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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A INVASÃO DIVINA / Philip K. Dick
A INVASÃO DIVINA / Philip K. Dick

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

No distante planeta de metano CY30-CY30B, Herb Asher passa o tempo em seu domo ouvindo obses­sivamente os teipes de sua cantora predileta, Linda Fox. Entretanto, no domo mais próximo, a jovem judia Rybys Rommey está morrendo de esclerose múltipla. Ela não sabe que, apesar de virgem, está grávida. A história se repete, só que em vez de estar levando no ventre o filho de Deus, como Maria, Rybys está ge­rando o próprio Deus.

Um dia Deus se manifesta a Herb e lhe ordena visitar Rybys. No domo da moça, os dois são visitados por um velho, conhecido há mais de 4.000 anos como o profeta Elijah. Elias, como se apresentou o profeta, diz aos dois que eles têm que se ca­sar, pois deverão retornar à Terra com o pretexto de procurar auxílio médico para Rybys e assim a criança divina nasceria aqui.

Tudo foi feito como havia sido mandado, mas as autoridades políti­ca e religiosa tentam de todas as ma­neiras impedir o retorno dos três. Ao desembarcarem, Elias atrai a aten­ção dos policiais sobre si para que o casal possa sair sem problemas. No entanto, durante a fuga, o carro em que estão é envolvido em um aci­dente. Rybys temum trabalho de parto prematuro e morre. A criança nasce com lesão cerebral e Herb fi­ca em suspensão criogênica durante 10 anos, aguardando um órgão para transplante.

Durante este período em que fica congelado, Herb lembra ou efetivamente revive tudo o que lhe aconte­ceu. Enquanto isso, Emanuel, o filho de Rybys, está sendo criado por Elias, que è obrigado a matriculá-lo numa escola especial, pois o aci­dente lhe provocou também uma es­pécie de amnésia. Lá Emanuel co­nhece uma menina misteriosa, uma entidade divina com poderes sobre­naturais, chamada Zina, com a qual discute Seu próprio destino e o da humanidade e reaprende Sua condi­ção divina.

Com a combinação de seus pode­res, Emanuel e Zina criam um mun­do diferente, uma versão alternativa da Tetra, onde Rybys ainda vive e es­tá casada com Herb que trabalha numa loja de aparelhos de som e es­tá perdidamente apaixonado por uma cantora em início de carreira, Linda Fox. É neste mundo alternati­vo que começa a batalha entre Ema­nuel e o demônio Belial pela alma de Herb e pelo domínio ou liberação do mundo.

 

 

 

 

Chegou a época de colocar Manny numa escola. O governo tinha uma especial. A lei dizia que Manny não podia ir para uma escola comum, por causa de suas condições; Elias Tate não podia fazer nada contra isso. Não podia ir contra os regula­mentos do governo porque aqui era a Terra e a zona do mal estendia-se sobre todas as coisas. Dava para Elias sentir, e provavelmente o garoto também sentia.

Elias compreendia o que a zona significava, mas o garoto não, é claro. Com seis anos, Manny era encantador e saudável, mas o tempo todo parecia meio adormecido, como se, pensava Elias, não tivesse ainda nascido de todo.

— Sabe que dia é hoje? — perguntou Elias. O menino sorriu.

— Muito bem — disse Elias. — Bom, vai depender do professor. Do que é que você se lembra, Manny? Lembra-se de Rybys? — Pegou um holograma de Rybys, a mãe do garoto, e mostrou-o. — Veja, esta é Rybys — falou. — Olhe por um momento.

Algum dia a memória do menino haveria de voltar. Algu­ma coisa, um estímulo desinibidor disparado pela própria estru­tura interna do garoto iria provocar a anamnésia — a perda da amnésia — e todas as memórias retornariam: como foi conce­bido em CY30-CY30B, o período no ventre de Rybys, enquanto ela lutava contra a horrível doença, a viagem à Terra, talvez até o interrogatório. No ventre da mãe, Manny advertira os três: Herb Asher, Elias Tate e a própria Rybys. Mas então aconteceu o acidente, se é que aquilo foi acidental. E, em conseqüência, as lesões.

E, por causa das lesões, o esquecimento.

Os dois tomaram o trem local até a escola. Um homenzinho espalhafatoso recebeu-os, um tal Mr. Plaudet; era entu­siasmado, e quis apertar as mãos de Manny. Para Elias Tate era evidente que isso era o governo. Primeiro eles cumprimen­tam a gente com entusiasmo, pensou, e depois nos matam.

— Então aqui temos Emmanuel — disse Plaudet, todo sorridente.

Muitas outras crianças brincavam no pátio cercado da escola. O menino encostou-se em Elias Tate, com timidez, obvia­mente querendo brincar, mas receoso.

— Que nome bonito — falou Plaudet. — Você consegue dizer o seu nome, Emmanuel? — perguntou ao garoto, incli­nando-se. — Consegue dizer "Emmanuel"?

— Deus está conosco — falou o menino.

— Como? — disse Plaudet. Elias Tate explicou:

— Isso é o que quer dizer "Emmanuel". Foi por isso que a mãe dele escolheu esse nome. Ela morreu num desastre aéreo antes de Manny nascer.

— Eu fiquei num útero sintético — disse Manny.

— Teria a disfunção se originado do... — começou Plau­det, mas Elias Tate fez um gesto para que ele se calasse. Per­turbado, Plaudet consultou suas fichas. — Vamos ver... o senhor não é o pai do menino. É o tio-avô.

— O pai está em suspensão criogênica.

— O mesmo desastre aéreo?

— Sim — confirmou Elias. — Ele está esperando um baço.

— É espantoso que seis anos não tenham conseguido obt...

— Não vou discutir a morte de Herb Asher na frente do menino — interrompeu Elias.

— Mas ele sabe que o pai vai voltar a viver? — indagou Plaudet.

— Claro. Vou ficar muitos dias por aqui observando como é que vocês tratam as crianças. Se eu não concordar, se vocês usarem muita força física, levo Manny embora, e pouco me importa a lei. Imagino que vocês vão ensinar a ele a bosta que costumam ensinar neste tipo de escola. Não é coisa que me agrade, mas, por outro lado, também pouco me interessa. Se eu ficar satisfeito, deixarei em depósito o pagamento de um ano. Sou contra mantê-lo aqui, mas é a lei. Não considero o senhor pessoalmente responsável — e Elias Tate sorriu.

O vento soprou nos bambus que orlavam o pátio de re­creio. Manny prestou atenção ao vento, inclinando a cabeça e franzindo a testa. Elias apoiou a mão no ombro do garoto, imaginando o que é que o vento lhe estaria falando. Talvez estivesse lhe contando quem ele era, pensou. Ou dizendo qual era seu nome.

O nome, refletiu, que ninguém deveria pronunciar.

Uma garotinha de vestido branco se aproximou de Manny, a mão estendida.

— Oi — disse. — Você é novo.

O vento continuou a farfalhar nos bambus.

Apesar de morto e em suspensão criogênica, Herb Asher estava tendo seus próprios problemas. No ano anterior, um transmissor FM de 50 kW tinha sido instalado muito próximo dos depósitos dos Laboratórios Criogênicos S.A. Por razões desconhecidas, os equipamentos de criogenia começaram a cap­tar os potentes sinais da emissora de FM. E assim Herb Asher, bem como todos os que estavam em suspensão nos Laboratórios Criogênicos, tinha que ouvir música de elevador dia e noite sem parar, já que a estação era das que se costumava chamar "de música agradável".

Naquele momento uma versão para cordas de Violinista no Telhado agrediu o morto nos Laboratórios Criogênicos. Isso foi muito desagradável para Herb Asher, porque estava na parte de seu ciclo em que se julgava ainda vivo. No seu cérebro congelado um mundo restrito se estendia em uma natureza arcaica; Herb Asher imaginava-se de volta ao pequeno planeta do sistema CY30-CY30B onde ele mantivera seu domo durante aqueles anos decisivos... Decisivos pelo fato de que encontra­ra Rybys Rommey, migrara de volta à Terra com ela depois de formalmente casados, para ser então interrogado pelas auto­ridades terráqueas e, como se não bastasse, ser inadvertidamen­te morto num desastre aéreo de que não tinha culpa alguma.

No entanto, já que Herb Asher se imaginava de volta a seu domo do sistema estelar CY30-CY30B, não podia saber que Rybys tinha morrido. Na verdade, ainda não a tinha conhecido. Estava numa fase anterior à chegada do entregador de alimentos que lhe trouxera as notícias de Rybys em seu domo.

Herb Asher estava deitado no beliche ouvindo sua fita prefe­rida de Linda Fox. Tentava perceber um forte ruído de fundo de cordas tocando canções muito conhecidas de operetas ou de espetáculos da Broadway ou qualquer outra coisa assim irritan­te do século anterior, o século XX. Aparentemente seu receptor-gravador precisava de uma revisão. Talvez a gravação que fizera de uma emissão de Linda Fox tivesse enfraquecido. Dane-se, pensou, melancólico. Teria que fazer alguns ajustes.

Isso significava sair do beliche, pegar a caixa de ferramentas, desmontar o receptor-gravador — significava trabalho. Enquanto isso, de olhos fechados, ouvia Linda Fox:

 

               "Não chorem mais, tristes fontes,

                 não corram tantas lágrimas de mim,

                 que ao sol gentil, lá nos montes,

                 a neve flui sem se apressar assim.

                 Mas o sol que ilumina meu olhar,

                 ai, já não vê meu chorar,

                 eis que se pôs a dormir".*

 

Essa era a canção mais bela que Linda Fox já cantara, tirada do Terceiro e Último Livro de canções para alaúde de John Dowland, que vivera na época de Shakespeare e cuja melodia Linda Fox adaptara para a atualidade.

Aborrecido com a interferência, desligou o gravador com o controle remoto. No entanto, mirabile dictu, a forte música de cordas continuou, mesmo com Linda Fox em silêncio. Re­signado, desligou todo o sistema de áudio.

Ainda assim Um Violinista no Telhado, com uma orques­tra de oitenta e sete cordas, continuou. O som encheu o peque­no domo, sobrepondo-se ao ruído do compressor de ar. E de repente ele se deu conta de que estivera ouvindo Um Violinista no Telhado durante — Santo Deus! — uns três dias, já.

Não é possível, meditou Herb Asher. Aqui estou eu bi­lhões de quilômetros distante no espaço, ouvindo oitenta e sete cordas o tempo todo, para sempre. Alguma coisa está errada.

Na verdade uma porção de coisas estivera errada, no ano que passara. Fora um tremendo erro ter emigrado do Sistema do Sol. Tinha esquecido que após dez anos tornava-se automaticamente ilegal o retorno. Era assim que o Estado dual que governava o Sistema do Sol garantia um fluxo de pessoas para fora e impedia o fluxo de volta. A alternativa que tinha era servir nas Forças Armadas, o que significava morte certa. QUEM NÃO SE DESTERRA VAI PARA A GUERRA, dizia a propaganda do governo nos comerciais de TV. Ou você emi­grava ou fritavam seu traseiro em alguma guerra inútil. O governo nem se dava mais ao trabalho de justificar a guerra. Apenas enviava você para lá, matava você e recrutava um outro. Tudo isso viera da unificação do Partido Comunista com a Igreja Católica, resultando num sistema gigantesco, com dois chefes de Estado, como na antiga Esparta.

Aqui, ao menos, ele estava a salvo de ser morto pelo governo. Podia, é claro, ser morto por um dos autóctones do planeta, parecidos com ratazanas, mas isso não era muito pro­vável. Os raros autóctones que ainda existiam nunca tinham assassinado nenhum dos humanos moradores dos domos, os quais tinham aparecido ali com transmissores de microondas, aparelhos psicotrônicos de alta voltagem, comida falsa (falsa para Herb Asher; o gosto era pavoroso) e pequenos confortos de natureza extremamente complexa; e tudo isso eram itens que desconcertavam os simplórios autóctones sem lhes desper­tar curiosidade.

Aposto que a nave-mãe está diretamente acima daqui, pensou Herb Asher. Está irradiando Um Violinista no Telhado sobre mim com o canhão psicotrônico. Só de brincadeira.

Levantou-se do beliche, caminhou vacilante até o painel de instrumentos e examinou a tela de radar número 3. A nave-mãe, a julgar pela tela, não estava por ali. Então não era ela.

Diabo de coisa, pensou. Viu com seus próprios olhos que o sistema de áudio estava corretamente desligado, mas o som continuava a penetrar o domo. E não conseguia distinguir a direção de onde vinha; o som parecia manifestar-se igualmente por toda parte.

Sentado à frente do painel, fez contato com a nave-mãe.

— Vocês estão transmitindo Um Violinista no Telhado? — perguntou ao operador do circuito da nave.

Uma pausa.

— Sim, temos um videoteipe de Um Violinista no Te­lhado, com Topol, Norma Crane, Molly Picon, Paul...

— Não — interrompeu Herb Asher. — O que vocês estão recebendo de Fomalhaut neste instante? Alguma música só de cordas?

— Ah, você é a Estação Cinco. O homem de Linda Fox.

— É assim que me chamam? — perguntou Asher.

— Vamos atendê-lo. Ajuste para receber em alta veloci­dade duas fitas novas de Linda Fox. Pronto para gravar?

— Eu estava perguntando outra coisa — objetou Asher.

— Estamos transmitindo em alta velocidade. Obrigado. O operador do circuito da nave-mãe desligou e Herb

Asher viu-se ouvindo os sons altíssimos e rápidos, enquanto a nave-mãe atendia a um pedido que não fora feito.

Quando a transmissão em alta velocidade terminou, ele ligou para o operador outra vez.

— Estou pegando Matchmaker, Matchmaker há dez horas a fio — disse. — Já estou cheio. Por acaso vocês estão retransmitindo de algum outro domo?

— Meu trabalho — respondeu o operador de circuito da nave-mãe — é retransmitir o tempo todo sinais de alguém que...

— Fora — disse Herb Asher, e desligou o circuito da nave-mãe.

Pela vigia do domo ele distinguiu uma figura inclinada arrastando-se pelo deserto gelado. Um autóctone agarrado a um pequeno pacote; estava em alguma missão.

Asher ligou o alto-falante externo.

— Venha aqui um minuto, Clem — disse. Esse era o nome que os colonos humanos davam aos autóctones, a todos eles, pois todos se pareciam. — Preciso da opinião de mais alguém.

O autóctone, carrancudo, arrastou-se até a portinhola do domo e fez sinal para poder entrar. Herb Asher ativou o meca­nismo e a membrana intermediária caiu no lugar. O autóctone desapareceu dentro. Um momento depois, com ar de quem não está satisfeito, entrou no domo, sacudindo os cristais de metano e olhando irritado para Herb Asher.

Puxando o computador-tradutor, Asher dirigiu-se ao au­tóctone:

— É só por um momento — explicou, e sua voz saiu do instrumento numa série de cliques e claques. — Estou pegando uma interferência no sistema de áudio que não está dando para desligar. É alguma coisa que seu povo está fazendo? Ouça.

O autóctone prestou atenção, com sua cara de raiz torta e escura. Finalmente falou, e sua voz, em inglês, assumiu uma aspereza incomum.

— Não ouço nada.

— Você está mentindo — disse Herb Asher.

— Eu não estou mentindo — replicou o autóctone. — Quem sabe a sua mente se fundiu, devido ao isolamento?

— Eu me dou muito bem com o isolamento. E, além disso, não estou isolado.

De qualquer maneira, tinha Linda Fox para lhe fazer companhia.

— Já vi isso acontecer — disse o autóctone. — Morado­res de domos, como você, de repente começam a imaginar vozes e formas.

Herb Asher puxou os microfones estéreos, ligou o grava­dor e observou os ponteiros dos mostradores VU. Não indica­vam nada. Aumentou a potência. Os ponteiros continuaram parados. Asher tossiu e as duas agulhas ao mesmo tempo giraram furiosamente e as luzes vermelhas de sobrecarga se acenderam. Bom, o gravador de fita simplesmente não estava pegando a forte música de cordas, por alguma razão. Asher estava desacorçoado. O autóctone, vendo tudo isso, sorriu.

Asher começou a falar, bem distintamente, para os micro­fones estéreos.

— "Ah, fale-me de Anna Livia! Quero saber tudo sobre Anna Livia. Bem, vocês conhecem Anna Livia? Sim, é claro, todos conhecemos Anna Livia. Conte-me tudo. Conte já. Vocês vão se espantar quando ouvirem. Bem, sabem, quando ela fez aquilo que vocês já conhecem. Sim, sei, vá em frente. Não fique fazendo rodeios. Arregace as mangas e solte a fita falante. E vê se não encosta em mim, sai!, quando se inclina. Ou então..."

— Que é isso? — perguntou o autóctone, ouvindo a tra­dução em sua língua.

Herb Asher sorriu satisfeito.

— É um famoso livro terráqueo. "Veja, veja, a escuridão está aumentando. Meus galhos altos estão criando raízes e meus frutos se foram. Qual é a idade? É tarde. Agora é o chamado sem fim..."

— O homem está louco — disse o autóctone, e dirigiu-se à portinhola, para sair.

— É de Finnegans Wake — explicou Herb Asher. — Espero que o computador tenha conseguido traduzir para você. "Não dá para ouvir com essas águas. O barulho das águas. Morcegos voando, conversa de roedores. Ei! Você não voltou para casa? Quedê Tom Malone? Não dá para ouvir..."

O autóctone foi embora, convencido de que Herb Asher tinha enlouquecido. — Asher observou-o pela vigia; estava se afastando do domo, indignado.

Ligando de novo o alto-falante externo, Herb Asher gritou para o vulto que se retirava:

— Você acha que James Joyce estava louco, é isso o que você acha? Muito bem: então me explique como é que ele pôde mencionar "fita falante", que significa fita de som gravada, num livro que começou a escrever em 1922 e terminou em 1939, antes da invenção dos gravadores de fita! Isso é loucura? Ele também colocou as pessoas em torno de um aparelho de TV, num livro iniciado quatro anos depois da Primeira Guerra Mundial. Acho que Joyce era...

O autóctone desaparecera atrás de uma elevação. Asher desligou o alto-falante externo.

Não é possível que James Joyce possa ter mencionado "fita falante" no seu livro, pensou Asher. Algum dia vou conseguir publicar meu artigo; vou provar que Finnegans Wake é um conjunto de informações obtidas de sistemas de memórias computadorizadas que só existiram um século depois da época de James Joyce; que Joyce foi ligado em uma consciência cósmi­ca da qual derivou a inspiração para toda a sua obra. Vou ficar famoso para sempre.

Como seria, imaginou, ouvir de verdade Cathy Berberian ler Ulysses? Se pelo menos ela tivesse gravado o livro inteiro. Mas, pensou, temos Linda Fox.

O gravador ainda estava ligado e continuava a gravar.

— Vou dizer a espantosa palavra de cem letras — falou Herb Asher em voz alta, e as agulhas do mostrador VU giraram, obedientes. —— Lá vou eu — disse Asher, e inspirou profunda­mente. — Esta é a espantosa palavra de cem letras de Finnegans Wake. Esqueci como é que é. — Foi até a prateleira e pegou o cassete de Finnegans Wake.

— Não consigo dizer de memória — falou, inserindo o cassete e girando até a primeira página do texto. — É a palavra mais comprida da língua inglesa. É o som produzido quando a primeira divisão ocorreu no cosmo, quando parte do cosmo avariado caiu na escuridão e no mal. Originalmente tínhamos o Jardim do Éden, como explica Joyce. Joyce...

O rádio começou a zumbir. O entregador de alimentos estava fazendo contato, dizendo-lhe que se preparasse para re­ceber um carregamento.

— ...acordado? — perguntou o rádio. Esperançoso. Contato com outro homem. Herb Asher contraiu-se invo­luntariamente. Ah, Cristo, pensou. Tremeu. Não, pensou.

Por favor, não.

 

Parece que estão perseguindo a gente, disse Herb Asher a si mesmo, quando tudo foi introduzido pelo teto. O entregador de alimentos, o mais importante dos fornecedores, desatarraxara a tampa do teto do domo e estava descendo a escada de mão.

— Ração — anunciou o rádio. — Ligue o automático da tampa para fechar.

— Ligado — respondeu Asher.

— Ponha o capacete — ordenou o alto-falante.

— Não é necessário — disse Asher. Não se moveu para pegar o capacete; a fuga de ar durante a entrada do entregador seria compensada pelo aparelho de atmosfera; ele tinha redese­nhado a máquina.

Uma campainha de alarma no circuito autônomo do domo começou a funcionar.

— Ponha o capacete! — disse o entregador, irritado.

A campainha parou; a pressão se restabelecera. O entre­gador fez uma careta. Tirou o capacete e começou a descarregar caixas de papelão do comtrix.

— Somos uma raça dura de roer — disse Asher, ajudando-o.

— Vocês exageram tudo — falou o entregador de ali­mentos; como todos os que faziam ligação com os domos, ele era forte e movia-se depressa. Operar uma lançadeira comtrix entre a nave-mãe e os domos de CY30 II era um serviço peri­goso. Ele e Asher sabiam disso. Ficar num domo, qualquer um conseguia; mas trabalhar fora era para poucos. — Posso sentar um pouco? — perguntou o entregador, quando terminou.

— Só lhe posso oferecer uma xícara de Kaff — explicou Asher.

— Isso basta. Não tomo café de verdade desde que vim para cá. E isso foi muito antes de você chegar.

O entregador sentou-se no módulo da área de refeições.

Sentados à mesa, de frente um para o outro, os dois ho­mens tomavam Kaff. Fora do domo, o metano envolvia tudo, mas lá dentro não o sentiam. O entregador transpirava; aparentemente achava muito elevado o nível de temperatura de Asher.

— Sabe, Asher — disse o entregador —, você fica o tempo todo na cama, com todos os aparelhos ligados no auto­mático, certo?

— Eu me mantenho ocupado.

— Às vezes penso que vocês, que moram nos domos... — e o entregador se interrompeu. — Asher, você conhece a mulher do próximo domo?

— Um pouco — respondeu Asher. — Meu aparelho trans­fere dados para os circuitos de entrada dela cada três ou quatro semanas. Ela armazena, reforça e retransmite. Acho. Ou pelo que sei...

— Ela está doente — disse o entregador. Asher ficou surpreso.

— Ela parecia bem da última vez que falei com ela. Usamos o vídeo. Ela disse alguma coisa a respeito de estar com dificuldades para ler os mostradores.

— Ela está morrendo — assegurou o entregador, e to­mou o Kaff.

* *

A palavra chocou Asher. Sentiu um arrepio. Tentou visualizar a mulher, mas cenas estranhas passaram-lhe pela mente, mistu­radas com aquela música de fundo. Que coisa estranha, pensou; fragmentos de vídeo e áudio, como trapos de velhas roupas da morta. Baixinha e morena, era a mulher. E o nome, como era?

— Não consigo pensar — falou, e apoiou o rosto na palma das mãos. Como para se certificar. Então, levantou-se, foi até o painel principal e mexeu num par de chaves; apareceu o nome dela, trazido pelo código que utilizou. Rybys Rommey. — Morrendo de quê? — perguntou. — Que diabo você está querendo dizer?

— Esclerose múltipla.

— Ninguém morre disso. Atualmente, não.

— Por estas bandas sim.

— Mas como... Merda! — Sentou-se de novo; apertou as mãos. Estou perdido, pensou. — A doença está avançada?

— Não muito — informou o entregador. — Que é que há? — e perscrutou o rosto de Asher.

— Não sei. Nervos. Do Kaff.

— Há uns meses ela me disse que, quando tinha pouco menos de vinte anos teve um, como é que se chama?, aneurisma. No olho esquerdo. Perdeu a visão central desse olho. Na época acharam que podia ser o começo de uma escle­rose múltipla. Quando eu falei com ela hoje, ela me disse que está tendo neurite ótica, que...

— Todos esses sintomas foram informados ao M.E.D.?

— Uma correlação de aneurisma e depois um período de remissão, e então visão dupla, névoa... Você está agitado.

— Por um momento tive uma sensação ultra-esquisita — explicou Asher. — Já passou. Era como se tudo isso já tives­se acontecido alguma vez.

— Você precisa chamá-la e conversar com ela — disse o entregador. — É bom para você também. Saia um pouco da cama.

— Não se meta na minha vida. Foi por causa disso que dei o fora do Sistema do Sol. Nunca lhe contei o que a minha segunda mulher exigia de mim, toda manhã? Eu tinha qufe levar o café para ela na cama; eu tinha que...

— Ela estava chorando, quando fui fazer a entrega. Asher foi até o painel, fez uma porção de ligações e depois

leu na tela:

— Há uma possibilidade de 30 a 40% de cura para a esclerose múltipla.

— Não aqui — explicou, paciente, o entregador. — O M.E.D. não pode vir até aqui. Eu disse para ela requerer trans­ferência de volta para casa. É o que eu faria, sem dúvida nenhuma. Mas ela não quer.

— Ela é louca — disse Asher.

— É mesmo. Doida varrida. Todo mundo por aqui é doido.

— Já me disseram isso hoje mesmo.

— Você quer uma prova? Ela é uma prova. Você não voltaria para casa se soubesse que estava muito doente?

— Não podemos abandonar nossos domos. De qualquer modo, é ilegal a emigração de volta. — Não, não é — corrigiu-se —, no caso de se estar doente. Mas nosso trabalho aqui...

— Ah, sim; é claro. O que vocês fazem aqui é tão impor­tante. Como Linda Fox. Quem foi que disse aquilo para você hoje?

— Um Clem — explicou Asher. — Um Clem veio aqui e me disse que estou louco. E agora você desce pela minha escada e diz a mesma coisa. Estou sendo diagnosticado por Clems e entregadores. Você está ouvindo essa música chata ou não? Ela está pelo domo todo. Não consigo descobrir de onde vem e não agüento mais. Está bem. Estou doente e louco; como posso ajudar Ms. Rommey? Foi você mesmo que disse. Estou aqui completamente doido; não posso ajudar ninguém. O entregador pousou a xícara.

— Preciso ir embora.

— Muito bem — disse Asher. — Desculpe; você me perturbou falando essas coisas de Ms. Rommey.

— Chame-a e converse com ela. Ela precisa de alguém para conversar, e você é o domo mais perto. Estou espantado que ela não tenha contado a você.

É que eu não perguntei nada, pensou Herb Asher.

— É o regulamento, você sabe — explicou o entregador.

— Que regulamento?

— Se num domo alguém está em dificuldade, o vizinho mais próximo...

— Oh! — concordou com a cabeça. — Bem, é que nunca tinha acontecido comigo. Quer dizer, é, é o regulamento. Tinha esquecido. Por acaso ela falou para você me lembrar do re­gulamento?

— Não.

Depois que o entregador foi embora, Herb Asher procurou o código do domo de Rybys Rommey, ligou o transmissor e hesitou. O relógio de parede indicava 18h 30min. No seu turno de 42 horas este era o horário em que deveria receber uma seqüência de entretenimento em alta velocidade, sinais de áudio e vídeo emitidos por um satélite artificial de CY30 III; depois deveria examinar tudo em velocidade normal e selecio­nar o material apropriado para todo o sistema de domos do planeta onde estava.

Olhou a agenda. Fox estava dando um concerto que leva­ria 2 horas. Linda Fox, pensou. Você e sua síntese de rock antigo, da balada moderna e da música de alaúde de John Dow­land. Jesus, pensou; se eu não gravar seu concerto ao vivo cada morador de domo deste planeta virá aqui furioso para me matar. Exceto emergências — que na verdade nunca ocorrem —, é para isso que sou pago: organizar as informações entre os planetas, informações que nos ligam com o lar e nos conservam humanos. Os carretéis de fita precisam girar.

Ligou o gravador para alta velocidade, ligou o controle de recepção, sintonizou com a freqüência do satélite, verificou o osciloscópio para certificar-se de que a onda estava sendo recebida sem distorção. Então ligou um sistema de áudio para ouvir o que estava sendo recebido.

A voz de Linda Fox emergiu do sistema de alto-falantes acima dele. Como mostrara o osciloscópio, não havia distorção.

Nem ruídos. Nenhuma interferência. Todos os canais, de fato, estavam calibrados; os ponteiros mostravam.

Às vezes dá vontade de chorar quando a ouço, pensou. Falando de lágrimas.

 

"Com meus amigos,

Perambulo por estas terras.

Meus amores

Estão nos mundos que aí gravitam.

Toquem para mim, espíritos sem forma,

Cuja grandeza saúdo com um brinde.

Meus amigos."

 

E, em contraponto à voz de Linda Fox, os vibro-alaúdes que eram sua marca registrada. Até Fox, ninguém jamais pen­sara em reviver esse instrumento do século XVI para o qual Dowland escrevera com tanta graça e vigor.

 

"Devo demandar? Ou pedir graça?

Devo rogar? Devo comprovar?

Devo lutar por um prazer celestial

Trazendo no peito um amor terrestre?

Existirão mundos, existirão astros

Onde aquilo que se perdeu perdure?

Devo ainda buscar um coração puro?"

 

Essas versões de antigas canções de alaúde, disse a si mesmo, como prendem a gente! Algo de novo, para pessoas dispersas, jogadas fora como que abandonadas às pressas: aqui e ali, desordenadamente, em domos, nos confins de mundos miseráveis, e em satélites e arcas; vítimas da migração coerciva e sem fim à vista.

Agora Fox cantava uma de suas favoritas.

 

"Pobre infeliz que vais seguir

Caminhada tão incerta.

Só a esperança é que assegura..."

 

Zumbido de estática. Herb Asher fez uma careta e pra­guejou; o verso seguinte se perdera. Praga, pensou. De novo a Fox cantou os versos.

 

"Pobre infeliz que vais seguir

Caminhada tão incerta

Só a esperança é que assegura..."

 

Outra vez a estática. Ele conhecia o verso que faltava:

 

"Que algo encontrarás."

 

Com raiva, pediu à emissora para repetir os últimos 10 se­gundos da transmissão; amáveis, eles reverteram a fita, para­ram, deram o sinal e repetiram a quadra. Desta vez ele pôde pegar o verso final, a despeito da estranha estática.

 

"Pobre infeliz, que vais seguir

Caminhada tão incerta

Só a esperança é que assegura

O que deixaste atrás."

 

— Cristo! — exclamou Asher, e desligou o gravador. Será que tinha ouvido aquilo? "O que deixaste atrás"?

Era Yah. Atrapalhando sua recepção. Mais uma vez.

O grupo local de Clems tinha explicado, da primeira vez em que aparecera a interferência, muitos meses atrás. Nos ve­lhos tempos, antes que os humanos tivessem emigrado para o sistema da estrela CY30-CY30B, a população autóctone cultuara um deus da montanha chamado Yah, cujo domicílio, eles expli­caram, era precisamente a pequena montanha onde se situava o domo de Herb Asher.

As microondas e os sinais psicotrônicos que recebia eram, de vez em quando, distorcidos por Yah. E, quando nenhum sinal estava sendo recebido, Yah iluminava as telas com peque­nas doses de informação, fracas mas sensíveis. Herb Asher gas­tara horas fuçando no equipamento, buscando eliminar a inter­ferência, sem sucesso. Estudara os manuais e montara blindagens de proteção, sem resultado.

Agora, porém, era a primeira vez que Yah estragara uma canção de Linda Fox. O que, para Asher, era a gota-d'água.

O fato é que, fosse coisa mórbida ou não, ele dependia totalmente da Fox.

Fazia tempo que mantinha uma ativa vida fantástica com a Fox. Ele e a Fox viviam na Terra, na Califórnia, numa da­quelas cidades litorâneas do sul (sem especificar qual). Herb Asher praticava surf e a Fox achava-o maravilhoso. Era como um comercial de cerveja. Acampavam na praia com os amigos; as garotas passeavam em volta de busto nu; o rádio portátil estava sempre sintonizado numa estação de rock, das vinte-e-quatro-horas-a-fio-sem-comerciais.

Contudo, o verdadeiramente espiritual era o que mais importava; as garotas de topless eram simplesmente... bem, não vitais, mas agradáveis. A coisa toda era altamente espiritual. Era espantoso como um comercial de cerveja bem-feito podia ser espiritual.

E, acima de tudo, as canções de Dowland. A beleza do universo não está em suas estrelas, mas na música produzida por mentes humanas, vozes humanas, mãos humanas. Vibro-alaúdes tangidos num palco por especialistas, e a voz da Fox. Eu sei do que é que preciso, pensou. Meu trabalho é minha alegria: gravo isso, faço a emissão e eles me pagam.

— Aqui é a Fox — disse Linda Fox.

Herb Asher mudou o vídeo para holo e formou-se um cubo no qual Linda Fox lhe sorria. Enquanto isso, os carretéis giravam a toda velocidade, transformando-se, hora após hora, em sua posse permanente.

— Você está com a Fox — declarou ela — e a Fox está com você.

Ela o imobilizou, contemplando-o com os olhos duros e brilhantes. O rosto de diamante, selvagem e experiente, selva­gem e autêntico: "Esta é a Fox / Falando para você". Ele sorriu para ela.

— Oi, Fox — falou.

— Seu traseiro — disse ela.

Bem, isso explicava a música de cordas, a infindável Um Violi­nista no Telhado. O responsável era Yah. O domo fora infil­trado pelo antigo deus local, que obviamente invejava a ativi­dade eletrônica que os colonos humanos tinham trazido. Tenho bugigangas eletrônicas até na comida, pensou Herb Asher, e tenho deuses nas minhas recepções. Preciso dar o fora desta montanha. Bela porcaria de montanha; na realidade não passa de uma colinazinha. Que fique com Yah. Os autóctones pode­riam começar a servir de novo bode assado para ele. Só que todos os bodes autóctones tinham morrido, e, com eles, o ritual.

De qualquer maneira, a gravação fora arruinada. Não pre­cisava tocá-la para saber. Yah estragara o sinal antes que che­gasse às cabeças gravadoras; não era a primeira vez, e a inter­ferência sempre chegava até a fita.

Assim sendo, que se dane tudo, pensou. Vou ligar para a garota doente do domo vizinho.

Discou o código, sem entusiasmo.

Levou um tempão para Rybys Rommey responder a seu sinal. Será que ela pifou? pensou ele sentado junto ao painel. Ou eles vieram e levaram-na à força?

A microtela apresentou vagas cores. Estática visual, nada mais. E, então, lá estava ela.

— Acordei você? — perguntou ele. Ela parecia tão aba­tida, tão inerte! Quem sabe, pensou, tomou sedativos.

— Não. Estava dando uma injeção no meu traseiro.

— O quê? — perguntou, espantado. Será que Yah estava interferindo outra vez nos sinais? Mas ela tinha dito aquilo, sim senhor.

— Quimioterapia — explicou Rybys. — Não estou mui­to bem.

Mas que fantástica coincidência, pensou ele. Seu traseiro dando uma injeção no meu traseiro. Estou num mundo estra­nho. As coisas estão acontecendo de um modo engraçado.

— Acabei de gravar um tremendo concerto de Linda Fox — disse ele. — Vou transmiti-lo nos próximos dias. Vai levan­tar o seu ânimo.

O rosto dela, um pouco inchado, não reagiu.

— É muito ruim a gente ficar enfiada nesses domos. Seria bom se eu pudesse visitar você, e você a mim. O entre­gador de alimentos esteve aqui há pouco. Na verdade ele veio trazer meus remédios. São bons, mas me deixam meio bara­tinada.

Seria melhor se eu não tivesse ligado, pensou Herb Asher.

— Tem algum jeito de você poder me visitar? — per­guntou Rybys.

— Não tenho ar portátil, nem um pouco. Era uma mentira, é claro.

— Eu tenho — falou Rybys. Asher ficou em pânico.

— Mas se você está doente...

— Até o seu domo dá para ir.

— E o seu posto? Se começam a chegar dados en­quanto ...

— Eu tenho um bip que posso levar comigo. Ele demorou um pouco para responder.

— Está bem.

— Vai ser muito bacana, alguém para me fazer companhia por algum tempo. O entregador sempre fica uma meia hora, é o máximo que ele pode. Sabe o que ele disse? Há um começo de esclerose amiotrófica lateral em CY30 VI. Uma forma dife­rente. Deve ser um vírus. Tem sintoma de vírus. Puxa, eu não gostaria de ter esclerose amiotrófica lateral. Essa é que nem a do tipo Mariana.

— É contagiosa? — perguntou Asher. Ela não respondeu diretamente.

— A que eu tenho pode ser curada. — Era óbvio que ela queria tranqüilizá-lo. — Se fosse aquele vírus... eu não iria até aí; está tudo bem. — Ela balançou a cabeça e fez um gesto para desligar o transmissor.

— Vou deitar — disse — e dormir mais um pouco. Doen­te como estou, eles dizem que posso dormir o quanto quiser. Converso com você amanhã. Tchau.

— Venha até aqui — disse ele. Ela se iluminou.

— Obrigada.

— Mas vê se traz o bip. Tenho um palpite de que está para chegar um monte de dados telemétricos para confirmar.

— Ah, danem-se os dados telemétricos! — exclamou Ry­bys, com raiva. — Estou cheia de ficar enfurnada neste des­graçado domo! Você não está se sentindo um dispositivo de controle, ficando aí sentado o tempo todo, olhando carretéis de fitas girar, verificando ponteiros, mostradores e essa merda toda?

— Acho que você devia voltar para casa — disse ele. — Para o Sistema do Sol.

— Não — retrucou ela, mais calma. — O que vou fazer é seguir exatamente as instruções do M.E.D. para a minha qui­mioterapia e vencer essa desgraçada E.M. Não vou voltar para casa. Vou é até aí e preparar o seu jantar. Sou boa cozinheira. Minha mãe era italiana e meu pai é chicano, daí que eu meto tempero em tudo; só que não dá para arranjar temperos por aqui. Mas eu bolei como fazer, com uma porção de sintéticos. Andei fazendo umas experiências.

— Nesse concerto que vou transmitir — disse Herb Asher —, a Fox canta uma versão de Devo Demandar, de Dowland.

— Uma canção sobre processo judicial?

— Não. "Demandar" no sentido de fazer a corte ou paquerar. Negócio de amor.

Então se deu conta de que ela estava se impondo a ele.

— Quer saber o que eu acho da Fox? — falou Rybys. — Sentimentalismo reciclado, o pior tipo de sentimentalismo; não é nem original. E ela parece que tem a cara às avessas. A voz dela é medíocre.

— Eu gosto dela — teimou ele; estava ficando maluco, maluco mesmo. Estão esperando que eu a ajude?, perguntou-se.

Correr o risco de pegar a doença dela só para ela poder insultar a Fox?

— Vou preparar para você um strogonof de carne de vaca com cheiro-verde — disse Rybys.

— Eu cozinho bem — disse ele. Ela hesitou.

— Então você não quer que eu vá aí? — perguntou, em voz baixa, gaguejante.

— Bem...

— Eu estou com muito medo, Mr. Asher. Daqui a 15 minutos vou ficar sob os efeitos da Neurotoxite I-V. Mas não quero ficar só. Não quero renunciar a meu domo, e não quero ficar abandonada. Desculpe se o ofendi. É que para mim a Fox é uma piada. Uma personalidade medíocre. Mas não vou falar mais nada; prometo.

— Você tem... — ele corrigiu o que ia dizer. — Está certa de que não vai ser muito esforço para você preparar o jantar?

— Agora estou mais forte do que vou estar — disse ela. — Vou ficar cada vez mais fraca por muito tempo.

— Quanto tempo?

— Não tem jeito de explicar.

Você está começando a morrer, ele pensou. Ele sabia e ela também. Não tinham que falar sobre isso. A conspiração do silêncio estava ali, o acordo. Uma moça que está morrendo quer fazer um jantar para mim, pensou. Um jantar que eu não quero comer. Devia ter dito não para ela. Devia tê-la mantido fora do meu domo. A insistência do fraco, pensou; sua força espantosa. É mais fácil opor-se ao forte!

— Obrigado — disse. — Teria sido ótimo se a gente ti­vesse jantado junto. Mas mantenha-se sempre em contato comi­go pelo rádio daqui por diante. Assim fico sabendo se você está bem. Promete?

— Bem, sim — disse ela. — De outro modo... — ela sorriu — daqui a um século teriam me encontrado congelada com panelas, caldeirões e comida, e também com temperos sin­téticos. Você tem ar portátil, não tem?

— Não. Na verdade, não tenho.

Teve certeza de que ela percebeu a mentira.

A comida cheirava bem e era gostosa, mas a refeição estava pela metade. Rybys Rommey escusou-se e caminhou vacilante da matriz central do domo — do domo dele — até o banheiro. Ele tentou não prestar atenção; arranjou-se com seu sistema de percepção para não ouvir e com sua cognição para não saber. No banheiro, a moça, com um enjôo violento, perdeu toda a inibição e gemia alto. Ele rangeu os dentes e empurrou o prato e de repente levantou-se e ligou o sistema interno de áudio; pôs para tocar um antigo álbum da Fox.

 

"Vem outra vez!

Doce amor, chama agora

Teus encantos, aquele refrão

Para meu merecido prazer... "

 

— Você não tem aí um pouco de leite? — perguntou Rybys, aparecendo à porta do banheiro, o rosto pálido.

Calado, ele lhe deu um copo de leite, ou o que passava por leite naquele planeta.

— Eu tenho antieméticos — disse Rybys, pegando o copo de leite — mas esqueci de trazer. Estão lá no meu domo.

— Posso ir buscar.

— Você sabe o que o M.E.D. me disse? — perguntou ela, indignada. — Me disseram que essa quimioterapia não ia fazer meu cabelo cair, mas já está começando a...

— Está bem — interrompeu ele.

— "Está bem"?

— Desculpe.

— Isso está perturbando você — disse Rybys. — O jantar está perdido e você está... não sei como. Se eu tivesse me lembrado de trazer os antieméticos podia ter evitado... — calou-se. — Da outra vez eu trago. Prometo. Esse é um dos poucos álbuns da Fox de que eu gosto. Naquele tempo ela era boa mesmo, não acha?

— Era — disse ele, rígido.

— Linda Box — falou Rybys.

— O quê?

— Linda, a box. Era como minha irmã e eu costumávamos chamá-la — ela tentou sorrir.

— Por favor, volta para seu domo.

— Oh! Bem... — ela alisou o cabelo, a mão trêmula. — Você vem comigo? Acho que não consigo ir sozinha, agora. Me sinto fraca, de verdade. Estou doente, mesmo.

Você está me levando com você, ele pensou. É isso aí. Isso é o que está acontecendo. Você não vai sozinha; vai levar meu espírito com você. E sabe disso. Sabe tão bem quanto sabe o nome do remédio que está tomando, e me detesta como detesta o remédio, como detesta o M.E.D. e sua doença; sente raiva de tudo e de cada coisa sob estes dois sóis. Eu te conheço. Entendo você. Sei o que vai acontecer. Na verdade, já começou.

Tem mais, pensou, não te condeno. Mas vou ficar com a Fox; a Fox vai sobreviver a você. E eu também. Você não vai apagar o éter luminoso que anima nossas almas.

Vou me amarrar na Fox, e a Fox vai me receber em seus braços e vai se amarrar em mim. Nós dois, ninguém consegue nos separar. Tenho dezenas de horas da Fox em áudio e vídeo, e as fitas não são só para mim, mas para todos. Acha que pode matar isso?, disse para si mesmo. Já foi tentado antes. O poder do fraco, pensou, é um poder imperfeito; desaparece no final. Daí o seu nome. Não é à toa que é chamado de fraco.

— Sentimentalismo — disse Rybys.

— Claro — concordou ele, sarcástico.

— Reciclado.

— Com metáforas misturadas.

— As letras das canções?

— O que eu estou pensando. Quando estou com raiva misturo...

— Deixa eu te dizer uma coisa — falou Rybys. — Uma coisa. Se eu vou sobreviver, não posso ser sentimental. Tenho que ser muito dura. Se deixei você com raiva, sinto muito, mas tem que ser. É a minha vida. Se um dia você estiver na minha situação, vai compreender. Antes disso não me julgue. Se é que vai acontecer com você. Enquanto isso, esse negócio que você está tocando no sistema interno de áudio é idiota. Tem que ser idiota, para mim. Compreende? Você pode me esque­cer; pode me mandar de volta para o meu domo, ao qual pro­vavelmente na verdade pertenço, mas se você tem algo a ver comigo...

— Está bem — disse ele. — Eu compreendo.

— Obrigada. Posso tomar mais um pouco de leite? Des­ligue o áudio e vamos terminar de comer. Tá bem?

Ele ficou de boca aberta.

— Quer dizer que você vai continuar tentando...

— Todas as criaturas, e espécies, que desistiram de comer já não estão mais entre nós.

Ela sentou-se, vacilante, apoiando-se à mesa.

— Admiro você.

— Não — disse ela. — Eu é que admiro você. Para você é pior. Eu sei.

— A morte... — começou ele.

— Isto não é morte. Sabe o que isto é? Ao contrário do que está saindo do seu sistema de áudio? Isto é vida. O leite, por favor; preciso muito dele.

— Acho que você não pode apagar o éter — disse ele, passando o leite. — Luminoso ou de qualquer outro tipo.

— Não — concordou ela — já que ele não existe.

— Que idade você tem?

— Vinte e sete anos.

— Emigrou de vontade própria?

— Como é que a gente sabe? — retrucou Rybys. — Não dá para reconstruir meus antigos pensamentos, agora, neste pon­to de minha vida. Basicamente eu sentia que havia um compo­nente espiritual na emigração. Era ou emigrar ou o sacerdócio. Eu estava com o Legado Científico, mas...

— O Partido — disse Herb Asher. Ele ainda se referia à organização pelo seu antigo nome, Partido Comunista.

— Mas na faculdade comecei a me envolver com o tra­balho da Igreja. Aí tomei a decisão. Preferi Deus ao universo material.

— Então você é católica.

— I.I.C., sim. Você está utilizando um termo interdito. Sei que você sabe disso.

— Para mim é indiferente — respondeu Herb Asher. — Não tenho nenhuma ligação com a Igreja.

— Talvez você queira alguns C. S. Lewis emprestados.

— Não, obrigado.

— Essa doença que eu tenho é uma coisa em que eu tenho pensado muito... — e Rybys fez uma pausa. — Você tem que pensar em tudo em termos das últimas conseqüências. Por exemplo, a minha doença em si pode ser encarada como um mal, mas ela serve a um propósito maior que não conseguimos distinguir. Ou pelo menos por enquanto não conseguimos.

— É por isso que eu não leio C. S. Lewis — comentou Herb Asher.

Ela olhou para ele, desinteressada.

— É verdade que os Clems costumavam cultuar um deus pagão nesta colina?

— É o que parece. Chamado Yah.

— Aleluia — disse Rybys.

— Como? — espantou-se ele.

— Significa "Louvemos Yah". Em hebraico é Halleluyab.

— Iavé, então.

— Nunca pronunciei esse nome. É o tetragrama sagrado. Elohim, que não é plural mas singular, significa "Deus", e mais tarde na Bíblia o Nome Divino aparece como Adonai, donde você tem "Senhor Deus". Escolha entre Elohim e Adonai ou use ambos, mas nunca pronuncie Iavé.

— Acabou de pronunciar. Rybys sorriu.

— Ninguém é perfeito. Mate-me.

— Você acredita em tudo isso?

— Estou apenas expondo fatos — ela fez um gesto. — Fatos históricos.

— Mas você acredita nisso. Quero dizer, acredita em Deus.

— Acredito.

— Deus quer que você tenha E.M.? Rybys hesitou.

— Ele permitiu que eu tivesse — disse, devagar. — Mas eu creio que ele está me curando. Há algo que eu preciso aprender, e esse é o meio.

— Ele não pode ensinar você de um modo mais fácil?

— Aparentemente não.

— Yah esteve se comunicando comigo — disse Herb Asher.

— Não, não; é um engano. No princípio os hebreus acre­ditavam que os deuses pagãos existiam, mas era um erro; mais tarde compreenderam que os deuses pagãos não existiam.

— Meus sinais de entrada e minhas fitas — informou Asher.

— Você está falando sério?

— Claro que estou.

— Há uma forma de vida aqui além dos Clems?

— Sim, onde fica o meu domo. Provoca interferência nas transmissões, só que é sensível. E seletiva.

— Toque para mim uma das fitas — pediu Rybys.

— Toco sim.

Herb Asher foi até o terminal do computador e começou a manejar chaves. Um pouco depois a fita correta estava to­cando.

 

"Pobre infeliz, que vais seguir

Caminhada tão incerta

Só a esperança é que assegura

O que deixaste atrás."

 

Rybys deu uma risadinha.

— Desculpe — disse, rindo mais. — Foi Yah que fez isso? Ou alguém na nave-mãe ou em Fomalhaut? Quer dizer, soa exatamente como a Fox. O tom, digo, não as palavras. A entonação. Alguém está gozando você, Herb. Não é um deus. Quem sabe são os Clems?

— Um deles esteve aqui — disse Asher, zangado. — Acho que a gente devia ter usado gás nervoso contra eles, quando nos instalamos neste planeta. Pensei que só se encon­trava Deus quando se morresse.

— Deus é Deus da história e de povos. E também da natureza. No começo Iavé provavelmente foi uma divindade vulcânica. Mas periodicamente ele penetra na história, e o me­lhor exemplo é quando interveio para tirar os escravos hebreus do Egito e levá-los para a Terra Prometida. Eles eram pastores, acostumados à liberdade; era terrível para eles fabricarem tijo­los. E o faraó obrigou-os também a preparar a palha e ainda eram obrigados a produzir a quota diária de tijolos. É uma situação típica que se repete constantemente, Deus tirar os homens da escravidão para a liberdade. O faraó representa os tiranos de todas as épocas.

A voz dela era calma e sensata. Asher ficou impressionado.

— Então é possível encontrar Deus enquanto a gente está vivo — concluiu ele.

— Em circunstâncias excepcionais. Originalmente Deus e Moisés conversaram assim como um homem conversa com seu amigo.

— E o que é que aconteceu de errado depois?

— Errado como?

— Ninguém mais ouve a voz de Deus.

— Você ouve — afirmou Rybys.

— Eu não; são os meus sistemas de vídeo e áudio que percebem.

— Isso é melhor que nada — e ela o encarou. — Parece que você não aprecia esse acontecimento.

— Interfere em minha vida.

— Eu também interfiro.

Para isso ele não conseguia encontrar resposta; era ver­dade.

— Normalmente, o que você faz o tempo todo? — per­guntou Rybys. — Fica deitado ouvindo a Fox? O entregador me contou; é verdade? Para mim isso não significa estar vi­vendo.

A raiva cresceu dentro dele, uma raiva extenuante. Estava cansado de defender seu estilo de vida. Assim, não disse nada.

— Acho que o que vou emprestar primeiro para você — disse Rybys — é O Problema do Sofrimento, de C. S. Lewis. Nesse livro ele...

— Eu li Além do Planeta Silencioso — falou Asher.

— Gostou?

— Foi bom.

— Você devia ler Cartas de Estímulo. Tenho duas cópias. Será que eu não posso ficar apenas vendo você morrer

lentamente, pensou Asher lá consigo mesmo, e compreender Deus assim?

— Escute — disse —, eu sou do Legado Científico. O Partido. Compreende? Essa é minha decisão, é o lado que esco­lhi. Sofrimento e doença são coisas para serem erradicadas, e não compreendidas. Não existe vida além da morte e não existe Deus; o que há é talvez alguma perturbação desconhecida na ionosfera que está fodendo com a vida de meu equipamento nesta bosta de montanha. Se quando morrer eu descobrir que estava errado, vou alegar ignorância e má-educação. Enquanto isso estou mais interessado em isolar a fiação e eliminar a inter­ferência do que ficar conversando com esse Yah. Não tenho bodes para sacrificar e, de qualquer maneira, tenho outras coi­sas para fazer. Estragar minhas fitas da Fox foi coisa que me ofendeu; para mim elas são preciosas e há algumas que não podem ser substituídas. Além disso acho que Deus não tem nada que inserir frases como "o que deixaste atrás" em canções que, se não fosse isso, seriam lindas. Pelo menos nenhum deus que eu possa imaginar.

— Ele está tentando chamar sua atenção — disse Rybys.

— Seria melhor que ele dissesse "Escute, vamos con­versar".

— Aparentemente esta é uma forma furtiva de vida. Não é isomórfico conosco. Não raciocina do mesmo modo que nós.

— É um chato de galocha.

— Vai ver — ponderou Rybys — que ele está modifican­do suas manifestações para proteger você.

— Proteger do quê?

— Dele mesmo. — De repente ela estremeceu violenta­mente, demonstrando angústia. — Oh, diabo! Meu cabelo está caindo — e levantou-se. — Tenho que ir para o meu domo. Vou pôr a peruca que me deram. Isso é horrível. Você vai comigo? Por favor?

Não sei como alguém que está perdendo o cabelo pode acreditar em Deus, pensou ele.

— Não posso — disse. — Simplesmente não posso ir com você. Desculpe. Não tenho ar portátil e tenho que veri­ficar todo o meu equipamento. É verdade.

Rybys concordou, olhando para ele com ar infeliz. Pelo jeito acreditava nele.

Ele sentiu-se um pouco culpado, porém o alívio por ela ir embora foi maior. Ia se livrar da responsabilidade de ter que conviver com ela, pelo menos por algum tempo. E quem sabe com alguma sorte podia libertar-se permanentemente. Se ele tivesse alguma súplica para fazer, seria: "Espero nunca mais vê-la neste domo de novo, enquanto ela viver".

Uma agradável sensação de relaxamento penetrou-o ao vê-la preparando-se para voltar a seu domo. Perguntou-se qual das preciosas fitas da Fox ia colocar quando Rybys e seu sar­casmo tivessem ido embora e ele ficasse livre outra vez, livre para ser o que realmente era: o apreciador da beleza impere­cível. O encanto e a perfeição em torno dos quais todas as coisas se moviam: Linda Fox.

Nessa noite, quando ele dormia, uma voz disse baixinho:

— Herbert, Herbert. Abriu os olhos.

— Não é meu turno — falou, julgando tratar-se da nave-mãe. — Fale com o Domo Nove. Me deixe dormir.

— Repare — falou a voz.

Ele olhou e reparou que o painel de controle, que coman­dava todo o sistema de comunicações, estava em chamas.

— Santo Deus! — exclamou, e pulou para a alavanca na parede que ligava o extintor de emergência. Mas de repente percebeu algo. Uma coisa espantosa. Embora o painel estivesse em chamas, não estava se queimando. O fogo ofuscava-o e quei­mava-lhe os olhos. Fechou-os e cobriu o rosto com os braços.

— Quem está aí? — perguntou.

— Sou Ehyeh — falou a voz.

— Está bem — disse Herb Asher, atônito. Era a divin­dade da montanha, falando-lhe diretamente, sem intermediários eletrônicos. Um estranho sentimento de sua própria insignificância dominou Herb Asher, e ele manteve a face coberta. — Que é que você quer? — perguntou. — Isto é, já é tarde. Agora é meu ciclo de sono.

— Pare de dormir — disse Yah.

— Tive um dia duro — respondeu. Estava assustado.

— Ordeno-lhe que cuide da moça doente — falou Yah.

— Ela está sozinha. Se você não correr para junto dela incen­diarei seu domo com todo o equipamento, bem como você próprio. Vou queimar você com fogo até você se levantar. Você ainda não despertou, Herbert, não ainda, mas farei com que desperte; farei com que se levante da cama e vá ajudá-la. Mais tarde explicarei a você e a ela por que isso, mas por enquanto vocês não podem saber.

— Acho que você está falando com a pessoa errada — argumentou Asher. — Você devia falar com M.E.D. É respon­sabilidade dele.

Nesse instante um fedor acre chegou-lhe às narinas. E, enquanto observava aterrado, o painel de controle queimando escorreu para o chão, num monte de matéria derretida.

Merda, pensou.

— Você tinha que mentir de novo a ela a respeito do ar portátil — falou Yah. — Vou atormentar você horrivelmente, sem que você possa se recuperar, assim como esse equipamento não pode ser recuperado. Agora irei destruir as gravações de Linda Fox — e imediatamente o armário onde Herb Asher guardava as fitas de áudio e vídeo começou a queimar.

