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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MINA DE OURO / Agatha Christie
A MINA DE OURO / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A MINA DE OURO

 

                       

 

George Dundas estava parado em plena City,1 pensando.

De todos os lados, simples funcionários e gente empenha­da em ganhar dinheiro surgiam e passavam como avassala­dora maré. Mas George, impecavelmente vestido, as calças muito bem frisadas, nem prestava atenção. Só procurava encontrar uma forma de sair daquela situação.

Não era para menos. Entre ele e o tio rico (Ephraim Leadbetter, da firma Leadbetter & Gilling) tinha-se travado o que as classes inferiores chamam de “bate-boca”. A bem da verdade, diga-se que o bate-boca havia partido quase que exclusivamente de Mr. Leadbetter. As palavras jorravam de seus lábios numa torrente incontida de revolta e indignação, e o fato de no fundo se resumirem também quase que exclu­sivamente em repetições nem parecia perturbá-lo. Limitar-se a dizer uma coisa apenas uma vez, de modo bem claro e conciso, não figurava entre os lemas de Mr. Leadbetter.

A causa era bem simples: o estouvamento e a irrespon­sabilidade criminosa de um rapaz que, tendo de trabalhar para ganhar a vida, se ausenta do emprego no meio da se­mana sem se dignar a pedir licença. Mr. Leadbetter, de­pois de dizer tudo o que lhe veio à cabeça, e boa parte já pela segunda vez, parou para tomar fôlego e perguntar o que George pretendia com aquilo.

George respondeu simplesmente que tinha sentido von­tade de tirar um dia de folga. Umas férias, para ser mais exato.

E o que, quis saber Mr. Leadbetter, vinham a ser as tardes de sábado e os domingos? Sem falar na festa do Es­pírito Santo, há pouco tempo, e no feriado bancário de agos­to, que não tardaria a chegar?

1 Zona onde se concentra o maior movimento financeiro e bancário de Londres.

George frisou que não gostava de tardes de sábados, nem de domingos ou feriados bancários. Queria ter um dia de verdade, quando fosse possível encontrar algum lugar ainda não invadido por metade da população londrina.

Mr. Leadbetter declarou, então, que havia feito todo o possível pelo filho de sua finada irmã — ninguém poderia di­zer que não lhe tivesse dado uma oportunidade. Mas, evi­dentemente, de nada adiantava. Assim, para o futuro, Geor­ge disporia de cinco dias de verdade por semana, além do sábado e do domingo, para fazer o que bem entendesse.

— Rapaz, você teve nas mãos uma mina de ouro — acrescentou, num toque final de retórica, — e não soube aproveitar.

George retrucou que, na sua opinião, era justamente isso que tinha feito e Mr. Leadbetter, trocando a retórica pela cólera, ordenou que se retirasse.

Eis, pois, George... perdido em cogitações. O tio vol­taria atrás ou não? Sentiria no íntimo algum afeto pelo so­brinho ou apenas uma indiferença brutal?

Nesse momento exato ouviu uma voz — a mais inespe­rada de todas.

— Olá!

Parado no meio-fio a seu lado estava um carro esporte, vermelho, de capô quilométrico, trazendo ao volante aquele fino e popular ornamento da nossa melhor sociedade, Mary Montresor (segundo a descrição dos jornais que lhe publica­vam a fotografia pelo menos uma vez por semana). E sorria de um modo irresistível para George.

— Nunca imaginei que um homem pudesse lembrar tan­to uma ilha — disse. — Quer dar uma volta?

— Nada me agradaria mais — respondeu George, sem hesitar, saltando para o assento vizinho.

Avançaram lentamente porque o tráfego não permitia outra coisa.

— Cansei disto aqui — declarou Mary Montresor. — Vim só para ver como era.  Vou voltar para Londres.

Não se atrevendo a corrigir-lhe a imprecisão topográfi­ca, George respondeu que lhe parecia uma ótima idéia.  Foram indo, às vezes devagar, outras com súbitos acessos de velocidade, quando Mary Montresor encontrava oportunida­de de ultrapassar alguém. George teve impressão de que era meio otimista nesse sentido, mas consolou-se com a idéia de que ninguém morre mais que uma vez. Achou melhor, po­rém, não puxar conversa. Preferia que a sua bela motorista concentrasse a atenção no que estava fazendo.

Foi ela quem recomeçou a falar primeiro, escolhendo o momento em que descreviam uma curva alucinada em torno de Hyde Park Corner.

— Você não quer casar comigo?  — perguntou com a maior naturalidade.

George engoliu em seco, reação que talvez se pudesse atribuir a um ônibus enorme que parecia disposto a esma­gá-los. Orgulhou-se da prontidão de sua resposta:

— Adoraria — disse, com a maior facilidade.

— Pois olhe — retrucou Mary Montresor, vagamente. — Qualquer dia destes talvez você case.

Entraram na reta, sem acidentes, e no mesmo instante George avistou novas manchetes reproduzidas com destaque à entrada da estação de metrô de Hyde Park Corner. Espremidas entre GRAVE SITUAÇÃO POLÍTICA e CORONEL LEVADO AOS TRIBUNAIS, numa se lia MOÇA DA SOCIEDADE CASA COM DUQUE e na outra O DUQUE DE EDGEHILL E MISS MONTRESOR.

— Que história é essa de Duque de Edgehill? — inqui­riu George com firmeza.

— Entre mim e o Bingo? Nós noivamos.

— Mas então... o que você disse agorinha mesmo...

— Ah, aquilo — retrucou Mary Montresor. — Sabe o que é, ainda não resolvi com quem vou casar realmente.

— Então por que noivou com ele?

— Foi só pra ver se eu conseguia.   Todo mundo vivia dizendo que seria tremendamente difícil, e não foi nem um pouco!

— Que azar para... o Bingo — disse George, vencen­do o constrangimento de chamar um duque autêntico pelo apelido.

— Não vejo por quê — disse Mary Montresor. — Vai ser até bom para ele...  embora eu duvide que haja alguma coisa que possa ser boa para o Bingo.

George fez outra descoberta — novamente com o auxí­lio de um cartaz colocado de maneira estratégica.

— Mas claro, hoje é dia de corridas em Ascot.  Como se explica que você não tenha ido?

Mary Montresor deu um suspiro.

— Estava precisando de umas férias — disse, em tom de queixume.

— Pois eu também — exclamou George, encantado. — E só consegui que meu tio me botasse no olho da rua, para passar fome.

— Quer dizer, então, que se nós casarmos, as minhas vinte mil libras anuais talvez venham a calhar?

— Não há que negar que nos proporcionariam certos confortos domésticos — admitiu George.

— Por falar nisso — lembrou Mary, — vamos dar uma volta aí pelo interior para ver se se encontra uma casa que dê para a gente morar.

Parecia um plano simples e maravilhoso. Atravessaram Putney Bridge, chegaram à variante de Kingston e, com um suspiro de satisfação, Mary apertou o pé no acelerador. Não demorou muito estavam no campo. Meia hora depois, com uma exclamação súbita, ela fez um gesto dramático e apontou com a mão.

Diante de ambos, no alto de um morro, via-se uma dessas casas que os corretores de imóveis costumam descrever (raramente com justeza) como “uma jóia rara”. Suponha­mos que ao menos uma vez a descrição da maioria das ca­sas de campo tenha-se tornado, de fato, uma realidade, e se fará uma idéia da tal casa.

Mary parou na frente de um portão branco.

— Vamos deixar o carro aqui e entrar para dar uma olhada.   É a nossa casa!

— Decididamente, é a nossa casa — concordou George. — Mas pelo jeito tem gente morando nela.

Mary descartou a hipótese com um aceno de mão. Subi­ram juntos o caminho sinuoso que dava acesso à casa. Vista de perto, dava impressão de ser ainda mais convidativa.

— Vamos espiar pelas janelas — propôs Mary.

George mostrou relutância.

— Você não acha que essa gente...

— Não quero nem pensar neles. A casa é nossa. Estão morando aqui apenas por uma espécie de casualidade. Além do mais, o dia está uma beleza e com certeza saíram. E se alguém nos surpreender em flagrante, eu digo... eu digo... que julguei que fosse a casa de Mrs.... de Mrs. Pardonstenger e peço mil desculpas pelo equívoco.

— Bem, nesse caso então creio que não há problema — ponderou George.

Olharam pelas janelas. A casa estava muito bem mo­biliada. Tinham acabado de chegar ao estúdio quando es­cutaram passos sobre o cascalho atrás deles. Viraram-se e deram de cara com o mais irrepreensível dos mordomos.

— Ah!—exclamou Mary, recorrendo ao seu sorriso mais cativante. — Mrs. Pardonstenger está? Eu estava olhan­do para ver se ela não estava no estúdio.

— Mrs. Pardonstenger está, sim senhora — disse o mor­domo. — Queiram ter a bondade de me acompanhar.

Fizeram a única coisa cabível: acompanharam o mor­domo. George começou a calcular a margem de possibilida­des para uma coincidência dessas. E chegou à conclusão de que, com um nome como Pardonstenger, tinha que ser no mínimo de uma para vinte mil.

— Deixe por minha conta — cochichou sua companhei­ra. — Tudo vai sair bem.

George ficou simplesmente encantado com a idéia de deixar a situação por conta dela. A seu ver, o momento re­queria o máximo tato feminino.

Foram conduzidos a uma sala de visitas. Mal o mordo­mo se retirou, a porta tornou a se abrir e uma mulher grandalhona e corada, de cabelos oxigenados, entrou com ar de expectativa.

Mary Montresor esboçou um movimento em sua direção, mas logo estacou num gesto de surpresa bem simulado.

— Mais! — exclamou.— Não é a Amy!  Que coisa mais curiosa!

— Muito curiosa, mesmo — disse uma voz implacável.

Um sujeito enorme, com cara de buldogue e uma car­ranca sinistra, tinha entrado por trás de Mrs. Pardonstenger. George achou que jamais havia visto um brutamontes tão desagradável assim. O homem fechou a porta e ficou de costas para ela.

— Muito curiosa, mesmo — repetiu, escarninho. — Mas tenho a impressão de que já entendemos aonde vocês querem chegar! — De repente tirou do bolso o que parecia ser um revólver descomunal. — Mãos ao alto. Mãos ao alto, eu disse. Reviste os dois, Bella.

George, ao ler romances policiais, sempre se sentira curioso para saber qual era a sensação de ser revistado. Ago­ra sabia. Bella (aliás, Mrs. P.) deu-se por satisfeita. Nem ele nem Mary traziam armas mortíferas escondidas em seu poder.

— Se julgam muito espertinhos, não é? — rosnou o ho­mem. — Virem aqui deste jeito, bancando os inocentes.   Mas desta vez se enganaram... e se enganaram feio. Pra falar a verdade, duvido muito que seus amigos e parentes tornem a vê-los algum dia. Ah! Bem que você gostaria, não é? — disse, quando George fez um movimento. — Mas pode desis­tir. Eu lhe daria um tiro na mesma hora.

— Tenha cuidado, George — balbuciou Mary.

— Eu terei — disse George, convicto. — E muito.

— Agora caminhem — ordenou o homem.  — Abra a porta, Bella. E vocês dois mantenham as mãos ao alto. Pri­meiro a moça... isso mesmo. Eu vou atrás. Atravessem o saguão. Subam a escada...

Obedeceram. Que mais podiam fazer? Mary subiu a es­cada de mãos ao alto. George seguiu-a. E atrás de ambos, de revólver em punho, ia o imenso bandido.

Mary chegou ao topo dos degraus e dobrou para o lado. No mesmo instante, sem o menor aviso, George desfechou um coice violento que atingiu o sujeito bem na boca do es­tômago, fazendo-o rolar escada abaixo. Com a rapidez de um raio, George se virou e saltou em cima dele, calcando-lhe o joelho no peito. Com a mão direita livre, apanhou o re­vólver que na queda o outro tinha deixado cair.

Bella deu um grito e sumiu por uma porta coberta por reposteiro. Mary desceu a escada correndo, o rosto branco feito papel.

— George, você o matou?!

O homem continuava deitado, absolutamente imóvel. George curvou-se para ele.

— Acho que não — respondeu, pesaroso. — Mas não há dúvida de que acertei em cheio no bruto.

— Graças a Deus.

Ela estava quase sem fôlego.

— Que coice mais bem aplicado — comentou George, com perdoável vaidade. — E depois querem dizer que a gente não aprende nada com os burros. Ei, que é isto?

Mary o puxava pelo braço.

— Vamos embora — implorou, aos gritos. — Vamos embora de uma vez.

— Se ao menos houvesse alguma coisa para amarrar este cara — disse George, absorto em seus próprios planos. — Será que não daria pra você achar um pedaço de corda ou cordão por aí?

— Não dá, não — respondeu Mary. — E ande de uma vez, por favor...  por favor... estou morta de medo.

— Não precisa ter medo — disse George com arrogân­cia virial. — Eu estou aqui.

— George, querido, eu lhe peço... faça isto por mim. Não quero me envolver nessa história. Por favor, vamos embora.

A maneira intensa com que sussurrou as palavras “faça isto por mim”, abalou a resolução de George. Deixou-se le­var para fora da casa e pelo caminho abaixo, às pressas, até o lugar onde tinha ficado o carro.

— Dirija você — pediu Mary, quase sem voz. — Acho que não posso.

George tomou conta do volante.

— Mas nós devíamos levar esse negócio até o fim — afirmou. — Sabe lá que patifarias aquele sujeito mal-encara­do anda tramando. Se você não quiser, eu não dou parte à polícia... mas vou averiguar por conta própria. Tenho que dar um jeito de descobrir a ficha deles, ah, isso eu tenho.

— Não, George, não quero que você faça isso.

— O quê?   A gente se mete numa aventura sensacional que nem esta, e você me pede pra desistir?  Nunca na vida.

— Não pensei que você fosse tão sanguinário — disse Mary, toda chorosa.

— Não sou sanguinário. Não fui eu quem começou. A petulância incrível desse cara... nos ameaçar com um revól­ver daquele tamanho. Por falar nisso... como se explica que o revólver não tenha disparado quando chutei o sujeito pela escada abaixo?

Parou o carro e tirou o revólver do compartimento late­ral onde o tinha colocado. Depois de examiná-lo, soltou um assobio.

— Ora, já se viu! Este troço não está carregado. Se eu soubesse que... — Não completou a frase, com o pen­samento distante. — Mary, que coisa mais esquisita.

— Eu sei. É por isso que estou lhe pedindo pra desistir dessa história.

— Jamais — protestou George com firmeza.

Mary deixou escapar um suspiro de resignação.

— Estou vendo — disse, — que vou ter que lhe con­tar tudo. E o pior é que não tenho a mínima idéia de como você vai reagir.

— Me contar?... O quê?

— Olhe, o negócio é o seguinte. — Fez uma pausa. — Eu acho que hoje em dia as mulheres deviam se unir... e insistir em saber alguma coisa sobre os homens que ficam co­nhecendo.

— E daí? — perguntou George, completamente confuso.

— E a coisa mais importante para uma mulher é sa­ber como um homem se comporta numa situação de emer­gência... se ele tem presença de espírito... coragem... in­teligência viva. Isso é o tipo da coisa que a gente ignora, praticamente, por completo... até que já é tarde demais. A gente pode estar casada anos a fio antes que se apresente uma situação de emergência. E a única coisa que se sabe a respeito de um homem é se ele dança bem e se é bom pra conseguir táxi em noite de chuva.

— Duas qualidades muito úteis — frisou George.

— É, mas o que a gente quer saber é se ele é homem mesmo.

— Os horizontes sem fim, onde os homens são homens — citou George, distraído.

— Exatamente. Mas isso de horizontes sem fim na In­glaterra não existe. Portanto, tem que se criar artificialmen­te uma situação. Foi o que eu fiz.

— Quer dizer que...

— Isso mesmo. Acontece que aquela casa, na realidade, é minha. Nós fomos lá de propósito... e não por acaso. E o homem... aquele homem que você por pouco não matou...

— Sim.

— É o Rube Wallace... o artista de cinema que sempre faz papel de pugilista, você sabe. Simpaticíssimo, a própria delicadeza personificada. Eu o contratei, bem como a Bella, que é casada com ele. Por isso fiquei morta de medo que você o tivesse matado. Lógico que o revólver não estava car­regado. É desses que são usados no teatro. Oh, George, você não se zanga comigo?

— Fui eu o primeiro em quem você... aplicou esse teste?

— Oh, não. Ao todo... deixe eu ver...  já houve nove e meio.

— Quem foi o meio? — perguntou George, curioso.

— O Bingo — respondeu Mary, friamente.

— E nenhum deles se lembrou de escoicear feito mula?

— Nenhum. Alguns tentaram bancar o macho, outros logo entregaram os pontos, mas todos, sem exceção, consen­tiram em ser levados escada acima, e se deixaram amarrar e amordaçar. Depois, naturalmente, eu sempre dava um jeito de afrouxar os nós que me prendiam... tal e qual nos ro­mances... soltava meus parceiros e a gente fugia... encon­trando a casa vazia.

— E ninguém pensou no truque do coice ou qualquer coisa parecida?

— Não.

— Nesse caso — disse George, magnânimo, — você está perdoada.

— Obrigada, George — agradeceu Mary, submissa.

— Em suma — continuou ele, — o único problema que nos resta é o seguinte: aonde vamos agora? Não tenho bem certeza se é no Lambeth Palace ou do Doctor’s Commons, que nem sei direito onde fica.

— Do que é que você está falando?

— Da licença. Na minha opinião, precisamos tirar logo uma licença especial. Você tem a mania de noivar com um homem e em seguida pedir pra outro casar com você.

— Eu não lhe pedi pra casar comigo!

— Pediu, sim. Em Hyde Park Corner. Não é o tipo do lugar que eu escolheria pra pedir alguém em casamento, mas gostos não se discutem.

— Não fiz nada disso. Apenas perguntei, por brincadei­ra, se você não gostaria de casar comigo. Não foi a sério.

— Se eu quisesse me dar ao trabalho de consultar um advogado, tenho certeza de que ele diria que o que você fez foi uma autêntica proposta de casamento. Aliás, você sabe que quer casar comigo.

— Não quero, não.

— Nem depois de nove fracassos e meio? Imagine a sensação de segurança que teria, passando a vida inteira ao lado de um homem capaz de salvá-la de qualquer situação perigosa.

Mary pareceu ligeiramente abalada por esse argumento decisivo. Porém, respondeu com firmeza:

— Eu só me casaria com o homem que me implorasse de joelhos.

George virou-se para ela. Era maravilhosa. Mas George tinha outras características da mula além do coice. E com igual firmeza, retrucou:

— Quem se ajoelha diante de mulher se rebaixa. Isso eu não faço.

— Que pena — disse Mary, com adorável tristeza.

Rumaram de volta a Londres. George ia sério e calado. O rosto de Mary estava oculto pela aba do chapéu. Ao cru­zarem por Hyde Park Corner, ela perguntou baixinho:

— Você não se ajoelharia diante de mim?

— Não — respondeu George, inabalável.

Sentia-se o próprio super-homem. Ela o admirava pela firmeza de atitude. Infelizmente, porém, George desconfia­va de que ela também tivesse tendências de mula. De re­pente parou o carro.

— Com licença — disse.

Saltou do carro, foi rapidamente até uma carrocinha de frutas que tinham passado e voltou tão depressa que o guar­da, que já se aproximava para reclamar contra o estaciona­mento, não teve nem tempo de chegar perto.

George saiu dirigindo e atirou de leve uma maçã no colo de Mary.

— Coma mais frutas — disse. — Isso também é sim­bólico.

— Simbólico?

— É. No começo foi Eva quem deu a maçã a Adão. Hoje em dia, é Adão que dá pra Eva.   Entendeu?

— Entendi — respondeu Mary, meio em dúvida.

Pra onde você quer ir? — perguntou George, todo formal.

— Pra casa, por favor.

Ele tomou o rumo de Grosvenor Square. Estava com a fisionomia absolutamente impassível. Saltou do carro e deu a volta para ajudá-la a descer. Ela fez um último apelo.

— George, querido... você não se ajoelharia? Nem para me agradar?

— Nunca — disse George.

Foi então que aconteceu. Ele escorregou, tentou recupe­rar o equilíbrio e falhou. Ficou de joelhos na lama, diante dela. Mary deu um grito de alegria e bateu palmas.

— George, querido! Agora eu caso com você. Pode ir correndo ao Lambeth Palace para combinar tudo com o Ar­cebispo de Canterbury.

— Foi sem querer — protestou George, furioso. — Foi essa po... foi essa casca de banana — disse, contendo a tempo o palavrão.

— Não interessa — exclamou Mary. — O que vale é que aconteceu. Quando nós brigarmos e você me lançar em rosto que fui eu que pedi pra você casar comigo, eu posso responder que você teve que se ajoelhar diante de mim antes que aceitasse. E tudo por causa dessa porcaria de casca de banana! Era porcaria de casca de banana que você ia dizer, não era?

— Mais ou menos — respondeu George.

 

Às cinco e meia daquela tarde, Mr. Leadbetter foi in­formado de que o seu sobrinho estava na sala de espera e desejava falar-lhe.

— Veio me pedir desculpas — pensou Mr.  Leadbetter. — Tenho que admitir que fui um pouco duro com o rapaz, mas foi só para o bem dele.

E deu ordem para que o fizessem entrar.

George chegou todo eufórico.

— Preciso ter uma palavrinha com o senhor, titio — disse. — Hoje de manhã o senhor cometeu uma grande in­justiça comigo. Eu gostaria de saber se, na minha idade, o senhor, depois de haver sido posto no olho da rua pelos próprios parentes, seria capaz de, entre às onze e quinze e às cinco e meia, conseguir uma renda de vinte mil libras por ano. Porque foi isso o que eu fiz!

— Você está doido, rapaz.

— Doido não, rico! Vou me casar com uma grã-fina, moça, rica e bonita! Que, além do mais, vai dar o fora num duque só por minha causa.

— Você, casando por interesse? Nunca o julguei ca­paz disso.

— Com toda a razão. Eu nunca me atreveria a pedi-la em casamento, se ela não tivesse...  pro cúmulo da sorte... feito antes o pedido. Depois quis dizer que não, mas eu a obriguei a mudar de idéia. E sabe, titio, como foi que consegui tudo isso? Com dois pences muito bem gastos e o bom senso de saber aproveitar uma mina de ouro.

— Por que os dois pences? — perguntou Mr. Leadbetter, interessado no aspecto financeiro da questão.

— Para comprar uma banana... numa corrocinha de rua. Nem todos se lembrariam daquela banana. Onde se tira licença para casar? É no Doctor’s Commons ou no Lam­beth Palace?

 

O MISTÉRIO DE LORD LISTERDALE

Mrs. St. Vincent estava fazendo as contas. De vez em quando suspirava e passava a mão pela testa dolorida. Nunca tinha gostado de aritmética. Mas por desgraça, de uns tem­pos para cá sua vida parecia se resumir inteiramente num único tipo de operação: a soma incessante de pequenos itens indispensáveis de despesa que perfaziam um total que ja­mais deixava de surpreendê-la e alarmá-la.

Não era possível que fosse tanto! Refez todos os cál­culos. Havia cometido um erro insignificante na coluna dos pences, mas quanto ao resto estava tudo certo.

Mrs. St. Vincent suspirou de novo. A essa altura a dor de cabeça já era quase insuportável. Levantou os olhos quando a porta se abriu e a filha, Barbara, entrou na sala. Uma garota muito bonita, Barbara St. Vincent tinha herdado da mãe os traços delicados e o formato magnífico da cabeça, mas os olhos eram escuros em vez de azuis e a boca também era diferente, uma boca amuada e vermelha, não destituída de atrativos.

— Ah, mamãe! — exclamou. — Ainda às voltas com essas contas chatíssimas? Jogue tudo no fogo.

— Temos que saber em que pé estamos — disse Mrs. St. Vincent, meio insegura.

A garota encolheu os ombros.

— Na mesma, ora — retrucou friamente. — Na maior penúria.   Sem um tostão, como de costume.

Mrs. St. Vincent suspirou.

— Eu gostaria... — começou, mas logo parou.

— Preciso encontrar alguma coisa pra fazer — disse Bar­bara, com voz resoluta. — E encontrar logo. Afinal, ti­rei aquele curso de taquigrafia e datilografia. Como quase um milhão de outras moças, por sinal! “Tem experiência?” “Não, mas...” “Ah! Obrigado, passe bem. Nós lhe avisa­remos.” Coisa que nunca fazem! Preciso encontrar outro tipo de emprego qualquer...  seja lá qual for.

— Por enquanto não, querida — suplicou a mãe. — Espere mais um pouco.

Barbara foi até a janela e ficou olhando para fora, dis­traída, sem enxergar a fileira de casas encardidas do lado oposto.

— Às vezes — disse, hesitante, — me arrependo de ter ido com a prima Amy pro Egito no inverno passado. Sim, eu sei que me diverti... e que deve ter sido o único diverti­mento que já tive ou terei em toda a minha vida. Aproveitei muito... aproveitei ao máximo. Mas me deixou abaladíssima. Quero dizer... voltar pra isto.

E fez um gesto largo que abarcava toda a sala. Mrs. St. Vincent acompanhou-o com os olhos e estremeceu. A sala era típica das peças mobiliadas de aluguel barato. Uma aspidistra1 empoeirada, móveis de mau gosto, papel de parede espalhafatoso, com partes desbotadas. Certos indícios mos­travam que a personalidade dos inquilinos tinha lutado com a da proprietária: um ou dois objetos de porcelana de boa qualidade, mas tão rachados e colados que o seu valor ven­dável era nulo, um bordado cobrindo o encosto do sofá, e um retrato pintado a aquarela de uma moça vestida à moda de vinte anos atrás, que ainda dava para ver que se tratava de Mrs. St. Vincent.

— Não teria importância — continuou Barbara, — se a gente nunca tivesse morado noutro lugar. Mas quando me lembro de Ansteys...

Interrompeu a frase, para não se entregar a reminis­cências sobre aquela casa amada com tanto carinho, que du­rante séculos pertencera à família St. Vincent e agora se achava em mãos estranhas.

1 Planta de origem asiática, que dá uma flor lilás, muito usada como ornamento caseiro na Inglaterra.

— Se ao menos papai... não houvesse especulado... e feito empréstimos...

— Minha cara — atalhou Mrs. St. Vincent. — Seu pai nunca foi, em qualquer sentido do termo, um negociante.

Disse isso de modo categórico, sem se lamentar. Bar­bara se aproximou e deu-lhe um beijo meio vago, enquanto murmurava:

— Pobre mãezinha. Prometo que não vou me queixar mais.

Mrs. St. Vincent pegou a caneta de novo e curvou-se so­bre a escrivaninha. Barbara voltou à janela. Não demorou muito, disse:

— Mamãe. Hoje de manhã, recebi uma carta do... do Jim Masterton. Ele quer vir me visitar.

Mrs. St. Vincent largou a caneta e ergueu vivamente os olhos.

— Aqui? — exclamou.

— Quem sabe a senhora queria que fôssemos convidá-lo para jantar no Ritz? — ironizou Barbara.

A mãe fez uma cara de desagrado. Olhou de novo em torno com profunda aversão.

— Sim, tem razão — concordou Barbara. — É um lu­gar execrável.   Decadência aristocrática!   Quem ouve é capaz de logo imaginar uma casinha branca no campo, toda enfei­tada de chitão velho de boa padronagem, vasos com rosas, serviço de chá de certa qualidade, que a gente mesma pode lavar. Nos romances é assim. Na vida real, com um filho começando a trabalhar no cargo mais insignificante de um escritório, significa Londres. Senhorias desgrenhadas, crian­ças sujas pelas escadas, peixes meio duvidosos no café da manhã... e por aí a fora.

— Se ao menos... — principiou Mrs.  St.  Vincent.  — Olhe, para falar a verdade, já está me dando medo de que não possamos sequer conservar esta sala por muito mais tempo.

— Que horror! Então ficaremos com uma peça úni­ca... para a senhora e pra mim — exclamou Barbara. — E um armário servindo de biombo para o Rupert. E quan­do o Jim vier me visitar, terei de recebê-lo naquela sala hor­renda, lá embaixo, cheia de solteironas bisbilhoteiras fazen­do tricô pelos cantos, olhando para a gente e tossindo com aquele tipo pavoroso de acessos de tosse que elas têm!

Houve uma pausa.

— Barbara — falou por fim Mrs.  St. Vincent. — Por que você não... quero dizer...  você não gostaria de...?

Parou, avermelhando um pouco.

— Não precisa ser delicada, mamãe — disse Barbara. — Hoje em dia ninguém mais é. Por que não caso com o Jim? Era isso que a senhora ia me perguntar, não é? Olhe, eu casaria no mesmo instante que ele me pedisse. Mas estou com muito medo de que isso não vá acontecer.

— Ah, Barbara, meu bem!

— Ora, uma coisa é ele me ver por lá, com a prima Amy, freqüentando (como se diz nos romances água com açúcar) os salões da melhor sociedade, onde ele se interessou mesmo por mim, e outra é ele vir cá e me encontrar nisto aqui! Depois ele é uma criatura engraçada, sabe? Todo cheio de manias e idéias antiquadas. Eu... eu até gosto que ele seja assim. Me faz lembrar Ansteys e o lugarejo... tudo com cem anos de atraso, mas tão... tão... ah!  sei lá... tão perfumado.   Como alfazema!

Riu, meio que envergonhada do próprio entusiasmo. Mrs. St. Vincent resolveu falar com sinceridade, sem rodeios.

— Eu gostaria de que você casasse com o Jim Masterton — disse. — Ele pertence ao nosso meio.   Também tem muito dinheiro, mas isso pra mim não faz grande diferença.

— Pois pra mim faz — retrucou Barbara. — Já ando farta de ser pobre.

— Mas, Barbara, não vá me dizer que é só por....

— Só por causa disso? Não.   Mas eu acho que faz, mes­mo.  Eu...  ah, mamãe! será que a senhora não vê que faz?

Mrs.. St. Vincent teve uma expressão de profunda tris­teza.

— Quem dera que ele pudesse encontrar você num am­biente mais adequado, minha filha — suspirou, melancólica.

— Paciência — retrucou Barbara. — Que adianta se preocupar? É melhor a gente se esforçar para encarar tudo com otimismo. Desculpe o ataque de rabugice. Coragem, meu anjo.

Curvou-se para a mãe, beijou-lhe a testa de leve e saiu. Mrs. St. Vincent, desistindo por completo dos cálculos finan­ceiros, sentou-se no incômodo sofá. Seus pensamentos gira­vam em círculos, feito esquilos numa jaula.

— Podem dizer o que quiserem, mas as aparências real­mente contribuem para um homem perder o interesse. Se ain­da fosse depois... quando estivessem noivos, vá lá. Então ele já saberia como ela é meiga e querida. Mas a juventude tem uma tal facilidade de se adaptar ao ambiente em que vive... O Rupert, por exemplo, não é mais o mesmo. Não que eu queira que meus filhos sejam esnobes. De jeito ne­nhum. Mas morreria de desgosto se o Rupert inventasse de casar com aquela moça horrenda da tabacaria. Admito que ela possa ser, inclusive, muito simpática. Mas não pertence ao nosso meio. Ah, como tudo é difícil. Coitada da Babs. Se ao menos eu pudesse fazer alguma coisa... seja lá o que fosse. Mas com que dinheiro? Vendemos tudo para ajudar o Rupert. Na verdade não vamos nem poder manter mais isto aqui.

Para se distrair, Mrs. St. Vincent pegou o Morning Post e começou a dar uma olhada nos anúncios da primeira pá­gina. A maioria já conhecia de cor. Pessoas à cata de dinheiro, pessoas que dispunham de capital e estavam ansiosas para transformá-lo em notas promissórias, pessoas que queriam comprar dentes (sabe lá por quê), ou que queriam vender peles e vestidos e tinham idéias muito otimistas a respeito do preço.

De repente um anúncio chamou-lhe a atenção. Leu e releu as palavras impressas: “Só para pessoas de fino trato — Pequena casa em Westminster, muito bem mobiliada, ofe­rece-se a quem se prontificar a cuidá-la como merece. Alu­guel irrisório. Tratar diretamente com o proprietário.”

Um anúncio perfeitamente comum. Já tinha encontrado vários idênticos... bem, mais ou menos idênticos. A novi­dade era o aluguel: irrisório

Mas como estava irrequieta e ansiosa para se ver livre de seus pensamentos, pôs logo o chapéu e pegou um ônibus que a deixasse mais perto do endereço mencionado no anúncio.

Resultou que era de uma imobiliária, que nada tinha de nova nem de movimentada — um lugar meio caindo aos pedaços, antiquado. Mostrou o anúncio com certa timidez e pediu maiores detalhes.

O velho de cabelos brancos que a estava atendendo coçou o queixo, pensativo.

— Perfeitamente. Sim, perfeitamente, minha senhora. O endereço dessa casa é Cheviot Place, n.° 7. Quer uma autorização para ir vê-la?

— Primeiro, eu gostaria de saber quanto é o aluguel — disse Mrs. St. Vincent.

— Ah! O aluguel. O montante exato ainda não foi esti­pulado, mas posso lhe garantir que é absolutamente irrisório.

— Sim, mas a noção de irrisório pode ser muito elástica — argumentou Mrs. St. Vincent.

O velho se permitiu uma risadinha.

— Tem razão, isso é um truque velho... um truque velho. Mas lhe dou minha palavra de que desta vez é dife­rente. Dois ou três guinéus por semana, talvez, no máximo.

Mrs. St. Vincent resolveu pedir a autorização. Não, na­turalmente, que houvesse qualquer possibilidade de que viesse a alugar a casa. Mas tinha curiosidade de vê-la. Afinal de contas, devia apresentar alguma desvantagem muito grande para ser oferecida a tal preço.

Vibrou, porém, ao olhar a fachada do n.° 7 de Cheviot Place. A casa era uma jóia. Estilo Rainha Ana, e em per­feito estado de conservação! Um mordomo atendeu à porta. Tinha cabelo grisalho, um pouco de suíças e a calma pausada de um arcebispo. De um arcebispo muito simpático, na opi­nião de Mrs. St. Vincent.

Recebeu o papel da autorização com ar benévolo.

— Pois não, minha senhora, tenha a bondade de entrar. A casa está pronta para ser ocupada.

Foi na frente, abrindo portas, indicando as dependências.

— A sala de visitas, o estúdio branco, um banheiro so­cial neste canto, minha senhora

Era perfeita — um sonho. Móveis todos de época, cada peça com sinais de uso, mas envernizados com o maior cari­nho. Os tapetes do soalho eram de cores bonitas e discretas, antigas. Em todos os quartos havia vasos com flores recém-colhidas. Os fundos da casa davam para o Green Park. O lugar parecia impregnado de um perfume do passado.

Os olhos de Mrs. St. Vincent se encheram de lágrimas, por mais que lutasse para contê-las. Ansteys também tinha sido assim — Ansteys...

Ficou imaginando se o mordomo havia notado a sua emoção. Se havia, era bem educado demais para demons­trar. Ela gostava desses velhos criados; a gente se sentia segu­ro com eles, à vontade. Como se fossem amigos.

— Que casa mais linda — murmurou. — Lindíssima. Que bom que vim vê-la.

— É só para a senhora?

— Não, também tenho um filho e uma filha. Mas re­ceio que...

Não terminou a frase. A idéia de perder aquela casa lhe era insuportável — inconcebível.

Sentiu instintivamente que o mordomo tinha compreen­dido. Não olhou para ela, ao declarar de um modo desin­teressado, impessoal:

— Ao que me consta, minha senhora, o proprietário exige, acima de tudo, inquilinos adequados. O aluguel para ele não tem importância. Ele só quer que a casa seja ocupa­da por alguém que realmente goste e tenha carinho por ela.

— Eu teria — disse Mrs. St. Vincent em voz baixa.

Virou-se para ir embora.

— Obrigada por ter-me mostrado tudo — agradeceu cortesmente.

— Não tem de quê, minha senhora.

Ficou parado à porta, todo correto e empertigado, en­quanto ela se afastava pela rua afora, pensando consigo mesma:

— Ele notou. Sentiu pena de mim. Também é do meu tempo. Bem que ele gostaria de que eu a alugasse... em vez de um parlamentar trabalhista ou um fabricante de botões! A nossa classe pode estar morrendo, mas perma­nece unida.

Terminou resolvendo não voltar à imobiliária. Para quê? O aluguel estava ao seu alcance — mas como pagar a cria­dagem? Uma casa daquelas precisaria de empregados.

Na manhã seguinte encontrou uma carta na bandeja. Era da imobiliária. Oferecia-lhe a locação do n.° 7 de Cheviot Place durante seis meses, por dois guinéus semanais, e continuava: “Supomos que a senhora tenha levado em consideração o fato de que os empregados permanecerão em seus cargos às custas do senhorio, não? É uma oferta real­mente excepcional.”

Se era. Ficou tão espantada que leu a carta em voz alta. Seguiu-se um tiroteio de perguntas e ela descreveu a visita do dia anterior.

— Mãezinha dissimulada! — exclamou Barbara. — É realmente tão bonita assim?

Rupert pigarreou e começou um interrogatório judicial.

— Aí tem coisa. Se quer saber a minha opinião, acho muito suspeito. Positivamente suspeito.

— Que nem este ovo aqui — disse Barbara, torcendo o nariz. — Ui! Pra que tanta desconfiança? Isso é bem de você, Rupert, com essa mania de ver mistérios por toda parte. São esses horrendos romances policiais que você vive lendo.

— O aluguel é uma piada — disse Rupert. — Quando se trabalha na City — acrescentou, com ares de importân­cia, — a gente fica sabendo de tudo quanto é espécie de esquisitices. Eu digo pra vocês que aí tem coisa.

— Bobagem — retrucou Barbara. — A casa pertence a um homem de muito dinheiro, que gosta dela e quer que seja habitada por gente decente enquanto ele estiver ausente. É mais ou menos isso. Provavelmente não precisa de dinheiro.

— Qual era mesmo o endereço? — perguntou Rupert à mãe.

— Cheviot Place, 7.

— Epa! — Recuou a cadeira da mesa. — Não estou dizendo? Que sensacional!    Foi lá que Lord Listerdale de­sapareceu.

— Tem certeza? — perguntou Mrs. St. Vincent, em dúvida.

— Absoluta. Ele possui uma porção de outras casas es­palhadas por Londres, mas é nessa que ele morava. Uma noite ele saiu, dizendo que ia ao clube, e nunca mais foi visto. Pensaram que tivesse se mandado pra África Oriental, ou coisa que o valha, mas ninguém soube explicar por quê. Podem estar certas, ele foi assassinado naquela casa. A se­nhora diz que as peças são todas revestidas de madeira?

— É — respondeu Mrs. St.Vincent, quase sem voz. — Mas...

Rupert não lhe deu tempo de continuar. Começou a falar com enorme entusiasmo.

— Estão vendo? Claro que deve haver algum nicho se­creto. O corpo ficou escondido lá, onde na certa permanece até hoje. Talvez fosse embalsamado antes.

— Rupert, meu bem, não diga asneiras — atalhou a mãe.

— Deixe de bobagem — disse Barbara.  — Você anda indo demais ao cinema com aquela loura oxigenada.

Rupert se levantou todo digno — com o máximo de dignidade que o corpo desengonçado e a fase crítica da ado­lescência permitem — e pronunciou um derradeiro ultimato:

— Pegue essa casa, mãe. Eu esclarecerei o mistério. A senhora vai ver.

E saiu às pressas, com medo de chegar tarde ao es­critório.

As duas mulheres se entreolharam.

— Será que dá, mamãe? — murmurou Barbara com a voz trêmula. — Ah! Se a gente pudesse.

— Os criados — lembrou Mrs. St. Vincent, patética, — têm que comer, não se esqueça. O que eu quero dizer é que, lógico que ninguém vai querer que não comam... mas há esse inconveniente. Quando a gente está sozinha... é muito fácil se privar de certas coisas.

Fez um olhar comovente para Barbara, que concordou com a cabeça.

— Precisamos refletir bem — disse a mãe.

Mas na realidade já tinha tomado a decisão. Havia visto o brilho nos olhos da filha. E pensou: “O Jim Masterton tem que encontrá-la num ambiente adequado. Esta oportu­nidade... é uma oportunidade única. Não posso perdê-la.”

Sentou-se à escrivaninha e escreveu à imobiliária acei­tando a oferta.

 

— Quentin, de onde vieram esses lírios? Sinceramente, eu não posso comprar flores caras.

— De King’s Cheviot, patroa. É um antigo costume da casa.

O mordomo se retirou. Mrs. St. Vincent deu um sus­piro de alívio. Que faria sem Quentin? Ele tornava tudo tão fácil. Pensou consigo mesma: “Isto está bom demais para durar. Daqui a pouco eu sei que vou acordar e des­cobrir que foi só um sonho. Sou tão feliz aqui... já se passaram dois meses, como um relâmpago.”

E, de fato, a vida tinha sido surpreendentemente agra­dável. Quentin, o mordomo, havia-se revelado como o auto­crata de Cheviot Place, n.° 7.

— Deixe tudo por minha conta — dissera, respeitosa­mente. — A senhora verá que é a melhor maneira.

Todas as semanas apresentava-lhe as contas da casa, com totais assombrosamente baixos. Havia apenas duas outras criadas: a cozinheira e a arrumadeira, ambas simpáticas e eficientes, mas o responsável pela perfeita organização era Quentin. De vez em quando apareciam na mesa pratos de carne de caça e de aves domésticas, causando preocupação a Mrs. St. Vincent. Quentin tranqüilizava-a. Vinham de King’s Cheviot, a residência de campo de Lord Listerdale, ou de seu sítio em Yorkshire.

— É um antigo costume da casa, patroa.

No íntimo, Mrs. St. Vincent duvidava de que Lord Lister­dale, se não estivesse ausente, concordaria com essas pala­vras. Sentia-se inclinada a desconfiar de que Quentin andasse usurpando a autoridade do amo. Era óbvio que se tinha tomado de amores por eles e que, na sua opinião, não existia nada que fosse bom demais para os três.

Com a curiosidade despertada pela informação de Rupert, Mrs. St. Vincent tentou fazer uma referência a Lord Lister­dale quando tornou a procurar os corretores imobiliários. O velho de cabelos brancos respondeu na mesma hora.

Sim, Lord Listerdale estava na África Oriental, já fazia um ano e meio.

— Nosso cliente é um homem bastante excêntrico — acrescentou, com largo sorriso. — Saiu de Londres de uma forma extremamente insólita, não sei se a senhora se lembra. Não avisou ninguém. Os jornais fizeram grande escarcéu em torno do assunto. Inclusive a Scotland Yard chegou a efetuar sindicâncias. Ainda bem que chegaram notícias do próprio Lord Listerdale, lá da África Oriental. Ele nomeou um primo, o Coronel Carfax, como seu procurador. É quem se encarrega atualmente de todos os negócios de Lord Lister­dale. Sim, receio que seja bastante excêntrico. Sempre gos­tou muito de desbravar terras desconhecidas... é quase certo que levará anos para regressar à Inglaterra, embora esteja ficando velho.

— Não é possível que seja tão velho assim — disse Mrs. St. Vincent, lembrando-se de repente de uma cara im­passível e barbuda, meio parecida com a de um navegante da era das descobertas marítimas, que tinha visto certa vez numa revista.

— Já está bem maduro — afirmou o velho de cabelos brancos. — Tem cinqüenta e três anos, segundo o Debrett.

Mrs. St. Vincent repetiu essa conversa para Rupert, no intuito de repreender o rapaz.

Rupert, porém, não se deixou impressionar.

— Pra mim isso está ficando cada vez mais suspeito — declarou. — Quem é esse tal de Coronel Carfax?   Vai ver que ele herda o título se acontecer alguma coisa com o Listerdale. A carta que veio da África Oriental provavelmente foi falsificada. Daqui a três anos, ou seja lá o tempo que for necessário, esse tal de Carfax pode alegar que o outro morreu, e se apossa do título. E nesse meio tempo assume o controle de todos os bens. Muito suspeito, a meu ver.

Condescendeu, magnânimo, em aprovar a casa. Nos mo­mentos de folga mostrava-se inclinado a bater de leve no forro de madeira e tirar medidas complicadas para a pos­sível localização de uma câmera secreta, mas aos poucos foi perdendo interesse pelo mistério de Lord Listerdale. Também ficou menos entusiasmado em relação à filha do dono da tabacaria. É, o ambiente influi.

Para Barbara, a casa trouxe grande satisfação. Jim Masterton tinha voltado à Inglaterra e fazia-lhe visitas freqüentes. Ele e Mrs. St. Vincent se deram maravilhosamente bem e um dia ele disse a Barbara uma coisa que a surpreendeu.

— Esta casa é o cenário perfeito para a sua mãe, sabe?

— Para mamãe!

— É. Foi feita sob medida pra ela!   Faz parte disto aqui de uma maneira extraordinária. Sabe, esta casa tem qual­quer coisa de estranho, de incrível, de sobrenatural.

— Não comece a bancar o Rupert — implorou Barbara. — Ele está convencido de que o malvado Coronel Carfax assassinou Lord Listerdale e escondeu o cadáver debaixo do soalho.

Masterton riu.

Eu admiro o espírito detetivesco do Rupert. Mas não foi isso que quis dizer. Há qualquer coisa no ar, no am­biente, que não dá para entender direito.

Já estavam há três meses em Cheviot Place quando Bar­bara surgiu diante da mãe com o rosto radiante.

— O Jim e eu... noivamos. Sim... ontem à noite. Ah, mamãe! Até parece que estou vivendo um conto de fadas.

— Ah, minha querida! Que bom... como tico contente.

Mãe e filha se abraçaram.

— Sabe que o Jim está quase tão apaixonado pela se­nhora quanto por mim? — disse Barbara por fim, com uma risada travessa.

Mrs. St. Vincent corou de um modo Simpaticíssimo.

— Está sim — insistiu a moça.  — A senhora pensou que esta casa seria um cenário perfeito para mim, e durante esse tempo todo ela de fato serviu de cenário para a senhora. O Rupert e eu não ficamos muito bem aqui, ao passo que a senhora sim.

— Não diga bobagens, querida.

— Bobagem coisa nenhuma. Isto aqui tem um ar de castelo medieval, onde a senhora é a princesa encantada e o Quentin é... é... ah!... o mago benigno.

Mrs. St. Vincent riu e concordou com a última com­paração.

Rupert recebeu a notícia do noivado da irmã na maior calma.

— Já desconfiava de que vinha qualquer coisa por aí — observou com ar de sabichão.

Estava jantando sozinho com a mãe. Barbara tinha saído com Jim.

Quentin colocou a garrafa de vinho do Porto à sua frente e retirou-se sem fazer barulho.

— Esse cara aí não me engana — disse Rupert, ace­nando com a cabeça para a porta fechada. — Há qualquer coisa esquisita com ele, sabe? Qualquer coisa...

— Suspeita? — interrompeu Mrs. St. Vincent, sorrindo de leve.

— Ué, mamãe, como é que a senhora adivinhou o que eu ia dizer? — perguntou Rupert, bem sério.

— Porque é uma palavra que você sempre usa, meu bem. Você acha tudo suspeito. No mínimo também des­confia de que foi Quentin quem liquidou com o Lord Lister­dale e escondeu o cadáver debaixo do soalho, não?

— Atrás do forro de madeira — corrigiu Rupert. — A senhora sempre confunde um pouco as coisas, mãe. Não, já me informei sobre isso.   Na ocasião o Quentin andava lá por King’s Cheviot.

Mrs. St. Vincent sorriu para ele, levantando-se da mesa e subindo para a sala do andar superior. Em certo sentido Rupert estava custando a ficar adulto.

No entanto surpreendeu-se pela primeira vez a imaginar por que motivo Lord Listerdale teria partido tão abrupta­mente da Inglaterra. Devia haver alguma explicação, algu­ma justificativa para uma decisão tão repentina assim. Ainda estava pensando nisso quando Quentin entrou com a bandeja do café.   Não resistiu ao impulso de perguntar.

— Você já trabalha há muito tempo para Lord Lister­dale, não é, Quentin?

— É, sim senhora.    Desde que eu tinha vinte e um anos.

Isso foi na época do falecido pai dele. Comecei como auxi­liar de camareiro.

— Você deve conhecê-lo muito bem. Que tipo de ho­mem ele é?

O mordomo virou um pouco a bandeja, para que ela pudesse servir-se mais comodamente de açúcar, enquanto res­pondia com o mesmo tom impassível:

— Lord Listerdale era um homem muito egoísta. Não tinha consideração com ninguém.

Retirou a bandeja de café e levou-a embora da sala. Mrs. St. Vincent ficou sentada com a xícara na mão e uma expressão intrigada no rosto. Qualquer coisa naquela res­posta, além da opinião externada, lhe soara estranha. Não demorou muito a compreender por quê.

Quentin tinha dito “era” em lugar de “é”. Mas então, ele deve pensar... deve julgar... Passou um carão em si mesma. Estava ficando igual ao Rupert! Viu-se, porém, tomada de uma inquietação bem definida. Mais tarde loca­lizou suas primeiras suspeitas naquele momento.

Com a felicidade e o futuro de Barbara garantidos, teve tempo para se entregar a seus raciocínios que, contra sua própria vontade, começaram a se concentrar em torno do mistério de Lord Listerdale. Qual seria a verdadeira história? Fosse qual fosse, Quentin sabia de alguma coisa a res­peito. Que palavras mais estranhas ele havia dito: “...um homem muito egoísta... não tinha consideração com nin­guém.” Que esconderiam? Tinha falado como um juiz falaria, com isenção, imparcialmente.

Estaria Quentin envolvido no desaparecimento de Lord Listerdale? Teria tomado parte ativa em alguma tragédia que porventura tivesse acontecido? Afinal de contas, por mais absurda que parecesse a hipótese de Rupert na ocasião, aquela única carta remetida da África Oriental com uma procuração deixava... bem, margem a dúvidas.

Mas por mais que se esforçasse, não podia acreditar que Quentin fosse capaz de qualquer maldade. Quentin, repetiu a si mesma várias vezes, era bom — ela usou a palavra com a mesma simplicidade que uma criança usaria. Quentin era bom. Mas sabia de alguma coisa!

Nunca voltou a falar no dono da casa com ele. O as­sunto estava, aparentemente, encerrado. Rupert e Barbara tinham mais em que pensar, e não houve novas discussões.

Foi em fins de agosto que suas vagas conjeturas se crista­lizaram em realidades. Rupert tinha ido passar quinze dias de férias em companhia de um amigo que possuía um moto-ciclo com reboque. Fazia uns dez dias que ele havia par­tido, quando Mrs. St. Vincent levou um susto ao vê-lo entrar correndo na sala onde estava sentada, escrevendo.

— Rupert! — exclamou.

— Eu sei, mamãe. A senhora só esperava me ver daqui a três dias. Mas aconteceu uma coisa. O Anderson... o meu amigo, sabe?... não tinha nenhum lugar especial para ir, por isso sugeri que fôssemos dar uma olhada em King’s Cheviot...

— King’s Cheviot? Mas por quê... ?

— Mãe, a senhora sabe perfeitamente que eu sempre senti que havia algo suspeito em certas coisas aqui.   Pois bem. Dei uma olhada por lá... a casa está alugada, sabe?... e não achei nada. Não que esperasse realmente encontrar qualquer coisa... apenas andei farejando pelos cantos, por assim dizer.

É, pensou ela, naquele momento Rupert se assemelhava muito a um cão. Farejando a esmo, em busca de algo vago e indefinido, levado pelo instinto, entretido e feliz.

— Foi só quando estávamos passando por um lugarejo a uns dez quilômetros de distância de lá que a coisa acon­teceu... que dei com ele, quero dizer.

— Ele, quem?

— O Quentin... entrando num pequeno chalé. Esse ne­gócio não está me cheirando bem, pensei cá comigo, e para­mos o carro para eu voltar. Bati na porta e ele mesmo veio atender.

— Mas eu não compreendo. O Quentin não arredou pé daqui...

— Já chego lá, mãe. Preste atenção e não me inter­rompa, viu? Era o Quentin e não era o Quentin, não sei se a senhora me entende.

Lógico que Mrs. St. Vincent não estava entendendo, por­tanto ele teve que ser mais claro.

— Era realmente o Quentin, mas não o nosso Quentin. Era o verdadeiro Quentin.

— Rupert!

— Escute só. A princípio eu nem queria acreditar, e perguntei: “É o Quentin, não é?” E o camarada respondeu: “Exatamente, moço, esse é o meu nome. Em que posso servi-lo?” Foi então que eu vi que não era o Quentin que conhecíamos, embora fosse absolutamente igual a ele, inclu­sive na voz. Fiz algumas perguntas, e tudo se esclareceu. O camarada não tinha a mínima idéia de que estivesse acon­tecendo qualquer coisa de anormal. Havia sido, efetivamente, mordomo de Lord Listerdale, mas já tinha se aposen­tado e recebido o tal chalé, mais ou menos na época em que se supunha que Lord Listerdale tivesse embarcado para a África. A senhora está vendo aonde isso nos leva. O ho­mem que trabalha aqui é um impostor... fazendo-se passar pelo Quentin, sabe lá com que finalidade. Eu sou da teoria de que naquela noite ele veio à cidade fingindo ser o mor­domo de King’s Cheviot, conseguiu falar com Lord Lister­dale, matou o coitado e escondeu o cadáver atrás do forro de madeira. A casa é muito velha, com certeza existe algum nicho secreto...

— Ah, não vamos recomeçar com essa história — interrompeu Mrs. St. Vincent, já desesperada. — Não agüento mais. Por que iria ele... é isso que eu quero saber... por quê? Se ele de fato fez uma coisa dessas... que não acredito de jeito nenhum que tenha feito, note-se... qual o motivo pra tudo isso?

— Tem razão — concordou Rupert. — O motivo é o que interessa. Acontece que fiz sindicâncias. Lord Lister­dale possuía uma quantidade de imóveis. Nestes últimos dois dias eu descobri que praticamente todas essas casas dele fo­ram alugadas durante os últimos dezoito meses a pessoas como nós, por um preço irrisório... sob a condição de que os criados continuassem no serviço. E em cada uma delas o próprio Quentin... isto é, o sujeito que se faz passar pelo Quentin... trabalhou algum tempo como mordomo. Isso me faz desconfiar de que existe alguma coisa ... jóias, ou pa­péis... escondida numa das casas de Lord Listerdale, e a quadrilha não sabe em qual. Suponho que se trate de uma quadrilha, mas é bem possível que esse tal Quentin aja so­zinho. Há outra...

Mrs. St. Vincent interrompeu-o com certo grau de deter­minação.

— Rupert! Pare de falar um instante. Já estou com a cabeça zonza. Seja como for, o que você diz é bobagem... essa história de quadrilhas e papéis escondidos.

— Há outra teoria — admitiu Rupert. — Esse tal Quen­tin pode ser alguém que Lord Listerdale prejudicou. O ver­dadeiro mordomo me contou uma história comprida a res­peito de um cara chamado Samuel Lowe... um ajudante de jardineiro, que tinha mais ou menos a mesma estatura e o mesmo corpo do próprio Quentin. Ele ficou ressentido com o Listerdale...

Mrs. St. Vincent teve um sobressalto.

“Não tinha consideração com ninguém.”‘ As palavras lhe vieram à lembrança com o mesmo tom desapaixonado, contido. Pareciam descabidas, mas o que não significariam?

Distraída, mal escutava o que Rupert dizia. Ele deu uma rápida explicação sobre algo que ela não havia prestado atenção e saiu apressadamente da sala.

Então ela caiu em si. Aonde Rupert tinha ido? Que ia fazer? Não havia entendido direito as últimas palavras dele. Talvez fosse avisar à polícia. Nesse caso...

Levantou-se abruptamente e tocou a campainha. Com a prontidão habitual, Quentin apareceu.

— A senhora chamou?

— Chamei. Faça o favor de entrar e feche a porta.

O mordomo obedeceu e Mrs. St. Vincent ficou um ins­tante calada enquanto o analisava atentamente.

Pensou: “Ele tem sido ótimo para mim... ninguém sabe quanto. Os meninos não compreenderiam. Essa história des­vairada do Rupert talvez seja pura tolice... Por outro lado, talvez... sim, talvez... tenha algum fundamento. Como julgar? Não dá pra saber. O que está certo ou errado, quero dizer... E aposto a minha vida... sim, juro que aposto!... como ele é um homem de bem.”

Corada, com a voz trêmula, começou a falar.

— Quentin, o Mr. Rupert acaba de voltar. Ele andou lá por King’s Cheviot... por um lugarejo vizinho...

Parou, notando o rápido sobressalto que o criado não conseguiu disfarçar.

— E viu... alguém — prosseguiu, num tom contido.

Pensou consigo mesma: “Pronto... agora ele já sabe. Seja como for, está prevenido.”

Depois daquele rápido sobressalto inicial, Quentin reto­mou seu porte impassível, fixando porém o olhar no rosto dela, atento e penetrante, com uma expressão que Mrs. St. Vincent jamais tinha visto. Era, pela primeira vez, o olhar de um homem e não de um criado.

Ele hesitou um pouco, depois perguntou numa voz que também estava sutilmente mudada:

— Por que a senhora está me contando isso, Mrs. St. Vincent?

Antes que pudesse responder, a porta se abriu e Rupert entrou intempestivamente na sala. Trazia junto um homem já maduro, todo digno, com pequenas suíças e um ar de arcebispo benévolo.   Quentin!

— Cá está ele — disse Rupert. — O verdadeiro Quen­tin.   Mandei que esperasse lá fora no táxi.   Agora, Quentin, olhe para este homem e me. diga...  é o Samuel Lowe?

Para Rupert foi um momento de triunfo. Mas durou pouco. Quase de imediato, percebeu que havia alguma coisa errada. Pois ao passo que o verdadeiro Quentin parecia envergonhado e muito mal à vontade, o falso Quentin sorria abertamente, sem dissimular o prazer que sentia naquela situação.

Deu uma palmada nas costas do sósia contrafeito.

— Não faz mal, Quentin. Era inevitável que um dia a verdade viesse à tona. Pode dizer a eles quem eu sou.

O digno desconhecido se empertigou todo.

— Moço, este senhor — anunciou num tom de recri­minação — é o meu patrão, Lord Listerdale.

 

O minuto subseqüente testemunhou várias coisas. Pri­meiro, a prostração absoluta do presunçoso Rupert. Antes que pudesse compreender o que estava acontecendo, ainda boquiaberto com o impacto da descoberta, viu-se sendo empurrado delicadamente na direção da porta por uma voz amiga que lhe era, e ao mesmo tempo não era, familiar.

— Não tem a menor importância, meu rapaz. Ninguém vai sair prejudicado por causa disso. Mas quero trocar uma palavra com sua mãe. Você efetuou um ótimo trabalho, me desmascarando desse jeito.

Ficou do lado de fora, no patamar, olhando para a porta fechada. O verdadeiro Quentin estava a seu lado e pronta­mente se pôs a explicar tudo o que havia acontecido. Dentro da sala, Lord Listerdale se confrontava com Mrs. St. Vincent.

— Deixe-me explicar... se eu puder! Durante a vida inteira fui um monstro de egoísmo... um dia acordei para esse fato. Achei que devia procurar ser um pouco altruísta, para variar, e sendo um louco de marca maior, comecei a fazer as coisas mais fantásticas. Fiz tudo quanto foi espécie de donativos, mas senti necessidade de fazer alguma coisa... bem, alguma coisa pessoal. Sempre tive pena da classe que não pode mendigar, que tem que sofrer calada... gente dis­tinta que cai na miséria. Possuo uma série de propriedades. Concebi a idéia de alugar essas casas a pessoas que... ora, precisassem delas e soubessem valorizá-las. Casais jovens com a vida pela frente, viúvas com filhos e filhas à procura de um lugar ao sol. Quentin tem sido mais que um mor­domo para mim: um amigo. Com o consentimento e a ajuda dele, tomei de empréstimo a sua personalidade. Sempre tive talento para representar. A idéia me veio uma noite a ca­minho do clube. Fui logo discuti-la com o Quentin. Quando descobri que estavam fazendo um escarcéu em torno do meu desaparecimento, providenciei para que remetessem uma carta minha da África Oriental. Nela eu dava todas as instruções ao meu primo Maurice Carfax. E... bem, em resumo foi isso o que aconteceu.

Parou de falar meio sem jeito, lançando um olhar de apelo a Mrs. St. Vincent. Ela ficou imóvel, muito erecta, e olhou-o bem nos olhos.

— Foi uma idéia generosa — disse. — Totalmente fora do comum, e da qual pode se envaidecer. Sinto-me... muito grata. Mas... o senhor, naturalmente, há de compreender que nós não podemos continuar aqui, não é?

— Já contava com essa — retrucou ele. — O seu or­gulho não lhe permite aceitar o que provavelmente chamaria de “caridade”.

— E por acaso não é? — perguntou com firmeza.

— Não — respondeu ele. — Porque eu espero uma coisa em troca.

— O quê?

— Tudo.

A voz de Lord Listerdale ressoou com o tom de quem está acostumado a dominar.

— Quando eu tinha vinte e três anos — continuou, — casei com a mulher que eu amava. Um ano depois ela mor­reu. A partir de então tenho me sentido muito só. Queria tanto encontrar alguém... a criatura dos meus sonhos...

— E acredita que seja eu? — perguntou Mrs. St. Vin­cent, em voz baixa. — Já estou tão velha...  tão. murcha...

Ele riu.

— Velha?   Você é mais moça que qualquer um de seus filhos. Eu sim, é que poderia dizer isso.

Mas a risada dela, por sua vez, ressoou com o som deli­cado e cristalino de quem acha uma graça imensa.

— Você? Você ainda é um rapaz. Um rapaz que gosta de se fantasiar!

E estendeu as mãos, que ele tomou entre as suas.

 

A MOÇA DO TREM

— Acabou-se o que era doce! — exclamou George Rowland com pesar, contemplando a majestosa fachada en­cardida do prédio de onde acabava de sair.

Podia-se dizer que simbolizava muito bem o poder do Dinheiro — e o Dinheiro, na figura de William Rowland, tio do mencionado George, tinha manifestado sua opinião com a maior franqueza. No curto prazo de dez minutos. George, a menina dos olhos do tio, herdeiro de sua fortuna e com uma promissora carreira comercial pela frente, havia ingressado subitamente na vasta legião de desempregados.

— E com estas roupas não posso nem pedir esmola — refletiu, acabrunhado. — E para andar vendendo poemas, de porta em porta, a troco de ninharias: (“Dê o que a se­nhora quiser, madame”), simplesmente me falta jeito.

Verdade que George simbolizava um autêntico triunfo da arte da alfaiataria. Estava maravilhosamente bem vesti­do. Salomão, com seus lírios do campo, perderia tempo com ele. Mas nem só de roupa vive o homem — a menos que possua considerável experiência na referida arte — e nin­guém melhor que George Rowland para saber disso.

Tudo por causa daquela droga de festa de ontem à noi­te — pensou com tristeza.

A “droga de festa de ontem à noite” fora um baile no Covent Garden. George tinha voltado numa hora bastante tardia — ou melhor, matinal — e, para ser franco, não se­ria capaz de jurar que se lembrava sequer de ter voltado. Rogers, o mordomo do tio, era muito prestativo e poderia, sem dúvida, prestar maiores esclarecimentos sobre o assunto. Uma dor de cabeça atroz, uma xícara de chá bem forte e uma chegada ao escritório quando faltavam cinco minutos para o meio-dia — o expediente começava às nove e trin­ta... — precipitaram a catástrofe. O tio, que há vinte e quatro anos vinha tolerando e pagando tudo, como cumpre a um parente discreto, de repente mudou de tática, revelan­do-se sob uma luz totalmente nova. O descabimento das respostas de George (a cabeça do rapaz abria e fechava sem parar, feito um instrumento de tortura medieval) deixou-o ainda mais irritado. William Rowland não costumava ter papas na língua. Com meia dúzia de palavras bem escolhi­das botou o sobrinho no olho da rua e voltou a se concen­trar no exame que andava fazendo de uns campos de pe­tróleo no Peru.

George Rowland sacudiu dos pés a poeira do escritório do tio e saiu caminhando pela City. Tinha espírito prático.Um bom almoço, a seu ver, seria indispensável à análise da situação. Foi o que fez. Depois tomou o caminho do solar da família. Rogers abriu-lhe a porta. Não manifestou a me­nor surpresa na fisionomia traquejada ao ver George nessa hora inusitada.

— Boa tarde, Rogers. Quer fazer o favor de me arru­mar as malas? Vou-me embora.

— Pois não, patrão. É para uma viagem rápida?

— Não, Rogers, é para sempre. Parto agora de tarde para as colônias.

— De verdade, patrão?

— Sim. Quer dizer, se houver um navio que saia hoje. Você entende alguma coisa de navios, Rogers?

— Para que colônia o senhor vai?

— Sei lá. Não tenho preferências. Qualquer uma ser­ve.

Para a Austrália, digamos. Que acha da idéia, Rogers?

Rogers tossiu discretamente.

— Bem, patrão, não resta dúvida de que já me disseram que lá há sempre lugar para qualquer pessoa que queira realmente trabalhar.

Mr. Rowland encarou-o com interesse e admiração.

— Excelente resposta, Rogers. Foi exatamente o que pensei. Portanto, não irei para a Austrália... pelo menos por ora. Vá buscar o guia ferroviário, sim? Vamos esco­lher um lugar que não fique tão fora de mão.

Rogers trouxe o volume pedido. George abriu-o ao aca­so, folheando rapidamente as páginas.

— Perth... fica muito longe... Putney Bridge... é perto demais. Ramegate? Não me palpita. Reigate tam­bém não me interessa.   Mas que coisa incrível! Não é que existe, de fato, um lugar chamado Rowland’s Castle? Você já tinha ouvido falar nisso, Rogers?

— Tenho impressão de que para ir lá é preciso tomar o trem na estação de Waterloo.

— Você é um fenômeno, Rogers. Não há nada que não saiba. Ora, já se viu, Rowland’s Castle!    Como será que é, hem?

— Acho que não deve ser grande coisa, patrão.

— Tanto melhor. Assim haverá menos competição. Es­ses lugarejos tranqüilos do interior conservam ainda muito do velho espírito feudal. O último Rowland autêntico na certa será recebido com entusiasmo instantâneo. Não me admiro se for eleito prefeito daqui a uma semana.

Fechou o guia ferroviário com estrondo.

— A sorte está lançada. Me arrume uma mala pequena, viu, Rogers? Transmita também meus cumprimentos à cozi­nheira e pergunte se ela não me emprestaria o gato por uns tempos. Feito o Dick Whittington, sabe? Quando a gente resolve tornar-se prefeito, é indispensável ter um gato.

— Sinto muito, patrão, mas o gato não se encontra dis­ponível no momento.

— Como assim?

— Teve oito filhotes hoje de manhã.

— Não diga. Pensei que o nome dele fosse Peter.

— E de fato é, patrão. Todo mundo se admirou.

— Um caso de batismo desatento e sexo enganador, hem? Muito bem, terei de ir sem gato mesmo. Não demore para arrumar a mala, sim?

— Perfeitamente.

Rogers se retirou e reapareceu dez minutos depois.

— Quer que lhe chame um táxi, patrão?

— Chame sim, por favor.

Rogers hesitou, e por fim adiantou-se um pouco para o meio da sala.

— Desculpe a liberdade, mas eu, se fosse o senhor, não levaria a sério nada que Mr. Rowland possa ter dito hoje de manhã. Ontem à noite ele foi a um desses jantares de ceri­mônia e...

— Não diga mais nada — atalhou George. — Já entendi.

— E sendo propenso à gota...

— Eu sei, eu sei.   Deve ter sido uma noite extenuante pra você, hem, Rogers, tendo que aturar nós dois.   Mas já decidi me tornar famoso em Rowland’s Castle... o berço da minha dinastia... não ficaria nada mal num discurso, não é mesmo? Um telegrama para mim lá, ou um anún­cio discreto nos jornais matutinos, sempre me lembrarão de que um fricassée de vitela se acha em preparo.   E agora... rumo a Waterloo!... como disse Wellington na véspera da histórica batalha.

A estação de Waterloo naquela tarde não estava num de seus momentos mais felizes. Mr. Rowland descobriu even­tualmente o trem que o levaria ao seu destino, mas era um trem sem graça, sem nada que o distinguisse dos demais — um trem que ninguém parecia ansioso em tomar. Mr. Row­land dispunha de um vagão inteiro de primeira classe só para ele, bem perto da locomotiva. Uma neblina começava a pairar vagamente sobre a cidade, ora subindo, ora descendo. A plataforma estava deserta, e apenas o resfolegar asmático da máquina rompia o silêncio.

De repente tudo começou a acontecer com uma rapidez estonteante.

Primeiro foi a moça. Ela abriu a porta com violência e entrou de um salto, despertando Mr. Rowland de algo que se aproximava perigosamente de um cochilo, ao mesmo tempo que exclamava:

— Ah!  Me esconda... Por favor, me esconda!

George era essencialmente um homem de ação — que não se detinha a pedir explicações, que preferia morrer a perder tempo com hesitações, e assim por diante. Só existe um único lugar que pode servir de esconderijo num vagão ferroviário — a parte de baixo do assento. Em sete segun­dos a moça estava alojada ali, e a maleta de George, deixada negligentemente em pé, encobria-lhe o refúgio. Foi por pouco. Um rosto indignado surgiu na janela do vagão.

— Minha sobrinha! Você está com ela aí! Quero a mi­nha sobrinha.

George, meio ofegante, estava encostado no canto, imer­so na coluna esportiva do jornal da tarde, a edição da uma e meia. Baixou-o com ar de quem encontra dificuldade para voltar à realidade.

— Como foi que o senhor disse? — perguntou, cortês.

— Minha sobrinha... que foi que você fez com ela?

Baseando-se na política de que o ataque é sempre me­lhor que a defesa, George entrou logo em ação.

— Que diabo está querendo insinuar? — vociferou, numa imitação bastante boa das maneiras de seu tio.

O outro vacilou um pouco, intimidado por aquela súbita veemência. Era gordo e ainda bufava como se tivesse cor­rido uma certa distância. Usava cabelo cortado à escovinha e bigode tipo kaiser. Possuía um sotaque decididamente gutural e a rigidez do porte indicava que se sentia mais à von­tade fardado do que à paisana. George tinha o inato pre­conceito inglês contra estrangeiros — e uma antipatia toda especial por estrangeiros de aspecto germânico.

— Que diabo está querendo insinuar? — repetiu, ir­ritado.

— Ela entrou aí — insistiu o outro. — Eu vi. Que fez com ela?

George largou o jornal e meteu a cabeça e os ombros para fora da janela.

— Ah, então é isso, é? — rugiu. — Chantagem. Mas desta vez tomou o bonde errado. Já li tudo a seu respeito no Daily Mail de hoje de manhã. Ei, guarda, venha cá!

Já atraído de longe pela discussão, o funcionário cha­mado acudiu às pressas.

— Olhe aqui, seu guarda — disse Mr.  Rowland, com aquele ar autoritário que as classes inferiores tanto adoram. — Este sujeito está me importunando. Se for necessário, darei parte de tentativa de chantagem. Ele quer dizer que escondi a sobrinha dele aqui dentro. Anda por aí uma verdadeira quadrilha de estrangeiros procurando aplicar esse golpe. É preciso acabar com isso.   Faça o favor de prendê-lo. E leve o meu cartão, caso precise de mim.

O olhar do guarda ia de um para o outro. Não demorou a tomar uma resolução. A experiência o ensinava a despre­zar estrangeiros e respeitar e admirar cavalheiros bem traja­dos que viajam em primeira classe.

Pousou a mão no ombro do importuno.

— Vamos — ordenou — dê o fora.

Nesse momento decisivo, o inglês do estrangeiro falhou e ele se pôs a proferir violentos impropérios na língua materna.

— Chega — atalhou o guarda. — E afaste-se daí, viu? O trem já vai sair.

E entre acenos de bandeira e apitos, o relutante trem arrancou com um solavanco.

George permaneceu no seu posto de observação até que a plataforma sumiu de vista. Aí então tirou a cabeça da janela, levantou a mala e colocou-a na prateleira.

— Não há mais perigo. Pode sair — disse, tranqüilizador.

A moça saiu se arrastando.

— Puxa! — exclamou, tomando fôlego. — Nem sei como lhe agradecer!

— Não precisa. Asseguro-lhe que foi um prazer — re­trucou George, displicente.

Sorriu para tranqüilizá-la. Ela o olhava, meio intrigada. Parecia, até certo ponto, decepcionada. Foi então que se enxergou no espelhinho da parede oposta e soltou uma excla­mação de horror.

É de se duvidar que os limpadores de vagões ferroviários varram diariamente a parte inferior dos bancos. Todas as aparências indicam o contrário, mas pode ser que cada par­tícula de pó e fuligem tenha mania de se alojar ali feito pássaros em ninho. Devido à chegada intempestiva da moça e o breve espaço de tempo antes que se agachasse para o esconderijo, George mal teve tempo de observar-lhe o aspecto, mas não há que negar que era uma jovem elegante e bem vestida que havia desaparecido debaixo do assento. Agora, além do chapeuzinho vermelho amassado e torto, estava com o rosto desfigurado por grandes manchas de sujeira.

— Ah! — resmungou.

Remexeu dentro da bolsa. George, com o tato de um autêntico cavalheiro, desviou o olhar para a janela, pondo-se a admirar as ruas de Londres ao sul do Tâmisa.

— Nem sei como lhe agradecer — repetiu a moça.

Interpretando essa frase como o sinal de que já podiam continuar a conversa, George se virou e fez outro protesto cortês, só que desta vez com muito mais ardor.

A moça era uma verdadeira maravilha! George teve de se confessar que nunca tinha visto uma mulher tão linda assim. Seu entusiasmo tornou-se indisfarçável.

— Achei simplesmente formidável de sua parte — declarou ela, com veemência.

— Não sei por quê.  A coisa mais fácil do mundo. Tive o maior prazer em lhe ser útil — murmurou George.

— Formidável — reiterou, enfática.

Não resta dúvida que é extremamente agradável ficar sentado diante da moça mais bonita que já se viu, encarando a gente nos olhos e dizendo que você é formidável. George estava gostando daquilo como qualquer outra pessoa também gostaria.

Foi então que se fez um silêncio meio embaraçoso. Pare­cia que ela se havia dado conta de que talvez fosse neces­sário fornecer maiores explicações. Corou um pouco.

— O mais constrangedor — disse, toda nervosa, — é que tenho impressão de que não dá para explicar.

E lançou-lhe um comovente olhar de incerteza.

— Não dá para explicar?

— Não

— Que beleza! — exclamou Mr. Rowland, entusiasmado.

— Como é que é?

— Eu disse: “Que beleza!” É que nem nesses livros que deixam a gente acordado a noite inteira.   No primeiro capí­tulo a heroína sempre diz: “Não dá para explicar.” Claro que no fim ela sempre termina explicando e nunca há o menor motivo válido para que não explicasse tudo logo de início... só que estragaria a história. Não imagina a minha alegria por estar metido num verdadeiro mistério... não sabia que existiam coisas assim.  Espero que seja algo rela­cionado com documentos secretos de suma importância, e com o expresso dos Bálcãs. Sou louco pelo expresso dos Bálcãs.

A moça arregalou os olhos para ele, desconfiada.

— Por que justamente o expresso dos Bálcãs? — per­guntou subitamente.

— Espero não ter sido indiscreto — apressou-se George a acrescentar. — Vai ver que seu tio já viajou nele.

— O meu tio... — Fez uma pausa, depois recomeçou: — O meu tio...

— Eu sei — disse George, compreensivo.  — Também tenho um. Ninguém tem culpa dos tios que tem. São os pequenos percalços do atavismo... é assim que eu encaro.

A moça de repente começou a rir. Quando voltou a falar, George notou-lhe um leve sotaque estrangeiro. A prin­cípio tinha pensado que fosse inglesa.

— Que pessoa mais simpática e original que o senhor é, Mr. ...

— Rowland. Meus amigos me chamam de George.

— Meu nome é Elizabeth...

Parou abruptamente.

— Eu gosto do nome de Elizabeth — disse George, para salvá-la da confusão momentânea. — Espero que ninguém a chame de Bessie ou qualquer coisa horrível assim...

Ela sacudiu a cabeça.

— Bem — continuou George, — agora que já nos conhe­cemos, é melhor pôr mãos à obra. Se você se levantar, Elizabeth, eu posso lhe tirar o pó das costas do seu casaco.

Ela se levantou, obediente, e George cumpriu sua palavra.

— Obrigada, Mr. Rowland.

— George. George para os amigos, não se esqueça. Você não pode entrar no meu confortável vagão vazio, rolar para baixo do banco e me levar a mentir para seu tio, para depois se recusar a ser minha amiga, não é?

— Obrigada, George.

— Já melhorou.

— Estou bem agora? — perguntou Elizabeth, tentando ver-se por cima do ombro esquerdo.

— Você... ah! você está... você está bem, sim — res­pondeu George, contendo-se, resoluto.

— Tudo aconteceu tão de repente, sabe? — explicou ela.

— Percebi logo...

— Ele nos viu no táxi, e depois na estação eu simples­mente entrei correndo aqui, sabendo que ele vinha no meu encalço. Por falar nisso, pra onde vai este trem?

— Pra Rowland’s Castle — disse George com firmeza.

A moça ficou perplexa.

— Rowland’s Castle?

— Não diretamente, lógico. Só depois de uma boa quantidade de paradas e demoras. Mas acredito piamente que chegarei lá antes da meia-noite. A antiga Sudoeste era uma linha em que se podia confiar... demorava, mas chegava... mas tenho certeza de que a Ferrovia Sul continua mantendo as velhas tradições.

— Não sei se quero ir pra Rowland’s Castle — disse Eli­zabeth, meio em dúvida.

— Você está me ofendendo. É um lugar ótimo.

— Já andou por lá?

— Não propriamente. Mas há uma porção de outros lugares a que você pode ir, se não gosta de Rowland’s Castle. Tem Woking, Weybridge e Wimbledon. É certo que o trem pára em qualquer um deles.

— Ah, é — disse ela. — Pois é, eu posso descer lá e talvez voltar de carro para Londres. Seria a melhor solução, a meu ver.

Enquanto falava, o trem começou a diminuir a marcha. Mr. Rowland olhou-a, implorante.

— Se puder fazer qualquer coisa...

— Absolutamente. O que você fez já foi demais.

Houve uma pausa, depois de repente ela exclamou:

— Eu... eu gostaria de poder explicar. Eu...

— Pelo amor de Deus, não faça isso! Estragaria tudo. Mas, escute aqui, não há mesmo nada que eu possa fazer? Levar os papéis secretos para Viena... ou qualquer coisa no gênero? Sempre existem papéis secretos. Me dê uma oportunidade, sim?

O trem tinha parado. Elizabeth saltou rapidamente para a plataforma.   Virou-se e falou com ele pela janela.

— Está falando sério? Você faria realmente alguma coisa por nós... por mim?

— Por você eu faria tudo, Elizabeth.

— Mesmo que não desse para explicar os motivos?

— Grande coisa, os motivos!

— Ainda que fosse... arriscado?

— Quanto mais arriscado, melhor.

Ela hesitou um pouco, depois pareceu ter tomado uma decisão.

— Debruce-se na janela. Olhe para a plataforma como se não estivesse vendo nada. — Mr. Rowland esforçou-se para atender essa recomendação bastante difícil. — Está ven­do aquele homem que vai pegar o trem... de cavanhaque es­curo... e capa leve? Siga-o observe o que ele faz e para onde vai.

— Só isso?  — perguntou Mr. Rowland. — O que é que eu...

Ela o interrompeu.

— Depois você receberá novas instruções.   Não o perca de vista...  e guarde isto aqui. — Entregou-lhe um pequeno embrulho lacrado. — Como se fosse a sua própria vida.  Con­tém a chave de tudo.

O trem partiu. Mr. Rowland ficou olhando pela janela, vendo a silhueta alta e elegante de Elizabeth abrindo caminho pela plataforma afora. Apertou na mão o pequeno em­brulho lacrado.

O resto da viagem transcorreu monótono e sem incidente. O trem era vagaroso. Parava em toda parte. Em cada esta­ção, George espichava a cabeça para fora da janela, cuidando para ver se a sua presa não desembarcava. De vez em quan­do descia e caminhava de um lado para outro na plataforma, certificando-se de que o sujeito continuava a bordo.

O destino final do trem era Portsmouth, e foi lá que o viajante de cavanhaque preto desembarcou, dirigindo-se a um hotelzinho de segunda categoria, onde se registrou como hóspede.  Coisa que Mr. Rowland também fez.

Seus quartos ficavam no mesmo corredor, separados ape­nas por duas portas de distância. Isso pareceu ótimo a Geor­ge. Era um completo neófito na arte de seguir os outros, mas estava louco de vontade de se sair bem e justificar a con­fiança que Elizabeth depositava nele.

Na hora do jantar indicaram-lhe uma mesa próxima da de sua presa. O salão estava cheio e George classificou a maioria dos hóspedes como caixeiros-viajantes, homens sos­segados e respeitáveis que comiam com muito apetite. Só houve um que lhe chamou a atenção de modo especial: um sujeito baixinho, de cabelo e bigode ruivos, e um toque de equitação no estilo de se trajar, que também mostrou interesse por ele, e no fim da refeição sugeriu-lhe um drin­que e uma partida de bilhar. George, porém, acabava de ver o homem de cavanhaque pondo o chapéu e a capa, e recusou polidamente o convite. Não demorou muito estava na rua, adquirindo nova experiência na difícil arte de seguir os outros. A perseguição foi longa e cansativa — e resultou inútil. Depois de zanzar pelas ruas de Portsmouth por mais de cinco quilômetros, o homem retornou ao hotel, sempre com George nos calcanhares. Este já se via tomado de uma certa dúvida. Será que sua presa sabia que estava sendo seguida? Enquanto debatia a questão consigo mesmo, pa­rado no vestíbulo, a porta se abriu novamente e o Sujeitinho ruivo entrou. Era óbvio que também tinha saído para dar uma volta.

De repente George notou que a beldade da portaria o chamava.

— O senhor é Mr. Rowland, não é? Há dois homens aí à sua procura. Dois estrangeiros. Estão na saleta do fundo do corredor.

Meio assombrado, George dirigiu-se à saleta indicada. Encontrou dois indivíduos que logo se levantaram e lhe fize­ram uma reverência toda formal.

— Mr. Rowland? Decerto já adivinhou quem somos, não é?

O olhar de George ia de um para outro. O que tinha falado era o mais velho, um senhor grisalho, pomposo, com excelente domínio do inglês. O acompanhante era jovem, alto, com o rosto cheio de espinhas e um aspecto geral de louro teutônico que a feroz carranca que fazia naquele mo­mento não tornava nada atraente.

Um pouco aliviado por ver que nenhum dos dois visi­tantes era o velho da estação de Waterloo, George ficou logo à vontade.

— Tenham a bondade de sentar. Muito prazer em co­nhecê-los. Aceitam um drinque?

O mais idoso ergueu a mão em protesto.

— Não, obrigado, Lord Rowland. Não temos muito tempo... apenas o suficiente para lhe fazer uma pergunta.

— É amabilidade sua atribuir-me o título de Lord. Pena que não possam tomar nada. E que pergunta tão impor­tante será essa?

— Lord Rowland, o senhor saiu de Londres em com­panhia de uma certa dama. E chegou aqui sozinho. Que fim levou a sua companheira de viagem?

George pôs-se em pé.

— Sinto muito, mas não compreendo — declarou fria­mente, esforçando-se ao máximo para se expressar como um herói de romance. — Permitam-me desejar-lhes uma boa noite, cavalheiros.

— Claro que compreendeu. Não se faça de desentendi­do — interveio o rapaz, desabafando subitamente. — Que fez com Alexa?

— Calma, alteza — murmurou o outro. — Calma, por favor.

— Posso lhes afiançar — disse George, — que não co­nheço nenhuma senhora com esse nome. Deve haver engano.

O velho o observava atentamente.

— Acho pouco provável — afirmou secamente.— Tomei a liberdade de examinar o livro de registro do hotel.  O senhor se registrou como Mr. G. Rowland, de Rowland’s Castle.

George teve que avermelhar.

— Foi uma... uma pequena brincadeira minha — expli­cou, meio sem graça.

— Um subterfúgio bastante infeliz. Vamos deixar de rodeios. Onde está Sua Alteza?

— Se se refere a Elizabeth...

Com uma exclamação de raiva, o rapaz investiu de novo contra ele.

— Miserável insolente! Como ousa falar dela nesse tom?

— Eu me refiro — respondeu o velho, bem devagar, — como o senhor sabe perfeitamente, à Grã-Duquesa Anastásia Sophia Alexandra Marie Helena Olga Elizabeth da Catônia.

— Ah!  — fez Mr. Rowland, perplexo.

Procurou lembrar tudo o que sabia a respeito da Catônia. Se não estava enganado, era um minúsculo reino balcânico e parecia-lhe ter lido qualquer coisa sobre uma revolução que andava havendo por lá. Refez-se a caro custo.

— É evidente que nos referimos à mesma pessoa — disse, todo alegre, — só que para mim o nome dela é Elizabeth.

— Eu lhe exijo satisfações por causa disso — rosnou o rapaz. — Teremos que nos bater.

— Bater?

— Sim, em duelo.

— Jamais me bato em duelos — afirmou Mr. Rowland, categórico.

— Por que não? — perguntou o outro, hostil.

— Tenho medo de me machucar.

— Ah!  É assim, é? Neste caso quero pelo menos dar­-lhe um soco na cara.

O rapaz se adiantou, feroz. Não deu para ver direito o que aconteceu a seguir, mas de repente ele descreveu um semicírculo no ar e se esborrachou no chão com es­trondo. Levantou-se meio zonzo. Mr. Rowland sorria de contentamento.

— Como estava dizendo — comentou, — sempre fico com medo de me machucar. Foi por isso que achei melhor aprender jiu-jitsu.

Houve uma pausa. Os dois estrangeiros olhavam meio em dúvida para aquele rapaz de aspecto tão amável, como se de repente tivessem percebido que por trás de suas simpá­ticas maneiras displicentes se ocultasse alguma qualidade peri­gosa. O jovem teutônico estava pálido de raiva.

— Você há de se arrepender — sibilou feito cobra.

O mais idoso manteve a dignidade.

— É a sua última palavra, Lord Rowland? O senhor se recusa a nos informar sobre o paradeiro de Sua Alteza?

— Como, se nem sei onde ela está?

— E pensa que eu acredito nisso?

— Se não acredita é porque não quer.

O rapaz limitou-se a sacudir a cabeça, murmurando:

— Isto não fica assim. Você vai ver.

E se retiraram.

George passou a mão pela testa. As coisas estavam se sucedendo com uma rapidez estonteante. Era óbvio que se tinha metido num escândalo europeu de primeira grandeza.

— É até capaz de provocar outra guerra — disse George e, torcendo para que isso acontecesse, saiu à procura do homem de cavanhaque preto.

Para seu grande alívio, deparou com ele sentado num canto da sala reservada a encontros de natureza comercial. George instalou-se noutro canto. Dali a três minutos o ho­mem do cavanhaque preto se levantou para ir dormir. Geor­ge foi atrás e viu quando ele entrou no quarto e fechou a porta. Deu um suspiro.

— Preciso de uma noite de descanso — murmurou. — Mais do que nunca.

Então ocorreu-lhe uma idéia atroz. Suponhamos que o homem do cavanhaque preto tivesse notado que estava sendo perseguido e que fugisse durante a noite, aproveitando en­quanto George dormia o sono dos justos? Alguns minutos de reflexão foram o suficiente para encontrar a solução para o problema. George desfiou uma de suas meias até conse­guir uma boa quantidade de lã de cor neutra e depois, esguei­rando-se silenciosamente pelo corredor afora, prendeu com papel de goma uma das pontas do fio no lado oposto da porta do desconhecido, trouxe a outra de volta e colou diante de seu próprio quarto. Aí pendurou um sininho de prata — uma lembrança da festa da véspera. Contemplou o estrata­gema com bastante satisfação. Se o homem de cavanhaque preto tentasse sair do quarto, George ficaria logo sabendo, pelo toque do sino.

Feito isso, tratou de se deitar sem perda de tempo. Guardou cuidadosamente o pequeno embrulho lacrado de­baixo do travesseiro, enquanto se punha a devanear um pouco. Seus pensamentos poderiam se traduzir mais ou menos assim:

— Anastásia Sophia Marie Alexandra Olga Elizabeth. Espere aí, acho que está faltando um nome. Deixe ver...

Não conseguiu pegar logo no sono, torturado pelo fra­casso de não compreender bem a situação. Que significava tudo aquilo? Qual a relação entre a grã-duquesa fugitiva, o embrulho lacrado e o homem do cavanhaque preto? De que estaria fugindo a grã-duquesa? Os dois estrangeiros sa­beriam que o embrulho lacrado se achava em poder dele? E o que será que continha?

Ponderando sobre essas questões, irritado por não encon­trar nenhuma resposta, Mr. Rowland afinal adormeceu.

Acordou com o leve tinido da campainha. Não sendo dessas pessoas que despertam para a ação imediata, levou exatamente um minuto e meio para se dar conta do que estava acontecendo. Aí então saltou da cama, enfiou os chinelos e, abrindo a porta com o máximo cuidado, saiu do quarto sem fazer barulho. Uma leve nesga de sombra se movendo no fundo do corredor mostrou-lhe a direção tomada pela presa. Caminhando o mais silenciosamente possível, Mr. Rowland foi atrás. Mal teve tempo de ver o homem do cavanhaque preto desaparecendo num banheiro. Isso era es­tranho, especialmente porque havia outro bem na frente do seu quarto. Aproximando-se da porta, que estava entre­aberta, George espiou pela fresta. O sujeito, ajoelhado junto da banheira, fazia qualquer coisa no rodapé da parede que ficava logo atrás. Permaneceu ali uns cinco minutos e depois se levantou. George achou mais prudente bater em retirada. Protegido pela sombra de sua própria porta, viu o outro pas­sar e entrar de novo no quarto.

“Ótimo” — disse George consigo mesmo. “O mistério do banheiro será investigado amanhã de manhã.”

Ao se deitar, passou a mão por baixo do travesseiro para verificar se o precioso embrulho continuava ali. No minuto seguinte revolvia as roupas de cama em pânico. O embrulho havia sumido!

No outro dia de manhã, enquanto comia ovos com pre­sunto, não encontrava meios de se conformar. Não tinha cumprido a promessa feita a Elizabeth.  O precioso embrulho confiado a seus cuidados lhe fora subtraído e o “Mistério do Banheiro” não convencia como desculpa suficiente. É, sem sombra de dúvida, caíra como um patinho.

Depois do café, subiu de novo para o seu quarto. Encon­trou uma camareira parada no corredor, sem saber o que fazer.

— Que foi que houve, minha filha? — perguntou solícito.

— É o hóspede aqui deste quarto, seu moço. Ele pediu que o chamassem às oito e meia, e agora não atende e a porta está trancada.

—Não diga — retrucou George.

Mas ficou logo inquieto. Correu ao seu quarto. Fossem quais fossem os planos que tencionava pôr em prática, teria de alterá-los diante do quadro inesperado que deparou à sua frente. Ali, sobre e mesa de cabeceira, estava o pequeno embrulho desaparecido na véspera!

George pegou e examinou-o. Sim, não restava dúvida era o mesmo. O lacre, porém, tinha sido violado. Depois de um instante de hesitação, desembrulhou-o. Já que outras pessoas haviam visto o que continha, não existia motivo para que também não visse. Além do mais, era bem possível que o conteúdo tivesse sido roubado. O papel aberto revelou uma caixinha de papelão, como essas de joalheiro. George abriu-a. Dentro, pousada numa mecha de algodão, estava uma sim­ples aliança de ouro.

Pegou e examinou-a. Não tinha nenhuma inscrição na parte interna — absolutamente nada que a diferenciasse de qualquer outra aliança de casamento. George deixou cair a cabeça entre as mãos com um gemido.

“Que loucura,” murmurou. “Não há outra palavra. Pura e rematada loucura. Isto não tem pé nem cabeça.”

De repente se lembrou do que a camareira tinha dito e, ao mesmo tempo, percebeu que havia um largo parapeito do lado de fora da janela. Não era o tipo da façanha a que normalmente se arriscaria, mas estava tão roído pela curiosidade e raiva que se sentia propenso a menosprezar todas as dificuldades. Trepou no peitoril. Poucos segundo depois, espiava para dentro da janela do quarto ocupado pelo homem do cavanhaque preto. A vidraça estava aberta e o quarto vazio. A uma pequena distância havia uma escada de in­cêndio. Não restava dúvida quanto ao caminho tomado pela presa ao fugir.

George pulou a janela. Os pertences do foragido ainda se achavam espalhados por todos os cantos. Talvez existisse alguma pista entre eles que lançasse luz sobre as perplexi­dades de George. Pô-se a revistar tudo, começando pelo con­teúdo de uma sacola de ferramentas gasta pelo uso.

Um ruído interrompeu-lhe a busca — um ruído muito leve, mas que provinha inegavelmente do interior do próprio quarto. O olhar de George se concentrou no enorme guarda--roupa. Deu um salto e abriu a porta de sopetão. No mes­mo instante um homem se jogou lá de dentro e caiu rolando no chão, atracado nele. Não era um adversário fácil. Todos os golpes especiais de George de nada valeram. Termina­ram se separando de pura exaustão e pela primeira vez George viu quem era o agressor: o baixinho de bigode ruivo!

— Que diabo, quem é você? — perguntou.

Como resposta, o outro tirou um cartão do bolso e en­tregou-lhe. George leu em voz alta:

— Inspetor Jarrold, Scotland Yard.

— Exatamente, seu moço. E acho melhor me contar tudo o que sabe sobre essa história.

— É melhor mesmo, não é? — retrucou George, pensa­tivo. — Sabe, inspetor, creio que tem razão. Vamos pro­curar um lugar mais simpático para conversar?

Num recanto tranqüilo do bar, George abriu sua alma. O Inspetor Jarrold ouviu tudo, compreensivo.

— De fato, é como o senhor diz, não dá para entender — comentou, depois que George parou de falar. — Há muita coisa que eu mesmo não compreendo, mas há um ou dois detalhes que posso lhe esclarecer. Eu vim aqui atrás do Mardenberg (o seu amigo de cavanhaque preto), e aquilo do senhor aparecer e começar a vigiar tudo o que ele fazia me deixou com a pulga na orelha. Não atinei com o papel que podia desempenhar na história. Ontem à noite me esgueirei no seu quarto enquanto não estava e tirei o pequeno embrulho debaixo do seu travesseiro. Quando abri e veri­fiquei que não era o que eu procurava, aproveitei a primeira oportunidade para recolocá-lo no mesmo lugar.

— Não há que negar que isso já esclarece alguma coisa — concordou George, pensativo. — Me parece que andei fa­zendo o papel de idiota o tempo todo.

— Eu não diria isso.   Até que para um principiante o senhor se saiu muito bem.   Quer dizer então que foi ao tal banheiro hoje de manhã e retirou o que estava escondido atrás do rodapé da parede?

— Sim. Mas tratava-se apenas de uma carta de amor toda melosa — explicou George, desanimado. — Era só o que me faltava, meter ó bedelho na vida íntima do infeliz.

— Quer me mostrar essa carta?

George tirou do bolso um papel dobrado e entregou ao inspetor.

— Tem razão — disse este, depois de ler a carta.  — Mas acho que traçando uma linha entre os pontos de cada i pode-se chegar a uma outra conclusão. Eu devia até lhe agradecer, porque isto aqui é a planta das defesas portuárias de Portsmouth.

— Quê?!

— É, sim. Já faz algum tempo que andávamos de olho no tal sujeito. Mas ele era esperto demais para nós. Conse­guiu que uma mulher fizesse a maior parte da sujeira para ele.

— Uma mulher? — exclamou George, quase sem voz. — Como é o nome dela?

— Ela usa uma porção. O mais freqüente é Betty Brighteyes.1 Bonita que só vendo.

— Betty... Brighteyes — murmurou George. — Obri­gado, inspetor.

— Perdoe a franqueza mas o senhor não está com boa fisionomia.

— De fato, não me sinto bem. Estou muito doente. Para falar a verdade, acho que seria melhor pegar o primeiro trem e voltar pra Londres.

O inspetor olhou no relógio.

— Tenho a impressão de que é um trem muito lento. Por que não espera pelo expresso?

— Tanto faz — retrucou George, desanimado. — Ne­nhum pode ser mais lento do que o que me trouxe aqui ontem.

 

Novamente instalado num vagão de primeira classe, Geor­ge passava calmamente os olhos pelas notícias do dia. De repente endireitou o corpo de um salto e fixou a vista na folha que tinha diante de si.

 “Realizou-se ontem em Londres o romântico casamento de Lord Roland Gaigh, segundo filho do marquês de Axminster, com a grã-duquesa Anastásia da Catônia. A cerimônia foi cercada do mais rigoroso sigilo. A grã-duquesa, que desde a revolução da Catônia residia em Paris com seu tio, conhe­ceu Lord Roland quando secretário da embaixada britânica na Catônia, e a partir de então tornaram-se um par in­separável.”

— Ora, já se...

1 Olho-vivo.

Mr. Rowland não conseguiu encontrar uma expressão bastante eloqüente para externar o que sentia. Continuou de olhos fixos no vácuo. O trem parou numa pequena esta­ção e uma mulher entrou, sentando-se diante dele.

— Bom dia, George — disse com doçura.

— Minha nossa!  — exclamou George. — Elizabeth!

Ela lhe sorriu. Estava, se possível, mais linda do que nunca.

— Escute aqui — implorou George, com as mãos na cabeça. — Pelo amor de Deus, me diga uma coisa. Você é a grã-duquesa Anastásia ou a Betty Brighteyes?

Ela olhou bem para ele.

— Nem uma nem outra. Meu nome é Elizabeth Gaigh. Agora já posso explicar tudo a você. E também tenho que lhe pedir desculpas. Sabe, o Roland (o meu irmão) sempre foi apaixonado pela Alexa...

— Pela grã-duquesa, você quer dizer.

— Sim, é assim que a família a chama. Bem, como eu ia dizendo, o Roland sempre foi apaixonado por ela, e ela por ele. Aí veio a revolução, a Alexa estava em Paris, e já iam marcar a data do casamento, quando o velho Stürm, o Primeiro-Ministro, se intrometeu, insistindo em levar a Alexa embora, para forçá-la a casar com o Príncipe Karl, um primo dela, criatura detestável, cheio de espinhas...

— Tenho a impressão de que o conheço — disse George.

— Que ela simplesmente odeia. E o velho Príncipe Osric, tio dela, proibiu que tornasse a ver o Roland. Por isso a Alexa fugiu para a Inglaterra, e eu vim à cidade para me encontrar com ela. Nós telegrafamos ao Roland, que estava na Escócia. E bem na última hora, quando íamos de táxi para o cartório, quem que nós vimos noutro táxi, cara a cara, senão o velho Príncipe Osric? Claro que nos seguiu, e não sabíamos mais o que fazer, porque era certo que pretendia armar um escândalo e, afinal de contas, é o tutor dela. Então eu tive a idéia-mãe de trocar de lugar com a Alexa. Hoje em dia é praticamente impossível enxer­gar mais que a ponta do nariz de uma moça. Pus o chapéu vermelho e a estola marrom da Alexa e ela ficou com o meu de cor cinza. Depois mandamos que o chofer fosse para Waterloo, onde eu desci e entrei correndo na estação. O ve­lho Osric evidentemente não perdeu o chapéu vermelho de vista, e nem se lembrou da outra passageira do táxi, toda encolhida no fundo do banco, e é lógico que não deixei que visse meu rosto. De modo que saltei para dentro do vagão e me entreguei nas suas mãos.

— Até aí eu entendi — disse George. — Mas, e o resto?

— Eu sei. E é por isso que tenho que lhe pedir des­culpas. Espero que não fique muito zangado comigo.    Sabe o que foi, você insistia tanto que aquilo era um verdadeiro mistério... que nem nos romances, que eu de fato não re­sisti à tentação. Escolhi na plataforma um homem de as­pecto meio sinistro e mandei que você o seguisse. E depois lhe entreguei o embrulho.

— Que continha uma aliança de casamento.

— Justo. A Alexa e eu compramos aquilo, porque o Roland só iria chegar da Escócia muito em cima do laço. E eu naturalmente sabia que até que eu tivesse tempo de voltar a Londres eles não iam querer mais... já teriam usado um aro de cortina ou coisa que o valha.

— Pois é — disse George. — Tudo parece tão simples... depois que a gente sabe! Com licença, Elizabeth.

Tirou-lhe a luva da mão esquerda e deu um suspiro de alívio ao ver que não havia nada no dedo anular.

— Ótimo — comentou.  — A aliança, afinal, não será desperdiçada.

— Ah! — exclamou Elizabeth. — Meu eu não sei nada a respeito de você.

— Sabe como eu sou bonzinho — lembrou George? — Por falar nisso, agora mesmo me ocorreu: você, evidente­mente, é Lady Elizabeth Gaigh.

— Xi, George! Você é esnobe?

— Pra dizer a verdade, acho que sou. O melhor sonho que já tive foi um em que o Rei George me pedia empres­tado meia coroa pra me devolver no fim da semana. Mas eu estava pensando no meu tio... aquele com quem ando de relações estremecidas. Ele é tremendamente esnobe. Quando souber que vou casar com você, e que teremos um título na família, me porá de sócio na mesma hora!

— Ah, George! Ele é muito rico?

— Elizabeth, você é mercenária?

— Você nem imagina. Adoro gastar dinheiro. Mas es­tava pensando no meu pai. Cinco filhas, todas bonitas e de sangue azul. Ele anda simplesmente doido para ter um genro rico.

— Hum — fez George. — Vai ser um desses casamentos abençoados no céu e festejados na terra. Vamos morar em Rowland’s Castle? Com você como minha mulher, com cer­teza me elegerão Lord Prefeito. Ah! Elizabeth, minha que­rida, isto no mínimo deve ser uma infração ao regulamento da companhia, mas vou ter que lhe dar um beijo!

 

A BRAVURA DE EDWARD ROBINSON

 “Com um ímpeto de seus braços possantes, Bill levan­tou-a no ar, estreitando-a contra o peito. Soltando um pro­fundo suspiro, ela entregou-lhe os lábios num beijo como ele jamais tinha sonhado...”

Soltando um suspiro, Mr. Edward Robinson largou Quan­do o Amor Reina e olhou pela janela do metrô. O trem es­tava passando por Stamford Brook. Edward Robinson ia pensando em Bill. Bill era o protótipo do herói másculo preferido pelas autoras de romances. Edward invejava-lhe os músculos, a beleza viril e os amores ardentes. Pegou o livro de novo e leu a descrição da altiva Marchesa Bianchi (a que tinha entregue os lábios). Sua beleza era tão extasiante, arrebatava os homens a tal ponto, que até os mais fortes caíam-lhe aos pés, fulminados de fraqueza, perdidamente apaixonados.

— Está claro — disse Edward consigo mesmo — que tudo isso, essa espécie de história, é pura baboseira. Pura baboseira. E no entanto, bem que eu...

Continuou com uma expressão sonhadora nos olhos. Existiria, em algum lugar, um mundo que fosse assim cheio de romance e aventuras? Mulheres cuja beleza arrebatava? Amores que consumissem a gente como chamas?

— Que nada — disse Edward. — A vida real é esta aqui mesma, e eu tenho que levar o barco como todo mundo leva.

De modo geral, até que achava que podia se considerar um sujeito de sorte. Tinha um ótimo emprego — o cargo de escriturário numa firma que ia de vento em popa. Gozava de boa saúde, não possuía dependentes e estava noivo de Maud.

Mas bastava lembrar-se de Maud para perder toda a ale­gria. Embora se recusasse a admitir, sentia medo dela. Gostava muito de Maud — é, sim — e não conseguia esquecer a emoção sentida ao admirar-lhe a nuca imaculada que a blusa barata de quatro shillings e onze pence deixava entre­ver na primeira vez que se tinham visto. Estava sentado atrás dela no cinema e o amigo que havia ido junto com ele já a conhecia e os apresentou. Não restava a menor dúvida, Maud era uma pequena de certa classe. Bonita, inte­ligente, muito bem educada, tinha sempre a resposta exata para tudo. O tipo da moça que, na opinião geral, daria uma esposa perfeita.

Edward ficou imaginando se a Marchesa Bianca também daria uma esposa perfeita. Não sabia por que, mas duvidava. Não conseguia imaginar a sensual Bianca, com aqueles lábios rubros e aquelas curvas voluptuosas, domesticada a ponto de pregar botões, digamos, para o másculo Bill. Não, Bianca significava romance, e aquilo ali era a vida real. Ele e Maud, juntos, seriam felicíssimos.   Uma moça de tanto bom senso. ..

Mas mesmo assim, gostaria que não tivesse — pois é, maneiras tão bruscas. Que não fosse tão propensa a “saltar em cima dele”.

Naturalmente, era por prudência e bom senso que agia assim. Maud era muito sensata. E, via de regra, Edward também, mas às vezes... Por exemplo, ele queria que se casassem agora no Natal. Maud tinha-lhe feito ver que seria bem mais prudente esperar um pouco — um ano ou dois, talvez. O salário que estava ganhando não era muito grande. Ele queria dar-lhe um anel caro — ela ficou horrorizada e obrigou-o a devolver a aliança e trocar por outra mais barata. Todas as qualidades de Maud eram admiráveis, mas às vezes Edward preferiria que tivesse mais defeitos e menos vir­tudes. Eram estas últimas que o impeliam a cometer ações desesperadas.

Por exemplo...

A consciência pesada o fez corar. Precisava contar-lhe — sem perda de tempo. Aquele sentimento secreto de culpa já o estava forçando a se comportar da maneira mais es­tranha. No dia seguinte começavam os três feriados: véspera, dia e segundo dia de Natal. Ela lhe havia sugerido que fosse passar o primeiro na casa dela, com toda a família, e de um modo inepto, tolo, que devia fatalmente ter despertado suspeitas, conseguira se livrar do compromisso — contando uma história inacabável, fictícia, a respeito de um amigo que morava no interior e a quem prometera passar a vés­pera do Natal em sua companhia.

E não havia nenhum amigo no interior. O que havia era apenas a sua consciência pesada.

Três meses atrás, Edward Robinson, junto com algumas centenas de milhares de outros rapazes, tinha entrado num concurso organizado por um semanário londrino. Era pre­ciso fazer uma lista de doze moças pela ordem de populari­dade. Edward teve uma idéia genial. Sabia que se fosse se fiar em suas próprias referências, não acertaria nada. Então resolveu escrever os doze nomes primeiro pela ordem de mérito, depois escreveu tudo de novo, mas desta vez to­mando alternadamente um do alto e outro do fim da lista.

Quando anunciaram o resultado, Edward havia acertado oito dos doze nomes, ganhando o primeiro prêmio de 500 libras. Esse êxito, que podia facilmente ser atribuído a uma questão de sorte, foi interpretado por Edward como uma con­seqüência direta do seu “sistema”, deixando-o numa euforia desmedida.

A próxima decisão seria — que fazer com as 500 libras? Sabia muito bem o que Maud iria dizer. Aplique em investi­mentos. Um ótimo pé-de-meia para o futuro. E, natural­mente, Maud teria toda a razão, isso ele também sabia. Mas ganhar dinheiro como resultado de um concurso é uma sensa­ção totalmente diversa de qualquer outra que exista neste mundo.

Se ele tivesse herdado aquele dinheiro, sem dúvida o apli­caria religiosamente em títulos hipotecários ou letras de câm­bio. Mas uma soma que se ganha sem o menor esforço, por um incrível golpe de sorte, equivale à moedinha que se dá a um garoto — “pra você comprar o que quiser”.

E numa certa loja de luxo, diante da qual passava diaria­mente a caminho do escritório, estava o sonho inacreditável: um pequeno carro de dois lugares, de longo e cintilante mo­tor, com o preço bem à vista: £ 465.

— Se eu fosse rico — repetia Edward, todos os dias. — Se eu fosse rico, você seria meu.

E agora ele era — se não rico — ao menos possuidor de uma bolada suficiente para realizar seu sonho. Aquele carro, aquela maravilha deslumbrante, seria dele. Bastava comprar.

Pretendia contar toda a história do dinheiro a Maud. Depois que ela soubesse, estaria resguardado da tentação de gastá-lo. Diante do horror e da desaprovação de Maud, ja­mais teria coragem para insistir naquela loucura. Acontece, porém, que foi a própria Maud quem decidiu a questão. Ele a tinha levado ao cinema — e às melhores localidades da platéia. Ela logo lhe fez ver, delicadamente, mas com fir­meza, a insensatez criminosa do seu procedimento — jogar dinheiro fora — pagando três shillings e seis pence em vez de gastar apenas dois shillings e quatro pence para sentar nas primeiras filas, de onde se vê tão bem quanto das filas de trás.

Edward recebeu a repreensão de cara amarrada. Maud ficou toda contente, certa de que estava causando boa im­pressão. Não podia permitir que Edward continuasse com aquelas extravagâncias. Gostava muito dele, mas já tinha percebido como era pusilânime — competindo-lhe a tarefa de estar sempre à mão para mostrar-lhe o bom caminho. Observou seu comportamento, semelhante ao de um verme, com satisfação.

De fato Edward estava parecido com um verme.  E como os vermes, se retorcia.   Ficou arrasado com as palavras dela, mas foi naquele momento exato que resolveu comprar o carro.

— Que diabo — disse consigo mesmo. — Ao menos uma vez na vida, farei o que eu quero.    Maud que se dane!

E logo na manhã seguinte entrou naquele palácio de espelhos, cheio de magníficos automóveis, expostos na glória de seu esmalte brilhante e metal cintilante, e com uma naturalidade que o surpreendeu, comprou o carro. Era a coisa mais fácil do mundo, comprar um carro!

Já fazia quatro dias que era dele. Por fora parecia calmo, mas por dentro andava em êxtase. E ainda não tinha dito uma só palavra a Maud. Há quatro dias, durante a hora do almoço, recebia instruções na maneira de lidar com aquela coisa linda. Era um aluno esforçado.

Amanhã, véspera de Natal, sairia de carro pelo interior. Tinha mentido a Maud e, se fosse preciso, tornaria a mentir. Estava escravizado de corpo e alma: à sua nova propriedade. Para ele, significava Romance, Aventura, todas as coisas que sempre sonhara e nunca havia tido. Amanhã ele e aquela espécie de amante partiriam juntos pela estrada afora. Cor­reriam através do penetrante ar frio, deixando para trás o bulício e a agitação de Londres — rumo aos largos e claros horizontes...

A essa altura, Edward, embora não soubesse, estava em vias de se transformar num poeta.

Amanhã...

Baixou os olhos para o livro que segurava na mão — Quando o Amor Reina. Riu e guardou-o no bolso. O carro, os lábios rubros da Marchesa Bianca e as assombrosas faça­nhas de Bill pareciam estar todos misturados. Amanhã...

O tempo, que sempre trata de decepcionar quem conta com ele, mostrou-se benévolo com Edward. Deu-lhe o dia dos seus sonhos, um dia de deslumbrante geada, céu azul claro, e sol de primavera.

E assim, disposto a grandes aventuras e riscos temerá­rios, Edward partiu de Londres. Houve problemas em Hyde Park Corner, um contratempo feio em Putney Bridge, muito protesto na caixa de mudanças e o freqüente chiado dos freios, sem falar na profusão de desaforos que teve que ouvir dos motoristas dos outros veículos. Mas para um novato até que não se saiu tão mal, e finalmente se viu numa dessas belas e amplas estradas que fazem a alegria de qualquer moto­rista. E hoje, aliás, o congestionamento era mínimo. Edward seguiu em frente, embriagado com seu domínio sobre aquela criatura de carroçaria cintilante, chispando por aquele mundo frio e branco, com a exultação de um deus.

O dia estava de enlouquecer. Parou para almoçar numa velha estalagem e, mais tarde, de novo, para tomar chá. Depois, relutante, virou o carro para voltar — outra vez a Londres, a Maud, às inevitáveis explicações e recriminações...

Afastou a idéia com um suspiro. Para que pensar no futuro? Ainda tinha o dia de hoje. E o que podia ser mais fascinante do que isto? Correr no meio da escuridão, com os faróis iluminando o caminho pela frente. Puxa, não havia nada igual!

Achou que não dava tempo de parar em nenhum lugar para jantar. Dirigir no escuro era o tipo da coisa arriscada. Ia demorar muito mais para voltar a Londres do que pen­sava. Eram apenas oito horas quando passou por Hindhead e chegou às margens do Devil’s Punch Bowl. A noite estava enluarada e a neve que tinha caído dois dias antes ainda não havia derretido.

Parou o carro e ficou olhando. Que importância tinha que não chegasse a Londres antes da meia-noite? Ou que nunca mais voltasse? Não seria tão cedo que se afastaria daquilo tudo ali.

Desceu do carro e aproximou-se da beirada. Havia, tentadoramente, próxima, uma trilha que serpenteava barran­co abaixo. Edward cedeu à tentação. Durante a meia hora seguinte perambulou em delírio por um mundo rodeado de neve. Jamais havia imaginado que existisse algo semelhante. E tudo lhe pertencia, era tudo dele, um presente oferecido pela sua amante cintilante, que o esperava, fielmente, lá em cima na estrada.

Tornou a subir, entrou no carro e partiu, ainda meio estonteado com aquela descoberta de pura beleza que de vez em quando é dada mesmo ao mais comum dos mortais.

Depois, com um suspiro, voltou a si e meteu a mão no porta-luvas, onde havia deixado um par de reserva no começo do dia.

Mas não estavam mais lá. O porta-luvas se achava vazio. Não, totalmente vazio não — tinha qualquer coisa que rangia e era duro — como se fossem pedrinhas.

Edward enfiou a mão mais no fundo. Dali a pouco arregalava os olhos feito louco. O objeto que segurava na ponta dos dedos, faiscando como estrelas ao luar, era um colar de brilhantes.

Edward olhava, sem poder acreditar. Mas não havia sombra de dúvida. Um colar de brilhantes que devia valer milhares de libras (pois as pedras eram grandes) tinha ficado tranqüilamente pousado no porta-luvas.

Mas quem o teria posto naquele lugar? Certamente ali é que não estava quando havia partido da cidade. Alguém devia ter aparecido enquanto caminhava pela neve, guardando-o de propósito no fundo do porta-luvas. Mas por quê? E logo no carro dele? Não teria o dono do colar cometido um engano? Ou será que — quem sabe era isso? — se tra­tava de um colar roubado?

Foi então, enquanto todas essas idéias lhe passavam como um torvelinho pela imaginação, que Edward de repente levou um susto e gelou da cabeça aos pés. Aquele não era o seu carro.

Era parecidíssimo, sim. Tinha a mesma tonalidade de vermelho — rubro como os lábios da Marchesa Bianca — e o mesmo longo motor cintilante, mas por mil pequenos detalhes Edward percebeu que era outro. A carroçaria novinha em folha estava arranhada aqui e ali, com sinais leves, mas inconfundíveis, de desgaste. Nesse caso...

Edward, sem perda de tempo, apressou-se a virar o carro. Essa manobra não era o seu forte. Dando marcha-à-ré, invariavelmente se atrapalhava e girava o volante no sentido contrário. Além disso, sempre se confundia entre o acelerador e o freio de pé, com resultados desastrosos. Por fim, no entanto, conseguiu, e no mesmo instante o carro se pôs a roncar e recomeçou a subir a encosta.

Edward se lembrava de ter visto outro automóvel parado a pouca distância. Na hora o fato não lhe chamou muita atenção. Tinha voltado de sua caminhada por uma trilha diferente da que tomara para descer o barranco. Essa se­gunda trilha, a seu ver, deveria trazê-lo novamente à estrada num ponto logo atrás de seu carro, quando na certa havia ido dar realmente perto do outro.

Em dez minutos, mais ou menos, estava de novo no local onde tinha estacionado antes. Mas já não se via nenhum automóvel à beira da estrada. Fosse lá quem fosse o dono daquele carro, agora devia andar com o de Edward — talvez também enganado pela semelhança dos dois.

Edward tirou do bolso o colar de brilhantes e deixou-o escorrer, perplexo, entre os dedos.

Que fazer agora? Procurar a delegacia de polícia mais próxima? Explicar o ocorrido, entregar o colar e dar o número de seu carro.

A propósito, qual era mesmo o número? Por mais que Edward se esforçasse, não conseguia lembrar. Começou a se sentir desanimado. Ia fazer um papel ridículo na dele­gacia. A única coisa que lhe vinha à memória era que havia um oito no meio. Claro que isso não adiantava de nada — mas pelo menos... Olhou inquieto para os brilhantes. Supo­nhamos que imaginassem — ah, mas como? — e no entanto, por que não? — que tivesse roubado o automóvel e as jóias? Pois, afinal de contas, pensando bem, quem é que, no seu juízo perfeito, seria capaz de deixar negligentemente um colar de brilhantes valioso no porta-luvas aberto de um carro?

Edward desceu e foi olhar a parte traseira. O número da licença era XRI0061. Além do fato de que não se tra­tava, evidentemente, do número do seu carro, nada mais esclarecia. Então se pôs a revistar sistematicamente todos os compartimentos. No que tinha encontrado os brilhantes fez uma descoberta — um pedacinho de papel com algumas palavras escritas a lápis. À luz dos faróis, Edward leu-as com bastante facilidade.

“Procure-me em Greane, na esquina de Salter’s Lane, às dez horas.”

Lembrava-se do nome Greane. Tinha visto numa placa no começo do dia. No espaço de um minuto, tomou uma resolução. Iria até o tal lugarejo, Greane, encontraria Salter’s Lane, falaria com a pessoa que havia escrito o bilhete, e explicaria o ocorrido. Seria bem melhor do que fazer o papel de palhaço na delegacia de polícia local.

Foi-se embora quase contente. Afinal de contas, aquilo era uma aventura. O tipo da coisa que não acontece todos os dias. O colar de brilhantes a tornava empolgante e misteriosa.

Teve alguma dificuldade para achar Greane, e ainda mais para localizar Salter’s Lane, mas depois de se informar em duas casas, conseguiu.

Mesmo assim, já passavam alguns minutos da hora mar­cada quando deslizou cautelosamente por uma estrada estreita, sempre de olho no lado esquerdo, onde lhe tinham dito que Salter’s Lane tomava outra direção.

Achou o lugar da maneira mais inesperada, depois de uma curva, e no momento exato em que ia estacionar, um vulto se diantou, saindo da escuridão.

— Até que enfim!  — exclamou uma voz feminina. — Puxa, Gerald, você demorou, hem?

À medida que ia falando, a mulher se colocou bem na frente da luz dos faróis. Edward quase perdeu o fôlego. Era a criatura mais deslumbrante que já tinha visto.

Muito moça, com o cabelo negro como a noite e mara­vilhosos lábios rubros, o pesado abrigo que usava se abriu e Edward percebeu que estava toda de gala — numa espécie de vestido cor de fogo que lhe realçava as formas perfeitas. Trazia no pescoço um fio de pérolas cultivadas.

De repente estacou.

— Ué — exclamou. — Você não é o Gerald.

— Não — disse logo Edward. — Já lhe explico. — Tirou do bolso o colar de brilhantes e mostrou-lhe. — Meu nome é Edward...

Não pôde continuar, porque a moça bateu palmas de alegria e atalhou:

— Edward, evidente! Que bom! Mas aquele idiota do Jimmy me disse pelo telefone que ia mandar o Gerald no lugar dele. Você foi muito bonzinho em vir me buscar. Estava com uma vontade louca de falar com você. Parece mentira que desde que eu tinha seis anos a gente nunca mais se encontrou! Pelo que vejo, também trouxe o colar. Guarde isso logo no bolso de novo.    O guarda daqui é bem capaz de aparecer e enxergar. Brrr, que frio que está fazendo! Abra a porta para eu entrar.

Como num sonho, Edward abriu e ela saltou com uma leveza de pluma para o seu lado. As peles roçaram-lhe o rosto e sentiu um perfume indefinível, semelhante ao das violetas depois da chuva.

Não tinha nenhum plano, nem sequer uma idéia defi­nida. Em questão de poucos segundos, sem querer, tinha-se entregue à aventura. Ela o havia chamado de Edward — que diferença fazia que não fosse quem ela pensava que era? Dentro em breve seria desmascarado. Até lá, deixaria o barco correr. Ligou o motor e o carro arrancou.

Não demorou muito ela começou a rir, de uma maneira tão maravilhosa quanto o resto.

— Bem se vê que você não entende nada de automó­veis. Garanto que lá não tem, não é?

“Que será que ela quer dizer com esse ‘lá’?” — pensou Edward.

— Muito poucos — respondeu em voz alta.

— Então acho bom deixar que eu dirija — disse ela. — É difícil encontrar o caminho aqui por estes lados até con­seguir chegar de novo na estrada.

Cedeu-lhe o volante de bom grado. Dentro em breve chispavam pela noite numa velocidade temerária, que deixou Edward apavorado por dentro. Ela se virou para ele.

— Gosto de correr. Você não? Sabe... você não se parece nada com o Gerald. Ninguém diria que são irmãos. E também não é nem um pouco como eu pensava.

— Tenho a impressão de que sou um tipo completamente comum, não é?

— Comum, não... diferente. Não sei definir direito. E o pobre do Jimmy, como vai? No mínimo chateado de­mais, não é?

— Ah, com o Jimmy vai tudo bem — respondeu Edward.

— Tudo bem porque não é com você... o coitado teve um azar danado torcendo aquele pé. Ele não lhe contou como foi?

— Não me contou nada. Estou completamente por fora. Bem que você podia me explicar.

— Ah, a coisa funcionou que foi uma beleza. O Jimmy entrou pela porta da frente, vestido com a roupa da namorada dele. Eu esperei uns dez minutos, para lhe dar tempo, de­pois trepei até a janela. A camareira da Agnes Larella estava lá em cima, guardando o traje e as jóias da Agnes, e tudo o mais. Aí então se ouviu um baita berro lá embaixo, se espalhou a confusão e o pessoal se pôs todo a gritar. A camareira saiu correndo, eu pulei para dentro do quarto, peguei o colar, desci de novo feito uma bala e me afastei da casa pelos fundos, até chegar a Devil’s Punch Bowl. Quando passei pelo carro, meti no porta-luvas o colar e o bilhete, dizendo onde queria ser apanhada. Depois fui procurar a Louise no hotel, primeiro tirando minhas botas cheias de neve, é claro. Um álibi perfeito. Ela nem desconfia que eu saí.                     

— E o Jimmy?

— Ué, isso você sabe melhor do que eu.

— Ele não me contou nada — repetiu Edward na maior calma.

— Bem, no meio daquela confusão toda, ele tropeçou na saia e terminou torcendo o pé. Tiveram de carregá-lo até o carro e o motorista dos Larellas levou-o para casa. Imagine só se o homem metesse a mão por acaso no porta-luvas!

Edward riu junto com ela, mas estava pensando noutra coisa. Agora compreendia mais ou menos a situação. O nome Larella lhe era vagamente familiar — sabia que se tratava de gente rica. Essa moça e um sujeito desconhecido cha­mado Jimmy tinham elaborado um plano, que tinha dado certo, para roubar o colar. Por causa do pé torcido e da presença do motorista dos Larellas, o tal Jimmy não tinha podido olhar no porta-luvas do carro antes de telefonar à moça — provavelmente nem se atrevera. Mas era quase certo que “Gerald”, o outro desconhecido, aproveitasse a pri­meira oportunidade para fazer isso. E aí então encontraria o par de luvas de Edward!

— Até que nem demoramos — disse ela.

Um bonde passou rápido por eles; estavam na periferia de Londres. Entravam e saíam como um raio na fila de carros. O coração de Edward parecia que ia saltar. A moça dirigia maravilhosamente bem, mas como era arriscada!

Quinze minutos depois paravam diante de uma mansão imponente, situada numa praça muito fria.

— Podemos trocar de roupa aqui — disse ela, — antes de irmos ao Ritson’s.

— Ao Ritson’s? — retrucou Edward, pronunciando o nome da célebre boate quase respeitosamente.

— É. O Gerald não lhe falou?

— Não — disse Edward, carrancudo. — E com que roupa que eu vou?

A moça franziu a testa.

— Mas, afinal, eles não lhe disseram nada! A gente dá um jeito. Temos que levar o plano até o fim.

Um mordomo todo pomposo abriu a porta e afastou-se para deixá-los entrar.

— Mr. Gerald Champneys telefonou, milady. Precisava falar urgentemente com a senhora, mas não quis deixar recado.

“Pudera que não precisasse”, disse Edward consigo mes­mo. “Pelo menos agora já sei o meu nome completo. Edward Champneys. E o dela, qual será? Com esse tratamento de milady, só pode ser nobre. Mas pra que então o roubo do colar? Pra pagar dívidas de bridge?”

O pomposo mordomo deixou Edward entregue aos cui­dados de um criado extremamente solícito. Quinze minutos depois, reencontrava-se com a dona da casa no saguão, im­pecavelmente vestido num traje a rigor feito em Savile Row, que lhe caía como uma luva.

Nossa! Que noite!

Foram de carro ao famoso Ritson’s. Como todo mundo, Edward tinha lido notícias escandalosas a respeito do Ritson’s. Mais cedo ou mais tarde, quem fosse célebre, aparecia fatal­mente por lá. Seu único medo era que algum conhecido do verdadeiro Edward lhe surgisse pela frente. Consolou-se com a idéia de que havia evidentemente passado alguns anos fora da Inglaterra.

Sentados a uma mesinha contra a parede, bebiam coque­téis. Coquetéis! Para o modesto Edward, isso significava o supra-sumo da extravagância. A moça, envolta num maravilhoso xale bordado, bebia despreocupadamente. De repen­te tirou o xale dos ombros e se levantou.

— Vamos dançar.

Ora, se havia algo que Edward fazia com perfeição era dançar. Quando ele e Maud tomavam conta do salão do Palais de Danse, os outros casais paravam para admirar o es­petáculo.

— Já ia esquecendo — exclamou ela, de repente. — Quedê o colar?

E estendeu a mão. Edward, completamente confuso, ti­rou-o do bolso e entregou-lhe. Para seu total espanto, ela, com a maior calma, colocou-o no pescoço. Depois sorriu-lhe, de um modo enlouquecedor.

— Agora — disse baixinho, — vamos dançar.

Dançaram. E em todo o Ritson’s não havia nada mais perfeito para se ver.

Por fim, ao voltarem para a mesa, um velhote com ar de conquistador aproximou-se da companheira de Edward.

— Ah! Lady Noreen, como sempre, dançando! Pois é, pois é. E o Capitão Elliot, não veio?

— O Jimmy levou um tombo... torceu o né.

— Não diga! Como foi que aconteceu?

— Ainda não sei os detalhes. Riu e passou adiante.

Edward seguiu-a, com a cabeça num torvelinho. Agora sabia. Lady Noreen Elliot, a famosa Lady Noreen em pessoa, talvez a mulher mais comentada da Inglaterra. Festejada pela sua beleza, pela sua ousadia — expoente máximo da­quela roda que se convencionou chamar de “jeunese dorée”. Seu noivado com o Capitão James Elliot, condecorado com a Cruz da Vitória, membro do Corpo de Cavalaria Real, ha­via sido participado recentemente.

Mas, e o colar? Para ele, aquilo continuava sem expli­cação. Mesmo com o risco de se denunciar, precisava saber.

Ao se sentarem de novo, apontou para os brilhantes.

— Por que vocês fizeram isso, Noreen? — perguntou — Me diga, por quê?

Ela sorriu, lânguida, o olhar distante, ainda sob o efei­to mágico da dança.

— Tenho a impressão de que para você é difícil de en­tender. A gente acaba cansando de fazer sempre a mesma coisa... sempre a mesma coisa. As gincanas serviram para divertir durante certo tempo, mas no fim viraram rotina. Quem teve a idéia dos “roubos” fui eu. Cada um aposta cin­qüenta libras e depois tira-se a sorte. Este já é o terceiro. Pro Jimmy e pra mim saiu a Agnes Larella. Sabe as re­gras? Dá-se um prazo de três dias para executar o roubo e o produto da pilhagem tem que ser usado no mínimo uma hora em público, senão a gente perde o que apostou e ainda paga uma multa de cem libras. Foi um azar danado o Jimmy torcer o pé, mas estou certa de que pegaremos a bolada.

— Ah! — exclamou Edward, respirando fundo. — Agora entendi.

Noreen se levantou bruscamente, puxando o xale sobre os ombros.

— Me leve de carro a qualquer lugar por aí. Ao cais do porto, por exemplo. Um lugar que seja perigoso e em­polgante. Espere um pouco... — Ergueu os braços e abriu o fecho do colar na nuca. — É melhor você guardar isto de novo. Não quero ser assassinada por causa dele.

Saíram juntos do Ritson’s. O carro parou numa rua­zinha transversal, estreita e escura. Ao dobrarem a esquina que lhe dava acesso, outro carro estacionou no meio-fio e um rapaz saltou do seu interior.

— Graças a Deus, Noreen. Até que enfim a encontro — exclamou. — A coisa está preta. Aquele burro do Jimmy pegou o carro errado. Só Deus sabe aonde andam os tais brilhantes a esta hora. Nos metemos numa embrulhada dos diabos.

Lady Noreen olhou bem para ele.

— Que que você está falando aí? Nós já temos os bri­lhantes... quer dizer, o Edward tem.

— O Edward?

— É.

Fez um pequeno gesto, indicando o vulto a seu lado.

“Quem se meteu numa embrulhada dos diabos agora fui eu”, pensou Edward. “Sou capaz de apostar que este cara aí é o mano Gerald.”

O rapaz olhou bem para ela.

— Que história é essa? — retrucou, hesitante. — O Ed­ward está na Escócia.

— Hã! — exclamou ela. Virou-se para Edward. — Oh!

Corou e depois empalideceu.

— Então você — murmurou — é mesmo ladrão?

Edward levou apenas um minuto para se dar conta da situação. Nos olhos dela havia assombro — seria possível que fosse... de admiração? Devia explicar? Nada disso! Representaria o papel até o fim.

Fez-lhe uma reverência, bem cerimoniosa.

— Tenho que lhe agradecer, Lady Noreen — disse, na melhor tradição dos salteadores de estrada, — por uma noi­tada simplesmente maravilhosa.

Olhou depressa para o carro de onde o outro acabava de descer.  Era vermelho, de capota reluzente.  O seu carro!

— E desejo-lhe uma boa noite.

Um pulo ágil e estava lá dentro, com o pé na embrea­gem. O carro arrancou. Gerald ficou paralisado, mas a moça foi mais rápida. Quando o carro saiu rodando, ela saltou e se apoiou no estribo.

O carro deu uma guinada, dobrou a esquina às cegas e parou de chofre. Noreen, ainda ofegante do salto, pousou a mão no braço de Edward.

— Você tem que me dar o colar... ah, você tem que me dar. Eu preciso devolver a Agnes Larella. Seja cama­rada... nós passamos uma ótima noitada juntos... dança­mos... fomos amigos. Não vai me dar o colar? A mim?

Uma mulher de deixar a gente estonteado de tanta be­leza. Então de fato existiam mulheres assim...

Além disso, Edward estava simplesmente louco para se ver livre do colar. Era uma oportunidade caída do céu para um beau geste.

Tirou-o do bolso e largou-o na mão que ela lhe estendia.

— Fomos... amigos — disse ele.

— Ah! — Os olhos dela pegaram fogo... se iluminaram.

E aí, surpreendentemente, baixou a cabeça para ele. Pôde segurá-la um instante, com os lábios colados nos seus...

Depois ela saltou fora. O carro vermelho seguiu adiante, chispando.

Romance!

Aventura!

 

Às doze horas do dia de Natal, Edward Robinson entrou na pequena sala de visitas de uma casa em Clapham, dando os costumeiros votos de “Feliz Natal”.

Maud, que estava arrumando um galho de azevinho, re­cebeu-o com frieza.

— Divertiu-se muito lá no campo com aquele seu amigo? — perguntou.

— Olhe aqui — disse Edward. — Aquilo foi uma men­tira que eu preguei a você. Eu ganhei 500 libras num con­curso e comprei um carro com elas. Não contei nada pra você porque sabia que ia dar uma briga dos diabos. Essa é a primeira coisa. Comprei o carro e não se fala mais nisso. A segunda é o seguinte... não pretendo esperar anos a fio. Estou com perspectivas bastante boas e quero casar com você no mês que vem. Compreendeu?

— Oh! — exclamou Maud, sem forças.

Seria possível que aquele ali fosse o Edward, falando desse modo autoritário?

— Você topa? — perguntou Edward. — Sim ou não?

Olhava-o fascinada. Havia assombro e admiração nos seus olhos, e a visão daquele olhar era estonteante para Edward. Não tinha mais nada daquele paciente ar maternal que tanto o exasperava.

Era assim que Lady Noreen havia olhado para ele na véspera. Mas Lady Noreen estava perdida na distância, refu­giada nas regiões do Romance, ao lado da Marchesa Bianca. Aquilo ali era a realidade. Aquela ali era a mulher dele.

— Sim ou não?  — repetiu, dando um passo à frente.

— S ...s ...sim — gaguejou Maud. — Mas, oh, Edward, o que aconteceu?  Você hoje está tão diferente.

— Pois é — disse Edward. — É que por vinte e quatro horas fui homem em vez de verme... e, palavra, valeu a pena!

Tomou-a nos braços, quase como Bill, o super-homem, teria feito.

— Você me ama, Maud?  Diga, você me ama?

— Ah, Edward!  — suspirou Maud. — Eu te adoro...

 

JANE PROCURA EMPREGO

Jane Cleveland folheou rapidamente as páginas do Daily Leader e suspirou — um suspiro que parecia saído do fundo do coração. Olhou com repugnância para a mesa de már­more, onde repousava o ovo poché sobre a torrada, e o pe­queno bule de chá. Não que lhe faltasse apetite. Longe disso. Jane estava com um apetite voraz. Naquele momento sentia-se capaz de devorar quase um quilo de bife bem-passado, com batatas fritas e, se possível, um pouco de vagem. Tudo regado a uma bebida mais empolgante que chá.

Mas as moças cujas finanças andam em péssima situação não podem ser exigentes. Jane devia dar-se por feliz de estar em condições de pedir um ovo poché com chá e tor­radas. Amanhã talvez não conseguisse fazer o mesmo. Isto é, a menos que...

Voltou mais uma vez às colunas de anúncios do Daily Leader. Para falar bem claro, Jane estava desempregada e sua posição começava a se tornar crítica. A distinta senhora que dirigia a miserável casa de pensão já andava olhando a nossa heroína de um modo atravessado.

“E no entanto — pensou Jane, levantando o queixo in­dignada, conforme seu hábito, — sou inteligente, bonita e instruída. Que mais querem?”

Segundo o Daily Leader, pareciam querer estenodatilógrafas de vasta experiência, gerentes para casas de negócio com um pouco de capital para investir, senhoras para dividir os lucros de produtos de granja (onde também se requeria um pequeno capital) e uma infinidade de cozinheiras, criadas e copeiras — sobretudo estas últimas.

“Não me importaria de ser copeira” — disse Jane con­sigo mesma. — “Mas é a tal história, tem que ter experiên­cia. Acho que podia me apresentar em qualquer lugar, como uma moça com vontade de aprender... o diabo é que essa gente paga uma miséria para quem tem vontade de aprender.”

Suspirou de novo, armou o jornal à sua frente e atirou-se sobre o ovo poché com todo o ímpeto de uma juventude saudável.

Depois de dar cabo da última garfada, virou a página do jornal e, enquanto tomava o chá, examinou a seção de anúncios particulares e de pessoas em situação aflitiva. Essa coluna era sempre a derradeira esperança.

Se Jane dispusesse de duas mil libras, a coisa até que seria fácil. Havia pelo menos sete oportunidades únicas — todas rendendo um mínimo de três mil libras anuais. Fran­ziu um pouco os lábios.

“Se eu tivesse duas mil libras — murmurou, — não me separaria delas assim sem mais nem menos.”

Passou rapidamente os olhos de alto a baixo, com a destreza adquirida pela longa prática.

Tinha a interessada em roupas velhas, oferecendo preços fabulosos — “atende-se a domicílio”; homens que compra­vam TUDO, mas principalmente DENTADURAS; damas aristocratas que, “por motivo de viagem”, queriam desfazer-se de seus abrigos de pele por quantias irrisórias; o clérigo em apertos, a viúva trabalhadora, o militar inválido — todos precisando de importâncias que oscilavam entre cinqüenta e duas mil libras. De repente Jane estacou. Largou a xícara de chá e releu o anúncio do princípio ao fim.

“Ah, mas aqui deve haver gato escondido — murmurou. — Nesse tipo de coisa há sempre. Convém tomar cuidado. Mas mesmo assim...”

O anúncio que havia despertado a curiosidade de Jane Cleveland dizia o seguinte:

 

“Você é moça de vinte e cinco a trinta anos de idade, tem olhos azul-escuro, cabelo bem louro, pestanas e so­brancelhas pretas, nariz reto, corpo esbelto, 1,67 m de altura, talento para representar e sabe falar francês? Compareça, então, a Endersleigh Street, n.° 7, das 5 às 6 da tarde, para tratar de assunto de seu interesse.”

 

“A ingênua Gwendolen” ou “Porque as moças se desencaminham” — murmurou Jane. — “Não resta dúvida, preciso tomar cuidado. Mas a verdade é que há um excesso de especificações para que isso seja o que estou pensando. Será que... Deixe ver de novo.” “De vinte e cinco a trinta anos...” tenho vinte e seis. “Olhos azul-escuro”, confere. “Cabelo bem louro.... pestanas e sobrancelhas pretas”... tudo exato. “Nariz reto”? É... é... é... bastante. Pelo menos não é adunco nem arrebitado. E “corpo esbelto” eu também tenho, mesmo para os dias de hoje. Meço apenas l,65m... mas posso usar salto alto. Quanto a talento para representar, não sou nenhum assombro, mas sei imitar vozes e falo francês com perfeição. Em suma, satisfaço todos os requisitos. Esse pessoal só pode delirar quando me vir. Jane Cleveland, vá lá e mostra o que é classe.”

Decidida, Jane recortou o anúncio e guardou-o na bolsa. Depois pediu a conta com uma animação inédita na voz.

Faltavam dez para as cinco quando chegou a Endersleigh Street, uma pequena rua transversal, feia, porém res­peitável, encolhida entre duas ruas maiores, nas proximida­des do Oxford Circus.

O n.° 7 não apresentava nada que o diferenciasse das demais casas da vizinhança. Tal como os outros, o prédio se destinava exclusivamente a escritórios. Mas ao procurá-lo, Jane, pela primeira vez, notou que não era a única mu­lher de olhos azuis, cabelo louro, nariz reto e corpo esbelto, de vinte e cinco a trinta anos de idade. Londres, evidente­mente, estava cheia de moças desse tipo, sendo que pelo menos quarenta ou cinqüenta se aglomeravam diante do n.° 7 da Endersleigh Street.

“Quanta concorrência — pensou Jane. — É melhor en­trar logo na fila.”

Mal tinha feito isso e mais três moças surgiram na es­quina. Depois vieram outras. Jane se entreteve a analisar as que estavam mais perto. Conseguiu encontrar defeito em cada uma delas — pestanas louras em vez de pretas, olhos mais para o cinza que para o azul, cabelos louros à custa de água oxigenada, uma interessante variedade de narizes, e corpos que só uma alma caridosa classificaria de esbeltos. Jane ficou toda esperançosa.

“Tenho a impressão de que nenhuma satisfaz plena­mente os requisitos como eu — pensou. — Pra que será que é? No mínimo andam à cata de coristas para alguma peça teatral.”

A fila avançava devagar, mas sem interrupções. Por fim começou a sair do prédio uma segunda leva de moças. Algu­mas sacudiam a cabeça, outras sorriam, presunçosas.

“Rejeitadas — pensou Jane, com alegria. — Tomara que não preencham todas as vagas antes de chegar a minha vez.”

A fila continuou avançando. As moças se olhavam ner­vosas nos espelhinhos, empoando freneticamente o nariz e retocando os lábios sem parar.

“Pena que meu chapéu não seja mais elegante” — refle­tiu Jane com tristeza.

Afinal chegou a sua vez. Passando a entrada havia uma porta envidraçada lateral, onde se liam os dizeres: “Cuthbertson & Cuthbertson.” Era por ela que sumiam, uma a uma, as candidatas.   Jane hesitou um pouco, tomou fôlego e entrou.

Do lado de dentro havia uma primeira sala, evidente­mente destinada aos funcionários da firma. Ao fundo via-se outra porta envidraçada. Indicaram-lhe que era por ali que devia passar. Jane encontrou-se, então, numa saleta com uma escrivaninha grande, ocupada por um homem já ma­duro, de olhar penetrante e bigode grosso, com ar de estran­geiro. Contemplou Jane de alto a baixo, depois apontou-lhe uma porta à esquerda.

— Tenha a bondade de esperar lá dentro — disse com firmeza.

Jane obedeceu. Na sala em que entrou já havia cinco moças, todas sentadas, muito empertigadas, entreolhando-se ferozmente. Não teve mais dúvidas: era óbvio que estava incluída entre as possíveis candidatas. Encheu-se de espe­rança. Era-lhe, no entanto, forçoso reconhecer que as ou­tras cinco satisfaziam tão bem quanto ela os requisitos especi­ficados no anúncio.

O tempo foi passando. Levas e levas de candidatas, naturalmente, continuavam desfilando pela saleta contígua, a maioria retirando-se pela porta que dava para o corredor. De vez em quando, porém, entrava uma nova pretendente para aumentar o número das finalistas. Às seis e meia havia quatorze moças reunidas ali.

Ouviu-se um murmúrio de vozes na saleta e aí então o homem de ar estrangeiro, que Jane tinha resolvido apeli­dar de “coronel”, por causa do aspecto militar do bigode que usava, apareceu na porta.

— Se quiserem me fazer a fineza — declarou, — aten­derei uma de cada vez. Pela ordem de chegada, por favor.

Jane, evidentemente, era a sexta da lista. Transcorre­ram vinte minutos até que fosse convidada a entrar. O “co­ronel” estava parado de pé, com as mãos às costas. Subme­teu-a a uma rápida série de perguntas, testou os seus conhecimentos de francês e tirou-lhe a altura.

— É possível que mademoiselle sirva — disse, em fran­cês. — Não sei. Mas é possível.

— Que emprego é esse, pode-se saber?— perguntou Jane, sem rodeios.

Ele encolheu os ombros.

— Quanto a isso, ainda não estou em condições de lhe responder. Se for a escolhida... então saberá.

— Isso está me parecendo muito misterioso — objetou Jane. — Eu não posso, de maneira nenhuma, aceitar um emprego sem saber do que se trata. É alguma coisa relacio­nada com teatro, talvez?

— Com teatro? Não, absolutamente.

— Ah! — exclamou Jane, meio decepcionada.

Ele estava olhando atentamente para ela.

— Mademoiselle me parece uma pessoa inteligente. E dis­creta, não é?

— Inteligência e discrição são qualidades que tenho de sobra — respondeu Jane calmamente. — E quanto ao salário?

— O salário é de duas mil libras... por quinze dias de trabalho.

— Ah! — exclamou Jane, quase sem voz.

Estava tão atônita com a prodigalidade da soma ofere­cida que não conseguiu voltar logo ao normal.

O “coronel” prosseguiu:

— Já escolhi outra candidata. Tanto ela como made­moiselle satisfazem plenamente nossos requisitos. Talvez haja outras que ainda não entrevistei. Eu lhe darei instruções sobre o que deve fazer. Conhece o Hotel Harridge?

Jane ficou boquiaberta. Quem na Inglaterra não conhe­ce o Harridge, o famoso hotel situado discretamente numa rua transversal de Mayfair, onde figuras ilustres e da realeza entram e saem com a maior naturalidade? Naquela manhã mesmo, Jane tinha lido a notícia da chegada da grã-duquesa Paulina da Ostrova, que viera inaugurar uma grande feira de caridade em benefício dos refugiados russos e estava, na­turalmente, hospedada no Harridge.

— Conheço — disse Jane, em resposta à pergunta do “coronel”.

— Muito bem. Vá até lá. Peça para falar com o Conde Streptitch. Mande entregar seu cartão...  mademoiselle tem cartão de visita, não tem?

Jane tirou um da bolsa. O “coronel” pegou-o e anotou no canto um minúsculo P. Depois devolveu-o.

— Isso fará com que o Conde a receba.  Ele vai logo ver que fui eu que a enviei.  A decisão final corre por conta dele... e de outra pessoa. Se achar que mademoiselle serve, ele lhe explicará o que deve fazer, e mademoiselle então pode aceitar ou rejeitar a proposta. Fica bem assim?

— Perfeitamente — respondeu Jane.

“Por enquanto”, murmurou baixinho ao sair de novo na rua, “não consigo ver nenhum gato escondido. Mas tem que haver. Esse negócio de dar dinheiro a troco de nada não existe. Garanto como tem algo que ver com crime! Não pode ser outra coisa.”

Sentiu-se mais animada. Até certo ponto, Jane não fazia objeções ao crime. Os jornais ultimamente andavam cheios de façanhas de uma porção de bandidas. Jane tinha pen­sado seriamente em tornar-se uma, caso falhassem todas as suas outras tentativas.

Cruzou as portas aristocráticas do Harridge com certo nervosismo. Arrependia-se, mais do que nunca, de não ter comprado um chapéu novo.

Mas dirigiu-se corajosamente à portaria, apresentou seu cartão e pediu para falar com o Conde Streptitch, sem a mínima sombra de hesitação no comportamento. Pareceu-lhe que o funcionário da portaria tinha olhado para ela de um jeito meio estranho. Mas pegou o cartão e entregou-o a um menino de recados, com algumas instruções em voz baixa que Jane não conseguiu entender. O menino final­mente voltou, convidando-a a acompanhá-lo. Subiram no elevador e passaram por um corredor até chegar a uma grande porta dupla, onde o menino bateu. Um momento depois, Jane viu-se numa sala ampla, diante de um homem alto e magro, de barba loura, que estava segurando languidamente o seu cartão na mão muito branca.

— Miss Jane Cleveland — leu devagar. — Eu sou o Conde Streptitch.

Os lábios se abriram de repente no que provavelmente tencionava ser um sorriso, mostrando duas fileiras de dentes alvos e parelhos, mas sem transmitir nenhuma sensação de alegria.

— Pelo que vejo, mademoiselle se candidatou à vaga oferecida no nosso anúncio — continuou o Conde. — Vem recomendada pelo bom Coronel Kranin.

“Então ele é Coronel”, pensou Jane, satisfeita com sua perspicácia, mas limitando-se a confirmar com a cabeça.

— Não se importa que lhe faça algumas perguntas?

E sem esperar que Jane respondesse, passou a submetê-la a um questionário muito semelhante ao do Coronel Kranin. Pareceu dar-se por satisfeito com as respostas. De vez em quando sacudia a cabeça.

— Agora, mademoiselle, vou lhe pedir que caminhe até a porta e depois volte, bem devagar.

“Talvez me queiram como modelo” — pensou Jane, en­quanto atendia o pedido. — “Mas não iriam pagar duas mil libras por uma modelo. Em todo caso, acho melhor não perguntar nada por enquanto.”

O Conde Streptitch franziu a testa. Tamborilava na mesa. com os dedos brancos. De repente levantou-se e, abrindo a porta da sala ao lado, falou com alguém lá dentro.

Voltou a sua cadeira, e uma senhora baixa, de meia--idade, entrou, fechando a porta às suas costas. Era gorda e extremamente feia, mas apesar disso tinha jeito de ser pes­soa importante.

— Então, Anna Michaelovna — disse o Conde. — Que é que você acha?

A mulher examinou Jane da cabeça aos pés, como se fosse uma figura de cera num museu. Nem se deu ao tra­balho de cumprimentá-la.

— Talvez sirva — respondeu, afinal. — De parecida mesmo, no sentido exato da palavra, tem muito pouco. Mas o corpo e o colorido geral são ótimos, melhores do que qual­quer uma das outras. Você não acha, Feodor Alexandrovitch?

— Concordo plenamente, Anna Michaelovna.

— Ela fala francês?

— Fala, maravilhosamente

Jane se sentia, cada vez mais, como um autômato. Aque­las duas estranhas personagens nem pareciam se dar conta de que ela era uma pessoa viva.

— Mas será que é discreta? — perguntou a mulher, franzindo a carranca para Jane.

— Esta é a Princesa Poporensky — disse o Conde Streptitch a Jane, em francês. — Ela quer saber se mademoiselle é capaz de ser discreta.

Jane respondeu diretamente à Princesa.

— Acho muito difícil fazer qualquer promessa enquanto não me explicarem que tipo de emprego é esse.

— Olhe só o que a menina está dizendo — comentou a mulher. — Acho que ela é inteligente, Feodor Alexandrovitch... mais que as outras. Diga-me uma coisa, menina, você também é valente?

— Não sei — respondeu Jane, confusa. — Não gosto muito de me machucar, mas também não sou de fazer manha.

— Ah!    Não é a isso que me refiro. Você não tem medo do perigo, não?

— Ora — disse Jane. — Perigo! Pouco se me dá. Até gosto.

— E você é pobre? Gostaria de ganhar muito dinheiro?

— Ainda duvidam? — retrucou Jane, começando a se entusiasmar.

O Conde Streptitch e a Princesa Poporensky se entre­olharam. Depois concordaram, simultaneamente.

— Explico o assunto para ela, Anna Michaelovna?  — perguntou o primeiro.

A Princesa sacudiu a cabeça.

— Sua Alteza deseja fazer isso pessoalmente.

— Não vejo necessidade... e não me parece aconselhável.

— Seja como for, é a ordem que ela me deu. Levar a moça lá dentro assim que você tivesse terminado a entrevista.

Streptitch encolheu os ombros. Era evidente que não estava contente. E que também não tinha a mínima inten­ção de desobedecer a ordem. Virou-se para Jane.

— A Princesa Poporensky apresentará mademoiselle à Sua Alteza, a Grã-Duquesa Paulina.    Não se assuste.

Jane não estava nada assustada. Ficou maravilhada com a idéia de ser apresentada a uma grã-duquesa de carne e osso. Jane não tinha nada de socialista. Naquele momento che­gou até a se esquecer da sua preocupação com o chapéu.

A Princesa Poporensky tomou a dianteira, caminhando com um passo gingado que conseguiu revestir de certa digni­dade, apesar da natureza não ajudá-la. Atravessaram a sala contígua, que era uma espécie de antecâmara, e a Princesa bateu numa porta na parede oposta. Uma voz respondeu lá de dentro, a Princesa girou a maçaneta e entrou, com Jane colada em seus calcanhares.

— Alteza, permita-me apresentar-lhe — disse a Princesa numa voz solene, — Miss Jane Cleveland.

A moça, que estava sentada numa poltrona enorme na outra extremidade da sala, levantou-se de um salto e aproxi­mou-se correndo. Olhou fixamente para Jane durante algum tempo, depois deu uma risada de alegria.

— Mas isto é maravilhoso, Anna — exclamou. — Nunca pensei que fôssemos ter tanta sorte assim. Venha cá, vamos nos olhar lado a lado.

E pegando Jane pelo braço, puxou-a pelo meio da sala, parando diante de um espelho de corpo inteiro pendurado na parede.

— Está vendo? — exclamou, encantada. — É uma ré­plica perfeita!

Já à primeira vista, Jane havia começado a entender. A Grã-Duquesa era, talvez, um ou dois anos mais velha do que ela. Tinha a mesma tonalidade de cabelo louro e o mesmo corpo esbelto. Seria, possivelmente, um pouquinho mais alta. Agora que estavam de pé, lado a lado, a semelhança tornava-se quase gritante. Detalhe por detalhe, o colorido era quase exatamente igual.

A Grã-Duquesa bateu palmas. Parecia ser extremamente alegre.

— Não podia ser melhor — declarou. — Você tem que felicitar o Feodor Alexandrovitch em meu nome, Anna. Ele de fato se saiu muito bem.

— Alteza — murmurou a Princesa em voz baixa, — esta moça ainda não sabe o que ela terá que fazer.

— Ah, é verdade — disse a Grã-Duquesa, tornando-se um pouco mais calma. — Eu me esqueci. Bem, eu vou lhe explicar. Pode nos deixar a sós, Anna Michaelovna.

— Mas, Alteza...

— Deixe-nos a sós, já disse.

Bateu com o pé, zangada. Com considerável relutância, Anna Michaelovna retirou-se da sala. A Grã-Duquesa sen­tou-se e indicou que Jane devia fazer o mesmo.

— Como são cansativas essas velhas — comentou Pau­lina. — Mas a gente tem que se conformar com elas. A Anna Michaelovna até que não é das piores. Pois, muito bem, Miss...  ah, sim, Miss Jane Cleveland. Gostei do seu nome. E de você também. Você é compreensiva. Eu logo noto quando uma pessoa é compreensiva.

— A senhora é muito perspicaz — disse Jane, falando pela primeira vez.

— Sou mesmo — concordou Paulina, calmamente. Bom, agora vou lhe explicar a situação. Não que tenha muita coisa para explicar. Você conhece a história da Ostrova. Toda a minha família, praticamente, está morta... massacrada pelos comunistas. Sou, talvez, a última da minha dinastia. Sendo mulher, não posso ocupar o trono. A gente seria capaz de pensar que fossem deixar-me em paz. Pois sim, aonde quer que eu vá, fazem tentativas para me assas­sinar. Que absurdo, não é? Esses brutamontes encharcados de vodca nunca têm o menor senso das proporções.

— Compreendo — disse Jane, sentindo que tinha que dizer alguma coisa.

— Na maior parte do tempo, vivo isolada... onde posso tomar precauções, mas de vez em quando preciso participar de cerimônias públicas. Enquanto estiver aqui na Inglaterra, por exemplo, devo comparecer a diversas solenidades públicas. Como também em Paris, quando passar por lá. Tenho uma propriedade na Hungria, sabe? O esporte lá é uma maravilha.

— É mesmo? — disse Jane.

— Um colosso. Adoro esportes. Além disso... eu nem devia lhe contar, mas não faz mal, você tem um rosto tão compreensivo... existem planos em andamento por lá... na maior discrição, compreende? Em suma, é importantíssimo que eu não seja assassinada durante as duas próximas semanas.

— Mas a polícia sem dúvida... — começou Jane.

— A polícia? Ah, é, parece que eles são ótimos. E nós também... nós temos os nossos espiões. É possível que eu seja informada de antemão sobre a data do atentado. Mas também é possível que não.

Encolheu os ombros.

— Estou começando a entender — disse Jane, bem de­vagar. — A senhora quer que eu tome o seu lugar?

— Só em certas ocasiões — frisou a Grã-Duquesa. — Você tem que estar sempre à mão, compreende? Eu posso precisar duas, três ou quatro vezes de sua ajuda durante a próxima quinzena. Em cada uma delas haverá uma solenidade pública. Naturalmente, em qualquer espécie de inti­midade, você não poderia me substituir.

— Claro que não — concordou Jane.

— Você vai servir muito bem mesmo. O Feodor Alexandrovitch foi esperto em se lembrar de pôr um anúncio, não é?

— Suponhamos — lembrou Jane, — que eu seja as­sassinada?

A Grã-Duquesa encolheu os ombros.

— Existe este risco, é lógico, mas segundo o nosso ser­viço secreto, eles querem me raptar, e não me matar ime­diatamente. Mas serei bem franca... é sempre possível que joguem alguma bomba.

— Compreendo — disse Jane.

Esforçava-se para imitar as maneiras despreocupadas de Paulina. Queria muito tratar da questão do dinheiro, mas não conseguia achar a melhor forma de entrar no assunto. Paulina, porém, poupou-lhe o incômodo.

— Nós lhe pagaremos bem, naturalmente — disse, com indiferença. — De momento não me lembro exatamente quanto foi que o Feodor Alexandrovitch sugeriu. Estávamos falando em francos ou coroas alemãs.

— O Coronel Kranin — disse Jane — mencionou qual­quer coisa a respeito de duas mil libras.

— Isso mesmo — exclamou Paulina, animando-se. — Agora me lembro. Espero que seja suficiente, não?  Ou quem sabe prefere três mil?

— Bom — disse Jane, — se não lhe faz diferença, eu prefiro, sim.

— Estou vendo que sabe tratar de negócios — disse a Grã-Duquesa, toda amável.  — Quem me dera que eu sou­besse. Mas não tenho a mínima idéia do valor do dinheiro. Tudo o que eu quero tenho que conseguir, e pronto.

Pareceu a Jane uma ingênua, porém admirável disposição de temperamento.

— E naturalmente, como você diz, existe o perigo — continuou Paulina, pensativa. — Embora não me dê impressão de que se preocupe com isso. Eu também não ligo. Es­pero que não pense que seja por covardia que quero que tomemeu lugar, hem? Sabe o que é, para a Ostrova é importantíssimo que eu case e tenha, pelo menos, dois filhos. Depois disso, pouco interessa o que possa me acontecer.

— Compreendo — disse Jane.

— Então, aceita?

— Sim — respondeu Jane, decidida. — Aceito.

Paulina bateu palmas várias vezes, com veemência. A Princesa Poporensky apareceu em seguida.

— Já contei tudo a ela, Anna — anunciou a Grã-Duque­sa. — Ela vai fazer o que nós queremos, e tem que receber três mil libras. Mande o Feodor anotar isso. Ela é muito parecida comigo, não é? Só que eu acho que é mais bonita.

A Princesa saiu da sala gingando e voltou com o Conde Streptitch.

— Já está tudo combinado, Feodor Alexandrovitch — disse a Grã-Duquesa.

O Conde fez uma reverência.

— Será que ela sabe interpretar o papel? — perguntou, olhando em dúvida para Jane.

— Vou lhe mostrar — disse de repente. — A senhora me dá licença?  — perguntou à Grã-Duquesa.

Esta última concordou, encantada, com a cabeça.

Jane se levantou.

— Mas isto é maravilhoso, Anna — exclamou. — Nunca pensei que fôssemos ter tanta sorte assim. Venha cá, vamos nos olhar lado a lado.

E, tal como Paulina tinha feito, puxou a outra para a frente do espelho.

— Está vendo?   É uma réplica perfeita!

Palavras, modos e gestos, era tudo uma excelente imita­ção da maneira como Paulina a havia recebido. A Princesa sacudiu a cabeça e deu um grunhido de aprovação.

— Está ótimo — declarou. — Enganaria muita gente.

— Como você é inteligente — disse Paulina, com admi­ração. — Eu não saberia imitar ninguém, mesmo para salvar minha própria vida.

Jane achou que ela estava dizendo a verdade. Já se tinha dado conta de que Paulina era uma moça de personalidade muito marcante.

— A Anna vai tratar dos pormenores com você — disse a Grã-Duquesa. — Leve-a para o meu quarto, Anna, e faça-a experimentar algumas das minhas roupas.

Fez um gracioso gesto de despedida com a cabeça e Jane se viu arrastada pela Princesa Poporensky.

— Este aqui é o vestido que Sua Alteza vai usar para inaugurar a feira de caridade — explicou a velha, mostrando uma ousada criação em preto e branco. — Será daqui a três dias. Talvez seja preciso que você a substitua na ocasião. Ainda não se sabe. Não recebemos informações.

A pedido de Anna, Jane despiu seus pobres trajes e expe­rimentou o vestido. Servia-lhe como uma luva. A outra sacudiu a cabeça, aprovando.

— Está quase perfeito... apenas um pouco comprido demais, porque você é uns três centímetros mais baixa que Sua Alteza.

— Isso é fácil de remediar — disse logo Jane. — A Grã­-Duquesa usa sapatos de salto baixo, eu notei. Se eu usasse o mesmo tipo de sapatos, mas com salto alto, ia ficar muito bem.

Anna Michaelovna mostrou-lhe o par que a Grã-Duquesa usava geralmente com o vestido — sapatos de crocodilo, com pulseira no tornozelo. Jane memorizou-o, para ver se con­seguia outro igual, mas com salto diferente.

— Seria bom — sugeriu Anna Michaelovna — que você tivesse um vestido de cor e tecido completamente diferentes do de Sua Alteza. Assim, caso seja preciso substituí-la de um momento para outro, é menos provável que alguém note.

Jane pensou um pouco.

— Que tal um de marroquim bem vermelho? E eu po­deria, talvez, usar um lorgnon de lentes sem grau. Isso modi­fica muito a aparência.

As duas sugestões foram aprovadas. Passaram a com­binar os pormenores.

Jane saiu do hotel com cem libras na bolsa e a recomen­dação para comprar o traje necessário e se hospedar no Hotel Blitz sob o nome de Miss Montresor, de Nova York.

No segundo dia subseqüente, o Conde Streptitch foi lhe fazer uma visita.

— Puxa, que transformação! — exclamou, com uma reverência.

Jane agradeceu com outra, porém irônica. Estava se divertindo muito com as roupas novas e aquela vida de luxo.

— Tudo isto está uma delícia — suspirou. — Mas creio que sua visita significa que preciso entrar em ação para mere­cer o dinheiro que devo receber.

— Exatamente. Acabam de chegar as informações. Pa­rece provável que haja um atentado para raptar Sua Alteza no trajeto de volta da feira para o hotel. A feira, conforme mademoiselle já sabe, será realizada em Orion House, que fica a uns quinze quilômetros de Londres. Sua Alteza terá que comparecer pessoalmente à inauguração, uma vez que a Condessa de Anchester, que patrocina a feira, conhece muito bem a Grã-Duquesa. Mas já elaborei um plano.

Jane escutou atentamente a explicação que ele deu.

Fez algumas perguntas e por fim declarou que tinha compreendido perfeitamente o papel que devia representar.

O dia seguinte amanheceu claro e límpido — um dia perfeito para um dos grandes acontecimentos da temporada londrina, a feira de caridade em Orion House, promovida pela Condessa de Anchester em benefício dos refugiados ostrovianos que se encontravam na Inglaterra.

Em virtude das irregularidades do clima inglês, a feira propriamente dita se efetuou no interior dos espaçosos salões de Orion House, que há cinco séculos pertencia aos Condes de Anchester. Diversas coleções particulares, gentilmente cedi­das, achavam-se ali expostas e uma centena de mulheres da alta sociedade havia tido a luminosa idéia de doar, cada uma, uma pérola tirada de seus colares, para serem leiloadas no segundo dia. Também deviam realizar-se inúmeros espetá­culos com uma série de atrações nos jardins da mansão.

Jane, no papel de Miss Montresor, foi das primeiras a chegar. Trajava um vestido de marroquim cor de fogo, com um pequeno chapéu cloche vermelho. Calçava sapatos de crocodilo de salto alto.

A Grã-Duquesa Paulina fez uma entrada espetacular. Um séquito a acompanhou até a plataforma, onde uma crian­ça entregou-lhe o indefectível buquê de rosas dessas ocasiões. A Grã-Duquesa pronunciou um rápido, mas simpático dis­curso, declarando aberta a feira. O Conde Streptitch e a Princesa Poporensky se mantiveram sempre a seu lado.

Ela estava com o vestido branco de grandes desenhos pretos que Jane já conhecia, e o chapéu era um pequeno cloche, também preto, com uma profusão de aigrettes bran­cas caindo da aba e um minúsculo véu de rendas encobrindo-lhe metade do rosto. Jane sorriu consigo mesma.

A Grã-Duquesa percorreu a feira, visitando todas as bar­racas, fazendo algumas compras e mostrando-se sempre muito afável. Depois preparou-se para ir embora.

Jane estava pronta para aproveitar a deixa. Pediu para trocar uma palavra com a Princesa Poporensky e solicitou permissão para ser apresentada à Grã-Duquesa.

— Ah, sim! — exclamou Paulina, em voz bem nítida. — Miss Montresor, eu me lembro deste nome. Me parece que é uma jornalista americana, não é? Ela tem-se esforçado muito por nossa causa. Terei o maior prazer em lhe conceder uma rápida entrevista para o seu jornal.   Não há al­gum canto em que se possa conversar sem que ninguém atrapalhe?

Colocaram imediatamente uma pequena antecâmara à disposição da Grã-Duquesa e o Conde Streptitch ficou incum­bido de mandar Miss Montresor entrar. Mal fez isso, tor­nando a se retirar, efetuou-se uma rápida troca de roupas na presença da Princesa Poporensky.

Três minutos depois a porta se abria, dando passagem à Grã-Duquesa com o rosto encoberto pelo buquê de rosas.

Curvando-se numa graciosa reverência e murmurando algumas palavras de despedida em francês para Lady Anchester, ela saiu e tomou o automóvel, que já estava esperando. A Princesa Poporensky ocupou o lugar a seu lado, e o carro partiu.

— Arre! — exclamou Jane. — Até que enfim! Como será que “Miss Montresor” está se vendo?

— Ninguém deve ter reparado nela. Poderá se retirar sem chamar atenção.

— De fato — concordou Jane. — Eu me saí bem, não?

— Você representou seu papel corri grande discrição.

— Por que o Conde não veio junto conosco?

— Ele tinha que ficar lá. Alguém precisa zelar pela segurança de Sua Alteza.

— Só espero que ninguém comece a jogar bombas — disse Jane, apreensiva. — Ei! Estamos nos afastando da estrada principal. Que negócio é este?

Tomando impulso, o carro chispava por um caminho lateral.

Jane pulou do assento e espichou a cabeça pela janela, protestando com o motorista, que se limitou a rir e aumentou a velocidade. Jane se encostou de novo no banco.

— Os espiões de vocês tinham razão — comentou, com uma risada. — Não há dúvida de que chegou a hora.   Me parece que quanto mais eu mantiver a farsa, tanto melhor para a Grã-Duquesa. Custe o que custar, temos que lhe dar tempo de voltar sã e salva a Londres.

Jane estava alvoroçada ante a perspectiva do perigo. Não tinha gostado da possibilidade de uma bomba, mas esse tipo de aventura animava-lhe o espírito esportivo.

De repente, com um rangido dos freios, o carro parou por completo. Um homem saltou no estribo. Estava de re­vólver em punho.

— Mãos ao alto — rosnou.

A Princesa Poporensky obedeceu logo, mas Jane simples­mente lançou-lhe um olhar de desdém e ficou com as mãos no colo.

— Pergunte-lhe o que significa este ultraje — disse em francês para a sua companheira.

Mas antes que a velhota tivesse tempo de abrir a boca, o homem impediu-a, proferindo uma torrente de palavras numa língua estrangeira.

Sem compreender patavina, Jane limitou-se a encolher os ombros e não disse nada. O motorista tinha descido do automóvel e estava ao lado do assaltante.

— A ilustre dama quer ter a bondade de sair? — pediu, com um sorriso.

Tornando a encobrir o rosto com as flores, Jane desceu do carro. A Princesa Poporensky fez o mesmo.

— A ilustre dama quer ter a bondade de vir por aqui?

Jane fingiu não notar o ar de deboche do assaltante, dirigindo-se espontaneamente a uma casa de construção baixa e irregular, que ficava a cerca de cem metros de distância do lugar onde o carro tinha parado. A estrada não passava de um beco sem saída que ia dar no portão e trilha que levava àque­le prédio aparentemente desabitado.

O homem, sempre de arma em punho, seguia as duas mulheres de perto. Depois que subiram os degraus, ele pas­sou à frente com um gesto brusco e escancarou a porta pelo lado esquerdo. Viram-se diante de uma sala vazia, onde haviam sido colocadas uma mesa e duas cadeiras.

Jane entrou e sentou-se. Anna Michaelovna fez o mes­mo O homem fechou a porta com estrondo e trancou-a a chave.

Jane foi até a janela e olhou para fora.

— Eu podia pular, lógico — observou. — Mas não iria longe. Não, nós simplesmente temos que ficar aqui por en­quanto, nos ajeitando da melhor maneira possível. Será que vão trazer alguma coisa para a gente comer?

Cerca de meia hora mais tarde veio a resposta a essa pergunta.

Trouxeram e colocaram em cima da mesa, à sua frente, uma grande terrina de sopa fumegante. E também dois pe­daços de pão seco.

— Evidentemente, nada de regalias para os aristocratas — comentou Jane alegremente, enquanto fechavam e tran­cavam a porta de novo. — Quer que eu lhe sirva primeiro?

A Princesa Poporensky repudiou com horror a mera idéia de tocar na comida.

— Como poderia eu? Sabe lá em que perigo não anda metida a minha senhora?

— Garanto que ela está muito bem — afirmou Jane. — É comigo que estou preocupada. Sabe, essa gente não vai ficar nada satisfeita quando descobrir que pegaram a pessoa errada. São até capazes de se tornar bem desagradáveis. Vou manter a farsa da altiva Grã-Duquesa enquanto puder, e dar o fora daqui na primeira oportunidade que surgir.

A Princesa Poporensky preferiu não responder.

Jane, que estava com muita fome, tomou toda a sopa. Tinha um gosto estranho, mas estava quente e saborosa.

Depois sentiu-se meio sonolenta. A Princesa Poporensky parecia estar chorando baixinho. Jane se ajeitou como pôde na cadeira incômoda, deixou pender a cabeça e adormeceu.

 

Acordou assustada. Tinha impressão de ter passado muito tempo dormindo. Sentia-se indisposta e com a cabeça pesada.

E de repente viu uma coisa que terminou de acordá-la por completo.

Estava com o vestido de marroquim cor de fogo.

Endireitou-se na cadeira e olhou em torno. Sim, conti­nuava na sala da casa vazia. Tudo estava exatamente como antes de ter caído no sono, com exceção de dois detalhes. Em primeiro lugar, a Princesa Poporensky não se achava mais sentada na outra cadeira. E o segundo era aquela inexplicável troca de roupa.

— Não posso ter sonhado — disse Jane. — Porque senão eu não estaria aqui.

Olhou para a janela e se deu conta de um novo fato significativo. Quando tinha adormecido, o sol caía de cheio na sala. Agora a casa projetava uma sombra enorme sobre a trilha ensolarada.

“A casa fica de frente para o oeste” — refletiu. — “Era de tarde quando comecei a dormir. Portanto já deve ser de manhã. E a sopa continha alguma droga. E... ah, sei lá. Tudo isso está me parecendo uma loucura”.

Levantou-se e foi até a porta. Não estava trancada. Examinou a casa. Tudo em silêncio e deserto.

Jane pôs a mão na cabeça dolorida e tentou pensar.

Foi então que enxergou um jornal rasgado junto à porta da frente. As manchetes garrafais lhe chamaram a atenção.

“Bandida americana na Inglaterra”, diziam. “A mulher do vestido vermelho. Sensacional assalto na feira de cari­dade em Orion House.”

Jane saiu cambaleando para a luz do dia. Sentou-se nos degraus e começou a ler, arregalando cada vez mais os olhos. A nota era curta e concisa.

Logo depois da partida da Grã-Duquesa Paulina, três indivíduos e uma mulher vestida de vermelho tinham sacado armas e assaltado com êxito a multidão, apoderando-se de uma centena de pérolas e fugindo num veloz carro de cor­ridas. Até o presente momento não haviam sido localizados

Uma notícia de última hora (era a edição da noite) tra­zia mais esclarecimentos, informando que “a bandida de ves­tido vermelho” estava hospedada no Blitz sob o nome de Miss Montresor, de Nova York.

“Fui lograda” — exclamou Jane. — “Completamente lo­grada. Eu sabia que tinha gato escondido nessa história.”

E aí então estremeceu. Um ruído estranho havia rom­pido o silêncio: a voz de um homem, pronunciando uma pala­vra a intervalos regulares.

— Droga — dizia. — Droga. — E, tornando a repe­tir: — Droga!

Jane vibrou. Aquilo exprimia perfeitamente o que esta­va sentindo. Desceu correndo os degraus. Ao pé deles, a um lado, encontrou um homem caído, esforçando-se para levantar a cabeça do chão. Tinha um dos rostos mais sim­páticos que se lembrava de ter visto: sardento e com uma expressão ligeiramente irônica.

— Droga de cabeça — disse o rapaz. — Droga. Eu...

Não terminou a frase, olhando fixamente para ela.

— Devo estar sonhando — murmurou, quase sem forças.

— Foi exatamente o que eu disse — retrucou Jane — Mas não estamos, não. Que foi que houve com sua cabeça?

— Alguém me bateu.    Ainda bem que ela é dura.

Conseguiu sentar-se e fez uma careta com ar de troça.

— Espero que daqui a pouco meu cérebro já esteja fun­cionando. Pelo que vejo, continuo no mesmo lugar de antes.

— Como veio parar aqui?  — perguntou Jane, curiosa.

— É uma longa história. Por falar nisso, você não é a Grã-Duquesa não-sei-o-quê, não é?

— Não sou, não. Sou apenas a Jane Cleveland.

— Apenas? Ora essa, por quê? — disse o rapaz, olhan­do-a com franca admiração.

Jane corou.

— Não quer que eu vá lhe buscar um pouco d’água ou qualquer coisa assim? — perguntou, incerta.

— Me parece que é de praxe — concordou o rapaz. — Em todo caso, eu preferia um uísque, se tiver.

Jane não conseguiu encontrar uísque nenhum. O rapaz tomou um grande gole de água e declarou que já estava se sentindo melhor.

— Quer que eu lhe conte a minha aventura, ou você vai me contar a sua?

— Primeiro você.

— A minha não é grande coisa. Por acaso notei que a Grã-Duquesa entrou naquela sala com sapatos de salto baixo e saiu de salto alto. Me pareceu meio estranho. Não gosto de coisas estranhas. Segui o carro no meu motociclo. Vi quando levaram você para dentro da casa. Cerca de dez minutos depois, chegou à toda velocidade um enorme carro de corridas. Dele saltaram uma mulher de vermelho e três homens. Claro que ela estava de sapatos de salto baixo. Entraram na casa. Não demorou muito, a de salto baixo saía vestida de preto e branco e partia no primeiro carro, acompanhada por uma velhota com ar de mexeriqueira e um cara alto, de barba loura. Os outros tomaram o carro de corridas. Pensei que todo mundo tinha ido embora e estava exatamente tentando me aproximar daquela janela ali, para socorrer você, quando alguém me bateu na cabeça, por trás. Foi só isso. Agora é a sua vez.

Jane descreveu a sua aventura.

— A minha sorte é que você nos seguiu — disse, no fim. — Senão, já pensou em que buraco eu estaria metida? A Grã­-Duquesa teria um álibi perfeito.    Ela se retirou da feira antes do início do assalto e chegou a Londres no carro dela. Quem que iria acreditar numa história fantástica e inveros­símil como a minha?

— Nunca na vida — concordou o rapaz, com convicção.

Tinham ficado tão absortos no que estavam contando que se haviam esquecido, praticamente, de olhar em torno. Qual não foi a surpresa de ambos ao depararem com um sujeito alto, de cara triste, recostado na parede da casa, sa­cudindo a cabeça para eles.

— Muito interessante — comentou.

— Quem é o senhor? — perguntou Jane.

Os olhos do homem de cara triste pestanejaram um pouco.

— O inspetor Farrell — respondeu, cortesmente.   — Acompanhei com grande interesse as histórias de vocês dois. Talvez tivéssemos certa dificuldade em acreditar na sua, se já não estivéssemos a par de alguns detalhes.

— Quais, por exemplo?

— Bem, acontece que hoje de manhã recebemos a notí­cia que a verdadeira Grã-Duquesa fugiu para casar com um motorista em Paris.

Jane ficou boquiaberta.

— E depois soubemos da chegada da tal “bandida ameri­cana” à Inglaterra e já esperávamos por algum golpe desse tipo. Dentro em breve prenderemos toda a quadrilha, quanto a isso posso lhes garantir. E agora, com licença, sim?

Subiu correndo a escada e entrou na casa.

— Puxa! — exclamou Jane, dando ênfase à expressão. — Acho que você foi tremendamente inteligente em reparar nos tais sapatos — acrescentou, de repente.

— Não sei por quê — retrucou o rapaz. — Me criei no meio de calçados. Meu pai é uma espécie de rei do calçado. Ele queria que eu me dedicasse ao mesmo ramo... que casasse e constituísse família Esse negócio todo. Não interessava com quem... só por uma questão de princípios. Mas eu queria ser pintor. — Suspirou.

— Que pena — disse Jane, confrangida.

— Faz seis anos que venho tentando. Não posso conti­nuar me iludindo. Não valho nada como pintor. Estou re­solvido a desistir e voltar para casa feito o filho pródigo. Lá há um bom emprego à minha espera.

— Emprego é o que interessa — concordou Jane, tris­tonha. — Será que você não me conseguia um, nem que fosse para experimentar sapatos nalgum lugar?

— Eu posso lhe conseguir um melhor do que isso... se você aceitar.

— Ah, é?   Qual?

— Não se preocupe por enquanto. Depois eu lhe digo. Sabe que até ontem eu nunca tinha visto uma mulher que me desse vontade de casar?

— Até ontem?

— É, na feira. Foi lá que eu encontrei...  a primeira e única!

Olhou bem firme para Jane.

— Que ranúnculos mais bonitos — apressou-se a dizer Jane, com o rosto completamente corado.

— Não são ranúnculos, são tremoços — corrigiu o rapaz.

— Tanto faz — disse Jane.

— Tem razão — concordou ele, aproximando-se mais.

 

UM DOMINGO FRUTÍFERO

— Puxa, francamente, isto aqui está um verdadeira be­leza — exclamou Miss Dorothy Pratt pela quarta vez. — Como eu gostaria de que aquela velha gata estivesse me vendo. Ela e as Janes dela!

A “velha gata” a que Miss Pratt aludia dessa maneira impiedosa era a sua mui respeitável patroa, Mrs. Mackenzie Jones, que com suas opiniões decididas sobre os prenomes que convinham a uma copeira havia rejeitado o de Dorothy em prol do segundo nome de Jane, que Miss Pratt detestava solenemente.

O companheiro de Miss Pratt não respondeu logo — e não era para menos. Quando a gente acaba de comprar um pequeno Austin de quarta mão pelo preço de vinte libras e é apenas a segunda vez que se sai com ele, é preciso con­centrar toda a atenção na difícil tarefa de usar as duas mãos e os dois pés para qualquer emergência que possa surgir.

— Hum... Ah! — exclamou Mr. Edward Palgrove, por pouco não dando uma batida, e fazendo os pneus rangerem de tal modo que um verdadeiro motorista teria sentido um arrepio nos dentes.

— Puxa, você quase não fala com a gente, hem? — queixou-se Dorothy.

Mr. Palgrove escapou-se de ter que dar uma resposta porque naquele momento exato estava recebendo os piores insultos do motorista de um ônibus.

— Ora, já se viu que insolência? — disse Miss Pratt, sacudindo a cabeça:

— Eu só queria que ele tivesse este freio — retrucou seu pretendente, ressentido.

— Está com algum defeito?

— A gente pode apertar o pé até mais não poder — respondeu Mr.  Palgrove, — que não adianta nada.

— Ah, também, Ted, você não vai querer uma mara­vilha por vinte libras. Afinal de contas, cá estamos nós, num carro de verdade, domingo de tarde, saindo da cidade como todo mundo faz.

Novos rangidos e barulho de colisões.

— Ah! — exclamou Ted, corado de triunfo. — Já me­lhorou muito.

— Você sabe dirigir que é um colosso — afirmou Do­rothy, com admiração.

Animado pela apreciação feminina, Mr. Palgrove tentou passar como um bólido pela Broadway de Hammersmith, e foi severamente repreendido por um guarda.

— Nunca vi coisa igual — comentou Dorothy, enquanto se dirigiam à ponte de Hammersmith em marcha atenuada. — Não sei o que essa polícia pensa. A gente podia esperar que estivessem um pouco mais civilizados, depois das críti­cas que têm recebido ultimamente.

— Ah, eu não queria ir por esta rua — disse Edward, abatido. — Eu queria era ir lá pela Great West Road e botar o pé no fundo.

— Sim, e com toda a certeza pegar uma multa daque­las — retrucou Dorothy. — Foi o que aconteceu outro dia com o patrão. Cinco libras, fora as taxas.

— A polícia até que não é má — disse Edward, magnâ­nimo. — Na verdade cai em cima dos ricos. Com ela não tem esse negócio de regalias. Fico com raiva só de pensar nesses grã-finos que podem entrar numa loja e comprar um ou dois Rolls-Royces na maior calma. Não sei pra quê. Eu dirijo tão bem quanto eles.

— E as jóias — exclamou Dorothy, com um suspiro. — Aquelas joalherias em Bond Street.    Brilhantes, pérolas e sei lá mais o quê!    E eu com este colar de pérolas de imitação.

Ficou ruminando tristemente sobre o assunto. Edward pôde concentrar toda a atenção de novo no volante. Conse­guiram atravessar Richmond sem contratempos. A discussão com o guarda tinha abalado os nervos de Edward. Agora optava pela lei do menor esforço, seguindo cegamente qual­quer carro que estivesse à dianteira, toda vez que se apre­sentava uma encruzilhada.

Dessa maneira dentro em breve percorriam uma estrada do interior cheia de sombra, que muito motorista traquejado daria um dente para encontrar.

— Fui bastante esperto em mudar de caminho do jeito que mudei — disse Edward, querendo ficar com todo o mérito da façanha.

— Que gracinha que é isto aqui — comentou Miss Pratt. — E olhe só, parece mentira, ali está um homem vendendo frutas.

Efetivamente, num ponto estratégico havia uma pequena mesa de vime, coberta de cestos de frutas, com um cartaz que dizia: COMAM MAIS FRUTAS.

— Quanto é? — perguntou Edward, apreensivo, depois que uma enérgica freada manual produziu o resultado desejado.

— Morangos ótimos — disse o vendedor.

Era um indivíduo de cara antipática e olhar malévolo.

— A moça aí vai gostar. Fruta madura, recém-colhida do pé. Cerejas, também. Autênticas, inglesas. Não quer uma cestinha?

— Parecem boas, mesmo — concordou Dorothy.

— Estão ótimas — afirmou o sujeito, com voz rouca. — Esta cestinha aqui vai lhe dar sorte, moça.— E dignando-se, por fim a responder a Edward. — Dois shillings, seu moço; sai quase de graça. O senhor diria exatamente isso se soubesse o que há dentro da cestinha.

— Estão com cara de ser muito boas — disse Dorothy.

Edward suspirou e pagou os dois shillings, com o espírito obcecado pelos cálculos. Mais tarde o chá, gasolina — essa história de andar de carro aos domingos não era o que se pode chamar de barato. Também, quem mandou sair com garotas!    Elas sempre querem tudo o que vêem.

— Obrigado, seu moço — disse o sujeito da cara anti­pática. — O senhor fez um bom negócio com essa cestinha de cerejas.

Edward pisou com raiva no acelerador e o pequeno Aus­tin se jogou sobre o vendedor de frutas como se fosse um cachorro louco.

— Desculpe — disse Edward. — Me esqueci de que o carro estava engrenado em primeira.

— Você precisa tomar mais cuidado, meu bem — disse Dorothy. — Por pouco não machucava o coitado.

Edward não respondeu. Mais outro quilômetro e encon­traram um lugar ideal à margem de um riacho. Deixaram o Austin na estrada e foram se sentar bem juntinhos à beira da água, comendo cerejas. Um jornal de domingo jazia esque­cido a seus pés.

— Quais são as novas? — perguntou Edward, afinal, es­pichando-se de costas no chão e puxando o chapéu para se proteger contra o sol.

Dorothy passou uma olhada pelas manchetes.

— “A Esposa Aflita”. “História Extraordinária”. “Vin­te e Oito Pessoas Afogadas na Semana Passada”.   “Confir­ma-se a Morte do Aviador”. “Sensacional Roubo de Jóias. Desaparece Colar de Rubis Avaliado em Cinqüenta Mil Li­bras.” Puxa, Ted!  Cinqüenta mil libras. Já pensou!  — Continuou a leitura. — “O colar se compõe de vinte e uma pe­dras engastadas em platina e foi enviado sob registro pelo correio de Paris. Ao ser entregue, verificou-se que o pacote continha um punhado de pedregulhos e as jóias tinham desa­parecido.”

— Roubados no correio — disse Edward. — Parece que o correio na França é um caso sério.

— Gostaria de ver um colar desses — disse Dorothy. — Brilhando que nem sangue... sangue de pombo, é como cha­mam a cor. Que sensação será que a gente tem ao pendu­rar uma coisa dessas no pescoço, hem?

— Duvido muito que algum dia você venha a saber, minha filha — disse Edward, brincando.

Dorothy sacudiu a cabeça.

— Não sei por quê. É assombroso como as mulheres têm chance hoje em dia. Eu podia entrar para o teatro.

— As mulheres direitas não têm chance nenhuma — retrucou Edward, botando água na fervura.

Dorothy abriu a boca para protestar, mas achou melhor se conter.

— Me passe as cerejas — murmurou.

E depois:

— Comi mais que você — observou.  — Vamos dividir irmãmente as que sobraram e... ué, que que é isto aqui no fundo da cesta?

E à medida que ia falando, retirou — uma longa série cintilante de pedras vermelhas como sangue.

Os dois ficaram olhando aquilo, espantados.

— Na cesta, você disse? — exclamou Edward, afinal.

Dorothy confirmou com a cabeça.

— Bem no fundo... embaixo das frutas.

Os dois se entreolharam de novo.

— Como será que veio parar aí?

— Não posso imaginar. É esquisito, Ted, logo depois de ler aquela nota no jornal... sobre os rubis.

Edward deu uma risada.

— Não vá me dizer que você pensa que está segurando cinqüenta mil libras aí na mão, hem?

— Eu apenas disse que era esquisito. Rubis engastados em platina. Platina é aquela espécie de material prateado, sem brilho... que nem este. Repare só como faíscam e que cor mais linda!   Quantas será que tem? — Contou. — Não estou dizendo, Ted? Tem exatamente vinte e uma.

— Não!

— É, sim. A mesma quantidade que o jornal disse. Ah, Ted, você não acha que...

— Impossível. — Mas o tom era vacilante. — Sei de um modo que dá para a gente ver...  riscando um vidro.

— Isso é com os brilhantes. Mas sabe, Ted, aquele ho­mem tinha um jeito muito estranho... o vendedor das fru­tas... um aspecto antipático. E ele disse uma coisa engra­çada... que nós havíamos feito um bom negócio com esta cesta.

— É, mas escute aqui, Dorothy. A troco de que ele ia nos dar cinqüenta mil libras de mão beijada?

Miss Pratt sacudiu a cabeça, desanimada.

— De fato, não parece lógico — reconheceu. — A me­nos que a polícia andasse atrás dele.

— A polícia? — Edward empalideceu um pouco.

— É. No jornal aqui também diz... “a polícia tem uma pista”.

Passou um calafrio pela espinha de Edward.

— Não estou gostando disso, Dorothy. Suponhamos que a polícia saia atrás da gente.

Dorothy olhou-o boquiaberta.

— Mas nós não fizemos nada, Ted. Só encontramos o colar dentro da cesta.

— E você pensa que alguém vai acreditar nisso? Pois sim!

— Tem razão — reconheceu Dorothy. — Ah, Ted, será que é mesmo o tal colar? Até parece história da carochinha!

— Eu não acho que pareça — retrucou Edward. — Pra mim, parece mais o tipo de história em que o herói pega quatorze anos de cadeia por uma acusação injusta.

Mas Dorothy não estava prestando atenção. Tinha pos­to o colar no pescoço e admirava o efeito num espelhinho que havia tirado da bolsa.

— Tal e qual o que uma duquesa usaria — murmurou, extasiada.

— Não acredito — exclamou Edward com violência. — É imitação. Tem que ser.

— Sim, querido — disse Dorothy, ainda atenta à sua imagem refletida no espelho. — É bem provável.

— Qualquer outra coisa seria muita... muita coinci­dência.

— Sangue de pombo — murmurou Dorothy.

— É absurdo. Digo e repito. Absurdo. Escute aqui, Dorothy, você ouviu o que eu disse, ou não?

Dorothy guardou o espelho. Virou-se para ele com uma das mãos sobre os rubis pendurados ao pescoço.

— Que tal estou? — perguntou.

Edward olhou bem para ela e esqueceu seu descontenta­mento. Nunca tinha visto Dorothy daquele jeito. Pairava uma aura de triunfo em torno dela, uma espécie de beleza régia que era completamente nova para ele. A crença de que estava com jóias avaliadas em cinqüenta mil libras havia transformado Dorothy Pratt numa mulher diferente. Pare­cia dotada de uma serenidade insolente, como se fosse uma fusão de Cleópatra, Semíramis e Zenóbia.

— Você... você está... belíssima — respondeu Edward, deslumbrado.

Dorothy riu, uma risada também completamente inédita.

— Escute aqui — disse Edward. — Temos que fazer algo. Precisamos entregar estas jóias numa delegacia ou coisa que o valha.

— Bobagem — retrucou Dorothy. — Você mesmo aca­bou de dizer que ninguém acreditaria. Inclusive seriam ca­pazes de prender a gente por roubo.

— Mas... mas que mais que se pode fazer?

— Ficar com elas — respondeu a nova Dorothy Pratt.

Edward arregalou os olhos.

— Ficar com elas? Você está louca.

— Nós encontramos o colar, não encontramos? A troco de que teríamos que achar que ele é de valor? A gente fica com ele pra eu usar.

— E a polícia encana você.

Dorothy pensou um pouco nessa hipótese.

— Muito bem — disse. — Então vamos vendê-lo. E você compra um, ou até dois Rolls-Royces, e eu compro uma tiara de brilhantes e alguns anéis.

Edward continuava de olhos arregalados. Dorothy co­meçou a ficar impaciente.

— Você está com uma oportunidade nas mãos... tudo depende de você.   Nós não roubamos o colar...  com essa eu não concordo. Ele caiu em nosso poder e é provavelmente a única chance que jamais teremos de conseguir todas as coi­sas com que sonhamos. Que foi feito da sua coragem, Edward Palgrove?

Edward recuperou a fala.

— Vendê-lo, você diz? Não seria tão fácil assim. Qual­quer joalheiro ia querer saber onde arrumei essa bomba.

— Não precisa levar a nenhum joalheiro. Será que você nunca lê romances policiais, Ted? Você entrega a um receptador, lógico.

— E onde vou encontrar um receptador? Fui criado no meio de gente decente.

— Os homens têm que encontrar solução pra tudo — disse Dorothy. — É pra isso que eles servem.

Ele olhou para ela. Estava serena e inabalável.

— Nunca imaginei isso de você — comentou, sem forças.

— Pensei que você fosse mais arrojado.

Houve uma pausa. Depois Dorothy se levantou.

— Bem — disse, despreocupadamente. — É melhor a gente voltar pra casa.

— Com esse troço aí pendurado no pescoço?

Dorothy tirou o colar, contemplou-o com fervor religio­so e guardou-o na bolsa.

— Escute — disse Edward. — Me dê isso aí.

— Não.

— Dá, sim. Eu sou um sujeito honesto, minha filha.

— Ninguém está impedindo que você seja. Não precisa se preocupar com meus problemas.

— Ah, está bem, então me entregue — disse Edward, já resignado. — parei o que você quer.   Vou procurar um receptador. Conforme você diz, é a única chance que ja­mais teremos. Caiu. honestamente em nossas mãos... comprado por dois shillings. É o que fazem todo o dia nas lo­jas de antigüidades, e ninguém se envergonha por cau­sa disso.

— É isso mesmo! — concordou Dorothy. — Ah, Edward, você é uma maravilha!

Entregou-lhe o colar, que ele guardou no bolso. Sen­tia-se eufórico, exaltado, um verdadeiro demônio! Foi com essa disposição que ligou o motor do Austin. Estavam em­polgados demais para se lembrar do chá. Voltaram para Londres em silêncio. Num cruzamento de ruas, um guarda fez menção de se aproximar do carro, e o coração de Edward quase parou. Por milagre, chegaram a casa sem contra­tempos.

As últimas palavras de Edward a Dorothy estavam im­pregnadas do espírito de aventura.

— Vamos levar isso até o fim. Cinqüenta mil libras! Vale a pena!

Naquela noite ele sonhou com as grades da prisão. Acor­dou pálido e cansado. Precisava encontrar um receptador — e não tinha a mínima idéia do primeiro passo que devia dar!

Seu trabalho no escritório saiu prejudicado, o que lhe trouxe duas ásperas repreensões antes do almoço.

Onde localizar um receptador? Whitechapel, na sua opi­nião, parecia o bairro mais indicado — ou seria Stepney?

Ao voltar para o escritório recebeu um telefonema de Dorothy. Estava com a voz trágica e chorosa.

— É você, Ted?   Estou usando o telefone, mas ela pode entrar a qualquer momento, e terei de parar. Ted, você ain­da não fez nada, fez?

Edward respondeu que não.

— Pois então, Ted, escute aqui. Não faça nada. Passei a noite inteira acordada. Foi horrível. Só pensava no que a Bíblia diz. Que não se deve roubar. Ontem eu devia estar louca... palavra. Você não vai fazer nada, não é, Ted querido?

Uma sensação de alívio se apossou de Mr. Palgrove? É possível que sim — mas ele não iria confessar uma coisa dessas.

— Quando digo que levo uma coisa até o fim, eu levo mesmo — afirmou, numa voz que podia pertencer a um in­vencível super-homem de olhos de aço.

— Ah, mas Ted, querido, você não deve. Xi, meu Deus, aí vem ela. Escute aqui, Ted, hoje à noite, ela vai jantar fora. Eu posso dar uma fugida pra me encontrar com você. Não faça nada antes de falar comigo. Às oito horas. Me espere na esquina. — A voz se transformou num murmúrio angelical. — Sim senhora, acho que foi número errado. Ti­nham pedido Bloomsbury 0243.

Ao sair do escritório, às seis horas, uma enorme man­chete chamou a atenção de Edward.

 

ROUBO DE JÓIAS.  ÚLTIMAS NOTÍCIAS

Pagando o jornal, às pressas, refugiou-se na segurança do metrô. Depois de conseguir habilmente um lugar para sentar, correu os olhos ávidos pela folha impressa. Encon­trou com toda a facilidade o que procurava.

Deixou escapar um pequeno assobio.

— Ora... já se...

E aí então deu com outro parágrafo adjacente. Leu até o fim e largou o jornal no chão.

Às oito em ponto, estava esperando no lugar marcado. Dorothy chegou ofegante, pálida mas bonita.

— Você não fez nada, Ted.

— Não fiz, não. — Tirou o colar de rubis do bolso. — Pode pôr.

— Mas, Ted...

— A polícia já recuperou os rubis... e o homem que ti­nha ficado com eles. Agora leia isto aqui!

E mostrou-lhe o parágrafo do jornal. Dorothy leu:

 

NOVO GOLPE DE PUBLICIDADE

Um novo e inteligente truque de publicidade está sendo usado pela rede nacional de PREÇOS ÚNICOS, com a inten­ção de fazer concorrência às famosas LOJAS AMERICA­NAS. Ontem começaram a circular as cestas de frutas que serão postas à venda todos os domingos. Em cada série de cinqüenta cestas, haverá uma contendo um colar de imitação com pedras de cores diferentes. Esses colares represen­tam realmente um ótimo negócio pelo preço que se paga pelas cestas. Ontem causaram grande rebuliço e euforia, e a campanha COMAM MAIS FRUTAS deve assumir propor­ções de autêntica coqueluche no próximo domingo. Nossos parabéns aos PREÇOS ÚNICOS pela idéia e os nossos votos de felicidade em sua promoção COMPREM ARTIGOS IN­GLESES.

— Mas... — gaguejou Dorothy.

E, depois de uma pausa:

— Mas já se viu!

— Pois é — disse Edward. — Foi exatamente o que eu achei.

Um homem que ia passando lhe pôs um jornal na mão.

— Fique com um, irmão — disse.

— “Uma mulher virtuosa vale muito mais que rubis.”

— Pronto! — exclamou Edward. — Espero que isso deixe você mais consolada.

— Não sei, não — disse Dorothy, meio em dúvida. — Parecer virtuosa não é exatamente o que eu quero.

— Mas você não parece — retrucou Edward. — Foi por isso que aquele homem me deu o jornal. Com esses rubis pendurados no pescoço você não parece nem um pouco uma mulher virtuosa.

Dorothy riu.

— Você é um amor, Ted — disse. — Ande, vamos ao cinema.

 

A ESMERALDA DO RAJÁ

James Bond esforçou-se ao máximo para concentrar de novo a atenção no livrinho amarelo que segurava nas mãos. Na capa, um título simples, mas tentador: Quer Aumentar 300 libras no Seu Salário Anual? O preço era de dois shillings. James acabava de ler duas páginas de parágrafos de­cididos que mandavam enfrentar o patrão, cultivar uma per­sonalidade dinâmica e causar impressão de eficiência. Agora chegava a um tópico mais sutil: “Existe hora para a fran­queza e hora para a reserva”, informava-lhe o livrinho ama­relo. “O homem que é forte nem sempre revela tudo o que sabe.” James pôs o livrinho de lado e, levantando a cabeça, contemplou a vastidão azul do oceano. Veio-lhe uma des­confiança terrível: a de não ser forte. Um homem forte teria dominado a situação atual, em vez de cair vítima dela. Pela milésima vez naquela manhã, James passou seus males em revista.

Estava em férias. Em férias. Ah, ah! Não me faça rir. Quem o havia convencido a vir para este balneário tão em moda, Kimpton-on-Sea? Arrastando-o a uma despesa acima de suas posses? Grace. E tinha sido o primeiro a se entu­siasmar com a idéia. E agora que se achava ali, qual era o resultado? Enquanto ficava hospedado numa pensão modes­ta a cerca de dois quilômetros de distância da praia, Grace, que devia ter seguido o seu exemplo (não precisava que fosse na mesma pensão — o decoro a ser observado no meio em que James vivia era muito rígido), o abandonava com a maior sem-cerimônia, indo se hospedar nada menos do que no Hotel Esplanada, bem à beira-mar.

Segundo ela dizia, tinha amigos lá. Amigos! James deu outra risadinha sarcástica. Pôs-se a recordar os últimos três anos de seu vagaroso namoro com Grace. No começo, depois que conseguiu despertar-lhe a atenção, ela havia ficado toda contente. Isso antes de atingir o ápice da glória nos salões dos chapeleiros Bartles, em High Street. Nesses pri­meiros tempos, quem se dava ares de importância era James; agora, infelizmente, os papéis tinham-se invertido. Grace es­tava, como se diz, “ganhando um bom dinheiro”. E havia ficado presunçosa. Sim, isso mesmo, completamente presun­çosa. James ainda se lembrava, vagamente, do verso de um livro de poemas que falava qualquer coisa a respeito de “pra­zer celestial de passar fome pelo homem que se ama”. Grace sofrendo voluntariamente essas agruras? Que esperança. Bem nutrida pelo café da manhã no Hotel Esplanada, nem que­ria saber do homem que amava. Na verdade estava aceitan­do as atenções de um imbecil peçonhento chamado Claud Sopworth, um sujeito que, na opinião arraigada de James, não tinha o mínimo valor moral.

James fincou o calcanhar na terra e olhou carrancudo para o horizonte. Kimpton-on-Sea. Como podia ter vindo parar num lugar desses? Era, essencialmente, um balneário para gente rica e elegante, oferecia dois grandes hotéis e vá­rios quilômetros de chalés vistosos, que pertenciam a atrizes em voga, comerciantes milionários e aqueles membros da aristocracia inglesa que casam com mulheres de muito dinhei­ro. O aluguel do menor chalé mobiliado custava vinte e cin­co guinéus por semana. Nem convinha imaginar o dos maiores. Havia um desses bem atrás da cadeira de James. Era propriedade do famoso esportista Lord Edward Campion, que hospedava de momento, um punhado de convidados impor­tantes, entre os quais o Rajá de Maraputna, dono de fabu­losa riqueza. James já tinha lido tudo a seu respeito no semanário local: a extensão de seus bens na Índia, seus palá­cios, a sua maravilhosa coleção de jóias, com referência es­pecial a uma célebre esmeralda, que os jornais entusiasma­dos comparavam ao tamanho de um ovo de pomba. James, tendo-se criado na cidade, não sabia muito bem o tamanho de um ovo de pomba, mas não deixou de ficar impressio­nado com a comparação.

— Se eu tivesse uma esmeralda dessas — disse, fazendo outra carranca para o horizonte, — a Grace ia ver.

A idéia não estava bem nítida, mas sua enunciação me­lhorou muito a disposição de James. Vozes risonhas o cha­maram pelas costas. Virou-se abruptamente e deparou com Grace, acompanhada de Clara Sopworth, Alice Sopworth e — infelizmente!  — Claud Sopworth.   As moças estavam de braços dados e dando risadinhas.

— Puxa, quase nem o reconheci — exclamou Grace, com ar brejeiro.

— É — disse James.

Achou que podia ter encontrado uma resposta mais ade­quada. Não se pode dar impressão de uma personalidade di­nâmica dizendo apenas “é”. Olhou com profunda antipatia para Claud Sopworth, quase tão bem vestido quanto o pro­tagonista de uma comédia musical, e torceu para que um eufórico cão de praia viesse plantar as patas molhadas e cheias de areia na brancura imaculada das suas calças de fla­nela. James estava com um par resistente de calças de flanela cinza-escuro que já tinham visto melhores dias.

— O ar não está uma be-le-za? — disse Clara, aspirando-o, deslumbrada, pelo nariz. — Até reanima a gente, não é?

E deu uma risadinha.

— É por causa do ozone — explicou Alice Sopworth. — Faz o efeito de um tônico, sabe?

E também deu uma risadinha.

“A vontade que eu tenho de bater a cabeça destas burras uma contra a da outra”, pensou James. “Qual a vantagem de estarem rindo o tempo todo? Ninguém disse nada de en­graçado.”

O imaculado Claud murmurou languidamente:

— Vamos cair n’água, ou vocês acham que não vale a pena?

A idéia do banho foi aceita aos gritos. James aderiu ao grupo e inclusive conseguiu, com certa dose de astúcia, re­ter Grace um pouco para trás dos outros.

— Escute aqui — queixou-se. — Quase nunca falo com você.

— Ué, não estamos juntos, agora? — retrucou Grace. — Você também pode vir almoçar conosco no hotel, se...

Olhou meio em dúvida para as calças de James.

— Que é que há? — perguntou James, irritado. — No mínimo não estou bastante elegante pra você, não é?

— Realmente, meu caro, eu acho que você podia se ves­tir um pouco melhor — disse Grace. — Todo mundo aqui anda no último grito. Olhe o Claud Sopworth, por exemplo!

— Já olhei — disse James, mal-humorado. — Nunca vi um sujeito mais ridículo do que ele.

Grace se empertigou toda.

— Não precisa falar mal dos meus amigos, James. Não fica bem. Ele apenas se veste como qualquer hóspede do hotel.

— Conversa fiada — retrucou James. — Sabe o que li outro dia em “Mexericos da Alta-Roda”? Ora, que o duque de... que duque mesmo que era? Ah, sei lá, não vem ao caso, mas que o homem mais mal vestido da Inglaterra era um duque! Pra você ver.

— Será possível? — disse Grace. — Ah, mas afinal de contas é um duque.

— E daí? — perguntou James. — Pensa que eu também não posso algum dia ser duque? Bem, quer dizer, duque tal­vez não, mas ao menos lorde da Câmara dos Comuns.

Puxou do bolso o livro amarelo e leu para ela uma enor­me lista de pares do reino que tinham começado a vida de maneira muito mais humilde que James Bond. Grace limi­tou-se a dar uma risadinha.

— Não seja idiota, James — disse. — Imagine só, você, Conde de Kimpton-on-Sea!

James olhou-a num misto de raiva e desespero. Não havia a menor dúvida, o ar de Kimpton-on-Sea tinha subi­do à cabeça de Grace.

A praia ali é uma longa e estreita faixa de areia, com uma fileira de barracas e cabinas para trocar de roupa, que se estende por mais de dois quilômetros. O grupo acabava de parar diante de uma série de seis cabinas, todas com a placa arrogante: “Para uso exclusivo dos hóspedes do Hotel Esplanada.”

— Chegamos — anunciou Grace, animada, — mas re­ceio que não possa entrar junto conosco, James. Você tem que ir naquelas barracas públicas ali adiante. Depois a gente se encontra dentro d’água. Até já!

— Até já! — respondeu James, encaminhando-se para a direção indicada.

Doze barracas estragadas estavam solenemente erguidas diante do oceano. Um velho marinheiro ficava de vigia, com uma tira de papel azul na mão. Pegou a moeda que James lhe entregou, destacou um bilhete azul da tira, jogou-lhe uma toalha e espichou o polegar por cima do ombro.

— Aguarde sua vez — disse secamente.

Foi só então que James despertou para a realidade. Não era o único a quem havia ocorrido a idéia de entrar no mar. Além de todas as barracas se acharem ocupadas, do lado de fora de cada uma delas existia uma verdadeira multidão de gente se entreolhando, disposta a não ser passada para trás. James se aproximou do grupo menor e ficou esperan­do. A lona da barraca se entreabriu e uma mulher bonita, em sumário traje de banho, surgiu em cena ajeitando a touca de borracha com ar de quem tem a manhã inteira para perder. Dirigiu-se à beira da água e sentou-se langui­damente na areia.

Aqui não adianta — pensou James, passando imediata­mente para outro grupo.

Depois de esperar cinco minutos, começaram a se ouvir barulhos de atividade no interior da segunda barraca. Com suspiros e gemidos de esforço, a lona se abriu de par em par, cedendo passagem a quatro crianças acompanhadas do pai e da mãe. A barraca sendo tão pequena, dava impressão de que tinha havido um truque de mágica. No mesmo ins­tante, duas mulheres saltaram para a frente, cada uma agar­rando um pedaço da lona que servia de porta à barraca.

— Me desculpe — disse a primeira, ofegando um pouco.

— A senhora é que vai ter que me desculpar — retru­cou a outra, com um olhar de fúria.

— É preciso que saiba que cheguei aqui uns bons dez minutos antes da senhora — acrescentou logo a primeira.

— Qualquer dos presentes pode testemunhar que faz mais ou menos um quarto de hora que estou esperando — afirmou a segunda, com ar de desafio.

— Vamos, vamos — disse o velho marinheiro, aproxi­mando-se.

As duas lhe falaram aos berros. Quando terminaram, ele espichou o polegar para a segunda, limitando-se a dizer:

— É sua.

E foi-se embora, surdo às reclamações. Não sabia e pou­co lhe importava qual das duas teria chegado primeiro, mas sua decisão, como se diz nos concursos de jornal, era irrecorrível. Desesperado, James pegou-o pelo braço.

— Escute aqui, me diga uma coisa!

— Que que há, moço?

— Quanto tempo vou ter que esperar para trocar de roupa?

O velho marinheiro lançou um olhar de indiferença para aquela aglomeração de gente.

— Talvez demore uma hora, hora e meia, sei lá.

Nesse momento James avistou Grace e as irmãs Sopworth correndo pela areia, rumo ao mar.

— Droga! — disse consigo mesmo. — Que droga!

Agarrou de novo o velho marinheiro.

— Será que não dá para conseguir uma barraca noutro lugar? Por que não uma daquelas cabinas ali adiante? Pa­rece que estão todas vazias.

— As cabinas — respondeu o velho marinheiro com dig­nidade — são particulares.

Tendo passado essa repreensão, afastou-se. Com a amar­ga sensação de ter sido logrado, James abandonou os gru­pos que esperavam e encaminhou-se, morto de raiva, para a praia. Era o cúmulo! O maior absurdo! Olhou com fú­ria para as bem cuidadas cabinas por onde passava. Na­quele instante deixou de ser um liberal independente para se converter em socialista ferrenho. Por que os ricos podiam ter cabinas particulares e tomar banho à hora que queriam, sem esperar no meio da multidão? “Este nosso sistema”, pensou. James vagamente, “está todo errado”.

Do mar vinham os gritos fiteiros dos que salpicavam água. A voz de Grace! E acima dos seus guinchos, o “ah, ah, ah” sem graça de Claud Sopworth.

— Droga! — exclamou James, rangendo os dentes, coisa que nunca lhe tinha acontecido antes e só conhecia da lei­tura de obras de ficção.

Parou de repente, girando a bengala com raiva e viran­do-se de costas, decidido, para o mar. Contemplou, cheio de ódio, O Ninho de Águia, Buena Vista e Mon Desir. Os moradores de Kimpton-on-Sea tinham a mania de dar nomes extravagantes às suas cabinas de praia. O Ninho de Águia parecia simplesmente uma bobagem e Buena Vista estava aci­ma dos conhecimentos lingüísticos de James. Mas sabia o suficiente de francês para constatar a propriedade do terceiro nome.

— Mon Desir — murmurou.  — Até parece que adivi­nharam meu pensamento.

Foientão que percebeu que, ao passo que a porta das outras cabinas se encontrava fechada, a da Mon Desir estava entreaberta. James olhou pensativo para ambos os lados da praia: aquele lugar ali era ocupado principalmente por mães de famílias grandes, atarefadas em cuidar da prole. Eram apenas dez horas, ainda cedo demais para que a aristocra­cia de Kimpton-on-Sea viesse tomar banho.

“Ora, com certeza estão comendo codornizes e cogume­los na cama, trazidos na bandeja por locaios de libré! Nin­guém vai aparecer por aqui antes do meio-dia” pensou James.

Olhou de novo para o mar. Com a obediência de um leit-motif bem ensaiado, fez-se ouvir o grito estridente de Grace, seguido pelo “ah, ah, ah” de Claud Sopworth.

— Vou entrar — disse James, entre dentes.

Empurrou a porta de Mon Desir e entrou.   Levou um susto inicial ao ver uma porção de roupas penduradas nos cabides, mas logo se tranqüilizou. A cabina era dividida em duas; do lado direito, havia um suéter amarelo de mulher, um chapéu panamá amassado e um par de sapatos de praia, tudo pendurado no mesmo gancho.

 

Do lado esquerdo, uma calça velha de flanela cinzenta, um pulôver e um sueste1 apre­goavam o fato de que os sexos estavam segregados. James se apressou a passar para o lado dos homens e despiu-se rapi­damente. Três minutos depois estava dentro d’água, arque­jando e bufando, com ares de importância, dando braçadas extremamente curtas de nadador profissional — a cabeça submersa, braços cortando as ondas — aquele estilo.

— Ah, até que enfim! — exclamou Grace.  — Fiquei com medo de que você fosse demorar um século com toda aquela multidão esperando.

— É mesmo? — disse James.

Lembrou-se do livro amarelo com carinhosa lealdade. “O homem forte às vezes pode se mostrar discreto.” Já ti­nha praticamente recuperado o bom humor. Conseguiu di­zer, de maneira simpática, mas firme, para Claud Sopworth, que ensinava Grace a nadar com os braços fora d’água:

— Não, não, meu velho. A coisa não é assim. Deixe que eu mostro pra ela.

E era tal a segurança do seu tom, que Claud retirou-se, derrotado. Pena que seu triunfo tenha sido curto. A tem­peratura das nossas águas inglesas não convida a uma per­manência muito longa. Grace e as irmãs Sopworth já esta­vam com o queixo roxo e batendo os dentes. Correram de volta à praia e James prosseguiu no seu caminho solitário até Mon Desir. Enquanto se enxugava vigorosamente com a toalha e vestia a camisa pelo pescoço, sentia-se radiante. Achava que tinha demonstrado uma personalidade dinâmica.

De repente ficou imóvel, paralisado de terror. Do lado de fora fizeram-se ouvir vozes de mulheres, bem diferentes das de Grace e suas amigas. Num instante compreendeu o que estava acontecendo: os legítimos proprietários de Mon Desir tinham chegado. Se James estivesse completamente ves­tido, é possível que os recebesse de maneira digna e pro­curasse dar uma explicação. Do jeito que estava, reagiu em pânico.

1 Chapéu oleado de abas moles, próprio de marinheiro.

As janelas de Mon Desir eram discretamente prote­gidas por cortinas verde-escuro. James se jogou contra a por­ta e segurou a maçaneta com toda a força que pôde. Pelo lado de fora, mãos tentaram girá-la sem êxito.

— Está trancada por dentro — disse uma voz de mu­lher.  — Pug não tinha dito que estava aberta?

— Não, quem disse isso foi Woggle.

— Woggle é o fim — retrucou a primeira. — Que coisa mais chata.   Vamos ter que voltar para buscar a chave.

James ouviu passos se afastando. Respirou fundo. Às pressas, desesperado, recolheu o resto de suas roupas. Dois minutos depois caminhava tranqüilamente pela praia com um ar de inocência quase ostensivo. Ao cabo de quinze minutos, Grace e as irmãs Sopworth reuniam-se a ele. Passaram agradavelmente o resto da manhã atirando pedras na água, escre­vendo na areia e fazendo brincadeiras. Por fim Claud olhou o relógio.

— Está na hora do almoço — anunciou. — É melhor a gente voltar.

— Estou com uma fome danada — disse Alice Sopworth.

Todas as outras moças confessaram que também es­tavam.

— Você vem junto, James? — perguntou Grace.

Não resta dúvida de que James era suscetível demais. Resolveu se ofender com o tom da pergunta.

— Não sei se estou bem vestido para o seu gosto — respondeu, ressentido. — Já que você é tão exigente, talvez fosse melhor não ir.

Era a deixa para Grace murmurar protestos, mas o ar da praia tinha-lhe causado um efeito adverso. Limitou-se a retrucar:

— Muito bem. Você é quem sabe. — Hoje à tarde, então, a gente se vê.

James ficou ali, estarrecido.

— Ora, já se viu! — exclamou, olhando fixamente para o grupo que se afastava. — Mas já se viu que...

Dirigiu-se mal-humorado à cidade. Existem dois restau­rantes em Kimpton-on-Sea; ambos são quentes, barulhentos e vivem cheios de gente. Repetiu-se o caso das barracas de praia. James teve que esperar pela sua vez. E um pouco mais ainda, porque uma matrona sem escrúpulos, que aca­bava de chegar, passou na sua frente quando desocupou um lugar. Por fim conseguiu uma mesinha. Perto do seu ou­vido esquerdo, três moças incrivelmente desafinadas redu­ziam uma ária de ópera italiana a frangalhos. Felizmente, James não tinha cultura musical. Examinou com desinteresse a lista de preços, as mãos metidas no fundo dos bolsos. E pensou:

“Garanto que qualquer coisa que eu pedir, não tem mais. Comigo é sempre assim.”

A mão direita, apalpando os cantos do bolso, tocou num objeto estranho. Pelo tato parecia um pedregulho, um cas­calho redondo.

“Mas pra que que eu fui guardar uma pedra no bolso?” — pensou.

Fechou os dedos em torno. Surgiu uma garçonete a seu lado.

— Por favor, linguado frito com batatas fritas — pe­diu James.

— Linguado frito não tem mais — murmurou a garço­nete, o olhar lânguido fixo no teto.

— Então me dê carne com caril — disse James.

— Também não tem mais.

— Mas o que é que ainda tem nesta joça de cardápio?

A garçonete fez uma careta e apontou o dedo sujo para a linha onde se lia “ensopadinho de carneiro”. James resig­nou-se ao inevitável e pediu ensopadinho de carneiro. Com o espírito ainda fervendo de ressentimento contra o sistema dos restaurantes, tirou a mão do bolso, sempre segurando a pedra. Abrindo os dedos, olhou distraído o objeto que tinha na sua palma. Aí então levou um choque que o fez esque­cer de tudo o mais. Arregalou os olhos. O que estava se­gurando não era um cascalho, e sim — não havia sombra de dúvida — uma esmeralda, uma enorme esmeralda verde. James contemplou-a horrorizado. Não, não podia ser esme­ralda; devia ser vidro colorido. Não podia existir uma es­meralda daquele tamanho, a não ser que — palavras im­pressas dançavam diante dos olhos de James, “o Rajá de Maraputna — famosa esmeralda do tamanho de um ovo de pomba”. Seria possível que... fosse aquela esmeralda que agora estava olhando? A garçonete voltou com o ensopadi­nho de carneiro e James fechou os dedos de sopetão. Arre­pios de calor e de frio se alternavam na sua espinha. Tinha a sensação de se achar preso num terrível dilema. Se aquilo fosse a esmeralda — mas era? Seria possível? Afrou­xou os dedos e espiou, ansioso. James não entendia nada de pedras preciosas, mas a espessura e o brilho da jóia o convenceram de que era autêntica. Apoiou os cotovelos na mesa e curvou-se, olhando fixamente, mas sem enxergar, o ensopadinho de carneiro que aos poucos esfriava no prato à sua frente. Precisava resolver aquele problema. Se fosse a esmeralda do Rajá, que providência devia tomar? A palavra “polícia” passou-lhe como um relâmpago pela cabeça. Quan­do se encontra qualquer coisa de valor, a gente entrega na delegacia mais próxima. James havia sido criado na obser­vância desse preceito.

Sim, mas — como é que a esmeralda fora parar no bol­so de sua calça? Eis aí, sem dúvida, a pergunta que a po­lícia iria fazer. Era uma pergunta incômoda e para a qual, ainda por cima, de momento não tinha resposta. Como é que a esmeralda fora parar no bolso de sua calça? Baixou os olhos, desesperado, para as pernas e aí mesmo é que se sen­tiu apreensivo. Olhou mais de perto. É difícil distinguir um par de calças velhas de flanela cinzenta de um outro qualquer, mas ainda assim, James teve um pressentimento instintivo que aquele não era, no fim das contas, o dele. Recostou-se na cadeira, atônito com a descoberta. Agora compreendia o que tinha acontecido: na pressa de sair da cabina de praia, havia pegado a calça errada. Lembrava-se de ter pendurado a sua no cabide que estava ao lado do ou­tro par velho que já se encontrava lá. Sim, isso esclarecia parte do mistério: ele havia pegado a calça errada. Mas, mesmo assim, que diabo estava fazendo lá uma esmeralda que devia valer centenas, milhares de libras? Quanto mais pensava nisso, mais estranho lhe parecia. Podia, lógico, ex­plicar à polícia...

Mas era, sem dúvida, embaraçoso. Positivamente emba­raçoso. Teria que mencionar o fato de ter entrado delibe­radamente numa cabina de praia que não lhe pertencia. Isso não constituía, é claro, uma transgressão grave, mas o deixava logo em posição equívoca.

— O senhor não quer mais nada?

Era a garçonete de novo, olhando intencionalmente para o ensopadinho de carneiro que continuava intacto. James se serviu de um pouco às pressas e pediu a conta. Depois que ela veio, pagou e foi embora. Enquanto ficava parado, he­sitante, na rua, um cartaz na calçada oposta lhe cha­mou a atenção. A cidade vizinha de Harchester publicava um jornal vespertino e era para a maior manchete desse jor­nal que James estava olhando. Anunciava um fato simples, mas sensacional: “ROUBADA A ESMERALDA DO RAJÁ”. “Santo Deus”, murmurou James, encostando-se numa coluna. Refazendo-se, tirou uma moeda do bolso e comprou um exemplar. Não demorou muito a encontrar o que procurava. As notícias locais de cunho sensacional costumavam ser raras.Grandes cabeçalhos enchiam a pri­meira página. “Sensacional assalto à casa de Lord Edward Campion. Furto da famosa e histórica esmeralda. Irrepará­vel perda para o Rajá de Maraputna.” A nota era sucinta. Lord Edward Campion tinha recepcionado vários amigos na véspera. Desejando mostrar a pedra a uma das senhoras pre­sentes, o Rajá foi buscá-la e descobriu que tinha desapareci­do. Comunicado o fato à polícia, por enquanto ainda não havia surgido nenhuma pista. James deixou o jornal cair no chão. Continuava sem entender como é que a esmeralda po­dia ter ido parar no bolso de uma velha calça de flanela numa cabina de praia, mas agora não restava mais dúvida: a polícia desconfiaria da sua história. Que fazer? Ali esta­va ele, parado na principal rua de Kimpton-on-Sea, com um objeto roubado, que devia valer o preço do resgate de um rei, guardado tranqüilamente no bolso, enquanto toda a polícia local dava buscas desesperadas para encontrar justa­mente aquilo. Havia dois caminhos a seguir. O primeiro, dirigir-se logo à delegacia do distrito e contar o acontecido — mas é forçoso reconhecer que James estava com um medo louco dessa solução. O segundo consistia em livrar-se da es­meralda de qualquer maneira. Ocorreu-lhe enrolá-la num pe­queno embrulho bem feito e devolver ao Rajá pelo correio. Sacudiu, porém, a cabeça. Já tinha visto muitas vezes essa situação em romances policiais. Sabia como os grandes de­tetives conseguem apurar a verdade mediante o auxílio de uma lente de aumento e tudo quanto é tipo de expediente. Qualquer investigador competente pegaria o embrulho de Ja­mes e seria capaz de decifrar, em trinta minutos, a profis­são, idade, costumes e aspecto pessoal do remetente. Depois bastariam algumas horas para ser localizado.

Foi então que James se lembrou de um plano mara­vilhosamente simples. Era hora de almoço, a praia devia estar relativamente deserta. Ia voltar à Mon Desir, pendurar a calça onde a tinha encontrado e recuperar sua roupa. To­mou o rumo da praia.

Mesmo assim, sentia um pequeno peso na consciência. A esmeralda precisava ser entregue ao Rajá. Achou que tal­vez não fosse má idéia dedicar-se a um trabalhinho de dete­tive — isto é, depois que já tivesse apanhado de novo sua calça e posto a outra no lugar. Para pôr essa idéia em prática, dirigiu-se ao velho marinheiro, a quem acertadamen­te considerava como fonte inesgotável de informações locais.

— Me desculpe — começou James, cortês, — mas tenho impressão de que um amigo meu possui uma cabina nesta praia. Mr. Charles Lampton. Parece que se chama Mon Desir.

O velho marinheiro, muito bem acomodado em sua ca­deira, de cachimbo na boca, contemplava o mar. Mudou um pouco a posição do cachimbo e, sem despregar os olhos do horizonte, respondeu:

— Mon Desir pertence à Sua Excia. Lord Edward Campion. Todo mundo sabe disso. Nunca ouvi falar em nenhum Mr. Charles Lampton. Deve ser novo por aqui.

— Obrigado — disse James, e se afastou.

A informação deixou-o estupefato. Não era possível que o Rajá tivesse guardado a jóia no bolso e depois esquecido. James sacudiu a cabeça. A explicação não lhe satisfazia, mas o ladrão evidentemente devia ser algum convidado da festa. A situação lembrava algumas de suas obras de ficção prediletas.

Não modificou, porém, o plano traçado. Tudo transcor­reu com relativa facilidade. Tal como esperava, encontrou a praia quase deserta. Para maior sorte ainda, a porta de Mon Desir continuava entreaberta. Bastava entrar. Edward estava justamente retirando sua calça do cabide quando uma voz atrás de si o fez virar de repente.

— Te peguei, hem, rapaz?! — ouviu dizer.

James ficou olhando, boquiaberto. Na soleira da porta de Mon Desir estava parado um desconhecido — bem traja­do, com cerca de quarenta anos, a expressão muito atenta, o ar de uma ave de rapina.

— Te peguei, então, hem? — repetiu.

— Quem... quem é o senhor? — gaguejou James.

— Sou o inspetor Merrilees da Scotland Yard — res­pondeu o outro, com firmeza. — Faça o favor de me entre­gar a esmeralda.

— A... a esmeralda?

James procurava ganhar tempo.

— Foi o que eu disse, não foi? — retrucou o inspetor Merrilees.

Tinha um jeito decidido, de funcionário eficiente. Ja­mes tentou se refazer.

— Não sei do que está falando — respondeu, adotando um ar de dignidade.

— Sabe sim, meu rapaz. Acho que sabe.

— Aqui há um equívoco — protestou James. — Posso explicar perfeitamente...

Fez pausa. O rosto do outro tinha uma expressão de cansaço.

— Sempre a mesma história — retrucou impassível o inspetor da Scotland Yard. — Vai ver que encontrou a es­meralda enquanto caminhava pela praia, não é? Conheço esse tipo de conversa.

De fato, James tinha que admitir que era o tipo da desculpa esfarrapada. Mas mesmo assim procurou ganhar tempo.

— Como posso saber se é quem diz ser? — perguntou, quase sem forças.

Merrilees virou rapidamente a lapela do paletó, mostran­do o emblema pregado na parte interna. Edward encarou o inspetor com os olhos arregalados.

— Portanto já sabe o que o espera!  — disse Merrilees, praticamente ufano. — Você é um principiante... estou ven­do que é. Foi seu primeiro roubo, não foi?

James confirmou com a cabeça.

— Tal como eu imaginava. Agora, meu filho, vai me entregar essa esmeralda ou terei que revistá-lo?

James recobrou a voz.

— Eu... eu não estou com ela em meu poder — de­clarou.

Raciocinava, desesperado.

— Deixou em casa? — perguntou Merrilees.

James fez que sim.

— Muito bem — disse o detetive, — então vamos buscá-la.

Pegou James pelo braço.

— Não vou me arriscar a que se afaste de mim — disse, delicadamente. — Iremos até sua casa, e lá você me entre­gará a jóia.

— Se eu entregar, o senhor me deixa em liberdade? — perguntou James inseguro, a voz trêmula.

Merrilees pareceu constrangido.

— Nós sabemos exatamente como a esmeralda foi rou­bada — explicou, — bem como a identidade da senhora en­volvida no caso, e naturalmente, quanto a isso... o Rajá quer que tudo seja abafado. Sabe como são esses potentados hindus, não é?

James, que à exceção do que lia nos jornais, pouca coisa sabia a respeito de potentados hindus, concordou com a ca­beça, louco para se ver livre do assunto.

— Claro que será muito irregular — continuou o de­tetive, — mas talvez você consiga sair impune.

James concordou de novo. Tinham percorrido toda a avenida beira-mar e estavam chegando ao centro da cidade. James indicava a direção que deviam tomar, mas não havia meio do outro diminuir a força com que lhe segurava o braço.

De repente James hesitou e tentou abrir a boca para falar. Merrilees levantou logo os olhos e teve que rir. Passavam bem na frente da delegacia e ele reparou nos olha­res de agonia de James.

— Primeiro vou lhe dar uma oportunidade — disse, bem disposto.

Foi então que tudo começou a acontecer. James soltou um berro estridente, agarrou o braço do outro e gritou a plenos pulmões:

— Socorro! Socorro! Pega o ladrão! Pega o ladrão!

Em menos de um minuto ficaram cercados por uma multidão. Merrilees fez o possível para se livrar das garras de James.

— Eu acuso este homem — bradava James. — Eu acuso este homem de me roubar a carteira.

— Que que você está dizendo aí, seu idiota? — vociferou o outro.

Um guarda tomou conta da situação. Mr. Merrilees e James foram levados à presença do comissário. James repe­tiu a queixa.

— Este homem acaba de me bater a carteira — decla­rou, nervoso. — Ele guardou ali no bolso direito do pale­tó dele!

— O cara enlouqueceu — resmungou o outro. — Pode me revistar, seu comissário, pra ver se ele está dizendo a verdade.

A um sinal do comissário, o guarda meteu respeitosa­mente a mão no bolso de Merrilees. Tirou algo, que mos­trou com uma exclamação de assombro.

— Meu Deus! — disse o comissário, abandonando o de­coro profissional. — Deve ser a esmeralda do Rajá.

Merrilees parecia o mais incrédulo de todos.

— É monstruoso! — explodiu. — Monstruoso! Este su­jeito com certeza botou isso no meu bolso enquanto vínha­mos caminhando juntos. É uma trapaça.

A personalidade dominadora de Merrilees fez o comis­sário vacilar. Voltou suas suspeitas para James. Cochichou qualquer coisa com o guarda, que se retirou.

— Muito bem, meus senhores — disse, — agora quero tomar suas declarações. Um de cada vez, por favor.

— Pois não — disse James. — Eu estava caminhando pela praia quando encontrei este cidadão, que fingiu que me conhecia. Não tinha a menor lembrança de tê-lo visto antes, mas fui cortês demais pra dizer isso. Continuamos juntos o passeio. Comecei a desconfiar dele, e no momento exa­to em que passávamos por aqui, vi que ele estava com a mão no meu bolso.  Segurei-o com força e pedi socorro.

O comissário se virou para Merrilees.

— Agora o senhor.

Merrilees parecia meio contrafeito.

— A história é mais ou menos essa — disse, devagar, — mas não é bem assim. Não fui eu quem fingiu que o conhe­cia, e sim, o contrário. Ele, sem dúvida, procurou se livrar da esmeralda e meteu-a no meu bolso enquanto conversá­vamos.

O comissário parou de escrever.

— Ah! — exclamou, imparcial. — Bom, daqui a pouco vai chegar um senhor que pode nos ajudar a esclarecer a si­tuação.

Merrilees franziu a testa.

— Eu, sinceramente, não posso esperar — murmurou, puxando do relógio. — Tenho que atender um compromisso. Seu comissário, o senhor certamente não pode chegar ao ri­dículo de imaginar que eu fosse capaz de roubar a esmeral­da e sair por aí com ela no bolso, não?

— De fato, concordo que não me parece verossímil — respondeu o comissário. — Mas o senhor terá que esperar uns cinco ou dez minutos até que solucionemos tudo. Ah! Cá está Sua Excia.

Um homem alto, de cerca de quarenta anos, entrou na sala. Usava calças estragadas e um suéter velho.

— Então, comissário, do que se trata? — perguntou. — O senhor diz que achou a esmeralda? Meus parabéns. Fez um ótimo trabalho. Quem são estes cavalheiros?

Seus olhos passaram de leve por James e pousaram em Merrilees. A personalidade dominadora deste último pareceu se evaporar por completo.

— Ué... Jones! — exclamou Lord Edward Campion.

— Conhece este cidadão, Lord Edward? — perguntou logo o comissário.

— Claro que conheço — respondeu Lord Edward seca­mente. — É o meu criado. Faz um mês que trabalha para mim. O investigador que mandaram de Londres desconfiou logo que tivesse sido ele, mas não encontrou nem rastro da esmeralda entre suas coisas.

— Ele andava com ela no bolso do paletó — explicou o comissário.

Quando James viu, estava recebendo os mais efusivos cumprimentos e apertos de mão.

— Meu caro amigo — exclamou Lord Edward Campion. — Quer dizer então que, conforme você diz, desconfiou dele logo de saída?

— Pois é — respondeu James. — Tive que inventar aquela história da carteira roubada só para poder trazê-lo até a delegacia.

— Mas isso é sensacional — disse Lord Edward, — absolutamente sensacional. Você precisa vir almoçar conos­co. Isto, bem entendido, se ainda não almoçou. Sei que já é tarde, devem ser quase duas horas.

— Não almocei, não — disse James, — mas...

— Então nem se discute — atalhou Lord Edward, — nem mais uma palavra. O Rajá, sabe, vai querer agradecer-lhe pessoalmente. Eu confesso, porém, que ainda não en­tendi essa história direito.

A essa altura já tinham saído da delegacia e estavam parados nos degraus da entrada.

— Para falar a verdade — disse James, — acho melhor contar-lhe exatamente como tudo aconteceu.

E contou. Lord Edward morreu de rir.

— Nunca ouvi história mais engraçada. Agora com­preendo. O Jones, mal roubou a jóia, e sabendo que a po­lícia daria busca completa na casa, na certa foi correndo escondê-la na cabina de praia. Aquelas calças velhas eu às vezes uso para pescar. Ninguém se lembraria de mexer nelas, e ele poderia buscar a esmeralda quando bem enten­desse. No mínimo hoje levou um choque quando viu que não estava mais lá. No momento em que você apareceu, ele logo viu que era a mesma pessoa que tinha sumido com a jóia. Mas, de qualquer maneira, não compreendo como é que você não se deixou impressionar por aquela pose de dete­tive dele!

“O homem forte”, pensou James, “sabe quando deve ser franco e quando deve ficar calado.”

Sorriu com ar de superioridade enquanto passava os dedos de leve pela parte interna da lapela do paletó, apal­pando o pequeno emblema prateado daquela sociedade tão pouco conhecida, o Super Clube de Ciclismo de Merton Park. Que coincidência espantosa que o tal Jones também fosse sócio, mas que se há de fazer?!

— Olá, James!

Virou-se. Grace e as irmãs Sopworth o chamavam do outro lado da rua. Virou-se para Lord Edward.

— Com licença, não demoro.

Atravessou a rua.

— Nós vamos ao cinema — disse Grace. — Não quer vir conosco?

— Sinto muito — respondeu James, — mas tenho que almoçar com Lord Edward Campion. Está vendo? É aque­le homem ali, vestido bem à vontade, com roupas velhas. Ele quer me apresentar ao Rajá de Maraputna.

Levantou cortesmente o chapéu e voltou para junto de Lord Edward.

 

O CANTO DO CISNE

Eram onze horas de uma manhã de maio em Londres. Mr. Cowan olhava pela janela, tendo atrás de si a suntuosi­dade meio pesada da sala de visitas de um apartamento no Hotel Ritz. O referido apartamento havia sido reservado para Mme. Paula Nazorkoff, a célebre cantora de ópera que acabava de chegar à cidade. Mr. Cowan, principal encarre­gado dos negócios de Madame, aguardava o momento de falar-lhe. Virou de repente a cabeça quando a porta se abriu, mas tratava-se apenas de Miss Read, a secretária de Mme. Na­zorkoff, uma moça pálida, de ar competente.

— Ah, é você, minha cara — disse Mr. Cowan. Mada­me ainda não se levantou, hem?

Miss Read sacudiu a cabeça.

— Ela me pediu para vir às dez — continuou Mr. Cowan. — Faz uma hora que estou esperando.

Não demonstrou ressentimento nem surpresa. Mr. Cowan já estava realmente acostumado com as venetas do tempera­mento artístico. Era alto, bem barbeado, o corpo dissimu­lado demais pelas roupas que também pecavam pelo excesso de elegância. Tinha o cabelo muito preto e lustroso, e den­tes agressivamente brancos. Quando falava, sibilava os esses de um modo que, se não chegava a ser um ceceio, se aproxi­mava perigosamente disso. Nesse instante, uma porta do outro lado da sala se abriu e uma francesa elegante entrou às pressas.

— Madame está se levantando? — perguntou Cowan, esperançoso. — Conte-nos as novidades, Elise.

Elise imediatamente levantou as mãos para o céu.

— Madame hoje está que é uma peste. Não há nada que a satisfaça! Ela diz que as lindas rosas amarelas que monsieur lhe mandou ontem à noite ficam muito bem em Nova York, mas que é imbécile se lembrar de fazer o mes­mo em Londres. Aqui, segundo ela, a única coisa possível são as rosas vermelhas, e na mesma hora ela abre a porta e joga as amarelas no corredor, caindo tudo em cima de um monsieur, très comme il faut, um militar, acho eu, que só podia ficar indignado, lógico!

Cowan arqueou as sobrancelhas, mas não deu outros sinais de reação. Depois tirou uma agenda do bolso e traçou um círculo a lápis em torno das palavras “rosas vermelhas”.

Elise saiu às pressas pela outra porta e Cowan se virou de novo para a janela. Vera Read sentou-se à escrivaninha, começando a abrir e separar a correspondência. Passaram-se dez minutos em silêncio. Por fim a porta do quarto de dormir se escancarou e Paula Nazorkoff entrou na sala feito uma chama. Seu efeito imediato foi o de torná-la menor. Vera Read pareceu incolor e Cowan transformou-se em mera figura de segundo plano.

— Ah, ah, meus filhos! — exclamou a prima-dona. — Sou ou não sou pontual?

Era alta, e nem tão gorda assim para uma cantora. Tinha braços e pernas ainda elegantes, e o pescoço lembrava uma bela coluna. O cabelo, preso num grande coque meio caído na nuca, era ruivo escuro, brilhante. Se devia pelo menos um pouco de sua cor a tinturas, nem por isso preju­dicava o efeito final. Não era moça, certamente andava pelos quarenta, mas os traços do rosto continuavam lindos, embora a pele começasse a ficar flácida e enrugada ao redor dos cintilantes olhos escuros. Tinha uma risada infantil, estômago de avestruz, um temperamento danado e a repu­tação de ser a maior soprano dramática da atualidade. Virou­-se de frente para Cowan.

— Já fez o que eu pedi? Levou embora aquele abomi­nável piano inglês e atirou no Tâmisa?

— Consegui outro para a senhora — respondeu Cowan, indicando o canto onde se encontrava.

A Nazorkoff foi correndo até o piano e levantou a tampa do teclado.

— Um Erard — disse. — Já melhorou. Vejamos agora.

A bela voz de soprano executou um arpejo, depois fez com leveza a escala duas vezes, ascendeu suavemente a um agudo, sustentou-o, aumentando mais e mais o volume, e di­minuindo de novo até que se desfizesse no ar.

— Ah! — exclamou Paula Nazorkoff, com ingênua satisfação. — Que maravilha de voz que eu tenho! Até em Londres é maravilhosa.

— Realmente — concordou Cowan, com sincera admi­ração. — E pode estar certa de que Londres cairá a seus pés, tal como aconteceu a Nova York.

— Você acha? — perguntou a cantora.

Tinha um leve sorriso nos lábios, o que tornava evidente que a pergunta era puramente retórica.

— Que dúvida — respondeu Cowan.

Paula Nazorkoff fechou a tampa do teclado e caminhou até a mesa com aquele passo lento e ondulante que causava tanto efeito no palco.

— Muito bem — disse, — então vamos tratar de negó­cios. Trouxe todos os papéis, meu caro?

Cowan tirou algumas folhas da pasta que tinha largado numa cadeira.

— Não houve muitas modificações — observou. — A se­nhora vai cantar cinco récitas no Covent Garden, três da Tosca e duas da Aida.

— Aida! Xi! — exclamou a prima-dona, — que chatice insuportável. Já a Tosca é diferente.

— Com efeito — disse Cowan. — A Tosca é o seu papel.

Paula Nazorkoff se empertigou toda.

— Sou a maior Tosca do mundo — declarou simplesmente.

— Exato — concordou Cowan. — Não há ninguém que se compare com a senhora.

— Espero que o Roscari faça o Scarpia.

Cowan confirmou com a cabeça.

— E o Emile Lippi.

— O quê? — guinchou a Nazorkoff. — O Lipi... aque­le batráquio hediondo, com voz de taquara rachada? Me re­cuso a cantar a seu lado. Eu mordo, arranho a cara dele, mas cantar eu não canto.

— Vamos, vamos — contemporizou Cowan, apaziguador.

— Estou lhe dizendo que ele não tem voz, é um cachor­ro vira-lata que só sabe latir.

— Está bem, veremos, veremos — disse Cowan.

Era sabido demais para se meter em discussões com can­toras temperamentais.

— Quem fará o Cavaradossi? — perguntou a Nazorkoff.

— Hensdale, o tenor americano.

— É um menino simpático. Canta direitinho.

— E tenho a impressão de que o Barrere também vai fazer o papel numa das récitas.

— Esse é um artista — disse Madame, magnânima. — Mas permitir que aquele batráquio do Lippi faça o Scarpia! Pois sim... com ele eu não canto.

— Deixe por minha conta — disse Cowan, conciliador.

Pigarreou e tirou outro maço de papéis de dentro da pasta.

— Estou providenciando um concerto especial no Albert Hall.

A Nazorkoff fez uma careta.

— Eu sei, eu sei — disse Cowan, — mas é praxe.

— Estarei ótima — disse a Nazorkoff, — o teatro vai encher até o teto e ganharei muito dinheiro. Ecco!

Cowan remexeu os papéis de novo.

— Agora tenho aqui uma proposta completamente dife­rente — anunciou. — De Lady Rustonbury. Ela quer que a senhora vá cantar lá.

— Rustonbury?

A prima-dona contraiu a testa, como se estivesse fazendo um esforço para se recordar de alguma coisa.

— Eu vi esse nome ultimamente, não me lembro onde. É uma cidade do interior... um povoado, não é?

— Isso mesmo, um lugarejo bonito, em Hertfordshire Quanto à residência de Lord Rustonbury, o Castelo de Rus­tonbury, é uma autêntica relíquia dos tempos feudais, cheio de fantasmas e retratos de antepassados, escadas secretas, com um teatrinho particular simplesmente fabuloso. São podres de ricos e estão sempre oferecendo espetáculos aos hóspedes. Ela sugere que se monte uma ópera completa, de preferência a Butterfly.

— A Butterfly!

Cowan confirmou com a cabeça.

— E se prontificam a pagar. Teremos que entrar num acordo com o Covent Garden, é lógico, mas mesmo assim, financeiramente, vale a pena. Com toda a probabilidade, a realeza estará presente. Será uma publicidade fabulosa.

Madame ergueu o queixo ainda bonito.

— E eu preciso de publicidade? — perguntou, orgulhosa.

— O que é bom nunca é demais — retrucou Cowan, impassível.

— Rustonbury — murmurou a cantora. — Onde foi que eu vi...

De repente levantou-se de um salto e, correndo à mesa no meio da sala, começou a folhear um jornal que estava ali em cima. Houve uma súbita pausa, enquanto parava a mão, detendo-se sobre uma das páginas. Depois deixou que o jornal caísse no soalho e voltou lentamente para a cadeira. Numa de suas bruscas mudanças de disposição, parecia agora uma personalidade totalmente diferente, de gestos tranqüilos, quase austeros.

— Faça todos os preparativos para Rustonbury. Eu acei­to o convite para cantar lá, mas sob uma condição... a ópera tem que ser a Tosca.                        

Cowan ficou meio hesitante.

— Vai ser um pouco difícil... para um espetáculo parti­cular, a senhora sabe, os cenários e tudo o mais.

— A Tosca, senão nada feito.

Cowan olhou bem para ela. O que viu pareceu con­vencê-lo. Acenou de leve com a cabeça e se levantou.

— Verei o que posso fazer — disse tranqüilamente.

A Nazorkoff também se levantou. Parecia mais ansiosa que de costume para explicar o motivo da sua decisão.

— É a minha maior criação, Cowan. Sou capaz de can­tar esse papel como nenhuma outra mulher jamais cantou.

— É um papel magnífico — disse Cowan. — No ano passado a Jeritza teve grande sucesso com ele.

— A Jeritza?! — exclamou a prima-dona, um rubor cobrindo-lhe as faces.

E pôs-se a manifestar, minuciosamente, a opinião que tinha da Jeritza.

Cowan, já. habituado a ouvir a opinião de cantoras sobre colegas, distraiu a atenção até que ela terminou o discurso e então disse, obstinado:

— Seja como for, ela canta Vissi D’Arte deitada de bruços.

— Grande coisa — retrucou a Nazorkoff. — Que tem isso de mais? Pois eu vou cantá-la deitada de costas, sacudin­do as pernas no ar.

Cowan meneou a cabeça, na maior seriedade.

— Não creio que fosse encontrar muita aceitação — informou-lhe. — Ainda assim, a moda é capaz de pegar, sabe?

— Ninguém sabe cantar Vissi D’Arte como eu — afir­mou a Nazorkoff, com segurança. — Eu canto com a voz que tinha no convento... quando as boas freiras me ensi­naram a cantar, anos atrás.    Com a voz de um menino de coro ou de um anjo. Sem sentimento. Sem paixão.

— Eu sei — disse Cowan calorosamente. — Já ouvi. A senhora é maravilhosa.

— Isso é que é arte — continuou a prima-dona, — pagar o preço, sofrer, suportar, e no fim não só ter a experiência, mas também a capacidade de voltar atrás, retroceder ao iní­cio e recapturar toda a beleza perdida do coração de uma criança.

Cowan olhou-a com estranheza. Havia qualquer coisa na maneira dela encarará-lo como se não o estivesse vendo, uma expressão vaga, distante, que lhe deu uma sensação hor­ripilante. Depois a cantora entreabriu os lábios e murmurou algumas palavras para si mesma. Mal conseguiu entendê-las.

— Enfim — disse ela, baixinho. — Finalmente... depois de tantos e tantos anos.

 

Lady Rustonbury, mulher ambiciosa e de pendores artís­ticos, que tirava partido de ambas as qualidades com abso­luto êxito, teve a sorte de casar com um homem sem am­bições e que não entendia nada de arte, deixando-a, portanto, inteiramente livre para fazer o que quisesse. O Conde de Rustonbury, um homenzarrão rústico que só se interessava por cavalos, admirava a esposa e sentia orgulho dela, alegrando-se com o fato de que a sua grande riqueza permitia--lhe a concretização de todos os sonhos. O teatro particular, construído há menos de um século pelo avô do Conde, era o brinquedo predileto de Lady Rustonbury — já havia mon­tado ali um drama de Ibsen e uma peça ultra-avançada que só tratava de divórcio e entorpecentes, além de uma fantasia poética com cenários cubistas. A iminente apresentação da Tosca despertou a curiosidade geral. Lady Rustonbury ofe­receria uma grande recepção aos convidados, e a fina flor de Londres, em peso, viria de automóvel assistir ao espetáculo.

Mme. Nazorkoff e sua companhia chegaram pouco antes do almoço. Um novo tenor americano, Hensdale, interpre­taria o papel de Cavaradossi, e Roscari, o famoso barítono italiano, seria Scarpia. As despesas da produção tinham sido enormes, mas ninguém se preocupava com isso. Paula Na­zorkoff estava muito bem disposta. Mostrou-se simpática, amável, no auge do seu encanto e cosmopolitismo. Cowan ficou agradavelmente surpreso e rezou para que esse estado de coisas perdurasse.

Depois do almoço toda a companhia dirigiu-se ao teatro para examinar o cenário e os vários equipamentos. A orques­tra atuaria sob a regência de Mr. Samuel Ridge, um dos mais famosos maestros ingleses. Tudo dava impressão de estar correndo sem o menor problema e esse fato, por estranho que pareça, inquietava Mr. Cowan: sentia-se mais à vontade no meio de contratempos. Aquela tranqüilidade anormal o deixava perturbado.

“Está tudo andando bem demais”, murmurou Mr. Cowan com seus botões. “Madame parece uma gata empanturrada de leite. Isso não pode durar. Alguma coisa vai acontecer.”

Talvez em conseqüência de um longo contato com o mundo da ópera, Mr. Cowan houvesse aguçado seu sexto sentido. O certo é que seus pressentimentos foram justifi­cados. Pouco antes das sete da noite, Elise, a camareira francesa, veio correndo, aflita, procurá-lo.

— Ah, Mr. Cowan, venha logo. Venha logo, por favor.

— Que aconteceu? — perguntou Cowan, nervoso. — Madame criou algum caso... fechou o tempo, é isso?

— Não, não, não tem nada a ver com Madame. É o Signor Roscari, que ficou doente. Está morrendo!

— Morrendo? Ah, não inventa.

Cowan saiu correndo atrás dela rumo ao quarto do ita­liano enfermo. Encontrou o homenzinho deitado na cama, ou melhor, se retorcendo de um lado para outro, numa série de contorções que seriam cômicas se a situação não fosse grave. Paula Nazorkoff estava curvada sobre ele. Recebeu Cowan com ar imperioso.

— Ah! Até que enfim. O nosso pobre Roscari está sofrendo horrivelmente. Na certa foi alguma coisa que ele comeu.

— Eu vou morrer — gemia o homenzinho. — A dor... é monstruosa. Ai!

Retorceu-se de novo; segurando a barriga com as duas mãos e rolando na cama.

— Temos que chamar um médico — disse Cowan.

Paula agarrou-o antes que chegasse à porta.

— O médico já vem. Ele fará tudo o que for possível pelo coitado, isso é certo, mas o Roscari jamais, jamais, es­tará em condições de cantar hoje à noite.

— Não cantarei nunca mais. Eu vou morrer — gemeu o italiano.

— Não, não, você não vai morrer — disse Paula. — Trata-se apenas de uma indigestão, mas mesmo assim você não vai poder cantar.

— Fui envenenado.

— É, não resta dúvida, foi a ptomaína — disse Paula. — Elise, fique com ele até o doutor chegar.

A cantora arrastou Cowan para fora do quarto.

— Que vamos fazer? — perguntou.

Cowan sacudiu a cabeça, desesperado. Já estava tão em cima da hora que não era mais possível chamar alguém de Londres para substituir Roscari. Lady Rustonbury, que aca­bava de ser informada da enfermidade do seu hóspede, veio às pressas pelo corredor ao encontro dos dois. Como Paula Nazorkoff, a única coisa que a preocupava era o sucesso da Tosca.

— Se ao menos houvesse alguém à mão por aqui — gemeu a prima-dona.

— Ah! — exclamou Lady Rustonbury de repente — Claro! O Bréon.

— Bréon?

— É, Edouard Bréon, a senhora conhece, o famoso barí­tono francês. Ele mora aqui perto. No número da Casas de Campo desta semana saiu um retrato da casa dele. É exata­mente a pessoa que precisamos.

— Ele nos cai do céu — exclamou a Nazorkoff. — Bréon como Scarpia, eu me lembro bem, foi um dos seus maiores papéis. Mas ele já não canta mais, não é?

— Vou convencê-lo — disse Lady Rustonbury. — Dei­xem por minha conta.

E sendo uma mulher decidida, mandou logo que lhe trouxessem o Hispano Suiza. