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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A JOVEM ARISCA / Erle Stanley Gardner
A JOVEM ARISCA / Erle Stanley Gardner

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A JOVEM ARISCA

 

     A jovem que acabara de entrar passou diante da secretária, que mantinha a porta aberta, e percorreu com a vista todo o gabinete, deixando transparecer nos olhos alguns indícios de terror.

     A secretária fechou gentilmente a porta, enquanto a visitante se dirigia para uma poltrona de estilo antigo, de espaldar alto e forrada de couro preto. Sentou-se, cruzou as pernas, ajeitou a saia, puxando-a sobre os joelhos, a fim de cobri-los, e acomodou-se defronte da porta por onde acabara de entrar.

     Após alguns momentos, puxou novamente a saia, erguendo-lhe a orla uma ou duas polegadas, mostrando, assim, certa preocupação em conseguir o efeito que se propunha. Em seguida, recostou-se na poltrona, cujo couro preto e lustroso realçava a sua cabeleira loira e ondulada.

     Assim, acomodada no imenso gabinete e ainda diminuída pelas vastas proporções da velha poltrona, o seu semblante tornou-se patético e desamparado. Entretanto, notava-se-lhe algo que dava a impressão de ter conseguido deliberadamente o efeito desejado. Podia verificar-se certa minuciosidade felina no cuidado com que adotara aquela atitude e na difícil perfeição do seu desamparo. Sob todos os pontos de vista, era uma linda rapariga. Tinha os cabelos sedosos, os olhos grandes e escuros, os pômulos salientes, os lábios espessos e bem desenhados. Embora pequenina, era perfeitamente proporcionada e trajava com requintada elegância. Não obstante, notava-se uma imobilidade estudada na sua expressão de completa indiferença, tal como se estivesse cercada por uma muralha protetora.

     A porta de um escritório interno abriu-se e Perry Mason entrou no gabinete. Deteve-se, depois de dar dois passos na sala, passando a contemplar a jovem, com os olhos pacientes, como se lhe quisesse anotar todos os pormenores das feições.

     Ela suportou o exame sem a menor modificação, quer na atitude, quer na expressão do rosto.

     – Mr. Mason? – perguntou ela.

     Não respondeu senão após ter contornado a escrivaninha que utilizava para tratar com os consulentes, e de se deixar cair na cadeira giratória.

     Perry Mason dava uma impressão de grandeza, não daquela que provém das proporções físicas, mas sim da que deriva da firmeza de espírito.

     Tinha os ombros largos, rosto de feições enérgicas, e os seus olhos eram resolutos e pacientes. Não raro a expressão dos olhos mudava, mas a fisionomia permanecia inalterável no seu aspecto de serenidade máscula. Nele não havia meiguice.

     Era um lutador; um lutador que poderia, talvez, esperar pacientemente o momento propício para desferir o golpe demolidor, mas que, chegada a oportunidade, atacaria sem dó e com a impetuosidade de um poderoso aríete espiritual.

     – Sim, respondeu à pergunta da visitante, sou Perry Mason. – Em que posso servi-la?

     Os olhos escuros da jovem estudaram-no prudentemente.

     – Sou Fran Celane – disse ela.

     – Fran? – perguntou ele, elevando o tom da voz.

     – É uma abreviatura de Frances – explicou a rapariga.

     – Muito bem – replicou Perry Mason. – Em que lhe posso ser útil, miss Celane?

     Os olhos pretos permaneceram imóveis, enquanto o dedo indicador da interpelada percorria o braço da poltrona, explorando as irregularidades e relevos do couro. Havia qualquer coisa nessa distração que parecia revelar uma inconsciente meditação acerca da sua atitude mental.

     – Pretendia averiguar certos pormenores relativos a um testamento – foi a sua resposta.

     Nenhuma modificação se manifestou nos olhos tranqüilos e pacientes de Perry Mason.

     – Não me ocupo muito de testamentos – replicou ele. – Sou advogado criminal. A minha especialidade consiste na defesa de causas criminais, de preferência perante o júri. Doze pessoas encerradas num camarote... O júri: eis a minha especialidade. Por esse motivo, receio não lhe ser de grande utilidade num assunto testamentário.

     – Mas é que esse assunto acabará provavelmente numa causa, explicou Frances.

     Perry Mason continuou a observá-la com o seu olhar perscrutador e despido de emoção.

     – Trata-se então de uma questão testamentária? – perguntou.

     – Não – respondeu ela. – Não é precisamente uma questão. Preciso informar-me acerca de um legado em depósito.

     – Bem, replicou o advogado, com suave insistência, creio que me dirá, com exatidão, o que deseja saber.

     – Uma pessoa morre, explicou ela, e deixa um testamento contendo uma cláusula, pela qual um dos beneficiados...

     – Um momento! – disse Perry Mason, interrompendo-a. – Não siga por esse caminho. Diga-me primeiro: esse assunto refere-se à sua pessoa?

     – Sim, senhor.

     – Muito bem, disse ele. – Forneça-me então os fatos e deixe-se de divagar.

     – Trata-se do testamento de meu pai – confessou a jovem. – Chamava-se Carl Celane. Sou filha única.

     – Isso é uma vantagem, comentou ele.

     – Há uma enorme soma que me toca nesse testamento, algo acima de um milhão de dólares.

     Perry Mason mostrou-se mais interessado.

     – E julga que daí surgirá um pleito? – perguntou.

     – Não sei – respondeu ela. – Acredito que não.

     – Bem, continue – insistiu o advogado.

     – Meu pai não me legou o dinheiro incondicionalmente. Deixou-o em depósito.

     – Quem é o depositário?

     – Meu tio, Edward Norton.

     – Perfeitamente, disse Perry Mason. – Prossiga.

     – Há uma cláusula no testamento que faculta a meu tio, se eu casar antes de completar vinte e cinco anos, conceder-me apenas cinco mil dólares da herança e doar o resto a instituições de caridade.

     – Que idade tem atualmente? – indagou Mason.

     – Vinte e três anos.

     – Há quanto tempo faleceu seu pai?

     – Há dois anos.

     – Quer dizer, então, que as disposições testamentárias já entraram em vigor?

     – Sim, disse ela.

     – Muito bem, replicou o advogado, falando agora rapidamente, se a cláusula referente ao depósito foi cumprida ao fazer-se a distribuição legal, e não houve apelação relativa ao ato, não é de esperar que se apresente um ataque colateral, salvo sempre circunstâncias excepcionais.

     O inquieto dedinho da jovem pôs-se a tamborilar sobre o braço da poltrona, produzindo leves ruídos pelo contato da unha com o couro.

     – Precisamente, vim procurá-lo para lhe fazer algumas perguntas a esse respeito.

     – Muito bem, disse Mason, prossigamos e faça-me as perguntas que quiser.

     – Segundo o testamento, meu tio tem poderes absolutos sobre o emprego do dinheiro depositado. Pode invertê-lo como lhe apetecer e também está autorizado a dar-me a quantia que segundo seu critério me seja necessária. Quando eu completar vinte e sete anos, ele deve entregar-me a totalidade da fortuna, caso julgar que a posse de tão grande soma não deitará a minha vida a perder. Em caso contrário, deverá assegurar-me uma renda vitalícia de quinhentos dólares anuais, aplicando o resto do capital a obras de caridade.

     – Eis aí uma cláusula de depósito fora do comum – comentou Perry Mason, num tom inexpressivo.

     – Meu pai era um homem esquisito, disse a jovem, e fui sempre mais ou menos indomável.

     – Perfeitamente, replicou Mason. – E qual a dificuldade em que se encontra agora?

     – Quero casar-me, respondeu ela. E, pela primeira vez, o seu olhar evitou o de Mason.

     – Falou com seu tio a respeito desse desejo?

     – Não.

     – Ele sabe que deseja casar-se?

     – Creio que não.

     – E por que motivo não pode esperar até aos vinte e cinco anos?

     – Porque não – replicou a jovem, erguendo desta vez o olhar. – Quero casar-me agora mesmo.

     – Segundo entendo pelo que me expôs, a respeito do testamento, aventurou cautelosamente Perry Mason, tudo fica à discrição do seu tio?

     – Perfeitamente.

     – Nesse caso, não lhe parece mais acertado sondá-lo e verificar qual a opinião dele acerca do casamento projetado?

     – Não – replicou ela bruscamente, soltando o monossílabo de maneira explosiva.

     – Há, talvez, alguma desavença entre a menina e seu tio?

     – Não, senhor.

     – Costuma vê-lo com freqüência?

     – Todos os dias.

     – Falou com ele alguma vez a respeito do testamento?

     – Nunca.

     – Procura-o então para outros assuntos?

     – Não. Moro com ele na mesma casa.

     – Compreendo, disse Perry Mason. – Seu tio é depositário de uma grande quantia, da qual dispõe com uma liberdade pouco usual. Suponho que essa fortuna esteja em segurança...

     – Oh! Sim! – exclamou ela. – Pode estar descansado! Quanto a isso, os fundos depositados não correm o menor perigo. Meu tio é extremamente cuidadoso... talvez demasiado cuidadoso. Quero dizer, que é metódico ao extremo em tudo quanto faz.

     – Além disso, ele terá fortuna pessoal? – perguntou Mason.

     – Montanhas de dinheiro – assegurou a jovem.

     – Bem, disse Mason um tanto impaciente. – E que quer que eu faça?

     – Preciso do senhor para verificar se posso casar-me.

     O advogado olhou-a, silenciosa e meditativamente, durante alguns segundos.

     – Trouxe uma cópia do testamento ou da escritura da aplicação dos bens? – perguntou finalmente.

     Ela negou, com um movimento de cabeça.

     – Precisarei desses papéis? – perguntou ela.

     O advogado assentiu com uma inclinação.

     – Não me é possível dar-lhe uma boa interpretação de um documento legal, sem antes o ter visto.

     – Mas se eu já lhe expliquei exatamente o conteúdo do testamento...

     – Sim, deu-me uma versão pessoal dele; contudo, pode haver uma diferença notável.

     Ela replicou-lhe de modo brusco e impaciente:

     – Quero crer que as condições testamentárias, quando impedem que uma pessoa se case livremente, podem ser anuladas.

     – Não é bem assim – afirmou Mason. – De um modo geral, uma disposição que dificulta o casamento de uma pessoa é considerada como contrária ao interesse público e, portanto, nula. No entanto, há certas medidas justificadas, particularmente quando se trata dos chamados “depósitos de pródigo”. E, de acordo com as aparências, quanto foi criado pelo testamento de seu pai pode ser classificado nessa categoria. Por outro lado, deve notar que nele não há nenhuma restrição ao seu casamento, depois que complete a idade de vinte e cinco anos. A julgar pelos fatos, parece que seu tio possui carta branca no assunto e as cláusulas do testamento, pelo que me disse, limitam-se a indicar as circunstâncias, nas quais seu tio pode exercer o seu direito de opção.

     Dir-se-ia que a jovem perdera repentinamente o domínio de si própria. Respondeu-lhe, elevando o tom da voz:

     – Bem... Tenho ouvido falar muito a seu respeito. Dizem por aí que alguns advogados explicam aos clientes o que podem e o que não podem fazer, ao passo que o senhor sempre indica as coisas que quer que o seu consulente faça.

     Mason esboçou um sorriso, o sorriso da sabedoria acumulada por amargas experiências; sorriso de compreensão, adquirida graças às confidências de milhares de clientes.

     – É possível que haja, no que diz, uma parcela de verdade, confessou. – Uma pessoa pode quase sempre encontrar uma saída para qualquer situação em que se encontre. Isto, afinal, não é mais do que uma paráfrase do velho ditado que afirma: “Quem faz a lei, prepara o dolo”.

     – Pois bem, replicou ela. – Neste caso temos uma lei: o testamento. Diga-me, portanto, qual é o dolo?

     – Com quem quer casar? – perguntou ele, repentinamente.

     Os olhos da jovem não se desviaram; permaneceram fixos no advogado, procurando ler-lhe os pensamentos.

     – Com Rob Gleason, disse em resposta à pergunta.

     – Seu tio conhece-o?

     – Sim.

     – Aprova-o como noivo?

     – Não.

     – A menina ama-o?

     – Sim.

     – O seu noivo está a par dessa cláusula do testamento?

     O olhar da rapariga baixou-se para o chão.

     – Creio que sabe qualquer coisa. Mas não dá mostras disso – afirmou ela.

     – Que quer dizer com esse “não dá mostras”? – perguntou o advogado.

     Não havia dúvida de que os olhos da jovem evitavam fitá-lo.

     – Foi uma frase sem sentido – respondeu ela. – Nada quis dizer, ao proferi-la.

     Perry Mason estudou a visitante durante alguns segundos com a máxima atenção.

     – Julgo perceber que a menina necessita sumamente de se casar com esse rapaz?

     A rapariga fitou-o e disse então, em voz apaixonada:

     – Mr. Mason, peço-lhe que não se engane. Eu casarei com Rob Gleason. Pode ficar certo disso. O senhor deverá achar um meio para que eu o possa fazer. É tudo o que quero! Deixo-o encarregado de encontrar a solução. Ponho-me em suas mãos. Quero casar-me!

     O advogado ia dizer qualquer coisa; deteve-se, porém, para observar cuidadosamente a sua interlocutora, antes de falar-lhe:

     – Está bem... creio que sabe exatamente o que quer.

     – Claro que sei – exclamou ela, bruscamente.

     – Nesse caso, peço-lhe que tenha a bondade de voltar amanhã, a esta mesma hora. Nesse meio tempo, já terei dado uma olhadela aos anais legislativos.

     Ela meneou a cabeça negativamente.

     – Amanhã, de manhã?... – protestou. – É esperar demasiado. Não me pode dar uma resposta hoje mesmo, à tarde?

     Os olhos pacientes de Perry Mason fitaram calmamente o rosto de Miss Celane.

     – Pode ser que sim, respondeu. – Convém-lhe às dezesseis horas?

     Ela anuiu.

     – Muito bem, disse então o advogado, pondo-se de pé. – Volte, pois, a essa hora. Queira deixar o seu nome e endereço à minha secretária, que está no escritório geral.

     – Já o fiz antes esclareceu a jovem, erguendo-se da poltrona e analisando a sala. – Às dezesseis horas, estarei novamente aqui.

     E atravessou o gabinete sem olhar para trás. Abrindo a porta, foi dar ao escritório geral.

     Perry Mason sentou-se à escrivaninha e revirou os olhos em atitude de quem reflete, contemplando a porta pela qual ela saíra.

     Ao cabo de um momento estendeu o dedo indicador e premiu o botão de uma campainha, situada na face lateral da sua mesa de trabalho.

     Um rapaz de cabeleira revolta e rosto que parecia estar sempre comovidamente ansioso assomou à porta que abria no centro da parede destinada à biblioteca legislativa, entrando no gabinete.

     – Frank, ordenou-lhe Perry Mason, vá ao tribunal e procure o expediente relativo aos bens do Sr. Celane. Uma jovem, Frances Celane, figura como herdeira de uma fortuna que ascende a mais de um milhão de dólares, fortuna essa que ficou em depósito. O nome do depositário é Edward Norton. Verifique a escritura de partilha dos bens e leia também o testamento. Traga-me uma cópia das condições do depósito e volte o mais depressa possível.

     O rapaz piscou os olhos rapidamente, repetindo o gesto.

     – Celane? – perguntou.

     – Sim, disse Mason. – Carl Celane.

     – E o outro chama-se Norton?

     – Sim, Edward Norton, confirmou o advogado.

     – Muito obrigado – disse o rapaz. Virou-se bruscamente, atravessando o gabinete com nervosa e consciente celeridade, como se devesse cautamente fugir ao olhar de Perry Mason, e projetou-se para o gabinete geral.

     O advogado tocou a campainha, chamando a secretária.

     Della Street, que exercia aquele cargo, era uma rapariga de uns vinte anos. Os modos dela revelavam segurança e eficiência. Empurrou e abriu a porta do escritório geral.

     – Chamou-me? – indagou.

     – Sim, respondeu ele. – Entre.

     Ela entrou no escritório particular, fechando suavemente a porta.

     – Vamos cotejar as nossas impressões acerca da jovem que aqui esteve explicou o advogado.

     – Como diz? – perguntou a secretária.

     O jurisconsulto contemplou-a, pensativamente.

     – Quero dizer que até parece que eu lhe ditei as palavras que você disse a respeito dela, respondeu Mason. – Você disse que ela parecia ter caído num laço ou ser irascível. E agora estou admirado por tê-la achado tal qual você a descreveu.

     – De modo que não achou muita diferença entre a minha apreciação e a sua? – perguntou Della Street.

     – Quase nenhuma, afirmou Mason. – Você acerta sempre nas suas impressões, e neste caso teve oportunidade de ver a jovem, antes de ela começar a representar. Porque a verdade é que começou a representar apenas entrou no meu gabinete.

     – Sim, confirmou Della Street, pertence a esse tipo de mulheres que se sentem bem representando.

     – Sentou-se nesta poltrona, explicou o advogado, calculando exatamente como devia erguer a cabeça, como cruzar as pernas e ajeitar a saia e até a expressão fisionômica que devia adotar.

     – Contou-lhe a verdade? – perguntou a secretária.

     – Ninguém diz a verdade a primeira vez – replicou ele – ... pelo menos em se tratando de mulheres. Justamente por isso, interessa-me saber exatamente a espécie de impressão que ela lhe causou. Que lhe pareceu ela: espantada ou irascível?

     Della Street respondeu refletidamente, como se quisesse pesar com cuidado as suas palavras.

     – Parecia as duas coisas, espantada e irascível. Como se tivesse caído numa espécie de armadilha e estivesse enraivecida.

     – Tem a certeza, perguntou-lhe o advogado, de que não é pânico o que ela sente?

     – Que quer dizer com isso? – indagou a secretária.

     – Há muitas pessoas, explicou Mason, que tentam fazer cara severa, quando estão aterrorizadas e, ao fazê-lo, parecem irascíveis, sem realmente o serem.

     – E o senhor acha que essa rapariga sente pânico?

     – Sim, respondeu ele lentamente, julgo que se acha num momento de pânico. Afigura-se-me tratar-se de uma dessas criaturinhas voluntariosas, diabretes que quase sempre correm sem freio, possuidora de um temperamento ingovernável. Creio que caiu nalgum laço e se esforça por libertar-se dele. Quando a conhecermos melhor, inteirar-nos-emos de mais particularidades do seu caráter.

     – Em resumo... é uma gatinha bravia, não é? – perguntou Della Street.

     Ele contraiu os lábios num sorriso.

     – Pois é, se assim lhe apraz; digamos: é uma gatinha bravia.

 

     Della Street abriu a porta do gabinete particular de Perry Mason. Notava-se na sua atitude certa preocupação oculta, ao deslizar pelo umbral, fechando cuidadosamente a porta atrás de si.

     Perry Mason estava sentado à escrivaninha. Olhou-a de viés, intrigado.

     – Que mistério é esse? – indagou.

     Della avançou um ou dois passos no gabinete, fitando-o, para, em seguida, voltar-se e lançar um olhar à porta a fim de ter a certeza de que realmente estava fechada.

     – Está no meu gabinete um homem que diz chamar-se Robert Gleason.

     – Que quer ele? – perguntou Perry Mason.

     – Pede informações a respeito da menina Celane.

     – A que acaba de estar aqui?

     – Sim.

     – Suponho que não lhe disse que ela esteve aqui.

     – Naturalmente, não.

     – E que diz o rapaz?

     – Disse que precisa vê-lo. Perguntei-lhe o motivo que o trazia cá e ele respondeu-me que se tratava de um assunto referente a uma cliente sua. Procurei convencê-lo a que me dissesse o nome da cliente e me explicasse qualquer coisa sobre a natureza do caso que aqui o trazia. Disse-me então que se tratava da menina Celane e mostrou-se muito ansioso por lhe falar a respeito dela.

     – Muito bem, disse Mason. – Que lhe respondeu?

     – Disse-lhe que não guardava de memória os nomes de todos os seus clientes, e por isso pedia-lhe que fosse mais explícito. Estava espantosamente excitado.

     – Que é que o excitava? – perguntou Mason. – A rapariga, o assunto, ou o quê?

     – Não sei. Sei apenas que estava excitado e nervoso.

     Mason encolheu os ombros, como se tivesse tomado uma súbita decisão.

     – Mande-o entrar, disse.

     Ela anuiu com a cabeça, voltou-se e abriu a porta.

     – Queira entrar, senhor, disse.

     Ouviu-se o ruído de alguém que se movia. Entrou um homem, cujo aspecto denotava inquietação. Era um rapaz delgado, de nariz afilado e orelhas grandes. Caminhava em passos bruscos e nervosos. Aparentava vinte e tantos ou trinta anos.

     – É Mr. Mason, advogado? – perguntou com impaciência.

     Perry Mason observava-o com os seus olhos pacientes, por baixo das espessas sobrancelhas.

     – Sente-se, disse.

     O visitante hesitou, e depois se sentou na beira de uma das cadeiras de espaldar alto.

     – E, agora, queira ter a bondade de me dizer o que deseja, acrescentou Mason.

     – Queria saber se Frances Celane o visitou hoje.

     O rosto de Perry Mason tinha a aparência tranqüila, perscrutadora.

     – Isto é um gabinete de advogado e não o balcão de uma agência de informações, Mr. Gleason, respondeu.

     O jovem visitante ergueu-se, muito nervoso, deu três passos rápidos até a janela, deteve-se contra a luz, por um instante, e, em seguida, girou sobre os calcanhares, para fixar o advogado.

     Tinha os olhos escuros e ardentes. Parecia lutar contra uma emoção mais forte do que ele.

     – Não tergiverse, disse finalmente. – Preciso saber se Frances Celane esteve ou não aqui a falar com o senhor.

     A voz de Perry Mason, ao responder-lhe, não se alterou.

     A impaciência do outro desfez-se tão facilmente, ante o modo calmo do advogado, como manteiga sob o calor.

     – Não é preciso discutir por tão pouca coisa, disse Mason tranqüilamente. – Fala-me o senhor de uma tal menina Frances Celane?

     – Sim.

     – Conhece-a pessoalmente?

     – Claro que a conheço!

     Mr. Mason fez um gesto franco e conciliador com a mão direita, como quem dá a entender que o assunto, sendo assim, perdia toda a importância.

     – Isso simplifica a questão, disse ele ao visitante.

     – Que é que simplifica? – perguntou Gleason, desconfiado.

     – O fato de o senhor conhecer a menina Celane – replicou o advogado. – Nesse caso, o que lhe resta a fazer, é perguntar-lhe se veio consultar-me. Se lhe responder que não, tornar-se-á desnecessário que o senhor volte cá. Se, porém, ela realmente veio consultar-me, mas não quer que o saiba, é infalível que o senhor encontrará qualquer expediente para resolver o assunto. E, finalmente, se me consultou e pouco se lhe dá que o senhor o saiba, creio que lho dirá francamente.

     E, dizendo isto, Mason ergueu-se, sorrindo para o visitante, como quem dá a entrevista por terminada.

     Robert Gleason permaneceu de pé, junto da janela. Via-se no seu rosto que estava sob a ação duma forte tensão nervosa.

     – O senhor não devia falar-me desse modo – disse ele.

     – O caso, porém, é que já lhe falei assim, replicou Mason, com toda a calma.

     – Contudo... não o devia ter feito.

     – Por que não?

     – Isso estaria certo, se se tratasse de um estranho – comentou Gleason. – Mas eu não sou um estranho. Sou uma pessoa amiga de Frances Celane. Tenho o direito de saber o que se passa. Ela está ameaçada e necessito inteirar-me do que o senhor se propõe fazer neste assunto.

     Perry Mason arqueou as sobrancelhas, numa interrogação cortês.

     – Quem é que está ameaçada? – perguntou – E por quem?

     Gleason teve um gesto de impaciência.

     – A que propósito vem todas estas reticências? – perguntou por sua vez. – Consta-me ter ela estado aqui, e o senhor sabe-o melhor do que ninguém. Acresce que o senhor está informado de que ela está a ser vítima de uma chantagem e quero saber quais são os seus planos neste caso.

     – Creio, retrucou-lhe Mason, que o mais apropriado, na presente circunstância, é solicitar-lhe que se retire do meu gabinete. Como facilmente poderá imaginar, quando o deixei entrar aqui, pensei que me quisesse encarregar de algum assunto legal. Pois bem, hoje estou muito ocupado e realmente não tenho tempo para discutir consigo o único assunto que parece interessar-lhe.

     Gleason insistiu na sua atitude.

     – Pelo menos – disse ele, poder-me-á dizer quem é o autor da chantagem. Isso é tudo o que preciso saber. Se o senhor me facilitar essa informação, eu próprio me encarregarei do resto.

     O advogado dirigiu-se para a porta, deteve-se junto dela, com grande firmeza e, em atitude grave e digna.

     – Passe bem, Mr. Gleason – disse. – Lamento muito não poder ajudá-lo.

     – É a sua última palavra, Mr. Mason? – perguntou.

     Robert, contraindo os lábios com certa excitação, a ponto de parecer que rosnava.

     – É, sim, senhor, respondeu Perry Mason, em tom definitivo.

     Muito bem replicou o visitante, atravessando a sala em passo firme e cruzando a porta sem acrescentar uma palavra.

     Perry Mason fechou a porta, atrás do visitante, muito suavemente, enfiou os polegares nas cavas do colete, inclinou a cabeça para diante e iniciou um lento passeio através do gabinete.

     Ao cabo de alguns momentos, aproximou-se da mesa e de cima dela agarrou uma folha escrita à máquina, contendo a cópia da cláusula testamentária, na qual Carl Celane discriminava a as condições do depósito destinado à filha.

     Ainda estudava esse documento, quando Della Street mais uma vez abriu a porta.

     – A menina Celane – anunciou ela.

     Mason dirigiu-lhe, durante uns segundos, um olhar investigador, depois do que lhe fez um pequeno gesto.

     A secretária soube interpretar o gesto e entrou no escritório, fechando a porta de comunicação.

     – Gleason saiu do seu gabinete logo depois de ter saído daqui? – perguntou o advogado.

     – Sim, respondeu Della. – Sem perder um segundo. Parecia disposto a ganhar uma corrida de velocidade.

     – E a menina Celane acaba de chegar?

     – Sim, senhor.

     – Acha que eles possam ter-se encontrado na porta do elevador?

     Della contraiu os lábios, pensativa.

     – Não seria difícil, Mr. Mason, respondeu ao cabo de alguns momentos. – Mas quer-me parecer que não.

     – Que aspecto apresenta a menina Celane? Está muito excitada?

     – Não, senhor; parece mais fria do que uma pedra de gelo e ensaiou a sua mais agradável atitude ao entrar. Depois, tirou o estojo do pó e está a compor o rosto com a maior atenção. Além disso, parece-me que vem do cabeleireiro.

     – Perfeitamente – replicou Mason. – Mande-a entrar.

     A secretária abriu a porta e disse:

     – Queira entrar, menina Celane.

     Enquanto Frances Celane entrava no gabinete do advogado, a secretária retirava-se para o seu, fechando a porta sem fazer o menor ruído.

     – Sente-se – convidou Perry Mason.

     Frances Celane dirigiu-se para a mesma poltrona de couro que ocupara, na visita da manhã, e, acomodando-se nela, cruzou as pernas, fitou o advogado com os seus olhos límpidos e negros, numa muda interrogação.

     – Um tal Robert Gleason visitou-me, há alguns minutos – disse Mason. – Insistiu muito para que eu lhe dissesse se a menina tinha ou não estado aqui.

     – Rob é tão impulsivo! – exclamou ela.

     – Então, conhece-o?

     – Claro que sim.

     – Disse-lhe que tinha vindo aqui? – perguntou o advogado.

     – Apenas mencionei o seu nome, respondeu Frances. – O senhor confessou-lhe ter eu estado aqui?

     – Naturalmente que não! Aconselhei-o a que se dirigisse diretamente a si, caso quisesse inteirar-se de alguma coisa referente a esse assunto.

     A rapariga sorriu languidamente e replicou:

     – Rob Gleason não deve ter gostado muito por lhe ter falado desse modo.

     – Realmente, parece-me que não gostou, disse Mason.

     – Eu vê-lo-ei e explicar-lhe-ei tudo, informou a menina Celane.

     – Gleason, continuou o advogado, disse que a menina estava ameaçada...

     Com a rapidez de um relâmpago, perpassou pelos olhos da jovem um vivo terror. Depois, continuou a fitar o advogado com a fisionomia plácida e impassível.

     – Rob é tão impulsivo! – exclamou pela segunda vez.

     Mason esperava que a visitante lhe explicasse alguma coisa mais, aproveitando aquele momento oportuno; ela, porém, acomodou-se na poltrona, à espera de que o advogado continuasse a falar.

     Este curvou-se sobre os papéis que estavam em cima da mesa.

     – Tenho aqui cópias das condições que foram estipuladas no testamento e do ato de partilha dos bens. Comprovei, também, que o depositário apresentou todos os anos um relatório sobre o depósito. Temo, menina Celane, não lhe poder dar muitas esperanças no que diz respeito à escritura de distribuição. A administração do depósito parece ter sido conferida de um modo amplamente discricionário. Veja: fosse eu muito embora capaz de conseguir que se declarassem nulas as cláusulas referentes ao seu matrimônio, baseando-me que são uma violação do direito público, continuaríamos sempre diante do fato de que a distribuição dos fundos depositados permanece à mercê da vontade do depositário.

     “E de temer que seu tio considere o nosso ataque às disposições testamentárias como uma tentativa de intromissão nos desejos póstumos do seu pai e na sua própria autoridade de depositário. Mesmo no caso de o tribunal reconhecer o nosso ponto de vista, ficaria sempre à discrição dele a faculdade de anular a nossa vitória.”

     A jovem ouviu aquela exposição sem se perturbar e, ao cabo de instantes, replicou:

     – Pois é isso justamente o que me assusta.

     – Há outra condição muito especial no testamento – disse Mr. Mason. – Refiro-me ao fato de que os poderes discricionais de que o depositário se acha investido se baseiam no seu próprio bom-senso, isto é, são devidos à confiança que seu pai depositava no justo critério de seu tio. Tanto o testamento como a escritura de partilha especificam que, no caso de morte, incapacidade ou renúncia, por parte do depositário, que o impedissem de continuar atuando como tal, a totalidade dos bens que então constituíssem o depósito seria conferida à menina, incondicionalmente.

     – Sim, confirmou ela, já o sabia.

     – Portanto frisou Mason, resta-nos a possibilidade de que seu tio venha a encontrar-se numa situação na qual não lhe seja possível continuar a atuar com vantagem. Em outros termos: torna-se-nos possível desferir um ataque legal contra a sua capacidade como depositário quem sabe mesmo se apresentarmos prova de que os fundos depositados tenham sido de certa forma mesclados com as suas próprias contas ou qualquer coisa desse gênero. Desde já, porém, sabemos que isso é um pouco arriscado, e, se lhe falo em tal, é simplesmente por se me afigurar o único plano de campanha que podemos seguir.

     Ela dirigiu-lhe um sorriso e disse:

     – Bem se vê que o senhor não conhece meu tio.

     – Quer explicar-me o sentido exato das suas palavras?

     – O que quero dizer – respondeu ela – é que meu tio é minuciosamente cuidadoso e, além disso, tão teimoso que nenhum poder humano poderia desviá-lo dos fins a que se proponha, nem sequer fazê-lo renunciar aos seus propósitos. É um homem inteiriço.

     Pela primeira vez, durante a entrevista, foi possível notar-se certa vibração na voz da jovem certa amargura que coloria a sua tonalidade, embora os olhos continuassem tranqüilos.

     – E a si ocorre alguma idéia? – perguntou Mason, observando-a cuidadosamente.

     – Sim, respondeu ela. – Acho que poderíamos fazer alguma coisa por mediação de Arthur Crinston.

     – Quem é esse Arthur Crinston?

     – Arthur Crinston é o sócio de meu tio. Trabalham no mesmo negócio: dedicam-se a comprar, vender e hipotecar propriedades e também compram e vendem ações e títulos. Arthur Crinston tem mais influência sobre meu tio do que qualquer outra pessoa no mundo.

     – E quais são os sentimentos dele em relação à menina?

     – Ele é muito afetuoso para comigo – respondeu ela, sorrindo.

     – Pensa então que haveria alguma possibilidade – perguntou Mason, lentamente, – de o Sr. Crinston persuadir seu tio a que renunciasse à administração do depósito, deixando-o inteiramente à sua disposição?

     – Sempre é possível qualquer coisa, replicou a menina Celane, de um modo brusco, pondo-se de pé. – Pedirei a Mr. Crinston que venha cá.

     – Dir-lhe-á, então, que venha amanhã, a qualquer hora? – perguntou Mason.

     – Dir-lhe-ei que venha esta tarde – respondeu ela.

     O advogado consultou o relógio.

     – São dezesseis e vinte. Fecho o escritório às dezessete. Posso, no entanto, esperar alguns minutos mais.

     – Às dezessete menos quinze, ele estará aqui, assegurou ela.

     – Quer telefonar-lhe daqui? – arriscou Mason.

     – Não, não é preciso.

     – E a que se referia Rob Gleason, quando disse que a menina está a ser vítima de uma chantagem? – atirou-lhe Mason inesperadamente, no momento em que ela ia a sair do escritório.

     Ela dirigiu-lhe o tranqüilo olhar dos seus grandes olhos.

     – Asseguro-lhe que não tenho a menor idéia do que se trata.

     E fechou a porta ao sair.

 

     Arthur Crinston tinha quarenta e cinco anos, era espadaúdo e afável. Atravessou rapidamente o gabinete particular de Mason, com a mão estendida e dizendo com voz estentorosa de franca cordialidade:

     – Extremamente satisfeito por conhecê-lo, Mr. Mason. – Fran pediu-me para vir imediatamente e eu deixei tudo para satisfazer-lhe o pedido.

     Perry Mason apertou-lhe a mão e observou-o com um olhar firme e perscrutador.

     – Queira ter a bondade de sentar-se, disse.

     Arthur Crinston deixou-se cair na mesma poltrona de couro negro, anteriormente ocupada por Frances, puxou um charuto do bolso, acendeu-o e, sorridente, soprou uma baforada de fumo.

     – Essa garota está empenhada em fazer um mau casamento, não lhe parece? – foi dizendo para começar.

     – O senhor está inteirado disso? – perguntou Perry Mason.

     – Claro que estou! – respondeu Crinston, expansivamente. – Sei tudo a respeito de Fran. Essa menina é realmente mais minha sobrinha do que de Edward. Sim, porque estamos sempre juntos e entendemo-nos às mil maravilhas.

     – Crê, perguntou Mason, que se conseguiria alguma coisa falando com Edward Norton?

     – E quem falaria com ele? – indagou Crinston.

     – O senhor, sugeriu Mason.

     Crinston moveu a cabeça negativamente.

     – Nesse caso, a menina Celane – aventurou Mason.

     Mr. Crinston insistiu na negativa.

     – Não, senhor, disse por fim, somente uma pessoa poderia falar com Norton e obter resultado.

     – Quem é essa pessoa? – perguntou Mason.

     – O senhor, afirmou Crinston, enfaticamente.

     A fisionomia do advogado não mudou de expressão; somente os olhos traíram leve surpresa.

     – Pelo que tenho ouvido do caráter de Mr. Norton, disse, estou propenso a crer que a minha interferência seria justamente o que mais poderia aborrecê-lo.

     – Não, senhor, não creia nisso – replicou Crinston. – Edward Norton é um indivíduo singular. Não gosta de se deixar influenciar nos negócios por nenhum sentimentalismo. Tem grande sangue-frio. E, nessas condições, estará mais disposto a ouvir uma proposta puramente financeira e legal, feita pelo senhor, do que se fôssemos nós, eu ou Fran, a falar-lhe no terreno sentimental.

     – Queira desculpar-me, objetou Mason, mas isso que me diz não me parece muito lógico.

     – Não importa o que lhe possa parecer – replicou Crinston, fazendo um trejeito. – Nem tampouco que seja lógico ou não. É a verdade. É esse justamente o caráter do homem. Somente vendo Norton e falando com ele, o senhor poderá avaliar a exatidão do que lhe acabo de dizer.

     Della Street abriu a porta do gabinete de Mason.

     – A jovem que esteve aqui hoje à tarde está ao telefone e diz que deseja falar-lhe – comunicou ao advogado.

     Mr. Mason anuiu com um gesto e pegou no aparelho colocado sobre a mesa.

     – Alô, disse ele.

     E ouviu a voz da menina Celane, que falava rapidamente.

     – Está aí Mr. Crinston?

     – Está, sim.

     – Que disse ele?

     – Propõe que eu fale com seu tio.

     – Bem. O senhor quer ter a amabilidade de o fazer?

     – Acha que devo falar-lhe?

     – Se é essa a opinião de Arthur Crinston, eu concordo.

     – Muito bem. Que lhe parece se for amanhã?

     – Não, senhor. Peço-lhe o obséquio de ir hoje mesmo.

     Mr. Mason franziu o sobrolho.

     – Num assunto de tamanha importância, objetou, preferia dispor de algum tempo para estudar o melhor método de ataque.

     – Oh! Não se preocupe com isso – exclamou ela. – Mr. Crinston indicar-lhe-á exatamente o que deve dizer. Eu marcarei um encontro com meu tio, para que o receba às vinte horas e meia. Irei aí ao escritório, às vinte horas, e levá-lo-ei a nossa casa. Às vinte horas em ponto. Está bem assim?

     – Espere um momento, ao telefone pediu Mason.

     E, virando-se para Arthur Crinston, disse:

     – A menina Celane está ao telefone e acha que eu devia ir visitar Mr. Norton hoje mesmo. Propôs-me combinar a entrevista.

     – Ótimo! – exclamou Crinston. – É uma idéia magnífica. Confesso que não me lembraria de melhor.

     O advogado pegou de novo no telefone:

     – De acordo, Miss Celane, esperá-la-ei no meu gabinete às vinte em ponto, para me levar a casa de seu tio.

     Dito isto, depôs o aparelho e ficou a olhar pensativamente para Mr. Crinston.

     – Noto que nesta causa, há qualquer coisa estranha – comentou. – Dir-se-ia que uma das partes interessadas tem uma pressa frenética de agir.

     Arthur Crinston sorriu.

     – É que o senhor, disse ele, ainda não conhece bem Frances Celane.

     – Quere-me parecer que é uma jovem muito tranqüila e muito equilibrada, replicou o advogado em voz abafada.

     Crinston tirou o charuto da boca para dar uma gargalhada estrepitosa.

     – Eu acreditava, Mr. Mason, que o senhor conhecesse bastante a natureza humana para compreender que nunca lhe será possível adquirir um frágil conhecimento que seja destas raparigas modernas, julgando-as apenas pelas aparências, rugiu ele na sua voz grossa. – Não a deixe nunca manifestar o seu temperamento. Quando se zanga, transforma-se num gato selvagem.

     Mason olhou para o visitante com ar de quem não achou graça.

     – Deveras, disse ele com a mesma voz apagada. – Não tenho a mínima intenção de o ofender, ajuntou Crinston, mas posso afirmar-lhe que o senhor se enganou redondamente a respeito de Fran Celane. Essa garota é puro dinamite. Agora, dir-lhe-ei o que o senhor deve fazer. Se se decidir a visitar Norton hoje, à noite, eu irei a casa dele um pouco antes da hora da entrevista e tentarei amaciá-lo o mais que puder. Já lhe disse que ele é um tanto esquisito. O senhor verificará isso, apenas o veja. É de uma absoluta frieza em negócios.

     – O senhor acredita que Miss Celane encontre alguma dificuldade em preparar a nossa entrevista desta noite? – perguntou Mason, estudando Crinston astutamente.

     – Oh, não! – respondeu o interpelado. – O meu amigo é um desses indivíduos que gostam de trabalhar à noite. Tem um verdadeiro escritório em casa e agrada-lhe trabalhar ali. Marca a maioria das suas entrevistas para a tarde ou ao anoitecer.

     Dito isto, levantou-se, aproximou-se do advogado e estendeu-lhe a mão.

     – Muito satisfeito por tê-lo conhecido – acrescentou – e vou fazer o possível para preparar Edward Norton, antes que ele o receba.

     – Não me aconselha nada, a respeito da argumentação que devo apresentar-lhe? – perguntou Mason. – Como devo tratá-lo?

     – Absolutamente nada – respondeu Crinston. – Creio até prudente não levar nenhum plano de antemão preparado. Terá ocasião de ver que Edward Norton é também um verdadeiro jurista.

     Após a saída de Crinston, Mason deu alguns passos, abriu a porta da entrada e penetrou no gabinete comum.

     O seu gabinete particular estava situado no ângulo formado por uma série de gabinetes, entre os quais figuravam duas salas de espera, uma biblioteca jurídica, uma sala de datilografia e dois gabinetes particulares.

     Perry Mason tinha como auxiliares a menina Della Street, a qual acumulava as funções de esteno-datilógrafa e de secretária, e Frank Everly, um jovem bacharel que praticava nos escritórios do jurisconsulto.

     Perry Mason continuou o passeio em direção à biblioteca jurídica, abriu a porta e fez um sinal a Frank Everly.

     – Frank, disse-lhe ele, necessito que me faça um trabalho, e que o faça com toda a rapidez.

     Everly empurrou para o fundo da mesa um livro encadernado em pele de bezerro, que estava a ler, e ergueu-se.

     – Sim, senhor – disse.

     – Creio, explicou-lhe Mason, que um certo Robert Gleason se casou com uma tal Frances Celane. Não conheço a data exata em que se realizou o casamento; acho, porém, que deve ser coisa de algumas semanas. Eles têm procurado manter secreto esse casamento. Você deve ir ao cartório que fornece as licenças, e ver se pode achar lá aquilo de que preciso. Telefone a um amanuense do cartório e peça-lhe que o espere depois do expediente. Como não tardarão a fechar, apresse-se.

     – Compreendido, chefe, disse Everly. – E quando obtiver as informações que o senhor deseja, onde poderei encontrá-lo?

     – Quando conseguir as informações, disse-lhe Mason, escreva-as numa folha de papel, lá mesmo, feche-as num sobrescrito com a nota pessoal e confidencial, e coloque-o sob o mata borrão da minha escrivaninha, no meu gabinete particular.

     – Muito bem disse Everly, dirigindo-se para o telefone.

     Mason voltou para o seu gabinete, enfiou os polegares nas cavas do colete e iniciou uma série de passeios lentos e rítmicos pela sala.

    

     Fran Celane conduzia o enorme Packard com as mãos elegantemente postas no volante e o pezinho ágil no acelerador.

     Enquanto estivera sentada na grande poltrona de couro do gabinete do advogado, parecia pequena, débil e desamparada. Agora, aquela aparência de desamparo dissipara-se.

     Os indícios da astúcia felina da sua natureza estavam mais acentuados do que nunca. Manobrava o automóvel com rapidez selvagem, metendo-o pelos estreitos espaços livres que o tráfego lhe proporcionava, evitando obstáculos, detendo-o bruscamente quando a luz vermelha lhe cortava a passagem, partindo logo que a luz verde lhe indicava caminho livre. O seu rosto conservava uma expressão carrancuda, agressiva.

     Sentado a seu lado, Perry Mason estudava-a com olhos perscrutadores, em atenta observação.

     A jovem subiu uma encosta, meteu o carro por um caminho sinuoso que atravessava um bairro pitoresco e, finalmente, fez com a cabeça um gesto indicativo.

     – Chegamos, disse ela. – É ali em baixo, ao pé daquela colina.

     Mason, olhando para baixo, viu na estrada sinuosa uma grande casa brilhantemente iluminada.

     – Bela moradia, disse à sua companheira.

     – Sim, respondeu ela, concisamente.

     – Há muitos criados?

     – Poucos: o jardineiro, a governanta, o mordomo, o motorista e o secretário.

     – Considera o secretário como criado? – perguntou Mason, observando o perfil da jovem com divertido interesse.

     – Porque não? – replicou ela.

     – Deduzo daí que ele não lhe inspira grande simpatia – notou Mason.

     Ela não deu atenção ao comentário; em vez disso, fez que o carro desse uma volta com tal velocidade que os pneumáticos rangeram.

     – Entre nós, menina, continuou Perry Mason, se está com raiva a alguém e o quer atirar do automóvel, prefiro que me permita saltar antes. Faço sempre o possível para me conservar em bom estado. Com um braço ao peito, não me seria possível desenvolver toda a minha eloqüência diante do júri.

     – Perfeitamente – replicou ela. – Nesse caso não há inconveniente em que perca as duas pernas, e atirou o carro para a curva seguinte com velocidade ainda maior. Mason, curvando-se para a frente, desligou o motor.

     – Ponto final nas loucuras – sentenciou ele.

     Ela calcou com violência o pedal do travão e virou-se para o advogado, com os olhos cintilantes de furor.

     – Não lhe permito que mexa neste carro enquanto eu o guiar! – gritou-lhe com raiva. – Ouviu? Não lho permito!

     Perry Mason respondeu-lhe, num tom sereno:

     – Se não intentar fazer exibições, pondo em perigo as nossas vidas... acho que não será necessário.

     – Não estou fazendo nenhuma exibição! – exclamou a jovem. – Pouco se me dá do que possa pensar. O que não quero é que cheguemos atrasados à entrevista. Se nos retardamos cinco minutos que seja, estaremos bem arranjados... Meu tio não o receberá.

     – Mas é que eu lhe posso ser de muito maior utilidade se me conservar inteiro – alegou Mason.

     Enquanto discutiam, ela travou o carro, passando de uma alta velocidade a uma paragem súbita. Ergueu do volante as duas mãos, empertigou-se diante do advogado e fitou-o irada.

     – Enquanto eu guiar este automóvel, disse, não admito interferências no meu trabalho.

     Repentinamente, sorriu.

     – Desculpe-me – pediu impulsivamente. – Deixei-me arrastar pelo meu gênio, procedendo como uma garota mal educada. Peço-lhe que compreenda que estou apressada, e é só isso.

     Mason, muito complacente, respondeu:

     – Está certo, mas convenhamos em que a menina tem um geniozinho...

     – Lá isso tenho! – confessou a jovem. – Pensei que o senhor já o soubesse.

     – Não o havia percebido, antes de Crinston me esclarecer.

     – Ele falou-lhe nisso? – perguntou.

     – Sim.

     – Não o deveria ter feito.

     – Além disso, continuou Mason, com a sua calma habitual, a minha secretária explicou-me que a menina lhe parecera um pouco agressiva. No primeiro momento, julguei que ela acertara. Todavia, estava enganada. Você não é agressiva, quando de fato é vítima do pânico.

     A jovem voltou-se para ele, com os lábios entreabertos e um olhar sobressaltado. Em seguida, silenciosamente, volveu os olhos para a estrada e pôs novamente o carro em marcha.

     Apertara os lábios numa linha fina de teimoso silêncio.

     Nenhum deles pronunciou mais uma única palavra, até que a jovem desviou o veículo para um caminho particular, estacando pouco depois, de modo um tanto violento.

     – Bem, disse ela, podemos saltar.

     Mason desceu do carro e perguntou:

     – Suponho que não se propõe estar presente durante a entrevista?

     Ela abriu estrepitosamente a portinhola e saltou velozmente para a calçada, numa revoada de pernas e de folhos de saia.

     – Estarei presente o tempo indispensável para o apresentar, disse então ao advogado. – Venha. Entremos.

     Perry Mason seguiu-a até à porta da entrada, que a jovem abriu com uma chave de trinco.

     – Suba por esta escada, indicou ela.

     Ambos subiram até o primeiro andar e dirigiram-se para a esquerda. Um homem que saía justamente naquele instante por uma porta, parou para olhá-los. Trazia numa das mãos um bloco de estenografia e debaixo do braço um rolo de papéis.

     – Mr. Graves – apresentou Frances Celane, ao advogado. – É o secretário de meu tio. Don, apresento-lhe Mr. Mason, o advogado.

     Este inclinou-se levemente, observando, entretanto, que Don Graves o fitava fixamente, com uma curiosidade que ele, Mason, não procurou embaraçar.

     O secretário era delgado, estava bem vestido, tinha os cabelos cor-de-palha e os olhos castanhos. Notava-se-lhe certa vivacidade, como se estivesse a ponto de dizer qualquer coisa ou talvez de sair a correr. A sua atitude indicava uma grande tensão física e mental.

     Afinal, falou, com uma rapidez que fazia que as palavras parecessem embutidas umas nas outras:

     – Tenho muito prazer em conhecê-lo. Mr. Norton espera-o. Se quer ter a bondade de entrar, será recebido imediatamente.

     Perry Mason nada respondeu. Considerou a sua inclinação de cabeça cortesia suficiente para aquela apresentação

     A rapariga precedeu o secretário, e o advogado seguiu-a.

     Fran Celane conduziu-o através do gabinete de entrada, onde se encontrava uma mesa de datilografia, um cofre, um classificador, dois telefones, várias máquinas de escrever, uma de somar e um ficheiro.

     Abriu, sem bater, a porta de um gabinete interior e Perry Mason achou-se diante de um homem alto, de uns cinqüenta e cinco anos, que o contemplava com ar sereno e inexpressivo.

     – Chegaram atrasados, foram as suas primeiras palavras.

     – Apenas um minuto, tio Edward – disse a jovem.

     – Um minuto – replicou Mr. Norton – são sessenta segundos.

     Sem responder, ela voltou-se para o advogado.

     – Tio Edward, apresento-lhe Mr. Mason, meu advogado.

     O homem, então, com o seu nítido e inexpressivo tom de voz, disse:

     – Apraz-me muito que você o tenha consultado, pedindo-lhe conselhos. Creio que assim, Mr. Mason, me será mais fácil explicar-lhe certas coisas, pois que, de outro modo, o senhor não acharia crível o que vou dizer-lhe. Mr. Mason, sinto muito prazer em conhecê-lo e estou muito satisfeito que tenha vindo visitar-me. E estendeu-lhe a mão.

     Perry Mason assentiu com uma cortês inclinação de cabeça, apertou a mão que lhe ofereciam e sentou-se.

     – Bem – disse Fran Celane – retiro-me, mas ponho o meu futuro nas mãos de ambos.

     Despediu-se com um sorriso para os dois e saiu da sala.

     Mal fechara a porta do escritório particular e já Mason ouvia a sua voz, iniciando uma rápida palestra com Don Graves, o secretário.

     Edward Norton não perdeu tempo em palavras inúteis.

     – Sem dúvida alguma o senhor já deve ter estudado as cláusulas do depósito e da escritura de partilha, não? – disse ele.

     – Efetivamente – respondeu Mason

     – Familiarizou-se bem com elas?

     – Sim, senhor.

     – Sabe então que muita coisa foi deixada à minha discrição?

     – Digamos, a maior parte das coisas, corrigiu Mason, cautelosamente.

     – E, provavelmente, a minha sobrinha encarregou-o de conseguir determinadas modificações nas cláusulas do depósito, não é verdade?

     – Não é exatamente isso – disse Mason, pesando com a máxima cautela as palavras. – O que ela deseja, segundo creio, é conseguir certa liberdade de ação e também conhecer de antemão a possível atitude do senhor, dado o caso de ela praticar determinados atos.

     – Por exemplo, no caso de contrair matrimônio, não? – disse Norton.

     – Bem, podemos considerar essa eventualidade, admitiu Mason.

     – Sim, disse Norton secamente, devemos considerá-la. O pai dela considerou-a, e eu também a considero. É bem provável, Mr. Mason, que o senhor não tenha ainda percebido que a minha sobrinha é dotada do temperamento mais indomável deste mundo. Por pouco que se excite, torna-se um verdadeiro tigre. É, além disso, impulsiva, violenta, egoísta, e apesar de tudo, encantadora.

     “Seu pai compreendeu que ela precisava ser protegida contra si própria. Achou também que deixar a sua inteira disposição uma grande soma de dinheiro seria talvez a pior coisa que pudesse fazer por ela. Estava inteirado de que eu compartilhava a opinião dele neste assunto e por essa razão criou esse depósito sob tais condições.”

     “Quisera que o senhor compreendesse que, se eu agisse com a liberdade que me concede o depósito e empregasse o dinheiro de qualquer outra forma que não a de dá-lo à minha sobrinha, o faria somente por considerar que a prejudicaria muitíssimo, entregando-o a ela. Quando as pessoas muito ricas têm um temperamento como o de Frances, freqüentemente muito dinheiro só lhes proporciona grandes sofrimentos.”

     – E não crê o senhor, insinuou Mason, muito diplomaticamente, que seria muito melhor, mesmo levando em conta o que acaba de dizer-me, acostumá-la a manejar grandes somas de dinheiro, aumentando-lhe gradualmente a mesada que recebe? E não lhe parece também que o casamento possa exercer sobre ela uma influência benéfica?

     – Conheço de sobra todos esses argumentos, disse Norton. Já os ouvi tantas vezes que estou cansado deles. Perdoe-me se lhe falo assim; não me refiro à minha impressão pessoal, mas quero que compreenda que lhes dou o devido valor.

     “Sou o depositário dessa fortuna. Administrei-a judiciosamente. Convém frisar que, não obstante as flutuações que todos os valores têm sofrido nestes últimos anos, tenho a satisfação de lhe poder comunicar que os fundos depositados têm tido um aumento continuado, de tal forma que o total, hoje, supera em muito o que era na época da sua criação.”

     “Em data recente, suprimi por completo a mesada de Fran. Ela agora não recebe nem mais um vintém.”

     Na fisionomia de Mason estampou-se a surpresa.

     – Pelo que vejo, continuou Mr. Norton, ela não lhe confessou a situação exata?

     – Efetivamente – continuou Mason – ignorava que o senhor lhe havia cortado completamente a mesada. Poderei perguntar-lhe o motivo que o obrigou a dar semelhante passo?

     – Naturalmente que pode perguntar, disse Mr. Norton. Tenho múltiplos motivos para crer que minha sobrinha está a ser vítima de uma chantagem. Interroguei-a sobre o assunto, ela, porém, recusa revelar-me quem a ameaça, ou que leviandade cometeu que pudesse ter sido aproveitada por um chantagista para poder extorquir-lhe dinheiro.

     “Levando isto em conta, decidi combater tal possibilidade, impedindo-a de fazer uma entrega em dinheiro a um chantagista qualquer. Nestas condições, tenho o prazer de declarar-lhe que, dentro de alguns dias mais, a situação terá forçosamente de se resolver de um modo ou de outro.”

     E Norton fitou Mason com olhos frios, que não refletiam cordialidade, mas não eram hostis.

     – Compreende o senhor a minha posição no caso? – perguntou o advogado.

     – Sem sombra de dúvida, replicou Norton, e agrada-me que minha sobrinha consultasse um advogado. Ignoro se entre o senhor e ela ficou estipulada a questão de honorários.

     “Caso não tenham combinado esse pormenor, comunico-lhe que há, no depósito que me foi confiado, fundos destinados para essa eventualidade, dos quais se lhe pode atribuir uma remuneração razoável. Digo-lhe isso, porque desejaria que o senhor convencesse minha sobrinha da sua impotência legal para qualquer ação contrária.”

