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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A INIMIGA / Alix André
A INIMIGA / Alix André

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

À esquerda e à direita da alameda, as árvores centenárias, separadas pela alta sebe de buxo bem aparado, confundiam as copas enormes, formando espessa abóbada de folhagem que interceptava os raios de sol, tornando-a bastante sombria. Ao fundo ficava a casa.

Uma rapariga alta, elegante, com os cabelos fulvos e belos olhos negros parou e, com olhar levemente irónico, abraçou o cenário magnífico.

 

 

 

 

Muito imponente, Elsa comentou, numa voz à qual o leve sotaque estrangeiro dava extraordinário encanto. Não muito alegre, parece-me, mas...

 

Calou-se de repente. No movimento circular, esboçado para designar a alameda, o seu olhar encontrara a fisionomia transtornada da companheira.

 

Comovida? perguntou no mesmo tom.

 

É verdade, estou. E suponho que tu também o deves estar.

 

A senhora parou também. Devia andar pelos cinquenta anos e tudo nela evidenciava profunda comoção.

 

Há vinte anos prosseguiu, após breve silêncio
há vinte anos, Deirdre, fiz, em sentido inverso, este mesmo caminho... com os teus pais.

 

Deirdre Morgan mordeu os lábios rubros, talvez para dominar a sua própria emoção. Num gesto espontâneo, estendeu-lhe a mão.

 

E também por mim, Mamie, para não me abandonares, nunca mais voltaste aqui!

 

Como resposta, aquela a quem a rapariga acabava de dar o carinhoso epíteto de ”Mamie” envolveu Deirdre num olhar de ternura.

 

Era feia, feições angulosas, testa alta e uma pele escura que não condizia com os cabelos grisalhos. Mas a doçura e a suavidade das pupilas azuis resgatava e fazia esquecer a nenhuma beleza do rosto. Baixinha, tinha, apesar da elegância do trajo, o aspecto apagado de uma preceptora de idade respeitável. E essa impressão que todos os estranhos sentiam imediatamente ao ver Elsa Gauthier, impressão que se aproximava, de facto, da realidade, não devia ser manifestada diante de Deirdre, sob pena de incorrer no seu desagrado.

 

Porque a preceptora representava ”tudo” para ela, tudo, isto é, passado, presente e futuro; afecto, carinho de família e felicidade. E isto desde o dia em que, com poucas horas de intervalo, Elsa recebera nos braços a criança acabada de nascer e cerrara os olhos à mãe.

 

Com Stephen Morgan, o pai de Deirdre, por quem professava verdadeira adoração, o culto mais profundo e total admiração, Elsa Gauthier partilhara o coração da pupila. E quando a morte do grande industrial, ocorrida havia um ano, feriu profunda e irremediavelmente o coração de Deirdre, uma única pessoa conseguiu prendê-la à vida: Elsa, com a sua carinhosa autoridade, o seu afecto e dedicação.

 

As duas senhoras recomeçaram a andar. A alameda, sombria e majestosa como a nave de uma catedral, era comprida. Ao fundo, ainda longe, avistava-se uma mancha de luz. E, nessa claridade, mais estranha ainda pelo contraste, avultava a mole acinzentada da casa: o Prieuré.

 

Elsa ficara um pouco para trás e, de soslaio, examinava a companheira. Tornava-se, por vezes, difícil adivinhar os sentimentos de Deirdre pela sua atitude e expressão. No entanto, conhecia bem as reacções daquele lindo rosto para não notar a súbita dureza de que se revestira.

 

Deirdre caminhava devagar. A sombra espessa e fresca mais lhe realçava a beleza feita de força, saúde, harmonia, essa beleza sã e deslumbrante das raparigas do Novo Mundo.

 

Alta, esbelta, o corpo harmoniosamente desenvolvido pela prática dos desportos, Deirdre Morgan podia considerar-se o mais perfeito exemplar da Americana cuja personalidade e gostos tenham sido afinados e disciplinados pelas frequentes e demoradas permanências na Europa. Todavia, essa impressão da ”americana parisiense” que se experimentava ao vê-la, era completamente errónea. Deirdre Morgan tocava o solo da França pela primeira vez. A elegância e toda a sua sedução tinham apenas duas causas: a ascendência materna, em primeiro lugar; e depois a influência de Elsa Gauthier, com quem vivera sempre.

 

A velha e fiel amiga, que estimara Cristina Chavanes o bastante para a seguir quando ela se tornara madame Morgan, ao observar agora a filha, não conseguia evitar um movimento de orgulho... Era muito bonita aquela Deirdre de cabelos fulvos e olhar luminoso... Muito bonita, sim, mas também muito obstinada, voluntariosa e ferozmente independente, como devia ser a filha de Stephen Morgan, cuja vontade ou capricho bastavam, por vezes, para abalar a Bolsa de Nova Iorque e provocar o pânico. E o caminho semeado de dólares, que a pupila pisara sempre, não a preparara. Elsa receava-o muito para conciliar as simpatias daqueles de quem se aproximava naquele momento. Embora... e, depois, quem poderia afirmá-lo?...” Como se idênticos pensamentos preocupassem Deirdre naquela altura, esta parou mais uma vez.

 

Que viemos fazer aqui, Mamie?

 

Estas palavras ressoaram estranhamente debaixo da espessa abóbada de verdura, seguidas pelo riso forçado de Elsa.

 

De facto, tens razão, querida. Para que fizemos todo este caminho a pé? Teria sido mais simples não abandonar o automóvel na vila.

 

Não era isso que pretendia dizer, Elsa, bem sabes. Pergunto a mim própria se vale a pena prosseguir e chegar ao fim desta alameda.

 

Percorremos milhares de quilómetros para ”chegar ao fim desta alameda”.

 

Não o ignoro.

 

E ”no fim desta alameda” encontrarás a tua avó e as tuas irmãs.

 

Meias-irmãs emendou Deirdre. E, lentamente, acrescentou:

 

Não são Morgan, nunca desejaram conhecer-me e detestavam meu pai.

 

Elsa Gauthier franziu a testa. Num tom seco que raramente empregava, mas que se impunha mesmo a Deirdre, replicou:

 

Não podiam detestá-lo porque mal o conheceram. Não voltemos ao assunto, Deirdre. Contei-te tudo quanto sabia, a verdade sobre as relações do teu pai com a tua família materna. Não eram calorosas, mas nunca foram também de inimizade. Madame de Rollan ficou sempre mal disposta com Stephen Morgan por lhe ter levado para tão longe a sua única filha. Mas não ficou sozinha, visto que a tua mãe, tendo enviuvado cedo, deixou com a avó as três filhinhas do primeiro matrimónio, até que pudesse vir buscá-las... Infelizmente, esse dia nunca chegou! Um ano após a sua chegada à América, nasceste tu e... tua mãe morreu. Desta forma se quebraram, aparentemente, os laços que te prendiam à tua família francesa, mas...

 

Não foi aparentemente, Elsa, mas de facto atalhou Deirdre. Em dezanove anos nunca madame de Rollan manifestou o desejo de conhecer a neta, nem tão-pouco de me pôr em contacto com as minhas irmãs.

 

Um instante, Deirdre. Deves acrescentar, para ser justa, que teu pai, desejando conservar-te só para ele, nunca fez coisa alguma para tornar esse contacto possível.

 

Deirdre interrompeu-a. Desde que se focava Stephen Morgan tornava-se apaixonadamente parcial.

 

Meu pai, pelo menos, demonstrou sempre o maior interesse pelos de Rollan e pelos Chavanes, um interesse... tangível. Sei que, por várias vezes, enviou somas consideráveis para salvar a fábrica dos meus avós.

 

Isso foi outro caso. Tu também tinhas a tua parte na fábrica e teu pai desejava a sua prosperidade.

 

A leve gargalhada de Deirdre deixou Elsa um pouco interdita.

 

Até hoje, essa prosperidade só se manifestou por pedidos de dinheiro. E, quanto a lucros, confesso-te que não conto com eles.

 

Elsa suspirou. Não sabia ela de quanto dinheiro dispunha aquela rapariga de dezanove anos de quem Stephen Morgan, com a sua rápida e espantosa ascenção, fizera uma riquíssima herdeira?

 

Aproximando-se da pupila, pegou-lhe, afectuosamente, no braço.

 

Vamos, Deirdre, será melhor acabarmos com as discussões. A ocasião é mal escolhida. Vamos para a frente.

 

Deirdre não lhe respondeu, mas obedeceu. O crepúsculo primaveril subia lentamente e empalidecia o céu e se a sua doçura perfumada não conseguia atravessar a espessa camada de verdura, esta, pelo menos, animava-se com o bater das asas e o cantar dos passaritos.

 

A alameda de aspecto severo estava bem tratada, acusando os cuidados de um ou mais jardineiros. O chão tapetado de areia fina, sem uma erva, perfeitamente liso. Nem um ramo mais alto sobressaía na sebe de buxo bem talhado. Tudo, até o murmúrio discreto de uma fonte que as duas caminhantes começavam a ouvir, tudo indicava ordem, calma e a tranquilidade orgulhosa da rica e aristocrática moradia.

 

Deirdre e Elsa chegaram a uma espécie de rotunda que interrompia a monotonia da alameda, a meio, pouco mais ou menos. À direita, um banco de pedra circundava-a, convidando ao descanso. À esquerda, um tanque com as bordas cobertas de musgo. Ao centro, elevava-se um jacto de água cristalina que recaía, produzindo um murmúrio monótono e suave.

 

Para lá do banco, estendia-se o parque, sombrio e frondoso. Mas o tanque estava colocado à entrada de uma alameda transversal que serpenteava por entre o arvoredo e cuja extremidade não podia ver-se.

 

Deirdre meteu por essa alameda. Elsa tentou detê-la.

 

Não vás por aí, minha filha. Iríamos ter às forjas.

 

A rapariga voltou a cabeça e sorriu.

 

É isso, justamente, o que me interessa, Mamie.

 

Concordo... mas mais tarde.

 

Não, Elsa. Há mais de um mês que me submeto à tua vontade. Chega-me agora a vez de escolher. Senta-te aí, junto do tanque, e espera por mim.

 

O tom era afectuoso, mas revelava resolução firme. Elsa não insistiu. Limitou-se a seguir Deirdre, que, depois de alguns minutos de caminho, atingiu um portão de ferro, que logo empurrou.

 

A fábrica, propriamente dita, ainda ficava distante. Avistavam-se, no entanto, as construções, os altos fornos e as chaminés. Mas, àquela distância, seria impossível avaliar-se a sua importância e a sua actividade.

 

Deirdre deu alguns passos pelo terreno, que já não era parque, mas também ainda não podia considerar-se industrial. À direita erguia-se uma casa, espécie de pavilhão, graciosa, embora as paredes estivessem escurecidas pelo fumo da fábrica. A fachada principal devia deitar para um jardim, cujas árvores se apercebiam. Quanto às traseiras, diante das quais as duas se encontravam, estavam completamente envidraçadas até à altura do primeiro andar. Era uma espécie de gaiola de vidro, guarnecida de varões de ferro, grossos e bastante aproximados. Elsa parou, decidida a ficar por ali. Deirdre continuou a caminhar, examinando a casa com curiosidade.

 

Interessante amostra da arquitectura francesa comentou, rindo.

 

Elsa Gaulthier, conhecendo bem o local, dispunha-se a dar explicações, mas não chegou a fazê-lo. Uma porta, rasgada num dos lados do pavilhão, abriu-se e um homem apareceu.

 

Por certo tinha visto Deirdre aproximar-se e, se não ouvira o que dizia, notara o seu ar trocista, com certeza, porque a olhou com frieza.

 

Não era um adolescente, mas, a despeito do seu ar grave, devia ser bastante novo. Alto, envergava fato de macaco, apertado por um cinto de cabedal. O rosto, de feições acentuadas, reflectia inteligência, vontade firme e força. A testa alta, coroada pelos cabelos escuros, o queixo forte, quase quadrado, eram as duas coisas que primeiro chamavam a atenção, na fisionomia máscula e resoluta. Os olhos azuis, que fixavam as pessoas bem a direito, iluminavam o conjunto, sem o suavizar. Naquele momento exprimiam tão evidente contrariedade que Deirdre não pôde conceber ilusões sobre a impressão que produzia.

 

Sem se afastar da porta, o desconhecido indagou:

 

Perdeu-se, minha senhora?

 

Conquanto a atitude fosse fria, o tom era cortês. Mas Deirdre, pouco habituada a censuras ou indiferença, por muito leves que fossem, sentiu-se magoada.

 

Não, muito obrigada. Sei perfeitamente onde vou.

 

Nesse caso respondeu tranquilamente o desconhecido, sem parecer notar que Deirdre se dispunha a seguir o seu caminho permita-me lembrar-lhe que a entrada neste recinto é proibida a pessoas estranhas à fábrica.

 

Desta vez, Deirdre parou e a chama irónica das pupilas negras acentuou-se.

 

Sim?... Nesse caso, os que não são estranhos à fábrica poderão entrar, não é verdade?

 

Com certeza.

 

Sendo assim, eu sou uma dessas pessoas.

 

E, pela segunda vez, recomeçou a caminhar. Mas o olhar que a fixou imobilizou-a. O desconhecido não deu um passo, mas tomou uma expressão rígida como se fizesse um esforço para dominar a irritação que o agitava.

 

Compreendeu-me mal, minha senhora replicou num tom cada vez mais frio. As ordens que sou obrigado a fazer respeitar abrangem também os amigos de madame de Rollan. Por isso, peço-lhe para se conformar com elas.

 

Dessa vez a irónica calma de Deirdre desapareceu.

 

Não sou amiga de madame de Rollan explicou.

 

E, olhando-o com altivez, prosseguiu, martelando as palavras:

 

Sou Deirdre Morgan.

 

Se contava que o nome produzisse algum efeito, por certo ficou desapontada. O desconhecido não exteriorizou os seus sentimentos e ficou impassível. Nem sequer um vislumbre de curiosidade perpassou nas pupilas claras. Sem pensar em revelar o seu nome e posição, inclinou-se ligeiramente.

 

Vejo que não me enganava, mademoiselle murmurou, perdeu-se. Bastará empurrar essa cancela para se encontrar numa alameda, ao fundo da qual encontrará a casa. Peço-lhe perdão por não poder eu próprio acompanhá-la.

 

Cumprimentou-a de novo e depois, sem aguardar a resposta de Deirdre, sem se preocupar com as suas reacções, entrou no pavilhão.

 

Alguém tomou o braço da rapariga, que, imobilizada pelo espanto, se esquecera da sua obstinação. Com risonha ironia, Elsa comentou:

 

Eis o que acontece a quem teima em fazer a sua vontade. O primeiro que aparece pode dar-lhe uma lição.

 

Deirdre já recuperara a calma.

 

Espero disse, encolhendo os ombros que este” não seja o tipo do operário francês. Estive muitas vezes em contacto com os operários americanos e nunca encontrei tanta grosseria.

 

Elsa evitou responder-lhe. Temia que o incidente indispusesse Deirdre no momento em que ia conhecer, a família, cujos membros lhe eram absolutamente estranhos e que talvez ficassem mais espantados do que satisfeitos com a sua chegada.

 

Caladas e apressadas, as duas voltaram para trás, e, chegando à rotunda, meteram pela rua principal. A casa não estava longe, já se avistava o pequeno solar, comprido e baixo, de um só andar, com as paredes completamente cobertas de plantas trepadeiras e de hera. De si para si, Deirdre teve de concordar que tinha um ar aristocrático.

 

Uma espécie de terraço estendia-se ao longo da fachada, terraço que, na primeira impressão, as duas recém-chegadas supuseram sem ninguém. Mas, quando o atingiram, viram um criado sair da casa com uma bandeja na mão e dirigir-se à extremidade oposta, onde estava uma cadeira de repouso.

 

Esperaram que poisasse a bandeja e voltasse para trás para seguirem o seu caminho. A ocupante da cadeira não se via, pois estava quase completamente oculta pelo enorme chapéu de sol de cor viva, bastante inclinado. De resto, nem uma nem outra pensou em apresentar-se assim, bruscamente, sem manifestarem a sua presença àqueles que as aguardavam.

 

Dirigiram-se ao criado e este, depois de hesitar, resolveu-se a ir anunciar a madame de Rollan a chegada de mademoiselle Morgan. Visivelmente, o nome não lhe dizia nada e a seu ver não merecia que se apressasse.

 

Mas o ruído da conversa chamou a atenção da ocupante da cadeira. Sem que atrás do chapéu de sol se sentisse qualquer movimento, uma voz suave e harmoniosa perguntou:

 

O que foi, Félix?... Com quem está falando? Para responder, Félix aproximou-se da cadeira.

 

Devia ter repetido o nome, porque Deirdre e Elsa ouviram um gritinho.

 

Esse grito foi seguido pelo ruído de uma mesa arrastada e de objectos caindo no chão. Mas ninguém apareceu. Algumas palavras, proferidas com impaciência, dirigidas ao criado, provaram que o ser invisível estava ali e recusava auxílio. Depois a mesma voz harmoniosa repetiu:

 

Deirdre!... Meu Deus!... Deirdre! Então, a recém-chegada não hesitou mais. Resoluta, caminhou para a voz.

 

Conquanto, habitualmente, Deirdre soubesse dominar-se, não pôde deixar de se imobilizar alguns segundos, quando contornou o chapéu de sol que ocultava um recanto delicioso e confortável, luxuosamente preparado para um repouso ao ar livre.

 

Numa espécie de nicho de verdura, um pouco recuado na ala esquerda da casa, via-se uma mesa e algumas cadeiras próprias de jardim, adornadas com vistosas almofadas. Em cima de várias mesas pequenas, de ferro pintado de branco, viam-se revistas, livros, bordados começados, pratos com fruta e caixas com bombons. No meio desta elegante desordem encontrava-se a cadeira de repouso, da qual se via apenas a extremidade. E o enorme chapéu de sol ali preso parecia, pela sua posição inclinada, não só abrigá-la dos raios do sol, mas defendê-la do ar.

 

A primeira coisa que chamou a atenção de Deirdre foi um par de muletas caído no chão, junto de uma mesa também derrubada e de alguns livros espalhados. Este incidente devia ter ocorrido quando a ocupante da cadeira tentara levantar-se. Desolada com a sua impotência, a enferma renunciara a fazê-lo e, enquanto o criado apanhava os livros e as muletas, limitou-se a fixar a recém-chegada com o olhar triste das enormes pupilas negras.

 

É uma das minhas irmãs, não é assim? inquiriu Deirdre com esses modos francos, adquiridos tanto pela sua origem como pela educação.

 

A enferma confirmou com a cabeça e com um ”sim” sufocado. Parecia querer devorar Deirdre com os olhos e à medida que o exame lhe revelava a beleza sã e vigorosa da Americana, as suas feições finas contraíam-se numa expressão de desespero.

 

Qual delas? prosseguiu Deirdre.

 

Maud, aquela que...

 

Com o gesto, que, ao tentar demonstrar indiferença, se tornava ainda mais pungente, designou as pernas imobilizadas.

 

Não sabia...balbuciou a recém-chegada. Mas, logo a seguir, conseguiu dominar-se e sorriu:

 

É muito bonita, Maud.

 

As faces pálidas da doente coloriram-se ao de leve. O olhar perdeu a expressão ávida para reflectir afectuosa simpatia.

 

E a Deirdre é maravilhosamente linda afirmou numa voz da qual não conseguira apagar leve nota de amargura.

 

Aproximando-se da cadeira para beijar a irmã, Deirdre notou certos pormenores que ao primeiro exame não descobrira; e o seu coração oprimiu-se de tristeza.

 

Maud era, de facto, muito bonita, mas tão pálida que nas suas veias frágeis dir-se-ia não correr uma gota de sangue. Os olhos enormes ainda pareciam maiores pela excessiva magreza do rosto. As feições eram correctas e quase infantis, conquanto não estivesse muito longe dos vinte e seis.

 

O corpo devia ser franzino e magro, mas os artifícios de uma elegância requintada dissimulavam as imperfeições. Contudo, o riquíssimo roupão de fazenda azul pálido, envergado por Maud, não conseguia encobrir por completo as pernas da infeliz rapariga, de comprimento diferente e uma delas metida num aparelho ortopédico.

 

Conquanto a tarde primaveril estivesse amena e tépida, a doente tinha pelos ombros um xaile de lã. Uma manta de pele estava no chão ao lado da cadeira, caída talvez pouco antes, quando tentara levantar-se. Deirdre apanhou-a e cobriu os joelhos da irmã, que lhe agradeceu com um sorriso. Parecia mais animada, quase alegre.

 

Esta senhora é Elsa, não é verdade? perguntou a doente. Elsa que guiou os meus primeiros passos e de quem me lembro ainda bem.

 

Sou eu, sim confirmou a preceptora, tentando dominar a comoção conheci-te muito pequenina, mas ainda não eras...

 

Aleijada... Não, isto aconteceu mais tarde.

 

Não sabia...

 

Quem poderia tê-las avisado?... O avô tinha tantas preocupações... muitas e mais importantes!

 

Deirdre ficou surpreendida com a inflexão amarga e agressiva das palavras. Mas não teve tempo para aprofundar as suas impressões porque, desde o início da conversa, o criado retirara-se e a chegada das viajantes já devia ser conhecida.

 

Com efeito, uma das portas envidraçadas abriu-se e no limiar apareceu uma senhora com os cabelos brancos, alta, robusta e de aspecto majestoso.

 

Madame de Rollan acabara de fazer setenta e dois anos, mas a sua robustez e também, sem dúvida, a sua calma olímpica, pouco inclinada a ceder a comoções e desgostos, evitavam que aparentasse essa idade. O rosto pálido, de expressão fria, e os olhos claros não atraíam simpatias. O porte altivo da cabeça, a lentidão voluntária de todos os gestos, tudo quanto constituía, em resumo, a sua linha aristocrática e a tornavam imponente, roubavam-lhe ao mesmo tempo todo o encanto. E Deirdre, cujo olhar penetrante não deixara de notar todos estes pormenores, teve de fazer um esforço para se levantar e ir ter com a recém-chegada.

 

Se os passos, portes e atitude de madame de Rollan, quando atravessou o terraço, conservavam a costumada e nobre dignidade, o rosto revelava leve emoção. Maud foi talvez a única a notá-lo e a única,’ com certeza, a dar a verdadeira significação às manchas que avermelhavam as faces da avó, indício de profunda contrariedade. Quem se atreveria a pensar que essa comoção era filha do desagrado e uma avó não acolhesse com profundo júbilo a neta desconhecida, filha da filha que morrera longe dela?

 

Madame de Rollan abraçou Deirdre, beijou-a friamente na testa, mas o abraço foi breve. Afastou-se um pouco para a ver e depois, num tom que parecia traduzir uma censura, observou:

 

Não te pareces connosco, Deirdre. Não tens o mais pequeno traço da tua mãe nem das tuas irmãs.

 

Enquanto proferia as últimas palavras, o olhar voltou-se, não para Maud, mas para a porta de casa, onde, por sua vez, acabava de aparecer uma rapariga. E Deirdre, por muito pouco que conhecesse a a avó, não pôde deixar de notar o orgulho que, por momentos, a transfigurava.

 

Aí vem a Rosamunda disse. Rosamunda Chavanes atravessou o terraço em passo vagaroso. Era uma criatura esplêndida, cuja beleza, elegância e mocidade se aliavam à majestade que caracterizava madame de Rollan. O rosto frio era perfeito. Os cabelos negros, azulados, mais contribuíam para realçar a sua perfeição. Os olhos, também negros, brilhavam por entre os cílios muito bastos e compridos.

 

Não devia ser fácil encontrar-se beleza tão perfeita como a de Rosamunda Chavanes e ela sabia-o. Por isso o olhar que fixou em Deirdre reflectiu espanto e desagrado.

 

Ninguém se preocupava com a enferma. Esta, com as mãos apoiadas nos braços da cadeira, soerguera-se um pouco e, com olhar ávido, analisava as reacções de Rosamunda.

 

Notou a ligeira alteração do semblante, o frémito logo reprimido dos lábios e das pálpebras e voltou a recostar-se nas almofadas, esboçando irónico sorriso.

 

O beijo de Rosamunda Chavanes foi o de uma indiferente, mas Deirdre não ficou desapontada. Se o seu coração se sentira imediatamente conquistado pela irmã aleijada, ficara completamente frio perante a outra, embora não conseguisse explicar a razão e se censurasse por isso.

 

Só então madame de Rollan pareceu notar a presença de Elsa e, voltando-se para ela, comentou:

 

Elsa, uma Elsa americanizada, mas sempre a mesma”. Faço-lhe os meus sinceros cumprimentos, minha amiga, o exílio favoreceu-a. É a mesma pessoa que partiu daqui há vinte anos.

 

Num rápido exame, notou o fato género alfaiate de corte impecável, a jóia antiga, discreta, mas valiosa, pregada na banda do casaco, o abafo de pele que Elsa trazia no braço, todos os pormenores que revelavam uma elegância requintada, mas sóbria.

 

Não, não é a mesma pessoa, mas, sim, outra, muito melhor, cem vezes melhor. Os anos passaram sem lhe roubarem coisa alguma, mas, pelo contrário, dando-lhe muita coisa...

 

Deirdre voltou-se bruscamente para a avó. Sabia que madame de Rollan ficara mal disposta com a amiga, que, por afecto e dedicação, acompanhara a filha depois do casamento, que fora a primeira a reprovar. Mas calculara que, com o tempo e com as circunstâncias, estes sentimentos se tivessem modificado. E a clara alusão às vantagens materiais que Elsa alcançara com a sua dedicação, indignou-a e fez-lhe subir ao rosto um rubor de cólera.

 

Elsa conhecia Deirdre muito bem para não prever essa indignação e atalhá-la. E, tranquilamente, apertando a mão que a dona da casa lhe estendia, respondeu:

 

Foi a companhia de Deirdre que me conservou a mocidade. Nada mais consolador, mais animador e refrescante do que o convívio com uma bela alma. E quando nos sentimos, por pouco que seja, responsáveis e obreiros dessa beleza, isso basta como recompensa, conforta-nos e quase nos torna invulneráveis aos golpes da vida. Em vinte anos, um só desgosto me feriu.

 

Essa alusão à morte da filha comoveria madame de Rollan?... Pelo menos, assim pareceu. Baixou os olhos e calou-se. Pouco depois, porém, Elsa, que conversava com Rosamunda, foi alvo de novo ataque.

 

Todavia, minha boa amiga, não conseguiu apagar do carácter da sua pupila e designava Deirdre certas originalidades que a educação puramente americana mais acentuou. Refiro-me a essa tendência para a aventura e para o imprevisto, tendência que a vossa chegada inesperada acaba de provar.

 

Avó! protestou Maud Será possível que... A voz tremia-lhe de indignação mal reprimida.

 

Madame de Rollan olhou para a neta com desdenhosa compaixão.

 

Muito gostas tu de dramatizar as coisas, Maud!... Acredito que seja um impulso involuntário e doentio, mas, mesmo assim, deves modificar-te. Deirdre bem sabe que as minhas palavras não envolvem qualquer censura e que todos nós, sem excepção, nos sentimos felizes por conhecê-la e recebê-la aqui.

 

Deirdre não sabia mais nada senão que o seu único desejo seria voltar as costas àquela casa e a todos que a habitavam e fugir. Sentia-se como que enregelada.

 

Nunca, desde que decidira, a pedido de Elsa, embarcar para França e procurar a família, imaginara semelhante acolhimento. Se não fosse em atenção à velha amiga, que ficaria desolada, e se não existisse Maud, que a fixava com olhar ansioso e quase terno, ter-se-ia comportado como uma rapariga mal educada, à americana, conforme a acusação feita pela avó. Sem uma palavra, teria afastado com violência pessoas e coisas e corrido sem parar até ao fim da alameda, até onde encontrasse um ambiente que não lhe esmagasse o coração como aquele que a rodeava.

 

Como se adivinhasse os sentimentos da neta, madame de Rollan pegou-lhe no braço.

 

Deixemo-nos de conversas tolas, minha filha declarou, sorrindo que te darão fraca ideia da hospitalidade francesa. Deixámos-te ficar aqui, de pé, neste terraço húmido, quando devias já estar há muito tempo instalada no teu quarto, tomando as tuas disposições para passares aqui algum tempo. Onde estão as tuas malas?... Como vieste até aqui?.., Trouxeste criada de quarto?

 

Enquanto falava, encaminhava-se para casa e Deirdre, obrigada a segui-la, ia respondendo às perguntas, maquinalmente, com o espírito muito longe dali. No entanto, parou e voltou-se para ver o que seria feito de Maud. Rosamunda caminhava tranquilamente, alguns passos atrás. Quanto à aleijada, tentava levantar-se. Elsa, porém, apressou-se a auxiliá-la, dando-lhe as muletas e amparando-a. Já sossegada, Deirdre acompanhou a avó.

 

Segundos depois, entrava na casa que tinha sido da mãe, mas não sentiu a mais leve comoção. Madame de Rollan, calma e altiva, dava as suas ordens para prepararem os dois melhores quartos. A voz era firme, a atitude impassível e imponente, como de costume. E Maud, mais uma vez, foi a única a notar que as rosetas vermelhas que lhe manchavam as faces cada vez se tornavam maiores.

 

A fábrica de aço de Rollan ocupava, havia mais de um século, a quase totalidade da população da pequena povoação, nos arredores de Paris, onde o primeiro de Rollan, um engenheiro, a fundara. Os períodos de grande prosperidade tinham, no decorrer de tantos anos, alternado com períodos de grandes dificuldades. Mas, apesar de tudo, os de Rollan eram considerados como pessoas de fortuna e importantes industriais.

 

O último dos de Rollan, que ocupava o cargo de director da fábrica, morrera novo. Depois da sua morte, a viúva, a avó de Deirdre, cujo carácter se adaptava a responsabilidades e ao mando, continuou a dirigir a fábrica com o auxílio de um engenheiro novo, Francisco Villiers, que, infelizmente, morreu demasiado cedo também para poder introduzir-lhe os melhoramentos que projectava.

 

Naqueles últimos tempos, de resto, a morte dir-se-ia perseguir os de Rollan e todos os que se lhe aproximavam. A única herdeira da fábrica casara em Paris com um médico cirurgião, o doutor Chavanes, que morreu em poucos dias, vitimado por um fleimão, adquirido no decurso de uma operação. Cristina Chavanes instalou-se então em casa da mãe, onde passou a viver com as três filhas, Irene, Maud e Rosamunda, a mais velha das quais tinha oito anos e a mais nova três.

 

Madame de Rollan nunca abandonara o solar da família, um antigo priorado, que, embora conservasse o carácter primitivo, fora transformado numa moradia luxuosa, confortável e imponente. E foi justamente aí que Cristina Chavanes conheceu aquele que devia afastá-la da família e da pátria, levando-a para lá dos mares.

 

Stephen Morgan, jovem americano, terminava a sua volta à Europa por um estágio nas fábricas de aço da Ilha de França. Por recomendação de amigos comuns e esquecendo dessa vez a sua prudência e perspicácia habituais, madame de Rollan recebeu o rapaz. Como poderia supor que a filha, viúva de vinte e oito anos, se decidiria a abandonar a doçura reconquistada do lar materno pela incerteza de uma vida que ignorava por completo, num país distante e estranho! E, no entanto, foi o que aconteceu.

 

O espanto e a cólera de madame de Rollan, quando a filha lhe comunicou a sua resolução, foram tremendos, mas esbarraram contra o amor que os dois jovens dedicavam um ao outro. Essa decepção foi para a directora da fábrica ainda mais cruel por ter ela própria decidido por Cristina Chavanes, escolhendo-lhe segundo marido. Francisco Villiers, embora de humilde nascimento e sem fortuna, afigurava-se-lhe, pela sua capacidade e cargo que desempenhava na fábrica, o genro sonhado como colaborador. Pelo lado do rapaz não receava obstáculos, pois sabia que ele amava Cristina desde sempre.

 

Todavia, teve de submeter-se. Cristina Chavanes já ultrapassara a idade de ceder a outros, mesmo a uma mãe, a faculdade da escolha. Resolvera casar com Stephen Morgan e casou.

 

Ficou decidido, entre Cristina e madame de Rollan, que as três pequenitas ficassem mais um ano no Prieuré, entregues à avó. De facto, tudo indicava que, antes de expor três crianças tão pequenas tinham então quatro, sete e nove anos aos perigos de longa viagem e ao acaso de uma mudança de vida, a mãe organizasse o seu lar para as receber.

 

Em consequência, partiu primeiro, mas não sozinha, com o marido. Uma amiga de infância, sem família, que vivia quase sempre com ela como uma espécie de dama de companhia, carinhosa e dedicada, Elsa Gauthier, acompanhou-a. E madame de Rollan nunca lhe perdoou, nem tão-pouco à filha.

 

Todavia, de Nova Iorque, onde o casal tinha estabelecido residência, chegaram, poucos meses depois, notícias pouco agradáveis. Cristina Morgan estava doente. E não só não podia pensar em mandar ir as filhas para junto de si, como se impunham os maiores cuidados para que vingasse a criança prestes a nascer.

 

Deirdre viveu, de facto, e foi sempre muito saudável. Mas o seu nascimento custou a vida da mãe, e, desta forma, os laços entre a família da América e da França, em vez de se estreitarem, quebraram-se.

 

Como era natural, Stephen Morgan não podia interessar-se pelas três órfãs, sobre as quais, de resto, a avó teimou em conservar os seus direitos. Em compensação, interessavam-lhe sobremaneira as remessas de fundos do genro americano, tal como Deirdre fizera notar à amiga, no dia da chegada.

 

Para este, de resto, depois da morte de Cristina, só uma pessoa e uma coisa existiam: a filha e o seu trabalho. Embora, na altura do casamento, a sua posição fosse modesta, a fortuna e a sorte bafejaram-no com inacreditável rapidez.

 

De director de importantes fábricas passou a seu proprietário. Mais tarde, as fundições e forjas que tinham motivado a viagem à Europa, viagem de instrução e de estudo, ampliaram-se, aperfeiçoaram-se e cobriram quilómetros dos arredores de Nova Iorque. Tornou-se um homem importante, o industrial poderoso sem o auxílio ou opinião de quem o país não prescindia, o homem perante quem os concorrentes se inclinavam e cujos adversários se consideravam de antemão vencidos, o homem que, para vencer, lhe bastava resolver e empreender. Mas também um homem cujo labor incessante, quer de dia quer de noite, consumiu as energias e cansou o coração. E, aos cinquenta e dois anos, esse coração falhou.

 

Adorava Deirdre e a única coisa que lhe recusou sempre foi uma viagem à Europa, ambição de todas as americanas ricas.

 

Talvez o industrial, inconscientemente egoísta, receasse a família materna de Deirdre, a ternura que a filha viesse a sentir pelos seus parentes e a possível influência que qualquer deles pudesse exercer sobre ela. No entanto, prestes a morrer, admitiu a ideia dessa viagem e até aconselhou Deirdre a fazê-la, embora madame de Rollan não tivesse manifestado, fosse em que altura fosse, a mais pequena parcela de afecto ou mesmo de interesse pela neta desconhecida. A hipótese de uma tentativa de domínio seria a última a admitir-se, da sua parte.

 

A notícia da morte de Cristina impressionou profundamente a mãe, mas o seu carácter era daqueles que nunca se deixam abater pelos desgostos. A fábrica de aço atravessava então um dos períodos de maior crise e a sua sorte preocupava profundamente madame de Rollan, tanto mais que se encontrava, de momento, sem direcção. Francisco Villiers, que a dirigira e com quem ela pensara casar Cristina, antes do aparecimento de Stephen Morgan, morrera pouco antes num desastre de automóvel. Essa morte afectou gravemente a laboração da fábrica, e as preocupações que semelhante ocorrência trouxe a madame de Rollan foram de tal ordem que sobrelevaram o seu desgosto.

 

Muitos pensarão que não existem neste mundo preocupações bastantes para fazer esquecer a uma mãe o golpe sofrido pela morte da filha e que, desvanecida a tempestade, a avó fizesse recair toda a sua ternura na filha da sua filha. Mas, para quem conhecesse bem madame de Rollan, não se espantaria com o seu procedimento. Tinha junto de si três netas e isso bastava para as necessidades do seu pouco afectuoso coração. Portanto, nunca desejou conhecer a quarta, nascida de um casamento que sempre reprovara. Como, por outro lado, Stephen Morgan não se mostrava interessado em manter relações com a família de sua mulher, a correspondência, pouco a pouco, foi rareando, limitando-se ao indispensável: à simples comunicação quando algum acontecimento importante ocorria na vida de qualquer deles. Desta forma, Deirdre soube que uma das irmãs, Irene, casara e três anos depois morrera. Este novo golpe foi, no entanto, suavizado para madame de Rollan, com o facto do viúvo da neta continuar a viver com ela e ter tomado a direcção da fábrica.

 

Depois da morte súbita de Stephen Morgan, havia um ano, e da carta de cerimoniosas condolências escritas pela avó, a troca de correspondência cessou. Essa indiferença mútua explica suficientemente a surpresa manifestada pelos habitantes do Prieuré, surpresa que ainda não se desvanecera pensava Deirdre depois da sua chegada, vendo-a, havia dois dias, instalada entre os seus, bem viva e real.

 

No entanto, impunha-se fazer justiça a todos os seus parentes. Tudo se passava como se já contassem com ela e estivessem preparados para lhe tornar a permanência entre os seus o mais agradável possível. Este facto, porém, devia-se mais à presença de espírito de madame de Rollan e à perfeita organização do Prieuré do que à sua ternura de avó.

 

O quarto destinado a Deirdre era dos melhores, com móveis do mais puro estilo Império, paredes forradas de cetim verde com escudos doirados e coroas de loiros. Pelas largas janelas avistava-se o arvoredo do parque, de traçado elegante e gracioso. Para além da propriedade, estendiam-se os campos verdejantes da Ilha de França. Por entre as plantas trepadeiras e nas copas das árvores, os ninhos deviam ser numerosos, porque, logo de manhãzinha, Deirdre era acordada pelos gorjeios e bater de asas dos passaritos.

 

Esse ruído era o único a perturbar o silêncio da aristocrática moradia. A fábrica ficava muito afastada para se ouvir o ruído das máquinas e a animação da sua vida laboriosa, excepto nos dias em que o vento soprava forte e daquela direcção, trazendo-os até à casa. Mas isso acontecia muito poucas vezes.

 

O Prieuré era vasto, mais comprido do que fundo. A maior parte dos aposentos do rés-do-chão abriam para o terraço por largas portas envidraçadas. Esses aposentos, tal como os do primitivo Prieuré, comunicavam todos uns com os outros. Mas, tendo conservado o carácter original nos tectos abobadados, nos imensos fogões, vãos das janelas fundos e vastos, não tinham desprezado o conforto. Os pavimentos de lajes desiguais estavam cobertos com espessas alcatifas. Quando chegava o Inverno, os grandes radiadores espalhavam pelo ambiente um calor suave, sem prejuízo das alegres fogueiras ateadas nos fogões. Os lustres de cristal e as lanternas de cobre primorosamente trabalhado substituíam os tocheiros com velas. E, quanto à cozinha, estava munida com as aparelhagens mais modernas exigidas pela comodidade.

 

Madame de Rollan tinha orgulho na sua casa. Logo no dia seguinte à chegada foi mostrá-la a neta. Mas, educada por Elsa sob todos os aspectos artísticos, Deirdre não manifestou o mais pequeno espanto com as belezas do Prieuré e não cometeu qualquer erro sobre os estilos e géneros de arquitectura.

 

Caso estranho. A recém-chegada tinha a impressão de ter vivido sempre naquela casa, conhecendo-a nos seus mais pequenos pormenores, e aquele terraço, onde se instalava junto de Maud, a maior parte das vezes sozinha e abandonada. Mas, se nas suas veias o sangue de Cristina Chavanes corria impetuoso, tudo quanto nela existia do pai, protestava. E isso produzia uma espécie de antagonismo, uma dualidade que Deirdre sabia não poder acabar senão quando partisse.

 

Encontrava-se no Prieuré havia dois dias e ainda não se atrevera a falar na partida. Sabia que Rosamunda e a avó ficariam admiradas com a rapidez da visita e a censurariam, mas isso pouco lhe importava. Preocupava-a, sim, a reacção dolorosa de Maud, que parecia sentir-se feliz com a companhia
da irmã. Isso afligia-a muito mais do que a reprovação da outra irmã e da avó.

 

De resto, ainda não conhecia todos os membros da família. Um deles, Didier Thibaut, o cunhado, tinha ido a Paris por causa dos negócios e a delicadeza mandava que aguardasse o seu regresso.”

 

Não podia deixar de fixar um olhar cobiçoso nas maletas, arrumadas num armário da casa de banho, nas quais fora procurar umas fotografias da sua casa em Nova Iorque que Maud desejava conhecer e estavam, segundo lhe parecia, metidas na bolsa interior do seu saco de viagem.

 

Tendo encontrado o grande sobrescrito que as continha, Deirdre abandonou a sala de banho e atravessava o quarto de dormir quando lhe chegou aos ouvidos o ruído de um motor, coisa que raramente acontecia.

 

Já tinha verificado que a tranquilidade do Prieuré poucas vezes era perturbada e, portanto, curiosa, aproximou-se da janela.

 

Conduzido com uma velocidade de bólide, um carro acabava de surgir no extremo da alameda. Com grande espalhafato, parou com uma travagem brusca diante do terraço, junto dos primeiros degraus, sem que o seu condutor pensasse em afrouxar o motor.