— Por favor — pediu ele.

As chamas desapareceram. As gravações estavam intactas. Herb Asher levantou-se da cama e dirigiu-se para o armário; estendeu a mão e retirou-a depressa; o armário estava pelando.

— Toque nele de novo — ordenou Yah.

— Não.

— Confie no Senhor seu Deus.

Estendeu o braço de novo e desta vez o armário estava frio. Seus dedos pegaram as caixas plásticas que continham as gravações. Estavam frias também.

— Graças a Deus! — exclamou, perplexo.

— Toque uma das gravações — ordenou Yah.

— Qual?

— Qualquer delas.

Pegou uma ao acaso e colocou-a no gravador-reprodutor. Ligou o sistema de áudio. A fita estava em branco.

— Você apagou minhas gravações da Fox — falou.

— Foi o que eu fiz — disse Yah.

— Para sempre?

— Até que você corra para junto da moça doente e cuide dela.

— Mas agora? Ela deve estar dormindo.

— Ela está sentada chorando — informou Yah.

A sensação de inutilidade reapareceu dentro de Herb Asher; envergonhado, fechou os olhos.

— Desculpe — falou.

— Ainda não é tarde. Se se apressar, pode chegar junto dela a tempo.

— Que quer dizer "a tempo"?

Yah não respondeu, mas na mente de Herb Asher surgiu uma figura parecendo um holograma; tinha cor e profundidade. Rybys Rommey estava sentada à mesa da cozinha, vestida de azul; na mesa, um vidro de remédio e um copo d'água. Desa­nimada, pousava a cabeça nas mãos; nestas, um lenço amassado.

— Vou me vestir — disse Asher. Escancarou a porta do compartimento das roupas e sua vestimenta, pouco usada e há muito esquecida, caiu no chão.

Dez minutos depois estava do lado de fora do domo, den­tro do enorme traje, a lanterna varrendo a extensão de metano gelado; tremia, sentindo o frio mesmo através do traje — uma ilusão, percebeu, pois o traje era absolutamente isolado. Que aventura, disse a si mesmo, descendo a colina. Tirado do sono no meio da noite, meu equipamento incendiado, minhas grava­ções apagadas, a maior parte apagada totalmente.

Os cristais de metano eram esmagados pelas botas, en­quanto ele descia a ladeira, seguindo o sinal automático emi­tido pelo domo de Rybys Rommey. Figuras na minha cabeça, pensou. Figuras de uma moça a ponto de se matar. Foi bom que Yah me acordou. Ela provavelmente ia se matar mesmo.

Estava assustado de verdade, e enquanto descia a colina cantava para si uma antiga marcha do Partido Comunista.

 

"Porque queria lutar pela liberdade

teve que abandonar sua casa.

Perto da ensangüentada Manzanares,

onde combatia para sustentar Madri,

morreu Hans, o Comissário,

morreu Hans, o Comissário.

Prometo de todo o coração,

enquanto carrego de novo a arma,

que você jamais será esquecido

nem o inimigo perdoado,

Hans Beimler, nosso Comissário,

Hans Beimler, nosso Comissário."

 

À medida que Herb Asher descia a colina, o receptor em sua mão aumentava o sinal provindo de Rybys. Ela subiu esta la­deira para chegar a meu domo, pensou ele. Obriguei-a a essa escalada, por não ter ido até ela. Fiz uma moça doente arrastar-se passo a passo com um fardo de mantimentos. Vou para o inferno.

Mas ainda não é tarde demais, compreendeu.

Ele me fez levá-la a sério, compreendeu. Eu simplesmente não a estava levando a sério. Era como se eu imaginasse que ela estava fingindo de doente. Para me chamar a atenção. O que isso significa que eu sou?, perguntou-se. Porque a verdade é que eu sabia que ela estava doente, doente de fato, e não fingindo. Fiquei dormindo, falou para si mesmo. E enquanto eu dormia uma moça estava morrendo.

E então se lembrou de Yah e estremeceu. Posso conseguir que meu equipamento seja reparado, pensou. O aparelho que Yah queimou. Não vai ser difícil; o que tenho que fazer é notificar a nave-mãe e informar que houve um curto-circuito. E Yah me prometeu restaurar as fitas da Fox, coisa que com certeza ele pode fazer. Mas tenho que ir para aquele domo e viver lá. Como posso viver lá? Não posso. É impossível.

Yah tem planos para mim, pensou. E sentiu medo ao compreender isso. Ele pode me obrigar a fazer qualquer coisa.

Rybys cumprimentou-o, impassível. Estava mesmo vestida de azul, e tinha nas mãos um lenço amarrotado, e, como ele percebeu, tinha os olhos vermelhos de chorar.

— Entre — disse ela, embora ele já estivesse dentro; ela parecia meio atordoada. — Estava pensando em você. Estava sentada, pensando. — Na mesa da cozinha havia um vidro de remédio. Cheio. — Ah, isso — falou ela. — Eu estava com problemas para dormir e estava pensando em tomar um se­dativo.

— Tire isso daí — ordenou ele.

Obediente, ela recolocou o vidro no armarinho do ba­nheiro.

— Eu te devo desculpas — falou ele.

— Não. Não deve. Quer beber alguma coisa? Que horas são? — e ela olhou o relógio de parede. — De qualquer modo, eu já estava de pé. Você não me acordou. Alguns dados tele­métricos estavam chegando.

Ela apontou o painel; luzes piscavam, indicando atividade.

— Quero dizer que eu tenho ar. Ar portátil.

— Eu sei. Todo mundo tem ar portátil. Sente; vou fazer chá para você. — Procurou numa gaveta superlotada, perto do fogão. — Tenho saquinhos de chá em algum lugar.

Agora, pela primeira vez, ele se dava conta das condições do domo dela. Eram chocantes. Louça suja, panelas e até vidros e copos com restos de comida, roupa usada jogada por todo canto, sujeira e lixo... Perturbado, ele olhava em torno, ima­ginando se devia oferecer-se para limpar o local. E ela se movia tão devagar, demonstrando tão evidente fadiga. Teve a intui­ção, de repente, de que ela estava bem mais doente do que deixara perceber.

— Isto é um chiqueiro — afirmou ela.

— Você está muito cansada — disse ele.

— Bem, eu passo o tempo, todos os dias da semana, vo­mitando. Olha aqui um saquinho de chá. Bosta, já foi usado. Eu uso e depois os deixo secar. Duas vezes dá, mas às vezes descubro que estou usando muito o mesmo saquinho. Vou tentar achar um novo — e continuou a busca.

A tela de TV mostrou uma cena. Era um horror animado: uma enorme hemorróida que intumescia e pulsava furiosa.

— Que é que você está assistindo? — perguntou Asher, afastando o olhar do desenho animado.

— É uma novela nova. Começou outro dia. A Glória de..., esqueci o quê. De alguém ou de alguma coisa. É muito interessante. Levaram tempo para gravar.

— Você gosta de novelas?

— Me fazem companhia. Aumente o som.

Ele aumentou o som. A novela tinha recomeçado, substi­tuindo a hemorróida animada. Um ancião barbudo, um velho ultracabeludo, lutava com dois aracnídeos de olhos protuberantes, os quais, aparentemente, buscavam decapitar o homem. "Tirem essas malditas mandíbulas de mim", gritou o ancião, atacando em volta de si. O brilho de raios laser incendiou a tela. Herb Asher lembrou-se de novo do incêndio de seu equi­pamento de comunicações, feito por Yah; sentiu o coração deprimido.

— Se você não quiser ver... — disse Rybys.

— Não é isso — e pensou se podia contar a ela como Yah era capaz de ser duro; duvidou que conseguisse contar. — Foi algo que me aconteceu. Algo que me acordou. Esfregou os olhos.

— Vou contar o começo da novela — disse Rybys. — Elias Tate...

— Quem é Elias Tate? — interrompeu Asher.

— O velho barbudo. Agora me lembro do nome do pro­grama. A Glória de Elias Tate. Elias caiu nas mãos... bem, na verdade eles não têm mãos... mas caiu nas mãos dos homens-formigas de Sychron Dois. É a rainha que é realmente má, ela se chama... esqueci — pensou um pouco. — Hudwil­lub, acho. Sim, é isso. Bem, de qualquer modo, Hudwillub quer ver Elias morto. Ela é realmente medonha. Você vai ver. Ela tem só um olho.

— Encantadora — disse Asher, sem interesse algum. — Rybys, ouça-me.

Como se não o tivesse ouvido, Rybys continuou.

— Mas Elias tem um amigo chamado Elisha McVane; eles são amigos de verdade, e sempre estão ajudando um ao outro. É como se fossem... — ela olhou para Asher. — Que nem eu e você. Você sabe; um ajudando o outro. Eu preparei o seu jantar e você veio aqui porque estava preocupado comigo.

— Eu vim aqui — disse ele — porque me mandaram.

— Mas você estava preocupado.

— Estava — concordou ele.

— Elisha McVane é bem mais novo do que Elias. É bas­tante simpático. De qualquer modo, Hudwillub quer...

— Yah me mandou — informou Asher.

— Mandou você aonde?

— Aqui — o coração dele continuou a sofrer.

— Mandou, é? Que coisa interessante. De qualquer modo, Hudwillub é bem bonita. Você vai gostar dela. Quero dizer, você vai gostar dela fisicamente. Bem, vamos dizer: em termos objetivos, ela é obviamente bonita, mas espiritualmente é um caso perdido. Elias Tate é uma espécie de consciência externa para ela. Que é que você quer com o seu chá?

— Você ouviu... — começou ele, e desistiu.

— Leite? — Rybys examinou a geladeira, pegou um pa­cote de leite, despejou um pouco num copo, provou e fez uma careta. — Azedo. Diabo! — Despejou o resto do leite no ralo.

— O que estou contando para você é importante — in­sistiu Asher. — A divindade da minha colina me acordou de noite para me contar que você estava em dificuldades. Ela queimou meu equipamento. Apagou todas minhas fitas da Fox.

— Você pode conseguir outras da nave-mãe. Asher ficou olhando para ela.

— Por que está me olhando? — e Rybys, rapidamente, inspecionou os botões de seu traje. — Tem alguma coisa frouxa em mim?

Apenas mentalmente, pensou ele.

— Açúcar? — perguntou ela.

— Sim — respondeu ele. — Preciso notificar o C-em-C da nave-mãe. Este é um assunto importante.

— Então faça o contato — disse Rybys. — Informe o C-em-C que Deus falou com você.

— Posso usar o seu aparelho? Faço também o relatório do meu incêndio. Essa é a minha prova.

— Não — disse ela.

— Não? — e ele olhou para ela, frustrado.

— Esse é um raciocínio indutivo, que é suspeito. Você não pode raciocinar a partir dos efeitos para as causas.

— Diabo! Do que é que você está falando? Calmamente, Rybys respondeu.

— O seu incêndio não prova que Deus existe. Veja: vou escrever tudo em lógica simbólica para você. Se você conseguir encontrar minha caneta. Procure: é vermelha. A caneta, não a tinta. Eu costumava...

— Espere um minuto. Apenas um desgraçado de um mi­nuto. Para eu poder pensar. Está bem? Vai fazer isso? — percebeu que sua voz se elevava cada vez mais.

— Tem alguém lá fora — falou Rybys, apontando um mostrador cuja luzinha piscava rapidamente. — Um Clem está roubando meu lixo. Eu costumo deixar meu lixo lá fora, por­que...

— Deixe o Clem entrar — disse Asher — que eu vou contar para ele.

— Sobre Yah? Muito bem, e daí eles vão começar a ir até a sua colina com oferendas, e vão consultar Yah dias e noites a fio; você nunca mais vai ter sossego. Não vai conseguir ficar na cama e ouvir Linda Fox. O chá está pronto — e ela encheu duas xícaras com água fervendo.

Asher ligou para a nave-mãe. Um momento depois estava em contato com o operador.

— Quero fazer o relatório de um contato com Deus — falou. — É para o comandante-em-chefe pessoalmente. Deus falou comigo faz 1 hora. Um deus autóctone chamado Yah.

— Um momento.

Uma pausa, e depois voltou a voz no circuito da nave-mãe.

— Não é o homem da Linda Fox não? Estação Cinco?

— É ele mesmo.

— Já temos o videoteipe de Violinista no Telhado que você pediu. Tentamos transmitir para o seu domo mas seu receptor múltiplo parece que está com defeito. Avisamos a manutenção e logo eles vão lá. A gravação é com o elenco original, estrelando Topol, Norma Crane, Molly Picon...

— Espere um pouco — disse Asher. Rybys pegara-lhe no braço, para atrair-lhe a atenção. — Que foi? — perguntou ele.

— Tem um ser humano lá fora; dei uma espiada nele. Faça alguma coisa.

— Chamo mais tarde — falou Asher para o operador do circuito da nave-mãe, e desligou.

Rybys tinha ligado as luzes externas. Pela vigia do domo Asher teve uma visão estranha: um ser humano, mas sem usar o traje normal; ao invés, vestia o que parecia ser um manto, bem pesado, e um avental de couro. As botas eram grosseiras e muito usadas. Mesmo o capacete tinha um ar antiquado. Que diabo é isso?, perguntou-se Asher.

— Graças a Deus que você está aqui — disse Rybys. Tirou um revólver do armário junto da cama. — Vou dar um tiro nele — falou. — Mande ele entrar; use o alto-falante. Tome cuidado para não ficar na linha de tiro.

Estou no meio de malucos, pensou Asher.

— O mais simples é não deixar que ele entre.

— Aqui, ó! Ele ia ficar esperando até que você fosse embora. Diga-lhe para entrar. Ele vai me estuprar e me matar e matar você, se a gente não der cabo dele primeiro. Sabe o que ele é? Eu conheço esse manto cinzento. Ele é um Marginal Selvagem. Você sabe o que é um Marginal Selvagem?

— Eu sei o que é um Marginal Selvagem — respondeu Asher.

— Eles são criminosos!

— Eles são renegados — retrucou Asher. — Não pos­suem mais domos.

— Criminosos. — Ela engatilhou a arma.

Ele não sabia se ria ou se se preocupava; Rybys estava ali de pé, indignadíssima, enfiada num roupão de banho azul e de chinelos felpudos; o cabelo cheio de bobbies e o rosto torcido e rubro de indignação.

— Não quero saber dele rondando meu domo. O domo é meu! Diabo, se você não vai fazer nada, vou dizer para a nave-mãe e eles mandam uma patrulha.

Asher ligou o alto-falante externo.

— Você aí, vá embora.

O Marginal Selvagem olhou para cima, piscou, protegeu os olhos com a mão e acenou para Asher através da vigia. Um velho, enrugado e cabeludo, fazendo gestos para Asher.

— Quem é você? — perguntou Asher ao microfone.

A boca do velho se moveu, mas é claro que Asher não ouviu nada. O microfone externo de Rybys não estava ligado ou não estava funcionando.

— Por favor, não atire nele, sim? — falou Asher para Rybys. — Vou deixar que ele entre. Acho que sei quem ele é.

Devagar e com cuidado Rybys desengatilhou a arma.

— Pode entrar — disse Asher ao microfone. Ligou o mecanismo da comporta e a membrana intermediária fechou-se. Com passos vigorosos o Marginal Selvagem desapareceu dentro.

— Quem é ele? — perguntou Rybys.

— Elias Tate — respondeu Asher.

— Oh, então aquela novela não é uma novela — e ela ligou a tela de TV. — O que eu estava pegando era uma trans­ferência de informação psicotrônica. Devo ter ligado na tomada errada. Maldição dos diabos! Um tempo enorme estive pen­sando que era um programa.

Sacudindo os cristais de metano Elias Tate apareceu diante deles, selvagem, cabeludo e cinzento, e feliz por poder sair do frio. Logo em seguida começou a remover o capacete e o manto enorme.

— Como está se sentindo? — perguntou a Rybys. — Alguma melhora? Esse palhaço tem cuidado bem de você? Coitado dele se não cuidou.

Um vento soprou em torno dele, como se estivesse no meio de uma tempestade.

Emmanuel falou com a menina de vestido branco.

— Sou novo aqui. Não sei onde é que estou.

Os bambus farfalhavam. As crianças brincavam. E Mr. Plaudet ficou ali com Elias Tate olhando o menino e a menina.

— Você me conhece? — perguntou a garotinha a Emmanuel.

— Não — respondeu ele. Ele não a conhecia. E no entan­to ela parecia familiar. Seu rosto era pequeno e pálido e ela tinha longos cabelos negros. Os olhos, pensou Emmanuel. Eram velhos. Olhos de sabedoria.

A garota dirigiu-se a ele, em voz baixa.

— Nasci quando não havia ainda oceanos. Ela esperou um pouco, estudando-o, buscando algo, uma resposta talvez; ele não sabia. — Eu fui formada em tempos que já se foram — disse a menina. — No princípio, bem antes da própria Terra.

Mr. Plaudet falou com ela, desaprovador.

— Diga a ele seu nome. Apresente-se.

— Eu sou Zina — disse a menina.

— Emmanuel — disse Mr. Plaudet —, esta é Zina Pallas.

— Eu não a conheço — respondeu Emmanuel.

— Agora vão brincar nos balanços — disse Mr. Plaudet —, enquanto Mr. Tate e eu conversamos. Vão, vão brincar.

Elias aproximou-se do garoto e abaixou-se para falar com ele.

— Que foi que ela disse para você? Essa menininha, Zina; o que ela contou para você? — perguntou. Parecia bravo, mas Emmanuel estava acostumado à braveza do velho; era comum. — Não consegui escutar.

— Você está ficando surdo — disse Emmanuel.

— Não, ela falou em voz baixa — explicou Elias.

— Não disse nada que já não tenha sido dito muitas vezes — falou Zina.

Perplexo, Elias olhou de Emmanuel para a garota.

— Qual é a sua nacionalidade? — perguntou à menina.

— Vamos — disse Zina. Pegou a mão de Emmanuel e levou-o; os dois caminharam em silêncio.

— Esta escola é bacana? — perguntou Emmanuel, depois de um certo tempo.

— Não é ruim. Os computadores são obsoletos. E o go­verno controla tudo. Os computadores são computadores do governo, você precisa se lembrar sempre disso. Que idade tem Mr. Tate?

— É muito velho — informou Emmanuel. — Uns quatro mil anos, acho. Ele viaja muito.

— Você já me viu antes — afirmou Zina.

— Não vi não.

— Você perdeu a memória.

— Perdi, sim — disse ele, espantado de que ela soubesse.

— Elias diz que ela vai voltar.

— Sua mãe morreu?

Ele fez um gesto afirmativo.

— Você consegue vê-la? — perguntou Zina.

— Às vezes.

— Force as lembranças de seu pai. Aí você pode estar com ela em retrospecto.

— Talvez.

— Ele tem tudo arquivado.

— Tenho medo — disse Emmanuel. — Por causa do acidente. Acho que foi proposital.

— É claro que o acidente foi proposital, mas era você que eles queriam, mesmo que não soubessem disso.

— Eles podem me matar agora.

— Não tem jeito de eles encontrarem você — disse Zina.

— Como é que você sabe disso?

— Porque eu sou aquela que sabe. Eu vou saber das coisas para você, até que você se lembre, e enquanto isso vou ficar junto de você. Você sempre quis assim. Estive a seu lado o tempo todo; eu era o seu afeto e a sua delícia, sempre alegre em sua presença. E, quando você acabou, foi o meu maior prazer.

— Que idade tem você? — perguntou Emmanuel.

— Sou mais velha que Elias.

— Mais velha do que eu?

— Não.

— Você parece mais velha do que eu.

— Isso é porque você esqueceu. Estou aqui para fazer com que você se lembre, mas isso você não pode contar para ninguém, nem mesmo para Elias.

— Eu conto tudo para ele — disse Emmanuel.

— Não sobre mim — contestou Zina. — Não conte a ele a meu respeito. É uma promessa que você tem que fazer. Se contar para quem quer que seja, o governo vai acabar sabendo.

— Me mostre os computadores.

— Estão aqui — e Zina conduziu-o para uma grande sala. — A gente pode perguntar para eles qualquer coisa, mas eles dão respostas alteradas. Talvez você consiga enganá-los. Eu gosto. Eles são muito burros.

— Você pode fazer mágica — afirmou ele. Zina sorriu.

— Como é que você sabe?

— Pelo seu nome. Sei o que significa.

— É um nome como qualquer outro.

— Não — contestou ele. — Zina não é o seu nome; Zina é o que você é.

— Conte-me o que é — falou a garota —, mas conte com bastante calma. Porque se você sabe o que eu sou então uma parte de sua memória está voltando. Mas seja cuidadoso; o governo escuta e espreita.

— Primeiro faça a mágica — pediu Emmanuel.

— Eles vão ficar sabendo; o governo vai ficar sabendo. Atravessando a sala, Emmanuel parou ao lado de uma gaiola com um coelho.

— Não — falou. — Este não. Há outro animal aqui que você possa ser?

— Com cuidado, Emmanuel — disse Zina.

— Uma ave — falou Emmanuel.

— Um gato — disse Zina. — Um momentinho. — Ela parou, moveu os lábios. O gato entrou, então, vindo do lado de fora, uma fêmea cinzenta listrada. — Posso ser a gata?

— Eu quero ser a gata — disse Emmanuel.

— Ela vai morrer.

— Deixa ela morrer.

— Por quê?

— Eles foram criados para isso.

— Uma vez — disse Zina — um bezerro que ia ser aba­tido correu até um rabi e colocou a cabeça entre os joelhos dele, pedindo proteção. O rabi disse: "Volte! Para isso é que você foi criado", querendo dizer: "Você foi criado para ser abatido".

— E daí? — perguntou Emmanuel.

— Deus mandou aflições para o rabi por muito tempo.

— Compreendo — disse Emmanuel. — Você me deu uma lição. Não vou ser a gata.

— Então eu vou ser ela — afirmou Zina — e ela não vai morrer porque eu não sou como você.

Zina abaixou-se, de mãos nos joelhos, para dirigir-se à gata. Emmanuel observava, e logo em seguida a gata aproximou-se dele e lhe pediu que falasse com ela. Ele pegou-a e aninhou-a em seus braços, e a gata colocou uma pata no rosto dele. Com a pata, ela explicou que os camundongos eram chatos e eram um aborrecimento e também que os gatos não queriam que os camundongos desaparecessem porque, mesmo que fossem cha­tos, havia alguma coisa fascinante neles, e o encanto era maior que o aborrecimento; e por isso os gatos procuravam os camun­dongos, embora não os respeitassem. Os gatos queriam ser ca­mundongos e ao mesmo tempo desprezavam os camundongos.

Tudo isso a gata explicou por intermédio da pata contra a face do garoto.

— Tudo bem — falou Emmanuel.

— Você sabe onde há algum camundongo agora? — per­guntou Zina.

— Você é que é a gata — contestou Emmanuel.

— Você sabe...

— Você tem que encontrar sozinha — interrompeu ele.

— Mas você pode me ajudar. Pode afugentá-los para perto de mim.

A menina abriu a boca e mostrou os dentes. Ele riu.

Na face dele, a pata trouxe mais pensamentos: que Mr. Plaudet estava chegando ao edifício. A gata podia ouvir os pas­sos. Ponha-me no chão, comunicou a gata.

Emmanuel colocou-a no chão.

— Há camundongos por aqui? — perguntou Zina.

— Pare — falou Emmanuel. — Mr. Plaudet está che­gando.

— Oh! — fez Zina, concordando.

— Vejo que você encontrou Misty, Emmanuel — falou Mr. Plaudet, entrando na sala. — Não é bonita, ela? Zina, que é que você tem? Por que está me olhando assim?

Emmanuel riu; Zina estava tendo dificuldade para se des­ligar da gata.

— Tenha cuidado, Mr. Plaudet — disse ele. — Zina pode arranhar o senhor.

— Misty, você quer dizer — corrigiu Mr. Plaudet.

— Não é esse o tipo de problema mental que tenho — começou a explicar Emmanuel. — Eu... — e se interrompeu; sentiu Zina dizendo não.

— Com nomes ele não tem problemas, Mr. Plaudet — falou Zina. Já tinha conseguido separar-se da gata, e Misty, perplexa, afastou-se devagar. Obviamente Misty não podia compreender por que, por um momento, parecia estar em dois lugares ao mesmo tempo.

— Lembra-se de meu nome, Emmanuel? — perguntou Mr. Plaudet.

— Mr. Conversa — falou Emmanuel.

— Não — negou Mr. Plaudet. E franziu o cenho. — Con­tudo, "Plaudet" em alemão é conversa.

— Fui eu que contei para Emmanuel — explicou Zina. — Sobre seu nome.

Depois que Mr. Plaudet foi embora Emmanuel se dirigiu à garota.

— Você pode fazer os sinos tocarem? Para dançar?

— É claro — e ela enrubesceu. — Só que isso é uma travessura.

— Mas você pode brincar de fazer travessuras. É o que você faz quando faz truques. Estou com vontade de ouvir os sinos. Mas não quero dançar, só gostaria de ver a dança.

— Fica para outra vez — disse Zina. — Você deve estar se lembrando de alguma coisa, então. Se você sabe sobre a dança.

— Acho que me lembro. Eu pedi para Elias me levar para ver meu pai, lá onde ele está em depósito. Quero ver como é que ele é. Se eu o vir talvez me lembre de bastantes coisas. Eu vi fotografias dele.

— Tem uma coisa — disse Zina — que você quer de mim muito mais do que dança.

— Quero saber qual o poder sobre o tempo que você tem. Quero ver você fazer o tempo parar e depois correr de novo. Esse é o maior dos truques.

— Eu disse que a respeito disso você devia ver seu pai.

— Mas você pode fazer — insistiu Emmanuel. — Já.

— Não vou fazer isso. Provoca muita perturbação nas coisas. Elas não se ajustam direito. Depois que saem de sincr... Bem, um dia eu faço para você. Posso trazer você de volta antes da colisão. Mas não sei se é bom, porque você vai ter que viver a coisa, e daí pode ficar pior. Sua mãe estava muito doente, como você sabe. Provavelmente não iria viver muito mesmo. E seu pai vai sair da suspensão criogênica dentro de quatro anos.

— Tem certeza? — perguntou Emmanuel, excitado.

— Quando você tiver dez anos, vai poder vê-lo. Agora ele está com sua mãe. Ele gosta de retroceder no tempo até a época em que a conheceu. Ela era muito relaxada; ele teve que limpar o domo dela.

— Que é um domo?

— Aqui não existe nenhum; só no espaço sideral. Para os colonos. Lá onde você nasceu. Eu sei que Elias lhe contou. Por que é que você deixou de prestar atenção a ele?

— Ele é um homem — explicou Emmanuel. — Um ser humano.

— Não é não.

— Ele nasceu como homem. Então eu... — interrom­peu-se, e um segmento de memória retornou. — Eu não queria que ele morresse. Queria? Daí, trouxe ele comigo. Quando ele e... — tentou pensar, pescar a palavra dentro da mente.

— Elisha — falou Zina.

Eles estavam caminhando juntos — disse Emmanuel. — Aí eu o ergui e ele enviou uma parte dele para Elisha. Assim, ele nunca morreu; Elias, digo. Mas esse não é o nome verda­deiro dele.

— Esse é o nome grego dele.

— Então quer dizer que eu me lembro de algumas coisas — disse Emmanuel.

— Você vai se lembrar de muito mais. Veja, você desen­volveu um estímulo desinibidor que vai fazer com que se lem­bre antes de... bem, quando chegar a hora. Você é o único que sabe o que é esse estímulo. Mesmo Elias não sabe. Eu não sei; você escondeu isso de mim, quando você era o que você era.

— Eu sou o que sou agora — afirmou Emmanuel.

— É, só que com a memória danificada — corrigiu Zina, pragmática. — E isso não é a mesma coisa.

— Acho que não — disse o menino. — Se não me enga­no, você disse que podia fazer com que eu me lembrasse.

— Há modos diferentes de lembrar. Elias pode conseguir com que você lembre um pouco, e eu posso fazer você lembrar mais; mas apenas seus próprios estímulos desinibidores podem fazer você ser. A palavra é... você tem que chegar bem junto de mim para ouvir; só você pode ouvir essa palavra. Não, eu vou escrevê-la.

Zina pegou um pedaço de papel em uma mesa e com um pedaço de giz escreveu uma palavra.

 

                             HAYAH

 

Observando a palavra, Emmanuel sentiu a memória che­gar, mas apenas por um nanossegundo; em seguida — quase que imediatamente — ela sumiu.

— Hayah — pronunciou ele, em voz alta.

— Essa é a Palavra Divina — explicou Zina.

— Sim, eu sei — disse ele. A palavra era hebraica, uma palavra de raiz hebraica. E o próprio Nome Divino vinha dessa palavra. Ele sentiu um respeito enorme e terrível; sentiu medo.

— Não se assuste — falou Zina, tranqüila.

— Estou com medo — disse Emmanuel —, porque por um instante eu lembrei.

Percebi, pensou ele, quem sou eu.

Mas se esqueceu de novo. Quando saiu com a garota para o pátio, não se lembrava mais do que tinha percebido. E contudo — que estranho! — sabia que tinha percebido, percebido e esquecido na mesma hora. Como se, pensou, eu tivesse duas mentes dentro de mim, uma na superfície e outra lá nas pro­fundezas. A da superfície foi danificada, mas a profunda não.

Esta, contudo, não podia falar; estava fechada. Para sempre? Não; haveria o estímulo, um dia. Seu próprio estratagema.

Provavelmente era necessário que ele não lembrasse. Se ele fosse capaz de trazer tudo à consciência de novo, a base de tudo, então o governo poderia tê-lo matado. Pois existiam duas cabe­ças da besta, uma sendo a religiosa, o Cardeal Fulton Statler Harms, e outra a científica, que tinha o nome de N. Bulkowski. Mas eram fantasmas. Para Emmanuel a Igreja Cristã-Islâmica e o Legado Científico não constituíam uma realidade. Tinha noção do que estava por detrás deles. Elias lhe contara. Mesmo que não lhe contasse, porém, ele acabaria sabendo de qualquer forma; pois, em qualquer tempo e em qualquer lugar, seria capaz de identificar o Adversário.

O que o intrigava era a garota Zina. Alguma coisa naquilo tudo não se encaixava direito. Todavia ela não havia mentido; não era capaz de mentir. Ele fizera com que para ela fosse impossível enganar; isso constituía a natureza fundamental dela: a veracidade. Tudo o que tinha que fazer era perguntar a ela.

Enquanto isso, ele poderia supor que ela era uma das zine; ela própria admitira que dançava. Seu nome, é claro, vinha de dziana, e às vezes parecia que ela o usava, enquanto era Zina.

Dirigindo-se até ela, por trás, mas ficando bem pertinho, falou em seu ouvido: — Diana.

No mesmo instante ela se virou. E enquanto se virava, ele a viu transformar-se. O nariz ficou diferente e em vez de uma garotinha via agora uma mulher adulta usando uma más­cara de metal erguida de modo a revelar o rosto, um rosto grego; e a máscara, compreendeu, era uma máscara de guerra. Devia ser Pallas. Estava vendo Pallas agora, não Zina. Mas, compreendeu, ninguém lhe contara a verdade a respeito dela. Eram apenas imagens. Formas que ela tomava, E, contudo, a máscara de guerra o impressionara. A imagem agora se desva­necia, e soube que ninguém mais senão ele a percebera. Ela não revelaria nada aos outros.

— Por que você me chamou de "Diana"? — perguntou Zina.

— Porque é um dos seus nomes.

— Vamos ao Jardim um dia desses — disse Zina. — Assim você pode ver os animais.

— Acho que eu ia gostar. Onde é o Jardim?

— O Jardim é aqui — disse Zina.

— Não consigo ver.

— Você fez o Jardim — falou ela.

— Não me lembro.

A cabeça dele doeu; pôs as mãos no rosto. Como meu pai, pensou; ele costumava fazer o que estou fazendo. Só que ele não é meu pai.

— Não tenho pai, disse para si mesmo.

A dor o penetrou, a dor do isolamento; de repente Zina desapareceu, e o pátio da escola, o prédio, a cidade — tudo se desfez. Tentou fazer as coisas voltarem, mas não conseguia. O tempo parou. Até o tempo fora extinto. Esqueci completamen­te, percebeu. E, porque esqueci, tudo sumiu. Até mesmo Zina, seu afeto e seu prazer, não poderia fazê-lo lembrar agora; ele voltara para o vazio.

Um murmúrio baixinho atravessou lentamente a superfície do vazio, atravessou a profundeza. O calor podia ser visto; nessa transformação de freqüência o calor aparecia como luz, mas apenas como uma luz vermelha fosca, uma luz sombria. Achou-a desagradável.

Meu pai, pensou. Você não é.

Seus lábios se moveram e ele pronunciou uma palavra.

 

                       HAYAH

 

O mundo retornou.

— Você tem um pouco de café de verdade? — perguntou Elias Tate, jogando-se sobre um monte de roupas sujas de Rybys. — Não essa porcaria que a nave-mãe fornece — recla­mou, com uma careta.

— Tenho um pouco — disse Rybys —, mas não sei onde está.

— Você anda vomitando muito? — perguntou Elias, examinando-a. — Todo dia?

— Sim — ela o encarou, atônita.

— Você está grávida — declarou Elias Tate.

— É o meu tratamento quimioterápico — disse Rybys em voz surda, a face rubra de raiva. — Estou vomitando as tripas por causa da desgraçada da Neurotoxite e do Predno­feric...

— Consulte seu terminal do computador — disse Elias.

— Silêncio.

— Quem é você? — perguntou Herb Asher.

— Um Marginal Selvagem — respondeu o outro.

— Como é que você sabe tanta coisa de mim? — indagou Rybys.

Elias olhou-a.

— Eu vim para ficar com você. De agora em diante vou ficar junto de você. Consulte o terminal.

Sentando-se à frente do terminal, ela encaixou o braço na fenda do M.E.D.

— Detesto dizer isto desta maneira — disse-lhes Rybys —, mas sou virgem.

— Dê o fora daqui — disse Herb Asher, calmo, para o velho.

— Espere que o M.E.D. dê o resultado do teste — re­trucou Elias.

Os olhos de Rybys se encheram de lágrimas.

— Bosta. Isto é horrível. Primeiro tenho a E.M.; agora isto, como se já não bastasse a E.M.

Elias virou-se para Herb Asher.

— Ela tem que voltar para a Terra. As autoridades vão conceder permissão; sua doença é justificativa legal.

— Estou grávida? — perguntou Rybys, cansada, ao ter­minal do computador, ligado no canal M.E.D.

Silêncio.

— Você está grávida de três meses, Ms. Rommey — in­formou o terminal.

Rybys ergueu-se, foi até a vigia do domo e ficou olhando a paisagem de metano. Ninguém falou nada.

— É Yah, não é? — perguntou Rybys.

— É — respondeu Elias.

— Isso foi planejado há muito tempo — disse Rybys.

— Foi — confirmou Elias.

— E minha E.M. então é para eu ter um pretexto legal para retornar à Terra.

— Para deixar você fora da Imigração — disse Elias.

— E você sabe de tudo isso — continuou Rybys. E apon­tou para Herb Asher. — Ele vai dizer que é o pai.

— Vai — afirmou Elias — e vai voltar com você. Eu também. Você vai ser examinada no Hospital Naval de Bethesda, em Chevy Chase. Vamos pelo vôo axial de emergência, vôo de alta velocidade, por causa da gravidade de sua condição física. Vamos partir o mais rápido possível. Você já está com os papéis, os documentos necessários requerendo transferência de volta para casa.

— Yah é que provocou minha doença?

Elias confirmou com um gesto, depois de uma pausa.

— O que é isso? — disse Rybys, furiosa. — Algum golpe? Uma viagem clandestina?

Elias interrompeu-a, com voz baixa e áspera.

— A décima Fretense romana.

— Massada — falou Rybys. — 73 d.C. Certo? Eu tinha pensado nisso. Comecei a imaginar quando um Clem me contou sobre a divindade da montanha na nossa Estação Cinco.

— Ele perdeu. A Décima Legião era composta de 15.000 soldados veteranos. Mas Massada sustentou o sítio por quase dois anos. E havia menos de 1.000 judeus em Massada, inclusi­ve mulheres e crianças.

Rybys voltou-se para Herb Asher.

— Somente sete mulheres e crianças sobreviveram à queda de Massada. Era uma fortaleza dos judeus. Estavam escondidas dentro de um aqueduto — explicou. E virou-se para Elias Tate. — E Iavé foi separado do mundo.

— E as esperanças do Homem se desfizeram — comple­tou Elias.

— De que é que vocês estão falando? — perguntou Herb Asher.

— De um fracasso — disse Elias Tate, seco.

— Então ele, Yah, primeiro me fez ficar doente, e de­pois... — ela se interrompeu. — Ele surgiu neste sistema estelar? Ou foi encaminhado para cá?

— Foi encaminhado para cá. Em torno da Terra existe uma zona, agora. Uma zona de mal. Que o mantém afastado.

— O Senhor? — espantou-se Rybys. — O Senhor é man­tido afastado? Longe da Terra? — e seus olhos encaravam Elias Tate.

— O povo da Terra não sabe — explicou Elias Tate.

— Mas você sabe — disse Herb Asher. — Correto? Como é que conhece essas coisas todas? Como é que sabe tanto? Quem é você?

— Meu nome é Elijah — disse Elias Tate.

Os três sentaram-se juntos, tomando chá. Rybys, de expressão amargurada, estava rígida, com lampejos de fúria no olhar.

— Que é que mais aborrece você? — perguntou Elias Tate. — Yah ter sido afastado da Terra, ter sido derrotado pelo Adversário, ou você ter de voltar à Terra carregando-o dentro de si?

Ela riu.

— Ter que deixar minha estação.

— Você recebeu uma honra — lembrou Elias.

— A honra de ficar doente — retrucou Rybys; sua mão tremeu ao levar a xícara à boca.

— Você entende o que é que você leva em seu ventre?

— Claro.

— Não parece impressionada.

— Minha vida foi toda planejada — retrucou ela.

— Acho que você está encarando tudo isso de um ponto de vista muito estreito — interveio Herb Asher. Elias Tate e Rybys o olharam com desagrado, como se fosse um intruso. — Talvez eu não entenda direito — disse ele, indeciso.

Rybys deu-lhe um tapinha nos ombros.

— Está tudo bem. Eu também não entendo. Por que justo eu? Foi assim que pensei quando peguei a E.M. Por que diabos eu, afinal? Por que diabos você? Você também tem que deixar a estação; e as suas fitas da Fox. E deixar de ficar dia e noite no beliche sem fazer nada, com o equipamento no auto­mático. Cristo! Acho que Jó também levou a dele. Deus aflige aqueles a quem ama.

— Nós três juntos vamos viajar para a Terra — disse Elias — e lá você vai dar à luz o seu filho, Emmanuel. Yah planejou isso no começo dos tempos, antes da derrota em Massada, antes da destruição do Templo. Ele previu sua derrota e preparou-se para corrigir a situação. Deus pode ser vencido mas apenas temporariamente. Com Deus o remédio é mais poderoso do que a enfermidade.

— Felix culpa — disse Rybys.

— Sim — concordou Elias, e voltou-se para Herb Asher. — Isso significa "bendita falta", no que se refere à queda, à queda original. Se não tivesse havido a queda, talvez não tivesse havido a Encarnação. Não tivesse nascido Cristo.

— Doutrina católica — comentou Rybys, com ar distan­te. — Nunca imaginei que poderia aplicar-se a mim.

— Mas — perguntou Herb Asher — Cristo não venceu as forças do mal? Ele disse que dominou o mundo.

— Bem — retrucou Rybys —, aparentemente ele estava enganado.

— Quando Massada caiu — disse Elias — tudo ficou perdido. Deus não entrou na história no século I d.C; ele aban­donou a história. A missão de Cristo foi um fracasso.

— Você é muito velho — observou Rybys. — Qual é a sua idade, Elias? Uns 1.000 anos, acho. Você pode ter perspec­tivas a longo prazo, mas eu não. Todo esse tempo você sabia disso a respeito do Primeiro Advento? Durante 2.000 anos?

— Quando Deus previu a queda original — explicou Elias —, previu também que Jesus não seria aceito. Deus sabia tudo antes que acontecesse.

— E sobre isto agora, que é que ele sabe? — indagou Rybys. — Que é que vamos fazer?

Elias ficou em silêncio.

— Ele não sabe — disse Rybys.

— Isto... — Elias hesitou.

— A batalha final — colocou Rybys. — Pode pender para qualquer dos lados, não é?

— No fim — contestou Elias — Deus vence. Sua capa­cidade de tudo prever é absoluta.

— Pode ser que ele preveja — duvidou Rybys —, mas será que isso significa que ele pode... Escute, realmente não me sinto bem. É tarde, e estou doente e esgotada e me sinto como se... — fez um gesto com a mão. — Sou virgem e estou grávida. Os médicos da Imigração não vão acreditar.

— Esse é o ponto — interveio Herb Asher. — É por isso que está previsto que eu case com você e a gente viaje junto.

— Não vou casar com você coisa nenhuma; nem conheço você direito — protestou ela. — Está me gozando? Casar com você? Peguei E.M. e estou grávida... Vão pro inferno, vocês dois; dêem o fora e me deixem em paz. É isso o que eu quero. Por que é que não tomei aquele vidro de Seconax quando tive oportunidade? Não, nunca tive oportunidade. Yah estava vi­giando. Ele vê até a ave caída. Tinha me esquecido.

— Você tem aí um pouco de uísque? — perguntou Herb Asher.

— Ora, que beleza — comentou Rybys, amargamente. — Você pode encher a cara, mas e eu? Com E.M. e não sei que espécie de criança dentro de mim? Lá estava eu — e ela olhou com raiva para Elias Tate — pegando visualmente os seus pensamentos na minha TV, e na minha ilusão louca imaginava que era uma novela melosa bolada por escritores de Fomalhaut, que era pura ficção. Aracnídeo estava para decapitá-lo? São assim as suas fantasias inconscientes? E é você o porta-voz de Iavé — e ela empalideceu. — Pronunciei o Nome Sagrado. Desculpe.

— Os cristãos o pronunciam o tempo todo — disse Elias.

— Mas eu sou judia — contestou Rybys. — Tenho que ser judia; por isso é que me aconteceu essa coisa toda. Se eu fosse gentia, Yah não teria me escolhido. Se alguma vez tives­sem me possuído... — interrompeu-se. — O Maquinismo Divino tem uma brutalidade própria de fazer as coisas — ter­minou. — Não é nada romântico. É cruel. É mesmo.

— Porque há muita coisa em jogo — ponderou Elias.

— Que é que está em jogo? — indagou Rybys.

— O universo existe porque Yah se lembra dele — ex­plicou Elias.

Os dois o encararam, Herb Asher e Rybys.

— Se Yah se esquece, o universo cessa — disse Elias.

— Ele pode se esquecer? — perguntou Rybys.

— Ele ainda tem que esquecer — disse Elias, esquivo.

— Ou seja, ele pode esquecer — falou Rybys. — É isso. Foi você quem disse. Muito bem... — ela enrugou a testa e tomou um gole de chá, pensativa. — Então, para início de con­versa, eu só existo por causa de Yah. Nada existiria sem ele.

— O nome dele — disse Elias — significa "Aquele que traz à existência tudo o que existe".

— Inclusive o mal? — perguntou Herb Asher.

— Está dito na Escritura — disse Elias —, assim:

 

"Para que se saiba, até o nascente do sol

e até o poente

que além de mim não há outro;

eu sou o SENHOR, e não há outro;

Eu formo a luz, e crio as trevas;

faço a paz e crio o mal;

eu, o SENHOR, faço todas estas coisas." *

 

— Onde está escrito isso? — perguntou Rybys.

— Isaías, 45 — respondeu Elias.

— Paz e mal — repetiu Rybys. — Bem-estar e aflição.

— Então você conhece a passagem — e Elias olhou para ela.

— É difícil de acreditar — fez ela.

— É monoteísmo — disse Elias, severo.

— É — falou ela —, sei que é. Mas é brutal. O que está me acontecendo é brutal. E ainda vem mais. Quero escapar e não consigo. Ninguém pediu minha opinião, ninguém pergunta seu eu gosto. Yah pode prever o que está para acontecer, mas eu não, só sei que vai haver mais crueldade e sofrimento e vômito. Servir a Deus parece que é só vomitar e ser picada por uma agulha todos os dias. Sou como um rato doente numa gaio­la. Foi nisso que ele me transformou. Não tenho fé nem espe­rança e ele não tem amor, apenas poder. Deus é um sintoma de poder, mais nada. Ele que vá para o inferno. Eu desisto. Pouco me importa. Vou fazer o que tenho que fazer, mas isso vai me matar, eu sei. Tá bom?

Os dois homens ficaram calados, sem olhar para ela ou um para o outro.

Finalmente Herb Asher fez uma observação.

— Ele salvou sua vida hoje: me mandou aqui.

— Isso pouco importa — contestou Rybys. — Antes ele me mandou a doença!

— E ele está cuidando de você — disse Herb.

— Com que finalidade? — indagou ela.

— Para salvar milhões de vidas — disse Elias.

— O Egito — falou ela. — E os fabricantes de tijolos. Sempre a mesma coisa. Por que é que a salvação não permane­ce? Por que é que ela some? Não existe uma solução final?

— Esta — disse Elias — é a solução final.

— Eu não sou uma das salvas — replicou Rybys. — Eu fico pelo caminho.

— Ainda não — disse Elias.

— Mas a hora está chegando.

— Talvez — era impossível ler a expressão do rosto de Elias.

Os três estavam ali sentados, e de repente começou a vir o som de uma voz baixa, murmurante.

— Rybys, Rybys.

Rybys soltou um grito abafado e olhou em torno.

— Não temas — disse a voz. — Continuarás vivendo em seu filho. Não podes morrer agora, nem até o fim dos tempos.

Em silêncio, o rosto escaldando entre as mãos, ela come­çou a chorar.

No fim da tarde, depois das aulas, Emmanuel resolveu tentar de novo a transformação Hermética, para conhecer o mundo que o rodeava.

Primeiramente acelerou seu relógio biológico interno a fim de que os pensamentos fluíssem cada vez mais rápidos; sentiu-se mergulhando em turbilhão pelo túnel do tempo linear, numa velocidade incrível ao longo desse eixo. Logo a seguir começou a enxergar vagas cores flutuantes, e de súbito encontrou a Sentinela, ou seja, o Grigon, que guardava a passagem entre os Reinos Inferior e Superior. O Grigon apresentou-se na forma de um torso nu feminino, tão perto que podia ser tocado. Além desse ponto, começou a viajar no nível do Reino Superior, de modo que o Reino Inferior deixou de ser algo e começou, ao contrário, a ser um processo: evoluía em superposição de estra­tos numa proporção de 31,5 milhões para um, em relação à escala de tempo do Reino Superior.

Em conseqüência, ele enxergava o Reino Inferior não como um lugar, mas como figuras transparentes sucedendo-se numa rapidez incrível. Essas figuras eram as Formas de fora do espaço sendo introduzidas no Reino Inferior para se torna­rem realidade. Ele estava agora a um passo da transformação Hermética.

O quadro final se congelou e o tempo cessou. De olhos fechados, podia ainda ver o aposento a seu redor; o vôo terminara; conseguira burlar aquilo que o perseguia. Isso queria dizer que seus impulsos nervosos estavam perfeitos, e sua glândula pineal registrava a presença da luz através do conduto ótico.

Sentou-se por um momento, apesar de "um momento" não significar mais nada. Então, gradativamente, houve a transfor­mação. Viu fora de si o tipo, o padrão de seu próprio cérebro; estava em um mundo produzido por seu cérebro, com informa­ções vividas trazidas daqui e dali como pequeninos regatos de um vermelho brilhante e que eram vivos. Podia atingir e tocar seus próprios pensamentos em sua natureza original, antes que se tornassem pensamentos. O aposento se enchia com a incandescência deles, e espaços imensos se espalhavam, o volume de seu próprio cérebro, exterior a ele.

Enquanto isso, introjetou o mundo exterior de modo que se contivesse dentro dele. Tinha agora o universo por dentro e seu próprio cérebro do lado de fora.

O cérebro expandiu-se nos vastos espaços, maior ainda do que tinha sido o universo. E assim percebeu a extensão de todas as coisas que eram ele próprio, e, por ter incorporado o mundo, conheceu-o e controlou-o.

Aquietou-se e relaxou, e então pôde ver os contornos do aposento, a mesa de café, uma cadeira, as paredes e os quadros nelas: o fantasma do universo externo persistindo fora de si. Em seguida, pegou um livro na mesa e abriu-o. Encontrou aí seus próprios pensamentos, agora em forma impressa. Os pen­samentos impressos dispunham-se ao longo do eixo temporal que se tornara espacial, o único eixo pelo qual o movimento era possível. Pôde ver, como num holograma, as diferentes idades de seus pensamentos, os mais recentes mais próximos da superfície, os mais antigos cada vez mais embaixo e mais fundo, em inúmeras camadas sucessivas.

Observou o mundo fora dele, agora reduzido a algumas poucas formas geométricas, principalmente quadrados, e o Retângulo Dourado como portal de passagem. Nada se movia, a não ser a cena além dessa passagem, onde sua mãe corria feliz por entre espessas moitas de roseiras num campo que conhecera na infância; ela sorria e seus olhos brilhavam de alegria.

Agora, pensou Emmanuel, vou modificar o universo que coloquei dentro de mim. Olhou para as formas geométricas e permitiu que elas se enchessem com um pouco de matéria. Perto dele um sofá azulado de que Elias gostava muito começou a se deformar e sair de prumo. Suas linhas mudaram: afastada a causalidade que o orientava, deixou de ser um sofá azulado com manchas de Kaff e virou um armário Hepplewhite com finíssimos serviços de porcelana chinesa por detrás das portas.

Restabeleceu um pouco do tempo — e viu Elias Tate caminhar pela sala, entrar e sair; viu camadas adicionais lami­nadas em seqüência ao longo do eixo linear do tempo. A crista­leira Hepplewhite permaneceu por uma curta série de camadas; manteve sua forma passiva, ou desligada, ou inerte, e então arremessou-se à forma ativa, ou ligada, ou de movimento, e juntou-se ao mundo permanente dos iguais, participando agora de todos os de sua classe que tinham vindo antes. No mundo projetado do cérebro de Emmanuel o armário Hepplewhite, com suas peças de porcelana chinesa, incorporou-se para sempre à verdadeira realidade. Não sofreria mais mudanças, e ninguém o veria senão ele. Para os outros, o móvel estava no passado.

Completou a transformação com a fórmula de Hermes Trismegisto:

 

Verum est... quod superius est sicut quod inferius et quod inferius est sicut quod superius, ad perpetrando miracula rei unius.

 

Ou seja:

 

"A verdade é ser o que está acima como o que está abaixo, e o que está abaixo como o que está acima, para consumar os milagres da coisa única".

 

Isso era a Lâmina de Esmeralda, presenteada a Maria Profetisa, irmã de Moisés, pelo próprio Tehuti, que deu nomes a todas as coisas criadas, no princípio, antes de ser expulso do Jardim das Palmeiras.

O que estava abaixo, seu próprio cérebro, o microcosmo, tornara-se o macrocosmo, e, dentro dele, agora como micro­cosmo, ele continha o macrocosmo, quer dizer, o que está em cima.

Agora ocupo o universo inteiro, compreendeu Emmanuel; estou agora igualmente em todas as partes. Assim, tornei-me Adão Kadmon, o Primeiro Homem. Mover-se pelos três eixos espaciais era impossível para ele, porque já estava onde tinha desejado ir. O único movimento possível para ele ou para a realidade cambiante era ao longo do eixo temporal; sentou-se contemplando o mundo da continuidade dos iguais, bilhões deles em processo, constantemente crescendo e se completando, diri­gidos pela dialética subjacente a toda transformação. Isso lhe deu prazer; a rede intercomunicante da continuidade dos iguais era agradável de contemplar. Esse era o Kosmos de Pitágoras, o eterno ajustar-se harmonioso de todas as coisas, cada uma no seu próprio modo de ser, e cada uma imperecível.

Percebo agora o que Plotino percebia, compreendeu. Mais que isso, porém, reuni em mim os reinos que estavam separa­dos; restaurei a Shekhina em En Sof. Mas apenas por um instante e apenas localmente. Somente na microforma. O Todo voltaria ao que era assim que ele o libertasse.

— Apenas pensando — disse, em voz alta.

— O que você está fazendo, Manny? — perguntou Elias, entrando no aposento.

A causalidade fora revertida; ele fizera aquilo que Zina podia fazer: obrigar o tempo a voltar atrás. Riu, deliciado. E ouviu o som dos sinos.

— Eu vi Chinvat — disse Emmanuel. — A ponte estrei­ta. Podia tê-la cruzado.

— Você não deve fazer isso — advertiu Elias.

— Que significam os sinos? — perguntou Emmanuel. — Os sinos tocando ao longe.

— Quando você ouve sinos distantes quer dizer que Saoshyant está presente.

— O Redentor — disse Emmanuel. — Quem é o Reden­tor, Elias?

— Deve ser você mesmo — respondeu Elias.

— Às vezes perco a esperança de poder relembrar.

Podia ainda ouvir os sinos, muito ao longe, tangendo len­tamente, soprados, percebeu, pelo vento do deserto. Era o pró­prio deserto falando com ele. O deserto, com auxílio dos sinos, tentava ajudá-lo a lembrar-se.

— Quem sou eu? — perguntou a Elias.

— Não posso dizer.

— Mas você sabe. Elias concordou.

— Você pode tornar tudo muito simples — disse Emma­nuel — apenas dizendo.

— Você tem que dizer por si mesmo — alegou Elias. — Quando chegar o Tempo você saberá e vai dizer.

— Eu sou... — falou o menino, hesitante. Elias sorriu.

Ela tinha ouvido a voz subindo do próprio ventre. Primeiro sentiu medo, e depois desgosto; às vezes chorava, e a náusea continuava — não parava nunca. Não me lembro de ter lido isso na Bíblia, pensou. Maria sofrendo de enjôos matutinos. Provavelmente vou ter edemas e estrias. Não me lembro de ter lido sobre isso também.

Daria um ótimo graffito em alguma parede, disse para si mesma. A VIRGEM MARIA TEM ESTRIAS DE GRAVI­DEZ. Preparou um pouco de carne e ervilhas sintéticas; sentada sozinha à mesa, olhava apática a paisagem pela vigia do domo. O que eu devia mesmo era fazer uma limpeza geral aqui, pen­sou. Antes que Elias e Herb voltem. Na verdade, eu devia preparar uma lista do que é preciso fazer.

Acima de tudo, tenho que entender esta situação. Ele já está dentro de mim. Já aconteceu.

Preciso de outra peruca, decidiu. Para a viagem. Das boas. Talvez uma loira, comprida. Praga de quimioterapia, pensou. Se a gente não morre da doença, morre da cura. O remédio, pensou amargamente, é pior que o achaque. Xi! Derrubei tudo. Meu Deus, como me sinto mal...

E então, enquanto pegava um bocadinho da comida sinté­tica e fria, teve uma idéia esquisita. E se tudo isso fosse uma manobra dos Clems? Nós invadimos seu planeta, agora estão dando o troco. Eles compreenderam toda a implicação de nossa noção de Deus. E estão simulando esta concepção!

Bem que gostaria que a minha fosse simulada, ruminou.

Mas, voltando ao assunto, disse consigo mesma, eles lêem nossos pensamentos ou estudam nossos livros — pouco importa como conseguiram fazer isso — e nos enganam. E então, o que tem dentro de mim é um terminal de computador ou coisa assim, um rádio fabuloso. Posso até me ver na Imigração. "Alguma coisa a declarar, Miss?" "Só um rádio." Bem, pensou, onde está esse rádio? Não estou vendo rádio nenhum. "Bem, o senhor precisa olhar melhor." Não, pensou ela; é assunto de Alfândega, e não de Imigração. "Qual é o valor desse rádio, Miss?" Isso ia ser difícil de resolver, respondeu ela, em seu pensamento. "Sei que o senhor não vai acreditar, mas é algo parecido com rádio. Hoje em dia já não fazem coisas assim."

