter nunca teria desconfiado, virou-a de lado e desapertou as várias camadas de capas, de camisas, de cotas e corpetes que a cobriam.

— Vai buscar um físico! — gritou Uter a Ulfin.

— Não vale a pena, está viva — disse o abade. — Abre essa janela, apaga o fogo! Ela precisa de ar fresco, rapidamente!

Ulfin desembainhou a adaga e cortou o cortinado encerado que escondia o vão. Rapidamente o vento gelado da planície espalhou-se pela sala, levando os restos pesados do seu perfume e o calor do lume. Uter ajoelhou-se perto da velha receptora e levantou-lhe a cabeça. O seu boné tinha caído, os seus vestidos estavam desfeitos. Não restava mais que uma criatura deplorável, quase careca, tão branca e flácida que tinha um ar bolorento.

Ela voltou para ele um olhar implorante ainda cheio de lágrimas e fez um esforço para articular algumas palavras:

— Sim — disse ela. — Eu vi-o... Por isso é que fugi.

 

                     O PACTO

Tinha caído mais de um palmo de neve fresca durante a noite [33], cobrindo desde os ramos das árvores até aos charcos gelados da mesma brancura uniforme, do mesmo silêncio baço que nenhum deles parecia querer perturbar. Cavalgavam dispersos, alguns em grupos e outros sós, com uma lentidão que Léo de Grand achava desesperante, agora que Loth já estava à vista. Lliane ia à frente, bem longe dos outros, cabeça nua e enrolada no seu casaco de catassol de reflexos verdes e castanhos. Depois de as altas torres da cidade real terem aparecido no horizonte, ela tinha-se afastado deles, imperceptivelmente, como se fosse Ura, a sua jumenta, uma alazã marcada com uma estrela branca na testa, quem tivesse resolvido acelerar o passo. Nem Merlim, nem Dorian, nem nenhum outro elfo, anão ou homem da companhia tinha conseguido ir ter com ela, mas é necessário dizer que todos eles montavam cavalos livres da horda de Lame, e que estes obedeciam mais às suas próprias leis do que às esporas dos cavaleiros. A rainha montava sem sela nem freio e cantava em voz baixa um canto que Till lhe tinha ensinado em outros tempos, e que os cavalos gostavam. É uma coisa esquecida hoje em dia, e que parece bem absurda, mas os elfos conheciam a linguagem dos animais. Não todos, é claro, nem a linguagem de todos os animais, mas Lliane sabia o suficiente para dizer à sua jumenta que queria estar sozinha, e Ura tinha passado a mensagem ao resto da horda, num longo relincho do qual os homens e os anões não tinham entendido nada. Não havia tristeza no coração da rainha, e se ela se tinha isolado assim não era certamente por estar com pena de si mesma. Ao contrário, a calma destas extensões geladas enchiam-na de uma simples sensação de felicidade que ela própria teria tido dificuldade em explicar. Ela tinha perdido o hábito ao frio e tremia debaixo da sua fina túnica de pele, aqueles poucos dias de cavalgada tinham-lhe mortificado o corpo, e o interior das suas coxas estava quase paralisada à força de segurar os flancos da jumenta. Mas esta paisagem imaculada dava-lhe a ilusão de um mundo novo, onde uma nova vida se podia escrever, um mundo novo lavado dos horrores que o devastavam há tantos anos e dos quais ela não carregaria mais o peso. Cada passo a afastava um pouco mais de Avalon e da sua filha, mas ela não sentia tristeza alguma. Rhiannon, pelo menos, vivia em paz, longe de todas aquelas loucuras... Acontecesse o que acontecesse, o pequeno povo tomaria conta dela até ao final dos tempos. Mesmo se ela não regressasse...

Não lhes tinham sido precisas mais do que algumas horas para juntarem cavalos e equipamento, reunirem os sobreviventes do exército de Uter e deixarem Brocéliande, virando as costas à clareira dos elfos para talvez não mais voltarem — mas nem disso ela sentia amargura. Pelo contrário. Depois da partida, dois dias antes, ela sentia o seu coração mais leve. O simples fato de montar Ura transportava-a a bastantes anos atrás, a uma época onde a vida podia parecer fácil e cheia de certezas. E depois, ela própria se esforçava por não pensar nisso, em algum lugar, por trás daquelas torres longínquas salpicadas de estandartes, estava Uter.

Subitamente, a sua jumenta resfolegou para a pôr alerta e depois partiu a galope na neve, não lhe dando tempo para se agarrar à sua crina.

— Tinha dito para nos deixarem sozinhas! — relinchou Ura.

— Fiz o que pude — respondeu o cavalo montado por Léo de Grand, um rossim baio de crina e jarretes negros. — Mas ele não pára de me puxar as rédeas e de esporear!

— Rainha Lliane, esperai por mim! — gritava o duque. — Precisamos falar!

Mas a rainha afastava-se como se não o tivesse ouvido, e aquele maldito animal tropeçava a cada passo, como se nunca tivesse transportado ninguém durante a sua vida.

— E se caminhássemos um pouco?

Carmelide voltou-se, com a cara vermelha de raiva, e acalmou-se a custo perante o sorriso inocente de Merlim.

— Deixemos os cavalos abrirem caminho diante de nós — disse ele descendo da sela. — Com esta neve eles cansam-se depressa... Seguiremos o trilho deles, será mais fácil.

Léo de Grand murmurou um vago assentimento e pôs pé em terra com uma careta de dor. Apesar de todos os tratamentos e carinho de Blodeuwez, o seu ombro continuava entorpecido e era a custo que ele conseguia mexer o braço.

— Prefiro gelar os pés na neve do que suportar este maldito garrano. Nunca vi semelhante pileca. É impossível fazê-lo andar reto!

— Mudai para o meu cavalo daqui a pouco, senhor duque. Ele porta-se bem...

Carmelide virou-se para o homem-criança, tão frágil ao seu lado no seu longo vestido azul, semi esmagado por uma capa de pele que parecia querer enterrá-lo no chão, e respondeu com um abanar de cabeça que poderia passar por um sinal de gratidão. Abriu a boca para falar com ele, sem no entanto conseguir encontrar palavras. Estranhamente, o duque sentia o coração a saltar-lhe pela boca, como sempre que se encontrava em presença dele, desde que tinham partido de Brocéliande, mas deitou as culpas para o seu ferimento. Na verdade, Merlim era um ser estranho, tão magro e de aparência tão frágil que ele não conseguia achá-lo perigoso, como sussurravam os homens do Lago. Não passava de uma criança mal feita, com os seus grandes cabelos brancos de velho que lhe davam um ar estranho, era tudo. O resto não passava de histórias de comadres e contos de druidas.

Sorrindo por fim, dobrou-se para apanhar um punhado de neve com o qual esfregou a cara, bateu negligentemente no ombro de Merlim, para lhe chamar a atenção e apontou para a rainha, cujo cavalo se tinha posto a passo.

— Dir-se-ia que ela me evita — disse ele, num tom mais baixo.

— No entanto, gostaria de saber porque nos arrastamos assim, quando Loth não está a mais de algumas léguas. Se andássemos um pouco mais depressa, poderíamos chegar antes de ser noite. Então, porque não picamos os cavalos e vamos dormir no quente, de uma vez por todas!

— É verdade? — disse Merlim. — Não pensei que estivéssemos tão perto... Os elfos não são assim tão bons cavaleiros, sabeis... Pelo menos não tão bons quanto os cavaleiros do rei. Mas porque não partis à frente? Ide e preveni o rei da nossa chegada!

Carmelide olhou-o e depois virou-se para alguns cavaleiros que os seguiam e, depois, para a longa fila de soldados de infantaria que se espalhavam na trilha deles, até não os ver mais.

— Os vossos homens servir-nos-ão de escolta até lá — disse Merlim seguindo-lhe o olhar. — E depois, não há nada a temer, de momento. Se os monstros nos quisessem atacar, já o teriam feito há muito tempo.

— É certo...

— Dizei ao rei que o esperamos à beira do lago.

Merlim assobiou ao cavalo, agarrou-lhe as rédeas e debruçou-se sobre as narinas dele como se lhe falasse. Carmelide, hesitando ainda, pegou nas rédeas que ele lhe estendia e depois, decidindo-se subitamente, içou-se sobre a sela.

— Vai falar com o barão Meylir — disse ele. — Que ele tome o comando da tropa...

— Assim farei, senhor duque. E quando vires Uter, dizei-lhe que irei esperá-lo à porta do lado do lago, de manhã cedo. Creio que a rainha não teria gostado de entrar na cidade, de todas as formas. É melhor assim...

Sem esperar resposta, Merlim bateu na garupa do cavalo, que partiu a galope, numa nuvem de neve, ultrapassou a rainha e desapareceu rapidamente de vista.

— Onde é que ele vai? — perguntou uma voz sonora por detrás dele.

— A Loth, vê tu bem — disse Merlim voltando-se para Bran, e disfarçou um sorriso ao vê-lo, a ele e aos seus companheiros, empoleirados às três pancadas em cavalos demasiado grandes, altos e largos para as suas curtas pernas.

Os anões quase nunca utilizavam cavalos, nem na guerra, nem na caça, nem mesmo para viajarem. Simplesmente alguns póneis, cujo tamanho e lentidão lhes eram mais suportáveis. Como todos os príncipes da Montanha, Bran tinha recebido algumas noções de equitação, e conseguia fazer mais ou menos boa figura, mas Sudri e Onar tinham um ar esverdeado e pareciam um e outro a ponto de entregarem a alma. Sem dúvida que se a neve fosse menos alta eles teriam preferido caminhar a pé.

— Vai prevenir Uter, é isso?

O tom da sua voz alarmou Merlim, que deu um grande suspiro de exasperação.

— Que se passa? — disse ele agarrando as rédeas de Bran. Querias talvez voltar a Loth, convocar de novo o Conselho, e cortar-lhe a outra mão, para arranjares uma briga?

— Que disparate — resmungou o anão.

— Deixa-me tratar de tudo, desta vez, está bem? Esta noite... O homem-criança interrompeu-se, acariciou o pescoço do cavalo durante alguns instantes e depois, afastando-se dele, tomou a direção da cidade.

— Esta noite, falarei com Uter.

Só tinham ficado os elfos e o pequeno grupo de anões, à beira do lago. Mal tinham parado, a menos de uma légua da cidade e com a noite já a cair, Meylir de Tribuit não tinha hesitado um segundo. A maioria dos seus homens estavam feridos, esgotados e mortos de fome. Passar, tão próximo do seu objectivo, mais uma noite à neve e ao frio, parecia-lhe a pior das abominações. Então, encolhendo a cabeça para não cruzarem o olhar com o dos elfos, um pouco envergonhados e de mau humor por se sentirem culpados desta maneira, os sobreviventes do exército desfilaram diante deles e desapareceram rapidamente no crepúsculo.

Bran e os companheiros acenderam uma fogueira, coisa que nenhum dos elfos teria tido idéia de fazer, mas todos eles se juntaram agradecidos em volta das chamas e aceitaram de bom grado o vinho quente que os anões lhes ofereciam, tanto que todos ficaram um pouco bêbados antes da noite, menos Kevin, evidentemente, que temia, que a bebida lhe arruinasse a mão e se tinha colocado nos ramos de uma árvore, para velar sobre eles. Depois Merlim tinha-se lançado a contar uma história interminável, longa e complicada como gostavam os seres azuis, usando a linguagem comum por deferência para com os anões, mesmo que nem todos o entendessem na perfeição. Durante todo o tempo que ele falou, Sudri e Onar não pararam de aquecer vinho, que pelos vistos tinham trazido em abundância- nos numerosos odres de que se tinham encarregado. Foi uma noite agradável apesar do frio intenso que lhes gelava as costas, fora do círculo de chamas, com uma noite clara e cheia de estrelas e a luz da lua brilhando nas águas do lago. Apesar da distância, o vento trazia por vezes da cidade o cheiro a homens, a carne assada, suor e excrementos, mas era suportável, bem melhor do que se tivessem tido que seguir Léo de Grand.

Till, o seguidor de pistas, veio sentar-se ao lado da rainha, e o seu falcão pousou atrás dele, branco como um fantasma na penumbra da noite, enquanto Merlim prosseguia com a sua história.

— Isto faz-me lembrar uma outra fogueira — disse ele baixinho, para que só ela o pudesse ouvir. — Chovia, nesse dia, e Uter estava entre nós...

Lliane virou-se para ele e sorriu. O vinho fazia-lhe brilhar os olhos e dava-lhe um ar apetitoso.

— Foi há tanto tempo, não é verdade? — disse ela num tom despreocupado.

Depois bebeu a sua taça e virou-a.

— O meu copo está vazio, senhor Bran!

— Já vou!

— Vês como as coisas mudam, caro Till — continuou ela mais alto enquanto Bran a servia. — Nós confiávamos nos homens nessa altura, e odiávamos os anões. Obrigado, senhor Bran... Nunca nenhum de vós teria sonhado beber vinho quente preparado por eles, com medo de ser envenenado ou de simplesmente perder as aparências. Agora, tudo isto está longe...

Bran pousou o caldeirão vazio que cheirava ainda aos estonteantes vapores do álcool e das especiarias, e depois tirou de um dos seus numerosos bolsos um cachimbo em barro lascado, que encheu cuidadosamente e acendeu com a ponta de um tição, olhando-a alegremente, como se ela fosse contar uma boa história. Mas Lliane não estava de bom humor.

— Hoje em dia, não confio em ninguém — disse tristemente. E não mereço a confiança de ninguém...

— Como podes dizer uma coisa dessas? — gritou Dorian. — Continuas a ser a nossa rainha, e pelo menos nós seguimos-te!

Lliane olhou-o intensamente por cima da chuva de centelhas que jorravam do fogo.

— Esqueces-te do teu irmão — disse ela, usando a linguagem élfica para que os anões ficassem de fora. — Se tivesses sido tu a acordar, naquela noite, para me levares Rhiannon, ter-te-ia morto, meu pobre Dorian, meu irmãozinho, como matei Blorian...

— Foi um acidente — murmurou ele desviando o olhar. — Tu não sabias que era ele...

— O príncipe Blorian fez aquilo que achava certo — interveio Merlim. — Ele queria salvar a rainha do que julgava ser uma maldição. Mas os deuses decidiram de outra forma, eis tudo.

— Os deuses? Ah! Tu achas que os deuses quiseram que os anões desaparecessem para sempre?

Bran pigarreou para chamar a atenção e levantou o dedo como um aluno pedindo para falar.

— Eu creio que os deuses nos castigaram porque nós os esquecemos — disse ele usando a linguagem élfica.

Depois, sem parecer perceber o espanto deles, continuou na linguagem comum:

— Sob a Montanha, já ninguém acreditava nos deuses, nem mesmo nos talismãs. Caledfwch não passava aos nossos olhos de um tesouro entre outros. Se não tivéssemos perdido a fé, se o meu tio, o rei Troin, a tivesse feito guardar melhor, a nossa linhagem nunca teria sido desonrada e toda esta história nunca teria acontecido.

Deu um longo suspiro, tirou uma grande baforada do cachimbo e acrescentou:

— ...E eu continuaria em minha casa, em Ghâzar-Run, bem quente, em vez de gelar nesta maldita planície.

— Os anões têm sempre frio — riu Till com ar trocista. — Ele lembra-me Tsimmi...

A estas palavras, Sudri, o iniciado na magia das pedras de quem Bran tinha feito seu feiticeiro, pareceu acordar do seu torpor avinhado.

— Conheceste Tsimmi? — perguntou ele.

— Sim...

Till deitou um olhar de lado à rainha. O anão evocava nele boas recordações.

— Um dia, quase nos matou a todos com um dos seus sortilégios — disse Lliane com um sorriso que suavizou as suas palavras. — Enterrou-nos numa levada de terra, e foi assim que Till perdeu o seu cão... No entanto, tornou-se meu amigo.

— Era o maior feiticeiro da Montanha — murmurou Sudri. — Diz-se que morreu ao enterrar um exército inteiro de gobelins...

— É verdade — concordou Lliane. (Os gobelins eram na verdade meia dúzia, mas para que servia restabelecer ali a verdade?) — Nesse dia ele salvou-nos a vida...

Os olhos dos três anões brilharam de contentamento, como se tivessem acabado de ouvir a história mais bela de toda a sua vida. Deviam estar, sem dúvida, mesmo a sorrir, o que era difícil de dizer, devido à espessura das suas barbas.

— Não é sinal de que os tempos mudam? — disse Merlim. — A rainha dos altos-elfos salva por um mestre mação anão. Bran, conosco aqui, esta noite, enquanto que o seu irmão Rogor...

O olhar sombrio que lhe lançou o anão dissuadiu Merlim de acabar a frase.

— Vivíamos então num mundo simples — continuou ele. — Cada tribo vivia contra as outras, cheios de ódios e de certezas, com uma confiança cega no seu direito, a mesma cegueira por tudo aquilo que fosse estrangeiro... Se há alguma coisa em que não se deve acreditar, é nesse mundo. Os anões bons, os elfos maus, tudo isso acabou. Só os idiotas acreditam que um povo pode ser inteiramente bom ou inteiramente mau. Olhem para nós. Os deuses escolheram-nos para mudarmos o mundo, e nós vamos mudá-lo, porque juntos somos mais fortes, mais duros. Temos muito a aprender uns com os outros, e tudo a perder nas nossas guerras...

— Tu esqueces-te dos homens, Myrddin! — lançou Dorian. — Eles nunca querem partilhar nada com ninguém!

— Tu falas como Llandon — reparou Merlim. — Mas tu enganas-te e ele também. Os homens precisam de nós, neste momento, mesmo que ainda não o saibam.

— Vai dizer isso a Uter!

Merlim sorriu.

— Não te apoquentes, Dorian. vou dizer-lhe...

 

O dia demorava a nascer. A bruma fria subia do lago e dos fossos mergulhando as muralhas e o campo com neve no mesmo halo de gelo. Ao longo das margens as águas estavam geladas. Ainda não era gelo, ou então uma película ínfima, mas o Inverno só estava a começar. Bem depressa, as barcas e as canas ficariam presas ao gelo, depois um manto branco cobriria tudo até à primavera...

Foram precisos longos minutos a lutarem contra a neve dura para irem ter com Merlim, tranquilamente sentado num pontão semi partido, balançando as pernas no vazio. Ulfin abria caminho para o seu rei, levantando alto a perna a cada passo, partindo a superfície de neve gelada, quase se estatelando quando ela cedia por vezes bruscamente. Ainda fazia muito escuro para que eles vissem de Merlim mais do que uma vaga silhueta, mas sem dúvida ele devia ter aquele pequeno sorriso enervante, como habitualmente, e tinha-se sentado para que eles se desesperassem a avançar.

— Espero que tenhas uma boa razão para nos teres feito levantar tão cedo, com este frio maldito! — gritou Ulfin mal ele ficou debaixo do seu alcance.

— Vejam bem o nobre cavaleiro do rei! — riu o homem-criança. — Uma braçada de neve e ele já geme como uma velhinha!

Merlim levantou-se rapidamente, apertou bem o seu casaco de urso e bateu os pés sobre o pontão.

— Que direi eu, que estou à vossa espera há horas!

Eles chegaram por fim perto dele, sacudiram as suas capas cobertas de neve e olharam-no em silêncio, com o mal estar e a distância de velhos amigos separados por causa de uma disputa idiota. Estranhamente, Merlim teve a impressão de que Uter tinha envelhecido, nessas últimas semanas. A sua cara era a mesma, com as compridas tranças castanhas e aquela cicatriz rasgada da orelha ao queixo que não chegava a desfeá-lo, mas ele tinha perdido o seu ar jovem. O seu olhar estava fatigado, vazio, marcado pelo peso de um destino que talvez não fosse o seu. Sem dúvida que o regresso de Léo de Grand e do seu exército dizimado tinham tido peso. Pelas suas olheiras e pele acinzentada, era quase certo que tinham passado a noite em conversas, sem terem descansado nada.

— Vês — disse ele quando o rei desviou os olhos —, enganaste-te. Por causa do teu orgulho, quase deitaste tudo a perder, e ainda podes perder tudo se continuares casmurro... Mas tu já sabes isso tudo, dado que vieste.

— Continuas a abrir demais a boca, ha? — resmungou Ulfin ao lado dele, maciço como uma montanha, parecendo a ponto de o deitar à água de cima do pontão.

— Deixa — disse Uter. — Ele tem razão.

Os dois homens trocaram um olhar cansado, e depois o cavaleiro afastou-se alguns passos, deixando-os sozinhos.

— Lliane está ali? — murmurou o rei.

— Lliane, Bran, e alguns outros — respondeu Merlim. — Assim, podereis reunir-vos, mas só se vieres comigo. Eles não irão à cidade... Não depois do que se passou.

Uter abanou a cabeça.

— Não é fácil ser rei, sabes... Fiz aquilo que achei melhor e aliás não creio que as coisas fossem diferentes se te tivesse escutado. Teria devolvido a Espada aos anões, e depois? Será que o exército de Léo de Grand teria podido trazer a vitória? Os anões foram vencidos, é assim. Talvez um dia voltemos a ser uma grande nação, mas é agora que precisamos de reforços, imediatamente... E que importância têm os anões. Que diz Lliane? Os elfos vão ajudar-nos?

— Os elfos não querem a tua guerra — disse Merlim. — Eles pensam que tu os traíste.

De novo, Uter abanou a cabeça, e depois suspirou e levantou as sobrancelhas com um sorriso sem alegria.

— Então que tens para me oferecer?

Merlim sorriu-lhe. Um sol claro de Inverno levantava-se, enchendo a bruma de reflexos cor-de-rosa. Mais do que nunca, o homem-criança, parecia não ter idade, com os seus cabelos brancos cortados curtos e a palidez da sua pele. Apesar da expressão despreocupada que ele mostrava em todas as circunstâncias, emanava dos seus olhos uma tristeza infinita, uma tristeza de fazer chorar.

— A minha ajuda — disse ele —, se ainda a quiseres... Sabes, eu também me enganei. Pensei que era preciso a todo o custo reencontrar o equilíbrio dos tempos antigos, mas é demasiado tarde, já não faz sentido hoje em dia... Eu vou ajudar-te, Uter, mesmo que tu não sejas quem eu pensava. Vou ajudar-te porque acredito que no fim de contas os teus monges têm razão: não pode haver senão uma terra, um só povo e um só Deus.

— Um só rei.

Como se Merlim abrisse os olhos, Uter precisou:

— “Uma só terra, um só rei, um só Deus...” Se queres que acreditem em ti, trata de citar as fórmulas corretamente.

O homem-criança encolheu os ombros e voltou-lhe as costas, contemplando o nascer do sol sobre o lago.

— Que é que isso interessa, se tu não serás nunca esse rei? disse sem se voltar. — Sabe-lo tão bem quanto eu... Ao casares com Ygraine, recusaste o teu destino, mesmo que isso não fosse fácil, como tu dizes. No entanto...

E ele encarou-o sem artifícios, com uma súbita febre no olhar que espantou o rei.

