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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A Mafia do Sangue / Heinz G. Konsalik
A Mafia do Sangue / Heinz G. Konsalik

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Mafia do Sangue

 

Ergueu o queixo bem alto para se furtar à intensa luz dos projectores de televisão. Reconhecia as pessoas lá em baixo, assimilava-as como filas apinhadas umas atrás das outras, até ao fundo do gigantesco átrio. Semicerrou os olhos e premiu as têmporas com as pontas dos dedos, como se pudesse abafar toda a engrenagem no interior do cérebro. A manobra não resultou. Havia os disparos dos projectores. Era a viagem. Era toda a loucura que aqui reinava. - PáRA! PáRA!... Tudo se assemelhava a ondas vindas do átrio, passadas das filas da retaguarda para diante e que não tardaram a encher o gigantesco espaço. No entanto, Wegner, esse idiota, prosseguia muito pura e simplesmente. O seu "Gostaria que me deixassem falar" contribuía para enfurecer ainda mais a multidão. Wegner expunha factos, apresentava números - secos como os números dos contabilistas, de que outrora fizera parte: recessão internacional, interrupção de encomendas em todos os sectores, nova estruturação da economia do aço sob as perspectivas europeias. Os Espanhóis, os Italianos, os Portugueses que se afastam das subvenções de Bruxelas - sim e, em seguida, o malogro com a anulação da proposta da Líbia e a posição do Próximo Oriente, acrescida da concorrência mais barata dos produtores asiáticos - a mesma lengalenga sem entusiasmo, o que foi, de imediato, apreendido e os levou, novamente, ao protesto. -CALA A BOCA! Dieter Reissner esboçou um aceno íntimo de concordância. - MENTIROSOS! BURLÕES! Tinham colocado a mesa em cima do estrado. Quatro tábuas cobertas com um pano verde.   direita e à esquerda, no local onde duas escadas de aço levavam ao átrio, encontravam-se os seguranças. E qualquer engraçadinho havia mesmo arranjado um pequeno limoeiro. Como se tudo isto fosse um casamento e não um funeral. - PáRA! PáRA! - O eco passava das filas da retaguarda para as da frente, obedecendo a um ritmo, soava-lhes aos ouvidos e não tardou a encher o átrio. - Ouçam bem! Assim não é possível! - insistiu Wegner numa nova e inútil tentativa. - Apenas pretendo ainda... -CRIMINOSOS! PORCOS! Tratava-se de uma onda semelhante a um incêndio, martelava, pulsava, estendia-se pelos quatro andares da construção de ferro, numa vibração que chegava aos telhados e se repercutia dolorosamente nos ouvidos: - ESPECULADORES!... MENTIROSOS!... BURLÕES! Dieter Reissner encolheu a cabeça entre os ombros, a fim de se furtar à intensidade dos projectores. Ergueu os olhos, e, em seguida, baixou-os para os ventiladores, que pareceram estremecer e oscilar. Manter a calma? De que servia, agora? Pensou em Linder, no seu lapidar: "Sei que vai ser dificil. Mas conseguirá, Dieter! Como sempre aconteceu. Neste tipo de missão, nunca ninguém conseguiu manter uma calma igual à sua ..." Calma? De que lhe servia a calma? E onde estavam, agora, esses nervos de aço? Não, nada fazia frente ao suor que sentia escorrer-lhe pelas costas, cabelos, sob os olhos; nada defrontava estas câmaras nojentas; os jornalistas, abutres, hienas, sim... onde cheira mal, há sempre um deles. E era esse o caso aqui. -Cala o bico, gordo! Era sempre o mesmo indivíduo quem se encontrava na frente das operaçÕes. Um indivíduo de cem quilos. Reissner distinguia-o, agora, com toda a nitidez. Sempre que surgia, colocava as mãos diante do rosto, como se receasse não ser ouvido. Chegou-lhe novamente a voz de Linder: «Para a frente, Dieter. O encerramento da fábrica é tão necessário como uma intervenção cirúrgica. E sabe-o bem. Confio em si... Como sempre ... » Este tipo idiota estava, agora, a aquecer o traseiro na sua cadeira de administrador. «Porque não está aqui em cima? Mas não, de forma alguma. Está à espera no seu belo gabinete, até receber a notícia de que tudo "se encontra em ordem". Mas aqui já não há ordem a estabelecer .. » O comprido tripé da aparelhagem de som foi virado para a esquerda, na direcção da mesa de trabalhos. Wegner desligou o microfone. Pareceu capitular. A multidão, lá em baixo, tinha-se assenhoreado da situação. - A SACHSEN-STAHI-1# VIVERá! - chegava-lhe do átrio.

Um coro de vozes semelhante a bofetadas. "Só se revoltaram uma vez. Agora, medem forças contigo. E tu? Podes tomar qualquer atitude? Se, ao menos, estivesses em forma ..."'  Nome da fábrica: O Aço da Saxónia. (N. da T)

 

-  VIVERá!...

O operador da câmara aproximou-se. Apoiava a máquina no ombro, como se se tratasse de uma arma. Filmou em círculo pelo átrio, mas, em seguida, focou a lente da objectiva em Reissner, perscrutando-o no mais íntimo. "«O olhar de Deus!", pensou ele subitamente, e fez um imenso esforço para manter a calma e demonstrar a rígida expressão de sempre. A raiva surda da impotência apoderou-se a tal ponto de todo o seu ser que teve dificuldade em apreender o que se passava à sua volta. O olhar de Deus... como assim, o olhar de Deus?... Porque é que aquele idiota não afastava a câmara? - Senhor engenheiro! Virou a cabeça. -Não seria preferível terminarmos? Manteve-se silencioso. Rainer Soltau, o assistente, tinha olhos castanhos e desde que ReIssner o conhecia nunca perdera a calma. No entanto, agora? O medo infantil dominava-o, como se pedisse o biberão! Wegner uniu as mãos, como se fosse rezar. «E o idiota da gerência de Ossi? O que faz esse Bombacher? Mete a cabeça entre os ombros. Nem um movimento, nem uma palavra que o destaque. No entatito, agora levanta-se!» Do lado direito, já no estrado, após terem afastado os seguranças, mantinham-se, agora, sem se moverem mas formando um grupo atemorizador, dez, talvez mesmo uns quinze indivíduos, todos de fato-macaco azul, todos com os braços cruzados sobre o peito, todos com o mesmo olhar fixo e transbordante de ódio, Dieter Reissner agarrou no microfone:

- Um momento, meus senhores! Portanto, e como me é dado verificar, encontramo-nos ante a situação de pretendermos clarificar os factos mediante o debate ou... - Gritos. Pateada. - Portanto, amigos, peço-vos que sejam sensatos por uns minutos... -Amigos?! Amigos, diz o idiota!

- Os insultos não mudam nada. E os gritos também nunca resultaram! - Segurava agora o microfone a curta distância e tentava emprestar um tom persuasivo, quente e quase paternal à voz: - Compreendo, porém, que tenham de dar largas à vossa raiva. E sei também que o que aqui se está a passar tem para muitos de vós tristes e dramáticas consequências. Acham talvez que nos dá prazer fechar uma fábrica como a Saclisen-Stahl? No entanto, face às condiçÕes levadas até à última consequência por uma recessão de um século, nem a raiva nem a tristeza ajudam, mas somente... Não chegou a completar a frase seguinte. A dor atacou-o nas costas, mais ou menos à altura da região lombar, uma dor tão aguda como o golpe de uma espada - semelhante a uma cunha, tira o ar, expulsa o suor de todo o corpo através dos poros, apodera-se das entranhas. A sensação identifica-se à de serem comprimidas por punhos de aço. E acima da dor invade-o uma onda de calor que ameaça privá-lo dos últimos resquícios de controlo. «Os comprimidos!», pensou. «Deus do céu! Os comprimidos... No entanto, tomei-os. Mais do que a dose normal. Porque não fazem efeito?» Soltou um gemido e fechou os olhos. E através das pálpebras cerradas continuava a infiltrar-se a luz do projector em minúsculos círculos vermelhos. Lá para fora! Deixara de poder pensar. Para fora dali - imediatamente! - Senhor engenheiro... Meu Deus! Passa-se alguma coisa?

 

Soltau. Engoliu em seco, fez menção de responder algo e não conseguiu. De um momento para o outro, fez-se um silêncio total no átrio. Alguns riram. Mas também esta atitude pouco durou. - Precisa talvez de um médico, senhor engenheiro? Reissner sacudiu a cabeça em negativa. Levantou-se ou, pelo menos, tentou. Sentia, contudo, as pernas tão fracas e de novo a paralisação; e seguiu-se o medo, um medo horrível... O olhar de Deus... A punição de Deus... Como assim tu, porquê exactamente agora? Soltau conservava-se ao seu lado e amparava-o.

- Talvez seja o coração, senhor engenheiro? Agora, também Bombacher estava a seu lado. Levaram-no os dois no meio deles por cima do estrado, ao longo das infindáveis, compridas e cinzentas tábuas de rebites. Cheirava a óleo, a ferrugem, a carvão e a lubrificante. E ele - ele sentia o cheiro da sua transpiração... Depois as escadas. Ignorava como conseguiria transpô-las. Parou, respirando com dificuldade, a mão premida de encontro ao ventre. «Raios! Onde é que haverá aqui uma casa de banho? Deve haver uma por perto, não?» Prosseguiu. Por fim, uma porta pintada de cinzento. Alguém a segurou para lhe dar passagem. Avistou azulejos reluzentes, lavatórios e uma fila de divisórias. Entrou na primeira, fechou a porta atrás dele, arrancou botÕes, deixou-se cair e as lágrimas saltaram-lhe dos olhos. «Porquê?... Porquê?» Aos ouvidos chegou-lhe o eco vindo de algures: "A Sachsen-Sthal viverá!" Sacudiu a cabeça e foi-lhe impossível conter o soluço que lhe subiu do mais fundo da garganta, reter as lágrimas e a impotência contra à sensação de cair no vazio, envolto num turbilhão de vergonha, humilhação e fraqueza...

Tinha optado pelo lugar mais à retaguarda da estreita cabina do avião. Era um lugar de pessoa só. Pedira ao piloto que aguardava no barzinho da sala de espera que o acompanhasse até ao avião da empresa. O indivíduo limitara-se a esboçar um aceno de concordância e medira-o, curioso, com um olhar de lado. Ao que parece, também ele já estava informado. No entanto, Reissner recusara quando o homem lhe tinha estendido o braço e quisera ajudá-lo a transpor a entrada do jacto da firma. Não devia falar - era tudo. Não falar - nem pensar! Vinte minutos mais tarde haviam aparecido os restantes elementos do grupo do complexo. O gordo Wegner, com o casaco de abas largas, Soltau atrás, em seguida Bachmann e, finalmente, Leipschutz, o especialista em tabelas e coordenador. A fechar a cauda, com os sapatos de salto muito altos, avistou ainda a Müller-Neubert, loura e inacessível como sempre. Nem mesmo o ar condicionado que se encontrava ligado por cima do pequeno assento do avião conseguia despenteá-la. Acenaram-lhe, depois de terem subido as escadas uns atrás dos outros, tirado os chapéus e começado a procurar os lugares. E todos mantinham as mesmas expressÕes nervosas e falsamente descontraídas. Sim, tratava-se de um enterro de primeira classe. E denotavam as expressÕes que se coadunavam, na perfeição, a tal circunstância. Quando o cumprimentaram, Reissner nem sequer ergueu a mão. Olhava através da janela. Quando é que tudo isto ficaria para trás? No entanto, agora apenas ele existia. Voltara a tomar os comprimidos e a ficar com a impressão de que o est niago se afundara, como se nada mais existisse abaixo da linha da cintura.

 

APENAS TU PRóPRIO.

 

Jakob Linder iria demiti-lo. Os outros bem poderiam pô-lo a par da situação, o que fariam acaloradamente! Apontariam o dedo na sua direcção para salvarem a pele.

Mas também esse facto não era importante. «Cada um é sempre o próximo, certo, Herr Linder?» Por fim, o avião pôs-se em movimento, rolou pela pista, e os propulsores impeliram o jacto através dos rolos de nuvens de um cinzento-sujo. Dieter Reissner continuava a olhar lá para fora: a floresta da Turíngia, mais para a esquerda deveria situar-se Zwickau, com a igreja e as ruas. Um derradeiro olhar para a fábrica. Vista de cima, parecia cinzenta e lúgubre. Nuvens brancas recortaram-se agora na frente do jacto. Passaram e esfumaram-se. Voaram durante cinquenta minutos. Em seguida, por baixo das asas do avião surgiram as copas das árvores da floresta circundante. Soltau soergueu-se no assento e virou a cabeça na sua direcção:

-Como é que fazemos, senhor engenheiro? Quer que o acompanhe até à firma? - Vá com o Wegner - responde Reissner, abanando a cabeça. - Ainda tenho que fazer na cidade. Eram 17.40 horas quando o avião aterrou...

Jakob Linder premiu o botão do intercomunicador.

- O engenheiro Reíssner já deu notícias, Frau Fralim? Sabe alguma coisa? - Não, Herr Linder. -E o assistente dele? Como se chama?

- Soltau. Herir Soltau acabou de falar comigo. Disse que ao chegar ao aeroporto o engenheiro Reissner levou o seu automóvel. E que dissera que ainda tinha que fazer na cidade. -o homem perdeu o controlo por completo?

- De qualquer maneira, o engenheiro Reissner não está em casa. Herr Soltau procurou, igualmente, no estacionamento e o automóvel dele não se encontra em parte alguma.

-E Wegner? -Está perplexo. Não consegue descobrir uma explicação plausível. -Ah, sim? Não consegue? Nem eu. Telefone a Wegner, raios! Diga-lhe que venha ter imediatamente comigo. E que traga todos os que estiveram na Saxóma. Jakob Linder recostou-se pesadamente na cadeira escura da presidência. Levantou-se em seguida e atravessou o enorme gabinete, até chegar junto da janela. Asede do complexo ACS situava-se no oitavo andar. Avista estendia-se desde o cruzamento da auto-estrada de Francoforte até à orla das florestas ao longo do Isar. Jakob Linder pôs-se a tamborilar com os dedos no caixilho da janela e reflectiu: «Reissner? O que se passará pela cabeça do homem, com os diabos? Já na última reunião, ao abordar-se a triste situação da Saxónia, SC Mostrara um tanto... bom, distraído não será bem o terino, mas pouco participativo, centrado em si próprio, distante. E agora? Agora, deixa correr as coisas à toa. No entanto, foste tu que o fizeste. Não há dúvida: Reissner é a tua obra! Conseguiste que fosse nomeado para chefe do Departamento de Racionalização e aplanaste-lhe o caminho para uma carreira importante. Não te poupaste a esforços por Reissner. E porquê? E porque não, raios, se ele era tão qualificado?! Capaz e obstinado. E sempre se conservou ao teu lado. Agora, no entanto, agora vão Precisamente apontar-te o facto no conselho fiscal. E nada poderás fazer para o evitar .. » Jakob Linder observou o intenso tráfego lá em baixO na rua, passeou o olhar por fileiras de casas, árvores e mesmo uma torre abobadada à distância. E avistou também um céu coberto e cinzento - sem, na realidade, ver o que quer que fosse. Reissner - precisamente Reissner! Ouviu nas costas o leve ruído de uma porta que se abria. Virou-se. Linder era um homem baixo, musculoso, e tinha a cabeça redonda. Tratava-se de alguém que só com muita dificuldade era capaz de conter as energias que o definiam: quando o chefe se exalta, leva tudo na frente. O brilho dos olhos de um cinzento de aço assemelhava-se ao fio de uma lâmina. Imobilizou-se no meio daquela ampla divisão. -Mas que óptimo! Já chegou! - exclamou num tom sarcástico. - Que óptimo vê-lo aqui! - Fitaram-se e não pronunciaram uma única palavra. - A situação é, por conseguinte, muito clara: de momento, a questão não se pÕe em termos de «falhanço em Sto11berg», mas sim Reissner. Como é que ele não está aqui? Por onde anda escondido, com os diabos? O que lhe deu? Porque se faz representar por uma delegação tão lastimosa? Wegner ergueu as sobrancelhas espessas:

- E que... - começou. E, em seguida calou-se. -E é tudo o que tem para me comunicar, Herr Wegner? - troçou Linder. - Segundo o que me foi dado a descobrir até este momento, Stollberg constituiu o pior e o mais lamentável espectáculo a que alguma vez se permitiram os delegados deste complexo, para mais nesta situação! E a atitude de Reissner? Fugir muito pura e simplesmente, esconder-se como um miúdo de escola sem uma única explicação... Qual o motivo? Como justifica tudo isto, Herr.. Herr Soltau? É, afinal, o assistente dele. - Soltau, um indivíduo ainda novo, esboçou um movimento circular com o ombro direito. Tinha os lábios retesados num esgar. - Fiz-lhe uma pergunta.

- Desculpe, Herr Linder, mas não entendo a pergunta.

- Ali, não? Não entende? Provavelmente nunca entendeu nada aqui. Mas talvez até mesmo uma pessoa como o senhor seja capaz de perceber que não faço tenção de deixar passar em branco esta ridícula situação. portanto, vou repetir: o que foi combinado de antemão? Que medidas tomou Reissner? Como era o plano? - Em primeiro lugar devíamos reunir-nos com a gerência, depois com o pessoal... - O plano? Devem ter feito alguns acordos! Como se comportou Reissner? Ilse Müller-Neubert deu-se ao luxo de soltar uma risada, na verdade muito curta mas suficientemente elucidativa para mostrar que nada tinha a ver com toda esta história. Competia-lhe somente o protocolo. E, obviamente, um primeiro relatório a Linder. Já o entregara. E também não lhe competia adivinhar o que se encontrava por detrás. Tinha mudado de blusa, penteado esmeradamente os caracóis, e o seu riso, sim o seu riso, tinha a frieza de sempre: - Se assim o pergunta, Herr Linder, devo dizer que o senhor engenheiro Reissner não me pareceu especialmente bem logo de início. - No início?

- Sim, já durante o voo. Manteve-se muito calado. E além do mais... - Sim? -Talvez não seja importante e nem sequer pensei muito nisso, mas é possível que estejam em causa alguns Problemas fisicos. De qualquer maneira, no voo Para lá pediu um copo de água ao co-piloto. Para tomar um comprimido. Parecia necessitar muito dele. -Mas Reissner aguenta bem o avião! -Foi por esse motivo que me chamou a atenção! Mantinha permanentemente a mão no ventre, como se se sentisse mal ou tivesse dores. E quanto a falar? Não, não pronunciou uma palavra, excepto umas breves frases com Herr Soltau. Não é verdade, Herr Soltau? O jovem Soltau limitou-se a esboçar um aceno de concordância. - O que Frau MüIler diz é absolutamente verdade - interferiu nesse momento Wegner. - Tentei, por várias vezes, dialogar com Herr Reissner e tudo ficou por banalidades. Veríamos o que se passava no local. Além de que ainda poderíamos conversar no hotel. - E depois no hotel?

- Não se chegou a qualquer conclusão - replicou Wegner. - Fomos directamente para a fábrica. Ali reuniu-se com o admistrador e o seu pessoal. Não assisti, Herr Linder. Estive a preparar o meu discurso. De qualquer maneira, se reflectir em tudo isto... o engenheiro Reissner estava muito mudado. Nada restava do antigo e confiante Reissner que conhecemos. -Herr Linder! - comunicou a secretária do seu gabinete. - Herr Puttkammer está aqui. Devo mandá-lo entrar? -Tem o filme? -Está pronto e traz a cassete. -Nesse caso, mande-o entrar. - Andreas Puttkarrimer era o director da informação. A sua vantagem sobre a maioria dos que ocupavam o andar da administração devia-se não só ao seu dialecto da Baviera, mas igualmente ao facto de pertencer a uma das mais antigas famílias de Munique. E Puttkammer aproveitava-se da situação. Vincava-a também sempre que podia e passeava-se em camisa de algodão e pulôver, o que irritava sobremaneira os sujeitos de fatos de riscas e aparência formal. Nesse dia Puttkammer optara pelo seu ar senhorial: calças cinzentas, camisa de seda verde-jade e casaco preto. Foi a primeira vez desde o começo da reunião que o rosto de Linder deixou transparecer o arremedo de um sorriso. - Resultou, Andreas? Para além de Reissner, Puttkaramer era o único do andar da admistração a quem Linder tratava pelo nome próprio. A nível profissional, o indivíduo não tinha o mínimo interesse. Tipos como ele havia-os à dúzia e muito mais baratos. Mas, socialmente, podia tornar-se perigoso. Linder tinha as suas experiências nesse campo. -Viva! - Andreas Puttkarrimer cumprimentou os presentes com um aceno de mão e dirigiu-se ao aparelho de televisão do gabinete com a desenvoltura de uma pessoa que se sente na casa de um amigo. Pareceu ignorar o extraordinário mal-estar que pesava no ambiente e o grupo que se mantinha plantado no centro da alcatifa. Pegou na videocassete que trouxera e meteu-a no vídeo. - Que engraçado. Este aparelho é precisamente igual ao que tenho em casa. Não há, portanto, dificuldades. - Virou a cabeça e prosseguiu: - Resultou, aliás muito melhor do que eu pensava, Herr Linder. Encontrei um velho técnico especialista que foi operador na televisão da Baviera e servi-me desse conhecimento. - Ali! - exclamou Linder num resmungo impaciente.

- É bom quando se tem gente conhecida por todo o lado, não acha? P'uttkammer carregou num botão. Riscos e, em seguida, a primeira imagem. Era extraordinariamente nítida. Mostrava a chegada de um Mercedes às instalaçÕes da fábrica. A delegação de Munique. Descem da limusina de um preto reluzente. Saudação por Pombacher do gerente da fábrica. Um olhar da câmara pelos grandes letreiros que se estendem por detrás do portão da fábrica entre dois postes de electricidade: A SACHSEN-STAfIL vIvERá! Operários em segundo plano. Dúzias, não, deviam mesmo ser centenas! Conservam os capacetes de protecção e denotam expressÕes obstinadas. Um dos que se encontram atrás, provavelmente membro da comissão de trabalhadores, coloca o megafone em posição. - Isto não interessa, Andreas. - Um momento, Herr Linder. Sei o que lhe interessa! O ligeiro e ritmado ruído causado pela cassete assemelhava-se, para Linder, a uma broca de dentista. Examinou uma unha e, em seguida, levantou um Pouco a cabeça: O que continua a fazer aí em pé? Sente-se. - Voltou depois a fixar o olhar no tampo da secretária.

E foi nesse momento que a voz de Reissner ecoou na sala.

Linder sobressaltou-se. Era mesmo Reissner! Mantinha o braço esquerdo levantado, a boca aberta e dizia: - Sei também que o que aqui se está a passar tem para muitos de vós tristes e dramáticas consequências... Gotas de suor pejavam-lhe a testa. Sulcos profundos mareavam-lhe o rosto encovado. -Aumente o som. E, de novo, a voz de Reissner. Era a voz de um náufrago, que luta desesperadamente contra o impacte das vagas: nem a raiva nem a tristeza ajudam, mas somente...

Soltau sussurrou algo entre os dentes. E, em seguida, todos observaram a cena. Vêem como Soltau se inclina para Reissner, que cai sobre a mesa, como Wegner também se aproxima e os dois amparam o corpo quase inerte de Reissner, que põem no meio deles. Soltau agarra com força na mão de Reissner que pende sob o seu ombro. O homem mal parece capaz de andar, a cabeça descai-lhe sobre o peito e, em seguida, desaparecem os três por detrás de um poste metálico... - Desligue isso já. - A imagem desvaneceu-se. Linder passeou o olhar pelo círculo ali reunido. Premiu a unha do polegar de encontro ao queixo. - O homem está mesmo doente... - Deve ser qualquer problema digestivo, Herr Linder - redarguiu Soltau com um aceno de cabeça solícito. - Estava completamente em baixo. Não voltou a dirigir-nos a palavra. Era-lhe simplesmente impossível. Pelo menos, foi a impressão que nos deu. E no voo de regresso a Munique, também se conservou, como hei-de dizer?, muito sorumbático. "Doente?", pensou Linder. "O que se passa com Reissner, raios?" Havia uma história qualquer relacionada com um acidente, mas acontecera há muitos anos atrás. «Porque é que nunca me falou em nada? Porque é que, Deus do céu!, não procurou o médico quando se sentiu mal? Porque aceitou uma missão destas? É tudo um absurdo! » - Muito bem; Herr Soltau e Herr Wegner também! Vejam se descobrem onde ele está. E peço-vos que me comuniquem imediatamente quando tiverem alguma informação. Podem também telefonar-me para casa. Mas, sobretudo, mantenham-se em contacto com a mulher do engenheiro Reissner. Decerto que ele terá de aparecer em casa... Na auto-estrada de ligação Erding-Munique o tráfego era intenso. Reissner mantinha-se na faixa central. Sinais de luzes electrónicos colocados por cima da auto-estrada regulamentavam a velocidade das filas de automóveis: 50km - 40kin - 30km.

O engarrafamento acabara e voltava a poder rolar-se sem dificuldade. O motor do grande BMW branco da firma quase não fazia ruído. Pelos altifalantes saía a música. Dieter Reissner nem sabia muito bem o que o levara a ligar o rádio. Ou será que sabia? Esperara que a Rádio Baviera referisse qualquer notícia sobre os acontecimentos em StolIberg, sobre a crise na Indústria metalúrgica, e que levaria ao encerramento da fábrica. Mas quem se interessava por tal coisa em Munique? Agora, os quatro altifalantes vibravam com o som de música clássica; algo de muito melancólico, eslavo, patético - Tchaikovsky, talvez? De qualquer maneira, algo que neste momento lhe era impossível suportar, pois se coadunava ao seu estado de espírito. Conhecia os sintomas da autopiedade. Era sempre o velho filme, que somente conduzia ao medo e à confusão. O que agora - lhe fazia falta era a clareza de espírito, nada mais do que isso. Quando estendeu a mão para desligar o rádio, surgiu ao seu lado, pela esquerda, um Volvo encarnado, que se enfiou sem o mínimo cuidado na sua faixa, e Reíssner sentiu como o coração, após um leve sobressalto, começava a bater-lhe com força no peito, o suor lhe inundava a testa e a fraqueza se lhe apoderava do corpo. «Já viveste o mesmo. Há seis anos. O automóvel na tua frente, depois o embate... Não, nem sequer o sentiste. A primeira coisa de que conseguiste tomar consciência foi a luz das lâmpadas da mesa de operaçÕes ... » Fora nessa altura que se iniciara toda aquela desdita. Recostou-se e forçou-se a normalizar a respiração. Em seguida, avistou uma aberta, rodou à velocidade indicada e deixou que todos os loucos o ultrapassassem. Recostou a cabeça no assento. A representação estava no fim. Reissner, o Trouble-Shooterl, dera um tiro na própria perna. Na perna? Nas duas pernas. E pior ainda: já não lhe dava prazer utílizá-las. Agora, tinha, obviamente, de telefonar a Linder. E ele iria decerto martelar-lhe o juízo, se bem o conhecia. E daí? E Hanne? Também este assunto podia esperar. Primeiro havia algo de mais importante. pegou no telemóvel e marcou o número de Jan. Deixara a hora do encontro em aberto. Ignorava a que horas aterrariam em Munique. Agora, pouco faltava para as dezoito. Nem sequer precisou de deixar mensagem, pois foi o próprio Jan a atender. - Herzog. -Sou eu, velho. Dieter. Já é bastante tarde, mas posso mesmo assim aparecer no consultório? -Claro que podes. -Já tens os resultados?

- Já. Chegaram hoje, de manhã.

- E?

- Podemos falar mais tarde do assunto.              Um avião que acabava de descolar do aeroporto passou por cima da auto-estrada. O barulho dos motores assemelhava-se ao de um comboio de mercadorias. A voz de Herzog quase deixou de se ouvir, mas depois reapareceu: - De qualquer forma, seria óptimo que passasses por aqui. Onde estás, agora? - Na auto-estrada.

- Okay. Fico à espera. Reíssner esboçou um aceno de cabeça e desligou. O medo fez menção de voltar a instalar-se, mas ele tinha aprendido a abafá-lo. Fora obrigado a aprender. Olhou pelo retrovísor, virou o volante para a esquerda e carregou no acelerador. E, em seguida, pensou: "COntinuar em frente, sempre pela estrada, para sul, na direcção dos Alpes, sobre os Alpes... Roma, depois rumo a Palermo, mas sem permanecer na Sicília. Ali aguardavam-no os batelões... áfrica ..."

Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. Sacudiu a cabeça, como se pudesse livrar-se delas, Voltou a pensar em Hanne, mas de nada lhe serviu, Pensar em Hanne e em Elfi apenas contribuía para piorar a situação. Mais idiota era o que estava a fazer naquele momento: a meter a mão no bolso das calças e a apalpar as virilhas, através do tecido fino, para procurar o doloroso e duro gânglio que o esperava, embora tivesse ansiado com todas as forças que ele tivesse desaparecido como que por milagre. Não. Estava lá! Para sul... E mais longe do que Itália... áfrica... Há umas semanas atrás, Hanna trouxera para casa da agência de viagens uma colecção de prospectos reluzentes e coloridos. Mostravam ilhas das Caraffias... bungalós com telhados de capim, extensÕes de areia, palmeiras e uma água tão límpida como apenas existia em sonhos.

Ele e Hanna na areia. A construírem castelos com a pequena Elfi... Sim, e um bangaló debaixo das palmeiras. Porque não? A criadagem não era cara. Talvez uma cozinheira... Ou havia um hotel nas redondezas e qualquer criado de pele cor de café iria trazer-lhes a comida. E noites de lua cheia na companhia de Hanne... Lá fora, no terraço, banhados pelo luar. Ou a passear num barco branco a motor naquelas águas inacreditáveis. E pescar à linha e, e... sabe-se lá que mais. Divisara tudo na sua frente em pequenos trechos. Fizera-o muitas vezes, demasiadas. E o que acabara por suceder? O plano provara-se «irrealista». - Talvez mais tarde, Hanne. Limitara-se simplesmente a adiar para a Primavera do ano seguinte, o próximo Verão.

MENTIROSOS, BURLÕES... "Certo. Mas igualmente para contigo próprio. o que fizeste simplesmente da tua vida, com os diabos? E... e o que está para vir, agora?"

Há três anos, quando tinham ido morar para a villa, Hanne Reissner achara maravilhoso plantar duas faias vermelhas junto da piscina e flagelara tanto os ouvidos a Dieter que ele acabara por ceder. Um dia, apareceu, por conseguinte, um gigantesco camião com as árvores e jardineiros, que escavaram os buracos. Dieter resmungara e achava que as faias nunca se desenvolveriam. Mas aconteceu exactamente o contrário. E de que maneira! E, agora, a folhagem pendia sobre o relvado e Litzka, que se ocupava do jardim, aparava-as todos os anos. Hanna Reissner vestiu o blusão de cabedal. Queria limpar as malditas folhas secas. Mas seria isso realmente o que queria? Sabia, de facto, o que queria? Apenas não lhe restavam dúvidas de que não aguentava estar mais tempo dentro de casa, que iria enlouquecer se o telefone voltasse a tocar e qualquer idiota da firma perguntasse por Dieter. Era um absurdo! Como é que ele pudera deixá-la naquela expectativa? Que é que lhe dera? Há muito que O avião aterrara. Porque é que ele não tinha voltado para casa? Porque é que lhe causara, em vez disso, todos estes aborrecimentos? Hanne Reisner enfiou o ancinho tão exasperadamente na relva que ficou de imediato cheia de calor. Não conseguiu, apesar disso, remover todas as folhas reluzentes de humidade. Reflectiu sobre se deveria ir buscar a vassoura, mas também este instrumento se achava na beira da piscina... Atirou o ancinho para o lado. Elfi havia, na realidade, conseguido arrastar o triciclo ao longo do rectângulo de cimento, forrado de azulejos castanhos, que rodeava a piscina. E agora preparava-se igualmente para montar no selim e pedalar. - Enlouqueceste? O que estás a fazer? - EM não respondeu e continuou a andar. - Elfi! Deixa isso! Deixa isso! A miúda não ligou, no entanto, como era hábito. Hanne pôs-se a correr. Ainda não tinham enchido a piscina este ano. No interior nada mais havia do que duro betão, com dois metros de fundo. - Ouviste-me, Elfi?

- Não. Elfi começou a dar pontapés, quando Hanne a ergueu no ar e a apertou de encontro ao corpo. Sentiu o calor e, sob toda a raiva que esperneava nos seus braços, sentiu a desprotecção. - Pronto! - exclamou, passando a mão pelo cabelo louro da sua filha de três anos e beijando-a. - Está tudo bem, miúda. Nunca se pode brincar como se quer, não é? Agora, vamos para casa. O que procuramos aqui, afinal? O meu triciclo!

- Vimos buscá-lo depois. Hanne não fez qualquer esforço em transportar a filha ao colo. Era uma mulher magra e alta com um belo rosto de maçãs proeminentes e o marido afirmava que ela tinha uma certa parecença com Faye Dunaway. «... Faz-me a vontade e maquilha-te como da última vez. Assim tenho a sensação, sabes, de que vou com uma estrela de cinema para a cama...» Para a cama? Também isso ficava a uma enorme distância. Há anos que tinham terminado esses desejos e jogos. Há quantos anos, de facto? Desde o acidente e a operação...

O que finalmente restara podia designar-se como pura rotina de casamento. Um beijo de manhã quando se mete no automóvel, um beijo à tarde quando volta a casa, algumas caricias, muita, muita compreensão e uma serie de explicaçÕes, que a nada conduzem, No entanto, todo este comportamento se relacionava com o acidente. Não havia dúvida de que ele mudara desde essa altura. os médicos haviam, de facto, devolvido ao lugar os ossos da bacia e reconstituído tão perfeitamente as articulaçÕes que só os que haviam conhecido Dieter antes eram capazes de perceber que o seu andar se modificara. E até mesmo esse ele tentava disfarçar. O que demonstra um Dieter Reissner exteriormente? Não era o seu estilo... No entanto, mal havia recebido alta do hospital, atirara-se ainda mais encarniçadamente ao trabalho do que dantes. Workaholic... óptimo, mas esta bela palavra também não servia de explicação. Não, era muito mais como uma droga, um fanatismo cuja origem ela desconhecía. -Quando se monta um tigre, Hanne, é preciso aguentar-se lá em cima... - Mas para que servia um marido que queria montar um tigre? E os outros tão terrivelmente «dinâmicos» elementos do conglomerado! Oque pretendia, de facto, Dieter mostrar? No entanto, a partir desta altura, ele parecia ter-se tomado ainda mais infatigável, percorria como um louco a Europa de um lado para o outro - ao serviço da firma ou de quem quer que fosse - e para todos os seus pedidos apenas tinha como resposta um encolher de ombros ou um: "Mais tarde, Hanne ..." Chegara, agora, a casa. Era uma construção de tijolo pintada de branco e eln forma de ferradura. Dieter conseguira convencer o PrOPrictário a acrescentar um campo de ténis na frente virada a norte. Tinha jogado umas duas ou três vezes. Desde essa altura que a relva cobria o terreno.

Era apesar de tudo uma casa maravilhosa! E situava-se num dos melhores bairros da cidade, em Harlaching. O mais importante para Dieter residia em que também Jakob Linder tinha a sua villa somente quatro ruas mais à frente, num terreno mais ou menos do mesmo tamanho. Só por este mero facto, Dieter dispusera-se a pagar uma fortuna todos os meses. Contudo, agora Dieter aparentemente pouco se importava com o que Linder esperava dele... Escancarou a larga porta envidraçada, que dava para o jardim. Elfi deixara de espernear. Passara os dois braços à volta do pescoço da mãe e encostava a cabeça ao seu rosto. O que devo fazer, Frau Reissner? Quer que ponha a carne estufada no forno? Carne estufada com feijão-verde era o prato favorito de Dieter. Cada vez que regressava de qualquer incumbência dificil, encontrava-o na mesa ao chegar a casa. Tratava-se de uma espécie de compromisso sem palavras. Dantes, Hanne ainda encarava o quadro de uma forma romântica, vendo em Dieter o cavaleiro que cavalga até ao árduo campo de batalha para se apoderar dos despojos. Também esta imagem se perdia na distância. -Deixe, íris. Quem sabe por onde ele anda? íris limitou-se a esboçar um aceno de concordância. Esta calma submissão contribuía, frequentemente, para enervar Hanne. Mas desta vez sentiu-se agradecida. -Aquele senhor voltou a telefonar. -Que senhor?

- Aquele que já telefonara antes. Soltau ou um nome assim. Disse-lhe que estava lá fora no jardim e respondeu que voltaria a telefonar. O aparelho tocou novamente nesse preciso instante.

Apetecia-me atirar essa maldita coisa contra a parede! - gritou Harme. - E Soltau também! - Dirigiu-se ao telefone e pegou no auscultador. - Soltau. - Frau Reissner!

- Sim. Ele ainda não chegou. -Foi o que pensei, minha senhora. Mas se entre- tanto aparecer.. estamos com um problema. Ou seja, Herr Linder gostaria de saber uma coisa. - Ah, sim? E o quê? -É que... o seu marido já não parecia muito bem de saúde na viagem de avião para Stollberg. E o mesmo aconteceu no local. Por isso, Herr Linder gostaria de saber se o seu marido tem estado sob tratamento médico nos últimos tempos. - Que eu saiba, não, Herr Soltau. E como havia de o saber? De qualquer forma, não me falou no assunto. Além disso, quando é que o tenho visto nos últimos tempos? - Claro, claro - murmurou Soltau.

Empurrou a porta com o ombro. Era uma velha, pesada e maciça porta de madeira, que só não se fechava completamente devido a uma gasta almofada de cabedal. Era uma porta como somente se encontrava ainda por estes sítios, na Rosenheimer Platz, onde ainda havia casas velhas para alugar a preços razoáveis. O seu amigo Jan, o Dr. Jan Herzog, precisava das duas coisas: muito espaço para o consultório e ao mais baixo preço possível. - Quero ver gente à minha volta, Dieter. Não tenho Paciência para essa tua mania das grandezas... Se alguma vez te sentires mesmo mal estarei sempre pronto a ajudar-te. Mas... se te apetecer tatuar o número da conta bancária ou o emblema dourado da firma no traseiro Procura um desses professores, que depois possa voltar a tirar-to.

Sentia-se, de facto, mal. E deixara de acreditar na opinião dos professores. Estava-se nas tintas para eles. As escadas eram largas, escuras e cheiravam a cera, Subiu-as muito devagar. Avançava como se fora idoso tinha a sensação de que ainda o deveria fazer mais len tamente. Avistou a placa em latão: TODAS AS CAIXAS. Premiu o botão da campainha. Foi Jan a aparecer e fê-lo tão rapidamente como se tivesse estado a escutar atrás da porta. -Então, meu velho? Jan Herzog era um homem muito alto e magro e tinha sempre um sorriso de boas-vindas, mas foi em vão que Reissner tentou detectá-lo nesse dia. - Vamos para o meu consultório.

O médico tomou a dianteira.   semelhança de muitas outras pessoas altas e magras, caminhava de ombros um tanto curvados. O soalho rangeu sob as solas dos sapatos. Nas grandes divisÕes de paredes caiadas de branco reinava, habitualmente, uma permanente azáfama. Agora, predominava o silêncio, igual ao de um cemitério. Estranho: nem um ruído da sala de espera, nem a barulheira de crianças, nada. Apenas o ranger destas solas... O mal-estar de Reissner acentuou-se. Por sua vontade, teria muito simplesmente virado costas e corrido para a porta. Lá para fora. De imediato. No entanto, controlou-se. Dispusera-se a manter a calma, a não se deixar arrastar pelos nervos. Sobretudo a conservar o raciocínio bem claro. Jan convidou-o a sentar-se no maple das visitas, recostou-se e só nessa altura soltou  uma risada. Mas não era o seu riso habitual. Ou, pelo   menos, aquele a que Dieter Reissner estava habituado. Conhecia este rosto como dificilmente qualquer outro:   sobrancelhas pretas e grossas, olhos negros e profundos, além de uns lábios bastante sensuais e emotivos.

Sim, há vinte anos que o conhecia, desde que tinham estudado juntos em Heidelberga. Os dois haviam conseguido safar-se: Jan como médico e ele na indústria... E, sempre que tinham um dia livre, partiam juntos para as montanhas. Jan ensinara-o a escalar, mau grado ele odiasse poucas coisas como paredes a pique, chaminés e tudo o mais no género. Não se poupara, todavia, a esforços; de resto, não tinha outro remédio. Jan era, nessa altura, o único amigo que possuía, E, bem vistas as coisas, continuava a sê-lo hoje. Jan - o seu único amigo! Mais ainda: o único em quem confiava... Começou a falar. Pô-lo ao corrente de toda a catástrofe da sua missão em Stollberg de uma forma bastante sucinta e admirou~se pelo facto de Jan não o interromper com perguntas pelo meio. Limitava~se a olhá-lo. Quando acabou a narrativa, Reissner queixou-se dos comprimidos: - Na minha opinião foi essa merda que me fez passar por esta figura. Tomei uma dose superior à que me indicaste. Quase o dobro, Jan... E o efeito prolongou-se até à tarde. Mas, exactamente quando mais precisava de estar bem, sobreveio a catástrofe. Jan voltou a esboçar um aceno de cabeça. Em seguida, brindou-o de novo com aquele prolongado e estranho olhar. Reissner sentiu o calor que lhe invadia a nuca. -Os antibióticos de nada servem neste caso - PrOnunciou-se, finalmente, o Dr. Herzog. - Ou deixaram de servir. Embora utilizemos doses tão fortes, Dieter@ precisas de outra coisa. -Do quê, então?

O médico hesitou novamente. E pareceu mais uma vez com dificuldade em expressar-se. Reissner viu-se Obrigado a aguentar mais uma vez o olhar. -Processos de defesa imunológica. Gamaglobulinas, por exemplo. E principalmente repouso, jovem. Quantas vezes preciso de repetir-to? Muito, muito repouso. A idiotice em que te deixas arrastar ainda dará cabo de ti. «Gamaglobulina» - a palavra alojara-se-lhe no cérebro, ainda pior porque a conhecia, e precisamente por haver sido discutida em relação com o que mais receava. «Hanne ... », pensou. O nome ocorreu-lhe inteiramente a despropósito. E, em seguida, a ideia: «Oh, não! Isso, não! Deus do céu, por favor ..». Necessitou de todas as forças para fazer a pergunta:

- Recebeste os resultados da análise, Jan? - Jan Herzog esboçou novo aceno de cabeça. Será que hoje somente sabia acenar com a cabeça, raios? - E? - Jan não pronunciou uma única palavra, mas os olhos aproximaram-se subitamente. Tinha debruçado o tronco enorme sobre a secretária. Procurou com a mão a mão de Dieter e agarrou-a com força. Dieter sentiu a pressão e... ficou a saber tudo. - Não! Sentiu novamente como o estômago se lhe contraía, as entranhas se lhe remexiam e a pele se cobria de suor. «Não! Não!», pensou, gritou intimamente. Ouviu a voz de Jan, que lhe parecia vinda de muito longe.

Esvaziei todo o consultório por tua causa. Mandei embora toda a gente. «Um caso de emergência», disse, e, em seguida, fiquei à tua espera. E, agora, estás para aí todo encolhido... Tinha tantas frases preparadas, mas não me ocorre nenhuma. - Positiva? Jan acenou com a cabeça. Conservaram-se ambos em silêncio. Jan tinha mandado pôr no consultório janelas de vidro duplo; constituíam todo o seu orgulho e mostrara-as a Dieter. No entanto, embora fossem «perfeitamente à prova de som», ele ouviu alguém rir na rua. E depois uma criança gritava qualquer coisa. E um carro travou. ouviu com toda a nitidez. - Tens de falar com a Hanne - insistiu Jan num tom premente. - E é melhor que seja ainda hoje. Vou fazer-te uma proposta: sentamo-nos os três e analisamos a situação. «A situação»... Naturalmente, que mais? Tratava-se de uma situação clara, fácil de examinar com objectividade e nem sequer muito rara... Era uma entre muitas outras... «Mas porquê? Porque te atinge? E não a qualquer outra pessoa? Exactamente a ti?» O chão abriu-se sob os seus pés e sentiu-se cair, cair... O olhar de Deus... Viu, subitamente, de novo a objectiva da câmara de vídeo na sua frente, brilhante e fria, negra e diabólica. - Seria realmente o melhor.. E sobretudo: agora tens de cuidar de ti. E depois pomos-te outra vez em cima das pernas. Nada de perguntas. Mas devemos fazê-lo juntos... Hanne! No seu íntimo apenas existia o nome. Estranho, mas a partir de agora era simples falar. As palavras saíram-lhe como que em torrente da boca. Afinal - não assistira a uma dúzia de conversas destas? Por conseguinte: «Não te deixes surpreender por nada! E nisso está incluído tomar a dianteira à pior situação e planear de antemão as decisÕes necessárias. Ficar lúcido. Lúcido e pragmático.» Um dos seus princípios de carreira! Até aqui conseguira!

- Hanne? - inquiriu com um nó na garganta. Qual é a probabilidade de que também ela... Jan pôs a cabeça de lado. Em seguida, cruzou as mãos, apoiou o queixo sobre elas e fitou-o com os Olhos negros. - Há diversas estatísticas. As opiniÕes dos especialistas  divergem. E não me perguntes quem ataca quem, Mas, regra geral, a média afirma que a probabilidade de contágio se situa entre os vinte e os vinte e cinco Por cento. «Mesmo que fosse de cinco por cento já seria demasiado ... », pensou. - E a miúda?

- Também se torna dificil qualquer afirmação nesse sentido.

-A percentagem - insistiu.

- A percentagem? Raios! É coisa com que não deves preocupar-te neste momento. De modo algum! Há muitos factores em jogo quanto às possibilidades de contágio. Cada caso é completamente diferente de qualquer outro. Há algo mais importante, Dieter! -Sim - concordou, ao mesmo tempo que na mente lhe soavam as palavras: frio e lúcido! Levantou-se. - Que se passa? Aonde queres ir? Baixou o olhar na direcção de Jan, fixando os pêlos escuros que lhe cresciam nas costas das mãos e a calvície que começava a acentuar-se. - não vais telefonar à Hanne. Prometes-me?

- E claro que prometo, se insistes. Mas porquê? -Não há porquê, Jan. Não o farás. Hoje não, pelo menos - rematou, girando sobre os calcanhares. - Aonde vais? Dieter! Mais tarde, não soube como conseguiu sair do consultório de Jan, como as pernas o transportaram. No entanto, tinha força de vontade e acabou por se lembrar... - Posso servir-lhe mais qualquer coisa? Quero di- zer, deseja algo especial? Tinha vestido uma camisola de algodão verde, larga e comprida por cima das calças justas. Usava o cabelo louro penteado ao alto, o rosto e o pescoço eram bonitos e os olhos castanhos emanavam simpatia. Mediu-o com um olhar tímido. Na frente de Reissner estava uma chávena de chá. Esvaziara-a. Mas como viera parar à sua mesa? Era a primeira vez que tomava consciência da presença da empregada. - Sim. Traga-me qualquer coisa. O quê, então? -Qualquer coisa... chá. Desviou o olhar na direcção da montra de vidro. No exterior havia dois quiosques, mesmo à entrada da estação de metropolitano. Nos quiosques havia de tudo: fruta, hortaliça, montanhas de maçãs, bananas. A maioria dos transeuntes limitava-se a desfilar, outros examinavam a mercadoria e acabavam por comprar qualquer coisa. O tráfego era tão intenso que já se avançava pára-choques junto a pára-choques. Lá atrás, mas ainda não a uma grande distância, ficava a velha casa onde, no primeiro andar, o seu amigo Herzog cogitava provavelmente no que seria melhor fazer no caso de Reissner.. Nada, Jan! Restava-lhe, contudo, mais uma missão. Importante ou não, queria levá-la a cabo. A rapariga de camisola verde trouxe-lhe o chá. -Têm telefone aqui? - Sim. Ali na cabina. Tinham, por conseguinte, uma cabina. Tanto melhor! Fechou a porta nas costas, mas sentiu-se tão tonto naquele pequeno espaço que temeu morrer asfixiado. VOltOU, portanto, a abri-la, mesmo sob o risco de alguém poder escutar o que ele ia dizer. Se é que interessaria a alguém. Conseguiu a ligação para casa de Linder sem as Costumadas dificuldades. Lotte Fralim, a criada de quarto, engoliu em seco, admirada, quando anunciou o nome.

- Herr Reissner? O senhor? Deus do céu! Se soubesse...

- Eu sei - redarguiu. - E agora passe-mo, por favor.

Após um breve estalido, ouviu-se a voz dele.

- Linder. Ainda está vivo, Reissner? Nesse caso, posso dizer-lhe desde já que na minha função já passei por todo o tipo de coisas. No entanto, o seu comportamento bate todos os recordes. - Não sabia! - limitou-se a comentar. A resposta não pareceu agradar ao grande chefe. Pausa. - Agora, ouça-me bem, Dieter... - começou a dizer em seguida.

- Não, Jakob, é você quem vai escutar. - Todo este tratamento de Dieter... porque não podia, afinal, chamar-lhe também «Jakob»? - Está à vontade para desligar, se lhe apetecer. Talvez seja, todavia, interessante o que tenho a comunicar-lhe. - De que está a falar? O que lhe deu?

- Oh, nada de especial! Há muito que ando para ter esta conversa. Simplesmente, voltou a ocorrer-me hoje. Queria perguntar-lhe... - Perguntar-me? A mim? Está louco?

- Como assim? Fazer perguntas significa que se está louco? Aliás: não me surpreende... - Do outro lado da linha, ouvia-se somente uma respiração acelerada. - Já pensou, por acaso, no que está a fazer, Jakob? Analisou, por exemplo, a fundo o encerramento da Sachsen-Stahl? Ou, pelo menos, um pouco, em vez de dizer simplesmente que «sim» e fazer o que os senhores do conselho fiscal decidem? É, obviamente, uma pergunta idiota. Claro que não o fez. Como o poderia? Não precisa, pois é um idiota para quem não existem dúvidas, quando o conselho fiscal as dispensa. Certo? Ou seja, quem dá a cara são sempre os outros.

- Como se atreve?... - São sempre os outros... e de que maneira! Agora estava a gritar, apercebeu-se do facto e voltou a baixar de imediato a voz: - Mas deve sentir-se pessoalmente culpado, não é verdade? Jakob, Jakob! Chegou a altura de descer do cavalo. Há muito que deixou de saber o que, na realidade, se passa. Nem sequer avis- ta o chão! Há muito que perdeu a noção da responsabilidade, seu idiota arrogante. No entanto, posso garantir-lhe que o cavalo não aguenta muito mais. Chegou a altura de desmontar... Que tal? Perdeu, de facto, a agilidade. Além de que todos têm princípios, certo? - Fui eu que lhe abri todas as portas da sua carreira, Reissner. Sempre confiei em si. Agora, sei que foi um erro. - Imagino. -Sim, e agora sei também que está doente, homem.

- Exacto, Jakob. É verdade. Estou doente. ... Agradeço-lhe, de resto, que não tenha desligado logo. Isso oferece-me, realmente, a oportunidade (tem razão, estivemos demasiado tempo juntos!), dá-me pois a oportunidade de lhe dar um bom conselho. E não me refiro a toda a merda que provocou na firma. Ali há sempre idiotas bastantes a quem pode contar a sua versão dos factos. E esses estarão ao seu lado até acabarem por ser despedidos. Mas não se trata disso, Jakob, agora, trata-se realmente de si. E tanto me faz que grite como ria... - Reissner!

- Agora, falo eu. E seria bom que me deixasse falar. Bom para si, Jakob. Para o seu obstinado e estúpido cérebro. Continua aí? - A respiração; somente a respiração ofegante. Reissner aproximou mais o auscultador da boca: - Falo a sério, Jakob: tente descobrir porque é assim. E pense no que tem sido a sua vida até este Momento. E no que ainda lhe resta. E se, afinal, valeu a pena. Será que vale realmente a pena levá-la dessa sua forma? Pois tenho algo mais a acrescentar: somos sempre nós a pagar pelos nossos erros... Pousou, em seguida, o auscultador, muito devagar. E pensou: «Mas para ti é demasiado tarde. Tanta coisa planeada, tanta coisa sonhada e nunca realizada, tanta, tanta coisa nunca vista e nunca vivida... tanta coisa iniciada e nunca levada até ao final... Tanto! E sem entender! Sem entender o mais importante!»

Quando saiu do café, os automóveis já começavam a acender os faróis. O crepúsculo descia sobre a cidade. No caminho de regresso o automóvel percorreu ruas pequenas e estreitas. Nos jardins, ainda se erguiam bonitas e velhas árvores. Havia estabelecimentos e através das montras avistavam-se as pessoas a trabalhar. Ao seu encontro, avançaram crianças, três miúdas que lhe pegaram na mão, rindo-se à socapa... Abriu a porta do BMW, deu a volta e seguiu na direcção de Grünwald. Passou junto a Harlaching. Nem sequer brindou com um olhar a zona escura e pouco iluminada do bairro de vivendas onde algures se situava a sua casa. O mundo à sua volta escurecia num crescendo, a estrada deslizava debaixo dele e perdeu-se no meio do tráfego, enquanto o sentido de orientação e a noção do tempo foram desaparecendo. Apenas sabia uma coisa: o tempo não voltaria a escoar-se devagar. Não para ele... As próximas horas decorreram para Dieter Reissner como se se encontrasse por detrás de um nevoeiro castanho e impenetrável. Pouco ocorreu que lhe ficasse no pensamento, somente que parou num pequeno café junto a um posto de gasolina na região de Bad TÕlz, bebeu uma cerveja e dois vodcas, mandou vir qualquer coisa para comer e, em seguida, quase vomitou quando lhe trouxeram a salada de salsichas. Lá fora, junto ao automóvel, tinha encontrado um homem novo e cheio de frio, com os punhos enfiados nos bolsos da parka. Lembrava-se igualmente do rosto dele: magro, jovem, esfomeado. Se não poderia dar-lhe boleia? Queria ir para Munique. Respondera afirmativamente, mas acrescentara: «Aconselho-o, todavia, vivamente a que não viaje na minha companhia...» O indivíduo novo fitara-o e, em seguida, recuara involuntariamente um passo. «Talvez tenha reconhecido o assassino», pensou Reissner, enquanto conduzia o BMW de volta a Munique. «Talvez essas coisa se vejam?» Dentro do automóvel, consultou mais uma vez o relógio. Hanne ainda se conservaria acordada durante muito tempo. Sem dúvida até à meia-noite. Mas, em seguida, tomava os comprimidos e adormecia. «Ainda tens de passar estas horas».

Pouco passava da uma hora quando a tabuleta se recortou sob a luz dos faróis: MUNIQUE. Reissner conduziu o BMW ao longo das ruas tranquilas de Harlaching. Muros brancos. Árvores. PortÕes de bronze. Luzes por detrás dos ramos. Em seguida, os estores metálicos corridos da pastelaria que reluziam de humidade. A Tauberstrasse. Não arrumou o carro na garagem, mas deixou-o simplesmente parado. Também não o fechou. Para quê? No entanto, interrogou-se depois sobre se não faria melhor em tomar alguns dos calmantes de Hanne, que estavam sempre guardados no porta-luvas. E qual a finalidade, também? Deixara de ter medo. O espírito afastara as últimas dúvidas. E a análise acabara, no fundo, por se revelar bastante simples... Observou os dois velhos castanheiros que se erguiam no começo da Tauberstrasse: «Tudo é efémero, não há continuidade... o que mais nos custa ante esta realidade é somente a incerteza do fim. Não é previsível, esconde-se. Pode ser mau, pode ser horrível.» Hanne não suportaria a espera; conhecia-a bastante bem. E Elfi! EM nem sequer entenderia o que acontecera, «As consequências? São necessárias. Trata-se de amor - sim, é a única forma de amor de que ainda me sinto capaz.»

Agora, sabia-o. A casa apresentava-se imersa na escuridão. Escancarou o portão do jardim e percorreu o largo acesso pavimentado. À direita, recortava-se, fantasmagórica, a rede alta do campo de ténis. Também já não precisaria dele, nunca precisara, aliás. Escutava o ruído dos próprios passos na pedra. Os ladrÕes não teriam dificuldade em assaltar a casa. Apesar de tudo, ainda bem que não mandara colocar o alarme, pois Falirenhold, o avarento proprietário da casa, recusou pagar as despesas. Pretendia deduzir o custo no aluguer. O que é totalmente absurdo. Banqueiros! «Fahrenhold bem pode começar a procurar um outro banana.» Encontrava-se, nesse momento, junto à porta de casa, mas reconsiderou, deu a volta pela ala a ocidente e pegou na chave mais pequena para abrir a porta do terraço. A sala. As esquinas dos móveis. E a Lua, que até agora se havia ocultado por detrás das nuvens, iluminava por completo os móveis e o jardim. Conseguia mesmo reconhecer a sua própria sombra. Quase como num filme: o assassino surge... Ergueu a mão para o interruptor. Mas para quê, afinal? Não precisava de luz! Além de que também desaparecera aquele peso nos ombros, a sensação de que cada movimento lhe custava uma imensa perda de forças... Pelo contrário: agora sentia-se leve - leve e livre. A cómoda ficava ao fundo do corredor que levava da sala de estar às casas de banho e às escadas para o primeiro andar. Era uma cómoda lindíssima, com embutidos,  do fim do século xviii. A tia de Hanne dera-lha como    prenda de casamento. E quando ela abrira a priMeira gaveta, encontrou uma carta lá dentro. Reissner nunca se esquecera das palavras: «Que sirvas durante Muito tempo uma família feliz, bem sucedida e saudável.» Muito nobre. Nobre como a tia. E a cómoda ainda continuava a servir. Tinha em cima dois candeeiros de latão. Por cima do móvel,'havia uma janelinha em forma de trevo que dava para o jardim. Avistava, lá fora, ao luar, o canto direito escuro da piscina. E na beira, o minúsculo triciclo de Elfi. E deixou de ver o que quer que fosse mais, pois as lágrimas saltaram-lhe dos olhos e eliminaram tudo pelo espaço de segundos. O que Reissner fez nesse momento não foi planeado e era, além do mais, insensato. Mesmo assim, não hesitou. Percorreu o caminho de volta até à porta, saiu para o jardim e quase tropeçou no ancinho, que estava na relva. Hanne ainda havia trabalhado. Hanne... Pegou no triciclo e no ancinho, ergueu os objectos no ar e examinou-os como se nunca tivesse visto algo parecido, após o que os levou até junto do muro da caSa, onde os encostou. Em seguida, voltou a entrar em casa, encheu um coPó de água na cozinha e tomou três dos calmantes. Também isto era insensato, pois nos próximos minutos Pelo menos não fariam efeito e ele não podia, não devia esperar mais tempo! Regressou até junto da cómoda. Há uns anos que colocara uma fechadura especial na gaveta de cima. Conservava sempre a chave no porta-chaves. Puxou a gaveta, abriu o saco e tirou do interior a Walter PKK. Remexeu novamente a gaveta à procura do carregador e ouviu o ruído metálico quando o enfiou. Pôs a arma na posição de disparo, após o que puxou a culatra e subiu as escadas com a pistola na mão direita. Pancadas surdas. As batidas do seu coração? O que quer que fosse produzia um ruído superior ao do leve ranger sob os seus passos. Avançava muito lentamente. Ainda continuava a raciocinar com a mesma frieza de outrora. Mas o coração tinha a sua linguagem própria. O seu coração gritava...

Depois também isso passou.

O corredor. A terceira porta, à direita. O quarto de Hanne. No ano passado passara a ocupá-lo, após decidir passar a dormir sozinha, pois ele acordava-a sempre em sobressalto com aqueles regressos a meio da noite. Pousou a mão no fecho. «Desde que te conheço, nunca amei outra mulher, Hanne! Juro!... Nunca na minha vida, Hanne, amei alguém como te amo.

Acredita, Hanne, tem de ser ..»

Puxou o fecho para baixo e entrou. Também aqui se

deteve e aspirou o perfume dela. Avistou os contornos da cama e a cadeira sobre a qual, no escuro, pendiam alguns vestidos. Sob o luar que entrava pela janela, verificou que Hanne se mantinha deitada de lado. Sentiu-se muito contente. Nunca se sentira tão contente. Nunca algum outro facto lhe porporcionara tal satisfação. Agarrava a almofada e o cabelo espalhava-se pelo linho branco. Ajoelhou-se junto ao colchão. Ela não se mexeu.

«Assim é muito mais simples.» «Então, fá-lo!» Tocou nos cabelos com as pontas dos dedos, mas num gesto isento de emoção. As pontas dos dedos estavam insensíveis. Apontou a PKK sem tremer, o cano afastou-lhe uma niadeixa de cabelo e concentrou-se para que a arma não tocasse no couro cabeludo. Fechou os olhos e... disparou. Tão simples... A terrível e sonora explosão assemelhou-se a um soco. Hanne ergueu a cabeça e voltou a abater-se sobre a almofada. Nada mais para além do estampido... Tinha decidido não ver nada. Levantar-se e sair.. Ergueu-se. Não sabia como chegara à porta, mas nem um olhar deitou para trás. O quarto de criança de Elfi constituía a etapa seguinte. No entanto, o tiro fizera barulho e Elfi devia tê-lo ouvido. Encontrava-se, de novo, no corredor. Encostou o ouvido à madeira da porta do quarto. Nada. Nem um soluço, nem um «mamã». Nada. E os tímpanos ainda lhe doiam. Pousou a mão na maçaneta, puxou-a para baixo e entrou no quarto da filha... íris consultou o relógio: passava das nove e meia...

O senhor engenheiro costumava tomar somente café ao pequeno-almoço, antes de ir para o escritório. E para Frau Reissner arranjava-se sempre alguma coisa. Parou o Uno em frente da padaria no começo da Tauberstrasse, saiu a correr, comprou pãezinhos e as vianinhas de que Elfi tanto gostava, transpôs os últimos cem metros à máxima velocidade que o motor lhe perMitia, apanhou na entrada do portão o Süddeutsche e o Abendzeitung e seguiu pelo acesso.

Em seguida, deteve-se de rompante. Reinava um silêncio total. A casa erguia-se no sítio de sempre. Só que as persianas do rés-do-chão ainda não tinham sido levantadas. Bom. Não era a primeira vez! Apesar de tudo, algo parecia mudado. Iris escancarou a porta da casa, entrou no átrio, passou à sala - e voltou a parar. O coração batia-lhe com força no peito. Era como se sentisse uma mão a apertar-lhe o pescoço. Não era só algo - tudo havia mudado! E, além do mais,   este silêncio... Sentiu um arrepio a percorrer-lhe a espinha. -Frau Reissner? - chamou. Ninguém respondeu. O único ruído era o da sua voz, dos seus passos. - Frau Reissner!... -    O mesmo... «Se tivessem saído irias saber.. ter-te-iam informado.» Mas nenhum bilhete, nenhuma carta, nada. Talvez Frau Reissner estivesse lá em cima, no quarto da filha. Talvez o rádio estivesse ligado e não a dei- xasse ouvir.

íris pisou o corredor. Mantinha a cabeça baixa e fitava o padrão a preto e branco dos mosaicos; insultou-se de histérica, avançou mais um passo... Levou a mão à boca. Não conseguiu reter o grito, um grito horrível, tão agudo e arrepiante que ela própria se atemorizou. Ali @ Uma pessoa. Um homem. Um assassino... Estava deitado a meio das escadas, com a cabeça para baixo, a perna direita encolhida e a esquerda esticada, chegando ao terceiro degrau. O ombro direito assentava nos mosaicos. Neste ponto não eram pretos e brancos, eram vermelhos, de um vermelho-vivo, cobertos por uma camada, um mar de sangue! O homem... seria o engenheiro? Deixara de o ser. Este rosto, enegrecido e deformado por uma ferida horrível, não pertencia a um ser humano.

Iris virou as costas. Sentiu vontade de correr, mas cambaleou, apoiou-se com a mão esquerda à cómoda, deu uns passos inseguros e chegou, por fim, à porta de casa, ao jardim, às aves e flores. Tudo estava como sempre. Não, não, Deus do céu!... Não!

Vomitou e, em seguida, forçou-se a reflectir calmamente. As pernas funcionavam. Caminhou devagar. «Não vais entrar outra vez na casa. Uma casa de morte. Um lugar de crimes. Elfi, a pobre Frau Reissner.. e agora?» Escancarou a porta do jardim. Olhou para o automóvel. «A Polícia», pensou. «Telefonar ..» - ... escute, íris... Agora, escute! O que se passou? Alguém lhe agarrara o braço e sacudia-a. Avistou uns olhos negros e o rosto preocupado de um homem. - Polícia... - sussurrou. - Por favor.. -Mas como assim? O que aconteceu? Está toda a tremer. Agora sabia tratar-se do dono da vivenda ao lado. Esse... esse tal professor Marein. «E porque é que ele não faz nada? Porque se limita a olhar para mim? Porque é que ninguém faz alguma coisa?» O telefone não parava de tocar e as chamadas aumentavam de hora a hora. Os loucos saíam das tocas e os normais enlouqueciam: começara o fim-de-semana. O que está para aí a dizer? - inquiriu Walter Rebmann, chefe do Departamento de Homicídios, inclinando-se para a frente, como se pudesse certificar-se melhor. - Chacina de uma família? E onde? Se já atendeu a chamada no posto, talvez possa falar mais em Pormenor, não? Como? Na Tauberstrasse... É, portanto, em Harlaching? E o homem é director no complexo ACS? A mulher e a filha também... Quem está lá fora? O BÕhme? Sim, sim, compreendo. Obrigado. – Pousou o auscultador. Harlaching? E ainda por cima director no ACS? Como é que o idiota lhe chamara? Chacina de uma família... O que quer que acontecesse em Harlaching era sempre explosivo. Altamente explosivo. Aquele maldito bairro de bonzos alimentava matéria para escândalos. «Harlaching, ou seja, ter os média à perna e, na verdade, toda a comunidade! Mas é dia da partida de ténis do chefe... E BÕhme? E agora?» Rebinann voltou a pegar no auscultador e premiu os botÕes. Novotny - atacou logo. - Agora, não me fale do que tem amontoado em cima da secretária. Meta-se no automóvel e siga para Harlaching. O BMW azul abriu, velozmente, caminho pelo meio do intenso tráfego da faixa central. O comissário Paul Novotny ordenara ao motorista que passasse para o lugar do lado, aproveitava todas as oportunidades, detectava todos os buracos de ultrapassagem e carregava no acelerador. O jovem agente da polícia ao seu lado fechava inutilmente os olhos. Não levaram mais de vinte minutos a chegar a Harlaching.

- Ali! - indicou o condutor e apontou para diante. Sim, ali. Tauberstrasse, dezoito. O automóvel da Polícia estacionou diante de uma bonita vivenda de tijolo. O portão do jardim estava aberto e era vigiado por dois agentes fardados. Novotny dirigiu o BMW até um jardim semelhante a um parque, estacionou-o com um guinchar de travÕes, saltou do interior, esboçou um aceno de cabeça a um outro agente que vigiava a porta da casa e encontrou o assistente de BÕhrne, o agente de serviço no fim-de-semana, frente à porta escancarada de uma grande sala de estar. - Então?

O indivíduo limitou-se a erguer o braço e indicou o corredor à esquerda. O corredor levava a umas escadas.

No primeiro degrau havia o cadáver de um homem. o fotógrafo da Polícia acabara precisamente de montar o tripé. Dois homens do Departamento de ImpressÕes Digitais mantinham-se acocorados na escada e examinavam algo que Novotny não conseguia reconhecer do sitio onde se encontrava. - Uma mulher (a esposa) e uma filha de três anos - elucidou o assistente. - E ele, ali em baixo, A mulher foi assassinada com um tiro à queima-roupa, Disparado no occipital. Metade do cérebro ficou desfeito. - E mais?

- Mais?... A criança. Esforçou-se mais. Um tiro direito ao coração. A miúda quase não se deve ter apercebido. E, finalmente, ele. Veja por si próprio... Um tiro na fronte não lhe conferia muitas certezas e assim conseguiu apontar o cano da arma à nuca... Novotny esboçou um aceno      de concordância, passou junto ao cadáver e aos dois investigadores e subiu ao primeiro andar. Aqui, trocou umas breves palavras com BÕhme, observou os outros mortos e regressou ao átrio. Deixou-se cair num dos dois grandes maples de ca~ bedal que ali se encontravam. Quase se afundou. Remexeu, nervoso, no bolso do casaco desportivo. No meio da precipitação da saída, os cigarros haviam ficado em cima da secretária. O assistente estendeu-lhe o maço. Novotny acenou agradecido com a cabeça. Observou a sala por entre as baforadas de fumo: quadros, mobiliário, tudo muito bonito e sólido. E caro, muito caro. Director do complexo ACS? Na verdade havia muitos, mas este aqui devia ter trepado até bem alto na escada. Reissner? Dieter Reissner?... Nunca tinha ouvido aquele nome. O que está a fazer o médico? - quis saber.

- Já acabou o trabalho. No entanto, voltará. Não quis precisar, mas defende a teoria de que a ocorrência se verificou por volta da meia-noite. A ocorrência. O homicídio de uma mulher e da filha. Em seguida, a bala destinada a si próprio. - Já examinaram as impressÕes digitais da PKK? - Os colegas estão a ocupar-se disso. Lá fora, no automóvel! Mas ninguém entrou aqui nem matou quem quer que fosse. Ele tratou de tudo. - Comunicaram-me ao telefone que a porta não foi arrombada. - Não, Herr Novotny, e sabe que mais? Tinha o porta-chaves pendurado nas calças. Wolters, um dos investigadores, apareceu vindo da sala que levava ao jardim. -Vejam só! - diriglu-se com um esgar a Novotny. - Já temos aqui o grande calibre. - Deixe-de disparates, Wolters. Já examinou a arma? Descobriu algo? - SIM. Excelentes impressÕes digitais.

- E?...

- Condizem perfeitamente com as dele...

Trabalho de equipa e «nova cultura empresarial» - nada tinha contra, pensava Jakob, Linder, se os outros acarretassem com os danos. «Não é esta a melhor altura para futilidades. Também não é a recessão, isto é a crise e, por consequência, a guerra - uma guerra implacável e vergonhosa. E do que se necessita em alturas semelhantes é de um grupo com bom faro, oficiais que liderem com aprumo e lealdade. No entanto, o que aconteceu? Deste vida a um homem, que acredita poder meter-te na linha, que te insulta ao telefone e hoje ainda não achou necessário meter a cabeça pela porta. E aqui, na tua frente, tens uma cambada de idiotas que tambéni levam a mal o facto de os teres mandado chamar a um sábado ...»

- Portanto, a vossa atenção, meus senhores! Tossicou e vagueou, de relance, o olhar pelo círculo que se reunira à volta da mesa de conferências. - Prosseguir a conversa sobre os erros (principalmente os erros do engenheiro Reissner) não leva a nada. Reissner é suficientemente adulto para assumir as consequências. Passemos, assim, ao ponto dois: os regulamentos das quotas nestes planeamentos sociais. - Herr Linder! - interpelou a secretária. Virou, impaciente, a cabeça na direcção da porta. - O que há agora?

- Está lá fora um senhor, Herr Linder. Trata-se de algo sobre o engenheiro Reissner. - Acabei, precisamente, de explicar a estes senhores que o caso Reissner se encontra encerrado. E esta mesma indicação também se lhe aplica. -Muito bem, Herr Linder. Mas este senhor é da Polícia.

Agora, todos voltaram o rosto para a porta.

- O que significa isto? - insurgiu-se Linder, pousando as duas mãos no tampo da mesa. - O senhor gostaria de falar-lhe pessoalmente, Herr Linder. Ele... ele está... Herr Reissner morreu. - O quê? - Todos se entreolharam; fitaram em seguida Frau Falin, que se mantinha, parada, na ombreira da porta com as duas faces muito coradas. Fixaram Jákob Linder, que se levantou de um salto e depois redarguiu, agitado: - Um momento, meus senhores. @ - Herr Linder? Chamo-me Novotny. Pertenço à Brigada de Homicídios. Provavelmente Frau Fralim já... - Sim. Já. Inacreditável! É incompreensível. Mas, faça favor, Herr Novotny. Comissário, não é assim que se diz? Acompanhe-me, por favor, ao meu gabinete. - Linder tomou a dianteira, muito direito, de ombros retesados, abriu uma porta forrada de cabedal e introduziu Novotny numa ampla divisão profusamente Iluminada. Sente-se, por favor. - Atirou-se para a sua cadeira, estendeu a mão para a esferográfica prateada, mas não levou o gesto até ao fim. - O que se passou, afinal? Por favor. Não sei nada. Absolutamente nada. De que se tratou? Um acidente? - Não foi um acidente, Herr Linder. Homicídio, E suicídio.

- Como?

- Herr Reissner abateu a mulher a tiro. Depois a filha. E, em seguida, matou-se. Linder fechou os olhos demorada, muito demoradamente, cruzou as mãos e deteve-se a observá-las. Por fim, levantou a cabeça: -Eu sabia! O homem estava doente... quero dizer.. ultimamente. O que o leva a essa conclusão?

- Não, fisicamente... Talvez isso também. Estava, sobretudo, perturbado mentalmente. - Tem quaisquer fundamentos para o afirmar?

- Fundamentos? E de que maneira! Ainda ontem à tarde me telefonou, telefonou para minha casa, o que por norma nunca fez... -Quando foi isso?

- Deixe-me pensar. Antes do jantar.. Por volta das sete.

-E o que lhe disse? -Não fixei muito bem os moldes da conversa. Foi conduzida de uma forma tão emocional! Mas de uma coisa não me restam dúvidas: telefonou para me insultar. - Tratou-se talvez de qualquer caso do funcionamento interno da firma? - Oh, não!

- De que se tratou então, Herr Linder? – perguntou Novotny. Tinha um rosto magro, esguio e ossudo, o nariz quase descamado, mas uma pele lisa e saudável, o que tornava esta cabeça de pássaro um tanto intemporal. os olhos negros eram perspicazes e vivos, mas em simultâneo quase providos de uma estranha indiferença. Linder antipatizou com as feiçÕes. Não, este comissário decididamente não lhe agradava. - O que posso explicar-lhe? Tínhamos passado toda a tarde à procura do engenheiro Reissner. É - pigarreou -, era... há agora infelizmente que dizer... um dos nossos executivos mais importantes. Além de que regressava à firma de uma incumbência bastante significativa. Na verdade, o assunto foi pelo cano de esgoto. Falhou de uma forma incompreensível. Seria mesmo assim de esperar qualquer relatório. Ele furtara-se contudo a esta missão e havia simplesmente desaparecido. Pelo menos de acordo com os nossos princípios, trata-se de uma atitude quase escandalosa. E, ainda por cima, este telefonema perfeitamente agressivo... De facto, para mim basta. 'Linder mediu o comissário por cima dos aros finos dos óculos. - Qual o conteúdo? -Qual o conteúdo?... Qual? Sobretudo na base das emoçÕes. Tentou fundamentar qualquer argumento moralista. Relacionado com o seu trabalho. Reissner regressava da Saxóma, onde devíamos encerrar uma fábrica. O que não é propriamente agradável. Talvez estivesse com os nervos em franja. Sim, talvez seja essa a explicação. De qualquer maneira, expressou-se de uma maneira pouco clara, o que não me agradou nem era algo que, por norma, o caracterizasse. - Poderia dizer-se que nas últimas semanas ou nos últimos tempos apresentava indícios de depressão? -Não, não pode. Não, Deus do céu... Reissner era um Profissional de um rigor incrível. E nunca se queixava.

De qualquer maneira, exteriormente nunca deixou transparecer quaisquer indícios de sobrecarga. Não os mostrava, e contudo, talvez os tivesse... Viu-se, por exemplo, obrigado a interromper a missão de ontem devido a um estado de fraqueza fisica. Esta indisposição começou logo durante o voo. Os colaboradores afirmaram que se deveu a qualquer problema de digestão. Estômago, intestinos, sei lá. Também tomámos naturalmente esta ideia em consideração. Por esse motivo, mandei telefonar para a mulher dele. Mas em vão. Além disso... - Linder interrompeu o discurso. Desviou o olhar do comissário Novotny e fixou a janela. - A mulher assassinada?... Tudo isto é muito chocante, sabe? - Novotny acenou em concordância. Não confiava muito no abalo sentido por aquele durão sentado na sua cadeira de chefe, mas agora ele parecia realmente em baixo. - No entanto, conhecia-a! Conhecia também a miúda, a pequena Elfi... Uma criaturinha adorável. Éramos, afinal, praticamente vizinhos. Víamo-nos. É dificil de acreditar! - E, em seguida, quase sem transição: - O que ainda queria acrescentar: a fraqueza fisica de Reissner, fixámo-la, por assim dizer, em documento. Se estiver interessado, Frau Fralmi pode mostrar-lhe uma vIdeocassete da reunião na fábrica. A televisão filmou, de facto, a intervenção de Reissner. É algo que já conhece: encerramento de uma fábrica, perda de postos de trabalho. Um caso quente. Talvez seja o motivo que tenha dado cabo dos nervos de Reissner. Que sabemos? - acrescentou, levantando-se e abrindo os braços. «Ele quer desembaraçar-se de ti», pensou Novotny e perguntou: - Qual a situação financeira de Herr Reissner, Herr Linder? Será que teria dificuldades? -  O que sei eu? Não me parece realmente que essa seja a causa. Não jogava nem tinha amantes... tanto quanto sei.

- Tanto quanto sabe? Naturalmente. - Tanto quanto sei exactamente - riu Linder e, dado ter-se levantado, Novotny não teve outra alternativa senão imitá-lo. - Sabe que no caso de gente com cargos directivos, como era o de Reissner, também sus- peitamos de certas fraquezas. A seriedade de um colaborador define-se em função do seu perfil psicológico. A instabilidade, tal como na sua profissão, pode ser perigosa. No entanto, comissário, encarregámos uma empresa adequada de dar uma olhada. E posso garantir-lhe uma coisa: Reissner era completamente fiel à mulher. Não tinha prazer nem tempo para se ocupar com o que quer que fosse para além do trabalho. Não se coadunava com a sua maneira de ser. «Uma empresa adequada?», pensou Novotny, enquanto fechava a porta atrás de si. Eram mesmo as velhas paredes enegrecidas pelo fumo do tabaco, as cortinas gastas, as montras com as tortas de ginja da Floresta Negra, as tartes de maçã e os pastéis de nata... Sim, e as mesas de ferro com o tampo de mármore trabalhado e os vadios. Jogavam às cartas ou liam o jornal e nunca levantavam a cabeça, nem mesmo se alguém entrasse de braço dado com Cláudia Schiffer. A própria Uschi ainda existia! Pelo menos esta tinha dado pela sua presença. Mal Rio Martin escancarara a porta do Le Café, pôs de lado o tabuleiro com as chávenas de café e a louça utilizada o mais rapidamente que conseguiu e precipitou-se na sua direcção. - Céus, Rio! Que ainda existes, sabe-se: continua a Ouvir-se falar dos teus artigos no Kurier; mas que entres simplesmente assim... O que hei-de achar disto? -Que é uma atitude de classe, espero.

- E de que maneira! - Ofereceu-lhe a face redonda e macia e ele beijou-a. Ejá que se encontrava ali, beijou também as outras e todas riram. - E Vera? - perguntou Uschi.

- Vera? A Vera foi de viagem. Uschi arregalou os olhos azuis. Já tinha indubitavelmente ultrapassado os quarenta, mas permanecia a eterna adolescente de dezassete anos. -Rio! Mas vocês...

- Vocês... o quê?

