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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A LUTA PELO SOL / Hans Kneifel
A LUTA PELO SOL / Hans Kneifel

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ESPAÇONAVE ORION

A Patrulha das Estrelas

A LUTA PELO SOL

 

No ano de 1955, um cientista de nome Baade descobriu que uma pequena estrela, designada por Ross 614A, possuía um satélite. Esse sol, um anão vermelho, distava do sol terrano treze anos-luz, enquanto seu satélite orbitava em torno dele a uma distância de cerca de 600 milhões de quilômetros, o que correspondia à distância entre o sol terrano e o planeta Júpiter. O satélite recebeu o nome de Ross 614B.

A massa total desse satélite equivalia a oito centésimos da massa solar, e sua capacidade luminosa era 63 mil vezes mais fraca que a do sol de Terra. As reações termonucleares no interior de Ross 614B eram responsáveis pela elevada temperatura na sua superfície, que era de 985 graus centígrados. O sol e seu satélite cintilante foram catalogados, e constituíram o tema de vários trabalhos na literatura especializada, uma vez que representavam um exemplo raro das relações entre sol e planeta. Foram incluídos no manual, recebendo um longo número de catálogo, seguido das suas coordenadas hiperespaciais.

Obtiveram uma certa notoriedade durante a 2.a guerra interestelar quando, nas imediações dessa estrela, se realizou um combate entre quatro naves de Terra e cinco unidades da Federação. Duas naves inimigas, fortemente atingidas, fugiram para o espaço livre e foram dadas como desaparecidas.

Depois desse incidente, Ross 614A e Ross 614B caíram no mais completo esquecimento. Treze anos-luz... a posição situava-se inequivocamente dentro da primeira zona de distância de 45 parsec. Coordenadas: Um/sul 019.

Ninguém mais se lembrava do anão vermelho e seu satélite escaldante. E ninguém fazia a menor idéia da sorte daquelas grandes naves, que tinham fugido após o combate. Não havia quem se dirigisse voluntariamente àquela região. Mais tarde, porém, tudo isso voltaria à lembrança, causando a maior consternação.

 

O disco aproximava-se da superfície do planetóide. Esse corpo, conhecido apenas pelo seu número de catálogo, N116A, possuía aproximadamente um terço da massa de Terra. A Orion VIII pairava, imóvel, oito metros acima da superfície, apoiando-se nos raios antigravitacionais. Depois as máquinas foram desligadas. Um silêncio cósmico estendia-se sobre as rochas, as extensões de musgo e os tênues fios d'água, que serpenteavam entre o cascalho úmido da superfície. No interior da nave ouvia-se o ruído dos geradores desativados; estalos esparsos acompanhavam o resfriamento do metal e os silvos agudos tornavam-se cada vez mais graves, percorrendo toda a escala de sons. Cliff, Mario e Atan estavam observando a grande tela central.

— Que diabos! — disse o major, a meia voz. — Nós não estamos bêbados!

Atan e Mario não responderam. Suas mentes ainda estavam digerindo as impressões. Impressões novas e perigosas. Helga Legrelle deu uma risadinha.

— Hoje, excepcionalmente, não estão — disse uma voz serena e contida. Cliff não precisou se virar para constatar quem havia falado. Só podia ter sido Tamara Jagellovsk, o olho incorruptível da lei, que vigiava McLane e sua tripulação como um cão de guarda.

— Muito engraçado! — respondeu McLane, sombriamente. — Só que até hoje não viu nenhum de nós bêbado, tenente! Pode ser que nos seus círculos...

— Então devem ser sintomas de ressaca — murmurou ela, sarcasticamente. — Posso saber por que os três cavalheiros estão tão excitados?

Novamente Helga deu uma leve risada. McLane respondeu:

— Esse planetóide lá fora apresenta particularidades inesperadas. Possui uma atmosfera que, a rigor, não devia ter. Em conseqüência disso, apresenta uma temperatura relativamente alta.

— Sim... e daí?

McLane virou-se e olhou para o seu agente de segurança com um sorriso indulgente.

— Se admitirmos que os dados existentes sobre o planetóide estão todos certos — disse ele, calmamente — então, desde priscas eras, N116A devia ser tão estéril como os pensamentos de um oficial do SSG.

Tamara observou o setor da paisagem que aparecia na tela central, ligeiramente ampliado, e em cores saturadas. Deu um aceno de cabeça.

— Entendo — disse ela e afastou uma mecha de cabelo do rosto. — E agora o senhor parece ter descoberto alguma coisa?

— Certo.

Cliff McLane apontou para uma série de detalhes naquela imagem.

— Veja aqui a superfície. Só esperávamos encontrar um descampado ermo ou uma estepe árida. A atmosfera era estéril e não oferecia condições de vida.

A mão de Cliff agarrou uma chave e começou a virá-la lentamente. A imagem na tela distendeu-se, depois tornou-se novamente nítida e fortemente ampliada.

— E agora veja isso aqui! — disse Cliff, baixinho. — Aqui... e aqui!

Seu dedo delineava os contornos dos detalhes.

— E aqui trata-se sem dúvida de vegetação primitiva. Entre os caules e os tufos de musgo deve existir todo tipo de vida orgânica.

Tamara falou hesitante:

— Sabia, major McLane, que há alguns meses a comissão para biocontrole convoca sessões extraordinárias quase diariamente?

— É mesmo? — perguntou Mario de Monti e olhou para Tamara.

Ela acenou afirmativamente.

— Como é que eu podia saber disso? — perguntou McLane, com um ligeiro tom de recriminação na voz. — Afinal de contas eu não sou funcionário do Serviço de Segurança Galático.

Tamara contemplou-o com um sorriso amável.

— Mas eu sou — murmurou. Depois disse: — Não fizeram segredo algum a respeito dessas sessões, e se o senhor, dentro da sua extensa vida privada, tivesse um tempinho para outras coisas, que...

— Faça-me o favor — disse Cliff, em voz alta — afinal eu também não me meto na sua vida particular!

— Vai ver — comentou Mario, com um largo sorriso — que é exatamente isso que aborrece tanto a nossa querida Tamara!

Tamara ignorou essa observação de gosto duvidoso.

— Besteira! — disse Cliff. — Mas já que a senhora está fcão bem informada, talvez possa nos dizer o que aconteceu aqui em N116A?

Tamara tocou ligeiramente nos controles manuais.

— O que é que o retém? — perguntou laconicamente. — Podia pousar em N116A e examinar a coisa mais de perto.

Cliff arreganhou os dentes. Depois de uma curta pausa disse:

— O que me retém é apenas o medo que tenho do meu oficial de segurança! É que ele tem o hábito de denunciar no mínimo a dez repartições diferentes qualquer iniciativa do comandante McLane!

Tamara topou o tom recriminador de Cliff e respondeu, com bem fingida seriedade:

— Posso liberá-lo desse medo, major! Pegou o microfone do intercomunicador de bordo, apertou um botão e disse, em tom de comando:

— Do tenente Jagellovsk para máquinas: Parar nave espacial. Descer elevador.

McLane e Mario começaram a rir.

O rosto de Hasso apareceu na tela do videofone e o engenheiro perguntou espantado:

— Isso é uma ordem, Cliff?

— Ainda pergunta se é uma ordem! Claro que é! — confirmou o comandante. Hasso virou-se e desligou mais alguns aparelhos.

— De máquinas para o comandante — disse ele, em seguida — transfiro para controles manuais!

Cliff ativou as âncoras magnéticas e testou o funcionamento do elevador.

Depois virou-se e chamou Mario para perto de si.

— Vamos dar uma espiada lá fora — disse ele. — Atan já deve ter terminado sua análise, para ver se vamos precisar dos trajes espaciais ou não.

— Vocês não vão precisar deles — respondeu Atan, tranqüilamente. — Mas não devem demorar demais na superfície do planetóide. O ar é respirável, mas muito rarefeito. Não fiquem mais do que dez minutos!

Cliff consultou o relógio e retirou o rádio de pulso de uma gaveta da mesa de controle, fixando-o no braço.

— Entendido — disse, e aguardou que Mario terminasse seus preparativos. Depois dirigiram-se ao elevador; a porta semicircular fechou-se e o elevador parou no convés inferior.

— Vamos depressa! — disse Mario, em tom de advertência, enquanto entravam na cabine do elevador telescópico.

— Não vai levar nem dez minutos — prometeu Cliff e apertou o botão. Pouco depois a plataforma do elevador tocou naquela superfície de cascalho, acima da qual a Orion pairava como uma sombra prateada.

Mario aspirou o ar ambiente com cautela e vagar.

— Cheira a mofo — constatou — mas não é ruim. Apenas rarefeito, como o ar das alturas.

Cliff acenou em silêncio. Depois saiu da cabina protetora do elevador e expôs-se à luz de um sol amarelo, que distava quatro unidades astronômicas. Cliff virou-se e ajoelhou-se no chão. Apoiou-se nas mãos e observou um daqueles tufos de musgo. A Orion estava lançando uma sombra quase circular sobre o terreno, e nesta fazia calor. O ar abafado estava impregnado do cheiro de plantas. De algum lugar, os homens ouviram o débil marulho de minúsculas ondas e o som de um fio d'água que caía por cima de pedras.

— Musgo! — McLane olhou incrédulo para Mario. O subcomandante encolheu os ombros.

— É musgo, mesmo!

Cliff estendeu a mão e tocou levemente as pontas do musgo. No mesmo segundo recolheu a mão. Entre os dedos, o musgo crepitou uma descarga elétrica. Uma forte pancada atingiu Cliff. Os nervos de seu braço direito começaram a doer. Havia um cheiro de ozônio no ar.

— Obviamente é uma nova espécie de musgo — disse Mario, sem qualquer sarcasmo.

Cliff levantou-se e friccionou o pulso. O musgo do planetóide N116A parecia ser perigoso.

Cliff calçou as luvas com vagar e agachou-se novamente. Com um gesto rápido, arrancou um pedaço daquele musgo denso, de fibras longas, e o estendeu a Mario.

Este examinou a amostra em silêncio e depois apontou para um lugar a uns quinze metros de distância.

— Lá tem até capim — disse.

Como astronautas, os homens conheciam evidentemente as leis da evolução, mas não eram especialistas.

— É mesmo! — disse Cliff e começou a esfacelar distraidamente o tufo de musgo.

— Agora só faltam um rebanho de ovelhas e uma pastora da época do rococó. Aí o idílio estaria completo.

Cliff largou o resto do musgo no chão e observou as marcas, que as botas dos trajes espaciais tinham deixado no solo, e que estavam se enchendo rapidamente de água.

— Ovelhas? — perguntou e sorriu. — Como eu tanto lhe conheço, você está pensando mais na pastora do que nas ovelhas.

O rádio de pulso começou a zumbir como um marimbondo enfurecido.

— Sim? — disse Cliff.

Ouviu a voz de Tamara Jagellovsk.

— Major McLane — disse ela, em voz alta. — Por favor, não traga apenas plantas, mas também algumas amostras de rochas!

Os dois homens trocaram um rápido olhar e depois Cliff disse:

— Além de plantas, também amostras de rochas. Perfeitamente. Se a senhora me revelar como vou carregar esses troços todos, sou capaz de levar ainda alguns espécimens da fauna. Não vão ser do tamanho de um dinossauro, mas podem perfeitamente completar o quadro geral de N116A.

Tamara manteve-se em silêncio por alguns instantes, depois respondeu com voz apressada:

— Vou providenciar alguns recipientes, major.

Olharam ao redor. A paisagem desse planetóide enorme não apresentava o menor atrativo, a não ser aquele musgo, que dava choques elétricos.

McLane não sabia dizer se esse fenômeno representava uma proteção da planta ou se era de natureza puramente estática. A última hipótese parecia a mais provável; aqui não poderiam existir animais maiores que vermes primitivos. Colinas baixas, que se estendiam como as dobras de um pano amarelo, sujo, interrompiam a linha do horizonte. O sol era apenas uma pequena mancha amarelada, meio oculta por uma névoa. A nave projetava uma sombra de contornos pouco nítidos. O chiado do elevador telescópico arrancou McLane dos seus pensamentos. Tamara saiu da cabina carregando alguns recipientes metálicos, providos de minúsculos agregados; conforme a necessidade, podia-se gerar calor ou frio no interior desses recipientes.

— Obrigado — disse Cliff, quando Tamara entregou as vasilhas. Apesar da reduzida força de atração, as botas afundavam com relativa facilidade no solo; e imediatamente a água aflorava nessas depressões, sem o menor ruído.

Arrancaram um tufo de musgo. Desta vez, as luvas impediram que os homens e Tamara fossem atingidos por novas descargas. Em seguida, colheram uma amostra de água e retiraram um pedaço de solo, de uma profundidade de uns trinta centímetros. Ainda cortaram algumas hastes daquele capim, escavaram um punhado de raízes e mais um pouco de solo. Encheram o último vidro com lodo, que rasparam de uma sedimentação no fundo daquele arroio estreito. Finalmente deram-se por satisfeitos com a coleta e retornaram ao elevador.

— Transmite uma sensação inusitada, mas não desagradável — constatou Tamara; estava se referindo à reduzida força gravitacional.

— Isso mesmo! Senti uma agradável sensação de leveza; como se estivesse dançando — disse Mario.

Cliff observou meio descrente as largas costas do subcomandante, sem saber se essa constatação tinha sido irônica ou não. Entraram na cabina do elevador e Mario apertou o botão, que acionava o mecanismo automático. A comporta fechou-se e lentamente os elementos telescópicos se recolheram, elevando a cabina para o bojo da nave.

— Eu tenho que admitir — disse Cliff e deixou Tamara passar — que o epílogo dessa nossa viagem de inspeção apresentou alguns aspectos dramáticos.

Mario concordou com um aceno da cabeça. A expressão séria e a testa franzida mostraram que estava às voltas com problemas, que só ele conhecia.

Segundos depois encontravam-se na cabina de comando. Mario programou os dados para o curso que os levaria de volta à Base 104. A missão estava terminada. Tinham procurado e inspecionado uma infinidade daqueles mundos pequenos e insignificantes, e agora parecia que a lei da série seria mais uma vez comprovada. Causas ínfimas originavam acontecimentos significativos.

Os fatos, aparentemente desprovidos de qualquer importância, que a equipe da oitava Orion tinha constatado, acabariam por se transformar em perigos agudos para Terra e o sistema dos planetas. A Orion desprendeu-se da superfície do planetóide e espiralou para o alto, atravessando a atmosfera pouco densa. Minutos depois, a escuridão do espaço cósmico a envolveu. Por um instante, Mario de Monti reparou algo parecido com uma faixa vermelha, que parecia se estender através do infinito.

Mario continuou com os olhos fixos na tela, mas não via mais nada daquela aparição. Acabou se convencendo que aquilo não tinha passado de uma ilusão de ótica. A nave projetava-se através do espaço em direção a Terra. Nem mesmo Cliff podia imaginar que aquelas amostras nas provetas iriam revelar-se de uma importância verdadeiramente explosiva, e que as fotos tiradas por Atan representavam a confirmação definitiva de uma terrível suspeita. Dez horas mais tarde, a Orion VIII pousou na Base 104.

Cliff e Hasso desligaram todas as máquinas. Em seguida, a tripulação desembarcou tranqüilamente; não tinha noção da transcendência das suas descobertas. Helga entregaria aquelas provas da natureza renascida do planetóide no lugar certo: no laboratório do Centro Científico da Base 104.

Lentamente Cliff e Tamara atravessaram o gigantesco poço de pouso. Os feixes luminosos dos holofotes varriam pelas paredes do cilindro de aço, e eram refletidos pela superfície dos anteparos duplos, que suportavam uma coluna quilométrica de água.

— Está fazendo uma cara meio pessimista, major McLane — constatou Tamara, em tom de conversação. Cliff baixou a cabeça.

— Receio que esse pedaço de musgo ainda vai originar uma verdadeira selva de conseqüências.

— Encontramos vida, onde ela não deveria existir. E isso o preocupa tanto assim? — perguntou Tamara. Cliff apertou um botão e acionou as possantes máquinas, que abriam e fechavam automaticamente as portas da eclusa.

— Não é bem isso. Mas essa vida não se originou porque a natureza assim o quis, e sim, devido a um processo que nós não conhecemos. Mario estabeleceu algumas teorias excitantes a esse respeito, mas ainda não pôde prová-las.

— Que teorias? — perguntou Tamara, inquietada.

— A vida primitiva em N116A originou-se, porque esse planetóide se encontra em uma zona na qual existiam, e ainda existem, condições favoráveis para isso. Veja o exemplo dos planetas Mercúrio, Vênus, Terra e Marte. Três deles encontram-se a uma distância, que oferece possibilidade de vida. Refiro-me à distância ao sol, é claro. Em Vênus originou-se a vida, em Mercúrio não. Por outro lado, a vida, que se originou em Marte, não teve condições para evoluir.

"Somente Terra, que se desloca a uma distância apropriada do Sol, conseguiu produzir uma vida altamente desenvolvida. Segundo as experiências, colhidas em três mil anos de pesquisa biológica, nenhum único cristal devia crescer em N116A."

Despediram-se com um aperto de mão.

— Entendi — asseverou ela, baixinho. — Tudo não, mas ao menos em linhas gerais.

 

 

Duas enormes telas, colocadas lado a lado, dominavam o ambiente; duas superfícies imensas, nas quais apareciam imagens. Imagens quase idênticas. E essas imagens eram a causa da inquietação.

O quadro da direita: uma paisagem que jazia sob a luz penetrante de um minúsculo sol. Um amarelo-ofuscante alternava-se com sombras fortes. As alongadas colinas, no fundo do quadro, apresentavam-se ermas e pedregosas. Nas suas encostas proliferavam manchas e faixas verdes. No primeiro plano, viam-se pedras cobertas de musgo e as folhas de um capim, que crescia num sedimento de lodo. No leito de um rio, que estava seco há milênios, corria um filete de água clara.

Em profundo silêncio, os cinco homens examinavam aquelas imagens. Percebiam as diferenças, mas nem todos reconheciam as ameaças veladas, que emanavam desses quadros. O perigo não residia no que os quadros mostravam, mas sim, naquilo que era responsável pela modificação do quadro da esquerda.

— Os senhores estão vendo duas fotos do planetóide N116A — disse o Dr. Shiller, presidente da Comissão Interestelar de Biocontrole.

Fez uma pausa dramática.

— O quadro da direita data de uns duzentos anos atrás. Mostra como era esse mundo na época em que foi catalogado, antes, portanto, da sua inclusão no manual. Está totalmente desprovido de vida. Não sabemos nada a respeito da origem desse mundo quando abrigou vida e por que essa vida foi extinta.

Nos intervalos entre duas frases ouvia-se a respiração forçada do marechal Wamsler.

— Seja como for, tínhamos certeza de que não havia qualquer espécie de vida em N116A. E então, durante uma mera inspeção de rotina, McLane e sua tripulação descobriram isso, que os senhores estão vendo. Colheram algumas amostras da fauna e da flora do planetóide, tiraram uma série de fotos e encaminharam esse material aos nossos laboratórios.

O coronel Villa estava recostado na sua poltrona e comparava as duas fotos estereoscópicas, que apresentavam uma nitidez impressionante. O que via, era inofensivo.

— Ainda não analisamos todo o material fornecido. Mas sabemos que, de uma hora para outra, o planetóide apresentou condições ambientais que despertaram vida latente de natureza orgânica, ou a criaram diretamente.

Além de Villa e Wamsler, a reunião contava com a presença de três cientistas do biocontrole. A sessão era secreta, e tudo que estava sendo discutido, devia ser mantido no mais absoluto sigilo.

A voz displicente e reservada de Villa fez-se ouvir na escuridão do gabinete.

— Quer dizer que ainda não desvendaram todos os mistérios dessa forma de vida primitiva?

Não parecia impressionado com o que estava vendo ou ouvindo. Mas isso era totalmente ilusório — Villa sabia controlar as suas reações como ninguém.

— Ainda não. Algumas amostras ainda estão sendo analisadas no instituto — respondeu o mais idoso dos cientistas.

— Pode adiantar alguma coisa? — perguntou o coronel Villa, o chefe do Serviço de Segurança Galático e o superior de Tamara Jagellovsk.

— Mesmo antes de ter em mãos as conclusões finais da análise do material que a Orion VIII nos trouxe, creio poder afirmar que não há como negar certas correlações em N116A.

A voz de Wamsler ressoou pela sala. Alta e irada: um baixo com uma acentuada rouquidão.

— Que correlações? Correlações com quê?

— Não sei se o senhor está a par disso

— respondeu Schiller, calmamente. — Mas há meses que estamos observando alguns fenômenos bastante curiosos e que nos preocupam sobremodo. Um deles já chamou a atenção dos jornais e da televisão: é esse calor incomum que está nos molestando há meses e que foge inteiramente às temperaturas normais nas diversas estações do ano.

— É — respondeu o marechal Wamsler.

— Isso é sabido. Se trinta anos atrás não tivéssemos transferido a maior parte das residências e a quase totalidade das repartições para instalações submarinas, a coisa hoje seria insuportável.

— Certamente o senhor não desconhece

— disse o Dr. Schiller — que as temperaturas dos mares glaciais ártico e antártico estão subindo incessantemente.

Wamsler e Villa acenaram em silêncio.

— Os pólos estão derretendo aos poucos, as geleiras descem das cordilheiras e lançam quantidades enormes de gelo nos oceanos. Fazemos o melhor que podemos, mas temos que contar com uma inundação catastrófica.

— Com mil diabos! — exclamou Wamsler, ofegante. — Ainda não conseguiram descobrir a causa disso?

— Conhecemos a causa, mas não podemos eliminá-la. O regime energético do Sol sofreu uma grave perturbação.

O marechal Wamsler tentou imaginar que processo seria esse, que se estava realizando na superfície ou no interior do sol terrano.

— Pode ser um pouco mais preciso? — perguntou ao cientista-chefe.

— A radiação solar não é outra coisa do que a paulatina transformação de uma parte de sua massa em energia. As quatro partículas elementares, que compõem o núcleo do hélio, portanto dois prótons e dois nêutrons, são responsáveis por uma perda de massa na porcentagem de sete décimos. Esse processo, que é contínuo, representa a maior parcela da energia solar. A cada segundo, 700 milhões de toneladas de hidrogênio são transformadas em hélio no interior do Sol. A perda de massa do Sol, devido à sua irradiação, monta aproximadamente 4,3 milhões de toneladas por segundo — respondeu o Dr. Schiller.

— Até aí os meus conhecimentos gerais ainda foram suficientes — disse Wamsler. — Mas o que está acontecendo agora? O Sol está cedendo mais energia do que antes? Ou a sua massa está se reduzindo mais rapidamente do que de hábito?

— É isso mesmo! — disse o Dr. Schiller, laconicamente.

— O quê? — perguntou o coronel Villa, surpreso.

— Entenderam perfeitamente a minha explicação — respondeu o chefe dos cientistas. — Há cerca de três anos, a perda de massa do Sol está aumentando. Hoje já está fornecendo 7 milhões de toneladas, e isto a cada segundo.

— É espantoso! — disse Wamsler e largou a palma da mão no tampo da mesa. Impassível, o Dr. Schiller continuou a sua enumeração:

— A duração das protuberâncias solares foi aumentada. Normalmente, as erupções na cromosfera solar duravam de 10 a 45 minutos. Mas agora, chegamos a medir erupções de até 120 minutos de duração.

Wamsler olhou novamente para aquelas duas imagens e perguntou:

— E qual é o significado prático disso? O que podemos fazer? O que deveríamos fazer?

— Se as coisas continuam a evoluir desse jeito — disse Schiller — então podemos contar, inicialmente, com algumas inundações graves. Em seguida, vão ocorrer maremotos catastróficos. Podem ter certeza, que vastíssimas regiões de Terra ficarão submersas. A conseqüência imediata disso, será a falta de alimentos e o surto de epidemias. Depois o clima vai se modificar, lenta mas inevitavelmente. No calor úmido, as selvas vão proliferar por toda a parte e finalmente Terra será apenas uma vasta estepe. Mas este processo vai levar muito tempo para se realizar. No mínimo, algumas décadas.

— Entendo — respondeu Wamsler. — E de que modo isso se relaciona com as observações feitas por McLane em N116A?

O outro cientista respondeu, em tom sério:

— A longo prazo, aquela intensificação anormal da radiação solar vai ser fatal para nós. Mas pode perfeitamente beneficiar planetas de mundos mais distantes, transformando-os em paraísos florescentes. O início disso o senhor acabou de ver nesse planetóide.

— Terra — disse o coronel Villa, de repente — dista uma unidade astronômica do Sol. N116A dista 13 anos-luz. Portanto, a radiação solar nesse planetóide deveria ser tão fraca, que nem os instrumentos mais sensíveis deveriam poder registrá-la. É totalmente impossível que o nosso sol tenha sido responsável pelo crescimento, que os senhores observaram naquele quadrado aí em frente. Repito: é absolutamente impossível!

— E é exatamente este o ponto crucial do problema! — disse o Dr. Schiller.

— Veja marechal — disse o coronel Villa a Wamsler — nós aqui do SSG, fomos alertados para os acontecimentos. Inicialmente, ficamos na dúvida, se era um mero capricho da natureza ou não. Mas, depois, começamos a desconfiar da interferência de terceiros. De alguém interessado em roubar energia do nosso sol. Talvez o planetóide N116A seja apenas um modelo de experiência.