— No entanto tu és o Kariad daou rouaned, o Amado de duas rainhas de quem falavam as velhas lendas. Disso, pelo menos, tenho certeza. Está escrito que do teu sangue nascerá a reconciliação do mundo, e eu pensei que Morgana era a criança das profecias. Mas talvez não seja ela. Talvez seja o teu filho, apesar de tudo... Que sabemos nós, ha? Aliás, vocês os homens só obedecem aos machos!

— M... meu filho? — balbuciou Uter. — Artur? Que é que ele tem a ver com isto?

— Artur, sim... Artur, o urso... Porque não?

Uter afastou-se, procurou instintivamente Ulfin com os olhos e viu-o, sentado um pouco mais longe sobre um cepo. O cavaleiro endireitou-se mal os seus olhares se cruzaram, mas Uter acalmou-o com um gesto. Ele não precisava de ninguém para se defender de Merlim, mesmo que a sua exaltação louca lhe desse por vezes ar de um possuído.

— Eu vou ajudar-te, Uter, mas é preciso que confies em mim, desta vez. Jura que me obedeces...

Uter viu-o, febril, fora de si, com um ar perfeitamente demente, nesse momento, e recuou de novo.

— Sim — disse ele. — É claro...

— Como “é claro”? Tens alguma idéia do que eu te vou pedir? Pela minha ajuda, quero o teu filho, Uter. Eu quero Artur!

— Mas cos diabos, que é que tu julgas, pobre louco! — gritou Uter empurrando-o vigorosamente. — Quais são as tuas manigâncias agora?

— Tento salvar-te, imbecil!

Os dois homens afrontaram-se com o olhar durante um bom bocado, e depois, de repente, Merlim voltou a sorrir despreocupado e começou a andar, sem lhe dar atenção.

— Segue-me — disse-lhe por cima do ombro. — Lliane está à nossa espera!

Não caminharam muito tempo. Merlim contornou o lago até que viram uma coluna de fumo branco, subindo direita ao céu, perto de um bosquezinho. O pequeno grupo tinha-se instalado perto da margem, numa cavidade abrigada do vento por um bosque de bétulas prateadas no qual tinham erguido as suas tendas. A princípio, Uter só distinguiu os anões em volta da fogueira, e o grupo de cavalos a certa distância. Mas, quando avançaram mais, uma flecha assobiou aos seus ouvidos e veio cravar-se na neve com um ruído seco, diante deles. Levantaram os olhos e viram Kevin, que descia já da árvore a rir. Depois, o falcão de Till que seguiram com o olhar até que ele foi ter com o dono, agachado ao lado do príncipe Dorian. Os dois elfos não estavam a mais de alguns passos, tão perfeitamente inertes debaixo das suas capas de catassol que pareciam troncos de árvores na neve, e eles teriam sem dúvida passado por eles sem os verem. Mas esses não riam.

Uter abriu o casaco para que eles o reconhecessem, e depois avançou para os outros. Bran e os anões tinham-se levantado. Tinham posto qualquer coisa a cozer no caldeirão. Qualquer coisa que cheirava bem... À volta da fogueira a neve tinha derretido, formando um círculo de terra lamacenta pintalgada de tufos de erva.

Era ela quem ele procurava com os olhos e foi aí que a viu, quando ela se afastou da árvore perto da qual se tinha sentado. Mais uma vez, a sua beleza irreal fez-lhe um nó na garganta. Ele parou diante dela, incapaz de dizer uma só palavra, de fazer um só gesto, submerso por uma emoção que tomava completamente conta dele e o deixava semelhante a uma criança. Lliane ainda era mais bela do que nas suas recordações, nos seus sonhos, separada dele apenas por algumas toesas de neve, imóvel no seu casaco comprido de catassol e pousando sobre ele o mais doce e mais distante dos olhares. Sem dúvida que ele não deveria ter parado, deveria ter continuado em frente e tê-la tomado nos braços, mas agora já era tarde e ele continuava ali, como que enraizado no chão, demasiado longe dela para a tocar, imóvel e mudo (e foi só mais tarde, ao voltar a pensar nisto, que ele se perguntou se Lliane não lhe teria deitado um feitiço).

— O que é que está ao lume? — disse a voz de Merlim, por trás dele, com uma alegria demasiado forçada para não soar a falso. — Morro de fome e de frio. E se comêssemos antes de conversarmos? Senhor Ulfin?

— Pela minha parte, não digo que não, se Bran nos convidar...

— É claro que convido — resmungou o anão. — Já vos dei de comer tantas vezes, aos dois, que mais uma vez...

Lliane afastou-se do grupo de bétulas e foi ter com os outros, passando tão perto de Uter que ele pode sentir o seu perfume a erva verde, mas sem lhe dirigir uma palavra, nem um olhar. Então ele seguiu-a, transido de frio desde que tinha atirado a sua capa para trás, e bem depressa estavam sentados em volta do fogo, sobre o chão lamacento mas quente, tirando mesmo com os dedos de dentro do caldeirão uma papa espessa, tão quente que não tinha gosto nenhum.

Uter começava a relaxar, e ruminava dentro da cabeça alguma frase simpática para, pelo menos, chamar a atenção de Lliane, mas Merlim não lhe deu chance.

— Não temos muito tempo — disse ele — e já perdemos demasiado por culpa do rei e do seu orgulho imbecil.

De espanto, Uter quase se engasgou, e levantou para o homem-criança um olhar estupefato, não recebendo de volta mais que um erguer de sobrancelhas imperioso.

— Uter reconheceu o seu erro — continuou ele — e, se ele está aqui, é para reparar, conosco, o que ainda pode ser salvo. O que importa, antes de tudo, é repelir os monstros para fora das terras de Logres.

— Com que exército? — disse Dorian. — Nós sete, mais os estropiados que trouxemos da floresta?

— O rei ainda tem muitas tropas — respondeu Merlim. Novamente, dardeou Uter com um olhar que lhe impunha silêncio. E o jovem soberano ficou calado, apesar do fervilhar que sentia subir por ele acima, desejoso de saber aonde é que Merlim queria chegar.

— Ainda há muitos homens em Loth, sem contar com as numerosas tropas dos ducados das redondezas. Talvez mesmo suficientes para vencerem o Inominável e o repelirem para lá das Fronteiras.

— Então? — resmungou Bran. — Porque é que estamos aqui?

— Porque isso não serviria para nada. Os monstros já foram esmagados no passado por um exército dez vezes mais numeroso do que aquele que o rei poderia juntar hoje em dia. E, no entanto, eles voltaram... Há ameaças, caro Bran, que as armas não podem vencer.

— Se nos dissesses aquilo que tens em mente? — interveio Lliane.

O homem-criança, cortado no seu ímpeto, voltou-se para Lliane e piscou os olhos, espantado com o súbito da questão. Demorou vários segundos a retomar o fio à meada, corando sob os olhares da Assembléia.

— Eu... eu só posso dar a minha opinião — balbuciou ele. — Tento arranjar uma solução para esta guerra...

— Continua — disse Uter com um ar de encorajamento. — Não temos nada a perder, de qualquer maneira...

Merlim agradeceu-lhe com um sorriso e depois concentrou-se olhando para o fogo. Desde esse momento, não voltou a levantar os olhos para nenhum deles.

— Perdoa-me, Bran — disse com uma voz quebrada, hesitante, tão pouco habitual nele que todos se ressentiram. — Mas eu pensei bastante naquilo que me disseste no dia da purificação da rainha. Desde que vocês perderam Excalibur (a palavra “perderam” levantou alguns murmúrios de protesto, mas ele ignorou-os), não nascem mais crianças nas vossas aldeias. O teu povo está em risco de desaparecer, não por causa da derrota do vosso exército, diante da Montanha Vermelha, mas porque o talismã não vos protege mais. Creio que a nação anã, tal como a conhecemos, deixou de existir.

Bran, lívido, reteve com um gesto as reações de Sudri e Onar, já prontos a darem um salto e lavarem o insulto com sangue. Merlim estava muito perto dos anões, separado deles unicamente por Till o seguidor de pistas, que não levantaria com certeza o dedo mindinho para vir em seu socorro. Todos puderam sentir o seu medo, mas ele prosseguiu, apesar de tudo.

— Perdoem-me — disse ele outra vez. — Mas creio que é o destino de todos nós. Vós fostes os primeiros...

— Tu crês que os deuses querem o fim do mundo? — murmurou o príncipe Dorian, num tom cheio de angústia.

— Creio que o mundo está a mudar... Que todas as tribos da Deusa se vão fundir numa só, e que a raça eleita será aquela que reunir os quatro talismãs. Isto não é uma maldição, não é o fim do mundo... pelo contrário, creio que os deuses querem um mundo novo, um mundo finalmente em paz... Talvez fosse este o sentido da vida, apesar de tudo?

Um longo silêncio seguiu-se às palavras do jovem druida. Cada um deles, no momento, tinha os olhos no vácuo, contemplando o crepitar das chamas, sob a fina camada de neve fundida que tinha começado a cair. Os seus cabelos, as suas peles e as malhas das suas armaduras brilhavam de gelo, mas eles continuaram ali, sem mesmo estremecerem, perdidos nos seus pensamentos.

Uma espécie de sibilo abafado tirou-os da letargia e fê-los levantar os olhos ao mesmo tempo. Era Bran que chorava. A cabeça enfiada nos braços cruzados, os ombros agitados por sobressaltos, indiferente ao que os outros pudessem pensar dele, ele chorava por Baldwin e os anões da Montanha Vermelha, enterrados para sempre nas trevas da sua cidade desmoronada, talvez já mortos e destinados ao esquecimento. Ele chorava pela sua vida arruinada e por todos os bebês que nunca veriam o dia, pela glória passada da nação anã, pela triste existência que lhe restava viver. Ele chorava de cansaço e de renúncia porque tantos meses de esforços, tantos lugares percorridos, tantas batalhas e mortos desembocavam aqui, neste vale coberto de neve, a um discurso de Merlim e ao fim da esperança. Alguns meses ou algumas semanas mais cedo, teria sem dúvida reagido como Onar e Sudri, teria sem dúvida gritado e ter-se-ia atirado ao pescoço de Merlim para o fazer engolir as palavras. Mas tinha visto tanta coisa que hoje sabia que o druida falava verdade. Os deuses tinham abandonado os reinos sob a Montanha. Recuperar Caledfwch não mudaria nada...

Quando o choro acalmou, tomou consciência do mutismo que se tinha abatido sobre o grupo e enxugou os olhos antes de levantar a cabeça. Cruzou imediatamente o olhar de Uter, fatigado, desfeito. Não era o olhar de um vencedor. Uter tinha envelhecido, tremia de frio apesar do lume e da sua capa de peles. Seria possível que também os homens estivessem condenados a desaparecer, e que no final de contas só os monstros reinassem sobre o mundo? Este pensamento pareceu-lhe insuportável e sentiu-se subitamente cheio de cólera perante o abatimento do rei. Afinal, se Merlim falava verdade, o destino dos anões estava ligado ao dos homens, agora!

Bran debruçou-se para o lado, sobre o homem-criança.

— Se bem entendi, tu pensas que se nós nos apoderarmos da Lança de Lug, a tribo dos monstros desaparecerá, como o povo da Montanha depois do roubo de Caledfwch?

— A Lança, sim — murmurou Merlim sem olhar para ele. — Se eles perderem o talismã, estarão condenados, como vós, não a desaparecerem mas a fundirem-se numa outra raça... Não será mais que uma questão de tempo.

Em volta do lume, cada um deles fora arrancado do entorpecimento dos seus pensamentos tristes, retendo a respiração para não perderem uma única palavra. Bran levantou a cabeça e susteve o olhar deles com bravura, sorrindo mesmo, como se o fim do seu povo já fosse um fato consumado.

— Pois bem, estou de acordo — disse ele (e foi preciso algum tempo a cada um deles para que entendessem do que é que falava).

— Se quiserem, partirei convosco.

Deu um suspiro resignado.

— No fim de contas, não tenho grande coisa a perder, não é verdade?

— Podes perder a tua vida, em todo o caso — murmurou Merlim.

— Sim, bom...

— Esperem!

Merlim e Bran voltaram-se ao mesmo tempo para Ulfin.

— Cos diabos, serei o único aqui que não entende nada? — resmungou o bravo. — De que é que estais a falar? De ir roubar o talismã dos monstros, é isso?

— Basicamente, sim...

— Pois bem, boa sorte! Que é que vocês pensam? Eles acabam de esmagar o melhor do nosso exército. Já olharam bem para vocês? Acham mesmo que vão conseguir?

Merlim perdia visivelmente a paciência e, no momento em que ia replicar ao cavaleiro, Lliane tomou a palavra, sem levantar a voz mas fazendo-os calar imediatamente.

— Perdes-te nos teus sonhos, querido Myrddin, grandiosos e vãos... O senhor Ulfin tem razão. Todos os exércitos de Uter e toda a magia do mundo não serão suficientes para vencer os monstros, e ainda menos para lhes roubar a Lança.

— Não — disse Uter, que até ali tinha estado calado. — Há um outro meio...

Ficou em silêncio durante um instante, ordenando a corrente de pensamentos que fervilhava dentro dele há alguns minutos, e, enquanto as peças se encaixavam, uma espécie de exaltação iluminava-lhe o rosto, dissipava-lhe a fadiga, o abatimento e o frio.

— Mahault — disse ele voltando-se para Lliane. — Mahault de Scâth... Ela escapou de Kab-Bag, onde o exército dos monstros fez quartel durante o Inverno.

Lliane e os outros olhavam para ele com uma tal expressão de incompreensão que ele gaguejou, custando-lhe explicar claramente o plano que começava a entrever.

— Um grupo... um pequeno grupo pode entrar em Kab-Bag pelos subterrâneos da Guilda, enquanto o exército atrairá os monstros para a planície. O Senhor Negro instalou-se no antigo palácio do xerife Tarot, e é aí que ele guarda a Lança. É possível, afinal! Podemos conseguir!

Lliane abanou a cabeça.

— Eles terão a Lança com eles. Levam-na sempre para a batalha...

— Não se os advertirmos do nosso plano!

Desta vez, até Ulfin o olhava como se ele tivesse perdido definitivamente o juízo.

— Graças a Mahault, poderemos servir-nos da Guilda para transmitir falsas informações — continuou o rei com veemência, procurando com o olhar e gestos um apoio entre a Assembléia. — Se eles pensarem que queremos roubar-lhes a Lança, é mais que certo que não correrão o risco de a expor. Levarei o exército até Kab-Bag e recuarei aos primeiros combates, de maneira a levar os monstros para longe da cidade. Assim, tereis chance de conseguir.

— Na condição de confiarmos na Guilda — resmungou Bran.

Lliane abanou a cabeça em silêncio, enquanto à sua volta Dorian, Ulfin e os outros pareciam ter recuperado o entusiasmo, apesar do ataque que ele se propunha comandar, mesmo não passando de uma manobra de diversão, ter todas as hipóteses de se tornar um desastre.

— Mas que acontecerá se nós conseguirmos?

As conversas acabaram e os olhares fixaram-se nela.

— Se nos apoderarmos da Lança — insistiu ela —, que acontecerá? Será preciso que os homens e os elfos guerreiem pela posse do talismã? Tu que não és homem nem elfo, Myrddin, qual será o teu partido?

O homem-criança não respondeu, visivelmente perturbado com a questão da rainha. Depois ela voltou-se para Uter, que parecia ter perdido um pouco daquela confiança que acabava de encontrar.

— Myrddin é um ser estranho — disse ela sorrindo. — Por vezes amo-o e outras detesto-o. Sempre me perguntei como é que ele tinha entrado nas nossas vidas, e por vezes tenho a impressão de não passar de um joguete nas suas mãos... Não sei se conseguiremos, mas se existe uma chance, por mais ínfima que seja, de trazer o equilíbrio a esta terra, então aceito tentar, para que a minha filha, pelo menos, tenha a oportunidade de conhecer a paz. Eu irei a Kab-Bag...

Ela levantou-se bruscamente, abanou a cabeça para se livrar do gelo que salpicava os seus longos cabelos e afastou-se pensativa. Uter, de volta à realidade, teve a impressão que ela se afastava para esconder as lágrimas, tão impregnadas de tristeza tinham sido as suas últimas palavras. Também ele pensou em Morgana, que conhecia tão mal, depois no seu filho Artur, e nas palavras de Merlim, perto do pontão. Lliane continuava de costas voltadas para eles, e durante algum tempo não ouve outro som que não fosse o ranger das suas botas na neve e o crepitar do fogo. Depois ela voltou-se, com os olhos brilhantes e um nó na garganta.

— ...Mas que sirva para alguma coisa, desta vez! — disse ela com veemência. — Os talismãs devem ser reunidos onde nenhuma tribo tire partido deles. Não quero que os homens dominem o mundo, e não quero um mundo onde os anões e os elfos desapareçam. Irei a Kab-Bag, Uter, com quem me quiser seguir, mas se os deuses me permitirem encontrar a Lança, levá-la-ei para Avalon, bem como a Espada de Nudd, o Caldeirão de Dagda e mesmo a Pedra de Fal! Que os talismãs retornem aos deuses!

Uter olhou-a com uma expressão de espanto absoluto e depois, percebendo que ela esperava uma resposta dele, voltou-se para Merlim para que este o ajudasse. Em vão. O homem-criança não olhava para ele. Ele sorria para a rainha, não com aquela expressão que arvorava habitualmente, mas com êxtase. As palavras de Lliane tinham sido uma súbita surpresa, uma revelação.

— A Ilha das Fadas — murmurou ele para consigo. — Como é que eu não pensei nisso...

Em seguida virou-se para Dorian (como se Lliane não fosse ela própria um elfo!), com os olhos brilhando daquela loucura que o possuía por vezes.

— Os elfos renunciarão ao Caldeirão?

Dorian não hesitou um só instante, tomado talvez pela exaltação do druida sem idade.

— Tudo o que queremos é a paz! — disse ele. — Que todo o mundo beba do Caldeirão do Conhecimento, se isso puder pôr fim a estas guerras incessantes!

Till levantou-se bruscamente, provocando o vôo súbito do seu falcão.

— Falas demasiado depressa! — disse ele, num tom onde se notava raiva. — Nós combatemos por Uter, e a Espada de Nudd continua nos seus cofres, como no tempo de Gorlois! Que ele a devolva e que renuncie à Pedra de Fal! Só nessa altura entregaremos o Caldeirão!

O seguidor de pistas deitou um olhar cortante ao rei, depois sentou-se, dando um pontapé raivoso a um pau que saltara da fogueira.

— Pois bem, Uter — murmurou Lliane. — A escolha pertence-te...

— Que escolha? — troçou ele, levantando os olhos para ela. — Se não tentarmos nada, a guerra está perdida de qualquer maneira.

Calou-se durante uns instantes e depois, como a rainha tinha feito antes, levantou-se e sacudiu a capa.

— De acordo — disse ele. — Mas sem a Pedra, não haverá mais rei, e sem Espada, não haverá exército. É preciso que mas deixem, o tempo necessário para voltar a dar confiança ao meu povo e conduzir os meus homens à batalha. Se ganharmos, faço o juramento de ser eu próprio a levá-los à tua ilha, Lliane. É preciso que acreditem em mim...

Ele tinha-se aproximado dela e, pela primeira vez depois de a ter visto no bosquezinho de bétulas, ficou suficientemente perto para a tomar nos braços. A pele dela estava tão fria quanto as águas do lago, mas os seus olhos verdes deitavam um calor que o queimou dos pés à cabeça. Durante um breve instante, não existiu mais ninguém no mundo para além deles, das suas recordações, do desejo de ambos.

— Não chega! — disse uma voz seca, quebrando o encanto. Merlim tinha-se levantado, com um brilho no olhar que Uter acreditou ser ciúme.

— Que dizes tu?

— A tua palavra não basta, Uter! — insistiu o jovem druida, tomando como testemunhas o grupo de elfos e anões.

Os olhos deles não podiam mentir. Nenhum deles lhe concedia mais a confiança que ele tinha traído em outros tempos. A própria Lliane afastou-se dele, desviando o olhar.

— Que queres mais! — gritou o rei, furioso, frustrado e convencido de ter sido subitamente traído por Merlim. — Sabes perfeitamente que sem a Espada nunca terei homens que cheguem!

— Já te disse aquilo que queria — disse o homem-criança. — Quero Artur... Artur como garantia da tua palavra. Artur em troca da Espada e da Pedra. É esse o pacto!

Então, era isso... De novo, as palavras de Merlim sobre o pontão vieram-lhe à memória, o seu arrebatamento, a febre do seu olhar quando lhe tinha ordenado que obedecesse cegamente, dissesse o que dissesse. Mas em que devia acreditar, entre o instante presente e as suas promessas anteriores?

— Pois bem fica com ele, maldito bastardo! — cuspiu ele, entre dentes, com um ódio formidável. — Mas se lhe acontecer alguma coisa, reza aos deuses para que eu morra na batalha, pois o mundo não será suficientemente grande para que tu me escapes!

 

                 VELADA DE ARMAS

A menos de uma légua dali, um halo de luz resplandecia nas muralhas de Loth, e via-se mesmo, para lá dos fossos, as fogueiras dos que não tinham conseguido entrar na cidade e passavam a noite nas suas tendas. O vento trazia até Ulfin os cheiros a forja e a carne assada, odores quentes que lhe estimulavam a fome. Apesar da sua capa fechada e das botas grossas forradas a pele, batia os dentes debaixo do seu abrigo, sem mesmo poder acender uma fogueira para se aquecer. Era a segunda noite que passavam ao relento, ele e Urien, escondidos num pequeno bosque que ladeava a estrada do Norte. Pelo menos Urien conseguia dormir, abafado como uma lagarta dentro do casulo, enquanto que ele não podia pregar olho, assim que tinha renunciado a acordar o companheiro e prolongava o seu turno de vigia.

Como ele, os outros bravos tinham-se colocado à borda de cada caminho que levava à cidade, em grupos de dois, vigiando dia e noite a passagem do fugitivo que os trairia. Uter tinha feito tudo para isso. O mais insignificante arqueiro, o último dos mendigos, todos conheciam o seu plano, ou pelo menos o plano que ele tinha deixado divulgar. Tinha falado dele a Mahault na presença dos seus queridos, a Illtud e aos seus monges para que rezassem missas por ele, e à rainha Ygraine diante das camareiras. E se alguém ainda podia ter dúvidas sobre a iminência de uma saída, os preparativos incessantes do exército, a actividade alucinada dos ferreiros, ou dos forjadores, os escudeiros enviados às mais longínquas baronias convocando a corte solene [34], e contratando, à vista e conhecimento de todos, estipendiários para reforçar os cavaleiros de mesnada [35], tudo isto era suficientemente claro para o mais cego dos espiões.

Mahault e os seus homens tinham chegado pela estrada do norte, a via mais direta para Kab-Bag, e se um deles se decidisse a voltar ao allyan gnomo e informar o Senhor Negro das intenções deles, era quase certo que passaria por ali. Ulfin tinha consciência disso, ele que era o único a conhecer as verdadeiras intenções do rei. Ele não ignorava até que ponto o sucesso do plano deles dependia do logro que tinham engendrado, a que ponto era vital assegurar a passagem do informante, e sem dúvida o peso dessa responsabilidade contribuía para o manter acordado.