- Vão sepa... - Não conseguia pronunciar a palavra. - Quero dizer, hoje em dia, quando todos estão sempre a separar-se... - Estás doida, Uschi? Que ideia te passou pela cabeça? Estou mesmo a precisar de um conhaque. Não, espera aí. Ainda é cedo de mais para esta bebida. Um cappuecino e um cheirinho... Não, com a Vera tudo corre como no primeiro dia. Não me olhes assim!

- Sabes... Da maneira como te portavas dantes...

- Certo, tens toda a razão... Mas é pretérito. A Vera apanhou hoje de manhã o avião para ir visitar uma amiga a Hamburgo, é tudo. Continuamos a ser o par da década. Bebeu o cappuccino, que cheirava levemente a conhaque, e observou o que o rodeava: muitos quadros sem talento; o cheiro dos anos 70... Sentiu-se melhor, como sempre se havia sentido nos velhos tempos, quando vinha até aqui. Só que tudo se perdia no passado. Desde que no News Kurier a palavra «redactor-principal» precedia o seu nome muita coisa lhe era poupada. Escrevia os artigos em casa, servia-se do gravador e instalava-se numa cadeira de repouso no jardim. Os outros suavam na redacção e, por cima da sua cabeça, os pássaros cantavam. Deixara de se ocupar da tralha do quotidiano. Era especialista nos artigos de qualidade. No entanto, e agora em que colocava a chávena de lado para seguir com o olhar Uschi, que continuava a movimentar-se por entre as mesas, de ancas meneantes e o eterno sorriso no rosto, sentiu que, por outro lado, lhe faltava muita coisa. Uschi encontrava-se agora junto ao telefone, pegou no auscultador, virou a cabeça e fez-lhe um aceno: -Vem cá, Rio! -Ir aí? Como assim? -Da redacção. Não era somente «da redacção», mas Stockmann, o chefe. - Apanhei-te, velho!

- Sim, apanhaste-me - resmungou Rio Martin. Epergunto a mim próprio como te passou pela cabeça que eu pudesse estar aqui... - Não fui eu! Tu próprio o disseste...

- Eu?

- Sim. De qualquer maneira, o teu gravador de chamadas. Queres que te repita? «Agora, podem todos apanhar-me. Vou ao Le Café»... -Devia estar bem atestado. Foi isso mesmo o que disse?

- Talvez o teu espírito? Mas neste momento também não me interessa. Escuta, Rio: Olsen telefonou. E Maffier também. E todos pelo mesmo motivo: Harlaching... Ouviste a notícia na rádio? O Reinhard já foi para o local! -Não ouço rádio!

- Okay, okay. Mas trata-se de algo importante. Houve alguém que assassinou a família por essas bandas. -E daí? Que tenho eu a ver com isso? - Reflectiu: Olsen e Maliler? Olsen era o chefe de redacção e Maliler um dos editores, e Reinhard redactor da inforMação geral. - O homem era um dos directores da ACS. E Harlaching não é um bairro económico... A coisa pode exPlodir como um foguetão. E o que me diz o faro.

- E o de Olsen e o de Maliler dizem o mesmo, Egon? Mesmo assim, é um caso para a imprensa local. -Não me parece mesmo nada; Maliler conhece o chefe deste indivíduo, que matou a matou a tiro a mulher e a filha. -Como se chama?

- O chefe?

- O homem.

- Reissner. Dieter Reissner. E esteve ontem na Saxónia, para encerrar a metalúrgica da ACS no local. -E o chefe é provavelmente um tal Linder?

- Exacto.

- Conheço-o... E quem é o investigador da Polícia à frente do caso? - Novotny.

- Ah! Por isso me contactaram! - Fora com Paul Novotny no fulcro que Rio obtivera os maiores êxitos no News Kurier: o caso da casa de jogo, o da importação das prostitutas dos estados de Leste; e também em importantes casos de corrupção. Tudo quando Novotny ainda não pertencia à Brigada de Homicídios... Rio tirou um palito do bolso da camisa e meteu-o entre os dentes. No seu novo contrato não havia, afinal, uma cláusula que lhe conferia o direito de opção de casos? Este enquadrava-se no seu âmbito? Dificilmente... O maldito palito não o ajudou. Sentia-se nervoso e nem sequer sabia porquê. O que lhe dizia Stockmann9 - Hoje de manhã já deram a notícia na televisão. A rádio também falou no caso. Depois de todos os protestos por causa do encerramento da fábrica em Stollberg, podes imaginar como o assunto se tomou escaldante nos novos estados da República Federal. Não assisti à emissão, mas a Linda contou-me na reunião da manhã que esse tal Reissner se sentiu mal quando quis tomar a palavra na reunião da fábrica. O que quero dizer e há muito tempo compreendeste é o seguinte: o caso é de peso e deixou de ser uma notícia meramente local. O que achas?

O que havia de achar? Na frente desenhava-se-lhe um longuíssimo e cinzento fim-de-semana. Um fim-de-Semana sem Vera. Iria jogar golfe, depois tentaria trabalhar - e nada daria certo. Compraria comida feita, aquecê-la-ia para, em seguida, deitar tudo no lixo.e dirigir-se ao restaurante turco, grego ou italiano mais proximo... - Se é assim, podemos tentar - suspirou.

Meio-dia e meia hora. Meio-dia e meia e nada! Rio Martin conduziu, com dificuldade, o Porsche pela faixa central, de volta à cidade. Saiu de Harlaching. Tinham, de facto, colocado no local uma carrinha da televisão da Baviera, os repórteres dos jornais diários e agências noticiosas mantinham-se de vigia nos automóveis, Reinhard, o jornalista do News Kurier, desaparecera algures, a casa estava cercada e não arrancou qualquer pista aos empregados que ali trabalhavam. Nenhum rosto conhecido. Nenhuma oportunidade. A única informação conseguida fora: «Herr Novotny já se foi embora ...» E o telefonema para a secretária de Novotny, no comissariado, de nada adiantou: -Lamento. Ele não está. Rio cuspiu o resto do palito. Havia, entretanto, mastigado quatro. Voltou a estender a mão para o telemóvel. Desta vez, marcou o número de Bruno Arend. 1 - Infantário Germering - responderam do outro lado.

- Que graça! Encarregaram-me de um caso bastante crítico, Bruno. E, tal como vejo as coisas, vou precisar de ti hoje ou amanhã. - De que se trata? - Rio explicou. - Desde quando te ocupas desse género de casos? - Os chefes decidiram e talvez se consiga algo imPortante de tudo isto. - Nesse caso, leva um dos repórteres fotográficos 40 jornal. Eles devem andar por aí.

-Mas é a ti que quero, Bruno. -Vou para a minha datcha. - Arend tinha uma casinha de fim-de-semana em WÕrthsee, onde se ocupava a ensinar os filhos gémeos a pescar; enquanto contemplava o crespúsculo, consumia enormes quantidades de cerveja e contava histórias dos bons velhos tempos, quando ainda havia «verdadeiros repórteres». Era um daqueles da velha guarda que nos últimos trinta anos andara pelos cenários de guerra em todo o globo, em bebedeiras e fanfarronices. Mas era igualmente um profissional. E não o fora: continuava a sê-lo. - Sabes o que estás a exigir-me Rio? -Sei - respondeu Rio Martin. - De qualquer maneira, fica em casa, até voltar a telefonar-te, ouve bem. Okay? Desligou sem esperar resposta. Seguiu pela saída para Prinzregentenstrasse. E, enquanto rolava sobre a ponte, verificou que a névoa se dissipava e a chuva parava. Um céu azul começava a recortar-se sobre a cidade. Mais esta! Em vez de poder percorrer calmamente o campo de golfe, tinha esta merda nos ombros! Estacionou o Porsche diante do Feinkost Kafer, em segunda fila, e saiu do carro. No meio de todos os seus humores variáveis, Paul Novotny possuía um hábito de que não abdicava: às treze horas em ponto, fazia um intervalo e ia para o seu gabinete. Nunca se podia encontrá-lo na messe da Polícia. Devorava as sanduíches com fiambre e queijo que a secretária lhe trazia, para depois se entreter a atirar setas ao alvo. Rio encomendou um sortido de saladas, mandou embrulhar duas dúzias de ostras, comprou ainda uma garrafa de chablis e levou o embrulho para o automóvel. Quando entrou no comissariado, avistou Novomy, que conduzia o seu automóvel pelo parque de estacionamento. Foi a primeira vez naqueles últimos dias que se sentiu de melhor humor. Não esperou, subiu até ao

gabinete de Novotny e pousou o seu embrulho do Kafer numa das secretárias da antecâmara. -Não, Herr Martin. Lamento muito, mas ele ainda não chegou.

- Vem aí - redarguiu Rio, ao mesmo tempo que olhava para a porta, que se abria nesse momento. - Se queres que te diga, não sei bem, Rio. Dantes fumavas como uma chaminé, mas acho que preferia os teus cigarros a esse horrível mascar de madeira. - A secretária arrumou a louça com os restos da refeição num tabuleiro. A garrafa de chablis conservava-se rolhada. - As ostras foram uma ideia brilhante! Mas chablis... hoje? Abrimos a garrafa em qualquer outra altura. - Hoje? Como assim? - inquiriu Rio, quando a porta se fechou. - O que tens na manga, Paul? O que é essa tal história Harlaching? Anda lá... O silêncio é de prata mas a palavra é de ouro. - Novotny recostou-se no maple, esboçou um arremedo de sorriso e Rio Martin estudou-o atentamente. Dava a sensação de que meditava. Iria falar. Conhecia-o bem. Talvez por haver tantas semelhanças entre ambos... Eram os dois magros, tinham praticamente a mesma altura, e expressÕes permanentemente contraídas. Mas enquanto Rio herdara os olhos negros e vivos do avô italiano, Novotny mostrava a expressão distanciada e sempre preocupada dos criminologistas. Novotny usava o cabelo grisalho curto, Rio insistia para que o cabeleireiro lhe disfarçasse as brancas, que começavam a surgir-lhe nos cabelos cuidados. Rio descobrira, por um qualquer acaso, que os dois tinham nascido sob o mesmo signo: Peixes. E os dois concordavam que eram, de facto, pessoas activas em fuga permanente da constante sensibilidade e inactividade dos Peixes. - Muito bem, Paul! Há muito que não trabalhamos juntos. Mas em que é que isso modifica a situação? - começou Rio, preparando terreno. - Uma boa investigação nunca deixa de ser uma boa investigação. E as investigaçÕes de equipa são as melhores. O que também se aplica à Brigada de Homicídios. - E daí? - riu Novotny. - Rápido, como sempre, Tiras-me muitas vezes o tapete de debaixo dos pés, Rio. - Nunca o fiz contigo. - Novotny pôs-se a examinar folhas de despesas de expediente. - Anda lá, Paul, Mantemo-nos fiéis aos velhos métodos: nem uma vírgula, sem a tua aprovação. No entanto, juntos conseguiremos mais do que todo o aparelho e já o provámos vezes bastantes. - Mais uma das tuas afirrnaçÕes precipitadas. Mas, tudo bem. De acordo. Desta vez, talvez precise de um profissional da imprensa. Quando penso naquela cambada de idiotas, que andam por Harlaching... - Ali, muito bem! - descontraiu-se Rio. - E, agora, falemos do caso. Como é que esse Reissner foi fazer uma coisa daquelas? Que tipo de homem era? - Não fez quaisquer comentários, enquanto Novotny falou. Nem sequer premiu o botão do minigravador que tinha no bolso do casaco. Os factos que Paul tinha a oferecer-lhe não eram, além disso, nada de especial. - O que sabes desse tal Linder? - perguntou. - Um vómito completo. Típico administrador da Idade da Pedra. Cabeça de betão, com voz de trovão. Inacreditável como conseguiu formar a empresa. Há departamentos, subdepartamentos e relatórios... como num ministério. DispÕe mesmo de um gabinete de psicotecnia para avaliação do pessoal. «Tenho de conhecer as diferenças entre os que me rodeiam ... », afirma. Sabes bem o género. E é provável que esteja a par de alguma coisa. Chegou-se à conclusão de que o homem enlouqueceu, mas sempre teve uma conduta irrepreensível.

E irrepreensível significa, obviamente, que apenas pensava na firma, na carreira e no carvão. - Peixe miúdo, não achas?

- Miúdo? - redarguiu Novotny com um esgar. De forma alguma. Vais rir-te, Rio, mas não me ocupei somente com o todo-poderoso. Interroguei também outras pessoas, colegas, um homem chamado Wegner, com qualquer outro cargo na gerência. Reissner contactava bastante com ele, E as coordenadas mantiveram-se as mesmas: um trabalhador irrepreensível, um tanto distanciado... o homem de Linder para as tarefas mais difiCeis. Permanentemente ocupado. A ânsia do carreirismo também, mas por outro lado um abnegado chefe de família... E embora possas rir-te, a opinião dos vizinhos é idêntica. - Mas devem existir pessoas que fossem íntimas do homem, não? - replicou Rio, tirando outro palito do bolso. - Por volta das dez vão telefonar-me para saberem se aceito o caso! Ainda faltam muitas horas. Achas-me parecido com o Nosso Senhor? O que esperas de mim? A vivenda em Harlaching é bastante grande. Deviam ter pessoal doméstico, não? Sim, um homem já idoso e meio surdo que fazia de jardineiro, uma empregada doméstica checa e a babysitter. Foi ela, aliás, quem descobriu os corpos... Apontou para um sobrescrito castanho que se encontrava em cima do tampo da secretária: - Queres dar uma olhada? - perguntou. - Acabaram precisamente de fazer as fotografias. - Obrigado. Novotny esboçou um aceno de cabeça, pegou no sobrescrito e abriu-o. Do interior caíram fotografias. NoVotny passou-as em revista. Pelo canto do olho, Rio detetou o cadáver de um homem nas escadas. Novotny procurrou uma das fotografias na sua direcção.

- Essa foto não irá dar-te a volta ao estômago. É a criança.

Era a fotografia de uma miúda. O cabelo encaracolado a emoldurar um rosto de criança. A cabeça repousava num braço pequeno e nu, como se dormisse... Tinha os olhos entreabertos que denotavam uma expressão calma. Mas sobre o rosto pairava definitivamente o fantasma da morte. Rio Martin tirou o bloco de apontamentos do bolso. -   Dá-me a morada da babysitter, okay?

- De acordo. Receio, porém, que tenhas de ficar na fila. Há muito que os teus colegas foram procurá-la... Não teve de esperar na fila. O nome «Komhau» encontrava-se na porta pintada de azul da entrada de um pequeno prédio de dois andares na Sonimerstrasse. Silêncio. Caixotes do lixo pintados de verde. Uma macieira meio ressequida e um lugar para bicicletas vazio. Dos dois lados dos acessos de cimento, que levavam à porta azul, havia alegres canteiros de flores. Rio Martin tocou à campainha. Não obteve resposta. Voltou a tocar. Sobre a sua cabeça abriu-se uma janela. Pelo espaço de meio segundo divisou-se o rosto de uma mulher de idade, após o que a janela bateu com força. «Vejam só isto!», pensou ele. «E tinhas imaginado nunca mais voltar a sentir esta triste impressão de seres um agente...»

E insistiu no toque de campainha. Nesse momento, ouviram-se passos. A porta abriu-se, mas foi , de imediato, segura com uma corrente. - Escute - pronunciou a voz de uma mulher de idade -: tanto quanto sei é o sétimo ou oitavo a bater à porta. No entanto, caso não se vá embora, chamo a Polícia. - É de lá que venho. - Dado ser bastante indiferente as mentiras que contava, mudou o rumo à conversa: - Só queria, todavia, apresentar-me. Chamo-me Martin. Sou um velho amigo de Frau. Reissner. Lamento profundamente incomodá-la... só que esta manhã, quando fui fazer uma visita a Frau. Reissner, bom... já sabe o que aconteceu...

A corrente foi desprendida e a porta abriu-se. No átrio deparou-se a Rio uma mulher com cerca de setenta anos. Tinha o cabelo grisalho penteado ao alto, vestia uma bata castanha e comprida e fitou-o, calma e observadora, por detrás dos óculos de aros. - Quer falar com a íris, não é verdade? - Rio esboçou um aceno de concordância. - Receio não ser possível. É simplesmente uma coisa horrorosa. Tão horrorosa que nem mesmo se pode pensar nela... E íris está nUM estado... - Interrompeu-se. - Espero que ela não se vá abaixo. Peço-lhe que me desculpe, mas se soubesse o que se passou aqui hoje de manhã... Nem é bom pensar. Conheço todos esses jornalistas da televisão, mas, agora, vi-os pessoalmente. - Rio tentou suster o riso. Observou as fotografias de crianças penduradas nas paredes e avistou, igualmente, uma pequena vitrina cheia de bibelôs coloridos - em seguida, novamente aqueles olhos escuros e amargurados. - ... disseram que apenas queriam fazer o seu trabalho. Talvez seja compreensível. Eu própria assino dois jornais. Mas a forma como se comportaram... como porcos! Chegaram a, oferecer-me dinheiro apenas para falarem com íris. Três pessoas morreram, entre as quais uma criança, uma Criança inocente, a pequena Elfi, que tantas vezes aqui esteve e brincámos as duas... e esses idiotas querem forÇar a entrada com as suas identificaçÕes, pastas e atreviMento. Rio voltou a acenar com a cabeça e sentiu-se mesquinho. Sempre havia resolvido da melhor maneira este tipo de situaçÕes. «E agora? Deixaste de servir para este ramo», pensou. «E não apenas por te teres afastado - muito pior: deixaste de o dominar. Só isso!» - Lamento muito - replicou a mulher. – Principalmente porque conheceu Frau Heissner. Não posso, todavia, convidá-lo a ficar. De nada valeria, aliás. O médico deu um calmante a  ris. O choque. Consegue imaginar, certo? É tão sensível como a mãe. Sou amiga da mãe de íris, sabe? Andámos juntas na mesma escola. Foi por esse motivo que a recebi em minha casa, embora preferisse viver só. No entanto, agora, talvez deva ajudá-la. Compreende, não é verdade? _   Claro que compreendo. Talvez possa aparecer por aqui mais tarde? - Talvez... Vou dar-lhe o meu número de telefone. Pode telefonar antes. - Amaldiçoou a prontidão com que havia capitulado. No entanto, se ela tomara calmantes, também de nada adiantava. Continuou, todavia, a hesitar. Quando Rio ia a voltar costas, abriu-se a porta do lado esquerdo do átrio. Uma rapariga saiu. Uma rapariga em fato de treino. Tinha o rosto redondo muito pálido, sob os cabelos escuros. - É um conhecido de Frau Reissner - explicou a mulher de idade. A jovem acenou mecanicamente, como se fosse uma boneca.

- Posso falar-lhe uns momentos? - perguntou Rio ssurro. Ajovem voltou a acenar com a cabeça. - Talvez pudéssemos falar no seu quarto ... ? -Não sei muito bem se estará certo, íris. E também não sei se... Mas ela deixou-o entrar e limitou-se a fechar a porta nas costas. O quarto estava obscurecido. Num dos cantos via-se um televisor pequeno e sem som. Ténis. Um dos jogadores era Edberg, que denotava a sua expressão imperscrutável. Aguardava a investida do adversário. Sob a escassa luz do televisor, somada à que entrava pelos reposteiros corridos, íris era apenas uma sombra.

Tossicou e surpreendeu-se, ante a frase que lhe saiu: Sou jornalista - confessou Rio. - É mentira o que acabei de dizer a Frau Komhaus. - Iris sentou-se em cima da cama. Agora, divisava-lhe o rosto. Completamente inexpressivo. Fitava-o tranquila, como se ele tivesse acabado de fazer uma declaração perfeitamente normal. - Imagino, Frãulein Widmer, como está fatigada e o que pensa a meu respeito. Devo acrescentar que lhe estou agradecido por não me ter mandado embora. - íris permanecia imóvel e com as mãos no regaço. Rio interrogou-se sobre se, realmente, o teria ouvido. Talvez devesse sentar-se no pequeno maple junto da cama e pegar-lhe nas mãos? Demasiado cedo... E sobretudo: nem uma palavra a respeito da criança. - É horrivel tudo o que aconteceu, Frãulein Widmer. Ambos o sabemos. No entanto, também sabemos que há que descobrir como se passou. .  - Descobrir? - A voz dela ecoou surpreendentemente nítida e firme. - O que há para descobrir? - De facto, somente uma coisa. - Nessa altura, sentou-se. - O que poderia ter levado Herr Reissner a fazer uma coisa destas? - Como hei-de saber?

- Mas decerto reflectiu nesse assunto! - íris sacudiu a cabeça em negativa. - Que tipo de pessoa era? Nessa altura, levantou a cabeça e passou a mão pelo rosto num gesto nervoso. - Uma pessoa? Não era, de forma alguma, uma pessoa.

- Como devo interpretar a frase? -Era uma máquina. Nada mais do que uma máquina... - Garantiram-me, contudo, que amava muito a família....

- Talvez... No seu conceito de amar.. Os olhos de Rio tinham-se habituado à escuridão. Obrigou-se a não fixar a pequena fotografia que se encontrava numa moldura de prata, em cima da mesinha-de-cabeceira junto da cama. Era a fotografia a cores de um rosto infantil. Era o rosto que Novotny já lhe tinha mostrado. Na fotografia, a pequena Elfi ria e tinha vida... - No entanto, ele... - Ele coisa nenhuma... Nunca tinha tempo para a família! Na realidade, estava sempre fora de casa. Somente vivia para si e para a firma. Só conhecia o emprego. Na minha opinião... para mim o homem estava doente. -  ris! - exclamou Rio de uma forma tão branda e convincente quanto lhe era possível. - Não está a ser um pouco injusta? O homem andava decerto sobrecarregado de trabalho. Talvez estivesse doente... -   Foi o que lhe disse!

- Mas estava realmente doente? Sabe qualquer coisa a esse respeito? Vinha algum médico a casa? Ia com frequência ao médico? Ela voltou a abanar a cabeça. No entanto e inesperadamente, ergueu de novo os olhos: - Sim, talvez andasse, de facto, a consultar um médico! Isso não sei. Mas nunca apareceu nenhum em casa... -E como sabe...

- Como? Porque me levou uma vez à consulta. Tive uma cólica de intestinos. E Hanne, quero dizer, Frau Reissner, achou que devia tratar-me imediatamente. Então, ele levou-me a um consultório na Rosenheimer Platz. Não ficava muito longe da casa. O médico era muito simpático e aparentemente um velho amigo de Herr Reissner. Rio tinha-se levantado. -E... como se chama esse médico?

- Herzog - respondeu ela sem hesitar. - Doutor Herzog. O consultório é muito fácil de encontrar. Uma casa pintada de rosa na Rosenheimer Platz. Acho que era no segundo ou no terceiro andar.. o canário esvoaçava, batendo as asas na gaiola pendurada junto da janela. Agora, emitia curtos e alegres trinados. -Hansi! Deixa-te desse teatro! Estás a pôr o senhor doutor nervoso. E quando ele está nervoso e me dá uma injecção, faz-me doer. o homem de idade mantinha-se deitado de barriga para baixo num vistoso sofá, forrado de veludo azul. O Dr. Jan Herzog tinha-o ajudado a despir a camisa e desabotoara-lhe igualmente as calças, a fim de poder examinar-lhe a coluna. As zonas críticas situavam-se nas vértebras inferiores lombares. Sobretudo a terceira e a quarta. Desgaste de uma idade avançada. Não era de estranhar: Max Riedl gastara cinquenta anos da sua vida, em pé, na sua loja de estofador. O Dr. Herzog dirigiu-se ao sítio onde estava a sua mala de médico. -Prepare-se, Herr Ried1. Agora vou dar-lhe uma injecção. No entanto, o medicamento somente serve para anestesiar os tecidos e descontraí-lo. Deve consultar um ortopedista, quantas vezes já lho disse? Até lhe escrevi uma carta de apresentação. - Perdi-a... E gosto mais de si, senhor doutor, do que do ortopedista... -E de que serve isso, se não posso ajudá-lo? -Então, dê-me essa tal injecção, senhor doutor. Eligue o rádio, por favor.. Quer acredite ou não, o Hansi acalma-se mal ouve a música. - Sei-o por mim - riu-se Jan Herzog, enquanto carregava no botão do rádio e retirava a seringa da mala. Uma voz feminina incentivava os ouvintes a que de forma alguma desistissem da singular oferta de aprender a falar inglês em quatro semanas... Encheu a seringa, desinfectou a agulha com álcool e preparava-se para aplicar a injecção quando ouviu a voz do locutor do noticiário. -  Au! - exclamou Max Ried1. - O que se passa, doutor?

Jan Herzog enfiara a agulha, mas não começara a injectar. A mão tremia-lhe. O que se passa, doutor? A voz do locutor continuava a falar, uma voz calma e serena, pronunciando coisas tão horríveis que o consciente de Jan se recusava a aceitá-las. Palavras, palavras - e cada uma delas semelhante a um soco: - São conhecidos mais pormenores sobre o drama familiar em Tauberstrasse, Harlaching, a que já fizemos referência no jornal da tarde. Apurou-se, entretanto, que o chefe da família, o engenheiro Dieter Reissner, que ocupava um cargo directivo no complexo industrial ACS, cometeu pessoalmente este horrível e sangrento acto e matou a tiro de pistola a mulher e a filha de três anos, antes de pôr termo à própria vida. Os cadáveres foram transportados para o Instituto de Medicina Legal e apenas serão disponibilizados pelo Ministério Público após o encerramento do inquérito... O que se passa, doutor?

 

O HORRíVEL ACTO SANGRENTO...

 

Nada. Desculpe. P R TERMO   PRóPRIA VIDA. Não se mexa. Quase não sentirá a injecção. Max RiedI gemeu quando o Dr. Jan Herzog começou a aplicá-la. Four Roses, Ballantine, Red Label... Havia um grande sortido de marcas de uísque no barzinho, mas Jan Herzog odiava-as a todas, odiava estes nomes, odia- va as garrafas. Odiava-as porque o rosto dele continuava a aparecer-lhe no meio delas. O que podia fazer contra este rosto, os olhos...

  - Mais um. - pediu.  - De verdade? - certificou-se o homem que se encontrava por detrás do balcão, inclinando um pouco a cabeça. Depois, encolheu os ombros, encheu um copo e empurrou-o na sua direcção. Jan nem sequer conseguia aguentar os seus próprio olhos, que o fitavam reflectidos no espelho. E tão pouco a sentença: A CULPA É TUA! APENAS TUA... Abandonar um amigo à loucura... Culpa tua... Demasiado cobarde, demasiado fraco, demasiado estúpido para o impedir... «Dieter! Não fujas do consultório! Espera!»... Não o dissera. «Vamos falar disto tudo. Havemos de encontrar saída.» Também não. E amigo? «E durante todos os anos anteriores - falaste com ele? O que te interessaste pela ascensão meteórica de Dieter Reissner? Preocupaste-te com ele, telefonavas-lhe de modo próprio? Mas ele sim. E aparecia sempre. Estava subitamente ali. -Mais um.

O indivíduo jovem compôs uma expressão resignada. Deveria...

«Dieter aparecia de surpresa no teu consultório, dava conselhos, queria impingir-te quaisquer promissórias e, no entanto, mantinha-se sempre hesitante, como se esperasse algo de ti. E depois a última visita. O seu medo ... » Jan Herzog voltou a ter a impressão de que o amigo estava atrás dele, tão próximo que lhe sentia a respiraÇão... Mas não havia qualquer respiração. Nem tão-POUCO um segundo rosto no espelho. Apenas ele..." «Ele está a olhar-te! Está aqui! Onde poderia estar? A-quem mais poderia explicar? A ti, sim... Mas fizeste qualquer tentativa de o convencer a falar - ou mesmo de o ouvir, ouvir verdadeiramente? Tinhas tanta coisa a encher-te os ouvidos! E os amigos?

Ainda existem, hoje? Dantes era diferente ... » Escalaram as rochas, conseguiram e chegaram, por fim, à estreita berma dos penhascos. Não se acocoraram... O riso nervoso de Dieter, o rosto pálido, os lábios azulados pelo esforço: -Devo estar doido! Para que diabo estou a fazer esta merda? - Então, Dieter. Bebe um golo de chá. Depois continuamos.

-Mas porquê?

- Porque te dá gozo.

- Jan! Ou és idiota ou cego. Nunca serás um médico a sério. Dá-me gozo? Odeio esta estúpida escalada. Odeio os rochedos! Odeio escalar uma parede idiota, quando se pode fazê-lo confortavelmente de teleférico. -  Mas...

- Não há mas nem meio mas. Quero que saibas algo mais. Não só odeio como tenho pavor. Quase borrei as calças, sim senhor. Nem sequer consigo olhar para baixo sem ter vertigens. - E porque é que nunca o confessaste?

- Para não fazer má figura. E sobretudo diante de ti, o meu melhor amigo. -  Poderemos voltar a descer - sugerira. E Dieter?

- Agora, nem pensar - retorquira, sacudindo a cabeça. - Agora, continuamos. Rio Martin tivera a intuição certa: o caso não era para ele. Não devia ter pegado no auscultador no Le Café, ou então devia ter mandado imediatamente Stockmann às urtigas, só que para isso era tarde de mais. Doíam-lhe as costas. E a nuca também. O ar na sala de espera era absolutamente irrespirável! Limitou-se, assim, a encolher-se a um canto, folheando a mesma maldita revista feminina pela terceira vez. Agora, de trás para a frente. Ao seu lado, os doentes empurravam-se e discutiam nas cadeiras muito juntas. Três deles tinham-se mesmo sentado no parapeito da janela. Haviam pegado em todas as revistas, à excepção de uma de bricolage. Rio consultou o relógio: trinta minutos! «Nem mais um», pensou e levantou-se. Era tarde de mais para jogar golfe. Iria para casa no carro, depois telefonaria para a redacção a recusar o trabalho, veria televisão ou leria - ou, se não lhe aparecesse mais nada, passaria uma vista de olhos pelo material para a série de artigos sobre os skinheads. Embora não fosse um tema escaldante, correspondia às expectativas dos seus leitores. E era um tema que dizia respeito ao Governo. No entanto, um cobarde director da ACS que não descobrira nada melhor para fazer do que matar a mulher e a filha a tiro a quem interessava fora de Munique? Fora de Munique? Fora de Harlaching... Mais clientes entraram. O consultório continuava a encher-se. Mas ninguém era chamado. Talvez este tal Herzog tivesse o seu sistema! Deixaria os doentes à espera até às nove da noite? Saiu e dirigiu-se ao pequeno balcão pintado de branco, por detrás do qual se sentava a recepcionista assistente do consultório. - Parece que o doutor Herzo9 está de facto muito atrasado.

- É verdade - concordou e um sorriso tímido esboçou-se no rosto cansado. - Também não compreendo. Não é seu hábito. - É possível que ainda passe por cá mais tarde - mentiu delicadamente. - Nessa altura talvez me dê uma ideia de quanto tempo falta. - Também pode telefonar. Aqui tem, por favor. Só que amanhã começa o fim-de-semana... Empurrou um cartão na sua direcção. Referia, igualmente, o número de telefone particular de Herzog. Verificou que morava no mesmo prédio do consultório. - Muito obrigado. Desceu a escada, que rangia, parou uns segundos a observar, pensativamente, os bonitos adornos Arte Nova da porta, abriu-a e não largou o trinco... O que era aquilo, agora? Do degrau da entrada, onde se encontrava até ao passeio junto ao qual os carros estacionavam não iam mais do que uns quatro metros. E precisamente nesse sítio um carro travou em derrapagem. Tratava-se de um pequeno Opel Corsa vermelho. O automóvel que vinha atrás e uma carrinha cinzenta Transit, que se aproximava pela segunda faixa, travaram igualmente em derrapagem. Exactamente na direcção do seu olhar, no meio do círculo que os automóveis haviam formado para o bloquear, um homem estava sentado no asfalto e fitava-o. Rio verificou, de imediato, pelo olhar toldado que ele estava embriagado. Tinha um rosto magro, cabelo grisalho, olhos cavados e pretos - um rosto bem talhado sobre o qual pairava, todavia, o vapor do álcool. O homem estava bêbado... Sentado e bêbado às cinco horas da tarde no meio do trânsito e a tactear o asfalto à sua volta. Rio avançou a correr. Nesse momento, avistou igualmente a pasta de documentos. O homem pusera-se de cócoras, depois inclinou-se, perdeu imediatamente o equilíbrio e quase rolou de lado. O condutor da Transit meteu a cabeça ruiva pela janela do lado do motorista. -Bêbado à tarde!... Tirem o homem daí! Eh! Tirem-no daí!

O potente motor fez-se ouvir com mais força. Não era uma pasta de documentos, mas sim uma mala de médico! E Rio Martin percebeu logo a quem pertencia e quem não conseguia sequer sair do meio da ma. Na pega havia uma pequena etiqueta: «Dr. Jan Herzog». - Venha. Eu ajudo-o - disse, enquanto metia a mão por baixo do sovaco de Herzog e o levantava. -A minha mala... -já a tenho comigo. Agora, venha! Herzog balbuciou qualquer coisa e no rosto desenhou-se-lhe o sorriso interrogativo e surpreendido de todos os bêbados deste mundo. A cabeça descaiu-lhe, mas deixou-se arrastar. E era pesado. ofegante, Martin encostou o alto e magro indivíduo a um poste de cimento. - Mui... Muito obrigado... Fico-lhe deveras grato. Foi muito simpático da sua parte... - Sim - replicou Rio. - Mas ainda não chegou ao fim.

- Oh... eu moro aqui. -Eu sei, doutor. Mora aqui. Mas como quer chegar a casa? - Oh... isso não é problema. Sabe, eu... eu peço-lhe desculpa ... estou um tanto perturbado... acabo de sofrer uma enorme perda... Se me entende    ... Herzog começou a andar - de qualquer maneira precisava de andar -, levantou a mala de médico, mas o braço não aguentou o peso e descaiu. Rio tirou-lhe a mala da mão e deu-lhe o braço com firmeza.

-Agora venha. Não é, de facto, longe. E também não é dificil. Apenas precisa de se amparar um pouco a Mim, certo? Rio ouviu a água a correr. Recostou-se e passeou o Olhar pela ampla sala: muitos livros, poucos móveis, quadros bonitos, modernos, realmente muito alegres, pendurados nas paredes. A aparelhagem estereofónica, o televisor - a casa de um solteirão. Nada que indicasse a existência de uma mulher ou mesmo de uma família. No entanto, por cima da pequena secretária de madeira havia algumas fotos de crianças. Divorciado, é o diagnóstico para o médico, divorciado, solitário... E também não parecia muito resistente ao álcoo ou outras catástrofes. Agora, chegavam-lhe ruídos da cozinha. E ele apareceu: o rosto muito pálido, os cabelos despenteados e molhados. Enrolara uma toalha à volta do pescoço e nas mãos segurava uma garrafa de litro de água mineral e dois copos. Bem podia voltar... - Quer uma água? Além de álcool, nada mais tenho em casa. E a este não consigo vê-lo. - Pousou a garrafa e os copos em cima da secretária e agarrou no telefone, que ali se encontrava. Pôs a mão sobre o auscultador, como se tivesse vergonha do que ia dizer. - Sim, mande as pessoas para casa. Desculpe-se como quiser.. Mas não me é possível, acredite, Myrte... Desligou e deixou-se cair no pequeno sofá de dois lugares que se encontrava junto à parede.    É um homem simpático, Herr... Herr.. - Martin.

- Um homem muito simpático. Arrancar médicos desconhecidos do meio da rua e trazê-los para casa! Foi uma bela estafa até aqui ao terceiro andar.. -Sabe o que foi mais dificil de tudo, doutor?

O seu medo de que qualquer dos doentes pudesse encontrá-lo no caminho. - É compreensível, não? Eles confiam em mim. Não lhes passa pela cabeça que possa embriagar-nie em pleno dia. Mas não foi só o uísque. Eu ainda estava de estômago vazio. - Falava agora de forma perceptível, embora algumas palavras ainda se enrolassem. - Mas precisava. Sofri um grande choque... Foi simplesmente...

Interrompeu-se. «Está à espera que avances», pensou Rio. «É precisamente o que não farás... Um grande choque? Reissner?» Esboçou um gesto para tirar um palito da camisa, mas deixou-a pender de novo. Silêncio. Seguiu-se a voz de Herzog, quase num sussurro:

- Alguma... alguma vez teve a sensação de que alguém... quero dizer, alguém que não está a ver.. o fita? - Que não estou a ver ou que não posso ver?

- Que não pode ver. Inclinara o tronco para diante e enfiara as duas mãos entre os joelhos, como que para as aquecer. -Lamento - desculpou-se Rio, levantando-se-, mas não consigo começar o que quer que seja com água, doutor. Mas o que acha se fôssemos os dois até à cozinha preparar um café? - Nem sequer esperou por resposta. A cozinha era grande, clara e estava muito arrumada. A cozinha típica de um homem só. Rio pôs a máquina de café a funcionar, pegou em duas chávenas, encheu-as, dispensou o açúcar e levou-as para a sala. Herzog fitou-o, no entanto, sem o ver. Recostara-se ainda mais no sofá. - Aqui tem... - ofereceu Rio, dando-lhe a chávena. - Herzog sorriu agradecido e sorveu um pequeno gole. - Alguém que não pode ver, mas que o vê a si, doutor Herzog, é um fantasma.

- Talvez - sussurrou o médico. - Um fantasma... não sou dado ao espiritismo. E pouco ligo a essas tretas esotéricas. No entanto, será que existe algo de verdade? sabe... - Tinha dificuldade em expressar-se, abria e fechava a boca antes de pronunciar as frases e pôs a cabeÇa um pouco de lado. - Certamente está a par dessas teorias que defendem que depois da morte o espírito da pessoa não se afasta imediatamente do lugar que habitaVa. E quanto mais dramático é o seu fim mais dificuldade tem neste distanciamento... Talvez haja algo de verdade nisso. - Esboçou um arremedo de sorriso: - É, sem dúvida, necessário aceitar, antes do mais, a existência do «espírito». No entanto, hoje, tive uma forte sensação de que... mas há tantas perguntas a que não podemos responder, certo? Rio observou o cabelo negro e farto e as madeixas grisalhas. «Reissner?... Só pode estar a referir-se a Reissner. O espírito de Reissner. O fantasma de Reissner». íris acabara por lhe contar que eles eram bons amigos... Disparou, contudo, um tiro no escuro ao fazer a pergunta:

-  Pensa em Herr Reissner? Jan Herzog esboçou um forte aceno de cabeça, como é característico dos bêbedos: demorado, pensativo e insistente. - Penso no Dieter. Penso constantemente nele. Mas como chega a essa conclusão? -Não tem nada de transcendente - respondeu Rio, pegando na chávena de café. - Estou aqui por causa dele. - Você?

- Sim. Queria saber o que aconteceu. Queria saber o que o levou a cometer aquele acto. -E porque quer saber? - Uma questão profissional, doutor. -Profissional? Polícia? - Imprensa. A cabeça do médico pendeu para diante. Seguiu-se uma longa pausa. Rio apercebeu-se de que a respiração se Herzog se tomava ofegante e mais acelerada. Levou a mão ao estômago. Levantou-se repentinamente, saiu da sala a correr e seguiu-se o que Rio já esperara: o som dos vómitos... Ouviu a água a correr na casa de banho. Demorou bastante a regressar à sala. Mudara para um roupão de banho azul, a cor lívida desaparecera- lhe do rosto e parecia mais saudável. Tinha os olhos menos turvos.

- As minhas desculpas... Mas tudo isto tinha de sair. - Sentou-se no outro maple em frente de Rio. - Com que então a imprensa? E quer saber o que o levou a fazer aquilo? Sei o que o levou. Posso... podia mesmo dizer~lhe... - Devia fazê-lo. Não a mim, mas à Polícia. E posso dar-lhe igualmente o nome do homem que está a investigar o caso.

O caso - repetiu Herzog num tom amargo.

O caso Reissner. Reissner não passava de um homem desesperado, que perdeu o rumo... - Bateu na testa com as largas mangas do roupão de banho. Em seguida, voltou a falar e a voz saía-lhe agora muito nítida: - Dieter Reissner e eu éramos amigos. Amigos desde os tempos de liceu. Ele fez carreira e durante muito tempo não vos vimos. No entanto, há uns seis ou sete anos, encontrámo-nos, casualmente, na cidade. Desde então retomámos um contacto perdido. De qualquer maneira, tínhamo-nos separado demasiado tempo para continuarmos a ser amigos íntimos. E também seguimos caminhos de vida diferentes, compreende? - Sim.

- Nos últimos dois, três anos veio visitar-me com frequência. Digamos, uma vez por mês. Tinha sofrido um grave acidente de automóvel. Fractura da bacia e de tudo o mais possível. Conseguiram reconstitui-lo devidamente, mas este acidente desempenhou um papel bastante importante. Foi uma espécie de ruptura na sua vida, compreende? Aparecia sempre com novas complicaçÕes. Á primeira vista, nada tinham a ver com as fracturas ósseas. ConstipaçÕes, distúrbios circulatórios, estados de fraqueza ocasionais... Seguiram-se gripes bastante fortes, uma pneumonia. Pode objectar-se que não era assim tão dificil de tratar. O que mais o preocuPava era este estado de debilitação geral, os distúrbios circulatórios... Não apenas porque era desportista, não, o problema residia no emprego. Na verdade, tudo se centrava sempre no emprego. Pertencia ao tipo de pessoas que se definem pelo trabalho. - Sim, já me constou - redarguiu Rio.

- Ele queria, tinha muito simplesmente de estar em constante actividade. Talvez quisesse demonstrar sempre qualquer coisa. Nunca cheguei a descobrir precisamente. No entanto, tudo começou a piorar. Perdeu peso e surgiu um problema intestinal. Não sabia pura e simplesmente que diagnóstico havia de fazer-lhe. Tratava-se de uma simples infecção, de uma virose... - Voltou a fazer uma pausa, como se lhe custasse falar. Fixou o olhar em Rio, mas ele estava muito distante. - Sugeri um exame completo. Dieter, porém, nunca tinha tempo. Tudo aquilo me parecia um tanto estranho. Havia algo que não estava bem. Ocorreu-me uma suspeita. Parecia-me, todavia, totalmente impossível. Mas queria esclarecer dúvidas. - Qual era a sua suspeita?

- Já lá vamos... Mandei, por conseguinte, novas colheitas de sangue para o laboratório. Sabia que a minha suspeita era absurda. Mas na época em que vivemos o que é, afinal, absurdo? No entanto, tinha uma certeza irreversível: Dieter era muito agarrado à família. Sobretudo à mulher. Talvez o sexo não significasse muito aos seus olhos e por esse motivo lhe fosse mais fácil manter-se fiel. Não pertencia de qualquer maneira ao tipo de directores que têm de «dançar» com as miúdas em todos os clubes, só para provar do que ainda são capazes. Ser fiel era uma das suas características, como que uma exigência ditada pela moralidade. Compreende? Rio mantinha as mãos cruzadas. Havia uma palavra que o perturbava: sida. Não a proferiu. Limitou-se a ficar pela ideia. «É isso, portanto», reflectiu, e ficou à espera da confirmação.

«É isso mesmo: Reissner tinha sida! E, quando o descobriu, enlouqueceu...» O Dr. Jan Herzog fitava-o com os olhos pretos injectados de sangue: -Mandei o sangue dele para o teste de seropositividade. Isso foi há várias semanas. Em seguida, ele viajou para a Saxóma. Telefonou-me, no entanto, antes. precisava de novos medicamentos para regularizar os intestinos. Mandei-lhe uma amostra médica de táxi... Voltámos a contactar pelo telefone. Informei-o de que mandara fazer uma outra análise, ou seja, andei às voltas tentando passar a castanha quente, mas ele compreendeu e riu: «Estás passado!» -E depois? -Depois, regressou da viagem à Saxónia. Telefonou-me logo a seguir à aterragem, ainda do automóvel. -Tinha, entretanto, recebido o resultado da análise?

-  Sim. Tinha recebido. Positivo... Velo ter comigo ao consultório e comuniquei-lho. Verifiquei sobretudo que o facto, de momento, ainda não era significativo. Há muitos seropositivos que vivem durante anos, mais de dez mesmo, com a doença. Há mesmo alguns em que nem sequer se revela... Quis explicar-lhe tudo. Não me deu oportunidade. Limitou-se pura e simplesmente sair a toda a pressa. -E o senhor não conseguiu... Rio apercebeu-se de que as mãos do Dr. Herzog começavam a tremer e adquiriram tal movimento de expressão que teve de as entalar nos joelhos. -Isso mesmo! E é a esse respeito que me interrogo. Interrogo-me sem cessar.. Claro que tentei detê-lo. Mas só tentei! Devia ter utilizado a força. Como, no entanto? Não me ocorreu nada. Pensei que ele acabaria Por cair em si e portar-se de uma forma sensata. Mas não aconteceu nada disso... Oh, não... - De novo o silêncio.

E mais algumas palavras que Rio não compreendeu. Foram pronunciadas num sussurro e arrastadas. A cabeça de Herzog pendeu. - A culpa, a maldita culpa foi minha ... Devia tê-lo podido salvar ... Era meu amigo ... Devia tê-lo podido salvar ... Rio manteve-se em silêncio. O que havia afinal a dizer? Havia apenas uma pergunta: se ele atribuía tão pouca importância ao sexo, onde é que Reissner se infectara? Onde apanhara o vírus mortal?

 

 

A actividade do jovem ministro era imparável. Depois de haver sido ridicularizado em Bona, chamaram-lhe «ingénuo» e por fim «um fenómeno» - com razão, pois todos os seus antecessores tinham falhado frente à oposição erguida pelo lobby dos médicos e farmacêuticos. Contudo, ante o tempo recorde com que o ministro levou por diante a sua reforma da saúde, caíram os muros e conseguiu manter de pé a engrenagem apodrecida e corrupta dos Serviços de Saúde alemães. Após este feito, havia poupado muitos milhÕes aos seguros e ao Estado, metido na ordem médicos e firmas de medicamentos e arranjado uma porção de inimigos. Nesta manhã de Outono de 1993 em nada reflectia a sua anterior e habitual descontracção. Havia convocado uma conferência de imprensa no ministério. Onde estavam pois os gracejos, onde ficara o costumado riso juvenil? Parecia agitado. As palavras saíam-lhe com dificuldade, estava pálido e tinha os olhos profundamente encovados. - Mandei-os chamar aqui, senhoras e senhores, para lhes fazer algumas declaraçÕes. E posso igualmente garantir-lhes que se trata de uma das mais desagradáveis missÕes até agora exigidas pelo meu cargo.

Seguiu-se o pedido de silêncio. Os jornalistas ligaram os gravadores. Quase nenhum se serviu da caneta. Limitavam-se a ouvir. Ninguém foi mesmo ao ponto de formular uma pergunta. O que o ministro expressou em breves e secas palavras parecia inacred'itável: a DSA, a Direcção de Saúde Alemã em Berlim, uma autoridade municipalizada que englobava sob a sua administração e nos vários institutos mais de três mil funcionários e se incluía, além do mais, entre as mais importantes autoridades médicas do mundo, iria ser reorganizada e ficar sob as ordens pessoais do ministro. O presidente e vários quadros de chefia foram dispensados. Sobre as suas cabeças pairava um processo disciplinar. O motivo: «Funcionamento deficiente num campo de alta sensibilidade.» O «campo de alta sensibilidade»? Sangue humano--A DSA era a zeladora da saúde da nação e, nessa qualidade, não lhe incumbia apenas garantir a protecção da saúde e do ambiente, mas proceder ao mais rigoroso controlo no que se referia à aquisição e distribuição do sangue; e também às organizações e empresas privadas, que se encarregavam dos preparados sem os quais não havia esperança para os que sofriam de problemas sanguíneos, os operados ou vítimas de acidentes. No entanto, este «campo de alta sensibilidade» parecia votado à decadência. Gerara-se a corrupção. Havia-se desleixado a vigilância, falseado testes e descurado o controlo. Havia, por esse motivo, acontecido o pior: nos bancos de sangue dos hospitais da Cruz Vermelha Alemã e outras organizaçÕes afins, apareceu sangue contaminado com sida, apareceram produtos para o sangue contaminados com sida e logo os fabricantes puseram em funcionamento «operaçÕes de recolha». Há uma década que as pessoas que sofriam de qualquer doença no sangue verificavam, com uma resignação impotente, a política calma e despreocupada que a direcção de Saúde de Berlim e os institutos que lhe estavam associados utilizavam frente a todos os pedidos e exigências das ligas de sangue. Em 1985, metade dos hemofilicos já estavam infectados com o vírus. E a DSA? Os testes necessários e as técnicas de descontaminação ainda não estavam amadurecidos! No entanto, agora, tudo se encontrava sob controlo; mas havia o risco inevitável na produção farmacêutica, no máximo de um por milhão. Mentiras, ilusão? Os contornos do maior escândalo da medicina do século apenas se definiam muito lentamente: um conluio entre a indústria que, tanto na Europa como nos EUA, sacrificava a vida de milhares de pessoas aos seus interesses economicos, e as hierarquias que, aparentemente, compravam a morte daqueles que deveriam proteger e defender... Provou-se que Thomas Drees, presidente da administração de uma grande empresa farmacêutica americana, tinha razão quando afirmara que os interesses das indústrias haviam zelado, com a permissão das autoridades vigentes, para que não se tomassem verdadeiras medidas tendentes à protecção de milhares de doentes.   sombra demoníaca de sindicatos e conluios, consumava-se o sacrificio das vítimas... Muitas mantiveram-se em silêncio, calaram-se por vergonha de sofrerem da «peste dos homossexuais», outras recusaram-se, a troco de mesquinhas somas, a «apresentar queixa contra terceiros», enquanto novas vítimas eram contaminadas através de preparados industriais... A doença sanguínea resulta de uma carência nata do factor plasmático de coagulação VIII. Resultado: o sangue não engrossa e não coagula. O aparecimento do preparado F-VIII transformou-se num grande negócio... Ao longo de muitos e fatídicos anos, não só os fabricantes de factor VIII como também os bancos de sangue e de plasma defenderam-se, por todos os meios, contra as imposiçÕes de controlo que cairiam sobre o sangue proveniente de fontes desconhecidas. O resultado foi: a morte pela sida obteve ingresso na sala de operaçÕes... Os responsáveis pela indústria, bem como as autoridades fiscais, compreenderam, desde o início de 1983, que a epidemia da sida poderia ter consequências catastróficas ao nível da produção de preparados sanguíneos e que apenas por esse motivo estava em causa proteger vítimas inocentes deste fluxo de morte. Havia as an-nas: a possibilidade de esterilizar produtos sanguíneos existia há anos e já se tomara importante frente ao perigo da infecção hepática. Mas quer se tratasse de icterícia ou de sida, a indústria lançou uma campanha contra todas as imposiçÕes que prejudicassem a sua «liberdade econômica». A Direcção de Saúde Alemã referiu-se mesmo a um risco de descuido de «um para um milhão». Por fim, após uma quantidade cada vez maior de pessoas haver ficado infectada, ordenou-se a descontaminaçao em 1985. Mesmo assim e até ao ano de 1986, foi recusado um controlo do fabrico. Este controlo acabou por ser realizado e novos casos mortais verificados comprovaram as lacunas vigentes. Surgiu, assim, a maior catástrofe de medicamentos da história, mas em simultâneo um drama humano, que roubou a vida e a felicidade a inúmeros inocentes, doentes ou contaminados, e possibilitou que se trouxesse à luz do dia, como até então nunca acontecera, toda a cobiça e indiferença humanas. A situação prolongou-se durante dez anos, até que, finalmente, um ministro teve a coragem de limpar o esterco do estábulo... O fantasma do vírus HIV pareceu pairar sobre todos os cidadãos... O grande escândalo da sida rebentara...

«A frase "rebentou o grande escândalo da sida" é tua», pensou Rio Martin. «Fizeste esse comentário no News Kurier...» Era domingo de manhã e já bastante tarde. Rio tomava um banho de imersão e tentava reflectir. «Um escândalo como este», pensou, «explode como uma granada, as pessoas agitam-se, os impostos sobem, a televisão dá cobertura, um ministro sobe à barricada, rolam cabeças, distribuem-se alguns milhÕes pelas vítimas para lhes suavizar um tanto a morte - e, em seguida, tudo acaba. O próximo escândalo já espera ao virar da esquina. Ou o próximo caso de corrupção, as próximas eleiçÕes, despedimentos em massa, skins e refugiados políticos, recessão, revolta frente à subida de preços, necessidade habitacional - ou, então, aparecem simplesmente os novos catálogos das agências de viagens, pois as férias estão à porta e toda a gente precisa de descontrair-se um pouco, certo? E tudo cai no esquecimento! São assim as coisas! Quem tem de viver na miséria devia reflectir na situação. O esquecimento é, afinal, anunciando - não, suplantado. Só que isso não te é permitido. És jornalista e cabe-te fixar cada frase, cada pormenor. Pelo menos, enquanto o jornal ainda estiver à venda ... » Rio Martin fechou os olhos. Sentia-se amolecido. Através do ventilador chegava-lhe aos ouvidos o sussurro das águas do canal. A casinha erguia-se por detrás de um grande muro coberto de trepadeiras. Mesmo ao lado situava-se o Jardim Inglês. Rio gostava de tudo aquilo e abençoava, quase diariamente, a tia, a irmã da mãe. Deixara-lhe a casa, incluindo este monstro de banheira que, em circunstâncias difíceis, se tomava cada vez mais um refúgio. O regato mal se ouvia, mas os patos! Os patos grasnavam, pois no cimo da ponte iniciava-se agora a procissão dos transeuntes. Os patos eram bombardeados com migalhas de pão.

«Pensa com clareza», ordenou Rio a si próprio. «Teria sido preferível tomares um duche frio depois de uma noite assim ... » Pouco depois da uma, Vera havia, por fim, telefonado de Hamburgo, uma Vera exteriormente encrespada. Acabara de regressar de uma dessas festas de Hamburgo: -Nada. monótona nem desinteresante, Rio, mas verdadeiramente sensacionall Foi divertido, garanto-te. - E acrescentou que ele devia pensar a sério no que Munique lhe trazia, se Hamburgo era muito melhor. quanto à imprensa: - Encontrei toda a gente da imprensa. E também uma porção de colegas dos meus tempos de televisão. Porque não procuras um jornal aqui, em Hamburgo? E também pagam melhor, Rio... - Bem gostaria de arranjar um novo emprego. -Por exemplo? -Argurnentista, ou algo do género... também há para homens, certo? Vera era argumentista e ainda hoje lamentava não ter conseguido chegar a realizadora. - Rio? Tens alguma coisa contra o facto de me deixar ficar por aqui mais uma semana? Fora a gota que transbordara o copo. Pousara o auscultador para, em seguida, mergulhar num sono agitado e depois num pesadelo, de que apenas recordava meta- e: uma voz. Uma voz sonante como se falasse de um púlpito numa imponente catedral. Não, dessa maneira fala Deus. Não era porém a voz de Deus, era a voz desse estranho Dr. Jan Herzog. Falava de culpa, de arrependimento e culpa: a minha, a tua, a nossa culpa... «Pensa com clareza!», impôs a si próprio e empurrou a escova na direcção dos joelhos. O tema chama-se Reissner: Onde é que se contami- nou? O que temos até este momento? Por conseguinte e mais uma vez: em primeiro lugar, Reissner era seropositivo...

Em segundo lugar, Reissner era fiel à mulher e, pelo menos neste aspecto, um modelo de virtude. Em terceiro lugar, Reissner enlouqueceu, e matou a mulher, igualmente moralista, a filha e por fim suicidou-se. Foi, por conseguinte, bastante longe. Tão longe quanto os histéricos no seu fanatismo... Seria apenas isso? Não existiam motivos palpáveis? E relativamente ao foco infeccioso - qual era a probabilidade... céus, ocupara-se do assunto! Havia, no entanto, números! Ainda os ouvia: «Nas grávidas, a hipótese de contaminação do vírus HIV da mae para a criança por nascer era de quinze a vinte por cento ... » Onde soubeste isso? Exacto: no ano passado, em Junho... Olsen quis fazer um artigo sobre crianças com sida, mas, felizmente, acabara por desistir. De resto, Rio mal começara a investigar, quando visitara esta criança... como se chamava? Angela... Ainda por cima Angela! Cinco anos. Um rosto que apenas se compunha de pele esticada por cima dos ossos. O rosto enrugado de um velho. No entanto, os olhos! Aqueles olhos enormes... -No máximo duas semanas - dissera a mulher, que a acariciava. - Em seguida, tudo ficará para trás... Fora uma coisa horrível! O silêncio. Os reposteiros corridos. O cheiro a medicamentos. E a mulher, que se inclinava sobre a criança e lhe prendia a cabeça entre as mãos. «Angela», pensara. «Significa "anjo". É este o aspecto dos anjos...» O pior - elucidou a mãe - não foi a doença, mas as pessoas. No jardim de infância, as outras crianças afastavam-se... «Sidosa!», gritavam... E a directora respondia que as crianças eram mesmo assim. Nada havia a fazer nesse sentido. Ficou contente por eu ter voltado a levar Angela para casa. E seguiram-se as cartas: «Ainda vos tratamos da saúde», «Deviam ser todos carbonizados»... e por aí fora...

Expressava-se num tom bastante calmo. Chamava-se BühIer - sim, Ursula BühIer. Era desenhadora de adereços. Não tinha marido e, por conseguinte, adoptara Angela, quando a miúda tinha sete meses. Agora dizia: «Pensei que de qualquer maneira havíamos de ultrapassar tudo isto. E agora.. agora, sinto-me contente por tudo estar prestes a findar.» Rio Martin não se recordava de alguma vez ter sentido uma admiração como a que sentira por esta mulher tranquila naquele quarto imerso na obscuridade. - De qualquer maneira, quer me considere louca ou não, os anos que passei ao lado dela foram os mais belos e os mais importantes de toda a minha vida. Aprendi tanta coisa... Secou-se, barbeou-se, massajou o rosto, enfiou uma roupa de fim-de-semana, bebeu o segundo café da manhã e nem mesmo assim se sentiu melhor. Os casos de tempos passados deviam encontrar-se, algures, no arquivo. Só que... onde? Não se tratava somente de Angela, não se tratava de uma criança, mas de números. Se a história de Reissner se enquadrasse neste quadro tornar-se-ia realmente interessante. Onde é que o homem poderia ter-se contaminado, raios? Rio Martin abriu gavetas, remexeu em pastas e folheou dossiers - debalde. Voltou a beber mais um café, começou de novo e descobriu o que procurava: lá estava! O material sobre a sida! Excertos e gravaçÕes, comunicados na imprensa, recortes de jornais. Tudo enfiado num velho mas sólido caixote de cartão, que contivera embalagens de leite e lhe servia para meter a documentação que ainda achava incompleta. Pousou o caixote em cima da mesa. E no preciso momento em que se preparava para o despejar, soou a campainha da porta. A lente do ralo da porta igualou o rosto anguloso de Bruno Arend ao de uma espécie de personagem de Frankenstein.

Rio abriu sem pronunciar uma palavra. -Finalmente! - resmungou Bruno, passando por ele. Rio seguiu-o até à sala de estar. Bruno Arend era um palmo mais alto, tinha ombros largos e uma barriga de cerveja cuidada com amor; mas apesar de rondar a casa dos sessenta anos, causava uma boa impressão, sim, de desportista. - Mas que verde espinafre horrível! - exclamou, observando Rio com uma expressão crítica. - Como estás? Talvez devas vestir outra roupa, ou, então, consultar um médico. -Como assim?

- Como assim? Já te olhaste ao espelho? No entanto, barbeaste-te. Sabes quem me fazes lembrar? Kinski, nos últimos anos de vida. - Deixa-te de conversas de merda!

- Olha quem fala! Quem me telefonou? Que tal, ontem?

- Eu sei. Desculpa. Esqueci-me por completo. Mas tudo se complicou subitamente. Fazia tenção de te telefonar, mas... - Ah! Fazias tenção? Mas apesar de tudo fui até ao lago. Conheço-te bem... Hoje de manhã, tive de regressar para vir buscar o caderno do miúdo, de que ele se tinha esquecido. E nessa altura ocorreu-me passar por tua casa e saber como vão as coisas. - Bruno Arend vagueou o olhar fotográfico pelos móveis de estilo século xix. - E a Vera? - perguntou. - Está em Hamburgo. Ontem telefonou-me e propôs-me mudar de jornal e de cidade. Respondi que preferia mudar de emprego. -Dissabores? O que se passa com a tua história? Rio tentou explicar e Bruno escutou-o, aborrecido, impestando o ar com um dos seus inseparáveis charutos. Rio duvidava que o seu cérebro de repórter comPreendesse do que se tratava. - Presta atenção, Bruno...

A campainha do telefone interrompeu-o e pensou: «Vera!» Era, todavia, a voz do pesadelo: a voz de Herzog. Não se assemelhava à de uma entidade divina, mas chegava-lhe hesitante, abafada e contudo firme. -Espero não o incomodar - disse o médico.

- Que ideia! Fazia tenção de ser eu a telefonar-lhe, doutor. Somente ignorava se era demasiado cedo. - É meio-dia - redarguiu Herzog, pragmático. - Escute, Herr Martin. Passei a noite a rememorar tudo. Não consegui dormir. -Nem eu.

- Acredito, só que desconhece os meus motivos. Relacionam-se com a morte de Dieter. Ainda há algo... - Diga.

- Ouça - prosseguiu Herzog -: Reissner matou realmente a mulher e a filha, suicidando-se a seguir. Mas, na verdade, já estava morto, antes de ter metido a bala na cabeça. Trata-se, de facto, de uma dupla morte. Só que da primeira vez... - Cheira-me a história, doutor Herzog. -Pode crer.

- Será possível que ele tivesse sido contagiado com o vírus HIV na altura dessa tal operação? Ainda não deixei de fazer essa pergunta a mim próprio e por isso a coloco agora. - É a pergunta apropriada - ripostou o médico.

- Ali, sim? A história parece-me um pouco complicada para ser discutida ao telefone, doutor. Podemos encontrar-nos? Não lhe apetece tomar um pequeno-almoço tardio no Florians-Mühle. - No que se refere à comida, não me apetece lá muito. Mas talvez não fosse má ideia encontrar-me consigo. - Digamos... daqui a meia hora. Sabe onde é?

- Acho que sim. - Ouviu-se um estalido. O médico desligara.

- Trazes a máquina fotográfica, Bruno? - inquiriu Rio, virando-se para Arend. - Sempre. No porta-bagagens. Explicou a Bruno quem havia telefonado e acrescentou: - Acho que será preferível não nos cruzarmos todos. Julgo que ficaria perturbado. Está bastante abalado. Reissner era seu amigo. Ou o contrário, nunca se sabe... Seria óptimo se lhe tirasses uma fotografia. - Para arquivo, não? -Claro. Para arquivo - aquiesceu Rio com um esgar. Sentia como as ideias ficavam claras. A velha máquina estava em funcionamento e a adrenalina subia. - Ouve bem. Na melhor das hipóteses, seguimos em dois carros. Bates a chapa e eclipsas-te. Depois telefonamo-nos, de acordo? - Um trabalho espantoso! - exclamou Bruno, levantando-se. - Interrogo-me constantemente sobre o que me leva a dar-me com um tipo como tu. Aliás, há anos que a pergunta não me abandona. E ainda não cheguei a qualquer conclusão... -Talvez seja do meu carisma... - ironizou Rio, e dirigiu-se ao quarto para trocar de roupa. O Florians-Mulile situava-se à saída do extremo norte do Jardim Inglês; uma cervejaria que, nos últimos tempos, ficara na moda. O parque de estacionamento apresentava-se, habitualmente, cheio de automóveis de luxo, mas naquele dia estava bastante vazio. Levantara-se vento e tudo indicava que a chuva não tardaria a marcar novamente presença. Os dois homens desceram dos carros. Das muitas mesas espalhadas pelo jardim, apenas três estavam ocupadas. Em duas delas, sentavam-se casalinhos. Mais afastado, sob um dos grandes castanheiros, um indivíduo sozinho: Herzog.

Rio avançou na sua direcção, mas o médico ainda não dera por isso, -Bom dia, doutor! - Só nessa altura ergueu os olhos. Tinha um copo de leite na frente. - Está mal! - observou Rio apontando para o copo com um esgar.

- Uma aspirina resolve tudo - retorquiu o Dr. Jan Herzog com um sorriso simpático. - Há pior... - Falemos então do pior - sugeriu Rio, enquanto aproximava a cadeira da mesa e se sentava. - Sim. E trata-se com toda a probabilidade de uma inacreditável sujeira - concordou Jan Herzog com um aceno de cabeça. - E quem é o responsável? -Se eu soubesse...

- Mas como define a evolução9 O senhor é o técnico. Não me sinto particularmente à vontade nesse tipo de coisas... - Sim, a evolução... - suspirou Herzog. Tinha o rosto de um cinzento-cinza. Fechou os olhos e pousou as mãos em cima da mesa. Rio mastigava o seu palito. - Assemelha-se a muitos outros casos. Já leu sobre o assunto ou viu na televisão... -Fui mesmo ao ponto de escrever sobre o tema.

- Ali! Nesse caso, está ao corrente das monstruosidades quanto ao uso do sangue dos dadores, com que inacreditável ousadia e cobiça alguns canalhas especuladores possibilitaram, por dinheiro!, a contaminação de inocentes. - E suspeita que pode ter sido isso o que se passou com Reissner. -Não só suspeito, como agora o sei. Digamos que com noventa e nove por cento de certezas. Tudo aponta nessa direcção. -A operação?

- Que mais poderia ser? Sou, na verdade, médico de clínica geral e não um cirurgião, nem tão-pouco conheço o processo operacional. Sei, no entanto, uma coisa: numa operação à região da bacia e ossos da anca, uma tão complicada como foi o caso, pode, não, deve obrigatoriamente perder-se muito sangue. Além de que há a considerar os ferimentos ocorridos no acidente. Na minha opinião, só existe, por conseguinte, uma explicação: Dieter recebeu o vírus de uma transfusão de sangue... ceus! Podia amaldiçoar-me por não ter chegado, de imediato, a essa conclusão. No entanto, Dieter pouco falou desse acidente. Fugia de imediato a todas as conversas que focassem este tema. E, feito idiota, nem sequer o interroguei. Tinha praticamente esquecido esse facto. Imperdoável... Ontem à noite, todavia ocorreu-me, compreende? «Se compreendia?» Claro. O que havia a compreender? Rio cuspiu o palito. Do outro lado, Bruno mantinha-se acocorado por detrás de um dos arbustos de lilases. Tinha uma cerveja das grandes na frente. A máquina fotográfica estava ao lado numa das cadeiras desdobráveis de riscas verdes. Provavelmente já batera as chapas. «Bruno resolveu o assunto», pensou Rio e amaldiçoou o colega. No entanto, virou-se, de novo, com uma expressão decidida para Herzog. -Conhece a clínica onde Reissner foi operado? -Conhecer? Nunca lá estive. Mas julgo recordar---me de que era a Clínica Max-Ludwig. Reissner mencionou uma vez o nome. Uma clínica privada. O director é um tal doutor Labek. O lugar desfruta de uma reputação bastante boa e Labek também, aliás. Consta que se trata de um impecável cirurgião ortopédico. - Consta... - repetiu Rio, desviando o olhar para Bruno, que se tinha levantado e coçava a cabeça. - Porque não vamos até lá, doutor Herzog? Pode fazer prevalecer os seus interesses como médico. Reissner era, afinal, seu doente; para além do mais, um amigo! O protocolo da operação é guardado, certo?

- Durante vinte anos. Mas o que pretende de lá? Além de que hoje é domingo e é praticamente nula a hipótese de levar a cabo tal coisa. Ao domingo, uma clínica particular tem apenas o serviço de urgências. Talvez na segunda-feira seja mais viável. E também é altamente questionável que um director de uma clínica me coloque os documentos à disposição só porque sou médico. Não, está praticamente fora de questão. Sobretudo, tratando~se de algo tão melindroso... -Certo - concordou Rio com um encolher de ombros. - Não tem importância, doutor Herzog. Há outros métodos. O seu amigo da Brigada de Homicídios, não é verdade?

-   Sim, o meu amigo da Brigada de Homicídios - confirmou Rio. - E na segunda-feira de manhã iremos aparecer por lá, ou seja, ele. -   Mas promete manter-me ao corrente? Não faz ideia até que ponto isto me diz respeito. - Claro, doutor Herzog. Eu sei. Dieter Reissner era

seu amigo...

-Talvez sejas um pouco lento de compreensão - Jürgen Cenitza pronunciou a frase num tom indulgente e tolerante. - São coisas que acontecem, ser-se parado. Okay! Vou repetir e muito devagar: Fora! Quero ver uma mosca, uma mosca muito rápida, ou...

- O quê? - Cenitza empinou o queixo. - Ou o quê? - insistiu o indivíduo, num tom provocador. Cenitza colocou no meio da mesa a lata de conserva de peixe que segurava na mão, quando o tipo aparecera. Tratava-se de um sujeito baixo e magro, que media 1,70 m de altura. Usava ténis, umas ridículas calças justas estampadas de flores e um pulôver escuro por cima. E como se tudo isto ainda não bastasse, apanhara o cabelo goriduroso num rabo-de-cavalo. Conservava-se, por conseguinte, no corredor, junto à terceira fila das camas dos dadores de sangue e esboçava um esgar. - Ou o quê?

«Calma», disse Jürgen Cenitza de si para si. «Não estragues tudo. Nada de confusão ... » Estava uma tarde calma e tranquila. E Cenitza tinha muito trabalho pela frente. No amplo edificio também reinava a calma, demasiada para o seu gosto. Imaginara que o trabalho decorreria a seu bel-prazer: primeiro comer uma bucha acompanhada de uma cerveja e depois mais uma ida ao arquivo. As pastas mais importantes de dadores de sangue já estavam dispostas em cima da mesa. Estavam ali todas, nome por nome, os toxicodependentes de St. Georg, os marginais e drogados. Durante anos a fio, tinham deixado que lhes extraíssem bioplasma. Cinquenta marcos por sessão. E os senhores de Bernhagen faziam, então, os grandes negócios. Agora, Cenitza tinha a chave de segurança. E não lhe restavam dúvidas de que no arquivo se encontravam ainda mais coisas. Mas o que tinha ali na frente já era por si só material explosivo. Umas toneladas de dinamite.

Continuava a escutar a voz: «Infelizmente estamos a fechar os serviços no exterior de Hamburgo, Herr Cenitza. Lamentamos, mas, dadas as circunstâncias, toma-se impossível prorrogar o seu contrato.» E não haviam demorado a agir, pois logo de manhã os carregamentos de bloplasma tinham saído de Bernhagen e não só as camas e o equipamento iriam desaparecer, como também as pastas de arquivo. Apenas precisava de pegar na máquina fotográfica e toda a Associação de Bernhagen com os seus gordos bonzos iria Pelos ares. Tão simples quanto isso... Cenitza somente não tinha contado com o apareciMento deste palhaço. Era impossível. Como poderia? - Mas, quer ele fosse passado ou maluco, não permitiria que este tipo lhe estragasse os planos. Jürgen Cenitza levantou-se. As luzes de néon por cima das macas estavam apagadas. Para o trabalho chegava a iluminação do banco de dados. Não conseguia distinguir com nitidez as feiçÕes do outro, mas divisava-lhe o esgar e, pela fon-ria como se comportava e se vestia, podia perfeitamente pertencer à clientela de St. Georg-PIatz. Só que as coisas haviam mudado. Anunciava-se uma nova era e viravam-se as costas aos vagabundos e drogados. Este aqui ainda não entendera a realidade.

- Como é que conseguiste entrar? - Cenitza sentia as têmporas a latejar de raiva. No entanto, agora estava de pé, em toda a sua altura, e ficou, de imediato, melhor. - Vá, desaparece... - Nenhuma resposta. Avançou dois passos e ergueu o braço direito, ameaçador: - Fiz-te uma pergunta. - Sim, patrão - retorquiu o indivíduo com uma leve risada. - O grande patrão branco interroga o rapazinho. O grande patrão branco quer saber como é que o rapaz entrou na casa... O rapaz está com muito medo... Tudo isto foi pronunciado num tom de voz agudo e pouco natural, entrecortado de risadas. «Este meteu uma dose», pensou Cenitza. «Pelo que se vê... A loucura total. Mas não é a primeira vez que assistes a isto. Não há nada a que não tenhas assistido no armazém. Bêbedos, tripados, putas, turcos, polacos, donas de casa, vagabundos ... » Avançou devagar e saboreou a sensação. Iria calar o bico ao palhaço. Ali mesmo. E ninguém faria perguntas. Estava farto deste armazém, desta espelunca. Era perigoso, sim, senhor! Se alguém visse! Teria de haver ponto final. E ele, Jürgen Cenitza, tomaria o assunto a seu cargo. Pôs-se mais uma vez em movimento, cego de raiva.

- Eh! Eh... Grande bwana  - chegou-lhe de novo aquele riso. - O que queres do pequeno rapazinho? - Rapaz? Cabrão de merda... De ti, agora, só quero uma coisa: quero saber como é que entraste aqui dentro! A porta estava fechada. Desembucha! - Pretendeu bater e fê-lo, só que o outro se furtou com um moviInento ligeiro, quase um passo de dança. Cenitza divisava-o agora perfeitamente: rosto magro, por volta dos trinta anos. Via-se que era um tipo da pesada. - A barraca fechou, merdoso. Deixou de haver mercadoria para paneleiros drogados como tu. Entendeste? Agora, fala e já! Mas nada havia para falar. Nem para Cenítza nem para mais ninguém. Tudo aconteceu tão rapidamente Como a velocidade de um raio e desenrolou-se diante dos olhos de Cenítza como um filme gasto e pouco nítido, passado por um projector rotativo: o indivíduo, este fantasma de rabo~de-cavalo e com as calças elásticas estampadas de flores, escapara-se, com um repentino e potente salto, aos punhos estendidos de Cenitza, pusera-se em cima de uma das camas almofadadas dos dadores e bailava em cima dela, como um doido. - Fala já!... Ah, ah, patrão... - Cenitza rodou sobre a esquerda, rapidamente, mas não o bastante. O homem deu um salto, voou pelo largo corredor entre as filas das camas dos dadores e encontrava-se, agora, à sua esquerda. Em seguida... Não, Cenitza não compreendeu como tudo aconteceu, nem como o que aconteceu podia ter acontecido. Sentiu apenas que algo lhe apertava o tórax. Cenitza era um homem entroncado, Inusculoso, fazia duas horas de manutenção fisica de três em três dias. Mas em que é que isso mudava a situação, de que lhe servia? O seu corpo foi atirado de encontro a uma das camas, como se não tivesse vontade própria. Debateu-se e tentou libertar-se. Enfiou o polegar entre os músculos do peito e a larga e fina faixa de tecido que o estrangulava. Em nada o ajudou. Muito Pelo contrário: um braço apertou-lhe a garganta. Com a pressão semelhante à de uma garra de aço. - Paneleiro drogado... Não foi o que escutei? - escarneceu a voz mesmo junto ao ouvido. - Repete. Cenitza distribuía socos para o ar. Sentia como os tendões das cartilagens da laringe eram esmagados de encontro à espinha. Queria gritar.. mas faltava-lhe o ar, Num último alento, fez girar o braço direito e foi como se um raio lhe atingisse o corpo. Nada mais restou para além de uma dor horrível, que lhe queimou os ombros. «Está a deslocar-te o braço! Mas não pode!... Ele vai... oh, céus! »... Um ruído semelhante ao da madeira apodrecida, um estalido que se repercutiu em cada um dos nervos. «Não é verdade! Ele... ele partiu-te o braço!»... Uma cadeia de explosÕes, uma cascata de dores insuportáveis, tão fortes que lhe abafavam os gritos na garganta. Cenitza sentiu o vómito. Em seguida, começou a chorar.

- O meu braço... o meu braço... -Já lá vai - escutou junto ao ouvido. «Não é verdade... não pode ser! Oh, como dói! Vou acordar, estou apenas a viver um pesadelo... Acordo e tudo voltará a ser..»

- «Merdoso» não me agrada - ouviu nessa altura. - Pareceu-me indelicado.... Diga, pelo menos, «senhor Merdoso». - Cenitza sentia um imenso calor que lhe descia pelas pernas. Deixara de ver e as lágrimas eliminavam a tomada de consciência. - Então! Então! Não temos muito tempo. Diga lá, diga: senhor Merdoso. Tente. Um formigueiro de dores percorreu-lhe novamente o braço.

-Senhor Merdoso... - sussurrou Cenitza.

-Mais alto! Quero ouvir bem!

- Senhor Merdoso! Senhor Merdoso! - chorou ele. A risada. Cenitza caiu em cima da cama. As dores intensificaram-se e sentiu o sabor a bílis na boca. «Meu. Deus, Deus do céu... Porque é que não perco os sentidos? Peço-te que me faças perder os sentidos, por fa- vor .. » - Por favor - gritou. - Por favor, por favor.

- Claro. Um pouco de educação não prejudica ninguém. - A voz deixara de soar naquele tom agudo e esganiçado, mas tomara-se nítida, dura. - Havia ainda mais uma coisa, certo? «Paneleiro drogado»?... Não es- tá nada bem. Tens de concordar.

Agora fitava-o e sentiu-lhe o punho ossudo. Acocorou-se ao lado dele. Transformara-se num demónio - um fantasma de olhos chispantes, com as maçãs do rosto proeminentes, a boca distorcida num esgar horrível e de assassino. «Assassino», pensou Cenitza. «Vai matar-te! Anni! Ela queria vir também.  s nove, disse ... » E voltou a gritar,

- Calma, calma... Ainda há mais uma coisa. «Paneleiro drogado»... Sem «senhor» não tem cabimento. Vá, diz: senhor Paneleiro Drogado. Oh, raios! Olha para ti! Estás a mijar-te. Tu és, por conseguinte, um mijão e eü o senhor Paneleiro Drogado... Mas tens de dizê-lo!

- Senhor.. senhor Paneleiro Drogado... -Excelente! E agora... o que fazemos, agora? - Levantou-se. O rosto deixara de exibir o esgar, denotando um largo e quase agradável sorriso, que o iluminava: - Tenho de ensinar-te algo, Mijão. É por assim dizer o Meu trabalho. Queres que te mostre como são os teus olhos por trás? Deveria interessar-te... Então, queres Mesmo saber? - Nada mais havia que saber. E era-lhe impossível falar. Da boca, de lábios azulados e em estOrtor, de Cenitza, saiu um mero gorgolejar incompreensível. - Muito bem. É o que queres. Vou, então, mostrar-te...

- O ataque não partiu de pontas de dedos, mas de garras, semelhantes a punhais, que arrancaram os globos oculares de Cenitza. O mundo desfez-se eni sangue. A dor expressou-se uma única e derradeira vez num grito horrível e interminável que só findou quando uma síncope lhe tirou a vida... O homem com as calças elásticas estampadas deslizou da cama e observou, abanando a cabeça, os dois dedos médios cobertos de sangue. Dirigiu-se, em seguida, ao lavatório que ficava junto da secretária e lavou as mãos. - Que sujeira! - murmurou, enquando as secava com a toalha e olhava à volta. A garrafa de cerveja. O prato. A lata de conserva por abrir. - Arenques em molho de paprica - leu com uma risada, e voltou a abanar a cabeça. Descobriu, em seguida, o estojo da máquina fotográfica pendurado num dos dois cabides junto da mesa. Esboçou um aceno de satisfação e pô-lo ao ombro. Em cima da mesa, junto ao prato, havia uma pasta verde com documentos. Abriu-a, folheou rapidamente os papéis, fechou novamente a pasta, virou a cabeça e pôs o ouvido à escuta. Nada. Apenas o ruído dos automóveis na Neu-Deich Strasse. Pegou na pasta, apagou a luz, atravessou em bicos dos pés a enorme casa de banho que fora utilizada pelos dadores de sangue e fechou a porta. Tudo isto sem lançar um único olhar para o morto... Um dos vidros da janelinha da casa de banho fora habilmente cortado com um diamante. O caixilho estava pousado no chão. O batente mantinha-se aberto. O homem içou-se para o lado de fora, pousou os pés no pátio e avançou lentamente, sem se voltar, até à entrada. Ali, encontrava-se um grande Mercedes desportivo vermelho metalizado. Aporta abriu-se. - Mas que grande demora, raios! - pronunciou uma voz impaciente.