 

Era um automóvel de corridas, comprido, pintado de vermelho, que Deirdre reconheceu ser um carro de grande preço. O condutor, que viajava sozinho, saltou para o chão e, com a pasta de couro na mão, subiu a escadaria com passo ligeiro e alcançou o terraço.

 

Deirdre saiu da janela, mas não tão depressa que não fosse vista. Por seu lado, de relance, pudera ver um rapaz novo, de modos desportivos, sorridente, lábios sublinhados por delgado bigode loiro e dentes deslumbrantes.

 

Didier Thibaut aproximou-se de Maud, que, estendida na cadeira de repouso, abandonara o trabalho para o acolher. Cumprimentou-a e depois inquiriu, admirado:

 

Têm visitas, Maud?... Deu-me a impressão de que o quarto verde estava ocupado.

 

A enferma sorriu com alegria.

 

Sim, temos visitas e das mais inesperadas.

 

E como o cunhado a interrogasse com o olhar, aguardando explicação menos vaga, acrescentou:

 

Chegou a nossa irmã Deirdre.

 

Didier Thibaut voltou-se para o criado, atraído pelo barulho do carro, deu-lhe as suas ordens e ficou à espera. O rapaz dirigiu-se ao automóvel e, do banco do fundo, tirou uma maleta e diversos embrulhos.

 

Deixa aqui os embrulhos ordenou Didier, designando uma das mesas do jardim. Quanto à maleta, leva-a para o meu quarto.

 

Só então se instalou numa das cadeiras e, pegando em dois dos volumes, pô-los no regaço da cunhada. Eram duas caixas de dimensões diferentes.

 

Bombons, Maud, e também um perfume novo, que é, segundo dizem, maravilhoso. Chama-se Floresta Virgem. É um misto do aroma dos pinheiros, âmbar, musgo húmido, canela e essência de limão.

 

A doente agradeceu-lhe. Estava habituada a estas atenções, que, de resto, se estendiam às outras senhoras da casa. Sempre que Didier regressava de uma viagem e isso acontecia frequentes vezes assumia o papel de Pai Natal.

 

O rapaz sorria e no seu rosto não havia o mais leve indício de fadiga. Apenas a leve poeira do fato revelava o demorado passeio. Notando-o, o recém-chegado pediu desculpa e levantou-se.

 

Vou mudar de fato e tomar um duche, Maud.

 

Ela olhou-o com espanto. O cunhado não manifestara as suas impressões sobre a espantosa notícia.

 

Revelei-lhe a chegada da nossa irmã Prieuré. E é tudo quanto tem para me dizer?

 

Didier começou a rir.

 

Ora vamos, Maud. Que impressão pode causar-me a chegada de uma barrinha de oiro?... Parece-me que a Maud está mais impressionada do que eu.

 

Deirdre é mais alguma coisa do que uma barrinha de oiro. É muito bonita e, o que é mais, muito boa.

 

Ainda bem, ainda bem!... Só desejo acreditá-la, creia.

 

Acendeu um cigarro e perguntou com indiferença:

 

Mademoiselle Morgan conta demorar-se muito tempo connosco ou está aqui apenas de passagem?

 

A pergunta magoou Maud.

 

Ainda ninguém se lembrou de lho perguntar retorquiu secamente-Mas, se tem muito empenho em saber, pergunte-lho você.

 

Deus me livre! Triste opinião lhe daria da cortesia e da urbanidade francesa, que todos elogiam a torto e a direito, mas nem sempre com razão. Não. Prefiro pedir-lhe que aceite...

 

Agarrou num dos embrulhos poisados em cima da mesa.

 

Este frasco de perfume que trazia para a Rosamunda. Mas como lhe trago também este lenço bordado, nãoficará mal disposta, por certo, se oferecer o perfume a Deirdre. Talvez a barrinha de oiro o considere uma insignificância, mas, pelo menos, mostro-me amável. Que diz a isto, Maud?

 

A enferma concordou com a cabeça. Estava habituada à jovialidade do cunhado e era ele o único membro da família cuja companhia lhe agradava.

 

Depois de ter ainda trocado com Maud algumas palavras sem importância, Didier afastou-se, dirigindo-se a casa. Entrou, atravessou o hall e empurrou a porta da saleta onde, habitualmente, estava madame de Rollan.

 

Com efeito, a dona da casa encontrava-se ali, sentada diante de uma secretária, consultando diversos processos e tomando notas. Quando viu o neto, interrompeu o trabalho e estendeu-lhe a mão, em cujo anular brilhava linda ametista rodeada de diamantes.

 

Fez boa viagem, Didier?

 

Excelente, do ponto de vista da viagem, mas... Beijou a mão que a avó lhe estendia e logo a abandonou.

 

Esboçando um gesto de espanto, esta continuou:

 

Isso quer dizer que não chegou a acordo com os nossos concorrentes? Parece-me que as bases sobre as quais ia discutir eram vantajosas e que essa gente devia mostrar-se razoável.

 

Aparentemente, mostrou. De resto, nada está ganho ou perdido, definitivamente. Villiers verá se as propostas que trago comigo são aceitáveis.

 

E designava a pasta que poisara em cima da secretária.

 

Passei pela fábrica antes de vir para aqui continuou e falei com o João Lucas. Virá jantar connosco e depois falaremos de negócios.

 

Madame de Rollan abanou a cabeça com ar aprovador. Tinha, naquela tarde, um ar mais majestoso do que nunca, com o vestido de seda preta e tríplice colar de pérolas em volta do pescoço, os cabelos brancos penteados ao alto. Mas nem a fisionomia calma nem os olhos claros exprimiam a serenidade habitual e Didier não deixou de o notar. Esperou ainda algum tempo, contando ouvir outras palavras, mas como madame de Rollan continuasse calada, murmurou: - A Maud acaba de me dar uma notícia muito estranha, avó.

 

A idosa senhora ergueu a cabeça, que encostara à mão e procurou o olhar do neto.

 

É verdade. Deirdre caiu-nos do céu, há dois dias e ainda aqui está.

 

Teriam estas palavras sentido diferente do que pareciam e seria normal atribuir-se-lhes?... Em todo o caso, seguiu-se prolongado silêncio.

 

Depois, Didier repetiu a pergunta que pouco antes fizera à cunhada:

 

Demorar-se-á muito tempo? Madame de Rollan encolheu os ombros.

 

Sabe-se lá!

 

Supõe que mademoiselle Morgan, durante a sua permanência aqui, pense em...

 

Com um gesto brusco, ela interrompeu-o:

 

Não suponho coisa alguma, Didier. Espero. Quanto a si acrescentou não deve aparecer nesse estado. Vá preparar-se para o jantar. Tem tempo afirmou, consultando o relógio antigo e valioso que trazia preso ao peito. São sete horas e nós só jantamos às oito. Rosamunda saiu de automóvel e não deve voltar mais cedo.

 

E foi, justamente, ao jantar que Deirdre conheceu o cunhado. Estava sentado à esquerda de madame de Rollan e ela, Deirdre, à direita. Embora esta disposição dificultasse uma conversa entre os dois, não deixou de apreciar-lhe o espírito, a alegria e a conversa fácil e interessante. Irene morrera havia bastante tempo mais de seis anos para que o viúvo se mostrasse inconsolável. Esse papel não condiziria com o seu físico de desportista, com a vida, entusiasmo e exuberância, com a força expansiva que dele emanava.

 

Durante a refeição, o lugar entre Rosamunda e Maud ficou desocupado. Era o lugar destinado a João Lucas Villiers, o director da fábrica. Tinham esperado que aparecesse até ao momento em que ele próprio telefonou a madame de Rollan para avisar de que não podia abandonar a fábrica e só depois do jantar iria ao Prieuré.

 

Elsa estava sentada no fim da mesa. Este voluntário desprezo, visando a sua amiga, tinha irritado Deirdre, logo no primeiro dia, pois estava habituada a vê-la ocupar o lugar da mãe. Um sorriso e um gesto discreto de Elsa conseguiram atalhar as manifestações de contrariedade prestes a brotarem-lhe dos lábios.

 

Naquela tarde, porém, a gentil americana preocupava-se menos com a sua velha amiga do que com os outros convivas. Didier Thibaut, conversador brilhante, dava à conversa geral uma animação desusada, madame de Rollan conservava a sua calma habitual, supremamente distinta em todas as suas palavras e gestos. Mas as duas irmãs mostravam-se diferentes, não eram as mesmas, pelo menos era esta a impressão de Deirdre. E não podia deixar de as observar constantemente.

 

Rosamunda regressara tarde do seu passeio de automóvel e mostrara-se impaciente por ser obrigada a esperar, para se sentar à mesa, o convidado que não se decidia a aparecer. Quando, pelo telefone, este apresentou desculpas, tomou uma expressão irritada e sombria. Essa expressão não se modificou durante todo o jantar e quando ele terminava e já era tempo de esquecer o incidente, a fisionomia continuava carregada com nuvens de tempestade.

 

Maud também estava mais pálida do que habitualmente e mais nervosa. O mais simples ruído, o ranger de uma porta ao abrir-se, os passos, contudo discretos, do criado andando em volta da mesa, tudo a fazia estremecer. E Deirdre via então os seus dedos contrairem-se no cabo da faca, no pé do copo ou no bocadinho de pão que levava à boca.

 

Foi ela quem ajudou a irmã a levantar-se da mesa e a levou para a sala. As lâmpadas ainda não estavam acesas, mas o terraço começava a ser invadido pelas sombras da noite. Pelas duas portas envidraçadas, abertas de par em par, todos os perfumes primaveris entravam no aposento, banhando-o e criando um ambiente suave, profundamente calmo.

 

Do parque subia o cantar de um grilo. Todos os hóspedes alados que, durante o dia, saltitavam nas trepadeiras que revestiam as paredes, já tinham recolhido aos ninhos.

 

Deirdre instalou Maud numa poltrona, pôs-lhe as muletas ao alcance da mão e depois dirigiu-se a uma das portas e saiu para o terraço. Mas, quase logo, parou, admirada. De pé, com as costas voltadas para a casa, um homem parecia absorvido na contemplação do parque. Devia encontrar-se ali aguardando que os convivas do Prieuré saíssem da mesa, pois tinha entre os dedos um cigarro quase consumido.

 

Ao ouvir os passos de Dairdre voltou-se e esta reconheceu as feições correctas, quase duras, e o olhar firme que a acolhera, ou, para melhor dizer, a repelira no dia da chegada. Havia, no entanto, uma diferença. O rapaz que se encontrava no terraço, a poucos passos, não envergava fato de macaco como um operário. Trajava fato escuro e de excelente corte.

 

Rosamunda seguiu a irmã e, como ela, viu o visitante.

 

Finalmente, apareceu, João Lucas! exclamou com ironia Tem a certeza de poder dispensar-nos alguns minutos sem faltar a uma entrevista importante, deixar de realizar um trabalho sério, tratar de um assunto grave ou estudar um projecto cuja execução não admite demoras?

 

Tudo isto foi dito em tom irónico e mordaz. Mas o rapaz não pareceu impressionado. Deu alguns passos para Rosamunda e declarou tranquilamente:

 

Se qualquer assunto, negócio ou entrevista me tivessem privado do prazer de a ver esta noite, tê-la-ia avisado pelo telefone, como sempre o faço, Rosamunda.

 

Rosamunda sorriu e, caso estranho, este sorriso, embora lhe animasse o semblante, não o iluminou.

 

Enquanto o rapaz falava com a irmã, Deirdre, tendo ficado um pouco atrás, examinava-o. Era alto, forte, muito mais do que lhe parecera a primeira vez que o vira. A largura dos ombros dava-lhe um ar pesado, que, embora não se aproximasse da silhueta ideal exigida pelas leis da moda, não deixava de ser elegante. João Lucas Villiers lembrava um desses martelos pesadíssimos ou qualquer das poderosas máquinas que dirigia. A máscara enérgica, os cabelos negros e os olhos azuis escuros mais acentuavam essa impressão de força que, ao primeiro olhar, dava a quem o visse.

 

Naquele momento conversava com Rosamunda e parecia prestar-lhe toda a sua atenção. Contudo, um observador perspicaz, enquanto a conversa se prolongava, teria notado nele certos indícios de impaciência.

 

Por fim, voltou-se ligeiramente, como para lembrar a Rosamunda a presença de Deirdre.

 

Ainda não conhece a minha irmã, é verdade disse a mais velha, dando alguns passos para os apresentar um ao outro.

 

Por momentos, a Americana perguntou a si própria se João Lucas Villiers iria evocar o primeiro encontro, nas dependências da fábrica. Não o fez e ela, imitando-o, depois de ter hesitado ligeiramente, limitou-se as palavras banais exigidas pelas circunstâncias.

 

Villiers entrou na sala para cumprimentar madame de Rollan e Maud. Deirdre seguiu-o, com receio de que ”esquecessem” Elsa, e, depois de ter apresentado a sua velha amiga, voltou para junto da doente, de quem raramente se afastava.

 

Esta, porém, não lhe prestou atenção. Semicerrara as pálpebras, mas, no entanto, Deirdre teve a certeza de que o seu olhar fixava o grupo formado por Rosamunda e João Lucas, que se tinham reunido de novo.

 

Das faces sempre pálidas de Maud, o sangue parecia ter fugido por completo. E essa lividez inquietou Deirdre por tal forma que, curvando-se para a irmã, perguntou-lhe:

 

Que tens, Maud?... Estás doente?

 

A enferma estremeceu e, no mesmo instante, as faces ruborizaram-se-lhe. Voltou-se para Deirdre e, com um gesto da cabeça, designou-lhe os dois.

 

Embora estivessem muito afastados para poder ouvir-se o que diziam, adivinhava-se facilmente o sentido da conversa.

 

A Rosamunda é odiosa! murmurou Maud, fixando a irmã com olhar rancoroso. Não se cansa de esmagar o João Lucas com ásperas censuras, só por ele não ter aparecido à hora exacta. É sempre assim...

 

E na voz, habitualmente meiga, vibrava uma nota de raiva concentrada, quase de ódio.

 

Deirdre ficou estupefacta. Todavia, afastou a suspeita que acabava de lhe aflorar a mente e disse:

 

Em minha opinião, Rosamunda devia, pelo contrário, mostrar-se grata a um director tão dedicado ao trabalho, tão cumpridor dos seus deveres. De resto, se Didier admite estes atrasos e aceita as desculpas, com que direito Rosamunda...

 

O olhar que Maud ergueu para a irmã atalhou o resto da frase.

 

É verdade, tu não sabes murmurou.

 

E nessa voz, cujas inesperadas inflexões surpreendiam Deirdre, explicou:

 

João Lucas e Rosamunda estão noivos há muitos anos.

 

Félix, o criado de mesa, entrou com o café e foi acender as luzes. Rosamunda aproximou-se da mesa onde estavam dispostas as chávenas. Didier Thibaut e o director sairam para o terraço e estenderam-se em duas cadeiras de repouso. Mas não tiveram tempo para abordar os assuntos que os interessavam. O criado reapareceu para dizer ao industrial que ’o chamavam ao telefone. Pela primeira vez, nessa noite, ligeiro sorriso perpassou nos lábios de Maud.

 

Telefonema de Paris murmurou ao ouvido da irmã. Estamos na hora habitual. E a conversa vai demorar.

 

Deirdre levantou-se e foi buscar a chávena de café que a irmã lhe pediu. Rosamunda, aproveitando o auxílio, limitou-se a enchê-las, deixando a Deirdre o cuidado de as destribuir. A irmã ainda pensou que abrisse excepção para Villiers, mas em breve se desenganou. Poisando a pesada cafeteira de prata, Rosamunda afastou-se da mesa e foi instalar-se numa poltrona, onde se acomodou.

 

Deirdre dirigiu-se para o terraço. Como parasse diante de João Lucas, com a chávena de café, este levantou a cabeça.

 

Desejo apresentar-lhe as minhas desculpas disse, depois de aceitar a chávena e agradecer. Fui eu quem, há dias, lhe recusei a entrada na fábrica.

 

Deirdre não deixou adivinhar a surpresa causada por esta frase.

 

Já o tinha reconhecido limitou-se a dizer. O rapaz, ignorando a frieza da resposta, continuou, enquanto mexia o café:

 

São ordens de carácter geral que podem parecer...

 

Disparatadas interrompeu Deirdre.

 

Sim, talvez disparatadas, mas às quais se impõe obedecer, como fiz.

 

O rapaz estava de pé e a Americana pensou tanto em mandá-lo sentar como em sentar-se também.

 

Uma pergunta apenas. Madame de Rollan pode entrar e sair da fábrica quando lhe apetece?

 

Pois decerto.

 

E minhas irmãs... o meu cunhado?

 

Também.

 

Nesse caso, a proibição diz-me unicamente respeito?

 

Diz respeito a qualquer pessoa estranha à fábrica.

 

Uma onda de cólera ferveu no peito de Deirdre.

 

Os meus direitos são iguais aos dos outros habitantes do Prieuré. Sou filha de Cristina Chavanes, tanto como Rosamunda e Maud afirmou em voz áspera.

 

Como resposta, João Lucas fez um gesto evasivo.

 

Essa indiferença levou ao auge a irritação de Deirdre, que teve, no entanto, a calma suficiente para saber dominá-la.

 

Sente-se, senhor Villiers pediu, designando-lhe uma das cadeiras. Penso que será conveniente esclarecer certos pontos, a fim de evitar, entre nós, desagradáveis mal-entendidos.

 

Sem manifestar a mais pequena surpresa, João Lucas obedeceu. Deirdre, por sua vez, instalou-se na cadeira que Didier abandonara pouco antes e, durante algum tempo, conservou-se calada, com o olhar perdido nas profundidades do parque.

 

A parte do terraço que ficava diante das janelas da sala recebia delas fraca claridade. Mas as duas cadeiras estavam instaladas mais longe, na zona mais escura, de forma que os dois não podiam ver distintamente a cara um do outro.

 

Como parece ignorá-lo, senhor Villiers, volto a dizer-lhe que os meus direitos na fábrica são iguais aos de minhas irmãs começou Deirdre, decorridos alguns instantes. Talvez mesmo superiores, pelas razões que em breve lhe explicarei.

 

Como Villiers não manifestasse espanto ou admiração, continuou:

 

Quando minha mãe abandonou a família e a pátria, não renunciou à parte da sua fortuna que pertencesse aos filhos nascidos do segundo casamento. Em consequência, a sua parte na fábrica, se pertence hoje a Irene, a Rosamunda e a Maud Chavanes, também me pertence. Tenho, na fábrica, os mesmos direitos que as minhas duas irmãs ainda vivas e do que o meu cunhado.

 

Se tivessem, antes da sua chegada a França, afirmado a Deirdre que ela, a herdeira das fábricas de aço Morgan, reivindicaria os seus direitos e a sua parte numa pequena fábrica francesa, não deixaria de rir. Mas, naquele momento, não tinha vontade de rir, não. Uma espécie de raiva concentrada levava-a a defrontar aquele homem rude que parecia tão senhor de si, que a tratava como a mais insignificante e desprezível das criaturas.

 

Com efeito, ignorava todos esses... pormenores respondeu a voz calma de João Lucas.

 

E, com certeza, ignorava também as importantes remessas de fundos que meu pai investiu na fábrica?

 

Dessa vez, Deirdre pressentiu o espanto do rapaz, conquanto ele não o tivesse manifestado. Não via nitidamente o rosto de João Lucas, mas adivinhou que ele a fixava.

 

A sua direcção, na fábrica, limita-se à parte técnica, não é verdade?

 

Não, em princípio tudo me passa pelas mãos e não devo ignorar coisa alguma.

 

Nesse caso, teremos de admitir que a tarefa ultrapassou as suas possibilidades.

 

O tom foi quase irónico e João Lucas não conseguiu evitar um estremecimento. Teve de fazer enorme esforço para se dominar e replicou, com ironia também:

 

Finalmente, onde pretende chegar?... Já que deseja provar-me que tem tanto direito como suas irmãs a entrar na fábrica. Se é isso, estou perfeitamente de acordo consigo, mademoiselle.

 

O comentário desagradou a Deirdre, que atalhou:

 

Não é só isso, senhor Villiers. Não deixarei de me utilizar das facilidades que me concede, mas gostaria também de lhe pedir que me deixasse...

 

Villiers compreendeu antes que ela terminasse.

 

Deseja pedir contas da sua parte na fábrica? inquiriu em voz dura.

 

É isso mesmo.

 

Deirdre de novo ficou surpreendida com as suas próprias palavras, com as suas exigências. A força desconhecida que, durante a conversa com João Lucas, a impelia, era desconcertante, inesperada e tanto mais para temer por não saber a que motivo atribuí-la.

 

Quero preveni-la de que o exame e as verificações que deseja não serão muito agradáveis. Não ignora, com certeza, que a indústria francesa atravessa uma crise tremenda e o momento não é o mais favorável para...

 

Lamento atalhou Deirdre mas, por muito inoportuna que seja a ocasião, não tenho outra. Devo aproveitar a minha passagem por França e a minha visita ao Prieuré.

 

Para indicar que a conversa tinha terminado, levantou-se. Villiers imitou-a e inclinou-se ligeiramente.

 

Estou à sua disposição, mademoiselle. Pode procurar-me no pavilhão, cujo caminho já conhece muito bem. Encontrar-me-á quase todas as tardes, visto não só habitar ali, como, além dos meus aposentos, estar também instalado no pavilhão o laboratório da fábrica. Todavia, para lhe evitar uma visita inútil pois casualmente, poderei encontrar-me na fábrica será conveniente telefonar-me primeiro.

 

Deirdre inclinou a cabeça em sinal de aquiescência. Nessa ocasião, o vulto de Didier Thibaut desenhou-se na porta da sala. O industrial não manifestou espanto ao ver Deirdre a conversar com Villiers. E, enquanto a cunhada regressava à sala, reocupou o seu lugar.

 

Deirdre não se demorou muito tempo. Decorridos instantes, Maud manifestou o desejo de retirar-se e, a pretexto de a acompanhar ao quarto, saiu também.

 

A chegada de Deirdre modificou para melhor a vida de Maud. Antes, a doente estava quase sempre sozinha, entregue aos cuidados de uma criada de quarto ou dos criados do Prieuré. Agora, Deirdre ou Elsa estavam constantemente junto dela.

 

Desde o primeiro instante, as duas recém-chegadas se esforçaram por acabar com o abandono da doente, por modificar a vida de tristeza que era a sua, junto da avó e da irmã. Às vezes, Deirdre levava-a no lindo automóvel branco, estofado de pele azul e davam grandes passeios através dos belos campos da Ilha de França que Deirdre desconhecia e a encantavam.

 

Elsa acompanhava-as quase sempre. À tarde paravam em qualquer hospedaria rústica ou café, onde merendavam. Deirdre descia, entrava no estabelecimento e trazia à irmã, muito fatigada para sair do carro, um copo de cerveja fresca e espumosa ou então do delicioso vinho da região. E os garotos, apinhados em volta do esplêndido carro, afastavam-se a custo, quando a condutora se dispunha a partir.

 

Nunca, durante estes passeios ou em qualquer altura em que Deirdre e Maud se encontrassem sozinhas, se referiam a Rosamunda, porque a Americana não tivera dificuldade em adivinhar que entre as duas irmãs pouca intimidade existia.

 

O nome de madame de Rollan poucas vezes, também, era proferido. Mas o assunto sempre evitado era o casamento de Rosamunda. Deirdre, adivinhando a causa deste silêncio, nunca manifestava curiosidade ou fazia perguntas.

 

E sentiria ela, de facto, curiosidade a esse respeito? Não, não a sentia. Quando evocava os dois noivos, tal como os tinha visto na primeira visita de João Lucas e duas ou três vezes depois, os sentimentos que experimentava eram de desdém e espanto. Espanto ao admitir que dois entes tão diferentes assim os considerava pudessem pensar em confundir as suas vidas. Desprezo por ver naquele casamento uma combinação industrial, uma espécie de negócio e nada mais.

 

Mas evitava revelar a Maud as suas impressões. Fê-lo uma vez e ainda não tinha esquecido o olhar hostil que a fixara, as respostas bruscas cujo laconismo não permitia insistências.

 

Este incidente fora o único a projectar pequena nuvem, logo dissipada, nas relações das duas irmãs. Mas enquanto Deirdre o recordava de vez em quando, nada indicava que Maud não o tivesse esquecido completamente.

 

Naquela tarde de domingo coisa alguma parecia perturbar a alegria da enferma. Essa alegria lia-se-lhe no rosto, reflectia-se nos olhos brilhantes quando, sentada no automóvel ao lado de Deirdre, contemplava a paisagem cheia de sol.

 

As duas raparigas iam sós. Elsa, sofrendo de terrível enxaqueca, recusara-se a acompanhá-las. Quanto a madame de Rollan, tinha um medo horrível, afirmava, quando entrava numa dessas máquinas modernas, quer fosse o automóvel de corridas do neto ou o belo carro americano de Deirdre. Nessas condições, o passeio não a tentava. Thibaut partira na antevéspera para a capital não por causa de negócios, dessa vez e Rosamunda, com os modos livres que a caracterizavam, tinha ido almoçar com o noivo ao pavilhão.

 

Maud parecia felicíssima com a tarde passada junto da irmã. A velocidade da corrida dava-lhe às faces um tom mais vivo e acabou por despenteá-la, facto que pouco lhe importava. Contentou-se em fechar o casaco de fazenda branca a fim de se defender do vento que entrava pelos vidros corridos e deixava-se embalar pelo baloiçar suave das molas e pelo ruído sempre igual do motor.

 

Quanto a Deirdre, não levava casaco de abafar nem o mais simples, agasalho. Com o vestido branco, sem mangas, deixando a descoberto os braços crestados pelo sol, os lindos cabelos fulvos apertados num lenço lilás, óculos escuros, dir-se-ia, ao volante do carro, a própria encarnação da mocidade e da saúde.

 

As duas raparigas tinham saído do Prieuré logo depois do almoço e a tarde ainda ia em meio. No entanto, o aspecto de gracioso albergue convidou-as a adiantarem um pouco a hora da merenda. Pararam diante do pórtico florido por cima do qual baloiçava engraçada tabuleta. Deirdre auxiliou Maud a sair do carro e foram ambas instalar-se numa das mesas da sala grande, junto da larga janela que dava para o jardim.

 

Deirdre pediu chá, leite e os bolos que a irmã preferia. A sala rústica, com as paredes claras, guarnecidas com pratos de faiança colorida, cortinas de quadrados de cor vistosa, vigas a descoberto, aparentemente encontrava-se sem ninguém. Mas fora, no jardim, também havia mesas e algumas delas estavam ocupadas.

 

De súbito, Maud apertou convulsivamente o braço da irmã e murmurou:

 

Está ali a Rosamunda.

 

Deirdre fitou-a com espanto. Sendo uma pessoa perfeitamente equilibrada, ainda não estava habituada ao nervosismo da irmã, à sua excessiva sensibilidade. Voltou-se para o jardim e, através da parede envidraçada, não teve dificuldade em reconhecer o casal mais próximo, embora estivessem ambos de costas.

 

Rosamunda estava sentada ao lado de João Lucas. Conquanto não lhes visse o rosto, adivinhava-se que estavam sorridentes e bem dispostos. Excepcionalmente, Rosamunda devia ter esquecido as suas exigências e censuras e entre os dois noivos parecia reinar o mais perfeito acordo. O braço de Villiers, poisado, num gesto de ternura, nas costas da cadeira ocupada pela companheira, parecia aproximá-los mais ainda.

 

Depois de breve e silencioso exame, Deirdre voltou-se para a irmã.

 

Não podem ver-nos disse Logo que tomarmos o nosso chá, poderemos retirar-nos sem lhes despertar a atenção.

 

Maud encolheu os ombros. Conseguira dominar-se e mostrava-se completamente calma.

 

A Rosamunda não deve ficar muito contrariada com o encontro.

 

- Mas...

 

Pela primeira vez, a doente exprimiu todo o seu pensamento.

 

Tenho a certeza de que se aborrece quando está só com o João Lucas.

 

E como Deirdre a olhasse com espanto, concluiu:

 

Nunca encontrei dois entes tão diferentes um do outro.

 

Deirdre já o tinha notado.

 

No entanto concluiu amam-se e vão casar. O olhar de Maud, que ainda não se desviara do casal, ensombrou-se.

 

Amam-se... será afirmar muito. Mas existe tanta coisa que os aproxima... A fábrica...

 

Deirdre interrompeu-a.

 

É isso, a fábrica!... O director pobre, mas cheio de qualidades e mérito, que casa com a herdeira rica... O caso é frequente.

 

O semblante da doente contraiu-se.

 

Seria natural replicou em voz trémula se certos pormenores não falassem a favor de João Lucas.

 

Quais são?

 

Este, por exemplo. Casa com Rosamunda, mas sem dote, sem a mais pequena vantagem material,, visto todos os capitais de que dispomos estarem comprometidos na fábrica.

 

Fez a declaração com ar triunfante, como se, pessoalmente, se orgulhasse com a conduta do rapaz naquelas circustâncias.

 

Deirdre não lhe respondeu. Descobrira, enfim, a natureza dos sentimentos que a pobre enferma experimentava por aquele que, em breve, seria seu cunhado. Ao mesmo tempo, avaliava quanta felicidade lhe proporcionava a certeza do perfeito desinteresse do homem amado.

 

Sem poder adivinhar os pensamentos de Deirdre, a irmã continuou a falar. Referiu-se a João Lucas e tudo, na sua atitude, na comoção revelada, tudo gritava o seu amor, cuja impetuosidade Deirdre, profundamente espantada, podia verificar.

 

João Lucas adora a fábrica, dizia. Pode dizer-se que nasceu ali porque ainda era muito pequeno quando a mãe se instalou no pavilhão com ele e com o Francisco.

 

Francisco Villiers? - inquiriu Deirdre, a quem o nome acordava vagas reminiscências.

 

Sim. Foi, há vinte anos, director da fábrica e a sua trágica morte deixou a avó a braços com grandes dificuldades. Nessa altura, o João Lucas tinha apenas dez anos, porque entre os dois irmãos havia grande diferença de idade. Todavia, nunca esqueceu o irmão nem as suas últimas palavras, pedindo-lhe para continuar a sua obra. A mãe morreu pouco depois, deixando-o sozinho com a velha criada, que o educou e ainda vive com ele. Estudou com afinco e tirou o curso de engenheiro de minas. Logo que o concluiu, veio ocupar na fábrica o lugar do irmão e instalou-se no pavilhão.

 

Calou-se durante breves instantes. Depois, numa voz diferente, surda e entrecortada, continuou:

 

Foi então que a Rosamunda entrou em cena. É bonita, inteligente, fascinante e, com os seus ares indolentes, sabe sempre alcançar o que pretende. Neste caso, o que pretendia, com todo o seu empenho, era casar com João Lucas.

 

Gostava então muito dele?

 

Não, mas o posto de director da fábrica, em sua opinião, devia trazer-lhe grandes vantagens e dar-lhe tudo quanto a sua ambição sonhava. Sim, porque a Rosamunda tem um único alvo na vida: o dinheiro, que lhe permitirá realizar as suas ambições.

 

Para ocultar o seu doloroso espanto, Deirdre abriu a malinha de mão e tirou um cigarro, que acendeu.

 

A acusação de Rosamunda, feita pela própria irmã, tornava-se-lhe bastante dolorosa, mas, no entanto, acreditava plenamente no que lhe dizia Maud, porque tudo quanto tinha descoberto no carácter da outra roubara-lhe todas as ilusões a seu respeito.

 

E... ele? interrogou.

 

Maud não lhe respondeu logo. Desviara a vista do casal sentado no jardim e, vagarosamente, bebia o chá.

 

Ele? disse por fim, como se procurasse as palavras e até definir as suas impressões. Ele deixou-se prender na rede de sedução que ela lhe estendia e amou-a sinceramente... Era novo, vivia sozinho, todas as suas horas eram ocupadas pelo trabalho e pelo estudo e aspirava às doçuras do lar. Simplesmente, esse lar ainda está muito longe de ser constituído.

 

Mais uma vez, Deirdre notou a inflexão estranha, ao mesmo tempo dolorosa e triunfante, reveladora da dualidade de sentimentos que se debatiam no coração de Maud.

 

Não compreendo bem murmurou Deirdre Por que motivo não se realiza um casamento que é desejado pelos dois?

 

Porquê?...

 

Com um riso sarcástico e breve, Maud explicou:

 

Porque o tempo foi passando, dando margem a reflexões e hesitações... porque Rosamunda se habituou à vida requintada e luxuosa do Prieuré e olha para o pavilhão com profunda apreensão. A vida que, segundo supõe, irá ser a sua, junto de um homem cujos dias e muitas vezes as noites são consagrados ao trabalho, essa vida aterra-a; porque chegou à conclusão de que nenhuma das suas ambições: vida movimentada e brilhante, recepções que darão brado, influência política, coisa alguma será realizado por João Lucas, cujas ideias são muito diferentes... Porque... porque... Quantos motivos encontraríamos se nos debruçássemos no pensamento de Rosamunda! Motivos de sobra para explicar a razão por que o anel de noivado ainda não lhe brilha no dedo!

 

Calou-se. Deirdre chamou a criada que passava e pediu-lhe a conta. Rapidamente, Maud bebeu o resto do chá, já frio, e poisou no prato o bolo encetado. Estava ansiosa por se afastar dos dois noivos, a respeito de quem havia falado por tanto tempo. Aquele braço passado pelas costas da cadeira de Rosamunda, os ombros largos quase encostados aos dela, causavam-lhe uma impressão dolorosa.

 

De súbito, porém, aconteceu o que seria de esperar.

 

Enquanto Deirdre guardava o troco na mala, João Lucas e Rosamunda levantaram-se e atravessaram a sala, dirigindo-se para a porta.

 

O primeiro a ver as duas irmãs foi João Lucas, e Deirdre não deixou de notar o involuntário movimento de recuo. Depois dominou-se e, com o semblante carregado, dirigiu-se para elas.

 

Rosamunda seguia-o. O inesperado encontro parecia agradar-lhe. Deirdre compreendeu a razão quando a irmã se referiu à desastrosa avaria que, uma hora antes, imobilizara o carro do engenheiro.

 

Se o garagista não conseguir arranjar a peça para substituição, regressaremos no carro de Deirdre, não é verdade, João Lucas?

 

A leve crispação das feições de Deirdre devia ter revelado a sua contrariedade, porque, friamente, o rapaz respondeu:

 

Ainda não pediu a opinião de mademoiselle Morgan...

 

Essa opinião não pode deixar de ser favorável à minha ideia, com certeza afirmou Rosamunda com irresistível sorriso.

 

Ninguém contrariou esta excelente opinião sobre a complacência de Deirdre. Em consequência, pouco depois, o automóvel branco tomava o caminho do Prieuré, sobrecarregado com mais dois ocupantes.

 

Rosamunda e Maud tinham insistido com João Lucas para se sentar ao lado de Deirdre, afirmando que a condução daquela máquina ultra-moderna e o impressionante manejo das alavancas e botões deviam interessá-lo. Contudo, Deirdre teve a impressão de que o rapaz prestava tanta atenção ao automóvel como à sua condutora. Sentado na ponta do banco, com o olhar fixo na estrada, o rosto impenetrável, não fez a mais pequena pergunta, conservando-se calado até chegarem a casa.

 

Quando o automóvel parou diante da escadaria, foi o primeiro a abandonar o seu lugar e a auxiliar Maud a sair.

 

Por sua vez, Rosamunda abandonou o carro. A mão pequena e bem tratada acariciou, de passagem, a pele azul e macia do estofo, o manípulo cromado da porta. Depois disse:

 

Eis um carro como devemos ter depois de casados, João Lucas.

 

O engenheiro voltou-se. Erguera Maud nos braços e, para lhe evitar a fadiga, levou-a assim até à cadeira do terraço.

 

É um sonho a que tem de renunciar, Rosamunda declarou com calma.

 

A noiva tomou um ar duro, mas Deirdre atalhou logo:

 

Se me deres licença, o meu presente de núpcias será um carro como este, Rosamunda.

 

Mesmo antes de ter concluído a frase, o seu olhar encontrou as pupilas cintilantes de Villiers, que mordia violentamente os lábios, como se quisesse com isso reprimir as palavras que ia proferir. Por fim, voltou-se para a noiva.

 

Conto com o seu bom senso para não aceitar um presente que lhe daria uma aparência muito superior à sua posição disse com firmeza.

 

O tom foi tão brusco que as três raparigas ficaram estupefactas. Rosamunda corou e replicou com dureza:

 

Agradeço-lhe a lição de humildade. Comove de calcular, quando chegar a ocasião, reservar-me-ei o direito de a seguir ou não, conforme entender.

 

É naturalconcordou o engenheiro, com marcada ironia.

 

Era o máximo que a noiva podia suportar. Com modos bruscos, agarrou na manta de seda que abandonara nas costas da cadeira.

 

Desculpe, João Lucas, mas não estou com disposição para suportar repreensões e conselhos. Encontrar-nos-emos à hora do jantar, se quiser ter a amabilidade de jantar hoje connosco.

 

Lamento, mas não posso.

 

Então boa tarde.

 

Boa tarde, Rosamunda.

 

Sem se voltar, a rapariga atravessou o terraço e entrou em casa.

 

O mais profundo silêncio se seguiu ao bater da porta, silêncio que se prolongou durante alguns momentos. João Lucas tinha acendido um cigarro e, com olhar distraído, seguia as espirais de fumo que se elevavam nos ares. Com os dedos trémulos, Maud fazia girar a pulseira de oiro em volta do braço. Quanto a Deirdre, imobilizada pelo espanto, não pensava em tomar atitudes.

 

Toldava-lhe o cérebro uma onda de cólera que em vão tentava sufocar. A brutalidade do engenheiro indignava-a, tanto mais por pressentir que a visava ainda mais do que a Rosamunda.

 

João Lucas atirou com o cigarro e, dirigindo-se a Maud, perguntou:

 

Quer ficar aqui ou deseja que a leve para casa?

 

A enferma agradeceu-lhe com olhar reconhecido.

 

Estou bem assim, João Lucas. Vai-se embora já?

 

Vou. Tenho de tomar providências para que me tragam amanhã o meu carro.

 

É pouca coisa.

 

Nunca tenho ”pouca coisa” a fazer, bem sabe replicou, sorrindo.

 

A força desconhecida que, dias antes, impelira Deirdre, novamente a impulsionou. Se na súbita resolução havia o intuito de represália ou o desejo de se medir com uma pessoa que acabava de a ofender profundamente, ela mesmo o ignorava. Durante toda a sua vida, tão simples e agradável, procedera sempre espontaneamente, para, naquele momento, poder analisar as suas reacções ou dominar os seus sentimentos antes de tomar uma decisão.

 

Deu alguns passos para o engenheiro e disse-lhe:

 

Se vai para casa, talvez possa ir consigo. O dia não será mal escolhido para falarmos de negócios.

 

Se João Lucas ficou surpreendido não o manifestou.

 

Como queira acedeu com indiferença.

 

E, voltando-se para Maud, cujo olhar exprimia espanto, explicou:

 

Mademoiselle Morgan deseja aproveitar a sua estadia em França para se ocupar dos seus interesses na fábrica.

 

Não há pressa protestou a doente Deirdre deve demorar-se por cá bastante tempo.

 

Não muito protestou a Americana, curvando-se para a irmã a fim de a beijar.

 

Depois, para evitar os protestos que pressentia, dirigiu-se para a escadaria, seguida por Villiers.

 

Como Deirdre abrisse a porta do carro, o engenheiro protestou: O pavilhão fica muito perto, mademoiselle Será desnecessário dar a volta pela estrada.

 

Calada, Deirdre afastou-se do automóvel e, lado a lado, os dois meteram pela alameda.

 

Mesmo naquele recanto do parque, cuidadosamente tratado pelos jardineiros, bem ordenado, sem fantasias, a Primavera se manifestava. Na relva espreitavam frágeis malmequeres. Por entre a massa sombria do buxo surgiam rebentos novos, de um verde tenro; a folhagem basta e escura alegrava-se com a nota mais viva das bagas rosadas dos castanheiros. No tanque, esverdeado pelo musgo, o jacto cristalino elevava-se, irisando-se de mil cores antes de recair numa chuva cantante. Mas essa voz doce não conseguia cobrir a dos insectos de asas doiradas que zumbiam em volta.

 

Ao fundo, no fim da alameda, era a aridez das construções e dos maquinismos... e das contas também, mas ali reinava uma calma e um sossego que enterneceram o coração de Deirdre.

 

Mas o olhar relanceado ao companheiro bastou para dissipar o encanto. Villiers caminhava com uma espécie de precipitação, como se a beleza do ambiente o deixasse indiferente e o seu rosto estava mais severo do que nunca e mais frio ainda do que durante o trajecto de automóvel, no regresso ao Prieuré.

 

Empurrada por ele, a portinha de ferro rangeu. Os dois entraram e dirigiram-se, ao pavilhão. Pararam diante de uma porta rasgada na fachada do lado norte e o engenheiro anunciou a sua presença, erguendo e deixando cair a aldrava de bronze.

 

A porta está sempre fechada por causa do laboratório explicou.

 

A pancada surda, que repercutiu longamente, não despertou a atenção de qualquer pessoa. Pelo menos, foi essa a impressão de Villiers. Deirdre, erguendo, por acaso, os olhos para o primeiro andar, viu aparecer numa das janelas e logo desaparecer o rosto de uma mulher de idade. Hesitou e acabou por renunciar a comunicar a sua descoberta a João Lucas.