— Pode-se encarar o problema também por esse prisma — disse o Dr. Schiller e respirou profundamente. — É uma hipótese inteiramente válida!

— Claro que é! — disse o coronel Villa. — Essa teoria é minha!

— Acredita, coronel — perguntou o cientista — que o nosso sol está sendo aquecido artificialmente, para que alguém obtenha energia?

— Não devemos excluir essa possibilidade.

Wamsler dirigiu-se a Schiller. A sua voz soava alto no silêncio deprimente:

— Mas... tecnicamente falando, uma transmissão de energia desse tipo é possível?

— Não com a nossa tecnologia — Villa riu, baixinho. — E não através de tais distâncias.

— É justamente isso que causa tanto espanto! — gemeu o Dr. Schiller.

Wamsler rosnou como uma fera:

— Seriam os extraterranos? Os nossos "amigos"?

— Segundo os nossos dados e suposições, o planeta dos extraterranos situa-se além... nas nebulosas da Constelação dos Cães de Caça. E lá, não deveria haver muito interesse pela energia do nosso sol. Não precisariam dela.

O pensamento que ocorreu a Wamsler, em nada lhe diminuía as preocupações.

— Isso significa — disse ele, em voz rouca — que no nosso domínio de 900 parsec de diâmetro, ainda existem homens, ou mundos estranhos, cujas existências ignorávamos até hoje!

— É uma suposição que pode ser verdadeira ou não — respondeu Villa. — Uma coisa porém é certa. Se não descobrirmos quem é o responsável pela emissão excessiva de energia do nosso sol, vamos ter que enfrentar tempos difíceis. Além disso, estamos o tempo todo sentindo o bafo daqueles extraterranos na nuca.

— E se descobrirmos que ninguém está influenciando o nosso sol? — perguntou Wamsler, cansado. — Se aquela emissão irregular não passa de um fenômeno cósmico?

O Dr. Schiller olhou mais uma vez para a imagem da esquerda, que mostrava aquela vida misteriosa, e encerrou a discussão com uma observação objetiva, mas sensacional:

— Nesse caso — disse ele com voz embargada — a humanidade pode começar a procurar um novo planeta pátrio.

Em seguida, Schiller desligou os projetores. As imagens desapareceram. A iluminação do gabinete acendeu-se e os cinco homens se despediram em silêncio. Durante onze dias os cientistas do Biocontrole analisaram as amostras que a equipe de McLane tinha trazido. Wamsler enviou McLane com toda sua tripulação e mais Tamara Jagellovsk de novo para a região em torno de NI 16A. Ele mesmo não sabia o que McLane devia procurar, nem tampouco o que poderia encontrar. Disse apenas:

— Dê umas voltas pelas redondezas, major, e mantenha os olhos abertos. Tenho certeza que vai encontrar alguma coisa!

E o major McLane havia respondido:

— Perfeitamente, marechal!

E agora a Orion VIII estava pairando novamente às vistas do planetóide N116A, a treze anos-luz de Terra.

Helga Legrelle e Tamara Jagellovsk estavam de guarda a bordo.

Mais tarde: O planetóide deslocava-se através do espaço como uma bola nitidamente separada em dois hemisférios. A órbita, que descrevia a baixa velocidade, distava do seu sol mais de dez unidades astronômicas. E era impossível que aquela corrente de calor vitalizante estivesse sendo emitida pelo seu próprio sol. A Orion flutuava imóvel no universo.

Lentamente o planetóide afastou-se da nave e ofereceu a Helga e Tamara uma perfeita visão dos seus dois hemisférios contrastantes: um claro e outro, escuro. Os demais membros da tripulação estavam nos camarotes e dormiam. Há dois dias que a nave se encontrava aqui no cubo espacial Um/sul 019. Bem distante, o sol de 614B brilhava como um olho ciclópico. Ouvia-se o clique das câmaras, que fotografavam o planetóide a intervalos irregulares. Enquanto Atan estava realizando uma série de leituras, Cliff e Mario discutiam ,acalorada-mente o fenômeno, que Mario afirmava ter visto.

 

As duas moças a bordo tinham aproveitado as horas de guarda para tomar café e conversar.

Durante algum tempo, parecia que Tamara e Helga tivessem feito as pazes. Mas era uma ilusão: O que houve foi apenas uma trégua.

— Certa vez — contou Helga, fixando o olhar num ponto na parede oposta — quando Cliff e eu fomos nadar nos lagos Euphráticos...

Com falsa amabilidade Tamara perguntou:

— Está se referindo ao major Allistair McLane, e aos lagos sob as cúpulas de Marte?

— Correto! — confirmou Helga, bem-humorada. Tudo indicava que Tamara iria se aborrecer.

— Passa muito tempo em companhia do major McLane? — continuou a perguntar Tamara. — Não a bordo, evidentemente, mas na vida particular?

— Mas é claro! — respondeu Helga, num tom que denotava que isso era o óbvio. — Temos uma porção de interesses comuns, além da navegação espacial.

— Não diga! — disse Tamara.

— É, sim — continuou Helga alegremente. — Há uma infinidade de coisas, de que Cliff e eu gostamos; por exemplo: música, filme de leituras, livros, esportes...

— Pelo que eu estou ouvindo, o major McLane deve ser um homem bastante versátil.

— Isso ele é! — confirmou Helga e, afetada, agarrou a asa da xícara. — Muito versátil, mesmo!

— As senhoras, com as quais eu conversei no bar do cassino, me afirmaram a mesma coisa! — retrucou Tamara, friamente. — Portanto, não é a única, que sofre dessas ilusões.

— Que pena! — respondeu Helga e riu, extremamente contente. — Mas, apesar de tudo, Cliff tem um grande defeito!

— Não me diga!

A exclamação de Tamara era de puro espanto.

— É mesmo? — perguntou ela depois, um pouco mais baixo. — Um defeito? Posso saber qual é? Por que até agora eu pensei que McLane fosse o herói de um conto de fada.

— É que ele não dança muito bem!

— Interessante! — observou Tamara. — A senhora afirma que ele não sabe dançar?

— Eu disse que ele não dançava bem! Já dançou alguma vez com Cliff?

Tamara acenou.

— Já tive esse prazer algumas vezes — disse ela. — E o que foi que eu perdi com isso, na sua opinião?

— É que... — começou Helga, hesitante, como se precisasse formular a sua resposta com cuidado especial. — O que eu quero dizer... às vezes eu tenho a impressão que ele não se entrega realmente à dança. Entende onde quero chegar?

Com um sorriso encantador, Tamara respondeu:

— Ainda não entendi. Mas como eu a conheço, tenho certeza que vai poder me explicar o caso direitinho.

Helga preparou-se para dar uma explanação circunstanciada.

— Veja — começou ela — Cliff é um homem que...

De repente a voz alta e bastante aborrecida de McLane fez-se ouvir nos alto-falantes:

— Cliff é um homem — gritou ele, enraivecido — que há mais de meia hora não está conseguindo pegar no sono. Desliguem logo esse maldito amplificador do intercomunicador de bordo! Essa fofoca está ressoando pela nave toda!

Tamara e Helga entreolharam-se meio perplexas; depois, a telegrafista exibiu um largo sorriso e desligou o amplificador.

— Esse sujeito ouve tudo que não devia ouvir! — disse, aborrecida.

— Tem certeza que não era para ele ouvir? — quis saber Tamara, com uma ponta de malícia.

— Certeza absoluta! — respondeu Helga e acompanhou com os olhos o indicador esticado de Tamara. A agente do SSG estava apontando para a lâmpada de controle do aparelho radiofônico. Estava acesa. Helga virou-se e apertou uma tecla, ligando os alto-falantes juntamente com um gravador de fita. A voz impessoal e mecânica da Estação Avançada IV disse:

— EA IV chamando Orion VIII. Por favor, respondam... por favor, respondam..."

 

— Que será que esses caras querem de nós? — perguntou Helga em voz alta e antes de puxar o microfone para perto.

— Aqui é a Orion VIII. Vigilância de bordo falando. Tenente Legrelle. Pode falar.

— Mensagem das F.R.E.T. para a Orion VIII: Suas observações em N116A e vizinhanças da mais alta importância. Essencial manter absoluto sigilo. Novas instruções: dirijam-se ao satélite e corpos similares desse distrito espacial e verifiquem se há alguma modificação a registrar. Assinado F.R.E.T. — Marechal Wamsler. Estação Avançada IV para Orion VIII. Acuse recebimento da mensagem.

Helga respondeu prontamente:

— Mensagem recebida e entendida. Desligo.

Desligou o aparelho radiofônico e o gravador, e virou-se novamente para Tamara. Seu estado de ânimo tinha caído a zero.

— Uma chateação após a outra — comentou ela, desolada.

— Inspecionar todo esse distrito! Isso significa trinta dias perdidos, nos quais não vai poder ensinar ao major McLane, como se entregar à dança!

Helga notou o sentido irônico da observação de Tamara e permaneceu sentada diante dos instrumentos. Tamara, a vitoriosa desse pequeno duelo, sorriu maliciosamente, pegou o elevador e desceu.

Três horas mais tarde: A Orion VIII estava se aproximando novamente daquele planetóide. Desta vez, dirigia-se para o lado oposto ao do primeiro pouso. McLane e Mario observavam a paisagem na grande tela central. Minutos depois, o disco pairava imóvel sobre um extenso pedregal.

— Você insiste, Mario? — perguntou McLane, em tom de dúvida — em ter visto aquele raio?

Mario acenou e observou atentamente as manobras de McLane, que estava ancorando a nave com os controles manuais e depois desligou as máquinas.

— Insisto, sim. E duas leituras de Atan parecem corroborar a minha observação.

Cliff refletiu por alguns instantes.

— Um raio só se propaga em linha reta; admitindo que o alcance seja pequeno, podemos desprezar as curvaturas produzidas por outras influências. Se traçarmos uma reta, que passa pelo nosso sol e por um trecho da órbita de N116A, então deveríamos encontrar esse desconhecido perturbador da ordem na outra extremidade desta reta. Estou certo?

— Como sempre, Cliff. Mas lá, para onde essa reta aponta, não existe nenhum mundo habitado. Pelo menos nenhum que tivesse sido catalogado como habitado ou habitável. Já consultei o manual.

Cliff olhou para Mario com uma expressão séria no rosto.

— Primeiro vamos recolher as amostras e dar uma olhadela pela vizinhança. Depois vamos tratar de checar esse assunto. Felizmente, temos liberdade de ação; seguiremos na direção daquela reta. Talvez encontremos alguém, que está brincando com nosso sol.

— Ótimo! — respondeu Mario, empreendedor como sempre. — Até que enfim, alguma coisa para quebrar esta monotonia!

 

Os raios do sol distante incidiam verticalmente sobre o solo do planeta. Cliff e de Monti estavam atravessando o extenso pedregal e já tinham se afastado uns duzentos metros da sombra protetora da nave. Carregavam os recipientes e as ferramentas especiais para pesquisas geológicas e biológicas. Não pretendiam ficar expostos mais do que um quarto de hora a esse ar quente e saturado de umidade, que os fazia suar copiosamente.

Mario enxugou o suor da testa e acocorou-se ao lado do colmo esbelto de uma gramínea.

— Sabe como me sinto? — perguntou, mal-humorado.

Decepou o colmo, dobrou-o três vezes e o colocou no tambor.

— Seria terrível — respondeu Cliff, rindo — se eu pudesse ler seus pensamentos!

Mario pegou a tesoura de jardineiro e esburacou o solo em sua volta. Imediatamente os buracos se encheram de uma água turva e suja; uma bolha de lodo estourou.

— Falando sério, Cliff, não acha essa atividade um bocado infantil?

Sem muita convicção, o comandante respondeu:

— Pode ser, mas é uma atividade pela qual estamos sendo remunerados, meu caro!

— Besteira! — explodiu Mario. Seu rosto largo refletia a sua ira. — Por toda parte a mesma descoberta sensacional: musgo, depois gramíneas, fedor e calor e, para variar, mais uma vez musgo. Isso é ridículo! Esse musgo e esse capim são os mesmos, tanto nos pólos desse planetóide quanto no equador!

— Parece que o pessoal do Biocontrole não compartilha a sua opinião! Eles vão precisar dos dados que colhemos.

— Por mim, que seja! — respondeu Mario sem qualquer entusiasmo. — Só sei que estou suando como quê!

Os rádios de pulso zumbiram.

Cliff apertou o botão de contacto e aproximou o aparelho do queixo. Hasso estava chamando.

— Sim, Hasso? — respondeu o comandante, alarmado.

— A recepção está boa? — perguntou o engenheiro.

— Perfeita. Onde você está?

Atan e Hasso também haviam desembarcado e estavam vasculhando um outro trecho da redondeza. Por via das dúvidas, tinham levado os aparelhos de rádio e os projetores energéticos.

— Resolvemos subir um pouco por aquela encosta pedregosa. A vista daqui é muito boa.

— Sim, e daí? — perguntou Cliff.

— Descobrimos algo alarmante!

— Continue! — insistiu Cliff, inquietado.

— Do outro lado daquele pequeno cume — prosseguiu Hasso, agitado — há um veículo espacial. É muito parecido com a nossa Lancet, mas não é terrano!

— E a tripulação? — perguntou o comandante, e fez um sinal para Mario. O subcomandante recolheu as ferramentas e os recipientes e postou-se ao lado de McLane, numa atitude de expectativa.

— Daqui não conseguimos ver ninguém!

— Já vamos aí — disse Cliff. — Fiquem onde estão.

Houve uma pausa de dois segundos; depois Hasso disse, como que se desculpando:

— Atan já está se aproximando sorrateiramente daquela nave. Bem que tentei retê-lo, mas você sabe como ele é obstinado!

— Esse sujeito estabanado! — murmurou Cliff e desligou o rádio. Virou-se para Mario e disse:

— E você pensou que aqui só havia musgo e capim, não é, Mário?

Voltaram correndo para a Orion e largaram os recipientes e as ferramentas na sombra do disco.

Sacaram e destravaram as armas e saíram novamente na disparada, seguindo as pegadas que se afastavam da nave quase em linha reta.

Enquanto corriam por um corte raso no terreno em direção àquela elevação pedregosa, Atan Shubashi, o astronavegador da Orion, descia cautelosamente a encosta do outro lado. Diante dele estava aquela nave.

Aparentemente, tratava-se de um modelo capaz de vencer distâncias maiores. Essa suposição implicava, que a bordo houvesse um equipamento bastante sofisticado; por outro lado, justificava, em parte, o aspecto curioso que apresentava.

A entrada encontrava-se na parte inferior da nave e era ligada ao solo por uma escada dobradiça, preta. Atan ainda não havia descoberto qualquer rastro. Aproximou-se um pouco mais.

A nave possuía instalações que facilitavam as manobras num ambiente atmosférico; triângulos estreitos alçavam-se da ponta até os amortecedores. Atan havia se abrigado por trás de um pedregulho, a uns quatro metros da nave. Ergueu-se lentamente e olhou para todos os lados. Não viu nada. Ninguém.

Levantou-se de vez e descobriu o rastro de pés indiscutivelmente humanos: As impressões bem marcantes, que as botas de astronautas deixavam no solo, eram inconfundíveis. As pegadas eram visíveis numa boa extensão, afastando-se da nave e subindo obliquamente pela encosta.

Com um só salto, Atan alcançou a nave. Colocou a mão num degrau da escada e a sacudiu. Descobriu o fecho da porta. Era uma placa retangular, encaixada num rebaixo. Mais uma vez o astronavegador olhou em torno de si.

Viu a silhueta difusa de Hasso no alto daquela colina cônica. Depois apertou a placa de abertura. No silêncio, ouviu o clique metálico de uma chave, seguido do fino uivo do arranque de um servo-motor. Lentamente a comporta começou a girar nos gonzos.

Tenso, o astronavegador prendeu a respiração. Ao contrário de Hasso, cujos traços marcantes eram a calma e o comedimento, Atan procurava a aventura e a experiência pessoal em todas as ocasiões. A porta da estranha nave estava quase aberta.

Um ruído!

Era como se uma pequena pedra tivesse se chocado com outra. Atan retesou-se involuntariamente e ergueu a arma. No momento em que girou nos calcanhares, ouviu o chiado maligno de um disparo energético. Numa reação instintiva, pulou para trás — rente às suas botas o solo estava calcinado e uma fumaça fétida elevou-se, obscurecendo o espaço entre o casco inferior da nave e o solo pedregoso. Atan baixou a arma.

Dois homens o flanqueavam, ocupando uma posição de nítida vantagem. Vestiam trajes espaciais justos, sem capacetes. Os projetores, que apontavam para o peito de Atan, eram modelos obsoletos, mas nem por isso de aspecto menos ameaçador. Lentamente, Atan voltou a erguer a arma.

Um dos estranhos aproximou-se vagarosamente de Atan, que vislumbrou uma chance mínima. Mas a reação do outro foi rapidíssima, perfeita, quase artística.

O raio passou a milímetros do peito de Atan e estraçalhou seu projetor. Atan soltou o cabo escaldante e o que sobrou da sua arma caiu com um baque surdo sobre o cascalho úmido. Secamente, o astronavegador disse:

— Alô, pessoal. Quase vocês me pregaram um susto!

Fitou os rostos sem expressão dos estranhos. Um deles perguntou rapidamente, com uma voz áspera:

— É terrano?

— Que mais podia ser? — retrucou Shubashi.

— O que procura aqui? — continuou a perguntar o estranho.

Atan lembrou-se de Hasso, que certamente tinha acompanhado a cena, e tentou ganhar tempo. Respirou profundamente e fez um gesto largo.

— É uma história bastante longa — disse ele. — Eu pousei e fiquei surpreso com o florescimento inesperado nesse planetóide. Aí, pensei que talvez encontrasse algumas flores exóticas, que pudesse levar para Terra e...

O outro estranho o interrompeu com um movimento enérgico da arma.

— De onde vem? Está sozinho?

"Esses sujeitos não podem ser tão estranhos assim", pensou Atan. "Afinal, falam perfeitamente o idioma terrano."

— Onde está sua nave? — perguntou o mestre-atirador.

Atan levantou a mão, num gesto de indecisão.

— A que pergunta devo responder primeiro? — quis saber sarcasticamente.

O estranho que o ameaçava com a arma, apontou para a escada e rosnou:

— Não precisa responder agora. Vai nos acompanhar; entre logo!

Atan não se mexeu e perguntou admirado:

— Para onde?

— Nós também estamos interessados em sabê-lo! — disse a voz de Cliff atrás dos estranhos. Atan tinha acompanhado a aproximação dos companheiros e agora sorria, aliviado.

Dominados pelos projetores de Cliff, Hasso e Mario, os dois homens nos trajes espaciais entregaram as armas, sem oferecer qualquer resistência.

Hasso constatou, que esses projetores eram do mesmo tipo da HM-4 que a frota utilizava. Engenheiro experiente, reconheceu logo que esses estranhos possuíam exemplares novos dessas armas, mas que o tipo de fabricação era dos mais antigos.

— Bonitinhos — comentou. — Um pouco fora de moda, mas de construção muito sólida.

O comandante dirigiu-se ao mais moço dos dois estranhos e perguntou, em tom áspero:

— Para onde iam levar o meu astronavegador?

O estranho ergueu as sobrancelhas, mas não respondeu.

— Afinal, quem são os senhores? — quis saber Mario. — E o que vieram procurar aqui?

O mais moço respondeu laconicamente:

— Somos cientistas... pesquisadores... Cliff acenou e confirmou, num tom aborrecido:

— Pesquisadores todos nós somos em maior ou menor escala. Eu só gostaria de saber que tipo de pesquisa os senhores estão fazendo aqui, e a mando de quem?

Não recebeu resposta.

Atan resolveu prosseguir na exploração que ainda há pouco havia sido interrompida à força. Acompanhado de Hasso, penetrou na estranha nave. Segundos depois, Mario e Cliff ouviram exclamações de surpresa, que vinham da porta aberta.

— Ah! — constatou Cliff, retirando os pentes das armas capturadas. — Estou vendo que os senhores não falam com qualquer um. Talvez eu devia me apresentar...

— Com um pouco de sarcasmo continuou:

— Comandante Cliff McLane da Orion VIII e sua equipe. Removido em caráter punitivo das Esquadrilhas Especiais Rápidas para a Patrulha Espacial.

Os dois estranhos continuaram a fitá-lo em silêncio. De repente, Cliff tornou-se incisivo.

— Agora prestem bem atenção! — disse, em tom baixo e ameaçador. Deu um passo para a frente. — Ou os senhores revelam imediatamente que repartição idiota os enviou para N116A, ou vão ter o prazer bastante duvidoso de me acompanhar no resto do meu vôo.

Cliff sentiu-se algo inseguro quando reparou a expressão perplexa do mais jovem dos dois estranhos. Hasso desceu a escada e disse agitado:

— Cliff, espere um momento, por favor!

McLane virou a cabeça e reparou o olhar de advertência do engenheiro.

— Escute!... até agora eu ainda não tinha visto máquinas e controles desse tipo. Essa nave não é...

Cliff entendeu imediatamente.

— Você acha...? — perguntou. Hasso baixou a cabeça.

— Se esses dois vêm de Terra — disse ele, plenamente convicto, apontando para os homens nos trajes espaciais prateados — então eu sou o presidente das colônias marcianas!

— Mas eles falam nossa língua!

— Sinto muito — respondeu Hasso. — Mas um aparelho voador desses vocês não encontram no mundo inteiro. No máximo, em alguma prancheta ou como modelo experimental. E mesmo essa hipótese é altamente improvável, porque eu não conheço uma porção dos materiais empregados na construção dessa nave.

Cliff não perdeu tempo em refletir e virou-se para os estranhos.

— Quer dizer que os senhores não querem me revelar de onde vêm? — perguntou, em tom amável.

Silêncio... no mesmo tom, continuou:

— Nesse caso permito-me convidá-los cordialmente para nos acompanhar numa rápida visita a Terra. É que lá dispomos de meios terrivelmente dolorosos para nos inteirar de tudo aquilo, que os senhores parecem não estar dispostos a divulgar.

Virou-se para Hasso e disse:

— Vamos levar também essa gozada Lancet. Por via das dúvidas, destrua os suportes de pouso. Pode ser que um terceiro estranho esteja escondido por aí. Não deve poder decolar.

— Está bem.

McLane e Mario ladearam os estranhos e dirigiram-se à Orion.

Hasso soltou os dispositivos de ancoragem e sacou o projetor. Com disparos certeiros destruiu os suportes pneumáticos e a pesada nave arriou no solo, tombando ligeiramente. Enquanto aguardavam a chegada da Orion, Atan e Hasso mantiveram-se atentos a qualquer movimento suspeito na redondeza. Alguns minutos mais tarde, o re-

 

luzente disco apareceu e parou acima deles. A escotilha abriu-se e os raios de tração ai-! çaram a estranha nave a bordo.

Ocupou quase totalmente o comparti-mento de cargas. Em seguida, o elevador te-lescópico baixou ao solo. Instantes após, o sinal luminoso na mesa de controle mostrou a Cliff, que Mario e Atan também tinham retornado a bordo. Subindo sempre, a nave adquiriu velocidade e projetou-se através da atmosfera do planetóide. O curso, que Mario havia programado, levaria a Orion para as imediações de Terra com um único salto hiperespacial. Uma parte do grande enigma estava solucionada. Mas novas incógnitas haviam surgido.

 

Os seis homens pensavam de maneira bem diversa. Mas uma coisa tinham em comum: a preocupação com Terra.

Sir Arthur, que parecia um pouco nervoso, soltou as mãos entrelaçadas e bateu com o nó do dedo na mesa. Os outros homens viraram a cabeça em sua direção.

— Foram feitos testes com as ondas encefálicas. Os resultados são realmente fidedignos?

O coronel Henryk Villa acenou em silêncio. Seus olhos concentraram-se no rosto de Sir Arthur, o chefe do estado-maior da Suprema Comissão Espacial.

— Eu pergunto: está fora de dúvida que tudo isso não passa de uma gigantesca vigarice?

— Infelizmente não se trata de vigarice — respondeu Villa. — Sinto ter que desapontá-lo, Sir Arthur.

O cibernético — chefe Rott, também conhecido pelo apelido jocoso de Robô-Rott, dirigiu-se a Sir Arthur.

— Os dois estranhos estavam sob a influência de uma ordem pós-hipnótica, que os impedia de responder a qualquer pergunta sobre sua origem ou sua pátria. Não podiam, mesmo que o quisessem.

— Entendo — disse Wamsler, calmamente.

— Como nós e os psicólogos conseguimos romper este bloqueio mental — prosseguiu Rott — tudo se tornou bastante claro. Os senhores já foram informados dos resultados.

As rugas, em torno do nariz e da boca de Rott, tinham se tornado mais profundas, e as suas frases mais marcantes, ainda que, ultimamente, quase não tinha tido aborrecimentos com a falta de atenção dos participantes do curso cibernético. Kublai-Krim, cujo tom de voz era tão impulsivo quanto havia sido o do seu xará histórico, recostou-se, resfolegou e exclamou:

— Bastante claro! Não me faça rir! De repente, se descobre que uma parte da humanidade vive nas proximidades desse sistema 614A e B, e...

Schiller disse, a meia voz:

— Em Chroma.