- Também temos de gozar um pouco, não? - respondeu o indivíduo das calças estampadas. - Aqui está. O que é isso?

- Pastas. Ele ia fotografá-las.

Nessa manhã de segunda-feira, Rio deixou o Porsche na garagem. Vera ainda não regressara de Hamburgo, mas se entretanto voltasse talvez precisasse do carro. «Céus! Como foi possível que não tivesse sentido necessidade de me telefonar?» Mas agora não lhe apetecia nem tinha tempo para se irritar com esse assunto. O U-6 levou-o directamente à Praça da Câmara Municipal. No momento em que subia a escada rolante, Rio sentiu uma dor fina e aguda nas têmporas. O próprio sol que inundava a vasta praça fazia-lhe arder os olhos. Pouco passava das duas da tarde. Deu uma volta à praça. Sentiu-se melhor e dirigiu-se à entrada principal do Sport Munziger. Chegara cedo, mas já conseguia distinguir, por detrás de um grupo de turistas japoneses, o inevitável casaco de fazenda grossa e o cachecol vermelho de Novotny. Entre eles tomara-se uma espécie de ritual nunca terem encontros semelhantes na Prefeitura da Polícia. - Então? - cumprimentou Rio, apontando para o saco de compras que Novotny segurava na mão: - Uma raqueta de ténis? Tencionas voltar a jogar?

-Bem queria, mas não posso... E o aniversário do Tommi. Ele queria uma coisa destas. Tomini era um dos gémeos da irmã. Esta ficara sozinha, pois o marido saíra de casa e desde essa altura que os três constituíam uma espécie de substituto da família para o solteirão Novotny. -Talvez devêssemos voltar ao activo, não?

- Sobretudo tu - retorquiu o comissário num tom brusco e com um olhar perscrutador dirigido ao rosto pálido de Rio. - Mas não é isso que vamos discutir, certo? - Foste à Clínica Max-Ludwig? - perguntou Rio, após esboçar um aceno de concordância. - Passei lá a manhã.

- E? - A enorme porta de vidro abriu-se para dar saída a uma nova vaga de clientes entusiastas do desporto. Todos traziam as roupas adequadas: camisas aos quadrados e fatos desportivos. - Apetece-te uma cerveja, Paul? - Preferia um café. -Também eu. - Sentaram-se à janela da espaçosa cervejaria. Rodeavam-nos senhoras de idade com enormes fatias de tarte na frente e que conversavam em voz baixa. Novotny acendeu um cigarro e Rio mascava o seu palito. Estiveste, por conseguinte, na clínica?... E?... -E... como se fosse assim tão simples de explicar. O director da clínica, esse tal Labek, não estava. Foi a um qualquer congresso de cirurgiÕes. Qualquer coisa bastante exótica. Esqueci-me do nome... Quem me dera ser médico. Anda-se pelas estâncias balneares, de praia em praia e, no Inverno, vai-se para Davos ou algo no género. - E? - repetiu Rio, impaciente.

- E, e, e... Ele tem um substituto. Um tal doutor Weissmann. Primeiro, tentou levantar objecçÕes: o arquivo que estava na cave e informaçÕes do bloco operatório de há mais de seis anos... era dificil, muito, muito dificil. Compreende... Tive de o enfrentar com a realidade do Ministério Público, até que, por fim, percebeu. E em seguida: o arquivo na cave era treta. Tinham todas as informaçÕes ordenadas e reunidas em microfilme. Só precisou de trabalhar um pouco no computador.

O café chegou. Novotny pediu um copo de água. Em seguida, despejou o pacote de açúcar, pousou-o e bebeu o primeiro gole com um grunhido de satisfação. Rio sentia dificuldade em abafar a impaciência. -E mais? -No fundo, tudo correspondeu ao que o teu amigo te tinha contado. Como se chama ele? - Herzog. Doutor Jan Herzog.

- Dá-me a morada. - Novotny tirou um bloco de apontamentos do bolso e anotou a morada de Herzog. Meteu depois a mão no saco de plástico com as letras «Sport Münziger», de onde tirou uma folha de papel dobrada, que empurrou, por cima da mesa, na direcção de Rio. - O secretário já transcreveu a acta. Eficiente, bem? Tens aí uma fotocópia. Devo estar doido para fazer uma coisa destas, mas uma pessoa tem as suas fraquezas. Promete-me, no entanto, que vais desfazer-te imediatamente disso. De preferência pelo fogo. 1  - Não te preocupes. Está prometido...        replicou Rio, metendo a acta no bolso do casaco.         E qual o conteúdo? O número 12 426 é o nosso ovo - prosseguiu N9votny puxando mais uma fumaça. - Exactamente o primeiro recipiente. Em suma, a numeração dos doze ia @té ao 12 437. - Não entendo uma palavra.

- Os números eram impressos em sacos de plástico Tal como dantes podias ver na televisão, em todos noticiários ou imagens de arquivo. Também na imprensa... Tu sabes.

Referes-te a sacos de plasma? Plasma ou sangue puro, os sacos são todos parecidos. Pelo menos, foi essa a ideia com que fiquei. De qualquer maneira... a partir da série 12, de 12 426 para te, trata-se de plasma. Foram fornecidos à clínica 4"",;  i@r uma firma do Hesse. Bio-Plasma é o nome da empresa.

Bio-Plasma, em Bernhagen... A firma ainda hoje fornece a clínica com os seus produtos. A oferta é mais barata do que a das outras. No entanto, por qualquer motivo que Weissmann não me mencionou, o trabalho de colaboração cessou presentemente. A Clínica Max-Ludwig procurou outro fornecedor e acho que fez muitíssimo bem. - Tudo isso está muito certo e suspeito aonde queres chegar. Mas não podias ser um pouco mais concludente? Okay! Reissner foi    tratado com plasma de um desses sacos. E trata-se, na verdade, do número 12 426. Consta do relatório do bloco operatório. Apertei, naturalmente, com este Weissmann. Imagina a cara dele quando lhe mencionei o caso. Avisámos em seguida por telefone não só a Direcção de Transportes e os colegas do Hesse, mas também a Direcção-Geral de Saúde. Tanto quanto descobri, a firma manteve-se até agora discreta, exceptuando pequenos casos insignificantes. Usufrui de uma reputação séria. - O que vai mudar - profetizou Rio.

- Tenho a mesma suspeita - concordou Novotny, acabando de beber o café. - Encarrego-me disso, Paul - decidiu Rio e levantou-se.

- Porque estás com tanta pressa? Que tencionas fazer?

- Apertar com essa tal firma Bio-Plasma, não?

- Já lá tens os colegas a revirar tudo de uma ponta à outra.

- E daí? - replicou Rio, com um encolher de ombros.

A janela da sala estava toda aberta para trás, e a caixa do correio vazia. Rio sentiu vontade de correr, mas, depois de reflectir melhor, decidiu-se por um passo cal- mo e despreocupado.

No entanto, o coração batia-lhe com força no peito. De facto, a porta de casa também não estava fechada à chave e cá de baixo da escada avistava-se a bolsa vermelha de cosméticos de Vera. - Eh! Desarrumada? Escancarou a porta.

- Desarrumada soa bem! E que desarrumação há por aqui! - ouviu-a gritar. Estava no corredor, entre a cozinha e a porta da sala, e segurava o vaso com as suas hortenses favoritas. Tinha prendido os cabelos ao alto. Sob a testa redonda e o traçado característico das sobrancelhas de Vera brilhavam os olhos verdes desafiadores: - Disse-te que pusesses água, pelo menos uma vez por dia. E agora... vê bem! Está completamente seca. Dá assim tanto trabalho pôr um pouco de água numa planta? -E tudo o que tens para me oferecer como boas-vindas?

Vera suspirou, pousou o vaso de flores em cima da consola e respondeu: -Não... - Pendurou-se-lhe no pescoço com tanto entusiasmo que o vaso de hortenses balançou e quase se espatifou no chão. - E a cozinha, em que estado a puseste! E tu! - Pegou-lhe na mão, arrastou-o até à sala, pôs a cabeça de lado e observou-o com uma expressão crítica. - E tu? Deixa ver! Estás com péssimo aspecto. Mal a mulher se ausenta de casa, o homem dá orgias. Ou será que estou errada? - Logo tu! - tentou ripostar. - Com as tuas festas em Hamburgo... A mim não me correm as coisas tão bem quando fico sozinho, entendes? É para isto que um homem casa? Além de que tenho tido uma imensidade de trabalho, a tensão baixa, cansaço da vida, tédio, stress, um maldito editor, um chefe de redacção ainda pior às costas e o caso mais tramado que se possa Pensar.

-E por causa disso tens de voltar a viajar?

- Exacto. Limitou-se a olhá-lo e dirigiu-se à cozinha. -Como é? Queres um chá ou alguma coisa que comer? Já comeste? - Não há nada em casa. -Achas-me idiota? Trouxe carnes frias do avião e pãezinhos frescos. Senta-te. - Enquanto mastigavam, foi agitando como habitualmente a sua varinha mágica: aquela peça fantástica de Gitti... E a gente que se conhece! E como foi divertido... - O pior ainda está para vir, Rio. Não tive saudades tuas. Não aconteceu pura e simplesmente... - Fabuloso! - O chá ajudou-o. Ou seria a expressão dela? Não, toda a pessoa de Vera contribuiu. Sentia-se muito melhor. - Porque não vieste no primeiro voo? - Mais uma história cómica... - Quando chegou ao fim, acrescentou: - E agora segue-se o programa. Limpar a casa. Em seguida, tomamos banho. Esquece o teu artigo. Em contrapartida, vamos para a cama.

-Vejam só! - Acariciou-lhe o joelho.

- Desde quando tens alguma coisa contra? - retorquiu, estendendo o lábio inferior, amuada.

- Tenho mesmo de ir à redacção. Levantou-se, ergueu-a nos braços e beijou-a. Mas estava de qualquer forma ausente e até mesmo agora, até mesmo nesta situação, o nome Reissner não o abandonava. - Eh! - exclamou ela, afastando-o. - Estou aqui. Chamo-me Vera. Esboçou um aceno de cabeça culpado. - Que merda! - exclamou. - Como é que fui meter-me neste maldito caso... -De que se trata? Tentou esclarecê-la o melhor que lhe era possível.

- Sangue contaminado com sida? - suspirou. - Valha-me Deus! E onde tens de ir?

-Primeiro à redacção e depois a um buraco qualquer em Hesse.

-Desaparece! - ordenou, batendo-lhe com os punhos no peito e com um brilho enraivecido nos olhos. - Como é que ainda não te foste embora? Queres que te embrulhe um pãozinho? - Vá lá... - Beijou-a onde sabia que daria resultado: na curva do pescoço. - Não um, mas dois pãezinhos! Achas que vou viajar sozinho para Hessen? Vens comigo! - Estás a brincar?

- Como assim? O Taurius é uma região maravilhosa. E Francoforte fica perto. Talvez ainda dê uma volta contigo pelas boutiques... - Talvez? Achas que consegues subornar-me com uma proposta dessas? -Há hotéis de sonho, Vera. Riu como só ela sabia rir: -Nós dois e um hotel? O velho truque para casais em crise... é isso? - Porque não? - replicou Rio com um esboço de sorriso.

Widerimayerstrasse. Um edificio cinzento e grande. Algures, lá no alto, o nome a letras vermelhas: NEWS KURIER. No pátio, que Rio atravessava nesse momento, as gigantescas bobinas de papel de jornal aguardavam o momento de serem levadas para a rotativa. Passou junto ao porteiro e subiu ao quarto andar.

- Herr Olsen está reunido com Herr Maliler - informou-o a secretária. - Disse-me que, caso aparecesse, deveria ir ter logo com eles... @ O gabinete de Maliler era no sexto andar. Uma sala de esquina. O gabinete dos editores, a central do poder.

Quando Rio entrou na ampla sala forrada de painéis de madeira, Walter Maliler encontrava-se, de pé, junto à janela. Segurava um lápis na mão, enquanto discursava. Aparentemente, nunca conseguia fazê-lo na cadeira e, por conseguinte, tinha de se levantar. Olsen afundara, pelo contrário, o volumoso corpo num confortável sofá de cabedal preto-escuro e ia acenando, delicadamente, com a cabeça. - Ah! Chegou, então, Rio! - cumprimentou o editor, afável. Maliler conseguia aquele permanente tom de pele bronzeado nos campos de golfe, ou, sempre que o tempo não o permitia, numa visita a uma das suas vivendas no Mediterrâneo, ou ainda, se necessário, no ginásio. Formava um conjunto sugestivo com o cabelo grisalho e o branco-prata do bigodinho sobre o lábio superior. Rio interrogara-se muitas vezes porque é que ele se pavoneava como uma vedeta de Hollywood de um filme dos anos 50. Talvez fosse a mulher a insistir. - Portanto, Rio, Rio... - prosseguiu num tom paternal. - Lá voltou a desenterrar um assunto escaldante. - Não foi bem assim. Digamos que se abateu na minha cabeça.

- Uhmmm! E trata-se, como habitualmente, de uma história horrível. «Sim», pensou Rio, sarcástico. «Uma daquelas histórias horríveis que te fazem ganhar milhÕes.» - E, de qualquer maneira, sinto-me   , digamos, bas tante perturbado. Não conhecia, de facto, esse infeliz chamado Reissner, mas o chefe dele, o doutor Linder, é... pode afirmar-se... um conhecido do meu círculo. Costumamos ir jogar golfe juntos. É um indivíduo bastante complicado, o exemplo típico do autodidacta dos negócios... Mas não interessa para o caso. Apenas pretendo dizer para que fique bem claro: esta história promete realmente uma repercussão gigantesca, mas trata-se de areias movediças. É, por conseguinte, necessária uma certa sensibilidade. Sabe a que me refiro... -- Rio sabia perfeitamente o significado das palavras. Habituara-se a escutar quase sempre a frase «areias movediças», quando Maliler acedia a encarregá-lo de um trabalho. - Dado tratar-se de um tema tão escaldante, Herr Olsen é de opinião de que poderia fazer-se uma série, mas discordo. Devemos proceder a uma investigação pormenorizada, muito minuciosa do assunto, Rio, e somente informar com base em factos comprovados. O telefone tocou. Maliler dirigiu-se à secretária, levantou o auscultador e esboçou um gesto afável com a mão esquerda. Estava a mandá-los embora. -É mesmo um idiota chapado - resmungou o gordo Olsen, enquanto desciam no elevador para a redacção. - Sabes o que me disse? Que eu também devia começar a jogar golfe. Que o golfe não só faz bem à circulação como é igualmente um desporto de reflexão. É através do golfe que se consegue automaticamente a necessária posição de distanciamento face à actualidade. E sem ela torna-se impossível fazer um bom jornal... Era só o que me faltava! Ouvir isto da boca de um convencido destes... - Nesse caso, esquece! - aconselhou Rio. Atravessaram a sala da frente. Olsen não se sentou. Retirou uma folha de papel do cesto de correio e agitou-a diante do nariz de Rio. -Um fax. Lüders passou-o há uma hora. - Rio leu rapidamente o texto. Um homem chamado Jürgen Cenitza fora assassinado. «Havia, contudo, dois factos interessantes», escrevia Lüders. Em primeiro lugar, os requintes de crueldade do assassínio, que levara a Polícia Criminal a supor que Cenitza ou os autores devefiam procurar-se no meio do crime organizado, talvez mesmo num ramo russo ou chinês da mafia. Arrancaram os olhos à vítima, antes de a estrangular. Mas, em segundo lugar, a vítima tinha sido empregada de uma firma de produtos farmacêuticos do Hesse, que se especializara na preparação de plasma e preparados sanguíneos: a firma Bio-Plasma, em Bernhagen... - São eles, não? - disse Olsen, erguendo as grossas sobrancelhas. - A BIo-Plasma, Bernhagen? - Rio esboçou um aceno de concordância. - Nesse caso, vais até lá. Se possível, ainda hoje à tarde. Não acredito muito que exista qualquer relação, mas podes inteirar-te das funçÕes que este Cenitza desempenhava. - Rio manteve-se silencioso. - Alguma objecção? - Claro que não... - Tossiu sem conseguir dominar a comichão que lhe arranhava a garganta e o ataque foi tão forte que se afundou no maple. -  Do fumo não pode ser - comentou Olsen, impiedoso. - Os palitos não afectam os pulmÕes... -É deste ambiente pesado do teu gabinete - ripostou Rio.

-Trouxeste o gravador? -Não vais, por acaso, exigir-me... - replicou Rio com um brilho de desconfiança nos olhos. - Ora, velho! Não vamos fazer título de primeira página. Remetemo-lo para a página dois. Preciso, no entanto, de setenta linhas. Digamos, até... - consultou o relógio - até às quatro! E depois podes seguir, rumo ao Taumis.

Rio tinha levado o Porsche com esforço até próximo de Francoforte. Em seguida, sentiu-se sem forças e desistiu. Beberam dois cafés num restaurante à beira da estrada. Depois Verá colocou-se atrás do volante. Rio ligou o rádio. O posto da Rádio Sudoeste transmitia velhos êxitos. E, quando chegou a vez de Frank Sinatra, adormeceu. - Eh, Rio! Acorda! - Nesse momento, soube porque é que o ar lhe tinha faltado subitamente: a cotovelada de Vera nas costelas. Debruçou-se sobre ele e puxou-lhe igualmente o nariz com toda a força. - Podes, obviamente, ficar no automóvel, se achares preferível. Mas quem é que me veio com toda aquela conversa de fazer amor no hotel e de como seria fabuloso? Já estás a dormir à chegada. - Rio endireitou-se no banco e olhou lá para fora. Uma tabuleta azul, floreada, de néon, anunciava: «Parkhotel Bernhagen». - A primeira casa do sítio! - riu ela. - És um tesouro, Vera.

- Bem podes dizê-lo. Quando penso que ainda ontem, em Hamburgo, aguentei sem dormir até de manhã... E meti-me em seguida no avião. E tudo para voltar para um monte de ossos frágeis como tu. Que interessa? AVera ama-te. A Vera vai ajustar tudo. - Ali, sim? Em seguida, beijou-o. Desta vez, na testa. Sentiu-se uma vez mais agradecido por ainda haver mulheres como ela. Os reposteiros de tule agitados pelo vento. árvores, lá fora, diante da janela. Ulmeiros, um abeto, duas bétuIas. Em frente, na parede, estava pendurado um quadro com girassóis. E ele mantinha-se deitado numa cama enorme de madeira lacada de branco e teve alguma dificuldade em perceber qual o seu papel no meio de toda aquela imponência." Soergueu-se e massajou com força os dois olhos: Bernhagen?... Claro, Parkhotel Berriliagen. Ejá eram dez horas. Ouviu um chapinhar na casa de banho: Vera. Dez horas, raios! Como se chamava a firma a que devia esta exigência? Bio-Plasma, exacto... Podia obviamente tentar um ataque de surpresa, mas neste trabalho talvez não fosse a melhor opção. Pensou sobre se não deveria telefonar a Olsen e anunciar-lhe: «Fala o chefe de redacção do News Kurier. Herr Martin, o nosso redactor principal gostaria de hoje de manhã ... » Não, também não era uma solução. Rio pediu o serviço de quartos e resmungou:

- O que significa este «Grande pequeno-almoço») Mande tudo o que tiver. - Em seguida, perguntou à recepção: - Conhece uma firma local chamada Bio-Plasma? - Bio-Plasma! Claro - surgiu a resposta como um tiro de revólver. - Afirma Bio-Plasma é um bom cliente do nosso hotel. Vinte e quatro dois quinze é o número de telefone da central. Com quem deseja falar? Também tenho aqui anotadas as extensÕes mais importantes. - Excelente. A isso é que chamo um bom serviço. Herr... Herr.. -Weigert. Chamo-me Weigert, Herr Martin.

- Muito bem, Herr Weigert. Gostaria de falar com a direcção. -Bom, o director da Bio-Plasma é, na realidade, Herr Engel. Mas, tanto quanto sei, está sempre ausente. Herr Engel viaja muito, sabe? O homem que o substitui e que é, na verdade, responsável por tudo durante a ausência de Engel, é o doutor Hochstett. -Nesse caso, peço-lhe o favor de me pôr em contacto com o doutor Hochstett... -Só um momento, Herr Martin... E foi, de facto, apenas um momento. - Secretariado do doutor Hochstett - anunciou uma voz áspera de mulher. - Como, por favor? News Kurier? Não é o jornal que publicou o artigo a nosso respeito na edição de hoje? Rio não contara com o facto de o seu artigo já ter chegado às instalaçÕes da Bio-Plasma. - Exacto - anuiu. - E fui eu quem o escreveu. Uma pausa. E a seguir:

- Não sei, todavia, se o doutor Hochstett tem tempo para o receber. - A voz havia adquirido um frio de gelo. - Acredito que terá - ripostou Rio, que ia ganhando coragem. - Sobretudo porque será sem dúvida de todo o interesse da firma se o doutor Hochstett arranjar tempo. - Um momento, por favor... - O momento prolongou-se a tal ponto que Rio já sentira a tentação de pousar o auscultador. No entanto, a voz voltou a fazer-se ouvir: - Está disponível hoje ao fim da manhã, Herr Martin? É provável que o doutor Hochstett tenha de se ausentar logo a seguir ao almoço. -Claro que estou. -Qual a sua morada?

- Parkhotel.

- óptimo. Não fica longe daqui. Digamos dentro de meia hora? - Okay! Darei o meu melhor. Mal acabara de pousar o auscultador, quando bateram à porta. O empregado do andar entrou no quarto empurrando um carrinho com um imponente sortido de café, chá, tosta, queijo, salsichas, fruta e sumos. Rio saltou apressadamente da cama, vestiu o roupão de banho e sentiu-se como que obedecendo a um longínquo sinal de trombeta: bem e de bom humor. E a coroar esta sensação, Vera fez a sua aparição: nua, à excepção da pequena tanga de um verde brilhante entre as pernas. A luz do sol que vinha do jardim reflectia um brilho suave nos ombros e nas coxas reluzentes de humidade. Penteara ao alto o cabelo de um louro escuro e o riso inundava-lhe o olhar. - Temos, portanto, a orgia de um pequeno-almoço COM o repouso a seguir - comentou com um breve Olhar crítico. - Talvez ainda haja solução para nós. Tomou-a nos braços e acariciou-lhe a nuca. As pontas

dos dedos vaguearam pela linha estreita da coluna. - Vera fitou-o: - Primeiro comemos... depois, logo se verá.

- Escuta. Vê bem como me apareceste aqui...

- Devo espicaçar-te o apetite, não? - Beijou-lhe os mamilos, mas ela esquivou-se com um movimento ágil, afundou-se no maple e sorveu um gole de café, Comeram num silêncio apenas interrompido por risadas. - Porque é que ainda não paraste de olhar para o relógio? -É mesmo? - retorquiu Rio, apanhado de surpresa.

- Três vezes, pelo menos.

- Ah, Vera! tenho... tenho de... - Explicou-lhe o motivo.

- É impossível que seja verdade! - exclamou, fitando-o enraivecida. -Depois ainda será muito melhor. Vais ver.

- Depois? Então, eu tomei banho, untei-me com óleo e perfume e falas no «depois»? Não existe um «depois», idiota. Quando acabarás por te dar conta da realidade? Nestas coisas, somente o «agora» conta... A cidadezinha de Bernhangen na região do Taumis situava-se a cinquenta quilómetros de Francoforte. Deveria ter sido, outrora, uma aldeia, mas da qual não restavam muitos vestígios. Havia uma igreja com um campanário, um monumento de guerra de arenito e uma fonte do mesmo material. Murmurava suavemente na praça do mercado. As velhas casas, que se agrupavam dos lados, tinham quase todas nos rés-do-chão boutiques, pastelarias e cafés. Boutiques muito elegantes. Cafés muito cuidados. Como pano de fundo avistavam-se encostas verdes. E a toda a volta havia vivendas e bungalós brancos. Rio meteu o Porsche pela Kur-Allee - uma rua estreita e orlada de plátanos. O casino devia ficar por perto, dada a tipicidade do local, só que não lhe interessava. - A meio da avenida vire para a direita - indicara otto Weigert, o chefe da recepção do Parkhotel. - Segue-se um túnel de caminho-de-ferro e no próximo desvio mantenha-se à esquerda, subindo a vertente. Obedeceu as instruçÕes recebidas. Não precisou avançar muito até detectar na berma da estrada um pedaço de arenito com uma placa bastante usada em verde e branco. Havia as iniciais da firma «B» e «P» entrelaçadas. Por baixo estava escrito 1310-PLASMA BERNHAGEN. @ . Cem metros mais à frente erguiam-se edificios brancos por detrás de um talude enfeitado de flores. Até esse momento, Rio não se dera ao trabalho de pensar no aspecto que uma firma deste género teria. «Herdades de sangue», «firmas de especulação duvidosas», «quiosques de fármacos» - haviam sido estes ou #pelidos no género os utilizados pela concorrência e que tinham aparecido mesmo nas grandes revistas. No entanto, nada descobriu de suspeito por estas bandas. Muito pelo contrário. A empresa parecia-lhe bastante grande. Os edificios encontravam-se dispostos em forma de L. Uma construção térrea, de um andar e quase sem janelas, talvez a área de produção, erguia-se junto a um prédio com três andares, que, com toda a probabilidade, alojava os serviços administrativos. Tudo tinha um ar moderno, cuidado, e apresentava-se rodeado por um muro branco. O céu reflectia-se nas janelas e no relvado cresciam amores-perfeitos. O próprio parque de estacionamento encontrava-se orlado de flores coloridas. «Deve dar para uns quarenta carros», avaliou Rio. Pelo que via não trabalhava aqui gente de elite mas a Bio-Plasma parecia ir bastante bem.

Esperava-o a primeira surpresa: não havia somente um muro a servir de vedação, mas mesmo uma casa da guarda, munida de cancela, que lhe impedia a entrada. Avistou um homem de farda escura por detrás dos vidros. O homem veio até cá fora. Não se tratava de um indivíduo afável e idoso, mas de um homem novo e robusto. - O que deseja? - perguntou, medindo Rio de alto a baixo, com uma expressão desconfiada. - Tenho uma entrevista com o doutor Hochstett. -Pode dizer-me o seu nome? - Martin, Rio Martin. -Um momento, por favor.. Desapareceu no interior da casa da guarda, a fim de telefonar. Mantinham aqui um serviço de segurança bastante bem montado. Porquê? Rio voltou a amaldiçoar o patrão. Tinha colocado Bruno Arend numa outra missão, sem o avisar.. Agora, veriamos... Talvez voltasse a encontrar-se, muito em breve, diante desta imponente empresa. Mas na companhia de Bruno! Agora, a situação prometia!

Rio não se deu ao trabalho de procurar um lugar no parque de estacionamento. Parou mesmo na frente da pomposa entrada e saiu do automóvel. Não avançou mais. No espaçoso átrio, igualmente pejado de mosaicos de mármore e ornamentado com relevos de bronze, aguardava-o mais um uniforme preto. - Vem visitar o doutor Hochstett, não é verdade? Rio esboçou um aceno de cabeça afirmativo. - Se quiser fazer o favor de se sentar ali... -E quem vai aparecer? O chefe do FBI ou dos Serviços Secretos? O guarda limitou-se a soltar uma risada inexpressiva.

- O doutor Hochstett vai recebê-lo de imediato. Dentro de segundos... Rio atirou-se para cima do luxuoso banco de cabedal

castanho junto ao elevador. Decorreram uns meros segundos até se dar conta do zumbido e do suave toque de campainha, que anunciava a paragem do elevador no átrio. Tratava-se, por conseguinte, do Dr. Hochstett: vestia calças de ganga e um casaco desportivo em cujos bolsos enfiara as duas mãos ao sair do elevador. Alto, desportivo, magro, bastante simpático e, em especial, surpreendentemente jovem. Foi esta a primeira impressão. Mas quando Rio se levantou e se viu na frente do indivíduo, havia algo a corrigir: no cabelo louro e de corte curto e encaracolado notavam-se algumas brancas. Assemelhavam-se a uma espécie de pó no meio do tom louro. Tinha um rosto cavado, os olhos castanho-claros eram nervosos e inquietos e notavam-se rugas na testa e nos cantos da boca. -Herr Martin, não é verdade? - perguntou o Dr. Hochstett, sem estender a mão a Rio e nem sequer fazer qualquer menção nesse sentido. - Se quiser fazer o favor de me seguir.. Atravessou o átrio na frente dele. Tinha uns modos agitados e pouco naturais. «Vai levar-te para uma sala de visitas», pensou Rio, «como acontece no Edificio Hoover, em Washington, a central do FBI.» Também aqui se impediria, com toda a probalidade, que estranhos cheirassem o pó pejado de segredos dos departamentos de serviço. Não conduziram, todavia, Rio a uma sala, pois mais se parecia com uma cela. O mobiliário compunha-se de uma marquesa estofada, como é uso dos médicos, um armário cinzento metálico, uma secretária também cinzenta e duas cadeiras. - Por favor - convidou o Dr. Hochstett, apontando para uma das cadeiras, ao mesmo tempo que se sentava atrás da secretária. Há muito que Rio perdera o hábito de se surpreender.

Ossos do oficio! Mas tinha um sorriso irónico para todas as situaçÕes. E para esta, também. - Herr Martin... - começou Hochstett, brindando-o com um demorado e expressivo olhar. - Porque é que não veio falar comigo antes? - Antes?

O anfitrião meteu a mão no bolso do casaco azul com botÕes dourados, retirou uma folha de papel dobrada, pousou-a em cima da secretária e alisou-a. Era um fax. -  O nosso correio não é suficientemente rápido. Só costumamos receber o News Currier próximo do meio-dia. Temos, no entanto, um departamento de recortes de imprensa. Informa-nos de tudo o que nos diz respeito. E decerto imagina que considerei o seu artigo provocatório. - Franziu o sobrolho e acrescentou: - Posso perguntar-lhe de onde lhe veio a informação? -Muito simples: daqueles que a obtêm profissionalmente.- Da Polícia, portanto. - Rio assentiu com a cabeça. - A Polícia também já esteve aqui - replicou Hochstett com uma expressão dura. - Ontem. Viraram tudo do avesso. - Imagino - redarguiu Rio com um aceno de cabeça. - E agora isto. - Mas, no fundo, o que é que mais o irrita? -Está a falar a sério? - Hochstett alisou ainda mais a folha de papel, inclinou a cabeça sobre a mesma e ergueu a voz, enquanto citava as frases de Rio: «NãO ESTá AQUI EM CAUSA O CASO REISSNER, A TRAGÉDIA DE UM HOMEM QUE, INVADIDO POR UM PãNICO CEGO, TALVEZ UM AMOR CEGO, SOMENTE ACHOU COMO SAíDA PÒR TERMO AO QUE MAIS AMAVA - A FAMíLIA E A PRóPRIA VIDA. ESTA HORRíVEL TRAGÉDIA NADA MAIS PODE SER QUE O MOTIVO PAPA REPETIR A PERGUNTA: DURANTE QUANTO TEMPO MAIS? DURANTE QUANTO TEMPO ESTAREMOS CONDENADOS A

OBSERVAR, DE BRAÇOS CRUZADOS, COMO PESSOAS INOCENTES SãO SACRIFICADAS   COBIÇA DE ALGUNS NEGOCIANTES DE SANGUE, QUE NAS SUAS QUINTAZINHAS ... »Hochstett deixou pender a folha, torceu o nariz e repetiu num tom cortante: - Quintazinhas! Não está propriamente sentado nuMa quintazinha, certo? Esta afirmação é, na realidade, muito forte! Mas onde é que eu ia... ah, aqui... « ... NAS SUAS QUINTAZINHAS DESLEIXAM O CONTROLO E OS SISTEMAS DE TESTES, A PONTO DE TANTO AS OPERAÇÕES COMO OS SOCORROS A ACIDENTADOS REPRESENTAREM PERIGO DE VIDA.» Abanou a cabeça, repugnado. -Todos têm a sua profissão, Herr Martin. Eu levo a minha a sério, o que não me parece ser o seu caso. - E porquê?

- Porquê? Ainda pergunta depois de este artigo ter sido publicado? Este planfleto escrito por seu punho... Olhe à sua volta. Uma análise superficial bastará para lhe mostrar que a Bio-Plasma não é uma quintazinha. Thrito os nossos produtos como os testes que garantem ,wsegurança dos nossos produtos baseiam-se nos mais recentes conhecimentos científicos e são tecnicamente preparados até ao mínimo pormenor. E no que se refere ao controlo... Não vou pronunciar-me sobre os nossos cOlaboradores, mas, na Bio-Plasma, o proprietário, Herr Engel, exige uma precisão meticulosa. Acha que não entendo, tão bem como o senhor, que um escândalo destes pode não só afectar como arruinar inteiramente Ma firma como a nossa? E o senhor aparece, e escreve Um artigo destes, manda a Polícia investigar... Não fui eu - riu Rio com uma expressão paciente. - A própria Polícia tomou o assunto a seu cargo, já que falamos nisso: onde se encontra Herr a "gel nestas horas tão penosas para a sua firma? Pode guardar a ironia... - fumegou Hochstett de raiva. - Herr Engel aparecerá na devida altura. E dê-se por satisfeito que não esteja aqui... -Não estou assim tão certo.

- Sobre o quê?

- Sobre a minha satisfação. Teria o maior prazer em falar com ele. Hochstett levantou-se de um salto e ficou de pé por detrás da secretária cinzenta, como se tivesse sido impelido por uma mola do assento.

Rio manteve-se calmamente sentado. -Tem mais algumas perguntas? -Muitas. - Rio cruzou as pernas. - Compreende, doutor Hochstett... De resto posso perguntar-lhe: é formado em Medicina? - Que descaramento! - Que outra hipótese haveria? Estudei Medicina de TransfusÕes. -Desculpe, mas não se trata propriamente de um pormenor irrelevante, certo? Apenas pretendi dizer: em casos semelhantes, ou seja, quando a seriedade de uma firma é posta em causa, estou habituado, na minha qualidade de jornalista, a que me mostrem a firma. O que também é lógico, não acha? - O quê? - ripostou Hochstett, muito afogueado. - Não está, por acaso, a pensar que o vá deixar passear-se por aqui. O que é isso de «pensar»? Achei, como lhe disse, perfeitamente lógico. O médico fixava-o e Rio continuou a rir, imperturbável.

-Muito bem! - exclamou, após mais uma pausa. - Talvez Herr Engel tomasse essa decisão. - Decerto, doutor. Sobretudo depois de este horrível caso Reissner ter ocorrido praticamente no mesmo fim-de-semana em que se deu o homicídio de um dos vossos colaboradores de Hamburgo. - De que está para aí a falar, Deus do céu? Depois de tal afirmação, vejo-me realmente obrigado a duvidar de que esteja em seu juizo perfeito. O que tem este desditoso acidente a ver com... -... a Bio-Plasma? - Aveia sádica de Rio fora desperta: ele que estrebuchasse. Já que se mostrara tão arrogante, deveria igualmente suar. - Talvez não, talvez se possa falar aqui de uma cadeia de circunstâncias desditosas. Destidosas para a imagem da sua firma... No entanto, trata-se de infortúnio seu, se apenas tiver polícias ou jornalistas na frente: eles pretendem a sua queda. Procuram estruturas que possam associar. Os polícias e os jornalistas têm algo em comum: raramente acreditam em coincidências! As coincidências estragam-lhes o negócio, se bem me entende. -Não entendo uma palavra. - A frase foi pronunciada num tom seco e praticamente num sussurro. A voz assemelhava-se a um murmúrio. - Foi o que pensei - comentou Rio com um esgar. - Quer que lhe explique? -Pretende insinuar que a morte deste empregado, aliás um colaborador em part-time, tem qualquer relação com os acontecimentos que... que... Tornava-se-lhe aparentemente dificil continuar a falar. E ainda era mais visível o claro esforço que fazia para controlar os músculos do rosto. -... que ocasionaram o aparecimento da Polícia e a minha visita à sua firma. Era isso o que queria dizer? - Esse tal Herr Cenitza desempenhava trabalho de rotina em Hamburgo. E era como já lhe afirmei: colaborador em part-time. - Tirar sangue. Uma espécie de empregado de posto de gasolina.  - Não me parece que se expresse num tom muito adequado, Herr Martin. - Nunca faço grandes esforços nesse sentido - contrapôs Rio, fixando o adversário. Hochstett não conseguiu aguentar o olhar. - A sério. No entanto, se agora quiser mostrar-me a firma...Não faço a mínima ideia de como funciona este género de empresas. Ignoro como é possível ganhar dinheiro a partir de produtos para o sangue. Pelo menos do exterior, a sua firma parece bastante moderna. - Refere-se à nossa «quintazinha»?

- Ah! Não leve as coisas tão a peito - exclamou Rio com um arremedo de sorriso. - Não se deve interpretar cada palavra à risca... Não era de facto uma quintazinha... Rio enfiou, devagar e muito concentrado, a faca de peixe na carne branca e aromática do seu linguado à Ia meunière. Separou os dois filetes da espinha, empurrou-os para a beira do prato e observou a salada com uma expressão satisfeita: espargos, rodelas de abacate e mes- mo nozes - tudo misturado.

- Só a palavra em si o irritou. E compreende-se. Depois de se ter dado uma volta pelas instalaçÕes (aqueles centrifugadores, que separam o plasma dos ou- tros componentes do sangue, os comandos electrónicos que fazem com que tudo funcione automaticamente, sa- bes ... ), se tivesses visto, Vera, vidros, cromados, aparelhagem por todo o lado, também ficarias um pouco impressionada. Mas apesar de tudo... - Sim? O quê? Vera preparava-se para comer uma folha de alface, mas pousou o garfo. Rio estava a querer dizer algo mais e pertubava-o se alguém mastigava. - Apesar de todo aquele pretensiosismo de alta tecnologia, fiquei com a certeza de que alguma coisa não está em ordem. -E o que te levou a essa conclusão?

- Isto - respondeu batendo ao de leve com o indicador no nariz.

Vera fitou-o em silêncio e demoradamente. -Agora, continua a comer, Rio. Daqui a pouco o teu linguado arrefece. Ele nem sequer pareceu ouvi-la. - Reinava uma precisão de algum modo estranha. Aquele Hochstett que saltitava à minha volta e   não parava de ripostar, todas aquelas figuras brancas de fato-macaco! E o nervosismo generalizado. Nas câmaras frigoríficas, em que guardam as reservas de sangue, havia selos brancos por todos os lados. A Polícia deve ter apertado com eles. Além disso... - interrompeu-se, espetou um bocadinho de peixe, pousou o garfo e manteve-se calado. Estavam sentados no terraço do Parkhotel. Dois criados afadigavam-se, de um lado para o outro, por entre as mesas. Tomava-se muito agradável estar aqui sentado. Uma brisa fresca chegava-lhes das encostas e no relvado verde em frente, por entre os guarda-sóis, ouvia-se o murmúrio de um repuxo. O ruído seco das bolas de ténis soava algures. E os poucos hóspedes, na sua maioria mulheres - indubitavelmente casadas com qualquer gerente, bem pago, que trabalhava nas pequenas mas abastadas firmas dos arredores - ocupavam-se com elas próprias. Rio soltou uma gargalhada dirigida a Vera, mas nem sequer teve consciência de que o fazia. Encontrava-se novamente no comprido corredor sem janelas, iluminado por lâmpadas de néon, encontrava-se numa secção separada por um muro branco de altura média. Viam-se inúmeras lâmpadas pequenas coloridas: olhos electrónicos. Acendiam-se e apagavam-se intermitentemente. Piscavam-lhe, como se fossem olhos minúsculos. Rodeava-o um leve zunido de máquinas electrónicas. Em cima da mesa aguardavam, em compridas embalagens de plástico, filas de tubos de ensaio. Todos estavam cheios de um líquido escuro: sangue. Sangue humano.

Sangue de todas as proveniências: sangue de homens, de mulheres, de velhos, de jovens, de saudáveis e de doentes. Sangue que havia sido extraído a voluntários, que, com a sua dádiva, esperavam contribuir para uma boa causa; mas sangue, também, dos corpos debilitados daqueles que, para pôr cobro à miséria da vida, não viam outra saída excepto vender ao desbarato o seu bem mais precioso. -Preparamos aqui mensalmente catorze mil litros de sangue. - Embora Hochstett tivesse falado baixo (baixo, mal-humorado, quase mecanicamente, como se tivesse decidido não levar a sério este homem, Rio Martin, e desbobinar, em vez disso, o seu programa para os visitantes), notava-se orgulho no tom de voz: - O sangue puro não nos interessa. Isso é do âmbito da Cruz Vermelha. Nós aperfeiçoamos a qualidade do sangue, transformamo-lo em produtos sem os quais o progresso da medicina talvez fosse impensável... - Catorze mil litros? Cento e oitenta e seis mil litros por ano! Um mar de sangue, extraído, congelado, conservado, posto em movimento pelas gigantescas baterias das centrifugadoras que funcionavam por detrás dos vidros. - Cada um dos nossos doadores é, obviamente, escolhido com o máximo cuidado; tanto a sua origem e condição social como o estado de saúde são controlados segundo as normas vigentes da Ordem dos Médicos. - Taque... taque... taque... produziu um dos mecanismos automáticos com um piscar de luzes. Com uma distância de centímetros, os tubos de ensaio, cheios do sangue escuro, avançavam ao encontro das mãos enluvadas da assistente de laboratório vestida de branco. - Estamos em permanente mudança sobretudo no que se refere às embalagens dos nossos produtos. São constantemente adaptadas as exigencias do mercado. O plasma é um produto universalmente requisitado... - Taque... taque... taque... - O plasma é muito albuminoso. Ficam resíduos mesmo

quando as partículas celulares, por conseguinte os glóbulos brancos e vermelhos e as lamelas de sangue, são separadas. CompÕe-se basicamente de noventa e um por cento de água. Contém, no entanto, substâncias bíológicas extraordinariamente activas: albuininas, substâncias nutritivas, produtos metabólicos, enzimas, hormonas e vitaminas... - Rio fixou o olhar na espinha do peixe e voltou a ouvir a voz do Dr. Hochstett: - Como pode ver, todos os nossos colaboradores usam fatos de protecção e as respectivas máscaras. No tratamento deste material, a mínima impureza tem de ser eliminada. A máquina automática que tem na sua frente é uma máquina de testes. Controlamos tudo. Não só a sida como outras doenças podem ser transmitidas. Hepatite, malária... - A máquina de testes produzia o mesmo ruído: taque... taque... taque... - O conhecimento das possibilidades de utilização do plasma é ainda relativamente recente - prosseguiu Hochstett. - Só veio à luz do dia na década de quarenta. Foram os Americanos, um grupo de cientistas da Harvard University. Surgiram depois novas noçÕes... Como já frisei, a medicina moderna seria impensável sem os produtos de sangue. -E que produtos são esses?

- Temos, por exemplo, as imunoglobulinas. São muito úteis nas mais graves doenças infecciosas. Imagine uma peritonite ou uma septicemia. As imunoglobulinas eliminam os vírus, bactérias e toxinas. E depois, naturalmente, os factores de coagulação. Já está na verdade a par dos lamentáveis incidentes sofridos pelas vitiffias de doenças no sangue e que desencadearam, de facto, todo o escândalo.  «Lamentáveis incidentes. Foi o que chamou a todo aquele terror. Tens de anotar as palavras.»  -Sempre que um destes factores de coagulação falta a um hemofilico, pode causar hemorragias com risco de vida - prosseguiu o médico. - Mas nas operações também se utilizam outros preparados de coagulação, como o concentrado PPSB e fibrinogénio, quando, por exemplo, surgem complicaçÕes de parto. O PPSB pode igualmente ser decisivo nos casos de enfarte, quando os meios de impedimento da coagulação têm de ser substituídos, pois se toma necessário operar de imediato. A capacidade de coagulação do sangue pode ser assim novamente recuperada. Ainda haveria muito mais coisas a citar. Há as albuminas... se estiver interessado, posso pôr-lhe literatura à disposição... - Rio não estava em condiçÕes de desejar o que quer que fosse. E havia uma assistente de laboratório que o impedia. Acabara de se levantar nesse momento e virara-se na sua direcção. Taque... taque... taque... Não conseguia distinguir-lhe as feiçÕes, ocultas por detrás da máscara. Apenas lhe via os olhos escuros. - A nossa capacidade reside no fraccionamento das componentes do plasma segundo um método completamente novo - dizia Hochstett nas suas costas. Os olhos da assistente de laboratório não desfitavam Rio. E talvez fosse o tecido branco da máscara, apenas revelando os olhos, o que tomava a expressão tão dramática. «O que é que olha tão fixamente? Que se passa com ela?»

Uma recordação ocorreu a Rio: há três anos atrás... depois de uma revolta numa casa de correcção apresentara-se com Bruno Arend no pátio da prisão. Os funcionários tinham-nos conduzido até junto de um grupo de raparigas. Entre elas aguardava também a directora. As raparigas tinham fardas prisionais azuis e apertavam-se como um bando de animais encurralados, enquanto a mulher com óculos de aros dourados garantia, num tom baixo, que todas as censuras contra a direcção do estabelecimento eram perfeitamente infundadas e até mesmo ridículas. Rio tentou interrogar as jovens, mas não obteve qualquer resposta: tinham medo. No meio delas havia, contudo, uma rapariga de cabelos pretos que não deixava de o fitar. E os olhos emanavam um brilho tão intenso e a expressão era tão enérgica e desesperada que essa lembrança jamais o abandonou. Tratava-se de um olhar que dispensava quaisquer palavras. Tal como este. Não, no rosto desta mulher, do qual apenas descortinava os olhos, a súplica era ainda mais forte. E Hochstett continuava por perto, a explicar-lhe os

inigualáveis progressos na pesquisa da firma Bio-Plasma.

A assistente do laboratório virara-se um pouco de lado, como se estivesse a controlar um dos seus instrumentos. A mão tocara na dele. E Rio compreendera de imediato, abrira a mão e recebera o pequeno cartão que ela lhe dava... Rio meteu os dedos no bolso da camisa de ganga e retirou o cartão: Tinha escrito: «Tel. 162872». E por baixo: «Dagmar Reicheribach». Nada mais. - Tenho de telefonar, Vera.

- Telefonar? - replicou ela, torcendo o nariz. - Mas ainda nem sequer comeste o linguado.

- Posso comer depois.

- É assim tão importante?

- Bastante... - Apertou-lhe ternamente o nariz, levantou-se, atravessou o terraço e entrou no vestíbulo do hotel. A cabina telefónica estava desocupada. Marcou o número, 162872, conservou o auscultador junto do ouvido e, enquanto aguardava, somente teve consciência do toque da campainha e do bater do coraÇão. A ligação caiu. Voltou a tentar. Em vão. Meteu, nervosamente, um palito entre os dentes e marcou o número da redacção.

Por fim: - Fala Martin! Franziska? Passe-me, por favor, a Herr Olsen. - Se estiver livre, Herr Martin. Sabe que... Rio sabia e a espera voltou a revelar-se interminável. As paredes pintadas de rosa da estreita cabina pareciam esmagá-lo. Já estava a pensar em desligar e escancarara a janelinha, que dava para a praça em frente do hotel, quando um resmungar entre dentes anunciou o gordo Olsen. - Sim? - Seguiu-se uma respiração ofegante e o folhear de papéis. O gordo estava entregue às correcçÕes e no estado de humor adequado. - Fala, Martin. PÕe o lápis de lado, Ewald.

- Tu? Como vão as coisas?... Como se chama o lugarejo?

- Bernhagen. Rio pô-lo a par dos acontecimentos. E contou-lhe a história da assistente do laboratório, que lhe tinha passado o número do telefone. -E, então? Já a contactaste?

- Tentei, mas não está. Ainda não está. Trata-se, sem dúvida, do seu número de casa e a mulher ainda se encontra na fábrica. Pedi na recepção que estabelecessem a comunicação. É uma casa de jardinagem. Talvez seja a filha do jardineiro ou a mulher, ou sei lá que mais. - Uhmm! E que se passa com o chefe deles, esse tal Engel?

-Está fora. Como sempre. Em Maiorca, segundo afirma o substituto. Tem lá uma vivenda ou algo no género. - Maiorca? E, agora, já sabe, com vinte e quatro horas de diferença horária, que tem problemas na firma. -Foi o que disse a mim próprio.

- Maiorca? - repetiu Olsen, pensativo.

- Digo-te, Ewald, que há aqui qualquer coisa que não me cheira bem. -Acredito. Só que isso não me serve de chamada de página, Rio. - Outra coisa, Ewald: preciso do Bruno Arend aqui.

-Do Bruno! Mas eu...

- Já sei que o puseste noutro caso. Dispensa-o. Encarrega-te primeiro de que ele possa apanhar o voo da tarde para Francoforte e alugar um carro no aeroporto... -E em segundo lugar?,

- Em segundo: telefona, por favor, a Eddi FÕrsten - Mais essa! Eddi Fürster era uma raposa velha. Dantes, trabalhara no Der Spiegel e agora era dono de um serviço de imprensa particular em Dusseldórfia. Durante toda a sua vida no jornalismo, FÕrster interrogara-se como é que figuras bastante dúbias da política e economia conseguiam controlar os cordéis apesar da sua falta de escrúpulos. Era, sem dúvida, inútil concorrer com os gigantescos e financeiramente poderosos arquivos das grandes revistas e jornais. Resolvera, por conseguinte, fundar na década de 80 o Serviço FÕrster, uma espécie de arquivo pessoal, que não tardou a adquirir tais proporçÕes que os próprios Serviços Secretos e federais se interessaram pelo mesmo. Havia fronteiras delimitadas para o que o Serviço FÕrster detinha a respeito de figuras proeminentes da política e da economia. O material incluía, no entanto, donos de lobbies e diplomatas com missÕes estranhas, banqueiros com o gosto pelo risco e, na verdade, criminosos com uma sólida posição financeira. - FÕrster tem, decerto, contactos no campo da medicina e farmacologia. Talvez se consiga descobrir o que impulsionava esses tais senhores Engel e Hochstett...

Okay, jovem. Vou tentar contactar com o Eddi FÕrster. Dou ao Arend o que ele me mandar por fax... Tenho mais que fazer. E, agora, desliga, Rio. - Um momento. Ainda havia uma coisa... Não houve porém mais nada, excepto um estalido. Já antes da frase de despedida do gordo Olsen Rio se apercebera do chiar dos pneus de um carro potente na rampa do hotel. Nesse momento, olhou através da janela um    erce es atravessara o portão. ra um carro novo em folha, aparatoso e vermelho metalizado, da série S. E, como se não bastasse, era ainda um modelo especial. A porta abriu-se e um homem desceu. Vestia um blazer azul. Rio cuspiu nervosamente o palito. Hochstett! Será que existia a telepatia? Um estafeta saiu disparado do hotel.

O Dr. Hans Hochstett atirou-lhe despreocupadamente a chave e, em seguida, subiu devagar os degraus com as mãos enfiadas nos bolsos do casaco. Rio saiu da cabina. Na recepção, o Dr. Hochstett conversava com o afável Herr Weigert. Os botÕes dourados do blazer recebiam e reflectiam a luz do candeeiro de trabalho. Nesse momento, o afável Herr Weigert ergueu o braço e apontou na sua direcção. Hochstett pôs-se de imediato em movimento e Rio mal conseguia acreditar ao aperceber-se do sorriso bastante simpático, quase caloroso, no rosto magro. - Herr Martin! Está aqui!

- Sim, aqui estou.

- Soube pela minha secretária que está hospedado no Park. E então pensei com os meus botÕes... quero dizer, talvez o nosso encontro, hoje de manhã, tivesse sido um tanto desafortunado. De qualquer maneira, achei que talvez pudéssemos discutir alguns factos com calma. Caso não o incomode, claro.

- O que é isso de incomodar? Afinal, vim até aqui por sua causa. Soube, entretanto, notícias de Herr Engel? Já chegou? - Hochstett abanou a cabeça em negativa. Não prolongou muito o sorriso: um sorriso de circunstância. Tinha um problema com um dos olhos. Algo relacionado com a pálpebra do direito. Abria-se e fechava-se continuamente sobre a íris castanho-clara do médico. - Sentamo-nos, doutor Hochstett? Rio olhou em volta. Não sentia a mínima vontade de procurar um lugar lá fora no terraço, próximo de Vera. Sabia, por experiência, que a sua presença em situaçÕes semelhantes o irritava e, por outro lado, devia evitar que Hochstett ficasse mais nervoso do que já estava. - Vamos ali para o canto. Ninguém nos incomodará. - Neste sítio havia sofás de cabedal confortáveis, uma mesa, um maple também de cabedal e desfrutava-se de uma vista maravilhosa sobre a cidadezinha de Bernhagen. Hochstett afundou-se, com um suspiro, num dos sofás, cruzou as pernas e passou as mãos pelas calças de ganga, como que alisando as dobras. - Um hotel maravilhoso, não acha? Venho cá muitas vezes.

Rio esboçou um aceno de concordância. Nos cantos de hotéis elaboravam-se contratos e negócios mas também os mais baixos golpes. Por todo o mundo. Não apenas em Berriliagen. - Posso oferecer-lhe uma bebida, doutor?

- Sim. Uma água mineral.

- Uma água mineral. E para mim um café - encomendou Rio ao empregado. Bem precisava agora de um café. - Muito bem, doutor! Facilitemos as coisas. Presumo que devo agradecer a sua visita ao facto de querer pôr-me ao corrente de mais alguma coisa. Sinto-me curioso. - Pô-lo ao corrente?... Não sei, parece-me uma afirmação demasiado conclusiva.

-De que gostaria, então?

- Poderíamos tentar lançar um pouco de luz sobre esta história insólita. Os meus motivos são bastante claros. Todas as empresas dependem do seu prestígio. Por isso, a economia não tem relaçÕes fáceis com a imprensa. -A economia? Julguei que antes do mais lhe interessava a luta de vanguarda pelo progresso da medicina, doutor. Pelo menos, foi a impressão com que fiquei através da nossa conversa desta manhã. Mas, desculpe... Não pretendi interrompê-lo. Rio sabia agora qual a atitude que devia tomar com Hochstett. Fosse qual fosse o papel que desempenhava nesta obscura história, Hochstett optara pelo falso. Não se sentia à vontade. Talvez há muito que tivesse deixado de se sentir. Havia, portanto, que o incentivar. Quanto mais achas se deitassem neste tipo de circunstâncias, maior seria a oportunidade de que lhe escapasse uma informação mediante uma frase impensada. - Somos uma empresa farmacêutica interessada na rendibilidade, Herr Martin. Não lhe apresentei a nossa firma sob qualquer outra perspectiva. - Participa de alguma forma nessa rendibilidade? Desta vez, a pálpebra não lhe tremeu. A expressão dos olhos castanho-claros manteve-se calma e firme. - Se isso o tranquiliza, não. Somente tenho o meu contrato com Herr Engel.

Rio pôs natas e açúcar na chávena de café. Fê-lo com todo o cuidado. -Parece-me pouco, não acha? Tal como as coisas se apresentam agora, será responsabilizado não só como director do negócio, mas a nível do controlo. - Tal como as coisas se apresentam, estamos numa situação bastante má. Nesse aspecto, tem toda a razão, Herr Martin... E para esta situação apenas encontro uma explicação.

Tenho de recuar um pouco no tempo. A firma tinha desde o início... Eu só entrei muito Bio-plasma de.. Quando foi isso? interrompeu-o Rio. Em oitenta e nove. - Estava agora muito mais -lhe. aído. Aquele canto do hotel parecia agradar quantas vezes teria almoçado aqui com os cientistas médicos das transfusÕes? O Dr. Hochstett era o tipo homem que se convida para o fecho de negócios, até já uma razão de prestígio. - Como estava a dizer, há anos que a firma fundou a Bio-Med, uma sucursal. No entanto, a Bio-Med não ficou durante muito , independente, pois Herr Engel transformou-a recentemente numa espécie de empresa para a transacção importação de sangue e a venda de excedentes, então aqui, em Berriliagen, nos ocupávamos com a importação propriamente dita. importação? Donde? tratava-se sobretudo de remessas americanas. como era dantes... Sim. E sei também o que este sangue americano icou para as vítimas de doenças sanguíneas. Herr Martin! Sabe, hoje em dia somos todos espertos... Mas nessa altura tudo parecia, contudo, em ordem. E o controlo também. Por fim, até a cruz Vermelha importou da América. Não é bem assim. a almente que é. O vírus era desconhecido; r ,,.não havia métodos de testes. Tenho provas nesse Quem é que, no início dos anos oitenta, estava ente informado sobre o perigo da sida? Até a nível científico ainda se discutia muito. - Nriu na sua frente o rosto da pequena Angela. A prómãe de Angela havia sido contagiada através de 1,1-medicamento para a coagulação sanguínea. - Havia, além disso, pessoas que lançaram o alarme. Herr Engel foi, por exemplo, um dos primeiros a informar sobre as iminentes situaçÕes de risco provenientes de dadores desconhecidos ou não controlados. Foi mesmo ao ponto de escrever à Direcção-Geral de Saúde. Publicou um artigo no jornal da nossa empresa. - Ali, sim? E essa tal firma Bio-Med? -Como lhe disse, tratava-se de uma sucursal da Bio-Plasma. No percurso, sobretudo nos últimos três anos, a sua actividade reduziu-se consideravelmente. A situação do negócio mudou. A concorrência é brutal. Trata-se de um mercado em regressão em toda a linha. São os grandes que tomam as rédeas. Para nós, a importação baixou. A Bio-Med apenas se ocupava da venda de determinados produtos ultrapassados nos locais que tinham interesse nos mesmos. - E o que significa «ultrapassados»? Hochstett deixou pender a cabeça. O tremor das pálpebras reapareceu: -Bom, talvez pudessem designar-se como produtos de segunda qualidade. - Como no armazém. E isso refere-se ao sangue? -Quero que me entenda bem, Herr Martin. Na nossa firma, todas as substâncias para os medicamentos, quer se trate de sangue puro ou de plasma, são controladas com exactidão e desactivadas de vírus ou germes. E desde há muito tempo. E, segundo posso garantir-lhe, através dos métodos mais eficazes... Apesar de tudo, todos os métodos de produção têm, naturalmente, certos, digamos, pontos fracos. Trata-se de material biológico. No entanto, também são sujeitos a controlos severos e as nossas medidas de higiene são rigorosíssimas. Aqui é tudo esterilizado. - E escolhem os pãezinhos queimados a fim de os enviarem para a Bio-Med. Certo? - Por assim dizer.

- E quem recebe as mercadorias de segunda qualidade?

- Este material não se destina aos doentes. É utilizado para fins científicos e, por conseguinte, de pesquisa. Sabe perfeitamente que, hoje em dia, os institutos científicos não dispÕem de muito dinheiro. A falta de dinheiro domina por todo o lado. Apesar de tudo, os preparados são preciosos, quer se trate de factores de coagulação, plasma, imunoglobulina ou albumina, que promove a permuta de líquido entre os tecidos e os vasos. Mais de trinta medicamentos são fabricados a partir do plasma. Os institutos podem, por conseguinte, trabalhar com eles em experiências com animais, a fim de observarem certas evoluçÕes ou reacçÕes. - E é a Bio-Med que se encarrega deste negócio?

- Certo. É aí que se encontram igualmente os nossos pontos fracos. - O assunto tomava-se melindroso. O café não bastava. Rio fez sinal a um dos empregados, que logo se aproximou. Ojornalista pediu uísque e fitou, interrogativamente, Hochstett. No entanto, ele nem sequer parecera dar pela sua presença. Sorriu, embora os músculos das mãos se contraíssem. - Aqui pode existir, de facto, uma relação - prosseguiu. - Na Clínica Max-Ludwig foi ministrada a Herr Reissner uma dose do plasma da nossa firma, Herr Martin. -Exacto. O número 12 426. Hochstett endireitou-se, surpreendido, no assento, mas não pronunciou palavra. Somente repuxou o lábio superior e meteu a mão direita no bolso do seu belo casaco, retirou a carteira, abriu-a e pegou numa folha de papel dobrada. Pousou-a em cima da mesa e alisou-a. Tratava-se de uma etiqueta da firma e que tinha no canto esquerdo o sinal SP que Rio já conhecia. Por baixo havia uma fila de números, que talvez representassem códigos relativos aos consumidores. - Esta informação suplementar é colada em todos os sacos de embalagem de plasma. Aqui, o grupo sanguíneo. O número da direita corresponde ao fornecimento. No caso de Reissner, o 12 426. - Fitou Rio. Rio devolveu o olhar. - E? - replicou, após uma pausa.

- E? Só posso repetir-lhe o que já dissemos à Polícia: o fornecimento, a que a embalagem 12 426 também pertencia, não foi entregue por nós à Clínica Max-Ludwing, em Munique, mas à Bio-Med. Posso comprová-lo através da nossa documentação. O fornecimento foi testado. Parecia em ordem... -Nesse caso, porque o enviaram para o Bio-Med?

- Isso ultrapassa os meus conhecimentos. Não há qualquer registo. Além de que o caso se reporta há tanto tempo atrás! Apenas me surpreende que a Clínica Max-Ludwig pudesse enumerar com tanta precisão esta ministração de plasma a Herr Reissner. Nos relatórios das operaçÕes raramente se é tão exacto. No entanto, talvez o facto se deva a que o departamento cirúrgico da clínica se dedique a investigaçÕes científicas neste sector. O especialista no âmbito dos efeitos terapêuticos do plasma é o doutor Labek. - Muito bem. Afirma, por conseguinte, que a Bio-Med tinha sido a fornecedora? -Não só afirmo como garanto que nós não tinhamos enviado o plasma em causa. - Nesse caso, Boder teria cobrado?

- Sim. E, na verdade, dez vezes mais. Mas talvez não tivesse passado por ele, sabe? Existe um clima de tensão entre o director e Herr Boder. Herr Engel, generoso como é, não conseguiu ao longo de todos estes anos afastar-se dele, dispensá-lo. Deixava que fosse Boder a resolver. Decerto que houve um motivo que levou Boder a formar o seu próprio círculo de clientes, o que naturalmente revertia a nosso favor. - Um círculo de clientes? Refere-se a médicos.

- Sim, médicos que também trabalhavam no âmbito da pesquisa. Um deles era, como lhe disse, o doutor Labek. - Oiça - pediu Rio, endireitando-se -: não existe uma hipótese de qualquer engano? - Os enganos estão completamente fora de causa. As embalagens da Bio-Med são identificadas. Além de que se trata de nomes diferentes. E, dada a precisão com que se trabalhava nesta clínica, como vê, até os próprios números foram registados, a suposição é absurda. - Hochstett esboçou um vincado aceno de cabeça e riu. Subitamente, aconteceu algo de muito estranho. Este esquisito Dr. Hochstett, que, ainda há umas horas, tratara Rio como se ele tivesse levado a sarna para a sua impecável fábrica de sangue, inclinou-se para a frente e agarrou-lhe na mão, como o faria a um velho amigo. Também o riso se adequava à situação. Pedindo confiança, reflectindo mesmo uma súplica. - Conto-lhe tudo isto pois parto de um princípio: o de que não utilizará, imediatamente, esta informação. Também ainda não falei de nada com a Polícia. Não queria fazê-lo sem comunicar primeiro com Herr Engel. No entanto, desde a sua visita que a história não me sai da cabeça. Portanto, quis pô-lo ao corrente. Consegue perceber? - Rio esboçou um aceno de cabeça afirmativo. - E ficará entre nós?  -Prometido. Por agora, fica entre nós. No caso de resolver publicá-la, falarei primeiro consigo. Hochstett soltou um suspiro de alívio.

Quando Rio voltou a dirigir-se ao terraço, Vera tinha desaparecido. No canto em que haviam comido, os Mmos de um chorão faziam um jogo de luz e sombra. A mesa por baixo dos mesmos estava vazia. A minha mulher... - disse Rio, agarrando no cotovelo de um dos empregados. - Recorda-se...

-Claro, senhor! Claro que me recordo: a senhora já se foi embora há vinte minutos. Para onde? A pergunta quase lhe escapara. Mas uma Vera que ficasse a torcer os dedos até ele regressar era uma suposição absurda. Apesar do seu mau humor, Rio conseguiu dirigir-Se ao elevador, deixando para trás o impulso de ficar. Terceiro andar. O último quarto, à direita. A esperança levou-o a acelerar o passo e, na verdade, a chave estava na fechadura, mesmo do lado de fora... Tirou-a e entrou no quarto em bicos de pés. Os reposteiros estavam corridos. Da cama apenas se divisava uma mancha com uma ligeira elevação a meio. Vera. O momento tocou-lhe no coração, inundando-o de calor. Mas, em seguida, acometeu-o um dos habituais e ridículos ataques de tosse e ela acordou sobressaltada. - Eh! Não gosto disto! Não gosto de tipos que entram furtivamente no quarto.

- Então, porque deixas a chave na fechadura? -Mesmo assim, isso não te dá o direito... Dirigiu-se à cama e debruçou-se sobre ela para a beijar. Era tão bom amá-la. Um pequeno paraíso na orla do tempo, temo e suave. E era compreensível que caísse logo a seguir num sono sem sonhos... Não foi, todavia, um sonho sem sonhos. «Os doentes atacados com sida foram submetidos a testes numa determinada altura...», entrava-lhe a voz de Hochstett no consciente. «Mas não se exige uma repetição. O plasma do fornecimento, que começou com o 12 426, e foi entregue na Clínica Max-Ludwig, em Munique, consumiu-se, obviamente, há muitos anos. Isso já foi declarado ... » Rio levantou a coberta da cama. Não conseguiu descansar ante o toque do telefone, que durante um breve espaço de tempo mais tarde envenenou o quarto. Pegou no auscultador. Era Bruno. A voz rouca e nada agradável de Bruno. - Mas afinal o que é isto? Suo as estopinhas para chegar de Munique a esta merda de Francoforte, tenho um trabalho dos diabos por causa do aluguer do carro, levo uma hora até este maldito hotel e tu estás para aí a dormir? - Todos têm direito a dormir.

- Sim - concordou Buno num tom amargo. - Só eu é que não.

- O gordo do Olsen deu-te o material... - replicou Rio, pondo a mão por cima do auscultador. - São essas as boas-vindas que me ofereces? -Não - arguiu Rio. Consultou o relógio. Pouco passava das oito. Levantou-se o mais cuidadosamente que lhe era possível, arrancou uma folha ao bloco de apontamentos e escreveu: Amo-te. Mas isso já é sabido desde há muito. Só uma coisa é desconhecida: tenho infelizmente de voltar a

ausentar-me. Sabes porquê...

Pintou por baixo uma caveira e um coração e ligou a palavra «porquê» com o crânio por intermédio de uma seta. Retirou uma camisola da mala. A noite podia arrefecer. Em seguida, saiu do quarto em bicos dos pés e fechou a porta com o mínimo de ruído possível nas suas costas. Com o seu aspecto rude e enorme estrutura, Bruno Arend esperava-o junto dos dois elegantes maples na recepção. As lentes escuras dos óculos de polícia emitiam reflexos, - Já comeste, Bruno?

Salsichas. Não tens uma pergunta melhor, Rio, É uma boa pergunta, Bruno. Assim, podemos partir já de seguida. - E para onde?

- Explico-te mais tarde. - Como de costume?

- Claro.

- Okay! - concordou, vencido. - Nesse caso, vou buscar a máquina fotográfica... - Quanto aos quiosques de fritos, casas de banho de estaçÕes de caminho-de-ferro, torrefacçÕes de amendoim, estaçÕes balneares e sei lá que mais, são todos da mesma opinião - replicou Rio num tom acalorado. - Não consegues muito simplesmente meter isso na cabeça. E quando entras no sistema, salta-te a tampa. Dou-te o mesmo exemplo quanto ao soro ou vacinas. Tu o isto é da incumbência da Direcção de Saúde. E observam-te da cabeça aos pés. Mas quanto ao sangue? Negativo... Para o sangue que colhem em qualquer bairro sul-americano de pobres ou de putas ou, entre nós, nos bairros dos marados e toxicómanos, e que se destina a preparar produtos maravilhosos, bastam os serviços administrativos menores. Consegues perceber uma coisa destas? Não é simplesmente uma loucura? - Acalma-te, Rio! Estamos na República Federal da Alemanha. - Queres dizer que serve de explicação para tudo? - retorquiu, pisando o acelerador. O Porsche aumentou de vel ocidade. - O que pode entender um departamento deste género quanto ao funcionamento de uma moderna fábrica de produtos farmacêuticos? O que é que percebem de testes da sida? - Creio que a situação se modificou. -Mas manteve-se, durante anos, nestes parâmetros. E a substância nessa altura contaminada com o vírus da sida ainda circula provavelmente pela região, es- tá conservada em câmaras frigoríficas e aguarda para eliminar pessoas em quaisquer hospitais. Quando congelada, a substância mantém-se. E além do mais...

Rio interrompeu-se. «Próxima saída para Bad Soden», estava indicado na estrada. Aqui, devia virar para a direita, tanto quanto se lembrava. Deste lugar, seguia-se para Eppstein. E de Eppsteiri... em frente, para onde? Consulta o mapa. Estás a ver Eppstein? - Sim. Lá, viramos na direcção de Hoffieim - respondeu Bruno, que o orientou ao longo dos vinte quilómetros seguintes. Havia pouco trânsito. Rio deu gás ao Porsche. Eram agora nove horas. Aqui nesta região, todos os lugares terminavam, aparentemente, em «heim». Também Darenheim, onde se localizava a Bio-Med, não poderia ser muito longe. Será que Vera ainda estava a dormir? Assim o esperava, do fundo do coração. Esperava que Vera dormisse durante a noite inteira, em vez de se levantar por qualquer motivo e descobrir o seu bilhete. «Ela vai, no entanto, levantar-se, pois sentirá fome - a mesma maldita fome que eu. Bruno, pelo menos, comeu as suas salsichas com caril ... » - Procura aí dentro do porta-luvas, Bruno. Ainda resta uma tablete de chocolate? Bruno obedeceu e exclamou, satisfeito:

- Nada, ratinho. Completamente vazio. Mas lá está, agora, Darenheim. . Não havia muita coisa que identificasse o local. Um campo de jogos. Candeeiros em ruas desertas. Um cemitério de automóveis... Agora, o centro da cidade. Prédios modernos, luxuosos, bastante imponentes para um lugar tão pequeno. Era esta, contudo, a região do Taunus e «Mainhatten» situava-se nas proximidades. A riqueza de Francoforte, a cidade dos marcos alemães, estendia-se até aqui. Chegaram a um café, em que ainda havia vida, pois a sua excepção a rua estava vazia. Uma jovem esperava Junto a uma paragem de autocarro. Usava botas, calças de ganga e um daqueles blusÕes de cabedal inacreditavelmente

enchumaçados nos ombros. Rio aproximou o Porsche da beira do passeio. Ela encolheu-se e, por um momento, pareceu que iria fugir. - Pergunta-lhe onde fica a Eichenhain-Strasse, número catorze, Bruno. O repórter fotográfico baixou o vidro da janela e gritou:

- Calma! Calma! Não mordemos! Somos pessoas totalmente inofensivas. - A jovem riu, voltou a aproximar-se, foi mesmo ao ponto de meter a cabeça pela janela e fixou-os, curiosa, com uns olhos claros. Abriu a boca de dentes brancos e repararam que tinha riscos negros nas pálpebras. Os próprios lábios pareciam brilhantes. Uma verdadeira maquilhagem do tipo Lolita. - Escuta. Sabes onde fica a Eichenhain? - Claro - respondeu com um aceno de cabeça afirmativo e indicou o caminho a Bruno. - Aquela tinha pelo menos dezoito anos - comentou Rio, prosseguindo viagem. - No meu caso, tratá-la-ia por «você». - No teu caso - limitou-se Bruno a retorquir.

Uma tabuleta escura com letras maiúsculas a branCO: EICHENHAIN.

Rio prosseguiu caminho lentamente. As luzes de Darenheirh reluziam. À direita estendia-se a vertente da montanha, à esquerda apenas se divisavam telhados; dificilmente se conseguiria chegar às casas.   direita - vivendas. Não se tratava das luxuosas residências        do Taumis que já havia visto, não, mas, tanto quanto lhe era possível distinguir sob os faróis, de umas já bastante antigas, gastas e decoradas com terraços e colunas. Avançavam a uma velocidade moderada pelas ruas estreitas. Havia algumas janelas iluminadas. Mas não se avistava vivalma. Nem um único ser vivo, ou uma sombra, mas lá em cima no muro havia uma gata. Oito... dez... doze... uma ficira de jardins e, por fim, uma casa.

A casa era a única com aspecto miserável de toda a Eichenhain. E era também a última. De dois andares, caiada de branco, em granito - o modelo típico de uma pequena firma que depositou fielmente a importância do seu contrato predial ao longo de cinquenta anos. No entanto, era surpreendente a garagem, que se estendia a todo o comprimento, pegada à casa. Talvez houvesse sido utilizada outrora como oficina. Mas naquele momento havia, pelo menos, lugar para três carros. -Aqui está - comentou Bruno. - Uma empresa farmacêutica cómica, não? - Rio esboçou um aceno de concordância. A casa apresentava-se mergulhada na escuridão. As persianas estavam corridas e fechadas. Segue - sussurrou Bruno. A rua estreitou-se ainda mais, continuou através de pomares, mas a cerca de duzentos metros havia um lugar para dar a volta. Rio parou, fez inversão de marcha com o Porsche e apagou os faróis. - Viste alguma tabuleta em que estivesse escrito «Bio-Med» ou algo parecido? Bruno sacudiu a cabeça em negativa.

- Mas talvez a tabuleta fosse pequena. Talvez nos tivesse escapado. Como é, Bruno? Tens um cigarro? 1 - Agora, é que não estás a bater bem. E por pensares que tinha um cigarro. E muito especialmente se partes do princípio de que, se assim fosse, te pediria licença... Controla-te, raios! Isto por aqui também não é assim tão mau, certo? - Depois das palavras, acendeu um dos seus abomináveis charutos e puxou tantas fumaças que em segundos encheu o interior do Porsche de fumo e Rio se viu obrigado a abrir a janela. Recostou a cabeça para trás e fechou os olhos. Agora estava com fome. Mesmo a valer. - Deita isso tudo cá para fora, rapaz! O que queres daqui? -Passar uma vista de olhos por esta firma Bio- _Med.

- Já a examinaste e nada. Além de que não se vê nenhum cretino pelas redondezas. - Vi do exterior, Bruno! Nunca tive dúvidas de que não encontraríamos ninguém lá de dentro por aqui. Hochstett já havia sido bem claro. O que disse ele?

- Só que esse tal Lars Boder, o homem que vive aqui e é responsável pela Bio-Med, se encontra em viagem. Em viagem ou fugido. -Tudo dá a sensação de que houve uma epidemia de gripe. O superior foi-se. E o daqui também... - Sim, o daqui também. No entanto, telefonei para cá logo a seguir à minha conversa com Hochstett. Nem sequer um gravador respondeu. - E é suposto que esse tal Boder tenha colocado números falsos nessas famosas embalagens de plástico. - É a opinião de Hochstett. -E porquê?

- Hochstett apresentou uma teoria. Boder tinha o material de segunda que lhe fora entregue para venda... - Material de segunda, é essa a expressão? Julgo tratar-se de plasma... -Sim, trata-se de plasma. Mas não do plasma completamente puro. Em vez de o fazer seguir para quaisquer institutos científicos, que o utilizam para experiências com animais, Boder forneceu-o a clientes regulares, como clínicas e hospitais. E pretendeu com esta ideia genial arrastar a firma de Engel para a ruína, Pelo menos, assim me soou a explicação. -E acreditas?

- Eu? Ainda não me encontro há tempo bastante nesta história para acreditar no que quer que seja. Mas agora vamos lançar-nos a sério, Bruno! Uma vez, uma única vez, HonoIka dívisara-a com O binóculo. Tinha conseguido distingui-la nitidamente - mas apenas durante uns escassos e míseros segundos. E isso já se passara há algumas horas... Esperara, na altura, que ela abandonasse a espreguiçadeira e se debruçasse na varanda do hotel. «Estivera uma tarde maravilhosa, baby. Ou não? O sol brilhou. porque é que não foste buscar o biquini, nem te despiste? Esta lente é de 16 mm. Dava para te ver os pintelhos no autocarro... Mas não: reposteiros corridos! Muito bem. Okay. Vou ter contigo, deixa lá...» Honolka consultou o relógio. Pouco passava das nove.

Estacionara a caravana junto de uma obra. Uma atitude muito prática, pois a Wes«alia não chamava as atençÕes entre o monte de entulho e a obra.

Nos alicerces da obra havia um pouco de tudo, desde erva a beterrabas, e restos enferrujados. Honolka reflectiu que o famoso Parkhotel devia estar farto da situação. Mas o lugar proporcionava-lhe uma oportunidade única: permitia-lhe avistar toda a ala sul e até mesmo a retaguarda do hotel, as maravilhosas e pequenas varandas com os guarda-sóis fechados, mobiliário de vime branco e as espreguiçadeiras. - Agora escurecera e as luzes estavam acesas. Honolka colocara uma cadeira no centro da caravana e erguem as lucamas do tejadilho para ver melhor. Nada havia, contudo, para ver. Pensou no rosto triangular e nos cabelos escuros, talvez castanhos... Baixou a tampa da lucama, deixou ficar a cadeira no mesmo sítio, serviu-se de uma chávena de chá da garrafa térmica, bebeu e fumou um cigarro. «Rosto triangular», pensou de novo. Quando ela se virara na Nraranda, a fim de regressar ao quarto, ele conseguira Observá-la detrás. Tinha um traseiro de gritos sob as calÇas de ganga. E uma cintura... céus, que cintura!

Mas o tipo dela é que tinha um Porsche saíra. E o Outro também, o tipo mais velho e que coxeava. Provavelmente iriam demorar-se bastante. E mesmo que regressassem antes do previsto, não seria problema. - O que vais fazer com a miúda? Nada de matar, apenas um susto», soava-lhe a voz da missão encomendada. E iria ter mesmo um susto... Honolka sentia-se agora muito melhor. A corrente fora ligada, era isso. Uma forte corrente eléctrica, sim, senhor... Fê-lo estremecer até ao mais ínfimo nervo deixou-lhe o cérebro em brasa, pôs tudo em movimento. Iria ser uma coisa quente, bem quente... Foi buscar as luvas e a fita de estrangulamento e pô-las a jeito. Calçou, em seguida, as sapatilhas que tinham solas mais finas. TUDO O QUE FAZES COM VERDADEIRA ALEGRIA É ZEN, Sempre que fazes algo com gozo, sem te deixares desviar do objectivo por pensamentos negativos, praticas religião... Era esta a visão de Buda. O zen assenta na máxima concentração para a mais simples tarefa. HonoIka rIu-se à socapa. Haviam sido essas as palavras de Wattscheid, o assistente social de Knast. Os discursos de Wattscheid eram sempre um primor. E, vistas as coisas desta maneira, ele sempre actuara segundo os princípios de Buda, certo? O chulo da mãezinha, por exemplo - tinhas, na altura, dezasseis anos. E deste cabo dele com tanto prazer e concentração que teve de ficar no hospital durante um ano. Nem sequer os batas-brancas conseguiram ajudá-lo. Ainda hoje anda de ca- deira de rodas... E depois seguiram-se todos os outros.