Os monges tinham tocado a laudes [36]. A noite ficava agora mais escura e mais fria e inquanto as fogueiras da cidade se apagavam, uma depois da outra. Eles tinham-se colocado no alto, no cimo de um outeiro com moitas de onde podiam ver o caminho até léguas de distância sem serem incomodados pelas árvores, mas Ulfin quase que não deu por ele. Até ao último momento; não viu nada. Somente o martelar surdo de um galope sobre a pista com neve o tirou do seu entorpecimento. De um salto febril e descoordenado, o bravo livrou-se da sua coberta de peles e começou a descer a encosta, quase se estatelando na neve endurecida. Mas chegou a tempo à estrada e surgiu como um diabo, quase sob os cascos do cavalo. O homem trazia um amplo casaco escuro para a chuva cujo capuz lhe escondia parte da cara, mas nem por isso Ulfin deixou de o reconhecer. Não passou de um instante fugaz, mas no entanto viu-o, e quando o barulho da sua cavalgada desaparecia ao longe, o bravo desatou a rir.

— Que se passa?

Ulfin, rindo ainda, subiu o outeiro com neve agarrando-se de arbusto em arbusto. O seu companheiro estava em pé, despenteado como um diabo, com a espada na mão.

— Acho que perdemos todos a aposta — disse o bravo ao juntar-se a ele. — Não era o canalha do Guerri o Louco, era o pagem...

— Que pagem? — disse Urien com uma voz pastosa...

— O menino da Mahault, o peralta vestido de sedas que atacou Uter... Aliás, ele vai gostar.

Ulfin agarrou sua coberta, e começou a fazer o seu saco.

— Isto não quer dizer que Guerri não tenha partido também resmungou Urien. — Pode ter passado por um outro caminho...

— Sim, é possível, mas prepara-te para abrires os cordões da bolsa, mau perdedor! Vamos, pega as tuas coisas, vamos embora.

Os dois cavaleiros fecharam os seus sacos, e depois deixaram sem pena o abrigo gelado. Uma hora mais tarde, abriram o postigo da seteira que defendia a porta principal, e pararam no posto de guarda avançada diante de uma fogueira, de uma tigela de sopa e uma caneca de cerveja. Com o calor a ajudar, Urien não tardou a adormecer, mas Ulfin seguiu caminho, por descargo de consciência, e subiu até o castelo.

Fez bem. Uter não dormia.

Encontrou-o no quarto de vestir, fazendo e refazendo as contas com os seus tesoureiros esgotados, calculando quantos homens de armas podia equipar, quantos cavalos, quantas lanças. Mal o viu, o rei dispensou os escrivães.

— Hei-lo finalmente! — disse ele. — Então?

— Já está, vi-o passar, correndo como um diabo para Kab-Bag.

— Tentaste detê-lo?

— Fiz como me disseste.

— Muito bem... Um traidor que sabe que foi desmascarado não tem outra hipótese senão ir até ao fim.

— A propósito, enganaste-te, como todos nós... Não era o teu Louco, mas o queridinho da Mahault, aquele que tu atiraste para a neve.

Uter levantou para o amigo um olhar desiludido.

— Até esse, com que então?... Vai dormir. Amanhã, mostrar-te-ei uma coisa que te vai divertir.

— Não estou cansado.

— A sério? Então vem!

Os dois homens meteram-se pelos corredores adormecidos, sem uma palavra. Não foi por muito tempo. Dois soldados armados montavam guarda a alguns passos, diante de uma porta fechada, que abriram com uma chave a um gesto do rei. Este desviou-se com uma deferência de cortesão diante de Ulfin, e o bravo entrou. Imediatamente, um cheiro adocicado, enjoativo, lhe entrou pelas narinas, misturando os odores de um perfume forte ao cheiro a vinho e à pesada e insidiosa emanação do sangue. Mahault estava ali, enorme massa deitada sobre um leito fechado, iluminada pela luz dançante de uma lamparina de azeite, os tecidos revoltos e um braço pendente no vazio, grande como a coxa. O sangue ainda escorria sobre a sua carne esbranquiçada, desde a base do pescoço até à ponta dos dedos, de onde caía, gota a gota, formando uma poça grande nas lajes.

Ulfin pôs a mão no nariz e aproximou-se para se debruçar sobre ela. Degolada de uma orelha à outra... Virou-se para Uter, que tinha ficado à porta, e saiu rapidamente, fechando-a atrás de si.

— Sabe-se quem a matou?

— O único que não partiu, justamente — disse o rei. — O teu amigo Guerri o Louco. O resto do bando desapareceu. Madoc e Adragai viram passar três ou quatro, pela estrada do lago. Os outros, um ou dois, no máximo, menos Kanet, que fez demais, como sempre, e matou o seu, sobre a estrada do sul. Urien e tu são os últimos... É engraçado, dir-se-ia que se preocuparam todos em fazer um desvio em vez de passarem onde eu esperava que passassem. A menos que tenhais adormecido, é claro...

Ulfin zangou-se e pôs um ar melindrado.

— Estava a brincar — disse o rei.

— Sim...

Uter arrastou o amigo pelo ombro, voltando para o quarto de vestir. Em frente de um copo de vinho, embalados pelo calor de um fogo em extinção na chaminé sobre um tapete de brasas, Ulfin deitou-se, esticando as pernas longas até à lareira.

— É engraçado, ela quase me convenceu — disse a meia voz. — Porque é que Guerri a matou? Achas que ele tinha medo de voltar para Kab-Bag?

— Ah, não... Certamente que não. Já conheci esse gênero de homem, ladrão ou assassino, com o anel da Guilda no dedo. Ele nunca teria morto a velha Mahault se não tivesse recebido ordens.

— Mas eu julgava que era ela quem mandava na Guilda?

Uter esvaziou o copo, depois serviu uma nova rodada de vinho, oferecendo-o ao seu companheiro.

— Então temos que pensar que a Guilda mudou de suserano — disse ele, deixando-se cair no fundo do cadeirão. — Nunca saberemos a verdade, mas creio que ela não mentiu. Nunca passou de uma receptora, lá no fundo... Enquanto os gnomos controlavam Kab-Bag, ela não tinha de que ter medo, mas depois dos monstros se terem instalado... De que lhes poderia servir uma velha impotente como ela? Sem dúvida que ela deve ter querido fugir do Mestre, como ela lhe chamava, sem saber que os seus homens já não lhe obedeciam...

Ele deu um suspiro irônico.

— Até mesmo o seu pagem, viste... O Louco ficou para trás, para acabar o trabalho antes de ir ter com o novo chefe.

Uter levantou os olhos para o bravo, e designou com um movimento de cabeça o quarto onde jazia o corpo da receptora.

— Viste a mão dela? Reparaste bem?

Ulfin reviu em pensamento o sangue negro escorrendo sobre a mão branca e gorda dela. Abanou a cabeça negativamente.

— Ele cortou-lhe um dedo — disse Uter. — O anelar... E encontraram nele o anel que trazia Mahault. Se quiseres tentar fazê-lo falar, não te incomodes. Desejo-te boa sorte.

— E então, aquela história do subterrâneo? Achas que é verdade?

Uter voltou-se para ele, com um olhar sério, subitamente.

— Só há um meio de saber, Ulfin.

O bravo fez uma pausa e depois empalideceu quando realizou aquilo que o rei esperava dele.

— Tu irás com Lliane — disse ele. — Dá-lhe o anel da Guilda, ela saberá servir-se dele... Freihr irá contigo, e podes confiar nele; ele é do gênero de se ocupar desse Guerri. Será melhor para ele, aliás, que o subterrâneo exista, porque senão não respondo pela sua vida...

Ulfin sorriu e acabou calmamente o seu copo.

— Tu entendes é claro que, se esse subterrâneo não existir, é todo o teu plano que vai por água abaixo. Sereis massacrados para nada...

— Não tenho — e Uter insistiu nesta palavra — nenhuma intenção de me deixar massacrar.

 

Apesar do frio sempre intenso, apesar da neve que cobria cada telhado, cada tenda, o gelo que tinha coberto o lago e os fossos, Loth tinha um ar de festa. Em menos de uma semana, cerca de dez mil homens tinham-se inscrito nas listas do exército, entre eles cerca de setecentos cavaleiros. Era um espectáculo de que Uter não se conseguia afastar, correndo para as muralhas sempre que tinha um momento livre, inebriando-se com o bater dos seus estandartes ao vento, em prata com cruz latina vermelha [37], com o odor a forjas e a cavalariças que subia daquela multidão amontoada dentro e fora da cidade. A cada hora chegavam mais, por vezes tropas inteiras vindas de baronias sob um estandarte, segundo a posição de quem os comandava, muitas vezes simples vilãos francos armados com arcos e piques, por vezes jovens nobres comandando simplesmente cinco cavalos e dois escudeiros, como o exigia no mínimo o serviço de hoste, devido durante quarenta dias por ano por todos os vassalos do rei. A maioria dos senhores, esgotados pela guerra, tinham somente meios para equipar um só cavaleiro [38], mas nenhum se tinha esquivado, e aquela corrente ininterrupta formava uma multidão enorme, que o condestável Léo de Grand, ajudado pelos doze bravos, organizava incansavelmente em “conroi” e em “batailles” [39]. Para onde quer que se olhasse, podíamos deleitar-nos com a agitação febril dos preparativos. Armeiros, ferreiros, forjadores, mestres ferradores e malhadores de ferro batiam ferro e bigorna desde o amanhecer até à noite, recrutando tanta gente quanto possível na massa inativa de peões, para encavarem as lanças nos punhos de madeira de freixo, de macieira ou de faia com várias toesas de comprimento, ou para fabricarem flechas. Linhas inteiras de cavaleiros exercitavam-se à carga frontal, em fileiras serradas, e faziam tremer a terra sob os cascos dos seus cavalos. Em cada abrigo, cada tenda cônica, cada cavalariça, escudeiros engraxavam os couros e esfregavam as cotas de malha [40]. O ar vibrava de gritos e risos, de tinires de espadas e de assobios de flechas, por todo o lado onde os homens se treinavam. Eram dias de júbilo para a maioria deles. Por ordem do rei e segundo o seu plano de batalha, todo aquele que soubesse montar, sargento, guarda ou escudeiro, era armado cavaleiro na altura e partia imediatamente a treinar-se na lança. Do mesmo modo, os cavaleiros que já traziam escudo e esporas viam-se promovidos ao nível de portadores de bandeira, comandando fileiras ou “conrois” inteiros, quando a maior parte não tinha mais de dezesseis anos. Por todo o lado na cidade, os recém promovidos passeavam orgulhosamente pelas ruelas, com os cabelos presos em carrapito [41] no cimo da cabeça e o escudo às costas, ainda úmido por vezes da tinta branca cunhada de uma cruz vermelha que cobria a capa, e sonhavam já em colocarem um dia as suas próprias armas.

Assim como as tabernas e os bordéis, e quase tanto como elas, a igreja não ficava vazia. Consagravam-se aí os recém promovidos em batalhões inteiros, sem um décimo dos rituais normalmente necessários, simplesmente uma bênção, mas havia tanto que fazer... Era sempre a mesma frase, recitada durante todo o dia:

“Senhor Deus, dignai-vos abençoar e santificar estes homens, desejosos de transportarem a bandeira da Santa Igreja para a defenderem da matilha hostil, afim de que em teu nome os fiéis e os defensores do povo de Deus que a seguirem se alegrem ao obterem a vitória sobre os seus inimigos e o triunfo pela virtude da Santa Cruz.”

Amem, e ao seguinte.

Ironicamente, as histórias de Merlim estavam a tornar-se realidade, e o homem-criança era o primeiro a se maravilhar. Ele tinha deixado Lliane e os outros à beira do lago e não cessava de calcorrear a cidade, reconhecido de tempos a tempos por um veterano do exército do Pendragon e que, por vezes, lhe dirigia um sinal amigável, o que era para ele pouco habitual. O exército vencido, desmoralizado, tinha-se transformado numa multidão alegre e prestes a lutar. Havia necessariamente magia nisto tudo! O pobre teria ficado bem espantado se ouvisse o que diziam à sua passagem. Ele o banido, a criança sem pai, desprezada, rejeitada, tornava-se o maior dos mágicos, mais poderoso que todos os feiticeiros sob a Montanha, mais sábio que todos os druidas de Brocéliande, e o rumor acabava por o perseguir, assim que todos sorriam agora à sua passagem, e que ele se sentia delirante. O próprio Uter estava transformado. Não tinha dormido mais de algumas horas durante esses últimos dias, e a excitação mantinha-o num estado febril próximo da demência, correndo por todo o lado, vigiando tudo, parando em cada bivaque para falar com os homens, dar uma dentada num pedaço de pão ou beber de um odre de vinho, seguido como uma sombra pela massa imponente de Freihr. O bárbaro ainda arrastava a perna, mas tinha desencantado uma maça de armas de um tamanho formidável e trazia-a ao ombro como um machado, o que fazia a alegria da tropa. Por vezes, Merlim juntava-se a eles nas suas incessantes peregrinações, para trocarem algumas palavras, e depois desaparecia como era seu hábito, sem que ninguém soubesse para onde tinha ido.

Com toda aquela febre, Ygraine não via o marido há vários dias, senão ao longe, de rajada, tão sujo e enlameado quanto um mendigo, e aquilo que os monges lhe contavam do seu comportamento nada tinha de tranquilizador. Ela rezava na capela, sozinha com Blaise e os seus seguidores, quando uma camareira corada e ofegante lhe veio interromper as suas devoções.

— O rei está ali, Senhora minha! No vosso quarto!

A rainha saltou do seu genuflexório, surda aos protestos do monge, e sem mesmo se persignar antes de sair do lugar santo. Não convinha a uma dama do seu nível ficar sem fôlego e alterar a sua tez correndo como uma garotinha, mas Ygraine não tinha nem idade nem vontade de seguir tais conselhos. Ela quase não conseguia respirar quando chegou ao quarto, deixou de fora o seu séquito e fechou-lhes a porta na cara.

Uter já dormia, caído sobre a cobertura de esquilo cinzento que lhes cobria o leito. Os seus borzeguins lamacentos tinham deixado poças nas lajes cobertas de palha. A sua capa forrada jazia por terra, ainda pintalgada de neve gelada. Ele tinha desatado o seu cinto desde a entrada e atirado com a espada para cima de um cadeirão. Ygraine recuperou a respiração encostada à porta. Ela sentiu de repente o coração saltar-lhe pela boca, tomada de um suor frio, mas deitou as culpas para a sua corrida precipitada.

Quando a sensação de vertigem se dissipou, avançou até o leito, sentou-se cuidadosamente para não o acordar e, depois de uma hesitação, afastou com as pontas dos dedos as tranças castanhas que lhe escondiam a cara. Uter dormia com a boca aberta, como uma criança, as maçãs do rosto vermelhas do frio, a pele brilhante do gelo derretido.

— Ama-o, não é verdade?

Ygraine deu um grito e voltou-se de um salto. Sorrindo ao lado da chaminé, tranquilamente sentado aquecendo os borzeguins no cão da lareira, Merlim ergueu as sobrancelhas como se espantasse com o medo dela.

Ygraine recompôs-se, deitou um olhar a Uter que continuava a dormir, e depois veio ter com o druida.

— Saia daqui!

— Vou sair, minha rainha, e mais depressa do que julgas — sorriu Merlim. — Dentro de algumas horas, terei deixado o castelo e não me verás mais.

— Ainda bem!

— Vem sentar-te a meu lado...

Ela olhou-o com ódio, e Merlim deu um suspiro de tristeza.

— Como queiras — disse ele. — No entanto, preciso falar contigo...

A rainha continuava reta e orgulhosa diante dele, os braços cruzados sobre o peito, com uma expressão de tristeza que teria sido ofensiva, se os lábios que a formavam fossem menos bonitos, e Ygraine menos jovem. Apesar dos esforços que fazia para manter a sua posição, era uma jovem garota, que nem a cólera conseguia tornar mais dura. Os seus cabelos loiros entrançados e enrolados em totós sobre as orelhas, não se tinham segurado com o ritmo da corrida, e longas mechas tinham caído, coisa que ele achava perfeitamente adorável. Uter não era somente o “Amado de duas rainhas”, ele era-o também das duas mais belas criaturas que Merlim alguma vez tinha visto. Lliane era mais bela, sem dúvida, com aquela graça sensual, aquele impudor animal que teria feito danar todos os santos dos Evangelhos, mas Ygraine parecia mais próxima, mais frágil e dava vontade de a amar. Artur não era só o filho de Uter. Ele tinha uma mãe, também, a mais jovem e mais doce das mães, à qual ele o devia tirar... E dizer que ela parecia já detestá-lo, mesmo antes de ele falar!

— Pois bem! — disse ela secamente. — Estou à espera!

— Merlim veio para tomar conta de Artur — disse a voz de Uter, por trás deles.

Eles viraram-se ao mesmo tempo para o rei, que coçava a cabeça, sentado na cama, com ar de ter sido apanhado por um cão.

— Que é que tu dizes?

— Não tive tempo de te falar disso — murmurou ele. — Desculpa-me...

Ela veio refugiar-se nos seus braços e ele abraçou-a com força, com os olhos fechados, aspirando o perfume dos seus cabelos.

— Eu vou partir — disse baixinho. — O exército está pronto, e será perigoso esperar mais tempo. Mas não ficará ninguém em Loth para defender, a ti e a Artur. Quero que vás para casa do teu irmão... Léo de Grand não está em estado de comandar a batalha, sou eu que conduzirei as tropas. Ele levar-te-á para Carmelide, para o vosso castelo de Carohaise.

— E Artur? — murmurou ela.

Uter abriu os olhos, cruzou o olhar com o de Merlim. Conseguiria ela ouvir o seu coração bater desordenadamente? Veria ela o suor perlar-lhe a sua testa?

— Seria demasiado arriscado viajarem juntos... Antor e Merlim tomarão conta dele. Irão ter convosco mais tarde.

De novo, cruzou furtivamente o olhar com o do homem-criança, e pareceu-lhe que ele aprovava com um sinal de cabeça. Mas quase imediatamente ela afastou-se dele e olhou para Merlim com visível horror.

— Porquê ele? — lançou ela. — É a ele que queres confiar o teu filho?

— Tu não conheces Merlim — disse ele tentando atraí-la de novo para os seus braços.

Ela afastou-se vivamente, com os olhos brilhantes de lágrimas.

— Ouve-me — insistiu ele. — Merlim é respeitado e querido pelos elfos e pelos anões. Com ele Artur estará seguro, juro-to.

— Nunca!

Ygraine desafiou a ambos e depois correu para a única janela do quarto e pelos estremecimentos dos seus ombros eles perceberam que ela se desfazia em choros. Uter, com um movimento de cabeça, fez sinal a Merlim para que saísse, esperou que o jovem druida fechasse a porta atrás de si, e depois veio ter com ela.

— Pode acontecer que eu não volte, sabias...

— Achas que eu não sei? Achas que não vi o que sobrou do exército de Léo de Grand? Achas que não assisti ao cerco, que não vi as chamas, nem ouvi os seus gritos? Todas as noites, ficava perto de Artur e de Ana, a perguntar-me se tu ainda estarias vivo... Eu amo-te, Uter. Amo-te mais do que alguma vez imaginaste. Mesmo nos piores momentos, quando te via morto sobre as muralhas, queimado ou devorado pelos lobos, tinha ainda os meus filhos, e pelo menos era uma razão para viver... Se tu morreres, Artur será tudo o que me restará de ti. Não mo leves. Por piedade, não mo leves.

— Ygraine, ele nasceu para ser rei. É o mais importante de tudo, é preciso que entendas...

— Que é que isso me pode interessar, que ele seja rei?

Ela gritava agora, com a cara coberta de lágrimas. Quando ele tentou mais uma vez tomá-la nos braços, ela esbofeteou-o com toda a força.

— Tu não tens o direito! Sou eu, a rainha! É a mim que tu deves o teu trono!

Com os olhos abertos de raiva, as tranças desfeitas, a cara banhada em lágrimas, ela tinha o ar de uma louca, de meter medo. Uter recuou. A face doía-lhe, a bofetada tinha-o humilhado ainda mais que as suas palavras, e a falta de sono punha-lhe os nervos em franja.

— Ficas com Ana, apesar de tudo...

— Maldito sejas!

Então ele deu meia volta, pegou de passagem sua espada sobre o cadeirão e bateu com a porta atrás de si. Ygraine caiu de joelhos, sacudida por soluços, e depois deixou-se cair no chão.

— Maldito sejas, Uter, tu e o teu maldito Merlim!

Uter não a podia ouvir. Percorrendo os corredores como um louco, de tal forma que Merlim tinha que correr para o acompanhar, irrompeu no quarto de Artur, empurrando à sua passagem Antor e a ama, parecendo mal notar que eles estavam abraçados.

— Façam as vossas malas! Estejam prontos para partirem dentro de uma hora, com a criança!

Os seus gritos tinham acordado o bebê, que começou a chorar no berço. A mulher precipitou-se, abrindo febrilmente o seu corpete, e pô-lo ao peito embalando-o, mas Uter mal olhou para ela. Quando se voltou viu Merlim diante de si, tremendo como uma folha.

— Toma conta dele, bastardo do diabo, como se fosse o teu próprio filho!

— Será como um filho para mim — murmurou Merlim. Uter mediu-o com o olhar e viu-o tal qual ele era, débil e transtornado, com vontade de o partir ao meio. Depois avistou o cavaleiro Antor, com a sua cara de cão fiel, e a sua raiva passou.

— Bravo Antor...

Sorriu-lhe e continuou de olhos fixos nele enquanto uma idéia nova lhe passava pela cabeça, durante tanto tempo que o jovem cavaleiro saltitava de um pé para o outro, corando como uma donzela.

— Tens filhos, Antor?

O cavaleiro abanou negativamente a cabeça.

— Uma terra?

Ele encolheu os ombros com um sorriso incomodado.

— E tu, mulher? — disse Uter voltando-se para a ama. — És casada?

— O meu marido está morto. Mas tenho um filho. Kai... Ele tem quase dois anos.

— Um filho... Está bem.

Uter parecia de novo todo alegre e olhava-os cada um de sua vez, Merlim e eles, com um ar muitíssimo satisfeito.

— Pois bem, Antor, dou-te a minha terra, Cystennin. Não passa de um torreão fortificado na orla da floresta, mas tem título de baronia e conta com alguns mansos [42] que te trarão algum dinheiro. E dou-te esta mulher — acrescentou, deitando um olhar divertido à ama. — Levai Artur e educai-o com...

— Kai — disse ela baixinho, enquanto o rei se tentava lembrar do nome.

— É isso. Ninguém deve saber que Artur é meu filho, mas conto contigo para o defenderes, com a tua vida, e para fazeres dele um homem. Merlim irá convosco. Obedece-lhe em tudo, Antor... Só ele poderá vir buscá-lo, quando chegar a altura.

Uter hesitou alguns instantes e depois, com a ponta dos dedos, acariciou a face do filho. Artur agarrou-lhe o dedo, meteu-o na boca e começou a chupar, o que lhe transtornou o coração.

Suavemente, retirou-lho e olhou Merlim de alto a baixo.