— Como é que se chama esse planeta? — quis saber Wamsler.

— C-H-R-O-M-A! — soletrou Schiller, pacientemente.

— O que quer dizer isso? — perguntou Wamsler, mal-humorado.

— Não há nada como uma boa formação humanística — observou o coronel Villa.

— Chroma é grego — explicou o Dr. Schiller. — Significa o mesmo que cor.

— Portanto, o mundo das cores! — finalizou o marechal Wamsler.

— Certo — respondeu Kublai-Krim, e balançou ligeiramente a poltrona. — Deixem-me terminar! Verifica-se, portanto, que uma parte da raça humana se estabeleceu e desenvolveu em Chroma, inteiramente fora do nosso controle. A pergunta que eu faço ao senhor, coronel Villa, e à divisão de Biocontrole, é a seguinte: como isso foi possível?

O Dr. Schiller respondeu friamente:

— Vejo-me obrigado a devolver esta censura ao comandante-em-chefe das forças armadas espaciais. De acordo com a documentação existente, trata-se das tripulações das naves Neptun e Kolonia, que se bateram para o lado dos rebeldes na guerra interestelar.

Kublai-Krim estava ficando irritado, as pontas eriçadas de seu bigode tremiam.

— Isso foi há mais de quinhentos anos!

— O que demonstra a importância dos conhecimentos de história. Nossos colaboradores souberam dizer prontamente, o que tinha ocorrido há quinhentos anos nas imediações do anão-vermelho Ross 614A — respondeu Schiller.

— Mandei consultar imediatamente os arquivos eletrônicos a respeito da história da segunda guerra interestelar. Verificamos que, sem uma única exceção, todas as unidades envolvidas nos combates e todos os sobreviventes foram repatriados a Terra após a cessação das hostilidades.

Rott e Villa acompanhavam a discussão entre Schiller e Krim com satisfação. Causava-lhes contentamento assistir a este duelo verbal entre um cientista e um militar.

— Pelo visto, houve exceções, general!

— disse Schiller, com uma nuance de ironia.

— Está fora de dúvida que uma colônia humana se estabeleceu em Chroma e se desenvolveu livremente durante meio milênio. Com suas leis, uma tecnologia avançada e uma ciência própria. Claro que essa evolução partiu de conhecimentos terranos.

O marechal Wamsler sacudiu a enorme cabeça. Suas mãos carnudas estavam pousadas sobre os braços da poltrona. Inclinou-se para a frente e disse:

— Incrível! Uma nova Terra, fora do sistema solar!

Schiller respondeu, em tom sério:

— A sua formulação é correta, marechal Wamsler: um mundo além das fronteiras do nosso sistema. A uma distância de quinze anos-luz. Não devíamos subestimá-lo!

Virou-se para Kublai-Krim e disse, no mesmo tom sério:

— Milhares de anos atrás, pessoas com nomes iguais ao seu vieram das estepes, e mudaram a face do mundo. Eram os hunos. Tudo se desenrolou num único planeta. Não sabemos que surpresas tecnológicas Chroma reservou para nós!

 

SIR Arthur fez uma nova pergunta:

— Os interrogatórios, a que os dois astronautas estranhos foram submetidos, revelaram por que o planeta se fingiu de morto perante Terra durante todo este tempo? Afinal de contas, trata-se da mesma raça!

— Este foi um dos pontos mais difíceis da investigação — disse Rott. — No momento, só posso enunciar certas hipóteses. Hipóteses, que não são nada elogiosas para nós. Em termos não-científicos, poderia aventar que eles não querem nada conosco.

Em resumo: Não reconhecem a nossa autoridade. Mas, como já disse... isso são meras suposições de minha parte.

— Suposições! — exclamou Kublai-Krim. — E esses novos detetores de ondas encefálicas? Pelo que me disseram, não há nada que não revelem, por mais oculto que esteja!

O Dr. Schiller acenou para Rott e o cibernético chefe respondeu, um pouco admirado:

— Não deve esquecer que os dois cientistas aprisionados por McLane são figuras relativamente insignificantes. Um botânico e um bioquímico, cada um com uma tarefa específica.

— Que tarefas?

Villa ergueu a mão e entrou novamente na conversa.

— Aí é que está o ponto mais interessante da história — disse ele. — Foram incumbidos de analisar as misteriosas modificações verificadas no planetóide N116A.

— Ah!... — disse o marechal Wamsler — isso faz sentido!

— Certo, marechal Wamsler; apenas uma coisa me causou espécie: os dois sabiam, o que nós apenas supúnhamos. A vida orgânica incipiente naquele planetóide é conseqüência direta da radiação solar intensiva, que está nos dando tanta dor de cabeça. Chroma ajustou um raio drenador ou transportador, como queiram, mais veloz que a luz. E o planetóide está situado no campo de ação deste raio! — respondeu Villa, em tom sério.

— Em outras palavras — prosseguiu Sir Arthur — para Chroma esses processos não constituem fenômenos misteriosos mas sim, resultados esperados; resultados com os quais contavam na certa!

Abalado, Sir Arthur tirou a conclusão final, a única possível:

— Em última análise, isso significa que Chroma é o responsável por essa atividade solar, essa superatividade. Mas eles não podem fazer uma coisa destas! Pôr em perigo a existência do próprio planeta de origem!

Rott encolheu os ombros e respondeu:

— Os interrogatórios ainda não foram terminados.

— Mas então precisamos avisar imediatamente o governo! — gritou Sir Arthur.

Villa fez um gesto com a mão, indicando que esta providência já tinha sido tomada.

Essa afirmação iria ser corroborada em seguida. A tela do grande videofone aclarou-se e mostrou o rosto de Von Wennerstein.

— O governo já está a par de tudo — disse ele, e olhou sucessivamente para os presentes. — O Centro Científico e a Divisão de Biocontrole já foram alertadas, e estão prestando sua colaboração. O governo está recebendo todas as informações coligidas pela Central de Computação. Assim que tivermos um resultado definitivo e o governo emitir sua resolução, os senhores serão notificados. Permaneçam ao fácil alcance do nosso chamado.

A tela apagou-se abruptamente. Às vezes, as boas maneiras de Von Wennerstein deixavam bastante a desejar.

— Como queiram! — disse Kublai-Krim. — Sabem muito bem onde me encontrar. Mas o que eu considero bastante importante, é que Chroma pode ser alcançada, ao mesmo tempo, de várias das nossas bases avançadas.

Villa limpou a garganta.

— Permitam-me uma observação. Pelo visto, Chroma está em condições de aquecer o nosso sol artificialmente e de fazê-lo explodir, se for preciso, transformando-o numa Nova. O que eu quero salientar, é que a tecnologia desse pessoal supera a nossa em muito, sem a menor dúvida. Se atacarmos Chroma, as naves que conseguirem voltar talvez possam prescindir de um raio piloto, pois poderiam se orientar pela bola de fogo daquela Nova. É um risco que fatalmente correríamos. Além disso, Kublai-Krim, eu me recuso a ouvir que falem apenas em ameaças com frotas, canhões laser e projetores Overkill. Por acaso somos bárbaros?

Secamente, o Dr. Schüler respondeu:

— Poucos dias atrás, nós nem sabíamos que Chroma existia. Tudo que eu posso dizer no momento a respeito deste planeta é o seguinte: Chroma é um mundo pouco menor que Terra; sua força de atração também é um pouco inferior à nossa. É habitado por seres humanos, cuja fonte de energia ou seja, o sol daquele planeta, está em vias de secar. É esta a razão pela qual estão fazendo aquelas experiências.

— Mas estão fazendo essas experiências às nossas custas! — gritou Kublai-Krim, excitado.

Villa sacudiu a cabeça estreita com indignação.

— Por que eles não recorrem ao sol do planetóide N116A? — perguntou Rott. O cientista prontificou-se a explicar a questão.

— O sol terrano e o sol do planetóide são de tipos diferentes. É provável que somente a energia do nosso sol possa resolver o problema de Chroma.

Wamsler, irrequieto, caminhava de um lado para o outro e disse:

— Talvez Chroma não saiba que o nosso sistema está em perigo; devíamos avisá-los disso, antes de recorrer a medidas mais drásticas.

— Protesto contra isso! — gritou Kublai-Krim. — Um ultimato desses pode provocar Chroma a desfechar um golpe preventivo.

Aos sessenta anos, Villa já não estava mais em idade para se irritar com a concepção militante de outras pessoas. Limitou-se a dizer:

— Mas que é isso... Kublai-Krim? Receio que não consiga acompanhar a sua lógica. Proponho enviar uma nota, em termos amáveis, na qual pedimos aos planetários que suspendam aquelas experiências, uma vez que constituem uma séria ameaça para o sistema solar. Não um ultimato, e sim, uma proposta!

— Entendo! — disse Wamsler. — Isto é sensato, Villa.

— Eu sei. Mas...

A tela do videofone aclarou-se novamente. Mais uma vez o rosto de Von Wennerstein apareceu.

— Meus senhores! — disse ele com uma seriedade incomum. — Já recebemos o parecer da Central de Computação.

— E qual é a conclusão? — perguntou Wamsler, interrompendo sua caminhada irrequieta.

— Está provado que Chroma é realmente o responsável pela atividade solar intensificada. Solicitamos o comparecimento de todos a uma sessão extraordinária, que vai ser realizada em breve.

E mais uma vez a tela apagou-se abruptamente.

— As maneiras desse homem! — disse Villa —tss, tss...!

Os homens levantaram-se lentamente. Em meio ao silêncio opressor, Sir Arthur disse:

— Isto provavelmente significa a guerra!

Saíram depressa do gabinete e voltaram aos seus escritórios.

 

No mesmo dia, apenas oito horas mais tarde, McLane saiu da piscina e convocou um dos seus robôs para enxugá-lo. Depois tomou uma xícara de café e esparramou-se no sofá, relaxando-se ao som suave da música que tocava no fundo da sala. Uma hora atrás o sol poente havia desaparecido no mar, atrás de Groote Eylandt. Minutos depois, Cliff estabeleceu uma ligação videofônica com Mario.

— Você tem que ir sozinho, Mario — disse ele, e prestou atenção no tilintar dos cubinhos de gelo, que batiam na borda do copo. — Estou simplesmente cansado demais.

— Um astronauta cansado! — disse Mario, com desprezo fingido. — Isso não existe! Onde está nossa auréola?

A direita e à esquerda do rosto de Mario viam-se os rostos bonitos de moças. McLane observou-os com olhos sonolentos.

Mario ia dizer mais alguma coisa quando, subitamente, um sinal apareceu na tela. Ambos o repararam; era de praxe a seção de recados inserir os seus avisos manualmente nas ligações estabelecidas. Uma voz feminina disse, energicamente:

— CQ13198705A... Por favor ligue para X. Chamado videofônico urgente do Centro Científico!

— Obrigado! — respondeu McLane, e quando o sinal luminoso desapareceu da tela, acenou para Mario. — Então divirta-se bastante, hoje de noite — disse ele. — Parece que alguém está ansioso para falar comigo.

Mario perguntou, em tom malicioso:

— Quer dizer que até no Centro Científico você arranjou uma amiguinha? Desde quando as outras não bastam?

As imagens mudaram abruptamente.

Mario de Monti sumiu e em seu lugar apareceu o rosto de um homem nos trajes de um cientista.

— Major McLane?

— Eu mesmo. Em pessoa.

— Desculpe o incômodo, major, mas tenho uma pergunta importante a fazer.

— Estou às ordens. Qual era mesmo a sua graça?

— Eu sou o Dr. Stass do Centro Científico. Departamento III. Uma pergunta: aquelas amostras, que o senhor trouxe de NI 16A... são cem por cento provenientes daquele planetóide?

Cliff olhou para o Dr. Stass com uma expressão que era um misto de raiva e espanto.

— De onde mais poderiam ser? — perguntou, admirado.

— Tem certeza que não houve uma troca casual com alguma outra amostra, que o senhor porventura tinha a bordo?

— Desculpe-me — respondeu o comandante com outra pergunta: — O senhor por acaso está me achando com cara de idiota?

O Dr. Stass sacudiu energicamente a cabeça.

— Certamente que não! — disse ele. — Fico-lhe muito grato pela informação!

McLane farejou uma nova sensação.

— Hei! — gritou. — O que quer dizer tudo isso?

— As amostras que o senhor trouxe — disse o Dr. Stass — contêm substâncias curiosas. Tudo indica que, em certas circunstâncias, o planetóide pode ser ativado como fonte de radiação. O senhor é um oficial, portanto, isso não lhe diz nada. Queira desculpar mais uma vez o incômodo. Boa noite, major!

— Pelo visto, continua a achar que eu sou analfabeto! — finalizou McLane e cortou a ligação.

Enquanto se vestia com vagar, ficou matutando no significado daquelas palavras. Em seguida, disse um número no microfone.

O sinal de linha desocupada fez-se ouvir; depois os alto-falantes estalaram, mas a tela de imagem permaneceu escura. Isto significava que o outro interlocutor podia ver e falar, mas não podia ser visto.

— Tamara Jagellovsk! — disse a voz dos alto-falantes.

— É a senhora mesma, Tam... tenente Jagellovsk?

— Sim, sou eu, comandante McLane. Que honra, ser chamada pelo senhor a essa hora!

— Preciso lhe falar urgentemente, tenente! Por que motivo não liga a tela de imagem?

A voz de Tamara disse, alegremente:

— Tente adivinhar o porquê, comandante! Dou-lhe três chances!

— Provavelmente está recebendo uma visita masculina pouco recomendável.

— Está enganado! — disse Tamara rindo. — Acabei de preparar um banho!

Cliff deu um aceno de aprovação.

— Certo! Faz parte da civilização! Mas, se chegar bem perto da objetiva, meu campo de visão fica limitado ao seu pescoço.

A voz de Tamara era doce como mel e falsa, como sempre, nessas ocasiões.

— Eu sei. Mas antes de tomar banho, o meu pescoço não tem o aspecto prescrito pelo regulamento de serviço. Espere quatro segundos, por favor.

Cliff esperou pacientemente. Enfim a imagem colorida, tridimensional, apareceu na tela.

— Muito bem — disse Tamara. Trajava um roupão de banho masculino, de um vermelho-berrante. — Qual é a calamidade?

— Ainda não há calamidade alguma — respondeu McLane, rosnando. — Mas vai haver uma de dimensões cósmicas, se não me arranjar imediatamente uma audiência com seu chefe.

— Quer falar com o coronel Villa? Agora?

— Quero sim — disse o comandante. — O mais depressa que puder.

— O coronel Villa está participando de uma sessão extraordinária, Cliff!

McLane olhou para ela com uma expressão desesperada e disse:

— Eu sei disso, por isso mesmo estou apelando para sua ajuda. Chame-o por meio de uma ordem alfa. Diga-lhe que dentro de meia hora eu estarei no escritório central do SSG e gostaria de falar com ele.

Tamara refletiu por alguns instantes; depois respondeu, vacilante:

— Isso pode me custar caro. Está ciente que esta noite vão tomar a decisão quanto àquela ação contra Chroma?

McLane acenou, cheio de ira.

— Trata-se exatamente disso. Portanto, faça-me o favor...

— Vou tentar — disse Tamara.

— Obrigado — respondeu McLane. — A propósito: um belo roupão de banho!

Tamara deu um sorriso curto.

— Muita bondade sua!

— Principalmente — continuou McLane, mostrando os dentes — quando a gente esquece de abotoá-lo!

Tamara enrubesceu e desligou apressadamente o videofone.

 

As recordações que o comandante Cliff Allistair McLane guardava desta sala não eram das melhores.

Mas agora, dentro do possível, este recinto tinha se tornado um pouco mais aconchegante. Apenas três pessoas estavam sentadas em volta da mesa: O comandante McLane, o coronel Villa e Tamara Jagellovsk, que compareceu, impelida pela curiosidade. Villa estava visivelmente inquieto. Levantou-se e começou a caminhar de um lado para o outro. Era meia-noite.

— Mas então, eu não entendo — disse Villa, pensativo, e sem olhar para McLane e Tamara — por que o Dr. Schiller não recorreu a esse argumento durante o debate.

— Porque o tal Dr. Stass fez estas descobertas no máximo duas ou três horas atrás. Além disso, conhecemos muito bem o fanatismo desse pessoal, no que se refere à certeza. Só divulgam alguma coisa em caráter oficial, depois que checaram tudo vinte vezes — respondeu McLane.

— É! — disse Villa, interrompendo sua caminhada irrequieta. — Nisso o senhor tem toda razão!

— Coronel Villa! — exortou-o McLane.

— Isto leva dias ou semanas, e enquanto isso, o tempo vai passando!

Villa respondeu:

— Muito bem. Vamos, portanto, partir da premissa de que o planetóide N116A pode ser ativado. Nessas condições, o Dr. Stass acredita que podemos usar o planetóide como fonte de energia para reações atômicas. Mas Chroma poderia fazer exatamente a mesma coisa. Podíamos mesmo transportar o planetóide uns poucos anos-luz até Chroma, pois esse processo já foi testado. E, nesse caso, eles não precisariam roubar energia do nosso sol. Se esta possibilidade existe, então qualquer operação militar contra Chroma é totalmente desnecessária.

— Correto! Ao menos, seria um argumento válido para negociações! — observou o comandante. Tamara Jagellovsk manteve-se em silêncio e limitou-se a estudar os rostos dos dois homens.

— Negociações... com quem, McLane?

— perguntou Villa.

— Com Chroma, evidentemente.

— Compartilho a sua opinião; mas o Conselho defende o seguinte ponto de vista: até ontem, os homens em Chroma eram um bando anônimo de tecnólogos malucos que pretendiam nos torrar. Eram os rebeldes da guerra interestelar. E com sujeitos dessa laia, disseram os senhores do Conselho, nós não podíamos entabular negociações políticas.

— Eu encaro isso de maneira diferente — disse McLane.

— Eu também — observou Tamara. — | Afinal de contas, pertencem à raça humana, i coronel Villa. São apenas seres humanos como nós; nem mais, nem menos.

— Claro! Mas não se esqueçam que, mesmo assim, nos levaram à beira de uma catástrofe com esse curioso invento, que transporta a energia roubada do nosso sol!

— Aos poucos estou ficando nervoso — admitiu McLane. — Seja honesto, coronel. Na evolução tecnológica do último milênio, nós terranos alguma vez nos perguntamos, o que os nossos inventos poderiam eventualmente significar para outros?

Villa deu um sorriso, como um amigo paternal.

— O senhor é um filósofo e tanto, McLane...

— Tornei-me filósofo premido pelas circunstâncias. Desde que fui removido para a Patrulha Espacial. E também por causa de uma certa senhora que me vigia dia e noite!

— Esse passatempo tornou-se bem raro nesses últimos mil anos — prosseguiu Villa, meio ausente. — O senhor ia dizer o quê?

— Sim, eu sei — respondeu McLane, amargurado. — Em vez disso, o governo pulula de gente que confia cegamente no julgamento de computadores digitais e decide se vai haver paz ou guerra.

— Não é bem assim, McLane. E no que tange ao nosso governo, ainda não se pronunciou oficialmente, pelo menos até agora. Só sabemos que a Central de Computação calculou ótimas chances para um golpe preventivo contra Chroma.

McLane estava a ponto de entregar-se à resignação.

— Isto quer dizer — disse ele, lentamente — que os nossos generais e marechais podem abrir fogo na hora que bem entenderem!

— Há muita gente no governo que continua a votar contra essa operação. Ouso supor que o meu voto ainda tem algum peso — contestou Villa.

Tamara disse enfaticamente:

— Então dê uma chance a McLane, coronel Villa!

Villa interrompeu a sua caminhada e apoiou-se na mesa.

— O que faria, comandante? — perguntou.

McLane tomou fôlego e começou a explicar o que tinha em mente.

 

— Encarregue-me de uma missão secreta. Partida: dentro de duas horas; é tempo suficiente para convocar a minha tripulação. Objetivo: Pouso em Chroma. Estabelecer contato com as autoridades locais.

Villa riu sarcasticamente.

— Nem sabemos se lá existem autoridades!

McLane sacudiu a cabeça, irritado.

— Onde houver homens, há autoridades, seja onde for!

Tamara começou a rir; ela também conhecia essa peculiaridade do homo sapiens.

— Tem razão — disse Villa, sorrindo.

— Por isso mesmo esse contato só pode ser feito em caráter extra-oficial. Nem um membro do governo pode voar para Chroma, nem tampouco Kublai-Krim. Mas eu, o humilde major McLane, removido em caráter punitivo para a Patrulha Espacial, posso voar para lá. Em missão secreta.

Villa acenou, concordando.

— Poderia dar certo. Mas... e se for abatido antes de pousar?

McLane fez um gesto para reforçar seu argumento e disse rapidamente:

— Isso não vai acontecer, se eu puder levar os dois cientistas de Chroma. Eles podem estabelecer o contato e impedir que os canhões sejam apontados para a Orion VIII!

— Parece bastante viável — resmungou Villa. Deu a volta pela mesa e apertou a tecla do videofone.

— Por favor, ligue-me com o ministro — disse ele no microfone e olhou na direção de McLane. — Vou falar da minha sala particular.

Largou a tecla e disse para Tamara e McLane:

— Desculpem-me um momento! — deixou o gabinete com passos rápidos; uma porta maciça fechou-se atrás dele.

Poucos instantes depois, retornou ao gabinete. O coronel Villa sabia controlar as suas expressões faciais como ninguém, mas mesmo assim, Tamara e McLane viram que ele estava muito sério. Olhou para Cliff e disse, em tom formal:

— Já tem a sua missão secreta, McLane. Vai saber dos detalhes na eclusa VI!

— Obrigado, coronel Villa! — disse McLane e levantou-se.

Cliff e Tamara dirigiram-se, lado a lado, para a barreira eletrônica. Quando estavam a três ou quatro passos daquela mortífera cortina cintilante, o coronel Villa chamou-os mais uma vez.

— Consegui providenciar a ordem de partida, os dados e os dois prisioneiros. Mas, considere essa missão como se estivesse ocupando um posto suicida. Ninguém vai querer tomar conhecimento, se alguma coisa acontecer à Orion VIII!

— Entendo — Cliff acenou.

— E lembre-se! Não dispõe de muito tempo!

— Eu sei disso.

Villa tornou-se mais sério ainda e disse, , a meia voz:

— O que o senhor não sabe, é que, naquela ocasião, uma barragem transbordou na região do Himalaia. Mesmo assim, o governo ainda pretende aguardar. Apesar da pressão maciça dos militares e do parecer i do computador. Eu disse: ainda! Mas uma coisa é certa: Se ocorrer uma segunda catástrofe, um ataque será desfechado dentro de 48 horas, na contagem de tempo terrana. E então, ninguém vai se incomodar, se o senhor está ocupando um posto suicida ou se morreu durante os combates!

— Eu conheço algumas pessoas — observou Cliff, com seu temível sorriso sarcástico — que vão se preocupar com isso um bocado!

— Sim, eu sei: o corpo de cadetes feminino! E mais uma coisa: está proibido de emitir um ultimato em Chroma. Qualquer ameaça pode provocar esse pessoal a apertar o célebre botão vermelho antes de nós. Não sabemos o que uma intimação dessas poderia desencadear.

— Entendido! — disse McLane e deixou o gabinete.

 

Zero hora, 15 minutos:

Tamara tinha conseguido reunir a tripulação a tempo. Agora estavam esperando na eclusa VI da Base 104. Finalmente McLane apareceu, com uma pasta cheia de dados e documentos.

— Que significa tudo isso? — perguntou Mario furioso. — Isso é sadismo aplicado!

Cliff fez um gesto displicente com a mão.

Nos fundos, um agente do SSG vigiava os dois estranhos. Trajavam roupas terranas. Os trajes espaciais leves pendiam dos braços dobrados.

— Recebemos uma missão secreta de Villa — explicou McLane. — Partimos para Chroma. É muito importante. Mais uma vez o destino de Terra está por um fio. Já está até ficando chato, ter que salvá-la a toda hora. Está tudo claro?

— Está, sim — disse Hasso e bocejou. — Mas...

— O resto eu explico a bordo! — finalizou McLane. Olhou rapidamente para a tripulação e dirigiu-se à pequena porta da eclusa. Os outros o seguiram, os dois homens de Chroma e seu guarda por último.

A Orion VIII já tinha sido aprontada e, dez minutos depois, a nave partiu.

 

A Orion mergulhou no cinza pulverulento do hiperespaço. McLane permaneceu na sala de comando apenas como vigia, pois a nave estava sendo controlada pelo piloto automático. Os demais membros da tripulação encontravam-se nos camarotes, recuperando o sono perdido ou interrompido.

McLane tentou imaginar que riscos esse vôo oferecia. Mas não chegou a conclusão alguma, pois sabia muito pouco a respeito de Chroma. Sete horas mais tarde a Orion retornou ao espaço normal, nas imediações daquele planeta misterioso. Atan dirigiu os instrumentos para o sol estranho e ligou o registrador automático.

— Agora eu estou começando a compreender muita coisa! — disse ele, após dez minutos.

Aos poucos os membros da tripulação apareceram na sala de comando e ocuparam seus lugares. Na tela central brilhava um sol; ao lado, numa outra tela, via-se a imagem ampliada do planeta.

— Eu acho — disse McLane, baixinho, para Atan — que chegou a hora!