Wattscheid, aquele pássaro raro com uma fita indiana e os óculos de aros dourados: FAZ TUDO COM ALEGRIA, ISSO É RELIGIÃO. CONCENTRA-TE! Iria concentrar-se! Tomava-se mais fácil entrar pelo lado sul. Os terraços encontravam-se ligados uns aos outros por um suporte de ferro. Um passeio. E agora tudo se encontrava mergulhado na escuridão.

Examinou a fita de estrangulamento. Encontrava-se pacificamente esticada em cima do lava-louças. Meteu-a no bolso e agarrou na máscara para o rosto e nas luvas. Em seguida, abriu a porta da caravana e esgueirou-se ao longo das faixas verdes que levavam à entrada do hotel. Em vez de trepar, podia muito simplesmente servir-se da porta principal. Com a garagem nada havia a fazer, pois funcionava com comando electrónico. No entanto, e se entrasse no vestíbulo como qualquer hóspede? Ali poderia esgueirar-se rapidamente. Na verdade, havia sempre a hipótese de qualquer idiota o ver.. E era precisamente isso o que não lhe agradava. Não, não era nada conveniente, de forma alguma... , Honolka estacou. A rampa do hotel nem sequer distava vinte metros. Deteve-se, a coberto dos olhares, atrás de um gigantesco vaso com a altura de uma pessoa e onde crescia algo semelhante a um cacto. Talvez o arquitecto tivesse achado tal coisa particularmente exótica e Honolka ficou-lhe agradecido por isso. Viu-a sair. Avistou uma jovem vestida com calças de ganga e uma camisola. Uma camisola escura. Uma rapariga com o rosto em forma de coração... Um paquete fez menção de chamar um dos três táxis que aguardavam em fila. No entanto, ela limitou-se a abanar a cabeça em negativa. «Muito bem, miúda», pensou Honolka e sentiu a adrenalina a percorrer-lhe as veias. «Agora, vamos lá mostrar à ralé o que é realmente o zen...» O cão ainda continuava a ladrar. Os cães devem adorar fazê-lo, sobretudo durante a noite. A diferença residia em que, neste caso, o som chegava-lhe de muito longe. Vinha lá de baixo da encosta. O cão estava provavelmente irritado por causa de um gato e não ante a presença dos dois homens. Rio agachou-se por detrás de um arbusto. Na sua frente, um pouco mais abaixo, erguia-se a parede traseira da garagem. Entre a encosta e a garagem havia uma espécie de vala de cimento, onde se situavam também os esgotos. O luar punha igualmente a descoberto, na parede das traseiras, duas janelas pequenas, ambas protegidas com vidro inquebrável. Bruno assegurara-se do facto. E agora Bruno estava prestes a encarregar-se da janela da direita. Reinava a calma. Apenas de vez em quando se ouvia um ranger metálico e, em seguida, um novo ruído que se assemelhava a uma barata ou ao fender da madeira. Ajuntar a tudo isto somente se ouvia a respiração pesada de Bruno e as suas fortes imprecaçÕes num tom abafado. -Raios me partam!... Esta merda... «Exactamente como dantes», pensava Rio. «Há quantos anos?» Pôs-se a reflectir. «Doze, não, já deviam ter passado uns quinze anos...» Nessa altura, Rio era apenas um mero repórter da informação geral, ambos trabalhavam para uma revista e praguejaram em uníssono quando lhes explicaram o caso na redacção: prémio de seguro. Era essa a suspeita. E tratava-se de um dos crimes mais vulgares: um Cessna fora abatido em Itália, um Cessna alemão. A chorosa viúva pretendia receber o dinheiro e o cadáver aguardava o funeral, após ter sido levado para a capela de um cemitério - só que, por infelicidade, por pura infelicidade, Salvatore Darani, o correspondente em Milão, acalentava fortes suspeitas depois de haver recebido algumas informaçÕes dos carabinieri. E, por conseguinte, Rio e Bruno viajaram às duas da manhã até uma capela de cemitério na Alta Baviera. Bruno abriu a porta da capela com grande destreza manual, como se a administração do local lhe tivesse fornecido a chave. E fizera o mesmo ao caixão - sem problema... As suspeitas de Salvatore revelaram-se, na verdade, sem fundamento. Em vez das pedras ou dos sacos de cimento que aguardavam, havia um cadáver no interior. E além do mais emanava um cheiro nauseabundo. A história do arrombamento do caixão espalhou-se por todas as redacçÕes. Só que Rio nunca tivera bons pressentimentos quanto ao caso. E sempre que a recordação lhe vinha à memória, sentia um aperto no estômago.  Tal como agora. A própria Lua parecia tão sinistra. No entanto, Bruno continuava a praguejar com entusiasmo. Entrar onde não era desejado constituía um incitamento para Bruno. Havia errado na escolha da profissão: deveria ter sido arrombador. -Tss... tss... tss - escutou Rio o que era um bom si nal vindo de Bruno, pois demonstrava que a caixa de ferramentas do Porsche servia para alguma coisa. De #49V0, um ranger e, desta vez, tão forte que Rio se ergueu. involuntariamente. Agitou a lanterna de bolso:

- Bruno? - chamou.

- Anda - chegou-lhe num sussurro. - Rio deslizou pelo muro e procurou a janela. Deixara, contudo, de haver janela. Nem sequer existia o caixilho. Tanto o caixilho como o vidro encontravam-se agora no chão. - A madeira estava roída de bichos, entendes? Por isso foi fácil retirar tudo. -E agora?

- Agora? Agora, vais entrar pela janela. E, em seguida, abres a porta pequena, não a que dá para a rua, mas a lateral. Só tem um trinco, entendeste? -Certo. - Bruno levantou-o do chão e Rio saiu-se melhor do que ele próprio esperara. Em primeiro lugar abriu a porta. Era de metal, mas estava apenas fechada com um simples trinco, tal como Bruno lhe indicara. Bruno entrou, pôs a cabeça para trás e fungou.

- Cheira a vagabundos... Dá-me luz. -Estás doído? Ao longo das paredes da primeira sala havia prateleiras. Estavam vazias - à excepção de uma câmara de ar e de uma caixa de sapatos. Rio calçava agora luvas, como Bruno lhe ordenara: bonitas e finas luvas de borracha. Levantou a tampa da caixa. No interior havia mexilhÕes. MexilhÕes apanhados em qualquer praia ou praias; num lugar cheio de água azul e com muito sol. De qualquer maneira, a uma grande distância. O compartimento contíguo era do mesmo tamanho que o das prateleiras: quatro por cinco metros. Uma luz fraca entrava no exterior, vinda da rua, através de uma janela bastante grande. O compartimento parecia mais pequeno do que realmente era, pois ao longo da parede da frente estendia-se uma espécie de fila de armários de aço. Era cinzento-escura e os puxadores das portas reluziam.   direita, mais ou menos à altura da cabeça, brilhava um sinal vermelho: um frigorífico, não uma câmara frigorifica. No interior havia uma quantidade de sacos de plástico, que Rio conhecia. Contêm sangue? - sussurrou Bruno. -Plasma - respondeu Rio, depois de um aceno negativo. - Se tiverem algo... Ou talvez um cadáver. -Que graça!

- A janela não tem cortina, Bruno? Vê bem. A luz do candeeiro de secretária chegava perfeitamente. -Não há cortina, mas um estore. -Tanto melhor... Bruno puxou-o para baixo e tentou impedir que se visse luz do lado de fora, para o que encostou às lâminas de plástico os assentos das três cadeiras que havia no local.

Rio deu-lhe uma pancada no ombro - havia-o invadido a febre da caça. Dirigiu-se lentamente ao armário e abriu a primeira porta... A cadeira encontrava-se no centro da caravana, junto à mesa com o candeeiro. Ele prendera-lhe os pulsos e tornozelos com uma corda às pernas da cadeira e tapara-lhe a boca e toda a parte inferior da cabeça com uma mordaça. Não podia, afinal, deixá-la gritar. Sempre que inspirava o ar, o tecido era sugado para dentro, assemelhando-se a uma pequena cratera. O que acabava por ser bastante cómico... Porque não inalaria o ar pelo nariz? Já faziam um par bastante idiota, ele com a meia de vidro enfiada pela cabeça e ela com a mordaça a tapar-lhe a cara! - Deviam tirar-nos uma fotografia, não achas? inquiriu, pondo-se a dançar à volta dela. A mulher esticou os pulsos para cima... - PÕe-te mansa, miúda. E que tens contra essa posição? Vou dizer-te uma coisa: uma vez conheci uma rapariga que opôs resistência. E ficou atada dos pés à cabeça. Com um monte de vergÕes. Pernas, braços, tudo... Os olhos femininos estavam muito abertos e eram de um verde tão transparente como o de um lago. Se Honolka conservasse o candeeiro virado na sua direcção como agora, detectavam-se pequenas manchas castanhas no verde. Nesse momento fechou os olhos com tanta força como se lhe fosse possível não só apagar os olhos dele como também a voz. Na testa surgiram rugas vincadas. As sobrancelhas formavam uma linha. - Não te agrada a história? A rapariga era uma masoquista, sabes? E tu, que tal? O corpo mantinha-se rígido, tão rígido como uma tábua. Mas não conseguia iludi-lo. Era um mero golpe de teatro. Uma atitude muito característica de todas as mulheres... Bem no fundo do coração não passam, afinal, de putas... Até a mãezinha o era, embora ele nunca tivesse querido admitir o facto... O rosto afogueou-se-lhe, as brasas reacenderam-se no seu mais intimo, a raiva voltou a ateá-las, a raiva que lhe percorreu as veias e o invadiu até à ponta dos dedos. O coração batia com força. O coração era o gerador e havia que controlar-lhe aquele ritmo diabólico. Até mesmo agora: trabalho é trabalho. - Queres um pouco de música como companhia? Talvez Lindenberg? O gravador estava no armário, junto à porta. Dirigiu-se ao lado oposto da caravana e olhou para fora através da janela: nada de nada. Não, ninguém olhava para estas bandas. A quem poderiam, afinal, interessar umas obras abandonadas com um monte de entulho na frente com a altura de uma casa? Voltou a puxar a cortina da janela e verificou novamente o trinco da porta. Tudo em ordem. Depois meteu uma cassete. E ouviu-se a voz de Udo - rouca, atabalhoada, abafada como sempre. Dirigiu-se ao frigorífico, pegou numa cerveja e, em seguida, pensou noutra coisa. A cerveja não era a escolha certa. Talvez fosse melhor um uísque... Levou a garrafa à boca, tossiu e umas gotas caíram-lhe na T-shirt. «Life is short», lia-se na T-shirt. «Let's pray». Rezemos, rezemos. Era precisamente isso!...« Wir kÕnnen miteinander schlafen», cantava Lindenberg. «Ich bin ein anderer aIs du denkst...» I Honolka encontrava-se agora, contudo, muito próximo dela. Com a mão esticada apalpava no bolso o formato da navalha. Navalhas eram uma coisa que não agradava à sua presa. Quando a agarrara no acesso do hotel, junto aos arbustos, ainda lhe dissera: O que quer de mim? Ponha-se imediatamente a mexer, idiota!» «Podemos dormir juntos, sou muito diferente do que pensas.»

Em seguida, Honolka roçara-lhe a navalha na pele e

tudo correra sobre rodas: nem um gesto ou um grito. Seguira, arrastada mas corajosamente, ao lado dele. «Und deshalb sag ich dir ...»I

O ruído grasnado da voz de Udo repercutiu-se-lhe no cérebro. Desligou o aparelho e a música desvaneceu-se. Tirou a navalha do bolso, transpôs os dois passos que os separavam, ajoelhou-se diante da cadeira e estendeu o braço direito. O que segurava na mão era uma navalha de ponta e mola italiana. Comprara-a, há dois anos, no mercado, em Santa Eulália, e já nessa altura o impressionara não só a forma de estilete da lâmina como o facto de ser tão afiada. Ela esticou as pernas. A cadeira levantou-se do solo.

- Isso de nada te serve, pardalinho... Apenas podes cair para trás. Lê o que está escrito na minha T-shirt. Muito bem. Di-lo... Claro que podes responder. Só precisas de acenar com a cabeça. Mas ela não lhe obedeceu. Conservava, no entanto, os olhos novamente muito abertos, olhos semelhantes a dois holofotes, iguais a raios laser verdes, dois feixes de medo. Com as calças de ganga apertadas usava uma simples sweat-shirt vermelha - não, não era realmente mesmo vermelha, mas uma espécie de tom framboesa. Os colarinhos da blusa, que saíam por baixo do decote da camisola, eram brancos. «Igual a framboesa com na- tas», pensou sonhador e disse: - Pray significa rezar. Mas tu compreendes inglês. És mesmo uma dessas tias que vivem com um gajo de massa... O que achas que penso dos condutores de Porsches? E não só daqueles que se passeiam num Porsche preto... E por esse motivo te digo...»

Conservava a navalha bem aberta. Passou-a, muito ao de leve, acima do joelho, por cima da ganga das calças. Da esquerda para a direita. A mulher soltou uma exclamação abafada. - Não te mexas sequer. Se achas que te safas a portares-te como um boneco desengonçado, somente vais acabar por te cortar. E, nesse caso, a culpa será toda tua. Vou apenas mostrar-te uma coisa - replicou com uma risada. - Uma pequena demonstração do mestre Jakob, minhas senhoras e senhores! No caso de conseguirem trazer-me uma navalha tão afiada como esta, receberão três grátis. E mais uma moeda de cinquenta pfennig. Por detrás da mordaça castanha, saíam ruídos abafados... No entanto, ele continuou o seu percurso, traçou uma linha... O tecido das calças rasgou-se e, por baixo, havia pele, pele branca - e na pele branca minúsculas gotas vermelhas. «Nada de espreitar», ordenou HonoIka a si próprio. «Não é bom...» Os seus ténis tocaram em celofane, que rangeu. Um pacote de batatas fritas. Incomodava-o. Outra coisa a atirar para trás das costas...

Inclinou-se mais para a frente na cadeira. -Faz qualquer sugestão. O que precisamos é de um programa a sério. Disto, por exemplo... Levantou-lhe a sweat-shirt cor de framboesa. Vera voltou a endireitar-se na cadeira. Tratava-se de um movimento inútil e débil. Honolka continuou a puxar, puxou com muita força, tentou tirar-lhe a camisola pela cabeça, mas debalde. Enfiou a mão pela fila de botÕes da camisa e puxou-a com tanta força que os botÕes saltaram. E ressaltou então muita pele branca, pele branca e macia... Notavam-se os globos do seio. Brancos e macios... E o calor - Vera estremeceu, contraiu-se entre as pernas dele e ele teve a sensação de assistir a uma rápida sequência de imagens e pensamentos que desfilavam na sua frente. Havia toda uma mistura de imagens antigas, todas estas recordaçÕes... E a voz do velho: «Quero um trabalho organizado, Honolka. Dá o teu melhor.» Okay. Manter a calma, muita calma. Virou-se, foi até ao frigorífico, retirou a garrafa, bebeu mais um pequeno gole e observou a navalha. Ao regressar até junto da cadeira, dirigiu-se-lhe, sem a fitar: - O teu tipo também deve ter um bocado de gozo, não? Queremos dar-lhe uma pequena alegria, não? Os dois, quem mais? Já ouviste falar do zen? Na vida é tudo uma questão de filosofia, não achas? Levantou a cabeça, a fim de avaliar o rego entre os seios, o lugar onde alojaria a navalha. Deixou cair bruscamente a navalha. Que merda era aquela? O que se passava agora com a mulher? Ela não ia... Com dois passos lestos, Honolka ficou por detrás da cadeira e apalpou-lhe a carótida. - Então, reage... Não podes ir-te abaixo aqui desta maneira... Sim. Aqui. O pulso estava muito fraco. Honolka voltou mais uma vez até junto do frigorífico. Tencionava ir buscar água fria, pois bastaria um cubo de gelo pela cabeça para a fazer voltar a si. Esvaziou as cuvettes, mas depois voltou a guardar os cubos de gelo. E se não resultasse? A quantidade que tirara chegava perfeitamente. «Prega-lhe um susto», ordenara o velho. «Mete-lhe medo e nada mais.» -   Aquele falava bem. Passava o tempo sentado na sua ilha ou navegava no iate pela região e fazia nascer as grandes ideias. No entanto, medo era o que ela tinha, agora. Verdadeiro medo. Não havia dúvida.

Alargou os nós que amarravam o corpo de Vera à cadeira e pegou-lhe por baixo dos braços. Por sua vontade, tê-la-ia arrastado muito simplesmente até à porta atirando-a, em seguida, para fora da caravana, mas nesse caso ela provavelmente recuperaria os sentidos, aquela maldita puta, e pôr-se-ia a gritar. E o que menos precisava, agora, era de um alerta. Levantou-a, por conseguinte, à força, desaferrolhou a porta, desceu do carro para o ar livre com o corpo desfalecido nos braços, percorrreu uns dez metros e deitou Vera sob um arbusto. Olhou à volta. Ninguém. Lá em cima, junto à entrada profusamente iluminada do hotel, reinava a agitação. Havia carros que chegavam e outros que arrancavam. Os elegantes da região preparavam-se para uma bela noite. Regressou à caravana. Esgueirou-se para trás do volante e ligou o motor. Onze horas. Ainda havia algo para fazer nessa noite. Nenhuma maldita comédia, mas um trabalho organizado e limpo. Rio não sabia o que o esperava quando abriu o primeiro dos três armários. O vazio. As malditas grades cromadas das quatro divisórias pareciam dirigir-lhe um esgar diabólico. Atrás dele, Bruno deixava sair o ar com força. Rio abriu, em seguida, a segunda porta. A mesma visão: vazio. -No entanto, está ligado, raios! - exclamou Rio, irritado, escancarando a porta. Se, de facto, não havia nada lá dentro, porque é que este idiota chapado deixava o frigorífico... Contudo, havia algo no interior. Desta vez, tinham sido bem sucedidos. O que se lhes deparava era talvez a parte de baixo de um caixote de cartão. Devia ter servido, originariamente, para o envio de pacotes de leite. O caixote não tinha mais do que dez centímetros de altura. E, lá dentro, não havia embalagens de leite, mas sacos de plástico - arrumados em fila, Deviam ser duas dúzias, talvez mais. O conteúdo congelado e de um cinzento opaco arredondava os cantos direitos do caixote. «O sangue deteriora-se facilmente.» Rio voltou a recordar as explicaçÕes de Hochstett. «As células são matéria viva, compreende? Não é possível mantê-las vivas mais do que duas a quatro semanas. No entanto, o plasma, congelado e seco, é quase infinitamente durável.» - Dá-me a lanterna, Bruno. As pontas dos dedos de Rio estavam entorpecidas quando agarrou no saco da frente e o levou até à mesinha rústica do canto na qual se encontrava o candeeiro de escritório e que talvez tivesse servido de secretária. - Talvez seja uma velharia, homem! - exclamou Bruno num tom de voz quase respeitoso. - Datam de mil novecentos e oitenta e nove. - Sim. 1989. O ano em que Reissner se havia contaminado. Onde estava o número? Não constava no saco, mas na etiqueta, junto ao endereço: «Bio-Med: 13 986». Pouca sorte! Maldita pouca sorte! Um milhar mais à frente do que os sacos com plasma que Novotny confiscara na Clínica Max-Ludwig. Mesmo assim: levariam alguns sacos com eles para que fossem examinados. Um só vírus com vida, algo inacreditavelmente minúsculo chegava na perfeição. Aumentaria e cada transfusão corresponderia a uma bomba mortífera. - Bom - resmungou Bruno. - E agora, estás a armar-te em esperto?

- Não. Talvez ainda o faça. - Vamos dar mais uma olhadela por aqui, Bruno - decidiu, fechando a porta. - Depois levamos os sacos. - O caixote todo? -Quatro ou cinco sacos.

- Mas estão congelados.

- Aguentem-se até regressarmos. No hotel, veremos o que há a fazer. - Dirigiu-se à mesa que estava no canto e abriu a gaveta, tão vazia como os dois primeiros armários! Nem sequer um agrafador tinha lá dentro. Tomava-se visível que a gaveta fora despejada. Este tal Lars Boder da Bio-Med devia ter tido bons motivos para o fazer. E que se mantinham válidos para o resto da firma. - Anda. Vamos dar uma vista de olhos na garagem. Talvez haja lá uma porta para a espelunca dele. Bruno esboçou um aceno de concordância. Não se haviam dado a muitos esforços para transformar uma casa rústica com jardim na firma Bio-Med. E também não se despendera, na verdade, muito dinheiro. As duas divisÕes - aquela cuja principal atracção era a câmara frigorífica e a outra que continha as prateleiras vazias - haviam sido caladas pelo menos do lado de dentro. Do outro lado do muro, avistava-se somente o cinzento triste das pedras que separavam a parte utilizada da garagem. E que mais? Manchas de óleo no cimento. Aqui mal cabia um carro. E nem sequer podia ser grande. Sim, no canto, os paus coloridos. À primeira vista, assemelhava-se a um pano de vela enrolado. Pertenciam a uma prancha de surf. Todavia, nem sombra da prancha se avistava. Rio pensou na caixa com os mexilhÕes, que se encontrava abandonada numa das prateleiras, e imaginou esse tal Lars Boder empoleirado nas ondas. - Estás a pensar entrar lá dentro? - Encontravam-se diante de uma porta estreita com fechadura de ligueta e ranhura, tão simples que Bruno nem sequer achou necessário forçá-la. Limitou-se a fazer tilintar o molhe de chaves em que tinha penduradas as ferramentas secretas: a porta abriu-se. A atmosfera estava muito pesada. Os dois homens entraram nas pontas dos pés. No lava-louças da cozinha havia pratos com restos de comida seca. E, junto deles, uma chávena. O café há muito que secara no interior. No primeiro andar havia uma cama luxuosa em comparação com o resto do mobiliário, bastante pobre. Também aqui ninguém se dera ao trabalho de arrumar ou fazer a cama. O feixe claro da lanterna de Rio incidiu no quadro que se encontrava por cima da canja: mostrava um indivíduo gordo de cabelos pretos e bigode que abraçava uma jovem com o braço esquerdo à volta da cintura. Como pano de fundo: playa. Mas não espanhola... E no canto - uma prancha de surf branca. Bruno ficou entusiasmado. Pelo menos, tinham conseguido algo: Lars Boder começava a transformar-se numa pessoa de carne e osso. Na sala, Rio passou pelo televisor as pontas dos dedos da mão esquerda protegida pela fina borracha branca das luvas e observou o resultado: uma espessa camada de pó. Há semanas que ninguém parecia preocupado com a limpeza. - Anda. Despacha-te - pressionou Bruno. Rio esboçou um aceno de concordância, dirigiu-se uma vez mais à cozinha e, debaixo do lava-louças, no meio dos objectos de limpeza, foi descobrir sacos de plástico para o lixo. Em seguida, regressaram ao depósito do plasma. Rio agarrou em quatro dos sacos, meteu-os nos de plástico e resmungou entre dentes: -E, agora, é melhor pormo~nos a milhas...

Lá fora, reinava a calma. Do vale soprava uma ligeira brisa. Rio sentia-se gelado, mas não por causa do frio trazido pelo vento. Bruno atirou os sacos para o banco de trás.

- E o que pretendes fazer com isto? Não estaremos de volta ao hotel em menos de uma hora. E nessa altura já será meia-noite. Queres ir falar com o cozinheiro e convencê-lo a meter estas coisas no frigorífico ou quê? - Exacto - anuiu Rio. - Acho que essa será tarefa tua.

Consultou o relógio com um olhar de relance e desceu com o Porsche pela vertente, passando junto à casa de Boder. A área de terreno vizinha encontrava-se cercado por um muro branco. Por detrás, avistava-se, imersa na sombra, a linha horizontal de um bungaló. Uma das divisÕes da parte da frente ainda estava iluminada e a claridade provocava uma espécie de reflexo dourado no tronco de uma bétula. Rio acendeu a lanterna e desceu do automóvel. -Fica aqui, Bruno - pediu. O repórter fotográfico limitou-se a encolher os ombros. No lado direito da pedra junto à porta havia um painel de aberturas de caixas do correio, campainhas e intercomunicadores. Rio carregou três vezes no botão - primeiro hesitante, depois com um toque resoluto e mais demorado. O intercomunicador produziu um clique. - Sim?

- Chamo-me Martin. Rio Martin. Peço desculpa por incomodar a esta hora tardia... - Emprestou à voz o tom grave e inspirador de confiança que se coadunava à situação. Era a voz de uma pessoa educada e apanhada de surpresa: - Acabo de chegar de Munique, sabe, estive em Francoforte, e o desvio para estes lados é bastante grande. Procuro, na verdade, Herr Boder.. - O que tenho a ver com ele?

- Nada, obviamente. Só pretendia saber.. Bom, o caso é este... Herr Boder é um surfista como eu, compreende? Desportista radical. - «Será que se chamaria assim, raios?» De qualquer maneira, o homem pareceu entender. - Estivemos juntos há um ano, em Vama, na Rornénia. Conhecemo-nos lá por acaso. Mas tive infelizmente nessa altura uma avaria na embraiagem do meu carro e a estrada na Rornénia foi muito desagradável. Por conseguinte, Herr Boder ofereceu-se para trazer o meu equipamento, a prancha de surf e a vela. -Sim, e então?

- Então, é isto... - replicou Rio, que já tinha dores nos músculos do pescoço por ter de falar tão dobrado junto ao maldito intercomunicador. - Vim buscar as minhas coisas, pois um equipamento do género é, de facto, muito caro. Já telefonei várias vezes a Herr Boder, mas sem êxito e por esse motivo pensei que se passasse por estes lados... -Um momento... Não decorreu muito tempo, nem sequer vinte segundos, e a porta, lá em cima, abriu-se. Rio cerrou os olhos com força, pois nesse mesmo instante acenderam-se, de cada lado da casa, holofotes de segurança, cuja luz o cegou. E, como se isso não bastasse, o homem que avançou ao seu encontro pelo acesso trazia uma lanterna de bolso na mão direita. Tratava-se de um indivíduo alto, de ombros largos e bastante forte. Rio apenas conseguia divisar-lhe a silhueta. Não tinha cabelo. No meio de toda esta claridade reluzia uma careca. Em seguida, deteve-se e, pelo menos, apagou a lanterna de bolso. -Herr Boder roubou-lhe, portanto, essas coisas. E o que tenho eu a ver.. - Desculpe! Não posso afirmar que Herr Boder me tenha roubado a prancha de surf. Estou convencido de que poderia mesmo levá-la se ele estivesse aqui. E por isso achei por bem perguntar-lhe, como vizinho, se sabe quando ele vai regressar. - Veio dar à morada errada - replicou o homem, que tinha uma voz profunda, quase suave, mas que endureceu. - Boder foi-se embora, já há muito tempo. E vou dizer-lhe mais uma coisa: há muito que deve ter dado sumiço à sua prancha de su@f Uma vez, emprestei-lhe o meu cortador de relva. Vi-me obrigado a ir falar-lhe por três vezes, antes que mo devolvesse. É uma pessoa desse género. - Ali, sim? - exclamou Rio, esforçando-se por imprimir um tom preocupado à voz. - Disse-me que se foi embora há muito tempo. Quanto?

- Não sei responder-lhe com precisão. Só dei pela falta dele quando deixei de ouvir barulho lá em casa. Nessa altura, perguntei ao carteiro. Também ele não sabia de nada. Não existia qualquer outro endereço. E é assim que se quer dirigir uma firma! -Não vi qualquer placa de uma firma!

- Já a tinha arrancado antes. Foi cerca de... um mês antes de se haver completamente evaporado. - Uhm! - exclamou Rio. - Nesse caso, peço-lhe mais uma vez desculpa pelo incómodo. Boa noite. O gordo hesitou em responder. Talvez ainda tivesse algo mais a acrescentar. No entanto, Rio não sentia vontade de ficar ali a ouvir mais conversa de comadre. Dirigiu-se ao Porsche. Bruno abriu-lhe a porta. «Evaporado», pensou Rio. «Mas como? E para onde?» - A minha mulher.. o quê? - explodiu Rio, inclinando-se por cima do balcão do Parkhotel e fitando, incrédulo, o rosto bem barbeado do jovem que se encontrava por detrás do mesmo. Não se tratava do simpático Herr Weigert, mas de um jovem louro com feiçÕes infantis e que fazia o turno da noite. As pessoas percorriam de um lado para o outro o grande e espaçoso átrio discretamente Iluminado. Todas se apresentavam com traje de noite: «Banquete anual da Liga de Cavalaria de Bemhagen», lera Rio numa placa indicativa colocada na entrada: «Salão de festas». Toda aquela gente de smoking e vestido de noite se assemelhava a decalcomanias aos olhos de Rio. - Desembuche, homem... - A sua mulher.. quero dizer, a excelentíssima senhora foi lamentavelmente atacada. «Lamentavelmente atacada.» Este tipo devia estar doido... só podia! Bruno abriu caminho e apoiou os cotovelos no tampo de madeira. - Onde está Frau. Martin, neste momento? - perguntou.

- Aqui, no hotel. No quarto. - Está ferida?

- Felizmente, não. Apenas entrei ao serviço às vinte e uma horas, mas, tanto quanto percebi, Frau Martin foi ameaçada por um homem com uma navalha. Encontraram-na em estado de choque lá em baixo, no começo da rampa. Rio precipitou-se a correr e no átrio chocou, de imediato, com um dos pares que se dirigia precisamente ao salão de festas. O embate foi tão violento que a mulher, ostentando um vestido de noite azul, perdeu o equilíbrio e teria caído se não fosse amparada pelo companheiro. - Que grosseria inacreditável! - rugiu este últimos nas costas de Rio, mas ele já se encontrava no elevador. Tamborilava fortemente com as pontas dos dedos no revestimento metálico da parede da cabina. Por fim... De uma porta ao fundo do corredor saiu um homem corpulento que se dirigiu com passo vagaroso ao seu encontro. - Quem é o senhor? - inquiriu Rio, bloqueando-lhe o caminho. O indivíduo tinha um rosto liso e saudável e avaliou Rio por detrás dos óculos com aros de tartaruga. - E o senhor...

- Chamo-me Martin. E acaba de sair do meu quarto. O que se passa, afinal, raios? - Ah, Herr Martin! Ainda bem que se encontra aqui... Sou médico. Não há motivo para preocupação, Herr Martin. A sua mulher já está recomposta. Acabei de dar-lhe um sedativo. Rio retomou a corrida, abriu a porta de rompante, atravessou a passagem que levava à casa de banho e escancarou a segunda porta. A cama de casal situava-se no canto direito. À esquerda, junto da janela, havia uma série de cadeiras e em frente da cama uma secretária. Entre a secretária e os pés da cama avistou dois indivíduos.

Ambos rondavam a casa dos quarenta, e ambos vestiam casacos de cabedal e ostentavam a expressão levemente preocupada e característica dos agentes de polícia. Um terceiro homem estava sentado a um canto. Tinha cabelo grisalho. E cinzento era também o seu fato de corte impecável e riscas. Levantou-se quando Rio entrou. Vera estava deitada na cama. Conservava-se muito quieta. Estava tapada com um lençol e tinha as mãos por cima do mesmo. Mantinha-as cruzadas como se a tivessem posto num caixão. - Vera! Não lhe deu resposta. Rio verificou que um dos dois homens segurava umas calças de ganga nas mãos. Nesse momento estava a pô-las com todo o cuidado em cima da secretária e virou-se para Rio, mas o homem com o fato de riscas cinzento foi o primeiro a falar. - Desculpe. É Herr Martin, não é verdade? Rio acocorou-se junto à cama de Vera e pegou-lhe na mão. Ela tinha os dedos gelados. O que aconteceu, Vera? A mulher virou o rosto na sua direcção. Tinha olheiras azuladas e os cantos da boca retraíram-se, mas esboçou um sorriso. - Oh, Rio! Onde estavas?

- Querida...

- Sinto-me tão cansada - murmurou Vera e as pálpebras descaíram sobre os olhos. Sussurrou algo, mas ele não percebeu. Tomou, no entanto, consciência do estremecimento que a percorreu da cabeça aos pés. Pôs-se de pé. - Chamo-me Koenig, Herr Martin. Ralf Koenig. Sou o director do hotel. Garanto-lhe que lamentamos profundamente este incidente. Fizemos todas as diligências para sermos úteis à sua mulher. Estes dois senhores são da Polícia.

Os dois senhores esboçaram um aceno de concordância. O mais novo tinha a tez bronzeada, como se acabasse de regressar de férias nas Caraíbas. O outro apresentava um ar pálido e doentio. -Wendland - apresentou-se.

- Importa-se de me explicar afinal, Herr Wendiand...

- Com todo o gosto. A sua mulher foi encontrada em estado de choque diante de um dos acessos ao hotel, a cerca de duzentos metros da rampa. Estava junto a um dos marcos. O nosso médico conseguiu tranquilizá-la, de forma a que pudesse fazer uma declaração. - E? Peço-lhe que continue, por amor de Deus!

O agente de polícia Wendland - inspector, comissário ou o que quer que fosse - esboçou um sorriso pensativo: - Segundo tudo o que se nos tomou possível apurar, a sua mulher foi dar um passeio para apanhar um pouco de ar. A curta distância daqui, no cruzamento, o sítio é muito pouco frequentado, apareceu-lhe um homem pela frente, que a ameaçou com uma navalha e a obrigou a acompanhá-lo. -A acompanhá-lo? Até onde?

- Até uma caravana. Estava estacionada numas obras. Por detrás de um monte de entulho. Rio voltou a olhar na direcção da cama. Não tinha, aliás, deixado de o fazer um só momento. Vera parecia dormir. Tentou imaginar tudo o que isto significava. Ameaçada com uma navalha?... - Obrigada a acompanhá-lo?... - Sentiu um nó na garganta. - Peço-lhe que continue. - De bom grado, Herr Martin. De qualquer maneira, o caso é um tanto misterioso. O homem parece, visivelmente, um sádico. Atou a sua mulher a uma cadeira e amordaçou-a. Quanto às calças... tudo indica que as rasgou com uma lâmina muito afiada acima dos joelhos.

Deve tê-lo feito quando ela as tinha vestidas, pois o médico detectou duas ligeiras marcas... Cortes? - ... arranhÕes quase imperceptíveis acima do joelho. -  Oh, não!

- Herr Martin! Imagino como tudo isto o emociona, mas... Deus seja louvado!... fique bem claro que ela não sofreu nada. - Nada... E todo o medo que sentiu?

- Bom... Nada, excepto o choque psíquico.

- Ela descreveu esse porco?

- O problema é esse: é-lhe impossível descrevê-lo. Ele tinha uma meia de vidro a servir-lhe de máscara. Um metro e setenta e cinco de altura, por conseguinte não muito alto, magro... Agora, Vera pusera a cabeça de lado. Rio observou como o peito subia e baixava com a respiração. Parecia dormir. Dormir profundamente. A porta abriu-se. Bruno entrou.

- Este é o meu colaborador, Herr Arend - indicou Rio, apontando na sua direcção. - Estes senhores são da Polícia. Um porco qualquer estava à espreita de Vera e atacou-a. Bruno limitou-se a esboçar um aceno de cabeça.

- Como é que ela saiu da caravana?

- É um ponto que... não sabemos. Também ela não sabe. Apenas sabe que desmaiou. O homem limitou-se a deitá-la no chão e escapuliu-se. Talvez seja um psicopata? Ou a situação tomou-se-lhe de qualquer maneira incómoda. A sua mulher teve muita sorte, Herr Martin. Temos as nossas experiências com indivíduos deste género. Sempre que começam a servir-se da navalha, raras vezes deixam de ir até ao final. A imaginação de Rio pôs-se a fantasiar. Criou imagens tão inacreditáveis, tão monstruosas quanto o seu consciente foi capaz de engendrá-las. Pensou: «Escreves sobre estas coisas, lês a seu respeito nos jornais e nos livros, contam-tas, mas ao caírem-te em cima nada percebes.» - E dado o caso não se enquadrar no perfil habitual deste tipo de meliante, queria fazer-lhe mais uma pergunta, Herr Martin. - Sim?

- Chegou de Munique, não é verdade? Tinha algum assunto profissional a tratar ali? - Estou a escrever um artigo. Sou repórter do News Kurier.

- Ali, sim? Que interessante. E... será possível que tenha qualquer inimigo aqui em Bemhagen? Era esta exactamente a pergunta que Rio fizera a si próprio ao saber do que se passara com Vera. A resposta era, contudo, demasiado rocambolesca. - Não - respondeu. - Não tenho qualquer inimigo por estes lados. - E a sua mulher?

- Ela também não. Como assim? - Mas, após uma breve pausa de reflexão, acrescentou: - Aqui não tenho inimigos pessoais, sabe? Mas... as pessoas da imprensa têm sempre inimigos. Faz parte da natureza do seu trabalho... Interrompeu-se e voltou a olhar na direcção da cama, onde Vera estava deitada. As feiçÕes pareciam totalmente descontraídas e tinha os olhos fechados. Detectou, no entanto, a mancha azulada que se desenhava por debaixo do maxilar ao longo do pescoço. Cerrou os punhos e soube que, enquanto vivesse, não voltaria a esquecer esta noite. E sabia agora mais uma coisa: para ele, ainda não havia chegado ao fim... O seu uísque.

O barman serviu Rio e voltou a prestar atenção ao seu jornal e ao gira-discos. No bar discretamente iluminado do hotel, estavam sentados três parezinhos e ele. Rio não era, todavia, um bom cliente. Só que, na realidade, precisava do uísque. Tinha de pôr termo ao nervosismo e igualmente ao cansaço. Há muito que deixara de sentir fome. E o estômago desejava outra coisa que não uísque. Mas o que mais poderia ser? Os sacos da Bio-Med encontravam-se em qualquer geleira do hotel. Lá em cima, no quarto 412, Bruno instalara-se confortavelmente, enquanto ele se limitara a colocar as almofadas do divã na alcatifa, depois do que se esgueirara furtivamente. No caso de Vera acordar durante a noite, tinha pelo menos Bruno. No entanto, ele... Como é que uma pessoa consegue manter-se normal, se os loucos andam à solta? O que ficaria a fazer na cama? Seria de qualquer maneira incapaz de dormir. Devia pensar. Devia agir. E foi por esse mesmo motivo que esvaziou o copo. Sentiu-se melhor. Rio sabia o número de cor. Já o havia recitado em voz alta frequentemente durante a viagem de regresso e nada o impedia, por conseguinte, de telefonar.

E agora era meia-noite. Passava mesmo bastante da meia-noite. Era meia-noite e quarenta e cinco minutos... Muitíssimo tarde para telefonar a alguém. -  Pode passar-me o telefone? E se quisesse ter a bondade de baixar um pouco a música... Não demoro muito.

- Lá em cima no átrio há uma cabina, senhor. Talvez houvesse uma cabina lá em cima no átrio, só que não lhe apetecia mexer-se dali e subir ao andar superior. - Traga-me outro uísque, por favor. Na verdade, o barman baixou o som do aparelho e trouxe-lhe igualmente mais um uísque. Rio marcou o número. Não obteve resposta. Apenas o sinal de chamada, como à tarde... Sinal de chamada sem que ninguém atendesse. Pousou o auscultador. Voltou a tentar e Obteve resultado idêntico. Só bebeu o segundo uísque até meio. Assinou a factura e, ao procurar trocos no bolso de fora do casaco de cabedal, as pontas dos dedos tocaram num segundo pedaço de papel. Certo; também pertencia ao mesmo assunto. Tratava-se da morada de Dagmar. O simpático Herr Weigert encarregara-se de descobri-la a seu pedido. Pousou-o junto do número. «Oprechtstrasse 27», estava escrito.

Subiu as escadas. O jovem louro da recepção ergueu a mão num daqueles gestos afáveis que se observam nos enterros: - Boa noite, Herr Martin. Mas ainda não chegara a altura. -Diga-me uma coisa. Conhece a Oprechstrasse? - Sim, Herr Martin. Não fica longe do hotel. Se depois da rampa virar à esquerda... aqui- - Desdobrou o roteiro e indicou um ponto com o bico do lápis: - Estamos aqui. E esta é a Oprechstrasse. A uns cinco quilómetros, segundo os meus cálculos. A distância era certamente inferior. Rio nem precisou de cinco minutos para passar junto a umas obras com um grande monte de entulho: o lugar para onde aquele porco arrastara Vera para a importunar.. Aqui estava: «Oprechtstrasse».   direita, estendia-se campo aberto. Ao longe avistavam-se os faróis dos automóveis na auto-estrada.   esquerda, casas. No acesso que levava à última destas casas, Rio leu: RE1CHENBACH. A larga porta de entrada no pátio apresentava-se entreaberta. Desceu do automóvel e empurrou-a. A casa estava completamente às escuras. Sob o luar parecia de um negro de azeviche. Havia algo que lhe desagradava nestas paragens, mas havia também algo que o incitava, uma estranha, amarga e gelada cólera. Pela segunda vez nessa noite, agarrou na pequena lanterna de bolso - para se sentir como um ladrão pela segunda vez. Não precisou de a usar. Estava tão claro que se notavam todos os contornos. Os contornos de uma furgoneta. E montanhas de vasos sem flores. Um leve ruído... Sobressaltou-se. O vento brincava com uma lata abandonada. Prosseguia agora nas pontas dos pés, devagar e convencido de que se passaria algo. Havia tantas sombras. Cada uma delas parecia ameaçadora. Susteve a respiração: «O que é isto?» Agarrava com força na lanterna. O feixe de luz não era maior do que uma moeda de cinco marcos. E esta parca luz permitiu-lhe divisar algo brilhante na sombra da estufa: seria lacre vermelho? Não, não era lacre vermelho. Nem era tinta. Era sangue. Rio Martin não era um homem medroso e, melhor do que isso, aprendera a dominar o medo. Conseguia respirar calmamente. Até mesmo agora... Apagou a lanterna e recuou um passo, escondeu-se na sombra e tentou esquematizar o problema. Fugir dali? Hoje à noite já se tinham passado bastantes coisas. E em que lhe dizia respeito o que aqui estava a acontecer? Numa porção de coisas. Era assim e tinha consciência disso. Por conseguinte, faria igualmente esta travessia. Nada se mexia. A lata também deixara de produzir ruído. Nada se ouvia, exceptuando o vento.

Saiu do esconderijo e percorreu os quatro metros que o separavam da mancha de sangue. A lanterna deu-lhe uma noção do tamanho. Havia um fio. Terminava junto do que deveria ter sido o pescoço de um cão, um cão bastante grande e preto. Mas já não havia pescoço.

A ferida assemelhava-se a um gigantesco e escuro buraco aberto. Rio passou, agora, a sentir dificuldade em respirar. E tinha o estômago às voltas. Virou-se e sentiu uma repentina saudade de Bruno... Porque é que se aventurara sozinho nesta incursão? Que lugar de horrores era este, afinal? Bernhagen - a metrópole do sangue e dos sádicos! Bernhagen parecia não se poupar a esforços para merecer esta designação. Na rua havia pelo menos um candeeiro. Por esse motivo, o brilho do Porsche emprestou-lhe um reacender de confiança. O que mais o acalmava, contudo, era saber que lhe bastava abrir a porta para ter um telefone à disposição. Mas fez exactamente o contrário. Também não estava, realmente, normal nessa noite. Talvez tivesse chegado a uma decisão: agora, queria saber... Deu meia volta, tropeçou, correu finalmente na direcção da casa e viu-se junto à porta. Aqui havia apenas uma campainha, apenas um nome: Reichenbach. O ruído assemelhou-se ao de uma tempestade. A campaínha soou estrondosamente no interior da casa, mas nada se mexeu. Nem uma luz se acendeu. Nenhuns passos se aproximaram. O bater do seu coração parecia agora o de uma bigorna, as mãos começaram a tremer-lhe e, em seguida, pousou-as no ferrolho da porta, um ferrolho bastante antigo, e empurrou. A porta abriu-se. Desta vez teve dificuldade em segurar na lanterna. Entrou e interrogou-se, surpreendido, sobre onde teria ido buscar a coragem necessária. Mas talvez não se tratasse de coragem, mas algo relacionado com o desespero. E, sem reflectir mais um momento que fosse, acendeu a luz. Assemelhava-se a ter transposto uma fronteira invisível. Talvez por detrás do armário surgisse qualquer mão munida de uma navalha, talvez o brilho da lâmina surgisse da porta aberta no meio da divisão da frente...

Passou por essa porta aberta. Voltou a descobrir logo  o interruptor e permitiu que a luz do tecto iluminasse  o recinto... O vómito acometeu-o tão violentamente que julgou ter de lhe ceder. Tinha-se proposto fazer demasiado. Agora sabia-o. Pensou em fugir para bem longe daquela casa. Mas um qualquer resto de profissionalismo impediu-o de o fazer. Ou talvez o facto se tivesse devido meramente à fraqueza que se lhe apoderou das pernas. Rio Martin ajoelhou-se, por conseguinte, na alcatifa. E acocorou-se a uns escassos cinquenta centímetros do corpo inerte de mulher que o candeeiro iluminava. Com as pernas dobradas, deitada de lado e tapada apenas com um roupão turco amarelo e curto, parecia indefesa e sem vida. O cabelo claro e cortado à altura dos ombros caía sobre o rosto feminino. Mantinha uma das mãos cerradas e a outra jazia inerte junto a uma das coxas nuas e brancas. A mão de Rio procurou-lhe as têmporas e, em seguida, o pulso. A pele ainda estava quente. Mas não se sentia o mínimo latejar do coração.

Ignorava quanto tempo se mantivera ali e, em seguida, voltou a raciocinar e a recobrar um pouco de força. Pôs-se de pé e olhou em volta. Não avistou um telefone. Mas também não iria telefonar daqui. Fechou a porta sem fazer ruído. E depois a outra junto da entrada. Quando saiu para a noite, nem sequer medo sentia já. Invadia-o um enorme e frio vazio que se ia preenchendo devagar com uma raiva de morte. Dirigiu-se ao Porsche e ainda,olhou mais uma vez para trás. A casa apresentava-se mergulhada no escuro e abandonada como dantes. Dois mortos. Um mastim e uma mulher. Uma mulher que ele não conhecia e que, no entanto, tentara desesperadamente contactá-lo. Nem sequer sabia de que maneira o assassino cometera o crime. O assassino? O mesmo que importunara Vera? Tremiam-lhe as mãos quando escancarou a porta do automóvel. Na viagem de regresso a Bernhagen tinham parado num posto de gasolina. Bruno descera e voltara com uma sanduíche e uma garrafa de conhaque. A sanduíche para Rio e o conhaque para ele. No entanto, ainda restava metade da garrafa de bebida. Rio tirou a garrafa do interior da cavidade da porta e levou-a à boca. O álcool deteve as tremuras.

Agarrou no telemóvel do carro e marcou o número de emergência. Respondeu uma voz de mulher, que fez a ligação à Polícia. - Mairirad, piquete.

- É possível falar com o comissário WendIand, Herr Mainrad?

-Já foi para casa.

- E o outro senhor, bastante bronzeado, com um bigode louro? -Um momento. -Mühlen! - Era ele, o indivíduo jovem e queimado do sol com o bigode aparado. - Fala Martin, Herr MühIen. Conhecemo-nos há uma hora no Parkhotel. - Martin? Ali, sim, claro! A sua mulher já acordou, Herr Martin? Tem novos dados? - A minha mulher está a dormir. Quer dizer, espero que esteja a dormir. Mas tenho apesar disso novos dados. - A sério? E quais?

- Estou a telefonar do carro. Encontro-me na Opreclitstrasse. Diante da casa com o número vinte e sete. - Sim?

- Foi cometido um crime nesta casa. E decerto não há muito tempo.

- O quê? O que está a dizer? -Um crime, Herr MühIen... Se gosta de animais, pode mesmo falar de um duplo crime. O mastim que devia estar de guarda à casa também está, na verdade, morto. Com as goelas cortadas. - O mastim? - murmurou o jovem polícia. - E a vítima?

- Uma mulher nova. Está deitada na carpete da sala. Ignoro a forma como morreu. Chama-se Dagmar Reichenbach. -Um momento... Dagmar Reichenbach... - Foi repetindo devagar, como um aluno de escola, enquanto escrevia o nome e a morada. - Posso perguntar-lhe como é que... - Como vim parar aqui e, sobretudo, o que aconteceu hoje à noite... Está relacionado com o meu trabalho jornalístico, Herr Mühlen. Explico-lhe tudo amanhã. Por hoje, já tenho a minha conta. Agora, só quero uma coisa: regressar ao hotel, regressar até junto da minha mulher. - Mas...

- Não há «mas». Apareça amanhã cedo no Parkhotel. Estarei à sua disposição. Digamos a partir das nove. Nem sequer esperou por resposta. Desligou. Não havia mentido. Apenas desejava realmente uma coisa: voltar para junto de Vera. E queria também algo mais: reflectir calmamente sobre se deveria referir à Polícia a suspeita - não, a teoria - que já se começara a formar no momento em que a sua lanterna de bolso iluminou uma corrente de cão manchada de sangue... - Herr Martin. Desculpe, por favor. Só um momento... - O simpático Herr Weigert acenou a Rio do seu posto. - Acabou de chegar algo para si. Uma carta por expresso.

- Uma carta por expresso? - surpreendeu-se Rio, achando o facto muito estranho. Pegou no pequeno sobrescrito castanho e resistente que Weigert lhe estendia: «Herr Rio Martin». E como morada apenas: Parkhotel, Bernhagen. Nenhum remetente. As pontas dos dedos apalparam através do papel a caixa plástica de uma cas- sete. Tinha o formato das que, habitualmente, se usam para os gravadores vulgares. As cassetes da sua aparelhagem eram muito mais pequenas do que metade desta. - Muito obrigado, Herr Weigert - agradeceu. Meteu o sobrescrito no bolso do casaco. Algures, nas profundezas do cérebro, formava-se uma suspeita, mas o pensamento era talvez despropositado. Eram agora onze e vinte. Submetera-se ao interrogatório da Polícia durante quarenta minutos. Encontravam-se presentes não só o dinâmico e bronzeado inspector MühIen, mas igualmente o comissário-chefe WendIand. Rio conseguira, no entanto, uma garantia: respeitariam o seu pedido de não incomodarem Vera e de não a informarem do assassínio de Dagmar Reichenbach. Também não se encontraram frente-a-frente com Vera, pois ele tinha decidido tomar o pequeno-almoço no quarto - e nessa altura voltara a receber mais uma das infindáveis surpresas de Vera: uma mulher acordada, descontraída e mesmo entusiasmada. O que pretendes, afinal, Rio? - perguntara-lhe quando ele lhe apresentou o pequeno-almoço. - O que esperavas de mim? Histerismo? Os dentes a bater castanholas e suores frios? Na verdade, pensei: não vou deixar-me abater por qualquer ordinário sádico. Prefiro esquecer o assunto, como ontem, à noite. O superar deste acontecimento vivido com um sádico é, aliás, um aspecto do pensamento positivo.

- Pensamento positivo? - replicara, surpreendido.

- Não me olhes assim! Seria óptimo como argumento de um filme, não achas? Tudo se passava assim: uma mulher, uma supermulher mesmo, vive com um jornalista idiota que não lhe liga. O indivíduo nem sequer se dá conta do que tem. Ela pode fazer o que lhe vier à cabeça, pôr-se sexy ou correr nua pelo quarto que o tipo nem sequer a vê. E porquê? Porque ele só tem espaço na cabeça para o    seu maldito artigo..._  E... e o que é que ela faz, então? -Arranja um sádico. Um daqueles que se esconde numa caravana e brinca com navalhas. Ele expulsa-a cinco minutos depois da caravana, os empregados do hotel encontram-na em estado de choque e o tipo dela... O que achas? - Vera acenou-lhe com a mão diante dos olhos. - Oh!! Estás a ouvir? Ainda podes salvar-te. Era esse, de facto, o âmago da questão. Por conseguinte, onze e vinte minutos. Ao meio-dia e cinquenta e cinco, havia um voo Francoforte-Munique. Na verdade, dali a muito tempo, mas também algo muito prático. Vera poderia chegar numa hora a casa, ser-lhe-ia poupada a viagem pela auto-estrada e ele teria oportunidade de conferenciar logo à chegada com Novotny e Olsen e escrever o artigo na redacção. Bruno acenou com as chaves do carro alugado: -Nesse caso vou andando! - Bruno estava comprometido a não pronunciar uma só palavra diante de Vera sobre o crime na Opreclitstrasse. Parecia extenuado. Na noite anterior fora perfeito: os agentes da Brigada de Homicídios não tinham permitido fotografias do local do crime, mas conseguira bater chapas do transporte do cadáver. - Um momento, Bruno. Um momento... - Rio folheou a agenda de bolso e pegou no auscultador do telefone. Walter Leeb, um dos chefes do serviço de reservas do Aeroporto de Francoforte, atendeu, na verdade, de imediato. - Fala Rio Martin!

- Desconfio o que está para vir - replicou uma voz jovial.

- E tens boa razão para desconfiar. Preciso impreterivelmente de um lugar para o voo das doze e cinquenta e cinco. É possível? - Um momento... - E, em seguida, um brusco: - Okay! Apresenta-te no balcão das reservas.

- Não é para mim, mas para a minha mulher, Walter.

- Okay, okay... Levaram cinquenta minutos para percorrer a estrada de Berrihagen até ao Aeroporto Rhein-Main. Cinco minutos mais tarde, Rio e Bruno ficaram a observar Vera, que desapareceu com ancas meneantes no meio da multidão. - É notável a forma como ela reagiu à situação, meu caro - observou Bruno, sacudindo a cabeça. - Notável? Mordaz! Bruno devolveu o automóvel de aluguer; em seguida, procuraram o caminho para a auto-estrada de Mannheim e não muito mais tarde já Rio procurava com os olhos um lugar de estacionamento. Ali! Descreveu uma curva e estacionou o carro. -E agora? - inquiriu Bruno. - Agora, Bruno... - Meteu a mão no bolso de dentro do casaco, pegou no sobrescrito, retirou a cassete e colocou-a no gravador do automóvel. - Agora, estou descontraído. Bruno fitou-o em silêncio. Não pronunciou uma palavra. Se Rio apreciava algo nele era o facto de que sabia calar-se no momento exacto. Um estalido... E depois uma voz: a voz de uma mulher nova, talvez de uma rapariga... - Bom dia, Herr Martin. Sou Dagmar Reichenbach. - Rio fechou os olhos e sentiu um arrepio a percorrer-lhe as costas de alto a baixo. - Não o conheço pessoalmente, Herr Martin, apenas sei uma coisa a seu respeito: que éjornalista e que escreveu o artigo sobre a nossa firma que foi publicado no News Kurier. Como * sei? Tenho os meus conhecimentos junto da chefia do secretariado. Seguiu-se uma pequena pausa. Bruno Arend aproveitou-a para pegar na embalagem de charutos e fez tanto barulho que não se perceberam as palavras seguintes. Rio desligou e vociferou:

- Pára com isso, raios! - Procurou o sítio da gravação e localizou-o. - ... conhecimentos junto da chefia do secretariado. Ao que parece, não conseguiu contactar-me telefonicamente. Saí mais cedo e regressei a casa, pois supus que iria telefonar-me. - Bruno expeliu uma enorme nuvem de fumo. Uma nuvem branca e malcheirosa de desagrado, que parecia dizer: «Idiota chapado! O que foste lá fazer?» - Envio-lhe esta fita gravada, pois não disponho aqui de uma máquina de escrever.. e dado ter uma caligrafia tão indec@frável que dificilmente se entende, quando estou nervosa... - Uma gargalhada reprimida. - Devo dizer-lhe desde já que hoje estou muito nervosa... Não posso revelar-lhe todos os motivos, pois não iria compreender, mas toda a história que tenho a contar-lhe é realmente complicada. - Seguiu-se uma curta pausa e, em seguida, prosseguiu: - Preparei-lhe igualmente alguns documentos. Trata-se defotocópias... E, agora, a razão por que faço tudo isto. A resposta relaciona-se com o que apelida no seu artigo de «ambiciosos sem escrúpulos». No meu departamento, contacto bastante com estes ambiciosos sem escrúpulos. Devia mesmo encobri-los. Mas já não me encontro nessa disposição. - Seguiu-se novamente mais uma pausa. Os automóveis passavam a toda a velocidade na auto-estrada. E voltou a soar a voz: - Como sabe,

trabalho no departamento de testes. Os testes que aqui executamos são o último grito e, por conseguinte, bastante caros. O que significa, no entanto, caro? Sempre que se compensa uma tarefa especializada mediante a ridícula quantia de dez ou doze marcos... Todavia, o quadro administrativo do negócio afirmou: «Temos de racionalizar Apenas provas de amostragem.» E, mais tarde, surgiu mesmo a decisão: «Ir ao fundo.» Esta mesma ordem repetiu-se na última semana. Sabe o que tal quer dizer: misturam-se vários fornecimentos e decerto acabará por surgir uma prova do grosso. Mas nessa altura o materialjá é tãofrágí1 que se torna impossível um controlo exacto. E esta mercadoria, por assim dizer, segue com objectivos de investigação para institutos ou é exportada... Levantei objecçÕes e de imediato tive problemas. Do exterior tudo parece em or- dem. Mas quando pus ao corrente da situação o nosso colaborador Jürgen Cenitza e Jürgen fez provavelmente alguns comentários impensados, recebi também telefonemas com ameaças... E, agora, o assassínio em Hamburgo... - A voz calou-se. Ouvia-se apenas a respiração, sustida e quase num murmúrio. Por fim: - Pode imaginar como fiquei depois de Jürgen ter sido assassinado. Tenho medo, Herr Martin, muito medo... Épena que não tenha aparecido. Pena também para si, pois poderia ter-lhe fornecido o meu material. Teria tido ensejo de verificar que na firma se utilizam todos os meios, não só mentiras, fingimento e desmazelo, mas também corrupção e chantagem. - Em seguida: - Por favor, telefone-me logo que receba a cassete.

Rio inclinou-se para a frente, desligou o gravador, voltou a fechar os olhos e não pronunciou uma única palavra. <@ «Por favor, telefone-me logo que receba a cassete ... » 1 As palavras não lhe saíam do pensamento. Assemelhavam-se a um eco infindável e repetitivo.

Bruno baixou o vidro da janela do Porsche e atirou o charuto lá para fora. - Merdal - praguejou entre dentes. Rio não queria aceitar o pensamento que o invadiu. Tudo nele se revoltava contra esta ideia tão sinistra e, todavia, tão real que quase poderia dar-lhe forma, este horror: ÉS CULPADO... ÉS RESPONSáVEL... Voltou a divisar a sala de estar. Viu de novo a alcatifa, o roupão turco amarelo, o joelho branco, o cabelo claro, os dedos cerrados... - Foi estrangulada com uma fita - esclarecera-o o comissário WendIand, depois do pequeno-almoço. - Uma coisa é clara: o homem que cometeu o crime era um especialista.  médico diagnosticou uma fractura do pescoço, o que é bastante raro em casos deste género. Na maior parte deles, as vítimas são estranguladas... «Fractura do pescoço. Estrangulada. És culpado, sim... Mas como poderias saber que estavas a lidar com estes criminosos loucos?» A névoa amarelada que a luz do candeeiro de metal fazia incidir no cabelo curto e grisalho de Paul Novotny dava a sensação de uma pintura desbotada. Os olhos negros de Novotny fixavam Rio. E o caçador HiasI, que oscilava sobre a cabeça do comissário numa gravura de cobre, fitava-o também. Diante deles havia cervejas e uma panela cheia de chucrute. Haviam combinado esta «reunião conspiratória» numa das cervejarias da Baixa da cidade. Rio afastou o prato com chucrute da frente. Não era simplesmente capaz de comer mais. -Faz parte da minha profissão, sabes, Rio, infiltrar-me nos cérebros dos outros diariamente. Só que, no teu caso, pura e simplesmente não resulta. Porque é que, raios, não contaste aos colegas de Hesse que esta mulher, esta... como se chamava ela?

Reicheribach. Dagmar Reicheribach. que essa Reicheribach te deu o número de telefone no local de trabalho? E que estava visivelmente ansiosa por desabafar? Rio encolheu os ombros. Sentia-se cansado... Em vez de falar, empurrou a transcrição da cassete gravada na direcção de Novotny. Ele próprio a dactilografara à tarde, na redacção. Fora um tormento voltar a ouvir a voz de Dagmar Reicheribach entrecortada por pausas. Novotny leu em silêncio. Na testa formaram-se-lhe uma série de rugas. Continuou sem pronunciar palavra. Limitou-se a abanar a cabeça e a devolver a folha a Rio. - Só comecei a perceber tudo quando ouvi a cassete pela primeira vez, Paul. O que aconteceu num parque de estacionamento da auto-estrada, próximo de Francoforte. Não podia, assim, dá-la a conhecer ao teu colega Wendland, em Bemhagen. E também não o teria feito. - E porquê?

- Porquê, porquê? Antes de dar qualquer dica a estes agentes provincianos de Bernhagen, queria discutir o caso contigo. Pretendia, sobretudo, falar-te da minha teoria... - A de que se trata do mesmo criminoso? Quer esteja em causa Cenitza, Vera ou esta infeliz Dagmar Reichenbach... o mesmo sádico com navalha e fita de estrangulamento? -Sim, Paul. -Um assassino em série? E por detrás dele o importante desconhecido, que lhe paga e puxa os cordéis? E que é, sem dúvida, alguém da firma Bio-Plasma? - Mais ou menos, Paul. - Mas como explicas o caso de Vera? Ela não se enquadra na situação! - Como não? - replicou Rio, enquanto remexia com a ponta do garfo no coração acastanhado da chucrute.

Alguém se sentou na mesa ao lado e quebrou o repentino silêncio que entre eles se instaurara com um breve cumprimento a Novotny. Este nem sequer olhou para o interlocutor, limitando-se a corresponder com um aceno de cabeça. A empregada aproximou-se com mais cerveja e deixou-a ficar. - E porque não se enquadra na situação, Paul? Tenho uma opinião completamente diversa. - Ali, sim? - redarguiu Novotny, repuxando, irónico, os lábios. - E qual é essa opinião? - Então, Paul? Sabes muito bem qual é. Quando apareci por lá, já tinham o meu artigo em cima da secretária, entraram em pânico. Depois, enviaram Hochstett. Foi ter comigo ao hotel, para me dissuadir da Bio-Med. Mas como me mantive bastante obstinado e os indivíduos pretendiam conseguir a qualquer preço que voltasse a desaparecer do cenário, procuraram chamar Vera à razão. - Procuraram? No plural?

- Sim.

- Mas quem? - Rio limitou-se a encolher os ombros. Era precisamente aí que residia o busílis da questão. Todo o seu conhecimento sobre a espécie humana contrariava a suposição de que este nervoso e extremamente inseguro Hochstett pudesse ser quem puxava os cordéis. No entanto, quem, nesse caso? Engel, sem dúvida... Ou haveria ainda um terceiro? Um accionista da Bio-Plasma, por exemplo... - Escuta, Rio... - Novotny limpou a espuma de cerveja da boca, sem que, por um único segundo, tivesse desviado aos olhos      negros e argutos de crimínalista do rosto de Rio. -       Mesmo que encare todo o assunto desta perspectiva, é um perfeito absurdo que qualquer dos administradores da Bio-Plasma ou o próprio Engel tenham utilizado um destes tipos desequilibrados para operaçÕes tão complicadas. E este era obviamente desequilibrado... Para chegar a essa conclusão, basta ler a acta do interrogatório a que WendIand submeteu Vera. E tudo o resto que me contaste. O homem pode realmente ser um assassino, mas no mundo das missÕes por encomenda não há lugar para psicopatas. Não são suspeitos. Isso garanto-te. -Mas não podes garantir. Bom... sim, entendo o que queres dizer... - Rio inclinou-se para diante e acrescentou: - E se quem encomendou a missão é alguém que tem um fraco por psicopatas? O que pretendes dizer? -Que ele próprio é um. Nada mais. Novotny massajou a cana do nariz com o polegar e o indicador. Não respondeu. Uma voz chegou-lhes do balcão através do altifalante e sobrepôs-se ao ruído dos pratos e ao ligeiro murmúrio de vozes que reinava na sala: -Herr Novotny! Herr Novotny! Telefone, por favor.

Menos de dois minutos depois, o comissário estava novamente de volta. Sentou-se com a sua habitual expressão calma e agarrou no copo. -E Boder? O que há a respeito de Lars Boder? O que há-de ser? O mesmo que se passou com os outros. O mesmo que com Cenitza e Dagmar Reichenbach... Sabia de mais e foi eliminado. - Novotny manteve um silêncio de chumbo. - Já que estamos a falar de Boder, Paul, que é que se descobriu sobre as amostras de plasma que vos entreguei? -Estão a ser testadas. Outra coisa, Rio: em Bernhagen, descobriram a caravana do herói das navalhas de Vera. Wendland acabou de telefonar. Trata-se de um modelo Wes«alia. Roubado. - O Serviço de Identificação examinou-a portanto? -Não havia grande coisa para examinar. O tipo deitou-lhe fogo numa clareira. E as impressÕes digitais não se detectam em cinzas e sucata ardida... - Parece, por conseguinte, agir de uma maneira bastante profissional. - É essa também a opinião de Wendland.

- Wendland! Wendland! Raios! E tu? O que achas?

- Eu? A Vera viu o tipo. Esteve na sua companhia. Se, ao menos, pudesse dar-nos um pequeno pormenor concreto... Magro mas robusto, movimentos bamboleantes, talvez olhos cinzentos... Mãos finas e desequilibrado. Disso não há dúvida. - Tinha voz de cana-rachada - declarou Rio. -Ah! Isso simulou. - Life is short, let's pray - citou Rio a frase escrita na T-shirt do sádico. - Está certo. A vida é curta. Mas pode desde já começar a rezar. Vou apanhá-lo antes que se escape para qualquer outro lado. Pagaram. O comissário foi buscar a gabardina ao bengaleiro. Quando haviam chegado, estava só a pingar, mas agora chovia muito. - Raios! Não tens chapéu?

- Nem sequer gabardina - respondeu Rio com um arremedo de sorriso. Abrigaram-se sob o alpendre que protegia a entrada. Ao passarem pelas poças de água, os automóveis salpicavam-nos. - Anda. Tomemos mais um café. - Preciso de ir andando. Já teria ido a correr até ao meu automóvel se não me ocorresse mais uma coisa: o que me disseste há bocado, sabes, não era assim tão disparatado, Rio... Se concluirmos, mediante as provas, que este tipo da navalha é, na realidade, o criminoso nos três casos, o homem que o comanda passa a ter um perfil psicológico interessante. -Queres dizer que existe algo a ligar os dois? Novotny esboçou um aceno de concordância, para logo de seguida, como que mordido por uma tarântula, dar um salto para trás, cerrando os punhos:

- Viste isto? Olha só! - Um Corsa, todo artilhado, que passara ameaçadoramente junto do passeio, salpicara-o com um porção de água. - E não tem vinte anos, o idiota! - resmungou Novotny, irritado. - Então, Paul. Agora ainda resta a questão: o que pode ligar os dois? O comissário limpou as gotas de água do rosto.

- Sim. O quê? Ou uma dependência ou uma tara. É, pelo menos, o mais vulgar, tanto quanto me diz a experiência. - Um homem por detrás disto tudo com a tara das navalhas... ou algo assim? - Talvez. - E qual o nome?

- Engel. Talvez Engel... Mas somente «talvez». Afirmaste, contudo, que ele é o proprietário único da firma. - Também tu o sabes, Paul. - Não sei nada. É assim que está registada. Mas sabes onde é que a firma foi fundada? Podes fazer três tentativas. - Liechtenstein?

- Certo. Vaduz. A Bio-Plasma de Bernhagen não passa da filial alemã. E mais uma coisa: o nome de propriedade Engel não exclui a hipótese de que existam quaisquer outras figuras na sombra. Sócios com dinheiro ganho no mercado negro e que tenham interesses, sem darem nas vistas. Partamos, contudo, do princípio de que Engel era o maestro. Falaste-me desse tal Serviço FÕrster. O que sabe ele? Tudo o que descobrimos é relativamente inofensivo. Dois ou três processos imobiliários, um negócio bastante equívoco com uma empresa de urbanização em Paderborn e tudo isso já pertence à história... E quais as informaçÕes do teu cómico Serviço FÕrster? - Algo mais do que isso. Algo que parece um tanto exótico. Descobriste alguma coisa sobre Hochstett?

- Recebeu educação no Exército Federal, de que se aproveitou. Após ser dispensado, entrou como assistente na Uni Tubingen e, por fim, foi para uma firma de produtos farmacêuticos na Suíça. E Engel foi buscá-lo lá. _  Engel - murmurou Rio. - Thomas Engel... Onde é que estará metido esse cão? De qualquer maneira, agora vou até à redacção. E daí envio-te uma fotocópia do nosso material conseguido por FÕrster. De acordo? Novotny esboçou um aceno de concordância, levou dois dedos à testa e correu através da chuva... Cleo estava, como sempre, atrasada. Vera consultou novamente o relógio: quatro e vinte. Atirou outra almofada para o canto do sofá, dirigiu-se à cozinha a fim de desligar a chaleira e, no preciso momento em que estendia o braço, avistou pela janela Cleo, que acabava de dobrar a esquina da casa com o guarda-chuva aberto. Porque é que o coração se pôs a bater~lhe tão acelerado? Que nome se dá a uma coisa assim? Expectativa de amiga? Talvez... Vera sempre havia pertencido ao tipo de mulheres que afirmam sobre si próprias entenderem-se melhor com homens do que com mulheres. Tal posicionamento fora o mesmo durante os estudos de Filologia Germânica e durante a sua breve e infeliz experiência como professora, mas sobretudo ao longo dos três anos na televisão; na sua maioria haviam sido homens a despertar-lhe sentimentos de amizade e de companheirismo. Com uma única excepção: Cleo. Uma excepção de tal intensidade que a levara a interrogar-se sobre como havia passado sem amigas até então. Cleo era um caso especial e, sem dúvida, desde que nascera. A sua auto-segurança tinha um certo toque infantil. Explodia de raiva se as pessoas riam, esboçavam sorrisos ou falavam a seu respeito. Tratava todos os hipotéticos amantes com uma superioridade despreocupada. E não podia considerar-se uma mulher bonita. Era alta e robusta, usava o cabelo penteado numa trança, e tapava o farto corpo com tecidos de padrÕes africanos. Passeava-se em tons amarelo-torrado, verde-lilás e branco pelos grupos de intelectuais e pela vida de Vera. - Ah, coelhinha! A vida compÕe-se de momentos. Somente deves agarrar os certos. O próprio Rio ficara perplexo ao conhecer Cleo:

- Uma mulher incrível... - comentara. Vera pegou no serviço de chá, levou-o para a sala e dirigiu-se à porta para a abrir. Cleo encontrava-se, de facto, na sua frente e acenava-lhe com um embrulhinho de pastelaria diante do nariz: -  Já sei, já sei que não queres doces. No entanto, os petitfours do FÕhlinger são os melhors do sítio. Para já nem falar da torta de medronhos. - Entrou de rompante, deixou-se cair num dos maples junto à mesinha do chá e ocupou-se imediatamente, com dedos excitados, do cordel do embrulhinho. - Aí tens. - Um verdadeiro desabamento de pequenas tortas encheu o prato de Vera. - Poupa-me a censuras e limita-te a provar. Conclusão: o pão também engorda. Portanto é preferível engordar com isto. - Fez desaparecer dois maravi- lhosos doces de maçapão na sua boca de carnudos lábios pintados de vermelho-papoila, inclinou-se para trás, agarrou num dos seus cigarros e fitou Vera com um olhar em simultâneo terno e perscutador. - O açúcar é bom para os nervos. Que tal estão os teus? - Como assim? - Sabia porque é que Cleo fizera aquela pergunta e apressou-se a acrescentar: - Estão óptimos. - És um fenômeno, vítima de um sádico! Mas queres saber uma coisa? - prosseguiu, inalando o fumo com força. - Antes de vir a tua casa, ainda telefonei a Max Hoffier. Digam o que quiserem de Max... interrogo-me sempre sobre se é homossexual ou se se trata apenas de um boato a seu respeito... mantém-se um dos melhores terapeutas do mercado. E não só. É especialista em casos deste género. - E para que preciso de um especialista, céus? - s vezes é tarde demais quando se dá conta de que se precisa dele, coelhinha. E então pode tornar-se complicado. Lembras-te daquela história de Landshut? -Que Landshut...

- Landshut era o nome do piloto. De um jacto da Lufthansa. Alguns loucos da OLP desviaram nessa altura o avião para Mogadíscio e tomaram os passageiros como reféns. Destes reféns, meia dúzia foi tratada pelo Mãxchen. E ele curou-as. As pessoas reviveram o seu pesadelo, dia a dia, noite a noite. Horrível, não achas? - Não tenho pesadelos. E não quero consultar um curandeiro da alma, Cleo. Já que queres saber, fantasio a esse respeito. - Queres dizer que esqueceste esse tipo da navalha, ou o reprimiste? -Nem uma coisa nem outra, Cleo. Talvez o facto se deva a que os meus pais são ambos actores. Cresci no meio de actores. No palco encaramos as coisas de uma forma diferente da realidade e sobretudo não as levamos tão a sério. Impera sempre o clima da fantasia. Como naquela caravana... Na companhia dos meus pais, não sabia por exemplo diferenciar se estavam a representar um papel quando se abraçavam ou também me tomavam nos braços, se estavam histéricos, se o que lhes ia na mente correspondia à realidade. De qualquer maneira, trata-se de uma faceta que devo ter herdado   ... - Isso é interessante. Tenho de falar ao Mãxchen...

- Cleo! Este carro... este homem, esta voz cómica que ele tinha. E ainda por cima a máscara! Tudo aquilo tinha algo, sim, algo de irreal. Como no teatro. Não podes imaginar. E, lá bem no fundo, também eu não. Talvez Seja exactamente isso o que me ajuda... Tudo se passa como num sonho. Permanece um sonho. Não um pesadelo, mas apenas qualquer sonho banal. Cleo examinou-a, duvidosa, com os olhos pintados de negro. - Por conseguinte, não sei... E o que diz o Rio a tudo isto? - Ali! O Rio? -Não me pareces nada entusiasmada.

- O Rio fita-me constantemente com um olhar parecido com o que tens neste momento. E, em seguida, abraça-me e quer saber se, de facto, está tudo bem comigo. E fica satisfeitíssimo, quando respondo: «Claro!» Então, pode voltar a escapulir-se. Anda novamente a investigar uma história. Foi por esse motivo que também viajámos até à região do Taurius. No entanto, sempre que tem a sua história na cabeça, nada mais existe para ele. Nem mesmo eu. - Vera reflectiu sobre se deveria ou não contar a Cleo as suas frustradas tentativas de amor no Parkhotel. Histórias de cama constituíam o tema de conversa favorito de Cleo. Conseguia alargar-se sobre o assunto durante horas a fio. E por esse motivo Vera decidiu-se. - Ele escreverá a sua história idiota disse -, e, em seguida, volta a aparecer.. Continuava a chover. Chovia tanto que, apesar das enormes janelas, a redacção se apresentava imersa no escuro.

 À semelhança dos colegas, também Rio Martin acendeu o candeeiro de secretária no seu gabinete. Na frente, tinha um enorme sobrescrito castanho. Escreveu a morada de Novotny e, antes de meter no interior a fotocópia do relatório de FÕrster, voltou a lê-la uma última vez: «Thornas Engel. Nascido em 24.11.1941, em Paderborri. Pai: funcionário dos Correios.

Depois de um curso de Direito interrompido (quatro semestres), Engel trabalhou na construção. A partir de 1965, e apesar de muito jovem, conseguiu singrar com surpreendente rapidez no ramo imobiliário. Fê-lo sobretudo na área industrial. Os primeiros êxitos devem-se, decerto, ao cartão adequado de membro do Partido e aos seus conhecimentos na administracção da cidade de Paderbom. A sua firma, a Citybau, não tardou, contudo, a ser encerrada devido a dificuldades financeiras (nunca tendo sido apresentados os factos constantes do registo comercial) por ordem do tribunal. Apesar destes revezes, Engel conseguiu chamar as atençÕes do Dr. Max Hollmann, um dos mais famosos fabricantes de produtos farmacêuticos da região. E, após Hollinan ter ascendido à direcção da Liga de Produtos Farmacêuticos, foi enviado para Bona na qualidade de representante de um lobby de fabrico de medicamentos. Aqui e logo no início da década de 70 conseguiu estabelecer rapidamente contactos estreitos, sobretudo com os mais jovens deputados do Parlamento. A sua actividade no ramo farmacêutico não impediu Engel de se meter em negócios sempre que estavam em causa lucros imediatos. Quer se tratasse de negócios imobiliários, indústria de armamento, dinheiro para pesquisa ou licenças, Engel tentava meter-se em tudo. Esta época coincide também com o seu casamento com a filha de um conselheiro. O divórcio ocorreu, contudo, seis meses depois. Engel, que levava um estilo de vida muito dispendioso, não tardou a ser convidado para os locais de elite de Colónia e Dusseldórfia. A fim de acelerar processos de autorizaçÕes de fármacos, Engel tinha conseguido o apoio permanente de funcionários da Direcção de Saúde. Os seus métodos iam muito para além das habituais "pequenas amabilidades". Entre os presentes que oferecia constavam obras originais de famosos artistas modernos tais como Ungerer, Jensen e Monetti. Presentes semelhantes foram igualmente recebidos por alguns membros importantes da Comissão Parlamentar. Gente conhecida era convidada e principescamente recebida por ele na sua finca em Ibiza. Ali, e desta vez com sócios espanhóis, Engel fundara uma nova firma imobiliária com fins turísticos. Desde Agosto de 1984 que Engel deixou de aparecer em Bona como fabricante de produtos farmacêuticos. Dedicou-se a um ramo de negócio mais rendível: o comércio de sangue. Começou por ingressar neste negócio através de importaçÕes vindas sobretudo dos países americanos e sul-americanos, mas fundou a Bio-Plasma, em Bernhagen, e não tardou a mudar para a produção de plasma e preparados sanguíneos. Em Bona, o seu afastamento foi registado com uma certa pena. O "rápido Thomas" era considerado uma das figuras mais interessantes do cenário do lobby ... » O «rápido Thornas»... negócio de armamento, importação de sangue, plasma... O homem não só era rápido como multifacetado. E o que era mais ainda? Quem contratava um tipo como este perito em navalhas não devia ser ele próprio muito impecável. Mas este género de conclusão também não constituía uma grande ajuda. Importador de sangue, playboy, comerciante de arte. Bona, Ibiza, Bernhagen - sim, e que mais? A porta escancarou-se e Hanni Eisner, a secretária de redacção, meteu a cabeça de cabelos curtos pela abertura. - Escuta, Rio! Quase me esquecia. Houve dois telefonemas para ti. Um senhor da Suíça e... - Deixa-me em paz, Hanni. Tenho mesmo que fazer.

-  Da Suíça, Rio...

