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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A LENDA - TOMO II / Charles de Coster
A LENDA - TOMO II / Charles de Coster

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A LENDA e as aventuras heróicas, alegres e gloriosas

de ULENSPIEGEL e de LAMME GOEDZAK

Tomo II

 

LIVRO TERCEIRO

Vai, o "Calado", Deus o leva. Os dois condes já foram apanhados; d'Alba promete ao "Calado" doçura e perdão, se ele consentir em comparecer na sua presença. Ao saber esta notícia, Ulenspiegel disse a Lamme: - O duque intimou a comparecer na sua presença, a conselho de Dubois, procurador-geral, dentro de três vezes catorze dias, o príncipe de Orange, Ludwig seu irmão, d'Hoogstraeten, Van den Bergh, Culembourg, de Brederode e outros amigos do príncipe, prometendo-lhes boa justiça e misericórdia. Escuta, Lamme: Certo dia, um judeu de Amsterdão intimou um dos seus inimigos a descer à rua; o intimador estava no passeio e o intimado a uma janela.

"Desce - dizia o intimador ao intimado - e dar-te-ei um tal murro na cabeça que ela enfiar-se-te-á pelo peito e poderás ver através das costelas como um ladrão através das grades da prisão: - E o intimado respondeu: - Mesmo que me prometesses cem vezes mais, não desceria.

"Assim possam responder d'Orange e os outros." E fizeram-no, recusando-se a comparecer. D'Egmont e de Hoorn não os intimaram. E a fraqueza no dever chama a hora de Deus.

 

Nessa época foram decapitados no mercado dos Cavalos, em Bruxelas, os Andelot, os filhos de Battembourg e outros ilustres e valorosos senhores, os quais tinham tentado apoderar-se de Amsterdão por surpresa. E enquanto iam para o suplício, sendo dezoito, e cantando hinos, os tambores rufavam à frente e atrás, ao longo de todo o caminho.

E os soldados espanhóis que os escoltavam e empunhavam archotes, queimavam-nos com eles em todos os lugares do corpo. E quando eles se agitavam por causa da dor, os soldados diziam-lhes:

- Como, luteranos, custa-lhes assim tanto ser queimados tão cedo?

E o que os traíra chamava-se Dierick Slosse, tendo-os levado a Enkhuyse, ainda católico, para os entregar aos magarefes do duque.

E eles morreram valentemente.

E o rei herdou.

 

- Viste-o passar? - perguntou Ulenspiegel, vestido de lenhador, a Lamme, disfarçado do mesmo modo. Viste passar o feio duque, com a sua cabeça chata em cima, como a da águia, e a sua comprida barba, que é como uma corda pendente de uma forca? Que Deus o estrangule com ela! Viste essa aranha de grandes patas peludas que Satanás, ao vomitar, cuspiu em cima do nosso país? Vem, Lamme, vem, vamos atirar pedras à teia...

- Ah! - exclamou Lamme. - Seremos queimados vivos!

- Vem a Groenendael, meu querido amigo; vem a Groenendael, há lá um belo claustro onde sua ducalidade aracnídea vai pedir ao Deus da paz que o deixe terminar a sua obra, que é fazer dançar os seus negros espíritos sobre os cadáveres. Estamos na quaresma e só de sangue é que a sua ducalidade não quer fazer jejum. Vem, Lamme, há quinhentos cavaleiros armados em torno da casa de Ohain; trezentos peões partiram separados em pequenos grupos e entram na floresta de Soignes.

"Em breve, quando d'Alba estiver a fazer as suas devoções, cair-lhe-emos em cima, e depois de o termos metido numa bela jaula de ferro, enviamo-lo ao príncipe."

Lamme, no entanto, estremecendo de angústia, respondeu :

- Grande perigo, meu filho, grande perigo! Seguir-te-ia nessa empresa se as minhas pernas não fossem tão débeis, se a minha barriga não estivesse tão inchada devido à má cerveja que se bebe nesta cidade de Bruxelas.

Esta conversa tinha lugar num buraco cavado na terra, no meio do mais espesso do bosque. Subitamente, espreitando através da folhagem, viram os uniformes amarelos e vermelhos dos soldados do duque, cujas armas brilhavam ao sol, e que andavam a pé pelo bosque.

- Fomos traídos! - murmurou Ulenspiegel. Quando deixou de ver os soldados, correu a toda a pressa a casa de Ohain. Os soldados deixaram-no passar sem lhe ligarem, devido à sua indumentária de lenhador e ao feixe de lenha que levava às costas. Encontrou os cavaleiros que esperavam, espalhou a notícia, todos se dispersaram e escaparam, salvo Bausart d'Armentiéres, que foi apanhado. Quanto aos peões, nem um só foi encontrado.

E foi um cobarde traidor do regimento de Likes que os traiu a todos.

Bausart pagou cruelmente por todos os outros. Ulenspiegel foi, com o coração a bater de angústia, ao mercado de Gado, em Bruxelas, ver o seu cruel suplício.

E o pobre d'Armentiéres, amarrado à roda, recebeu trinta e sete pancadas com uma barra de ferro nas pernas, nos braços, nos pés, e nas mãos, que foram despedaçados pouco a pouco, pois os seus carrascos queriam vê-lo sofrer cruelmente.

E recebeu no peito a trigésima sétima, de que morreu.

 

Num dia de Junho, claro e doce, foi erguido em Bruxelas, no mercado diante da Câmara Municipal, um cadafalso coberto de pano negro e suportando dois postes elevados, guarnecidos de pontas de ferro. No cadafalso havia dois coxins negros e uma pequena mesa, sobre a qual se encontrava uma cruz de prata. E nesse cadafalso foram mortos pelo gládio os nobres condes de Egmont e de Horne. E o rei herdou.

E o embaixador de Francisco, primeiro do nome, disse, falando a Egmont:

- Acabo de ver ser cortada a cabeça àquele que por duas vezes fez tremer a França.

E as cabeças dos condes foram espetadas nas pontas de ferro.

E Ulenspiegel disse a Lamme:

- Os corpos e o sangue estão cobertos por panos negros. Abençoados sejam os que tiverem alto o coração e direita a espada nos negros dias que vão seguir-se!

 

Nesse tempo o "Calado" reuniu um exército' e invadiu os Países-Baixos por três lados.

E Ulenspiegel disse, numa assembleia dos Esfarrapados Selvagens de Marenhout:

- A conselho dos da Inquisição, Filipe, rei, declarou todo e cada um dos habitantes dos Países-Baixos culpado do crime de lesa-majestade, e de heresia, tanto por ter aderido à invasão como por não lhe ter levantado obstáculo, e considerando este execrável crime, condena-os a todos, sem ter em conta sexo ou idade, excepto aqueles que são nominalmente designados, às penas reservadas a tais actos; e isto sem a mínima esperança de perdão. O rei herda. A morte ceifa no rico e vasto país que limitam o mar Setentrional, o condado de Emden, o rio Amise, as regiões da Vestfália, de Cléves, de Juliers e de Liége, o bispado de Colónia e o de Tréves, a Lorena e a França. A morte ceifa num solo de trezentas e quarenta léguas, em duzentas cidades muradas, em cento e cinquenta aldeias com direitos de cidade, nos campos, nos burgos e nas planícies. O rei herda.

"Não são de mais - continuou - onze mil carrascos para fazer o trabalho. D'Alba chama-lhes soldados. E a terra dos pais tornou-se uma oficina de onde as artes fogem, que os ofícios abandonam, que as indústrias deixam para irem enriquecer o estrangeiro, que em sua casa lhes permite adorar o Deus da livre consciência. A Morte e a Ruína ceifam. O rei herda.

"As regiões tinham conquistado os seus privilégios à força de dinheiro dado a príncipes necessitados; esses privilégios foram confiscados. Tinham esperado, graças aos tratados assinados entre elas e os seus soberanos, gozar da riqueza que era fruto do seu trabalho. Enganaram-se: o pedreiro constrói para o incêndio, o operário trabalha para o ladrão. O rei herda.

"Sangue e lágrimas! A morte ceifa nas fogueiras, nas árvores que servem de forca, ao longo dos caminhos, nas fossas abertas para onde são lançadas vivas pobres rapariguinhas, nas masmorras das prisões, nos círculos de fogueiras onde ardem a fogo lento os pacientes, nas choupanas de palha incendiadas onde as vítimas perecem pela chama e pelo fumo. O rei herda. "Assim o quis o Papa de Roma. "As cidades regurgitam de espiões que esperam a sua parte dos bens das vítimas. Quanto mais se é rico, mais se é culpado. O rei herda.

"Mas os homens valentes do país não se deixarão degolar como carneiros. Entre os que fogem, muitos estão armados e escondem-se nos bosques. Os monges tinham-nos denunciado a fim de que fossem mortos e confiscados os seus bens. Por isso, de noite, de dia, em bandos, como feras, caem sobre os claustros e retomam o dinheiro roubado ao pobre povo sob a forma de candelabros, de relicários de ouro e de prata, de cibórios, de patenas, de vasos preciosos. Não é verdade, meus amigos? E por esses vasos bebem o vinho que os monges reservavam só para eles. Os vasos fundidos ou vendidos servirão para a guerra santa. Vivam os Esfarrapados!

"Eles perseguem de dia e de noite os soldados do rei, matam-nos, despojam-nos e desaparecem nos seus covis. Vê-se de dia e noite, acenderem-se e apagarem-se nos bosques fogueiras nocturnas, mudando incessantemente de lugar. São as fogueiras dos nossos festins. A nós a caça de pena e de pêlo. Somos senhores. Os camponeses dão-nos pão e toucinho quando queremos. Lamme, olha para eles. Andrajosos, ferozes, resolutos, de olhar altivo, erram pelos bosques com os seus machados, alabardas, espadas, bacamartes, picos, lanças, bestas, arcabuzes, pois todas as armas lhes servem e não querem marchar sob pendões. Vivam os Esfarrapados!

E Ulenspiegel cantou:

'Slaet op den trommele van dirre dom deyne, Slaet op den trommele van dirre doum, doum. Batam o tambor! *(1) van dirre dom deyne', Batam o tambor de guerra.

Arranquem ao duque as suas entranhas! Fustiguem-lhe o rosto! Slaet op den trommele', batam o tambor, Que o duque seja maldito, à morte o traidor!

Que seja entregue aos cães! à morte o carrasco! Vivam os

Esfarrapados! Que seja pendurado pela língua

E pelo braço, pela língua que ordena

E pelo braço que assina a sentença de morte.

* (1) Slaet op den trommele.''

Batam o tambor de guerra. Vivam os Esfarrapados!

Que o duque seja fechado vivo com os cadáveres das

vítimas!

 

Que no fedor, Morra da peste dos mortos!

Batam o tambor de guerra. Vivam os Esfarrapados!

Cristo, olha para os teus soldados,

Arriscando o fogo, a corda,

O gládio pela tua palavra.

Querem a libertação da terra dos pais.

Slaet op den trommele van dirre dom deyne.

Batam o tambor de guerra. Vivam os Esfarrapados!

E todos bebiam e gritavam:

- Vivam os Esfarrapados!

E Ulenspiegel, bebendo pela taça dourada de um monge, contemplava com orgulho os rostos resolutos dos Esfarrapados selvagens.

- Homens ferozes - disse-lhes - sois lobos, leões e tigres. Comam os cães do rei de sangue.

- Vivam os Esfarrapados! - gritaram todos, cantando :

'Slaet op den trommele van dirre dom deyne;

Slaet op den trommele van dirre dom dom':

Batam o tambor de guerra. Vivam os Esfarrapados!

 

Ulenspiegel, estando em Ypres, recrutava soldados para o príncipe: perseguido pelos assassinos do duque, apresentou-se como sacristão ao preboste- de Saint-Martin, onde teve por companheiro um sineiro chamado Pompilius Numan, cobarde da pior espécie, que de noite tomava a sua sombra pelo demónio e a sua camisa por um fantasma.

O preboste era gordo e luzidio como uma galinha engordada à força e pronta para o espeto. Ulenspiegel não tardou em descobrir que espécie de erva ele pastava para ter conseguido assim tanta banha. Segundo lhe disse o sineiro e conforme viu com os seus próprios olhos, o preboste jantava às nove horas e ceava às quatro. Ficava na cama até às oito e meia; depois, antes do jantar, ia passear-se para a sua igreja, ver se as caixas dos pobres estavam bem cheias. E do que continham tirava metade para a sua escarcela. Às nove horas, jantava um pote de leite, meio guisado, um pequeno pastelão de garça e cinco taças de vinho de Bruxelas. Às dez horas, mordiscando algumas ameixas que regava com vinho de Orleães, pedia a Deus que nunca o induzisse à glutonaria. Ao meio-dia comia, para matar o tempo, uma asa e uma perna de frango. A uma hora, pensando na ceia, despejava uma grande taça de vinho de Espanha. Depois, estendendo-se no seu leito, retemperava-se com um pequeno sono.

Ao despertar, comia um pouco de salmão salgado para aguçar o apetite e bebia uma grande taça de dobbelknol de Anvers. Depois descia à cozinha e sentava-se diante da chaminé e do belo fogo que nela ardia, ficando a ver assar pelos monges da abadia um grande pedaço de vitela ou um leitão bem tostado, que comeria de melhor vontade do que um pedaço de pão. Mas o apetite faltava-lhe um pouco. E ficava a ver o espeto, que girava sozinho como que por milagre. Tinha sido feito por Pieter van Steenkiste, ferreiro, que habitava em Courtrai. O preboste pagou-lhe um desses espetos por quinze libras parisienses.

Depois voltava ao seu leito e, adormecendo devido à fadiga, despertava por volta das duas horas, para mordiscar um pouco de geleia de porco regada com vinho da, Romagna, a duzentos e quarenta florins a garrafa. Às três horas, comia um passarinho feito em açúcar da Madeira e despejava dois copos de malvasia a dezassete florins o garrafão. Às três e meia, tragava meio pote de doce, acompanhado por hidromel. Então, bem acordado, segurava um pé com uma das mãos e repousava, pensativo.

Chegada a hora da ceia, o cura de Saint-Jean ia frequentemente visitá-lo. Por vezes, competiam a ver quem comia mais peixe, frango, caça e carne. O que mais depressa ficasse saciado teria de pagar ao outro um prato de grelhados, acompanhado por três vinhos quentes, quatro especiarias e sete legumes.

Assim, comendo e bebendo, conversavam um com o outro a respeito dos heréticos, sendo bem entendido de opinião que nunca os matariam em número suficiente. Deste modo nunca se punham de querela, a menos que discutissem as trinta e nove maneiras de fazer boa sopa de cerveja.

Depois, deixando pender as veneráveis cabeças para os peitilhos das suas vestes sacerdotais, roncavam. Por vezes despertando por instantes, um deles dizia que a vida é uma coisa bela e que as pessoas fazem mal em queixar-se.

Foi deste santo homem que Ulenspiegel se tornou sacristão. Servia-o muito bem durante a missa, não sem encher três vezes a taça, duas para ele e uma para o preboste. O sineiro Pompilius Numan ajudava-o ocasionalmente.

Ulenspiegel, que via Pompilius tão rosado, pançudo e bochechudo, perguntou-lhe se tinha sido ao serviço do preboste que entesourara uma saúde tão invejável.

- Sim, meu filho - respondeu Pompilius. - Mas fecha bem a porta, não vá alguém ouvir-nos.

Depois, falando muito baixo, acrescentou:

- Bem sabes que o nosso mestre preboste ama todos os vinhos e cervejas, todas as carnes e aves com um amor terno. Por isso guarda as suas carnes num armário e os seus vinhos numa adega, de que tem sempre as chaves na escarcela. E adormece com as mãos em cima dela... De noite, vou tirar-lhe as chaves de cima da pança e volto a pô-las no mesmo sítio, não sem tremer, meu filho, pois se ele soubesse do meu crime mandar-me-ia cozer vivo.

- Pompilius - disse então Ulenspiegel - não é preciso ter tanto trabalho. Basta tirar-lhe uma vez as chaves; farei outras por esse molde e deixar-lhe-emos as dele descansadas no seu lugar.

- Faz isso, meu filho - concordou Pompilius. Ulenspiegel fez as chaves; logo que ele e Pompilius se certificavam, por volta das oito da noite, que o bom preboste dormia, iam à sua vontade escolher carnes e garrafas. Ulenspiegel levava as garrafas e Pompilius as carnes, pois Pompilius tremia sempre como uma folha, e os presuntos e morcelas não se partem quando caem no chão. Apoderaram-se várias vezes de aves ainda não cozinhadas, crime de que foram acusados, sentenciados e mortos vários gatos da vizinhança.

Iam depois para Ketel-Straet, que é a rua das raparigas de vida fácil. E aí nada poupavam, dando liberalmente às suas amigas carne fumada e presunto, patos e galinhas, vinho de Orleães e da Romagna, e Ingelsche bier, a que do outro lado do mar chamam ale, e que derramavam a jorros nas frescas gargantas das belas. E em troca destes dons recebiam carícias.

Todavia, certa manhã, após o jantar, o preboste mandou-os chamar aos dois. Tinha um ar temível, roendo colericamente um osso de tutano.

Pompilius tremia como uma vara e a sua pança enorme era agitada pelo medo. Ulenspiegel, mantendo-se silencioso, tacteava no bolso as chaves da adega. O preboste, dirigindo-se-lhe, disse:

- Alguém bebe o meu vinho e come as minhas aves. És tu, meu filho?

- Não - respondeu Ulenspiegel.

- E esse sineiro - continuou o preboste - não terá manchado as mãos no crime, pois está pálido como um agonizante, certamente porque o vinho roubado lhe serve de veneno?

- Ah! senhor - respondeu Ulenspiegel - acusais injustamente o vosso sineiro, pois se está pálido, não é devido a ter bebido vinho mas por não o cheirar há muito, devido ao que se relaxou tanto que, se não lha agarram, a alma vai-se-lhe em riachos pelas calças abaixo.

- Há gente muito desgraçada neste mundo - disse o preboste, bebendo da sua taça um grande trago de vinho. - Mas diz-me, meu filho, tu, que tens olhos de lince, não viste os ladrões?

- Farei boa guarda, senhor preboste - afirmou Ulenspiegel.

- Que Deus vos tenha a ambos em alegria, meus filhos, e vivam sobriamente. Pois é da intemperança que nos vêm muitos males neste vale de lágrimas. Vão em paz.

E abençoou-os.

Depois roeu outro osso de tutano e bebeu outra grande taça de vinho. Ulenspiegel e Pompilius saíram.

- Esse sujo gatuno - disse Ulenspiegel - não foi capaz de dar-te uma gota do seu vinho. Será pão bento voltar a roubar-lho. Mas que tens tu? Tremes!

- Tenho as calças todas molhadas - respondeu Pompilius.

- A água seca depressa, meu filho - comentou Ulenspiegel. - Mas alegra-te, esta noite haverá música e garrafas em Ketel-Straet. E embriagaremos os três guardas-nocturnos, que ressonando guardarão a cidade.

E isto foi feito.

Entretanto, aproximava-se o São Martinho; a igreja estava ornamentada para a festa. Ulenspiegel e Pompilius entraram lá de noite, fecharam bem as portas, acenderam todos os círios, pegaram numa viola e numa corneta e puseram-se a tocar alegremente esses instrumentos. E os círios brilhavam como sóis. Mas isto não foi tudo. Depois foram procurar o preboste, que encontraram a pé, a despeito da hora tardia, mordiscando um tordo, bebendo vinho do Reno e escancarando os olhos, ao ver os vitrais da igreja iluminados.

- Senhor preboste - disse-lhe Ulenspiegel - quereis saber quem come as vossas carnes e bebe os vossos vinhos?

- E essa iluminação? - perguntou o preboste, apontando para os vitrais da igreja. - Ah! Senhor Deus, permitis a São Martinho que queime assim, de noite e sem pagar, os círios dos pobres monges?

- E faz ainda mais, senhor preboste - disse Ulenspiegel. - Mas vinde.

O preboste pegou na sua cruz e seguiu-os; entraram na igreja.

Aí, no meio da nave central, o preboste viu todos os santos apeados dos seus nichos, dispostos em redondo e comandados, segundo parecia, por São Martinho, que os ultrapassava a todos da altura da cabeça e que na mão, estendida para abençoar, tinha uma perua assada. Todos os outros tinham na mão ou levavam à boca pedaços de galinha ou de ganso, morcelas, presuntos, peixe cru ou peixe cozido, e alguns deles seguravam um espeto que pesava bem quinze libras;

Cada um deles, junto aos pés, tinha uma garrafa de vinho.

Ao ver este espectáculo, o preboste, louco de cólera, pôs-se tão vermelho e o seu rosto tornou-se tão inchado que Pompilius e Ulenspiegel pensaram que ia estourar; mas o preboste, sem lhes prestar atenção, foi direito a São Martínho, ameaçando-o, como se quisesse imputar-lhe o crime dos outros, arrancou-lhe a perua da mão e desferiu-lhe tão grandes golpes que lhe partiu um braço, o nariz, a cruz e a mitra.

Quanto aos outros, não lhes poupou os insultos, e mais de um deixou sob os seus golpes braço, mãos, mitra, cruz, foice, machado, grade, serra e outros emblemas de dignidade e de martírio. Depois o preboste, agitando a pança, foi ele próprio apagar todos os círios, com cólera e rapidez.

Levou tudo o que pôde de presuntos, aves e morcelas, e, dobrando-se sob o peso, voltou ao seu quarto, tão zangado que bebeu, de um só golpe, três garrafas de vinho.

Ulenspiegel, tendo-se certificado de que ele dormia, levou para Ketel-Straet tudo o que o preboste julgava ter salvo, assim como o que ficara na igreja, não sem antes ter comido os melhores bocados. Depois deixaram os restos ao pé dos santos.

Na manhã seguinte, enquanto Pompilius tocava o sino das matinas, Ulenspiegel subiu ao quarto do preboste e pediu-lhe que voltasse a descer à igreja.

Aí, mostrando-lhe os restos dos santos e das vitualhas, disse-lhe:

- Senhor preboste, bem vedes que foi trabalho baldado, eles comeram de todos os modos.

- Sim - respondeu o preboste - foram como ladrões ao meu quarto, buscar o que eu tinha salvo. Ah! senhores santos, queixar-me-ia ao papa!

- Sim - observou Ulenspiegel - mas a procissão é depois de amanhã, e o povo não tardará em vir à igreja; se vê todos esses pobres santos mutilados, não temeis ser acusado de iconoclastia?

- Ah! São Martinho! - exclamou o preboste. - Poupai-me o fogo, não sabia o que fazia.

Depois, voltando-se para Ulenspiegel, acrescentou, enquanto o medroso Pompilius continuava agarrado aos sinos:

- Não é possível, de aqui até domingo, consertar São Martinho. Que hei-de fazer e que dirá o povo?

- Senhor - respondeu Ulenspiegel - é preciso recorrer a um inocente subterfúgio. Colaremos uma barba ao rosto de Pompilius, que tem um aspecto respeitável, por estar sempre melancólico; vestir-lhe-emos a mitra, a alba, a cogula e o grande manto do santo; recomendar-lhe-emos que fique muito quieto no seu pedestal e o povo tomá-lo-á por um São Martinho de madeira.

O preboste aproximou-se de Pompilius, que se balançava pendurado às cordas.

- Deixa de tocar - disse-lhe - e escuta-me. Queres ganhar quinze ducados? No domingo, dia da procissão, serás São Martinho. Ulenspiegel vestir-te-á como é preciso, e se, transportado no andor pelos teus quatro homens, disseres uma palavra ou fizeres um gesto, mandar-te-ei fritar em azeite no grande caldeirão que o carrasco instalou na praça do mercado.

- Senhor, agradeço-vos - respondeu Pompilius. - Mas bem sabeis que retenho as minhas águas com dificuldade.

- É preciso obedecer - replicou o preboste.

- Obedecerei, senhor - murmurou Pompilius, lastimosamente.

 

No dia seguinte, sob um sol brilhante, a procissão saiu da igreja. Ulenspiegel consertara o melhor que pudera os doze santos que se balançavam sobre os seus pedestais entre as bandeiras das corporações, seguidos pela imagem de Nossa Senhora; depois as filhas da Virgem, vestidas de branco e entoando cânticos, e depois os archeiros e besteiros. Por fim, muito perto do pálio e balançando-se mais do que os outros, Pompilius, que vergava sob o peso dos enfeites do senhor São Martinho.

Ulenspiegel, tendo-se munido de uma porção de pó de coçar, ajudara Pompilius a envergar a sua indumentária episcopal, calçara-lhe as luvas, dera-lhe a cruz e ensinara-o a abençoar à maneira latina. Tinha também ajudado os padres a vestirem-se. A uns punha a estola, a outros a cogula, aos diáconos a alva. Andava de um lado para o outro, na igreja, compondo as pregas de um manto, admirando e louvando as bem polidas armas dos besteiros e os temíveis arcos da confraria dos archeiros. E cada um deles recebia, numa manga, nas calças ou nas costas, uma pitada de pó de coçar. Mas o deão e os quatro transportadores de São Martinho foram os que receberam a dose maior. Quanto às filhas da Virgem, poupou-as, em consideração pela sua graça encantadora.

A procissão saiu de pendões ao vento, bandeiras desfraldadas, numa bela ordem. Homens e mulheres benziam-se ao vê-la passar. O sol brilhava e aquecia. O deão foi o primeiro a sentir os efeitos do pó e coçou-se atrás de uma orelha. Todos, padres, archeiros, besteiros, coçavam o pescoço, as pernas, os pulsos, sem ousarem ainda fazê-lo abertamente. Os quatro portadores coçavam-se também, mas o sineiro, mais afectado do que os outros, pois estava mais exposto ao sol ardente, não ousava sequer mexer-se, por temor de ser frito em azeite. Franzindo o nariz, fazia uma feia cara e oscilava sobre as pernas trémulas, pois quase caía de cada vez que os portadores se coçavam.

No entanto, não ousava mexer-se, e, devido ao medo, deixava correr as suas águas, e os portadores diziam:

- Grande São Martinho, vai pôr-se agora a chover?

Os padres cantavam um hino a Nossa Senhora.

'Si de coe... coe... Io descenderes O sane... ta... ta... ta Ma... ma... ria.

Pois as suas vozes tremiam devido à comichão, que se tornava excessiva; no entanto, coçavam-se modestamente. O deão e os quatro portadores, porém, tinham o pescoço e as pernas em fogo. Pompilius mantinha-se mudo e quedo, tremendo sobre as pernas, que eram as mais afectadas.

Eis contudo que subitamente, todos, archeiros, besteiros, diáconos, padres, deão e portadores de São Martinho se detêm para se coçarem. O pó fazia cócegas , nas plantas dos pés de Pompilius, mas ele não se mexia, com medo de cair.

E os curiosos diziam que São Martinho rolava furiosamente os olhos e fazia uma cara muito ameaçadora para o pobre povo.

Depois o deão pôs de novo a procissão em andamento.

Não tardou que o sol, caindo a pino sobre todas aquelas costas e panças processionais, tornasse intoleráveis os efeitos do pó.

E então, padres, archeiros, besteiros, diáconos e deão foram vistos como uma tropa de macacos deterem-se e coçarem-se impudicamente em todos os sítios onde tinham comichões.

As ninas da Virgem cantavam o seu nino, e era como um cantar de anjos, todas aquelas vozes frescas subindo para o céu.

Todos, evidentemente, fugiram para onde puderam; o deão, coçando-se, salvou o Santíssimo Sacramento; o povo, piedoso, transportou as relíquias para a igreja; os quatro portadores de São Martinho derrubaram rudemente Pompilius por terra. Aí caído, sem ousar coçar-se, mexer-se ou falar, o pobre sineiro fechava devotamente os olhos.

Dois rapazinhos quiseram levá-lo, mas, achando-o sem dúvida muito pesado, deixaram-no direito contra uma parede, e Pompilius ficou imóvel, chorando grossas lágrimas.

O povo amontoava-se em torno dele; as mulheres iam buscar lenços de tecido fino e branco e limpavam-lhe o rosto, para conservar aquelas lágrimas, dizendo: - Senhor, como tendes calor! O sineiro olhava-as lamentavelmente e fazia, apesar de todos os seus esforços, caretas com o nariz.

E, como as lágrimas corriam a jorros dos seus olhos, as mulheres diziam:

- Grande São Martinho, chorais devido aos pecados da cidade de Ypres? Não é o vosso nobre nariz que se agita? Seguimos todavia os conselhos de Louis de Vives e os pobres de Ypres terão trabalho e comida. Oh! que grandes lágrimas! São pérolas. A nossa salvação está aqui. E os homens diziam:

- Devemos, grande São Martinho, destruir Ketel-Straet? Mas ensinai-nos sobretudo o modo de impedir as pobres raparigas de sair de noite e correr assim mil aventuras.

Subitamente, o povo gritou: - Aí está o sacristão!

Ulenspiegel chegou a correr, e, pegando em Pompilius pelo meio do corpo, carregou-o aos ombros, seguido por uma multidão de devotos e devotas.

- Ah! - murmurava-lhe ao ouvido o pobre sineiro. - Vou morrer de comichão, meu filho.

- Põe-te rígido - respondia-lhe Ulenspiegel. - Esqueces que és um santo de pau?

Pouco depois chegava diante do preboste, que roía as unhas até fazer sangue.

- Sineiro - perguntou o preboste - coçaste-te como nós?

- Não, senhor - respondeu Pompilius.

- Falaste ou fizeste algum gesto?

- Não, senhor - repetiu Pompilius.

- Nesse caso - disse o preboste - terás os teus quinze ducados. Agora podes ir coçar-te.

 

No dia seguinte o povo, tendo sabido por Ulenspiegel o que se passara, disse que fora uma grande patifaria fazê-los adorar como a um santo um medroso que deixava correr as suas águas pelas pernas abaixo.

E muitos tornaram-se heréticos. E partindo com os seus bens, iam engrossar o exército do príncipe.

Ulenspiegel voltou a Liége.

Estando sozinho no bosque, sentou-se e devaneou. Olhando para o claro céu, murmurou:

- A guerra, sempre a guerra, para que o inimigo espanhol mate o pobre povo, pilhe os nossos bens, viole as nossas mulheres e as nossas filhas. Entretanto, o nosso belo dinheiro desaparece, e o nosso sangue corre em riachos sem proveito para ninguém, a não ser para esse real malandro que quer acrescentar mais um florão de autoridade à sua coroa.

Florão que ele julga glorioso, florão de sangue, florão de fumo. Ah! se pudesse dar-te os florões que desejo, só as moscas quereriam fazer-te companhia!

 

Enquanto pensava nestas coisas, viu passar à sua frente todo o bando de veados. Havia-os velhos e grandes, ostentando orgulhosamente as suas armações de nove pontas. Outros mais pequenos, como se fossem seus escudeiros, trotavam ao lado deles, parecendo prontos a dar-lhes a ajuda dos seus cornos finos e pontiagudos. Ulenspiegel não sabia para onde eles iam, mas pensou que era para o lugar onde descansavam.

- Ah! - murmurou - veados velhos e novos, ides, alegres e orgulhosos, pela espessura no bosque, para o vosso repouso, comendo os jovens rebentos, aspirando os aromas balsâmicos, felizes até que apareça o caçador-carrasco. Tal como nós, velhos veados e gamos!

E as cinzas de Claes bateram no peito de Ulenspiegel.

 

Em Setembro, quando os mosquitos deixam de picar, o "Calado", com seis peças de campanha e quatro grandes canhões falando por si, e catorze mil flamengos, valões e alemães, passou o Reno em Saint-Vyt.

Sob os estandartes verde e amarelo do bastão nodoso, bastão que durante muito tempo esmagou o nosso país, bastão de começo de servidão empunhado por d'Alba, o duque de sangue, marchavam vinte e seis mil e quinhentos homens, rolavam dezassete peças de campanha e seis grandes canhões.

O "Calado", no entanto, não teria qualquer êxito nessa guerra, pois d'Alba recusava-se a dar batalha.

E o seu irmão Ludwig, o Bayard da Flandres, depois de muitas cidades tomadas e de muitos barcos apresados no Reno, perdeu em Jemmingen, na região de Frise, contra o filho do duque, dezasseis canhões, seiscentos cavalos e vinte estandartes, por causa de cobardes soldados mercenários, que exigiam dinheiro quando era preciso combater.

E através de ruínas, sangue e lágrimas, Ulenspiegel procurava em vão a salvação da terra dos pais.

E os carrascos, por todo o país, enforcavam, esquartejavam e queimavam pobres vítimas inocentes.

E o rei herdava.

Atravessando a região dos valões, Ulenspiegel viu que o príncipe não tinha de ali qualquer socorro a esperar, e dirigiu-se à cidade de Bouillon.

Pelo caminho, encontrou corcundas de todas as idades, sexos e condições. Todos, munidos de grandes rosários, os desfiavam devotamente.

E as suas orações eram como o coaxar de rãs num charco, de noite, quando está calor.

Havia mães corcundas transportando filhos corcundas, enquanto que outras crianças com a mesma deformidade se lhes agarravam às saias. Havia corcundas nas colinas e corcundas nas planícies. E por todo o lado, sob o céu límpido, Ulenspiegel via desenharem-se as suas magras silhuetas.

Aproximou-se de um deles e perguntou-lhe:

- Aonde vão todos esses pobres homens mulheres e crianças.

O homem respondeu:

- Vamos ao túmulo de São Remáclo, pedir-lhe que nos dê o que os nossos corações desejam, tirando das nossas costas o seu fardo de humilhação. Ulenspiegel replicou:

- São Remáclo poderia dar-me também a mim aquilo que o meu coração deseja, tirando das costas das pobres comunas o duque de sangue, que pesa sobre elas como uma corcunda de chumbo?

- Não é missão desse santo tirar as corcundas de penitência - respondeu o homem.

- Já tirou acaso algumas das outras? - perguntou Ulenspiegel.

- Sim quando as corcundas são novas. Se então ele faz o milagre, fazemos festa em toda a cidade. E cada peregrino dá uma moeda de prata, e muitas vezes um florim de ouro, ao feliz curado, tornado santo por esse facto e podendo eficazmente rezar pelos outros.

- Porque é que o rico São Remáclo procede como um vil boticário, fazendo-se pagar pelos seus milagres?

- Miserável ímpio, São Remáclo pune os blasfemadores! - replicou o peregrino, sacudindo furiosamente a sua corcunda.

- Ah! - gemeu Ulenspiegel, caindo dobrado junto de uma árvore.

O peregrino, contemplando-o, dizia:

- São Remáclo atinge duramente aqueles que atinge. Ulenspiegel dobrava as costas, e, coçando-as, gemia:

- Glorioso santo, tem piedade. É o castigo. Sinto entre os ombros uma dor terrível. Ah! Ah! perdão, São Remáclo. Vai, peregrino, vai, deixa-me sozinho aqui, como um parricida, para chorar e arrepender-me.

O peregrino, porém, já tinha corrido até à grande praça de Bouillon, onde todos os corcundas se encontravam reunidos.

Aí, estremecendo de medo, disse-lhes, falando aos estremeções:

- Encontrei peregrino direito como um choupo... peregrino blasfemador... corcunda nas costas... corcunda inflamada!

Os outros, ouvindo isto, lançaram mil clamores alegres, dizendo:

- São Remáclo, se dás corcundas, também podes tirá-las. Tira-nos as nossas, São Remáclo!

Entretanto, Ulenspiegel deixou a sua árvore. Ao passar pelo arrabalde deserto, viu, à porta de uma taberna, duas bexigas balançando-se de um pau, duas bexigas de porco, assim penduradas para assinalarem o mercado de chouriços, "panch kermis", como se diz na região de Brabante.

Ulenspiegel pegou numa dessas bexigas, apanhou

do chão uma espinha dorsal de "schol", os franceses dizem "plie séche"(1), sangrou-se, fez correr o seu sangue para dentro da bexiga, encheu-a, fechou-a, pô-la às costas e por cima dela colocou a espinha de solho. Assim disfarçado, de costas encurvadas, abanando a cabeça, agitando as pernas como um velho corcunda, dirigiu-se à praça.

O peregrino, que testemunhara a sua queda, avistou-o e gritou:

- Aí está o blasfemador.

E mostrou-o com um dedo. E todos correram para o verem de perto.

Ulenspiegel baixava lamentavelmente a cabeça.

Ah! - dizia. - Não mereço perdão nem piedade, batem-me como a um cão raivoso. os corcundas, esfregando as mãos, diziam: Mais um para a nossa confraria. Ulenspiegel, murmurando entre dentes:

* (1) Solho seco.

 

"Hão-de pagar por isto, patifes", parecia suportar tudo pacientemente, e dizia:

- Não comerei nem beberei, nem sequer para reforçar a minha corcunda, até que São Remáclo queira curar-me tal como me castigou.

Ao ouvir do milagre, o deão saiu da igreja. Era um homem alto, pançudo e majestoso. De nariz ao vento, fendeu como um navio o mar de corcundas. Mostraram-lhe Ulenspiegel, e ele disse:

- Foi a ti, bom homem, que São Remáclo castigou?

- Sim - respondeu Ulenspiegel - foi a mim, seu humilde adorador, que quer fazer-se curar da sua corcunda nova, se ele consentir.

O deão, farejando em tudo aquilo qualquer malícia, pediu:

- Deixa-me palpar a tua corcunda.

- Palpai, senhor - consentiu Ulenspiegel. E, tendo-o feito, o deão acrescentou:

- É de data fresca e molhada. Espero no entanto que São Remáclo queira ser misericordioso. Segue-me.

Ulenspiegel seguiu-o e entrou na igreja. Os corcundas, caminhando atrás dele, gritavam:

- Eis o maldito! Eis o blasfemador! Quanto pesa, a tua corcunda fresca? Vais fazer dela um saco para guardar os teus patacões? Troçaste de nós toda a tua vida, porque eras escorreito; agora é a nossa vez. Glória a São Remáclo!

Ulenspiegel, sem dizer palavra, curvando a cabeça, continuando a seguir o deão, entrou numa pequena capela onde se encontrava um túmulo de mármore, coberto por uma grande mesa que era também de mármore. Não havia entre o túmulo e a parede da capela mais do que o espaço de uma mão estendida. Uma multidão de peregrinos corcundas, em fila, passavam um a um entre a parede e a mesa, na qual esfregavam silenciosamente as suas bossas. E esperavam assim livrar-se delas. E os que esfregavam as corcundas não queriam ceder o lugar aos que ainda as não tinham esfregado, e batiam-se, mas sem ruído, dando pancadas à socapa, pancadas de corcunda, devido à santidade do lugar.

O deão disse a Ulenspiegel que subisse para cima da mesa do túmulo, a fim de que todos os peregrinos pudessem vê-lo bem.

- Não consigo subir sozinho - respondeu Ulenspiegel.

O deão ajudou-o e colocou-se junto dele, dizendo-lhe que ajoelhasse. Ulenspiegel obedeceu e ficou nessa posição, de cabeça baixa.

O deão, então, tendo-se recolhido, disse com uma voz sonora:

- Filhos e irmãos de Jesus Cristo, vêem a meus pés o maior ímpio, patife e blasfemador que São Remáclo alguma vez atingiu com a sua cólera.

E Ulenspiegel, batendo no peito, murmurava: -'Confiteor.'

- Outrora - continuou o deão - era direito como uma haste de alabarda, e gabava-se disso. Vejam-no agora, corcunda e curvado sob o peso da maldição celeste.

- "Confiteor", tirai-me a minha corcunda - dizia Ulenspiegel.

- Sim - prosseguiu o deão - sim, grande santo, São Remáclo, que, depois da vossa morte gloriosa, fizeste trinta e nove milagres, tirai das costas deste homem o peso que as encurva. E possamos nós, por isso, cantar-vos louvores pelos séculos dos séculos, "in saecula saeculorum". E paz na terra aos corcundas de boa vontade.

E os corcundas repetiram em coro:

- Sim, sim, paz na terra aos corcundas de boa vontade: paz de bossas, basta de defeitos, amnistia de humilhações. Tira-nos as nossas corcundas, São Remáclo.

O deão ordenou a Ulenspiegel que descesse do túmulo e esfregasse a sua corcunda contra a beira da mesa. Ulenspiegel obedeceu, repetindo:

- "Mea culpa, confiteor." Tirai-me a minha corcunda. E esfregava-se vigorosamente, à vista de todos os assistentes.

- Vejam a corcunda, está a ceder! - gritavam estes. - Vai desviar-se para a direita.

- Não, vai meter-se-lhe no peito. As corcundas não se desviam, voltam para os intestinos, de onde saíram.

- Não, voltam ao estômago, onde dão alimento para oitenta dias.

- É a prenda do santo aos corcundas desembaraçados.

- E para onde vão as corcundas velhas? Subitamente, todos os corcundas lançaram um grande grito, pois Ulenspiegel acabava de estourar a sua corcunda, apoiando-se com força à esquina da mesa. Todo o sangue que estava dentro da bexiga de porco caiu, escorrendo pelo interior do gibão e tombando nas lajes em grossas gotas. E Ulenspiegel gritou, endireitou-se e estendendo os braços:

- Estou desembaraçado!

E todos os corcundas gritaram em coro:

- Abençoado São Remáclo, é bom para ele, duro para nós.

- Senhor, tirai-nos as nossas corcundas!

- Oferecer-te-ei um vitelo.

- E eu sete carneiros.

- E eu a caça de um ano.

- E eu seis presuntos.

- E eu oferecerei a minha choça à igreja.

- Tira-nos as nossas corcundas, São Remáclo!

E olhavam para Ulenspiegel com inveja e respeito. Houve um que quis palpar sob o gibão, mas o deão disse-lhe:

- Há aí uma ferida que não pode ver a luz.

- Orarei por vós - dizia Ulenspiegel.

- Sim, peregrino - responderam os corcundas, falando todos ao mesmo tempo - sim, senhor endireitado, troçámos de vós, mas perdoai-nos, não sabíamos o que fazíamos. Cristo perdoou na cruz, dai-nos também o vosso perdão.

- Perdoarei - disse benevolamente Ulenspiegel.

- Então, aceitai esta moeda, tomai este florim, deixai-nos oferecer este real a vossa direiteza, dar-vos este cruzado, pôr nas vossas mãos este carolus...

- Escondam bem os vossos carolus - dizia-lhes Ulenspiegel em voz baixa. - Que a vossa mão esquerda não saiba o que faz a direita.

E falava assim por causa do decano, que devorava com os olhos as moedas dos corcundas, sem saber se eram de ouro ou de prata.

- Graças vos sejam dadas, senhor santificado - diziam os corcundas a Ulenspiegel.

E ele aceitava dignamente os seus dons, como um homem miraculado.

Os avaros, no entanto, esfregavam as suas corcundas no túmulo, sem dizer palavra.

Ulenspiegel foi nessa noite a uma taberna, onde festejou o acontecimento.

Antes de ir deitar-se, pensando que o deão quereria a sua parte do lucro, senão o total, contou os seus ganhos, e descobriu que havia mais ouro do que prata, pois estavam ali bem uns trezentos carolus.

Avistou um loureiro seco num vaso, agarrou-o pela rama, arrancou-o da terra e guardou o ouro no fundo do vaso. Depois espalhou em cima da mesa todas as moedas de prata. O deão entrou na taberna e aproximou-se de Ulenspiegel.

Este, ao avistá-lo, perguntou:

- Senhor deão, que desejais da minha miserável pessoa?

- Desejo apenas o teu bem, meu filho - respondeu o decano.

- Ah! - gemeu Ulenspiegel. - É esse que está em cima da mesa?

- Esse mesmo, meu filho.

E o deão, estendendo a mão, limpou a mesa de todas as moedas, metendo-as num saco que levara para esse fim.

E deu um florim a Ulenspiegel, fingindo lamentá-lo. E pediu-lhe os instrumentos do milagre. Ulenspiegel mostrou-lhe a espinha de solho e a bexiga.

O deão pegou em ambas as coisas, enquanto Ulenspiegel se lamentava, pedindo-lhe que lhe desse mais qualquer coisa, dizendo que o caminho era longo de Bouillon a Damme, para ele, pobre peão, que sem dúvida morreria de fome.

O deão, no entanto, retirou-se sem dizer palavra. Ao ficar sozinho, Ulenspiegel adormeceu com os olhos postos no loureiro. No dia seguinte, ao despontar da aurora, tendo recolhido o seu ouro, saiu de Bouillon, dirigiu-se ao campo do "Calado", entregou-lhe o dinheiro e contou-lhe o que se passara, dizendo que era a verdadeira maneira de conseguir do inimigo contribuições de guerra. E o príncipe deu-lhe dez florins. Quanto à espinha de solho, foi metida numa caixa de cristal e colocada entre os braços da cruz do altar-mor, em Bouillon.

E na cidade todos sabiam que o que a cruz abraçava era a corcunda do blasfemador miraculado.

 

O "Calado", estando nos arredores de Liége, fazia, antes de atravessar o Mosa marchas e contra-marchas, iludindo assim a vigilância do duque.

Ulenspiegel, entregando-se aos seus deveres de soldado, manejava dextramente o arcabuz e tinha os olhos e os Ouvidos bem abertos.

Nesse tempo chegaram ao campo alguns fidalgos flamengos e brabanções, que viviam bem como os senhores, coronéis e capitães do séquito do "Calado".

Não tardou que se formasse no acampamento dois partidos que se disputavam continuamente, dizendo uns que o príncipe era traidor, respondendo os outros que os acusadores mentiam pelo gorja e que os fariam engolir as suas mentiras. A desconfiança alastrava como uma mancha de óleo. E chegaram a vias de facto em grupos de seis, oito e doze homens, batendo-se com todas as armas de combate singular, e até com arcabuzes.

Certo dia, o príncipe acorreu ao ruído, colocando-se entre os dois partidos. Uma bala arrancou-lhe a espada que levava à cintura. Fez cessar o combate e visitou todo o campo para se mostrar, a fim de que não se dissesse:

"Morto o "Calado" morta a guerra."

No dia seguinte, por volta da meia-noite, com um tempo enevoado, Ulenspiegel preparava-se para sair de uma casa onde fora cantar cantigas de amor flamengas a uma jovem vala, quando ouviu à porta de uma choça vizinha o crocitar do corvo, repetido três vezes. E outro crocitar respondeu-lhe de longe, também por três vezes. Um camponês apareceu à porta da choça. Ulenspiegel ouviu passos no caminho.

Dois homens, falando espanhol, aproximaram-se do camponês, que lhes perguntou na mesma língua:

- Que fizeram?

- Bom trabalho - responderam eles - mentindo pelo rei. Graças a nós, capitães e soldados descontentes dizem: "É por vil ambição que o príncipe resiste ao rei; espera assim tornar-se temido e receber como penhor de paz cidades e senhorias; por quinhentos mil florins, abandonará os valorosos senhores que combatem pela pátria. O duque ofereceu-lhe uma amnistia completa com promessa e juramento de o reintegrar na posse de todos os seus bens, a ele e aos altos chefes do exército, se voltarem à obediência ao rei. D'Orange vai tratar sozinho com ele."

"E os fiéis do "Calado" respondem:

"Ofertas do duque, traiçoeira armadilha, onde ele não cairá, lembrando-se de Egmont e de Horne. Todos sabem que o cardeal de Granvelle, estando em Roma, disse, quando da captura dos condes: apanhámos os dois bordalos, mas deixámos o lúcio; foi o mesmo que nada, pois o "Calado" ainda não foi enforcado."

- A divisão é grande no exército? - perguntou o camponês.

- Muito grande - responderam os outros dois. - E aumenta todos os dias... Onde estão as cartas?

Entraram todos na choça, onde foi acesa uma lanterna. Espreitando por uma pequena janela, Ulenspiegel viu-os abrir duas cartas, parecendo muito satisfeitos com o que liam, beber hidromel e por fim sair, dizendo ao camponês, em espanhol:

- Campo dividido, Orange apanhado. Será uma boa limonada.

- Esses dois - murmurou Ulenspiegel para si mesmo - não podem continuar a viver.

Os dois homens foram envolvidos pelo espesso nevoeiro. Ulenspiegel viu o camponês entregar-lhes uma lanterna, que eles levaram.

A luz da lanterna era frequentemente interceptada por uma forma escura, do que Ulenspiegel deduziu que os dois homens caminhavam um atrás do outro.

Armou o seu arcabuz e disparou contra a forma escura. Viu então a lanterna descer e subir várias vezes, e deduziu que, tendo um deles caído, o outro procurava ver de que natureza era a sua ferida. Armou no mesmo instante o seu arcabuz. Vendo a lanterna afastar-se rapidamente em direcção ao acampamento, apontou e disparou segunda vez. A lanterna oscilou, depois caiu, apagando-se, e a escuridão tornou-se completa.

Correndo então para o campo, viu o preboste que se aproximava seguido por uma multidão de soldados despertados pelos tiros de arcabuz. Ulenspiegel, chegando-se a eles, disse-lhes:

- Fui eu o caçador, vão levantar a caça.

- Alegre flamengo - respondeu-lhe o preboste - não é só com a língua que falas.

- Palavras da língua, são vento - disse Ulenspiegel. - Palavras de chumbo ficam nos corpos dos traidores. Mas sigam-me.

E levou-os, munidos de lanternas, até ao lugar onde os dois homens tinham caído. E de facto viram-nos estendidos por terra, um morto, outro moribundo e com uma mão enclavinhada no peito, onde estava uma carta amarrotada num último esforço de vida.

Levaram os corpos, que reconheceram pelas indumentárias como sendo corpos de fidalgos, e foram procurar o príncipe, que conferenciava com Friedrich de Hollenhausen, margrave de Hesse, e outros senhores.

Seguidos por lanceiros, cavaleiros e outros homens de armas, chegaram diante da tenda do "Calado" pedindo-lhe aos gritos que os recebesse.

O príncipe apareceu. Então, cortando a palavra ao preboste, que tossicava e se preparava para acusá-lo, Ulenspiegel disse:

- Senhor, matei, em vez de corvos, dois traidores fidalgos do vosso séquito.

Depois narrou o que tinha visto, ouvido e feito. O "Calado" não disse palavra. Os dois corpos foram revistados, estando presente ele, Guilherme de Orange, o "Calado", Friedrich de Hollenhausen, margrave de Hesse, Dietrich de Echoonenbergh, os condes Albert de Nassau e Hooghstraet, Antoine de Lalaing', governador de Malines, muitos soldados e Lamme Goedzak, tremendo como uma vara. Nos corpos dos fidalgos foram encontradas cartas de Granvelle e de Noircarmes, incitando-os a semear a divisão no séquito do príncipe, para diminuir as suas forças, obrigá-lo a ceder e entregá-lo ao duque para ser decapitado como merecia.

"É preciso - diziam as cartas - proceder subitamente e por palavras encobertas, para que os do exército pensem que o "Calado" já fez, e em proveito próprio, acordo particular com o duque. Os seus capitães e soldados, furiosos, fá-lo-ão prisioneiro. Cada um de vós receberá como recompensa quinhentos ducados sobre os Fugger de Anvers, e mais mil logo que cheguem de Espanha os quatrocentos mil que se aguardam." Descoberta esta conjura, o príncipe, sem falar, voltou-se para os fidalgos, senhores e soldados, entre os quais havia muitos que desconfiavam dele, querendo com este gesto censurar-lhes a desconfiança. E todos exclamaram, em grande tumulto:

- Longa vida a d'Orange! D'Orange é fiel à pátria! E quiseram, por desprezo, lançar os cadáveres aos

cães. Mas o "Calado" opôs-se:

- Não são os corpos que devemos lançar aos cães, mas a fraqueza de espírito, que faz duvidar das intenções puras.

E os senhores e soldados gritaram:

- Viva o príncipe! Viva d'Orange, o amigo da pátria! E as suas vozes foram como um trovão, ameaçando a injustiça.

- Enterrem-nos cristãmente - ordenou o príncipe, apontando os cadáveres.

- E eu? - perguntou Ulenspiegel. - Que vão fazer da minha fiel carcaça! Se fiz mal, que me moam de pancadas, se fiz bem, dêem-me uma recompensa.

O "Calado", então, disse:

- Esse arcabuzeiro receberá cinquenta bastonadas com uma vara verde, na minha presença, por ter morto, sem ordens, dois fidalgos, com grande desprezo por toda a disciplina. Receberá também trinta florins, por ter visto e ouvido bem...

- Senhor - disse Ulenspiegel - se me derem primeiro os trinta florins, suportarei as pancadas com paciência.

- Sim, sim - gemia Lamme Goedzak - dêem-lhe primeiro os trinta florins, e ele suportará o resto com paciência.

- E depois - continuou Ulenspiegel - tendo a alma limpa, não tenho necessidade de ser lavado e enxugado à paulada.

- É verdade - gemeu Lamme. - Ulenspiegel não tem necessidade de ser lavado e enxugado. Tem a alma limpa. Não o lavem, senhores, não o lavem.

Tendo Ulenspiegel recebido os trinta florins, o pre-boste ordenou ao stock-meester" que se ocupasse dele.

- Vejam, senhores - dizia Lamme - como o seu aspecto é lamentável. Não gosta nada da cadeira, o meu amigo Ulenspiegel.

- Gosto - respondeu Ulenspiegel - de ver um belo freixo folhudo, crescendo ao sol na sua verdura nativa. Mas tenho um ódio de morte a essas feias varas de madeira verde, escorrendo ainda a sua seiva, sem ramos nem folhas, de aspecto feroz e pancada dura.

- Estás pronto? - perguntou o preboste.

- Pronto? - repetiu Ulenspiegel. - Pronto para quê? Para ser espancado? Não estou nem quero estar, senhor "stock-meester." A sua barba é vermelha e o seu ar temível, mas, tenho a certeza, a sua alma é doce e não tem vontade de espancar um pobre homem como eu. Eu, devo dizer-lho, não gosto de vê-lo nem de fazê-lo; pois as costas de um cristão são um templo sagrado que, tal como o peito, contêm os pulmões com os quais respiramos o ar do bom Deus. Que terríveis remorsos não sentiria se uma cruel bastonada me desfizesse?

- Apressa-te - disse o stock-meester.

- Senhor - continuou Ulenspiegel, dirigindo-se ao príncipe - não há pressa, acreditai; primeiro é preciso deixar secar a vara, pois diz-se que a madeira verde ao entrar na carne viva comunica-lhe um veneno mortal. Quer vossa alteza ver-me morrer de tão má morte? Senhor, tenho as minhas fiéis costas ao serviço de vossa alteza; mandai-as açoitar pela vergasta ou pelo chicote; mas, se não quereis ver-me morto, poupai-me, suplico-vos, a madeira verde.

- Príncipe, perdoai-lhe - disseram ao mesmo tempo Hooghstraet e Dietrich de Schoonenbergh. Os outros sorriram misericordiosamente.

E lLamme dizia:

- Senhor, senhor, perdoai-lhe; a madeira verde é puro veneno.

- Perdoo - disse então o príncipe. Ulenspiegel, saltando de alegria, deu uma palmada

na barriga de Lamme, obrigando-o a dançar também.

- Louva comigo o senhor - disse - que me salvou da madeira verde.

E Lamme tentava dançar, mas não conseguia, devido à sua enorme barriga. E Ulenspiegel pagou-lhe de comer e de beber.

 

Sem querer travar batalha, o duque hostilizava incessantemente o "Calado", que percorria a região plana entre Juliers e o Mosa, mandando sondar o rio em Hõndí, Mechelen, Elsen, Meersen, e encontrando-o em todo o lado cheio de armadilhas destinadas a ferir homens e cavalos que tentassem atravessá-lo a vau.

Em atockem, os sondadores nada encontraram. O príncipe ordenou a passagem. Alguns cavaleiros atravessaram o rio e dispuseram-se em ordem de batalha na outra margem, a fim de proteger a passagem do lado do bispado de Liége; depois estenderam-se de uma margem à outra, quebrando assim o curso do rio, dez filas de archeiros e arcabuzeiros, entre os quais se encontrava Ulenspiegel.

Ficou com água até às coxas, e por vezes uma ou outra onda traiçoeira levantava-o, a ele e ao seu cavalo.

Viu passar os soldados de infantaria, levando um saco de pólvora sobre o capacete e com os arcabuzes no ar, os carroções, carregados de pólvora, projécteis e morrões, as colubrinas, as duplas-colubrinas, os falcões, os falconetes, as serpentinas, as meias-serpentinas, as duplas-serpentinas, as bombardas, as duplas-bombardas, os canhões, os meios-canhões, e os sacres, pequenas peças de campanha montadas sobre trens dianteiros e que podiam manobrar a pleno galope, em tudo semelhantes às que foram chamadas Pistolas do imperador. Por fim, protegendo a retaguarda, os lanceiros e os cavaleiros da Flandres.

Ulenspiegel procurou uma bebida reconfortante. O archeiro Riesencraft, um alemão, homem magro, cruel e gigantesco, roncava a seu lado montado no seu cavalo, e de cada vez que respirava exalava um belo cheiro a vinho. Ulenspiegel procurou o cantil que ele devia ter na garupa do cavalo, e encontrou-o, posto a tiracolo por uma meia correia, que cortou. Pegou no cantil e bebeu alegremente. Os archeiros que estavam mais perto pediam-lhe que partilhasse com eles, e Ulenspiegel assentiu.

Acabado o vinho, quis voltar a pôr o cantil no seu lugar. Quando levantava o braço para o passar, Riesencraft despertou. Pegando no cantil, quis beber, e, ao descobrir que estava vazio, foi dominado por uma grande cólera.

- Ladrão! - gritou. - Que fizeste do meu vinho?

- Bebi-o - respondeu Ulenspiegel. -'Entre cavaleiros encharcados, o vinho de um é o vinho de todos. Mau é o ladrão.

- Amanhã cortar-te-ei em bocados, em campo fechado- ameaçou Riesencraft.

- Cortar-nos-emos - respondeu Ulenspiegel - cabeças, braços, pernas e tudo. Mas diz-me, estás com uma tromba tão azeda, não terás prisão de ventre?

- Tenho - admitiu Riesencraft.

- Nesse caso, é preciso purgar-te, e não bater-te. Ficou combinado entre eles que se encontrariam no dia seguinte, equipados e montados segundo a sua fantasia, e que se retalhariam um ao outro com um bom estoque.

Ulenspiegel pediu para substituir o estoque por um pau, o que foi consentido.

Entretanto, todos os soldados tinham passado o rio e dispunham-se em boa ordem à voz dos seus capitães, e as dez fileiras de archeiros passaram igualmente.

E o "Calado" disse:

- Marchemos sobre Liége!

Ulenspiegel ficou contente, e como todos os flamengos, gritou:

- Longa vida a d'Orange! Marchemos sobre Liége! Os estrangeiros, no entanto, e principalmente os alemães, disseram que estavam demasiado encharcados para marchar. Foi em vão que o príncipe lhes garantiu que iam para uma vitória certa, numa cidade amiga. Não quiseram ouvir razões, e, tendo acendido grandes fogueiras, sentaram-se diante delas, com os cavalos desaparelhados.

O ataque à cidade foi adiado para o dia seguinte. D'Alba, espantado pela ousada passagem, soube com alegria, pelos seus espiões, que os soldados do "Calado" não estavam ainda prontos para o ataque.

Então ameaçou Liége e toda a região circundante de pôr tudo a ferro e fogo se os amigos do príncipe tentassem qualquer manobra. Gérard de Groesbek, o bandido episcopal, mandou armar os seus soldados contra o príncipe, que chegou demasiado tarde por culpa dos alemães, que tiveram medo de um pouco de água nas calças.

 

Tendo Ulenspiegel e Riesencraft escolhido os seus segundos, estes disseram que os dois soldados se bateriam a pé até que um deles fosse morto, se o vencedor o desejasse, pois tais tinham sido as condições de Riesencraft. O local de combate era uma pequena clareira. Logo de manhã, Riesencraft envergou a sua indumentária de archeiro. Pôs na cabeça a celada de gorjal, sem viseira, e uma camisa de malha de ferro, sem mangas. Uma outra camisa que tinha em farrapos, colocou-a sob a celada, para, em caso de necessidade, a transformar em ligaduras. Muniu-se de uma besta de boa madeira das Ardenas, de um carcaz com trinta virotes, de uma adaga comprida, mas dispensou a espada de dois gumes, que é a espada de archeiro. Apresentou-se no campo montando o seu corcel, com sela de guerra e chanfro de plumas, todo coberto de ferro.

Ulenspiegel arranjou para si uma indumentária de fidalgo: o seu corcel era um burro, a sua sela a saia de uma rapariga da vida; o chanfro do burro era de vime, encimado por belas fitas ondulantes, e a sua couraça de toucinho, pois, segundo disse Ulenspiegel, o ferro era demasiado caro, e quanto ao cobre, com os canhões que naqueles tempos se faziam, não restava o suficiente para armar um coelho para a guerra. Na cabeça levava, em jeito de elmo, uma salada que os vermes ainda não tinham comido; a salada era encimada por uma bela pena de cisne, para, no caso de morrer, o fazer cantar. O seu estoque, rijo e leve, era um bom, comprido e grosso varapau de pinho, tendo numa das pontas uma vassoura feita de ramos da mesma árvore. Do lado esquerdo da sela pendia-lhe a faca, também de madeira, e do lado direito balançava-se a sua boa maça de armas, um pau encimado por um nabo. A sua couraça era feita de farrapos.

Quando apareceu assim armado no campo de combate, os segundos de Riesencraft rebentaram a rir, mas o archeiro permaneceu sombrio, de sobrolho carregado.

Os segundos de Ulenspiegel exigiram então aos segundos de Riesencraft que o alemão se despojasse das suas peças de malha de ferro, uma vez que Ulenspiegel estava coberto apenas de farrapos. Riesencraft consentiu. Os segundos de Riesencraft perguntaram então aos de Ulenspiegel por que motivo resolvera ele apresentar-se armado com uma vassoura.

- Concordaram com o pau, e não me proibiram de enfeitá-lo com alguns ramos - foi a resposta.

- Faz como quiseres - disseram então os quatro segundos.

Riesencraft, sem dizer palavra, cortava com pequenos golpes do seu estoque as magras ervas da clareira.

Os segundos disseram-lhe que trocasse o seu estoque por uma vassoura, como Ulenspiegel.

Ao que ele respondeu:

- Se esse biltre escolheu de sua livre vontade uma arma tão pouco habitual, é porque se julga capaz de defender com ela a vida.

Ulenspiegel afirmou que desejava servir-se da sua vassoura e os quatro segundos concordaram em que estava tudo bem.

Estavam ambos diante um do outro, Riesencraft no seu cavalo de ferro, Ulenspiegel no seu burro protegido por toucinho.

Ulenspiegel avançou para o meio da clareira. Aí, empunhando a sua vassoura como se fosse uma lança, disse:

- Acho mais fedorentos do que a peste, a lepra e a morte, esses miseráveis querelentos que, num acampamento de soldados, bons companheiros, só pensam em passear por todo o lado as suas trombas azedas e as suas bocas babosas de cólera. Onde esses se encontram, o riso não ousa mostrar-se e as canções calam-se. Têm de estar sempre a resmungar ou a combater, introduzindo assim, ao lado do combate legítimo pela pátria, o combate singular, que é a ruína do exército e a alegria do inimigo. Riesencraft, aqui presente, matou por inocentes palavras vinte e um homens, sem que nunca tenha cometido em batalha ou escaramuça um acto de bravura, nem tenha merecido pela sua coragem a mais pequena recompensa. Ora, hoje estou disposto a escovar o couro pelado desse cão sarnoso.

Riesencraft respondeu:

- Esse bêbedo sonhou belas coisas sobre o "abuso dos combates singulares; pois hoje vou fender-lhe a cabeça, para mostrar a todos que lá dentro não tem senão palha.

Os segundos forçaram-nos a descer das respectivas montadas. Ao fazê-lo, Ulenspiegel deixou cair da cabeça a salada, que o asno comeu tranquilamente; o animal foi no entanto interrompido neste trabalho por um pontapé que lhe aplicou um dos segundos, para o obrigar a sair do campo de combate. O mesmo foi feito ao cavalo e os dois animais foram para outro lado pastar em boa companhia.

Então os segundos, uns empunhando vassouras - os de Ulenspiegel - os outros empunhando estoques - os de Riesencraft - deram sinal, assobiando, para o começo da luta.

Riesencraft e Ulenspiegel bateram-se furiosamente, o primeiro atacando com o seu estoque, o segundo defendendo-se com a sua vassoura. Riesencraft praguejava por todos os diabos, enquanto que Ulenspiegel fugia à sua frente, esquivando-se por toda a clareira, deitando a língua de fora e fazendo mil caretas a Riesencraft, que perdia o fôlego e esgrimia o estoque como um possesso. Ulenspiegel, sentindo-o perto, voltou-se subitamente e desferiu-lhe uma violentíssima pancada no nariz com o cabo da vassoura. Riesencraft caiu de braços e pernas abertos, como uma rã.

Ulenspiegel saltou para ele e varreu-lhe a cara sem piedade, dizendo:

- Pede perdão, ou faço-te engolir a minha vassoura! E continuava a esfregar-lhe a vassoura na cara, para gáudio dos presentes, repetindo:

- Pede perdão, ou obrigo-te a comê-la! Riesencraft, no entanto, não podia responder, pois tinha morrido de raiva.

- Deus-receba a tua alma, pobre furioso! - murmurou Ulenspiegel.

E afastou-se, melancólico.