Talvez eu deva rezar, concluiu.

— Yah — suplicou — estou fraca e doente e assustada, e por mim mesma, realmente, não quero ser envolvida nisso.

Contrabando, pensou. Vou passar um contrabando pela aduana. "Madame, queira me acompanhar, por obséquio. Temos que dar na senhora uma revista de corpo completa. A guarda feminina já vai chegar. Sente-se um pouco; leia um jornal en­quanto espera." Vou dizer para eles que isso é uma arbitrariedade, pensou. "Espantoso!" Surpresa fingida. "Eu tenho o quê, dentro de mim? O senhor está brincando. Não, não tenho a menor idéia de como foi parar aí. As coisas que acontecem, veja só!

Uma letargia estranha tomou conta dela, uma espécie de estado hipnagógico, mesmo ali sentada a comer e meditando. O embrião em seu ventre começou a desenrolar um quadro diante dela, uma visão percebida por uma mentalidade total­mente diversa da sua.

Ela compreendeu: isso é como eles vão ver. Os poderes do mundo.

O que ela viu, por meio dos olhos deles, era um monstro. A Igreja Islâmica-Cristã e o Legado Científico — o medo deles não se parecia com o medo dela; o dela tinha relação com o esforço e com o perigo, com o que era requerido dela. Mas eles... Ela os viu consultando o Burrão, o Sistema I.A. que processava toda a informação da Terra, a imensa inteligência artificial na qual o governo confiava inteiramente.

O Burrão, depois de analisar os dados, informou às auto­ridades que alguma coisa sinistra passara sub-repticiamente pela Imigração rumo à Terra; ela sentiu o horror, a repugnância que cresceu neles. Incrível, pensou. Ver o Senhor do universo pelos olhos deles; vê-lo como um estranho. Como pode o Senhor, que criou tudo, ser uma coisa estranha? Eles não são a imagem dele, foi o que compreendeu. É isso o que Yah está me con­tando. Eu sempre imaginei — foi o que sempre nos ensinaram — que o homem é a imagem de Deus. É o semelhante atraindo o semelhante. Então eles realmente acreditam em si mesmos! Eles são sinceros e na verdade não entendem.

O monstro do espaço sideral, pensou. Temos que estar perpetuamente em guarda, não vá ele surgir e passar furtivo pela Imigração. Como estão perturbados! Como estão longe do objetivo! Então, poderiam matar meu nenê, pensou. É impossível, mas é verdade. E ninguém poderia levá-los a perce­ber o que fizeram. O Sinédrio procedeu do mesmo modo, disse de si para si, a respeito de Jesus. Outra vez o fanatismo. Ela fechou os olhos.

Estão vivendo um filme de terror barato, pensou. Existe alguma coisa errada quando se tem medo de criancinhas. Quando alguém encara uma delas, qualquer uma, como horrí­vel e perigosa. Não quero que esse ponto de vista me leve à aversão por elas, pensou lá consigo. Por favor, afaste isso; já vi o bastante.

Eu entendo.

É por isso que a coisa tem que ser feita dessa maneira, pensou. Porque eles enxergam por essa ótica. Eles rezam; to­mam decisões; protegem seu mundo; mantêm afastados os intrusos hostis. E para eles essa é uma penetração hostil. Estão dementes; poderiam matar o Deus que os criou. Não é racional. Cristo não morreu na cruz para purificar os homens; foi crucifi­cado porque eram loucos; a visão deles é a que eu tenho agora. Visão de loucura.

Acham que estão procedendo corretamente.

 

— Tenho uma coisa para você — falou a garota Zina.

— Um presente? — e ele estendeu a mão, confiante. Era apenas um brinquedo infantil. Uma placa de infor­mações. Ele demonstrou o desapontamento.

— Fizemos isso para você — disse ela.

— Quem? — Ele examinou a placa. Era das produzidas às centenas de milhares por fábricas automáticas. Cada uma dessas placas continha um microcircuito comum. — Mr. Plau­det já me deu uma igual — disse ele. — São distribuídas na escola.

— As nossas são diferentes — explicou Zina. — Guarde bem essa. Diga para Mr. Plaudet que é a que ele deu para você. Não dá para distinguir uma da outra. Veja aqui, até pusemos a marca da fábrica — e ela apontou a sigla I.B.M.

— Mas esta não é uma I.B.M. de verdade.

— Completamente diferente. Ligue para ver.

Ele apertou o botão da placa. Sobre ela, na superfície cin­za-claro, uma única palavra apareceu, em letras vermelhas ilu­minadas.

 

                           VALIS

 

— Esta é a pergunta para você agora — disse Zina. — Imaginar o que é "Valis". A placa está colocando o problema para você como primeiro nível... o que quer dizer que lhe dará outras pistas, se você quiser.

— Mamãe Gansa — falou Emmanuel.

Na placa, a palavra VALIS desapareceu e surgiu outra:

 

                           HEFAISTOS

 

— Ciclopes — pronunciou Emmanuel, na mesma hora. Zina riu.

— Você é tão rápido quanto ela.

— Com o que ela está sintonizada? Não é com o Burrão. Ele não gostava do Burrão.

— Talvez eu ainda conte para você — replicou Zina. Outra palavra, agora, na placa.

 

                             SHIVA

 

— Ciclopes — repetiu Emmanuel. — É um truque. Isso foi construído pelo grupo de Diana.

No mesmo instante o sorriso da garota morreu.

— Desculpe — pediu Emmanuel. — Nunca mais vou repetir isso em voz alta, prometo.

— Dê-me a placa de volta — ela estendeu a mão.

— Dou se ela me disser para devolver — e Emmanuel apertou o botão.

 

                               NÃO

 

— Muito bem — disse Zina. — Pode ficar com ela. Mas você não sabe o que ela é; não compreende. Não foi o meu grupo que construiu. Aperte o botão.

De novo ele apertou o botão.

 

                               BEM ANTES DA CRIAÇÃO

 

— Eu... — Emmanuel hesitou.

— Vai voltar para você — disse Zina. — Por meio da placa. Use-a. Acho que não precisa contar para Elias. Ele pode não entender.

Emmanuel não disse nada. Isso era coisa para ele próprio resolver. Era importante não permitir que outros tomassem decisões por ele. E, basicamente, ele confiava em Elias. Será que confiava também em Zina? Não estava muito seguro. Percebia a profusão de naturezas dentro dela, a multidão de personalidades. Fundamentalmente, desejava buscar a identida­de real dela; sabia que estava lá, mas os disfarces a obscure­ciam. Quem é, perguntou-se, que pode fazer truques assim? Que entidade é assim astuta? Apertou o botão.

 

                              DANÇA

 

Ante isso, ele fez um gesto de assentimento. Dança certa­mente era a resposta correta; em pensamento podia vê-la dan­çando, com todo o grupo, queimando a grama sob os pés, crestando-a e desorientando as mentes dos homens. Você não con­segue me desorientar, disse para si mesmo. Ainda que controle o tempo. Porque eu também controlo o tempo. Talvez mais do que você.

Na hora do jantar ele conversou com Elias a respeito de Valis.

— Leve-me para vê-lo — pediu Emmanuel.

— É um filme muito antigo — protestou Elias.

— Mas pelo menos podemos alugar uma fita cassete. Na biblioteca. Que quer dizer "Valis"?

— É a sigla inglesa de "Grande Sistema Ativo de Infor­mação Viva" — explicou Elias. — O filme é na maior parte pura ficção. Foi feito por um cantor de rock no final do século XX. Seu nome era Eric Lampton, mas se apresentava como Mamãe Gansa. Esse filme continha a Música de Sincronicidade de Mini, que teve grande influência em toda a música moderna até hoje. A maior parte da informação do filme é transmitida subliminarmente pela música. O cenário é uns Estados Unidos imaginários onde o presidente é um sujeito chamado Ferris F. Fremount.

— Mas o que é Valis? — perguntou Emmanuel.

— Um satélite artificial que projeta um holograma que todos tomam por realidade.

— Então é um gerador de realidade.

— É.

— De realidade verdadeira?

— Não, eu disse que é um holograma. Ele pode fazer com que todos vejam o que ele deseja. Esse é o ponto básico do filme. É um estudo sobre o poder da ilusão.

Dirigindo-se a seu quarto, Emmanuel apertou o botão da placa que Zina lhe dera.

— Que é que você está fazendo? — indagou Elias, indo atrás dele.

A placa mostrou uma palavra:

 

                             NÃO

 

— Está sintonizada com o governo — disse Elias. — É inútil usá-la. Eu sabia que Plaudet iria dar a você uma coisa dessas. Dê-me isso e estendeu a mão.

— Eu queria ficar com ela.

— Besteira; olhe a marca I.B.M.! Que é que você espera que ela lhe diga? A verdade? Alguma vez o governo já disse a verdade? Eles mataram sua mãe e colocaram seu pai em sus­pensão criogênica. Dê-me essa placa, diabos!

— Se você me tirar — alegou Emmanuel — eles me dão outra.

— Imagino que sim — e Elias recolheu a mão. — Mas não acredite no que ela disser.

— Ela diz que você está enganado quanto a Valis — re­trucou Emmanuel.

— Enganado como?

— Ela só disse "Não". Mais nada. Ele apertou o botão outra vez.

 

VOCÊ

 

— Que raios ela quer dizer com isso? — disse Elias, confuso.

— Não sei — respondeu Emmanuel, confiante. Posso con­tinuar a utilizá-la, pensou.

A placa está usando de artifícios comigo, pensou de re­pente. Fica dançando ao longo do caminho, como se fosse uma lâmpada balouçando, e me leva, me leva, para longe, mais longe, penetrando na escuridão. E então, quando a escuridão for total, a lâmpada vai apagar. Eu te conheço, pensou para a placa. Sei como você funciona. Não vou te seguir; você é que tem que vir até mim.

Apertou o botão.

 

                                 SIGA-ME

 

— Até o ponto de onde ninguém volta — falou Em­manuel.

Depois do jantar ele ficou algum tempo com o holoscópio, estudando a coisa mais preciosa de Elias: a Bíblia, expressa em camadas a diferentes profundidades, cada camada relativa a uma época. A estrutura total da Escritura formava, desse modo, um cosmo tridimensional possível de ser observado de qualquer ângulo e assim ser lido. Conforme a inclinação do eixo de observação, diferentes mensagens podiam ser extraídas. E então a Escritura fornecia uma infinidade de conhecimentos que mu­davam sem cessar. Transformava-se numa obra de arte fantás­tica, maravilhosa de se ver e incrível em suas pulsações de co­res, onde o vermelho e o dourado palpitavam, estriados de azul. O simbolismo das cores não era arbitrário, pois ligava-se à época das primeiras pinturas românticas da Idade Média. O vermelho sempre representava o Pai. Azul era a cor do Filho. E dourado, é claro, era a cor do Espírito Santo. O verde signi­ficava a nova vida dos eleitos; violeta, as lamentações; marrom, o sofrimento eterno; branco era a cor da luz; e, enfim, o preto era a cor dos Poderes das Trevas, da morte e do pecado.

Todas essas cores se encontravam no holograma formado pela Bíblia ao longo do eixo temporal. Juntamente com trechos do texto, mensagens complexas se formavam, permutavam-se, formavam-se de novo. Emmanuel jamais se cansava de observar o holograma; para ele, e também para Elias, esse era o holo­grama supremo, acima de todos os outros. A Igreja Islâmica-Cristã não aprovava a transmutação da Bíblia em holograma de cores codificadas, e proibia a fabricação e venda desses objetos. Por isso Elias teve que construir o seu próprio, sem aprovação.

Era um holograma aberto. Novas informações podiam ser introduzidas nele. Emmanuel meditou sobre isso, mas não disse nada. Sentiu que havia um segredo a respeito. Podia ser que Elias não lhe respondesse; daí, não perguntou nada.

O que podia fazer, contudo, era digitar, no painel ligado ao holograma, algumas poucas palavras decisivas da Escritura, a respeito das quais, do melhor ponto de vista da citação, o holograma poderia organizar-se, ao longo de seus eixos espa­ciais. E assim o texto inteiro da Bíblia poderia ser focalizado relativamente à informação digitada.

— Que tal se eu alimentá-lo com alguma coisa nova? — perguntou um dia a Elias.

— Nunca faça isso — foi a resposta severa.

— Mas tecnicamente é possível.

— Não é para ser feito.

Muitas vezes o menino cogitou sobre esse fato.

Sabia, é claro, o motivo por que a Igreja Islâmica-Cristã não permitia a transmutação da Bíblia em holograma de cores codificadas. Se alguém aprendesse como fazê-lo, poderia ajustar gradualmente o eixo temporal, o eixo da verdadeira profundi­dade, de modo que camadas sucessivas se sobrepusessem e uma mensagem vertical — uma nova mensagem — poderia ser conhecida. Desse modo a pessoa entraria em diálogo com a Escritura, que se tornaria viva. Viva, um organismo consciente que jamais se repetiria, nunca seria duas vezes o mesmo. Pela vontade da Igreja Islâmica-Cristã, naturalmente, a Bíblia e o Corão ficariam congelados para sempre. Se a Escritura se liber­tasse da Igreja, o monopólio desapareceria.

A superposição era o fator crítico. E essa sofisticada super­posição só poderia ser obtida com um holograma. E contudo ele sabia que certa vez, havia muito tempo, a Escritura já fora decifrada por esse meio. Elias, quando lhe foi feita a pergunta, manteve-se reticente, e o garoto abandonou o assunto.

No ano anterior tinha havido um incidente bastante cons­trangedor na Igreja. Elias levara o menino à missa matutina de quinta-feira. Como Emmanuel ainda não fora crismado, não podia receber a hóstia; enquanto os outros se aglomeravam jun­to à grade do altar, ele permaneceu de joelhos, rezando. E de repente, quando o padre passava o cálice de um para outro, molhando a hóstia no vinho consagrado e dizendo "O Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, que foi derramado por ti...", Emmanuel se ergueu do banco e declarou, calma e firmemente:

— O sangue não está aí, nem o corpo.

O padre se interrompeu e olhou para ver quem tinha falado.

— O senhor não tem a autoridade — disse Emmanuel. E, em proferindo isso, virou-se e saiu do templo. Elias encon­trou-o no carro, ouvindo rádio.

— Você não pode fazer isso — disse Elias, dirigindo para casa. — Não pode dizer coisas assim. Eles vão abrir um prontuário em seu nome, e é isso que não queremos.

Elias estava furioso.

— Eu vi — falou Emmanuel. — Era apenas um biscoito e vinho.

— Você se refere ao secundário. À forma externa. Mas a essência era.

— Não havia outra essência além da aparência visível — retrucou Emmanuel. — O milagre não aconteceu porque o padre não era um padre.

Depois disso continuaram a viagem em silêncio.

— Você nega o milagre da transubstanciação? — pergun­tou Elias aquela noite, ao colocar o menino na cama.

— Eu nego que ele tenha acontecido hoje — respondeu Emmanuel. — Naquele lugar. Não vou mais lá.

— O que quero — disse Elias — é que você seja sensato como a serpente e inocente como a pomba.

Emmanuel encarou-o.

— Eles mataram...

— Eles não têm poder sobre mim — declarou Emmanuel.

— Eles podem destruir você. Podem arranjar outro aci­dente. Me deram ordem para colocar você na escola no ano que vem. Felizmente, por causa da lesão no seu cérebro, você não vai para uma escola comum. Estou contando com que eles... — Elias hesitou.

— Considerem como efeito da lesão cerebral tudo de diferente que notarem em mim — terminou Emmanuel.

— É. Isso mesmo.

— A lesão cerebral foi planejada?

— Eu... Talvez.

— Parece bem útil. — Mas, pensou, apenas se eu souber meu nome verdadeiro. — Por que é que você não pode dizer meu nome? — perguntou a Elias.

— Sua mãe podia -— esquivou-se Elias.

— Minha mãe morreu.

— Um dia você mesmo vai conseguir dizer.

— Fico impaciente. — Um pensamento estranho cruzou-lhe a mente. — Será que minha mãe morreu por ter pronun­ciado meu nome?

— Quem sabe? ...

— E é por isso que você não quer dizer? Por que poderia ser morto se dissesse? E por que eu não morro se eu mesmo disser?

— Não é bem um nome, no sentido comum. É uma voz de comando.

Todas essas coisas ficaram em sua mente. Um nome que não era um nome, mas uma voz de comando. Pensou em Adão, que deu nome aos animais. Meditou sobre isso. A Escritura dizia:

 

"...e trouxe-os ao homem, para que os visse e os denominasse..."

 

— Deus não sabia que nome o homem ia dar aos animais?

— perguntou a Elias.

— Só o homem possui linguagem — explicou Elias. — Só o homem pode dar nascimento à linguagem. Além disso...

— encarou o garoto. — Quando o homem deu nome às cria­turas estabeleceu domínio sobre elas.

Quando alguém dá nome a uma coisa, passa a controlá-la, compreendeu Emmanuel. Daí que ninguém deve pronunciar meu nome, porque ninguém deve, ou pode, exercer controle sobre mim.

— Deus estava fazendo uma brincadeira com Adão, nesse caso — falou. — Queria saber se o homem conhecia os nomes corretos. Estava testando o homem. Deus gosta de brincadeiras.

— Não tenho certeza de que conheço resposta para isso

— retrucou Elias.

— Não fiz nenhuma pergunta. Apenas falei.

— Mas é algo que normalmente a gente não associa a Deus.

— Então a natureza de Deus é conhecida.

— A natureza dele não é conhecida.

— Ele gosta de se divertir e fazer brincadeiras — afirmou Emmanuel. — A Escritura diz que ele descansou, mas eu digo que ele ficou se divertindo.

Ele queria introduzir esses dados no holograma da Bíblia, como adendo, mas percebeu que não devia. De que maneira ficaria alterado o holograma inteiro? Acrescentar à Tora que Deus gosta de passatempos divertidos... Esquisito, pensou, mas não posso acrescentar isso. Outra pessoa é que tem que fazer; isso tem que constar da Escritura. Algum dia.

Foi de um medonho cachorro agonizante que ele aprendeu a respeito da dor e da morte. O bicho tinha sido atropelado e jazia no acostamento da estrada, com o peito esmagado e uma espuma sanguinolenta borbulhando pela boca. Quando se de­bruçou sobre o animal, o cachorro fitou-o de olhos vidrados, olhos que já encaravam o outro mundo.

Para entender o que o cachorro dizia, colocou a mão na cauda mutilada.

— Quem determinou essa morte para você? — pergun­tou ao animal. — O que é que você fez?

— Não fiz nada — retrucou o cachorro.

— Mas essa morte é cruel.

— E no entanto — declarou o cachorro — eu sou inocente.

— Alguma vez você matou?

— Oh, sim. Minhas mandíbulas são projetadas para ma­tar. Fui arquitetado para matar pequenas coisas.

— Você matou para comer ou por prazer?

— Eu mato sem sentimento algum — explicou o cachorro. — É um jogo; é o jogo que eu jogo.

— Não conheço esse tipo de jogo. Por que motivo os cachorros matam, e por que motivo morrem? Por que existem esses jogos?

— Isso são sutilezas demais para mim — retrucou o animal. — Eu mato para matar; morro porque preciso. É pura necessidade, a regra que é a regra final. Por acaso você não vive e mata e morre segundo essa regra? Claro que sim. Você também é uma criatura.

— Eu só faço aquilo que desejo.

— Você está enganando a si mesmo. Só Deus é que faz o que deseja.

— Nesse caso eu devo ser Deus.

— Se você é Deus, cure-me.

— Mas você está sob o controle da lei.

— Você não é Deus.

— Cachorro, Deus desejou a lei.

— Você disse, então, por si mesmo. Você respondeu à sua própria pergunta. Agora me deixe morrer.

Quando ele contou o caso do cachorro, Elias disse:

 

"Vai, estrangeiro, e ao Lacedemônio conte que aqui, a seu mando, sucumbimos todos."

 

— Eram os espartanos que morreram nas Termópilas — explicou Elias.

— Por que é que você me conta isso? — perguntou Emmanuel.

Elias disse:

 

"Dize aos espartanos, ó tu que passas, que a suas leis obedecendo aqui morremos."

 

— Você está se referindo ao cachorro — disse Emmanuel.

— Estou me referindo ao cachorro — confirmou Elias.

— Não existe diferença entre um cachorro morto numa vala e os espartanos que morreram nas Termópilas — falou Emmanuel, compreendendo. — Nenhuma. Agora vejo.

— Se você compreende por que os espartanos morreram, pode compreender o resto:

 

"Viandante, detém-te por um momento; nós, que aqui jazemos, obedecemos às leis de Esparta."

 

— E, para o cachorro, não existem versos? Elias declamou:

 

"Caminhante, compreende o que te digo: como os de Esparta, o cão está comigo."

 

— Obrigado — disse Emmanuel.

— Qual foi a última coisa que o cachorro falou? — per­guntou Elias.

— "Agora me deixe morrer." Elias disse:

 

Lasciatemi morire!

E chi volete voi che mi conforte

in cosi dura sorte,

in cosi gran mar tire?

 

— Que é isso?

— É a mais bela música composta antes de Bach — ex­plicou Elias. — O madrigal do Lamento d'Arianna, de Monte­verdi. Significa:

 

"Deixa-me morrer!

E quem pensas que pode confortar-me

nesta sorte tão dura,

em tamanho tormento?"

 

— Então a morte do cachorro é uma grande obra de arte — comentou Emmanuel. — A maior obra de arte do mundo. Ou, pelo menos, celebrada, registrada na e pela grande arte. Devo enxergar nobreza num velho e feio cachorro agonizando com o peito esmagado?

— Sim, se você acredita em Monteverdi. E naqueles que o reverenciam.

— Tem mais coisas no Lamento?

— Tem, mas não vêm ao caso. Teseu abandona Ariadne; amor não correspondido.

— O que é pior — perguntou Emmanuel —, um ca­chorro agonizando na lama ou Ariadne rejeitada?

— Ariadne imagina o tormento dela, mas o do cachorro é real.

— Então o do cachorro é pior. É a maior tragédia — declarou Emmanuel.

Ele compreendeu. E, estranho, sentiu-se contente. Era um bom universo, onde um feioso cachorro morrendo tinha mais valor do que uma figura clássica da Grécia antiga. Sentiu a balança inclinada buscar o equilíbrio por si mesma, e as divisões da escala que pesavam tudo o mais. Percebendo a honestidade do universo, parou de sentir-se confuso. Contudo, e o mais im­portante, o cachorro compreendeu sua própria morte. Afinal, o cachorro nunca teria ouvido a música de Monteverdi ou lido os versos da coluna de pedra nas Termópilas. A grande arte era para aqueles que viam a morte, mais do que a viviam. Para a criatura agonizante, um copo de água era mais importante.

— Sua mãe tinha aversão por certas formas de arte — informou Elias. — Em especial, ela detestava Linda Fox.

— Toque alguma coisa de Linda Fox — pediu Emmanuel. Elias colocou um audiocassete no gravador, e os dois co­meçaram a ouvir.

 

"Não chorem mais, tristes fontes,..."

 

— Chega — disse Emmanuel. — Desligue isso. É pavo­roso — e pôs as mãos nos ouvidos, estremecendo.

— O que há de errado? — perguntou Elias. Pôs o garoto no colo. — Nunca vi você assim tão agitado.

— Ele estava ouvindo isso, enquanto minha mãe morria!

— exclamou Emmanuel, fitando o rosto barbudo de Elias.

Eu me lembro, disse Emmanuel para si mesmo, estou co­meçando a me lembrar de quem eu sou.

— Que é que há? — quis saber Elias, apertando o me­nino no colo.

Está acontecendo, deu-se conta Emmanuel. Finalmente. Este é o primeiro dos avisos que eu, eu próprio, preparei. Sa­bendo que um dia ele haveria de manifestar-se.

Os dois se contemplaram, o menino e o homem, e nenhum falou nada. Tremendo, Emmanuel agarrou-se com força ao ve­lho; ele não o deixaria cair.

— Não precisa ter medo — falou Elias.

— Elijah — murmurou Emmanuel. — Você é Elijah, o que chega primeiro. Antes do grande e terrível dia.

Elias embalou-o com ternura.

— Você não precisa ter medo de nada quando chegar esse dia.

— Mas ele precisa — replicou Emmanuel. — O Adver­sário, que abominamos. O tempo dele chegou. Tenho medo por ele, conhecendo, como conheço agora, o que vem pela frente.

— Ouça — disse Elias, suavemente:

 

"Como decaíste, luminosa estrela matutina, abatida sobre a Terra, espalhando-se inerme entre as nações!

Imaginaste, em teu próprio coração: 'Escalarei de novo os céus; instalarei meu trono ainda mais alto que os divinos astros, sobre o monte onde os deuses se reúnem é que hei [de postar-me, nas ocultas distâncias do Setentrião. Hei de elevar-me acima de onde estão as nuvens, tornar-me igual àquele que é o Mais Alto. E no entanto serás levado para baixo, até o Sheol, até as profundezas do abismo. E os que te conhecem se espantarão, e tua sorte olhando, hão de meditar..."

 

— Compreende? — continuou Elias. — Ele está aqui. Este é o lugar dele, este pequeno mundo. Aqui ele ergueu sua fortaleza faz 2.000 anos, e organizou uma prisão para o povo, tal como tinha feito no Egito. Durante 2.000 anos o povo clamou e não obteve resposta, nem ajuda. Ele os possui a todos. E julga-se a salvo.

Emmanuel, agarrado ao velho, começou a chorar.

— Ainda está com medo? — perguntou Elias.

— Choro com eles — respondeu Emmanuel. — Choro com minha mãe. Choro com o cachorro agonizante que não chorou. Choro por eles. E por Belial, que decaiu, a luminosa estrela matutina. Decaído do céu, e que deu início a tudo.

E, pensou, choro por mim mesmo. Eu sou minha mãe; sou o cachorro agonizante e o povo sofredor e, acho, sou aquela luminosa estrela matutina, também... o próprio Belial; sou aquela estrela e aquilo em que ela se tornou.

O velho apertou-o com mais força.

 

O Cardeal Fulton Statler Harms, Prelado-Chefe da vasta rede de organizações que compreendia a Igreja Islâmica-Cristã, não conseguia entender de jeito nenhum por que motivo não havia em seu Fundo Discricionário Especial recursos financeiros sufi­cientes para cobrir as despesas de sua amante.

Talvez, ponderava enquanto o barbeiro lhe fazia a barba lenta e cuidadosamente, seja porque não tenha uma noção cor­reta da extensão das necessidades de Deirdre.

Fora ela quem se aproximara dele — tarefa pouco fácil, já que implicava uma ascensão degrau por degrau por toda a hierarquia da I.I.C. —, numa escalada sem quedas graves até atingir o topo. Nessa época Deirdre representava F.M.L.C, Fórum Mundial das Liberdades Civis, e trazia uma lista de arbitrariedades, uma coisa para ele um pouco vaga e confusa, mas que não impediu fossem discuti-la na cama; agora Deirdre era oficialmente sua secretária executiva.

Por seu trabalho ela fazia jus a dois salários: o visível, de seu cargo, e o invisível, proveniente do fundo especial de que ele não tinha que prestar contas. Para onde ia todo esse dinheiro depois que chegava às mãos de Deirdre, ele não tinha a menor idéia. Escrituração não era o seu forte.

— O senhor não deseja uma rinsage para remover o ama­relo dessa parte grisalha aqui? — sugeriu o barbeiro, chacoa­lhando um vidro.

— Está bem. Por favor — concordou Harms.

— O senhor acha que os Lakers vão conseguir recuperar a posição no campeonato? — perguntou o barbeiro. — Agora que eles compraram esse como-é-o-nome-dele? Esse de 3 me­tros de altura. Se eles não tivessem...

— Estou ouvindo as notícias, Arnold — interrompeu Harms, apontando para a orelha.

— Ah, sim, estou vendo, padre — disse o barbeiro, salpi­cando a rinsage no cabelo do Prelado-Chefe. — Mas tem uma coisa que eu queria perguntar para o senhor, sobre os padres homossexuais. Isso não é proibido pela Bíblia? Por isso não consigo entender como é que um padre pode ser homossexual.

O noticiário que Harms estava tentando ouvir referia-se ao estado de saúde do Procurator Maximus do Legado Cientí­fico, Nicholas Bulkovsky. Solenes vigílias de preces foram for­malmente iniciadas, mas apesar disso Bulkovsky continuava a piorar. Harms, sub rosa, enviara seu médico pessoal para fazer parte da junta que assistia o Procurator em suas graves con­dições.

Bulkovsky, e não apenas o Cardeal Harms mas toda a cúria o sabia, era um cristão devoto. Fora convertido pelo carisma do Dr. Colin Passim, evangélico que, nas reuniões de campanhas missionárias que promovia, costumava flutuar nos ares em demonstração dramática de poder do Espírito Santo que o animava.

Naturalmente o Dr. Passim já não era o mesmo, desde que sua navegação aérea o projetara através de um imenso vi­tral da catedral de Metz, na França. Anteriormente ele tinha se expressado, às vezes, em idiomas estranhos; agora só dis­corria assim. Esse fato levara um humorista de televisão a sugerir que fosse composto um dicionário Inglês-Glossolalia, para que todo mundo pudesse entender o Dr. Passim. O que, por sua vez, provocara tamanha indignação entre os fiéis, que o Cardeal Harms anotou, em algum lugar de sua agenda de mesa, o dever de excomungar o humorista, logo que possível. Mas, como sempre, acabou se esquecendo do assunto tão trivial.

A maior parte do tempo do Cardeal Harms era gasta em atividade secreta: tinha-se ocupado ultimamente de alimentar o Burrão, o Grande Sistema de Informação Artificial, com o Proslogion, de Santo Anselmo. A idéia era ressuscitar a de há muito desacreditada Prova Ontológica da existência de Deus.

Tinha-se voltado para Anselmo e a exposição original do argumento, desembaraçada dos acréscimos posteriores:

 

"Tudo aquilo que pode ser entendido tem que estar no intelecto. Certamente, também, o ser maior do que tudo o que possa ser concebido não pode existir apenas no inte­lecto; porque, se estivesse apenas no intelecto, poderia ser concebido que ele existisse também na realidade, e isso seria conceber um ser ainda maior. Nesse caso, se o ser maior do que tudo o que possa ser concebido está mera­mente no intelecto (e não na realidade), então esse mesmo ser é alguma outra coisa que não esta que alguém pode conceber como ainda maior (ou seja, que exista tanto no intelecto quanto na realidade). Isso é uma contradição.

Assim sendo, não pode haver dúvida de que o ser maior do que tudo o que possa ser concebido tem que existir tanto no intelecto quanto na realidade".

 

O Burrão, não obstante, conhecia tudo sobre Aquino e Descartes e Kant e Russel e seus criticismos, e além disso o sistema I.A. possuía senso comum, pelo que informou a Harms que o argumento de Anselmo não valia um tostão furado, apre­sentando páginas e páginas de análise como prova. A reação de Harms foi publicar a análise do Burrão e apegar-se à defesa de Anselmo feita por Hartshorne e Malcolm: que a existência de Deus ou era logicamente necessária ou logicamente impossível. Desde que não foi demonstrado ser ela impossível — ou seja, o conceito de uma entidade assim não foi mostrado como sendo autocontraditório —, segue-se então que temos necessariamente de concluir que Deus existe.

Agarrando-se a esse desgastado argumento, Harms enviou uma cópia dele, pela linha direta, ao enfermo Procurator Maxi­mus, no intuito de instilar novas forças em seu co-adminis­trador.

— Agora veja os Giants — estava dizendo Arnold, o barbeiro, enquanto se esforçava valentemente por disfarçar o amarelo do cabelo do cardeal. — O que eu digo é que eles não são de nada. Lembre-se do afastamento de Eddy Tubb no ano passado, por luxação no braço. No beisebol, os lança­dores sempre têm problemas com os braços.

O dia começara para o Prelado-Chefe Cardeal Fulton Sta­tler Harms; tentando ouvir o noticiário, ao mesmo tempo me­ditando em seus problemas com Santo Anselmo, desviando a atenção das estatísticas de beisebol de Arnold — esse era o seu confronto matutino com a realidade, essa era a sua rotina. Tudo o que restava que pudesse lembrar o modelo platônico do início de sua fase ativa era a tentativa imperiosa — e vã — de livrar-se de Deirdre, em face ao excessivo custo dela.

Já estava preparado; tinha uma nova garota à espera. Deirdre, que não sabia de nada, ia levar um fora.

Numa estância de cura, à borda do mar Negro, o Procurator Maximus caminhava em círculos, lentamente, enquanto lia o último relatório de Deirdre Connell sobre o Prelado-Chefe. Nenhum problema de saúde preocupava o Procurator; ele pro­vocara um vazamento de notícias sobre suas "condições médi­cas", através da imprensa, com o fito de iludir seu co-administrador e armar uma rede de mentiras. Isso lhe dava tempo de estudar a análise que sua equipe de informações fazia sobre os relatórios diários de Deirdre Connell. Até então a opinião de todos os servidores íntimos do Procurator era que o Cardeal Harms desligara-se totalmente da realidade, perdido num ema­ranhado de questões teológicas que o afastavam cada vez mais de qualquer controle sobre a situação política e econômica, pela qual, pro forma, era de sua competência zelar.

O noticiário falso dava-lhe tempo também de pescar, des­cansar, bronzear-se ao sol e conjeturar sobre como depor o cardeal e colocar alguém de seu próprio círculo nas funções de Prelado-Chefe da I.I.C. Bulkovsky tinha inúmeros funcionários do L.C., zelosos e bem treinados, infiltrados na cúria. Enquanto Deirdre Connell detivesse o cargo de secretária executiva e a posição de amante do cardeal, ele estaria com os trunfos. Sen­tia-se razoavelmente seguro de que Harms não tinha ninguém na cúpula do Legado Científico, sem reciprocidade de acesso, portanto. Bulkovsky não tinha amante; era homem de família, com uma esposa rechonchuda de meia-idade e três crianças matriculadas numa escola particular da Suíça. Além disso, sua conversão às entusiasmadas tolices do Dr. Passim — o milagre de flutuar nos ares, é claro, era conseguido por meios tecnoló­gicos — não passava de uma fraude estratégica, com o objetivo de sossegar o cardeal e permitir que ele afundasse mais ainda em seus grandes sonhos.

Era de pleno conhecimento do Procurator a tentativa de levar o Burrão a verificar a Prova Ontológica de Santo Anselmo sobre a existência de Deus; esse assunto era motivo de piadas nas regiões sob o domínio do Legado Científico. Deirdre Con­nell recebera instruções para induzir o idoso amante a despen­der mais e mais tempo em seu grandioso empreendimento.

E contudo, embora de olhos bem abertos à realidade, Bul­kovsky não tinha sido capaz de resolver alguns de seus pró­prios problemas — fatos que escondia de seu co-administrador. Nos últimos meses, as opções pelo L.C., entre os quadros jo­vens, tinham caído bastante; cada vez mais estudantes, mesmo os das ciências exatas, vinham se decidindo pela I.I.C, pondo de lado o distintivo da foice e do martelo e assumindo a cruz. Mais precisamente, estava havendo uma escassez de técnicos de satélites, resultando que três satélites do L.C, em órbita, tiveram que ser abandonados com seus ocupantes. Essas notí­cias não foram divulgadas pela imprensa, pois os ocupantes tinham perecido. Para esconder do público as notícias sombrias, foram modificadas as especificações dos satélites restantes do L. C. Nos dados fornecidos pelos computadores os problemas não apareciam; a situação apresentava-se como normal.

Pelo menos eliminamos Colin Passim, refletiu Bulkovsky. Um sujeito que quando fala parece a gravação de trás para diante de um pato grasnando, um cara assim não é ameaça. O evangelista sucumbira, sem suspeitar, à avançada tecnologia em armamentos do L.C. O equilíbrio do poder mundial, desse modo, fora deslocado, ainda que levemente. Pequenas coisas assim é que contavam. Tomemos, por exemplo, a agente do L. C. colocada como secretária e amante do cardeal. Sem isso...

Bulkovsky sentia-se confiante ao extremo. A força dialé­tica da necessidade histórica estava de seu lado. Dentro de meia hora poderia recolher-se a seu leito flutuante, convencido de que detinha as rédeas da situação mundial.

— Conhaque — ordenou ao robô-mordomo. — Courvoi­sier Napoleon.

Estava junto à escrivaninha, aquecendo o cálice com as mãos, quando entrou a esposa, Galina.

— Não marque nenhum compromisso para quinta à noite

— disse ela. — O General Yakir planejou um recital para as tropas estacionadas em Moscou. A cantora americana Linda Fox vai se apresentar. Yakir conta com nossa presença.

— Certamente. Mande comprar rosas, para o fim do espe­táculo — disse Bulkovsky, e virou-se para dois criados-robôs.

— Digam para meu valet de chambre me lembrar.

— Veja se não dorme durante o recital — preveniu Ga­lina. — A esposa do general vai se ofender. Lembre-se do que aconteceu da última vez.

— Essa coisa horrível de Penderecki — protestou Bul­kovsky, lembrando-se muito bem. Roncara durante o Quia Fecit inteiro do Magnificat, e uma semana depois tivera opor­tunidade de informar-se sobre seu comportamento em documen­tos do serviço secreto.

— Não se esqueça de que para os outros você é um cristão renascido — advertiu Galina. — Que providências você tomou contra os responsáveis pela perda dos três satélites?

— Morreram — foi a resposta. Ele ordenara o fuzila­mento.

— Podemos recrutar novos no Reino Unido.

— Logo teremos os nossos próprios. Não confio no pes­soal que o Reino Unido nos envia. Todos estão à venda. Por falar nisso, quanto é que aquela cantora está pedindo agora, para se decidir?

— A situação está confusa — respondeu Galina. — Li os relatórios do serviço secreto. O cardeal está oferecendo um dinheirão para ela se decidir pela I.I.C. Acho que não deve­mos aumentar nossa oferta.

— Mas, já pensou, uma artista popular assim, anunciando em público que enxergou a luz e aceitou o suave Jesus em sua vida?...

— Você fez a mesma coisa.

— Mas você sabe por quê — retrucou Bulkovsky. Tal como aceitara Jesus solenemente e com muita pompa, dentro em breve ele iria declarar que renunciara a Jesus e retornara, agora mais esclarecido, ao L.C. Isso produziria um golpe direto na cúria e, esperava, no próprio cardeal. De acordo com os psicólogos do L.C, seria um choque no moral do Prelado-Chefe. O homem realmente acreditava que cada um dos filiados ao L.C. um dia haveria de se dirigir a algum dos vários cultos da I.I.C. e se converter.

— Como é que você está se virando com o médico que ele mandou? — indagou Galina. — Alguma dificuldade?

Ele abanou a cabeça.

— Nenhuma. Os relatórios médicos falsos o mantêm ocupado.

Na verdade, os informes apresentados ao médico que o cardeal enviara não eram falsos. Apenas se referiam a outra pessoa, um membro menor do L.C, que estava doente mesmo. Sob alegação de ética profissional, o médico de Harms fora induzido a jurar segredo sobre o estado de Bulkovsky, mas é claro que o Dr. Duffey, sempre que possível, enviava sub-repticiamente à equipe do cardeal relatórios detalhados a respeito da saúde do Procurator. A contra-espionagem rotineira do L.C. interceptava esses relatórios para certificar-se de que pin­tavam uma situação suficientemente grave, copiava-os e enca­minhava-os a seu destino. De um modo geral, os relatórios médicos caminhavam por microondas até um satélite de comu­nicações da I.I.C e daí eram transmitidos para Washington. De vez em quanto, contudo, o Dr. Duffey sofria um ataque de inteligência e simplesmente enviava as informações pelo cor­reio. Isso era mais difícil de controlar.

Certo de que tratava com um homem doente, e que além do mais tinha optado por Jesus, o cardeal relaxara a vigilância sobre as atividades maiores do L.C. Agora o cardeal imaginava o Procurator como um completo incompetente.

— Se Linda Fox não se decidir pelo L.C. — disse Galina —, por que você não fala com ela e sugere que um dia, quando ela estiver viajando para algum concerto, aquele espalhafatoso foguete de luxo que ela própria pilota pode virar um lindo fogo de artifício?

— Porque — respondeu Bulkovsky de mau humor — o cardeal falou com ela antes. Ela já foi avisada de que, se não aceitar em sua vida o suave Jesus, irá tomar dose de biocloreto, mesmo que não esteja disposta a aceitá-la.

A tática de envenenar Linda Fox com pequenas doses de mercúrio era bem manhosa. Muito antes que ela morresse (se morresse) já estaria tão louca quanto um chapeleiro * — literal­mente, no caso, uma vez que seria envenenamento por mer­cúrio, o mercúrio utilizado na preparação de chapéus de feltro, que provocara célebres psicoses orgânicas nos chapeleiros in­gleses do século XIX.

Eu é que devia ter pensado nisso, disse Bulkovsky de si para si. O serviço secreto relatara que a cantora ficara histérica, ao ser informada por um agente da I.I.C. do que pretendiam fazer com ela se não optasse por Jesus. Histeria e depois hipotermia, seguida por uma recusa de cantar Ao Embalo das Idades no espetáculo seguinte.

Por outro lado, refletiu, o cádmio seria melhor do que o mercúrio, porque mais difícil de identificar. A polícia secreta do L.C. utilizara pequeninas doses de cádmio para desestruturar a personalidade de indivíduos durante algum tempo, e obtivera bons resultados.

— Nesse caso, o dinheiro não vai influenciar a decisão dela — opinou Galina.

— Eu não diria isso. A ambição dela é possuir a Los Angeles Maior.

— Mas se ela for destruída os colonos vão ficar descon­tentes. Eles são viciados nela.

Linda Fox não é uma pessoa, é uma categoria de pessoas, um gênero. Ela é um som produzido por equipamentos eletrô­nicos muito sofisticados. Existem outras Lindas Foxes; sempre existirão. Elas podem ser produzidas em série.

Galina riu.

— Bom, então não lhe ofereça muito dinheiro.

— Sinto muito por ela — disse Bulkovsky. Qual será a sensação, pensou, de não existir? Isso é uma contradição. Sentir é existir. Então, pensou, provavelmente ela não sente nada.

Porque o fato é que ela não existe, não na realidade. A gente devia saber. Fomos os primeiros a imaginá-la.

Ou melhor, fora o Burrão que imaginara a Fox. O sistema I.A. a inventara, dissera-lhe o que devia cantar e como cantar; o Burrão se encarregara dos arranjos, fazendo até a mixagem. O resultado fora um sucesso total.

O Burrão interpretara corretamente as necessidades emo­cionais dos colonos e encontrara a fórmula para satisfazê-las. O sistema I.A. mantinha-se em observação, recebendo informa­ções contínuas; quando as necessidades mudavam, Linda Fox mudava. Era um circuito fechado. Se, por acaso, os colonos desaparecessem de súbito, na mesma hora Linda Fox deixaria de existir. O Burrão a cancelaria, como papel picado jogado ao lixo.

— Procurator — disse um criado-robô, abordando Bul­kovsky.

— Que é? — perguntou ele, irritado; não gostava de ser interrompido quando em conversa com a mulher.

— Gavião — falou o robô.

— O Burrão quer me ver — disse o Procurator a Galina. — É urgente. Com licença.

Afastou-se e adentrou o complexo de escritórios privados onde encontraria o cuidadosamente protegido terminal do sis­tema I.A.

De fato, o terminal pulsava, à espera dele.

— Movimento de tropas? — perguntou Bulkovsky, sen­tando-se à frente da tela do terminal.

— Não — fez a voz artificial do Burrão, com sua tona­lidade característica. — Uma conspiração para fazer passar um bebê monstruoso pela Imigração. Três colonos estão envolvidos. Detectei o feto da mulher. Seguem detalhes mais tarde — e o Burrão interrompeu o circuito.

— Mais tarde quando? — perguntou Bulkovsky, mas o sistema I.A. não o ouviu, pois tinha se desligado. Praga, pen­sou. Mal-educado. Deve estar muito ocupado demolindo a Prova Ontológica da existência de Deus.

O Cardeal Fulton Statler Harms recebeu do Burrão as notícias, imperturbável como sempre.

— Muito obrigado — falou, quando o sistema I.A. se desligou. Algo exótico, disse a si mesmo. Uma brincadeira que não estava nos planos de Deus. Essa é a verdade espantosa sobre a migração espacial: não devemos receber de volta o que desterramos. O que retorna não é natural.

Bem, pensou, nós o mataremos; no entanto, vou me inte­ressar pelas impressões cerebrais dele. Fico imaginando como será ele. Uma cobra dentro de um ovo, pensou. Um feto den­tro de uma mulher. A história original recontada. Uma cria­tura hábil.

 

"...a serpente, mais sagaz que todos os animais selváticos que o SENHOR Deus tinha feito.

 

Gênesis, capítulo 3, versículo 1. O que acontecera ante­riormente não iria acontecer de novo. Desta vez nós o destrui­remos, o Tinhoso, sob qualquer forma que se apresente.

Preciso rezar para pedir ajuda, pensou.

— Queiram desculpar-me — disse à pequena audiência de sacerdotes em visita que aguardavam na grande sala de espera. — Devo recolher-me a minha capela por um momento. Apareceu um assunto urgente.

Pouco depois se ajoelhava, no silêncio da penumbra. Nos cantos distantes velas queimavam. A câmara e ele estavam reverentes.

— Pai — imprecou —, orienta-nos, para que consigamos distinguir os Teus caminhos e agir de acordo com os Teus dese­jos. Ajuda-nos a proteger-nos a nós mesmos e a nos guardar contra o Mal. Que possamos antever e compreender os artifí­cios das sombras; porque seus estratagemas são enganosos e é grande sua habilidade. Inunda-nos com Tua energia e concede-nos força para descobrir e afastar o Espírito Maligno, onde quer que ele se refugie.

Não ouviu qualquer resposta a sua prece, coisa que não o surpreendeu. As pessoas piedosas falam com Deus, e os aluci­nados imaginam que Deus lhes fala de volta. A resposta vem de dentro de cada um, de seu próprio coração. Mas natural­mente o Espírito o orientou. Era sempre assim.

O Espírito, no íntimo e na forma das próprias tendências do cardeal, lhe ratificou a decisão anterior. "A feiticeira não deixarás viver" abrangia a mutação contrabandeada através da Imigração. "Feiticeira" equivalia a "bebê monstruoso". Tinha ele, portanto, apoio na Escritura.

E, de qualquer modo, era ele o representante de Deus na Terra.

Apenas para certificar-se, consultou o grosso volume de sua Bíblia, relendo o versículo 18, capítulo 22, do Êxodo.

 

A feiticeira não deixarás viver.

 

E, para maior segurança, leu o versículo seguinte.

 

Quem tiver coito com animal será morto.

 

E então leu as notas ao pé da página.

 

A antiga feitiçaria repousava no crime, na imoralidade e na impostura; e aviltava o populacho com suas práticas abomináveis e suas superstições. É precedida de regula­mentos proibindo licenciosidade sexual e seguida de con­denação ao vício contra a natureza e à idolatria.

 

Bom, isso com certeza se aplica ao presente caso. Práticas malsãs e superstições. Coisas geradas pelo intercurso com não-humanos de planetas distantes. Não devem invadir este mundo sagrado, disse para si mesmo. Estou certo de que meu colega, o Procurator Maximus, há de concordar.

A compreensão lhe veio de estalo. Estamos sendo inva­didos! Aquilo de que falamos há 2.000 anos. O Espírito Santo está me contando; a coisa aconteceu!

Execração gerada pela imundície, pensou; encaminhou-se rapidamente para seu aposento principal onde, cuidadosamente protegida, encontrava-se a linha direta com o Procurator.

— É a respeito do bebê? — perguntou Bulkovsky, ao estabelecer-se o contato. — Já estou indo dormir. Isso pode esperar até amanhã.

— Aquilo é uma abominação — afirmou o Cardeal Harms,

— Êxodo, 22, versículo 18: "A fei..."

— O Burrão não vai deixar a coisa chegar à Terra. Deve ter sido interceptada num dos anéis exteriores da Imigração.

— Deus não quer monstros neste mundo fundamental. Você, como cristão renascido, devia compreender.

— Claro que compreendo — retrucou Bulkovsky, in­dignado.

— Que é que devo dizer ao Burrão para fazer?

— O negócio é o que o Burrão deve dizer a nós, para fazermos — replicou Bulkovsky. — Que é que você acha?

— Devemos rezar para recebermos inspiração nesta crise

— disse Harms. — Vamos orar juntos. Concentre-se.

— Minha mulher está me chamando — disse Bulkovsky.

— Podemos rezar amanhã. Boa-noite — e desligou.

Ó, Deus de Israel, invocou Harms, de cabeça baixa. Prote­ge-nos da procrastinação e do mal que baixou sobre nós. Faze com que o espírito do Procurator se aperceba da premência desta nossa hora de provação.

Estamos sendo testados espiritualmente, rezou. Sei que é isso. Devemos provar nosso valor repelindo essa presença satâ­nica. Torna-nos dignos, Senhor; cede-nos Tua espada de poder. Dá-nos a sela dos justos para encimarmos o corcel da... Não conseguiu concluir o pensamento; era intenso demais. Ajuda-nos com urgência, terminou, e ergueu a cabeça. Uma sensação de triunfo inundou-o; como se, pensou, tivéssemos capturado algo para ser morto. Conseguimos caçá-lo. E ele vai morrer. Louvado seja Deus!

 

O vôo axial de alta velocidade fez Rybys Rommey sentir-se terrivelmente mal. A United Spaceways arrumara cinco assentos juntos para que ela pudesse deitar-se esticada. Mesmo assim mal conseguia falar. Jazia de lado, uma manta até o pescoço. Elias observava-a, sombrio.

— Esses malditos detalhes técnicos. Se não tivessem de­tido a gente... — fez uma careta.

Dentro do corpo de Rybys o feto, agora com seis meses, fazia tempo que estava em silêncio. E se o feto morresse?, perguntou-se Herb Asher. A morte de Deus... mas não em circunstâncias que alguém pudesse prever. E ninguém jamais saberia, exceto ele próprio, Rybys e Elias Tate.

Será que Deus pode morrer?, conjeturou. E com ele mi­nha mulher também.

A cerimônia de casamento fora límpida e rápida. Um con­trato registrado pelas autoridades do espaço sideral, sem pala­vreado religioso ou moral. Ele e Rybys requereram exames médicos completos, e naturalmente a gravidez foi descoberta.

— O senhor é o pai? — indagou o médico.

— Sou — respondeu Herb.

O médico arreganhou os dentes e anotou o fato na ficha.

— A gente acha que precisa casar — disse Herb.

— É uma boa idéia — o médico era idoso, bem vestido e completamente impessoal. — O senhor já sabe que é um menino?

— Já — confirmou Herb. Realmente ele sabia.

— Tem uma coisa que não estou entendendo — comentou o médico. — Essa fecundação foi natural? Não teria sido por acaso uma inseminação artificial? Porque o hímen está intato.

— Não diga! — disse Herb.

— É difícil, mas acontece. Assim, tecnicamente, sua es­posa ainda é virgem.

— Veja só!

— Ela está muito doente, o senhor sabe. Esclerose múl­tipla.

— Eu sei — concordou Herb Asher, estóico.

— Não há garantia de cura. Compreenda. Acho que uma excelente idéia é ela retornar à Terra, e eu aprovo inteiramente que o senhor a acompanhe. Mas pode ser inútil. E.M. é uma doença muito particular. Aparecem áreas endurecidas no reves­timento de mielina das fibras nervosas, e isso normalmente resulta em paralisia permanente. Depois de décadas de pesquisa intensiva, finalmente conseguimos isolar dois fatores causais. Há um microorganismo, mas o fator principal é que há uma forma de alergia envolvida no caso. Grande parte do trata­mento implica transformação do sistema imunizador de medo que... — e o médico continuou, com Herb Asher prestando atenção como podia. Já sabia de tudo aquilo; Rybys lhe expli­cara uma porção de vezes e lhe mostrara textos que obtivera do M.E.D. Tal como ela, ele se tornara uma autoridade nessa doença.

— Eu queria um pouco de água — murmurou Rybys, erguendo a cabeça; seu rosto estava manchado e intumescido, e só com dificuldade Herb Asher podia entender o que ela dizia.

Uma espaçomoça trouxe um copo de papel com água; Elias e Herb ergueram Rybys até uma posição meio sentada e ela pegou o copo. Os braços, o corpo tremiam.

— Não deve faltar muito tempo — consolou-a Herb Asher.

— Cristo — murmurou Rybys.— Acho que não vou conseguir. Avise a espaçomoça que vou vomitar de novo; man­de-a trazer aquela tigela. Jesus — e sentou-se completamente, o rosto com um esgar dolorido.

A espaçomoça curvou-se para ela.

— Vamos ligar os retrojatos dentro de 2 horas; se a se­nhora puder agüentar...

— Agüentar? Mal posso agüentar o pouco que bebo. Tem certeza de que a Coca-Cola não estava estragada, ou coisa assim? Acho que fiquei pior depois que a bebi. Não tem Ginger ale? * Se eu beber um pouco de Ginger ale talvez consiga evitar... — Louca da vida, começou a praguejar. — Maldi­ção! Maldito seja tudo isso! Não vale a pena! — e encarou Herb Asher e Elias, de olhos arregalados.

Yah, suplicou Herb Asher em pensamento, faça alguma coisa. É sadismo deixá-la sofrer assim.

Dentro de sua mente uma voz falou. No primeiro mo­mento não entendeu direito; ouvia as palavras, mas parecia não fazerem sentido. "Leve-a para o Jardim", dizia a voz.

Que Jardim? pensou ele. "Pegue a mão dela."

Herb Asher abaixou-se, procurou entre as dobras da manta e pegou a mão da mulher.

— Obrigada — disse Rybys, apertando-lhe a mão debil­mente.

Sentado, e debruçando-se sobre ela, viu agora seus olhos brilharem; viu espaços para além daqueles olhos, como se olhasse um imenso espaço vazio. Onde está você? pensava. É um universo que está aí, dentro de sua cabeça; um universo diferente deste: não um reflexo num espelho, mas um outro mundo. Viu estrelas, e miríades de estrelas; viu nebulosas e grandes nuvens de gases que brilhavam fracamente, mas com luz branca e não avermelhada. Sentiu rajadas de vento e ouviu algo como um farfalhar. Folhas ou galhos, pensou; estou ouvin­do plantas. O ar estava morno. Ficou espantado. Parecia ar fresco, e não o ar velho e reciclado da nave espacial.

Barulho de aves e, quando olhou para cima, céu azul. Viu bambus e percebeu o som do vento soprando no bambuzal. Uma cerca, e lá estavam crianças. E enquanto isso continuava a segurar a mão fraca da esposa. Estranho, pensou. O ar tão seco, como se viesse do deserto. Distinguiu um menino de cabelos castanhos cacheados; o cabelo do menino lembrava o de Rybys antes que ela o perdesse, antes que a quimioterapia o fizesse cair todo.

Onde estou?, perguntou-se. Numa escola?

Junto dele, o espalhafatoso Mr. Plaudet tagarelava a res­peito das necessidades financeiras da escola, dos problemas da escola — ele não tinha o menor interesse nos problemas da escola; estava preocupado é com seu filho. Com as lesões cere­brais de seu filho; queria saber melhor sobre o assunto.

— O que eu gostaria de entender — dizia Mr. Plaudet — é por que eles mantiveram o senhor em suspensão durante dez anos por causa de um baço. Pelo amor de Deus, uma esplenectomia é um tipo normal e regular de cirurgia e freqüente­mente um esplenético pode...

— Qual hemisfério do cérebro dele foi prejudicado? — interrompeu Herb Asher.