- Deixa-me em paz... por favor! -Bom. Não digas que não te avisei - retorquiu, atirando-lhe uma folha de papel com um número para cima da secretária e retirando-se a toda a pressa. Rio procurou debaixo do jornal... Ah, ali estava estava o maço! Tinha decidido fumar com conta, peso e medida. Um cigarro de quatro em quatro horas. Chegara a altura. Acendeu o cigarro, inalou fundo, sentiu co- mo o fumo se espalhava nos brônquios qual intruso e voltou a expelir aquela maldita coisa. «Era então isso o que te agradava? Ungerer, Jansen, Monetti... Arte como suborno? De facto, bastante original. E a escolha de pintores denotava mesmo uma certa classe. Ele próprio não sonhara sempre, afinal, com um Jansen? Tomini Ungerer era inatingível. Inatíngivelmente caro. E Monetti? Esse também o conheces...» Não estavam, todavia, somente em causa as quantias astronómicas que os donos das galerias podiam pedir por quadros ou desenhos destes pintores, mas havia algo mais... O que ligava por exemplo Jansen e Ungerer - apesar de serem muito diferentes nas perspectivas e no traço - residia nos seus temas eróticos. Não só a maneira como os apresentavam, mas igualmente a escolha. Como poderiam designar-se? «Bizarros», talvez, fosse qual fosse a interpretação que se quisesse dar-lhes. Relativamente a Monetti - Rio fora a uma das suas exposições -, preferia corpos femininos amarrados, de mãos algemadas, o rosto, não a cabeça, tapado com máscaras de cabedal com os olhos espreitando através das nesgas. Cadáveres nus, atados a cadeiras, outros como que crucificados em postes ou pendentes de vigas do tecto... Giacomo Monetti. Milão. E o título da exposição era: La legge oscura - «A lei obscura». Realmente obscura, céus! Um artista do seu gabarito podia, no entanto, passar a papel de desenho e tela as suas fantasias e sexualidade mais ocultas - e receber ainda por cima uma quantidade de dinheiro. «Talvez Thomas Engel tivesse avançado um passo? Talvez pretendesse viver tudo aquilo na realidade? Talvez? Mas que demasiada quantidade de ,,talvez", raios! Tem cuidado para não perderes completamente as rédeas da situação ... » Rio colou o sobrescrito, dirigiu-se ao gabinete da secretária de redacção e pediu a Hani que mandasse um estafeta à sede do comissariado. Voltou, em seguida, a instalar-se à sua secretária e pegou no papelinho que ela lhe entregara. Zero zero quarenta e um? Era da Suíça. Também conhecia o indicativo: 93 - correspondia à região do Tessin. Hanni somente havia trocado os nomes. O autor do telefonema não se chamava Dr. Danilo Bianchi, mas Bianchetti. E surgia-lhe como uma forma do passado     ... «Danilo!», pensou Rio. «0 velho e bom Danilo        ... Há muito tempo que devias ter-lhe dado notícias tuas. Devias ter, afinal, contactado com tanta gente, diabos te levem... Mas o que quererá hoje de ti?» Marcou o número e, em seguida, voltou a tirar do cinzeiro o cigarro de filtro dourado. Mas não o acendeu e limitou-se a fazê-lo rodar entre os dedos. E depois soou a voz de uma telefonista: -Ospedale Cantonale. Quer falar com o Dottore Bianchetti? Um momento, prego... - Um bálsamo, o idioma. O coração de Rio começou a bater alegremente. - Bianchetti.

- Então, velho? Sabes do que gostaria agora? Fretar um avião e ir ter contigo. Ao Sul. - Fá-lo, então - O entusiasmo da voz de Danilo parecia um tanto forçado. - Fá-lo imediatamente. Poderemos voltar a beber um copo juntos, - Sabes que casei?

- Claro que sei. Recebi o teu convite. E na altura Mandei-te um telegrama e cinquenta rosas. Mas aqui não me largam um minuto.

- Tomaste-te um homem tão importante assim, Danilo?

-Mas tu também... Sabes como são as coisas... Melhor do que ninguém. E seguiu-se a pausa habitual depois das separaçÕes e quando desaparece a primeira euforia do reencontro. Apausa prolongou-se durante muito tempo. - O que há, então, Danilo? A que devo esta honra?

- Agora escreves para um jornal intemacionalmente conhecido. Imagina que até aqui se pode comprar o News Kurier na Piazza. O que tens a dizer-me a isto? - Rio manteve-se em silêncio. - De vez em quando compro-o - prosseguiu Danilo. - Foi o caso, ontem. O jornal chega, naturalmente, com um certo atraso. Mas lá estava em letras gordas o teu artigo sobre o escândalo do plasma. Essa firma... Como se chamava? Bio-Plasma... Sim. - «O que levaria Danilo a gaguejar? Porquê as pausas?»

- Quando li o nome, Rio, passaram-me uma série de coisas pela cabeça, sabes? - E é esse o motivo por que telefonas?

- Sim, ou como hei-de dizer: o telefonema é uma pequena chamada de atenção. Nada mais. A sério que não... O que se passa contigo, Danilo? Não podes expressar-te de maneira mais clara? - Uma alusão - insistiu a voz no longínquo Tessin. - Uma alusão um tanto preocupante. Talvez nem tanto assim. Mas somos, na verdade, amigos... - Nesse caso, desembucha!

- Lembras-te da fractura que tratámos na Clínica Dachauer?

Fractura? E se se lembrava! A festa de Bertram! Tinha sido uma festa em casa da agente musical Willi Bertram, há já alguns anos, e datava ainda de antes de Vera. Na verdade, Vera já existia na sua vida, mas na altura a ideia de uma ligação duradoura parecia-lhe irrealista, quase monstruosa. E achara, por conseguinte, uma espécie de punição merecida o que lhe acontecera neste parque privado junto ao mar Stamberger: qualquer rapariga, de cujo nome já nem sequer se recordava, tinha-lhe dado na veneta e atirara-lhe qualquer coisa à cabeça - um pãozinho, isso mesmo! Correra atrás dela, tropeçara e aterrara de encontro a um pequeno muro e um mar de dor. De cabeça e mãos em cima da roseira. O pior fora, no entanto, a canela. A sangrar e embriagado como estava, ainda tentara esboçar um arremedo de sorriso, quando os outros troçaram dele. Para casos daquele estilo, havia sempre na altura o socorrista de serviço: o Dr. Danilo Bianchetti, na Clínica Dachauer, um Danilo para todas as situaçÕes da vida. E o mesmo acontecera dessa vez; Danilo enviou a am- bulância e o resto foi rotina: anastesia - um pouco di~ ficultada pelo índice de álcool no sangue - e a fractura foi tratada. O próprio Danilo trouxe o doente a casa e Rio não tardou a poder aparecer na Clínica Dachauer para retirar a placa de metal. A fractura cicatrizara às mil maravilhas. Nenhum problema. Nem a mínima dificuldade, Quase esquecida... - Escuta, Danilo. Isso foi uma coisa sem a mínima importância! - Claro que foi uma fractura sem importância. Só que...

- Só que... o quê? - Porco cane - praguejou Danilo em Tessin. - Oplasma que te aplicámos então...

- O plasma? - Só a palavra provocou uma onda de calor, que lhe subiu pelas costas até à nuca. E sentiu-se como que trespassado por mil agulhas geladas. - Plasma, Danilo? Não entendo... - Mas tinha entendido!

- Como assim plasma? - Desta vez, gritou. - Mas não havia hemorragias. Tu próprio o disseste.

- Como sabes, foi Schonberg quem na altura te operou. Schonberg é um verdadeiro ás na ortopedia, O problema não reside nesse ponto: em casos como o teu, Schonberg ministra sempre plasma. Considera-o

* método mais requintado para conseguir uma rápida revitalização óssea. E tinha razão. O preparado PFC... O que é isso?

- Plasma fresco congelado. Tem um efeito altamente esterilizador e regenerador. Por esse motivo, acelera o tempo de cicatrização, entendes? - Era-lhe por completo indiferente se e o que é que entendia. Sentia o estômago na garganta. Era como se um punho o apertasse. Rio escutava o bater do coração. Não! Apesar de tudo o que pudesse pensar, uma segunda e tranquila voz segredava-lhe, ao mesmo tempo, que o plasma se utiliza em tudo. Hectolitros de plasma em milhares e dezenas de milhares de clínicas por todo o mundo... «Não entres em histeria, rapaz! Controla-te, céus!» -... mandámos, por conseguinte, nessa mesma noite um estafeta ao serviço permanente da Clínica Max-Ludwig. Fica nas proximidades, como sabes. - Um estafeta à Clínica Max-Ludwig? E para quê? -Já te disse, Rio: Schonberg queria plasma. E o pessoal da Clínica Max-Ludwig ajudou. O homem regressou imediatamente. - E? - Dava a sensação de que a chamada caíra. E? - repetiu, gritando. - Desembucha. Continua a falar, Danilo! - Fui eu próprio quem recebeu a embalagem. E por esse motivo me recordo tão bem do nome da firma. O nome, Danilo? Era...

- Sim, Rio. - Agora, a voz era tão fraca que quase não percebia as palavras. - Sim. Era uma embalagem da Bio-Plasma. Por isso, estou a telefonar-te.

-Estão todos loucos! - Consigo imaginar o estado em que ficaste, Rio. Reflecti durante muito tempo se deveria comunicar-te algo. Uma coisa é certa: a Bio-Plasma forneceu, sem dúvida, dezenas de milhares de preparados que estavam em perfeito estado de consumo... - O número - sussurrou Rio. - O número... Danilo? Era um número que começava por doze mil... - Como no caso Reissner? - Danilo lera, por conseguinte, minuciosamente o artigo. - Não sei. Como hei-de saber isso também? Passou tanto tempo entretanto. Quatro anos, Rio, pensa só... - Respirava com esforço e tentou organizar ideias e controlar novamente o ritmo da respiração. Danilo tinha razão: procedera-se a uma imensidade de fornecimentos. As bonitas e cromadas turbinas do mundo esterilizado da fábrica de Bernhagen haviam enchido centenas de milhares de embalagens de plasma... Não só a sorte, como também a morte tem a sua lotaria! Porque havia de lhe ter calhado precisamente a ele a bola preta? - Sabes, Rio? Aconselho-te a que analises a questão de cabeça bem fria. Com a máxima racionalidade. Não há, de facto, motivo para preocupação. No entanto, seria naturalmente indicado, pelo menos é essa a minha opinião, que fizesses análises. Prometes-me? Rio respirou tão fundo que teve a sensação de que os pulmÕes iriam explodir. @ - Sim, Danilo - acedeu num tom débil. - Obrigado... Pronunciou o agradecimento, porque não lhe ocorreu mais nada. Em seguida, voltou a pousar o auscultador do aparelho e examinou o invólucro de plástico, como se nunca tivesse visto um telefone em toda a sua vida. Decorrido um bocado levantou-se e dirigiu-se ao armário para ir buscar a gabardina. Mas não havia nenhuma gabardina lá dentro. Deixara-a em casa. Abandonou a redacção sem se despedir de ninguém. Tinha ainda um artigo para escrever. Sobre uma firma que se chamava Bio-Plasma e sobre um senhor que se chamava Thomas Engel. Também isso não era importante. Nada era, de facto, importante...

A cidade. As ruas. Ludwigstrasse, Sendlinger Tor, AltstadtRing, depois rumo à estação de caminho-de-ferro, de volta para norte... «Mantém-te calmo, Rio... Não há nenhum motivo para preocupação.» Finalmente, uma cabina telefónica, por detrás da escola comercial. Subiu o passeio com o automóvel e pouco se importou que, cinquenta metros mais abaixo, uma mulher-polícia estivesse a anotar a matrícula de um outro carro mal estacionado. Correu até junto da cabina telefónica, escancarou a porta e teve dificuldade em meter as malditas moedas. E, por fim, conseguiu! -  Novotny.

- Paul? - retorquiu Rio num tom de voz tão áspero como papel carbonizado. - Como se chama o médico com quem falaste, Paul? Aquele médico da Clínica Max-Ludwig? - Porque vens com isso, agora? -Como é que ele se chama, Paul? - Weissmann.

- Faz-me um favor, Paul. Um favor pessoal: telefona-lhe. Imediatamente. Peço-te! - E?

- Interroga-o sobre essas malditas embalagens. As embalagens da série doze mil. Já sabes... Pergunta-lhe se, há quatro anos, no começo de Setembro também foi entregue uma na Clínica Dachauer. - Escuta. O que se passa contigo? Apareceu um novo caso?

«Um novo caso?», pensou Rio e sentiu um aperto no coração.

- Fá-lo, por favor. E imediatamente. Volto a telefonar-te.

Deixou ficar o carro onde o estacionara. Mesmo que o multassem e lhe rebocassem o automóvel, tinha de correr. E foi isso o que fez. Os carros passavam a toda a velocidade junto dele. O vento agrediu-o com pedaços de papel e o pó queimava-lhe a pele. Leu, algures, «Café» e entrou. Deparou com uma sala bastante comprida em forma de tubo. Mesmo à frente, à direita da porta, havia três máquinas de flippers, sobre as quais se inclinavam três homens novos. As máquinas tilintavam e pontuavam. Notou ainda algumas mesas que estavam quase exclusivamente ocupadas por raparigas. Tinham livros e cadernos de estudante e conversavam em voz baixa. Tratava-se provavelmente de alunas da escola comercial. Dirigiu-se ao bar, sentou-se e pediu uma Fanta. Bebeu um gole, pôs o limão de lado e pediu um Red Label ao gordo de camisa aberta que se encontrava por detrás do balcão. Ele limitou-se a sacudir a cabeça em negativa. -Nesse caso, dê-me outra marca de uísque. Um duplo. Quando o uísque lhe foi servido, Rio teve dificuldade em levar o copo à boca. As mãos tremiam-lhe demasiado. Não, não se tratava de tremuras, mas de algo que lhe vinha bem do íntimo, do seu corpo e da alma, abalando-o e quase o impedindo de aproximar o uísque dos lábios. Pousou rapidamente o copo, ao aperceber-se de que o gordo o observava pelo canto do olho através do espelho. Pegou no jornal, mas as letras dançavam-lhe diante da vista. Forçou-se a ler um artigo, mas o cérebro não aderiu. Somente recebia as informaçÕes dadas pelos olhos. Devagar, muito devagar, a subida de adrenalina parou e as mãos acalmaram o bastante para que fosse capaz de beber o uísque. Esvaziou meio copo e bebeu o resto em pequenos goles. Ao fundo do balcão, havia um telefone. Não desviava o olhar do aparelho. Por fim, perguntou ao empregado: - Também têm cabina? - Sim. Lá atrás. Junto da casa de banho. Rio desceu do banco, deu alguns passos incertos e verificou que o olhar das jovens o seguia. Quando fechou a porta da cabina telefónica, sentia os joelhos tão fracos que se afundou no banco ali existente. Deus do céu! Mas há muito que sabia não poder contar muito com Deus. Por fim, conseguiu marcar o número de Novotny. - Sim? - atendeu o comissário tão prontamente como se estivesse a aguardar o telefonema. - És tu, Rio? -  Paul! Falaste com Weissmann?

- Exacto. E apanhei-o logo. Ficou bastante surpreendido quando lhe fiz a pergunta. Ele é, na verdade, tão... basicamente... sabes? «Porque é que não continuava a falar? O que pretendia significar com este "sabes"?» A pergunta era desnecessária. Rio soube-o repentinamente e com absoluta clareza... E sentiu de novo o calor nas costas. E a presença das mil picadas de gelo. «E se ele sabia? Oh, não...», pensou. -Weissmann disse que, por regra, nada significa. No entanto, gostaria de examinar-te. Ainda fica na clínica até às dezoito horas e está disposto a receber-te. - E Paul Novotny acrescentou em seguida: - Merda, Rio! Uma coisa dessas é impossível. - Era, no entanto, possível. E, em qualquer parte, havia alguém que se chamava Deus ou qualquer coisa no género e preparava as piores partidas por puro tédio... - Weissmann diz que não há resultados das análises dos outros doentes, mas supÕe que todos estejam de saúde, caso contrário qualquer deles já teria participado. «Weissmann diz... Que outra coisa poderia dizer? Pobre Paul! Estava tão preocupado!» - É, por conseguinte, a mesma série, Paul? A série dos doze mil? Uma breve pausa. A respiração dele. Em seguida, o veredicto: -Sim, Rio. -Agradeço-te, Paul - disse, depois do que pousou o auscultador. O miúdo de doze anos estava tão pálido que as sardas de Verão na cara redonda pareciam feitas com um pincel. Os olhos azuis fitavam o médico com uma expressão receosa. -Não vai doer-te nada, Bermi. - Jan Herzog abriu-lhe a boca com a espátula, para iluminar uma vez mais a garganta: inflamada, com as amígdalas inchadas, um quadro que se apresenta com frequência nos casos de bronquite crónica. A infecção espalhara-se pela faringe e boca. - Há quanto tempo é que o Berini está com tosse? > -Há seis semanas... não, há sete - respondeu a mãe de Berini, que se mantinha junto do miúdo, agarrando-lhe na mão direita. - E como é que correram as coisas no ano passado, Frau Holzrieder? - Teve o mesmo. A tosse, quero dizer. Só que começou no Outono. E durou cerca de dez semanas... O Dr. Jan Herzog esboçou um aceno de cabeça afirniativo e preparava-se para fazer uma festa na cabeça 'do pequeno Berini, só que ficou a meio. A porta abrira-se, sem que ninguém tivesse batido. Herzog conhecia o homem que se mantinha na ombreira e o fitava trémulo e de olhos muito abertos. Transformara-se. O rosto era o de uma pessoa em estado de choque. E por detrás dele estava a enfermeira. Foi a primeira a falar: -Desculpe, doutor, mas não o consegui impedir.

O homem entrou pura e simplesmente por aqui dentro e... e... - Tudo bem - riu Jan Herzog. - Herr Martin terá as suas razÕes. Presumo que se trata de algo urgente, certo? Rio esboçou um aceno afirmativo. Em seguida abanou levemente a cabeça, como costumam fazer as pessoas que acordam de um sono ou os pugilistas que acabam de receber um soco. -Vou já falar consigo, Herr Martin - assegurou Herzog.

Sentaram-se na frente um do outro. O Dr. Herzog deixara de rir. Os olhos sob as grossas sobrancelhas observavam, atentos, o visitante. Rio necessitou de recorrer às últimas forças para suster aquele olhar e banir o tom trémulo da voz. «Mantém-te realista», dizia de si para si. «Mas à mínima hipocrisia, atiro-me da janela.» Sentia o suor a escorrer-lhe pelas axilas. - Recorda-se do preparado da Bio-Plasma a que o seu amigo Reissner ficou a dever a sua contaminação? - Se me recordo! Tão bem que ainda quase sei o número de cor. Qualquer coisa como doze mil quatrocentos e trinta... Acha que poderia esquecer uma coisa dessas? - A sua memória numérica está certa. Dieter Reissner recebeu a embalagem 12 426. E eu... - Tomava-se tão extraordinariamente dificil continuar a falar neste momento, tão dificil na frente destes olhos, tão dificil a nível geral.. - Eu... vou tentar explicar-lhe. Tambéni eu recebi, na realidade, uma embalagem deste fornecimento...

- Você?! Como assim, você? - Herzog recostara-se todo para trás e erguera as mãos num gesto de incredulidade. - Sofri, nessa altura, um pequeno acidente. Encaro-o de preferência como um infortúnio. Fiz uma fractura da tíbia e a cicatrização foi fácil e indolor.. Apenas pretendo dizer que quase a tinha esquecido. Há coisas, sabe, que nos passam ao lado e se tem dificuldade em voltar a recordar. - Herzog não deu qualquer resposta e na testa formaram-se profundas rugas. - Fui tratado na Clínica Dachauer. Ainda por cima por um amigo. o pessoal da clínica mandou, de noite, na altura do acidente, um estafeta à Clínica Max-Ludwig, a fim de ir buscar plasma... - Poderia agora expressar-se mais facilmente se ao menos não tivesse a boca tão seca. - Bom. Para Reissner foi a embalagem 12 426. Eu recebi a 12 434. O tampo metálico da secretária tilintou. Jan Herzog batera-lhe com força. -Isso... mas isso é... - A realidade, doutor. Não se quer acreditar. Não se compreende... mas é assim mesmo! -E como é que sabe...

- Por intermédio de um outro amigo, doutor. Desta vez, não um médico, mas um comissário da Polícia. Sabe, tenho muitos amigos... - redarguiu Rio com um esgar, que se lhe desenhou no rosto semelhante a uma máscara de papel. - Paul Novotny. Dirigiu-se de carro a meu pedido à Clínica Max-Ludwig, a fim de interrogar o pessoal de lá. O director encontra-se ausente e Novotny recebeu a informação de um tal doutor WeIssmann. Registam tudo naquele estabelecimento hospitalar. E também o fornecimento à Clínica Dachauer na respectiva noite de vinte e sete para vinte e oito de Junho. Herzog conservava-se sentado e em silêncio, como

uma pedra... «Porque é que não ajudava? Como é que Rio deveria continuar a falar, se a ele lhe era tão dificil?» -Esse tal doutor Weissmann ofereceu-se para me examinar. Sobretudo, para falar comigo. Não o conheço. E também não estou interessado em conhecê-lo, -Imagino pelo que está a passar neste momento, caro Herr Martin... - Talvez ninguém possa imaginar.

- Tem razão. Mas agora há outro factor em causa...

O facto de lhe terem ministrado esse plasma na Clínica Dachauer ainda não prova nada... -   excepção de que transporto eventualmente comigo alguns belos e pequenos e infelizmente bastante perigosos vírus da sida. -Não. Não existe a certeza de que também as outras embalagens tenham sido contaminadas. Talvez o Dieter.. Talvez o meu pobre e infeliz amigo Reissner tenha sido o único que o apanhou. - Também o doutor Weissmann disse o mesmo. É como na lotaria. Não, como na roleta-russa. - Bom, mas também na roleta russa acontece com bastante frequência uma saída feliz. Sabe-o tão bem quanto eu. Mas e os outros doentes? - Agora, serão naturalmente submetidos a testes...

- Ainda é demasiado cedo para resultados...

- Quanto tempo demora então?

- De dez a doze dias. Foi por esse motivo que veio ter comigo?

- Sim, doutor. Queria pedir-lhe que me fizesse o teste...

Vera tinha cortado os tomates às rodelas. E enfeitara os pratos com salsa... Examinou as duas travessas com um olhar calmo. Carnes frias. Queijo. Talvez um bocadinho frugal, mas o importante era a companhia. Cleo vinha naturalmente com Harry, a atracção dos terapeutas, em relação ao qual não se sabia se era homossexual; também estaria presente Heinz Fischer da informação da Televisão da Baviera, e Ríchard, como convidado-Surpresa. Vera alegrava-se, em especial, com a presença deste último. Richard era inglês, um homem que escrevia contos infantis e gastava os honorários a viajar pelos mares do mundo em qualquer pequeno barco à vela. «Ritschie» era precisamente o que Rio mais precisava agora... Tapou as duas travessas com papel de prata e colocou os copos numa bandeja. Quando os levou para a sala de jantar, tocou o telefone. Levantou o auscultador. Barulho de vozes, que, devido ao ruído de fundo, pareciam provir de qualquer bar. Em seguida, uma voz, a voz dele. Tão débil, tão distante. - Rio? Não te compreendi. Onde andas escondido?

O que se passa?... Dentro de vinte minutos chegam os convidados. - Eu sei.

- Isso não é uma resposta! Diz-me apenas... Sentiu que a raiva lhe crescia no íntimo e pensou: «Se ele volta a deixar-te pendurada, então, então ... » - Não posso.

- Rio!

- A sério. Acredita em mim, querida...

- O que significa que não podes?... Diz-me Rio... enlouqueceste? Não podes muito simplesmente convidar as pessoas e depois... A voz dele desaparecera. Nada. Apenas o sinal da linha desimpedida. Pousou o auscultador. Olhou fixamente para o espelho. Em seguida, sentou-se numa cadeira à mesa, pegou num copo, rodou-o entre o polegar e o indicador. Toda a raiva desaparecera. Manteve-se assim sentada durante Muito tempo, pensando nos últimos dias, naqueles desCOncertantes e terríveis dias.

«Querida, não posso ... »

«Também eu não», pensou. «De que é que ele está à espera, afinal?» E: «querida»? Talvez lhe tivesse chamado assim duas ou três vezes. Ela era «Vera», mas não «querida»... O que se passava com ele, raios? E se imaginava que ela iria ficar aqui com uma série de pessoas penduradas, estava muito enganado. A raiva voltou a dominá-la. E, assim, quando Cleo e os outros bateram à porta da casinha no Jardim Inglês dez minutos mais tarde, foram encontrar uma Vera de sorriso um pouco forçado mas decidida e que lhes anunciou, mal abriu a porta: - Tenho uma travessa de carnes frias de primeira, amigos. Tenho queijo. Tenho vinho. Mas não tocaremos em nada disso. Vamos divertir-nos para qualquer outro lado. E lá, explico-vos o motivo... Na comprida recta junto ao recinto olímpico, Rio pisou o acelerador do Porsche: ultrapassava sempre que descobria um buraco, avançava descuidadamente nos sinais amarelos ou nos cruzamentos, não atendia a sinais de luzes irritados, e continuava a aumentar a velocidade. Nymohenburg. A auto-estrada - e o pé a fundo no acelerador! O carro deu um salto e Rio foi invadido pela sensação de velocidade, como um peso que o colava ao assento. Deixou-se arrastar por toda aquela vibração do motor, o crescente, selvagem, agressivo e quase uivo, quando o motor atingiu o máximo de potência e o ponteiro do conta-rotaçÕes avançou perigosamente pela zona vermelha de aviso. «Deixa-te levar neste voo. Se ao menos...»

Os carros que seguiam na sua frente afastavam-se para o lado numa fuga ao veloz monstro negro e faziam-lhe sinais de luzes nas costas como um protesto sem resposta.

Rio nem sequer tinha consciência da realidade. Apesar do uivo do motor, apesar do uivo do vento - nele apenas existia o silêncio, um silêncio obscuro e inexpugnável apenas quebrado por vozes vindas das profundezas: «... Rio... Posso tratá-lo por Rio?... Não existe qualquer motivo para deixar pender a cabeça, apenas por ignorarmos qual o resultado do teste. Para mim é absolutamente provável que seja negativo. Aguardemos, Rio... por favor .. » Jan Herzog. O Dr. Jan Herzog, o amigo de um homem que se chamava Dieter Reissner e que também considerara absolutamente improvável que uma «coisa assim» pudesse atacá-lo. - E MESMO ASSIM, Rio, Há TANTOS CASOS COMPROVATIVOS DE QUE O VíRUS NãO EVOLUI EM TODOS OS CONTAMINADOS. COLECIONEI ARTIGOS. CONSTA DA LITERATURA. NA RESISTÊNCIA A ESTA DOENÇA CONSIDERO DECISIVO O ESTADO DE ESPíRITO. A DOENÇA NãO É NECESSARIAMENTE MORTAL... - Mesmo se...

- Depende do estado de espírito... Sim. O silêncio rodeava Rio Martin, o silêncio e vozes longínquas. Na sua frente brilhavam as luzes de travÕes. Pertenciam a um camião que queria virar à esquerda, não, que fez mesmo a manobra... Levou o pé ao travão. Sentiu a traseira do automóvel a fugir-lhe, procurou segurar o carro e conseguiu. Ainda fora a tempo. Passou rente ao muro gigantesco que ladeava a estrada. E Rio voltou a carregar no acelerador. Lá fora Burgau perdia-se na distância. Há quanto tempo estivera aqui? Há um ano... Tinham comido na cervejaria, os castanheiros estavam em flor e os olhos verdes de Vera riam ao sol. -Há casos na literatura... E o Dr. Jan Herzog colecionara-os, a fim de provar ao seu amigo Dieter que também há esperança para os seres positivos. Só que não lhe fora possível contactar mais com o seu amigo Dieter. Este saíra da casa de Herzog, subira para o automóvel de Rio e sentava-se no lugar do pendura com um riso de quem sabe. Sim, Rio recebia um sentimento muito concreto de proximidade. E não sentia medo. Era a proximidade de uma pessoa que viveu, sofreu e atirou tudo para trás das costas. Também Dieter Reissner se lançara, sem dúvida, a toda a velocidade pela estrada, levado por um único pensamento: «Estampa o carro na árvore mais próxima, de 'lar da ponte.» Só que p#      1 encontro ao pi                       ara Re'ssner ainda existia uma mulher e uma filha. «Porquê, Dieter? Porque é que o fizeste? Queres que te diga uma coisa? Na minha perspectiva, foi a solução errada. Os erros podem ser não só horríveis, como estupidamente horríveis.» «E tu? O que terias feito?» «Não sei, Dieter. A sério que não sei.» «o que sabes, então?» «Nada.» «Só que tens medo?» «Nem mesmo isso.» «Mas tens. E está a assaltar-se novamente. Forma-te um nó na garganta... Esmaga-te. E, em seguida, nada mais és. Apenas sabes, no entanto, uma coisa: que este mundo é uma loucura.» «Mas porquê a tua mulher?» «Porque não falas da minha filha? Porque falas dela?» «Porque não tenho filhos.» «Ah, bom! Não tens filhos! Dá-te por feliz... Mas precisamente porque não os tens, jamais poderás compreender-me. Talvez estejas certo: não foi uma boa solução. Não queria, contudo, deixar a minha filha sozinha. Nem a minha mulher. Não queria deixá-las sozinhas nesta loucura. E sabes bem o que isso me custou...»

Não havia resposta possível. No entanto, a voz repetia: «Sabes o que isso me custou? Sabes isso... E o que podes fazer ante o pensamento: contaminaste-a. Contaminaste-as a todas... Responde: que podes fazer?» A auto-estrada. E por cima do alcatrão, qual reflexo, o rosto de Vera. Vera! Vera! Curvas e contracurvas. E de novo um automóvel que surgiu na sua frente. E o Porsche voltou a obedecer no último momento. Rio continuou a acelarar e nem por um segundo tirou o pé do acelerador. O motor cantou. E era uma canção de ódio, de um ódio mortal e assassino... Olsen estava precisamente a vestir o seu velho casaco de pêlo de camelo quando Rio entrou no gabinete do chefe de redacção. Rio ajudou-o e deteve-se a observar mais uma vez a gola coçada e as mangas também usadas. O Gordo mandara cozer remendos de cabedal nos cotovelos. Divorciara-se duas vezes, tinha quatro editoras atrás - e conseguia separar-se de tudo isso, excepto das suas velharias. Rio conhecia o casaco, bem como os sapatos de solas grossas e resistentes, há tanto tempo quanto conhecia Olsen. O chefe de redacção virou-se e fulminou Rio com os olhos azuis e com uma bolsa de gordura: - Escuta bem, Rio. A minha secretária não te informou de que tenho de me ausentar até ao Sul do país, à editora? E já estou atrasado. Trata-se da nossa publicação da Vox. A loja está a ir pelo cano abaixo e com ela os nossos milhÕes. Esse velho louco do sexto andar já não vai à guerra. E agora apareces-me... - Sim, apareço... -Muito bem, então. Já que apareces, onde está o teu manuscrito? - É isso mesmo: vão deixar de haver manuscritos

meus.

- O quê?

- Exactamente como acabei de dizer, Ewald. Olsen apoiou-se à secretária. Os olhos fendidos talhados no rosto transformaram-se, subitamente, em dois buracos redondos, que emanavam o mais puro desespero: - Também tu, agora? Segundo parece, só há loucos nesta casa. E o que pretendes com este disparate? Devo talvez ser eu a escrever? - O MÕller poderia fazê-lo. Afinal, MÕller também se encarrega da secção de medicina. Conhece a problemática e não escreve tão mal como isso. Ewald Olsen respirou fundo. Engoliu as palavras que ia pronunciar. Em seguida, abriu novamente a boca: - Diz-me, o que se passa contigo? -Preciso de férias. Dez, talvez catorze dias. E depois tenho de tomar uma decisão... - Ali, sim? Queres então tomar uma decisão depois das férias? Mas isso é fantástico! É maravilhoso! Puseste em movimento toda esta merda e agora queres deixar-me pendurado e ao jornal. Ou como devo analizar a situação? - Como quiseres...

- Como quiseres? - Aparentemente, Olsen tinha agora problemas com as pernas, pois aproximou-se da sua cadeira de chefe, onde se deixou afundar. O gordo ventre subia e baixava e ele cruzou as duas mãos sobre o mesmo, como que para o segurar. - O que se passa, Rio? - Rio gostava de Olsen. Sempre tinha gostado dele, a partir do primeiro segundo em que pusera os pés nesta sala. Tinham trabalhado bem juntos, muito bem mesmo, raios! Não era, porém, isso; tratava-se de outra coisa - talvez lhe agradasse ter tido um pai como Olsen, um homem que pudesse admirar. Não apenas como jornalista, mas como o homem a quem podiam fazer-se todas as perguntas e que ia sempre buscar a resposta adequada a qualquer gaveta oculta da sua inconcebível experiência. Era ainda algo mais: a sensibilidade que existia por detrás de toda aquela gordura e do gritante cinismo. - Mais uma vez, Rio: o que se passa? Não podes ser assim tão louco que não dês explicaçÕes. - E Rio contou a sua história. Olsen inclinou-se mais na cadeira. No canto direito da boca, um pequeno músculo moveu-se e transformou o rosto redondo num esgar de espanto e incompreensão: - Isso é medonho, Rio! Não pode ser! -Foi também isso exactamente o que eu disse... o que recitei para mim próprio todo o tempo. E ainda continuo a fazer. - Deus do céu, Rio... - Ergueu o braço, como se quisesse agarrar-lhe na mão, mas a distância que os separava era demasiada. - Sim, e agora? - Rio nunca ouvira a voz de Olsen assim tão baixo: - O que queres fazer? - Respondo-te no máximo dentro de oito dias, Ewald. Quando já tiver o resultado do teste. - Oh! Merda, Rio...

- Sim - concordou com um aceno de cabeça. Merda...

Em seguida, dirigiu-se à porta e fechou-a atrás de si, sem se ter virado uma única vez. Havia crianças, uma quantidade infinda de crianças e Rio interrogou-se sobre de onde viriam. Afinal ainda não era meio-dia e todas deviam ainda estar na escola. No entanto, gritavam, corriam ou jogavam à bola e estavam muito entretidas umas com as outras. Havia donas de casa que procuravam cortar caminho através do Jardim Inglês com o saco das compras bem agarrado na mão e o olhar já pousado no fogão de cozinha. Havia os indivíduos bem sucedidos com as pastas de documentos e que pareciam nunca dispor de tempo, e os outros, os desempregados, com todo o tempo do mundo pela frente e que jamais sabiam o que, na realidade, procuravam ali debaixo das árvores. Havia estudantes e vadios também. E ele. Conservava-se sentado num banco e deixava que desfilassem por ele. Há muito tempo que deixara de comer sentado num banco do Jardim Inglês. O céu estava muito sereno, azul, elevado e pontilhado de brancas e espessas nuvens da Baviera. O seu olhar buscou rostos, deteve-se em costas curvadas e seguiu as pernas de uma rapariga, após o que ouviu a voz de Olsen: «Oh, Merda, Rio! E agora, o que queres fazer?» Todos os que passavam junto dele tinham os seus problemas pessoais. Todos com a sensação de que somente existia um mundo: o deles. E que, por esse motivo, este mundo tinha de sofrer com eles, ocupar-se dos seus problemas e, por fim, desmoronar-se com eles. No que se referia à última parte, talvez tivessem razão. O mundo acaba com cada um... dentro de uma visão subjectiva. «O que achas, Dieter?», perguntou Rio à sua sombra.

«Nada disto me interessa.» «Quando Jan Herzog disse: "Positivo, Dieter", também te sentiste abjecto e terrivelmente só, certo?» «Mas ele ainda não te disse isso. Por enquanto.» «No entanto, observaste os que te rodeavam, todos eles, e interrogaste-te: "Quem se preocupa com quem tu és e com o que tens no sangue.» «Não. E devia tê-lo feito.» «E agora? Como é esse lugar onde estás?» Não obteve resposta. Por conseguinte, prosseguiu caminho. Estava cansado. Não estava, afinal, tão estranhamente cansado já há meses, há eternidades? E havia também os ataques de tosse... «Não. Deixa isso de lado. Escuta os teus passos, uns atrás dos outros, e entre cada um deles escoa-se um pouco de tempo...» Do outro lado sussurrava o ribeiro. Observou os arbustos de lilases para se distrair, o balouçar das pontes e, por detrás das bétulas, o muro pintado de amarelo vivo do seu jardim: uma imagem destacada das restantes, como que retirada de um álbum, irreal e estranha, pois dava a sensação de que havia deixado de pertencer-lhe. Queria, no entanto, ver o jardim. Passou pela porta principal e dirigiu-se ao portãozinho que se encontrava inserido no muro circundante. Mal havia puxado a ma- çaneta, quando ouviu um grito.

-Fica aí fora! Estou a pintar! Vera! Vera estava a pintar a porta do jardim. Dirigiu-se, assim, a casa, a fim de entrar no jardim pela porta do terraço. E lá estava ela: pele cor de pêssego e membros esguios. Descalça, a parte de cima do biquini e ainda os calçÕes de ganga usados e tão justos que lhe causavam vincos nas coxas cor de pêssego. Segurava um pincel na mão direita. Estava sujo de tinta verde. Verde era igualmente um dos lados da porta do jardim e a outra metade aguardava que a pintassem. Verde estava igualmente a velha mesa de jardim de ferro e as quatro cadeiras de esplanada que no ano anterior pintara de um preto inconcebível. E verdes eram as manchas de tinta no seu ventre, no joelho direito e no braço esquerdo - e verde e cheio de esperança era o seu olhar. Deixou cair o pincel. -Rio? O que se passa contigo? - O que podia responder-lhe? O que havia a dizer? Deixou muito simplesmente ficar o pincel onde este caíra e precipitou-se na sua direcção. - Estás a chorar.. Mas o que aconteceu, afinal, por amor de Deus? Foi então que também lhe contou...

- Tu com sida? - Fitara-o com aquele espanto irritado e que ele desconhecia. No entanto, havia algo mais, bem no fundo do olhar: uma inexplicável tranquilidade. Em seguida, tinha dado um pontapé numa das cadeiras pintadas de fresco e que a atirou em voo para um canto, um pontapé com o pé descalço! Após o que se lhe pendurou no pescoço. - Pára com essa história das tuas embalagens de plasma. Ministraram-te uma outra nessa altura na Clínica Dachauer... - E acariciara-lhe o pescoço e o cabelo, acrescentando: - Ah, Rio! Confessa! Inventaste toda essa história para tapares qualquer escapadela com uma bailarina cubana e mamalhuda... Sim, era perfeitamente inconcebível a forma como ela estava a reagir. Não o levava pura e simplesmente a sério. Talvez porque quisesse ajudá-lo, talvez porque lhe parecia excessivamente despropositado e mais monstruoso do que o seu sentido da realidade podia aguentar: o choro de Rio parecia-lhe mais inquietante do que qualquer suspeita de sida. Rio não soube, todavia, como aconteceu, não, como podia ter acontecido... mas, na verdade, cinco minutos mais tarde, viu-se novamente com ela no quarto. -  Escuta-me, por amor de Deus! O que significa isto, Vera? - O que significa? - explodiu numa súbita gargalhada.

Os shorts voaram pelo ar atirados para um canto da divisão. Do umbigo até ao osso da anca desenhava-se uma mancha de tinta sobre a pele. Levantara os braços e os seios acompanharam o ritmo da corrida na sua direcção. - Vera... é impossível. Acabei  de dizer-te... - Dizer.. Nada havia para dizer. Como poderia defender-se destes beijos, dos seus abraços? - Vera... Para mim já é bastante dificil... E tu sabes...

Ela largou-o subitamente, correu até junto da cómoda, abriu a gaveta, remexeu no interior e exibiu na mão uma minúscula embalagem cor-de-rosa. - Bom... Acho realmente que os preservativos não se usam com os maridos, mas se queres mesmo... Pousou depois a cabeça no peito dele e começou a desenhar linhas e curvas no seu ventre com as pontas dos dedos. E também a boca traçava linhas idênticas e somente parava ao regressar até mesmo por cima do seu coração. Era inacreditável. Ela era inacreditável. O mundo era isto. Deitaram-se na cama. Tinham-se amado. E fizeram amor como nunca até então. No canto direito do tecto do quarto moviam-se sombras suaves de cá para lá, de lá para cá. O chapinhar da água do canal entrava através da janela.  O que poderia pensar? O que era passível de expressar   por palavras? Este amor irreal constituía a parte boa do sonho. Superou as restantes...«Não É VERDADE, Rio... Não PODE SER VERDADE!» «Claro que não», pensou, «estás somente a sonhar. Como pode importunar-te o que acontece lá fora? Consegues explicar? Vais acordar e aqui está a tua realidade: Vera, a cabeça dela que descansa sobre o teu coração. Vera... E a sida? A sida... e tu? Pura loucura ... » -Ainda não se sabe, Vera - pronunciou baixinho-, mas trata-se do mesmo fornecimento que vitimou Reissner. Matou-se com um tiro. Mas provavelmente já se dera como morto... - Cala-te - pediu ela, pousando-lhe o indicador nos lábios. Os dias seguintes sucederam na vida de Rio sem assumirem formato definido. Nada ficou na sua memória. Por seu lado, Vera vivia segundo um qualquer argumento e ele seguia-a. Resumia a trama a uma única frase: continuar a viver, como se nada tivesse acontecido.

Ainda não havia certezas. E se acontecesse o pior poderia mudar-se alguma coisa? - Ouve-me bem, Rio. Talvez o meu avô não passasse, realmente, de um pobre e insignificante professor de uma obscura escola na Baixa Saxónia. Era, contudo, um grande filósofo. Sabes o que dizia? «Na vida só uma coisa é importante: vivê-la ...» Não obteve resposta. Nessa manhã, deixou o Porsche na garagem e voltou a pegar no seu velho BMW. Manteve-se firme ao volante e deixou rolar o automóvel a seu bel-prazer. Não seguiu somente pela auto-estrada, mas por veredas, estradas nacionais e estreitos atalhos junto ao Isar. «Que se viva a vida.» Mas como, raios? Metia-se todos os dias no automóvel e rolava ao acaso. E fez o mesmo na manhã de quinta-feira. Vera ouviu-o erguer o portão da garagem, em seguida o clique indicativo de que Rio ligava a ignição e depois o trabalhar suave do motor, enquanto o automóvel se afastava... Retirou-se da janela. No ecrã da televisão um homem meio calvo e de óculos sem aros procedia a um discurso infindável sobre a formação do Uste. Vera desligou. Reflectiu sobre se deveria telefonar ao Dr. Herzog a marcar consulta, em seguida desistiu da ideia, saiu de casa, meteu-se no seu velho Go@f e dirigiu-se à Rosenheimer Platz.

Descobriu facilmente a casa onde se situava o consultório, subiu as escadas, viu~se diante de uma porta bastante gasta onde se encontrava a placa e tocou. Ninguém abriu. Voltou a tocar. O trinco da porta fez-se ouvir. Entrou. Uma mulher de cabelo grisalho estava sentada a uma secretária, a trabalhar num computador. Nesse momento, deixou pender as mãos no regaço e virou a cabeça na sua direcção.

- Gostaria de falar com o doutor Herzog.

- O doutor Herzog? Lamento, mas está indicado lá fora na tabuleta: a consulta só começa dentro de meia hora. -Mas o doutor está? A mulher esboçou um esgar. Não se expressara de uma forma antipática, mas agora parecia-lhe de mais: - Acabei precisamente de lhe dizer.. -Ouça. Sou conhecida do doutor Herzog - riu Vera. Nunca uma mentira lhe saíra com tanta facilidade. - Ah, sim? Pode talvez indicar-me o nome?

- Martin - respondeu Vera.

- Martin? - Talvez se enganasse, mas algo no comportamento da empregada do consultório havia mudado. - Oh, nesse caso... Vera sentiu-se invadida pelo pânico. O que significava aquele «Oh, nesse caso»? Os membros ficaram repentinamente muito pesados. E também não se mexeu quando a mulher falou ao telefone e, em seguida, uma porta ao fundo do corredor se abriu e um homem avançou ao seu encontro. Tratava-se de um indivíduo muito alto e de ombros um tanto curvados, vestido com uma bata branca de médico. Já vinha a sorrir-lhe de longe. Era, contudo, o tipo de sorriso que antecipa todas as explicaçÕes. Dirigiu-se-lhe com as palavras: - Frau Martin! Sou Jan Herzog. Acompanhe-me, por favor... - Obedeceu. O corredor parecia-lhe infindavelmente comprido. E a voz estava tão longe e tão distante, esta voz que lhe dizia: - Sente-se, por favor. Estava, na verdade,, à espera do seu marido... Quer dizer, ele queria vir amanhã. - Hoje, estou eu aqui - redarguiu com um aceno afirmativo. O médico fitou-a e Vera soube nesse momento o que levara Rio a ir ter com ele. Tratava-se de um homem em quem se podia confiar. - Doutor.. Eu queria, não podia muito simplesmente esperar: pensei que talvez já tivesse o resultado. - Jan Herzog respondeu com a cabeça. - E? Ele colocara as duas mãos em cima do tampo da secretária e, por momentos, deu a sensação de que iria levantar-se para ir ao encontro dela. No entanto, conservou-se sentado. Existiam apenas os olhos e aquele olhar infindavelmente triste e compassivo. - Infelizmente, Frau Martin, os receios do seu marido comprovaram-se fundamentados... Estava num cafezinho com cadeiras de costas duras e entrançadas. Através da montra, Vera podia avistar a casa onde estivera ainda há pouco, mas não divisiva apenas a fachada cor-de-rosa suja; via uma vez mais o rosto deste Dr. Jan Herzog, via os dedos magros e nodosos que esfregavam ininterruptamente um ponto por cima da sobrancelha direita, escutava a voz, esta voz melancólica, baixa e no entanto tão amiga, que pretendia explicar coisas que eram demasiado monstruosas para que pudessem explicar-se. E apesar de tudo, cada palavra, cada uma daquelas palavras voltava a marcar presença: -No fundo, Frau Martin, só o contacto directo de sangue é perigoso. Pode resultar de pequenos ferimentos. E, todavia, um caso bastante raro entre casais heterossexuais. Por esse motivo, e numa perspectiva estatística, a percentagem de contágio nos casais situa-se apenas em vinte por cento. A experiência demonstrou, entretanto, que a saliva ou as secreções corporais neutralizam permanentemente o potencial infeccioso do vírus. Vera escutava, enquanto o médico lhe espetava a agulha nas veias, enquanto observava como o êmbolo da agulha lhe sugava o sangue. Herzog garantira-lhe que não devia ter medo, mas que seria, na verdade, preferível se mandasse igualmente analisar o sangue dela. Tal serviria para esclarecer a situação de uma vez por todas. O médico tinha, sem dúvida, boas intençÕes. Que mais poderia fazer? Não sentia medo. De uma qualquer forma, talvez perfeitamente ilógica, estava convencida de que nada poderia contaminá-la. Só tinha dificuldade em entender toda aquela terminologia médica, que parecia chinês. Entendera, contudo, o âmago da mensagem. Saliva e secreçÕes corporais... Apenas vinte por cento... Potencial infeccioso... Que palavras para o amor! - A sida, Frau Martin (neste âmbito encontro-me em contacto com muitos especialistas), necessita de muito tempo para ser considerada uma sentença de morte. Tentei meter isso na cabeça de Dieter Reissner. Também o disse ao seu marido, pois hoje em dia os seropositivos só ouvem falar de morte. Não só por parte dos médicos mas sobretudo através dos média. «Doença mortal», chamam-lhe, «Insolúvel, nenhum prognóstico»... Todas são palavras de morte, e, quando se desiste, está tudo acabado. O Dr. Jan Herzog falara a toda a velocidade, sem uma pausa ou vírgula, e como é que ela poderia, assim, compreender tudo? O que sabia, afinal, de antigenes, de anticorpos? O médico fora mesmo ao ponto de lhe mostrar minúsculas séries dos mesmos, que continham pontos capazes de reconhecer o adversário. O que sabia ela de macrófagos, leucócitos e linfócitos, que sob a influência das células auxiliares T-4 lutavam contra os vírus e podiam neutralizá-los? - Há, apesar de tudo, Frau Martin, muitos doentes que sobrevivem. No entanto, pouco se fala destas pessoas. Embora Rio seja seropositivo, o que se observa na maioria dos doentes com sida, ou seja, a destruição drástica das células T-4, ainda não ocorreu; as células T-4 fornecem-nos uma informação precisa sobre o poder de resistência do seu sistema imunológico. Todas as pessoas saudáveis transportam milhares e mais destas células num microlitro de sangue. Nos doentes afectados pelo vírus HIV são apenas poucas dúzias. Mas no caso do seu marido... Vera encomendara vinho tinto. O vinho tinto acalma. Já esvaziara metade do copo. Agora, bebeu o que restava. A testa continuava a arder em febre, não sentia a pulsação e tinha as pontas dos dedos geladas. - O importante e que deve dizer-lhe, Frau Martin, é, por conseguinte, isto: o resultado é, de facto, positivo, mas tem muitas, mesmo muitas destas células auxiliares T-4 no sangue. Talvez não uma quantidade tão elevada como deveria, pouco abaixo das mil, mas este facto pode interligar-se ao seu estado geral, compreende? O sistema imunológico e o estado psíquico encontram-se inseparavelmente unidos. Há muito que se chegou a esta conclusão. Vera compreendera. «Positivo» - esta horrível palavra. Existiam, todavia, as células auxiliares. Não estavam destruídas como nos outros. Lutavam. E também tinha compreendido algo mais e era muito mais simples e importante: -Não há regras de morte HIV, Frau Martin. Há muitos, muitos doentes desconhecidos que vivem com o HIV, cujos corpos o mantêm sob controlo e que talvez mesmo acabem por destruí-lo. As revistas chamam-lhes «sobreviventes a longo prazo». Um cinismo inconcebível. Todos nós somos sobreviventes a longo prazo. Todos trazemos a morte connosco. A senhora, eu... E mais uma coisa, Frau Martin: sinto-me contente pelo facto de ter estado em primeiro lugar aqui. Fica mais bem preparada para ir ter com ele. Talvez o compreenda melhor do que eu como médico. Por conseguinte, mais uma vez, Frau Martin: todos estamos condenados a morrer. E, nesta perspectiva, todos somos sobreviventes a longo prazo... como o Rio.

A morte connosco... Lá fora, em frente da montra, um dos autocarros dos serviços de transportes da cidade cuspiu uma nuvem escura de fumaça. Subiram passageiros, passageiros que engoliram todo aquele fumo. Causador do cancro. Todos o apanham. Somos todos sobreviventes a longo prazo... Viver a vida?... «Muito bem», pensou, ao mesmo tempo que pegava na mala de mão, de onde tirou um lenço de papel para enxugar os olhos. As lágrimas e o rímel deixaram uma mancha escura. Viver a vida... Só que, para Rio, a morte tinha assumido uma forma, uma minúscula representação sob a forma de um vírus tão pequeno que trinta mil cabem num único poro capilar, dissera Herzog. Trinta mil num poro! E um único basta... em simultâneo minúsculo e poderoso. . «Como é que isto nos aconteceu, Rio? Como foi possível contigo? O amor pode matar.. Mas que pensamento! Quem terá enviado este vírus tão perigoso?...» Um vírus, uma partícula inacreditavelmente minúscula resultante de algumas centenas de milhares de átomos; «o vírus», algo entre a matéria e a vida? Por fim: será que os vírus não se encontram mesmo na situação de poderem formar um cristal? Encontram-se, sim. Mal chega a sua hora, os inimigos do homem desencadeiam o ataque a uma célula, produzem depois milhares de cópias semelhantes feitas à sua imagem, ditam as suas próprias leis ao anfitrião, tornam-no escravo de uma espécie de máquina reprodutora, que se destrói. Um processo diabólico - só que a natureza não deixa o seu crédito por mãos alheias. Inseriu o vírus na história da sua evolução milhares de anos antes do aparecimento do Homem, talvez para requintar os seus mecanismos de defesa ou talvez para criar um instrumento que lhe permitisse destruir o mais perigoso dos mamíferos como qualquer outra espécie, caso o mesmo não se enquadrasse no grande plano de construção. De uma coisa não restam, contudo, dúvidas: os vírus não são matéria, os vírus têm vida, tanta vida, que se organizam a eles próprios como parte do organismo do anfitrião; estão tão vivos que detêm poder de vida e morte sobre o mesmo. Nos espaçosos e modernos edificios do CDC, o National Center for Descase Control dos Estados Unidos em Atlanta, reuniram-se todos os chefes de departamento na Primavera de 198 1. Mediante o controlo da utilização de medicamentos, os computadores haviam detectado uma dramática subida de Pentamidin, um antibiótico que, até essa altura, fora exclusivamente empregue para debelar um único microrganismo: o Pneumozystis carinú. Este genne encontrava-se agora realmente espalhado por todo o mundo, mas apenas nos animais. No tocante às pessoas exceptuando os cancerosos em estado terminal, nos quais provocava graves infecçÕes pulmonares - era considerado inofensivo. Os epidemiólogos descobrem que a situação mudou: o Pneumozystis carinú ataca as pessoas. Pessoas jovens. Homens. E que são exclusivamente homossexuais. Decorridas somente poucas semanas, volta a soar o alarme em Atlanta. Da costa oriental chega a informação de uma quantidade inexplicável de casos de sarcoma de Kaposí. O sarcoma de Kaposi, um cancro de pele, era até então classificado como uma «doença do Mediterrâneo». Os doentes afectados eram, na sua maioria, naturais das regiÕes do Mediterrâneo ou tinham antepassados judaicos. Agora, havia a fazer a mesma enigmática afirmação: as vítimas da nova vaga da doença são homossexuais. Nas discotecas e clubes gay desde São Francisco a Nova lorque, espalha-se a intranquilidade e o pânico. Gera-se uma enorme indignação, quando os peritos aplicam aos novos casos da doença, que assentam numa inexplicável destruição do sistema imunológico, o fatal rótulo de «GRID» - «gay related ~unity deficieney». A revolta dos homossexuais contra os cientistas que afirmam que a estranha degradação do sistema imunológico tem de estar «de qualquer forma» relacionada com práticas homossexuais é legítima. Na verdade, quando nos anos 80 a «peste dos homossexuais» inicia a sua viagem de conquista pelo mundo, e ataca nas metrópoles da América, áfrica e nas grandes cidades da Europa, são igualmente detectadas as características do bacilo e da nova e perigosa epidemia: o dramático enfraquecimento do sistema de defesa do corpo. Verifica-se assim porque o vírus não se aloja em qualquer célula, mas, com uma perícia quase aliada ao cinismo, procura as células auxiliares mais importantes para a protecção contra a doença: os linfiScitos T e T-4. Ataca-as, obriga-as à reprodução da própria matéria hereditária, torna-as cancerosas e destrói-as. E tudo isto não só nos homossexuais, pois o local de origem do criminoso leva até áfrica e ali metade das vítimas do vírus são mulheres! E nas regiÕes assoladas pelo vírus não tarda a instaurar-se o mesmo quadro: quer se trate de homem ou mulher, ninguém se encontrava a salvo deste assassino, nem sequer no ventre da mãe. Também já se encontra ultrapassada a noção de que o vírus HIV era transmitido sobretudo através das relaçÕes sexuais. O vírus só conhece uma lei: viver e multiplicar-se. Espalha a destruição nos organismos que o albergam. Mata toxicómanos que se contaminam através das agulhas e crianças por nascer nos ventres maternos, infiltra-se furtivamente mediante as embalagens contaminadas nas salas de operaçÕes ou na circulação sanguínea de hemofilicos, pessoas que não podem viver

sem o sangue alheio. Um oceano de sofrimento, uma inextricável floresta de culpa e desespero, tendo a morte como resultado. Só na Alemanha há cem mil pessoas contaminadas. No entanto, os verdadeiros números ainda se mantêm no escuro, abafados e distorcidos devido à incapacidade de autoridades incompetentes que se regiam pela ilusão e prescindiam de dados correctos... SIDA - NADA MAIS DO QUE UMA PALAVRA HOMICIDA! Vera agarrava-se a tudo o que Jan Herzog lhe dissera. Cada frase mantinha-se como que imbuída no seu consciente: «A sida nada mais é do que uma palavra homicida. Quem fala dos que sobrevivem? E em São Francisco atingem uma percentagem de trinta por cento e, em parte, há catorze anos... E a prova de que o sistema imunológico de Rio funciona.» No entanto, «continuar» deixara de ser assim tão simples. Observá-lo durante horas a fio junto da janela com os auscultadores nos ouvidos por já não aguentar os ruídos e o chapinhar no canal. O quarto sempre envolto numa nuvem de fumo do cigarro. E o seu olhar distante e com uma tristeza de morte. Manter o silêncio, despejar cinzeiros, abrir as janelas de par em par, manter a calma... Vera tentava.

- Mas só pode ser assim, tesouro - dizia Cleo ao telefone. - No fundo, todo esse comportamento é perfeitamente normal, não achas? - Não, não acho. Assemelha-se a desistência.

- Tem paciência, Vera! Ele ainda só sabe há catorze dias. O que é isso? -  Também eu o sei há catorze dias!

- Mas a ti esse tal doutor Herzog pôde dizer-te que não tens sida, que o maldito vírus te poupou. Vera estava agora à beira de gritar. A voz tremia-lhe e sentiu-se irritada por esse motivo.

- Catorze dias é demasiado para qualquer um. Ele está cada vez mais em baixo. - É, todavia, compreensível, tesouro! Ele está agora a atravessar uma espécie de luto. O Max também pensa o mesmo. Está de luto por si próprio, pela pessoa que foi outrora. Só quando for completamente ao fundo e sentir terreno debaixo dos pés é que volta a recuperar. - Ah, merda! - explodira Vera, e pousara o auscultador com força. No entanto, nem uma lágrima tinha vertido. Iria aguentar. Deveria ter coragem para fazer algo, céus!... Dirigiu-se à sala de estar. - Rio? - Não obteve resposta. Fechou a porta sem fazer ruído, subiu ao primeiro andar, e retirou do armário o pau que lhe servia para abrir a escada de acesso ao sotão. Quando estivera ali pela última vez? No Outono. Sim, no Outono de há dois anos... Colocou o gancho de ferro na posição pretendida, puxou a argola e a escada deslizou. Vera trepou até lá acima. Luz crespuscular e o cheiro a sótão. A lembrança das horas passadas no sótão durante a sua juventude, quando se escondia da irmã e fugia às críticas da mãe, escrevia o diário, lia livros proibidos e sonhava com contos de fada em que acreditava... «Trabalho de luto?» Cleo tinha seguramente razão... Ali estavam os seus dois baús de alumínio, com que a tinham mandado para o colégio interno. No mais pequeno guardara sempre a roupa interior e os cadernos escolares. Sentou-se em cima da grande e sacudiu a cabeça. «Não se deixar abater! Tudo isto não pode destruir-nos! Verás que não passa de um sonho idiota!» Sentiu que as lágrimas lhe subiam novamente aos olhos. Vera tentou secá-los com as costas da mão, mas não lhe serviu de muito. Encontrou, todavia, a caixinha de cartão vermelho estampada com os cavalinhos azuis. Quando tinham colocado a estante de vidro acrílico na sala, Rio afirmara que a caixa nada tinha a ver com o acrílico e ela trouxera-a para o sótão. Juntamente com as fotografias que continha... Ignorava quanto tempo permaneceu ali sentada. Descobrira o interruptor que acendia uma lâmpada sem quebra-luz pendurada no tecto e ligara-o. Lá estavam elas, agora! Uma parte das fotografias estava metida com os negativos num sobrescrito desbotado, outras apresentavam-se todas misturadas e nas costas de muitas delas tinha escrito a data juntamente com outras referências. Não precisava de notas. Sabia, no entanto, que... Rio no momento em que regressava de uma reportagem em Beirute, transpirado e sujo, com os cabelos que lhe chegavam aos ombros e, como se tal não bastasse, com uma barba comprida, que o fazia parecer um cantor country. Aqui, uma foto do Porsche. Não era preto mas branco devido à poeira que o cobria. E uma galinha que debicava o pára-choques. Esta datava da viagem que haviam feito à Andaluzia. Em Ubeda, havia um único parador, uma fortaleza moura reconstruída. Só que nunca tinham descoberto a fortaleza moura reconstruída, haviam errado à toa por qualquer terra pantanosa entre colinas despidas e recebido mordeduras de pulgas durante a noite passada na cama com dossel de uma estalagem de aldeia... Um maço enorme de fotografias atado com um elástico vermelho. A primeira mostrava pinheiros elevados, casas com telhados enormes. A seguinte estava tremida e o lado esquerdo resumia-se a uma faixa branca, mas tinha-a na memória: uma bicicleta, a sua bicicleta. E, apesar dos seus protestos, Rio tinha-se instalado na bagageira e a bicicleta avançara pela descida íngreme. Ben tirara a fotografia, o bom e velho Ben, com quem tinham ido para Zwiefalten... Ela acabara por aterrar, juntamente com Rio, cem metros mais adiante, na valeta da estrada - e Ben fora-se embora, três dias mais tarde, profundamente ofendido. Tudo começara na valeta da estrada... «O que queres, afinal, Vera? Apanhei-te na valeta da estrada», dissera-lhe muitas vezes. Desceu as escadas a correr, dirigiu-se ao escritório de Rio, pegou num rolo de papel de fax e em cola, e também na tesoura. E quando já tinha encontrado tudo, tocou o telefone. Levantou o auscultador. - Olsen. Rio?

- Sou eu. Vera.

- Ah, óptimo. Como estão as coisas, Vera? A voz de Olsen soava com um tom de barítono, quase metálica: o vizinho simpático da esquina, não o chefe que se lembra de se inteirar do estado de saúde do seu funcionário preferido. - Bem...

- Escuta, Vera. Poderia dizer-te uma quantidade de coisas neste momento, mas guardo-as para mim. Talvez tenhamos uma outra oportunidade. - Pausa. E em seguida: - De uma coisa não nos restam dúvidas. Ele tem de sair da toca. - Sim - concordou Vera, fitando a tesoura que segurava na mão. - Só que... como? -Quem é, na verdade, o médico dele? -Um homem chamado Herzog. - Ah, esse? O doutor Herzog?

- Sim. Era também o médico de Reissner. De novo a pausa. E a respiração ofegante de Olsen: - E ele não pode ter uma conversa sensata com o Rio?

- Já teve muitas conversas sensatas. E eu também, Ewald. Decerto o imaginaste. - Claro que sim! Por amor de Deus! Volta a dizer-lhe que preciso dele, Vera! E não se trata de um qualquer conto de fadas. Trata-se da maldita realidade. Diz-lhe que deve aparecer na redacção. Diz-lhe que MÕller nunca apanhará a história... Diz-lhe, por amor de Deus, que deve pensar no que está a passar-se. Temos de encostar à parede esse porco do Engel. Rio já começou a fazê-lo. Sabe, por conseguinte, a melhor maneira e é o melhor a escrever. É o único que consegue impulsionar as coisas. Diz-lho! Ouviste? - Vou tentar. Vera fechou a tesoura e pousou o auscultador.. Manteve-se muito quieta durante longo tempo. Os ramos das bétulas, agitados pelo vento, curvavam-se diante da janela. Um pássaro tentou pousar, mas, em seguida, desistiu da ideia e prosseguiu o voo. «Rio... Rio... Poderemos conseguir. Temos simplesmente de fazê-lo. Acredita em mim. E talvez não seja assim tão dificil. Apenas teremos de aprender de novo, Rio! E ajudar-te-ei. Sei também como havemos de fazer. Precisamos de um filho, Rio ... » Dez horas da manhã. A esta hora quase não havia clientes no Café Lola. As correntes douradas que separavam as mesas e os bancos brilhavam sob a escassa luminosidade. No bar em forma de meia-lua, a empregada alisava a minissaia com uma expressão entediada. Rio voltou a pousar o Süddeutsche em cima da mesa. 0 banho de sangue em Nuremberga era imputado à mafia russa e o Governo federal pretendia acabar com o desemprego com um novo impulso e novas táticas... Não lhe interessava. Haveria ainda alguma coisa que lhe interessasse? Praticamente nada. Ergueu a mão a fim de chamar a empregada e deixou-a, no entanto, cair quase em seguida. Um homem novo encontrava-se na sua frente. Tinha o cabelo comprido e gorduroso, cujas pontas caíam sobre os ombros largos da T-shirt que vestia. A camisola também não estava muito limpa. Vestia calças de ganga e uns ténis, tinha uma argolinha de ouro na orelha e um meio sorriso no rosto. Não, não parecia realmente muito digno de confiança.

- Estou a falar com Herr Martin, não é verdade? -Porquê? Conhecemo-nos? - Agora já. Chamo-me Bauer. Pertenço ao departamento de Herr Novotny. O chefe está à espera, lá fora. - E onde? o jovem esboçou um movimento com o queixo na

direcção da montra. Desta vez não se tratava de um BMW cinzento, mas de um Atidi verde. -Então, porque é que ele não entra? Rio não obteve resposta. O estranho jovem, visivelmente um dos agentes «clandestinos» de Novotny, já se finha dirigido à saída e desaparecera, lá fora, no meio dos transeuntes. Rio pousou cinco marcos na mesa a fim de pagar a despesa do chá, não esperou pelo troco e atravessou o café. Lá fora, na beira do passeio, Novotny mantinha a porta do carro aberta.

-Olá, Rio! Rio sentou-se ao lado dele. Novotny fora visitá-lo por duas vezes a casa, a última delas há três semanas. - O que se passa? Desde quando tens alguma coisa contra uma cerveja de manhã? . - Antes do mais, tenho de percorrer cinco blocos de automóvel para encontrar sítio onde estacionar e, em segundo lugar, também não disponho de tempo. Mas gostava de falar contigo. E isso também podemos fazer dentro do carro. - Arrancou sem destino e pousou a mão direita no braço de Rio: - Gostava de explicar-te uma quantidade de coisas, Rio! - Não o faças.

- Pois! - retorquiu Novotny num tom lacónico. -Como é que me descobriste? - Estive na tua casa. A Vera disse-me que estavas provavelmente no Lola a ler o jornal. -E que foste fazer a minha casa? -Que pergunta idiota a tua. De vez em quando, apetece-nos ver um velho amigo. E, em segundo lugar, queria falar contigo. QuestÕes de serviço. Satisfeito? -Depende. - O Audi ziguezagueava através do trânsito. Chegaram à Koningstrasse. Novotny conduzia o automóvel muito devagar. Rio observava os estudantes que se sentavam nos muros em frente do Instituto de Medicina Veterinária. - E se a tua conversa sobre questÕes de serviço não me interessar minimamente? - Nem mesmo se te disser que interrogámos Engel? - retorquiu Novotny, olhando-o de lado. - Nem mesmo assim. Mas de qualquer maneira, conta... - O seu coração estava a comportar-se de uma forma estranha: deu a sensação de parar, em seguida disparou e o ritmo voltou a mudar para lento e regular. Virou de novo a cabeça e fitou, quase obstinadamente, através da janela os grandes edificios junto aos quais passavam. -- Que género de indivíduo é ele? - Ignoro. É díficil de responder. De qualquer forma não se enquadra na ideia que ambos tínhamos a seu respeito. Altíssimo. Parece muito mais novo do que é realmente. Desportivo... que sei eu. Com um superbronzeado «Ibiza» no rosto. Talvez isso também contribua. Veste calças e camisa de ganga; trazia mesmo sandálias, enquanto o seu advogado se apresentou impecavelmente vestido de fato e colete. O interrogatório verificou-se no gabinete do procurador-geral. O homem chama-se SchrÕder, Waldemar SchrÕder, ainda não tem trinta e cinco anos, mas é tão eficaz e arguto como um terríer. Wendland e eu não nos poupámos a esforços, mas de nada serviram. _  E? -Com aquele tipo não se avança um milímetro que seja - retorquiu Novotny, sacudindo a cabeça com negativa. - ... Escorregadio como uma engula. Não sabe nada, não vê nada, não ouve nada, e também não lhe interessa. Há anos que os seus verdadeiros interesses económicos se encontram em Espanha. Para a administração da Bio-Plasma e filiais tem, afinal, os seus funcionários, não é verdade? Estes são bastante bem pagos. «Além disso, senhor procurador-geral: o que pretende realmente? Há anos que praticamente não vou a Bernhagen. E o doutor Hochstett encontra-se, na qualidade de cientista, acima de todas as dúvidas. A nossa documentação comprova, indubitavelmente, que os produtos em causa não foram enviados para Munique ...» - Esse porco... - murmurou Rio entre os dentes cerrados.

- Sim, esse porco - concordou Novotny com um aceno de cabeça. - Atira tudo para as costas de Boder. Foi Boder, nas suas palavras, quem vendeu esse fornecimento. Sem qualquer escrúpulo, sem o mínimo de consciência e apenas com o objectivo de o prejudicar a ele, Engel, e desacreditar a firma. - Se tivesse ouvido tudo isso...

- Não te interessa, então? - retorquiu Paul Novotny, que descobrira um lugar para estacionar e descrevera uma curva. Mais à frente, diante do Consulado Americano, reunira-se um grupo de manifestantes. Exibiam qualquer cartaz. Também gritavam, deviam gritar, pois tinham a boca muito aberta, embora não se ouvisse nada. Os vidros do Audi estavam fechados. Apenas o ar condicionado produzia um ligeiro ruído. - Nem sequer o conseguimos ligar à Suíça. O que hei-de dizer-te? O tipo tem uma autoconfiança...

- Não deves dizer-me mais nada, Paul. - Rio conservava-se sentado no banco, com as mãos no colo e olhava em frente. A imagem do inimigo voltava a assumir forma no seu consciente. Não tinha, contudo, um rosto ou um nome. Não se chamava Engel, oh não, nem sequer tinha um mínimo de ligação com todos os mesquinhos pensamentos, métodos e truques que as pessoas utilizam para se enganar ou matar. Este inimigo era milhÕes de anos mais velho do que o Homem. E conhecia somente um objectivo: multiplicar-se. Nunca o perdia de vista, servia-se dos mais inconcebíveis disfarces e dispunha de todo o tempo deste mundo para atingir este objectivo. Cinco, dez ou quinze anos, o que fosse necessário... Os retrovírus trabalham tão lentamente que quase não se dá pela sua acção; escondem-se, aguardam, eludem a defesa, introduzem-se nas células do organismo, alteram-lhes o código genético e, em vez de uma renovação das células, geram ininterruptamente a morte. Tivera o fenômeno diante dos olhos, comprara livros e deixara-se envolver durante horas a fio pelo fascínio que emanava da imagem do inimigo: uma pontiaguda e minúscula cápsula de proteína. Microbombas enviadas para atacar as células auxiliares, tão organizadas que a célula nem se dá conta do que lá vem, a protuberância que se forma, o enzima que fende a parede celular.. - Estás a ouvir-me ou não?

- Não, não estou - respondeu Rio com um aceno negativo de cabeça. - Lamento, Paul... Mas para que és polícia? Cumpra o seu dever, senhor comissário! Mas deixe-me em paz com toda essa merda. - Estás a falar a sério... -Podes crer, Paul.

- Julgava-te uma pessoa diferente.

- Lamento profundamente, se te desiludi. Que tipo de pessoa me julgavas, então? Novotny não lhe deu qualquer resposta a esta pergunta. Nos seus olhos notava-se somente um brilho estranho. -Falei com o doutor, o teu médico...

- Dás-te a uma série de trabalhos por minha causa...

- Herzog é de opinião...

- Sim, sim, a teoria Herzog... Nada de preocupaçÕes. Há ainda tantos sobreviventes. Não, nem sequer quer aceitar a palavra «sobreviventes». Apenas depende de ti, etc., etc. Já conheço... -E há algo de verdade nisso, estás a ouvir?

- Uma treta! Paul Novotny virou-se no banco, colocou as duas mãos nos ombros de Rio, antes que este fizesse qualquer gesto para o evitar, abanou-o, forçou-o a olhá-lo de frente e sussurrou, não, sibilou por entre os dentes cerrados: - Agora é ponto final, rapaz! Definitivo! Agora estás a crescer novamente, ouves-me bem? Estás, na verdade, perfeitamente intacto. O teu sistema imunológico está incontestavelmente a trabalhar. E vais zelar para que assim continue, raios! E para tal impÕe-se que voltes a erguer a cabeça. Que faças qualquer coisa; qualquer coisa, ouves bem? Que partas para a luta, por exemplo... Atacar e não fugir, é o que importa. Essas merdas não vão conseguir.. - Ponto final, Paul - interrompeu Rio, ao mesmo tempo que afastava as mãos de Novotny. - Deixa-me em paz.

-Diabos me levem, se deixo! Um dia destes vão descobrir um método de cura. Mas até lá não permitirei que te afundes em autocompaixão. Vais sair agora da tua toca, com mil raios! - Mais alguma coisa? Rio pegou no lenço de assoar e limpou os perdigotos que o comissário lhe atirara para a cara, devido ao arrebatamento sentido. Novotny calou-se e a respiração saía-lhe ofegante. - Sim - retorquiu Novotny, agora num tom sereno. - Há mais uma coisa... Os manifestantes tinham-se entretanto afastado do meio da rua. Dois carros da Polícia passaram no local. Alguns agentes saíram para a rua e puseram-se a gesticular com eles.

- Conheço um homem que está numa situação semelhante à tua - declarou Novotny. - Há muitos...

- Bom, mas este foi contaminado da mesma forma.

- Pela Bio-Plasma? - É pelo menos o que acha. Nunca conseguiu, todavia, prová-lo com segurança. E isso está a matá-lo. - O que está a matá-lo? O HIV?

- O facto de ignorar como se verificou a contaminação. Mata-o porque lhe cabe precisamente descobrir esse tipo de coisas. Ludwig Kiefer era um dos mais conceituados investigadores da República Federal da Alemanha. Foi meu professor. Formou milhares de pessoas e, por fim, ocupou também um cargo importantíssimo em Wiesbaden. Se existem verdadeiros criminologistas na Alemanha, ele é um deles. - E porque estás a contar-me tudo isso?

- Porque ele quer falar contigo - respondeu Paul Novotny.

Das profundezas do parque soaram gritos de animais, mas conservaram-se como que num círculo de silêncio. Abetos projectavam as suas sombras sobre o lago de água lisa e os fiamingos constituíam uma ilha em tons de branco e rosa na água tinta de castanho. Algumas aves andavam sobre andas nesta ilha, montadas nas suas altas, vermelhas e ossudas pernas, e outras limitavam-se a estar presentes com a cabeça escondida no meio das penas.

-Aqui? - inquiriu Rio.

- Sim, aqui - respondeu Paul Novotny. Rio sentou-se num banco. Meteu a mão no bolso à procura de cigarros, acendeu um e inalou avidamente o fumo para os pulmÕes. Já observara muitas vezes este quadro oferecido pelos flamingos e o sol reflectido sobre o lago. Na companhia de Vera, há muitos anos, numa altura em que ainda não estava certo quanto a firrnar-se algo entre eles... No entanto, era preferível não pensar em Vera. Agora, não. -Para um encontro conspirador são, no entanto, precisas duas pessoas, Paul. Onde está a outra? - Algures nas proximidades, suponho. Deve estar a aparecer. «Mas que brincadeira era esta? O chefe mais velho de Paul... Ludwig Kiefer, o supercérebro dos criminologistas. O que pretendia dele? O que pretendia o homem, afinal?» -Bom dia! Já chegaram... Como vais, Paul? Uma voz funda, um pouco áspera, de um homem idoso. Rio endireitou-se e levantou os olhos. O indivíduo que se encontrava na sua frente deveria ter sessenta, setenta ou oitenta anos, pois este facto não era importante. Apesar do calor, vestia uma comprida gabardina verde-azeitona. Tinha os botÕes e a gola abotoados, como se estivesse gelado. O enorme crânio encontrava-se tapado com um gorro, que usava enfiado pela testa. Fitou-o. Foi mesmo ao ponto de rir, mas Rio assustou-se. Nunca tinha visto um rosto tão doente. O único traço saudável residia na brancura reluzente e impecável da prótese dentária. Uma caveira com maçãs do rosto salientes. O tom da pele era de um amarelo-acinzentado, nas têmporas notava-se um eczema escamoso que tornava a pele semelhante à de um réptil, e à volta dos olhos havia uma aquosidade que tomava a pele branca e reluzente naquele ponto. Os próprios olhos, sob as sobrancelhas grisalhas e ásperas, eram de um negro-carvão. Olhos que brilhavam como se tivessem febre        ... Rio engoliu em seco. -É, por conseguinte, Herr Martin? Alegro-me... Alegro-me mesmo muito. Li os seus artigos, Herr Martin. Rio esboçou um aceno de cabeça afirmativo. A mão que se lhe estendia apresentava-se coberta por uma fina luva de algodão. Sentiu-se grato por esta luva. - Vou sentar-me ao seu lado, Herr Martin. Posso? Raramente se passava qualquer coisa que conseguisse embaraçar Rio. Conhecera nas situaçÕes mais incríveis as pessoas mais insólitas, doentes, sofredoras, até mesmo moribundos - mas nunca havia sentido um tal constrangimento. Talvez o facto se devesse à consciência de que o homem resplandecia, apesar do seu aspecto, talvez devido à força serena da sua voz... Paul Novotny mantinha-se, em pé, diante deles. Fitava-os com a expressão atenta de um médico que observa os seus doentes favoritos. Rio sentiu um nó ainda mais apertado na garganta.

O que era aquilo, afinal?

- Moro em Steiribach, Herr Martin, sabe? Dantes deslocava-me de automóvel de três em três dias a Munique, ia buscar livros à biblioteca ou visitava velhos amigos como o Paul. Hoje, os meus passeios limitam-se ao jardim zoológico. Rio observou o movimento de subida e descida da sua maçã-de-adão. O pescoço saía, semelhante a um caule, da gola, demasiado larga. E também o pescoço se apresentava escamoso, coberto por uma espécie de erupçao cutanea. - Um jardim zoológico contém uma espécie de invulgar descontracção. Sobretudo agora, nesta altura. As aulas terminaram, os namorados não dispÕem de tempo e os pais divorciados, que andam sempre por estas paragens, também ainda não podem vir buscar os filhos... Como é no seu caso, Herr Martin? Tem alguns? - Filhos?

- Sim, filhos. Esqueci-me, realmente, de perguntar ao Paul. - Isso é, então, importante para si? - Rio não obteve resposta, mas somente aquele meio sorriso, que não era sorriso, mas apenas um inacreditável esforço de granjear simpatia. - Não tenho filhos. - Um jardim zoológico tem ainda outras vantagens - prosseguiu Klefer, após um aceno de concordância. - As pessoas deixam-se observar mais facilmente à distância. - Que prático!

- Nesta situação, sim, caro Herr Martin. E, agora, pretende decerto saber porque é que pedi ao meu bom amigo Paul para combinar este encontro? E Paul continuou em silêncio.

- Presumo que se trata da questão da Bio-Plasma...

- Para mim, a questão Bio-Plasma é demasiado vaga, Herr Martin... Trata-se de nós. E não estou apenas a referir-me a nós os dois, embora constituíssemos, na verdade, motivo suficiente. - Também o senhor, por conseguinte...

- Sim, Herr Martin. O Paul já lhe contou. Também fui contaminado através de um fornecimento da Bio-Plasma. Após uma operação a uma válvula. Estamos no mesmo barco... Temos os mesmos carrascos... Deve bastar-lhe simplesmente olhar para mim para saber o que tal significa. Interrompeu-se. Ao pronunciar as últimas palavras, a voz morrera-lhe um pouco na garganta, quase apagada, para em seguida se confundir num violento ataque de tosse. Foi um curto e horrível ataque de tosse que lhe sacudiu todo o corpo. Paul Novotny aproximara-se do homem idoso e agarrava-o pelos ombros, como se assim pudesse modificar alguma coisa. Rio aguardou até tudo ter passado, até aquela tosse seca de cão acabar, até a cor azulada do rosto desaparecer e o criminologista ter limpo a boca com um lenço de papel. Kiefer inclinou-se nesse momento para trás e secou uma lágrima do canto do olho com o indicador protegido pela luva. E a voz soou de novo mais forte, como era aliás de esperar: - Pneumococos - declarou muito calmamente.