 

Tenha a bondade de aguardar aqui um bocadinho pediu ele. A minha criada Amélia, provavelmente, está no jardim e não conta comigo a esta hora. Vou dar a volta à casa e entrarei pela porta de serviço. Peço-lhe alguns segundos de paciência. Não tardarei em vir abrir-lhe esta porta cuja chave tenho o deplorável costume de esquecer.

 

Deirdre pensou que a fiel Amélia tinha ouvido perfeitamente as pancadas dadas na porta pelo patrão, mas interpretou a má vontade como uma caturrice de velhota rabugenta e autoritária.

 

Quando João Lucas se afastou, olhou com curiosidade em volta de si. O pavilhão era, como adivinhara no dia em que o avistara de longe, uma construção simples, pelo menos no exterior, e, involuntariamente, pensou em Rosamunda, não conseguindo harmonizar a sua elegância com a sua futura habitação.

 

Os pensamentos que, por instantes, se voltavam para a irmã, ocuparam o espírito de Deirdre. Depois, admirada com a demora do engenheiro, deu alguns passos na direcção que ele havia tomado. Contornou a esquina da casa, mas, de súbito, parou, ouvindo vozes.

 

Essas vozes pareciam irritadas e saíam pelas janelas abertas de um aposento, situado do lado do jardim. Uma era a de João Lucas, a outra devia pertencer à pessoa cujo rosto Deirdre entrevira. Ambas soavam com violência.

 

Vamos ordenava o engenheiro acaba com isso e abre a porta. Não preciso de licença tua para receber quem me apetece.

 

Ela não... ela não! retorquia uma voz revoltada e ao mesmo tempo suplicante, a voz da mulher. Deve ser tão boa como os pais e vem trazer-nos desgraça, verá.

 

Devias ter vergonha, Amélia retorquiu o engenheiro por pensares e dizeres uma coisa dessas. A desgraça atinge-nos quando Deus quer e não por influência de alguém.

 

Já esqueceu que foi por causa de Cristina Morgan que seu irmão se matou?

 

As últimas palavras foram seguidas por profundo silêncio, durante o qual Deirdre, vacilante, procurou o apoio da parede.

 

Francisco foi vítima de um desastre de automóvel protestou João Lucas.

 

Um desastre acontece facilmente a um homem desesperado, para quem a vida se tornou um fardo. Como pode saber o que se passou, se tinha só dez anos? Não, não pode saber como o casamento e a partida daquela a quem considerava como sua noiva desesperaram o pobre rapaz.

 

Enganas-te, sei muito bem! afirmou João Lucas em voz surda.

 

Depois, reagindo, continuou:

 

Mas essas recordações do passado são ridículas, Amélia, principalmente quando alguém espera à porta. Mademoiselle Morgan já deve estar admirada com a demora. Vou...

 

Deirdre adivinhou que a criada tentava impedir o caminho ao patrão e as palavras que ouviu confirmaram a suspeita.

 

Não, não o fará! Ela não entrará nesta casa!

 

Há vinte anos o pai também veio aqui e o Francisco acolheu-o, abriu-lhe as portas do laboratório e da fábrica... e escusado será dizer-lhe o que aconteceu. Que vem ela fazer aqui?

 

Cala-te! ordenou João Lucas num tom tão imperioso que foi imediatamente obedecido.

 

Deirdre ouviu-o perfeitamente andar para cá e para lá no aposento, sem dúvida para acalmar a sua emoção. Depois falou, num tom enérgico, revelando uma vontade inabalável.

 

Proíbo-te, de uma vez para sempre, de aludires ao passado, de o evocar seja diante de quem for, mesmo diante de mim. O passado morreu. Ninguém poderá apagá-lo dos nossos corações, é certo, mas também não devemos recordá-lo nem misturá-lo com o presente. As culpas dos que morreram não são as dos entes colocados no nosso caminho pelo acaso. Deixemos dormir em paz aqueles que não pediram para serem vingados. Para afastar a má sorte e a desgraça que receias basta que os nossos corações não esqueçam e eu juro-te que o meu nunca esquecerá.

 

Ao proferir estas palavras, a voz do engenheiro era mais violenta e mais dura ainda.

 

Deirdre encostara-se à parede do pavilhão como se receasse cair.

 

Estava absolutamente imóvel, mas, no rosto lívido, os lábios tremiam convulsivamente. Embora não tivesse perdido uma única palavra da conversa, não conseguia descobrir o sentido de todas elas. Em compensação, tornava-se bem evidente que a criada a perseguia com o seu ódio, a ela e aos seus, ódio que, não obstante os seus protestos, o engenheiro devia partilhar.

 

Durante alguns minutos, que lhe pareceram séculos, Deirdre lutou contra o desfalecimento que ia prostrá-la. Receou desfalecer junto daquela parede.

 

Mas, pensando naquele que a encontraria desmaiada, conseguiu reagir.

 

De casa, chegou-lhe aos ouvidos o ruído de um passo pesado, martelando o mosaico; depois a voz de João Lucas dizendo:

 

Vês como é simples, minha pobre Amélia? Confessa que sou um pateta com as minhas súplicas quando esta porta e devia fazer um gesto designando a porta pela qual entrara em casa está aberta. Só desejava poupar as visitas a um caminho inútil ou não queria fazê-las entrar pela porta de serviço. Receio, no entanto, que a minha hospitalidade não seja bem compreendida, porque...

 

Deirdre não ouviu o resto da frase e compreendeu que João Lucas e a criada tinham abandonado o aposento. Num movimento rápido, conseguiu afastar-se da parede e, em poucos segundos, encontrar-se no sítio onde o engenheiro a tinha deixado.

 

Quase logo, a porta abriu-se e, na sombra do vestíbulo, o vulto de João Lucas desenhou-se. Na sua voz calma, o rapaz apresentou as suas desculpas e pediu-lhe para entrar.

 

A casa era simples, alegre e sem luxo. Móveis antigos e belos, brilhantes à força de cuidados, adornavam o vestíbulo, no qual pairava o cheiro acre da cera. Objectos de cobre adornavam as prateleiras. Ao longo da parede da escada, até ao primeiro andar, para onde o engenheiro conduziu a visitante, algumas estampas antigas: ramos de flores delicadas, pássaros de plumagem rutilante, em fundo negro.

 

O pavimento do aposento para onde Deirdre entrou era de mosaico vermelho, brilhante como um espelho, coberto com espessa alcatifa, o que dava ao ambiente uma nota de conforto. Cadeiras com fundo de palha, grande mesa-secretária, armários para arrumação de pastas, constituíam o mobiliário. Atrás da secretária, uma colcha de seda bordada ocultava o cofre metido na parede. Em cima do fogão, um busto o de Rosamunda rodeado por algumas fotografias. Pelas duas janelas abertas avistava-se o jardim, cheio de flores, e, nos parapeitos, vasos de barro vermelho com lindas plantas: cactos, aloés e agaves.

 

O aposento tinha um aspecto acolhedor, emanava de tudo uma tranquilidade feliz, uma paz profunda, serenidade completa. E, mais uma vez, Deirdre perguntou, de si para si, como poderia Rosamunda trocar a sua salinha, com móveis preciosos, estilo Luís XVI, o quarto sumptuoso de pau-rosa, todo o conforto e luxo do Prieuré pelo quadro modesto que tinha diante dos olhos.

 

Numa comparação inesperada, cujo motivo nem ela própria saberia explicar, recordou a sua própria casa. Era um palacete situado nos arredores de Nova Iorque, esplêndida moradia com grande escadaria de mármore, fachada com peristilo branco, e cujo interior, dependências e parque exibiam tanta magnificência como gosto. E pensou se, sendo amada como parecia ser Rosamunda, por um homem cuja fortuna fosse incomparavelmente mais modesta, não trocaria de boa vontade e com infinita alegria a linda e luxuosa vivenda por um pavilhão como aquele.

 

Depois, resolutamente, afastou estes pensamentos. O engenheiro, depois de lhe ter oferecido uma cadeira, estendia-lhe uma caixa com cigarros. Depois accionou o acendedor para Deirdre, acendeu o seu próprio cigarro e, por fim, sentou-se na borda da secretária.

 

Durante alguns momentos, os dois jovens fumaram em silêncio. Em toda a evidência, João Lucas aguardava que ela fosse a primeira a falar. Mas a visitante, ainda impressionada pela cena que surpreendera, nem recordava o motivo que a trouxera ali.

 

O engenheiro então levantou a cabeça, abraçou o aposento com o olhar e comentou com ironia:

 

Eis um cenário muito modesto para ”uma conversa de negócios”. Na América, a moldura deve ser muito diferente, suponho.

 

Como se não o compreendesse, Deirdre repetiu:

 

Conversa de negócios?

 

O rapaz olhou-a com espanto e replicou:

 

Não foi essa a classificação que lhe deu, ainda há poucos minutos, mademoiselle?

 

Deirdre inclinou a cabeça. O seu espírito estava muito preocupado com os últimos instantes vividos para se prender com outras preocupações.

 

Supunha continuou João Lucas com ar glacial que tinha vindo aqui para discutir e tratar com comodidade certos assuntos de ordem industrial?

 

Não gosto de discutir, senhor Villiers. De resto, a minha inexperiência nesses assuntos não me permite ir até à discussão.

 

Digamos então... até à verificação emendou João Lucas.

 

Levantou-se e dirigiu-se para um dos armários, abriu-o e tirou volumoso registo. Depois voltou para a secretária, na qual dessa vez se instalou.

 

Estão aqui as contas que me pediu disse tranquilamente. Como datam de vinte anos, desde já a aviso de que será demorado e fastidioso vê...

 

Ao mesmo tempo, abria diante de Deirdre o enorme livro. Esta repeliu-o com leve irritação.

 

Já lhe declarei que não percebia nada disso.

 

Prefere encarregar do assunto um procurador?

 

Não.

 

João Lucas levantou a cabeça. Olhou demoradamente para Deirdre, por certo convicto de nunca ter encontrado em toda a sua vida rapariga mais caprichosa.

 

Nesse caso, queira dizer-me claramente o que pretende, mademoiselle pediu com a sua voz calma.

 

Deirdre fez-se muito corada. Adivinhava sem custo os pensamentos do engenheiro e sentiu-se profundamente humilhada.

 

Vou dizê-lo declarou, esmagando nervosamente o cigarro no fundo do cinzeiro. Declaro-lhe que as fábricas de aço de Rollan não me interessam.

 

Admito muito bem a sua opinião. O que são elas ao lado das fábricas Morgan?...

 

Exactamente atalhou Deirdre, tão agressiva quanto o engenheiro se mostrava irónico. Uma insignificância, diz bem. Portanto, não pretendo passar os dias muito poucos já que ainda estarei no Prieuré, em verificações, como lhe chamou. A parte que me pertence por herança de minha mãe abandono-a, ou, por outra, transfiro-a para Maud.

 

Calou-se um instante. Se o engenheiro ficou desapontado com esta disposição que ia prejudicar Rosamunda, não o demonstrou. Continuou a fixar Deirdre com ar grave e atento e declarou:

 

Não me incumbe tratar dessa transferência. Como há pouco lhe disse, será conveniente designar um procurador para o fazer.

 

Tratarei disso o mais cedo possível.

 

Breve silêncio se seguiu a esta declaração. Quase logo, porém, Deirdre continuou:

 

Passemos a outro assunto. As avultadas quantias enviadas por meu pai...

 

João Lucas fez um gesto com a mão como se pretendesse interrompê-la. O semblante tomara uma expressão dura e, com firmeza, declarou:

 

Lamento, mas não encontrei qualquer vestígio dessas somas. As minhas pesquisas foram minuciosas e a contabilidade da fábrica está perfeitamente organizada para que reste alguma dúvida a esse respeito. Os depósitos a que se refere nunca existiram.

 

Deirdre soltou uma gargalhada.

 

Está a brincar, com certeza, senhor Villiers.

 

Não costumo brincar com assuntos dessa natureza, garanto-lhe.

 

Nesse caso, talvez não esteja ao par de todo o movimento da fábrica. Desconhece certos pormenores.

 

- Isso é impossível, mademoiselle, tão impossível como a não existência desses depósitos, em seu entender, não é assim?

 

Deirdre pressentiu a ironia e, indignada, levantou a cabeça.

 

Meu pai não era homem para tratar com leviandade assuntos de natureza tão grave e ainda menos para garantir a veracidade de gestos ou acções que não tivesse executado afirmou, irritada.

 

O engenheiro não lhe respondeu. Dedicava toda a sua atenção ao corta-papéis de marfim que tirara de cima da secretária.

 

Portanto, não se gabaria de ter tido continuou Deirdre com veemência para com a família de sua mulher, uma atitude de liberalidade, se ela não correspondesse à realidade. Essas somas foram enviadas às fábricas de Rollan, tenho a certeza, conquanto só me tivesse falado nelas por acaso e sem indicar se correspondiam a um reforço de capitais ou...

 

A uma indemnização atalhou João Lucas. A frase foi dita a meia voz e como que involuntariamente. Deirdre olhou-o com espanto.

 

A uma indemnização! repetiu.

 

E, como se, de repente, aprendesse o sentido da palavra, protestou com violência:

 

Fique sabendo que Stephen Morgan não devia indenizações fosse a quem fosse. Não raptou minha mãe. Ela gostava dele e seguiu-o, segui-lo-ia até ao fim do mundo e não haveria forças que a retivessem. E eu compreendo muito bem a força do seu afecto continuou, comovida Meu pai era a pessoa melhor, mais nobre e a mais honesta que eu conheci.

 

Enquanto Deirdre falava, Villiers levantara-se e dera alguns passos pela sala. Depois aproximou-se da janela aberta e ficou alguns momentos de costas voltadas, com o olhar perdido no espaço. E as suas feições enérgicas tinham tomado uma expressão estranha, misto de cólera e de sofrimento.

 

No entanto, quando se voltou, mostrava-se perfeitamente calmo.

 

Nesse caso, segundo afirma, durante estes vinte anos, o senhor Morgan mandou dinheiro para a fábrica, muito dinheiro?

 

Não me passa pela cabeça duvidar das afirmações de meu pai.

 

Mesmo que a nossa escrita não acuse essas remessas?

 

Mesmo nesse caso, sim afirmou Deirdre.

 

O engenheiro esboçou leve sorriso e aproximou-se dela.

 

Sendo assim, só me resta ir ao Prieuré e apresentar a madame de Rollan o meu pedido de demissão.

 

Deirdre olhou-o com espanto.

 

Não vejo o motivo...

 

É simples. Tenho grande responsabilidade na fábrica para poder conservar um cargo para o qual não tenho competência.

 

Só nesse instante Deirdre teve consciência da gravidade das suas afirmações e das encobertas acusações que delas resultavam. Ao mesmo tempo, recordou as palavras veementes da criada. Iria ela, como pretendia a mulher, trazer desgraça ao engenheiro?

 

Nervosa, levantou-se.

 

Seria tomar muito a peito um assunto no qual não tem a mais pequena responsabilidade replicou com simulada tranquilidade. Em tudo isto não pode existir qualquer coisa que vá atingir a sua consciência profissional e a sua competência.

 

Obrigado pela sua opinião agradeceu, friamente, João Lucas Mas julgo saber como é uso classificar-se, mesmo na América, uma volatilização e subtracção de capitais.

 

Além disso continuou Deirdre, como se não o tivesse ouvido conto abandonar também essas quantias, cuja totalidade desconheço, a favor de minha irmã Maud. A sua doença explicou como desculpa torna-lhe a vida mais difícil e será justo dar-lhe uma compensação.

 

Villiers continuou calado. Espantado, olhava para essa rapariga, que, simplesmente, abandonava milhões, sem mesmo saber quantos.

 

Mas quase logo um sorriso desdenhoso lhe perpassou pelos lábios. Admitindo que esses milhões existissem, não era a sua doadora a filha de Stephen Morgan, o rei do aço? Que mérito poderia haver se essas mãos, belas e fortes, que lhe atraíam o olhar, mergulhavam e atiravam fora parcelas de uma fortuna inesgotável?

 

A sua resolução, no que se refere a Maud, não pode influir na minha, mademoiselle. Vou dizer à madame de Rollan que não posso continuar a assumir a direcção da fábrica.

 

Deirdre olhou-o quase com raiva. Ela diante de quem todas as vontades cediam, admirava-se e irritava-se por encontrar alguém que lhe resistisse.

 

Madame de Rollan far-lhe-á notar que está preso à fábrica por um contrato ripostou secamente.

 

Falara ao acaso. No entanto, devia ter dito a verdade, porque João Lucas não conseguiu ocultar a sua contrariedade.

 

Verifico que está muito bem informada. Os meus cumprimentos.

 

Fechou o livro, ao qual Deirdre não havia concedido um olhar e foi arrumá-lo no armário. Depois, voltou-se para a visitante, como se contasse que se despedisse. Mas Deirdre não parecia disposta a isso. Deu alguns passos pela sala e parou diante do fogão.

 

A Rosamunda está muito parecida murmurou, designando o busto colocado em cima da pedra.

 

Villiers franziu a testa. Aquela intrusão na sua vida particular, por muito discreta que fosse, desagradou-lhe.

 

Está limitou-se a responder. Deirdre examinou as fotografias.

 

É sua mãe? inquiriu, apontando uma delas.

 

É foi a resposta.

 

Era muito bonita... E este era o seu irmão? João Lucas não respondeu logo e Deirdre, voltando-se, encontrou o seu olhar duro e irritado.

 

Sem uma palavra, voltou a colocar em cima da pedra a moldura de prata cinzelada que tinha na mão e ficou um instante calada. Depois levantou a cabeça e, em voz baixa, perguntou:

 

É verdade ”nós” termos tido qualquer responsabilidade na morte de seu irmão?

 

João Lucas estremeceu. O inesperado da pergunta perturbava-o tanto como a pergunta em si.

 

Quem lho disse? balbuciou.

 

Depois, sem esperar pela resposta, pediu com mal contida cólera:

 

Deixemos isso, sim?

 

Não, não deixo.

 

E como a surpresa fizesse calar o engenheiro, continuou:

 

É fácil censurar sem que os acusados conheçam as suas culpas, não é verdade? É mais simples lançar sobre eles um labéu, como se prende uma campainha ao pescoço dos pestíferos, com a diferença de que as pessoas assim afastadas, repelidas e desprezadas, nem mesmo sabem porque o são. Mas...

 

João Lucas conseguira recuperar o sangue-frio. Com calma, interrompeu:

 

Repelidas... Desprezadas?... Quem lhe deu a impressão de o ser, mademoiselle?... Não foi recebida no Prieuré com todo o carinho e solicitude que desejava?

 

Não!... Não fui recebida com carinho, satisfação ou alegria, excepto por Maud. Mas não se trata da Prieuré. Perguntou-me quem me condenava sem me conhecer, quem me considera uma intrusa, uma inimiga... É o senhor mesmo, o senhor João Lucas Villiers!

 

O engenheiro voltara-se para levantar e tornar a colocar na pedra do fogão algumas das molduras que, por certo, não lhe parecerem dispostas no lugar habitual. Ao escutar as últimas palavras de Deirdre, cruzou os braços e um sorriso frio lhe adejou nos lábios.

 

Está habituada, mademoiselle, às homenagens e tributo de admiração que a sua beleza, espírito e fortuna, todos os seus dotes, enfim, merecem e acho natural que se admire quando não os recebe. Mas, nesse campo, a minha ignorância é completa. Sou um homem rude, vivendo na solidão e entregue ao trabalho e, portanto, desconhecendo as obrigações mundanas. Peço-lhe desculpa de não lhe ter dado a impressão de conceder à sua pessoa toda a importância que merece.

 

Enquanto o engenheiro fazia esta singular profissão de fé, Deirdre não deixara de o observar. Nas suas palavras não havia ironia que lhe permitisse ofender-se com elas nem considerar grosseira a pessoa que as proferia. Mas a própria seriedade de Villiers não seria mais ofensiva do que um comentário mordaz?

 

Continuando a fixá-lo, Deirdre replicou em voz surda:

 

Nunca fui tão humilhada em toda a minha vida.

 

Humilhada?... Por mim? disse João Lucas, mostrando-se admirado.

 

Com um gesto imperioso, ela mandou-o calar e, nervosa, deu alguns passos na sala. Quando se voltou para o engenheiro, tomara uma expressão dura.

 

O senhor não deseja falar do passado disse e toda esta conversa não passou de uma diversão ou disfarce. Compraz-se em me fazer acreditar em qualquer dano, ou mesmo erro grave, cometido pela minha família em prejuízo da sua... Se é assim, hei-de sabê-lo. Meu pai e Elsa nunca me ocultaram coisa alguma daquilo bom ou mau que constitui o meu património de família. Para semear a dúvida no meu espírito não bastam o silêncio, voluntário ou não... Mas tudo isto me levou a roubar-lhe o seu precioso tempo, mais do que desejava. Peço-lhe mil desculpas.

 

E dirigiu-se para a porta. João Lucas ficara encostado ao fogão, com os braços cruzados e rosto impenetrável. Mas como a visitante se afastasse, numa resolução súbita, alcançou-a.

 

Regressa ao Prieuré, mademoiselle?

 

Regresso, sim. Pouco tempo tenho para mudar de vestido, antes do jantar.

 

Se me permite, acompanhá-la-ei. Surpreendida, Deirdre parou.

 

Supunha que...

 

Tinha o meu tempo muito ocupado para voltar hoje ao Prieuré?

 

Não foi o que disse?

 

Disse, mas mudei de ideias.

 

Deirdre sorriu com ar desdenhoso. Aquele pobre apaixonado, com o evidente desejo de não desagradar a Rosamunda, inspirava-lhe irónica piedade.

 

A minha irmã deve ficar encantada comentou numa voz que, involuntariamente, traía os seus sentimentos.

 

Assim o espero concordou João Lucas com laconismo.

 

Depois abriu a porta para Deirdre sair e seguiu-a.

 

O regresso pelo parque foi rápido. Durante o trajecto apenas trocaram palavras banais e, quando chegaram à vista do Prieuré, calaram-se. Maud ainda se encontrava no terraço, embrulhada no casaco branco, mas não estava sozinha. Elsa encontrava-se junto dela. O semblante da doente iluminou-se quando viu chegar o engenheiro, mas não fez comentários ao seu inesperado regresso. De resto, João Lucas não lhe deu muita atenção. Cumprimentou Elsa e perguntou por Rosamunda.

 

Suponho que está lá em cima, nos seus aposentos informou Maud.

 

O rapaz desculpou-se e dirigiu-se para casa, enquanto Deirdre se instalava numa das cadeiras, junto das duas senhoras.

 

João Lucas atravessou o hall sem encontrar ninguém. Subiu a escada e deteve-se no primeiro andar. Durante segundos ficou parado, com a cabeça pendida, feições contraídas e duras. Depois ergueu a cabeça e, dando, rapidamente, alguns passos para a porta mais próxima, bateu leve pancada.

 

Ouvindo a voz de Rosamunda responder-lhe, abriu e penetrou na salinha particular da noiva, aposento onde, quase sempre, se encontrava.

 

Enquanto não se preparava para o jantar, a rapariga trocara o vestido de passeio por um roupão de seda leve, adornado com preciosas rendas. Estendida no divã forrado de seda vermelha, lia e, de vez em quando, levava aos lábios o cigarro que lhe ardia entre os dedos.

 

Quando viu quem era o visitante, sorriu com ironia e, ao mesmo tempo, surpreendida.

 

Santo Deus! Deverei acreditar no testemunho dos meus olhos?... Será o João Lucas, de facto?

 

O engenheiro fechou vagarosamente a porta e aproximou-se do divã, diante do qual parou.

 

Sou eu próprio, não se engana murmurou, sorrindo e estendendo-lhe a mão. Posso sentar-me?

 

Por favor...

 

João Lucas instalou-se numa das poltronas estofadas e, por instantes, o seu olhar abraçou o conjunto luxuoso, com o tapete de Aubusson, espelhos de cristal e belos móveis estilo Luís XVI. Ligeira nuvem lhe ensombrou a fisionomia; no entanto, quando se voltou para Rosamunda, sorria.

 

A noiva tinha fechado o livro e atirado com o cigarro para o cinzeiro que estava ao alcance da mão. Apoiada sobre o cotovelo, observava o noivo com evidente espanto.

 

O que há, João Lucas? inquiriu. O rapaz pegou-lhe na mão e declarou:

 

Gostaria que falássemos um pouco do nosso futuro, Rosamunda.

 

O quê!... Hoje... agora? Tentava gracejar, mas a voz tremia-lhe.

 

E porque não?

 

Como quiser! acedeu, resignada. Abandonara a posição indolente e, sentada, brincava com o cordão que lhe prendia o roupão.

 

Assim é preciso, ou, para melhor dizer, tornou-se necessário e inadiável.

 

O engenheiro cruzara as mãos nos joelhos e, pensativo, com o olhar perdido no espaço, não se resolvia a falar.

 

Está a assustar-me! murmurou Rosamunda.

 

Talvez tenha razão para isso, mas, por enquanto, não.

 

E, sem lhe dar tempo a falar, continuou com ar grave:

 

Gosta de mim, não é verdade, Rosamunda?... O futuro a meu lado não a assusta?

 

Antes de lhe responder, a noiva relanceou-lhe um olhar rápido.

 

Suponho que essas coisas já foram ditas muita vez. Não vejo a necessidade de as repetir. De resto, a minha vida sofrerá tão poucas modificações, nos hábitos, moldura e situação, que não se pode chamar vida nova, mas, sim, continuação da que tenho hoje.

 

E se, pelo contrário, se tratasse de uma modificação total, absoluta, Rosamunda? Se fosse obrigada a afastar-se dos seus parentes, dos seus amigos, deste ambiente e dos seus hábitos, em resumo, de tudo quanto hoje constitui a sua vida?

 

Desta vez a noiva sobressaltou-se.

 

Não fale por enigmas, em nome do céu! pediu, fazendo-se muito pálida. Aconteceu alguma coisa, volto a perguntar-lhe?

 

O engenheiro pôs-se de pé e encostou-se ao espaldar da poltrona.

 

Uma coisa muito simples. Não posso continuar a assumir a direcção da fábrica...

 

Pela expressão e olhar de Rosamunda, ele compreendeu que a noiva não tinha atingido o sentido das palavras e repetiu lentamente: Sou obrigado a abandonar o meu lugar, Rosamunda e a cedê-lo a outro.

 

Está louco!

 

Dessa vez a resposta brotou, impetuosa e espontânea. Ao mesmo tempo que proferia estas palavras, Rosamunda dera um salto e ficara de pé.

 

Não, não enlouqueci protestou o engenheiro. Seria muito fastidioso explicar-lhe as razões que me forçam a apresentar a minha demissão a madame de Rollan e ao senhor Thibaut. Basta dizer-lhe que são imperiosas.

 

Falava com firmeza, sem desviar a vista do rosto da noiva. Esta, depois do protesto violento, não voltara a exteriorizar os sentimentos que a agitavam.

 

João Lucas continuou:

 

Não receie o futuro, Rosamunda. O curso de engenheiro de minas e as minhas outras habilitações asseguram-me um lugar razoável, em França ou no estrangeiro. Poderei, dou-lhe a minha palavra de honra, proporcionar-lhe uma vida feliz e desafogada.

 

Uma gargalhada seca atalhou o discurso do engenheiro. Rosamunda, conseguindo dominar o espanto e compreendendo, por fim, defrontava-o com olhar brilhante.

 

Enlouqueceu, João Lucas, repito. Propõe-me abandonar o Prieuré por...

 

No dia em que casássemos teria de o abandonar pelo pavilhão.

 

É possível. Mas não conte que o deixe para o seguir a terras desconhecidas, para viver, em casas de aluguer, a vida mesquinha que as suas palavras me deixam entrever!

 

E, dentro do leve roupão de seda, estremeceu, como se o sangue se enregelasse já com a perspectiva da mediocridade evocada,

 

Quer dizer que, se não ficar na fábrica, não partilhará a minha vida? inquiriu o rapaz.

 

Exactamente.

 

João Lucas empalideceu.

 

Rosamunda... murmurou.

 

Calou-se um instante. A decepção sofrida devia ser tremenda, mas não o manifestou.

 

Rosamunda continuou por fim peço-lhe para reflectir. Não sei o que entende por vida mesquinha. Desde já lhe afirmo, porém, que não está nos meus projectos privá-la daquilo a que tem direito pela sua posição, beleza e mocidade. Não posso, é evidente, oferecer-lhe uma vida de luxo semelhante à que tem aqui, nem esta aparência, mas...

 

Pois bem, é isso o que desejo! interrompeu Rosamunda, com cólera. Nunca me resolverei a um casamento que me obrigue a descer!

 

Não sabia já que o pavilhão não pode comparar-se ao Prieuré?

 

Enquanto ela passeava de cá para lá na sala, nervosa e enfurecida, João Lucas conservava-se calmo, com o olhar pensativo e grave preso ao lindo rosto contraído.

 

A reflexão do noivo ainda mais a irritou.

 

Com efeito, sabia respondeu Mas agora não se trata já do pavilhão. Vejo-o disposto a abandoná-lo, a deixar o seu lugar na fábrica para ir ocupar outro ainda problemático... E não conte comigo para o seguir ao exílio e a uma posição inferior!

 

A sua afirmação é grave, Rosamunda murmurou o engenheiro. Volta a afirmar que não me acompanhará, se as circunstâncias me obrigarem a abandonar o pavilhão?

 

Nunca o acompanharei! A declaração foi feita com firmeza e violência.

 

Por instantes, os dois olhares cruzaram e foi Rosamunda quem primeiro desviou o seu.

 

Maquinalmente, arrastou uma poltrona e sentou-se. Depois, visivelmente, tentou desviar a conversa para terreno menos perigoso.

 

Porque deseja abandonar a fábrica, João Lucas?... Parece-me que tenho o direito de saber?

 

O engenheiro retraiu-se.

 

Se o fizer, serei constrangido a isso pelas circunstâncias... por motivos inesperados. No entanto, nada decidirei antes do regresso de seu cunhado. Desculpe-me se não lhe dou mais esclarecimentos, mas não posso. Garanto-lhe que, quando chegar a altura, lhe revelarei as razões que me impelem e tenho a certeza de que as aprovará.

 

Rosamunda não atendeu ao final da frase. Nas vagas explicações de João Lucas duas palavras apenas se destacaram.

 

Motivos inesperados? repetiu com as finas sobrancelhas arqueadas, numa interrogação Não vejo quais. Excepto a chegada de Deirdre...

 

Ao ouvir este nome proferido assim de improviso, o rapaz não conseguiu evitar leve estremecimento que o olhar penetrante de Rosamunda não deixou de notar. Com uma gargalhada trocista, pôs-se de pé e comentou:

 

É isso! A culpa é da Deirdre! Já o adivinhara. Mas que interferência pode ter na fábrica e no Prieuré a nossa barrinha de oiro?... Que trouxe ela nas suas malas, nos seus cabelos cor de cobre e na horrível pronúncia de além-mar para perturbar a vida dos outros?... É evidente, vê-se bem que não simpatiza consigo. Mas daí a exigir ou a provocar a sua partida vai grande distância. Que tem ela com os negócios da fábrica? A fabulosa e insolente fortuna do pai, ganha só Deus sabe como, não lhe chega para se distrair, para se divertir? Será preciso ainda transtornar a vida dos outros, semear preocupações e dificuldades no seio da família? Eu bem disse à avó no dia em que a vi aparecer com os seus modos insolentes de ricaça a quem tudo é devido. Para nós, não foi uma estranha que se instalou no Prieuré, foi uma intrusa, uma inimiga!

 

Villiers estremeceu de novo ao ouvir estas últimas palavras, proferidas pela noiva com violência e ódio. Recordava-se de as ter escutado, havia pouco mais de uma hora, saídas de outros lábios.

 

Várias vezes tentou interromper Rosamunda, mas em vão. Dir-se-ia que a cólera a dementava. Pusera-se de novo de pé e, furiosa, passeava na sala, esmagando o tapete com as chinelinhas de cetim. Pela janela aberta de par em par entravam todos os perfumes do parque e a serenidade profunda do crepúsculo. E o contraste entre a paz da natureza e a sua animosidade, ressentimento e violência era tão grande, que Rosamunda estremeceu e calou-se.

 

Só então João Lucas observou com calma:

 

Afirmei-lhe, por acaso, que mademoiselle Morgan tinha influído na minha resolução?

 

Quem poderia ser senão ela? Supõe-me tão estúpida que não adivinhasse qual é o elemento de discórdia que...

 

Calou-se bruscamente porque a porta da sala acabava de se abrir sem ruído e, no limiar, surgira Maud, amparada às muletas.

 

Não ouviste a sineta, chamando para o jantar? inquiriu, dirigindo-se à irmã Teremos de esperar que estejas pronta para nos sentarmos à mesa e a avó não gosta disso, bem sabes.,

 

E vens avisar-me, tu!... Mas que complacência!

 

Maud não lhe respondeu. O seu olhar percorreu o aposento e deteve-se na janela aberta. João Lucas seguiu-lhe o olhar. Aproximando-se dela, murmurou a meia voz:

 

Obrigado, Maud.

 

Vou já para baixo! declarou Rosamunda, entrando no quartoApenas o tempo necessário para envergar um vestido. Fica para jantar, João Lucas?

 

Obrigado, mas não posso declarou o engenheiro num tom muito diferente do que o empregado para falar à futura cunhada.

 

Quando a noiva desapareceu, aproximou-se de Maud.

 

Vou ajudá-la a descer, quer? Ela aceitou, sorridente.

 

Antes de a tomar nos braços, João Lucas hesitou e de novo fixou a janela aberta.

 

Maud murmurou Mademoiselle Morgan teria ouvido?

 

A enferma abanou a cabeça.

 

Graças a Deus, não. Tanto ela como Elsa tinham abandonado o terraço pouco antes. Só eu não perdi uma...

 

Calou-se um instante e depois prosseguiu com ardor:

 

Não sei do que se trata, João Lucas, mas tenho a certeza de que Deirdre não tem culpa de coisa alguma. Desde o primeiro dia, Rosamunda odeia-a por causa da sua beleza, bondade e simpatia, todas as qualidades que a irmã possui e ela não tem. Deirdre, fique sabendo, tem o coração mais nobre e melhor, o mais delicado que conheço. Não admito que conceba sentimentos maus, mesquinhos, duvidosos ou mesmo medíocres.

 

Villiers não lhe respondeu. Limitou-se a erguê-la nos braços e, tendo puxado para si a porta da sala, começou a descer a escada.

 

Madame de Rollan passeava no seu pequeno escritório. Parecia agitada e, excepcionalmente, abandonara a sua atitude calma e andar majestoso. Mesmo a serenidade olímpica das feições dera lugar a uma expressão impaciente e sombria.

 

Lá fora, o sol alastrava pelo terraço, ermo a essa hora. Nesse ponto, o silêncio era absoluto.

 

Mais longe, na alameda de árvores centenárias, dois jardineiros limpavam as ervas que tinham apontado por entre o saibro. Arrancavam uma a uma as audaciosas plantas e juntavam-nas em pequeno monte, que depois levariam para serem lançados nas fossas do estrume. Todavia, não era para ouvir melhor o raspar dos ancinhos que madame de Rollan parava de vez em quando e, impaciente, se punha à escuta.

 

Finalmente, ouviu o que desejava. O ruído ensurdecedor que, no dia seguinte à sua chegada, surpreendera Deirdre e parecia fazer estremecer todas as árvores do parque, aproximou-se e, segundos depois, a bólide vermelha parava diante da escadaria. Madame de Rollan tocou. Félix apareceu.

 

Diga ao senhor Didier que venha imediatamente falar-me! ordenou.

 

Durante o tempo muito pouco que decorreu entre a retirada do criado e a entrada de Thibaut, a dona da casa continuou o seu passeio impaciente e não modificou o seu aspecto carrancudo.

 

Aquele Didier com os seus passeios à capital, para negócios ou não! Madame de Rollan não era mais rigorista do que os outros e admitia muito bem que um viúvo novo, atenuada a violência do seu desgosto, não vivesse como um frade. Mas as ausências do rapaz tornavam-se cada vez mais frequentes e cada vez davam mais nas vistas. Impunha-se que ela própria o censurasse.

 

Está escrito que serei sempre obrigado facto pelo qual lhe peço desculpa a apresentar-me diante de si com o fato de viagem coberto de poeira, mãe disse Didier, entrando no escritório, beijando respeitosamente a mão que a avó lhe estendia.

 

Às vezes, tratava por mãe a avó de sua falecida mulher.

 

Esta poeira, no entanto, cobre um homem que ganhou ontem mais de trezentos mil francos nas corridas de Longchamp.

 

Com um gesto brusco, madame de Rollan interrompeu-o.

 

É bom que as corridas o favoreçam algumas vezes, Didier.

 

Apostei no ”Trovão”, o cavalo de que lhe falei. Ninguém podia supor que ganhasse. Chegou a fazer trinta e três...

 

Falemos sério, sim? atalhou a avó Trata-se de um assunto muito mais importante do que os seus ganhos nos campos de corrida.

 

E como o rapaz tomasse, imediatamente, uma atitude atenta, explicou:

 

A Deirdre pediu contas ao João Lucas e ele... pediu-me a demissão.

 

A avaliar pela fisionomia de Thibaut, a notícia devia ser grave, de facto. Calado, começou a descalçar as luvas, enquanto madame de Rollan continuava: ”Não sei em que altura Deirdre teve semelhante ideia, mas Villiers veio aqui hoje de manhã e esteve sentado aí na cadeira que o Didier agora ocupa.

 

Que resposta lhe deu?

 

Nenhuma, ou, antes, disse-lhe que teríamos de aguardar o seu regresso para continuarmos a conversa.

 

Demora completamente inútil comentou Didier com leve ironia.

 

A reflexão desagradou à avó, que franziu a testa. Contudo, o seu descontentamento não se manifestou por palavras.

 

Em minha opinião, o único caminho a seguir será dizer a verdade a Deirdre.

 

Com efeito, não vejo outro... não, não vejo outro! repetiu, maquinalmente, madame de Rollan.

 

E, de súbito, a cólera que, desde essa manhã, tentava sufocar, explodiu com violência. Abandonando a cadeira onde se instalara havia pouco tempo, exclamou com extrema violência:

 

Grosseiro! Impertinente! Toleirão! Atrever-se a contar comigo, connosco! Ter a ousadia de medir a sua generosidade quando eu lhe dei o que mais querido tinha no mundo! Vê-se bem que subiu à custa do seu trabalho, mas não nasceu de família educada! Baixeza e cálculo! Eis as características de Stephen Morgan! E são pessoas desta natureza, meu caro Didier, que se introduzem nas famílias para nos roubar as filhas e desaparecerem, deixando-nos, grosseiramente, uma conta para pagar!...

 

Uma conta! repetiu, aterrada, deixando-se cair numa cadeira de braços.

 

Apesar da gravidade da situação, o rapaz não conseguiu reprimir um sorriso. Àquela acusação feita a Stephen Morgan com tanta violência como se o Americano ainda estivesse vivo, embora pretendesse ocultá-lo, divertia-o. E não pôde deixar de notar:

 

Morgan já morreu. Não pode acusá-lo de exigir...

 

Que precisão tinha ele de pôr Deirdre ao corrente do assunto? É isso o que lhe censuro e classifico de deselegante e mesquinho. Que importância podem ter, não me dirá, alguns milhões para uma rapariga que nem mesmo sabe gozar a sua imensa fortuna?

 

Fale com ela, avó. Tenho a certeza de que aceitará as suas explicações.

 

Não tenho outro remédio.

 

Madame de Rollan levantou-se, procurando reagir contra aquele abatimento e desânimo, uma infracção às leis mundanas que prescreviam calma e domínio dos nervos em todas as circunstâncias. Aquela atitude era imprópria da sua pessoa. Passou pelos lábios o lenço finíssimo, guarnecido com rendas caras, e, interrogando o rapaz, tanto com o olhar como com a voz, lembrou:

 

Ocorreu-me uma ideia, Didier. Dir-me-á se a acha boa ou não. Lembrei-me de pôr a Maud ao corrente das nossas dificuldades. Ela e Deirdre afeiçoaram-se muito uma à outra e essa ternura talvez nos facilite a tarefa.

 

Aprovo absolutamente a sua lembrança, avó. O auxílio de Maud ser-nos-á precioso.

 

Nesse caso, vou falar com ela quanto antes. Levantou-se com dificuldade e dirigiu-se à campainha, que tocou repetidas vezes. Quando a criada apareceu, ordenou-lhe que fosse dizer a Maud que a avó lhe pedia para descer ao escritório. Depois retomou o seu lugar e, nervosa, começou a tamborilar com os dedos fortes no braço da poltrona,

 

Maud apareceu quase logo. Por acaso, ia a atravessar o vestíbulo com Deirdre e não lhe foi preciso muito tempo para acorrer ao apelo da avó. Se tinha ficado surpreendida, não o demonstrou e, com simplicidade, estendeu a mão ao cunhado, a quem não via já há alguns dias.

 

Senta-te, filha pediu madame de Rollan, enquanto Didier aproximava uma cadeira e a ajudava a instalar-se, apoderando-se das muletas, que colocou junto dela Como, depois da morte de Irene, és tu a mais velha, cumpre-me pôr-te ao corrente dos nossos aborrecimentos e pedir-te que nos auxilies a remediá-los. Não tenho razão?

 

Sem uma palavra ou gesto de assentimento, Maud fixava a avó. Atrapalhada com este silêncio, esta, maquinalmente, compôs a saia do vestido de seda cinzenta e continuou:

 

Em primeiro lugar, vou dar-te uma péssima notícia: o João Lucas veio aqui esta manhã comunicar-me que não desejava continuar a dirigir a fábrica.