— Achas bem, assim?

— Por mim sim... Espero que Lliane...

— Ou isto ou nada.

Uter continuava a sorrir, mas os seus olhos brilhavam e o seu queixo tremia. Merlim agarrou-lhe o braço no momento em que ele saía do quarto, mas o rei livrou-se dele e saiu sem olhar para trás.

Eles nunca mais se veriam.

 

                   UMA MANHÃ DE INVERNO

Só os guardas que estavam de vigia à porta principal à terceira hora de laudes puderam vê-los partir. Antor montava uma besta de carga tão negra quanto a noite, o arco a tiracolo e o escudo fixo à sela contra a sua espada, seguindo uma pesada carroça puxada por dois bois que Merlim, quase irreconhecível com o seu casaco e boné de peles, conduzia com mão de ferro. Seguia a pé, pois o rei não tinha podido (ou não tinha querido) dispensar mais um cavalo para a expedição deles. Seria uma longa viagem até à baronia de Cystennin, principalmente por aquelas estradas cheias de neve, e se Uter lhe tivesse querido infligir um castigo, não teria agido de outra forma.

A aurora estava magnífica, pela primeira vez desde há muitos dias, formando uma longa faixa rosada sobre o azul pálido da neve e irisando o cimo da floresta de tendas elevada nos arredores das fortificações. Nem uma nuvem no céu, só algumas espirais escuras da noite que se dissipavam lentamente. Podia ler-se aí um presságio feliz. Foi pelo menos isso que Uter sentiu enquanto a carroça se afastava, abrigando a ama, o seu filho Kaie Artur. Instintivamente voltou-se, levantou os olhos para a torre de menagem e procurou a janela do quarto deles, na esperança de ver Ygraine. Ela não tinha falado mais com ele, recusava-se a abrir-lhe a porta, mas ele tinha-a mandado prevenir da hora da partida bem como do local onde ele estaria sobre as muralhas, se por acaso ela quisesse aparecer ou beijar pela última vez o filho deles. É claro que ele não viu nada, àquela distância, mas como poderia ela deixar de estar ali, quando o seu filho a deixava, dormindo nos braços de outra? Uter ficou ali longos minutos, virado para aquela janela muda, na esperança de que o olhar de Ygraine se pousasse sobre ele sem muito rancor. Estava consciente de que tirar-lhe assim o filho podia parecer a pior das traições e que ela não lhe poderia perdoar tão depressa, mas esta partida precedia uma outra, a sua, a do exército. Partir sem a voltar a ver seria mais uma dor...

Ao fim de um momento, um tremor apoderou-se dele por ter estado assim sem se mexer, e dirigiu a sua atenção para a carroça coberta, para Merlim, embaraçado e desajeitado, escorregando a cada passo, e para a silhueta altiva de Antor, montado como um príncipe sobre o seu grande cavalo. Dentro de duas ou três semanas, no máximo um mês, estaria em Caer Cystennin, longe da guerra e da agitação da corte, com um pergaminho no bolso que o jovem cavaleiro teria tido bastante dificuldade de ler, mas que trazia o selo real e que fazia dele o novo senhor das terras. Era uma boa solução. Acontecesse o que acontecesse, Artur cresceria onde o próprio Uter tinha crescido, pouco mais rico, em boa verdade, do que os seus camponeses, mas livre e despreocupado, na orla da grande floresta. O velho Elad, o capelão do seu pai, ensinar-lhe-ia um pouco de religião, a ler e sem dúvida a desconfiar dos elfos. Antor ensinar-lhe-ia a montar a cavalo, a caçar, a segurar uma espada. E quanto a Merlim... Pois bem, Merlim protegê-lo-ia e talvez um dia lhe dissesse quem era o seu pai.

Eles atravessavam agora o acampamento, sem que ninguém lhes prestasse atenção, a não ser alguns soldados de sentinela aos quais o jovem barão de Cystennin dirigia gestos felizes. Sem dúvida deveria deleitar-se com este sol nascente, com o ar frio, com o cheiro dos bois e o ranger das rodas sobre a neve fresca do caminho. Um homem simples e valente, que ele acabava de realizar para além dos seus sonhos oferecendo-lhe uma esposa, uma baronia, bens suficientes para passar dias felizes e duas crianças que, sem dúvida, não eram suas, mas que ele educaria como se fossem... E a vida, não esquecer a vida, salva, longe dos combates que se preparavam... Era bem mais do que aquilo que ele próprio tinha, pobre rei que arriscava perder tudo, mulher, filho, trono e vida, ou tudo ganhar, para sempre.

Uter respirou fundo e tentou esquecer as suas apreensões contemplando o imenso acampamento que acordava com os primeiros raios de sol. Toda aquela massa de homens, todos aqueles cavalos... Eles eram sem dúvida menos numerosos que a multidão que tinha seguido o Pendragon durante a sua irreprimível cavalgada, mas desta vez era ele próprio, nem mais que um homem mas não menos que um homem. Desta vez, eles venceriam pelo gládio e pela lança, não pela magia. Seria um novo começo, uma segunda oportunidade. Lliane tinha razão... Que os talismãs se juntassem na ilha sagrada, que desaparecessem aí e que fossem esquecidos até ao fim dos tempos!

Sem querer, o seu olhar dirigiu-se para o lago, para o pequeno carreiro que Ulfin e ele tinham seguido desde a porta de entrada até ao pontão e, depois, até aos acampamentos dos elfos e dos anões. Já teriam partido? Evidentemente que não. Eles tinham que esperar por Freihr, Ulfin e aquele merecedor de forca que lhes serviria de guia. No entanto, não se via nenhum fumo...

Um barulho de escorregadela e um palavrão, sobre o caminho de ronda, fizeram-no voltar a cabeça. Era o duque Léo de Grand, enrolado numa capa forrada que lhe escondia o braço ao peito.

— Já sei o que me vais dizer — disse Uter levantando a mão para o parar mesmo antes de ele se exprimir. — Poupa-te a esforços inúteis, sou eu quem conduzirá o exército. Não é um castigo... Tu serás sempre o condestável do reino, mas estás ferido. Não conseguirias sequer pegar numa lança.

O duque acusou o golpe. A sua cara estava a suar, tão vermelha por causa do frio como por causa do esforço que representara a subida à torre de acesso às muralhas. Ele saltitava de um pé para o outro, custando-lhe a engolir o discurso que tinha elaborado e que o seu cunhado tinha tornado vão com aquela atitude. Dava de tal forma voltas à cabeça para encontrar novos argumentos que Uter teve pena dele e, sem pensar no seu ferimento, bateu-lhe calorosamente no ombro, o que teve como efeito arrancar um grito de dor a Carmelide.

— Desculpa. Vês, tinha-me esquecido...

— Não faz mal — resmungou Léo de Grand baixinho. Recuou no entanto, dando meia volta como que para pôr a sua ferida fora do alcance de uma nova manifestação intempestiva de amizade.

— Aliás, preciso de ti — disse Uter.

O duque levantou uma sobrancelha espessa.

— Quero que leves Ygraine para Carohaise. Não ficarão em Loth homens suficientes para a defenderem, se por acaso... Enfim, percebeste.

Uter tentou sorrir, mas não passou de um esgar.

— Agora, conta-me tudo aquilo que sabes dos monstros.

 

Eles tinham-se metido a caminho já noite escura, com a luz das estrelas e o luar como única iluminação, o que era perfeitamente suficiente para os elfos, e mesmo para os anões. Os três homens da companhia, Ulfin, Freihr e Guerri o assassino, ao qual só tinham dado uma mula para não se arriscarem a que fugisse, não viam nada, em contrapartida, e abriam os olhos tentando segui-los. Bem mais à frente, como de costume, Till caminhava a pé, seguido pelo seu falcão. Era um seguidor de pistas, capaz de correr horas seguidas sem sentir cansaço, silencioso como uma raposa. Dentro de pouco tempo, quando o dia nascesse, forçariam a marcha, mas de momento seguiam a passo, tão lentamente, de facto, que Till, mesmo seguindo a pé, já levava um avanço considerável.

Lliane cavalgava em silêncio ao lado do seu irmão Dorian e de Kevin o arqueiro. A noite estava calma, pontuada por piares dos pássaros nocturnos e pelo passo tranquilo dos cavalos na neve. Nenhum deles dormitava, mas a excitação da partida tinha dado lugar, ao fim de algumas horas, a um mutismo geral. O próprio Freihr tinha acabado por se calar. A rainha tinha deixado as rédeas da sua jumenta deslizarem pelo pescoço. E o seu corpo relaxado seguia o balançar regular do passo da jumenta enquanto ela se perdia nos seus pensamentos.

Durante todo o dia, empoleirados no alto do outeiro, abrigados nas suas peles cheias de neve, tinham assistido à interminável procissão do exército dos homens deixando Loth em ordem de batalha, e aquelas imagens tinham-lhes ficado gravadas na memória. Tudo tinha começado ao nascer do dia, quando um grupo de batedores a cavalo tinha saído do acampamento a galope, numa desordem bárbara. E depois, longas filas de gentes de armas, soldados com armas de estoque, arqueiros, piqueiros e simples soldadesca armada de qualquer maneira tinham-se posto a caminho seguindo-os, em fileiras serradas, protegendo os comboios de carruagens e manadas inteiras de bois ou rebanhos de carneiros. No meio desta multidão, viam-se por vezes cruzes altas, seguras como estandartes pelos monges em hábitos cinzentos, como se não tivessem já dificuldades suficientes com as suas cotas de malha e os seus escudos... Por fim vinham os cavaleiros, aclamados do alto das muralhas por tudo o que ficava na cidade de mulheres, crianças, velhos e tão poucos homens válidos que mesmo aqueles que tinham recebido ordens para ficarem em Loth, soldados ou criados, sentiam vergonha. A aurora tinha mantido a sua promessa e um sol de Inverno continuava a brilhar, iluminando os seus elmos e cotas de malha. Dir-se-ia um rio de prata correndo lentamente, interminavelmente, sob uma floresta de lanças. Apesar da distância, os elfos sentiam a terra tremer sob os cascos dos cavalos, vibrar como um tambor. Cada “conroi” trazia estandartes de cores diferentes, e todas estas bandeiras flutuando alegremente davam ao exército um ar de festa. Seria possível que os homens gostassem da guerra, que se sentissem felizes ou orgulhosos por combater? Lliane teria gostado de falar nisso a Myrddin, mas o jovem druida tinha partido com o filho de Uter, e ela não tinha ousado fazer a pergunta a Ulfin. Já era tarde de momento, quando ao espectáculo daquela multidão armada brilhando sob a luz do sol tinha sucedido a sombria e discreta saída deles.

Que importância tinha, aliás... Que eles partissem para o combate cantando ou com o medo dentro deles, o momento da verdade seria o mesmo para todos, no final de contas, quando o furor da batalha se abatesse sobre eles com a velocidade de uma tempestade sobre o oceano. Ao vê-los partir assim e sabendo que Uter estava entre eles, Lliane sentiu-se novamente tomada por aquela sensação humana que a tinha apertado na clareira dos elfos. Uter, Myrddin e ela seguiam três vias diferentes, divergentes, e a elfo sentia-se sozinha, apesar do seu irmão, de Till, Kevin e os outros, como se eles-não devessem voltar a ver-se. Seria um longo percurso, até Kab-Bag...

De repente, um grito cortou o silêncio da noite, seguido de um barulho de queda, de um chorrilho de palavrões e de uma brusca cavalgada. Ela voltou-se instintivamente, e só teve tempo de proteger a cara. Uma sombra passou diante dela, o brilho de uma lâmina cortou-lhe a capa. Era Guerri.

— Parem-no! — gritou a voz rouca de Freihr. — Roubou o meu cavalo!

Já Kevin brandia o seu arco, mas Lliane parou-o com um gesto. Para espanto do bárbaro que tinha chegado perto deles, ela endireitou-se sobre o seu cavalo e deu um relincho estridente. Fazia muito escuro, mesmo para os olhos dos elfos, para que vissem fosse o que fosse, mas ouviram o cavalo empinar-se, obedecendo à sua ordem, e logo a seguir houve um novo barulho de queda.

Freihr reagiu de imediato. Era espantoso ver correr tão depressa um homem da sua altura e do seu peso, principalmente numa tal espessura de neve. Lliane pôs a sua jumenta a trote e juntou-se a eles em alguns instantes, mas não suficientemente depressa para reter o bárbaro. Lançado fora de sela, o infeliz Guerri tinha rolado para a vala e se não tinha partido nada na queda, Freihr encarregava-se visivelmente de corrigir essa injustiça. Batia como um louco, servindo-se do punho como se fosse um martelo, com uma raiva que espantou os elfos e encheu de alegria os anões.

— Freihr, pára! — gritou ela.

Mas o bárbaro continuava a bater, furioso por se ter deixado surpreender por aquele merecedor de forca, que havia tido a imprudência de o derrubar do cavalo para o roubar. A verdade é que com uma mula ele não conseguiria ir muito longe...

— Força! — gritou alegremente Bran, que se tinha aproximado com os seus companheiros. — Mata-o!

Lliane deitou-lhe um olhar mortífero, saltou do cavalo e desceu a vala para segurar o bárbaro. Com uma cotovelada ele livrou-se dela, mas pelo menos teve consciência daquilo que acabava de fazer. Abandonando a sua vítima, precipitou-se para a rainha e pegou nela com as suas mãos grandes, como se fosse uma criança.

— Estou bem — disse Lliane recobrando os sentidos. — Põe-me no chão, agora.

O bárbaro obedeceu, envergonhado, e, como os anões batiam palmas e o aclamavam aos gritos, permitiu-se um vago sorriso.

Lliane tinha-se ajoelhado ao lado de Guerri o Louco, ou do que sobrava dele. O seu maxilar fazia um ângulo bizarro, os seus lábios e o seu nariz tinham rebentado, era uma sorte se ainda estivesse vivo. Ela virou-se para o resto da tropa e foi nesse instante que interceptou o sorriso de Freihr.

— Não tem graça nenhuma — disse ela. — Se o tivesses morto, bruto estúpido, podíamos voltar para Loth ou ir morrer com Uter. Queres voltar a ver o teu filho, sim ou não?

À evocação de Galaad, a cara do gigante fechou-se. Balbuciou uma desculpa, mas Lliane encolheu os ombros e virou-lhe as costas.

Ficaram ali até amanhecer, perdendo horas sem dúvida preciosas, a cuidar do assassino da Guilda. No entanto, que outra coisa poderiam fazer? Era completamente impossível montá-lo numa sela naquele estado, e era preciso que Guerri recuperasse a consciência. Lliane e Sudri, juntando os seus conhecimentos medicinais, tinham-se posto ao lado dele debaixo de um abrigo improvisado feito com uma simples capa estendida entre duas árvores. Nada no mundo, nem a magia das pedras nem a medicina das plantas, teria podido curar uma tal quantidade de feridas, e seria pouco dizer que ele já não tinha figura humana. Colocaram-lhe o maxilar no lugar, mas Guerri tinha perdido vários dentes e não parava de cuspir sangue. Os lábios intumescidos, as órbitas inchadas e negras, gemia sem parar, incapaz de se levantar. A um nível inferior, distinguiam-se agora na neve os traços sanguinolentos da briga.

Os anões tinham feito já uma fogueira e posto qualquer coisa a cozer. Todos os outros, incluindo os elfos, deitavam-lhes olhares de lado, esperando manifestamente que chegasse para todos. O odor a lenha queimada e a vinho quente espalhou-se rapidamente chegando até eles, e depois até ao abrigo onde Sudri dormia o sono dos justos, enroscado sem se dar conta no corpo martirizado do assassino. Tão imóvel quanto uma pedra, Lliane observava-o, e sem dúvida Guerri devia achar que também ela tinha adormecido. Durante um segundo, ele levantou a cabeça e a rainha notou o brilho do seu olhar por baixo das pálpebras inchadas, fixado no anel que ela trazia no dedo.

— É o anel de Mahault — murmurou ela. — O anel da Guilda... Evidentemente, voltarias a ser o mestre se conseguisses apoderar-te de novo dele. Mas no estado em que estás... A questão é saber se tu podes continuar e levar-nos ao subterrâneo. Leva-nos e eu conceder-te-ei o anel, e a vida. Se recusares, não teremos outra alternativa senão metermo-nos ao caminho para nos irmos deixar matar com o exército de Uter. Mas nesse caso, é claro, Freihr terá que se ocupar de ti...

Ele voltou a cara para ela, tão miserável quanto medonha com aquele rosto martelado e a ligadura escurecida de sangue seco que lhe segurava o maxilar. Os seus lábios entreabriram-se, mas ele só conseguiu sibilar algumas palavras incompreensíveis. O seu olhar, em contrapartida, era suficientemente eloquente.

— Vejo que me entendeste — disse ela.

Fez tenção de se levantar para sair do abrigo improvisado, mas o Louco segurou-a pela manga.

— O exército... não tem... nenhuma... chance.

Lliane olhou-o fixamente, perguntando-se se ele sorria ou se aquela espécie de careta era um esgar de sofrimento. Ela esperava que fosse.

— O Mestre... foi... prevenido — murmurou ainda ele.

— Espero bem — disse Ulfin, com uma voz forte que sobressaltou a rainha. — Pode dizer-se que fizemos tudo para isso!

O bravo sorriu-lhe, mas Lliane notou no seu olhar uma agonia que desmentia o tom alegre das suas fanfarrices. Nesse momento, pensavam ambos em Uter, naquele exército inconsciente que, avançava para a morte sem outro fito que não fosse abrir-lhes caminho.

— Se és capaz de falar, és capaz de montar a cavalo — resmungou Ulfin.

Agarrou Guerri pelo pescoço, içou-o sobre o ombro e atirou-o sem delicadeza para cima da mula.

— Senhor Freihr, é vosso! — gritou ele, e o assassino viu com horror o bárbaro aproximar-se, segurando na mão uma fita de couro.

Os seus olhares cruzaram-se durante um instante. Freihr sorria. Agarrou-o também pelo colarinho do capuz, mas arrancou-lhe o casaco com um gesto brusco e passou-lhe a fita em volta do pescoço. Depois, desenrolando só a fita necessária para poder montar, levantou ostensivamente a sua mão enorme e enrolou o que sobrava em volta do punho.

— Tenta manter-te à minha altura — disse ele, apoiando a sua ameaça com um brusco puxão que esticou a fita e quase estrangulou o seu prisioneiro.

— Vamos, a caminho! — gritou a rainha para os anões que continuavam a comer, olhando tudo aquilo como se fosse um espectáculo.

Enquanto eles se preparavam, os outros meteram-se ao caminho. Com um gesto de desprezo com a sua mão livre, Freihr mostrou a Guerri a sua capa caída, formando uma mancha escura na neve.

— Reza para chegarmos antes de anoitecer. Senão, com o frio...

 

Na manhã do segundo dia, alguns lobos vieram rondar o exército a uma certa distância. Uter, entretanto, tinha aprendido a lição de Léo de Grand. Não tinham montado acampamento nem feito lume. Tinha sido uma noite terrível, mas pelo menos não se arriscavam a serem surpreendidos, mesmo que poucos entres eles tivessem conseguido pregar olho. Os homens tinham-se instalado em fileiras serradas, abafados nas suas capas, protegidos do vento pelas carroças que o marechal de campo tinha alinhado a norte, como uma muralha. E, desde que os lobos se tinham mostrado, milhares de homens tinham-se levantado de um salto, de arma em punho, num tal concerto de gritos e numa tal profusão de gestos que os animais tinham fugido com o rabo entre as pernas.

Não era uma vitória, visto que não tinha havido combate, nem mesmo sido lançada uma flecha. No entanto, a fuga dos lobos desencadeou risos e aclamações. Os homens congratulavam-se, falavam alto e batiam os pés. Mais ou menos acordados, mais ou menos transidos, eles sacudiam à luz alaranjada do nascer do dia as suas capas de peles endurecidas pelo frio, juntavam as armas, passavam odres de aguardente para se aquecerem. Uter não via em volta dele senão rostos violáceos e narizes vermelhos, mas todas aquelas carantonhas estavam alegres, e ele próprio se sentia tomado por aquele entusiasmo pueril, pela simples felicidade do nascer do dia, pela força que emanava da multidão. Os bravos que formavam a sua guarda próxima sorriam, também eles, enquanto o ajudavam a equipar-se. Uter parou um instante o seu olhar sobre uma silhueta ajoelhada à distância, e depois abanou a cabeça ao reconhecer Illtud de Brennock. O abade, vestido para a guerra como eles e trazendo a espada à cintura, não parecia nada um homem da Igreja, mas bem mais o cavaleiro que tinha sido em outros tempos. Rezava sozinho, de mãos postas e a cabeça baixa, oferecendo a nuca rapada e a sua tonsura ao vento de Inverno. Uter ficou grato por ele não ter imposto a todos alguma ação de graças. De momento, ele tinha fome e frio, e nada lhe parecia mais urgente do que acabar de se equipar e de levantar o acampamento. Desviando o olhar do monge, vestiu a cota de malha por cima da túnica de couro acolchoado que tinha conservado para dormir, fez alguns movimentos para a moldar ao corpo, enfiou a cota de armas branca por cima de tudo e deixou Adragai atar em volta das suas ancas o talim com Excalibur. Por fim, cobriu a cabeça e os ombros com o capuz de ferro e pegou seu elmo o qual fixou à sela. Pelos seus olhares, pelos seus sorrisos, sentia que os bravos esperavam que ele lhes falasse, e ele sentiu-se incapaz de lhes mentir e ao mesmo tempo de lhes contar o que os esperava.

— Vamos, meus amigos, montem!

Poderiam eles ter compreendido que apesar do seu número, apesar da sua força, todo aquele exército não passava de um logro, de uma diversão, que a maioria deles morreria dentro em breve sem esperança de vitória?

Uter foi dos primeiros a pôr o pé no estribo e, do alto do seu cavalo, contemplou a planície cheia de gente, agitada como um formigueiro. Que diferença fazia, no fim de contas? Uma batalha era uma batalha...

Precisavam de menos de uma hora para formarem as fileiras e avançarem em ordem de marcha. Rodeado pelos seus bravos, o rei cavalgava a passo entre os soldados, cabeça nua para que todos o reconhecessem. À sua passagem, os soldados levantavam os piques ou os escudos brancos cunhados de uma cruz vermelha, e os mais ousados dirigiam-se a ele sem maneiras e batiam na garupa do cavalo por cima do caparazão, como se tudo não passasse de um passeio, como se centenas, milhares deles não fossem morrer antes do anoitecer. Comiam a andar e não paravam de lhe estenderem presunto, pão, que ele aceitava de bom grado, um odre de vinho do qual bebia até se fartar, e o belo apetite do rei enchia-os de alegria. Depois, Uter esporeava o cavalo e partia a trote até um outro grupo, brandindo por vezes Excalibur, brilhante como o sol nascente. Foi assim durante uma boa parte da manhã, depois o cansaço da caminhada fez-se sentir e o júbilo dos homens foi parando pouco a pouco.