— Mr. Tate está com os resultados do diagnóstico. Mas vou até nosso computador pedir um relatório. Manny parece que tem um pouco de medo do senhor, mas acho que é porque nunca viu o pai antes.

— Vou ficar aqui com ele — disse Herb — enquanto o senhor vai consultar o computador. Quero saber o que for possível sobre a lesão.

— Herb — chamou Rybys.

Espantado, se deu conta de onde estava: a bordo do vôo axial XR4 da United Spaceways, de Fomalhaut para o Sistema do Sol. Em 2 horas a primeira turma da Imigração abordaria a nave, para a inspeção preliminar.

— Herb — sussurrou sua mulher — acabei de ver meu filho.

— Uma escola — disse Herb Asher — para onde ele irá.

— Acho que não vou estar viva para ver — falou Rybys. — Tenho um pressentimento... Ele estava lá, você também, e um sujeitinho barulhento que falava muito, mas eu não estava lá, em nenhum lugar. Eu vi; fiquei observando. Isso realmente vai me matar, mas meu filho vai viver. Foi isso o que ele me disse, lembra? Yah me disse que eu continuaria a viver através de meu filho; assim, acho que vou morrer; quer dizer, este corpo vai morrer, mas eles vão salvar o meu filho. Você estava lá quando Yah contou isso? Não me lembro. Era um jardim onde nós estávamos, não era? Bambu. Vi o vento soprando. O vento falou comigo; era como vozes.

— Sim — fez ele.

— Eles costumavam ir para o deserto durante quarenta dias e quarenta noites. Elijah e Jesus. Elias? — e ela olhou em volta. — Você comeu gafanhotos e mel e alertou os ho­mens para que se arrependessem. Você contou ao Rei Ahab que naqueles anos não haveria orvalho nem chuva... porque assim disse o Senhor. Conforme minha palavra — e ela fechou os olhos.

Ela está doente de verdade, disse Herb Asher para si mesmo. Mas vi o seu filho. Belo e rústico e... algo mais. Tímido. Bastante humano, refletiu; era uma criança humana. Talvez tudo isso esteja em nossas mentes. Talvez os Clems tenham alterado nossas percepções para que a gente acredite e veja e sinta, mas não é nada real. Desisto, pensou. Simples­mente não entendo.

Algo a ver com o tempo. Ele parecia capaz de transformar o tempo. Agora estou aqui na nave, mas logo estava no Jardim com o menino dela e outras crianças, à distância de anos daqui. Qual é o tempo verdadeiro?, perguntou-se. Eu aqui na nave, ou lá em meu domo antes de encontrar Rybys, ou depois da morte dela com Emmanuel na escola? E tenho estado em sus­pensão criogênica durante anos. Isso tem, ou teve, ou terá alguma coisa a ver com meu baço. Será que me deram um tiro?, pensou. Rybys morreu por causa da sua doença, mas eu, como foi que morri? E o que aconteceu ou vai acontecer com Elias?

— Quero falar com você — disse Elias, inclinando-se para Herb e afastando-o para longe de Rybys e dos outros pas­sageiros. — Não devemos mencionar Yah. Vamos usar a pa­lavra "Jeová" daqui em diante. Compreenda a situação. A Imigração vai tentar sondar nossas mentes com aparelhos psicotrônicos, mas Jeová vai confundir nossas mentes e eles vão conseguir tirar muito pouca coisa, ou mesmo nada. Mas agora é que vem a parte difícil. O poder de Jeová vai diminuir a partir de agora. A zona de Belial está próxima.

— Está bem — concordou ele.

— Você tem conhecimento disso tudo.

— E de muito mais.

Por causa do que Elias lhe contara, e do que Rybys lhe contara — e do muito que Jeová lhe contara, durante o sono, em sonhos nítidos. Jeová vinha explicando tudo para eles, e eles saberiam o que fazer.

— Ele está com a gente — disse Elias — e pode dirigir-se a nós, do ventre dela. Mas sempre existe a possibilidade de algum dispositivo eletrônico muito desenvolvido poder detectá-lo. Ele vai conversar muito pouco com a gente — calou-se por um momento. — Se é que vai.

— Tive uma idéia esquisita — disse Herb Asher. — Ima­gine o que é que as autoridades vão pensar se os seus circuitos de espionagem captarem os pensamentos de Deus.

— Bem — respondeu Elias — eles não vão entender o que está acontecendo. Conheço as autoridades da Terra; faz 4.000 anos que trato com eles, condições após condições, país após país, guerra após guerra. Estive com o Conde Egemont na Holanda, nas guerras da independência, na Guerra dos Trin­ta Anos; eu estava presente quando ele foi executado. Conheci Beethoven... mas talvez "conhecer" não seja a palavra exata.

— Você era Beethoven — disse Herb Asher.

— Parte de meu espírito retornou à Terra e a ele — ex­plicou Elias.

Simples e ardente, pensou Herb. Apaixonadamente dedi­cado à causa da liberdade humana. Passeando de braços com seu amigo Goethe, os dois suscitando a nova vida do Ilumi­nismo alemão.

— Quem mais foi você? — perguntou.

— Muitas personagens da História.

— Tom Paine?

— Planejamos a Revolução Americana — respondeu Elias. — Um grupo nosso. Fomos os Amigos de Deus em uma certa época, e os Irmãos Rosa Cruz, em 1615... Fui Jakob Boehme, mas você não ouviu falar dele. Meu espírito não habita sozinho em um homem; não é uma encarnação. É parte de meu espírito retornando à Terra para ligar-se a um humano selecionado por Deus. Há sempre muitos humanos assim e eu estou com eles. Martin Buber foi um. Deus recolheu sua alma nobre. Homem ardente e gentil. Os árabes, eles também, colo­caram flores no seu túmulo. Mesmo os árabes gostavam dele. Elias ficou em silêncio por alguns instantes, depois con­tinuou.

— Alguns dos homens aos quais liguei meu espírito eram melhores do que eu. Mas tenho o poder de retornar. Deus me garantiu isso... bem, foi por amor a Israel. Uma sugestão de imortalidade para o povo predileto. Sabe, Herb, Deus ofereceu a Tora, dizem, a cada povo do mundo, em épocas remotas, antes de oferecê-la aos judeus, e todas as nações a rejeitaram por um motivo ou outro. A Tora dizia "Não matarás", e mui­tos não podiam viver segundo esse princípio; queriam uma religião separada da moralidade; não queriam uma religião que embaraçasse seus desejos. Finalmente Deus ofereceu-a aos ju­deus, que a aceitaram.

— A Terra é a Lei? — perguntou Herb.

— É mais que a Lei. O termo "Lei" é inadequado. Em­bora até o Novo Testamento dos cristãos utilize a palavra "Lei" para a Tora. A Tora é a totalidade da revolução divina; ela é viva; já existia antes da Criação. É uma entidade mística, quase cósmica. A Tora é o instrumento do Criador. Com ela ele criou o universo, e criou o universo para ela. É a idéia mais alta e a alma viva do mundo. Sem ela o mundo não poderia existir, nem teria direito de existir. Estou citando o grande poeta hebreu Hayyim Bialik, que viveu do fim do século XIX até a metade do século XX. Você devia lê-lo de vez em quando.

— Conte mais alguma coisa sobre a Tora.

— Resh Lakish disse: "Se a intenção de alguém for pura, a Tora para ele torna-se medicamento vivificante, que purifica sua existência. Mas, se a intenção não for pura, ela será remédio letal, purificando-o para a morte".

Os dois ficaram em silêncio.

— Vou contar mais alguma coisa — disse Elias. — Um homem foi ter com o grande Rabino Hillel, que viveu no sé­culo I d.C, e falou: "Vossa palavra me converterá, se conseguirdes explicar-me a Terra inteira enquanto eu ficar num pé só". Hillel disse: "Aquilo que não quiseres para ti, não o faças para teu vizinho. Isso é a Tora inteira. O resto é comentário. Vai e ensina aos outros" — e Elias sorriu para Herb Asher.

— Esse preceito está realmente na Tora? — perguntou Herb. — Os primeiros cinco livros da Bíblia?

— Está. Levítico, 19, 18. Deus diz: "Amarás o teu pró­ximo como a ti mesmo". Você não sabia disso, sabia? Quase 2.000 anos antes de Jesus.

— Então a Regra de Ouro deriva do judaísmo — dedu­ziu Herb.

— Deriva, sim, e do judaísmo primitivo. A regra foi apre­sentada ao homem pelo próprio Deus.

— Tenho muita coisa para aprender — concluiu Herb.

— Leia — recomendou Elias. — Cape, lege, as duas pala­vras que Agostinho ouviu. Latim. "Tome, leia". Faça isso, Herb. Pegue o livro e leia. Está aí para você. Ele é vivo.

Enquanto a viagem continuava, Elias mostrou outros as­pectos curiosos da Tora, qualidades dela que poucos homens conheciam.

— Eu lhe digo essas coisas — explicou Elias — porque confio em você. Tenha muito cuidado com o que lhe conto.

Havia quatro modos de ler a Tora, o quarto sendo um estudo de seu aspecto mais íntimo, oculto. Quando Deus disse "Haja luz", referia-se ao mistério que brilhava na Tora. Era a oculta luz primordial da Criação, tão superior que não podia ser degradada pelo uso dos mortais. Por isso Deus a ocultou no interior da Tora. Era uma luz inexaurível, que tinha relação com as centelhas divinas em que os gnósticos acreditavam, os fragmentos da Divindade dispersos agora pela Criação, envoltos, desgraçadamente, pelos invólucros materiais dos corpos físicos.

O mais interessante é que alguns místicos judeus da Idade Média sustentavam o ponto de vista de que houve 600.000 judeus que saíram do Egito e receberam a Tora no Monte Sinai. Reencarnadas, de geração em geração, essas 600.000 almas vi­vem continuamente. Cada alma ou centelha liga-se à Tora de um modo diferente; assim, existem 600.000 sentidos separados e únicos da Tora. A idéia é a seguinte: para cada uma dessas 600.000 pessoas a Tora é diferente, e cada uma tem sua men­sagem específica na Tora, à qual sua própria alma está ligada. Assim, de certa maneira, existem 600.000 Toras.

Igualmente, existem três eras ou épocas no tempo: a pri­meira foi a idade da Graça; a atual é de justiça e limitação severas; e a seguinte, ainda por vir, será a idade da Misericór­dia. Para cada uma das três idades existe uma Tora diferente. E contudo só existe uma Tora. Há uma Tora sem pontuação nem espaços entre as palavras; na verdade, todas as letras estão embaralhadas. Em cada uma das três idades essas letras por si mesmas formam palavras alternativas, como eventos se desdo­brando.

A idade atual, de justiça e limitação severas, explicou Elias, está prejudicada pelo fato de que na sua Tora uma das letras está defeituosa, a consoante shin. Essa letra sempre foi escrita com três pernas, mas na verdade devia ter quatro. Assim sendo, a Tora composta para esta idade é defeituosa. Um outro ponto de vista dos místicos judeus medievais é que na realidade falta uma letra no nosso alfabeto. Por causa disso nossa Tora contém leis negativas, tanto quanto positivas. Na próxima era a letra errada ou invisível será restaurada, e desaparecerá então toda proibição negativa na Tora. Por isso essa era, ou, como se diz em hebraico, shemittah, não vai impor restrições aos humanos; em lugar de justiça e limitação severas vai haver liberdade.

Essa noção nos leva à idéia (disse Elias) de que existem porções invisíveis da Tora, invisíveis para nós agora, mas que serão visíveis na Idade Messiânica que há de vir. O ciclo cós­mico trará inevitavelmente essa idade: será a próxima shemittah, muito parecida com a primeira; a Tora se rearranjará por si mesma a partir de sua matriz embaralhada.

É como se fosse um computador, pensou Herb Asher. O universo é programado — e a seguir reprogramado cuidadosa­mente. Fantástico.

Duas horas depois uma nave do governo encostou na nave deles e após algum tempo agentes da Imigração começaram a mover-se entre os passageiros, iniciando a inspeção. E o interrogatório. Amedrontado, Herb Asher apertava Rybys contra si, e sentou-se o mais perto possível de Elias, como para obter ener­gia do velho.

— Elias, conte-me a coisa mais bonita que você sabe sobre Deus — pediu Herb baixinho, e seu coração pulava no peito, e lhe faltava o ar.

— Está bem — acedeu Elias. — O Rabi Judah disse, citando Rav:

 

"O dia contém 12 horas. Nas três primeiras, O Sagrado (Deus), louvado seja Ele, dedica-se ao estudo da Tora. As três seguintes são o período em que Ele avalia Seu mundo inteiro. Se Ele julga que o mundo está merecendo destruição, ergue-se do Trono da Justiça e assenta-se sobre o da Clemência. Durante o terceiro grupo de 3 horas, Ele supre de sustento o mundo todo, desde os animais gigan­tescos até os piolhos. Durante o quarto grupo, ele brinca com o Leviatã, tal como está escrito, "o monstro marinho que formaste para nele folgar" (Salmos, 104, 26)... Segundo outros autores, durante o quarto grupo de horas Ele ensina as criancinhas".

 

— Obrigado — agradeceu Herb Asher.

Três agentes da Imigração estavam se aproximando, de uniformes cintilantes; e carregavam armas.

— Até mesmo Deus consulta a Tora — falou Elias —, já que ela é a fórmula e o diagrama do universo.

Um agente da Imigração estendeu a mão pedindo os do­cumentos de Elias; o velho passou-lhe o maço de papéis.

— E mesmo Deus não pode agir senão de conformidade com ela — concluiu.

— O senhor é Elias Tate — disse o agente mais gradua­do, examinando os documentos. — Por que motivo está retor­nando ao Sistema do Sol?

— Esta mulher está muito doente — respondeu Elias. — Vai ser internada no hospital naval em...

— Perguntei pelo motivo do senhor, não do dela — e o agente abaixou o olhar para Herb Asher. — Quem é você?

— O marido dela — explicou Herb. Mostrou sua identi­dade, as autorizações e outros documentos.

— Tem algum certificado de que a doença dela não é contagiosa? — indagou o agente mais graduado.

— Ela tem esclerose múltipla — esclareceu Herb —, que não é...

— Não perguntei o que é que ela tem; perguntei se não é contagiosa.

— É o que estou explicando — retrucou Herb. — Estou respondendo à sua pergunta.

— Levante-se. Ele ficou de pé.

— Me acompanhe — e o agente fez um gesto para que Herb Asher fosse com ele pelo corredor. Elias começou a se­gui-los, mas o agente deu-lhe um encontrão, fazendo-o retroce­der. — O senhor não.

Atrás do oficial da Imigração, Herb Asher caminhou passo a passo toda a extensão do corredor até a popa da nave. Ne­nhum outro passageiro fora incomodado; apenas ele.

Num pequeno compartimento, com uma placa SOMENTE PARA MEMBROS DA TRIPULAÇÃO, o oficial virou-se para Herb Asher, examinando-o em silêncio; os olhos do homem estavam arregalados, como se fosse incapaz de falar, como se o que tinha para dizer não pudesse ser dito. O tempo passou. Que diabo ele está fazendo?, perguntou Herb Asher a si mes­mo. Silêncio. Com cara de raiva, o outro continuava exami­nando-o.

— Muito bem — disse o agente da Imigração. — De­sisto. Qual-é-o-seu-objetivo, voltando para a Terra?

— Já lhe disse.

— Ela está doente de verdade?

— Muito. Está morrendo.

— Nesse caso está doente demais para viajar. Não faz sentido.

— Só na Terra é que existem recursos para...

— Você está agora submetido às leis da Terra — frisou o oficial. — Você quer ser preso por dar informações falsas a um agente federal? Vou mandar vocês de volta para Foma­lhaut. Os três. Já perdi tempo demais. Volte para sua poltrona e fique lá até que receba instruções.

Neutra, desapaixonada, nem masculina nem feminina, uma voz, perfeitamente audível, falou dentro da cabeça de Herb Asher. "Em Bethesda eles querem estudar a doença dela."

Ele estremeceu, visivelmente. O oficial olhava-o.

— Em Bethesda — disse —, eles querem estudar a doen­ça dela.

— Pesquisa?

— É um microorganismo.

— Você disse que não é contagiosa. "Não neste estágio", disse a voz neutra.

— Não neste estágio — disse ele, em voz alta.

— Eles estão preocupados com uma epidemia? — per­guntou de repente o oficial.

Herb Asher fez um gesto confirmando.

— Volte para sua poltrona — ordenou o oficial, irritado. — Isso já está fora de minhas atribuições. Você tem um for­mulário cor-de-rosa, modelo 368? Preenchido corretamente e assinado por um médico?

— Tenho. Era verdade.

— Você ou o velho estão infetados?

"Só em Bethesda é que podem dizer", falou a voz dentro de sua cabeça. De repente ele teve uma visão nítida da pessoa que falava; percebeu na mente um rosto feminino, plácido mas determinado, de olhar arguto e impassível; um belo rosto clás­sico, como o de Atena; ficou estupefato. Esse rosto não podia ser o de Iavé. Era de uma mulher. Mas uma mulher como ele jamais vira. Não a conhecia. Não compreendia quem era ela. A voz não era a de Yah, e esse rosto não podia ser o de Yah. Não sabia como se comportar diante dessa visão. Estava per­plexo por ela falar com ele. Quem tinha assumido a tarefa de aconselhá-lo?

— Só em Bethesda é que podem dizer — conseguiu falar. O agente da Imigração calou-se, indeciso. A aspereza ex­terior tinha-se evaporado.

A voz feminina sussurrou de novo, e desta vez, dentro de seu cérebro, viu os lábios moverem-se. "É urgente. O tempo é curto."

— É urgente. O tempo é curto — disse Herb Asher. Sua voz soou desagradável.

— Vocês não deviam estar de quarentena? Provavelmente não deviam ficar junto das outras pessoas. Esses outros passa­geiros... Devíamos enviar vocês por uma nave especial. Pode ser arranjado. Talvez seja melhor... assim podemos encami­nhá-la mais rápido.

— Está bem — disse ele. Razoável.

— Vou fazer um pedido — falou o oficial. — Qual é o nome desse microorganismo? É um vírus?

— A membrana dos nervos...

— Não se preocupe. Volte para sua poltrona. Escute — o oficial o acompanhava. — Não sei que idéia foi essa de enca­minhar vocês por um vôo de carreira, mas vou tirá-los daqui já, já. Existem regulamentos minuciosos que devem ser obser­vados. Bethesda está esperando vocês? Quer que eu faça uma chamada, ou já está tudo arranjado?

— Ela já tem uma ficha lá.

Era isso mesmo. Os arranjos tinham sido feitos.

— Nunca vi tanta irresponsabilidade — comentou o agen­te da Imigração —; enfiar vocês num vôo de carreira. Deviam ser mais inteligentes, esse pessoal de Fomalhaut.

— CY30-CY30B — corrigiu Herb Asher.

— Seja lá onde for. Pouco interessa. Um erro desse tipo... — o agente da Imigração proferiu uma praga. — Al­gum imbecil em Fomalhaut provavelmente imaginou que ia economizar algum dinheiro dos contribuintes... Fiquem sentados e eu providencio para que sejam avisados quando chegar a sua nave. Podia até... Cristo!

Herb Asher, trêmulo, voltou para seu lugar.

Elias olhou para ele. Rybys estava deitada de olhos fecha­dos; não se dava conta do que estava acontecendo.

— Me diga uma coisa — disse Herb para Elias. — Al­guma vez você já provou o uísque Laphroaig?

— Nunca — respondeu Elias, intrigado.

— De todos os uísques escoceses, esse é o melhor — explicou Herb. — Dez anos, muito caro. A destilaria começou em 1815. Usa alambiques de cobre tradicionais. Sofre duas destilações.

— Mas por que você vem com essa conversa? — per­guntou Elias.

— Deixe-me terminar. Laphroaig é palavra gaélica que quer dizer "o belo vale junto à baía grande". A destilaria fica em Islay, nas ilhas ocidentais da Escócia. Malte de cevada, preparado num forno com fogo de turfa. Turfa mesmo. Hoje em dia é o único uísque preparado dessa forma. A turfa só é encontrada na ilha de Islay. A maturação é feita em tonéis de carvalho. Esse uísque é fabuloso. É a melhor bebida do mundo. Sua... — calou-se.

Um agente da Imigração veio falar com eles.

— A nave dos senhores já chegou, Mr. Asher. Por favor, me acompanhem. Sua esposa consegue andar? Precisam de ajuda?

— Já? — ele estava espantado. E aí compreendeu que a nave estivera lá o tempo todo. Era rotina da Imigração estar preparada para situações de emergência. Especialmente daquele tipo. Ou melhor, do tipo que supunham ser.

— Quem é que usa uma máscara de metal? — perguntou Herb a Elias, enquanto tirava a manta de cima de Rybys. — Levantada sobre a cabeça. E tem nariz reto, um nariz bem forte... bem, deixa para lá. Me ajuda aqui.

Juntos, ele e Elias puseram Rybys de pé. O agente da Imigração olhava com simpatia.

— Não sei quem é — respondeu Elias.

— Existe mais alguém — disse Herb, levando Rybys cui­dadosamente pelo corredor.

— Vou vomitar — ameaçou Rybys, com voz fraca.

— Agüenta um pouco — falou Herb Asher. — Já esta­mos quase lá.

O Burrão notificou o Cardeal Fulton Statler Harms e o Procurator Maximus, e depois, para todos os chefes de Estado do mundo, imprimiu a seguinte informação obscura:

 

"NA BANDEIRA DE CINQÜENTA DEVEM ESCRE­VER: TERMINADA ESTA A RESISTÊNCIA DO TEI­MOSO PELOS PODEROSOS ATOS DE DEUS, JUNTO COM OS NOMES DOS COMANDANTES DOS CIN­QÜENTA E SEUS DEZ. QUANDO SAIREM PARA A BATALHA, DEVEM ESCREVER SOBRE SEUS WPSOX PARA FORMAR UMA FRENTE COMPLETA. A LINHA DEVE CONSISTIR EM 1.000 HOMENS HOMENS HOMENS HOMENS HOMENS CADA LI­NHA DE FRENTE DEVE TER SETE SETE SETE DE PROFUNDIDADE, CADA HOMEM ATRÁS DO OU­TRO PONTO REPITO TODOS DEVEM PORTAR ES­CUDOS DE BRONZE POLIDO REPITO BRONZE PARECENDO ESPELHOS ESSES ESCUDOS".

 

A informação terminava aí. Em questão de minutos os técnicos enxameavam junto ao sistema I.A.

Veredito deles: o sistema I.A. devia ser desligado por al­gum tempo. Alguma coisa importante não ia bem com o siste­ma. A última informação coerente processada por ele tinha sido a mensagem de que a mulher grávida Rybys Rommey-Asher, seu marido e um amigo, Elias Tate, tinham sido desembarcados pela Imigração no Anel III e transferidos de um vôo de car­reira axial para uma nave de alta velocidade do governo, cujo destino era Washington, D.C.

Houve um engano, pensava o Cardeal Harms, de pé junto ao seu terminal de computador, já desativado. A Imigração tinha de interceptá-los, e não facilitar sua fuga. Não faz sen­tido. E acabamos perdendo nosso sistema básico de processa­mento de dados, do qual dependíamos inteiramente.

Filho da puta, falou Harms consigo mesmo. Idiota. Temos mais um lugar onde interceptá-los: a própria Imigração, em Washington, D.C. E se eles conseguem ir adiante... Meu Deus, pensou. O monstro está usando seus poderes paranormais!

Ligou mais uma vez para o Procurator Maximus.

— Posso falar com Galina? — perguntou, mas percebeu que era inútil. Bulkowsky pifara. Ir para a cama, nessas alturas, resultará nisso.

— Mrs. Bulkowsky? — indagou o oficial do L.C., incré­dulo. Claro que não.

— A equipe de assessoria? Um de seus marechais?

— O Procurator ligará para o senhor — informou o fun­cionário do L.C.; estava claro que recebera ordens de Bul­kowsky para não perturbá-lo.

Cristo!, exclamou Harms para si mesmo, enquanto batia o fone. A imagem da tela se dissolveu.

Alguma coisa de errado aconteceu, compreendeu Harms. Eles não podiam ter ido tão longe, e o Burrão sabia disso. O sistema I.A. literalmente ficara insano. Não era uma falha téc­nica, compreendeu; era uma fuga psicótica. O Burrão percebera alguma coisa, mas não podia comunicá-la. Ou teria na verdade o sistema I.A. comunicado o fato? Que será, perguntou-se Harms, que significava todo aquele palavrório?

Fez contato com o maior grupo de computadores que restava, o do Cal Tech. Transmitiu o texto confuso e deu ins­truções para que o material fosse identificado.

O computador do Cal Tech fez a identificação 5 minutos depois.

 

"DOCUMENTO DO MAR MORTO 'A GUERRA EN­TRE OS FILHOS DA LUZ E OS DAS TREVAS'. FON­TE: SEITA ASCÉTICA JUDIA DOS ESSÊNIOS."

 

Esquisito, pensou Harms. Tinha conhecimento sobre os essênios. Muitos teólogos tinham especulado sobre se Jesus seria um essênio, e certamente havia evidência de que João Batista fora um. A seita profetizara um fim antecipado para o mundo, com a Batalha do Armagedom prevista para o sé­culo I d.C. A seita mostrara fortes influências do zoroastrismo.

João Batista, refletiu. Que Cristo dissera ser Elijah redivi­vo, como fora prometido por Jeová em Malaquias:

 

"Eis que eu vos enviarei o profeta Elias, antes que venha o grande e terrível dia do SENHOR; ele converterá o coração dos pais aos filhos, e o coração dos filhos a seus pais; para que eu não venha e fira a terra com maldição".

 

Os versículos finais do Velho Testamento; aí termina o Velho Testamento e começa o Novo Testamento.

Armagedom, ponderou. A batalha final entre os Filhos das Trevas e os Filhos da Luz. Entre Jeová e... como é que os essênios chamavam o poder do mal? Belial. Era isso. Esse era o termo para Satanás. Belial guiaria os Filhos das Trevas; Jeová guiaria os Filhos da Luz. Essa seria a sétima batalha.

Haverá batalhas, três das quais os Filhos da Luz vencerão, e três das quais os Filhos das Trevas vencerão, colocando Belial no poder. Mas então o próprio Jeová tomará o comando para a luta que resultará no desempate.

O monstro no ventre dela é Belial, compreendeu o Cardeal Harms. Ele voltou para nos derrubar. Para derrubar Jeová, a quem servimos.

É o próprio Poder Divino que está sob ameaça, declarou; e sentiu imensa cólera.

Nesse momento, pareceu ao cardeal que meditação e pre­ces eram necessárias. E uma estratégia pela qual os invasores fossem destruídos assim que chegassem a Washington, D.C.

Se ao menos o Burrão não tivesse quebrado!

Soturno, dirigiu-se a sua capela privada.

 

— Não tem problema. Vamos acabar com a nave deles — disse o Procurator. — Vai acontecer um acidente; todos os três, quatro, contando com o feto, vão morrer.

Para ele tudo parecia bem simples.

Mas, de sua ponta da linha, o Cardeal Harms contestou.

— Eles vão escapar. Não me pergunte como. O cardeal ainda estava deprimido.

— Você tem jurisdição sobre Washington, D.C. — disse o Procurator. — Ordene a destruição da nave. Dê a ordem agora.

"Agora" eram 8 horas depois. Oito preciosas horas duran­te as quais o Procurator dormira tranqüilamente. O Cardeal Harms encarou seu co-administrador. Ou será, pensou de re­pente, que Bulkowsky estivera esforçando-se para encontrar uma solução? Vai ver que ele não tinha mesmo dormido. Essa solu­ção parecia-se com as de Galina. Tinham conferenciado, os dois. Trabalhavam como uma equipe.

— Que solução careta — disse. — Típica de você, enviar um míssil de combate.

— Mrs. Bulkowsky, gosta da idéia — alegou o Procurator.

— Imagino que sim. Vocês dois passaram a noite toda em claro para chegar a uma conclusão dessas?

— Não passamos a noite em claro coisa nenhuma. Eu dormi como uma pedra, embora Galina tenha tido sonhos esqui­sitos. Tem um que ela me contou que... bem, vale a pena contar a você. Quer ouvir o sonho de Galina? Gostaria de saber a sua opinião, já que ele tem conotações religiosas.

— Chuta — disse Harms.

— Um enorme peixe branco flutua no oceano. Perto da superfície, como uma baleia. É um peixe amistoso. Vem nadan­do para junto de nós, quer dizer, de Galina. Há uma série de canais com comportas. O enorme peixe branco nada com extre­ma dificuldade pelo sistema de canais. Finalmente ele é pescado, longe do oceano, junto das pessoas que olhavam. Ele fez isso de propósito; queria oferecer-se a si próprio como alimento. Aparece uma serra de metal, dessas de cabo nas duas pontas, que os lenhadores usam para derrubar árvores grandes. Galina disse que os dentes da serra eram terríveis. As pessoas come­çam a serrar postas da carne do grande peixe, que continua vivo. Serram pedaços e pedaços da carne viva do grande peixe branco, tão amistoso. No sonho Galina pensa: "Isso está errado. Estamos machucando muito o peixe". Bulkowsky calou-se por um momento. — Bem? Que é que você acha?

— O peixe é Cristo — afirmou o Cardeal Harms —, que oferece sua carne para que o homem viva eternamente.

— Vá lá que seja, mas é injusto para com o peixe. Ela disse que fazer isso era errado. Mesmo que o peixe, ele mesmo, se oferecesse. O sofrimento dele era demais. Ah, sim, no sonho ela pensou: "Temos que achar outro tipo de alimento que não faça o grande peixe sofrer". Depois houve umas partes confu­sas no sonho, quando ela estava olhando dentro de uma gela­deira; viu um jarro de água, um jarro revestido de palha ou coisa assim... e um cubo de alimento cor-de-rosa, como um cubo de manteiga. Havia palavras escritas na palha, mas ela não conseguiu ler. A geladeira era propriedade comum de uma pe­quena aldeia, um grupo de pessoas estabelecidas bem longe, numa área remota. O que acontecia, o jeito como funcionava, era que aquele jarro de água e aquele cubo cor-de-rosa perten­ciam a toda a colônia, e as pessoas só comiam o alimento e bebiam a água quando percebiam que estava se aproximando o momento de morrer.

— E bebendo a água...

— Elas retornariam. Renascidas.

— É a eucaristia — disse Harms — em seus dois aspec­tos. O vinho consagrado e o pão, a hóstia. O sangue e o corpo de Nosso Senhor. O alimento da vida eterna. "Este é meu corpo. Tome-o... "

— A aldeia parecia viver segundo regras tradicionais, de outros tempos. Como na Antigüidade.

— Interessante — comentou Harms —, mas continua­mos com o nosso problema: o que fazer com o bebê monstruoso.

— Como eu falei — disse o Procurator —, vamos arran­jar um acidente. A nave não vai chegar a Washington, D.C. Quando é exatamente que ela tem que chegar? Quanto tempo temos?

— Espere um pouco — e Harms apertou botões no pai­nel de um pequeno terminal de computador. — Cristo! — exclamou.

— Que é que há? Bastam alguns segundos para disparar um pequeno míssil. Você tem vários naquela área.

— A nave já aterrissou — disse Harms. — Enquanto você dormia. Eles já estão sendo examinados pela Imigração em Washington, D.C.

— Dormir é uma coisa normal — defendeu-se o Pro­curator.

— O monstro fez você dormir.

— Toda a minha vida eu dormi! — protestou o Procurator, irritado. — Vim aqui para descansar; estou doente.

— Não estou muito certo.

— Ordene que eles sejam detidos pela Imigração. Agora. Harms desligou e estabeleceu contato com a Imigração.

Vou pegar essa mulher, essa Rybys Rommey-Asher, e quebrar o pescoço dela, pensou. Vou cortá-la em pedacinhos, junto com o feto. Vou fazer um picadinho deles e dar para os bichos do zoológico.

Surpreendeu-se. Fui eu que pensei isso? Espantou-se com a ferocidade de seu raciocínio. Sinto um ódio tremendo deles, deu-se conta. Estou furioso. Estou furioso com Bulkowsky por ficar de molho 8 horas a fio bem no meio desta crise; se pudesse faria um picadinho dele também.

Quando conseguiu que o Diretor da Imigração em Wash­ington, D.C, aparecesse na tela, a primeira coisa que perguntou foi se a mulher Rybys Rommey-Asher, o marido e Elias Tate ainda estavam lá.

— Vou verificar, Eminência — disse o diretor do depar­tamento. Uma pausa, uma pausa muito longa. Harms contava os segundos, praguejando e rezando alternadamente. O diretor voltou. — Ainda os estamos examinando.

— Detenha-os. Não deixe que saiam, por motivo nenhum. A mulher está grávida. Informe a ela... sabe de quem estou falando? Rybys Rommey-Asher. Informe que há um mandado de aborto para ela. O seu pessoal que dê as desculpas que acha­rem melhores.

— O senhor quer realmente que façam um aborto nela? Ou isso é um pretexto...

— Quero um aborto induzido dentro de 1 hora, no má­ximo. Aborto salino. Quero que o feto morra. Vou dizer-lhe uma coisa, em confidência. Estive em conferência com o Pro­curator Maximus; trata-se de política mundial. O feto é uma aberração. Uma mutação radioativa. Talvez até mesmo resul­tado de simbiose interespécies. Entende?

— Puxa! — fez o diretor da Imigração. — Simbiose interespécies. Sim senhor. Vamos matá-lo com calor localizado.

Injetar material radioativo nele pela parede abdominal. Vou dizer a um de nossos médicos...

— Diga a ele para fazer o aborto ou matar o feto dentro dela — interrompeu Harms. — Mas mate-o, e já.

— Preciso de uma ordem escrita — falou o diretor da Imigração. — Não posso fazer isso sem autorização.

— Transmita os formulários — disse o cardeal, suspi­rando.

Seu terminal destilou algumas folhas de papel. Pegou-as, procurou o lugar onde devia apor sua assinatura, assinou e enfiou os papéis de volta na entrada do terminal.

Sentado na sala de espera da Imigração com Rybys, Herb Asher imaginava aonde teria ido Elias Tate. O velho dissera que ia ao banheiro e não tinha voltado.

— Quando é que vou poder deitar? — murmurou Rybys.

— Logo, logo — disse ele. — Estão acertando tudo. Não se estendeu sobre o assunto, porque sem dúvida a sala

devia ter aparelhos de escuta.

— Onde é que Elias está? — perguntou ela.

— Já vai voltar.

Um oficial da Imigração, em roupas civis mas usando um distintivo, aproximou-se deles.

— Onde é que está o outro? — e consultou uma ficha. — Elias Tate.

— No banheiro — explicou Herb. — Vocês não podem examinar esta mulher? Veja como ela está doente.

— Ela vai passar por um exame médico — falou o oficial, indiferente. — Queremos uma opinião médica antes de liberar vocês.

— Mas isso já foi feito! Primeiro pelo próprio médico dela e depois pelos...

— Trata-se de um procedimento de rotina — cortou o oficial.

— Mas não neste caso — insistiu Herb Asher. — É uma crueldade completamente inútil.

— O médico vai chegar logo — disse o oficial —, e en­quanto examina a mulher você vai ser interrogado. Para econo­mizar tempo. Não vamos interrogá-la, pelo menos não muito. Estou consciente da gravidade do estado dela.

— Meu Deus! — exclamou Herb. — Dá para ver o estado dela.

O oficial saiu, mas voltou em seguida, carrancudo.

— Tate não está no banheiro.

— Então não sei onde está.

— Devem tê-lo examinado e mandado embora. — O oficial se afastou às pressas, falando num radiocomunicador manual.

Acho que Elias deu o fora, pensou Herb Asher.

— Venha aqui — comandou uma voz. Era uma médica, de avental branco. Jovem, de óculos, os cabelos presos num coque, conduziu com gestos enérgicos o casal por um corredor de aparência e cheiro esterilizados, até uma sala de consulta.

— Deite-se, Mrs. Asher — disse a médica, ajudando Rybys a subir numa mesa de exames.

— Rommey-Asher — corrigiu Rybys, subindo penosa­mente na mesa. — A senhora pode me dar um antiemético? Agora, quero dizer. Rápido.

— Em vista da doença de sua mulher — disse a médica a Herb Asher, sentando-se —, por que não interromperam a • gravidez?

— Já pensamos em tudo isso — retrucou ele, ríspido.

— Mesmo assim vamos exigir que ela aborte. Não quere­mos que nasça uma criança deformada; é contra a política social.

Herb olhou assustado para a médica.

— Mas ela está com seis meses de gravidez!

— Registramos como de cinco meses — disse a médica.

— Bem dentro do período legal.

— Não podem fazer isso sem consentimento dela — pro­testou Herb. Estava realmente amedrontado.

— Essa decisão — informou a médica — não é mais de competência de vocês, agora que voltaram para a Terra. Uma junta vai estudar o caso.

Estava claro para Herb Asher que haveria um aborto legal, obrigatório. Sabia o que a junta ia decidir — o que tinha decidido.

No canto da sala uma fonte de música enlatada produzia um odioso ruído de fundo de orquestra de cordas. O mesmo som, deu-se conta, que ouvia intermitentemente em seu domo. Mas agora a melodia mudara, e percebeu que estava começando um número popular da Fox. Enquanto a médica preenchia for­mulários, a voz da Fox podia ser ouvida à distância. Sentiu-se reconfortado.

 

"Vem, outra vez!

Doce amor, ah, traz agora

teus encantos, e esse refrão

para minha maior emoção."

 

Os lábios da médica moviam-se instintivamente dublando a conhecida canção de Dowland que a Fox cantava.

E de repente Herb Asher teve consciência de que a voz no alto-falante apenas se parecia com a da Fox. A voz não estava mais cantando; falava.

A voz, baixa, disse distintamente:

 

"Não haverá aborto. Haverá um nascimento".

 

A médica, escrevendo à mesa, pareceu não se dar conta da transição. Yah alterara a emissão de áudio, compreendeu Herb Asher. Enquanto ele olhava, a médica parou, a caneta erguida sobre a folha.

Subliminar, disse a si mesmo, observando a médica hesi­tante. A mulher ainda imagina que está ouvindo uma canção familiar. Letra conhecida. Está como que fascinada. Hipno­tizada.

A canção continuou.

— Legalmente não podemos fazer o aborto se ela já está de seis meses — disse a médica, vacilante. — Mr. Asher, deve haver um engano. Nós a registramos como de cinco meses. Cinco meses de gestação. Mas se o senhor diz seis, então...

— A senhora pode examinar, se quiser — disse Herb Asher. — Está no mínimo de seis meses. Tire suas próprias conclusões.

— Eu... — a médica esfregou a testa, encolhendo-se; fechou os olhos e fez uma careta, como que de sofrimento. — Não vejo motivos para... — interrompeu-se, parecendo esque­cida do que ia dizer. — Não vejo motivo — continuou depois de um momento — para discutir isto.

Apertou um botão no intercomunicador da escrivaninha.

A porta se abriu e apareceu um oficial da Imigração, uni­formizado. Um pouco depois surgiu também um oficial em uniforme da Alfândega.

— O assunto está resolvido — informou a médica ao oficial da Imigração. — Não podemos forçá-la a abortar; a gravidez está muito avançada.

Espantado, o oficial da Imigração encarou-a fixamente.

— É a lei — afirmou a médica.

— Mr. Asher — disse o agente aduaneiro —, permita-me algumas perguntas. Na declaração de sua esposa, ela incluiu dois filactérios. O que é um filactério?

— Não sei — reconheceu Herb Asher.

— Os senhores não são judeus? — perguntou o agente da aduana. — Qualquer judeu sabe o que é um filactério. Nesse caso, sua esposa é judia e o senhor não?

— Bem — disse Herb Asher —, ela é da I.I.C., mas... — interrompeu-se. Sentiu que estava sendo conduzido para uma armadilha. Seria impossível um marido não conhecer a religião de sua mulher. Estão entrando numa área que eu não quero discutir, disse para si mesmo. — Sou cristão — disse, então. — Apesar de ter sido educado para o Legado Científico. Per­tenci à Juventude do Partido. Mas agora...

— Mas Mrs. Asher é judia. Daí os filactérios. O senhor nunca viu sua esposa usando-os? Um vai na cabeça; outro no braço esquerdo. São caixinhas de couro que trazem dentro par­tes da escritura hebraica. É muito estranho que o senhor não saiba disso. Há quanto tempo os senhores se conhecem?

— Bastante tempo — afirmou Herb Asher.

— Ela é realmente sua esposa? — perguntou o oficial da Imigração. — Se ela está grávida de seis meses... — con­sultou alguns documentos na mesa da médica. — Ela já estava grávida quando o senhor casou com ela. O senhor é o pai da criança?

— Claro.

— Qual é o seu tipo de sangue? Deixa, está aqui... — começou a verificar os formulários médicos e legais. — Está em algum lugar...

O telefone da escrivaninha tocou; a médica atendeu.

— Para o senhor — e estendeu o telefone para o oficial da Imigração.

O agente, muito concentrado, ouviu o aparelho, em silên­cio; depois, colocando a mão sobre o bocal, virou-se irritado para Herb Asher.

— O tipo de sangue confere. Vocês dois estão liberados. Mas queremos falar com Tate, o velho que... — interrompeu-se e prestou atenção de novo ao telefone.

— Podem chamar um táxi na cabina da sala de espera

— informou o agente da Alfândega.

— Estamos livres? — perguntou Herb Asher. O oficial aduaneiro anuiu com um gesto.

— Alguma coisa está errada — disse a médica, tirando de novo os óculos e esfregando os olhos.

— Tem este outro assunto — retrucou o agente aduanei­ro, inclinando-se e apresentando-lhe um maço de documentos.

— Vocês sabem onde está Ta te? — perguntou o oficial da Imigração, quando Herb Asher e Rybys saíam do consul­tório.

— Não, não sabemos — respondeu Herb, e saiu para o corredor, ajudando Rybys a caminhar vagarosamente até a sala de espera. — Sente-se — e acomodou-a num diva. Várias pes­soas ali sentadas olharam-no com desinteresse. — Vou telefonar. Volto já. Você tem algum trocado? Preciso de uma moeda de 5 dólares.

— Jesus! — murmurou Rybys. — Não, não tenho nada.

— Conseguimos passar — falou para ela, em voz baixa.

— Que bom! — fez ela, enfadada. '

— Vou chamar um táxi.

Procurou nos bolsos uma moeda de 5 dólares, sentindo-se alvoroçado. Yah interviera, distante e fracamente, mas fora o suficiente.

Dez minutos depois, com toda a bagagem, estavam num aero-táxi, elevando-se do espaçoporto de Washington, D.C., e diri­gindo-se para Bethesda-Chevy Chase.

— Onde diabos está Elias? — conseguiu dizer Rybys.

— Ele chamou a atenção deles — explicou Herb. — Desviou de nós o pensamento deles.

— Ótimo! — exclamou ela. — Então agora ele pode estar em qualquer lugar por aí.

De repente, um grande caminhão voador, em velocidade imprudente, surgiu no rumo deles. A colisão era inevitável.

O motorista-robô do táxi gritou, aterrado. E o enorme caminhão abalroou-os, fazendo o táxi virar; tudo aconteceu num instante. Fortes ondas de concussão rodopiaram o táxi e ele caiu em espiral. Herb Asher apertou a mulher contra si. Os prédios cresciam, erguendo-se enormes, e ele compreendeu, compreendeu, completa e absolutamente, o que tinha aconteci­do. Os malditos, pensou, sofrendo; sofria fisicamente. Doía-lhe a compreensão. Emissores de advertência no táxi tinham pifado...

A proteção de Yah não era suficiente, percebeu, enquanto o táxi caía, rodopiando como uma folha seca.

É muito fraco. Quase impotente, aqui.

O táxi bateu na ponta de um prédio alto. A escuridão envolveu tudo e Herb Asher não percebeu mais nada.

Estava num leito de hospital, ligado por tubos e fios a uma porção de aparelhos, parecendo um ente cibernético.

— Mr. Asher? — dizia uma voz masculina. — Mr. Asher, está me escutando?

Tentou fazer um gesto afirmativo, mas não conseguiu.

— O senhor sofreu graves lesões internas — disse a voz masculina. — Eu sou o Dr. Pope. O senhor esteve inconsciente durante cinco dias. Foram feitas várias operações cirúrgicas no senhor, mas seu baço danificado teve que ser removido. Restou apenas um pedaço. O senhor vai ser colocado em suspensão criogênica até que órgãos para transplante... Consegue me ouvir?

— Sim — balbuciou ele.

— Até que órgãos para transplante possam ser obtidos em doadores. A lista de espera não é muito grande; o senhor deve ficar em suspensão criogênica apenas algumas semanas.

— Minha mulher.

— Sua mulher morreu. Ficou muito tempo sem funções cerebrais. Tivemos que desistir da suspensão criogênica para ela. Seria inútil.

— A criança.

— O feto está vivo — disse o Dr. Pope. — O tio de sua mulher, Mr. Tate, chegou e assumiu a responsabilidade legal. Removemos o feto dela e colocamos num útero sintético. De acordo com todos os exames que fizemos, ele não sofreu danos pelo trauma, o que é quase um milagre.

Isso mesmo, pensou Herb Asher, sombrio.

— Sua mulher pediu que ele fosse registrado com o nome de Emmanuel — disse o Dr. Pope.

— Eu sei.

Perdendo a consciência, Herb Asher ainda conseguiu pen­sar: os planos de Yah não foram inteiramente destruídos. A derrota de Yah não foi completa. Ainda há esperanças.

Mas não muitas.

— Belial — murmurou.

— Como? — e o Dr. Pope inclinou-se para ouvir melhor. — Belial? Alguém que o senhor quer que entre em contato conosco? Alguém que precisa saber do que aconteceu?

— Ele já sabe — disse Herb Asher.

— Alguma coisa deu errado — disse o Prelado-Chefe da Igreja Islâmica-Cristã para o Procurator Maximus do Legado Cientí­fico. — Eles passaram pela Imigração.

— Para onde foram? Têm que ter ido para algum lugar.

— Elias Tate desapareceu antes mesmo da inspeção adua­neira. Não temos idéia de onde ele está. Quanto aos Ashers... o cardeal hesitou. — A última vez que foram vistos estavam se afastando num táxi. Sinto muito.

— Havemos de encontrá-los — disse Bulkowsky.

— Com a ajuda de Deus — aduziu o cardeal, e fez o sinal da cruz. Bulkowsky, vendo isso, também se persignou.

— O poder do mal — disse Bulkowsky.

— Sim — concordou o cardeal. — É contra isso que esta­mos lutando.

— Mas no final ele perde.

— Sim, completamente. Agora vou para a capela. Rezar. Aconselho você a fazer o mesmo.

Erguendo uma sobrancelha, Bulkowsky olhou-o. Sua ex­pressão era inescrutável.

 

Quando Herb Asher despertou, tomou conhecimento de fatos intrigantes. Estivera não semanas, mas anos em suspensão criogênica. Os médicos não foram capazes de explicar por que fora tão difícil obter órgãos para transplante. Disseram que foram circunstâncias fora de seu controle. Burocracia jurídica.

— E Emmanuel? — perguntou ele.

O Dr. Pope parecia mais velho e grisalho e distinto.

— Alguém forçou entrada no hospital e removeu seu fi­lho do útero sintético.

— Quando?

— Quase em seguida. O feto ficou no útero sintético apenas por um dia, de acordo com nossos registros.

— O senhor sabe quem foi?

— Segundo nossos videoteipes... temos monitores vi­giando os úteros sintéticos o tempo todo. Segundo eles foi um velho de barbas. — O Dr. Pope fez uma pausa: depois conti­nuou. — Tinha uma aparência transtornada. O senhor deve encarar o fato de que o mais provável é que seu filho tenha morrido, nestes dez anos, se não por ter sido retirado do útero sintético, então por outras causas naturais... ou por alguma ação do velho barbudo. Ou morte acidental ou provocada. A polícia não conseguiu localizar nenhum dos dois. Sinto muito.

Elias Tate, disse Herb para si mesmo. Raptando Emma­nuel, para segurança dele. Fechou os olhos e sentiu a gratidão invadindo-o.

— Como está se sentindo? — perguntou o Dr. Pope.

— Eu sonhei. Não sei se as pessoas em suspensão criogênica ficam conscientes.

— O senhor não estava.

— Eu sonhei muito com minha mulher. — Sentiu um desgosto amargo pairar sobre ele e então descer e penetrá-lo. Era uma aflição muito intensa. — O tempo todo sonhava com ela. Quando nos encontramos; antes do primeiro encon­tro ... A viagem para a Terra. Coisas sem importância. O lixo, restos de comida... Ela era desleixada.

— Mas o senhor tem o seu filho.

— É — concordou ele. Ficou imaginando como poderia encontrar Elias e Emmanuel. Eles é que vão me encontrar, compreendeu.

Durante um mês permaneceu no hospital, sob terapia para fortalecer-se, e então, numa manhã fria de meados de março, recebeu alta. De mala na mão, desceu a escadaria da frente, trôpego e temeroso, mas feliz por estar livre. Cada dia de sua terapia aguardara a chegada das autoridades para pegá-lo. Nin­guém veio. Não entendia por quê.

No meio da multidão, tentando chamar a atenção de algum aerotáxi, percebeu de repente um mendigo cego de pé a um canto, um enorme velho de cabelos brancos e roupas imundas, com uma tigela na mão.

— Elias — disse Herb Asher. Aproximou-se, examinan­do seu velho amigo.

Durante algum tempo nenhum dos dois falou nada.

— Oi, Herbert — disse Elias Tate.

— Rybys me contou que você costuma se vestir de men­digo — explicou Herb Asher. Tentou abraçar o velho, mas Elias impediu.

— Agora é a Páscoa. Estou inteiro aqui. O poder de meu espírito é grande demais. Não toque em mim. Neste mo­mento todo o meu espírito está aqui.

— Você não é um homem — falou Herb Asher, teme­roso e reverente.

— Sou muitos homens — disse Elias. — Estou contente de ver você de novo. Emmanuel me contou que você ia sair hoje.

— O garoto está bem?

— Ele é lindo.

— Eu o vi — disse Herb Asher. — Uma vez só, faz algum tempo. Foi uma visão que... — parou. — Jeová me enviou. Para me ajudar.

— Você sonhou? — perguntou Elias.

— Com Rybys. E com você também. Sonhava com tudo o que aconteceu. Revivia tudo o tempo todo.

— Mas agora você está vivo outra vez — disse Elias. — Estou satisfeito com sua volta. Seja bem-vindo. Temos muita coisa para fazer.

— Você acha que dá mesmo para fazer alguma coisa?

— O garoto está com dez anos — disse Elias. — Ele os confundiu, atrapalhou o pensamento deles. Fez eles se esque­cerem. Mas... — ficou quieto uns instantes. — Mas ele se esqueceu também. Você vai ver. Faz alguns anos começou a se lembrar de novo; ouviu uma canção e a memória começou a voltar um pouco. Talvez o suficiente, talvez não. Vendo você, ele vai se lembrar mais. Ele se programou a si mesmo, antes do acidente.

— Ele... — começou a dizer Herb Asher, com muita dificuldade — ele ficou prejudicado, então? No acidente? Elias assentiu. Lúgubre.

— Lesão cerebral — comentou Herb Asher; lera a expressão no rosto do amigo.

O ancião assentiu de novo, o velho mendigo com a tigela. O imortal Elijah, agora na Páscoa. Como sempre. O eterno e prestativo amigo do homem. Sujo e maltrapilho, e tão sensato.

— Seu pai está chegando, não é? — falou Zina.

Estavam sentados num banco do Parque Rock Creek, junto do lago congelado, à sombra dos galhos rígidos das árvo­res desfolhadas. Fazia muito frio, e as crianças usavam agasa­lhos pesados. Mas o céu estava límpido. Emmanuel olhou para cima algum tempo.

— O que é que sua placa diz? — perguntou Zina.

— Não tenho que consultar a placa.

— Ele não é seu pai.

— Ele é um bom sujeito. Não tem culpa de minha mãe ter morrido. Vou ficar contente por vê-lo de novo. Eu o tinha perdido.

Faz tempo, pensou. De acordo com a escala temporal aqui do Reino Inferior.

Que reino trágico, refletiu. Todos aqui embaixo são pri­sioneiros, e a maior tragédia é que não sabem disso; pensam que são livres porque nunca tiveram liberdade e não entendem o que é ela. Isto aqui é uma prisão, e poucos homens perce­beram. Mas eu sei, disse para si mesmo. Porque é por causa disso que estou aqui. Para queimar as paredes, derreter os portões de metal, para quebrar todos os grilhões. Não atarás a boca do boi, quando debulha, pensou, recordando a Tora. Não prenda uma criatura livre; não a constranja. Assim diz o Senhor nosso Deus. Assim digo eu.

Não conhecem a quem servem. Esse é seu maior infor­túnio: servir em erro, a uma coisa errada. Estão como que envenenados por metal, pensou. Metal que os confina, e metal no sangue; este é um mundo de metal. Movido por rodas dentadas, uma máquina que mói e tritura, produzindo sofri­mento e morte... Acostumaram-se tanto com a morte, ponderou, como se a morte também fosse uma coisa natural. Quanto tempo faz, desde que conheceram o Jardim. O lugar onde se abrigam animais e flores. Quando poderei encontrar esse lugar para eles outra vez?

Existem duas realidades, disse de si para si. A Prisão de Ferro Escura, chamada Caverna dos Tesouros, onde agora vivem, e o Jardim das Palmeiras com sua amplidão e sua luz, onde eles habitavam originalmente. Agora são cegos, literal­mente, pensou. Literalmente incapazes de enxergar além de uma pequena distância; objetos longínquos são invisíveis para eles, agora. De vez em quando um deles se dá conta de que anteriormente todos tinham faculdades agora perdidas; de vez em quando um deles percebe a verdade, que eles não são mais o que eram nem estão onde estavam. Mas esquecem de novo, exatamente como eu também esqueci. E ainda estou esquecendo alguma coisa, compreendeu. Ainda tenho apenas uma visão parcial. Também eu me sinto obstruído.

Mas logo não estarei mais.

— Quer uma Pepsi? — perguntou Zina.

— Está muito gelada. Quero apenas ficar sentado. Ela pôs a mão enluvada no braço dele.

— Não fique tão triste. Sorria.

— Estou cansado — disse Emmanuel. — Já fico bom. Há uma porção de coisas para serem feitas. Desculpe. Tudo isso me pesa muito.

— Você está com medo, não é?

— Não estou mais.

— Está melancólico. Ele concordou.

— Você vai se sentir melhor quando se encontrar de novo com Mr. Asher.

— Eu o estou vendo.

— Que bom — fez ela. — Mesmo sem a placa?

— Cada vez uso menos a placa, porque o conhecimento em mim cresce cada vez mais. E você sabe por quê.

Zina não fez nenhum comentário.

— Somos muito próximos, você e eu — disse Emma­nuel. — Sempre gostei muito de você. Sempre gostarei. Você vai ficar junto de mim e me aconselhar, não vai?

Ele conhecia a resposta; sabia que era afirmativa. Ela estivera com ele desde o começo — seu afeto e prazer, como ela mesma dissera. E o prazer dela, como a Escritura disse, estava na humanidade. Assim, através dela, ele mesmo amava a humanidade; era também o seu prazer.

— Podemos beber alguma coisa quente — disse Zina.

— Quero apenas ficar sentado — murmurou ele. Ficar sentado aqui até chegar a hora de encontrar Herb

Asher, disse para si mesmo. Ele pode me contar coisas de Rybys; suas lembranças dela me darão alegria, a alegria que, até agora, perdi.

Eu o amo, compreendeu. Amo o marido de minha mãe, meu pai legal. Como outros homens, ele é um bom ser hu­mano. É um homem de valor, e deve ser tratado com carinho.

Mas, ao contrário dos outros homens, Herb Asher sabe quem sou. Assim, posso falar abertamente com ele, como faço com Elias. E com Zina. Ele vai ajudar, pensou. Vou me fatigar menos. Não vou ficar mais como estou agora, angustiado por meus cuidados. A carga vai ser aliviada um pouco. Porque vai ser repartida.