 

Este golpe, vibrado sem precauções, feriu Maud por tal forma que, se estivesse de pé, teria caído. Descaiu a cabeça no espaldar da poltrona, fez-se muito pálida e levou a mão ao peito como se sufocasse.

 

O João Lucas pretende deixar a fábrica? repetiu em voz quase imperceptível.

 

Quer, sim.

 

Porquê?

 

Aconteceu uma coisa estranha... Imagina tu que a Deirdre pediu-lhe contas.

 

E depois?

 

Depois... a caixa da fábrica apresenta pequeno défice.

 

E, sem dar tempo a resposta, continuou:

 

Deves concordar que a Deirdre demonstra uma impaciência muito censurável, exigindo, mal chegou, contas sobre as quantias que Morgan...

 

Morgan mandou, de facto, esses capitais para a fábrica? Para a fábrica?... Não, não foi bem isso. As remessas de dinheiro foram feitas em nome de Rollan. E depois? O olhar de Maud não se desviava da avó. Thibaut, com ar aborrecido, estava de pé atrás da cadeira da cunhada e não tomara parte na conversa. Mas um gesto de madame de Rollan e um olhar interrogador a pedir-lhe aprovação, obrigaram-no a mudar de atitude. Mesmo assim, contentou-se em abanar a cabeça sem proferir palavra.

 

Depois, os capitais em questão continuou a dona da casa, apertando, nervosa, o lenço guarnecido de rendas não entraram na fábrica e vais saber porquê. Aquilo é uma espécie de voragem que nunca restitui o que se lhe entrega. Julguei

 

preferível reservar esses milhões...

 

Quer dizer, pô-los de lado, na espectativa de qualquer emergência? interrogou a enferma.

 

Não foi bem assim... Parte desse dinheiro tem servido para nos manter durante estes últimos anos.

 

As palavras saiam dificilmente dos lábios de madame de Rollan, tanto mais que Maud não deixava de a manter sobre o peso do seu olhar e isso incomodava-a.

 

Tanto nos fazia ir buscar à caixa da fábrica o dinheiro que nos era preciso, como não lhe tocar, utilizando as somas que deviam lá entrar.

 

Calou-se. Depois de dois ou três minutos de silêncio, Maud proferiu lentamente:

 

Não vejo como poderei auxiliá-la nesse assunto, avó.

 

Esta evidente boa vontade encantou a avó. Receava a incompreensão de Maud e, reconhecendo serem vãos os seus receios, sorriu e explicou:

 

Se não me engano, és a preferida por Deirdre. Sendo assim, poderás, mais facilmente do que nós, pedir-lhe que espere até podermos pôr em ordem a contabilidade da fábrica. Em último caso, deves fazer-lhe compreender a deselegância do seu gesto ao pedir contas e que, com uma fortuna como a dela, devia mostrar-se mais desinteressada e ter mais aprumo moral!

 

A última palavra pronunciada por madame de Rollan mal se ouviu, abafada com uma gargalhada de Maud. Abandonando a sua atitude de aparente indiferença, a enferma pôs-se de pé, com o olhar fulgurante e as faces rubras de cólera.

 

Era então isso que esperavam de mim! Queriam que os ajudasse a enganar Deirdre, iludi-la e despojá-la! Servir combinações e interesses opostos aos seus e opostos também, embora a avó afirme o contrário, aos interesses da fábrica!... E puderam supor, um instante que fosse, que eu o faria!

 

Soltou nova gargalhada e, num movimento rápido, agarrou as muletas.

 

Desejam que previna a Deirdre?... Pois bem, vou fazê-lo imediatamente. Quanto a explicar-lhe como e porquê foi dispendido o dinheiro que lhe pertence isso é convosco.

 

E antes que madame de Rollan e Didier pudessem impedi-la, atravessou a sala, abriu a porta para o hall e chamou:

 

Deirdre!

 

Como a irmã aparecesse logo, pegou-lhe febrilmente na mão e, voltando-se para os outros dois, que o espanto imobilizara, disse-lhes:

 

Aqui está a Deirdre. Os dois por certo saberão melhor do que eu explicar como os de Rollan e os Chavanes utilizaram as somas confiadas à sua guarda e como estas foram empregadas, não para modernizar a fábrica e para comprar novos maquinismos ou a desenvolver a sua produção, mas para pagar caixas de champanhe, orquídeas, automóveis, tapetes de Aubusson, isto é, sustentar e aumentar o esplendor do Prieuré!

 

E, tendo proferido as últimas palavras com despreso e indignação, abriu a porta com violência e saiu.

 

Num gesto de desespero que mal ocultava a sua irritação, madame de Rollan ergueu as mãos ao céu.

 

Nunca me revoltei contra Deus por ter ferido esta pequena com semelhante enfermidade disse, trémula de cólera. Mas, por certo, eu não merecia a demência que, ainda por cima, lhe atingiu o cérebro! Minha querida Deirdre, desejo explicar-te.

 

Às primeiras palavras de Maud, a irmã empalidecera ligeiramente. Era muito inteligente para que essas poucas palavras não tivessem bastado para a esclarecer. Contudo, hesitava ainda, custava-lhe a admitir o facto. As faces afogueadas da avó, o seu evidente embaraço, a despeito da atitude despreocupada que tentava adoptar, tudo isso acabou por lhe dissipar as dúvidas. Então sentiu que não teria forças para ouvir da boca da avó as explicações que esta se veria obrigada a dar-lhe.

 

Voltou ligeiramente para a porta por onde a doente tinha saído e desculpou:

 

A Maud é uma doente, sente-se muito infeliz e isso explica o seu nervosismo. Por esse motivo, devemos desculpá-la.

 

Madame de Rollan soltou fundo suspiro. Sem lhe dar tempo a falar, Deirdre continuou:

 

Quanto ao assunto a que ela aludiu, será melhor não voltarmos a abordá-lo. Não estou habituada a tratar de questões de dinheiro. Enquanto, meu pai viveu, nunca me preocupei com elas e não quero que tomem agora na minha vida mais importância do que merecem. Se determinadas quantias não tiverem o destino que meu pai lhes atribuía, tenho a certeza de que ele próprio não se importaria nem ficaria zangado. Portanto, é natural que neste assunto, como em todos os outros, eu pense e proceda conforme suponho que teria pensado e procedido meu pai.

 

Uma expressão de profunda alegria iluminou o semblante de madame de Rollan. No mesmo instante, porém, tentou dominar-se e recuperar a sua calma olímpica. Felizmente, Deirdre sabia viver e o sangue de Stephen Morgan não tinha sufocado por completo a delicadeza de sentimentos herdada da mãe.

 

Esboçou o gesto de abraçar a neta, gesto que esta não devia ter notado porque não deu um passo para se aproximar da avó. Didier Thibaut colocara-se ao lado de madame de Rollan e ainda não tinha proferido uma palavra. Se a sua presença significava acordo absoluto com a dona da casa, pelo menos ainda não o tinha manifestado.

 

Posso retirar-me, avó? inquiriu Deirdre Gostaria de sair com Maud, esta tarde.

 

Tu és livre, completamente livre nas tuas acções, minha filha respondeu a avó com amabilidade. Estás em tua casa e estarás todo o tempo que desejares permanecer no Prieuré, permanência que eu desejo seja muito longa.

 

Não será muito longa interrompeu Deirdre Eu e Elsa já estamos preparando a partida.

 

Fingiu ignorar o movimento de protesto esboçado pela avó e concluiu:

 

E, justamente por isso, desejo separar-me o menos possível de minha irmã.

 

Agradeço-te, minha filha murmurou, levemente comovida, madame de Rollan.

 

Deirdre dirigiu-se para a porta, que Didier, solícito, abria para ela passar e quando essa porta se fechou teve a impressão de que respirava melhor.

 

Depois ficou parada no hall, pensativa, dominada por uma vaga de sentimentos contraditórios. Sem saber porquê, experimentava uma sensação de alívio. O desembaraço e a inconsciência de madame de Rollan haviam-na deixado estupefacta, mas isso, no seu espírito, tinha uma importância secundária. Apesar do espanto que lhe provocara a descoberta que acabava de fazer, uma espécie de satisfação sobrelevava todos os outros sentimentos, aquela, segundo pensava, que proporciona sempre uma situação clara, nítida, sem confusões.

 

Para abreviar a conversa com a avó, alegara um passeio combinado com Maud. Não passava de pretexto, mas, quando passou diante do quarto da irmã, após ligeira hesitação, bateu levemente.

 

Como não recebesse resposta, pôs-se à escuta e ouviu soluços. Então, não quis esperar mais e entrou.

 

As portas interiores estavam semi-cerradas, mergulhando o aposento em profunda obscuridade. Mesmo assim, Deirdre viu a doente, estendida na cama, com a face oculta nos braços dobrados e os ombros sacudidos por violentos soluços.

 

Então que é isso, Maud?inquiriu, assustada. Aproximou-se do leito e enlaçou os ombros da irmã. Esta deixou ver o rosto banhado de lágrimas.

 

Que vergonha, Deirdre, que vergonha!

 

Afectuoso sorriso entreabriu os lábios frescos da Americana.

 

Fazes favor de te calar?... Vamos, sossega. E como a crise de choro não cessasse, repetiu:

 

Então, Maud!... Sou eu quem to pede! Vagarosamente, a doente sentou-se na cama,

 

enquanto a irmã empilhava as almofadas para ela se recostar. Por entre as pálpebras tumificadas, as pupilas negras brilhavam, enraivecidas.

 

Sem uma palavra, olhou em volta de si, os cortinados de seda creme, os lindos móveis de plátano e depois esboçou um gesto de tristeza.

 

Deirdre, todo este luxo é produto de um roubo!

 

A irmã tapou-lhe a boca num gesto brusco.

 

Não quero ouvir-te falar assim!

 

E há quanto tempo isto dura! prosseguiu Maud, amargamente, apartando entre as suas a mão da irmã Há mais de vinte anos, talvez. Desde que teu pai, muito generoso para pedir contas, nos mandava quantias fabulosas para desenvolvimento, modernização e prosperidade da fábrica!... Que infâmia! exclamou com violência, ocultando o rosto nas mãos.

 

Esta explosão de desespero assustou Deirdre pela tristeza e rancores acumulados que exprimia. O carácter digno de Maud revoltava-se com o gesto de madame de Rollan, mergulhando, sem escrúpulos, as mãos nos cofres de Stephen Morgan. Mas, acima de tudo, não podia perdoar-lhe a humilhação que esse gesto acabava de infligir-lhe.

 

Deirdre adivinhou-o e, evitando discussões que apenas teriam como resultado acentuar o sofrimento da irmã, murmurou:

 

Sabes o que pensei já há algum tempo, Maud? E como a enferma sorrisse e a fitasse numa interrogação, prosseguiu:

 

Tive uma ideia excelente.,. maravilhosa... A de te levar comigo para a América, quando nos formos embora.

 

Uma expressão de imensa alegria iluminou o semblante pálido.

 

Serias capaz de fazer uma coisa dessas, Deirdre? Estás disposta a sobrecarregar-te com este tropeço?

 

Não és tropeço e a tua companhia será para mim a mais preciosa afirmou a irmã, pegando-lhe na mão.

 

Maud, que se tinha sentado na cama, recaiu nas almofadas.

 

Sendo assim, Deirdre, irei contigo murmurou Mas levas uma doente, aleijada que não terá muito tempo de vida, já sabes...

 

E como Deirdre tentasse interrompê-la com veemente protesto, prosseguiu:

 

Deixa-me falar. Partirei contigo, sim, e mais ainda porque não desejo assistir à consumação deste casamento que fará a desgraça dele. Impõe-se que estes laços se quebrem e o enlace não se realize. Conheço bem a Rosamunda, Deirdre, a secura do seu coração orgulhoso e interesseiro. O homem com quem casar será um infeliz, um desgraçado. E eu não posso assistir a uma coisa dessas... não, não posso.

 

Conquanto nem uma só vez tivesse mencionado o nome de João Lucas, desde as primeiras palavras que o rosto do engenheiro se desenhara diante dos olhos de Deirdre. E, ao mesmo tempo que recordava o semblante severo e grave, recordou também a resolução firme que, ao terminar a última conversa que tivera com ele, esse semblante reflectia. Villiers estava decidido a- abandonar a direcção da fábrica, isso não admitia dúvidas... salvo se madame de Rollan lhe desse explicações sobre o destino dos capitais desaparecidos. Mas ela não o faria, disso tinha Deirdre a certeza.

 

A Americana abandonou a borda da cama onde estava sentada.

 

Faze o possível por sossegar, Maud murmurou Ainda está muito calor para te instalares” no terraço. Queres que venha buscar-te às cinco horas para irmos tomar chá?

 

A doente agradeceu-lhe com um sorriso e afirmou que chamaria a criada de quarto para a auxiliar a descer ao terraço. Ficaria ainda uns momentos a descansar, e, quando se sentisse melhor, tocaria.

 

Deirdre aprovou, e, poisando um beijo carinhoso na face magra ainda húmida das lágrimas, abandonou o quarto de Maud.

 

Desceu ao rés-do-chão, dirigiu-se à garagem, situada nas traseiras da casa e saltou para o seu carro. Momentos depois, o automóvel branco corria a toda a velocidade, descendo a alameda.

 

Tomando pela estrada, a fábrica ficava a dois quilómetros. Deirdre percorreu-os rapidamente. Sabia ir encontrar ali o engenheiro, ocupado na afinação de uma máquina, e coisa alguma a levaria a adiar o encontro para o dia seguinte.

 

O automóvel penetrou no pátio principal e foi encostar junto do muro. Deirdre saltou para o chão e abraçou com o olhar a aglomeração compacta dos edifícios: oficinas, altos fornos, forjas eriçadas de chaminés, escadas de caracol, cubas enormes, guindastes e todo o resto que se adivinhava. À esquerda, precisamente no ponto onde arrumara o carro, erguia-se uma construção envidraçada, ligeiramente saliente, por certo reservada para os escritórios, conforme os dísticos indicavam. Foi para aí que Deirdre se dirigiu.

 

Um operário apareceu no pátio, justamente na altura em que a visitante se dispunha a empurrar uma porta, ao acaso. Foi ter com ele, mas para lhe dizer que pretendia falar a Villiers teve de elevar a voz. O barulho das máquinas era ensurdecedor. No entanto, o homem estava tão habituado a ele que não foi preciso repetir para compreender. Pediu-lhe que o seguisse e, tendo-a levado para uma espécie de átrio, mobilado com algumas cadeiras e uma mesa, deixou-a só.

 

Uma das paredes desse átrio era envidraçada e para lá dos vidros estendia-se uma sala imensa que Deirdre pôde examinar à vontade. Viu entrar o operário a quem falara e dirigir-se para um grupo. Estremeceu.

 

No meio dos outros, um vulto mais alto e robusto sobressaía. Envergando fato de macaco, tal como o vira da primeira vez, João Lucas devia dar, aos que o rodeavam, explicações e instruções.

 

Quando o operário chegou junto dele, calou-se e, depois de escutar o que dizia, respondeu-lhe com um gesto violento que indicava uma recusa. Não supunha, com certeza, que Deirdre se encontrasse no átrio e pudesse vê-lo, porque, durante algum tempo, discutiu com o rapaz, parecendo irritado e dirigir-lhe ásperas censuras.

 

Por fim, com modos bruscos, despediu-o. Como ele se mostrasse hesitante e não se retirasse, voltou-se, encolerizado. Mas, ao voltar-se, o seu olhar encontrou o vulto claro, que, para lá da parede envidraçada, parecia esperar. Só então reconheceu não ser possível esquivar-se.

 

Por segundos, tomou uma expressão rígida e dura e as pupilas azuis tornaram-se mais escuras. Depois, disse algumas palavras aos operários e, afastando-se do grupo, atravessou a sala com o seu passo largo e firme.

 

Quando chegou junto de Deirdre recuperara a calma e coisa alguma, na sua atitude, revelava aborrecimento ou irritação. Limitou-se a pedir-lhe desculpa pelo trajo. Depois, abrindo uma porta, fê-la entrar numa espécie de escritório, pequeno, cujas paredes, dessa vez, não eram de vidro.

 

Pediu-lhe para se sentar, o que Deirdre recusou. Para o que tinha a dizer, para a confissão que desejava fazer, preferia ficar de pé. Recusou igualmente o cigarro que João Lucas lhe ofereceu.

 

O engenheiro observava-a com espanto. Com o vestido branco, muito simples que mais fazia sobressair o tom doirado da pele e os cabelos fulvos, pareceu-lhe mudada, mais humana e mais fraca. A firmeza e orgulho de princesa sentada num trono de oiro, a atitude arrogante que ele teimava em atribuir-lhe, tudo isso tinha desaparecido. E, de repente, sentiu-se mais intimidado perante esse novo aspecto de Deirdre do que com a máscara autoritária e desdenhosa dos primeiros dias.

 

Mesmo assim, estremeceu violentamente quando Deirdre declarou com a sua voz musical:

 

Venho apresentar-lhe desculpas, senhor Villiers.

 

Santo Deus! Desculpas, a mim!... Por favor... não posso admiti-las!

 

Num protesto, erguera a mão, mas deixou-a cair e calou-se quando notou a chama ardente que brilhava nas pupilas de Deirdre. A Americana voltou a cabeça e, enquanto falava, o seu olhar foi perder-se no pátio inundado pelo sol.

 

Deve calcular, senhor Villiers murmurou quanto será doloroso para alguém que disse e afirmou, erguendo bem alto a cabeça, não admitir suspeitas que pudessem atingir a honra dos seus, aflorar a sua honestidade e a sua delicadeza, a sua... probidade, como será doloroso, repito, ter de bater no peito e confessar: ”Enganei-me!”

 

O espanto que se reflectia no rosto de João Lucas transformou-se, ao ouvir estas palavras, em evidente perturbação.

 

O que descobriu?... balbuciou Mr. Morgan..

 

Deirdre voltou-se num movimento rápido.

 

Não se trata de meu pai, visto ele ignorar... Calou-se, hesitou um instante e, de repente, em voz surda, pediu:

 

Não procure mais as somas que, durante anos seguidos, meu pai mandou, senhor Villiers. Esse dinheiro nunca entrou na fábrica.

 

Como o engenheiro continuasse calado, aguardando novas explicações, prosseguiu:

 

As remessas eram feitas em nome de madame de Rollan. E só hoje soube, quase por acaso, que minha avó deu ao dinheiro um destino... pessoal.

 

Calou-se. Embora lutasse e tentasse ocultar o que sentia, não pôde evitar o ardente rubor que lhe tingiu as faces.

 

Foi, por certo, o espanto que durante alguns momentos roubou ao engenheiro a possibilidade de falar. Curvado para a mesa que ocupava o centro da sala, folheava, maquinalmente, a revista industrial que encontrara ao alcance da mão.

 

Porque julgou necessário dizer-mo? perguntou por fim.

 

Por temer que madame de Rollan não o fizesse.

 

Não o teria feito, com certeza. Mas isso que importância tinha?

 

O senhor devia sabê-lo.

 

Não vejo onde estava a necessidade, mas, em todo o caso, ninguém a obrigava a vir revelar-mo.

 

Deirdre levantou a cabeça num gesto tão brusco que João Lucas se calou.

 

Supõe, na verdade murmurou em voz surda supõe que seria possível eu saber uma coisa dessas e calar-me!... Saber que se considerava indigno de continuar a ocupar o seu posto e não vir comunicar-lhe a verdade? As regras mais elementares da honra o impunham. Foi este procedimento, continuou em tom mais brando a que meu pai e Elsa sempre me habituaram!

 

O engenheiro estava voltado para a janela. Mais uma vez, a sua fisionomia severa exprimia um misto de cólera e emoção que, muito comovida também, Deirdre não pôde notar.

 

Vagarosamente, voltou-se para a visitante e, num tom calmo e inexpressivo, disse:

 

Agradeço-lhe, mademoiselle. Acaba de proceder com invulgar coragem.

 

As palavras traduziam aprovação e talvez reconhecimento. Deirdre, porém, sem saber explicar porquê, sentiu-se gelada. Não contava com calorosas manifestações de gratidão. Mas, nas palavras de João Lucas, na inflexão em que as pronunciara, havia uma reserva e uma luta que, embora antagónicas, significavam a mesma coisa: completa ausência de simpatia por ela e por tudo quanto pudesse dizer ou fazer.

 

Num gesto maquinal, passou a mão pela testa, deitando para trás algumas madeixas dos lindos cabelos fulvos. Depois, voltou-se para o engenheiro e, numa atitude fria e calma, concluiu:

 

Era tudo quanto desejava dizer-lhe. Boa tarde, senhor Villiers.

 

João Lucas estremeceu e afastou-se rapidamente da porta, junto da qual se encontrava. Deirdre, muito direita, passou diante dele, mas quando poisou a mão no puxador e se dispunha a sair, ouviu-o proferir o seu nome em voz trémula:

 

Deirdre!

 

Voltou-se quase assustada. O engenheiro estava a seu lado, imóvel, muito hirto e pálido. Talvez, quando a viu disposta a afastar-se, se arrependesse por não ter sabido manifestar-lhe melhor o seu reconhecimento.

 

Num gesto imprevisto, agarrou-lhe a mão e beijou-a.

 

Obrigado, Deirdre! murmurou, deixando cair a mão que apertava entre as suas.

 

Deirdre abandonou o escritório sem que o engenheiro pensasse em a acompanhar. Saltou para o carro e, segundos depois, o automóvel branco corria a toda a velocidade, não para o Prieuré, mas ao acaso, pelos campos desconhecidos, percorrendo estradas largas onde, na vertigem da corrida, Deirdre pôde acalmar a agitação que lhe perturbava o cérebro e o coração.

 

No terraço, estavam poisados uns vinte pombos brancos. Familiarmente, saltitavam em volta da cadeira de Maud, habituados a receber da sua mão algumas migalhas de pão ou de bolo. Era esta uma das distracções da doente.

 

O pombal, gracioso torreão erguido na ala esquerda do Prieuré, estava sempre povoado por numerosos habitantes, cuja presença alegrava a pobre enferma, que passava horas a seguir com a vista o voo das aves no céu muito azul ou os seus passeios no terraço.

 

Mas, no dia seguinte, Maud abandonaria os seus amigos. Como era costume, de três em três meses, deixava o Prieuré para se instalar em Paris, na casa que madame de Rollan ainda conservava na capital, para se submeter ao tratamento imposto pelo seu médico assistente.

 

Naquela época do ano, porém, Maud receava a viagem e a permanência em Paris. Conquanto se estivesse em princípios de Junho, o calor, um calor precoce, já se fazia sentir. No Prieuré, porém, não se notava muito. As paredes grossas e as salas pavimentadas de mosaico davam-lhe certa frescura. No parque, também, a espessura do arvoredo não deixava penetrar os raios do sol. Só os canteiros de gerânios estavam, a certas horas, expostos ao calor, mas um sistema giratório de irrigação distribuía uma chuva de gotas de água, muito fina, que mantinha a relva fresca. E as flores compactas, de um vermelho ardente, pareciam gostar desta exposição e estavam sempre lindas.

 

O bando de pombos brancos ergueu-se nos ares e desapareceu com forte bater de asas. Um visitante acabava de aparecer no extremo da alameda e, ao pressenti-lo, Maud voltou-se para ele e corou.

 

Endireitou-se e, num gesto rápido, compôs a saia do vestido. Os cabelos negros que lhe desciam até aos ombros e constituíam uma moldura magnífica para o rosto pálido e magro, incomodavam-na. Deitou-os para trás e, cruzando as mãos no regaço, esperou que ele chegasse.

 

Em poucos passos, estava junto dela.

 

Suponho que parte amanhã, Maud disse João Lucas, apertando as duas mãos que ela lhe estendia E como receava ter de ficar até bastante tarde na fábrica, preferi vir dizer-lhe adeus agora.

 

Mostrava-se contente por a encontrar sozinha e, sem pressa, instalou-se numa das cadeiras, ao lado da doente. Aquele recanto do terraço, propositadamente preparado para ela, tinha um ar alegre e confortável, com o guarda-sol vistoso, as mesas graciosas, cadeiras pintadas de branco com as almofadas vermelhas. João Lucas abraçou-o com a vista e depois, sorrindo, comentou:

 

Vai ter saudades de tudo isto, embora esteja ausente pouco tempo.

 

Não terei muitas, porque a Deirdre vai comigo, desta vez.

 

O nome da rapariga, assim proferido de improviso, provocou o desagrado de Villiers. Instantaneamente, tomou uma expressão dura.

 

Se mademoiselle Morgan a acompanha...

 

Não me acompanha. Vai ter comigo a Paris daqui a alguns dias.

 

É a mesma coisa.

 

Na voz do engenheiro vibrou uma nota que impressionou Maud. Ficou uns momentos calada, com a cabeça encostada à mão direita, fixando, pensativa, o futuro cunhado. Por fim, murmurou com tristeza:

 

Não gosta da Deirdre, pois não, João Lucas? O rapaz sobressaltou-se.

 

Sim, eu sei. O seu irmão devia ter ficado a odiar Stephen Morgan por lhe ter roubado a mulher amada. Mas ela era nossa mãe tanto como da Deirdre e o João Lucas perdoou-nos, tanto a mim como... à Rosamunda... Porque é ela a única que não consegue fazer-se perdoar?

 

Que motivos tem para pensar assim? balbuciou o engenheiro.

 

Dezenas deles!... Quando uma pessoa é, como eu, fisicamente inferior afirmou, sorrindo com tristeza creio que, em compensação, Deus lhe concede certas faculdades, uma superioridade de sentir.

 

A perturbação do rapaz já se tinha dissipado.

 

Creio, principalmente, que a sua sensibilidade sofre por não encontrar nos outros uma alma como a sua, mais bondade, generosidade e indulgência.

 

Eu não sou boa, João Lucas afirmou Maud na sua voz suave e com um sorriso comovido Pelo contrário, sou terrivelmente egoísta e se conhecesse alguns dos meus sentimentos, ficaria assustado. Tenho duas irmãs e só gosto de uma delas, veja lá, embora tenha entrado há muito pouco tempo na minha vida.

 

Calou-se de repente. Lembrou-se, demasiado tarde, que essa irmã de quem dizia não gostar era noiva de João Lucas.

 

Todavia, decorridos dois ou três minutos de silêncio, continuou:

 

Confesso, francamente, que não tenho pena de a deixar nem tão-pouco à avó.

 

Separar-se de madame de Rollan e de Rosamunda por algumas semanas não deve, de facto, custar-lhe muito.

 

Trata-se de outra separação maior, João Lucas.

 

E, após ligeira hesitação, revelou:

 

A Deirdre deseja levar-me consigo para a América.

 

O rapaz ficou calado, fixando a ponta esbraseada do cigarro, que, depois de ter pedido licença a Maud, acabava de acender.

 

Mademoiselle Morgan regressa brevemente a Nova Iorque ou conta demorar-se ainda muito tempo no Prieuré?

 

Sempre a mesma pergunta! Desta vez, porém, não irritou a doente.

 

Suponho afirmou, sem desviar a vista do rosto do engenheiro que tenciona partir logo a seguir ao seu casamento.

 

Depois...balbuciou o rapaz, fazendo-se muito pálido.

 

Sim, depois do seu casamento com a Rosamunda repetiu Maud.

 

João Lucas ficou calado. Voltara a cabeça e parecia muito interessado em observar os pombos, que, sem medo, vinham poisar no terraço, um após outro. Por fim, como se tomasse uma resolução, voltou-se para a doente:

 

Queria fazer-lhe um pedido, Maud... justamente a respeito desse projecto.

 

Maud limitou-se a aquiescer com a cabeça. Villiers hesitou ainda e, finalmente, declarou com firmeza:

 

Gostaria que fizesse ver à Rosamunda como um noivado tão prolongado se torna ridículo e que será tempo de pensar na cerimónia a que há pouco aludiu.

 

Era então isso? murmurou Maud, desviando a vista. Deseja que fale à Rosamunda?

 

Desejo, sim. Faça-lhe notar que o nosso casamento foi decidido há alguns anos e ela ainda não me permitiu que lhe oferecesse o anel de noivado.

 

Não tenho a mais pequena influência sobre a Rosamunda, bem sabe, João Lucas.

 

A voz de Maud tremia. Pelo contrário, a do engenheiro era firme, calma, quase sem inflexões, demasiado até para quem faz um pedido.

 

Julgo não ser difícil demonstrar à Rosamunda que esta situação não deve prolongar-se comentou, não fazendo alusão à última frase da doente.

 

Nesse caso, peça o apoio da avó murmurou Maud Será mais fácil a Rosamunda atendê-la.

 

Já tencionava fazê-lo, Maud. Mas gostava de contar também consigo. Faz-me o que lhe pedi?

 

Não!

 

A palavra foi pronunciada num tom resoluto, quase feroz, muito diferente do tom habitual. João Lucas observou-a com espanto. Maud não desviou as lindas pupilas escuras, no fundo das quais ardia uma chama sombria. Depois explicou:

 

Não, João Lucas, não conte comigo. Não quero contribuir para a sua infelicidade. Não a abreviarei com os meus conselhos nem o precipitarei, voluntariamente, nesse inferno que será a sua vida... a vida inteira ao lado da Rosamunda. Casem, visto esse casamento estar decidido há muito tempo! Basta que sofra ao vê-lo realizado, mas não quero ser perseguida pelo remorso, pela consciência de uma responsabilidade, por pequena que seja. Não, isso não posso, João Lucas. Não poderia suportar semelhante coisa. Perdoe-me!

 

A voz sumiu-se-lhe ao proferir as últimas palavras. As faces tingiram-se de um tom mais vivo e o olhar em que o engenheiro a envolvia mais lhe aumentou a perturbação.

 

Não podiam existir subentendidos nesta manifestação de franqueza, na inesperada revelação dos sentimentos de Maud. A amizade que os unia desde crianças, os dias da infância passados juntos, quando João Lucas vinha passar as férias ao pavilhão, autorizavam estas palavras. E o engenheiro assim o considerou. Desvanecida a primeira surpresa, curvou-se para a doente e, comovido, apertou-lhe a mão.

 

Sossega, Maud murmurou, tratando-a por tu como quando eram ainda crianças Tudo quanto disseste e decidiste foi ditado pela tua amizade por mim, eu sei. Mas podes ter a certeza de que não serei infeliz.

 

Nesta afirmação vibrava uma nota resoluta e dura. A doente, porém, não a apreendeu e, em voz sufocada, continuou:

 

O seu amor pela Rosamunda cega-o, João Lucas. Mas... correndo o risco de considerar injustas e cruéis as minhas palavras, devo dizê-las antes que seja tarde.

 

Num gesto inconsciente, cruzara as mãos e apertava-as com força uma contra a outra.

 

A Rosamunda não pode ser sua mulher, João Lucas. Seria uma desgraça para os dois, repito. Conheço-a bem, melhor do que a avó, melhor do que o João Lucas, melhor do que ninguém. É o egoísmo em pessoa, a aridez do coraçSo, a própria dureza. Não tem uma qualidade que corresponda às suas e não tardará que, depois de casados, reconheça, oculta com a sua beleza, a alma mais feia que possa existir neste mundo. Talvez neste momento me considere um monstro e, imperceptivelmente, hesitou pelo menos, um ente mau, nefasto, que, devido à sua doença, tem o coração cheio de amargura e de inveja, até da própria irmã. Aceito o julgamento, se com isso conseguir salvá-lo, João Lucas Reflicta, suplico-lhe!... Este noivado prolongado servirá de pretexto para um rompimento. Não case com a Rosamunda. Tente um esforço para sufocar o seu amor. Não tardará muito que sofra intoleràvelmente por ver a sua vida unida à dela. Pelo amor de Deus, escute-me e tente compreender-me. Não deve casar com uma mulher como ela. Que mais hei-de dizer para o convencer, para lhe fazer ver claro em si, para lhe demonstrar o que será a sua vida... Não será feliz junto de uma pessoa como Rosamunda, mas, sim, de uma mulher como... Deirdre.

 

Interrompeu-se, quase assustada. O engenheiro acabava de se levantar num movimento brusco e com um gesto violento impôs-lhe silêncio. Deu alguns passos ao acaso, parou com o olhar perdido no arvoredo do parque e só decorrido algum tempo se voltou para Maud.

 

Agradeço-lhe, Maud murmurou com calma agradeço-lhe a prova de amizade e de confiança que acabou de me dar. Mas permita que não concorde com as suas afirmações. Casarei com a Rosamunda e desejo que o casamento seja realizado o mais breve possível. Suponho concluiu em voz indiferente que a minha resolução deve agradar-lhe, visto ter afirmado partir logo a seguir para a América com sua irmã.

 

Embora afirmando, esta frase interrogava. Mas a doente não lhe respondeu. Recostara-se nas almofadas e toda a sua fictícia animação se desvaneceu. Parecia mais abatida e mais fraca do que nunca. Cerrara as pálpebras, talvez para reprimir duas lágrimas prestes a brotarem. Tê-lo-ia percebido João Lucas?... Talvez, porque, em voz alta, anunciou:

 

Vem aí madame de Rollan, Maud.

 

Maud não se mexeu, mas Villiers deu alguns passos para a dona da casa e aproximou-lhe a cadeira, onde ela se sentou, agradecendo-lhe com a habitual benevolência.

 

Considerava João Lucas um rapaz de valor e nunca perdia a ocasião de lho demonstrar. Depois do desagradável incidente que provocara o pedido de demissão, o rapaz mostrara-se suficientemente compreensivo e inteligente, cheio de tacto e bom senso, para revogar a sua resolução, sem proferir uma palavra mais clara ou frase que pudesse molestá-la, mesmo ao de leve. Observando, em resumo, um silêncio discreto que provava a sua natural delicadeza.

 

Pouco importava a madame de Rollan que Villiers conhecesse, possivelmente por Maud, o destino dado às somas pelas quais se considerava responsável, nem mesmo queria pensar mais no assunto. Bastava-lhe que o engenheiro tivesse revogado a sua decisão sem provocar conversas embaraçosas, sem solicitar explicações que teriam sido bastante aborrecidas, atitudes próprias de um espírito inferior! Esse modo de proceder do engenheiro tivera como resultado aumentar a estima que já tinha por ele, estima que não receava manifestar-lhe abertamente, quando a ocasião se proporcionava.

 

Veio despedir-se, de Maud, meu caro João Lucas? perguntou É grande amabilidade a sua.

 

Telefonei ha pouco para o pavilhão para o convidar a jantar connosco, mas o meu amigo não estava.

 

Agradeço-lhe, minha senhora respondeu o engenheiro Com efeito, já havia saído de casa para vir aqui, pois receio não poder vir à noite, devido ao muito trabalho. Pela mesma razão, não posso, com certeza, aceitar o seu amável convite, o que muito lamento, acredite.

 

Madame de Rollan ameaçou-o com o dedo.

 

João Lucas... João Lucas! O meu amigo trabalha demais e abandona um pouco a sua noiva!

 

Ela queixou-se? inquiriu o rapaz com a mais absoluta calma.

 

Não. A Rosamunda é muito sensata. Mas o bom senso e a inteligência não significam resignação.

 

Dela depende criar entre nós laços mais estreitos. Já lhe pedi para fixar a data do nosso casamento. Se aceder ao meu pedido, nunca mais terá de me acusar de abandono.

 

Esta resposta directa atrapalhou um pouco madame de Rollan. No entanto, depressa recuperou a calma e respondeu, sorrindo:

 

Como sempre, tem razão, meu amigo. Quer que fale à Rosamunda?

 

Ia pedir-lhe para o fazer.

 

Falarei, está combinado.

 

Puxando para si um jornal ilustrado, madame de Rollan começou a abanar-se com gestos indolentes, cheios de elegância, fazendo cintilar ao sol a bela ametista que usava no anular da mão direita.

 

Está hoje muito calor observou por fim Não sei como te apetece estar no terraço a esta hora, Maud.

 

A neta não lhe respondeu. De resto, durante toda a conversa estivera alheada, com as pálpebras cerradas como se estivesse a dormir.

 

Com efeito, desde o começo da tarde, o calor aumentara muito. Nem a mais leve brisa agitava a copa das árvores. Embora o sol brilhasse, o céu cobria-se pouco a pouco de espessas nuvens e o ar tornava-se pesado, indicando a aproximação da trovoada.

 

Não posso ficar aqui ao pé de ti, Maud declarou madame de Rollan com ar aborrecido. Lamento ser obrigada a deixar-te sozinha, mas não posso suportar esta temperatura.

 

Não fico só declarou a doente O João Lucas faz-me companhia. De resto, a Deirdre não deve tardar. Foi ao quarto escrever umas cartas e...

 

Não esperes por ela. O Didier propôs-lhe esta manhã uma visita às fábricas e a tua irmã decidiu-se a acompanhá-lo.

 

Estranho a resolução. A Deirdre não me falou a esse respeito.

 

Fugitivo e irónico sorriso perpassou pelos lábios do engenheiro, que ergueu os olhos para a janela do quarto da Americana. Vendo-o junto de Maud, quisera evitá-lo e por isso modificara os seus projectos.

 

Mal este pensamento aflorou a mente do rapaz, o roncar de um motor, partindo do lado da garagem, interrompeu o ssilêncio. Quase no mesmo instante, o carrinho branco, com estofo azul, surgiu na alameda que se estendia em frente do Prieuré. Numa velocidade louca, passou diante da casa e desapareceu sob a espessa abóbada de folhagem. A dona da casa dirigiu aos dois ocupantes do carro gracioso gesto de adeus, mas só Didier lhe correspondeu. Deirdre ia ao volante e por certo muito ocupada para poder olhar para o terraço.

 

Madame de Rollan soltou um suspiro de satisfação. Estava radiante e, voltando-se para João Lucas, num impulso de franqueza, poisou-lhe a mão no braço e inquiriu a meia voz:

 

Então que diz a ”isto”, meu amigo?

 

A ”isto” o quê? repetiu ele sem compreenderA que se refere?

 

À nossa querida Deirdre e... ao Didier.

 

E depois?

 

Depois!... Não lhe parece que nasceram um para o outro? Ambos belos, novos, desportivos, dinâmicos.

 

Avó!

 

A exclamação de Maud traduzia o mais profundo espanto. Madame de Rollan, como se não ouvisse a interrupção, continuou:

 

Se Deus permitisse que, dessa forma, a Deirdre ficasse sempre connosco! Se Deus permitisse, meu caro João Lucas, que o casamento a que há pouco nos referimos e que o meu amigo deseja, e com muita razão, se realize o mais depressa possível, fosse seguido por outro, igualmente auspicioso a todos os respeitos

 

A Deirdre casar com o Didier! exclamou Maud, que, por momentos, tolhida pela surpresa, não conseguira falar. Admite seriamente essa ideia, avó?

 

Porque não? Tenho, por acaso, o hábito de falar à toa e não serei bastante sensata para saber, melhor do que ninguém, o que convém à minha neta? Os dois parecem ter nascido um para o outro, repito, tudo os impele a entenderem-se e a casarem. O desgosto de Didier, atenuado pelo tempo, acabará por se desvanecer de todo, pelo facto de Deirdre ser irmã de Irene.

 

E a fortuna de mademoiselle Morgan será de grande utilidade para a fábrica comentou João Lucas com ar indiferente.

 

Madame de Rollan teve ligeiro sobressalto.

 

Tem razão, meu amigo concordou Mas essas questões materiais são secundárias e não influem por forma alguma na alegria que me daria este casamento.

 

Pois com certeza aprovou o engenheiro, levantando-se. Tenho uma tarde muito ocupada, Maud. Perdoe-me se não fico mais um bocadinho junto de si.

 

A doente estendeu-lhe a mão com um sorriso comovido.

 

Agradeço-lhe a visita, João Lucas.

 

Não quer falar com a Rosamunda? perguntou madame de Rollan, levantando-se também.

 

Lamento não poder demorar-me agora, minha senhora. Mas esta noite, depois do jantar, conto estar mais livre e poder vir aqui.

 

Afastaram-se os dois, deixando a doente sozinha. Maud segui-os com a vista. Subiram lado a lado a escadaria do terraço e depois despediram-se. Madame de Rollan entrou em casa e o engenheiro desceu rapidamente os poucos degraus que o separavam do parque, meteu pela alameda e em breve desapareceu. Esmagada por súbito cansaço, Maud cerrou as pálpebras. Aquela luta com João Lucas, para o defender, deixara-a esgotada. Tinha dispendido, para a iniciar e levar até ao fim, tanta energia e tanta violência que se sentia extenuada. E tudo em pura perda! Era preciso que o engenheiro, a razão e a sensatez personificadas, estivesse completamente cego pelo amor para não descobrir o verdadeiro carácter da noiva!

 

A inutilidade dos seus esforços para reter João Lucas à beira do abismo em que ia mergulhar para toda a vida, desolava Maud. Santo Deus! Estaria definitivamente vencida? Não poderia fazer coisa alguma, não encontraria meio de impedir que o irreparável se realizasse?

 

João Lucas amava Rosamunda e um coração altivo como o seu quando se entregava era para sempre. Mas como seria dilacerante a desilusão, para ele mais do que para qualquer outro, e que vida de amargura e de arrependimento se seguiria, a essa desilusão?

 

No coração de Maud não existia sombra de remorso pelas palavras proferidas pouco antes, pela tentativa a que se arriscara. O facto de ter tentado separar dois entes que estavam unidos por compromissos ou, pelo menos, ter procurado separá-los, naquela circunstância, não podia classificar-se de indigno nem censurável, porque esses dois entes caminhavam, não para a felicidade, mas para a desventura, e um deles, pelo menos, merecia ser salvo.