Eles não estavam a mais de uma dezena de léguas de Loth, mas a paisagem tornava-se mais acidentada, com conjuntos de rochas negras parecendo jorrarem da terra como pedaços de um esqueleto colossal. A hoste avançava em três colunas sobre o caminho aberto pela cavalaria ligeira, com o centro compacto com a massa de soldados e arqueiros, protegidos em cada flanco por uma “bataille” inteira de cavaleiros. O bravo Urien comandava a retaguarda, com um simples “conroi” de algumas dezenas de homens para guardarem as carroças carregadas de víveres, lanças e flechas. Era mais do que suficiente. Por trás deles, não havia mais do que Loth. Os monstros estavam para a frente, em algum lugar para lá das colinas, e se a gentalha da Guilda tinha agido como Uter esperava, sem dúvida já deveriam vir ao seu encontro a toda a pressa, no seu frenesi bárbaro, prontos para o confronto final.

Foi mais cedo ainda do que ele pensava. Pouco antes da sexta, a sexta hora do dia, um clamor súbito soou ao longe. Uter levantou-se sobre os estribos, a tempo de ver a sua cavalaria ligeira bater em retirada, levantando atrás dela uma nuvem de neve. Um grupo de batedores galopou até ele para o avisarem daquilo que todos podiam ver com os seus próprios olhos. O exército dos monstros estava ali, formando uma linha escura no cume das colinas. Eles ainda estavam longe, a mais de uma légua, mas não podia haver dúvida, não era uma guarda avançada nem um grupo isolado... Os monstros eram aos milhares, formando uma massa fervilhante e escura que brilhava como uma purulência debaixo do sol pálido. Uter sentiu pesar sobre si o olhar dos seus homens, misturado de esperança e de angústia. Um jovem soldado, mesmo a seu lado, quase desaparecia debaixo de um elmo fora de moda e demasiado grande, e tinha que mexer a cabeça para conseguir ver alguma coisa. Sem dúvida que o elmo devia ter pertencido ao seu pai...

— Tu! Como te chamas? — gritou Uter, bem alto para que todos o ouvissem.

O jovem levantou o elmo admirado, olhou o rei que lhe sorria, e depois todos os seus camaradas que lhe davam cotoveladas.

— Ogier — murmurou ele.

— Pois bem, Ogier, vem ter comigo depois da batalha. Vou mandar-te fazer um elmo à medida!

Era uma fraca brincadeira, mas os homens riram a bom rir. Uter desembainhou Excalibur, brandiu-a por cima deles e gritou: “Que Deus vos guarde!”, depois galopou até o pequeno outeiro, seguido pelos seus bravos e por Nut que carregava o seu estandarte. O espetáculo da hoste alinhando para a batalha tranquilizou-o: havia agitação, gritos e nervosismo, mas nenhuma confusão. Enquadrada por soldados aguerridos, a multidão de peões formava-se em fileiras, de um lado e do outro dos arqueiros. Uma linha dupla de lanceiros, colocava-se diante deles, espetando no chão os seus piques compridos para formarem uma ala de aço oblíquo. Os monges, ao todo uma dezena, plantaram também em terras as suas cruzes altas, como um bosquezinho magro por trás das fileiras dos soldados. Via-se Illtud entre eles, escavando o solo gelado com afinco, a golpes de picareta. Uter perguntou-se se ele teria o mesmo afinco no combate, daí a pouco, quando as cruzes fossem submergidas pelas hordas de Aquele-que-não-pode-ser-nomeado... Um pouco por todo o lado, os cavaleiros com bandeira convergiam a galope para o outeiro onde o rei se tinha colocado, recebendo as ordens dele e partindo imediatamente, com a bandeira ao vento. Uter só conservou Nut e Kanet de Caere perto dele. Adragai o Moreno e Madoc o Negro, os dois inseparáveis, receberam o comando da tropa. A dos arqueiros. Um homem foi enviado à retaguarda para transmitir a Urien a ordem de levar as carroças para a linha de batalha. Toda a cavalaria recebeu ordens para retroceder para trás dos soldados epara se dissimular numa dobra do terreno. E foi assim formados que eles aguardaram o choque.

Os homens voltavam a respirar depois da febre dos preparativos. O suor gelava-se-lhes sobre os rostos, os membros estavam pesados e ninguém tinha vontade de rir. Tinham-se desembaraçado dos sacos, dos casacos e de tudo o que os pudesse incomodar, e toda aquela miscelânea dava à retaguarda das linhas ares de despejo.

Houve ainda um pouco de agitação quando Urien desembocou com as carroças, e que foi preciso desatrelar os animais e virar os carros de munições na linha dos arqueiros, que os moços de armas descarregassem os grandes feixes de flechas, tão largos quanto barris, e que os arrastassem como podiam até às fileiras dos arqueiros. Depois a calma voltou, pontuada pelas ordens roucas dos sargentos de armas esforçando-se o mais possível por reporem a ordem nas suas tropas.

No silêncio pesado, o mugir dos bois abandonados à sua sorte ressoava lugubremente. Um pouco por todo o lado, os soldados amontoados nas fileiras levantavam-se sobre a ponta dos pés, por vezes mesmo içando-se sobre os ombros de um companheiro para verem o que se passava. O exército tinha-se disposto por necessidade, à espera de uma carga brutal, mas os monstros avançavam lentamente, a passo, sem barulho, e àquela velocidade seria preciso uma hora até chegarem ao contacto. A massa informe sombria cobria pouco a pouco os vales com neve sem que se pudesse adivinhar aí a menor ordem de batalha. Era como uma cortina puxada para esconder o dia, como uma maré a subir cobrindo a costa. Os homens que se tinham julgado numerosos, descobriam agora o que podia ser uma multidão. Não era um exército que avançava para eles, era uma nação inteira. E aquele silêncio... O silêncio era o pior de tudo. Daquele mar em marcha não provinha um som, nem mesmo um rumor. Viam-se agora os seus estandartes vermelhos sangue a flutuarem ao vento, adivinhavam-se os milhares de reflexos das suas couraças escuras, mas nada, nem bater nem tinir de armas.

Sob a ordem de Do, um arqueiro disparou uma flecha, tão longe quanto possível, e toda a linha seguiu o seu vôo e depois o seu declínio, até que ela se cravou no chão, a mais de cem toesas [43].

— Ninguém atira até eles terem atingido este ponto! — gritou ele.

Com efeito, raros eram aqueles que a conseguiam distinguir àquela distância, sobretudo com as carroças viradas em frente deles, mas pelo menos teriam o espírito ocupado. Os arqueiros puseram-se a espetar as flechas diante deles na neve, para atirarem mais depressa, daí a pouco. Não teriam mais que uns vinte segundos para dispararem as setas, sem mesmo terem tempo para fazer pontaria, antes que o inimigo chegasse até eles. Os mais experientes podiam atirar quatro ou cinco flechas nesse espaço de tempo, talvez mais, se os lanceiros se aguentassem.

Os monstros continuavam a avançar. Estavam agora a uma milha [44], talvez menos, um quarto de légua, e não andavam mais depressa. Quando não estavam a mais de trezentas, quatrocentas toesas, os homens deitaram-se e beijaram o chão, e este movimento percorreu rapidamente toda a linha de batalha.

— Que é que eles estão a fazer? — perguntou Illtud, vindo ter com Uter.

— É um velho costume — murmurou o rei sem olhar para ele. — Significa que estão prontos a voltar para a terra.

O abade abanou a cabeça e sorriu.

— Talvez ainda estejamos a tempo de dar graças a Deus.

Se era uma pergunta, Uter não percebeu e não respondeu.

— Que o céu te guarde, meu filho...

Os dois homens olharam-se em silêncio, tão parecidos nas suas cotas de armas imaculadas, com o brilho mate do sol sobre as mangas de malha.

— A vós também, meu pai — disse o rei, e tirou a luva para lhe apertar a mão. — Se não nos voltarmos a ver... — Uter interrompeu-se, procurou as palavras. — Dizei a Ygraine...

De novo, Illtud respondeu a sorrir.

— Dir-lhe-ei.

E, desembainhando a sua espada, partiu a trote para o bosquezinho de cruzes. Uter ficou a vê-lo ir-se embora. Sem dúvida que ele combateria...

Uter viu-o desmontar o cavalo perto dos seus monges e pouco tempo depois o seu coro entoava o Non Nobis, depois um Te Deum, grave e modulado, cuja beleza guerreira o atingiu e lhe fez virem lágrimas aos olhos.

A seu lado, Nut e Kanet de Caere viram os seus olhos vermelhos e inchados, sem conseguirem entender a súbita emoção do rei. O cântico era belo, era triste, mas tinha sido a evocação de Ygraine que tinha rompido o dique do seu choro. Tinha partido sem voltar a ver, sem uma palavra, sem um gesto, e talvez morresse sem saber se ela o amava ainda.

De repente, endireitou-se e tomou uma decisão.

— Nut, Kanet! Ponham o abade em cima de um cavalo, dêem-lhe dois homens robustos, e que partam ao encontro da rainha, até Carmelide, se for preciso. Dizei-lhe... Dizei-lhe para transmitir a minha mensagem antes do anoitecer!

Os bravos acenaram com a cabeça e lançaram-se. Foi necessário reunir vários homens para arrancar o abade do seu rebanho e arrastá-lo para fora do campo de batalha. À vista do seu ar fulminante, deveria sem dúvida maldizê-lo, mas pelo menos Uter teria a satisfação de talvez ter salvo a vida de um santo homem.

Tinham acabado de partir quando um grito ensurdecedor lhes gelou o coração. Ao mesmo tempo, os monstros puseram-se a gritar como dementes. De uma só vez, tinham-se posto a correr. As suas fileiras, neste movimento, alargaram-se como se fosse uma mão enorme abrindo-se para os agarrar. Duzentas toesas, cento e cinquenta... Uter espreitava a primeira revoada de flechas, agarrando nervosamente as rédeas do seu cavalo. Do tardava a dar a ordem. A flecha já tinha sido passada? Impossível distinguir de tão longe. Cento e vinte toesas... De que é que ele estava à espera? Houve um grito rouco, e imediatamente o barulho de milhares de arcos libertando a corda ao mesmo tempo, seguido do zumbir estridente de milhares de flechas jorrando no ar tal qual um enxame. Uter, como todos eles, seguiu-as com os olhos até que elas se abateram naquela multidão, ceifando fileiras inteiras, que os outros pisavam imediatamente, com uma perfeita indiferença. Já uma nova chuva de flechas, menos compacta pois os menos experientes ou os mais nervosos demoravam mais a colocá-las, se abatia sobre a corrida dos monstros.

Os homens gritavam agora, libertando a angústia dos últimos minutos antes do choque decisivo. Uter brandiu Excalibur, bem alto no céu.

— Uma só terra, um só rei, um só Deus!

A multidão dos monstros veio quebrar-se sobre a linha de aço das lanças. A batalha tinha começado.

 

                 A CARGA DO REI

— É ali — disse Guerri o Louco. Desde o final da manhã, eles tinham deixado a planície e entrado num caminho acidentado, cujas encostas não deixavam de se mostrar de hora a hora. Era agora numa verdadeira ravina que eles cavalgavam, tão estreita que não podiam ir mais de dois a dois. A luz do sol não chegava até eles, naquela garganta sinuosa de rochas e gelo, e se o assassino da Guilda tivesse tido garra suficiente para os atrair para uma emboscada, não se poderia sonhar com local mais adequado. Nada tinha acontecido no entanto, nem desmoronamento, nem avalanche, nem emboscada, até que Guerri parou a sua mula.

Ele apontou-lhes uma cavidade direita como um corte, disfarçada na base por arbustos cobertos de neve, e como eles não se mexessem, pôs pé em terra e levantou para Lliane um olhar interrogador.

— Vai tu — disse ela.

Por seu turno, Freihr desmontou, desembainhou a sua espada com a mão livre e fez sinal a Guerri para avançar, visto que ele continuava preso pelo pescoço como um cão. O homem avançou direito aos arbustos, coxeando e tremendo, sem capa nem casaco para o proteger, com tão mau aspecto quanto possível. No entanto, pegou num arbusto e arrancou-o do solo sem esforço, para grande espanto do bárbaro.

— Ajudem-no — disse Lliane

Freihr e Ulfin obedeceram ao mesmo tempo e divertiram-se a limpar a passagem, descobrindo que toda aquela vegetação estava só pousada no chão, habilmente disposta de maneira a esconder a passagem. A neve, cobrindo tudo, tinha tornado esta camuflagem perfeitamente impossível de ser descoberta, se acaso alguém tivesse sido tão louco quanto eles de seguir durante tanto tempo por aquela ravina inospitaleira. No espaço de alguns minutos, o caminho ficou livre. À entrada do subterrâneo Ulfin descobriu marcas de carruagem, profundamente imprimidas na terra gelada, que provavam que Guerri não tinha mentido.

— Cumpri a minha promessa — disse numa voz despedaçada, soprando a cada expiração uma nuvem branca que escondia durante um bocado a sua cara desfeita, azulada pelo frio. Deixem-me partir agora.

— Ainda não estamos em Scâth — respondeu a rainha. E virou-lhe as costas, indiferente ao seu ar ultrajado.

— A cavalo! Till, Kevin, partam à frente!

Os dois elfos trocaram um olhar rápido. Desde que tinham partido, o rosto de Lliane estava sério, a sua voz dura. Por vezes ela parecia fazer um esforço para não gritar. Eles já não ousavam falar-lhe, mas o mutismo doloroso no qual ela se tinha pouco a pouco encerrado partia-lhes o coração. Kevin pegou no arco que trazia a tiracolo, escolheu cuidadosamente uma flecha na sua aljava e aproximou-se dela.

— Continuamos a cavalo?

— Se eles saíram dali com a gorda Mahault, é porque podemos passar! — lançou Ulfin voltando a montar.

Kevin abanou a cabeça com um sorriso e tocou o cavalo. Rapidamente, os dois elfos e o falcão branco de Till desapareceram nas entranhas da gruta.

Os outros puseram-se a caminho depois de terem cortado lenha e ramos suficientes para confeccionarem archotes. A lenha estava gelada, deitava fumo e chiava ao queimar, mas nenhum homem teria podido aventurar-se no interior sem um pouco de luz. Os archotes, no entanto, revelaram o que nem os olhos dos elfos teriam podido detectar. A galeria tinha cicatrizes de inúmeros golpes de picareta, e imaginavam-se allyans inteiros de gnomos afadigando-se ali dia e noite, com a perseverança de brutos, até chegarem ao ar livre. Era um belo trabalho, na verdade, digno de uma galeria de anões. O chão duro e liso, ressoava sob os cascos dos cavalos. A água corria dos lados, mas numa espécie de sarjeta, que preservava a estrada de toda a espécie de sujeira. Era necessário por vezes baixarem a cabeça, por vezes mesmo desmontarem para passar, porque, é claro, tinham sido gnomos a escavar o túnel, e os mais altos deles não passavam dos quatro pés de altura. A altura era no entanto suficiente para os cavalos e mesmo para carroças cobertas. Os anões torciam o nariz com um ar desdenhoso, mas era visível que o túnel dos gnomos os espantava.

Seguiram assim durante bastante tempo, com todos os sentidos alerta. Bem rapidamente, o ar fresco do exterior deu lugar a um cheiro persistente a mofo, e depois a odores infames, tão pestilentos que os próprios cavalos fungavam, e foi preciso cobrirem-lhes as narinas.

— Com a breca, o que é que cheira assim? — explodiu subitamente Ulfin.

— É enxofre — disse Sudri, com um ar tão feliz que eles se perguntaram se ele não teria crescido perto de curtumes. — Estejam atentos aos vossos archotes, senão...

— Senão o quê? — resmungou o cavaleiro.

— Vou mostrar-te... Dá cá.

Ele desceu do cavalo, pegou no archote que Ulfin lhe estendia e iluminou um conjunto de pedras amarelo limão, das quais retirou cheio de precaução um fragmento. Pousou-o no chão, longe do veio de minerais, voltou-se para ver se todos estavam atentos, e atirou o archote para cima dele. No tempo que ele se afastou, o enxofre entrou em fusão, iluminando o subterrâneo com uma série de clarões que cegavam, com um fumo espesso e sufocante que lhes picou no nariz e lhes fez virem lágrimas aos olhos.

— O que é esta porcaria? — gritou o bravo, tossindo e escarrando como um pobre diabo.

Sudri não respondeu. Pegou o archote, devolveu-o ao cavaleiro e depois saltitou até ao cavalo da rainha.

— Parti antes de mim. Vou tentar juntar o máximo possível. Poderá ser-nos útil...

Virou-se sem esperar a resposta da rainha, e Bran fez-lhe um sinal, para lhe fazer compreender que ele e Onar ficavam com o mestre das pedras o tempo que fosse necessário. Eles partiram, sem no entanto conseguirem escapar àquele cheiro pestilento, que permaneceu colado a eles até ao fim. Durante todo aquele intervalo, a rainha não tinha dito nada, nem uma palavra. Pôs-se a caminho sem sair daquele isolamento, com a garganta apertada por uma sensação oprimente, pesada, insuportável. Ela tinha começado a senti-la algumas horas atrás, quando ainda cavalgavam ao ar livre, e apesar de todos os seus esforços, não conseguia livrar-se dela. Aquele sopro gelado que lhe apertava o coração, era a Morte. Ela estava ali, rondando em volta deles, esperando a sua hora para atacar, sem que Lliane pudesse entender o nome que ela lhe murmurava ao ouvido. Por isso ela cavalgava sozinha, evitando o olhar dos seus companheiros para não atrair a infelicidade para cima deles, entrando cada vez mais para dentro no subterrâneos dos gnomos e na prisão da sua solidão. Um nome, no entanto, um nome por fim desenhava-se-lhe na mente, apesar de todos os seus esforços para não o entender. Entre os gemidos atrozes das almas deixando a Terra Média no horror indizível do falecimento, a Morte murmurava a sua escolha. Estava longe, ainda; talvez não passasse de um rebate falso, mas as mesmas duas sílabas voltavam, lancinantes, ao ritmo da sua jumenta. Uter...

 

Aquilo não era uma batalha, era uma carnificina. Os lanceiros aguentavam-se, apesar do seu número irrisório e mantinham à distância as vagas sucessivas de assaltantes que se vinham espetar nos seus piques compridos, gritando debaixo da chuva de flechas que os arqueiros de Do não paravam de atirar, a ponto de começarem a faltar flechas. Uter ainda não tinha enviado as suas “batailles” de cavaleiros que contemplavam o massacre sem reconhecerem, nas hordas dos monstros que vinham esmagar-se em vão contra a frente das suas tropas, a fúria assassina de que estavam à espera. Debaixo do espezinhar de todos estes seres, a planície imaculada tinha-se tornado um campo de lama negra e ensopada. A neve derretia-se sob o calor do sangue. Os arredores do combate estavam sujos. E, naquele atoleiro infame que os cobria igualmente a todos, os homens e os monstros assemelhavam-se uns aos outros.

Uter levantou-se nos estribos, percorreu com o olhar o combate e compreendeu por fim: este fervilhar louco, esta massa incontável e gritante não passava de uma entrada. Não havia entre eles nenhum gobelin, somente raças menores, ores, Kobolds ou trolls, loucos de raiva, frenéticos e transbordando de ódio, demasiado estúpidos para conhecerem o medo, mas sem comando nem valor militar face a um exército alinhado. Ficou sem pingo de sangue quando viu, bem longe daquela horrível carnificina, o bloco escuro e compacto do exército gobelin em marcha. Toda aquela multidão, aquela mortandade, aquela fúria não tinha servido para mais do que esgotar as suas provisões de flechas...

No próprio instante em que esta revelação se formava no seu espírito, o longo rugido de um corno soou por cima do combate, e a horda interrompeu imediatamente a luta, rugindo em desordem sob os gritos dos soldados humanos. Entre eles, ainda ninguém tinha visto o perigo. Uter olhou os seus homens, estes milhares de homens de carne e osso que agitavam as armas no ar e o aclamavam. Reconheceu Adragai o Moreno e Madoc o Negro, cujas cotas de armas estavam vermelhas de sangue. Os dois irmãos abraçados levantaram para ele as suas espadas, alegremente, e gritaram-lhe alguma coisa que, evidentemente, ele não podia ouvir.

— É preciso bater em retirada — murmurou ele.

— Que é que tu dizes?

Kanet de Caere olhava-o como se ele tivesse perdido o juízo. Não, não só... Não havia só uma interrogação no seu olhar ultrajado. Uter leu nele uma desconfiança vergonhosa. Nut, ao lado dele, baixava os olhos. Era isso. Um e outro tinham visto, tal como ele, os escuros batalhões de Aquele-que-não-pode-ser-nomeado acorrendo ao combate. Desde o princípio do confronto, eles tremiam em cima das selas, mortificados, como o deviam estar cada um dos cavaleiros, à idéia de estarem em reserva para esta carnificina. E agora que o verdadeiro perigo se manifestava, a frase murmurada pelo rei parecia-lhes a pior das indignidades.

— Senhor, podemos vencê-los — arriscou Nut.

— Cala-te!

Em baixo, os soldados e os arqueiros continuavam a celebrar a sua vitória ilusória. As suas fileiras desfaziam-se, os monges arrastavam para trás os feridos incapazes de se moverem sozinhos. Já não existia frente, nem linhas de arqueiros, nem mesmo flechas. Só a cavalaria continuava intacta. Talvez pudessem ganhar, mas somente a preço de um envolvimento total, o que Uter queria justamente evitar. Não servia de nada enfrentar os monstros no terreno deles. A fúria e a crueldade alimentava-se da coragem e da força, até esvaziar a alma dos combatentes, vencer a sua vontade e esmagar-lhes o corpo. O horror nunca perdia uma batalha. Atacar agora, enviar todo o exército dos homens, combater até ao último e talvez ganhar, exterminar aqueles monstros, degolar os seus feridos e queimar os seus cadáveres, tudo isso não serviria para nada. Dentro de um ano, dentro de dez anos, uma nova guerra devastaria o reino. O verdadeiro combate, o único que poderia pôr termo a este ciclo repugnante, dava-se em outro local, talvez mesmo neste momento...

Em baixo os homens apressavam-se febrilmente. Eles tinham visto por fim a carga dos gobelins e voltavam para eles os seus olhares alarmados. Terminar o combate, nesse momento, condenaria toda a soldadesca a morte vergonhosa. Entrar em combate não serviria senão para morrer com eles. Era assim... Uter levantou os olhos, contemplou o céu sem nuvens. Sorriu para consigo, voltou-se para o seu porta-estandartes e apontou-lhe a linha dos arqueiros.

— Diz-lhes para largarem as fileiras e irem agarrar flechas, no ventre dos mortos, se for preciso!

E, enquanto Kanet de Caere partia a galope, Uter e Nut desceram o outeiro e colocaram-se à frente da cavalaria. O seu número tranquilizou o jovem rei. Milhares de lanças levantadas no ar, pendões, estandartes, insígnias e bandeiras batendo ao vento. Os homens e os cavalos campeavam por terem sido mantidos tanto tempo afastados da batalha, embora uma enorme ovação se tivesse elevado quando o reconheceram. Uter colocou o elmo, cortando com um simples gesto as manifestações de entusiasmo, e pegou na lança que lhe estendia o escudeiro. Aos senhores que tinham vindo receber ordens ele só deu uma:

— Formamos numa só “bataille”, em linhas fechadas, com as lanças.