- Os meus queridos amigos, os «cocci»... Passámos, entretanto, a dar-nos muito bem... Eles vão e vêm, Como todos os outros, aliás, quer se trate de fungos ou bactérias... - As mãos de Rio contraíram-se. - De início, quando começou esta tosse... e é aí que está a graça, Herr Martin... de início, todos pensaram: «Bom, o Klefer apanhou-a. Uma bela Morbus Hodgkin.» Quem iria julgar que um velho polícia poderia contrair sida, não é verdade? Mas deixemo-nos de rodeios. O que sou eu agora? Nada... 0 que era dantes? Um velho e enferrujado navio a vapor. Esqueçamo-nos também de si, embora, na minha opinião, pareça extraordinariamente saudável. Esqueçamo-nos de ambos e pensemos em todos os outros. Também naqueles que com toda a probabilidade virão a ser vítimas deste porco... Porquê? Porque devemos interrogar-nos: O que é que afinal já aconteceu? Controlos de rotina, isso sim, processos também, mas nenhum que o apanhe, nenhum que tenha servido para o pôr onde ele pertence. Uns andam por aí à solta e os outros morrem.» Não é assim? Rio concordou com um aceno de cabeça. Talvez fosse mesmo assim. E voltou subitamente a ter a sensação de que Reissner escutava... «Ele não tem razão, Dieter? Que te parece?» Reissner guardou, no entanto, mais uma vez silêncio.

- Tem, por conseguinte, material sobre a Bio-Plasma? E também sobre Engel? - perguntou Rio, num tom de voz invulgarmente rouco. -  Claro. E não só sobre ele.

- E, desculpe a pergunta, entregou-o a Paul?

- O mais importante.

- E o resto?

- Fui criminologista, sabe? Já não sou - retorquiu Klefer, pousando as mãos em cima dos joelhos. - Dá-me uma ajuda, Paul... - Estendeu o braço direito, Paul agarrou-o cuidadosamente e Ludwig Kiefer pôs-se de pé. Pousou a mão no ombro de Novotny. - Paul era um dos meus melhores, Ilerr Martin. Talvez ainda o seja hoje. E, além disso, gostamos um do outro. Verdade, paul? - Novotny riu. Ria qual um jovem aluno que recebe um elogio inesperado. Podia ser comovedor, só que não esclarecia a situação. Rio também se levantou. - O que pretendia dizer... - Agora, a voz de Kiefer voltara a soar abafada, pois respirava de forma ofegante e irregular - ... é que... é que... uma pessoa idosa e talvez numa situação destas... conserva, de bom grado, algumas coisas para si. Não para se sentir importante, embora esse facto possa estar presente, mas há conhecimentos e informaçÕes relativamente aos quais se sabe que de nada serve introduzi-los nos circuitos legais oficiais. E o pobre Paul é, lamento, um «circuito legal oficial». - Muito bem. - Era a primeira vez desde o início da conversa que Paul Novotny tinha aberto a boca. - Se é assim que vês as coisas, Ludwig, e consideras certo ficar sentado em cima dos teus ovos de Páscoa, que sejas feliz assim. - Considero certo. Andemos um bocado a pé. Tenho o meu automóvel parado em frente da entrada. - Quer se tivesse tratado do sexto sentido do criminologista ou fosse a sua intuição a funcionar, o certo é que interpretou de forma correcta o fugidio e surpreendido olhar de Rio: - Sim, Herr Martin. Eu próprio conduzo o meu carro. E tudo corre bem, pode acreditar-me. E na eventualidade contrária, não existe motivo para pois saio imediatamente. Fiz isso durante toda a minha vida. Saí sempre na hora exacta. - Caminharam ao lado uns dos outros. Os visitantes avançavam ao seu encontro. Kiefer tinha razão: eram Poucos os que se detinham no silêncio de um verde-ddourado do jardim zoológico. Os seus passos rangiam no caminho coberto de cascalho. Rio avistou zebras, olhos escuros e claros, que o seguiam com a estranha indiferença característica dos animais do zoo. Hienas, raposas, um lobo agitado... E no ar pairava o penetrante odor vindo do recinto das feras. - Quando é que tenciona, então, visitar-me? - indagou Kiefer, cujos passos se tomavam cada vez mais curtos. Agora, voltou a parar. Talvez a pergunta não passasse de um mero pretexto para respirar melhor. - Gostaria de fazê-lo? Não lhe exijo neste momento que me trate com delicadez, mas talvez fosse muito interessante para si também. - Irei de bom grado.

- Veja só. A minha irmã é uma excelente cozinheira e a sua tragédia reside no facto de já não ter ninguém que possa dar-lhe o justo valor. Dantes, o Paul aparecia muitas vezes. Mas agora deixou de ter tempo, verdade, Paul? - Infelizmente.

- O que me diz, então, a comer na nossa companhia? Prometo que, como aperitivo, lhe ofereço algumas informaçÕes que deve achar muito interessantes. - Rio esboçou um aceno de concordância. - Traga, apetite. Gosto muito de pessoas com apetite. Substituem-me a comer, sabe? - Encontravam-se no parque de estacionamento. Ludwig Kiefer levou a mão ao gorro, como se pretendesse endireitá-lo. O retrós da luva produziu um ruído áspero. Sob as espessas sobrancelhas, os olhos pareciam agora distantes, quase frios. E detectava-se de novo aquele riso que anteriormente assustara Rio: era um riso desenhado numa caveira... - Moro em Steinbach, como já disse. Tem aqui a minha morada e o meu número de telefone. Também vou escrever-lhe o da clínica, pois na próxima semana estarei novamente em tratamento. Não devemos queixar-nos... E os colegas lá, os outros doentes... são, na maioria, muito mais novos do que eu, mas todos uns rapazes fantásticos... - Abriu a porta do seu velho Peugeot.

O carro parecia já ter atravessado o Sara umas dez vezes. - Não posso dizer-lhe, Herr Martin, que não dará o tempo por mal empregue, se aparecer. Infelizmente, não. Entre pessoas na nossa situação talvez estas frases não sejam adequadas. Mas pode acontecer que a nossa conversa leve a algum lado. - Se pretende dizer..

- Talvez ainda possamos sentir-nos agradecidos pelo facto de o destino de um homem chamado Paul Novotny ter servido para nos juntar. Este homem vai explicar-lhe com precisão onde estarei. Desta vez não estendeu a mão. Levou-a à têmpora num gesto rápido e brusco - uma saudação perfeitamente militar. Mantiveram-se lado a lado a ouvi-lo pôr o motor em marcha para, em seguida, verem o velho automóvel deitar uma nuvem de fumo pelo escape e afastar-se lentamente. Quando desapareceu, Novotny soltou um curto suspiro, sacudiu a cabeça e virou-se para Rio: - Vou dar-te imediatamente a morada. E faço-te também o croquis. É fácil de encontrar. Sentou-se no BMW, pegou no bloco de apontamentos, escreveu a morada e desenhou um croquis com traços rápidos e precisos. Pareceu, em seguida, estar com muita pressa. Agarrou na lâmpada azul, pô-la no tejadilho do automóvel e ligou o motor. Mal havia chegado à rua, pôs a luz a piscar e carregou no acelerador. Rio recostou-se no banco. TEMOS OS MESMOS CARRASCOS... As PESSOAS NA NOSSA SITUAÇãO... UNS ANDAM POR Aí   SOLTA E OS OUTROS MORREM... Frases semelhantes a martelos... «Não são martelos, Rio», pronunciou-se Reissner.

«Factos». Ele confundia-se sempre nos seus pensamentos com a mesma voz suave e triste: «Não é assim? Admite.» «Deixa-me em paz.» E Reissner deixou-o em paz. O automóvel avançava a toda a velocidade. Os outros condutores esquivavam-se à luz azul e Paul agarrava o volante como se pretendesse impedir qualquer possuidor de reféns de executar o seu plano. No entanto, o seu objectivo residia pura e simplesmente em libertar-se da tensão provocada pelo breve encontro com Klefer. Rio sentiu-se contentíssimo quando chegaram ao comissariado. Dispunha-se a sair, quando o comissário lhe agarrou a manga com força: - Escuta-me, Rio. Escuta-me um momento. Há ainda mais uma coisa... - Novotny mordia o lábio inferior com os dentes. Parecia estar com dificuldade em soltá-lo. - O velho é mesmo meu amigo, Rio. Viste bem. - E mais?

- Quando vejo o Ludwig, fico com o coração despedaçado. Este é um lado da medalha. - Agora, fala-me do reverso.

- Bom. Quando fores a SteMbach, tens de' estar atento a uma coisa: pode parecer decrépito, mas deve sempre avaliar-se de forma cautelosa. O cérebro de Ludwig funciona ainda com mais rapidez do que a maioria dos computadores. Se te fizer qualquer proposta, se quiser qualquer coisa de ti, reflecte bem. Consulta o travesseiro... Mantém-te vigilante. Sabes o que quero dizer... - Vou tentar - prometeu Rio, pousando a mão na dele. - Até breve, Paul. E obrigado. Telefono-te... Os lilases. E estavam todos floridos. Um miúdo avançou ao encontro de Rio num triciclo e levantou o punho direito. Rio desviou-se e o miúdo riu.

Bateu à porta. Nada. O Golf de Vera estava, contudo, diante da garagem. Rio abanou a cabeça e tirou as chaves de casa do bolso. Ao abrir a porta, sentiu resis- tência e ouviu um ruído áspero, que lhe pareceu o de um tijolo. Empurrou e era um tijolo!   luz do corredor apercebeu-se imediatamente porque é que o tijolo estava ali e porque é que Vera o colocara mesmo atrás da porta. «Atenção!», lia-se no rec- tângulo, de um vermelho-acastanhado. «Vais ter uma surpresa.» Havia uma faixa de papel branco que talvez houvesse sido desenrolada de um rolo de fax. Esta faixa de um branco reluzente estendia-se desde a entrada ao quarto de dormir e estava cheia de fotografias coladas. No princípio, lia-se uma frase escrita com caneta de feltro vermelha: TODAS AS ESTRADAS VãO DAR A ROMA. ESTA É A NOSSA ESTRADA.

Por baixo, estavam pintados dois coraçÕes. Rio ajoelhou-se. A primeira fotografia estava bastante debotada. Mostrava-o em cima da bagageira de uma bicicleta de mulher, com um esgar irónico no rosto. Quando fora isto? Em Zwiefalten, claro. Naquela altura em que tinham aterrado na valeta da estrada. E a seguir? Os jardins de palmeiras de Gomera, pelos quais haviam passeado em Novembro... Aqui, de novo, ele: a chapinhar vigorosamente na água. Onde ainda? Certo, Langenargen, lago de Constança. EVera empurrara-o por cima do muro. Muito pura e simplesmente.. . E ali estava ela também! Colada na faixa de papel branco. Era uma foto grande tirada por Pestel, o correspondente do News Kurier em Berlim. Esta fotografia tinha sido feita durante a noite e como pano de fundo recortavam-se as luzes do fogo de artificio. Em primeiro plano, Vera aparecia aos ombros de um homem. Quem quer que pudesse ser o indivíduo, somente se avistava a cabeça hirsuta. Por cima, pairava, contudo, o rosto enlevado e risonho de Vera. Segurava uma garrafa de espumante na mão, segurava-a na frente dos espectadores. Berlim... Novembro de 1989... A noite em que o muro caiu.... O coração começou a bater-lhe acelerado no peito. E o dedo, que colocou em cima da foto, tremia. Levantou-se. «Vera», pensou. «Vera ... » E, em seguida, gritou: - Vera! - E abriu caminho por cima das outras fotografias, as fotos de Moscovo, as fotos que mostravam Rio, o famoso repórter do News Kurier na áfrica do Sul. Para o diabo com tudo aquilo! Abriu a porta de rompante. A faixa branca prolongava-se com mais fotografias pelo quarto. Acabava directamente na cama. E Vera conservava-se sentada em cima desta, na posição de lótus, sobre a manta índia com padrões castanhos e brancos que ele lhe trouxera da sua viagem ao Peru, fitando-o com os olhos muito abertos. -Piedade, Vera. Oh, Vera... A pele dela brilhava. Vestira uma das camisas de ganga dele, mas não a tinha abotoado. As coxas e as linhas suaves do tronco, que a camisa não tapava, brilhavam com uma alvura de neve e, quando ela levantou os braços e riu, a camisa abriu-se totalmente e libertou os globos firmes e, contudo, macios dos seios. - Vejam só quem vem aí! - riu.

- Vera... Veral Peregrinei todo o caminho até Roma. Os meus pés... ajuda-me... Os braços dele avançaram ao seu encontro, as pontas dos dedos afloraram as covas dos joelhos, tactearam com suavidade, sentiram muito suavemente o calor, todo este suave brilho, aventuraram-se mais adiante... -Deixa isso...

-Como assim? Sim... como assim? A camisa estava, agora, totalmente aberta e era, aliás, a única peça de vestuário que Vera tinha no corpo. Oh, Vera!... O corpo de Vera, o ventre de Vera, as pernas, tudo tão liso, tão íntimo e excitante. - Agora, tens subitamente pressa... E há pouco? Trouxe velas. E também queria acender um pau de incenso, mas tu... - Eu? Sim, eu... - A palavra «eu» nele assemelhava-se a um eco latejante. - De onde vens? Afasta os dedos... Fiz-te uma pergunta. Deixa isso... E acho... Os lábios masculinos abafaram todos os protestos. Sentiu como as recordaçÕes voltavam a querer invadi-lo, escutou vozes, a voz do homem idoso, e afastou-as. Vera! O pescoço, os ombros, era Vera, sim, era a vida... Prendeu-lhe os ombros com a força de um náufrago e perdeu-se no meio de toda esta oferta, desta suavidade. Perdeu-se e sentiu-se a salvo... As velas ardiam. Chamazinhas serenas e tranquilas no silêncio calmo do quarto. Respiravam como se fossem um único ser. Vera dormia... Em Rio, o atordoamento tentava abafar os pensamentos tumultuosos desencadeados pelo medo. Retirou o braço de debaixo do pescoço de Vera, endireitou-se e observou as sombras que as velas reflectiam nas paredes. E pareceu-lhe que as sombras adquiriam vida, que se movimentavam, se escoavam como tinta derramada, como se do escuro do quarto surgisse algo semelhante a uma névoa, algo que ainda não tinha nome - por enquanto. Até se transformar em rosto, no rosto que divisava sempre da mesma maneira, que o fitava como um desenho inacabado, uma boca que transparecia sempre a mesma receosa e frequentemente cínica tristeza: a boca de Dieter Reissner, o rosto de Reíssner... E, em seguida, semelhante a uma seta disparada do escuro, surgiu a pergunta de Reissner: «E então? Foi bom?» Não havia traço de desprezo. Soava mais a ameaça. «Tens mesmo consciência do que acabaste de fazer, Rio?» Durante um segundo, durante um abençoado segundo, não apreendeu o significado da frase. Em seguida, tudo se tomou claro. Em seguida, tomou-o o pânico com a brutalidade de um salteador, destruiu-lhe a protecção e todas as resistências... Retirou o braço de debaixo da cabeça de Vera, endireitou-se e sentiu-se tonto. «Tens consciência do que fizeste ... ?» As chamas das velas tremulavam.Obrilho reflectia- -se na pele de Vera, deixando-a plena de calor e de vida, e ele manteve-se junto da cama, com os dois punhos a premir as têmporas e via... via o pescoço do velho, via as crostas, as escamas de réptil... «Tens consciência...?» Fui eu... foi ela? Não fora ela quem se recusara a abrir a gaveta da mesa-de-cabeceira e agarrar numa daquelas coisas desinteressantes a que sempre chamava as «tuas ridículas protecçÕes»? Seropositivo? E daí? «Um contágio raramente se verifica em casais heterossexuais, Herr Martin. Só em circunstâncias extremamente invulgares, como, por exemplo, subtis fendas capilares...» Subtis fendas capilares?... Muito bem, doutor! «Sim, e quem pode saber da sua existência?», ouviu a voz de Reissner, o assassino, e notava-se o riso na sua voz. «De qualquer maneira, de uma coisa não podes esquecer-te: contaminaste-a! Continua muito simplesmente a viver. Esquece, se conseguires ... » Rio vestiu o roupão de banho, dirigiu-se ao escritório e tirou a garrafa de uísque da prateleira. «Não te enerves, raios!Oque se passou, afinal? Por conseguinte, domina-te...» No entanto, a bebida em nada o ajudou. O pensamento apoderou-se do seu ser como uma minúscula víbora escura, que passava o tempo a levantar a cabeça e a fitá-lo. Todos os seus argumentos caíram por terra ante este pensamento: «Contaminaste-a!» E a víbora tornava-se ainda mais escura e mais venenosa: «Se assim é... então? Só existe uma coisa a fazer: seguir o caminho de Reissner.. Meu Deus ... » E surgiu então, pela primeira vez, uma palavra com tal força que eliminou todas as outras: SUICíDIO. «Vês?» disse Reissner. «Tinha-te ensinado que assim era. E agora estamos finalmente juntos. Afirmaste que não era uma boa saída. Mas o que poderia ter feito? Não teria podido apanhar somente a minha mulher, como também a minha filha.» «Não tenho filhos». «Dizes tu. Tens a certeza? Queres que te conte que nunca quisemos ter filhos e que precisamente no dia ... » «Cala-te. Com mil diabos!», rugiu Rio. «Bom, Mas agora entendes? Talvez eu esteja passado. Mas tu? Como estás realmente?» Rio não andou mais do que meia hora de automóvel e viu-se num outro mundo: o stress, a tuberculose, os germes - tudo bem longe, como os pseudo-encantos de Munique, «a metrópole com coração»... O terreno era liso e atravessado por pequenas colinas. Havia abetos, campos de_  colza, vacas com malhas pretas e brancas, uma comprida estrada com a típica mistura de bungalós e casas de camponeses que se vê nos arredores da cidade. Sim, e havia igualmente os outeiros com a vivenda a que Paul Novotny se referira. Dos buracos da estrada de alcatrão que levava à casa crescia relva e os muros apresentavam-se cobertos de hera. Quando desceu do carro, viu-se rodeado de um frio silêncio. Olhou, perscrutadoramente, à volta. No entanto, a porta abriu-se de imediato e na ombreira recortou-se afigura de uma mulher vestida com uma bata azul-escura. Tinha cabelo grisalho e liso. Usava óculos de aros, que tirou nesse momento. -Her Martin, não é verdade?

- sim.

- óptimo. Não posso estender-lhe a mão, pois tem massa de bolo. Gosta de bolos? - Oh, claro! E estou a falar com a irmã de Herr Kiefer, certo? Paul Novotny elogiou muito os seus dotes culinários. -  Oh, Paul!... Se, ao menos, aparecesse por cá mais vezes!Omeu irmão está sentado no terraço, mesmo do outro lado da casa. Espera-o. Por conseguinte, até depois.Osilêncio reinava do outro lado da casa.Ogrande terraço rodeado por uma balaustrada de pedra levava a um enorme maciço de abetos.

Desta vez, Ludwig Kiefer envolvera o alto e frágil corpo num fato de treino castanho-escuro. Usava o barrete basco como na altura do primeiro encontro. Tinha os joelhos tapados com uma manta aos quadrados. Sentava-se numa cadeira de repouso colocada de forma a permítir-lhe avistar a esquina da casa. Diante dele estava uma mesa de jardim com duas filas de pequenos vasos onde cresciam plantas. E junto da cadeira encontrava-se um grande cesto de asas. - Como está, Herr Martin? -Orosto denotou um sorriso, ou o que poderia ter sido um sorriso num outro rosto. - Sinto-me contente por me ter descoberto. -Não foi fácil. Nesse dia, Kiefer não trazia luvas. Tinha a mão fria, húmida e flácida. Rio já não se importava de lhe tocar.

- Sente-se. Sabe o que é isto? - As plantas? -As plantas. Conhece, certamente, aqueles filmes em que os velhos moribundos se despedem dos seus hobbies. Ainda tento protelar um pouco esse momento. Sou doido por estas plantas. Observe bem as formas. Esta aqui é uma Portulaca. Está a ver os rebentos? - Rio esboçou um aceno de concordância. Tratava-se de formas carnudas e verdes de um estranho formato. Muitas assemelhavam-se a serpentes pontilhadas e outras a quaisquer animais marinhos verdes. Havia-as de formas geométricas, de todos os tons possíveis de amarelo e variantes de vermelho. E este homem que se encontrava na sua presença, este Ludwig Kiefer, o moribundo Ludwig Kiefer, criminologista, no estádio terminal de uma doença, parecia ocupado em colocar plantas em novos vasos. Para que serviriam as tesouras e os pequenos recipientes com terra de jardim? - Suculentos - esclareceu. - Tenho uma colecção na minha estufa. A maioria provém de áfrica ou da América do Sul. No começo do século passado foram trazidas para o Mediterrâneo. Hoje em dia são consideradas plantas do Mediterrâneo. Ali, mal precisam de chuva. Armazenam a sua reserva para o Inverno e aguentam-se meses a fio sob o sol ardente. São verdadeiras lutadoras... Rio esboçou um aceno de cabeça. «O que significaria toda esta prelecção sobre as plantas? Qual a finalidade da sua visita aqui?» -Já falou com a minha irmã?

- Sim. Cumprimentámo-nos. Seguiu-se uma pausa. Pássaros cantavam algures. Apausa arrastou-se. Kiefer levou a mão esquelética ao crânio, a fim de endireitar o barrete. -Pode fumar à vontade, se lhe apetecer, Herr Martin. Já não me incomoda... e hoje tive um dia sem tosse. - Rio não pegou nos cigarros. - Sinto-me contente

quando regresso à clínica. Gostava de saber qual o antibiótico que me dão lá. Por causa das malditas infecçÕes secundárias... De qualquer maneira, venho sempre a respirar melhor. - Um curto e rápido olhar de lado. Agora, Rio sabia o que Kiefer lhe recordava: um velho pássaro esfomeado. - Naquele estabelecimento é estranho ver rapazes ainda tão jovens. Embora... - Um tossicar baixo e seco como o sussurro da folhagem. - Embora haja uma fase em que todos nos parecemos. Jovens e velhos. Somente talvez só pelos olhos ainda se saiba onde está a,juventude. Através do protesto existente nos olhos. E comovedor. Os jovens não querem desistir. Mas quem quer, afinal? - E Rio voltou a fazer um aceno de concordância. Agora, Kiefer conservava a cabeça de lado e avaliava-o como o fotógrafo faz ao seu modelo. - Por seu lado, Herr Martin, está com óptimo aspecto... Incomoda-o que falemos do assunto? Do assunto? Sobre a doença? Sobre a morte? E a fechar a comida da cozinha de primeira classe da irmã... -Claro que não.

- Agora vou passar a tratá-lo por «tu», Rio. Pertencemos, afinal, ao mesmo núcleo. Na clínica ninguém usa o «você». Nem mesmo frente a um velho como eu sou... Ali o «tu» torna-se compreensível. E talvez o seja entre nós, quando perceberes o que pretendo dizer com isto... Agora, muito bem, Rio, acho que devemos falar sobre nós, antes de irmos ao tema. - E o tema? Qual é o teor? - O que há a levar a efeito. Mas por agora: há quanto tempo a tens? _  Quatro anos. Posso determinar o dia e a hora com precisão. - Também eu.

- Uma operação.

- Sim. A uma válvula. Uma operação absolutamente necessária... Estive a um passo da morte... Nesta perspectiva, nem sequer posso queixar-me. É mesmo de loucos: se o meu amigo Errist Sãnger não me colocasse na mesa de operaçÕes, talvez há muito estivesse morto. o plasma de que ali se serviram... também contribuiu de certa maneira para me salvar a vida. Só não estava preparado para o que o mesmo continha. -E onde se realizou a operação?

- Em Wiesbaden. Há muito que me encontrava ali nos Serviços de Criminologia. DispÕem de uma clínica especial, com a qual trabalham em conjunto.Oprofessor Sãnger era uma espécie de superdeus clínico em que confiávamos cegamente. E, na verdade, bem podíamos fazê-lo. Só que, na altura, Sãnger, à semelhança de ou- tros cirurgiÕes, criou uma espécie de mito: um mito, segundo descobri entretanto, habilmente construido e manipulado, um truque indubitavelmente económico: o poder curativo do plasma.Oefeito secundário curativo... Se se aplicar plasma, tudo volta a regenerar-se muito mais rapidamente. - Comigo passou-se o mesmo. -Estás a ver? - O que fez, então? - Combinámos tratar-nos por «tu», Rio.

- Não me leve a mal, talvez se trate meramente de uma questão educacional, mas tenho demasiado respeito por si, Herr Kiefer.. Faça favor de me tratar por «tu» à vontade, mas preferia continuar a servir-me do «você». - Muito bem. Nesse caso, o meu «tu» será paternal. Isso agora também não é importante. Uma pergunta, Rio: a doença ainda não se declarou",em ti? Nenhumas infecçÕes? Nenhum problema de pulmÕes ou intestinos? Estás com óptimo aspecto. Não estou a constatá-lo com inveja, mas sim com muita satisfação, acredita... Mas o que diz o teu médico? - Que o meu sistema imunológico ainda não foi afectado.

- Quantas tens. - Células auxiliares T-4?

- sim.

- Novecentas e vinte - respondeu Rio, sem conseguir reprimir um certo orgulho. Apercebeu-se de que este sentimento lhe transparecia na voz e envergonhou-se de imediato, qual músico ante uma nota desafinada, Talvez se passasse sempre o mesmo quando se tratava de conversas deste género: o mesmo percurso, o mesmo caminho; um apanha mais cedo, o outro... - Inacreditável! A sério que não fico apenas satisfeito. É importante, importante... Ludwig Kiefer não explicou o significado das suas palavras. Tirou em vez disso o gorro basco. Tinha a cabeça coberta de finas crostas amareladas. O pior residia, contudo, nos altos negros e irregulares que lhe desfiguravam as têmporas. -Já alguma vez viste um sarcoma de Kaposi? - perguntou, apontando com o indicador direito nessa direcção. Rio não respondeu, limitando-se a olhar fixamente para as manchas negras. - E este o aspecto. Quis mostrar-te. E não irei falar-te das outras coisas. Nem de como foi quando, ao longo de semanas, quase caguei a alma, nem das noites inteiras passadas na casa de banho, ou tão pouco do tumor no estômago que quase fez com que o meu pulmão direito deixasse de funcionar... - Rio não se mexeu, mas forçou-se a não desviar o olhar. Cabia-lhe dizer algo. Mas o que pode dizer-se em segundos como aqueles? Foi Klefer que retomou a palavra: - Quis mostrar-te, jovem, como é o aspecto, se vieres a atingir a fase em que me encontro neste momento. Tenho de mostrar-te para que entendas o que quero dizer-te. É a introdução. - Introdução? - escutou Rio a sua própria voz. Introdução a quê?

-Disso falamos mais tarde...

- Depois de comer? - Talvez a pergunta não passasse de um frágil protesto. Rio sabia apenas uma coisa: a situação começava a ser demasiada para as suas forças. 1 A pálida caveira que tinha na frente contraiu-se num vago sorriso: -Não. Faz-me o favor de tirares esses vasinhos. agora, dá-me esse cesto. - Rio içou-o para cima da mesa. Era pesado e apresentava-se a abarrotar de pastas, papéis e documentos. - Está aí tudo o que consegui descobrir sobre ele - começou o criminologista Ludwig Kiefer. Sobre quem? Sobre o teu assassino, Rio. E sobre o meu, se se quiser definir a situação de uma forma patética... patética e incorrecta. Pois ainda haveria toda uma série de outros a acrescentar à lista. E além disso... - Foi-lhe "possível continuar a falar. Um ataque de tosse abalou-o de alto a baixo.Ocorpo dobrou-se tanto para a frente que o maldito gorro basco escorregou. E Rio interrogou-se, desesperado, sobre o que havia agora a fazer. Não podia ajudá-lo. Como, afinal? Por fim, aquele ruído horrível e matraqueante findou. Kiefer inclinou a cabeça para trás e meteu a mão por baixo da manta, de onde tirou um lenço. Limpou as lágrimas dos olhos deVagar e respirando com dificuldade. - Apanhou-me... Agora, tudo bem. Vê as fotografias... Fotografias, sim senhor, um maço de fotografias. A maioria em formato de 6 x 9 e meia dúzia delas ampliadas. E todas a cores. @ Ludwig Kiefer não forneceu explicaçÕes. E Rio não fez perguntas, limitando-se a ficar sentado, examinando fotografias. Do monte de papéis saltou a fotocópia de um telex. Tinha uma aparência muito burocrática, com o pomposo cabeçalho: «Querido amigo, contestando a tu pregunta referiendo a Sehor Thomas Engel ... »O pouco espanhol que Rio sabia não o ajudava. No entanto, a carta cheirava a serviços da Polícia... Uma coisa era certa: o velho de gorro basco tivera muito trabalho.Oque mais interessava Rio era o próprio Engel, eram as fotografias do homem que o atormentava nos seus pesadelos.Olago reluzia por entre os escuros abetos. Da estrada lá em baixo chegava-lhes o ruído do motor de um camião, que avançava pesadamente em primeira. Rio observava navios brancos e casas brancas de estilo árabe ou de Ibiza. Os navios encontravam-se amarrados uns aos outros num estreito ancoradouro, que se enterrava pela terra castanha como a lâmina de uma faca. Eram grandes na- vios, navios luxuosos...

As casas que se encontravam dispersas à volta da enseada e se estendiam pela colina deviam ter custado imenso dinheiro. Villas brancas com arcadas mouriscas. Jardins em flor. Courts de ténis... Com vista para o porto havia terraços com guarda-sóis. Terraços a abarrotar de boutiques, bares e lojas de luxo. E por todo o lado gente, descontraída ou admirada - turistas. -Cala d'Or - soou a voz cansada de Ludwig Kiefer no estranho vazio que Rio criara enquanto observava tudo isto. -Ocampo de acção de Engel. Nada de surpreendente, pois há muito que Cala d'Or é um lugar frequentado por milionários. Ele achava o local bastante conveniente. -E onde fica? Parece Ibiza...

- Em Ibiza esteve ele primeiro, depois de ter posto a Bio-Plasma a funcionar... Quando teve a certeza de que a máquina do dinheiro funcionava, partiu para Maiorca. Não só por causa do esqui aquático nem tão-pouco das mulheres, embora seja bastante activo neste campo, mas porque atribui sempre prioridade aos negócios. Em Ibiza, Santa Eulália, fundou na altura uma firma de construção civil com um industrial de Madrid. o homem chama-se Pepe Armado. Ambos degradaram 4 paisagem com uns quaisquer blocos de chalés de ciInento, que depois vendiam mais caro... - Fez uma pausa e respirou fundo. A conversa parecia esgotá-lo. - ,,. mas no final da década de oitenta as coisas começaram a mudar nas Baleares. Maiorca, que é muito maior e tem igualmente muito mais coisas para oferecer do que Ibiza, centrou-se nos apartamentos de duas divisÕes para estomatologistas, especuladores e membros dos quadros directivos. E Engel voltou a ter a galinha áos ovos de ouro. Onde há dinheiro, ele marca sempre presença. Deu o salto em Outubro de oitenta e oito. Ainda tem realmente um escritório, mas o negócio decorre aqui... -Oossudo indicador apontou para uma fotografia: - A sua casa... próximo da Cala d'Or... o que se chama uma casa: Can Rosada é uma antiga estalagem que foi transformada num palácio particular. E... isto aqui é, aliás, o Pirata II, o seu iate. Referia-se a um dos barcos que se encontravam ancorados. Rio nada entendia de barcos. Apercebia-se somente de que se tratava de um iate a motor e bastante grande. Ludwig Klefer recostou-se na cadeira de repouso. E com os olhos fechados e sob a luz crepuscular trouxe à memória de Rio a imagem de um faraó egípcio, cuja múmia tivesse sido arrancada ao seu túmulo nas pirâmides por um violador de sepulturas ou qualquer arqueólogo sem escrúpulos. As dores de cabeça de Rio voltaram à carga. Pequenos círculos latejantes nas duas frontes, minúsculas Pontas de fogo que se assemelhavam a setas. Sabia qualOmotivo,- a noite anterior, os seus pesadelos, Ludwig Kiefer, o faraó na cadeira de repouso, as fotografias... FOrÇou-se a continuar a observá-las...

Can Rosada, a casa de Engel, situava-se num outeiro e dispunha de sólidas paredes de arenito de um castanho-dourado. No primeiro andar, havia um pórtico de colunas, mas tomava-se impossível concluir se as manchas coloridas representavam flores ou gente. à direita do pórtico havia numa torre quadrangular com ameias. Pinheiros e oliveiras formavam uma espécie de parque. à esquerda estendia-se uma fila de ciprestes. Erguiam-se escuros, quase negros, sobre um lago de um azul brilhante, orlado de duas estátuas. Parecia uma foto retirada de um catálogo para aqueles milionários que gostam de algo muito especial. Rio empurrou a fotografia para o lado e pegou numa outra.Opulso acelerou-se-lhe. Tratava-se do instantâneo de um homem e a máquina focara-o numa situação elucidativa: saltava um obstáculo e mantinha-se suspenso no ar.Oobstáculo era uma barreira pintada de branco e vermelho. Devia encontrar-se, algures, neste porto de Cala d'Or, pois em segundo plano avistavam-se proas e velas de navios. E viam-se duas mulheres. Eram as duas bastante novas e com um fisico irrepreensível. As diminutas peças de roupa coloridas que usavam não deixavam dúvidas a esse respeito. Não se divisava claramente, todavia, se se tratava de Thomas Engel. Sim, lá estava ele outra vez! Sem mulheres, sem iate, ao ar livre, sentado a uma mesa, com as mãos debaixo do queixo. Rio lembrou-se de como o gordo Olsen ficara furioso quando o arquivo fotográfico do News Kurier não conseguira fornecer uma fotografia decente de Engel para o artigo sobre o escândalo da Bio-Plasma e tinham tido, finalmente, de recorrer a uma pouco nítida e antiga fotografia a preto e branco.OGordo teria rejubilado com esta fotografia, que mostrava um homem de rosto magro e tisnado do sol, lábios finos e entradas com caracóis curtos, de um louro-acinzentado. As sobrancelhas eram quase horizontais. Mas o que mais se salientava era a expressão dos olhos. Eram de um azul-claro e nas pupilas parecia pairar uma espécie de troça velada. Era a fotografia de um homem que se preparava para degolar alguém que não conhecia e não se via. Rio virou a fotografia. Não havia qualquer anotação no verso. Apenas uma data: 24 de Março. Não era uma grande ajuda. De uma coisa não restavam dúvidas: a fotografia fora tirada com zoom. Por conseguinte, apenas as feiçÕes do indivíduo ficaram nítidas e a rodeá-lo havia todo um cenário de sombras. Visivelmente, um café. Cala d'Or. Que outro local poderia ser?... Rio observou as fotografias de trás para diante e de diante para trás e elas colavam~se-lhe às pontas dos dedos, ficando as impressões digitais escuras nos cantos superiores. As visÕes nocturnas voltaram a criar forma e com elas o seu medo. Pensou em Vera, em Reissner, e a boca secou-se-lhe, enquanto o coração começava a bater mais rapidamente. De novo Engel... Vestido com calças de ganga e um pólo, imponente e descontraído, exactamente como se imaginam os milionários. Desinteressante. - Reparaste na miúda? - perguntou o velho. Havia algumas «miúdas» nestas fotografias, embora Rio tivesse percebido de imediato a quem o criminologista se referia: um instantâneo de 6x9, provavelmente tirado com uma lente grande~angular, pois a mão focada pela máquina apresentava-se enorme e distorcida. A jovem a quem a mão pertencia era magra, queimada do sol e vestia somente um monoquiní preto. A julgar pelos contornos ainda pouco definidos dos seios, não poderia ter mais do que catorze ou quinze anos. Enquanto segurava na fotografia, lembrou-se do que concluíra sobre as relaçÕes de Engel com as mulheres. Interessava-se por menores?

Aguardava-o, no entanto, uma surpresa. - É a filha dele - elucidou Ludwig Kiefer. - Chama-se Irena. Foi até agora educada num colégio interno, no Odenwald-Schüle, mas ele conseguiu, por qualquer meio, convencê-la a sair de lá para se lhe reunir. Não tem, obviamente, direito de custódia. E a mãe levantou-lhe um processo judicial. Mas nada disso consegue deter um Engel. -E ela está a viver com ele?

- Sim. -Como sabe tudo isto? Onde foi buscar as fotografias e todo este material? - Vamos perder tempo com esse tipo de conversa? -Mas é um dossier completo... -Quando tomo a meu cargo alguma coisa, caro Rio, resulta facilmente um dossier. - Voltou a tossir. Rio interrogou-se, preocupado, sobre se o acometeria de novo um daqueles horríveis ataques de tosse. Todavia, enganara-se. - Este é, sem dúvida, o dossier mais importante que reuni em toda a minha vida. E também o último... - Por mais debilitado que pudesse parecer, expressava-se num tom de voz firme e claro. E os olhos haviam igualmente recuperado uma vivacidade própria. - Podes passar em revista tudo isso, documento por documento. Não permitirei, contudo, que o leves. Infelizmente, uma porção do material encontra-se em espanhol. Os meus contactos dos velhos tempos ainda estão activos. E neste caso, podes acreditar, servi-me de todos eles. Sobretudo da minha amizade com Pablo Vidal, um coronel da Guardia Civil. Na sua qualidade de especialista em drogas, é agora uma espécie de comissário especial no governo civil de Palma.Oque significa que possui acesso a todas as delegaçÕes de polícia espanholas. É o meu homem em Maiorca. - Rio pousou novamente o olhar no rosto de Engel. E sentiu mais uma vez aquela mistura de desdém e ódio. Klefer tinha, por conseguinte, um «homem em Maiorca». E este vigiava Engel ou ele assim o permitia. Maiorca? Ante todo este contexto, a palavra quase parecia obscena. - Rio... - A mesa oscilou. Ludwig Kiefer tinha apoiado as duas mãos no braço da cadeira de repouso e soerguia-se. A manta caiu no chão. Em cima da mesa ficara ainda um vaso de flores e Rio apressou-se a deitar-lhe a mão, antes que escorregasse, Klefer nem sequer pareceu aperceber-se do movimento. - Agora quero falar contigo sobre o projecto, Rio - declarou. Começou a percorrer o terraço de um lado para o outro, de queixo levantado e as mãos enfiadas nos bolsos das calças de treino ínacreditavelmente largas. - Talvez a palavra «projecto» soe a algo demasiado pomposo: ainda não passa de um mero plano. - Tinha parado junto à balaustrada e fixava Rio. Apesar da distância, a sua voz era clara e nítida: - A condição prévia para qualquer plano reside em que se clarifique a situação. Fi-lo. Para mim, só resta uma coisa: chegar ao final. Já tenho o bilhete de viagem. Não é especialmente dificil: trinca-se uma pequena cápsula e engole-se. E o bilhete também não seria mais caro... - Contraiu os cantos da boca num esgar horrível: - Quero dizer se se tiver em conta a duração da viagem. - A duração da viagem... Rio sentiu que o frio lhe invadia a nuca. Sentiu como as costas se lhe retesavam. Manteve-se sentado muito rígido, com as mãos em cima dos joelhos. A noite...Opensamento do que poderia ter feito a Vera... feito através do amor dela, do seu amor.. A pequena víbora, a viborazinha negra... Lá estava ela novamente... - Não é, contudo, aí que reside o problema.Oproblema está noutro aspecto... - Klefer voltou a aproximar-se da mesa e cerrara agora as mãos, cheias de manchas e escamosas. Eram dois punhos ossudos em cima do tampo metálico. -Oproblema reside em que não estou a pensar ir sozinho. Não posso. Outros têm de ir comigo. Engel? - inquiriu Rio num tom baixo e ofegante.

- Engel, claro que sim. Mas não apenas ele... E é aí que está a minha dificuldade, pois existe um outro que também terá de ir comigo... - Rio fitou-o com os olhos esbugalhados. Tentava compreender.. Nesse momento Ludwig Kiefer recompôs-se, folheou documentos e actas, pegou num sobrescrito e tirou uma fotografia do interior. - Aqui... este! - Tratava-se de uma daquelas fotografias com uma iluminação cuidada e que se enquadram a preceito numa moldura de prata. Mostrava o rosto quadrangular e bastante rubicundo de um homem que talvez já tivesse ultrapassado há muito a casa dos cinquenta anos. A armação moderna dos óculos de aros metálicos dava-lhe uma aparência de importância e intelectualidade, mas os lábios eram finos e retraídos e os olhos fitavam o próximo com superioridade. Era... sim, era o rosto de um funcionário do governo tão típico como se houvesse sido cunhado por uma máquina. - Chama-se Bernhard Hampel - informou Ludwig Kiefer. - É director governamental. Mais exactamente: foi. Em todos aqueles anos críticos em que aconteceu a sujeira, naqueles anos em que ninguém achou por bem dar explicaçÕes, Hampel era o responsável pelo trabalho relacionado com a problemática da sida na Direcção de Saúde em Berlim. Era, por conseguinte, o chefe da central. Foi ele quem abafou os protestos dos hemofílicos por mais alto que soassem; foi ele quem não atribuiu a mínima importância ao pior, que não informou correctamente os ministros e que, onde havia ameaça de se se descobrir algo, estendia sempre a mão protectora aos amigos. Agora, foi «aposentado antes do tempo», como se chama. Agora, pode finalmente saborear o facto de pessoas como Engel lhe terem enchido os bolsos. Além de que, um dia destes, ainda acabará por receber facilmente a reforma por inteiro, a julgar pelo que está a acontecer... Rio não deu qualquer resposta, pois apenas tinha perguntas. Através de uma das janelas abertas da casa saía a música triste de um piano. «Irma está a pôr a mesa...», pensou. -Afirma que ele «está por dentro»? Ludwig Kiefer voltou a sentar-se. Espetou o queixo para diante. - Passa-se exactamente o que estás a pensar, Rio. à a primeira e a única pessoa, Rio, com quem falo do assunto. Decidi matá-lo. A ele e a Engel... Rio tentou engolir, mas tinha a boca demasiado seCa. Não podia acreditar no que tinha ouvido. Você? Sim... eu - anuiu Kiefer, enquanto metia novamente a fotografia no sobrescrito. - Não me olhes dessa maneira. Não me achas evidentemente capaz de o fazer. tudo mudará. Na clínica vão afinar-me de novo. Podes ter a certeza. Será apenas e como habitualmente fogo de vista, mas chega. Afinal não preciso aguentar mais do que cinco dias. E conseguirei.- Silêncio. Aos ouvidos de Rio chegava apenas um leve zumbido. Todavia, as dores de cabeça tinham desaparecido, como que varridas. Tentou digerir o que escutara. Não conseguiu. As ideias sobrepunham-se como as cores de um caleidoscópio: Calador, o iate -de Engel, a casa... E agora, um tal que se chamava Berd Hampel e morava decerto em Berlim. E este esqueleto ambulante de nome Ludwig Keefer queria...? Sentiu nesse momento o frio que lhe chegava das sombras escuras dos abetos e os envolvia a agibos. Reinava um silêncio enorme. Estavam sentados à mesa como que numa ilha. «... no mesmo barco», Dieter Reissner? Dieter estava morto e os dois se encontravam vivos... E, em seguida, com- Esperar simplesmente até tudo ter passado, reSignar-se, considerar tudo inevitável e imutável, enquanto um Engel, enquanto um canalha corrupto como este Hampel... - Estarias disposto a ajudar-me, Rio? Esboçou um aceno de cabeça afirmativo.Omovimento surgiu espontaneamente, como que ditado por um impulso interior. - Era o que esperava, Rio... - Estendeu a mão e acariciou a de Rio. - Tem de ser assim sussurrou. - Acredita-me. Será o sinal de que tudo mudou. E precisamos do sinal. Não apenas nós, mas todos os outros. Existe, porém, um grande obstáculo... - Qual?

- A sincronia. A simultaneidade. Por uma questão de impacte nos média, seria preferível que tudo acontecesse no mesmo dia e somente com umas horas de diferença. Tenho algumas teorias a esse respeito... Agora, irei para a clínica e reflectirei sobre isso. Acredita que vou achar a solução... - Agarrou num pedaço de papel e escreveu um número de telefone. - Aqui tens o número do hospital. Talvez possas telefonar-me para lá...Opesado jipe desvIara-se da estrada e seguira pela primeira das colinas que subiam em ondas suaves pela montanha; em seguida desapareceu, voltou a aparecer, deixando desta vez uma nuvem de poeira para trás e que se dissipou lentamente nas elevadas alas de ciprestes que constituíam o acesso à Can Rosada. Irena largou a revista e levou a mão à testa, a fim de proteger os olhos da luz. Madalena, que, como todos os sábados, viera da propriedade para conversar com ela durante a tarde, pusera-se de pé. - Lá vêm eles!

- Quem?

- O meu velho. O teu pai mandou-o ir ao aeroporto. Quem deveria ir buscar, certamente que sabes, ou não? - Talvez devesse saber, mas não me interessa - respondeu, voltando a mergulhar na leitura do artigo. A revista chamava-se Prima e ela estava a ler a coluna

social. Especulava-se sobre se o príncipe espanhol tinha ou não uma namorada. Lutou esforçadamente com as elaboradas frases espanholas. Se tudo continuasse como estava e falasse com Madalena em alemão, ainda teria de receber explicaçÕes de espanhol e Thomas bem podia enfurecer-se à vontade. Também em Palma, no liceu alemão, onde passava os dias com excepção dos fins-de-semana, era o mesmo: todos falavam com ela em alemão. Muitas vezes, sempre que sentia saudades do seu país natal e a pergunta «O que estás realmente a fazer aqui?» ameaçava sufocá-la, já nem sequer a ajudava a comparação entre a chuvosa Odenwald e a soalheira Maiorca. Como se alegrara com a presença do pai, céus! Como sonhara passear com ele no Pirata pelas enseadas, viver no meio de gente alegre e simples, conhecer pessoas novas e não uns chatos! Mas isso não conduzia a nada. Já que Thomas queria dar as suas festas na luxuosa garagem e receber na companhia das suas mulheres todos os seus conhecidos corruptos - deixara-lhe, pelo menos, a pousada quando ela estava ali. Mas, no fundo, acabava por passar os dias no internato... - É um alemão - declarou Madalena. - Aposto o que quiseres.

-E daí? Além do mais: como é que sabes? -Pela maneira de andar... Nesse momento Irena pôs-se igualmente de pé.Oautomóvel tinha parado no parque de estacionamento inferior.Opai de Madalena e gerente da Can Rosada estendeu uma mala ao recém-chegado. Irena apenas divisava as costas do homem que subiu os degraus de acesso ao terraço, muito direito, como se tivesse engolido um pau de vassoura. E vestido com um casaco azul com este calor? Madalena tinha razão. Característico de um alemão! -Uma avis rara! - observou Madalena.

Agora, tinha parado. Com a mão pousada na balaustrada de pedra, que acompanhava as escadas, virou-se um pouco, a fim de apreciar a paisagem. E valia a pena: olivais, aldeiazinhas, sob as casas brancas de Cala d'Or; em seguida o mar, de um azul cobalto, a perder de vista... - Conheço-o. - Um amigo do chefe? - Madalena tratava Thomas por «eljefe», como todos aqui, e ele era-o realmente. Não desperdiçava, pelo menos, a mínima oportunidade de o demonstrar. Mas amigo? Será que Thomas tinha amigos? Há muito que Irena duvidava que assim fosse. - Não é amigo. Um dos seus escravos assistentes, Madalena.

- O que é isso?

- O homem é médico e dirige um laboratório de produtos farmacêuticos. - Onde? -Num lugarejo miserável chamado Bernhagen. Só espero que nunca venhas a conhecê-lo. - E o que é um escravo assistente? -Esquece! - redarguiu Irena com um gesto da mão. - Nunca serias capaz de entender.. Sim, ela fazia-o com habilidade e sem um mínimo de impaciência ou falta de jeito. Uma mãozinha semelhante a veludo, para cima e para baixo, para cima... Engel sentiu os músculos da bacia descontraírem-se e fechou os olhos. Fazia, na verdade, tenção de pôr Kitty fora na semana seguinte. As três semanas haviam passado e três semanas eram, na realidade, o máximo que podia conceder a uma mulher em Can Rosada. Mas esta fera... oh... só com dificuldade conseguiu abafar um gemido. E nesse momento ela parou.

-És doida? - pronunciou entre os dentes cerrados.

-  Mas Thomas... Vem aí alguém... Também ele ouvira o automóvel. Hochstett... -E daí? Continua! E ela obedeceu, rapidamente e tão bem que todas as suas emoçÕes cresceram no seu íntimo semelhantes a

um balão quente e vermelho e explodiram num som surdo e profundo. Soltou um suspiro de alívio, óptimo, okay, fez uma festa na cabeça loura de Kitty, passou as pernas por cima do sofá de cabedal, dirigiu-se à casa de banho, tomou um duche, vestiu o quimono curto e branco, após o que saiu para o terraço. Hochstett... Ali estava ele. Rugas de preocupação no rosto pálido, um esboço de sorriso e aquele inacreditável casaco, como sempre. Havia, no entanto, algo naquele esgar que desagradou a Engel. -Cá estás. Que tal o voo, Jochen? - Nada de especial. -Comeste no avião? - sim. -Uma bebida?

- Obrigado. Prefiro uma água mineral. água mineral! Também isto era típico. Conhecia-o e sabia também por esse motivo que esta visita de Hochstett trazia água no bico. Céus! Como é que ainda tinha Hochstett à perna? Porque não tinha aceite quando ele lhe oferecera seis milhÕes pela fábrica e quisera igualmente quebrar todos os vínculos? «Se o tivesses feito, estarias agora liberto de um monte de preocupaçÕes e também deste maldito grão-de-bico do Hochstett ... » -água mineral não há. Agora, não. Não para ti, Jochen. Deixa-te de tretas. Do que precisamos é de garra.

- Arranja-nos qualquer coisa para beber, Kitty. Vinho, Jochen? - Cerveja, uísque, conhaque? - Cerveja. Kitty saiu e ele observou como Hochstett a media sob as pálpebras descidas. Nunca deveria pôr os olhos num traseiro como aquele só coberto pelo biquíni. Talvez servisse para o tentar. Um tipo frustrado também tem as suas fraquezas... Engel dirigiu um sorriso a Kitty, quando ela regressou com o tabuleiro. - Vai até à piscina. Ou vê o que está a fazer a Irena.Omeu amigo Jochen tem coisas terrivelmente importantes para discutir comigo. E, se bem o conheço, quer estar a sós. Kitty desapareceu. Engel fez tilintar o gelo no copo.

- Bom.Oque era assim tão urgente e que não pudesse ser falado por telefone? -Tudo é urgente, Thomas. E já nada se pode falar por telefone. - Porque vens, então, aqui? - inquiriu Engel, continuando a brincar com o copo. - Como?

Engel inc linou o tronco para diante e agitou o copo com tanta força que o uísque subiu. - Ouve bem! Não recebi apenas o teu telefonema, mas o doutor SclirÕder também me contactou. Para ele, o assunto ainda está na fase de inquérito. Ele deve saber. É, afinal, advogado... Não podem fazer nada contra nós, Jochen, não têm provas. Somente têm uma suspeita. E agora, uma palavrinha para ti - prosseguiu com um esgar. - Numa situação destas, devias estar na ponte do barco. Mas o que fazes, afinal? Abandonas tudo e vens ter comigo de avião. Deixou de ser inconsciência para lhe chamar uma perfeita idiotice. - Ouve? - És tu quem vai ouvir-me.Oque pretendes, afinal?

E se eles tiverem, por exemplo, o telefone sob escuta? Talvez tenham posto alguém atrás de ti? - Examinou o que o rodeava e baixou o olhar na direcção das escadas, como se pudesse descobrir uma sombra por detrás dos ciprestes. - Numa situação destas somente há que manter a calma e prosseguir o trabalho como sempre. Business as usual... Nada de nervos. É disso que eles estão à espera. Mas tu... Engel voltou a olhar para dentro do copo e torceu

os lábios num esgar, como se tivesse descoberto uma mosca no uísque. - Sim - ouviu a voz de Hochstett.

Estou aqui.

- Bem veio - redarguiu, erguendo os olhos, surpreendido. - E sentes-te ainda por cima muito orgulhoso, não? Talvez venha a descobrir, finalmente, porquê. -Tens toda a razão, Thomas - retorquiu Hochstett, erguendo os olhos para o céu. - Deixei de estar na ponte. E também não quero lá estar. Tenciono abandonar não só a ponte como também o navio... Engel estava surpreendido. Uma declaração destas encontrava-se naturalmente no âmbito do possível, mas que Hochstett a tivesse feito com toda esta simplicidade

e sem qualquer preâmbulo táctico? Expressara-se em voz baixa e com uma calma surpreendente, tendo, por conseguinte, preparado o discurso, com todo o cuidado, de antemão. Engel colocou as mãos bronzeadas sobre o peito nu.Opolegar e o indicador brincavam com a pesada corrente de ouro que tinha pendurada ao pescoço. - Olha-me de frente! - Silêncio. Sobre o cume seco da colina, pombas voavam em círculo. Chegava-lhes de algures o ruído suave de um gerador. A terra, a costa, o mar, tanta paz... Hochstett limpou o suor da testa com as costas da mão. - Porque não despes o teu maldito casaco? - Hochstett levantou-se com uma expressão ausente e libertou-se da peça de vestuário. - E agora, a gravata... - A voz suave, paternal, protectora... quantas vezes a ouvira, quantas vezes a seguira, sem segundos pensamentos nem hesitaçÕes. Sim, também. Só que agora tudo isso havia chegado ao fim. Definitivamente. - Acaba de beber a tua cerveja, Jochen, e depois diz-me com toda a calma... - Já disse o que tinha a dizer, Thomas. Não vou mudar a minha decisão. Engel levantou-se. Sob os pés descalços, sentiu os mosaicos que o calor da tarde havia aquecido. Observou, pensativo, o homem contraído e magro sentado na cadeira de vime; e o seu cérebro avaliava, em simultâneo e rapidamente, possibilidades, conclusÕes e consequências. E chegou a uma única conclusão: por mais ridiculamente influenciável que Hochstett tantas vezes pudesse ter-lhe parecido, era visível que nele existia uma resolução inquebrantável. Podia igualmente apresentar dificuldades. Malditas dificuldades... Regressou até junto da mesa e agarrou com as duas mãos as costas da cadeira onde Hochstett estava sentado. -Muito bem, Jochen. Esqueçamos por uma vez a minha opinião. Examinemos o que propÕes. Qual é, afinal, a tua perspectiva? A voz vinda de cima - sugestiva e um pouco divertida, como sempre. A boca de Hochstett estava seca, o que lhe dificultou a resposta. - Vou expor-ta de uma forma simples, Thomas: pagas-me e... desapareço. -  Portanto, pago-te e desapareces? E o que te pago? - O que me deves. - Ah! Vamos deter-nos no segundo ponto. Desapareces... o que significa isso? - Significa que assim que tiver dinheiro na minha conta da Suíça apanho o avião para a Venezuela.

- Venezuela? Ah! Claro. Ainda continuas a ter lá uma base. Lá encontra-se o nosso velho amigo Alonso. - A ironia na voz de Engel ainda se mantinha, mas juntara-se-lhe uma outra faceta. - O bom e velho Alonso ganhou finalmente o bastante. Conseguiu todos os fornecimentos de carvão com a nossa ajuda. Mais do que todos esses bandidos dos importadores juntos. E quem é que tomou isso a seu cuidado? Diz-me, quem? - Hochstett não respondeu. - Uma pergunta mais simples ainda, Jochen: Quem? Tu... ou eu? Hochstett fez menção de apoiar os pés e esboçou um movimento desesperado - tarde de mais. Seguiu-se a sensação de queda, depois, a dor! Uma chama intensa e branca de dor, que lhe atingiu a nuca para se dissolver num ribombar metálico. Hochstett tentou rolar de lado e não conseguiu. Ele havia simplesmente derrubado a cadeira! «Atirou-te para o chão de pedra como se fosses um cão! » Sabia-o, agora. «A minha cabeça, oh, a minha cabeça ... » Não queria abrir os olhos. Fê-lo, todavia, e olhou para as pernas morenas e musculosas por cima dele, apercebendo-se de que Engel estava nu por baixo do quimono preto e branco. Ali, pendia aquilo de que Thomas tanto se orgulhava - e mais acima havia o rosto de Engel, o seu esgar maldoso, o esgar de um demónio louro. E como se tal não bastasse, aplicou-lhe ainda um violento murro no queixo e empurrou-o para o lado. - Tu ou eu, Jochen? - Hochstett gemeu. - Doeu-te ou não?

- Tu... tu...

- Sim, eu. Achas que tudo isto me diverte? Esperavas, por acaso, que te felicitasse pela tua fantástica ideia? Voltou a pôr a cadeira de pé com um movimento rápido, fitou Hochstett, endireitou-o e enfiou-o no assento.

- A minha cabeça... - Hochstett tinha lágrimas nos olhos. Estava quase a soltar um uivo por mais que, no íntimo, se opusesse a tal. - Estás doido? Podia ter feito uma fractura craniana... - Fractura craniana, uma ova! Só tens um alto. Senta-te à sombra. Não, vai tomar duche e depois voltamos a falar. Ainda não acabámos os dois... - Quando Hochstett regressou, tinha o cabelo molhado e colado à cabeça. A pele do rosto não estava branca, mas amarelada com uma cor semelhante à de papiro. Com a mão esquerda premia um lenço de assoar contra a nuca, dorida. - Que tal a fractura craniana? - inquiriu Engel, fitando-o com uma expressão compassiva. Hochstett limitou-se a devolver o olhar. - Não queres sentar-te? Hochstett conservou-se de pé. Decorreram segundos, sem que Engel abandonasse o sorriso. Mas, em seguida, começou a falar. Expressava-se num tom tão baixo que Engel só com esforço o compreendia com esforço, sim, pois tudo o que aquele homem magro com o colarinho da camisa molhado lhe dizia o enervava.Oque acontecera, declarava Hochstett, parecia-lhe agora a consequência lógica de uma morosa evolução. Devia sentir-se mesmo agradecido a Engel que assim fosse, pois tudo se lhe tomara claro até ao mais ínfimo pormenor. A clareza mais não era, afinal, do que a condição prévia do saber. E nesta perspectiva também se enquadrava, por exemplo, o facto de achar que equivaleria a um suicídio continuar a falar de ânimo leve sobre a situação em que todos se encontravam. - É definitivo, Thomas. Thomas Engel brincava com a corrente de ouro.Obranco descorado dos olhos adquirira um tom mais escuro. - Focaste apenas a essência, Jochen – retorquiu num tom calmo. - Agora, gostaria de ouvir algo um pouco mais preciso. -Bom. Então é assim, Thomas... Deves-me um milhão e duzentos mil. Não em marcos alemães, mas em dólares. É a quantia correspondente aos doze por cento de lucro que me foram prometidos por contrato. Ainda não vi um pjènnig da mesma nestes últimos anos, durante os quais, a troco de um ridículo cargo de chefia de um negócio, encobri toda a ilegalidade que tramaste. Dos meus ganhos foi mesmo deduzido o dinheiro dos subornos, que tão generosamente prodigalizaste aos tipos das clínicas e institutos para que nos comprassem a mercadoria. Mas pessoalmente sugaste todo o dinheiro à firma... -E mais? - incitou Engel que nesse momento polia a corrente de ouro com a manga do quimono. - Por conseguinte, um milhão e duzentos mil dólares, é isso? Mas ainda não é tudo, se estou a analisar correctamente? - Exacto. Não vou esperar muito tempo pelo dinheiro. Este deverá ser depositado até dia dezassete, na verdade dezassete deste mês, na minha conta. - Até à próxima semana, portanto?

- Até à próxima semana, Thomas.

- Senão... - Hochstett calou-se. As pombas haviam regressado. Voavam a rasar sobre o edificío da Can Rosada. - Estás doido - disse Engel soltando a corrente e pronunciando as duas palavras num tom seguro de afirmação. - Podes pensar o que quiseres, Thomas.

- E como tencionas levar-me a aceitar a tua loucura, em vez de te mandar para um psiquiatra ou algo no género? - Posso explicar-te. E vou ajudar-te a reflectir se será o mais indicado agires comigo como fizeste com os outros... A título de pequena referência, Thomas: passei ao papel tudo o que se passou na firma. Repito: tudo. Também como Lars Boder, Jürgen Cenitza e a pobre Reichenbach tiveram de sofrer as consequências, só porque achaste oportuno silenciá-los para sempre... Fui mesmo ao ponto de incluir o que aquele teu psicopata doméstico do Renê preparou à rapariga do jornalista que andava na nossa peugada. Ainda está tudo lacrado. Mas se eu não aparecer mais nem telefonar, o material será enviado ao Ministério Público. Alguns homicídios com a obstinada prática de negócios de Thomas Engel. Tudo anotado e comprovado. - A nossa prática de negócios, Jochen.

- Mas não os nossos homicídios - replicou Hochstett com um encolher de ombros. Engel levantou-se e dirigiu-se à balaustrada. Pousou as duas mãos abertas em cima da pedra e fitou demoradamente a terra e o mar, como se dali fosse receber qualquer resposta. Em seguida, virou-se: -Xeque ao rei, hem, Jochen?

- Chama-lhe assim, se quiseres - anuiu Hochstett com os lábios retesados.Ocheque encontrava-se na carteira de Jochen Hochstett. Era um cheque do Banco Bilbao Biscaia, um pequeno pedaço de papel branco, que tinha escrita a soma de «sessenta milhÕes de pesetas». Estava muito longe de ser o milhão e duzentos mil dólares que ele tinha exigido, era muito menos - e muito mais... Como sempre acontecera dantes com os seus planos, também este se havia derretido como manteiga an- te o olhar penetrante de Thomas Engel, ante o seu: «Sê razoável, Jochen. De que te serve ires para a América do Sul? Aqui vives muito melhor.» E Engel não se poupou a esforços para consolidar a seriedade da sua proposta. Fora mesmo ao ponto de mostrar a Hochstett o extracto bancário do dia anterior para provar a sua solvência, extractos bancários oficiais, tudo na devida ordem. E, após uma morosa e acalorada discussão, foram parar ao escritório de Engel, em Cala ItpOr. Também aqui havia uma série de coisas para adffi~-: não só o grande modelo do novo campo de golfe pa

jol, com residências para mais de mil pessoas (os jogadores de golfe que podiam permitir-se tais residências" viviam luxuosamente), mas também fundos seguros despesas de funcionamento, consumo de água, de construção, lucros de venda do complexo habitacional... - E agora, Jochen, compara! Aprendeste a ler balanços comigo. Bernhagen ou Cala d'Or? É a tua opção. -pois também podes estar aqui. E de novo com doze por Só que desta vez posso pagar e não voltar a ter dificuldades como com esse maldito negócio do plasma. começou por ser uma boa ideia. No início dos anos oitenta. Mas agora? Não falemos disso. Digamos antes: aqui trata-se de relva verde que se deixa dourar. Bergen era um sujo pântano de sangue, fundo e inútil. Porquê? Porque somente tinha a ver com marginais, figuras corruptas ou doentes mentais. Mas aqui, Jochen, tem gente com capacidade de solvência e uma que representa na verdade um paraíso... e agora começa de forma tão perfeita...

- Bom, Jochen, o que achas? Comecemos do princípio. Agora estamos novamente quites. A este «quites» seguiu-se o lado agradável da vida: uma refeição ligeira, uma sesta prolongada, depois a viagem de regresso a Cala d'Or, para comprar um fato de banho. A loja era realmente luxuosa e a vendedora uma daquelas deusas espanholas: olhos inverosímeis, cabelos inverosímeis e um sorriso inverosímil. E dado este sorriso ter impressionado tão Positivamente Jochen Hochstett e também porque, entretanto, se sentia um tanto desconfortável com a sua roupa, comprou igualmente umas calças de linho brancas, sapatos leves e uma T-shirt azul.Ouniforme de férias... Em seguida, subiram a bordo do Pirataff. E aqui encontrava-se uma outra deusa: Kitty. Este olhar.. E este corpo inacredítável... A cintura, as ancas, as pequenas peças de tecido verde que usava... Estas eram, de facto, tão reduzidas que poderia dispensá-las... Hochstett sentiu que as orelhas começavam a arder-lhe. Tinha os óculos de sol postos. Talvez ela notasse que estava a observá-la, senão porque se compunha e esticava os seios? Estes eram, na verdade, um espanto!Oque se diz em tais situaçÕes? Hochstett não se lembrava de nada. Nada, à excepção de perguntar se Kitty era uma das «hospedeiras» de Thomas. Já dantes se encarregara de ir buscá-las em série às melhores casas de Francoforte, a fim de as prodigalizar a clientes, médicos ou quaisquer funcionários idiotas do Governo. Kitty voltara a desaparecer. Hochstett pegou no frasco de óleo de bronzear, derramou algumas gotas na mão e esfregou a testa. Estava agora sozinho numa das cadeiras de repouso do convés. E apreciou o momento: as gaivotas, o suave balouçar, o facto de as dores de cabeça se terem desvanecido apreciou tudo.

Pinheiros isolados agarravam-se às rochas. As tempestades tinham-lhes diminuído o tamanho, mas continuavam bem presos. E o mar, aqui no silêncio da enseada, era de um azul quase negro.O grande barco branco fitava a superficie que reluzia como cetim. Mas que dia, Deus do céu! Cheio de emoções. No entanto, agora tudo acabara bem... ,  Lá estava ela de novo: Kitty, a loura polinésia. As largas coxas, o ventre liso, os seios rijos, o traseiro - todos à mostra, pois o que é que ela trazia vestido? Nada, exceptuando esta ridícula faixa, que tapava os igualmente ridículos pedaços de tecido verde. «A coroação», pensou Hochstett e sentiu o coração começar a bater com mais força. «A coroação do dia», Estendeu-lhe uma bandeja com copos.

Que tal uma bebida para acalmar a sede? Não só tem um sabor óptimo como serve para por em forma. - Pôr em forma para quê? - retorquiu Hochstett num esgar, sentindo-se perverso. - Para tudo o que tiveres em mente, Jochen... O que ele estava a beber sabia a champanhe com um ligeiro travo amargo - talvez Campan# Obrigado. No entanto, ela voltara a desaparecer. Só o diabo sabia o que tramavam nas suas cabinas de luxo. De qualquer maneira, o contramestre havia agora lançado a âncura Hostett espreguiçou-se, sentiu-se de facto melhor, em forma - e sobretudo sentiu-se livre e senhor de si.

Um leve movimento que se assemelhava a um sonho. Pontas de dedos que lhe percorriam a nuca, os músculos até aos ombros... Hochstett ergueu os olhos, deparando-se-lhe dois globos bronzeados e inacreditavelmente empinados, escuros e caracóis louros. Estes eram pintados... Agarrou-se a este pensamento.

-Que tal?Ocansaço está a desaparecer? A boca dele estava seca. -Oque está o Thomas a fazer? - escutou o som da própria voz. O ruído da corrente da âncora abafou a pergunta. No entanto, voltou a ouvir-se o riso feminino. E o olhar de Kitty pousou devagar nos seus calçÕes de banho: - O que é que estou a ver? - pronunciou com uma voz de puro sotaque de Francoforte. - Aí está um bem animado... Engel já fizera uma tentativa em Can Rosada. Depois experimentara outra vez de uma cabina telefónica, quando Hochstett andava às compras em Cala d'Or. O resultado fora sempre o mesmo: «O telefone para o qual ligou está, de momento, desligado», chegava-lhe a informação, por intermédio da voz gravada feminina. Está desligado?

O que significava aquilo? Provavelmente que Renê andava algures com o jipe pela região, se metera numa espelunca ou se enfiara, sóbrio ou embriagado, numa das grutas que escavara nas proximidades da sua finca na floresta de Son Massia. Para se divertir. Que mais poderia ser? As brincadeiras a que Renê se entregava nas suas grutas iam do treino de karaté a tirar fotografias pornográficas ou entreter-se com a sua colecção de armas. Muitas vezes arrastava também para essas grutas algumas turistas incautas... Devia ser isso mesmo! Mas quando agora precisava daquele idiota, ele não estava! Engel fez nova tentativa.

- Sim?

- Apanhei-te finalmente!

- Okay, patrão, apanhaste-me. E então?

- Presta atenção, Renê: hoje tive visitas. E com a visita também alguns problemas.

Silêncio. Em seguida: - O que há para mim? -Ora muito bem. Os problemas existem para que se resolvam, não é verdade? Portanto, vamos à teoria... o ponto de partida: um escritório. No escritório, um cofre-forte. E no cofre-forte alguns documentos que seria preferível não irem parar às mãos de ninguém.Oque farias neste caso? Renê soltou o seu horrível riso à socapa. Ou talvez se tratasse meramente dos ruídos produzidos pela «ligação via satélite». - Os documentos? Precisas deles?

- Não. -Então, é bastante simples. Só é preciso um explosivo especial... -Como assim? Ao dar este tipo de informação René Honolka expressava-se como se falasse de algo extraordinariamente cómico. -Toda a força e calor da detonação têm de concentrar-se num só ponto na altura da explosão. Desta forma, pode mandar-se pelo ar não só um cofre-forte,` como até mesmo um tanque blindado. E, como podes imaginar, tudo o que estiver lá dentro, quer sejam documentos ou pessoas... Engel soltou uma gargalhada satisfeita. - E onde está o cofre-forte, patrão? - Em Hesse. Na espelunca onde já estiveste. Bernhagen.

- Oh, não! - gemeu Honolka. - Não te preocupes, Renê. Não é um assunto actual. Ainda não... - Deve ser uma visita interessante! Engel reflectiu uns momentos. - Para esse, temos de lembrar-nos de alguma coisa - redarguiu em seguida. - Mas em primeiro lugar está o cofre-forte...

Levantou-se, saiu do camarote, a fim de ir até ao saIão. à entrada, parou. Através da porta do convés, avIstava o solário. E Kitty, que se inclinava sobre Hochstett e passeava as suas mãozinhas maravilhosas... Realmente impetuosa, a rapariga! Um talento da natureza...OVerão fazia progressos. Os temporais acompanhados de chuvas torrenciais, que invadiam a cidade quais gigantescas valsas cinzentas, eram substituídos por dias soalheiros. Vera andava entusiasmadíssima a tentar plantar as suas plantas no jardim, Rio ajudava e consertou igualmente um toldo destruido pela tempestade. No entanto, até a própria chuva e a tempestade tinham, aos seus olhos, algo de estranhamente irreal. Fazia tudo como se realmente não estivesse a participar. E o mesmo acontecia também quanto à recordação da tarde passada na sombria villa em Steiribach, sobrevoada pelas pombas: a casa, o terraço, o homem na cadeira de repouso, dossiers, fotografias - parecia-lhe qualquer cena de uma peça de teatro.Omesmo não acontecia relativamente às palavras de Kiefer: estas permaneciam. Pairavam como fantasmas nas suas noites, quando não conseguia dormir, acompanhavam-no ao longo dos agitados passeios pelo Jardim Inglês e sobrepunham-se mesmo à voz de Vera: «TEM DE SER, Rio. SERáOSINAL DE QUE TUDO MUDOU... AjUDAR-ME-áS?» Rio, munido de uma lanterna e um espelho de mão, surpreendeu-se à procura de gânglios suspeitos na garganta e boca. E o ardor na bexiga? Inspeccionava o interior da sanita para verificar a cor da urina... - Histerismo - comentava Vera e provavelmente tinha razão. - Estás a dar cabo de ti em vão. Sai dessa viagem. Como se tudo fosse assim tão simples...

Como se se pudesse esquecer facilmente a caveira de Ludwig Kiefer, as escuras tumefacçÕes na testa, a pele escamosa e as mãos cobertas de eczema... Uma manhã, Olsen telefonou:

- Afinal, quando é que tencionas sair do teu buraco? Ou agrada-te assim tanto lá por baixo? - Sim, agrada-me, Ewald. Instalei-me lá em baixo. Também Bruno Arend apareceu, observou-o e sacudiu a cabeça. Paul Novotny não voltou a dar notícias. -Vai falar com o doutor Herzog - dizia Vera. E muitas vezes tinha lágrimas nos olhos ou agitava os ~os na frente do nariz dele. - Deixa que seja ele a dizer-te que podes estar satisfeito, que podes estar agradecido por não te faltar nada. Mas Rio não se deixou convencer. Pensava com um arrepio que, após aquela tarde de amor, Vera deveria ser examinada. Quando por fim se decidiu a procurar realmente o Dr. Herzog, sentia-se demasiado fraco. Esperou até Vera ter saído de casa para ir às compras, em seguida ligou o televisor para ver o noticiário da manhã, mas as imagens e as vozes pareciam-lhe tão estranhas e incompreensíveis como se estivesse a assistir a uma emissão numa língua estrangeira. - Pensa bem, Rio, que esses porcos não só te destruíram a vida - declarou Ludwig Kiefer, quando ele finalmente o visitou no hospital e comeram juntos na cafetaria da clínica - como ainda te destroem os poucos anos que te restam de vida. Condenam-te à morte e em seguida fazem de ti um peticionário... Temos um hemofilico na enfermaria. Conformou-se com a soma de sessenta mil marcos. Tens de pensar bem no que são sessenta mil marcos... Podes gastá-los em meio ano, se estiveres doente. E depois? Membro de qualquer associação de caridade... E tudo... Durante quanto tempo iria Olsen conseguir que ele recebesse o ordenado? Se Rio bem conhecia o editor, iria despedi-lo dali a meio ano... «Uma tragédia, caro Olsen, eu sei, eu sei. Também lamento muito pelo Rio. Mas seremos, afinal, responsáveis por todas as tragédias que por aqui acontecem?» Seria assim. E Ludwig Kiefer tinha razão num outro ponto:

- Antes de te matarem, ainda te privam também da tua identidade. Tratou-se de uma visita bastante estranha ao hospital. Por todo o lado havia doentes de roupão acompanhados dos familiares. Comiam bolos, conversavam em voz baixa, riam ou exibiam rostos preocupados. E na sua frente tinha Ludwig Kiefer com os seus «planos de homicídio». Ainda usava o seu gorro de basco, mas noutros aspectos o criminologista estava muito mudado. Trazia um fato leve de popeline de corte elegante e cor de marfim, uma camisa rosa e um lenço de pescoço cor de tabaco a condizer com a camisa. Não era, porém, a indumentária mas o rosto o que havia mudado. Dava a sensação de que qualquer perito em máscaras preparara o criminologista para esta entrada em cena. A   pele não fora, todavia, retocada,   o eczema estava praticamente curado e os malares não pareciam tão proeminentes... -  Voltou a melhorar muito aqui, Ludwig. -Sim. A terapia actuou em força. Uma «fase de melhoria», como lhe chamam. Não ajuda a longo prazo, mas contribui para fortificar o «eu» e o estado de saúde geral. E é isso, Rio, que tenho de aproveitar. E, na verdade, até ao esgotamento. Reflectiste sobre o projecto? - «O projecto»... era assim que, na verdade, designava o plano de atentado, o homicídio de dois homens... - No caso de, por quaisquer motivos, sejam éticos, inorais ou pessoais, ainda quereres pensar mais no assunto, respeito o facto, Rio. Podes acreditar-me. Apenas te peço que o faças depressa... tenho de agir. E na eventualidade de quereres mesmo ajudar-me... tenho alguns problemas logísticos... - Problemas logísticos?Oque Kiefer tão despreocupadamente referia era a questão de como conseguiria ele abater a tiro as suas duas vítimas no mais ~ espaço de tempo possível e a uma margem de distancia com impacte mediático. - A situação é esta: já estive realmente em Maiorca, mas há uns bons dez ou quinze anos. Encontrava-me, nessa altura, acompanhado por uma amiga, uma mulher fabulosa, que entretanto e infelizmente já não existe. Tal não significa, porém, que me oriente bem na ilha. E é aqui que começa o problema. Tenho de reunir conhecimentos. Não posso muito simplesmente dirigir-me ao meu amigo da Guardia Civil espanhola e dizer-lhe: «Mostra-me tudo novamente, pois agora quero dar cabo do Engel ... » Preciso, por conseguinte, de alguns dias. - Expressava-se baixinho e muito calmamente, como se estivesse a traçar o plano de um voo de fim-de-semana. - Ainda não sei bem como irei aguentar tudo isto com as forças que me restam. - Rio esboçou um aceno de concordância e bebeu w# chá. No entanto, a mão que agarrava no cigarro não estava muito firme. Teve de acender o isqueiro duas vezes. - E há mais uma coisa, Rio: não tenho dúvidas de que o conseguirei. Mas como vou regressar da ilha após o facto consumado? Ali, só têm um aeroporto. E podem bloqueá-lo com toda a facilidade. E o mesmo se passa com o porto. Vou cair, assim, na ratoeira... Rio voltou a esboçar um aceno de concordância, ao mesmo tempo que tentava equacionar tudo. Junto deles, uma miudinha com cerca de quatro anos agarrava-se ao encosto da cadeira da mãe. A miúda gritava a plenos pulmÕes e o homem gordo vestido com o roupão de doente interno sacudia, preocupado, a cabeça. Todavia, Ludwing Kiefer Prosseguiu: - Em Berlim, é tudo mais simples. Por esW motivo, resolvi despachar antes do mais esta história de Berlim. - A «história de Berlim»... - Ainda conservo o meu antigo cartão de serviço... Hampel também é funcionário do Estado. Gostava de ver se não recebe um criminologista. E Berlim é um sítio que conheço... De Berlim, é-me possível chegar facilmente a Maiorca. E dali partem uma quantidade de aviÕes. - Rio mexia o chá. E Ludwing Kiefer voltou a contemplá-lo com um demorado e pensativo olhar. - Não quero agora voltar a repetir o que este projecto significa para mim e para todos os que estamos implicados nesta trama. Apenas te quero perguntar: ainda estás disposto? - Sim - respondeu Rio. Pronunciou as palavras sem reflectir. -A sério? -A sério... - Aguentou o olhar perscrutador de Kiefer e teve a sensação de que este olhar lhe penetrava no cérebro, como se pudesse segui-lo através do labirinto, não, do caos dos seus pensamentos. Rio voltou a sentir o mesmo mal-estar no estômago e lutou para o superar. Conseguiu-o, agarrou na mão de Klefer e acariciou-a. - Se for importante... - É importante, jovem. Trata-se simplesmente de um princípio: em campanha não devemos atrever-nos muito para fora do esconderijo. Por esse motivo, ficaria contente se tu... - Eu faço-o - adiantou-se Rio. - Tenho muitos amigos. E também em agências de viagem. Arranjo-lhe o bilhete... Novamente aquele olhar. E, em seguida, Kiefer levara a mão ao bolso do casaco, de onde tirou um livro de cheques. No entanto, Rio sentia-se demasiado cansado para protestar. Havia pegado no livro de cheques para depois o fechar e voltar a meter no bolso do velho... Cerca das dez horas, o céu voltou a cobrir-se de nuvens escuras de tempestade. Vera metera-se no carro e fora até à cidade; estava nervosa e inquieta e dera uma explicação sobre «compras urgentes». Não, esta não era uma manhã famosa. Rio tinha-se deixado invadir mais uma vez pela agitação interior. E ainda não tinha meios para lhe pôr cobro. Foi até ao jardim para levantar a mesa do pequeno-almoço, tomou um duche e sentou-se finalmente, na cadeira junto do telefone. Quando marcou o número de telefone de Ludwig Klefer, fê-lo duas vezes. Em seguida e por fim - uma voz de mulher. Irnia Klefer.. -Ali, é o senhor, Herr Martin! Que engraçado, pois estávamos neste momento a falar de si; deve portanto, existir algo como telepatia. - Como assim? Então o seu irmão está novamente em Steinbach?