Consultou o cronômetro de bordo: 08 horas e 17 minutos. Atan acenou. — A distância é de duas unidades astronômicas.

— Chefe, quer que eu envie a mensagem?

— Quero sim. E fale com bastante clareza!

Helga agarrou o microfone e começou a falar com vagar, caprichando na pronúncia:

— Cruzador espacial terrano Orion VIII chamando Chroma... Cruzador espacial terrano chamando Chroma... Dentro de dez minutos normais vamos passar pela faixa de segurança. Chroma... está ouvindo?

Helga aumentou o volume. Todos afiaram o ouvido. Dos alto-falantes emanavam sinais radiofônicos estranhos, e palavras de um idioma pouco inteligível; era preciso habituar-se ao fato que também a língua tinha sofrido modificações ao longo de meio milênio.

— Mario, chame um dos dois homens de Chroma! — pediu McLane ao subcomandante.

— Agora mesmo! — respondeu Mario e dirigiu-se ao elevador. No mesmo instante, Atan disse, agitado:

— Cliff! Peguei um impulso de radar bem fraquinho na tela. São quatro objetos, pelo menos.

— Não os perca de vista! — respondeu McLane.

Do seu lugar cativo, Tamara observou:

— Comandante, não vai erigir os campos defensivos, por via das dúvidas?

— Não vou, não. Chroma pode interpretar isso como uma atitude hostil. Basta um mínimo de mal-entendido para pôr em perigo toda a nossa missão.

Olhou para a tela, na qual aparecia a casa de máquinas, e disse ao microfone:

— Hasso, por favor, reduza a velocidade e ative os reatores de frenagem. Preciso poder parar imediatamente, se receber uma ordem nesse sentido.

— Entendido!

Atan utilizou o microfone do intercomunicador de bordo, para que todos pudessem ouvi-lo.

— Da vigilância espacial para o comandante: o radar acusa ecos nítidos de quatro corpos voadores desconhecidos. Mantêm distância constante de 14.600 quilômetros.

— É uma escolta. Mas não vão nos atacar. Espero eu! — respondeu McLane. Mario de Monti trouxe o mais novo dos dois cientistas. Postaram-se ao lado da mesa de McLane e o comandante ergueu o olhar. Ouviram a voz de Helga Legrelle:

— Cruzador espacial terrano Orion chamando Chroma... Chroma... está nos ouvindo?

Mais uma vez ouviram respostas pouco inteligíveis.

McLane dirigiu-se ao cientista em tom quase amável e perguntou:

— Está disposto a falar com a vigilância espacial em Chroma?

O estranho deu um aceno afirmativo.

McLane conectou o transmissor de Helga à sua mesa, agarrou o microfone e disse pausadamente:

— Aqui fala o comandante McLane da Orion VIII. Estou chamando a vigilância espacial do planeta Chroma e as quatro naves que me escoltam. Venho em missão pacífica e estou me aproximando de Chroma em vôo direto. Dois dos seus cientistas se encontram a bordo, sãos e salvos. Chroma, atenção! Agora vai falar um dos seus homens!

Entregou o microfone ao estranho.

— Aqui fala Valan, da Divisão Nove. Estou chamando a base externa T.O.R.R. IV. Está me ouvindo?

Quando esta língua mutilada era falada com vagar, podia-se entendê-la até com certa facilidade.

Uma voz baixa veio dos alto-falantes:

— Aqui fala Chroma, estação externa T.O.R.R. IV. Chamamos a nave espacial terrana. Inscreva-se numa órbita polar e aguarde a nossa autorização de pouso. Permaneça a quatro mil metros de altura. Desligo.

McLane deu um suspiro de alívio; iam deixá-lo pousar.

— Até agora, tudo muito bem — constatou e observou a imagem na tela central. Viu as naves, que escoltavam o disco em formação de cruz e que, no momento, tinham-se aproximado bastante.

— Quer saber a distância, Cliff?

— Adivinhou! — respondeu McLane.

— Estamos a exatamente 1.700 quilômetros do pólo do planeta. O sol deles está realmente nas últimas.

— Deixe isso para depois — disse McLane e transferiu o comando para os controles manuais. Agora ele era o único responsável pelo curso da nave. Novamente aquela voz fez-se ouvir, e o estranho traduziu o texto imediatamente:

— De Chroma para a nave espacial Orion... foi liberado para pouso na base dez. Após a primeira órbita, baixe a velocidade e mantenha-se a 1.000 metros de altura. Desligo.

McLane franziu a testa.

— Devem ter idéias esquisitas a respeito da nossa nave! — murmurou. — Por favor, traduza o seguinte: De Orion VIII para Chroma. Uma pergunta: O pouso é realizado automaticamente, num poço? Em caso afirmativo, solicitamos os dados para o nosso automático.

Sinais radiofônicos confusos vieram em resposta.

— Por todas as radioestrelas! O que significa isto? Os seus amigos por acaso pensam que vamos baixar a nave num poço com os controles manuais?

O estranho sorriu, encolheu os ombros e explicou:

— Não existe poço de pouso. Os nossos portos espaciais são diferentes dos terranos. Nós pousamos com os controles manuais!

— Obrigado — disse McLane, satisfeito.

— Órbita completada! — avisou Atan.

Haviam atravessado um pólo, bem caracterizado por uma calota de gelo acima da qual pairava uma extensa formação de nuvens. Agora estavam se aproximando da região equatorial. Por perto, deviam encontrar as cidades desse planeta. McLane falou, depois o estranho traduziu:

— Orion VIII chamando Chroma. Estamos a 1.000 metros de altitude. Solicito instruções para pouso.

Somente em poucos lugares de Terra ainda havia paisagens como esta, que apareceu na tela central.

Relvas e vales, extensos bosques escuros, e pequenos lagos, de superfícies lisas.

— Olhem só isso aí! — disse Mario, admirado. — Um verdadeiro paraíso.

Secamente, Atan respondeu:

— Então pode começar a preparar sua fantasia de Adão!

Maliciosamente, o subcomandante respondeu:

— Só se Helga quiser ficar com o papel de Eva!

Helga cutucou a testa com o indicador esticado e observou:

— Isto vai depender da temperatura! Desta vez entenderam a mensagem do

posto de controle.

— De Chroma para Orion. Desça ao longo do raio-piloto e pouse no ponto zero.

Aproximaram-se de um parque.

Enormes árvores quase encobriam os edifícios, que se erguiam por trás delas. A paisagem era bela, mas a luminosidade pálida, sob a qual jazia, emprestava-lhe um toque de melancolia.

Um extenso relvado apareceu sob a Orion e McLane começou a baixar a nave.

Não se afastou um metro sequer do compacto feixe dos raios-guia.

— Alguém está vendo a comitiva de boas-vindas?

Shubashi caiu na gargalhada.

— Você estava esperando uma recepção com tapete vermelho e tudo?

— Estou pronto para pousar, Hasso! — avisou Cliff. O engenheiro de bordo acenou.

A Orion baixou lentamente e parou dez metros acima do solo, lançando uma sombra elíptica sobre o verde saturado da relva.

— Do comandante para as máquinas — disse Cliff. — Estabilizar raios antigravitacionais.

— Entendido! — respondeu Hasso, e um minuto depois apareceu na cabina de comando. — Muito bem — disse ele e esfregou as mãos. — Cá estamos. Quem teria imaginado isso, dez horas atrás?

Mario de Monti ligou sucessivamente todas as telas de imagem. Abriu as janelinhas de proteção das vigias retangulares, que se estendiam em toda a volta da linha de sutura entre as duas cascas da nave.

— Dê uma espiada ao redor, Hasso! — disse Mario, admirado. — Relvas e florestas; parece um quadro antigo. Como Terra, Chroma também criou parques nacionais.

Hasso olhou para as diversas telas.

— Gozado... eu só não entendo por que razão eles usam justamente sua grama preciosa como campo de pouso.

Da sua mesa, Atan perguntou:

— Será que seguimos o raio-piloto errado?

Cliff fuzilou o astronavegador com os olhos e perguntou, em tom ameaçador:

— Você acha que me deram minha patente de capitão de presente?

Tamara deu um sorriso zombeteiro e comentou:

— Talvez ganhou a patente na loteria? Mais uma vez os alto-falantes estalaram e reproduziram palavras daquela língua tão curiosamente truncada.

— Posto de controle em Chroma chamando a Orion VIII: Está nos ouvindo? Dispõe de uma nave auxiliar?

— Dispomos, sim; temos uma Lancet. A Orion possuía mais de uma Lancet, mas Cliff achou prudente não revelar todos os trunfos.

— Comandante, faça-se acompanhar dos dois cientistas que o senhor trouxe, e leve a sua nave auxiliar para aquela torre na direção do sol poente. Mas apenas o senhor, comandante, e os dois cientistas!

— Entendo!

McLane olhou para os rostos tensos da tripulação e ensaiou um sorriso confiante. A voz continuou a falar.

— Vamos esperá-lo nas imediações dessa torre. Aos demais membros da tripulação aplica-se o seguinte: permaneçam a bordo, ou então não se afastem mais de duzentos metros da nave em qualquer direção. O campo de pouso está totalmente cercado por uma barreira eletrônica. Não corram perigo de vida desnecessário!

— Entendido! — respondeu Mc Lane. — Vou levar a Lancet até aquela torre!

— Nós o esperamos. Decole rápido, por favor!

No último segundo, McLane descobriu uma falha nas ordens emitidas.

— Vou decolar — disse ele, falando devagar e com nitidez. — Mas só vou levar um dos cientistas a bordo. Por enquanto, o outro vai ficar na Orion, como refém.

Houve uma pausa curta. Depois aquela voz respondeu, sem denotar qualquer desapontamento:

— Está bem. Pode partir!

McLane virou-se e colocou a mão no ombro de Mario.

— Mario, prepare a Lancet I, sim?

— Entendido — Mario dirigiu-se ao elevador.

— Major McLane? — começou Tamara Jagellovsk. — Quer mesmo ir sozinho?

— Não se trata de querer ou não querer — respondeu McLane com amargura. — Eu tenho que ir sozinho!

Tamara acenou e observou a vizinhança, um quadro inteiramente tranqüilo e pacífico.

— Se ao menos tivéssemos a menor noção — disse ela, pensativa — com quem o senhor vai ter que negociar!

McLane deu de ombros e verificou a carga da HM-4.

 

Não havia mais muitas coisas que pudessem causar espanto a Cliff McLane. Estava plenamente convencido de que atravessava as névoas turvas da vida imperturbável como uma nave espacial fortemente blindada. Mas nesses últimos minutos seu controle havia sido abalado mais do que queria admitir.

Sabia onde se encontrava, mas já começou a duvidar da realidade, julgando que tudo não passava de um sonho particularmente tenebroso. Um ruído!

Ouviu o zumbido de insetos desconhecidos, depois o gorjeio de pássaros, cujos nomes desconhecia e que provavelmente jamais aprenderia. Olhou ao redor. Um jardim florido circundava um terraço, cujo piso consistia de placas finamente trabalhadas. As cercas vivas, cuidadosamente podadas, apresentavam formas evoluídas do mais puro estilo barroco. Repuxos lançavam jatos de água límpida em direção ao céu azul-pálido. Era um verdadeiro idílio. O uniforme negro de McLane maculava a harmonia de cores dessa paisagem cultivada. Tentando acomodar-se melhor, tinha conseguido esticar as pernas e prontamente rompeu a armação da graciosa cadeira, na qual estava sentado. O comandante segurava um copo na mão. Não conseguia sequer adivinhar o que estava bebendo, mas o sabor era excelente. Consolou-se tomando mais um gole avantajado.

— Faz uma hora que estou sentado aqui! — disse ele, após consultar o relógio.

Duas jovens, de uma beleza incomum, estavam sentadas à direita e à esquerda de McLane. Trajavam vestidos que iam até os joelhos, e calçavam botas finíssimas. Uma parte da gola estava enrolada no pescoço; apesar da cor amarela dos vestidos, as golas eram de um azul-profundo. A cor dessas echarpes parecia ser a insígnia do cargo que as jovens ocupavam.

— Não está gostando daqui? — perguntou uma das moças.

McLane deu um largo sorriso, embora estivesse tudo, menos seguro.

— Gosto sim, bem que eu gostaria de passar umas férias aqui, mas...

— Mas? — perguntou a mais velha das duas jovens. Apesar da sua juventude, ambas davam a impressão de serem decididas e reservadas.

— Se eu ficar mais algum tempo apreciando as belezas desse jardim, sem poder falar com o governo, então não sei se ainda vou ter uma chance para pensar em férias!

Com um gesto gracioso, a mais moça estendeu uma cigarreira a McLane. Continha cigarros ultra longos com a letra grega "chi" gravada na boquilha dourada. "Chi" era a inicial da palavra "Chroma".

— Não fique nervoso. Relaxe. Fume um cigarro!

McLane recusou, agradecendo.

— Há mais ou menos um século, nós, astronautas, estamos proibidos de fumar. — respondeu ele. — Mesmo assim, meus agradecimentos.

— E aceitaram isso sem protestar? — a outra moça riu ironicamente.

— Não há proibições aqui em Chroma? — quis saber McLane, ligeiramente aborrecido.

— Muito poucas.

— Nesse caso — disse Cliff e estendendo a mão — tenha a bondade de me devolver meu rádio de pulso!

A mais velha das duas sorriu, mas o tom de sua voz era decidido:

— Está aí uma das poucas proibições! A diretora da Seção IV...

— Diretora! Comissária! Diga-me uma coisa... aqui não existem homens?

As suas duas acompanhantes começaram a rir gostosamente.

— Existem, sim! — disse uma delas.

— Lá, por exemplo! — prosseguiu a outra e apontou para trás.

McLane virou-se e reparou três homens, que estavam revolvendo um longo canteiro com auxílio de barulhentas máquinas de ' jardinagem. A expressão dos três era a de animais domésticos satisfeitos. Abismado, McLane perguntou, com voz meio embargada:

— Está querendo insinuar com isso, que em Chroma os homens só podem ser j jardineiros?

— Jardineiros ou técnicos. Conforme o talento e o grau de utilidade que revelam. Podem ser também cientistas e especialistas.

McLane cerrou os olhos.

— Devem estar brincando com um pobre astronauta! — disse ele, quase em tom de súplica. As duas caíram em nova gargalhada. De repente parecia que o brilho daquele sol distante havia empalidecido.

— Servem também como soldados para uma parada ou quando temos necessidade de uma guarda de honra.

— Uma pergunta — quis saber McLane e tomou um outro gole. — Houve sufragistas entre as fundadoras do Estado de Chroma?

— suf... o quê?

— Defensoras dos direitos da mulher! Militantes da emancipação brutal!

— Provavelmente. Por que pergunta, comandante?

— Por nada — respondeu McLane. — Foi uma pergunta como outra qualquer. Quer dizer que brincar de soldados eles podem, esses seus fantoches de papelão?

— Certo! Isso nós os deixamos fazer. É inofensivo.

Ao mesmo tempo que fez um gesto desdenhoso com a mão, a mais velha das duas declarou:

— É claro que, além disso, os homens podem contribuir sensivelmente para tornar a vida mais agradável!

Pelo tom de sua voz, tinha abordado o assunto mais insignificante em Chroma. McLane sentiu calafrios.

— Sim, sim, não há dúvida! — respondeu McLane, de leve. Sentiu que o suor frio lhe estava brotando na testa. Um pássaro providenciou o fundo musical para aquela constatação lapidar. Começou a cantar a pouca distância de Cliff, que se encolheu assustado. De repente, ouviu-se uma voz feminina, habituada a dar ordens:

— Minhas senhoras, por favor! Parem de aturdir o pobre major! A propósito, ele pode vir!

O "pobre major" esvaziou o copo de um só gole e levantou-se. Sentia-se como um condenado, que ainda tinha que percorrer um árduo caminho até o local da execução.

— Quem... que... quem era? — perguntou, inseguro.

— Ela.

— Ela, quem? — quis saber Cliff e colocou a mão atrás do ouvido.

— Ela. Agora o senhor pode falar com Ela.

A paciência de McLane tinha chegado ao fim. Elevou a voz e gritou, quase berrando:

— Por todos os conversores, vou falar com quem? Quero ver o chefe dessa joça aqui! O maioral, o presidente, o conselho. Entenderam? Quero ver o chefe!

Esgotado, cobriu o rosto com as mãos.

— Venha, coitadinho! — pediu a mais jovem das duas.

Pegou Cliff pelo braço e o conduziu através de um longo e fresco corredor flanqueado por colunas, cujo estilo fazia lembrar os templos de uma das mais antigas culturas terranas. Passaram por uma porta e por mais outra. Finalmente, uma terceira se abriu, desvendando o interior de uma sala aconchegante, cuja decoração denotava o inconfundível toque de mãos femininas. O chão estava coberto de tapetes, e delicadas cortinas enfeitavam as grandes janelas. Arranjos de flores, artisticamente arrumadas em vasos altos, emprestavam um suave colorido a esse ambiente acolhedor. A harmonia do conjunto só era maculada por um cacto, em cujos espinhos algum brincalhão havia espetado bolinhas de algodão colorido. Colocada quase no meio da sala, havia uma escrivaninha de madeira legítima, de um desenho notável. E atrás desta mesa estava sentada uma mulher. Indiscutivelmente uma dama. Alta e esbelta, e de cabelos da cor de trigo maduro.

— O senhor queria falar comigo, comandante McLane? — perguntou ela com uma voz, que fazia lembrar o tom reservado de Tamara quando dirigia um de seus desaforos a Cliff.

McLane estava mais do que estupefato.

— A senhora é...?

— Eu sou, para empregar o seu próprio termo, o chefe aqui.

As duas ajudantes de Ela fecharam a porta atrás de Cliff. McLane deu alguns passos em direção à escrivaninha.

— O chefe supremo? — perguntou Cliff.

— Com relação ao assunto que lhe trouxe aqui, sou!

— Escute! — começou McLane, agitado, e aproximou-se mais um pouco. — Esse assunto, como a senhora se dignou a chamar o caso, não é tão insignificante assim. Pelo contrário. É de vital importância, tanto para Terra, quanto para Chroma!

A resposta foi mais reservada do que Cliff esperava. Sem mover um músculo sequer do seu rosto expressivo, Ela disse:

— Aqui em Chroma um assunto de vital importância é da alçada das mulheres. Só das mulheres. Vai ter que se habituar com essa idéia.

A voz de Cliff tornou-se um pouco mais alta e incisiva. Respondeu:

— Não estou com disposição para ouvir piadas, minha senhora!

Ela retrucou, com voz fria e decidida:

— Eu também não!

Cliff sacudiu a cabeça, incrédulo. Depois disse, naquele tom de voz temido por todos que o conheciam:

— Em Chroma são as mulheres que decidem o que vai acontecer! É inacreditável!

A suprema dama do planeta deu um sorriso de uma indiferença desarmante e respondeu:

— Nossas experiências têm sido as melhores possíveis.

— Pode ser! — disse Cliff, elevando a voz mais um pouco. — Talvez até agora. Mas desde que a senhora teve a brilhante idéia de aquecer artificialmente o sol terrano, essas experiências já não devem ter sido tão boas assim!

— Isto foi uma idéia dos nossos cientistas. Eles são homens.

— Está certo! Homens, que recebem ordens da senhora! Belos homens, esses! — Cliff estava ficando furioso.

— Se temos algo a calcular ou a fuçar, dependemos dos homens. Mas não achamos grande coisa do seu juízo.

— Do meu?

— Não! — disse Ela sorrindo. — Seu, deles!

— Maravilhoso! — exclamou McLane. — Nesse caso, vou apelar para o seu juízo feminino: suspenda as experiências com o nosso sol!

— Não estamos fazendo essas experiências por mera brincadeira, major McLane. Verificamos que precisamos de energia solar. Mais do que o nosso sol pode nos fornecer. Se quisermos manter as nossas condições de vida, somos obrigados a prosseguir com essas experiências — respondeu Ela em tom sério.

Levantou-se e dirigiu-se à janela. Afastou a cortina.

— E queremos continuar a viver, major McLane.

— Nós também! — disse Cliff, irado. Ela apontou para a paisagem florescente.

— Lembre-se, major McLane — começou a mulher e fez um gesto para realçar sua determinação — que por causa da ânsia pelo poder, Terra viu-se envolvida em duas guerras pavorosas. Isso nos serviu de lição. Não queremos o poder. Queremos um mundo pacífico; não temos ambição de conquistar o universo, nem idéias colonialistas. Queremos um mundo sem frotas espaciais e sem generais.

McLane a interrompeu:

— Mas estão tentando realizar isso às expensas de Terra, que vai ficar estorricada, se essas experiências não forem sustadas imediatamente!

Após uma pausa de alguns minutos, a mulher disse:

— Isso eu não sabia. McLane respondeu:

— Posso prová-lo. Eu trouxe provas científicas irrefutáveis.

— Vamos ter que examiná-las — prometeu Ela, vagamente.

— Mas, quando? Temos muito pouco tempo, minha senhora. O caso é realmente urgente!

Por um momento, a voz dEla readquiriu a dureza costumeira.

— Isso por acaso é uma ameaça? — perguntou, admirada.

— A situação — explicou McLane, inabalável — está assumindo proporções catastróficas.

Ela olhou para o comandante com uma expressão de espanto.

— Está querendo me forçar a tomar uma decisão, major? Não deixou dúvidas quanto às alternativas: Ou Terra perece queimada ou Chroma morre congelada. Não é isso? Bem, eu agora podia apelar para o cinismo e perguntar: Quem deve sobreviver: o mundo pacífico ou o mundo belicoso? O que seria melhor? No decorrer da sua história Terra mostrou um milhão de vezes que não pode viver sem guerras.

Furioso, McLane respondeu:

— E a senhora mesma descende desse mundo!

— Essa afirmação só é correta até certo ponto — disse a mulher, e deu um sorriso desdenhoso. — É válida em relação aos meus antepassados. Mas não se aplica a mim.

— Essa agremiação feminina, aqui, que a senhora chama tão orgulhosamente de "seu mundo" não tem nem meio milênio de idade. É evidente, que Chroma é um rebento de Terra!

A resposta era um exemplo típico de lógica feminina:

— Um filho de pais que não prestam, só tem chance de se tornar alguém, se puder crescer longe da influência desses pais.

A paciência de McLane esgotou-se. Começou a berrar.

— Ah, é?... — gritou, enfurecido — agora, para mim chega! Lá em Terra, estamos sofrendo os efeitos de inundações catastróficas: o calor aumenta porque as geleiras estão se derretendo; as selvas estão se alastrando e vastas extensões já foram transformadas em estepes. Epidemias vão irromper a qualquer momento... e a senhora fica aí, sentada nessa gaiola de plantas ornamentais, a tecer considerações filosóficas sobre o valor ou o desvalor de Terra! Posso saber onde arranja tamanha arrogância?

Uma tentativa de homicídio não teria provocado um susto maior. A primeira dama desse planeta empalideceu e apoiou-se no canto da mesa. Fitou o comandante com olhos arregalados. Seus dedos começaram a tremer.

— Não estou habituada — sussurrou — que um homem se dirija a mim nesse tom!

Com voz trovejante McLane, retrucou:

— Infelizmente! É provável que seus jardineiros e astrônomos calem a boca, intimidados, mesmo se têm outra opinião.

— O senhor ousa falar assim... McLane ainda estava possesso. Tinha descoberto o ponto fraco naquela defesa aparentemente impenetrável, e agora estava atacando esse ponto com toda as suas energias.

— Agora quem fala sou eu! — gritou ele. — E a senhora vai escutar direitinho o que eu acho desse ridículo circo de amazonas. Pouco me importa, se depois vai me incorporar ou não ao seu batalhão de anõezinhos decorativos!

Cliff nem se virou quando a porta atrás dele foi aberta com violência. As duas moças, que o tinham acompanhado, entraram na sala e olharam para Cliff com um ar do mais puro espanto, mas também com uma boa dose de admiração. Aparentemente até hoje nenhum homem havia berrado tão alto nesta casa como Cliff, cujos argumentos, nem por isso, se tornavam menos válidos.

— Fechem a porta! — gritou Cliff.

A porta foi fechada pelo lado de fora. Cliff estava ofegante. A mulher diante dele tinha recuperado o controle e agora sorria ligeiramente. Voltou para a escrivaninha, sentou-se e entrelaçou os dedos. Levantou o queixo, indicando uma poltrona diante da mesa. McLane acomodou-se confortavelmente.

— Fale, major McLane! — disse Ela e recostou-se.

Cliff Allistair McLane sabia que tinha vencido...

Chroma era um mundo de cores difusas e leves, de tom pastel. O planeta era um pouco menor que Terra, e girava em torno do seu sol a uma distância de 1,52 unidades astronômicas, o que, no sistema terrano, correspondia aproximadamente à distância da órbita de Marte. Esse sol estava situado sobre uma linha que, partindo do sol terrano, se estendia através do plano da trajetória do sistema Ross 614A e B e tinha um comprimento de 15 anos-luz. Evidentemente, Terra conhecia as coordenadas daquele sol. Mas nunca alguém se dirigia para lá, pois não apresentava o menor interesse.

Esse sol, do tipo K-O, e que acusava uma temperatura efetiva de 4.000°, não era brilhante, nem rico em energia. Daqui a alguns milhares de anos, não teria mais capacidade para aquecer o planeta. E o planeta Chroma, o único que este astro possuía, até agora não havia sido descoberto.