E eles partiram a trote para se colocarem sobre uma elevação, com o sol a bater-lhes nas costas. Era questão de tempo. Num nível inferior, a horda dos fugitivos dispersava-se em volta de um bloco compacto, avançando numa grande coluna na planície coberta de neve, a uma velocidade assustadora. Os gobelins entravam em combate a correr. Ao centro, conduzindo um grupo de cavaleiros armados, emergia um ser sombrio e magro, cujo rosto de uma palidez cadavérica atraía os olhares, no meio daquela escuridão. Diante deles, como um punho, uma alcatéia de lobos e centenas de cavaleiros mercenários carregavam direto em direção às linhas dos arqueiros, mergulhados no mais total dos caos, entre aqueles que iam buscar flechas, aqueles que tinham abandonado as fileiras, acreditando na vitória, a massa informe dos soldados tardando a voltar a formar fileiras e o amontoado de corpos diante deles, testemunhando a fúria do primeiro combate. Nunca conseguiriam bater em retirada ordenadamente. Não havia outra hipótese senão ficarem. Combaterem para salvarem a pele ou morrerem sem sofrerem muito. Ele fechou os olhos por um breve instante, isolando-se dos gritos e do barulho da batalha. Era a cara de Ygraine que ele via, era o corpo dela enroscado nos lençóis do leito deles... O abade Illtud teria chegado até ela? Talvez estivessem a rezar por ele, nesse momento. Ele bem precisava...

— É preciso dar-lhes tempo! — gritou Uter, e a sua voz ressoou dentro do seu elmo, ensurdecendo-o.

Levantou a lança, e a primeira linha de batalha pôs-se a passo, depois a trote, depois a galope, fazendo tremer a terra como o estrondo de uma tempestade. Os homens seguravam contra si os seus longos escudos ovais que lhes protegia o flanco esquerdo até ao joelho, depois baixaram as lanças e ajustaram-nas solidamente debaixo dos braços. Os cavaleiros gobelins, surpreendidos pelo ataque da cavalaria, tentaram dar meia volta, mas a carga colheu-os em desordem — nenhuma das suas armas imundas podia rivalizar com as longas lanças dos homens. Uter viu os cavaleiros derrotarem alguns grupos que lhes tinham feito frente, e depois baterem de frente na coluna gobelin. As lanças atravessaram os corpos com tal força que os estandartes saíam por vezes do outro lado, num jorro de sangue, quando não se partiam debaixo do choque ou não se largavam dos braços dos cavaleiros. Viu cavalos loucos de terror tentarem saltar por cima das linhas dos gobelins e esmagarem-se com os seus cavaleiros no meio da massa em ebulição. Viu infelizes presos nas suas fileiras, agarrados pelos braços e atirados para fora dos cavalos, desaparecendo imediatamente debaixo de um ajuntamento medonho. Viu outros serem decapitados pelo golpe de um machado e galoparem ainda, levados pelo cavalo, deixando atrás uma bruma sanguinolenta. Os monstros partiam a golpes de machado os jarretes dos cavalos lançados em plena corrida, homens empalando-se sobre os punhos da sua própria lança, cavaleiros presos debaixo do seu cavalo morto a gritarem, com os membros partidos, até que um monstro os vinha pregar ao chão. Uter apertou o punho sobre a sua lança, levantou os olhos para o estandarte inerte fixado sobre a ponta. O vento tinha caído, o sol toldava-se pouco a pouco. Apesar do frio, ele sentia o suor escorrer debaixo do seu capuz de ferro forrado a couro. O seu elmo parecia pesado, a sua respiração era curta, e mal esporeou o cavalo todo o peso da sua cota de malha e das suas armas caiu-lhe pesadamente sobre os ombros. Pôs-se a trote, imediatamente seguido por toda a segunda “bataille”, enquanto os gobelins, em baixo, se preparavam para o choque. Já não haveria efeito surpresa, desta vez...

Quando os cavalos embalaram, Uter baixou a lança, procurando com os olhos um alvo na massa informe dos monstros. Já não via quase mais nada no meio do tumultuo da carga, a não ser um enxame de lobos e cavaleiros dando voltas diante deles, e depois, mais para lá, uma pavorosa muralha de guerreiros aos gritos. Sem mesmo se dar conta, começou a gritar, também ele, com os olhos fixos no seu estandarte que assobiava no vento da cavalgada. Um cavaleiro carregava sobre ele fazendo grandes molinetes com a sua cimitarra curva. Uter não viu mais nada para além dele, da sua cara disforme. No último instante levantou a lança. O ferro deslizou sobre o escudo do monstro, atravessou-lhe a garganta sem esforço, arrancando-lhe o elmo e uma parte do crânio. O golpe entorpeceu-lhe o braço, mas o cabo não se tinha partido. Ao fundo, o estandarte continuava a bater ao vento, agora vermelho de sangue. Uter não teve tempo de ver o que acontecia ao cavaleiro da cimitarra. Levado pela sua carga, ele continuava direito sobre as fileiras dos gobelins. Também não tinha tempo de escolher um alvo. Viu a lança enterrar-se naquele pulular e, desta vez, foi como se tivesse batido num muro. O punho partiu-se com uma tal violência que ele teve que desviar a cara para evitar os fragmentos, e o seu braço pareceu-lhe ter sido arrancado durante o choque. As suas costas bateram no arção da sua sela, e ele ficou atordoado, com luzinhas a brilharem-lhe diante dos olhos. Por um breve instante, o rosto pálido do cavaleiro armado, passou diante dos seus olhos, por cima da massa fervilhante dos monstros. Era um homem, não havia dúvida, o chefe daquele exército monstruoso, e pareceu-lhe que ele ria... A visão não durou mais que um instante. Já o seu cavalo o arrastava para fora da contenda. Durante o tempo que tinha demorado a recuperar a consciência, Uter tinha atravessado o campo cheio de neve, encontrando a cem toesas de lá os sobreviventes da primeira carga.

Os homens gritavam, esticavam os punhos por trás dele, e ele voltou-se a tempo de ver a carga da terceira linha bater como um punho a “bataille” de gobelins, entre um barulho pavoroso de gritos e ferros triturados. Ele arrancou o seu elmo, deitou mesmo para trás o seu capuz de ferro, e içou-se sobre os estribos, com o coração a bater. Os gobelins recuavam... As três cargas tinham cavado nas suas fileiras largas tiras sangrentas parando imediatamente o avançar irresistível deles. Voltou-se para a esquerda e sentiu-se aliviado ao ver a linha impecável formada novamente pelos seus arqueiros.

Os cavaleiros da terceira linha vinham agora ter com eles. Muitos cavalos sem cavaleiros. Quase nenhuma lança intacta... E, no entanto, os homens sorriam. Kanet e Nut levaram os seus cavalos até junto dele, mas Uter não lhes deu tempo para respirarem. Embaixo, os monstros turbilhonavam, formando fileiras por seu lado, para se prepararem para uma nova carga.

— Continuas a achar que os podemos vencer? — gritou Uter a Nut.

O bravo não respondeu.

— Eu acho que sim! — disse Uter. — Fica comigo, verás como se quebra uma lança!

Partiram a galope, num barulho ensurdecedor, contornando de novo as suas linhas de soldados e arqueiros até chegarem ao pequeno vale onde se tinham escondido durante o primeiro ataque. Ali, perderam unicamente o tempo de arrancarem novas armas de haste de uma manjedoura e esporearam os cavalos para voltarem a formar no alto do outeiro.

Os monstros, desconcertados nesse momento com a manobra deles, lançaram-se de novo ao assalto, mas a carga dos cavaleiros tinha permitido aos soldados do rei voltarem a formar fileiras. Mal ficaram ao alcance, uma chuva de flechas abateu-se sobre eles, arrasando-lhes um pouco mais as fileiras, depois chegaram ao contato e deu-se o confronto.

Em poucos minutos, os seus corações apertados gelaram. Na luta corpo a corpo, os monstros não davam nenhuma chance aos soldados e aos arqueiros. Todo o exército real recuava, os lanceiros tinham desaparecido, os arqueiros partiam os seus arcos e desembainhavam os seus pobres gládios. Viam-se já homens abandonarem o combate e fugirem, abandonando as suas armas e gritando de medo.

Uter deitou a Nut um olhar silencioso e depois baixou a sua lança.

A carga dos cavaleiros bateu na “bataille”, com o furor inútil de um mar bravio batendo na falésia.

 

Apesar da pesada cortina de couro e veludo, as paredes forradas de peles e as cobertas, uma umidade gelada tinha-se imiscuído na liteira. Encostadas umas contra as outras, Ygraine e as suas acompanhantes não tinham trocado uma só palavra durante léguas.

A rainha apertava contra si Ana, a sua filha, tão abafada que não se via mais que a ponta do nariz vermelho. Mal ela adormecera, fora preciso calarem-se, mas aquele silêncio forçado era um alívio para todas elas, quando não se podia falar de crianças, nem da guerra, nem de Uter, e quando em cada frase era preciso ter atenção a qualquer deslize que lhe pudesse fazer vir lágrimas aos olhos. O irmão Blaise, seu confessor, tinha-lhes lido as Santas Escrituras até que a sua voz monótona o adormeceu também a ele. Pouco a pouco, as mulheres tinham cedido ao entorpecimento ou aborrecimento e tinham adormecido, molemente embaladas ao ritmo da carruagem.

Ygraine tinha-se sentido aliviada, tão custoso lhe era prenunciar a mais pequena palavra. Seria uma longa e triste viagem até à longínqua Carmelide, naquela liteira rangedeira que as maltratava a cada sulco. A cortina cuidadosamente calafetada não deixava passar mais que ínfimos raios de luz. A penumbra e o frio davam à viatura ares de túmulo. Ela tinha feito a mesma viagem em sentido inverso há bastantes anos atrás, quando não passava de uma criança, prometida ao velho rei Pellehun. Mas tinha sido no Verão, numa carruagem aberta, e ela tinha-se deleitado com a paisagem que não podia sequer perceber neste momento... Lembrou-se do seu primeiro encontro, da sua comoção quando tinha visto o seu esposo. Pellehun era mais velho que o seu próprio pai, não tinha nada do que uma jovem podia querer de um noivo, e no entanto emanava dele uma aura fascinante de força e segurança. Ela tinha tentado amá-lo. Tinha mesmo conhecido dias felizes, quando o rei havia tido esperança que ela lhe pudesse dar um herdeiro. Depois os meses tinham passado, Pellehun tinha pouco a pouco abandonado o seu leito e ela tinha descoberto a solidão, o desespero, e depois a luz da religião.

Olhou para Blaise, com a cabeça enterrada nos ombros, segurando ainda a Bíblia aberta sobre os joelhos e ressonando suavemente como um bem-aventurado. O próprio Deus tinha-a traído, fazendo-a acreditar no amor para lhe tirar em seguida tudo o que ela amava. Uter era pouco mais velho do que ela quando se tinham visto pela primeira vez. Duas crianças no castelo de um velho, igualmente ao seu serviço. Apesar da sua juventude, ele era um dos doze bravos, que se esforçava a todo o instante por pôr uma cara séria para parecer mais velho, tão sozinho quanto ela, sem dúvida, longe da sua baronia de Cystennin... Uma noite, por volta do dia dos seus quinze anos, eles tinham-se beijado, e Ulfin quase os tinha surpreendido. Talvez mesmo os tivesse visto.

Depois Uter tinha-se tornado o Pendragon, habitado pelo amor de Lliane, enquanto ela conhecia os dias mais negros da sua existência nas mãos do duque de Gorlois. Tinha querido matar-se então, mas Gorlois tinha-lhe dado uma filha e, pelo menos, a sua vida tinha adquirido um sentido. E depois Uter tinha voltado. Por ela, ele tinha combatido, por ela tinha renunciado a Lliane e ao poder dos seus encantamentos.

O nascimento de Artur tinha sido uma tal felicidade que ela ainda chorava hoje em dia. Durante um Verão, eles tinham conhecido a plenitude. O reino estava em paz, Uter estava perto dela... Porque é que ele tinha estragado tudo? Aquela pergunta perseguia-a desde o dia em que ele lhe tinha tirado o filho. Não podia haver senão uma explicação: a elfo tinha-o enfeitiçado, ela e aquele maldito Merlim que surgia sempre quando ninguém esperava. Ela tinha-o em seu poder, como quando ele jazia inconsciente e gritava os malefícios dela pela sua boca. Os elfos ignoram o que é o amor, eles não têm família. A simples felicidade do rei devia ter sido um insulto a seus olhos... Eis porque é que ela tinha destruído a sua vida. Se um dia Artur lhe fosse devolvido, teria que lhe ensinar a odiar os elfos...

Sons de vozes, lá fora, arrancaram-na dos seus pensamentos amargos. Levantou a ponta do cortinado de couro, depois abriu-o todo, de um gesto, quando reconheceu o cavaleiro que vinha ao seu encontro.

Sem mesmo esperar que a carruagem parasse, entregou Ana a uma das suas acompanhantes acordada em sobressalto, saltou para fora da liteira e correu para ele.

— Meu pai!

Deixando a sua escolta para trás, Illtud esporeou o seu cavalo estafado, escalou a subida de terra com neve que formava o caminho e desmontou um instante antes dela se atirar para os seus braços. Apesar da sua espada, da sua cota de malha e da sua cota de armas suja de lama, era um homem da Igreja, e já há tanto tempo que não apertava uma mulher contra o peito que se sentiu desajeitado e perturbado ao mesmo tempo.

— Minha filha...

Ygraine era tão jovem que poderia ser sua filha, na verdade, e foi assim que ele a abraçou. Uma filha chorosa, longe do seu amante, infeliz e desamparada.

— Uter está vivo?

— Deixei-o antes da batalha começar — disse ele. — Foi ele que me enviou até aqui. Ele ama-te Ygraine. Só pensa em ti... Ele quer saber se tu lhe perdoas e se ainda o amas.

A rainha desatou em soluços e caiu de joelhos na lama gelada do caminho.

— Nem sequer o voltei a ver... mas a culpa não é dele, meu pai. Foi ela que o enfeitiçou. Detesto-a. Não podeis calcular a que ponto a detesto.

O abade levantou os olhos e cruzou o olhar de Léo de Grand. O duque desceu lentamente do cavalo, avançou até eles e agarrou carinhosamente a irmã pelos ombros.

— Deixa-me! — gritou ela debatendo-se.

— Isso não serve para nada — murmurou Carmelide ao seu ouvido. — Reza pela sua alma, neste momento. Se o amas, é tudo quanto podes fazer por ele...

Ela olhou-o intensamente, e apesar da sua estatura, foi o guerreiro quem baixou primeiro os olhos.

Quando ela se virou, Illtud já tinha voltado a montar o cavalo.

— Que fazeis?

— Regresso — disse o abade.

— É uma loucura! — exclamou Léo de Grand. — A noite vai cair e não estais em estado de cavalgar neste frio!

Illtud sorriu e fez um trejeito fatalista.

— Vim buscar uma resposta — disse olhando Ygraine.

— Dizei-lhe que o amo... É claro que o amo... Por mim, conservai-o vivo, meu pai...

O abade sorriu de novo, abanou a cabeça e deu meia volta. Sem uma palavra, regressou à batalha.

 

                   A ESPADA NA PEDRA

— Vais matar-me, não é? — Lliane sobressaltou-se. Perdida nos seus sonhos de sofrimento, não tinha visto Guerri picar a mula até ela. Deitou um olhar a Freihr, que agarrava com a mão a extremidade da fita sempre enrolada à volta do pescoço do assassino. O bárbaro abanou a cabeça para a tranquilizar, e o olhar de Lliane deslizou por um instante sobre o rosto inchado do seu interlocutor.

— Dei-te a minha palavra — disse ela, com uma visível repugnância.

— Sim... O anel e a vida, ha?

Sem querer, Lliane baixou os olhos para o anel que trazia no dedo. Guerri deu uma gargalhada de desprezo e apontou com um gesto um entroncamento, a algumas toesas dali.

— Então podes libertar-me — disse ele. — É ali, pela esquerda...

No tempo desta troca de palavras, as suas montarias tinham-nos levado até uma bifurcação na passagem. Kevin e Till esperavam-nos aí, ignorando qual o caminho a seguir. Os dois caminhos eram idênticos, sem a mais pequena indicação que lhes permitisse ajudá-los na escolha.

— De qualquer modo, tu vais à frente — disse Ulfin, chegando perto deles. — Se nos mentiste, serás o primeiro a sofrer.

— Eu sei — resmungou o assassino na sua voz sibilante, naquele murmúrio insuportável que ele conseguia unicamente emitir depois do tratamento que Freihr lhe tinha dado. Deu outra vez aquela gargalhada atroz. — Mas que diferença faz, ha?

Ulfin olhou-o de cima a baixo.

— Que é que estás a tentar dizer?

Guerri o Louco fez uma espécie de sorriso, ou pelo menos um arreganhar dos lábios tumefactos que podia passar por tal. Todos os olhares estavam pousados sobre ele, nesse momento, e ele afrontou-os com uma arrogância desdenhosa.

— Sim, que diferença? — largou ele. — Por um lado atraio-vos para uma armadilha, e morreremos todos, por outro levo-vos ao vosso destino, e vão deixar este bruto ocupar-se de mim... Nos dois casos, sobra para mim.

— A rainha deu-te a sua palavra, cão! — gritou Dorian. — Como ousas duvidar dela?

Os outros trocaram olhares entre si. O príncipe Dorian era o único a acreditar que eles seriam suficientemente loucos para o deixarem viver.

— Muito bem — disse Lliane. — O que é que tu queres?

Guerri designou a fita que lhe prendia o pescoço.

— Primeiro que me tirem isto... E que afastem de mim este imbecil.

Foi preciso segurar Freihr mal ele percebeu que era de si que falavam.

— Deixem-me partir — continuou o Louco. — Eu não volto a Kab-Bag, não arriscais nada... Durante o tempo que demoro a sair do subterrâneo e da ravina, já tereis feito o que tendes para fazer.

Lliane olhava-o intensamente, e cada um deles pôde ver o assassino perturbar-se, fascinado pelo brilho dos seus olhos verdes. Suavemente, os lábios da rainha começaram a articular algumas palavras.

— Seon reth nith...

Guerri deu literalmente um salto para trás e tapou a cara.

— Não tentes um dos teus feitiços comigo, bruxa!

Desta vez foram Kevin e Till quem reagiu. Só um gesto da rainha os impediu de porem fim aos insultos e regateios do assassino. A sua vida não tinha qualquer importância para Lliane. Ele era tudo quanto ela detestava nos homens, uma mistura ignóbil de arrogância, brutalidade e baixeza, mas a Morte continuava a rondá-los e ela não queria atraí-la.

— Tu partirás — disse ela. — Eu ficarei contigo até que Till nos envie o seu falcão. Assim, saberei que nada lhes aconteceu.

O Louco levantou o olhar sentindo a ameaça por trás da proposta da rainha. Mas era um homem, e julgava-se suficientemente forte para não ter nada a temer de uma mulher, mesmo que ela fosse uma rainha élfica.

— Então, qual é o caminho? À esquerda ou à direita? — Durante um longo momento eles olharam-se, ele com o rosto marcado dos murros, pavoroso e coberto de suor, ela hierática e fria, com a cara mais pura que ele alguma vez tinha visto, mas de uma dureza impiedosa. Guerri, por fim, baixou os olhos.

— À esquerda — disse ele. — O túnel da esquerda...

Lliane sorriu e confirmou a direção com um movimento do queixo. Em breve eles ficaram sozinhos, escutando os passos do grupo desaparecerem pouco a pouco.

— Sabias que não confiaríamos em ti, não é? — disse ela sem olhar para ele.

— É normal...

— Ao indicar-nos o túnel da esquerda, empurravas-nos para o da direita... O que é que há ali, à direita?

Guerri deu de novo uma gargalhada de desprezo.

— Vai lá ver, bruxa...

Lliane deitou-lhe um olhar e desviou-o logo em seguida. Ele era realmente demasiado horroroso para se olhar, iluminado pela luz avermelhada do seu archote que acentuava as sombras e as marcas da sua cara martelada. Mas o mais horrível era a fealdade interior que transpirava do seu sorriso e do seu olhar. Ela tocou suavemente lira e avançou alguns passos em direção ao corredor da direita. Aí, esticou o tronco, e as sua longas orelhas pontiagudas orientaram-se em direção à escuridão da passagem. Ouvia-se uma respiração, tão lenta e profunda quanto o sopro de uma forja, bem como gorgolejos medonhos. Fosse qual fosse o horror que os esperava ali, ela não teve qualquer vontade de saber.

Quando dava meia volta, uma sombra branca, surgindo bruscamente diante dos seus olhos, arrancou-lhe um grito de pavor. Por um instante, julgou ver a Morte atirar-se sobre ela; não era mais que o falcão de Till.

— Fiz-te medo — chilreou o falcão. — Desculpa-me...

— Sou eu quem te deve desculpas — soprou Lliane (e Guerri olhava-a de olhos esbugalhados). — Encontraram a passagem?

— Sim — disse o pássaro. — É muito perto, a alguns bateres de asas. Estamos numa espécie de cavalariça. Não há ninguém...

— Vai, já vou ter convosco.

Lliane levantou a mão e o falcão vôou. Ela viu-o afastar-se, e vacilou em tomar uma decisão que a repugnava. Libertar Guerri era correr o risco de uma emboscada no regresso, se por acaso conseguissem sair de lá vivos. Seria fácil, na ravina. Um homem sozinho poderia provocar um desabamento, sem se arriscar ele próprio. De fato o que um ser como ele escolheria... Não libertar Guerri, levá-lo com eles para Scâth, era simplesmente impensável. E matá-lo seria uma traição. Trair a sua palavra seria perder a honra e não tinha grande escolha, de momento...

Deu meia volta à jumenta, e depois franziu imediatamente as sobrancelhas. Já não havia cavaleiro sobre a mula. O archote chiava sobre a terra úmida. A elfo virou a cabeça a tempo, levantou a bota no mesmo instante em que Guerri se atirava sobre ela. O homem recebeu o golpe em plena cara e caiu com um grito de dor. Ela já tinha desembainhado a sua Orcomhiela, a longa adaga de prata, célebre entre todos os clãs élficos. Guerri teve um movimento de recuo ao ver a lâmina apontada a si, mas recompôs-se imediatamente e levantou-se fanfarrão.

— Anda, bruxa, mata-me!

— Não é por falta de vontade — disse Lliane.

Voltou a colocar a adaga na bainha e, com um bater de rédeas, afastou o seu cavalo do assassino.

— ...Mas dei-te a minha palavra, Guerri o Louco.

Ela tirou o anel de Mahault, a insígnia da Guilda cunhada com a runa de Beorn, e atirou-o para o chão, em frente dele. O homem fez um sorriso infecto, depois decidiu-se subitamente, caiu de joelhos na lama e nas rochas. Durante alguns instantes, tateou freneticamente no escuro, em vão. Então decidiu-se bruscamente e foi agarrar o seu archote. No momento em que se levantava, o subterrâneo ressoou com um grito terrível. O tempo de Lliane se virar, e viu o Louco cair por terra.