     – Lamento, disse Perry Mason, mas só cobrarei os meus honorários dela própria, e, por conseqüência, não posso comprometer-me a dar-lhe esse conselho. Se não leva a mal, falaremos a respeito do modo pelo qual o senhor exerce as suas prerrogativas de depositário discricionário, em vez de discutirmos se tem ou não o direito de agir como o faz.

     – Isso não é possível, disse Norton, peremptoriamente. – Esse ponto está fora de discussão.

     – Muito bem, observou Mason sorrindo afavelmente e conservando a serenidade. –Contudo, era esse o motivo principal da minha visita.

     – Sinto muito, senhor, replicou Edward Norton, friamente. – Esse aspecto da questão é de todo improcedente. O senhor devia limitar-se a tratar dos direitos legais da sua constituinte em relação ao depósito.

     Os olhos de Mason permaneciam frios e perscrutadores.

     – Sempre pude comprovar, disse ele, que um assunto legal apresenta uma infinidade de facetas. Se o senhor quisesse encarar o nosso caso sob o aspecto humano e quisesse considerar...

     – Não quero ouvi-lo mais, interrompeu Norton, em voz fria e monótona, a não ser no que diga respeito ao assunto da legalidade do depósito e da sua interpretação.

     Mason empurrou para trás a poltrona e pôs-se de pé.

     A sua voz era tão fria quanto à do outro, ao responder:

     – Não tenho por hábito permitir a quem quer que seja que me ensine o que devo dizer ou não dizer. Estou aqui representando os direitos de Frances Celane, sua sobrinha e minha cliente! E faço questão de dizer umas tantas verdades relativas ao caso.

     Edward Norton estendeu a mão para o botão de uma campainha, e apertou-o com o seu ossudo dedo indicador.

     Aquele gesto foi igualmente isento de qualquer emoção.

     – Chamei o mordomo, disse ele, para que o acompanhe até a porta. Da minha parte, findou a entrevista.

     Perry Mason plantou-se diante dele, com os pés separados, em atitude de desafio e exclamou:

     – Teria feito melhor se tivesse chamado dois mordomos e mais o seu secretário! Desafio a que me tire daqui, antes que eu diga o que tenho a dizer-lhe. O senhor está cometendo um erro, ao tratar sua sobrinha como se fosse uma pela ou uma boneca sem entendimento. Pois fique sabendo que ela é uma menina muito inteligente e altamente razoável. Não sei de onde tirou essa idéia de ela ser vítima de uma chantagem, mas se acredita nisso...

     A porta do gabinete abriu-se e um homenzarrão corpulento e espadaúdo, de rosto impassível, entrou, curvando-se cerimoniosamente.

     – O senhor chamou-me? – perguntou.

     – Sim, continuou Edward Norton, faça sair este cavalheiro.

     O criado pôs a mão firme no braço de Perry Mason, mas o advogado com uma sacudidela violenta libertou-se, continuando a encarar Mr. Norton.

     – Ninguém, ouviu? – bradou em tom enérgico. – Ninguém me fará sair, nem nunca alguém me fez sair de um lugar antes de eu ter acabado de dizer o que me proponho dizer. Se essa jovem está ameaçada, será muito melhor que o senhor proceda como um ser humano, em vez de se portar como um simples caixa, suprimindo-lhe a mesada...

     Ouviu-se no gabinete um ruído repentino: Frances Celane acabava de precipitar-se no gabinete.

     Olhou primeiro para o advogado, com os seus olhos negros, que davam a impressão de serem inexpressivos. Estava com o rosto contraído como se fosse chorar.

     – O senhor já fez tudo que era possível, Mr. Mason – disse ela.

     O advogado continuava a olhar carrancudo para o homem sentado por trás da mesa.

     – O senhor é algo mais do que um simples caixa, continuou Mason, ou pelo menos devia sê-lo. Esta jovem devia poder considerá-lo como a um...

     A rapariga agarrou-o pelo braço.

     – Por favor, Mr. Mason, exclamou, por favor! Eu sei que o senhor procura prestar-me um serviço, mas desse modo vai fazer justamente o contrário. Não diga mais nada.

     Mason tomou uma inspiração profunda, voltou-se e saiu do quarto, caminhando em passos rígidos. O mordomo fechou violentamente a porta atrás dele. Mason virou-se para Frances Celane e disse:

     – De todos os homens teimosos, frios e antipáticos, tipo iceberg, que tenho conhecido, este homem é o pior.

     Ela olhou-o e suspirou.

     – Eu sabia, disse ela, que, se intentasse expor-lhe o quanto ele é terrivelmente obstinado, o senhor nunca me acreditaria. Por isso, agradeço a oportunidade para que o senhor o verificasse por si mesmo. Agora compreendo a necessidade de tomar providências legais.

     – Pois bem, disse Mason, áspero, vamos tomá-las.

    

     Perry Mason entrou no seu escritório com a chave que trazia sempre consigo, dirigiu-se para a sua mesa de trabalho e levantou o mata-borrão. Encontrou debaixo dele um sobrescrito que ostentava a nota “confidencial”. Abriu-o e tirou um bilhete de Frank Everly, que dizia:

     

      “Robert Gleason e Frances Celane tiraram uma licença para se casarem no dia 4 do mês passado. O casamento realizou-se no dia 8, em Cloverdale.”

    

     A mensagem estava assinada com as iniciais de Frank.

     Perry Mason contemplou-a durante alguns minutos, depois, no gesto habitual, enfiou os polegares nas cavas do colete e pôs-se a passear pelo gabinete.

     Ao cabo de um momento, dirigiu-se para a biblioteca, tirou de lá o volume da Enciclopédia Legislativa que tratava de testamentos e pôs-se a ler.

     Interrompeu a leitura para ir a uma estante, onde escolheu um volume do Repórter dos Tribunais. Leu o referente aos casos ocorridos nos últimos dias e continuou a consultar livros que ia tirando das prateleiras e que tratavam do mesmo assunto.

     Trabalhava numa concentração fria e silenciosa, com movimentos precisos e sem se cansar, com o olhar duro e fixo e a fisionomia sem expressão.

     Num relógio vizinho, soaram as doze badaladas da meia-noite, mas Perry Mason continuou a trabalhar. As pilhas de livros de Direito, em cima da mesa, iam-se avolumando cada vez mais. De quando em quando, levantava-se, percorria as estantes, escolhendo novos livros, examinando outros casos, estudando com a máxima atenção. Seguidamente, tomava apontamentos, assinalava páginas de certos livros e punha-os de parte.

     À uma hora e quinze, vibrou o telefone.

     O advogado franziu o sobrolho, mas não se deu ao trabalho de atender a chamada.

     O aparelho continuou a retinir insistentemente, de um modo imperativo.

     Mason soltou uma imprecação, voltou-se e agarrou o auscultador.

     – Alô – disse para quem chamava – enganou-se no número?

     Uma voz apagada respondeu:

     – Queira desculpar-me, senhor, é Mr. Mason, o advogado?

     – Sim, respondeu este em voz irritada.

     – Queira esperar um momento, por favor, disse a voz.

     Mason manteve o auscultador junto ao ouvido até que percebeu uns leves sussurros e a voz de Frances Celane:

     – Mr. Mason?

     – Sim.

     – É preciso que venha aqui imediatamente, disse a jovem.

     – Ir aonde e por quê? – perguntou ele. – Que aconteceu?

     – Venha já a minha casa, respondeu ela. – Meu tio acaba de ser assassinado!

     – Acaba de ser o quê?

     – Acaba de ser assassinado, repetiu ela.

     – E já sabem quem é o autor do crime? – perguntou Mason.

     – Aqui, pensam que foram eles, respondeu a jovem em voz muito baixa e disfarçada. –Venha! – e o telefone calou-se ao ser dependurado o auscultador no outro extremo do fio.

     Perry Mason saiu do gabinete sem perder um momento, nem se preocupar em apagar as luzes. O guarda-noturno mandou-lhe o elevador e apenas este chegou ao rés-do-chão, Perry Mason saiu a correr.

     – Ficou a trabalhar até tarde, não é assim, senhor? – disse o empregado.

     Mason sorriu mecanicamente.

     – Não há descanso para os malvados – disse ele.

     Atravessou rapidamente o vestíbulo do edifício e cruzou, quase correndo, a rua na diagonal, em direção a um hotel onde havia uma estação de táxis. Gritou a direção da casa de Norton ao motorista de um táxi e, atirando-se para dentro do carro, ordenou:

     – Carregue no acelerador!

     – Ok, patrão, respondeu o homem batendo com a portinhola.

     Mason sentiu-se atirado de costas contra as almofadas do automóvel, quando este arrancou bruscamente. Mantinha o rosto impassível, embora semicerrasse os olhos pensativamente

     Nem uma vez se lembrou de contemplar os panoramas pelos quais desfilava vertiginosamente.

     Somente quando o táxi entrou no caminho particular que descia para mansão senhorial de Edward Norton, abandonou Mason o seu ar abstrato e começou a interessar-se pelas coisas que o cercavam.

     O grande solar estava profusamente iluminado, jorrando luz de todas as janelas. Brilhavam também os focos do jardim e mais de uma dúzia de automóveis estacionavam defronte da entrada principal.

     Mason despediu o táxi, encaminhou-se para a casa e viu a volumosa silhueta de Arthur Crinston, que se destacava sobre o fundo iluminado do pórtico.

     Crinston desceu apressado os três degraus da escada e chegou-se ao advogado.

     – Mason, disse ele, folgo imenso por ter vindo. Necessito falar-lhe antes que qualquer outra pessoa o faça.

     Tomou o braço do advogado e, atravessando a calçada, levou-o até um relvado onde se ocultaram por trás de uma sebe.

     – Ouça, disse-lhe ao chegarem ali, isto constitui um caso muito sério. É possível que não tenhamos uma noção exata de quanto é sério. Quisera que me prometesse que velará permanentemente por Fran. Haja o que houver, faça tudo para que ela não seja envolvida neste maldito assunto.

     – Acha que vai ser envolvida no caso?

     – Não, se o senhor a ajudar.

     – Quer dizer que de algum modo ela está implicada? – perguntou Mason.

     – Não, não, nada disso! – apressou-se Crinston a assegurar-lhe – Mas ela é uma criatura estranha e tem um temperamento endiabrado. De qualquer forma, deve estar relacionada com o caso e de momento não lhe saberia dizer de que modo. Acontece que, pouco antes da morte, Edward Norton telefonou para a polícia, pedindo que prendessem sua sobrinha; pelo menos, é o que a polícia declara.

     – Para prendê-la? – exclamou Mason.

     – Pois... não digo que seja exatamente isso, explicou Crinston, porque o que o meu amigo queria era chamá-la à ordem de uma forma ou outra. Para falar verdade, não percebo bem o que aconteceu. Veja o senhor: ela andava no Buick do tio. Segundo a polícia, Norton telefonou, dizendo que o carro fora roubado e pediu que o apreendessem onde quer que o encontrassem, e que, ao mesmo tempo, detivessem a pessoa que o guiava. Acrescentou que não se preocupassem com quem quer que fosse essa pessoa.

     – Então isso deve ter acontecido depois que saí daqui e antes de Norton morrer, lembrou Mason.

     Crinston encolheu os ombros.

     – Pelo que diz a polícia, isso deu-se às vinte e três horas e quinze. Tenho cá para mim que tudo isso não passa de um acervo de asneiras. A polícia deve certamente ter-se enganado.

     “Norton tinha os seus defeitos, estava mesmo cheio deles, mas gostava da sobrinha e apreciava o seu modo de ser. Não posso crer que fosse ele quem pediu a sua prisão.”

     – Bem, disse Mason, esqueçamos isto por enquanto. Que me conta o senhor do assassínio? Sabe-se quem o cometeu?

     – Aparentemente, disse Crinston, está tudo esclarecido. Pete Devoe, o motorista, embriagou-se e matou-o com o fim de conseguir dinheiro. Tentou aparentar que alguns ladrões tinham assaltado a casa, mas errou o plano.

     – Como foi morto Norton? – perguntou o advogado.

     – Devoe assentou-lhe um golpe na cabeça com uma bengala. Foi um trabalho imundo. Deve ter-lhe dado uma pancada tremenda.

     – Encontraram a bengala? – indagou Mason.

     – Sim, disse Crinston. Estava onde Devoe a escondera. Ele levou a bengala e guardou-a num armário do seu quarto. Não acreditou que a polícia revistaria tudo, porque contava enganá-la com a história dos ladrões que tinham entrado na casa pelo jardim. Como vê, os investigadores esclareceram o crime muito mais depressa do que se poderia imaginar. É uma história que lhe contarei quando tivermos um pouco mais de tempo. Na realidade, Don Graves quase assistiu ao crime.

     – Faça-me uma rápida exposição – pediu Mason. – Fale depressa.

     Crinston respirou primeiro profundamente, depois apressou-se a falar.

     – Como o senhor sabe, Norton era uma verdadeira coruja. Freqüentemente, ficava no seu escritório até depois da meia-noite. Esta noite tinha uma conferência marcada comigo e eu tinha outra com o juiz municipal Purley. Atrasei-me bastante com a solução do meu assunto com este último, e por isso convenci-o a que me trouxesse aqui no seu automóvel e me esperasse para levar-me a casa, pois precisava falar com Norton apenas uns minutos.

     “Chegamos aqui, tive a minha conferência com Norton, depois saí e reuni-me ao juiz Purley. No momento preciso em que íamos iniciar a marcha, Norton abriu uma janela do primeiro andar e chamou-nos para perguntar-nos se haveria algum inconveniente se levássemos Don conosco. Queria mandar Graves buscar alguns papéis importantes e convinha-lhe que fosse conosco, a fim de ganhar tempo. Com efeito, havia-lhe prometido uns papéis que eu ficara de entregar a Graves, papéis referentes a certos negócios da nossa firma.”

     “Perguntei ao juiz Purley se tinha qualquer objeção a fazer ao pedido, ao que ele respondeu nada obstar. Gritei a Norton que podia mandar Graves, mas este, prevendo o assentimento, antecipou-se, aparecendo no mesmo momento à porta e desceu os degraus, dirigindo-se para o automóvel. Partimos, seguindo o caminho que dá para a avenida.”

     “O senhor conhece-lhe as curvas e os rodeios. Há nele um lugar de onde, virando-se para trás, se consegue ver o escritório de Norton. Pois bem, aconteceu que Graves, ao passar por aquele lugar, se voltou e olhou a casa do patrão. De súbito, deu um grito. Disse-nos que acabava de ver a silhueta de um homem, de pé, no gabinete de Norton, e que esse homem tinha uma bengala na mão e que descarregara com ela uma pancada na cabeça de Norton.”

     “O juiz Purley desviou o carro para um local onde podia dar a volta. Sugeriu que talvez Graves se tivesse enganado, mas este insistiu, afirmando que não havia engano possível. Era uma coisa que vira claramente e obstinou-se em assegurar que tinha razão. À vista disso, o juiz Purley reconduziu o carro para casa, acelerando a marcha quanto pôde.”

     “Assim que chegamos, precipitamo-nos para a porta e subimos a escada que dá para o gabinete. Norton estava caído sobre a escrivaninha, com o crânio mais ou menos despedaçado. Os bolsos estavam virados do avesso. A carteira estava no chão, completamente vazia. Apressamo-nos em avisar a polícia.”

     “Na varanda, encontramos uma janela que apresentava sinais de ter sido arrombada e observamos algumas impressões de pés no terreno exterior. As impressões tinham sido feitas por um pé enorme, e a polícia pensa agora que provavelmente Devoe calçou uns sapatos muito grandes sobre os que levava calçados, com o intento de, com aquelas pegadas, desorientar os investigadores. O senhor inteirar-se-á de outros pormenores à medida que for estudando o caso.”

     Perry Mason ficou a olhá-lo pensativamente, na semi-obscuridade que a sebe projetava sobre ambos.

     – Por que motivo Norton acusaria a sobrinha de lhe ter roubado o automóvel? – perguntou a Crinston.

     – Provavelmente, trata-se de uma má interpretação – respondeu o interpelado. – Não creio que Norton tivesse a menor idéia de que era a sobrinha quem andava no automóvel. Ele sabia apenas que o carro desaparecera e telefonou à polícia. Quando os agentes estavam para iniciar o trabalho nesse sentido, tiveram conhecimento do assassínio. Daí, como é natural, estão investigando e crêem em que o roubo do carro pode estar relacionado com o crime.

     – Sabem que era a sobrinha do morto quem tinha levado o automóvel?

     – Sim, disse Crinston, acreditam que era ela quem saíra no carro.

     – Seja como for, causa estranheza que Norton pedisse a prisão dela, insistiu o advogado.

     – Será como diz, mas a verdade é que o fez – retrucou Crinston. – A menos que a polícia se tivesse enganado quanto ao nome do denunciante, o que é pouco provável, porque tomaram com exatidão o número do carro. Entretanto, é forçoso convir em que Fran é uma pequena original. Nunca se sabe o que ela vai fazer. Por isso lhe peço que fale quanto antes com ela e não deixe que se envolva no caso.

     – O senhor com certeza pode assegurar-me que ela nada tem que ver com o assassínio? – perguntou Mason.

     – Eu sei lá... – exclamou Crinston, conquanto logo acrescentasse: – Não! Não! Claro que não! Não pode ter nada com ele. Tem muito mau gênio, e não duvido que tenham brigado depois que o senhor saiu; mas, de qualquer forma, não teria a força necessária para dar tal pancada. E se ela tivesse um cúmplice... Tolices! São inúteis estas suposições em torno de semelhante absurdo, porquanto, de qualquer lado que se encare o assunto, vê-se logo que não passam de loucuras. Devoe é o único culpado. Agora, o senhor sabe como se deu o assassínio. Ele trará uma infinidade de complicações. Peço-lhe que procure Fran e trate de mantê-la afastada do enredo.

     – Muito bem, disse Mason, reiniciando uma vez mais a sua marcha para casa. – Mas de duas uma: ou o senhor pensa que a jovem interveio no crime, ou oculta-me alguma coisa.

     Crinston apertou o braço de Mason.

     – Quanto à herança, disse ele a Mason, as coisas mudam muito, uma vez morto Norton. O contrato que existia entre mim e Norton permite-me dispor de certo capital, e além disso, há também algumas quantias que pertencem ao fundo depositado, as quais podem ser entregues à rapariga sem dificuldade alguma, segundo o meu modo de ver. E, como o senhor me inspirou grande confiança, desejaria que se encarregasse de tudo, como nosso representante legal. Atue como advogado da casa, ao mesmo tempo que da rapariga, e interponha-se entre ela e o excesso de perguntas da polícia.

     Mason deteve-se, para encarar Crinston.

     – Pois por isso mesmo o senhor pode ser franco comigo – disse. – Segundo presumo, acha que ela não poderia suportar muitas perguntas?

     Crinston atirou o queixo para a frente e os seus olhos buscaram os de Mason, com um olhar tão firme e resoluto como aquele que o advogado fixava nele.

     – É claro que ela não poderá suportar uma aluvião de perguntas! – exclamou. – Terei estado tanto tempo a falar com o senhor, sem lhe ter dado uma idéia do fim que me proponho?

     – E, insistiu Mason, por que não poderá Miss Frances suportar um longo interrogatório? Julga-a implicada no assassínio?

     – A única coisa que lhe posso adiantar, repetiu Crinston obstinadamente, é que ela não resistiria a uma aluvião de perguntas. Em primeiro lugar, porque não tem temperamento apropriado para isso e em segundo lugar, porque se transforma numa verdadeira bomba explosiva, quando perde a paciência. Não é o assassínio em si, mas sim uma série de coincidências que podem vir à luz durante a investigação. Creia-me, procure vê-la e faça o possível para evitar um interrogatório.

     – Perfeitamente, replicou Mason. – Não era minha intenção perturbá-lo, pode estar certo disso. Tudo o que eu queria era saber se o senhor teme que ela se tenha metido em complicações.

     – Pois é claro que esse perigo existe! – exclamou Crinston.

     – Refere-se aos assuntos privados de Frances? – interrogou Mason.

     – Refiro-me a tudo, respondeu Crinston. – Venha. Entremos.

     Um policial que guardava a entrada perguntou quem era Mason.

     – Deixe-o passar, ordenou Crinston. – É o meu advogado, advogado da casa e também advogado pessoal de Frances Celane.

     – Muito bem, disse o agente. – Os senhores que moram aqui podem entrar e andar por onde quiserem, mas compreendam bem que não devem tocar em nada e tão pouco modificar qualquer coisa que possa servir de prova.

     – Naturalmente, disse Crinston. E penetrou na casa, servindo de guia a Mason.

 

     Frances Celane trajava uma saia de desporto, curta, e uma jersey azul-dourado, a qual lhe fazia realçar, por contraste, o loiro cabelo sedoso.

     Estava sentada no seu quarto de dormir, numa fofa poltrona acolchoada, de pernas cruzadas, e com os seus negros olhos fitos no advogado. Em redor, sentia-se flutuar algo que indicava estar ela cautelosamente atenta. Parecia escutar como quem espera algum acontecimento iminente.

     Ressoavam pela enorme casa mil ruídos, que davam a impressão de estar cheia de gente. Numerosos passos se ouviam constantemente nos corredores e nas escadas, como se se tratasse de uma procissão. Rangiam as portas ao serem abertas e estrondeavam, ao serem fechadas. O rumor das conversas ecoava como um murmúrio longínquo.

     Perry Mason olhava Fran Celane fixamente.

     – Continue, pediu ele, e conte-me exatamente o que se passou.

     Ela falou-lhe em voz baixa, monótona e refletida, sem expressão, como alguém que estivesse recitando um monólogo estudado previamente.

     – Não estou muito inteirada do que houve. Tive uma discussão com o tio Edward, depois de o senhor sair. Ele estava impossível. Acabou por exasperar-me. Então respondi-lhe que aquilo não era o que meu pai esperava dele, e que ele estava interpretando falsamente os seus deveres de depositário dos meus bens.

     – Que queria você dizer com isso?

     – Eu entendo que meu pai, ao criar esse depósito, quis somente impedir que tão grande quantia de dinheiro me fizesse perder a cabeça e me tornasse ainda mais extravagante. A intenção dele não era que o tio Edward, com aqueles poderes, me anulasse, transformando-me num autômato.

     – Muito bem, apoiou Mason. – Alguém ouviu essa briga?

     – Suponho que sim, disse ela com desânimo. – Don Graves ouviu tudo; e acredito que outros criados também tenham ouvido alguma coisa. Eu estava furiosa.

     – E pode saber-se o que você faz quando fica furiosa? – perguntou-lhe Mason.

     – Todas as asneiras possíveis, respondeu ela, sem hesitar.

     – Assim, pois, deve ter elevado a voz? – inquiriu ele.

     – O mais alto que pude, foi a resposta de Fran.

     – Não se lembra de ter dito alguma inconveniência, de ter proferido alguma blasfêmia?

     Sempre com a mesma voz inexpressiva, ela respondeu:

     – Naturalmente que blasfemei. Estava irritada, já lhe disse.

     – Perfeitamente. Que aconteceu então?

     – Desci ao andar térreo, resolvida a abandonar a casa e ir-me embora, deixando Edward Norton e todo o seu dinheiro. Só o que eu queria era ver-me longe.

     – Foi nesse momento que se apoderou do carro? – perguntou Mason.

     – Não – disse ela. – Lá chegaremos. Arrumei a minha mala, pronta para ir-me, mas depois decidi o contrário. Pouco a pouco, fui acalmando. Tenho muito mau gênio, mas logo que consigo dominá-lo, sei perceber os meus erros. Compreendi que seria uma grande asneira sair e deixar a casa. Mas precisava respirar desafogadamente. Não me bastava sair e dar um passeiozinho curto. Precisava guiar um automóvel e correr vertiginosamente.

     Perry Mason fez um comentário seco:

     – Sim, compreendo: correr vertiginosamente para refrescar o espírito e dissipar a sua perturbação.

     – Justamente, respondeu ela. – Suponho que o senhor também deve fazer alguma coisa, quando quer varrer do espírito as suas preocupações.

     – Naturalmente, respondeu ele. – Mas sigamos adiante.

     – Que aconteceu depois?

     – Depois? Fui à garagem. O meu Packard estava colocado atrás do Buick e, para tirá-lo, era preciso que primeiro fizesse sair este. Sentei-me, pois, no Buick; ao sair, porém, não vi motivo que me obrigasse a voltar atrás para tirar o Packard.

     – O Buick era o carro de seu tio?

     – Sim.

     – E não consentia que você o usasse?

     – Nunca me proibiu de fazê-lo, mas eu pouco saía com ele. Meu tio cuidava-o como se fosse um filho; gostava de tomar nota exata das milhas que percorria, do óleo e da gasolina que gastava e uma porção de coisas mais; lubrificava-o depois de tantas ou tantas milhas, e mudava o óleo. Em compensação, eu pouco me preocupo com o meu Packard. Faço-o correr até que alguma coisa comece a bater de modo estranho e nessa altura, então, mando-o para a oficina.

     – De modo que você saiu no Buick, sem consentimento de seu tio?

     – Sim, se o senhor encara a coisa desse modo.

     – E para onde foi?

     – Francamente, não sei. Corri à vontade, fazendo as curvas tão depressa quanto podia.

     – Devia ser uma linda velocidade, não?

     – Ah! Disso pode ter a certeza.

     – Quanto tempo esteve fora?

     – Não sei bem ao certo. Cheguei aqui pouco antes da polícia. Devo ter chegado dez ou quinze minutos depois do assassínio.

     – E, enquanto esteve fora, seu tio descobriu o roubo do automóvel, ou melhor, descobriu que o carro não estava no seu lugar, não é?

     – Penso que Devoe lho terá dito.

     – E como o sabia Devoe?

     – Ignoro. É possível que me tenha ouvido sair, e então foi à garagem para ver que carro eu tomara. Nunca me agradou esse Devoe. É um desses tipos grandões e pesados, incapazes de ter uma idéia própria, e que atravessam a vida movendo-se como uma máquina.

     – Deixemos isso de lado, disse Mason. – Em que se baseia para dizer que Devoe avisou seu tio?

     – Não sei. Mas foi nesse momento que meu tio usou o telefone; eu sempre achei que esse homem era um malvado.

     – A que horas telefonou seu tio?

     – Deviam ser vinte e três horas e quinze quando ele chamou a polícia para investigar o roubo do carro. Creio que, no registro da esquadra, está anotado que a chamada foi exatamente às vinte e três horas e catorze minutos.

     – E que horas eram quando você saiu com o carro? – perguntou Mason.

     – Mais ou menos vinte e duas horas e quarenta e cinco minutos, respondeu Fran. – Creio que era isso.

     – Nesse caso, você teve o automóvel em seu poder durante meia hora, antes que seu tio denunciasse o roubo?

     – Sim, creio que foi mais ou menos isso.

     – E a que horas voltou?

     – Pouco depois da meia-noite e quinze minutos. Estive fora uma hora e meia.

     – Há muito tempo que a Polícia chegou?

     – Aproximadamente, hora e meia.

     – Não; o que quero saber é quanto tempo se passou antes de você voltar com o carro?

     – Dez ou quinze minutos, suponho.

     – Perfeitamente. Que disse seu tio à Polícia?

     – Tudo o que sei foi o que eles me quiseram dizer. Um dos detetives falou comigo e perguntou-me se eu conhecia algum motivo pelo qual meu tio tivesse declarado ter sido roubado o automóvel.

     – Muito bem. E de que meio se serviu para denunciá-la?

     – De acordo com o que esse detetive me disse, meu tio telefonou à polícia declarando que era Edward Norton quem estava falando e que ia denunciar um delito. Houve então uma pausa. Segundo parece, interrompeu-se a comunicação ou coisa parecida, mas o agente que atendeu a chamada que, segundo penso, era um sargento, conservou o microfone ao ouvido durante um minuto até que o tio Edward obteve nova ligação e lhe disse que queria avisá-lo de um delito o roubo de um automóvel. Depois, descreveu o carro, dizendo tratar-se de um Buick, tipo sedan, de motor N.º 6.754.093 e matriculado com o número ia-M-i834.

     – Pelo que vejo, você lembra-se bem desses números complicados, advertiu Mason.

     – Sim, disse a jovem, quis-me parecer que teriam importância.

     – Por quê? – perguntou Mason.

     – Francamente não sei por quê; talvez um pressentimento de que seriam importantes.

     – Disse ao detetive que era você quem levara o automóvel?

     – Sim. Contei-lhe exatamente o que aconteceu, que eu tirara o carro pelas vinte e três horas menos quinze minutos e que tinha voltado com ele à meia-noite e quinze minutos, mais ou menos, e que o fizera sem pedir licença a meu tio.

     – E parece-lhe que a polícia aceitou como boa a sua explicação?

     – Oh! Sim! E tanto é assim que suspenderam as investigações a esse respeito. A princípio, tinham pensado que talvez os ladrões haviam roubado o Buick para fugir nele.

     – Mas agora, pelo que vejo, chegaram à conclusão de que não há nenhum ladrão envolvido no caso? – indagou Mason.

     – Assim é, disse ela.

     Mason percorria a habitação de um lado para outro.

     Subitamente, virou-se e fitou-a.

     – Você não me disse toda a verdade a respeito do que aconteceu, afirmou.

     Ela não demonstrou o menor ressentimento ante aquela saída, mas fitou-o com olhos friamente indagadores.

     – Acha alguma coisa vacilante nas minhas explicações? – perguntou; e o seu tom de voz era impessoal e refletido.

     – Não é isso. É qualquer coisa que noto nos seus modos. Repito, não me disse a verdade, da mesma forma que não o fez, quando foi a primeira vez ao meu gabinete.

     – Que quer dizer com isso? – quis ela saber.

     – Refiro-me à sua pressa em casar-se e a outras coisas.

     – Que pretende dizer com isso?

     – Você sabe perfeitamente o que eu pretendo dizer. Você já se casou.

     As cores desapareceram do rosto de Fran que arregalou os olhos pasmados.

     – Quem foi que lhe contou? Falou com algum dos criados?

     A esta pergunta respondeu ele com outra.

     – Os criados estão inteirados disso?

     – Não, disse ela.

     – Então, por que pensou que eu falei com os criados?

     – Não sei, respondeu ela.

     – Confessa então que está casada?

     – Isso não é da sua conta, disse Frances.

     – Como não?! Você quis expor-me um problema. Mentindo, só pode ganhar o que ganharia mentindo ao médico. Ao seu advogado como ao seu médico, você deve dizer toda a verdade. E garanto-lhe que pode confiar em mim. Nunca traí as confidências que os meus clientes me fazem.

     A jovem apertou os lábios e olhou-o fixamente.

     – Que quer que lhe diga?

     – A verdade.

     – Pois bem, já a conhece. Não vejo necessidade de repeti-la.

     – Então está casada?

     – Sim, senhor. Estou.

     – Por que não o disse antes?

     – Porque tínhamos decidido manter o nosso casamento secreto.

     – Muito bem. Mas agora há alguém que conhece o segredo, e esse alguém aproveita-se disso para ameaçá-la.

     – Como veio a sabê-lo?

     – Não se preocupe. Responda-me.

     Ela estendeu o indicador da mão direita e começou a passeá-lo ao longo do braço da poltrona, apalpando as irregularidades do tecido que a forrava.

     – Agora que meu tio morreu, disse ela lentamente, haverá qualquer dificuldade, conforme as cláusulas do testamento, pelo fato de eu estar casada?

     O advogado fitou-a, com os seus olhos frios e indagadores.

     – Creio recordar-me de que, pelas cláusulas do testamento, seu tio tinha o direito de entregar toda a sua fortuna a instituições de caridade, caso você contraísse matrimônio antes dos vinte e cinco anos, foi a sua resposta.

     – Mas, com a morte dele, anula-se o depósito, não?

     – Sim, confirmou o advogado, o depósito fica anulado.

     – Pois então, se ele já não pode exercer o seu direito de opção, que importa que eu esteja casada ou não?

     – É um caso imprevisto; pelo menos essa seria a minha interpretação, nas atuais circunstâncias.

     Ela teve um suspiro de alívio.

     – Portanto, pouco importa que alguém tenha intentado extorquir-me dinheiro, baseando-se nisso, não é?

     Os olhos de Mason contemplaram a jovem como se lhe quisessem arrancar a máscara, para penetrar-lhe no íntimo.

     – Eu, se estivesse no seu lugar, minha cara amiga, não comentaria muito essa particularidade.

     – Por quê? – perguntou ela.

     – Porque, se a polícia esbarrar com essa circunstância, poderá ver nela um excelente motivo para um assassínio.

     – Quer dizer com isso que eu o assassinei?

     – Quero dizer apenas, replicou o advogado obstinadamente e com firmeza, que você teria um excelente motivo para assassinar seu tio.

     – Foi Pete Devoe quem o matou, insistiu ela.

     – Eles poderão dizer que Pete Devoe foi somente um cúmplice, respondeu-lhe Mason.

     – Pois que digam, conformou-se ela, encolhendo os ombros e fitando-o com os seus enigmáticos olhos negros.

     – Bem! Muito bem, disse Mason, em cuja voz se notavam agora vestígios de impaciência. – Deixemos isso de lado. E, se você quisesse ser sincera comigo, hem?

     – Ouça! – exclamou ela, falando, depois, rapidamente. – Vou entrar na posse de uma grande fortuna. Preciso de alguém que defenda os meus direitos. Ouvi falar muito no senhor, e sei que possui uma habilidade maravilhosa. Será pago esplendidamente, por tudo que fizer por mim; por tudo, compreende?

     – Perfeitamente disse ele. Que quer que eu faça por você?

     – Quero que represente os meus interesses, mas somente os meus. Estou disposta a pagar-lhe quarenta mil dólares de honorários e, se o senhor tiver de fazer algum trabalho a mais, para recuperar os fundos depositados, como, por exemplo, recorrer aos tribunais ou coisa semelhante, ainda lhe pagarei mais.

     Ele considerou-a uns momentos, numa análise silenciosa, e disse-lhe:

     – É uma bela quantia que destina à remuneração da pessoa que defenda os seus direitos, tanto mais se essa pessoa não tiver nada a fazer.

     – Que quer dizer? – perguntou ela.

     – Simplesmente que, se você se limitou a tomar o carro de seu tio, sem autorização dele, para dar um passeio e na volta o encontrou assassinado, não vejo motivo para pagar a um advogado quarenta mil dólares para defender os seus direitos.

     Ela torceu os dedos angustiadamente e perguntou:

     – O senhor veio aqui para discutir comigo sobre essas coisas?

     – Não. Fiz apenas um comentário. Quero que você compreenda bem a situação.

     – O senhor compreendeu bem a minha intenção, quando lhe disse que pagaria quarenta mil dólares de honorários, se defendesse os meus direitos? – perguntou ela.

     – Sim, compreendi.

     Ela ergueu-se e, atravessando o quarto em passo ligeiro e nervoso, deixou-se cair numa poltrona de vime, em frente de uma escrivaninha, de onde tirou um papel, no qual escreveu a tinta, assinando-o com a sua firma.

     – Aqui tem, disse ela, um vale pelo qual me comprometo a pagar-lhe quarenta mil dólares, assim que receba a importância da herança que meu pai me deixou. E também faço menção de que, se houver algum litígio a respeito da herança, lhe pagarei maior quantia.

     Mason dobrou o papel e guardou-o no bolso.

     – A polícia interrogou-a minuciosamente? – perguntou.

     – Não, respondeu ela. – Não me incomodaram. Repare que o fato de eu passear no automóvel, enquanto cometiam o assassínio, forneceu-me um álibi. Isto é, eles sabem que eu não me pude inteirar do que se passou aqui no momento do crime.

     – E a que horas se deu o assassínio? – perguntou o advogado.

     – A polícia pôde fixar a hora exata. Foi às vinte e três horas e trinta e três ou trinta e quatro. Como sabe, Mr. Crinston e o juiz Purley iam no carro deste, que estava ansioso para chegar a casa. Ele partiu daqui à pressa, às vinte e três horas e meia. Lembra-se bem, porque olhou o relógio e creio mesmo que fizeram qualquer comentário a respeito de se terem demorado aqui menos de meia hora. Parece que Mr. Crinston tinha prometido ao juiz Purley que, se este o quisesse trazer para cá e levá-lo a casa, não se demoraria mais de meia hora, ao todo. Mr. Crinston tinha uma entrevista marcada com meu tio, para as vinte e três horas em ponto e chegou com sete minutos de atraso. Creio que o senhor teve oportunidade de apreciar o que meu tio deve ter pensado e dito a respeito desses sete minutos. Mr. Crinston apressou o juiz Purley, durante todo o caminho, até aqui.

     – Mesmo assim, disse Mason, não vejo como puderam estabelecer a hora exata do assassínio.

     – Já vai ver: Don Graves viu cometer o crime. Bem. Se o automóvel arrancou da casa às vinte e três horas e meia, podemos calcular em três minutos o tempo necessário para chegar ao ponto do caminho em que Graves olhou para trás e viu as pessoas que davam as bengaladas em meu tio.

     – As pessoas? – perguntou Mason.

     – Pessoa, corrigiu Frances rapidamente.

     – Percebo, concluiu o advogado, com secura.

    

     Perry Mason encontrou Don Graves no momento preciso em que este acabava de ser interrogado pela polícia.

     Graves enxugou o suor da testa e sorriu para o advogado.

     – Em toda a minha vida, nunca me vi em semelhante trapalhada, comentou. – Foi uma sorte não ter estado aqui no momento do crime.

     – Que quer dizer com isso? – perguntou Mason.

     – Que seriam capazes de atirar-me as culpas. Partem a gente aos pedaços e duvidam de tudo o que se diz.

     – Muito lhe agradeceria, pediu Mason, se me quisesse dar um resumo de quanto lhes disse.

     Graves suspirou, com ar cansado.

     – Já contei tantas vezes o acontecido que chego a estar rouco.

     Mason segurou o rapaz pelo braço e, com a cara muito séria, levou-o através da sala de jantar ao jardim de inverno, onde havia algumas cadeiras dispostas em torno de uma mesa de vime.

     – Fuma? – perguntou, oferecendo-lhe um maço de cigarros.

     Graves aceitou com visível prazer.

     Mason acendeu um fósforo e ofereceu-lhe fogo, dizendo:

     – Queira começar.

     – Bem. Não é muito o que tenho para contar-lhe. E é justamente isso o pior do caso. A polícia queria por força que eu lhe dissesse muito mais coisas. A princípio, quando vi que se estava a cometer um assassínio, o juiz Purley pensou que eu tivesse enlouquecido porque, segundo ele, não podia ter visto tudo que dizia ter visto, através da vidraça e agora a polícia reclama por eu não lhes dizer mais, e parece que acreditam que lhes oculto alguma coisa.

     – Então o senhor viu o crime? – perguntou Mason.

     – Assim creio, disse Graves, com ar aborrecido, conquanto me tenham martelado de tal forma que já não sei o que vi.

     Mason não fez comentário algum.

     – Bem, disse Graves soltando duas baforadas de fumo. – Mr. Crinston tinha uma entrevista às vinte e três horas, mas chegou sete minutos atrasado. Mr. Norton estava muito exasperado por diversas coisas havidas com ele, uma das quais era a sua visita, e teve, depois disso, uma pequena desavença com a sobrinha. Mr. Crinston, porém, disse que eu não devia mencionar tal desavença com Fran Celane, salvo o caso de alguém, muito particularmente, me interrogar a esse respeito.

     “Bem, como ia dizendo, Mr. Crinston chegou atrasado à entrevista e o senhor sabe como isso aborrecia Mr. Norton. Ele estava num dos seus momentos de raiva fria, e demonstrou-o na sua atitude glacial, peremptória e excessivamente desagradável.”

     “Ignoro o que eles disseram. Sei apenas que devem ter tido alguma violenta divergência. Para falar com franqueza, creio que Mr. Crinston estava bastante irritado, quando se decidiu a partir. Tinha prometido ao juiz Purley sair o mais tardar às vinte e três horas e meia e eram precisamente vinte e três horas e meia quando saiu do gabinete interior.”

     “Mr. Norton pediu-lhe que ficasse mais um momento, mas Mr. Crinston recusou-se, dizendo-lhe ter-se comprometido a sair com o juiz Purley às vinte e três horas e meia. Mr. Norton fez-lhe então algumas observações sarcásticas a propósito de Crinston o ter feito esperar sete minutos além da hora aprazada, coisa com que não se preocupava, mas que não podia fazer um juiz municipal esperar dez segundos. Era um homem aloucado, bom, mas aloucado.”

     “Um minuto ou dois apenas depois da saída de Mr. Crinston do gabinete, Mr. Norton veio ao outro escritório onde eu me encontrava e ordenou-me que fosse imediatamente à casa de Mr. Crinston, para trazer-lhe uns papéis. Tratava-se de alguns contratos sobre os quais haviam divergido, e que Crinston prometera mandar-lhe. Repentinamente, Mr. Norton decidiu não esperar que o amigo os mandasse, pois necessitava deles. Mandou então que eu acordasse Devoe, que é o motorista, para que me levasse a casa de Crinston, onde eu devia receber os papéis.”

     “Nesse momento, Crinston e Purley estavam precisamente prontos para arrancar. Creio que acabavam de pôr o motor em marcha. Foi quando Mr. Norton se lembrou de que, se eu fosse com Mr. Crinston, ganharia tempo. Tencionava fazer com que Devoe nos seguisse para trazer-me de volta. Enquanto Mr. Crinston reunisse os papéis, daria tempo a que Devoe se vestisse e tirasse o carro da garagem. Mr. Norton entendia que se ganharia tempo indo eu com Mr. Crinston. Não me pareceu que isso adiantaria muito, porquanto Devoe poder-me-ia ter levado em igual espaço de tempo, mas menciono o fato para mostrar-lhe quanto Mr. Norton estava excitado. Estava simplesmente furioso.”

     “Mr. Norton abriu então a janela do seu gabinete e gritou a Mr. Crinston que esperasse um minuto. Não tenho a certeza, mas parece-me que Mr. Crinston desceu do automóvel e deu alguns passos até chegar por baixo da janela, para ouvir o que Mr. Norton lhe dizia. Ouvi o patrão perguntar-lhe se havia algum inconveniente em ir eu com eles e também ouvi Mr. Crinston dizer que ia perguntar ao juiz Purley se tinha qualquer objeção a fazer. Eu tinha a certeza de que o juiz Purley não se oporia e por isso corri escada abaixo. Dado o estado em que se achava Mr. Norton, não queria perder um segundo que fosse.”

     “Crinston já fizera a pergunta ao juiz Purley e permanecia de pé em baixo da janela, falando com Mr. Norton, enquanto eu descia. Mr. Crinston disse-me: ‘Apressa-te, Graves, porque prometi ao juiz Purley que estaríamos prontos para partir às vinte e três horas e meia e ele está impaciente por chegar a casa’. Corri e, de um salto, entrei no automóvel. Creio mesmo que o fiz antes de Mr. Crinston, ou ao mesmo tempo que ele.”

     “O juiz Purley, que já estava com o motor em marcha, assim que nos ouviu fechar as portinholas do carro, arrancou. Eu ia sentado atrás e Mr. Crinston à frente, ao lado do juiz.”

     “O senhor conhece o caminho, o qual dá voltas e mais voltas em torno da colina. Bem, não sei que foi que me levou a virar para trás e olhar para a janela da casa. Talvez não fosse mais do que simples curiosidade ou quem sabe se um pressentimento do que estava acontecendo.”

     “Seja como for, olhava pela vidraça posterior do carro, e, no momento preciso em que este dava a volta de uma curva de onde se podia ver o escritório, vi que nele havia gente e um homem manejando uma bengala.”

     – Quantas pessoas viu o senhor? – perguntou Perry Mason.

     Don Graves não respondeu logo. Depois de profundo suspiro, disse lentamente:

     – Só tenho a certeza de ter visto uma. Isto é, vi uma pessoa que levantava o braço e batia na outra.

     – Tem a certeza disso? – perguntou Mason.

     – Sim, senhor, tenho plena certeza.

     – Não poderia haver outra pessoa presente? – insistiu Mason.

     Don Graves disse, em voz muito baixa:

     – Parece-me que, se eu estivesse no seu lugar, não faria tal pergunta.

     – E porque não? – perguntou Perry Mason, explosivamente.

     – Acho preferível não fixar esse ponto, disse Graves remexendo-se contrariado, porque bem poderia acontecer irmos muito longe por esse caminho e nenhuma vantagem resultaria para o senhor nem para a sua cliente.

     – Parece-me que compreendo – disse Perry Mason, suavemente.

     Graves suspirou, aliviado.

     – O senhor naturalmente achava-se bastante longe da casa? – perguntou Mason.

     – Sim, respondeu Graves. – Estava a uma boa distância.

     Mason contemplou o rapaz perscrutadoramente, mas este desviou o olhar.

     – Que pôde ver claramente? – insistiu Mason.

     Graves respirou profundamente.

     – Pude ver que havia uma pessoa de pé junto a outra, dando-lhe uma forte pancada, disse ele.

     – Viu a outra pessoa cair?

     – Parece-me que não. Como o senhor sabe, eu achava-me bastante longe e só pude ter uma rápida visão da cena, enquanto o carro fazia a curva do caminho.

     – O senhor pode afirmar que só havia duas pessoas no quarto?

     – Não; naturalmente que não, porque não podia ver todo o recinto.

     – O senhor pode assegurar que só viu duas pessoas no quarto? – inquiriu Mason.

     – Foi o que declarei, disse Graves, acrescentando, após breve pausa: – À polícia.

     – Convém que sobre isso nos ponhamos de acordo, Graves, disse Mason, baixando a voz. – Dado o caso em que o senhor tivesse visto algo que lhe indicasse haver outra pessoa no quarto, viu qualquer coisa que lhe permitisse identificar essa pessoa?

     Graves respondeu, com lentidão e manifesta contrariedade:

     – Confidencialmente, Mr. Mason, a gente não se pode fiar nas próprias impressões, quando elas são colhidas num rápido relance. Não é como se tivéssemos uma fotografia da cena. Entretanto, há uma coisa que se gravou no meu espírito e que eu não mencionei... à polícia. Posso dizê-la ao senhor, em confidência: é que, se havia outra pessoa, e se os meus olhos vislumbraram essa pessoa, essa pessoa era seguramente uma mulher.

     Perry Mason quedou-se a contemplar fixamente Don Graves e perguntou:

     – Seria capaz de identificar essa mulher?

     – Como não confessei a ninguém que a vi, disse Graves mansamente, não tenho que fazer qualquer identificação.

     – Mas, disse Mason, teria sido o senhor absolutamente positivo e terminante ao declarar que não vira tal pessoa?

     Graves cruzou o olhar com o de Mason.

     – Procurei dizer a verdade, Mr. Mason, de modo que quando me interrogaram sobre esse ponto, respondi de forma que o inquérito tomasse outro rumo. O senhor compreende que sou obrigado a responder com veracidade às perguntas que me são feitas, quando interrogado como testemunha, se é que sou considerado como tal. E deve compreender também que cada um de nós deve ser, o máximo possível, leal à sua cliente.

     – A quem se refere? – indagou Mason.

     – Refiro-me a Miss Celane.

     – Devo entender, disse Mason muito suavemente e quase que com ominoso acento, que essa lealdade o levaria a protegê-la até mesmo contra uma acusação de assassínio?

     – Não, disse Graves francamente, não chegaria a tanto. Seria, entretanto, motivo suficiente para nos induzir todos a fazermos o possível para evitar que o seu nome figure numa investigação que abortaria, mais cedo ou mais tarde.

     – Que quer dizer com isso? – insistiu o advogado.

     – Quero dizer que, uma vez que Miss Celane não estava em casa, no momento do crime, era-lhe naturalmente impossível achar-se no quarto quando o praticaram.

     – Então, não é certo ter o senhor visto uma mulher no gabinete? – perguntou Mason.

     – Nunca disse semelhante coisa, apressou-se a dizer Graves. Disse apenas que, se havia outra pessoa, quando olhei, essa pessoa devia, provavelmente, ser uma mulher.

     – Por que disse isso? – perguntou o advogado.

     – Ora, disse Graves, é porque se gravou no meu espírito uma impressão mais ou menos confusa de uma cabeça e de uns ombros de mulher, como se tivesse surgido num canto da janela. Mas, naturalmente, não posso ter a certeza de ter visto tal coisa, porque os meus olhos estavam presos ao homem que tinha o braço erguido.

     – Permita-me mais uma pergunta, pediu Mason. – Sabe se a polícia taquigrafou as respostas que o senhor deu às perguntas que lhe fizeram, no interrogatório, a respeito do que viu?

     – Sim, senhor, disse Graves.

     – E tem a certeza de nada ter mencionado a respeito de uma mulher naquele momento?

     – Sim, tenho a certeza.

     Mason disse, lentamente:

     – Compreenda, Graves, que há em tudo qualquer coisa de estranho. Ambos, o senhor e Crinston, me fazem sentir que a minha cliente corre algum perigo e, no entanto, aparentemente ela achava-se nesse momento longe de casa.

     – É verdade, confirmou Graves, arrebatadamente, ela não estava aqui.

     – Então, como pode ela correr qualquer perigo?

     – Não se trata disso, explicou Graves. – É este o ponto a que quero chegar: a minha intenção é protegê-la contra insinuações que possam surgir, porque, como deve compreender, existe um motivo que pode servir de origem a uma acusação.

     – Muito louvável o seu procedimento – disse Mason secamente. – Não desejo obrigá-lo a cometer um perjúrio, Graves, mas o senhor, naturalmente, deve compreender que, se refere a sua história algumas vezes, sem mencionar a mulher, e que essa história é registrada taquigraficamente ou publicada na Imprensa, e depois o tornam a chamar ao estrado das testemunhas e lhe perguntam especificamente se também viu uma mulher ou teve a impressão de que havia ali tal mulher, uma resposta que modificasse a sua primitiva declaração não prejudicaria grandemente a minha cliente. E, por outro lado, isso nada de bom lhe traria.

     A estas palavras, Graves respondeu com dignidade:

     – Estou pronto a fazer alguns sacrifícios para proteger a reputação de Miss Frances Celane.

     – Acresce, prosseguiu Mason, que, quando o senhor amplificar a sua história, incluindo nela uma mulher que estivesse presente naquela sala, eu tratarei de incomodá-lo.

     – E fará bem, disse Graves prontamente.

     – E, disse ainda Mason em tom ameaçador, quando prometo uma coisa, cumpro-a!

     Naquele momento, abriu-se uma porta e um detetive assomou a cabeça, olhou para Mason e pousou os olhos em Graves. Fez um sinal a este:

     – Graves, disse ele, necessitamos outra vez do senhor lá em cima. Há uma ou duas perguntas que nós precisamos fazer-lhe. Quando deu o seu depoimento, o senhor evitou responder a uma delas. Ou, antes, é essa a opinião do chefe, depois de reler as suas declarações.

     Ao ouvir isto, Graves olhou para Mason, com súbita apreensão.

     – O senhor com certeza não verá inconveniente em esclarecer aquelas perguntas, não é verdade? – perguntou o detetive.

     – De modo algum, disse Graves. E encaminhou-se para o jardim de inverno.

     Quando a porta se fechou atrás de Graves, Perry Mason tirou um papel do bolso, desdobrou-o e pôs-se a examiná-lo em atitude reflexiva. Aquele papel era o vale de Frances Celane, pela importância de quarenta mil dólares.

    

     Uma mulher entrou pela porta do jardim de inverno e quedou-se a contemplar Mason que, nesse momento, caminhava de um lado para o outro. Acompanhou-o com os olhos e estudou-lhe todos os gestos.

     Havia na expressão atenta do olhar daquela mulher uma ardente concentração; dir-se-ia um diretor de cena cinematográfica a estudar os méritos e pontos fracos de uma nova estrela.

     Era baixa e cheia de corpo, conquanto não fosse possível classificá-la de gorda. Parecia dotada de forte musculatura e de sólida ossatura; era, enfim, uma mulher de grande robustez, de grande capacidade, senhora de si mesma, deixando transparecer nos olhos a sua potente vitalidade.

     A sua fisionomia era enérgica; o queixo arredondado e amplo, o nariz de narinas dilatadas; os lábios não muito delgados, mas sem curvas, davam à boca o aspecto de uma linha reta distendida sob o nariz e limitada nas extremidades por algumas rugas que desciam daquele. Tinha a fronte alta e os olhos negros e vivos, olhos extremamente luminosos, que brilhavam como enormes contas de azeviche.

     Perry Mason continuou o seu passeio por mais alguns segundos, antes de pressentir a presença da recém-chegada.

     Ao virar-se, divisou o vulto da mulher e estacou bruscamente.

     Examinou-a dos pés à cabeça, com olhar firme, que não deixava escapar nenhuma particularidade daquela aparição feminina.

     – O senhor é o advogado? – perguntou ela.

     – Sim, respondeu. – Sou Perry Mason.

     – Precisava falar-lhe, disse ela.

     – Quem é a senhora?

     – Sou Mrs. Mayfield.

     – Ignoro o que me possa dizer, Mrs. Mayfield. Não poderia ser mais explícita?

     – Vivo aqui.

     – Ah, sim? – exclamou ele, com voz inexpressiva.

     – Sim, senhor; eu e meu marido.

     Mason olhou para aqueles ombros largos, para os braços robustos, para o vestido escuro que cobria aquelas enérgicas linhas.

     – A senhora é a governante? – perguntou.

     – Sim, senhor.

     – E seu marido?

     – Trabalha como jardineiro e, em geral, faz qualquer outro serviço.

     – Compreendo, disse Mason, com ar de poucos amigos. – E de que assunto precisa falar-me?

     Ela deu três passos para se aproximar de Mason e baixando a voz, disse-lhe:

     – De dinheiro.

     Havia qualquer coisa no timbre daquela voz de mulher.

     O advogado, transpondo-lhe os ombros com os olhos, fixou-os na porta da sala. Segurou-a, então, pelo braço e levou-a para o canto mais afastado da peça.

     – Explique-me exatamente qual é o dinheiro que a leva a discutir comigo? – perguntou.

     Em voz baixa, porém enérgica, a mulher disse:

     – O senhor é advogado. Por sua felicidade, não está metido em negócios. Representa Miss Fran Celane. Ela está a ponto de entrar na posse de avultada soma de dinheiro, e, quando isso acontecer, o senhor receberá uma boa soma. Eu preciso de alguns cobres. O senhor dar-me-á um pouco e ela também outro pouco.

     – Poderei saber a troco de que ambos lhe deveremos dar dinheiro?

     – Porque, disse a mulher lentamente, se eu não receber a minha parte, o senhor também não receberá a sua.

     – Diga-me exatamente o que quer dizer com isso.

     – Exatamente o que disse. Se o senhor julga que me pode deixar de lado neste assunto, vai ver o que lhe acontece.

     Mason riu-se com um riso inteiramente inexpressivo.

     – Realmente, Mrs. Mayfield, disse ele, a senhora deve-me uma explicação. Sucederam aqui, esta noite, um sem número de coisas um tanto rapidamente e fui chamado a instâncias de Miss Celane. Ignoro, todavia, quais sejam exatamente as minhas obrigações, conquanto presuma ter eu a incumbência de reclamar a herança. Nem sequer sei se há um testamento.

     – Não se preocupe com isso, disse a mulher. – O meu caso em nada implica com a herança deixada por Mr. Norton. Estou a referir-me ao depósito de dinheiro.