 

Maud não tentava negar o amor que dedicava ao noivo da irmã, mas, ao mesmo tempo, fazia justiça a si própria. Purificado, sublimado e transformado pela consciência do seu estado e do seu abandono, esse amor não era egoísta nem material. Atingira regiões mais altas e, esquecendo-se de si mesmo, só desejava a felicidade do homem amado. Teria desejado e contribuído para o seu casamento com Rosamunda, se esse casamento o fizesse feliz. Conformava-se com a ideia de ver outra viver ao lado de João Lucas, radiante e ditosa, se essa outra fosse digna de ser amada por ele. E Maud, cega pela violência dos seus sentimentos, Maud, com as suas indignações e impaciências, por vezes arrebatamentos de cólera, não podia reconhecer ser ela própria uma dessas almas de eleição, um desses entes sublimes que raramente ou mesmo nunca se encontram neste Mundo.

 

Imóvel, com os olhos fechados, deixava o pensamento trabalhar. Desde que, aos dez anos, uma doença nos ossos se declarara, roubando-lhe a saúde, a impetuosidade, o vigor da mocidade e todas as esperanças de futuro, tinha muitas horas de profundo recolhimento. Se, por um lado, receava os dias de abandono, quando madame de Rollan e Rosamunda, absorvidas pela vida de sociedade e as frequentes viagens a Paris, por tudo quanto estava interdito a Maud, a deixavam completamente só, por outro, agradava-lhe a calma e o silêncio, os minutos vividos com intensidade pelo pensamento. Estava num desses momentos e por isso não conseguiu evitar um estremecimento quando alguém lhe poisou a mão no ombro. Voltou-se, irritada.

 

Santo Deus!... Como estás nervosa! murmurou Rosamunda.

 

Com modos indolentes, deu a volta à cadeira de repouso onde estava a irmã e foi instalar-se na poltrona pouco antes ocupada por madame de Rollan. Envergava elegante vestido de seda leve, num tom verde claro que mais fazia sobressair a brancura da pele. Os cabelos negros, cortados muito curtos, penteados para trás em caracóis leves, emolduravam-lhe a testa arqueada e o oval perfeito do rosto.

 

Com olhar indiferente, abraçou o terraço e depois murmurou:

 

Pareceu-me ver o João Lucas aqui, junto de ti. Enganei-me?

 

Não, não te enganaste. Calculando não poder vir hoje à noite, resolveu vir agora despedir-se de mim.

 

Podia, pelo menos, ter-me avisado da sua presença.

 

Maud não lhe respondeu. Pressentia que a irmã procurava armar discussão e desejava evitá-la a todo o custo.

 

Onde está a Deirdre? indagou Rosamunda, logo a seguir.

 

Foi visitar a fábrica com Didier.

 

Nesse caso, João Lucas poderia demorar-se mais algum tempo.

 

O olhar que a doente lhe dirigiu traduzia tão completa imcompreensão desta frase que Rosamunda prosseguiu:

 

Com certeza já notaste que as visitas do João”” Lucas se tornaram mais raras desde que a Deirdre chegou.

 

Maud franziu a testa. Alguns segundos de reflexão bastaram para reconhecer a justiça da observação. Além disso, não tinha ela dito, poucos minutos antes, dirigindo-se a João Lucas: ”Não gosta da Deirdre, pois não, João Lucas?”

 

No entanto, no seu pensamento, estas palavras significavam indiferença e não afastamento, antipatia, como as de Rosamunda. Encolheu os ombros.

 

Se o João Lucas vem aqui menos vezes, devemos atribuir a culpa ao trabalho e não a Deirdre. Não encontro motivos nem vejo o que possa ter contra a nossa irmã.

 

Sem termos agravos especiais contra alguém, pode sentir-se a seu respeito antipatia e repulsa.

 

Eram esses os termos que, pouco antes, tinham acudido ao espírito de Maud.

 

Antipatia por Deirdre, repulsa exclamou Por que motivo seria João Lucas o único a experimentar esses sentimentos?

 

Rosamunda encolheu os ombros.

 

Ignoro-o... Ou, antes, explica-se muito bem. João Lucas é um rapaz sério e tudo, nessa Americana, o irrita: os modos livres, o orgulho, a vaidade da sua raça, no pai, a simplicidade afectada, a indiferença voluntária por tudo quanto a fortuna pode proporcionar-lhe. Não significará uma espécie de desprezo por nós e pela nossa casa, aquele trajo, os vestidos brancos, os dedos sem anéis, o pescoço nu, sem um colar de pérolas, pelo menos?... João Lucas não deixou de notar estes pormenores, acredita, e não tem, como nós, motivos para os acolher com indulgência.

 

Maud olhou para a irmã com uma espécie de comiseração. Mas a outra não lhe deu tempo a falar e prosseguiu:

 

Além disso, sem os conhecer exactamente, sei ter havido entre eles desacordos, a propósito da fábrica. Deirdre mostrou-se, creio eu, bastante interesseira e exigente. Tanto que, ainda não há muito tempo, João Lucas esteve disposto a abandonar a direcção da fábrica. Com tudo isto, deves concordar não ser natural que sinta pela nossa irmã a ternura e a exaltada simpatia que tu lhe dedicas.

 

Calou-se. Enquanto falava, com ar desdenhoso, estendeu a mão, abriu a caixa que estava em cima da mesa e escolheu um cigarro. Depois acendeu-o com precioso acendedor de oiro, com as suas iniciais gravadas, que, depois de o ter utilizado, meteu na algibeira do vestido. Com ar indolente, recostou-se na cadeira e seguiu com olhar distraído as volutas azuladas que subiam para o céu. E como Maud, trémula de cólera, não conseguisse falar, interrogou:

 

Não estás ao facto dessas... divergências, dessas dissenções?... Chega a ser ridículo, mas a nossa barrinha de oiro ainda conserva interesses na fábrica e, com certeza, apesar do seu desprezo pelo dinheiro, deve ter demonstrado a sua avidez e avareza. Pelo menos, foi o que depreendi, porque a avó, decerto por bondade, mostrou-se retraída quando a interroguei a esse respeito. Quanto a João Lucas, a sua atitude e respostas vagas foram ditadas pelos mesmos sentimentos e delicadeza. Dessa forma, não consegui obter os esclarecimentos que desejava sobre os motivos que o tinham impelido a desejar abandonar a fábrica, logo seguidos pela não menos inexplicável decisão de continuar no seu posto. O único ponto sobre o qual não me restam dúvidas nem preciso que me indiquem, é a origem de todas estas dificuldades e aborrecimentos, industriais e de família. É Deirdre... sempre a Deirdre. Ela e sempre ela!

 

Calou-se depois de soltar uma gargalhadinha irónica. Mas então Maud recuperou o uso da palavra. Aprumou-se, apoiando as mãos nos braços da cadeira.

 

Sim, a Deirdre, sempre a Deirdre, em tudo, aqui, para tudo e para todos, dizes bem, Rosamunda. Desejaria evitar-te a vergonha que eu própria senti, mas reconheço ser impossível. Fica então sabendo que a Deirdre tem todos os direitos no Prieuré porque, há alguns anos, é ela, ou antes, foi Stephen Morgan quem pagou tudo. Tudo! repetiu com violência Tudo, desde os cigarros que fumas, ao acendedor de oiro que usas, aos teus vestidos que não são tão simples como os dela e ao colar de pérolas que nunca deixas de trazer ao pescoço.

 

Calou-se, extenuada pela violência que tinha empregado. Rosamunda ficou de testa franzida, num esforço para compreender. Depois acabou por esboçar um sorriso incrédulo.

 

Se bem compreendo as tuas palavras, queres dizer que vivemos das esmolas da Deirdre?

 

É quase isso.

 

E os consideráveis rendimentos da fábrica? Dessa vez foi Maud quem soltou uma gargalhada irónica e cortante.

 

Os rendimentos da fábrica! repetiu Pois não vês que a fábrica atravessa uma crise terrível que dura há muitos anos e luta desesperadamente para poder manter-se?... Sem os esforços sobre-humanos do João Lucas, sem o seu trabalho incessante, já teria morrido. Os consideráveis rendimentos que mencionaste não dariam para manter a vida no Prieuré, no pé em que está organizada. E logo que me revelaram a origem dos nossos recursos, não levei muito tempo a compreender, acredita.

 

Delicioso! murmurou Rosamunda numa voz sem timbre Toda a gente está ao facto da situação da casa de Rollan, menos eu. Foi o João Lucas quem te informou? perguntou, decorridos alguns instantes.

 

Não; por muito estranho que te pareça, o que sei devo-o às informações da avó e do Didier. Mas o que ninguém me disse, e eu adivinhei sem custo, é que, sem a dedicação do teu noivo, as fábricas de aço de Rollan já teriam passado para outras mãos!

 

Durante alguns momentos, Rosamunda conservou-se calada, com a cabeça pendida para o peito. Tinha a certeza de que Maud dizia a verdade e essa própria certeza provocava-lhe uma onda de cólera e de revolta. Não desejava saber de que maneira devia a Deirdre o bem-estar, o luxo, a vida larga, sem preocupações materiais e ociosa que levava. Sabia apenas que, exactamente pelo reconhecimento que devia a essa irmã estrangeira, que mais estrangeira lhe parecia desde que ouvira a revelação, a considerava como uma inimiga.

 

Portanto, estou elucidada. Vivemos à custa de mademoiselle Morgan e foi ela própria quem o disse ao João Lucas. Mas então ele nunca suspeitou? Normalmente, devia ser o primeiro a saber que os rendimentos da fábrica não chegavam para nos manter.

 

Dizes muito bem. Ele sabia, de facto, mas supunha que a avó tivesse outros recursos, rendimentos de acções, papéis de crédito, sei lá que mais.

 

E tinha razão, como vês ironizou Rosamunda.

 

Quanto a revelar ao João Lucas a parte que a sua fortuna tomava na nossa prosperidade, foi Deirdre quem o fez, de facto, mas não com as intenções maldosas que lhe atribuis.

 

Rosamunda pôs-se bruscamente de pé.

 

Quais foram então essas intenções, não me dirás? Quis talvez engrandecer-nos, aumentar o brilho da nossa honra aos olhos de João Lucas? Pobre pateta! Bem se vê que a tua doença te afastou e separou da vida! Se assim não fosse, saberias que não existe rapariga, mesmo orgulhosa e indiferente, mesmo americana, que não se sinta tentada por esta aventura: conquistar o noivo da irmã.

 

O olhar que Maud ergueu para a irmã traduzia o mais profundo espanto.

 

Tu admites uma coisa dessas?... Tu acusas Deirdre!

 

Mas em breve a indignação sobrelevou o espanto e exclamou:

 

Medes os outros por ti, Rosamunda?

 

Um sorriso trocista descerrou os lábios rubros. Rosamunda curvou-se para a irmã.

 

E tu disse a meia voz pelo contrário, talvez não descubras os sentimentos dos outros, avaliando-os pelo que tu própria sentes.

 

Por momentos, as pupilas das duas irmãs confundiram-se. As de Rosamunda reflectiam ironia, as de Maud, perturbação, quase terror. Por fim, Rosamunda endireitou-se.

 

Nunca te receei por causa da tua doença, Maud, embora tivesse descoberto, há muito tempo, a natureza dos teus sentimentos pelo João Lucas. Com a Deirdre é diferente concluiu, de dentes cerrados. Ela que tome cautela! Apesar dos direitos que dizes ela ter sobre nós e a sua suposta generosidade, não hesitarei em desmascará-la.

 

Atirou para o chão a ponta do cigarro, esmagou-a com o elegante sapato de camurça verde e depois, sem mais se preocupar com Maud, deu meia volta, dirigiu-se para casa, empurrou uma das portas envidraçadas e desapareceu à vista da irmã.

 

A pobre doente soltou um gemido e ocultou o rosto nas mãos. Tinha a impressão de que, gravada a letras de fogo nas suas faces, se podia ler a acusação da irmã. As últimas palavras de Rosamunda, o seu implacável desdém, a descoberta do seu imenso amor que a noiva de João Lucas tinha feito, tudo isso a transtornava. Parecia-lhe que seria difícil encontrar cantinho bastante retirado e seguro para ocultar a sua vergonha e desespero.

 

Agarrou nas muletas e levantou-se com dificuldade. Não podia ficar ali nem mais um minuto, nem ali nem debaixo dos tectos que abrigavam Rosamunda. Se no dia seguinte teria de abandonar o Prieuré, porque não partir imediatamente?

 

Poderia fazê-lo sem avisar ninguém. Havia dois anos apenas, devido ao seu estado de saúde, que deixara de guiar e ter carro próprio. Mas a perna metida no aparelho não representava obstáculo à prática de um desporto de que tanto gostava e a distraía.

 

O mais depressa que lhe foi possível, atravessou o terraço, depois o vestíbulo e alcançou o seu quarto. As malas, prontas desde essa manhã, já tinham sido arrumadas no carro que, no dia seguinte, devia levá-la.

 

Maud sentou-se à secretária e, febrilmente, escreveu algumas palavras num papel que meteu num sobrescrito. Tocou para chamar a criada de quarto e quando esta regressou, depois de ter levado, por sua ordem, a carta ao quarto de Deirdre, pediu-lhe que a ajudasse a vestir.

 

Partimos imediatamente, Marta.

 

Mas... talvez a mademoiselle ignore que o Raul foi à fábrica buscar umas peças para o carro de corridas do senhor Didier.”

 

Não preciso de motorista, Marta. Eu mesmo guiarei.

 

A mademoiselle quer...

 

O espanto e também, devemos dizê-lo, uma pontinha de medo alteravam a voz da criada de quarto, Com energia, Maud confirmou:

 

Quero, sim, Marta. Aviemo-nos. Sentia que os seus nervos tinham atingido a máxima tensão e estavam prestes a fraquejar. E não desejava, por forma alguma, que tal acontecesse ’ enquanto estivesse no Prieuré. Em Paris, longe de Rosamunda, poderia ceder ao sofrimento e chorar, mas, para isso, impunha-se não perder tempo.

 

Pouco depois, Maud e a criada desciam pela escada de serviço e alcançavam a garagem. Auxiliada por Marta, Maud instalou-se ao volante de um dos carros, um cupé escuro, na caixa do qual se encontravam as malas. Sem uma palavra, a criada de quarto sentou-se-lhe ao lado e, silencioso e suave, o automóvel saiu da garagem, contornou o Prieuré e meteu pela alameda do parque.

 

Deirdre entrou no quarto e, vagarosamente, aproximou-se da janela aberta de par em par. O calor tornava-se sufocante, pesado, e, de minuto a minuto, as nuvens avolumavam. Encostada à balaustrada de ferro forjado, deixou que o olhar vagueasse pelo arvoredo do parque e depois mais longe, pelos campos. Sentia-se abatida sem saber porquê.

 

O terraço, em baixo, estava ermo e vazio. Com receio da trovoada, os criados tinham retirado mesas, cadeiras e chapéus de sol. Com efeito, sentia-se que a trovoada que durante toda a manhã se fora aproximando estava agora eminente.

 

Deirdre passou a mão pela testa húmida de suor. O mal-estar e aquela espécie de fadiga que a acabrunhavam, resultavam, sem dúvida, da electricidade que sobrecarregava a atmosfera e também do barulho das máquinas, durante a visita à fábrica. Contudo, a sua habitual franqueza obrigava-a a confessar a si própria que o mal-estar e a fadiga não era a primeira vez que os sentia.

 

- Vamos, julgo que já é tempo de partir. O ar da França não me convém.

 

Por momentos, recordou a saúde moral e física, a sua firmeza, equilíbrio dos nervos, faculdades que sempre possuíra e agora iam desaparecendo pouco a pouco, via-se obrigada a reconhecê-lo. A calma, saudável e alegre Deirdre estaria transformada numa menina nervosa que se fatiga com uma visita de duas horas a uma fábrica e treme com a aproximação da trovoada?

 

Não, mil vezes não! protestou em voz alta.

 

Uma única coisa, ou, antes, uma única pessoa a prendia ao Prieuré: Maud. Mas como a irmã acedera a acompanhá-la, coisa alguma se opunha à partida que Deirdre desejava de todo o coração.

 

Ao empreender a viagem, cedera aos pedidos de Elsa, ao seu empenho num reatamento de relações entre Deirdre e a sua família francesa. Mas a experiência falhara... não completamente, pois com ela adquirira uma verdadeira irmã.

 

Pois bem! Impunha-se partir, partir sem demora, levando Maud e deixando mergulhar no esquecimento recordações, decepções e pesares...

 

Pesares... saudades! Impaciente, saiu da janela. Era preciso que antes de abandonar o Prieuré conseguisse fugir de si mesma e, acima de tudo, nunca mais fizesse daqueles exames íntimos, auto-análises, estudos minuciosos dos seus sentimentos e estado de alma, tão perigosos todos.

 

Foi bater à porta do quarto de Elsa, contíguo ao seu e onde, quase sempre, a amiga se encontrava.

 

Mademoiselle Gauthier não compartilhava a vida do Prieuré. Sentia-se apenas tolerada e só por causa de Deirdre continuava em casa de madame de Rollan, embora possuísse, na vila, casa própria, que, na altura da partida para a América, tinha alugado. As pessoas que a habitavam, bondosas e amáveis, por certo a teriam acolhido, mas sabia que com isso ia entristecer Deirdre e não o fez.

 

Por outro lado, não tinha família que lhe desse pretexto a ausentar-se. Desta forma, para fugir à má vontade e inimizade de madame de Rollan, conservava-se o mais tempo possível longe das suas vistas.

 

Senti-te entrar e ia pedir-te para dares uma vista de olhos por tudo isto disse Elsa, designando o maço de cartas poisado na secretária, diante dela, cartas que se dispunha a separar.

 

Desde a instalação das duas no Prieuré, Elsa assumira o pesado encargo de responder a todas as cartas recebidas da América, desempenhando assim o cargo de secretária e excelente conselheira.

 

Em Nova Iorque, os negócios de Deirdre Morgan estavam entregues a homens competentes que dirigiam as fábricas e velavam pelos seus interesses. Mas certas iniciativas não podiam ser tomadas sem o seu consentimento e aprovação, sem a sua assinatura. E Elsa, para destruir o último argumento oposto por Deirdre à viagem à Europa, não hesitara em encarregar-se de manter o contacto com os escritórios Morgan, encargo que desempenhava com competência.

 

Maquinalmente, Deirdre pegou nalgumas cartas e papéis que, sobre a secretária, aguardavam as suas decisões. Mas logo os abandonou, num gesto de cansaço.

 

Mais tarde, Mamie. Estou mal disposta.

 

Vê isto, pelo menos insistiu Elsa, passando-lhe uma carta para a mão. Um consórcio explicou ainda-propõe-se comprar as fábricas e faz a sua oferta, como podes verificar.

 

Designava a quantia mencionada na carta.

 

Respondeste?

 

Respondi que as fábricas não estavam à venda.

 

Fizeste bem, Mamie aprovou Deirdre, poisando a folha de papel. Lá começa a trovoada acrescentou, estremecendo.

 

Com efeito, ouviu-se o primeiro trovão; logo a seguir a chuva começou a cair em gotas grossas, pesadas.

 

Deirdre foi ao quarto fechar as janelas. Na altura em que se dispunha a voltar para junto de Elsa, ficou imobilizada pelo espanto. Em cima da mesa, estilo Império, que lhe servia de toucador, viu um sobrescrito com o seu nome. Conquanto não o tivesse notado ainda, não duvidou que o tivessem posto ali durante a sua visita à fábrica.

 

Com precipitação, rasgou-o e leu as linhas traçadas na folha de papel, numa caligrafia irregular, febril. A irmã comunicava-lhe a sua imediata partida para Paris e pedia-lhe que fosse ter com ela logo que pudesse. Não lhe dava explicações nem lhe revelava a causa da inesperada partida. Deirdre ficou inquieta. Maud, apesar de doente, não era caprichosa nem dada a fantasias. Não sabia como explicar aquele gesto.

 

Quando, pouco antes, regressara da visita à fábrica, onde deixara Didier, tinha notado a falta do automóvel escuro e também a do carro de corridas do cunhado. Mas não ligou grande importância ao facto. Muitas vezes, os carros eram levados para a fábrica, onde as reparações se tornavam mais fáceis. Compreendia agora que, na altura do seu regresso, Maud já tinha partido.

 

Como tivesse ficado parada diante do toucador, a criada de quarto que madame de Rollan pusera ao seu serviço entrou.

 

A mademoiselle já chegou? murmurou.

 

Como vês, Marcela. Admiras-te porquê?

 

O Raul supunha que mademoiselle Morgan tivesse utilizado o carro...

 

O Raul!... Mas onde está ele?

 

Chegou agora da fábrica. E como, ao entrar na garagem, não viu o automóvel preto...

 

Calou-se, admirada com a atitude de Deirdre.

 

Esta ficara um instante pensativa, de testa franzida. Conquanto lhe parecesse impossível, era evidente que Maud partira sem motorista e ela mesma conduzia. Maud, fraca e doente, aleijada e nervosa, corria as estradas com um tempo daqueles.

 

Novo trovão abalou o Prieuré. Recuperando toda a sua energia, Deirdre voltou-se para a criada de quarto e pediu:

 

Dê-me o impermeável, Marcela.

 

Logo que o vestiu, dispôs-se a sair. Mas, antes, recomendou:

 

Madame de Rollan deve ignorar o que se passa. Vá dizer isto ao Raul. Peça-lhe também que encha os reservatórios do meu carro e o examine com cuidado. Quanto ao resto, que não se preocupe.

 

Enquanto a criada se retirava para ir cumprir as ordens, Deirdre entrou no quarto de Elsa e antes que esta tivesse tempo para se admirar do seu trajo, explicou:

 

Vou sair, Mamie. Não te aflijas por minha causa. A Maud cometeu a imprudência de partir sozinha, ao volante do carro. Não posso deixá-la arriscar assim a vida. Vou atrás dela.

 

Outra que não fosse Elsa teria soltado exclamações, feito mil recomendações e dado conselhos de prudência. Mas não era esse o seu género. Limitou-se a perguntar:

 

Sabes que direcção tomou?

 

A de Paris, naturalmente.

 

Madame de Rollan está ao facto do que aconteceu?

 

Não.

 

Devo dizer-lhe tudo se, na altura do jantar, ainda não tiveres voltado?

 

Naturalmente. Mas o mais tarde possível.

 

Está bem, minha filha. Podes confiar em mim. Pouco depois, o automóvel de Deirdre, com a capota descida, corria pela estrada que, uma hora antes, Maud seguira.

 

Deirdre passou pela fábrica e, cem metros adiante, parou. Um jardim que, mesmo sem lá ter entrado, conhecia bem, estendia-se à borda da estrada. Saltou do carro, empurrou a cancela, que cedeu imediatamente, e correu pela ruazinha alagada até ao pavilhão.

 

Quando chegou à porta, esbaforida, ofegante, bateu repetidas vezes com a aldrava de bronze. Foi a criada de João Lucas quem apareceu imediatamente. Mas, por certo, lamentou a sua solicitude, porque, ao ver Deirdre, esboçou o gesto de fechar a porta.

 

O senhor Villiers está? inquiriu Deirdre.

 

Não, está na fábrica.

 

Perdoe-me se insisto. Trata-se de um caso muito grave. E da fábrica mandaram-me para aqui concluiu, corando ligeiramente pela inocente mentira.

 

A mulher não lhe respondeu, fixando-a com olhar sombrio. Havia nesse olhar, na expressão do rosto contraído, em toda a sua atitude, qualquer coisa de hostil e de defensivo.

 

Quem não a conhecesse poderia tomá-la por uma parenta de João Lucas. Alta, muito direita, correctamente vestida, os cabelos grisalhos bem penteados, teria um aspecto agradável e digno se a evidente perturbação não a transtornasse.

 

Enganaram-na murmurou.

 

E, mais uma vez, esboçou um movimento para se retirar.

 

Se alguém me engana é a senhora! protestou Deirdre, de dentes cerrados. Sei que o senhor Villiers está em casa e não saio daqui sem lhe falar!

 

Ao ouvir esta declaração, a mulher deitou fora a máscara. Numa voz surda, ordenou:

 

Vá-se embora!... Vá-se embora! repetiu ao ver Deirdre imobilizada pelo espanto. Vem semear a desgraça nesta casa, também? Basta uma vez. Nós já pagámos o tributo à sua família, e bem pesado ele foi. Tem dinheiro, muito dinheiro, eu sei. Ganho como? Nunca tentou sabê-lo, pois não?... Supõe que esse dinheiro pode fazer-nos esquecer quem é? Supõe que ele lhe dá direito sobre tudo e todos, mesmo neste pavilhão onde já uma vez se atreveu a entrar? Pois desiluda-se. Se existe neste inundo uma casa onde nunca devesse entrar, era esta. Se existe um homem em cujo caminho nunca deveria atravessar-se, é o homem que mora aqui. Esse homem, fique sabendo, só pode sentir por si ódio e desprezo. Nunca, faça o que fizer...

 

Calou-se bruscamente. No primeiro andar abriu-se uma porta e alguém saiu para o patamar. Depois a voz do engenheiro interrogou:

 

Quem é, Amélia?

 

A surpresa e a curiosidade imobilizaram a criada e emudeceram-na. Intimamente, devia amaldiçoar o arrebatamento de cólera que a impelira a elevar a voz a ponto de João Lucas a ouvir. O engenheiro não recebeu, portanto, resposta que o elucidasse.

 

Deirdre aproveitou aqueles momentos de hesitação. Continuava fora da porta, parcialmente abrigada por pequeno alpendre de vidro. Contudo, aquela situação não podia eternizar-se.

 

Posso subir, João Lucas? perguntou, elevando a voz.

 

Teve a impressão de que o rapaz abafava uma exclamação. Mesmo assim, desceu imediatamente para a receber. Sem hesitar, Deirdre entrou, passou diante da criada, que parecia petrificada pelo espanto e correu para o engenheiro.,

 

Embora tivesse afirmado a madame de Rollan e a Maud ter a tarde muito ocupada, naquela altura não parecia preocupado com trabalho importante, mas apenas com uma conferência de contas, talvez. Em cima da secretária viam-se alguns papéis espalhados. A cadeira estava arredada e a porta do cofre-forte, embutido na parede, aberta de par em par, indicava que os papéis que naquele momento interessavam o engenheiro cartas, aparentemente tinham sido retiradas dali.

 

Com movimentos rápidos, João Lucas aproximou-se da secretária, meteu os papéis na pasta e, depois de ter hesitado ligeiramente, atirou-a para uma das gavetas. Depois fechou o cofre e cobriu a porta com o xaile bordado. Tendo concluído todos estes preparativos, voltou-se para Deirdre e só então notou a alteração do seu rosto. Por sua vez, empalideceu.

 

Aconteceu alguma coisa? perguntou. Hesitou dois ou três segundos e depois acrescentou:

 

A Amélia ofendeu-a?

 

Deirdre, de pé, estava encostada às costas de uma cadeira. A mão tremia-lhe e toda a firmeza e arrogância que opusera às palavras insultantes da criada se tinham desvanecido. Teve de fazer violento esforço para vencer a sua fraqueza.

 

Não tem importância respondeu por fim, com um gesto imperioso que, mais do que as palavras, traduzia o desejo de não falar no incidente Mas, de facto, aconteceu qualquer coisa e isso me trouxe aqui. A Maud teve a imprudência de partir para Paris, sem levar motorista. É ela quem guia o carro.

 

Não se tornaram precisas mais explicações. Villiers compreendeu imediatamente o que Deirdre esperava dele. Não pensou mesmo por que motivo ela o procurara em vez de se dirigir a Didier ou a qualquer outro que pudesse auxiliá-la. Limitou-se a dizer:

 

Espere um instantinho.

 

Saiu do escritório e voltou quase logo, vestindo um impermeável, do qual apertou o cinto e levantou a gola.

 

Tem o seu carro, não é verdade?

 

Tenho. Deixei-o à porta do jardim. Não conheço as estradas continuou, pensando, pela primeira vez, que deveria explicar ao engenheiro as razões que a tinham impelido a procurá-lo. Receio perder-me no meio deste temporal.

 

João Lucas concordou com a cabeça. Tinha aberto a porta e afastou-se para o lado a fim de deixar Deirdre passar.

 

Não se preocupe. Eu conheço-as bem tranquilizou.

 

Desceram depressa, atravessaram o corredor, deserto naquela altura, saíram para o jardim e, a correr, alcançaram o carro.

 

A trovoada atingira a máxima violência. Tratava-se de um verdadeiro temporal, quase um furacão. A chuva e o vento, unindo os seus esforços, pareciam querer destruir tudo, num verdadeiro cataclismo.

 

A estrada estava transformada num rio. Em certos pontos, os valados, obstruídos talvez por derrocadas de terra, não absorviam a água, que chegava até ao estribo do carro. Com um ruído surdo, a chuva batia na capota e formava, diante do pára-brisas, uma cortina tão espessa que Deirdre mal via a extremidade do capot. Era preciso que o carro fosse muito bem construído para que, debaixo de um dilúvio daqueles, não metesse água.

 

João Lucas, com o rosto colado à vidraça, tentava descobrir o caminho. Mas, envoltos em verdadeiras trombas de água, os dois viajantes estavam tão separados do exterior como se corressem num túnel.

 

Uma rajada mais violenta atirou com o carro para a esquerda. Deirdre, excelente volante, evitou a derrapagem e, sem afrouxar, retomou o meio da estrada.

 

Desde o instante da partida, os dois não haviam trocado uma palavra. Naquela altura, porém, como a tormenta recrudescesse, João Lucas observou:

 

Esta corrida é uma loucura. Devia opor-me.

 

Tem medo? inquiriu ela, sem voltar a cabeça.

 

Não, não é isso. Ou, antes, não tenho medo por mim.

 

Se é por mim, pode estar sossegado. Calou-se um instante e depois, com voz alterada, afirmou:

 

Não poderia ter um minuto de sossego, sabendo Maud à mercê deste temporal.

 

Durante breves segundos, o olhar de Villiers abandonou a estrada para observar o rosto da companheira. Mas só lhe via o perfil e pela contracção dos lábios pôde avaliar-lhe o estado de espírito: ansiedade, aflição, receio, mas receio por outra, não por si. Nenhum indício de medo pelo perigo que corriam.

 

Conhece o motivo que impeliu Maud a executar este projecto insensato? interrogou. Há muitos anos que o médico a proibiu de guiar.

 

Nada sei afirmou Deirdre Sei apenas que a Maud não se encontra em estado de realizar tão grande trajecto, principalmente com este tempo. Suponha que é vencida por súbita fraqueza? Quem poderá socorrê-la? Desde que saímos de casa ainda não encontrámos um carro.

 

Tem razão concordou João Lucas, que, no mesmo instante, gritou:

 

Cuidado!

 

Deirdre travou bruscamente, evitando enorme ramo quebrado que obstruía a estrada. Teve de fazer marcha atrás e passar rente ao talude, a fim de tornear o obstáculo. Andou ainda alguns metros e depois confessou, desanimada:

 

Não vejo nada!

 

Deixe-me guiar pediu ele. Cansa avista a procurar assim um caminho invisível.

 

Mas não poderei orientá-lo.

 

Há algum tempo já que eu também não a oriento afirmou Villiers Com semelhante temporal seria impossível ver a sinalização. Por agora, o mais importante é encontrar um abrigo.

 

Trocaram os lugares, mas, ao escutar as últimas palavras do companheiro, Deirdre protestou:

 

Parar! Isso não, mil vezes não! Parti por causa da Maud e não me deterei...

 

Deter-nos-emos quando eu quiser atalhou Villiers com súbita violência É obstinada e pretende arriscar a vida, já vejo. Pois desde o momento em que me pediu protecção, ou, antes, auxílio, implicitamente, deu-me direitos sobre si e agora uso desses direitos até que a considere fora de perigo. Veja essa água continuou, em tom mais brando. Repare como ela corre e... como sobe. Não resulta da chuva, acredite, mas, sim, da cheia de algum rio que saiu fora do leito e inundou a planície. Percebe agora a razão por que não podemos continuar? Não se preocupe com a Maud. Como nós, deve ter reconhecido a impossibilidade de continuar a viagem e procurou abrigo. Nesta altura já deve encontrar-se em segurança.

 

A súbita veemência de Villiers deixou Deirdre estupefacta. Talvez, noutra altura, se tivesse revoltado e resistisse às suas imposições. Mas as emoções suportadas naquelas últimas horas haviam-lhe enfraquecido a energia. Um cansaço, mais moral do que físico, esmagava-a e roubava-lhe o desejo de lutar. Durante algum tempo, o rapaz guiou o carro, calado, curvado para a frente para melhor descobrir o caminho. Depois, no cimo de uma encosta, parou. Deirdre nada viu porque a chuva, uma chuva grossa, continuava a cair, crepitante e teimosa, correndo diante do pára-brisas uma cortina opaca. Depois, à direita, adivinhou, mais do que viu, um portal de tijolo vermelho e teve a impressão de o reconhecer.

 

Espere um instante pediu Villiers.

 

Desceu e Deirdre viu-o passar a correr e depois desaparecer. Segundos depois, a porta do carro abriu-se.

 

Venha disse rapidamente Villiers. Quando se encontraram os dois no vestíbulo

 

claro, com as paredes caiadas e o pavimento de mosaico amarelo e preto, o engenheiro observou:

 

Tivemos muita sorte. Não podíamos encontrar abrigo melhor do que este.

 

Só então Deirdre se lembrou de olhar em volta e reparou, com espanto, que o acaso a conduzira ao mesmo albergue onde, pouco tempo antes, entrara com Maud para tomar chá.

 

A proprietária, uma mulher nova, apareceu para os servir. O primeiro cuidado de Deirdre foi perguntar-lhe se um automóvel com duas senhoras, cujos sinais deu, tinha passado por ali. Alimentava a esperança de que as duas viajantes tivesse também procurado abrigo naquela hospedaria.

 

Já lhe perguntei a mesma coisa elucidou João Lucas Mas esta senhora respondeu-me negativamente.

 

A mulher confirmou. O temporal afugentara os viajantes e ninguém, excepto eles, tinha vindo abrigar-se ali. A hospedaria encontrava-se deserta. A época das férias ainda vinha longe e os turistas que, nessa altura, gostavam de passar alguns dias naquela região tão agradável, também ainda não começavam a aparecer. Por vezes, à hora das refeições, viam-se alguns automóveis parados diante do portal, porque a cozinha daquela hospedaria tinha fama. Mas tratava-se, unicamente, de almoçar ou de jantar. Os quartos estavam todos vagos e os viajantes podiam escolher à vontade.

 

Villiers interrompeu esta tagarelice, ordenando com modos bruscos:

 

Exactamente. Nós desejamos dois quartos.

 

A mulherzinha mostrou-se surpreendida, mas não protestou. Quanto a Deirdre, não conseguiu calar-se:

 

Não vamos passar a noite aqui, com certeza!

 

Desejo-o tanto como a Deirdre respondeu friamente João Lucas Mas temo que não o possamos evitar.

 

Aterrada, ela voltou-se para a porta do vestíbulo. Com os lábios apertados, dir-se-ia querer assim evitar que certas palavras violentas fossem proferidas. De si para si, reconhecia que, tendo arrastado o engenheiro para aquela aventura, seria ridículo revoltar-se contra o imprevisto e contra os contratempos que surgiam.

 

Villiers saiu para ir arrumar o carro na garagem. Deirdre olhou para o relógio. Eram horas de jantar e a dona da hospedaria já retirara para a cozinha a fim de dar as suas ordens.

 

Resignada, entrou na sala, mobilada com gosto.

 

Um divã e duas poltronas forradas com chintz semeado de vistosos raminhos estavam dispostos junto do fogão rústico. Pelas paredes, prateleiras com objectos de cobre reluzente: formas, jarros e cântaros. Ao meio, enorme mesa de carvalho encerada, com jornais e revistas ilustradas. A iluminação era feita por quatro fusos transformados em candeeiros eléctricos, colocados aos cantos da casa.

 

Deirdre experimentou acendê-los, porque já estava escuro, mas não o conseguiu. Faltava a luz. A chuva continuava a cair. Distraidamente, folheou alguns dos jornais. O seu pensamento não estava ali, mas, sim, junto de Maud, cujo destino a preocupava cada vez mais, e, por momentos, no Prieuré.

 

Que pensaria Elsa daquela prolongada ausência? Teria avisado madame de Rollan?... O maior desejo de Deirdre seria que a avó e Rosamunda ignorassem tudo, mas reconhecia ser impossível. Chegara a altura do jantar e àquela hora já o deviam saber.

 

Quando Villiers regressou, Deirdre voltou-se com a fisionomia alterada.

 

É preciso telefonar para o Prieuré, João Lucas.

 

O engenheiro sorriu.

 

Como deve calcular, este temporal produziu estragos nas linhas telefónicas. Alguns dos postes devem ter sido derrubados e as comunicações estão interrompidas. Também falta a electricidade e teremos de jantar à luz das velas.

 

Falava em tom despreocupado e indiferente que iludiu Deirdre. A entrada da dona da hospedaria evitou, no entanto, que manifestasse os sentimentos provocados por essa indiferença. O cozinheiro não perdera tempo e o jantar não tardaria.

 

Como João Lucas previra, um candelabro de ferro forjado, com muitos braços, ocupava o centro da mesa. As velas projectavam um círculo de luz sobre a toalha, mas deixavam na sombra todo o resto da sala. Segundo candelabro foi colocado no aparador, na extremidade do aposento, para que a criada pudesse servir.

 

Os dois viajantes comeram rapidamente e não fizeram honra ao jantar, que, apesar do pouco tempo de que dispusera, o cozinheiro preparara com esmero. Pouco falaram, trocando frases curtas e banais. Quando se calavam, ouviam a chuva batendo nas vidraças e, dentro da sala, o espirrar das velas. A sua fraca claridade dava-lhes estranha expressão aos rostos. O de João Lucas estava sombrio e preocupado. O de Deirdre, pálido, reflectindo a maior inquietação. À medida que o tempo ia passando, o engenheiro parecia encarar com menos indiferença o desagradável incidente de que ele e a companheira tinham sido vítimas. E, perante o seu rosto contraído, Deirdre media pela primeira vez os dissabores a que expusera Villiers.

 

Impulsiva como sempre, poisou a mão no braço do rapaz.

 

Está a pensar na Rosamunda, não é verdade? perguntou em voz baixa Estou desolada, acredite. Ela ficará aborrecida?

 

Calou-se de repente, aterrada com a reacção do rapaz. Estremeceu violentamente, retirou o braço e olhou para Deirdre com ar alucinado.

 

Rosamunda? repetiu como se ouvisse aquele nome pela primeira vez.

 

Num esforço, como que regressou à realidade e sorriu com amargura.

 

Não se aflija. A sua irmã possui uma liberdade de espírito e... indiferença bastantes para não se aborrecer nem mesmo ficar contrariada com este incidente.

 

Indiferença? repetiu Deirdre Que pretende dizer com isso?

 

Que a Rosamunda não gosta de mim, simplesmente.

 

Ela olhou-o com espanto.,.

 

E, sabendo isso, vai casar com ela?

 

Vou confirmou João Lucas em voz trémula.

 

Depois, como se quisesse pôr fim à conversa, levantou-se bruscamente.

 

Deirdre imitou-o A criada, que, depois de ter servido a sobremesa, se retirara, entrou e, vendo-os de pé, pegou num dos candelabros, que levou para a sala.

 

No fogão ardia excelente lume e, ao vê-lo, Deirdre sentiu-se mais confortada. A atmosfera, arrefecida pela chuva e carregada de humidade, era muito diferente da do dia e, com o simples vestido de linho, sentia frio e tremia.

 

Talvez prefira recolherão quarto? lembrou o engenheiro, enquanto a criada deitava mais lenha no fogão.

 

Desprezava o conforto que o calor poderia proporcionar-lhe e ficara de pé, no meio do aposento.

 

Deirdre abanou a cabeça e deixou-se cair na cadeira mais próxima do fogão.

 

Já, nãodeclarou Tenho frio e desejo aquecer-me.

 

Por momentos, a expressão de João Lucas suavizou-se.

 

Perdoe-me pediu, aproximando-se da companheira. Sou um bruto.

 

Deirdre esboçou pálido sorriso.

 

Não, mas é homem e, portanto, mais resistente às inquietações, receios e apreensões. Sou eu quem lhe pede que me desculpe este desânimo. Não posso deixar de pensar em Maud.

 

Deve ter conseguido alcançar Paris ou então encontrou abrigo, como nós.

 

Deus o oiça!

 

Prolongado silêncio se seguiu a esta exclamação. João Lucas sentou-se também e, com o olhar fixo nas altas labaredas, fumava, distraído.

 

Deirdre, recostada na cadeira, fumava também. A própria dona da hospedaria serviu o café, que os dois beberam quase sem trocarem duas palavras.

 

As labaredas avermelhadas punham estranhos clarões na sala, mergulhada numa semiobscuridade. O crepitar do lume e o bater da chuva nas vidraças faziam um concerto monótono, contínuo e obsidiante. E Deirdre compreendeu que os seus nervos, submetidos a tão duras provas durante as últimas horas, não poderiam suportar mais se continuasse naquela inacção.

 

Pôs-se de pé e atirou com o cigarro para o lume.

 

A violência do temporal abrandou murmurou em voz alterada Façamos uma tentativa para regressar a casa, peço-lhe.

 

João Lucas olhou-a com espanto.

 

É impossível.