Freihr saiu da sombra, limpou a sua lâmina sobre as roupas do morto e caminhou tranquilamente até à mula, pegando à passagem no archote gordurento. Voltou para perto do corpo, iluminou o chão, baixou-se para apanhar o anel e depois, sem se apressar, avançou até Lliane e sorriu-lhe.

— Toma! O teu anel...

Ela estendeu a mão sem refletir. Ele deu-lhe o anel, fez uma festa no pescoço da jumenta e partiu em direção ao corredor da esquerda. Rapidamente, desapareceu na escuridão.

— Eu tinha-lhe dado a minha palavra! — gritou a rainha.

A voz arrastada do bárbaro chegou até ela, deformada pelo eco.

— Eu não!

 

Cada passo do seu cavalo era um suplício. A cara de Uter estava arranhada pelas malhas, inchada, marcada de golpes. Sangue seco manchava-lhe toda a parte direita da cara, e o seu olho estava semi fechado. Cavalgava curvado, o braço apertado contra as costelas, e respirava dolorosamente, arfando. O ferro de um machado tinha-lhe cortado o pulmão, talhando carne e ossos, e a sua cota de armas escorria sangue.

Não eram mais que uma dezena em volta dele, e o único rosto conhecido era o de Adragai o Moreno. O bravo estava horrível de se ver. Uma lâmina tinha-lhe cortado as malhas do capuz, talhando-lhe a fronte e a sobrancelha. Um pedaço de carne pendia-lhe diante do olho, balançando ao ritmo do seu cavalo. A sua cota de malha estava suja de lama e sangue, desfeita em vários lugares, e o escudo que trazia às costas, seguro por uma braçadeira, tinha tantas mossas e traços de golpes que o escudete [45] se tinha partido e não se conseguiam ver as armas representadas nele. No entanto, mantinha-se ereto, ainda, e era ele quem conduzia o cavalo de Uter pela noite. Um jovem cavaleiro cavalgava ao lado deles, mas nem um nem outro o conheciam. Os outros eram sargentos de armas, escudeiros, e mesmo arqueiros, que mal sabiam segurar-se em cima de uma sela... Cada um deles seguia calado, com o olhar vazio e o corpo martirizado, revendo as atrocidades que os seus olhos tinham contemplado desde a manhã, esgotados para além da morte, prostrados pela derrota, alguns fazendo caretas de dor, e outros já divagando. Pelo menos ainda estavam vivos. Quantos não haviam tido a sorte de se aguentarem até à noite?

Ao pôr do sol, a batalha tinha-se tornado um massacre. A segunda carga do rei tinha embatido no exército dos monstros com corpos e com cavalos [46], as lanças tinham voado aos pedaços, não deixando mais do que troços nas suas mãos desfeitas, e eles tinham prosseguido o combate a golpes de espada ou de machado. Os cavalos morriam debaixo deles, rasgados, martelados, mordidos por vezes pelos monstros de dentes afiados. No centro da batalha, era um tal cair, que os corpos amontoados formavam colinas sobre as quais os cavaleiros se içavam, cheios de raiva e olhos enlouquecidos. Durante horas tinham marchado sobre mortos e moribundos, libertando-se por vezes o tempo de retomarem a respiração, beberem avidamente de um odre, e depois os monstros voltavam, mais uma e outra vez, até ao esgotamento. Os homens combatiam ombro contra ombro, tão encostados uns aos outros que os monstros abandonavam as suas armas e atiravam-se sobre eles a golpes de garras e de dentes. Uter, como todos os outros, tinha perdido o seu cavalo e combatia a pé, manejando Excalibur como uma foice, cortando ao acaso, atravessando carne e ossos, até que os seus braços entorpecidos tremeram de fadiga e as suas pernas cederam debaixo dele. A sua cota de malha estava rasgada em muitos lugares pelos golpes de maça ou de espada, e em diversos lugares o sangue pingava debaixo das malhas. Em volta dele, homens jaziam nas suas entranhas fumegantes. Entre todos aqueles que se mantinham em pé, havia os que titubeavam até à última extremidade, com a cara cortada ou um braço a menos, antes de caírem bruscamente. Ogier, o jovem soldado com o elmo grande demais para ele, não voltaria nessa noite, depois da batalha. Ele tinha-o visto cair, cortado a meio por um golpe de machado. Do tinha ficado sem elmo e depois a cara tinha-lhe sido rasgada por um lobo. Urien comprimia contra si as mãos arranhadas. Madoc o Negro jazia diante deles, entre os cadáveres dos arqueiros. Ninguém sabia se ainda estava vivo.

Eles repeliram-nos dez vezes, desde o crepúsculo até ao cair da noite, e durante todo esse tempo viam formar-se para lá da batalha uma nova tropa, poupada até então do furor dos combates. O homem com armadura escura e a sua escolta de cavaleiros mantinham-se ali, imóveis, contemplando a carnificina com evidente deleite. Em volta deles, um grupo de guerreiros parecia não esperar mais do que uma ordem para se atirarem por fim à batalha. A altura deles e o seu aspecto não podia deixar dúvidas: eram os anões da Montanha Negra. Cerca de uma centena, segurando os machados com as suas mãos nodosas. E à cabeça deles, Uter tinha reconhecido o príncipe Rogor.

À tarde, o príncipe Maheloas estendeu o braço, e os anões lançaram-se na fornalha gritando. Corriam diretos a ele, direitos a Excalibur, o seu talismã roubado. Rogor, entre eles, cortava vivos e mortos a golpes de machado, com tal frenesi que conseguiu chegar até ele. Ainda agora, depois de todos os horrores do dia, Uter tremia ao rever a sua cara ameaçadora, pavorosa. Tinha caído de joelhos, esgotado além de todas as palavras, meio cego pelo sangue que lhe escorria pela cara, com o braço tão dorido que já não conseguia levantar Excalibur. No instante em que se encontraram face a face, o príncipe Rogor sorriu e gritou qualquer coisa que Uter não entendeu, no tumultuo demente do corpo a corpo. O anão atacou, o seu pesado machado zumbiu, mas um ferido caiu subitamente entre eles, desviando o golpe. Uter gritou quando o ferro desfez a sua cota de malha, lhe partiu as costelas, lhe rasgou as carnes. O golpe projetou-o ao chão, mas estranhamente ele não sentiu nenhuma dor. Então, num último esforço, atirou-se para a frente, brandindo Excalibur com as duas mãos como uma lança, e bateu no príncipe da Montanha Negra com um golpe de estoque que lhe partiu o nariz e lhe separou o rosto em dois...

Esta foi a última recordação que ele guardou da batalha.

Como tinha podido fugir, por que milagre se encontrava ele agora sobre o seu cavalo, esmagado de cansaço e sofrimento, porque é que ele não estava morto no meio dos seus? Não sabia nada, e isso já não tinha nenhuma importância...

Chegaram ao amanhecer à vista de Loth. A cidade, prevenida não se sabe como da derrota do exército, esvaziava-se por todas as suas portas. Já não havia mais cavalos para atrelar, e então a maioria dos fugitivos seguia a pé, carregando às costas tudo quanto tinham podido salvar. Ainda havia, no meio daquela multidão repugnante, quem lutasse, se confrontasse por uma bolsa, uma taça em ouro ou um presunto... Alguns guardas, sobre as muralhas da porta principal, abriram-lhes caminho. Outros, nas ruelas da cidade, atiraram-se a eles para lhes roubarem os cavalos. Uter não estava em estado de lutar, nem mesmo em estado de segurar o cavalo. Mal ele se empinou, assustado com aquelas mãos ávidas que se estendiam para as suas rédeas, o rei caiu pesadamente ao chão. Levantou-se como pôde, amparado por Adragai, e ficaram sós, na ruela subitamente deserta.

— A Pedra — murmurou Uter. — Leva-me até à Pedra...

O bravo içou-o sobre as costas, subiu a muito custo, passo a passo, até ao palácio. As portas estavam abertas de par em par. Adragai tinha desembainhado a sua espada, mas era inútil. O aspecto de ambos era suficientemente assustador para que ninguém pensasse em afrontá-los. Para quê, aliás? A baixela de ouro jazia por terra, abandonada por algum ladrão, criados e mulheres corriam em todos os sentidos, atarefados como vespas, fugindo mal os viram. Em algum lugar, um cão preso ladrava como um danado, crianças choravam, esquecidas pelos pais. O palácio não passava de uma carcaça vazia, onde os seus passos arrastados soavam lugubremente. Os dois homens subiram até à sala do Conselho. Sofrendo a cada passo e deixando atrás deles um rastro de neve derretida, lama e sangue misturados. Uter, por vezes perdia a consciência, e depois um passo em falso de Adragai fazia-os tropeçar a ambos e fustigava-lhe o corpo com uma dor que o arrancava do seu torpor. Por fim, trespassando o rumor mórbido da cidade, ressoou um longo gemido, cada vez mais nítido, cada vez mais forte. A Pedra de Fal tinha reconhecido a aproximação do rei.

Uter afastou-se e deu sozinho os últimos passos que o separavam do talismã. A Pedra vibrava e o seu choro ressoava pelos corredores desertos como um canto fúnebre de despedida.

— Irás ter com Merlim — murmurou Uter sem tirar os olhos do coração vibrante da Távola Redonda. — Conta-lhe aquilo que viste... Artur... Que ele proteja Artur, que seja suficientemente forte para acabar aquilo que nós começamos...

O rei endireitou-se o melhor que pôde, apesar das luzinhas que lhe brilhavam diante dos olhos, apesar da vertigem e da dor. A mesa dançava diante dele, e a triste vibração da Fal Lia ensurdecia-o.

— É preciso que Ygraine me perdoe... Perdoa-me. É preciso que não se saiba onde ele está, nem quem ele é... Senão, vão matá-lo. Jura-me...

— Eu juro! — respondeu Adragai.

Mas o rei não o ouviu, e aliás já não era com ele que falava. As suas feridas tinham-se voltado a abrir, o sangue jorrava da sua cota de malha desfeita, sujando a sua cota de armas. Cada passo era um milagre, de momento, mas ele avançava sempre, arrastando a Espada de Nudd sobre o pavimento, metal contra pedra num ranger agudo insuportável.

— Gostaria de te ter amado — murmurou ele. Apoiou-se contra a mesa de bronze, agarrou com as duas mãos o cabo da Excalibur e tentou levantar-se.

— Gostaria que me tivesses amado...

No coração da mesa, a Pedra parecia incandescer como um coração a bater.

— Lliane...

Num último esforço, queimando nesse instante tudo quanto lhe restava de forças, ele atingiu a Pedra com um golpe tão forte que a Espada ficou lá cravada.

Foi a última coisa que viu. Tinha escorregado para o chão, Adragai sustinha-lhe a cabeça. A espada de ouro espetada na pedra...

— Ninguém... poderá nunca... separá-las — murmurou ele.

E os seus olhos fecharam-se para sempre.

Mais tarde, bem mais tarde nesse dia, quando uma chuva gelada se abatia sobre a cidade, o abade Illtud encontrou-os por fim. Já era demasiado tarde.

 

Ulfin, Kevin e Onar montavam guarda, examinando os exteriores pelos interstícios do tabique enquanto Till instalava uma cama de palha para os cavalos e Sudri espalhava enxofre um pouco por todo o lado. Se eles voltassem a sair por ali, daí a pouco, um simples archote faria da cavalariça uma bela fogueira. Lliane tinha apanhado Freihr antes de ele sair do subterrâneo, e passaram ao mesmo tempo a grande porta que barrava o acesso. Como o falcão tinha dito, era mesmo uma cavalariça, uma escolha bem hábil por parte da Guilda. Ninguém se devia admirar que entrassem e saíssem a cavalo, e estava suficientemente escuro lá dentro para dissimular o painel corrediço que escondia o subterrâneo. Apesar da escuridão, Lliane viu a interrogação muda que o bravo dirigiu a Freihr, depois o sinal de assentimento do bárbaro, e ela sentiu-se ao mesmo tempo consternada e humilhada. Os dois homens tinham decidido juntos o destino de Guerri... Ulfin mantinha-se num raio de luz, as malhas da sua cota de malha brilhavam sombriamente como escamas de um lagarto, e a sua cota de armas ainda clara, apesar da lama da viagem, desenhava os contornos da sua alta figura. Assim, com a cara no escuro, parecia-se com Uter.

Lliane deu um grito agudo e caiu na palha que cobria o chão.

A Morte estava ali.

A evocação de Uter tinha-a atraído e ela viu-a, levando o rei nos seus braços descarnados. Depois, a Morte inclinou-se, por três vezes, diante de três deles.

 

                        O ROSTO DO MESTRE

Uma vez mais, Tarot dormia mal. Tinha-se habituado durante muito tempo ao luxo do seu palácio, aos veludos e às sedas guarnecendo o seu leito de príncipe para conseguir dormir neste catre miserável de uma cabana troglodita abandonada pelos seus ocupantes. Os monstros assombravam os seus sonhos, a visão pavorosa de Aquele-que-não-pode-ser-nomeado não o largava, pesava sobre ele ao ponto de não ousar cruzar o olhar com o mais insignificante gnomo e de se esconder, longe de todos, naquele abrigo miserável. Subitamente, do mais profundo dos pesadelos, a sensação de perigo acordou-o em sobressalto. E uma mão enorme caiu sobre a sua boca, abafando os seus gritos de terror.

A gruta minúscula encheu-se bruscamente de toda uma tropa, iluminada por archotes. E os olhos de fuinha do xerife aumentaram um pouco mal ele reconheceu quem o agarrava no seu catre. O homem abanou a cabeça, pôs um dedo sobre a boca e retirou a mão.

— Senhor Freihr! — disse o gnomo numa voz abafada.

O bárbaro virou-se para os seus companheiros, não pouco orgulhoso de ter sido assim reconhecido. As Fronteiras não eram muito distantes, e em tempo de paz os bárbaros vinham com frequência a Kab-Bag, vender as suas peles e comprar vinho. Mas o gnomo tinha rapidamente feito o reconhecimento dos seus inesperados hóspedes e, vendo a rainha, precipitou-se para a frente dela e atirou-se aos seus pés.

— Minha rainha, piedade! Eu não pude fazer nada! O Grande Conselho deve compreender que...

— Já não existe Grande Conselho — disse ela.

E desviou os olhos para que ele não visse as suas lágrimas brilharem. “Já não existe o Grande Conselho e Uter morreu”, pensava ela. O gnomo não deu por nada, ocupado que estava a lamentar-se.

— Eles tomaram conta de tudo, mataram centenas de nós, para nada, só para se divertirem, eles expulsaram-me até do meu palácio!

Tarot interrompeu-se e voltou-se para Freihr, o único outro rosto que conhecia dentro do grupo.

— Como é que me encontraram?

O bárbaro tinha-se agachado perto da lareira, e mexia o que restava de um velho guisado agarrado ao fundo de um caldeirão. Apontou com um gesto negligente Onar e Sudri, que seguravam firmemente um gnomo agarrado numa ruela, e ao qual eles tinham feito compreender que o seu interesse imediato era obedecer-lhes sem discutir. O infeliz tentou um vago sorriso e curvou-se um pouco mais sob o olhar furioso do xerife.

— Rato miserável! — gritou ele, com uma demência súbita que os surpreendeu a todos. — Serás esfolado vivo!

Levantou-se de um salto e correu para o gnomo, mas Tarot já não era tão jovem quanto na sua época áurea, e mesmo nessa altura ele nunca tinha sido verdadeiramente temível. No momento em que ia atingir a pobre vítima, Onar deu-lhe um estalo que o atirou ao chão.

— Calma — disse num tom trocista. — Vais acabar por te magoar...

O xerife levantou-se a custo. Tinha batido com a cabeça e um fino fio de sangue corria do seu lábio aberto. Mas a sua raiva súbita parecia acalmada.

— O que é que querem de mim? — gemeu ele.

— Leva-nos até ao palácio — disse Lliane. — Pede uma audiência ao Mestre.

A cara enrugada e pregueada do gnomo ficou sem sangue.

— Isso... isso não é possível — murmurou ele. — Não se deve...

Ela aproximou-se dele e agachou-se para ficar à sua altura. Ele nunca tinha visto a rainha de tão perto. O nó que se tinha formado no seu ventre à evocação do Mestre desfez-se um pouco. Com os seus olhos verdes, a sua pele azul, os seus cabelos negros e lisos, ela lembrava-lhe outras elfos, putas trazidas para Scâth ou para a cidade baixa, demasiado magras para ele de qualquer modo, tão arrogantes quanto as humanas mas tão frias que dir-se-ia não sentirem prazer nenhum nos seus braços... Ele estremeceu quando sentiu o olhar de Lliane sobre si, como se ela soubesse exatamente aquilo que ele acabara de pensar.

— Leva-nos — disse ela, e aproximou à luz dos archotes a mão onde trazia o anel da Màhault, quase debaixo do nariz dele. — Vês, somos assassinos da Guilda, e vimos dar contas ao Mestre do sucesso da nossa missão.

— Isso não vai dar certo...

Ela olhou-o pensativamente, depois fez um sorriso que o desarmou.

— Todos morremos um dia, xerife Tarot. Se não der certo, pelo menos tivemos a oportunidade de escolher o dia e a hora...

— Piedade — murmurou ele. — Se eu vos ajudar, eles matarão o meu filho.

— Eles também têm o meu filho — interveio Freihr.

Numa algazarra ensurdecedora, atirou com o caldeirão para um canto como se não passasse de um copo, e depois, empurrando toda a gente, agarrou o gnomo pelo colarinho e levantou-o do chão.

— Leva-nos!

Tarot abriu a boca, mas o olhar do gigante dissuadiu-o de argumentar mais. Resignado, agarrou a sua capa, prendeu em volta do seu pescoço enorme os ganchos de ouro, testemunhos da sua antiga glória, e saltitou em direção à saída.

— Um momento! — disse Onar, quando todos saíram à sua frente. — Que é que fazemos deste aqui?

Indicou o gnomo miserável e trémulo que lhes tinha indicado o refúgio do xerife.

— Já não nos serve para nada, agora — murmurou Ulfin. — Anda cá, tu aí!

O bravo sorria e estendia ao pequeno ser uma mão amigável, mas Lliane viu-o tirar a adaga e escondê-la nas costas.

— Geswican nith hael hlystan! — gritou ela.

E imediatamente o cavaleiro foi projetado para trás, bateu com a cabeça no teto e caiu com um ruído de ferro velho. Levantou para ela um olhar furioso, mas o aspecto da rainha aterrorizou-o. Já não havia qualquer beleza em Lliane. Os seus olhos verdes pareciam desmesuradamente abertos, a sua boca estava torcida num esgar horrível e a sua pele azul luzia na penumbra da sala como o halo de um espectro. Ele bateu precipitadamente em retirada mal ela avançou para ele, e encontrou-se encurralado num canto, mas Dorian agarrou a tempo o braço da irmã.

— Deixa-o.

Ela voltou o seu rosto pavoroso para ele, reconheceu-o e acalmou-se. Com o coração a bater, Ulfin cruzou o olhar com o do príncipe, viu o sinal que ele lhe fazia com a cabeça e foi refugiar-se perto dos outros.

— Estou bem — murmurou Lliane. — Deixa-me, agora...

Ela avançou para o gnomo aterrorizado, agachou-se diante dele e falou-lhe numa voz suave. Quase imediatamente, o pequeno ser pôs-se a titubear e depois caiu nos braços dela. Ela deitou-o no catre de Tarot, puxou para cima dele uma coberta e saiu. Os outros olhavam-na com diferentes expressões, medo, perplexidade, espanto, desconfiança...

— Está a dormir — disse ela.

E virou-se para Ulfin, que se mantinha afastado.

— O Mal está em todo o lado, aqui... É disso que eles se alimentam: medo, raiva, crime. Matar só os torna mais fortes. Não te esqueças.

Ulfin abanou a cabeça e baixou os olhos, envergonhado como um garoto apanhado em falta. Porque é que tinha querido matar aquele gnomo inofensivo? Porque lhe tinha apetecido. Era tão simples e tão horrível quanto isso. A fúria assassina da Lança de Lug tinha contaminado cada recanto de Kab-Bag e era contagiosa. Os gnomos, tal como Tarot pouco antes, estavam impregnados. A própria Lliane ainda sentia a raiva louca que a tinha tomado. Se Dorian não a tivesse parado, teria sem dúvida morto Ulfin... Não havia nenhum feitiço, nenhuma magia que pudesse lutar contra isto. O talismã dos monstros exaltava o que havia de pior dentro de cada um deles.

— Esperem — disse ela, quando já tinham deixado o covil do xerife. — Onar, Ulfin, venham para perto de mim... Venham todos.

Eles juntaram-se, todos os dez, elfos, anões e os homens, e mesmo Tarot o gnomo, cheios de armas debaixo daquela abóbada estreita, e Lliane fê-los apertarem-se ainda mais em volta dela, até não formarem mais do que um pequeno grupo. Então, sob os seus olhares espantados, ela tirou a sua cota de malha em prata, despiu a sua túnica de catassol, e apertou-os contra si, nua desejável, fascinante. O ódio, o medo dissiparam-se na alma deles. Eles já não viam mais que os seus seios, as suas coxas, a suavidade da sua pele tocando nos seus couros curtidos. E assim, oferecida e vulnerável, ela recitou um velho poema da floresta.

 

O meu amor é um carão

É um desejo de força e de violência

Ele é como as quatro partes da terra

Ele é infinito como o céu.

É a fenda do pescoço,

É um afogamento na água,

É uma batalha contra a sombra,

É uma corrida para o céu,

É uma corrida aventurosa debaixo do mar,

É um amor por uma sombra.[47]

 

Ela era a mulher deles, o desejo deles, ela era o amor, a beleza e a fragilidade, tão magra e pálida, dentro do círculo de ferro e couro que eles formavam. Ela era a esperança, a luz naquela cidade de escuridão, a chama vacilante nas trevas.

— Irei sem armas e sem roupas — sussurrou ela — e tu proteger-me-ás. Eu serei o amor, a suavidade da brisa de Verão. Eu serei a tua filha, a tua mãe, o teu filho cativo, todos aqueles que amas, eu serei a vida, o pássaro no céu, o riacho que murmura, eu serei o amanhã... Se tu me esqueceres, eles matar-nos-ão, ou então nós nos mataremos. Protege-me, e pelo teu amor por mim fecha os teus olhos à fealdade, ao ódio e à morte.

Bruscas rajadas de vento levaram até eles o frio glacial da planície e chuviscos de neve derretida. Fazia demasiado calor em Kab-Bag, demasiada umidade para que a neve se agarrasse ao chão, e toda aquela umidade escorria pelas ruelas e muros como se a cidade chorasse. Não restava nada da antiga agitação da cidade mercantil, daquele labirinto fervilhante de ruelas, de becos e de travessas, nem da profusão de bens que a enchiam em outros tempos, a não ser alguns pedaços de pano desbotados pendurados em fios entre duas casas, e balcões abandonados, ainda cheios de víveres em decomposição, e por vezes a silhueta furtiva de um gnomo fugindo ao vê-los. Tinham-se cruzado com patrulhas de gobelins, mas o anel da Guilda fazia maravilhas. Os olhos torvos dos monstros cobiçavam à passagem o corpo nu da rainha, e se eles estendiam para ela as suas patas com garras, Tarot intervinha, com todo o seu ar importante. “Uma puta para o Mestre! Queres levar-lha tu?” Foi assim que chegaram até ao palácio.