E, pensou, há tanta coisa ainda de que não lembro. Não sou como eu era, como eles, como as pessoas, eu caí. A brilhante estrela matutina que caiu não caiu sozinha; preci­pitou tudo o mais junto com ela, inclusive a mim. Parte de meu próprio ser caiu com ela, e agora sou essa parte que caiu.

Então, ali, sentado no banco com Zina, no parque, na­quele dia frio próximo do equinócio de primavera, ele pensou: mas Herb Asher ficava deitado no beliche, sonhando uma vida fantástica com Linda Fox, enquanto minha mãe lutava para sobreviver. Nenhuma vez tentou ajudá-la. Nenhuma vez pro­curou saber de sua saúde nem procurou remédio. Nenhuma vez até que eu, por mim mesmo, o forcei a procurá-la. Ne­nhuma vez ele fez coisa alguma. Não devo amar o homem, disse a si mesmo. Vejo que o homem e ele perderam o direito ao meu amor — ele perdeu meu amor porque não fez caso.

Por conseguinte, não posso fazer caso dele. Como res­posta.

Por que iria ajudar qualquer um deles?, perguntou-se. Só fazem o que é direito quando são forçados, quando não há alternativa. Decaíram por sua própria vontade, e estão decaí­dos agora, por sua própria vontade, pelo que voluntariamente fizeram. Minha mãe está morta por causa deles; eles a ma­taram. E me matarão se puderem perceber quem sou eu; me deixam em paz somente porque confundi seus sentidos. Gran­des e pequenos, todos querem minha vida, assim como Ahab quis a vida de Elijah, há muito tempo atrás. É uma raça desprezível, e não devo me preocupar se eles decaem. Pouco me importa. Para salvá-los tenho que lutar contra quem é exatamente igual a eles. Sempre foram assim.

— Você parece tão desanimado! — comentou Zina.

— De que adianta tudo isso? — fez ele. — Eles são o que são. Estou farto, cada vez mais. Quanto mais lembro, menos me importa. Faz dez anos que vivo neste mundo, agora, e há dez anos que eles me perseguem. Que morram. Não dei para eles a pena de talião, "olho por olho, dente por dente"? Não está na Tora? Eles me expulsaram deste mundo faz 2.000 anos; volto e eles querem me ver morto. Pela pena de talião eu devia querer vê-los mortos. É a lei sagrada de Israel. É a minha lei, minha palavra.

Zina estava quieta.

— Me aconselhe — pediu Emmanuel. — Sempre dei ouvidos aos seus conselhos.

Zina disse:

 

"Um dia Elijah, o profeta, apareceu para o Rabi Baru­ka no mercado de Lapet. O Rabi Baruka perguntou a ele: 'Entre a multidão deste mercado existe alguém destinado a partilhar o mundo que há de vir?'... Dois homens surgi­ram e Elijah disse: 'Estes dois vão partilhar o mundo que há de vir'. O Rabi Baruka perguntou a eles: 'Qual é a pro­fissão de vocês?' Eles responderam: 'Somos brincalhões. Quando vemos um homem desanimado, nós o alegramos. Quando vemos duas pessoas discutindo, esforçamo-nos por trazer a paz entre elas' ".

 

— Você diminui o meu pesar — disse Emmanuel. — E a minha fadiga. Sempre foi assim. Como a Escritura diz de você:

 

"Então eu estava com ele (...)

dia após dia era as suas delícias,

folgando perante ele em todo o tempo;

regozijando-me no seu mundo habitável

e achando as minhas delícias com os filhos dos homens."

 

E a Escritura diz:

 

"Amei a sabedoria; busquei-a quando era jovem e desejei ardentemente desposá-la, e apaixonei-me por sua beleza".

 

Mas esse era Salomão, não eu.

 

"Assim determinei que ela viesse viver comigo em meu lar, sabendo que seria minha conselheira na prosperidade e meu conforto na aflição e nos reveses."

 

Salomão era um homem sábio, para amar tanto você. A seu lado, a garota sorriu. Não disse nada, mas seus olhos escuros brilhavam.

— Por que você está sorrindo? — perguntou ele.

— Porque você mostrou a verdade da Escritura, quando ela diz:

 

"Eu te desposarei para sempre. Desposar-te-ei no di­reito e na justiça, no amor e na clemência. Com lealdade te desposarei, e amarás o Senhor".

 

— Lembre-se de que você fez a Aliança com o homem. E fez o homem à sua própria imagem. Você não pode quebrar a Aliança; fez ao homem essa promessa, de que nunca a que­braria.

— É isso mesmo — concordou Emmanuel. — Seus con­selhos são bons. — E você consola meu coração, pensou ele. Você acima de tudo, você, que já estava antes da Criação. Que nem os dois brincalhões, pensou, que Elijah disse que seriam salvos. Sua dança, seu canto, e o som dos sinos.

— Eu sei — disse — o que significa seu nome.

— Zina? — fez ela. — É apenas um nome.

— É a palavra romena para... — parou; a garota tre­mia visivelmente, de olhos arregalados.

— Há quanto tempo você sabe? — perguntou ela.

— Faz anos. Ouça:

 

"Conheço uma ribanceira onde crescem o tomilho silvestre

e a flor da primavera e a violeta descuidosa;

onde há quase um dossel de madressilvas,

com muscaris e rosas amarelas:

E aí que às vezes Titânia dorme à noite,

sobre essas flores embalada por cantos e delícias;

e aí a serpente estende a pele envernizada bem ampla"

 

— Vou terminar; ouça:

 

"Para envolver uma fada".

 

— Tudo isso eu soube — concluiu ele — o tempo todo. Zina encarou-o.

— Sim, Zina quer dizer fada.

— Você não é a Sagrada Sabedoria — disse ele —, você é Diana, a rainha das fadas.

O vento frio agitou os ramos das árvores. E, na superfície congelada do riacho, algumas folhas secas correram apressadas.

— Compreendo — disse Zina.

Em torno dos dois ouviu-se o ruído do vento, como que falando. Ele podia ouvir as palavras do vento. E o vento dizia:

 

CUIDADO!

 

Ficou imaginando se ela tinha ouvido também.

Mas ainda eram amigos. Zina contou a Emmanuel sobre uma antiga identidade que uma vez usara. Milhares de anos atrás, disse, ela tinha sido Ma'at, a deusa egípcia que representava a ordem e a justiça cósmicas. Quando alguém morria, era pesado na pena de avestruz de Ma'at. E assim a carga de pe­cados da pessoa era determinada.

O princípio pelo qual a culpa da pessoa era determinada consistia no grau de sua sinceridade. O pronunciamento ia a seu favor na medida em que ela era sincera. O julgamento era presidido por Osíris, mas, como Ma'at era a deusa da sinceri­dade, quem fazia a determinação era ela.

— Depois dessa época — continuou Zina —, a idéia de julgar almas humanas passou à Pérsia. No zoroastrismo, a an­tiga religião persa, a triagem era numa ponte que o recém-falecido tinha de atravessar. Se ele era mau a ponte ia se estrei­tando, se estreitando, até que ele caía e mergulhava no poço ardente do inferno. Os últimos estágios do Judaísmo e o Cris­tianismo tiraram daí suas idéias do Juízo Final.

Quem era bom, e conseguia cruzar a ponte separadora, encontrava-se com o espírito de sua fé: uma bela jovem de seios bonitos e grandes. Entretanto, se a pessoa era má, o espírito de sua fé era uma velha megera encarquilhada de tetas pendentes. Assim sendo, bastava uma olhada para você perce­ber a que categoria pertencia.

— Você era o espírito da fé para as pessoas boas? — perguntou Emmanuel.

Zina não respondeu, e mudou para outro assunto que ela estava mais ansiosa para discutir.

Nesses julgamentos dos mortos, derivados do Egito e da Pérsia, a avaliação era impiedosa e a alma culpada era de fato condenada. Na hora da morte o livro com o registro das ações boas e más era encerrado, e ninguém, nem mesmo os deuses, podia alterar as anotações. De certo modo a rotina do julga­mento era mecânica. No fundo era uma lista minuciosa de informações contra a pessoa, compilada durante toda a sua vida, que era agora introduzida numa máquina de punições. Uma vez a lista introduzida na máquina, a pessoa não tinha mais chance. O mecanismo moia a pessoa em pedaços, e os deuses meramente observavam, impassíveis.

Mas um dia (disse Zina), uma nova personalidade surgiu no caminho da ponte. Era uma figura enigmática, mais pare­cendo uma cambiante sucessão de aspectos ou atribuições. Às vezes era chamada de Consolador. Outras vezes, de Mediador. Outras, de Procurador. Às vezes era Amparo, às vezes Conse­lheiro. Ninguém sabia de onde tinha vindo. Por milhares de anos não estivera ali, e de repente um dia apareceu. Postou-se à margem do movimentado caminho, e, à medida que as almas se dirigiam para a ponte, essa figura complexa — que às vezes, mas raramente, parecia uma mulher — fazia sinais para elas, uma de cada vez, para atrair sua atenção. Era essencial que o Procurador atraísse a atenção delas antes que atingissem a pon­te, porque depois seria tarde demais.

— Tarde demais para quê? — indagou Emmanuel.

— Logo que o Procurador parava uma pessoa antes da ponte — disse Zina —, perguntava se ela queria ser represen­tada no teste por que ia passar.

— Pelo Procurador?

O Procurador, explicou ela, assumia sua atribuição de Mediador; oferecia-se para falar em nome da pessoa. Mas o Procurador oferecia algo mais. Oferecia-se para apresentar sua própria lista de informações ao mecanismo de punições, no lu­gar da lista da pessoa. Se a pessoa era inocente, não haveria diferença alguma, mas para o culpado significava uma absol­vição em vez de um pronunciamento de culpa.

— Isso não é justo — comentou Emmanuel. — O culpa­do deve ser punido.

— Por quê? — perguntou Zina.

— Porque é a lei — retrucou Emmanuel.

— Então não há esperança para o culpado.

— Eles não merecem esperança.

— E se todo mundo for culpado? Ele não tinha pensado nisso.

— Que é que tem na lista do Procurador? — perguntou.

— Está em branco — disse Zína. — Uma folha de papel toda em branco. Um documento no qual não há nada escrito.

— A máquina de punições não poderia processar uma coisa assim.

— Poderia. Ela ia imaginar que recebera a compilação de uma pessoa totalmente imaculada.

— Mas ela não poderia funcionar. Não haveria dados pa­ra alimentá-la.

— Esse é o ponto.

— Então a máquina da justiça foi tapeada.

— Tapeada por uma vítima — interpôs Zina. — Não é bom isso? Tem que haver vítimas? Qual a vantagem de haver uma procissão sem fim de vítimas? Por acaso isso repararia os erros que elas cometeram?

— Não — acedeu ele.

— A idéia — continuou Zina — é introduzir clemência no circuito. O Procurador é um amicus curiae, um amigo da corte. Ele adverte a corte, com sua permissão, que o caso em julgamento constitui uma exceção. O regulamento geral de pu­nições não se aplica.

— E ele faz isso para todos? Para cada pessoa culpada?

— Para cada pessoa culpada que aceita sua oferta de ajuda e defesa.

— Mas assim vamos ter uma procissão sem fim de ex­ceções. Porque nenhuma pessoa culpada, em sã consciência, haveria de rejeitar uma oferta dessas; cada um dos culpados iria querer ser julgado como exceção, como um caso envolven­do circunstâncias atenuantes.

— Mas a pessoa teria que aceitar, por si mesma, o fato de que era culpada. Ela podia, é claro, apostar na própria inocência, caso em que não precisaria da ajuda do Procurador.

Emmanuel ponderou um momento.

— Seria uma tolice. Ela poderia estar enganada. Além do que nada perderia aceitando a assistência do Procurador.

— Na prática, contudo — disse Zina —, a maioria das almas que se dirigem para o julgamento rejeitam a oferta do Procurador.

— Mas por quê? — ele não podia compreender um com­portamento assim.

— Porque estão certas de serem inocentes. Para receber essa assistência, a pessoa tem que ser meio pessimista e assumir que tem alguma culpa, mesmo que em seu próprio pensamento julgue ser inocente. O verdadeiro inocente não precisa do Procurador, assim como o saudável de corpo não precisa de médi­co. Numa situação dessas o otimismo é perigoso. É o princípio da garantia que as criaturas pequenas empregam quando constroem uma toca ou abrigo. Se são espertas, fazem uma segunda saída para a toca, na suposição pessimista de que a primeira seja localizada por um predador. Todas as criaturas que não empregaram esse princípio já não estão mais entre nós.

— É degradante para um homem que ele possa consi­derar-se pecador.

— É degradante para a toupeira ter que admitir que sua toca possa não estar perfeitamente construída, que um predador possa encontrá-la.

— Você está supondo uma situação em que se defronte um adversário. Na justiça divina existe um adversário? Existe um antagonista?

— Sim; existe um antagonista do homem na corte divina; é Satã. Há o Mediador que é o advogado que defende o hu­mano acusado, e Satã, que impugna e denuncia. O Mediador fica ao lado do homem, defende-o e fala por ele; Satã, de frente para o homem, acusa. Você haveria de querer que o homem tivesse um acusador e não tivesse um defensor? Seria justo?

— Mas a inocência tem que ser presumida. Os olhos da garota cintilaram.

— É precisamente esse o argumento de que parte o Me­diador em cada julgamento de que participa. Daí porque ele substitui o registro do seu cliente pelo seu, imaculado, e justi­fica o homem por sub-rogação.

— Você é esse Procurador? — perguntou Emmanuel.

— Não. Ele é uma figura muito mais intrigante do que eu. Se você está tendo dificuldade em determinar minha...

— Estou — interpôs Emmanuel.

— Neste mundo ele é o que chega na última hora — disse Zina. — Não é encontrado nas primeiras eras. Ele repre­senta uma evolução na estratégia divina. É por quem o mal original é reparado. Um de muitos, mas um dos principais.

— Vou encontrá-lo um dia?

— Você nunca vai ser julgado — retrucou Zina. — As­sim talvez não o encontre. Mas todos os humanos vão vê-lo na estrada movimentada, oferecendo ajuda. Oferecendo a tempo: antes que a pessoa comece a atravessar a ponte e seja julgada. A intervenção do Procurador sempre chega a tempo. É parte de sua natureza chegar na hora certa.

— Gostaria de encontrá-lo — disse Emmanuel.

— Aja conforme os padrões humanos — disse Zina — e vai chegar ao ponto onde os humanos se encontram com ele. Desse modo é que eu conheço tudo sobre ele. Eu, também, não passei pelo julgamento — e ela apontou para a placa que dera a ele. — Peça mais informações a respeito do Procurador. Na placa apareceu:

 

                       CHAMAR

 

— Só isso é que você pode me dizer? — inquiriu Em­manuel.

Uma nova palavra se formou, uma palavra grega:

 

                       PARAKLETOS

 

Ele se admirou, e muito, com essa nova entidade que chegara ao mundo... que podia ser chamada pelos necessi­tados, pelos que estavam em perigo de um julgamento nega­tivo. Era mais um dos mistérios apresentados por Zina. Já eram muitos, agora. Gostava deles. Mas estava intrigado.

Para auxílio, chamar parakletos. Esquisito, pensou. O mundo evolui mesmo, quando decai cada vez mais. Há dois movimentos distintos: a queda, e, ao mesmo tempo, a obra de reparo ascensional. Movimentos antitéticos, na forma de uma dialética de toda a Criação e das forças nela contidas.

Suponhamos que Zina atraísse as partes que caíam. Atraís­se-as, sedutoramente, para que caíssem mais? A respeito disso ele ainda não era capaz de se pronunciar.

 

Herb Asher abraçou o garoto e apertou-o em seus braços.

— E esta é Zina — apresentou Elias Tate. — Colegui­nha de Emmanuel. — Pegou a menina pela mão e levou-a para junto de Herb Asher. — Ela é um pouquinho mais velha do que Manny.

— Oi — fez Herb Asher. Mas não estava interessado nela. Queria era olhar o filho de Rybys.

Dez anos, pensou. Esta criança cresceu enquanto eu so­nhava sem parar, pensando que estava vivo quando na verdade não estava.

— Ela o ajuda. E ensina muito. Mais do que a escola. Mais do que eu.

Herb Asher olhou para a garota e viu um rostinho oval, pálido e de olhos brilhantes. Que criança bonita, pensou, e voltou a olhar para o filho de Rybys. Mas então algo o fez voltar-se de novo para a menina.

Havia malícia naquele rosto. Principalmente nos olhos. Sim, pensou ele; tem alguma coisa nos olhos dela. Uma espécie de conhecimento.

— Faz quatro anos que eles estão juntos — disse Elias.

— Ela deu de presente a ele uma placa avançadíssima. É um tipo de terminal de computador muito desenvolvido, que faz perguntas: coloca questões para ele e lhe dá pistas. Não é, Manny?

— Oi, Herb Asher — disse Emmanuel; parecia solene e reprimido, ao contrário da garota.

— Oi — disse ele a Emmanuel. — Como você é pare­cido com sua mãe!

— Naquele cadinho crescemos — disse Emmanuel, enig­mático.

— Você... — Herb Asher não sabia o que responder.

— Está tudo bem?

— Sim — confirmou o garoto.

— Você tem uma grande responsabilidade — comentou Herb.

— A placa faz brincadeiras — falou Emmanuel.

Silêncio.

— O que é que há de errado? — perguntou Herb a Elias. Elias virou-se para o garoto.

— Tem alguma coisa errada, não é?

— Enquanto minha mãe morria — disse Emmanuel, olhando fixamente para Herb Asher —, você ficava ouvindo uma ilusão. Ela não existe, aquela imagem. A Fox é um fan­tasma, nada mais.

— Isso foi há muito tempo — alegou Herb.

— O fantasma está com a gente, no mundo — disse Em­manuel.

— Isso não é problema meu — falou Herb.

— Mas é meu — retrucou Emmanuel. — Quer dizer, a solução. Não já, mas quando chegar a hora. Você ficou ador­mecido, Herb Asher, porque uma voz mandou você adorme­cer. Este mundo aqui, este planeta, todo ele, todas as pessoas nele, tudo por aqui está adormecido. Foi o que eu observei durante dez anos, e sobre isso não posso dizer nada de bom. O que você fez o mundo faz; ele está onde você estava. Talvez você ainda esteja dormindo. Você está dormindo, Herb Asher? Você ficava sonhando com minha mãe enquanto jazia em sus­pensão criogênica. Verifiquei os seus sonhos. Com eles aprendi uma porção de coisas a respeito dela. Sou tanto ela quanto sou eu mesmo. Como eu disse a ela, ela vive em mim e como eu; fiz com que ela se tornasse imortal. Sua mulher está aqui, não naquele domo bagunçado. Compreende o que quero dizer? Olhe para mim e você vai ver a Rybys que não conhecia.

— Eu... — começou Herb Asher.

— Você não tem nada o que dizer a mim — cortou Em­manuel. — Eu leio o seu coração, não as suas palavras. Conhe­cia você naquele tempo e conheço você agora. "Herbert, Herbert", era eu chamando você. Chamei você para a vida, para o seu bem e para o dela, e por ser para o bem dela era para o meu também. Quando você a ajudou era a mim que estava ajudando. E quando você a ignorou, ignorou a mim. Assim diz o seu Deus.

Elias pôs o braço em torno dos ombros de Herb Asher, para tranqüilizá-lo.

— Sempre digo a verdade para você — continuou o ga­roto. — Não existe falsidade em Deus. Quero que você viva. Já fiz você viver uma vez, quando você estava em morte psico­lógica. Deus não deseja a morte de nenhuma criatura viva; Deus não tem prazer na não-existência. Sabe o que é Deus, Herb Asher? É Aquele de onde se origina o existir. Por outro lado, se você procura a base da existência que é subjacente a tudo, você acaba necessariamente encontrando Deus. Você pode partir do universo fenomênico para Deus, ou do Criador para o universo fenomênico. Cada um implica o outro. O Criador não seria o Criador se não houvesse universo, e o universo dei­xaria de existir se o Criador não o sustivesse. O Criador não antecede no tempo o universo; ele não existe no tempo, sim­plesmente. Deus cria o universo constantemente; esta com o universo, não acima ou junto dele. Para você é impossível entender isso, porque você é uma coisa criada e existe no tempo. Mas um dia você vai retornar ao seu Criador e então de novo você não vai existir mais no tempo. Você é o sopro de seu Criador, e enquanto ele inspirar e expirar você viverá. Lembre-se disso, pois isso resume tudo o que você precisa saber a respeito de seu Deus. Primeiro há uma exalação de Deus, como parte de toda a Criação; e depois, num certo ponto, começa o processo contrário, a inalação. Esse ciclo não cessa nunca. Você me deixa; você está longe de mim; você começa a voltar; e se junta de novo a mim. Você e tudo o mais. É um processo, um fenômeno. É uma atividade; a minha atividade. É o ritmo de meu próprio ser, e sustenta vocês todos.

Espantoso, pensou Herb Asher. Um garoto de dez anos. O filho dela falando assim.

— Emmanuel — advertiu a garota Zina —, você está sendo enfadonho.

O garoto sorriu para ela.

— Truques, então? Seria melhor? Há acontecimentos por vir que preciso estruturar. Tenho que alimentar o fogo que queima, que cauteriza. A Escritura diz:

 

"Pois Ele é o fogo que purifica".

 

E diz também:

 

"Quem poderá suportar o dia de Sua chegada?"

 

Eu, porém, digo que será mais que isso; eu digo:

 

"O dia chega, ardente como uma fornalha; todo ar­rogante e todo malfeitor serão como palha, e esse dia, quando chegar, há de deixá-los em chamas; nem raiz nem broto deles permitirei que reste".

 

— Que é que diz a isso, Herb Asher? — e Emmanuel encarou-o intencionalmente, esperando a resposta.

Zina disse:

 

"Mas para vós que temeis Meu nome, o sol da justiça se erguerá trazendo o lenitivo em suas asas".

 

— É verdade — concordou Emmanuel. Em voz baixa, Elias disse:

 

"E vos sentireis livres como bezerrinhos soltos da estrebaria".

 

— Sim — confirmou Emmanuel, acenando com a cabeça. Herb Asher fixou também o olhar no do menino.

— Tenho medo. Estou assustado.

Estava contente por sentir o braço em torno de si, o braço tranqüilizante de Elias.

— Ele não vai fazer todas essas coisas terríveis — asse­gurou Zina num tom de voz razoável e sereno. — Isso é para intimidar as pessoas.

— Zina! — exclamou Elias. Ela riu.

— É verdade. Pergunte a ele.

— Não submeterás a teste o Senhor teu Deus — disse Emmanuel.

— Não tenho medo — retrucou Zina, tranqüila. Emmanuel disse, para ela:

 

"Eu te vergarei, como a uma vara de ferro,

quebrar-te-ei em muitos pedaços,

como o pote de um oleiro".

 

— Não — refutou Zina, e voltou-se para Herb Asher. — Não há motivo para temer. É uma maneira de falar, mais nada. Venha comigo, se você está intimidado, e vamos con­versar.

— É verdade — disse Emmanuel. — Se você for detido e colocado numa prisão, ela irá com você. Nunca o abando­nará. — Um ar infeliz passou-lhe pelo rosto; de repente ele era, outra vez, um menino de dez anos. — Mas...

— Que foi? — perguntou Elias.

— Não vou dizer agora — falou Emmanuel, expressando-se com dificuldade. Herb Asher, incrédulo, viu lágrimas nos olhos do garoto. — Talvez nunca chegue a dizer. Ela sabe a que me refiro.

— Sei — afirmou Zina, e sorriu. Havia malícia no sorriso, ou assim pareceu a Herb Asher. Isso o intrigou. Não com­preendia o entendimento invisível que havia entre o filho de Rybys e a garota. Ficou perturbado, e seu medo aumentou. Seu profundo constrangimento.

Nessa noite os quatro jantaram juntos.

— Onde você mora? — perguntou Herb Asher à meni­na. — Você tem família? Pais?

— Tecnicamente estou sob tutela da escola oficial que freqüentamos — disse Zina. — Mas para todos os efeitos é Elias que tem minha custódia, agora. Ele entrou com um pro­cesso para ser meu tutor.

— Os três somos uma família — disse Elias, comendo e olhando para o prato. — E agora você também, Herb.

— Eu posso voltar para meu domo — falou Herb. — No sistema CY30-CY30B.

Elias voltou-se espantado para ele, com o garfo no ar.

— Por quê?

— Não me sinto muito bem aqui — respondeu Herb. Não era isso o que pretendia dizer; seus sentimentos estavam confusos. Mas eram intensos. — Há uma espécie de opressão aqui. Lá no espaço a gente tem mais sensação de liberdade.

— Liberdade de ficar deitado no beliche ouvindo Linda Fox? — disse Elias.

— Não — balançou a cabeça.

— Emmanuel — disse Zina —, você o assustou com sua conversa de afligir a Terra com fogo. Ele se lembrou das pragas na Bíblia. Do que aconteceu com o Egito.

— Eu quero ir para casa — declarou Herb, singelamente.

— Você sente falta de Rybys — disse Emmanuel.

— Sinto. Era verdade.

— Ela não está lá — lembrou Emmanuel. Comia deva­gar, taciturno, bocado por bocado. Como se comer, pensou Herb, fosse para ele um ritual solene. Absorção de alguma coisa santificada.

— Você não pode trazê-la de volta? — perguntou a Em­manuel.

O menino não respondeu. Continuou a comer.

— Não há resposta? — insistiu Herb, com amargura.

— Não estou aqui para isso — falou Emmanuel. — Ela compreendeu. Não é importante que você compreenda, mas era importante que ela soubesse. E eu a fiz saber. Você se lembra; estava lá naquele dia, quando eu disse a ela o que ia acontecer.

— Está bem — concordou Herb.

— Ela está viva em outro lugar — continuou Emmanuel. — Você...

— Está bem — repetiu ele, com raiva, com uma enorme raiva.

Emmanuel dirigiu-se a ele, falando lento e tranqüilo, o rosto sereno.

— Você não pegou a coisa, Herbert. Não estou lutando por um universo bom, ou justo, ou sequer bonito; é a própria existência do universo que está em jogo. A vitória de Belial não significa para a raça humana a prisão ou escravidão sem fim, mas a não-existência; sem mim não haverá nada, nem mesmo Belial, que eu criei.

— Coma sua comida — disse Zina, gentilmente.

— O poder do mal — continuou Emmanuel — é o fim da realidade, o cessar da própria existência. É o afastar-se de mansinho tudo o que existe, até que se torne um fantasma, como Linda Fox. O processo já começou. Iniciou-se com a queda original. Parte do cosmo se foi. A própria Divindade sofreu uma crise; pode se figurar isso, Herb Asher? Uma crise no Substrato do Ser? Qual a conseqüência disso para você? A possibilidade de a Divindade deixar de existir, é essa a conse­qüência para você? Porque a Divindade é tudo o que se inter­põe... — calou-se. — Você nem pode imaginar. Nenhuma criatura pode imaginar o não-ser, principalmente seu próprio não-ser. Tenho que garantir o ser de todos os seres. Inclusive o seu.

Herb Asher não fez comentários.

— Uma guerra está por chegar — disse Emmanuel. — Vamos escolher nossos campos. Para nós dois, Belial e eu, vai ser uma mesa sobre a qual vamos fazer o jogo. A parada vai ser o universo, a existência do ser como ser. Fui eu que iniciei esta parte final das idades de guerra; eu entrei no território de Belial, em sua fortaleza. Eu me movimentei, avancei para en­contrá-lo, e não o contrário. Só o tempo dirá se foi uma boa idéia.

— Você não pode prever os resultados? — perguntou Herb.

Emmanuel encarou-o. Em silêncio.

— Pode sim — disse Herb. Você sabe como será o fu­turo, pensou. Sabe já, agora; sabia quando se colocou no ventre de Rybys. Sabia desde o início da Criação, desde antes da Criação mesmo; antes de existir um universo.

— Eles devem seguir as regras — explicou Zina. — Re­gras convencionadas.

— Então — deduziu Herb — foi por isso que Belial não atacou você. Por isso é que você pôde viver aqui e crescer durante dez anos. Ele sabe que você está aqui...

— Será que sabe? — interpôs Emmanuel. Silêncio.

— Não contei a ele — disse Emmanuel. — Não era obri­gação minha. Ele tem que descobrir por si mesmo. Não estou me referindo ao governo. Me refiro ao poder que realmente administra, e comparado ao qual o governo, todos os governos, são meras sombras.

— Ele vai informá-lo quando estiver pronto — disse Zi­na. — Quando estiver preparado.

— Você está preparado, Emanuel? — perguntou Herb. O menino sorriu. Um sorriso infantil, uma mudança total

do austero semblante de um momento atrás. Não disse nada. Um jogo, deu-se conta Herb Asher. Um jogo de criança!

Estremeceu.

Zina disse:

 

"O tempo é uma criança a brincar, jogando damas; a uma criança pertence o reino".

 

— De onde é isso? — perguntou Elias.

— Não é do judaísmo — respondeu Zina, ambiguamente, e sem explicar nada.

A parte dele que deriva da mãe, compreendeu Herb Asher, tem dez anos de idade. E a parte que é Yah não tem idade, é eterna. Um composto de muito jovem e de sempiterno: exatamente o que Zina afirmou com sua citação obscura.

Talvez não fosse única, essa mistura. Alguém talvez ti­vesse notado isso, anteriormente; notado e declarado em pa­lavras.

— Você se aventurou no reino de Belial — disse Zina a Emmanuel, enquanto comia —, mas será que teria coragem de se aventurar no meu reino?

— Que reino é esse? — indagou Emmanuel. Elias Tate olhou para a garota, e, igualmente intrigado, Herb Asher tam­bém olhou. Mas Emmanuel parecia tê-la compreendido; não se mostrou surpreso. Apesar da pergunta que ele fez, pensou Herb Asher, ele sabe. Já sabe.

— Onde eu não sou como você me vê agora — respon­deu Zina.

Houve um intervalo, enquanto Emmanuel meditava. Ele não falou nada; recostou-se como se tivesse se ausentado, como se sua mente tivesse se retirado para bem longe. Percorrendo mundos incontáveis, pensou Herb Asher. Como isso é esqui­sito. De que é que eles estão falando?

— Tenho que cuidar de um mundo terrível — disse Em­manuel, lenta e cuidadosamente. — Não tenho tempo, Zina.

— Acho que você está com medo — comentou ela, voltando-se para sua torta de maçã e seu sorvete.

— Não estou.

— Então venha — disse ela, e, logo em seguida, a cor e o fogo, a malícia e o prazer se mostraram em seus olhos escuros. — Desafio você. Aqui — e estendeu a mão para o garoto.

— Meu esplendor psíquico — fez Emmanuel, sombrio.

— Sim; serei seu guia.

— Vai dirigir o Senhor seu Deus?

Quero mostrar-lhe de onde vêm os sinos. A terra de onde vêm os sons deles. Que é que você diz?

— Eu vou — disse ele.

— De que é que vocês dois estão falando? — perguntou Elias, preocupado. — Manny, que é isso? Que é que significa? Ela não vai levar você para nenhum lugar que eu não conheça.

Emmanuel olhou para ele.

— Você tem muita coisa para fazer — disse Elias.

— Não existe reino — declarou Emmanuel — onde eu não esteja. Caso seja real, e não fantasia. É fantasia o seu reino, Zina?

— Não. É real.

— Onde é que ele fica — perguntou Elias.

— Aqui — respondeu Zina.

— Aqui? — admirou-se Elias. — Que é que você quer dizer com isso? Estou vendo o que está aqui; aqui é aqui.

— Ela está certa — disse Emmanuel. — O espírito de Deus — falou para Zina — acompanha você.

— E acredita em mim?

— Isso é um jogo — disse Emmanuel. — Tudo é jogo para você. Vou jogar. Posso fazer isso. Vou jogar e voltar. Voltar para este reino.

— Considera este reino tão importante para você? — per­guntou Zina.

— É um lugar horrível — declarou Emmanuel. — Mas é aqui que tenho que agir naquele grande e terrível dia.

— Transfira o dia — recomendou Zina. — Eu vou adiá-lo; vou mostrar para você os sinos que você ouve, e como resultado esse dia vai... — interrompeu-se.

— Ele vai chegar de qualquer maneira — afirmou Em­manuel. — Está predeterminado.

— Então vamos jogar agora — disse Zina, misteriosa­mente.

Herb e Elias, ambos continuavam confusos. Cada um sa­be o que o outro quer dizer, mas eu não, pensou Herb Asher. Para onde é que ela vai levá-lo, se a coisa está aqui? Estamos aqui agora.

— A Comunidade Secreta — falou Emmanuel.

— Maldito seja, não! — exclamou Elias, e atirou contra a parede sua xícara, que se quebrou em mil pedaços. — Manny, já ouvi falar desse lugar!

— Que lugar é esse? — perguntou Herb Asher, espan­tado com a cólera do velho.

— Esse é o termo correto — disse Zina, calmamente. — "De natureza intermediária entre o homem e o anjo" — citou.

— Ela está atraindo você para lá! — disse Elias, furioso; inclinou-se e segurou o menino com as mãos enormes.

— É assim mesmo — afirmou Emmanuel.

— Você sabe para onde ela está levando você? — inda­gou Elias. — Deve saber. Você não tem medo, Manny; isso é um erro. Você devia estar assustado. — Virou-se para Zina. — Dê o fora daqui! Não sei o que você é. — Encarou-a com uma expressão de violência e de terror, os lábios tremendo. — Não conheço você; não entendo.

— Mas ele sim — retorquiu Zina. — Emmanuel conhece. A placa contou para ele.

— Vamos terminar o jantar — disse Emmanuel. — De­pois, Zina, eu vou com você — e voltou a comer à sua ma­neira metódica, o rosto impassível. — Tenho uma surpresa para você, Zina.

— O quê? O que é?

— Uma coisa que você não conhece — Emmanuel inter­rompeu seu jantar. — Foi predeterminada, desde o início. Eu a vi antes que o universo existisse. Minha viagem pela sua terra.

— Então você sabe como ela termina — falou Zina. Pela primeira vez ela pareceu hesitar; gaguejou. — Às vezes es­queço que você sabe tudo.

— Tudo não. Por causa da lesão no meu cérebro, o aci­dente. Tornou-se uma variável fortuita, introduzindo a possi­bilidade.

— Deus jogando dados? — indagou Zina, de sobrecenho erguido.

— Se necessário — respondeu Emmanuel. — Se não houver outro meio.

— Você planejou assim — disse Zina. — Será que pla­nejou? Não consigo perceber. Você está com uma lesão. Pode ser que não tivesse sabido... Você está me experimentando, Emmanuel — ela riu. — Muito bem. Não posso ter certeza. Muito bem mesmo. Meus cumprimentos.

— Você tem que continuar sem saber se eu planejei tudo ou não. Assim, a vantagem é minha.

Ela deu de ombros. Mas Herb Asher teve a impressão de que não recuperara a segurança. Emmanuel a abalara. Isso é bom, pensou.

— Não me abandone, Senhor — pediu Elias, em voz trêmula. — Leve-me junto.

— Está bem — concordou o garoto.

— E eu, o que vou fazer? — perguntou Herb Asher.

— Venha — disse Zina.

— A Comunidade Secreta. Nunca acreditei que ela exis­tisse — falou Elias. Olhou carrancudo para a menina. — Ela não existe; essa é a verdade! — desafiou.

— Existe sim — retorquiu ela. — Aqui mesmo. Venha conosco, Mr. Asher. O senhor é bem-vindo. Mas lá eu não sou como sou aqui. Nenhum de nós. Exceto você, Emmanuel.

Elias virou-se para o garoto.

— Senhor...

— Há uma porta para a terra dela — disse Emmanuel. — Fica em qualquer lugar onde exista a Relação Dourada. Não é mesmo, Zina?

— É.

— Baseada na Constante de Fibonacci — continuou Em­manuel. — Uma proporção — explicou para Herb Asher. — 1:0,618034. Os antigos gregos conheciam-na como Seção Dou­rada ou Retângulo de Ouro. Utilizavam-na na arquitetura... por exemplo, o Partenon. Para eles era um modelo geométrico, mas Fibonacci de Pisa, na Idade Média, desenvolveu-o em termos puramente numéricos.

— Apenas nesta sala — disse Zina — posso contar inú­meras portas. A proporção — e voltou-se para Herb Asher — é a usada nas cartas de baralho; 3 para 5. É encontrada na concha dos caracóis e em nebulosas extragalácticas, desde os padrões de formação dos cabelos na sua cabeça até...

— O universo todo está impregnado dela — interpôs Emmanuel —, do microcosmo ao macrocosmo. Foi considerada como um dos nomes de Deus.

Num quarto da casa de Elias, Herb Asher arrumava a cama para dormir quando Elias apareceu à porta, num grosso roupão meio amarrotado.

— Posso bater um papo com você? Herb anuiu.

— Ela o está levando embora — disse Elias. Entrou no quarto e sentou-se. — Compreende o que está acontecendo? A coisa não veio de onde a gente esperava. De onde eu espe­rava — corrigiu-se. De semblante carregado, cruzava e descru-zava as mãos. — O inimigo apareceu sob uma forma diferente.

— Belial? — perguntou Herb.

— Não sei, Herb. Conheci essa menina durante quatro anos. Penso bastante nela. De certo modo, gosto dela. Muito, quase tanto quanto gosto de Manny. A amizade dela tem sido muito importante para ele. Aparentemente ele soube, talvez não de imediato... mas a certa altura acabou percebendo. Eu verifiquei; pesquisei no meu terminal de computador a palavra zina. Em romeno quer dizer fada. Um outro mundo descobriu Emmanuel. Ela se aproximou dele no primeiro dia de escola. Agora sei por quê. Ela estava esperando. Aguardando a chega­da dele. Compreende?

— Então é por isso que havia aquela malícia nos olhos dela — comentou Herb Asher. Sentiu-se cansado. Tinha sido um longo dia.

— Ela vai conduzi-lo o tempo todo, e ele vai segui-la. Seguir sabendo de tudo, acho. Ele antevê as coisas. É o que se pode chamar de conhecimento apriorístico do universo. Uma só vez, e ele antevê tudo. Depois, não mais. É esquisito pensar nisso, que ele pode prever sua própria incapacidade de prever, seu esquecimento. Tenho que confiar nele, Herb; não há outro jeito... — fez um gesto com as mãos. — Você compreende.

— Ninguém pode dizer a ele o que fazer.

— Herb, não quero perdê-lo.

— Como é que ele pode se perder?

— Houve uma ruptura na Divindade. Um cisma original. Essa é a base de tudo, da confusão, destas condições aqui, de Belial e de todo o resto. Uma crise que provocou a queda de parte da Divindade; a Divindade dividiu-se, e uma parte con­tinuou transcendente e outra degradou-se; degradou-se com a Criação, com o mundo. A Divindade perdeu contato com uma parte de si mesma.

— E pode continuar se fragmentando?

— Sim — afirmou Elias. — Pode haver outra crise. O que está havendo pode ser essa crise. Não sei. Nem mesmo sei se ele sabe. A parte humana dele, a parte derivada de Rybys, conhece o medo, mas a outra metade, essa é intrépida. Por motivos óbvios. Talvez isso não seja bom.

Nessa noite Herb Asher sonhou que uma mulher estava can­tando para ele. Parecia com Linda Fox mas não era ela; pôde vê-la bem, e era de uma beleza incrível, arrebatadora e lumi­nosa, com um rosto ardente e olhar cintilante que o encarava com amor. Ele e a mulher estavam num carro, ela dirigia; ele apenas a olhava, maravilhado por sua beleza. Ela cantava:

 

"Você tem que calçar as sandálias e caminhar para o arrebol".

 

Mas ele não precisou caminhar porque ela o estava levan­do. Ela estava vestida de branco, e no cabelo esvoaçante usa­va uma coroa. Era muito jovem, mas sem dúvida nenhuma uma mulher — não uma criança, como Zina.

Quando acordou de manhã, a beleza e o canto da mulher não o abandonavam; não conseguia esquecer. Ela é muito mais bonita do que a Fox, pensou. Nunca podia imaginar. Prefiro esta. Quem será ela?

— Bom dia — disse Zina ao passar rumo ao banheiro. Ele viu que ela estava de sandálias. Mas Elias também, quando apareceu. Que quer dizer isso?, perguntou-se Herb.

Não sabia responder.

 

— Você dança e canta toda noite — disse Emmanuel. E é tão bonito, pensou. — Mostre-me — pediu.

— Então vamos começar — disse Zina.

Sentou-se à sombra das palmeiras e viu que estava no Jardim, mas era o jardim que ele mesmo formara, no começo da Cria­ção; não fora trazido ao reino dela. Este era o próprio reino dele, restaurado.

Casas e veículos, mas as pessoas não tinham pressa. Es­tavam sentadas aqui e ali, gozando o sol. Uma mulher jovem desabotoara a blusa, e seus seios brilhavam com a transpiração; o sol irradiava calor e luz.

— Não — contestou ele — aqui não é a Comunidade.

— Eu te levei pelo caminho errado — disse Zina. — Mas não faz mal. Há alguma coisa errada com este lugar? Falta alguma coisa? Você sabe que não; é o Paraíso.

— Eu o fiz assim — disse ele.

— Muito bem — continuou Zina —, este é o Paraíso que você criou e eu vou lhe mostrar algo melhor. Venha — estendeu o braço e pegou-o pela mão. — Ali no prédio da caixa econômica há a porta de um Retângulo de Ouro. Pode­mos entrar por ela; é tão boa quanto qualquer outra.

Conduziu-o até a esquina, esperaram o semáforo abrir e seguiram juntos pela calçada, cruzando por transeuntes sosse­gados, até a caixa econômica.

— Eu... — fez Emmanuel, parando na escadaria.

— A passagem é aqui — disse ela, e puxou-o pelos de­graus. — Aqui termina o seu reino e começa o meu. Daqui por diante as leis são minhas — e apertou com mais força a mão dele.

— Vá lá — concedeu ele, e acompanhou-a.

— A senhora não está com seu talão de cheques, Ms. Pallas? — perguntou o caixa-robô.

— Está na minha bolsa. — Ao lado de Emmanuel, a jo­vem mulher abriu a bolsa de couro, atulhada de chaves, cosmé­ticos, cartas, bugigangas, e procurou até que os dedos ligeiros encontraram o talão de cheques. — Vou sacar... Qual é o meu saldo?

— O canhoto do talão de cheques indica — informou o caixa-robô com voz impassível.

— Ah, é — concordou ela. Consultou o canhoto, desta­cou um cheque e preencheu-o.

— A senhora vai encerrar sua conta? — indagou o caixa-robô, quando recebeu o cheque.

— Sim.

— Nossos serviços não agradaram a...

— Estou encerrando a conta porque quero e você não tem nada com isso — retorquiu ela. De cotovelos apoiados no balcão, balançava-se para diante e para trás. Emmanuel per­cebeu que ela estava de saltos altos. Tinha se tornado mais ve­lha. Vestia malha de algodão estampado e jeans, e usava o cabelo penteado para trás preso com uma travessa. E estava de óculos escuros. Ela sorriu para ele.

Ela já mudou, pensou ele.

Logo depois estavam no estacionamento do teto da caixa econômica; Zina procurou na bolsa a chave de seu aerocarro.

— Está um dia bonito. Entre; vou destravar a porta para você — esticou o braço por trás da direção para destravar a maçaneta da porta oposta.

— É um carro muito bonito — disse ele. Ela vai reve­lando seu domínio aos poucos, pensou. Primeiro me trouxe para meu mundo-jardim e agora me leva, degrau por degrau, ascendendo até o reino dela. Vai retirando a cobertura, uma por uma, enquanto penetramos cada vez mais. Por enquanto é apenas a superfície.

Isto é encantamento, pensou. Cuidado!

— Gosta do meu carro? Ele me permite...

— Você está mentindo, Zina! — interrompeu-a brusca­mente.

— Que é que você está querendo dizer com isso? — O aerocarro elevou-se na atmosfera morna do meio-dia até juntar-se à corrente de tráfego. Mas o sorriso desaparecera do rosto dela. — É o começo — disse ela. — Não quero alarmar você.

— Aqui, neste mundo, você não é uma criança. Aquilo era uma forma que você tomou, uma pose.

— Esta é minha forma real. Juro.

— Zina, você não tem forma real. Eu conheço você.

Qualquer forma é possível para você. Qualquer forma que queira tomar no momento. Você muda de um momento para outro, como uma bolha de sabão.

Zina voltou-se para ele, ao mesmo tempo prestando aten­ção no tráfego.

— Agora você está no meu mundo, Yah. Tome cuidado.

— Posso queimar seu mundo.

— Ele simplesmente retornaria. Ele está em toda parte o tempo todo. Nós não nos afastamos muito: a poucos quilô­metros daqui fica nossa escola, e ali perto, em casa, Elias e Herb Asher estão discutindo sobre o que fazer. Espacialmente, isto não é outro lugar, e você bem sabe.

— Mas aqui quem faz as leis é você.

— Belial não está aqui — disse ela.

Ele ficou surpreendido. Não tinha previsto aquilo, e, com­preendendo que não previra aquilo, percebeu que na realidade não previra a situação total. Errar numa pequena parte era errar no todo.

— Ele nunca penetrou em meu reino — falou Zina, abrindo caminho no meio do tráfego aéreo por sobre Washing­ton, D.C. — Ele nem mesmo tem conhecimento desse reino. Vamos voar por sobre a Tidal Basin e olhar as cerejeiras japo­nesas. Nesta época estão floridas.

— Estão floridas já? — duvidou ele; parecia-lhe muito cedo para isso.

— Estão florescendo — disse Zina, e dirigiu o aerocarro para o centro da cidade.

— No seu mundo — murmurou ele. Compreendeu. — Agora é primavera — disse. Podia ver as folhas e as flores nas árvores lá embaixo. Toda a extensão de verde brilhante.

— Abaixe a janela — disse ela. — Não faz frio.

— O calor no Jardim das Palmeiras...

— Calor seco, que estiola e faz mirrar — disse ela. — Abrasando o mundo e transformando-o em deserto. Você sem­pre foi injusto para com as terras áridas. Preste atenção, Iavé. Vou mostrar-lhe coisas que você nunca viu. Você passou de terras áridas para uma paisagem gelada; cristais de metano, com pequenos domos aqui e ali, e nativos estúpidos. Você não sabe nada! — os olhos dela brilhavam. — Você se oculta nas regiões áridas e promete ao seu povo um refúgio que ele nunca encontra. Todas as suas promessas falharam; o que é bom, aliás, porque quase tudo o que você prometeu a ele foi que havia de amaldiçoá-lo e afligi-lo e destruí-lo. Agora cale-se. Meu tempo e meu reino chegaram; este é meu mundo e é primavera e o ar não vai crestar as plantas; nem você vai. Você não vai ferir ninguém aqui em meu reino. Entende?

— Quem é você? — perguntou ele. Ela riu.

— Meu nome é Zina. Fada.

— Acho... — parou, confuso. — Você...

— Iavé — falou a mulher —, você não sabe quem eu sou e não sabe onde está. Isto aqui é a Comunidade Secreta? Ou você foi tapeado?

— Você me tapeou — afirmou ele.

— Eu sou o seu guia — falou ela. — Como diz Sepher Yezirah:

 

"Entenda esta grande sabedoria, compreenda este co­nhecimento, informe-se e medite sobre ele, torne-o evi­dente e conduza o Criador de volta a Seu trono mais uma vez".

 

— E isso — concluiu ela —- é o que vou fazer. Mas por um caminho em que você não acreditaria. Um caminho que você não conhece. Você tem que confiar em mim; confie em seu guia como Dante confiou no dele, através dos reinos, cada vez mais para cima.

— Você é o Adversário — falou ele.

— Sim — confirmou Zina — Sou.

Mas, pensou ele, isso não é tudo. Não tão simples assim. Você é complexa, compreendeu, você que dirige este carro. Paradoxo e contradições, e acima de tudo seu gosto pelos jogos. Seu desejo de brincar. Tenho que pensar nisso desse jeito, com­preendeu, como se fosse um jogo.

— Vou jogar — concordou. — Eu quero.

— Ótimo — disse ela. — Pode me pegar um cigarro na minha bolsa? O tráfego está ficando pior; vai ser difícil encontrar um lugar para estacionar.

Ele revolveu a bolsa dela, sem êxito.

— Não consegue encontrar? Continue procurando. Estão aí.

— Você tem coisas demais na bolsa — ele encontrou o maço e estendeu-o a ela.

— Deus não acende um cigarro para uma mulher? — fez ela, pegando um e apertando o botão do isqueiro do painel.

— Como é que um garoto de dez anos pode saber disso? — retrucou ele.

— Esquisito — comentou ela. — Sou velha o bastante para ser sua mãe. E no entanto você é mais velho do que eu. Isso é um paradoxo; você sabia que iria encontrar paradoxos aqui. Meu reino está cheio deles, como você estava pensando agora mesmo. Quer voltar, Iavé? Para o Jardim das Palmeiras? Ele é irreal, e você sabe disso. Até que consiga infligir a derrota definitiva em seu Adversário, o Jardim continuará irreal. É um mundo que se foi, que agora é apenas uma lembrança.

— Você é o Adversário — disse ele, confuso —, mas você não é Belial.

— Belial está numa jaula do zoológico de Washington, D.C. — disse Zina. — No meu reino. Como exemplar de vida extraterrestre, exemplar bem deplorável. Uma coisa de Sirius, do quarto planeta do Sistema de Sirius. As pessoas ficam olhan­do, embasbacadas.

Ele riu.

— Você acha que estou brincando. Vou levá-lo até o zoológico. Vou mostrar.

— Acho que você está falando sério — riu de novo; aquilo lhe dava prazer. — O Inimigo numa jaula do zoológico. Como? com sua própria temperatura, gravidade e atmosfera, e comida importada? Uma forma de vida exótica?

— Ele está louco da vida por causa disso — disse Zina.

— Imagino que sim. E, para mim, o que você planejou, Zina?

— A verdade, Iavé — disse ela, grave. — Vou lhe mos­trar a verdade antes que você vá embora. Nem pensaria em enjaular o Senhor Nosso Deus. Você está livre para percorrer minha terra; está livre desde agora, Iavé. Completamente. Dou minha palavra.

— Ilusões — disse ele. — A promessa de uma zina. Com um pouco de dificuldade, ela encontrou uma vaga

para estacionar.

— Está bem — disse. — Vamos andar por aí olhando as cerejeiras. Iavé, a cor delas é a minha, o cor-de-rosa. É mi­nha marca. Enquanto você vir esse rosa brilhante, eu estou por perto.

— Conheço esse cor-de-rosa. É a reação automática do olho humano ao branco total, à luz pura do sol.

— Veja as pessoas — disse ela, fechando o carro.

Ele olhou em torno. Não viu ninguém. As árvores, cobertas de flores, margeavam a Tidal Basin num grande semicírculo. Mas, apesar dos carros estacionados, nenhuma pessoa passeava por ali.

— É uma ilusão, então — disse ele.

— Você está aqui, Iavé — disse Zina —, portanto posso adiar seu grande e terrível dia. Não quero ver o mundo casti­gado. Quero mostrar-lhe o que você ainda não viu. Só nós dois estamos aqui; mais ninguém. Pouco a pouco vou apre­sentar meu reino, e, quando terminar, você vai retirar a mal­dição que lançou sobre o mundo. Já faz anos que observo você. Vi seu desgosto pela raça humana, pela inutilidade dela. E lhe digo que ela não é imprestável; não merece perecer, como você costuma dizer de modo pomposo. O mundo é belo e eu sou bela e são belas as cerejeiras em flor. O caixa-robô da caixa econômica, mesmo ele é bonito. O poder de Belial é mera obstrução a esconder o mundo real, e se você atacar o mundo real, como veio fazer na Terra, então vai destruir a beleza e a bondade e o encantamento. Lembra-se do cachorro esmagado morrendo na lama à beira da estrada? Recorde o que sentiu por ele; o que percebeu que ele era. Recorde o epitáfio que Elias compôs para ele e sua morte. Lembre-se da dignidade daquele cachorro, e lembre-se também de que ele era inocente. Sua morte foi obra de uma necessidade cruel. Cruel e errada. O cachorro...

— Eu sei — disse ele.

— Sabe o quê? Que o cachorro foi tratado de forma errada? Que nasceu para sofrer dores injustas? Não foi Belial que matou o cachorro, foi você, Iavé, o Senhor dos Exércitos. Belial não trouxe a morte para o mundo, porque a morte sempre esteve no mundo; desde há 1 bilhão de anos ela está neste planeta, e o que aconteceu ao cachorro é o destino de todo ser que você criou. Você chorou por aquele cachorro, não foi? Acho que naquele momento você entendeu, mas agora já esqueceu. Se eu tivesse que fazer você se recordar de alguma coisa, seria daquele cachorro e do que você sentiu por ele; gostaria de fazê-lo lembrar-se de como aquele cachorro lhe mostrou o Caminho. É o caminho da compaixão, o mais nobre de todos, e não creio que você realmente tenha compaixão, não creio mesmo. Você está aqui para destruir Belial, seu adver­sário, e não para emancipar a humanidade; você veio aqui para fazer guerra. Isso é uma coisa digna para você? Duvido. Onde está a paz que você prometeu ao homem? Você chegou com uma espada e milhões vão morrer; um cachorro agonizante multiplicado milhões de vezes. Você chorou pelo cachorro, chorou por sua mãe e até mesmo por Belial, mas eu te digo, se você quer enxugar as lágrimas, como diz a Escritura, vá embora, deixe este mundo, porque o mal deste mundo, que você chama de "Belial" e de seu "Adversário", é uma forma de ilusão. Este povo não é ruim. Este mundo não é mau. Não faça guerra contra ele, ao contrário, traga-lhe flores.

E ela colheu um maço de flores de cerejeira, oferecendo-o a ele, que o recebeu mecanicamente.

— Essa é minha tarefa — disse ela. — Digo essas coisas porque são coisas que conheço. Não há falsidade em você, nem também em mim, mas enquanto você amaldiçoa, eu brinco. Qual de nós encontrou o Caminho? Por 2.000 anos você aguardou uma oportunidade até poder penetrar na fortaleza de Belial para derrotá-lo. Sugiro que tente outra coisa. Venha comigo e vamos observar as flores. É melhor. E o mundo vai continuar evoluindo como sempre. Agora é primavera. E quan­do crescem as flores, e comigo há também danças e o som dos sinos. Você ouviu os sinos e sabe agora que a beleza deles é maior que o poder do mal. De certo modo essa beleza é maior mesmo que o poder que você tem, Iavé, Senhor dos Exércitos. Não concorda?

— Magia — disse ele. — Encantamento.

— A beleza é encantamento — retrucou ela — e a guer­ra, uma realidade. Você quer a sobriedade da guerra ou a into­xicação do que está vendo aqui em meu mundo? Agora esta­mos sós, mas mais tarde surgirão pessoas; vou repovoar meu reino. Neste momento, porém, quero conversar com você since­ramente. Sabe quem eu sou? Você não sabe, mas ao final levarei você de volta, degrau por degrau, até seu trono, você, o Criador, e aí você saberá quem sou eu. Você teve uma intui­ção, mas não foi correta. Há muitas intuições que você aban­donou, você que sabe tudo. Eu não sou a Sagrada Sabedoria e nem sou Diana; não sou uma zina; nem sou Pallas Atena. Sou algo mais. Sou a rainha da primavera e também não sou; como você disse, isso são ilusões. O que eu sou, aquilo que realmente eu sou, você vai ter que descobrir por si mesmo. Agora vamos passear.

Caminharam pela alameda, junto do lago e das árvores.

— Somos amigos, você e eu — disse Emmanuel. — Sin­to-me inclinado a ouvir você.