 

Estava-se então nos fins de Outubro. O dinheiro faltava ao príncipe, e o seu exército tinha fome. Os soldados murmuravam. O "Calado" marchou para França e ofereceu batalha ao duque, que não a aceitou.

Partindo de Quesnoy-le-Comte para dirigir-se a Cambrésis, encontrou dez companhias de alemães, oito bandeiras de espanhóis e três esquadrões de cavalaria-ligeira, comandados por D. Ruffele Henricis, filho do duque, que estava no meio da batalha e gritava em espanhol:

- Mata! Mata! Nada de misericórdia! Viva o Papa!

D. Henricis estava nesse momento diante da companhia de arcabuzeiros de que Ulenspiegel fazia parte, e lançava-se sobre eles com os seus homens. Ulenspiegel disse ao sargento da sua secção:

- Vou cortar a língua a esse carrasco.

- Corta - disse o sargento.

E Ulenspiegel, com uma bala bem apontada, destroçou a língua e a maxila a D.' Ruffele Henricis, filho do duque.

Ulenspiegel abateu também "do seu cavalo o filho do marquês Delmares.

As oito bandeiras e os três esquadrões foram batidos. Após esta vitória, Ulenspiegel procurou Lamme no campo, mas não o encontrou.

- Ah! - exclamou. - Partiu, o meu amigo Lamme, o meu amigo gordo. No seu ardor guerreiro, esquecendo o peso da pança, quis sem dúvida correr atrás dos fugitivos espanhóis. Sem fôlego, deve ter caído no caminho, como um saco. E eles apanharam-no para pedir resgate de toucinho cristão. Meu amigo Lamme, onde estás tu, onde estás, meu amigo gordo?

Ulenspiegel procurou-o por todo o lado, e, não o encontrando, ficou muito triste.

 

Em Novembro, o mês das tempestades de neve, o "Calado" mandou chamar Ulenspiegel. O príncipe mordiscava o cordão da sua camisa de malha de ferro.

- Escuta e compreende - disse. E Ulenspiegel respondeu:

- Os meus ouvidos são portas de prisão; entra-se facilmente, mas sair já é outra história.

O "Calado" disse:

- Vai por Namur, Flandres, Hainaut, Brabante-Sul, Anvers, Brabante-Norte, Gueldre, Overijessel, Holanda, anunciando por todo o lado que se a fortuna trai em terra a nossa causa santa e cristã, a luta continuará no mar contra todas as iníquas violências. Deus dirige em toda a graça este assunto, seja no bem, seja no mal. Chegado a Amsterdão, darás contas a Paul Buys, meu fiel, do que tiveres feito. Aqui tens três passes assinados pelo próprio d'Alba e encontrados em cadáveres em Quesnoy-le-Comte. O meu secretário preencheu-os. Talvez encontres pelo caminho algum bom companheiro em quem possas confiar. Só são bons os que ao canto da cotovia respondem com o clarim guerreiro do galo. Toma cinquenta florins. Serás valoroso e fiel.

- As cinzas batem no meu coração - respondeu Ulenspiegel.

E partiu.

 

Tinha, por ordem do rei e do duque, autorização para usar todas as armas, segundo a sua conveniência. Escolheu o seu bom arcabuz, cartuchos e pólvora seca. Depois, cobrindo-se com um manto esfarrapado, envergando um velho gibão e uns calções fendidos, à espanhola, levando na cabeça o chapéu de pluma ao vento e à cintura a espada, deixou o exército junto da fronteira de França e marchou para Maestricht.

As carriças, mensageiras do frio, voavam em torno das casas, pedindo asilo. Ao terceiro dia nevou.

Várias vezes, pelo caminho, Ulenspiegel teve de mostrar o seu salvo-conduto. Deixaram-no passar. Dirigiu-se a Liége.

Acabava de entrar numa planície; um vento forte arrancava-lhe os flocos de neve da cara. À sua frente via estender-se a planura, toda branca, e os flocos levados em turbilhão pelas rajadas de vento. Três lobos seguiram-no, mas ele abateu um com o seu arcabuz e os outros dois precipitaram-se sobre o ferido e fugiram para o bosque, levando cada um na boca um pedaço arrancado ao cadáver.

Ulenspiegel, livre de aqueles inimigos, olhou em torno, para se certificar de que não havia por perto qualquer outra alcateia, e viu no extremo da planície uns pontos que pareciam estátuas cinzentas movendo-se entre os turbilhões de neve e vento, e atrás as formas negras de soldados a cavalo. Trepou a uma árvore. O vento levou até ele o rumor distante de gemidos..

- São talvez peregrinos vestidos de branco - disse para si mesmo. - Quase não vejo os seus corpos sobre a neve.

Pouco depois distinguiu alguns homens que corriam nus, e viu dois cavaleiros, vestidos de negro, que, sobre os seus grandes corcéis, empurravam à sua frente, com grandes pancadas de chicote, o triste rebanho. Ulenspiegel armou o seu arcabuz. Viu entre aqueles desgraçados jovens e velhos nus, trémulos, transidos, enregelados, correndo para fugir aos chicotes dos dois soldados, que, estando bem vestidos, corados de vinho e de boa alimentação, se divertiam a fustigar-lhes os corpos nus para os obrigar a correr mais depressa. - Terão vingança, cinzas de Claes - murmurou Ulenspiegel.

E matou com uma bala na cara um dos cavaleiros, que caiu do seu cavalo. O outro, sem saber de onde partira aquela bala imprevista, encheu-se de medo. Julgando que havia no bosque inimigos escondidos, quis fugir, levando consigo o cavalo do companheiro.

No instante em que, tendo segurado as rédeas, desmontava para despojar o morto, foi atingido por outra bala no pescoço e caiu morto.

Os homens nus, julgando que um anjo do céu, bom arcabuzeiro, vinha defendê-los, caíram de joelhos. Ulenspiegel desceu então da árvore e foi reconhecido pelos do grupo que tinham, como ele, servido nos exércitos do príncipe. Disseram-lhe:

- Ulenspiegel, somos franceses, enviados neste miserável estado a Maestricht, onde está o duque, para lá sermos tratados como prisioneiros rebeldes, sem podermos pagar resgate, e já condenados a sermos torturados, esquartelados, ou a remar como assassinos e ladrões nas galés do rei.

Ulenspiegel, dando o seu "opperst-kleed" ao mais velho do grupo, respondeu:

- Venham, levá-los-ei até Méziéres, mas primeiro é preciso despojar esses dois soldados e levar-lhes os cavalos.

Os gibões, calções, botas, capacetes e couraças dos soldados foram divididos entre os mais fracos e doentes, e Ulenspiegel disse:

- Vamos para o bosque, onde o ar é mais espesso e mais quente. Corramos, irmãos.

Subitamente um homem caiu e disse:

- Tenho fome e frio, e vou para junto de Deus testemunhar que o Papa é o Anticristo na terra.

E morreu. E os outros quiseram levá-lo, a fim de lhe darem sepultura cristã.

Quando caminhavam por uma estrada, avistaram um camponês que conduzia um carro coberto por uma lona. Vendo os homens nus, teve pena deles e mandou-os subir para o carro, onde encontraram feno para se deitarem e sacos vazios para se cobrirem. E sentindo-se quentes, agradeceram a Deus. Ulenspiegel, cavalgando ao lado do carro num dos cavalos, levava o outro pela brida.

Em Méziéres apearam-se; aí foi-lhes dada boa sopa, cerveja, pão, queijo e carne. Foram albergados, vestidos e armados a expensas da comunidade. E todos deram o abraço da bênção a Ulenspiegel, que os aceitou alegremente.

Ulenspiegel vendeu os cavalos dos soldados por quarenta e oito florins, dos quais deu trinta aos franceses. Caminhando solitário, dizia para si mesmo: "Vou através de ruínas, sangue e lágrimas, sem nada encontrar. Os diabos mentiram-me, sem dúvida. Onde está Lamme! Onde está Nele? Onde estão os sete?" E ouviu uma voz, como um sopro, dizendo-lhe: - Entre a morte, ruínas e lágrimas, procura. E ele partiu.

 

Ulenspiegel chegou a Namur em Março. Aí encontrou Lamme, que, tendo-se apaixonado pelo peixe do Mosa, e sobretudo pelas trutas, alugara um barco e pescava no rio com autorização da comuna. Mas pagara cinquenta florins à corporação dos peixeiros.

Vendia e comia os seus peixes, e ganhava com esse ofício uma barriga ainda maior e um pequeno saco de carolus.

Vendo o seu amigo e companheiro caminhar pela margem do Mosa para entrar na cidade, ficou muito contente, chegou o seu barco a terra, trepou para a margem, não sem resfolegar, e aproximou-se de Ulenspiegel. Ofegando, disse:

- Eis-te finalmente, meu filho, filho de Deus, pois o meu arco pançal poderia albergar dois como tu. Aonde vais?

Que desejas? Não estás morto, pois não? Viste a minha mulher? Comerás peixe do Mosa, o melhor que existe neste baixo mundo; nestas regiões fazem melhos de chupar os dedos até aos ombros. Estás soberbo, tendo nas faces o tisnado das batalhas. Eis-te finalmente, meu filho, meu amigo Ulenspiegel, o alegre vagabundo. E, falando mais baixo, acrescentou:

- Quantos espanhóis mataste? Não viste a minha mulher nos seus carroções carregados de bagagens? E o vinho do Mosa, tão bom para os que sofrem de prisão de ventre, bebê-lo-ás comigo. Estás ferido, meu filho? Ficas então aqui, fresco, bem disposto, alerta como uma águia jovem. E as enguias, prová-las-ás também. Não têm o menor sabor a pântano. Beija-me, meu rapaz. Grande Deus, como estou contente!

E Lamme dançava, saltava, resfolegava e obrigava Ulenspiegel a dançar.

Depois dirigiram-se a Namur. À porta da cidade, Ulenspiegel mostrou os passes assinados pelo duque. E Lamme conduziu-o a sua casa.

Enquanto preparava a refeição, obrigou-o a contar-lhe todas as suas aventuras e narrou-lhe as dele, tendo, disse, deixado o exército para seguir uma rapariga que julgara ser a sua mulher. Nessa perseguição chegara até Namur. E perguntava, incessantemente:

- Não a viste?

- Vi outras muito belas - respondeu Ulenspiegel. - E particularmente nesta cidade, onde todas são amorosas.

- De facto - disse Lamme - já me quiseram possuir mil vezes, mas eu permaneci fiel, pois o meu coração está prenhe de uma só recordação.

- Como a tua pança de numerosas comidas - respondeu Ulenspiegel.

- Quando me sinto triste, tenho de comer - murmurou Lamme.

- O teu desgosto é sem trégua? - perguntou Ulenspiegel.

- Infelizmente, sim! - respondeu Lamme. E, tirando uma truta da caçarola, disse: - Vê como é bela e rija. Esta carne é rosada como a da minha mulher. Amanhã deixaremos Namur. Tenho um saco cheio de florins, compraremos dois burros e iremos cavalgando assim até ao país de Flandres.

- Vais perder a gordura - comentou Ulenspiegel.

- O meu coração chama-me a Damme, que foi o lugar onde ela me amou mais; talvez lá tenha voltado.

- Partiremos amanhã - respondeu Ulenspiegel - uma vez que assim queres.

E de facto partiram, cada um montado no seu asno, e cavalgaram lado a lado.

 

Soprava um vento frio. O sol, claro como a juventude de manhã, tornou-se cinzento como um velho. Começou a cair uma chuva de granizo.

Quando a chuva acabou, Ulenspiegel sacudiu-se, dizendo:

- O céu, que bebe tantos vapores, tem de aliviar-se de vez em quando.

E então outra chuvada, ainda mais forte do que a primeira, abateu-se sobre os dois companheiros, Lamme queixava-se:

- Já estávamos bem lavados, esta não fazia falta! O sol reapareceu e os dois amigos seguiram viagem,

mais alegres.

Caiu uma terceira chuvada de granizo, tão forte que cortava, como uma faca, os ramos secos das árvores.

- Ah! um tecto! - dizia Lamme. - Minha pobre mulher! Onde estão vocês, um bom fogo, doces beijos

e sopas gordas? E chorava... Ulenspiegel, no entanto, dizia-lhe:

- Não nos lamentemos. Não é de nós mesmos que nos vêm todos os males? Chove sobre os nossos ombros, mas esta chuva de Dezembro fará nascer os trevos de Maio. E as vacas mugirão de contentamento. Estamos sem abrigo, mas porque não nos casámos? Quero dizer, eu com a pequena Nele, tão bela e tão boa, que me faria agora um bom guisado de carne com favas. Temos sede, apesar da água que cai, mas porque não nos fizemos operários constantes de um só ofício? Os que chegam a mestres têm nas suas caves barris cheios de bom vinho.

As cinzas de Claes bateram no seu peito, o céu fez-se claro, o sol brilhou e Ulenspiegel disse:

- Senhor sol, graças vos sejam dadas, aqueceis-me os rins; cinzas de Claes, aqueceis-me o coração, e dizeis-nos que são abençoados os que vagueiam pela libertação da terra dos pais.

- Tenho fome - disse Lamme.

 

Entraram num albergue onde lhes serviram a ceia numa grande sala. Ulenspiegel, abrindo as janelas, viu um jardim por onde se passeava uma bonita jovem, bem de carnes, de seios redondos, cabeleira dourada e vestindo apenas uma bata, um casaquinho de tecido branco e um avental de pano preto.

Camisas e outras roupas de mulher branqueavam nas cordas; a jovem, sempre voltada para Ulenspiegel, tirava as camisas das cordas, voltava a pô-las no mesmo sítio, sorria, e sem tirar os olhos dele, sentava-se num monte de roupas, balançando os pés.

Muito perto, Ulenspiegel ouvia cantar um galo e via uma mulher que brincava com uma criança, de que virava a cara para um homem que estava de pé, dizendo:

- Boelkin, olha para o papá. E a criança chorava.

A rapariga bonita continuava a passear-se pelo jardim, tirando e pondo roupa.

- É uma espia - disse Lamme.

A rapariga cobria os olhos com as mãos, espreitava por entre os dedos e sorria para Ulenspiegel.

Depois, com as mãos, levantava os seios e voltava a deixá-los cair, continuando a balançar os pés, sentada no monte de roupa. Ulenspiegel via-lhe os braços nus até aos cotovelos, brancos e redondos sob o sol pálido. A rapariga sorria sempre. Ulenspiegel saiu para ir ter com ela. Lamme seguiu-o. Junto à sebe do jardim, procurou uma passagem por onde pudesse entrar, mas não encontrou nenhuma.

A rapariga, vendo isto, olhava e sorria por entre os dedos.

Ulenspiegel tentava passar através da vedação, enquanto que Lamme o retinha, dizendo-lhe:

- Não vás, é uma espia, seremos queimados: Depois a rapariga voltou a passear-se pelo jardim, cobrindo o rosto com o avental e espreitando pelos buracos, para ver se o seu amigo de acaso chegava ou não. Ulenspiegel ia saltar por cima da sebe, mas foi impedido de fazê-lo por Lamme, que, agarrando-lhe um pé, o fez cair dizendo:

- Corda, gládio e forca, é uma espia, não vás lá. Sentado por terra, Ulenspiegel debatia-se. A rapariga, esticando a cabeça por cima da sebe, gritou:

- Adeus, senhor, que o Amor tenha pendente vossa longanimidade.

E Ulenspiegel ouviu uma gargalhada trocista.

- Ah! - exclamou - soa aos meus ouvidos como um feixe de alfinetes!

Depois uma porta fechou-se, ruidosamente.

E ele ficou melancólico.

Lamme disse-lhe, continuando a segurá-lo:

- Enumeras os doces tesouros de beleza assim perdidos para tua vergonha. É uma espia. Quando cais, cais bem. Vou ficar tonto à força de rir.

Ulenspiegel não disse palavra, e cada um deles montou o seu burro.

 

Avançavam, cada um escarranchado em seu burro.

Lamme, ruminando a sua última refeição, aspirava alegremente o ar fresco. Subitamente, Ulenspiegel aplicou-lhe uma chicotada no traseiro, que transbordava da sela.

- Que é lá isso? - gritou Lamme, magoado.

- O quê?

- Essa chicotada.

- Que chicotada?

- A que tu me deste.

- Do lado esquerdo?

- Sim, do lado esquerdo e no meu traseiro. Porque o fizeste, patife escandaloso?

- Por ignorância. Sei muito bem o que é um chicote, e também muito bem o que é um traseiro direito numa sela. Ora, ao ver esse, tão grande, inchado, estendido e saindo da sela, disse para mim mesmo: Uma vez que não se pode beliscá-lo com os dedos, também não se pode bater-lhe com um chicote. Enganei-me.

Lamme sorriu, e Ulenspiegel continuou nestes termos:

- Mas eu não sou o único neste mundo a pecar por ignorância, e mais de um mestre ostentando a sua banha sobre a sela de um asno teria de ceder-me pontos. Se o meu chicote pecou em relação ao teu traseiro, tu pecaste muito mais em relação às minhas pernas, impedindo-as de correr atrás de uma donzela que me namorava do seu jardim.

- Pasto de corvos! - exclamou Lamme. - Foi então uma vingança?

- Muito pequena - respondeu Ulenspiegel.

 

Em Damme, Nele, a triste, vivia solitária junto de Katheline, que chamava de amor o diabo frio que não vinha.

- Ah! - dizia ela - tu és rico, Hanske, meu pequeno, e poderias trazer-me os setecentos carolus. Então Soetkin viva regressaria do limbo à terra e Claes rir-se-ia no céu; podes bem fazê-lo. Afastem o fogo, a alma quer sair, façam um buraco, a alma quer sair.

E apontava continuamente para o lugar onde tinham estado as estopas.

Katheline era muito pobre, mas os vizinhos ajudavam-na com pão, favas e carne, segundo as suas posses. A comuna dava-lhe algum dinheiro. E Nele cosia vestidos para as ricas burguesas, ia a casa delas engomar-lhes as roupas, e ganhava assim um florim por semana.

E Katheline dizia sempre:

- Façam um buraco, tirem-me a minha alma. Ela bate para sair. Ele devolverá os setecentos carolus.

E Nele chorava ao ouvi-la.

 

Entretanto Ulenspiegel e Lamme, munidos dos seus passes entraram num pequeno albergue encostado aos rochedos do Sambre, que em alguns locais estão cobertos de árvores. E na tabuleta estava escrito: "Chez Marlaire".

Tendo bebido mais de uma jarra de vinho do Mosa à maneira da Borgonha e comido vários peixes de escabeche, conversaram com o estalajadeiro, papista dos quatro costados, mas palrador como uma coruja, por causa do vinho que tinha bebido, e que estava sempre a piscar maliciosamente um olho: Ulenspiegel, adivinhando sob aquele piscar de olho algum mistério, fazia-o beber mais e mais, a tal ponto que o estalajadeiro começou a dançar e a rir. Depois, voltando à mesa, disse:

- Bons católicos, bebo à vossa.

- À tua - responderam Lamme e Ulenspiegel.

- Pela extinção de toda a peste de rebelião e de heresia.

- Bebemos - responderam os dois amigos, que enchiam constantemente o copo do estalajadeiro, que no entanto nunca o tinha cheio.

- Vocês são bons - dizia o homem. - Bebo as vossas generalidades, ganho sobre o vinho bebido. Onde estão os vossos passes?

- Aqui - respondeu Ulenspiegel, mostrando-lhos.

- Assinados pelo duque - disse o estalajadeiro. - Bebo pelo duque.

- Pelo duque bebemos - concordaram Lamme e Ulenspiegel.

E o estalajadeiro continuou:

- Como é que se apanham ratos, ratazanas e arganazes?

Com ratoeiras e armadilhas. Quem é o arganaz? É o grande herético, vermelho como o fogo do inferno. Deus está connosco. Estão a chegar, eh! eh! Dá-me de beber. Cozo, ardo. Dá-me de beber! Três belos pregadorezinhos reformistas... Digo pregadorezinhos... belos, fortes soldados, carvalhos... Dá-me de beber! Vocês não vão ao campo do grande herético! Tenho passes assinados por ele... Verão como eles trabalham.

- Iremos ao campo - respondeu Ulenspiegel.

- Irão lá pregar, e de noite, se a ocasião se apresentar- e o estalajadeiro fez assobiando o gesto de um homem degolando outro - Vento de Aço impedirá o melro de Nassau de continuar a cantar. E esta, eh! Dá-me de beber!

- És um homem alegre - disse-lhe Ulenspiegel - apesar de seres casado.

- Não sou, nem nunca fui - respondeu o homem. - Tenho os segredos dos príncipes. Dá-me de beber! Uma mulher roubar-mos-ia de debaixo da almofada, para me fazer enforcar e tornar-se viúva antes do dia marcado pela Natureza. Viva Deus! estão a chegar... Onde estão os novos passes? Sobre o meu coração de cristão. Bebamos! Estão aqui perto, a trezentos passos, no caminho, perto de Marche-les-Dames. Estão a vê-los? Bebamos!

- Bebe - disse-lhe Ulenspiegel - bebe. Eu já bebi ao rei, ao duque, aos pregadores, a Vento de Aço. Bebo a ti, a mim, ao vinho e à garrafa. Mas tu não bebes. - E a cada saúde, Ulenspiegel enchia-lhe o copo, e o estalajadeiro despejava-o.

Ulenspiegel ficou a contemplá-lo durante alguns instantes. Depois, levantando-se, disse:

- Dorme. Vamos, Lamme.

E, quando já estavam fora, acrescentou:

- Não há mulher para nos trair... A noite vai cair...

Ouviste o que dizia esse patife, e sabes o que são os três pregadores?

- Sim - respondeu Lamme.

- Sabes que vêm de Marche-les-Dames ao longo do Mosa, e que será bom esperá-los no caminho antes que sopre o Vento de Aço.

- Sim.

- É preciso salvar a vida do príncipe.

- Sim.

- Toma - disse Ulenspiegel - pega no meu arcabuz e esconde-te naqueles arbustos, entre os rochedos; carrega-o com duas balas e dispara quando eu crocitar como um corvo.

- Está bem - assentiu Lamme.

E desapareceu entre os arbustos. Pouco depois, Ulenspiegel ouviu o mecanismo do arcabuz ao ser armado.

- Estás a vê-los? - perguntou.

- Sim - respondeu Lamme. - São três, caminhando como soldados, e um deles ultrapassa os outros da altura da cabeça.

Ulenspiegel sentou-se à beira do caminho, com as pernas para a frente, desfiando um rosário e murmurando orações, como fazem os mendigos. Tinha o barrete entre os joelhos.

Quando os três pregadores passaram, estendeu-lhes o barrete, mas eles nada lhe deram.

- Meus bons senhores, não recusem um patard a um pobre trabalhador que há poucos dias quebrou os rins ao cair numa mina. São duros, nesta região, e nada quiseram dar-me para aliviar a minha miséria. Ah! dêem-me um patard e orarei por vós. E Deus terá em alegria, durante toda a vossa vida, vossas magnanimidades.

- Meu filho - respondeu um dos pregadores, homem robusto - não haverá alegria para nós neste mundo enquanto nele reinarem o Papa e a Inquisição.

Ulenspiegel lançou um suspiro, dizendo:

- Que dizem, senhores? Falem mais baixo, se apraz a vossas graças. Mas dêem-me um patard.

- Meu filho - respondeu outro dos pregadores, de cara belicosa - nós, pobres mártires, só temos o dinheiro absolutamente necessário à nossa viagem.

Ulenspiegel pôs-se de joelhos.

- Abençoai-me - pediu.

Os três pregadores estenderam a mão por cima da cabeça de Ulenspiegel, sem devoção.

Notando que aqueles três homens eram magros, e que todavia tinham umas grandes barrigas, Ulenspiegel ergueu-se, fingiu cair e, ao bater com a cabeça na barriga do pregador mais alto, ouviu o alegre tilintar de moedas.

Então, endireitando-se e empunhando a sua faca, disse:

- Meus bons pais, faz fresco, e eu estou pouco vestido, vocês estão-no em excesso. Dêem-me um pouco da vossa lã, para que eu possa talhar um manto. Sou Esfarrapado! Vivam os Esfarrapados!

Os três pregadores, espantados, exclamaram:

- Como sabe ele a notícia? Fomos traídos. Mata! Viva a missa!

E tiraram de sob os mantos belas adagas bem afiadas.

Ulenspiegel, no entanto, sem os esperar, retrocedeu para junto dos arbustos onde Lamme estava escondido. Considerando que os pregadores estavam ao alcance do arcabuz, disse:

- Corvos, negros corvos, o Vento de Chumbo vai soprar. Canto à vossa refeição.

E crocitou.

Um tiro de arcabuz, partindo dos arbustos, derrubou de rosto contra a terra o mais alto dos pregadores, seguido por outro que matou o segundo.

E Ulenspiegel viu entre os arbustos a bela carantonha de Lamme, que levantava o braço para recarregar apressadamente o arcabuz.

E um fumo azulado pairava sobre os arbustos.

O terceiro pregador, furioso de máscula raiva, queria à viva força espetar Ulenspiegel, que lhe dizia:

- Vento de Aço ou Vento de Chumbo, vais passar deste mundo para o outro, infame artesão de crimes!

E atacava-o e defendia-se bravamente.

Estavam ambos de pé no caminho, frente a frente, desferindo e parando golpes. Ulenspiegel estava coberto de sangue, pois o seu adversário, hábil soldado, já o ferira numa perna e na cabeça. Mas atacava e defendia-se como um leão. O sangue que lhe escorria da cabeça cegava-o, e, rompendo contacto com dois saltos, limpou-o com uma mão, sentindo-se enfraquecer. E seria morto se Lamme não disparasse contra o pregador, estendendo-o na estrada.

E Ulenspiegel viu-o e ouviu-o vomitar blasfémias, sangue e escuma de morte.

E mais fumo azulado pairava sobre os arbustos, entre os quais Lamme mostrou nesse instante a sua boa e gorda carantonha.

- Acabou-se? - perguntou.

- Sim, meu filho - respondeu Ulenspiegel. - Mas anda...

Lamme, saindo do seu esconderijo, viu Ulenspiegel todo coberto de sangue. Correndo então como um veado, apesar da sua grande barriga, precipitou-se para o amigo, que estava sentado no chão, junto dos homens mortos.

- Está ferido! - gritou. - O meu querido amigo, ferido por esse malandro assassino.

E, com uma pancada do calcanhar, partiu os dentes ao pregador mais próximo.

- Não respondes, Ulenspiegel? Vais morrer meu filho?

Onde está esse bálsamo? Ah! no fundo do bornal, debaixo dos salpicões. Ulenspiegel, não me ouves? Ah! não tenho água tépida para te lavar a ferida, nem meio de consegui-la. Mas a água do Sambre bastará. Fala comigo, meu amigo. Não estás muito ferido, pois não? Um pouco de água, bem fria, não é verdade? Desperta! Sou eu, meu filho, o teu amigo. Estão todos mortos. Ligaduras! Ligaduras para lhe tapar as feridas. Não tenho. A minha camisa serve. - E Lamme despiu-se, continuando o seu monólogo: - Em pedaços, a camisa. O sangue estanca. O meu amigo não morrerá.

"Ah! faz frio, assim de costas nuas com este vento. Vistamo-nos. Não morrerá, o meu amigo. Sou eu, Ulenspiegel, eu, o teu amigo Lamme. Sorri. Vou despojar os assassinos. Têm panças de florins. Tripas douradas, carolus, florins, daelders, patards e cartas! Estamos ricos. Mais de trezentos carolus a dividir pelos dois. Tiremos as armas e o dinheiro. O Vento de Aço não soará ainda para o senhor.

Ulenspiegel, batendo os dentes por causa do frio, levantou-se.

- Eis-te de pé! - exclamou Lamme.

- É a força do bálsamo - respondeu Ulenspiegel.

- Bálsamo da valentia - afirmou Lamme.

Depois, pegando um a um nos corpos dos pregadores, atirou-os para um buraco, entre os rochedos, deixando-lhes as suas armas e as suas vestes, com excepção dos mantos.

E em torno deles, no céu, rodopiavam os corvos, à espera da sua refeição.

E o Sambre corria como um rio de aço sob o céu cinzento.

Todavia, os dois amigos estavam preocupados. Lamme disse:

- Prefiro matar uma galinha a matar um homem. E voltaram a montar nos seus burros.

Às portas de Huy, o sangue de Ulenspiegel continuava a correr; fingiram zangar-se, desceram dos burros e esgrimiram as suas facas, aparentemente com muita crueldade; depois, tendo cessado o combate, voltaram a montar e entraram em Huy, mostrando os passes às portas da cidade.

As mulheres vendo Ulenspiegel ferido e ensanguentado sobre o seu burro, e Lamme com ares de vencedor, olhavam com piedade para o primeiro e mostravam os punhos ao segundo, dizendo:

- Lá vai o patife que feriu o seu amigo.

Lamme, inquieto, procurava entre elas, tentando encontrar a sua mulher. Não a encontrou, e ficou muito triste.

 

- Para onde vamos? - perguntou Lamme.

- Para Maestricht.

- Mas, meu filho, diz-se que o exército do duque está todo em torno da cidade, e que ele próprio se encontra lá. Os nossos passes não bastarão. Mesmo que os soldados espanhóis os tomem por bons, seremos retidos na cidade e interrogados. Entretanto eles saberão da morte dos pregadores e nós teremos deixado de viver.

- Os corvos, os mochos e os abutres não tardarão em acabar-lhes com a carne - respondeu Ulenspiegel. - Já neste momento devem estar irreconhecíveis.

Quanto aos nossos passes, talvez sejam bons, mas se eles sabem dessas mortes, seremos, como há pouco dizias, capturados. É no entanto preciso que vamos a Maestricht, passando por Landen.

- Enforcar-nos-ão - disse Lamme.

- Passaremos - afirmou Ulenspiegel. Conversando deste modo, chegaram ao albergue da Coruja, onde encontraram boa comida, boa cama e feno para os seus burros.

No dia seguinte, puseram-se a caminho de Landen.

Tendo chegado a uma grande quinta perto da cidade, Ulenspiegel assobiou como a cotovia, e no mesmo instante respondeu-lhe de dentro da casa o clarim guerreiro do galo. Pouco depois aparecia à porta um homem de bom aspecto, que lhes disse:

- Amigos, vivam os Esfarrapados! Entrem.

- Quem é esse? - perguntou Lamme.

- Thomas Utenhove, o valente reformista; os seus trabalhadores e trabalhadoras lutam como ele pela livre consciência.

- São os enviados do príncipe - disse-lhes então Utenhove. - Comam e bebam.

E o presunto e os chouriços crepitavam na frigideira, e o vinho escorria para os copos e enchia-os. Lamme bebia como areia seca, e comia bem.

Os homens e as mulheres da quinta iam à vez espreitar pela porta entreaberta, para vê-los dar trabalho às maxilas. E os homens, invejosos, diziam que saberiam fazê-lo tão bem como eles.

No fim da refeição, Thomas Utenhove disse:

- Cem camponeses partirão de aqui esta semana, sob o pretexto de irem trabalhar nos diques, em Bruges e nos arredores. Viajarão em grupos de cinco e seis, e por caminhos diferentes. Em Bruges encontrarão barcos que os levarão a Emden.

- Irão providos de armas e dinheiro? - perguntou Ulenspiegel.

- Cada um levará dez florins e grandes facas.

- Deus e o príncipe recompensar-te-ão - disse Ulenspiegel.

- Não trabalho pela recompensa - respondeu Thomas Utenhove.

- Como consegue, senhor - perguntou Lamme, mordendo um grande chouriço de sangue - obter um chouriço tão perfumado, tão suculento e de gordura tão fina?

- Deitamos-lhe canela e erva de gatos - respondeu o dono da casa. E, dirigindo-se a Ulenspiegel, perguntou : - Edzard, conde de Frise, continua a ser amigo do príncipe?

- Disfarça-o - respondeu Ulenspiegel - mas em Emden dá asilo aos seus navios. - E acrescentou: - Temos de ir a Maestricht.

- Não conseguirás lá chegar - afirmou o anfitrião. - O exército do duque está diante da cidade e nos seus arredores.

Depois, levando-o até ao sótão, mostrou-lhe ao longe os estandartes e pendões de cavaleiros e peões, que cavalgavam e marchavam pelo campo.

- Passarei através de tudo isso - disse Ulenspiegel - se tu, que és poderoso nesta região, me conseguires uma autorização para casar. Quanto à mulher, quero que seja bonita, doce e nova, e que queira desposar-me, senão para sempre, pelo menos por uma semana.

Lamme suspirava, dizendo:

- Não o faças, meu filho. Ela deixar-te-á sozinho, ardendo no fogo do amor. O teu leito, onde agora dormes tão sossegadamente, será para ti como um colchão de urzes, que te roubará o doce sono.

- Tomarei mulher - insistiu Ulenspiegel.

E Lamme, vendo que a mesa estava vazia, ficou muito triste. Todavia, tendo descoberto biscoitos numa caixa, pôs-se a mordiscá-los melancolicamente.

Ulenspiegel dizia a Thomas Utenhove:

- Pois bem, arranja-me uma mulher rica ou pobre. Vou com ela à igreja e faço o padre abençoar o casamento. E ele dar-nos-á um certificado de casamento, sem valor, pois será passado por um papista inquisidor; faremos estipular que somos todos bons cristãos, tendo confessado e comungado, vivendo apostolicamente segundo os preceitos da nossa santa mãe a Igreja romana, que queima os seus filhos, e chamando assim sobre nós as bênçãos do nosso santo pai o papa, dos exércitos celestes e terrestres, dos santos, dos deãos, dos curas, dos monges, dos soldados, dos assassinos e outros biltres. Munidos deste certificado, fazemos os preparativos para a habitual viagem de núpcias.

- Mas a mulher? - perguntou Thomas Utenhove.

- Encarregas-te tu de arranjá-la - respondeu Ulenspiegel. - Pego em dois dos teus carros, enfeito-os com arcos guarnecidos de ramos de pinheiro, de verdura e de flores de papel, meto dentro deles alguns homens que queres enviar ao príncipe...

- E a mulher? - voltou a perguntar Thomas Utenhove.

- Está aqui, sem dúvida - respondeu Ulenspiegel. E continuou: - Atrelo dois dos teus cavalos a um desses carros e os nossos burros ao outro. No primeiro carro vou eu e a minha mulher, o meu amigo Lamme, as testemunhas do casamento; no segundo, tocadores de tamborim, de pífaro, de "scalmeve". Depois, desfraldadas ao vento as alegres bandeiras do casamento, tocando, cantando, bebendo, passamos ao trote dos nossos cavalos pelo caminho que leva ao Galgen-Veld, o campo das forcas, ou à liberdade.

- Quero ajudar-te - respondeu Utenhove. – Mas as mulheres e raparigas quererão seguir os seus homens.

- Iremos à graça de Deus - disse uma bonita rapariga, metendo a cabeça pela porta entreaberta.

- Haverá, se necessário for, quatro carros - disse Thomas Utenhove. - Desse modo faremos passar mais de vinte e cinco homens.

- E o duque será enganado - respondeu Ulenspiegel.

- E a frota do príncipe passará a ser servida por mais alguns bons soldados - acrescentou Utenhove.

Mandando então tocar o sino para reunir os seus servidores, disse-lhes:

- Todos vocês que são da Zelândia, homens e mulheres, ouçam: Ulenspiegel o Flamengo, aqui presente, quer que passem para o exército do duque sob o disfarce de um casamento.

Os homens e as mulheres da Zelândia gritaram em coro:

- Perigo de morte! Queremos fazê-lo! E os homens diziam uns aos outros:

- Para nós é uma alegria trocar a terra da servidão pelo mar livre. Se Deus é a favor, quem será contra?

As mulheres e as raparigas diziam:

- Sigamos os nossos maridos e amigos. Somos da Zelândia, encontraremos lá abrigo.

Ulenspiegel avistou uma rapariga muito nova e bonita, e disse-lhe, brincando:

- Quero casar contigo.

Ela, todavia, corando, respondeu:

- E eu caso contigo, mas só na igreja. E as mulheres rindo, diziam:

- O seu coração voa para Hans Utenhove, o filho do "baes", que sem dúvida quererá partir com ela.

- Sim, quero - disse Hans.

- Podes ir - consentiu o pai.

Os homens vestiram as suas indumentárias de festa: gibão e calções de veludo, e o grande opperst-kleed' por cima; na cabeça puseram grandes chapéus, para se protegerem contra o sol e contra a chuva. As mulheres vestiam meias negras e calçavam sapatos enfeitados; na cabeça levavam grandes jóias douradas, à direita para as mulheres casadas, à esquerda para as raparigas; ao pescoço levavam o lenço branco, o peitilho bordado a ouro, escarlate e azul; as saias eram de lã escura, com grandes riscas de veludo da mesma cor.

Thomas Utenhove foi à igreja pedir ao padre que casasse imediatamente, por dois ryckdaelders que lhe meteu na mão, Thylbert, filho de Claes, chamado Ulenspiegel, e Tannekin Pieters, o que o cura aceitou fazer.

Ulenspiegel foi pois à igreja, seguido por todo o grupo, e diante do padre desposou Tannekin, tão bela e elegante, tão cheia de carnes que de boa vontade lhe teria mordido as faces como se fossem maçãs de amor. E disse-lho, não ousando fazê-lo pelo respeito que tinha pela sua doce beleza. Mas ela, zangada, respondeu-lhe:

- Deixe-me tranquila. Ali está Hans, que o olha com vontade de o matar.

E uma rapariga, ciumenta, comentou:

- Procura por outro lado. Não vês que ela tem medo do seu homem.

Lamme, esfregando as mãos, gritava:

- Não as terás a todas, patife. E estava muito contente.

Ulenspiegel, aceitando a situação com paciência, voltou à quinta com todo o grupo. E aí bebeu, cantou e esteve alegre, acamaradando com a rapariga ciumenta, com o que Hans ficou bastante satisfeito, mas não Tannekin, nem o noivo da rapariga.

Ao meio-dia, com um sol claro e um vento fresco, os carros partiram, verdejantes e floridos, com as alegres bandeiras abertas, ao som vivo dos tamborins, dos "scalmeves", dos pífaros e das cornetas.

No acampamento de d'Alba, a festa era outra. As vedetas e sentinelas avançadas, tendo dado o alarme, chegaram umas após outras, dizendo:

- O inimigo está próximo; ouvimos o ruído de tambores e de pífaros, e avistámos as bandeiras. É um forte destacamento de cavalaria que veio para nos atrair a qualquer emboscada. O grosso do exército está sem dúvida mais longe.

O duque mandou imediatamente avisar os mestres-de-campo, os coronéis e os capitães, dispôs o exército em ordem de batalha e enviou um destacamento para reconhecer o inimigo.

Subitamente apareceram quatro carros, avançando para os arcabuzeiros. Nos carros, os homens e as mulheres dançavam, as garrafas passavam de mão em mão, os pífaros tocavam alegremente, os "scalmeves", gemiam, os tambores batiam, as cornetas ressoavam.

Tendo o grupo feito um alto, o duque em pessoa acorreu ao ruído, e viu a jovem noiva num dos quatro carros; e Ulenspiegel, seu esposo, todo florido, ao lado dela, e todos os camponeses e camponesas que, tendo descido dos carros, dançavam e ofereciam de beber aos soldados.

D'Alba e os seus espantaram-se grandemente ante a simplicidade de aqueles camponeses, que dançavam e festejavam quando em torno deles tudo eram armas.

E os que estavam nos carros deram todo o seu vinho aos soldados, que por isso os aplaudiram e festejaram.

Faltando o vinho, todos voltaram aos carros e o cortejo pôs-se novamente em movimento, ao som dos tamborins e dos pífaros, sem que ninguém se opusesse.

E os soldados, satisfeitos, dispararam em sua honra uma descarga de arcabuzes.

E foi assim que entraram em Maestricht, onde Ulenspiegel se entendeu com os agentes reformistas para enviar, de barco, armas e munições à frota do "Calado".

E fizeram o mesmo em Landen.

E andavam assim por todo o lado, vestidos de trabalhadores.

O duque soube do estratagema, e houve quem fizesse uma canção, que lhe foi enviada, e cujo refrão dizia assim:

Duque de sangue, duque ingénuo, Viste a noiva?

E sempre que ele fazia uma falsa manobra, os soldados cantavam:

O duque enganou-se: Viu a noiva.

 

Entretanto, o rei Filipe andava ferozmente melancólico. No seu orgulho dolente, pedia a Deus que lhe desse poder para vencer a Inglaterra, para conquistar a França, para tomar Milão, Génova, Veneza, e, como grande dominador dos mares, reinar assim sobre toda a Europa.

Pensando neste triunfo, nunca se ria.

Tinha sempre frio: o vinho não o aquecia, assim como o fogo de madeiras odoríferas que ardia sempre na sala onde ele se encontrava. Aí, escrevia sem cessar, sentado no meio de tantas cartas que com elas encher-se-iam cem tonéis, e pensava no universal domínio do mundo, como o tinham exercido os imperadores de Roma, e no seu ódio ciumento contra o seu filho Carlos, desde que este quisera ir para os Países-Baixos, em vez do duque de Alba, certamente, pensava ele, para tentar tornar-se rei. E ao vê-lo feio, disforme, louco feroz e mau, odiava-o ainda mais. Mas nunca falava desse ódio.

Aqueles que serviam o rei Filipe e o seu filho Carlos não sabiam qual dos dois era mais de temer, se o filho ágil, assassino, rasgando com as unhas os seus servidores, se o pai cobarde e sonso, servindo-se dos outros para bater, e, como a hiena, vivendo de cadáveres.

Os servidores assustavam-se ao vê-los rondar um em torno do outro. E diziam que em breve haveria uma morte do Escurial.

Ora, souberam pouco depois que D. Carlos tinha sido preso por crime de alta traição. E souberam que um negro desgosto lhe roía a alma, que se ferira no rosto ao tentar passar por entre as grades da prisão, para fugir, e que Isabel da França, sua mãe, chorava sem cessar.

O rei Filipe, no entanto, não chorava.

Ouviram depois que D. Carlos comera figos verdes e que morrera no dia seguinte, como se tivesse adormecido. Os médicos disseram:

"Logo que comeu os figos, o coração deixou de bater, as funções da vida, tal como as quer a Natureza, foram interrompidas; deixou de poder cuspir, ou vomitar, ou fazer fosse o que fosse do seu corpo. Ao morrer, o ventre inchou-lhe."

O rei Filipe ouviu a missa dos mortos por D. Carlos, mandou-o enterrar na capela da sua real residência e colocar uma pedra sobre o seu corpo, mas não chorou.

E os servidores diziam, troçando do principesco epitáfio gravado na pedra do túmulo:

AQUI JAZ AQUELE QUE,

COMENDO FIGOS VERDES

MORREU SEM TER ESTADO DOENTE.

A qui jaze qui para desit verdad, Morio s'infirmidad.

E o rei Filipe olhou com olhos de luxúria para a princesa de Eboli, que era casada. Falou-lhe de amor, e ela cedeu.

Isabel da França, de quem se dizia que favorecera os desígnios de D. Carlos quanto aos Países-Baixos, tornou-se magra e dolente. E os cabelos caíam-lhe em grandes madeixas ao mesmo tempo. Vomitava muitas vezes, e as unhas dos pés e das mãos caíram-lhe. E ela morreu.

E Filipe não chorou.

Os cabelos do príncipe de Eboli caíram do mesmo modo. Tornou-se triste e estava sempre a queixar-se. Depois as unhas dos pés e das mãos caíram-lhe também.

E o rei Filipe mandou-o enterrar.

E pagou o luto à viúva, e não chorou.

 

Nesse tempo, algumas mulheres e raparigas de L-foram perguntar a Nele se ela queria ser a noiva de Maio e esconder-se entre os arbustos com o noivo que lhe arranjariam; pois, diziam as mulheres, não sem inveja, não havia um só jovem em Damme e nos arredores que não quisesse ser seu noivo, pois ela continuava bela, sensata e fresca: dom de bruxa, sem dúvida.

- Comadres - respondeu Nele - digam aos jovens que me procuram: o coração de Nele não está aqui, mas com aquele que vagueia para libertar a terra dos pais. E se sou fresca, como dizem, não é dom de bruxa, mas de saúde.

As comadres responderam:

- Katheline, no entanto, é suspeita.

- Não acreditem no que dizem os maus. Katheline não é bruxa. Os senhores da justiça queimaram-lhe estopas sobre a cabeça e Deus atingiu-a de loucura.

E Katheline, abanando a cabeça no canto onde estava agachada, dizia:

- Afastem o fogo, ele voltará, Hanske, meu pequeno. As comadres perguntaram quem era aquele Hanske, e Nele respondeu:

- É o filho de Claes, meu irmão de leite, que ela julga ter perdido desde que Deus a atingiu.

E as boas comadres deram patards de prata a Katheline. E alguns que eram novos, ela mostrava-os a alguém que ninguém via, dizendo:

- Sou rica, rica de dinheiro reluzente. Volta, Hanske, meu pequeno; pagarei os meus amores.

As comadres foram-se embora, e Nele ficou a chorar na choça solitária. Pensava em Ulenspiegel, vagueando por países distantes sem que ela pudesse segui-lo, e em Katheline, que gemia: "Afastem o fogo!", e levava muitas vezes as mãos ao peito, mostrando com isso que o fogo da loucura lhe queimava febrilmente a cabeça e o corpo.

Entretanto, o noivo e a noiva de Maio esconderam-se entre as ervas.

Aquele ou aquela que encontrasse um deles era, segundo o seu sexo e o da pessoa descoberta, o rei ou a rainha da festa.

Nele ouviu os gritos de alegria dos rapazes e das raparigas quando a noiva de Maio foi encontrada à beira de um valado, entre as altas ervas.

E chorou mais, ao pensar nos doces tempos em que a procuravam a ela e ao seu amigo Ulenspiegel.

 

Entretanto, Lamme e Ulenspiegel continuavam a cavalgar escarranchados nos seus burros.

- Ora escuta, Lamme - dizia Ulenspiegel. - Os nobres dos Países-Baixos, por inveja contra d'Orange, traíram a causa dos confederados, a santa aliança, valoroso compromisso assinado para o bem da terra dos pais. D'Egmont e de Horne foram traidores sem proveito para eles próprios; Brederode está morto, já não nos resta nesta guerra senão o pobre povo de Brabante e da Flandres, à espera de chefes leais para ir para a frente; e depois, meu filho, as ilhas, as ilhas de Zelândia, a Noord Hollande também, de que o príncipe é governador; e mais longe ainda, no mar, Edzard, conde de Emden e de Oost Frise.

- Ah! vejo-o claramente - exclamou Lamme. - Peregrinamos entre a corda, a roda e a fogueira, morrendo de fome, cheios de sede, sem a mínima esperança de repouso.

- Estamos só no princípio - respondeu Ulenspiegel. - Pensa que tudo isto é um prazer para nós, matando inimigos, troçando deles, tendo florins; bem lastrados de carne, de cerveja, de vinho. Que mais queres, saco de plumas? Queres vender os burros e comprar cavalos?

- Meu filho - disse Lamme - o trote de um cavalo é demasiado duro para um homem da minha corpulência.

- Sentar-te-ás na tua montada como fazem os camponeses, e ninguém troçará de ti, pois estás vestido como os camponeses e não usas espada, como eu, mas apenas um venábulo.

- Meu filho - perguntou Lamme - tens a certeza de que os nossos passes servirão nas cidades pequenas?

- Não tenho acaso o certificado do cura, com o grande selo de cera vermelha da igreja pendendo de duas caudas de pergaminho, e os nossos bilhetes de confissão? Os soldados e os esbirros do duque nada podem contra dois homens tão bem munidos. E os padre-nossos negros que temos para vender? Somos ambos cavaleiros, tu Flamengo, eu Alemão, viajando, por ordem expressa do duque, a fim de ganhar para a santa fé católica, através da venda de coisas bentas, os heréticos deste país. Deste modo entraremos em todo o lado, em casa dos nobres senhores e nas abastadas abadias. E todos nos darão uma untuosa hospitalidade. E nós descobriremos os seus segredos. Podes lamber já os lábios, meu doce amigo.

- Meu filho - disse Lamme - fazemos ofício de espiões.

- Por direito e lei de guerra.

- Se sabem da história dos três pregadores, morreremos de certeza.

Ulenspiegel cantou:

Escrevi: "Viver" na minha bandeira, Viver sempre à luz, De couro é a minha primeira pele, E de aço a segunda.

Lamme, porém, suspirando, dizia:

- Pois eu só tenho uma pele bem branda, o mais pequeno golpe de adaga fura-a facilmente. Faríamos melhor entregando-nos a qualquer oficio útil do que correndo assim por montes e vales, para servir todos esses grandes príncipes que, com os pés metidos em sapatos de veludo, comem hortulanas em mesas douradas. Para nós os golpes, os perigos, a batalha, a chuva, o granizo, a neve, as sopas magras dos vagabundos. Para eles os bons pratos, os gordos capões, os tordos perfumados, as galinhas suculentas.

- Só de pensar nisso, sobe-te água à boca, meu doce amigo - disse Ulenspiegel.

- Onde estão vocês, pão fresco, "koekebakken" dourados, cremes deliciosos? Onde estás tu, minha mulher?

- As cinzas batem no meu peito e empurram-me para a batalha - disse Ulenspiegel. - Mas tu, doce cordeiro, que não tens a vingar a morte do teu pai nem a da tua mãe, nem o desgosto de aqueles que amas, nem a tua presente pobreza, deixa-me ir sozinho para onde devo, se as fadigas da guerra te assustam.

- Sozinho? - exclamou Lamme.

E deteve o seu burro, que se pôs a comer um tufo de cardos, dos quais havia muitos no caminho. O burro de Ulenspiegel deteve-se também e começou a comer do mesmo modo.

- Sozinho? - repetiu Lamme. - Não me deixarás sozinho, meu filho, seria uma insigne crueldade. Ter perdido a minha mulher e perder ainda o meu amigo, isso não é possível. Não me queixarei mais, prometo-te. E, uma vez que é preciso - acrescentou, erguendo altivamente a cabeça - irei sob a chuva das balas, sim! e no meio das espadas, sim! enfrentar esses infames soldados que bebem sangue como os lobos. E se um dia cair a teus pés sangrando e ferido de morte, enterra-me, e, se vires a minha mulher, diz-lhe que morri por não ter sabido viver sem ser amado por alguém neste mundo. Não, não poderei viver assim, meu filho Ulenspiegel. E Lamme chorou. E Ulenspiegel sentiu-se enternecido ao ver aquela doce coragem.

 

Nesse tempo o duque, dividindo o seu exército em dois corpos, fez marchar um sobre o ducado de Luxemburgo e o outro sobre o marquesado de Namur.

- É - disse Ulenspiegel - alguma resolução militar que desconheço; não faz diferença, vamos para Maestricht com confiança.

Quando seguiam ao longo do Mosa, perto da cidade, Lamme viu Ulenspiegel estudar atentamente todos os barcos que cruzavam o rio, e deter-se diante de um que tinha uma sereia na proa. E essa sereia tinha um escudo onde estava gravada a letras de ouro sobre fundo sable a sigla J-H-S, que é a de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Ulenspiegel fez sinal a Lamme para que se detivesse e pôs-se a assobiar alegremente como uma cotovia.

Na ponte do barco apareceu um homem que cantou como um galo, e depois, a um sinal de Ulenspiegel, que zurrava como um burro, mostrando-lhe o povo reunido no cais, se pôs a zurrar terrivelmente. Os asnos de Ulenspiegel e de Lamme, baixando as orelhas, juntaram-se ao coro.

Passavam mulheres, e também homens montando cavalos, e Ulenspiegel disse a Lamme:

- Esse barqueiro zomba de nós e das nossas montadas. E se fôssemos atacá-lo no seu barco?

- Prefiro que venha aqui - respondeu Lamme.

Então, uma mulher que passava disse-lhes:

- Se não querem ficar com os braços cortados, os rins partidos, e o nariz desfeito, deixem zurrar esse Stercke Pier.

- Hi han! Hi han! Hi han! - fazia o bateleiro.

- Deixem-no zurrar - continuou a comadre. - Há dias vimo-lo levantar aos ombros uma carroça cheia de pesados barris de cerveja, e deter outra carroça puxada por um vigoroso cavalo. Ali - acrescentou, indicando o albergue da Blauwe-Torren (a Torre Azul) - furou com a sua faca, lançada de uma distância de vinte passos, uma prancha de carvalho com doze polegadas de espessura.

- Hi han! Hi han! Hi han! - continuava o barqueiro, enquanto que um garoto de uns doze anos, que aparecera na ponte, se punha a zurrar também.

Ulenspiegel respondeu:

- Rimo-nos do teu Pedro, o Forte! Por muito forte que seja, nós somos mais, e aqui está o meu amigo Lamme, que comeria dois do tamanho dele sem se engasgar.

- Que dizes tu, meu filho? - assustou-se Lamme.

- O que é verdade. Não me contradigas por modéstia. Sim, boas gentes, comadres e trabalhadores, não tardarão em vê-lo servir-se dos braços e reduzir a nada esse famoso Stercke Pier.

- Cala-te - pediu Lamme.

- A tua força é conhecida - respondeu Ulenspiegel. - Não podes escondê-la, por mais que queiras.

- Hi han! - surrava o bateleiro. - Hi han! - surrava o garoto.

Subitamente, Ulenspiegel cantou de novo como a cotovia, muito melodiosamente. E os homens, as mulheres e todos os que ali estavam, encantados, perguntaram-lhe onde aprendera a assobiar tão divinamente.

- No paraíso, de onde acabo de chegar - respondeu Ulenspiegel. Depois, dirigindo-se ao homem que não deixava de zurrar e de mostrar-lhe o punho em ar de troça, disse: - Porque continuas aí no teu barco? Não ousas vir a terra e troçar de nós e das nossas montadas?

- Não ousas? - repetiu Lamme.

- Hi han! Hi han! - fazia o homem. - Senhores burros, subam ao meu barco.

- Faz como eu - murmurou Ulenspiegel ao ouvido de Lamme. E, falando em voz alta, dirigiu-se ao barqueiro : - Se tu és Stercke Pier eu sou Thyl Ulenspiegel. E estes dois aqui são os nossos burros Jef e Jan, que sabem zurrar melhor do que tu, pois essa é a sua fala natural. Quanto ao subir ao teu barco de pranchas mal unidas, não o queremos. O teu barco é como uma cuba, de cada vez que uma onda o empurra, recua, e só sabe andar de lado, como os caranguejos.

- Sim, como os caranguejos! - repetiu Lamme.

- Que estás tu para aí a resmungar, monte de banhas?

- perguntou o bateleiro, dirigindo-se-lhe. E Lamme, enfurecendo-se, respondeu:

- Mau cristão, que me censuras a minha enfermidade, fica sabendo que a minha banha é minha e provém da minha boa alimentação, enquanto que tu, velho prego enferrujado, vives de arenques podres, de mechas de sebo, de peles de "stockfish", a julgar pela tua carne magra, que se vê passar através dos buracos dos teus calções.

- Vai haver pancadaria - diziam, alegres e curiosos, os homens e mulheres que os rodeavam.

- Hi han! Hi han! - fazia o bateleiro.

Lamme quis descer do seu burro para apanhar pedras e atirá-las ao homem.

- Não atires pedras - disse Ulenspiegel.

O bateleiro falou ao ouvido do garoto que zurrava a seu lado, na ponte do barco. Este soltou um batel amarrado ao lado do barco e, servindo-se de uma vara, rumou habilmente para a margem. Ao chegar mais perto, disse, erguendo-se altivamente:

- O meu "baes" pergunta-lhes se ousam subir ao seu barco e travar batalha com ele ao murro e ao pontapé. Esses bons homens e comadres serão testemunhas.

- Estamos de acordo - respondeu Ulenspiegel, com grande dignidade.

- Aceitamos o combate! - disse por sua vez Lamme, com grande altivez.

Era meio-dia, os trabalhadores dos diques, os calceteiros, os construtores de navios, as mulheres que levavam o jantar aos seus homens, as crianças que iam ver os pais restaurar-se de favas ou de carnes cozidas, todos riam e batiam palmas à ideia de uma batalha, esperando alegremente que um ou outro dos combatentes ficasse com a cabeça partida ou caísse ao rio feito em pedaços, para os divertir.

- Meu filho - dizia Lamme em voz baixa - esse homem vai atirar-nos à água.

- Deixa-te atirar - respondeu Ulenspiegel.

- O gordo tem medo - gritou a multidão de assistentes.

Lamme, ainda escarranchado no seu burro, voltou-se para eles e olhou-os com cólera, mas foi apupado.

- Vamos para o barco - disse Lamme. - Verão se tenho medo.

A estas palavras, foi novamente apupado, e Ulenspiegel disse:

- Vamos para o barco.

Desmontando, entregaram as rédeas dos burros ao garoto, que os acariciava e os levava para onde via cardos.

Depois Ulenspiegel pegou na vara, mandou entrar Lamme para o batel e rumou ao barco, ao qual subiu, com a ajuda de uma corda, precedido por Lamme, que suava e resfolegava.

Ao chegar à ponte do barco, Ulenspiegel baixou-se como se quisesse amarrar os atacadores das botas, e disse algumas palavras ao bateleiro, que sorriu e olhou para Lamme. Depois lançou contra ele mil injúrias, chamando-lhe vadio, barrica de banha, pássaro de prisão, "pap-eter", comedor de papas e disse-lhe:

- Grande baleia, quantas toneladas de óleo dás quando te sangram?

Subitamente, sem responder, Lamme saltou para ele como um boi furioso, derrubou-o e bateu-lhe com todas as suas forças, mas sem lhe fazer grande mal, devido à fraqueza dos seus braços. O bateleiro, fingindo resistir, deixava-se bater, e Ulenspiegel dizia:

- Esse patife pagará de beber.

Os homens e as mulheres, que, da margem, seguiam o combate, diziam uns para os outros, assombrados:

- Quem diria que o gordo era tão impetuoso?

E batiam palmas, enquanto Lamme batia como um surdo. Mas o bateleiro só tinha o cuidado de proteger o rosto. Subitamente, todos viram Lamme com um joelho sobre o peito de Stercke Pier, agarrando-o pela garganta com uma mão e preparando-se para bater-lhe com a outra.

- Pede perdão - dizia, furioso - ou faço-te passar através das pranchas da tua barcaça!

O bateleiro, tossindo para indicar que não conseguia falar, pediu perdão com um gesto da mão.

Então Lamme ergueu generosamente o seu inimigo, que pouco depois estava de pé e, voltando as costas aos espectadores, mostrava a língua a Ulenspiegel, o qual se pôs a rir ao ver Lamme, sacudindo orgulhosamente a pluma do seu barrete, passear-se pelo barco com ares de triunfador.

E os homens, as mulheres, os rapazes e as raparigas que estavam na margem aplaudiam-no delirantemente, dizendo:

- Viva o vencedor de Stercke Pier! É um homem de ferro- Viram como ele lhe agarrou um pulso e como com uma cabeçada o derrubou de costas? Agora vão beber, para fazer as pazes. Stercke Pier sobe ao porão com vinho e salpicões.

De facto, Stercke Pier voltava do porão com duas jarras e uma grande garrafa de vinho branco do Mosa. Lamme e ele fizeram as pazes. E Lamme, muito contente por causa do seu triunfo, por causa do vinho e dos salpicões, perguntou-lhe, apontando uma chaminé de ferro de onde brotava um fumo negro e espesso, quais eram os cozinhados que fazia no porão.

- Cozinha de guerra - respondeu Stercke Pier, sorrindo.

A multidão de trabalhadores, de mulheres e de crianças dispersou-se e cada um voltou ao seu trabalho ou a sua casa. Pouco depois corria de boca em boca que um homem gordo, montando um burro, e acompanhado por um pequeno peregrino também montado num burro era mais forte do que Stercke Pier e que era preciso ter o cuidado de não ofendê-lo.

Lamme bebia e olhava vitoriosamente para o bateleiro.

Este, subitamente, disse:

- Os vossos burros aborrecem-se, lá em baixo.

E levando o barco até ao cais, desceu a terra, pegou num dos burros pelas patas da frente e pelas patas de trás e, carregando-o às costas como Jesus Cristo carregou o cordeiro, depositou-o na ponte. Depois, tendo feito o mesmo ao outro sem sequer soprar, disse:

- Bebamos.

O garoto saltou para a ponte.

E beberam. Lamme, espantado, já não sabia se tinha sido ele, nativo de Damme, quem vencera aquele homem robusto, e já só ousava olhá-lo de soslaio, sem triunfo, temendo que lhe desse o desejo de pegar-lhe como fizera aos burros e atirá-lo ao Mosa, para vingar-se da sua derrota.

No entanto o bateleiro, sorrindo, convidou-o a beber mais, e Lamme refez-se do seu medo e passou a olhá-lo com uma segurança vitoriosa.

E o bateleiro e Ulenspiegel riam.

Entretanto, os burros surpreendidos ao encontrarem-se num soalho que não era o das vacas, tinham deixado pender as cabeças, baixavam as orelhas e, de medo, recusavam-se a beber. O bateleiro serviu-lhes uma das medidas de aveia que dava aos cavalos que puxavam a sua barca, depois de tê-la comprado ele próprio, a fim de não ser roubado pelos condutores no preço da forragem.

Quando os burros viram a aveia, puseram-se a mastigá-la, olhando melancolicamente para a ponte do barco, não ousando, com medo de escorregar, mexer uma pata.

Feito isto, o bateleiro disse a Lamme e a Ulenspiegel:

- Vamos à cozinha. É a cozinha de guerra, mas podes descer sem receio, meu vencedor.

- Não tenho receio, e sigo-te - respondeu Lamme. O garoto pôs-se ao leme.

Ao descer, viram por todo o lado sacos de grão, de favas, de ervilhas, de cenouras e outros legumes.

O bateleiro disse-lhes então, abrindo a porta de uma pequena forja:

- Uma vez que são homens de coração valente, que conhecem o grito da cotovia, a ave dos livres, e o clarim guerreiro do galo, e o zurrar do burro, o pacífico trabalhador, quero mostrar-lhes a minha cozinha de guerra. Esta pequena forja, encontrá-la-ão na maior parte dos barcos do Mosa. Não desperta suspeitas, pois serve para reparar as ferragens dos navios. Mas o que nem todos possuem são os belos legumes escondidos sob estas pranchas.

Então, afastando algumas pedras que cobriam o fundo do porão, levantou umas tábuas e pegou num belo feixe de canos de arcabuz, erguendo-o como se fosse uma pena, voltou a colocá-lo no seu lugar e mostrou-lhes ferros de lança, alabardas, lâminas de espada, sacos de balas e de pólvora.

- Vivam os Esfarrapados! - gritou. - Aqui estão as favas e o molho. As coronhas são pedaços de carne, as saladas são os ferros de alabardas e esses canos de arcabuz são jarretes de boi para a sopa da liberdade. Vivam os Esfarrapados! Aonde devo levar essa comida? - perguntou a Ulenspiegel.

- A Nimégue, onde encontrarás com o teu barco mais carregado ainda de verdadeiros legumes, que te serão entregues por camponeses e que recolherás em Etsen, em Stephanweert e em Ruremonde. Também esses cantarão como a cotovia, a ave dos livres, e tu responderás com o clarim guerreiro do galo. Irás a casa do doutor Pontus, que mora perto de Nieuwe-Waal; dir-lhe-ás que chegas à cidade com legumes, mas que receias a seca. Enquanto os camponeses irão ao mercado vender os legumes demasiado caro para que alguém os compre, ele dir-te-á o que fazer das tuas armas. Penso todavia que te ordenará que passes, não sem perigo, pelo Waal, o Mosa ou o Reno, trocando os legumes por redes para vender, para que possas misturar-te aos barcos de pesca de Harlingen, onde há muitos marinheiros que conhecem o canto da cotovia, que sigas ao longo da costa pelos Waden, que chegues a Lauwerzee, - que troques as redes por ferro e chumbo, que dês roupas de Marken, de Vlieland ou de Ameland aos teus camponeses, que te mantenhas perto da costa, pescando e salgando o teu peixe para conservar e não para o vender, pois beber fresco e guerrear salgado é coisa legítima.

- Nesse caso bebamos - disse o bateleiro. E voltaram à ponte.

Lamme, no entanto, disse, melancolicamente:

- Senhor bateleiro, tens aqui na tua forja um fogo tão brilhante que com toda a certeza se cozinharia nele a mais deliciosa das sopas. A minha garganta anda sequiosa de sopa.

- Já vou refrescá-la - responde o bateleiro.

E pouco depois servia-lhe uma sopa gorda, onde fizera coser uma grossa fatia de presunto salgado.

Lamme, depois de ter comido algumas colheradas, disse ao bateleiro:

- A garganta péla-se-me, a língua arde-me; esta sopa está salgada.

- Beber fresco e guerrear salgado, estava escrito - replicou Ulenspiegel.

O bateleiro encheu as canecas, dizendo:

- Bebo à cotovia, a ave da liberdade.

- Bebo ao galo, o clarim guerreiro - disse Ulenspiegel.

- Bebo à minha mulher - disse Lamme. - Que nunca tenha sede, a minha amada.

- Irás até Emden pelo Mar do Norte - recomendou Ulenspiegel ao bateleiro. - Emden é para nós um refúgio.

- O mar é grande.

- Grande para a batalha.

- Deus está connosco.

- Quem pode então estar contra nós?

- Quando partem? - perguntou o bateleiro.

- Imediatamente.

- Boa viagem, e vento de popa. Aqui têm a pólvora e balas.

E, beijando-os, acompanhou-os até ao cais, depois de ter descarregado aos ombros, como se fossem cordeiros, os dois burros.

Ulenspiegel e Lamme montaram-se e partiram para Liége.

- Meu filho - perguntou Lamme, enquanto cavalgavam - como foi que um homem tão forte se deixou bater por mim?

- Fê-lo para que, aonde quer que vamos, o terror te preceda. Será melhor escolta que uma vintena de lanceiros. Quem ousará doravante atacar Lamme, o poderoso, o vencedor? Lamme, o touro sem igual, que derrubou com uma cabeçada, à vista de todos, Stercke Pier, Pedro, o Forte, que transporta burros como se fossem cordeiros e levanta com um só ombro uma carroça cheia de barris de cerveja. Aqui já todos te conhecem, és Lamme o temível, Lamme o invencível, e eu caminho à sombra da tua protecção. Todos te conhecerão ao longo do caminho que vamos percorrer, ninguém ousará olhar-te com maus olhos, e, vista a grande coragem dos homens, só encontrarás no teu caminho chapeladas, saudações, homenagens e venerações dirigidas à força do teu punho terrível.

- Falas bem meu filho - disse Lamme, endireitando-se na sela.

- E digo a verdade - respondeu Ulenspiegel. - Vês essas caras curiosas às janelas das primeiras casas da cidade? Todos apontam Lamme, o horrífico vencedor. Vês esses homens que te olham com inveja e esses miseráveis cobardes que te tiram o chapéu? Responde às suas saudações, Lamme, meu pequeno; não desprezes

o débil povo. Vê, as crianças sabem o teu nome e repetem-no com temor.

E Lamme passava altivamente, saudando à esquerda e à direita como um rei. E a fama da sua valentia seguiu-o de burgo em burgo, de cidade em cidade, até Liége, Chocquier, Neuville, Vesin e Namur, que evitaram por causa da história dos três pregadores.

Cavalgaram assim durante muito tempo, seguindo rios, riachos e canais. E por todo o lado ao canto da cotovia respondia o canto do galo. E por todo o lado, para a obra da liberdade, fundiam-se, trabalhavam-se e forjavam-se as armas que partiam nos navios que rondavam a costa.

E estas armas passavam escondidas em tonéis, em caixas, em cestos.

E havia sempre quem as recolhesse e as escondesse em lugar seguro, com a pólvora e as balas, à espera de que soasse a hora de Deus.

E Lamme cavalgava com Ulenspiegel, sempre precedido pela sua reputação vitoriosa, de tal modo que acabou ele próprio por acreditar na sua grande força e, tornando-se altivo e belicoso, deixou crescer o pêlo. E Ulenspiegel chamou-lhe Lamme, o Leão.

Lamme, todavia, não persistiu neste desígnio, por causa da comichão que lhe fazia a barba crescer, e ao quarto dia passou a navalha pela sua face vitoriosa, a qual apareceu de novo a Ulenspiegel redonda e cheia como um sol, aceso ao fogo da boa alimentação.

E foi assim que chegaram a Stockem.

 

Ao cair da noite, tendo deixado os burros em Stockem, entraram na cidade de Anvers.

E Ulenspiegel disse a Lamme:

- Eis a grande cidade. O mundo inteiro amontoa aqui as suas riquezas: ouro, prata, especiarias, couro dourado, tapeçarias de Gobelin, tecidos, estofos de veludo, de lã e de seda; favas, ervilhas, grãos, carne e farinha, couros salgados, vinhos de Louvain, de Namur, de Luxemburgo, de Liége, Landtwyn de Bruxelas e de Aerschot, vinhos de Buley cujas vinhas ficam perto da Planta, em Namur; os vinhos do Reno, da Espanha e de Portugal; óleo de uva de Areschot, a que eles chamam Landolium; os vinhos de Borgonha, de Malvasia e tantos outros. E os cais estão atravancados de mercadorias.

"As riquezas da terra e do trabalho humano atraem a esta cidade as mais belas raparigas de vida fácil que existem."

- Tornas-te sonhador - disse Lamme.

- Entre elas encontrarei os sete - respondeu Ulenspiegel. - Foi-me dito: Entre ruínas, sangue e lágrimas, procura.

"Que outra coisa pode ser mais causa de ruína do que as mulheres da vida? Não é junto delas que os pobres homens perdem os seus carolus, brilhantes e tilintantes; as suas jóias, correntes, anéis, voltando a partir sem gibão, esfarrapados e despojados, por vezes até sem roupa interior, enquanto que elas engordam à custa dos seus despojos? Onde está o sangue vermelho e límpido que corria nas suas veias? Transformou-se em suco de alho-porro. Ou então, para desfrutarem dos prazeres dos seus corpos doces e bonitos, não se batem à ponta da faca, de adaga, de espada, sem misericórdia? Os cadáveres que ficam, pálidos e exangues, são cadáveres de pobres loucos de amor. Quando o pai ralha e fica sinistro na sua cadeira, quando os seus cabelos brancos parecem mais brancos e mais ressequidos, quando os seus olhos secos, onde arde o desgosto da perda do filho, já não querem derramar mais lágrimas, quando a mãe, silenciosa e lívida como uma morta, chora como se já não visse à sua frente senão o que há de dor neste mundo, o que faz correr essas lágrimas? As mulheres da vida, que só amam o dinheiro e que têm o mundo pensador, trabalhador, filósofo, preso por uma ponta dos seus cintos dourados. Sim, é lá que estão os sete, e nós iremos, Lamme, procurá-las, a essas mulheres. Talvez a tua mulher esteja com elas; será matar dois coelhos de uma só cajadada."

- Está bem - concordou Lamme.

Estava-se então em Junho, para os fins do Verão, quando o sol já avermelha as folhas dos castanheiros, e os pardais cantam entre os ramos das árvores, e não há insecto, por pequeno que seja, que não sussurre de alegria por estar tanto calor no meio das ervas.

Lamme errava ao lado de Ulenspiegel pelas ruas de Anvers, baixando a cabeça e arrastando o corpo como se fosse uma casa.

- Lamme - disse Ulenspiegel - estás muito triste; não sabes então que nenhuma outra coisa faz tanto mal à pele; se persistes no teu desgosto, perdê-la-ás às fatias. E será bonito ouvir chamarem-te Lamme o pelado.

- Tenho fome - queixou-se Lamme.

- Anda comer - respondeu Ulenspiegel.

E foram juntos aos Velhos Degraus, onde comeram "shoesels" e beberam dobbel-kuyt até não poderem mais.

E Lamme já não se queixava.

E Ulenspiegel dizia:

- Abençoada seja a boa cerveja que te enche a alma de sol! Ris e sacodes a pança. Como gosto de te ver, dança de tripas alegres.

- Meu filho - respondeu Lamme - dançariam muito mais se tivesse a felicidade de encontrar a minha mulher.

- Vamos procurá-la - disse Ulenspiegel. E chegaram assim ao bairro do Bas-Escaut.

- Olha - disse Ulenspiegel a Lamme - essa casinha toda de madeira, com belas janelas bem trabalhadas e de vidros pequenos; vê esses cortinados amarelos e essa lanterna vermelha. Ali, meu filho, atrás de quatro barris de bruinbier, de uitzet, de dobbel-kuyt e de vinho de Amboise, vive uma bela baesine' de cinquenta anos ou mais. Cada ano que vive faz-lhe mais uma camada de gordura. Sobre um dos barris brilha uma candeia e há uma lanterna suspensa das traves do tecto. Lá dentro há luz e escuridão, escuridão para o amor, luz para o pagamento

- Mas - disse Lamme - é um convento de monjas do diabo, e essa "baesine" é a abadessa.

- Sim, é ela quem conduz em nome do senhor Belzebú, pela via do pecado, quinze belas raparigas de vida amorosa, as quais encontram em sua casa refúgio e alimentação, mas não lhes é permitido lá dormir.

- Conheces esse convento?

- Vou lá procurar a tua mulher. Anda.

- Não. Reflecti, e não vou.

- Deixarás que o teu amigo se arrisque sozinho no meio desses Astarteias?

- Que o meu amigo não vá.

- Mas se tem de ir, para procurar os sete e a tua mulher.

- Preferia dormir.

- Vem então - insistiu Ulenspiegel, abrindo a porta e empurrando Lamme à sua frente. - Vê, a "baesine" está atrás dos quatro barris, entre duas candeias: a sala é grande, de tecto de carvalho escurecido, de traves enfurnadas. Por todo o lado há bancos, mesas coxas, cobertas de copos, de canecas, de taças, de jarras, frascos, garrafas e outros utensílios para beber. No meio há mesas e cadeiras sobre as quais se vêem capas, cintos dourados, sapatos de veludo, cornetas, pífaros, "scalmeyes". Ao canto há uma escada que conduz ao andar superior. Um pequeno corcunda pelado toca num cravo montado sobre pés de vidro que fazem gemer o som do instrumento. Dança, meu gordo. Quinze belas raparigas estão sentadas, umas nas cadeiras, outras sobre as mesas, perna para aqui, perna para acolá, inclinadas, direitas, apoiadas nos cotovelos, caídas, deitadas de lado ou de costas, conforme querem, vestidas de branco, de vermelho, com os braços nus, assim como os ombros e o peito até meio do corpo. Há-as de todos os géneros; escolhe! A umas a luz das candeias, acariciando-lhes os cabelos louros, deixa-lhes na sombra os olhos azuis, de que só se vê brilhar o fogo húmido. Outras, olhando para o tecto, suspiram, acompanhadas por uma viola, qualquer balada alemã. Algumas, redondas, morenas, gordas, desvergonhadas, bebem canecas de vinho de Amboise, mostram os seus braços redondos, nus até aos ombros, os seus vestidos entreabertos, de onde saem as maçãs dos seus seios, e, sem pudor, falam à boca cheia, uma após outra ou todas ao mesmo tempo. Escuta-as.

- Malfadado seja hoje o dinheiro! é amor que queremos, amor à nossa escolha - diziam as belas raparigas - amor de criança, de adolescente e de quem nos agradar, sem pagar.

- Que aqueles a quem a Natureza deu a força viril que faz os machos venham procurar-nos a este lugar, por amor de Deus e de nós.

- Ontem foi o dia em que se pagava, hoje o dia em que se ama!

- Quem quer beber dos nossos lábios,  que estão ainda húmidos da garrafa? Vinho e beijos, é festim completo!

- Malfadadas as viúvas que dormem sozinhas!

- Somos raparigas! Hoje é dia de caridade. Aos jovens, aos fortes e aos belos, abrimos os nossos braços. De  beber!

- Pequena, é para a batalha do amor que o coração bate no peito como um tamborim! Que balanceiro É o relógio dos beijos. Quando chegarão os corações cheios, as escarcelas vazias? Será que não farejam as galantes aventuras? Que diferença há entre um jovem Esfarrapado e o senhor margrave? É que o senhor paga com florins e o jovem com carícias. Vivam os Esfarrapados! Quem quer ir despertar os cemitérios?

Assim falavam as boas, ardentes e alegres raparigas da vida amorosa.

havia porém outras de rosto estreito, de ombros descarnados, que faziam dos seus corpos lojas para a economia, e liard a liard poupavam o preço das suas maduras carnes. Essas resmungavam:

- Seria uma estupidez dispensar o salário neste ofício fatigante por causa de tolices descabidas que passam pela cabeça de raparigas sedentas de homens. Se têm qualquer desarranjo no miolo, nós não temos, e preferimos, nos nossos últimos anos, não nos darmos a loucuras, e fazermo-nos pagar, uma vez que somos para vender.

- Loucas! Os homens são feios, mal cheirosos, resmumgões, glutões e bêbados. Só eles levam as mulheres ao mau caminho!

 jovens e belas, no entanto, não as escutavam, e, entregues aos seus prazeres e festejos, diziam:

- Ouvem os sinos dos mortos dobrando em Notre-Dame? Somos de fogo! Quem quer ir despertar os cemitérios?

Lamme, vendo tantas mulheres ao mesmo tempo, louras e morenas, frescas e fanadas, envergonhou-se. Baixando os olhos, chamou:

- Ulenspiegel, onde estás?

- Morreu, meu amigo - respondeu uma rapariga gorda, pegando-lhe num braço.

- Morreu? - espantou-se Lamme.

- Sim, há treze anos, na companhia de Jacobus de Coster van Maerlandt.

- Deixa-me - disse Lamme - e não me belisques. Ulenspiegel, onde estás? Vem salvar o teu amigo. Vou-me embora imediatamente, se não me deixas.

- Não irás - responderam elas.

- Ulenspiegel - repetiu Lamme, lamentosamente - onde estás tu, meu filho? Senhora, não me puxe assim pelos cabelos, não é uma peruca, asseguro-lhe. Socorro! Não acham as minhas orelhas já suficientemente vermelhas sem que precisem de me fazer subir o sangue à cabeça? E esta outra que me sacode sem cessar. Magoam-me! Ah! com que me esfregam agora a cara? O espelho? Estou negro como a goela de um forno. Zango-me, se não acabam com isso. É maldade da vossa parte torturar assim um pobre homem. Deixem-me! Quando acabarem de puxar-me os calções para a esquerda e para a direita, para a frente e para trás, ficarão mais satisfeitas? Sim, vou zangar-me, sem dúvida.

- Vai zangar-se - diziam elas, troçando. - Vai zangar-se, o pobre homem. É melhor que rias e canta-nos um lied' de amor.

- Cantarei um de pancadas, se assim querem. Mas deixem-me.

- Qual de nós preferes?

- Nenhuma, nem tu, nem as outras. Queixar-me-ei ao magistrado, que as mandará chicotear.

- Bah! - responderam elas - chicotear! E se te beijássemos à força antes de sermos chicoteadas?

- A mim? - perguntou Lamme.

- A ti! - disseram todas.

E todas, as belas e as feias, as frescas e as fanadas, as louras e as morenas, precipitaram-se para Lamme, atiram-lhe ao ar o chapéu e o manto, beijaram-no e acariciaram-no nas faces, no nariz, nas costas, com toda a força. A "baesine", sentada entre as duas candeias, ria-se.

- Socorro! - gritava Lamme. - Socorro! Ulenspiegel, livra-me desta canalha! Deixem-me! Não quero os vossos beijos! Sou casado, sangue de Deus! E guardo tudo para a minha mulher.

- Casado - disseram elas. - Mas a tua mulher tem demasiado: um homem da tua corpulência. Dá-nos também um pouco. Mulher fiel, está bem; homem fiel é capão. Deus te guarde! tens de escolher, ou chicoteamos-te à vez.

- Não o farei.

- Escolhe.

- Não.

- Queres-me a mim? - perguntou uma bela rapariga loura. - Vê, sou meiga, e amo quem me ama.

- Deixa-me - repeliu-a Lamme.

- Queres-me a mim? - perguntou outra rapariga, que tinha cabelos negros, olhos e pele escura, e parecia ter sido feita pelos anjos.

- Não gosto de pão de trigo - respondeu Lamme.

- E a mim, não me queres? - perguntou uma rapariga grande, que tinha o rosto quase coberto pelos cabelos, grossas sobrancelhas que se uniam, grandes olhos, lábios grossos como enguias e muito vermelhos, e também vermelhos a face, o pescoço e os ombros.

- Não gosto de tijolos inflamados - respondeu Lamme.

- Toma-me a mim - disse uma rapariga de dezasseis anos, com nariz de esquilo.

- Não gosto de quebra-nozes - desdenhou Lamme.

- Vai ser preciso chicoteá-lo - disseram elas. - Com o quê? Com bons chicotes de mecha de couro seco. A pele mais dura não lhe resiste. Tragam dez Chicotes de carroceiros e de burriqueiros...

- Socorro, Ulenspiegel! - gritava Lamme. Ulenspiegel, no entanto, não respondia.

- Tens mau coração! - dizia Lamme, procurando o amigo por todo o lado.

Os chicotes foram trazidos; duas das raparigas começaram a tirar a Lamme o seu gibão.

- Ah! - gemia ele - a minha pobre gordura, que tanto trabalho me deu a formar, vão sem dúvida arrancá-la com os seus malditos chicotes. Mas, mulheres sem piedade, a minha gordura de nada lhes servirá, nem sequer para fazer molhos.

- Faremos velas! - responderam elas. - Não é mau ver claro sem pagar! Aquela que doravante disser que de chicote sai vela, parecerá louca a quem a ouvir. E nós apoiá-la-emos até à morte e ganharemos mais de uma aposta. Molhem os chicotes com vinagre. O gibão já está tirado. São Tiago dá as horas. São nove. À última badalada, se não tiveres feito a tua escolha, bateremos.

Lamme, transido, dizia:

- Tenham piedade e misericórdia, jurei fidelidade à minha pobre mulher e guardá-la-ei, ainda que ela me tenha deixado bem vilmente. Ulenspiegel, ajuda-me, meu amigo!

Ulenspiegel, no entanto, não se mostrava.

- Vejam-me - dizia Lamme às raparigas - vejam-me a vossos pés. Haverá posição mais humilde? Não basta dizer que honro, como se fossem santos, as vossas grandes belezas? Bem-aventurado aquele que, não sendo casado, possa gozar dos vossos encantos! É o paraíso, sem dúvida; mas não me batam, por favor!

Subitamente, a "baesine", que continuava sentada entre as suas duas candeias, disse, com uma voz forte e ameaçadora:

- Comadres e filhas, juro-lhes pelo meu grande diabo que se, dentro de um momento, não tiverem conseguido, com risos e doçura, levar esse homem a bem, isto é, para o vosso leito, irei chamar os guardas e mandá-las-ei chicotear a todas, em vez dele. Não merecem o nome de raparigas de vida amorosa se é em vão que têm a boca lesta, a mão libertina e os olhos ardentes para excitar os machos, como fazem as fêmeas dos vermes luzentes, que só têm lanterna para esse fim. E serão impiedosamente chicoteadas pela vossa incompetência.

Ao ouvirem isto, as raparigas tremeram e Lamme ficou contente.

- Então, comadres - troçou - que notícias me trazem do país dos chicotes? Vou eu próprio chamar os guardas. Eles farão o seu dever e eu ajudá-los-ei. E será um grande prazer.

Nesse instante, porém, uma bonita rapariga de quinze anos caiu de joelhos aos pés de Lamme:

- Senhor - disse - vê-me aqui à sua frente humildemente resignada; se não escolher nenhuma de nós, serei espancada por sua causa, senhor. E a "baesine", que além está, fechar-me-á numa escura cave, sob o Escaut, onde a água escorre das paredes, e onde só terei pão negro para comer.

- Esta jovem será verdadeiramente espancada por minha causa, senhora "baesine"? - perguntou Lamme.

- Até fazer sangue - respondeu a "baesine".

Lamme, então, olhando para a rapariga, disse:

- Vejo-te fresca, perfumada, o teu ombro saindo do vestido como uma grande pétala de rosa branca, e não quero que essa bela pele, sob a qual o sangue corre tão jovem, sofra sob o chicote, nem que esses olhos iluminados pelo fogo da juventude chorem com a dor das pancadas, nem que o frio da prisão faça tremer o teu corpo de fada do amor. Portanto, prefiro escolher-te a saber-te espancada.

A rapariga levou-o. E assim Lamme pecou, como fez durante toda a sua vida, por bondade de alma.

Entretanto Ulenspiegel e uma bela rapariga de pele morena e cabelos encaracolados estavam diante um do outro. A rapariga, sem nada dizer, olhava, provocante, para Ulenspiegel, e parecia não o querer.

- Ama-me - pedia ele.

- Amar-te a ti, louco amigo, que só amas as tuas horas?

- A ave que passa por cima da tua cabeça canta a sua canção e vai-se embora. Assim sou eu, doce coração: queres que cantemos juntos?

- Sim - disse ela - canção de risos e de lágrimas. Subitamente, quando os dois amigos deliravam de

contentamento nos braços das suas companheiras, entraram na casa, ao som de um pífaro e de um tambor, empurrando-se, apertando-se, cantando, assobiando, gritando, urrando, vociferando, vários alegres "meesevangers", que são em Anvers os caçadores de melharucos. Levavam sacos e gaiolas cheios dessas pequenas aves, e os mochos que os tinham ajudado a apanhá-las arregalavam muito os olhos dourados ao sentirem a luz.

Os "meesevangers" eram bem uns dez, todos corados, cheios de vinho e de cerveja, de chapéus à banda, arrastando as pernas trôpegas e gritando com uma voz tão rouca que as assustadas raparigas mais pareciam estar a ouvir feras num bosque do que homens numa casa. No entanto, não cessavam de dizer, falando uma a uma ou todas ao mesmo tempo:

- Quero que me ame.

- Somos de quem nos agradar. Amanhã aos ricos de florins, hoje aos ricos de amor!

E os "meesevangers" responderam:

- Temos florins, e amor também. A nós as raparigas. Quem recuar é capão. Estas são melharucos, nós somos caçadores. Ao assalto! Brabante ao bom duque!

As mulheres, no entanto, gritavam, troçando:

- Arreda! Feios focinhos que nos querem comer! Não é aos porcos que se dão sorvetes. Aceitamos quem queremos, e não os queremos a vocês. Barricas de óleo, sacos de banha, pregos torcidos, lâminas enferrujadas, cheiram a suor e a lama. Fora daqui, já serão bastante malditos sem a nossa ajuda.

E eles replicavam:

- Ah! hoje fazem-se esquivas. Senhoras enjoadas, podem muito bem dar-nos o que vendem a toda a gente.

- Amanhã - disseram elas - seremos cadelas escravas e aceitá-los-emos; hoje somos mulheres livres e não os queremos.

- Basta de palavras! - gritaram eles. - Quem tem sede? Colhamos as maçãs!

E dizendo isto, saltaram sobre elas, sem distinção de idade nem de beleza. As raparigas bonitas, firmes na resolução tomada, atiraram-lhes à cabeça cadeiras, garrafas, jarros, taças e copos, fazendo-os chover como granizo, ferindo, magoando, derrubando.

Ulenspiegel e Lamme acorreram ao ruído, deixando no alto da escada as suas trémulas apaixonadas. Quando Ulenspiegel viu aqueles homens atacando aquelas mulheres, pegou numa vassoura, arrancou-lhes a escova, deu outra a Lamme e ambos caíram em cima dos' meesevangers' sem piedade.

O jogo pareceu demasiado duro aos bêbados assim tosados, que cessaram a luta. Isto foi imediatamente aproveitado pelas raparigas magras que queriam vender-se e não dar-se, mesmo naquele grande dia de amor voluntário, como manda a Natureza. Deslizaram como cobras por entre os feridos, acariciaram-nos, vendaram-lhes as feridas, beberam por eles vinho de Amboise e limparam-lhes tão bem as escarcelas de florins e outras moedas que não lhes deixaram sequer um liard. Depois, como tocava o recolher, puseram-nos à porta, por onde Ulenspiegel e Lamme já tinham saído.

 

Ulenspiegel e Lamme dirigiam-se a Gand, e ao raiar da aurora chegaram a Lokeren. A terra, ao longe, suava orvalho; vapores brancos e frescos deslizavam sobre as pradarias. Ulenspiegel, ao passar diante de uma forja, cantou como a cotovia, a ave da liberdade. E imediatamente apareceu uma cabeça, desgrenhada e branca, à porta da forja, e uma voz débil imitou o clarim guerreiro do galo.

Ulenspiegel disse a Lamme:

- Aquele é o "smitte" Wasteele, que de dia forja enxadas, pás, socos de charrua, batendo o ferro quando ele está quente para fazer belas grades para os coros das igrejas, e, de noite, forja e funde armas para os soldados da livre consciência. Com isto não ganhou bom aspecto, pois é pálido como um fantasma, triste como um condenado, e tão magro que os ossos furam-lhe a pele. Ainda não se deitou, pois sem dúvida trabalhou toda a noite.

- Entrem os dois - disse o "smitte" Wasteele - e levem os vossos burros para o prado atrás da casa.

Feito isto, e encontrando-se Lamme e Ulenspiegel na forja, o "smitte" Wasteele foi esconder numa cave da sua casa todas as lâminas de espada e ferros de lança que forjara durante a noite, e preparou o trabalho do dia para os seus operários.

Cravando em Ulenspiegel uns olhos sem luz, perguntou-lhe:

- Que notícias me trazes do "Calado"?

- O príncipe é expulso dos Países-Baixos com o seu exército devido à cobardia dos seus mercenários, que gritam "Geld! Geld!" dinheiro! dinheiro! quando deveriam combater. Foi para França, com os soldados fiéis, o seu irmão o conde Ludovic e o duque de Deux-Ponts, socorrer o rei de Navarra e os huguenotes. Daí passará para a Alemanha, dirigindo-se a Dillenburg, onde encontrará muitos refugiados dos Países-Baixos. Deves enviar-lhe as armas e o dinheiro que recolheste, enquanto que nós faremos no mar o trabalho de homens livres.

- Farei o que devo - respondeu o smitte Wasteele. - Tenho armas e nove mil florins. Mas vocês não vieram montados em burros?

- Sim.

-E não ouviram, pelo caminho, notícias a respeito de três pregadores mortos, despojados e atirados para um buraco entre os rochedos do Mosa?

- Sim - respondeu Ulenspiegel com grande segurança. - Esses pregadores eram espiões do duque, assassinos pagos para matar o príncipe da liberdade. Lamme e eu fizemo-los passar desta vida para a outra. Temos o dinheiro que traziam, e os papéis também. Tiraremos o que nos for necessário para a nossa viagem e o resto dá-lo-emos ao príncipe.

E Ulenspiegel, abrindo o seu gibão e o de Lamme, tirou os papéis e pergaminhos. O "smitte" Wasteele, tendo-os lido, disse:

- Contêm planos de batalha e de conspiração. Enviá-los-ei ao príncipe, e fá-lo-ei saber que Ulenspiegel e Lamme, os seus vagabundos fiéis, lhe salvaram a nobre vida. Vou mandar vender os vossos burros, para que não possam reconhecê-los pelas montadas.

Ulenspiegel perguntou-lhe se o tribunal dos almotacéis de Namur já lhes lançara os seus esbirros no encalço.

- Vou dizer-lhes o que sei - respondeu Wasteele. - Um ferreiro de Namur, valoroso reformista, passou há dias por aqui, sob o pretexto de pedir-me ajuda para as grades, cataventos e outras ferragens de um castelo que vão construir perto de la Plante. O bedel do tribunal dos almotacéis disse-lhe que os seus senhores já se tinham reunido, e que um taberneiro fora chamado, por a sua casa se encontrar a poucas centenas de metros do local do crime. Interrogado sobre se tinha visto os assassinos ou alguém que pudesse supor como tais, respondeu: "Vi camponeses e camponesas viajando nos seus burros, pedindo-me de beber, ficando nas suas montadas ou descendo a terra e entrando em minha casa para beber, cerveja para os homens, hidromel para as mulheres e raparigas. Ouvi dois valentes camponeses falando de encurtar de um pé a estatura do príncipe d'Orange."

"E ao dizer isto, o taberneiro, assobiando, imitou a passagem de uma faca pelas carnes do pescoço. Depois continuou: "Pelo Vento de Aço, disse-lhes, quero falar à parte com vocês, pois tenho o poder de fazê-lo."

"Depois de ter contado estas coisas, o homem foi mandado em paz. Desde então,

os conselhos de justiça enviaram sem dúvida missivas aos seus conselhos subalternos. O taberneiro disse só ter visto camponeses e camponesas montando burros, do que se deduz que darão caça a todos os que encontrarem escarranchados em asnos. E o príncipe tem necessidade de vocês, meus filhos.

- Vende os burros - disse Ulenspiegel - e guarda o dinheiro para o tesouro do príncipe.

Os burros foram vendidos.

- Agora é preciso - continuou Wasteele - que cada um de vocês tenha um ofício livre e independente das corporações; sabes fazer gaiolas para aves e ratoeiras?

- Já as fiz em tempos - respondeu Ulenspiegel.

- E tu? - perguntou Wasteele a Lamme.

- Eu venderei "eete-kocken" e "olie-kocken"; são crepes e bolos de farinha com azeite.

- Sigam-me; aqui têm gaiolas e ratoeiras já prontas, as ferramentas e o fio de cobre que é necessário para repará-las e para fazer outras. Foram-me trazidas por um dos meus espiões. Isto é para ti, Ulenspiegel. Quanto a ti, Lamme, aqui tens um pequeno forno e um fole; dar-te-ei farinha, manteiga e azeite para que possas fazer os "eete-kocken" e os "olie-kocken".

- Vai comê-los - disse Ulenspiegel.

- Quando começaremos a fazê-los? - perguntou Lamme.

- Primeiro ajudar-me-ão uma ou duas noites - respondeu Wasteele. - Sozinho não posso terminar a minha grande tarefa.

- Tenho fome - disse Lamme. - Por aqui come-se?

- Tenho pão e queijo - respondeu Wasteele.

- Sem manteiga?

- Sem manteiga.

- Tens cerveja ou vinho? - perguntou Ulenspiegel.

- Não bebo - respondeu Wasteele.

- Mas posso ir à taberna perto daqui, comprá-lo para vocês, se quiserem.

- Está bem - disse Lamme. - E traz-nos também presunto.

- Farei como querem - respondeu Wasteele, olhando para Lamme com um grande desdém.

Todavia foi buscar-lhes dobbel-clauwaert e um presunto. E Lamme, satisfeito, comeu por cinco.

- Quando metemos mãos à obra? - perguntou.

- Esta noite - respondeu Wasteele. - Mas fica na forja e não tenhas medo dos meus operários. São reformistas como tu.

- Está bem.

Nessa noite, depois de ter tocado o recolher e de terem sido fechadas as portas, Wasteele, ajudado por Ulenspiegel e por Lamme, foi à cave buscar grandes fardos de armas.

- Tenho aqui - disse - vinte arcabuzes para reparar, trinta ferros de lança para afiar e chumbo para fundir quinhentas balas; vocês vão ajudar-me.

- Com todas as mãos - respondeu Ulenspiegel - e é pena não ter quatro para te servir.

- Lamme ajudar-nos-á - disse Wasteele.

- Sim - respondeu Lamme, caindo de sono devido ao excesso de comida e de bebida.

- Fundirás o chumbo - disse Ulenspiegel.

- Fundirei o chumbo - concordou Lamme.

E Lamme, fundindo o chumbo e fazendo as balas, lançava ferozes olhares ao "smitte" Wasteele, que o obrigava a velar quando lhe apetecia dormir. Fazia as balas com uma cólera silenciosa, sentindo umas ganas loucas de deitar o chumbo fundido em cima da cabeça do ferreiro. Mas conteve-se. Por volta da meia-noite, dominado pela raiva e pelo excesso de fadiga, fez-lhe este discurso com uma voz sibilante, enquanto o ferreiro e Ulenspiegel continuavam pacientemente a reparar canos de arcabuz e a afiar ferros de lança;

- Eis-te magro, pálido e miserável, acreditando na boa fé dos príncipes e dos grandes da terra, e desdenhando, por um zelo excessivo, o teu corpo, o teu nobre corpo que deixas perecer na miséria e na abjecção. Não foi para isso que Deus o fez com a senhora Natureza. Sabes que a nossa alma, que é o sopro da vida, tem necessidade para soprar, de favas, de carne, de cerveja, de vinho, de presunto, de salpicões, de chouriços e de repouso? Não, tu vives de pão, de água e de vigílias.

- De onde te vem essa abundância de palavras? - perguntou-lhe Ulenspiegel.

- Não sabe o que diz - murmurou tristemente Wasteele.

Lamme, porém, irritando-se, replicou:

- Sei-o melhor do que tu. Digo que somos loucos, tu, eu e Ulenspiegel, por nos estoirarmos assim por todos esses príncipes e grandes da terra, que se fartariam de rir se nos vissem rebentar de fadiga, sem dormir para fundir balas e preparar armas para eles. Enquanto bebem vinho de França e comem capões da Alemanha em taças de ouro e em pratos de estanho da Inglaterra, pouco lhes interessa que, enquanto procuramos no ar de Deus, por cuja graça eles são poderosos, os seus inimigos nos cortam a garganta e nos lançam para os poços da morte. Eles, entretanto, que não são reformistas, nem calvinistas, nem luteranos, nem católicos, mas apenas cépticos e descrentes, comprarão ou conquistarão principados, comerão os bens dos monges, dos abades e dos conventos, terão tudo: virgens, mulheres e prostitutas, e beberão pelas suas taças de ouro à perpétua festa em que vivem, à nossa sempiterna ingenuidade, tolice e burrice, e aos sete pecados capitais que cometem, oh! smitte Wasteele, sob o nariz magro do teu entusiasmo. Vê os prados, os campos, vê as colheitas, os pomares, os animais, o ouro brotando da terra; vê os animais nas florestas, as aves no céu, as deliciosas hortulanas, os finos tordos, o javali, a perna do cabrito: tudo lhes pertence, caça, pesca, terra, mar, tudo. E tu vives de pão e de água, e nós matamo-nos aqui por eles, sem dormir, sem comer e sem beber. E quando estivermos mortos, eles empurrarão os nossos corpos com os pés e dirão às nossas mães: Façam outros, estes já não nos podem servir.

Ulenspiegel ria sem dizer palavra, Lamme bufava de indignação, mas Wasteele, com voz doce, respondeu:

- Falas levianamente. Não vivo para o presunto, as hortulanas ou a cerveja, mas para a vitória da livre consciência. O príncipe da liberdade faz como eu. Sacrifica os seus bens, o seu repouso e a sua felicidade para expulsar dos Países-Baixos os carrascos e a tirania. Faz como ele e trata de emagrecer. Não é pelo ventre que se salvam povos, mas pela coragem e pelas fadigas suportadas até à morte sem um murmúrio. E agora vai dormir, se tens sono.

Lamme, porém, envergonhado, não quis ir.

E repararam armas e fundiram balas até que nasceu a manhã.

Depois partiram para Gand, ao cair da noite, vendendo gaiolas, ratoeiras e "olie-kocken".

Detiveram-se em Meulestee, a cidadezinha dos moinhos, de que se vêem por todo o lado os telhados vermelhos, e combinaram fazer separadamente os seus ofícios e encontrarem-se antes do recolher na In de Zwaen, o albergue do Cisne.

Lamme passeava pelas ruas de Gand, vendendo "olie-kocken", tomando gosto por esse ofício, procurando a mulher, bebendo muitas canecas e comendo sem cessar. Ulenspiegel tinha entregado cartas do príncipe a Jacob Scoelap, licenciado em medicina, a Lieven Smet, cortador de tecidos, a Jan Wulfschaeger, a Gillis Coorne, tintureiro, e a Jan de Roose, que lhe deram o dinheiro que tinham recolhido para o príncipe, dizendo-lhe que esperasse alguns dias em Gand ou nos arredores, pois dar-lhe-iam mais.

Estes, tendo mais tarde sido enforcados na Forca-Nova, por heresia, os seus corpos foram enterrados no campo das forcas, junto à porta de Bruges.

 

Entretanto o preboste Spelle, o Ruivo, armado da sua varinha vermelha, corria de cidade em cidade, montando o seu magro cavalo, erguendo em todo o lado o cadafalso, acendendo fogueiras, cavando fossas para nelas enterrar vivas mulheres e raparigas. E o rei herdava.

Ulenspiegel, estando em Meulestee com Lamme, sob uma árvore, sentiu-se cheio de tédio. Estava frio, apesar de correr o mês de Junho. Do céu, coberto de nuvens cinzentas, caía uma chuva fina.

- Meu filho - disse-lhe Lamme - há quatro noites que, sem vergonha, andas na vadiagem e visitas as prostitutas, que vais dormir à Zoeten Inval, a Doce Queda, e acabarás por fazer como o homem da tabuleta, caindo de cabeça no cortiço de abelhas. É em vão que te aguardo no albergue, e auguro mal esta desregrada existência. Porque não tomas virtuosamente uma mulher?

- Lamme - respondeu Ulenspiegel - aquele para quem todas são uma, e para quem uma é todas nesse gentil combate a que se chama amor, não deve precipitar levianamente a sua escolha.

- E Nele, já não pensas nela?

- Nele está em Damme, muito longe.

E enquanto falavam deste modo e a chuva continuava a cair, uma bonita rapariga passou a correr por eles, cobrindo a cabeça com o avental.

- Eh! - exclamou ao passar - cabeça oca, que fazes sob essa árvore?

- Penso na mulher que com o seu avental me fará um toldo contra a chuva - respondeu Ulenspiegel.

- Acabas de encontrá-la - disse a mulher. - Levanta-te.

Ulenspiegel levantou-se e avançou para ela.

- Vais deixar-me sozinho? - perguntou Lamme.

- Sim. Mas vai para o albergue, come um ou dois guisados, bebe doze canecas de cerveja, e desse modo dormirás bem e não te aborrecerás.

- Assim farei - disse Lamme.

Ulenspiegel chegou junto da mulher, que lhe disse:

- Levanta a minha saia de um lado, que eu levantá-la-ei do outro, e corramos.

- Para quê correr? - perguntou Ulenspiegel.

- Porque quero fugir de Meulestee; o preboste Spelle está lá com dois dos seus esbirros, e mandou chicotear todas as raparigas da vida que não quiserem pagar-lhe cinco florins. É por isso que corro; corre também e fica comigo, para me defenderes.

- Lamme - gritou Ulenspiegel - Spelle está em Meulestee. Vai para Destelbergh, para a "Estrela dos Três Magos".

E Lamme, erguendo-se assustado, segurou a barriga com as duas mãos e começou a correr.

- Para onde vai essa gorda lebre? - perguntou a rapariga.

- Para uma toca onde eu a encontrarei - respondeu Ulenspiegel.


- Corramos - disse ela, batendo com um pé no chão, como um cavalo impaciente.

- Gostaria de ser virtuoso sem correr.

- Que significa isso?

- A gorda lebre quer que eu renuncie ao bom vinho, à cerveja e à pele fresca das mulheres.

A rapariga lançou-lhe um olhar mau.

- Tens fôlego curto - disse-lhe. - Precisas de repousar.

- Repousar como, se não vejo qualquer abrigo?

- A tua virtude servir-te-á de capa.

- Prefiro a tua saia.

- A minha saia seria indigna de cobrir um santo como tu pretendes ser. Deixa-me correr sozinha.

- Não sabes que um cão vai mais depressa com quatro patas do que um homem com duas? Por isso, tendo quatro patas, correremos melhor.

- Para um homem virtuoso, tens a língua viva.

- É verdade.

- Mas - continuou ela - sempre verifiquei que a virtude é uma qualidade muda, adormecida, espessa e friorenta. E uma máscara para esconder rostos sombrios, um manto de veludo sobre um homem de pedra. Prefiro os que têm no peito um carvão bem aceso no fogo da virilidade, que excita às empresas valentes e alegres.

- Foi assim - replicou Ulenspiegel - que a bela diaba falou ao glorioso Santo António.

Vinte passos mais à frente, na estrada, havia um albergue.

- Falaste bem - acrescentou Ulenspiegel. - Agora é preciso beber bem.

- Ainda tenho a língua fresca - disse a rapariga.

Entraram. Sobre um armário havia uma grande bilha chamada pança devido à sua enorme barriga.

- Vês este florim? - perguntou Ulenspiegel ao' baes'.

- Vejo.

- Quantos patards dele tirarias para encher de dobbel-clauwaert aquela pança que além está.

- Com nove moedas ficará cheia - respondeu o "baes".

- Está bem, vai enchê-la.

Ulenspiegel encheu uma taça à rapariga e, erguendo-se, levou à boca o gargalo da bilha e despejou-a toda inteira na garganta. E foi um ruído de catarata.

A rapariga, espantada, perguntou-lhe:

- Como consegues meter num ventre tão magro uma bilha tão grande?

Ulenspiegel, sem responder, disse ao "baes":

- Traz um salpicão e um pão, e mais uma bilha cheia, para que comamos e bebamos.

O que fizeram.

Enquanto a rapariga mordiscava um coirato de leitão, Ulenspiegel namorou-a tão subtilmente que ela ficou conquistada, encantada e submissa.

Depois, perguntou-lhe:

- De onde vieram à tua virtude essa sede de esponja, essa fome de lobo e essas audácias amorosas?

- Tendo pecado de cem maneiras - respondeu Ulenspiegel - jurei, como sabes, fazer penitência. Isso durou bem uma longa hora. Pensando durante essa hora na minha vida futura, vi-me magramente alimentado a pão, enxabidamente dessedentado a água, tristemente privado de amor, sem ousar mexer-me ou agitar-me, com receio de fazer mal, estimado por todos, e por todos temido, sozinho como um leproso, triste como um cão órfão do seu dono, e, após cinquenta anos de martírio, acabando por morrer melancolicamente na minha enxerga.

A penitência foi muito longa. Beija-me pois, minha boneca, e saiamos ambos do purgatório.

- Ah! - exclamou ela, obedecendo de boa vontade. - Como a virtude é uma boa tabuleta para pendurar na ponta de uma vara!

O tempo passou-se nestas amorosas conversas; no entanto, tiveram de partir, pois a rapariga temia a todo o instante ver aparecer o preboste Spelle e os seus esbirros.

- Levanta a tua saia - disse-lhe Ulenspiegel.

E correram ambos como veados até Destelbergh, onde encontraram Lamme a comer na "Estrela dos Três Magos."

 

Ulenspiegel via frequentemente em Gand, Jacob Scoelap, Lieven Smet e Jan de Wulfschaeger, que lhe davam notícias sobre a boa ou a má fortuna do "Calado".

E de cada vez que Ulenspiegel voltava a Destelbergh, Lamme perguntava-lhe:

- Que notícias trazes, boas ou más?

- Ah! - dizia Ulenspiegel - o "Calado", o seu irmão Ludovic, os outros chefes e os franceses estavam dispostos a penetrar mais em França e juntarem-se ao príncipe de Conde. Salvariam assim a pobre pátria belga e a livre consciência. Deus não o quis, os cavaleiros e os lanceiros alemães recusaram-se a ir mais longe, dizendo que tinham feito juramento de ir contra o duque de Alba e não contra a França. Tendo-lhes inutilmente suplicado que fizessem o seu dever, o "Calado" foi forçado a levá-los pela Champanha e a Lorena até Estrasburgo, por onde voltaram à Alemanha. Esta súbita e inesperada partida compromete tudo: o rei da França, não obstante o seu contrato com o príncipe, recusa-se a entregar-lhe o dinheiro que lhe prometeu; a rainha de Inglaterra gostaria de enviar-lho, para recuperar a cidade e a região de Calais; as suas cartas foram interceptadas e entregues ao cardeal da Lorena, que lhes forjou uma resposta contrária.

"E assim vemos fundir-se como fantasmas ao canto do galo esse belo exército, a nossa esperança; mas Deus está connosco, e se a terra falha, a água fará a sua obra. Vivam os Esfarrapados!"

 

Um dia, banhada em lágrimas, a rapariga foi dizer a Ulenspiegel e a Lamme:

- Em Meulestee, a troco de dinheiro, Spelle deixa fugir assassinos e ladrões, e manda matar inocentes. O meu irmão Michielkin conta-se entre esses. Ah! deixem-me dizer-lhes, vocês vingá-lo-ão, sendo homens. Um sujo e infame debochado, Pieter de Roose, sedutor de crianças e de raparigas, fez todo o mal. O meu pobre irmão e Pieter Roose encontraram-se certa noite, mas não à mesma mesa, na taberna do Valck (o Falcão), onde todos fugiam de Pieter Roose como da peste.

"O meu irmão, não querendo ser visto na mesma sala com ele, chamou-lhe biltre miserável e ordenou-lhe que saísse.

"Ao que Pieter Roose respondeu: "O irmão de uma mulher pública não deveria falar tão alto."

"Mas mentia, pois eu não sou uma mulher pública, só me dou a quem me agrada.

"Michielkin, então, atirando-lhe à cara a sua caneca de cerveja, disse-lhe que mentia como um sujo, debochado que era, ameaçando, se não se desdissesse, fazê-lo engolir o seu punho até ao cotovelo.

"O outro ainda quis falar, mas Michielkin fez o que tinha dito: deu-lhe dois grandes murros na boca e arrastou-o pelos dentes até à rua, onde o deixou impiedosamente sovado.

"Pieter de Roose, curado e não sabendo viver sozinho, foi para a Vagevuur, verdadeiro purgatório e triste taberna, onde só aparecem pobres e miseráveis. Mas também aí foi evitado, até por aqueles esfarrapados. Ninguém falou com ele, excepto alguns camponeses que não o conheciam e alguns patifes vagabundos e desertores de bandos. Foi até várias vezes espancado, pois era quezilento.

"Quando o preboste Spelle chegou a Meulestee com os seus sequazes, Pieter de Roose passou a segui-los como um cão, enchendo-os à sua custa de vinho, de carne e de muitos outros prazeres que se pagam com dinheiro. Deste modo tornou-se companheiro e camarada desses homens, e começou a agir de modo a fazer o mais mal possível aos que detestava, que eram todos os habitantes de Meulestee, mas principalmente o meu pobre irmão.

"Começou a atacar Michielkin. Falsas testemunhas, bandidos ávidos de florins, declararam que Michielkin era herético, que muitas vezes dissera frases obscenas a respeito de Nossa Senhora e que blasfemara contra o nome de Deus e dos santos na taberna do Valck, e que além disso tinha trezentos florins escondidos num cofre.

"Apesar de as testemunhas não serem de boa vida e costumes, Michielkin foi preso, e tendo as provas sido consideradas suficientes por Spelle e pelos seus esbirros, foi pendurado pelos braços de uma roldana presa ao tecto, e puseram-lhe em cada pé um peso de cinquenta libras.

"Ele negou tudo, dizendo que se havia em Meulestee um biltre, patife, blasfemador e devasso, esse era Pieter de Roose e não ele.

"Mas Spelle nada quis ouvir, e disse aos seus esbirros que içassem Michielkin até ao tecto e o deixassem cair com os pesos amarrados aos pés. Isto foi feito, e tão cruelmente que a pele e os músculos dos tornozelos se rasgaram, e os pés mal ficaram presos às pernas.

"Michielkin insistiu em que estava inocente e Spelle mandou-o torturar novamente, dando-lhe a entender que se ele lhe entregasse cem florins o deixaria ir em liberdade-"Michielkin respondeu que preferia morrer.

"Os de Meulestee, tendo sabido da prisão e da tortura, quiseram ser testemunhas em turba, que é o testemunho de todos os bons habitantes de uma comuna. Michielkin, disseram unanimemente, não é de modo algum um herético, vai todos os domingos à missa e à santa mesa, nunca falou de Nossa Senhora a não ser para a chamar em seu socorro nas circunstâncias difíceis. Nunca tendo falado mal, nem sequer de uma mulher terrestre, com maior razão seria incapaz de fazê-lo a respeito da celeste mãe de Deus. Quanto às blasfémias que as falsas testemunhas diziam tê-lo ouvido proferir na taberna do Valck, isso é absolutamente falso e inventado.

"Michielkin foi posto em liberdade e as falsas testemunhas punidas. Spelle fez comparecer Pieter de Roose ante o seu tribunal, mas pô-lo em liberdade sem informação nem tortura, contra o pagamento de cem florins.

"Pieter de Roose, temendo que o dinheiro que lhe restava voltasse a atrair sobre ele as atenções de Spelle, fugiu de Meulestee, enquanto o meu pobre irmão morria vítima da gangrena que lhe devorou os pés.

"Ele que não queria sequer ver-me, mandou-me chamar para me dizer que tivesse cuidado com o fogo do meu corpo, que acabaria por levar-me ao do inferno. E eu só pude chorar, porque o fogo está em mim. E ele entregou a alma ao Criador entre os meus braços.

"Ah! aquele que vingar em Spelle a morte do meu amado e bom Michielkin será para sempre o meu amo, e obedecer-lhe-ei como uma cadela."

Enquanto ela falava, as cinzas de Claes batiam no peito de Ulenspiegel, que resolveu fazer enforcar Spelle, o assassino.

Boelkin, assim se chamava a rapariga, voltou a Meulestee, garantida contra a vingança de Pieter de Roose, pois um boieiro, de passagem em Destelbergh, disse-lhe que o cura e os burgueses tinham declarado que, se Spelle tocasse na irmã de Michielkin, o acusariam diante do duque.

Ulenspiegel, tendo-a seguido até Meulestee, entrou numa sala da casa de Michielkin, onde viu um retrato de mestre pasteleiro, que supôs ser o do pobre morto...

- É o retrato do meu irmão - disse Boelkin. Ulenspiegel pegou no retrato e afastou-se, dizendo:

- Spelle será enforcado!

- Como o conseguirás? - perguntou ela.

- Se o soubesses, não terias prazer em vê-lo acontecer. Boelkin inclinou a cabeça e disse, com voz triste:

- Não confias em mim.

- Não será dar-te provas de uma confiança extrema dizer-te que Spelle será enforcado? Só com esta frase, poderias fazer-me enforcar antes dele.

- É verdade - murmurou ela.

- Vai então arranjar-me boa argila, uma garrafa de bruinbier, água e algumas fatias de carne. Tudo isto separado.

"A carne será para mim, a bruinbier para a carne, a água para a argila e a argila para o retrato."

Ulenspiegel, comendo e bebendo, amassava a argila, de que de vez em quando engolia um pedaço, mas sem se preocupar com isso, e olhava com atenção para o retrato de Michielkin. Quando a argila ficou amassada, fez uma máscara com uma boca, um nariz, uns olhos e umas orelhas tão semelhantes aos do retrato que Boelkin ficou espantada.

Depois disto meteu a máscara no forno, e quando a argila ficou cozida pintou-a com a cor dos cadáveres, fazendo-lhe uns olhos muito abertos, a face grave e as diversas contracções de um agonizante. A rapariga olhava fixamente para a máscara, sem conseguir afastar os olhos dela, e, cobrindo o rosto com as mãos, murmurou, muito pálida e trémula:

- É ele, é o meu pobre Michielkin!

E Ulenspiegel fez também dois pés ensanguentados. Boelkin, vencendo o seu primeiro terror, disse:

- Será abençoado aquele que matar o assassino. Ulenspiegel, pegando na máscara e nos pés, disse:

- Preciso de um ajudante.

- Vai ao Blauwe Gans (Ganso Azul) e procura Joos Lansaem, de Ypres, que é o dono dessa taberna. Foi o melhor camarada e amigo do meu irmão. Diz-lhe que Boelkin te envia.

Ulenspiegel fez o que ela lhe dizia.

Depois de fazer a sua obra de morte, o preboste Spelle ia beber à taberna do Valck uma mistura quente de dobbel-clauwaert, canela e açúcar da Madeira. Nessa taberna ninguém ousava recusar-lhe fosse o que fosse, com medo da corda.

Pieter de Roose, tendo recuperado a coragem, voltara a Meulestee. Seguia Spelle e os seus esbirros por todo o lado, para que eles o protegessem. Spelle, por vezes, oferecia-lhe de beber. E juntos gastavam alegremente o dinheiro das vítimas.

A taberna do Falcão jamais se enchia como nos bons tempos, em que a cidade vivia alegre, servindo Deus catolicamente, e não era atormentada pelas querelas de religião. Meulestee estava como que de luto, como se via pelas numerosas casas fechadas ou abandonadas, pelas suas ruas desertas por onde erravam alguns magros cães em busca de um pouco de comida entre os restos apodrecidos.

Na cidade já só havia lugar para os dois malvados. Os temerosos habitantes viam-nos de dia, insolentes, marcando as casas das suas futuras vítimas, e de noite, regressando embriagados da taberna do Falcão, entoando canções obscenas, enquanto que os dois esbirros, embriagados como eles, os seguiam armados até aos dentes, para os protegerem.

Ulenspiegel foi à taberna do Ganso Azul e perguntou por Joos Lansaem, que estava atrás do balcão.

Ulenspiegel tirou do bolso um pequeno frasco de aguardente e disse:

- Boelkin tem duas barricas para vender.

- Vem à minha cozinha - disse o "baes".

Uma vez na cozinha, depois de ter fechado a porta e olhando-o fixamente, perguntou:

- Não és negociante de vinhos; que significam os teus piscares de olho? Quem és tu?

- Sou filho de Claes, queimado em Damme. As cinzas do morto batem no meu peito. Quero matar Spelle, o assassino.

- Foi Boelkin quem te enviou?

- Foi Boelkin quem me enviou. Matarei Spelle, e tu ajudar-me-ás.

- Está bem - disse o "baes". - O que é preciso fazer?

- Vai a casa do cura, bom pastor, inimigo de Spelle. Reúne os teus amigos e encontra-te amanhã, depois do recolher, na estrada de Everghem, para lá da casa de Spelle, entre a taberna do Falcão e a casa. Coloquem-se todos Onde estiver mais escuro e não levem roupas brancas. Ao bater das dez horas verás Spelle sair da taberna e uma carroça aproximando-se do lado contrário.

"Não avises os teus amigos esta noite; todos eles dormem demasiado perto dos ouvidos das mulheres. Procura-os amanhã. Venham, escutem bem e recordem tudo."

- Recordaremos - disse o "baes". E, erguendo a sua taça, acrescentou: - Bebo à corda de Spelle.

- À corda - brindou Ulenspiegel.

Depois voltaram os dois à sala da taberna, onde estavam a beber alguns adeleiros de Gand regressados do mercado de Bruges, onde tinham vendido por bom preço gibões, tecidos bordados a ouro e prata, comprados por pouco dinheiro e nobres arruinados que tinham querido, com o seu luxo, imitar os espanhóis.

E festejavam os grandes lucros conseguidos.

Ulenspiegel e Joos, sentados a um canto, combinaram, enquanto bebiam e sem serem ouvidos, que Joos iria a casa do cura da igreja, bom pastor, irritado contra Spelle, o assassino de inocentes. Depois disso, iria procurar os seus amigos.

No dia seguinte, Joos Lansaem e os amigos de Michielkin, avisados, saíram da taberna do Ganso Azul, onde tinham estado a beber como de costume, para dissimular os seus desígnios, e, por caminhos diferentes, chegaram depois do recolher à estrada de Everghem. Eram dezassete.

Às dez horas, Spelle saiu da taberna do Falcão, seguido pelos seus dois esbirros e por Pieter de Roose. Lansaem e os seus tinham-se escondido na granja de Samson Boene, amigo de Michielkin. A porta da granja estava aberta. Spelle não os avistou.

Ouviram-no passar, carregado de bebida, tal como Roose e os seus dois acólitos, e dizendo com uma voz pastosa e entrecortada por soluços;

- Prebostes! Prebostes! A vossa vida é boa neste mundo; apoiem-me, enforcadores que vivem dos meus restos.

Subitamente ouviram-se, na estrada, do lado do campo, o zurrar de um burro e o estalar de um chicote.

- Aí está - disse Spelle - um burro teimoso, que se recusa a avançar apesar de tão belo aviso.

Então ouviu-se um grande ruído de rodas e uma carroça correu para eles, vinda do alto da estrada.

- Detenham-na! - gritou Spelle.

Quando a carroça passava diante deles, Spelle e os seus dois esbirros saltaram à cabeça do burro.

- A carroça está vazia - disse um dos esbirros.

- Estúpido - replicou Spelle - desde quando é que as carroças vazias correm de noite, sem ninguém? Há aí dentro alguém que se esconde; acendam as lanternas, vou ver quem é.

As lanternas foram acesas e Spelle subiu à carroça, empunhando uma. Mas, mal olhou, lançou um grande grito e caiu para trás, dizendo:

- Michielkin! Michielkin! Jesus, tem piedade de mim!

Nesse instante ergueu-se, ao fundo da carroça, um homem vestido de branco, como os pasteleiros, e tendo nas mãos dois pés ensanguentados.

Pieter de Roose, ao ver o homem erguer-se, iluminado pelas lanternas, gritou, com os dois sequazes de Spelle:

- Michielkin, o morto! Senhor, tende piedade de nós!

Os dezassete acorreram ao ruído, para ver o espectáculo, e ficaram brancos de medo ao verem como aquela cara se assemelhava à de Michielkin, o pobre defunto.

E o fantasma agitava os pés ensanguentados.

Era o seu rosto cheio e redondo, mas empalidecido pela morte, ameaçador, lívido e roído pelos vermes.

O fantasma, continuando a agitar os pés ensanguentados, disse a Spelle, que gemia, caído de costas:

- Spelle, preboste Spelle, levanta-te! Spelle, porém, não se mexia.

- Spelle, preboste Spelle - continuou o fantasma - levanta-te, ou faço-te descer comigo à goela escancarada dos infernos.

Spelle levantou-se, e, com os cabelos eriçados de medo, gritou dolorosamente:

- Michielkin! Michielkin, tem piedade! Entretanto, os burgueses tinham-se aproximado, mas Spelle nada via a não ser as lanternas, que, conforme confessou mais tarde, lhe pareciam olhos de diabos.

- Spelle - disse o fantasma de Michielkin - estás preparado para morrer?

- Não - respondeu o preboste - não, senhor Michielkin, não estou preparado, e não quero comparecer ante Deus com a alma toda negra de pecados.

- Reconheces-me? - perguntou o fantasma.

- Que Deus me ajude - disse Spelle. - Sim, reconheço-vos, sois o fantasma de Michielkin, o pasteleiro que morreu, inocente, no seu leito, devido às torturas, e esses pés ensanguentados são os mesmos de onde mandei dependurar pesos de cinquenta libras. Ah! Michielkin, perdoai-me, esse Pieter de Roose era tão tentador! Ofereceu-me cinquenta florins, que recebi, para incluir o vosso nome nos registos.

- Queres confessar-te? - perguntou o fantasma.

- Sim, senhor, quero confessar-me, dizer tudo e fazer penitência. Mas afastai esses demónios que aí estão, prontos a devorar-me. Direi tudo. Afastai esses olhos de fogo! Fiz o mesmo em Tournay, a cinco burgueses, e também em Bruges, a quatro. Já não me recordo dos nomes, mas dir-vo-los-ei, se mo exigirdes. Pequei também noutros lugares, senhor, e, por obra minha, sessenta e nove inocentes estão enterrados. Michielkin, o rei precisava de dinheiro. Assim mo disseram, mas eu também o queria; está em Gand, na cave, sob o soalho, em casa da velha Grovels, que é a minha verdadeira mãe. Disse tudo, tudo, misericórdia e perdão! Afastai os diabos. Deus Senhor, Virgem Maria, Jesus, intercedei por mim; afastai os fogos do inferno, venderei tudo, darei tudo aos pobres e farei penitência.

Ulenspiegel, vendo que a multidão de burgueses estava pronta a apoiá-lo, saltou da carroça à garganta de Spelle e quis estrangulá-lo.

O cura, porém, deteve-o.

- Deixa-o viver; mais vale que morra na corda do carrasco do que entre as mãos de um fantasma.

- Que ides fazer dele? - perguntou Ulenspiegel.

- Acusá-lo ante o duque e fazer que o enforquem - respondeu o cura. - Mas tu, quem és?

- Sou - respondeu Ulenspiegel - a máscara de Michielkin e a pessoa de uma pobre raposa flamenga, que vai voltar à toca com receio dos caçadores espanhóis.

Entretanto Pieter de Roose fugia o mais depressa que podia.

Spelle foi enforcado, e os seus bens confiscados. E o rei herdou.

 

No dia seguinte, Ulenspiegel dirigiu-se a Courtray, seguindo ao longo do Lys, o claro rio.

Lamme acompanhava-o, queixando-se lastimosamente.

- Gemes, cobarde coração - disse-lhe Ulenspiegel - com saudades da mulher que te fez usar o barrete encimado de cornos do marido enganado.

- Meu filho - respondeu Lamme - ela sempre me foi fiel, amando-me suficiente, tal como eu a amava demasiado, doce Jesus. Um dia, tendo ido a Bruges, voltou de lá mudada. A partir de então, quando lhe pedia que me amasse, ela respondia-me: "- Devo viver contigo como amiga, não de outro modo."

"Eu, então, triste no meu coração, dizia-lhe: "- Minha amada, casámo-nos ante Deus. Não fiz por ti tudo o que querias? Não me contentei muitas vezes com um gibão de pano negro e um manto de sarja para te ver, a despeito das ordenanças reais, vestida de seda e de brocado. Minha querida, já não me amas?"

" - Amo-te - dizia ela - segundo Deus e as suas leis, segundo as santas disciplina e penitência. Todavia, serei a tua virtuosa companheira.

" - Não quero a tua virtude - respondia-lhe eu - é a ti que quero, a ti, minha mulher.

"E ela, inclinando a cabeça, dizia: " - Sei-te bom, tens sido o cozinheiro da casa, para me evitar as fadigas da cozinha, engomas os nossos lençóis e frisas as nossas camisas, porque os ferros são demasiado pesados para mim. Lavas a nossa roupa e varres a casa e a rua diante da porta para me poupar toda a fadiga. Agora quero trabalhar em teu lugar, mas nada mais, meu homem."

" - Isso não me importa - dizia-lhe eu. - Serei, como no passado, a tua criada, a tua engomadeira, a tua cozinheira, a tua lavadeira, o teu escravo submisso. Mas, mulher, não separes estes dois corações e estes dois corpos que fazem um só; não quebres o doce laço de amor que nos unia tão ternamente.

" - É preciso - respondia ela.

" - Ah! - exclamava eu. - foi em Bruges que tomaste esta dura resolução?

"- Jurei-o ante Deus e os santos.

" - E quem te forçou a jurar não cumprir os teus deveres de mulher?

" - Aquele que tem o espírito de Deus e me conta entre as suas penitentes."

Lamme prossegue a sua narrativa:

- Desde esse momento, deixou tanto de ser minha como se fosse a mulher fiel de um outro qualquer. Suplicava-lhe, atormentava-a, ameaçava-a, chorava, rogava-lhe. Mas em vão. Certa noite, ao voltar de Blanckenberghe, aonde tinha ido receber a renda de uma das minhas quintas, encontrei a casa vazia. Sem dúvida farta das minhas súplicas, irritada e entristecida com o meu desgosto, a minha mulher tinha fugido. Onde estará agora?

E Lamme, sentado na margem do Lys, baixava a cabeça e olhava para a água.

- Ah! - exclamava - minha amiga, como era gorda, terna e bonita! Voltarei algum dia a encontrar outra igual? Pote de amor, não voltarei então a provar-te? Onde estão os teus beijos saborosos como o timo; a tua boca pequena onde eu colhia o prazer, como a abelha colhe o mel na rosa; os teus brancos braços que me enlaçavam acariciantes? Onde está o teu coração palpitante, o teu seio redondo e o gentil estremecimento do teu corpo de fada ofegante de amor? Mas onde estão as tuas velhas ondas, rio fresco que deslizas tão alegremente sob o sol?

 

Passando diante do bosque de Peteghem, Lamme disse a Ulenspiegel.

- Isso, procuremos uma sombra.

- Está bem - concordou Ulenspiegel. Sentaram-se no bosque, sobre a erva, e viram passar à sua frente um bando de veados.

- Olha bem, Lamme - disse Ulenspiegel, armando o seu arcabuz alemão. - Eis os grandes e velhos veados que ostentam orgulhosamente as suas armações de nove pontas; e os outros mais pequenos, que trotam a seu lado e são os seus escudeiros, prontos a dar-lhes a ajuda das suas hastes pontiagudas. Vão para o seu local de repouso. Arma o teu arcabuz, como eu faço, e dispara. O velho veado está ferido, o jovem ficou ferido na coxa; foge. Sigamo-lo até que caia. Faz como eu, corre, salta e voa.

- Eis o que é mesmo do meu louco amigo - disse Lamme. - Perseguir os veados em corrida. Não voes sem asas, é trabalho perdido. Não os alcançarás. Oh! o cruel companheiro! Pensas que sou tão ágil como tu? Suo, meu filho; suo e vou cair. Se o guarda-florestal te apanha, serás enforcado. Veado é caça de rei; deixa-os correr, meu filho; não conseguirás apanhá-los.

- Vem - insistiu Ulenspiegel. - Não ouves o ruído das armações por entre a folhagem? É uma tromba que passa. Vês os ramos quebrados, as folhas juncando o solo? Tem uma bala na coxa, havemos de comê-lo.

- Ainda não está assado - respondeu Lamme. - Deixa correr esses pobres animais. Ah! como está calor! Vou cair aqui, sem dúvida, e não voltarei a erguer-me.

Subitamente, de todos os lados, homens esfarrapados e armados encheram a floresta.

Cães ladraram e correram atrás dos veados. Quatro homens de aspecto feroz rodearam Lamme e Ulenspiegel e levaram-nos para uma clareira, no meio da espessura, onde viram, entre as mulheres e crianças ali acampadas, homens, de arcabuzes, de lanças, de picos, de pistolas. Ulenspiegel, ao vê-los, perguntou-lhes:

- São os mateiros, ou Irmãos do bosque, que vivem em comum para fugir à perseguição?

- Somos os Irmãos do bosque - respondeu um velho que, sentado perto de uma fogueira, cozinhava aves numa frigideira. - E tu, quem és?

- Sou - respondeu Ulenspiegel - do belo país da Flandres, pintor, plebeu, nobre, escultor, tudo ao mesmo tempo. E passeio-me pelo mundo, louvando as coisas belas e boas e troçando da estupidez a plenos pulmões.

- Se viste tantas terras - disse o velho - deves saber pronunciar: Schild ende Vriendt', escudo e amigo, à maneira dos de Gand. Se não sabes és falso flamengo e morrerás.

Ulenspiegel pronunciou: -'Schild ende Vriendt.'