     Mason simulou surpresa, mas os seus olhos observavam a mulher pacientemente e com severidade.

     – Como assim? – exclamou. – Esse assunto já ficou completamente resolvido por uma ata de partilha feita há meses.

     – Miss Celane não precisa de advogado para receber esse dinheiro. Ele dever-lhe-ia ser entregue, por ordem do tribunal, de acordo com as cláusulas do depósito. A mim é que o senhor não me faz tola com esse palavreado, disse a mulher.

     – Afinal de contas diga-me, exatamente, a que se refere – indagou Mason.

     – Refiro-me a que, se ela não tomar muito cuidado, não receberá um vintém dessa fortuna, disse a mulher.

     – E então está a intimar-me, com o fito de que eu a empregue no sentido de tomar as precauções de que Miss Celane precisa, não é? – perguntou Mason, com cautela.

     – Não sei bem por que caminhos me quer levar agora, disse ela, mas acho que já me vai entendendo.

     E sorriu com afetação, pondo as mãos nos avantajados quadris. E, levantando o queixo, encarou o advogado sem pestanejar.

     – Não seria demais, ponderou Mason, que a senhora se explicasse mais claramente.

     – Essa jovem está casada, disse ela.

     – Deveras? – perguntou Mason.

     – Sim! E isso não quer dizer nada?

     – Não, agora não quer dizer nada, afirmou Mason. – No caso de ser verdade quanto me diz, acho que Mr. Norton poderia dar por terminado o depósito, entregando uma pequena soma dele a Miss Celane, e atribuindo o saldo às instituições de caridade. Isso, porém, estava inteiramente à discrição dele. Morreu sem ter feito uso desse direito. Daqui por diante, tudo está terminado.

     – Não tenha assim tanta certeza de que ele não tomou qualquer medida a respeito do depósito, disse a governante.

     – Que fez ele? – perguntou Mason.

     – Suponha, disse a mulher, sem responder diretamente à pergunta, que, entre Fran Celane e o tio tenha havido uma violenta discussão, depois que o senhor se retirou, ontem, à noite. E suponha, também, que ele aproveitasse a ocasião para dizer à jovem que lhe daria cinco mil dólares e entregaria o resto a instituições de caridade? Que responderia a isso?

     – E ele fez isso? – perguntou Mason..

     – Sou eu quem lhe está perguntando o que aconteceria nesse caso.

     – De momento, replicou Mason, nada prova que ele tivesse feito tal coisa, não é assim?

     – Por ora, não – disse ela.

     – Diga-me com exatidão o que quer dizer com isso – insistiu o advogado.

     – Suponha que, de fato, aparece esse documento.

     – Quando lá chegarmos, examinaremos a barreira.

     – Pois bem, disse ela entre dentes, caso o senhor não queira tratar comigo, chegaremos a ela.

     – Acho bastante difícil, disse o advogado. – Vamos, vamos, Mrs. Mayfield, se a senhora pretende fazer qualquer objeção contra Miss Celane, terá de fazê-la de um modo que esteja de acordo com as circunstâncias do caso.

     “As provas, neste caso, patenteiam que Miss Celane se afastou de casa antes das vinte e três horas e não voltou antes de ter chegado à polícia.”

     – Sim, senhor, disse a mulher. – Isto é o que a prova afirma e, para o senhor, será muito melhor que a situação não se modifique.

     – Continuo sem entender aonde a senhora quer chegar.

     – O senhor entenderá, disse a mulher, quando conhecer bem Fran Celane e lhe caia o argueiro dos olhos. Eu não vim aqui para fazer papel de tola e o senhor divertir-se à minha custa com as suas tricas de advogado. Já lhe disse o que queria e não pretendo chegar à estupidez de lhe fazer ameaças.

     – Em outras palavras, disse Mason, o que a senhora quer é dinheiro, não?

     – Sim, senhor.

     – Nada mais justo, disse Mason. – Creio que o dinheiro a todos faz falta.

     – O senhor sabe o que eu quero dizer, replicou ela, e, se quiser mais algum dado, procure informar-se do que Rob Gleason estaria a fazer no momento do crime.

     – Gleason? – disse Mason franzindo os sobrolhos. – Mas se ele não estava nesta casa!

     – Oh! Acha então que ele não estava aqui? – disse a mulher.

     – Não sei, pergunto.

     – Pergunte à sua Frances, disse ela.

     O advogado deu uma brusca volta e, em atitude ameaçadora, fitou a mulher.

     – Ouça, minha cara senhora, disse do modo mais cortês, não sei se isto já aconteceu alguma vez, mas posso afirmar-lhe que se está tornando ré de um crime muito sério. Se tenta atemorizar-me ou assustar Miss Celane, para lhe darmos dinheiro, a fim de pôr termo às suas insinuações, tornar-se-á culpada de crime de extorsão, e, num caso como este, torna-se ainda mais sério.

     Os negros olhos de azeviche contemplaram o advogado com hostilidade feroz, que transluzia nas suas brilhantes pupilas.

     – A mim, o senhor não assusta com essas, disse ela.

     – Pois também devo avisá-la de que a senhora também a mim não assusta, por pouco que seja.

     – Não tento assustar ninguém, por enquanto, disse ela. – Apenas lhe quero dizer certas coisas.

     – Que coisas? – perguntou Mason.

     – Que vou obter algum dinheirinho deste caso ou, do contrário, ninguém verá um vintém sequer!

     – Ninguém? – perguntou ele.

     – Nem o senhor, nem ela.

     – Será uma pena, disse Mason, em tom de mofa.

     – Não acha? E, demais, para rematar a questão, posso encontrar alguém que me queira pagar, caso o senhor não queira ver de que lado da torrada está a manteiga. Uma dessas instituições de caridade, por exemplo.

     – Francamente, disse Mason, não consigo entendê-la. A senhora precisa explicar melhor o que pretende fazer.

     – Não sou menos esperta do que o senhor, Mr. Mason. – replicou ela – Siga em frente e faça o senhor mesmo as suas investigações. Não pense que está tratando com uma pobre mulher ignorante, pelo fato de o senhor não o ser. Converse com Frances Celane, e depois poderá vir falar comigo.

     – Já conversei com Miss Celane! – exclamou Mason.

     A mulher riu um riso grosseiro e amargo.

     – Oh, não! O senhor não conversou. Tudo o que fez foi ouvir o que ela lhe quis dizer. Frances Celane é a criatura mais mentirosa deste mundo. Não se fie no que ela diz. Faça-lhe perguntas. Deixe-a louca e então verá o que ela lhe contará.

     E a mulher voltou-lhe as costas, atravessando o local em rápidas e vigorosas passadas como um verdadeiro feixe de energia.

     Perry Mason contemplou-lhe as amplas espáduas até o momento em que ela lhe desapareceu do campo de visão.

     Tinha os olhos nublados pela meditação.

     Continuava de pé, na mesma posição, quando um homem de penetrantes olhos cinzentos e cabelos brancos, crespos, entrou no jardim de inverno, vindo do exterior. Tinha maneiras graves e dignas, andar compassado, e o rosto placidamente sereno.

     Perry Mason inclinou-se, saudando-o.

     – Mr. Purley, disse ele, já tive a honra de advogar perante o senhor.

     O juiz pousou os seus olhos vivos no advogado e saudou-o do mesmo modo.

     – Perry Mason, se não me engano? Boa noite, Mr. Mason.

     – Quase poderíamos dizer bom-dia, não? Não tarda a amanhecer.

     O juiz Purley franziu o sobrolho.

     – E eu que tinha pressa de chegar a casa, disse ele. – Se soubesse como estou cansado! A polícia já terminou as investigações? – perguntou.

     – Creio que sim. Descobriram o homem que, sem sombra de dúvida, cometeu o crime.

     – Chama-se Devoe, esse tipo?

     – Sim, é esse mesmo.

     – Posso garantir-lhe que fez um trabalho horrível.

     – Não conheço os pormenores do caso, disse Mason, convidando o juiz a que se explicasse.

     O juiz Purley escolheu uma poltrona confortável, acomodou-se nela, deu um suspiro de cansaço e tirou um charuto do bolso. Meticulosamente, cortou-lhe a ponta, aspirou-lhe o perfume e murmurou:

     – Queira perdoar-me, Mr. Mason, mas este é o último que tenho, e nem imagina quão necessário me é.

     – Não se preocupe, disse Mason. – Só fumo cigarros.

     – Pois bem – disse o juiz, falando em tom grave e judicioso, pesando as palavras – o que perdeu o assassino foi o fato de o nosso carro estar à vista da casa e voltarmos diretamente para cá. Ele contava dispor de um intervalo de meia ou uma hora durante a qual tivesse tempo para ocultar a sua participação no crime. Quando ouviu que regressávamos, compreendeu que o seu único recurso era meter-se na cama e fingir-se bêbado. Para isso, arranjou as coisas de modo que o seu hálito cheirasse a whisky, e simulou de modo incrível a embriaguez alcoólica. Afinal de contas, bem pode ser que tivesse bebido o suficiente para ficar realmente bêbado. Um homem pode beber boa quantidade de whisky em pouco tempo.

     Perry Mason sorriu.

     – Efetivamente é assim, senhor juiz, se tiver a bebida à mão.

     O juiz não achou graça na observação. Olhou para Mason numa atitude judicial.

     – Bem, disse ele, esse homem tinha bebidas à vontade.

     – Pelo que ouvi dizer, era o motorista da casa, não?

     – Sim, era.

     – Ele tinha saído para outro lugar? – perguntou Mason. – Mr. Norton não lhe tinha telefonado para que tirasse o automóvel, para ir não sei onde?

     – Se as minhas informações são exatas, disse o juiz Purley, foi o que aconteceu. Norton precisava que o seu secretário lhe fosse buscar uns papéis a casa de Crinston, e o motorista recebeu ordem de ir até lá, para trazer Graves.

     Perry Mason fitou o juiz, com um olhar interessado.

     – Bem, disse ele, vamos ver se podemos reconstruir os acontecimentos. Norton pediu-lhe que permitisse a Graves seguir no seu carro, não é verdade?

     – Assim foi. Ou, antes, creio que ele se dirigiu a Crinston, mas eu, como era natural, ouvi tudo, pois que ele falou da janela.

     – Ok. Partamos então daí. Graves desceu, pois, a escada, para reunir-se aos senhores dois. É razoável supor que foi nesse instante que Norton chamou o motorista. O mais provável é que simplesmente o mandasse vir ao seu gabinete. O homem, portanto, necessitaria de um ou dois minutos para chegar até lá.

     – É certo, disse o juiz Purley, com ar cansado. – Mas queira perdoar-me, Sr. advogado, não vejo que vantagem obteremos com essa reconstrução que pretende fazer.

     – Muito pequena, concordou Mason, quase a dormir. – A única coisa que intento fazer é estabelecer o tempo que os dois homens tiveram para altercar.

     – Que quer dizer? – perguntou o juiz Purley, com súbito interesse.

     – Quero dizer, respondeu Mason, que, se o assassínio foi cometido no momento em que o seu automóvel alcançou o alto da colina e que durante esse tempo Norton sermonou o motorista, tendo com ele uma altercação, essa altercação necessariamente deveria ter tido uma longa duração.

     – Isso não vem ao caso, disse o juiz Purley. – A altercação pode ter começado precisamente naquele momento. De fato, não é razoável supor-se que Norton tivesse mantido Devoe ao seu serviço, se tivessem tido anteriormente outras brigas.

     Os olhos de Mason tiveram um lampejo.

     – Nesse caso, o senhor admite que não houve oportunidade para grande premeditação?

     O juiz Purley considerou-o com ar zombeteiro.

     – Aonde pretende chegar com isso?

     – A parte alguma, respondeu Mason, pouco comunicativo.

     – Aos olhos da lei, disse o juiz Purley, como se estivesse proferindo uma sentença, não há estipulação de tempo determinado para a premeditação. Basta um segundo de premeditação para qualificar um assassínio de primeiro grau.

     – Muito bem. Encaremos então agora o caso sob outro aspecto. Segundo me consta, uma das janelas tinha sido aberta à força, e havia impressões de pés no terreno que ficava abaixo dela. Estas coisas tendem a indicar que um ladrão entrou na casa?

     – Não passa de um ardil. A polícia já o demonstrou.

     – Precisamente, confirmou Mason. – Mas é óbvio que ele gastou algum tempo a preparar a cena. Mas o ponto a que eu quero chegar é este: em nada implica que tudo isso tenha sido feito antes ou depois do assassínio. A polícia está inclinada a crer que as coisas foram feitas depois. Mas é perfeitamente possível que tivessem sido feitas antes.

     O juiz Purley olhou para Mason através da cortina de fumo azulado do charuto, enquanto a testa se lhe enchia de rugas.

     – Nesse caso, disse ele, o fato de Norton ter chamado o motorista nada tem a ver com isso. Devoe teria esperado pela nossa partida, a fim de entrar no gabinete de Norton.

     – Agora, disse Mason assentindo com a cabeça, o senhor começa a penetrar no âmago da questão.

     O juiz Purley estudava a cinza do seu charuto.

     Perry Mason perguntou, em voz muito grave:

     – O senhor esteve na sala em que o crime foi cometido?

     – Sim. A polícia permitiu-me dar uma olhadela ao local. Conhecendo a minha posição, concederam-me todas as facilidades.

     – Então, disse Perry Mason, se não é uma pergunta indiscreta, pode dizer-me se notou ali qualquer coisa de anormal?

     O juiz Purley deixou transparecer que a pergunta lhe causara grande satisfação. Refestelou na poltrona, percutiu a cinza do charuto e, em voz baixa, porém firme, disse:

     – O homem, segundo parece, foi atacado pelas costas, quando estava sentado à mesa. Caiu para a frente, sobre a escrivaninha, sem fazer um único movimento, depois de ter recebido a pancada na cabeça. O auscultador do telefone ainda estava na sua mão esquerda. Sobre a mesa, havia papéis, sobrescritos, creio eu, e uma folha em branco, juntamente com uma apólice de seguro do automóvel roubado.

     – Ah, fez Mason, e, mais rosnando do que falando, perguntou: – O carro roubado estava no seguro?

     – Naturalmente que estava, disse o juiz Purley. – Era de prever que estivesse.

     – Tem a certeza de que a apólice era a do carro roubado? – perguntou Mason.

     – Sim. Eu próprio o verifiquei e a polícia já o havia feito. A apólice garante um Buick número 6754093. O seguro garante todos os prejuízos.

     – Diga-me, Sr. juiz, conheceu Norton em vida?

     – Não, nunca tive oportunidade para isso. Estou muito ligado a Mr. Crinston, que era sócio de Norton e ele falou-me tantas vezes deste e das suas manhas, que é como se o tivesse conhecido. Nunca, porém, lhe fui apresentado. Era difícil entrevistá-lo e nunca tive negócio algum a tratar com ele que me permitisse uma aproximação.

     Mason virou-se subitamente para o juiz:

     – Sr. juiz Purley, Mr. Norton não foi assassinado em conseqüência de uma altercação!

     O juiz Purley desviou o olhar.

     – O senhor volta a insistir sobre o fator tempo? – perguntou. – Acha que não houve tempo para uma disputa?

     – Parcialmente, sim, disse Mason. – Devoe não teve tempo para ir ao escritório, travar uma discussão com o patrão e chegar ao paroxismo de raiva necessário para um assassínio. Por outro lado, os sinais que foram encontrados, feitos com o propósito evidente de desviar as suspeitas para uma parelha de ladrões, indicam que o assassino conhecia de antemão que o motivo lógico para o crime devia ser o roubo.

     O juiz Purley moveu-se, demonstrando inquietação.

     Parecia hesitante entre o desejo de relatar alguma coisa, e a aversão de fazê-lo. Perry Mason observava-o como um falcão que em pleno vôo estuda uma encosta de colina.

     – Bem, disse Purley, permita-me que lhe diga, Sr. jurisconsulto, que já fez um bom número de considerandos. Eu não o deveria declarar, mas uma vez que parece tão bem informado, não vejo porque haja inconveniente em confirmar as suas suspeitas, ou melhor, dito, as suas deduções.

     – O motivo, perguntou Mason, foi então o roubo?

     – Sim, foi o roubo – disse o juiz Purley.

     – De dinheiro?

     – De uma respeitável soma de dinheiro. Mr. Norton levava consigo, por ocasião da sua morte, seguramente uns quarenta mil dólares. O dinheiro estava numa carteira que se achava no bolso interior. Quando descobriram o cadáver, os bolsos tinham sido esvaziados e a carteira desaparecera; isto é, depois de ter sido tirada do bolso interior, fora atirada ao chão, vazia, perto do corpo.

     – Tiraram alguma coisa dos outros bolsos? – perguntou Mason.

     – Sim. Todos estavam virados do avesso.

     – E a polícia conseguiu descobrir o paradeiro desse dinheiro?

     – Isso é um assunto que provavelmente só será revelado mais tarde, Sr. Advogado, disse o juiz. – Não vejo, porém, inconveniente em dizer-lhe confidencialmente que sim, que encontraram. Acharam dois mil dólares em notas, num bolso da calça de Devoe. Essas notas puderam ser identificadas, graças à numeração, como parte da importância que Norton tinha em seu poder, e Devoe cometeu o erro de afirmar, na sua embriaguez, que não tinha a menor idéia de como o dinheiro tinha chegado ali.

     – Averiguou-se o motivo pelo qual Norton tinha em seu poder tão grande soma de dinheiro? – indagou Mason.

     O juiz Purley esteve a ponto de dizer o que sabia, mas conteve-se.

     – Penso, Sr. advogado, disse ele, que já lhe dei todas as informações que lhe podia dar. Afinal de contas, o seu interesse neste assunto, conquanto paralelo com o da polícia, não é, em última análise, idêntico ao dela. Muitas das informações que me foram dadas, o foram confidencialmente, devido à minha situação de magistrado, razão pela qual não me julgo autorizado a divulgá-las levianamente.

     Um clarão divertido luziu nos olhos do advogado, ao observar a atitude cautelosa do magistrado. O juiz Purley estava radiante com a sua extraordinária importância.

     – Tem toda a razão, Sr. juiz – disse Perry Mason. – Devemos compreender e respeitar a sua posição. Não quero que pense que procedi por mera curiosidade. Procuro fazer uma idéia dos acontecimentos. Fui notificado pelos interessados de que me deveria encarregar da herança, e, nessas condições, procuro obter as mais amplas informações.

     – É muito natural, disse o juiz, acenando afirmativamente com a cabeça, e foi por esse motivo que lhe dei muitas das informações recebidas em reserva. Todavia, espero, senhor advogado, que as considerará estritamente confidenciais.

     – Não tenha a menor dúvida, senhor juiz – exclamou Perry Mason, e havia na sua voz uma leve inflexão zombeteira, que levou o juiz a dirigir-lhe um rápido olhar. A fisionomia do advogado permanecia impassível e inocente.

    

     Os raios do Sol penetravam através da janela da sala, e caíam sobre a maciça escrivaninha de Edward Norton.

     Um agente policial estava reclinado numa cadeira, com um cigarro pendente dos lábios e um lápis pousado sobre um caderno de notas. Don Graves, o ativo secretário do morto, folheava alguns documentos.

     O mobiliário da sala permanecia na mesma posição em que se encontrava na noite do crime. Em obediência às ordens da polícia, nenhum objeto devia ser tocado, tanto quanto possível.

     Perry Mason, como advogado representante dos interesses das partes, estava ocupado em fazer um exame minucioso dos vários negócios da vítima.

     Don Graves, de pé, em frente do cofre, virou-se para Perry Mason.

     – Este compartimento do cofre contém, disse, dirigindo-se ao advogado, todos os documentos relativos aos negócios de Crinston e Norton.

     – Muito bem, respondeu Mason. – O senhor deve estar familiarizado com os pormenores desses documentos, não?

     – Oh! Sim, senhor.

     – Em resumo, qual era a situação financeira da sociedade?

     – A sociedade fez alguns negócios infelizes. Operações houve que redundaram num avultado déficit, elevando-se este a pouco mais ou menos um milhão de dólares. Mas, apesar disso, os negócios estavam em bom caminho. Segundo, creio, existem depósitos no valor de oitocentos mil dólares, em vários bancos. Quer que lhe dê as cifras exatas?

     – Acho conveniente, disse Mason. – Quero ter uma idéia precisa do estado financeiro da sociedade.

     Graves tirou um livro do cofre, abriu-o, e leu uma coluna de algarismos.

     – As contas correntes estão em melhor situação do que eu julgava. Acusam um saldo de oitocentos setenta e seis mil quinhentos e quarenta e dois dólares, e trinta cêntimos, segundo o Banco Nacional de Depósitos do Litoral, e duzentos e noventa e três mil novecentos e quatro dólares e cinqüenta cêntimos, no Banco Nacional de Agricultura e Comércio.

     “Há aqui uns apontamentos relativos às perdas da sociedade, que foram debitadas ao Banco Wheeler de Depósitos e Economia na importância de novecentos mil dólares, aos quais se devem acrescentar os juros, creio eu, e, além disso, há um depósito nesse mesmo banco, de setenta e cinco mil dólares.”

     – Que há em relação aos fundos do depósito? – perguntou Mason. – Refiro-me ao depósito em favor de Frances Celane.

     – Este encontra-se em excelente situação, disse Graves. – Existe mais de um milhão de dólares em ações, obrigações e bônus hipotecários. Aqui, neste livro maior, há uma lista de todos eles. Mr. Norton era particularmente cuidadoso com tudo o que se referia às suas obrigações de depositário, e trazia sempre as contas em dia.

     – Existem algumas obrigações pendentes nas contas do depósito? – perguntou Mason.

     – Não, senhor. Não há um único dólar de dívidas. Os lançamentos do ativo estão livres de qualquer obrigação.

     – E, agora, quanto à conta pessoal de Mr. Norton: isto é, prescindindo dos negócios da sociedade Crinston & Norton?

     – A esse respeito, pouco lhe poderei dizer, disse o secretário. – Mr. Norton levava os seus assuntos privados de tal forma que necessitava de pouca contabilidade, e a maior parte dela levava-a na cabeça. Praticamente, todas as transações comerciais figuravam na sociedade Crinston & Norton. Os negócios particulares de Mr. Norton consistiam quase que exclusivamente na compra de ações e obrigações em ouro, as quais guardava num cofre bancário.

     – Sabe se há um testamento? – perguntou o advogado.

     – Sim, senhor, há um testamento. Não sei onde está. Suponho que esteja neste cofre. A meu ver, creio que, em resumo, ele lega tudo a Miss Frances Celane. Como deve saber, Mr. Norton não tinha outros parentes próximos.

     O agente policial, como que por casualidade, disse umas palavras que vieram através da cortina de fumo do cigarro, que o envolvia, e que lhe saía da boca à medida que falava.

     – Que lindo negócio para Miss Celane. Recebe o depósito sem incômodo e ainda por cima os cobres do velho.

     Perry Mason não deu resposta ao comentário e continuou a dirigir-se a Graves.

     – Não sabe o lugar exato onde se acha o testamento? – perguntou. – Crê possível achá-lo?

     – A maior parte dos seus documentos pessoais guardava-os ele neste compartimento do cofre, disse Graves, indicando uma gaveta.

     Perry Mason aproximou-se do cofre, remexeu na gaveta, e dela tirou um maço de papéis. Foi enumerando:

     – Uma apólice de seguro de vida da Previdência. Importância: Quinhentos mil dólares. Beneficiário: a herança.

     – Sim, senhor, disse o secretário. – Encontrará várias apólices de seguro de vida, cujo capital faz parte da herança. Estes seguros foram contraídos para dispor de meios suficientes para pagar os direitos reais da herança, sem necessitar realizar nenhum valor, em caso de qualquer perda.

     – É uma boa idéia, disse o advogado. – Vejo aqui outras apólices. Faça-me o favor de me fazer uma lista delas.

     Apoderou-se depois de um pequeno caderno de notas, encadernado, que encontrou debaixo das apólices.

     – Que vem a ser isto? – perguntou o agente policial.

     Perry Mason examinava-o lentamente, virando-o e revirando-o.

     – Parece ser um registro do automóvel, para assentamento das milhas percorridas.

     Don Graves sorriu.

     – Sim, disse ele, era uma das esquisitices de Mr. Norton. Ele anotava sempre as coisas no mesmo momento: tinha a mania de ter o relógio acertado no segundo exato, levava a conta das milhas que o seu automóvel percorria. Queria conhecer exatamente o número das milhas que conseguia fazer com um galão de gasolina ou de óleo. Presumo que poderia informá-lo até de uma fração de centavo do custo do funcionamento de cada um dos seus carros.

     – Quantos carros possuía ele? – perguntou Mason, manuseando descuidadamente o canhenho de notas.

     – Três: um Buick, um Ford, e um Packard de passeio.

     – O Packard era o que Miss Celane costumava guiar, não? – perguntou o advogado.

     – Sim, era esse, disse Graves, e por isso o senhor não encontrará nenhum dado a respeito dele. Era o que desesperava Mr. Norton. Miss Celane nunca queria apontar as milhas que percorria.

     – Estou vendo, disse Mason. – Mas, no que diz respeito aos outros, está tudo cuidadosamente anotado, não?

     – Sim.

     – Miss Celane habitualmente não guiava os outros?

     Don Graves lançou um olhar rápido e significativo ao advogado.

     – Não, disse ele secamente.

     Perry Mason abriu o caderno de notas, na seção referente ao Buick, e leu de relance as diversas anotações que ali havia sobre as distâncias percorridas. Aparentemente, estava registrada uma série de particularidades relativas a cada milha percorrida, anotações sobre a natureza dos caminhos por onde passara, o lugar onde tinha ido, a velocidade média alcançada, e muitos outros dados que representavam um acervo de minuciosidades que poderiam ser inúteis, salvo para uma pessoa que se vangloriasse de calcular as despesas de um carro até à fração de um centavo.

     Perry Mason simulou um interesse despreocupado por essas anotações, ao folhear o caderno, até que os seus olhos caíram sobre o último apontamento concernente ao Buick e que dizia o seguinte: “15.294,3 milhas. Saio de casa para ir ao Banco. Chego ao Banco com 15.299,5 milhas. Saio do Banco e volto a casa com 15.304,7 milhas. Dou ordem a Devoe para que encha o tanque”.

     Perry Mason fixou a data e verificou que era a mesma do dia da morte de Norton.

     – Vejo por aqui, disse com ar de pouco interesse, que Mr. Norton foi ao banco no dia da sua morte.

     – Sim? – disse Graves.

     – Gostaria de saber se foi então que ele retirou o dinheiro... quero dizer, o dinheiro que levava na carteira.

     – Não o sei informar, senhor. Ignoro-o.

     – Saberá alguém o motivo porque levava consigo tão avultada quantia, em notas? – perguntou o advogado.

     – Não, senhor, replicou Graves, terminantemente.

     – Quase chego a acreditar que ele fosse alvo de uma chantagem ou coisa parecida, disse Mason, cujos pacientes olhos perscrutavam o rosto do secretário.

     Don Graves suportou o olhar sem mudar de expressão e sem pestanejar.

     – Não posso crer em tal coisa.

     Mason anuiu e fez desaparecer o caderno no bolso.

     – Um momento, senhor, disse o agente de polícia. – Não lhe parece que esse caderno deve ficar aqui, com os demais papéis?

     Mason sorriu.

     – Tem razão, disse ele. – É tão parecido com um caderno de notas que trago às vezes comigo, que distraidamente ia a guardá-lo no bolso.

     Entregou o livrete ao secretário, pôs-se de pé e bocejou.

     – Bem, disse ele, parece-me ter já colhido tudo o que necessitava, numa investigação preliminar. Naturalmente, mais tarde, teremos que fazer um inventário de tudo.

     – Se o senhor quiser, poderemos fazer esse inventário agora, disse Graves.

     – Oh! Não me parece necessária tanta pressa. Temos aqui uma infinidade de bagatelas para conferir, e, quando o fizermos, terei provavelmente necessidade da minha própria estenógrafa para tomar algumas notas, quando entrarmos nos pormenores. Detesto esse trabalho de minúcias.

     – E a respeito do testamento? Devemos continuar a procurá-lo? – perguntou Graves.

     – Deixemos isso, por enquanto, respondeu o advogado. – Quero que a minha secretária esteja aqui quando o fizermos, amanhã.

     O representante da polícia atirou fora o cigarro e observou:

     – Como quiserem. Eu estarei sempre aqui.

     – Ótimo, disse Mason, sem entusiasmo. E acendeu um cigarro, saindo do gabinete com ar displicente.

     Desceu pela ampla escadaria, abriu a porta principal, e deteve-se em pleno sol, aspirando o ar fresco da madrugada.

     Quando teve a certeza de que não era observado, desceu os degraus do pórtico, enveredou pelo caminho da garagem, entreabriu a porta, introduziu-se no recinto e encaminhou-se para o Buick que aparecia no primeiro plano, muito bem cuidado, perfeitamente lustrado pelo motorista presentemente detido sob a acusação de um assassínio.

     Perry Mason entrou no carro por trás do volante, acendeu a luz e consultou o contador de percurso. Marcava 15.304,7 milhas.

     O advogado quedou-se um momento a contemplar aqueles números, depois apagou as luzes, saiu do carro, e fechou cautelosamente a portinhola do veículo. Retirou-se da garagem e, tendo-se assegurado de que não fora observado, retrocedeu até à entrada principal da casa.

     Ao penetrar no interior da mansão, vislumbrou a silhueta da governante.

     Os olhos negros e brilhantes da mulher vigiavam-no implacavelmente.

     – Bom-dia – disse-lhe ela.

     – Bom-dia, respondeu Mason.

     Ela baixou ligeiramente o tom da voz, para lhe dizer:

     – Estou à espera de uma resposta, senhor advogado, e necessito dela com urgência.

     – A senhora tê-la-á, disse Mason. – E a propósito, onde está Miss Celane? Ainda continua de pé?

     – Sim, senhor, ainda está de pé. Tomou o café no quarto.

     – Apresente-lhe os meus cumprimentos, disse o advogado, e pergunte-lhe se pode receber-me agora.

     Os olhos negros e brilhantes da governante cravaram-se perscrutadores no rosto do advogado e este suportou o olhar em atitude de resignada paciência.

     – Vou ver, disse ela e dirigiu-se em passos rápidos e provocantes para o quarto da jovem.

     Perry Mason acendeu um cigarro com mão firme, aspirou uma longa fumaça, e dedicou-se ao estudo do fumo que se desprendia da ponta acesa do cigarro. Ouviu finalmente os passos da governante, que se aproximavam dele.

     – Miss Celane manda-lhe dizer que pode recebê-lo enquanto toma o primeiro almoço. Queira ter a bondade de me acompanhar.

     O advogado seguiu a governante ao longo de um corredor, até a uma porta que ela abriu.

     – É aqui, senhor. Queira entrar. E, em voz baixa, acrescentou: – Não se esqueça de que quero uma resposta.

     Perry Mason entrou no quarto, ouvindo bater a porta, violentamente fechada, atrás dele.

     Frances Celane, envolta num negligée de seda, achava-se refastelada numa poltrona estofada. Sobre uma mesinha, colocada ao lado da poltrona, via-se uma bandeja com pratos vazios e uma enorme cafeteira. Celane ostentava na extremidade dos dedos da mão direita uma fumegante taça de café. Os da mão esquerda estavam ocupados com um cigarro.

     Seus olhos negros, que pareciam propositadamente inexpressivos, observavam o advogado. Nas faces, distinguiam-se vestígios de rouge, mas não tinha os lábios pintados. O negligée parecia ter sido escolhido mais por elegância, do que para abrigá-la.

     – Bom-dia, disse Mason relanceando um olhar furtivo ao negligée.

     – Até que afinal pude vir deitar-me, disse ela, encarando-o com grande atenção. Tirou o cigarro da boca, percutindo a cinza no pires de xícara.

     Perry Mason inclinou-se, fazendo o mesmo com o seu cigarro.

     – Presumo, disse ela, que quer dinheiro?

     – Por que pergunta isso? – inquiriu ele.

     – Porque creio que os advogados precisam sempre de dinheiro.

     Ele esboçou, com a mão, um gesto de impaciência.

     – Pois enganou-se, não é o que pretendo, disse ele. – Por que motivo escolheu justamente este momento para tocar nesse assunto?

     – É porque tenho, respondeu ela, algum dinheiro para o senhor.

     Os olhos de Mason tornaram-se friamente cautelosos.

     – Um cheque? – perguntou.

     – Não, respondeu ela. – Dinheiro em numerário. Quer ter a amabilidade de alcançar-me a minha bolsa? Está ali, em cima do toucador.

     Mason foi buscar a bolsa e entregou-lha. Ela abriu-a sem que ele pudesse ver-lhe o conteúdo. Depois retirou um maço de notas.

     – Aqui tem, a título de adiantamento.

     Ele agarrou o dinheiro: notas novas de mil dólares.

     – Muito bem. De onde tirou isto?

     Os olhos de Frances contiveram a tempo a expressão que neles ia fuzilar.

     – O senhor nada tem a ver com isso, disse entre dentes. – O senhor é um advogado pago para me representar e não para me interrogar sobre os meus assuntos particulares.

     Ele conservou-se de pé em atitude provocadora, sorrindo ante a irritação dela.

     – O seu temperamento ainda acabará por metê-la em apuros, observou.

     – Oh! Julga isso! – explodiu ela.

     – Não tenho a menor dúvida a tal respeito. Você está patinando numa pista de gelo muito delgada. Faria bem dominando o seu temperamento e fazendo melhor uso da sua cabeça.

     – Quer ter o incômodo de me explicar o que quer dizer com esse “patinar numa pista de gelo delgada”?

     – Referia-me, disse ele, em tom de voz fria, aos motivos que a possam ter obrigado a evitar responder a perguntas que ontem lhe fiz, e, mais ainda, às que lhe estou fazendo agora.

     – De que se trata?

     – Do fato de você ter tomado o Buick de seu tio sem autorização dele, e, se bem me lembro do que me contou, ter ido por aí além, a toda a velocidade para acalmar os nervos.

     – Sempre faço assim quando me irrito, disse ela, e a voz tornou-se-lhe subitamente cautelosa. – Fico calma depois.

     Ele continuou a sorrir com frieza.

     – Sabe até onde levou o automóvel?

     – Não. Recordo-me de o ter guiado mais ou menos uma hora. Sempre com o pé calcando o acelerador. Corri todo o tempo com a maior velocidade que pude.

     – Foi uma pena, disse ele, que o contador de percurso estivesse desligado.

     Ela fitou-o com os olhos subitamente muito abertos e sombrios.

     – Por que diz isso? – perguntou, falando vagarosamente.

     – Porque o livro de notas de seu tio consigna todas as milhas percorridas pelo Buick.

     – Ah! Sim? – perguntou, prudentemente.

     – Sim, confirmou Mason, secamente. – Ele tinha anotado o percurso do carro do banco a casa, de modo que se verifica que, ao sair de lá marcava 15.299,5 milhas e, ao chegar aqui 15.304,7.

     – Bem, e que importa isso?

     – Quando, hoje de manhã cedo, verifiquei o contador de percurso do Buick – disse Mason, lentamente – marcava 15.304,7 milhas.

     Ela considerou-o com olhos mais enegrecidos ainda pelo pânico. O rosto empalidecera subitamente. Tentou colocar a xícara de café no pires, mas não atinou em fazê-lo. A xícara oscilou por um momento sobre a extremidade da bandeja, e, por fim, estilhaçou-se no chão, enxovalhando o tapete com o conteúdo.

     – Não tinha pensado nisso, não é verdade? – perguntou Mason. Ela continuou a olhá-lo, emudecida, rosto e lábios lívidos. – Agora, disse-lhe Perry Mason suavemente, perdoará provavelmente, a insistência da minha pergunta. De onde tirou esse dinheiro que acaba de dar-me?

     – Obtive-o de meu tio – disse ela pausadamente.

     – Pouco antes de sua morte? – perguntou o advogado.

     – Pouco antes da sua morte.

     – Oh! – murmurou Mason – dubitativamente, antes da sua morte. – A acentuação com que ele destacou a palavra “antes” atemorizou-a.

     – O senhor não vai pensar... – balbuciou.

     Interrompeu-a uma leve pancada na porta, e a entrada da governante. Esta quedou-se a olhá-los.

     – Pareceu-me ter ouvido qualquer coisa cair no chão disse.

     A jovem apontou para os cacos da xícara.

     – Que excelente ouvido tem a senhora, observou Mason ironicamente.

     A governante encarou-o com olhos relampejantes e desconfiados.

     – Graças a Deus, tenho bons ouvidos, disse ela, e também sei usá-los.

     – Até o ponto de escutar às portas? – perguntou o advogado.

     Frances Celane interveio, resolutamente:

     – Deixe-se disso, Mr. Mason. Creio que sou perfeitamente capaz de corrigir os meus criados, quando se torna necessário.

     A governante, de costas voltadas para Mason, inclinou-se, ajuntou os cacos da xícara e colocou-os na bandeja, ao mesmo tempo em que perguntava a Frances Celane:

     – Quer que lhe traga outra xícara?

     – Sim, disse ela, e um pouco mais de café quente.

     A governante retirou a bandeja e saiu do quarto.

     Perry Mason, em tom ríspido, disse:

     – Se tenho de encarregar-me deste caso, você não deverá interferir nos meus atos. Essa mulher estava-nos espreitando. Pela madrugada, ensaiou uma chantagem contra mim.

     Frances Celane simulou intenso interesse.

     – Deveras? – perguntou.

     Perry Mason fitou-a.

     – Sim, tal qual, respondeu, e espero ainda a explicação de como a corrida que fez no Buick, com tão grande velocidade, não ficou registada no contador de milhas?

     Frances Celane saltou da cadeira, e, completamente esquecida da presença do advogado, começou a arrancar as vestes que envolviam o seu elegante corpo.

     – Que está fazendo? – perguntou ele.

     – Vou vestir-me para acrescentar algumas milhas a esse maldito Buick, bradou-lhe ela.

     – E não quererá dizer-me nada a respeito de onde esteve ontem à noite, no momento em que se praticava o crime?

     Ela atirou para longe a última peça do seu vestuário caseiro e vestiu apressadamente um trajo de passeio.

     – Não seja tolo.

     – Poderei ajudá-la mais, se me disser o que aconteceu.

     Ela meneou a cabeça.

     – Retire-se, disse ela simplesmente.

     Perry Mason, com muita dignidade, dirigiu-se para a saída.

     – Muito bem, disse ele, e, com um empurrão abriu a porta.

     A governante estava do outro lado, e encarou-o com um olhar maldoso e luzente, esboçando um sorriso que traduzia um triunfo sardónico. Trazia numa das mãos uma xícara de café e na outra uma cafeteira.

     – Muito obrigada, senhor, disse a Mason, por me ter aberto a porta.

     E entrou no quarto.

 

     George Blackman fazia o possível para apresentar uma aparência impressionante. Penteava o cabelo completamente para trás, desde a sua fronte alta, esforçava-se por falar em voz grave e clamorosa e usava óculos dos quais pendia uma larga fita preta. Mais parecia um deputado ou um banqueiro, do que o que de fato era: um advogado criminalista.

     Apenas uma ligeira inquietação nos seus olhos desmentia aquela aparência de estulta respeitabilidade intelectual, com que tentava impor-se ao público.

     No escritório de Perry Mason, onde o encontramos pela primeira vez, ele, de pé, detrás da mesa, fitava o advogado.

     – Segundo creio, o senhor é o advogado da família, não? – perguntou.

     Os olhos de Perry Mason estavam impassíveis e pacientes.

     – Represento Miss Celane na liquidação do assunto do depósito da sua herança, disse ele, e represento, também, Mr. Arthur Crinston, sócio sobrevivente da sociedade. Falou-se em representar eu o executor testamentário, mas não me parece bem representar ao mesmo tempo o sócio sobrevivente e o executor.

     Blackman esboçou um sorriso que pretendia fosse amável, do qual, porém, não pôde excluir uma ponta de inveja.

     – Que bela sorte tem o senhor, disse, em poder juntar todos esses honorários.

     – É sobre isso que o senhor veio falar? – perguntou Mason, friamente.

     A expressão de Blackman mudou completamente.

     – Venho comunicar-lhe respondeu que represento Peter Devoe, o motorista sobre quem recai a acusação do assassínio.

     – Parece-lhe um bom caso? – perguntou Mason, com indiferença. Blackman estremeceu.

     – O senhor sabe muita coisa sobre ele, não? – perguntou.

     – Para falar-lhe verdade, disse Mason, com estudada despreocupação, nada sei. Estive tão atarefado com outros aspectos do caso que não tive tempo de estudar o assassínio em si.

     – Embusteiro, exclamou Blackman explosivamente.

     Mason encarou-o com dignidade e ressentimento.

     Blackman inclinou-se para diante e deu um soco impressionante sobre a mesa.

     – Olhe, Mason! Não me venha com jogo sujo. Convença-se de que tem pela frente um parceiro que conhece todas as manhas do jogador.

     – E isto significa...? – perguntou Perry Mason.

     – Significa que não lhe vai ser possível refastelar-se comodamente sobre as suas acumulações e engolir esse cálice, deixando toda a sua gente livre de culpa e pena, enquanto despacha Devoe para a forca.

     – Eu não estou a despachar ninguém para a forca.

     Blackman retorceu-se ante o olhar gelado do homem sentado por trás da mesa.

     – Ouça-me, disse ele, vou citar-lhe agora alguns fatos. Não há aqui ninguém que nos possa ouvir. Isto é uma conferência somente entre nós dois. Você conhece o jogo tão bem como eu. Você defende as pessoas acusadas de um crime quando é possível cobrar-lhes bons honorários e o mesmo faço eu. Quando você defende uma pessoa, representa-a e a mais ninguém no mundo. Você é capaz de revolver céus e terra, em defesa dos direitos dos seus clientes.

     – Claro, disse Mason, muito pacientemente. – É esse o dever de todo o advogado.

     – Ótimo. Resta-me então apenas assegurar-lhe que também sei ser fiel aos meus deveres.

     – Vamos adiante, replicou Mason. – Ou você já falou demasiado ou ainda não disse o suficiente. Por enquanto, ainda estou na dúvida.

     – Perfeitamente – respondeu Blackman. – Vou esclarecê-lo. Você está a fazer o que pode para manter essa tal Celane fora do caso. Até agora conseguiu o seu propósito sem muita habilidade. Afinal de contas, tudo o que existe contra Peter Devoe são provas circunstanciais, aliás, bem fracas. Foi encontrado na cama embriagado, e qualquer pessoa poderia ter colocado a bengala no quarto dele e os dois mil dólares no seu bolso.

     – O senhor esquece o depoimento de Don Graves, lembrou Mason. – Ele viu a cena do crime quando este foi cometido. Edward Norton chamara o motorista, quando Crinston se retirou.

     – Eu não esqueço nada, disse Blackman, em tom peremptório, enquanto os seus olhos se cravavam agressivamente no rosto de Mason. – E também não esqueço o fato de que não havia uma mulher metida na cena descrita.

     – Ah, sim? – perguntou Mason cortesmente, mas em tom de surpresa interessada.

     – Sim, disse Blackman, e não se finja surpreendido, porque o senhor deve saber isso tão bem como eu.

     – Saber o quê? – perguntou Mason.

     – Que Don Graves viu uma mulher no gabinete de Norton, no momento em que se cometia o assassínio.

     – Pelo que me consta, Don Graves não disse nada disso no depoimento que fez à polícia, observou Mason.

     – As declarações que ele pode ter feito à polícia não vêm ao caso, disse Blackman. – O que importa é o depoimento que fará no banco das testemunhas.

     Mason olhou para o teto e disse de modo impessoal:

     – Nesse caso, se o depoimento que fizer no banco das testemunhas não coincidir com o primeiro, resultará daí um enfraquecimento das suas declarações, particularmente no que diz respeito à mulher.

     – Não o nego, é possível, anuiu Blackman.

     Fez-se silêncio que durou uns momentos até que Blackman, baixando a voz, proferiu:

     – Estamos então entendidos. Você conhece o meu ponto de vista. Por sua parte, você monopolizou todo o dinheiro que está em jogo neste caso, enquanto que a mim toca defender o pobre diabo que foi escolhido para bode expiatório. Necessito que a família coopere na causa, pois preciso de algum dinheiro. Do contrário, pôr-lhes-ei a calva à mostra.

     – Que entende o senhor por cooperação? – perguntou Mason.

     – Simplesmente, que a família dê à polícia a impressão de que não é vingativa, e que, se Devoe praticou uma má ação, foi por estar bêbado quando agiu, e também que, se o promotor público quiser classificar o delito de homicídio involuntário, se dêem por muito satisfeitos. Além disso, quero participar no bolo.

     – De modo que o senhor quer que Frances Celane fique inteirada de que o senhor vai ser pago para fazer que Peter Devoe se confesse culpado de assassínio involuntário, a fim de evitar um escândalo? É o que me quer insinuar?

     Blackman levantou-se com ponderada dignidade.

     – Vejo, Sr. Advogado, disse ele, que compreendeu perfeitamente as minhas palavras. Creio ter exposto a minha situação de um modo sincero e franco, e parece-me desnecessárío preocupar-me em responder ao resumo que me fez, o qual me parece ótimo e sem subterfúgios.

     Perry Mason empurrou a cadeira para trás, afastando-a da mesa; postou-se em atitude atrevida, de pés afastados, e encarou fixamente Blackman.

     – Não creia, Blackman, exclamou, que vai conseguir algo do que pretende! Estamos sós aqui. Dir-me-á exatamente o que quer e em poucas palavras.

     – Não se faça tolo, respondeu-lhe Blackman. – Você sabe perfeitamente o que eu quero.

     – Diga, sempre. Que quer?

     – Quero dinheiro.

     – E que dará em troca?

     – Em troca, cooperarei com você para que Miss Celane passe despercebida no processo.

     – Até o extremo de fazer Peter Devoe confessar-se culpado de homicídio involuntário?

     – Sim. Poderei consegui-lo.

     – Ele é o autor do crime? – perguntou Perry Mason.

     – Que nos importa a nós isso? – disse Blackman irritado. – Já lhe disse que o farei confessar-se culpado do assassínio.

     – E quanto quer você para isso?

     – Quero cinqüenta mil dólares.

     – Acho muito dinheiro como honorários, notou Mason, em voz quase indiferente.

     – Não, tendo em vista o trabalho que isso me vai dar.

     – Como defensor de Devoe? – perguntou Mason.

     – Como defensor de Frances Celane, se é o que quer obrigar-me a dizer, respondeu-lhe Blackman.

     – Muito bem, replicou Mason. – Como você mesmo disse, ninguém nos pode ouvir, estamos sós. Não há motivos para que não falemos francamente. Peter Devoe matou de fato Edward Norton?

     – Você deve sabê-lo, foi a resposta de Blackman.

     – Por que acha que devo sabê-lo?

     – Por que deve.

     – Pois não sei. E por isso lhe pergunto.

     – Por que nos preocupamos com isso? Não lhe disse já que faria o homem confessar-se culpado?

     – Por cinqüenta mil dólares?

     – Por cinqüenta mil dólares, confirmou Blackman.

     – O senhor está louco. O promotor não aceitará essa alegação. Isto é um caso de assassínio, e, na melhor das hipóteses, será classificado como assassínio em segundo grau.

     – Poderei conseguir a classificação de assassínio involuntário, disse Blackman, se a família quiser ajudar, e se Graves quiser modificar um pouco a sua história.

     – Por que há de Graves modificar a sua história?

     – E por que vamos todos fazer quanto nos propusemos fazer? – perguntou Blackman, dando à voz um tom sarcástico. – Por que vou eu fazer algo? Por que vai você fazer outro tanto? Não estamos metidos no crime. Trabalhamos pelo dinheiro. Don Graves trabalhará também pelo dinheiro.

     Lentamente, Perry Mason deu volta à mesa, em direção a Blackman. Este fitava-o com olhos cobiçosos.

     – Basta dizer que está de acordo, disse Blackman, e não se falará mais nisso.

     Perry Mason deteve-se em frente de Blackman. Fitou-o com um olhar frio e zombeteiro.

     – Você é um imundo traficante! – disse ele. E a voz vibrava-lhe de desprezo.

     Blackman encolheu-se ligeiramente.

     – Diabo! De quem está você falando? – perguntou.

     – De você.

     – Não tem o direito de me falar dessa forma.

     Perry Mason deu rapidamente um passo para a frente:

     – Rábula imundo, continuou Mason, capaz de vender um cliente por uma gorjeta de cinqüenta mil dólares! Vá-se daqui já! Já!

     O rosto de Blackman contraiu-se de surpresa.

     – Como? – disse. – Pensei que aceitaria a minha proposta.

     – Já ouvi a sua proposta! Já ouvi tudo o que tinha a dizer-me.

     Subitamente, Blackman, armando-se de toda a coragem, e brandindo o dedo indicador espetado em frente ao rosto de Mason, exclamou:

     – Você está tão profundamente metido nesta causa que não tem outro remédio senão aceitar a minha proposta, sob pena de, se não o fizer, ouvir algumas verdades desagradáveis!

     Perry Mason agarrou o dedo espetado de Blackman e apertou-o fortemente na sua mão esquerda. Depois, torceu-o para baixo até que o homenzinho soltou um grito de dor.

     Mason, repentinamente largou o dedo indicador do advogado, fazendo que este desse meia volta, agarrou-o pela gola do casaco com a sua enorme e poderosa mão, e impeliu-o violentamente através do escritório. Abriu a porta do gabinete e soltou tão bruscamente Blackman no escritório exterior que este, aos tropeços e trambolhões, foi dar à saída.

     – Rua! – disse ele. – E não me apareça mais por aqui.

     Blackman, com o impulso que recebera, somente pôde parar no meio do outro escritório. Voltou-se então, e, com o rosto lívido de raiva, e os óculos a balouçar na extremidade da fita preta, trovejou:

     – O senhor arrepender-se-á disto, mais de quanto possa ter feito neste mundo!

     – Ande daqui, vamos, ordenou-lhe Mason em voz moderada, porém enérgica, se quer evitar mais dissabores.

     Blackman agarrou apressadamente o trinco da porta, abriu-a o mais depressa que pôde, e mergulhou no corredor.

     Perry Mason conservava-se de pé no umbral da porta do seu gabinete particular, de ombros atirados para trás e pernas abertas, olhando colérico para a porta que se fechara.

     – Que aconteceu? – indagou Della Street, subitamente inquieta.

     – Mandei que esse vigarista imundo desaparecesse daqui, respondeu Mason, conservando o olhar frio preso na porta que dava para o escritório exterior.

     Deu então a volta e encaminhou-se para o seu gabinete particular, enquanto Della Street o contemplava, de olhos arregalados e curiosos.

     A campainha do telefone tilintou no momento em que Mason chegava junto à mesa de trabalho. Agarrou o auscultador e aproximou-o do ouvido. Era Frances Celane.

     – Preciso vê-lo imediatamente, disse.

     – Muito bem, respondeu Mason. – Estou no meu gabinete. Pode vir até cá?

     – Sim, mas preferia que o senhor viesse aqui.

     – Onde está?

     – Perto de casa.

     – Bem, respondeu. – Creio que será melhor você tomar o Buick e vir até cá.

     – Não posso ir no Buick.

     – Por que não? – perguntou Mason.

     – Porque a polícia o selou. Além disso, fecharam à chave a alavanca de mudanças e puseram cadeado nas rodas.

     Perry Mason deu um assobio baixo.

     – Neste caso, disse, é melhor você tomar o Packard e vir o mais depressa possível. Será também conveniente que prepare uma maleta com alguma roupa, mas deve fazê-lo sem chamar muito a atenção.

     – Estarei aí dentro de vinte minutos, respondeu ela, e desligou.

     Perry Mason pôs o chapéu e deteve-se um instante para falar com Della Street, antes de sair do escritório.

     – Miss Celane deve chegar aqui dentro de vinte a vinte e cinco minutos, disse-lhe ele, e creio que já estarei de volta quando ela chegar. Entretanto, se não estiver, leve-a ao meu gabinete particular e feche bem a porta. Não deixe ninguém entrar lá. Compreendeu?

     Della Street pousou nele os olhos perspicazes e inclinou a cabeça, em sinal de afirmação.

     – Aconteceu alguma coisa desagradável? – perguntou.

     Ele anuiu com a cabeça, sorriu e deu-lhe umas palmadinhas no ombro.

     Saiu, desceu pelo elevador e caminhou um quarteirão e meio em direção ao Segundo Banco Nacional de Depósitos do Litoral, onde entrou.

     B. W. Rayburn, vice-presidente do banco, fitou-o com olhar duro e inquiridor.

     – Que quer, Mr. Mason? – perguntou.

     – Sou representante de Miss Frances Celane, beneficiária de um depósito que era administrado por Mr. Edward Norton, explicou Mason. – Represento também Mr. Arthur Crinston, sócio sobrevivente da firma Crinston & Norton.

     – Perfeitamente, disse Mr. Rayburn. – Já o sabia, depois de uma conversa que tive hoje, com Mr. Crinston.

     – No dia do seu falecimento, disse Mason, Mr. Norton foi de sua casa a um banco, voltando deste para aquela. Eu desejaria saber se foi este o Banco a que ele veio ou se ao Nacional de Agricultura e Comércio, onde receio tinha ele outra conta corrente.

     – Não, senhor, disse lentamente Mr. Rayburn, foi aqui que ele veio. Por que o pergunta?

     – Porque, segundo me consta, respondeu Mason, a visita dele teve por fim retirar uma grande soma de dinheiro em notas de mil dólares. Estou muito interessado em saber se existe alguma particularidade especial a respeito dessa operação ou no que se refere às notas acima aludidas.

     – Talvez, disse Rayburn de modo significativo. – Se lhe for possível ser mais explícito, é provável que eu lhe dê as informações que deseja.

     – Mr. Norton não disse o que se propunha, ao pedir aquelas notas? – perguntou o advogado.

     – Não especificou, continuou Rayburn, com o modo reservado de quem está resolvido a responder somente a perguntas concretas.

     Mason tomou uma respiração profunda.

     – Pediu-lhe ele, de antemão, que lhe desse um certo número de notas de mil dólares de numeração seriada?

     – Pediu, respondeu o vice-presidente do Banco.

     – E, depois disso, não lhe pediu que conservasse a anotação dos números dessas cédulas e que procurasse verificar quando elas fossem apresentadas para serem depositadas em qualquer outro banco da cidade?

     – Sim, senhor, embora não o fizesse exatamente nesses termos, disse Rayburn cautelosamente.

     – Não lhe disse Mr. Norton que se propunha, com aquele dinheiro, efetuar um pagamento a um chantagista e que desejava descobrir a identidade da pessoa que o depositasse na sua conta corrente?

     – Não o disse nessas palavras, respondeu o banqueiro.

     – Creio, observou Mason, sorrindo, que já obtive todas as informações que desejava do senhor e que bastam para o meu intento. Muito obrigado, Mr. Rayburn.

     E, despedindo-se, saiu do Banco, deixando atrás de si dois olhos particularmente frios, que contemplavam as suas costas com um olhar de curiosidade.

     Mason voltou ao escritório e fez um sinal a Della Street.

     – Ponha-se em comunicação, pelo telefone, com a agência de Detetives de Drake, disse-lhe, e comunique-lhe que é meu desejo que ele se encarregue pessoalmente de um assunto da maior importância. Diga, também, que eu quero que Drake venha ao meu escritório como se fosse um cliente, que aguarde na sala-de-espera as minhas instruções sobre o que deve fazer. Insista para que, durante o tempo em que estiver esperando, simule ser simplesmente um cliente.

     Ela fitou-o com um olhar no qual transparecia séria preocupação.

     – É tudo? – perguntou.

     – Sim, nada mais.

     – E o senhor não quer que Miss Celane saiba quem é Paul Drake, não?

     – Faça exatamente o que lhe disse, respondeu Mason. – Não quero que ninguém saiba quem é Paul Drake. Para quantos entrarem no escritório, Drake nada mais deve ser do que um cliente que quer consultar-me.

     – Ok – disse ela.

     Depois ficou-se por momentos a contemplá-lo, sem fazer o menor esforço para dissimular a sua solicitude.

     Ele fez-lhe um trejeito tranqüilizador e acrescentou:

     – Não se preocupe. Vai tudo bem.

     – O senhor não se estará metendo nalguma embrulhada?

     – Quero crer que não.

     – E Miss Celane?

     – Oh! Essa já está metida até ao pescoço.

     – E ela sabe que está?

     – Creio que sim.

     – Suponho que o senhor não cairá nalguma armadilha.

     Ele meneou a cabeça, negativamente.

     – Não! Acredito que não. Embora não o possa garantir.

     – E quando o poderá garantir?

     – Não o poderei fazer enquanto Miss Celane não me confessar a verdade.

     – E quando o fará ela?

     – Calculo que quando estiver muito mais assustada do que está agora.

     Della Street franziu o sobrolho e disse rapidamente:

     – E se nós a assustássemos?

     Perry Mason meneou a cabeça e sorriu.

     – Não, murmurou lentamente, quer-me parecer que não será preciso.

 

     Perry Mason enfiou os polegares nas cavas do colete, enquanto passeava de um lado para o outro.

     Frances Celane, aninhada na mesma imensa poltrona de couro preto que ocupara por ocasião da sua primeira visita ao gabinete, contemplava o advogado no seu passeio, com olhos que se moviam constantemente para diante e para trás, seguindo-lhe os passos.

     – Bem, disse ela finalmente, ainda não me perguntou o motivo por que eu queria vê-lo.

     – Nem preciso fazê-lo – respondeu Mason. – Sei melhor do que você o que aconteceu. Tudo o que quero é pensar com rapidez, para antecipar-me aos acontecimentos, a fim de estar preparado para afrontá-los.

     – Estou metida numa embrulhada formidável, não?

     – Quanto a isso, não há a menor dúvida! – exclamou ele, recomeçando o passeio pela sala.

     Houve um momento de silêncio, após o qual Mason se deteve e plantou-se diante dela, olhando-a fixamente.

     – De onde tirou aquele dinheiro que me deu? – perguntou-lhe.

     – Ora essa, exatamente de onde lhe disse. Obtive o dinheiro de meu tio, disse ela, em voz tímida e fraca.

     – Antes ou depois de ele ter morrido? – insistiu Mason.

     – Antes.

     – Quanto tempo?

     – Não sei. Isto é, pouco antes de Mr. Crinston ter chegado.

     – Como foi?

     – Havia quarenta e oito mil dólares, disse ela. – Meu tio deu-me esse dinheiro, dizendo-me que estava arrependido de me ter suspendido a mesada habitual. Disse mais que tinha decidido mudar de procedimento comigo.

     – Acusou-a de se ter deixado extorquir dinheiro antes?

     – Não.

     – E deu-lhe esse dinheiro em notas?

     – Sim.

     – Você tinha-lhe dito que precisava de dinheiro?

     – Disse-lhe simplesmente que precisava de algum dinheiro e que tinha pressa dele.

     – E ele nada lhe disse, a respeito de você estar sendo vítima de uma chantagem?

     – Não.

     – E não é verdade que estava?

     Ela mordeu os lábios e baixou os olhos.

     – Isso faz parte das suas obrigações como meu advogado? – perguntou.

     – Sim, respondeu ele.

     – Pois então, é verdade.

     – Muito bem. Com certeza pela governante, não?

     Miss Celane estremeceu, e ergueu os olhos para ele, com um lampejo de susto.

     – Como soube?

     – Suspeitava, simplesmente. Quanto lhe deu?

     – Dei-lhe todo o dinheiro, menos os dez mil dólares que entreguei ao senhor.

     – Quer isto dizer então que você não conserva em seu poder nenhuma daquelas notas de mil dólares?

     – Assim é.

     – Pois então, agora, ouça-me: é imprescindível que não haja a menor discordância a esse respeito, e que devemos pôr tudo em pratos limpos. Você está metida num embrulho dos diabos, e eu quero ver se a tiro dele. Para isso, é da máxima importância que eu saiba exatamente tudo o que aconteceu com aquele dinheiro. Você não tem nenhuma nota daquelas em seu poder?

     – Nem um pedaço e muito menos uma inteira, disse ela.

     Perry Mason tirou da carteira os dez mil dólares que ela lhe havia dado e pôs-se a folhear as notas.

     – Você com certeza não sabe que estes bilhetes têm numeração seriada e que as várias instituições bancárias da cidade têm uma lista desses números? – perguntou.

     – Não sabia, disse ela numa voz fraca e sem timbre.

     – Bem, pois é assim. As notas de mil dólares não são tão comuns que não atraiam a atenção, quando são depositadas, e, para trocá-las, quase que só é possível fazê-lo levando-as a um banco. Os comerciantes, geralmente, não têm nas suas caixas troco para mil dólares.

     Perry Mason aproximou-se da sua escrivaninha, tirou um envelope comprido, de papel de linho grosso, no qual fechou os dez mil dólares, desenroscou a tampa da caneta e escreveu o endereço de Carl S. Belknap, 3298, 15.ª rua, Denver, Colorado, feito o que, apertou um botão que havia ao lado da mesa, a fim de chamar a secretária.

     Quando Della Street abriu a porta, Perry Mason atirou-lhe o envelope com um gesto descuidado.

     – Sele e mande pôr no correio. Registrada.

     Ela leu o endereço.

     – Não sabia que tínhamos correspondência com um Sr. Belknap.

     – Temos agora, respondeu-lhe Mason. – Que vá registrada.

     Ela fez com a cabeça um gesto de anuência, ao mesmo tempo em que dardejava uma olhadela rápida e investigadora sobre Frances Celane, desaparecendo em seguida pela porta do escritório exterior.

     Perry Mason voltou-se para Frances.

     – Ótimo, disse. Este envelope permanecerá no correio durante os próximos dias. O mais provável é que me seja devolvido. Seja como for, nesse meio tempo, ninguém o encontrará em meu poder. Agora, diga-me, por que não contou à polícia, antes de mais nada, o que me disse a mim?

     Os olhos da jovem fuzilaram subitamente em negros lampejos.

     – Ninguém tem nada que ver com isso – exclamou. – Eu contratei-o como advogado, para defender os meus interesses.

     – Não pense que vai poder, por isso, plantar-se diante de mim, dando-me ordens para que faça isso e não faça aquilo.

     Ele deu um passo em direção à agressiva jovem e disse:

     – Você andaria bem se dominasse esse seu mau gênio, porque, se o não fizer, irá direitinho para a forca, com um nó corredio no pescoço. Já pensou alguma vez de como lhe seria agradável ver-se na forca?

     Frances Celane pôs-se de pé e recuou a mão, como para dar uma bofetada no advogado.

     – Vê-se bem que a deixaram atravessar a vida como um barril de pólvora, com a mecha sempre acesa, continuou Perry Mason. – Mas agora você acha-se numa situação que não lhe permite dirigir os acontecimentos a seu bel-prazer. É tão certo que, dentro das próximas quarenta e oito horas, você vai ser presa, como é certo que está de pé diante de mim; e as provas que se estão acumulando contra você estão lhe criando uma situação tão séria que eu próprio não sei se conseguirei tirá-la desse buraco.

     A intensa surpresa que se manifestou nos olhos negros da jovem dissipou por completo a sua raiva.

     – Presa? Vão prender-me, a mim?

     – Sim, respondeu Mason. – Presa por assassínio.

     – Já prenderam Devoe por esse assassínio. E já se sabe que foi ele quem matou meu tio.

     – Devoe não assassinou ninguém, afirmou Perry Mason.

     – É tão criminoso como eu. Ou, pelo menos, criminoso ou não, não existe qualquer prova concreta contra ele. Tem um advogado que sabe onde tem o nariz e que está disposto a arrastá-la para dentro da perlenga.

     – Como sabe isso?

     – Porque ele esteve aqui, no meu escritório, há menos de uma hora, dizendo-me isso mesmo.

     Frances Celane deixou-se cair na poltrona e ficou olhando Mason, sem que nos olhos transparecessem vestígios de mau humor, pois que se mostravam sombrios e patéticos.

     – Que queria ele? – perguntou.

     – Dinheiro, respondeu Mason.

     Na fisionomia da jovem, notaram-se sinais de alívio.

     – Muito bem. Dar-lhe-emos o que quiser.

     – Não lhe daremos nada disse Mason.

     – Por quê?

     – Porque ele ameaçou-a de morte. Conquanto não tenha a certeza de que você esteja metida nessa embrulhada, ele nutre algumas desconfianças. O que quer é inteirar-se, o que teria feito se eu tivesse consentido em tratar com ele. Deve ter ouvido rosnar qualquer coisa, seja lá onde for, e quer tirar a coisa a limpo. Bastava que eu lhe desse algum dinheiro, para que as suas suspeitas se confirmassem.

     – Mas então que foi que o senhor fez? – perguntou ela, em voz amedrontada.

     – Corri-o do meu gabinete.

     – Ele sabe muita coisa?

     – Não muita, mas suspeita uma boa parte.

     – Estou com medo, disse ela, em voz que era quase um gemido.

     – É justificado o seu medo. Por isso mesmo, preciso de conhecer toda a verdade. Diga-me exatamente o que aconteceu, quando seu tio foi assassinado.

     Ela tomou uma profunda inspiração e falou, em voz monótona:

     – Eu estava em casa. Tivera uma discussão com ele. Portou-se muito asperamente comigo, perdi as estribeiras e disse-lhe uma enfiada de desaforos.

     – É esse o seu feitio – disse o advogado, com dureza.

     – É, é o meu defeito, confessou ela, em voz inexpressiva.

     Houve um momento de silêncio.

     – Continue, disse o advogado.

     – Ele tirou dinheiro da carteira, não todo o que tinha, pois deixou algumas notas lá, não sei ao certo quanto, e empurrou para o meu lado o que tinha separado, mandando que eu lhe pegasse. Disse-me que tivera a intenção de cortar-me a mesada, para ver se assim me fazia criar juízo, mas que chegara à conclusão de que, comigo, era inútil. Acrescentou que, afinal de contas, o dinheiro era meu e, que, se eu quisesse esbanjá-lo, tanto pior para mim.

     – E você pegou então no dinheiro?

     – Sim, naturalmente.

     – E depois, que aconteceu?

     – Depois, dei o dinheiro a Mrs. Mayfield, menos os dez mil dólares que entreguei ao senhor.

     – E por que fez isso?

     – Porque ela tinha descoberto que eu me casara, e ameaçou-me de ir contar tudo a meu tio.

     – Foi antes ou depois de Crinston ter chegado a casa?

     – O senhor refere-se ao momento em que dei o dinheiro a ela?

     – Sim.

     – Foi depois.

     – Alguém viu quando você lhe entregou o dinheiro?

     – Rob Gleason.

     Perry Mason pôs-se a assobiar.

     – Com que então, Gleason estava lá, hem? – perguntou Mason.

     – Sim, Gleason estava lá. Foi por isso que declarei que não estava em casa.

     – Muito bem, disse Mason severamente, diga-me mais alguma coisa a esse respeito.

     – O senhor sabe que somos casados. Rob chegou no seu carro, um Chevrolet. Há uma porta exterior que dá para o meu quarto; ele entrou por ali. Estava muito aborrecido por causa de Mrs. Mayfield e também com receio de que meu tio viesse a saber do nosso casamento. Disse-lhe que falara com meu tio e que tudo ia bem.

     “Enquanto estávamos a conversar, chegou Mrs. Mayfield e exigiu-nos dinheiro. Ela escutara atrás da porta, e assim soube que meu tio me dera uma boa quantia. Mas não sabia quanto.”

     “Disse-lhe então que ia dar-lhe tudo o que tinha. Abri a bolsa e deixei que ela levasse o que sobrava. Antes, porém, separara dez notas de mil dólares, porque imaginei que o senhor precisaria de algum dinheiro, e quis reservar-lhe aquela quantia. Porque eu só precisava de dinheiro para o senhor e para ela. Assim, os meus negócios ficavam arrumados, o senhor defenderia os meus interesses e Mrs. Mayfield conservar-se-ia calada. Pensei que, por essa forma, pudéssemos ficar tranqüilos por algum tempo.”

     – E foi então que Crinston chegou? – perguntou Mason.

     – Sim, chegou pouco antes, ou, mais exatamente, chegou no momento em que eu saía do escritório de meu tio.

     – E Graves, o secretário, permaneceu no escritório exterior durante todo esse tempo?

     – Sim, esteve ali todo esse tempo, e deve ter ouvido perfeitamente tudo o que aconteceu. Ele sabe muito mais coisas do que declarou. Sabe uma porção de coisas a respeito dos negócios de meu tio, e tenho a impressão de que sabe algo sobre o que Mrs. Mayfield estava fazendo.

     – Muito bem. Que mais aconteceu?

     – Vai ver. Quando Mrs. Mayfield saiu dos meus aposentos, abri a porta exterior e sentei-me, com Rob, nos degraus do pórtico. Nesse momento, notamos certa agitação e ouvi passos de alguém que corria para a frente da casa, gritando, parecendo-me que se dizia qualquer coisa a respeito de que meu tio fora assassinado. Compreendi logo que não convinha que Rob ficasse ali; por isso disse-lhe que tomasse o seu carro e partisse.

     – E você foi com ele?

     – Sim, saí com ele.

     – E por que fez isso?

     – Porque não queria ficar ali.

     – Qual a razão?

     – Pensei que assim prepararia um álibi para Rob.

     – E como fizeram para sair da chácara?

     – Há um caminho pelo lado de fora, que passa por uma ruazinha estreita, no fundo da casa e que vai dar à estrada. Fomos por ele e, segundo creio, ninguém nos ouviu.

     – Muito bem. Que aconteceu depois?

     – Depois, voltei para casa; isto é, fiz Rob levar-me a um lugar pouco distante da casa, e dali dei a volta. Introduzi-me sorrateiramente no meu quarto de dormir e falei então com Graves. Soube por ele que meu tio denunciara o roubo do Buick, e que todos pensavam que eu o levara.

     “Imediatamente, pareceu-me que aquilo seria um álibi para mim, com a vantagem de deixar Rob fora do caso, razão pela qual declarei que saíra no Buick, coisa que ninguém pôs em dúvida.”

     – Bem. Que mais?

     – O senhor sabe o resto. Todos acreditaram que eu tinha saído no Buick, e pensei que tudo estivesse perfeitamente bem, até o momento em que o senhor me falou a respeito do contador de percurso, que não registava o que eu dizia ter feito. Quis sair nele, para que o contador acusasse algumas milhas mais, mas encontrei na garagem um policial que se riu de mim e me disse que o Buick não estava à minha disposição, porque precisavam dele como prova material.

     – Já estava selado, nesse momento?

     – Sim. Já tinham posto uma corrente com cadeado no eixo dianteiro, passando pelos raios das rodas, além de terem atado a alavanca das velocidades.

     – Aí está um trabalho bem feito – disse Mason secamente.

     Ela nada respondeu.

     Depois de um momento, Mason recomeçou o seu pausado passeio pelo pavimento do quarto e a jovem contemplou-o com os seus olhos sombrios e ansiosos, a cabeça imóvel, mas acompanhando-o com a vista, de um lado para o outro, na sua marcha rítmica.

     – Você, disse ele finalmente, vai ter uma crise de nervos. Conheço um médico da minha absoluta confiança. Ele vai examiná-la e prescrever-lhe o internamento num sanatório.

     – E que nos adiantará isso?

     – Adiantará que, por essa forma, poderei dispor de algum tempo, respondeu Mason.

     – Não me tornarei mais suspeita, quando sair de lá?

     – Você não pode ser mais suspeita do que já é. Desde o momento em que selaram o Buick, podemos ter a certeza de que estão a examinar o caso sob outro ponto de vista. Tentei escamotear o caderno de notas em que estavam anotadas as milhas e metê-lo no bolso, de um modo que parecesse natural, mas o policial que estava presente não se deixou enganar. Chamou-me a atenção para o meu descuido e não tive remédio senão entregar-lhe o livrete.

     – O senhor já sabia do assunto?

     – Tinha as minhas suspeitas.

     – E que motivo o levou a suspeitar?

     – Porque tinha a certeza de que você mentia.

     Os olhos dela relampejaram.

     – Não me fale desse modo, disse.

     Ele limitou-se a fazer-lhe um trejeito. Passado um momento, o fulgor colérico dos olhos da jovem desaparecera.

     – Não se preocupe, pensando que está irremediavelmente enredada nesse assunto do carro, disse-lhe ele. – Acharemos um meio de tirá-la daí.

     – O pior é que poderão meter Rob na embrulhada. Quando souberem que ele estava lá em casa, as coisas complicar-se-ão muito, porque havia grande inimizade entre Rob e meu tio.

     – Rob viu seu tio na noite do assassínio? – perguntou Mason.

     Ela fez a princípio um movimento com a cabeça, para negar; mas depois de breve hesitação, respondeu:

     – Sim, viu-o.

     – E o motivo que lhe fez mudar agora mesmo a sua versão do caso foi o ter-se lembrado de que alguém sabe que Rob viu seu tio, não foi? E esse alguém é Don Graves, não?

     Ela confirmou com a cabeça.

     Perry Mason dirigiu-se para a porta do escritório.

     – Della, disse ele, chame o Dr. Prayton ao telefone, imediatamente. Diga à enfermeira dele que se trata de um caso de importância vital, assunto de vida ou de morte. Diga a Prayton que venha em pessoa ao aparelho, sem perder um minuto.

     – Sim, senhor. Acha-se aqui um tal Paul Drake. Está na sala de espera e diz que quer vê-lo para um assunto particular. Não me quis dizer do que se trata.

     – Muito bem. Diga-lhe que espere. – E voltou para o escritório.

     – Agora, disse à jovem, você vai simular um ataque de nervos. Por esse motivo, será levada a uma casa de saúde, com um nome suposto. Naturalmente, a polícia, mais cedo ou mais tarde, acabará por descobri-la. Para mim, convém-me que seja o mais tarde possível. Não deixe ninguém suspeitar onde está, não demonstre interesse injustificável pelas notícias referentes ao seu caso, e, haja o que houver, domine o seu temperamento.

     Ela olhou-o de modo interrogativo.

     – Como poderei saber se posso confiar no senhor? – perguntou.

     Ele respondeu ao olhar dela com um olhar firme.

     – Isso é uma das coisas em que você poderá empregar as suas próprias reflexões, disse. – Mas não esqueça que tudo pode variar muito, segundo o seu procedimento.

     – Muito bem! – exclamou ela. – Estou disposta a confiar no senhor.

     Ele aquiesceu.

     – À vista disso, vou dar ordem para que venha a ambulância, antes mesmo do Dr. Prayton chegar aqui.

    

     Paul Drake não correspondia, no seu aspecto, à concepção que o público, em geral, tem do investigador particular, sendo bem possível que daí proviessem os seus triunfos.

     Era alto, nariz avantajado, que se projetava para a frente, em atitude de quem fareja. Tinha os olhos reluzentes, ostentando na fisionomia uma expressão de perpétuo bom-humor.

     Nada o fazia apressar-se. Assassínios, na sua vida, eram como o pão nosso de cada dia; as aventuras amorosas pululavam como os automóveis nas ruas, e os clientes histéricos formavam parte da rotina diária.

     Achava-se agora sentado na imensa poltrona de couro preto e de alto espaldar, já nossa conhecida, no gabinete de Perry Mason. Sentara-se atravessado, de modo que as suas compridas pernas repousavam sobre o braço direito da poltrona.

     Fumegava-lhe na boca um cigarro que pendia oscilante na comissura dos lábios.

     Perry Mason, acomodado detrás da sua grande mesa de trabalho, considerava o detetive com olhos pacientes, que o examinavam com toda a calma. Tinha a aparência de um boxeur veterano a descansar no ângulo do tablado, à espera de que o gongo soasse. Dir-se-ia um homem prestes a abandonar o repouso e saltar da cadeira, para empreender uma luta rápida com a ferocidade de um tigre.

     – Bem, disse Drake, qual é a fera que o quer devorar?

     – Tempos atrás, respondeu Perry Mason, você falou-me a respeito de algumas sombras misteriosas.

     Paul Drake fumava placidamente o seu cigarro. Fitava Perry Mason com expressão divertida.

     – Você tem uma memória de anjo, disse ele. – Há que tempo lhe falei nisso.

     – Não importa em que tempo fosse. Vamos ocupar-nos delas.

     – Há alguém que o esteja a incomodar? – perguntou Drake.

     – Não. Mas é bem possível que precise utilizá-las.

     – Explique-me o assunto.

     Paul Drake tirou o cigarro da boca, apagou-o, e atirou-o para o cinzeiro.

     – Isto é um ardil que empregamos no nosso trabalho de detetives, disse. – Habitualmente, não falamos sobre isso com ninguém e menos ainda com estranhos à profissão. É um recurso psicológico de terceiro grau. Funda-se na presunção de que um homem que tem um segredo na mente e o quer ocultar, acaba por ficar com o sistema nervoso arrebentado.

     – E como funciona essa armadilha? – perguntou Mason.

     – Vai ver. Imagine que você está a trabalhar num caso judicial e supõe que uma pessoa tenha conhecimento de qualquer coisa, não um fato vulgar, sem importância, mas de um segredo criminoso que procura ocultar. Há dois ou três meios para acercar-se dele, e fazê-lo dar à língua. Um destes meios é o velho sistema de lhe atravessar no caminho uma mulher atraente, que o seduza, e faça que ele vomite o segredo. Outro meio é recorrer a um homem que se faça seu amigo e lhe provoque as confidências.

     “Geralmente, qualquer destes meios dá bom resultado. Há casos, porém, em que o trabalho não rende. Encontram-se tipos que não se deixam seduzir por mulheres, e, se tal acontece, não há forças humanas que os faça falar, sobretudo se entram a suspeitar que o amigo ou a encantadora criatura trabalham por conta de outros. Nesses casos, impõem-se as sombras misteriosas. São precisos dois homens para esse jogo. Primeiro, o homem que estabelece o contato com o suspeito, embora não seja capaz de penetrar nos pensamentos da vítima, nem de fazê-la falar.”

     “Escolhe-se então o momento oportuno e o lugar, enquanto a sombra misteriosa se move em torno da futura presa. O homem do contato acende, nesse momento, o farol para dar o sinal.”

     “Naturalmente, como você deve compreender, fazer de sombra misteriosa é um trabalho muito difícil. O público faz uma idéia errada do trabalho de uma sombra e do seu modo de operar. Pensa que a sombra vive a disfarçar-se, escondendo-se atrás das portas ou dos postes de telefone, e outras tolices desse jaez. São coisas que o povo mete na cabeça, à força de ver cinema e ler livros policiais escritos por idiotas que nada entendem do trabalho de detetive.”

     “Na realidade, a verdadeira sombra é um tipo insinuante que nunca usa um disfarce. Deve ser um indivíduo vulgar o tipo do espectador inocente. Aconteça o que acontecer, ele nunca deverá chamar a atenção sobre si, e tão pouco cair na asneira de se esconder. Pelo contrário, deve aparecer sempre como suspeito sob um aspecto tão vulgar, que se torne para ele como um dos elementos indiferentes do cenário, ao qual nem preste atenção, tal a falta de personalidade.”

     – Já conheço tudo isso, embora vagamente, disse Perry Mason. – O que desejo saber é, de um modo concreto, como se põe em marcha esse jogo das sombras.

     – A coisa é simples. É como todas as outras coisas boas quando a gente se dá ao trabalho de analisá-las. O sujeito que faz de sombra misteriosa tem que proceder, simplesmente, de tal modo que o suspeito imagine que assim procederia um espião que estivesse a vigiá-lo. Em outras palavras, procederá como um espião vulgar, um tanto inexperiente. Praticará todos os atos que o suspeito naturalmente espera que pratique um detetive que o esteja perseguindo: esconder-se atrás dos postes de telefone, dissimular-se nos portais, enfim, todas as tolices possíveis.

     – De modo que o suspeito se dê conta de que o vigiam, não? – concluiu Perry Mason.

     – Precisamente – confirmou Drake, tirando outro cigarro da carteira. – Como você vê, o homem do contato já terá estabelecido certas relações de camaradagem com o suspeito. Este, entretanto, pode ser um melro pouco disposto a cantar, para o homem de contato, a melodia que ele deseja, e é então o momento em que este deve puxar pelo rabo a “sombra” que estava invisível, atrás deles. O suspeito até então ignorava que estava sendo seguido, porque a sombra fizera trabalho limpo. Mas, agora, chegado o momento oportuno, o homem do contato dá o sinal e então a “sombra” entra em cena, procedendo desastradamente. Começa a esconder-se por trás dos postes, a enfiar disfarces, e a cometer mil e uma asneiras de amador bisonho, que fariam baquear as verdadeiras finalidades de uma “sombra” avisada. O suspeito, naturalmente, não tarda a perceber que é seguido.

     “Nesse momento, é uma comédia ver-se as atribulações de um homem que percebe que é seguido, sobretudo se esse homem não está familiarizado com a brincadeira. Apenas se dá conta que lhe estão na peugada começa a ficar nervoso.”

     “Habitualmente, a primeira coisa que faz é acelerar o passo, e olhar para trás, por cima do ombro. O homem do contato, naturalmente, já pôs em evidência o jogo da sombra misteriosa, durante os seus passeios com o suspeito, e fez o que pôde para impressionar o máximo possível o infeliz, retardando o passo e detendo-o sob qualquer pretexto.”

     “Desse modo, o suspeito perde a serenidade, fica excitado e esquece toda a prudência. Dentro em pouco, em noventa e nove por cento dos casos, ele vira-se para o homem do contato e diz-lhe que um detetive o persegue e que quer esquivar-se à perseguição. O homem do contato prontifica-se a ajudá-lo, levando o suspeito a abrir-se com ele e tomá-lo por confidente.”

     – Suponhamos, entretanto, contrariou Mason, que o suspeito nada queira dizer ao homem do contato?

     – Nesse caso, explicou Drake, é o homem do contato quem diz algo ao suspeito. Dá-lhe umas palmadinhas amistosas no ombro e diz-lhe: “Ouça, meu velho, não gosto de me meter nos negócios alheios, mas não percebeu que o estão seguindo?”. Ou então: “Repare nesse sujeito que vem ai atrás. Sou capaz de jurar que me está seguindo”. Se o assunto em questão é um crime, o homem do contato, ordinariamente, alega que a sombra misteriosa o vigia, e expandindo-se, confessa ao suspeito que já em qualquer parte cometeu um delito e receia que lhe tenham descoberto a pista; pede ao suspeito que o ajude a despistar a sombra que o segue. Aí, então, começam a enveredar pelas portas abertas, a subir e descer pelos elevadores, a misturar-se nas aglomerações de povo, e quando o homem do contato fizer um sinal, a sombra misteriosa reaparecerá no fundo da cena, fazendo o suspeito enterrar-se cada vez mais.

     “É este um dos joguinhos do nosso ofício e quase sempre dá bons resultados. Na maioria das vezes consegue-se fazer um homem falar quando se lhe põe na pista uma sombra misteriosa.”

     – Muito bem, disse Perry Mason. – Vamos então iniciar um jogo das sombras misteriosas.

     – Talvez não seja preciso, objetou Drake. – Nós utilizamos esse jogo unicamente como último recurso. Habitualmente, basta o trabalho do falso amigo para fazer falar. Para quem for hábil, é um brinquedo fazer que um tipo desate a língua.

     – Não, replicou Mason, este é um caso especial, para o qual necessito um agente de contato que tenha certas qualidades.

     – De que natureza é a caça? – perguntou Drake.

     – Trata-se de uma mulher de meia idade que, segundo diz ela, teve sempre de cavar a vida duramente. Precisamos, portanto, de alguém que não seja uma beleza, e que, de preferência, tenha as mãos calosas e seja de tipo robusto.

     – Ok – disse Drake. – Tenho justamente a mulher que você precisa. É sagaz e dura de roer. Com quem quer que ela entre em contato?

     – Com Mrs. Edna Mayfield, governante de Edward Norton.

     – O homem que foi assassinado?

     – Esse mesmo.

     Drake pôs-se a assobiar.

     – Julga que ela esteja metida no assassínio? – indagou Drake.

     – Não sei exatamente até que ponto ela esteja envolvida no caso, disse Mason lentamente, mas tenho a certeza de que sabe algo a tal respeito. E é isso o que quero: saber até que ponto ela tem conhecimento dos fatos.

     – Segundo me consta, já engaiolaram o pássaro que matou o homem, não? – perguntou Drake cujos olhos vidrentos perderam repentinamente a sua expressão galhofeira, substituindo-a por um lampejo de curiosidade. – Não foi o motorista ou algum outro criado quem fez o serviço?

     – É o que consta, disse Mason, muito pouco comunicativo.

     – Você é o advogado de Frances Celane, a jovem beneficiada pelo depósito e pelo testamento, não é?

     – Sim.

     – Ok. Agora, diga-me exatamente o que quer que averiguemos da mulher?

     – Seja lá o que for que ela saiba, disse Perry Mason pausadamente.

     – Suponho que se refere ao assassínio?

     – A isso e a tudo.

     Paul Drake, com seus olhos vidrentos, pôs-se a estudar a ponta do cigarro e as nuvenzinhas de fumo que remoinhavam diante de si.

     – Olhe, disse ele, vamos ser francos um para o outro. Eu conheço-o bastante para saber que, se você me põe a trabalhar neste caso, é porque o encara sob um ponto de vista que a polícia ainda não viu.

     – Não disse que precisava do seu trabalho no caso do assassínio.

     – Não, você não o disse.

     Houve um momento de silêncio entre ambos, até que Perry Mason falou pausadamente e com mais precisão:

     – O que quero é que você trate de averiguar o que a governante sabe sobre o caso. Não posso precisar que seja isto ou aquilo.

     Paul Drake encolheu os ombros.

     – Não me queira embrulhar, disse. – Não sou curioso, mas não quero que você me engane. Suponhamos, entretanto, que algumas das informações que possa colher da mulher não sejam favoráveis à sua cliente.

     – Quero as informações, disse Mason.

     – Claro que sei que você as quer. Mas lembre-se de que, para obtê-las, teremos de empregar dois agentes na pesquisa. E se, por acaso, essas informações forem de tal natureza que você as queira manter secretas? Seleciono muito o pessoal que trabalha para mim, mas certas coisas têm o mau hábito de vir à tona, fora de tempo.

     – Sim, afirmou Perry Mason, tranqüilamente, elas virão à tona no tempo devido.

     Houve novamente um momento de silêncio.

     – E então? – perguntou o detetive.

     – Acho que será um outro caso, quando tivermos de trabalhar contra o tempo. Não creio que os seus agentes consigam informações que a polícia, mais cedo ou mais tarde, não venha a obter. Preciso obtê-las mais cedo, e a polícia, se quiser, que as obtenha mais tarde.

     Drake anuiu, movendo a cabeça.

     – Muito bem. Aceito o encargo. Queria ter a certeza de que não haveria desentendimento entre nós. Desentendimentos na minha profissão descontentam os clientes e faço questão de satisfazê-los sempre.

     – Então, está tudo combinado. Agora, tratemos do outro assunto. Um camarada chamado Don Graves, secretário do falecido Edward Norton, foi testemunha ocular do assassínio. A mim, ele contou uma história, à polícia contou outra. Pode vir a ser um tipo perigoso. Gostaria de descobrir, confidencialmente, se na realidade ele viu uma mulher no quarto, no momento em que o assassino vibrava o golpe, ou se é uma invenção que pretende acrescentar ao seu depoimento.

     “Agora, diga-me se julga possível colocar a seu lado alguém que não lhe desperte suspeitas, a fim de descobrir exatamente o que ele pretende declarar como testemunha? Se houver meio de fazê-lo, pretendo obter um relatório escrito do seu futuro depoimento.”

     – Há dinheiro para as despesas? – perguntou Drake.

     – Todo o que seja necessário, disse o advogado.

     – Bem. Que me diz se eu encarregar alguém de se pôr em contato com esse indivíduo, apresentando-se como enviado de um grande periódico ou de uma revista de histórias policiais verdadeiras, que deseja a narrativa de uma testemunha ocular, não poderemos obter uma declaração manuscrita e assinada, mediante um chorudo pagamento por palavra?

     – Ok, disse Mason, contanto que não haja demasiadas palavras.

     Drake piscou um olho.

     – Você quer dizer que exige concisão e clareza, não?

     – Perfeitamente, disse o advogado, suponho que, de uma forma ou de outra, é o mesmo.

     Drake pôs-se de pé.

     – Magnífico! Vou começar imediatamente.

     – Espero que me comunique os progressos que for obtendo.

     – Será informado minuciosamente, à medida que for progredindo.

     – Façam uma carga cerrada na governante. Ela é dura de roer, e vai dar muito trabalho.

     – Quer que lhe mande as informações pelo correio?  – perguntou o detetive.

     – De modo nenhum. Somente comunicações verbais.

     Naquele momento, bateram à porta e Della Street introduziu a cabeça e olhou Mason de modo significativo.

     – Ora viva, disse este. – Que é que há, Della?

     – Mr. Crinston está aqui. Diz que se trata de um negócio importante e que não pode esperar.

     – Muito bem. Já o atendo.

     Com um olhar de inteligência a Drake, o advogado falou-lhe num tom de voz bastante alto para ser ouvido no escritório exterior:

     – Estamos entendidos, Mr. Drake. Agora, tenho de ocupar-me de um assunto importante, que não me permite atender imediatamente o seu, mas não há prejuízo nisso, porque o senhor tem dez dias pela frente para comparecer à sua citação, e, nesse meio tempo, encaminharei uma instância de exceção peremptória perante o Tribunal. Desse modo, retardaremos o assunto, impedindo que você fique em falta até que consigamos maiores disponibilidades.

     Apertou a mão de Drake no umbral da porta e fez um sinal convidando Mr. Crinston.

     – Queira entrar.

     Crinston penetrou no escritório particular com a atitude agressiva de mandão impenitente, que o caracterizava. Dava a impressão de que varria todos os obstáculos que se lhe antepunham, apenas com a influência da sua imponente personalidade.

     – Olá, Mason, disse apertando a mão do advogado.

     – Muito prazer em vê-lo. Presumo que está abarrotado de serviço, não é verdade?

     – Assim é, respondeu o interpelado. – Tenho muito que fazer.

     Crinston deixou-se cair na imensa poltrona, tomando-a totalmente. Tirou um charuto do bolso, cortou-lhe a ponta, e acendeu um fósforo na sola do sapato.

     – Sim, senhor, disse. – Que trapalhada se armou.

     – É verdade, concordou o advogado é de fato uma trapalhada.

     – Oh, que é, não há dúvida, mas estou certo de que sairemos dela muito bem. Diga-me, por que não seguiu as instruções que lhe dei?

     – Que instruções?

     – As de manter Frances fora de tudo isso.

     – Engana-se, fiz tudo o que era possível e do melhor modo que pude. A pobre rapariga é histérica. Veio aqui ao consultório e teve uma crise nervosa. Chamei um médico que lhe prescreveu repouso absoluto. Levou-a para um sanatório, não sei onde, pois não me quis dar o endereço, com receio de que eu a mandasse chamar.

     Crinston exalava as primeiras baforadas azuis de fumo do seu charuto e quedou-se a olhar para o advogado.

     – Espero que isso não seja grave, disse.

     – Os nervos dela, devido à raiva, estavam realmente nos limites da resistência.

     – Sim, sim, imagino, disse Crinston, com impaciência.

     – Não malbaratemos o nosso precioso tempo com essas ninharias.

     – Compreendo. O que me traz aqui é o desejo de saber se o senhor conhece um indivíduo chamado George Blackman, advogado.

     – Sim, conheço.

     – Chamou-me ao telefone e disse-me que seria conveniente que eu procurasse o senhor, sem perda de tempo, para tratarmos de um assunto de grande importância.

     Mason falou em voz apagada e sem expressão, numa tonalidade monótona:

     – Blackman veio ver-me hoje, de manhã cedo, e sugeriu-me que podia fazer que o assunto se tornasse melhor para a família, se induzisse Devoe a declarar-se réu de um homicídio casual.

     – Como? Que vá para o inferno, rugiu Crinston. – É um maldito assassino! Matou covardemente e a sangue frio.

     – Foi a propósito dessa atitude, por parte da família, que Blackman me veio falar, disse Mason, continuando na mesma tonalidade monótona. – Disse que, se a família adotasse uma atitude vingativa, em relação ao seu cliente, ele se veria obrigado a adotar idêntica atitude, em relação à família, e que procuraria demonstrar que o caso era um conluio contra o seu cliente.

     – E como conseguirá ele isso? – perguntou Crinston.

     – Oh, por vários meios. Existe um axioma no código penal que reza que uma pessoa pode processar outra qualquer, à exceção do advogado da defesa. Como o senhor deve saber, é possível às vezes processar o advogado da acusação. Mais freqüente ainda é processarem-se testemunhas da acusação. Pode-se remexer um assunto até o fundo, atravessá-lo de um lado ao outro e dele fazer emergirem coisas estranhas, com o fim de pôr em foco um motivo justificativo de assassínio. Nesse caso, quando se consegue apresentar ao júri um motivo plausível, tem-se uma oportunidade que se pode aproveitar, e, tendo-se um motivo e uma oportunidade, pode-se imediatamente lançar uma acusação e proclamar que existem exatamente os mesmos motivos de suspeita contra as testemunhas de acusação que os existentes contra o réu.

     – O senhor acha que se poderá acusar Frances Celane? – perguntou Crinston.

     – Eu não mencionei nomes. Expus-lhe apenas os recursos de que pode lançar mão um advogado criminalista.

     – Venha cá, disse Crinston. – Percebeu exatamente o que aquele homem queria?

     – Ele disse que queria um estipêndio, revelou Mason, e também uma garantia de que seria aceita pela família uma petição que fizesse ao promotor, para encarar o assunto com a possível indulgência, classificando o delito de homicídio casual.

     Crinston estudou o advogado pensativamente.

     – Tem a certeza de que era isso o que ele disse que queria? – perguntou.

     – Tenho.

     – O senhor dá-me a impressão de que não pensa ser aquilo realmente o que ele queria.

     – É possível.

     – Por quê?

     – Porque não acredito que o promotor consinta em classificar o crime de homicídio casual. A meu ver, ou ele o classificará de assassínio premeditado, ou realizará a acusação.

     – Que quer então esse Sr. Blackman?

     – Suponho que ele queira ver as reações que experimentaríamos ante uma proposta dessa natureza. Se nos mostrássemos propensos a aceitar a sua insinuação, ele extorquir-nos-ia todo o dinheiro que pudesse para, depois, nos ameaçar, quando fosse possível e esmagar-nos por ocasião do julgamento.

     Crinston estudou o seu charuto meditativamente.

     – Pois não me tinha dado a impressão de ser um homem dessa espécie, disse pausadamente. Pelo menos, quando falamos pelo telefone.

     – Se o tivesse visto cara a cara, a sua impressão ainda seria melhor, assegurou Mason.

     Crinston pôs o charuto na boca e mascou-o pensativamente.

     – Olhe, disse subitamente, levando dois dedos à boca e segurando o charuto mastigado. – Não me está agradando o seu modo de tratar este caso.

     – Não? – perguntou Mason friamente.

     – Não, disse Crinston numa explosão.

     – E que é que não lhe agrada no meu modo de tratar o caso?

     – Acho que o senhor está deixando uma ótima oportunidade escapar-lhe por entre os dedos. A meu ver, seria uma grande sorte liquidarmos este assunto, entrando no jogo com Blackman.

     A resposta de Mason foi concisa e sem explicações.

     – Não acho.

     – Pois eu acho; e desde já lhe dou ordem para entrar em entendimentos com Blackman e dar-lhe o que ele quer. Sendo razoável o que ele pedir.

     – O que ele pede é uma exorbitância. Tipos desses, nunca procedem de outra forma. Calculou o que poderíamos achar razoável e aumentou muito as suas pretensões.

     – Muito bem. Deixemos que aumente. Dispomos neste caso de uma montanha de dinheiro, e não devemos estragar a situação, regateando.

     – O senhor tem medo, perguntou Mason, de que Frances Celane não possa resistir às atribulações que o caso lhe impõe?

     – Bela pergunta me faz o senhor! – bradou Crinston. – Quando o senhor mesmo a deixou cair num ataque de nervos para subtraí-la às garras da polícia!

     – Nunca disse que tivesse precisado livrá-la da polícia – lembrou-lhe Mason.

     – Como queira, eu digo-o.

     – Sim, respondeu-lhe Mason. – Estou ouvindo e permita que lhe diga que não precisava bradá-lo tão alto.

     Crinston pôs-se de pé, atirou fora o charuto, ainda em meio, e dirigiu-se a Mason, esbravejando.

     – Com os diabos! Ponto final!

     – Que quer o senhor dizer com esse “ponto final”?

     – Exatamente o que disse. O senhor deixa de ser meu advogado, e também de Frances Celane.

     – Creio, disse o advogado, muito mansamente, que Miss Celane é melhor juiza para o caso. Esperarei até que ela me declare que já não a represento.

     – Ela declarar-lhe-á isso mesmo, assim que eu tiver oportunidade de falar-lhe.

     – E onde pensa que poderá falar-lhe? – perguntou Mason, sorrindo pensativamente.

     – Não se preocupe com isso, respondeu-lhe Crinston. – Tratarei de me pôr em contato com ela o mais breve possível, e então a sua incumbência estará terminada. O senhor é um papa-moscas. Andou acertado nalguns pontos, mas depois deixou que o assunto se fosse por água abaixo. Procurarei outro advogado e...

     Perry Mason ergueu-se subitamente. A passos largos deu, resolutamente, volta à escrivaninha. Crinston viu-o aproximar-se, com olhos que permaneciam tranqüilos, mas nos quais se vislumbrava um vestígio de pânico. Mason plantou-se firmemente diante dele, com o olhar frio, duro e tempestuoso.

     – Muito bem, disse ele, é melhor que não haja dúvidas a este respeito. Desde este momento não sou seu advogado, não é verdade?

     – É exatamente como diz!

     – E não pense que seus malditos negócios me interessem, pouco que seja. Pela vontade de Miss Celane, eu teria sido o executor testamentário, se não fosse o fato de não poder colocar-me na situação de advogado de ambos, quanto à herança, sendo ao mesmo tempo advogado do sócio sobrevivente.

     – Pois bem, respondeu-lhe Crinston, não se preocupe com isso. Por outro lado, não espere ser designado como advogado para a liquidação da herança. O senhor não representará nada, nem ninguém. Procurarei outro advogado que me represente, e encarregá-lo-ei também de representar Frances Celane.

     Perry Mason disse lentamente:

     – Somente para que se convença de quanto é tolo e de que se deixou cair numa armadilha, basta saber que o homem que escolheu para seu advogado lhe foi indicado pelo próprio Blackman.

     – E se assim fosse? – perguntou Crinston.

     Mason sorriu friamente.

     – Nada tenho a dizer. Siga para diante. Meta-se na armadilha tanto quanto quiser.

     Os olhos de Crinston abrandaram-se um pouco.

     – Olhe, Mason, disse, pessoalmente, nada tenho contra você, mas trata-se de um negócio. Acho que você está enredando as coisas, devido à sua maldita ética. Não quero que você se engane a meu respeito. Frances Celane significa muito para mim. Sou o mesmo que um tio para ela. É uma criatura que sempre me inspirou grande interesse, o que me faz procurar em todas as situações a melhor solução para os seus problemas. Acho que este caso requere alguém capaz de um entendimento com Blackman. Ele declarou-me que jamais voltaria a entender-se com você, nem mesmo que fosse o único homem sobrevivente no mundo.

     Perry Mason teve um sorriso amargo e triste.

     Crinston continuou:

     – Aconteça o que acontecer, estarei sempre com Frances. Não sei que provas possam ter descoberto, enquanto não as vir, mas posso garantir-lhe que persistirei lutando por ela, haja o que houver. Tirá-la-ei daí. Sou um homem de negócios, ao passo que ela ignora tudo a esse respeito. Estou resolvido a conseguir-lhe uma boa solução, e começarei a fazê-lo imediatamente.

     Deu meia volta, e, com imponente dignidade, encaminhou-se para a porta.

     Perry Mason contemplava-o com atenção concentrada:

     – Que papalvo é você! – disse, enquanto Crinston abria a porta.

     Crinston voltou-se para ele.

     – Abomino esse termo! – rugiu. – Não admito que ninguém me chame papalvo.

     – Pois terá de ouvi-lo ainda muitas vezes, se seguir por esse caminho, disse Mason. E, girando sobre os calcanhares, dirigiu-se para a sua escrivaninha.

     Crinston hesitou um momento, depois tornou a entrar no gabinete.

     – Muito bem, sábio papa-moscas, disse vou dizer-lhe agora mais algumas coisas. O senhor, durante o tempo que esteve tratando deste caso fez uma barafunda dos meus pecados. Sei que não o posso destituir do cargo de advogado de Miss Celane. Isso é coisa que cabe exclusivamente a ela. Entretanto eu aconselhá-la-ei a que o faça. Não obstante, no caso de ela não o fazer, vou dar-lhe o palpite seguinte: vigie Purkett, o mordomo.

     – Ora aí está, disse Mason, o senhor começa a interessar-me. Continue e diga-me como chegou a isso.

     – Oh! – fez Crinston sarcasticamente – o senhor precisa que lhe dêem um pequeno ajutório, não?

     – O que quero é que me diga por que fez aquela advertência sobre Purkett, disse Mason, com olhar frio.

     Os olhos de Crinston observaram Mason, pensativos e investigadores.

     – Se lhe disser, respondeu, terá o senhor bastante critério para aproveitar devidamente a informação?

     Perry Mason nada respondeu, mas inclinou a cabeça ligeiramente para um lado, como o faria alguém que estivesse ansioso por ouvir o que lhe vão dizer.

     – As provas, neste caso, disse Crinston, acusam Devoe, de modo incontestável. Um bom advogado teria visto que a polícia nem por um momento poderia admitir a possibilidade de que tais provas não fossem concludentes. Entretanto, você intimidou-se e nada fez para evitar que ela pusesse em dúvida essas provas e fizesse outras investigações.

     “E, então, quando essas investigações eram feitas, você nada fez para impedir que elas envolvessem a sua cliente. Agora, se Devoe é o criminoso, o assunto está liquidado.”

     “Se não é ele o culpado, alguém terá de sê-lo. Existem fortes probabilidades para que esse alguém seja Purkett, mais do que outro qualquer. Não obstante, você deixou-o inteiramente atrás dos bastidores.”

     Crinston calou-se e manteve-se numa atitude de agressividade.

     – É tudo o que tem a dizer? – perguntou Perry Mason.

     – É tudo.

     Perry Mason sorriu.

     – O endereço de Blackman, disse ele, é: Edifício Mutual. Poupo-lhe por essa forma que consulte o guia telefônico.

     A fisionomia de Crinston deixou transparecer uma expressão de surpresa, que se fixou em traços ferozes.

     – Muito bem, disse. E abriu com violência a porta do gabinete, fechando-a da mesma forma após si.

     Perry Mason sentou-se por alguns momentos, depois dos quais enterrou firmemente o chapéu na cabeça. Atravessou o outro escritório, dizendo, ao passar, à secretária:

     – Não sei exatamente quando voltarei, Della. Feche o escritório às dezessete horas.

    

     Perry Mason entrou na garagem onde guardava o automóvel e perguntou ao mecânico:

     – Será muito difícil fazer que um contador de percurso retroceda algumas milhas? Eu me explico: suponha que um contador marque 15.350 milhas e o senhor quer que ele retroceda até 15.304,7 milhas. Dará muito trabalho para fazer isso?

     – Não, senhor, é fácil, disse o mecânico fazendo um trejeito, o que eu acho somente, é que, se o senhor quer que ele retroceda, seria preferível fazê-lo recuar até 3.000 milhas e vender o carro como tendo saído só para experiência.

     – Não, disse o advogado, não penso embair ninguém, comerciante ou outro qualquer comprador de carros. Estou tentando livrar-me de uma prova que me atrapalha. Quanto tempo levaria para fazer esse trabalho?

     – Não leva muito tempo – disse o mecânico. – É um trabalho simples.

     Perry Mason deu-lhe meio dólar e saiu da garagem pensativo e de cabeça baixa. Entrou num bar e telefonou para o número da casa de Edward Norton.

     A voz que atendeu a chamada, aparentemente a do mordomo, soava com o tom de formalidade que se adquire depois de se ter respondido a inúmeras perguntas por telefone, relativas a uma tragédia que atraiu o interesse público.

     – Desejo falar com Mr. John Mayfield, o jardineiro, disse Mason.

     – Queira perdoar, senhor, disse a voz, mas é tão excepcional receber uma chamada para Mr. Mayfield, que não sei se o devo chamar a este telefone ou não.

     – Está muito bem, disse Mason, sem revelar a sua identidade. – Trata-se de um assunto com a polícia. Diga-lhe que venha ao telefone e que não se demore.

     Houve um momento de hesitação silenciosa, na outra extremidade da linha e depois a voz disse:

     – Perfeitamente, senhor. Queira esperar um momento.

     Depois de alguns minutos de espera, ouviu-se uma voz grossa e aparvalhada:

     – Alô.

     Perry Mason disse apressadamente:

     – Não diga a ninguém quem está aqui; sou Mason, o advogado de Miss Frances Celane. Sua mulher falou-me a respeito de um dinheiro que devia receber, e eu não sei onde encontrá-la. Não sabe onde ela está?

     – Creio que foi ao gabinete do promotor, respondeu o homem. – Vieram buscá-la de automóvel e levaram-na.

     – Muito bem, disse Mason. – É muito importante que eu o veja, para conversarmos a respeito deste assunto, do qual sua mulher me falou. A questão, agora, é saber se você pode tomar um dos carros daí e vir nele até onde eu estou, que acha?

     – Pode ser que possa, senhor, mas não tenho a certeza. Acho que seria melhor eu ir a pé e encontrar-me com o senhor na esquina da avenida, se lhe for possível ir até lá.

     – Ótimo, disse Mason, assim farei. Venha encontrar-me na avenida e não diga a ninguém que vem ver-me.

     Mason voltou à garagem, tomou o seu carro, e, sem perda de tempo, dirigiu-se para o lugar onde o caminho tortuoso que ia ter a casa de Norton desembocava na avenida.

     Um homem de ombros largos, robusto, de rija musculatura, destacou-se da densa obscuridade, assim que Mason deteve o carro.

     – É Mr. Mason? – perguntou.

     – Sim, respondeu o advogado.

     – Sou John Mayfield. Que é que o senhor quer?

     Mason saiu do automóvel, ficando com um pé na calçada e outro naquele, enquanto examinava o homem com interesse.

     Viu um rosto aparvalhado, impassível, de olhos sombrios e lábios grossos, que jamais deveriam sorrir.

     – Sabe que sua mulher me falou deste assunto?

     – Minha mulher contou-me que tivera uma conversa com o senhor, disse o homem, cautelosamente.

     – Não lhe disse do que me falou?

     – Disse-me apenas que deviam dar-nos algum dinheiro.

     – Muito bem, disse Mason. – Agora para que eu possa saber em que pé está este assunto, preciso que me diga alguma coisa a respeito daquele contador de percurso.

     – De que contador de percurso? – perguntou o homem.

     – Do contador de percurso do Buick. Você fê-lo retroceder, não?

     – Não, senhor, disse o jardineiro.

     – Você está disposto a declarar que o fez retroceder, se eu lhe pagar o que combinamos, eu e sua mulher?

     – Não entendo, respondeu o jardineiro.

     – Não se preocupe com isso. Basta que você diga à sua mulher que, para receber a quantia que combinámos, eu e ela, quero primeiro que alguém deponha como testemunha, dizendo que o contador de percurso do Buick foi atrasado.

     – E que adianta o senhor com isso? – perguntou o jardineiro.

     – Adianto o seguinte, disse Mason, agitando levemente o indicador, para dar maior ênfase às suas explicações. – Nós sabemos que Edward Norton telefonou à polícia, declarando que o Buick fora roubado.

     “Bem. Isso demonstra que o Buick evidentemente não estava na garagem no momento em que ele telefonou. Alguém tinha tirado o Buick para fora. Pouco importa que Miss Celane estivesse em casa ou não. O que é certo é que, alguém tirou o carro. O Buick tinha desaparecido, quando Norton telefonou. Entretanto, o carro estava na garagem quando a polícia chegou a casa, e o contador de percurso tinha recuado para o mesmo número de milhas que ele marcava quando o tiraram.”

     “Portanto, alguém fez retroceder o contador de percurso. A questão agora é saber: quem fez isso?”

     – Eu não fui, disse o jardineiro.

     – E que me diz de Devoe, o motorista?

     – Nada sei a respeito dele, senhor.

     – E a respeito do mordomo?

     – Também nada sei a respeito dele.

     – Muito bem, disse Mason. – Vê-se que você não sabe coisa alguma deste assunto, mas sua mulher tem maiores conhecimentos sobre o que aconteceu. Quero que lhe diga que, se quiser fazer negócio comigo terá que descobrir quem foi que fez retroceder o contador do carro.

     – Quer dizer que o senhor quer o nome dessa pessoa, não é, meu senhor?

     – Não, disse Mason. – Pouco se me dá saber quem o tenha feito. Só me interessei por esse assunto depois que a polícia se inteirou de que fora Miss Celane quem saíra no carro. O que quero é provar que o contador foi recuado e por quem foi feito esse trabalho. Compreendeu?

     – Sim, creio que agora compreendi, sim senhor.

     – Quando voltará sua mulher?

     – Não sei. Alguns agentes vieram aqui e levaram-na. Disseram a minha mulher que tinham de levá-la ao gabinete do promotor para que ela fizesse um depoimento.

     – Muito bem, disse Mason. – Acredita que lhe poderá dar o meu recado?

     – Sim, senhor, tenho a certeza de que poderei.

     – Está bem, procure fazê-lo. Agora, outra coisa: quero que me diga onde estava, à hora em que mataram o seu patrão?

     – Eu? Estava a dormir.

     – Tem a certeza disso?

     – Absoluta. Acordei com o barulho que faziam.

     – Sua mulher não estava dormindo, não é verdade?

     – Quem disse isso? – perguntou Mayfield, em cujos olhos sombrios luziu um lampejo de emoção.

     – Sou eu quem o diz, respondeu Mason. – Sua mulher andava pela casa. Não tinha ido para a cama, quando cometeram o assassínio. Você sabe perfeitamente isso.

     – Bem. E daí?

     – Já vai ver, replicou Mason, baixando a voz de modo a impressionar. – Havia uma mulher no quarto com o homem que deu a pancada. Sua esposa disse que essa mulher era Miss Celane, ou que poderia ser ela. Quero que você lhe diga que eu tenho agora uma prova que me leva a crer que a mulher que estava no quarto naquele momento era ela mesma.

     – Quer dizer, disse o homem todo eriçado, que o senhor acusa minha mulher do crime?

     – Quero dizer, afirmou Mason, reforçando a sua posição e encarando o belicoso jardineiro, que tenho uma prova que indica que sua esposa era a mulher que estava no quarto, no momento em que o golpe foi dado. Não quero dizer com isso que foi ela quem descarregou a pancada, nem afirmo que ela soubesse fosse lá o que fosse a respeito do golpe que ia ser dado. Digo apenas que ela estava no quarto naquele momento.

     – O senhor quer que eu lhe diga isso? – perguntou Mayfield.

     – É o que quero que lhe diga, respondeu Mason.

     – Perfeitamente. Vou dizer-lhe o que o senhor quer, mas sei que ela não gostará.

     – Pouco se me dá que ela goste ou não. Em todo o caso não deixe de lhe dar o recado.

     – Está bem, disse Mayfield. – Há mais alguma coisa?

     – Não, salvo que você deve assegurar-se, quando lhe contar da nossa entrevista, de que ninguém os esteja ouvindo. Não quero que os agentes se inteirem de tudo isso.

     – Pode ficar descansado. Sei fazer as coisas.

     – Entendidos! – disse Mason. E, voltando ao carro, desceu pela avenida. Entrou num café, onde jantou vagarosamente, entregue às suas reflexões.

     Quando acabou de jantar, os vendedores de jornais gritavam pelas ruas o noticiário. Comprou um jornal, entrou no automóvel e, recostando-se nas almofadas, acendeu a luz e leu as manchetes que tomavam todo o alto da página:

    

      “... Novo mistério no assassínio do milionário... Mulher no quarto no momento do crime... A polícia na pista das cédulas marcadas e roubadas dos bolsos do cadáver... Casamento secreto da herdeira e procura do marido para testemunha... A sobrinha misteriosamente desaparecida depois de visitar um conhecido advogado.”

     

     Perry Mason leu atentamente cada palavra da sensacional notícia que seguia; uma narrativa na qual os repórteres insinuavam nas entrelinhas muito mais do que tinham colhido; era uma narrativa que detinha bruscamente a atual acusação, deixando o público entrever que a polícia estava longe de se sentir satisfeita com a inculpação de Devoe, e preparava uma súbita mudança de orientação que iria envolver no caso pessoas de fortuna e de proeminente situação social.

     Perry Mason, acabada a leitura, dobrou cuidadosamente o jornal, guardou-o na bolsa da portinhola do automóvel, e dirigiu-se não para os seus aposentos de celibatário, mas para um hotel da cidade baixa, onde se inscreveu com nome suposto, deitando-se e apagando a luz.

    

     Perry Mason entrou no gabinete, deu bom dia a Della Street, e encaminhou-se para o seu escritório particular, onde encontrou os jornais da manhã, espalhados sobre a escrivaninha.

     Della Street abriu a porta e seguiu-o até ao escritório particular.

     – Entraram aqui, para fazer uma busca...

     O advogado voltou-se para ela e pôs um dedo nos lábios, pedindo silêncio. Tendo-se ela calado, ele circunvagou o olhar pelo aposento. Tirou os quadros da parede, examinando por detrás deles, fez correr a estante móvel e inspecionou o espaço que ela cobria, arrastou-se por baixo da mesa, investigando.

     Ergueu-se, sorrindo, e disse:

     – Procurando um microfone. Havia possibilidade que eles montassem aqui algum.

     Della Street aquiesceu.

     – Alguém entrou aqui esta noite, disse ela, e remexeu em tudo. Até abriram o cofre.

     – Ficou estragado?

     – Não. Devia ser gente muito competente, porque abriram com a combinação. O cofre foi aberto sem violência. Eu dei conta disso, porque os papéis não estavam no lugar habitual.

     – Ótimo, então, disse o advogado. – Que mais há de novo?

     – Nada, disse ela, a não ser que temos três polícias vigiando o escritório, e quere-me parecer que estão à espera de alguém que venha para cá.

     Mason sorriu compreensivamente e disse:

     – Deixe-os esperar. Vão precisar de muita paciência.

     – Leu os jornais? – perguntou ela.

     – Os matutinos, não.

     – A última edição diz que identificaram a procedência da bengala com que mataram Norton.

     – Ah! Sim?

     – É verdade. É uma bengala pesada, de passeio, e descobriram que pertence a Rob Gleason, o marido da sua cliente.

     – O que quer dizer, disse Perry Mason, que ele vai ser acusado de assassínio premeditado e que vão retirar a acusação contra Devoe.

     – Com toda a certeza farão a acusação alcançar também a rapariga, disse ela. – Se é que já não o fizeram.

     – Você acha? – perguntou Mason.

     – Parece-me provável. Aquele secretário, Don Graves, deu umas informações suplementares que mudaram completamente o aspecto do caso, segundo escreve o Star. Graves serve de escada a alguém. A polícia deteve-o e ele forneceu provas adicionais.

     – Bem, disse o advogado, isso está a tornar-se interessante. Se vier alguém aqui, receba-o bem.

     Ela anuiu com a cabeça e olhou-o, apreensiva.

     – Suponho que o senhor não vai enredar-se neste caso?

     – Por que iria eu enredar-me?

     – O senhor entende-me. Pergunto, pelo seu hábito de se enterrar por causa dos seus clientes.

     – Explique-se.

     – O senhor sabe de sobra o que quero dizer. O senhor fez Miss Celane fingir um ataque de nervos e fez que ela saísse daqui numa ambulância.

     Ele sorriu-lhe.

     – E daí? – perguntou.

     – Não será, por acaso, um crime ocultar alguém procurado pela polícia?

     – Miss Frances era procurada pela polícia? – inquiriu ele.

     – Não, disse ela, dubitativamente, até agora não, penso eu.

     – Além disso, não sou médico. Posso enganar-me num diagnóstico. Julguei que ela estivesse numa crise nervosa e chamei um clínico para confirmar a minha impressão.

     Ela olhou-o e meneou a cabeça.

     – Não gosto disto, disse.

     – Não gosta de quê?

     – Não gosto do modo como se mete neste caso. Por que não fica tranqüilamente sentado no seu escritório, preparando o seu discurso no tribunal?

     – Francamente, não lhe sei dizer por quê, respondeu Mason, sorrindo. – Talvez seja doença.

     – Os outros advogados comparecem perante o tribunal, interrogam as testemunhas, e expõem o caso ao júri. O senhor vai muito além disso e mete-se pessoalmente no assunto.

     – Os outros advogados, respondeu Mason, têm clientes que são enforcados.

     – Algumas vezes não merecem outra coisa, concluiu ela.

     – É possível. Em todo o caso os meus clientes não são enforcados, e nunca tive um que merecesse sê-lo.

     Ela contemplou-o um momento, terminando por sorrir, e, havia algo de maternal nesse sorriso.

     – Todos os seus clientes são inocentes? – perguntou.

     – Pelo menos é essa a opinião dos jurados. E, afinal de contas, eles são juízes soberanos.

     Della Street suspirou e encolheu os ombros.

     – O senhor ganhou, disse. E retirou-se para o outro escritório.

     Assim que ouviu o estalido do trinco da porta a fechar-se, Mason sentou-se à mesa de trabalho e desdobrou os jornais.

     Leu sem interrupção durante quinze minutos até que a porta se abriu.

     – Mrs. Mayfield está aí no escritório, disse-lhe Della Street, a mim parece-me que quanto mais depressa a vir, melhor será.

     Mason aquiesceu.

     – Mande-a entrar imediatamente. É muito provável que um policial venha na sua pista. Procure retê-lo o máximo que puder.

     A rapariga mostrou ter entendido, abriu a porta e fez um sinal à mulher que estava sentada no outro escritório.

     Assim que a avantajada silhueta de Mrs. Mayfield se enquadrou no umbral, Perry Mason viu que a secretária se empenhava tanto quanto possível em bloquear a passagem.

     Logo que a porta se fechou sobre a governante, ouviu a voz de Della Street que dizia:

     – Lamento muito, mas Mr. Mason está numa conferência importante, e não pode ser perturbado agora.

     Perry Mason saudou Mrs. Mayfield com um movimento de cabeça, levantou-se, atravessou o escritório e fechou a porta à chave.

     – Bom-dia, Mrs. Mayfield, disse.

     Ela fitou-o com um olhar belicoso dos seus olhos pretos.

     – Bom-dia – respondeu entre os dentes.

     Perry Mason indicou-lhe com um gesto a imensa poltrona preta, e Mrs. Mayfield sentou-se nela, muito tesa, com a mandíbula projetada para a frente.

     – Que história é essa do contador do Buick ter sido atrasado? – perguntou ela.

     Vindos do outro escritório, ouviam-se ecos de forte altercação, depois, ruído de corpos que se debatiam contra a porta, e a maçaneta violentamente movimentada. A fechadura resistiu, e Perry Mason mantinha os olhos cravados em Mrs. Mayfield, procurando desviar-lhe a atenção do ruído que faziam na porta.

     – Mr. Norton, disse ele, denunciou que o Buick fora roubado. Até há pouco, pensávamos que Miss Celane tivesse passeado nele, mas segundo parece agora, verificou-se não ser isso verdade. Portanto, alguém deve ter saído no Buick, no momento em que Mr. Norton fez a denúncia à polícia. Entretanto temos a nota das milhas percorridas pelo carro, quando ele voltou para casa com o dono e que eram 15.304,7.

     “Temos que concluir que a pessoa que saiu no automóvel Buick, na noite do assassínio, deve ter feito recuar o contador de percurso, ou então desligou-o quando o tirou da garagem.”

     Mrs. Mayfield negou com a cabeça.

     – O carro não foi tirado da garagem.

     – Tem a certeza disso? – perguntou o advogado.

     – Purkett, o mordomo, dorme justamente por cima da garagem. Ele estava deitado na cama, acordado, lendo, e forçosamente ouviria tirar o carro para fora. Declarou que o portão da garagem estava fechado, e que dali não saiu carro algum.

     – Não poderia ele ter-se enganado? – insistiu Mason.

     – Não! – esbravejou ela. – O portão da garagem faz muito barulho, quando é aberto. Ouve-se um estrondo tremendo no quarto. Purkett teria de ouvi-lo. E, agora, quero que me explique aquele “mistério” que o senhor disse ao meu marido, a respeito de eu estar no quarto quando o assassino...

     – Esqueça isso por um minuto – interrompeu Mason. – Nós estávamos a falar sobre o carro e dispomos de pouco tempo. Não poderei fazer negócio com a senhora, a menos que possa provar que o contador de percurso foi atrasado.

     Ela sacudiu a cabeça com imponência.

     – De qualquer forma, já não poderemos fazer negócio – declarou ela. – Embrulhou as coisas de um modo horrível.

     – Que quer dizer com isso?

     – Que o senhor encaminhou as coisas de um jeito que a polícia arrastou Frances Celane para o processo.

     Os negros olhos dardejaram sobre Mason olhares furibundos, mas, repentinamente, encheram-se de lágrimas.

     – Diga, antes, que a senhora foi a única pessoa que meteu Frances Celane nessas dificuldades, disse Mason pondo-se de pé e fitando-a acusadoramente. – Começou com a chantagem a respeito do casamento, e continuou a chantagem, ameaçando-a de envolvê-la no caso do assassínio.

     Os olhos dela estavam agora embaciados.

     – Eu precisava de dinheiro, disse Mrs. Mayfield, abandonando a sua atitude belicosa. – Sabia que, por esse meio, poderia consegui-lo, e que Miss Frances ia tê-lo em abundância. Não vi motivo para que não tivesse a minha parte. Quando ela o contratou, calculei que o senhor ia cobrar também uma grande quantia, e não vi motivo para não fazer o mesmo.

     “Toda a minha vida fui uma mulher de trabalho. Tenho um marido que é um toleirão e não tem ambição nem inteligência para livrar-se de apuros. Fui eu sempre quem teve de arcar com as responsabilidades. Quando eu era nova, fui o amparo da minha família. Depois que me casei, a minha ambição consistia em trabalhar para sustentar os meus. Durante anos, pus as minhas esperanças em Frances Celane. Vi a sua vida, vida de uma senhora estragada pela ociosidade. Trabalhei como escrava, sem me poupar, nos trabalhos caseiros, sempre atenta a que ela tivesse a sua refeição da manhã na cama, e, já cansada de tudo isso, não vi motivos para não ter também um pouco de dinheiro. Precisava de muito dinheiro.”

     “Queria ver-me considerada. Estava desejosa de fazer alguma coisa para conseguir dinheiro, menos pôr Frances em verdadeiras dificuldades.”

     “Agora, nada posso fazer para impedi-lo. A polícia encurralou-me, obrigando-me a falar, e vão prender Frances Celane por assassínio. Por assassínio! Compreende?”

     A sua voz alcançava tonalidades de guincho.

     Deram um empurrão imperioso na porta do escritório.

     – Abram imediatamente, bradou uma voz, do lado de fora.

     Perry Mason não deu atenção às sacudidas da porta, mas conservou os olhos fixos em Mrs. Mayfield.

     – Para aclarar este mistério, disse ele, não crê a senhora que poderá encontrar alguém que queira declarar que o automóvel saiu e que o contador estava desligado ou foi atrasado?

     – Não, disse ela, aquele carro não saiu.

     Mason começou a passear pelo aposento.

     As pancadas, do outro lado da porta, redobravam de intensidade. Alguém gritou:

     – Sou um inspetor da polícia. Abram de uma vez.

     Subitamente, Mason riu-se às gargalhadas.

     – Que tolo fui! – disse ele.

     A governante enxugou as lágrimas e olhou para Mason com os olhos arregalados.

     – É evidente, disse este, aquele carro não saiu da garagem. Nenhum carro saiu da garagem. E com o punho fechado estalou um soco na palma da outra mão.

     Virou-se para a governante.

     – Se quer fazer alguma coisa em benefício de Frances Celane, disse ele, fale outra vez com Purkett e peça-lhe minúcias. Discuta o caso com ele, para firmar bem as suas reminiscências sobre o ocorrido, de modo que, haja o que houver, ele não vacile nas suas declarações.

     – E o senhor quer que ele diga que o carro não saiu da garagem? – perguntou a governante.

     – Quero que ele diga a verdade, respondeu Mason. – Quero, porém, que ele diga com firmeza suficiente, para que não fique atordoado, no banco das testemunhas, diante de uma caterva de advogados. Isso é tudo que eu quero que ele declare exatamente que o carro não saiu da garagem em momento algum daquela noite, que o portão da garagem estava fechado, que permaneceu fechado, e que ninguém poderia tirar um carro de lá de dentro sem que ele ouvisse.

     – Perfeitamente, disse ela, essa é a verdade. E o que ele diz.

     – Muito bem, continuou Mason. – Pois, se quer prestar um serviço a Frances Celane, procure-o e trate de conseguir que nenhuma força humana possa alterar essa declaração que ele vai fazer.

     – Farei o que pede, disse ela.

     Apressadamente, ele perguntou:

     – Disse alguma coisa à polícia, sobre o dinheiro que recebeu de Frances Celane?

     – Nada, disse a governante. – Declarei que ela lhe tinha dado dinheiro, mas que não sabia quanto tinha sido, nem se as notas eram pequenas ou grandes.

     A porta gemeu sob o peso de um corpo atirado contra ela.

     Perry Mason dirigiu-se para lá, torceu a chave e abriu a porta.

     – Que diabo quer dizer isto? – perguntou. – Pretendem forçar desse modo o meu escritório particular?

     Um homem volumoso, de largos ombros, de pescoço grosso e rosto carrancudo, precipitou-se no gabinete.

     – Já lhe disse quem sou, exclamou. – Sou um agente da polícia.

     – Pode ser até Mussolini, se quiser, retrucou Mason. – O senhor não pode arrombar o meu escritório.

     – Não posso, um diabo, disse o detetive. – Vou prender essa mulher.

     Mrs. Mayfield deu um pequeno grito.

     – Sob que acusação? – perguntou Perry Mason.

     – Como testemunha ocular num caso de assassínio, disse o detective.

     Mason observou-lhe:

     – Em todo o caso, o senhor não teve pressa em detê-la como testemunha ocular até o momento em que ela entrou neste gabinete.

     – Que quer o senhor dizer? – perguntou o detetive.

     – Exatamente o que disse, respondeu Mason. – O senhor sentou-se aí fora e esteve a vigiar este escritório até que viu Mrs. Mayfield entrar aqui. Aí então, telefonou ao seu superior, pedindo instruções, e ele, com certeza, lhe deu ordem de prendê-la como testemunha ocular antes que ela tivesse a oportunidade de falar comigo.

     – É muito esperto! – disse o detetive, zombando.

     Mrs. Mayfield corria os olhos de um para outro.

     – Mas eu nada fiz – disse ela.

     – Isso não vem ao caso, disse o detetive. – O que importa é retê-la como testemunha ocular em lugar onde ninguém possa importuná-la, nem incomodá-la.

     – E, disse Mason, zombando, num lugar onde a senhora não tenha possibilidade de falar com ninguém, salvo com os representantes do gabinete do promotor.

     O detetive olhou atravessado para Perry Mason.

     – E nós sabemos, disse ele, que o senhor recebeu dez notas de mil dólares que foram roubadas dos bolsos do cadáver de Edward Norton.

     – E onde acha o senhor que essas notas estão? – perguntou o advogado.

     – Ainda não sabemos, mas estamos procurando.

     – Magnífico, disse Mason. – E isto é um país livre, ou que, pelo menos, julgava sê-lo! Siga adiante, procure.

     – Quando acharmos, disse o detetive, pode preparar-se para enfrentar uma acusação de receptador de dinheiro roubado.

     – Bem! Para isso, tem somente três coisas a fazer.

     – Quais são essas três coisas? – perguntou o detetive.

     – Primeiro, provar que o dinheiro é roubado, segundo que eu o recebi, e, finalmente, que eu sabia que era dinheiro roubado, quando o recebi.

     – Agora, já sabe que era roubado.

     – Como veio a saber isso?

     – Porque eu lhe disse que era. Já está avisado.

     – Em primeiro lugar, disse Mason, não admiti que tivesse em meu poder nem um desses dez mil dólares. E depois, não dou crédito às suas palavras.

     O detetive voltou-se para Mrs. Mayfield.

     – Siga-me! Depois, ajustaremos as contas com esse advogado.

     – Mas eu não quero ir, disse a governante.

     – São ordens, respondeu o detetive. – Nós não lhe queremos fazer mal. Vamos simplesmente levá-la para um lugar onde a senhora estará em segurança, até que preste o seu depoimento.

     Perry Mason contemplou a saída do par do seu gabinete.

     O seu rosto estava inexpressivo; em compensação, em seus olhos luziam centelhas de hostilidade.

     Quando se fechou a porta do escritório exterior, Perry Mason encaminhou-se para a mesa da secretária e disse:

     – Della, quero que telefone para a redação do Star. Diga-lhes quem é. Eles têm um repórter chamado Harry Nevers. Ele conhece-me. Peça ao chefe do noticiário que me mande o Nevers. Quero dar-lhe algumas notícias sensacionais.

     Della foi ao telefone.

     – O senhor quer que eu dê esse recado ao redator-chefe do noticiário? – perguntou.

     – Sim, respondeu Mason. – Quero que Nevers venha aqui com urgência.

     – Não quer falar pessoalmente com o chefe?

     – Não, porque me poriam em comunicação com um taquígrafo, para que ouvisse quanto eu dissesse, e chamariam a isso uma entrevista, que seria publicada tal qual. Quero que você diga quem é, e lhes peça que mandem o Nevers aqui, para uma notícia sensacional. Eles tentarão sondá-la, para saber de que se trata. Diga-lhes que ignora, e que não estou acessível.

     Della acedeu, e tirou o auscultador do gancho. Perry Mason dirigiu-se para o seu gabinete particular e fechou a porta.

    

     Harry Nevers era alto e magro, com olhos que contemplavam o mundo com expressão de tédio. Os seus cabelos careciam de cuidados e o seu rosto tinha a aparência gordurosa comum nas pessoas tresnoitadas. Ao vê-lo, tinha-se a impressão de que passara a noite em claro, mas, na realidade, passara as duas últimas.

     Encaminhou-se para o escritório de Perry Mason e instalou-se no braço da enorme cadeira de couro preto.

     – Mandei-o chamar para lhe proporcionar uma caixa disse Perry Mason, e, em troca, pedir-lhe um favor.

     Nevers respondeu-lhe em voz pausada e monótona:

     – Já contava com isso. Há que tempos a esperava. Onde está ela?

     – Ela, quem? – perguntou Mason.

     – Frances Celane.

     – Quem quer sabê-lo?

     – Eu.

     – E para quê, não me dirá?

     Nevers bocejou, e deixou-se escorregar para trás por sobre o braço da cadeira, de modo a ficar sentado atravessado.

     – Deixe-se de histórias, disse ele. – A mim, você não me surpreende. Fez obra magistral. Percebi o jogo, assim que recebi a chamada. A coisa é transparente. Frances Celane sofre um ataque de nervos e é arrastada para um sanatório.

     “Na noite passada, o promotor descobre novas provas que decidem a mimoseá-la com uma acusação de assassínio premeditado.”

     “Ela estava casada secretamente com um pândego chamado Gleason. Engaiolaram o galã e preparam-se para fazer o mesmo a Frances Celane.”

     “Você é o advogado da jovem Celane. Escondeu-a não sei onde. É um rapto muito hábil, para impedi-la de cair na esparrela até que você tenha preparado a sua rendição.”

     “Mas você não a poderá conservar no esconderijo, quando os jornais espalharem aos quatro ventos que ela foi acusada de assassínio. Você teve que meter um médico e um hospital na embrulhada. Eles não hão de querer ficar calados, embora você peça e suplique. É um beco sem saída, e você terá de fazê-la voltar, razão pela qual frechou para o meu lado, para obter as notícias de que muito precisa. Agora vá dizendo o que quer de mim, que eu o atenderei, se fizermos negócio.”

     Perry Mason franziu a testa pensativamente, e tamborilou com a ponta dos dedos na borda da mesa.

     – Eu mesmo não sei o que quero, Harry, disse ele.

     Harry Nevers sacudiu a cabeça de modo lúgubre.

     – Ora essa, irmão, fazer-me sair, com a quantidade de serviço que tenho sobre mim! Se você não sabe o que quer, nunca poderá conseguir coisa alguma. Se quer fazer algum trabalho comigo, desembuche de uma vez.

     – Pois bem, disse Perry Mason, vou dizer-lhe em termos gerais o que quero de você. Pretendo, qualquer dia destes, ir com duas ou três pessoas à residência de Norton, e reconstituir a cena do assassínio tal qual sucedeu na noite do crime.

     “Por enquanto, ainda não sei exatamente como o farei. Pretendo também, a qualquer momento, salientar o ponto interessante relativo ao Buick, que denunciaram ter sido roubado e que não saiu da garagem. Em resumo, quero ver se consigo que você me faça uma publicidade razoável, a respeito daqueles pontos.”

     – Espere um minuto, atalhou Nevers, falando no mesmo tom monótono, você diz que quer salientar que o Buick não foi tirado da garagem? Quer dizer com isso que pretende demonstrar que ele foi tirado, mas que o contador de percurso foi desligado ou então atrasado, não é verdade?

     – Não, respondeu-lhe Mason. – Demonstrarei que ele não foi tirado da garagem.

     Pela primeira vez, depois que entrara no gabinete, a voz de Harry Nevers deixou transparecer uma ponta de interesse; apenas uma nuance no tom.

     – Caramba! Isso, sim, vai ser um ponto de vista interessante, no seu jogo.

     – Muito bem, disse Mason. – Tornaremos a falar nisso mais tarde. Por enquanto, vou limitar-me a dizer o que espero de você. A questão é a seguinte: quer fazer um acordo comigo?

     – Vamos a isso.

     – Tem aí à mão um fotógrafo?

     – Naturalmente. Está lá embaixo, no carro, esperando-me, e fiz reservar um espaço na primeira página para uma fotografia.

     Perry Mason alcançou o telefone que tinha em cima da mesa, e disse a Della Street, em voz baixa:

     – Peça comunicação para o Dr. Prayton. Pergunte-lhe, da minha parte, em que sanatório ele internou Miss Frances Celane. Diga-lhe que peça por telefone que lhe dêem alta. Avise-o de que Frances Celane vai ser acusada de assassínio, e que não quero que ele se veja envolvido nisso. Peça o número do telefone do sanatório, e, depois de ele ter telefonado o pedido de alta, obtenha uma comunicação com Frances Celane, por mim.

     E desligou.

     – Agora ouça-me, disse Nevers calorosamente, quer fazer-me um favor?

     – Qual? – perguntou Mason, cautelosamente. – Creio que já lhe estou fazendo um. Você vai ter a exclusividade das fotografias e do mais que se seguir.

     – Não seja forreta. Peço-lhe um favor insignificante.

     Endireitou-se negligentemente na cadeira e disse, com a sua voz monótona:

     – Faça com que a jovem mostre uma nesga da perna. É uma fotografia para a primeira página e quero ver se consigo com ela um êxito ruidoso.

     – Não há dúvida, disse Mason. – Peça-lhe isso diretamente. Pode falar-lhe com franqueza.

     – Claro que vou falar-lhe com franqueza. Mas, como você é o advogado dela, é em você que ela tem mais confiança.

     – Algumas vezes temos dificuldades com essas moçoilas para conseguirmos uma boa atitude, quando elas estão excitadas.

     – Por isso lhe peço que me ajude a conseguir um número sensacional.

     – Ok. Farei o que puder.

     Harry Nevers puxou um cigarro do bolso, acendeu-o, e olhou curiosamente para o advogado.

     – Se conseguíssemos que ela fosse à redacção do Star e lá se pusesse, ela mesma, sob a nossa proteção, disse ele, nós trataríamos de lhe obter uma boa saída.

     O tom de voz de Mason vibrou com firmeza.

     – Não! Contente-se com a exclusividade da documentação fotográfica. É o que lhes posso dar de melhor. Ela terá de se entregar à prisão, e quero ter a certeza de que não haverá dúvidas a esse respeito. Em outras palavras, quero que os jornais digam a verdade ao público.

     Nevers bocejou novamente e olhou para o telefone.

     – É justo. Tinha vontade de saber se a sua secretária já teria feito as chamadas que pediu...

     O telefone tilintou e Mason atendeu. Ouviu a voz de Frances, ansiosa e excitada, na outra extremidade do fio.

     – Que há? – perguntou ela. – Aqui, não me deram jornais, ontem.

     – Felizmente, disse Mason. – Já começou a festa.

     – Que quer dizer?

     – Prenderam Rob Gleason como assassino. – Mason ouviu-lhe uma inspiração estertorosa, e continuou: – Identificaram a bengala com a qual mataram Edward Norton como pertencente a Rob Gleason.

     – Rob Gleason nunca fez semelhante coisa, replicou ela apressadamente. – Ele foi falar com meu tio e discutir com ele. Deixou essa bengala no escritório do meu tio e...

     – Não pense nisso, interrompeu Perry Mason. – Será uma sorte que a minha linha telefônica esteja isolada. Podem ter posto detetives a escutar-nos. Você contar-me-á tudo quando chegar aqui. Quero que você tome um táxi e venha ao meu gabinete, pronta para se deixar prender como assassina.

     – O senhor acredita que vão prender-me também?

     – Sim. Eu próprio vou entregá-la à custódia da polícia.

     – Mas eles ainda não me acusaram de participação no assassínio, não?

     – Mas vão fazê-lo agora, e quero ganhar-lhes a dianteira .

     – E o senhor acha que devo entregar-me?

     – Você disse que ia confiar em mim, lembrou-lhe ele. – E eu digo-lhe que deve.

     – Estarei aí o mais tardar dentro de meia hora.

     – Muito bem, disse Mason. E desligou.

     Ao cabo de um momento tomou novamente o auscultador e disse à secretária:

     – Ponha-me em ligação com o gabinete do promotor. Quero falar com Claude Drumm, se ele lá estiver.

     Voltou-se para o repórter.

     – Ouça, você vai meter-se na boca do lobo, objetou Nevers. – Se avisa o promotor de que vai entregar-lhe a jovem, ele cercará o seu escritório e prendê-la-á quando ela chegar aqui. Preferem, prender eles mesmos os acusados do que recebê-los das mãos de outrem.

     Mason anuiu.

     – É o que você vai ouvir. Não quero que haja enganos.

     O telefone tilintou, e ele atendeu.

     – Alô, disse. – Alô, é Drumm? Aqui, fala Mason. Sim, Perry Mason. Soube que Rob Gleason foi acusado como assassino de Edward Norton.

     A voz de Drumm fez-se ouvir no telefone, gelada e cautelosa.

     – Este foi acusado como um dos principais.

     – Existem outros, além dele? – perguntou Mason.

     – Sim, é muito provável.

     – Já foram denunciados?

     – Ainda não.

     – Um passarinho está a dizer-me que você vai acusar Frances Celane como outro principal.

     – E daí? – perguntou Drumm, cuja voz continuava fria e cautelosa. – Foi para isso que me chamou?

     – Eu chamei-o para avisá-lo de que Frances Celane está a caminho do seu gabinete, a fim de se pôr à sua disposição.

     Houve um momento de silêncio, e depois Drumm perguntou:

     – E agora onde está ela?

     – A meio caminho entre o lugar onde ela estava e o seu gabinete. Quero dizer, na estrada.

     Drumm perguntou, cautelosamente:

     – Ela deter-se-á nalgum lugar, nesse meio tempo?

     – Isso não lhe sei dizer, disse Mason.

     – Muito bem. Pois, quando chegar aqui, teremos muito prazer em vê-la.

     – Aceita fiança? – perguntou Mason.

     – Trataremos disso depois dela fazer declarações.

     Mason sorriu.

     – Não quero desentendimentos entre nós, Drumm. Eu avisei-o de que ela vai apresentar-se sob garantia. Nessas condições, não há margem para depoimentos.

     – Temos necessidade de fazer-lhe algumas perguntas – disse Drumm.

     – Isso é outro cantar, disse Mason. – Pode fazer-lhe todas as perguntas que quiser. Estou certo de que ela gostará que o faça.

     – Ela está disposta a responder? – perguntou Drumm.

     – Creio que ela não quererá. Se houver qualquer coisa a dizer, eu mesmo o farei.

     E, depois de ouvir uma exclamação exasperada de Drumm, pendurou o auscultador.

     Nevers fitou-o, com olhos penetrantes.

     – Vão aborrecê-lo, Mason, disse ele. – Vão perceber que ela vem aqui e mandarão alguns agentes para prendê-la logo que chegue. Depois, farão constar que foi uma prisão, em vez de ser uma apresentação voluntária.

     – Não – disse Mason – eles acreditarão que ela foi diretamente do sanatório à procuradoria. E, além do mais, você ouviu a conversa. Ficam assim eliminados todos os equívocos.

     Mason abriu uma das gavetas da mesa, tirou de lá uma garrafa de whisky e um copo. O repórter fez o copo deslizar por trás dele ao longo da escrivaninha, e empinou a garrafa entre os lábios.

     Quando a depôs sobre a mesa, fez uma careta para Mason.

     – A minha primeira mulher tinha horror a lavar a louça, disse. – Por isso, perdi o hábito de sujá-la. Como você vê, meu caro Mason, vamos ter uma manhã de trabalho pesado, e não sei o que é dormir há duas noites. Se meter esta garrafa no bolso, ela ajudar-me-á a conservar-me acordado.

     Mason ergueu-se e apoderou-se da garrafa.

     – Sim, mas, guardando-a na gaveta, tenho a certeza de que você não ultrapassará a dose, disse ele.

     – Bem. Nesse caso nada me impede de descer e ir buscar o fotógrafo.

     E, deixando-se resvalar do braço da cadeira, atravessou o escritório e saiu para o gabinete exterior.

     Voltou daí a cinco minutos com um fotógrafo que trazia uma máquina metida num estojo, numa das mãos e na outra um tripé.

     O fotógrafo não perdeu tempo em saudações; pôs-se logo a examinar o gabinete com olhos hábeis em assuntos de iluminação.

     – Que classe de tipo tem essa jovem? – perguntou.

     – Bastos cabelos loiros, disse Mason, olhos negros, fisionomia altiva, um belo tipo. Não terá dificuldades com ela. É perita em colocar-se do modo que mais a favoreça.

     – Eu quero-a nessa cadeira de couro, disse o fotógrafo.

     – É onde vai sentar-se, respondeu-lhe Mason.

     O fotógrafo levantou as cortinas das janelas, armou o tripé e pôs a máquina em foco, deitando um pouco de pó de magnésio no detonador.

     – Por que não usa lâmpadas elétricas? – perguntou Mason, observando interessado o fotógrafo. – Parece-me que o trabalho sairia mais bem feito, além de que não deixa a sala cheia de fumo.

     – Deve perguntar isso a essa ave de olhos de águia, que é quem leva a conta das despesas, disse o fotógrafo. – Além disso, aqui é o seu escritório e a nós pouco nos preocupa o fumo.

     Nevers piscou o olho para Mason.

     – Por aí pode ver o doce espírito de colaboração que existe entre nós, os do Star, disse ele.

     O advogado ergueu os olhos para o teto e murmurou:

     – Calculo que terei de sair daqui, durante, pelo menos, meia hora, simplesmente porque os meus caros amigos querem poupar o custo de uma lâmpada elétrica.

     – Dê a este uma golada da sua garrafa, pediu Nevers, e pode ser que assim ele não carregue muito no magnésio.

     Mason passou a garrafa ao fotógrafo.

     – Escute, Mason, disse Nevers, meio intrigado, de vez em quando tenho a impressão de que você está preparando uma das suas.

     – Não se engana, respondeu-lhe Mason.

     Nevers fez um sinal ao fotógrafo.

     – Magnífico, Bill, disse ele, é melhor tirarmos, desde já, uma fotografia do advogado sentado à mesa.

     – Não gaste as suas películas à toa, protestou Mason. – O jornal não quererá estampar o meu retrato, a não ser que ele faça parte de uma cena do tribunal, ou caminhando pela rua, com Frances Celane, ou coisa parecida.

     Harry Nevers contemplou-o pensativamente, e disse, na sua voz monótona:

     – Quem sabe! Isso depende da peça que você vai montar. Você ultimamente teve dois belos triunfos e quero ter o seu retrato à mão, para o caso de que venhamos a precisar dele. Não se pode prever o futuro...

     Perry Mason olhou astutamente para ele.

     – Em outras palavras, disse, você ouviu por aí qualquer coisa a respeito da minha possível prisão como adenda à história que está a desenrolar-se?

     Nevers deu com a língua um estalido seco e arrastado.

     – Você é muito esperto, meu caro Mason. Mas é preciso reconhecer que você emprega meios engraçados para defender os seus clientes. Agora, que você se referiu a isso, parece-me que devo ter ouvido algo sobre uma certa quantia de dinheiro roubado que você recebeu como honorários, e que não restituiu.

     Mason sorriu com desdém.

     – Se eu tivesse recebido algum dinheiro, em que linda situação deixaria a minha cliente, caso fosse ao gabinete da promotoria, e, depositando o cobre em cima da mesa, dissesse virtuosamente: aqui está ele.

     – Você recebeu de fato alguma nota de mil dólares da sua cliente? – perguntou Harry Nevers, no tom de quem faz uma pergunta, sem esperança de resposta.

     Perry Mason fez um gesto com a mão.

     – Se eu recebi dinheiro, ou devo tê-lo comigo, ou então estará em qualquer parte, aqui, no escritório. E este já foi vasculhado de cima abaixo.

     – Hoje de manhã? – perguntou Nevers.

     – Não, durante a noite passada.

     Nevers virou a cabeça para o fotógrafo.

     – É melhor tirares três fotografias, Bill, disse. – Uma, sentado à mesa, outra de pé, e uma de primeiro plano.

    

     Frances Celane sentou-se na enorme poltrona de couro preto, olhou para a câmara fotográfica sobre o tripé, fitou o rosto de Mason e esboçou um sorriso melancólico e patético.

     – Conserve o sorriso, pediu o fotógrafo.

     – Espere um minuto, disse Nevers. – Queremos dar a isto um certo atrativo sexual; para isso, preciso de um pedacinho de perna.

     Frances Celane continuou a sorrir melancolicamente.

     – Estendeu para baixo a mão esquerda, e ergueu a orla da saia uma ou duas polegadas.

     – Olhe para a objetiva, pediu o fotógrafo.

     Harry Nevers antepôs-se.

     – Espere um pouco. Ainda não está direito. Quero um pouco mais de perna.

     O sorriso desapareceu do rosto da jovem, e seus olhos negros fuzilaram raivosos. Baixou-se e, arrebatadamente, ergueu a saia para cima do joelho.

     – Assim é demais, Miss Celane, advertiu o fotógrafo.

     – Ora o engraçadinho – esbravejou ela, dirigindo-se a Nevers. – Não era as pernas que queria, seu malcriado?! Pois aqui as tem.

     Mason interveio pacientemente.

     – Procure compreender, Miss Celane, que estes homens estão auxiliando-nos amistosamente para solucionarmos o nosso caso. Eles querem ver se lhe podem fazer uma publicidade favorável, mas, para isso, precisam de fotografias que despertem o interesse do público. Assim sendo, seria muito vantajoso para o seu caso, se você quisesse ter a bondade de esboçar um sorriso e ao mesmo tempo mostrar-se o bastante sob um aspecto que agradasse aos olhos masculinos.

     Pouco a pouco, o fulgor irritado dos olhos da jovem desvaneceu-se. Puxou a saia até abaixo do joelho, e outra vez o melancólico e patético sorriso lhe assomou aos lábios.

     – Assim, está magnífica, disse Nevers.

     – Não se mova, disse o fotógrafo, e logo: – Não pisque os olhos.

     Um clarão deslumbrador.

     Uma chama ergueu-se do detonador e uma pequena nuvem de fumo retorceu-se e girou sobre si mesma, enquanto subia para o teto.

     – Ótimo – disse o fotógrafo – vamos tirar outra com uma ligeira modificação na pose. Segure um lenço com a mão esquerda, como se tivesse chorado, e faça uma cara desconsolada. A boca um pouco contraída, um momentinho. Cubra um pouco as pernas.

     Frances Celane inflamou-se:

     – Que pensa o senhor que eu sou, uma atriz, ou um manequim?

     – Magnífico, disse Mason conciliador. – É preciso corrigir esses seus ímpetos, Miss Celane. Quero pô-la de sobreaviso, para que domine esse seu temperamento. Se se exalta e mostra esse mau gênio, os repórteres dos jornais descrevem-na como uma mulher-tigre. Isso será muito desfavorável para a sua causa. O que tento é conseguir um rápido julgamento, com uma absolvição, o mais depressa possível. Precisa cooperar comigo, caso contrário terá surpresas desagradáveis.

     Ela olhou para Perry Mason, suspirou, e tomou a pose que lhe fora sugerida.

     – O queixo um pouco mais baixo e para a esquerda, disse o fotógrafo. – Os olhos para o chão, mas não tanto, para não parecer que estão fechados. Recue um pouco o ombro, de modo que eu possa ver a curva da sua garganta. Muito bem, está perfeito. Não se mova.

     Outra vez um estalido do obturador, e o relâmpago do magnésio expelindo fumo branco.

     – Ok – disse o fotógrafo. – Fotografias esplêndidas.

     Perry Mason dirigiu-se ao telefone.

     – Dê-me ligação para Claude Drumm, gabinete da promotoria, pediu.

     Quando aquele atendeu, disse-lhe.

     – Estou muito aborrecido, Drumm, mas Miss Celane está muito indisposta. Teve uma forte crise nervosa e foi internada num sanatório pelo médico. Saiu de lá para se ir apresentar aí, quando soube que a polícia a procurava. Está aqui, no meu gabinete, e sente-se muito abalada. Acho que seria melhor você vir buscá-la aqui.

     – Julguei que você tivesse dito que ela saíra do seu escritório, quando me telefonou há pouco, disse Drumm em cuja voz transpareciam indícios de contrariedade.

     – Não, disse Mason, você não me entendeu. Eu disse que ela se dirigia para o seu gabinete. Eu disse-lhe que não sabia se ela faria escalas pelo caminho. Ela estava nervosa, e deteve-se aqui, porque queria que eu fosse com ela.

     – Muito bem, disse Drumm. – A polícia irá aí.

     E cortou a comunicação.

     Mason voltou-se para Nevers e piscou-lhe o olho.

     – Se eu lhes tivesse deixado perceber que ela viria aqui para se entregar espontaneamente, eles teriam mandado um homem esconder-se na vizinhança, para deitar-lhe a garra antes que ela chegasse aqui, disse Mason.

     – Está claro, disse Nevers, isso faz parte do jogo. Posso aceitar outra dose de whisky, se você o tem aí à mão.

     – Também aceito, disse Fran Celane.

     Mason sacudiu a cabeça para ela, reiteradamente.

     – Não, dentro de poucos momentos estaremos metidos em plena ação, e não quero que o seu hálito rescenda a álcool, Miss Celane. Não se esqueça de que as menores coisas que fizer, todas as palavras que disser, tudo, será dissecado e comunicado ao público.

     “Agora, devo lembrar-lhe que, em qualquer circunstância que seja, não deve falar sobre o caso, nem deixar-se arrastar pelo seu gênio. São duas coisas que não deve esquecer. Fale no que quiser, forneça aos repórteres abundante material.”

     “Encha-os de pormenores sobre o romance do seu casamento secreto com Rob Gleason. Diga-lhes quanto o admira, e que homem encantador ele é. Refira-lhes coisas da sua infância, conte-lhes a morte de seus pais, e explique-lhes que seu tio foi para si um pai e uma mãe. Procure fazê-los compreender a tristeza de uma pobre menina rica, sem pai nem mãe, mas que é rica.”

     “Forneça-lhe todos os elementos necessários para que eles possam escrever artigos enternecedores, anedotas características e outras bagatelas. Mas, no momento em que eles tocarem no caso, ou sobre o que aconteceu naquela noite, feche a boca como se tivesse os lábios grudados. Diga-lhes que está sumamente contrariada por nada lhes poder dizer, que muito lhe agradaria falar sobre o assunto, e que não vê motivos para não o fazer, mas que o seu advogado lhe deu instruções precisas a tal respeito. Confesse-lhes que isso lhe parece tolice e que não compreende o pensamento do seu advogado, porquanto você nada tem a ocultar, e que muito lhe agradaria expandir-se completamente e contar todos os incidentes de que se lembra, mas que se comprometeu com ele e que de modo algum quebraria os seus compromissos.”

     “Com toda a certeza, eles tentarão uma série de ardis com você, como, por exemplo, dizer-lhe que Rob Gleason fez uma confissão plena ou então que ele disse aos investigadores que tem motivos para crer que você cometeu o crime, ou então que você fez certas acusações injustas contra ele e mesmo podem contar-lhe que ele chegou à conclusão que você é culpada, e fez uma confissão, visando lançar a confusão no assunto, para ilibá-la. Empregarão toda a espécie de manobras. Contente-se simplesmente em olhá-los como se fosse muda e nada diga. Mas, pelo amor de Deus, não se deixe levar pelo seu temperamento. É mais do que certo que eles farão coisas que lhe darão vontade de matá-los, mas, se você der asas ao seu temperamento e tiver um dos seus acessos de raiva, eles mal terão tempo para se estender, nas primeiras páginas dos seus jornais, em explanações a respeito do seu gênio tempestuoso e apresentá-la-ão como uma mulher-tigre.”

     – Compreendo – disse ela.

     Ouviu-se a estridência de uma sereia, ressoando no ar.

     Frances Celane estremeceu.

     – Bem, disse Nevers ao fotógrafo, pode carregar outra vez a máquina, porque alguns desses meninos querem apreciar os seus retratos nos jornais. Garanto que Carl Serward quererá mostrá-los aos da Brigada de Homicídios. É um desses pássaros que gostam de postar-se na frente de uma máquina fotográfica, com o gadanho espalmado no ombro do detido, e figurar numa fotografia de primeira página, com a legenda: “Carl Seaward, o intrépido investigador da Brigada de Homicídios, prendendo o suspeito, último ato de um caso que desorientou inteiramente a polícia, durante as últimas quarenta e oito horas”.

     “Talvez seja melhor eu figurar também nessa fotografia, continuou Nevers. – Bem quisera eu saber se os meus cabelos estão direitos. Posso aparecer como o repórter do Star, que ajudou a polícia a localizar o suspeito.”

     E Nevers ensaiou uma atitude diante da máquina.

     Frances Celane fitou-o numa apreciação desdenhosa.

     – Mostre um pedaço de perna, disse-lhe.

    

     Paul Drake sentou-se com uma perna por cima do canto da mesa de Perry Mason e tirou um pouco de tabaco de uma bolsa de tela, que enrolou com seus dedos ágeis numa mortalha.

     – Muito bem, disse ele, já tomamos contato com Mrs. Mayfield. Mas, por enquanto, nada de interessante pudemos tirar dela. As coisas têm estado como o diabo. A polícia vigia-a como testemunha material, e sabe-se lá por quanto tempo.

     – Já fez as sombras misteriosas trabalharem? – perguntou Mason.

     – Ainda não. Estamos trabalhando para isso. Encarregamos desse serviço uma mulher muito ativa que se apresentou como tendo sido governante e que se achava agora sem trabalho. Pusemos essa mulher no caminho de Mrs. Mayfield, para descobrir tudo a respeito dela e dos seus associados.

     “Estamos manobrando a fim de apanharmos um destes para fazê-lo vomitar tudo o que souber, a respeito dela, acerca dos nomes das pessoas com quem ela se dá, e toda a espécie de dados possíveis.”

     – Essa mulher já conseguiu alguma coisa? – perguntou Mason.

     – Estou quase a dizer que sim. Para começar, já obteve confidências de Mrs. Mayfield, tudo o que diz respeito às tricas com o marido, e outras bagatelas.

     – Mas não falou ainda sobre o assassínio? – perguntou Mason.

     – Nem a brincar. Isto é, disse de passagem que tinha sido levada ao gabinete do promotor e que lá a retiveram algum tempo como testemunha, até que assinasse o seu depoimento, e mais outras coisas sem importância. Mas não entrou em pormenores. Tudo o que disse foi apenas um resumo do que dissera aos jornalistas.

     – E sobre Don Graves? – perguntou o advogado.

     Paul Drake deu o último retoque ao seu cigarro.

     – Aí sim, fizemos alguns progressos reais, disse ele. – Conseguimos uma jovem senhora decidida, que se pôs em contato com ele, e Graves está louco por ela, como formiga por açúcar. Conta-lhe tudo o que sabe.

     – Sobre o nosso caso? – perguntou Mason.

     – Sim, senhor, sobre o nosso caso, e sobre qualquer caso. Ela vira-o do avesso.

     – Deve ser estupenda, essa mulher, disse Mason.

     – Isso sei eu, exclamou Drake, com entusiasmo. – Ela é capaz de lhe arrancar os olhos sem que você perceba.

     “É uma especialista em confidências que se chega a você, e parece ouvir tudo o que você lhe diz, olhando-o com uns olhos muito abertos. A gente, naturalmente, fica rebentando para lhe contar tudo o que tem cá dentro. Por Deus! Até eu, todas as vezes que saio com essa pequena, acabo por lhe contar todos os meus aborrecimentos; até já lhe falei de uma rapariga que foi minha namorada quando eu era rapazola, e por culpa de quem nunca me casei; isso e muitas outras tolices.”

     “Você sabe mais ou menos o que acontece depois do nono trago, quando tudo anda à roda e a gente fica com comichão na garganta para contar a qualquer estranho os próprios negócios particulares? Bem. Pois é exatamente o que acontece com essa pequena. Deixa a sua vítima como se ela tivesse tomado nove doses. O tipo fica todo caído por ela, e conta-lhe tudo.”

     – Ótimo, disse Mason. – E que foi que descobriu?

     – Muita coisa. E até mesmo coisas que você não gostará de ouvir. Porque, francamente, não ajudarão a sua cliente.

     – Não faz mal, disse Mason. – Dê-me as notícias e não precisa de adoçá-las. Quero os fatos.

     – Os fatos são os seguintes: Miss Celane estava com um negligé cor-de-rosa, na noite do crime. Graves foi mandado, por Edward Norton, com o Juiz Purley e Arthur Crinston, a casa deste, a fim de trazer alguns documentos.

     “Aconteceu-lhe olhar para trás, na direção da casa, no momento em que o carro chegava a uma curva da estrada, de onde se avista a janela do escritório de Edward Norton, tendo ele visto então alguém, de pé, por trás de Norton, que estava sentado à sua mesa de trabalho.”

     “Mais ainda, disse que viu o homem descarregar uma paulada na cabeça de Norton, e este tombar sobre a mesa.”

     “Disse que viu o braço, o ombro e a cabeça de uma mulher, e assegura, de modo positivo, que pode identificar o homem e a mulher. A mulher vestia um negligé cor-de-rosa.”

     – Ele fez essa declaração no gabinete do promotor? – perguntou Mason.

     – Sim, e assinou a declaração.

     – Não foi essa declaração que fez inicialmente – observou Mason. – Quando a polícia realizou as primeiras investigações, Graves disse que vira o homem que vibrou o golpe, mas que não viu ninguém mais, a não ser Norton.

     – Isso nada adianta, disse Drake, descuidadamente. – Você nada poderá provar.

     – A polícia taquigrafou a declaração, disse Mason.

     Drake sorriu.

     – Essas notas devem estar perdidas a esta hora. Previno-o, para seu governo. Propositadamente pedi a um repórter que se informasse, junto do taquígrafo, que fim levara a declaração estenografada naquela noite. Por mais estranho que pareça, aconteceu qualquer coisa, e o caderno das notas não estava no seu lugar. Sumiu-se.

     Piscou o olho para o advogado.

     Perry Mason circunvagou o olhar pela superfície da mesa, franzindo a testa num vinco de intensa concentração.

     – Corja de desavergonhados, disse ele. – Os promotores vivem eternamente bradando aos céus contra os advogados trapaceiros que desvirtuam os fatos. Mas todas as vezes que descobrem uma prova que favorece um pouco o advogado da defesa, pode-se ficar certo de que acontece qualquer coisa e a prova desaparece.

     O detetive encolheu os ombros.

     – O que o promotor quer são provas de acusação – disse ele.

     – A sua encarregada não poderia penetrar no quarto de Mrs. Mayfield, em casa dos Norton, Paul? – perguntou Mason.

     – Naturalmente. Isso para ela é fácil.

     – Muito bem, quero que ela me faça um relatório dos vestidos que encontrar lá. Em outras palavras, quero saber se existe por lá um vestido cor-de-rosa, ou um negligé desse tom.

     Paul Drake olhou de soslaio, para Mason.

     – Não me parece que seja coisa do outro mundo introduzir-se uma pessoa lá, disse ele.

     – Não, disse Mason, prefiro jogar limpo.

     – Quais são as regras do jogo limpo? – perguntou Drake. – Eles com você não jogam limpo.

     – Não quero socorrer-me desses recursos. Creio ter achado uma boa saída para este caso, e vou jogar limpo e de boa fé com eles. Estou certo de que lhes poderei dar na cabeça, se seguir esta trilha.

     – Ouça, disse Paul Drake, levantando os pés até pô-los em cima da mesa e sentando-se no canto desta, você não achou saída para este caso. Eles é que vão agora levar a sua cliente a uma boa condenação. Veja o que fizeram com ela. Ela era a única pessoa que beneficiava com a morte do velho.

     “Efetivamente, com aquele casamento a pesar-lhe no ombro, tinha de escolher uma de duas; ou matar o tio, ou perder uma fortuna do valor de uma mina de ouro.”

     “Aquele camarada Gleason bem pode ter casado com a rapariga porque gostava dela, ou porque queria os cobres da noiva. Ninguém sabe se foi por aquele motivo ou por este, mas é claro que é mais provável que fosse o último. A teoria da acusação vai ser que, quando descobriu as cláusulas do depósito, ele e a rapariga foram ter um entendimento com Norton. Quando este não lhes quis ouvir as razões, Gleason perdeu a cabeça e pôs-se a discutir. Tiveram uma formidável altercação. Teria matado Norton naquele momento, se não fosse a chegada oportuna de Crinston. De modo que Gleason ficou por ali, esperando até que Crinston se retirasse, e então arrombou uma janela para fingir que ela fora forçada por gatunos vindos do lado de fora. Depois disso, entrou e partiu a cabeça de Norton. Provavelmente, nesse momento, ainda não tinha pensado em roubar. Queria simplesmente simular um roubo, razão pela qual virou do avesso os bolsos da vítima.”

     “Verificando a existência de uma grande quantia, decidiu apropriar-se dela. Foi nessa altura que ouviu Crinston e teve de apressar-se. Sabia que o motorista estava bêbado, por isso desceu e atirou todas as provas sobre ele.”

     “Frances Celane estava com Gleason, no momento do crime. Ela tem um gênio dos diabos, quando se indispõe.”

     “Provavelmente, estaria furiosa, mas Gleason casou-se com ela pelo dinheiro. Da parte dele, foi um crime deliberado. Ele, com toda a certeza, planeou a farsa dos gatunos, enquanto Crinston conversava com Norton. Quando ouviu que o automóvel vinha de volta deu-se conta de que devia ter sido visto, ou que algo não estava certo e então comprometeu o motorista, para ter outra corda na viola.”

     Perry Mason fixava o detetive com olhos frios e duros.

     – Paul, disse-lhe, se eles forem ao tribunal com essa teoria, eu deixo-os de patas para o ar.

     – Você não deixará ninguém de patas para o ar, retorquiu Drake. – Eles têm uma porção de provas circunstanciais.

     – Já a apanharam em meia dúzia de contradições. Por que disse ela ter saído no Buick, quando não foi a parte alguma?

     – Eles têm provas de que o carro nunca saiu da garagem. Mrs. Mayfield espraiou-se muito neste ponto, e o mordomo jurou solenemente que o carro não saiu dali em momento algum. Eles podem provar a quem pertence a bengala com que mataram Norton, e provar que a rapariga tem em seu poder parte do dinheiro que tiraram ao velho...

     Perry Mason retesou-se com atenção redobrada.

     – Eles podem provar que a rapariga tem o dinheiro? – perguntou.

     – Sim, disse Drake.

     – Como?

     – Não sei exatamente como, mas sei que isso faz parte do processo. Eles têm trabalhado muito no assunto. Creio que souberam disso por Mrs. Mayfield.

     – Bem, disse Mason, cansado, teremos uma probabilidade para resolver satisfatoriamente o caso. Quero ver se obrigo esses senhores a levarem o processo para julgamento.