— Bem — disse Ela, depois que McLane tinha terminado sua explanação. — Isso faz sentido.

— Pelo visto, também não está a par daquele outro perigo, que no momento ameaça, todos os homens em todos os planetas? — perguntou Cliff, sombriamente. — Não ouviu falar dos extraterranos, dos estranhos? Ou dos "sapos", como às vezes são chamados?

Ela sacudiu a cabeça.

— Não ouvi falar, não. Quem são eles? McLane teve que dar uma nova explicação.

— Estou convencido — disse ele, finalmente — de que as suas poucas naves não poderiam impedir que Chroma fosse atacada e destruída. Se alguém puder impedir isso...

— ...então esse alguém é o senhor? — perguntou Ela.

— Não sou eu, não — respondeu Cliff. — Apesar da impressão de que pudesse ser eu. Esse alguém é Terra. E somente Terra, com o potencial de sua frota, poderia proporcionar uma defesa eficaz a Chroma. Mais ninguém.

McLane relatou o incidente em MZ-4, e o caso daquele planeta em chamas, que os estranhos tinham colocado num curso de colisão com Terra. Narrou o episódio dos robôs influenciados, e contou a triste história dos homens, que estavam prontos a desertar, por se encontrarem dominados pelo raio telenótico dos extraterranos.

— Estou começando a ver a sua missão com outros olhos comandante — disse a mulher à sua frente.

— Isso me alegra — respondeu McLane. — Qual é a sua decisão?

Ela encolheu os ombros bem formados.

— Ainda não sei. Preciso refletir mais um pouco.

— Ficaria muito grato — observou Cliff com sarcasmo — se Vossa Alteza pudesse refletir rapidamente!

Ela o encarou com um sorriso franco e respondeu:

— Eu vou ver o que posso fazer.

 

Já estavam esperando há duas horas e era como se estivessem longe de qualquer civilização. Ninguém lhes dirigia a palavra. Não viam ninguém... nada. Só havia movimento no interior da nave; na cabina de comando. Mario, Atan, Hasso e Helga estavam sentados em torno do aparelho radiofônico. Helga tinha captado um impulso muito fraco de uma transmissão hiperradiofônica e estava gravando o texto codificado. Tamara entrou na cabina, trazendo um enorme copo de suco de fruta. Aproximou-se lentamente e postou-se ao lado do espadaúdo subcomandante. Ficou observando as manipulações de Helga, que estava prestando atenção num trecho da fita gravada e depois a rebobinou rapidamente.

— Pode nos emprestar sua encantadora orelhinha, tenente Jagellovsk? — disse Helga, a meia voz.

— Pois não. Para quê? — perguntou Tamara, interessada.

— É que eu captei uma mensagem codificada do SSG. Mas como eu não sou uma mortal privilegiada, não sei o que fazer com ela.

Tamara estendeu o copo a Mario, que o aceitou ligeiramente irritado e depois encolheu os ombros.

— Quando recebeu a mensagem? — perguntou Tamara.

— Dois minutos atrás — respondeu Helga e entregou um audiofone a Tamara.

A agente do SSG colocou o minúsculo aparelho no ouvido e apertou o botão de partida do gravador.

— Tome cuidado — acrescentou Helga. — Levei quinze minutos para sincronizar corretamente essa freqüência. Ainda estamos em contato. Pode confirmar a recepção.

Tamara acenou.

— Aqui fala a Orion VIII — disse ela. — Gravamos a sua mensagem. Houve algo de especial?

Ficou ouvindo atentamente, enquanto os outros a observavam com expectativa crescente.

— Entendido — disse Tamara após alguns segundos. — Desligo.

Depois passou a fita, que Helga tinha gravado, e todos viram a expressão consternada do seu rosto.

— Está ficando sério! — disse Tamara, baixinho.

— Por quê? — perguntou Hasso, com voz grave.

— Deve ter ocorrido uma nova catástrofe em Terra, relacionada com a atividade solar intensificada. Um gigantesco maremoto, ou coisa parecida. Vão desfechar o golpe preventivo...!

— Quando? — Mario estava lívido. Devolveu automaticamente o copo vazio a Tamara, que o rodou entre os dedos, indecisa.

— Daqui a seis horas, na contagem de tempo terrana. Isto quer dizer...

Hasso olhou para os ponteiros do relógio de bordo; aqueles pequenos triângulos, que se moviam em torno do grande mostrador: 12 horas e 41 minutos.

— ...isto quer dizer que dentro de algumas horas vai haver o inferno nesse planeta. Deixe-me ver. Partida: às 19:00 horas; duração de vôo: dez horas. Amanhã de manhã, lá pelas cinco horas, a frota tática vai aparecer sobre Chroma.

— Temos que cair fora daqui; mas antes precisamos apanhar Cliff! — avisou de Monti.

— E se não conseguirmos pegá-lo? — perguntou Atan.

Hasso sacudiu a cabeça.

— Prefiro destruir minhas máquinas, do que partir sem Cliff!

Helga objetou:

— Com ele ou sem ele, tanto faz. Não podemos partir enquanto estivermos presos debaixo dessa cobertura eletrônica!

Atan refletiu rapidamente e perguntou:

— E uma partida de emergência com agregados suplementares?

Hasso acenou sarcasticamente.

— É uma possibilidade. Mas é claro que corremos o risco de transformar também a Orion VIII num monte de escombros. Eu não vou participar dessa tentativa!

Refletiram durante alguns instantes.

— Mas uma partida de emergência representa ao menos uma chance, ou não?

— Representa, sim. Mas também não mais do que isso.

Tamara colocou o copo na borda da tela central e depois virou-se para a tripulação.

— Onde é que está aquele homem de Chroma? — perguntou, num tom de voz como se lhe tivesse ocorrido a idéia salvadora.

— Está dormindo — respondeu Helga, laconicamente.

— Ainda? — perguntou o engenheiro de bordo.

— E por que não? — respondeu Helga. — Está no camarote onze.

— Será — comentou Tamara e exibiu um sorriso confiante — que esse sujeito passa a vida dormindo? Deve ser capaz de fazer mais alguma coisa.

— Como devo interpretar isso? — perguntou Mario e cerrou os olhos.

A agente do SSG despachou-o com um gesto.

— Vou falar com ele — afirmou. E dirigiu-se ao elevador.

No mesmo segundo:

Afora a decoração, que McLane considerava insuportável, o arranha-céu possuía uma instalação técnica que podia concorrer com as dos edifícios congêneres em Terra. O jardim suspenso encontrava-se a cem metros de altura, e era preciso olhar para baixo, para se poder observar o pôr do sol que, nesse momento, estava se realizando num verdadeiro caleidoscópio em tons de pastel, como que pintado por um antigo mestre europeu.

A primeira dama do planeta e McLane estavam sentados em confortáveis cadeiras, separadas por uma mesa baixa. O comandante sentia-se bem mais seguro agora, mas continuava inquieto.

— Como é que a senhora chama esse sol, que nos está proporcionando esse espetáculo deslumbrante? — perguntou ele e apontou para aquele disco cor de carmim, rente à linha do horizonte.

A esta altura, o diálogo estava sendo conduzido num tom bem mais baixo e suave. Ela sorriu e respondeu:

— Xur. Daqui a alguns milhares de anos esse sol não vai ter mais utilidade para nós. Está esfriando rapidamente, e é essa a razão das nossas experiências. Só podemos sustar o seu enfraquecimento, alimentando-o com energia desviada de algum outro lugar.

McLane mexeu a colher no caneco de prata.

— E é por isso mesmo que eu estou aqui — disse ele.

— Eu sei. Infelizmente, não é um ensejo agradável.

— Infelizmente, mesmo! — respondeu McLane, prontamente. — Porque este lugar é uma beleza.

Ela deu um sorriso meio malicioso.

— Apesar do circo de amazonas? — perguntou, com ironia.

— Apesar disso, Penthesilea! — confirmou McLane, recorrendo aos seus conhecimentos de mitologia e dos antigos autores clássicos. A dama, à sua frente, mostrou-se pasmada.

— Para um homem e um oficial, o senhor está evidenciando uma instrução surpreendente, major! — constatou Ela. — Por acaso é especialista em literatura antiga?

— Sempre se guarda alguma coisa... Faz parte da cultura geral — murmurou Cliff.

Ela parecia se lembrar.

— Penthesilea era aquela rainha das amazonas, que matou o seu amante, não é? — disse a mulher, pensativa.

— Não foi bem assim — respondeu McLane. — O fato é que foi ela quem morreu diante das portas de Tróia, atingida pelo dardo de Aquiles, o filho divino de Peleu e Thetis.

Ela inclinou a cabeça.

— Parece que conhece a obra de Homero de cor e salteado! — observou.

— É mais uma prova que Chroma descende diretamente de Terra. Temos as mesmas bases culturais.

— Não deixa de ter razão. Mudando de assunto: há três horas aquelas amostras de rocha estão sendo examinadas nos nossos laboratórios. Se o meu pessoal chegar as mesmas conclusões que os seus cientistas, isto é, que o planetóide pode ser usado para produzir energia...

McLane levantou-se da cadeira e ergueu a mão.

— Então isto no momento não representa mais que uma possibilidade. Mas até ficar comprovado que o planetóide realmente se presta a esse fim, ainda vão se passar semanas.

Ela deu um breve aceno.

— No dia em que eu tiver certeza disso, vou suspender as experiências com o sol terrano.

McLane estendeu os braços e disse, em tom exortativo:

— Mas então será tarde demais!

A mulher respondeu com voz fria e reservada:

— Está querendo me dar um ultimato, comandante?

Cliff ainda não se tinha dado por vencido.

— Não — disse ele. — Não tenho autorização para isso. Só estou querendo apelar para sua razão, por motivos pessoais. Se a senhora continuar com essas experiências, Terra vai considerar isso uma ameaça. E a senhora sabe muito bem, como Terra reage a qualquer ameaça. Vai enviar uma frota e desfechar um ataque. O que está em jogo, é a vida de bilhões de pessoas. A existência de todo um sistema solar. Qual é a população de Chroma?

— Cerca de um milhão — disse a mulher.

— E a Terra vai dizer: é melhor forçar a obediência de um milhão, do que pôr em perigo vários bilhões. Estou falando de experiência própria; até há pouco, eu mesmo ocupava um posto na frota. Não está vendo o risco que corre?

— A vida toda é um risco. Por que razão não pertence mais à frota? — perguntou ela, obstinadamente.

— Por insubordinação — respondeu Cliff. — Não gosto de me sujeitar a regulamentos. Senão, eu não estaria aqui.

Ela dirigiu um longo e pensativo olhar para McLane.

Abaixo deles, o sol estava desaparecendo no horizonte. Durante alguns minutos a paisagem ficou mergulhada na luz de um crepúsculo de tons leves, depois anoiteceu.

No mesmo segundo, a quinze anos-luz de distância...

A barreira eletrônica extinguiu-se e um vulto massudo irrompeu no gabinete. O coronel Henrik Villa esfregou os olhos avermelhados; há dias que não dormia direito. Olhou tranqüilamente para o marechal Wamsler, que vinha marchando com passos pesados através da sala, e depois se postou diante da mesa como uma rocha negra e ameaçadora.

— Diga-me, Villa, é verdade que enviou o major McLane para Chroma, sem que eu soubesse disso e sem obter o meu consentimento? — perguntou. Sua voz grave estava rouca de raiva.

— É verdade, sim, marechal. Wamsler engoliu em seco e largou-se pesadamente numa das poltronas.

— O que faria, Villa, se eu lhe fizesse uma coisa dessas?

Villa conseguiu exibir um sorriso e respondeu:

— Se o senhor tentasse enviar-me para Chroma eu diria: Marechal, isto está fora das suas atribuições!

Wamsler largou o punho na mesa e gritou:

— Besteira!

— Compartilho a sua opinião — disse Villa. A sua calma dominava a situação.

— Mas se eu enviasse agentes seus para Chroma? Se eu mandasse o seu melhor homem para lá? O senhor aceitaria isso de bom grado, Villa?

Villa sorriu.

— Tive minhas razões para isso, marechal. O senhor certamente sabe que...

Wamsler deixou-se dominar pelo seu temperamento colérico. Berrou:

— Eu não sei de nada! E é justamente isso que me deixa louco! Nada de nada! Estou crente que McLane está gozando suas férias, e depois sou informado, de passagem, que a Orion VIII se encontra em Chroma. E o senhor não desconhece, Villa, o que vai acontecer a Chroma daqui a pouco?

Villa encolheu os ombros, num gesto de resignação.

— Combati a idéia do ataque o quanto pude — disse ele, baixinho. — Pelo visto, não estou mais em condições de impedi-lo.

— E McLane provavelmente está retido em algum porto espacial. Parece que o senhor também não vai poder impedir a destruição da Orion VIII e a morte da tripulação, não é?

Consultou o relógio.

— Treze horas e trinta minutos — disse ele. — Dentro de poucas horas as naves vão partir para desfechar o golpe preventivo!

Villa sacudiu a cabeça e bateu levemente na pasta à sua frente.

— Mandei uma mensagem codificada para Chroma, avisando da hora presumível do golpe preventivo. Helga Legrelle deve ter recebido este comunicado e Tamara Jagellovsk conhece o código beta-x de cor. Portanto, McLane está prevenido.

Wamsler fixou um olhar penetrante nos olhos do coronel.

— Isto é verdade, Villa?

— Nada de insultos, Wamsler! Eu não lhe contaria uma mentira numa hora dessas!

— E se eles retiveram McLane de alguma maneira? E se ele estiver preso? — continuou a perguntar Wamsler.

— McLane sabia que corria esse risco — finalizou o coronel Villa.

Wamsler levantou-se rapidamente e postou-se em frente a Villa. Ergueu o pulso e apontou para o relógio.

— Coronel! — disse ele, em voz grave mas agitada. — O prazo está ficando curto. De acordo com as ordens de Kublai-Krim, as naves devem decolar às dezoito e trinta, ou seja, daqui a umas cinco horas. Que acha da idéia de enviarmos imediatamente uma outra nave, com ordens de alertar Chroma? Não suporto o pensamento de que vamos bombardear os nossos próprios descendentes!

— Essas cinco horas, acrescidas da duração do vôo, constituem o tempo de que McLane dispõe. Estou certo de que até às cinco da manhã, ele vai conseguir obter a suspensão daquelas experiências. Podemos ordenar o regresso da frota tática a qualquer momento, mesmo que ela se encontre a apenas cem metros de Chroma — Wamsler e Villa se entreolharam em silêncio.

— O que vamos fazer, Villa? — perguntou Wamsler.

— Aguardar, marechal — foi a resposta.

 

McLane nada sabia dessa conversa. E dificilmente poderia imaginar, que aquela ameaça velada tinha se tornado real e já estava a caminho do planeta no qual a Orion havia pousado. Ele e a primeira dama de Chroma se encontravam naquele jardim suspenso. Velas, fixadas em pesados castiçais de estilo quase barroco, espargiam uma fraca luz em torno da mesa e das cadeiras. Uma luz solitária estava no zênite. A voz da mulher veio daquela escuridão difusa.

— Diga-me uma coisa, major McLane. O senhor realmente tem autorização para entabular uma conversa desse tipo?

— Não oficialmente.

— Portanto, não tem autorização! — constatou Ela.

— Não — disse Cliff — a rigor, não tenho. A senhora tem razão.

— Então empreendeu esta viagem por conta própria, por assim dizer? — perguntou Ela e olhou para a paisagem escura do parque. Cliff não respondeu e a mulher repetiu a pergunta.

— Sim — foi só o que Cliff disse.

— E por quê? — perguntou a mulher. Cliff encolheu os ombros.

— Preferia não expor os motivos — disse ele. — Há umas tantas coisas que...

Ela o interrompeu.

— Por que não veio um dos seus políticos, ou um dos generais? Qualquer um teria sido recebido tão cordialmente como o senhor!

Cliff não sabia o que responder.

— Será que Terra não nos considera suficientemente dignos de um representante oficial? Tenho que confessar que essa atitude me causa um pouco de estranheza! Cliff respondeu com outra pergunta:

— Parece que, para a senhora, eu é que não sou digno dessa missão! — acentuou bem a palavra eu.

— Nada disso, major McLane! — asseverou a mulher e deu um sorriso meigo. — E vou me esforçar para tornar sua estadia em Chroma a mais agradável possível.

Com um mal-disfarçado desespero Cliff levantou as mãos e pediu:

— Pode começar agora mesmo e...

— Tão impetuoso? — perguntou a mulher, atenta.

— ...mandar suspender aquelas experiências. Agora mesmo!

Ela recostou-se novamente, desapontada.

— Oh! — disse Ela. — Isso nós já discutimos antes!

— Não poderia ao menos suspender essas malditas experiências durante o tempo que seus cientistas vão levar para examinar o material que eu trouxe?

A mulher, à sua frente, sacudiu a bela cabeça.

— Eu já pensei nessa possibilidade, seu astronauta sabido.

— Se teve a idéia, por que não a tornou realidade? — perguntou Cliff.

— Porque o meu pessoal me avisou, que mesmo uma suspensão temporária, acarretaria um atraso de decênios no trabalho de pesquisa.

— Entenda, por favor! — pediu Cliff, desapontado. — O que são alguns decênios diante das possíveis conseqüências para Chroma e Terra?

— Psiu...!— fez Ela. — Está ouvindo? — Ela levantou o indicador e apontou verticalmente para cima. Cliff ouviu o gorjeio de um pássaro; era apenas uma entre tantas coisas que Cliff jamais tinha ouvido em toda a sua vida.

— É um rouxinol — disse a mulher. Cliff acenou e recordou-se vagamente, de já ter lido este nome em algum lugar. — Certamente esses pássaros já estão extintos há séculos em Terra — comentou Ela.

Já era noite fechada.

Cliff levantou-se e debruçou-se no para-peito do jardim suspenso. Lá embaixo, embutida em trechos de um parque velho e bem cuidado, jazia parte da cidade. Uma cidade, que era inteiramente diferente de qualquer povoação terrana, mas que irradiava um encanto que lhe tocava a sensibilidade de uma maneira estranha.

— É belo, não é mesmo? — perguntou a mulher ao lado de Cliff.

— É, sim — respondeu ele. — Talvez daqui a pouco não vai ser mais tão belo assim!

Ela não entendeu a observação e perguntou:

— Por quê?

— Tenho a impressão, que Terra vai se defender da agressão representada por aquelas experiências e suas conseqüências. E quando Terra se defende, envia uma frota. E essa frota, minha cara, não vem para uma visita oficial; vem para destruir!

 

— QUATORZE horas — disse Hasso.

— Provavelmente vai ser presa assim que desembarcar! — observou Mario de Monti, sombriamente.

Tamara acenou e apontou para o relógio de bordo.

— Estou contando com isso — disse ela.

— Confesso que não entendo — respondeu Mario.

— Quem é preso, costuma ser interrogado. E durante esse interrogatório eu vou gritar tanto, até que me deixem falar com McLane. Não vejo outra possibilidade.

— Nós também não! — admitiu Hasso.

— É claro que também poderiam tentar decolar imediatamente, sem mim e sem McLane.

Mario de Monti mostrou os dentes num riso incrédulo.

— Quanta nobreza! Estou quase chorando!

— Por favor, chore a vontade — retrucou Tamara, em tom gélido. — Não me comove nem um pouco!

— Isso eu sei. Mas ainda tenho uma pergunta cretina a fazer. Acredita mesmo, que vão deixá-la partir com a Lancet, sem mais aquela?

— Por que não? — perguntou Tamara e encolheu os ombros.

— O pessoal de Chroma só precisa ativar a barreira eletrônica e a Lancet explode!

— Mas não vão fazer nada disso, se o cientista deles estiver a bordo! — respondeu Tamara.

Atan observou, agitado:

— Isso vai deixá-los tão indiferentes como Kublai-Krim, quando ele atacar esse planeta, dentro de algumas horas!

Tamara apoiou-se ligeiramente na mesa de comando e fixou um olhar pensativo no rosto do pequeno astronavegador de cabelos negros. Depois ela disse, em tom agressivo:

— Se eu entendi direito, pretendem ficar aí, de braços cruzados, esperando que aconteça um milagre?

— Nada disso! — respondeu Hasso e esfregou o queixo, pensativo.

— E se me permitem fazer uma per- ' gunta meio imbecil — continuou Tamara, I impassível — o que os impede de verificar j se conseguem tirar a Orion daqui ou não?

Houve uma pausa dramática. Hasso e Mario entreolharam-se. Aquele velho entendimento silencioso restabeleceu-se imediatamente.

— Estou pensando na Lancet II — respondeu Mario.

Entenderam-se perfeitamente. Hasso deu uma curta risada.

— Só preciso de três minutos. Vou apanhar aquele cientista de Chroma. Vá ao transmissor e diga-lhes quem vai estar na Lancet, e que lhes pedimos encarecida-mente para não nos matar. Está claro?

— Perfeitamente! — afirmou Hasso e levantou-se. Mario e Hasso já estavam a caminho, quando Tamara os deteve.

— Um momento! — disse ela, rispidamente. — Isso por acaso significa que vão tentar...

— Isso mesmo! — confirmou o subcomandante, com uma expressão decidida no rosto. — Isto significa que nós dois vamos tentar resgatar o nosso chefe, se o encontrarmos. É uma tarefa arriscada. E ninguém aqui vai correr risco algum, a não ser Hasso e eu!

Tamara deu uma risada.

— Estou emocionada a ponto de chorar! — exclamou ela. — Mas tenho a impressão, que em Chroma uma mulher vai conseguir mais que dois homens.

— Como disse? — perguntou Hasso.

— Deve estar muito satisfeita com essa impressão — observou Mario, com ironia. — Mas também existem impressões erradas. Posso perguntar, em que se baseia sua afirmação?

Tamara disse:

— Em Chroma, a mulher tem um papel de destaque. Aquele, ao qual sempre teve direito.

— Eu não lhe disse? — respondeu Mario. — Trata-se claramente de um caso para especialistas em assuntos femininos! Vamos indo, Hasso!

A voz de Tamara alcançou-os na porta do elevador.

— Vão, mas é ficar! — declarou, em tom decidido.

— Não vamos, não! — respondeu Mario.

— É uma ordem alfa! — disse Tamara, obstinada. A contragosto, Mario teve que reconhecer a determinação daquela mulher, que não o deixou falar.

— Quem vai, sou eu! — afirmou. Hasso lançou um olhar constrangido para Mario. Atan acompanhava a cena da mesa do transmissor.

— Por todos os diabos do espaço! — gritou Mario. — Sempre que a senhora não encontra uma saída, apela para uma ordem alfa!

— Mas não seja por isso; se acredita que entende mais de mulheres do que eu, então vá! Vou aprontar a Lancet. Atan! avise a esse pessoal do que pretendemos fazer.

Furiosos, Mario e Hasso saíram da cabina de comando. Quando o elevador voltou, Tamara os seguiu. Atan não encontrou dificuldades em sintonizar a freqüência utilizada em Chroma. Aguardou até ouvir o sinal de recepção nos audiofones e depois falou no microfone. O texto da sua mensagem era preciso e inequívoco.

— Atenção, Chroma! Orion VIII falando ao chefe da segurança: daqui a pouco vamos ejetar uma Lancet. Abstenha-se de qualquer medida que possa impedir ou pôr em perigo essa decolagem. Chroma... Entendeu?

Atan manteve a linha aberta e transferiu a ligação para os alto-falantes do intercomunicador, para que todos a bordo pudessem ouvir a resposta do posto de controle.

Tamara e o cientista já se encontravam na câmara de ejeção da Lancet.

— Ocupe o seu lugar e coloque o cinto de segurança — pediu a agente do SSG. Verificou a carga da arma, afixou o rádio no pulso e entrou na eclusa. A pequena escada foi recolhida e a eclusa fechou-se novamente.

Em seguida, Mario abriu o diafragma de vedação do posto de lançamento. Nesse instante, uma voz feminina ressoou dos alto-falantes:

— De Chroma para a Orion VIII: proibimos qualquer decolagem de uma nave auxiliar. Advertimos que...

Imediatamente Atan Shubashi transmitiu a resposta previamente preparada:

— Pedimos que se abstenham de qualquer contramedida. Vão matar um de seus próprios homens!

Tamara já tinha ocupado o assento do piloto da nave auxiliar e disse no intercomunicador de bordo:

— Lancet II pronta para a decolagem, Mario!

O subcomandante acionou uma pequena alavanca na câmara ao lado do poço de lançamento. A instalação magnética entrou em ação, e lançou a nave auxiliar para o alto, ao longo dos trilhos-guia, com uma aceleração de 4g. Projetada como uma bala, a Lancet desprendeu-se da Orion. Voando a uma altura de trinta metros, afastou-se do disco e depois rumou para aquele edifício alto. Tamara acendeu os faróis de pouso e fez a Lancet subir mais um pouco. Deslizaram por cima das copas das árvores. Uns quatrocentos metros à frente, uma larga avenida, flanqueada por colunas, destacava-se da escuridão. Era iluminada, indiretamente, por lanternas ocultas. O cientista olhava para fora, em silêncio. Não deu a entender se estava contente ou não. Nem sequer virou a cabeça, quando a Lancet pousou no meio dessa larga avenida.