— Então adie seu grande e terrível dia. Não existe nada de bom na morte pelo fogo; é a pior de todas as mortes. Você é o calor solar que destrói as multidões. Há quatro anos que estamos juntos, você e eu. Tenho observado como sua memória retorna, e lamento essa volta. Você afligiu aquela infeliz mulher que foi sua mãe; angustiou sua própria mãe, que você diz amar tanto, por quem você chorou. Em vez de fazer a guerra contra o mal, cure o cachorro que agoniza na lama e enxugue assim suas próprias lágrimas. Detestei ver você chorar. Você chorou porque reassumiu sua própria natureza e compreendeu essa natureza. Você chorou porque entendeu o que você é. Ele não disse nada.

— Há perfume no ar — disse Zina.

— É mesmo — concordou ele.

— Vou trazer as pessoas de volta — disse ela. — Uma por uma, até que estejam todas em torno de nós. Observe-as, e, quando você vir uma que mereça morrer, diga-me e eu a banirei outra vez. Mas você tem que olhar bem essa pessoa que deve morrer, deve ver nela o cachorro esmagado e agoni­zante. Só depois é que terá o direito de matar essa pessoa; só depois de chorar por ela. Compreende?

— Perfeitamente — respondeu ele.

— Por que você não chorou pelo cachorro antes de ele ser atropelado? Por que esperou até que fosse tarde demais? O cachorro aceitou essa situação, mas eu não. Eu o aconselho; sou seu guia. E lhe digo: é errado o que você faz. Ouça-me. Pare com isso!

— Eu vim para libertá-los da opressão — disse ele.

— Você está enfraquecido. Eu sei; sei o que aconteceu à Divindade, a crise original. Não é segredo para mim. Nessas condições você busca libertá-los da opressão por meio de um grande e terrível dia. É razoável isso? É assim que você livra os prisioneiros?

— Eu tenho de quebrar o poder de...

— Onde está esse poder? No governo? Bulkowsky e Harms? Eles são idiotas; são uma piada. Vai matá-los? A pena de talião que você revogou; eu digo:

 

"Aprendeste o que está escrito: Olho por olho e den­te por dente. Mas eu te digo: não ofereças resistência aos maus".

 

— Você tem que viver segundo suas próprias palavras; não deve oferecer resistência a seu Adversário Belial. O poder dele não se exerce aqui em meu reino; ele não está aqui. O que está aqui é um passatempo numa jaula do zoológico. Nós o alimentamos e lhe oferecemos água e atmosfera na tempera­tura necessária; tentamos fazer a coisa o mais confortável possível. No meu reino não se mata. Não existe aqui nenhum grande e terrível dia e jamais haverá. Fique em meu reino ou tome conta dele, mas poupe Belial; poupe todo mundo. Assim você não terá que chorar, e as lágrimas, como você prometeu, serão enxugadas.

— Você é Cristo — disse Emmanuel.

— Não, não sou — negou Zina, rindo.

— Você cita as palavras dele.

— Mesmo o demônio pode citar a Escritura.

Em torno deles começaram a aparecer pessoas em roupas leves de verão. Os homens em mangas de camisa, as mulheres de vestido. E todas as crianças.

— A rainha das fadas — disse ele. — Você me ilude. Me conduz pela alameda com luzes, danças, cantos, e o som dos sinos; sempre o som dos sinos.

— Os sinos são tocados pelo vento — disse Zina. — E o vento fala a verdade. Sempre. O vento do deserto. Você conhece; eu o vi prestando atenção ao vento. Os sinos são a música do vento; ouça-os.

Ele ouviu, então, os sinos encantados. Ecoavam distantes; muitos sinos, pequeninos, não sinos de igreja, mas sinos fan­tásticos.

Era o mais lindo dos sons que já escutara.

— Eu mesmo não consigo fazer um som assim — disse para Zina. — Como é que são produzidos?

— Pela vigília — respondeu Zina. — O som dos sinos nos acorda. Desperta-nos do sono. Você despertou Herb Asher por uma introdução cruel; eu utilizo a beleza.

Um vento suave e primaveril perpassou por eles, eflúvios do reino dela.

 

Estou sendo envenenado, disse Emmanuel para si mesmo. As emanações do seu reino me envenenam e poluem minha von­tade.

— Você está enganado — disse Zina.

— Sinto-me menos forte.

— O que você sente é menos indignação. Vamos buscar Herb Asher. Quero que ele esteja conosco. Vou estreitar a área de nosso jogo; prepará-la especialmente para ele.

— De que jeito?

— A gente luta por ele — disse Zina. — Venha — e acenou para que o garoto a acompanhasse.

Herb Asher estava sentado no salão, com um copo de uísque e água à sua frente. Fazia uma hora que esperava, mas o espe­táculo ainda não tinha começado. O salão estava cheio. O barulho contínuo perturbava. Mas, para ele, valia a pena, a des­peito do preço um tanto exagerado do couvert.

— Não entendo o que você vê nela — disse Rybys, sen­tada à sua frente, do outro lado da mesa.

— Ela vai fazer uma bela carreira — disse Herb —, se tiver oportunidade.

Ficou pensando se os pesquisadores de talentos das gra­vadoras viriam ao Golden Hind. Tomara que sim, murmurou para si mesmo.

— Gostaria de ir embora. Não me sinto bem. Podemos ir?

— Preferia ficar.

Rybys tomou um gole do seu drinque misto, inquieta.

— Muito barulho — falou, a voz praticamente inaudível. Ele olhou o relógio.

— Quase nove. A primeira apresentação dela é às 9 ho­ras.

— Quem é ela? — perguntou Rybys.

— É uma cantora nova, muito jovem — explicou Herb Asher. — Ela adaptou as canções de alaúde de John Dowland para...

— Quem é John Dowland? Nunca ouvi falar dele.

— Inglês, do final do século XVI. Linda Fox modernizou suas canções de alaúde; foi o primeiro compositor a escrever para solista; antes dele quatro ou mais pessoas cantavam... o estilo antigo dos madrigais. Não dá para explicar; você tem que ouvi-la.

— Se ela é tão boa, por que não está na TV? — con­testou Rybys.

— Vai estar — assegurou Herb.

As luzes do palco começaram a aumentar de intensidade. Três músicos apareceram e começaram a remexer no sistema de áudio. Cada um portava um vibro-alaúde.

Alguém tocou o ombro de Herb Asher.

— Oi.

Ele ergueu os olhos e viu uma mulher jovem que não conhecia. Mas, pensou, parece que ela me conhece.

— Desculpe... — começou.

— Posso entrar?

A mulher, bonita, de blusa estampada com flores e de jeans, com uma bolsa pendurada no ombro, puxou uma cadeira e sentou-se ao lado de Herb Asher.

— Sente-se, Manny — disse ela para um menino que estava junto deles, todo constrangido.

Que linda criança, pensou Herb Asher. Como é que con­seguiu entrar aqui? É proibida a entrada de menores...

— São amigos seus? — perguntou Rybys.

— Herb não me via desde os tempos de faculdade — disse a bela jovem de cabelos escuros. — Como é que vai, Herb? Não me reconhece?

Ela estendeu a mão e mecanicamente Herb apertou-a. E então, cumprimentando-a, lembrou-se. Tinham estado juntos na escola, um curso politécnico.

— Zina — pronunciou ele, deliciado. — Zina Pallas.

— Este é meu irmãozinho — disse Zina, forçando o ga­roto a sentar-se. — Manny. Manny Pallas. — Virou-se para Rybys. — Herb não mudou nada, nada. Reconheci-o assim que o vi. Vocês vieram ver Linda Fox? Nunca a ouvi cantar. Dizem que é muito boa.

— É realmente boa — confirmou Herb, satisfeito com o apoio recebido.

— Oi, Mr. Asher — disse o garoto.

— Muito prazer, Manny — e apertou a mão do menino. — Esta é minha mulher, Rybys.

— Então você se casou. Se incomoda se eu fumar? — e Zina acendeu um cigarro. — Estou sempre tentando largar, mas cada vez que deixo de fumar passo a comer muito e en­gordo que nem um porco.

— A sua bolsa é de couro legítimo? — perguntou Rybys, interessada.

— É — e Zina passou a bolsa para a outra examinar.

— Nunca vi uma bolsa de couro antes — disse Rybys.

— Lá está ela — disse Herb Asher. Linda Fox apareceu no palco. Todos aplaudiram.

— Parece uma garçonete de pizzaria — comentou Rybys. Zina pegou a bolsa de volta.

— Se ela está a fim de fazer carreira mesmo vai ter que emagrecer um pouco. Quer dizer, ela tem boa aparência, mas...

— Que é que vocês têm tanto contra gordura — irritou-se Herb Asher.

— Herbert, Herbert — falou o garoto Manny.

— Sim? — e abaixou-se para ouvir.

— Lembre-se — disse o menino.

Espantado, ele começou a dizer "Lembre o quê?", mas aí Linda Fox pegou o microfone, semicerrou os olhos e iniciou uma canção. Seu rosto era redondo, e tinha quase um queixo duplo, mas a pele era bonita e, o mais importante para ele, ela possuía longas pestanas que piscavam enquanto cantava; ela o hipnotizava, e ele sentou-se, enfeitiçado. Linda estava usando um vestido decotadíssimo, e mesmo de longe ele podia ver o bico dos seus seios. Ela estava sem sutiã.

 

"Devo demandar? Ou pedir graça?

Devo rogar? Devo comprovar?

Devo lutar por um prazer celestial

Trazendo no peito um amor terrestre?"

 

— Detesto essa canção — disse Rybys, alto. — Já a ouvi em algum lugar.

Uma porção de gente reclamou fazendo "psiu!"

— No entanto não era ela que cantava — continuou Rybys. — Nem mesmo original ela é. Essa canção... — calou-se, mas não estava contente.

Quando a canção terminou e o público começou a aplau­dir, Herb Asher voltou-se para a esposa.

— Você nunca ouviu Devo Demandar antes. Ninguém canta essa cantiga, só Linda Fox.

— Você gostou é de ficar olhando os seios dela — disse Rybys.

— O senhor podia me levar até o banheiro, Mr. Asher?

— pediu o garotinho.

— Agora? — reclamou ele. — Não dá para esperar até que ela termine de cantar?

— Agora, Mr. Asher.

Chateado, conduziu Manny por entre a confusão de mesas até as portas do fundo do salão. Mas, antes que entrassem no banheiro, Manny parou.

— Daqui o senhor pode vê-la melhor.

Era verdade. Dali ele ficava bem mais perto do palco. Os dois permaneceram em silêncio enquanto Linda Fox can­tava Não Chorem Mais, Tristes Fontes.

— O senhor não lembra, não é? Ela enfeitiçou o senhor

— disse Manny, quando a canção terminou. — Desperte, Her-bert Asher — continuou, agora incisivo. — Você me conhece bem, e eu conheço você. Linda Fox não canta seus números num obscuro salão de Hollywood; sua fama se estende por toda a galáxia. É a artista mais importante da década. O Pre­lado-Chefe e o Procurator Maximus convidam-na para...

— Ela vai cantar de novo — interrompeu Herb Asher. Mal ouvira o que o garoto dissera, e suas palavras não fizeram sentido. Tagarelice de criança, pensou, me atrapalhando ouvir Linda Fox. Era só o que faltava.

Depois que a canção terminou, Manny falou de novo.

— Herbert, Herbert; você quer conhecê-la? É isso o que você quer?

— O quê? — murmurou ele, com os olhos, a atenção fixados em Linda Fox. Puxa, pensou; que mulher! Mal cabe no vestido. Que bom, pensou, se minha esposa tivesse um corpo assim.

— Ela vai vir por aqui — disse Manny — quando ter­minar a apresentação. Fique aqui, Herb Asher, e ela vai passar juntinho de você.

— Você está brincando — duvidou ele.

— Não — refutou Manny. — Você vai ter o que mais deseja no mundo... aquilo com que sonhava enquanto jazia no beliche em seu domo.

— Que domo?

— "Como decaíste, luminosa estrela matutina, abati­da..."

Você está se referindo aos domos daqueles planetas-colô­nias? — perguntou Herb Asher.

— Não consigo fazer você prestar atenção, consigo? — falou Manny. — Se eu pudesse lhe dizer...

— Ela está vindo para cá — disse Herb Asher. — Como é que você sabia?

Adiantou-se um pouco na direção dela. Linda Fox cami­nhava depressa, com passinhos curtos, e uma expressão gentil.

— Obrigada — dizia às pessoas que se dirigiam a ela. Parou um instante para dar um autógrafo a um negro bem vestido.

Uma garçonete bateu no ombro de Herb Asher.

— O senhor tem que levar esse menino embora, cava­lheiro; não podemos admitir menores aqui.

— Desculpe — disse Herb Asher.

— Agora — insistiu a garçonete.

— Está bem — conformou-se ele; passou a mão no om­bro de Manny, e, com ar infeliz, levou-o de volta à mesa. E enquanto se afastava viu pelo canto dos olhos a Fox passar bem no lugar onde tinham estado. Manny estava certo. Mais alguns segundos e ele teria podido dizer algumas palavras a ela. E, quem sabe, ela teria respondido.

— É a vontade dela de brincar com você, Herb Asher — disse Manny. — Ela ofereceu isso e retirou de novo. Se você quer encontrar a Linda Fox eu arranjo isso; prometo. Lembre-se disso, porque vai acontecer. Não quero ver você frustrado.

— Não sei do que você está falando — disse Herb —, mas se eu puder encontrar-me com ela...

— Vai encontrar-se — disse Manny.

— Você é um garoto esquisito — comentou Herb Asher. Quando passavam por sob um foco de luz, percebeu algo que o sobressaltou; parou e colocou Manny diretamente abaixo do foco. Você é a cara de Rybys, pensou. Por um instante um relâmpago de memória agitou-o; sua mente pareceu abrir-se, como se vastos espaços, espaços abertos, um universo de es­trelas jorrassem dentro dela.

— Herbert — disse o garoto —, ela não é real. Linda Fox... ela é uma fantasia sua. Mas posso torná-la real. Eu concedo existência. Sou eu quem transforma o irreal em reali­dade, e posso fazer isso com ela, para você.

— Que aconteceu? — indagou Rybys, quando os dois chegaram à mesa.

— Manny tem que sair — disse Herb para Zina Pallas.

— Foi a garçonete que disse. Acho que você tem que ir em­bora. Sinto muito.

Zina pegou a bolsa e os cigarros e se levantou.

— Desculpe; acho que o impedi de ver a Fox.

— Vamos com eles — falou Rybys, levantando-se tam­bém. — Estou com dor de cabeça, Herb; gostaria de sair daqui.

— Está bem — disse ele, resignado. Frustrado, pensou. Foi o que Manny tinha dito. Não quero ver você frustrado. Foi exatamente o que aconteceu, deu-se conta; esta noite fiquei frustrado. Bem, fica para outra vez. Teria sido interessante falar com ela, quem sabe obter um autógrafo. De perto pude ver que suas pestanas eram falsas, pensou. Puxa, que coisa deprimente. Vai ver que os seios também são falsos. Tem aqueles enchimentos que elas usam. Sentiu-se desapontado e infeliz, e agora ele também queria ir embora.

Nessa noite nada deu certo, pensou, enquanto conduzia Rybys, Zina e Manny do clube para a rua escura de Hollywood. Eu estava com tanta esperança... e então ele se lembrou do que o garoto tinha falado, as coisas estranhas, e o nanossegundo de memória que relampejou: cenas que apareceram na mente tão breves e ao mesmo tempo tão convincentes. Essa criança não é igual às outras, compreendeu. E, essa semelhança com minha mulher, posso ver agora que estão juntos. Ele podia ser filho dela. Isso não é natural. Estremeceu, apesar de fazer calor.

Realizei os anseios dele — disse Zina. — Dei-lhe aquilo com que ele sonhava. Todos aqueles meses em que esteve no domo. Com os posters dela em 3-D, com as fitas.

— Você não lhe deu nada — contestou Emmanuel. — Na verdade o que você fez foi roubá-lo. Tirou algo dele.

— Ela é um produto da mídia — disse Zina. Os dois caminhavam devagar pela calçada noturna de Hollywood, de volta para o aerocarro. — Não é minha culpa. Não posso ser acusada por Linda Fox não ser real.

— Aqui no seu reino essa distinção não significa nada.

— E você, que é que pode oferecer a ele? — interpôs Zina. — Apenas doença; a doença da mulher dele. E a morte dela a seu serviço. Sua oferta é melhor do que a minha?

— Fiz a ele uma promessa — disse Emmanuel — e eu não minto.

Vou realizar o que prometi, disse para si mesmo. Neste reino ou no meu; pouco importa, porque de qualquer modo vou tomar Linda Fox real. Esse é o poder que eu tenho, e não é poder de encantamento; é a dádiva mais preciosa, a rea­lidade.

— Que é que você está pensando? — indagou Zina.

— "Antes um cachorro vivo que um príncipe morto" — citou Manny.

— Quem disse isso?

— Trata-se apenas de senso comum.

— Qual é o sentido, para você?

— Que o seu encantamento não lhe deu nada e o mundo real...

— O mundo real — zombou Zina — colocou-o em sus­pensão criogênica durante dez anos. Um sonho bonito não é melhor do que uma realidade cruel? Você gostaria mais de sofrer na realidade do que deleitar-se nos domínios de... — calou-se.

— Intoxicação — disse ele. — É nisso que consistem seus domínios. Um mundo de embriaguez. Embriaguez de dan­ça e prazer. Eu digo que a qualidade de ser real é mais impor­tante do que qualquer outra, porque quando a realidade cessa não resta mais nada. Um sonho não é nada. Discordo de você; digo que você frustrou Herbert Asher. Digo que sua oferta foi cruel. Vi a reação dele; medi seu abatimento. E vou com­pensá-lo.

— Você vai tornar a Fox real.

— Está querendo apostar que eu não consigo?

— O que eu aposto é que isso não interessa. Real ou não, ela é inútil; você vai realizar algo sem valor algum.

— Aceito a aposta.

— Toque aqui — e ela estendeu a mão.

Apertaram as mãos, ali na calçada de Hollywood, sob a brilhante luz artificial.

— No meu reino muitas coisas são diferentes — disse Zina, enquanto voavam de volta a Washington, D.C. — Talvez você gostasse de conhecer o presidente do Partido, Nicholas Bul­kowsky.

— Não é o Procurator? — indagou Emmanuel.

— O Partido Comunista não tem o poder mundial a que você está acostumado. A expressão "Legado Científico" é des­conhecida. Nem Fulton Statler Harms é o Prelado-Chefe da I.I.C.. já que não existe a Igreja Islâmica-Cristã. Ele é um cardeal da Igreja Católica Romana; não controla a vida de milhões.

— Isso é bom — comentou Emmanuel.

— Então tenho agido bem em meus domínios — retorquiu Zina. — Não concorda? Porque se você concordar...

— Essas coisas são boas — disse Emmanuel.

— Diga-me qual é a objeção.

— É que é uma ilusão. No mundo real ambos os homens detêm poder mundial; ambos controlam juntos o planeta.

— Vou lhe dizer uma coisa que você não compreende — disse Zina. — Fizemos alterações no passado. Fizemos de modo que a I.I.C. e o L.C. não chegassem a existir. O mundo que você vê aqui, o meu mundo, é um mundo alternativo ao seu, e igualmente real.

— Não acredito — refutou Emmanuel.

— Existem muitos mundos.

— Sou eu o criador de mundos, eu e só eu. Ninguém mais pode dar origem a mundos. Eu sou Aquele que dá origem ao que é. Você não.

— E no entanto...

— Você não entende — cortou Emmanuel. — Existem inúmeras potencialidades que não chegam a se tornar realida­des. Dentre as potencialidades eu seleciono as que prefiro e a elas outorgo realidade.

— Se é assim então você fez péssimas escolhas. Teria sido muito melhor se a I.I.C. e o L.C. não tivessem chegado a existir.

— Admite, então, que seu mundo não é real? Que é fin­gimento?

Zina hesitou.

— Ele se separou do seu mundo, partindo de pontos cruciais, devido à nossa interferência com o passado. Chame de mágica se quiser, ou chame de tecnologia; de qualquer mo­do, somos capazes de retroceder no tempo e corrigir erros na história. Foi o que fizemos. Neste mundo alternativo Bul­kowsky e Harms são figuras menores; existem, mas não como no seu mundo. Trata-se de uma escolha de mundos, igualmente reais.

— E Belial — disse ele —, Belial fica numa jaula do zoológico, e multidões, vastas hordas de pessoas, ficam olhan­do-o embasbacadas.

— Exato.

— Mentiras — ele falou. — É a satisfação de desejos. Você não pode construir um mundo a partir de meros desejos.

A base da realidade é triste porque não é possível satisfazer por cortesia perspectivas falsas; é obrigatório ater-se ao que é possível: a lei da necessidade. O alicerce da realidade é esse: a necessidade. O que existe é porque tem que existir; porque não pode existir de outro modo. Não existe da maneira pela qual existe pelo fato de alguém ter desejado que assim exis­tisse, mas porque tem que existir; assim e especificamente as­sim, até o mais ínfimo dos detalhes. Sei disso porque eu faço isso. Você tem as suas funções e eu tenho as minhas, e com­preendo as minhas; eu compreendo a lei da necessidade. Zina, depois de um momento, disse:

 

"Os bosques da Arcádia pereceram, e já está morta a alegria antiga; alquebrado, o mundo se contenta em dormir; Verdade Cinzenta tornou-se o passatempo multicor; e contudo inda se move aquela cabeça inquieta". *

 

— Esse é o primeiro poema de Yeats — concluiu ela.

— Eu conheço — disse Emmanuel. — Ele termina as­sim:

 

"Mas, ah! ela não sonha mais; sonha então tu!

que agradáveis as papoulas são na fronte:

sonha, sonha, pois sonhar também é vida". **

 

— "Vida" significando "verdade" — explicou ele.

— Não precisa explicar — disse Zina. — E você não concorda com o poema.

— A verdade cinzenta é melhor que o sonho — disse ele. — Isso também é verídico. É a última de todas as verda­des, a verdade ser melhor que qualquer mentira agradável. Eu desconfio deste mundo por ser tão suave. Seu mundo é belo demais para ser real. Seu mundo é uma fantasia. Quando Herb Asher viu a Fox o que viu foi uma ilusão, a ilusão imanente do seu mundo.

E essa ilusão, disse para si mesmo, é que vou desfazer. Que vou substituir pela veracidade. Coisa que você não com­preende.

A Fox como realidade será mais aceitável para Herb Asher que qualquer sonho da Fox. Eu sei. Aposto tudo nesta proposição. Fico com ela ou caio.

— Isso é verdade — disse Zina.

— Toda realidade aparente que é agradável deve ser en­carada com reserva — continuou Emmanuel. — A característica do que é fraudulento é tornar-se aquilo que você gostaria que ele fosse. É isso que vejo aqui. Você gostaria que Nicholas Bulkowsky não fosse um homem tão influente; você gostaria que Fulton Harms fosse uma figura menor e não parte da História. Seu mundo quer satisfazer você e por isso nega o que ele próprio é. Meu mundo é teimoso. Não se submete. Um mundo recalcitrante e implacável é um mundo real.

— Um mundo que assassina os que são forçados a viver nele.

— Isso é apenas um aspecto dele. Meu mundo não é mau assim; há nele mais coisas além da morte e do sofrimento. Na Terra, na Terra real, existem beleza e alegria e... — calou-se. Fora tapeado. Ela ganhara de novo.

— Então a Terra não é tão má — disse ela. — Não deve ser castigada pelo fogo. Existem alegria e beleza e amor e gente boa. Apesar do governo de Belial. Eu lhe disse isso e você contestou. Quando a gente estava passeando lá no bosque das cerejeiras. Que é que você me diz agora, Senhor dos Exércitos, Deus de Abraão? Pois não demonstrou que estou certa?

— Você é esperta, Zina — admitiu ele. Ela sorriu, de olhos brilhantes.

— Então suspenda o grande e terrível dia a respeito do qual você falou na Escritura. Como eu pedi que você fizesse.

Pela primeira vez ele se sentiu derrotado. Induzido a dizer besteiras, compreendeu. Como ela é inteligente. Como é es­perta.

— Como está dito na Escritura — falou Zina.

 

"Eu sou a Sabedoria, concedo argúcia e indico o caminho do conhecimento e da prudência."

 

— Mas — contestou ele — você disse que não é a Sa­grada Sabedoria. Que apenas fingia ser.

— Compete a você descobrir quem sou eu. Você próprio é que tem que me decifrar; não vou ajudar você nessa tarefa.

— E, enquanto isso, truques.

— Sim, porque é por meio de artifícios que você vai aprender.

Ele encarou-a, estupefato.

— Você está usando de artifícios para que eu desperte! Tal como despertei Herb Asher!

— Quem sabe?

— Você é meu estímulo desinibidor? — e olhou-a fixa­mente. — Acho que criei você para que trouxesse de volta minha memória — disse em voz baixa e severa. — Para res­taurar meu próprio eu.

— Para conduzi-lo de volta a seu trono — concluiu Zina.

— Foi isso?

Zina, na direção do aerocarro, não disse nada.

— Responda — pediu ele.

— Talvez — disse ela.

— Se eu criei você, posso...

— Você criou todas as coisas — cortou Zina.

— Não entendo você. Não posso seguir você. Você vem bailando até mim e se afasta.

— Mas, à medida que faço isso, você desperta — disse Zina.

— Sim — concordou ele. — E deduzo daí que você é o estímulo desinibidor que projetei há muito tempo, sabendo, como sabia, que meu cérebro seria danificado e eu esqueceria. Metodicamente você vai me devolvendo a identidade. Então... acho que sei quem você é.

Ela virou a cabeça e o encarou.

— Quem?

— Não vou dizer. E você não pode ler meu pensamento porque o suprimi. Fiz isso assim que pensei.

Porque, pensou ele, é demais para mim saber. Mesmo para mim. Não posso acreditar.

Ela continuou dirigindo, no rumo do Atlântico e de Wash­ington, D.C.

 

Herb Asher sentia-se invadido pela intensa impressão de já ter conhecido antes o menino Manny Pallas, talvez em outra vida. Quantas vidas temos que viver? indagou-se. Por acaso estamos gravados em fita? E esta seria uma espécie de replay?

— O menino se parece com você — disse para Rybys.

— Você acha? Não reparei.

Rybys, como de costume, estava ocupada em confeccionar um vestido, e prestava atenção ao molde; peças de tecido ja­ziam por todo o aposento junto com louça suja, cinzeiros cheios e revistas velhas amassadas.

Herb resolveu consultar seu sócio, um preto de meia-idade chamado Elias Tate. Fazia anos que os dois mantinham uma loja de acessórios de rádio e som. Tate, contudo, encarava a loja como atividade menor; seu interesse na vida era o tra­balho missionário. Era pregador numa igrejinha afastada, para uma audiência na maioria de negros. Seu lema, sempre, era:

 

ARREPENDA-SE! O REINO DE DEUS ESTA PRÓXIMO!

 

Parecia a Herb Asher uma preocupação esquisita para um homem tão inteligente, mas, no final das contas, isso era pro­blema de Tate. Quase nunca conversavam sobre esse assunto.

Sentado na parte da frente da loja, Herb dirigiu-se ao só­cio.

— Ontem à noite encontrei um garoto bastante estranho, num clube em Hollywood.

Preocupado em montar um novo componente de laser para braço de vitrola, Tate mal prestou atenção.

— Que é que você foi fazer em Hollywood? Está que­rendo entrar para o cinema?

— Fui ouvir uma nova cantora chamada Linda Fox.

— Nunca ouvi falar dela.

— Ela é sensual pra chuchu, e muito boa. Ela...

— Você é casado.

— Isso não me impede de sonhar — retrucou Herb.

— Quem sabe você gostaria de convidá-la para uma tarde de autógrafos na loja?

— Não neste tipo de loja.

— É uma loja de artigos de áudio; ela canta. Isso é áu­dio. Ou ela não é audível?

— Pelo que sei ela ainda não gravou nada nem apareceu na TV. Eu a ouvi por acaso no mês passado, no show do Cen­tro Comercial Anaheim. Eu convidei você para ir comigo.

— A doença deste mundo é o sexo — comentou Tate. — Estamos num planeta lascivo e completamente louco.

— E nosso destino é o inferno.

— Espero que sim — disse Tate.

— Você sabe que está fora de compasso? Está mesmo. Seu código de comportamento é da Idade Média.

— Oh, de muito antes — corrigiu Tate. Colocou um disco no prato da vitrola e ligou-a. Na tela do visor de controle os sinais pareciam adequados mas não perfeitos. Tate franziu o cenho.

— Quase que pude conversar com ela. Estava pertinho. Questão de segundos. De perto ela é muito mais bacana do que qualquer outra mulher. Você devia ver. Tenho certeza, é uma intuição, de que ela vai ser uma grande estrela.

— Está bem — disse Tate, compreensivo. — Fico con­tente. Escreva para ela uma carta de admirador. Conte a ela isso aí.

— Elias — Herb voltou ao primeiro assunto —, o me­nino que encontrei ontem à noite, ele se parece muito com Rybys.

O preto ergueu os olhos.

— Verdade?

— Se Rybys fosse capaz de prestar atenção a alguma coi­sa pelo menos por um segundo poderia ter percebido também a semelhança. Ela simplesmente é incapaz de concentrar-se. Em nenhum momento olhou o garoto. Ele podia ser filho dela.

— Talvez haja algo que você desconheça.

— Sai pra lá, seu — fez Herb.

— Gostaria de ter visto esse menino — disse Elias.

— Tive a impressão de que o conhecera antes, como se fosse de outra existência. Por um momento tudo começou a vir à lembrança e de repente... — abanou a mão. — Sumiu. Não consegui reter nada. E tinha mais... era como se eu estivesse me lembrando de todo um outro mundo. Uma outra vida inteira.

Elias parou de trabalhar.

— Descreva essa vida.

— Você era mais velho. E não era preto. Era um homem muito velho com um manto. Eu não estava na Terra; dei uma espiada numa paisagem gelada e aquilo não era a Terra. Elias, seria possível que eu fosse de outro planeta, e alguma influên­cia poderosa tivesse me introduzido memórias falsas no cére­bro, em cima das verdadeiras? E o garoto, o fato de eu ver o garoto, teria começado a provocar o retorno das memórias reais? E tive a idéia de que Rybys estava muito doente. Na verdade, estava à beira da morte. E tinha também não sei o que com oficiais da Imigração armados.

— Oficiais da Imigração não usam armas.

— E uma nave. Uma viagem muito longa, em alta velo­cidade. Urgente. E, principalmente, uma presença. Uma pre­sença sobrenatural. Não-humana. Quem sabe um extraterrestre, a raça à qual pertenço de fato. De meu planeta natal.

— Herb — disse Elias —, você é um poço de imundície.

— Eu sei. Mas por um segundo senti tudo aquilo. E... ouça — agitou a mão, excitado. — Um acidente. Nossa nave colidiu com outra. Meu corpo se lembrou; lembrou a concussão, o traumatismo.

— Vá a um hipnoterapeuta — aconselhou Elias —, peça para ele pôr você para dormir, e recorde. Com toda certeza você é um alienígena misterioso programado para explodir o mundo. Provavelmente tem uma bomba dentro de você.

— Não vejo graça nenhuma — reagiu Herb.

— Está bem; você pertence a uma raça muito sábia, superdesenvolvida e nobre, e foi enviado para iluminar a huma­nidade. Para nos salvar.

Num instante, lembranças lampejaram na mente de Herb e desapareceram.

— Que foi? — indagou Elias, examinando-o.

— Mais lembranças. Quando você falou aquilo. Elias ficou quieto um momento.

— Gostaria que você lesse a Bíblia de vez em quando — disse depois.

— Tinha alguma coisa a ver com a Bíblia — falou Herb. — Minha missão.

— Talvez você seja um emissário — disse Elias. — Tal­vez traga uma mensagem para o mundo. Da parte de Deus.

— Pare de me gozar.

— Não estou te gozando — falou Elias. — Agora não. Aparentemente era isso mesmo. O rosto escuro estava rígido.

— Que é que há de errado? — perguntou Herb.

— Às vezes penso que este planeta está enfeitiçado — respondeu Elias. — Estamos adormecidos ou em transe, e alguma coisa faz a gente ver o que ela deseja que a gente veja, faz a gente lembrar e pensar o que ela quer que a gente lembre e pense. Quer dizer, a gente é o que ela quer que a gente seja. Daí, portanto, a gente não tem existência real. Es­tamos à mercê de alguma espécie de capricho.

— Esquisito — fez Herb Asher. Seu sócio olhou-o, pensativo.

— É. Esquisito mesmo.

De tardezinha, quando Herb Asher e seu sócio se preparavam para fechar a loja, entrou uma moça de casaco de camurça, jeans, sandálias e uma fita de seda amarrada no cabelo.

— Oi — falou ela para Herb, as mãos nos bolsos do casaco. — Como vai?

— Zina — reconheceu ele, contente. E uma voz dentro dele disse: Como é que ela encontrou você? Estamos a quase 5.000 quilômetros de Hollywood. Lista de endereços fornecida por computador, provavelmente. Todavia... sentiu que algu­ma coisa não estava certa. Mas não era de sua natureza estragar a visita de uma garota bonita.

— Tem tempo de tomar um café? — perguntou ela.

— Claro.

Logo depois estavam frente a frente na mesa de um restaurante ali perto.

— Quero falar com você a respeito de Manny — disse Zina, remexendo o creme e o açúcar do café.

— Por que é que ele se parece com minha mulher? — inquiriu Herb.

— Mesmo? Não reparei. Manny está muito aborrecido por ter impedido você de falar com Linda Fox.

— Não creio que ele tenha impedido.

— Ela já estava bem perto de você.

— Ela vinha na nossa direção, mas isso não quer dizer que eu fosse falar com ela.

— Ele quer que você se encontre com ela. Herb, ele está com um tremendo sentimento de culpa; não conseguiu dormir a noite toda.

— Que é que ele propõe? — perguntou, intrigado.

— Que você escreva uma carta de admirador. Explicando a situação. Está convencido de que ela vai responder.

— Não é provável.

— É um favor que você faz a Manny — disse Zína, se­rena. — Mesmo que ela não responda.

— Preferia me encontrar com você — disse ele. As pa­lavras saíram devagar, medidas cuidadosamente.

— Hem? — ela arregalou os olhos. Que olhos negros tinha!

— Os dois — disse ele. — Você e seu irmãozinho.

— Manny sofreu uma lesão cerebral. A mãe ficou ferida num acidente espacial quando estava grávida dele. Ele ficou vários meses num útero sintético, mas demoraram para colo­cá-lo lá. Por isso... — ela tamborilou os dedos na mesa. — Ele ficou prejudicado. Vai entrar numa escola especializada. Por causa da lesão neurológica ele tem idéias malucas. Por exemplo... — hesitou. — Bem, ora que inferno. Ele diz que é Deus.

— Meu sócio precisa encontrar-se com ele, então — falou Herb Asher.

— Ah, não — retorquiu ela, abanando a cabeça enfá­tica. — Não quero que ele veja Elias.

— Como é que você conhece Elias assim? — indagou ele, e de novo aquela sensação de alarma invadiu-o.

— Passei antes em seu apartamento e conversei com Rybys. Ficamos várias horas juntas; ela falou da loja e de Elias. Como acha que encontrei a loja? Não está no seu nome.

— Elias se dedica à religião — disse ele.

— Foi o que ela me contou; é por isso que não quero que Manny o veja. Um vai empurrar o outro cada vez mais fundo na fantasia teológica.

— Acho que Elias é bastante sensato — contrapôs ele.

— Sim, e sob muitos aspectos Manny também é. Mas você junta duas pessoas religiosas e logo elas se atiram... você sabe. Conversas sem fim sobre Jesus e o próximo fim do mundo. A batalha do Armagedom. A conflagração — ela estremeceu. — Isso me dá calafrios. O fogo do inferno e a danação.

— É, Elias é assim — concedeu Herb. Pareceu-lhe quase que ela sabia. Provavelmente Rybys contara; devia ser isso.

— Herb — disse Zina —, você vai fazer esse favor a Manny? Vai escrever para a Fox... — a expressão dela mudou.

— A Fox — murmurou ele. — Duvido que dê certo. Parece meio bobo.

— Mas você vai escrever e dizer que gostaria de se encontrar com ela? pergunte onde é que ela vai se apresentar de novo; naquele clube eles fazem a programação com muita antecedência. Conte a ela que você é dono de uma loja de artigos de áudio. Ela não é muito conhecida; não é como as grandes estrelas que recebem montes de cartas de admiradores. Manny tem certeza de que ela vai responder.

— Claro que vou escrever, sim — assegurou ele. Ela sorriu. E seus olhos escuros dançaram.

— Não tem problema — disse ele. — Vou para a loja e bato a carta já. A gente põe junto no correio.

Zina tirou um envelope da bolsa.

— Manny escreveu a carta para você. É isto que ele quer que você diga. Mude o que você quiser... mas não altere muito. Deu muito trabalho para Manny.

— Está bem — aceitou o envelope e levantou-se. — Vamos voltar para a loja.

Enquanto ele datilografava a carta de Manny para a Fox — como Zina a chamava —, Zina caminhava pela loja já fecha­da, fumando furiosamente.

— Tem alguma coisa que eu não saiba? — perguntou ele. Sentia que havia algo; ela parecia muito tensa.

— Manny e eu fizemos uma aposta — explicou ela. — A gente apostou que... bem, basicamente foi se Linda Fox vai ou não responder. É uma aposta meio complicada, mas no fundo é isso. Você não fica chateado?

— Não — falou ele. — Quem apostou na resposta? Ela não respondeu.

— Vamos lá — disse ele. Ficou pensando por que é que ela não tinha respondido, e por que estava tão tensa com a aposta. Que é que ela pensa que vai acontecer? — Não diga nada para minha mulher — pediu, preocupado com seus pró­prios pensamentos.

Teve, então, uma intuição muito forte: havia alguma coisa em tudo aquilo, algo importante cujas dimensões não conseguia captar.

— Estou sendo utilizado? — perguntou.

— De que maneira?

— Não sei.

Terminou de digitar; apertou a tecla "Impr." e o apa­relho — uma máquina de escrever muito engenhosa — na mesma hora imprimiu o texto e a carta caiu na caixa de saída.

— Vou assinar.

— Sim, a carta é sua.

Assinou, digitou um envelope com o endereço que Manny indicara... e de súbito começou a pensar em como é que Zina e Manny tinham conseguido o endereço particular de Linda Fox. Lá estava ele, na cuidadosa caligrafia holográfica do garoto. Não o do Golden Hind, mas uma residência. Em Sherman Oaks.

Gozado, pensou. Será que o endereço dela está na lista? Talvez não. Ela não é muito conhecida, como todo mundo vivia dizendo para ele.

— Acho que ela não vai responder — disse.

— Bom, se for assim alguém vai ganhar algumas moedas de prata.

— Reino Encantado — retrucou ele, automaticamente.

— O quê? — estranhou ela.

— Um livro infantil. Moedas de Prata. Um clássico antigo. Ele diz que "você tem que ter uma moeda de prata para poder entrar no Reino Encantado".

Ela riu. Nervosa, aparentemente.

— Zina — disse ele —, sinto que tem alguma coisa errada.

— Não tem nada errado, ao que eu saiba — respondeu ela. Pegou o envelope da mão dele. — Deixa que eu ponho no correio.

— Obrigado. Vou ver você de novo?

— Claro que vai — fez ela. Aproximou-se dele e deu-lhe um beijinho na boca.

Olhou em torno e avistou bambus. Uma luz movia-se através deles, como fogo-de-santelmo. Era uma cor vermelho-brilhan­te, que cintilava, como que viva. Juntava-se aqui e ali; e onde se juntava formava palavras, ou melhor, parecia que formava palavras. Como se o mundo tivesse virado linguagem.

Que é que estou fazendo aqui? perguntou-se, perturbado. Que foi que aconteceu? Faz um minuto eu nem estava aqui!

O fogo vermelho-cintilante, como eletricidade visível, formou uma mensagem para ele, distribuída pelos bambus, pelos balanços das crianças e pelos tufos de grama seca.

 

AMA O SENHOR TEU DEUS DE TODO O CORAÇÃO

COM CORAGEM E ENTUSIASMO

 

— Sim — falou. Estava assustado, mas as línguas de fogo eram tão bonitas que sentia mais reverência que temor; estou fascinado, decidiu. O fogo se movia, se aproximava e se afastava, ia de um lado para outro, corria para lá e para cá; formaram-se como que poças de fogo, e ele percebeu que estava vendo uma criatura viva. Ou melhor, o sangue de um ser vivo. O fogo era sangue vivo, mas sangue mágico, não sangue físico, mas transformado.

Abaixou-se, temendo, tocou o sangue e sentiu um choque perpassar-lhe o corpo; e soube que o sangue vivo tinha pene­trado em seu organismo. Na mesma hora palavras se forma­ram em seu cérebro.

 

                         CUIDADO!

 

— Ajude-me — pediu, fracamente.

Ergueu a cabeça e viu o espaço infinito; extensões tão vastas que não podia compreendê-las — espaço estendendo-se para sempre, e ele expandindo-se junto.

Oh, meu Deus!, pensou; estremeceu violentamente. San­gue e palavras vivas, e alguma coisa inteligente por perto simulando o mundo, ou o mundo simulando essa alguma coisa; algo camuflado, uma entidade consciente de que ele estava ali.

Um feixe de luz cor-de-rosa ofuscou-o; sentiu uma dor terrível na cabeça, e apertou os olhos com as mãos. Estou cego!, pensou. Com a dor e a luz rosa veio o entendimento, um conhecimento aguçado; soube que Zina não era um ser humano, e soube a seguir que o menino Manny não era um menino humano. Este mundo em que estava não era um mundo real; compreendia isso porque o feixe de luz cor-de-rosa lhe contou. Aquele mundo era simulado, e algo vivo e inteligente e simpático queria que ele soubesse. Tem alguma coisa que se preocupa comigo e penetrou neste mundo para me avisar, deu-se conta, e está camuflada para que o dono deste mundo, o senhor deste reino irreal, não saiba; não saiba que esse amigo está aqui e me contou. É um segredo terrível de conhecer, pensou. Posso ser morto por saber disso. Estou numa...

 

                 NÃO TENHA MEDO

 

— Está bem — disse, ainda tremendo. Palavras dentro de sua cabeça, conhecimento dentro de sua cabeça. Mas con­tinuava cego, e a dor também continuava. — Quem é você? — perguntou. — Me diga seu nome.

 

                 VALIS

 

— Quem é "Valis"? — indagou.

 

                 O SENHOR SEU DEUS

 

— Não me machuque — pediu.

 

                 NÃO TEMA, HOMEM.

 

A vista começou a clarear. Tirou as mãos dos olhos. Zina estava ali, com o casaco de camurça e os jeans; tudo durara apenas um segundo. Ela estava se afastando, depois de tê-lo beijado. Será que ela sabia? Como podia saber? Só ele e Valis sabiam.

— Você é uma fada — disse.

— Uma o quê? — ela pôs-se a rir.

— Essa informação foi inserida em mim. Eu sei. Sei tudo. Lembrou-me de CY30-CY30B; lembro-me de meu domo. Lembro-me da doença de Rybys e da viagem para a Terra. Do acidente. Lembro-me daquele mundo inteiro, o mundo real. Ele penetrou neste mundo e me despertou.

Encarou Zina e ela encarou-o de volta, fixamente.

— Meu nome significa fada, mas isso não me torna uma fada. Emmanuel significa "Deus conosco", mas isso não faz dele Deus.

— Lembro-me de Yah — disse Herb Asher.

— Oh — fez ela. — Bom. Muito bem.

— Emmanuel é Yah — continuou Herb Asher.

— Vou embora — disse Zina. Mãos nos bolsos do casa­co, caminhou rápida até a porta da loja, virou a chave e saiu; num instante desapareceu.

Ela está com a carta, lembrou ele. Minha carta para a Fox.

Correu para fora.

Ela não estava mais lá. Olhou em todas as direções. Car­ros e pessoas, mas nada de Zina. Sumira.

Vai pôr a carta no correio, disse para si mesmo. A aposta entre ela e Emmanuel; eu estou no meio. Estão apostando sobre mim, e o próprio universo está em jogo. Impossível. Mas o feixe de luz cor-de-rosa me contou; transmitiu tudo num instante, sem passagem de tempo.

Tremendo, a cabeça ainda doendo, voltou para a loja. Sentou-se e esfregou a testa.

Ela quer me envolver com a Fox, compreendeu. E desse envolvimento, dependendo de como se processe, a estrutura da realidade vai... Não estava certo do que podia acontecer. Mas era essa a questão: a própria estrutura da realidade, o universo e cada criatura viva.

Tem algo a ver com a existência, pensou lá consigo, sabendo disso apenas por causa do feixe de luz cor-de-rosa, o qual era sangue vivo, de natureza elétrica, o sangue de alguma imensa metaentidade. Sein, pensou. Uma palavra alemã; que quer dizer? Das Nichts. O oposto de Sein. Sein igual a ser, igual a existência, igual a universo autêntico. Das Nichts igual a nada, igual a simulação do universo, o sonho — no qual estou, percebeu. O feixe rosa me contou.

Preciso de um gole, resolveu. Levantou o fone, introdu­ziu o cartão perfurado e imediatamente ficou em contato com sua casa.

— Rybys — falou, rouco — vou chegar tarde.

— Vai sair com ela? Aquela moça? — a voz da mulher era insegura.

— Não, ora bolas! — respondeu, e desligou.

Deus é a Garantia do Universo, pensou. Esse é o funda­mento do que me ensinaram. Sem Deus não existe nada; tudo se desfaz e some.

Trancou a loja, entrou no aerocarro e ligou o motor.

De pé na calçada — um homem. Familiar, um preto. De meia-idade, bem vestido.

— Elias! — chamou Herb. — Que está fazendo? Que é que há?

— Voltei para ver se você está bem. — Elias aproxi­mou-se do aerocarro. — Você está completamente pálido.

— Entre — disse Herb. Elias entrou.

 

No bar, pediram o de sempre; Elias, uma Coca-Cola gelada.

— Muito bem. Você não pode fazer nada para segurar a carta. Provavelmente já está no correio.

— Eu sou a aposta de um jogo — disse Herb Asher. — Entre Zina e Emmanuel.

— Não estão apostando se Linda Fox vai responder ou não. Estão apostando em outra coisa — falou Elias. Amassou um pedacinho de papel e jogou dentro do copo de Coca-Cola. — Não há possibilidade alguma de descobrir qual é a intenção deles. Os bambus e os balanços das crianças. A grama toda pisada, querendo crescer... Parece que dentro de mim tam­bém há uma lembrança de tudo isso; sonho com isso. É uma escola. Para crianças. Uma escola especial. Em meu sonho vou lá freqüentemente.

— O mundo real — disse Herb.

— Aparentemente. Você reconstituiu bastante. Não vá dizer por aí que este universo é falso, Herb. Não diga a mais ninguém o que você me disse.

— Acredita em mim?

— Acredito que você teve uma experiência muito estra­nha e inexplicável, mas não creio que este seja um mundo sucedâneo. Parece perfeitamente substancial, — deu um soco na mesa. — Não dá, não acredito. Não acredito em mundos irreais. Só existe um universo e Deus Jeová o criou.

— Não acho que alguém crie um universo falso — disse Herb — já que, se é falso, não existe.

— Mas você está dizendo que alguém está nos forçando a ver um universo que não existe. Não é a mesma coisa?

— Satanás — disse ele. Elias, encarou-o, empertigado.

— É uma maneira de olhar o mundo real — explicou Herb. — Uma maneira nebulosa, como num sonho. Hipnoti­zado, adormecido. A natureza do universo sofre alterações perceptíveis. Na verdade são as percepções que mudam, não o mundo. A mudança está em nós.

— O Imitador de Deus — disse Elias. — Uma teoria medieval sobre o Demônio. Que ele arremeda a legítima cria­ção divina com interpolações espúrias. Essa é uma idéia real­mente sofisticada, em termos epistemológicos. Significa que partes do mundo são espúrias? Que às vezes é o mundo todo que é espúrio? Ou que existem múltiplos mundos, sendo ape­nas um deles o real? Há essencialmente um mundo-padrão do qual as pessoas têm percepções diferentes? De modo que o mundo que você enxerga não é o mesmo que eu enxergo?

— O que eu sei — falou Herb — é que fui levado a recordar, forçado a recordar o mundo real. Meu conhecimento deste mundo aqui — bateu na mesa — é baseado nessa recor­dação, e não na constatação da falsidade. Estou comparando; tenho alguma coisa para comparar com este mundo. É isso.

— Essas recordações não poderiam ser falsas?

— Eu sei que não são.

— Como é que você sabe?

— Confio no feixe de luz cor-de-rosa.

— Por quê?

— Não sei — confessou.

— Por que ele declarou que era Deus? O instrumento de bruxedo pode dizer isso. O poder demoníaco.

— Você vai ver — retrucou Herb Asher. Tinha curiosi­dade de saber qual era a resposta, de saber o que esperavam dele.

Cinco dias depois recebeu em casa uma chamada telefônica interurbana. Na tela apareceu um rosto feminino gorduchinho.

— Mr. Asher? — perguntou a voz, tímida e ansiosa. — Aqui é Linda Fox. Estou na Califórnia. Recebi sua carta...

O coração dele parou.

— Oi, Linda. Ms. Fox, acho. Estava paralisado.

— Vou dizer por que estou telefonando — a voz era suave, e ela falava rápido, de um modo excitante; como se estivesse ansiosa, mas timidamente. — Mas primeiro quero lhe agradecer pela carta; fico contente por saber que você gosta de mim... quero dizer, de minha voz. Você aprecia Dowland? Acha que é uma boa idéia?

— Muito boa — disse ele. — Gosto principalmente de Não Chorem Mais, Tristes Fontes. É a minha preferida.

— Queria perguntar... é o cabeçalho da sua carta; você tem uma firma de aparelhos de som. Vou me mudar para Manhattan daqui a um mês e quero um sistema de áudio completo no apartamento; temos gravações feitas aqui na Costa do Pacífico que meu produtor vai me enviar, e eu quero ouvi-las perfeitamente, num bom aparelho — e as longas pestanas dela se agitaram, apreensivas. — Dá para você voar até Nova York na próxima semana e me dar uma idéia do tipo de sis­tema de som que pode instalar? O preço não importa; não sou eu que vou pagar. Assinei contrato com a Gravadora Superba e eles vão pagar tudo.

— Está bem — concordou ele.

— Ou seria melhor se eu fosse até Washington, D.C.? — continuou ela. — O que for melhor. É urgente. Disseram para resolver rápido isso. Estou tão emocionada! Mal acabei de assinar, e tenho um novo empresário. Vou gravar vídeo-discos mais tarde, mas estamos agora começando com fitas-áudio; você pode fazer a instalação? Não sei a quem pedir. Tem um monte de firmas de artigos eletrônicos aqui na Costa Oeste, mas não conheço nada na Costa Leste. Acho que podia procurar alguém em Nova York, mas Washington, D.C., não é muito longe, é? Quero dizer, você pode dar um pulo lá, não pode? A Superba e meu produtor vão pagar todas as suas despesas.

— Não tem problema — disse ele.

— Que ótimo. Olha, este é o meu número em Sherman Oaks e depois eu lhe dou meu número em Manhattan. Núme­ros de telefones. Como é que você sabia o meu endereço em Sherman Oaks? A carta veio direitinho para mim. Eu não estou na lista.

— Um amigo. Na indústria. Conhecimentos, você sabe. Estou por dentro do negócio.

— Você me viu no Hind? A acústica é especial lá. Con­seguiu me ouvir bem? Você me parece conhecido; acho que vi você no meio do público. Você estava no canto.

— Tinha um garoto comigo.

— Vi você, sim — afirmou Linda Fox. — Você estava olhando para mim, sua expressão era diferente. É seu filho, ele?

— Não.

— Já escreveu os números?

Ela lhe mostrou os dois números e ele anotou, vacilante.

— Vou instalar um tremendo de um sistema de áudio para você — conseguiu dizer. — Foi muito bacana falar com você. Tenho certeza de que você vai fazer carreira e ser uma grande estrela, a maior de todas. Toda a galáxia vai ver e ouvir você. Eu sei. Pode acreditar.

— Você é tão simpático — disse Linda Fox. — Agora tenho que desligar. Obrigada, está bem? Tchau. Fico esperan­do sua chamada. Não esqueça. É urgente; tem que ser feito. Tantos problemas, mas... é tão excitante. Tchau — desligou.

— Caramba! Nem posso acreditar — falou alto Herb Asher, pousando o fone.

— Ela chamou você — disse Rybys, por trás dele. — Realmente telefonou para você. Isso não é pouca coisa. Vai instalar a aparelhagem para ela? Quer dizer...

— Não faz mal que eu tenha que voar até Nova York. Compro as peças lá; não é preciso transportar nada.

— Acha que pode levar Elias junto?

— Vamos ver — disse ele, a cabeça rodando, embe­vecido.

— Parabéns — falou Rybys. — Tenho um palpite de que devia ir com você, mas se você me prometer não...

— Está tudo bem — fez ele, sem prestar atenção ao que ela dizia. — A Fox. Falei com ela. Ela me chamou. A mim.

— Você não tinha falado alguma coisa sobre uma espé­cie de aposta entre Zina e o irmãozinho dela? Eles apostaram, um deles apostou que ela não ia responder à sua carta, e o outro apostou que sim.

— É. Foi uma aposta.

Pouco se importava que fosse uma aposta. Vou vê-la, pensou. Vou visitar seu apartamento novo em Manhattan, passar uma noite lá. Roupa; preciso de roupa nova. Puxa, preciso estar apresentável.

— Quanto é que acha que pode arrancar dela? — inda­gou Rybys.

— Isso não é pergunta que se faça — respondeu ele, irritado.

Rybys encolheu-se.

— Desculpe. Eu só queria dizer... você sabe. Um sis­tema de som é tão caro; é só isso que eu quis dizer.

— Ela vai ter o melhor sistema de áudio, pouco importa o preço — volveu ele. — Somente o melhor do mercado. Aquilo que eu gostaria de ter para mim. Melhor do que eu faria para mim mesmo.

— Quem sabe vai ser uma boa publicidade para a loja? Ele olhou para ela, de olhos arregalados.

— Que foi? — perguntou Rybys.

— A Fox — disse ele, simplesmente. — Era a Fox tele­fonando para mim. Não dá para acreditar.

— È melhor ligar para Zina e Emmanuel e contar para eles. Eu tenho o número.

Não, pensou ele. Esse assunto é meu. Eles não têm nada com isso.

— Está chegando a hora — disse Emmanuel a Zina. — Agora é que vamos ver. Logo mais ele vai viajar para Nova York. Não vai demorar muito.

— Você já sabe o que vai acontecer?

— O que eu quero saber é o seguinte: você vai des­manchar seu mundo de sonhos vazios caso ele descubra que ela...

— Ele vai descobrir é que ela não serve para nada — interpôs Zina. — É completamente vazia, burra, ignorante; é incapaz de compreender as coisas, e logo ele vai dar no pé porque você não pode imaginar uma coisa igual a essa no mundo real.

— Vamos ver.

— É, vamos — disse Zina. — Um ser inútil está à espera de Herb Asher. Ela adora ele.

Exatamente, declarou Emmanuel nos recessos secretos de sua mente, você cometeu seu erro. Herb Asher não vai ser bem-sucedido nessa adoração por parte dela; e a interdepen­dência que é necessária, e isso você me fez. Ao trazê-la para seus domínios você acidentalmente conferiu substância a ela.

E isso, pensou, porque você não sabe o que é substância; está além de você. Mas não além de mim. Essa é a minha área.

— Acho — falou — que você já perdeu.

— Você não sabe — disse Zina, satisfeita — o que é que estou querendo com este jogo! Não me conhece nem conhece meus objetivos!

Pode ser, ponderou ele. Mas a mim eu conheço... e conheço os meus objetivos.