Tarot tinha-o mandado construir no melhor lugar do buraco, sobre um dos andaimes complicados e oscilantes de que o seu povo tinha o segredo. Tudo parecia estar a ponto de ruir, até a ponte que conduzia até ele, e no entanto as construções dos gnomos não temiam nada a não ser o fogo. O gnomo tinha-se mantido bem até ali, mas parou no belo local da obra e apoiou-se no parapeito, abatido pela dor e pela tristeza diante do que eles tinham feito da sua residência. A própria fachada estava escurecida, desbotada. Os vitrais das janelas estavam partidos, compridos panos de cortinado flutuavam às mudanças bruscas do vento como sinistros estandartes, as estátuas e os baixos-relevos tinham sido martelados, destruídos.

Lliane avançou para ele, pousou as mãos sobre os seus ombros, e ele voltou-se para se abraçar contra o seu ventre. Ela sentiu imediatamente as lágrimas do gnomo molharem-lhe a pele.

— Voltarás a construí-lo, ainda mais bonito — murmurou ela. Tarot fungou ruidosamente, levantou para ela os seus olhos de fuinha cheios de lágrimas. Ele continuava abraçado ao ventre dela, as suas mãos calejadas abraçavam a curva dos seus rins.

— Vamos embora — disse ela sorrindo.

Os guardas da porta principal reconheceram o xerife, bem como o anel da Guilda, e deixaram-nos passar. Não eram nem orcs nem gobelins, mas horríveis gigantes de uma raça que eles nunca tinham visto, tão descarnados quanto esqueletos, enrolados em longos casacos negros caindo sobre escuras cotas de malha que pareciam cobri-los completamente. No interior, havia mais, ao longo de todo o caminho, e a maioria não se mexia, não se voltava sequer para olhar para eles. Eram seres ignóbeis, repugnantes à vista, curvados como velhos, a pele cinzenta e os olhos profundamente encovados nas órbitas. A sua magreza era pavorosa, mas traziam armas que nenhum deles conseguiria levantar, nem mesmo Freihr.

— São Fir Bolgs — murmurou a rainha. — A antiga raça vencida pelas Tuatha Dê Danann. Já existiam antes das tribos, mesmo antes dos monstros. São escravos guerreiros. Só agem quando recebem ordens. Não há nada a recear...

“A não ser se Aquele-que-não-pode-ser-nomeado lhes ordenar que nos matem”, pensou ela. Havia-os por todo o lado, às dezenas, semelhantes a estátuas horríveis nos seus longos casacos negros, dos quais mesmo os gobelins se mantinham à distância. Os dez avançaram por um momento, assim, no silêncio cadavérico daquele palácio fantasma, e depois, ao fundo do vestíbulo destruído, Tarot apontou-lhes uma porta fechada.

— O Mestre está ali — disse numa voz presa. — Por trás da porta...

Lliane avançou, mas bateu logo em seguida contra o gnomo, que parecia petrificado.

— Não... não devemos entrar — balbuciou ele. — O Mestre não deve ser incomodado...

O pequeno ser tremia convulsivãmente. A sua cara gorda e cor de terra escorria suor e lágrimas. Não conseguia ir mais longe. Lliane olhou os seus companheiros e leu a devastação do terror na suas caras cor de barro. O coração deles fraquejava. O medo insondável derretia-lhes a vontade, desfazia-lhes a alma. Bem rapidamente, o poder da Lança se insinuaria entre eles.

Ela afastou o gnomo, deslizou entre ele e Ulfin que abria o cortejo, e depois avançou até à porta. Eles não se mexeram. De olhos esbugalhados, contemplavam a fina silhueta nua, o balançar dos seus longos cabelos negros, o conjunto suave do seu corpo que a neve derretida tinha tornado tão brilhante quanto uma armadura. Parou diante da ombreira, agarrou nos batentes e apoiou a testa nas traves com pregos. As suas pernas tremiam, a sua garganta tinha um nó, o seu coração batia tão depressa que ela vacilava. O medo apoderava-se também dela, neste momento. Fechando os olhos com muita força, conseguiu visualizar a cara de Rhiannon, lá longe, na Ilha das Fadas.

A menina estava no meio de um círculo de luz, na doce obscuridade da noite. Tinha entrançado uma coroa de folhas e posto flores à cintura. O pequeno povo velava sobre ela...

De um só gesto, Lliane agarrou-se à porta e abriu os dois batentes.

Imediatamente uma baforada de calor sufocante saltou-lhe à cara. A enorme sala incandescia à luz oscilante de dois gigantescos braseiros. Sombras minúsculas recortavam-se naquela penumbra alaranjada, silhuetas furtivas, indefiníveis, reunidas às dezenas em volta de um trono guardado por dois desses horríveis gigantes.

— Estava à tua espera — sibilou uma voz seca, insidiosa. Ela avançou, chorando agora, com a garganta tão apertada que soluçava como um peixe fora de água.

— Vem até mim, Lliane... Vem ter comigo...

As silhuetas magras afastavam-se diante dela. Os seus olhos cheios de lágrimas não viam mais que um halo púrpura e o recanto escuro, entre os braseiros, onde o Mestre a esperava.

— Estás nua, muito bem... O desejo é uma força que eu saberei utilizar. A tua beleza será útil. Vem oferecer-ma...

De repente, uma luz viva arrancou-a do seu alheamento. Brilhando como um raio de sol, o ferro da lança segura por Aquele-que-não-pode-ser-nomeado acabava de se iluminar, e atirava sobre ela o seu brilho, cegando-a. Ela caiu de joelhos, ofuscada e vencida. Quando por fim os seus olhos se habituaram à luz, descobriu repentinamente a estranha Assembléia dispersa em volta do trono. Crianças... Crianças de todas as raças, anões, humanos e elfos, crianças gnomos, entre os quais se devia encontrar o filho de Tarot.

— Vês, reuni tudo aquilo que tu vinhas procurar... A Lança, as crianças, eu próprio... De que estás à espera, rainha Lliane? Vieste matar-me, não foi? Vem agarrar-me.

Cada palavra do Inominável zumbia na sua cabeça. Não passava de um murmúrio, mas ele infiltrava-se nela como uma sujeira. A voz dele acariciava o seu corpo nu, lambia a sua pele e fazia-a arrepiar de nojo. Ela levantou-se, no entanto, com toda a força da sua alma, e quando os seus olhos se puseram sobre o Mestre, um grito de horror quebrou o que lhe restava de vontade.

Debaixo do capuz escuro que lhe cobria as feições, era a sua própria cara que ela acabara de ver.

Ele levantou-se do trono, deitou o capuz para trás e avançou à luz dos braseiros. Era ela. Os mesmos olhos, os mesmos cabelos, a mesma pele. O Mestre tinha a sua cara, mas uma cara horrorosa, da qual toda a beleza tinha sido pervertida. Era tudo quanto havia de mau nela, de escondido, de rejeitado que se exibia perante os seus olhos. A cara dos seus piores pesadelos.

Ele continuou a avançar, e ela via-se a si própria sorrir, contemplar o seu corpo nu como que para se deleitar, como que para o possuir, e ela gritou de novo, num esforço desesperado para se arrancar desta violação insuportável.

Um outro grito respondeu-lhe em eco, e o Inominável afastou dela o seu olhar. Ao ouvirem a rainha gritar, Freihr e Ulfin tinham-se lançado, seguidos pelos outros. Isto não durou mais do que um breve instante. Os guardas gigantescos não se tinham mexido, e o bárbaro cortou um deles com a lâmina da sua espada apenas um segundo antes da ordem do seu Mestre os animar. O Fir Bolg deu um rugido horrível, com a espada de Freihr atravessando-lhe o corpo, e abateu-se sobre ele com todo o seu peso.

Ulfin tinha corrido direito a Aquele-que-não-pode-ser-nomeado. No momento em que o ia atingir petrificou-se, e Lliane viu os seus olhos arregalarem-se, o seu queixo cair de horror. Ela voltou-se para o Mestre e compreendeu. O monstro tinha a cara de Ulfin, agora, deformada, horrorosa, e o bravo cambaleava de pavor.

Era a magia mais horrível e mais poderosa que se podia imaginar. Ninguém podia matar a sua própria imagem. Ninguém podia suportar ver-se em toda a sua fealdade. Era o que Freihr tinha visto nos caminhos desertos, o que Mahault e Tarot tinham descoberto, como tantos outros, àquilo que eles tinham sucumbido. Ulfin recuou, largou a sua espada e tapou os olhos.

Na névoa das suas lágrimas, Lliane viu o segundo Fir Bolg esmagar de um golpe de maça o crânio de Onar, e depois varrer Till e a sua pobre adaga. Ela gritou de desespero quando Dorian morreu, com a cabeça arrancada pelo monstro. Depois, uma flecha de Kevin trespassou-o de lado a lado, como um raio de prata, Bran e Sudri bateram-lhe nas pernas com os seus machados afiados, e ele caiu, semelhante a um carvalho, sob as machadadas dos anões.

O outro rolou no chão empurrado por Freihr. O bárbaro levantava-se, coberto de sangue viscoso e negro, e ela viu-o sorrir. Uma criança corria para ele, chamava o seu nome. Freihr reconheceu Galaad, abriu os braços, mas o seu sorriso gelou-se ao ver o seu filho mudar bruscamente de expressão, e gritar apontando alguma coisa atrás dele.

Freihr mal teve tempo para se voltar. A lâmina lascada de um Fir Bolg trespassou-o de lado a lado.

A ordem do Mestre tinha animado todos os gigantes da sua guarda. Vindos de todo o palácio, eles avançavam lentamente, a cara sem expressão, tão numerosos que já quase enchiam a sala.

— Tu ainda podes viver — murmurou o Mestre ao ouvido da rainha. — Os outros não valem nada...

Lliane voltou-se para ele, descobriu de novo a medonha máscara da sua própria fealdade, e, num sobressalto de revolta, atirou-se em frente e embateu nele com todas as suas forças. O Inominável empurrou-a com um golpe de uma violência inaudita, mas tinha largado a Lança, e o talismã caiu ao chão, perto do trono.

Foi a criança quem a agarrou. Galaad.

A Lança de ouro era bem pesada para ele, mas a força do talismã penetrou-o e ele brandiu-a imediatamente sem esforço. O Mestre então olhou para ele, e nesse momento todos viram o seu verdadeiro rosto, horrível e maligno, sem que a magia tivesse sortido efeito, desta vez. Galaad não tinha fealdade dentro dele. Pela primeira vez na sua existência, a monstruosa magia de Aquele-que-não-pode-ser-nomeado não tinha encontrado presa. O ser ignóbil deu um gemido surdo quando a Lança o trespassou, agarrou o punho de ouro abrindo os olhos espantados, mas Galaad continuava a empurrar, chorando de raiva e desgosto, até que o ferro em fusão se veio espetar nas costas do trono, até que os braços do senhor das Terras Negras caíram sem vida, e um último sopro se escapou dos seus lábios.

Fez-se de repente um silêncio absoluto na sala. A algazarra do combate, os gritos das crianças, o arranhar dos Fir Bolgs sobre as lajes de pedra, tudo terminou com a morte do Mestre.

Os gigantes imobilizados olhavam em volta como se tivessem acabado de emergir de um longo sono. Os seus olhos deslizaram sobre o grupo insignificante que estava diante deles, depois deram meia volta e saíram. Ouviam-se os gritos de agonia dos gobelins que não se agastavam diante dos Fir Bolgs libertos, e o barulho das suas armas maciças quebrando indiferentemente as carnes, as armaduras e a madeira das portas fechadas. Depois não foi mais do que um rumor longínquo.

Lliane arrastou-se até ao corpo sem vida de Dorian e tomou-o nos braços. Till chorava ao lado dela, de tristeza e sofrimento. O seu braço tremia convulsivamente no lugar onde o monstro o tinha atingido. Tarot também chorava, mas de alegria, apertando nos seus braços o seu filho reencontrado.

À parte, Bran e Sudri velavam o corpo de Onar, recitavam as suas longas litanias para que a sua alma encontrasse o repouso, debaixo da Montanha.

Lliane sentiu uma presença, por trás dela, e levantou os olhos à passagem da criança com a Lança. Lentamente, com o rosto devastado, ele avançava para o cadáver de Freihr.

— Tu eras o filho dele, não é...

A criança voltou-se para ela e abanou a cabeça. Depois estendeu-lhe a lança ensanguentada.

— Guarda-a — disse ela. — Jamais ninguém ta deverá tirar, infelizmente... — Ela voltou-se para Freihr. — Foi por isso que o teu pai morreu.

Então Galaad deixou-se cair de joelhos, e Lliane abraçou-o.

— Eu tomarei conta de ti — murmurou ela ao seu ouvido. — Tu não o esquecerás, mas aprenderás a voltar a viver. Aquilo que tu eras morreu com ele. Tu és outro, agora e para sempre. Tu és a criança da Lança. O guardião do talismã... Tu és Lancelote.

 

A chuva tinha derretido a neve, e o campo, a perder de vista, parecia uma velha coberta suja e lamacenta. A cidade tinha-se repovoado, timidamente, depois dos monstros terem voltado a passar as Fronteiras Negras, depois de a terem incendiado. Não passavam ainda de uma dezena de seres desvairados e esfomeados, procurando nos escombros negros algo para subsistirem, mas seriam em breve centenas, mesmo antes do trigo amadurecer. Depois viriam os homens de armas, e o primeiro barão a passar aquela porta poderia tomar conta de Loth, e porque não, proclamar-se rei... Merlim sorriu a este pensamento e abanou a cabeça. Rei de quê? O país inteiro estava destruído. Bandos de gobelins e de monstros ainda erravam por aí. As cicatrizes da guerra demorariam bastante a cicatrizar.

— Em que pensas, velho Myrddin?

Ele afastou-se da ameia em que se tinha apoiado para retomar o seu fôlego e voltou-se para Morgana. Apesar do seu sorriso provocador, a menina tinha medo, tinha frio e devia arrepender-se de o ter acompanhado até ali. Ela nunca tinha visto uma cidade, nem mesmo as cidades vegetais da floresta de Éliande, e as ruínas de Loth não tinham nada que a pudesse tranquilizar.

— Tens razão, sou velho — disse ele. — Deixa-me descansar um pouco...

Ela debruçou ligeiramente a cabeça ao olhá-lo, sorriu-lhe mais gentilmente, e depois tirou um braço para fora das peles com que se tinha agasalhado para apanhar um pedaço de pedra do caminho de ronda.

— Vou fazer-te um truque! — disse ela. — Vês este calhau?

Merlim abanou a cabeça, sabendo o que se ia seguir. Ela levantou a mão para o céu, bateu bruscamente os pés no chão, e Merlim deixou-se cair na armadilha, desviando os olhos sem querer. Quando voltou a olhar para a mão que segurava o calhau, aquele tinha desaparecido (e ele fez de conta que não o via rolar, por trás do ombro de Morgana, sobre os degraus que eles acabavam de subir).

— Magia! — disse a menina.

— Magia, sim... Aprendeste bem.

— Então tens que me ensinar o resto! Tudo aquilo que sabes!

Merlim abanou de novo a cabeça, com ar sério desta vez.

— Vem — disse ele.

E, levantando-se, partiu em direção à torre de menagem, sem se preocupar mais com ela. O intervalo tinha desfeito um pouco o nó que se formara na sua garganta, mas, onde quer que ele pousasse o olhar, a desolação da cidade oprimia-o de novo. Por todo o lado, sobre o caminho de ronda, nas ruelas, através dos telhados desfeitos dos casebres devastados, viam-se vestígios das abominações que se tinham dado com a queda da cidade. Esqueletos apodreciam jazendo sem sepultura, armas partidas, roupas, loiça espalhada pelo chão, pobres tesouros abandonados pelos ladrões. Até ao fim, tinha havido homens para roubar, amontoar ouro ou jóias, em vez de pensarem em salvar a vida. A ambição dos anões estava agora dentro deles, e espalhar-se-ia brevemente a toda a Humanidade... Grandes ratos negros deleitavam-se com todas estas ruínas, não se preocupando sequer com os vivos que passavam, tal qual vermes carcomendo um cadáver. Um atrás do outro, Morgana e Merlim desceram uma escada cheia de móveis partidos, saltaram por cima de despojos enormes num corredor e por fim chegaram à sala do Conselho.

Aí, Merlim caiu de joelhos, e as lágrimas que tinha retido desde a sua chegada a Loth jorraram por fim do seu coração partido.

No centro da sala, a grande mesa de bronze mostrava sinais dos golpes selvagens que lhe tinham sido dados. Cordas ainda a enrolavam, subindo até uma espécie de talha fixada nas vigas do tecto. A única janela existente estava aberta ao vento e o seu vão mostrava também sinais de marteladas. Os monstros pareciam ter tentado tudo para levarem os dois talismãs, em vão.

A Espada continuava ali, cravada na Pedra.

Morgana hesitou, mas como Myrddin continuava ali aos soluços, ela ousou avançar e pegou no cabo de Excalibur. Houve uma vibração, um choro em surdina, lúgubre, um gemido do outro mundo, e ela bateu imediatamente em retirada com um grito de pavor.

— Agarra-a! — disse Merlim por trás dela, com o coração a bater e os olhos esbugalhados apesar das lágrimas.

Então ela estendeu de novo a mão, devagarinho como se tivesse medo de se queimar, e a lâmina de ouro vibrou novamente quando ela a agarrou. Corria nela o sangue de Uter, e o de Lliane. O sangue de um rei e de uma rainha, e a Espada saudava essa herança. Mas continuou cravada na pedra, apesar de todos os esforços que ela fez para a retirar.

— Não faz mal, pequena folha — murmurou Merlim. — Muitos outros como tu já experimentaram, e muitos outros ainda experimentarão, em vão...

Ele levantou-se, secou as lágrimas e cobriu-a com o seu casaco.

— Anda, Morgana, temos que partir antes que anoiteça...

Ela deixou-se levar sem reagir e saíram da sala do Conselho. No vão da porta partida, o homem-criança voltou-se uma última vez para as contemplar.

A Espada de Nudd e a Pedra de Fal, esperavam o verdadeiro rei que as soubesse separar por fim.

Não era Morgana.

E, enquanto eles faziam em sentido inverso o caminho por entre os escombros, Merlim pensou na criança que tinha deixado em Cystennin, à guarda de Antor. Artur.

 

 

[1]      Cerca de duzentos metros.

[2]      Cerca de dois metros.

[3]      Druida: à letra “sábio através das árvores”.

[4]      Espécie de bota que cobria ao mesmo tempo pernas e pés.

[5]      Galgo vermelho sobre fundo amarelo.

[6]      O nome Artur, ou Artus, provém de Art (arzh em bretão), a palavra gaulesa que designa o urso.

[7]      Sexta hora do dia, meio-dia.

[8]      Antiga armadura ou xairel com que se revestiam os cavalos.

[9]      Os textos em itálico são tirados de Lancelot du Lac, romance francês do século XIII, tradução de François Mosès, Lê livre de Poche, ed. 1991.

[10]    “Pai do mosteiro, vigário de Cristo” (regra de São Bento).

[11]     Levítico, XII, 2-6.

[12]     12 Lucas II, 34: A profecia de Simeão.

[13]    Fórmula clássica do direito feudal.

[14]    Lancelot Au Lac, op. cit.

[15]     Besta de Carga. O cavalo de mão é o cavalo de combate, o rossim ou potro, a montada para todos os usos.

[16]     Leão negro em pé com a língua de fora, sobre fundo branco.

[17]    Assembléia de vassalos e das suas tropas, agrupados sob uma bandeira.

[18]    Forte avançado construído sobre uma colina, protegendo à distância uma cidade ou uma fortaleza.

[19]    Azul, com ameias dos lados, decorado com um dragão vermelho.

[20]    Dois quilômetros.

[21]    As matinas é a primeira hora canónica (meia-noite). A noite dividia-se em três candeias.

[22]    Marcos, IX-25.

[23]    Obra redigida por volta do ano 800 por Leão ffi para Carlos Magno.

[24]    Peça da armadura que cobre o ombro.

[25]    As Druidas.

[26]    Este sacrifício horroroso existiu, nas sociedades celtas. É evocado por Júlio César no seu Bellum Gallicum (VI, 16, 4): “Algumas tribos construíam enormes formas de ramos entrelaçados que enchiam de seres vivos. As formas são incendiadas e os homens morrem num mar de fogo”, bem como por Estrabão: “Depois de terem construído um colosso de palha e madeira, deitam lá para dentro animais, animais selvagens e toda a espécie de seres humanos. Depois chegam-lhes fogo, como uma oferenda” (Geografia, IV, 4, 5).

[27]    Texto mitológico irlandês, citado por F. Le Roux e C.-J. Guyonvarc’h.

[28]     As tribos da deusa Dana.

[29]     Poetisa.

[30]     Longínquas.

[31]     “O inferno frio”.

[32]     Lug “do rosto de sol”, “múltiplo artesão”, “da lança comprida”, nomes dados ao deus na tradição céltica.

[33]     Na Idade Média, todas as medidas eram tomadas a partir do corpo humano: polegada (2,7 centímetros), palmo (7,6 centímetros), pé (32,5 centímmetros), braçada (52,5 centímetros).

[34]    Assembléia de vassalos.

[35]    Cavaleiros da casa real, guerreiros profissionais ligados à corte e sem feudo, por oposição aos cavaleiros feudatários portadores de estandarte ou aos estipendiários, cavaleiros mercenários que mantinham por vezes pequenos exércitos às suas expensas.

[36]    Três horas da manhã.

[37]    Cruz vermelha sobre fundo branco.

[38]    A manutenção de um cavaleiro e do seu séquito correspondia à renda anual de uma exploração de cento e cinquenta hectares.

[39]    Um “conroi” tinha vinte cavaleiros, comandados por um cavaleiro com direito a estandarte. Vários “conrois” formavam uma “bataille”, e várias “batailles” um exército.

[40]    Era frequentemente necessário esfregar as cotas de malha com azeite para evitar que enferrujassem e para que conservassem a sua elasticidade.

[41]    Os cabelos serviam assim de proteção da nuca, debaixo dos elmos.

[42]    Domínio agrícola com cinco ou seis hectares, concedido pelo senhor aos colonos livres, contra uma renda.

[43]    Duzentos metros, alcance máximo do grande arco inglês com uma flecha de guerra de cabeça larga.

[44]    Mil passos, ou seja quilômetro e meio.

[45]    Escudete é a parte central do escudo, formando uma saliência.

[46]    Os cavaleiros usavam muitas vezes o peso do corpo e o dos cavalos como projétil, para derrubarem o adversário atingido de flanco.

[47]    Histoire d’Étaine, poema do século IX, citado por Jean Markale.”

 

 

                                                                                Jean Louis Fetjaine  

 

 

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