— É a sede do governo? — perguntou Tamara, em voz alta.

O estranho acenou, sem olhar para ela.

 

Quatorze horas e trinta minutos: A noite avançava em Chroma, enquanto em Terra, o Sol brilhava agora com intensidade majorada. McLane observava melancolicamente os cubinhos de gelo, que boiavam no seu copo. Finalmente, resolveu iniciar a conversa.

— Eu não sei — disse ele. — Talvez vá cometer um grande erro.

— Erros existem, para nem sempre serem evitados — disse Ela, tentando animá-lo. Durante as últimas horas, a primeira dama de Chroma havia perdido muito do seu ar altivo.

— Eu agora vou lhe segredar uma coisa, que em hipótese alguma eu devia contar.

Com um sorriso, a primeira dama deste mundo pacífico perguntou:

— Mas se não devia, por que vai contá-la?

— Porque, de uma certa maneira, eu confio na senhora — respondeu Cliff e tomou um gole.

Encontrava-se numa situação complicada, embaraçosa: há horas que vinha conversando, mas estava de mãos atadas. Não podia agir, não podia intervir: um fato intolerável para um homem dinâmico e ágil como Cliff. E isto o enervava mais do que queria admitir. E não conseguia afastar do pensamento a visão da frota tática de Kublai-Krim, já a caminho de Chroma...

— Todas as bases terranas, das quais Chroma pode ser alcançada dentro de umas dez horas, foram colocadas em estado de alarma permanente. Assim que acontecer algo em Terra, que se relacione com essa atividade solar intensificada, um golpe preventivo será desfechado contra Chroma dentro de quarenta e oito horas. E eu não posso garantir que vão respeitar esse prazo.

A mulher olhou para Cliff com uma expressão impenetrável.

Cliff bebeu o resto de seu drinque e recolocou o copo no bar. Durante meio minuto só se ouvia a respiração e a melodia vinda do alto-falante.

Cliff deu um sorriso meio desorientado e apontou para a janela.

— Receio que também seus rouxinóis vão deixar de cantar daqui a pouco.

— E o senhor, McLane? — perguntou a mulher.

— Eu não canto — respondeu Cliff. Ela deu uma curta risada.

— O que eu quis dizer: o seu governo vai desferir o golpe, mesmo sabendo que a Orion se encontra em Chroma?

Cliff baixou a cabeça e apanhou novamente o copo. A mulher o encheu com movimentos mecânicos.

— A senhora sobreestima a minha importância — respondeu, em tom sério. — Eu não passo de um insignificante comandante de nave espacial. E ainda por cima removido para o Serviço de Patrulha. A minha estadia aqui é um risco pessoal!

— Vou mandar que empreguem todos os meios disponíveis, para apressar o exame das amostras de NI 16A. Está gostando do drinque?

— Estou sim, obrigado.

Cliff esperava que ela fosse ordenar a suspensão imediata das experiências com aquele raio, que roubava energia do sol terrano. Em vez disso, ela prometeu apenas uma investigação mais rápida.

— Mas eu... — começou ele.

Ela cortou-lhe a palavra e disse, com determinação:

— O senhor vai enviar uma mensagem hiperradiofônica para o seu pessoal em Terra, dizendo mais ou menos o seguinte: A atividade solai- só pode ser regulada pela aparelhagem instalada em Chroma.

— Isso por acaso significa — respondeu Cliff — que eu posso voltar à minha nave?

— Claro. Mas ainda não terminei. Que vantagem traria um golpe preventivo a Terra, se as instalações de controle em Chroma forem destruídas? Só por meio delas a radiação solar poderia ser normalizada.

— Isso é verdade? — perguntou Cliff, desconfiado.

— Ao menos, em parte — disse Ela, sorrindo — mas podia ser.

— Por todas as luas de Marte! — exclamou Cliff.

— Parece estar espantado, comandante?

— Estou mesmo. Então não vê, que está arriscando tudo, com essa exigência?

— Não estou arriscando mais que o senhor, Cliff! — respondeu Ela, com simplicidade.

— Dá para ficar apavorado! — sussurrou Cliff, atônito. — Mulheres como a senhora, não existem lá em Terra. Nem é bom pensar no que aconteceria, se existissem!

Por um instante, Ela sorriu com uma expressão meiga, quase carinhosa.

— E homens como o senhor, major, já não existem em Chroma há muito tempo! — respondeu.

— Isso não é culpa minha nem mérito seu! — retrucou Cliff.

Um gongo soou. O som era fraco, difícil de ser ouvido. Devia ser um sinal, pois Ela se virou para o bar e abriu uma gaveta, na qual se ocultava um pequeno monitor.

Cliff não conseguiu ver, o que a minúscula tela mostrava. Mas começou a imaginar umas tantas coisas. Afinal, fazia horas que a tripulação da Orion não tinha notícias dele, e deviam estar preocupados com esse fato.

 

Acompanhando o cientista, Tamara atravessou lentamente a larga avenida em direção à direita.

— É nesse prédio que fica a sede do governo? — perguntou ela, novamente.

— Sim — respondeu o homem.

Após percorrerem uns vinte e cinco metros, Tamara sacou a HM4 e apontou o projetor para o estranho.

— Acho melhor — explicou ela, quando notou a expressão assustada do cientista — que seu pessoal tenha a impressão que eu o obriguei a me mostrar o caminho.

Tamara sabia muito bem, que cada passo seu estava sendo vigiado. Quase colada ao cientista, dirigiu-se ao edifício e subiu cinco degraus. Entraram num saguão fracamente iluminado; do teto escuro, pendiam lustres artisticamente trabalhados.

Também aqui havia uma colunata que conduzia a um elevador. As colunas estavam agrupadas em pares, e eram inequivocamente de estilo coríntio, com as características folhas de acanto no capitel. À direita deles, encontrava-se uma parede de mármore precioso, inteiramente lisa e desprovida de qualquer adorno.

Sem baixar a arma, Tamara observou calmamente:

— É gozado... e no entanto sabem muito bem que estamos aqui.

O cientista encolheu os ombros num gesto de total indiferença e continuou a caminhar.

— Parece que ninguém se incomoda com a nossa presença...

Pegaram um elevador e subiram. Esse elevador não possuía botões seletores; simplesmente parava. As suas portas se abriram e novamente um largo corredor se estendia diante de Tamara e do cientista.

— O senhor sabe onde fica a central de comunicações? — perguntou Tamara, enquanto caminhavam.

— Sim — respondeu o homem.

Aos poucos, Tamara se convenceu que, neste planeta, o governo tinha que estar nas mãos das mulheres. As respostas desse homem não se distinguiam nem pela riqueza das palavras nem pela profundidade dos pensamentos. E tratava-se de um cientista. O tenente Jagellovsk deu de ombros e continuou a caminhar. Esta cena aparecia em alguns monitores de uma sala de controle. As moças, que tinham acompanhado McLane, estavam sentadas diante das telas. Eram elas que tinham ativado aquele sinal, e transferido uma ligação para os aposentos da primeira dama deste mundo. Ela entrou na sala com passos leves e perguntou:

— O que está acontecendo?

A mais nova das duas apontou para a tela na qual o homem e Tamara se aproximavam. Via-se nitidamente a arma na mão da terrana e a expressão não muito inteligente da sua vítima.

— Temos visita — explicou a moça.

Ela. observou o quadro com uma expressão de indiferença. Subitamente a imagem foi substituída por outra, que mostrava Tamara e o cientista numa perspectiva diferente; um outro jogo de lentes tinha assumido a observação.

— O que vamos fazer? — perguntou uma das ajudantes. A mulher refletiu por alguns instantes; depois disse:

— Transfira a imagem para o meu quarto. Para a tela grande.

Saiu da sala e voltou para McLane, que nunca antes se havia sentido tão deslocado e inútil. O que tinha conseguido até agora, literalmente não passava da asseveração de que seria ouvido, e da promessa de que mais alguns cientistas seriam incumbidos dos exames daquelas amostras. Mais nada. E isso decididamente era muito pouco. A mulher voltou e retomou o seu lugar.

— Vire-se por um instante, por favor! — pediu Ela.

McLane acenou, pegou o copo, e obedeceu.

Numa das paredes havia um retângulo, que McLane até agora tinha tomado por uma superfície de vidro sem qualquer significado técnico. Agora esse retângulo se aclarou, transformando-se numa tela de imagem. A música ambiental foi desligada.

— Será que este edifício só consiste em corredores? — alguém perguntou. Tamara e o cientista apareceram na tela.

— Já estamos chegando — respondeu o homem.

McLane virou-se, estupefato.

— Tamara... — gaguejou.

Com voz gélida, sua anfitriã perguntou:

— Muito interessante! Um dos membros da sua tripulação invade a sede do governo com a força das armas. Que resultado espera dessa ação, comandante McLane?

Cliff recostou-se no bar, exausto.

— Acredite-me — sussurrou rouco — mas eu não tinha a menor noção disso!

Sentiu que ela não acreditava nele.

 

CLIFF observou, estarrecido, o que se passava na grande tela. Lá estava Tamara, de arma na mão, empurrando o seu prisioneiro para diante. Postada um pouco atrás de Cliff, estava a primeira dama de Chroma. Trajava um vestido curto, bastante decotado, e feito de um tecido pesado e caro. O cabelo louro, penteado para cima, ficava-lhe como uma coroa. Neste momento, ela realmente irradiava todo o poder que possuía. Como um sol. Mas um sol de uma radiação dura.

— Quem é ela? — perguntou, num tom perigosamente baixo.

Mentalmente McLane comparou as duas mulheres. Aquela, que estava atrás dele, e a outra, que aparecia na tela. A primeira dama deste planeta, indiscutivelmente uma soberana, quase abstrata. E Tamara, que marchava resolutamente em direção a um alvo desconhecido, sem saber se iria atingi-lo.

— Tamara Jagellovsk — disse ele, laconicamente.

— Parte do pressuposto, que esse nome me diz alguma coisa? — perguntou a mulher.

Cliff deu uma curta risada.

— A mim, me diz muito. É o meu oficial de segurança, que me vigia dia e noite. Impede-me de cometer algum desatino. Isso significa... isso só pode significar uma única coisa.

Silêncio... depois a mulher disse, e mais uma vez evidenciou que era a soberana deste planeta:

— Vamos descobrir rapidamente o que isso significa, major McLane. Vai ficar sob custódia até que esse incidente tenha sido elucidado!

— Era só o que faltava!

— É! Nesse meio tempo, pode pensar no que vai querer dizer aos seus superiores em Terra!

Desesperado, McLane gemeu:

— Só existe uma coisa, capaz de sustar o desenrolar dos acontecimentos.

— E que coisa é essa? — perguntou Ela.

— Uma mensagem hiperradiofônica.

— E o texto?

— Essa mensagem teria o seguinte teor: Chroma prontifica-se a suspender imediatamente as experiências com o sol terrano.

A primeira dama do planeta dirigiu-se à tela do videofone e limitou-se a dizer:

— Prendam-na!

Cliff estava abalado. Era incapaz de proferir uma única palavra. Fitou a tela com olhos meio cegos e viu que portas ocultas se abriram, dando passagem a numerosas agentes de segurança, todas trajadas no curioso uniforme de Chroma, e armadas com projetores energéticos. Em questão de segundos, Tamara estava cercada e entregou-se. Durante alguns instantes, o cientista ainda permaneceu parado no mesmo lugar, indeciso; depois resolveu voltar e perdeu-se na extensão do corredor.

 

— O que pretendem fazer comigo? — perguntou Tamara, enquanto estava sendo conduzida pelas ajudantes armadas através de um corredor estreito.

— Está presa! — foi a única resposta que recebeu.

Um minuto mais tarde, o dispositivo eletrônico fechou a porta maciça. Tamara ficou parada no meio da cela e olhou ao redor. Aqui, não havia nada daquele luxo ostentado lá fora; aqui, não se sentia o toque das delicadas mãos femininas, que governavam este planeta com suave firmeza. Tamara passou a examinar o cubículo: paredes lisas de pedra. Uma tela de controle com uma objetiva, que abrangia todo o interior da cela. Uma porta estreita que dava acesso a um pequeno sanitário. Um objeto acanhado que, com muito boa vontade, podia ser considerado um leito. Nenhuma janela.

— Ao menos até aqui, o meu plano me levou — constatou Tamara e sentou-se sobre o delgado colchão de espuma de borracha. Minutos depois, esticou as pernas, entrelaçou as mãos sob a cabeça e começou a refletir. Em linhas gerais, seus pensamentos seguiam o mesmo raciocínio que Mario havia exposto; agora essas idéias circulavam na mente de Tamara. Esperaria mais um pouco. Se não a fossem apanhar, dentro de alguns minutos fingiria um acesso de ira e demoliria a tela de controle. Mas com quê? Claro que a tinham deixado sem a arma e o rádio de pulso.

Ouviu vozes e passos, seguidos do ruído metálico da fechadura. Na porta aberta, nitidamente destacado contra o fundo claro do corredor, estava o comandante McLane. Entrou na cela e a porta fechou-se atrás dele com o clique característico da fechadura. Lentamente McLane se aproximou e olhou para Tamara.

— Ah! — disse ele — tenente Tamara Jagellovsk! Minhas congratulações!

Ela tirou as pernas do leito e disse:

— Queira sentar-se, comandante. Congratulações, para quê?

Cliff ainda não sabia o que devia admirar nessa mulher: a coragem, ou a ingenuidade fora de propósito.

— Conseguiu realizar uma façanha e tanto! — constatou e ficou parado diante dela.

Tamara estendeu os braços e disse:

— Eu só queria entrar em contato com você. Pelo rádio não foi possível.

Disse isso com uma indiferença que desarmava, se bem que o seu estado de ânimo era bem outro.

— Como?

— Isso mesmo, recebi uma mensagem no código beta-x. Iniciaram a ação contra Chroma.

— Exatamente o que eu receava! — disse Cliff, desalentado.

— Precisamos sair daqui e alertar o planeta! — disse Tamara com ênfase. Cliff riu desconcertado.

— Mal acabamos de entrar — disse ele. — Nada mais fácil do que deixar novamente esta encantadora cela. Quer me dar o braço?

 

Tamara ignorou esta observação sarcástica e disse:

— Será que não está entendendo? A frota tática vai atacar!

— E daí? — retrucou Cliff, grosseiramente. — Por acaso sou eu quem vai poder impedir isso?

Tamara refletiu durante alguns instantes.

— Falou com aquela mulher, Cliff? — perguntou.

— Que mais acha que eu podia ter feito com aquela distinta dama? — respondeu ele com outra pergunta. — Flertar eu não flertei, isso eu garanto!

— Quanto a isso, eu tenho minhas dúvidas!

— Besteira!

— E o que conseguiu?

Cliff caminhou lentamente pela cela, botou a língua para a tela apagada, e parou diante de Tamara, que olhava para ele como uma criança.

— Ela me explicou o que era um rouxinol, como canta e por quê. Só não deu tempo para aprender a escala em si bemol.

— Portanto flertou com ela! — constatou Tamara. — Diante de tais ameaças, nenhum ser normal conversa a respeito de rouxinóis ou outros pássaros.

— Isso vem demonstrar mais uma vez, l que as mulheres... bem deixemos isso de lado. Eu inclusive contei a ela o que vai acontecer a esse planeta, se aquelas experiências não forem interrompidas imediatamente.

Cliff reiniciou sua caminhada pela cela; três metros para adiante, três metros para trás. Parou, quando Tamara lhe perguntou:

— É bonita?

— Quem? — quis saber Cliff, perdido nos pensamentos. — Aquela ave? O rouxinol? Não, não é, não. É uma ave que não tem nada de vistoso.

— Não se faça de bobo! Estou me referindo àquela mulher!

Cliff acreditou não ter ouvido direito.

— Se ela é o quê? — perguntou consternado e arregalou os olhos.

— Eu perguntei ao senhor, major Cliff McLane, se a primeira dama deste misterioso planeta é bonita. Bonita, entendeu? Se é uma mulher, que enche os olhos!

Cliff sacudiu novamente a cabeça.

— Até agora eu desconhecia essa sua vocação humorística — disse ele, fervendo de raiva. — Queira me desculpar, parece que a subestimei esse tempo todo. A qualquer momento podemos ser esmagados pelas pedras do teto, e a senhora se interessa apenas pela aparência externa da chefe dessa classe planetária de menininhas!

Tamara exibiu um sorriso meio sonhador.

— Será que eu estou com ciúmes? — perguntou, em voz alta.

A raiva de Cliff evaporou-se num instante e cedeu lugar a uma sensação que, no seu entender, era o prenuncio de um acesso histérico. Estupefato, manteve-se calado e olhou Tamara de alto a baixo.

— O que quer dizer com isso? — perguntou, de repente.

Calmamente, o tenente feminino do Serviço de Segurança Galático respondeu:

— Costuma entender as coisas com uma rapidez, que se tornou notória, comandante. O que houve desta vez?

— No momento, não entendo coisa alguma, e mesmo se eu quisesse entender, dificilmente poderia acreditar naquilo, que a senhora tão pudicamente insinuou em minguadas palavras — disse ele, com voz rouca. Espantado, observou que Tamara se ergueu, algo indecisa, do leito e se postou diante dele. Cliff recuou dois passos.

— Creio que está sofrendo de alguma coisa — disse ele — as missões de McLane sempre foram tremendamente exaustantes!

Tamara avançou novamente em direção a ele: Cliff já não tinha para onde escapar e ficou parado, mais do que espantado.

Tamara estava a um passo dele.

— É verdade — disse ela, baixinho — vez por outra, eu sofri. Pensando bem, sofri um bocado. Agora, parece que vamos enfrentar a nossa última ação em conjunto. — McLane não sabia bem como interpretar essa observação. Estava pensando nisso, quando Tamara lhe puxou a cabeça para baixo com as duas mãos, e o beijou com ardor. McLane pensou que tivesse recebido um choque elétrico. Recuou e bateu com a cabeça na parede da cela.

— Pronto! — disse ela — agora tenho certeza!

Aos poucos, McLane compreendeu que aparentemente Tamara se havia apaixonado por ele. Quando ela reparou essa compreensão aparecer no rosto de Cliff, recuou alguns passos.

— Certeza de quê? — perguntou ele, inquietado.

— Certeza de que também seus beijos são apenas razoáveis.

Cliff ia protestar mas ela ainda acrescentou:

— Mesmo assim, lamento sinceramente que houve tantas brigas entre nós.

Mais uma vez estabeleceu-se uma pausa embaraçosa.

— Nunca tive coragem de lhe fazer certas propostas — confessou Cliff. — Interessado eu estava, vez por outra.

Dirigiu-se a Tamara, pegou-a nos braços e devolveu-lhe o beijo. Na iminência do golpe mortal da frota tática, certamente deveria haver uma série de ocupações mais importantes a que se dedicar. Esta porém, constatou Cliff, era uma das mais agradáveis. Entregaram-se a longos e ardentes beijos.

Embevecidos, não ouviram que a porta se abriu. Com passos silenciosos, a primeira dama do planeta entrou na cela e postou-se rente à parede, observando seus prisioneiros. De repente, pigarreou e disse:

— Estou vendo, comandante, que o senhor é capaz de extrair algo de agradável mesmo das situações mais enroladas!

Cliff soltou Tamara e girou nos calcanhares. Enrubesceu, depois ficou pálido. Começou a sussurrar, mas acabou gritando.

— Já que a senhora e seu planeta vão ser aniquilados por causa da sua soberbice, podia ao menos poupar seu cinismo barato, sua megalomaníaca... sua... — engasgou à procura de um termo apropriado e não reparou que Ela estava sorrindo.

— Pode desabafar à vontade, comandante. Estou acompanhando suas exposições elucidativas com admiração e interesse!

McLane desistiu; fez um gesto resignado com a mão.

— Deixe para lá! — disse ele, baixinho.

— Por que está tão furioso major McLane? — perguntou Ela. Afinal de contas, ainda está vivo e o seu encantador oficial de segurança também. Sem falar nos meus rouxinóis.

— Ainda! — disse Cliff. — É somente uma questão de horas ou minutos!

Apontou para Tamara.

— O tenente Jagellovsk arriscou a própria vida ao penetrar aqui, só para me informar da iminência do golpe preventivo. As naves já estão se dirigindo para Chroma. Devem aparecer a qualquer momento. É isso que ainda queria lhe dizer...

Deixou-se cair sobre o leito e fixou o olhar no chão da cela. Ela continuou a sorrir...

 

Dezoito horas e trinta minutos.

Em Terra. Na rede de galerias subterrâneas e submarinas em torno da Base 104. A sala de reuniões estava repleta de homens calados, mal dormidos. Tinham plena consciência da situação difícil e das circunstâncias, que os fizeram comparecer ali para deliberar. O rosto estreito de Von Wennerstein, o porta-voz do governo, espelhava-se no tampo da mesa, literalmente coberto de documentos, garrafas e copos. A projeção tridimensional do mapa astronômico estava ligada, e uma outra mostrava a esfera espacial de trinta e dois anos-luz de diâmetro, que tinha o sol terrano por centro. Aquele sol, que estava ficando quente demais.

— O governo, meus senhores, decidiu desferir um golpe preventivo contra Chroma — disse Von Wennerstein. — Segundo o parecer do Centro de Computação, as chances de êxito de um golpe em grande escala são ótimas. Diante disso, o governo viu dirimidas as últimas dúvidas, e emitiu a ordem de execução. O início da operação está previsto para as dezenove horas.

— Portanto, daqui a meia hora! — disse o marechal Wamsler e afastou a manga do jaquetão, para poder consultar o relógio de pulso. — Mais precisamente, daqui a vinte e nove minutos.

— Pessoalmente — observou o coronel Villa — considero essa ação desnecessária e desumana, se bem que continuo inteiramente a favor da intocabilidade do nosso sol. Não houve alternativa para esse golpe preventivo?

Mais uma vez Wamsler tomou a palavra.

— Acontece que a outra parte não se manifestou uma vez sequer — disse com uma voz, que ele mesmo não reconhecia. Há vinte e três horas que estava sem dormir.

— Isso é verdade! — concordou Villa.

— Permitam-me fazer uma comparação — disse Kublai-Krim e sacou o projetor. Ergueu-o bem alto para que todos pudessem vê-lo; depois apontou a arma para Villa. O coronel nem pestanejou.

— Disponho de uma arma mortífera — começou Krim. — E eu agora aponto esta arma para o coronel Villa. Se eu puxar o gatilho, o coronel Villa morre ou, ao menos, vai ficar gravemente ferido.

"Não é preciso que o coronel Villa me alerte quanto ao efeito do meu disparo. Eu sei que será mortal. E ele também sabe disso. Ai saca a sua arma e me liquida. O caso é claro e insofismável: agiu em legítima defesa. Esta comparação ilustra a nossa posição perante Chroma."

O coronel Villa ergueu a mão.

— Já que fui a vítima, suponho ter o direito de dar a minha opinião — disse ele. — Como encararia a seguinte situação, Krim: Está convicto que a arma na sua mão é de brinquedo. Aí dispara e, para espanto seu, verifica que é verdadeira?

— Isso seria um acidente trágico! — respondeu Kublai-Krim.

— Também não se coloca um negócio desses nas mãos de uma criança — observou Sir Arthur, com uma vivacidade surpreendente. — Isso pode levar a resultados funestos.

— Mas não vai responsabilizar a criança por esses resultados! — gritou Villa.

— De forma alguma!

— Então, por que responsabiliza Chroma? — retrucou Villa. Estava aborrecido.

— Porque o pessoal de Chroma não é criança. Um povo, que é capaz de conduzir energia solar através de uma distância de quinze anos-luz, não tem nada de infantil. Sabem muito bem o que estão fazendo. Tenho razão?

— Tem e não tem — disse Villa. — Quero lhe pedir uma coisa Krim. Envie uma nave para Chroma. Agora mesmo. E com um de nós a bordo. Von Wennerstein, por exemplo; esse ao menos sabe discutir. — Villa estava amargurado como nunca.

— Grato pelo conceito lisonjeiro! — respondeu Von Wennerstein, com rispidez. Villa limitou-se a dar um aceno benevolente.

— E quanto às ordens já emitidas? Villa já sabia o que propor.

— Modifique-as! — disse em voz alta. — Suspenda o ataque imediato, e mantenha a frota apenas de sobreaviso. Enquanto isso, um de nós argumenta com a outra parte. Se pararem aquelas experiências, pode ordenar o regresso da frota. Por outro lado, se todos os esforços forem inúteis e a razão não vencer, mande desferir o golpe planejado.

Von Wennerstein levantou-se.

— Meus senhores! — disse ele. — Temos que obedecer às disposições. A decisão do governo é clara. Não é da nossa alçada modificar nem mesmo nos desviar dela. Eu sou apenas o elemento de ligação entre os poderes legislativo e executivo.

— Uma expressão maravilhosa! — comentou Villa, em tom mordaz. — Mas não encobre o fato de que o senhor não possui um pingo de coragem pessoal. O humilde comandante de um cruzador espacial demonstrou ser mais corajoso do que todos nós juntos.

— O quê? — exclamou Von Wennerstein e recuou dois passos, assustado.

— O major McLane encontra-se em Chroma. Voou para lá, de livre e espontânea vontade, numa tentativa de convencer o governo daquele planeta a suspender as experiências com o nosso sol. Se algo ainda conseguir sustar o golpe preventivo, o devemos exclusivamente a Cliff McLane.