- E tu, pançudo - continuou o velho, dirigindo-se a Lamme - qual é o teu ofício?

Lamme respondeu:

- Comer e beber as minhas terras, quintas, herdades e granjas, procurar a minha mulher e seguir por todo o lado o meu amigo Ulenspiegel.

- Se viajas tanto - disse o velho - não ignoras certamente como chamam aos de Weert em Limburg?

- Não sei - respondeu Lamme. - Mas não saberás tu dizer-me o nome do patife escandaloso que expulsou a minha mulher de minha casa? Se mo disseres, irei matá-lo imediatamente.

- Há neste mundo duas coisas que nunca voltam, uma vez fugidas - sentenciou o velho. - O dinheiro gasto e a mulher farta que se vai embora.

E, dirigindo-se a Ulenspiegel, continuou:

- E tu, sabes como chamam aos de Weert em Limburg?

- "Reakstekers", os exorcistas de raias - respondeu Ulenspiegel - porque um dia uma raia viva caiu da carroça de um peixeiro, e as mulheres, ao verem-na saltar, tomaram-na pelo diabo. Vamos chamar o cura para exorcizar a raia, disseram elas. O cura exorcizou-a e, levando-a para casa, fez com ela um belo fricassé, em honra dos de Weert. Assim faça Deus com o rei de sangue.

Entretanto, os latidos dos cães continuavam a ressoar pela floresta. Os homens armados, correndo por entre as árvores gritavam para assustar o animal.

- São o veado e o gamo que eu feri - disse Ulenspiegel.

- Comê-lo-emos - disse o velho. - E como chamam áos de Eindhoven em Limburg?

- De "pinnemakers", os fabricantes de ferrolhos. Um dia, o inimigo estava às portas da cidade, e eles trancaram-nas com uma cenoura. Os gansos comeram a cenoura a grandes dentadas dos seus bicos gulosos e os inimigos entraram em Eindhoven. Mas serão bicos de ferro que comerão os ferrolhos da prisão onde querem fechar a livre consciência.

- Se Deus está connosco, quem estará contra? - disse o velho.

- Latidos de cães, gritos de homens e ramos quebrados- disse Ulenspiegel. - É uma tempestade na floresta.

- A carne de veado é boa? - perguntou Lamme, olhando para os fricassés.

- Os gritos dos batedores aproximam-se - disse Ulenspiegel a Lamme. - Os cães estão muito perto. Que raios! O veado! O veado! Cuidado, meu filho.

Eh! feio animal, atirou o meu gordo amigo para o meio das frigideiras, marmitas, panelões e fricassés. Eis que as mulheres e as crianças fogem dominadas pelo terror. Sangras, meu filho?

- Ris, patife? - gritou Lamme. - Sim, sangro, o maldito bicho rasgou-me o traseiro com a armação. Ah! vê os meus calções rasgados, e a minha carne também, e por terra todos esses belos fricassés. Perco todo o meu sangue pelas nádegas.

O veado é cirurgião previdente; salva-te da apoplexia - respondeu Ulenspiegel.

- Ah! patife sem coração! - queixou-se Lamme. - Não te seguirei mais. Ficarei aqui, no meio destes bons homens e destas boas mulheres. Como podes,

desavergonhado, ser tão duro para as minhas penas, quando eu caminho atrás dos teus calcanhares, como um cão, pela neve, pela geada, pela chuva, pelo granizo, faça vento ou faça calor, suando a alma para fora da pele?

- A tua ferida não tem importância. Põe-lhe em cima um "olie-koecken", que lhe servirá de emplastro e fritura - disse-lhe Ulenspiegel. - Mas sabes como chamam aos de Louvain! Ignora-lo, pobre amigo. Pois bem, vou dizer-to, para te impedir de gemer. Chamam-lhes de "koeye-schieters", caçadores de vacas, porque um dia foram tolos ao ponto de disparar contra vacas, tomando-as por soldados inimigos. Quanto a nós, disparamos contra os bodes espanhóis. A carne é fedorenta, mas a pele é boa para fazer tambores. E aos de Tirlemont? Sabes? Também não. Usam a alcunha gloriosa de "kirekers". Porque entre eles, na grande igreja, no dia de Pentecostes, um pato voa da tribuna do palácio, e essa é a imagem do Espírito Santo deles. Põe um "koek-bakke" em cima da tua ferida. Ah, apanhas sem responder palavra as marmitas e os fricassés derrubados pelo veado? É uma coragem de cozinha. Acendes o fogo, voltas a colocar o caldeirão da sopa no seu tripé, ocupas-te maravilhosamente desses trabalhos.

"Sabes por que motivo há quatro maravilhas em Louvain? Não. Pois vou eu dizer-te. Em primeiro lugar, porque os vivos passam por baixo dos mortos, pois a igreja de São Miguel foi construída perto das portas da cidade. O cemitério fica-lhe portanto por cima. Em segundo lugar, porque lá os sinos ficam fora das torres, como se vê na igreja de São Tiago, onde há um sino grande e outro pequeno. O sino pequeno, não cabendo no campanário, puseram-no do lado de fora. Em terceiro lugar, por causa da Torre-sem-Pregos, porque a flecha da igreja de Santa Gertrudes é feita de pedra e não de madeira, e as pedras não se pregam, excepto o coração do rei de sangue, que gostaria de pregar por cima da porta-grande de Bruxelas.

"Ah! mas tu não me escutas. Os molhos não têm sal? Sabes porque se chamam esquentadores, "vierpannen", aos de Tirlemont? Porque um dia, devendo um jovem príncipe ir dormir, durante o Inverno, a um albergue chamado "Armas da Flandres", o estalajadeiro ficou sem saber como aquecer a cama, uma vez que não tinha botijas. Resolveu então mandá-la aquecer pela filha, que, ao ouvir o príncipe chegar, fugiu toda trémula. E o príncipe perguntou por que motivo não tinham deixado a botija. Que Deus faça que Filipe, fechado numa caixa de ferro aquecido ao rubro, sirva de botija para aquecer a cama de Astarteia.

- Deixa-me em paz - disse Lamme. - Não quero saber de ti, nem dos "vierpannen", nem da Torre-sem-Pregos, nem de todas essas tolices. Deixa-me com os meus molhos.

- Tem cuidado - respondeu-lhe Ulenspiegel. - Os latidos não cessam. Os cães ladram, as cornetas tocam.

Tem cuidado com o veado. Ah! foges. As cornetas tocam.

- Volta para junto dos teus fricassés, Lamme - disse o velho. - O veado está morto.

- Dará uma boa refeição - disse Lamme. - Convidar-me-ão para o festim, em compensação pelos trabalhos a que me dou por vossa causa. O molho das aves está bom. Um pouco duro, no entanto, por ter apanhado areia quando esse diabo do veado me rasgou ao mesmo tempo os calções e a carne. Mas vocês não receiam os guardas-florestais?

- Somos demasiado numerosos - respondeu o velho. - Os guardas têm medo e não nos inquietam. O mesmo acontece com os esbirros e com os juízes. Os habitantes das cidades amam-nos, porque não lhes fazemos mal. Viveremos ainda algum tempo em paz, a menos que o exército espanhol nos cerque. Se isso acontecer, velhos e jovens, mulheres, rapazes e raparigas, todos venderemos cara a vida, e preferiremos matar-nos uns aos outros a sofrer mil martírios às mãos do duque de sangue.

- Já não é altura de combater o carrasco em terra - disse Ulenspiegel. - É no mar que devemos arruinar a sua força. Vão para os lados das ilhas da Zelândia, por Bruges, Heyst e Knocke.

- Não temos dinheiro - disseram eles.

- Aqui têm mil carolus da parte do príncipe - disse Ulenspiegel. - Sigam ao longo dos cursos de água, canais, riachos e rios; quando virem navios com a marca J-H-S, que um de vocês cante como a cotovia, responder-lhe-á o canto do galo. E estarão entre amigos.

- Assim faremos.

Pouco depois apareceram os caçadores, seguidos pelos cães e arrastando com cordas o veado morto.

Então todos se sentaram em torno da fogueira.  Eram bem uns sessenta, entre homens, mulheres e crianças. O pão foi tirado das sacolas, as facas das bainhas. O veado foi cortado, esfolado, desembaraçado de vísceras e assado no espeto juntamente com outra caça miúda. E, no fim da refeição, Lamme foi visto a roncar, com a cabeça inclinada para o peito e as costas apoiadas a uma árvore.

Ao cair da noite, os Irmãos do bosque voltaram aos seus esconderijos sob a terra, para dormir, e Lamme e Ulenspiegel imitaram-nos.

Homens armados velavam, guardando o acampamento. E Ulenspiegel ouvia estalar sob os seus pés as folhas mortas.

No dia seguinte, partiu acompanhado por Lamme, enquanto os do acampamento lhe diziam:

- Abençoado sejas; iremos para o mar.

 

Em Harlebeke, Lamme renovou a sua provisão de "olie-koecken", comeu vinte e sete e guardou trinta na sua cesta. Ulenspiegel levava as suas gaiolas na mão. Ao fim da tarde chegaram a Courtray e dirigiram-se ao albergue de Bie, a Abelha, propriedade de Gilis Van den Ende, que apareceu à porta mal ouviu o canto da cotovia.

Aí, para eles tudo foi açúcar e mel. O estalajadeiro tendo lido as cartas do príncipe, entregou a Ulenspiegel cinquenta carolus e não quis que lhe pagassem a comida que lhes serviu nem o dobbel-clauwaert com que a regou. Preveniu-os também de que havia em Courtray espiões do Tribunal de Sangue, pelo que deviam ter cuidado com o que dissessem.

- Saberemos reconhecê-los - disseram Ulenspiegel e Lamme.

E saíram do albergue.

O sol punha-se, dourando os telhados das casas; as aves cantavam entre a folhagem, as comadres tagarelavam de porta em porta, as crianças rolavam no pó, Ulenspiegel e Lamme vagueavam ao acaso pelas ruas.

Subitamente, Lamme disse:

- Martin Van den Ende, a quem perguntei se tinha visto uma mulher parecida com a minha... pois fiz-lhe o seu bonito retrato... disse-me que há em casa da Stevenyne, na estrada de Bruges, no "Arco-íris", fora da cidade, um grande número de mulheres que se reúnem todas as noites. Vou até lá.

- Vou depois ter contigo - disse Ulenspiegel. - Quero visitar a cidade. Se encontrar a tua mulher, mandá-la-ei imediatamente procurar-te. Recorda que o "baes" te recomendou prudência com a língua, se prezas a pele.

- Saberei calar-me - afirmou Lamme.

Enquanto Ulenspiegel passeava ao acaso, o sol desapareceu; Ulenspiegel chegou à Pierpot-Straetj, que é a ruela do Pote-de-Pedra, onde ouviu tocar melodiosamente uma viola; aproximando-se, viu de longe uma forma branca que o chamava, fugindo e tocando viola. E aquela forma cantava como um anjo uma canção doce e lenta, detendo-se, voltando-se, chamando e fugindo.

Ulenspiegel, porém, corria depressa; alcançou-a, e ia falar-lhe, quando ela lhe pôs na boca uma mão perfumada de benjoim.

- És nobre ou plebeu? - perguntou.

- Sou Ulenspiegel.

- És rico?

- O bastante para pagar um grande prazer, mas não o bastante para resgatar a minha alma.

- Andas a pé; não tens cavalo?

- Tinha um burro, mas deixei-o na cavalariça.

- Como andas sozinho, sem um amigo, numa cidade desconhecida?

- Porque o meu amigo vagueia pelo seu lado, como eu pelo meu, bela curiosa.

- Não sou curiosa - disse ela. - E o teu amigo, é rico?

- Em gordura - respondeu Ulenspiegel. - Quando acabarás de fazer perguntas?

- Já acabei. Agora deixa-me.

- Deixar-te? - assombrou-se Ulenspiegel. - Seria o mesmo que dizer a Lamme, quando ele tem fome, que deixe um prato de hortulanas. Quero comer-te.

- Ainda não me viste - disse ela. E descobriu subitamente, uma lanterna, cuja luz lhe iluminou o rosto.

- És bela - disse Ulenspiegel. - Pele dourada, olhos doces, boca vermelha, corpo cheio. Tudo isso será para mim.

- Tudo.

E a mulher levou-o para a casa da Stevenyne, na estrada de Bruges, chamada "Arco-íris" (' in den Reghen-boogh') onde Ulenspiegel viu um grande número de mulheres que usavam no braço rodelas de cor diferente da dos vestidos que usavam.

A que o levara até ali usava uma rodela de tecido bordado a prata sobre um vestido de tecido bordado a ouro. E todas as outras a olhavam, com inveja. Ao entrar, a mulher fez um sinal à "baesine", mas Ulenspiegel não o viu. Sentaram-se ambos e beberam.

- Sabes - disse ela - que quem me ama uma vez é meu para todo o sempre?

- Bela fera perfumada - respondeu Ulenspiegel - seria para mim um delicioso festim comer sempre a tua carne.

Subitamente avistou Lamme a um canto, tendo à sua frente uma pequena mesa, uma candeia, um presunto, uma caneca de cerveja, e que parecia não saber como disputar o seu presunto e a sua cerveja a duas raparigas que queriam a toda a força comer e beber com ele.

Ao ver Ulenspiegel, Lamme ergueu-se, deu um salto de alegria e gritou:

- Abençoado seja Deus, que me devolve o meu amigo Ulenspiegel! "baesine", de beber!

Ulenspiegel, pegando na sua bolsa, disse:

- Sim, de beber até ao fim disto. E fazia tilintar os seus carolus.

- Viva Deus! - exclamou Lamme, tirando-lhe a bolsa da mão. - Sou eu quem paga e não tu. Esta bolsa é minha.

Ulenspiegel quis recuperar a bolsa, mas Lamme segurava-a bem. Enquanto se debatiam, um tentando guardar a bolsa, o outro tentando recuperá-la, Lamme disse entrecortadamente ao ouvido de Ulenspiegel:

- Escuta, esbirros aqui dentro... quatro... pequena sala com três raparigas... Dois lá fora para ti, para mim... Quis sair, impediram-me... A prostituta espia... Stevenyne espia!

E, escutando, Ulenspiegel fingia lutar, gritando:

- Devolve-me a bolsa, patife.

- Não a terás! - replicava Lamme.

E agarravam-se pelo pescoço, pelos ombros, rolando pelo chão enquanto Lamme punha Ulenspiegel de sobreaviso.

Subitamente, o "baes" da "Abelha" entrou, seguido por sete homens, que parecia não conhecer. Cantou como o galo, e Ulenspiegel assobiou como a cotovia. Vendo Ulenspiegel e Lamme debatendo-se no chão, o "baes" falou.

- Quem são esses dois? - perguntou, dirigindo-se a Stevenyne.

- Dois patifes que seria melhor separar e impedir de fazerem tanta balbúrdia antes de irem para a forca.

- Ele que ouse separar-nos - afirmou Ulenspiegel - e fá-lo-emos comer o soalho.

- Sim - repetiu Lamme - fá-lo-emos comer o soalho.

- O' baes' salvador - disse Ulenspiegel muito baixo ao ouvido de Lamme.

Ao ouvir isto, o "baes" adivinhando algum mistério, precipitou-se de cabeça baixa na batalha. E Lamme murmurou-lhe ao ouvido estas palavras:

- Tu salvador? Como?

O "baes" fingiu sacudir Ulenspiegel pelas orelhas, dizendo-lhe muito baixo:

- Sete por ti... homens fortes, magarefes... Vou-me embora, demasiado conhecido na cidade... Quando eu partir, "tis van te beven de klinkaert"... Partam tudo...

- Certo - respondeu Ulenspiegel, levantando-se e aplicando-lhe um pontapé.

O' baes' bateu-lhe por sua vez, e Ulenspiegel disse-lhe:

- Bates duro, meu rapaz.

- É como vês - respondeu o "baes" tirando rapidamente a bolsa a Lamme e entregando-a a Ulenspiegel.

- Patife - disse - paga-me de beber, agora que recuperaste o teu dinheiro.

- Beberás, vadio escandaloso - replicou Ulenspiegel.

- Vejam como ele é insolente - disse a Stevenyne.

- Tanto quanto tu és bela, boneca - retorquiu Ulenspiegel.

Ora a Stevenyne tinha bem sessenta anos e uma cara como uma nêspera, mas toda amarela de biliosa cólera, no meio da qual havia um grande nariz, parecido com um bico de mocho. Os seus olhos eram olhos de avara, sem amor. Dois compridos dentes caninos saíam-lhe da boca magra. Na face esquerda tinha uma grande mancha de borra de vinho. As raparigas riam, troçando dela e dizendo:

- Boneca, boneca, dá-lhe de beber?

- Ele beijar-te-á.

- Há já muito tempo que fizeste as tuas primeiras núpcias?

- Cuidado, Ulenspiegel, ela quer comer-te.

- Vê os seus olhos, brilham de amor e não de ódio.

- Dir-se-ia que quer morder-te até à morte.

- Não tenhas medo.

- É assim que fazem todas as mulheres apaixonadas.

- Só quer o teu bem.

- Vê como ela está de bom humor.

E, de facto, a Stevenyne ria e piscava o olho à Gilline, a meretriz de vestido de brocado.

O "baes" bebeu, pagou e saiu. Os sete magarefes faziam caretas de inteligência aos espiões e à Stevenyne.

Um deles indicou com um gesto que considerava Ulenspiegel um ingénuo e que ia enganá-lo bem. E disse-lhe ao ouvido, pondo a língua de fora para o lado da Stevenyne, que, perdida de riso, mostrava os dentes:

- "Tis van te beven de klinkaert." (É tempo de fazer tilintar os copos.)

Depois, em voz alta e indicando os espiões, acrescentou :

- Gentil reformista, estamos todos contigo; paga-nos de beber e de comer.

E a Stevenyne ria de satisfação, e mostrava também a língua a Ulenspiegel, quando ele lhe voltava as costas. E Gilline, a de vestido de brocado, fazia o mesmo.

- Vejam a espia - diziam muito baixo as raparigas- que, pela sua beleza, levou à cruel tortura e à mais cruel das mortes mais de vinte e sete reformistas; Gilline goza pensando na recompensa da sua delação; cem florins carolus tirados da herança da vítima. Mas não ri, quando pensa que terá de partilhá-los com a Stevenyne.

E todos, espiões, magarefes e raparigas, mostravam a língua para troçar de Ulenspiegel. Lamme suava copiosamente e, de cólera, estava vermelho como a crista de um galo, mas não ousava dizer palavra.

- Paga-nos de comer e de beber - repetiram os espiões e os magarefes.

- Está bem - disse Ulenspiegel, fazendo tilintar novamente a sua bolsa cheia de carolus. - Dá-nos de comer e de beber, oh! bela Stevenyne. De beber em copos que tilintem.

Ao ouvirem isto, as raparigas puseram-se a rir, enquanto que a "baesine" mostrava os seus dentes pontiagudos.

E foi à cozinha e à cave, de onde trouxe presunto, salpicões, omeletes de chouriço de sangue e copos tilintantes, assim chamados por terem um pé e soarem como carrilhões quando se entrechocavam.

Ulenspiegel, então, disse:

- Que aquele que tenha fome coma, que aquele que tenha sede beba.

Os espiões, as raparigas, os magarefes, "Gilline" e a Stevenyne aplaudiram com os pés e com as mãos este discurso. Depois, cada um colocou-se o melhor que pôde, Ulenspiegel, Lamme e os sete magarefes à grande mesa de honra, os espiões e as raparigas em torno de duas mesas mais pequenas. E comeu-se e bebeu-se com grande ruído de mandíbulas, incluindo os dois esbirros que estavam no exterior e que os camaradas foram chamar para que tomassem parte no festim. E todos os viram tirar das suas sacolas cordas e correntes.

A Stevenyne, então, mostrando a língua e troçando, disse:

- Ninguém sairá daqui sem me pagar.

E foi fechar todas as portas, guardando as chaves nos bolsos. Gilline, erguendo o seu copo, disse:

-A ave está na gaiola, bebamos.

Ao ouvirem isto, duas raparigas chamadas Gena e Margot disseram-lhe:

- Mais um que vais levar à morte, mulher má?

- Não sei - respondeu Gilline. - Bebamos.

As duas raparigas, no entanto, não quiseram beber com ela. Gilline pegou na sua viola e cantou:

Ao som da viola, Canto noite e dia; Sou a rapariga louca, A vendedeira de amor.

Astarteia das minhas ancas Fez linhas de fogo; Tenho os ombros brancos, E o meu belo corpo é Deus.

Despejem a escarcela

De carolus brilhantes:

Que o ouro fulvo escorra

A jorros sobre os meus pés brancos.

Sou a filha de Eva E de Satanás o vencedor, Por belo que seja o teu sonho, Procura-o no meu coração.

Sou fria ou ardente

Terna de doce indulgência;

Tépida, louca, flamejante,

Meu homem, conforme quiseres.

Vê, vendo tudo: os meus encantos, A minha alma e os meus olhos azuis; Felicidades, risos e lágrimas, E a Morte se quiseres.

Ao som da viola, Canto noite e dia; Sou a rapariga louca, Vendedeira de amor.

Cantando a sua canção, Gilline era tão bela, tão suave e apetecível, que todos os homens, espiões, magarefes, Lamme e Ulenspiegel ficaram imóveis, mudos, enternecidos, sorrindo, dominados pelo encanto.

Subitamente, lançando uma gargalhada e olhando para Ulenspiegel, Gilline disse:

- É assim que se metem as aves na gaiola. E o encanto desfez-se.

Ulenspiegel, Lamme e os magarefes entreolharam-se.

- Então, vai pagar-me? - perguntou Stevenyne. - Vai pagar-me, senhor Ulenspiegel, que faz tão boa gordura da carne dos pregadores?

Lamme quis falar, mas Ulenspiegel mandou-o calar e disse, dirigindo-se à "baesine":

- Não pagaremos adiantadamente.

- Pagar-me-ei eu, então, da tua herança - replicou Stevenyne.

- Os vampiros vivem de cadáveres - disse Ulenspiegel.

- Sim - interveio um dos espiões. - Esses dois ficaram com o dinheiro dos pregadores; mais de trezentos florins carolus. Uma boa quantia para Gilline.

E a jovem meretriz cantou:

Procura alhures tais encantos, Leva tudo meu apaixonado, Prazeres, beijos e lágrimas, E a Morte se quiseres.

Depois, rindo, acrescentou:

- Bebamos!

- Bebamos! - repetiram os espiões.

- Viva Deus! - exclamou a "baesine". - Bebamos! As portas estão fechadas, as janelas têm boas barras, as aves estão na gaiola. Bebamos!

- Bebamos! - disse Ulenspiegel.

- Bebamos! - disse Lamme.

- Bebamos! - disseram os sete.

- Bebamos! - disseram os espiões.

- Bebamos! - repetiu Gilline, fazendo soar a sua viola. - Sou bela, bebamos! Apanharia o arcanjo Gabriel nas redes da minha canção.

- De beber, pois! - disse Ulenspiegel. - Vinho para coroar a festa, e do melhor; quero que haja uma gota de fogo líquido em cada pêlo dos nossos corpos sequiosos.

- Bebamos! - disse uma vez mais Gilline. - Mais vinte cabozes como tu, e os espetos deixarão de girar.

A Stevenyne foi buscar vinho. Todos estavam sentados, bebendo e bufando, espiões e raparigas reunidos. Os sete, sentados à mesa de Ulenspiegel e de Lamme, atiravam às raparigas presuntos, salpicões, omeletes e garrafas, que elas apanhavam no ar, como as carpas apanham as moscas que sobrevoam os charcos. E a Stevenyne ria, pondo os dentes de fora e mostrando maços de velas que se balançavam por cima do balcão. Eram as velas das raparigas. Depois disse a Ulenspiegel.

- Quem vai ao matadouro, leva uma vela de sebo; queres que te dê já uma?

- Bebamos! - disse Ulenspiegel.

- Bebamos! - repetiram os sete.

- Ulenspiegel tem os olhos brilhantes, como um cisne que vai morrer - comentou Gilline.

- E se os déssemos a comer aos porcos? - disse a Stevenyne.

- Seria para eles um festim de lanternas. Bebamos! - respondeu Ulenspiegel.

- Gostarias - perguntou a "baesine" - que te trespassassem a língua com um ferro em brasa?

- Ficaria melhor para assobiar. Bebamos! - respondeu Ulenspiegel.

- Falarias menos se estivesses enforcado - disse a Stevenyne - e a tua boneca te fosse ver.

- Sim, mas pesaria muito e cairia em cima do teu gracioso focinho. Bebamos!

- Que dirias se fosses fustigado e marcado na testa e no ombro?

- Diria que se tinham enganado na carne, e que em vez de assarem a porca Stevenyne, tinham assado o porco Ulenspiegel. Bebamos!

- Uma vez que nada disso te agrada, serás levado para os navios do rei, e condenado a ser esquartelado por quatro galés.

- Nesse caso - replicou Ulenspiegel - os tubarões terão os meus quatro membros, e tu comerás o que eles não quiserem. Bebamos!

- Porque não comes uma dessas velas? Servir-te-ia, no inferno, para alumiar a tua condenação eterna.

- Vejo o suficiente para contemplar o teu focinho luminoso, oh! porca mal assada. Bebamos!

Subitamente, Ulenspiegel bateu com o pé do seu copo na mesa, imitando com as mãos o ruído que faz o tecelão ao bater compassadamente a lã de um colchão sobre uma cama de paus, mas muito baixo, dizendo:

- "Tis (tydt) van te beven de klinkaert." (É tempo de fazer tilintar o copo que ressoa.)

Este é na Flandres o sinal de zanga de bebedores e de saque de casas de lanterna vermelha.

Ulenspiegel bebeu e voltou a bater com o copo na mesa, dizendo:

- "Tis van te beven de klinkaert." E os sete imitaram-no.

Todos permaneciam mudos: Gilline pôs-se muito pálida, Stevenyne pareceu espantada, e os espiões perguntavam-se :

- Os sete estão então com eles?

Os magarefes, no entanto, piscando os olhos, tranquilizavam-nos, enquanto repetiam, cada vez mais alto, com Ulenspiegel:

- "Tis van te beven de klinkaert! Tis van te beven de klinkaert!"

A Stevenyne bebia, para ganhar coragem.

Ulenspiegel então bateu com o punho na mesa, dando pancadas ritmadas, e os sete fizeram como ele. Copos, jarras, pratos, garrafas e taças entraram lentamente na dança, caindo, partindo-se, levantando-se de um lado para cair para o outro; entretanto continuava a ressoar, ameaçador, grave, guerreiro e monótono, o cantochão:

- "Tis van te beven de klinkaert!"

- Ah! vão partir tudo! - gemeu a Stevenyne.

E, de medo, os seus dois compridos dentes pareciam espetar-se-lhe ainda mais para fora da boca.

E o sangue, de furor e de cólera, incendiava-se na alma dos sete, de Lamme e de Ulenspiegel.

Então, sem deixarem de entoar o canto monótono e ameaçador, todos os da mesa de Ulenspiegel pegaram nos seus copos e, partindo-os sobre a mesa, treparam para as cadeiras e empunharam as suas facas. E faziam tal ruído com a sua canção que todos os vidros da casa tremiam. Depois, como uma ronda de diabos enlouquecidos, deram a volta à sala e a todas as mesas, dizendo sem cessar:

- "Tis van te beven de klinkaert!"

Os espiões levantaram-se, tremendo de medo, e pegaram nas suas cordas e correntes. Mas os magarefes, Ulenspiegel e Lamme, guardando as facas nas bainhas, pegaram nas suas cadeiras e brandiram-nas como se fossem cajados, correndo pela sala e batendo às esquerdas e às direitas, só poupando as raparigas, quebrando tudo o mais, móveis, vidros, arcas, louça, garrafas, pratos, copos e jarras, espancando os espiões sem piedade e continuando a cantar compassadamente o seu estribilho. Ulenspiegel, entretanto, tinha dado um murro na cara de Stevenyne, tirara-lhe as chaves dos bolsos e obrigava-a a comer as suas próprias velas.

A bela Gilline, arranhando com as unhas as portas, janelas e vidros, parecia querer passar através de tudo, como uma gata assustada. Depois, muito pálida, agachou-se a um canto, com os olhos esgazeados, mostrando os dentes e abraçada à viola, como se ela pudesse protegê-la.

Os sete e Lamme diziam às raparigas que não lhes fariam mal e, ajudados por elas, amarravam com as cordas e correntes os espiões, que, tremendo não ousavam opor resistência, pois bem sentiam que os magarefes, escolhidos entre os mais fortes pelo "baes" da "Abelha", os cortariam em pedaços com as suas facas.

A cada vela que obrigava a Stevenyne a comer, Ulenspiegel dizia:

- Esta é pelo enforcamento; esta é pela fustigação; esta outra é pela marca; esta quarta pela minha língua furada; estas duas, excelentes e grossas, pelos navios do rei e pelo meu esquartelamento pelas quatro galés; esta pelo teu covil de espiões; esta pela tua prostituta vestida de brocado e todas estas outras para me dar prazer.

E as raparigas riam ao ver a Stevenyne a rebentar de cólera e querendo cuspir as velas, mas sem o conseguir por ter a boca demasiado cheia.

Ulenspiegel, Lamme e os sete não deixavam de cantar, compassadamente:

- "Tis van te beven de klinkaert!"

Depois Ulenspiegel cessou, fazendo sinal aos outros para que murmurassem apenas o estribilho. Então, dirigindo-se aos espiões e às raparigas, disse-lhes:

- Se algum de vocês gritar por socorro, será imediatamente morto.

- Morto! - repetiram os magarefes.

- Calar-nos-emos. Não nos faças mal, Ulenspiegel - disseram as raparigas.

Gilline, porém, acocorada no seu canto, com os olhos esbugalhados, os dentes de fora, não era capaz de falar e apertava a viola contra o peito.

E os sete continuavam a murmurar:

- "Tis van te beven de klinkaert!"

A Stevenyne, mostrando as velas que tinha na boca, fazia sinal de que também se calaria. Os espiões imitaram-na.

Ulenspiegel continuou:

- Estão aqui em nosso poder, a noite é negra, estamos perto do Lys, onde é fácil uma pessoa afogar-se. As portas de Courtray estão fechadas.

Mesmo que os guardas tenham ouvido o barulho, não se mexerão, pois são demasiado preguiçosos e pensarão tratar-se de bons flamengos que, bebendo, cantam alegremente ao som de garrafas e copos. Portanto, estejam quietos e calados diante dos vossos senhores. E, dirigindo-se aos sete, acrescentou:

- Vão a Peteghem procurar os Esfarrapados?

- Preparámo-nos para isso à notícia da tua chegada-

- E de lá irão para o mar?

- Sim.

- Conhecem entre esses espiões um ou dois que possamos libertar para nos servirem?

- Dois - responderam os magarefes. - Niklaes e Joos, que nunca perseguiram os pobres reformistas.

- Somos fiéis! - disseram Niklaes e Joos.

- Aqui têm vinte florins carolus - disse então Ulenspiegel - duas vezes mais do que teriam recebido pela vossa infame denúncia.

Nesse momento, os outros cinco gritaram:

- Vinte florins! Serviremos o príncipe por vinte florins. O rei paga mal. Dá a cada um de nós metade disso, e diremos ao juiz tudo o que quiseres.

Entretanto, os magarefes e Lamme continuavam a murmurar surdamente:

- "Tis van te beven de klinkaert! "Tis van te beven de klinkaert!"

- A fim de que não falem demasiado, os sete levá-los-ão amarrados até Peteghem, para junto dos Esfarrapados. Terão dez florins quando estiverem no mar. Até lá teremos tempo de certificar-nos de se a cozinha do campo os mantém fiéis ao pão e à sopa. Se forem valentes, terão a vossa parte, se tentarem desertar, serão enforcados. Se conseguirem escapar, evitando a corda, encontrarão a faca.

- Serviremos quem nos paga - disseram eles.

- "Tis van te beven de klinkaert! "Tis van te beven de klinkaert!" - murmuravam Lamme e os sete, batendo na mesa com os cacos dos jarros e copos partidos.

- Levarão também com vocês - continuou Ulenspiegel - Gilline, a velha Stevenyne e as três raparigas. Se alguma delas quiser fugir, metê-la-ão num saco e atirá-la-ão ao rio.

- Não me matou! - gritou a bela Gilline, saltando do seu canto e brandindo a viola. E cantou:

Sangrento era o meu sonho, O sonho do meu coração; Sou afilha de Eva E de Satanás vencedor.

A Stevenyne e as outras choravam.

- Não temam, minhas belas - disse-lhes Ulenspiegel - são tão suaves e doces que por todo o lado serão amadas, festejadas e acariciadas. E de cada presa de guerra terão a vossa parte.

- A mim nada me darão, pois sou velha - gemeu a Stevenyne.

- Um soldo por dia, crocodilo - disse-lhe Ulenspiegel - pois serás a serva destas quatro beldades. Lavar-lhes-ás as roupas, lençóis e camisas.

- Eu, Senhor Deus! - exclamou ela.

- Governaste-as durante muito tempo - replicou Ulenspiegel - vivendo à custa dos seus corpos e mantendo-as pobres e esfomeadas. Podes gemer e chorar, far-se-á como eu digo.

Ao ouvirem isto, as quatro raparigas puseram-se a rir, troçando da velha "baesine" e mostrando-lhe a língua.

- A todos chega a vez neste mundo.

Quem o diria de Stevenyne, a avara? Trabalhará para nós como criada. Abençoado seja o senhor Ulenspiegel! Ulenspiegel disse então aos magarefes e a Lamme:

- Limpem as caves dos vinhos, levem o dinheiro; servirá para manter a velha e as quatro raparigas.

- Rilha os dentes, a Stevenyne, a avara - disseram as raparigas. - Foste dura, agora são-no para ti. Abençoado seja o senhor Ulenspiegel!

Depois as três voltaram-se para Gilline:

- Tu eras a sua preferida, o seu ganha-pão, partilhavas com ela o fruto da tua espionagem. Ousarás ainda bater-nos e injuriar-nos, com o teu vestido de brocado? Desprezava-nos porque só usávamos vestidos de pano. Só vestes tão ricamente devido ao sangue das tuas vítimas. Tirem-lhe o seu belo vestido, para que fique igual a nós.

- Não! - disse Ulenspiegel.

E Gilline, saltando-lhe ao pescoço, exclamou:

- Abençoado sejas tu, que não me mataste e não me queres feia!

E as raparigas, ciumentas, olhavam para Ulenspiegel e diziam:

- Apaixonou-se por ela, como todos os outros. E Gilline cantava, tocando a sua viola.

Os sete partiram para Peteghem, levando os espiões e as raparigas ao longo do Lys. E, enquanto caminhavam, não cessavam de murmurar:

- "Tis van te beven de klinkaert! Tis van te beven de klinkaert!"

Ao despontar do dia, chegaram ao acampamento, cantaram como a cotovia e respondeu-lhes o clarim guerreiro do galo. As raparigas e os espiões foram guardados à vista. Todavia, ao terceiro dia, Gilline foi encontrada morta, com uma grande agulha cravada no coração.

A velha Stevenyne foi acusada pelas outras raparigas e levada à presença do capitão do bando, reunido em tribunal com os seus sargentos. Aí, sem que houvesse necessidade de recorrer à tortura, Stevenyne confessou ter morto Gilline por inveja da sua beleza e para se vingar do facto de ela a tratar impiedosamente como a uma serva. E a Stevenyne foi enforcada e enterrada no bosque.

Também Gilline foi enterrada, e rezaram-se orações dos mortos sobre o seu corpo bonito.

Entretanto, os dois espiões patrocinados por Ulenspiegel tinham-se dirigido ao castelão de Courtray, pois o escândalo e pilhagens cometidos em casa da Stevenyne deviam ser punidos por ele, uma vez que a taberna se encontrava dentro dos limites da sua castelania, fora da jurisdição da cidade de Courtray. Depois de terem contado ao senhor castelão o que se passara, disseram-lhe com grande convicção e humilde sinceridade de linguagem:

- Os assassinos dos pregadores não foram Ulenspiegel e o seu fiel e amado amigo Lamme Goedzak, que só se detiveram na taberna do Arco-íris para repousar. Têm até passes assinados pelo duque, que nós vimos. Os verdadeiros culpados são dois mercadores de Gand, um magro e o outro muito gordo, que fugiram para França depois de terem arruinado a casa da velha Stevenyne, levando-a com quatro das suas raparigas, para se servirem delas. Tê-los-íamos sem dúvida apanhado, mas estavam lá sete magarefes dos mais fortes da cidade, que tomaram o partido deles. Amarraram-nos e só nos largaram quando já estavam bem no interior da terra de França. Ainda se vêem as marcas das cordas. Os nossos quatro companheiros andam-lhes na peugada, à espera de reforços para os capturar.

O castelão deu a cada um deles dois carolus e um fato novo e louvou-os pelos seus serviços.

Depois escreveu ao conselho da Flandres, ao tribunal dos vereadores de Courtray e a outros tribunais de justiça, para lhes anunciar que os verdadeiros assassinos tinham sido descobertos, dando grandes detalhes sobre a aventura.

E o castelão foi grandemente louvado pela sua perspicácia.

Ulenspiegel e Lamme caminhavam tranquilamente pela estrada de Peteghem a Gand, ao longo do Lys, desejando chegar a Bruges, onde Lamme esperava encontrar a sua mulher, e a Damme, onde Ulenspiegel, sonhador, desejava já estar para poder ver Nele, que, dolente, vivia junto de Katheline, a louca.

 

Havia já algum tempo que em Damme e nos arredores se cometiam vários crimes abomináveis. Raparigas, homens novos e velhos, que se sabia terem partido carregados de dinheiro para Bruges, Gand ou qualquer outra cidade ou aldeia da Flandres, eram encontrados mortos, nus como vermes e mordidos na nuca por dentes tão compridos e agudos que todos apresentavam os ossos do pescoço partidos.

Os médicos e cirurgiões-barbeiros declaravam que aqueles dentes eram os de um grande lobo, e que os ladrões, chegados depois do lobo, tinham despojado as vítimas.

Nunca se descobriu quem eram os ladrões, e o lobo acabara por ser esquecido.

Vários notáveis burgueses, que se tinham posto ousadamente a caminho sem escolta, tinham desaparecido sem que se soubesse o que lhes acontecera. Por vezes um camponês, preparando-se para lavrar a terra, encontrava as pegadas do lobo no campo, e o seu cão, escavando os sulcos com as patas, punha a descoberto um cadáver nu, apresentando os dentes do lobo marcados na nuca ou por baixo da orelha, e muitas vezes também numa perna, e sempre pelas costas. E sempre os ossos do pescoço e da perna apareciam partidos.

O camponês, assustado, ia imediatamente avisar o bailio, que comparecia com o escrivão criminal, dois almotacéis e dois cirurgiões, no local onde jazia o corpo. Examinando-o diligente e cuidadosamente, e tendo por vezes, quando o rosto não estava demasiado comido pelos vermes, reconhecido de quem se tratava, ficavam espantados ao verificar que o lobo, que mata por fome, não levava qualquer pedaço do cadáver.

O medo começava a pesar sobre Damme, e ninguém ousava sair de noite sem escolta.

Ora aconteceu que vários valentes soldados foram mandados caçar o lobo, com ordem de procurá-lo sem descanso, dia e noite, nas dunas, ao longo do mar.

Estavam na altura perto de Heyst, nas grandes dunas. A noite tinha caído. Um deles, confiante na sua força, quis deixar os outros para ir sozinho procurar o lobo, armado com um arcabuz. Os outros deixaram-no ir, certos de que, valente como era e armado como estava, mataria o lobo se este ousasse mostrar-se.

Quando o companheiro partiu, acenderam uma fogueira e ficaram a jogar aos dados, bebendo pela mesma garrafa de aguardente.

E, de vez em quando, gritavam:

- Regressa, camarada, o lobo tem medo! Vem beber! O homem, porém, não lhes respondia. Subitamente, ouvindo um grande grito, como de

um homem que morre, correram para o lado de onde o grito tinha partido, dizendo:

- Aguenta, vamos ajudar-te.

No entanto, passou-se muito tempo antes que conseguissem encontrar o camarada, pois uns diziam que o grito partira do vale, e outros que fora da mais alta duna.

Por fim, tendo revistado dunas e vales com as suas lanternas, encontraram o companheiro mordido numa perna e num braço, pelas costas, e com o pescoço partido como as outras vítimas.

Estendido de costas, empunhava a espada com a mão crispada; o seu arcabuz jazia na areia. A seu lado estavam três dedos cortados, que não lhe pertenciam, e que os outros levaram. A sua escarcela desaparecera.

Carregaram aos ombros o corpo do companheiro, a sua boa espada e o seu belo arcabuz, e, tristes e encolerizados, levaram o corpo ao bailio, que o recebeu acompanhado pelo escrivão criminal, pelos dois almotacéis e pelos dois cirurgiões.

Os dedos cortados foram examinados e verificou-se que eram dedos de velho, o qual não exercia qualquer ofício, pois eram dedos afilados e de unhas compridas como as dos homens de veste ou de Igreja.

No dia seguinte, o bailio, o escrivão, os vereadores, os cirurgiões e os soldados foram ao local onde tinham encontrado o pobre morto, e viram que havia gotas de sangue nas ervas e pegadas que se dirigiam para o mar, onde se detinham.

 

Era o tempo das uvas maduras, o mês do vinho, ao quarto dia, quando na cidade de Bruxelas é costume atirar ao povo, do alto da torre de São Nicolau, depois da missa solene, sacos de nozes.

Nessa noite, Nele foi despertada por gritos vindos da rua. Procurou Katheline no quarto e não a encontrou. Correu para baixo, abriu a porta e Katheline entrou, dizendo:

- Salva-me! Salva-me! O lobo! o lobo!

E Nele ouvia nos campos uivos distantes. Trémula, acendeu todas as lâmpadas, velas e candeias.

- Que aconteceu, Katheline? - perguntou, abraçando-a.

Katheline sentou-se, com os olhos esbugalhados, e respondeu, olhando para as candeias:

- É o sol, que expulsa os espíritos maus. O lobo, o lobo uiva no campo.

- Mas porque saíste tu da tua cama, onde estavas quente - perguntou Nele - para ir apanhar febre nas noites húmidas de Setembro?

- Esta noite Hanske gritou como o xofrango. E eu abri a porta, e ele disse-me: "- Bebe a beberagem da visão." E eu bebi. Hanske é belo. Afastem o fogo. Então ele levou-me para junto do canal e disse-me: " - Katheline, devolver-te-ei os setecentos carolus, e tu dá-los-ás a Ulenspiegel, filho de Claes. Aqui tens dois para comprar um vestido novo. E em breve terás mil.

" - Mil - disse eu - meu amado? Nesse caso serei rica?

" - Tê-los-ás - disse ele. - Mas não há em Damme outras mulheres ou raparigas que sejam agora tão ricas como tu serás?

" - Não sei - respondi eu, mas não queria dizer-lhe os nomes, com medo de que ele as amasse. E então ele disse-me:

"- Informa-te e diz-me os seus nomes quando eu voltar.

"O ar estava frio, o nevoeiro deslizava sobre os campos, os ramos secos caíam das árvores no caminho.

E a lua brilhava, e havia fogos sobre as águas do canal. Hanske, disse-me:

"- É a noite dos lobisomens; todas as almas culpadas saem do inferno. É preciso fazer três sinais da cruz com a mão esquerda e gritar: Sal! Sal! Sal! Que é o emblema da imortalidade; e eles não te farão mal.

"E eu disse: " - Farei o que quiseres, Hanske, meu amado."

"Ele então beijou-me, dizendo: " - És a minha mulher."

" - Sim - disse eu. E ao ouvir as suas doces palavras, uma felicidade celestial invadia o meu corpo, como um bálsamo. E ele coroou-me de rosas e disse-me: "-És bela."

"E eu disse-lhe: " - Também tu és belo, Hanske, meu amado, nas tuas finas vestes de veludo verde bordado a ouro, com a tua comprida pena de avestruz ondeando no teu chapéu, e com a tua face pálida como o fogo das vagas do mar. E se as raparigas de Damme te vissem, correriam todas atrás de ti, pedindo o teu coração. Mas só a mim o deves dar, Hanske."

"E ele disse: " - Trata de saber quais são as mais ricas, e as suas fortunas serão para ti."

"Depois foi-se embora, tendo-me proibido segui-lo.

"Eu fiquei ali, fazendo tilintar os dois carolus na minha mão, trémula e transida, por causa do nevoeiro, quando vi sair de uma riba, trepando o talude, um lobo que tinha o focinho verde e grandes vimes presos ao pêlo branco. Gritei: "Sal! Sal! Sal!" fazendo o sinal da cruz, mas ele pareceu não ter medo disto. Então pus-me a correr com todas as minhas forças, eu gritando, ele uivando, e ouvia o ruído dos seus dentes perto de mim, e uma vez tão perto do meu ombro que pensei que ia apanhar-me. Mas eu corria mais depressa do que ele. Por grande felicidade, encontrei à esquina da Rua da Garça o guarda-nocturno, com a sua lanterna. "O lobo! O lobo!" - gritei-lhe.

" - Não tenhas medo - disse-me o guarda-nocturno; vou levar-te a tua casa, Katheline, a louca.

"E eu senti que a mão dele, que me segurava, tremia. Também ele tinha medo.

- Já recuperou a coragem - disse Nele. - Não o ouves cantar, arrastando a voz: "De clock is tien, tien aen de clock"? (São dez horas no relógio, o relógio marca as dez.) E faz gemer a sua cega-rega.

- Afastem o fogo - dizia Katheline. - A cabeça arde. Volta, Hanske, meu amado.

E Nele olhava para Katheline, pedindo a Nossa Senhora a Virgem que lhe afastasse da cabeça o fogo da loucura; e chorou por ela.

 

Em Bellem, na margem do canal de Bruges, Ulenspiegel e Lamme encontraram um cavaleiro que usava no chapéu três penas de galo e cavalgava a todo o galope para Gand. Ulenspiegel cantou como a cotovia e o cavaleiro, detendo-se, respondeu com o claro canto do galo.

- Trazes notícias, cavaleiro impetuoso? - perguntou Ulenspiegel.

- Grandes notícias - respondeu o cavaleiro. - A conselho do senhor de Châtillon, que é, em França, o almirante do mar, o príncipe da liberdade deu ordens para equipar navios de guerra, além dos que já estão armados na Flandres e em Oost-Frise. Os valorosos homens que receberam essas ordens são Adrien de Berghes, senhor de Dolhain, o seu irmão Louis de Hai-nault, o barão de Montfaucon, Louis de Brederode, Albert de Egmont, filho do decapitado e não traidor como o irmão, Berthel Enthens de Mentheda, Adrien Menningh, Hembuyse, o fogo e orgulhoso gandês, e Jan Brock.

"O príncipe deu todos os seus bens, mais de cinquenta mil florins."

- Tenho quinhentos para ele - disse Ulenspiegel.

- Leva-os até ao mar - indicou o cavaleiro. E partiu a galope.

- Ele dá todos os seus bens - murmurou Ulenspiegel - e nós só damos as nossas peles.

- Achas pouco? - perguntou Lamme. - Nunca mais ouviremos falar de outra coisa que não seja saque e chacina? A laranja (1) está por terra.

- Sim - assentiu Ulenspiegel - por terra, como o carvalho; mas com o carvalho constroem-se os navios da liberdade!

- Para proveito dele - disse Lamme. - Mas uma vez que já não há perigo, compremos burros. Gosto de viajar sentado, e sem ter nas plantas dos pés um carrilhão de sinos.

- Compremos burros - concordou Ulenspiegel. - Esses animais são de fácil revenda.

Foram ao mercado e encontraram, pagando-os, dois belos burros com os respectivos arreios.

 

Montados nos seus burros, chegaram a Oost-Camp, onde havia um grande bosque cuja orla chegava até ao canal.

* (1) Laranja, em francês "orange", significa aqui o príncipe Orange.

 

Procurando sombra e os doces aromas, embrenharam-se nele, sem nada verem senão as grandes áleas correndo em todos os sentidos na direcção de Bruges, de Gand, de Zuid e de Noord-Vlaenderen.

De súbito, Ulenspiegel saltou abaixo do seu burro.

- Não vês uma coisa ali em baixo? - perguntou.

- Sim, vejo - respondeu Lamme. E, trémulo, acrescentou : - A minha mulher, a minha boa mulher! É ela, meu filho! Ah! não consigo avançar para ela. Encontrá-la assim!

- De que te queixas? - perguntou Ulenspiegel. - É bela, assim seminua, naquele corpete de musselina, aberto para deixar ver a sua carne fresca. Aquela é demasiado jovem, não é a tua mulher.

- É ela, meu filho, reconheço-a. Leva-me, não consigo andar. Quem o teria pensado dela? Dançar assim vestida de árabe, sem pudor! Sim, é ela; vê as suas pernas finas, os seus braços nus até aos ombros, os seus seios redondos e dourados saindo-lhe do corpete de musselina. Vê como excita com a bandeira encarnada esse grande cão que salta a seu lado.

- É um cão do Egipto - disse Ulenspiegel" - Nos Países-Baixos não os há assim.

- Egipto... não sei... mas é ela. Ah! meu filho, não quero ver mais. Levanta ainda mais alto os seus calções, para mostrar até mais acima as pernas redondas. Ri para mostrar os brancos dentes, e às gargalhadas para fazer ouvir a sua doce voz. Abre o capote e inclina o corpo para trás. Ah! esse pescoço de cisne apaixonado, esses ombros nus, esses olhos claros e provocantes! Corro para ela.

E Lamme saltou abaixo do seu burro, mas Ulenspiegel reteve-o, dizendo:

- Essa rapariga não é a tua mulher. Estamos perto de um acampamento de egípcios. Cuidado.

Vês o fumo atrás das árvores? Ouves o ladrar dos cães? Olha, aí estão alguns que nos observam, talvez dispostos a morder. Escondamo-nos melhor entre o mato.

- Não me esconderei - respondeu Lamme. - Essa mulher é a minha, flamenga como nós.

- Louco cego.

- Cego, não! Bem a vejo dançar, seminua, rindo e provocando aquele grande cão. Finge não nos ver, mas vê-nos, garanto-te. Thyl! Thyl! Eis que o cão salta para ela e a derruba, para apanhar a bandeira vermelha. E ela cai com um gemido de dor.

E Lamme, subitamente, correu para a mulher, dizendo :

- Minha mulher, minha mulher! Onde te magoaste, minha amada? Porque ris às gargalhadas? Os teus olhos são estranhos.

E beijava-a, acariciava-a, dizendo:

- O sinal que tinhas no seio esquerdo, não o vejo. Onde está? Tu não és a minha mulher, grande Deus do céu!

E ela não cessava de rir. Subitamente, Ulenspiegel gritou:

- Cuidado, Lamme.

E Lamme, voltando-se, viu à sua frente um grande e escuro egípcio, de rosto magro, moreno como um "peperkoek", a que em França chamam pão de especiarias.

Lamme pegou no seu venábulo e pôs-se em guarda, gritando:

- A mim, Ulenspiegel!

Ulenspiegel já ali estava, empunhando a sua boa espada.

- "Gibt mi ghelt, ein Richsthaler auf tsein" (dá-me dinheiro, um ricksdaelder ou dez) - disse-lhe o egípcio, falando em alto-alemão.

- Vê - disse Ulenspiegel - a rapariga vai-se embora, rindo e voltando-se para trás, a pedir que a sigam.

- "Gibt mi ghelt" - repetiu o homem. - Paga os teus amores. Somos pobres e não te queremos mal.

Lamme deu-lhe um carolus.

- Qual é o teu ofício? - perguntou-lhe Ulenspiegel.

- Todos - respondeu o egípcio. - Sendo mestres em artes e subtilezas, fazemos truques maravilhosos e mágicos. Tocamos tamborim e dançamos as danças da Hungria. Entre nós são muitos os que fazem gaiolas e grades para assar belos grelhados. Mas todos, flamengos e valões, têm medo de nós e expulsam-nos. Não podendo viver de ganho, vivemos de roubo, isto é, de legumes, de carne e de aves que temos de roubar ao camponês, uma vez que ele não quer dar-no-las nem vender-no-las.

- De onde veio essa rapariga, que se parece tanto com a minha mulher? - perguntou Lamme.

- É a filha do nosso chefe.

Depois, falando baixo, como se tivesse receio, acrescentou:

- Foi atingida por Deus com o mal do amor e ignora o pudor da mulher. Mal vê um homem, fica alegre e louca, e ri sem cessar. Fala pouco, durante muito tempo todos a julgaram muda. De noite, dolente, fica diante da fogueira, por vezes chorando ou rindo sem cessar, e mostrando o ventre, onde diz que tem dores. À hora do meio-dia, no Verão, após a refeição, é quando a domina a sua maior loucura. Então vai dançar quase nua para os arredores do acampamento. Só quer usar roupas de tule ou de musselina, e, de Inverno, é com grande dificuldade que conseguimos cobri-la com um manto de pele de cabra.

- Mas - perguntou Lamme - não tem um amigo que a impeça de entregar-se assim ao primeiro que apareça?

- Não - disse o homem - porque os viajantes, aproximando-se dela e vendo os seus olhos esgazeados, sentem mais medo do que amor. Este homem gordo foi ousado - acrescentou, indicando Lamme.

- Deixa-o falar, meu filho - aconselhou Ulenspiegel. - É o "sotckvisch" que fala mal da baleia. Mas qual dos dois dá mais óleo?

- Tens a língua azeda esta manhã - disse Lamme. Ulenspiegel, no entanto, sem o escutar, dirigiu-se ao

egípcio:

- E que faz ela quando outros são ousados como o meu amigo Lamme?

O homem respondeu tristemente:

- Nesse caso tem o prazer e proveito. Os que a obtêm pagam a sua alegria, e o dinheiro serve para vesti-la, e também para as necessidades dos velhos e das mulheres.

- Não obedece então a quem quer que seja? - perguntou Lamme.

- Deixamos fazer o que querem aqueles que Deus atingiu. É assim que Ele marca a sua vontade, e tal é a nossa lei.

Ulenspiegel e Lamme afastaram-se. O egípcio regressou, grave e altivo, ao seu acampamento. E a rapariga, rindo às gargalhadas, dançava na clareira.

 

A caminho de Bruges, Ulenspiegel disse a Lamme: - Gastámos muito dinheiro a alistar soldados, pagar aos espiões, à egípcia, e nesses "olie-koecken" que preferes comer sem cessar a vender um único.

Ora, não obstante a tua ventral vontade, é tempo de viver mais honestamente. Dá-me o teu dinheiro, guardarei eu a bolsa comum.

- Está bem - consentiu Lamme. E, dando a bolsa a Ulenspiegel, acrescentou: - Não me deixes todavia morrer de fome. Lembra-te de que, gordo e poderoso como sou, preciso de uma alimentação abundante e substancial. É bom para ti, magro e miserável, viver o dia a dia, comendo ou não comendo o que encontras, como as pranchas do cais que vivem do ar e da chuva. Mas eu, a quem o ar abre o apetite e a quem a chuva deixa esfomeado, preciso de outros festins.

- Tê-los-ás - disse Ulenspiegel. - Festins de virtuosos jejuns. As panças mais cheias não lhes resistem; desinchando pouco a pouco, tornam ligeiro o homem mais pesado. E serás visto, dentro de pouco tempo, suficientemente desengordurado, a correr como um gamo, Lamme, meu rapaz.

- Ah! - exclamou Lamme. - Qual vai ser doravante a minha triste sorte? Tenho fome, meu filho, e gostaria de cear.

Ao cair da tarde, chegaram a Bruges, pela porta de Gand. Mostraram os seus passes. Tendo de pagar meio-soldo por eles e pelos burros, entraram na cidade; Lamme, pensando nas palavras de Ulenspiegel, parecia desolado.

- Cearemos em breve? - perguntava.

- Sim - respondia Ulenspiegel.

Dirigiram-se à "in de Meermin" (na Sereia), que tem um cata-vento, todo de ouro, que gira por cima da fachada da casa.

Puseram os burros na cavalariça e Ulenspiegel encomendou, para a sua ceia e para a de Lamme, cerveja, pão e queijo.

O estalajadeiro troçava, servindo esta magra refeição.

Lamme comia avidamente, lançando olhares desesperados a Ulenspiegel, que mastigava o pão demasiado velho e o queijo demasiado novo como se se tratasse de um prato de hortulanas. E Lamme bebia a sua cerveja sem prazer. Ulenspiegel ria, ao vê-lo tão triste. Havia também alguém que ria no pátio do albergue, e que por vezes espreitava através dos vidros. Ulenspiegel viu que era uma mulher, que escondia o rosto. Julgando tratar-se de alguma criada, não pensou mais nisso, e vendo Lamme pálido e triste devido aos seus amores ventrais contrariados, ia encomendar para o companheiro uma omelete de chouriços de sangue, um prato de carne com favas ou qualquer outra comida quente, quando o "baes" se aproximou e disse, tirando o barrete:

- Se os senhores viajantes desejam uma ceia melhor, dirão o que preferem.

Lamme abriu muito os olhos, e a boca ainda mais, olhando para Ulenspiegel com angustiosa inquietação. Ulenspiegel respondeu:

- Os operários que caminham não são ricos.

- Acontece por vezes - disse o "baes" - que não sabem exactamente tudo o que possuem. - E, apontando para Lamme, acrescentou: - Este bom homem vale quaisquer dois. Que querem vossas senhorias comer e beber? Uma omelete de presunto, "choesels", feitos hoje, um capão que se derrete sob os dentes, uma bela grelhada com um molho de quatro especiarias, dobbel-knol de Anvers, dobbel-kuyt de Bruges, vinho de Louvain preparado à moda da Borgonha? E sem pagar.

- Traga tudo - disse Lamme.

Não tardou que a mesa estivesse guarnecida, e Ulenspiegel divertiu-se a ver o pobre Lamme que, mais esfomeado do que nunca, se lançava sobre a omelete, os "choesels", o capão, o presunto, a grelhada, e bebia aos litros dobbel-knol e dobbel-kuyt, e o vinho de Louvain preparado à moda da Borgonha.

Quando não foi capaz de comer mais, bufou de prazer como uma baleia e olhou para cima da mesa, em busca de qualquer outra coisa que ainda pudesse trincar. E comeu as migalhas dos biscoitos.

Nem Ulenspiegel nem ele tinham visto o bonito rosto que passava e repassava no pátio. O "baes" levou-lhes vinho cozido com canela e com açúcar da Madeira, e eles continuaram a beber, cantando.

À hora do recolher, perguntou-lhes se desejavam subir aos grandes e belos quartos que lhes estavam preparados. Ulenspiegel respondeu-lhe que um pequeno serviria perfeitamente para os dois. O "baes" disse:

- Não tenho nenhum quarto pequeno; terão cada um o seu quarto de senhor, e sem pagar.

E, com efeito, conduziu-os a quartos ricamente guarnecidos de móveis e tapeçarias. No de Lamme havia um grande leito.

Ulenspiegel, que tinha bebido bem e caía de sono, deixou-o ir deitar-se e imitou-o prontamente.

No dia seguinte, ao meio-dia, entrou no quarto de Lamme e viu-o dormindo e roncando. A seu lado havia uma bonita bolsa cheia de dinheiro. Abriu-a e viu que continha carolus de ouro e patards de prata.

Sacudiu Lamme, para o despertar; Lamme acordou, esfregou os olhos e olhando em torno, inquieto, perguntou :

- A minha mulher! Onde está a minha mulher? E, mostrando um lugar vazio a seu lado, no leito, acrescentou:

- Ainda há pouco estava aqui.

Depois, saltando da cama, olhou novamente em torno, procurou nos cantos e recantos do quarto, dentro dos armários, batendo com um pé no chão e repetindo:

- A minha mulher! Onde está a minha mulher? O "baes" acorreu ao ruído, e Lamme, agarrando-o

pela garganta, perguntou:

- Patife, que fizeste da minha mulher? Onde está ela?

- Peão impaciente - respondeu o "baes" - a tua mulher? Que mulher? Vieste sozinho, nada sei a esse respeito.

- Ah! não sabe - disse Lamme, voltando a procurar em todos os cantos. - Ah! ela esteve aqui, esta noite, no meu leito, como nos tempos dos nossos belos amores. Sim. Onde estás tu, minha amada?

E, atirando a bolsa ao chão, gritou:

- Não é o teu dinheiro o que quero, és tu, o teu doce corpo, o teu bom coração, ó minha amada! Oh! alegrias do céu, nunca mais voltáveis. Já estava habituado a não te ver, a viver sem amor, meu doce tesouro. E eis que, tendo voltado, uma vez mais me desleixas. Quero morrer. Ah! minha mulher, onde está a minha mulher?

E chorava grossas lágrimas, sentado no chão. Depois, erguendo-se subitamente, pôs-se a correr pelo albergue e pela rua, em camisa, gritando:

- A minha mulher! Onde está a minha mulher? No entanto, pouco depois voltou ao quarto, porque os rapazes apupavam-no e atiravam-lhe pedras. E Ulenspiegel disse-lhe, obrigando-o a vestir-se:

- Não desesperes, voltarás a vê-la, uma vez que a viste. Ela ainda te ama, pois voltou para ti, e foi sem dúvida ela quem pagou a ceia e estes belos quartos, e te deixou em cima da cama esta bolsa cheia. As cinzas dizem-me que não pode na verdade ser isto uma coisa de mulher infiel. Não chores mais, e marchemos para defesa da terra dos pais.

- Fiquemos em Bruges - respondeu Lamme. - Quero correr toda a cidade, e encontrá-la-ei.

- Não a encontrarás, uma vez que ela se esconde de ti.

Lamme pediu explicações ao "baes", mas este recusou-se a dizer fosse o que fosse. E os dois amigos partiram para Damme. Enquanto caminhavam, Ulenspiegel disse a Lamme:

- Porque não me dizes como a encontraste junto de ti, esta noite, e como foi que ela te deixou?

- Meu filho, sabes que tínhamos comido bem e bebido melhor, e que eu tinha grande dificuldade em respirar quando fomos deitar-nos. Tinha para me alumiar uma vela de cera, como um senhor, e deixei-a em cima do baú, para dormir; a porta ficara entreaberta, e o baú estava muito perto. Enquanto me despia, olhava para a cama com grande amor e desejo de dormir; de súbito, a vela de cera apagou-se. Ouvi como que um sopro e um ruído de passos ligeiros no meu quarto. Mas, tendo mais sono do que medo, deitei-me pesadamente. Quando ia adormecer, uma voz, a voz dela, da minha mulher, perguntou-me: "Ceaste bem, Lamme?" E a voz dela estava muito perto de mim, assim como o seu doce corpo.

 

Nesse dia, o rei Filipe, tendo comido demasiados bolos, estava ainda mais melancólico do que habitualmente. Estivera a tocar no seu cravo vivo, que era uma caixa contendo gatos vivos cujas cabeças passavam através de buracos, por cima das teclas. De cada vez que o rei batia numa tecla, feria o gato com um dardo; e o animal miava e queixava-se devido à dor.

Filipe, porém, não ria.

Procurava incessantemente no seu espírito o meio de vencer Isabel, a grande rainha, e recolocar Maria Stuart no trono de Inglaterra. Com este objectivo, escrevera ao papa, necessitado e endividado; o papa respondera-lhe que de boa vontade venderia, para tal empresa, os vasos sagrados e os tesouros do Vaticano.

Filipe, porém, não ria.

Ridolfi, o amante da rainha Maria, que esperava, libertando-a, desposá-la depois e tornar-se rei da Inglaterra, foi ver Filipe para conjurar com ele a morte de Isabel. Mas era tão "parlanchin"(1), como descreveu o rei, que falou em voz alta do seu desígnio no parlamento de Anvers; e o assassínio não foi cometido.

E Filipe não ria.

E assim Deus iludia a ambição de aquele vampiro, que planeava roubar o filho a Maria Stuart e reinar em seu lugar, juntamente com o Papa, sobre a Inglaterra. E o assassino enfurecia-se ao ver esse nobre país grande e poderoso. Não cessava de voltar para ele os seus olhos pálidos, procurando um modo de esmagá-lo para em seguida reinar sobre o mundo, exterminando os reformistas, e nomeadamente os ricos, para herdar os bens das vítimas.

No entanto, o rei não ria.

E levaram-lhe ratos e arganazes dentro de uma caixa de ferro, de altas paredes, aberta de um lado; e ele colocou a caixa sobre um fogo vivo e tirou prazer de ver e ouvir saltar, gemer, gritar e morrer os pobres animais.

No entanto, não ria.

Depois, pálido e com as mãos trémulas, foi procurar os braços da senhora de Eboli, para apagar o seu fogo de luxúria acendido no archote da crueldade.

*(1) Palavra espanhola que significa palrador.

E não ria.

E a senhora de Eboli recebia-o por medo e não por amor.

 

O ar estava quente; do mar calmo não vinha o mais leve sopro de vento. Quase não se mexiam as árvores do canal de Damme, as cigarras permaneciam nos prados, enquanto que nos campos os homens das igrejas e das abadias iam recolher a dízima das colheitas para os curas e os abades. Do céu azul, ardente, profundo, o sol derramava calor e a Natureza dormia sob os seus raios como uma bela jovem nua hipnotizada pelas carícias do seu amante. As carpas faziam cabriolas à superfície da água do canal para apanhar as moscas que zumbiam como uma caldeira, e as andorinhas de corpos alongados e grandes asas disputavam-lhes as suas presas. Da terra elevava-se um vapor quente, ondeante e brilhante sob a luz. O bedel de Damme anunciava do alto da torre, tocando um sino rachado que soava como um caldeirão, que era meio-dia, hora de os trabalhadores que labutavam na ceifa irem cear. Mulheres gritavam, fazendo concha com as mãos, chamando os seus homens, irmãos ou maridos pelos nomes: Hans, Pieter, Joos; e os seus chapéus verdes viam-se por cima das sebes.

De longe, aos olhos de Lamme e de Ulenspiegel, erguia-se alta, quadrada e maciça, a torre de Nossa Senhora, e Lamme disse:

- Ali, meu filho, estão as tuas dores e amores. Ulenspiegel, porém, não respondeu.

- Em breve - continuou Lamme - verei a minha antiga casa, e talvez a minha mulher.

Ulenspiegel, porém, não respondeu.

- Homem de madeira - disse Lamme - coração de pedra, nada é pois capaz de agir sobre ti, nem a vizinhança próxima dos lugares onde passaste a tua infância, nem as sombras queridas do pobre Claes e da pobre Soetkin, os dois mártires. Ah! não estás triste nem alegre! Quem te secou o coração? Vê-me ansioso, inquieto, agitando a pança, vê...

Lamme olhou para Ulenspiegel e viu-o de cabeça inclinada, pálido, de lábios trémulos, chorando sem nada dizer.

E calou-se.

Avançaram assim sem dizer palavra até Damme, onde entraram pela Rua da Garça, e não encontraram vivalma devido ao calor. Os cães de língua pendente e deitados de lado, ofegavam diante das soleiras das portas. Ulenspiegel e Lamme passaram em frente da casa comum, diante da qual Claes fora queimado. Os lábios de Ulenspiegel tremeram ainda mais e as suas lágrimas secaram. Chegando à casa de Claes, ocupada por um mestre carvoeiro, entrou, dizendo:

- Reconheces-me? Quero repousar aqui:

- Reconheço-te, és o filho da vítima - respondeu o carvoeiro. - Vai para onde quiseres nesta casa.

Ulenspiegel foi à cozinha, e depois ao quarto de Claes e de Soetkin, e aí chorou. Quando desceu, o mestre carvoeiro disse-lhe:

- Aqui tens pão, queijo e cerveja. Se tens fome, come, se tens sede, bebe.

Ulenspiegel indicou-lhe com um gesto que não tinha fome nem sede.

E caminhava ao lado de Lamme, que ia escarranchado no seu burro, enquanto que Ulenspiegel levava o seu pela arreata.

Chegaram à choça de Katheline, prenderam os burros a uma argola e entraram. Era a hora da refeição. Sobre a mesa havia uma travessa de feijão-frade na vagem, misturado com favas brancas. Katheline comia; Nele estava de pé e preparava-se para deitar-lhe no prato um molho de vinagre que fora buscar ao fogão. Quando Ulenspiegel entrou, Nele ficou tão estupefacta que pôs a molheira com todo o molho no prato de Katheline, que, abanando a cabeça, procurava chegar às favas com a colher, batendo com a mão na testa e murmurando:

- Tire o fogo! A cabeça arde!

O cheiro do vinagre fazia fome a Lamme.

Ulenspiegel continuava de pé, olhando para Nele e sorrindo de amor no meio da sua grande tristeza.

E Nele, sem dizer palavra, lançou-lhe os braços à volta do pescoço. Também ela parecia louca, chorava, ria, e vermelha de grande e doce prazer, dizia apenas:

- Thyl! Thyl!

Ulenspiegel, feliz, olhava-a; depois ela deixava-o, ia colocar-se um pouco mais longe, contemplava-o alegre, corria de novo para ele e voltava a passar-lhe os braços pelo pescoço; e assim várias vezes. Ele abraçava-a, incapaz de separar-se dela, até que ela caiu numa cadeira, cansada e como que sem sentidos; e dizia, sem vergonha:

- Thyl! Thyl! Meu amado, eis-te então regressado! Lamme continuava de pé, à porta; Nele, ao acalmar-se um pouco mais, perguntou, indicando-o:

- Onde foi que já vi esse homem gordo?

- É o meu amigo - respondeu Ulenspiegel. - Procura a mulher, e eu acompanho-o.

- Conheço-te - disse Nele, dirigindo-se a Lamme. - Moravas na Rua da Garça. Procuras a tua mulher. Via-a em Bruges, vivendo com toda a piedade e devoção. Tendo-lhe perguntado porque fizera sofrer tão cruelmente o seu homem, ela respondeu-me: "Tal era a santa vontade de Deus e a ordem da santa Penitência. Já não posso viver mais com ele."

Lamme ficou triste ao ouvir isto e olhou para as favas com vinagre. E as andorinhas, cantando, elevavam-se para o céu, e a Natureza, delicada, deixava-se acariciar pelo sol. E Katheline continuava a procurar em torno do molheiro, com a sua colher, as favas, os feijões verdes e o molho.

 

Nesse tempo, uma menina de quinze anos foi de Heyst a Knokke, sozinha em pleno dia, pelas dunas. Ninguém temera por ela, pois sabia-se que os lobisomens e as almas condenadas só mordem durante a noite. Levava, numa sacola, quarenta e quatro soldos de prata, valendo quatro florins carolus, que a sua mãe, Toria Pieterson, vivendo em Heyst, devia, de uma venda, ao seu tio, Jan Rapen, que vivia em Knokke. A menina, chamada Betkin, tendo vestido as suas mais belas roupas, partira contente.

Ao cair da tarde, a mãe inquietou-se ao não vê-la regressar. Pensando todavia que a filha ficara a dormir em casa do tio, tranquilizou-se.

No dia seguinte, uns pescadores, voltando do mar com um barco carregado de peixe, vararam o barco na praia e transportaram o peixe para carroças, para o irem vender ao mercado de Heyst. Subiram o caminho atapetado de conchas e encontraram, na duna, uma menina toda nua, e areia manchada de sangue em torno do seu corpo. Aproximando-se, viram-lhe no pescoço partido a marca de uns dentes agudos.

Deitada de costas, a menina tinha os olhos abertos, olhando para o céu, e a boca também aberta, como que para gritar!

Cobrindo o corpo da menina com um' "opperst-kleed", levaram-na para Heyst, para a Casa comum. Não tardou que lá se reunissem os almotacéis e o cirurgião-barbeiro, o qual declarou que aqueles compridos dentes não eram dentes de lobo tal como os faz a Natureza, mas os de algum maldito e infernal "weer-wolf", lobisomem, e que era preciso pedir a Deus que desembaraçasse da horrível criatura a terra da Flandres.

E em todo o condado, e nomeadamente em Damme, em Heyst e em Knokke, foram ordenadas preces e orações.

E o povo, gemendo, reunia-se nas igrejas.

Na de Heyst, onde estava o corpo da menina, exposto, homens e mulheres choravam ao verem o seu pescoço ensanguentado e rasgado. E a mãe disse, dentro da própria igreja:

- Quero ir à procura do "weer-wolf", e matá-lo com os meus dentes.

E as mulheres, chorando, incitavam-no a fazê-lo, e algumas diziam-lhe:

- Não voltarás.

E ela foi, acompanhada pelo seu homem e os seus dois irmãos, bem armados. Procuraram o lobo na praia e nas dunas, mas não o encontraram, e o homem teve de levá-la para casa, pois ela apanhara febres devido ao frio da noite; e ficaram a velar junto dela, reparando as redes para a pesca.

O bailio de Damme, considerando que o "weer-wolf" é um animal que vive de sangue e não despoja os mortos, disse que aquele era certamente seguido por ladrões que vagueavam pelas dunas. Ordenou pois, a todos e a cada um, que, bem armados de arcabuzes e varas,

Corressem aos mendigos e vagabundos, os prendessem e os revistassem para ver se acaso não teriam nas sacolas carolus de ouro ou qualquer peça do vestuário das vítimas. Depois disto, os mendigos e vagabundos válidos seriam levados para as galés do rei, deixando-se em liberdade os velhos e os doentes.

No entanto, não se encontrou fosse o que fosse.

Ulenspiegel foi a casa do bailio e disse-lhe:

- Quero matar o "weer-wolf".

- Quem te dá confiança? - perguntou-lhe o bailio.

- As cinzas batem no meu peito - respondeu Ulenspiegel. - Dê-me autorização para trabalhar na força da comuna.

- Podes fazê-lo - disse o bailio.

Ulenspiegel, sem dar parte do seu projecto a nenhum homem ou mulher de Damme, meteu-se na forja e aí, secretamente, forjou um belo e grande engenho para apanhar feras.

No dia seguinte, sábado, dia preferido pelo "weer-wolf", Ulenspiegel, levando uma carta do bailio para o cura de Heyst e o engenho escondido sob o manto, armado além disso com uma boa besta e uma afiada faca, partiu, dizendo aos de Damme:

- Vou caçar gaivotas, e com as suas penas farei uma almofada para a mulher do bailio.

Dirigindo-se a Heyst pela praia, ouviu o mar cavo roçar as suas grandes vagas com um ruído de tempestade, e o vento soprando de Inglaterra, assobiando entre o cordame dos barcos varados. Um pescador disse-lhe:

- Para nós este mau vento é ruína. Esta noite o mar esteve calmo, mas ao nascer do dia levantou-se subitamente, zangado. Não poderemos sair para a pesca.

Ulenspiegel ficou contente, seguro de que desse modo poderia receber ajuda durante a noite, se fosse necessário.

Em Heyst, foi a casa do cura e entregou-lhe a carta do bailio. O cura disse-lhe:

- És valente. Sabe todavia que ninguém passa sozinho, pelas dunas, na noite de sábado, sem ser mordido e deixado morto na areia. Os trabalhadores dos diques e outros só lá vão em grupos. A noite cai. Ouves o "weer-wolf" uivar no seu valado? Virá outra vez, como a noite passada, ao cemitério, para uivar de um modo terrível até ao nascer do sol? Deus seja contigo, meu filho, mas não vás.

E o cura benzeu-se.

- As cinzas batem no meu peito - respondeu Ulenspiegel.

- Uma vez que estás animado de uma tão brava vontade - disse-lhe o cura - vou ajudar-te.

- Senhor cura - disse Ulenspiegel - far-me-ia um grande bem, e à pobre região desolada, se fosse a casa de Toria, a mãe da menina, e também a casa dos seus dois irmãos, e lhes dissesse que o lobo está próximo e que eu quero esperá-lo e matá-lo.

- Se não sabes ainda em que caminho te deves colocar, vai postar-te naquele que conduz ao cemitério. Fica entre duas sebes de giestas, e é tão estreito que dois homens lado a lado não poderiam percorrê-lo.

- Assim farei - disse Ulenspiegel. - E vós, senhor valoroso cura, coadjutor de libertação, mandai dizer à mãe da menina, ao seu marido e aos seus irmãos que se reunam na igreja, bem armados, antes do recolher. Se me ouvirem gritar como a gaivota, saberão que vi o lobisomem. Deverão nessa altura tocar a rebate no sino e correr a ajudar-me. E se houver quaisquer outros homens de coragem... ?

- Não há, meu filho - afirmou o cura.

- Os pescadores temem mais o "eer-wolf" do que a peste e a morte. Mas não vás.

- As cinzas batem no meu peito - repetiu Ulenspiegel.

- Farei então como queres, e bendito sejas. Tens fome ou sede?

- Ambas as coisas.

O cura deu-lhe pão, queijo e cerveja. Ulenspiegel comeu e bebeu, e depois saiu.

Caminhando e erguendo os olhos, viu o seu pai Claes em glória, ao lado de Deus, no céu onde brilhava claramente a lua, e olhou para o mar e para as nuvens, e ouviu o vento tempestuoso soprando de Inglaterra.

- Ah! - disse - negras nuvens passando rápidas, sejam como Vingança para o Assassino. Mar rugidor, céu que te fazes negro como a goela do inferno, vagas de escuma de fogo correndo sobre a água sombria, sacudindo impacientes, zangadas, incontáveis animais de fogo, bois, carneiros, cavalos, serpentes rolando-vos nas águas ou erguendo-vos no ar, vomitando chuva flamejante, vinde comigo combater o "weer-wolf", assassino de meninas. E tu, vento que gemes queixoso por entre os juncos das dunas e o cordame dos barcos, és a voz das vítimas que clamam vingança a Deus, que me ajude nesta empresa.

E desceu ao vale, cambaleando como se tivesse na cabeça vapores de embriaguez e no ventre uma indigestão de couves.

Pôs-se a cantar, soluçando, ziguezagueando, cambaleando, cuspindo e detendo-se, fingindo vomitar, mas na realidade atento a tudo o que se passava em seu redor. Subitamente, ao ouvir um uivo agudo, deteve-se, vomitando como um cão, e viu, à brilhante claridade da lua, a forma alongada de um lobo caminhando na direcção do cemitério.

Oscilando-se cada vez mais, meteu pelo caminho entre as sebes de giestas. Aí, fingindo cair, colocou o engenho do lado de onde vinha o lobo, armou a sua besta e afastou-se dez passos, mantendo-se de pé na posição de um homem embriagado, fingindo sem cessar vómitos e soluços, mas na realidade esticando o espírito como a corda de um arco e mantendo os ouvidos e os olhos bem abertos.

Nada viu, a não ser as negras nuvens correndo como loucas pelo céu e uma curta e grossa forma escura que avançava para ele; nada ouviu, a não ser o vento gemendo queixosamente, o mar rugindo como o trovão e o caminho coberto de conchas estalando sob uns passos pesados e saltitantes.

Fingindo querer sentar-se, caiu pesadamente no caminho, como um bêbado, e cuspiu.

Então ouviu um estalido de ferragem a dois passos da sua orelha, depois o ruído do engenho ao fechar-se e um grito de homem.

- O "weer-wolf" - murmurou Ulenspiegel - tem as patas da frente apanhadas na armadilha. Ergue-se uivando, sacudindo o engenho, querendo correr. Mas não me escapará.

E disparou-lhe um virote às pernas.

- Caiu, está ferido!

E Ulenspiegel gritou como a gaivota. No mesmo instante, o sino da igreja tocou a rebate e uma voz de garoto, alta e aguda, gritou na aldeia:

- Despertem, gentes que dormem! O "weer-wolf" foi apanhado.

- Natal a Deus! - exclamou Ulenspiegel.

Toria, a mãe de Betkin, Lansaem, o seu homem, Joos e Michiel, os seus irmãos, foram os primeiros a chegar, com lanternas.

- Foi apanhado? - perguntaram.

- Vejam no caminho - respondeu Ulenspiegel.

- Natal a Deus! - disseram eles, e benzeram-se.

- Quem toca o sino? - perguntou Ulenspiegel.

- O meu filho mais velho - respondeu Lansaem. - O mais novo corre pela aldeia, batendo às portas e gritando às gentes que o lobo foi apanhado. Abençoado sejas!

- As cinzas batem no meu peito - respondeu Ulenspiegel.

Subitamente, o "weer-wolf" falou, e disse:

- Tem piedade de mim. Piedade, Ulenspiegel.

- O lobo fala! - exclamaram todos, benzendo-se. - É o diabo, e já sabe o nome de Ulenspiegel.

- Tem piedade, piedade - continuou a voz. - Diz ao sino que se cale; está a dobrar pelos mortos. Não sou um lobo. Tenho os pulsos furados pelo engenho, sou velho, estou a sangrar. Piedade! Que voz é essa de criança que desperta a aldeia? Piedade!

- Reconheço a tua voz! - disse veementemente Ulenspiegel. - És o peixeiro assassino de Claes, vampiro de crianças. Compadres e comadres, não tenham receio. É o decano, aquele por cuja causa Soetkin morreu de dor.

E, agarrando-o com uma mão pelo pescoço, com a outra empunhou a faca.

No entanto, Toria, a mãe de Betkin, deteve-lhe o gesto.

- Apanha-o vivo! - gritou.

E arrancou-lhe os cabelos brancos aos punhados, rasgando-lhe a cara com as unhas.

E uivava de triste furor.

O "weer-wolf", com as mãos presas no engenho e torcendo-se no caminho devido à dor, gritava:

- Piedade! Afastem essa mulher. Darei dois carolus. Partam os sinos! Onde estão essas crianças que gritam?

- Deixem-no vivo! - gritava Toria. - Deixem-no vivo, para que pague! Os sinos dos mortos, os sinos dos mortos para ti, assassino. A fogo lento, com tenazes ardentes. Deixem-no vivo, para que pague!

Toria, entretanto tinha encontrado, caída no chão, uma grelha de longos braços. Observando-a à luz dos archotes, viu, entre as duas chapas de ferro onde, no estilo de Brabante, estavam profundamente gravados vários losangos, uns compridos e aguçados dentes. E quando abriu a grelha, foi como uma goela de lebréu.

Então, segurando-a pelos braços, abrindo-a e fechando-a de modo a fazer ressoar o ferro, Toria, como que louca de máscula raiva, rilhando os dentes, com estertores de moribunda, gemendo por causa da dor da sua amarga sede de vingança, mordeu com o engenho o prisioneiro, nos braços, nas pernas, por todo o lado, procurando sobretudo o pescoço, e, cada vez que o mordia, dizia:

- Assim fizeste a Betkin, com os dentes de ferro. Agora pagas. Sangras, assassino? Deus é justo! Os

sinos dos mortos! Betkin chamam-me à vingança. Sentes os dentes? É a goela de Deus!

E mordia-o sem dó nem piedade, batendo-lhe com a grelha onde não podia mordê-lo. E foi só devido à sua grande impaciência por se vingar que não o matou.

- Misericórdia! - gritava o prisioneiro. - Ulenspiegel, fere-me com a tua faca, quero morrer. Afasta esta mulher, parte os sinos dos mortos, mata as crianças que gritam.

E Toria continuava a mordê-lo, até que um velho, apiedando-se do assassino, lhe tirou a grelha das mãos.

Toria, então, cuspiu na cara do "weer-wolf", e, arrancando-lhe os cabelos, dizia:

- Pagarás a fogo lento, a tenazes ardentes! Arrancar-te-ei os olhos com as unhas!

Entretanto tinham chegado todos os pescadores, camponeses e mulheres de Heyst, ao rumor de que o "weer-wolf" era um homem e não um diabo. Alguns empunhavam candeias e archotes flamejantes, outros gritavam:

- Ladrão assassino, onde escondes o ouro roubado às pobres vítimas? Devolve tudo!

- Já não o tenho - gemia o prisioneiro. - Tenham piedade!

E as mulheres atiravam-lhe pedras e areia. Toria não cessava de gritar:

- Pagará! Pagará!

- Piedade! - gemia ele. - Estou encharcado no meu próprio sangue. Piedade!

- O teu sangue! - replicou Toria. - Ainda te restará o bastante para pagar. Tratem-lhe as feridas. Pagará a fogo lento, à mão cortada, com tenazes ardentes.

E quis bater-lhe. Depois, fora de si, caiu na areia, como morta. E deixaram-na assim estendida até que voltou a si.

Entretanto Ulenspiegel, ao tirar o engenho das mãos do prisioneiro, viu que lhe faltavam três dedos da mão direita.

E mandou que o amarrassem bem e o estendessem numa padiola de pescador. Homens, mulheres e crianças voltaram à aldeia, levando alternadamente a padiola, dispostos a pedir justiça. E levavam archotes e lanternas.

E o peixeiro repetia sem cessar:

- Partam os sinos, matem as crianças que gritam! E Toria dizia:

- Há-de pagar, a fogo lento e a tenazes ardentes! Há-de pagar!

Depois calaram-se ambos, e Ulenspiegel nada mais ouviu a não ser a respiração ofegante de Toria, o passo pesado dos homens sobre a areia e o mar que rugia como um trovão.

E, triste no seu coração, via as nuvens correrem como loucas pelo céu, o mar onde se avistavam carneiros de fogo e, à luz dos archotes e lanternas, o rosto lívido do peixeiro, que cravava nele dois olhos cruéis.

E as cinzas bateram no seu coração.

E caminharam assim durante quatro horas, até Damme, onde o povo estava reunido em multidão, sabendo já das notícias. Todos queriam ver o peixeiro, e seguiram o grupo de pescadores, gritando, cantando, dançando e dizendo:

- O "weer-wolf" foi apanhado, foi apanhado, o assassino! Abençoado seja Ulenspiegel! Longa vida ao nosso irmão Ulenspiegel! "Lange leven onsen broeder Ulenspiegel!"

E era como uma revolta popular. Quando passaram diante da casa do bailio, este acorreu ao ruído e disse a Ulenspiegel:

- És vencedor; Natal a ti!

- As cinzas de Claes batiam no meu peito - respondeu Ulenspiegel.

Então o bailio disse:

- Terás metade da herança do assassino.

- Dêem-na às vítimas - murmurou Ulenspiegel. Lamme e Nele chegaram nesse instante; Nele ria

e chorava de contentamento, beijando o seu amigo Ulenspiegel; Lamme saltava pesadamente, batia-lhe na barriga e dizia:

- Este é bravo e fiel; é o meu amado companheiro: não têm outros iguais, vocês, gentes das terras baixas.

Os pescadores, no entanto, riam, troçando dele.

 

O sino, chamado "borgstorm", tocou no dia seguinte para chamar os bailios, vereadores e escrivães à "viers-chare", os quatro bancos de relva, sob a árvore da justiça, que era uma bela tília. Em torno amontoava-se o povo. Sendo interrogado, o peixeiro nada quis confessar, nem sequer quando lhe mostraram três dedos cortados pelo soldado e que lhe faltavam na mão direita, insistindo em dizer:

- Sou pobre e velho, tenham misericórdia! O povo, porém, apupava-o, gritando:

- És um velho lobo, assassino de crianças; não tenham piedade, senhores juízes.

As mulheres diziam:

- Não nos olhes com os teus olhos frios, és um homem e não um diabo, não te tememos. Animal cruel, mais cobarde do que o gato que vai comer as avezinhas ao ninho, matava as pobres crianças que só pediam que as deixassem viver a sua vida.

- Que pague a fogo lento, com as tenazes ardentes! - gritava Toria.

E a despeito da presença dos sargentos da comuna, as mães incitavam os filhos a atirar pedras ao peixeiro. E os garotos faziam-no de boa vontade, apupando-o de cada vez que ele os olhava e gritando sem cessar:

- "Bloedzuyger", sugador de sangue! "Sla dood", mata, mata!

E Toria gritava:

- Que pague a fogo lento, a tenazes ardentes! E o povo murmurava.

- Vejam - diziam as mulheres - como ele tem frio sob o sol que brilha claro no céu, aquecendo os seus cabelos brancos e a sua face rasgada por Toria.

- E treme de dor.

- É a justiça de Deus.

- E mantém-se de pé, com um ar lamentável.

- Vejam as suas mãos de assassino, amarradas e ensanguentadas por causa das feridas da armadilha.

- Que pague! Que pague! - gritava Toria. E ele, lamentando-se, repetia:

- Sou pobre, deixem-me.

E todos, até os juízes, troçavam, ao ouvi-lo. Depois fingiu chorar, tentando enternecer os outros. E as mulheres riam.

Visto haver indícios suficientes para a tortura, foi condenado a ser colocado no banco até confessar como matava, de onde vinha, onde estavam os despojos das suas vítimas e onde escondia o seu ouro.

Estando na câmara de tortura, amarrado pelas correias de couro novo muito apertadas, e perguntando-lhe o bailio de que modo Satanás lhe inspirara tão negros desígnios e crimes tão abomináveis, respondeu:

- Satanás sou eu, o meu ser de natureza. Ainda criança, mas feio de aparência, inábil em todos os exercícios corporais, todos me consideravam tolo e batiam-me muitas vezes. Nem rapazes nem raparigas tinham pena de mim. Na minha adolescência, nenhuma mulher me quis, nem mesmo pagando. Foi então que ganhei um frio ódio por todo o ser nascido de mulher. Foi por isso que denunciei Claes, que todos amavam. E eu amava só o Dinheiro, que foi a minha amante branca ou dourada. Ao causar a morte de Claes, tirei proveito e prazer. Depois, precisei mais do que nunca de viver como um lobo, e sonhava com morder. Passando por Brabante, vi as grelhadoras desse país, e pensei que uma delas daria uma boa goela de ferro. Ah! que não posso agarrá-los pelo pescoço, tigres malvados, que gozam com o suplício de um velho!

Mordê-los-ia com muito maior prazer do que ao soldado e à rapariga. Pois essa, quando a vi tão bonita, dormindo ao sol, sobre a areia, tendo nas mãos a sacola com o dinheiro, fui tomado de amor e piedade; mas sendo demasiado velho e não podendo possuí-la, mordi-a...

O bailio perguntou-lhe onde vivia, e o peixeiro respondeu:

- Em Ramskapelle, de onde vou até Blanckenberghe, até Hyeist, por vezes até Knokke. Aos domingos e dias de feira faço grelhas à moda de Brabante, em todas as aldeias, com esse engenho que aí está. Tenho-o sempre bem limpo e oleado. E essa novidade das terras estranhas foi bem recebida. Se querem saber mais e compreender como ninguém me reconhecia, dir-lhes-ei que de dia pintava a cara de branco e os cabelos de vermelho. Quanto à pele de lobo que me mostra com o seu dedo cruel, interrogando-me, dir-lhe-ei que vem dos lobos que matei nas florestas de Raveschoot e de Maldeghen. Bastou-me cosê-las umas às outras para me cobrir. Escondia-a numa caixa, nas dunas de Heyst; também lá estão as roupas que roubei, e que queria vender mais tarde, em boa ocasião.

- Tirem-no de diante do fogo - ordenou o bailio. O carrasco obedeceu.

- Onde está o teu ouro? - perguntou o bailio.

- O rei não o saberá - respondeu o prisioneiro.

- Queimem-no de mais perto com as velas ardentes - ordenou o bailio. - Aproximem-no do fogo.

O carrasco obedeceu, e o prisioneiro gritou:

- Não quero dizer. Já falei demasiado. Queimar-me-ão. Não sou bruxo, porque voltam a colocar-me perto do fogo? Os meus pés sangram devido às queimaduras. Não direi palavra. Para quê mais perto ainda? Sangram, digo-lhes eu, sangram; essas correias são botas de ferro em brasa. O meu ouro? Pois bem,

o meu único amigo neste mundo está... Afastem-me do fogo... Está na minha cave em Ramskapelle, numa caixa... Deixem-me. Misericórdia e perdão, senhores juízes! Maldito carrasco, afasta as velas... Queima-me mais... Está numa caixa com fundo falso, embrulhado em lã, para o impedir de tilintar se alguém sacudir a caixa. Agora disse tudo, afastem-me do fogo.

E, ao ser afastado do fogo, sorriu malevolamente.

O bailio perguntou-lhe porque sorria.

- De alegria, por estar livre do fogo - respondeu ele.

- Ninguém te pediu que o deixasse ver a tua grelha dentada? - perguntou então o bailio.

- Viam-na igual a todas as outras, salvo que tinha uns orifícios onde eu encaixava os dentes de ferro. Quando nascia o dia, tirava-os. Os camponeses preferem as minhas grelhas às dos outros mercadores, e chamam-lhes "Waefels met brabandsche knoopen", grelhas de botões de Brabante, porque, tirados os dentes, os encaixes vazios formam uma espécie de pequenas meias esferas semelhantes a botões.

- Quando mordias as pobres vítimas? - quis saber o bailio.

- De dia e de noite. De dia, vagueava pelas dunas e pelos caminhos, levando a minha grelha, conservando-me escondido, e principalmente ao sábado, dia do grande mercado de Bruges. Se via passar algum camponês solitário e triste, deixava-o, pensando que o seu mal era de bolsa. Mas caminhava ao lado de aquele que via caminhar alegremente, e quando ele menos esperava, mordia-o no pescoço e levava-lhe a bolsa. E não só nas dunas, mas também em todos os trilhos e caminhos da região das terras baixas.

O bailio, então, disse:

- Arrepende-te, e ora a Deus.

O peixeiro, todavia, blasfemando, replicou:

- Foi o Senhor Deus quem me fez como sou. Tudo o que fiz, fi-lo mau grado eu mesmo, incitado pelo querer da Natureza. Tigres malvados, punir-me-ão injustamente. Mas não me queimem... fiz tudo mau grado eu mesmo. Tenham piedade, sou pobre e sou velho. Morrerei das minhas feridas. Não me queimem.

O peixeiro foi então levado para a "vierschare" sob a tília, para ouvir a sentença, diante de todo o povo reunido.

E foi condenado, como horrível assassino, ladrão e blasfemador, a ter a língua furada por um ferro em brasa, o punho direito cortado, e a ser queimado vivo a fogo lento, até à morte, diante da casa comum.

E Toria gritou:

- É justiça! O monstro paga! E o povo gritava:

- "Lang leven de Heeren van de wet", longa vida aos senhores da lei!

O peixeiro foi levado para a prisão, onde lhe deram carne e vinho. E ficou muito contente, dizendo que nunca tinha comido nem bebido até então, mas que o rei, herdando os seus bens, podia pagar-lhe aquela última refeição.

E ria azedamente.

No dia seguinte, ao raiar da aurora, enquanto o levavam para o suplício, viu Ulenspiegel de pé junto da fogueira, e gritou, apontando-o com um dedo:

- Esse que além está, assassino de um velho, deve morrer também. Atirou-me, há dez anos, ao canal de Damme, porque eu tinha denunciado o seu pai. E nisso servi como súbdito fiel de Sua Majestade Católica.

Os sinos de Nossa Senhora dobravam a finados. - É também por ti que os sinos dobram - gritava o peixeiro a Ulenspiegel. - Serás enforcado, porque também mataste.

- O assassino mente - gritavam os do povo. - Mente, o assassino carrasco!

E Toria, como louca, gritou, atirando-lhe uma pedra que o feriu na testa:

- Se te tivesse afogado, não terias vivido para morder, como um vampiro sugador de sangue, a minha pobre filha.

Ulenspiegel não dizia palavra. Lamme perguntou-lhe:

- Alguém te viu atirar o peixeiro à água? Ulenspiegel não respondeu.

- Não, não! - gritava o povo. - Mente, o carrasco!

- Não, não minto - gritou o prisioneiro. - Atirou-me à água, enquanto eu lhe pedia que me perdoasse, e só me salvei graças a uma chalupa amarrada à margem. Encharcado e transido, tive grande dificuldade em chegar à minha triste casa. Tive febre, ninguém me tratou, e julguei morrer.

- Mentes - disse Lamme. - Ninguém o viu.

- Não, ninguém o viu! - gritou Toria. - Ao fogo, o carrasco! Antes de morrer, quer mais uma vítima inocente! Ao fogo! Que pague! Mentiu! Se o fizeste, não o confesses, Ulenspiegel. Não há testemunhas. Que pague a fogo lento, a tenazes ardentes!

- Cometeste esse crime? - perguntou o bailio a Ulenspiegel.

Ulenspiegel respondeu:

- Atirei à água o assassino de Claes. As cinzas do pai batiam no meu coração.

- Confessa! - gritou o peixeiro. - Morrerá como eu. Onde está a forca? Quero vê-la. Onde está o carrasco com o gládio da justiça? Os sinos dos mortos dobram por ti, patife assassino de um velho.

Ulenspiegel disse:

- Atirei-o à água para o matar. As cinzas batiam no meu coração.

Entre a multidão, as mulheres diziam:

- Porque o confessaste, Ulenspiegel? Ninguém o viu. Agora terás de morrer.

E o prisioneiro ria, saltando de má alegria, agitando os braços amarrados e cobertos de ligaduras ensanguentadas.

- Morrerá - dizia - passará da terra para os infernos, com a corda ao pescoço, como biltre, ladrão, patife. Morrerá! Deus é justo.

- Não morrerá - disse o bailio. - Ao cabo de dez anos, o assassínio não pode ser punido na terra de Flandres. Ulenspiegel cometeu uma má acção, mas por amor filial. Ulenspiegel não será perseguido por isso.

- Viva a lei! - gritou o povo. -'Lang leven de wet.'

Os sinos de Nossa Senhora dobravam a finados. E o prisioneiro rilhou os dentes, inclinou a cabeça e chorou a sua primeira lágrima.

E o punho foi-lhe cortado e a língua foi-lhe furada por um ferro em brasa, e foi queimado a fogo lento diante da Casa comum.

Perto da morte, gritou:

- O rei não terá o meu ouro; menti... Tigres malvados, voltarei para lhes morder!

E Toria gritava:

- Paga! Paga! Torcem-se os braços e as pernas que corriam para o assassínio. Fumega, o corpo do carrasco. O seu pêlo branco, pêlo de hiena, arde sobre o seu pálido focinho. Paga! Paga!

E o prisioneiro morreu, uivando como um lobo. E os sinos de Nossa Senhora dobravam a finados.

E Lamme e Ulenspiegel voltaram a montar os seus burros.

E Nele, dolente, ficou junto de Katheline, que dizia sem cessar:

- Afastem o fogo! A cabeça arde. Volta, Hanske, meu amado.

 

LIVRO QUARTO

ESTANDO em Heyst, nas dunas, Ulenspiegel e Lamme viram aproximar-se, do lado de Ostende, de Blanckenberghe, de Knokke, um grande número de barcos de pescadores cheios de homens armados e seguindo os Esfarrapados da Zelândia, que usavam no chapéu o crescente de prata com a inscrição: "Antes servir os turcos que o Papa."

Ulenspiegel ficou muito contente e assobiou como a cotovia; e de todos os lados respondeu-lhe o clarim guerreiro do galo.

Os barcos, vogando ou pescando e vendendo o seu peixe, acostavam, um após outro, a Emden, onde se encontrava Guilherme de Blois, que, por ordem do príncipe de Orange, equipava um navio.

Ulenspiegel e Lamme chegaram a Emden, enquanto que, por ordem de Trés-Long, os barcos dos Esfarrapados se faziam novamente ao mar.

Trés-Long, encontrando-se em Emden havia doze semanas, entediava-se amargamente. Ia do navio a terra e de terra ao navio, como um urso enjaulado.

Ulenspiegel e Lamme, vagueando pelos cais, avistaram um senhor de belo aspecto que, com ar melancólico, tentava soltar com um espigão uma das lajes do cais. Não o conseguindo, insistia todavia em tentar levar a bom termo a empresa, enquanto que atrás dele um cão roía um osso.

Ulenspiegel aproximou-se do cão e fingiu querer roubar-lhe o osso. O cão rosnou. Ulenspiegel não desistiu e o cão pôs-se a ladrar furiosamente.

O senhor, voltando-se, perguntou a Ulenspiegel:

- De que te serve atormentar esse animal?

- De que vos serve, senhor, atormentar essa laje?

- Não é a mesma coisa - respondeu o senhor.

- A diferença não é grande - respondeu Ulenspiegel. - Se o cão gosta do osso e quer conservá-lo, a laje gosta do cais e quer continuar onde está. E é natural que pessoas que como eu girem em torno de um cão quando pessoas como vós giram em volta de uma laje.

Lamme estava atrás de Ulenspiegel, sem ousar dizer palavra.

- Quem és tu? - perguntou o senhor.

- Sou Thyl Ulenspiegel, filho de Claes, que morreu nas chamas da fé.

E assobiou como a cotovia, e o senhor cantou como o galo.

- Sou o almirante Trés-Long - disse. - Que me queres?

Ulenspiegel contou-lhe as suas aventuras e entregou-lhe quinhentos carolus.

- Quem é esse homem tão gordo? - perguntou o almirante Trés-Long, indicando Lamme.

- O meu companheiro Lamme - respondeu Ulenspiegel- que quer, como eu, cantar no teu navio, com a bela voz de arcabuz, a canção da libertação da terra dos pais.

- São ambos bravos - disse Trés-Long. - Partirão no meu navio.

Estava-se então em Fevereiro; o vento soprava agreste, o ar estava frio. Após três semanas de uma espera nervosa, Três-Long deixou Emden. Pensando dirigir-se a Texel, partiu do Vlie, mas foi obrigado a entrar em Wieringen, onde o seu navio ficou cercado pelo gelo.

Em torno do barco aprisionado, desenrolava-se um belo espectáculo; trenós e patinadores vestidos de veludo, patinadoras de saias e mantos bordados a ouro, a pérolas, a escarlate e a azul, rapazes e raparigas indo e vindo, deslizando, rindo, seguindo-se em linha, ou dois a dois, ou por casais, cantando a canção de amor sobre o gelo ou indo comer e beber, às lojas enfeitadas de bandeiras, aguardente, laranjas, figos, "peperkoek", "schols", ovos, legumes quentes e "eetekoeken", que são crepes e legumes com vinagre, enquanto que em torno deles trenós à vela faziam estalar o gelo sob os seus patins.

Lamme, procurando a mulher, vagueava patinando como os alegres compadres e comadres, mas caía muitas vezes.

Entretanto, Ulenspiegel ia dessedentar-se e alimentar-se num pequeno albergue perto do cais, onde não tinha de pagar muito caro o que consumia. E conversava alegremente com a velha "baesine".

Um domingo, por volta das nove horas, entrou no albergue, pedindo que lhe servissem o jantar.

- Mas - exclamou, dirigindo-se a uma bela mulher que se aproximava para o servir - "baesine" refrescada, que fizeste tu das tuas antigas rugas? A tua boca tem todos os seus dentes brancos e fortes, e os teus lábios são vermelhos como cerejas. É para mim, esse doce e malicioso sorriso?

- Não - disse ela. - Que desejas?

- Desejo-te a ti.

- Seria demasiado para um magricelas como tu. Não queres outra carne?

Ulenspiegel não disse palavra, e ela continuou:

- Que fizeste desse homem belo, bem feito e corpulento que muitas vezes vi contigo?

- Lamme?

- Que fizeste dele?

- Come nas tascas - respondeu Ulenspiegel - ovos duros, enguias fumadas, peixes salgados, "zuertis" e tudo o que consegue meter sob o dente. Tudo isto para procurar a mulher. Não serás tu? Não queres cinquenta florins? Não queres um colar de ouro?

Ela, benzendo-se, replicou:

- Não sou para dar nem para vender.

- Não haverá qualquer coisa que ames?

- Amo-te como meu próximo, mas amo sobretudo Cristo e a Virgem, que me ordenam que leve uma vida decente. Duros e pesados são os seus deveres, mas Deus ajuda-nos, a nós pobres mulheres. Há no entanto algumas que sucumbem. O teu amigo gordo é alegre?

- É alegre quando come, triste quando jejua, e sempre sonhador. Mas tu, és alegre ou dolente?

- Nós, as mulheres, somos escravas de quem nos governa!

- A lua?

- Sim.

- Vou dizer a Lamme que venha ver-te.

- Não o faças - pediu ela. - Choraria ele e choraria eu.

- Conheces a mulher do meu amigo? Ela, suspirando, respondeu:

- Pecou com ele e foi condenada a uma cruel penitência. Sabe que ele anda no mar para triunfo da heresia, o que é uma coisa dura de pensar para um coração cristão. Defende-o se o atacarem, trata-o se for ferido. A mulher ordenou-me que te fizesse este pedido.

- Lamme é meu irmão e amigo - disse Ulenspiegel.

- Ah! - exclamou ela. - Porque não voltam ao regaço da nossa santa mãe a Igreja?

- Ela come os seus filhos - replicou Ulenspiegel. E saiu.

Certa manhã de Março, uma vez que o vento, que soprava frio, continuava a endurecer o gelo e o navio de Trés-Long não podia partir, os marinheiros e soldados comiam, bebiam, patinavam e divertiam-se.

Ulenspiegel estava no albergue, onde a bela mulher lhe disse, triste e nervosa:

- Pobre Lamme! Pobre Ulenspiegel!

- Porque nos lamentas? - perguntou ele.

- Ah! - exclamou ela. - Porque não acreditam na missa? Iriam para o paraíso, sem dúvida, e eu poderia salvá-los nesta vida.

Vendo-a aproximar-se da porta e escutar atentamente, Ulenspiegel perguntou-lhe:

- Não é a neve que ouves cair, pois não?

- Não.

- Não é ao vento queixoso que dás atenção?

- Não.

- Nem à balbúrdia alegre que fazem na taberna vizinha os nossos bravos marujos?

- A morte vem como um ladrão - disse ela.

- A morte? - exclamou Ulenspiegel. - Não te compreendo. Fala.

- Vêm aí - disse ela.

- Quem?

- Quem? Os soldados de Simonen-Bol, que vêm, em nome do duque, matá-los a todos.

Se aqui os tratam tão bem, é como aos bois que vão ser mortos. Ah! - acrescentou, banhada em lágrimas - se o tivesse sabido mais cedo.

- Não chores nem grites - disse-lhe Ulenspiegel. - E fica aqui.

- Não me atraiçoes! - pediu ela.

Ulenspiegel saiu e correu a todas as tendas e tabernas, dizendo ao ouvido dos marinheiros e soldados estas palavras:

- O espanhol vem aí.

Todos correram para o barco, preparando a toda a pressa tudo o que era necessário à defesa, e aguardaram o inimigo. Ulenspiegel perguntou a Lamme:

- Vês essa bela mulher de pé no cais, com o seu vestido negro bordado a escarlate e escondendo o rosto sob o chapéu branco?

- Não me interessa - respondeu Lamme. - Tenho frio e quero dormir.

E envolveu a cabeça no seu "opperst-kleed", ficando como um homem surdo.

Ulenspiegel reconheceu então a mulher e gritou-lhe da amurada do navio:

- Queres seguir-nos?

- Até à cova - respondeu ela. - Mas não posso...

- Farias bem." Reflecte, no entanto: enquanto o rouxinol permanece na floresta, é feliz e canta; mas quando a deixa e arrisca as suas pequenas asas ao vento do mar largo, quebra-as e morre.

- Cantei em minha casa - disse ela - cantaria fora, se pudesse. - E, aproximando-se do navio, acrescentou: - Toma este bálsamo, para ti e para o teu amigo que dorme quando deveria velar.

E afastou-se, dizendo:

- Lamme, Lamme, Deus te guarde do mal, regressa salvo!

E descobriu o rosto.

- Minha mulher! Minha mulher! - gritou Lamme. E quis saltar para o gelo.

- A tua mulher fiel - disse ela. E fugiu a correr.

Lamme quis saltar da ponte para o gelo, mas foi impedido de fazê-lo por um soldado, que o agarrou pelo "opperst-kleed". Lamme gritou, chorou, suplicou que o deixassem partir. Mas o preboste disse-lhe:

- Serás enforcado se deixares o navio.

Lamme quis mesmo assim saltar para o gelo, mas um velho Esfarrapado reteve-o, dizendo-lhe:

- O soalho está húmido, poderias molhar os pés. E Lamme caiu sobre o traseiro, chorando amargamente e dizendo:

- A minha mulher! A minha mulher! Deixem-me ir para junto da minha mulher!

- Voltarás a vê-la - disse Ulenspiegel. - Ama-te, mas ama Deus ainda mais.

- A diaba enraivecida - gritou Lamme. - Se ama Deus mais do que a mim, porque se me mostrou bela e apetecível? E se me ama, porque me deixa?

- Consegues ver claro nos poços profundos?

- Ah! - exclamou Lamme. - Não tardarei em morrer.

E ficou na ponte, pálido e desolado.

Entretanto, chegaram os soldados de Simonen-Bol, com muita artilharia.

Dispararam contra o navio, que lhes respondeu. E as suas balas quebravam o gelo em torno do barco. Para a tarde, começou a cair uma chuva tépida.

O vento soprava de poente, o mar zangou-se sob o gelo e levantou-o em blocos enormes, que se erguiam e voltavam a cair, entrechocando-se, passando uns sobre os outros, não sem perigo para o navio, que, quando a alva trespassou as nuvens nocturnas, abriu as suas asas de pano como uma ave de liberdade e vogou para o mar aberto.

Juntaram-se então à frota do senhor de Lumey de La Marche, almirante da Holanda e Zelândia, e chefe e capitão-general, e como tal ostentando a lanterna no mastro do seu navio.

- Olha bem, meu filho - disse Ulenspiegel. - Esse não te poupará, se quiseres abandonar o navio. Ouves a sua voz soar como o trovão? Vês como é grande e forte na sua alta estatura? Vê as suas grandes mãos de unhas encurvadas! Vê os seus olhos redondos, olhos frios de águia, e a sua comprida barba pontiaguda, que ele deixará crescer até ter enforcado todos os monges e padres, para vingar a morte dos dois condes! Vê-o temível e cruel; mandar-te-á enforcar no mastro grande, se continuas a gemer e a gritar pela tua mulher.

- Meu filho - replicou Lamme - fala de corda para o próximo quem já tem o baraço de cânhamo ao pescoço.

- Usá-lo-ás tu primeiro. É esse o meu amistoso voto.

- Na forca, verei a tua língua venenosa pender-te um palmo para fora da boca.

E puseram-se ambos a rir.

Nesse dia, o navio Trés-Long capturou um barco da Biscaia carregado de mercúrio, de pó de ouro, de vinhos e de especiarias. E o barco foi esvaziado da sua moela, homens e bens, como um osso de boi sob o dente de um leão.

Foi também nesse tempo que o duque lançou sobre os Países-Baixos cruéis e abomináveis impostos, obrigando todos os habitantes que vendessem bens móveis ou imóveis a pagar mil florins por dez mil. Esta taxa foi permanente.

Todos os mercadores e vendedores de qualquer coisa tinham de pagar ao rei um décimo do preço da venda, e disse-se em público que se uma mercadoria fosse vendida dez vezes numa semana, o rei ficaria com tudo.

E assim o comércio e a indústria caminhavam para a Ruína e para a Morte.

E os Esfarrapados tomaram Briele, praça forte marítima que foi chamada o Vergel de liberdade.

 

Aos primeiros dias de Maio, com o céu claro e navegando o barco altivamente sobre as ondas, Ulenspiegel cantou:

As cinzas batem no meu peito.

Os carrascos vieram, e feriram

Com o punhal, o fogo, a forca e o gládio.

Pagaram a vil espionagem.

Onde havia Amor e Fé, doces virtudes,

Puseram a Delação e a Desconfiança.

Que os carniceiros sejam malditos,

Batam o tambor de guerra!

Vivam os Esfarrapados! Batam o tambor! Briele foi tomada,

E também Flessingue, chave do Escaut; Deus é bom, Camp-Veere foi tomada, Onde estava a artilharia de Zelândia! Temos balas, pólvora e canhões, Balas de ferro e balas de chumbo.

Deus está connosco, quem está contra?

Batam o tambor de guerra e glória! Vivam os Esfarrapados! Batam o tambor!

O gládio está empunhado, ao alto os corações,

Firmes os nossos braços, o gládio está empunhado.

Maldita a dízima, inteiro de ruína,

Morte ao carrasco, corda para o espoliador,

Para rei perjuro povo rebelde.

O gládio está empunhado pelos nossos direitos,

Pelas nossas casas, as nossas mulheres e filhos.

O gládio está empunhado, batam o tambor!

Altos estão os nossos corações, firmes os nossos braços. Maldita a dízima, maldito o infame perdão, Batam o tambor de guerra, batam o tambor.

- Sim, compadres e amigos - disse Ulenspiegel - sim, ergueram em Anvers, diante da Casa comum, um brilhante estrado coberto de veludo vermelho; o duque está sentado nesse estrado como um rei no seu trono, no meio dos seus cortesãos soldados. Querendo sorrir benevolentemente, faz uma azeda careta. Batam o tambor de guerra!

"Outorgou um perdão: façam silêncio: a sua couraça dourada reluz ao sol, o grande preboste está a cavalo ao lado do pálio; eis que chega o arauto, com os seus timbaleiros; lê: é o perdão para todos os que não pecaram; os outros serão cruelmente punidos.

"Ouçam, compadres, o arauto lê o édito que ordena, sob pena de rebelião, o pagamento do imposto da dízima e da vigésima."

E Ulenspiegel cantou:

Ó duque! ouves a voz do povo,

O forte rumor! É o mar que sobe

Ao ritmo das grandes vagas.

Basta de dinheiro, basta de sangue,

Basta de ruínas! Batam o tambor!

O gládio está empunhado. Batam o tambor de luto!

E o golpe da unha na chaga sangrenta,

O roubo após o assassínio. Precisas então

De misturar todo o nosso ouro a todo o nosso sangue,

Para o beber?

Marchávamos no dever, fiéis

A sua majestade real. Sua majestade é perjura.

Estamos desligados de juramentos.

Batam o tambor de guerra.

Duque de Alba, duque de sangue,

Vê as tendas e as lojas fechadas,

Vê os forjadores, padeiros, merceeiros,

Recusando-se a vender para não pagar.

Quem te saúda quando passas?

Ninguém. Sentes, como um nevoeiro de peste,

O Ódio e o Desprezo rodearem-te?

A bela terra da Flandres,

O alegre país de Brabante,

Estão tristes como cemitérios.

Aí, onde no tempo da liberdade,

Cantavam as violas, soavam os pífaros,

Estão o silêncio e a morte. Batam o tambor de guerra.

Em vez das faces alegres

De bebedores e amorosos cantando,

Há os rostos pálidos

Dos que esperam, resignados,

O golpe do gládio da injustiça.

Batam o tambor de guerra.

Já não se ouve nas tabernas O tilintar alegre dos copos, Nem a clara voz das raparigas Cantando em grupo nas ruas. Brabante e Flandres, países de alegria, Tornaram-se países de lágrimas. Batam o tambor de luto.

Terras dos pais, sofredora e amada

Não curves afronte sob o pé assassino.

Abelhas laboriosas, lançai-vos aos enxames

Sobre os moscardos da Espanha.

Cadáveres das mulheres e raparigas enterradas

Gritem a Cristo: Vingança!

Vivas,

Errem de noite pelos campos; pobres almas, Gritem a Deus! O braço freme para bater, O gládio está empunhado, duque, arrancar-te-emos as

entranhas. E com elas fustigar-te-emos o rosto.

Batam o tambor de guerra. O gládio está empunhado. Batam o tambor. Vivam os Esfarrapados.

E todos os soldados e marinheiros do navio de Ulenspiegel, e os dos outros navios também, cantavam em coro:

- O gládio está empunhado, vivam os Esfarrapados!

E as suas vozes rugiam como um trovão de liberdade.

 

Estava-se em Janeiro, o mês cruel que gela o vitelo no ventre da vaca. Tinha nevado e gelado. Os garotos apanhavam à mão os pardais que procuravam na neve alguma pobre alimentação, e levavam essa caça para as suas choças. Contra o céu cinzento e claro, recortavam-se imóveis os esqueletos das árvores, cujos ramos estavam cobertos por um manto de neve, que cobria igualmente as choupanas e os topos dos muros, onde se viam as pegadas dos gatos que, como os garotos, caçavam os pardais na neve. Até onde a vista alcançava, as pradarias estavam escondidas por esse maravilhoso para o céu, e não se ouvia qualquer ruído.

Katheline e Nele estavam sozinhas em casa; Katheline, abanando a cabeça, dizia:

- Hans, o meu coração voa para ti. É preciso que devolvas os setecentos carolus a Ulenspiegel, filho de Soetkin. Se estás necessitado, vem, para que eu veja a tua face brilhante. Afasta o fogo, a cabeça arde. Ah! onde estão os teus beijos de neve? Onde está o teu corpo de gelo, Hans, meu amado?

E sentava-se à janela. Subitamente passou, correndo apressado, um "voet-looper", correio levando guizos à cintura e gritando:

- Vem aí o bailio, o alto bailio de Damme!

E foi assim até à Casa comum, para reunir os burgomestres e vereadores.

Então, no espesso silêncio, Nele ouviu ressoar dois clarins. Todos os habitantes de Damme chegaram às suas portas, pensando que era sua majestade real que se anunciava com tais fanfarras.

E Katheline foi também à porta, com Nele. Ao longe viram um luzido grupo de cavaleiros, e à frente deles, cavalgando também, uma personagem coberta por um "opperst-kleed" de veludo negro orlado com peles de marta, vestindo um gibão de veludo passamentado de ouro fino e botins de vitela forrados com pele de marta. E reconheceram o alto bailio.

Atrás dela cavalgavam jovens senhores que, a despeito da ordenança da falecida majestade imperial, usavam nas suas vestes veludos e bordados, ornamentos, faixas, ouro, prata e seda. E os seus' opperst-kleederen' eram como o do bailio, orlados a marta. Cavalgavam alegremente, agitando ao vento as compridas penas de avestruz que lhes guarneciam os chapéus abotoados e passamentados a ouro.

E pareciam ser todos bons amigos e companheiros do grande bailio, e nomeadamente um senhor de rosto azedo, vestido de veludo verde passamentado a ouro, e cujo manto era de veludo negro passamentado a ouro, assim como o chapéu encimado por longas plumas. Tinha o nariz em forma de bico de abutre, a boca fina, os cabelos ruivos, a face pálida, o porte altivo.

Quando o grupo de senhores passou diante da casa de Katheline, esta saltou de súbito à brida do cavalo do senhor pálido, e, louca de alegria, gritou:

- Hans, meu amado, sabia que voltarias. És belo, todo vestido de veludo e ouro, como o sol sobre a neve! Trazes-me os setecentos carolus? Ouvir-te-ei novamente gritar como o xofrango?

O grande bailio mandou deter o grupo de cavaleiros, e o senhor pálido disse:

- Que me quer esta esfarrapada?

Katheline, porém, continuando a segurar o cavalo pela brida, disse:

- Não voltes a partir. Chorei tanto por ti. Doces noites, meu amado, beijos de neve e corpo de gelo. A criança está aqui!

E mostrava-lhe Nele, que o olhava zangada, pois ele erguera o seu chicote para Katheline; mas Katheline, chorando, dizia:

- Ah! não te recordas? Tem pena da tua serva. Leva-a contigo para onde quiseres. Afasta o fogo, Hans, tem piedade!

- Vai-te! - gritou ele.

E esporeou o cavalo com tanta força que Katheline, largando a brida, caiu; e o cavalo pisou-a e fez-lhe na testa uma profunda ferida.

O bailio perguntou então ao senhor pálido:

- Senhor, conhece essa mulher?

- Nunca a vi - respondeu ele. - É sem dúvida uma louca.

Nele, porém, tendo levantado Katheline, disse:

- Se esta mulher é louca, eu não o sou, senhor, e peço para morrer aqui desta neve que como - e apanhou um punhado de neve - se esse homem não conheceu a minha mãe, se não lhe levou todo o dinheiro que ela tinha, se não matou o cão de Claes para tirar do muro do poço de nossa casa setecentos carolus que pertenciam ao pobre defunto.

- Hans, meu amado - chorava Katheline, ensanguentada e de joelhos - Hans, dá-me o beijo da paz. Vê o sangue que corre. A alma fez o buraco e quer sair. Morrerei em breve, não me deixes. - Depois, falando mais baixo, acrescentou: - Outrora mataste o teu companheiro, por ciúme, no dique. - E estendia um dedo na direcção de Dudzeele. - Amavas-me muito, nesse tempo.

E agarrava-se ao joelho do fidalgo e abraçava-o, e beijava-lhe a bota.

- Quem é esse homem que foi morto? - perguntou o bailio.

- Não sei, senhor. Não nos interessa o que diz esta esfarrapada. Sigamos.

O povo reunia-se em torno deles; grandes e pequenos burgueses, operários e camponeses, tomando o partido de Katheline, gritavam:

- Justiça, senhor bailio, justiça. E o bailio perguntou a Nele:

- Quem é esse homem morto? Fala segundo Deus e a verdade.

Nele falou e disse, indicando o fidalgo pálido:

- Esse vinha todos os sábados ao Keet para ver a minha mãe e levar-lhe o seu dinheiro. Matou um amigo seu, chamado Hilbert, no campo de Servaes van der Vichte, não por amor, como pensa esta inocente louca, mas para ficar sozinho com os setecentos carolus.

E Nele contou os amores de Katheline, e o que ela ouvia quando ia, pela calada da noite, para trás do dique que atravessava o campo de Servaes van der Vichte.

- Nele é má - dizia Katheline. - Fala duramente a Hans, seu pai.

- Juro - disse Nele - que ele gritava como um xofrango para anunciar a sua presença.

- Mentes! - gritou o fidalgo.

- Oh! Não! - replicou Nele - e o senhor bailio e todos estes grandes senhores aqui presentes bem o vêem: estás pálido, não de frio, mas de medo. Porque é que o teu rosto já não brilha? Perdeste o unguento encantado com que o esfregavas para o tornar claro, como as vagas durante o Verão, quando há tempestade? Mas, bruxo maldito, serás queimado diante da Casa comum. Foste tu o causador da morte de Soetkin, foste tu quem reduziu o seu filho órfão à miséria; tu, homem nobre, sem dúvida, e que vinhas a nossa casa, apesar de sermos burgueses, para trazer uma só vez dinheiro a minha mãe e para lho pedir todas as outras.

- Hans - dizia Katheline - voltarás a levar-me ao "sabbat" e voltarás a esfregar-me com bálsamo; não escutes Nele, ela é má. Vê o sangue, a alma fez um buraco e quer sair. Morrerei em breve e irei para o limbo, onde nada arde.

- Cala-te, bruxa louca - disse-lhe o fidalgo. - Não te conheço, e não compreendo o que queres dizer.

- E no entanto - interveio Nele - foste tu quem apareceu com um companheiro que me quiseste dar por marido: sabes que não o quis. Que fez ele, o teu amigo Hilbert, que fez ele aos olhos depois de eu lhes ter deitado as unhas?

- Nele é má - murmurava Katheline. - Não acredites nela, Hans, meu amado. Está zangada com Hilbert por ele a ter querido possuir à força, mas Hilbert já não pode voltar a fazê-lo, pois os vermes comeram-no. E Hilbert era feio, Hans, meu amado. Só tu és belo. Nele é má.

Ao ouvir isto, o bailio disse:

- Mulheres, vão em paz.

Katheline, porém, não queria separar-se do seu amigo, e foi preciso levá-la à força para casa. E todo o povo que se tinha reunido gritava:

- Justiça, senhor, justiça!

Os sargentos da comuna tinham acorrido ao ruído. O bailio ordenou-lhes que ficassem e disse, dirigindo-se aos senhores e fidalgos:

- Senhores, não obstante todos os privilégios que protegem a ordem ilustre da nobreza no país de Flandres, devo, devido às acusações, e nomeadamente a de bruxaria, lançadas contra Joos Damman, dar-lhe ordem de prisão até que seja julgado segundo as leis e ordenanças do império. Entregue-me a sua espada, Joos.

- Senhor bailio - respondeu Joos Damman, com grande altivez e orgulho nobiliário  mandando-me prender infringe a lei do país da Flandres, pois não é juiz. Ora, bem sabe que só é permitido mandar prender sem ordem de um juiz, os falsos moedeiros, os assaltantes de caminhos, os incendiários, os violadores de mulheres, os soldados desertores, os encantadores que usem veneno para envenenar as águas, os monges fugidos à religião e os bandidos. Então, senhores e fidalgos, defendei-me. Alguns quiseram fazê-lo, mas o bailio disse-lhes:

- Senhores e fidalgos, representando aqui o nosso rei, conde e senhor, ao qual está reservada a resolução dos casos difíceis, ordeno-vos, sob pena de serdes considerados rebeldes, que devolvais as vossas espadas às bainhas.

Os fidalgos obedeceram. E o povo, ao ver que Joos Damman ainda hesitava, gritou:

- Justiça, senhor, justiça. Que entregue a sua espada. Joos Damman obedeceu, de má vontade, e descendo

do seu cavalo, foi conduzido por dois sargentos à prisão da comuna.

Todavia, não foi fechado nas caves, mas num quarto de janelas protegidas por grades, onde teve, pagando, um bom fogo, uma boa cama e boa alimentação, de que o carcereiro ficava com metade.

 

No dia seguinte, o bailio, os dois escrivães criminais, dois vereadores e um cirurgião-barbeiro foram para os lados de Dudzeele, a ver se encontrariam no campo de Servaes van der Vichte o corpo de um homem enterrado junto ao dique que atravessava o campo.

Nele dissera a Katheline:

- Hans, o teu amado, pede a mão cortada de Hilbert; esta noite gritará como o xofrango, entrará na casa e levar-te-á os sete florins carolus.

E Katheline respondera:

- Cortá-la-ei.

E, de facto, pegara numa faca e pusera-se a caminho, seguida por Nele e pelos oficiais da justiça.

Caminhava com rapidez e altivez, ao lado de Nele, cujo rosto bonito o vento frio tornava vermelho.

Os oficiais de justiça, velhos e ofegantes, seguiam-na com dificuldade; todos eles pareciam sombras negras sobre a planície branca; e Nele levava uma pá ao ombro.

Quando chegaram ao campo de Servaes van der Vichte e ao dique, Katheline, avançando até ao meio, disse, mostrando a planície à sua direita:

- Hans, não sabias que eu estava escondida ali, estremecendo ao ouvir o ruído das espadas. E Hilbert gritou: "- Esse ferro é frio." Hilbert era feio, Hans é belo. Terás a sua mão. Deixa-me só.

Depois desceu à esquerda, pôs-se de joelhos na neve e gritou três vezes para o ar, para chamar o espírito.

Nele deu-lhe então a pá, sobre a qual Katheline fez por três vezes o sinal da cruz, traçando depois no gelo a forma de um caixão e de três cruzes caídas, uma do lado do Oriente, outra do lado do Ocidente e a terceira do lado do Setentrião. E disse:

- Três, é Marte sob Saturno, e três é descoberta sob Vénus, a pálida estrela.

Em seguida traçou em torno do caixão um grande círculo, dizendo:

- Vai-te mau demónio que guardas os corpos. - E, ajoelhando em oração, continuou: - Diabo amigo, Hilbert, Hans, meu amo e senhor, ordena-me que venha aqui cortar-te uma mão para lha levar.

Devo-lhe obediência. Não faças jorrar contra mim o fogo da terra, por eu violar a tua nobre sepultura, e perdoa-me por Deus e pelos santos.

Depois quebrou o gelo seguindo a figura do caixão, chegou à erva húmida, e depois à areia, e o senhor bailio, os seus oficiais, Nele e Katheline viram o corpo de um homem jovem, branco como a cal por causa da areia. Vestia um gibão de tecido cinzento e um manto parecido; tinha a espada colocada a seu lado. Da cintura pendia-lhe uma bolsa de malha e tinha um grande punhal cravado no coração; havia sangue no tecido do gibão, e o sangue escorrera-lhe também para as costas.

Katheline cortou-lhe uma mão e meteu-a na sua escarcela. O bailio deixou-a fazer, e depois mandou despojar o cadáver de todas as insígnias e roupas. Katheline perguntou-lhe se Hans lho tinha ordenado, e o bailio respondeu que só agia por sua ordem. A partir de então, Katheline fez tudo o que ele quis.

Quando o cadáver foi despido, viram-no seco como uma madeira, mas não apodrecido. E o bailio e os oficiais da comuna retiraram-se, tendo mandado que o enterrassem novamente. Os sargentos levaram os despojos.

Ao passar diante da prisão da comuna, o bailio disse a Katheline que Hans a esperava lá dentro; e ela entrou, muito contente.

Nele quis impedi-la de ir, mas ela respondeu-lhe:

- Quero ver Hans, o meu senhor.

E Nele chorava sentada nos degraus da porta, sabendo que Katheline acabava de ser presa como bruxa, devido às conjurações e figuras que fizera sobre a neve.

E dizia-se em Damme que não haveria perdão para ela.

E Katheline foi fechada na cave ocidental da prisão.

No dia seguinte, o vento soprando de Brabante derreteu a neve, e as pradarias ficaram inundadas.

E o sino chamado "borgstorm" chamou os juízes ao tribunal da "vierschare", sob o alpendre, devido à humidade dos bancos de relva.

E o povo aglomerou-se em torno do tribunal.

Joos Damman compareceu livre de quaisquer amarras, com os seus adornos de fidalgo; Katheline compareceu também, mas com as mãos amarradas e vestindo uma bata de pano cinzento, que era a bata da prisão.

Joos Damman, interrogado, confessou ter morto o seu amigo Hilbert num combate singular, com espada. Quando lhe disseram que Hilbert tinha sido ferido por um punhal, respondeu:

- Feri-o quando já estava por terra, pois não morria suficientemente depressa. Não me importo de confessar esse crime, pois estou sob a protecção das leis da Flandres, que proíbem que, passados dez anos, se persiga um assassino.

- Não és bruxo? - perguntou-lhe o bailio.

- Não - respondeu Damman.

- Prova-o.

- Fá-lo-ei em tempo e lugar. Mas neste momento não me apraz fazê-lo.

O bailio interrogou então Katheline, mas ela não o ouviu, estando a olhar para Hans.

- És o meu senhor verde - dizia - belo como o sol. Afasta o fogo, meu amado!

Nele, falando por Katheline, disse então:

- A pobre não pode confessar mais do que já sabeis, senhor e senhores; não é bruxa, é apenas louca.

E o bailio disse:

- Bruxo é aquele que, por meios diabólicos e conscientemente utilizados, tenta chegar a qualquer coisa. Ora esses dois, homem e mulher, são bruxos de intenção e de facto; ele, por ter utilizado o unguento de "sabbat" e por ter tornado o seu rosto claro como o de Lúcifer a fim de obter dinheiro e satisfação dessa mulher; ela, por se lhe ter submetido, tomando-o por um diabo, e por se ter abandonado às suas vontades; se um foi fautor de malefícios, a outra foi sua cúmplice manifesta. Não se deve ter a mínima piedade, e devo dizê-lo, pois vejo os vereadores e o povo demasiado benevolentes em relação à mulher.

"É verdade que não matou nem roubou, nem lançou sortes sobre animais nem pessoas, nem curou qualquer doente com remédios extraordinários, mas apenas com os que são conhecidos, utilizando honesta e cristã medicina; mas quis entregar a sua própria filha ao diabo, e se esta não tivesse na sua jovem idade resistido com uma tão franca e valorosa bravura, teria cedido a Hilbert e ter-se-ia tornado bruxa como a mãe. Portanto, pergunto aos senhores do tribunal se não são de opinião que se deve submeter os dois à tortura?"

Os vereadores não responderam, mostrando assim claramente que tal não era o seu desejo em relação a Katheline.

O bailio, então, continuou:

- Como vós, sinto por ele piedade e misericórdia, mas essa bruxa louca, obedecendo tão bem ao diabo, não poderia, se o seu criminoso cúmplice lho tivesse pedido, ter cortado a cabeça à filha com uma fouce, como fez Catherine Daru, em França, às suas duas filhas, a pedido do diabo? Não teria, se o seu negro marido lho tivesse ordenado, feito morrer animais, estragado a manteiga deitando-lhe açúcar, assistido de corpo a todas as homenagens ao diabo, dança, abominações e copulações de bruxas? Não teria comido carne humana, não teria matado crianças para fazer pastelões e vendê-los, como fez um pasteleiro em Paris, não teria cortado as coxas aos enforcados para as levar e comer à dentada, tornando-se assim infame ladra e sacrílega? E peço ao tribunal que, a fim de se saber se Katheline e Joos Damman não cometeram qualquer outro crime além dos que já são conhecidos e investigados, sejam ambos submetidos à tortura. Uma vez que Joos Damman se recusa a confessar seja o que for excepto o assassínio e uma vez que Katheline nada disse, as leis do império ordenam-nos que procedamos tal como indico.

E os vereadores decidiram que se procederia à tortura na sexta-feira, que era dois dias depois.

Nele gritava, pedindo misericórdia, e o povo gritava com ela, mas foi em vão.

E Katheline, olhando para Joos Damman, dizia:

- Tenho a mão de Hilbert. Vai buscá-la esta noite, meu amado.

E foram novamente levados para a prisão.

Aí, por ordem do tribunal, foi recomendado ao carcereiro que desse a cada um dois guardas, que lhes bateriam de cada vez que quisessem dormir; mas os guardas de Katheline deixaram-na dormir toda a noite e os de Joos Damman batiam-lhe cruelmente sempre que ele fechava os olhos, ou até se inclinava a cabeça.

Tiveram fome durante todo o dia de quarta-feira, essa noite e toda a quinta-feira até à tarde, altura em que lhes deram de comer, carne salgada e água salgada. Foi este o começo da tortura. De manhã, gritando com sede, foram levados pelos sargentos para a câmara do suplício.

Aí, foram colocados de frente um para o outro e amarrados a bancos cobertos de cordas com nós, que os faziam sofrer cruelmente.

E tiveram de beber um copo de água salgada cada um.

Joos Damman começou a adormecer, amarrado ao banco, e os sargentos bateram-lhe.

E Katheline dizia:

- Não lhe batam, senhores. Quebram-lhe o pobre corpo. Só cometeu um crime, por amor, quando matou Hilbert. Tenho sede, e tu também, Hans, meu amado. Dêem-lhe de beber. Água, água, o corpo arde-me. Poupem-no, morrerei eu por ele. Dêem-me de beber!

Joos disse-lhe:

- Feia bruxa, morre e estoura como uma cadela. Atirem-na ao fogo, senhores juízes. Tenho sede!

Os escrivães registavam todas as suas palavras.

- Nada tens a confessar? - perguntou-lhe o bailio.

- Nada mais tenho a dizer - respondeu Damman. - Já sabe tudo.

- Uma vez que persiste nas suas negações - disse o bailio - continuará até uma nova e completa confissão sobre estes bancos e sobre estas cordas, e terá sede, e será impedido de dormir.

- Ficarei - disse Joos Damman - e terei prazer em ver essa bruxa sofrer sobre as cordas. Que te parece o leito de núpcias, minha apaixonada?

E Katheline respondia, gemendo:

- Braços frios e coração quente, Hans, meu amado. Tenho sede, a cabeça arde!

- E tu, mulher, nada tens a dizer? - perguntou o bailio.

- Ouço - disse ela - o carro da morte e o ruído seco dos ossos. Tenho sede! E ela leva-me para um grande rio onde há água, água fresca e clara; mas essa água é fogo. Hans, meu amigo, liberta-me das cordas. Sim, estou no purgatório e vejo lá em cima Jesus no seu

paraíso e a Virgem, tão misericordiosa. Oh! nossa querida Senhora, dai-me um pouco de água, não queirais comer sozinha esses belos frutos.

- Esta mulher sofre de cruel loucura - disse um dos vereadores. - É preciso tirá-la do banco da tortura.

- É tão louca como eu - disse Joos Damman. - É pura comédia. - E, com voz ameaçadora, acrescentou, dirigindo-se a Katheline: - Ver-te-ei no fogo, a ti, que fazes tão bem de louca.

E, rilhando os dentes, riu-se da sua cruel mentira.

- Tenho sede - dizia Katheline. - Tenham piedade, tenho sede. Hans, meu amado, dá-me de beber. Como o teu rosto está branco! Deixem-me ir para junto dele, senhores juízes.

E, abrindo muito a boca, gritou:

- Sim, sim, metem-me agora o fogo no peito, e os diabos atacam-me sobre este leito cruel. Hans, pega na tua espada e mata-os, tu que és tão poderoso. Água, dêem-me de beber!

- Estoura, bruxa! - disse Joos Damman. - Deveriam meter-lhe na boca uma pêra de angústia, a fim de a impedir, a ela, uma plebeia, de falar contra mim, um nobre.

Ao ouvir isto, um vereador, inimigo da nobreza, replicou:

- Senhor bailio, é contrário aos direitos e costumes do império colocar pêras de angústia na boca dos que são interrogados, uma vez que estão aqui para serem interrogados e para que os julguemos segundo o que disserem. Isso só é permitido quando o acusado, tendo sido condenado, possa, no cadafalso, falar ao povo, enternecendo-o ou suscitando as emoções populares,

- Tenho sede - dizia Katheline. - Dá-me de beber, Hans, meu amado.

- Ah! sofres, maldita bruxa, única causadora dos sofrimentos que suporto; mas nesta câmara de tortura sofrerás o suplício das velas ardentes, a estrapada, os pedaços de madeira entre as unhas dos pés e das mãos. Obrigar-te-ão a montar, nua, um cavalete cujo dorso será agudo como uma lâmina, e confessarás que não és louca, mas uma vil bruxa, a quem Satanás ordenou que fizesse todo o mal possível aos nobres. Dêem-me de beber!

- Hans, meu amado, não te irrites contra a tua serva, Sofro mil penas por ti, meu senhor! Poupem-no, senhores juízes. Dêem-lhe a beber uma taça cheia, e para mim guardem só uma gota. Hans, não é ainda a hora do xofrango?

O bailio perguntou então a Joos Damman:

- Quando mataste Hilbert, qual foi o motivo desse combate?

- Foi por causa de uma rapariga de Heyst que ambos desejávamos.

- Uma rapariga de Heyst! - gritou Katheline, querendo à viva força levantar-se do seu banco. - Enganas-me com outra, diabo traidor. Sabes que te escutava atrás daquele dique quando dizias que querias ficar com todo o dinheiro, que era de Claes? Era sem dúvida para ires gastá-lo com ela, em festas e folganças! Ah! e eu que lhe teria dado o meu sangue, se ele pudesse transformá-lo em ouro! E tudo por outra! Maldito sejas!

Subitamente, porém, chorando e tentando voltar-se no banco de tortura, acrescentou:

- Não, Hans, diz que voltarás a amar a tua pobre serva, e arranharei a terra com os meus dedos, e encontrar-te-ei um tesouro; sim, há um. E irei com a varinha de aveleira que se inclina para o lado onde estão os metais, e encontrá-lo-ei e levar-to-ei. Beija-me, meu amado, e serás rico, e comeremos carne, e beberemos cerveja todos os dias. Sim, sim, estes que aqui estão também bebem cerveja, cerveja fresca, espumosa. Oh! senhores, dêem-me só uma gota, estou em fogo! Hans, eu sei onde há aveleiras, mas teremos de esperar pela Primavera.

- Cala-te bruxa - replicou-lhe Damman. - Não te conheço. Confundes-me com Hilbert. Era ele quem ia ver-te. E no teu espírito mau, chamavas-lhe Hans. Fica sabendo que não me chamo Hans, mas Joos. Éramos da mesma estatura, Hilbert e eu. Foi Hilbert, sem dúvida, quem te roubou os setecentos florins carolus. Dêem-me de beber. O meu pai pagará por cem florins uma pequena taça de água. Mas não conheço essa mulher.

- Senhor e senhores, ele diz que não me conhece - exclamou Katheline - mas eu conheço-o bem, e sei que tem nas costas uma marca peluda, escura e grande como uma fava. Ah! amavas uma rapariga de Heyst! Um bom amante cora da sua amiga? Hans, já não sou bela?

- Bela! - disse ele. - Tens uma cara que parece uma nêspera e um corpo como um saco de Cavacos. Vejam a esfarrapada que se quer fazer amar por homens de condição! Dêem-me de beber.

- Não falavas assim, Hans, meu doce senhor - respondeu ela - quando eu tinha menos quinze anos do que agora. - Depois, batendo na testa e no peito, gritou: - É o fogo que está aqui e me seca o coração e o rosto. Não me ralhem. Lembras-te de quando comíamos comidas salgadas para, dizias tu, bebermos melhor? Agora o sal está em nós, meu amado, e o senhor bailio bebe vinho da Romanha. Mas nós não queremos vinho, dêem-nos água. Corre por entre as ervas o riacho nascido da fonte clara. Água tão boa e fria. Não queima. É água infernal. - E Katheline chorou, e disse:

- Nunca fiz mal a ninguém, e todos me lançam ao fogo. Dêem-me de beber; dá-se água aos cães vadios. Eu sou cristã, dêem-me de beber. Nunca fiz mal a ninguém. Dêem-me de beber. Um vereador falou então, dizendo:

- Essa bruxa só é louca em relação ao fogo que diz queimar-lhe a cabeça, mas não o é em relação a outras coisas, uma vez que nos ajudou com espírito lúcido a descobrir os restos do morto. Se a marca peluda se encontrar no corpo de Joos Damman, esse sinal bastará para constatar a sua identidade com o diabo Hans, pelo qual Katheline foi enlouquecida. Carrasco, mostra-nos a marca.

O carrasco pôs a descoberto o pescoço e os ombros do acusado, mostrando a marca escura e peluda.

- Ah! - exclamou Katheline - como a tua pele é branca! Dir-se-iam ombros de rapariga. És belo, Hans, meu amado. Dêem-me de beber.

O carrasco espetou então a marca com uma comprida agulha, mas o sangue não correu. E os vereadores entreolharam-se, dizendo:

- Esse é diabo. Deve ter morto Joos Damman e adoptado a sua figura, para enganar mais facilmente os pobres homens.

E obailio e os vereadores tiveram medo.

- É diabo, e aqui há malefício!

- Bem sabem que não há malefício, e que há excrescências carnudas que se podem picar sem que sangrem - disse Joos Damman. - Se Hilbert recebeu dinheiro dessa bruxa, que o é, pois confessa ter dormido com o diabo, fê-lo por livre vontade dessa vilã, e foi, apesar de nobre, pago pelas suas carícias, tal como o fazem todos os dias as mulheres de prazer. Não há neste mundo, como as raparigas, homens que fazem pagar às mulheres a sua força e a sua beleza?

E os vereadores diziam uns para os outros:

- Vejam a sua diabólica segurança. A marca peluda não sangrou. Sendo assassino, diabo e encantador, quer fazer-se passar por simples duelista, lançando os seus outros crimes para cima do diabo seu amigo que matou apenas de corpo, mas não de alma, certamente... E vejam como o seu rosto está pálido.

- Assim são todos os diabos, vermelhos no inferno e lívidos na terra, pois não têm o fogo de vida que dá o rubor às faces, e por dentro são de cinzas.

- É preciso devolvê-lo ao fogo, para que fique vermelho e para que arda.

- Sim, é diabo - disse então Katheline - mas um diabo bom, um diabo doce. E São Tiago, seu patrono, deixou-o sair do inferno. Ora por ele a Jesus Cristo, todas as manhãs. Terá apenas sete mil anos de purgatório. A Virgem assim quer, mas Satanás opõe-se. Mas não faz mal, porque a Virgem faz sempre como quer. Irão contra ela? Se o olharem bem, verão que nada guardou do seu aspecto de diabo, senão o corpo frio, e também o rosto brilhante como ficam, em Agosto, as ondas do mar, quando vai haver trovoada.

- Cala-te, bruxa! - gritou-lhe Joos Damman. - Queimas-me.

Depois, dirigindo-se ao bailio e aos vereadores, continuou :

- Olhem bem para mim, não sou nenhum diabo, tenho carne e ossos, sangue e água. Como e bebo, digiro e evacuo como vocês; a minha pele é igual à vossa, e os meus pés também. Carrasco, tira-me as botas, pois não posso mexer-me com os pés amarrados.

O carrasco obedeceu, não sem temor.

- Vejam - prosseguiu Joos, mostrando os pés. - Acaso são pés bifurcados, pés de diabo? Quanto à minha palidez, nenhum de vocês é pálido como eu?

Vejo pelo menos três que o são. Quem pecou não fui eu, e sim essa feia bruxa, e a filha, má acusadora. Onde foi arranjar o dinheiro que emprestou a Hilbert, onde foi arranjar os florins que lhe deu? Não terá sido o diabo que lhe pagou para acusar e levar à morte homens nobres e inocentes? É a elas que devem perguntar quem degolou o cão no pátio, quem escavou o muro e se foi embora, deixando-o vazio, sem dúvida para esconder noutro lugar o tesouro roubado. Soetkin, a viúva, não tinha confiança em mim, não me conhecia, mas tinha-a nelas, e via-as todos os dias. Foram elas que roubaram os bens do imperador. O escrivão escrevia, e o bailio perguntou a Katheline:

- Mulher, nada tens a dizer em tua defesa? Katheline, olhando para Joos Damman, disse, amorosamente :

- É a hora do xofrango. Tenho a mão de Hilbert, Hans, meu amado. Dizem eles que me devolverás os setecentos carolus. Afastem o fogo! afastem o fogo! - gritou, subitamente. - Dêem-me de beber, dêem-me de beber, a cabeça arde! Deus e os anjos comem maçãs no céu!

E perdeu os sentidos.

- Desamarrem-na - ordenou o bailio.

O carrasco e os seus ajudantes obedeceram. Katheline levantou-se e cambaleou sobre os pés inchados, pois o carrasco apertara as cordas com demasiada força.

- Dêem-lhe de beber - ordenou o bailio. Deram-lhe água fresca, que ela bebeu avidamente, segurando o púcaro com os dentes, como os cães fazem aos ossos, e recusando-se a largá-lo. Depois deram-lhe mais água, e ela quis levá-la a Joos Damman, mas o carrasco tirou-lhe o púcaro das mãos. E Katheline caiu adormecida como uma massa de chumbo.

- Também eu tenho sede e sono! - gritou furiosamente Joos Damman.

- Porque lhe deram de beber? Porque a deixam dormir?

- Porque é fraca, mulher e louca - respondeu o bailio.

- A sua loucura é fingida - disse Damman. - É uma bruxa. Quero beber, quero dormir!

E fechou os olhos, mas os "knechts" do carrasco bateram-lhe no rosto.

- Dêem-me uma faca - gritou ele - para que corte aos pedaços esses miseráveis. Sou nobre, nunca me bateram na cara. Água, deixem-me dormir, estou inocente. Não fui eu quem levou os setecentos carolus, foi Hilbert. Dêem-me de beber. Nunca fiz bruxarias nem encantamentos. Estou inocente, deixem-me. Dêem-me de beber!

- Em que passavas o tempo, depois de teres deixado Katheline? - perguntou-lhe o bailio.

- Não conheço Katheline, nunca a deixei - respondeu ele. - Interrogam-me sobre factos estranhos à causa. Não lhes devo responder. Dêem-me de beber, deixem-me dormir. Digo-lhes que foi Hilbert quem fez tudo isso.

- Soltem-no e levem-no de novo para a prisão - ordenou o bailio. - Mas que tenha sede e não possa dormir até que confesse as suas bruxarias e encantamentos.

E foi uma cruel tortura para Damman. Na sua prisão, gritava tão alto que lhe dessem de beber que o povo o ouvia na rua, mas sem a mínima piedade.

E quando, caindo de sono, fechava os olhos e os seus guardas lhe batiam no rosto, era como um tigre,

e gritava:

- Sou nobre e matá-los-ei, miseráveis! Irei ao rei,

nosso chefe. Dêem-me de beber. E não confessou coisa alguma, e por fim deixaram-no.

 

Estava-se então em Maio, a tília da justiça estava verde, e verdes estavam também os bancos de relva onde se sentavam os juízes. Nele foi chamada a testemunhar. Nesse dia devia ser pronunciada a sentença.

E o povo, homens e mulheres, burgueses e operários, amontoava-se em torno do campo. E o sol brilhava claramente.

Katheline e Joos Damman foram levados à presença do tribunal; e Damman parecia mais pálido ainda, devido à tortura da sede e às noites passadas sem sono.

Katheline, incapaz de manter-se sobre as pernas cambaleantes, mostrava o sol e dizia:

- Afastem o fogo! A cabeça arde!

E olhava com terno amor para Joos Damman.

E ele olhava-a com ódio e desprezo.

E os senhores e fidalgos seus amigos, tendo sido chamados a Damme, estavam todos presentes, como testemunhas, ante o tribunal.

O bailio falou e disse:

- Nele, a filha que defende a sua mãe Katheline com tão grande e bravo afecto, encontrou num bolso cosido à saia da mãe, a sua saia de festa, um bilhete assinado por Joos Damman. Entre os despojos do cadáver de Hilbert Ryvish, encontrei uma outra carta que lhe foi dirigida pelo mesmo Joos Damman, acusado na vossa presença. Guardei-as comigo, a fim de que no momento oportuno, que é o presente, pudésseis julgar da obstinação deste homem e absolvê-lo ou condená-lo segundo o direito e a justiça. Aqui está o pergaminho encontrado entre os despojos do morto. Não lhe toquei, e não sei se é ou não legível.

Os juízes ficaram então dominados por grande perplexidade.

O bailio tentou desfazer a bola de pergaminho, mas não o conseguia, e Joos Damman ria.

Um vereador alvitrou:

- Metamos a bola dentro de água e depois diante do fogo. Se aí há algum mistério de aderência, a água e o fogo resolvê-lo-ão.

Foi-se buscar água, e o carrasco acendeu no campo uma grande fogueira; o fumo azul subia para o céu claro, através dos ramos verdejantes da tília da justiça,

- Não metam a carta dentro da bacia - disse um dos vereadores - pois se foi escrita com sal amoníaco destemperado com água, apagarão os caracteres.

- Não - contrapôs o cirurgião, que estava presente. - Os caracteres não se apagarão. A água amolecerá apenas o lugar que impede essa bola mágica de

abrir-se.

O pergaminho foi mergulhado na água e, tendo amolecido, foi possível abri-lo.

- Agora - indicou o cirurgião - coloquem-no diante

do fogo.

- Sim, sim - disse Nele - coloquem o papel diante do fogo; o senhor cirurgião está na rota da verdade, pois o assassino empalidece e as pernas tremem-lhe.

- Não empalideço nem tremo - respondeu Joos Damman - pequena harpia popular que desejas a morte de um nobre; nada conseguirás, pois esse pergaminho deve estar apodrecido, depois de passar dezasseis anos debaixo de terra.

- O pergaminho não está apodrecido - disse o vereador. - A bolsa era forrada a seda. A seda não se consome na terra e os vermes não atravessaram o pergaminho.

E a carta foi colocada diante do fogo.

- Senhor bailio, senhor bailio - dizia Nele - eis que a tinta aparece ao calor do fogo. Mandai ler o que está escrito.

Quando o cirurgião se preparava para ler, Joos Damman estendeu o braço para apoderar-se do pergaminho; mas Nele, rápida como o vento, agarrou-lhe o braço, dizendo:

- Não lhe tocarás, pois aí está escrita a tua morte ou a de Katheline. Se agora o teu coração sangra, assassino, há quinze anos que sangram os nossos, há quinze anos que Katheline sofre, há quinze anos que tem o cérebro queimado na cabeça, por ti, há quinze anos que Soetkin morreu devido à tortura, há quinze anos que somos pobres, esfarrapados, vivendo na miséria, mas orgulhosamente. Leiam o papel! Leiam o papel! Os juízes são Deus na terra, pois são a justiça! Leian o papel!

- Leiam o papel! - gritavam os homens e as mulheres, chorando. - Nele é brava! Leiam o papel! Katheline não é bruxa!

E o escrivão leu:

"A Hilbert, filho de Cillem Ryvish, escudeiro, de Joos Damman, escudeiro, saudações.

«Querido amigo, não continues a perder o teu dinheiro em jogos de cartas, jogos de dados e outras grandes misérias. Vou dizer-te como ganhá-lo sem dificuldade. Façamo-nos diabos, diabos bonitos, amados pelas mulheres e pelas raparigas. Aceitemos as belas e ricas, deixemos as feias e pobres; e que elas paguem os seus prazeres. Na Alemanha, com este ofício, ganhei em seis meses cinco mil rixdaelders. As mulheres são capazes de dar saia e camisa ao homem que amam, mas foge das avaras de nariz enganchado que tardam em pagar os seus prazeres.

"Quanto a ti, para pareceres um belo e verdadeiro diabo íncubo, se elas te aceitarem para a noite, anuncia a tua chegada gritando como uma ave nocturna. E para conseguires uma verdadeira cara de diabo, de diabo terrível, esfrega-a com fósforo, que brilha quando está húmido. O cheiro é mau, mas elas pensam que é o cheiro do inferno. Mata quem te incomodar, homem, mulher ou animal.

"Iremos em breve a casa de Katheline, bela e condescendente meretriz; a sua filha Nele, uma filha minha se Katheline me, foi fiel, é bem bonita: conquistá-la-ás sem dificuldade. Dou-ta, pois não gosto dos bastardos que não sabemos dizer com certeza se são ou não nossos filhos. A mãe já me deu mais de vinte e três carolus, todo o seu dinheiro. Mas escondeu um tesouro, que é, se não sou estúpido, a herança de Claes, o herético queimado em Damme: setecentos florins carolus sujeitos a confiscação. Mas o bom rei Filipe, que mandou queimar tantos dos seus súbditos para herdar deles, não conseguirá pôr a pata nesse tesouro, que pesará mais na minha bolsa do que na dele. Katheline dir-me-á onde o esconde e dividi-lo-emos, ficando eu, todavia, com a maior parte, por o ter descoberto.

"Quanto às mulheres, sendo nossas servas e escravas apaixonadas, levá-las-emos para a Alemanha. Aí ensiná-las-emos a ser diabas súcubas, enfeitiçando burgueses ricos e homens nobres, e viveremos, elas e nós, de amor pago a bons rixdaelders, a veludo, a sedas, a ouro, a pérolas e a jóias. Deste modo seremos ricos sem fadiga, e, sem que o saibam as diabas súcubas, amados pelas mais belas, fazendo-nos sempre pagar pelos nossos favores, bem entendido.

"Todas as mulheres são estúpidas e ingénuas para o homem capaz de acender nelas esse fogo de amor que Deus lhes colocou abaixo da cintura. Katheline e Nele sê-lo-ão mais do que as outras, e, julgando-nos diabos, obedecer-nos ão em tudo. Conserva o teu nome próprio, mas nunca dês o apelido do teu pai. Se o juiz apanhar as mulheres, fugiremos sem que elas nos conheçam ou possam denunciar-nos. Vem ter comigo, meu amigo. A fortuna sorri aos jovens, como dizia sua falecida e santa majestade, o imperador Carlos V, mestre nas coisas do amor e da guerra." E o escrivão, deixando de ler, disse:

- Esta é a carta, e está assinada: Joos Damman, escudeiro.

E o povo gritou:

- À morte o assassino! À morte o bruxo! Ao fogo o enlouquecedor de mulheres! À forca o ladrão!

- Povo, faz silêncio, a fim de que possamos em toda a liberdade julgar este homem - disse o bailio. E, falando aos vereadores, acrescentou: - Quero ler-vos a segunda carta encontrada por Nele no bolso cosido à saia de Katheline. Está assim concebida:

"Bruxa bonita, eis a receita de uma mistura que me enviou a própria mulher de Satanás. Com a ajuda desta mistura poderás transportar-te até ao sol, à lua e aos astros, conversar com os espíritos elementares que levam a Deus as orações dos homens e percorrer todas as cidades, burgos, rios, pradarias de todo o universo. Beberás juntamente, em doses iguais, estramónio, solanum, somniferum, jusquíamo, ópio, as pontas frescas do cânhamo, beladona e datura.

"Se quiseres, iremos esta noite ao sabbat dos espíritos: mas terás de amar-me ainda mais e não seres avara como da outra vez, quando me recusaste dez florins dizendo que não os tinhas. Sei que escondes um tesouro e não queres dizer-me onde. Já não me amas, meu doce coração.

"O teu diabo frio, HANSE."

- À morte o bruxo! - gritou o povo.

- É preciso comparar as duas escritas - disse o bailio.

Isto foi feito, e todos as consideraram iguais. O bailio disse então aos senhores e fidalgos presentes :

- Reconheceis nesse homem o senhor Joos Damman, filho do vereador da Keure de Gand?

- Sim - responderam eles.

- Conhecestes Hilbert, filho de Willem Ryvish, escudeiro?

Um dos fidalgos, que se chamava Van der Zikkelen, falou e disse:

- Sou de Gand, o meu' steen' é na praça São Miguel. Conheço Willem Ryvish, escudeiro, vereador da Keure de Gand. Perdeu, há quinze anos, um filho com a idade de vinte e três anos, debochado, jogador, ocioso; mas todos lho perdoavam, devido à sua juventude. Nunca mais voltou a haver notícias dele. Peço para ver a espada, o punhal e a bolsa do morto.

E, tendo estes objectos à sua frente, continuou:

- A espada e o punhal apresentam no botão do punho as armas dos Ryvish, que são três peixes de prata sobre campo de azul. Vejo as mesmas armas reproduzidas no brasão de ouro da bolsa. Que outro punhal é esse?

- É o que foi encontrado no corpo de Hilbert Ryvish, filho de Willem - respondeu o bailio.

- Reconheço - disse o fidalgo - as armas dos Damman: a torre de goelas sobre campo de prata. Assim me ajude Deus e todos os santos.

Os outros fidalgos disseram também:

- Reconhecemos as armas citadas como sendo as de Ryvish e de Damman. Assim nos ajude Deus e todos os santos.

Então o bailio disse:

- Segundo as provas ouvidas e lidas pelo tribunal de vereadores, o senhor Joos Damman é bruxo, assassino, enlouquecedor de mulheres, ladrão dos bens do rei, e como tal culpado do crime de lesa-majestade divina e humana.

- Di-lo, senhor bailio - replicou Joos Damman -

mas não me condenará, por falta de provas. Não sou nem nunca fui bruxo, apenas jogava o jogo do diabo.

Quanto ao meu rosto claro, já sabem qual é a receita, e também a do unguento, que, apesar de conter jusquíamo, planta venenosa, é apenas suporífero. Quando essa mulher, verdadeira bruxa, o tomava, caía adormecida e pensava ir ao sabbat, fazer a ronda de cara voltada para o exterior do círculo e adorar um diabo, com

figura de bode, colocado sobre um altar. Terminada a ronda, julgava ir beijá-lo no traseiro, como fazem os bruxos, para depois entregar-se comigo, seu amante,

a estranhas copulações que agradavam ao seu espírito extravagante. Se eu tinha, como ela diz, os braços frios e o corpo fresco, isso era sinal de juventude, e

não de bruxaria. Nos trabalhos do amor a frescura não dura.

"Mas Katheline queria acreditar no que desejava, e tomava-me por um diabo, apesar de eu ser um homem de carne e osso como todos os que me vêem. Só ela é culpada, tomando-me por um demónio e aceitando-me no seu leito, pecou de intenção e de facto contra Deus e o Espírito Santo. Foi pois ela e não eu quem cometeu o crime de bruxaria, só ela é passível do fogo, como uma bruxa má e maliciosa, que quer fazer-se passar por louca para esconder a sua malícia."

Nele, porém, exclamou:

- Ouvis o assassino? Fez, como uma mulher de prazer, o ofício de mercador de amor. Estais a ouvi-lo?

Quer, para salvar-se, mandar queimar aquela que lhe deu tudo.

- Nele é má - dizia Katheline. - Não a escutes, Hans, meu amado.

- Não - disse Nele - não és um homem, és um diabo cobarde e cruel.

E, tomando Katheline nos braços, continuou:

- Senhores juízes, não deis ouvidos a esse malvado. Esse homem só tem um desejo, o de ver ser queimada a minha mãe, que não cometeu outro crime senão o de ter sido atingida por Deus de loucura e o de julgar reais os fantasmas dos seus sonhos. Já sofreu demasiado no corpo e no espírito. Não a mandeis matar, senhores juízes. Deixai a inocente viver em paz a sua triste vida.

E Katheline repetia:

- Nele é má, não deves acreditar no que ela diz, Hans, meu senhor.

E, entre o povo, as mulheres choravam e os homens gritavam:

- Piedade para Katheline!

O bailio e os vereadores pronunciaram a sua sentença sobre Joos Damman, com base numa confissão que ele fez após novas torturas: foi condenado a ser degradado da nobreza e queimado a fogo lento até à morte, e sofreu o suplício no dia seguinte, diante da Casa comum, sem cessar de dizer:

- Matem a bruxa, é ela a única culpada! Maldito seja Deus! O meu pai matará os juízes.

E entregou a alma. E o povo dizia:

- Vejam o maldito e blasfemador. Morre como um cão.

No dia seguinte, o bailio e os vereadores pronunciaram a sua sentença sobre Katheline, que foi condenada a passar pela prova da água do canal de Bruges.

Se flutuasse, seria queimada como bruxa; se fosse ao fundo e morresse, considerar-se-ia que morrera cristãmente, e como tal seria inumada no jardim da igreja, que era o cemitério.

No dia seguinte, empunhando um círio, de pés descalços e vestindo uma camisa de pano preto, Katheline foi conduzida até à margem do canal, ao longo da álea, em grande procissão. Diante dela caminhavam, cantando a oração dos mortos, o deão de Notre Dame, os seus vigários, e o sacristão, levando a cruz. Atrás, o bailio de Damme, os vereadores, escrivães, os sargentos da comuna, o preboste, o carrasco e os seus dois ajudantes. Junto ao canal havia uma grande multidão de mulheres que choravam e de homens que murmuravam, cheios de piedade por Katheline, que caminhava como um cordeiro, sem saber para onde ia, e repetindo:

- Afastem o fogo! a cabeça arde! Hans, onde estás tu?

No meio das mulheres, Nele gritava:

- Quero que me atirem ao canal com ela.

As mulheres, no entanto, não a deixavam aproximar-se de Katheline.

Um vento frio soprava do mar; do céu cinzento caía na água do canal uma chuva fina. Havia ali uma barca, que o carrasco e os seus ajudantes requisitaram em nome de Sua Majestade Real. A um sinal, Katheline embarcou. O carrasco segurou-a e, a um sinal do preboste, que ergueu o seu bastão de justiça, lançou-a à água. Katheline debateu-se, mas não por muito tempo, e foi ao fundo, depois de gritar:

- Hans! Hans! Socorro! E o povo disse:

- Essa mulher não é uma bruxa.

Alguns homens atiraram-se ao canal e apanharam Katheline, sem sentidos e rígida como uma morta. Depois levaram-na para uma taberna e estenderam-na diante de um grande fogo.

Nele despiu-lhe as roupas encharcadas, para lhe vestir outras. Ao voltar a si, Katheline disse, tremendo e batendo os dentes:

- Hans, dá-me um manto de lã.

E Katheline nunca mais voltou a aquecer. E morreu ao terceiro dia, sendo enterrada no jardim da igreja.

E Nele, órfã, foi para a Holanda, para junto de Rosa van Auweghem.

 

Lá andava Thyl Claes Ulenspiegel, nos barcos da liberdade.

Cruzando o mar aberto, vogavam os valentes navios, transportando oito, dez ou vinte peças todas de ferro, vomitando morte e chacina contra os traidores espanhóis.

Thyl Claes Ulenspiegel era um canhoneiro fantástico; era ver como apontava, visava e furava como se fossem paredes de manteiga as carcaças dos carrascos.

No chapéu usava o crescente de prata, com esta inscrição: "Liever den Turc ais den Paus". Antes servir os turcos que o Papa.

Os marujos que o viam subir para os seus navios, lesto como um gato, subtil como um esquilo, cantando alguma canção, lançando alguma frase jocosa, interrogavam-no, curiosos:

- Como é, homenzinho, que tens um ar tão jovem, quando se diz que há muito tempo que nasceste em Damme?

- Não sou corpo, mas espírito - respondia ele - e Nele, a minha amiga, é como eu. Espírito da Flandres, Amor da Flandres, nós não morremos.

- Todavia - replicavam eles - quando te cortam, sangras.

- Só vêem a aparência - dizia Ulenspiegel. - É vinho e não sangue.

- Meter-te-emos um batoque no ventre.

- Gosto de esvaziar-me sozinho.

- Troças de nós.

- Aquele que toca caixa ouvirá o tambor - respondia Ulenspiegel.

E as bandeiras douradas das procissões romanas flutuavam nos mastros dos navios. E vestidos de veludo, de brocado, de seda, de mantos bordados a ouro e a prata, como os que os padres usam nas missas solenes, usando a mitra e a cruz, bebendo o vinho dos monges, os Esfarrapados montavam a guarda nos barcos.

E era um espectáculo estranho ver sair de vestes tão ricas aquelas mãos rudes empunhando o arcabuz ou a besta, a alabarda ou a lança, e todos os homens de feições rudes, carregados de pistolas e facas que reluziam ao sol, e bebendo em cálices de ouro o vinho abacial tornado vinho de liberdade.

E cantavam, e gritavam: "Vivam os Esfarrapados!" e deste modo corriam o Oceano e o Escaut.

 

Nesse tempo, os Esfarrapados, e entre eles Lamme e Ulenspiegel, tomaram Gorcum. E eram comandados pelo capitão Marin. Este Marin, que fora operário dos diques, era homem de grande altivez e suficiência, e assinou com Gaspard Turc, defensor de Gorcum, uma capitulação na qual Turc, os monges, os burgueses e os soldados fechados na cidadela sairiam livremente, de bala na boca, mosquete ao ombro, com tudo o que pudessem levar, salvo os bens das igrejas, que ficariam para os assaltantes.

O capitão Marin, no entanto, por ordem do senhor de Lumey, reteve cativos os dezanove monges e deixou ir os soldados e os burgueses.

E Ulenspiegel disse:

- Palavra de soldado deve ser palavra de ouro. Porque falta ele à sua?

- Os monges são os filhos de Satanás - respondeu-lhe um velho Esfarrapado - a lepra das nações, a vergonha dos países. Desde a chegada do duque de Alba que eles levantam o nariz em Gorcum. Há um entre eles, o padre Nicolas, mais orgulhoso que um pavão e mais feroz que um tigre. De cada vez que passava na rua com o seu santo sacramento onde estava a hóstia feita de gordura de cão, olhava com olhos cheios de furor para as casas de onde as mulheres não saíam para se porem de joelhos, e denunciava ao juiz todos os que não dobravam o joelho diante do seu ídolo de massa e de cobre dourado. Os outros monges imitavam-no. Isto foi a causa de grandes misérias, fogueiras e cruéis punições na cidade de Gorcum. O capitão Marin faz bem em conservar prisioneiros os monges que de outro modo iriam juntar-se aos seus iguais nas aldeias, burgos, cidades e povoados, para pregar contra nós, amotinando o povo e fazendo queimar os pobres reformistas. Os cães prendem-se com correntes; é preciso prender com correntes os monges, os "bloed-honden", os cães de sangue do duque. É preciso enjaular os carrascos. Vivam os Esfarrapados!

- Mas - contrapôs Ulenspiegel - o príncipe de Orange, o nosso príncipe de liberdade, quer que se respeite, entre os que se rendem, os bens das pessoas e a livre consciência. E os Esfarrapados responderam:

- O almirante não o quer no caso dos monges. É ele o senhor, o homem que tomou Briele. À jaula os monges!

- Palavra de soldado, palavra de ouro! - insistiu Ulenspiegel. - Porque faltou ele à sua? Os monges retidos na prisão sofrem mil vilanias.

- As cinzas já não batem no teu peito - disseram os outros. - Cem mil famílias devido aos éditos, levaram para o Noord-West, para Inglaterra, os ofícios, a indústria, a riqueza do nosso país. Lamentas agora os que causaram a nossa ruína? Desde o imperador Carlos V, Carrasco I, e agora sob este, rei de sangue, Carrasco II, cento e dezoito mil pessoas pereceram no suplício. Quem levou o círio do funeral, no assassínio e nas lágrimas? Monges e soldados espanhóis. Não ouves as almas dos mortos que se queixam?

- As cinzas batem no meu peito - disse Ulenspiegel. - Palavra de soldado é palavra de ouro.

- Quem quis, através da excomunhão, pôr o país à margem das nações? Quem teria armado contra nós, se pudesse, céu e terra, Deus e o diabo, e os seus bandos cerrados de santos e santas? Quem manchou de sangue de boi as hóstias, quem fez chorar estátuas de madeira? Quem mandou cantar o De profundis sobre a terra dos pais, senão esse clero maldito, essas hordas de monges ociosos, para conservarem as suas riquezas, a sua influência sobre os adoradores de ídolos, e reinar pela ruína, o sangue e o fogo sobre o pobre país! À jaula os lobos que se lançam sobre os homens caídos por terra, à jaula as hienas! Vivam os Esfarrapados!

- Palavra de soldado é palavra de ouro - respondeu Ulenspiegel.

No dia seguinte chegou uma mensagem de Lumey, com ordens para transferir de Gorcum para Briele, onde estava o almirante, os dezanove monges prisioneiros.

- Serão enforcados - disse o capitão Marin a Ulenspiegel.

- Não enquanto eu viver - respondeu ele.

- Meu filho - disse-lhe Lamme - não fales assim ao senhor de Lumey. O homem é feroz e mandar-te-á enforcar juntamente com eles, sem piedade.

- Falarei segundo a verdade - respondeu Ulenspiegel. - Palavra de soldado é palavra de ouro.

- Se podes salvá-los - disse Marin - conduz a barca que os transportará até Briele. Leva contigo Rochus, o piloto, e o teu amigo Lamme, se queres.

- Quero - disse Ulenspiegel.

A barca encostou ao cais Verde e os dezanove monges embarcaram. Rochus, o medroso, foi colocado ao leme. Ulenspiegel e Lamme, bem armados, foram colocar-se à proa da embarcação. Alguns soldados sem lei, que acompanhavam os Esfarrapados para tomar parte nas pilhagens, encontravam-se perto dos monges, que tiveram fome. Ulenspiegel deu-lhes de comer e de beber.

- Esse vai trair - diziam os soldados.

Os dezanove monges, sentados a meio da embarcação, estavam tristes e trémulos, ainda que se estivesse em Julho, que o sol brilhasse claro e quente e um vento suave inflasse as velas da barca, que deslizava maciça e barriguda sobre as verdes ondas.

O padre Nicolas falou então, e dirigiu-se ao piloto.

- Rochus, levam-nos para o campo das forcas? - Depois, erguendo e voltando-se para Gorcum, disse, de mão estendida: - Oh, cidade de Gorcum! Quantos males terás de sofrer. Serás maldita entre as cidades, pois deixaste crescer entre as tuas paredes o grão da heresia! Oh, cidade de Gorcum! O anjo no Senhor não mais velará junto às tuas portas. Já não terá mais cuidado com o pudor das tuas virgens, com a coragem dos teus homens, com a fortuna dos teus mercadores! Oh, cidade de Gorcum! És maldita, infeliz!

- Maldita, maldita - respondeu Ulenspiegel. - Maldita como o pente que passou varrendo os piolhos espanhóis, maldita como o cão que quebra a sua corrente, como o altivo cavalo sacudindo do dorso um cavaleiro cruel! Maldito és tu, pregador ingénuo, que achas mal que se parta a vara, fosse ela de ferro, nas costas dos tiranos!

O monge calou-se e, baixando os olhos, pareceu ficar mergulhado em piedoso ódio.

Os soldados que acompanhavam os Esfarrapados para a pilhagem continuavam junto dos monges, que pouco depois voltaram a ter fome. Ulenspiegel pediu que lhes dessem biscoitos e arenque. E o mestre da barca respondeu:

- Atirem-nos ao Mosa. Assim comerão arenque fresco.

Ulenspiegel deu então aos monges todo o pão e salpicões que tinha para si e para Lamme. O mestre da barca e os soldados entreolharam-se, dizendo:

- Este é traidor, alimenta os monges. É preciso denunciá-lo.

Em Dordrecht, a barca deteve-se no porto, atracando ao Bloemen-Key, o cais das flores. Homens e mulheres, rapazes e raparigas acorreram em multidão para ver os monges, e diziam, apontando-os a dedo e mostrando-lhes os punhos:

- Eis os bandidos fabricantes de Bons Deuses, que lançam os corpos às fogueiras e as almas ao fogo eterno!

- Vejam os tigres gordos e os chacais pançudos.

Os monges baixavam a cabeça e não ousavam falar. Ulenspiegel viu-os novamente trémulos.

- Temos outra vez fome, soldado complacente - disseram.

O mestre da barca, no entanto, disse:

- Quem bebe sempre? A areia árida. Quem come sempre? O monge.

Ulenspiegel foi à aldeia comprar-lhes pão, presunto e um grande jarro de cerveja.

- Comam e bebam - disse-lhes. - São nossos prisioneiros, mas eu salvá-los-ei, se puder. Palavra de soldado é palavra de ouro.

- Porque lhes dás de comer sem que eles te paguem? - perguntaram os soldados. E, falando uns com os outros, murmuravam: - Prometeu salvá-los, é preciso vigiá-lo.

Ao raiar da aurora, chegaram a Briele. As portas foram-lhe abertas e um "voet-looper", correio, foi avisar o senhor de Lumey da chegada da barca.

Mal soube da notícia, o almirante acorreu a cavalo, meio vestido e acompanhado por alguns cavaleiros e peões armados.

E Ulenspiegel pôde ver novamente o feroz almirante vestido como um altivo senhor vivendo na opulência.

- Saudações - disse o almirante - senhores monges. Levantem as mãos. Onde está o sangue dos Egmont e dos Horne? Mostram-me as patas brancas. É bem vosso.

Um monge chamado Léonard respondeu-lhe:

- Faz de nós o que quiseres. Somos monges, ninguém nos reclamará.

- Falou bem - disse Ulenspiegel - pois o monge, tendo rompido com o mundo, que é pai e mãe, irmão e irmã, mulher e amiga, não encontra na hora de Deus quem o reclame. Todavia, Excelência, quero eu fazê-lo.

O capitão Marin, ao assinar a capitulação de Gorcum, estipulou que os monges ficariam livres como todos os outros que foram apanhados na cidadela e que de lá sairam. E no entanto foram, sem causa, retidos prisioneiros. Ouço dizer que serão enforcados. Senhor, dirijo-me humildemente a vós, falando-vos por eles, pois sei que palavra de soldado é palavra de ouro.

- Quem és tu? - perguntou o senhor de Lumey.

- Senhor - respondeu Ulenspiegel, flamengo - sou do belo país da Flandres, plebeu, nobre, tudo ao mesmo tempo, e deste modo passeio-me pelo mundo, louvando as coisas belas e troçando da estupidez. E quero louvar-vos se mantiverdes a palavra dada pelo capitão: palavra de soldado é palavra de ouro.

No entanto, os soldados que estavam na barca gritaram:

- Senhor, esse é traidor. Prometeu salvá-los, deu-lhes pão, presunto, salpicões e cerveja, e a nós nada.

Lumey disse então a Ulenspiegel.

- Flamengo passeante e alimentador de monges, serás enforcado com eles.

- Não tenho medo - respondeu Ulenspiegel. - Palavra de soldado é palavra de ouro.

- Estás condenado - disse de Lumey.

- As cinzas batem no meu peito - respondeu Ulenspiegel.

Os monges foram levados para uma granja, e Ulenspiegel com eles. Uma vez instalados, tentaram convertê-lo à força de argumentos teológicos, mas Ulenspiegel adormeceu enquanto eles falavam.

Estando Lumey à mesa, cheia de vinhos e carnes, chegou um mensageiro de Gorcum, da parte do capitão Marin, com cópias das cartas do "Calado", príncipe de Orange, "ordenando a todos os governadores de cidades e outros locais que tenham os eclesiásticos em igual salvaguarda, segurança e privilégio que o resto do povo".

O mensageiro pediu para ser levado à presença do senhor de Lumey, a fim de entregar-lhe em mão própria as cópias das cartas.

- Onde estão os originais? - perguntou-lhe de Lumey.

- Na posse do meu senhor - respondeu o mensageiro.

- E o plebeu envia-me as cópias! - exclamou de Lumey. - Onde está o teu passaporte?

- Aqui o tendes, senhor. E Lumey leu em voz alta:

- "Marin Brandt manda a todos os ministros, governadores e oficiais da república que dêem livre passagem, etc."

Batendo com o punho na mesa e rasgando o passaporte, de Lumey gritou:

- Sangue de Deus! Mas que pensa esse Marin, esse miserável, que não tinha, antes da tomada de Briele, um pedaço de arenque salgado para meter na boca? Intitula-se senhor, e envia-me ordens, a mim! Manda e ordena! Diz ao teu amo que, uma vez que é capitão e senhor, tão mandante e comandante, que os monges serão enforcados de alto, e isto imediatamente, e tu com eles, se não desapareceres da minha vista.

E, aplicando-lhe um pontapé, expulsou-o da sala.

- De beber! - gritou. - Viram a ousadia desse Marin? Cuspirei o meu jantar, tão furioso estou. Enforquem esses monges na granja, imediatamente, e tragam-me o flamengo, depois de o terem feito assistir ao suplício. Veremos se ousará dizer que fiz mal. Sangue de Deus! Quem tem aqui necessidade de copos e taças?

E quebrou com grande estrépido os copos e os pratos, e ninguém ousava dirigir-lhe a palavra. Os criados quiseram apanhar os cacos, mas ele não o consentiu, e, bebendo desmedidamente pelas garrafas, enfurecia-se cada vez mais, caminhando a grandes passadas de um lado para o outro, por cima dos cacos que espezinhava iradamente. Ulenspiegel foi levado à sua presença.

- Então - perguntou-lhe - trazes notícias dos teus amigos monges?

- Foram enforcados - respondeu Ulenspiegel - e um cobarde carrasco, matando por interesse, abriu após a morte o ventre e os flancos de um deles, como a um porco esventrado, para vender a gordura a um boticário. Palavra de soldado já não é palavra de ouro.

Lumey, espezinhando os cacos da louça, gritou:

- Desafias-me, patife, mas serás enforcado, não numa granja, mas na praça, ignominiosamente, à frente de todos.

- Vergonha para vós - respondeu Ulenspiegel - vergonha para nós, palavra de soldado já não é palavra de ouro.

- Queres calar-te, cabeça de ferro!

- Vergonha para ti. Palavra de soldado já não é palavra de ouro. Pune antes os miseráveis mercadores de gordura humana.

Lumey, então, precipitando-se para ele, ergueu a mão, disposto a bater.

- Bate - disse Ulenspiegel. - Sou teu prisioneiro, mas não tenho medo de ti. Palavra de soldado já não é palavra de ouro.

Lumey puxou da espada, e teria certamente trespassado Ulenspiegel se Trés-Long, detendo-lhe o braço, não lhe dissesse:

- Tende piedade! O homem é bravo e valente, e não cometeu qualquer crime.

- Que peça perdão - disse Lumey, serenando um

pouco.

Ulenspiegel, porém, permanecendo de pé, respondeu:

- Não o farei.

- Que ao menos diga que não fiz mal - gritou Lumey, enfurecendo-se de novo.

E Ulenspiegel disse:

- Não lambo as botas dos senhores. Palavra de soldado já não é palavra de ouro.

- Ergam a forca - ordenou Lumey - e levem-no. Para ele será palavra de cânhamo.

- Sim - disse Ulenspiegel. - E gritar-te-ei diante de todo o povo: palavra de soldado já não é palavra de ouro!

A forca foi erguida na praça do mercado. Não tardou em espalhar-se pela cidade a notícia de que iam enforcar Ulenspiegel, o valoroso Esfarrapado. E o povo encheu-se de piedade e misericórdia, acorrendo em multidão à praça. Lumey apareceu também, a cavalo, para dar ele próprio o sinal para a execução.

Olhou sem piedade para Ulenspiegel, na escada, vestido para a morte, só com as roupas interiores, as mãos amarradas, a corda ao pescoço, junto do carrasco que estava pronto para fazer a sua obra.

Trés-Long dizia-lhe:

- Senhor, perdoai-lhe. Não é um traidor, e nunca se viu enforcar um homem por ser sincero e piedoso.

E os homens e mulheres do povo, ouvindo Trés-Long falar, gritavam:

- Piedade, senhor! Graça para Ulenspiegel.

- Essa cabeça de ferro desafiou-me - disse Lumey. - Que se arrependa e diga que não fiz mal.

- Queres arrepender-te e dizer que o senhor agiu bem? - perguntou Trés-Long a Ulenspiegel.

- Palavra de soldado já não é palavra de ouro - respondeu o condenado.

- Passem a corda - ordenou Lumey.

O carrasco ia obedecer quando uma jovem, toda vestida de branco e coroada de flores, subiu como uma louca os degraus do cadafalso, saltou ao pescoço de Ulenspiegel e disse:

- Este homem é meu, tomo-o por marido! E o povo aplaudiu, e as mulheres gritavam:

- Viva, viva a jovem que salva Ulenspiegel!

- Que significa isto? - perguntou Lumey.

- Segundo os usos e costumes da cidade - respondeu Trés-Long - é de direito e de lei que uma jovem virgem ou não casada salve um homem da corda tomando-o por marido ao pé da forca.

- Deus está com ele - disse Lumey. - Libertem-no. Avançando então até ao cadafalso, viu a jovem

ocupada a cortar as cordas que prendiam Ulenspiegel, e o carrasco querendo opor-se ao seu desígnio, dizendo:

- Se as cortas, quem as pagará?

A jovem, no entanto, não o escutava. E vendo-a tão apressada, amorosa e subtil, Lumey enterneceu-se.

- Quem és tu? - perguntou.

- Sou Nele, a noiva de Ulenspiegel, e vim da Flandres para procurá-lo.

- Fizeste bem - disse Lumey, num tom sombrio. E afastou-se.

Trés-Long aproximou-se então, e perguntou:

- Flamengo, uma vez casado, continuarás a ser soldado nos nossos navios?

- Sim, senhor - respondeu Ulenspiegel.

- E tu, pequena, que farás sem o teu homem?

- Se quiserdes, senhor - respondeu Nele - serei pífaro no navio dele.

- Quero - disse Trés-Long.

E deu-lhes dois florins para a festa. E Lamme, chorando e rindo de contentamento, dizia:

- Aqui estão mais três florins. Comeremos tudo. Sou eu quem paga. Vamos para o "Pente de Ouro". Não está morto, o meu amigo. Vivam os Esfarrapados!

E o povo aplaudia, e foram todos para o "Pente de Ouro", onde encomendaram um grande festim. E Lamme atirava moedas ao povo, pela janela.

E Ulenspiegel dizia a Nele:

- Minha amada, eis-te junto de mim! Natal, está aqui, em carne coração e alma, a minha doce amiga. Oh! os doces olhos e os belos lábios de onde nunca saiu uma palavra que não fosse boa. Salvou-me a vida, a terna amada! Tocarás nos nossos navios o pífaro da libertação. Recordas... mas não... nossa é a hora presente, cheia de alegria, e meu é o teu rosto suave como as flores de Junho. Estou no paraíso. Mas tu choras...

- Mataram-na! - murmurou Nele. E contou-lhe a história de luto.

E, de olhos nos olhos, choraram de amor e de dor. E durante o festim comeram e beberam. Lamme olhava-os, dolente, dizendo:

- Ah! minha mulher, onde estás tu?

Depois chegou o padre e casou Nele e Ulenspiegel.

E o sol da manhã encontrou-os um junto do outro, no leito de núpcias.

E Nele repousava a cabeça no ombro de Ulenspiegel. E quando ela despertou ao sol, ele disse-lhe:

- Rosto fresco e coração suave, seremos os vingadores da Flandres.

E ela, beijando-o na boca, respondeu:

- Cabeça louca e braços fortes, Deus abençoará o pífaro e a espada.

- Far-te-ei um fato de soldado.

- Já? - perguntou ela.

- Já - respondeu Ulenspiegel. - Mas quem disse que de manhã os morangos são bons? A tua boca é muito melhor.

 

Ulenspiegel, Lamme e Nele tinham, como os seus amigos e companheiros, recuperado nos conventos os bens ganhos ao povo com a ajuda de procissões, de falsos milagres e de outras palhaçadas romanas. Isto foi feito contra a ordem do "Calado", príncipe de liberdade, mas o dinheiro servia para fazer frente às despesas da guerra. Lamme Goedzak, não contente com abastecer-se de dinheiro, pilhava nos conventos os presuntos, salpicões, frascos de cerveja e de vinho, e mais de uma vez saía levando a tiracolo um boldrié de gansos, perus, capões, frangos e galinhas, e arrastando atrás de si, presos por cordas, um ou outro vitelo ou porco monásticos.

- São presas de guerra - dizia.

Levava estes víveres para o navio, para os festins e folganças, queixando-se todavia de que o mestre-cozinheiro fosse tão ignorante na nobre arte dos molhos e fricassés.

Ora nesse dia os Esfarrapados, tendo cheirado vitoriosamente os fumos da batalha, disseram a Ulenspiegel.

- Estás sempre de nariz ao vento para cheirar notícias de terra firme, e conheces todas as aventuras da guerra. Conta-no-las. Entretanto Lamme baterá o tambor e o belo pífaro acompanhará a tua canção.

E Ulenspiegel disse:

- Certo dia de Maio, claro e fresco, Ludwig de Nassau, querendo entrar em Mons, não encontrou nenhum dos seus peões nem cavaleiros. Alguns partidários seus tinham uma porta aberta e uma ponte baixada, a fim de que ele tomasse a cidade. Mas os burgueses apoderaram-se da porta e da ponte. Onde estavam os soldados do conde Luís? Os burgueses iam levantar a ponte. O conde Luís tocou a corneta. E Ulenspiegel cantou:

Onde estão os teus peões e cavaleiros?

Estão perdidos no bosque, espezinhando tudo:

Ramos secos, junquilhos em flor.

O senhor Sol faz reluzir

As suas faces vermelhas e guerreiras,

As garupas brilhantes dos seus corcéis;

O conde Ludwig toca a corneta:

Eles ouvem-no. Docemente batem o tambor.

A grande galope, à rédea solta! Como o relâmpago, como a nuvem; Tromba de ferro ressoante; Voam, os pesados cavaleiros! Depressa! depressa! Ao assalto! A ponte ergue-se... Dar de esporas Nos flancos ensanguentados dos corcéis. A ponte ergue-se; cidade perdida!

Estão diante. Demasiado tarde? Ventre junto à terra! à rédea solta! Guitoy de Chaumont, sobre o seu cavalo, Salta para a ponte, que volta a descer. Cidade tomada! Ouve-se Nas ruas de Mons Como o relâmpago, como a nuvem, tromba de ferro ressoante!

Viva Chaumont e o ginete!

Toquem o clarim de alegria, batam o tambor;

É o mês do feno, os prados recendem;

A cotovia sobe, cantando no céu:

Viva a ave livre!

Batam o tambor de glória!

Vivam Chaumont e o ginete. Dêem de beber!

Cidade tomada!... Vivam os Esfarrapados!

E os Esfarrapados cantavam nos navios:

"Cristo, olha os teus soldados. Pule as nossas armas,

Senhor. Vivam os Esfarrapados!" E Nele, sorridente, fazia cantar o pífaro, e Lamme batia o tambor, e para cima, para o céu, templo de Deus,

elevavam-se as taças de ouro e os hinos de liberdade.

E as vagas, como sereias, claras e frescas em torno do navio, sussurravam harmoniosas.

 

Um dia, no mês de Agosto, dia pesado e quente, Lamme ressumava melancolia. O seu tambor alegre calava-se e dormia, e os paus espreitavam pela abertura da sua sacola. Ulenspiegel e Nele, sorrindo de alegria amorosa, aqueciam-se ao sol; os vigias, empoleirados nos mastros, assobiavam ou cantavam, procurando na imensidão do mar alguma presa. Trés-Long interrogava-os, e eles respondia sempre:

- "Niets". (Nada)..

E Lamme, pálido e desolado, suspirava melancolicamente. Nele disse-lhe:

- De onde te vem, Lamme, tanta tristeza? E Ulenspiegel disse-lhe:

- Emagreces, meu filho.

- Sim - respondeu Lamme - estou triste e magro. O meu coração perde a alegria e a minha cara a frescura. Sim, riam-se de mim, vocês que se reencontraram através de mil agruras. Trocem do pobre Lamme, que vive como um viúvo, sendo casado, enquanto que tu, Nele, tiveste de arrancar o teu homem aos beijos da corda, que será a sua última amante. E fizeste bem, Deus te abençoe, mas não troces do pobre Lamme, Nele, minha amiga. A minha mulher troça por dez. Ah! vocês, fêmeas, são cruéis com as dores dos outros. Sim, tenho o coração triste, ferido pelo gládio do abandono. E nada o reconfortará, senão ela.

- Ou algum fricassé - disse Ulenspiegel.

- Sim - respondeu Lamme. - Onde está a carne neste triste navio? Nos barcos do rei, comem-na quatro vezes por semana, se não há jejum, e três vezes peixe. Quanto ao peixe, Deus me condene se essa filaça... refiro-me à sua carne... me faz outra coisa senão incendiar-me sem proveito o sangue, o meu pobre sangue que não tardará em transformar-se em água. Têm cerveja, queijo, sopa e boa bebida. Sim, têm tudo o que lhes contente os estômagos: biscoitos, pão de centeio, cerveja, manteiga, carne fumada, sim, tudo, peixe seco, queijo, semente de mostarda, sal, favas, ervilhas, sêmola, vinagre, azeite, sebo, madeira e carvão. A nós, proíbem-nos de requisitar o gado de quem quer que seja, burguês, abade ou fidalgo. Comemos arenque e bebemos má cerveja. Ah! já nada me resta: nem amor de mulher, nem bom vinho, nem dobbel-bruinbier, nem boa alimentação. Onde estão as nossas alegrias?

- Vou dizer-to, Lamme - respondeu Ulenspiegel. - Olho por olho, dente por dente. Só na cidade de Paris, na noite de São Bartolomeu, mataram dez mil corações livres; o próprio rei disparou contra o seu povo. Desperta, flamengo. Empunha o machado sem piedade: estão aí as nossas alegrias. Mata o inimigo espanhol ou romano onde quer que o encontres. Deixa as tuas comezainas. Levaram as vítimas mortas ou vivas, às carradas, para o rio, e lançaram-nas à água. Mortas ou vivas, ouves, Lamme? O Sena correu vermelho durante nove dias, e os corvos abateram-se em nuvens sobre a cidade. Em La Charité, em Rouen, em Toulouse, em Lyon, em Bordéus, em Bruges, em Meaux, a chacina foi terrível. Vês as matilhas de cães vadios deitando-se junto dos cadáveres? Os seus dentes estão fatigados. O voo dos corvos é pesado, de tal modo têm os estômagos carregados com a carne das vítimas. Ouves, Lamme, a voz das almas clamando vingança e piedade?

"Desperta, flamengo. Falas da tua mulher. Não a julgo infiel, mas louca, e ela continua a amar-te, meu amigo. Não estava no meio dessas damas da corte que, na própria noite da chacina, despojaram com as suas finas mãos os cadáveres, para verem o tamanho da carnal virilidade de cada um. E riam, essas damas grandes em deboche. Alegra-te, meu filho, a despeito do teu arenque e da tua má cerveja. Se o gosto do arenque é mau, pior ainda é o gosto dessa vilania. Os que mataram fazem festins, e, com as mãos mal lavadas, trincham gordos patos e oferecem às gentis donzelas de Paris as asas, as pernas e o peito. E elas ainda há pouco tactearam outra carne, carne fria.

- Não me queixarei mais, meu filho - disse Lamme, erguendo-se. - O arenque é hortulana e a cerveja é malvasia, para os corações livres.

E Ulenspiegel cantou:

Vivam os Esfarrapados! Irmãos, não choremos.

Nas ruínas e no sangue

Floresce a rosa da liberdade.

Se Deus está connosco, quem estará contra?

Quando a hiena triunfa, Vem a vez do leão.

Com uma pata lança-a por terra, esventrada.

Olho por olho, dente por dente.

Vivam os Esfarrapados!

E os Esfarrapados, nos navios, cantavam:

O duque terá a mesma sorte.

Olho por olho, dente por dente,

Ferida por ferida. Vivam os Esfarrapados!

 

Numa noite negra, enquanto a tempestade rugia nas profundezas das nuvens, Ulenspiegel, na ponte com Nele, disse-lhe:

- Todas as nossas luzes estão apagadas. Somos raposas espreitando, de noite, a passagem das galinhas espanholas, isto é, os seus galeões, ricos navios onde brilham as lanternas, que para eles são estrelas de má hora. E caímos-lhes em cima.

E Nele disse:

- Esta noite é uma noite de bruxos. Este céu é negro como a boca do inferno, estes relâmpagos brilham como sorrisos de Satanás, a tempestade distante ruge surdamente, as gaivotas passam lançando os seus gritos; o mar rola como cobras de prata as suas vagas fosforescentes. Thyl, meu amado, vem para o mundo dos espíritos. Toma o pó da visão.

- Verei os sete, minha bela? E tomaram o pó da visão.

E Nele fechou os olhos a Ulenspiegel, e Ulenspiegel fechou os olhos a Nele, e viram um cruel espectáculo.

Céu, terra, mar, estavam cheios de homens, de mulheres, de crianças, trabalhando, vagueando, caminhando ou sonhando. O mar balançava-os, a terra sustentava-os. E eles agitavam-se como enguias num cesto.

Sete homens e mulheres estavam no meio do céu, sentados em tronos e com a fronte cingida por estrelas brilhantes, mas eram tão vagos que Nele e Ulenspiegel só viam distintamente as estrelas.

O mar subiu até ao céu, rolando na sua escuma uma incontável multidão de navios cujos mastros e cordames se chocavam, entrecruzavam, quebravam, esmagavam, segundo o movimento tempestuoso das vagas. Depois um navio apareceu no meio de todos os outros. A sua querena era de ferro flamejante. A sua quilha era de aço talhado como uma faca. A água gritava, gemendo, quando ele passava. A Morte estava sentada na popa do navio, trocista, segurando com uma mão a foice, e com a outra um chicote com o qual fustigava sete pessoas. Uma era um homem triste, magro, altivo, silencioso. Tinha numa mão um ceptro e na outra uma espada. Perto dele, montada numa cabra, estava uma rapariga avermelhada, de seios nus, com o vestido aberto e os olhos brilhantes. Estendia-se lasciva ao lado de um velho judeu que apanhava pregos e de um homem gordo que caía de cada vez que ela o levantava, enquanto que uma mulher magra e enfurecida batia nos dois. O homem gordo não se vingava, nem a sua rubra companheira. No meio deles, um monge comia salsichas. Uma mulher, estendida por terra, rastejava como uma serpente por entre os outros. Mordia o velho judeu por causa dos seus velhos pregos, o homem gordo porque ele estava demasiado contente, a mulher avermelhada por causa do brilho húmido dos seus olhos, o monge pelas suas salsichas, e o homem magro por causa do seu ceptro. E então começaram todos a lutar uns com os outros.

Quando passaram, a batalha foi horrível no mar, no céu e na terra. Choveu sangue. Os navios eram desfeitos a golpes de machado, de arcabuz, de canhão. Os seus destroços voavam pelos ares, no meio do fumo da pólvora. Em terra, exércitos entrechocavam-se como paredes de bronze. Cidades, aldeias, colheitas, tudo ardia entre gritos e lágrimas; os altos campanários, rendilhados de pedra, erguiam por entre o fogo as suas altivas silhuetas, e depois caíam com o estrépito de carvalhos abatidos. Cavaleiros negros, numerosos e cerrados como exércitos de formigas, de espada na mão, a pistola empunhada, atacavam os homens, as mulheres e as crianças. Alguns faziam buracos no gelo e enterravam neles velhos ainda vivos; outros cortavam os seios às mulheres e cobriam-nos de pimenta, outros enforcavam crianças nas chaminés. Os que estavam cansados de matar, violavam raparigas e mulheres, bebiam, jogavam aos dados, e metiam os dedos avermelhados em pilhas de ouro, fruto das suas pilhagens. Os sete coroados de estrelas gritavam:

- Piedade para o pobre mundo!

E os fantasmas riam. E as suas vozes eram semelhantes às de mil xofrangos gritando ao mesmo tempo. E a Morte agitava a sua foice.

- Estás a ouvi-los? - perguntou Ulenspiegel. - São as aves de rapina dos pobres humanos. Vivem de pequenas aves, que são os simples e os bons.

Os sete coroados de estrelas gritavam:

- Amor, justiça, misericórdia.

E os sete fantasmas troçavam. E as suas vozes eram semelhantes às de mil xofrangos gritando ao mesmo tempo. E a Morte batia-lhes com o seu chicote.

E o navio passava sobre as ondas, cortando ao meio barcos, batéis, homens, mulheres, crianças. Sobre o mar ressoavam as queixas das vítimas, gritando:

- Piedade!

E o navio vermelho passava sobre todos eles, enquanto que os fantasmas riam e gritavam como xofrangos.

E a Morte, rindo, bebia água cheia de sangue.

Depois o navio desapareceu no nevoeiro, a batalha cessou, as sete coroas de estrelas desvaneceram-se.

Ulenspiegel e Nele viram apenas o céu negro, o mar encapelado, as sombras nuas avançando sobre a água fosforescente, e, muito perto, estrelas rubras.

Eram as lanternas dos galeões espanhóis. O mar e o trovão rugiam surdamente.

E Ulenspiegel tocou suavemente o sino de'wacharm', e gritou:

- Os espanhóis! Os espanhóis! Voga para Flessingue! E o grito foi repetido por toda a frota. Ulenspiegel disse a Nele:

- Uma capa cinzenta espalha-se sobre o céu e sobre o mar. As lanternas já só brilham muito levemente, a aurora nasce, o vento arrefece, as vagas lançam a sua escuma para cima das pontes dos navios, uma forte chuva cai e cessa imediatamente, o sol ergue-se radioso, dourando a crista das ondas: é o teu sorriso Nele, fresco como a manhã, doce como os raios do sol.

"Os galeões espanhóis passam. Nos navios dos Esfarrapados os tambores batem, os pífaros cantam, Lumey grita: " - Pelo príncipe à caça!" Ewont Pieterson Wort, subalmirante, grita: " - Pelo senhor de Orange e pelo senhor almirante à caça!" Em todos os navios, o Johamah, o Cisne, o Ame-Mie, o Esfarrapado, o Comprometido, o Egmont, o Homem, o Willem de Zwyger, o Guilherme-o-Calado, todos os capitães gritam: " - Pelo senhor de Orange e pelo senhor almirante!"

"À caça, vivam os Esfarrapados!, gritam os soldados e marinheiros. O navio de Trés-Long, onde estão Lamme e Ulenspiegel, chamado Briele, seguido de perto pelo Johannah, o Cisne e o Esfarrapado, apodera-se de quatro galeões. Os Esfarrapados atiram à água tudo o que é espanhol, fazem prisioneiros os habitantes dos Países-Baixos, despejam os navios como cascas de ovo e deixam-nos ir à deriva sem mastros nem velas. Depois perseguem os restantes galeões. O vento sopra violentamente do lado de Anvers, a amurada dos rápidos navios pende para a água sob o peso das velas inchadas como bochechas de monge ao vento que vem das cozinhas; os galeões fogem; os Esfarrapados perseguem-nos até aos baixios de Middlebourg, sob o fogo dos fortes. Trava-se então uma batalha sangrenta: os Esfarrapados lançam-se, empunhando machados, para os tombadilhos dos navios, que não tardam em ficar juncados de braços e pernas cortados, que é preciso, após o combate, atirar ao mar aos cestos cheios. Os fortes disparam contra eles, e eles riem-se e, dos galeões, tiram a pólvora e a artilharia, as balas e o trigo, e queimam-nos depois de os terem despejado, e vão para Flessingue, deixando-os fumegando e flamejando na água baixa.

"De aí enviarão esquadras para furar os diques da Holanda e da Zelândia, para ajudar a construir novos navios, e nomeadamente naves de cento e quarenta toneladas, transportando até vinte peças de ferro e de bronze."

 

- Neva sobre os navios. O ar está todo branco e a neve cai sem cessar, cai molemente na água escura, onde se derrete.

"Neva sobre a terra; os caminhos estão todos brancos, e brancas estão as negras silhuetas das árvores despidas. Nenhum ruído a não ser os sinos distantes de Harlem, dando as horas, e o alegre carrilhão enviando para o ar espesso as suas notas abafadas.

"Sinos, não toquem; sinos, deixai de tocar as vossas árias simples e suaves. D. Frederico aproxima-se, o duque de sangue. Marcha sobre ti, seguido por trinta e três esquadrões de espanhóis, teus mortais inimigos, oh! Harlem, cidade de liberdade; vinte e dois esquadrões de Valões, dezoito esquadrões de Alemães, oitocentos cavalos, uma poderosa artilharia. Ouves sobre as carroças o ruído dessa ferragem assassina? Falconetes, colubrinas, bombardas de grande goela, tudo isso é para ti, Harlem. Sinos, não toquem; carrilhão, não lances para o ar espesso de neve as tuas notas alegres.

"Sinos, tocaremos; eu, carrilhão, lançarei as minhas notas ousadas para o ar espesso de neve. Harlem é a cidade dos corações valentes, das mulheres corajosas. Vê sem temor, do alto dos seus campanários, ondular como bandos de formigas do inferno as negras massas de carrascos. Ulenspiegel, Lamme e cem Esfarrapados marinheiros estão dentro das suas muralhas. A frota cruza o lago.

"Que venham, dizem os habitantes; somos apenas burgueses, pescadores, marinheiros e mulheres.

"O filho do duque de Alba não quer, diz ele, para entrar na nossa cidade, outras chaves que os seus canhões. Que abra, se puder, estas débeis portas, e atrás delas encontrará homens. Toquem, sinos, carrilhão, lança as tuas notas alegres para o ar espesso de neve.

"Só temos fracas muralhas e fossos à maneira antiga. Catorze canhões vomitam as suas balas sobre a Cruys-Poorte. Coloquem homens onde faltam as pedras. A noite cai, todos trabalham, é como se o canhão nunca tivesse passado por ali.

"Contra a Cruyz-Poorte lançaram seiscentos e oitenta balas de canhão; contra a porta de São João, seiscentas e setenta e quatro. Essas chaves não abrem, pois eis que diante delas se ergue um novo baluarte. Toquem, sinos, carrilhão, lança para o ar espesso as tuas notas alegres.

"O canhão bate incessantemente as muralhas, as pedras saltam, troços inteiros desmoronam-se. A brecha é suficientemente ampla para deixar passar a frente de uma companhia. Ao assalto! Mata! Mata! - gritam eles. Sobem, são dez mil: deixem-nos passar os fossos com as suas pontes, com as suas escadas. Os nossos canhões estão prontos. Eis as bandeiras dos que vão morrer. Saúdem-nas, canhões da liberdade! E saúdam-nas. As balas de correntes, os potes de alcatrão inflamado voando e zunindo furam, destroçam, inflamam, cegam a massa de assaltantes que tombam e fogem em desordem. Mil e quinhentos mortos juncam o fosso. Toquem, sinos; e tu, carrilhão, lança as tuas notas para o ar espesso.

"Voltem ao assalto! Ah! não ousam. Põem-se a disparar e a minar. Também nós conhecemos a arte da mina. Acendam a mecha sob eles. Corram, vamos ver um belo espectáculo. Quatrocentos espanhóis saltam pelos ares. Não é esse o caminho das chamas eternas. Oh! a bela dança ao som argentino dos nossos sinos, à música alegre do nosso carrilhão! "Eles não sabem que o príncipe vela por nós, que todos os dias nos chegam, por passagens bem guardadas, trenós de trigo e de pólvora. O trigo para nós, a pólvora para eles. Onde estão os seiscentos alemães que matámos e afogámos nos bosques de Harlem? Onde estão os onze estandartes que lhes tomámos, as seis peças de artilharia e os cinquenta bois? Tínhamos uma cintura de muralhas, agora temos duas. Até as mulheres se batem, e Kennam comanda essa tropa valente. Venham, carrascos, marchem pelas nossas ruas. As crianças cortar-lhes-ão os jarretes com as suas pequenas facas. Toquem, sinos; e tu, carrilhão, lança para o ar espesso as tuas notas alegres!

"Mas a sorte não está connosco. A frota dos Esfarrapados é batida no lago. São batidas as tropas que d'Orange enviou em nosso socorro. Grela, gela duramente. Acabaram-se os socorros. Depois, durante cinco meses, mil contra dez mil, resistimos. Agora é preciso negociar com os carrascos. Quererá ouvir alguma razão, esse duque de sangue que jurou a nossa perda? Façamos sair todos os soldados com as suas armas: destroçarão os bandos inimigos. Mas as mulheres estão às portas, temendo que as deixem sozinhas a defender a cidade. Sinos, não toquem; carrilhão, não lances mais para o ar as tuas notas alegres.

"Eis Junho, os fenos perfumam o ar, os trigos douram-se ao sol, as aves cantam: tivemos fome durante cinco meses; a cidade está de luto; sairemos todos de Harlem, com os arcabuzeiros à frente para abrir caminho, as mulheres, as crianças e os magistrados atrás, guardados pela infantaria que vigia a brecha. Uma carta, uma carta do duque de sangue! É a morte que ele anuncia? Não, é a vida para todos os que estiverem dentro da cidade. Oh! clemência inesperada, ó mentira, talvez! Voltarás a cantar, carrilhão alegre? E eles entram na cidade."

Ulenspiegel, Lamme e Nele tinham vestido os uniformes dos soldados alemães fechados com eles, em número de seiscentos, no claustro dos Agostinhos.

- Hoje morreremos - disse Ulenspiegel a Lamme, em voz baixa.

E apertou contra o peito o corpo bonito de Nele, que tremia de terror.

- Ah! a minha mulher, não voltarei a vê-la - dizia Lamme. - Mas talvez estes uniformes de soldados alemães nos salvem a vida?

Ulenspiegel inclinou a cabeça, para dar a entender que não esperava misericórdia.

- Não ouço ruído de pilhagem - disse Lamme.

- Segundo o acordo - respondeu Ulenspiegel - os burgueses salvaram-se da pilhagem e da morte pela soma de duzentos e quarenta mil florins. Deverão pagar cem mil florins dentro de doze dias e o resto dentro de três meses. Foi ordenado às mulheres que se refugiem nas igrejas. Vão sem dúvida começar a chacina. Não os ouves montar os cadafalsos e erguer as forcas?

- Ah! vamos morrer - disse Nele. - Tenho fome.

- Sim - disse muito baixo Lamme a Ulenspiegel. - O duque de sangue disse que, esfomeados, estaríamos mais dóceis quando nos levassem para a morte.

- Tenho tanta fome! - disse Nele.

Nessa tarde, os soldados chegaram e distribuíram um pão por seis homens.

- Trezentos soldados valões foram enforcados no

mercado - disseram. - Não tardará em chegar a vossa vez. Os Esfarrapados casam sempre com a forca.

Na tarde do dia seguinte, voltaram a distribuir um pão por seis homens.

- Quatro importantes burgueses - disseram - foram decapitados.

Duzentos e quarenta e nove soldados foram amarrados dois a dois e lançados ao mar. Os caranguejos serão gordos este ano. Vocês não têm bom aspecto, desde sete de Julho que estão aqui. São gulosos e bêbedos, os habitantes dos Países-Baixos; nós, os espanhóis, contentamo-nos com dois figos para o jantar.

- É então por isso - respondeu Ulenspiegel - que em todo o lado fazem em casa dos burgueses quatro refeições de carnes, aves, cremes, vinhos e doces, que precisam de leite para lavar os corpos dos vossos "muchachos" e vinho para lavar as patas dos vossos cavalos?

A 18 de Julho, Nele disse:

- Tenho os pés molhados. O que é isto?

- Sangue - respondeu Ulenspiegel.

De tarde, os soldados voltaram uma vez mais com o seu pão para seis.

- Onde a corda não basta - disseram - o gládio faz o trabalho. Trezentos soldados e vinte e sete burgueses que tentaram fugir da cidade passeiam-se agora nos infernos, com a cabeça nas mãos.

No dia seguinte, o sangue entrou de novo no claustro; os soldados não foram levar pão, mas apenas ver os prisioneiros, dizendo:

- Os quinhentos valões, ingleses e escoceses decapitados ontem tinham melhor aspecto. Estes devem ter fome. Mas quem morreria de fome, a não ser os Esfarrapados?

E de facto, todos eles, pálidos, magros, desfeitos, tremendo da fria febre, eram como fantasmas.

A dezasseis de Agosto, às cinco horas da tarde, os soldados entraram, rindo, e deram-lhes pão, queijo e cerveja. Lamme disse:

- É o festim da morte.

Às dez horas, apareceram quatro tenentes; os capitães mandaram abrir as portas do claustro, ordenando aos prisioneiros que marchassem quatro a quatro atrás dos pífaros e tambores, até ao local onde os mandassem fazer alto. Certas ruas estavam vermelhas. E eles marcharam até ao campo das forcas.

Aqui e além, charcos de sangue manchavam as pradarias; havia sangue em todo o redor das muralhas. Os corvos acorriam em nuvens, de todos os lados; o sol escondia-se num leito de vapores, o céu estava ainda claro e, nas suas profundezas despertavam, tímidas, as estrelas. Subitamente, ouviram gritos terríveis.

- Os que gritam são os Esfarrapados do forte de Fuycke - disseram os soldados. - Deixam-nos morrer de fome.

- Também nós vamos morrer - disse Nele. E chorou.

- As cinzas batem no meu coração - disse Ulenspiegel.

- Ah! - exclamou Lamme, falando em flamengo, pois os soldados da escolta não compreendiam essa língua - se pudesse agarrar esse duque de sangue e obrigá-lo a comer, até que a pele lhe rebentasse, todas as cordas e forcas, todos os bancos, cavaletes, pesos e brodequins; se pudesse obrigá-lo a beber o sangue derramado por ele, para que lhe saísse pela pele rasgada e das tripas abertas pelas lascas de madeira, pelos pedaços de ferro, e se ele mesmo assim não morresse, arrancar-lhe-ia o coração do peito e obrigá-lo-ia a comê-lo cru e venenoso. Então, com toda a certeza, o maldito passaria da vida para a morte e cairia no abismo de enxofre, onde pudesse o diabo dá-lo a comer e recomer sem cessar. E assim por toda a longa eternidade.

- Ámen! - disseram Ulenspiegel e Nele.

- Não vês qualquer coisa? - perguntou ela.

- Não.

- Eu vejo a ocidente - disse Nele - cinco homens e duas mulheres sentados em roda.

Um está vestido de púrpura e tem na cabeça uma coroa de ouro. Parece ser o chefe dos outros, todos eles pobres e esfarrapados. Vejo vir do oriente outro grupo de sete: quem os comanda está também vestido de púrpura, mas não tem coroa. E vêem contra os de ocidente. E combatem uns com os outros, entre as nuvens. Já não vejo mais nada.

- Os sete - disse Ulenspiegel.

- Ouço - disse Nele - perto de nós, entre a folhagem, uma voz como um sopro, dizendo:

Entre guerra e entre fogo,

Entre as lanças e os gládios,

Procura;

Na morte e no sangue,

Nas ruínas e nas lágrimas,

Encontra.

- Outros que não nos libertarão a terra da Flandres - respondeu Ulenspiegel. - A noite faz-se negra, os soldados acendem archotes. Estamos perto do campo das forcas. Oh! doce amada, porque me seguiste? Não ouves nada Nele?

- Sim, um ruído de armas entre o trigo. E além, no alto de aquela colina, dominando o caminho onde entramos, não vês brilhar no aço a luz vermelha dos archotes? Vejo as pontas de fogo das mechas de arcabuz. Os nossos guardas dormem, ou são cegos? Não ouves os trovões? Vês os espanhóis cair varados de balas? Não ouves "Vivam os Esfarrapados!"? Sobem a correr o caminho, de lanças à frente, descem a colina com os seus machados. Vivam os Esfarrapados!

- Vivam os Esfarrapados! - gritaram Lamme e Ulenspiegel.

- Vê, estão a dar-nos armas - disse Nele. - empunha-as Lamme, empunha-as, meu amado. Vivam os Esfarrapados!

- Vivam os Esfarrapados! - gritou todo o grupo de prisioneiros!

- Os arcabuzes não cessam de disparar. - E eles caem como moscas, iluminados como estão pelos archotes. Vivam os Esfarrapados!

- Vivam os Esfarrapados! - gritou o grupo de salvadores.

- Vivam os Esfarrapados! - gritaram Ulenspiegel e os prisioneiros. - Os espanhóis estão em círculo de ferro. Mata! Mata! Já não resta um de pé. Mata sem piedade, a guerra é sem quartel! E agora corramos até Enckhuyse. Quem tem as roupas de brocado e de seda dos carrascos? Quem tem as suas armas?

- Todos! Todos! Vivam os Esfarrapados!

E de facto foram de barco para Enckhuyse, onde os alemães libertados com eles ficaram a guardar a cidade.

E Nele, Lamme e Ulenspiegel voltaram aos seus navios, e de novo cantavam cruzando o mar livre, na baía de Flessingue.

 

Aí Lamme foi novamente alegre. Descia muitas vezes a terra, e caçava bois, carneiros e galinhas como se fossem lebres, veados e hortulanas.

E não andava sozinho nessa caça alimentícia. Era belo ver voltar os caçadores, com Lamme à cabeça, puxando pelos cornos o gado grande, empurrando o pequeno, conduzindo à vara bandos de patos, levando nas mãos galinhas, frangos e capões, a despeito da proibição.

Faziam-se então grandes festas nos navios. E Lamme dizia:

- O cheiro dos molhos sobe até ao céu, alegrando os senhores anjos, que dizem: É o melhor da carne.

Enquanto vogavam, chegou uma frota mercante de Lisboa, cujo comandante ignorava que Flessingue tinha caído em poder dos Esfarrapados. Ordenaram-lhe que lançasse âncora e cercaram-na. Vivam os Esfarrapados! Tambores e pífaros deram o sinal para a abordagem. Os mercadores tinham canhões, picos, machados, arcabuzes.

As balas choviam dos navios dos Esfarrapados. Os seus arcabuzeiros, barricados em torno do grande mastro nos seus fortins de madeira, disparavam pela certa, sem perigo. Os mercadores caíam como moscas.

- Ao assalto! - dizia Ulenspiegel a Lamme e a Nele. - Ao assalto! Eis as especiarias, as jóias, os bens preciosos, o açúcar, a moscada, o giroflé, o gengibre, reais, ducados, brilhantes carneiros de ouro. Há mais de quinhentas mil moedas. Os espanhóis pagarão as despesas da guerra. Bebamos! Cantemos a missa dos Esfarrapados, que é a batalha.

E Ulenspiegel e Lamme corriam por todo o lado como leões. Nele tocava pífaro, ao abrigo de um fortim de madeira. Toda a frota foi capturada.

Contados os mortos, verificou-se que havia mil do lado dos espanhóis e trezentos do lado dos Esfarrapados; entre estes contava-se o mestre cozinheiro do navio Briele.

Ulenspiegel pediu para falar diante de Trés-Long e dos marinheiros, ao que Trés-Long assentiu de boa vontade. E ele fez-lhes este discurso:

 

- Senhor capitão, e vós compadres, acabamos de herdar muitas especiarias, e aqui está Lamme, a boa pança, que acha que o pobre morto que além está.

Deus o tenha em alegria, não era grande doutor em fricassés. Nomeemo-lo para o seu lugar, e ele preparar-vos-á guisados celestiais e sopas paradisíacas.

- De acordo - disseram Trés-Long e os outros. - Lamme será o mestre-cozinheiro do navio. Usará a grande colher de pau, para preparar as sopas e os molhos.

- Senhor capitão, compadres e amigos - disse Lamme- vêem-me chorando de alegria, pois não mereço uma tão grande honra. Todavia, uma vez que se dignam recorrer à minha indignidade, aceito as nobres funções de mestre em artes de fricassés no valoroso Briele, mas pedindo-lhes humildemente que me invistam no comando supremo da cozinha, de tal sorte que o vosso mestre-cozinheiro, que serei eu, possa por direito, lei e força, impedir um qualquer de ir comer a parte dos outros.

Trés-Long e os outros gritaram:

- Viva Lamme! Terás direito, lei e força.

- Tenho ainda outro pedido a fazer-lhes, humildemente - continuou Lamme. - Sou gordo, grande e robusto, profunda é a minha pança, profundo é o meu estômago. A minha pobre mulher... que Deus ma devolva... dava-me sempre duas porções em vez de uma: concedei-me esse mesmo favor.

Trés-Long, Ulenspiegel e os marinheiros responderam:

- Terás as duas porções, Lamme.

E Lamme, pondo-se subitamente melancólico, disse:

- Minha mulher, minha doce amada! Se qualquer coisa pode consolar-me da tua ausência, será recordar nas minhas funções a tua celestial cozinha no nosso doce lar.

É preciso prestar juramento, meu filho - disse Ulenspiegel. - Tragam a grande colher de pau e o grande caldeirão de cobre.

- Juro - disse Lamme - por Deus, que me ajude, fidelidade ao senhor príncipe de Orange, chamado o "Calado", governando em nome do rei as províncias de Holanda e Zelândia; fidelidade a Lumey, almirante comandante da nossa nobre frota, e a Trés-Long, vice-almirante e comandante do navio Briele; juro preparar o melhor que puder, respeitando os usos e costumes dos grandes cozinheiros antigos, os quais deixaram sobre a grande arte da cozinha belos livros com figuras, as carnes e aves que a Fortuna nos conceder; juro alimentar Trés-Long, capitão, o seu segundo, que é o meu amigo Ulenspiegel, e vós todos, mestre marinheiro, piloto, contramestre, companheiros, soldados, canhoneiros, grumetes, pajem do capitão, cirurgião, trombeta, marujos e todos os outros. Se os assados estiverem demasiado sangrentos, as aves pouco douradas, se a sopa exalar um cheiro desagradável, contrário a toda a boa digestão, se o aroma dos molhos não os incitar a todos a correr à cozinha, se os não puser a todos alegres e de bom aspecto, resignarei das minhas nobres funções, considerando-me inapto para continuar a ocupar o trono da cozinha Assim me ajude Deus nesta vida e na outra.

- Viva o mestre-cozinheiro! - gritaram todos. - O rei da cozinha, o imperador dos fricassés! Ao domingo terá três porções em vez de duas.

E Lamme tornou-se o mestre-cozinheiro do navio Briele. E enquanto as suculentas sopas coziam na panela, mantinha-se à porta dos seus domínios, altivo e empunhando como um ceptro a sua grande colher de pau.

E ao domingo tinha as suas três rações.

Quando os Esfarrapados enfrentavam o inimigo, deixava-se ficar no seu laboratório de molhos, subindo de vez em quando à ponte para disparar algumas arcabuzadas, e voltando a descer para vigiar os seus cozinhados.

Sendo assim cozinheiro fiel e soldado valente, era amado por todos.

Que ninguém, no entanto, ousasse penetrar na cozinha. Pois nessas alturas era como um diabo e esgrimia impiedosamente a sua grande colher de pau, batendo de ponta e de gume.

E passou a ser chamado Lamme, o Leão.

 

No Oceano, no Escaut, sob o sol, a chuva, a neve, o granizo, o Inverno e o Verão, vogam os navios dos Esfarrapados.

Com todas as velas desfraldadas, como cisnes, cisnes da liberdade.

Branco pela liberdade, azul pela grandeza, laranja pelo príncipe, é o estandarte dos orgulhosos navios.

Com todas as velas desfraldadas, lá vão os valentes navios. As ondas batem-nos, as vagas salpicam-nos de espuma.

Passam, correm, voam sobre o mar, com as velas a rasar a água, rápidos como nuvens ao vento norte. Ouvis as suas proas fendendo as vagas? Deus dos livres. Vivam os Esfarrapados!

Galeões e naus, batéis de fundo chato, deslizam sobre a água. As ondas gemem quando eles seguem em frente, levando na proa o bico mortífero da comprida colubrina. Vivam os Esfarrapados!

Com todas as velas desfraldadas, lá vão os valentes navios. As ondas batem-nos, salpicam-nos de espuma.

De noite e de dia, sob a chuva, o granizo, a neve, lá vão eles! Cristo sorri-lhes das nuvens, do sol e das estrelas. Vivam os Esfarrapados!

 

O rei de sangue soube a notícia das suas vitórias. A morte comia já o carrasco e tinha o corpo cheio de vermes. Caminhava pelos corredores de Valladolid, sombrio e sinistro, arrastando os pés inchados e as pernas de chumbo. Nunca cantava, o cruel tirano; quando o dia nascia, nunca ria, e quando o sol iluminava o seu império como um sorriso de Deus, não sentia a mais pequena alegria.

Ulenspiegel, Nele e Lamme cantavam como pássaros, arriscavam o couro, no caso de Lamme e de Ulenspiegel, a branca pele, no caso de Nele, viviam o dia a dia, e tiravam mais prazer de uma fogueira apagada pelos Esfarrapados do que o negro rei do incêndio de uma cidade.

Nesse tempo, Guilherme, o "Calado", príncipe de Orange, demitiu do seu posto de almirante Lumey de La Marck, devido às suas grandes crueldades. E nomeou para o posto Bouwen Ewoutsen Worst. Ordenou também o pagamento do trigo tirado pelos Esfarrapados aos camponeses, a restituição das contribuições forçadas que sobre eles tinham sido lançadas, e concedeu aos católicos romanos, como a todos, o livre exercício da sua religião, sem perseguições nem vilanias.

 

Nos navios dos Esfarrapados, sob o céu brilhante, sobre as ondas claras, cantam os pífaros e as cornetas, gorgolejam as garrafas, tilintam os copos, brilha o ferro das armas.

- Batamos o tambor da glória, batamos o tambor da alegria - disse Ulenspiegel. - Vivam os Esfarrapados! A Espanha foi vencida, a fera foi domada. É nosso o mar, Brielle foi tomada. É nossa a costa, desde Nieupor, passando por Ostende e Blanckenberghe, as ilhas da Zelândia, as embocaduras do Escaut, as embocaduras do Mosa, as embocaduras do Reno até Helder. Nossas são Texel, Vlieland, RerSchelling, Ameland, Rottum, Bokum. Vivam os Esfarrapados! "São nossas Delft, Dordrecht. É rasto de pólvora. Deus empunha a lança de fogo. Os carrascos abandonam Roterdão. A livre consciência, como um leão armado de garras e dentes de justiça, toma o condado de Zutphen, as cidades de Deutecom, Doesburg, Goor, Oldenzeel, e, em Welnuire, Hatten, Elburg e Harderwyck. Vivam os Esfarrapados!

"São nossas Bueren e Enckhuyse! Ainda não temos Amesterdão, Schoonhove e Middlebourg. Mas tudo chega a seu tempo às lâminas pacientes. Vivam os Esfarrapados!

"Bebamos o vinho de Espanha. Bebamos nos cálices onde eles beberam o sangue das vítimas. Iremos pelo Zuyderzee, pelos rios e canais; temos a Noord-Holland, a Zuid-Holland e a Zelândia; tomaremos Oost e West-Frise; Briele será o refúgio dos nossos navios, o ninho das galinhas poedeiras da liberdade. Vivam os Esfarrapados!

"Ouçam na Flandres, pátria amada, ressoar o grito de vingança. Pulem-se as armas, afiem-se os gládios. Todos se movem, vibram como as cordas de uma harpa ao sopro quente, sopro de almas que sai das fossas, das fogueiras, dos cadáveres ensanguentados das vítimas. Todos: Hainaut, Brabante, Luxemburgo, Limburgo, Namur, Liége, a cidade livre, todos! O sangue germina e fecunda. A colheita está pronta para a foice. Vivam os Esfarrapados!

"É nosso o Noord-Zee, o grande mar do norte. São nossos os bons canhões, os valentes navios, a tropa ousada de marinheiros temíveis: biltres, ladrões, padres-soldados, fidalgos, burgueses e trabalhadores que fogem à perseguição. Todos unidos para a obra da liberdade. Vivam os Esfarrapados!

"Filipe, rei de sangue, onde estás? D'Alba, onde estás? Gritas e blasfemas, tendo na cabeça o santo chapéu, D. do Santo Pai. Batam o tambor da alegria. Vivam os Esfarrapados! Bebamos.

"O vinho escorre para os cálices de ouro. Aspirem o seu aroma. Os hábitos sacerdotais cobrindo os rudes homens estão inundados do rubro licor; as bandeiras eclesiásticas e romanas flutuam ao vento. Música eterna! é a vossa vez, pífaros alegres, cornetas gemebundas, tambores ressoantes, árias de glória. Vivam os Esfarrapados!"

 

O mundo estava então no mês do lobo, que é o mês de Dezembro. Uma chuva fria caía como agulhas sobre o mar. A frota dos Esfarrapados cruzava o Zuyderzee. O senhor almirante chamou ao seu navio todos os capitães, e também Ulenspiegel.

- O príncipe - disse, dirigindo-se-lhe em primeiro lugar - quer reconhecer os teus bons e leais serviços, e nomeia-te capitão do navio Briele. Aqui tens a comissão, redigida em pergaminho.

- Graças vos sejam dadas, senhor almirante - respondeu Ulenspiegel. - Capitanearei com todo o meu pequeno poder, e, assim capitaneando, tenho grande esperança, se Deus me ajudar, de descapitanear a Espanha dos países da Flandres e da Holanda: quero dizer, da Zuid e Noord-Neerlande.

- Isso é bom - disse o almirante. - E agora - acrescentou, dirigindo-se a todos - dir-vos-ei que os de Amsterdão, a católica, vão cercar Enckhuyse. Ainda não saíram do canal de Ij. Coloquemo-nos diante deles, para que lá fiquem, e sus a todo e qualquer navio que mostre no Zuyderzee a sua carcaça tirânica.

- Furá-los-emos! Vivam os Esfarrapados! - responderam todos.

Ulenspiegel, de novo no seu navio, mandou reunir na ponte todos os marujos e soldados, e disse-lhes o que tinha decidido o almirante.

E eles responderam:

- Temos asas, que são as nossas velas, patins, que são as quilhas dos nossos navios, e mãos gigantes, que são os grampos de abordagem. Vivam os Esfarrapados!

A frota partiu e colocou-se diante de Amsterdão, a uma légua, de tal modo que ninguém podia entrar ou sair sem que eles o permitissem.

Ao quinto dia, a chuva cessou; o vento soprou mais fresco no céu claro: os de Amsterdão não faziam qualquer movimento.

Subitamente, Ulenspiegel viu Lamme subir à ponte, levando à frente da sua pesada colher de pau o "truxman" do navio, jovem perito na língua francesa e flamenga, mas mais perito ainda na ciência da mesa.

- Patife - exclamava Lamme - pensavas então poder, sem punição, comer prematuramente os meus fricassés? Vai para o alto do mastro ver se nada mexe nos navios de Amsterdão. Fazendo assim, farás melhor.

E o' truxman' respondeu:

- E que me darás em troca?

- Pretendes ser pago por ter feito o teu dever?

Grande patife, se não trepas, mandar-te-ei chicotear. E o teu francês de nada te servirá.

- É uma bela língua - disse o' truxman'. - Língua de amor e de guerra.

E trepou ao mastro.

- Então, madraço - perguntou-lhe Lamme.

- Nada mexe na cidade nem nos navios - respondeu o homem. E, descendo, disse: - Agora paga-me.

- Guarda o que roubaste - respondeu Lamme. - Mas um tal bem não te aproveitará. Vomitá-lo-ás, sem dúvida.

O truxman, voltando ao alto do mastro, gritou subitamente:

- Lamme! Lamme! Vejo um ladrão que entra na tua cozinha!

- Tenho a chave no meu bolso - replicou Lamme, sem se deixar enganar.

Ulenspiegel, então, chamando-o à parte, disse-lhe:

- Meu filho, esta grande tranquilidade de Amsterdão apoquenta-me. Têm qualquer projecto secreto.

- Já pensei nisso - respondeu Lamme. - A água gela nas bilhas, as galinhas estão de pau, a geada embranquece os salpicões, a manteiga está como pedra, o azeite pôs-se branco, o sal está seco como areia ao sol.

- Vai gelar - disse Ulenspiegel. - E eles virão em grande número atacar-nos com artilharia.

Indo ao navio do almirante, deu-lhe parte dos seus receios. Mas o almirante respondeu:

- O vento sopra de Inglaterra. Haverá neve, mas não gelará. Podes voltar ao teu navio.

E Ulenspiegel obedeceu.

Nessa noite caiu um forte nevão; mas depois o vento começou a soprar da Noruega, o mar gelou e ficou como um chão. O almirante viu este espectáculo.

Temendo então que os da cidade fossem pelo gelo queimar os navios, ordenou aos soldados que preparassem os seus patins, para o caso de terem de combater fora e em torno dos navios, e aos canhoneiros que colocassem montes de balas ao lado das peças, e que tivessem sempre acesos os seus morrões.

Os de Amsterdão, porém, não se mexiam.

E assim durante sete dias.

Na tarde do oitavo dia, Ulenspiegel ordenou que um bom festim fosse servido aos soldados e marinheiros, a fim de lhes dar uma couraça contra o vento gelado que soprava.

Lamme, porém, disse:

- Já só nos restam biscoitos e cerveja.

- Vivam os Esfarrapados! - disseram todos. - Será um festim de quaresma, enquanto esperamos o momento da batalha.

- Que não será tão cedo - disse Lamme. - Os de Amsterdão virão queimar-nos os navios, mas não esta noite. Primeiro terão de reunir-se em torno do fogo, e beber muitos copos de vinho cozido com açúcar da Madeira... que Deus nos traga algum... e depois, tendo falado até à meia-noite com paciência, razão e canecas cheias, decidirão que é caso para decidir amanhã se devem ou não atacar-nos para a semana. Amanhã, bebendo de novo vinho cozido com açúcar da Madeira... que Deus nos traga algum... decidirão com calma, paciência e canecas cheias, que devem reunir-se um outro dia, a fim de saber se o gelo pode ou não suportar uma grande tropa de homens. E mandá-lo-ão experimentar por homens doutos, que assentarão num pergaminho as suas conclusões. Tendo-as recebido, saberão que o gelo tem meia-alna de espessura, e que é suficientemente sólido para suportar algumas centenas de homens com canhões e artilharia de campanha. Depois, reunindo-se novamente para deliberar com calma, paciência e muitas canecas cheias, calcularão se, devido ao tesouro que capturámos aos barcos de Lisboa, convém assaltar ou queimar os nossos barcos. E assim perplexos, mas contemporizadores, decidirão que devem assaltar e não queimar os navios, apesar do grande mal que assim nos fariam.

- Falas bem - disse Ulenspiegel. - Mas não vês as fogueiras acenderem-se na cidade, e lanternas correndo de um lado para o outro?

- É porque têm frio - respondeu Lamme. E, suspirando, acrescentou: - Foi tudo comido. Já não há vaca, nem porco, nem galinhas. Já não há vinho, infelizmente! nem dobbel-bier, nada a não ser biscoitos e má cerveja. Que quem me ama me siga!

- Aonde vais? - perguntou-lhe Ulenspiegel. - Ninguém pode sair do navio.

- Meu filho, agora és capitão e senhor. Não sairei, se não o desejas. Pensa no entanto que anteontem comemos o último salpicão, e que neste rude tempo fogo de cozinha é sol de bons companheiros. Quem não gostaria de cheirar o aroma dos molhos e dos vinhos divinos, feitos de flores alegres, que são prazer, riso e bom querer para todos? Ora então, capitão e amigo fiel, ouso dizer-te: roo a alma quando não como, eu, que só amo o repouso, que nunca mato de boa vontade, a não ser que se trate de uma tenra gansa, um bordo frango ou uma suculenta perua, e que no entanto te sigo por fadigas e batalhas. Vê daqui as luzes daquela quinta rica e bem fornecida em gado grosso e miúdo. Sabes quem a habita? É o bateleiro de Frise, que traiu Dandelot e levou a Enckhuyse, ainda Albisane, dezoito pobres senhores e amigos, os quais foram por obra sua esquartejados no mercado dos cavalos, em Bruxelas. Esse traidor, que se chama Slosse, recebeu do duque dois mil florins pela sua traição.

Com o preço do sangue, verdadeiro Judas, comprou a quinta que além vês, e o seu gado, e os campos que a cercam, os quais, frutificando e crescendo, campos e gado, fazem dele um homem rico.

- As cinzas batem no meu peito - disse Ulenspiegel. - Tocas a hora de Deus.

- E também a hora da comida. Dá-me vinte homens, valentes soldados e marujos, e irei buscar o traidor.

- Quero ser eu a chefiá-los - disse Ulenspiegel. - Que quem ama a justiça me siga. Não podem ser todos, amigos fiéis. Apenas vinte, senão quem guardaria o navio? Tirem a sorte aos dados. São vinte, venham. Os dados falam bem. Calcem os vossos patins e deslizem em direcção à estrela Vénus, que brilha por cima da quinta do traidor.

"Guiando-vos pela clara luz, vinde, os vinte, patinando e deslizando, de machado ao ombro.

"O vento sopra e varre à sua frente, do gelo, os brancos turbilhões de neve. Vinde, homens valentes!

"Não cantam nem falam, vão em frente, silenciosos, em direcção à estrela; os vossos patins fazem chorar o gelo.

"Aquele que cai ergue-se, imediatamente. Chegamos à margem: nem uma forma humana sobre a neve branca, nem uma ave no céu gelado. Descalcem os patins.

"Eis-nos em terra, a caminho das pradarias. Voltem a calçar os patins. Estamos junto à quinta, contendo a respiração."

Ulenspiegel bateu à porta e os cães ladraram. Voltou a bater. Abriu-se uma janela e o baes perguntou, mostrando a cabeça:

- Quem és tu?

Só podia ver Ulenspiegel, pois os outros estavam escondidos atrás do tanque.

- Boussu - respondeu Ulenspiegel - ordena-te que vás imediatamente a Amsterdão, a casa dele.

- Onde está o teu salvo-conduto? - perguntou o homem, descendo e abrindo-lhe a porta.

- Aqui! - respondeu Ulenspiegel, mostrando os vinte Esfarrapados que se precipitaram atrás dele pela abertura.

Ulenspiegel, então, disse:

- És Slosse, o bateleiro traidor que fez cair numa emboscada Dandelot, Battemburg e outros. Onde está o preço do sangue?

O quinteiro, tremendo, respondeu:

- São os Esfarrapados! Perdão, não sabia o que fazia. Não tenho dinheiro em casa. Darei tudo.

- Está escuro - disse Lamme. - Dá-nos velas de sebo ou de cera.

- As velas de sebo estão ali penduradas - respondeu o baes.

Acesa uma vela, um dos Esfarrapados disse, junto à lareira:

- Está frio, acendamos um fogo. Aqui está boa lenha. E mostrava uns vasos de flores onde se viam algumas

plantas ressequidas. Pegou numa pela parte de cima, sacudiu-a, o pote caiu e espalhou pelo soalho ducados, florins e reais.

- Aqui está o tesouro - disse o Esfarrapado, mostrando os outros vasos de flores.

E de facto, quebrando-os, encontraram dez mil florins.

Ao ver isto, o baes gritou e chorou.

Os criados e servidores da quinta acorreram aos gritos, com as suas roupas de dormir. Os homens, tendo querido vingar o amo, foram amarrados. As mulheres, envergonhadas, e sobretudo as jovens, escondiam-se atrás dos homens.

Lamme, então, avançando, disse:

- Bateleiro traidor, onde estão as chaves da cave, da cavalariça, dos estábulos e dos galinheiros?

- Gatunos infames - respondeu o "baes". - Serão enforcados por isto.

- Soou a hora de Deus! - disse Ulenspiegel. - Dá as chaves!

- Deus vingar-me-á! - gritou o "baes", entregando-as.

Tendo deixado a quinta vazia como a casca de um ovo, os Esfarrapados voltaram patinando aos navios, ligeiras moradas de liberdade.

- Sou mestre-cozinheiro - dizia Lamme, guiando-os. - Empurrem os trenós carregados de vinhos e cerveja, levem à vossa frente, pelos cornos ou de qualquer outro modo, cavalos, bois, porcos, carneiros e ovelhas, cantando as suas canções de natura. Os pombos arrulham nos cestos; os capões, pesados de gordura, espantam-se nas suas gaiolas de madeira, onde não se podem mexer. Sou mestre-cozinheiro. O gelo estala sob os ferros dos patins. Estamos nos navios. Amanhã, haverá música de cozinha. Baixem as roldanas. Ponham as cinturas aos cavalos, vacas e bois. É um belo espectáculo vê-los assim suspensos pelo ventre; amanhã ficaremos pendurados pela língua aos gordos fricassés. As roldanas içam-no para o navio. Metam tudo no porão, galinhas, gansos, patos, capões. Quem lhes torcerá o pescoço? O mestre-cozinheiro. A porta está fechada, tenho a chave na minha bolsa. Deus seja louvado na cozinha. Vivam os Esfarrapados!

Depois Ulenspiegel foi ao navio almirante, levando consigo Dierick Slosse e os outros prisioneiros, gemendo e chorando com medo à corda.

Worst acorreu ao ruído.

Avistando Ulenspiegel e os seus companheiros à luz avermelhada dos archotes, perguntou:

- Que nos queres tu?

- Apanhámos esta noite, na sua quinta - respondeu Ulenspiegel- o traidor Dierick Slosse, que fez cair os dezoito numa emboscada. É este aqui. Os outros são criados e servidores inocentes.

Depois, entregando-lhe uma sacola, acrescentou:

- Estes florins floresciam em vasos de flores, na casa do traidor São dez mil.

Worst disse:

- Fizeram mal em abandonar o navio, mas, considerando o bom resultado, ficam perdoados. Bem-vindos sejam os prisioneiros e a sacola com os florins, e vós, meus bravos, a quem concedo, segundo os direitos e costumes do mar, um terço da presa. O segundo terço será para a frota e o terceiro para o senhor príncipe de Orange. Enforquem imediatamente o traidor.

Os Esfarrapados obedeceram, fizeram um buraco no gelo e atiraram lá para dentro o corpo de Dierick Slosse.

E então o almirante disse:

- Cresceu erva em torno dos navios, para que ouça o cacarejar das galinhas, o balir dos carneiros e o mugir das vacas?

- São os nossos prisioneiros de mesa - respondeu Ulenspiegel. - Pagarão o resgate de fricassés. E o senhor almirante terá a melhor parte.

"Quanto a estes, criados e servidores, entre os quais vejo jovens e belas comadres, vou levá-los para o meu navio.

E, tendo-o feito, dirigiu-lhes o seguinte discurso:

- Compadres e comadres, estão no melhor navio que existe. Aqui passamos o tempo em festas, festins e comezainas. Se quiserem partir, paguem resgate; se quiserem ficar, viverão como nós, trabalhando e comendo bem. Quanto às bonitas comadres, dou-lhes por minha autoridade toda a liberdade de corpo, dizendo-lhes que tanto se me dá que queiram conservar os amigos que com elas vieram, ou prefiram escolher alguns dos bravos Esfarrapados aqui presentes, para os acompanhar maritalmente.

Todas as gentis comadres, no entanto, foram fiéis aos seus amigos, salvo uma, que, sorrindo e olhando para Lamme, lhe perguntou se a queria:

- Graças te sejam dadas, minha bela - respondeu Lamme - mas estou ocupado alhures.

- É casado, o pobre homem - disseram os Esfarrapados, vendo a mulher despeitada.

E ela, voltando-lhe costas, escolheu um outro, que tinha, como Lamme, uma grande barriga e muito bom aspecto.

E nesse dia e nos seguintes houve a bordo dos navios grandes festins de vinhos, de aves e de carnes. E Ulenspiegel disse:

- Vivam os Esfarrapados! Sopra, vento frio, nós aquecemos o ar com os nossos hálitos. O nosso coração é de fogo pela livre consciência: de fogo são os nossos estômagos, pelas carnes do inimigo. Bebamos vinho, o leite dos homens. Vivam os Esfarrapados!

Nele bebia também, por uma grande taça de ouro, e avermelhada pelo sopro do vento, fazia cantar o pífaro. E a despeito do vento, os Esfarrapados comiam e bebiam na ponte, alegremente.

 

Subitamente, toda a frota viu na margem um negro rebanho, no meio do qual brilhavam os archotes e reluziam as armas. Depois os archotes apagaram-se e uma grande escuridão reinou.

Transmitidas as ordens do almirante, foi dado o sinal de alerta nos navios. Todas as luzes foram apagadas, marinheiros e soldados estenderam-se nas pontes, armados de machados. Os valentes canhoneiros, empunhando os morrões, velavam junto dos canhões carregados de sacos de balas e de correntes. Logo que o almirante e os capitães gritassem: "Cem passos!" - indicando assim a posição do inimigo - deveriam fazer fogo de proa, de popa ou de costado, segundo a sua posição no gelo.

E ouviu-se a voz de Worst, dizendo:

- Pena de morte para quem falar alto! E os capitães repetiram:

- Pena de morte para quem falar alto! Era uma noite negra sem lua nem estrelas.

- Ouves - disse Ulenspiegel a Lamme, falando num murmúrio - as vozes dos de Amsterdão, e o ferro dos seus patins fazendo gemer o gelo? Vêm depressa. Ouvem-se falar, dizendo: Os ociosos Esfarrapados dormem. O tesouro de Lisboa será nosso. Inflamam archotes, Vês as escadas que trazem para o assalto, e as suas feias caras, e a longa linha do seu bando de ataque? São mais de mil.

- Cem passos! - gritou Worst.

- Cem passos! - gritaram os capitães.

E ouviu-se um grande ruído, como o do trovão, e uma tempestade de gritos de agonia.

- Oitenta canhões disparam ao mesmo tempo - disse Ulenspiegel. - Fogem! Vês os archotes afastarem-se?

- Persigam-nos! - ordenou o almirante.

- Persigam-nos! - repetiram os capitães.

A perseguição, no entanto, durou pouco, pois os assaltantes tinham um avanço de cem passos e pernas de lebres assustadas.

E nos homens que morriam sobre o gelo encontrou-se ouro, jóias e cordas para amarrar os Esfarrapados.

Depois desta vitória, os Esfarrapados diziam uns aos outros:

-'Ais God met on is, wie tegen ons zal zijn?' (Se Deus está connosco, quem estará contra?) Vivam os Esfarrapados!

Ora, na manhã do terceiro dia, Worst, inquieto, aguardava um novo ataque. Lamme subiu à porta e disse a Ulenspiegel.

- Leva-me a esse almirante que não quis dar-te ouvidos quando foste profetizar que o mar gelaria.

- Vai sem que te levem - respondeu Ulenspiegel. Lamme foi, fechando à chave a porta da cozinha.

O almirante estava na ponte, tentando descortinar qualquer movimento do lado da cidade. Lamme, aproximando-se dele, perguntou:

- Senhor almirante, pode um humilde mestre-cozinheiro dar-vos uma opinião?

- Fala, meu filho - disse o almirante.

- Senhor, a água degela nas bilhas, as galinhas voltam a ficar tenras, o salpicão perde a sua capa de salitre, a manteiga põe-se untuosa, o azeite líquido. Choverá em breve, e nós seremos salvos, senhor.

- Quem és tu? - perguntou o almirante.

- Sou Lamme Goedzak, o mestre-cozinheiro do navio Briele. E se todos esses grandes sábios que se intitulam astrónomos lessem tão bem nas estrelas como eu leio nos meus molhos, poderiam dizer-nos que haverá esta noite degelo com grande ruído de tempestade e de granizo. Mas o degelo não durará. E Lamme voltou para junto de Ulenspiegel, a quem disse, por volta do meio-dia:

- Ainda sou profeta: o céu põe-se negro, o vento sopra tempestuosamente. Cai uma chuva quente; há já um pé de água sobre o gelo.

E nessa tarde, exclamou alegremente:

- O mar do Norte está inchado: é a hora do fluxo, as altas vagas entrando no Zuyderzee quebram o gelo, que salta aos pedaços por cima dos navios, lançando centelhas de luz. Eis o granizo. O almirante diz-nos que nos retiremos de diante de Amsterdão, e isto com tanta água que o nosso maior navio pode flutuar. Eis-nos no porto de Enckhuyse. O mar gela novamente. Sou profeta, e é milagre de Deus.

- Bebamos por ele - disse Ulenspiegel. E o Inverno passou, e veio o Verão.

 

A meio de Agosto, quando as galinhas cheias de grãos permanecem surdas ao apelo do galo que lhes canta de amor, Ulenspiegel disse aos seus marinheiros e soldados:

- O duque de sangue ousa, estando em Utrecht, ditar um edital onde promete, entre outros dons graciosos, fome, morte e ruína aos habitantes dos Países-Baixos que não quiserem submeter-se. Tudo o que ainda estiver inteiro, diz ele, será exterminado, e sua real majestade mandará estrangeiros habitar o país.

Morde, duque, morde! A lima quebra os dentes das víboras. Nós somos limas. Vivam os Esfarrapados!

"D'Alba, o sangue embriaga-te! Pensas que tememos as tuas ameaças ou acreditamos na tua clemência? Os teus ilustres regimentos a que cantavas louvores no mundo inteiro, os teus Invincibles, os teus Tais-Quais, os teus Imortais, precisaram de sete meses para conquistar Harlem, cidade defendida por burgueses. Como simples mortais, dançarem nos ares a dança das minas que rebentam. Os burgueses cobriram-nos de alcatrão, mas eles acabaram por vencer vitoriosamente, degolando os desarmados. Ouves, carrasco, a hora de Deus que soa?

"Harlem perdeu os seus valorosos defensores, as pedras suam sangue. Perdeu e gastou no seu cerco um milhão duzentos e oitenta mil florins. O bispo foi reintegrado: abençoa com mão lesta e focinho contente as igrejas. D. Frederico está presente a essas bênçãos. O bispo lava-lhe as mãos que Deus vê vermelhas, e ele comunga sob as duas espécies, o que não é permitido ao pobre povo. E os sinos tocam, e o carrilhão lança para o ar as suas notas tranquilas, harmoniosas; é como um canto de anjos num cemitério. Olho por olho, dente por dente! Vivam os Esfarrapados!

 

Os Esfarrapados estavam então em Flessingue, onde Nele apanhou as febres. Forçada a abandonar o navio, foi alojada em casa de Peeters, reformista, em Turven-Key.

Ulenspiegel, muito triste,

contentou-se todavia com a ideia de que naquele leito, onde se curaria, as balas espanholas não poderiam certamente atingi-la.

E juntamente com Lamme, estava continuamente ao pé dela, cuidando-a bem e amando-a melhor. E os dois amigos conversavam.

- Amigo fiel - disse um dia Ulenspiegel - não sabes a notícia?

- Não, meu filho - respondeu Lamme.

- Viste o navio que veio juntar-se à nossa frota e sabes quem lá toca viola todos os dias?

- Devido aos últimos frios - disse Lamme - estou como surdo dos dois ouvidos. Porque te ris, meu filho?

Ulenspiegel, no entanto, continuou:

- Uma vez ouvi cantar um "lied" flamengo, e achei bem agradável a voz.

- Ah! - exclamou Lamme - também ela cantava e tocava viola.

- Sabes a outra notícia? - continuou Ulenspiegel.

- Não, meu filho.

- Foi-nos ordenado que descêssemos o Escaut com os nossos navios até Anvers, para lá encontrar barcos inimigos para tomar ou queimar. Quanto aos homens, nada de quartel. Que te parece, pançudo?

- Ah! - exclamou Lamme - quando deixaremos de ouvir falar neste triste país de incêndios, enforcamentos, afogamentos e outras exterminações de pobres homens? Quando virá a abençoada paz, para poder sem temor assar perdizes, cozinhar galinhas e fazer saltar os chouriços na frigideira, entre os belos ovos? Prefiro os chouriços de sangue, os outros são demasiado gordos.

- Esse doce tempo virá - respondeu Ulenspiegel - quando nos vergéis da Flandres virmos nas macieiras, cerejeiras e ameixeiras, em vez de maçãs, cerejas e ameixas, um espanhol enforcado em cada ramo.

- Ah! se pudesse ao menos encontrar a minha mulher, a minha amada, doce e fiel mulher! Pois fica sabendo, meu filho, nunca fui nem serei marido enganado. Ela era demasiado severa e calma nas suas maneiras para isso. Fugia à companhia de outros homens. Se gostava dos belos ornamentos, era apenas por necessidade feminina. Fui o seu criado, cozinheiro, camareiro, digo-o sem rubor. Quem me dera sê-lo ainda! Mas fui também seu senhor e seu marido.

- Deixemos esta conversa - disse Ulenspiegel. - Ouves o almirante gritar: "Içar âncoras!", e os capitães repetirem este grito? Vamos aparelhar.

- Porque partes tão depressa? - perguntou Nele a Ulenspiegel.

- Vamos para os navios - disse ele.

- Sem mim?

- Sim.

- Não pensas que vou ficar aqui muito inquieta sem ti?

- Querida - disse Ulenspiegel - a minha pele é de ferro.

- Troças de mim. Vejo apenas o teu gibão, que é de pano e não de ferro; por baixo está o teu corpo, feito de carne e osso como o meu. Se te ferirem, quem te tratará? Morrerás sozinho no meio dos combatentes? Irei contigo.

- Ah! - exclamou ele - se as lanças, balas, espadas, machados e martelos, poupando-me, caírem sobre o teu corpo bonito, que farei eu, desgraçado, sem ti neste mundo?

Nele, porém, dizia:

- Quero seguir-te, e não haverá perigo; esconder-me-ei nos fortins de madeira, onde estão os arcabuzeiros.

- Se partes, eu fico, e todos chamarão traidor e cobarde ao teu amigo Ulenspiegel. Mas escuta a minha canção

E Ulenspiegel cantou:

O meu cabelo é de ferro, é o meu chapéu, A Natureza é a minha rameira; De couro é a minha pele primeira, E de aço a segunda.

Em vão a feia carantonha,

A Morte, tenta apanhar-me com o seu arpéu

De couro é a minha pele primeira

E de aço a segunda.

Escrevi "Viver" na minha bandeira Viver sempre à luz; De couro é a minha pele primeira, E de aço a segunda.

E assim cantando foi-se embora, não sem ter beijado a boca trémula e os olhos bonitos de Nele, que sorria e chorava ao mesmo tempo.

Os Esfarrapados estão em Anvers, onde tomam os navios de Alba até no porto. Entrando na cidade, em pleno dia, libertam prisioneiros, e fazem outros para servirem de reféns. Reúnem os burgueses à força e obrigam alguns a segui-los, sob pena de morte, sem uma palavra.

Ulenspiegel diz a Lamme:

- O filho do almirante está preso em casa do almograve. É preciso libertá-lo.

Entrando em casa do almograve, vêem o rapaz que procuram em companhia de um gordo e pançudo monge, que, doutrinando-o colericamente, tenta fazê-lo voltar ao regaço da nossa santa mãe Igreja. Mas o jovem não o escuta, e corre para Ulenspiegel. Entretanto, Lamme, agarrando o monge pelo capuz, fá-lo caminhar pelas ruas de Anvers, dizendo:

- Vales cem florins de resgate. Marcha à minha frente. Porque tardas? Tens chumbo nas sandálias? Marcha, saco de banha, pote de comida, ventre de sopa.

- Marcho, senhor Esfarrapado, caminho; mas salvo todo o respeito que devo ao vosso arcabuz, sois como eu ventrudo, pançudo e gordo.

E Lamme, empurrando-o, dizia:

- Ousas, vil monge, comparar a tua gordura claustral, ociosa, inútil, à minha gordura de flamengo honestamente alimentada por labores, fadigas e batalhas? Corre, ou faço-te correr como a um cão, usando como chicote a ponta da minha bota.

O monge, no entanto, não conseguia correr, e ofegava pesadamente, e Lamme também. E deste modo chegaram os dois ao navio.

 

Tendo tomado Rammekens, Gertruydenberg e Alckmaer, os Esfarrapados voltaram a Flessingue.

Nele, curada, aguardava Ulenspiegel no porto.

- Thyl - gritou, ao vê-lo - meu amigo Thyl! Não estás ferido?

E Ulenspiegel cantou:

Escrevi "Viver" na minha bandeira, Viver sempre à luz: De couro é a minha pele primeira, E de aço a segunda.

- Ah! - exclamou Lamme, arrastando a perna - as balas, granadas e correntes chovem em seu redor, e ele só lhes sente o vento. És espírito, sem dúvida, Ulenspiegel. E tu também, Nele, pois vejo-os sempre jovens e contentes.

- Porque arrastas a perna, Lamme? - perguntou Nele.

- Não sou espírito e nunca o serei - respondeu ele. - E por isso apanhei uma machadada na coxa... A minha mulher tinha-as tão roliças e brancas! Vê, estou a sangrar. Ah! que não a tenho aqui para me cuidar!

Nele, porém, zangada, perguntou:

- Que necessidade tens de uma mulher perjura?

- Não digas mal dela - pediu Lamme.

- Toma, aqui tens bálsamo - disse Nele. - Guardei-o para Ulenspiegel. Põe-no na tua perna.

E Lamme, tendo tratado a sua ferida, ficou alegre, pois o bálsamo tirou-lhe as dores. E voltaram os três ao navio.

Vendo o monge que se passeava de mãos amarradas, Nele perguntou:

- Quem é esse? Já o vi e julgo reconhecê-lo.

- Vale cem florins de resgate - respondeu Lamme.

 

Nesse dia, houve festa na frota. A despeito do frio vento de Dezembro, a despeito da chuva, a despeito da neve, todos os Esfarrapados estavam nas pontes dos seus navios. Os crescentes de prata brilhavam nos barretes dos da Zelândia.

E Ulenspiegel cantou:

Leyde está libertada, o duque de sangue abandona os

Países-Baixos. toquem, sinos ressoantes; Carrilhões, lancem para os ares as vossas canções; Tilintem, copos e garrafas.

Quando o cão foge às pancadas, Com a cauda entre as pernas Com os olhos ensanguentados Revolve-se sob os paus.

E a sua mandíbula rasgada

Freme ofegante.

Partiu, o duque de sangue;

Tilintem copos e garrafas. Vivam os Esfarrapados!

Gostaria de morder-se a si mesmo, Os paus quebraram-lhe os dentes, Inclinando a cabeça bochechuda, Pensa nos dias de assassínio e de apetite. Partiu, o duque de sangue; Batam pois o tambor de glória, Batam pois o tambor de guerra! Vivam os Esfarrapados!

E ele grita ao diabo: Vendo-te A minha alma de cão por uma hora de força. Tanto me interessa a que alma, diz ao diabo, Como um arenque.

Os dentes não se recuperam.

É preciso evitar os bocados mais duros.

Partiu, o duque de sangue.

Vivam os Esfarrapados!

Os pequenos cães das ruas, zarolhos, sarnosos, Que vivem ou morrem nas montureiras, Levantam a pata à vez Sobre o que matou por amor ao crime... Vivam os Esfarrapados!

Ele não amou mulheres nem amigos, Nem alegria, nem sol, nem o seu amo, Apenas a Morte, sua noiva, Que lhe partiu as patas, Para prelúdio do noivado, Porque não gosta de homens inteiros. Batam o tambor de alegria, Vivam os Esfarrapados!

E os pequenos cães das ruas, Zarolhos e sarnosos, Erguem de novo a pata De um modo quente e salgado, E com eles lebréus e molossos, Cães da Hungria, de Brabante, De Namur e de Luxemburgo. Vivam os Esfarrapados!

E tristemente, com escuma no focinho, Ele vai estourar junto do dono, Que lhe dá um pontapé, Por não ter mordido o suficiente.

No inferno desposa a Morte. E ela chama-lhe: Meu duque. E ele chama-lhe: Minha Inquisição. Vivam os Esfarrapados!

Toquem, sinos ressoantes,

Carrilhão, lança para o ar as tuas canções;

Tilintem, copos e garrafas;

Vivam os Esfarrapados!

 

LIVRO QUINTO

O monge capturado por Lamme, vendo que os Esfarrapados não queriam a sua morte, e sim um resgate, começava a levantar o nariz no navio.

- Vejam - dizia, passeando de um lado para o outro e abanando furiosamente a cabeça - em que abismos de sujas, de negras abominações caí ao pôr os pés nesta cuba de madeira. Se não estivesse aqui, eu a quem o Senhor ungiu...

- Com gordura de cão? - perguntavam os Esfarrapados.

- Cães são vocês - replicava o monge - sim, cães sarnosos, errantes, esfomeados, de magra espinha, que abandonaram o bom caminho da nossa santa mãe a Igreja romana, trocando-o pelos caminhos secos da vossa esfarrapada Igreja reformista. Sim, se eu não estivesse aqui, nesta vossa sapata de madeira, há já muito tempo que o Senhor a teria enterrado nos profundos abismos do mar, convosco, as vossas armas malditas, os vossos canhões do diabo, o vosso capitão cantador, os vossos crescentes blasfemadores sim! até ao fundo das insondáveis profundezas do reino de Satanás, onde não arderão, não! mas onde gelarão tremerão, morrerão de frio durante toda a longa eternidade. Sim! O Deus do céu extinguira assim o fogo do vosso ódio ímpio contra a nossa doce e santa mãe a Igreja romana, contra os senhores Santos, os senhores bispos e os bondosos editais que foram tão doce e maduramente pensados. Sim, ver-vos-ei do alto do paraíso vermelhos como beterrabas ou brancos como nabos, tão grande será o vosso frio. Assim seja, seja, seja!

Os marinheiros e soldados troçavam dele, e com zarabatanas atiravam-lhe ervilhas secas. E ele cobria o rosto com as mãos, para se proteger contra esta artilharia.

 

Tendo o duque de sangue abandonado o país os Medina-Coeli e Requesens governaram-no com menor crueldade. Depois os Estados-Gerais regeram-no em nome do rei.

Entretanto, os da Zelândia e da Holanda, felizes por causa do mar e dos diques, que são para eles baluartes naturais, abriram ao Deus dos livres templos livres - os carrascos papistas puderam cantar junto deles os seus hinos. O senhor de Orange, o "Calado", lançou os fundamentos de uma dinastia real.

A Bélgica foi devastada pelos valões, descontentes com a pacificação de Gand, que deveria, dizia-se, extinguir todos os ódios. E esses valões "Pater-noster knechten", usando ao pescoço grandes colares negros, dos quais dois mil foram encontrados em Spienne e em Hainaut, roubando bois e cavalos aos duzentos, aos dois mil, escolhendo os melhores, por campos e por pântanos, levando mulheres e raparigas, comendo sem pagar, queimavam nas granjas os camponeses armados que pretendiam defender o fruto dos seus duros labores.

E o povo dizia:

- D. Juan virá com os seus espanhóis, e sua grande alteza com os seus franceses - não huguenotes, mas papistas. E o "Calado", querendo reger pacificamente a Holanda, Zelândia, Gueldre, Utrecht e Overijssel, cede por um tratado secreto as regiões belgas, a fim de que Anjou lá se faça rei.

Alguns, entre o povo, tinham todavia confiança.

- Os senhores dos Estados - diziam - têm vinte mil homens bem armados, com muitos canhões e boa cavalaria. Resistirão a todos os soldados estrangeiros.

Os bem avisados, no entanto, diziam:

- Os senhores dos Estados têm vinte mil homens no papel, mas não no campo; falta-lhes cavalaria e deixam que os valões "Pater-noster knechten" lhes roubem os cavalos a uma légua dos seus acampamentos. Não têm artilharia, pois com a necessidade que temos de canhões, resolveram enviá-los a D. Sebastião de Portugal; e ninguém sabe para onde foram os dois milhões de escudos que pagámos por quatro vezes em impostos e contribuições; os burgueses de Gand e de Bruxelas armam-se, Gand pela reforma, Bruxelas como Gand; em Bruxelas, as mulheres tocam tambor enquanto os seus homens trabalham nas fortificações. E Gand khover, a Ousada, envia a Bruxelas, a Alegre, a pólvora e os canhões que lhe faltam para se defender contra os Descontentes e os Espanhóis.

"E todos, nas cidades e nas terras baixas, "in "t plat landt", vêem que não podem ter confiança nem nos senhores nem em tantos outros. E nós, burgueses e povo, andamos tristes ao ver que, tendo dado o nosso dinheiro e estando prontos a dar o nosso sangue, nada avança para o bem da terra dos pais. E a Bélgica está receosa e zangada, não tendo chefes fiéis que a conduzam à batalha e à vitória, apesar das armas que tem prontas contra os inimigos da liberdade.

"Na pacificação de Gand, os senhores da Holanda e da Bélgica juraram a extinção dos ódios, a reciprocidade de assistência entre os Estados belgas e os Estados holandeses; declararam os éditos sem efeito, as confiscações revogadas, a paz entre as duas religiões; prometeram abater todos e todas as colunas, troféus, inscrições e efígies mandadas erigir pelo duque de Alba em nossa desonra. Mas no coração dos chefes os ódios continuam de pé; os nobres e o clero fomentam a divisão entre os Estados da União; recebem dinheiro para pagar a soldados, e guardam-no para eles; há quinze mil processos em curso por reclamação sobre os bens confiscados; os luteranos e os romanos unem-se contra os calvinistas; os herdeiros legítimos não conseguem expulsar das suas terras os espoliadores; a estátua do duque está por terra, mas a imagem da Inquisição está nos seus corações."