- Sim. E em plena forma. Foi o senhor que lhe deu força para sair da clínica. Vai já perceber: Ludwig! - O que se passa? - Irma Kiefer tinha razão: a voz que respondeu era forte, descontraída e carregada de energia. E, em seguida: - Como estás, Rio? - Como? Ao que parece, não tão bem como o senhor.

- Talvez - riu. - Pelo menos, hoje. Porque não voltaste à clínica? Rio começou a mexer no fio do telefone. «Porque não me apeteceu. Ou melhor: porque tinha aquele maldito medo...» Deveria confessá-lo? Decidiu-se: -Porque odeio clínicas. -Compreendo. Como é? Tens a documentação do voo? -Sim. Ouça, Ludwig...

- Com todo o gosto. Mas porque não dás um salto até aqui? Desagrada-me falar de pormenores pelo telefone. «A minha mulher», poderia ter-se desculpado Rio, só que se tratava de um argumento que não resultaria para Ludwig Kiefer. Ele sabia-o.

- Okay! Estou aí dentro de uma hora. Demorou quarenta e cinco minutos. Depois de estacionar e abrir a porta, avistou o criminologista. Apareceu no meio das suas rosas com uma tesoura de jardineiro na mão. Havia risos nos olhos escuros sob a beira do cesto de flores. E desta vez não fora somente a cor do rosto a melhorar, mas todo o indivíduo estava mudado. Parecia mais alto e mais jovem e engordara - os médicos haviam conseguido um pequeno milagre. A calma reinava na grande casa. Não lhe chegava qualquer cheiro a comida da cozinha. Transpuseram em silêncio a entrada ornamentada com a janela de caixilho de chumbo. Um lírio desenhou uma mancha verde do tamanho de uma moeda de cinco marcos no queixo de Kiefer. Este parou.

- Quero mostrar-te uma coisa. Tens experiência com armas?

-Refere-se a espingardas? -Pistolas, revólveres, armas ligeiras. Experiência com armas ligeiras? Teria cumprido dois anos e meio de serviço civil em Altenheim, lavado doentes em estado grave e despejado bacios para lhe fazerem uma pergunta destas? Uma, vez, Bruno Arend aparecera com uma pistola de qualquer argelino e dissera muito orgulhoso: «Anda, Rio! Vamos até à pedreira dar tiros.» Rio recusara. Não queria andar aos tiros nas pedreiras. -Nem sequer com uma espingarda de ar.

- Vem - convidou Ludwing Kiefer com uma gargalhada. Escancarou uma porta, que dava para umas escadas, escadas bastante íngremes. Pairava um cheiro a bafio. Kiefer acendeu a luz e viram-se numa divisão quadrada. Nas paredes havia armários embutidos e o chão estava coberto com um tapete de sisal. Os candeeiros de parede, de ferro forjado, e o estuque da parede conferiam uma «nota rústica» ao ambiente. - A minha sala de diversÕes. - Deveria ser um comentário irónico, mas o rosto de Kiefer estava sério e concentrado, Abriu um dos armários, puxou uma gaveta para fora e retirou duas pistolas do interior. Colocou uma delas na mão de Rio: - Esta é uma H&K de nove milímetros, uma Heekler & Koch. A melhor das melhores, segundo se julga. E aqui tenho uma Walter PK, de sete vírgula sessenta e cinco milímetros, a minha antiga ar- ma de serviço. Um fóssil, comparativamente à Heckler & Koch. Considero-a, todavia mais equilibrada. Mas talvez a minha opinião se deva a que me agrada mesmo. Sabes, com as armas é assim: quem lida com elas acaba por desenvolver como que uma relação erótica. Podem abanar a cabeça e negar, mas é essa a verdade. - Klefer abriu uma segunda porta e, quando se acenderam mais luzes de néon, Rio apercebeu-se de que se encontravam num barracão de tiro. Uma sala de diversÕes? Oh, sim! E de que maneira! Sentiu como a boca se lhe secava. Os cabos de tracção reluziam e havia formas esguias que eram provavelmente alvos dobrados... - Toma - ofereceu Ludwig Kiefer, estendendo-lhe um aro de ferro com duas protecçÕes de plástico para os ouvidos, e ele próprio enfiou uma daquelas coisas na cabeça, sem tirar o barrete. - Vai fazer um belo estrondo.Oque aqui fazemos, Rio, não passa obviamente de uma brincadeira - acrescentou, fitando-o. - Ou encaremo-lo antes como um «treino técnico». A realidade parece diferente... Agora, vou mostrar-te como se agarra nestas armas. Assim. - Abrir bem as pernas, estabilizar o pulso da mão que ia disparar com a outra... Rio assistira a tudo isto centenas de vezes na televisão ou em exercícios da Polícia. Experimentou. E quando os dedos se fecharam à volta do punho do revólver, a arma deixara de lhe parecer tão estranha. Era como se emanasse uma certa força. Uma relação erótica? Talvez... Kiefer corrigiu-lhe a posição do cotovelo. - Agora presta atenção - dirigiu-se-lhe, como uma nova risada. Carregou num interruptor, sem desviar os olhos do rosto de Rio. E tudo aconteceu em simultâneo: o estalido metálico quando o alvo se desdobrou ao fundo da divisão, o movimento para o lado de Klefer com a rapidez de um raio, o erguer dos dois braços, a chama saída do cano da pistola, a explosão abafada pelas protecçÕes plásticas... Este foi um dos aspectos da situação.Ooutro residia no próprio alvo: Engel! Não havia dúvida: Thomas Engel. No alvo estava aquela fotografia que o impressionara na altura da sua primeira visita, há quatro sema- nas. Só que agora se lhe apresentava aumentada e a preto e branco como alvo de tiro... Engel fitava-o. As sobrancelhas formavam um traço recto sobre a cana do nariz. Nos olhos claros reflectia-se a expressão de distância que Rio tantas vezes recordara. Sentiu pela primeira vez algo semelhante ao triunfo. Um barracão de tiro? Haveria um lugar mais indicado para este porco? -Não o atingiu - comentou, virando-se para Kiefe r.

Não? Observa bem. Rio  Inclinou-se para diante. Na verdade, precisamente sobre o nariz, a meio do traço escuro e rectilíneo das sobrancelhas, notava-se o orificio aberto pelo projéctil. - Espantoso!

- Sim. Além de que... - Ludwig Kiefer deixou o

resto da frase em suspenso. Pousou a arma num rebordo de madeira. - Agora, tu. E não dispares logo... Faz pontaria como deve ser. - Rio agarrou na arma em posição de tiro. Sabia o que o esperava: um gordo aposentado antes do tempo. Um homem chamado Hampel, perdão, o director governamental Bernhard Hampel. Eparecia despoletar maior emoção em Kiefer do que Engel. Engel era um negociante e um porco. Mas Hampel... Nesse momento o alvo subiu. Posição de sentido. ombros do fato cinzento gravata - o rosto. E que rosto! Uma testa alta e recuada. Maçãs proeminentes. óculos sem aros. Uma boca de lábios finos e indiferentes... Rio não deu tempo ao tempo. Disparou. A bala atravessou a fotografia do alvo um pouco acima da gravata. - Não foi assim tão mau - murmurou Kiefer. - Bastante bom até para uma primeira vez... - Ouça. Quer realmente ficar aqui sentado?

- Como, desculpe? - retorquiu Rio, erguendo os olhos e deparando com a expressão séria do rosto de uma criada, que o fitava por cima de uma pilha de pratos sujos. Nuvens escuras e quase negras formavam-se sobre os três míseros abetos que se erguiam no jardim do café. A mudança de tempo devia ter-se processado com a rapidez de um raio. Quando parara aqui no regresso de Steinbach o céu ainda se apresentava limpo e azul.

Os poucos clientes transpunham os degraus que os separavam do interior do café. -Posso servir-lhe o café e a fruta lá dentro. Aqui ficará todo molhado. - Perfeito. Vou imediatamente.

O vento agitava as folhas dos arbustos. Os cumes dos abetos dobravam-se. Conservou-se sentado. - Temos de continuar a praticar - declarara o criminologista à despedida. - O teu primeiro tiro de hoje foi sorte de principiante. A sequência não correu tão bem. Mas tens talento. E é importante que pratiques. Estou a planear um assassínio. E um assasínio não é brincadeira de crianças. No caso de aderires, pode surgir uma situação em que um tiro deva bastar. E este tem de acertar no alvo.

No CASO DE ADERIRES... Conspiração de assassínio...

O seu primeiro tiro arrancara a gravata à fotografia de Hampel.Oque se encontrava por baixo? Esófago, cartilagens, carótida. Por detrás a espinha dorsal. Nada de muito apetitoso. Talvez uma morte rápida, mas sem nada de belo. Era, todavia, a morte que contava. Tiros de uma Heekler & Koch, com nove milímetros de calibre, tiros no coração, na cabeça, através da gravata usada ao pescoço. O que planeio é um assassínio.» Ele planeia? Mas tu? «Estarei preparado?» Bernhard Hampel tinha cinquenta e nove anos. Provavelmente a idade para uma reforma antecipada sem pressão. Mas não a pediu de livre vontade.Oministro assim o queria. E o que o procurador da República que com ele negociava pretendia continuava no segredo dos deuses... No jardim e nas ruas, as pessoas começaram a correr. Rio sentiu o embate granuloso das partículas de areia com que a tempestade lhe fustigava o rosto. Assemelhava-se a mil pequenas picadas. Fechou os olhos. ATÉ AGORA APENAS UM Só FOI CONDENADO. No ENTANTO, HAMPEL ÉOPIOR. ENGEL NãO PASSA DE UM CANALHA. HAMPEL, Rio, HAMPEL PERSONIFICAOSISTEMA, COMPREENDES9 «A que sistema estará a referir-se?», pensou Rio. «Também Ludwig Klefer afinal o personificou. Mostra- va-se mesmo orgulhoso. Via-se na ala da direita.» E Rio teve uma vez mais a impressão de estar a ouvi-lo: O pior de tudo, Rio, é a ignorância humana, que nada quer perceber. É ela que toma os Hampels possíveis ... »Oprimeiro raio riscou o céu. Iluminou a azul o cume do pátio do café. A tempestade continuava a desencadear-se, mas nem uma gota caía. Engel... Hochstett... Hampel... E ainda muito mais outros e inúmeros desconhecidos. Dar um exemplo? Tal como escrevera Hampel numa das cartas que o criminologista lhe tinha apresentado em Steinbach: « ... e presumo que o impertinente e sobretudo ignorante espectáculo dos média, que interessa a círculos como as organizaçÕes da sida e dos hemofilicos e se esforça por atrair outros, seja movido por fortes interesses políticos. No entanto, e segundo o demonstra a experiência dos últimos anos, não tardará a extinguir-se. Há finalmente a vincar que devido à elevada qualidade das medidas de segurança das firmas em causa, não será de esperar uma contaminação ... » Não será de esperar... Mas as medidas de segurança tinham ficado um tanto caras às «firmas em causa». «... E recordo, assim estimado doutor, as nossas interessantes e frutíferas conversas, bem como os dias inesquecíveis que passei .no seu retiro de férias - Sinceramente, Bernhard Hampel.» E igualmente esclarecedor o R S.: « ... Garanto-lhe que, de futuro, todas as suas preocupaçÕes e desejos irão merecer a minha total atenção e apoio ... » Nesse momento, começou a chover. Rio levantou-se e sacudiu-se, mas não sentia as gotas de água. Protestos das instituiçÕes de assistência a doentes com sida, protestos das clínicas, protestos de ligas de hemofilicos, protestos da imprensa, mas nem uma palavra de censura às chefias das firmas. E também como?Obiólogo Hampel mostrava-se junto deles um colaborador incansável. Além de que um bilhete para uma pequena viagem até uma inesquecível e bonita estância de férias também se revelava lucrativo... Um homem chamado Hampel... - Está completamente ensopado. E o seu café? Rio encontrava-se na sala dos clientes.

-Aqui tem. - Deu uma moeda de dez marcos à criada e saiu.

O céu - cor de ardósia! Sobre as antenas de televisão, os riscos produzidos pelos relâmpagos. Carros que avançavam muito devagar e transeuntes que se haviam refugiado nas entradas das portas. Rio conduziu o Porsche através de um portão; segundos mais tarde, saiu do automóvel, correu de cabeça baixa junto a algumas goteiras e verificou, aliviado, que conseguia empurrar a porta da casa. No interior, estava escuro. Cheirava a mofo e a cera. «Ursula BühIer». Cá estava. Quando premiu a campainha, tinha pouca esperança de encontrar a jovem mulher. No entanto, escutou passos, um tossicar, a porta abriu-se - e ela surgiu na sua frente. -Ainda se lembra de mim, Frau BühIer?

- Herr Martin! Claro que sim. Entre. - Tinha vestido um roupão de banho verde e pusera uma toalha turca azul enrolada à volta da cabeça. A pele reluzia devido ao creme aplicado há pouco. - Peço-lhe desculpa, mas acabo de sair do banho. _  Sou eu que lhe devo desculpas, Frau Bühler. Pensei que... - Calou-se. Deixara de saber o que tinha pensado, mas uma coisa via: ela mudara. A mulher, o andar, os olhos... Rapara as sobrancelhas, as mãos estavam tratadas e o resto parecia rejuvenescido, não, liberto. Nesse momento, soube. Mas mesmo assim, fez a pergunta: - Angela... ela?... - Sim - respondeu a mulher com um aceno de cabeça afirmativo. - Há três semanas. - Os olhos, pintados há pouco, encheram-se-lhe de lágrimas. - Desculpe, Herr Martin... - Limpou as lágrimas com as pontas dos dedos, mas ainda piorou a situação: um risco negro desenhou-se-lhe sobre o nariz - Não quer entrar?

Gostaria de lhe ter posto a mão no ombro ou de a apertar contra si, muito simplesmente fazer alguma coisa, pois o que havia a dizer? Todavia, não se atreveu. Seguiu-a até ao quarto que já conhecia. Na parede, por cima do sofá, estavam pendurados desenhos de criança. Um Sol por cima de uma casinha. Uma árvore nas proximidades.Omesmo Sol risonho por cima de um mar azul, em que nadavam patos...

-Foi Angela que os pintou? Ela limitou-se a assentir. A porta para o quarto ao lado estava toda aberta. Fora ali que tinha visto Angela pela última vez. Ali estivera a cama dela. Agora as paredes estavam pintadas de fresco e no ar pairava ainda o cheiro a tinta. - Sabe, Herr Martin - replicou Frau BühIer, que notara o olhar dele -, uma pessoa admira-se que tudo continue com toda a simplicidade. Nada pára. Esvazia-se uma sala e depois pinta-se de fresco... - A voz tremia-lhe. - Talvez seja bom assim. Neste caso tem de ser. Tem muito simplesmente de ser, compreende o que quero dizer? -Acho que sim, Frau Buliler.

-Oque é que ela fez, céus? Angela... era tão inacreditavelmente querida que ninguém pode descrevê-lo por palavras! E tão paciente... Só nunca compreendeu uma coisa: porque é que tudo corria tão bem para as outras crianças, porque é que não podia participar nas brincadeiras, porque é que faziam troça dela, e apenas lhe cabiam as dores, aquelas horríveis e prolongadas dores... E a fraqueza... talvez fosse o mais dificil. Foi o que mais a fez sofrer. - Rio pegou na mão dela e agarrou-a com firmeza. - Era, todavia, o momento de tudo isso ter um fim, acredite-me... Também eu não conseguiria aguentar muito tempo, sabe? Não era só a criança na cama e o ter de olhar sem poder fazer nada, mas havia ainda o outro aspecto: o financeiro. Também era importante. Embora a associação não se poupasse a esforços, em que poderia ajudar? Não tinha contudo, bases! Tive de aceitar um emprego em part-time. E sempre que me sobrava algum tempo entre o trabalho e os deveres, corria até junto das autoridades. Eu nem sequer era a mãe que a deu à luz... Em vez de me apoiarem, somente me levantavam obstáculos. Cheguei mesmo a escrever ao ministro. Julga que obtive resposta? Nada. Absolutamente nada... Tremia e nem sequer era, agora, capaz de conter os soluços. Pegou no lenço e limpou o rosto com um gesto decidido, sem notar que o mesmo se transformara numa máscara de pele molhada e riscos pretos. _ Opior é a ignorância humana... - Escutou o som da própria voz e tomou consciência de que estava a citar Ludwig Klefer. - E esta ignorância - acrescentou - é como uma conspiração. Era isso! E Kiefer pretendia contrapor uma outra conspiração! Pouco passava das cinco quando encarou o portão do jardim. A chuva tinha parado e por todo o lado viam-se ramos partidos e folhas arrancadas às árvores pela violência da tempestade. Vera estava no anexo a tirar a roupa da máquina de lavar. Fazia-a, com uma exagerada concentração. Devia tê-lo ouvido entrar - mas não, pois nem sequer levantou os olhos. -Olá, Vera. A mesma ausência de reacção. Verificou que ela vestia um conjunto de seda cinzento-escuro, que só punha em ocasiÕes especiais. - Outra vez por cá? - retorquiu finalmente, virando a cabeça. - Exacto. Outra vez.

- Nos últimos tempos encontramo-nos muito poucas vezes.

- Achas?

- Sim, acho, e a culpa não é minha. Estava zangada. No entanto, conhecia-a: nesta fase acalmar-se-ia rapidamente. - Telefonei-te - mentiu. - No entanto, ninguém atendeu.

- Deve ter sido antes do almoço. Nessa altura não estava, de facto em casa. - Agarrou no cesto da roupa para evitar a censura dos olhos dela. - Deixa isso redarguiu Vera, aproximando-se. - Pode saber-se onde estiveste, Vera? Quero dizer, assim tão chique como estás vestida... - Pode. Estive no consultório do doutor Herzog. -Outra vez? - suspirou ele. -Não foi por tua causa que fui ao médico, seu presumido de ideias fixas. Desta vez, fi-lo por mim... Também era necessário, não? - Não te sentes bem?

- Até me sinto melhor. Na verdade, sinto-me tão bem como nunca me senti. Fez esta afirmação com uma estranha seriedade. Na testa notavam-se aquelas duas linhas, que sempre anunciavam qualquer coisa muito excitante ou muito importante. - Por favor, Vera, desabafa.

- Sim. Vou desabafar. - Não se mexeu nem o olhou, mas surgiu, finalmente, o sorriso de que ele estava à espera. - Tu, Rio, nós, vamos ter um filho... «Talvez», pensou Rio Martin muitas vezes e bastante mais tarde, «talvez tenha contado a minha visita a Ursula Bühler, o facto de ela me mostrar as fotografias, estas fotografias do rosto miúdo e atrofiado de uma criança chamada Angela. Talvez tenha contado haver recebido de Ursula BühIer este cartão de luto, uma estreita tira de papel tendo na frente a fotografia de Ângela,

 

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uma Angela que ainda era saudável e forte e sorria para a câmara como o Sol dos seus desenhos. Nas costas, lia-se uma oração: "Dá-lhe o eterno descanso, Senhor, e que a luz eterna a ilumine" ... » Talvez tivesse sido isso? Talvez tivesse sido o seu medo, os seus pesadelos em que se sentia cada vez mais enredado. Talvez tivessem sido também os fantasmas que o perseguiam noite após noite, o eterno fantasma do medo: « E se Vera estiver contaminada?... De quem é a culpa? Quem tem sida? Quem arrasta o vírus da morte consigo e com ele a responsabilidade?... Tu, meu idiota chapado!» E agora? E agora, agora - agora? E, agora, ela dizia: -Rio, vamos ter um filho... Correu através do parque. As solas dos ténis brancos produziam um som regular. Parecia-lhe como se devesse continuar a correr, correr sem parar até ao fim do mundo...

E deixara de estar só. Dieter Reissner, a sombra, não, o companheiro, voltara a marcar presença... «Companheiro, Rio? Companheiro é passé... Agora, somos sócios ...» «Sócios?», pensou Rio. «Maldito sejas.» «Corre! Corre mais depressa! Não irás fugir à loucura...»

«Não precisas de mo dizer.» No entanto, apressou a passada. E sentiu-se contente com o acelerar do pulso e as picadas nos pulmÕes; não virou a cabeça ao cruzar-se com os transeuntes, conservando o olhar obstinadamente fixo diante de si, saltando por cima de ramos quebrados e poças de lama. «Estás a ver, Rio, estás a ver.. Agora, sabes como é...

Ignorava quais os estereótipos com que os psicólogos designavam estas vozes e imagens: «VisÕes condicionadas pela histeria»?... Talvez «esquizofrema»?... Devia ser assim. Estava louco. Fazia sentido? E mesmo que o estivesse?! De qualquer maneira ainda não estava suficientemente louco para dar razão a um Reissner. Ao mesmo tempo que lhe faltava o ar e o coração falhava, gritou: «Sim... sim, eu sei! Mas não vou matar a minha família, como tu o fizeste. Vou apanhar outros... Aqueles que devem ser abatidos, aqueles que têm a culpa ... » Era uma cabina telefónica semelhante a todas as outras. Encontrava-se numa das saídas do parque, emitia uma luz amarela e suscitava-lhe uma única pergunta: como é que fora parar àquele local? Tinha as solas dos sapatos sujas de lama e à lama tinham-se colado folhas. Até as dobras das calças estavam molhadas. A chuva deixara por todo o parque poças de lama e todo um tapete de folhagem arrancada às árvores. E ele, ele nem mesmo se dera conta do facto. O coração batia-lhe com força e desabotoara o primeiro botão das calças por baixo do cinto para respirar mais facilmente. A correr daquela maneira e ensopado em suor - era como que uma viagem através do país da autocompaixão, a última viagem... A cabina cheirava a fumo de tabaco amargo e bafiento. No chão via-se um embrulho de papel com pãezinhos secos. Um deles estava com o miolo tirado. Talvez alguém tencionasse dar de comer aos patos e depois tivesse desistido. Metade da lista telefónica estava rasgada. Mas ele não precisava de lista telefónica. Este número sabia-o de cor. - Klefer.

- Sou eu, Ludwig.

-A trovoada poupou-te? - O quê? Ali, sim... Escuta, Ludwig. Voltei a reflectir sobre tudo. - Talvez não tivesse tido necessidade de fazer a pausa seguinte. Também não obteve qualquer resposta. No entanto, sentia a tensão, a expectativa receosa de Ludwig de que agora se negasse, de que pudesse aniquilar todo o plano com uma única frase. - Ludwig, propuseste-te demasiado. -Não acho, RIO.

- Sozinho, não vais conseguir. Não os dois!

- Com uma preparação cuidada... -Nem mesmo assim - contrapôs. -E?Oque queres dizer com isso? E novamente a pausa. Agora, tomou-se pesada. Também para Rio. Ainda podia mudar de opinião... Mas fora por esse motivo que tinha telefonado a Ludwig? Em seguida, também esta sensação passou. E foi como se uma das velhas bandeiras de comboio dos seus brinquedos de criança se tivesse erguido para assinalar o verde, para desembargar o caminho... - Escuta, Ludwig. Pensei em tudo até ao mínimo pormenor. Eu fico com Berlim. Quer dizer, tu falas espanhol, consegues orientar-te alguma coisa em Maiorca, e também tens lá contactos. A mim não me convém. -E o que significa esse «Eu fico com Berllm»?

- Tudo, Ludwig, tudo. Tudo, de A a z. Não precisamos sequer de discutir o assunto. Penso como tu: quero, não, tenho de atirar isto para trás das costas. - E... e reflectiste mesmo a sério?

- Sim, Ludwig, acredita-me. E mais uma coisa: tem de se processar rapidamente, estás a ouvir, o mais rapidamente possível... Na sexta-feira da semana seguinte, Rio desceu do intercidades em Berlim. Uma surpreendida Vera tinha ido despedir-se dele à estação de caminho-de-ferro de Munique: custava-lhe entender o que levara Rio a meter-se no comboio, em vez de apanhar o avião. Ele, no entanto, falara-lhe de «antecipação de prazos», pois não podia mencionar o verdadeiro motivo: o rigoroso controlo de armas nos aviÕes. Vera ficou a dizer-lhe adeus com uma expressão resplandecente. Que outra poderia ter? Rio recupera finalmente a sensatez, voltara a pegar nas rédeas e dispunha-se mesmo a escrever uma espécie de reportagem cultural sobre o cenário teatral em Berlim - e sobretudo deixara-se convencer a ir fazer uma visita ao Dr. Jan Herzog. - Tudo óptimo como sempre, Rio. Talvez mais uma pequena análise? Por precaução... Os leucócitos de Herzog! Contava-os, a esses defensores do sistema imunológico, como um guarda florestal os seus veados. E Vera manteve-se sempre ao seu lado, com aquele olhar atento e o aceno de cabeça para todas as ocasiÕes. - Compreendes, não é verdade, Rio? Se compreendia! No rosto dela e nos olhos via como se estivesse diante de um espelho. Por uma ou duas vezes estivera quase a endoidecer, mas a crise havia passado. Agora, desempenhava o papel que Vera lhe destinara; mostrava-se contente e tudo corria sobre rodas. Vera havia simplesmente feito recuar os ponteiros do relógio e ele voltara a ser quem era, talvez um pouco mais alheio do que outrora, mas, apesar de tudo, o bom e velho Rio... Saiu para a praça diante da estação de caminho-de-ferro. Os táxis arrancavam, deixando nuvens de fumo para trás; mulheres de lenços coloridos na cabeça arrastavam malas; dois grupos de pessoas de cabelos pretos precipitaram-se um de encontro ao outro, trocando beijos e abraçando-se: turcos! Era uma verdadeira festa popular.

Rio observou tudo isto sem, na realidade, apreender as imagens. Apesar da longa viagem ainda não se sentia cansado. Tudo o que via, analisava como se fizesse parte de um filme.Oseu novo papel iniciara-se: o papel do cauteloso autor de atentados, do homem que ataca para, em seguida, desaparecer no nada. Meteu a mão no bolso do casaco, tirou os óculos escuros e pô-los. E em seguida tirou da camisa de ganga o pedaço de papel em que Ludwig Kiefer escrevera o nome da pensão: «Pensão Carola»... - Fica na Windscheidstrasse, Rio. Não é longe da Max-KrÕner~PIatz, onde ele mora. - Hampel?

- Sim. E mais uma coisa, Rio, um pormenor bastante importante: apanha de preferência transportes públicos e evita os táxis. Os motoristas de táxi têm, muitas vezes, uma memória incrível para fisionomías... Movimentava-se, agora, pelo meio dos táxis. Chegavam para partir logo em seguida; passageiros do comboio avançavam ao seu encontro, raparigas com trajos de Verão passavam ao seu lado, e uma loura dirigiu-lhe um sorriso. E ele com o saco de viagem na mão, tinha um ar desajeitado e atrapalhado. Sentiu-se, pela primeira vez, um estranho em Berlim. Como estava longe o tempo das pensÕes de luxo em que se alojara. _  Desculpe. Pode fazer o favor de me indicar o caminho para a Windscheidstrasse? Windscheidstrasse? - repetiu uma senhora de idade, que o media com uns olhos azuis frios e perspicazes. - Windscheidstrasse... ah, sim! Tem carro? - Sacudiu a cabeça em negativa. - Então, apanhe o autocarro. Não fica longe. Quer dizer... também pode ir de metro... mas talvez o autocarro seja mais cómodo. Forneceu-lhe a explicação com tanto calor e entusiasmo como se se tratasse de um escuteiro perdido. Aquela boa vontade produziu um efeito positivo em Rio, mas virou-se com bastante pressa e indelicadeza, afastando-se rapidamente. «Maldito nevoeiro: e o novo roteiro da cidade de Berlim está na tua mala; porque não o tiraste para fora, em vez de abordares senhoras de idade? Tens de aprender e rápido!» Tratava-se de um edificio muito grande e escurecido pelo tempo, da era da Revolução Industrial, com janelas de granito muito ornamentadas. Junto à fila de campainhas ressaltava a tabuleta «Pensão Carola». Premiu o botão e o intercomunicador produziu um estalido. Em seguida, o trinco abriu.Oátrio que dava acesso às escadas estava forrado com uma parede espelhada.Obrilho fornecia um contraste surpreendente com a impressão causada do exterior do prédio. Um homem encontrava-se na ombreira de uma porta alta e aberta. Era mais ou menos da altura de Rio. Vestia camisola e calças azul-escuras. Na verdade, parecia um estudante de outros tempos. Nos cabelos escuros já se notavam alguns brancos. Observou Rio com uma amabilidade cautelosa por detrás dos óculos sem aros.

-Posso ser-lhe útil?

- Gostaria de alugar um quarto.

- Fez reserva? - Rio esboçou um aceno afirmativo. - O nome, por favor? - Wolilmann - respondeu. - Günter Wohlmann.

- Ali... cá está... Ludwig Kiefer tinha feito um bom trabalho. No entanto, avisara-o... «Vou pôr-te na "Carola". Poderia, naturalmente, ter-te arranjado também um passaporte. Nem sequer seria dificil. Mas tão em cima da hora? A "Carola" é uma pensão muito especial, tão especial que não insiste em verificar a identificação. Somente tens de utilizar um pequeno truque ...  Rio serviu-se do truque e recitou a fórmula que Kiefer lhe ensinara: Ali, sim - adiantara. - No caso de precisar dos meus documentos, ainda se encontram na minha pasta no cofre.Oindivíduo riu, riu sem pestanejar.

- Temos o quarto doze preparado para si, Herr Wohlmann. É um quarto muito sossegado. Dá para o pátio. E era realmente um quarto muito sossegado! Através da larga janela protegida por reposteiros dourados, Rio apenas tinha como vista uma parede de cimento. Estava ornamentada com uma parreira verde - mas era mesmo assim de cimento. Era tudo muito calmo. Tão calmo. Tão calmo como numa ilha. Calmo como na prisão... Rio fechou a janela e correu os reposteiros dourados, pousou o saco de viagem na pequena e encantadora reprodução de uma secretária antiga, atirou-se para cima da cama e cruzou as mãos por baixo da cabeça. Reflectir? Escusado. Como assim, reflectir? As coordenadas estão traçadas - o resto decorre segundo o plano. Só não era simples afastar a lembrança do rosto resplandecente de Vera quando se despedira... «Só que este não é um momento para emoçÕes, eu sei, senhor criminologista: encontramo-nos na "fase vermelha".» Quando, na semana anterior, Ludwig Kiefer mostrara os seus esboços, a que também chamava «mapas», Rio fizera um esforço enorme para se manter sério: o alvo humano, ambiente, hábitos de vida, características - até aqui tudo bem. Mas «desenvolvimento por fases»? - Não é tão idiota como possas pensar, Rio. Pensa bem. Tenta memorizar. Fase vermelha: indagar e reunir conhecimentos. Através da máxima desconcentração interior possível, recordar problemas e alternativas possíveis...Opapel em que se encontravam as anotaçÕes Importantes já não existia. Klefer tinha-o queimado. No entanto, mantinham-se bem claras na mente de Rio. Palavra por palavra. Tinha-as memorizado. Descontrair.. como é que se descontral um - eliminara no consciente a palavra CRIMINOSO e substituíra-a por AUTOR DE ATENTADOS... Os autores de atentados têm fome. E que fome ele tinha! Levantou-se, prendeu o reposteiro e deitou um rápido olhar para o exterior. Também esta atitude iria provavelmente tomar-se um hábito. Nada havia para ver. Dirigiu-se à secretária, marcou o código do seu saco de viagem e abriu-o. Retirou primeiro o roteiro da cidade. Desdobrou-o e procurou a Max-KrÕner-Platz no índice das ruas. «Aqui: 4-C-D.» «4-C-D» não ficava realmente muito distante da Windscheidstrasse. De acordo com o roteiro, situava-se junto a um parque... Rio voltou a meter a mão no saco. Desta vez para ir buscar a Heckler & Koch. Pareceu-lhe mais leve do que dantes, quando a segurara na mão pela primeira vez.Ometal escuro do cano reluzia sob o brilho do candeeiro.Opunho com estrias pareceu-lhe em simultâneo estranho e seguro. Colocou a arma em posição de disparo. «Um tiro, Rio! Um tiro seria realmente ideal, mas não chega. Tens de atirar a matar.» «Atirar a matar»? Conhecia a sensação que tais palavras arrastam... mas, agora, neste quarto de pensão, tendo a arma e o roteiro na sua frente, era algo diferente... Voltou a abrir o saco de viagem. Ludwig não lhe falara do documento que, nesse instante, tinha na mão: tratava-se de uma pequena tira de papel. Num dos lados lia-se uma oração, no outro havia a fotografia de uma criança sorridente... Fitou, demoradamente, a fotografia. Tentou não pensar em Vera nem na outra criança que se desenvolvia no ventre dela.

Em seguida, pegou no isqueiro, deitou fogo ao papel e colocou a chama sob a oração.Ofogo devorou a frase: «Dá-lhe o eterno descanso, Senhor...» Virou a tira de papel e a chamazinha iluminou o rosto de Angela com o seu brilho sorridente, antes de o queimar. «Descontraí-me, Ludwig... Como?

Lá fora, anoitecera. Os faróis dos automóveis iluminavam as ruas de passagem. Os motores emitiam um barulho surdo. Ninguém parecia estar com pressa. Algures, nas costas de Rio, soou o ruído de um comboio. Vinha talvez da estação de Charlottenburger.. Poderia ter-se informado quanto a um restaurante junto do sorridente indivíduo de óculos, mas abandonou a ideia. Ainda não conhecia bem o indivíduo, nem a pensão. Lá fora, a televisão estava ligada, quando entregou a chave. Transmitiam, um jogo de futebol...   saída, Rio apalpou debaixo do casaco, do lado direito. Estava fora de questão deixar a pistola no quarto da pensão. Poderia metê-la muito simplesmente atrás do cinto, como Michael Douglas em As Ruas de São Francisco. Tal não era, porém, nada cómodo, além de que o impedia de correr. Aquele objecto ajustava-se tão pouco ao seu corpo como a prótese ao de uma pessoa que tivessem acabado de amputar. «Ristorante», leu nesse momento. Em bonitas letras rosa.

Entrou. Também aqui a televisão estava ligada. Era o Baviera que jogava contra o Borussia de Dortinund. Parecia haver poucos adeptos de futebol e a gente Jovem, que comia com a cabeça quase em cima das pizas, estava demasiado ocupada com ela própria.Oempregado conduziu-o até junto de uma mesa minúscula lá atrás. Rio encomendou saltimbocca e meia garrafa de Bardolino.O vinho foi trazido em primeiro lugar e sentiu-se contente, pois sabia como sob a sua influência as forças regressavam - e com elas a ordenação das ideias. Dez horas e meia. Estava de facto todo moído, mas em que é que isso alterava a situação? A Max-KrÕner-Platz não distava muito dali. E também conseguiria descobrir a casa no escuro. «Reunir conhecimentos», chamava-lhe Ludwig. Pois, muito bem. E o primeiro seria a resposta à pergunta sobre se era fácil aproximar-se da casa de Hampel. Comeu bastante depressa, bebeu o vinho e sentiu como o calor lhe subiu à cabeça. Fez sinal ao empregado, pagou a conta e saiu do restaurante. Na sala de entrada havia um espelho de corpo inteiro. Mirou o rosto pálido e as sobrancelhas unidas. Não se notava, porém, o volume da H&K por baixo do casaco, nem tão-pouco quando se mexia. E também não era um Mike Dotiglas... Não se encontrava, de facto, muito longe. Virara à esquerda. Ao fundo da fileira de luzes que ornamentava a rua aguardava-o a escuridão, semelhante a tinta preta. Luzes cruzavam esta escuridão: automóveis... a rua estava calma. Caminhou durante um quarto de hora e depois verificou que acertara na sua suposição: o parque! Era o parque que tinha detectado no roteiro, onde estava representado como uma pequena faixa verde com uma faixa azul serpenteada próximo. Devia, por conseguinte, haver também um lago... Rio mantinha-se, agora, à direita. As fachadas escuras e altas das casas estavam iluminadas por candeeiros. Do outro lado avistavam-se as silhuetas das árvores. E por cima de todo o cenário pairava uma lua amarela. Rio chegou junto a uma obra, hesitou e depois seguiu pelo caminho do parque. A Max-KrÕner-PIatz devia situar-se muito mais para cima. No roteiro encontrava-se assinalada como uma pequena praça quase rectangular. Por detrás dos troncos de árvore, havia um atalho, Avistou um brilho por entre as sombras dos arbustos. água?Olago... No caminho para lá ouviu passos que rangiam. Pontas de cigarro reluziam em movimento no escuro, havia vozes e risos abafados. Casais de namorados. Muito bem. Porque é que as pessoas não haviam de trocar beijos e passear, se lhes dava prazer? «"Reunir conhecimentos", "Fase vermelha". Okay, Ludwig. E como será na Max-KrÕner-PIatz? Sabes? Dantes tinha Reissner ao meu lado nestes passeios. Agora, vens tu também... Mas que trio fazemos!» Avançava agora mais lentamente. Veriricara que a linha regular formada pelas copas das árvores se quebrara. Mais à frente, recortava-se o céu nocturno, brilhavam mais estrelas por entre os edificios: a praça! No mesmo segundo em que lhe acorreu ao cérebro a palavra «praça», pousou a mão no revólver num gesto natural e involuntário, qual reflexo, e talvez ridículo também. No entanto, aquele contacto com o «objecto» transmitiu-lhe uma calma invulgar. Em seguida, parou. Junto ao parque era proibido estacionar, mas os carros encontravam-se, contudo, parados em duas filas - um verdadeiro engarrafamento de lata! E todo o terreno do grande bloco habitacional estava profusamente iluminado. Pelas janelas abertas chegava-lhe a música surda dos baixos através dos altifalantes. Rock... Agora Elvis também? Velhos tempos... E uma quantidade de gente. Encontravam-se mesmo espalhadas pelos compridos terraços do rés-do-chão. «Não dar nas vistas, Ludwig, eu sei... Nunca deixares que te apanhem nas zonas de actuação de outros!

Reflectiu se devia desaparecer no parque, ainda chegou junto do primeiro tronco, até em seguida voltar a parar, como que pregado ao chão. Uma festa? Claro! Porque não? Uma festa de gente jovem... Três tinham precisamente saído nesse momento para a rua. A rapariga que ia no meio avançava com um passo bastante inseguro, em seguida dobrou-se e descalçou as sandálias de salto alto no meio da faixa de rodagem. Um automóvel que ia a passar fez sinal de luzes. A rapariga era muito jovem, dezanove anos, no máximo vinte, e dado o cabelo curto e as maçãs proeminentes fez-lhe lembrar Vera - uma versão mais jovem, uma irmãzinha. No entanto, Vera havia feito exactamente o mesmo: tirado as sandálias, já toldada, no meio da faixa de rodagem... - Hilde, deixa-te disso! Não é típico...

- Quero tomar banho! - gritou Hilde. - Quero tomar banho!

Atravessou a relva a correr a uns escassos dez metros do sítio onde ele se encontrava. - Então, fá-lo!

- Faço-o... faço-o...

O prédio em que se realizava a festa e do qual saía a gente jovem era uma casa de esquina - a última da praça. E a Max-KrÕner-PIatz era ainda mais pequena do que Rio calculara, após a ter avaliado no roteiro.Obloco de casas estendia-se igualmente com os seus terraços do lado direito. Na frente e do lado direito havia três jardinzinhos, nos quais se divisavam as silhuetas de uma ou duas moradias. Dez - até esse momento fora apenas um número. Mas agora?

Rio passou a mão pelo cabedal do casaco. Como em muitas das suas reportagens, metera um binóculo no saco de viagem: um binóculo de ópera bastante potente para o tamanho que tinha. Olhou em volta. Ninguém. Depois ergueu o binóculo - só que se tomava impossível distinguir os números por cima das portas das casas. Voltou a meter o binóculo no bolso e avançou pela relva, no papel de um transeunte distraído num passeio através de um parque desconhecido, numa parte de Berlim que lhe era estranha. Só que esta atitude não o levava muito longe. Pôs os óculos escuros. Um homem de óculos escuros à noite, no parque? Poderia parecer suspeito, mas não havia, afinal, bastantes passarÕes que achavam original o uso de óculos escuros de noite? Ou outros que tinham problemas com os olhos? Mais ou menos no centro da praça havia duas imitaçÕes de candeeiros do tempo da Revolução Industrial. Elegantes, práticos e decorativos - e graças aos céus sem darem uma grande iluminação. Rio voltou até junto do prédio de esquina. Passavam automóveis, uma motorizada aproximou-se mais do passeio, dois tipos afastaram-se de um salto, risos, e o homem de serviço ao gira-discos decidiu-se por Michael Jackson. Rio levantou a gola do casaco e dirigiu-se aos dois jovens que tinham acabado de descer da moto. Enfiaram, rindo, os capacetes debaixo do braço. Esboçou-lhes um breve aceno de cabeça e sentiu-se, de certa forma, liberto; reconquistara a antiga descontracção, o espírito de repórter que fez com que as dificuldades deste mundo pareçam muito mais simples do que são consideradas pelo resto das pessoas. Agora, dobrar a esquina! Um dos automóveis do grupo da festa, um velho Spider de escape livre, andava à procura de sítio para estacionar. A rapariga que ia ao volante acenou-lhe. Rio estacou, tendo atingido a última das entradas das casas do bloco habitacional. Estava em frente do número oito! Céus, então o seguinte...

Ali mesmo! A moradia de tijolo de dois andares! o muro que a circundava era igualmente de tijolo pintado de branco. Por cima e a toda a volta do muro havia uma rede de arame farpado.Oportão do jardim era igualmente branco. A porta da moradia tinha um ar imponente devido ao luxuoso enquadramento em pedra. E, por cima, havia um número aliás bastante pequeno: «10». Pensou com a velocidade de um raio e sem hesitação: «Retirar! Depressa, para o parque! Ir embora daqui ... » E, no entanto, ficou ali parado - não podia fazer outra coisa, pois sucedeu algo que o obrigou a estacar: nesse inacreditável segundo, como que num filme de suspense, a porta abriu-se. E na ombreira destacou-se a figura de alguém. De pé, a coberto do alpendre... Rio deu meia volta e necessitou de todo o seu autodomínio para que o movimento não parecesse suspeito ou assustado. Nem sequer uns escassos dez metros os separavam...

As janelas da cave do bloco habitacional encontravam-se protegidas por grades de ferro, com um bojo de uns trinta centímetros a separá-las do passeio. Rio pôs-se de costas para a praça, com o pé direito apoiado numa das grades. Tirou os óculos. Queria, não, tinha de ver melhor... Não só tinha aquele rosto de memória, como o gravara no consciente, como se o conhecesse há anos: um rosto de traços firmes, embora já um pouco marcado pela gordura e a que correspondia um corpo sólido e bem constituído.O rosto de um funcionário do Governo alemão. Uma barriga de alemão. Na Vestefália do Norte ou na região de Hanôver, de onde o próprio Rio era natural, não só os departamentos governamentais como também as mesas de restaurantes pululavam de Hampels. Pois era Hampel a figura em questão! Quem mais poderia ser? Ao afastar-se, ainda tivera tempo de ler o nome gravado na placa de metal: Bernhard Hampel. E foi então que ele avançou - mas não sozinho. Uma cadelinha de pêlo comprido e dourado era puxada pela trela. Como é que se chamava aquela raça?,.. Isso mesmo. Cocker, cocker spaniel. Solteiro - não, Hampel era divorciado. Porque é que os homens não podem igualmente passear as suas cadelinhas? Não, não foi como tinha esperado: «A febre de caça?Oque é isso? - vítima, objecto, alvo humano... Tens tudo isso! Mas a febre de caça? Será o mesmo de quando se junta conhaque ao café quente? Neste caso, tratava-se de ódio. O ódio pode servir como incentivo à revolta. Era mesmo esta a máxima de Ludwig Kiefer: «Personalizar o ódio, oferecê-lo como alvo a um indivíduo - isso enquadrou-se em todos os tempos nas ar- mas da revolução. A história demonstra-o...»

Ludwig era um teórico incurável. Neste caso não ajudava.

Tudo era diferente.Ohomem era diferente. Avançara, agora, uns seis ou oito metros até ao centro da praça. Parou, fixou, com um abanar de cabeça, a alegre gente que participava na festa, deu mais três passos, voltou a parar e olhou para o Spider que recuou de escape livre e descreveu uma curva ao seu lado. A rapariga que ia sentada em cima da capota puxada para trás gritou-lhe qualquer coisa. A cadela ladrou e Hampel ergueu o punho. E surgiu nesse momento, totalmente iluminado pelo círculo de luz do primeiro candeeiro, a quatro metros de Rio. Um rosto muito pálido. Uns óculos de lentes brilhantes.

Não tinha um crânio assente numa forte estrutura, mas ombros descaídos, barriga e pernas finas enfiadas numas calças de ganga. Vestia, realmente, calças de ganga!Omais elucidativo era, contudo, o rosto. Inchado como um balão, uma boca escancarada de fúria, maldosa, não mais rude do que a da fotocópia do alvo. Era esta a realidade... Quatro, no máximo cinco metros... Seria tão rápido. Seria tudo tão simples. «Não precisas de fazer pontaria à gravata, pois ele não usa.» Por baixo da gola aberta do casaco do fato de treino via-se uma camisola interior. «Vá, então--- Dispara, céus! Agora, tens a sensação de caça. Saca a H&K, pois não há muita pontaria a fazer! ... » Mas não tinha disparado. E teria bastado um único tiro. Esquivara-se, sim, senhor. Um mero cartucho e tudo teria acabado - fim do espectáculo... Mas não! Rio fez menção de estender novamente a mão para a garrafa, que levara para o quarto. Deixou-a estar no mesmo sítio, levantou-se da cama e dirigiu-se ao telefone. Manteve-se de pé em frente da pequena secretária e sentiu como o suor lhe colava a camisa às costas. «Uma única bala? E depois anos no hospital psiquiátrico de uma prisão, até tudo findar?» Sabia também o que começava a sentir: o eterno problema de estômago... «Ficas logo agoniado com uns goles de vinho, a moleza... "infecção secundária", assim se chama, "germes oportunistas".» Marcou o número de casa de Munique, encostou o auscultador com força ao ouvido e esperou sustendo a respiração. Nada. Sinal de desimpedido. Ou Vera estava

a dormir como uma pedra ou saíra - e, por esse motivo, Herr Wolilmann não obteve resposta na Pensão Ca- rola. Bom. No dia seguinte de manhã, voltaria a ser Rio Martin, telefonar-lhe-ia de qualquer redacção, a fim de cimentar um álibi em Berlim, segundo Ludwig engendrara. No entanto, hoje, hoje precisara dela... Tirou a agenda do bolso do peito do casaco de cabedal e abriu-a na última página. Aqui estava escrito 40-34-71», o indicativo de Maiorca. «Telefona-me, sempre que precises de mim, Rio. à noite, também. Telefona-me quando achares que é importante.» Não era importante. E na perspectiva de Ludwig, também se havia comportado de uma forma perfeitamente sensata. Loucura teria sido muito pura e simplesmente deixar-se arrastar pela emoção. No entanto, observara de perto o «alvo», o director governamental Bernard Hampel, e agira de maneira a não poder ser reconhecido por ele. Tudo okay, portanto, De qualquer maneira, não possuía notícias relevantes para oferecer. No entanto, Rio precisava mesmo de uma voz. Consultou o relógio: passava da meia-noite. Ludwig estaria quase de certeza na sua pensão. Levantara voo em Francoforte do Meno às dez horas e em seguida aterrara, às onze e cinquenta e cinco, bastante próximo da hora do almoço, em Palma de Maiorca... Estava calor, um calor infernal. No ar pairavam vapores de óleo e gasolina, embora Ludwig Kiefer tivesse a sensação de sentir o cheiro a mar lá atrás. Desceu a escada rolante cuidadosamente e agarrando-se ao  corrimão.Omaldito avião tinha-o enfraquecido.Oátrio do aeroporto tinha dimensÕes bastantes para conter dois campos de futebol. Haviam-se formado longas filas em frente dos guichês da alfândega. Veraneantes bronzeados que gritavam no meio da confusão. Dirigiu o carrinho das bagagens com a mala por entre a multidão. Parou numa das lojas para turistas. -Por favor, queria isto aqui... «Isto aqui» era um inconcebível, amarrotado chapelinho para turistas de um verde-azeitona; tinha escrito «Mallorca» em letras azuis. Odiou-o, mal lhe pegou. Teria de se passear pela cidade como um palhaço? Era, contudo, obrigado a desistir do gorro basco e, por conseguinte, apenas lhe restava o chapelinho como alternativa. Trocou o gorro pelo chapéu numa das casas de banho do aeroporto. Sentia os intestinos às voltas. Pegou em dois dos seus comprimidos azuis, tomou-os com água da mão em concha e aguardou. A peristalse acalmou. Ludwig Klefer dirigiu-se, em seguida, ao balcão de aluguer de automóveis. - Tem um carro com ar condicionado?

- Claro, senhor. Alugou um Opel Vectra, pagou em dinheiro e não com o cartão de crédito, recebeu a chave e sentou-se ao volante do automóvel novo em folha. Uma hora depois, Ludwig Klefer seguia pelo atalho que levava, sobre a colina, à Can Rosada. Ciprestes, oliveiras, terraços, a grande casa - a própria paisagem era-lhe familiar. Parou o Vectra no parque de estacionamento e desceu. Os edíficios erguiam-se ao sol e projectavam sombras escuras. Seria simples. Perguntaria por Engel num dos chalés da sua urbanisación. «Sabe, sou reformado e estou interessado num destes chalés ... » Sim, simples e necessário. Em seguida, iria vê-lo frente-a-frente. Meditara bastante no assunto: ainda queria apreciar bem não só o olhar de Engel mas também o rosto e a voz antes de o matar e enviar para onde ele pertencia.

Um homem virou a esquina da garagem. Segurava uma pá na mão e fitou-o. Tinha os cabelos pretos e era musculoso. - Quiero hablar com Sehor Engel - disse Kjefer. Gostaria de falar com Herr Engel. - Don Thomas não está. Voltou a sentir as dores no ventre. -Não está... não estás algures na ilha? - Oh, seííor. Saiu com o iate - respondeu o homem a rir. - Costuma voltar à tarde, entre as cinco e as seis horas. É claro que também pode ser mais tarde. Com ele nunca se sabe... Um fax para Bernhagen bastara. Ali, Malzberg bem podia continuar a ocupar-se de insignificâncias, mas ele - ele saboreava a terceira tarde a bordo do iate: sol na pele, água azul e límpida, a comida, as raparigas, as gaivotas cruzando o céu...

Hochstett estava deitado na cadeira de repouso e escutava o murmúrio das ondas.Oque havia de verdadeiramente inacreditável nesta nova vida residia na rapidez com que uma pessoa se habituava. Fechou os olhos. E estava quase a adormecer quando se ergueu, sobressaltado.Osoluço de um saxofone e depois a bateria. Será que Thomas e as suas mulheres desconheciam o repouso?

O instrumento de percussão emitia o ritmo erótico de uma bossa nova. Talvez a bossa nova se adequasse a Engel, mas não no meio de toda esta calma. Agora, o Pirata II tinha ancorado diante de uma enseada polvilhada de bocados de rochas. Não se via um único bocado de areia, nem vivalma. Nada para além de rochas íngremes - uma espécie de fiorde. Hochstett levantou-se. Provavelmente só conseguiria dormir no seu camarote. Atravessou a porta do salão,

que estava aberta, afastou para o lado o reposteiro de listas brancas que protegia a enorme divisão de olhares indiscretos - e estacou. A queimadura de sol na testa começou a arder. Tinha arregalado os olhos. E, agora, sentia igualmente calor nas orelhas. Sim, recebeu uma espécie de choque. Estava obviamente preparado para algo no género e encontrava-se informado sobre Kitty, desde que Engel lhe sussurrara ao ouvido: «A Kitty?... Comigo é como entre os esquimós, Jochen - as minhas mulheres são tuas também. E posso garantir-te uma coisa: fez as análises da sida. Portanto, força, rapaz!» «Força, rapaz? Mas não a meio da tarde!». No salão reinava a semiobscuridade.Otrompete cantava e a bateria soava com força.Onegro do amplo sofá de cabedal reluzia sob a luz dos apliques metálicos e em cima do sofá... Kitty e a outra rapariga que tinham trazido para bordo em Cala d'Or - Cleo? Exacto... Cleo era um delírio em carne e osso: não tinha mais do que dezanove anos. Tudo o que tinha para oferecer a nível de pele, curvas e elegância parecia acabado de criar. E a acrescer havia o cabelo negro pela cintura e o rosto de índia com os olhos estreitos. «Fresquinha da Venezucla, Jochen!» Agora Cleo mantinha, no entanto, os olhos fechados e a boca aberta, com o lábio superior a tapar os dentes.Orosto de Cleo era uma verdadeira máscara de excitação e entrega. E sobre ela debruçava-se Kitty; subira a T-shirt da jovem, rodeava-lhe os seios com as mãos, brincava com os bicos endurecidos, metia-as por baixo do elástico das cuecas. Ele conhecia aquelas mãos, sabia o que provocavam, conhecia as sensaçÕes - e Cleo gemia, tinha de gemer, mas o soluço do saxofone sobrepôs-se, aumentou quando a cabeça loura de Kitty, o corpo mais branco de Kitty se enfiou entre as coxas bem abertas...

- Então, Jochen? - Engel, comodamente instalado no maple, segurava uma taça de champanhe na mão e tinha uma câmara de vídeo no colo. A garrafa de Moet et Chandon encontrava-se ao seu lado no chão. - Forte, não? - Hochstett esboçou um aceno de cabeça afirmativo com a boca seca. «Forte? Oh, céus...» Os corpos das mulheres tinham-se entrelaçado num frenético e violento abraço. Costas, seios, coxas, mãos, cabelos - tomava-se dificil saber quais os membros que pertenciam a quem. O saxofone calou-se e a música chegou ao fim; respiração, gemidos e gritos de gozo encheram a divisão. - De primeira classe, ou não? - disse Engel. -Sim - sussurrou Hochstett. - Claro... mas a porta está aberta, Thomas. E se agora o Tomo... - Tomo? - riu Engel, enquanto colocava a câmara de vídeo à altura dos olhos. - -Queres o marinheiro aqui nesta altura? Bebe, homem! Pega numa taça. - Hochstett não bebeu, nem pegou em nenhuma taça. Hochstett estava muito perturbado e limitou-se a ficar imóvel, como se estivesse pregado ao chão. - Quando a Cleo se solta, transforma-se em tigre. Observa bem! - Hochstett tinha o rosto em brasa. O flash da câmara brilhou, arrancou os corpos reluzentes de suor à sombra, não deixou um único segredo no escuro, mostrou todos os pormenores... - Agora, responde. Queres o Tomo também? - O quê? Como?

- A três, Jochen! - A câmara ocultava o rosto de Engel. - Também haveria algo para ti. Tens de praticar, homem... Agora, despacha-te! Vá, a loja está aberta. Aqui, junto de Engel, há tudo o que o coração deseja. Mercadoria de primeira, Jochen, sexo seguro e para ti de graça... E Jochen tirou os calçÕes...

Dezanove horas e trinta minutos. Do terraço do Windrose podia avistar-se o ancoradouro 124. Estava vazio.Ohomem idoso com roupa leve de passeio e o iriacreditável chapelinho de turista na cabeça mandou vir um chá de camomila.Oterceiro. Um empregado novo e natural da região trouxe-lhe a chávena. - Ouça. Conhecem-se bem aqui no porto?

- Porquê?

- O iate a motor que está sempre aqui em frente...

- O iate a motor que está sempre aqui em frente! Que ideia é essa, seiíor? Há algumas centenas de barcos aqui no porto. -Oque tem o número cento e vinte e quatro.

O jovem forçou um sorriso. «Mas que tipo! Está para aqui sentado há três horas, manda vir chás uns atrás dos outros, ainda por cima de camomila, olha para a água e conta iates.» - Pertence a um alemão.

- Ah, sim? Um alemão?

- Sim. Aqui chamam-lhe «Don Thornas». Vive todo o ano em Maiorca e é podre de rico. E raparigas também não lhe faltam - acrescentou o empregado com um esgar. - Queria, na verdade, perguntar-lhe se não será talvez aquele iate que está a entrar..Oempregado pôs a mão diante dos olhos a fim de os proteger dos fortes raios de Sol. - Sim - respondeu. - Exacto. É ele. É o Pirata II.

_  Pára, Tomo. As duas máquinas. Vira-o a bombordo, céus!

Thomas Engel sentia-se cansado, furioso e nervoso. Mas sobretudo - o que era raro acontecer-lhe - ignorava qual a atitude a tomar. Voltou a erguer o binóculo e ficou com a certeza absoluta: a jovem que se encontrava na esplanada, junto aos quiosques de recordaçÕes, ao lado da Pizzeria Bianco y Negro, a rapariga de calçÕes vermelhos e camisa branca, era a sua filha. Agora, tinha a figura bem nítida nas lentes e não havia hipótese de erro: Irena! Ali estava ela a observar despreocupadamente uns óculos de sol. Tinha outros dois pares na mão esquerda. Mas junto ao muro da esplanada, montada numa das duas motocicletas, estava Madalena, a filha do administrador da Can Rosada, a amiga de Irena.

Engel pousou novamente o binóculo; em seguida desceu do convés,   percorreu o corredor entre os camarotes e escancarou a porta do salão. E deparou-se-lhe exactamente a cena que havia imaginado: Kitty - nua em pêlo junto ao bar, com uma taça de champanhe na mão. E, no sofá, aquele palhaço, aquele idiota chapado, com a cabeça nos seios-de Cleo, os dedos algures. Não tardariam a chegar alerra e ele nem sequer se apercebera do facto. - Jochen! Ele levantou a cabeça e arregalou os olhos. Céus!

O melhor ainda seria afogar Hochstett aqui na doca.

-Oque se passa, Thomas?

- Veste-te imediatamente! E tu, Kitty, mete-te dentro do camarote. Tu também, Cleo. Rápido. Despachem-se! - Mas...

- Não há mas nem meio mas... - retorquiu Engel, ao mesmo tempo que apanhava a parte de baixo de um biquini do chão e o atirava à cara de Kitty. - Mete aqui o traseiro! Irena está à espera no porto. Compreendeste, agora? Kitty limitou-se a esboçar um aceno de cabeça e afastou-se a correr.

Voltou a subir à ponte e disse a Tomo que podiam iniciar as manobras de aportagem. Tonio assentiu.Obarco deu a volta e deslizou lentamente em marcha à ré, com os motores a baixa velocidade, ao longo do molhe. Engel apercebeu-se de que Irena lhe acenava com o braço. Ao lado dela, recortava-se a figura de um homem idoso, um daqueles turistas típicos vestido à vontade e com um chapelinho verde na cabeça. Também ele pusera as duas mãos à volta do varandim da esplanada e observava como o Pirata avançava para terra por entre os outros barcos. - Thomas! Papá! - A voz cristalina de Irena sobrepôs-se ao ruído da água coberta de espuma. Tomo desligou os motores e saltou para o molhe, a fim de prender o cabo. PiRATA II - NEW JERSEY. Eram estes os dizeres escritos com maiúsculas na popa. «New Jersey», pensou Kiefer. «Que mais poderia ser? Pagar impostos por um iate de luxo assim estava fora de questão para um Thomas Engel.>@ E lá estava ele agora na antepopa: ténis azuis, calçÕes azuis, tronco nu, cabelo claro e mais bronzeado do que nas fotografias que Ludwig Kiefer vira dele. Sim, ali estava Thomas Engel! E esta jovenzinha ao seu lado? Quando estava sentado na mesa da esplanada já a tinha observado a experimentar óculos de sol no quiosque, enquanto a amiga lhe gritou qualquer coisa, como é hábito entre gente jovem. E, tal como ele, também a jovem apoiara as duas mãos no varandim. E, por fim, quando o iate se aproximou, pôs-se a acenar com tal força que o rabo-de-cavalo louro esvoaçou. - THOMAS! PAPá!... Ludwig Kiefer não conseguiu dar conta, nas horas seguintes, do que se passou no seu íntimo neste segundo. A energia e o raciocínio formaram um só elemento.

O resultado foi o de que todos os pensamentos que ao longo de semanas preparara e planeara para este instante foram destruidos. Era, no entanto, a oportunidade! A ideia... Uma oportunidade que talvez não voltasse a surgir. Tinha, naturalmente, pena da rapariga, mas ela acabaria por entender. Já era bastante crescida. Além de que era a filha de um homem que provocara a outros, precisamente inocentes, não só um incrível sofrimento como a morte. Também ela deveria vir a saber isto... Porto Colón situava-se a dez quilómetros a leste de Cala d'Or. Tratava-se de um porto natural, uma bacia com rochedos, rodeada de pinheiros e casinhas, na sua maioria de dois andares. Barcos de pesca estavam ancorados junto ao farol, havia redes a secar no molhe e as crianças e cães observavam as redes a ser remendadas ou como os barcos eram pintados de fresco. «Dez quilómetros», pensava Ludwig Kiefer enquanto conduzia o automóvel junto aos barcos amarrados. «Dez quilómetros - e vinte anos. Aqui ainda impera uma outra era. Sim, tudo parece exactamente como era dantes.» Estacionou o Vectra à sombra de um imponente pinheiro. No largo passeio em frente do hotel havia mesas. às mesas estavam sentados homens de idade a ler jornais. De vez em quando, avistava-se um turista, mas só muito raramente. Kiefer entrou no edificio. Não se via ninguém. Silêncio e sombras.Opróprio cheiro a cera, mobiliário antigo e detergentes trazia o passado de volta. Viu-se parado nos mosaicos com Anna, que olhava em redor, como uma criança: «Aqui, Ludwig?» «Se quiseres, Anna...» «Oh, sim, aqui. Parece um daqueles hotéis da minha juventude, quando viajava até França na companhia dos meus pais ...

E era ainda esse mesmo hotel - como na juventude de Anna. Nesse momento, apareceu uma mulher simpática, vestida de preto e gorda: - Oh! É o senhor o hóspede da Alemanha? Deram-lhe, tal como havia pedido por telefone, o quarto quatro, no primeiro andar. A cama era nova. E tinham entretanto feito também uma casa de banho moderna. Afastou os reposteiros: na sua frente estendía-se o porto, lá em baixo havia as mesas com os homens idosos... As janelas das novas construçÕes nas colinas da outra margem brilhavam, iluminadas. No ancoradouro, avistavam-se alguns imponentes barcos.Ocrepúsculo abatia-se sobre as vertentes e as cordilheiras a norte - uma tarde idêntica a seda verde. Ludwig Kiefer deteve-se muito tempo à janela e riu. Por fim, virou-se, meteu as mãos nos bolsos e apalpou as ínguas através do tecido fino, como sempre o fazia diariamente a esta hora. Em situação de stress costumavam transformar-se em nódulos ameaçadoramente dolorosos e endurecidos. No entanto, agora... sim, haviam diminuído de tamanho. Também deixara de sentir-se tão agoniado.Oestômago e os intestinos estavam calmos e ainda não tossira uma única vez desde a chegada a Maiorca. Pegou na mala, levantou a tampa e retirou do interior a caixa com as seringas descartáveis. Escolheu cuidadosa e pensativamente uma das seringas, pousou-a em cima da cama, atou o braço com a correia de borracha, espetou a veia e ficou a ver como o êmbolo puxava devagar o sangue, o seu sangue, este líquido vermelho-escuro... Fizera, por conseguinte, exactamente o que, há meia hora, engendrara junto ao lugar 124 do ancoradouro de Cala d'Or, ao lado da excitada rapariguinha que gritava: «Thomas!...»

Eram dez horas. Vera arrastou o saco de plástico com cimento até junto da porta da casa. Se Hubert aparecesse, poderia começar de imediato. No caso de vir.. Era, contudo, um estudante e provavelmente voltaria a faltar. Regressou à cozinha para lavar a chávena do pequeno-almoço.Otelefone tocou. «Rio! Finalmente ... » Não era, no entanto, Rio, mas Paul Novotny. - O Rio está? - Não. Partiu em viagem. - Ah, sim? E para onde?

- Berlim. Silêncio. Era um silêncio estranho e conseguia ouvir perfeitamente a respiração de Paul. A julgar pela mesma, parecia bastante nervoso. - Berlim? - redarguiu finalmente e repetiu a palavra tão devagar, como se nunca a tivesse ouvido. - sim. -E que tipo de reportagem foi fazer?

Escuta bem, Paul! Que tipo de pergunta é essa? -

riu Vera. - Também não ando sempre atrás de ti no teu departamento. Tenho muito que fazer na minha cozinha a lavar a louça. - Desculpa... desculpa, Vera, mas é extremamente importante. -Otipo de reportagem que ele foi fazer?

- O importante é que eu me ponha em comunicação com Rio o mais depressa possível. Por isso te perguntei qual o tipo de reportagem. Tem algo a ver com o teatro. E esse o tema, tanto quanto percebi. - Mas tem certamente alguns pontos-chave... quero dizer, talvez esteja, agora, em qualquer teatro ou a entrevistar qualquer pessoa e seja possível contactá-lo. - E como hei-de sabê-lo, Paul?

- Talvez telefonando para a redacção?

-Tenho a certeza de que lá não sabem. Rio não discute os seus planos de viagem! - O hotel?

- Sempre que se desloca a Berlim, leva a chave do apartamento que pertence a um amigo e está vazio a maior parte do tempo. Não há telefone. - Oh, merda! - gemeu Novotny. «Mais uma vez o silêncio. E mais uma vez a respiração.Oque se passava, afinal, com Paul Novotny, céus?» - Mas o que é afinal tão urgente, Paul?Oque significa isto tudo? -Não é assim tão simples de explicar. Uma outra pergunta: ajudaste-o seguramente a fazer as malas? Um pouco. Tinha alguma arma na bagagem? Uma arma? - redarguiu Vera, consternada. Nesse momento a campainha da porta soou repetida e impaciente. Ela ergueu a cabeça. «Hubert?» Hubert que esperasse... «Uma arma?» -Oque disseste? Se ele tinha uma arma na bagagem? Rio nunca teve armas em seu poder, Paul.Oque significa tudo isto? Ouve. Ficava-te muito agradecida se pudesses explicar-me porque fazes essas afirmaçÕes tão cómicas e te comportas de forma tão estranha... Sim, tens algo de estranho. Estás nervoso, Paul. Confessa! - Sim, estou nervoso - anuiu ele.

- E porquê? Silêncio. Em seguida:

- Presta atenção, Vera. Vou passar imediatamente por tua casa. Sigo já de automóvel, sim? Não saias de casa. Espera por mim. Prometes-me? - Claro que sim. Porque não? - Pousou o auscultador e olhou em volta, abanando a cabeça. Tocaram novamente à campainha...

Decorridos menos de vinte minutos, Vera avistou o grande BMW azul da Polícia que parava diante do portão do jardim. Por sorte, Hubert arrastara o seu saco de cimento e estava nas traseiras da casa a trocar os mosaicos danificados pela geada. Consultou o relógio de pulso: Paul nem sequer levara vinte minutos a chegar. Como teria conseguido uma tal proeza? Decerto fizera todo o caminho com a luz azul e a sirena. - Paul! Como estás? - cumprimentou-o ao abrir a porta. Ele fitou-a, tentou esboçar um sorriso que falhou e deu-lhe um breve aperto de mão. Em seguida, irrompeu pela porta, avançou ao longo do corredor até à sala, olhou em volta, enfiou as mãos nos bolsos e começou a percorrer a divisão de um lado para o outro, qual tigre enjaulado. - Nunca teve, portanto, armas na sua posse? -Armas, armas... agora, basta, céus. O que entendes por armas? -Uma pistola, claro.

- Porque é que Rio levaria uma pistola para Berlim? Queres dar-te ao incómodo de me explicar? Novotny puxou uma cadeira, sentou-se e apontou para o banco forrado de cabedal.  Senta-te, por favor, Vera. - Ela sentou-se na frente dele e fitaram-se. Era talvez o olhar com que no trabalho tinha de participar a qualquer viúva que infelizmente fazia parte do seu dever informá-la do falecimento... etc., etc. Apercebeu-se, no entanto, de que por detrás desta comunicação havia algo mais: medo, isso mesmo, medo... -Nunca te mencionou o nome Kiefer?

- Klefer? Não.

- Ludwig Kiefer. Ou Ludwig? Nunca lhe ouviste esse nome, nem mesmo ao telefone, ou coisa assim? - Vera limitou-se a sacudir a cabeça em negativa. E agora era ela quem sentia o medo, sentia como a invadia e como se lhe apoderava da garganta... - Talvez possa encontrar alguma pista no seu escritório, entre as coisas dele? - sugeriu Novotny, mais como se falasse para si próprio e com os olhos semicerrados. - Quem é esse Klefer? - inquiriu Vera.

- Ludwig Kiefer? Um velho amigo meu... Tens de guardar segredo do que agora vou contar-te. Por favor. Ela esboçou um aceno de concordância.

- Kiefer é um velho amigo e polícia como eu. Um polícia reformado. Criminologista. Apresentei-o a Rio. -Como assim?

- Porque Klefer desejava conhecer o Rio. Nunca o --devia ter feito, raios! - E porque é que ele queria conhecer o Rio?

-OKlefer tem sida, Vera. E apanhou-a pela mesma via que Rio. - A Bio-Plasma? - retorquiu ela, ofegante.

- Sim. A Bio-Plasma. Começou, assim, a reunir informaçÕes contra a firma. E dado Rio ter escrito aquele artigo, achei uma óptima ideia que ele tivesse acesso a estas informaçÕes. - Continua, Paul. -Bom - suspirou. - Kiefer tem uma irmã com quem vive numa vivenda em Steitibach. Steiribach, em Worthsee. - Conheço.

- Também nunca mencionou o nome do lugar? - Vera abanou a cabeça. - Irma, a irmã de Kiefer, apresentou-se hoje de manhã no meu gabinete. Já lá estava, quando cheguei. Mostrava-se muito nervosa, e também compreendo. O irmão desapareceu... Deixou-lhe apenas uma curta mensagem: ia de viagem. Para o caso de não regressar nem dar mais notícias deveria ir ter prontamente com o seu advogado que lhe entregaria uma carta, em que ele expunha e explicava tudo.Ocoração de Vera parecia prestes a saltar-lhe do peito. Só com muito esforço mantinha as mãos calmamente no regaço. - Infelizmente, ainda não é tudo. A irmã de Klefer contou-me que nas últimas três semanas o Rio havia estado, pelo menos quatro vezes, na vivenda em Stembach. - Talvez tenhas sido o causador disso.

- Sim, mas não do que ali se passou. Rio aparecia, os dois punham-se a conversar e tudo parecia perfeitamente normal. Mas depois desceram à cave... Nesta cave há uma sala de tiro. Conheço-a. E praticaram durante horas a fio. -Mas o Rio nem sequer sabe disparar... -Agora, já sabe - redarguiu Paul Novotny. -Ovelho ensinou-o...

- E depois, Paul? - Irmã sentiu-se obviamente curiosa. Abriu, por conseguinte, a porta e desceu as escadas. Os dois estavam precisamente a fazer um intervalo e conversavam. E, agora, é que vem o mais importante: falavam de co- mo se poderia matar Engel, da Bio-Plasma, e mais um outro homem em Berlim. Falavam do método, sobre a táctica e igualmente de quem se encarregaria de o fazer... - Vera tinha a boca seca. Berlim! Pensou na palavra, queria gritá-la, mas nem um único som lhe saiu da boca. - E passou-se uma coisa que me dá que pensar, Vera: Klefer mandou chamar um táxi. E o motorista de Steinhach contou a Irma Kiefer que conduzira o irmão ao aeroporto... Os meus agentes já estão a investigar. No entanto, segundo o que até agora me foi comunicado pela rádio, parece que Kiefer utilizou um passaporte falso no check-in. De qualquer maneira, o seu nome não se encontra registado em sítio algum... Mas do armário desapareceu a sua roupa de Verão. E a irmã encontrou um velho guia turístico de Maiorca em cima da sua secretária.

- E aí... - sussurrou Vera.

- E aí nessa ilha vive o Engel - redarguiu Novotny com um aceno de concordância. Não lhe restavam muitas outras alternativas: Madalena fora visitar a sua tia de carro a Manacor. E em vez de estar sempre a ler, a ouvir música ou a passear pela finca sem fazer nada, era muito melhor estar no Pirata. No fundo, Irena nada tinha de pessoal contra Kitty, apesar do tipo de personagem em que ela se enquadrava, mas quanto àquele frustrado e inútil Hochstett... A jovem sentia-se bastante aborrecida naquela manhã. Quando por fim e como habitualmente Thomas chegou atrasado ao porto, Hochstett e Kitty não se encontravam por perto. Apenas Tomo, que lhe transportava a cana de pesca.Opróprio Thomas levava a pasta de documentos na mão, o que significava que se meteria no camarote durante horas a fio para telefonar para todo o mundo através do satélite e fazer os seus negócios.

«É absolutamente à prova de escuta, miúda...», confiara-lhe uma vez. A Irena pouco lhe interessava a quem ele deveria telefonar em tanto segredo. Se ele... - Vai buscar-nos um pacote de cigarros, Irena - pediu Thomas. - E traz também gelados, para não morreres de fome no caminho. Irena esboçou um aceno de concordância e dirigiu-se ao supermercado que ficava ao fundo da galeria das lojas. Thomas e Tonio já se encontravam a bordo. Tonio descera mesmo a escada do costado quando Irena entrou no parque de estacionamento que pertencia ao supermercado. Não se via muita coisa a esta hora. Somente alguns carros. As noites eram compridas em Cala d'Or e os turistas, bem como os velejadores ou donos de iate, saíam tarde da cama. Em frente da entrada do supermercado cresciam três palmeiras. Irena avançou devagar e olhou de relance para as flores de um amarelo-vivo que as rodeavam, num canteiro de pedra circular. Uma sombra escura e comprida incidiu nas pedras e flores. Uma sombra escura e desagradável. Antes que pudesse virar a cabeça, sentiu que lhe prendiam o braço com uma força semelhante à de uma garra. E quase em simultâneo sentiu uma pressão dolorosa junto à coluna vertebral. Esqueceu-se de respirar. Estava demasiado surpreendida para gritar.. -   Tens uma pistola apontada às costas - sussurrou uma voz de homem. - Mas não precisas de ter medo. E também não precisas de gritar. Se fizeres o que te vou dizer, não te acontece nada, ouviste? Absolutamente nada. - Deteve-se como que paralisada. - Entendeste-me? - Sim - murmurou ela.

- Então, acompanha-me. Estás a ver o automóvel azul, à direita do acesso ao parque? - Sim.

- Nesse caso, vamos entrar. Muito lentamente, como velhos amigos... - Agora, ela via-lhe o rosto. E via-lhe também a mão que apertava o seu braço. A mão estava enfiada numa fina e branca luva. Tinha um rosto magro e muito velho. As maçãs do rosto eram muito proeminentes... E havia ainda os olhos... tinham um riso, embora o mesmo não deixasse dúvidas a uma Irena cada vez mais assustada: o homem falava a sério! Avançaram. - Assim mesmo, miúda... E agora, abre a porta. - Um Citroên passou junto deles. Irena identificou as duas mulheres por detrás do pára-brisas: espanholas, uma delas jovem, a outra de idade. A nova sentava-se atrás do volante, e virou o rosto na direcção de ambos. Abriu a boca e arregalou os olhos. Tinha compreendido. Devia ter visto a pistola, pois os pneus do Citroên chiaram ante a travagem a fundo. A caixa de velocidades rangeu quando a mulher tentou meter a marcha atrás. Em seguida, o carrinho descreveu uma curva acentuada para a esquerda, a caixa de velocidades protestou uma vez mais, e o Citroên disparou pelo caminho ao fundo do porto. - Muito quieta. - Também o velho compreendera. Apesar de toda aquela excitação, Irena sentia-se espantadíssima.Ohomem tinha nervos de aço... Mantinha-se perfeitamente calmo. - Sobe! Aqui pelo lado do condutor. Afasta-te para lá! Obedeceu em silêncio. A porta bateu com força.Omotor trabalhava em surdina. Irena sentia a pressão da pistola, agora encostada às costelas. Lá em cima estava Thomas, Tonio ocupava-se do cabo e encontravam-se os dois tão próximo que somente lhe bastava gritar..Ocoração batia-lhe com força. Apercebeu-se de que a transpiração lhe escorria pelos sovacos. -Não - sussurrou. - Não...

- Já te garanti que tudo acabará em breve. - Thomas mantinha-se no convés. Pusera as mãos nas ancas e percorria a esplanada com um olhar perscrutador. - Está à tua espera, ou quê? - inquiriu a voz suave do velho ao lado dela. - Bom, nesse caso, vamos avançar até junto dele e falar-lhe... Pôs o carro em ponto morto, esperou pacientemente que uma camioneta que estava a descarregar provisÕes junto a um dos barcos se afastasse, avançou e parou, em seguida, mesmo em frente da escada do costado do Pirata II. Aparentemente, Engel ainda não tinha visto a filha. Virava-se de um lado para o outro à sua procura e gritou qualquer coisa a Tonio. No entanto, levantou o braço logo em seguida. Havia descoberto Irena.Orosto denotava apenas surpresa. Com a mão direita enfiada no bolso, desceu a pequena escada de alumínio que fazia a ligação entre o iate e a faixa de cimento do molhe e aproximou-se do Vectra. Pôs-se junto ao lugar do pendura, pousou a mão esquerda no tejadilho do automóvel e escancarou a porta.Orosto deixou transparecer uma expressão severa. - Irena! Deus do céu...Oque estás a fazer aí dentro?

Irena não respondeu. Limitou-se a virar a cabeça para o homem de idade e fixou o rosto magro, em que se desenhava aquele riso amigável, não, alienado. _  Tenho algo a dizer-lhe, Herr Engel. E peço-lhe que mantenha a calma, por favor. Tinha uma voz forte para um corpo tão velho e debilitado. Mas o que ele estava a dizer foi abafado pelo ruído de um dos barcos em busca de sol e que acabara de descrever a curva para entrar no porto. - Thomas! - gritou Irena, num tom de voz estrangulado. - Ele... ele... Os olhos de Engel tinham-se estreitado numa nesga.

-Oque significa isto, raios? Quem é você? Passa-se alguma coisa? - Sim, passa-se - respondeu Ludwig Kiefer. -Ele tem uma pistola, Thomas. -Ele tem... o quê? - Isto aqui... - Ludwig Kiefer ergueu por momentos a Walter e voltou em seguida a baixar o cano até onde estivera dantes: nas dobras da camisa larga de Irena. Um camião passou junto deles. Os lábios de Engel tremeram.

- Enlouqueceu? Seu... seu porco maldito!

- Isso não leva a nada, Herr Engel. Acredite-me. Os gritos em nada vão ajudar. A voz do criminologista saía com um inabalável realismo.

- Oque quer de Irena?

- Dela? Rigorosamente nada. Quero uma coisa de si.

- Dinheiro?

- Sobre esse assunto ainda vamos falar. Mais tarde. -Mais tarde? Como assim, mais tarde? E... onde? - Calma, Herr Engel. E ouça bem o que tenho para lhe dizer. Não repetirei uma palavra, uma única. Quando acabarmos de discutir o assunto, sigo com o carro. E, nada de cenas. Caso contrário, seria obrigado a fazer mal à sua filha.Oque não deseja, certo? Entendeu? - Sim.

- Bom. Nesse caso, preste atenção: na fronteira a leste da sua propriedade, começa uma pequena colina. o caminho ali leva a um muro com ciprestes, o seu muro, Herr Engel. Faço-me entender? - Sim.

- Siga esse caminho, subindo a colina.Ocimo está coberto de pinheiros. No entanto, a meio, há um prédio em ruínas, uma cabana ou uma espécie de estábulo em ruínas, está a ver? Engel esboçou um aceno de concordância. Nada mais lhe restava, analisando a situação. Este porco, este velho esqueleto ambulante tinha todos os trunfos. Se ele estava a ver? E de que maneira! Tinha querido comprar aquela maldita terra, toda a colina, mas o camponês rira-se dele. «Volta para a Alemanha», dissera. «É lá que pertences.» Se lhe tivesse dado ouvidos... Ou se, pelo menos, Irena lá tivesse ficado... Thomas Engel nunca se sentira tão indefeso em toda a sua vida - nem tão enraivecido.Oque havia de fazer nesta situação? Gritar por Tonio? E em que poderia ajudá-lo Tomo? - E o que há com a cabana? - redarguiu num tom de voz tenso. -Encontramo-nos lá, Herr Engel. Daqui a vinte minutos, digamos. - Encontramo-nos?

- Irena também lá estará. Vem comigo, lrena... -

Soltou uma gargalhada: - Um bonito nome, aliás.

Engel premiu os lábios com força.

- E irá sozinho, Herr Engel... Que isso também fique bem claro. Agora, vou-me embora. Seria uma estupidez seguir-me. Pode igualmente notificar a Polícia. Também isso é estúpido. Estúpido e altamente perigoso, Herr Engel... - Chamas-te, portanto, lrena? - replicou Kiefer com um aceno sorridente. Virou-se para a jovem e fitou-a: - O meu nome é Ludwig... Seguiram por uma estrada comprida e estreita. à esquerda e à direita erguiam-se muros de pedra. Por detrás avistavam-se amendoeiras e as folhas de um emzento-prata de oliveiras. Fazia calor, muito calor. _  Fecha a janela, Irena. Conduzia com a mão esquerda e segurava a pistola na direita. Manejava igualmente a alavanca das mudanças sem largar a arma. - Estás a ver aquele botão azul? É o ar condicionado. Carrega nele...Ofresco espalhou-se no interior do automóvel. Ludwig Kiefer esboçou um aceno de cabeça satisfeito. Exactamente o que neste instante necessitava: a cabeça fria. Planeara tudo em pormenor. Espalhadas pela terra verinelha, avistavam-se quintas isoladas; lá em cima, porém, a igreja talvez pertencesse a S'Horta e de S'Horta à bifurcação que levava à Can Rosada de Engel iam uns meros oitocentos metros. As duas mulheres do Citroên podiam naturalmente já ter avisado a Polícia, mas a patrulha mais próxima encontrava-se em Santanyi e se um carro parasse acidentalmente na região teriam sorte, lá isso era verdade. Mesmo que a patrulha estivesse avisada, bloquearia primeiro a estrada principal para Cala d'Or e não este estreito acesso secundário...

O Vectra entrou numa aldeia. Ludwig Kiefer inclinou-se para a frente: não se via nada. Nem carro da Polícia nem barragem de estrada, nada. Os colegas não se precipitavam... Os colegas? Na véspera, à noite, ainda pensara em telefonar a Pablo Vidal em Palma, e pusera a ideia de lado. Porque havia de incomodar o pobre Pablo com tudo o que agora poderia... não, tinha de acontecer?... Vera poderia ter telefonado a Harry Tentzien, mas não aguentava muito simplesmente demorar mais em casa: sentar-se durante horas seguidas junto ao telefone, aguardar durante horas a fio que ele tocasse, ser invadida por pensamentos, os pensamentos mais loucos possíveis sobre o que Paul Novotny lhe dissera... insuportável! Arrancou, avançou pelo meio do trânsito e estacionou o automóvel mesmo em frente da grande e velha casa na Herzogstrasse. Encarou com perfeita indiferença o facto de uma mulher-polícia se encontrar um bloco mais abaixo a colocar multas sob os limpa-vidros. A porta da casa estava encostada.Oatelier de Harry ficava no rés-do-chão. «HT-Marketing Consultants», dizia a tabuleta. O que quer que pudesse ser, parecia relacionar-se com cartazes gráficos. Vera não teve de esperar muito tempo no escritório inundado de luz. Após uma breve conversa com a secretária, Harry apareceu de imediato: cabelo ruivo, calças de bombazine vermelhas, alpargatas pretas, camisola preta - e os braços abertos para a receber. -Vera, anda cá! Mas que surpresa... - Uniu as sobrancelhas e no rosto desenhou-se uma expressão preocupada. - Aconteceu alguma coisa? Vem cá, miúda. Abriu-se a porta do gabinete e ela afundou-se num dos enormes cadeirÕes de aço e cabedal.

- Sim, aconteceu algo, Harry. -Com o Rio?

- Ele está em Berlim - anuiu Vera com um aceno de cabeça.

-Eu sei! Veio aqui buscar as chaves do apartamento. E daí?  - Acredita-me, Harry, que de bom grado te explicaria tudo, mas não posso - retorquiu, inclinando-se para a frente. - A sério que não. Ainda não. No entanto, é urgente. Tens de acreditar em mim. É... é pior.. - Será que a doença dele... -Não. Não tem nada a ver com isso. Quer dizer, talvez esteja ligado... - Sentia o calor a subir-lhes pelos ombros e os olhos a arder. Não queria começar a chorar, por Deus que não!, mas as mãos tremiam-lhe tanto que agarrou a mala de mão com força. - Em certa medida sim, mas também não posso explicar-te isso... - E o que posso fazer?

- Tenho de descobri-lo, Harry! Impreterivelmente. Tenho de falar com ele. Como é que não tens pura e simplesmente telefone nessa maldita espelunca? - Porque, às vezes, as espeluncas só se suportam sem telefone... - Sentou-se ao lado dela no braço do cadeirão, pegou-lhe na mão e apertou-a. - Então? - Tens tantos amigos em Berlim, Harry... E talvez haja alguém na casa que tu conheças? -Osenhorio - anuiu, esfregando o nariz. - Mas espera um momento... podia enviar um fax a Winfried. E advogado. E tem o escritório a uns meros cem metros do apartamento. Mas o que é que ele deve fazer, caso Rio apareça? -Oque deve fazer? Pô-lo vivo ou morto sob a sua tutela. E, em seguida, telefonar. -E se o Rio não estiver no apartamento?

- Se não estiver, então... então podia escrever uma carta. Ou melhor ainda: eu escrevo a carta e manda-la-ia também por fax.

Vera ergueu os olhos para Harry. Pensou, desesperada: «Isto não é verdade! Tudo isto não pode ser verdade, Deus do céu!» E, em seguida, foi como se uma grade descesse na sua frente: «Talvez a irmã de Kiefer tivesse ouvido mal ou se houvesse enganado? Talvez os seus ouvidos não estivessem nas melhores condiçÕes, talvez tivesse compreendido mal e, nesse caso,... ?» No entanto, um fax como aquele podia ser lido por qualquer pessoa. E de qualquer maneira, não podia escrever-lhe: «Rio! Suplico-te: não te transformes num assassino ... » Vera escreveu com mãos trémulas e maiúsculas: Rio! SEJAOQUE FOR QUE TE ESTEJA A ACONTECER, EOQUE QUER QUE TENCIONES FAZER, PEÇO-TE: PENSA NO NOSSO FILHO! TELEFONA-ME IMEDIATAMENTE MAL TENHAS RECEBIDO ESTA MENSAGEM, HOJE AINDA, Rio. AMAMOS-TE - VERA

Ludwig Kiefer avançou em terceira até ao muro de pedra que rodeava a propriedade de Engel. Agora, tornava-se dificil, pois iniciava-se um desses inconcebíveis caminhos de cabras da região: buracos por todo o lado e, ao lado, grandes pedras castanhas semelhantes a carapaças de tartaruga. Apesar do ruído dos pneus, ouvia-se o ladrar de um cão...

A miúda mantinha-se sentada em silêncio ao lado dele. Até esse momento apenas a observara de perfil pelo canto do olho, mas agora ela virou o rosto na sua direcção e fitou o edificio imponente e semelhante a uma torre que se erguia acima dos ciprestes. Kiefer seguiu-lhe o olhar e apontou com a pistola na mesma direcção. -Em breve ficarás novamente livre, Irena. Não te preocupes. - «Mas sem o teu pai», foi o que pensou sem que, no entanto, pudesse dizer-lho. Meteu a segunda.

O caminho dava a volta à colina. Nesse momento surgiu-lhe pela frente uma curva apertada. Os pneus chiaram. Voltava a desenhar-se uma subida, tão íngreme que em breve se podiam divisar o telhado da casa de Engel e o canto direito da piscina.OOpel deíxava agora atrás de si uma grande e branca nuvem de poeira. Ajovem virou novamente o rosto. Estavam de novo no outro lado da colina e surgiram-lhes na frente, recortadas num céu cinzento, as ruínas num espaço de pedra quadrangular. Aqui, cresciam arbustos. «Giestas», pensou Kiefer. «Serão giestas?» Klefer prosseguiu caminho, virou num pedaço de campo queimado pelo sol e estacionou o Vectra, com o ar condicionado ligado, na direcção de onde tinham vindo. - Deixa-te estar sentada - ordenou à jovem com um curto movimento da arma. Ela obedeceu, limitando-se a fitá-lo com os olhos claros. Apesar do frio que imperava no automóvel, o cabelo colava-se-lhe à fonte. Kiefer sentiu pena dela. Enfiou a pistola no cós das calças e desceu.

O calor acertou-lhe em cheio como um punho fechado. Respirou fundo e sentiu o suor a escorrer-lhe em bica. «Também te habituarás a isto...OHomem habitua-se a tudo, não é verdade? No entanto, a situação não irá prolongar-se durante muito tempo. Sim, é até mesmo capaz de se habituar à ideia de que em breve, muito em breve, irá morrer .. ». Apalpou os gânglios. Não lhe doiam especialmente. Por isso... Olhou em volta e tentou orientar-se. Do lugar onde se encontrava, conseguia avistar a depressão que haviam precisamente atravessado. E, mais à frente, onde a colina se aplainava um pouco, reconheciam-se os cinios escuros dos ciprestes que se erguiam na propriedade de Engel. Entrou nas ruínas. No chão havia palha espalhada e os muros ainda conservavam a recordação do cheiro a ovelhas ou cabras que aqui se tinham refugiado outrora. Num dos cantos, avistava-se uma chaminé. Portanto, também vivera gente aqui...Oruído do bater de asas... Klefer estremeceu. Uma ave levantou voo, rumo ao céu azul-cinzento. Tinha o .@Nw,,-ninho lá em cima, na crista montanhosa. Ludwig Klefer riu: conhecia aquelas cabanas, conhecias-as do tempo em que aqui ainda viviam camponeses, que ainda levavam os rebanhos a pastar pelas colinas quando não existiam milionários compradores das terras e que os haviam escorraçado do seu meio ambiente - conhecia-os daquele ano feliz em que dera passeios com Anna por esta re# tantos maravi gião...

«Anna... minha Anna!» Porque não estava agora junto dele? Fazia-lhe, contudo, tanta falta... Porque tivera de perder a vida naquele maldito acidente, porque é que tudo acontecera daquela maneira? Porquê? Porque estaria à espera do seu assassino, para que ele próprio se tomasse num assassino? Virou os olhos na direcção do automóvel. A jovem continuava sentada como ele a deixara, com os ombros encolhidos e a cabeça baixa. Poderia, contudo, ter-se escapado a correr. Nunca estaria em posição de usar a força contra ela. Só que a jovem não o sabia... Ludwig Kiefer passou a mão pela arma. Tratava-se de um gesto com algo de ternura, mas igualmente muita resignação... -Rio! Rio Mar-tiiin! A voz era aguda e muito perceptível. A sala de ballet também fazia eco. Não, não conseguia ligar a voz a ninguém, mas ela despertou uma pronta reacção de fuga ein Rio. «Só te faltava isto, agora! A última coisa de que precisavas era de pessoas bem-intencionadas que se querem "preocupar" contigo!»

Colocou-se por detrás de uma das figuras de tamanho superior ao natural e que serviam de decoração ao grande e iluminado salão onde se praticava dança. Era intervalo. As bailarinas tinham-se reunido num grupo em frente dos espelhos junto à barra de exercicios e ouviam a professora que lhes apontava os erros de olhos muito abertos. Pretendia entrevistar mais tarde a professora de ballet. Agora sabia, no entanto, que a entrevista ficaria em nada, pois quem rondava o grupo, vestida como sempre de fato e calças e de chapéu, com a cabeça esticada para a frente, era nem mais nem menos do que Ingrid KoIb - anterionnente da Ria e agora da Radioemissora da Alemanha Ocidental. Na redacção da Ria tratavam-na por «Focinho»... Exacto! Rio virou a cabeça à procura da saída. Descobriu uma porta pintada de vermelho, correu nessa direcção, esperou manter-se a coberto, escancarou a porta e deparou com degraus de cimento. Uma escada de salvação. Fechou a porta, desceu a escada, parou e depois ficou sem saber se havia de gritar ou rir à gargalhada. De qualquer maneira, estava todo a transpirar. E, em seguida, reflectiu sobre o que Ludwig Kiefer teria comentado sobre esta saída. «Nada de nada, provavelmente», pensou. Ludwig ter-se-ia limitado a abanar a cabeça. Kiefer não escutara o motor, pois conservara todas as janelas fechadas e o ar condicionado do Vectra ligado. Não pronunciara nem mais uma palavra. Ajovem tinha as mãos cruzadas no colo e mantinha - como ele - os olhos postos no caminho, lá em baixo. Não fez perguntas. Ignorava a sua presença, o que, na verdade, ele achava conveniente.Omotor também não fizera ruído. No entanto, a nuvem de poeira que se erguera acima da linha da vertente anunciava a aproximação de um carro.

- Que marca de carro conduz o teu pai?

- Na maioria das vezes, um Nissan - respondeu Irena baixinho. - Mas hoje trouxe o Seat. Klefer esboçou um aceno de concordância e inclinou-se para a frente. Lá em baixo, na curva, não surgiu o focinho verde de um jipe da Guardia Civil, como ele receara, mas um automóvel de passageiros. Fechou os olhos, aliviado, recostando-se para trás. Por conseguinte... O carro aproximou-se rapidamente. O condutor passava impiedosamente por cima de pedras e buracos da estrada. Era um Seat. Era Engel! Ludwig Kiefer suspirou. Em seguida, meteu a mão esquerda no bolso. Retirou umas algemas de plástico do interior. -Dá-me as tuas mãos! - Não precisou mostrar-lhe a pistola: Irena estendeu-lhe as mãos. Verificou que a jovem chorava. Agora, nada mais havia a fazer.. Demasiado tarde. Tudo demasiado tarde... Colocou-lhe as algemas de plástico à volta dos pulsos e fechou-as. Em seguida, desceu do automóvel, deu a volta e abriu a porta do lado do condutor. - Agora, as pernas. - A mão tocou nos tornozelos, quando lhe pôs as segundas algemas... Tornozelos de criança. Sentiu um aperto no coração... Com os pés algemados, parecia ainda mais desprotegida do que dantes. Lágrimas corriam-lhe pelas faces e nem sequer podia limpá-las. Ludwig tirou o lenço do bolso e secou-lhas. - Tudo acabará em breve, miúda. Prometo-te. - Voltou a meter-lhe os pés dentro do automóvel e ocupou mais uma vez o lugar atrás do volante. Saltaram pedras quando o Seat parou cinco metros à frente do radiador do Vectra. A porta abriu-se de rompante. A figura de Engel recortou-se, de pé, com os antebraços dobrados e as mãos abertas, como se tencionasse apertar o pescoço a Kiefer. - Agora, deixemo-nos disso, Herr Engel. Já lhe disse antes: tentemos comportar-nos o mais sensatamente possível. Nesta situação talvez não seja assim tão simples, compreendo, mas afinal... somos dois adultos. - O que aconteceu a Irena?

- Veja com os seus próprios olhos, Herr Engel: está sentada no automóvel. Se fizer uma cena, ainda vai assustá-la mais.

-Não faço cenas, céus. E o que significa assustá-la? Quem assusta quem?Oque pretende? Já lhe fiz es- ta pergunta.

-Não tardará a descobrir. Venha.

- Onde?

- Até ali. à cabana. Venha. - Foi a primeira vez que apontou o cano da Walter a Engel e fê-lo com um breve e decidido movimento. Os olhos escuros sob o chapelinho verde e amarrotado estreitaram-se. Engel esboçou um aceno de concordância e pôs-se em movimento. Ludwig Klefer deixou-o passar ao seu lado e seguiu-o. - Entre calmamente, Engel - incitou. - Não tenha medo. Lá dentro só há algumas urtigas. - A Walter executou mais um curto e resoluto movimento. Engel brindou-o com um olhar cheio de ódio e entrou pela abertura em pedra, mas Kiefer manteve-se parado. Sentia-se invadir pela fraqueza e um zumbido cada vez mais intenso enchia-lhe os ouvidos. No entanto, a ideia de se ir abaixo exactamente agora, exactamente na situação que imaginara durante tanto tempo, provocou-lhe um ódio profundo e frio, que lhe devolveu as forças. A entrada era constituída por um único e grande bloco de pedra. Klefer agachou-se para passar. Engel esperava-o no meio da divisão. Tinha as pernas afastadas, como se pretendesse esbofeteá-lo, mas nos olhos claros e aquosos apenas se lia o medo. - Para trás! Junto à parede, Herr Engel! - O que quer? Diga! Kiefer riu.

- Pode sentar-se, se preferir. - Engel abanou silenciosamente a cabeça. - A mim sentar-me faz-me bem. E matá-lo, como merece, também o consigo cem vezes, mesmo sentado. No entanto, falar consigo toma-se realmente cansativo. - Quem... quem é você?

- Isso tem algo a ver com o assunto? Não me parece. Não, não tem... Mas, por favor: sou apenas um dos que são obrigados a sofrer as consequências, para que possa dar-se ao luxo de ter uma bela casa em Maiorca, o iate também, este extravagante iate, bem como naturalmente as suas amiguinhas. Ou ainda pagar o internato da sua filha e o que mais lhe apetecer. - Ouça, tudo o que está para aí a dizer não passa de uma idiotice pegada - retorquiu Engel, num tom a que pela primeira vez faltava firmeza. - Já tem idade para o saber. A Polícia também não tardará... - Oh, sim! A Polícia... - riu o criminologista.

- Caso precise de dinheiro... isso arranja-se...

- Já que está a falar de Polícia, Engel... em tempos fui polícia, sabe? Nesta profissão conhece-se uma quantidade de gente em relação à qual nos interrogamos sobre se valerá a pena esforçarmo-nos.OEstado de direito é uma coisa maravilhosa, mas muitas vezes seria preferível que se lhe pusesse termo. E por esse motivo... Tossiu. As náuseas deixaram-lhe um gosto desagradável na boca, vindo do estômago. «Calma, velho! Ainda precisas de força, ainda precisas de muita força para levares a água ao teu moinho!» - É louco - murmurou Engel entre dentes.

- Talvez esteja próximo da verdade. Talvez seja louco... Mas uma coisa: foi você quem me pôs louco. Portanto, faço-lhe uma pergunta, a pergunta de um louco: quanto custa a manutenção mensal do seu iate? - Engel não lhe deu resposta. A pistola ergueu-se, Engel fitava, como que hipnotizado, a embocadura do cano escuro. Estava apontada ao seu estômago. - Fiz-lhe uma pergunta. - Que sei eu? - gaguejou. - Provavelmente uns milhares de marcos. -  E em quanto ficou a construção do seu palácio lá em cima? Quantos milhÕes? - Alguns - respondeu Engel com esforço.

- Está a ver.. E quanto dinheiro economizou ao ordenar que somente se fizesse o teste de oito em oito amostras de sangue? Ganhou muito dinheiro? Os olhos de Engel arregalaram-se e premiu as mãos de encontro às pedras que tinha nas costas, como se procurasse apoio. -Onde é que foi saber... -Oh! Sei muita coisa. Poderia mesmo ajudá-lo a reavivar um pouco a memória: economizou nove marcos e cinquenta pfennig por teste. Por fim, rendeu-se a esse fantástico método aperfeiçoado de desactivação... aperfeiçoado, pois tomou-se o mais barato do mercado, certo? - Engel deixou pender um pouco o maxilar. Dava a sensação de que começava a ficar desesperado. - Uma correcta desactivação do vírus mediante sobreaquecimento talvez lhe ficasse excessivamente dispendiosa, pois o calor pode causar a perda de até oitenta por cento do material em bruto. E uma coisa dessas fica cara. - Não... não faz a mínima ideia do que está para aí a dizer! Até a Cruz Vermelha adoptou esse método! - Ah, sim? Até a Cruz Vermelha? Naturalmente... só que a técnica do método que utilizam já é um pouco mais cara, certo? Mas pode ser que me engane... -Osuor corria agora em grandes gotas sob o chapéu verde de Ludwig Klefer. Sabia e percebeu que também Engel o observava. No entanto, a mão que segurava a pistola continuava firme, muito firme. - Não vamos

agora pôr-nos aqui a discutir por alguns marcos, Engel. Não é por essa razão que aqui estamos... Também passou tempos dificeis, eu sei... Muitos aborrecimentos... Nem sequer a Direcção de Saúde, em que, no entanto, se tem amigos como Herr Hampel, queria continuar com o seu jogo. Dantes é que eram bons tempos! Dantes podia-se importar a mercadoria bruta de qualquer prisão mexicana e de qualquer bairro de drogados americano, pois por todo o lado há gente que precisa de sangue e gente que precisa de droga... Podia-se adulterar'colocar no produto etiquetas que depois se voltavam a colar, podia-se enviá-lo para onde se quisesse... Mas subitamente os hemofilicos começaram a morrer, depois os recém-operados e houve mesmo pedidos de indemnização, processos. - Conseguiu dominar mais um ataque de tosse. Não foi assim tão dificil. Foi mes- mo ao ponto de esboçar um sorriso. Mas um sorriso que nada prometia de bom. - A Liga dos Hemofilicos tornou-se mais arrojada. E os professores e funcionários administrativos da Direcção-Geral de Saúde exigiam, agora, subitamente, a eliminação dos vírus da hepatite e da sida. Mas esterilizar? Tomava-se cada vez mais caro... E tinha igualmente de se comprar licenças ou desenvolver métodos próprios. «Os custos eram imensos, sim senhor, o vosso belo cartel de fabricantes começou a protestar, apresentaram queixas sucessivas contra a decisão da DGS (estando vocês naturalmente na vanguarda) a tal ponto que em Berlim voltaram a encolher o rabinho e a esperar até 1986. E, apesar de três anos antes ter sido divulgado que o plasma contaminado pelo vírus causava a morte a quem o recebia... - Não faz ideia... não faz a mínima ideia!

- Agora, ouça-me. - Desta vez, o cano da pistola ergueu-se com a velocidade de uma cobra enfurecida. Engel fechou os olhos, assustado. A voz de Klefer soava com mais calor. Tentou controlar a tosse, continuou a falar, conseguiu, mas o que dizia saía-lhe em arrancos convulsivos: - ... optou, finalmente, pela esterilização total. Calor ou frio, método Horrowitz, não interessa... Mas, estranhamente, as pessoas continuavam a morrer. Morriam tão rapidamente que nem sequer conseguiam receber a tempo as suas indemnizaçÕes. As pessoas continuavam a esticar o pernil, apesar de todas as belas técnicas de desactivação do HIV. E porquê?Oque acha? - Engel mantinha-se calado e limitava-se a olhar. Manchas escuras espalhavam-se na pele bronzeada do rosto. - Não tem resposta, Engel? Muito bem. Nesse caso, respondo por si: porque você existia, Engel! E mais alguns outros. Para vocês até os métodos mais baratos ainda eram caros. Mas além disso, pensavam também: para que é afinal necessário testar todos os preparados? Uma coisa destas só serve para aumentar as despesas... Pode fazer-se tudo de uma forma mais simples, juntar-se todo o produto e recolher uma amostra ao acaso. E na eventualidade de, digamos, funcionários das firmas não se mostrarem de acordo, existem métodos para os calar. Como no caso Cenitza. Ou no da funcionária do laboratório... - Tudo isso é mentira. Você não está bom da cabeça... Kiefer esboçou um aceno de cabeça. Concedeu uma pausa a si próprio. Foi uma pausa muito demorada. Manteve Engel sob um severo controlo - um Engel que não parava de arregalar os olhos, cuja mão direita passava pelos cabelos num movimento brusco e que começara a gemer baixinho. - Os balanços, Engel, os balanços, não é verdade? Aguentavam tudo...Oque aconteceu realmente a Lars Boder? Ele era um artista em declaraçÕes. E aos chefes de serviços médicos que continuavam a comprar a sua mercadoria contaminada? E também existem ainda os institutos. E havia ainda a hipótese de um pequeno fornecimento para aqui, para Maiorca. Era uma ajuda. Ou então, um sobrescrito com algumas dezenas de milhares de marcos sob um jornal. E na DGS havia também tantas inaos protectoras, tantas almas compreensivas! Pois, na verdade, somente se vendia plasma com o vírus in ctivado; e se um vírus destes teimasse em não se revelar... - Não conseguiu deter a comichão na garganta, nem a sensação de ter limalha nos brônquios; viu-se obrigado a tossir e fê-lo com tanta força que o corpo se dobrou para a frente, como numa síncope. E enquanto ainda lutava para ser dono e senhor de reflexos e músculos, aconteceu o que tanto tinha receado  ... Engel! Engel, que nada mais era do que uma sombra    ... Engel, que passou por ele sem encontrar resistência e estava, agora, lá fora, corria.Ocriminologista rolou o corpo dorido para o lado, ergueu o braço, rodeou o pulso com a outra mão, apontou e disparou. Voltou a disparar... - Alto! Ignorava como conseguira soltar o grito. Mas devia ter sido um grito, pois Engel parou e, na verdade, levantou as duas mãos. Ludwig Kiefer ergueu-se, servindo-se da parede como apoio.

Estava a tremer. Em seguida, o tremor voltou a acalmar e as suas ideias recuperaram a lucidez anterior. Deus fosse louvado ... Tinha de aguentar. Ainda não chegara ao fim...

O indivíduo em Revers esboçou um aceno de concordância e estendeu a mão para o telefone. Em seguida, pôs o auscultador de lado e olhou significativamente para Rio: - Lamento, mas Herr Tannert, do Feuilleton, não está de momento em casa. Se quiser, posso pô-lo em comunicação com a secretária...

- Por favor. Falou ao telefone. Grossos pêlos cresciam nas enormes

orelhas. Olhou novamente para Rio, mas a expressão reflectida era diferente. Além de que tapou o auscultador com a mão. Rio sentia-se nervoso.

O porteiro pareceu, finalmente, chegar ao final da conversa. Levantou-se. -Herr Martin, não é verdade? Rio Martin?

- Sim.

- Como já lhe disse, Herr Martin: infelizmente, Herr Tannert teve de se ausentar, e Frau Wegner, que é a secretária de Herr Tannert, pede-lhe que tenha um pouco de paciência. O melhor seria subir à redacção do Feuilleton. Frau Wegner disse que dois senhores perguntaram por si e queriam falar-lhe com urgência... «Dois senhores? E queriam falar-lhe com urgencia?» Rio não foi somente invadido por uma sensação desagradável como ouviu o toque de uma dúzia de campainhas de alarme. - Ali, sim? Nesse caso... Rio afastou-se da entrada, recuando.Oporteiro do jornal saiu da sua protecção de vidro. -  Por favor, Herr Martin, se virar à direita... é aí o elevador, Herr Martin! - Sim, já conheço... - Rio pôs-se a correr, não para o elevador, mas para a saída. Nesse instante, avistou dois uniformes diante da entrada de vidro. E viu também o carro da Polícia estacionado em cima do passeio e os dois agentes uniformizados que entravam pela porta giratória. Calma, muito lentamente... Precisou de todo o seu autodomínio para avançar com descontracção e esboçar um sorriso simpático. Conseguiu transpor a porta. E o carro da Polícia estacionado lá fora estava vazio. Virou a cabeça e verificou, através dos vidros, como o homem da recepção gesticulava, enquanto falava com os agentes uniformizados. E, nessa altura, também eles começaram a correr. Rio ganhou igualmente velocidade, já chegara à esquina do prédio, avistou a tabuleta de uma tabacaria, jornais - virou rapidamente à direita, entrou e fechou a porta atrás de si. Havia três homens junto da caixa a preencherem boletins de totoloto. Riam e gracejavam com a empregada. à direita havia uma vitrina com cachimbos e os respectivos utensílios. No entanto, à esquerda via-se um expositor com postais ilustrados e, por detrás, duas prateleiras totalmente repletas de livros de bolso. Enfiou-se no meio dos postais e dos livros. A porta abriu-se de rompante. Um dos agentes ir- rompeu pela loja. Rio somente avistou o boné branco.

O homem pronunciou um breve: «Desculpem!» e, voltou a sair a toda a pressa. - Posso ajudá-lo? - perguntou a mulher gorda, que se encontrava junto à caixa.Oolhar de Rio pousou num guia de viagens... «Maiorca - Ilha de Sonho», era o título. Aparentemente, Engel pusera de lado qualquer ideia de fuga. Mantinha-se muito quieto, com as pernas abertas e os braços erguidos inutilmente para o céu. Ludwig Kiefer sentiu que o oxigénio voltava a irrigar-lhe os pulmÕes e o tremor incontrolável desaparecia das pernas. Deu os últimos passos tranquilamente. -Muito bem, Engel. Enão se mexa. Respirou fundo para acalmar as batidas do coração. Em seguida, olhou na direcção do seu carro. Somente reconheceu os ombros da jovem, pois o apoio para a nuca escondia-lhe a cabeça. Tanto melhor. Não assistiria ao desenrolar dos acontecimentos... No entanto e logo a seguir fez mais uma observação: apercebeu-se do ruído do motor de um veículo pesado, ouviu-o subir e no começo da vertente recortou-se o focinho imponente de um jipe da Guardia Civil.Ocarro aproximava-se a toda a velocidade. Klefer não tardou a reconhecer a polícia espanhola de elite.Otempo esgotava-se rapidamente. Tentou concentrar as ideias e reunir as últimas reservas de força que o seu corpo esgotado e debilitado ainda tinha para lhe oferecer num único pensamento: «Podes... vais conseguir ..» - Não está a ver? - Engel não gritava, mas soluçava. - Vem aí a Polícia... - Deixara cair os braços e um misto de júbilo e alívio misturavam-se naquele soluçar. - Exacto, vem aí. E você vai levantar novamente os braços, senão dou-lhe um tiro nas articulaçÕes dos joelhos. - Perdeu o juizo. Mas não pode... -Claro que posso! Klefer segurava agora a Walter pelo cano, deu mais um passo, viu cabelo louro e molhado de suor na sua frente, escutou novos protestos de Engel e bateu. Na base do crânio. E acertou em cheio...Ocorpo de Engel, como que atingido por um raio, afundou-se no chão de pedra.Ohomem não se mexia, nem continuava a gritar, mas em breve voltaria a si. Muito em breve... Ludwig Kiefer meteu a mão no bolso interior esquerdo do casaco, de onde retirou uma pequena embalagem de plástico. Abriu-a. As mãos haviam deixado de lhe tremer. Pegou na seringa.Osangue - o seu sangue reluzia ao sol como um rubi, mais claro, muito mais claro do que quando o tirara no quarto escuro no hotel de Porto Colón, quando utilizara a seringa. Ajoelhou-se junto do homem inconsciente, agarrou no braço esquerdo e mole, enfiando-lhe a agulha... «Ora, finalmente! Agora tens de volta o que recebi de ti ... », foi o que pensou. Não sentia nem pena nem triunfo. A obra estava feita..Oque agora viria - no fundo, era secundário... Virou-se devagar.

O jipe continuava em andamento, mas dois dos homens com uniforme verde-azeitona já tinham saltado, correram ao lado dele, pararam junto a Klefer, as MP aperradas. Guardia Civil! Jovens aprumados! Profissionais. Profissionais do exército, um dos melhores grupos de policia do mundo inteiro. - Alto! Manos arriba! Tirese la arma! Não largaria, contudo a arma. Deu alguns passos para a direita, a fim de colocar o inconsciente Engel a salvo da zona de perigo dos disparos e, em seguida, ergueu a Walter... Ludwig Kiefer disparou um único tiro de pistola. A bala aterrou longe dos dois polícias na areia. Sentiu o primeiro disparo no ombro direito. Era como se alguém lhe tivesse batido com um pau. Não lhe doeu e também não era importante. Nada mais era importante...Osegundo disparo atingiu-o no peito e atirou-o ao chão. Também não lhe doeu... Porquê? Nada mais lhe doía. A colina, os dois polícias, o carro deles, o céu com nuvens - tudo começou a girar, tudo se tomou colorido e semelhante a um carrocel. E algures - algures ao longe, ouvia-se música... A sala estava mergulhada na semiobscuridade. Somente a luz azulada projectada pelo tampo da mesa junto à parede emitia sombras. Eram as sombras de três homens.OGordo encontrava-se à direita. Vera sentia os ombros muito tensos. Custava-lhe tanto entrar por aqui dentro sem aviso, mas o que lhe restava? - Ewald... - pronunciou com esforço. Olsen virou-se.

- TU? Apenas conseguiu esboçar um aceno      de cabeça. Murmurou algo entre dentes que não parecia de grande satisfação. - Continue com as fotos, Herzburg! - Tudo bem, chefe. -Vamos sair daqui, sim? - dirigiu-se-lhe em seguida Olsen, aproximando-se. Parecia mal-humorado mas pegou-lhe na mão e apertou-a com calor e amizade. Lá fora, no corredor, encostou-se à ombreira da porta e fitou Vera. - Então? O que é assim tão importante? E deve ser importante!Oque há, portanto, de novo? - Nada - respondeu num fio de voz queixoso. -

Nada mais me restava do que correr até junto de ti, Ewald. Agora, tens de ajudar. Por favor! - Estiveste na rádio?

- Claro que sim! Falei com Niethammer, da informação da Emissora da Baviera, mas todos os que lá estão me disseram o mesmo: só com suspeitas nada feito. Sem bases sólidas não podem emitir apelos como «Rio, desiste... Volta, por favor..» A única coisa que podiam fazer, segundo afirmaram, era mencionar no noticiário que ele devia apresentar-se imediatamente em casa por motivos familiares... Mas ele irá fazê-lo, Ewald? - Fitava-o como que suplicante e encontrava-se à beira das lágrimas. - Irá fazê-lo, se nem sequer me telefonou? Porque não o faz? Porquê, Ewald? Tremia. Olsen rodeou-lhe os ombros com o braço e passou-lhe a mão pelos cabelos num gesto tranquilizante. - Também não sei, Vera... Mas o que posso fazer?

- Escrever um artigo. Qualquer coisa que lhe toque, entendes? Qualquer coisa que o sacuda, ou o ponha simplesmente alerta. Ele tem tanto valor aos teus olhos, Ewald... E não é só isso, pois sempre te venerou, acredita. Para Rio eras uma espécie de substituto do pai, o que muitas vezes leva a uma cega adoração...

- Nunca me dei conta disso - retorquiu Olsen num tom seco. - Mas um artigo? Qualquer coisa sobre quem pode castigar e quem não tem esse direito. Talvez se possa, pelo menos, tentar. Embora não saiba... - Fá-lo, por favor, Ewald!

- Embora não saiba se assim se conseguirá demovê-lo. Se é verdade o que Novotny te contou... Quando alguém como ele teima numa coisa... e Rio foi sempre muito individualista... -Mas podes tentar?

- Sim, posso. E prometo-te que o farei. Mas o que diz Novotny? - Também não se poupará a todos os esforços possíveis. Acho que colocou metade da polícia de Berlim na esteira de Rio. Só que ainda não o descobriram. Kleitstrasse, a estação de caminho-de-ferro, o mercado, o museu em Checkpoint-Charly; em seguida, elevadas paredes de madeira, o ruído de martelos de bIgor- na e máquinas de construção, caminhos sobre valas de cimento... AQui COMEÇAOAMERICAN-BUSINESS CENTER. Começa por mais de um milhar de marcos, lera algures. Correra, correra, correra e divisara inúmeros rostos. Nunca o abandonara, porém, a sensação de se encontrar no filme errado. Agora, não podia mais. Agora doiam-lhe os pés e tinha as pernas a tremer. Mandou vir um pedaço de carne numa barraquinha de comida, mas o cheiro a alho, azeite quente e ketchup pôs-lhe de imediato o estômago às voltas. E agora? A cabeça não parava de raciocinar. Os polícias... quem os pôs na tua peugada? E ocorria-lhe sempre a mesma resposta: Paul Novotny. Paul suspeitava ou sabia como é que ele se deslocara a Berlim. Talvez soubesse tudo? Tomava-se, no entanto, inútil especular sobre como obtivera a informação. Klefer era amigo de Paul e talvez Ludwig lhe tivesse feito qualquer insinuação, talvez mesmo deixado uma carta. Ou - sentimental como era outrora - talvez tivesse confiado mais na irmã do que era conveniente. Mas isso não contava. Somente uma coisa importava: a Polícia procura-te! E nem sequer era tudo. A Heekler & Koch, a pistola - estava na pensão, debaixo do colchão! Acocorou-se junto a umas ruínas mesmo por cima do Spree, observou os pescadores à linha e tentou acalmar-se. à sua volta cresciam urtigas. Os pescadores não tinham preocupaçÕes e dispunham de todo o tempo do mundo. Estava muito abafado. Tinha a garganta sequíssima.

O rio apresentava-se cinzento, o céu também, idêntico a uma colcha de franjas com um brilho prateado, e por onde o sol tentava romper. Doía-lhe a cabeça. Prosseguiu caminho. «A pistola, com os diabos... Cometeste obviamente um erro, mas também não podias andar a passear-te por aí com um pedaço de aço junto à barriga nem entrar nas redacçÕes e salas de bailado com um nove-milímetros no cinto! Como?» No entanto, ia sempre parar ao mesmo ponto: o que havia de errado com a Pensão Carola? Ludwig garantira-lhe q@e ali podia sentir-se completamente em segurança. «E como uma espécie de "zona livre", Rio. Ninguém quer nada de ti. Não te preocupes...» Procurou os cigarros no bolso. O clique de um isqueiro soou ao seu lado. Avistou um rosto emagrecido com profundas olheiras. Apesar do calor abafado, o dro- gado conservava a gola do sobretudo subida, como se estivesse gelado. - Obrigado...

- Dás-me também um... - Rio tirou dois cigarros, meteu-os no bolso da camisa e deu o resto do maço ao indivíduo. Este limitou-se a olhar, esboçou um aceno de cabeça e guardou os cigarros. - Do Ocidente, não? - Sim. E agora não me leves a mal, mas gostava de ficar só. -Odrogado esboçou um novo aceno de cabeça. Não tinha mais de vinte e cinco anos, e o rosto era o de um velho! Apenas os olhos... Quais tinham sido as palavras de Ludwig? Pelos olhos ainda vês que são jovens. Jovens e desesperados. E que querem lutar. Rio meteu a mão no bolso das calças de onde tirou os trocos da nota de vinte marcos com que pagara na tendinha da comida. - Aqui tens. Um novo aceno de cabeça, E o mesmo olhar.

- Obrigado, obrigado, irmão... Depois rodou sobre os calcanhares e afastou-se. Rio ficou a segui-lo com o olhar.Ojovem tinha os ombros encolhidos, avançava com passo inseguro junto ao muro e desapareceu na sombra. Irmão? Sim... Oh, sim... irmão de sangue estragado, irmão de sangue... Prosseguiu caminho e deparou com o mapa da estação de metropolitano. «Thiel-Allee», leu... Nem demorou dez minutos a lá chegar. E tudo era como sempre havia visto diante dos olhos: o enorme e austero edificio. A águia negra da República Federal em fundo dourado à entrada. DIRECção-GERAL DE SAúDE-DGS... E ali estavam eles, os que haviam sido tão terrivelmente importantes, os que se deslocavam nas suas limusinas pretas de serviço, e, apesar do calor, usavam o nó da gravata bem apertado junto ao pescoço. Por detrás dos vidros reluzentes avistavam-se as árvores-da-borracha e as cabeças das secretárias. E ali se sentavam, conferenciavam, ditavam com um ar importante... Haviam sido eles a observar, rir, a desmentir, a dar razão aos seus amigos da indústria... durante muito tempo, ao longo de anos - tanto tempo até ser tarde de mais e já nada poder salvar-se.

Para que servia uma pistola? Porque se preocupava com o seu esconderijo do colchão na Pensão Carola? No fundo, precisaria de uma carga explosiva. Sim, de uma bomba! Conservou-se de pé e olhos fixos no que via. As costas, a nuca e todo o corpo estavam contraídos.Ovelho e gelado ódio tinha voltado. E era bom que assim fosse... Pouco passava das nove quanto Rio virou a esquina da  Windscheidstrasse. Parou. A pequena e discreta tabuleta da Carola destacava-se no lusco-fusco. Por detrás das janelas das divisÕes do rés-do-chão havia como sempre luz. No segundo andar, onde se situava o seu quarto, somente uma janelinha estava iluminada. Avançou mais alguns metros e escondeu-se por detrás de uma alta e cinzenta cabina telefónica. Deixou-se ficar cinco, dez minutos... Nada, nenhuns suspeitos que estivessem a fumar dentro de qualquer automóvel estacionado. Ninguém de vigia junto à entrada. De vez em quando um automóvel de passagem, mas que continuava rua fora e desaparecia... Atravessou a rua. A Carola, uma espécie de «zona

livre»? Berlim pululara em todos os tempos de gente dos serviços secretos, havia residências para informadores, investigadores clandestinos. Havia de tudo, mas o facto de se poder sentir em segurança num lugar destes era bastante exótico...Ocoração deixou de bater tão acelerado. Rio avançou com um ar despreocupado e as mãos nos bolsos até à entrada da porta.Ozunido do trinco e a porta abriu-se. Entrou no átrio e olhou em volta.Orecepcionista de cabelo encrespado mantinha-se sentado, como sempre, atrás do balcão a ler. Desta vez não se tratava de um jornal, mas de um livro. E também o televisor estava ligado como era hábito todas as tardes.Onoticiário. RTL. Rio recolheu a chave na recepção e limitou-se a esboçar um aceno agradecido ante as palavras: - Boa noite, Herr Wolilmann. Um bom descanso. -É provável que ainda volte a sair. - Nesse caso... - retorquiu o recepcionista, voltando a mergulhar na leitura do livro. Rio abriu a porta do quarto e precipitou-se até junto da cama, enfiando rapidamente a mão por baixo do colchão. As pontas dos dedos sentiram o metal. Lá estava ela e, tanto quanto se recordava, precisamente no mesmo sítio em que a deixara. Tirou a pistola do esconderijo e esvaziou o carregador. Estava a tornar-se uma espécie de mania contar as balas e observar as pontas metálicas reluzentes. Pousou a H&K em cima da secretária, abriu a gaveta e tirou os dois carregadores sobresselentes do saco da roupa interior. Colocou-os ao lado da arma, dirigiu-se à casa de banho, despiu-se, ligou o duche e sentiu como o forte jacto de água o libertava de todo o cansaço e esgotamento. Depois escovou os dentes, antes de vestir roupa interior lavada, as calças e uma camisa passadas a ferro. Meteu a H&K no cinto e a pressão. no ilíaco quase parecia incutir-lhe confiança. Fase verde. Tão verde como o prado verde... Faltavam vinte minutos para as dez. Ao fundo da longa e tranquila rua avistavam-se os faróis das viaturas que davam a volta ao parque. Tudo como dantes. Só que hoje estava mais quente, não, mais abafado do que da última vez.Opasseio a pé através do parque... Já não havia tantos veraneantes nem pares apaixonados - graças a Deus.Oenorme bloco de apartamentos apresentava-se igualmente tranquilo. E no rés-do-chão, onde se realizara a festa, tinham descido as persianas. Era, agora, noite cerrada. Os dois lampiÕes, à direita e à esquerda da Max-KrÕner-Platz, estavam acesos e reflectiam o seu brilho baço e lácteo no tejadilho dos carros. E ali, a casa de Hampel... o número dez... Rio encostou-se ao tronco de uma velha faia. Conhecia a árvore e o próprio cheiro parecia dar-lhe confiança. Erguia-se a cerca de dez passos do caminho e da rua. Uma faia enorme, que o protegia dos olhares indiscretos dos transeuntes. E havia, além do mais, os rolos de nuvens que nessa noite ocultavam a Lua. Consultou o relógio: dez horas da noite em ponto! Fora assim que tudo se passara nas três noites anteriores. Observara sempre o mesmo. Os funcionários de todas as directorias governamentais e os seus gordos cockers são pontuais. A porta abrira-se sempre a esta mesma hora. Passavam, agora, cinco minutos das dez. A luz do pórtico acendeu-se sobre o número dez.Ocoração de Rio começou a bater aceleradamente. Levou a mão à H&K. «Agora, calma, raios. Toda a calma do mundo.» Deixá-lo ir. No cimo da rua, ele seguiria pelo estreito caminho que levava ao lago, vertente abaixo. E a cadela iria como sempre atrás dele. A coeker era aliás um animal já velho e passeava, sem trela, junto à margem, enquanto o dono fumava confortavelmente um charuto no banco. -Anda, Lola... A sombra recortou-se ao cimo da rua. Em seguida, Hampel e a cadela desapareceram na floresta. Rio encontrava-se agora tão perto que conseguia ouvir os passos de Hampel e o ruído das patas da cadela. «Deixa-o ir! Deixa-o, dar o seu passeio. O último.» Rio desencostou-se do tronco da faia. Mais à frente, ao sentir o estalar da areia sob as solas dos sapatos, estacou: não havia vozes, nem sombras nos bancos, nem pontas de cigarro acesas, ninguém - ideal! Pôs-se a correr. Correu até à bifurcação, onde havia umas escadinhas. Desceu as escadas nos bicos dos pés. Sustendo a respiração, tentou evitar qualquer ruído produzido pelas solas finas dos ténis, enquanto a sombra escura se diluíra no cinzento do lago. Parou mais uma vez, tirou a H&K do cinto e destravou a patilha de segurança.

«Em breve terás tudo para trás das costas, Ludwig. No entanto, agora, recupero o tempo perdido, agora estamos empatados, pois desta vez, Ludwig - desta vez, resultará! Vais ver..» Na margem do lago, a superficie das águas clareava um pouco a escuridão, pelo menos a ponto de destacar com nitidez os topos dos arbustos e os troncos das árvores. Estava ainda a uns metros da margem, mas conservava-se na estreita descida. Deixara de correr. Havia parado. Assustou-se com os latidos da cadela. Não era um ladrar normal, mas um ruído provocado pelo medo. Depois, um uivo, e o silêncio. A mascote de Hampel. Será que ele lhe dera um pontapé? Altamente improvável... Rio chegara à margem do lago e pôs-se novamente à escuta. Agora já não eram latidos nem uivos, não, o som provinha de uma garganta humana. Só alguém aterrorizado poderia emitir este gemido abafado... Soava como se o homem fosse morrer ali asfixiado, como se lutasse com a morte. Hampel?!... Hampel, que estava por qualquer motivo às portas da morte, um enfarte ou sabe-se lá o quê, com mil diabos? Rio correu à desfilada. E viu... Hampel lutava provavelmente com a morte, mas eram dois homens que o atacavam. Sim, deviam ser dois, que lhe batiam após o terem deitado por terra e queriam dar-lhe cabo da saúde. O silêncio era cortado por gemidos e gritos abafados. Rio observava agora nitidamente que um dos dois homens tinha o joelho sobre a garganta de Hampel, pois este continuava a agitar as pernas...Ooutro, no entanto, aproximou-se e, com o braço semierguido, aplicou o que parecia um golpe de karaté. Rio apontou a H&K.

- Socorro! - ouvia-se o grito. - Socorro!

O grito morreu na garganta.

O homem que se encontrava na sua frente era alto e bem constituído. Em seguida, virou a cabeça. - Pit! Deixa-o! Esse aí tem uma arma! - E fugiu a correr.

Rio sentiu-se invadido pelo desespero e uma espécie de surpresa, aliada ao vazio. Esperou até os passos apressados dos fugitivos terem desaparecido pelo caminho acima. Depois, ajoelhou-se junto de Hampel. O indivíduo não se mexia. Também deixara de gemer. Apenas se ouvia a sua respiração ofegante. Rio premiu, repugnado, as pontas dos dedos de encontro às têmporas. A pulsação era rápida e irregular, a pele estava coberta de suor e fria.

Afastou rapidamente a mão. Ele não se mexeu, nem sequer moveu a cabeça. Entreabriu, porém, os lábios: - Sim? Rio travou a arma e voltou a enflá-la no cinto. - Tem dores? Partiu alguma coisa? - Acho... acho que não... Apenas me sinto mal.

- Imagino. A respiração tomou-se mais calma.

- Oh, céus... Surgiram simplesmente do meio dos arbustos. Um deles roubou-me a carteira. Mas não lhes chegou... - Algo se mexeu junto ao joelho de Rio. A mão sentiu pêlo. Ouviu-se um leve e queixoso latido. - Lola? - sussurrou Hampel.Ofacto de pensar na cadela pareceu devolver-lhe forças. Soergueu-se apoiado no cotovelo e gemeu. Sob aquela fraca luminosidade, apenas se reconhecia a cara. Sem os óculos, parecia mais pálida. - Os meus óculos... - Tem certamente outro par. Vejamos se chega, agora, a casa. - Sim. Talvez os tipos voltem a atacar.. -Não acredito. Mas é melhor. - Sim. Também por causa da Lola.

- Sim, claro - resmungou Rio entre dentes, e não sabia se havia de soltar uma gargalhada. No entanto, abatê-lo assim? Era impossível.Ohomem era pesado. E como! Rio teve a sensação de que arrastava um saco de cimento vertente acima, um saco que gemia e ofegava. Pusera o braço à volta dos ombros de Rio, encostava-se-lhe com todo o seu peso e Rio arrastava-o pelo caminho, mas também começava a faltar-lhe a respiração, céus! Formavam o par do século. No entanto, chegaram ao fim. Encontravam-se, agora, na praça, respirando com dificuldade. - Estes porcos - sussurrou finalmente Hampel. Estes malditos safados! - Em seguida, operou-se nele uma estranha transformação. Ainda não recuperara o fôlego, virou-se e a luz do lampião incidiu no rosto rubicundo e sem óculos. - Muito obrigado... mesmo. Muito obrigado. - Procurou, em seguida, a gravata. Rio tinha-lhe alargado o nó no caminho e ele voltou a subi-lo. Pretendia aparentemente manter um porte digno ante os vizinhos e endireitou os ombros. - Anda, Lola.

No entanto, Lola já ia a correr na frente. Arrastava a trela atrás de si e avançou, feliz, até à casa com o número dez. Hampel tinha parado. Os candeeiros da rua iluminaram-lhe o rosto. Notava-se uma mancha de sujidade na testa. A areia estava pegada ao queixo. Tinha o pescoço vermelho e as mangas do casaco de linho arrancadas. - Estes malditos bandidos... É inacreditável!Ofim está próximo...Oapocalipse. Onde estamos, afinal? Em Berlim ou na Brorix? L. - Abanou a cabeça, emitiu um gemido de protesto entre os lábios inchados e, em seguida, pousou a mão no ombro de Rio. - E você! Você chegou no último momento. Deve ter sido o bom Deus que o enviou. Posso finalmente agradecer-lhe. Aliás, o meu nome é Hampel. Rio esboçou um aceno de cabeça. E na medida em que o gordo estava agora à espera de uma apresentação, disse, hesitante: - Wohlmann.

- Herr Wohlmann? Agora, posso olhar de frente o homem que me salvou a vida. Os meus profundos agradecimentos, Herr Wolilmann... Se não estivesse aqui... nem quero pensar... Rio limpou o suor da testa.

- Tudo bem...

- Tudo bem, diz? Nada está bem. Nada... Também o sabe por experiência própria: este Estado, a sociedade que tolera este tipo de coisas... Está condenada à queda. Mal se sai de casa, é-se atacado. Onde está a minha Lola? -Ali em cima. Diante do portão do jardim.

- Peço-lhe por favor que entre. Não podemos simplesmente deixar passar em branco... uma experiência destas. Talvez possa oferecer-lhe um copo de vinho. Ou um uísque. Ambos o merecemos. Não acha? - Rio esboçou um aceno afirmativo. «Ambos o merecemos»? Tinha ganho um barril de uísque. Um barril inteiro e só para si. Em cada segundo que passava, a situação parecia-lhe cada vez mais absurda e louca... não, fantasmagórica. Hampel escancarou a porta do jardim de ferro forjado. - Entre, por favor, Herr.. Herr.. -Wohlmann - repetiu Rio, pacientemente.

- Wolilmann... Claro... Peço-lhe desculpa. Sabe, ainda estou muito enervado. O que é compreensível, certo?Omobiliário da sala de estar de Hampel correspondia às expectativas de Rio e apenas se sentiu surpreendido com o nu feminino de Modigliani junto à lareira. Fora isso: anos 70 e forro de veludo azul. Uma prateleira com livros junto ao bar e, no canto, o cestinho de Lola. A cadela já tinha, aliás, saltado, lá para dentro. Lançou um olhar demorado e melancólico a Rio por entre as orelhas pendentes. Era velha, gorda e estápida mas estava limpa. Rio sentou-se. Se alguma vez lhe faltara sensibilidade na vida era este o momento. Recostou-se no maple forrado de azul e acendeu um cigarro. - Com ou sem gelo? - perguntou-lhe Hampel do bar.

-  Sem.

- É também assim que o bebo. Faz melhor ao estômago. Tenho aqui um belo e velho uísque escocês, a bebida para ocasiões especiais. Vá lá, então. Tinha os dois copos na mão e deu uma piscadela significativa. Os olhos eram de um cinzento-claro. Não disfarçava a miopia e a expressão parecia de uma estranha fraqueza. Rio temeu que ele se aproximasse para brindar, mas afastou o seu copo, estendeu o outro a Rio, sentou-se na sua frente, cruzou as pernas gordas, abriu a gaveta da mesa de fumo, retirou do interior um novo par de óculos e fitou Rio olhos nos olhos.

- Eram tipos do Leste - declarou. - Não tenho a mínima dúvida. - Aqueles que o atacaram?

- Sim, a quem mais poderia referir-me, Herr Wolilmann? - Rio encolheu os ombros e bebeu um longo trago.Ouísque era realmente de qualidade. E ajudava. - Ignoro qual a sua tendência política, Herr Wohlmann, e também não quero perguntar-lhe - Hampel tinha o lenço de assoar na mão e limpou a testa, ao mesmo tempo que revivia com ar lamentoso a experiência e abanava a cabeça. - Na verdade, devia ir tomar banho... Estou com um aspecto horrível! - Sim - anuiu Rio.

- Sim. Bandidos de Leste. Se a queda do muro, sobre cujo significado pode ter-se opiniÕes diversas, teve qualquer efeito catastrófico, então nesta cidade... Passadores, drogados que estão dispostos a fazer tudo a troco de uma dose, e como se isso não bastasse, ainda temos de receber os criminosos da zona do Leste. Esses estão treinados. E sabe por quem? - Rio sacudiu a cabeça em negativa. - Pela mafia russa, Herr Wolilmann. Já ouviu certamente falar no assunto. Estes, por exemplo, eram homens treinados e não toxicómanos sem forças. Aliás, cada dois deles contraíram o vírus, não é verdade?... Mas tipos como os que me atacaram, sabem o que estão a fazer. Não sou nenhum peso leve, mas a forma como me saltaram para cima... pelas costas, inacreditável... - Fixava, agora, Rio com um olhar que somente reflectia uma ilimitada admiração. - Mas o senhor, Herr Wohlmann, também não é exactamente, não me leve a mal, o que pode chamar-se um atleta. Como conseguiu afugentar aqueles porcos? - Como? Aí está uma boa pergunta. Rio meteu a mão debaixo do casaco, tirou a H&K do cinto e pousou-a em cima da mesa. Hampel deixou pender o maxilar.

-Uma pistola... Uma nove-milímetros, não é verdade?

- sim.

- Mas como? É funcionário do Governo?

- Como o senhor? - retorquiu Rio e sacudiu a cabeça.

- Quero dizer, polícia?

- Também não. Hampel esboçou um aceno respeitoso. - Compreendo. Tem licença de porte de arma. É, de facto, assim nos nossos dias... já o vivemos outrora... em que apenas se pode sair à rua com uma arma. -Não. tenho licença de porte de arma. E também não costumo passear à noite. O de hoje foi um passeio muito especial, senhor director governamental. - Mas como está a par do cargo que desempenho, Herr Wohlmann? - Sei-o, Herr Hampel. E hoje tinha apenas um motivo especial para ir passear à noite no parque. Quer que lho diga? - Por favor. Qual era o motivo?

- Abatê-lo a tiro, Herr Hampel.

«Miúdo, miúda... Não tenhas medo, ele acaba sempre por recuperar a sensatez à última hora. Conheço-o bem! Foi sempre assim. E será, agora, também ... » Vera estava deitada em cima do maple e estava agarrada a uma das camisas de ganga de Rio e a uma almofada.Otelefone encontrava-se ao alcance da mão, na mesinha baixa. Vera fizera zapping pelos vários canais televisivos, sem ligar a qualquer dos programas. Agora, voltara a falar com o filho, o seu filho - o «nosso» filho. - Oque deseja ter, Frau Martin? - perguntara-lhe Jan Herzog, quando lhe participara a gravidez. -

O que deseja ter? - Tinha ficado muito perturbada. Céus! Tudo o que na sua vida era importante, parecia concentrar-se em escassos e loucos dias.Otempo transformara-se numa lente ustória. O quê?» Seria uma menina, que outra coisa poderia ser? Ainda talvez não passasse de um aglomerado de células e Vera estava, todavia, convencida de que já dispunha de vida e, por conseguinte, de alma. E talvez esta alma compreendesse, talvez esta alma tivesse igualmente possibilidades de chegar até Rio mediante qualquer meio inexplicável... «Ele está em Berlim, miúda... E somente se deslocou até lá por causa do seu apego à justiça. E foi este mesmo apego que já lhe trouxe muitos dissabores. Mas ele não consegue mudar .. » As lágrimas voltaram. Voltavam com demasiada frequencia. Tinha igualmente de controlar esta deplorável choradeira - havia tanta coisa que tinha de controlar!Otelefone. «Rio! Meu Deus, o Rio! Finalmente... Quem mais poderia agora telefonar a esta hora, pouco antes da meia-noite?» Não era Rio. Era o médico. Era Jan Herzog.

- Frau Martin? Lamento ver-me obrigado a telefonar-lhe tão tarde... Na voz de Herzog não se detectava a iminência de qualquer má notícia. Expressava-se num tom forte e determinado. -Não me incomoda nada, doutor.

-  Sabe, Frau Martin, é que... quero dizer, telefono a esta hora porque só agora é que cheguei a casa e tive hipótese de ler o correio. -  Sim? - respondeu com o coração a bater-lhe aceleradamente. -Antes de o seu marido ter partido para Berlim, fizemos este teste... Será que ele voltou?

-Não. Ainda não. - Nesse caso, também posso dizer-lhe a si. Vera fixou um qualquer ponto na parede. Tratava-se de um dos punhais árabes, que Rio trouxera da Tunísia.Opunhal desvaneceu-se e susteve a respiração.

-Por favor - sussurrou Vera.

- Tenho... tenho uma boa notícia, Frau Martin. - O teste? Ele... ele... - Sim, o resultado foi negativo.

- Céus, meu Deus do céu!... - Deixou-se afundar no sofá, agarrou com as duas mãos no auscultador, como se precisasse de algo a que se segurar para não se deixar arrastar por esta quente vaga de felicidade. - Eu... eu não sei... oh, não é uma coisa maravilhosa?

-É mesmo. Tem o resultado primeiro com o teste Elisa e, em seguida, com o teste Abbott. Contradiz o primeiro teste que ele fez. Infelizmente este erro ocorre com frequência... Falou-lhe sobre algo a respeito de erros em testes e Vera escutava, mas o cérebro não memorizava as palavras. Nela nada mais existia para além de um calmo e feliz bem-estar. Depois recompôs-se.

- Oh, doutor! - sussurrou Vera. - Jan! Doutor Herzog! Quem me dera estar agora ao seu lado e poder dar-lhe um beijo! A cadela soltou um suspiro dentro do cestinho. Algures, o relógio devia ter dado a uma hora - até aí não o ouvira, mas agora apercebeu-se do tiquetaque do relógio. Lá fora, uma motorizada dava a volta à praça. Parecia que crepitava sobre a mesa, onde se encontrava a pistola. Hampel fitava a H&K como que hipnotizado.Ocano da arma reluzia. -Você queria... queria...

- Sim. Já queria matá-lo no parque. Hampel levou novamente a mão ao nó da gravata, alargou-o e abriu a camisa.Opronunciado inchaço no lado direito do pescoço adquirira, entretanto, uma coloração negra, os lábios deixaram escapar um ruído surdo e um fio de saliva escorreu do canto direito da boca pelo queixo.Oolhar continuava, no entanto, a fixar a arma como que fascinado. Mas... mas isso... - Levou a mão ao lado do coração e a mão agarrou o tecido enlameado da camisa. Em seguida, sussurrou: - Porquê? Nem... nem sequer me conhece! - Conheço, sim! -De onde?

- Dos meus pesadelos, Herr Hampel. Sonho muitas vezes consigo. Ou com o meu teste da sida, embora, como vê, não seja um toxicómano nem um drogado. E também não sou homossexual. Fui somente operado uma vez por causa de uma história perfeitamente inofensiva... Rio bebeu um gole do copo, após o que pôs o polegar de lado e colocou a arma de forma a que o cano ficasse apontado na direcção do homem gordo e de respiração ofegante. -Isso... isso é realmente uma coisa horrível. Mas que culpa tenho eu? - Muita. Muita mesmo, Herr Hampel. -Opolegar de Rio voltou a empurrar um pouco a pistola para o lado. Agora, o cano estava directamente apontado à barriga de Hampel, que o fitava com o mesmo olhar hipnótico da serpente para o coelho apanhado. - Terei muito gosto em explicar-lhe. Não são necessários muitos pormenores. Sabe perfeitamente como foi afastado pelo seu ministro... - Hampel manteve-se silencioso. Tirou um lenço de assoar do bolso das calças e limpou o canto da boca. O segundo par de óculos escorregara-lhe pela cana do nariz. E, por detrás, os olhos nada mais reflectiam do que medo e censura. - Não consegue recordar-se de nada, senhor director? É-lhe assim tão dificil? - O silêncio manteve-se. Hampel conservava-se teimosamente calado. - Sim, sim, a memória - retorquiu Rio. - Mas tente mesmo assim... Tomemos, por exemplo, como ponto de partida o dia um de Outubro de mil novecentos e oitenta e cinco. Nessa altura, há dois anos que se confirmara que a propagação da sida se efectuava noutros grupos populacionais... sobretudo nos hemofilicos, as mais inocentes de todas as vítimas. - Não tenho nada a ver com o assunto! Não passava de um...

- Claro que não. De um pequeno funcionário... era talvez isso o que pretendia dizer? Era um funcionário influente, Hampel. Esse é o ponto número um. No entanto, mesmo como funcionário menor é sempre detentor de responsabilidades, pelo menos é o que consta nos contratos de trabalho e o que se diz nas reuniÕes. - Hampel fechou os olhos, rendido. - Mas essa é outra questão. Talvez ainda venhamos a abordá-la... Fiquemo-nos, agora, em oitenta e cinco: a própria indústria farmacêutica foi avisada relativamente aos perigos que espreitavam nos produtos com plasma não esterilizados. Havia, porém, esse poderoso lobby, esse cartel de homens de negócios, existências duplas, falências, não sou eu que o afirmo, mas a imprensa que o escreveu. E no final desse ano foi decidido na DGS declarar como obrigatória a esterilização dos produtos. E quem foi o primeiro a aceitar com toda a compreensão as queixas apresentadas pelo cartel de sangue? Um certo director governamental chamado Bernhard Hampel, não é verdade? - Hampel conservava os olhos fechados. Na testa reluziam pequenas gotas de suor. Para além disso, todo ele se resumia a uma massa de carne mole e gordura. Bom, a massa movia-se, a barriga subia e descia ao ritmo da respiração; os parcos cabelos brancos estavam bastante emaranhados, quando lhes passou os dedos. Havia ainda a assinalar a mancha de sujidade e o sangue seco no queixo... Rio observava-o com crescente repugnância. - Acorde, Hampel! Pretende, afinal, saber porque é que vou matá-lo depois? Ou podemos atirar o assunto para trás das costas? - O corpo do director governamental estremeceu. Os olhos assemelhavam-se a dois buracos redondos abertos num rosto pálido e coberto de suor.Omedo espreitava por detrás dos mesmos. - Encontramo-nos, assim, de volta ao mesmo ponto - redarguiu Rio, dando um empurrão na pistola. - Berbhard Hampel, o cérebro operacional de toda esta batalha defensiva. E bem posicionado na DGS. Não a toupeira, mas a aranha na teia... será que poderemos aplicar esta definição? - Está... está errado... -É o destino de todos os que descobrem algo e procedem a críticas. Foi assim desde tempos imemoriais... Mas voltemos à questão, ou perco o fio à meada: valia na verdade o dinheiro, Hampel. Meu Deus!Oque pôs de facto em movimento a troco de algumas viagens de lazer.. por exemplo a Can Rosada, em Maiorca! Nos seus trabalhos escritos, em memorandos, nos simpósios: «percentagem de risco de um para um milhão», não era essa a divisa? E tudo o mais era considerado como mero exagero da imprensa sensacionalista. E como é aquela sua bela citação numa das circulares: «Nesta onda de pânico vejo somente a expressão do esforço insaciável dos irresponsáveis média ... » Muito bem! A perspectiva Hampel. - Tudo se processou de uma forma completamente diversa. E já que fala de decisÕes... Não era eu quem tomava decisÕes, mas sim o presidente. - E você era o homenzinho de ouro que lhe soprava ao ouvido, certo? Claro que era o presidente quem tomava as decisões. Faz parte das regras. Só que o senhor presidente era muito díficil de apanhar. Andava sempre de um lado para o outro... Quer por Paris, Londres, Estados Unidos ou Extremo Oriente, estava continuamente em viagem. Como é que lhe chamavam na DGS? «Mister Corre-Tudo»... Mas era, de facto, bastante prático, certo? Pois com um presidente destes, muita coisa se torna permitida. - Os dedos gordos de Hampel agarravam, desesperados, o tecido das calças junto aos joelhos. Rio voltou a observá-lo. Agora, deixara de sentir ódio, e também o antigo e quase sádico prazer de poder, finalmente, dizer o que carregara consigo durante meses seguidos.Odesejo de o atirar para onde ele pertencia havia desaparecido. Ainda sentia somente aversão contra si próprio, contra o facto de se encontrar aqui sentado a proceder à inútil experiência de atravessar toda esta gordura para penetrar num cérebro que não o entendia, pois há muito que se encontrava desprovido de qualquer emoção, de qualquer vislumbre do que é considerado como «moral». «último acto!», pensou Rio, enquanto observava as pálpebras que Hampel mantinha descidas. «Dantes, ao tentares deitar abaixo trapaceiros através das tuas entrevistas, também não era simples. Mas agora, podes derrubá-lo. Sim, senhor: último acto.Ofinal!» - Tem um pouco de imaginação. Hampel? Quero dizer, para além da imaginação que é necessária para arrancar um honorário de perito junto dos seus amigos da indústria... - Trata-me como a um trapo... De que está realmente a falar? - Falemos, por exemplo, do tema responsabilidade. Imagine que estava num daqueles maravilhosos talk-shows e o moderador anunciava: «E, agora, minhas senhoras e meus senhores, o nosso convidado surpresa: o senhor director governamental Hampel, da Direcção-Geral de Saúde! Ele irá dar-vos a sua visão dos acontecimentos.

Ficarão a saber qual é realmente a verdade sobre os produtos com plasma contaminados pelo vírus da sida e que nos trouxeram tanta calamidade. Irá participar-vos que tinha desde o início tudo sob controlo, que, por motivos pessoais, o prejudicaram, mas que sempre foi um justo lutador por um controlo necessário. Portanto, minhas senhoras e meus senhores, o tema "responsabilidade" ... » - Rio pegou na arma. Pousou-a em cima do joelho. Agarrou o punho com força.Ohomem, que nem a dois metros se encontrava, pareceu afundar-se no assento. As pérolas de suor na testa transformaram-se em gotinhas que lhe escorriam pelos dois lados das faces. -Otema é a moral e a responsabilidade, Herr Hampel. Tem a palavra. - Você... é um... Ameaça-me e depois...

- Sim, e depois exijo-lhe algo... Também podemos variar de tema. Falemos de controlo consciente, do «dever de fiscalização do Estado»... E deixemos de lado o dever de fiscalização a barracas de fritos, cervejarias e pequenas quintas de produtos farmacêuticos. Falemos antes do controlo relativo ao aparelho administrativo. A tipos como você. Não prestou juramento de servir com lealdade e eliminar o mal?

- Você... Não há...

- Não há esse género de controlo, certo? Caso contrário, há muito que estaria na cadeia, em vez de andar aqui a passear a sua Lola. Não só você, como centenas e milhares da sua laia! Bom, teve a reforma antecipada, mas sem processo disciplinar. Faça favor! Rio pegou no copo e esvaziou-o. Em seguida, pegou na H&K e puxou a culatra. O ruído metálico assustou Hampel, que impeliu os calcanhares para a frente, enquanto todo o corpo se lhe contraía para ser tomado de um temor convulsivo. Rio examinou-o.

- Não... - Um soluço. - Por favor! Não, por favor...

Rio ergueu o braço e fez pontaria. «Como é que Ludwig Kiefer lhe chamava! "Tirar as medidas"... Tirar as medidas, sim. Mas o resto?... Não, não sou capaz de cumprir o teu desejo, Ludwig. No fim de contas, existe uma criança... E deverá um dia dizer: "O meu pai foi um criminoso"?» - Deixe-me em paz!Oque é que lhe fiz? - gritou Hampel.

- O que me fez? Não falemos disso - retorquiu Rio, que agora se expressava num tom baixo e gelado: - Falemos dos outros. Falemos dos quatro mil hemofilicos cuja metade já se encontrava contaminada antes de oitenta e oito. Ou antes do meio milhar de hemofilicos que entretanto morreram. Falemos dos que foram operados e receberam o plasma contaminado... Não, não falemos mais de culpa e responsabilidade. Ambos sabemos onde está a sua culpa. E onde está o seu sentido de responsabilidade? Não, nada há a descobrir.. nada além de um buraco escuro e malcheiroso. - Hampel fez uma tentativa desesperada para se levantar do assento. - Deixe-se estar sentado, Hampel. Um buraco, um abismo... Mas infelizmente não só o seu. É o precipício em que eu caí. Era isso que queria que ficasse bem claro, senhor director governamental. E, agora, o final! - Fez pontaria ao rosto de Hampel, depois ao coração de Hampel... e puxou o gatilho. Um ruído metálico. Hampel gritou. Silêncio. Hampel estava prostrado. As pálpebras tremeram e depois entreabriram-se. - Como vê, é assim, Herr Hampel... - redarguiu Rio com um esgar. - Talvez devesse tê-lo informado que primeiro tirei as balas do carregador. Nesse caso não teria provavelmente feito nas calças... Agora, pode levá-las para limpar. Deitou um olhar para a grande mancha escura entre as pernas de Hampel, levantou-se e desapareceu na noite...

Desta vez estavam lá. Estavam à sua espera. E haviam-se preocupado em que desse imediatamente pela presença deles. Um deles mantinha-se encostado à parede da entrada da Carola, o outro estava sentado no automóvel, acendera a luz do interior e comunicava qualquer coisa à central pelo telefone. Rio afastou-se da esquina da casa e percorreu rapidamente o curto espaço que o separava do parque - uma sombra no meio das sombras.

Não demorou mais de quatro minutos até um táxi livre se aproximar. Ergueu a mão, o carro parou e o motorista abriu a porta da frente. - Stuttgarter Strasse - disse Rio. - Não sei o número, mas depois indico-lhe a casa. Esquecera a morada de Lazlo - como não, depois de passado tanto tempo? Mas ainda existia a velha casa e, quando Rio descera do táxi, verificou que a fachada fora pintada, havia novos caixilhos nas janelas e novos candeeiros de ferro forjado... E, o que era mais importante, também ainda havia o Lazlo! Ali estava: LAZLo NAGELE. Lazlo iria ajudá-lo, Lazlo ajudava todos a quem atribuía valor - um Lazlo que se chamava Nagele, era natural de Estugarda, morava em Berlim, na Stuttgarter Strasse, pois achara o pavimento da metrópole demasiado quente. Foi ele quem, ainda mais magro e mais grisalho do que dantes, abriu a porta a Rio. Eram, contudo, aqueles mesmos seus olhos negros e argutos de pássaro. -Vou desmaiar! Tu? -Sim. Eu.

- Entra, homem! Lazlo tinha vestido um quimono preto e branco. Também nesse aspecto, nada havia mudado. Sempre que regressava a casa de um dos seus negócios de receptador, deixava cair os tarecos, onde agora se encontrava, a fim de vestir o quimono. Mas, e a casa!... Logo no corredor, Rio foi cumprimentado por um tomate pop de plástico sobredimensional, as paredes da sala de estar tinham as cores do arco-íris e nenhum dos móveis media mais do que vinte centímetros de altura. - Hello! Rio virou-se: Lazlo fora ao ponto de manter a própria loura de serviço... - É a Evi. E nem vais acreditar quem é este, baby. É o Rio! O jornalista-vedeta de que te tinha falado: aquele que, dantes, sempre conseguiu tirar-me da cadeia. - Rio recebeu beijos nas duas faces por esse motivo. - E agora desaparece e arranja-nos qualquer coisa para beber. - Lazlo fitou-o. - E? - disse em seguida. - Podes alojar-me por uma ou duas noites?

- Que pergunta idiota!Oque se passa? -Os polícias.

- Andam atrás de ti? Deixa-te de graças.

- Falo a sério - retorquiu Rio. - Conto-te amanhã.

A loura trouxe um tabuleiro com uma garrafa de uísque e dois copos. Rio abanou a cabeça em negativa. Via a casa de Hampel e via o gordo junto ao bar. Nunca mais na vida voltaria a tocar numa gota de uísque. Agora, somente queria uma coisa: dormir, dormir - e telefonar a Vera... Mas para o fazer, teria de estar em melhor forma. Por conseguinte, amanhã... logo de manhã cedo... Depois de um sono semelhante ao da morte, Rio foi acordado por um estranho mas agradável ruído, Passou algum tempo, antes de conseguir identificar o melódico vaivém com o arrulhar de duas pombas que brincavam no parapeito da janela do seu quarto. Ainda demorou mais tempo, antes de perceber de que quarto se tratava e como entrara ali. Levantou-se, vestiu o roupão que o aguardava cuidadosamente

dobrado sobre as costas da cadeira e pôs-se a percorrer a enorme e antiga casa. Ninguém. A casa estava vazia. Na cozinha encontrou um bilhetinho: «Até ao meio-dia, velho ... »Na máquina de café, havia café quente, e em cima da mesa estava o pequeno-almoço com pãezinhos frescos. Rio riu agradecido. Barrou um pãozinho e comeu com fome de lobo. O café começou a fazer efeito. Levantou-se e ligou o pequeno televisor que estava em cima da bancada da cozinha. Notícias.Otelejornal: Bósnia, a economia mundial, greve na indústria automóvel... E em seguida?!...Oque estava a dizer o locutor? «COMO Já INFORMáMOS ONTEM NO NOSSO NOTICIáRIO DA NOITE, NA ILHA DE MAIORCA, UM TURISTA ALEMãO E INDUSTRIAL DE PRODUTOS FARMACêUTICOS DESACREDITADO PELO ESCÂNDALO DA SIDA, THOMAs ENGEL, FOI ATACADO E FERIDO COM UMA AGULHA CONTAMINADA COMOVíRUS DA SIDA.OACTO FOI COMETIDO POR LUDWIG KIEFER, DE SETENTA ANOS, UM IMPORTANTE CRIMINOLOGISTA REFORMADO.

EMBORA AINDA SE DESCONHEÇAOMOTIVO DO CRIME, PRESUME-SE QUE SE TRATA DE UM ACTO DE VINGANÇA PESSOAL. KlEFER PERDEU A VIDA APóS UMA TROCA DE TIROS COM A POLíCIA ESPANHOLA. ANTES, PORÉM, FORNECEU INFORMAÇÕES  S AUTORIDADES ESPANHOLAS QUE LEVARAM à PRISãO DE DOIS CIDADãOS DE NATURALIDADE ALEMã, O DIRECTOR TÉCNICO DA FIRMA BIO-PLASMA, JOCHEN HOCHSTETT, EODESEMPREGADO RENE HONOLKA, PROCURADO PELA POLíCIA.»

Rio desligou. Dirigiu-se até junto da mesa e afundou-se na cadeira. Olhou à volta da cozinha desconhecida e pensou somente no nome de Vera. Tinha de ouvir-lhe a voz, saber, verificar que ela existia...

«Meu Deus! Ludwig! Decerto vai entender, Ludwig... Tenho uma mulher, Ludwig, e ela está grávida.» Foi até à grande sala iluminada e colorida em que se encontrava o telefone e marcou o seu número de Munique. Vera atendeu imediatamente. - Sou eu - disse Rio. Em seguida, apercebeu-se de um soluço reprimido. - Vera! Miúda! - sussurrou. - Sabes, acabei de ver agora na televisão que... - Interrompeu-se. Umbrou-se de que Vera não conhecia Ludwig. - Vera - prosseguiu num tom de voz baixo e desesperado. - Passou-se tanta coisa... E tenho problemas. - Tu? Não... já não tens. -Problemas com a Polícia.

- Oh, céus! Agora que, finalmente deste notícias, tudo isso também passou, Rio. Não fizeste nenhuma idiotice, Rio? - Não... quer dizer, o que chamas de idiotice?

- Nada de mau?

- Não.

- Rio... Tenho uma coisa a dizer-te. Estás sentado? Tens alguma coisa que beber aí? É tão inacreditável, Rio... Sinto-me tão feliz... -Então? Diz... Vera deu-lhe a notícia. Rio susteve a respiração, esboçou um gesto com o braço e derrubou uma jarra de uma mesa de vidro baixa. A jarra ficou no chão, a água entornou-se e ele nem deu por nada. - Oh, Deus! Vera... Não!... Tu... tenho de ver-te imediatamente! - Claro. - Mas a Polícia...

- Agora que falaste comigo, vou telefonar já ao Paul. Não precisas de preocupar-te. Andavam à tua procura, porque te julgavam louco. Mas agora vão deixar-te em paz. Mete-te no automóvel para o aeroporto, estás a ouvir, Rio? Parte imediatamente... Parte para o aeroporto e mete-te no primeiro avião. Esperamos por ti, estás a ouvir? Vamos buscar-te. Temos tantas saudades tuas. -Temos? Nós... quem?

- A tua filha e eu, grande idiota! - respondeu Vera com uma gargalhada.

Rio premiu, no entanto, o auscultador de encontro ao ouvido e desejou que aquele riso de felicidade fosse infinito...

 

                                                                                            Heinz G. Konsalik

 

 

                      

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