Von Wennerstein dirigiu um olhar penetrante para Villa.

— Isso vai lhe custar caro, coronel! — afirmou, em tom ameaçador. O sorriso altivo e tranqüilo de Villa não se alterou.

— Quanto muito, pode me acusar de utilização indébita de bens do governo, já que o major McLane empreendeu esta missão espontaneamente no seu período de férias. Além disso, essa forma de acusação não me afeta mais.

Von Wennerstein consultou o relógio e o comparou com o grande cronômetro na parede.

— General Kublai-Krim?

— Sim? — respondeu o chefe das Forças Armadas Espaciais.

— Suas unidades estão em estado de alerta?

— Estão, sim.

— Então, na minha qualidade de representante do governo do sistema, ordeno-lhe que inicie o golpe preventivo contra Chroma. Libere a decolagem da frota e forneça as coordenadas exatas. São dezoito horas e cinqüenta e cinco minutos.

Von Wennerstein virou-se de novo e olhou com tranqüilidade para os rostos à sua frente. Só não olhou para Villa. Kublai-Krim saiu do gabinete e dirigiu-se à central de comunicações. Sentou-se diante dos microfones e leu o texto adrede preparado. A operação contra Chroma havia começado. Dez horas mais tarde as detonações abalariam o planeta.

Os homens estavam conversando em tom baixo, reunidos em pequenos grupos. O assunto de Wamsler e Villa era Von Wennerstein. Os comentários que teciam, dariam de sobra para lhes mover um processo monstro por difamação. Uma ordenança entrou correndo no gabinete e dirigiu-se, ofegante, a Wamsler.

— Marechal, acabamos de receber essa mensagem através da Estação Avançada IV.

Wamsler leu o texto rapidamente, mostrou-se surpreso e leu a mensagem de novo. Depois, sem dizer uma palavra, entregou a folha a Villa e não tirou o olhar do rosto do coronel, enquanto este se inteirava do teor da mensagem.Villa terminou de ler e os dois homens se entreolharam, perplexos.

— Meus senhores! — gritou Wamsler — acabo de receber uma mensagem radiofônica bastante estranha. Queiram se aproximar. O assunto é de suma importância!

Esperou até que os presentes se agrupassem em torno dele, depois começou a ler em voz alta.

 

Inquietados, não conseguiram dormir. Hasso, Atan e Helga estavam sentados na cabine de comando, absortos em pensamentos, enquanto Mario de Monti caminhava nervosamente de um lado para outro.

— Vou lhe dar um calço, já... já...! — ameaçou Hasso. — Essa sua marcha forçada está acabando de vez com os nossos nervos. Pare com isso e sente-se!

— Agora estão decolando — constatou Helga, pensativa. — E dentro de dez horas está tudo acabado.

Hasso continuou:

— Em dez horas Cliff consegue falar um bocado — respondeu. — E quando fica embalado, não pára tão cedo.

Helga examinou as unhas. "Preciso retocar o esmalte", pensou. Depois disse:

— Só conheço uma pessoa capaz de deter Cliff: Tamara. E desta vez, ela não pretende detê-lo. Acha que ela conseguiu pousar?

— Claro!

— Portanto, vamos continuar esperando.

Também não havia outra coisa que pudessem fazer. A rota estava a caminho e barreiras eletrônicas mantinham a Orion presa ao solo. Se tentasse decolar, aqueles campos energéticos seriam ativados e a destruiriam num abrir e fechar de olhos.

E Cliff McLane não estava a bordo. E Tamara Jagellovsk tinha desaparecido.

— Que horas são? — perguntou Hasso, sem se mexer. Atan Shubashi consultou o relógio.

— Vinte horas e quinze — respondeu. Silêncio...

 

Na cela da prisão, a cena era ainda mais grotesca; a primeira dama do planeta ocupava o vão da porta em pose displicente e observava Tamara Jagellovsk, que parecia uma leoa pronta a dar o bote. Cliff McLane estava sentado na beira do leito e mantinha-se em silêncio. Ela exibiu um sorriso altivo.

— As informações do seu oficial de segurança não estão atualizadas, comandante McLane — disse Ela, a meia voz. McLane ergueu a cabeça.

— Claro. Daqui a pouco a frota vai escurecer o céu de Chroma.

— Creio que não — respondeu Ela. — As experiências com o sol terrano foram suspensas.

Cliff levantou-se rapidamente e fitou aquela mulher com olhos arregalados.

— Isso é verdade mesmo? — perguntou I com voz rouca.

— Por que haveria de mentir? — retrucou Ela.

— E por que mudou a sua decisão? Assim, de repente? — quis saber McLane. Ela ainda estava sorrindo.

— Com a sua lábia, major, acabou me convencendo que Terra não ia ficar de braços cruzados. Depois que me alertou sobre as conseqüências, que o nosso recurso estava trazendo para o sol terrano, resolvi agir. Mas me considerou muito ingênua, Major, ao supor que eu desconhecia a premência da sua missão!

McLane encolheu os ombros.

— Eu pensei que a senhora fosse obstinada, como todas as mulheres — respondeu ele. — Mas então por que esperou literalmente até o último segundo?

— Porque eu relutava em aceitar a idéia, de que os seus generais fossem realmente desfechar um golpe. Enviei uma mensagem hiperradiofônica que Terra confirmou. Eu acreditava que a presença de uma nave terrana pudesse evitar um ataque. Foi nesse ponto que me enganei.

McLane colocou o braço nos ombros de Tamara e foi até a porta. Parou diante da primeira dama de Chroma.

— Foi um exemplo não muito brilhante da arte diplomática dos nossos estadistas — admitiu McLane.

— Quinhentos anos se passaram, e Terra continua a mesma. Não mudou nada! — disse a mulher, com um traço de amargura. — Sem outra alternativa, tivemos que ceder à pressão. Agora, só nos resta fazer votos que o resultado das análises seja positivo.

— Isso significa — quis saber Cliff — que podemos voltar?

Ela deu um passo para o lado e franqueou a porta.

— A Orion pode retornar, juntamente com a tripulação.

Surpreso, Cliff hesitou por alguns instantes; depois seguiu na direção que aquela mão estendida apontava.

— Tomei a liberdade de mandar lhes servir uma pequena refeição, antes que voltem à sua nave — disse a primeira dama.

— Fico-lhe muito grato — respondeu Cliff, ainda algo vacilante. — Vou levar as melhores recordações da minha estadia em Chroma.

Uma larga porta se abriu diante deles.

— Assim espero — disse a mulher, enquanto entravam no refeitório. — Porque a sua estadia em Chroma mal começou!

Cliff estacou, pasmado, e perguntou:

— Como... Como devo interpretar isso?

— Sentem-se, por favor!

Sentaram-se. Um lanche farto, preparado com esmero, já os aguardava na pequena mesa. A louça e os copos destacavam-se pelas suas formas ultramodernas. Numa mesinha ao lado estavam os projetores energéticos e o rádio de pulso. Cliff disse:

— Com licença — e agarrou o rádio. Apertou a tecla de emissão e, segundos depois, recebeu a confirmação.

— Aqui fala Cliff — disse. — Podem parar de tremer. O perigo foi afastado. Suspenderam as experiências com o nosso sol. Daqui a pouco eu volto à nave. Desligo.

Recolocou o rádio na mesinha. Comeram e beberam em silêncio. Finalmente, Cliff fez uso do guardanapo; depois o amassou e jogou no prato. A primeira dama ainda lhe devia uma resposta e Cliff voltou a perguntar:

— Pode me explicar agora aquela história das férias prolongadas, Madame?

— Não há dúvida, que Terra e Chroma vão agora enfrentar um período de longas e dificultosas negociações. Vamos ter que discutir a questão do sol, do planetóide e, principalmente, o perigo representado pelos extraterranos. Para facilitar as coisas, vou solicitar ao seu governo que o senhor fique estacionado em Chroma, enquanto durarem essas negociações. Como oficial de ligação.

Tamara Jagellovsk fez uma cara, como se o lanche todo tivesse sido um sortimento de limões dos mais azedos.

— É uma tarefa encantadora — comentou Cliff baixinho.

— Na verdade, Terra não nos julga dignos de relações diplomáticas oficiais. Mas contatos extra-oficiais podem contribuir para uma sensível melhoria do clima.

Tamara olhou de McLane para a Imperatriz e reconheceu que aqueles poucos segundos na cela só tinham resultado de uma situação excepcional. Este assalto ela havia perdido claramente para aquela mulher de vestido branco e cabelos cor de trigo. Mas ela, Tamara, tinha sido destacada para acompanhar Cliff durante três anos. E deste prazo somente seis meses haviam decorrido.

— Mas... o que eu devo fazer? — quis saber o comandante.

— Oh! Há um sem-número de coisas, que um homem da sua capacidade pode fazer aqui em Chroma.

— Ah... é? — perguntou Cliff.

— É sim. Por exemplo: poderia prestar assessoria em vários campos; poderia ser instrutor; aliás, eu ia lhe pedir mesmo para ministrar um curso de aperfeiçoamento aos nossos oficiais. E... talvez nós tenhamos exagerado um pouco a influência feminina em Chroma. Homens como o senhor, major McLane, talvez pudessem corrigir um pouco essa evolução unilateral, não é?

Tamara deu uma risadinha maliciosa.

— Homens como o senhor, comandante, podem agora me levar de volta à nave. Afinal, alguém tem que levar essa missão adiante. De acordo?

— Um momento — disse Cliff, dirigindo-se à primeira dama. — Pelo que eu entendi, a senhora pretende explicar aos meus superiores porque a Orion VIII vai ter que voltar sem mim?

— Evidente!

Ela acenou com altivez.

— Mas, certamente vai permitir que eu leve as duas Lancets de volta, e me despeça do meu pessoal?

Mais uma vez a mulher acenou. Cliff levantou-se. Ela apertou um botão e uma moça apareceu, para conduzir os dois terranos através dos intermináveis corredores da sede do governo. Cliff e Tamara levaram as duas Lancets de volta àquele campo de pouso incomum. Mario de Monti manobrou as naves auxiliares para dentro dos seus poços de lançamento. Minutos depois, todos os membros da tripulação estavam reunidos na cabina de comando.

— Meus amigos — começou Cliff — isso me acontece pela primeira vez na vida. Vou ser o único homem a mandar em praticamente tudo. Minha influência nesse planeta vai ser enorme. Não posso deixar escapar essa chance.

Helga Legrelle olhou para ele, desconfiada.

— Que tal — zombou ela — se você contasse aos seus queridos amigos tudo que se passou!

— De acordo — respondeu Cliff e evitou olhar para Tamara. Pela primeira vez, desde o dia em que foi removido para a Patrulha Espacial, sua consciência estava pesada. Em rápidas palavras relatou os acontecimentos, omitindo, por uma questão de tato, o caso com Tamara.

— Aconteceu um bocado de coisa! — constatou Mario.

— Eu que o diga — respondeu Cliff. — Devem ter ficado bastante preocupados, ou não?

— Se ficamos! — respondeu Atan Shubashi, mal-humorado. — Não faz idéia, quantos planos para uma operação de emergência discutimos e depois abandonamos. No fim, queríamos pegar o Overkill e destruir aquela estação de controle; mas chegamos à conclusão que isso seria arriscado demais.

— Helga — disse Cliff, de repente; tinha se lembrado de alguma coisa. — O seu aparelho transmissor ainda funciona?

— Claro que funciona! Ou você acha que, por causa da sua ausência, a Orion virou sucata? O que você quer?

Cliff olhou com uma expressão indecisa para Tamara, que já tinha voltado ao seu lugar cativo, em cima daquela escora.

— Gostaria que você estabelecesse uma ligação com o gabinete do coronel Villa. Pelo canal hiperespacial, é claro. E depois... — Cliff lançou um olhar suplicante para Tamara — a senhora podia me fazer a gentileza e tentar convencer seu chefe a falar comigo. Ficaria encantado, se me fizesse esse favor!

Tamara resmungou:

— Creio que durante as últimas horas, já teve ensejo bastante para ficar encantado.

— Não é por outra razão que estou lhe pedindo mais este favor — respondeu Cliff, suavemente. A tripulação estava cansada demais para perceber a tensão, que reinava entre McLane e Tamara.

— Não posso lhe recusar nada, major — disse Tamara, com aquela voz doce como mel e falsa como o quê.

Ouviram a voz de Helga Legrelle, que já tinha estabelecido contato com a Estação Avançada IV.

— Aqui fala cruzador espacial rápido Orion VIII... — disse ela no microfone. — Por favor, trânsito livre para Terra... mensagem urgente para Villa, chefe SSG... solicito confirmação.

Após quinze segundos, a Estação Avançada IV respondeu:

— EA4 para Orion VIII em Chroma... confirmado. Tentamos estabelecer ligação.

Mais quinze segundos... três minutos... e então:

— Aqui Villa. Pode falar.

Tamara já estava ao lado de Helga, segurando o microfone. Cliff despegou-se da mesa de comando e postou-se junto a Helga, que o contemplou com um olhar de respeito e admiração.

— Aqui Tamara Jagellovsk — disse Tamara e transferiu a ligação para os alto-falantes do intercomunicador de bordo, para que todos pudessem ouvir a conversa. — Estou falando com o Coronel Henryk Villa?

— Está, qual é o problema?

— Aqui é a Orion. Acabamos de ser soltos pelo governo de Chroma. Cliff McLane teve que aceitar uma tarefa especial; quer falar com o senhor a esse respeito.

— Vamos logo com isso, menina! Tamara entregou o microfone a Cliff; ainda estava quente do calor das suas mãos. Ele agradeceu e disse:

— Aqui McLane, coronel Villa... a frota tática já recebeu ordens para regressar?

— Teve dúvidas quanto a isso? Minutos após o início da operação recebemos uma mensagem de Chroma, confirmando a suspensão das experiências solares. A atividade do nosso sol já está começando a se normalizar. Algumas naves nem chegaram a decolar, e todas as outras retornaram às respectivas bases. Isso o deixa mais tranqüilo?

— Inteiramente! — respondeu Cliff, que sentiu um alívio indizível. Pigarreou e disse: — Tenho mais um assunto a abordar; é algo embaraçoso. A Orion foi liberada, mas apenas sob uma condição.

— Que condição?

— Que eu permaneça aqui, para servir de oficial de ligação entre Terra e Chroma. Querem que eu prepare e fomente os contatos entre o mundo pátrio e uma colônia em potencial. Quer explicar isso a Wamsler? Com muito carinho, coronel?

— Eu acho — disse o coronel Villa — que o senhor podia ter escolhido uma tarefa melhor.

— Eu me sacrifico para que a Orion possa voltar! — constatou Cliff. Helga e Tamara soltaram uma risadinha irônica. Villa continuou:

— Por mim que seja! Fique aí e trate de arrumar as coisas direito. Vamos enviar alguns emissários com poderes mais amplos que os seus. De acordo?

— Sim estou. Eu lhe agradeço, coronel Villa.

— Não foi nada. Agora posso voltar pra cama?

— Pois não. Desligo.

— Desligo — disse Villa e McLane devolveu o microfone a Helga, que ainda trocou algumas palavras com a Estação Avançada IV e depois desligou o aparelho.

— E agora? — perguntou Hasso.

— Vou fazer as malas e me despedir de vocês. Mario, como primeiro-oficial, você assume o comando da Orion VIII. Assim que eu descer, vocês partem. Antes que estas distintas senhoras mudem mais uma vez de opinião!

Desceu ao camarote e arrumou a bagagem que, além de roupas e livros, compreendia uma coleção de cassetes com músicas de Tomas Peter, um toca-fitas e munição para a arma. Depois Cliff colocou as duas malas ao lado da porta da eclusa, pegou o elevador e voltou para a cabina de comando. A conversa cessou abruptamente.

McLane dirigiu-se primeiro a Tamara. A expressão do seu rosto era rígida, quando disse:

— Tamara, agradeço-lhe a ajuda que me prestou nessas últimas horas. E peço-lhe que seja menos severa com Mario de Monti do que foi comigo. Passe bem.

Tamara exibiu um daqueles seus sorrisos falsos.

— Vou sentir muito a sua falta, comandante — disse ela — afinal, já nos habituamos bastante um ao outro, não é?

— Até um certo ponto — respondeu Cliff e despediu-se dela com um aperto de mão.

Depois virou-se para Helga.

— Garota, continue boazinha e não seja saliente demais. Se quiser dançar nesses próximos tempos, recorra aos préstimos do meu sucessor.

Helga agarrou a mão de McLane.

— E você, Cliff, continue o mesmo de sempre. Não deixe que essas meninas o estraguem com os seus paparicos!

— Isso não vai acontecer — respondeu Cliff — afinal de contas, estou representando Terra. Já me fiz um lembrete mental dessa responsabilidade. Em letras garrafais.

— Espero que você saiba ler — respondeu Helga.

Cliff encareceu a Mario que não solicitasse em demasia as máquinas e os controles manuais, deu um tapa nas costas de Atan e soltou um riso insolente, quando reparou o brilho diabólico nos olhos de Hasso. Depois desceu de bordo e postou-se junto a duas enormes árvores. Cautelosamente, como um balão, a Orion VIII decolou. Ouviu-se o silvo dos possantes propulsores e o reluzente disco ergueu-se sobre o parque, em posição horizontal e aumentando gradativamente a velocidade. A face inferior, escura, fundiu-se com o negrume do céu.

Cliff pegou as duas malas e caminhou lentamente em direção àquelas colunas iluminadas, que flanqueavam a larga avenida. Respirou profundamente: durante os próximos seis meses iria enfrentar um dos perigos mais estranhos da sua vida. A Orion já estava no espaço cósmico, lançando-se em direção a Terra.

 

ESTA noite era diferente das outras. Havia uma nota dissonante. As pessoas que estavam sentadas em torno da mesa naquele nicho, sentiam que algo faltava, ao mesmo tempo que havia algo demais. A barulheira. Era quase meia-noite. No cassino Starlight, reinava uma animação decididamente exagerada. Tinha atingido o auge. Não se poderia tornar mais frenética e mais barulhenta do que agora. As pistas de dança pululavam de pares, que se contorciam aos ritmos de Tomas Peter. Homens e mulheres acotovelavam-se nos bares, entornando quantidades incríveis de bebidas alcoólicas. Os alto-falantes berravam a pleno volume, tentando subjugar a vozeria daquela multidão excessiva, que povoava os diversos níveis do enorme estabelecimento. Era como se todos, que habitavam o vasto complexo situado entre Burketown, Endeavour Straight e as ilhas Wessel, estivessem festejando ao mesmo tempo. Festejando o quê? Certamente, não a ausência do major Cliff Allistair McLane. Fazia três dias que a Orion VIII havia pousado na Base 104. Atan Shubashi, que trajava o bem cuidado uniforme de gala, dirigiu-se ao marechal Wamsler, sentado à sua frente.

— Gostaria de fazer uma pergunta, marechal — disse ele, em voz alta.

O estado de ânimo de Wamsler não podia ser melhor. A toda hora soltava uma das suas risadas retumbantes. Envergava o uniforme com a displicência de um homem, que não precisava pagar do próprio bolso pelo fardamento oficial.

— Pois não, Shubashi, pode perguntar — disse ele.

— Afinal, qual foi a opinião da Suprema Comissão Espacial? — perguntou Atan.

Wamsler soltou outra gargalhada e largou a palma da mão na mesa, quase derrubando os copos.

— Falar, quase não falaram — respondeu.

— Sim, mas...

— Mas que riram, riram! Riram tanto, quanto eu agora. McLane sozinho em Chroma! Sozinho com meio milhão de mulheres birutas! McLane em Chroma, isso é...

Não se conteve e caiu em nova gargalhada. Tamara forjou um sorriso cortês. Exatamente aquele sorriso, que exibia perante um superior crente de estar divertindo todo mundo com suas piadas. Helga olhou para Wamsler e sacudiu a cabeça, num gesto de desaprovação.

— Não estou achando isso tão engraçado assim, não! — disse ela, contrariada.

— E por que não, tenente Legrelle? — gritou Wamsler, ainda gargalhando.

— Ninguém sabe o que estão fazendo com o coitado do Cliff lá em Chroma!

— Isso depende das circunstâncias — respondeu Hasso tranqüilamente.

— É precisamente a resposta que eu ia dar! Depende das circunstâncias. Veja! Temos a consciência meio pesada e pretendemos ajudar esse pessoal em Chroma. Provavelmente, parte da frota vai ser enviada para aquela região, sob o pretexto de realizar manobras. Na realidade, vai aumentar a segurança de Chroma. Segurança contra os extraterranos, é claro.

— Pela lua de Mercúrio! — disse Mario, estupefato. — Não é que, de repente, Terra resolveu mostrar o seu lado bom?

Wamsler ergueu a mão.

— E tem mais. Naturalmente vamos permutar programas de pesquisa. Por exemplo: estamos tremendamente interessados naquele raio, com que desviaram a energia do nosso sol. Vamos manter um intercâmbio constante de cientistas e técnicos.

Tamara zombou.

— Isso vai deixar aquelas senhoras um bocado contentes! — disse ela.

— Com certeza! — afirmou Mario.

— Pode ter razão — disse o marechal Wamsler, em meio a outro acesso de riso. — É de se supor, que nem todas as mulheres em Chroma sejam velhas!

Desta vez a risada foi geral. Mario ergueu o copo e segurou-o contra a luz. Olhou através daquele líquido amarelo dourado e parecia estar às voltas com pensamentos profundos.

— Uma coisa eu não entendo — disse ele, com voz abafada.

— Eu também não entendo muita coisa — disse Atan, tentando consolar o companheiro. — Posso ajudá-lo?

Mario sacudiu a cabeça larga.

— Dificilmente!

— De que se trata? — perguntou Helga Legrelle, que estava esperando dançar com Mario, como Cliff havia sugerido.

— Eu não entendo por que essa suprema mandatária não examinou toda a tripulação da Orion. Era o mínimo que ela devia ter feito!

— Não foi preciso — disse Tamara, reservada; imaginava o que viria agora.

— E por que não?

Mario olhou para Tamara com olhos grandes e tristes.

— Ela teve ensejo de conhecer dois membros da tripulação e estendeu suas conclusões aos demais. Foi isto que aconteceu. Ela estava convencida que todos nós éramos tão bonzinhos e capazes como o major McLane. Mesmo assim — insistiu o subcomandante — ela devia ter visto todos nós!

— Agora que eu estou começando a ficar curioso! — observou Hasso.

— Assim, ela me teria conhecido, antes de nomear um oficial de ligação.

— Entendo — disse Helga e riu maliciosamente. — Você acha que, nesse caso, ela teria escolhido você, e não Cliff?

— Evidentemente. Você tem dúvidas? Helga agarrou o braço de Mario.

— Venha — disse ela. — Você pode me seqüestrar para uma dança, antes que toda a tristeza da galáxia desabe sobre sua cabeça.

Mario colocou o copo na mesa e arrastou Helga Legrelle para a pista de danças.

— Falando sério — perguntou Tamara.

— Quanto tempo Cliff vai permanecer em Chroma?

Wamsler encolheu os ombros.

— Meio ano, no máximo. Depois, vou ter que chamá-lo de volta; não posso esquecer que ele foi removido em caráter punitivo para a Patrulha Espacial. E isso me obriga a selecionar novas tarefas para ele. Mas estou convencido de que o major McLane vai ter uma participação decisiva no fomento da cooperação entre Chroma e Terra.

— É exatamente isso que eu receio — murmurou Tamara e acenou afirmativamente, quando Wamsler a convidou para dançar. A esta altura, recorreria a qualquer meio para se distrair.

Seis meses sem Cliff McLane. Seis meses sem brigas... seis meses.

— Você reparou alguma coisa, Hasso? — perguntou Atan Shubashi, curioso.

— Eu vivo reparando coisas. O que eu devia ter reparado hoje de noite?

Atan apontou o indicador para Hasso e disse em tom misterioso:

— Houve alguma coisa entre Cliff e Tamara, pode crer.

Hasso, acenou, concordando.

— O que há entre eles é sempre a mesma coisa: desavenças.

Atan sacudiu a cabeça energicamente.

— Desta vez, houve algo de especial.

Hasso fez um gesto meio descrente.

— Só se for uma briga mais violenta que as outras — disse ele e virou o copo. — Mais do que nunca estou convencido que esses dois nutrem uma aversão especialmente cordial um pelo outro.

Wamsler e Tamara voltaram da pista de dança. Wamsler transpirava profundamente, enquanto Tamara não mostrava qualquer sinal de cansaço.

— Foi uma noite encantadora — disse o marechal. — Espero que consegui contribuir um pouco para isso. Mas vejo que já são duas da manhã. Está na hora de um homem velho ir para a cama. Muito grato, minha cara.

— Não há de quê, marechal — respondeu Tamara, bem educada. — Foi um prazer.

Com um aceno jovial Wamsler despediu-se do garçom e de alguns conhecidos seus, e desapareceu com passos inseguros na direção de um dos elevadores que levavam à rede de galerias submarinas da Base 104.

A roda ficou reduzida a Helga, Atan, Mario e Tamara.

— Mario — disse Tamara. — O senhor tem um carro. Poderia me levar em casa?

— Já quer ir? — perguntou Helga.

— Quero, sim. Já é tarde e eu estou cansada.