E o pobre povo e os valentes burgueses continuavam a aguardar o chefe valoroso e fiel que quisesse conduzi-los à batalha pela liberdade. E diziam:

- Onde estão os ilustres signatários do Compromisso, todos unidos, diziam, para o bem da pátria? Para que foi que esses homens duplos fizeram uma tão "santa aliança" se tencionavam quebrá-la tão depressa? Para quê reunirem-se com tanto escândalo, excitar a cólera do rei, para depois, cobardes e traidores, se dispersarem? Quinhentos como eram, grandes e pequenos senhores unidos como irmãos, salvavam-nos da fúria espanhola; mas sacrificaram o bem da terra da Bélgica ao seu bem particular, tal como fizeram Egmont e Horne.

"Ah! vejam agora vir D. Juan, o belo ambicioso, inimigo de Filipe, mas mais inimigo ainda do seu país. Vem pelo papa e por ele próprio. Nobres e clero traem."

E iniciaram uma espécie de guerra. Nas paredes das grandes e das pequenas ruas de Gand e de Bruxelas, e até nos mastros dos navios dos Esfarrapados, viram-se afixados os nomes dos traidores, chefes de exército e comandantes de fortalezas; os do conde de Liedekerle, que não defendeu o seu castelo contra D. Juan; do preboste de Liége, que quis vender a cidade a D. Juan, de Aerschot, de Mansfeldt, de Berlaymont, de Rassenghien, e os nomes dos membros do Conselho de Estado, de Georges de Lalaing, governador de Frise, o do chefe de exército o senhor de Rossignol, emissário de D. Juan, intermediário de assassínio entre Filipe e Jaureguy, o frustrado assassino do príncipe de Orange; o nome do arcebispo de Cambrai, que quis abrir as portas da cidade aos espanhóis; os nomes dos jesuítas de Anvers, que ofereceram três tonéis de ouro aos Estados- dois milhões de florins - para que não mandassem demolir o castelo e o guardassem para D. Juan; o nome do bispo de Liége, os nomes dos pregadores romanos que difamavam os patriotas, e o bispo de Utrecht, que os burgueses mandaram pastar para outro lado a erva da traição; os nomes das ordens mendicantes, que em Gand intrigavam a favor de D. Juan.

Os de Bois-le-Duc pregavam no pelourinho o nome do carmelita Pierre, que, ajudado pelo seu bispo e pelo clero, prometia entregar a cidade a D. Juan.

Em Douai, não enforcaram em efígie o reitor da Universidade, igualmente espanholizado; mas nos navios dos Esfarrapados viam-se no peito de manequins suspensos pelo pescoço o nome de monges, de abades e de prelados, os das mil e oitocentas ricas mulheres e raparigas de Malines, que com o seu dinheiro sustentavam, douravam e empenachavam os carrascos da pátria.

E nesses manequins, imagens de traidores, liam-se o nome do marquês de Harrault, comandante da praça forte de Philippeville, que desperdiçou inutilmente munições de guerra e de boca para poder entregar, sob o pretexto de faltarem os víveres, a praça ao inimigo; o de Belver, que entregou Lemburg quando a cidade poderia resistir ainda oito meses; o do presidente do Conselho da Flandres; o do magistrado de Fruges e o do magistrado de Malines, que guardavam as suas cidades para D. Juan; os dos senhores da câmara dos condes de Gueldres, fechada devido à traição; os dos membros do conselho de Brabante, os dos membros da chancelaria do ducado, os dos membros do conselho privado e de finanças; os do grande bailio e do burgomestre de Menin; e os dos maus vizinhos de Artois, que deixaram passar sem obstáculo dois mil franceses em marcha para a pilhagem.

- Ah! - exclamavam os burgueses - eis que o duque de Anjou tem o pé no nosso país; quer ser rei em nossa casa. Viram-no entrar em Mons, pequeno, de grandes ancas, grande nariz, cara amarela, boca gulosa? É um grande príncipe, que ama os amores extraordinários. Chamam-lhe, para que haja no seu nome graça feminina e força viril, monsenhor senhor sua grande alteza de Anjou.

E Ulenspiegel andava sonhador e cantou:

O céu está azul, o céu claro; Cubram de crepes as bandeiras, De crepes os punhos das espadas; Escondam as jóias; Virem os espelhos; Canto a canção de Morte, A canção dos traidores.

Puseram o pé sobre o ventre

E sobre a garganta dos orgulhosos países

De Brabante, Flandres, Hainaut,

Anvers, Artois, Luxemburgo.

Nobreza e clero são traidores;

A isca das recompensas atrai-os.

Canto a canção dos traidores.

Enquanto por todo o lado o inimigo pilha, Enquanto o espanhol entra em Anvers, Ahades, prelados e chefes de exército Vão pelas ruas da cidade Vestidos de seda, carregados de ouro, A cara reluzente de bom vinho, Mostrando assim a sua infâmia.

E por eles a Inquisição Voltará a despertar em triunfo E novos Titelmans Prenderão surdos-mudos Por heresia. Canto a canção dos traidores.

Dignatários do Compromisso, Cobardes signatários, Marcham como corvos Atrás dos espanhóis. Batam o tambor de luto.

País belga o futuro Condenar-te-á por te teres Todo em armas, deixado pilhar. Futuro, não te apresses; Vê os traidores trabalhar; São vinte, são mil, Ocupando todos os empregos, Que os grandes dão aos pequenos.

Entenderam-se para entravar a resistência Por divisão e preguiça, As suas divisas de traição. Cubram de crepes os espelhos E os punhos das espadas. É a canção dos traidores.

Declaram rebeldes

Espanhóis e descontentes;

Proibindo ajudá-los

Com pão e abrigo

E chumbo ou pólvora.

Se os apanhamos para os enforcar.

Eles libertam-nos imediatamente.

De pé! dizem os de Bruxelas;

De pé! dizem os de Gand

E o povo belga;

Querem, pobres homens,

Esmagar-vos-ei entre o rei

E o Papa que lança

A cruzada contra a Flandres.

Vêm os mercenários,

Ao cheiro do sangue;

Bandos de cães,

De serpentes e de hienas.

Têm fome, têm sede.

Pobre terra dos pais,

Madura para a ruína e a morte.

Não é D. Juan

Quem prepara o trabalho

A Farnese, preferido do papa,

Mas os que cumulaste de ouro

E distinções,

Que confessavam as tuas mulheres,

As tuas filhas e os teus filhos!

Lançaram-te por terra

E o espanhol encosta-te

A faca à garganta;

Troçavam de ti,

Ao festejar em Bruxelas

A vinda do príncipe de Orange.

Quando se viram no canal Tantas caixas de artifício Estourando a sua alegria, Tantos batéis triunfantes,

Tantas pinturas e tapeçarias, Representava-se, país belga A história de José Vendido pelos irmãos.

 

Vendo que o deixavam falar, o monge erguia o nariz a bordo do navio; e os marinheiros e soldados, para o ouvirem pregar, falavam mal da Virgem, dos Santos e das piedosas práticas da santa Igreja romana.

Então, enfurecendo-se, o monge vomitava contra eles mil injúrias:

- Sim! - exclamava - sim, eis-me na caverna dos Esfarrapados! Sim, são eles, os malditos roedores do país! Sim. E ainda se diz que o inquisidor, o santo homem, os queimou em excesso! Não, ainda restam muitos desses sujos vermes. Sim, nestes bons e bravos navios do nosso senhor o rei, antigamente tão limpos e bem lavados, vê-se agora a porcaria dos Esfarrapados, a fedorenta porcaria. Sim, são vermes, fedorentos, sujos, infames vermes, o capitão encantador, o cozinheiro de pança cheia de impiedade, e eles todos, com os seus crescentes blasfemadores. Quando o rei mandar lavar os seus navios com a barrela da artilharia, serão precisos mais de cem mil florins em pólvora e balas para dissipar esta suja vilania fedorenta de infecção. Sim, todos vocês nasceram na alcova da senhora Lúcifer, condenada a viver com Satanás entre paredes de porcaria, sob cortinados de porcaria, sobre enxergas de porcaria. Sim, foi aí que, nos seus infames amores, deram ao mundo os Esfarrapados. Sim, escarro-lhes em cima.

A isto, os Esfarrapados responderam:

- Para que conservamos aqui este ocioso, que só sabe vomitar injúrias? Enforquemo-lo!

E começaram os preparativos. O monge, vendo a corda pronta, a escada encostada ao mastro e que lhe iam amarrar as mãos. disse lastimosamente;

- Tenham piedade de mim, senhores Esfarrapados, é o demónio da cólera que fala no meu coração e não o vosso humilde cativo, pobre monge que só tem um pescoço neste mundo. Graciosos senhores, tenham misericórdia. Fechem-me a boca, se quiserem, com uma pêra de angústia, que é um mau fruto, mas não me enforquem.

Eles, sem lhe darem ouvidos e a despeito da sua desesperada resistência, arrastavam-no para a escada. E então o monge gritou tão alto que Lamme disse a Ulenspiegel, que, na cozinha, o tratava:

- Meu filho! Meu filho! Roubaram um porco do estábulo e afastam-se. Oh! os ladrões. Se pudesse levantar-me!

Ulenspiegel subiu à ponte e viu apenas o monge. Este, ao avistá-lo, caiu de joelhos, estendendo as mãos para ele.

- Senhor capitão! - gritou. - Capitão de valentes Esfarrapados, temível na terra e no mar, os vossos soldados querem enforcar-me porque eu pequei com a língua; é uma punição injusta, senhor capitão, pois nesse caso seria preciso dar uma gravata de cânhamo a todos os advogados, procuradores, pregadores e mulheres, e o mundo ficaria despovoado. Senhor, salvai-me da corda; orarei por vós e não sereis condenado. Perdoai-me. O demónio das palavras apoderou-se de mim e fez-me falar sem parar. É uma grande desgraça. A minha pobre bílis azeda-se e faz-me dizer mil coisas que não penso.

Graça, senhor capitão, e vós todos, senhores, orai por mim.

Subitamente, Lamme apareceu na ponte, vestindo apenas as roupas interiores e disse:

- Capitão e amigos, não era o porco que gritava, mas o monge, o que muito me apraz. Ulenspiegel, meu filho, concebi um grande desígnio em relação a sua paternidade. Concede-lhe a vida, mas não o deixes livre, pois de outro modo fará qualquer partida no navio. Manda-lhe construir na ponte uma gaiola estreita e bem arejada, como as que se fazem para os capões. Deixa-me alimentá-lo, e que seja enforcado se não comer tudo o que eu lhe der.

- Que seja enforcado se não comer! - disseram Ulenspiegel e os Esfarrapados.

- Que pensas fazer de mim, homem gordo? - perguntou o monge.

- Verás - respondeu Lamme.

E Ulenspiegel fez o que Lamme queria, e o monge foi fechado numa gaiola, onde todos podiam facilmente contemplá-lo.

Lamme voltou à cozinha. Ulenspiegel seguiu-o, e ouviu-o discutir com Nele:

- Não me deitarei - dizia ele. - Não, não me deitarei para que outros venham mexer nos meus molhos; não, não ficarei na minha cama, como um vitelo!

- Não te zangues, Lamme - dizia Nele. - Senão a tua ferida reabrirá e tu morrerás.

- Pois bem, morrerei; estou farto de viver sem a minha mulher. Já me basta tê-la perdido, sem que tu venhas agora impedir-me a mim, o mestre-cozinheiro deste navio, de vigiar eu próprio os cozinhados. Não sabes que há uma saúde infusa nos fumos dos molhos e dos inçasses? Alimentam até o meu espírito e couraçam-me contra o infortúnio.

- Lamme - insistia Nele - tens de escutar os nossos conselhos e deixar-te tratar.

- Não quero deixar-me tratar. Mas que um outro entre aqui, ignorante, fétido, purulento, rameloso, ranhoso, que venha reinar como mestre-cozinheiro no meu lugar e meter os sujos dedos nos meus molhos, e matá-lo-ei com a minha colher de pau, que então será de ferro.

- Todavia - disse Ulenspiegel - precisas de um ajudante, estás doente...

- Um ajudante, eu! - gritou Lamme. - Eu, um ajudante! Não estarás recheado de ingratidão como um chouriço de carne cortada? Um ajudante, meu filho, e és tu quem o diz, a mim, o teu amigo, que te alimentei durante tanto tempo e tão bem! Agora é que a minha ferida vai reabrir. Mau amigo, quem seria capaz de preparar-te a comida como eu? Que fariam vocês, os dois, se eu não estivesse aqui para te dar a ti, capitão, e a ti, Nele, os mais deliciosos guisados?

- Trabalharíamos nós próprios na cozinha - respondeu Ulenspiegel.

- A cozinha - exclamou Lamme. - És bom para comê-la, para cheirá-la, para apreciá-la, mas para fazê-la, não. Pobre amigo e chefe capitão, salvo o respeito, dar-te-ia a comer sacolas cortadas às fatias e tu pensarias tratar-se de tripas um pouco duras. Deixa-me, meu filho, ser mestre-cozinheiro deste barco, pois senão secarei como uma estaca.

- Continua então a ser mestre-cozinheiro - disse Ulenspiegel. - E se não te curares, fecharei a cozinha e não comeremos senão biscoitos.

- Ah! meu filho - exclamou Lamme, chorando de alegria. - És bom como Nossa Senhora.

 

Todavia, pareceu curar-se.

Todos os sábados, os Esfarrapados viam-no medindo o tamanho do monge com uma comprida tira de couro. No primeiro sábado, disse:

- Quatro pés.

E medindo-se a si mesmo, acrescentou:

- Quatro pés e meio. E pareceu ficar triste.

No entanto, falando do monge, ao oitavo sábado, estava novamente contente, e disse:

- Quatro pés e três quartos.

E o monge, zangado quando ele lhe tirava as medidas, dizia:

- Que me queres tu, homem gordo?

Lamme, porém, mostrava-lhe a língua sem responder palavra.

E, sete vezes por dia, os marinheiros e soldados viam-no chegar com algum prato novo, dizendo:

- Aqui tens umas favas feitas em manteiga da Flandres. Acaso as comias iguais no teu convento? Estás com bom aspecto, ninguém emagrece neste navio. Não sentes nascerem-te as almofadas de gordura "nas costas? Em breve, para te deitares, não terás necessidade de colchão.

E, à segunda refeição do monge:

- Aqui estão uns "koeke-bakken" à maneira de Bruxelas. Os de França chamam-lhe crepes, porque usam um véu em sinal de luto; estes não são escuros, mas louros e dourados no forno. Vês a manteiga escorrer? Assim será com a tua pança.

- Não tenho fome - disse o monge.

- É preciso que comas - replicou Lamme. - Pensas que são crepes de má farinha. É puro fromento, meu pai, pai em gordura, da flor do fromento, meu pai dos quatro queixos. E já vejo nascer o quinto, e o meu coração está alegre. Come.

- Deixa-me descansado, homem gordo. Lamme, encolerizando-se, disse:

- Sou o senhor da tua vida. Preferes a corda a um bom prato de puré de ervilhas com pedaços de pão frito, como vou trazer-te de aqui a pouco?

E, voltando com o prato, continuava:

- O puré de ervilhas gosta de ser comido com companhia; por isso juntei-lhe uns "knoedels" da Alemanha, belas bolas de farinha de Corinto, lançadas vivas para a água a ferver: são pesadas, mas dão gordura. Come o mais que puderes. Quanto mais comeres, mais alegre ficarei. Não te faças enjoado, não bufes como se não pudesses comer mais. Come. Não será melhor comer do que ser enforcado? Vejamos a tua coxa. Também ela engorda! Dois pés e sete polegadas de diâmetro. Qual é o presunto que mede o mesmo?

Uma hora mais tarde, voltava para junto do monge.

- Aqui tens nove pombos. Abateram-nos para ti, aos pobres animais inocentes que, sem temor, voavam por cima dos navios, Não os desdenhes. Meti-lhes na barriga uma bola de manteiga, miolo de pão, moscada raspada, pontas de giroflé piladas num almofariz de cobre reluzente como a tua pele. O senhor sol está todo contente por poder mirar-se numa cara tão clara como a tua, devido à gordura, à boa gordura que te dei.

À quinta refeição, foi levar-lhe um "waterzoey".

- Que te parece - perguntou - este prato de peixe? O mar suporta-te e alimenta-te; não faria mais por sua real majestade. Sim, sim, vejo nitidamente nascer o quinto queixo, um pouco mais do lado direito do que do lado esquerdo; é preciso engordar esse lado infeliz, pois Deus disse-nos: "Sede justos para com todos."

E onde estaria a justiça, se não houvesse uma equitativa distribuição de gordura? Trar-te-ei, para a tua sexta refeição, mexilhões, que são as ostras dos pobres, como nunca tos serviram no teu convento. Os ignorantes cozem-nos e comem-nos assim; mas isso é apenas o prólogo do cozinhado: depois é preciso tirá-los das conchas, colocar os seus delicados corpos numa frigideira, e aí estufá-los levemente com aipo, moscada e giroflé, ligar o molho com cerveja e farinha e servi-los com torradas e manteiga. Foi assim que os fiz para ti. Porque é que as crianças devem aos pais e às mães tanto reconhecimento? Porque eles lhes deram abrigo, amor, mas sobretudo alimentação. Deves pois amar-me como teu pai e tua mãe, e como a eles deves-me reconhecimento de estômago. Ah! não roles contra mim uns olhos tão ferozes.

Trar-te-ei daqui a pouco uma sopa de cerveja e de farinha, bem açucarada, com muita canela. Sabes para quê? Para que a tua gordura se torne transparente e trema sob a tua pele, e se veja quando tu te agitas. Eis que toca o recolher. Dorme em paz, sem receio sobre o amanhã, certo de que encontrarás as tuas refeições abundantes e o teu amigo Lamme para tas servir sem falta.

- Vai-te, e deixa-me orar a Deus - disse o monge.

- Ora - respondeu Lamme - ora acompanhado pela alegre música do teu ressonar. A cerveja e o sono dar-te-ão gordura, bela gordura. E eu estou contente.

E Lamme foi deitar-se.

Os marinheiros e soldados perguntavam-lhe:

- Porque alimentas tão ricamente um monge que não te quer bem?

- Deixem-me - respondia Lamme. - Realizo uma grande obra.

 

Tinha chegado Dezembro, o mês das longas trevas. Ulenspiegel cantou:

O senhor sua grande alteza Tira a máscara,

Querendo reinar sobre o país belga. Os Estados espanholizados Mas não Angevinados Dispõem dos impostos. Batam o tambor Da Angevina derrota.

Têm à sua discrição Domínios, quintas e rendas, Criação dos magistrados, E os empregos também. E odeia os reformistas, O senhor sua grande alteza, Que passa em França por ateu. Oh! a Angevina derrota!

É que ele quer ser rei Pelo gládio e pela força, Rei absoluto para todos, Esse senhor e Grande Alteza; E que quer apanhar à traição Várias belas cidades e até Anvers; Mas não o conseguirá, Oh! a Angevina derrota!

Não é sobre ti, França,

Que se lança este povo, de louca raiva:

Estes golpes de armas mortíferas

Não ferem o teu nobre corpo;

E não são os teus filhos

Cujos cadáveres amontoados

Tapam a porta de Kip-Dorp.

Oh! a Angevina derrota!

Não, não são os teus filhos

Que o povo lança do alto das muralhas.

E Anjou, a Grande Alteza,

Anjou, o debochado passivo,

França, vivendo do teu sangue,

E querendo beber o nosso;

Mas entre a taça e os lábios...

Oh! a Angevina derrota!

O senhor Sua Grande Alteza,

Numa cidade sem defesa

Gritou: "Mata! mata! viva a missa!"

Com os seus belos amantes,

Tendo os olhos onde brilha

O fogo vergonhoso, impudico, inquieto,

Da luxúria sem amor.

Oh! a Angevina derrota!

É a eles que ferimos e não a ti, pobre povo, Sobre quem eles pesam com impostos, Gabelas, talhas, desfloramentos, Desdenhando-te e obrigando-te a dar O teu trigo, os teus cavalos, os teus carros, Tu que és para eles um pai. Oh! a Angevina derrota!

Tu, que és para eles uma mãe, Aleitando os excessos Desses parricidas que mancham O teu nome no estrangeiro, França, que te alimentas Do fumo da glória deles, Quando a aumentam Com selvagens proezas... Oh! a Angevina derrota!

Um florão para a tua coroa militar, Uma província para o teu território. Deixa o galo estúpido "Luxúria e batalha" O pé sobre a garganta, Povo francês, povo de homens, O pé que os esmaga! E todos os povos te amarão Pela Angevina derrota.

 

Em Maio, quando as camponesas da Flandres lançam, de noite, lentamente, por cima e para trás das cabeças, três favas negras para se preservarem da doença e da morte, a ferida de Lamme reabriu. E ele teve uma grande febre, e pediu que o deitassem na ponte do navio, diante da gaiola do monge.

Ulenspiegel quis fazer-lhe a vontade, mas, receando que o amigo caísse ao mar num acesso de febre, mandou-o amarrar solidamente ao seu leito.

Nos seus momentos de razão, Lamme recomendava insistentemente que não esquecessem o monge. E mostrava-lhe a língua.

E o monge dizia:

- Insultas-me, homem gordo.

- Não - respondia Lamme - engordo-te.

O vento soprava suavemente, o sol brilhava tépido. Lamme, cheio de febre, estava bem amarrado ao seu leito, a fim de que, num dos seus acessos, não saltasse da ponte, e, julgando-se ainda na cozinha, dizia:

- Esse forno está hoje muito claro. Não tardarão em chover hortulanas. Mulher, monta armadilhas no nosso pomar, muito mais bela assim com as mangas arregaçadas até aos cotovelos. Os teus braços são brancos. Quero mordê-los, mordê-los com os lábios, que são dentes de veludo. De quem é essa bela carne, de quem são esses belos seios transparentes sob o teu corpete de pano fino? São meus, meu doce tesouro. Quem fará o fricassé de cristas de galo e peitos de galinhas? Sem excessiva moscada, que dá febre. Molho branco, tomilho e louro. Onde estão as gemas de ovo?

Depois, fazia a Ulenspiegel sinal para que se aproximasse e dizia-lhe muito baixo ao ouvido:

- Em breve choverá caça, e eu guardar-te-ei mais quatro hortulanas do que aos outros. Tu és capitão, não me traias.

E, ouvindo as ondas lamberem suavemente os costados do navio, acrescentava:

- A sopa já ferve, meu filho, a sopa já ferve, mas o forno está a aquecer muito devagar.

E, logo que recuperava a consciência, dizia, falando do monge:

- Onde está ele? Cresce em gordura? Vendo-o, mostrava-lhe a língua e dizia:

- A grande obra realiza-se, estou satisfeito.

Certo dia, pediu que montassem na ponte uma grande balança, que o colocassem a ele num dos pratos e ao monge no outro; mal o monge foi colocado no prato, Lamme subiu para o ar como uma flecha, e, muito contente, exclamou:

- Ele pesa! Ele pesa! Comparado com ele, sou um espírito ligeiro, vou voar pelos ares como um pássaro. Tenho a minha ideia. Agora tirem-no, para que eu possa descer, e coloquem os pesos. Quanto pesa ele? Trezentas e catorze libras. E eu? Duzentas e vinte.

 

Na madrugada seguinte, ao romper da aurora, Ulenspiegel foi despertado por Lamme, que gritava:

- Ulenspiegel! Ulenspiegel! Ajuda-me, impede-a de partir. Cortem as cordas! Cortem as cordas!

- Porque gritas? - perguntou-lhe Ulenspiegel, subindo à ponte. - Não vejo coisa alguma.

- É ela - respondeu Lamme - é ela, a minha mulher, ali, nessa chalupa que ronda aquele barco; sim, aquele barco de onde saíam os cantos e os acordes de viola.

Nele, entretanto, tinha também subido à ponte.

- Corta as cordas, minha amiga - pediu Lamme. - Não vês que a minha ferida está sarada? A sua doce mão pensou-a. Ela, sim, é ela. Não a vês de pé na chalupa? Ouves? Ainda canta. Vem minha amada, vem, não fujas ao pobre Lamme, que ficou tão sozinho no mundo sem ti.

Nele pegou-lhe numa mão e tocou-lhe no rosto.

- Ainda tem febre - disse.

- Cortem as cordas! - pedia Lamme. - Dêem-me uma chalupa! Estou vivo, estou feliz, estou curado!

Ulenspiegel cortou as cordas. Lamme, saltando do leito, vestindo apenas os calções de pano branco, sem gibão, pôs-se ele próprio a descer a chalupa.

- Vê - disse Nele a Ulenspiegel - as mãos tremem-lhe de impaciência.

A chalupa estava pronta. Ulenspiegel, Nele, Lamme e um remador instalaram-se nela e dirigiram-se ao barco, ancorado um pouco mais longe.

- Vejam o belo barco - dizia Lamme, ajudando o remador.

Contra o céu fresco da manhã, colorido como cristal dourado pelos raios do jovem sol, o navio destacava a sua querena e os seus mastros elegantes.

- Diz-nos agora como a encontraste - pediu Ulenspiegel, enquanto Lamme remava.

E Lamme respondeu, falando entrecortadamente:

- Dormia, já bastante melhor. Subitamente, ruído surdo. Pedaço de madeira toca no navio. Chalupa. Marujo acorre ao ruído. "Quem está aí?" Uma voz doce, meu filho, a dela, a sua suave voz: "- Amigos." Depois, uma voz mais grossa: "vivam os Esfarrapados. Comandante do Johannah quer falar a Lamme Goedzak." Marujo lança a escada. A lua brilhava. Vejo forma de homem subindo à ponte: ancas fortes, joelhos redondos, bacia larga. E disse: "- Falso homem." Senti como que uma rosa abrindo-se e tocando-me na cara. Era a boca dela, meu filho, e ouvi-a dizer-me, ela, compreendes? ela própria, cobrindo-me de beijos e de lágrimas: era fogo líquido, balsâmico, caindo sobre o meu corpo: " - Sei que faço mal, mas amo-te, meu homem! Jurei a Deus, falto ao meu juramento, meu homem, meu pobre homem! Vim já muitas vezes, sem ousar aproximar-me; o marujo deixou-me finalmente vir. Pensava na tua ferida, que não me reconhecerias. Mas tratei-te. Não te zangues, meu homem, segui-te, mas tenho medo, ele está neste navio. Deixa-me partir. Se ele me visse, amaldiçoar-me-ia, e eu arderia no fogo do inferno!"

E então beijou-me novamente, chorosa e feliz, e voltou a partir, a despeito das minhas lágrimas. Tinhas-me amarrado os braços, meu filho, mas agora...

E dizendo isto, remava vigorosamente; era como a corda de um arco, esticada e que lança a flecha para a frente.

À medida que se aproximavam do barco, Lamme disse:

- Lá está ela, na ponte, tocando viola, a minha bela mulher de cabelos de um castanho dourado, de olhos castanhos, de faces frescas, de braços nus e redondos, de mãos brancas. Voa, chalupa, sobre as ondas.

O capitão do navio, ao ver aproximar-se a chalupa e Lamme remando como um diabo, mandou lançar uma escada. Quando Lamme chegou mais perto, saltou da chalupa para a escada, correndo o risco de cair ao mar, fez recuar a chalupa mais de três braças e, trepando à ponte como um gato, correu para a mulher, que, louca de contentamento, o abraçou e beijou, dizendo:

- Lamme, não venhas buscar-me; jurei a Deus, mas amo-te. Ah! querido homem!

- É Calleken Huybrechts - exclamou Nele. - A bela Calleken.

- Sim, sou eu - respondeu Calleken. - Mas, infelizmente, a hora do meio-dia já passou para a minha beleza.

E pareceu triste.

- Que fizeste? - perguntou Lamme. - Que te aconteceu? Porque me deixaste? Porque queres deixar-me agora?

- Escuta - disse ela - não te zangues: quero dizer-te: sabendo que todos os monges são homens de Deus, confiei-me a um deles. Chamava-se Broer Cornelis Adriaensen.

- Como? - exclamou Lamme, ao ouvir isto.

- Esse patife que tinha uma boca de esgoto, cheia de imundícies e porcarias, que só falava de derramar o sangue dos reformistas? Esse louvador da inquisição e dos éditos? Foi esse sujo malandro!

- Não insultes o homem de Deus - pediu Calleken.

- O homem de Deus! Bem o conheço. Foi o homem das imundícies e das vilanias. Sorte infeliz! A minha bela Calleken caída nas mãos desse monge debochado! Não te aproximes, que te mato. E eu que a amava tanto! O meu pobre coração enganado que lhe pertencia por inteiro! Que vieste fazer aqui? Porque me trataste? Devias ter-me deixado morrer. Vai-te, não quero ver-te mais, vai-te, ou atiro-te ao mar. A minha faca!...

Ela, abraçando-o, murmurava:

- Lamme, meu homem, não chores. Não sou o que tu pensas, não pertenci a esse monge.

- Mentes! - gritou Lamme, chorando e rilhando os dentes ao mesmo tempo. - Ah! nunca fui ciumento, mas agora sou-o. Triste paixão, cólera e amor, necessidade de matar e de beijar. Vai-te... não, fica! Fui tão bom para ela! O assassino domina em mim. A minha faca! Oh! isto queima, devora, rói, ris-te de mim...

Ela abraçava-o, chorando, doce e submissa.

- Sim - dizia ele - sou ingénuo na minha cólera. Sim, guardaste a minha honra, essa honra que os homens prendem estupidamente às saias de uma mulher. Era então para isso que escolhias os teus mais doces sorrisos para me pedires que te deixasse ir ao sermão com as tuas amigas...

- Deixa-me falar - pediu ela - e que morra neste instante se te engano!

- Morre então, pois vais mentir.

- Escuta-me.

- Fala ou fica calada, para mim é o mesmo.

- Broer Adriaensen - começou ela - passava por ser um bom pregador; eu ia ouvi-lo. Ele punha o estado eclesiástico e o celibato muito acima de todas as outras coisas, como sendo o mais próprio para ajudar os fiéis a ganhar o paraíso. A sua eloquência era grande e fogosa. Várias mulheres honestas, e eu entre elas, e nomeadamente um bom número de viúvas e donzelas, deixaram-se convencer. Sendo o estado de celibato tão perfeito, recomendava-nos que o conservássemos; e jurámos não voltarmos a consentir que nos desposassem...

- A não ser ele, sem dúvida - disse Lamme.

- Cala-te! - disse ela, zangada.

- Vá, acaba. Mas desferiste-me um rude golpe, não me curarei.

- Sim, meu homem, quando eu estiver junto de ti para sempre.

E quis abraçá-lo e beijá-lo, mas ele repeliu-a.

- As viúvas - continuou ela - juraram diante dele nunca mais voltarem a casar.

E Lamme escutava-a, perdido no seu ciumento devaneio.

Calleken, envergonhada, prosseguiu com o seu relato:

- Ele só queria por penitentes mulheres jovens e belas; as outras, mandava-as para os seus curas. Estabeleceu uma ordem de devotas, fazendo-nos a todas jurar que não aceitaríamos outro confessor. Jurei. Algumas das minhas companheiras, mais instruídas do que eu, perguntaram-me se não queria instruir-me na Santa Disciplina e na Santa Penitência. Aceitei. Ele estava em Bruges, no cais dos Talhadores-de-Pedra, perto do convento dos irmãos mineiros, em casa de uma mulher chamada Calle de Najage, a qual dava às raparigas instrução e alimento, a troco de um carolus de ouro por mês. Broer Cornelis podia entrar em casa de Calle de Najage sem parecer sair do seu claustro. Era a essa casa que eu ia, a uma pequena sala onde ele estava sozinho. Aí ordenou-me que lhe contasse todas as minhas inclinações naturais e carnais. Ao princípio não ousei fazê-lo, mas por fim cedi e, chorando, disse tudo.

- Ah! - chorou Lamme. - E esse sujo monge recebeu assim a tua doce confissão.

- Dizia-me sempre, meu homem, e é verdade, que acima do pudor terrestre há um pudor celeste, pelo qual fazemos a Deus o sacrifício das vergonhas mundanas, e assim confessamos ao nosso confessor todos os nossos secretos desejos, e somos então dignas de receber a Santa Disciplina e a Santa Penitência.

"Por fim, obrigou-me a pôr-me nua à sua frente, a fim de receber no meu corpo, que pecara, o ligeiro castigo das minhas culpas. Um dia obrigou-me a despir-me, e eu caí desmaiada quando tirei a roupa interior. E ele reanimou-me com um frasco de sais: "Basta por esta vez, minha filha - disse-me. - Volta dentro de dois dias e trás uma vergasta."

"Isto durou bastante tempo sem que nunca... juro-te diante de Deus e de todos os santos... meu homem... compreende-me... olha para mim... vê se minto. Continuei pura e fiel... Amava-te."

- Pobre e doce corpo - murmurou Lamme. - Oh, mancha de vergonha sobre o teu vestido de casamento!

- Lamme - disse ela - ele falava em nome de Deus e da nossa santa mãe a Igreja. Não devia escutá-lo? Continuava a amar-te, mas tinha jurado à Virgem, com horríveis juramentos, recusar-me a ti. Fui fraca, todavia, fraca por ti. Lembras-te do albergue de Bruges? Eu estava em casa de Calle de Najage, e tu passaste no teu burro, ao lado de Ulenspiegel. Segui-te; tinha uma boa soma em dinheiro, pois nada gastava comigo, vi-te ter fome. O meu coração voou para ti, tive piedade e amor.

- Onde está agora esse homem? - perguntou Ulenspiegel.

- Após uma investigação ordenada pelo magistrado e um inquérito, Broer Adriaensen teve de abandonar Bruges, e refugiou-se em Anvers. Disseram-me no barco que o meu homem o fez prisioneiro.

- Como? - exclamou Lamme. - Esse monge que engordo é...?

- Ele - respondeu Calleken, escondendo o rosto.

- Um machado! um machado! - gritou Lamme. - Mato-o e vendo aos salsicheiros a sua gordura de bode lascivo! Depressa, voltemos ao navio. A chalupa! Onde está a chalupa?

- É uma vil crueldade matar ou ferir um prisioneiro- disse-lhe Nele.

- Olhas-me com um olhar cruel. Impedir-me-ias de fazê-lo? - perguntou Lamme.

- Sim.

- Pois bem, não lhe farei mal. Deixa-me apenas tirá-lo da gaiola. A chalupa! Onde está a chalupa?

Desceram e embarcaram. Lamme remava furiosamente, chorando ao mesmo tempo.

- Estás triste, meu homem? - perguntou-lhe Calleken.

- Não, estou contente. Não voltarás a deixar-me, pois não?

- Nunca mais!

- Foste pura e fiel, mas, doce amada, minha Calleken, eu só vivia para voltar a encontrar-te, e agora, por culpa desse monge, haverá veneno em todas as nossas felicidades, veneno de ciúme... Sempre que esteja triste, ou apenas cansado, ver-te-ei nua, submetendo o teu belo corpo à flagelação infame. A primavera dos nossos amores foi minha, mas o verão foi dele; o outono será cinzento, e em breve virá o inverno para enterrar o meu amor fiel.

- Choras?

- Sim. O que já passou não voltará. Nele, então, disse:

- Se Calleken te foi fiel, deveria deixar-te só por essas más palavras.

- Ele não sabe como o amo - murmurou Calleken.

- Dizes a verdade? - exclamou Lamme. - Vem, amada, vem, minha mulher. Já não há outono cinzento nem inverno enterrador.

E ficou muito alegre. E assim chegaram ao navio.

Ulenspiegel deu as chaves da gaiola a Lamme, que a abriu; quis arrastar o monge para a ponte por uma orelha, mas não o conseguiu; quis obrigá-lo a sair agarrando-o pelo nariz, mas também não o conseguiu.

- Será preciso partir a gaiola - disse. - O capão está gordo.

O monge saiu então, rolando os olhos assustados, segurando a barriga com as duas mãos, e caiu de traseiro por causa de uma grande vaga que passou sob o navio.

- Ainda serás capaz de chamar-me "homem gordo"? - perguntou Lamme, dirigindo-se ao monge. - És mais gordo do que eu. Quem te obrigou a comer sete refeições por dia? Eu. Porque é, patife, que agora te mostras mais calmo, mais suave para com os pobres Esfarrapados?

E acrescentou:

- Se ficasses mais um ano nessa gaiola, não poderias de lá sair: as tuas bochechas tremem como geleia de porco, quando te mexes. Já não gritas, e não tardará que não possas sequer respirar.

- Cala-te, homem gordo - atirou-lhe o monge.

- Homem gordo! - exclamou Lamme, enfurecendo-se. - Eu sou Lamme Goedzak, tu és Broer Dikzak, Vetzak, Leugenzak, Slokkenzak, Wulpszak, o irmão grande saco, saco de banha, saco de mentira, saco de luxúria; tens quatro dedos de gordura sob a pele e já não se te vêem os olhos. Ulenspiegel e eu alojar-nos-íamos à vontade na catedral da tua pança! Chamas-me homem gordo... queres um espelho para contemplar a tua ventralidade? Fui eu quem te alimentou, monumento de carne e ossos. Jurei que cuspirias gordura, que suarias gordura e que deixarias atrás de ti rastos de gordura, como uma vela derretendo-se ao sol. Diz-se que a apoplexia chega com o sétimo queixo. Já tens cinco e meio.

Depois, dirigindo-se aos Esfarrapados, continuou:

- Vejam este palhaço! É Broer Cornelis Adriaensen Patiforiensen, de Bruges, onde pregava um novo pudor. A sua gordura é a sua punição; a sua gordura é obra minha. Ouçam-me todos, marinheiros e soldados: vou deixar-vos, deixar-te a ti, Ulenspiegel, a ti, pequena Nele, e irei para Flessingue, onde tenho bens, viver com a minha pobre mulher reencontrada. Fizeram-me em tempos juramento de me conceder tudo o que lhes pedisse...

- Palavra de Esfarrapados! - gritaram eles.

- Olhem então para este palhaço, Broer Adriaensen Patiforiensen, de Bruges; jurei fazê-lo morrer de gordura, como um porco. Construam-lhe uma gaiola maior, obriguem-no a comer doze refeições por dia, em vez de sete, dêem-lhe uma alimentação gorda e açucarada. Já está como um boi, que fique como um elefante, e em breve vê-lo-ão encher a gaiola.

- Engordá-lo-emos! - responderam os Esfarrapados.

- E agora - continuou Lamme, dirigindo-se ao monge - digo-te adeus a ti também, patife, que alimentei monacalmente em vez de te mandar enforcar; cresce em gordura e em apoplexia.

E, tomando a mulher nos braços, acrescentou:

- Olha, e grunhe ou muge. Levo-ta, não voltarás a fustigá-la.

O monge, porém, enfurecendo-se e falando a Calleken, gritou:

- Vai então, mulher carnal, para o leito da luxúria! Sim, vais sem piedade para com o pobre mártir da palavra de Deus, que te ensinou a santa, suave e celeste disciplina. Sê maldita! Que nenhum padre te perdoe, que a terra te queime os pés, que o açúcar te pareça sal, que a carne de boi seja para ti como carne de cão morto, que o pão te saiba a cinza, que o sol para ti seja de gelo e a neve o fogo do inferno, que a tua fecundidade seja maldita, que os teus filhos sejam detestáveis, que tenham corpo de macaco e uma cabeça de porco maior do que as suas barrigas, que sofras, chores, gemas neste mundo e no outro, no inferno que te espera, o inferno de enxofre e betume incendiado pelas mulheres da tua espécie. Recusaste o meu paternal amor: sê maldita três vezes pela Santa Trindade, sete vezes pelos candelabros da Arca; que a confissão para ti seja condenação, que a hóstia te seja um veneno mortal, e que na igreja cada laje se erga para te esmagar e dizer-te: "- Esta é fornicadora, esta é maldita, esta é condenada?"

E Lamme, contente, saltando de alegria, dizia:

- Foi-me fiel, disse-o ele, o monge! Viva Calleken! Ela, porém, chorando e tremendo, suplicava:

- Afasta de mim essa maldição, meu homem. Vejo o inferno! Afasta a maldição!

- Retira a maldição! - ordenou Lamme.

- Não o farei, homem gordo - replicou o monge. E a mulher, pálida e trémula, caiu de joelhos e, com as mãos juntas, suplicava a Broer Adriaensen. Lamme, então, disse ao monge:

- Retira a maldição, ou serás enforcado. E se a corda se partir devido ao teu peso, serás reenforcado, e tantas vezes quantas forem precisas até que morras.

- Enforcado e reenforcado! - disseram os Esfarrapados.

- Vai "então, debochada - disse o monge, dirigindo-se a Calleken - vai então com esse homem gordo. Vai, retiro a maldição, mas Deus e todos os santos terão os olhos em ti; vai com esse homem gordo, vai.

E calou-se, suando e bufando.

- Já bufa, já bufa! - exclamou Lamme. - Vejo o sexto queixo. Ao sétimo será a apoplexia.

E, dirigindo-se aos Esfarrapados, acrescentou:

- Recomendo-vos a Deus, tu, meu amigo Ulenspiegel, e todos vós, meus bons amigos, e tu, Nele, e a santa causa da liberdade. Já nada mais posso por ela.

Depois, tendo-os abraçado um a um, disse à sua mulher Calleken:

- Vem, é a hora dos amores legítimos. Enquanto o batel deslizava sobre a água, levando

Lamme e a sua amada, marinheiros e soldados gritavam, agitando os seus barretes:

- Adeus, irmão; adeus, Lamme; adeus, irmão e amigo!

E Nele perguntou a Ulenspiegel, limpando-lhe com um dedo a lágrima que lhe escorria do canto de um olho:

- Estás triste, meu amado?

- Ele era bom - respondeu Ulenspiegel.

- Ah! - exclamou ela. - Esta guerra nunca mais acabará, teremos de viver sempre no sangue e nas lágrimas?

- Procuremos os sete - disse Ulenspiegel. - Aproxima-se a hora da libertação.

Obedecendo ao pedido de Lamme, os Esfarrapados engordaram o monge na sua gaiola. Quando foi posto em liberdade, contra resgate, pesava trezentas e dezassete libras e cinco onças, peso da Flandres.

E morreu prior no seu convento.

 

Nesse tempo, os senhores dos Estados gerais reuniram-se na Haia para julgar Filipe, rei da Espanha, conde da Flandres, da Holanda, etc, segundo as cartas e privilégios por ele consentidos.

E o escrivão falou assim:

- É sabido de todos que o príncipe de um país é estabelecido por Deus, soberano e chefe dos seus súbditos para os defender e preservar contra todas as injúrias, opressões e violências, tal como o pastor deve defender e guardar as suas ovelhas. É também sabido que os súbditos não foram criados por Deus para uso do príncipe, para lhe serem obedientes em tudo o que ele lhes ordenar, seja coisa pia ou ímpia, justa ou injusta, nem para o servirem como escravos. Mas o príncipe é príncipe pelos seus súbditos, sem os quais não pode sê-lo, a fim de governar segundo o direito e a razão, mantê-los e amá-los como um pai aos seus filhos, como um pastor às suas ovelhas, arriscando a vida para defendê-los; se não o faz, deve ser considerado um tirano e não um príncipe. Filipe, rei, lançou sobre nós, por apelos a soldados, bulas de cruzada e de excomunhão, quatro exércitos estrangeiros. Qual será a sua punição, em virtude das leis e costumes do país?

- Que seja deposto - responderam os senhores dos Estados.

- Filipe faltou aos seus juramentos: esqueceu os serviços que lhe prestámos, as vitórias que o ajudámos a conseguir. Vendo que éramos ricos, deixou que fôssemos pilhados pelos do conselho de Espanha.

- Que seja deposto como ingrato e ladrão - disseram os senhores dos Estados.

- Filipe - continuou o escrivão - colocou nas mais poderosas cidades do país, novos bispos, dotando-os e beneficiando-os com os bens das maiores abadias; introduziu, com a ajuda deles, a Inquisição de Espanha.

- Que seja deposto como carrasco e dissipador dos bens de outrém - responderam os senhores dos Estados.

- Os nobres do país, vendo esta tirania, dirigiram-lhe, no ano de 1566, um pedido no qual lhe suplicavam que moderasse os seus rigorosos éditos e nomeadamente os que diziam respeito à Inquisição; o que ele sempre recusou.

- Que seja deposto como um tigre persistente na sua crueldade - disseram os senhores dos Estados.

O escrivão prosseguiu:

- Filipe é fortemente suspeito de ter, por intermédio dos do seu conselho de Espanha, incitado secretamente a destruição de imagens e o saque de igrejas, a fim de poder, sob o pretexto de crime e de desordens, fazer marchar sobre nós exércitos estrangeiros.

- Que seja deposto como instrumento de morte - responderam os senhores dos Estados.

- Em Anvers, Filipe mandou chacinar os habitantes, arruinou os mercadores flamengos e os mercadores estrangeiros. Ele e o seu conselho de Espanha deram a um certo Rhoda, patife notório, através de instruções secretas, o direito de declarar-se chefe dos pilhantes, de recolher o saque, de servir-se do seu nome, dele, Filipe, rei, de falsificar os seus selos e de comportar-se como seu governador e lugar-tenente. As cartas reais interceptadas e que se encontram em nosso poder provam o facto. Tudo aconteceu com o seu consentimento e após deliberação do conselho de Espanha. Podeis ler essas cartas, onde ele louva o que foi feito em Anvers, reconhece ter recebido um assinalado serviço, promete recompensas e incita Rhoda e outros espanhóis a seguir por essa via gloriosa.

- Que seja deposto como ladrão, pilhante e assassino - responderam os senhores dos Estados.

- Tudo o que queremos é a manutenção dos nossos privilégios, uma paz leal e assegurada, uma liberdade moderada, nomeadamente no tocante à religião e que concerne principalmente a Deus e à consciência; nada recebemos de Filipe, a não ser tratados mentirosos que semearam a divisão entre as províncias, para as subjugar umas após outras e tratá-las como às índias, pela pilhagem, a confiscação, as execuções e a Inquisição.

- Que seja deposto por assassino que premeditou o assassínio de um país - responderam os senhores dos Estados.

- Fez sangrar o país pela mão do duque de Alba e dos seus esbirros, pela mão de Medina-Coeli, pela mão de Requesens, pelos traidores dos conselhos de Estado e das províncias; recomendou uma rigorosa e sangrenta severidade a D. Juan e a Alexandre Farnese, príncipe de Parma. conforme se prova com as suas cartas interceptadas; baniu do império o senhor de orange, pagou a três assassinos e certamente pagará a um quarto; mandou erigir na nossa terra castelos e fortalezas; mandou queimar vivos os homens, enterrar vivas as mulheres e as raparigas, e herdou os seus bens; mandou estrangular Montigny de Berghes e outros senhores, não obstante a sua palavra real; matou o seu filho Carlos; envenenou o príncipe de Ascoli, a quem obrigou a desposar dona Eufrásia, grávida por obra sua, a fim de mais tarde enriquecer o bastardo com os bens do príncipe; lançou contra nós um édito em que nos declarava a todos traidores, tendo perdido corpos e bens, e cometeu o crime, inaudito num país cristão, de confundir inocentes e culpados.

- Segundo todas as leis, direitos e privilégios, que seja deposto - responderam os senhores dos Estados.

E os selos do rei foram quebrados.

E o sol brilhava sobre a terra e sobre o mar, dourando as espigas maduras, amadurecendo as uvas, lançando sobre cada vaga fios de pérolas, ornamento da noiva de Neerlande: a Liberdade.

Depois, encontrando-se o príncipe de Orange em Delft, foi atingido por um quarto assassino com três balas no peito. E morreu segundo a sua divisa: "Tranquilo entre as cruéis ondas."

Os seus inimigos disseram dele que para fazer mal a Filipe, e não esperando vir a reinar sobre os Países-Baixos meridionais e católicos, os tinha oferecido por um tratado secreto a monsenhor sua grande alteza de Anjou. Mas este não tinha nascido para procriar a filha Bélgica com a Liberdade, que não gosta dos amores extraordinários.

E Ulenspiegel, com Nele, abandonou a frota.

E a pátria belga gemia sob o jugo, garroteada pelos traidores.

 

Estava-se então no mês dos trigos maduros, o ar estava pesado, o vento era tépido; ceifeiros e ceifeiras podiam tranquilamente colher nos campos, sob um céu livre, num solo livre, o trigo semeado por eles.

Frise, Drenthe, Overijssel, Gueldre, Utrecht, Noord-Brabante, Noord e Zuid-Hollande, Walcheren, Noord e Zuid-Beveland, Duiveland e Schowen, que constituem a Zelândia, todas as costas do Mar do Norte de Knokke até Helder, as Ilhas Texel, Vieland, Ameland, Schiermonik-Oog, iam, do Escaut ocidental até Oost-Ems, ser libertadas do jugo espanhol; Maurice, filho do "Calado", continuava a guerra.

Ulenspiegel e Nele, tendo a sua juventude, a sua força e a sua beleza, pois o amor e o espírito da Flandres nunca envelhecem, viviam sossegadamente na torre de Neere, à espera de poderem respirar, após mil cruéis provas, o vento da liberdade sobre a pátria belga.

Ulenspiegel tinha pedido para ser nomeado comandante e guarda de torre, dizendo que com os seus olhos de águia e ouvidos de lebre poderia ver se o Espanhol não tentava reaparecer nas regiões libertadas, e que então tocaria o "wacharm", que é o alarme em linguagem flamenga.

O magistrado fez o que ele queria, e devido aos seus bons serviços deram-lhe um florim por dia, duas garrafas de cerveja, favas, queijo, biscoitos e três libras de carne por semana.

Ulenspiegel e Nele viviam assim os dois muito bem, vendo ao longe, com alegria, as ilhas livres da Zelândia; e, mais perto, bosques, castelos e fortalezas, e os navios armados dos Esfarrapados que guardavam as costas.

De noite, subiam muitas vezes à torre, e aí, sentando-se na plataforma, conversavam sobre as duras batalhas e os belos amores do passado e do futuro. De ali, viam o mar que, naquele tempo quente, se desfazia na praia em vagas luminosas, lançando-as sobre as ilhas como fantasmas de fogo. E Nele assustava-se ao ver nos polders os fogos-fátuos, que eram, dizia ela, as almas

dos pobres mortos. E todos aqueles locais tinham sido campos de batalha.

Os fogos-fátuos subiam dos polders, corriam ao longo dos diques e depois voltavam aos polders, como se não quisessem deixar os corpos de onde tinham saído.

Uma noite, Nele disse a Ulenspiegel:

- Vê como são numerosos em Dreiveland e voam alto: é do lado das ilhas das aves que os vejo em maior número. Queres ir lá, Thyl? Tomaremos o bálsamo que mostra as coisas invisíveis aos olhos mortais.

E Ulenspiegel respondeu:

- Se é o mesmo bálsamo que me fez ir ao grande "sabbat", não tenho mais confiança nele do que num sonho vão.

- Não se deve negar a potência dos encantos. Vem, Ulenspiegel.

- Irei.

No dia seguinte, pediu ao magistrado que um soldado atento e fiel o substituísse, a fim de guardar a torre e velar sobre a região.

E partiu com Nele para as ilhas dos pássaros.

Caminhando pelos campos e pelos diques, viram pequenas ilhotas verdejantes, por entre as quais corria a água do mar, e sobre colinas de erva que iam até às dunas, uma grande multidão de abides, de gaivotas, de andorinhas do mar, que permaneciam imóveis, tornando com os seus corpos as ilhotas todas brancas; e no céu voavam milhares dessas aves. O solo estava cheio de ninhos. Ulenspiegel, inclinando-se para apanhar um ovo, viu voar direita a ele uma gaivota, que lançou um grito. E a este apelo responderam mais de cem, gritando de angústia, planando por cima da cabeça de Ulenspiegel e dos ninhos vizinhos, mas sem ousarem aproximar-se dele.

- Ulenspiegel - disse Nele - essas aves pedem graça para os seus ovos.

Depois, trémula, acrescentou:

- Tenho medo, eis o sol que se põe, o céu está branco, as estrelas despertam, é a hora dos espíritos. Vê, rasando a terra, essas exalações vermelhas; Thyl, meu amado, qual é o monstro do inferno que abre assim na nuvem a sua goela de fogo? Vê, do lado de Philips-land, onde o rei carrasco fez por duas vezes, pela sua cruel ambição, matar tantos pobres homens, vê os fogos-fátuos que dançam: é a noite em que as almas dos pobres homens mortos nas batalhas deixam os limbos frios do purgatório para se virem aquecer no ar tépido da terra; é a hora a que podes pedir tudo a Cristo, que é o Deus dos bruxos bons.

- As cinzas batem no meu peito - disse Ulenspiegel. - Se Cristo pudesse mostrar-me esses sete cujas cinzas lançadas ao vento tornariam felizes a Flandres e todo o mundo!

- Homem sem fé - disse Nele. - Vê-los-ás graças ao bálsamo.

- Talvez - disse Ulenspiegel, apontando com um dedo para Sírius - se algum espírito descesse da fria estrela.

A este gesto, um fogo-fátuo que rodopiava em torno dele agarrou-se-lhe ao dedo, e quantos mais esforços ele fazia por desembaraçar-se, mais o fogo-fátuo se agarrava.

Nele, tentando ajudar Ulenspiegel, ficou também com um fogo-fátuo preso à mão.

Ulenspiegel, batendo no seu, dizia:

- Responde! És a alma de um Esfarrapado ou de um Espanhol? Se és a alma de um Esfarrapado, vai para o paraíso, se és a de um espanhol, volta para o inferno de onde vieste.

- Não injuries as almas - disse-lhe Nele - nem que sejam as almas de carrascos.

E, fazendo dançar o seu fogo-fátuo na ponta do dedo, disse:

- Fogo, gentil fogo, que notícias nos trazes do país das almas? Em que se empregam elas lá em baixo? Comem e bebem, não tendo boca? Porque tu não a tens, bonito fogo. Ou só tomam a forma humana no abençoado paraíso?

- Como és capaz - assombrou-se Ulenspiegel - de perder o teu tempo a falar desse modo com uma chama aborrecida que não tem ouvidos para ouvir-te nem boca para responder-te?

No entanto, sem o escutar, Nele dizia:

- Fogo, responde dançando, pois vou interrogar-te três vezes: uma vez em nome de Deus, outra em nome da Virgem e outra em nome dos espíritos elementares que são os mensageiros entre Deus e os homens.

E fê-lo, e o fogo-fátuo dançou três vezes. Então Nele disse a Ulenspiegel:

- Despe as tuas roupas, e eu farei o mesmo; eis a caixa de prata onde está o bálsamo da visão.

- Para mim é o mesmo - respondeu Ulenspiegel. Depois, tendo-se despido e ungido com o bálsamo

da visão, deitaram-se nus um ao lado do outro, sobre a erva.

As gaivotas queixavam-se; o trovão rugia surdamente na nuvem onde brilhava o relâmpago; a lua mostrava timidamente entre duas nuvens as pontas de ouro do seu crescente; os fogos-fátuos de Ulenspiegel e de Nele foram dançar com os outros para a pradaria.

Subitamente Nele e o seu amigo foram apanhados pela grande mão de um gigante que os atirava ao ar como se fossem bolas de criança, os apanhava, os rolava sobre o outro e os apertava entre as mãos, os atirava para os charcos de água entre as colinas e voltava a apanhá-los cobertos de algas marinhas. Depois, passeando-os pelo espaço, cantou com uma voz que acordou de medo as gaivotas das ilhas:

Querem com os seus olhos estrábicos,

Estes miseráveis pulgões,

Ler os divinos sinais

Que temos cativos.

Lê, pulga, o mistério;

Lê, piolho, a palavra sagrada

Que no ar, céu e terra

Com sete pregos está pregada.

E de facto, Ulenspiegel e Nele viram na erva, no ar e no céu, sete placas de bronze luminoso, presas por sete pregos flamejantes. Nas placas estava escrito:

Nas estrumeiras germina a seiva; Sete é mau, mas sete é bom; Diamantes saem do carvão; De doutores estúpidos, alunos sábios; Sete é mau, mas sete é bom.

E o gigante caminhava seguido por todos os fogos fátuos que, murmurando como cigarras, diziam:

Olhem bem, é ele o grande mestre. Papa dos papas, rei dos reis, é ele quem leva César a pastar; Olhem-no bem, é de madeira.

Subitamente as feições do gigante alteraram-se, pareceu mais magro, triste e alto. Tinha numa mão um ceptro e na outra uma espada. E o seu nome era Orgulho.

E lançando Ulenspiegel e Nele ao solo, disse-lhes:

- Sou Deus!

Depois, ao lado dele, montando uma cabra, apareceu uma jovem avermelhada, com os seios nus, o vestido aberto e os olhos brilhantes; e chamava-se Luxúria. Veio depois uma velha judia apanhando cascas de ovos de gaivota; e chamava-se Avareza. E depois um monge glutão e bochechudo, comendo chouriços, empanzinando-se de salpicões e mastigando sem cessar como a porca que montava; e chamava-se Gula. Seguia-o a Preguiça, arrastando uma perna, pálida e triste, de olhar apagado. E a Cólera perseguia-a a golpes de aguilhão. A Preguiça, dolente, lamentava-se banhada em lágrimas, caía de fadiga sobre os joelhos. Apareceu então a magra Inveja, de cabeça de víbora, dentes de espeto, mordendo a Preguiça porque ela vivia demasiado bem, a Cólera porque ela era demasiado viva, a Gula porque estava demasiado bem alimentada, a Luxúria porque era demasiado vermelha, a Avareza por causa das cascas de ovo, o Orgulho porque ele tinha uma veste de púrpura e uma coroa. E os fogos-fátuos dançavam em torno de todos eles.

E falando com vozes de homens, de mulheres, de raparigas e de crianças queixosas, disseram gemendo:

- Orgulho pai da ambição, Cólera, fonte de crueldade, matastes-nos nos campos de batalha, nas prisões e nos suplícios, para conservar os vossos ceptros e as vossas coroas! Inveja, destruíste no seu germe muitos nobres e úteis pensamentos, nós somos as almas dos inventores perseguidos. Avareza, transformaste em ouro o sangue do pobre povo, somos os espíritos das tuas vítimas. Luxúria, companheira do assassínio, que deste à luz Nero, Messalina e Filipe, rei da Espanha, compras a virtude e pagas a corrupção, somos as almas dos mortos. Preguiça e Gula, conspurcais o mundo, é preciso desembaraçá-lo de vós; somos as almas dos mortos. ouviu-se uma voz dizendo:

Nas estrumeiras germina a seiva;

Sete é mau, mas sete é bom.

Para doutores estúpidos, alunos sábios;

Para ter cinza e carvão,

Que fará o piolho vagabundo?

E os fogos-fátuos disseram:

- O fogo somos nós, a desforra das velhas lágrimas, das dores do povo; a desforra dos senhores perseguindo a caça humana, nas suas terras; desforra das batalhas inúteis, do sangue derramado nas prisões, dos homens queimados, das mulheres e das raparigas enterradas vivas; a desforra do passado acorrentado e sangrando. O fogo somos nós; somos as almas dos mortos.

A estas palavras, os sete foram transformados em estátuas de madeira, sem nada perderem da sua forma primitiva.

E uma voz disse:

- Ulenspiegel, queima a madeira.

E Ulenspiegel, voltando-se para os fogos-fátuos, disse:

- Vocês, que são de fogo, façam o vosso ofício. E os fogos-fátuos em multidão rodearam os sete, que arderam e foram reduzidos a cinzas.

E correu um rio de sangue.

Daquelas cinzas caíram sete outras figuras; a primeira disse:

- Chamava-me Orgulho, agora chamo-me nobre Altivez.

As outras falaram também, e Ulenspiegel e Nele viram da Avareza sair a Economia, da Cólera a Vivacidade, da Gula o Apetite, da Inveja a Emulação, e da Preguiça o devaneio dos poetas e dos sábios. E a Luxúria, sobre a sua cabra, foi transformada numa bela mulher que se chamava Amor.

E os fogos-fátuos dançaram em torno deles uma ronda alegre.

Ulenspiegel e Nele ouviram então mil vozes de homens e mulheres escondidos, sonoras, trocistas, que, com um som semelhante a um tilintar, cantaram:

Quando sobre a terra e sobre o mar Estes sete transformados reinarem, Homens, então erguei a fronte; Será a felicidade do mundo.

- Os espíritos troçam de nós - disse Ulenspiegel. E uma poderosa mão agarrou Nele por um braço e lançou-a no espaço. E os espíritos cantaram:

Quando o setentrião Beijar o poente, Será o fim das ruínas; Procura o cinto.

- Ah! - exclamou Ulenspiegel. - Setentrião, poente e cinto. Falais obscuramente, senhores Espíritos. E eles cantaram, troçando:

Setentrião, é a Neerlande; Bélgica, é o poente; Cinto, é a aliança; Cinto, é amizade.

- Não são tolos, senhores Espíritos - disse Ulenspiegel. E eles cantaram troçando ainda mais:

O cinto, pobrezinho, Entre Neerlande e Bélgica, Será boa amizade, Bela aliança.

'Met readt En daedt; Met doodt En bloodt:

Aliança de conselho E de acção, De morte E de sangue.

Se fosse preciso, Não havia o Escaut, Pobrezinho, não era o Escaut.

- Ah! - exclamou Ulenspiegel - assim é pois a nossa vida atormentada: lágrimas de homens e riso do destino.

Aliança de sangue

E de morte,

Não havia o Escaut.

replicaram, troçando, os espíritos.

E uma poderosa mão agarrou em Ulenspiegel e lançou-o no espaço.

Nele, ao cair, esfregou os olhos e viu apenas o sol erguendo vapores dourados, as pontas das ervas também de ouro e os raios amarelecendo a plumagem das gaivotas adormecidas, que no entanto não tardaram em despertar.

Depois olhou para si mesma, viu-se nua e vestiu-se apressadamente; então viu Ulenspiegel igualmente nu e cobriu-o; julgando-o adormecido, sacudiu-o, mas ele não se mexia, como um morto. E o medo dominou-a.

- Terei - exclamou - morto o meu amigo com esse bálsamo da visão? Quero morrer também! Ah! Thyl, desperta! Está frio como um mármore!

Ulenspiegel não despertava. Passaram-se duas noites e um dia, e Nele, louca de dor, velou junto do seu amigo.

Estava-se no começo do segundo dia. Nele ouviu o ruído de uma sineta e viu aproximar-se um camponês transportando uma pá. Atrás dele caminhavam, empunhando círios, um burgomestre e dois vereadores, o cura de Stavenise e um sacristão, que segurava um guarda-sol por cima da sua cabeça.

Iam, disseram, levar o sacramento da extrema-unção ao valente Jacobsen, que fora Esfarrapado por medo, mas que, passado o perigo, voltara ao regaço da Santa Igreja Romana.

Pouco depois chegavam diante de Nele, chorosa, e viram o corpo de Ulenspiegel estendido na relva, coberto pelas suas roupas. Nele pôs-se de joelhos.

- Rapariga - perguntou-lhe o burgomestre - que fazes tu junto desse morto?

Não ousando erguer os olhos, Nele respondeu:

- Oro pelo meu amigo caído aqui como se tivesse sido fulminado pelo raio; agora estou sozinha e quero morrer também.

O cura, então, bufando de alegria, disse:

- Ulenspiegel, o Esfarrapado está morto, Deus seja louvado! Camponês, apressa-te a abrir-lhe uma cova, e tira-lhe as roupas antes de o enterrarmos.

- Não - disse Nele, pondo-se de pé. - Não lhe tirarão as roupas, não quero que tenha frio na terra.

- Abre a cova - ordenou o cura ao camponês que tinha a pá.

- Está bem - disse Nele, banhada em lágrimas. - Não há vermes na areia cheia de cal, e o meu amigo continuará inteiro e belo.

E, como louca, inclinou-se para o corpo de Ulenspiegel e beijou-o com lágrimas e soluços.

O burgomestre, os vereadores e o camponês tiveram piedade, mas o cura não cessava de dizer alegremente:

- O grande Esfarrapado está morto, Deus seja louvado!

Depois o camponês abriu a cova, meteu Ulenspiegel lá dentro e cobriu-o de areia.

E o cura disse sobre a cova a oração dos mortos. Todos se ajoelharam em redor. Subitamente, fez-se sob a areia uma grande agitação, e Ulenspiegel, cuspindo e sacudindo a areia dos cabelos, agarrou o cura pela garganta.

- Inquisidor! - disse-lhe - meteste-me na terra, vivo, enquanto dormia! Onde está Nele? Também a enterraste? Quem és tu?

O cura, porém, gritou:

- O grande Esfarrapado volta a este mundo! Senhor Deus, leva a minha alma!

E fugiu como um veado perseguido pelos cães. Nele aproximou-se de Ulenspiegel.

- Beija-me minha amada - disse-lhe ele. Depois olhou de novo em torno. O camponês e o

sacristão tinham fugido como o cura, atirando para longe, para melhor correrem, pá e guarda-sol; o burgomestre e os vereadores, agarrando as orelhas de medo, gemiam estendidos na erva.

Ulenspiegel aproximou-se deles e, sacudindo-os, disse-lhes :

- Será possível enterrar Ulenspiegel, o espírito, e Nele, o coração da mãe Flandres? Também ela pode dormir, mas morrer não. Vem, Nele.

E partiu com ela, cantando a sua sexta canção, mas ninguém sabe onde cantou a última.

 

                                                                                            Charles de Coster

 

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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