 

Nada é impossível, excepto a inércia e a passividade! Pois não vê continuou, com uma espécie de desespero que estou disposta a regressar a pé ao Prieuré apesar da chuva e do temporal, de preferência a ficar aqui?

 

Nem isso é possível retorquiu calmamente o engenheiro. Queria evitar-lhe novas preocupações, mas confirmaram-se os receios que lhe manifestei quando vínhamos a caminho. Os ribeiros saíram fora do leito e a planície está inundada, foi esta a última comunicação telefónica, antes da interrupção das linhas. Nada temos a temer acrescentou, vendo a palidez de Deirdre a hospedaria onde nos encontramos está construída num alto e, portanto, não corremos perigo.

 

Deirdre não lhe respondeu. Com a cabeça apertada nas mãos, dir-se-ia não ter escutado as últimas palavras.

 

O engenheiro então aproximou-se e, numa voz persuasiva, um pouco surda, com inflexões meigas e ao mesmo tempo firmes, uma voz que Deirdre nunca lhe ouvira, disse-lhe:

 

Tem de resignar-se a passar a noite aqui, Deirdre. Não se preocupe nem dê demasiada importância ao que nos acontece. Amanhã já poderemos regressar a casa, segundo espero, e saberemos que Maud está em segurança. Entretanto, faça o possível por dormir, pois algumas horas de descanso lhe farão bem. Lutar contra a fadiga é inútil porque ela acaba sempre por nos vencer. Vá descansar, Deirdre; salvo se ainda tem frio...

 

Deirdre abanou a cabeça e afastou-se do fogão. Sentia-se muito cansada para poder resistir a João Lucas e reconhecia, de resto, que era mais sensato ceder às suas instâncias.

 

Villiers chamou a criada e ordenou-lhe que conduzisse Deirdre ao quarto. Depois, pegando-lhe na mão, disse-lhe com brandura:

 

Boa noite, Deirdre.

 

Boa noite, João Lucas correspondeu ela com pálido sorriso.

 

Depois deu meia volta e seguiu a criada, que levava a vela.

 

João Lucas voltou para junto do fogão e ficou um instante imóvel, fixando o lume. A despreocupação que aparentara diante da companheira abandonou-o e, de minuto a minuto, o seu rosto tomava uma expressão mais sombria e dolorosa. Arredou uma poltrona e deixou-se cair, mais do que se sentou, triste e acabrunhado. E para ali ficou, com a cabeça apertada nas mãos e os cotovelos apoiados nos joelhos.

 

Na manhã seguinte, o automóvel de Deirdre corria pela estrada. À esquerda e à direita, os prados e os campos arrasados, árvores derrubadas, fios telegráficos emaranhados e partidos, testemunhavam a violência do temporal. No entanto, as estradas, embora estragadas, estavam praticáveis. As águas tinham retirado, deixando um lodo espesso que espirrava debaixo das rodas e provocava, por vezes, perigosas guinadas.

 

Deirdre, porém, não receava o perigo nem afrouxara a velocidade. De comum acordo, ela e o engenheiro tinham resolvido regressar ao Prieuré, visto poderem fazê-lo. Esperavam encontrar ali notícias de Maud.

 

Estavam perto e as chaminés da fábrica já se avistavam. Deirdre perguntou:

 

Quer ficar no pavilhão?

 

Villiers respondeu-lhe com outra pergunta:

 

Não deseja dar a saber que a acompanhei?

 

Não me importo. Nunca ocultei nenhuma das minhas acções. Julgo não valer a pena começar agora.

 

Nesse caso, irei consigo até ao Prieuré.

 

Logo que o automóvel parou diante da escadaria, o rosto inquieto de Elsa assomou a uma das janelas do primeiro andar. Saudou amigavelmente os dois recém-chegados e depois desapareceu, sem dúvida para descer ao seu encontro. Com efeito, segundos depois, encontrava-se com Villiers e Deirdre, no hall.

 

Houve algum incidente desagradável? inquiriu, envolvendo a amiga num olhar inquieto.

 

Nenhum. Receberam notícias de Maud?

 

Conseguiu alcançar Paris informou Elsa, baixando, involuntariamente, a voz Como deves calcular, tive de pôr madame de Rollan ao facto da tua ausência e das razões que a motivaram. Só esta manhã conseguimos estabelecer ligação com Paris. Correu tudo bem, isto é, o melhor possível, em tão desastrosas circunstâncias. Maud foi obrigada a estar parada muito tempo, durante o temporal e a Marta receia que tivesse apanhado frio. Esta manhã tinha febre e ficou na cama.

 

Vou ter com ela declarou Deirdre.

 

Já, não-atalhou Elsa, detendo-a com um gesto firme Tens de explicar a madame de Rollan...

 

Deirdre mordeu os lábios. Elsa tinha razão. Esquecia as atenções devidas à avó.

 

Mostrou-se preocupada? indagou.

 

Elsa hesitou. Sabia que não podia mentir a Deirdre e procurava a palavra exacta entre a preocupação e a cólera. Mas Deirdre não lhe deu tempo para a encontrar. Como se considerasse a resposta dada, voltou a perguntar:

 

E a Rosamunda?

 

Elsa olhou furtivamente para João Lucas. Depois de a ter cumprimentado, ficou calado, escutando a conversa sem tomar parte nela.

 

Rosamunda explicou mademoiselle Gauthier como é de calcular, ficou um pouco inquieta... assustada. Tanto mais que, à tarde, foi ao pavilhão, apesar do temporal, e soube que o noivo se tinha ausentado também.

 

A chegada de Félix interrompeu-a, facto que não lhe desagradou. O criado vinha, justamente, pedir a João Lucas, da parte de Rosamunda, que fosse ter com ela aos seus aposentos. O engenheiro despediu-se de Deirdre e de Elsa e, enquanto as duas regressavam aos quartos, ele subiu a escada e bateu à porta do quarto da noiva.

 

Rosamunda envergava, dessa vez, elegante roupão de seda azul pálido.

 

Pela janela aberta, a claridade brilhante da manhã inundava o aposento e batia em cheio no lindo rosto contraído que exprimia contrariedade e irritação. Acusava também certos indícios, que, apesar de leves, revelavam ter a encantadora rapariga ultrapassado a idade em que se expõe livremente o rosto à indiscreta luz do dia.

 

Quando Villiers apareceu, Rosamunda não lhe estendeu a mão. Indicando a janela donde, sem dúvida, assistira à chegada dos dois, perguntou com frieza:

 

Pode explicar-me o que significa esta fuga?

 

Villiers não se perturbou com o ataque. Limitou-se a sorrir com ironia, sorriso cujo sentido só ele poderia explicar. Não tinha, ainda na véspera, afirmado a Deirdre a completa indiferença da noiva?.,. Enganara-se em parte, pois não tinha ilusões sobre a natureza do sentimento que ditava a Rosamunda semelhante atitude. Antes de lhe responder, cumprimentou com calma:

 

Bom dia, Rosamunda.

 

Depois aproximou-se da noiva e, noutro tom, inquiriu:

 

Ter-me-ia feito a honra de se afligir por minha causa?

 

Rosamunda corou.

 

Por forma alguma, garanto-lhe. Mas esta aventura parece-me grotesca. Na verdade, só uma pessoa como a Deirdre, com a sua falta de tacto e ignorância absoluta das conveniências, a sua falta de educação, se exporia a ela.

 

O nome de Deirdre, as próprias palavras, mais incitaram a sua cólera. Ao mesmo tempo, tomava uma expressão estranha, irónica e ameaçadora que Villiers não pôde ver.

 

Deve concordar continuou que desaparecer parte do dia e toda a noite com o noivo da irmã não é um gesto que honre ninguém, mesmo uma americana.

 

Um lampejo de irritação iluminou as pupilas do engenheiro, que, no entanto, conseguiu dominar-se.

 

A razão foi simples, Rosamunda. O temporal e a cheia dos rios obrigaram-nos a procurar refúgio na hospedaria que muito bem conhece.

 

Por algumas horas, admite-se!

 

Enquanto durou a impossibilidade de nos pormos a caminho. Quanto ao motivo que nos obrigou a sair com semelhante tempo...

 

Já sei atalhou Rosamunda ou, pelo menos, aceito a versão oficial. Maud pretendeu salientar-se e a nossa ”querida” Deirdre quis desempenhar o papel de Terra-Nova ou de São-Bernardo. De resto, pouco me interessam as razões que ambos me apresentam. O que não quero nem nunca suportarei, fique sabendo, é o ridículo.

 

Começou a passear de cá para lá na saleta, sem que o passeio conseguisse acalmar-lhe a cólera. O olhar frio de João Lucas seguia o vaivém, mas o seu rosto mostrava-se impassível. Durante alguns momentos, conservou-se calado. Decorridos breves minutos, limitou-se a dizer:

 

Posso retirar-me?... Não tem mais censuras a dirigir-me?

 

Rosamunda parou. A impassibilidade do noivo causou-lhe espanto. Por certo, era destas mulheres que só começam a apreciar o bem que o destino lhes concedeu quando esse bem parece fugir-lhes. Talvez também as referências de Maud ao papel desempenhado pelo engenheiro, na fábrica, a ameaça que pesava sobre ela no dia em que João Lucas pensasse em a abandonar, tivessem influído na sua atitude. Fosse pelo que fosse, quando falou parecia menos irritada.

 

Não estou a fazer-lhe censuras disse com falsa doçura A Deirdre foi a única responsável pelo sucedido. Mas, para evitar que se repita este incidente, será preciso, como João Lucas dizia há dias, apressar...

 

Calou-se e, contrariamente aos seus hábitos, mostrava-se atrapalhada.

 

Apressar o quê? inquiriu o engenheiro, com calma.

 

O nosso noivado. Torná-lo oficial.

 

Seria muito provável que Villiers tivesse ficado surpreendido com esta resolução, sempre adiada até ali. Mas, se o ficou, não o demonstrou.

 

Como queira disse simplesmente.

 

Pensei que poderia ser este mês declarou ela, muito depressa. As férias ainda não chegaram, os nossos amigos ainda não dispersaram...

 

João Lucas franziu a testa.

 

Os nossos amigos!... Não se trata de uma recepção mundana, mas, sim, de uma simples reunião de família, Rosamunda.

 

Mas...

 

Não! Já lhe disse desejar que tudo se realizasse na mais estrita intimidade. Tanto mais por ser o mês de Junho um dos mais tristes para mim, pelas dolorosas recordações que me desperta. Com poucos anos de intervalo, minha mãe e meu irmão morreram neste mês. Apesar dos anos decorridos, não poderia entregar-me a espalhafatosas manifestações de alegria, que, de resto, são escusadas para a consagração de promessas há tantos anos trocadas.

 

Rosamunda curvou a cabeça, talvez para ocultar ao noivo o seu desacordo. João Lucas voltou a perguntar:

 

E agora posso retirar-me, Rosamunda? Tenho imenso que fazer, esta manhã.

 

Como queira.

 

João Lucas dirigiu-se para a porta. Rosamunda deu alguns passos a seu lado.

 

Pensei fixar a data de dezasseis. Convém-lhe?

 

Está muito bem.

 

Receei que a considerasse demasiado próxima.

 

Porquê? Uma semana basta para concluir os meus preparativos, que, de resto, são nulos. O seu diamante está pronto há muito tempo.

 

Com esta declaração, despediu-se da noiva e abandonou a sala. Enquanto ele descia a escada, Rosamunda, encostada à porta, com o rosto ensombrado, ouvia o ruído dos seus passos desvanecer-se pouco a pouco.

 

Suave e tépido, o crepúsculo envolvia o Prieuré. No firmamento, as estrelas ainda não tinham descerrado as suas pupilas brilhantes, mas as alamedas já estavam escuras, os passaritos dormiam nos ninhos, as copas das árvores, quietas também, como que adormecidas, e, dessa forma, o parque era a perfeita imagem da calma e da serenidade. Só o jacto da fonte, caindo no tanque de pedra, perturbava o silêncio com a sua canção monótona e embaladora. Essa canção, porém, não chegava à sumptuosa moradia, e, mesmo que chegasse, o tinir das pratas e dos cristais abafá-lo-iam.

 

Quem, por curiosidade, deitasse um olhar às salas do Prieuré, demorar-se-ia, saboreando o prazer que o espectáculo lhe proporcionava. As portas de comunicação estavam abertas de par em par, patenteando a sucessão de móveis de preço, alcatifas, espelhos com molduras doiradas, quadros de mestre, lustres de Veneza, cintilantes de luzes.

 

Na extremidade do hall abobadado, em comprida mesa coberta com toalha de rendas, numeroso pessoal acabava de armar o bufete, onde, durante toda a noite, os convidados iriam apaziguar a sede, o apetite, ou, simplesmente, a guloseima. Uma profusão de flores raras, espalhadas por toda a parte, animavam com o seu esplendor e perfume esta exibição de luxo.

 

Pronta havia muito tempo, majestosa no rico vestido de seda escura, ostentando nos dedos e no corpo do vestido os seus belos diamantes, madame de Rollan percorria os salões, fazendo-lhes um exame severo que não deixava escapar coisa alguma.

 

Este exame, no entanto, deixou-a satisfeita, por certo, visto que, dando algumas ordens a Félix, que dispunha sobre a mesa numerosas garrafas de champanhe de grande marca, dirigiu-se para a escada e subiu ao primeiro andar.

 

Deirdre, de pé no meio do quarto, ouviu os passos pesados da avó, abafados pela alcatifa do corredor, e estremeceu. Mas o olhar relanceado ao despertador, colocado na mesa de cabeceira, tranquilizou-a. Não, ainda não chegara a hora de descer.

 

Elsa estava junto dela. Ajudara-a a vestir e agora contemplava-a com afectuosa admiração. Deirdre envergava um vestido de tule preto. O corpo, muito justo, deixava-lhe a descoberto os braços e os ombros. A saia, muito ampla, formada por numerosas camadas de tule sobrepostas, abria-se como a corola de uma flor e descia até ao chão. Na cintura, um ramo de rosas de cetim branco dava uma nota mais alegre ao conjunto severo. E Elsa dizia de si para si que, com o lindo vestido adelgaçando-lhe a silhueta de desportiva, os cabelos fulvos enrolados na nuca e a cútis doirada, Deirdre estava mais bonita do que nunca.

 

Não deu grande importância à palidez e à fadiga expressa no lindo rosto. Para Elsa, a causa que prejudicara um pouco a saúde da sua alegre, animada e risonha Deirdre fora apenas a demorada permanência em França com a total mudança de vida e de hábitos que dela resultara. Graças a Deus, essa permanência estava a acabar. O noivado que nessa noite se festejava seria, em breve, seguido pela cerimónia do casamento e depois coisa alguma prenderia Deirdre em França. E Elsa, cuja insistência originara a vinda da pupila ao Prieuré, não ocultava a alegria e a satisfação que ela própria sentiria no dia em que deixasse aquela casa e os seus donos. Aos ouvidos das duas senhoras chegou, partindo de um dos quartos próximos, o eco de uma tosse áspera e funda. Uma expressão preocupada perpassou nos olhos de Deirdre.

 

Não será uma loucura, Mamie, a Maud assistir a... esta festa?

 

Hesitara ao proferir as últimas palavras.

 

É essa a minha opinião. Mas sabes, tão bem como eu, que por coisa alguma a tua irmã renunciaria a essa imprudência.

 

Deirdre sabia e sabia também que o estado de Maud era grave.

 

Quando, no dia seguinte ao temporal, partira para Paris sem que ninguém se opusesse, foi encontrar a irmã de cama, tremendo de febre. A criada de quarto, assustada, já tinha mandado chamar o médico que, habitualmente, a tratava. Deirdre pôde assim secundar os enérgicos esforços que este empregou para debelar a doença.

 

Maud tinha apanhado um resfriamento. Na altura da maior força do temporal, vira-se obrigada a parar. Ficou assim, dentro do carro, cujo aquecimento não funcionava, e que, em compensação, metia água.

 

A longa imobilidade, exposta ao frio e à humidade, afectou os pulmões já fracos de Maud. E a débil constituição, o abalo nervoso, o esforço físico exigido pela prática de um acto que, havia muito tempo, não realizava, tudo isso agravou a doença. Graças aos cuidados enérgicos do médico e de Deirdre, a congestão foi evitada. Mas quando a irmã tentou demonstrar à doente a imprudência que representava o seu regresso ao Prieuré naquela altura, Maud obstinou-se na sua resolução. Assistiria ao pedido de casamento da irmã pois não seria de esperar que esta adiasse a cerimónia por causa de Maud era essa a sua vontade e as forças não a trairiam, por certo. E, decorridos dois dias, as duas raparigas e a criada de quarto, no automóvel guiado por Deirdre, chegaram ao Prieuré quase ao anoitecer.

 

Ligeira subida de temperatura obrigou Maud a ficar de cama, mas, naquela noite, contra tudo e contra todos, levantou-se e vestiu-se, preparou-se com os mesmos cuidados e elegância que exibiria se estivesse boa. E Deirdre sabia que não haveria forças capazes de evitar a sua descida aos salões, dentro de alguns minutos.

 

Num gesto maquinal, passou a mão pela testa como se desejasse afastar e apagar todos os indícios de preocupação e tristeza. Vagarosa, abriu a gaveta da cómoda Império e tirou um colar de pérolas de um oriente magnífico, perfeitas e iguais, que prendeu em volta do pescoço.

 

O colar da mãezinha murmurou em voz baixa, acariciando as pequenas esferas macias e já tépidas.

 

Depois, bruscamente, voltou-se para Elsa, que a contemplava com olhar enternecido.

 

Mamie, será possível que minha mãe tivesse causado a morte de um homem?

 

Estava de pé, encostada ao móvel cujo espelho reflectia a sua graciosa imagem, e fixava a amiga com um olhar suplicante e interrogador. Só então mademoiselle Gauthier notou a alteração, a magreza e a mudança acusadas pelo lindo rosto da sua pupila. Espantada, repetiu:

 

A morte de um homem? Que pretendes dizer com isso, querida?

 

Sem lhe dar mais explicações, Deirdre perguntou:

 

Conheceste Francisco Villiers?

 

Conheci.

 

Gostava muito de minha mãe, não é verdade?

 

Sim, amava-a profundamente, creio eu. E madame de Rollan favorecia essa paixão.

 

E minha mãe?... Não lhe fez promessas, pois não?

 

Nenhuma, posso afirmar-te. Não o ocultaria à sua maior amiga, como não me ocultava um só dos seus pensamentos. Quando teu pai apareceu, eu descobri que o amava muito primeiro do que ela o reconhecesse.

 

Nesse caso, ela não teve a culpa murmurou, lentamente, Deirdre.

 

Não, não teve, se é essa ideia que te atormenta. Francisco Villiers morreu num desastre de automóvel. Ainda viveu algumas horas depois de ser transportado para o pavilhão e coisa alguma nos autoriza a supor que o desastre fosse provocado voluntariamente.

 

Calou-se, mas o olhar inquieto não se desviava do rosto de Deirdre. Que ideias tão estranhas tinha aquela pequena! Qual o pensamento, oculto, origem daqueles escrúpulos e curiosidade?

 

Sendo assimmurmurou Deirdre, de olhos baixos não compreendo as razões da aversão.

 

Elsa não conseguiu reprimir um gesto de espanto.

 

Aversão!... Não acredito que alguém possa ter aversão por ti!

 

Pois eu conheço duas pessoas.

 

Quem são elas, pelo amor de Deus?

 

João Lucas Villiers e a pessoa que o serve. A amiga encolheu os ombros.

 

Preocupas-te com a opinião de uma criada?

 

Daquela, preocupo, porque já vivia no pavilhão no tempo de minha mãe. Conheceu-a e conheceu meu pai. E dir-se-ia, Mamie, que, pelo facto de ser sua filha, me odeiam.

 

Deirdre tremia de comoção. Nunca Elsa a tinha visto assim, tão impressionável, tão sensível, tão fraca.

 

Quanto a João Lucas prosseguiu lentamente se não demonstra abertamente o aborrecimento e desagrado que lhe provoca a minha presença no Prieuré é apenas por ser irmã da noiva. E eu daria tudo para saber, para descobrir este mistério.

 

Elsa olhou-a com espanto que logo se transformou em inquietação. Sim, já era tempo de partir. No entanto, não revelou os seus pensamentos nem preocupação. De resto, não teria tempo para isso. Depois de ter batido à porta, madame de Rollan abriu-a e entrou.

 

Estás pronta, minha filha? perguntou Estás pronta, sim, e muito linda. Vem comigo. A Rosamunda ainda está no quarto e a Maud teima em se instalar na sala, embora eu preferisse que não desse aos nossos convidados o espectáculo da sua doença. Tu, pelo menos, fazes honra aos de Rollan.

 

Não teve uma palavra amável para Elsa, que, digamos de passagem, não se importou muito com isso. Ficou um pouco para trás, parou diante do espelho para dar a última vista de olhos ao severo saia-casaco de seda preta, apagou a luz e só então desceu para o hall.

 

Deirdre estava junto da irmã. Maud, meio deitada

num sofá, amparada por numerosas almofadas, tentara ocultar os estragos da doença com minuciosos cuidados e requintada elegância. Mas tudo tinha sido inútil. O vestido de seda vermelha, apesar dos pregueados habilmente dispostos, não conseguia ocultar a sua extrema magreza e, pelo contrário, fazia sobressair a palidez das faces. Pelos ombros tinha riquíssima capa de raposas cinzentas e, apesar da temperatura agradável que reinava na sala, a doente conchegava-a ao peito, num gesto friorento. Mandara retirar dois ou três ramos que exalavam aroma violento, mas em volta dela viam-se ainda muitas flores, demasiadas no entender de Deirdre, pois sabia como o organismo da irmã se ressentia quando o ambiente estava sobrecarregado de perfumes. Didier Thibaut apareceu por sua vez e aproximou-se das duas raparigas. Mostrava-se sempre carinhoso e amável com elas, principalmente com Deirdre, e madame de Rollan não ocultava a satisfação que o facto lhe provocava. Naquela noite, ainda, sorriu ao escutar os cumprimentos que o rapaz dirigia à cunhada e, risonha, decidiu:

 

Visto a Rosamunda e o João Lucas ainda não terem aparecido, serás tu, Deirdre, e o Didier quem vai auxiliar-me a receber os convidados.

 

O semblante pálido de Maud tomou uma expressão trocista.

 

A festa não é para celebrar o noivado da Deirdre com o Didier, avó!

 

A avó voltou-se. As faces tinham tomado um tom quase violáceo.

 

Serei, por acaso, responsável pelo atraso da tua irmã e do João Lucas? replicou em voz surda Ou pretenderás tu substituí-los?

 

A chegada de um criado, que lhe falou em voz baixa, obrigou-a a interromper a desagradável réplica que dirigia a Maud.

 

A orquestra já chegou?... Está bem, vou falar a essa gente.

 

O tom era de supremo desdém, mas como, no entanto, parte do êxito da festa dependia ”dessa gente”, madame de Rollan condescendia em ir falar-lhes pessoalmente. Afastou-se, enquanto Didier, seguindo-a com a vista, observava:

 

Apesar da idade, a avó conservou um sentido de organização verdadeiramente notável. Não se nota uma falha, esta noite, e os nossos convidados não terão motivo para a mais pequena crítica.

 

Resta saber como o principal interessado vai aceitar esta ostentação e esta exibição de luxo murmurou Maud com ironia.

 

Thibaut não ouviu o comentário porque já se tinha afastado a fim de ir ao bufete verificar qual a marca de champanhe escolhida por madame de Rollan. Maud seguiu-o com a vista. Era alto, delgado, distinto e a casaca acentuava-lhe a elegância. A fisionomia simpática, adornada com o fino bigode loiro, exprimia contentamento, alegria de viver. Preocupada, voltou-se para a irmã:

 

Não vais deixar-te influenciar pela avó, pois não, Deirdre?

 

À interpelada esboçou um sorriso triste. Não precisava de explicações supérfluas para compreender o que Maud pretendia dizer. Poisou-lhe a mão no braço, curvou-se um pouco e, a meia voz, afirmou:

 

Podes estar sossegada, Maud. Nunca, como hoje, me senti menos disposta a ”deixar-me influenciar”. E concluiu, após breves segundos de hesitação parece-te que o João Lucas vai ficar contrariado com as proporções dadas à festa desta noite?

 

Não me parece, tenho a certeza. Sempre demonstrou desagrado por manifestações desta natureza. Além disso, não gosta que a avó e a Rosanunda gastem assim, sem contar. No entanto prosseguiu, com amargura o amor que dedica à noiva é bastante para o obrigar a aceitar mesmo aquilo que lhe desagrada. Se soubesses, Deirdre, como estou ansiosa por pôr entre mim e todas estas coisas a imensidade do oceano! Que pressa tenho de partir!

 

Agarrara a mão da irmã e apertava-a com os dedos febris. A promessa de Deirdre, o projecto da viagem e da expatriação era a única esperança da doente, a luz que lhe iluminava a vida. E, muitas vezes, ao verificar a magreza de Maud, sua palidez e a crescente fadiga e dificuldade em andar, Deirdre perguntava a si própria se o dia tão desejado não chegaria tarde de mais. Evocava, então, com pavor, outra viagem mais longa e inevitável que a irmã parecia prestes a fazer.

 

Um ataque de tosse sacudiu Maud. Sem uma palavra, Deirdre levantou-se para ir fechar a porta do terraço pela qual entrava na sala o ar frio da noite. Depois voltou para junto do sofá, precisamente na altura em que mademoiselle Gauthier entrava.

 

Ainda bem que chegaste, Elsa. Fica um bocadinho com a Maud, sim?... O aroma de tanta flor fez-me mal à cabeça. Vou ao terraço respirar um pouco de ar fresco.

 

E, enquanto a dedicada amiga ficava com a doente, abandonou a sala, atravessou o hall e saiu. No limiar da porta do terraço respirou profundamente e sentiu-se melhor. A lua erguia-se no firmamento, mas os seus raios de prata não conseguiam penetrar através da folhagem e, no terraço, a despeito das torrentes de luz que saíam das portas e das janelas dos salões, havia algumas zonas de sombra. Dominada por súbito e imperioso desejo de isolamento cuja causa não poderia explicar, Deirdre alcançou uma delas, um recanto formado pela ala esquerda da vivenda. Conquanto madame de Rollan se mostrasse impaciente com a demora das netas nos quartos, ainda era cedo e alguns minutos decorreriam antes da chegada dos primeiros convidados. Deirdre, sentada num banco de pedra, encaixado na parede, preparou-se para gozar a calma desses poucos momentos.

 

Miríades de estrelas salpicavam o firmamento, como pequeninas rodelas de oiro atiradas a um lago calmo e sereno. O luar banhava o parque, dando um contorno quase fantástico aos cedros, que se erguiam para o céu como altos campanários. Do lado do tanque partia o canto monótono e suave de uma rã. E no ambiente reinava uma paz tão profunda, tão envolvente, mas ao mesmo tempo tão pungente, que Deirdre cerrou os dentes para não romper em soluços.

 

Com a cabeça encostada à parede áspera, as mãos pendentes e as pálpebras cerradas, lutou durante algum tempo contra a perturbação que a esmagava. E, de súbito, sentiu correrem-lhe pelas faces lágrimas escaldantes. Num gesto instintivo, levou a mão ao peito como para reprimir a dor aguda que a alanceava.

 

Depois levantou-se, bruscamente. À entrada da alameda acabava de assomar uma silhueta, alta e elegante, que o luar mais fazia avultar. E, embora lhe causasse espanto que João Lucas, apesar do trajo de cerimónia, viesse a pé através do parque, Deirdre não duvidou que fosse ele.

 

Como não houvesse probabilidades do engenheiro dar por ela, não saiu do seu cantinho, cosendo-se mais com a parede para melhor se confundir com a sombra.

 

João Lucas subiu vagarosamente a escada e, mal deu alguns passos pelo terraço, parou. Pelas

portas abertas acabava de notar o aspecto dos salões, a sua decoração e os preparativos que tinham feito.

 

A claridade que partia do hall envolvia-o e Deirdre pôde assim examiná-lo à vontade. Como Thibaut, vinha em trajo de cerimónia e a casaca sublinhava a elegância do seu corpo robusto, um pouco pesado, de ombros largos, cingidos no tecido preto. O semblante tomou uma expressão glacial, mas, à medida que os minutos passavam e via melhor o interior do Prieuré, essa expressão mudou, passou ao espanto, depois à irritação e depois à mais profunda cólera. E Deirdre, tão quieta como a pedra em que estava sentada, viu a testa do engenheiro franzir-se, as pupilas ensombrarem-se, as maxilas contrairem-se e apertarem-se fortemente uma contra a outra.

 

Depois de ligeira hesitação, João Lucas afastou-se da porta que, pouco antes, se dispunha a transpor. Calculando, talvez, que não tivessem dado pela sua presença, pretendia, antes de entrar, que acalmasse o seu descontentamento. Deu alguns passos na direcção de Deirdre, que pôde então ver-lhe bem o rosto. Estava tão alterado, tão contraído que inspirava dó. Villiers alcançou a parte mais escura do terraço e Deirdre reteve a respiração com receio de se trair.

 

Porém, todas estas precauções foram inúteis. Chegou um momento em que João Lucas, no seu vaivém, roçou o vestido dela. Estremeceu e parou:

 

Quem está aí? perguntou.

 

Deirdre murmurou o seu nome. Villiers teve um movimento de recuo e depois inquiriu em voz surda:

 

Que faz aí, sozinha, na sombra?

 

A surpresa impediu Deirdre de lhe responder. Ao mesmo tempo, João Lucas devia ter reconhecido a brutalidade da pergunta, a sua falta de delicadeza, porque, num gesto cansado, passou a mão pela testa.

 

Perdoe-me murmurou. Não sei o que digo! Deirdre não lhe respondeu e no silêncio pesado

 

que os envolveu, ouviu-se o rodar do primeiro automóvel, na alameda. Desanimado, João Lucas deixou cair os braços. Os convidados começavam a chegar.

 

O carro, porém, não parou, contornou a casa e dirigiu-se para o lado da cozinha. Tratava-se de algum fornecedor atrasado, sem dúvida. Todavia, como os faróis tivessem varrido o terraço, Villiers pôde ver o rosto da companheira.

 

Esteve a chorar, Deirdre? inquiriu em voz surda.

 

A rapariga amaldiçoou a sua fraqueza, mas supôs poder negar.

 

Senti-me cansada e vim para aqui repousar um pouco antes de começar a recepção que...

 

João Lucas nem parecia ouvi-la. Calado, olhando o empedrado, absorvera-se em profunda meditação. Deu alguns passos pelo terraço e, por fim, como se a última palavra de Deirdre lhe tivesse despertado a atenção, levantou a cabeça.

 

Recepção, não foi o que disse?... Mas não creio que uma festa de família, muito íntima, possa fatigá-la.

 

Deirdre calou-se. Percebia que o engenheiro não contava com a festa dada em sua honra.

 

Teriam ido contra os meus desejos? interrogou ele, numa voz que tremia de cólera.

 

Bruscamente, deu meia volta e dirigiu-se para casa.

 

Deirdre seguiu-o. A cólera de João Lucas metia-lhe medo, mas a garganta contraída não deixava passar uma palavra, um apelo para o acalmar.

 

Mesmo assim, antes de atingirem a zona iluminada do terraço, conseguiu proferir-lhe o nome, numa inflexão de súplica tão ardente que o engenheiro parou de chofre. Voltou-se e, num gesto imprevisto, prendeu Deirdre pelos ombros e, curvando-se para o rosto transtornado, murmurou:

 

Que receia, Deirdre?... Uma explosão de cólera ou... O que existe no fundo do seu pensamento?

 

Sem conseguir pronunciar uma palavra, Deirdre limitou-se a olhá-lo com expressão alucinada. Então ele largou-a e prosseguiu o seu caminho.

 

Rosamunda descia o último degrau da escada quando o noivo entrou. Estava deslumbrante, com um vestido de tule branco com o corpo palhetado. O anel de noivado, um lindo brilhante, simplesmente engastado, cintilava-lhe no dedo, visto João Lucas, a seu pedido, lho ter oferecido alguns dias antes. O engenheiro cumprimentou primeiro madame de Rollan e a seguir Rosamunda. Depois aprumou-se e o olhar percorreu o hall brilhantemente iluminado, poisou na mesa carregada de cristais, pratas, manjares delicados, vinhos e flores, aflorou o estrado que fora preparado para os músicos no recanto formado pela escada, enumerou os criados ocupados nos últimos preparativos e só por fim se voltou para a noiva.

 

Será possível encontrar-se um cantinho onde possamos conversar? perguntou.

 

Na saleta onde Maud se instalou, se quiser. Aí ninguém poderá perturbar-nos.

 

Maud estava ainda no sofá e Deirdre acabava de chegar junto dela. Villiers apertou a mão da doente e saudou Elsa. Depois dirigiu-se a Rosamunda.

 

Quantas pessoas convidou para a ”reunião íntima” desta noite, Rosamunda?...

 

Esta pergunta directa desorientou um pouco a interpelada. Ocultou a atrapalhação com um sorriso, porque decidira não estragar a sua beleza, naquela noite, com uma expressão de contrariedade ou sequer de surpresa. Queria conservar-se calma e sorridente.

 

Reflectiu durante breves segundos e depois esboçou um gesto vago.

 

Não posso precisar o número de convites, visto terem sido feitos pela avó.

 

Pouco mais ou menos... insistiu João Lucas.

 

Digamos duzentos a duzentos e cinquenta. O engenheiro falava com tanta calma que nem

 

a própria Rosamunda poderia descobrir se a sua impassibilidade ocultava ligeiro mau humor ou profunda contrariedade.

 

Não transmitiu a madame de Rollan os meus desejos?

 

Os seus desejos?

 

Sim. Não tínhamos combinado que o pedido de casamento seria celebrado na mais estrita intimidade? Pelos motivos que muito bem conhece...

 

Rosamunda não o deixou acabar.

 

Não tomei a sério a sua repentina insociabilidade, João Lucas.

 

Pois fez mal ripostou, friamente, o engenheiro O termo insociabilidade é mal aplicado. Será melhor dizer, fidelidade a tristes recordações, ao luto do meu coração, talvez pudor... Todos estes sentimentos correspondem melhor ao que se passa em mim e ao desejo de não dar ao nosso casamento nem a esta cerimónia aparência festiva.

 

Sob a saia de tule, o pèzinho de Rosamunda batia com impaciência. Os lábios, porém, continuavam a sorrir. Uma cor mais viva tingiu-lhe as faces quando o ruído dos automóveis chegou até à saleta.

 

Começam a chegar os convidados. Venha, João Lucas.

 

Todavia, o engenheiro não deu um passo e continuou imóvel, como pregado ao chão. Estava de pé, junto do sofá de Maud, cujo olhar não o abandonava.

 

Ansiosa e atenta, a fisionomia da doente exprimia a mais viva inquietação. As feições afinadas alteravam-se e as mãos contraíam-se-lhe debaixo da capa de raposas. Deirdre, muito pálida, olhava para o tapete. Apenas Elsa mantinha uma atitude natural e, levantando-se, foi endireitar alguns lírios que pendiam na jarra.

 

Madame de Rollan apareceu à porta e chamou:

 

Rosamunda... João Lucas, venham.

 

Queira ter a bondade de nos deixar por momentos, minha senhora, e receber sozinha os seus convidados pediu o engenheiro em tom imperioso.

 

Pela primeira vez e talvez a única na sua vida, a imponente madame de Rollan perdeu, por momentos, o domínio próprio, o sangue-frio, a presença de espírito, tudo quanto constituía sua força e a sua majestade. O espanto petrificou-a e foi Didier quem, tendo escutado o pedido, fechou silenciosamente os dois batentes da porta e a levou consigo para o hall, onde os convidados começavam a entrar.

 

Calmo, João Lucas voltou-se para a noiva.

 

Portanto, Rosamunda, não fez caso dos meus pedidos, dos meus desejos, nascidos de um motivo justo e nobre. Depois de ter esperado muito tempo que se dignasse fixar este dia, aceitei a data de dezasseis de Junho que escolheu, embora este mês me despertasse dolorosas recordações. Impus-lhe apenas uma condição: não seria uma festa aparatosa, uma recepção. Apenas a sua família e alguns amigos mais íntimos nos acompanhariam neste dia e tudo que se parecesse com uma manifestação mundana seria evitado. Decidiu outra coisa. Não posso nem quero discutir consigo essa resolução, tão oposta ao combinado. De resto, já não era ocasião de o fazer. Mas ninguém pode impedir-me de me retirar. Apresento-lhe as minhas desculpas, mas não posso assistir a uma festa tão brilhante como esta. O espanto, talvez a confusão, conquanto este sentimento não fosse muito próprio do seu carácter, a perturbação, tinham, até ali, obstado aos protestos de Rosamunda. Mas, ouvindo o noivo afirmar que ia retirar-se, empalideceu.

 

Não pode assistir... repetiu Não compreendo bem, com certeza.

 

Os carros sucediam-se. Sob a espessa abóbada de folhagem, o ruído dos motores amplificava-se para vir morrer junto da escadaria. O motorista do Prieuré conservava-se em baixo, para ajudar os outros motoristas a arrumar os carros nas ruas do jardim. No hall, a voz de madame de Rollan e a de Thibaut confundiam-se com vozes desconhecidas.

 

Nervosa, Rosamunda fazia girar em volta do dedo o anel com o diamante. Murmurara mais do que dissera as últimas palavras e afrontava o noivo com olhar brilhante de ansiedade e de cólera.

 

João Lucas continuava calmo, com expressão glacial.

 

Lamento dizer-lho confirmou, curvando-se num cumprimento mas compreendeu muito bem.

 

Bruscamente, deu meia volta, atravessou a saleta e, pela porta de comunicação entre as duas salas, alcançou a biblioteca. Esta abria também para o terraço, em cuja extremidade existia pequena escada que comunicava directamente com o parque. Conhecendo bem o local, João Lucas utilizou-a e, cortando através do arvoredo, em breve retomou o caminho do pavilhão.

 

Depois da sua partida, o silêncio reinou na saleta. Rosamunda, lívida, como que fulminada, conservou-se com o olhar fixo na porta por onde o noivo tinha desaparecido. O rosto contraído perdera toda a beleza. O despeito, o ressentimento e o desespero tinham-no transformado. Como se fosse desmaiar, Maud conservava-se de olhos fechados e lutava desesperadamente para não ceder à fraqueza que a esmagava. Elsa e Deirdre, imobilizadas pelo espanto, quase não respiravam.

 

Por fim, Rosamunda animou-se, mas a sua cólera não abrandou, pelo contrário. Levantou a cabeça. Os lábios delgados e trémulos deixaram passar esta injúria:

 

Grosseirão!

 

As feições de Maud contrairam-se como se tivesse apanhado uma bofetada.

 

Não deves revoltar-te contra João Lucas, Rosamunda. Só tu...

 

Toda a cólera da noiva desabou sobre a cabeça da irmã.

 

Cala-te! ordenou brutalmente. Não se trata de ti, nem nunca estarás em causa em circunstâncias semelhantes! Guarda a tua inútil magnanimidade, a tua grandeza de alma e nobreza de sentimentos. Uma pessoa normal não dá importância a essas coisas e, graças a Deus, eu sou uma pessoa normal.

 

O olhar indignado de Deirdre voltou-se para Rosamunda, enquanto esta falava. Tão grande crueldade revoltava-a, mas não teve tempo para exteriorizar essa revolta porque, tendo proferido as últimas palavras, a noiva de João Lucas dirigiu-se para a porta em passo rápido, abriu-a e desapareceu no hall, onde o ruído das vozes se tornava mais forte de minuto a minuto.

 

Deirdre curvou-se para a doente, num impulso de ternura, mas esta ficara indiferente às palavras duras e cruéis. Abandonara as almofadas e, sentada muito direita, parecia escutar. Depois dirigiu-se a Elsa.

 

Elsa, peço-lhe que vá para o hall. Não confio na Rosamunda para pôr discretamente a avó e o Didier ao facto do sucedido e ganhar algum tempo. Os nossos convidados já devem ser numerosos e receio muito a exaltação da minha irmã

 

Elsa compreendeu logo o que Maud esperava dela e saiu no mesmo instante. À porta, porém, voltou-se e perguntou:

 

A Deirdre fica consigo?

 

Uns momentos, sim.

 

E, designando a porta que João Lucas pedira para fechar, concluiu:

 

Não poderemos isolar-nos por muito mais tempo.

 

Logo que Elsa desapareceu, Maud, pegando nas mãos da irmã, murmurou:

 

Deirdre, é forçoso obrigar o João Lucas a voltar.

 

Dir-se-ia que uma força oculta a amparava e animava.

 

Não me parece ser a sua resolução daquelas que se modifiquem facilmente observou Deirdre.

 

Enganas-te. As reacções mais violentas são também as mais irreflectidas. Antes de ter chegado ao pavilhão, João Lucas já estará arrependido.

 

Calou-se porque o olhar da irmã exprimia profundo espanto.

 

Acreditas sinceramente no que afirmas? Maud perturbou-se e hesitou.

 

Não confessou baixinho Não creio que o João Lucas tivesse procedido irreflectidamente. No entanto, é preciso, compreendes, que ele volte esta noite.

 

Porquê? perguntou Deirdre numa voz que nem ela própria reconheceu.

 

Porque, se não o fizer, entre ele e Rosamunda tudo estará acabado.

 

E não afirmavas tu, ainda há poucos dias, que a nossa irmã faria a desgraça do marido?

 

Sempre aquela voz estranha, sem timbre, que dava a Deirdre a impressão de pertencer a outra pessoa e não a ela.

 

Disse-o e juro que o pensava afirmou a doente Mas reflecti. Para João Lucas não haverá maior desgraça do que perder a mulher amada. Que importa o futuro, Deirdre!... Para mim, só uma coisa conta. Evitar-lhe essa dor!

 

Deirdre fitava-a com espanto. As palavras que Maud proferia naquele instante eram a negação absoluta de tudo quanto até ali tinha desejado com ardor, isto é, um rompimento entre João Lucas e Rosamunda. Como explicar aquela reviravolta?... Seria abatimento e depressão moral provocados pela doença?...

 

O afecto que dedicava a Maud não lhe permitia, porém, deixar adivinhar estes pensamentos.

 

- Talvez tenhas razão concordou Mas não está na nossa mão evitá-lo.

 

Enganas-te, está... ”deve” estar. Antes de mais nada, cumpre convencer João Lucas a voltar hoje ao Prieuré.

 

Calou-se e no minuto de silêncio que se seguiu Deirdre ”ouviu”, antes que Maud as tivesse proferido, as palavras que se seguiram.

 

Alguém deve ir ter com João Lucas, pedir-lhe para reflectir, afirmar-lhe que isto não passou de uma infantilidade da Rosamunda.

 

Não creio na eficácia de semelhante tentativa replicou Deirdre friamente. No entanto, se for possível...

 

Será possível e alguém o tentará...

 

Quem?

 

Tu, Deirdre.

 

Eu!

 

A palavra exprimia tão grande protesto, tão categórica recusa que Maud perturbou-se. Toda a firmeza e obstinação de doente a abandonou. As feições transtornaram-se-lhe e fez-se ainda mais pálida.

 

Recusas? balbuciou.

 

Recuso formalmente.

 

Suplico-te, Deirdre. Não deves deixar que se dê tão grave acontecimento sem tentar...

 

E porque hei-de ser eu e não outra a fazer essa tentativa? atalhou Deirdre. Não haverá pessoa mais indicada e com maior influência do que eu?

 

Não, ninguém afirmou Maud em voz surda

 

Ninguém repetiu, torcendo as mãos numa crise de desespero.

 

Depois sufocou-a forte ataque de tosse, que, durante breves segundos, a prostrou.

 

Quando pôde respirar, tinha o rosto inundado de suor. Com o lenço, enxugou-o, mas ficou inerte, abandonada nas almofadas, com a cabeça descaída, como se as forças se tivessem esgotado por completo.

 

Quanta tristeza, quanta aflição eu levarei para o túmulo que em breve se abrirá para mim!

 

Cala-te! suplicou Deirdre Bem sabes que não será assim.

 

E tu bem sabes que estás a mentir replicou a enferma Mas não era preciso. Deus é testemunha de que não tenho medo. Não, não tenho medo

 

continuou em voz trémula. Não receio o ”depois” nem o ”momento”. Mas o que temo é o caminho bem curto já que se impõe percorrer para chegar até lá.

 

A mão febril procurou a de Deirdre e apertou-a com força.

 

Escuta, Deirdre, e tenta compreender-me. Gostava de partir, de ir contigo para não assistir a sua decepção, talvez ao seu desespero. Pois bem! Não modifiquei as minhas ideias. Simplesmente, essa decepção e esse desespero tomaram outro aspecto e aproximaram-se. Ameaçam João Lucas, são inevitáveis e imediatas. E, mais uma vez, te suplico: ”Não poderei suportá-las, tenta evitá-las, Deirdre!”.

 

Uma sufocação obrigou-a a calar-se. Apertou com mais força a mão da irmã e, quando pôde falar, continuou:

 

Sei o que vais dizer, Deirdre. O que desejo agora, receava-o há algum tempo. Mas isso que importa! Ninguém pode saber, antes de lhe chegar a vez, o que é o egoísmo dos moribundos, o ardor com que aproveitam os últimos minutos de vida e procuram fugir dos últimos desgostos que ainda possam atingi-los. E, depois, ninguém conhece os desígnios de Deus, vês tu? Talvez que o amor do marido consiga tornar a Rosamunda melhor, ninguém pode afirmar que o seu coração fique insensível a tanta ternura! Talvez que, neste casamento, o João Lucas vá buscar desgostos e sofrimento, mas tenho a certeza de que uma separação irremediável, a perda imediata de todas as suas esperanças o esmagaria para sempre!

 

Ao escutar Maud, a irmã experimentava o maior assombro de toda a sua vida. Estava de pé, junto do sofá, preparada para socorrê-la como o tinha feito havia pouco, tomando-a nos braços e amparando-a. Mas o seu rosto estava tão pálido e transtornado como o da doente.

 

Não ignorava, por certo, a gravidade do estado de Maud. Mas só naquele momento, quando Maud lhe falara no ”egoísmo dos moribundos” soube que ele era desesperado.

 

Ao mesmo tempo, as duas irmãs estremeceram e ficaram à escuta. Os risos, o ruído das vozes e toda a animação que, até então, se limitara ao hall, aproximava-se. Em breve, os rumores se tornaram mais precisos e Félix apareceu no limiar da porta, que abriu de par em par.

 

Deirdre já tomara a sua resolução. Para haurir coragem, olhou de novo para a irmã.

 

Fica sossegada, Maud. Vou ao pavilhão murmurou em voz baixa.

 

E, antes que a doente pudesse proferir uma palavra, e, principalmente, antes que madame de Rollan, rodeada por um grupo de convidados, entrasse, saiu ela. Depois, tal como momentos antes o fizera João Lucas, atravessou a biblioteca e, empurrando a porta, encontrou-se no terraço.

 

Deirdre percorria rapidamente a alameda, que o luar, filtrado pelo arvoredo, mal iluminava. Embora a zona do parque contígua à fábrica estivesse cuidadosamente tratada, a saia de tule prendia-se-lhe aos troncos caídos das árvores, ressequidos pelo calor. Deirdre, porém, não parava por causa disso, pois sabia que, se por qualquer motivo parasse ou mesmo abrandasse o passo, perderia a coragem antes de ter chegado a meio caminho.

 

Acalmada a exaltação inicial, não conseguia evitar que um receio a dominasse. Se, por acaso, a velha criada aparecesse e de novo tentasse impedir-lhe a entrada no pavilhão, teria ela a paciência e calma suficientes para escutar as suas palavras agressivas?

 

Por felicidade, a porta da entrada cedeu mal a empurrou. Na sua perturbação, o engenheiro esquecera-se de a fechar à chave, na altura do regresso a casa.

 

Não se via uma luz. No entanto, o luar, entrando pela janela, iluminava a escada e parte do corredor do primeiro andar, tornando-os suficientemente claros para que Deirdre pudesse orientar-se.

 

Por baixo da porta do escritório, delgado fio de luz indicava a presença de Villiers. Deirdre não hesitou. Empurrou a porta e encontrou-se diante de João Lucas.

 

Estava tal como havia abandonado o Priuré, isto é, de casaca. Passeava de um extremo ao outro do aposento, debatendo-se em profunda agitação, mas parou, imobilizado pelo espanto, quando Deirdre apareceu.

 

Tornava-se evidente que, nos primeiros instantes, o engenheiro a tomou por uma visão, criada por uma alucinação do seu cérebro. Deirdre, porém, fechou a porta e deu alguns passos para ele e então João Lucas estremeceu violentamente.

 

Que deseja? interrogou com voz alterada e com tal rudeza que a visitante parou.

 

Preciso de falar-lhe declarou por fim.

 

Julgo mal escolhido o momento.

 

Amanhã seria demasiado tarde.

 

Amanhã?... Amanhã será um dia abençoado por ser o da minha libertação respondeu ele com um riso amargo Demasiado tarde, foi o que disse?... Tem razão, será tarde para mim, para a minha mocidade que consagrei à fábrica de aço de Rollan e não voltarei a encontrar. Mas, louvado seja Deus, se o meu entusiasmo morreu, pelo menos, ganhei experiência... experiência e amarga recordação dos reveses e humilhações sofridas.

 

Deirdre fitou-o aterrada. Embora não soubesse se o engenheiro se referia à fábrica ou se fazia alusão à sua vida particular, verificava que a sua missão seria muito mais difícil de levar a cabo do que Maud tinha calculado.

 

Pensa, de facto, em separar-se de... nós por uma criancice de Rosamunda? murmurou.

 

Não penso, já resolvi afirmou João Lucas em voz surda.

 

É uma loucura. Não se destroem projectos concebidos há tanto tempo, pelo maior ou menor aparato dado a uma festa.

 

Por momentos, João Lucas fixou-a, sem proferir palavra. Não lhe pedira para se sentar e, desta forma, Deirdre conservava-se diante dele, elegante e infinitamente bela, no seu vestido de cerimónia, com os ombros doirados emergindo do tule preto, as feições transtornadas, a despeito de todos os seus esforços para aparentar calma e indiferença.

 

Nunca admiti a possibilidade de um rompimento entre mim e a Rosamunda declarou, por fim, o engenheiro Como bem disse, trata-se de uma criancice da minha noiva, uma inconsequência cuja responsabilidade cabe menos a ela do que ao meio em que foi criada. Portanto, arrancá-la a esse meio, aos seus hábitos e influências nefastas, eis o que desejo fazer prosseguiu após ligeira pausa. Levá-la-ei a romper, não só com o passado, mas também com o presente, salvo se ela se recusar terminantemente a aceder ao meu pedido.

 

Falava sem olhar para Deirdre, com os olhos cravados no tapete que cobria o mosaico vermelho.

 

Irónico sorriso perpassou pelos lábios da visitante. Como chegavam a ser cómicos os de Maud e os seus próprios receios!... Cómicos e ridículos! João Lucas separar-se da noiva! Como tinham podido admitir semelhante hipótese e como a sua intervenção fora inútil!... Só de pensá-lo, Deirdre sentia-se corar de vergonha.

 

Erguendo a cabeça nessa altura, o engenheiro notou a expressão sarcástica e amarga e não pôde deixar de lhe dar o verdadeiro sentido. Não fez perguntas, mas o semblante alterou-se-lhe ainda mais. Não deu um passo para a futura cunhada e, numa voz diferente, mais baixa e mais surda, murmurou:

 

Agradeço-lhe, Deirdre, agradeço-lhe por ter abandonado tudo e vindo até aqui para tentar reconciliar-me com a minha felicidade. Mas essa felicidade tem um rosto tão estranho que talvez ficasse aterrada se o conhecesse. Portanto, vejo-me forçado a repelir todas as mãos que se estendem para me amparar, mesmo a sua, Deirdre. Defender-me-ei sozinho e perdoe-me se, para desempenhar tarefa tão difícil, por vezes recorri à dureza.

 

Calou-se um instante, dominado por profunda comoção e depois, já mais calmo, continuou:

 

E agora volte para o Prieuré. Notarão a sua falta e a festa será menos brilhante se lhe faltar o seu encanto. A sua ausência dará nas vistas e talvez a procurem já. Não quero isso. Boa noite, Deirdre. Nunca esquecerei o que hoje fez por mim.

 

Sorria, estendendo-lhe as duas mãos. Mas Deirdre, como se não o visse nem ouvisse, estava hirta, com o olhar fixo não em João Lucas, mas na porta, atrás dele. Impulsivamente, este voltou-se. Essa porta estava aberta de par em par e, no limiar, via-se Rosamunda.

 

Tal como Deirdre, abandonara o Prieuré, seguira o mesmo caminho, empurrara a porta do pavilhão, subira silenciosamente a escada ou a voz do engenheiro não deixara ouvir o ruído dos passos. Villiers calculou que tivesse chegado na altura em que ele aconselhava Deirdre a retirar-se, pois, se tivesse vindo mais cedo, teria sem dúvida aproveitado o breve silêncio que precedera as suas últimas palavras para manifestar a sua presença.

 

Continue, João Lucas disse com arrogante ironia Se não me engano, quando cheguei dava alguns conselhos a minha irmã.

 

Fechou a porta e deu alguns passos pelo aposento.

 

Conquanto o candeeiro pousado em cima da secretária mal iluminasse a sala, o brilho das palhetas que constelavam o vestido de Rosamunda tornou-se insustentável para Deirdre, que cerrou os olhos e, sentindo-se desfalecer, apoiou-se à secretária. A voz de João Lucas e de Rosamunda chegava-lhe aos ouvidos como se viesse de muito longe.

 

Não proferimos uma palavra que não pudesse ouvir, Rosamunda afirmou o engenheiro - Não preciso dar-lhe a minha palavra de honra, creio eu?

 

Não lha peço, tranquilize-se.

 

Depois aproximou-se da irmã e envolveu-a num olhar brilhante de cólera.

 

Eis o resultado da educação que a ”querida Elsa” te deu comentou em voz sibilante Vens, de noite, perseguir na própria casa o noivo da tua irmã, aproveitando momentâneo desacordo...

 

O espanto provocado pelo ataque paralisara Deirdre. Mas as últimas palavras despertaram-na.

 

Vim apenas pedir ao João Lucas para voltar ao Prieuré declarou com firmeza.

 

E foi por isso que ele te aconselhou prudência, não é verdade?... E, de facto, porque não? continuou, respondendo à própria pergunta Nem sempre nos sentimos lisonjeados pelos sentimentos que inspiramos e João Lucas pertence à categoria de homens discretos que não gostam de tornar conhecidas perseguições de que são alvo...

 

Rosamunda!

 

Este nome, na boca de João Lucas, era como um grito de revolta e ao mesmo tempo uma ordem imperiosa, uma imposição de silêncio. Quanto a Deirdre, não conseguia articular palavra. Trémula, amparava-se à secretária.

 

Rosamunda repetiu o engenheiro endoideceu?

 

Sim, talvez tivesse endoidecido quando consenti que Deirdre Morgan entrasse no Prieuré. Mas, nesse momento, ignorava a sua origem, foi essa a minha única desculpa.

 

A sua origem!

 

Cada uma das palavras, João Lucas revelava espanto crescente e profundo. Visivelmente, esse espanto inibia-o de se impor a Rosamunda, de a obrigar a calar-se. Mas, embora pudesse fazê-lo, quem conseguiria dominar o súbito furor que a animava, o seu arrebatamento e cólera? Deter-lhe nos lábios a onda de insultos seria tão impossível como obstar ao caminho devastador das águas de um rio, quando saem fora do leito.

 

A sua origem! repetiu mais uma vez o engenheiro, como se fosse necessário fazê-lo muitas vezes para poder compreender o sentido da frase Esquece que Deirdre é sua irmã?

 

A noiva soltou irónica gargalhada.

 

Não esqueço, não. E, se tal acontecesse, não faltaria, em volta de mim, quem me recordasse esses laços de parentesco. Não ignoro que tivemos a mesma mãe. Mas e a sua voz tomou uma inflexão desprezadora e fustigante o meu pai, o doutor Chavanes, não era um ladrão.

 

Um silêncio profundo, angustioso, total, seguiu-se a esta declaração. João Lucas empalidecera. Os próprios lábios estavam lívidos. Quanto a Deirdre, dir-se-ia inconsciente.

 

Mas não por muito tempo, A rigidez de estátua animou-se. Deu um passo em frente e, com as pupilas cintilantes, a voz rouca e trémula, intimou:

 

Repete outra vez o que acabaste de dizer, Rosamunda.

 

Quantas vezes quiseres. Mas, partindo de mim, a afirmação poderá não te oferecer as garantias de autenticidade e exactidão que estás no direito de exigir. O João Lucas pode garantir o que afirmo e prová-lo, e com certeza não me desmentirá.

 

Dirige-te a ele e os seus lábios não conseguirão encontrar termos mais suaves do que os empregados por mim. O teu pai era um ladrão, Deirdre.

 

Dessa vez, foi o engenheiro quem interveio. Agarrou o braço da noiva e, com terrível acento, ordenou:

 

Cale-se!

 

Rosamunda libertou o braço e desafiou-o com o olhar.

 

Atreva-se a dizer que minto, vamos!

 

E, dirigindo-se a Deirdre, com diabólico sorriso, aconselhou:

 

Pede-lhe para jurar pela memória do irmão que Stephen Morgan era um homem honesto.

 

João Lucas suplicou Deirdre, fixando-o com olhar desvairado pelo amor de Deus, João Lucas!

 

O engenheiro não respondeu a esta súplica angustiosa. Mas a sua cólera contra Rosamunda tornou-se mais violenta.

 

Está cometendo um acto de monstruosa cobardia disse Que desígnios são os seus? Que espera alcançar com isso?

 

Erguer a minha dignidade. Gritar bem alto que não devemos coisa alguma à caridade do senhor Morgan, nem tão-pouco à filha. Abafava e ninguém, neste mundo, conseguiria obrigar-me a calar. Não, não lhe devemos seja o que for prosseguiu, sem dar tempo a João Lucas para falar As enormes quantias que, segundo parece, a avó recebia e eram destinadas à fábrica de aço, e das quais nunca pedia contas, sabes o que representavam, Deirdre?... Uma restituição. Stephen Morgan queria lá saber da nossa indústria, do seu aperfeiçoamento e expansão! O que ele desejava, de todo o seu coração, era libertar-se do remorso, acalmar a consciência, indemnizando por qualquer forma a casa de Rollan do enorme prejuízo que lhe causara. Mas embora ele tivesse mandado tudo quanto possuía, Deirdre, todos os seus milhões, ouves bem, nem mesmo assim atenuaria a vileza do acto que praticou. Aos olhos daqueles que o conhecem nunca conseguiria ilibar-se.

 

Mentes!

 

Os lábios trémulos e lívidos de Deirdre mal conseguiram pronunciar esta palavra. Mas a sua atitude rígida, o rosto inflamado, o olhar ardente, tudo protestava com veemência contra a acusação da irmã.

 

Mentes! repetiu Odeias tudo quanto é belo, puro e desinteressado e por isso pretendes denegrir a memória do meu pai. E como és toda inveja, ciúme e ambição, a fortuna dos outros parece-te mal adquirida!

 

Tremia dos pés à cabeça. Quanto a Rosamunda, soltou nova gargalhada. Estava tão certa de poder provar o que dizia que a revolta de Deirdre e os insultos que a feriam nem sequer a irritavam.

 

Voltou-se para o noivo e disse-lhe com ironia:

 

Dou-lhe a palavra, João Lucas.

 

E como ele a fitasse, sem pronunciar uma palavra, continuou:

 

As provas da... indelicadeza do senhor Morgan encontram-se no seu cofre, creio eu. Abra-o.

 

Com a mão, designava a parede atrás da secretária, onde se encontrava o cofre, oculto com o xaile bordado.

 

A despeito do domínio que tinha em si próprio, o engenheiro não conseguiu evitar um sobressalto. Depois, voltou-se para a noiva, mas com aspecto tão colérico, tão sombrio, que esta, apesar da sua ousadia, recuou.

 

Atreveu-se a fazer semelhante coisa?... Esteve a ler a minha correspondência particular?... Como ousou...

 

Calou-se de súbito, ferido por uma reminiscência. Sim, devia ter sido isso. No dia em que Maud fugira do Prieuré, na altura em que Deirdre tinha vindo pedir-lhe auxílio, estava sentado à secretária, relendo algumas cartas antigas. Como não houvesse tempo a perder, atirara estas para dentro da gaveta, deixando para o dia seguinte a sua arrumação no cofre. Calculava agora o que tinha acontecido depois e media a sua imprudência. Não ignorava ter Rosamunda vindo ao pavilhão. Impelida pelas suas suspeitas e desconfianças, quisera certificar-se de que o engenheiro estava em casa e não junto de Deirdre. Como podia entrar em casa do noivo à vontade, Amélia não se preocupara com a sua demora no escritório. E, instalando-se à secretária, Rosamunda não hesitara em abrir as gavetas, procurando, talvez e sem bem saber o quê, qualquer coisa que comprometesse Deirdre e João Lucas.

 

O resultado ultrapassara todas as suas esperanças. Nunca poderia sonhar a descoberta de um segredo que lhe entregava totalmente a irmã.

 

Embora não tivesse a certeza, João Lucas imaginou, reconstituiu e descobriu o que acontecera com uma exactidão da qual nem ele próprio podia suspeitar.

 

Um silêncio absoluto acompanhara as suas reflexões. Rosamunda, com um sorriso de maldade, fitava-o com ironia, enquanto Deirdre erguia para ele um olhar suplicante e desesperado.

 

Então? disse por fim a noiva do engenheiro porque espera para patentear o cofre à herdeira de Stephen Morgan, permitindo-lhe que examine o seu conteúdo? É esse o meu desejo, João Lucas, e, em caso de necessidade, exijo-o. E talvez me engane ao falar no cofre e, possivelmente, o papelinho se encontre em sítio mais acessível, mais próximo, numa das gavetas da sua secretária!... Mas, não, a circunstância que me proporcionou a descoberta devia ter sido ocasional. Documentos daquela natureza devem estar sempre bem guardados. Calou-se e ficou à espera. Mas o engenheiro não parecia disposto a satisfazer-lhe a exigência. A cólera e os esforços que fazia para a dominar, escureciam-lhe as pupilas, entumeciam-lhe as veias das têmporas e faziam sobressair os maxilares, fortemente apertados um contra o outro.

 

Como pode falar assim de um assunto que envolve a memória de sua mãe? balbuciou, incapaz de ocultar por mais tempo a sua indignação.

 

E como pôde admitir replicou Rosamunda, erguendo a cabeça num desafio como pôde acreditar que eu pudesse sujeitar-me por mais tempo à atitude de reconhecimento e de humildade de quem recebe uma esmola, quando estava ao facto de tudo e sabia donde vinha e o que representava o dinheiro recebido?... Isso era bom para Maud, cuja vida miserável é feita de passividade e resignação, mas não para mim. E quando vi que, durante a festa do meu noivado, Deirdre, aproveitando passageiro desentendimento, tinha vindo, sozinha, a casa do meu noivo...

 

Já não sou seu noivo, Rosamunda.

 

A declaração foi proferida em voz clara, nítida, destacando bem as palavras e essa voz, ao interromper Rosamunda, ecoou no aposento com estranha gravidade.

 

O excesso do espanto impediu a imediata reacção de Rosamunda. Estava tão certa do seu poder sobre João Lucas, a despeito do desacordo que os separara pouco antes, que a hipótese de um rompimento nunca lhe passara pela cabeça.

 

Acaba de fazer a única coisa que poderia resolver - me a restituir-lhe a sua palavra, a única para a qual não são de admitir indulgência, paciência ou esperança de modificar o seu coração. Sabia e há muito tempo, infelizmente, que era egoísta, dura, fria e implacável. Mas nunca suspeitei a monstruosa fealdade da sua alma.

 

Pouco a pouco, o espanto de Rosamunda desvaneceu-se para dar lugar à mais cruel decepção. Tentou interromper João Lucas, mas, com autoridade, este impôs-lhe silêncio.

 

Depois, Rosamunda. Depois falará e esmagar-me-á com censuras, demonstrando-me os meus erros e indignidade! Mas Deus é testemunha que, se existe uma pessoa paciente, calma e compreensiva, essa pessoa fui eu! Nunca me teve amor, Rosamunda, mas com o nosso casamento contava obter não sei bem que vantagens e êxitos e só por isso aceitou partilhar a minha vida. Quanto a mim, para que negá-lo, desde o dia em que me instalei no pavilhão, fiquei deslumbrado com a sua beleza, com os seus atractivos e o meu maior desejo foi conquistá-la. Não renego o meu entusiasmo, mas sei agora que também não a amava. O amor é uma coisa muito diferente, mais bela e preciosa, mais grave e enternecedora...

 

Rosamunda ocultou essa ferida de amor-próprio, a mais cruel para uma mulher, com a ironia.

 

É esse afecto grave e enternecedor, sem dúvida, que dedica à nossa barrinha de oiro, à herdeira de Stephen Morgan, à única proprietária das maiores fábricas de aço de Nova Iorque?

 

Ignorando a insultante insinuação, João Lucas confirmou:

 

Exactamente.

 

E, voltando-se para Deirdre, pela primeira vez depois do início da tempestuosa cena, repetiu com ardor:

 

É dessa forma que a amo, Deirdre. Deirdre olhou-o quase aterrada. Aquele rosto transtornado, as pupilas no fundo das quais ardia uma chama intensa, causavam-lhe inexplicável emoção. Entretanto, Villiers dirigia-se de novo a Rosamunda:

 

Amei Deirdre desde o primeiro instante prosseguiu No entanto, se dependesse apenas de mim, coisa alguma se teria modificado entre nós, Rosamunda. Estávamos unidos por promessas que eu considerava sagradas e, deve prestar-me justiça, fiz tudo quanto foi possível para me aproximar de si, para conquistar um lugar no seu coração. A minha honestidade revoltava-se com a ideia de um rompimento provocado por mim e, pelo contrário, desejei concluir rapidamente este casamento que me restituiria, pensava eu, a calma e a paz do coração. Esta noite ainda, quando fugi do Prieuré, que, contra os meus desejos, ia ser invadido por uma multidão de convidados, eu tentava desculpá-la. Mas a acção que praticou, a infâmia da sua revelação sem fundamento, o sofrimento que, sem hesitar, causou a sua irmã, destruíram de um só golpe todos os laços que me prendiam a si. Com esse gesto desonroso saiu para sempre da minha vida, Rosamunda.

 

E quem lhe assegura que o lamento? Quando João Lucas acabou de falar já ela tinha recuperado o sangue-frio. Erguendo a cabeça, olhou em volta com ar desdenhoso.

 

Quem lhe diz que me aflige a certeza de não vir para esta casa nem partilhar a vida que seria a minha a seu lado? Não, mil vezes não! Ofereça ambas a Deirdre. Ela ficará, por certo, encantada e aceitá-las-á. De resto, quem tem, como ela, uma tara, não pode mostrar-se difícil na escolha!

 

Ao falar, Rosamunda aproximara-se da irmã e, tirando bruscamente o anel de noivado, levantou a mão, fazendo-o cintilar entre os dedos.

 

Será a ti que o confio, Deirdre?... Vou entregá-lo nas tuas mãos? perguntou ironicamente Não, não deve servir-te. Não tens os dedos esguios dos de Rollan. Não podes negar que os teus avós paternos eram rudes trabalhadores americanos!... Se tiveres de usar este anel, será preciso alargá-lo muito.

 

Deu alguns passos e atirou com o anel para cima da secretária.

 

E agora, minha barrinha de oiro, retiro-me e deixo-te o campo livre, um campo que, infelizmente, não poderás pisar. Supunhas ter ganho a batalha? Como estás enganada!... Vou-me embora porque quero e desejo ceder ao João Lucas o privilégio de te fazer certas revelações. Essas revelações vão surpreender-te, mas coisa alguma neste mundo poderá evitá-las. Sei que não terás um momento de descanso enquanto ignorares a tara que mancha a fortuna de teu pai e por que razão é o João Lucas o único homem com quem não poderás casar!

 

Tendo proferido estas palavras com ar triunfante, levantou ligeiramente a comprida saia do seu vestido de baile e, sem pressa, como se pisasse um dos salões do Prieuré, atravessou o aposento, abriu a porta e desapareceu.

 

Durante algum tempo ainda se ouviu o martelar dos saltos finos na escada e no corredor. Depois seguiram-se alguns minutos de profundo silêncio. Por fim, João Lucas voltou-se para Deirdre e viu-a tão pálida que se assustou. Aproximou-se dela e apertou-lhe as mãos entre as suas sem que ela fizesse um movimento sequer.

 

Deirdre murmurou Fale-me, pelo amor de Deus, responda-me!

 


Ao ouvir esta voz ansiosa e suplicante, a infeliz rapariga pareceu despertar e volveu para o engenheiro um olhar alucinado.

 

Diga-me o que há? balbuciou Que sabe o senhor... Que sabe Rosamunda?... Mentiu, não é assim? -

 

Mais tarde falaremos no assunto, Deirdre. Agora não se encontra em estado de...

 

Deirdre tapou o rosto com as mãos, num gesto de desespero. Depois descobriu-o e protestou:

 

A incerteza e a ignorância é que ultrapassam as minhas forças. Não o compreendeu ainda? Prefiro saber a verdade.

 

Era sincera e João Lucas compreendeu, com efeito, que, depois das insinuações de Rosamunda, das suas palavras envenenadas, tudo seria preferível, de facto, às hesitações, subterfúgios e resistências.

 

Sente-se aqui, então pediu o engenheiro. Sem resistir, Deirdre deixou-se conduzir para

 

uma das cadeiras de braços, onde João Lucas a instalou. Depois, antes de encetar o assunto, ele curvou-se um pouco para ela e proferiu em voz ardente:

 

Deirdre, antes de mais nada, quero dizer-lhe com todo o ardor, paixão e ternura do meu coração, que a amo.

 

Deirdre apertou convulsivamente as mãos, mas não lhe respondeu. João Lucas continuou:

 

Se tivesse dependido apenas de mim, nunca teria sabido...

 

Com desespero, ela interrompeu-o:

 

Diga-me o que fez o meu pai?

 

Villiers hesitou. Mas chegara a altura das revelações dolorosas e coisa alguma poderia adiá-la.

 

Apoderou-se de certos segredos da fábrica, Deirdre, e foi essa a origem da sua fortuna.

 

Nem o mais leve estremecimento indicou que ela tivesse ouvido. A custo, o engenheiro continuou:

 

Quando Stephen Morgan veio fazer um estágio nas fábricas de aço de Rollan, era pobre e apenas director, não dono, das fábricas americanas que hoje lhe pertencem, Deirdre. Foi recebido, não só no Prieuré como também aqui, no pavilhão onde habitava meu irmão. Entrava e saía livremente, era considerado como amigo. Um único segredo lhe ocultava Francisco Villiers: um novo processo de fabrico que, depois de muitas pesquisas, trabalhos e aturados estudos, conseguira descobrir e ia começar a empregar. Esse processo devia dar ao aço saído das nossas fábricas uma resistência e ao mesmo tempo uma flexibilidade perfeitas e impossíveis de obter até então. E conquanto esta descoberta ainda não tivesse saído do domínio experimental, meu irmão conhecia muito bem o seu extraordinário valor. Teria ele chegado a falar neste assunto a Stephen Morgan ou seria ele próprio quem o descobriu numa das suas visitas ao laboratório? Ninguém pôde sabê-lo. Mas, um dia, a pasta contendo todos os documentos relativos aos estudos e à afinação quase definitiva da descoberta desapareceu...

 

Não foi o meu pai proferiu Deirdre, de dentes cerrados.

 

O olhar de João Lucas traduziu intensa compaixão. Mas embora tivesse sacrificado tudo, mesmo a sua própria felicidade, para poupar a Deirdre o sofrimento provocado por estas revelações, compreendia não poder já calar-se, O requinte de crueldade que o obrigava agora a desvendar toda a verdade e ferir o culto que Deirdre professava pela memória do pai, fora bem digno da alma vil de Rosamunda!

 

Como se não tivesse ouvido o protesto, continuou, dando-lhe ao mesmo tempo uma resposta tácita:

 

O seu pai adorava Cristina Chavanes e, por sua causa, queria ser rico. Por fim, apesar da oposição de madame de Rollan, casaram. Meu irmão sofreu nesse dia o maior desgosto da sua vida. Amava” Cristina, a quem considerava como sua noiva, com uma paixão sem limites, e a decepção desesperou-o. E a perda dos planos que representavam o trabalho de tantos dias e de tantas noites acabou de o despedaçar. Mas nunca suspeitou de Stephen Morgan. O inquérito feito sobre o roubo dos papéis foi discreto e não produziu resultado. Por causa do bom nome da fábrica, evitou-se dar publicidade ao caso. Meu irmão, tendo perdido tudo, voltou ao princípio, mas a mola que o impelia quebrara-se. Um dia, por acaso, veio-lhe às mãos uma revista americana. Essa revista referia-se ao súbito desenvolvimento de umas fábricas situadas ao sul de Nova Iorque, as suas, Deirdre. Elogiava certo processo que essas fábricas acabavam de pôr em prática e cuja iniciativa se devia ao director Stephen Morgan. Cada linha desse artigo, escrito com certeza sem o seu pai saber, foi para meu irmão uma revelação e provou-lhe, sem a mais pequena dúvida, que o seu amigo americano o tinha roubado duas vezes. Indignado, escreveu a Stephen Morgan, intimando-o a explicar-se, ameaçando-o de o denunciar à justiça pelo abuso de confiança, roubo e infâmia. A esta carta foi sua mãe quem respondeu, Deirdre.

 

Por momentos, a voz de quentes inflexões que se alterava de momento para momento, calou-se. Imóvel, de olhos baixos, o rosto lívido, Deirdre nem parecia ouvi-lo.

 

Sua mãe era uma criatura adorável, boa e sensível prosseguiu João Lucas mas completamente desarmada para a vida e perante o seu amor.

 

Talvez esmagado pelos remorsos, não conseguindo ocultar àquela a quem amava as preocupações e a inquietação provocada pelas ameaças recebidas de França, seu pai confessou-lhe a sua falta. E Cristina Morgan suplicou a meu irmão que perdoasse. Não se tratava de uma tentativa de chantagem, Deirdre, compreenda-me bem, uma burla combinada entre os seus pais. Não. A carta de sua mãe era dolorosa, aflitiva, sincera e escrita às ocultas do marido. E, justamente por isso, constituía a confissão mais total, mais formal, e, escrevendo-a, Cristina Morgan entregava-o. Contudo, ela não hesitou em escrevê-la e mandá-la. E o que o silêncio ou veementes protestos não teriam conseguido, obtiveram-no a sua confiança, lealdade e suplicante sinceridade. Vencido pelas súplicas daquela a quem continuava a amar, meu irmão esqueceu todos os agravos, perdoou e renunciou à vingança. Pouco tempo depois, nasceu a Deirdre e sua mãe morreu. Mas, no espírito de Francisco, essa morte não o libertava da promessa tacitamente dada e, portanto, não desmascarou Stephen Morgan. Agora, pouco mais resta para lhe contar prosseguiu João Lucas Poucas semanas depois do desaparecimento de Cristina Morgan, meu irmão morreu também. A sua morte foi acidental ou provocada por ele? Nunca ninguém o saberá. Por mim, não posso acreditar que Francisco Villiers tivesse desertado. E ele, nas últimas horas de vida, negou-o energicamente. Eu era muito novo ainda tinha apenas dez anos Mas na noite em que o levantaram debaixo do carro voltado e o trouxeram para o pavilhão, creio que me tornei prematuramente homem. Assisti à sua agonia, compreendi e gravei no meu coração as suas últimas vontades, tal como o faria um verdadeiro homem.

 

”Francisco pediu-me para, mais tarde, o substituir

na fábrica. Falou-me como o teria feito a um confidente da sua idade, do seu amor e da existência da carta e explicou-me a razão por que não a tinha destruído. Lembrou-se da criança que tinha nascido e a quem talvez fosse preciso defender mais tarde. Não podia adivinhar que Stephen Morgan seria o mais terno dos pais e pretendia que a filha de Cristina dispusesse de uma arma, no caso de novo casamento do pai ou qualquer circunstância imprevista a prejudicarem. Agora sabe tudo, Deirdre. Quando quiser, pode ler as linhas traçadas pela mão de sua mãe, verá esse ”papelinho”, como lhe chamou Rosamunda. Porque não a teria eu guardado no cofre onde se conservava há mais de vinte anos, junto das cartas de minha mãe e de meu irmão? concluiu com desespero.

 

Conservava-se de pé, defronte de Deirdre, que, rígida, sentada na cadeira, se conservava de olhos fixos e ardentes, cintilando estranhamente no semblante transformado.

 

Deirdre! Olhe para mim e fale-me, pelo amor de Deus! suplicou Villiers, poisando-lhe as mãos nos ombros nus.

 

Aquela imobilidade assustava-o. Ao contacto das mãos do engenheiro e ao som da sua voz, Deirdre estremeceu e olhou para ele.

 

O seu ódio era então merecido murmurou em voz baixa e o dessa mulher também...

 

Sim, a minha velha Amélia sabia. Vive há muitos anos comigo, servindo-me com dedicação, como serviu Francisco. Assistiu aos últimos momentos de meu irmão, de minha mãe, e, desde que fiquei sozinho, tentou proporcionar-me o carinho do lar. Supõe-se inflexível, mas tê-la-ia acolhido se soubesse que a Deirdre representa para mim toda a minha felicidade. Quanto ao meu ódio... santo Deus, nunca existiu. Amei-a desde o primeiro dia, minha adorada, amei-a profundamente, juro-o... mas estava comprometido com a sua irmã! Além disso, como se não bastasse ser cómico e ridículo eu apaixonar-me por Deirdre Morgan, havia ainda outra coisa...

 

A minha tara, não é verdade? murmurou Deirdre num sopro, empregando intencionalmente as palavras empregadas por Rosamunda.

 

Não, não! A Deirdre não é responsável pelas faltas dos outros; mas, pobre de mim, embora seja mil vezes injusto, é responsável pela sua fortuna. E se existe, de facto, um homem que não possa admitir a ideia de se aproveitar dessa fortuna, baseada, perdoe-me, Deirdre, num roubo feito a meu irmão, esse homem sou eu.

 

Desta vez estava tudo dito, nem, de resto, Deirdre teria forças para suportar mais. Vagarosamente, levantou-se.

 

Vou-me embora, João Lucas murmurou numa voz diferente, surda e apagada.

 

O engenheiro curvou a cabeça. Tendo reunido toda a sua coragem para a revelação, a sua energia e firmeza de homem forte de corpo e de espírito vacilavam. E não encontrava palavras para suavizar tanto sofrimento.

 

Deixe-me acompanhá-la ao Prieuré pediu.

 

Não, desculpe-me, mas preciso de estar só. O rapaz submeteu-se.

 

Em silêncio, seguiu Deirdre quando esta saiu do escritório. O luar ainda iluminava a escada e foi essa a única claridade que os acompanhou quando desceram.

 

Pela porta, que Rosamunda não fechara, avistavam-se, ao longe, os clarões avermelhados dos altos fornos e o recorte pesado das chaminés, erguidas para o céu.

 

Visto Deirdre não consentir que a acompanhasse, João Lucas parou. Então, bruscamente, Deirdre voltou-se. Num movimento rápido, agarrou as mãos do engenheiro, como se pretendesse impedi-lo de a repelir; durante breves segundos, a sua cabeça repousou contra o peito robusto do rapaz e, numa voz onde vibrava ardente ternura, murmurou:

 

Amo-o, João Lucas, amo-o!

 

Depois, antes que João Lucas, profundamente comovido, pudesse pronunciar uma palavra, largou-lhe as mãos, recuou e saiu do pavilhão. Parado no limiar da porta, o engenheiro viu-a afastar e sumir nas sombras da noite.

 

Mais tarde, muito mais tarde, quando os últimos automóveis partiam com os convidados, Elsa, profundamente aflita, viu a porta do quarto abrir-se e no limiar perfilar-se estranha aparição: Deirdre, extremamente pálida, com os ombros e braços húmidos do orvalho, o vestido todo amachucado, isto e, a pálida imagem da Deirdre deslumbrante de mocidade e beleza que tinha abandonado o Prieuré no começo da festa.

 

Respondendo às insistentes perguntas da amiga, declarou que tinha estado sentada num dos bancos do parque. De súbito, levou a mão à cabeça, fechou os olhos e cambaleou. E Elsa mal teve tempo de a receber nos braços.

 

O Verão, o verdadeiro, com dias sufocantes, ocasos cor de púrpura, ribeiros secos e ceifas debaixo do sol ardente, pesava sobre o Prieuré. Habitualmente, nessa época, as janelas do palacete fechavam-se, o silêncio envolvia tudo e no terraço ermo os pombos passeavam à vontade. Madame de Rollan e as netas costumavam passar os meses de Julho e Agosto numa vivenda que alugavam em Cannes. Apenas dois criados, marido e mulher, ficavam no Prieuré para serviço de Didier Thibaut, que dividia o seu tempo entre a fábrica e o mar.

 

Naquele ano, porém, tudo se passava por forma diferente. No dia seguinte ao rompimento, Rosamunda partira para Paris. Antes de abandonar o Prieuré, teve demorada conversa com madame de Rollan que a deixara a completamente abatida. Madame de Rollan envelhecia. A festa de noivado sem a presença do noivo deixara-a esgotada, pois ninguém poderia imaginar os artifícios, a dissimulação, a fantasia, os estratagemas que inventara para explicar que o engenheiro, vítima de imprevisto trabalho, não podia aparecer na festa nem mesmo por um momento. Compreendia muito bem que não tinha conseguido salvar as aparências e a sua irritação voltava-se para Rosamunda, a única responsável, em sua opinião, da intransigência do noivo.

 

A cena que se desenrolou no quarto de madame de Rollan na manhã de 17 de Junho não teve testemunhas. Mas devia ter sido violenta, a ajuizar pela perturbação e alteração do seu semblante, que, durante todo o dia, não conseguiu acalmar. De resto, o eco das recriminações de Rosamunda, as suas censuras e cólera, tinham chegado até ao quarto de Elsa e de Deirdre. Esta última não teve dificuldade em adivinhar que um único motivo provocava todas elas: o facto de madame de Rollan ter acolhido no Prieuré a estrangeira, a inimiga. Ao sair do quarto da avó, Rosamunda entrou no de Maud. A entrevista entre as duas irmãs foi tempestuosa, mas durou pouco. Pouco depois, sem tornar a ver Deirdre e Elsa, nem mesmo Didier, que se encontrava na fábrica, Rosamunda partiu, acompanhada por impressionante quantidade de luxuosas malas e maletas. Como a saúde de Maud não consentia, naquele ano, que a família se deslocasse, Rosamunda ia para casa de pessoas amigas que a levariam consigo em vilegiatura.