Vestido elegantemente, o que lhe custara uma nota conside­rável, Herb Asher entrou no foguete de luxo para Nova York. Levava uma pasta cheia de prospectos sobre os mais recentes sistemas de áudio domésticos disponíveis no mercado. Sentou-se olhando pela janela durante os 3 minutos que durou a viagem. Quase em seguida o aparelho começou a descer.

Este é o instante mais maravilhoso da minha vida, falou lá no íntimo, enquanto os retrojatos funcionavam. Olhem só para mim; estou parecendo um anúncio de roupas masculinas da revista Style.

Graças a Deus que Rybys não veio.

"Senhoras e senhores", avisaram os alto-falantes do teto, "acabamos de aterrissar no Espaçoporto Kennedy. Tenham a bondade de permanecer em seus lugares até que soe o sinal; então os senhores podem desembarcar pela porta dianteira. A Espaçovia Delta agradece a preferência".

— Um bom-dia para o senhor — disse a aeromoça-robô quando Herb Asher, todo elegante, saiu da nave.

— Para você também — respondeu Herb. — E pro­veitoso, além disso.

Tomou um táxi da Yellow Cab que voou direto para o Hotel Essex House, onde tinha feito reservas — bolas para o preço! — para os próximos dois dias. Em pouco tempo desfez a mala, verificou os equipamentos do quarto e, depois de tomar um Valzine (o melhor dentre os melhores estimulan­tes), apanhou o telefone e discou o número de Linda Fox em Manhattan.

— É tão emocionante saber que você está na cidade — disse ela quando ele se identificou. — Pode vir até aqui agora? Tem algumas pessoas, mas já estão indo embora. O meu equi­pamento, isso é uma decisão que quero tomar com bastante tempo para pensar. Que horas são? Acabei de chegar da Califórnia.

— São 19 horas, horário de Nova York.

— Já jantou?

— Não — disse ele. Parecia um sonho; sentia-se como no mundo da fantasia, no reino do divino. Sentia-se como... como uma criança, pensou. Lendo meu livro Moedas de Prata. Aparentemente encontrei minha moeda de prata, e meu cami­nho. Pelo qual sempre suspirei. O marinheiro aportou, pen­sou. E o caçador... não lembro mais o verso. De qualquer modo era isso mesmo. Tinha chegado em casa, afinal.

E não tem ninguém para me dizer que ela se parece com uma garçonete de pizzaria, pensou lá consigo. Portanto posso esquecer isso.

— Trouxe comida para meu apartamento; estou fazendo regime natural. Se você quiser... tenho suco de laranja verda­deiro, coalhada de soja, alimento orgânico. Afastei completa­mente a carne.

— Ótimo — fez ele. — Claro; qualquer coisa. O que você quiser.

Quando ele chegou ao apartamento — num belo edifício isolado — ela veio atendê-lo de gorro, suéter de gola olímpica e short branco; descalça, introduziu-o na sala de estar. Não havia móveis; ela ainda não tinha se mudado. No quarto, um saco de dormir e uma mala de viagem. Os aposentos eram espaçosos e uma grande janela dava vista para o Central Park.

— Oi — disse ela. — Sou Linda — e estendeu a mão.

— Prazer em conhecê-lo, Mr. Asher.

— Me chame de Herb — falou ele.

— Na Costa do Pacífico todo mundo é apresentado pelo primeiro nome só; estou treinando para esquecer esse hábito, mas não consigo. Fui criada no sul da Califórnia, em Riverside. — Fechou a porta de entrada. — Fica medonho assim vazio, não é mesmo? Meu empresário está escolhendo os mó­veis para mim; chegam depois de amanhã. Vamos ver os mos­truários que você trouxe — disse, olhando a pasta dele e antecipadamente excitada.

Ela parece mesmo uma garçonete de pízzaria, pensou ele. Mas está tudo bem. A cútis, vista assim de perto, bem à luz, não era tão lisa como tinha parecido; na verdade, como ele percebeu, ela tinha um pouco de espinhas.

— A gente senta no chão — disse ela, e deu o exemplo, sentando-se encostada à parede, com os joelhos nus erguidos.

— Vamos ver. Confio inteiramente em você.

— Acho que o que você quer — começou ele — é equi­pamento de estúdio. O que a gente chama de componentes de profissionais. Não o que as pessoas comuns têm em casa.

— O que é isso? — ela apontou para uma fotografia de enormes caixas de alto-falantes. — Parecem geladeiras.

— Esses estão ultrapassados — disse ele, virando a pá­gina. — Funcionam por meio de um plasma. Derivado de hélio. Você teria que comprar botijões de hélio o tempo todo. Mas são bonitos, porque o plasma de hélio brilha. É gerado por voltagem extremamente alta. Olha, vou te mostrar uma coisa mais recente; o transdutor de plasma de hélio é obsoleto, ou pelo menos logo vai ser.

Por que será que tenho a sensação de estar imaginando tudo isto?, perguntou a si mesmo. Vai ver que é porque ela é tão maravilhosa. Mas no entanto...

Durante algumas horas ficaram ali sentados contra a pa­rede estudando catálogos. Ela estava entusiasmadíssima. Mas no fim começou a ficar cansada.

— Estou com fome. O fato é que não tenho roupa para ir a um restaurante; aqui a gente tem que se vestir direito, não é que nem no sul da Califórnia, onde se usa qual­quer coisa. Onde é que você está hospedado?

— No Essex House.

Linda Fox se levantou e esticou os músculos.

— Vamos para o seu quarto e a gente pede o jantar. Tá bom?

— Boa idéia — disse ele, erguendo-se.

Depois do jantar no hotel dele, Linda Fox ficou andando pelo quarto de braços cruzados.

— Sabe de uma coisa? Continuo tendo um sonho em que sou a cantora mais famosa da galáxia. Tal como você disse no telefone. Minha vida imaginária, no inconsciente, acho. Mas vêm sempre as cenas de que continuo gravando fita após fita e dando recitais, e de que tenho um monte de dinheiro. Você acredita em astrologia?

— Acho que sim.

— E lugares onde nunca estive; sonho com isso. E pes­soas que nunca vi antes, gente importante. Figurões do mun­do dos espetáculos. E a gente está sempre viajando de um lugar para outro. A gente podia pedir um vinho, que é que você acha? Não entendo nada de vinho francês; você resolve. Mas não muito seco.

Ele também não entendia coisa alguma de vinho francês, mas pediu a carta de vinhos e, com a ajuda do maître, escolheu um borgonha caríssimo.

— O gosto é fabuloso — comentou Linda Fox, aninha­da no sofá, com as pernas dobradas sob o corpo. — Me fala de você. Há quanto tempo está no negócio de artigos de áudio?

— Vários anos.

— Como é que escapou do recrutamento?

Ele ficou intrigado. Tinha noção de que o recrutamento fora abolido fazia muito tempo.

— Foi? — estranhou Linda, quando ele lhe contou. — Engraçado... — comentou com ar de dúvida. — Estava certa de que havia recrutamento obrigatório, e que para fugir dele um monte de homens tinha emigrado para os planetas-colônias. Você nunca saiu da Terra?

— Nunca. Mas gostaria de fazer uma viagem interpla­netária só para ver como é. — Sentou-se ao lado dela, e, sem refletir, pôs o braço atrás de Linda, que não reclamou. — E descer em outro planeta. Deve ser uma sensação formidável.

— Estou feliz aqui. — Ela encostou a cabeça no braço dele e fechou os olhos. — Me esfrega as costas — pediu. — Estão doendo de ficar contra a parede. Aqui — inclinou-se para a frente e mostrou um ponto na espinha. Ele começou a fazer-lhe massagem no ombro. — É gostoso — murmu­rou ela.

— Deite de bruços na cama — falou ele. — Assim posso fazer mais pressão. Aqui não dá.

— Está bem. — Linda Fox se levantou do sofá e atra­vessou descalça o aposento. — Que quarto bonito! Nunca estive no Essex House. Você é casado?

— Não — mentiu. Não ia contar nada sobre Rybys. — Já fui, mas me divorciei.

— É ruim, divórcio?

Ela estava deitada na cama de barriga para baixo, os braços abertos. Ele se abaixou e beijou-a na nuca.

— Não — disse ela.

— Por quê?

— Não posso.

— Não pode o quê?

— Fazer amor. Estou menstruada.

Menstruada? Linda Fox tinha menstruação? Era incrível. Ele se afastou dela, sentando-se longe, ereto.

— Desculpe — disse ela. Parecia à vontade. — Comece com os ombros. Os músculos estão duros. Estou com sono. É o vinho, acho. Tão... — bocejou. — Bom vinho.

— É — concordou ele, mantendo-se longe dela. De repente ela arrotou. Pôs a mão na boca.

— Pardon — disse.

Na manhã seguinte ele voltou para Washington, D.C. De noite mesmo ela retornara ao apartamento vazio, mas de qualquer jeito o assunto fora discutido, por causa da menstruação. Várias vezes ela se referiu, desnecessariamente na opinião dele, às fortes cólicas que costumava ter durante as regras, e que estava sentindo naquele mesmo momento. Na viagem de volta ele se sentia aborrecido, mas tinha fechado o negócio por um bom preço; Linda Fox assinara um pedido do mais caro e melhor sistema estéreo, e posteriormente ele ia voltar e super­visionar a instalação dos equipamentos de gravação de vídeo e playback. No geral, tinha sido uma viagem proveitosa.

E no entanto... o objetivo último fora por água abaixo porque Linda Fox... bem, ele tinha escolhido a época errada. Ciclo menstrual, pensou. Linda Fox com regras e cólicas? Não dá para acreditar. Mas acho que era verdade. Será que ela mentiu? Não, não foi mentira. Era verdade.

Quando chegou em casa a mulher recebeu-o com uma só pergunta.

— Divertiram-se muito?

— Não — respondeu. Não tinha dado sorte.

— Você tem ar de cansado — comentou Rybys.

— Cansado mas contente.

Fora uma experiência satisfatória e gratificante; ele e a Fox sentados, conversando horas a fio. Uma mulher agradável, pensou. Simples, entusiasmada; gente boa. Sólida. Sem afeta­ção. Gosto dela, decidiu. Vai ser bom vê-la de novo.

E, pensou, da próxima vez ela topa.

Era gozado aquela intuição forte dentro dele, a sensação de que a Fox ia ter sucesso no futuro. Bem, a explicação podia ser porque Linda Fox era realmente boa.

— Que tipo de pessoa ela é? — interessou-se Rybys. — Só fala da carreira dela, provavelmente.

— Ela é suave, e gentil, e modesta — disse ele — e completamente informal. Conversamos sobre um monte de assuntos.

— Será que posso me encontrar com ela algum dia?

— Por que não? Vou ter que voltar lá mais uma vez. E ela disse qualquer coisa a respeito de vir aqui e visitar a loja. Ela viaja muito. Sua carreira está se firmando... está tendo as oportunidades de que precisa e que merece, e fico satisfeito por ela, fico mesmo.

Se ao menos ela não estivesse menstruada... mas são coisas da vida, acho. Isso é o que torna a coisa real. Nesse ponto Linda é igual a todas as outras mulheres; não dá para escapar.

Seja o que for, gosto dela, pensou. Mesmo que a gente não vá para a cama. O prazer da companhia dela: isso basta.

* *

— Você perdeu — disse o menino para Zina Pallas.

— É, perdi — concordou ela. — Você a tornou real e ele ainda se interessa por ela. Para ele o sonho não é mais sonho; desceu ao nível das desilusões.

— E essa é a característica da realidade.

— É — concordou ela de novo. — Parabéns — esten­deu o braço e os dois apertaram as mãos.

— E agora — disse o garoto — você vai me contar quem é você.

 

— Sim — disse Zina —, vou lhe contar quem sou eu, Emma­nuel, mas você não vai trazer seu mundo de volta. O meu é melhor. Aqui Herb Asher leva uma vida muito mais feliz; Rybys está viva; Linda Fox é real...

— Mas não foi você quem a fez real — contrapôs ele.

— Fui eu.

— Quer que eles voltem para o mundo que você tinha dado a eles? Com o inverno, frio e neve cobrindo tudo? Fui eu que derrubei a prisão; eu trouxe a primavera. Eu depus o Procurator Maximus e o Prelado-Chefe. Deixe tudo como está.

— Vou transmudar seu mundo em realidade — disse ele. — Já comecei. Manifestei-me a Herb Asher quando você o beijou; fiz seu mundo penetrar na minha forma real. Estou transformando-o em meu mundo, passo a passo. O que as pessoas precisam fazer, contudo, é lembrar. Podem viver no seu mundo, mas têm que saber que existiu um pior, onde foram obrigados a viver. Restaurei as lembranças de Herb Asher, e os outros vivem ilusões.

— Para mim está bem.

— Agora me diga quem é você.

— Venha comigo — disse ela — de mãos dadas. Como Beethoven e Goethe: dois amigos. Vamos até o Parque Stanley na Colúmbia Britânica, observar os animais, os lobos, os gran­des lobos brancos. É um lindo parque, e a ponte Lionsgate é muito bonita; Vancouver, na Colúmbia Britânica, é a cidade mais bonita do mundo.

— É verdade — concordou ele. — Tinha esquecido.

— E, depois de você ver aquilo, aí eu pergunto se você quer destruir ou fazer qualquer modificação. Quero que você seja sincero consigo mesmo e se pergunte se depois de ver tanta beleza ainda deseja tornar realidade seu grande e terrível dia, quando os arrogantes e os maus vão ser reunidos e abrasados, sem restar deles raízes ou ramos. Está bem?

— Está bem — acedeu Emmanuel. Zina disse:

 

"Somos espíritos do ar cuidando dos seres humanos."

 

— É mesmo? — perguntou ele. Porque, pensou, se é assim, então você é um espírito diáfano, ou seja, um anjo.

Zina continuou:

 

"Vinde, ó bardos celestes

neste bosque, alertas, congregar-vos;

não se acerque nenhuma ave agourenta,

mas apenas o belo e gracioso."

 

— Que é que você está dizendo? — perguntou Emmanuel.

— Vamos para o Parque Stanley — disse Zina. — Se você nos conduzir, estaremos realmente lá; não será ilusão.

Ele a conduziu.

Caminharam juntos pelo solo verdejante, por entre árvores enormes. Este bosque, percebeu ele, nunca viu um machado; era assim a floresta primitiva.

— É bonito demais — falou.

— E o mundo — disse ela.

— Me diga quem é você.

— Sou a Tora.

Emmanuel meditou um pouco.

— Então quer dizer que não posso fazer nada ao universo sem consultar você.

— Nem pode fazer nada ao universo contra minha opinião — replicou ela. — Como você mesmo decidiu, no início, quando me criou. Você me fez viva; sou um ser vivo que pensa. Sou o plano, o diagrama do universo. Foi assim que você quis e é assim que é.

— Por isso é que você me deu aquela placa.

— Olhe-me — disse Zina.

Ele olhou-a, e viu uma mulher jovem, com uma coroa na cabeça e sentada num trono.

— Malkuth — disse ele — o mais baixo dos dez serafins.

— E você é o Eterno e Infinito En Sof — disse Malkuth. — O primeiro e mais alto dos serafins da Árvore da Vida.

— Mas você disse que é a Tora.

— No Zohar — disse Malkuth — a Tora é representada como uma virgem vivendo solitária, reclusa num grande cas­telo. Seu enamorado secreto chega ao castelo para encontrá-la, mas só o que pode fazer é aguardar inutilmente do lado de fora, na esperança de ao menos avistá-la. Por fim ela aparece na janela e ele consegue vê-la, mas só por um instante. Depois ela se debruça no parapeito e ele pode então falar com ela; mas ela mantém a face oculta por um véu... e as respostas que dá são evasivas. Finalmente, depois de bastante tempo, quando o amante já desespera de algum dia conhecê-la, ela permite enfim que ele veja seu rosto.

— Revelando assim ao amante todos os segredos que, durante o longo namoro, guardara no coração — concluiu Emmanuel. — Conheço o Zohar. Você está certa.

— Agora você me conhece então, En Sof — disse Mal­kuth. — Está satisfeito?

— Ainda não — respondeu ele —, porque apesar de ser verdade o que você disse, resta um véu a ser removido da sua face. Ainda há mais uma etapa.

— Correto — disse Malkuth, a adorável jovem assenta­da ao trono. — Mas você é que tem de buscá-la.

— Vou conseguir — afirmou ele. — Estou bem perto agora; mais um passo, um só.

— Você adivinhou — disse ela. — Mas tem que se esforçar mais. Adivinhar não basta; você tem que conhecer.

— Como você é bela, Malkuth — disse ele. — E, é claro, você está no mundo e ama o mundo; é o serafim que representa a Terra. É o ventre que contém tudo, todos os outros serafins que constituem a própria Árvore; essas outras forças, nove delas, foram geradas por você.

— Mesmo Kether — disse Malkuth calmamente —, que está mais alto.

— Você é Diana, a rainha das fadas — disse ele. — Você é Pallas Atena, o espírito da guerra justa; a rainha da primavera, das nascentes, das causas, você é Hagia Sophia, a Sabedoria Sagrada; você é a Tora, que é a fórmula e o dia­grama do universo; você é Malkuth da Cabala, o mais baixo dos dez serafins da Árvore da Vida; e é meu companheiro, meu amigo e meu guia. Mas o que é você realmente? Sob todos esses disfarces? Eu sei o que você é, e... — colocou a mão entre as dela. — Estou começando a lembrar. A queda, quando a Divindade se dividiu.

— Sim — confirmou ela. — Sua memória está atingin­do essa parte, agora. Voltando até o princípio.

— Me dê tempo — pediu ele. — Só um pouco mais de tempo. Não é fácil. Dói.

— Vou esperar — disse ela. Sentada em seu trono, aguardava. Tinha aguardado por milhares de anos, e em sua expressão ele podia ler a disposição paciente e tranqüila de continuar esperando, tanto tempo quanto fosse necessário. Ambos tinham sabido, desde o início, que esse momento havia de chegar, quando estariam de volta juntos. Estavam juntos agora, de novo, como acontecera originalmente. Tudo o que ele tinha que fazer era dizer o nome dela. Denominar é saber, pensou ele. Saber e acenar. Chamar.

— Posso dizer para você o seu nome?

Ela sorriu, o amável sorriso brincalhão, mas agora não havia malícia nos olhos; ao contrário, cintilavam de amor, um imenso amor.

Nicholas Bulkowsky, em uniforme militar, preparava-se para falar a uma multidão de seguidores do Partido na principal praça de Bogotá, na Colômbia, onde os esforços de recruta­mento ultimamente vinham tendo enorme sucesso. Se o par­tido conseguisse levar a Colômbia para o campo antifascista, a desastrosa perda de Cuba poderia ser de algum modo com­pensada.

Contudo, um cardeal da Igreja Católica nos últimos tem­pos vinha se tornando bastante popular — não uma persona­lidade local, mas um americano, enviado pelo Vaticano para interferir nas atividades do P.C. Por que é que eles tinham que se intrometer?, perguntou-se Bulkowsky. Só que não era Bulkowsky; era conhecido ali como General Gomez.

Pediu auxílio à sua conselheira colombiana.

— Dê-me o perfil psicológico desse Cardeal Harms.

— Pois não, Camarada General — e Ms. Reiz passou-lhe a pasta do americano infortuno.

Bulkowsky estudou os dados da pasta.

— Esse sujeito está no mundo da Lua. Só se interessa por teologia. O Vaticano mandou a pessoa errada — comen­tou. O Harms já enrolamos, pensou, satisfeito.

— Senhor — interveio Ms. Reiz — o Cardeal Harms tem carisma. Onde quer que ele vá atrai as multidões.

— Ele vai é entrar pelo cano se se mostrar na Colômbia. — falou Bulkowsky.

Aparecendo uma tarde como convidado especial num programa de entrevistas na TV, o cardeal mergulhou em sua habitual lengalenga solene. O apresentador, ansioso por interrompê-lo um pouco para dar oportunidade aos preciosos comerciais, parecia pouco à vontade.

— Os métodos deles — declarava Harms — inspiram a desordem, que eles aproveitam para seus fins escusos. A agita­ção social é a base do comunismo ateu. Vou dar um exemplo.

— Dentro de um instante estaremos de volta, com vocês — disse o apresentador, quando a câmara focalizou suas fei­ções bem comportadas. — Mas primeiro um intervalo para nossos comerciais.

Corte para teipe de Yardguard.

Aproveitando enquanto não estavam no ar, Fulton Harms virou-se para o apresentador.

— Como é que está o mercado de imóveis aqui em Detroit? Quero fazer uns investimentos, e me disseram que os mais lucrativos são em prédios de escritórios.

— Seria melhor que o senhor consultasse... — o apre­sentador se interrompeu ao receber um sinal visual do pro­dutor; na mesma hora compôs o ar de inteligente e começou a falar naquele tom informal mas profissional. — Hoje temos conosco o Cardeal Fulton Harmer...

— Harms — corrigiu Harms.

— ...Harms, da diocese de...

— Arquidiocese — corrigiu de novo Harms, aborrecido.

— ...de Detroit — continuou o apresentador. Cardeal, não é verdade que na maioria dos países católicos, principal­mente naqueles do Terceiro Mundo, praticamente não existe uma classe média importante? Que a tendência é encontrar-se uma minoria extremamente rica e uma população muito pobre com pouca ou nenhuma instrução, e quase sem esperança de melhoria? Existiria alguma correlação entre a Igreja e essa situação deplorável?

— Bem — fez Harms, embaraçado.

— Vamos colocar o assunto em outras palavras — con­tinuou o apresentador; estava completamente relaxado, con­trolando totalmente a situação. — A Igreja não atravancou o progresso econômico e social durante séculos? Não é a Igreja na realidade uma instituição reacionária voltada para o enriquecimento de uns poucos e a exploração da maioria, comercializando a credulidade humana? Esse argumento seria correto, cardeal?

— A Igreja — contestou Harms, inepto — busca o bem-estar espiritual da humanidade; é responsável pela alma do homem.

— Mas não pelo corpo.

— Os comunistas escravizam o corpo e a alma do homem — afirmou Harms. — A Igreja...

— Desculpe, Cardeal Fulton Harms — interrompeu o apresentador —, mas nosso tempo está esgotado. Tivemos esta tarde a presença do...

— Livra o homem do pecado original — falou Harms. O apresentador olhou-o de viés.

— O homem nasce em pecado — disse Harms, comple­tamente incapaz de juntar os fios do pensamento.

— Muito obrigado, Cardeal Fulton Statler Harms — disse o apresentador. — E, agora, nossos patrocinadores.

Mais comerciais. Harms suspirou, internamente. De qual­quer modo, ruminou, erguendo-se da elegante poltrona onde o tinham sentado, de qualquer modo sinto que conheci me­lhores dias.

Não conseguia perceber como, mas a sensação estava lá. E agora tenho que ir até aquele fim de mundo inútil da Colômbia, refletiu. De novo; já estive lá uma vez, e dei o fora o mais rápido que pude, e agora tenho de voltar. Eles me têm nas mãos, e me jogam para lá e para cá. Vai para a Colômbia, volta para Detroit, depois Baltimore, segue para a Colômbia; sou um cardeal e tenho que aturar isso? Acho que estou decaindo.

Este não é o melhor dos mundos, pensou, dirigindo-se para o elevador. E os apresentadores de programas de depois-do-almoço abusam de mim.

Libera me Domine, proclamou para si mesmo, e foi um apelo mudo; salva-me, Deus. Por que ele não me ouve?, medi­tava Harms esperando o elevador. Talvez Deus não exista; vai ver que os comunistas têm razão. Se existe um Deus, com certeza ele não está fazendo nada por mim.

Antes de viajar, decidiu, vou consultar meu corretor sobre investimentos em prédios de escritórios. Se der tempo.

— Já voltei — anunciou Rybys Rommey-Asher, entrando no apartamento com ar apático. Fechou a porta e tirou o casaco.

— O médico disse que é úlcera. No piloro, passagem do estô­mago para o duodeno. Tenho que tomar fenobarb e beber Maalox.

— Ainda está doendo? — perguntou Herb Asher. Estivera procurando na coleção de fitas a Segunda Sinfonia de Mahler.

— Me arruma um copo de leite? — pediu Rybys, atirando-se no sofá. — Estou derreada — arquejou, e seu rosto, escuro, parecia inchado. — E não toque nada muito alto. Não posso ouvir barulho agora. Por que é que você não está na loja?

— É minha folga — explicou ele. Encontrou a Segunda de Mahler. — Vou colocar os fones de ouvido, para não abor­recer você.

— Quero conversar com você sobre minha úlcera. Andei lendo umas coisas interessantes sobre úlceras. Passei na biblio­teca. Olhe — mostrou um envelope. — Trouxe uma cópia de um artigo recente. É uma teoria que...

— Vou ouvir a Segunda de Mahler — disse ele.

— Ótimo — o tom dela era amargo e sarcástico. — Vá em frente!

— Não há nada que eu possa fazer pela sua úlcera — alegou ele.

— Pode ouvir o que quero dizer.

— Vou buscar o leite para você — disse Herb Asher. Foi até a cozinha. Tem que ser assim?, perguntou-se.

Se eu pudesse ouvir a Segunda, pensou, me sentiria me­lhor. A única sinfonia composta para várias palhetas, refletiu. Um ruthe, que parece uma vassourinha; eles usam para percutir o baixo tímpano. Que pena que Mahler nunca viu um pedal Morley, pensou; então, talvez pudesse ter incluído um em alguma de suas obras.

Voltando à sala estendeu o copo de leite à esposa.

— Que é que você andou fazendo? — indagou ela. — Vejo que não arrumou nem limpou nada.

— Estive dando telefonemas para Nova York.

— Linda Fox — disse Rybys.

— É. Estive fazendo pedidos de material para o aparelho dela.

— Quando é que você vai voltar lá?

— Vou supervisionar a instalação. Quero testar o sis­tema quando estiver montado.

— Você gosta mesmo dela — disse Rybys.

— Foi uma venda importante.

— Não. Eu digo pessoalmente. Você gosta dela. — Ela parou um pouco, depois continuou. — Herb, acho que vou me divorciar de você.

— Está falando sério?

— Seriíssimo.

— Por causa de Linda Fox?

— Porque estou cansada desta casa parecendo um chi­queiro. Estou cheia de ficar cozinhando para você e seus ami­gos. Principalmente estou cheia de Elias; está sempre chegan­do de repente; nunca avisa quando vai chegar. Age como se morasse aqui. Metade do dinheiro da comida vai para ele e suas necessidades. É como se fosse um mendigo. E ele parece um mendigo. E aquela maluca fixação religiosa dele, aquela bobagem de "O fim do mundo está chegando"... Não agüento mais.

Calou-se e fez uma careta de dor.

— A úlcera? — perguntou ele.

— Minha úlcera, sim. A úlcera que arranjei me preo­cupando...

— Vou para a loja — disse ele, e encaminhou-se para a porta. — Até logo.

— Até logo, Herb Asher — disse Rybys. — Me aban­done aqui e vá conversar com freguesas bonitas e ouvir os novos aparelhos de alta-fidelidade que vão fazer a sua vida, por meio milhão de dólares.

Ele fechou a porta ao sair, e momentos depois elevava-se ao céu no aerocarro.

No fim da tarde, quando já não havia interessados inspecio­nando os novos equipamentos, ele sentou-se na loja junto do sócio.

— Elias — disse —, acho que Rybys e eu chegamos ao fim.

— O que é que você vai fazer depois? — perguntou Elias. — Está acostumado a viver com ela; é uma parte inte­grante de você, cuidar dela. Satisfazer as vontades dela.

— Psicologicamente — explicou Herb —, ela está muito doente.

— Você já sabia disso quando casou com ela.

— Ela é incapaz de fixar a atenção. É dispersiva. É o termo técnico para explicar. Foi o que os testes mostraram. Por causa disso é que ela é tão confusa; não pode pensar e não pode agir e não pode se concentrar.

O Espírito do Esforço Fútil, disse de si para si.

— O que vocês precisam — disse Elias — é de um filho. Percebi sua afeição por Manny, o irmãozinho daquela mulher. Por que vocês não... — interrompeu-se. — Não tenho que dar palpites.

— Se eu tivesse que me envolver com outra — disse Herb —, bem sei quem seria. Mas ela nunca me deu chance.

— Aquela cantora?

— É.

— Tente — disse Elias.

— Está além de minha capacidade.

— Ninguém conhece o que está além de sua capacidade. Deus é quem decide isso.

— Ela vai ser famosa na galáxia inteira.

— Mas ainda não é. Se vai tentar conquistá-la, tente já.

— A Fox — disse Herb Asher. — É assim que penso nela.

Uma frase surgiu em sua mente:

 

"Você está com Fox, e a Fox está com você!"

 

Não Linda Fox cantando, mas falando. Ficou imaginando de onde é que teria vindo essa idéia de que ela estaria falando aquilo. Outra vez vagas lembranças, compostas de... não sa­bia o quê. Uma Linda Fox mais agressiva; mais profissional e dinâmica. E contudo remota. Como se a milhões de quilô­metros de distância. Um sinal vindo de uma estrela. Em ambos os sentidos da palavra.

Das estrelas distantes, pensou. Música e o som de sinos.

— Talvez — falou — eu vá emigrar para um planeta-colônia.

— Rybys está muito doente para isso.

— Vou sozinho.

— Você vai se sentir melhor depois de se encontrar com Linda Fox — disse Elias. — Se conseguir se sair bem. Você vai vê-la amanhã. Não desista ainda. Faça uma tentativa. Viver é tentar sempre.

— Está bem — disse Herb Asher. — Vou tentar.

 

De mãos dadas, Emmanuel e Zina passeavam pelo bosque escuro do Parque Stanley.

— Você sou eu — disse ele. — Você é Shekhina, a Presença imanente que nunca deixou o mundo.

O lado feminino de Deus, pensou. Conhecido pelos ju­deus e somente pelos judeus. Quando aconteceu a queda pri­mordial, a Divindade se dividiu numa parte transcendente se­parada do mundo; essa parte era En Sof. Mas a outra parte, a parte feminina, imanente, permaneceu com o mundo decaído, permaneceu com Israel.

Essas duas porções da Divindade, pensou, estiveram sepa­radas por milênios. Mas agora estamos juntos de novo, a metade masculina da Divindade reunida à metade feminina. Quando eu estava afastado, a Shekhina interveio nas vidas dos seres humanos, para assisti-los. Aqui e ali, esporadicamente, a Shekhina permaneceu. E assim, na realidade, Deus nunca aban­donou a espécie humana.

— Cada um de nós é também o outro — disse Zina — e agora nos encontramos de novo, e de novo somos um só. A divisão está restaurada.

— Por baixo de todos os véus — disse Emmanuel —, através de todas as suas formas, resta isso... meu próprio ser. E eu não reconheci você, até que você me lembrasse.

— Como foi que consegui? — perguntou Zina, e depois afirmou: — Mas eu sei. Meu amor pelos jogos. Essa é a sua paixão, a sua alegria secreta: brincar como uma criança. Não ser sério. Eu apelei para isso; despertei você e você re­cordou: me reconheceu.

— Foi um processo difícil — falou ele —, para mim, reconhecer. Obrigado.

Ela se degradara a si mesma neste mundo decaído, todo esse tempo, enquanto ele se afastara; o heroísmo maior fora o dela. Ficar com o homem em todas as inglórias situações do homem... junto com ele no calabouço, pensou Emmanuel. A melhor companheira do homem. A seu lado, tal como está a meu lado agora.

— Mas você está de volta — lembrou Zina. — Retor­nou.

— É isso — disse ele. — Retornei para você. Eu tinha esquecido que você existia. Só me lembrava do mundo.

Você, o lado gentil, meditou; o lado compassivo. E eu, o lado terrível que provoca medo e tremor. Juntos formamos uma unidade. Separados, não somos completos; não somos, individualmente, suficientes.

— Pistas — disse Zina. — O tempo todo eu lhe dava pistas. Mas competia a você reconhecer-me.

— Durante um tempo eu não sabia quem eu era, e não sabia quem você era. Dois mistérios me confrontando, e havia uma só resposta para os dois.

— Vamos espiar os lobos — disse Zina. — São animais tão bonitos. Podemos andar no trenzinho. E podemos visitar todos os animais.

— E libertá-los — disse Emmanuel.

— Sim — concordou ela. — Libertar todos eles.

— O Egito vai existir sempre? — indagou ele. — Vai existir sempre a escravidão?

— Sim — disse Zina. — E nós também. Aproximaram-se do zoológico do Parque Stanley.

— Os animais vão ficar surpresos pela liberdade. No começo não vão saber o que fazer.

— Então a gente ensina para eles. Como sempre fizemos — disse Zina. — O que eles sabem fomos nós que ensinamos; somos os seus guias.

— Assim seja — disse ele, e pôs a mão na primeira jaula de metal. Dentro dela um pequeno animal apareceu, hesitante. — Saia de sua jaula — disse Emmanuel.

O animal, tremendo, se aproximou, e ele pegou-o nos braços.

Da loja, Herb Asher fez uma ligação para Linda, em Sherman Oaks. Demorou um pouco — duas secretárias-robôs segura­ram-no algum tempo, mas por fim se livrou delas.

— Oi — fez ele, quando ela apareceu.

— Como é que está meu aparelho de som? — Ela piscou rapidamente e pôs um dedo no olho. — Minhas lentes de contato estão deslizando; espere um pouquinho — e o rostc desapareceu da tela. — Estou de volta — disse ela. — Devo-lhe um jantar. Correto? Não quer voar até a Califórnia? Ainda estou no Golden Hind; vou ficar lá mais uma semana. O público está bom; estou bolando uma porção de coisas novas. Quero ver a sua reação.

— Ótimo — disse ele, com grande satisfação.

— Então podemos nos ver? — perguntou ela. — Aqui?

— Claro — assegurou ele. — Diga quando.

— Que tal amanhã à noite? Tem que ser antes que eu vá trabalhar, se formos jantar.

— Está ótimo. Lá pelas 18 horas, horário da Califórnia? Ela concordou.

— Herb — disse —, você pode ficar em minha casa; é enorme. Cheia de quartos.

— Vou gostar.

— Vou lhe oferecer alguns bons vinhos da Califórnia. Um Mondavi tinto. Quero que prove os vinhos da Califórnia; aquele borgonha francês que tomamos em Nova York era muito bom, mas... temos excelentes vinhos aqui.

— Tem algum lugar especial onde você queira jantar?

— Sashiko. Comida japonesa.

— Você se trata bem — disse ele.

— E o meu sistema de som, vai bem? — perguntou ela.

— Está ótimo.

— Não quero que você trabalhe demais — disse Linda Fox. — Tenho a impressão de que você se esforça demasiado. Quero que relaxe e goze a vida. Tem muita coisa boa: bons vinhos, amigos.

— Laphroaig Scotch — disse Herb. Linda Fox espantou-se.

— Não me diga que você conhece o Laphroaig Scotch! Pensei que eu fosse a única pessoa do mundo a tomar Laph­roaig.

— Ele é destilado em alambiques de cobre tradicionais há mais de cento e cinqüenta anos — disse Herb Asher. — Passa por duas destilações sob a supervisão de um especia­lista.

— É. É o que diz na embalagem — ela começou a rir.

— Você leu isso na embalagem, Herb.

— Foi — confessou ele.

— Meu apartamento em Manhattan não está ficando ba­cana? — perguntou ela, entusiasmada. — Esse sistema de som que você está instalando é que vai ser grande. Herb...

— e ela examinou-o bem. — Você acredita honestamente que minha música é boa?

— Acredito — afirmou ele. — Eu conheço. O que eu digo é verdade.

— Você é tão simpático — disse ela. — Prevê tanta coisa boa para mim. Você me dá sorte. Herb, ninguém na realidade nunca teve fé em mim. Nunca fui bem na escola... minha família achava que eu não dava para cantora. Tenho problemas de pele, também; bastante ruim. É verdade que ainda não fiz carreira... estou só no começo. E no entanto para você eu sou... — ela fez um gesto com a mão.

— Alguém importante — completou ele.

— E isso significa muito para mim. Preciso tanto disso. Herb, tenho uma péssima opinião sobre mim mesma; certeza de que vou fracassar. Isto é, costumava ter essa certeza — corrigiu-se. — Mas você me deu... Bem, quando eu me enxergo com os seus olhos não vejo uma artista que luta com dificuldades; vejo algo que... — tentou continuar; as pesta­nas piscaram e ela sorriu para ele, apreensiva mas esperançosa, querendo que ele concluísse o pensamento dela.

— Conheço tudo sobre você — afirmou ele. — Como ninguém mais conhece.

E sem dúvida era verdade; porque ele se lembrava dela, e ninguém mais se lembrava. O mundo, coletivamente, esque­cera; adormecera. Tem que ser lembrado. E vai ser.

— Venha para a Costa Oeste, Herb — disse Linda. — Por favor. Vamos nos divertir muito. Você conhece bem a Califórnia? Não conhece, não é mesmo?

— É — admitiu ele. — Viajei direto para ver você no Golden Hind. E sempre sonhei viver na Califórnia. Mas nunca deu.

— Vou levar você a todos os lugares. Vai ser fabuloso. E você vai me animar quando eu estiver deprimida e me con­fortar quando me tratarem mal. Está bem?

— Está bem — disse ele, e sentiu imenso amor por ela.

— Quando você estiver aqui, me diga o que está certo na minha música, e o que estou fazendo de errado. Mas acima de tudo me diga que vou conseguir. Me diga que não vou fracassar. Diga que Dowland é uma boa idéia. A música de alaúde de Dowland é tão bonita, a música mais bonita que já compuseram. Você acredita mesmo, então, você está certo de que minha música, o tipo de coisas que eu canto vão me fazer vencer na carreira?

— Positivo — assegurou ele.

— Como é que você sabe essas coisas? É como se você tivesse um dom. Um dom que por sua vez me transmite.

— Vem de Deus — disse Herb Asher. — Meu presente para você. Minha fé em você. Aceite o que digo; é a pura verdade.

Ela ficou séria.

— Sinto algo de mágico em torno de nós, Herb. Uma espécie de encantamento. Sei que parece ridículo, mas é o que sinto. Uma perfeição em tudo.

— Perfeição — disse ele — que enxergo em você.

— Na minha música?

— Em ambas.

— Não está inventando isso?

— Não — disse ele. — Juro pelo nome de Deus. Pelo Pai que nos criou.

— De Deus... — fez ela. — Herb, isso me perturba. Você me perturba. Tem alguma coisa em você.

— Sua música vai levar você até as alturas — disse Herb Asher. Ele sabia porque se lembrava. Sabia porque para ele já acontecera.

— Verdade? — perguntou Linda.

— Verdade — confirmou ele. — Você vai subir até as estrelas.

 

O pequeno animal, liberto da jaula, aninhou-se nos braços de Emmanuel. Zina também ajudou a segurá-lo ao colo. Ambos sentiram a gratidão do bichinho.

— É um cabrito — disse Zina, examinando-lhe os cascos.

— Vocês são muito bondosos — disse o cabritinho. — Tive que esperar muito tempo para ser libertado da jaula, a jaula em que você me colocou, Zina Pallas.

— Você me conhece? — surpreendeu-se ela.

— Conheço, sim — disse o cabritinho, apertando-se mais contra ela. — Conheço vocês dois, embora os dois sejam na realidade um só. Vocês reuniram seus eus que estavam sepa­rados, mas a batalha não terminou; agora é que começa a batalha.

— Eu conheço essa criatura — disse Emmanuel.

— Eu sou Belial — disse o cabrito, no colo de Zina. — Aquele que você aprisionou. E aquele a quem você agora dá liberdade.

— Belial — falou Emmanuel. — Meu adversário.

— Bem-vindo ao meu mundo — disse Belial.

— Este é o meu mundo — contestou Zina.

— Agora não é mais — a voz do cabrito ganhou força e autoridade. — Na ânsia de libertar os prisioneiros vocês libertaram o maior de todos os prisioneiros. Lutarei contra você, divindade da luz. Empurrarei você até o fundo das ca­vernas onde não existe luz. Você não emitirá nenhuma radia­ção agora; a luz se foi, ou logo desaparecerá. O que você esteve fazendo foi um pseudojogo, em que jogou contra si mesmo. Como poderia a divindade da luz perder se ambos os lados no jogo eram porções dela mesma? Mas agora você en­frenta um adversário de verdade, você que do caos extraiu a ordem, e agora me extrai dessa ordem. Vou pôr à prova os poderes que você tem. Um erro você já fez: libertou-me sem saber quem sou eu. Isso eu tenho que lhe dizer. Seu conheci­mento não é perfeito; você pode ser surpreendido. Eu não sur­preendi você?

Zina e Emmanuel ficaram em silêncio.

— Você me tornou desamparado — disse Belial — ao me prender na jaula, e então sentiu pena de mim. Você é sentimental, divindade da luz. Isso será sua ruína. Eu o acuso de fraqueza, de inabilidade para ser forte. Sou aquele que acusa, e acuso meu próprio criador. Para dirigir, é necessário ser forte. É o forte que comanda; comanda o fraco. Você, ao invés, protegeu o fraco; ofereceu ajuda a mim, seu inimigo. Veremos se foi um ato de prudência.

— O forte deve proteger o fraco — disse Zina. — É o que diz a Tora. É uma das idéias básicas da Tora; é básico para a lei de Deus. Assim como Deus protege o homem, deve o homem proteger os desamparados, inclusive os animais e as árvores majestosas.

— Isso vai contra a natureza da vida, a natureza que você implantou nela. É assim que a vida evolui. Acuso você de violar seus próprios fundamentos biológicos, a ordem do mundo. Sim, libertem todos os prisioneiros; soltem uma tor­rente de assassinos pelo mundo. Começaram comigo. Mais uma vez lhe agradeço. Mas agora me despeço; tenho muito o que fazer; tanto quanto você, talvez mais. Ponha-me no chão.

O cabrito pulou do colo deles e correu; Zina e Emmanuel contemplaram-no ir-se. E, à medida que ele corria, crescia.

— Ele vai arruinar nosso mundo — falou Zina.

— A gente o mata antes — disse Emmanuel. Ergueu a mão; o cabrito esvaneceu-se.

— Ele não sumiu — disse Zina. — Escondeu-se no mun­do. Camuflou-se. Não podemos encontrá-lo mais. Você sabe que ele não pode morrer. É eterno, como nós.

Nas outras jaulas os prisioneiros restantes reclamavam liberdade. Zina e Emmanuel ignoraram-nos; em vez disso, pro­curaram por aqui e ali, em busca do cabrito que tinham dei­xado fugir; fugir para fazer o que quisesse.

— Sinto a presença dele — disse Zina.

— Eu também — falou Emmanuel, sombrio. — Nossa obra já está arruinada.

— Mas a batalha não terminou — contestou Zina. — Como ele mesmo disse, agora é que começa.

— Que assim seja — disse Emmanuel. — Combatê-lo-emos juntos, nós dois. Como fizemos no começo, antes da queda.

Zina aproximou-se dele e beijou-o. Ele sentiu o medo dela. Uma angústia terrível. Que esta­va dentro dele também.

Que aconteceria a eles agora?, perguntou-se. As pessoas que ele tinha querido libertar. Que tipo de prisão iria Belial imaginar agora para elas, com sua infinita capacidade de con­ceber prisões? Sutis algumas, grosseiras outras, prisões dentro de prisões; prisões para o corpo, e, muito pior, prisões para a mente.

A Caverna dos Tesouros, por sob o Jardim: pequena e escura, sem ar nem luz, desprovida do tempo real e do espaço verdadeiro — paredes que se contraem e, bem apertadas, men­tes que se contraem. E nós permitimos isso, Zina e eu; fomos coniventes com o pequeno bode para que isso acontecesse.

A libertação dele é a sujeição dos outros, compreendeu. Um paradoxo; demos liberdade ao construtor de masmorras. Com nosso desejo de emancipá-los, esmagamos as almas de todos os seres.

Cada um deles neste mundo será afetado, desde o maior até o mais baixo. Até que possamos devolver o bode à sua jaula; até conseguirmos envolvê-lo em algo que o contenha.

Pois agora está em toda parte; nada o contém. Os átomos do ar são a sua morada; é inalado, como vapor. E cada uma das criaturas, aspirando-o, morrerá. Não completa nem fisica­mente, mas sem embargo a morte virá. Liberamos a morte, a morte do espírito. Para todos os que agora vivem e desejam viver. Esta é a nossa dádiva para eles, o dom de nossa gene­rosidade.

— Os motivos não contam — disse Zina, cônscia dos pensamentos dele.

— Para o inferno — disse Emmanuel. Literalmente, pen­sou, neste caso. Essa é a única porta que abrimos: a porta do túmulo.

Sinto pena mais pelas pequenas criaturas, pensou. As que fizeram menos mal. Elas são as que menos merecem isso. O bode vai selecioná-las para os sofrimentos maiores; vai afligi-las em proporção à sua inocência... esse é seu método de desviar da justiça a grande balança, e desfazer o Plano. Ele vai acusar o fraco e destruir o desamparado; vai usar seu poder contra os menos capazes de se defenderem. E, acima de tudo, devorar as pequenas esperanças, os magros sonhos dos pequeninos.

Aqui devemos intervir, disse a si mesmo. Para proteger os pequenos. Esse é nosso primeiro objetivo e nossa primeira linha de defesa.

Elevando-se por sobre sua residência em Washington, D.C., Herb Asher alegremente iniciou o vôo até a Califórnia e Linda Fox. Vai começar o período mais feliz de minha vida, pensava consigo mesmo. As malas estavam no assento traseiro, cheias de tudo o que ele poderia vir a precisar; por algum tempo — talvez para sempre — não retornaria a Washington, D.C., e a Rybys. Uma vida nova, pensava, dirigindo o carro pelas bem sinalizadas rotas de tráfego transcontinentais. Parece um sonho, pensava. Um sonho que se realizou.

Percebeu, de repente, aquela confusa música de cordas enchendo o carro. Chocado, parou de pensar e prestou atenção. South Pacific, compreendeu. A canção l'm Gonna Wash That Man Right Out of My Hair. Oitocentas e nove cordas, todas harmonizadas. O estéreo do carro estava ligado? Olhou a luz indicativa e o mostrador. Não, não estava.

Estou em suspensão criogênica!, pensou. E aquele enor­me transmissor de FM aí do lado. Uma chuva de 50.000 W de som enlameando todo mundo nos Laboratórios Criogênicos S.À. Filho de uma puta!

Diminuiu a velocidade do carro, aturdido e assustado. Não pode ser, pensou, em pânico. Lembro-me de que fui tirado da suspensão; fiquei dez anos congelado e então eles encon­traram os órgãos para mim e me trouxeram de novo à vida. Não foi? Ou foi uma fantasia criogênica no meu cérebro mor­to? E isto também, então... oh, meu Deus! Não admira que parecesse um sonho; é um sonho.

A Fox, pensou, é um sonho. Meu sonho, Eu a inventei enquanto jazia em suspensão; estou inventando-a agora. E mi­nha única indicação é essa música estúpida se infiltrando em tudo. Sem essa música nunca teria percebido.

É uma coisa diabólica, pensou, brincar assim com um ser humano, com suas esperanças. Com seus anseios.

Uma luz vermelha acendeu no painel, e ao mesmo tempo uma sereia soou. Como se já não bastasse o que estava acon­tecendo, agora era alvo de um carro de polícia.

A viatura policial emparelhou com ele e enganchou-se em seu carro. As portas dos dois veículos deslizaram para trás e ele ficou de frente para o guarda. — Deixe ver sua carta de motorista — ordenou o agente, cuja face era invisível atrás da máscara de plástico; parecia algo saído da Primeira Guerra Mundial, algo produzido em Verdun.

— Está aqui — e Herb Asher passou o documento para o guarda, enquanto os carros, grudados, moviam-se lentamente para diante, como se fossem um só.

— Tem algum mandado contra o senhor, Mr. Asher? -— perguntou o guarda, introduzindo informações no painel da viatura.

— Não — respondeu Herb Asher.

— O senhor está errado — retrucou o outro. Linhas de letras luminosas apareceram no painel do carro policial. — De acordo com nossos dados o senhor está na Terra ilegalmente. Sabia disso?

— Não é verdade — contestou ele.

— É uma ordem de arresto antiga. Faz algum tempo que estão procurando o senhor. O senhor vai comigo, agora.

— Você não pode fazer isso — disse Herb Asher. — Eu estou em suspensão criogênica. Veja, vou fazer minha mão atravessar você. — Esticou o braço e tocou o guarda. Sua mão encontrou carne solidamente protegida. — Esquisito — falou Herb Asher. Apertou com mais força e percebeu de repente que o guarda tinha uma arma apontada.

— Vai insistir? — perguntou o guarda. — Na suspensão criogênica?

— Não — desistiu Herb Asher.

— Porque se continuar se fazendo de bobo eu queimo você. Você é um criminoso procurado. Posso matá-lo no mo­mento que quiser. Tire essa mão de mim. Vamos!

Herb Asher retirou a mão. E no entanto continuava a ouvir South Pacific. O som nebuloso penetrava nele vindo de todos os lados.

— Se você pudesse fazer sua mão me atravessar — expli­cou o guarda —, você já teria caído pelo fundo do seu carro. Pense no que quer dizer atravessar. Não é uma questão de eu ser real; é de tudo ser real. Para você, acho. Isso é problema seu. Ou então você acha que é seu problema. Esteve em sus­pensão criogênica alguma vez?

— Sim.

— Você está tendo uma regressão. É comum. Sob pres­são, seu cérebro reage. A suspensão criogênica fornece uma sensação de segurança, como se fosse um útero, que seu cére­bro registra e posteriormente reconstitui. É a primeira vez que acontece com você? Essa regressão? Já vi pessoas que esti­veram em suspensão criogênica e que de jeito nenhum se con­venciam, nem por palavras nem por fatos, de que finalmente já estavam livres.

— Você está falando com uma dessas — disse Herb Asher.

— Por que é que você pensa que está em suspensão criogênica?

— Essa música.

— Não ouço...

— Claro que não. Aí é que está.

— Você está tendo alucinações.

— Exato — concordou Herb Asher. — Esse é o ponto — e com um gesto indicou a arma do guarda. — Vamos. Atire — desafiou. — Você não consegue me ferir. O raio vai me atravessar.

— Acho que você precisa é de um sanatório, não de cadeia.

— Talvez seja isso mesmo.

— Para onde é que você estava indo? — perguntou o guarda.

— Para a Califórnia. Visitar a Fox.

— Que Fox?

— A maior cantora da atualidade.

— Nunca ouvi falar dela.

— Ela não é muito conhecida neste mundo. Aqui neste mundo ela mal está começando a carreira. E eu vou fazê-la ficar famosa na galáxia inteira. É uma promessa.

— Neste mundo? Qual é o outro mundo?

— O mundo real — explicou Herb Asher. — Deus me fez recordar. Sou uma das poucas pessoas que se lembram do mundo real. Deus me apareceu nos bambus, e havia letras de fogo vermelho me contando a verdade e restaurando minha memória.

— Você está muito doente. Pensa que está em suspensão criogênica e tem lembranças de outro universo. Nem quero pensar no que podia ter acontecido com você se eu não tivesse aparecido.

— Eu tive uns bons momentos — disse Herb Asher — lá na Costa Oeste. Bem melhores do que o que estou passando agora.

— Que mais Deus lhe contou?

— Uma porção de coisas.

— Ele costuma sempre conversar com você?

— É muito difícil. Eu sou pai dele, legalmente. O guarda encarou-o, espantado.

— O quê?

— Legalmente eu sou pai dele. Não de verdade; padras­to. Minha mulher é mãe dele.

O guarda continuava de olhos fixos nele. A pistola de laser moveu-se.

— Deus me fez casar com a mãe dele; assim sendo...

— Levante as mãos. As duas.

Herb Asher levantou as mãos. Imediatamente algemas se fecharam em seus pulsos.

— Continue — disse o guarda. — Mas devo avisá-lo de que qualquer coisa que diga pode ser utilizada contra você num tribunal.

— O plano era trazer Deus clandestinamente de volta à Terra — disse Herb Asher. — No ventre de minha mulher. E deu certo. É por isso que tem esse mandado contra mim. O crime que eu cometi foi trazer Deus clandestinamente de volta à Terra, onde o Perverso está mandando. O Maligno secretamente controla tudo e todos. Por exemplo, você está trabalhando para ele.

— Eu estou...

— Mas você não tem consciência disso. Você nunca ou­viu falar de Belial.

— Isso é verdade — disse o guarda.

— E prova o que eu falei.

— Tudo o que você falou desde o momento em que abordei seu carro está sendo gravado — disse o guarda. — A gravação vai ser analisada. Então você é o pai de Deus.

— Pai legal.

— E é por isso que você está sendo procurado. Fico imaginando que artigo você infringiu. Nunca li nada sobre isso. Passando por pai de Deus.

— Pai legal.

— E quem é o pai verdadeiro?

— Ele mesmo — explicou Herb Asher. — Ele fecundou a mãe.

— Que coisa nojenta.

— É verdade. Ele a fecundou e dessa maneira copiou a si mesmo em microforma, ficando portanto apto a...

— Você pode me contar essas coisas?

— A batalha já terminou. Deus venceu. O poder de Be­lial foi destruído.

— Então por que é que você está aí sentado de algemas nos pulsos e por que estou lhe apontando o revólver de laser?

— Não tenho certeza. Estou preocupado com isso. Com isso e com South Pacific. Tem umas peças que eu não consigo encaixar direito. Mas estou tentando. O que estou certo é da vitória de Yah.

— "Yah"? Pensei que era Deus.

— Pois é. Esse é o verdadeiro nome dele. O nome ori­ginal. De quando ele estava vivendo no alto da montanha.

— Não estou querendo exagerar a sua perturbação, mas você é o cara mais doido que já vi na minha vida. E olhe que já vi tudo quanto é tipo de gente. Acho que derreteram o seu cérebro quando puseram você em suspensão criogênica. Talvez não tenham chegado a tempo. Eu diria que só um sexto do seu cérebro está funcionando, e mesmo esse sexto não está funcionando direito. Vou levá-lo para um lugar muito melhor do que qualquer outro em que você já tenha estado, e lá eles vão lhe fazer coisas muito melhores do que tudo o que você possa imaginar. Na minha opinião...

— Vou lhe contar outra coisa — disse Herb Asher. — Sabe quem é o meu sócio? É o profeta Elijah.

O guarda falou para o microfone.

— Aqui Kansas 356. Estou levando um indivíduo para exame psiquiátrico, branco, sexo masculino, com cerca de... — virou-se para Herb Asher. — Eu lhe devolvi a carta de motorista? — enfiou o revólver no coldre e aproximou-se de Herb para pegar o documento.

Herb Asher puxou a arma do coldre do guarda e apon­tou; teve que usar as duas mãos por causa das algemas, mas de qualquer modo conseguiu.

— Ele está com meu revólver — disse o guarda. O alto-falante do intercomunicador zumbiu.

— Você deixou um maluco pegar sua arma?

— Bem, ele estava com uma conversa aí a respeito de Deus; eu pensei que ele era... — o guarda gaguejava, pouco convincente.

— Qual é o nome do indivíduo? — zumbiu o alto-fa­lante.

— Asher. Herbert Asher.

— Mr. Asher — falou o alto-falante —, por favor, de­volva a arma ao agente de polícia.

— Não posso — respondeu Herb Asher. — Estou con­gelado em suspensão criogênica. E tem um transmissor de FM de 50.000 watts aqui perto tocando South Pacific. Está me deixando louco.

— Vamos supor que a gente dê ordem à estação para desligar o transmissor — falou o alto-falante. — Então o se­nhor devolveria a arma do agente?

— Eu estou paralisado — redargüiu Herb Asher. — Es­tou morto.

— Se você está morto — contra-argumentou o alto-fa­lante —, não tem necessidade de arma. Na verdade, se está morto, como é que vai poder disparar o revólver? Você disse que está congelado. As pessoas em suspensão criogênica não podem se mover.

— Então diga ao guarda para tirar a arma de mim — disse Herb Asher.

— Pegue a arma... — começou o alto-falante.

— A arma é real — disse o guarda — e Asher é real. Ele está doido. Não está congelado. Eu iria deter um homem morto? Um homem morto podia estar voando para a Califór­nia? Há um mandado contra este homem. É um infrator pro­curado.

— Por que é que você está sendo procurado? — inda­gou o alto-falante. — Estou falando com você, Mr. Asher. Estou falando com um homem congelado a zero grau.

— Muito mais frio do que isso — disse Herb Asher. — Peça para eles tocarem a Segunda Sinfonia de Mahler. Mas com a orquestração original; não uma versão para cordas. Não suporto mais essa música de cordas, essa música de fundo agradável. Para mim não é agradável. Uma vez fui obrigado a escutar Um Violinista no Telhado durante meses. Match­maker Matchmaker durou dias. E justo num período crítico de meu ciclo. Eu estava...

— Está bem — falou o alto-falante, razoável. — Vamos fazer assim: nós fazemos a estação de FM tocar a Segunda Sinfonia de Mahler e você em troca devolve a arma do agente. Está bem? Qual é... espere um minuto.

Silêncio.

— Está havendo uma confusão aqui — disse o guarda ao lado de Herb Asher. — Você está entrando na dele. Sabe o que é que eu acho? Acho que estou ouvindo dois doidos. Vamos parar com isso. Não tem nenhuma estação de FM trans­mitindo South Pacific. Se tivesse eu estaria ouvindo. Você não pode chamar a estação, nenhuma estação, e dizer para eles tocarem a Segunda Sinfonia de Mahler. Não vai dar certo.

— Mas ele vai pensar que sim, seu débil mental idiota — disse o alto-falante.

— Oh! — fez o guarda.

— Me dê algum tempo, Mr. Asher, alguns minutos — pediu o alto-falante — para conseguir...

— Não — recusou Herb Asher. — Isso é um truque. Não vou devolver a arma — e virou-se para o guarda. — Solte meu carro.

— É melhor libertar o carro dele — sugeriu o alto-falante.

-— E me tire as algemas — disse Herb Asher.

— Você vai gostar de ouvir a Segunda Sinfonia de Mah­ler — disse o guarda. — Tem um coral bonito.

— Você sabe o que tem a Segunda de Mahler? — per­guntou Herb Asher. — Sabe para que é que ela foi composta? Vou lhe dizer. Foi composta para quatro flautas, alternando-se com flautins, quatro oboés, o terceiro e o quarto alternando-se com cornes-ingleses, uma clarineta em mi bemol, quatro clari­netas, a terceira alternando com clarineta contralto, a quarta com a segunda clarineta em mi bemol, quatro fagotes, o ter­ceiro e o quarto alternando com contrafagote, dez trompas, dez pistões, quatro trombones...

— Quatro trombones? — perguntou o guarda.

— Jesus Cristo — exclamou o alto-falante.

...uma tuba — continuou Herb Asher. — Órgão, duas ordens de tímpanos, mais um tambor afastado, dois tambores baixos, um deles afastado, dois pares de pratos, um afastado, dois gongos, um relativamente alto, o outro baixo, dois triân­gulos, um afastado, um tarol, de preferência mais do que um, xilofone, sinos, um ruthe...

— Que que é um ruthe? — perguntou o guarda ao lado de Herb Asher.

— Ruthe literalmente significa "vara" — explicou Herb Asher. — É feito de palha de junco; parece uma escova de roupa grande ou uma vassoura pequena. É usado para tocar o baixo tímpano. Mozart compôs para ruthe. Duas harpas, com dois ou mais instrumentistas para cada parte, se possí­vel... — ficou meditando. — Mais a orquestra regular, é claro, inclusive a seção completa de cordas. Deixe usarem o quadro misto para as cordas; estou cheio das cordas. E esteja seguro de que os dois solistas, o soprano e o contralto, sejam bons.

— Pronto? — zumbiu o alto-falante.

— Você caiu no delírio dele — disse o guarda ao lado de Herb Asher.

— Sabe — disse o alto-falante —, ele parece bastante sensato. Tem certeza de que ele pegou seu revólver? Mr. Asher, como é que o senhor entende tanto de música? O se­nhor fala como uma autoridade no assunto.

— Por dois motivos — disse Herb Asher. — O primeiro é devido à minha vida em um planeta do sistema estelar CY30-CY30B; opero sofisticados equipamentos eletrônicos, de áudio e vídeo; recebo transmissões da nave-mãe, gravo e trans­mito para os outros domos no meu planeta e em planetas próximos, e administro o tráfego com Fomalhaut, bem como o tráfego doméstico de emergência. E o segundo motivo é que o profeta Elijah e eu somos proprietários de uma loja de artigos de áudio em Washington, D.C.

— Além do fato — aduziu o guarda ao lado de Herb Asher — de que você está em suspensão criogênica.

— É. Isso também — concordou Herb Asher.

— E de que Deus lhe conta coisas — continuou o guar­da.

— Não sobre música — contestou Herb Asher. — Ele não precisa. E contudo ele apagou todas as minhas fitas de Linda Fox. E interferiu na minha recepção de Linda Fox...

— Há um outro universo — explicou o guarda sentado ao lado de Herb Asher — onde essa Linda Fox é tremenda­mente famosa. Mr. Asher está viajando para a Califórnia para se encontrar com ela. Como é que ele pode fazer isso estando em suspensão criogênica está além de meu entendimento, mas esses são os planos dele, ou eram até que eu o peguei.

— Ainda estou indo para lá — falou Herb Asher, e en­tão compreendeu que fora um erro dizer-lhes isso; agora po­deriam segui-lo, mesmo que escapasse. Fizera uma coisa tola. Falara demais.

O guarda olhou-o intencionalmente.

— Acho que o circuito automático dele informou-o de que ele falou imprudentemente.

— Estava imaginando quando é que o circuito ia se ma­nifestar — disse o alto-falante.

— Agora não posso ir me encontrar com a Fox — disse Herb Asher. — Não estou indo para lá. Estou indo de volta para meu domo no Sistema CY30-CY30B. Vocês não têm jurisdição lá. Belial, também, não manda lá. Lá é Yah quem manda.

— Se não me engano você disse que Yah voltou para cá

— disse o guarda — e presumo que, se ele voltou, agora é ele quem manda.

— Ficou patente para mim, no decurso desta conversa

— disse Herb Asher —, que ele não manda aqui, pelo menos não completamente. Tem alguma coisa errada. Percebi quando comecei a ouvir aquela música de cordas estridente. Percebi principalmente quando você me abordou e me contou que há um mandado contra mim. Talvez Belial tenha vencido; vai ver que é isso. Vocês todos são servos de Belial. Tire minhas algemas ou eu mato você.

O guarda removeu as algemas, relutante.

— A mim me pareceu, Mr. Asher — disse o alto-falante —, que há contradições internas no que o senhor falou. Se analisar vai ver por que o senhor dá a impressão de não estar muito certo da cabeça. Primeiro o senhor diz uma coisa, depois diz outra. O único intervalo lúcido em seu discurso foi quando o senhor discutiu a Segunda Sinfonia de Mahler, e isso prova­velmente se deve, como o senhor disse, ao fato de estar metido no negócio de artigos de áudio. É a última coisa que resta de uma mente outrora intata. Entenda que, se o senhor acompa­nhar o guarda, não será punido; vai ser tratado como o luná­tico que obviamente é. Nenhum juiz vai condenar um homem que diz as coisas que o senhor diz.

— Isso é verdade — concordou o guarda ao lado de Herb Asher. — Só o que o senhor tem que fazer é contar ao juiz sobre Deus falando com o senhor lá dos bambus, e logo o senhor estará livre. E principalmente quando o senhor contar a ele que é pai de Deus...

— Pai legal — corrigiu Herb Asher.

— Isso vai impressionar muito a corte — disse o guarda.

— Há uma grande guerra — disse Herb Asher — sendo travada neste instante entre Deus e Belial. O destino do uni­verso está em jogo, a sua própria existência física. Quando co­mecei a viagem para a Costa Oeste, eu supus, tinha razões pa­ra supor, que tudo ia bem. Agora não estou seguro; agora penso que alguma coisa terrível aconteceu; vocês policiais são o paradigma disso, o epítome. Eu não teria sido abordado se Yah de fato tivesse vencido. Não vou para a Califórnia porque isso poria Linda Fox em perigo. Se vocês a encontrarem, é claro, mas ela não sabe de nada; ela é, neste mundo, pelo menos, uma nova artista talentosa que está lutando pela car­reira e que eu estou tentando ajudar. Deixem-na em paz. Dei­xem-me em paz, também. Deixem todos nós em paz. Vocês não sabem a quem estão servindo. Compreendem o que estão falando? Vocês estão a serviço do mal, pouco importa o que pensem. Vocês são máquinas processando um mandado antigo. Não sabem o que é que eu fiz, ou de que sou acusado... não compreendem o sentido do que eu digo porque não entendem a situação. Estão se guiando por regulamentos que não se apli­cam ao caso. Esta época é única. Fatos sem precedentes estão acontecendo; forças singulares estão se defrontando. Não vou me encontrar com Linda Fox, mas por outro lado não sei o que vou fazer se não for. Talvez Elias saiba; talvez ele me diga o que fazer. Meu sonho se interrompeu quando você me abordou, e talvez o dela também; o sonho de Linda Fox. Tal­vez agora eu já não possa ajudá-la a tornar-se uma estrela, como prometi. O tempo é que vai dizer. Vai ser determinado pelo resultado, o resultado da grande batalha. Tenho pena de vocês, porque qualquer que seja o resultado vocês serão des­truídos; suas almas já se perderam. Silêncio.

— O senhor é um homem diferente, Mr. Asher — disse o guarda ao lado dele. — Louco ou não, o que quer que tenha acontecido de errado com o senhor, o senhor é um tipo especial. — E o guarda balançou a cabeça devagar, concen­trado em pensamentos. — Não é um tipo comum de insani­dade. É diferente de tudo o que eu já vi ou ouvi. O senhor fala sobre o universo inteiro, mais do que o universo, se é pos­sível isso. O senhor me impressiona, e de certo modo me as­susta. Lamento ter abordado o senhor, agora que ouvi o que o senhor disse. Não atire em mim. Vou libertar seu carro e o senhor pode ir embora; não vou persegui-lo. Gostaria de esquecer o que ouvi nestes últimos minutos. O senhor fala sobre Deus e sobre um Contradeus e de uma terrível batalha que parece que vai ser perdida, perdida pelo poder do Contra­deus, quero dizer. Isso não se encaixa em nada que eu conheça ou compreenda. Vá embora. Vou esquecer o senhor e o senhor pode me esquecer.

Fatigado, o guarda deu um puxão na máscara de metal.

— Você não pode deixá-lo ir-se — zumbiu o alto-falante.

— Ah, posso sim — disse o guarda. — Posso deixá-lo ir-se e posso esquecer tudo o que ele disse, tudo o que ouvi.

— Exceto pelo fato de que foi tudo gravado — falou o alto-falante.

O guarda inclinou-se e apertou um botão.

— Acabei de apagar tudo — disse.

— Pensei que a batalha tinha terminado — disse Herb Asher. — Pensei que Deus tinha vencido. Deus não venceu. Mesmo que você me esteja deixando ir embora. Mas talvez seja um sinal, o fato de você me libertar. Percebo alguma reação em você, um pouco de calor humano.

— Não sou uma máquina — protestou o guarda.

— Agora. Mas vai continuar assim? — perguntou Herb Asher. — Duvido. Como é que você vai ser daqui a uma semana? Dentro de um mês? Em que é que vamos todos nos transformar? E que poder temos para impedir?

— Eu só quero distância de você — disse o guarda. — Muita distância.

— Bom — disse Herb Asher —, pode ser arranjado. Alguém tem que contar a verdade ao mundo. A verdade que você conhece, que eu lhe contei: que Deus está em combate e está perdendo. Quem é que pode fazer isso?

— Você — disse o guarda.

— Não — contestou Herb Asher. Mas ele sabia quem podia. — Elijah pode — falou. — É tarefa para ele; foi para isso que ele veio, para que o mundo saiba.

— Então dê essa tarefa para ele — disse o guarda.

— É o que vou fazer — falou Herb Asher. — É para lá que vou; voltar para junto de meu sócio, de volta para Washington, D.C.

Vou desistir da Fox, disse para si mesmo; é o ônus que tenho que aceitar. Uma tristeza amarga o invadiu, ao com­preender isso. Mas era um fato; não podia ficar com ela agora, não durante algum tempo.

Não enquanto a batalha não fosse vencida.

Quando o guarda desenganchou a viatura do carro de Herb Asher, disse uma coisa esquisita.

— Reze por mim, Mr. Asher.

— Vou rezar — assegurou Herb Asher.

O veículo livre, ele fez um grande arco e embicou no rumo de Washington, D.C. A viatura policial não o seguiu. O guarda manteve a palavra.

 

Da loja ligou para Elias Tate, acordando-o de um sono pro­fundo.

— Elijah — falou — os tempos são chegados.

— O quê? — resmungou Elias. — A loja pegou fogo? Que é que você está falando? É arrombamento? Que é que perdemos?

— A irrealidade está de volta — disse Herb Asher. — O universo começou a dissolver-se. Não é a loja; é tudo.

— Você está escutando a música de novo — falou Elias.

— Estou.

— Esse é o sinal. Você está certo. Alguma coisa acon­teceu, alguma coisa que ele, eles não esperavam. Herb, houve outra queda. E eu estava dormindo. Graças a Deus que você me despertou. Provavelmente ainda não é hora. O acidente. Eles permitiram que acontecesse um acidente, como no início. Bem, assim os ciclos se completam e as profecias se cumprem. Meu próprio tempo de agir chegou. Por causa de você eu emergi de meu próprio esquecimento. Nossa loja deve se tor­nar um centro de sanidade, o templo do mundo. Temos que tomar aquela estação de FM cujo som você ouve; temos que utilizá-la tal como ela, a seu tempo, fez uso de você. Ela será nossa voz.

— E que é que ela vai dizer?

— Vai dizer: "Criaturas adormecidas, despertem. Essa é a nossa mensagem para c mundo. Despertem! Iavé está aqui e a batalha já começou, e todas as suas vidas estão em jogo; todos vão ser avaliados, de um modo ou de outro, para melhor, para pior. Ninguém escapa, nem mesmo o próprio Deus, em todas as suas manifestações. Depois disto não haverá mais na­da. Portanto ergam-se do pó, ó criaturas, e comecem; comecem a viver. Só poderão viver na medida em que lutarem; o que conseguirem, se conseguirem alguma coisa, deverão merecer, cada um por si, e a partir de agora, não mais tarde. Venham!" Será nesse tom que vamos falar e repisar. E o mundo vai ou­vir, porque vamos atingi-lo, primeiro uma minoria, depois o resto. Para isso é que minha voz foi moldada, no início; para isso retornei ao mundo tantas vezes. Minha voz soará agora, nestes tempos finais. Vamos. Comecemos. Esperando que não seja tarde demais, que eu não tenha dormido muito. Temos que ser a fonte de informações do mundo, falando em todas as línguas. Seremos a torre que outrora não pôde ser erguida. E, se falharmos agora, então tudo termina aqui, e o sono retor­nará. O ruído insípido que atinge seus ouvidos seguirá um mundo inteiro a seu túmulo, e a inatividade e a poeira se depositarão, não por algum tempo, mas para sempre e por sobre todos os homens, inclusive suas máquinas; pois não ha­verá mais futuro.

— Puxa — exclamou Herb Asher.

— Veja nossa condição deplorável neste momento. Nós, você e eu, conhecemos a verdade mas não temos como trazê-la ao mundo. Com a estação teremos um meio; nós vamos ter esse meio. Qual é o nome dessa estação? Vou ligar para eles e propor comprá-la.

— É WORP FM — disse Herb Asher.

— Desligue, então — falou Elias. — Para eu poder fa­zer a chamada.

— Onde é que vamos arranjar dinheiro?

— Eu tenho o dinheiro — disse Elias. — Desligue. O tempo urge.

Herb Asher desligou.

Talvez Linda Fox grave um teipe para nós, pensou ele; podemos tocá-lo em nossa estação. Quer dizer, ela não deve limitar-se a advertir o mundo. Há outras coisas além de Belial.

O telefone tocou; era Elias.

— Podemos comprar a estação por 30 milhões de dó­lares.

— Você tem tanto assim?

— Não de imediato — disse Elias. — Mas posso levan­tar. Vamos vender a loja e todo o estoque para o sinal.

— Jesus Cristo — protestou francamente Herb Asher. — É o nosso ganha-pão.

Elias olhou fixamente para ele.

— Está bem — disse Herb.

— Vamos fazer uma venda batismal — disse Elias — para liquidar o estoque. Todo mundo que comprar alguma coi­sa de nós será batizado. Ao mesmo tempo vou conclamá-los ao arrependimento.

— Quer dizer então que você recordou completamente sua identidade — falou Herb Asher.

— Agora lembro tudo — assegurou Elias. — Mas du­rante algum tempo estive esquecido.

— Se Linda Fox permitir que você a entreviste...

— A estação somente tocará música religiosa — advertiu Elias.

— Isso é tão ruim quanto aquela música de cordas. Pior. Vou lhe contar o que eu disse para o guarda: "Toque a Se­gunda de Mahler; toque alguma coisa interessante, algo que estimule a mente".

— Vamos ver — acedeu Elias.

— Eu sei o que isso significa — disse Herb Asher. — Tive uma mulher que costumava dizer "Vamos ver". Qual­quer criança sabe o que isso significa...

— Talvez ela possa cantar spirituals -— sugeriu Elias.

— Esse negócio todo está me desestíuturando — disse Herb Asher. — Vamos ter que vender a loja; vamos ter que arranjar 30 milhões de dólares. Eu não suporto ficar ouvindo South Pacific e acho que não vou suportai também ficar ou­vindo "Graça Maravilhosa". Graça Maravilhosa sempre me pareceu conversa de bicha de casa de massagem. Desculpe se o estou ofendendo, mas aquele guarda quase me levou em cana. Ele disse que estou ilegalmente aqui; que sou um ho­mem procurado. Isso quer dizer que provavelmente você tam­bém é. E se Belial matar Emmanuel? Que ê que vai acontecer com a gente? Não há possibilidade de sobrevivermos sem ele. Quero dizer, Belial jogou-o fora da Terra; já o tinha derrotado antes. Acho que vai derrotá-lo desta vez. Comprar uma estação de FM em Washington, D.C., não vai contribuir para alterar as condições da batalha.

— Eu sou um orador persuasivo — alegou Elias.

— É, só que Belial não vai ficar ouvindo você, e os que ele controla também não vão. Você é uma voz... — interrompeu-se. — Eu ia dizer "Uma voz clamando no de­serto". Tenho a impressão de que você já ouviu isso antes.

— Nós dois podemos muito bem acabar com a cabeça numa bandeja de prata. Como já me aconteceu uma vez. O que aconteceu é que Belial está fora de sua jaula, a jaula onde Zina o colocou; está desacorrentado. Está solto pelo mundo. Mas o que eu posso lhe dizer é: "Ó homem de pouca fé!" Mas tudo o que possa ser dito já foi dito séculos atrás. Vou conceder a Linda Fox um pouco de tempo no ar em nossa estação. Pode avisá-la. Ela pode cantar o que quiser.

— Vou desligar — disse Herb Asher. — Tenho que telefonar para ela e explicar que durante algum tempo não vou poder ir até a Costa Oeste. Não quero que ela se envolva nas minhas confusões. Eu...

— Falo com você mais tarde — cortou Elias. __ Mas

sugiro que ligue para Rybys; quando a deixei ela estava cho­rando. Ela acha que tem uma úlcera no piloro. E que pode ser maligna.

— As úlceras no piloro não são malignas — falou Herb Asher. — Foi assim que entrei na coisa, ouvindo que Rybys Rommey estava chorando por causa de sua doença; foi assim que acabei me envolvendo. Ela está doente por amor da doença, para seu próprio prazer. Pensei que finalmente ia me livrar disso. Vou ligar primeiro para Linda Fox.

Desligou.

Santo Deus, pensou. A única coisa que quero é voar para a Califórnia e começar minha vida de paz e felicidade. Mas o macrocosmo acabou comigo e com minha felicidade. Onde é que Elias vai arranjar 30 milhões de dólares? Não será ven­dendo a loja com todo o estoque. Provavelmente Deus lhe deu uma barra de ouro, ou vai fazer chover pedaços de ouro, flocos de ouro, em cima dele, como aquele maná no deserto que manteve os judeus vivos. Como Elias falou, tudo já foi dito séculos atrás, e tudo já aconteceu séculos atrás. A minha vida com a Fox teria sido uma coisa nova. E aqui estou eu sujeito à música de cordas estridente e confusa, que logo vai ser subs­tituída por hinos evangélicos.

Ligou para o número particular de Linda Fox, o da casa em Sherman Oaks. E foi atendido por uma gravação. O rosto dela apareceu na pequena tela do telefone, mas era um rosto mecânico e distorcido; e deu para ver que sua pele era cheia de erupções, e a cara era rechonchuda, quase gorda.

— Não, não quero deixar nenhum recado — disse, cho­cado. — Telefono mais tarde.

Desligou sem se identificar. Provavelmente ela vai me ligar logo, pensou. Quando eu não aparecer. Afinal, ela está me esperando. Mas como ela parecia esquisita. Vai ver que é uma gravação antiga. Espero que sim.

Para se acalmar, ligou um dos sistemas de áudio da loja; usou um dispositivo conversor para áudio-holograma. Escolheu uma estação de música clássica, uma que ele gostava. Mas...

Só saía uma voz dos alto-falantes do sistema. Nenhuma música. Uma voz sussurrante quase inaudível; mal dava para entender as palavras. Que diabo é isso? perguntou-se. Que é que estão dizendo? — ...exausto — murmurou a voz, num tom seco e escorregadio. — ...e assustado. Não há possibilidade... aba­tido. Nascido para perder; você nasceu para perder. Você não é bom.

E em seguida os acordes de um antigo clássico: Linda Ronstadt interpretando Você Não É Bom. Sem cessar a Ronstadt repetia as palavras; parecia que ia ficar para sempre as­sim. Monótono, hipnótico; fascinado, ele ficou ouvindo. Para o inferno, decidiu finalmente. Desligou o aparelho. Mas as palavras continuavam a circular incessantemente em seu cére­bro. Você é indigno, diziam os pensamentos. É uma pessoa inútil. Jesus!, pensou. Isto é mil vezes pior do que aquela porcaria de música de cordas chata; isto aqui mata uma pessoa.

Telefonou para casa. Depois de algum tempo Rybys aten­deu.

— Pensei que você estivesse na Califórnia — murmurou ela. — Você me acordou. Tem idéia de que horas são?

— Tenho que voltar — falou ele. — A polícia está me procurando.

— Vou dormir de novo — disse Rybys. A tela escureceu e ele ficou olhando o nada, confrontado pelo nada.

Estão todos dormindo ou em gravação, pensou. E quando a gente tenta dizer alguma coisa eles dizem que a gente não presta. O domínio de Belial insinua pobreza de valores em tudo. Ótimo. Justo o que preciso. A única coisa viva era o guarda me pedindo para rezar por ele. Até mesmo Elias estava agindo confusamente, sugerindo que a gente compre uma es­tação de FM por 30 milhões de dólares para dizer às pessoas que... bem, o que quer que seja. Ao mesmo tempo vender a elas um sistema de áudio doméstico e batizá-las, como oferta da casa. Tal como oferta grátis de um gato empalhado, ou outro animal.

Animal, pensou. Belial é um animal; era uma voz de animal que ele tinha ouvido no rádio há pouco. Mais baixo que o humano, não maior. Animal é o pior sentido: sub-huma­no e bruto. Estremeceu. E enquanto isso Rybys dorme, so­nhando com doenças malignas. Eternamente pensando em doença, esteja consciente ou não; está sempre com ela, sempre lá. Ela é seu próprio agente patogênico, infeccionando a si mesma.

Apagou as luzes, fechou a porta da frente da loja e enca­minhou-se para o carro, pensando aonde iria. Voltar para junto da esposa dolorida e lamentosa? Para a Califórnia e para a imagem mecânica e gorducha que vira na tela do telefone?

Na calçada, perto do carro estacionado, alguma coisa pequena se moveu. Alguma coisa que se afastou dele, hesitante, como que atemorizada. Um animal, maior do que um gato. Mas não parecia um cachorro.

Herb Asher parou e se abaixou, esticando a mão. O ani­mal aproximou-se devagar, e de repente ele ouviu na mente os pensamentos do bicho. Estava se comunicando telepatica­mente. Sou do planeta do sistema estelar CY30-CY30B, pen­sou o animal para ele. Sou um dos bodes autóctones que nas eras antigas eram sacrificados a Yah.

Ele vacilou.

— Que é que você está fazendo aqui? Alguma coisa estava errada; não era possível isso. Ajude-me, pensou a criatura-bode. Segui você até aqui.

Vim até a Terra atrás de você.

— Você está mentindo -— disse ele, mas abriu o carro e pegou a lanterna de mão; ligou o facho de luz amarela sobre o animal.

Não havia dúvida, era um bode que ali estava, e não muito grande; e também não podia ser um bode comum da Terra... dava para perceber a diferença.

Por favor, me leve e cuide de mim, a criatura-bode pen­sou para ele. Estou perdido. Me desgarrei de minha mãe.

— Está certo — disse Herb Asher. Estendeu a mão e o bode se chegou, hesitante. Que focinho estranho, pequeno e enrugado, e que pequenos cascos tão aguçados! Não é bode, é um cabrito ainda, pensou; olha como ele treme. Deve estar com muita fome. Viajou muito.

Obrigado, pensou a criatura-bode.

— Vou cuidar de você — assegurou Herb Asher. Estou com medo de Yah, pensou a criatura-bode. Yah é terrível em sua cólera.

Pensamentos de fogo, e o corte na garganta do bode. Herb Asher estremeceu. O sacrifício primitivo, o de um ani­mal inocente. Para abrandar a ira da divindade.

— Você está a salvo, aqui comigo — disse, e pegou a criatura-bode. A nova visão de Yah chocou-o; via Yah, agora, do ponto de vista da criatura-bode, e era uma entidade pavo­rosa, esse enorme e feroz deus da montanha, que exigia o sacri­fício de pequeninas vidas.

Você vai me salvar de Yah? E a criatura-bode estreme­ceu; seus pensamentos eram claros e apreensivos.

— Claro que vou — afirmou Herb Asher. E suavemente colocou a criatura-bode na parte de trás do carro.

Você não vai contar para Yah onde é que eu estou, vai?, implorou a criatura-bode.

— Juro que não — prometeu Herb Asher. Obrigado, pensou a criatura-bode, e Herb Asher sentiu sua alegria. E, estranho, também um senso de triunfo. Ficou pensando nisso enquanto se enfiava à frente do volante e dava partida ao motor. Teria a criatura tido alguma vitória, com esse ato?, perguntou-se.

Estou apenas contente por estar salvo, explicou a cria­tura-bode. E por ter encontrado um protetor. Aqui neste pla­neta onde existe tanta morte.

Morte, pensou Herb Asher. Ele tem medo da morte, co­mo eu tenho medo da morte; é um organismo vivo, como eu. Mesmo sendo tão diferente de mim.

Judiaram de mim, pensou a criatura-bode para ele, duas crianças judiaram de mim. Um menino e uma menina.

Veio a imagem, então, na mente de Herb Asher: um par de crianças cruéis, de expressão selvagem e olhar brilhante e hostil. Esse menino e essa menina atormentaram a criatura-bode e ela estava apavorada de medo de cair nas mãos deles outra vez.

— Não vai acontecer mais — assegurou Herb Asher. — Prometo. Crianças podem ser tremendamente malvadas para os animais.

Em sua própria mente, a criatura-bode riu; Herb Asher sentiu seu júbilo. Intrigado, virou a cabeça para olhar a cria­tura-bode, mas na escuridão lá atrás ela estava invisível; sentia a presença dela na traseira do carro, mas não conseguia divi­sá-la.

— Não tenho idéia sobre aonde ir — disse Herb Asher. Vá para onde estava indo antes, pensou a criatura-bode.

Para a Califórnia, para Linda.

— Está bem — concordou ele — mas eu não... Desta vez a polícia não vai parar você, a criatura-bode

pensou para ele. Vou cuidar disso.

— Mas você é apenas um filhote — argumentou Herb Asher.

A criatura-bode riu. Você pode me dar de presente para Linda, pensou.

Inquieto, ele virou o carro na direção da Califórnia e ergueu-se no ar.

As crianças estão aqui em Washington, D.C., agora, pen­sou para ele a criatura-bode. Estavam no Canadá, na Colúmbia Britânica, mas agora vieram para cá. Quero ficar bem longe delas.

— Não o censuro por isso — disse Herb Asher. Enquanto dirigia, sentiu um cheiro no carro, o cheiro do bode. O bode fedia, e isso fê-lo sentir-se mal. Que catinga forte, pensou, num bicho tão pequeno. Acho que é normal, nessa raça. Mas contudo... o cheiro o estava deixando doente. Será que vou dar mesmo essa coisa fedorenta para Linda Fox?, perguntou-se.

Claro que vai, pensou para ele a criatura-bode, consciente do que lhe ia pelo cérebro. Ela vai ficar contente.

E então Herb Asher registrou uma impressão mental ver­dadeiramente horrível, vinda da mente da criatura-bode, que o apavorou tanto que quase perdeu a direção. Um intenso de­sejo sexual, da parte da criatura, dirigido a Linda Fox.

Deve ser impressão minha!, pensou Herb Asher.

Eu quero ela, pensou a criatura-bode. Estava contemplan­do os seios de Linda, as nádegas, o corpo inteiro, despido e oferecendo-se.

Jesus!, pensou Herb Asher. Isto é medonho. Em que é que me meti? Começou a esterçar o carro de volta para Washington, D.C. E deu-se conta de que não podia controlar a direção. A criatura-bode assumira o comando; estava de posse de Herb Asher, no centro de sua mente.

Ela vai me adorar, pensou a criatura-bode, e eu vou ado­rá-la. E então os pensamentos da criatura se estenderam além dos limites da compreensão de Herb Asher. Algo que tinha a ver com tornar Linda Fox uma coisa semelhante à criatura-bode, levando Linda para os domínios da criatura.

Ela vai ser imolada em meu lugar, pensou a criatura-bode. A garganta dela — vai ser cortada, como a minha foi.

— Não — disse Herb Asher. Sim, pensou a criatura-bode.

E obrigou-o a dirigir, no rumo da Califórnia e de Linda Fox. E, obrigando-o e controlando-o, exultava de júbilo; na escuridão do carro, dançava sua própria espécie de dança, um ruído tamborilante produzido pelos cascos: rufando de triunfo. E antecipação. E alegria intoxicante.

A criatura pensava em morte, e o pensamento de morte fazia-a celebrar com entusiasmo, cantando uma cantiga pavo­rosa.

Dirigia o mais irregularmente possível, na esperança de que outra vez fosse abordado por um carro da polícia. Mas, con­forme prometera a criatura-bode, nenhum apareceu.

A imagem de Linda Fox na mente de Herb Asher conti­nuava a passar por uma transformação desoladora; viu-a gor­da e feia, uma coisa balofa que comia demais e deambulava sem objetivo, e, compreendeu então, esse era o ponto de vista do acusador; a criatura-bode era o acusador de Linda Fox, que a mostrava — que mostrava tudo na Criação — sob o pior enfoque possível, sob o enfoque do repulsivo.

Essa coisa no banco de trás é que está fazendo isso, disse para si mesmo. É assim que a criatura-bode enxerga a obra de Deus, o mundo que Deus considerou bom. E o próprio pessimismo do mal. É da natureza do mal ver as coisas desse modo, para pronunciar seu veredito de negação. Assim, pen­sou, ele desfaz a Criação; destrói o que o Criador trouxe à existência. É também uma forma de irrealidade, esse vere­dito, esse aspecto lúgubre. A Criação não é assim, e Linda Fox não é assim. Mas a criatura-bode quer me dizer que...

Estou apenas lhe apresentando a verdade, pensou para ele a criatura-bode. A respeito de sua garçonete de pizzaria.

— Você está fora da jaula onde Zina o prendeu — disse Herb Asher. — Elias estava certo.

Nada deve ser enjaulado, pensou a criatura-bode. Princi­palmente eu. Vou percorrer o mundo, expandindo-me até preenchê-lo; é meu direito.

— Belial — falou Herb Asher.

Estou escutando, pensou de volta a criatura-bode.

— E estou levando você para Linda Fox — disse Herb Asher. — A quem eu amo acima de todas as coisas do mundo.

Mais uma vez tentou tirar as mãos da direção do carro, e mais uma vez elas continuaram presas no volante.

Vamos discutir, pensou a criatura-bode para ele. Esta é a minha visão do mundo, e vou fazer com que seja também a sua visão e a visão de todas as pessoas. Pois essa é a ver­dade. A luz que brilhou no começo era uma luz espúria. E uma luz que está se apagando e a verdadeira natureza da rea­lidade transparece, com sua ausência. Aquela luz cegava os homens para a condição real das coisas. Minha tarefa é de­monstrar essa condição real.

A verdade cinzenta, continuou a criatura-bode, é melhor do que você imaginava. Você queria despertar. Agora você está desperto; eu lhe mostro as coisas tais como elas são, im­piedosamente; mas é assim que deve ser. Como é que você imagina que derrotei Iavé nos tempos passados? Foi revelando a Criação dele como ela é, uma obra infeliz a ser desprezada. Isso é a derrota dele, isso que você vê — vê através de minha mente e de meus olhos, minha visão do mundo: minha visão correta. Volte o pensamento para o domo de Rybys Rommey, como ele era quando você o viu pela primeira vez; lembre-se de como ela era; considere como ela é agora. Imagina que Linda Fox é diferente? Ou que você é diferente? Vocês todos são iguais, e quando você viu o lixo e os restos de comida e a podridão no domo de Rybys você viu como a realidade real­mente é. Você viu a vida. Viu a verdade.

Logo mais vou lhe mostrar essa verdade a respeito da Fox, continuou a criatura-bode. É isso o que você vai encon­trar no fim desta viagem: exatamente o que encontrou no arruinado domo de Rybys Rommey aquele dia, anos atrás. Nada mudou e nada é diferente. Você não pôde escapar da­quela vez e não vai poder escapar agora.

O que é que você me diz a isso?, perguntou-lhe a cria­tura-bode.

— O futuro não tem necessariamente que copiar o pas­sado — respondeu Herb Asher.

Nada muda, retrucou a criatura-bode. A própria Escritura nos diz isso.

— Mesmo um bode pode citar a Escritura — falou Herb Asher.

Penetraram na densa corrente de tráfego aéreo rumo à área de Los Angeles; carros e veículos comerciais moviam-se de todos os lados, em cima, embaixo. Herb Asher divisou via­turas de polícia, mas nenhuma prestou atenção a eles.

Vou guiá-lo até à casa dela, informou a criatura-bode.

— Criatura da lama — proferiu Herb Asher, furioso. Um sinal flutuante pairava à frente deles. Estavam quase

chegando à Califórnia.

— Aposto com você que... — começou Herb Asher a desafiar, mas a criatura-bode interrompeu-o.

Não faço apostas, pensou ela para ele. Não jogo. Eu sou o forte e oprimo o fraco. Você é o fraco, e Linda Fox é mais fraca ainda. Esqueça a idéia dos jogos; isso é para crianças.

— É necessário ser como uma criancinha — falou Herb Asher — para entrar no Reino de Deus.

Não estou interessado nesse reino, pensou a criatura-bode. Este é meu reino, aqui. Forneça ao computador do carro as coordenadas da casa dela.

As mãos dele forneceram, sem intervenção de sua vontade. Não havia meio de ele impedir; a criatura-bode controlava seus centros motores.

Ligue para ela pelo telefone do carro, ordenou a criatura-bode. Informe-a de que você está chegando.

— Não — recusou ele. Mas seus dedos introduziram o cartão com o número do telefone dela na fenda.

— Alô — saiu a voz de Linda Fox do pequeno alto-falante.

— Sou eu, Herb — disse ele. — Desculpe por estar atrasado. Um guarda me parou. É muito tarde?

— Não — disse ela. — De qualquer maneira, eu tinha saído um pouco. É ótimo ver você de novo. Você vai ficar, não vai? Quero dizer, você não vai voltar esta noite mesmo.

— Vou ficar — disse ele.

Diga-lhe, pensou a criatura-bode, que você está me tra­zendo, um bicho de estimação, um cabritinho para ela.

— Tenho um presente para você — disse Herb Asher.

— Um cabritinho.

— Verdade? Puxa! Vai deixar aqui comigo?

— Sim — disse ele, desprovido de volição; a criatura-bode controlava suas palavras, até mesmo a entonação.

— Bem, é muita atenção de sua parte. Já tenho uma porção de bichos, mas nenhum cabrito. Acho que vou pô-lo junto com meu carneiro, Herman W. Mudgett.

— Que nome mais esquisito para um carneiro — co­mentou Herb Asher.

— Herman W. Mudgett foi o maior promotor de cha­cinas da História inglesa — explicou Linda Fox.

— Bom — disse ele —, acho que está bem.

— Vejo você num minuto. Aterrisse com cuidado. Não vá machucar o cabrito — e ela desligou.

Minutos mais tarde o carro pousava suavemente no teto da casa dela. Ele desligou o motor.

Abra a porta, pensou a criatura-bode.

Ele abriu a porta do carro.

Aproximando-se iluminada por lâmpadas fracas, Linda Fox sorriu para ele, os olhos cintilando; acenou com a mão, cum­primentando. Estava de blusa e bermuda, e, como da outra vez, descalça. O cabelo balançava enquanto ela corria, e os seios erguiam-se e baixavam.

Dentro do carro aumentou a catinga da criatura-bode.

— Oi — disse ela sem fôlego. — Onde está o cabrito?

— Olhou dentro do carro. — Oh! — fez ela. — Está aqui. Vem, sai do carro, cabritinho. Aqui, vem!

A criatura-bode pulou fora, na luminosidade pálida do anoitecer da Califórnia.

— Belial — falou Linda Fox. Inclinou-se para tocar no bode; apressado, o bode tentou escapar para trás, mas os de­dos dela roçaram-lhe os flancos.

A criatura-bode morreu.

 

— Existem outros iguais — disse ela para Herb Asher, ali de pé, olhando estupidificado para o cadáver do bode. — Entre. Eu percebi pelo cheiro. O fedor de Belial é conhecido. Por favor, entre — pegou-o pelo braço e conduziu-o para a porta. — Você está tremendo. Sabia quem ele era, não sabia?

— Sabia — disse ele. — Mas você, quem é?

— Às vezes me chamam de Mediador — disse Linda Fox. — Quando exerço funções de advogado, defendendo, sou o Mediador. Às vezes, sou o Consolador, quando conforto. Sou o Procurador. Belial é o Acusador. Somos os dois adver­sários da Corte. Por favor, entre e sente; isso tudo foi horrível para você, eu sei. Está bem?

— Tudo bem.

Deixou-a conduzi-lo para o elevador do teto.

— Não consolei você? — perguntou Linda Fox. — No passado? Quando você estava sozinho no seu domo em um mundo alienígena, sem ninguém para conversar com você ou lhe fazer companhia? Essa é minha tarefa. Uma das minhas tarefas. — Ela pôs a mão no peito dele. — Seu coração dis­parou. Você deve ter ficado apavorado; ele lhe contou o que ia fazer comigo. Mas, você viu, ele não sabia aonde é que você o estava levando. Aonde ou para quem.

— Você o destruiu — disse ele. — E...

— Mas ele proliferou pelo universo todo — disse Linda.

— Isso foi apenas uma instância, o que você viu no telhado. Todo homem tem um Mediador e um Acusador. Em hebraico, para os israelitas da Antigüidade, yetzer há-tov era o Media­dor, e yetzer há-ra era o Acusador. Vou lhe arranjar uma be­bida. Um bom zinfandel da Califórnia; um zinfandel de Buena Vista. É uma casta de uva de origem húngara. Poucas pessoas conhecem.

Na sala de estar ele se jogou numa poltrona estofada, aliviado. Ainda sentia o cheiro do bode.

— Acho que nunca... — começou.

— O cheiro vai sumir — assegurou ela oferecendo-lhe um copo de vinho tinto. — Eu já tinha aberto a garrafa e deixado respirar. Você vai gostar.

Achou o vinho delicioso. Sua pulsação começou a voltar ao normal.

Sentada à sua frente, um copo de vinho na mão, Linda Fox examinava-o atenta.

— Ele não prejudicou sua mulher, prejudicou? Ou Elias?

— Não. Eu estava sozinho quando ele chegou. Disse que era um animal perdido.

— Cada pessoa neste mundo vai ter que escolher entre seu yetzer ha-tov e seu yetzer ha-ra. Você me escolheu, e daí eu o salvei. Mas... se escolhesse a criatura-bode eu não po­deria salvá-lo. No seu caso, eu era aquela a quem você devia escolher. A batalha é montada para cada alma individualmen­te. Isso é o que os rabis ensinam. Para eles não existe a doutrina da queda do homem como um todo. A salvação é na base de um por um. Gostou do zinfandel?

— Gostei sim — disse ele.

— Vou usar a estação de FM de vocês — disse ela. — Será um bom lugar para lançar coisas novas.

— Você sabia da estação de FM? — indagou ele.

— Elijah é muito austero. Minhas canções vão ser ade­quadas. Meu canto alegra o coração humano e isso é o que interessa. Bem, Herb Asher, aqui está você comigo na Cali­fórnia, como imaginou no começo. Como imaginou no outro sistema estelar, no seu domo, com seus posters holográficos de minha pessoa que andavam e falavam, versões sintéticas de mim, as imitações. Agora você tem a minha pessoa real com você, sentada à sua frente. Como está se sentindo?

— É real? — perguntou ele.

— Está ouvindo duzentas cordas melosas?

— Não.

— É real — confirmou Linda Fox. Pousou o copo de vinho, ergueu-se, aproximou-se dele e inclinou-se para envolvê-lo com os braços.

Despertou na manhã seguinte com a Fox junto dele, o cabelo dele contra seu rosto, e disse para si mesmo: Isto é realidade então; não é um sonho, e a criatura-bode jaz morta no teto, minha coisa-bode particular que veio para degradar minha vida.

Esta é a mulher que eu amo, pensou, acariciando o cabelo escuro e a face pálida. É um cabelo bonito, e suas pestanas são compridas e belas, mesmo quando ela dorme. É impossível, mas é verdade. Pode acontecer. Que é que Elias lhe tinha dito a respeito da fé religiosa? Certum est quia impossible est. "É verossímil justamente por ser absurdo." A grande afirmação feita pelo Padre da Igreja Primitiva, Tertuliano, a respeito da ressurreição de Jesus Cristo. "Et sepultus resurrexit; certum est quia impossible est." E o caso agora com ele era igual.

Que longo caminho percorri, pensou, acariciando o braço desnudo da mulher. Tempo houve em que eu fantasiava esta situação, e agora a estou vivendo. Estou de volta ao ponto de partida e contudo num local e numa situação totalmente diferentes! É um paradoxo e um milagre ao mesmo tempo. E de fato estamos na Califórnia, onde fantasiei que iríamos es­tar. Como se ao sonhar eu estivesse prevendo minha futura realidade; vivenciei o fato de antemão.

E a coisa morta no telhado é prova de que tudo isto é real. Porque minha imaginação não podia dar origem a essa besta fedorenta, cuja mente se infiltrou na minha cabeça e me contou mentiras, me contou histórias horríveis sobre uma mu­lher gorda e baixinha, de cara espinhenta. Mulher tão feia quanto a própria besta — uma projeção de si mesma.

Alguém amou outro ser humano tanto quanto eu a amo?, perguntou-se em seu íntimo, e então pensou: Ela é minha Mediadora e minha Procuradora. Me falou palavras hebraicas que já esqueci e que a descrevem. Ela é meu espírito tutelar, e a coisa-bode fez todo esse caminho até aqui, 5.000 quilôme­tros, para morrer quando ela pôs as mãos em seu flanco. Mor­reu sem emitir um som, tão facilmente ela a matou. Ela estava esperando a besta. Isso, como ela falou, é sua tarefa, uma de suas tarefas. Tem outras; ela me confortou, ela conforta milhões; ela defende, dá alívio. E a tempo; nunca chega tarde.

Inclinou-se e beijou a face de Linda. No sono, ela deu um suspiro. Fraco e sob o poder da criatura-bode, pensou ele; assim eu estava quando cheguei aqui. Ela me protegeu porque eu era fraco. Ela não me ama como eu a amo, porque ela tem que amar todos os humanos. Mas eu amo só a ela. Com todo o meu ser. Eu, o fraco, amo a ela que é forte. Minha lealdade é para ela, e a proteção dela é para mim. É o Pacto que Deus fez com os israelitas: que o forte proteja o fraco, e em troca o fraco dê ao forte sua devoção e lealdade. É uma interdepen­dência. Tenho um pacto com Linda Fox, que jamais será que­brado, por nenhum de nós.

Vou preparar o café para ela, decidiu. Com cuidado, saiu da cama e caminhou para a cozinha.

Alguém estava lá de pé, esperando por ele. Um vulto familiar.

— Emmanuel — reconheceu Herb Asher.

O garoto brilhava de um modo fantasmagórico, e Herb Asher percebeu que podia ver a parede e a pia e os armários atrás dele. Era uma epifania do divino; Emmanuel na reali­dade estava em outro lugar. E ao mesmo tempo estava ali; ali e consciente de Herb Asher.

— Você a encontrou — disse Emmanuel.

— Sim.

— Ela vai manter você em segurança.

— Eu sei — disse Herb Asher. — Pela primeira vez em minha vida.

— Agora você não precisa nunca mais se alienar — disse Emmanuel — como fazia em seu domo. Você se alienava por­que tinha medo. Agora não precisa mais ter medo... por causa da presença dela. Dela como ela é agora, Herbert; real e viva, não uma imagem.

— Eu compreendo — disse ele.

— Há uma diferença. Dê um programa para ela na sua estação; ajude-a, ajude sua protetora.

— Um paradoxo — falou Herb Asher.

— Mas uma verdade. Você pode fazer muito por ela. Estava certo quando você pensou a palavra interdependência. Ela salvou sua vida, a noite passada — e Emmanuel ergueu a mão. — Ela foi dada a você por mim.

— Eu sei — disse ele. Tinha pensado que era isso mes­mo.

— Às vezes — disse Emmanuel —, na equação em que o forte protege o fraco, há dificuldade em estabelecer quem é o forte e quem é o fraco. Na maioria dos aspectos ela é mais forte do que você, mas você pode protegê-la em determinados aspectos; pode ser uma cobertura para ela. Essa é a verdadeira lei da vida: interdependência, proteção mútua. No balanço fi­nal tudo é ao mesmo tempo forte e fraco, mesmo o yetzer ha-tov — o seu yetzer ha-tov. Ela é uma potência e ao mesmo tempo uma pessoa; isso é um mistério. Você vai ter tempo, no decurso da vida que tem pela frente, de sondar esse mis­tério um pouco. Vai conhecê-la cada vez melhor. Mas ela já conhece você completamente; tal como Zina tem absoluto co­nhecimento de mim, Linda Fox tem conhecimento absoluto de você. Pode compreender isso? Que a Fox tem tido conheci­mento total de você há muito tempo?

— A criatura-bode não conseguiu surpreendê-la — disse ele.

— Nada pode surpreender o yetzer ha-tov de um ser hu­mano — replicou Emmanuel.

— Vou ver você outra vez? — indagou Herb Asher.

— Não como está me vendo agora. Não como uma figura humana igual a você. Não sou como você me vê; agora estou vibrando em meu lado humano, o que derivou de minha mãe, Rybys. Zina e eu vamos nos unir numa sizígia macrocósmica; não vamos ter um soma, ou seja, um corpo físico distinto do mundo. O mundo vai ser nosso corpo, e nossa mente, a mente do mundo. Será também a sua mente, Herbert. E a mente de toda criatura que optar por seu yetzer ha-tov, seu espírito benfazejo. Isso é o que os rabis ensinaram, que cada ser huma­no... mas vejo que você já sabe disso; Linda lhe contou. O que não lhe contou é de um último donativo que ela guarda para você: o dom da absolvição derradeira para a totalidade de sua vida. Ela estará presente quando você for julgado, e o julgamento será dela mais do que seu. Ela é imaculada, e vai conferir a você essa perfeição quando chegar o Juízo Final. Assim, não tema; a salvação última está assegurada para você. Ela vai dar a vida por você, a sua amiga. Como disse Jesus, "Não há maior amor do que o do homem que dá a vida pelos amigos". Quando ela tocou a criatura-bode... bem, é melhor não dizer.

— Ela própria morreu por mim durante um momento — disse Herb Asher.

— Por um momento tão fugaz que praticamente inexistiu.

— Mas aconteceu. Ela morreu e ressuscitou. Mesmo que eu não tenha percebido.

— Foi isso mesmo. Como você sabe?

— Pude sentir, esta manhã, quando a contemplei ador­mecida — explicou Herb Asher. — Pude sentir o amor dela.

Envolta num roupão de seda, Linda Fox entrou estremunhada na cozinha; entreparou ao ver Emmanuel.

— Kyrios — murmurou, serena.

— Du hast den Mensch gerettet — disse Emmanuel a ela. — Die giftige Schlange bekämpfte... es freut mich sehr. Danke.

— Die Absicht ist nur allzuklar — disse Linda Fox. — Lass mich fragen: wann also wird das Dunkel schwinden?

— Sobald dich führt der Freundschaft Hand ins Heilig­tum zum ew'gen Band.

— O wie? — falou Linda Fox.

— Du... — Emmanuel encarou-a. — Wie stark ist nicht dein Zauberton, deine Musik. Sing immer für alle Men­schen, durch Ewigkeit. Dabei ist das Dunkel zerstören.

— Ja — disse Linda Fox, concordando.

— O que eu disse a ela — explicou Emmanuel a Herb Asher — é que ela salvou você. A serpente venenosa foi ven­cida e estou satisfeito. E agradeci a ela. Ela disse que as in­tenções da serpente eram bem claras. E então perguntou quan­do as sombras vão desaparecer.

— O que é que você respondeu?

— Isso é coisa entre mim e ela — disse Emmanuel. — Mas eu contei a ela que a música que ela canta existirá por toda a eternidade e para todos os humanos; que faz parte de­les. O que importa é que ela entenda. E fará o que deve ser feito. Não há desentendimento entre ela e nós. Entre ela e a Corte.

Encaminhando-se para o fogão — a cozinha estava limpa e brilhante, com cada coisa em seu lugar —, Linda Fox aper­tou botões e depois tirou comida da geladeira.

— Vou preparar um desjejum — disse.

— Eu ia preparar para você — disse Herb Asher, con­trariado.

— Fique sentado. Você passou um bom mau pedaço nes­tas últimas 24 horas. Foi detido pela polícia, Belial tomou pos­se de você...

Virou-se para ele e sorriu. Mesmo despenteada ela era... bem, não dava para dizer; o que ela era para ele não podia ser posto em palavras. Ao menos não por ele. Não naquele mo­mento. Vê-los juntos, a ela e a Emmanuel, era demais. Não conseguiu falar; apenas fez um gesto de anuência.

— Ele a ama muito — disse Emmanuel a ela.

— Sim — respondeu ela, sombria.

— Sei fröhlich — ordenou Emmanuel.

— Ele está me dizendo para ser feliz — explicou Linda para Herb Asher. — Estou feliz. Você está?

— Eu... — hesitou. Ela perguntou quando as sombras vão desaparecer, lembrou. As sombras não desapareceram. A serpente venenosa foi vencida mas as sombras continuam.

— Seja sempre alegre — disse Emmanuel.

— Está bem — acedeu Herb Asher. — Serei.

No fogão Linda Fox preparava o desjejum e ele teve a impressão de ouvi-la cantar. Era difícil dizer porque ele levava na mente a beleza das canções dela; estavam sempre lá.

— Ela está cantando — disse Emmanuel. — Você está certo.

Cantando, ela fez café. O dia começara.

— Aquela coisa no teto — disse Herb Asher. Mas agora Emmanuel tinha desaparecido; apenas ele e Linda Fox estavam na casa.

— Vou ligar para a Prefeitura — disse Linda Fox. — Eles vêm buscá-lo. Têm uma viatura para isso. Levar embora a serpente venenosa. Para longe das pessoas e dos tetos das ca­sas. Ligue o rádio e ouça as notícias. Haverá guerras e rumo­res de guerras. Haverá grandes convulsões. O mundo... vi­mos apenas uma pequena parte dele. E então vamos conversar com Elijah sobre a estação de rádio.

— E mais nenhuma versão para corda de South Pacific — disse ele.

— Durante algum tempo — disse Linda Fox — tudo vai estar bem. Ele saiu da jaula e está voltando.

— E se a gente perder? — perguntou ele.

— Tenho poder de premonição — disse Linda. — Va­mos ganhar. Na verdade já ganhamos. Temos sempre ganhado, desde o princípio, desde antes da Criação. O que é que você gosta de tomar com café? Esqueci.

Mais tarde ele e Linda Fox voltaram ao telhado para ver os restos de Belial. Mas para surpresa dele o que viu não foi a carcaça seca de uma coisa-bode; ao invés, deparou com o que lhe pareceu serem os restos de um grande e luminoso papagaio que se quebrara e jazia em destroços por todo o teto.

Melancólicos, ele e Linda contemplavam os pedaços espa­lhados por toda a área, de algo enorme, gracioso, destruído. Em cacos, como uma lâmpada quebrada.

— Assim é que ele foi, outrora — disse Linda. — Na origem. Antes da queda. Essa era sua forma original. Nós o chamávamos de Mariposa. A Mariposa que decaiu lentamente, por milhares de anos, interseccionando a Terra, como uma figura geométrica se deformando passo a passo até nada mais restar da forma primitiva.

— Ele era muito bonito — disse Herb Asher.

— Era a estrela matutina — falou Linda. — A mais brilhante estrela dos céus. E agora nada mais resta dele senão isto.

— Como caiu — lamentou Herb Asher.

— E tudo o mais junto com ele — comentou ela.

Desceram juntos as escadas para chamar a Prefeitura. Pa­ra o caminhão levar embora os seus restos.

— Será que um dia ele vai voltar a ser como outrora? — quis saber Herb Asher.

— Talvez — disse ela. — Talvez todos nós venhamos a ser que nem ele era.

E então ela cantou para Herb Asher uma das canções de Dowland. Era a canção que a Fox tradicionalmente cantava no dia de Natal, para todos os planetas. A mais terna, a mais deslumbrante canção que ela adaptara da obra para alaúde de John Dowland.

"Por mais que a alma insista em errar nos pantanais de dor e sofrimento, de sombras infernais, tem sempre à sua frente um corredor de luz, caminho de consolo, os braços de Jesus."

— Obrigado — disse Herb Asher.

Acima deles, o carro da Prefeitura trabalhava, juntando os restos de Belial. Reunindo os fragmentos quebrados do que outrora tinha sido luz.

 

 

* Weep you no more, sad fountains; / What need you flow so fast? / Look how the snowy mountains / Heaven's sun doth gently waste. / But my sun's heavenly eyes / View not your weeping / That now lies sleeping...

* Isaías, 45, 6-7. Trad. de João Ferreira de Almeida, Sociedade Bíblica do Brasil, Rio de Janeiro, 1966. (N. do T.)

* Veja-se o episódio do Chapeleiro Louco, em Alice no País das Maravi­lhas. Em inglês, a expressão "louco como um chapeleiro" corresponde à expressão portuguesa "doido varrido". (N. do T.)

* Refresco de gengibre. (N. do T.)

* The woods of Arcady are dead, And over is their antique joy;

Of old the world on dreaming fed; Grey Truth is now her painted toy; Yet still she turns her restless head.

** But ah! she dreams not now; dream thou! For fair are poppies on the brow: Dream, dream, for this is also sooth.

 

                                                                                Philip K. Dick  

 

 

                      

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