     – Quer forçá-los a um julgamento imediato? – exclamou Drake. – Pois pensei que você queria protelar o assunto.

     – É o que dizem os periódicos.

     Perry Mason piscou-lhe o olho.

     – Pois claro; foi o meio que empreguei para levá-los a um julgamento imediato, disse ele. Vivo clamando por adiamentos, e pedindo prazos adicionais, como se os meus clientes ficassem atolados no caso de o não conseguir. Como é natural, eles opõem-se a esses meus pedidos. Depois de ter ido ao gabinete do promotor, para tornar essa oposição o mais rigorosa possível confessar-me-ei vencido, e deixá-los-ei levar o caso a julgamento.

     Drake meneou a cabeça.

     – Não cairão nesse laço, disse. – É demasiado velho.

     – Não parecerá velho do jeito que eu o armo. O que quero é que você inicie o jogo das sombras misteriosas com Mrs. Mayfield, e também com Don Graves. Quero ver se, assustando-os, conseguimos tirar deles algumas informações. Nenhum deles disse a verdade, até agora. E quero descobrir mais alguma coisa a respeito daquele dinheiro, ou seja, se o promotor tem provas ou apenas suspeitas.

     – Eu sei, o que você quer é atirar as culpas do crime para cima de Mrs. Mayfield e do marido? – perguntou Drake.

     – Procuro defender a minha cliente com a maior habilidade que estiver ao meu alcance.

     – Bolas! – replicou o detetive. – Conheço esses manejos. Mas o que quero saber é o que você pensa de tudo isso.

     Mason bateu um cigarro na superfície polida da mesa.

     – O melhor caminho para se chegar ao conhecimento exato de um assassínio, explicou ele, é não desprezar nenhum fato concernente a ele, que não tenha sido bem explicado, e descobrir-lhe a verdadeira explicação.

     – Claro, disse Drake. – Mas isso é apenas outro lugar comum. Falemos mais claro. Que pensa você a tal respeito?

     – Penso nos motivos que Norton teria para denunciar que o Buick fora roubado, disse Mason.

     – E que tem isso a ver com o resto? – interrogou Drake.

     – Muita coisa, insistiu Mason. – É um fato inexplicável no caso e, enquanto não tivermos dele uma explicação satisfatória, não podemos ter a solução do assassínio.

     – Não há dúvida que isso constituirá um bom quebra-cabeças para o júri, comentou o detetive. – Mas, afinal de contas, não tem significado algum. Não é possível ter uma explicação para tudo, em todo o caso. Você sabe disso.

     – Enquanto não pudermos explicar o fato, insistiu Mason teimosamente, não poderemos considerar o caso resolvido. E lembre-se, também, de que este libelo repousa somente sobre provas circunstanciais. Corretamente, só é permitido firmar uma convicção baseada em provas circunstanciais depois de ter excluído todas as hipóteses razoáveis, além das que estabelecem a culpabilidade.

     O detetive fez estalar os dedos.

     – Pura conversa de rábula, disse ele. – Tudo isso nada vale para a imprensa, e os jornais são os únicos que podem estabelecer se os seus clientes são ou não culpados.

     – Pois bem, antes de terminarmos este caso, afirmou Mason, os jornais reconhecerão que o assunto daquele automóvel Buick é o fato mais importante de todo o processo.

     – Mas o automóvel não foi roubado! Não saiu da garagem.

     – Foi o que o mordomo declarou.

     A fisionomia de Drake tomou subitamente uma expressão de concentrada atenção.

     – Você crê que o mordomo tenha mentido? – perguntou.

     – Até agora, não tive conhecimento exato de nenhuma declaração – disse Mason.

     Drake respondeu como quem pensa em voz alta.

     – Naturalmente, se o mordomo saiu no automóvel, desligou o contador de percurso, utilizando o carro, talvez, para uma pequena corrida, e Norton telefonou para a polícia dizendo que o carro fora roubado, e o homem queria tirar o condutor do apuro, por qualquer meio que fosse; e, quando o mordomo voltou, soube da chamada telefônica...

     A sua voz arrastou-se até emudecer. Permaneceu sentado, imóvel, uns minutos, e depois abanou a cabeça.

     – Não, Perry, disse, é trabalho perdido.

     – Muito bem, replicou Mason, sorrindo. – Não lhe perguntei se é trabalho perdido ou não. Quero é que você me consiga esclarecimentos. Vamos, seu agoureiro, desça da minha mesa, e deixe-me trabalhar. Ponha as suas sombras misteriosas à baila assim que puder. Estou ansioso por saber o que elas descobrirem.

     – Você é advogado de ambos, do Gleason e da mulher? – perguntou Drake.

     – Sim, agora sou. Frances Celane está firme ao lado do marido. Pediu-me que o defendesse também a ele.

     – Entendidos. Agora, quero que me diga algumas coisas que me foram perguntadas por meia dúzia de pessoas. Espero que você não se ofenda, porque o faço em seu próprio benefício, porquanto todos na cidade falam a respeito do assunto.

     “Dizem por aí que, se o advogado da defesa tivesse um pouco de bom-senso, ele deveria tentar dividir os dois processos, e defender o marido e a mulher isoladamente. Nessas condições ele faria julgar primeiro o marido, e assim teria probabilidades de conhecer todas as provas que apresentassem e de examinar detidamente todas as testemunhas da acusação, antes de se proceder ao julgamento da mulher.”

     – Não me é possível separar os dois julgamentos, disse Mason. – O tribunal não permitiria isso.

     – Bem, mas, pelo menos, você poderia fazer uma tentativa.

     – Não. Bem pensado, fico mais satisfeito que as coisas sigam este curso. Penso que devem ser julgados juntos.

     – Ok – disse Drake. – Você é o advogado. Vou pôr as sombras misteriosas na dança, assim que puder.

    

     Perry Mason apareceu na porta da sala de visitas do vasto edifício da prisão.

     – Desejo falar com Robert Gleason, pediu ele ao guarda de serviço.

     – É o advogado de Robert Gleason? – perguntou aquele.

     – Sim.

     – Mas o senhor não figurou como advogado dele, quando ele veio para cá.

     Perry Mason franziu as sobrancelhas.

     – Agora sou o advogado dele – disse. – Prefere fazê-lo vir aqui ou quer que eu me dirija ao tribunal e denuncie que os encarregados do serviço me recusaram permissão para eu falar com o meu cliente?

     O guarda olhou para Mason, levantou os ombros, rodou sobre os calcanhares, sem dizer uma palavra, e desapareceu.

     Cinco minutos mais tarde, abriu a porta e acompanhou Mason até à sala de visitas.

     No centro da sala, havia uma mesa, que a atravessava de um extremo ao outro. Pelo meio da mesa, estendia-se, dividindo-a, uma rede de fortes grades de ferro, com a altura de cinco pés. O detido sentava-se num dos lados da rede, e o advogado do outro lado. Robert Gleason estava sentado ao centro da mesa. Quando viu Mason aproximar-se, pôs-se de pé e sorriu-lhe angustiadamente. Mason esperou que o guarda se afastasse, até onde não o pudesse ouvir e então deixou-se cair na cadeira, e olhou perscrutadoramente para o homem acusado de homicídio.

     – Fale em voz baixa, quando responder às minhas perguntas, Gleason, disse Mason, e diga-me a verdade. Seja lá o que for, não tenha medo de me dizer a pura verdade.

     – Sim, senhor, disse Gleason.

     Mason olhou-o de testa franzida.

     – Fez alguma declaração ao promotor? – perguntou.

     Gleason disse que sim com a cabeça.

     – Uma declaração escrita?

     – Foi tomada taquigraficamente por um escrivão do tribunal, e, depois de traduzida, foi-me dada para assinar.

     – E assinou-a?

     – Ainda não.

     – Onde está ela?

     – Na minha cela. Deram-me para que a lesse. Isto é, deram-me uma cópia.

     – É curioso isso, disse Mason. – Habitualmente, eles empenham-se em fazer que o depoente firme logo. Não lhe dão nenhuma cópia.

     – Estou a par disso, observou Gleason, e não me deixei cair no laço. Eles tentaram fazer-me assinar, mas eu objetei-lhes que primeiro queria pensar.

     – Isso não lhe trará nenhuma vantagem, respondeu o advogado, aborrecido, se você fez declarações perante um taquígrafo judicial. Ele deve ter assentado tudo o que você disse, e poderá testemunhar, de acordo com as notas.

     – Foi isso mesmo que o procurador me disse, observou Gleason. – Mas, de qualquer forma, não assinei.

     – Por que não?

     – Porque, disse Gleason em voz baixa, creio que vou repudiar o que disse.

     – Você não pode fazer tal coisa, retorquiu o advogado. – Por que diabo não calou você a boca?

     – Poderei fazê-lo, sim, da maneira como pretendo agir.

     – De que modo?

     – Repudiando a confissão.

     – Muito bem, explique-me, pediu o advogado.

     – Pretendo assumir a inteira responsabilidade do assassínio – respondeu-lhe Gleason.

     Perry Mason contemplou o rapaz através da grosseira grade que os separava.

     – Foi você quem cometeu o crime?

     Gleason cerrou os lábios e moveu a cabeça de modo que os seus olhos não se encontrassem com os do advogado.

     – Responda, ordenou Mason. – Diga tudo e fale claro. Olhe-me de frente e responda à minha pergunta. Foi você quem praticou o crime?

     Rob Gleason agitou-se, contrafeito, na cadeira.

     – Acho melhor não responder por enquanto a essa pergunta.

     – Tem de responder, replicou Perry Mason.

     Gleason umedeceu os lábios nervosamente com a língua, e inclinou-se para a frente, de modo que o seu rosto ficou quase colado à grosseira grade de ferro.

     – Posso fazer-lhe algumas perguntas antes de responder à sua? – perguntou.

     – Sim, disse Mason, pode fazer-me as perguntas que quiser, contanto que fale sinceramente, antes que eu me retire. Se devo atuar como seu advogado, preciso saber o que aconteceu.

     – No gabinete do promotor disseram-me que Frances tinha sido apanhada com parte do dinheiro que Mr. Norton trazia consigo, no momento em que o mataram.

     – Não deve acreditar em tudo que lhe disserem no gabinete do promotor, respondeu-lhe Mason.

     – Sei isso. Mas a questão é esta: tinha ela ou não esse dinheiro?

     – Vou responder-lhe a essa pergunta, fazendo-lhe outra, disse Perry Mason. – Mrs. Mayfield declarou, perante o promotor, ter em seu poder dinheiro recebido de Frances Celane?

     – Não sei – respondeu Gleason.

     Perry Mason, escolhendo cuidadosamente as palavras, disse:

     – Se, na promotoria, existe alguma prova de que Frances Celane tinha parte daquele dinheiro, essa prova foi fornecida por Mrs. Mayfield. Em outras palavras, eles terão encontrado esta com dinheiro, e ela descarregou a responsabilidade sobre Frances Celane. Agora, se a coisa foi assim, existem exatamente as mesmas razões para acreditar que Mrs. Mayfield estivesse no quarto no momento do crime e retirou o dinheiro do corpo do defunto, que as que incriminam Frances Celane.

     – Terão eles a certeza de que havia uma mulher no quarto, no momento do assassínio? – inquiriu Gleason.

     – Don Graves disse que havia.

     – Não foi o que ele disse na primeira noite.

     – Não podemos provar o que tenha dito naquela primeira noite, porque a polícia fez desaparecer as notas da sua declaração.

     – Ele diz agora que havia lá uma mulher?

     – Sim, disse haver lá uma mulher. Creio que disse estar lá uma mulher vestida com um negligé cor-de-rosa.

     – Pôde vê-la o bastante para poder identificá-la?

     – Ele viu-lhe o ombro e o braço e parte da cabeça, provavelmente a parte de trás da cabeça.

     – Então, Mrs. Mayfield procura atirar as culpas do crime sobre Fran? – perguntou Rob Gleason.

     – Não disse isso – protestou Mason. – Estou lhe relatando os fatos tal qual os conheço. Se a promotoria tem provas da existência do dinheiro, isso só pode provir dela.

     – Acha que tem muitas probabilidades de fazer despronunciar Fran? – perguntou Rob Gleason.

     – Nunca podemos saber o que o júri fará. Ela é jovem e atraente. Se conseguir dominar o seu temperamento, e não fizer declarações prejudiciais, acho que terei muitas probabilidades de solucionar bem o caso.

     Gleason olhou durante alguns minutos para o advogado, através das grades, e depois disse:

     – Muito bem; em compensação eu não sou atraente. Não tenho nenhuma das vantagens que Frances tem. Acha o senhor que tem muitas probabilidades de me safar deste embrulho?

     – Isso depende das saídas que eu possa achar e também do que você possa ter dito ao promotor, disse Mason. – Agora vou dizer-lhe o que quero que você faça. Volte para a sua cela e peça umas folhas de papel. Diga que quer escrever pelo seu próprio punho sobre os acontecimentos. Pegue nesse papel e rabisque algumas páginas com uma porção de divagações sem significação e depois rasgue-as. Faça-os acreditar que gastou todo o papel, mas no que sobrar faça uma cópia da declaração que o promotor lhe deu para assinar. Quero saber exatamente o que você disse ou que não disse.

     Rob Gleason, por duas vezes, tragou abundantemente a saliva.

     – Se não conseguir uma justificação, disse ele acha que eles poderão pronunciar Fran?

     – Naturalmente, pois pesa sobre ela uma acusação de assassínio em primeiro grau, e, além disso, existem algumas circunstâncias que não são nada boas.

     – E acha que eles a executarão?

     – Provavelmente, não. O mais provável é que ela salve a vida. Por via de regra, não executam mulheres.

     – Compreende o que significa para uma jovem ardente como ela é, e com o seu temperamento, ser encerrada numa penitenciária para o resto da vida? – perguntou Gleason.

     Perry Mason sacudiu a cabeça, com impaciência.

     – Naturalmente que compreendo. Não nos preocupemos com isso agora. Vamos aos fatos. Diga-me: você matou ou não matou Edward Norton?

     Gleason tomou uma profunda inspiração.

     – Se o caso começa a apresentar-se desesperado para Fran, disse ele, confessarei.

     – Confessará o quê? – perguntou Mason.

     – Confessarei que matei Edward Norton; confessarei que me casei com Frances Celane pelo seu dinheiro; que não lhe ligo importância. Gostava bastante dela, mas não a ponto de enlouquecer. Ela possuía uma enorme soma de dinheiro, e isso, para mim, era uma boa pechincha. Precisava tanto de dinheiro que até me dispus a casar com ela, como de fato casei. Descobri então que, por se ter casado, seu tio tinha o direito de deixá-la quase sem vintém. Ele nada soube do casamento, até a noite em que morreu. Foi aí que ele soube de tudo. Estava resolvido a usar do direito que lhe conferiam as cláusulas do depósito, entregando tudo às instituições de caridade, deixando Fran apenas com uns miseráveis mil ou dois mil dólares. Fui procurá-lo e discuti com ele. Não quis ouvir razões. Fran chegou e também discutiu com ele e daí não saiu nada de bom. Foi então que Crinston chegou, e como eles tinham uma entrevista marcada, tivemos de deixar o nosso assunto para depois. Fran e eu descemos para o quarto dela. Lá nos sentamos e conversamos sobre a situação. Mrs. Mayfield apareceu e vinha furiosa. Ela fazia chantagem contra Fran, ameaçando contar o nosso casamento a Mr. Norton, a menos que lhe déssemos uma grande soma. Edward Norton já sabia do assunto e isso era para ela a morte da galinha dos ovos de ouro.

     “Ouvi Crinston partir. Ele levava Don Graves consigo. Saí para trocar uma última palavra com Mr. Norton. Ao subir ao seu gabinete, esbarrei, na escada, com Mrs. Mayfield.”

     “Ela trajava um negligé cor-de-rosa, e chorava silenciosamente o dinheiro que perdera. Eu disse-lhe que, se ela não perdesse o juízo, poderíamos ter montões de dinheiro. Ela quis saber o que eu queria dizer, e respondi-lhe que ia dar a Norton uma última possibilidade de resolver o caso. Se não quisesse chegar a um acordo, eu esmagar-lhe-ia a cabeça, de preferência a deixá-lo transferir o dinheiro de Frances para as instituições de caridade. Ela subiu a escada comigo e seguiu-me até ao gabinete. Apresentei um ultimato a Edward Norton.”

     “Disse-lhe que, se não entregasse a Frances o dinheiro dela, se arrependeria. Respondeu-me que não lhe daria um cêntimo; que entregaria tudo às instituições de caridade. Foi então que lhe descarreguei o golpe na cabeça. Revistei-lhe os bolsos, que continham uma gorda quantia. Arrecadei uma parte e Mrs. Mayfield a outra. Depois disso, estivemos a conversar acerca de um meio para fazer recair as culpas do assassínio sobre ladrões que tivessem vindo ali. Mrs. Mayfield disse que devíamos forçar uma janela e deixar umas pegadas sobre a terra mole. Eu propus fazermos recair a culpa sobre o motorista, que eu sabia estar bêbado. Enquanto estávamos falando sobre isso, vimos as luzes de um automóvel que descia a colina, e eu vi logo que era Crinston que voltava. Mrs. Mayfield desceu correndo e violentou a janela para simular que uns ladrões tinham entrado em casa, e eu fiz o mesmo para esconder a bengala e dois mil dólares no quarto de Devoe.”

     “Depois, tomei o meu carro e parti.”

     Perry Mason contemplava o rapaz, pensativamente.

     – Que fez do dinheiro que arrecadou?

     – Enterrei-o num lugar onde ninguém o achará, disse Rob Gleason.

     Perry Mason tamborilou com a ponta dos dedos na mesa.

     – Que Deus o ajude, disse ele, e perguntou: – Foi isso o que aconteceu?

     Gleason afirmou com a cabeça.

     – Digo-lhe isto confidencialmente. Estou procurando ver se consigo uma escapatória. Se a não conseguir, porei tudo em pratos limpos, para que Frances Celane não pague as culpas.

     – Tirou o Buick da garagem na noite do crime? – perguntou Mason. – Usou-o para alguma coisa?

     – Não.

     Perry Mason empurrou a cadeira para trás.

     – Muito bem, disse ele. – Agora vou dizer-lhe uma coisa. Se você se puser a impingir essa história, mandará Frances Celane para a cadeia para o resto da vida, se não conseguir que a enforquem. Provavelmente, conseguirá este último alvitre.

     Os olhos de Rob Gleason arregalaram-se.

     – Por tudo que há no mundo, que está dizendo? – perguntou.

     – Simplesmente, que ninguém acreditará nessa história, da forma que você a conta. Só acreditarão metade. Poderão acreditar que você cometeu o assassínio, mas logo verão que não era Mrs. Mayfield quem estava com você. Compreenderão que era Frances Celane e que você tenta protegê-la, metendo Mrs. Mayfield no embrulho.

     Gleason pôs-se de pé com as faces lívidas e os olhos muito abertos.

     – Deus de Misericórdia! Será possível que não possa salvar Frances dizendo a verdade?

     – Não com essa espécie de verdade, disse Perry Mason. – Agora, vá para a sua cela e prepare-me uma cópia do depoimento que o promotor quis que você assinasse. Nesse meio tempo, conserve o seu juízo e não diga nada a ninguém.

     – Nem sequer a verdade, como o disse ao senhor?

     – A verdade é a última coisa no mundo que você deve dizer, na situação em que se acha. Porque ninguém o acreditará se você disser a verdade, porquanto você é um mentiroso falhado.

     E, dito isso, rodou nos calcanhares, afastando-se da mesa dividida pela grade, sem volver os olhos para trás. O guarda abriu a porta e conduziu-o para fora da sala de visitas.

    

     Era esta a primeira vez que Frank Everly acompanhava Perry Mason ao Tribunal; a primeira vez em que se via diante das cenas de um grande processo por homicídio.

     Sentou-se ao lado de Perry Mason, olhando dissimuladamente para a sala do tribunal repleta, para os nove homens e três mulheres que se achavam na tribuna dos jurados.

     Em vão se esforçava por parecer tranqüilo, como se estivesse em sua própria casa; os seus modos traíam nervosismo.

     Perry Mason sentou-se à mesa da defesa, recostando-se na poltrona giratória, com o polegar esquerdo metido na cava do colete e a mão direita brincando com a corrente do relógio. O seu rosto era uma máscara fria de paciência enérgica. Ninguém poderia perceber qualquer indício da terrível tensão em que se encontrava.

     Por trás dele, sentaram-se os seus dois constituintes.

     Frances Celane, trajando um vestido negro, severo e adequado, com uma nesga branca e alguns toques vermelhos, com a cabeça erguida muito tesa, os olhos calmos e levemente provocantes. Robert Gleason estava nervoso, com o nervosismo de um atleta que tem de lutar pela própria vida, em circunstâncias que exigem passividade física. Seus olhos fulguravam com a chama sombria das emoções recalcadas.

     A cabeça agitava-se-lhe de quando em quando, ao volver-se para os vários oradores que interferiam no drama que tão intimamente o atingia.

     Na sala do tribunal, respirava-se a atmosfera peculiar que exalam as salas apinhadas, quando os espectadores se encontram em estado de emotividade inquieta.

     Claude Drumm era quem desempenhava as funções de acusador público, embora corresse o boato de que o próprio promotor viria em pessoa atuar no caso, quando o júri estivesse constituído e terminadas as usuais diligências.

     Drumm manteve-se de pé, durante todo o tempo em que se procedeu ao sorteio dos jurados. Era um homem alto, bem vestido e senhor de si, talvez mesmo um pouco agressivo, embora procurasse conter-se. Seus modos tinham o natural desembaraço de um profissional que se sente em sua casa e que se dirige firmemente para um determinado fim que tem a certeza de alcançar.

     O juiz Markham, sob o manto da sua austera dignidade judicial, mantinha-se numa atitude cautamente vigilante.

     Perry Mason tinha adquirido a reputação de ser capaz de “amassar” a seu gosto cada caso em que intervinha e o juiz Markham estava resolvido naquele momento a que o julgamento fosse conduzido com imparcialidade, e com o respeito devido à dignidade da lei e da ordem; não admitiria erros no andamento do processo, nem oportunidades para manejos dramáticos, despertadores de emoções, que tão freqüentemente surgiam nos julgamentos em que atuava Perry Mason, e que acarretavam para a acusação espetaculares reveses, projetados através da primeira página dos periódicos, sob parangonas sensacionais.

     – Tem a prioridade para a recusa o representante da justiça, anunciou o juiz Markham, em voz severa.

     Claude Drumm inclinou-se para trás, na cadeira, e manteve com o seu assistente uma palestra em voz baixa. Interrompeu-a para lançar um olhar pelo tribunal.

     – Solicito ao presidente que me conceda um momento...

     – Concedido, disse o juiz.

     Everly atirou um olhar interrogador para Mason, e pôde perceber um lampejo nos olhos do advogado.

     Mason inclinou-se para a frente e sussurrou-lhe:

     – Drumm quer recusar o terceiro jurado, e está pensando que nós queremos fazer o mesmo com os números nove e onze. Temos dobrados direitos de recusa peremptória, e por isso está indeciso, sem saber se deve renunciar ao seu direito e permanecer na expectativa, até ver de que forma ficará finalmente constituído o júri.

     – Ele atrever-se-á a tanto? – perguntou Everly.

     – Isso é o que vamos ver.

     Houve um momento de tensão silenciosa quando Drumm se pôs de pé e saudou o tribunal.

     – O representante da justiça pública, disse ele, desiste da prioridade.

     O Juiz Markham olhou para Perry Mason e seus lábios moveram-se para enunciar as palavras da fórmula:

     – Tem a prioridade a defesa.

     Tais palavras não chegaram a ser proferidas, porque Perry Mason, voltando-se para o lado dos jurados, sobre os quais relanceou um olhar de apreciação indiferente, como se já tivesse examinado atentamente o assunto, disse em voz clara:

     – Declaro ao honrado presidente do tribunal que acho este júri inteiramente satisfatório para os meus constituintes. Renunciamos à nossa prioridade.

     Claude Drumm ficou pasmado de surpresa. Os olhos de quantos tinham prática da técnica dos tribunais viram como se lhe suspendeu a respiração e como ele inconscientemente começou a lavrar um protesto que sabia ser inútil.

     A voz do Juiz Markham reboou, dentro da sala do tribunal.

     – Aceite o júri para que seja ajuramentado, a fim de examinar o caso.

     Claude Drumm fez uma declaração inicial ao júri, notável pela sua concisão:

     – Senhores, esperamos demonstrar-lhes que, exatamente às vinte e três horas e trinta e dois minutos de 23 de Outubro deste ano, Edward Norton morreu, assassinado com uma pancada na cabeça vibrada com uma bengala empunhada pela mão do acusado Robert Gleason; que, no momento do crime, se achava ali presente, na qualidade de cúmplice ativo, a acusada Frances Celane; que, no momento do crime, Edward Norton tinha uma vultosa quantia de dinheiro consigo em notas de mil dólares.

     “Esperamos demonstrar-lhes que, às vinte e três horas e catorze minutos da noite da data acima referida, Edward Norton telefonou para a estação policial, denunciando o roubo de um dos seus automóveis, um Buick; que Frances Celane estava realmente presente no escritório de Edward Norton, às vinte e três horas e dois minutos, mas que, no propósito de tentar estabelecer um álibi, e sabendo que Edward Norton comunicara à polícia que aquele Buick fora roubado às vinte e três horas e catorze minutos, a referida acusada Frances Celane então e ali mesmo fez, por livre e espontânea vontade, falsas declarações, dizendo achar-se distante da cena do crime, no supracitado Buick, desde as vinte horas e quarenta e cinco minutos, até cerca das zero e quinze.”

     “Esperamos demonstrar-lhes que, logo após a perpetração do crime, os acusados deixaram a ensangüentada bengala com a qual haviam cometido o assassínio e duas notas de mil dólares que haviam sido roubadas dos bolsos do falecido, no quarto de dormir de Pete Devoe, que então dormia, em estado de embriaguez; que isso foi feito na intenção de fazer recair as suspeitas sobre o referido Pete Devoe.”

     “Queremos ainda demonstrar que os acusados abriram uma janela, forçando-a, e imprimindo pegadas no solo, por baixo da janela, no intento de fazer a polícia acreditar terem ladrões penetrado na casa.”

     “Esperamos também demonstrar-lhes que imediatamente depois de perpetrado o crime, Robert Gleason fugiu; que ambos os acusados forneceram falsas declarações acerca dos seus passos; que a bengala com que Edward Norton foi derrubado é uma bengala de passeio, pertencente ao acusado Robert Gleason.”

     “Esperamos demonstrar-lhes que uma testemunha ocular presenciou a perpetração do crime, e poderá identificar Robert Gleason como sendo o homem que vibrou o golpe, e Frances Celane como a pessoa que, ataviada com um vestido ou um negligé cor-de-rosa, contribuiu e auxiliou a realização do crime.”

     Claude Drumm permaneceu um momento observando os jurados, sentando-se depois. O Juiz Markham olhou para Mason, de modo interrogativo.

     – Se o tribunal o permite, disse Perry Mason, preferimos adiar a nossa exposição para quando se iniciarem os debates do julgamento da nossa causa.

     – Muito bem, disse o juiz. – Pode continuar, Mr. Drumm.

     Claude Drumm começou a fazer a reconstituição do crime, com aquela calma, aquela mortal eficiência que o tornavam notável. Nenhum pormenor, por insignificante que fosse, escapou à sua atenção; nenhum elo da cadeia de provas foi esquecido.

     A primeira testemunha foi um topógrafo que levantara um mapa do terreno e fotografara o local. Apresentou diagramas com escala de dimensões, em que se viam o quarto onde o corpo fora encontrado, o mobiliário, a localização das janelas. Depois de exibir a fotografia do quarto, apresentou outras de vários ângulos. Cada uma dessas fotografias vinha identificada por sua localização no diagrama do quarto.

     A estas, seguiram-se fotografias da casa e, finalmente, um mapa mostrando aquela, nas suas relações com a estrada sinuosa que subia para a avenida, e outra com um corte, mostrando as diversas alturas das janelas na casa, em suas relações com a estrada pela qual passara o automóvel.

     – Assim, pois, disse Drumm com suavidade, indicando um lugar no diagrama, onde se via uma curva do caminho, é perfeitamente possível a uma pessoa que transite por este trecho da estrada, num automóvel, ao olhar para trás, ver o interior do quarto marcado com o número “um” no mapa, que constitui o Documento Probatório A. Não é assim?

     Antes que o topógrafo pudesse responder à pergunta, Perry Mason pôs-se de pé e ergueu a voz, num protesto:

     – Um momento, senhor presidente. Esta pergunta é improcedente. Além disso, obriga a testemunha a uma conclusão a que somente o júri deve chegar. É um dos pontos sobre o qual intentaremos convencer os senhores jurados da improbabilidade da argumentação do senhor promotor. Se é possível ou não...

     O martelo do juiz ressoou sobre a mesa.

     – A objeção, disse ele, é aceita. Os argumentos são desnecessários, Mr. Mason.

     Mason deixou-se cair na cadeira.

     Com o ar de quem obteve uma vitória em vez de uma derrota, Drumm inclinou-se sorrindo para Mason.

     – Senhor advogado de defesa, disse ele, pode inquirir a testemunha.

     Sentindo os olhos de todos os presentes na sala do tribunal, cravados nele, inteiramente consciente das dramáticas vantagens do momento e do interesse com que era esperada a sua primeira pergunta, Perry Mason encaminhou-se para o mapa que fora pregado no quadro negro, e, colocando o indicador da mão direita sobre a curva da linha que indicava a estrada que ia da casa à avenida, pôs o indicador da mão esquerda sobre o ponto em que estava situado o gabinete na casa, e disse, numa voz que soava como um desafio:

     – Qual é a distância exata entre o ponto que estou indicando com o meu indicador direito e que é a curva da estrada, e este outro ponto que marco com o dedo esquerdo e que é o lugar onde foi encontrado o cadáver?

     – Sir, disse a testemunha em tom comedido, o seu indicador direito está exatamente no ponto em que a curva se aproxima mais do sul, e o indicador esquerdo sobre o ponto que representa precisamente o lugar onde foi encontrado o corpo, a distância exata é de duzentos e setenta e dois pés e três e meia polegadas.

     Perry Mason voltou-se, com a surpresa estampada no rosto.

     – Duzentos e setenta e dois pés e três polegadas e meia? – exclamou, incredulamente.

     – Sim, confirmou a testemunha.

     Mason deixou cair os braços ao longo do corpo, num gesto concludente.

     – É só isto, disse ele. – Não tenho mais perguntas a fazer-lhe.

     O Juiz Markham olhou para o relógio, e um antecipado ruído de movimentos percorreu a sala do tribunal, tal como o de folhas mortas arrastadas pela primeira corrente de brisa que se aproxima.

     – Está na hora do adiamento, disse o juiz. – A vista do processo fica adiada até às dez horas de amanhã, e, durante esse tempo, os senhores jurados devem lembrar-se das recomendações do tribunal, de evitar conversas entre si sobre o caso, de não permitir que outras pessoas lhes falem diretamente do assunto ou a ele façam alusões na sua presença.

     O martelo ressoou sobre a mesa.

     Perry Mason sorriu astuciosamente, e observou ao ajudante:

     – Drumm devia ter-se estendido na sua explanação até à hora do adiamento. Dando-me a oportunidade de fazer aquela pergunta, vai fazer que os jornais se lembrem de mim amanhã de manhã.

     Everly semicerrou os olhos, meditativamente.

     – Duzentos e setenta e dois pés, já é distância, disse ele.

     – Pois não pretendo encurtá-la, enquanto durar o julgamento, disse Mason ferozmente.

    

     Os periódicos tinham prognosticado que a primeira e mais importante testemunha da acusação seria, ou Arthur Crinston, o sócio comercial do homem assassinado, ou então Don Graves, a única testemunha ocular do crime.

     Assim fazendo, os jornais deixavam ver quanto subestimavam a tática processual do promotor, no que se referia à dramaticidade dos seus ensaios. Drumm não mergulhara no drama desse assassínio sem antes preparar o espírito dos jurados para saborearem um pratinho delicioso, como o faria um teatrólogo que iniciasse a sua peça com uma situação crítica, tirada do terceiro ato.

     Chamou ao estrado das testemunhas o juiz B. C. Purley.

     Todas as cabeças se voltaram para o juiz municipal, quando este surgiu do fundo da sala do tribunal, caminhando a passos largos pelo corredor, com o porte majestoso de quem tem consciência plena da dignidade da sua aparência, e da importância da sua posição.

     Com os seus cabelos brancos, importante, com o seu tórax amplo, e cintura espessa, ergueu a mão direita, fazendo o juramento da praxe e depois sentou-se na cadeira das testemunhas, evidenciando nos seus modos o respeito pela justiça, à qual pertencia, assim como dignificante tolerância para com os advogados e jurados, e tranqüila indiferença pelos espectadores impacientes.

     – O seu nome é B. C. Purley? – perguntou Drumm.

     – Sim, senhor.

     – O senhor é agora Juiz Municipal do tribunal desta cidade, devidamente eleito, qualificado e em exercício da função?

     – Sim, senhor.

     – E, na noite de 23 de Outubro deste ano, esteve nas proximidades da residência de Edward Norton?

     – Estive, sim, senhor.

     – A que horas chegou à residência de Edward Norton, Sr. juiz Purley?

     – Eram precisamente vinte e três horas e seis minutos.

     – E a que horas se retirou?

     – Precisamente às vinte e três horas e meia.

     – Pode explicar ao júri, Sr. juiz Purley, por que se acha habilitado a declarar com tanta exatidão a hora da sua chegada e a da sua partida?

     Perry Mason percebeu o laço; como não tinha outra alternativa, deixou-se cair nele.

     – Protesto, Sr. presidente, disse ele. – A testemunha já fez a sua declaração. Os processos mentais que o levaram a ela são inadmissíveis, inaplicáveis, de pouca importância, e, no melhor dos casos, assunto unicamente para ulterior interrogatório.

     – Admitido o protesto, disse o juiz Markham.

     Claude Drumm teve um sorriso irônico e sarcástico.

     – Retiro a pergunta, Sr. presidente, disse ele. – Foi um erro da minha parte. Afinal de contas, se o advogado da defesa quiser aprofundar o assunto, terá liberdade de fazê-lo ulteriormente.

     – Continue, disse o juiz Markham, batendo com o martelo sobre a mesa.

     – Quem ia com o senhor por ocasião da sua visita? – perguntou o promotor.

     – Mr. Arthur Crinston ia comigo, quando cheguei às imediações da casa, e, quando parti, acompanhava-me Mr. Arthur Crinston e Mr. Don Graves.

     – Que aconteceu enquanto esteve ali, Sr. juiz Purley?

     – Cheguei ao jardim junto à casa, detive o meu carro para permitir que Mr. Crinston descesse, fiz o automóvel dar volta e esperei.

     – Que fez o senhor durante o tempo que esteve esperando?

     – Fiquei sentado, a fumar durante os primeiros dez ou quinze minutos, depois consultei o relógio várias vezes, bastante impaciente, nos últimos momentos em que estive à espera, disse o juiz Purley.

     E, dizendo isso, relanceou para Perry Mason um olhar em que transpareciam vestígios de triunfo dissimulado, mostrando por suas maneiras estar plenamente familiarizado com as sutilezas processuais, e disposto a não recuar mesmo nos pontos prejudiciais do seu depoimento, quer a defesa quisesse, quer não. A conseqüência decorrente do fato de ter ele consultado por várias vezes o relógio era explicar o ser ele sabedor da hora exata da sua partida, e que era suficientemente hábil para apresentar essa explicação ao júri sem violar as normas do tribunal.

     Perry Mason olhou para a testemunha com plácida indiferença.

     – E depois, que aconteceu? – perguntou Claude Drumm.

     – Então, Mr. Crinston saiu da casa para reunir-se a mim. Pus em marcha o motor do carro; nesse momento, abriu-se a janela do canto sudoeste do edifício, correspondente ao gabinete e Mr. Norton enfiou a cabeça por ela.

     – Um momento, pediu Claude Drumm. – O senhor já sabia por seu próprio conhecimento que a referida janela era a do gabinete de Mr. Norton?

     – Não, senhor, disse o juiz Purley. – Vim a sabê-lo somente pelo fato de ficar na esquina sudoeste do segundo andar da habitação marcada no mapa e no diagrama com o número um, como sendo o gabinete de Mr. Norton.

     – Então trata-se deste quarto indicado nos documentos probatórios pela letra A e envolto num círculo?

     – Sim, senhor.

     – Muito bem, continuou Drumm. – E que disse Mr. Norton?

     – Mr. Norton chamou Mr. Crinston e disse-lhe mais ou menos, segundo me lembro: “Arthur, não te causa incômodo levar contigo Don Graves até tua casa, para lhe dares os documentos? Depois mandarei buscá-lo”.

     – E que aconteceu?

     – Mr. Crinston disse, tanto quanto me lembro: “Não vim no meu carro, mas com um amigo, no dele. Vou perguntar-lhe se está de acordo”.

     – E depois?

     – Mr. Norton disse: “Muito bem, pergunta e dá-me a resposta” e retirou a cabeça da janela.

     – E que mais?

     – Mr. Crinston, então, veio para mim e disse que Mr. Graves ia buscar uns documentos...

     – Protesto, disse Mason, em tom de voz indiferente. – Tudo quanto aconteceu sem conhecimento dos acusados só é admissível como parte da rés gestae... Mas não há força de imaginação capaz de fazer considerar aquilo como parte da rés gestae.

     – Aceito o protesto, disse o juiz Markham.

     – Muito bem, disse Drumm e continuou interrogando:

     – Que mais aconteceu? – E fez a pergunta em voz suave, sorrindo para os jurados, como quem diz: “Percebem, senhores e senhoras, a técnica adotada neste caso pela defesa?”

     – Mr. Crinston, continuou o juiz Purley, foi colocar-se por baixo da janela do escritório e disse, falando para cima, pouco mais ou menos as seguintes palavras, se mal não recordo: “Está tudo arrumado, Edward. Ele vai conosco”. E mais ou menos nesse momento, a porta principal abriu-se, aparecendo Mr. Graves que desceu, correndo, os degraus e nos disse: “Estou pronto” ou coisa semelhante.

     – Que mais?

     – Então acomodamo-nos no meu automóvel, Mr. Crinston sentado na frente, comigo, e Mr. Graves no assento de trás. Fiz funcionar o motor e seguimos pela estrada assinalada nos documentos judiciais B como sendo a “estrada sinuosa”. Quando alcançamos um ponto da curva...

     – Um momento, senhor – disse Claude Drumm. – Quer ter a bondade de indicar-nos com um lápis o ponto exato da curva que percorriam quando se deu o acontecimento a respeito do qual o senhor está depondo?

     O juiz Purley anuiu; pôs-se de pé, e caminhou com ponderada dignidade para o quadro negro, examinou o mapa e traçou um pequeno oval sobre a curva do caminho.

     – Isto representa aproximadamente a posição do automóvel, disse ele.

     – E que aconteceu quando o carro estava nessa posição? – perguntou Claude Drumm.

     – Mr. Graves olhou para trás através da vidraça traseira do automóvel e exclamou...

     – Protesto, objetou Mason, por serem palavras de outro, inoportunas, inadmissíveis, sem valor testemunhal e que não podem ser incluídas na rés gestae, nem pesar sobre os acusados.

     – Admitido o protesto, disse o juiz Markham.

     Claude Drumm fez um gesto de desânimo.

     – Vossa Excelência, seguramente, sendo admissível...

     – O protesto, disse o juiz Markham, com toda a frieza, foi admitido. O Sr. promotor pode chamar Mr. Don Graves no momento oportuno, e fazê-lo declarar sobre o que ele viu. Para tudo que foi dito ou feito na ausência dos acusados, e que não forma parte da rés gestae, o protesto é admitido.

     – Muito bem, disse Drumm virando-se para o júri, de modo agastado, mas cortês, no momento oportuno chamarei Mr. Don Graves, e este vos dirá exatamente o que viu daquele lugar. Continue, Sr. juiz Purley e diga exatamente ao júri o que se fez naquele momento e naquele lugar, na parte que se refere propriamente ao senhor e às manobras do automóvel.

     – Nada fiz precisamente naquele lugar, mas continuei a marcha pela estrada sinuosa, que está assinalada no mapa, numa distância de algumas varas, até que cheguei a um lugar em que o caminho se alarga o suficiente para dar volta.

     “Aí, mudei de direção, voltando o carro, desci pela estrada sinuosa, e parei quase defronte da casa de Edward Norton.”

     – E que fez então?

     – Então, Mr. Graves e Mr. Crinston entraram na casa e, a pedido deles, acompanhei-os. Os três subimos pela escada e chegamos ao aposento marcado com o número “um” nos documentos probatórios A, e lá vimos um corpo que foi subseqüentemente identificado como sendo o de Edward Norton. Estava caído, atravessado sobre a mesa, com a cabeça horrivelmente fraturada. O corpo estava sem vida, quando cheguei. Perto da mão dele, estavam o telefone e vários papéis, inclusive uma apólice de seguro, tudo em cima da mesa.

     – Verificou, Sr. juiz Purley, a que automóvel se referia aquela apólice de seguro?

     – Protesto por ser a pergunta inoportuna, inconveniente e sem valor testemunhal.

     – Tenho a honra de assegurar a Vossa Excelência que considero a pergunta de vital importância e proponho que ela seja incluída na presente fase do processo. Faz parte da teoria deste Ministério Público para a acusação contra Frances Celane, que declarou ter saído no automóvel Buick, tendo feito essa declaração depois de informada de que a polícia recebera aviso de que o mencionado Buick fora roubado. Em outras palavras, ela soube que Edward Norton telefonara dizendo ter sido o Buick roubado. Frances Celane, sabendo que...

     – Muito bem, disse o juiz Markham. – Não são necessários mais argumentos, Sr. promotor, quanto à oportunidade do depoimento. Com a afirmação, feita pela acusação, de que a pergunta tem conexões com a matéria de que estamos tratando, recuso o protesto quanto à inconveniência da pergunta e autorizo a testemunha a responder, ficando, contudo, sujeita a resposta a que a defesa requeira a sua supressão, no caso de não ficarem provadas as conexões alegadas. Esta sentença depende unicamente da importância do testemunho. É aparentemente claro que a prova resultante da pergunta não será das mais concludentes. A apólice de seguro do automóvel é por si a melhor prova do seu conteúdo, mas não parece justificar o protesto feito sob esse fundamento.

     O juiz Markham olhou para Perry Mason com uma expressão de perplexidade no rosto.

     Perry Mason parecia conter o riso, pelos leves tremores que lhe agitavam a comissura dos lábios.

     – Não, Excelência, disse ele, não é um protesto contra aquele fundamento.

     – Muito bem, mastigou o juiz Markham, o protesto, como foi feito, está recusado. A testemunha pode responder à pergunta.

     – A apólice a que me referi, disse o juiz Purley, segurava o Buick n.º 6 754 093, com a chapa de n.º 12 M i 834.

     Claude Drumm fez um gesto com a mão.

     – Pode interrogar a testemunha, Mr. Mason, anunciou.

     Perry Mason fitou o juiz Purley com um plácido sorriso.

     – Sr. juiz Purley, disse ele, segundo compreendi, o senhor disse que, quando entrou no escritório, viu o corpo de Edward Norton caído atravessado sobre a mesa, não?

     – Compreendeu mal – disse o juiz Purley, peremptório.

     – Eu declarei que vi o corpo de um homem que foi subseqüentemente identificado para mim como sendo o de Edward Norton.

     Perry Mason pareceu ficar abatido.

     – Desculpe, enganei-me, disse ele.

     Houve um momento de silêncio durante o qual o juiz Purley circunvagou o olhar pela sala do tribunal com ar de complacente satisfação para consigo mesmo, o ar de alguém que acabava de fazer um depoimento impecável e que tinha uma confiança inabalável na própria habilidade para esquivar-se das armadilhas que lhe preparavam nos interrogatórios.

     – Devo dizer-lhe, explicou, que nunca tive contato pessoal com Mr. Norton, não obstante o fato de ser íntimo amigo de Mr. Crinston, e de ter tido pelo menos, anteriormente, uma oportunidade de levar Mr. Crinston a casa de Mr. Norton.

     Perry Mason dava a impressão de que ia sorrir.

     – Quantas vezes teve oportunidade de discutir assuntos de negócio, por telefone, com Mr. Norton? – perguntou.

     O juiz Purley patenteou a sua surpresa.

     – Como assim? Nunca falei por telefone com esse homem na minha vida, afirmou ele.

     – Então o senhor nunca discutiu com ele a respeito do depósito de fundos da sobrinha dele, Frances Celane?

     O juiz Purley esbugalhou os olhos, tal a sua surpresa.

     – Valha-me Deus! Não, naturalmente que não.

     – O senhor discutiu alguma vez esse assunto do depósito com qualquer outra pessoa? – perguntou Mason.

     Drumm pôs-se de pé.

     – Excelência, protesto contra a pergunta, por julgá-la imprópria neste interrogatório, e ser inconsistente, impossível, inadmissível e sem valor testemunhal. A defesa está simplesmente iniciando um círculo de perguntas relativas a conversações que não podem...

     – Aceito o protesto! – interrompeu o juiz Markham.

     Drumm sentou-se.

     Houve um silêncio na sala do tribunal. A fisionomia de Perry Mason estava impassível.

     – Não tem mais perguntas a fazer? – perguntou o juiz Markham.

     – Não, Excelência, respondeu Perry Mason com grande surpresa da sala. – Não é o último interrogatório.

    

     – Chamem o sargento Mahoney, ordenou Drumm.

     O sargento Mahoney, engalanado no seu uniforme, perfilou-se na frente da mesa do escrivão, ergueu a mão direita para prestar o juramento e ocupou depois a cadeira das testemunhas.

     – O seu nome é E. L. Mahoney, sargento, e estava, na noite de 23 de Outubro do corrente ano, prestando serviço, como sargento amanuense na estação central da polícia desta cidade? – perguntou Claude Drumm.

     – Sim, senhor.

     – Recebeu uma chamada telefônica cerca das 23 horas e 14 minutos? – perguntou Drumm.

     – Sim, senhor.

     – Descreva-nos essa chamada, sargento.

     – Mr. Edward Norton chamou e...

     Perry Mason pôs-se de pé de repente, mas foi Claude Drumm quem interrompeu a testemunha.

     – Um momento, sargento, disse ele. – Quero adverti-lo de que o senhor está depondo sob juramento, e só pode declarar aquilo que sabe por si mesmo. O senhor não podia saber que a chamada vinha de Edward Norton. O senhor sabia apenas que alguém o chamava.

     – Ele disse que era Edward Norton – tartamudeou o sargento.

     Uma vaga de gargalhadas percorreu a sala do tribunal, mas foi prontamente contida pelo martelo do juiz.

     – Conte-nos exatamente o que lhe disseram por telefone – disse Drumm e olhou de viés para Perry Mason, como que esperando o protesto da defesa.

     Perry Mason, porém, permanecia indiferente.

     O juiz Markham perguntou:

     – O Sr. advogado da defesa pensa em reclamar contra a inclusão deste ponto na rés gestae?

     Drumm pareceu incomodado.

     – Nenhum protesto tenho a fazer, Excelência, disse Perry Mason.

     – Muito bem, disse Markham. – Continue, sargento.

     – Recebi aquela chamada e anotei a hora. Passavam catorze minutos das 23 horas. O homem disse ser Edward Norton e que queria denunciar o roubo de um automóvel Buick, tipo sedan, de sua propriedade, n.º 6 754 093. Disse que o automóvel com a chapa n.º 12 M i 834, fora roubado e que queria que o carro e o condutor fossem detidos, não importando quem fosse este. Creio que ele acentuou que mesmo que o condutor estivesse relacionado com ele, queria que fosse detido.

     – Quer interrogar, Sr. defensor? – disse Claude Drumm com o gesto sorridente de quem desferiu um golpe acertado.

     – Recebeu aquele recado todo de uma vez? – perguntou Mason com ar indiferente.

     – Que quer dizer, senhor?

     – Pergunto se todos os dados que referiu, foram recebidos na mesma chamada telefônica.

     – Naturalmente que os recebi todos de uma vez.

     Perry Mason retirou da sua pasta um jornal.

     – O senhor fez uma reclamação aos repórteres dos diários quando este assunto estava mais fresco no seu espírito?

     – Sim, recordo-me de lhes ter dito qualquer coisa, na manhã seguinte.

     – E não assinalou então que a chamada fora interrompida?

     – Um momento, interveio o promotor. – Este não é propriamente o caminho para lançar os fundamentos de uma questão de impedimento.

     – Procuro apenas refrescar a memória da testemunha, se o Tribunal mo permite, disse Perry Mason.

     O sargento Mahoney fazia gestos frenéticos; por seu lado o juiz Markham sorria.

     – Vejo, disse ele, pela gesticulação da testemunha, que a sua memória já está refrescada. Continue, sargento.

     – Perfeitamente, prosseguiu Mahoney, agora me lembro. Deu-se a chamada, e foi cortada de chofre a meio da conversação, justamente na primeira parte. Ele deu o nome e endereço e declarou que ia denunciar um crime. Aí, a linha ficou silenciosa. Procurei no guia o número do telefone dele, para chamá-lo, quando a voz se fez de novo ouvir e ele continuou. Disse que tinha cortado a comunicação.

     – Era tudo quanto eu queria saber, declarou Mason, com ênfase.

     Claude Drumm olhou-o, inquieto.

     – Que tem isso a ver com o caso? – perguntou acremente.

     O juiz Markham fez soar o martelo sobre a mesa.

     – Ordem, reclamou ele, com energia. – Tem alguma reinquirição a fazer, Sr. promotor?

     – Não – disse Claude Drumm, cujos olhos contemplavam Perry Mason, pensativamente.

     – A testemunha seguinte, ordenou o juiz.

     – Arthur Crinston, chamou Claude Drumm.

     Arthur Crinston ergueu-se da cadeira em que estava sentado junto à barra, encaminhou-se para o escrivão, fez o juramento e ocupou o lugar das testemunhas.

     – Seu nome é Arthur Crinston e o senhor é o sócio sobrevivente da firma Crinston & Norton, integrada pelo senhor e por Edward Norton?

     – Exatamente, senhor.

     – Edward Norton está morto?

     – Está, sim senhor.

     – Pôde ver o cadáver de Edward Norton, Sr. Crinston?

     – Sim, senhor. No dia 23 de Outubro deste ano.

     – A que horas?

     – Vi o cadáver dele aproximadamente às 23 horas e 35 ou 36 minutos.

     – Onde estava o cadáver?

     – Caído atravessado em cima da mesa de trabalho do gabinete, com o alto da cabeça fraturado.

     – Que fez então o senhor?

     – Avisei a polícia.

     – Pôde ver a acusada Frances Celane, durante essa noite?

     – Pude.

     – Mais ou menos a que horas?

     – Aproximadamente às 24 ou pouco antes.

     – Disse-lhe o senhor alguma coisa a respeito da morte do tio?

     – Disse.

     – Fez-lhe alguma referência a propósito da denúncia do roubo do Buick?

     – Fiz.

     – Fez-lhe ela qualquer declaração, no momento em que lhe falou no Buick?

     – A essa pergunta responda sim ou não, disse o juiz Markham em cauteloso tom de voz. – Isto é uma indagação preliminar.

     – Sim, disse Arthur Crinston.

     – A que horas foi isso?

     – Cerca das 24.

     – Quem estava presente?

     – Miss Celane, Don Graves e eu.

     – Não havia ninguém mais presente?

     – Não, senhor.

     – Que disse ela?

     – Disse que tomara o automóvel Buick pelas 22 horas e 45 minutos e nele saíra, voltando aproximadamente às 0 e 15 minutos.

     – Que estava fazendo Mr. Norton, a última vez que o senhor o viu com vida, Mr. Crinston?

     – Estava de pé, à janela do seu gabinete, falando-me.

     – Que disse ele?

     – Perguntou-me se Don Graves podia acompanhar-me à cidade; isto é, à minha residência.

     – E que lhe respondeu o senhor?

     – Disse-lhe que precisava consultar o juiz Purley, em cujo carro eu tinha vindo.

     – Que sucedeu então?

     – Voltei-me para fazer a pergunta ao juiz Purley, e recebi dele resposta afirmativa ao meu pedido. Voltei então para avisar Mr. Norton. Ele estava de pé, no gabinete, já então um pouco afastado da janela. Gritei-lhe que tudo estava arranjado e Mr. Graves, que se antecipara ao consentimento do juiz Purley, já vinha descendo os degraus da entrada principal, em direção a mim.

     – E depois, que sucedeu?

     – Sentei-me no banco da frente do automóvel, com o juiz Purley, e Mr. Graves ocupou o assento de trás. Iniciamos a marcha pela estrada sinuosa assinalada no mapa, até que alcançamos determinado ponto, onde demos a volta, regressando a casa. Suponho que não devo mencionar as conversações havidas dentro do carro?

     – É essa a norma do tribunal, Mr. Crinston.

     – Muito bem. Voltei no automóvel, tornei a entrar na casa e encontrei o corpo de Mr. Norton conforme já relatei. Depois, avisei a polícia.

     – Pode interrogar, exclamou Claude Drumm, inesperadamente, dirigindo-se a Mason.

     Perry Mason contemplou Arthur Crinston por alguns segundos, com uma fisionomia sem expressão, e disse abruptamente:

     – O senhor tinha estado a conversar com Mr. Norton naquela noite?

     – Sim. Tinha um encontro marcado com ele e cheguei atrasado alguns minutos. Cheguei lá seis minutos depois das vinte e três horas, julgo eu.

     – Em torno de que girou a conversação com Mr. Norton? – perguntou Perry Mason.

     Arthur Crinston fez uma rápida careta e sacudiu a cabeça para o lado de Perry Mason. Esse gesto parecia ser de advertência.

     Claude Drumm, que se pusera de pé para protestar, colheu aquele gesto de advertência, e subitamente, sorriu.

     Sentou-se.

     Arthur Crinston olhou para o juiz Markham.

     – Responda à pergunta, exigiu Perry Mason.

     – O senhor não deve obrigar-me a responder a essa pergunta, resmungou Arthur Crinston.

     O juiz Markham bateu com o martelo na mesa.

     – Há alguma objeção da sua parte, Mr. Drumm? – perguntou.

     O promotor sacudiu a cabeça, sorrindo.

     – Nenhuma, disse ele. – Pode deixar a testemunha responder à pergunta.

     – Responda à pergunta, ordenou o juiz.

     Crinston agitou-se.

     – Excelência, resmungou ele, o que eu possa testemunhar sobre a conversa que tivemos de modo algum favorecerá a acusada Frances Celane, e Perry Mason sabe disso perfeitamente. Não posso compreender que ideia é essa que ele teve de me perguntar tal coisa...

     O juiz Markham fez soar o martelo sobre a mesa.

     – A testemunha, disse ele, num tom gelado, queira limitar os seus comentários às respostas às perguntas que lhe forem feitas. A testemunha, certamente, deve compreender que uma tal declaração, feita perante o tribunal, especialmente num processo desta natureza, é uma ofensa ao mesmo tribunal.

     “Os senhores jurados são convidados a esquecer tais declarações e também quaisquer opiniões emitidas pelas testemunhas, salvo aquelas que são elucidativas de qualquer parte do seu depoimento. Mr. Crinston, queira responder àquela pergunta ou senão será considerado como rebelde pelo tribunal.”

     – Nós conversámos, disse Crinston com voz apagada, a respeito de uma tentativa de chantagem que fora feita contra Frances Celane.

     Uma expressão de triunfo espraiou-se pelo rosto de Claude Drumm.

     – Uma tentativa de chantagem feita pela governante Mrs. Mayfield? – perguntou Perry Mason.

     A expressão vitoriosa desapareceu do rosto de Claude Drumm. Pôs-se de pé, num salto.

     – Excelência, protesto contra a pergunta, disse ele, por julgá-la inoportuna, inadmissível, sem valor testemunhal, tendenciosa e sugestiva. O Sr. advogado da defesa sabe perfeitamente que Mrs. Mayfield é uma testemunha importante da acusação, neste caso, e isso é uma tentativa para desacreditá-la...

     – São permitidas as perguntas intencionais sobre a inquirição, disse o juiz Markham. – O senhor não protestou quando o advogado da defesa perguntou à testemunha sobre que assunto versara a palestra dele com a vítima e, uma vez que estamos procedendo a uma inquirição, permito a pergunta.

     Claude Drumm sentou-se vagarosamente.

     Crinston agitou-se desassossegadamente, na cadeira.

     – O nome de Mrs. Mayfield não foi mencionado, disse ele por fim, em voz baixa.

     – Tem a certeza disso? – perguntou Perry Mason.

     – Certeza, não direi, porque, afinal, é possível que tenha sido mencionado, disse Crinston.

     – De modo que acha possível ter ele sido mencionado! Não é verdade?

     – É possível que sim, disse Crinston.

     Perry Mason subitamente, fez uma mudança no ataque.

     – Edward Norton sacara uma grande soma de dinheiro no dia 23 de Outubro, em notas de mil dólares, não é verdade, Mr. Crinston?

     – Assim creio, disse Crinston, desabridamente.

     – Não foi o senhor quem sacou esse dinheiro para ele, não?

     – Não, senhor.

     – Foi o senhor, naquele dia, a qualquer dos Bancos nos quais a firma Crinston & Norton tem conta corrente?

     Arthur Crinston franziu a testa, pensativamente.

     – Sim, disse ele, fui.

     – A que Banco?

     – Ao Banco Wheeler de Depósitos e Economia.

     – Com quem falou ali?

     Subitamente, o rosto de Crinston mudou de cor.

     – Eu preferiria, disse ele, não responder a essa pergunta.

     Claude Drumm pôs-se de pé.

     – Protesto contra a pergunta, por ser inoportuna, inadmissível, sem fundamento, e imprópria de um interrogatório preliminar! – exclamou.

     Perry Mason sorriu lenta e demoradamente.

     – Quer Vossa Excelência permitir-me que apresente um breve argumento, disse acentuando as palavras.

     – Concedo, aquiesceu o juiz.

     – Pois bem, esta testemunha declarou, na inquirição prévia, que era o sócio sobrevivente da firma Crinston & Norton.

     “Deixo a questão em suspenso por agora, se bem que isto provavelmente nos conduza a uma conclusão da testemunha.”

     “Mas, nesse caso, eu tenho o direito de interrogá-lo a respeito das suas atividades como cooparticipante, e das razões sobre as quais se fundam aquelas conclusões.”

     – Uma vez que não se refira a épocas remotas, disse o juiz Markham.

     – Não, senhor. Foi por isso que eu circunscrevi a pergunta à data de 23 de Outubro, o dia da morte.

     O juiz Markham fitou Mason com olhos que subitamente se haviam tornado duros e cautelosos.

     Perry Mason retribuiu-lhe o olhar, com candura.

     Claude Drumm continuava de pé.

     – Os negócios da sociedade Crinston & Norton nada têm a ver com isto, disse Drumm.

     – Mas, replicou o juiz Markham, o senhor mesmo qualificou a testemunha como membro da sociedade.

     – Sim, senhor, mas somente para evidenciar a intimidade das relações que havia entre eles, Excelência.

     O juiz Markham sacudiu a cabeça.

     – Não estou convencido de que a pergunta seja própria deste interrogatório, mas, num caso desta natureza, estou disposto mesmo a equivocar-me, se não houver remédio, em favor dos acusados. Queira a testemunha responder à pergunta.

     – Responda à pergunta, Mr. Crinston, disse Perry Mason. – Com quem falou o senhor no banco?

     – Com Mr. Sherman, o presidente.

     – E a respeito de que assunto falou com ele?

     – Sobre os negócios da sociedade.

     – Conversações em torno do modo de saldar uma dívida de cerca de novecentos mil dólares que a sociedade tinha com o banco, não é verdade? Dívida essa que, segundo verifiquei, é constituída por documentos firmados com a sua firma pessoal, não é exato?

     – Não senhor, não é exato. Aqueles documentos são da sociedade, assinados por Crinston & Norton.

     – Isto é, assinados com a firma de Crinston & Norton, pelo sócio Arthur Crinston, não é verdade?

     – Creio que sim, disse Arthur Crinston. – Os principais negócios da sociedade, assim como tudo que dizia respeito às atividades bancárias, eram realizados por mim; isto é, eu assinava as notas em nome da sociedade; conquanto em grande número de casos os cheques fossem assinados por nós dois. Retifico, portanto, aquela declaração. Creio que os documentos do Banco Wheeler de Depósitos e Economia estão assinados com o nome da firma, por mim, e que também haja cheques nas mesmas condições.

     – O senhor foi à casa de Mr. Norton para lhe falar a respeito do vencimento dessas notas, não é assim?

     – Exatamente.

     – Mas, nesse caso, como foi que vieram a falar a respeito da chantagem da governante contra Frances Celane?

     – Eu não disse tal coisa da governante, retrucou Crinston, irritado. – Disse que, possivelmente, o seu nome fora mencionado.

     – Compreendo, disse Perry Mason. – Foi um engano meu. Queira continuar e responda à pergunta.

     – Porque, disse Crinston, o assunto relativo aos negócios de que tratavam aquelas notas ocupou-nos apenas alguns minutos. O caso da chantagem contra a sobrinha preocupava profundamente o espírito de Mr. Norton, e por isso ele insistiu para que postergássemos todas as demais discussões de negócios, a fim de perguntar qual a minha opinião sobre aquele assunto.

     – E a que atribuía ele as ameaças contra a sobrinha? – perguntou Perry Mason.

     – Ele acreditava que a chantagem era conseqüência de alguma cabeçada que ela tivesse dado.

     – Naturalmente, disse Perry Mason. – Não mencionou o que era?

     – Não, creio que não o fez.

     – Não se referiu a nada que pudesse ter sido?

     – Ele referiu-se ao temperamento indomável da sobrinha, disse Crinston subitamente, mas logo mordeu os lábios e disse:

     – Espere um minuto. Retiro o que disse. Não sei se ele disse isso. Foi um engano meu.

     – Enganou-se? – perguntou Mason – ou está procurando proteger a acusada Frances Celane?

     O rosto de Crinston tornou-se rubro.

     – Procuro ajudá-la muito melhor do que o senhor, resmungou ele.

     O juiz Markham fez ressoar o martelo sobre a mesa.

     – O tribunal já o advertiu uma vez. Agora, pronuncia-o como culpado de ofensas e condena-o a uma multa de cem mil dólares por aquele delito.

     Crinston, com as faces rubras, curvou a cabeça.

     – Continue a vista do processo, disse o juiz Markham.

     – Houve qualquer outra conversação entre o senhor e Mr. Norton, a não ser o assunto da dívida ao Banco, dos negócios da sociedade, e da possibilidade de que a sobrinha fosse vítima de uma chantagem?

     – Não, senhor, disse Arthur Crinston, com evidente alívio ao ver que não se tratava de inquirição sobre as possibilidades da chantagem.

     Perry Mason sorriu cortesmente.

     – Sr. presidente, disse ele, eu desejo tornar a chamar mais tarde o Sr. Crinston para novo interrogatório, mas por enquanto nada mais tenho a perguntar-lhe.

     O juiz Markham assentiu.

     – Quer reinquirir? – perguntou a Drumm.

     – Por ora não, disse este, mas, se a defesa se reserva o direito de tornar a chamar a testemunha para ulterior inquirição, quero ter o mesmo direito.

     – Concedido, resmungou o juiz Markham. – Continue.

     Claude Drumm alteou dramaticamente o tom da voz.

     – Chamo Mr. Graves, disse ele.

     Don Graves pôs-se de pé e adiantou-se, enquanto os espectadores se voltavam uns para os outros, a fim de trocarem entre si, rapidamente, alguns comentários em voz baixa.

     O processo do assassínio estava a desenvolver-se com rapidez pouco habitual e o advogado da defesa parecia deixar escapar muitas oportunidades nos seus interrogatórios. Mas aqueles que conheciam Perry Mason sabiam que sua técnica na condução dos processos era proverbial entre os advogados.

     O juiz Markham parecia estar tão desconcertado como os espectadores. De quando em quando, os seus olhos pousavam no plácido rosto de Perry Mason, com expressão meditabunda e perscrutadora.

     Don Graves pigarreou para aclarar a garganta, e olhou para Claude Drumm como quem está na expectativa.

     – Seu nome é Don Graves, e, no dia 23 de Outubro deste ano, estava empregado e tinha estado empregado durante algum tempo, anteriormente a essa data, como secretário particular de Mr. Norton, não é verdade?

     – Sim, senhor.

     – Estava com Mr. Norton, na noite de 23 de Outubro?

     – Sim, senhor.

     – Quando o viu pela última vez, nessa noite?

     – Aproximadamente às 23 horas e meia.

     – Viu-o antes dessa hora?

     – Sim, senhor. Mr. Crinston retirou-se cerca das 23 e 27 ou 28 minutos e Mr. Norton saiu com ele do gabinete particular quando Mr. Crinston ia partir. Estiveram a falar um ou dois minutos e Mr. Norton mandou-me que fosse com Mr. Crinston a casa dele buscar uns papéis.

     – Que aconteceu então? – perguntou Claude Drumm.

     – Mr. Crinston desceu a escada e Mr. Norton disse-me que chamasse Mr. Peter Devoe, o motorista, para que ele me levasse à casa de Mr. Crinston. Então, exatamente quando eu ia para descer, ele disse: “Espere um minuto. Tenho outra idéia” ou coisa parecida, e assomou à janela e de lá chamou Mr. Crinston para perguntar-lhe se eu podia ir com ele.

     “Mr. Crinston disse que estava com o juiz Purley, no carro deste, e que ia pedir-lhe autorização, e eu, que não tinha dúvida de que Mr. Purley consentiria e como não havia tempo a perder, desci as escadas e cheguei à porta principal justamente quando Mr. Crinston comunicava que o juiz Purley consentira que eu fosse com eles.”

     “Corri e entrei no automóvel do juiz Purley, indo para o assento traseiro; ele pôs o carro em marcha e seguimos pela estrada até chegarmos a um ponto, cuja localização aproximada foi a assinalada no mapa pelo juiz Purley.”

     – E depois, que aconteceu?

     – Nesse ponto, disse Don Graves dramaticamente, virei-me para trás, e olhei, através da vidraça posterior do automóvel, para a janela do gabinete de Edward Norton.

     – E que viu o senhor? – perguntou Claude Drumm quase rosnando.

     – Vi a silhueta de alguém que empunhava uma bengala e a descarregava na cabeça de Mr. Norton.

     – Julga poder reconhecer quem era essa pessoa?

     – Parece-me que poderei, disse ele.

     – Quem acha o senhor que era? – perguntou Drumm.

     – Um momento – disse Perry Mason. – Protesto contra a pergunta, por levar a testemunha a conclusões, e ser intencionada e sugeridora. A testemunha acaba de declarar que parece-lhe que poderia fazer a identificação.

     O juiz Markham olhou para Mason esperando melhor argumentação sobre esse ponto capital. Mas sofreu uma decepção.

     Olhou então para Claude Drumm.

     – A testemunha declarou que, em sua opinião, poderá fazer a identificação, disse este. – A expressão “parece-me” é meramente um modo usado na conversação.

     – É preferível deixar a pergunta para depois, disse o juiz Markham.

     – Muito bem, disse Claude. – Mr. Graves, o senhor disse que era capaz de identificar o criminoso. Que quer dizer, exatamente, com isso?

     – Eu creio que sei quem era aquele homem. Parece-me tê-lo reconhecido. Não pude ver-lhe o rosto claramente, mas creio que pude reconhecê-lo pelo modo como inclinava a cabeça, pelos seus ombros e pelas linhas gerais do corpo.

     – Se assim, também pensa o tribunal, acho isto suficiente – disse Claude Drumm. – Um homem não necessita ver todos os caracteres faciais de outro para poder fazer uma identificação. O protesto da defesa cai por si mesmo, diante da possibilidade evidente da identificação.

     O juiz Markham olhou para Mason, em atitude perscrutadora.

     Perry Mason nada disse.

     – Rejeito o protesto, disse o juiz Markham. – A testemunha que responda à pergunta.

     – Aquele homem era Robert Gleason, disse Don Graves com voz lenta.

     – Havia outra pessoa naquele momento no quarto? – perguntou Claude Drumm.

     – Sim, senhor.

     – Quem era essa outra pessoa?

     – Uma mulher, ataviada com uma peça de vestuário, qualquer, cor-de-rosa.

     – Pôde ver essa mulher?

     – Vi parte do seu ombro, uma ponta da cabeleira e o braço.

     – Julga poder reconhecer essa mulher pelo que pôde ver dela?

     O juiz Markham interrompeu-o.

     – Creio, senhor promotor, disse ele, que, embora tenha permitido a primeira identificação, baseando-me no seu argumento de que o protesto da defesa era insubsistente ante a admissibilidade da evidência, agora, quando a testemunha somente pôde ver uma parte relativamente pequena de uma silhueta de mulher, e isso na distância que anteriormente foi assinalada neste mapa, o protesto da defesa torna-se procedente no que diz respeito a impossibilidade da evidência, e apoiarei o protesto quanto à identificação da mulher.

     – Se me permite, Excelência, disse Perry Mason brandamente, não apresentarei protesto quanto à identificação da mulher.

     – Não protesta? – perguntou o juiz Markham.

     – Não, Excelência, disse Perry Mason.

     – Muito bem, disse o juiz Markham. – Apoiarei o protesto, se for feito.

     – Não será apresentado – disse Perry Mason.

     Um murmúrio ressoou por toda a sala do tribunal.

     – Muito bem, resmungou o juiz, com o rosto entediado. – A testemunha responda à pergunta.

     – Sim, senhor, disse Don Graves. – Creio que essa mulher era Frances Celane. Não tenho tanta certeza no caso dela, como tenho no caso do homem, mas creio que era Frances Celane. Estava vestida tal qual Frances Celane, e a cor do cabelo, e o contorno do ombro fazem-me pensar que fosse Frances Celane.

     – Há quanto tempo conhece Frances Celane?

     – Há mais de três anos.

     – Tem vivido na mesma casa em que ela vive?

     – Sim, senhor.

     – Sabe por acaso se ela, na data do crime, tinha um vestido, ou um ornamento da cor que o senhor viu na mulher que estava de pé no quarto?

     – Sim, senhor.

     – Muito bem, disse Claude Drumm. – Que fez ao ver a cena?

     – Disse aos senhores que iam comigo o que vira e pedi que fizessem o automóvel dar a volta.

     – Oponho-me, por minha própria iniciativa, a essa pergunta, disse o juiz Markham. – O que diz a testemunha é inoportuno, inadmissível, e sem valor testemunhal. A pergunta do senhor promotor foi para saber o que fez a testemunha com referência ao que acontecera no quarto. Palestras entre pessoas na ausência do acusado e que não formam parte da rés gestae não são permitidas.

     – Perfeitamente, disse Claude Drumm. – Que aconteceu depois? Que fez o senhor em relação a Mr. Norton?

     – Voltei a casa, subi a escada do gabinete dele, e achei o seu corpo caído atravessado em cima da mesa, com o alto da cabeça esfacelado.

     – Pode a defesa interrogar, disse Claude Drumm, asperamente.

     Perry Mason pôs-se de pé e olhou Don Graves fixa e demoradamente. Um frêmito elétrico percorreu a sala do tribunal. Os espectadores sentiam que se chegara ao ponto crucial do julgamento.

     – Está com os olhos em boas condições? – perguntou Perry Mason.

     – Sim, senhor.

     – O senhor acredita que é capaz de, sentado num automóvel que corre velozmente, ao passar por este ponto da estrada, num relance de olhos que deu pelo vidro posterior do carro, reconhecer as pessoas que se encontrem naquele gabinete?

     – Sim, senhor, julgo-me capaz disso.

     – Como o sabe?

     – Porque vi claramente naquele momento, e também porque, para comprovar a minha própria capacidade de ver, fiz subseqüentes contra-provas.

     – A última parte dessa resposta será excluída, disse o juiz Markham.

     – Não foi feita qualquer objeção para retirá-la, disse Perry Mason. – Se o tribunal o permite, eu quisera insistir sobre este ponto.

     – Como quiser, disse o juiz Markham.

     – O senhor disse que fez várias provas ulteriores?

     – Sim, senhor.

     – Num automóvel?

     – Sim, senhor.

     – Com pessoas ocupando o quarto?

     – Sim, senhor.

     – Quem eram os ocupantes do quarto?

     – Mr. Drumm, promotor público, e dois agentes do seu gabinete.

     – E foi-lhe possível reconhecer essas pessoas?

     – Sim, senhor. Como o senhor sabe, a janela é muito larga, e a iluminação no gabinete é ótima.

     – O automóvel com que foram feitas essas provas não corria muito velozmente, não é verdade?

     – Pode dizer-se que com a mesma velocidade em que corria o automóvel no qual eu viajava na noite do crime.

     – Era o automóvel do juiz Purley?

     – Sim, senhor.

     – Mas o senhor não fez prova nenhuma indo no automóvel do juiz Purley, não é verdade?

     – Não, senhor, fiz noutros automóveis.

     – Quando as provas não são feitas nas mesmas condições, isto é, quando não se trata da mesma máquina, a janela posterior não é a mesma.

     – Eram semelhantes, disse Don Graves.

     Perry Mason olhou acusadoramente para a testemunha.

     – Mas as provas não foram feitas exatamente nas mesmas condições.

     – Não, senhor.

     – Atrever-se-ia o senhor, trovejou Perry Mason, a repetir a prova nas mesmas condições das da noite do crime?

     – Protesto contra a pergunta, por considerá-la argumentadora, disse feramente Claude Drumm.

     – Eu acho, disse o juiz Markham, que seria argumentadora se quiser, mas realmente tende a fazer ressaltar o interesse ou as inclinações da testemunha. A pergunta é se ele está disposto ou não a fazer uma prova em determinadas condições.

     – Mas uma tal prova nada poderia provar a mais do que já está provado, disse Drumm.

     – A pergunta, insistiu o juiz Markham, é se, sim ou não, a testemunha está disposta a fazer a prova. Assim, pois, permito que a testemunha responda.

     – Responda à pergunta, ordenou Perry Mason.

     – Sim, senhor, estou disposto a fazer outra prova.

     – Se o juiz Purley quiser fornecer o automóvel, quer o senhor fazer uma prova indo naquele carro?

     Claude Drumm pôs-se de pé.

     – A pergunta agora é diferente, Excelência. Não se trata de saber se a testemunha estaria disposta a fazer a prova, é sim se ele quer fazê-la.

     – Sim, disse o juiz Markham, se o senhor quiser protestar contra a pergunta, creio que aceitarei o protesto.

     Perry Mason voltou-se para o júri.

     – Nesse caso disse ele, não continuarei o interrogatório.

     – Não continuará o interrogatório? – perguntou Claude Drumm.

     – Não. O fato fala por si mesmo, disse Perry Mason com energia. – O senhor receia fazer uma prova nas mesmas condições que regiam na noite do crime.

     O martelo do juiz Markham bateu fortemente sobre a mesa.

     – Senhor advogado, disse ele, queira ter a bondade de refrear os seus ímpetos de personalizar o debate, e queira dirigir as suas observações ao tribunal e nunca ao advogado contrário.

     – Queira perdoar, Excelência, disse Perry Mason, mas a sua voz não apresentava vestígios sequer de humildade, e os seus olhos luziam, divertidos.

     Claude Drumm encarou Perry Mason e a sua fronte enrugou-se sob o peso da reflexão.

     – Excelência, disse ele, ser-me-á permitido pedir um adiamento, por agora, até amanhã às 10 horas? Estou surpreendido com o inesperado progresso no andamento deste caso.

     – Não está mais surpreendido do que o tribunal de justiça, disse o juiz Markham. – Agradavelmente surpreendido, atrevo-me a dizer. É hábito, nos casos de assassínio, ver as sessões prolongarem-se tanto que resulta numa inovação alarmante ver uma causa desenvolver-se com a rapidez desta.

     “O seu requerimento está deferido e o tribunal adia o julgamento do processo até amanhã, às 10 horas, e espera que, durante esse tempo, os senhores jurados não se esqueçam das habituais recomendações, contra as discussões em torno do caso, quer entre os senhores jurados, quer em sua presença por estranhos.”

     O martelo soou sobre a mesa.

     Perry Mason fez girar a sua poltrona e virou-se para os negros olhos de Frances Celane.

     Sorriu-lhe de modo tranquilizador.

     Rob Gleason, sentado ao lado dela, estava desvairado e abatido, mostrando os efeitos que sobre ele exercera a dura prova; a sua atitude era tensa e forçada e seus olhos estavam cheios de ocultos temores.

     A rapariga estava calma e sossegada, os seus olhos nada refletiam dos seus sentimentos. Estava com o queixinho levantado e a cabeça reclinada para trás.

     Perry Mason inclinou-se para eles.

     – Confiem em mim, peço-lhes, disse-lhes.

     Somente quando ela lhe sorriu, se tornaram evidentes as mudanças que se haviam operado nela, durante a prova por que passara nos dias que precederam o julgamento. Havia traços de melancolia no seu sorriso, uma expressão de paciência que nunca se vira, antes, no seu rosto. Ela nada disse, mas o seu sorriso disse o que a palavra não diria.

     Rob Gleason murmurou:

     – Quero falar-lhe, senhor. Em particular, sim?

     Um policial adiantou-se, tocou Frances Celane no ombro.

     Perry Mason disse-lhe:

     – Espere um momento, peço-lhe. – E levou Rob Gleason para outro lugar.

     Gleason perguntou-lhe, em rouco sussurro:

     – As coisas estão muito feias, não é verdade?

     Perry Mason encolheu os ombros.

     – Se, murmurou Gleason, tudo for contra nós, quero assumir a responsabilidade de tudo.

     – Que quer dizer? – perguntou o advogado.

     – Quero dizer, pontuou Gleason, que quero confessar. Quero livrar Fran de toda e qualquer responsabilidade.

     Com firmeza, resolutos, sem piedade, os olhos de Mason estudavam a fisionomia de Gleason.

     – Ainda não chegamos a isso, Gleason, disse ele. – E não chegaremos. Entretanto, bico calado.

     Virou-se e fez sinal ao policial que esperava que a conferência terminasse.

 

     Perry Mason estava sentado à sua mesa, no gabinete olhando penetrantemente para Harry Nevers.

     Nevers, com a sua cabeleira bem penteada, o rosto recentemente barbeado, trajando um fato ainda quente do ferro, estendeu as pernas por sobre o braço da enorme poltrona, e, de olhar posto em Perry Mason, estudava-o curiosamente.

     – Naturalmente que lhe quero fazer um favor, disse ele, se é coisa que esteja ao meu alcance. O meu jornal olha-o com a maior simpatia. Você proporcionou-nos uma caixa sensacional, quando foi da prisão de Frances Celane.

     – Muito bem, retorquiu Perry Mason, conservando o olhar firme e atento. – Quero que você frise bem o fato de que o promotor fez secretamente verificações para estabelecer até que ponto Don Graves podia afirmar a verdade.

     Nevers assentiu e bocejou preguiçosamente.

     – Em outras palavras, suponho que o que você quer é uma insinuação nas entrelinhas, de que o promotor não teria feito aquelas provas, se não alimentasse uma ligeira dúvida quanto ao testemunho.

     Perry Mason assentiu.

     – Bem, disse Nevers, no tom que o caracterizava, isso está feito. Sempre me antecipo aos seus desejos.

     – Ótimo. Agora, temos mais alguma coisa. Quisera que você relatasse com certa ênfase o que aconteceu antes do adiamento; o fato de o promotor se ter recusado a renovar uma prova em circunstâncias idênticas às da noite trágica.

     Nevers inclinou a cabeça, num gesto de aquiescência.

     – Muito bem, disse ele, e que há por trás disso?

     – Por trás de quê? – perguntou o advogado.

     – Por trás desse negócio da prova.

     – Você pode percebê-lo por si mesmo. O promotor organiza provas. Isso demonstra que ele nutre algumas dúvidas quanto às possibilidades da testemunha em ver os ocupantes do quarto, com a clareza que afirma. Por outro lado, ele recusa agora organizar uma nova prova ou permitir que ela seja organizada exatamente nas mesmas condições.

     – Patranhas! – disse o repórter. – Isso é um lindo pratinho para oferecer ao júri, mas eu bem quisera que você me dissesse que resultado espera daí.

     – Ora, não há resultados a esperar.

     – Pois sim, meu caro, não vou nisso. Não pense que vou tirar as castanhas do fogo para você. Você proporcionou-me uma caixa no caso e quero mostrar-me agradecido. Mas não pense que vou atirar-me às tontas, nesse jogo de puxar a brasa com a mão do gato e chamuscar os dedos sem antes saber se as castanhas valem o sacrifício ou não.

     Mason balançou a cabeça.

     – Não me aborreça, Harry, disse. – Quero simplesmente obter uma experiência feita exatamente em idênticas circunstâncias.

     – Bem, falemos um momento sobre isso. Que quer você dizer com “exatamente em idênticas circunstâncias”?

     – Ora essa! São os meios com que quero que se organize a prova. Quero apenas ir sentado na frente do automóvel com o juiz Purley, no lugar ocupado por Arthur Crinston. Estou perfeitamente de acordo em que Drumm, o promotor, vá sentado atrás, com Don Graves.

     No olhar que Harry Nevers dirigiu a Perry Mason havia um lampejo de surpresa.

     – Você enlouqueceu? – perguntou.

     – Não, disse Perry Mason, secamente.

     – Pobre e infeliz inocente, atirado à voragem deste inundo de perdição! – declarou Nevers. – Não deixe que Claude Drumm o embrulhe com alguma das suas costumadas espertezas. Ele é um desses companheiros de jogo cheio de manhas. Foi ele quem fez desaparecer as notas que continham a primeira declaração de Don Graves, feitas à polícia, na qual ele disse ter reconhecido Devoe como o assassino, e não disse coisa alguma a respeito de outra pessoa que estivesse no quarto.

     – Esplêndido, isso, disse Mason. – Por que o fez?

     – Simplesmente pelo seguinte: vai arrumar as coisas de tal forma que, embora Don Graves tivesse os olhos vendados, conservaria cem por cento a sua possibilidade de identificação. Se você o deixar sentar-se junto de Don Graves ou em lugar de onde ele lhe possa sussurrar ou fazer sinais, você será um louco rematado.

     Perry Mason meneou a cabeça e sorriu.

     – Pois então, vamos adiante, disse Nevers. – Diga-me o que vamos fazer emergir ou, caso contrário, não conte nem com uma linha mais de colaboração nossa.

     – Acontece às vezes, que uma pessoa tem que empregar pequenos estratagemas, por exemplo, quando se quer aproximar de um bando de gansos selvagens, sem que eles percebam, é sempre conveniente esconder-se por trás de um cavalo para chegar junto deles.

     – Que quer dizer isso tudo? – perguntou Nevers.

     – Quer dizer que esses gansos são selvagens, e levantam vôo quando vêem coisas que não conhecem ou que lhes pareça ser um caçador, disse Perry Mason. – Mas, em compensação, estão acostumados a ver cavalos e, quando vêem que um se aproxima deles, não lhe prestam a menor atenção.

     – Assim, pois, você caminha por trás de um cavalo? – perguntou Nevers.

     Perry Mason fez com a cabeça que sim.

     Nevers fez deslizar os pés para fora dos braços da cadeira, ergueu-se e olhou firmemente para Mason.

     – Olhe, disse ele, você alcançou a reputação, entre os advogados, de ser um trabalhador rápido e um camarada de pulso. Além disso, tem fama de manobrar um caso de modo a ficar numa posição que lhe permita assestar o golpe final robustecido com todo o peso do corpo. Você não é homem para gastar energias com tolices que nada significam. Por isso, quero saber que golpe demolidor existe neste caso.

     – Ainda não tenho a certeza de qual seja, disse Mason. – E nem sequer tenho a certeza de que exista.

     – Deixe-se de histórias. Basta ver o caminho por onde você encaminhou este caso. Você, refastelado na sua poltrona, deixando a acusação manejar à vontade qualquer maldita provazinha que descobre... Você quase que não interrogou as testemunhas, procurando tirar-lhes qualquer coisa que redundasse em benefício de seus constituintes...

     – Que quer você dizer com isso? – perguntou Perry Mason, vagarosamente e em tom de enfado.

     – Ora, tire o cavalo da chuva. Não será com essas que você me enganará. Sabe tão bem como eu que Don Graves fez um depoimento para a polícia, na noite do crime, no qual disse ou deixou entrever que a pessoa que manejava a bengala era Devoe. Ele não disse, então, que houvesse uma mulher no quarto no momento em que descarregavam o golpe, ou pelo menos esqueceu-se de dizer que vira uma mulher lá dentro. Você deixou as coisas correr e consentiu que ele servisse de testemunha neste caso, sem fazer referências àquela particularidade ou sequer fazer ver a contradição dos seus depoimentos.

     – Nada adiantava se o fizesse. As notas do depoimento foram destruídas, e Graves juraria, ou que jamais fizera semelhante declaração, ou que Frances Celane lhe suplicara que nada dissesse, e que ele tentara deixá-la fora de tudo aquilo.

     – Tolices, disse Nevers.

     Perry Mason abriu uma gaveta da mesa e tirou de lá uma garrafa de whisky.

     – Teremos muito que conversar, Harry, disse ele. – Se você quiser entrar no meu jogo, garanto-lhe que não se arrependerá.

     – Isso quer dizer? – perguntou Nevers.

     – Quer dizer que, se você não perder de vista a prova e se se mantiver perto dela, quando se realizar, chegará a tempo de colher uma formidável notícia para a primeira página do seu jornal, que será uma explosão.

     Harry Nevers empurrou para o lado o copo que Mason colocara para ele, junto com a garrafa, e empinou esta.

     Tomou meia dúzia de tragos e depois entregou a garrafa ao advogado.

     – Quando teremos essa explosão? – perguntou. – Logo depois da prova?

     – Não creio. Parece-me que terei de fazer uma pequena manipulação.

     O repórter começou a falar como se estivesse a pensar em voz alta.

     – Podemos obrigar o promotor a realizar essa prova – disse. – É uma prova que deve sair melhor do que a encomenda. Mas você deve ter alguma coisa na manga. Você conduz este caso de assassínio, aparentemente com menos andar de sua parte, do que se estivesse a tratar apenas do primeiro inquérito policial. Neste processo, você deixa as coisas correrem a galope, aos saltos, aos pinotes, consentindo que a acusação atire para a frente todas as provas prejudiciais que lhe convém. Toda a gente, na cidade, critica a fraca defesa que você tem produzido.

     – Sim? – disse Mason, arqueando as sobrancelhas.

     – Oh! Esqueça isso, emendou Nevers, com um vestígio de compaixão na voz. – Você sabe como essa gente é malvada. Um calouro recém-saído de uma Faculdade de Direito teria encaminhado este caso muito melhor do que você o tem feito.

     “É o que todos comentam. A cidade está dividida em dois campos: há quem ache que você é mais astuto do que o diabo, e oculta alguma coisa na manga, e há quem pense que você tem tido sorte nos seus outros casos, mas que não tem grande coisa na bola. É evidente que este caso é de grande importância.”

     “Uma mulher com tantos milhões como Frances Celane no pelourinho; um casamento secreto; um aspecto sexual, e toda a espécie de notícias interessantes para as páginas do noticiário. Esta é a oportunidade da sua vida; levar este caso para diante, conquistando ardorosamente cada polegada de terreno, mantendo-se no cartaz, com o seu nome sempre na primeira página dos jornais, durante umas duas ou três semanas. Em vez disso, você está agindo como um mudo.”

     “Num caso de assassínio como este, você deveria meter-se pelo tribunal, tal como um porco gordo que se mete por entre as pernas do granjeiro.”

     Perry Mason rolhou a garrafa de whisky, e deslizou-a para dentro da gaveta da mesa.

     Nevers olhava-o, esperando a resposta.

     – Não me diz nada? – perguntou.

     – Não.

     Nevers fez uma careta e enxugou a boca com as costas da mão.

     – Ok – disse ele. – Já cumpri com o meu dever. Direi ao meu diretor que fiz o que nem o diabo faria para tirar-lhe alguma coisa do gasganete. Pode ser que consiga cavar alguma notícia de interesse duvidoso, dessas que os leitores gostam de encontrar nas entrelinhas.

     Perry Mason pegou no repórter pelo braço e conduziu-o até à porta do escritório exterior.

     – Ouça, Harry, disse ele, se você inventar qualquer coisa, que seja razoável...

     Perry Mason parou na porta da saída e subitamente voltou-se para o repórter.

     – Alegre-se, homem, disse, vou dar-lhe uma formidável informação reservada. Rob Gleason tem a intenção de fazer uma confissão completa e assumir toda a responsabilidade do crime, para ilibar inteiramente Frances Celane.

     Nevers encarou-o.

     – Mas você não permite que eu publique isso, disse ele.

     – Por que não? – perguntou Perry Mason.

     – Porque isso é violar um segredo profissional.

     – Não se preocupe, disse Mason, tranqüilamente. – Basta que você não mencione o meu nome, e pronto. Diga simplesmente que obteve a informação de fonte chegada aos interessados.

     – Santo Deus! – exclamou Nevers. – Isso será o pior pedaço do libelo, se não conseguirmos demonstrá-lo.

     – Você poderá demonstrá-lo – disse Mason. – Se alguém lhe falar a esse respeito, você poderá revelar a fonte onde obteve a informação.

     – Posso dizer que foi você?

     – Pode confessar que fui eu quem o informou.

     Nevers tomou uma inspiração profunda.

     – Ouça, Perry. Tenho visto gente subir e visto gente baixar. Tenho-me metido em toda a espécie de casos, entrevistado infinidade de pessoas. Tenho visto gente matreira, e gente que pensava sê-lo. Conheci gente que era bronca e que não sabia que o era, e gente que era bronca e pensava ser muito elegante, mas você atira terra aos olhos de toda essa gente. Esta é a mais diabólica entrevista que eu já tive com um advogado.

     Mason espalmou a mão direita entre as espáduas do repórter folgazão e gentilmente o foi empurrando para o escritório exterior.

     – Está tudo muito bem, disse ele. – Dei-lhe uma caixa. Retribua-me.

     Frank Everly estava de pé no escritório exterior, demonstrando impaciência pela sua atitude.

     – Queria falar comigo? – perguntou Perry Mason.

     Everly anuiu.

     – Venha, disse-lhe Mason.

     Everly entrou no escritório particular. Perry Mason continuou de pé, no umbral, até que Harry Nevers saísse pela porta exterior; só então fechou a porta do escritório particular e se voltou para Everly.

     Este tossiu e desviou o olhar.

     – O senhor não acha, Mr. Mason, que o processo marcha demasiado depressa? – perguntou.

     Mason sorriu, fitando-o com seus olhos pacientes e fatigados.

     – Em outras palavras, disse ele, você ouviu por aí alguns comentários que diziam ter sido rachado ao meio na minha defesa e que a acusação me espezinha à vontade. Não foi isso que ouviu?

     Everly corou e disse, em voz abafada:

     – Eu nada disse parecido com isso, Mr. Mason.

     – Você nunca ouviu a história do homem que apresentou uma denúncia contra um vizinho, alegando ter sido mordido pelo cão daquele? O vizinho assinou uma declaração na qual negava que o seu cão tivesse o vício de morder, que tivesse mordido o homem, e finalmente negava ter, jamais, tido um cão.

     – Sim, disse Frank Everly, conheço essa pilhéria. É clássica na escola de Direito.

     – Pois aí está. A defesa, neste caso, levou as coisas à troça por julgar-se muito segura. Agora, ouça, quando se vir metido num caso duvidoso, será conveniente procurar pôr duas cordas no seu arco. Lembre-se, porém, de que, quando se tem duas cordas no arco, aumenta o fator segurança, mas perde-se quanto à eficiência da arma. O arco com duas cordas não se parte, mas não arroja uma flecha nem à quarta parte da distância que faria se tivesse unicamente uma corda.

     – Quer dizer com isso que o senhor, neste caso, sacrificou tudo para concentrar o esforço num único ponto, não é? – perguntou Everly.

     – Sim. A inocência de Frances Celane e Rob Gleason está virtualmente demonstrada pelas provas existentes até o presente momento. A culpabilidade dos acusados não pode ser estabelecida simplesmente por efeito de uma dúvida argumentada. Quero fazer um pouco mais do que lançar uma dúvida argumentada na mente dos jurados. Quero a solução completa do caso.

     Frank Everly ficou a olhar para Mason com olhos esbugalhados e incrédulos.

     – Céus! – disse. – E eu que pensei que tudo que tinha acontecido hoje confirmava a culpa de Frances Celane e de Rob Gleason! Pensei que, a menos que pudéssemos destruir os depoimentos de algumas daquelas testemunhas, teríamos de nos preparar para ouvir um veredito de assassínio premeditado.

     Mason moveu a cabeça, cansado.

     – Não, o ponto capital que eu precisava neste caso aproxima-se. O que procuro agora é fazer esse ponto estalar na mente dos jurados de um modo tão dramático que eles jamais o esqueçam. E, lembre-se disto, tenho Claude Drumm tão terrivelmente atordoado com a marcha seguida por este caso que ele já anda pelas fronteiras do pânico. Imagina que devo ter um ás na manga do casaco ou em outro lugar, do contrário não lhe cederia todas as vantagens.

     – O júri, sugeriu Frank Everly, parece mal disposto para a benevolência.

     – É natural que assim seja. E é provável que fique ainda mais mal disposto. Você sabe o que Claude Drumm está a fazer? Ele está a meter-se no corpus delicti apenas com testemunhos superficiais. Pouco antes de terminar a exposição do caso, apresentará fotografias do cadáver caído sobre a mesa, do mata-borrão ensangüentado, da apólice de seguro salpicada de sangue, e outras patacoadas desse quilate. E aí, então, atirará o caso às nossas bochechas, e deixar-nos-á em frente de um júri com o coração endurecido, pronto a ditar uma sentença de morte.

     – O que não vejo, disse Everly, é como o senhor o fará parar.

     – Eu não tentarei fazê-lo parar, continuou Mason, sorrindo. – Empurro-o para esse rumo.

     Della Street entrou no gabinete.

     – Mr. Drake está lá fora, disse ela, e diz que é importante o que o traz aqui.

     Perry Mason sorriu para ela.

     – Ele que espere um minuto, disse. – Estou a explicar uma coisa a Frank Everly.

     Della Street olhou para Mason com olhos cálidos de ternura.

     – Recordo-me, disse ela suavemente, quando eu o fiz explicar-me algumas coisas. Depois disso, sempre tive confiança no senhor e não mais precisei de explicações.

     Perry Mason fitou-a com olhos perscrutadores.

     – Leu os jornais? – perguntou.

     – Os da tarde, sim.

     – Já sabe como se desenvolve o processo?

     – Sim.

     – Já verificou que estou a fazer uma defesa muito fraca?

     Ela empertigou-se ligeiramente, e olhou acusadoramente para Frank Everly.

     – Quem disse isso? – perguntou.

     – É o que se infere dos jornais, disse Perry Mason.

     – Pois está muito bem. Apesar disso, acabo de fazer uma aposta com Paul Drake, de metade do meu ordenado do mês, em como o senhor conseguiria a absolvição dos dois acusados. Isso mostra a confiança que tenho no senhor.

     – E, por outro lado, Drake deve ter trazido más notícias – disse Perry Mason. – Saiam ambos e deixem-me falar com ele. Como sabem, trabalha para mim neste caso. É provável que me traga alguma informação secreta. Não é lá muito desportivo da parte dele fazer apostas baseado em informações secretas.

     – Não faz mal, disse Della Street. – Ele foi franco a esse respeito. Disse-me que tinha algumas informações secretas.

     – Ele disse-lhe do que se tratava?

     – Não, apenas me disse que as tinha, e eu disse-lhe também que possuía algumas.

     – Que informação disse você que tinha? – perguntou Perry Mason, olhando indagadoramente para ela.

     – Fé no senhor, disse ela.

     Mason apertou-lhe a mão.

     – Muito bem. Vamos, saiam e deixem-me falar com Drake. Quero ver o que tem a dizer-me.

     Drake entrou no gabinete particular, sentou-se, piscou o olho, e enrolou um cigarro.

     – Bem, disse ele. – Trouxe uma carga pesada para você.

     – Ótimo! De que se trata?

     – Trabalho da sombra misteriosa, informou Drake.

     – Nunca me interessam os métodos. Quero os fatos.

     – Pois então, a história é a seguinte. Mrs. Mayfield é um bebé duro de roer.

     – Não é novidade para mim. Já tentou embrulhar-me um par de vezes.

     – Sim, sei de tudo a respeito disso, pelas minhas informações. O único inconveniente, amigo Perry, é que essas informações parece serem infernais para os seus constituintes.

     – Que quer você dizer com isso?

     – Aí vai; em primeiro lugar, Mrs. Mayfield não sabe nem a metade do que pretende impingir que sabe. Teve o azar de meter-se na cama justamente no momento culminante. Deitou-se exatamente cerca de quinze ou vinte minutos antes do crime ser cometido. Mas passou a noite bisbilhotando por todos os cantos.

     “A coisa começou quando ela descobriu que Gleason e Frances Celane se tinham casado. Procurou então fazer dinheiro com aquela descoberta. Extorquiu uma boa maquia a Frances Celane: não sei quanto, creio que cerca de dez mil dólares. Aí então, Edward Norton, por um meio qualquer, veio a saber que Frances Celane era vítima de uma chantagem.”

     “Chamou-a e quis obrigá-la a dizer-lhe a quem ela pagava aquele dinheiro e por que motivo. Naturalmente, ela nada lhe quis dizer. Edward Norton, porém, era um indivíduo tremendamente obstinado e, visando descobrir o mistério, suprimiu a mesada da rapariga. Isso colocava-a em situação de não ter dinheiro para pagar ao chantagista.”

     “Por outro lado, Mrs. Mayfield disse que podia ter feito dinheiro noutra parte com a notícia, e que, se Frances Celane não lhe quisesse dar os cobres, ela venderia a informação a uma das instituições de caridade que seriam beneficiadas com o seu conhecimento.”

     “Naturalmente isso era uma patranha, mas Frances Celane não o sabia. A situação geral chegou ao extremo, na noite do assassínio. Frances Celane teve uma tormentosa entrevista com Norton, e altercaram asperamente. Norton declarou-lhe que, antes de se recolher ao leito naquela noite, ia redigir um documento escrito, pelo qual liquidaria o assunto do depósito, dando a Frances Celane a anuidade determinada pelos termos do testamento, e cedendo o saldo às instituições de caridade.”

     “Ignoro se isso era uma simples ameaça para amedrontá-la ou não. Foi o que ele disse. Mrs. Mayfield, então, foi para a cama. Na manhã seguinte, Frances Celane tinha dinheiro, montões de dinheiro. Deu a Mrs. Mayfield vinte e oito mil dólares para que ficasse calada. Mrs. Mayfield prometeu o que ela queria.”

     “Rob Gleason esteve lá em casa naquela noite, e participou, pelo menos numa parte da entrevista com Norton. Este estava furioso e acusou a rapariga de uma infinidade de coisas. Ela ficou irada e usou uma linguagem capaz de deixar as orelhas dele em carne viva.”

     “Mais tarde, Gleason desceu ao quarto de dormir da jovem. Foi isso depois de Crinston chegar e antes do crime. Foi mais ou menos a essa hora que Mrs. Mayfield foi para a cama.”

     “Ela não sabe exatamente o que aconteceu, salvo a certeza de que Frances Celane não saiu no Buick. Por isso, sabe que o álibi que Frances Celane tentou impingir era falso.”

     “Ela veio procurá-lo e tentou extorquir-lhe dinheiro em troca da promessa de conservar Frances Celane fora do assunto.”

     “Você deixou-a danada, e resolveu procurar a jovem, o que fez, obtendo uma boa bolada. Mais tarde, descobriu que o dinheiro que arrancara de Frances Celane era todo em notas de mil dólares, de numeração seriada, e compreendeu que aquelas notas constituiriam uma pista no caso de tentar trocá-las por notas menores. Assim, ela ocultou aquelas notas e procurou criar a impressão de que Frances Celane lhe deu vinte e oito mil dólares a título de honorários. Ela disse, no gabinete do promotor que foi isso o que aconteceu, e a polícia tenta localizar os vinte e oito mil dólares. Já fez indagações nos Bancos com que você trabalha, tendo chegado ao extremo de fazer uma busca no seu escritório. Agora, chegou à conclusão de que você deve ter consigo os vinte e oito mil dólares.”

     “O promotor pretende causar, com ela, uma surpresa na prova testemunhal. Ela vai comparecer para depor sobre a falsidade da declaração da jovem, quanto à saída no automóvel Buick, e também a respeito da discussão havida.”

     “A teoria da acusação é que a chegada de Arthur Crinston interrompeu uma querela azeda; que os dois indivíduos idearam a trama desse assassínio, e esperaram até que Crinston se retirasse para pô-lo em execução; que, assim que Crinston partiu, eles se precipitaram no gabinete de Norton e o mataram, deixando então provas no quarto de Peter Devoe, para fazê-lo aparecer como o culpado, no caso de que os investigadores não se deixassem cair no logro da janela forçada e das pegadas no chão úmido.”

     – E o que há a respeito de Graves? – perguntou Perry Mason. – Conseguiu alguma coisa com ele?

     – Consegui um mundo de coisas com ele. Aquela rapariga virou-o pelo avesso. Vai ser a sua sombra negra até o fim; disse-lhe que tentara proteger Frances Celane, ou que o fizera até que o promotor o apertou de tal modo que o venceu.

     – Olhe – disse Mason – a minha opinião sobre este caso é que Norton deu aquele dinheiro a Frances Celane antes de Crinston chegar. Agora, ouça: Graves deve ter informações que confirmem esta opinião.

     – Isso é justamente o pior pedaço do depoimento dele. Disse que podia ouvir tudo o que estavam a dizer. Do que Norton puxou a carteira e mostrou à rapariga quarenta mil dólares, dizendo-lhe que trouxera aquele dinheiro para lhe dar, mas que nada lhe daria, salvo uma pequena soma para as suas despesas correntes. E, então, separou duas notas de mil dólares e entregou-lhas.

     “Don Graves pensa que a rapariga pegou nas notas de mil dólares e que ela e Gleason as puseram no bolso de Devoe, quando Crinston estava a conversar com Norton; que a rapariga e Gleason voltaram depois e mataram Norton, apoderando-se do saldo do dinheiro da carteira para empregá-lo subornando a governante, a fim de que se calasse e pagando-lhe a você um gordo adiantamento, para interessá-lo no caso.”

     “É esta a opinião de Graves.”

     “O promotor organizou as coisas de modo que tudo isso fosse surgindo no interrogatório. Quer dar-lhe uma bofetada com isso. O fato de você ter restringido o seu interrogatório deixou o Drumm intrigado. É intenção dele trazer à baila toda a embrulhada na inquirição, pedindo autorização para chamar novamente as testemunhas.”

     Perry Mason espreguiçou-se, esticando os braços. Olhou para o detetive e riu-se.

     – Paul, disse ele, há momentos em que a prudência é um vício.

     – E isso quer dizer? – perguntou Drake.

     – Quer dizer que há circunstâncias em que é de bom aviso arriscar tudo, num golpe dramático, num soco de derrubar. No caso presente, tenho somente uma corda no meu arco. Se ela rebentar, estou liquidado. Mas, se não rebentar, dispararei uma flecha que irá direitinha ao centro do alvo.

     – Bem, Perry, se você puder pôr essas coisas a limpo, é sinal que é muito mais esperto do que eu. Quanto mais olho para isto, mais embrulhado e mais confuso me parece.

     Mason começou a caminhar de um lado para o outro.

     – A coisa que mais me atemoriza, disse ele, é que eu não seja talvez capaz de ocultar suficientemente o meu objetivo.

     – Que quer dizer? – inquiriu o detetive.

     – Eu estou a caçar um bando de gansos selvagens, escondido por trás de um cavalo. E tenho medo de que o cavalo não seja suficientemente grande para me proporcionar o disfarce de que necessito.

     Paul Drake dirigiu-se para a porta.

     – Ouça-me, disse ele, detendo-se, com a mão na maçaneta da porta, não se preocupe com isso. Tenho visto nesta minha vida uma infinidade de casos de assassínio e tenho conversado com uma infinidade de advogados que julgavam ter alcançado um ponto que de fato não haviam alcançado.

     “Se você pensa ter habilidade bastante para salvar qualquer destes seus constituintes, nesse caso é mais otimista do que eu. Acabo de apostar com Della Street metade do seu ordenado do mês, que os seus clientes vão ser condenados, e, depois desta conversa com você, tentarei apostar a outra metade.”

     “Isso demonstra-lhe a confiança que tenho.”

     Depois dele fechar a porta, Perry Mason ficou de pé, no centro do gabinete, com os pés bem apartados, a mandíbula projetada para a frente, os largos ombros espalmados, olhando para a porta fechada, em profunda concentração.

    

     O cabeçalho do noticiário estendia-se de um lado ao outro da primeira página do Star:

     

      Uma testemunha do assassínio do milionário nega-se a reconstituir a prova.

    

     Perry Mason, com o jornal erguido diante dele, sobre a mesa, quebrava a casca dos ovos quentes e sorria satisfeito.

     Por baixo do enorme título, havia subtítulos menores.

     

      Discussão em torno da visão da principal testemunha.

      A defesa propõe realizar a prova e a acusação recusa.

    

     Perry Mason temperou os ovos com sal e pimenta, juntou-lhes um pouco de manteiga, pegou uma fatia de pão torrado e deu uma boa gargalhada.

     Leu o prolixo noticiário do julgamento, notando que o desafio que lançara à acusação estava impresso em normando.

     Acabou de almoçar, dobrou o jornal e foi para o seu gabinete.

     – Alguma novidade? – perguntou a Della Street.

     Ela fitou-o, tendo nos lábios um sorriso ansioso e meio maternal.

     – O senhor tem-nas no bolso, respondeu.

     Ele piscou-lhe o olho.

     – Se o promotor se nega a aceitar o desafio agora, estou com a causa ganha perante o júri.

     – E que fará o senhor se ele aceitar? – perguntou ela.

     Perry Mason encaminhou-se para a janela e olhou pensativamente para a manhã luminosa.

     – Isso agora, observou ele, exige outra pergunta. Você dobrou a sua aposta com Paul Drake?

     – Sim.

     – Boa amiga! – exclamou ele.

     – O senhor acredita que o promotor consentirá na prova?

     – Acredito.

     – Como fará o senhor para que a prova lhe seja favorável? – perguntou ela.

     – Nada posso fazer, respondeu Perry Mason, mas não prejudica tentá-la.

     – Bem, de qualquer forma terá tido uma boa propaganda. Todos os jornais da manhã procuram adivinhar o que é que o senhor vai tirar da manga. O senhor é classificado umas doze vezes como “velha raposa do tribunal” e a maioria dos repórteres declara que o juiz está seriamente preocupado pelo modo expedito como está correndo o processo.

     – Você quer dizer que os jornais não acham que eu possa ser tão tolo como pareço, não?

     Ela riu-se.

     – Eu apostei no senhor, disse.

     – O promotor preparou um par de testemunhas-surpresas.

     – Surpresa para quem? – inquiriu ela.

     – Essa é a pergunta, chacoteou Mason, e dirigiu-se para o seu escritório particular.

     Nem bem havia fechado a porta, quando tilintou a campainha do telefone.

     – Drumm chama-o ao telefone, disse a voz de Della Street.

     – Alô, disse Mason.

     – Bom-dia, senhor defensor. Aqui fala Drumm. Estive a pensar sobre o seu pedido de realizar uma prova a propósito da visão de Don Graves, e decidi consentir na sua realização em circunstâncias absolutamente idênticas às da noite do crime. Pedirei ao tribunal um adiamento até o fim da semana, para organizarmos a prova de modo impecável, e quis avisá-lo.

     – É uma gentileza de sua parte, disse Mason.

     – Não, de todo.

     Mason deixou ouvir uma risada.

     – Referia-me ao seu aviso – disse ele.

     – Oh! – fez Drumm.

     – Já tem algum plano para a realização da prova?

     – Comunicarei isso no tribunal. Passe bem.

     Perry Mason continuou com o seu risinho enquanto depunha o auscultador no gancho.

     Perry Mason apertou o botão que chamava Frank Everly ao seu gabinete.

     – Olhe, Everly, disse ele, vai haver um adiamento do processo, para serem completados os arranjos para a prova que vai ser feita. Não irei ao tribunal, mas vou mandá-lo a você, para que combine o adiamento. Nada mais terá a fazer do que preencher as formalidades para a efetivação do adiamento para o fim da semana. Drumm, indubitavelmente, deve ter algum projeto preparado, estabelecendo o modo pelo qual ele quer que a prova seja feita e tentará arrastá-lo a aceitar esse projeto, quando você se achar no tribunal, em frente ao júri. Você dirá simplesmente que foi mandado para representar-me, a fim de consentir no adiamento, mas que não tem autoridade para resolver sobre as condições em que a prova terá de ser realizada. Isto o obrigará a pôr-se em contato comigo, fora da presença do júri.

     Frank Everly anuiu, mostrando ter compreendido, e havia em seus olhos um lampejo de admiração.

     – Conseguiu obrigá-lo a chegar até aí, não?

     – Não sei. Ele consentiu em fazer a prova. Isso era tudo o que eu queria. Pouco me preocupa o porquê de ele ter chegado até aí.

     – E por esse meio, o senhor livra-se de ter que discutir os pormenores diante do júri, não é assim?

     – Exatamente, disse Mason, sorrindo. – Diga-lhe que estarei no meu escritório para combinar com ele os pormenores da prova ou que, se quiser, irei encontrar-me com ele num lugar que convenha a ambos. Naturalmente, quando você fizer essas declarações, procure fazê-las com o ar mais cândido e sincero possíveis, porque o júri com certeza o observará dissimuladamente, mesmo porque os jornais devem ter falado um pouco demais a meu respeito, como sendo uma velha raposa.

     – Ok, chefe, disse Everly, deslizando para fora do gabinete com o rosto corado pelo entusiasmo.

     Perry Mason chamou Harry Nevers ao telefone.

     – Queria apenas avisá-lo, disse Mason, de que o promotor acaba de chamar-me para me dizer que consentirá num adiamento para o fim da semana, a fim de fazer a prova.

     A voz de Harry Nevers ressoou, áspera e monótona, ao telefone.

     – Pois a essa notícia posso acrescentar outra melhor, disse ele. – Ia justamente chamá-lo para lhe dar uma boa nova. O promotor tem um esquema organizado para a prova. Pretende apresentar-lhe o plano diante dos jurados. A você isto não vai agradar, mas não discutirá a coisa diante do júri.

     – Magnífico, disse Perry Mason. – Mas posso acrescentar outra informação. Não pretendo comparecer no tribunal. Já mandei o meu assistente para aceitar o adiamento. Ele não leva autorização para estipular as condições da prova.

     Harry Nevers riu-se.

     – Isso soa-me um pouco melhor, disse ele. – Quererá o tribunal dar ordem para se fazer a prova?

     – Não, disse Mason. – Não creio que o tribunal queira envolver-se nisso. Trata-se de um assunto que deve ser ajustado de comum acordo. Queremos que a prova se faça e então deixaremos que as testemunhas deponham segunda-feira, de manhã.

     – Quando vai você organizar os pormenores da prova? – perguntou o repórter.

     – Provavelmente logo depois do tribunal conceder o adiamento, respondeu-lhe Mason. – Drumm deverá procurar-me. Telefonei a você para avisá-lo de que não posso influir na publicidade que vem do gabinete do promotor, mas que, em tudo que me concerne, você terá a exclusividade dos pormenores, assim que me tenha posto de acordo com o promotor.

     – Estou a ver, respondeu o outro, que andei acertado ao fazer o fotógrafo tirar-lhe dois retratos, quando ele esteve no seu escritório. Alguma coisa me diz que os estamparemos na edição da manhã de terça-feira, ou, quem sabe se na da tarde de segunda.

     – Há outra coisa que quero que você me faça.

     – Caramba! Você sempre com pedidos...

     – Não se assuste. É uma coisa simples.

     – Bem, desembuche.

     – Quando a prova se estiver realizando, arrumarei as coisas de modo que Drumm e eu fiquemos em baixo, no automóvel, e Graves fique lá em cima. Chamaremos este de qualquer forma, com um sinal. Quando dermos esse sinal, quero que você entretenha Graves um pouco no gabinete.

     – Durante quanto tempo?

     – O tempo que você puder.

     – Qual é a finalidade disso?

     – Quero deixá-lo atordoado.

     – A esse pássaro você não atordoa. É a raposa mais manhosa que já vi.

     – Ele julga-se uma raposa, mas pode ser atordoado. Preciso que você lhe faça uma proposta qualquer que o retenha onde estiver até que ele se veja obrigado a chamar o promotor.

     – Hum! Você pede coisas que me fazem desconfiar, disse o repórter.

     – Não há motivo para isso. Se você fizer o que lhe peço, dar-lhe-ei logo depois uma caixa de tal natureza que poderá blasonar de ter contribuído para o resultado final.

     – É bem possível que não deseje participar do resultado final, disse Nevers. – Esses resultados finais, muitas vezes, não valem grande coisa.

     – Pois não participará, somente se não quiser, concluiu Mason. – Tomarei sobre mim toda a responsabilidade. Você poderá participar das vantagens.

     – Estou pensando que seria melhor eu chegar aí, para conversar consigo mais um pouco a respeito dessas coisas.

     Mason deu um estalo com a língua.

     – Eu sabia que você não se esqueceria dela.

     – Esquecer quem? – perguntou o repórter.

     – A garrafa de whisky da gaveta da minha mesa, disse o advogado. E pendurou o auscultador no gancho.

    

     A mansão Norton resplandecia de luz, com todas as janelas iluminadas. Mais de doze automóveis estavam enfileirados ao longo da calçada ou amontoados no caminho.

     Vários homens entravam e saíam pela porta aberta, e quatro ou cinco policiais empertigavam-se, com ar importante, pelas cercanias.

     Em cima, no gabinete onde Edward Norton fora assassinado, Claude Drumm contemplava Mason com olhar indagador.

     – Não sei que mais o senhor poderia pedir para que isto fosse mais perfeito, disse ele.

     – Pois isto não me parece tão perfeitamente completo como deveria ser para uma prova. Don Graves tem somente cinqüenta por cento de probabilidade de enganar-se, mesmo que lhe vendassem os olhos.

     – Não vejo de onde tira essa conclusão disse Drumm, com propositada estupidez.

     – O senhor trouxe duas mulheres para cá, disse Perry Mason, uma vestida de preto e outra cor-de-rosa. Trouxe três homens, todos três conhecidos de Graves. Agora, se não me engano, a sua ideia é a seguinte: que o juiz Purley conduza o seu carro pela estrada exatamente com a mesma velocidade que, segundo as suas recordações, ele levava na noite do assassínio. Quando o carro alcançar certo ponto na estrada, o juiz Purley gritará: “Olhe!” E nesse momento Graves virar-se-á para trás e olhará.

     “Depois de iniciarmos a viagem pela estrada, as pessoas que aqui ficaram prepararão a cena. Um dos três homens ficará de pé com uma bengala na mão, e uma das duas mulheres colocar-se-á de modo que a sua cabeça, o ombro e um braço se tornem visíveis para uma pessoa que vá subindo pela estrada.”

     – É exatamente isso, disse Drumm.

     – Muito bem, disse Perry Mason. – Agora, o ponto que quero frisar é este: no que diz respeito aos homens, se Graves se limitasse simplesmente a adivinhar, teria uma probabilidade sobre três de acertar. No que se refere às mulheres, ele, pelo mesmo processo de simples adivinhação, tem metade das probabilidades de acertar.

     – Pois está bem, disse Drumm. – O senhor não pode pedir que lhe concedam condições mais favoráveis para a sua prova do que as que existiam no momento do crime. Havia então na casa somente duas mulheres, Mrs. Mayfield, a governante, e Frances Celane. Agora, admitindo que havia uma mulher no quarto, no momento do assassínio...

     – Não, não havia, disse Mason com firmeza.

     – Pois, de acordo com a minha teoria do caso e de acordo com o depoimento de Don Graves, testemunha desinteressada, havia, disse Drumm e se a prova deve ser completa, é forçoso que haja uma. Nessas condições a mulher que estava no quarto tinha de ser ou Mrs. Mayfield ou Miss Celane. Do mesmo modo, havia três homens que podiam ter cometido o crime. Um era Peter Devoe, o motorista, que estava bêbado quando foi encontrado, o qual, não obstante, foi considerado suspeito; o outro Rob Gleason, o acusado do feito, e finalmente Purkett, o mordomo. Um destes três homens deve ter sido o que vibrou o golpe.

     – Isto, disse Mason, é certo se admitirmos que as pegadas em baixo das janelas, e a janela forçada, são provas falsas, adrede preparadas.

     – Naturalmente que são. O senhor não vai querer que citemos todos os habitantes da cidade para que venham aqui sob o pretexto de que um deles possa ter entrado violentamente na casa. Nem todas as coisas podem ser arranjadas à sua vontade.

     – Para mim, bastaria que as coisas se arranjassem de modo que pudéssemos dizer se Graves fez uso dos olhos ou se é apenas um feliz adivinho.

     Pelos olhos de Claude Drumm perpassou um lampejo de triunfo.

     – Preparei esta prova, disse ele, em condições idênticas às que cercaram o crime. Esta prova vai ser realizada em conseqüência de um desafio seu. Agora, se o senhor tem medo que Graves se saia bem dela, é bastante que o diga, e abandoná-la-emos, porque o senhor não se atreve a deixar que a testemunha siga para diante.

     Mason encolheu os ombros.

     – Pois está muito bem, disse ele, uma vez que o senhor coloca o caso nesse terreno, continuemos.

     O lampejo de triunfo que luzira antes nos olhos de Drumm transformou-se num clarão de vitória, e teve um sorriso sarcástico de insolente confiança.

     – Muito bem, disse ele para o compacto grupo que os cercava. – Creio que os senhores compreenderam perfeitamente a situação. Subiremos a colina no automóvel. Eu irei sentado atrás com Mr. Graves. Mr. Mason, o advogado dos acusados, sentar-se-á na frente, ao lado do juiz Purley.

     “Depois que o carro tiver seguido para a subida, os senhores da Imprensa escolherão uma destas duas mulheres, que deverá colocar-se de modo que a cabeça, pescoço, ombro e braço sejam visíveis através da janela, para uma pessoa que esteja situada na curva do caminho, no ponto onde Graves olhará para trás. Escolherão também um destes três homens, que estão, os três, trajados com roupas completamente diferentes, para colocá-lo, empunhando uma bengala, por trás da cadeira em que Edward Norton estava sentado quando foi morto.”

     “Creio que a situação está ao abrigo de qualquer censura.”

     “A reputação e integridade do juiz Purley é perfeitamente suficiente para garantir que tudo que possa suceder no automóvel não poderá ser subseqüentemente alterado pela parte adversa.”

     Perry Mason interrompeu Drumm, dizendo:

     – Um momento. Antes de Don Graves deixar este gabinete, quero ter uma palestra confidencial com o juiz Purley.

     Drumm encarou-o com suspicácia.

     – Não sem a minha presença, disse ele. – Isto é uma prova e se o senhor quer ter uma palestra confidencial com alguém, eu terei de ouvir o que vai dizer.

     – Não tenho inconveniente em que o senhor ouça, disse Perry Mason, mas justamente, e por isso mesmo, por ser uma prova, não quero que Don Graves ouça o que tenho a dizer.

     – Muito bem, disse Drumm. – Você ficará aqui, Graves, até que eu o chame.

     – Tocaremos a buzina do automóvel, disse Perry Mason, quando tivermos terminado.

     Em glacial e digno silêncio, os dois advogados contrários desceram pela ampla escada, saíram pela porta principal e encaminharam-se para o automóvel onde os aguardava o juiz Purley, sentado com austera dignidade, cercado pelos fotógrafos, ostentando no rosto uma expressão de contentamento que se esforçava por ocultar sob o manto da sua judicial e ponderosa honorabilidade.

     – Estão prontos, senhores? – perguntou.

     – Está combinado, disse Perry Mason, que eu me sentarei na frente com o juiz Purley; e que o senhor, Mr. Drumm, se sentará atrás, com Don Graves, não?

     – É o que está combinado.

     – Nestas circunstâncias, disse Perry Mason, sou levado a pedir-lhe que tire os óculos.

     – Que tire o quê? – resmungou o promotor.

     – Que tire os seus óculos, disse Perry Mason. – O senhor compreende perfeitamente que, se estiver com os óculos, isto é, se a sua visão estiver plenamente corrigida, e se se voltar ao mesmo tempo que Don Graves, pode acontecer que, por qualquer exclamação ou movimento involuntário, indique a Don Graves qual dos três homens está vibrando a bengala. Neste caso, terei de haver-me com uma prova feita por dois pares de olhos em vez de um.

     – Isso, senhor, é um insulto à minha veracidade.

     – Não, disse Perry Mason, não é tal coisa. É meramente uma precaução contra uma perfídia involuntária.

     – Recuso-me a consentir nisso, disse Drumm.

     – Muito bem, disse Perry Mason, não insistirei. Aludi simplesmente ao assunto. Outra coisa que quero pedir, é que o juiz Purley conserve os olhos fitos na estrada, para a frente.

     – Não, disse Drumm, não consinto tampouco nesta condição, porque, quando o juiz Purley dirigia o carro, na noite em que o crime foi cometido e Don Graves fez aquela exclamação, era natural que ele tivesse olhado para trás, para verificar a causa daquela exclamação, e, ao fazer isso, muito naturalmente, travou o carro, o que deu a Graves oportunidade de olhar com mais vagar e menos trepidação.

     Perry Mason suspirou cansadamente, como alguém que tivesse sido derrotado.

     – Paciência, disse ele. – Chamem Graves.

     O juiz Purley premiu o botão da buzina do automóvel.

     Esperaram alguns minutos e Perry Mason, por sua vez, alcançou e premiu o botão da buzina.

     Nem sinal de Graves, e então o juiz Purley apoiou a palma da mão, imperativamente, contra o botão situado sobre o volante do carro, olhando para a janela.

     Houve um momento de comoção e depois Don Graves apareceu na janela e gritou:

     – Um destes repórteres quer mudar as condições da prova.

     Claude Drumm soltou uma praga, abriu violentamente a porta do carro, atravessou a rua a passos largos, e situou-se por baixo da janela.

     – As condições da prova ficaram plenamente determinadas quando saímos daí, disse ele. – Não discuta o assunto com nenhum dos repórteres. Se não quiserem cooperar nestas condições, ficam excluídos. Desça imediatamente.

     – Muito bem, senhor, disse Don Graves. E afastou-se da janela.

     Quase ao mesmo tempo, Harry Nevers assomou a cabeça à janela e gritou:

     – Esta prova não está bem. Deveríamos ter o direito de colocar um homem no lugar em que Graves declarou que estava a mulher, e ele não quer. Dessa forma poderíamos determinar se Graves podia ver se o outro ocupante do quarto era uma mulher. Podia ter sido um homem.

     – Ataviado com um negligé cor-de-rosa, hem? – zombou Drumm. – Agora, ouçam: a única função que lhes incumbe, senhores, é de escolher qual dos três homens, e qual das duas mulheres devem ficar naquela posição. Isso está definitivamente combinado, e é a condição da prova. Se alguém tentar modificar isso, eu o excluirei.

     – Oh! Está bem, disse Nevers. – Faça como quiser.

     – Mas a mim não me parece bem.

     Don Graves desceu a escada, atravessou a porta principal e disse em voz baixa a Claude Drumm:

     – O homem está bêbado. Estava insuportável lá em cima, mas eu não o quis ofender porque não quero ter o seu jornal contra mim.

     – Bem, disse Drumm, deixe-o por minha conta. Estão prontos?

     – Tudo pronto, disse Perry Mason.

     Ocuparam os seus lugares no automóvel, no último momento. Os detonadores lançaram para cima ondas de deslumbrante chama, quando os fotógrafos dos jornais tomaram vistas do carro encaminhando-se para a curva.

     O juiz Purley curvou-se sobre a alavanca da engrenagem e dirigiu o carro para a estrada sinuosa, numa bela velocidade.

     – Está combinado, disse Perry Mason, que Don Graves não olhará para trás até que o juiz Purley o avise de que chegámos ao lugar onde soltou a sua primeira exclamação, não é assim?

     – É isso mesmo – retrucou Drumm.

     O automóvel roncava pela estrada acima, balançando-se nas curvas.

     – Agora! – disse o juiz Purley.

     Don Graves virou o rosto para cima, contra a vidraça traseira do automóvel, pondo as mãos em viseira, protegendo os olhos.

     Bastava um rápido olhar para se distinguir as pessoas que estavam no quarto e a sua posição.

     O carro continuou a percorrer a curva da estrada e a casa não mais se via.

     – Está pronto, senhor, disse Don Graves.

     – Quem era? – perguntou o juiz Purley, travando o carro até fazê-lo parar.

     – O homem era o que trajava um fato de sarja azul e tinha os cabelos pretos, e a mulher a que vestia de cor-de-rosa – disse Don Graves.

     Claude Drumm deu um suspiro.

     – Aí se foi a sua defesa do caso, Sr. advogado defensor, desfeita em fumo, disse.

     Perry Mason nada disse.

     O juiz Purley suspirou aparatosamente.

     – Agora darei volta ao carro e voltaremos, disse ele.

     – Suponho que os jornalistas quererão tirar mais algumas fotografias.

     – Muito bem, aquiesceu Drumm.

     Perry Mason continuava calado. A sua ríspida fisionomia mantinha-se impenetrável. Os seus olhos pacientes e meditabundos fitavam o rosto do juiz Purley.

    

     A sala do tribunal estava repleta de espectadores quando o juiz Markham nela penetrou, vindo da câmara situada atrás da mesa do tribunal.

     – Levantem-se, ordenou o oficial de justiça.

     Os espectadores puseram-se de pé e assim permaneceram enquanto o juiz subia para a cadeira da presidência e o oficial de justiça entoava a fórmula que abria a audiência.

     O juiz Markham sentou-se, fez soar uma martelada e os espectadores, advogados, jurados e acusados retomaram os seus assentos.

     A atmosfera da sala estava carregada de eletricidade, mas as simpatias estavam com a acusação.

     Há no homem, considerado isoladamente como indivíduo, o instinto desportivo de colocar-se ao lado dos infelizes perseguidos.

     A psicologia das multidões é diferente da psicologia individual, e a psicologia da turba tende para atormentar o fraco e devorar o caído. Os homens podem simpatizar com os proscritos, mas preferem ficar do lado dos vencedores.

     Acresce que os resultados da prova tinham sido difundidos entre o público através das páginas de todos os jornais da cidade. Tinha sido dramática e espetacular. Fizeram-se mesmo em torno dela apostas como num jogo. A defesa confiara demasiadamente na superveniência de certo acontecimento, na sorte de uma única carta, e é próprio da natureza humana seguir sempre para a frente, até perder o fôlego, para ver quando um homem se arrisca a jogar tudo numa única cartada.

     Assim, pois, o público ledor tinha devorado avidamente os jornais que relatavam os acontecimentos. O resultado da prova fora coisa prevista. Don Graves evidenciara a sua capacidade de identificar os ocupantes no quarto do lugar exato onde ele vira a perpetração do assassínio, e tudo feito em idênticas condições.

     O olhar dos espectadores, na sala do tribunal, desviavam-se agora das testemunhas para se fixarem nos dois acusados, particularmente sobre a elegante e esbelta figura de Frances Celane.

     Velhos freqüentadores que tinham presenciado outras duríssimas e violentas batalhas legais convinham em que era esse o mais nefasto sinal que uma sala de tribunal podia apresentar.

     Quando se inicia uma causa, a atenção dos espectadores fixa-se nos acusados. Esticam o pescoço com curiosidade, procurando ver no rosto daqueles o adejar de uma expressão que deixe entrever os sentimentos que os agitam. O espectador normal gosta de olhar para o acusado, procurando imaginá-lo no meio das circunstâncias que cercaram o crime, formando-se uma opinião sobre a culpabilidade ou inocência do detido, chegando ao ponto de se ver, ele ou ela, incluído no quadro.

     Depois, quando o julgamento segue o seu curso, os assistentes vão-se interessando pelo desenvolvimento da história do próprio crime e a luta provocada pelos depoimentos.

     A sua atenção concentra-se sobre as testemunhas, sobre o juiz, sobre a dramática personalidade dos advogados, nos seus torneios de engenho, com argumentos legais.

     Enquanto o desenlace é duvidoso, enquanto o interesse permanece concentrado sobre os incidentes da causa, o olhar dos espectadores continua fixado sobre as testemunhas, sobre os atores do drama que se está desenrolando. Mas se sobrevem um acontecimento que dissipe as incertezas e convença os espectadores da culpabilidade do acusado, veremos então que os olhares convergem automaticamente para o réu, não tentando agora imaginar como agiu na perpetração do crime, mas sim contemplando-o com aquela mórbida curiosidade que se apodera do homem que olha para alguém que vai perder a vida. A todos agrada horrorizarem-se a si mesmos com o pensamento da madrugada em que as mãos implacáveis vão arrancar o prisioneiro da sua cela apesar dos seus lamentos e arrastá-lo vagarosamente na marcha que vai ser o seu último e pavoroso passeio.

     Este é o sintoma que os advogados temem, o veredito das massas, o polegar abaixado, fatídico sinal que mostra que já foi ultrapassado o ponto crítico, e que o réu está condenado.

     Nunca ele passa inadvertido para um advogado veterano nas lides forenses, que fez o seu caminho lutando através da teia intrincada de numerosas causas e que assim aprendeu a avaliar o temeroso significado desta transferência de atenção.

     Os acusados não conhecem a fatal significação desse sinal; muitas vezes sorriem afetadamente com satisfação, ao verem-se subitamente alvo dos olhares dos espectadores; mas o mesmo não acontece com os advogados que se ocupam da defesa, por trás das pilhas de livros de Direito, com a fisionomia calma e serena, mas com a alma confrangida pelo mau agouro daquele silencioso veredito.

     Nesta causa já se havia revelado o silente veredito. Era ele o de culpabilidade de assassínio premeditado para os dois acusados, e sem nenhuma atenuante a seu favor.

     O juiz Markham, com o tom de voz habitual, rompeu o pesado silêncio que imperava na sala do tribunal.

     – Mr. Don Graves está na tribuna dos testemunhos, disse ele, e vai ser interrogado. Continua a audiência do processo interrompido na semana passada, em conseqüência de uma estipulação feita entre os advogados, para que fosse realizada uma experiência com esta testemunha, experiência essa sugerida pela defesa e ajustada com a acusação.

     “Concordam os senhores em que esta experiência seja incluída como prova?”

     Claude Drumm pôs-se de pé e disse sarcasticamente:

     – Trata-se de uma verificação que foi conduzida com o máximo grau possível de lisura para com a defesa, e suas exigências, e de acordo com as condições estipuladas. Tomou parte na verificação a presente testemunha, submetida a condições idênticas às que cercaram a perpetração do crime, e pergunto se deve ser aceita como prova?

     O juiz Markham olhou para Perry Mason.

     – Se o Tribunal não vê inconveniente, disse ele, não farei objeção à proposta do Sr. promotor. O assunto da prova, entretanto, não é parte do meu presente interrogatório.

     “Quero dizer com isso que ele deverá ser incluído na minha reinquirição desta testemunha, e que, por enquanto, não acho oportuno abordar o tema. Quando, porém, a causa se apresentar perante o tribunal, se o Sr. promotor desejar examinar esta testemunha em relação à prova, eu não farei objeção, sob condição, contudo, de que me será concedido o direito de interrogar várias testemunhas desta prova, ante a possibilidade da superveniência de certas circunstâncias.”

     Dizia-se do juiz Markham que não existia advogado que tivesse feito aparecer uma expressão de surpresa na fisionomia do magistrado, estando ele funcionando num tribunal de justiça. Agora, porém, olhava para Perry Mason como se quisesse ler o que podia ocultar-se no espírito do advogado da defesa, e seus olhos estavam bem abertos e cismadores.

     Perry Mason suportava aquele olhar calma e placidamente.

     – Posso continuar o interrogatório da testemunha? – perguntou.

     – Continue, resmungou o juiz.

     – O senhor estava familiarizado com os assuntos comerciais de Edward Norton? – perguntou Perry Mason, numa inquirição monótona e sem expressão.

     – Estou plenamente familiarizado com todos aqueles negócios, disse Don Graves.

     – Está também familiarizado com a data do vencimento da apólice de seguro encontrada em cima da mesa de Edward Norton? – perguntou Perry Mason.

     – Estou.

     – Qual era a data do vencimento daquela apólice de seguro?

     – Vencia-se a 26 de Outubro do corrente ano.

     – Ah! Então a apólice vencia-se três dias depois da morte de Edward Norton.

     – Exatamente.

     – É certo, Mr. Graves, que o senhor tenha manifestado neste processo alguma animosidade, alguma prevenção contra a acusada Frances Celane, devido ao fato de ela se ter casado com Robert Gleason?

     A pergunta caiu como um petardo, e um sussurro reprimido percorreu a sala do tribunal, indicando um súbito redobrar de atenção da parte dos espectadores, um esticar de pescoços; um achegar-se para a borda das cadeiras.

     – Isso não é verdade! – protestou Don Graves, mostrando-se escandalizado. – Fiz tudo quanto pude para manter o nome de Frances Celane afastado de tudo isto. Vim depor neste caso unicamente porque fui forçado pelo tribunal, por uma citação judicial.

     – E não tem nenhuma animadversão contra Frances Celane por qualquer outro motivo?

     – Não.

     – Nem contra Robert Gleason?

     – Não, senhor. Não tenho qualquer sentimento de amizade por Robert Gleason, porque o conheço muito superficialmente, mas no que diz respeito a Miss Celane, os meus sentimentos são completamente diferentes. Não diria uma palavra, neste tribunal, que pudesse de qualquer forma ligá-la ao assassínio de Edward Norton, a menos que soubesse de modo absoluto e fora de qualquer dúvida razoável que o que eu dissesse era a verdade e coisa certa.

     – Nada mais tenho a perguntar, disse Mason, com o ar de um homem que acabasse de ser derrotado.

     Claude Drumm pôs-se de pé, e disse com um ar triunfante e um pouco sarcástico:

     – Tenho poucas perguntas a fazer na reinquirição.

     “Diga-me, Mr. Graves, perguntaram-lhe, quando foi interrogado, se tinha feito alguma vez uma verificação, em idênticas condições das que cercaram o assassínio de Edward Norton, para determinar se poderia reconhecer as pessoas que estavam na peça quando ele foi morto?”

     – Sim, disse Don Graves, fizeram-me essa pergunta.

     – Depois que lhe fizeram essa pergunta – insistiu Drumm – tornou o senhor a fazer semelhante experiência em circunstâncias exatamente idênticas?

     – Sim, senhor, fiz, foi a resposta.

     – Descreva as circunstâncias em que a verificação foi conduzida e o resultado obtido.

     – A experiência foi feita à noite, disse Don Graves lentamente, e num tom de voz baixo, enquanto os espectadores continham a respiração. Havia três homens e duas mulheres no gabinete de Edward Norton. Uma dessas mulheres trajava de preto e a outra de cor-de-rosa. Um dos homens vestia um fato de sarja azul, outro uma camiseta de lã e o terceiro um trajo de fazenda escocesa. Conhecia os três homens, mas nunca vira as mulheres. Estavam presentes representantes da imprensa, Mr. Claude Drumm, promotor, assim como Mr. Mason, advogado da defesa.

     – E depois, que aconteceu? – perguntou Claude Drumm.

     – Depois, disse Graves, destilando as palavras, com aquela voz lenta e estranha, fomos para o automóvel e subimos pela estrada sinuosa que conduz à avenida. Quando o juiz Purley chegou com o carro ao lugar onde estava, na noite do crime, quando eu soltei uma exclamação, mandou-me olhar para trás, o que fiz, e continuei olhando até que o carro ultrapassou a curva, perdendo a casa de vista.

     – Que pôde ver, o senhor? – perguntou Claude Drumm.

     – Vi uma mulher, a que estava vestida de cor-de-rosa, de pé, na mesma posição em que se achava Frances Celane quando Mr. Norton foi assassinado, e vi o homem que trajava a roupa de sarja azul, brandindo uma bengala sobre a cadeira em que Mr. Norton estava sentado, na noite do crime.

     – Pode interrogar a testemunha, disse Claude Drumm triunfantemente.

     A voz de Perry Mason fez-se ouvir arrastadamente.

     – O senhor não disse tudo que aconteceu lá durante a experiência, não é verdade, Mr. Graves?

     – Disse, sim senhor, pelo menos o que houve de mais importante.

     – Não estava lá um repórter que o aborreceu e o retardou um bocado? – perguntou Perry Mason.

     – Sim, senhor. Era um tipo chamado Nevers, lembro-me bem, que estava insistindo por certas modificações sobre o modo pelo qual a experiência ia ser feita. Eu não tinha autorização para fazer qualquer modificação nas condições da experiência. Estas tinham sido ajustadas entre Mr. Drumm e o senhor, e disse isso ao repórter. Mas ele não me deixava e até enfiou um dedo na lapela do meu casaco, detendo-me.

     – E onde estávamos nós, durante esse tempo?

     – Os senhores estavam embaixo, no automóvel.

     – Como pôde finalmente libertar-se daquele homem? – perguntou Mason.

     – Chamei por Mr. Drumm e ele disse-me que aquelas eram as condições da experiência e que não seriam mudadas. Quando esse repórter ouviu Mr. Drumm fazer essa declaração parece que compreendeu que estava exorbitando e deixou-me.

     Os espectadores que tinham espichado o pescoço para ouvir desviaram então a sua curiosidade para outro lado.

     – É tudo, disse Perry Mason.

     – Chame a sua testemunha seguinte, Mr. Drumm, disse o juiz Markham.

     – Um momento, Excelência, interrompeu Perry Mason. – Antes que a acusação prossiga, desejaria chamar Mr. Crinston para lhe fazer mais algumas perguntas.

     – Muito bem, disse o juiz Markham. – Este ato é ligeiramente irregular, mas, dadas as circunstâncias, e estando o assunto inteiramente à discrição e sob fiscalização do tribunal, permitirei que o senhor interrogue esta e qualquer outra testemunha que queira chamar. Este tribunal não esquece o fato de que vários novos métodos foram introduzidos no caso a partir dos seus muito breves interrogatórios das outras testemunhas.

     O juiz Markham não pôde resistir ao impulso de sublinhar com ligeira ênfase as palavras referentes ao breve interrogatório de Mason, uma ênfase que encerrava uma leve repreensão jurídica, dirigida ao advogado que tão despreocupadamente abreviava os interrogatórios de importantes testemunhas numa causa de assassínio.

     Arthur Crinston encaminhou-se para o banco das testemunhas, com a fisionomia grave e olhares solenes.

     – O senhor já prestou anteriormente o juramento, disse Perry Mason. – Queira, pois, sentar-se no banco das testemunhas, Mr. Crinston.

     Mr. Crinston sentou-se, cruzou as pernas e olhou para o júri.

     – Mr. Crinston, perguntou Mason, o senhor esteve em conferência com Mr. Norton, na noite do assassínio?

     – Sim, senhor, já depus anteriormente sobre isso.

     – Sim, disse Perry Mason. – E, desde os 7 minutos depois das 23 horas e de lá se retirou às 23 e 30, não?

     – Sim, disse Crinston e espontaneamente acrescentou:

     – Pude precisar a hora da minha chegada com absoluta certeza, porque Mr. Norton era intratável em matéria de pontualidade. Cheguei sete minutos atrasado à entrevista e ele comentou o fato sarcasticamente.

     – Sim, disse Perry Mason. – E desde as 23 horas e 7 minutos até às 23 e meia, o senhor esteve em conferência com Mr. Norton?

     – Assim foi, senhor.

     – Mas realmente, Mr. Crinston, não é verdade que essa conferência constituiu uma disputa?

     – Não, senhor, e creio nada poder acrescentar às declarações por mim feitas anteriormente, relativas àquela conferência.

     – Mr. Crinston, a sociedade tinha uma dívida com o Banco Wheller de Depósitos e Economia, no valor de novecentos mil dólares?

     – Sim, senhor.

     – E depósitos no referido Banco de somente setenta e cinco mil dólares?

     – Sim, senhor, aproximadamente essa soma.

     – Não obstante, a sociedade tem uma conta corrente de oitocentos e setenta e seis mil e tantos dólares no Segundo Banco Nacional de Depósitos do Litoral e depósitos de aproximadamente duzentos e noventa e três mil dólares no Banco Nacional de Lavradores e Comerciantes, não é verdade?

     – Sim, senhor.

     – Agora, Mr. Crinston, não é verdade que a dívida de novecentos mil dólares que existe com o Banco Wheeler de Depósitos e Economia constante de uma nota promissória garantida somente com a sua assinatura, é dinheiro tomado por empréstimo, sem o conhecimento de Mr. Norton, e que não foi empregado em negócios da sociedade, e sim utilizado unicamente pelo senhor, para as suas próprias especulações na Bolsa?

     – Não, senhor, bradou Mr. Crinston. – Não é esse o caso.

     – Porque precisou então a sociedade de contrair um empréstimo de novecentos mil dólares num banco, quando tinha cerca de um milhão líquido em disponibilidade em outro banco?

     – Isso são processos de técnica comercial. Pretendíamos fazer algumas compras ocultadas, e para isso desejávamos ter em depósito naqueles Bancos a importância necessária. Não nos convinha tirar dinheiro de certos Bancos, em particular, porque queríamos conservar neles nossos fundos disponíveis.

     “Se fizéssemos uma retirada tão grande naqueles Bancos e esgotássemos de todo os nossos depósitos, isso exigiria demasiadas explicações. Portanto, como o Banco Wheeler de Depósitos e Economia se tinha mostrado desejoso de trabalhar conosco, e oferecido um crédito ilimitado a curto prazo, fizemos os saques contra ele.”

     – É verdade ou não, Mr. Crinston, que essas promissórias do Banco Wheller de Depósitos e Economia se tinham vencido dois dias antes da morte de Mr. Norton?

     – Creio que sim.

     – E também não é verdade que o banco fez a notificação por correio?

     – Parece-me que sim.

     – E também não é verdade que Mr. Norton recebeu um aviso desses no dia em que o mataram?

     – Quanto a isso nada lhe posso afirmar.

     – Não é verdade que, nesse dia, Mr. Norton teve conhecimento pela primeira vez do débito naquele banco?

     – Não, senhor.

     – Não é verdade que Mr. Norton o chamou para uma conferência, na noite referida, a fim de lhe dizer, que, tendo-lhe dado um prazo determinado para que o senhor repusesse o dinheiro da sociedade e que não o tendo o senhor feito, ele ia fazer uma notificação à polícia?

     Os espectadores puderam ver que Mr. Crinston estava visivelmente inquieto. O seu rosto ia empalidecendo gradativamente, e as juntas dos dedos mostravam-se brancas, à medida que os punhos se apertavam violentamente; a sua voz, contudo, conservava-se invariável e resoluta.

     – Não – rosnou ele.

     – E não é verdade – prosseguiu Mason, com a mesma voz inalterada e imperturbável – que, quando comunicou a Mr. Norton ter feito todo o possível para repor o dinheiro, não o tendo, porém, conseguido, ele se apoderou do receptor telefônico, chamou para a polícia e disse: “Aqui fala Edward Norton. Tenho que denunciar-lhe um fato criminoso” ou coisa semelhante?

     – Não, senhor – rosnou entre dentes Mr. Crinston, e a sua voz, pela primeira vez, traiu a apreensão em que se debatia.

     – E, disse Perry Mason, pondo-se vagarosamente de pé não é verdade que, quando ele acabou de dizer aquelas palavras, o senhor pegou numa bengala e lhe descarregou uma pancada na cabeça, que lhe rebentou o crânio?

     – Protesto, gritou Claude Drumm, pondo-se de pé num pulo. – Este interrogatório já foi demasiado longe. Não existe motivo para...

     – O protesto está recusado, declarou o juiz Markham.

     – Responda à pergunta, Mr. Crinston.

     – Não, não fiz tal coisa! – bradou Arthur Crinston.

     Perry Mason, de pé, ficou olhando para Arthur Crinston, enquanto que a assistência apreendia a plena significação da pergunta, e tudo que ela implicava, até que os espectadores, inclinando-se arquejantes para a frente, transformaram a sala do tribunal num túmulo silencioso.

     – E não é verdade, continuou Perry Mason, que, quando o senhor ia dependurar o auscultador no gancho, olhou trêmulo em volta de si, e, subitamente, se lembrou de que Edward Norton dera o nome à polícia quando fizera a chamada e avisara que ia denunciar um fato criminoso, e então compreendeu que, quando fosse descoberto o corpo de Edward Norton, a polícia investigaria, verificando, no seu registro, aquela chamada, o que lhe daria a conhecer a hora exata do assassínio de Mr. Norton, e seria capaz de suspeitar o motivo do crime?

     – Não, senhor – tartamudeou Crinston, mas a sua fronte luzia ao clarão que vinha das janelas altas da sala do tribunal, devido às gotas de suor que porejavam da pele.

     – E também não é verdade que, tendo consciência de que a culpa recaía sobre o senhor, compreendeu que era necessário explicar à polícia, por qualquer meio, aquela chamada?

     “Que, tendo visto a apólice de seguro em cima da mesa, percebeu que ela ali estava porque Mr. Norton era muito metódico, e quisera certificar-se se tinha sido ou não renovada antes da data do vencimento? Não é verdade que aquela apólice de seguro lhe trouxe uma inspiração e que o senhor chamou imediatamente para a polícia e declarou ao sargento que o senhor era Mr. Norton, que já a chamara antes e que fora interrompido, e que queria denunciar o roubo de um automóvel; e que, então, leu a descrição do automóvel Buick segundo rezava a apólice de seguro atirada sobre a mesa de Mr. Norton?”

     – Não, senhor, disse Arthur Crinston, num tom de voz maquinalmente provocador.

     – E não é verdade, também, que nesse momento, a porta se abriu e Don Graves entrou; que Don Graves tinha sido o seu cúmplice e ajudante no desvio de novecentos e tantos mil dólares que o senhor perdeu em especulações na Bolsa, usando a firma da sociedade para cobrir as próprias perdas?

     “E não é verdade que o senhor e Don Graves urdiram então o plano que devia atribuir a outros a morte de Mr. Edward Norton?”

     – Não, senhor, disse Crinston, com a mesma maquinal entonação.

     – Não é verdade que o senhor sabia que o juiz Purley não conhecia pessoalmente Edward Norton e que, portanto, não distinguia a voz dele da de outro homem qualquer?

     “Não é verdade que o senhor e o seu cúmplice Don Graves entraram furtivamente no quarto de dormir de Peter Devoe, o motorista, e puseram ali as provas que deviam fazer convergir as suspeitas sobre Devoe como autor do homicídio? Não é verdade que o senhor forçou uma janela e deixou umas pegadas no chão úmido do lado de fora da janela, de modo a fazer crer que Mr. Devoe fizera uma tentativa grosseira para desviar dele mesmo as suspeitas?”

     “Não é verdade que os senhores voltaram então para o escritório, e que combinaram os dois que o senhor desceria a escada e se encaminharia para o automóvel do juiz Purley?”

     “Que Mr. Graves levantaria a vidraça da janela do escritório de Mr. Norton, conservando a lâmpada da mesa bem nas suas costas de modo que o juiz Purley nada mais pudesse ver do que os confusos contornos de uma silhueta humana, e que Mr. Graves apresentando-se como sendo Edward Norton, chamaria para baixo e lhe pediria que levasse Don Graves no automóvel até sua casa; e que, então, e ali, o senhor alegou que iria pedir ao juiz Purley autorização e que Don Graves aí se retiraria da janela e viria escada abaixo, procurando apresentar-se de pé a seu lado, enquanto que o senhor aparentava chamar Mr. Norton, a quem o senhor simulava ver na janela, dizendo-lhe estar tudo arrumado e que o juiz Purley dera o seu consentimento?”

     – Não, senhor, disse Arthur Crinston.

     – É tudo o que tenho a perguntar a esta testemunha – disse Perry Mason, numa tonalidade de voz que correu através da sala do tribunal, parecendo até que as traves do teto vibravam.

     O juiz Markham olhou para Claude Drumm.

     – Não quer reinquirir, Sr. promotor? – perguntou.

     Claude Drumm fez um gesto largo.

     – Não, Excelência. Foi-nos apresentada uma bela teoria, mas não existe prova alguma que a sustenha. A testemunha negou...

     O juiz Markham fez soar o martelo sobre a mesa.

     – Sr. Promotor, disse ele, guarde os seus argumentos para o júri em tempo oportuno. A pergunta que lhe fez o tribunal é se tem alguma reinquirição adicional a fazer. O senhor responde pela negativa e a testemunha retira-se para o lado.

     – Peço que torne a ser chamado o juiz Purley, para outra inquirição, pediu Perry Mason.

     O juiz Purley veio para a tribuna das testemunhas.

     A soberba judicial que revestia os seus modos, no começo do processo, tinha-se dissipado. O seu rosto estava desfeito e fatigado, e em seus olhos via-se a dúvida.

     – O senhor também já prestou juramento nesta causa, por isso não é necessário repeti-lo, disse Perry Mason. – Queira ocupar o seu lugar, na tribuna das testemunhas.

     O juiz Purley ergueu o seu volumoso corpo até à cadeira das testemunhas.

     – Quando fizemos aquela experiência, no fim da semana passada, disse Perry Mason, num tom de voz de alguém que está proferindo uma sentença decisiva e solene, o senhor estava sentado no seu automóvel, sob a janela do escritório de Edward Norton, exatamente no mesmo lugar e posição que ocupava na noite do crime?

     – Estava, sim senhor.

     – E, nessa posição, estendendo o pescoço, o senhor podia ver a janela do escritório da casa de Edward Norton?

     – Sim, senhor.

     – Mas, devido a ser tão baixa a capota do automóvel, esta tapava-lhe a vista, de modo que o senhor só podia ver aquela janela esticando o pescoço, não é verdade?

     – Sim, senhor.

     – E não é exato, juiz Purley, que, durante o tempo em que esteve sentado no automóvel, exatamente na mesma posição que o senhor ocupava na noite do crime, Don Graves chegou à janela do escritório e chamou para baixo pelo senhor, ou por Claude, que estava com o senhor no carro?

     – Sim, senhor, disse o juiz Purley, tomando uma respiração profunda.

     – E não é verdade, trovejou Perry Mason, espetando rigidamente o dedo indicador, com a extremidade apontando para o juiz Purley, que, agora que a sua atenção foi chamada para o fato, e que a sua memória tem oportunidade de analisar novamente os acontecimentos sucedidos na noite fatídica do assassínio, não reconhece o senhor que a voz que se ouviu lá em cima, falando-lhe durante a segunda cena, na noite da experiência, era a mesma voz que falou daquela janela, na noite do crime?

     Um silêncio dramático, proveniente de violenta tensão nervosa, planou na sala do tribunal.

     As mãos do juiz Purley crispavam-se nos braços da cadeira das testemunhas, e no seu rosto gravavam-se contorções agónicas.

     – Meu Deus! – exclamou ele. – Há dez minutos que a mim mesmo faço essa pergunta, e, em consciência, não posso responder-lhe satisfatoriamente. Tudo o que sei é que pode ter sido.

     Perry Mason deu meia volta e fez frente ao júri. Os seus olhos firmes e resolutos observavam a fisionomia dos nove homens e das três mulheres.

     – É tudo, disse ele, em tom definitivo.

     Durante um momento prolongado, a sala permaneceu silenciosa; depois ouviram-se sussurros, cochichos, suspiros abafados. Ao fundo da sala uma mulher ria histericamente.

     O juiz Markham fez soar o martelo sobre a mesa.

     – Ordem! – gritou.

     Claude Drumm mordia o lábio, numa indecisão angustiada.

     Atrever-se-ia a atacar o assunto numa reinquirição, ou seria preferível esperar até que pudesse falar particularmente com o juiz municipal?

     E, nesse momento de indecisão, nesse momento em que a atenção de todos os que estavam na sala do tribunal se concentrava sobre ele, Claude Drumm hesitou um segundo a mais do que devia.

     A atenção da multidão desviou-se.

     Perry Mason, recostado na sua cadeira, com os olhos placidamente observando aquele oceano de fisionomias, percebeu aquele desvio. O juiz Markham, do alto da sua poltrona, conhecedor dos frêmitos da sala, veterano de cem processos de homicídio, também o viu.

     Num mesmo movimento, como se estivessem obedecendo a um mesmo súbito e psíquico comando, os olhares dos jurados, os olhares dos espectadores, afastaram-se de Claude Drumm e cravaram-se no rosto agônico de Arthur Crinston.

     Foi esse o veredito silencioso da sala do tribunal, e esse veredito absolvia os dois acusados, e transferia a culpa do assassínio de Edward Norton, merecidamente, para Arthur Crinston e o seu cúmplice.

 

     Perry Mason estava sentado no seu gabinete. Da janela, ondas de luz jorravam sobre as suas feições enérgicas e viris, fazendo-o parecer um pouco mais velho, por lhe acentuarem as fortes linhas no rosto.

     Frances Celane, sentada na enorme poltrona de couro preto, resvalava o dedo indicador ao longo do macio braço da cadeira, como que a buscar as rugosidades existentes.

     Os seus olhos estavam velados e cheios de emoção.

     Robert Gleason, de pé, apoiava-se numa estante de livros.

     A sua fisionomia grave e melancólica contraía-se no angustioso silêncio, próprio dos homens reservados que têm muito que dizer, mas que não encontram meios de expressar-se.

     Através da janela aberta sobre a rua, vinham os pregões dos vendedores de jornais, oferecendo a edição extraordinária do Star.

     Perry Mason tamborilou sobre o periódico que tinha sobre a mesa; um jornal que acabara de sair da máquina.

     – Isto, disse ele, é que é jornalismo eficiente. Nevers pôs o jornal na rua antes que vocês viessem do tribunal até aqui. Ele já tinha tudo delineado e preparado. Bastou-lhe apenas acrescentar um breve resumo do depoimento do juiz Purley, e o cabeçalho.

     Deslizou o indicador ao longo dos títulos que corriam em negras letras, no alto da página: Assassínio desvendado.

     Frances Celane disse suavemente:

     – Neste caso, o que há de mais notável não é o labor jornalístico, Mr. Mason, e sim a sua maravilhosa análise do que devia ter acontecido, e os métodos usados pelo senhor para reconstruir a cena, a ponto de convencer o juiz Purley. Observei este, da primeira vez que esteve no banco das testemunhas, e pude ver as dificuldades que o senhor iria ter com ele.

     Perry Mason sorriu.

     – O juiz Purley – disse ele – é bastante teimoso e dói-lhe imensamente ter de confessar os seus próprios erros. De fato, se eu lhe tivesse feito aquela pergunta da primeira vez que ele se sentou no banco das testemunhas, teria negado, cheio de indignação, que o caso fosse aquele, e a sua negativa ter-se-ia gravado de tal forma no seu próprio espírito, que, daí por diante, nos subseqüentes depoimentos, nada poderia haver que influísse para que ele admitisse a idéia, por mais fraca que fosse, de se ter enganado.

     “O fato, porém, de eu ter organizado uma repetição da cena, de um modo que o seu espírito estivesse totalmente desprevenido sobre o que se ia dar, deu-me a oportunidade de me aproximar dele, tendo-o de olhos vendados, por assim dizer.”

     “Naturalmente, seguiu dizendo Perry Mason, eu tinha todos os elementos na mão, desde o momento em que Arthur Crinston, ao falar-me sobre o assassínio, se referiu à chamada telefônica à polícia como se dela tivesse tido conhecimento somente depois de aquela lhe ter relatado o assunto. Esse foi o erro cometido por Crinston, erro fatal; isso, e não ter feito referências à conversação telefônica, no seu depoimento perante o júri.”

     “Percebem, não? Ele estava tão obcecado com a ideia de que devia impedir as autoridades de vir a saber o que se tinha passado no gabinete quando Norton foi assassinado que arquitetou uma história inteiramente do seu bestunto, e a ela se aferrou. Não é esta a maneira mais hábil de mentir.”

     “O modo hábil de perjurar é o que se adapta tanto quanto possível à verdade, e dela só se afasta naquilo que se torna absolutamente indispensável. Aqueles que forjam histórias inteiramente fantásticas deixam sempre aqui ou ali alguns fios soltos.”

     “Observem: ocorrem coisas estranhas no espírito humano: acumulam-se por vezes nele um grande número de fatos sem que, entretanto, ele possa estabelecer a correlação que existe entre os mesmos. Tive os fatos ao meu dispor, muito tempo antes de descobrir o que tinha acontecido.”

     “Vejam isto: Crinston tomara por empréstimo grandes somas de dinheiro do crédito da sociedade. A sociedade, já se deixa ver, era solvente, mas o crédito individual de Crinston estava arrebentado. Ele fez de Graves um cúmplice e os dois estavam lesando seu tio; mas só quando o banco fez a notificação a Mr. Norton, este veio a saber o que estava acontecendo.

            Podemos imaginar então o que se passou. Norton concedeu a Mr. Crinston um prazo definitivo, para que dentro dele repusesse o dinheiro, sob pena de denunciá-lo à polícia.”

     “Quando Crinston não pôde efetuar o pagamento, seu tio, agindo com a eficiência que lhe dava o seu sangue frio e que o tornava tão implacável, levou a mão ao telefone e chamou para a Polícia.”

     “Crinston estava sentado atrás dele, observando em silêncio, e sabendo que as palavras que Norton ia proferir imediatamente redundariam no seu enclausuramento numa instituição penal. Ouviu Norton dizer à polícia: ‘Tenho que denunciar um fato criminoso’ e nesse momento agiu sob um impulso cego e homicida. Prostrou Norton com um golpe, sem prévia advertência e provavelmente sem premeditação.”

     “Depois de ter feito isso e quando ia dependurar o auscultador lembrou-se subitamente de que a polícia devia ter um assentamento da chamada que Norton lhe fizera e que isso a levaria a descobri-lo. Teve então uma idéia engenhosa.”

     “Chamou para a polícia outra vez e fingiu que era Norton.”

     “Ele tinha que se referir a qualquer coisa relativa a um assunto delituoso, porque seu tio anteriormente declarara ter uma denúncia a fazer.”

     “A apólice de seguro estava em cima da mesa, e Arthur Crinston atirou-se cegamente de cabeça nessa esparrela. Depois, quando você teve conhecimento do assassínio de seu tio, e como sabia que Rob Gleason estava em casa com você, e que haveria bastante possibilidade de serem ambos implicados no crime, ou pelo menos, que teria de explicar o motivo por que Gleason ali se achava, você recorreu a esse expediente, que lhe pareceu a melhor oportunidade para o estabelecimento de um álibi para você mesma, declarando que saíra no automóvel Buick, durante o tempo que seu tio o julgava perdido.”

     “Diante disso, a coisa parecia de uma exatidão quase matemática. Em outras palavras, um homem com um espírito atilado, que se ponha a refletir e concentre a atenção sobre as provas, seria capaz de apontar com o dedo o assassino, desde esse momento. Entretanto, confesso que as circunstâncias eram tão dramáticas e tão anormais que fiquei confuso durante algum tempo, e tive trabalho para descobrir o que devia ter acontecido.”

     “Quando o consegui, verifiquei achar-me diante de um problema mais sério ainda. Eu estava certo de que poderia expor a minha teoria de modo a estabelecer uma dúvida razoável no espírito dos jurados e obter a absolvição de ambos ou uma suspensão de juízo; mas sabia também que, se não pudesse armar um laço para que os assassinos se traíssem a si mesmos, não conseguiria apagar do nome de vocês o estigma da dúvida.”

     “Reconheci então que o juiz Purley era a testemunha-chave, e percebi que a vaidade do homem e o seu amor pelas atitudes tornariam o habitual interrogatório inútil.”

     “Portanto, era-me preciso idear algum meio pelo qual pudesse erguer uma dúvida no seu próprio espírito, antes que ele pudesse perceber a minha intenção de despertar-lhe essa dúvida, e então enterrá-la na sua cabeça com força dramática.”

     Frances Celane pôs-se de pé, com os olhos marejados de lágrimas.

     – Não lhe posso dizer, murmurou ela, o que isso significa para mim. É uma experiência que quero gravar para sempre no meu espírito.

     Os olhos de Perry Mason contraíram-se.

     – Você teve sorte, disse ele, em tom de tolerante paciência, em escapar sem outra coisa mais do que uma experiência desagradável.

     Frances Celane sorriu; as lágrimas caíam enquanto sorria.

     – Não foi isso que eu lhe quis dizer, Mr. Mason, disse ela. – Quis dizer que isto é uma experiência que não lamentaria ter tido, por coisa alguma.

     Ele fitou-a.

     – É o que lhe digo. Não me refiro ao julgamento por assassínio, mas à passagem pelo cárcere, vendo o sofrimento de outras pessoas. Isso deu-me oportunidade para ver as coisas sob outro ponto de vista. Creio que terá ajudado a curar o meu endiabrado temperamento.

     “Isso pôs também em evidência a lealdade de Rob. Ele sabia que eu não podia ser a culpada, mas via que as provas eram contra mim e que eu tinha todas as probabilidades de ser pronunciada. Naquelas horas amargas, quando o senhor não nos tinha ainda iniciado nas suas confidências e as coisas pareciam acumular-se contra nós, ele veio para a frente, querendo dar a sua vida para salvar a minha.”

     – Sim, disse Perry Mason, olhando pensativamente para Rob Gleason, isso foi um ato nobre e magnânimo, mas se eu não estivesse seguro da minha teoria sobre o caso, ele ter-me-ia feito perder o tino. A sua confissão era muito convincente, salvo quanto ao fato de ele declarar ter tirado as notas de mil dólares dos bolsos do cadáver. Eu sabia que ele não podia ter feito isso, porque você me dera dez notas daquelas, na manhã seguinte. E, nesse caso, você não teria sido franca para comigo. Ocultou-me certas coisas, tentando proteger-se a si própria.

     – Sei isso, respondeu ela. – Tudo por causa da minha primeira mentira a respeito do Buick. Eu não podia dizer a verdade depois daquilo. Apeguei-me à história de ter saído no automóvel como sendo o melhor meio de estabelecer um álibi, e depois vi que me tinha enredado. Não podia de modo nenhum dizer-lhe que obtivera aquele dinheiro de meu próprio tio, porque supostamente estivera fora, no automóvel, durante aquele tempo.

     Ouviu-se uma pequena pancada na porta, e Della Street entrou no escritório.

     Ela olhou para Perry Mason com olhos nos quais cintilava o orgulho. Quando falou, a sua voz tinha entonações de carinhosa ternura.

     – Aqui está um telegrama para o senhor, disse.

     Frances Celane aproximou-se rapidamente de Perry Mason e estendeu-lhe a mão.

     – Rob e eu vamo-nos, disse ela, e não sabemos como dizer-lhe quanto agradecemos tudo o que fez por nós. Podemos recompensá-lo financeiramente, mas, além disso, quiséramos que o senhor soubesse...

     A sua voz embargou-se e as lágrimas tremeluziram-lhe nos olhos.

     Perry Mason apertou-lhe a mão, inclinando-se.

     – Eu sei.

     Quando a porta que ligava o escritório particular com o corredor se fechou sobre eles, virou-se para Della Street.

     – Aqui está o telegrama, disse ela. – Se o senhor puder achar-lhe sentido, é porque sabe mais do que eu.

     Ele agarrou o telegrama e leu:

    

     “Mando-lhe registrada pelo correio aéreo fotografia muito importante de um caso em que estou envolvida presentemente.

     Guarde fotografia e espere-me no seu escritório.

     Sem falta”

     (Assinado) Eva Lamont

    

     Perry Mason examinou o telegrama com curiosidade.

     – Veio também a fotografia? – perguntou.

     – Sim, disse ela, há poucos minutos.

     Ela abriu uma gaveta da mesa e tirou de lá uma fotografia.

     Era de uma mulher que exibia lindas pernas. Por baixo da fotografia havia uma etiqueta datilografada, colada sobre ela. A etiqueta dizia simplesmente: A jovem das pernas premiadas.

     A fotografia não deixava ver o rosto da mulher; apenas se viam os ombros, o quadril, os braços, as mãos que erguiam a orla da saia e as pernas elegantes, muito bem modeladas, calçadas de meias com ligas.

     – Agora, disse Perry Mason, com a curiosidade despertada, que diabo quer dizer isso?

     – Não sei, disse Della Street, mas vou catalogar como

     

      O Caso da Fotografia Misteriosa.

    

     Perry Mason consultou o relógio. A fadiga desaparecera do seu rosto, e seus olhos cintilavam.

     – Tenho curiosidade de saber exatamente a que horas estará aqui Eva Lamont.

 

                                                                                            Erle Stanley Gardner  

 

                      

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