 

Madame de Rollan, quando, nessa noite, à hora do jantar, explicou, com voz mal segura, a ausência da neta, teve de confessar não saber qual o ponto exacto de França ou do estrangeiro escolhido para vilegiatura.

 

A ausência de Rosamunda tornou mais leve a atmosfera para todos os habitantes do Prieuré, principalmente para Deirdre. Conquanto a sua energia tivesse conseguido, num esforço supremo, vencer o abatimento que a esmagara ao regressar ao Prieuré, depois da dolorosa revelação, Deirdre fora profundamente atingida e continuava desanimada e triste. A presença da irmã teria sido intolerável, mas seria forçada a suportá-la se ela não tivesse partido, porque a hora de abandonar o Prieuré ainda não tinha soado.

 

Maud estava condenada. De dia para dia, sem sofrimento, a pobre rapariga ia enfraquecendo, aproximando-se do fim. Ignoraria ela o seu estado?... Deirdre não podia afirmá-lo, mas também não podia afirmar o contrário. Sorridente, carinhosa, junto do leito da irmã, de quem se tornara a enfermeira, continuava a fazer projectos, a falar na próxima viagem e de tudo quanto ela representava de novo para Maud.

 

Tinha receado que a notícia do rompimento entre João Lucas e Rosamunda a impressionasse. Mas talvez, depois da conversa que tivera a sós com a irmã, Maud voltasse a considerar a separação como solução feliz para o engenheiro. Em todo o caso, não tornou a falar em qualquer deles e Deirdre adoptou a mesma reserva.

 

De resto, mesmo que o desejasse, seria incapaz, pelo menos nos primeiros dias, de falar na partida de Rosamunda e nas circunstâncias que a tinham provocado. O golpe que a ferira no amor e culto pelo pai roubara-lhe as forças, deixava-a esmagada pela recordação dessa noite inesquecível e do ódio revelado por Rosamunda. Mesmo junto de Maud, não teria conseguido ocultar a sua perturbação.

 

Elsa era a única pessoa com quem Deirdre podia desabafar o seu desespero. Na noite, ou antes, na madrugada em que regressara a casa, ao recuperar os sentidos, refugiada nos braços carinhosos da amiga, contara tudo. E Elsa ficara aterrada com a violência daquele desgosto, com o sofrimento daquele coração terno. Conhecia bem Deirdre, a sua calma, equilíbrio de nervos, a sua resistência, mesmo contra a doença e dor física, para avaliar, pelo súbito desânimo, a profundidade da ferida e da dor.

 

Porém, antes de tentar levantar-lhe o moral, impunha-se tratar do corpo. A demorada permanência no parque, com a humidade da noite, ameaçava ter graves consequências. Sem pedir auxílio a criada de quarto, Elsa, com a energia habitual, reanimou Deirdre e deitou-a. Toda a noite passou à cabeceira da amiga, disposta a chamar o médico se o considerasse necessário, mas com a esperança, apesar de tudo, de não ser forçada a fazê-lo.

 

A sua confiança na robustez de Deirdre, essa robustez que, segundo opinião de Rosamunda, ela herdara dos avós americanos, não a desiludiu. Nesse mesmo dia, Deirdre conseguiu levantar-se e retomar a sua vida habitual, isto é, sentar-se à mesa com a família e passar todas as suas horas junto do leito de Maud. Restava o moral, que, em sua opinião, seria muito mais difícil de curar.

 

Todavia, mesmo esse moral parecia estar mais calmo. A cor voltava às faces de Deirdre e, por vezes, leve sorriso lhe aflorava os lábios. Havia mais brilho no olhar e mais energia nos gestos.

 

A resolução e a firmeza substituiam pouco a pouco o desânimo e a tristeza dos primeiros dias. Lentamente, voltava a ser a rapariga que fora antes, nos dias ainda bem próximos, isto é, uma Deirdre animada e activa.

 

Contudo, a sua vida mudara um pouco, ou, por outra, conforme seu desejo, dava maior importância a certas ocupações. Por exemplo, quando até ali deixava a Elsa, quase exclusivamente, o trabalho de abrir a correspondência vinda da América, de lhe responder e até tomar certas decisões, passou a auxiliar regularmente mademoiselle Gauthier.

 

De resto, o trabalho das duas, nesse campo, tornou-se absorvente. De dia para dia, o volume das cartas aumentava em cima da secretária de Elsa. Por vezes, chegavam também cablogramas, aos quais Deirdre só respondia depois de demoradas conferências com a amiga. Por duas vezes veio ao Prieuré um dos procuradores, encarregados dos negócios da casa Morgan. E Deirdre passou o dia a trabalhar com ele na saleta contígua ao seu quarto, saindo apenas para descer à sala de jantar à hora das refeições, para as quais o visitante foi convidado. Maud, com o seu habitual sorriso de bondade, troçava da irmã pelo seu súbito interesse pelos negócios e queixava-se porque a sua ambição imoderada pela riqueza a levava a abandoná-la quase dias inteiros.

 

Esta censura trazia, aos lábios de Deirdre leve sorriso. Depois curvava-se para a doente, beijava-a com maior ternura e, intimamente, ficava aterrada ao sentir nos braços um corpito cada vez mais magro, mais leve e mais franzino.

 

Muitas vezes encontrava João Lucas à cabeceira de Maud. Dir-se-ia, porém, que o quarto da doente era um lugar à parte, uma terra estranha onde os corações e os espíritos só podiam entrar sem pensamentos tumultuosos que perturbassem a paz e a tranquilidade daquela vida que se extinguia. E, com efeito, coisa alguma na atitude dos dois revelava a violência dos seus sentimentos.

 

Esses encontros eram para Deirdre, ao mesmo tempo, dolorosos e queridos. No entanto, mesmo que não se impusessem as maiores precauções por causa de Maud, que não podia suportar a mais pequena emoção, não poderia adoptar atitude diferente da de João Lucas, que era de reserva e delicada indiferença.

 

Por vezes, ao abandonar o quarto da enferma, onde, durante algumas horas, representara, diante de Villiers, a comédia da impassibilidade, serenidade e frieza, Deirdre apertava a cabeça nas mãos, num gesto de desespero. Onde estava a sinceridade e a verdade? No rápido aperto de mão, no olhar distraído, nas palavras banais de João Lucas ou na fisionomia transtornada que certa noite voltara’ para ela ao confessar-lhe o seu amor? Para o descobrir, Deirdre daria de boa vontade alguns anos de vida. Nestes momentos de dúvida, de desânimo e de ansiedade, pensava com amarga ironia ser talvez a mudança que, ocultamente, preparava na sua vida, completamente inútil e até ridícula. Todavia, não haveria forças que a levassem a modificar o que tinha resolvido, acontecesse o que acontecesse.

 

Nos princípios de Agosto, Villiers foi ao Prieuré apresentar as suas despedidas. Chegara a altura das suas férias habituais e naquele ano dir-se-ia acicatado pelo desejo imperioso de abandonar a fábrica, as suas responsabilidades e o trabalho extenuante que elas lhe impunham.

 

Deirdre recebia, pela terceira vez, um dos seus homens de negócios quando Marta lhe bateu à porta da saleta onde se encontrava com Elsa e Dupuy. A criada de quarto transmitiu-lhe o pedido de Maud, que desejava falar com a irmã. Deirdre acedeu imediatamente. Estava-se no começo da tarde. A manhã tinha sido, para a Americana e para os seus dois companheiros de trabalho, utilmente empregada e a presença de Elsa bastava agora para a resolução de certos assuntos, sobre os quais, de resto, Deirdre dera a sua opinião.

 

Abandonando os seus aposentos, atravessou o corredor e entrou no quarto de Maud... A doente não estava deitada, mas, sim, instalada em confortável poltrona, diante da janela aberta. João Lucas estava junto dela. Levantou-se quando Deirdre entrou e cumprimentou-a com a frieza e irrepreensível delicadeza que lhe eram habituais. Como sempre, quando se encontrava inesperadamente na presença de Villiers, as mãos da rapariga tremiam e o coração palpitava com tanta força que a sufocava. Como fora possível que um sentimento tão profundo, a despeito de todos os seus esforços, se tivesse insinuado no seu espírito, na sua própria carne, apossando-se por completo de todo o seu ser?

 

Maud incomodou-a talvez disse, com calma, o engenheiro mas o culpado fui eu. Parto amanhã para gozar as minhas férias e não queria abandonar o Prieuré sem me despedir de si, tanto mais que talvez já tenha partido para a América quando eu regressar?

 

Muito pálida, Deirdre escutava-o. A voz de João Lucas era calma, em vão se tentaria descobrir a mais pequena nota de sofrimento ou mesmo de leve pesar. No entanto, reparando bem, pareceu-lhe mudado. Estava mais magro, mais triste e, sob a pele morena, os contornos mais acentuados dos ossos dos maxilares davam-lhe um aspecto duro.

 

Olhando-o bem a direito, confundindo as suas pupilas negras com as pupilas azuis do engenheiro, respondeu:

 

Agradeço-lhe, senhor Villiers. Com efeito, daqui a um mês é provável que não nos encontre. Nessa altura, Elsa, Maud e eu já teremos abandonado o Prieuré. Portanto, será um ”adeus” e não ”até à vista”.

 

Nem um músculo do rosto do engenheiro estremeceu.

 

Também assim o creio, mademoiselle. Breve silêncio se seguiu a estas palavras. Para

 

não os perturbar, Maud voltara-se para a janela e parecia distraída, mas o rostozinho magro traduzia ansiosa espectativa.

 

Villiers voltou-se para ela.

 

A si, Maud, limito-me a desejar-lhe que passe bem a noite, visto termos combinado eu vir ainda amanhã aqui, antes de partir.

 

Foi essa a sua promessa murmurou Maud Vai-se embora já? perguntou, vendo-o levantar.

 

Mostrava-se desapontada. O rapaz confirmou com a cabeça.

 

Tem de me desculpar. Há sempre preparativos a fazer, nos últimos momentos.

 

Agarrou a mão de Maud e apertou-a entre as suas, enquanto falava. Deirdre teve a impressão de que a doente lhe dirigia um olhar suplicante. O engenheiro, porém, pareceu não o notar e, largando-lhe a mão, voltou-se para Deirdre a fim de se despedir. Depois, sem hesitar, abandonou o quarto.

 

Deirdre aproximara-se da poltrona da irmã e conservava-se de pé, atrás dela, para que a enferma não desse pela sua perturbação. Contraía os dedos no espaldar e apertava os lábios como se quisesse impedir que as palavras saíssem e revelassem os seus dolorosos pensamentos.

 

Receou que Maud se admirasse com o silêncio e adivinhasse a sua comoção; mas a doente ficara muito abatida depois da saída de Villiers. Com a cabeça enterrada no almofadão a que estava encostada e o olhar perdido no arvoredo do parque, absorvia-se em profundas reflexões e Deirdre perguntava de si para si se a irmã não teria esquecido a sua presença. De súbito, porém, Maud, sem voltar a cabeça, ergueu o braço e procurou a mão da irmã.

 

Quero dizer-te uma coisa, Deirdre murmurou a meia-voz.

 

Calou-se um instante e concluiu:

 

O Didier vai pedir-te para casares com ele. Deirdre sobressaltou-se. Na verdade, Thibaut, desde o primeiro dia, rodeava-a de atenções, pequenos cuidados e delicadezas que todo o homem educado tem para uma senhora. Mostrava-se amável, bom camarada, agradável e alegre. Mas, daí a supor-lhe semelhantes intenções, ia grande distância.

 

Ficaste admirada, na verdade? inquiriu Maud.

 

Muito admirada, confesso.

 

Deirdre calou-se e reflectiu durante algum tempo. Depois esboçou leve sorriso. Se Didier tivesse, de facto, as intenções que a irmã lhe atribuía, quais não seriam a sua surpresa e desapontamento ao saber o que ela e Elsa estavam a preparar.

 

Será preferível que o Didier se abstenha de qualquer tentativa desse género declarou Posso contar contigo para o avisares?

 

Podes, se assim o entenderes. Mas será melhor reflectires primeiro. Fui eu a primeira a aconselhar-te para não te deixares influenciar pela avó, não me esqueço. Sei que ela deseja este casamento e hoje lamento o que te disse.

 

Calou-se, largou a mão de Deirdre e curvou a cabeça.

 

Quando se caminha para os últimos momentos, vês tu prosseguiu tudo é motivo para remorsos e desejaríamos poder apagar da nossa vida, antes de a abandonarmos, todas as nossas más acções, as menos nobres pelo menos. Não, não me interrompas. Conheço bem o Didier. É um tanto leviano, fraco, mas bom. Se, durante algum tempo, se deixou arrastar para o... passageiro desvio que nós conhecemos, a única culpada foi a avó. Digo-te isto para libertar a minha consciência, Deirdre.

 

Mas com a esperança de que eu não aceite! declarou bruscamente a irmã.

 

A doente baixou os olhos e, em voz surda, perguntou:

 

Amas alguém... Talvez deixasses na América um coração que te espera?

 

Não respondeu, simplesmente, Deirdre. Depois abandonou o seu posto atrás da poltrona.

 

Fica descansada disse Entre mim e o Didier não pode existir qualquer laço, em breve o saberás. Entretanto, suplico-te que tenhas confiança em mim e não te apoquentes. Nunca, fosse pelo que fosse, desviaste o meu coração e o meu pensamento de Didier, porque nem um nem outro podiam pertencer-lhe. Quanto a ele, podes ter a certeza de que em breve as suas ideias a meu respeito se modificarão e ficará radiante por não ter comprometido a sua palavra e a sua liberdade comigo.

 

Calou-se. Sorria, mas tinha falado com extraordinária firmeza. Maud fitou-a demoradamente com os lindos olhos meigos e profundos, que a doença tornava maiores, e os lábios moveram-se como se fosse dizer mais alguma coisa. Mas, após ligeira hesitação, soltou profundo suspiro e os lábios trémulos imobilizaram-se.

 

Posso deixar-te uns momentos? inquiriu Deirdre.

 

A doente curvou a cabeça. Parecia extenuada como se tivesse dispendido um esforço sobre-humano.

 

Podes, sim, Deirdre e não chames a Marta. Quero ficar sozinha de todo.

 

Deirdre abandonou o quarto, mas não voltou para a saleta onde se encontravam Elsa e Dupuy. Desceu a escada e alcançou o parque. Como discutir assuntos de gravidade se não podia desviar o pensamento da única coisa que o absorvia por completo: a partida de João Lucas, as suas despedidas glaciais, o seu ar de indiferença total? Não, seria impossível. Impunha-se algum tempo para acalmar.

 

Chegando a um cruzamento de ruas, tomou a direcção oposta ao pavilhão. Sabia não haver perigo de encontrar o engenheiro, que não voltaria ao Prieuré senão no dia seguinte. No entanto, só de pensar que o acaso a poderia pôr em presença de João Lucas, toda ela tremia.

 

Tendo atravessado a rotunda onde se encontrava o tanque, voltou à esquerda e meteu pelo bosque. Fora ali, num dos bancos de pedra que separava dois atalhos, que certa noite passara horas num estado de abatimento e inconsciência quase absoluta.

 

Naquele ponto, o arvoredo do parque era basto e espesso. Não se viam tabuleiros de relva bem tratada, semeados de arbustos ou plantas vivazes, mas, sim, algumas, raras, clareiras cortadas no meio de grupos compactos de árvores frondosas, o que dava a Deirdre a impressão de se encontrar em plena floresta. Essa impressão agradou-lhe e acalmou um tanto a sua dor. Caminhou algum tempo ao acaso e depois, já cansada, sentou-se no tronco de uma árvore que os jardineiros tinham abatido e abandonado.

 

Não poderia dizer quanto tempo se demorou, sentada, com os braços em volta dos joelhos, o olhar fixo, insensível à beleza do cenário, as costas apoiadas ao tronco delgado de um abeto ao qual a árvore derrubada tinha sido encostada.

 

Quando pensou no regresso, o sol começava a declinar. Apressou o passo, um pouco envergonhada por ter estado tanto tempo afastada de casa e receando que Dupuy já se tivesse ido embora.

 

Com efeito, quando chegou à rua principal, viu um automóvel que se afastava e ficou aflita. O carro, já velho e antigo, não era o de Dupuy, mas sim o do médico da vila próxima, que, por vezes chamavam ao Prieuré.

 

A correr, entrou em casa e ia a atravessar o hall quando se encontrou com Marta, cujas feições transtornadas mais a assustaram.

 

Aconteceu alguma coisa? perguntou, ansiosa A minha irmã...

 

Não concluiu porque a criada confirmou com a cabeça e depois informou:

 

Mademoiselle Maud teve uma terrível crise de sufocação. A avó está junto dela. Chegámos a recear que fosse o fim. Procurámos mademoiselle Morgan por toda a parte...

 

Deirdre encostou-se ao corrimão, meio desfalecida.

 

Veio o médico?

 

Imediatamente. Saiu agora.

 

Sim, eu vi-o. Que disse ele?

 

Que, por agora, tinha passado o perigo.

 

Até quando?

 

Por muitos meses ou apenas por alguns dias.

 

Deirdre já sabia o bastante. Conseguindo dominar-se, subiu a escada e entrou, sem bater, no quarto de Maud. A doente estava na cama, não deitada, mas recostada em muitas almofadas, como habitualmente, e Deirdre ficou apavorada com a alteração do semblante pálido. Junto dela encontrava-se madame de Rollan, cujo rosto reflectia ainda o enorme susto por que tinha passado.

 

Débil sorriso entreabriu os lábios de Maud quando viu entrar a irmã.

 

Que medo tive de morrer sem estares a meu lado, Deirdre! Mas, graças a Deus, chegaste. Ainda posso...

 

Suspendeu a frase, voltando-se para a avó.

 

Deixa-me uns momentos sozinha com a Deirdre, sim?

 

Não me parece muito prudente, minha filha. O médico explicou-me como proceder para atalhar nova crise, logo de princípio.

 

Faça-me o que lhe peço, avó! Não haverá outra crise, descanse... pelo menos, hoje.

 

O pedido foi feito com firmeza e, temendo contrariá-la, madame de Rollan, dirigindo a Deirdre um olhar desolado, submeteu-se.

 

Logo que ela saiu, a doente chamou a irmã para mais perto.

 

Vem para aqui, Deirdre, vem para junto de mim. Onde estiveste?

 

E, depois de ligeira hesitação, terminou:

 

No pavilhão?

 

Não, estive no parque respondeu Deirdre, corando levemente.

 

É pena! suspirou Maud.

 

Ficou calada uns momentos e depois continuou:

 

Já conhecia a inutilidade da conversa que tivemos há pouco a respeito do Didier. Pressentia a tua resposta, mas desejava certificar-me e adquirir a certeza sobre os teus sentimentos.

 

Após breve silêncio, declarou:

 

Mandei chamar o João Lucas. Deve estar aqui dentro de pouco tempo. Não posso suportar a ideia de morrer antes de realizar...

 

Calou-se porque alguém batia leves pancadas na porta e, quase logo, aquele de quem falavam entrou no quarto.

 

Villiers também ficou dolorosamente surpreendido com a mudança sofrida pela doente naquelas duas horas. Todavia, não o demonstrou e até sorriu quando Maud lhe disse pouco mais ou menos o que tinha dito a Deirdre:

 

Por pouco não nos tornávamos a ver neste mundo, João Lucas. Mas a morte, desta vez, ainda me concedeu ligeira trégua.

 

Gosta de assustar os seus amigos, já vejo respondeu o engenheiro com ar risonho. Mademoiselle Morgan com certeza é da mesma opinião.

 

Como a solicitar a aprovação de Deirdre, voltou-se para ela. Exactamente confirmou esta, tentando dar a mesma impressão de calma Além disso, suponho que a Maud se arrependeu por se ter comprometido a acompanhar-me à América e deseja convencer-me de que a viagem é demasiado fatigante para ela.

 

Tentava falar com despreocupação, embora cada palavra lhe custasse tremendo esforço. Ter-se-ia Maud iludido com essa tranquilidade aparente? Só ela o poderia dizer. Sorriu tristemente e afirmou:

 

De facto, não te acompanharei à América, Deirdre.

 

A irmã tentou protestar. A doente impôs-lhe silêncio com um gesto. E como se as palavras que acabava de dizer conduzissem o seu espírito para novos pensamentos, ficou um instante calada, com a cabeça recostada nas almofadas e as pálpebras cerradas.

 

Quando as ergueu, estranho fulgor lhe animava as pupilas escuras, que cintilavam, não de febre, mas de entusiasmo e energia. Voltou-se para o engenheiro e numa voz mais surda ainda, mas bastante nítida, perguntou:

 

Gosta da Deirdre, não é verdade, João Lucas? O rapaz estremeceu violentamente, mais de comoção do que de surpresa e Deirdre não pôde deixar de pensar não ser aquela a primeira vez que Maud evocava os sentimentos de Villiers. Quanto a ela, as palavras da irmã quase lhe arrancaram um grito de espanto. Relanceou a Villiers um olhar aterrado e ficou imóvel, suspensa, mal respirando, como se desejasse fazer esquecer ao engenheiro que se encontrava ali.

 

A expressão perturbada de João Lucas foi substituída por doloroso sorriso. Dirigindo-se a Maud, confirmou com palavras lentas:

 

Sim, amo Deirdre. Amei-a desde que a vi, com todo o meu coração e para sempre, não o ignora, Maud.

 

Teria ele ouvido o suspiro de alegria que Deirdre não conseguiu reprimir?... Sem se voltar para ela, continuou, com desespero, mas implacável:

 

Mas também não ignora que, se a amo, se sempre a amei, este amor é e foi sempre sem esperança. Um único amor e uma só felicidade na terra me estão proibidos, Maud, o amor e a felicidade que sua irmã poderia dar-me. Não depende de si, minha Maud maravilhosamente boa, nem dela, a quem eu condeno impiedosamente, não está na mão de ninguém apagar o passado.

 

Ao proferir estas últimas palavras, a voz do rapaz desfaleceu e, quando se calou, o eco da sua vibração dolorosa pareceu prolongar-se ainda no silêncio que encheu o quarto.

 

Mas, caso estranho, a fraqueza de João Lucas como que restituiu a Deirdre parte das suas forças e da sua coragem. Teria ficado gelada com frases revelando indiferença e impassibilidade, mas a dor que, apesar de todos os esforços, traduziam as palavras e a fisionomia do engenheiro, galvanizaram-na.

 

João Lucas ordenou João Lucas, olhe para mim e atreva-se a afirmar que terá coragem para nos condenar ao dilacerante sofrimento que representa a separação, à vida de tortura que nos espera longe um do outro.

 

Villiers voltou-se para ela.

 

Não depende de mim evitá-lo, Deirdre declarou, fazendo-se muito pálido.

 

Uma sensação de terror dominou Deirdre. Ia, sabia muito bem, arriscar a sua felicidade num jogo de moeda ao ar, mas não podia adiar por mais tempo o minuto fatal. Em poucos passos, transpôs a distância que a separava de João Lucas e poisou-lhe a mão no braço. Naquele momento esquecia tudo quanto a rodeava, mesmo a própria doente, cujo olhar ansioso seguia todos os seus gestos.

 

Uma palavra apenas, João Lucas. O que me censura?... O facto de ser filha de Stephen Morgan, fazendo recair sobre mim as consequências da acção que ele praticou ou apenas o de possuir a sua fortuna? Qual destas duas coisas não pode perdoar-me? Suplico-lhe que fale.

 

A voz tremia-lhe. Ainda não se habituara a proferir o nome do pai sem as inflexões de ternura e carinho que lhe eram habituais.

 

Quase tão oprimida como Deirdre, Maud soerguera-se nas almofadas e cravara em João Lucas o olhar ardente. O seu amor, despojado de toda a materialidade, encontrara por fim um caminho sublime, isto é, ver realizada e completa a felicidade dos dois entes que mais estimava neste Mundo. As confidências do engenheiro, depois do seu rompimento com Rosamunda, deram-lhe a conhecer os sentimentos de Villiers e também os de Deirdre. Mas tinha sido preciso que a morte se aproximasse e a sentisse bem perto para fazer a suprema tentativa, muito incerta, de impelir e unir dois corações obstinados. A brusca apóstrofe de Deirdre, a mão poisada no seu braço, tinham surpreendido o engenheiro. Fixando o semblante adorado, que reflectia a mais viva ansiedade, declarou gravemente:

 

Bem sabe que nunca cometi a injustiça, de a responsabilizar pelo...

 

Hesitou um instante, procurando termo mais brando que não ferisse Deirdre e concluiu:

 

Pela acção que nos separa. Se fosse esse o único obstáculo, pedir-lhe-ia de joelhos para partilhar a minha vida. Mas entre nós e a felicidade sonhada ergue-se tremenda barreira, uma barreira que não podemos transpor e diante da qual devemos recuar: a sua fortuna! Se existe um pensamento que me horrorize, uma ideia que nem de longe posso admitir, é a de me aproveitar dessa fortuna que teve por base uma indelicadeza cometida contra meu irmão, um...

 

Um roubo! concluiu Deirdre em voz surda.

 

Perdoe-me. Não me atreveria a proferir a palavra.

 

Deirdre voltou-se para lhe ocultar a sua comoção. O seu amor filial revoltava-se ainda contra a infamante acusação. E não tinha sido o menor dos seus sofrimentos, depois da revelação, duvidar de João Lucas e sentir-se, em certas ocasiões, disposta a detestá-lo, apesar de o amar loucamente.

 

Dèbilmente, a doente protestou:

 

Deirdre, Deirdre, seremos impotentes para o convencer?

 

Esta queixa desolada reanimou o fervor e a coragem da Americana. Trémula de esperança, a irmã fitava-a com ansiedade. Com as mãos cruzadas no peito, embrulhada no roupão de fazenda branca, guarnecido de penas de cisne, dir-se-ia enlevada numa oração ardente e angustiosa súplica aos céus. João Lucas, por seu lado, mantinha-se na mesma atitude e a sua expressão indicava que daquela discussão inútil não esperava coisa alguma que trouxesse um lenitivo ao seu sofrimento, pelo contrário.

 

Mais uma vez, Deirdre o olhou bem de frente.

 

Se bem compreendi murmurou lentamente isso significa que, se eu tivesse a felicidade de ser pobre, teria também a de ser sua mulher?

 

Sim respondeu Villiers com voz sufocada Pedir-lho-ia com alegria, emoção e orgulho indiscritível, juro-lhe.

 

Deirdre voltou-se para a irmã. Estamos a fatigar-te com esta conversa, Maud. Talvez desejes descansar um bocadinho, agora.

 

A doente abanou a cabeça.

 

Descansar! Como poderia isso ser possível, enquanto as vossas duas tristezas pesassem sobre o meu coração!

 

Nesse caso prosseguiu Deirdre, hesitando ainda vais permitir-me que o prolongue por mais algum tempo e... Posso pedir a Elsa e ao Dupuy que venham falar-me?

 

Embora não pudesse adivinhar as intenções da irmã, Maud fez um gesto afirmativo com a cabeça. Deirdre saiu e, poucos minutos depois, voltava, acompanhada com Elsa e com o seu procurador, que cumprimentou Maud, a quem já conhecia das visitas anteriores. Deirdre apresentou-lhe Villiers. E, enquanto Elsa, que, horas antes, se assustara bastante com a crise sofrida pela doente, se aproximava da cama, Dupuy abria em cima da mesa a pasta de cabedal que trouxera consigo. Precisamente nessa altura, madame de Rollan empurrou a porta do quarto, do qual, em sua opinião, não devia estar afastada por mais tempo. De resto, o desusado movimento no corredor assustara-a.

 

Prevendo as perguntas, Deirdre declarou em tom decidido:

 

Ia, justamente, mandar a Marta pedir-lhe para vir ter connosco, avó. A sua presença é indispensável.

 

E como a avó abrisse a boca para fazer interrogações, concluiu:

 

Peço-lhe para deixar falar o senhor Dupuy. Depois voltou-se para o procurador. Estava calma e a aproximação do instante decisivo e tão temido, em vez de a enfraquecer, galvanizava-a.

 

Queira sentar-se, senhor Dupuy pediu, E quando ele obedeceu, prosseguiu:

 

Em primeiro lugar, desejo pedir-lhe desculpa pela precipitação que lhe impus. Sei muito bem que a documentação não está completamente em ordem, porque o tempo escasseou e ainda não chegaram todos os documentos indispensáveis. Mas as circunstâncias obrigam-me a pedir-lhe para pôr a minha família ao facto das disposições que tomei, ou antes, das disposições que ambos tomámos. Julgo que será possível fazê-lo em poucas palavras, sem entrar em pormenores, não é verdade?

 

Dupuy concordou com a cabeça. Era um homem ainda novo, de ar inteligente, aspecto e maneiras distintas.

 

Antes de mais nada, gostaria que me dissesse qual o valor da minha actual fortuna.

 

Não posso dizer-lhe a quantia exacta, mademoiselle declarou o procurador, tirando da pasta diversas pastas mais pequenas, de cartão De uma maneira aproximada...

 

Sim, é isso que desejo.

 

Possui a pequena casa onde morreu madame Morgan, casa que seu pai conservou sempre, mas que não tem muito valor. Possui mais a soma, também pouco importante, proveniente da herança de seus avós paternos, depositada num banco americano, não posso ainda dizer-lhe qual. Numa palavra, a totalidade da sua fortuna não deve exceder a que possuía o senhor Morgan na altura do seu casamento, se não entrarmos em linha de conta com a sua parte nas fábricas de aço de Rollan, que constitui o dote de madame Cristina Morgan, sua mãe.

 

Já lhe declarei que não a queria, senhor Dupuy. Deve reverter para minha irmã.

 

Tem razão. Não me lembrava, desculpe. Profundo silêncio se seguiu a esta declaração.

 

Os ouvintes de Dupuy, com excepção de Elsa, estavam pretificados pelo espanto. A primeira a recuperar a palavra foi madame de Rollan. Ergueu-se da cadeira e, aterrada, perguntou:

 

O que é isto, Deirdre? E então as tuas fábricas de aço... as magníficas fábricas que te deixou o teu pai?

 

Vendi-as respondeu a neta, com a maior calma.

 

Vendeste-as! repetiu madame Rollan, recaindo na cadeira, esmagada pela comoção. Dupuy voltou-se para ela.

 

Vendido não quer dizer perdido. Mademoiselle Morgan aceitou as propostas que já algum tempo lhe tinham sido feitas por um grupo de industriais e as somas provenientes desta transacção serão depositadas num banco.

 

Nesse caso, a sua fortuna é muito maior do que dizia afirmou madame de Rollan, soltando um suspiro de satisfação.

 

Não, minha senhora, porque mademoiselle Morgan já dispôs dessas somas.

 

Já dispôs! exclamou a dona da casa, pondo-se novamente de pé.

 

Quero eu dizer que não ficará com elas.

 

Que lhes faz então, santo Deus?

 

Dividi-las-á em quatro partes de valor diferente, conquanto qualquer delas ascenda a alguns milhões. Não lhe posso dizer a importância exacta, porque, como há pouco afirmei, espero vários documentos que me serão enviados da América. Negócios desta envergadura torna-se difícil tratá-los a distância e, por isso, a pedido de mademoiselle Morgan, irei a Nova Iorque no avião de depois de amanhã. Mas continuemos. A soma será, portanto, dividida em quatro, ou, para melhor dizer, em cinco partes, como poderá verificar. A maior destina-se à fundação de um hospital com o nome de Stephen Morgan. As outras três serão entregues, conforme os desejos de mademoiselle Morgan, a sua avó e a suas irmãs Maud e Rosamunda Chavanes. Os actos de doação já estão prontos, mas, antes de poderem ser assinados, terão de cumprir-se ainda algumas formalidades. Resta a quinta doação, feita ao senhor Didier Thibaut. E está dito o essencial. Calou-se e madame de Rollan falou:

 

Isto é uma loucura! protestou em voz fraca Tento compreender, mas não consigo.

 

Não se preocupe com isso, avó pediu Deirdre com ar sorridente Não tente porque nunca o conseguiria.

 

Maud estendeu-lhe os braços.

 

Minha querida! murmurou com as lágrimas nos olhos.

 

Enquanto Deirdre beijava a irmã, Dupuy declarou ainda:

 

Resta-me revelar, facto que não tem importância para os beneficiados com as doações, a cláusula imposta por mademoiselle Morgan para a venda das fábricas.

 

E como todos se voltassem para ele, atentos e curiosos, concluiu:

 

A minha cliente pôs para essa venda uma condição essencial. Se as fábricas Morgan passassem para outras mãos, ela ficaria com o direito de nomear novo director para substituição do actual, que se retira devido à sua muita idade. Acrescento que esta condição não suscitou a mais pequena dificuldade, visto a firma compradora ter a máxima confiança na escolha de mademoiselle Morgan quanto à competência e valor daquele que indicar.

 

Tendo pronunciado as últimas palavras, Dupuy levantou-se e meteu na pasta todos os documentos, para os quais, de resto, mal olhara durante a sua exposição.

 

Posso retirar-me, mademoiselle?

 

Quando quiser. Agradeço-lhe e estou-lhe infinitamente reconhecida por tudo quanto fez. Peço-lhe desculpa pelo trabalho que lhe dei. Espero-o na semana próxima, depois do seu regresso da América e veremos então como abreviar todas essas formalidades, sim? Desejo-lhe excelente viagem.

 

Ao mesmo tempo, acompanhava-o até à porta. Dupuy cumprimentou madame de Rollan, Maud e Villiers e saiu acompanhado por Elsa.

 

Quando ambos desapareceram, madame de Rollan levantou-se.

 

Deirdre exclamou com uma vivacidade que não estava nos seus hábitos pensaste bem no que fizeste?... Ficaste arruinada... despojaste-te de tudo.

 

Pensei muito bem, avó.

 

Não acredito.

 

Pois pode acreditar.

 

Não posso deixar de agradecer-te as generosas disposições que tomaste a meu respeito e das tuas irmãs afirmou, muito comovida Mas, visto essa maluca da Elsa não ter bastante influência sobre ti para moderar os teus impulsos, a tua generosidade, os ímpetos do teu bondoso coração, cumpre-me...

 

A voz de Maud interrompeu-a, uma voz fraca e irritada.

 

Avó, pelo amor de Deus, não diga mais nada! Espantada, madame de Rollan voltou-se para a doente.

 

Cumpro o meu dever, abrindo os olhos da tua irmã...

 

Não, não cumpre! Deve compreender que a Deirdre não procedeu levianamente. Poupe-a aos seus conselhos e opiniões.

 

Se estas censuras um pouco ásperas desagradaram à avó, em atenção ao estado de Maud não o demonstrou. Dirigindo-se a Deirdre, declarou:

 

Seja. Por agora, não falarei mais. Mas a minha consciência não permite que te deixe proceder contra os teus interesses. Mais tarde conversaremos as duas sozinhas. Vou retirar-me. Suportamos todos comoções muito fortes para podermos falar com sensatez.

 

Com suprema dignidade, atravessou o aposento e desapareceu.

 

João Lucas estava junto da cama de Maud, com o olhar no chão. Durante a cena que acabava de se desenrolar no quarto, tinha-se conservado tão aparentemente impassível quanto, na realidade, se sentia profundamente impressionado.

 

Por fim, levantou a cabeça. Deirdre aguardava aquele instante que seria para ela de vida ou de morte.

 

Deirdre murmurou ele em voz trémula cabe-me agora a vez de lhe perguntar: pensou bem no que fez?

 

Como se pretendesse repelir as palavras, Deirdre estendeu os braços e exclamou:

 

Não, o João Lucas, não!

 

Ao ouvir o protesto, que não fora mais do que um grito de amor, o semblante de Villiers contraiu-se e exprimiu a mais profunda emoção. Entretanto, Deirdre continuava:

 

Não guardei coisa alguma que se relacione com o passado que detesta, João Lucas. Nada, visto que mesmo a direcção das fábricas, onde poderá continuar a empregar toda a sua actividade, o obriga a abandonar o seu lugar aqui. Eis-me na sua presença tal como sonhei, quase pobre, despojada de tudo quanto constituía um obstáculo a ”barreira” de que falou. E agora diga-me, ainda me quer?

 

A voz de Deirdre, essa voz musical que tanto” havia encantado João Lucas desde o primeiro instante, exprimia tanta ansiedade que Villiers não teve coragem para demorar a resposta que lhe escaldava os lábios. Dando alguns passos para ela, apertou-a nos braços e protestou:

 

Se a quero, meu amor? murmurou Com infinita alegria, para a vida inteira!

 

Depois, voltando-se para a doente, cujo rosto parecia irradiar, perguntou:

 

Não é assim, Maud?

 

E a doente, que a cada instante se aproximava mais do fim, respondeu, unindo as mãos:

 

Graças vos dou, meu Deus!... Sim, para a vida inteira!

 

Chegou a hora da partida. A ponte acabava de ser retirada. O enorme barco, ainda encostado ao cais, estremeceu e começou a afastar-se pouco a pouco. A multidão, em baixo, agitava os lenços. Deirdre assistia a tudo com olhar distraído. Entre todos aqueles rostos não havia um rosto amigo, entre aquelas mãos que se agitavam num adeus, nem uma só se dirigia a ela. Ninguém viera ao Havre despedir-se dos viajantes, porque ela assim o tinha exigido.

 

Para madame de Rollan, velha e cansada, teria sido muito fatigante. Didier não podia abandonar a fábrica. Quanto a Rosamunda, apesar do gesto generoso da irmã, só uma vez, e numa altura bastante dolorosa, reaparecera no Prieuré. Logo em seguida, porém, tirara os véus de crepe e voltara para Paris, para o luxuoso palacete de pessoas amigas onde se instalara e onde Dupuy a procurou para obter dela as assinaturas necessárias. Assinaturas obtidas sem dificuldade e dando a entender que Deirdre Morgan não fizera mais do que o seu dever.

 

Quanto a Maud, Maud, que devia encontrar-se junto da irmã e de João Lucas no tombadilho do barco, Maud partira para a grande viagem. O coração de Deirdre oprimia-se de tristeza ao recordar aquela que, ainda poucos dias antes, a abençoara pelo carinho e ternura que lhe prodigalizara nos últimos dias de vida. Maud sucumbira sem sofrimento, adormecera docemente nos braços de João Lucas e da noiva. E a sua morte quebrara o último elo que prendia Deirdre ao Prieuré.

 

Quando a irmã desapareceu, Deirdre já tinha tudo em ordem para partir e Villiers, apressando todos os preparativos e formalidades indispensáveis para abandonar a França, pôde acompanhá-la.

 

O engenheiro ainda esperou que a velha criada fosse com eles. Mas a dedicada criatura, que o criara e o amava com todo o seu coração, não conseguiu perdoar-lhe a escolha nem a resolução de se expatriar. Não houve argumento que a demovesse a abandonar a França, onde ficaria afirmava com amargura a velar pelos túmulos que João Lucas abandonava. O engenheiro sentiu profundamente a separação, mas não renunciou à esperança de que um dia, mais tarde, a teimosia de Amélia cedesse e ela lhe pedisse para ir ter com ele.

 

E sabia também que, se tal acontecesse, a velha criada poria imediatamente de parte todas as suas prevenções contra Deirdre e passaria a querer-lhe também.

 

De comum acordo, os dois noivos tinham posto de parte a ideia de uma viagem mais rápida, de avião, e preferiram fazê-la num transatlântico de luxo. Deirdre pensava que, assim, a transição entre o Prieuré e Nova Iorque seria menos brusca e que a recordação de todas as dolorosas emoções suportadas em França se apagaria durante a viagem, ou, pelo menos, se atenuaria.

 

Essa viagem representava também o adeus de
Deirdre à sua vida despreocupada. Sabia que a travessia, sob a vigilância de Elsa, seria para ela uma sucessão de horas maravilhosas, e nem ela nem João Lucas tinham tido a coragem de recusar essa espécie de trégua, uma paragem entre duas vidas tão diferentes: a de ambos até aquele dia e a que os esperava na América. Sim, porque Villiers não tinha ilusões. A direcção das importantes fábricas metalúrgicas de Nova Iorque representava maiores responsabilidades e uma soma de trabalho mais exaustivo ainda do que o dispendera na direcção das fábricas de aço de Rollan. Casariam logo que chegassem, pois não admitiam a mais pequena demora na realização dessa felicidade incomparável e já tão próxima.

 

A viagem começara. O barco abandonara o porto.

 

Até ali, João Lucas respeitara a meditação e a tristeza da noiva, conservando-se junto de Elsa e um pouco afastado de Deirdre. Mas logo que a barafunda da partida acalmou, foi para junto dela e, sem uma palavra, tomou-lhe o braço. Deirdre estremeceu e, sem se voltar, agarrou e apertou a mão do noivo.

 

Não se arrependerá, João Lucas?murmurou a meia voz.

 

Arrepender de quê, meu amor?... Só tenho pena de não ter conhecido esta felicidade mais cedo. Já sou velho, tenho mais dez anos do que a Deirdre.

 

Ela voltou-se e o seu sorriso radioso deu a única e a mais bela das respostas ao olhar ansioso que a interrogava.

 

Elsa tinha desaparecido. Encostados à amurada, embuçados nos casacos de viagem, com a gola levantada, podiam afrontar o vento do largo e os salpicos das ondas como iam afrontar a vida.

 

Estavam já entre mar e céu. Por entre as nuvens, um sol muito pálido espreitava, arrancando ligeiras cintilações e rápidos cambiantes às vagas que se erguiam, embatendo contra o costado do navio, cuja proa as rasgava, numa onda de espuma.

 

Em volta, a solidão e a calma eram cada vez maiores. 

 

                                                                  Alix André

 

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