— Está bem — disse Mario de Monti. — Então vamos.

Despediram-se dos amigos e abriram caminho por entre as mesas e os pares dançantes até a escada rolante que descia ao estacionamento. Minutos mais tarde, Mario freou o carro diante do enorme prédio de apartamentos.

— Muito bem — disse ele. — Mais uma tarefa concluída. Graças à nossa intervenção, o planeta Chroma escapou ileso.

Tamara acrescentou, séria:

— E nós temos três semanas de férias pela frente. O que vai fazer?

Mario encolheu os ombros, indeciso.

— Vou praticar esportes, botar o sono em dia e passar as noites no cassino em companhia das moças das diversas ante-salas.

— O senhor é um sujeito feliz, que não complica as coisas — disse Tamara, com um traço de amargura.

— O que mais um pobre solteirão da Navegação Espacial pode fazer? — respondeu Mario com outra pergunta.

— De alguma maneira tem razão. Vamos nos ver em breve?

— Prometo chamá-la se me ocorrer algo de interessante.

— Ótimo! — respondeu Tamara e despediu-se com um aperto de mão. — E obrigado pela carona!

Mario fez uma continência displicente.

— Disponha sempre, camarada Jagellovsk — respondeu.

Tamara desceu e por alguns segundos ainda ficou olhando atrás do pesado carro que se perdia rapidamente na distância. Depois chamou o elevador e subiu ao centésimo décimo primeiro andar. Abriu a porta do apartamento e estava em casa. Em casa, com a música de Tomas Peter... com a "Psicologia dos Astronautas" de Hammersmith... com a vista deslumbrante sobre metade de Groote Eylandt. Estava em casa... e estava só. Sem Cliff McLane.

 

As coordenadas: Um/Sul 019. Ninguém mais pensava naquela estrela, naquele anão vermelho e seu satélite que, em conjunto, formavam o sistema Ross 614A e B. Um planeta e um sol de brilho embotado giravam em torno de um centro de gravidade comum. A uma distância de treze anos-luz de Terra, a dois anos-luz de Chroma. E como na opinião geral aquele incidente em Chroma tinha sido encerrado, graças à intervenção corajosa do major McLane, poucas naves se dirigiam a essa região do espaço. E isto foi um erro.

Ross 614 A e B encontravam-se exatamente no centro de um longo e tubular corredor, invisível na solidão do universo, mas nem por isso menos perigoso. Nas profundezas da Via Láctea, originava-se uma torrente constituída de partículas minúsculas e que há anos vinha atravessando aquele sistema em direção ao planeta Chroma. Pressão de radiação...

A perda de massa de uma estrela pode ser ocasionada também por pressão de radiação. No caso, a radiação era emitida pela própria estrela: um sol desconhecido, muito claro, situado nas proximidades da barreira de hidrogênio. Sobre qualquer superfície, por menor que seja, essa radiação exerce uma determinada pressão que pode ser medida. E como a estrela emissora era enorme, luminosa e rica em energia, a pressão resultante apresentava valores condizentemente altos. E entre as partículas, que aquela radiação arrastava, uma se distinguia por suas propriedades físicas especialmente perigosas: era hidrogênio. E uma força inconcebível impelia esse hidrogênio para a região em torno do sol Xun, que estava morrendo lentamente. Cliff McLane e a primeira dama de Chroma encontravam-se nas proximidades daquele sol agonizante. Então, Cliff descobriu o hidrogênio.

 

Dezessete dias após a partida da Orion VIII de Chroma. A nave enviada por Terra já havia chegado com sua carga preciosa, que incluía um grande número de funcionários do governo. Ela havia aceito a sugestão de Cliff e recebeu a tripulação em audiência, agraciando-a, não com condecorações, mas sim, com um longo período de férias. Depois Cliff pediu a nave emprestada e decolou em companhia de Ela, a fim de realizar análises mais precisas com auxílio de aparelhos terranos.

— Há anos — disse ele — que o hidrogênio está sendo impelido para este distrito espacial.

— Eu não entendo.

Cliff apontou para a tela central. Um monitor especial, que só mostrava essa massa gasosa, revelou a extensão do espaço já ocupado pelo hidrogênio.

— Eu sou tudo, menos um astrofísico — disse Cliff, pensativo — mas é claro que tive que aprender algumas coisas a respeito da origem dos sóis.

Ela deu um daqueles sorrisos perturbadores.

— Não há nada mais importante a discutir que o nascimento de uma estrela?

Cliff devolveu o sorriso.

— No momento, não.

Ela reclinou-se graciosamente e disse, baixinho:

— Então, por favor, exponha a sua teoria, major!

— A força de gravitação pode compactar aquele hidrogênio. Se a pressão no interior for suficientemente alta, origina-se um sol. É claro que isso é um processo que não passa despercebido e que dá um bocado o que falar.

— É perigoso?

— É, sim. Para Chroma. Se os seus técnicos conseguirem levar o hidrogênio para o interior da estrela, vão aumentar a sua força de radiação, já que vai haver uma maior produção de núcleos de hélio. É claro que eu não sei precisamente que quantidades, temperaturas e forças são necessárias para isto. Mas o processo já foi iniciado.

Cliff bateu com a unha do indicador sobre a tela central. Via-se o seguinte quadro: uma esfera, prolongada por duas protuberâncias que apresentavam comprimento e espessura diferentes. Uma dessas protuberâncias apontava exatamente na direção de Chroma e situava-se sobre a trajetória que esse planeta descrevia em torno do sol Xun.

O outro prolongamento apontava para o espaço cósmico. Apontava mais ou menos para a região, na qual se devia localizar o centro da Via Láctea. E no centro da esfera...

— Estou vendo — disse a mulher ao lado de Cliff. — O que significa essa esfera?

— O centro dessa esfera é o sol de Chroma.

Não havia dúvida que a física não era o forte de Ela. Perguntou insegura:

— Isso significa que a força gravitacional do sol já atraiu o hidrogênio? Então, por que ainda estamos vendo a estrela?

McLane apontou para os aparelhos especiais, que estavam conectados à tela. Eram aparelhos terranos, e estavam sendo empregados aqui, para apressar o exame das numerosas possibilidades de uma ação de salvamento.

— Porque a concentração do gás é muito fraca. Somente aparelhos da mais alta precisão podem determinar uma densidade tão diminuta.

— Isso já seria o segundo plano!

Cliff acenou. Um dos planos aventados previa deslocar o planetóide NI 16A de alguns anos-luz. Depois que se encontrasse no campo gravitacional do sol, seria transformado numa fonte de radiação, mediante uma gigantesca explosão atômica. O outro plano tinha sido concebido neste instante: enriquecer Xun com hidrogênio.

— Com esse afluxo de núcleos de hidrogênio Xun poderia voltar a produzir núcleos de hélio. O poder luminoso aumenta-

j ria, como no caso do sol terrano manipula-, do. E o clima em Chroma também melhoraria. O sol estaria salvo por milênios. Ela sacudiu a cabeça, incrédula.

— E tudo isso o senhor acabou de descobrir agora, Cliff?

— Eu não — disse ele. — O senhor Einstein, de saudosa memória, já sabia disso. Mas eu lhe aconselho mandar calcular, a todo o vapor, qual desses planos tem mais chance de êxito. Ou se podemos pôr em prática os dois planos ao mesmo tempo, pois existe um perigo envolvido nesse negócio todo. O hidrogênio está como que desgarrado e constitui uma permanente ameaça para a atmosfera de Chroma. Se chegar a afetá-la, todos os esforços terão sido em vão.

— Vou tomar providências imediatas!

McLane religou a tela para visão normal, acelerou a nave, e a fez seguir um curso que os levaria de volta a Chroma. Sabia que teria muito trabalho pela frente. Um trabalho que não poderia ser realizado sem o auxílio de Terra.

 

DURANTE três meses, McLane e alguns cientistas, que durante esse curto período de tempo adquiriram uma surpreendente autoconfiança, calcularam as chances de êxito do primeiro plano. Apesar do minucioso exame, a que submeteram os resultados obtidos, não encontraram qualquer erro. A nave voltou a toda velocidade para Terra. Em homenagem às primeiras tentativas de navegação espacial da humanidade, McLane havia batizado a operação de "Plano Vanguard". Numerosos trabalhos foram iniciados ao mesmo tempo. Concentravam-se todos no planetóide NI 16A.

Inicialmente, uma frota apareceu sobre a superfície pedregosa e úmida do planetóide, e pousou. As naves utilizaram a reversão dos seus propulsores e locomoveram o planetóide. Os valores eram ínfimos, mas suficientes para tirá-lo da sua órbita. Uma circunferência quase perfeita transformou-se, aos poucos, numa trajetória que ainda apresentava uma curvatura devido à força de atração do sol. No preciso segundo que os cálculos haviam determinado, as naves reativaram mais uma vez os propulsores e a velocidade de liberação superou a força de atração.

E tudo isso transcorria sem que chegasse ao conhecimento público. Em poucas semanas, um exército de robôs transformou o planetóide na casa de máquinas de uma nave espacial. Assim, guardadas as devidas proporções em relação à massa do planetóide, os robôs instalaram propulsores, baterias de energia e geradores hiperespaciais. Enquanto o planetóide se dirigia ao seu alvo, o sol Xun, visível a distância, trabalhava-se febrilmente para concluir e coordenar as diversas tarefas. As possantes máquinas das naves foram desmontadas. A realização desse plano permitiu a Terra resolver, em parte, o seu problema de ferro velho. Propulsores e geradores, destinados ao salto hiperespacial, foram montados em enormes blocos de concreto, firmemente ancorados na rocha viva do subsolo. Cabos foram estendidos, quilômetros de cabos, e conectados a um gigantesco computador que, essencialmente, possuía apenas uma única função: comandar e manter em funcionamento regular toda aquela aparelhagem. A velocidade do planetóide aumentava à medida que novas máquinas iam sendo instaladas.

Trabalhava-se em ritmo acelerado, porque a atmosfera já tinha começado a se dissipar no espaço, e a temperatura estava caindo rapidamente quanto mais o planetóide se afastava do seu sol. Aquele crescimento exuberante já havia cessado; agora, as diversas espécies só conseguiam reproduzir-se entre si. Nenhuma forma nova de vida se originou: o caminho da evolução tinha sido barrado. E era preciso acelerar cada vez mais a enorme massa do planetóide, pois somente se atingisse uma velocidade pouco inferior à da luz, seria capaz de efetuar o indispensável salto no hiperespaço. Por isso, os homens nos trajes espaciais amarelos trabalhavam feito doidos, auxiliados pelo exército de robôs do tipo Worker. Por toda a parte jaziam as naves velhas e sem máquinas. O velho sol ficou para trás e Xun, o sol de Chroma, manteve-se inalterado. Ainda... agora faltava vencer uma distância de dois anos-luz.

Duas vezes 9,46 x 1012 quilômetros.

Tudo estava sendo preparado; até mesmo a bomba já havia sido montada e agora aguardava apenas o instante da ignição. Complicados sistemas radiofônicos e de comando foram instalados, pois durante o salto hiperespacial os trabalhadores permaneceriam a bordo das naves acompanhantes. O planetóide já estava congelado e as incontáveis saliências, que abrigavam as aberturas de exaustão dos agregados propulsores e dos enormes geradores hiperespaciais, emprestaram-lhe um aspecto fantástico. E dez dias mais tarde, a velocidade atingiu o valor crítico. Sinais radiofônicos ressoavam em todas as freqüências.

Os robôs ilesos flutuaram de volta às naves. Os homens agruparam-se e deixaram a superfície. Apenas o computador digital trabalhava incessantemente debaixo da sua capa protetora, um hemisfério plástico, inteiramente climatizado. Quantidades enormes de energia foram consumidas. Finalmente, a checagem geral estava completa. As dezenove naves partiram, inteiramente lotadas de trabalhadores. Em todos os alto-falantes ouvia-se a voz mecânica do computador, que iria iniciar, dentro de instantes, a contagem regressiva para o salto hiperespacial.

— Faltam quinze segundos até o ponto crítico!

Dez segundos... sete, seis, cinco, quatro... zero. Instantaneamente o planetóide desapareceu das relações do espaço normal, sorvido pelas estruturas bizarras do contínuo riemanniano. A nave solitária, que ainda permaneceu no espaço normal, ajustou a instalação radiofônica e comunicou:

— Confirmando previsão, planetóide NI 16A desapareceu das telas conforme programação. Salto realizado no instante exato.

E de algum lugar do hiperespaço a nave capitania respondeu:

— Já foi localizado pelos rastreadores hiperespaciais. Eco um pouco difuso, mas inconfundível.

Noventa minutos se passaram com torturante lentidão.

Sem transição, N116A retornou do hiperespaço, seguido, dez segundos depois, por aquela nave que o tinha acompanhado. Dezenove naves flutuavam no espaço, a meio milhão de quilômetros do sol Xun, nitidamente visíveis nas inúmeras telas que haviam sido ligadas para controlar a operação.

— Chegaram, Cliff — disse a primeira dama do planeta. Os dois encontravam-se na estação de controle, instalada na única lua que o planeta Chroma possuía.

— Estou vendo, Ceena! — respondeu McLane, distraído. Estava calculando os impulsos de frenação do planetóide.

As máquinas entraram novamente em ação e duas coisas aconteceram: primeiro fixou-se a direção do trajeto final a ser percorrido pelo planetóide. Apontava exatamente para o centro daquele sol.

Depois, os impulsos cinéticos daquele corpo foram neutralizados pela força reunida de todos os agregados de propulsão. Dentro de poucas horas o planetóide flutuava lentamente em direção ao sol. Velocidade: cem quilômetros por hora; distância: mil e quinhentos quilômetros.

— O que vai acontecer agora, Cliff? — perguntou Ceena, tensa. Estava visivelmente preocupada, pois o que estava em jogo era a vida do sol Xun.

— Agora a bomba vai ser ativada e ligada ao controle remoto. Tente visualizar o que vai se passar. O planetóide aproxima-se do sol para, finalmente, desaparecer no interior deste. No instante em que o corpo tocar na borda da cromosfera, a bomba vai ser detonada.

Após quinze horas de trabalho, checou-se, pela última vez, o funcionamento do comando de ignição radiofônico. Com a atmosfera já dissipada, a vegetação consumida pelo fogo, e a superfície vitrificada, o planetóide encontrava-se a instantes do choque com o sol. Por toda a parte os propulsores estavam se derretendo; apenas a bomba achava-se ainda protegida por um pequeno anteparo energético. O cientista-chefe a bordo da nave capitania observava N116A através de possantes filtros, que absorviam a claridade insuportável da radiação. E então o planetóide tocou o sol.

— Ignição! — limitou-se a dizer o cientista e apertou um botão.

A bomba explodiu, gerando instantaneamente uma temperatura de treze milhões de graus, que transformou o planetóide em gás puro. Depois, seguiram-se longas horas de uma expectativa angustiante, durante as quais a gravitação e o gradiente de difusão criaram um estado de equilíbrio. A superfície do sol Xun apresentava uma temperatura de apenas alguns milhares de graus e a concentração do gás era correspondentemente baixa. A densidade aumentava com a profundidade, e a gravitação atraía a matéria recém-criada para o centro do sol, onde as temperaturas eram de treze milhões de graus. O hidrogênio, que envolvia o sol, incandesceu-se e foi transformado em hélio por processos nucleares. Dentro de poucas semanas, o sol se estabilizou. Inicialmente, o dia em Chroma tinha se tornado insuportavelmente claro durante algumas horas. Agora esta claridade adicional tinha desaparecido, mas não de todo. Aquelas cores pastel adquiriram uma tonalidade mais viva. As naves-oficina pousaram em Chroma e a população hospedou os homens da frota, cumulando-os de atenções e paparicos. O fato de que quase todos eram astronautas rudes, constitui-se num motivo de especial contentamento para as damas de Chroma. As semanas decorriam com incrível rapidez; os contatos entre Chroma e Terra tornaram-se cada vez mais numerosos e tiveram por resultado um surpreendente estreitamento das relações entre os dois planetas. E um belo dia, um cruzador espacial rápido pousou, incumbido de uma missão específica...

O comandante desceu da nave, dirigiu-se à orla do parque e disse:

— McLane? Vim por ordens do marechal Wamsler, para levá-lo de volta à Base 104.

Os homens trocaram um aperto de mão.

— Bonito lugar, este! — constatou o outro. — Antes que me esqueça: meu nome é Homer Cryston.

— Por algum motivo, Terra me agrada mais! — rosnou McLane. — De quanto tempo dispõe?

— De dois dias. No máximo.

Cliff acenou e de repente sentiu-se livre e desobrigado. Sua estadia em Chroma havia se prolongado demais, e a esta altura já se irritava com a glorificação que aqui era reservada para os homens de Terra. Lentamente Cryston e Cliff dirigiram-se à sede do governo.

— Vida agradável, essa aqui? — perguntou Cryston laconicamente.

Era um homem alto, de cabelos grisalhos e olhos cor de âmbar, duros e penetrantes: o protótipo do capitão da frota. Conversava com brevidade militar, em tom conciso, sem floreios. Perto dele, Cliff não passava de um tagarela animado.

— Sim, bastante agradável. Desde que nós consertamos aquele sol — Cliff apontou para o céu, onde Xun emitia um brilho forte e regular — os terranos são considerados deuses, aqui. Aliás, em agradecimento à sua intervenção, Terra recebeu o segredo daquele radiotransportador, com o qual estavam roubando a energia do nosso sol.

— Entendo.

Continuaram a caminhar ociosamente pela larga avenida e, finalmente, subiram a escadaria abaixo do imenso portal. Passaram por duas ajudantes, que os contemplaram com um sorriso provocante. Minutos depois, estavam diante da porta do gabinete de Ela.

— Aqui não há homens? — perguntou Cryston.

Cliff arreganhou os dentes.

— Descobriu o segredo! Aqui tudo é feito pelas mulheres!

Cryston engoliu em seco e empalideceu ligeiramente.

— Tudo?

— Quase tudo. Agora lembre-se que é um terrano e comporte-se condignamente. Vai conhecer a primeira dama desse planeta.

Cryston torceu ligeiramente os cantos da boca. Cliff bateu na porta, esperou por uns instantes e depois acionou o contato. Ela estava sentada atrás da enorme mesa de trabalho, examinando documentos. Cliff fez as apresentações.

— Major McLane e major Cryston solicitam alguns minutos do seu precioso tempo — disse ele, laconicamente.

Ceena deu um sorriso condescendente.

— Por favor, sentem-se!

— Recebi ordens do marechal Wamsler, chefe das Formações de Reconhecimento Espacial Terranas, para levar o major Cliff McLane de volta a Terra — explicou Cryston.

— Pois é — respondeu Ceena — não podíamos deixar de contar com isso, não é mesmo?

Cliff acenou lentamente, sem mudar de expressão, apesar do conflito de sentimentos contraditórios que o afligia. Por um lado, ansiava por retornar o mais rapidamente possível a Terra e ao seu bangalô, onde as pilhas de correspondências estavam se avolumando. Por outro lado, durante a sua longa permanência em Chroma, nada havia surgido que justificasse uma queixa. Todos neste planeta, homens e mulheres, tinham-no tratado com o máximo de respeito, admiração e boa vontade.

— Vou partir amanhã de manhã, bem cedinho — disse Cliff. — Por isso gostaria que a tripulação fosse alojada nas proximidades do porto espacial. Posso lhe pedir a gentileza de providenciar isto?

Ceena concordou com um aceno e sorriu para Cliff.

— Mas é claro!

Calcou uma tecla no aparelho intercomunicador e deu algumas instruções. Depois virou-se para Cryston e perguntou:

— E como é que estão as coisas lá em Terra, major?

— Satisfatórias. O sol voltou a funcionar. O clima normalizou-se em menos de meio ano. Ficou satisfeita com nosso auxílio?

— Inteiramente! Um belo dia vou fazer uma visita a Terra.

Cryston ergueu a cabeça, olhou para Ela e respondeu:

— Vai ser recebida condignamente. Pode contar com isso.

Cliff pigarreou e disse:

— Já conheço os aposentos do major Cryston. Se me permite, vou agora acompanhá-lo até lá, e depois levar a minha bagagem para a nave. De acordo?

Ceena possuía um autocontrole fora do comum.

— Mas é claro, que estou! Despediram-se e deixaram o gabinete.

Poucos minutos depois, o major se encontrava num quarto amplo e claro, confortavelmente mobiliado. Examinou a decoração e constatou que quartos similares em Terra apresentavam aspecto bem diferente.

— Caramba! — disse ele. — E isso na própria sede do Governo! Para mim é novidade!

— Visitas interestelares eram coisas praticamente desconhecidas em Chroma — disse Cliff. — Tenho uma pergunta que me preocupa muito, major.

— Sim? — indagou Cryston, laconicamente.

— Sabe me dizer algo dos nossos amigos das profundezas do universo, dos extraterranos?

O comandante disse:

— Houve um único encontro entre duas naves, lá em Sul/Dez. Fomos atacados e nos defendemos com o Overkill. O inimigo foi destruído. Fora disso, nada. Pode ficar tranqüilo: não vai precisar salvar Terra nos próximos dias.

Cliff começou a rir.

— Fico contente com isso — respondeu.

— Eu vou voltar à nave para examinar a mesa de controle — disse Cryston — vem comigo?

— Vou sim, só quero apanhar uma das minhas malas.

Quando, pouco depois, Cliff passou por baixo da nave ao lado de Cryston, reparou uma série de peças, que tinham sido afixadas entre a abertura da eclusa e as escotilhas dos diversos compartimentos de carga. Pelo aspecto, deviam se destinar a suportar pesados aparelhos complementares.

— Hei! — exclamou Cliff, surpreso. — O que está montando aqui?

— Ah! isso... — começou Cryston — isso se deve a uma idéia idiota de alguns sujeitos do Centro Científico. Estamos coletando amostras.

— O senhor também! — murmurou Cliff. — Que tipo de amostras?

Cliff havia abordado um assunto que aborrecia Cryston sobremaneira.

— Algum imbecil vasculhou um arquivo empoeirado e descobriu um negócio, que séculos atrás nós já chutamos para o alto como uma besteira total. Ele quer que todas as naves percorram o universo, providas de um arrastão. Acredita, que alguma coisa caia nas malhas dos filtros. Uma bactéria, um espório encapsulado, ou coisa que o valha. Só sei que já capturaram um parafuso.

Cliff começou a rir estrondosamente.

— Um parafuso? Não me diga!

— Sim. Um parafuso de 4 mm. Provavelmente era de uma Lancet. No setor de Sirius.

— Mas não pegaram espórios?

— Nem sombra disso! Corremos através do espaço com naves enchovalhadas, e nos aborrecemos como quê!

Cliff riu. Cryston virou-se para ele, surpreso.

— Parece ter um humor bastante amargo, major! — constatou.

— Tenho sim. E com razão.

— Por quê?

Cliff recostou-se contra o metal frio da cabina do elevador, que estava pousado sobre a grama do parque. A comporta da eclusa estava aberta, e do alto ouvia-se uma ou outra palavra de uma conversa.

— Quer saber por quê? — respondeu. — Porque eu sei exatamente o que este Wamsler, que se intitula meu amigo paternal, pretende me impingir. Eu...

— Deixe-me adivinhar! — interrompeu Cryston. — Vai querer que o senhor vagueie pelo espaço à procura de espórios?

Cliff acenou.

— E o que é pior — finalizou — Wamsler espera que eu encontre espórios. Uma quantidade enorme deles!

Os homens entraram no elevador. Cliff colocou a mala no chão. Foi entusiasticamente cumprimentado na cabina de comando.

 

A despedida foi menos tempestuosa. Cliff e Ceena estavam novamente naquele jardim suspenso. E mais uma vez uma mesa posta, iluminada pelos pesados candelabros quase barrocos, eram parte da decoração. Parte desta noite. A mulher estava deprimida.

— Quer dizer que você vai partir amanhã de manhã?

Cliff debruçou-se no parapeito e acenou em silêncio.

— Vou sentir a sua falta — disse Ela. — Muito. Muito mesmo.

Cliff custou a encontrar uma resposta. Respondeu baixinho:

— Esse meio ano em Chroma vai ocupar um lugar de honra nas minhas recordações. Mas eu sou homem, terrano e astronauta... tenho que voltar!

Ela observava aquela foice fina da lua.

— Essa mulher, Tamara Jagellovsk; ela está esperando por você?

— Não está, não. Ninguém me espera, a não ser meu bangalô. Aquela cena, que você indiscretamente observou, não pode ser atribuída a um estado de ânimo normal. Naquele momento estávamos tomados de pânico, porque aguardávamos o aparecimento da frota e receávamos que esse seu jardim de dimensões planetárias fosse destruído.

— Eu não acredito uma palavra, do que você disse, Cliff McLane.

Ele a encarou em cheio e respondeu:

— Isso eu não posso evitar. Mas será que vamos brigar, nessas poucas horas que nos restam?

— Não! — sussurrou Ela. E jogou-se nos braços abertos de Cliff.

 

Outra missão da Orion estava findada. O sol Xum voltava à normalidade e os habitantes de Chroma não mais incomodariam a Terra.

Em Armadilha Espacial, titulo da próxima aventura da Orion, Cliff se vê aprisionado em Mura, um mundo habitado pelos piores bandidos da Galáxia.

 

                                                                                Hans Kneifel  

 

                      

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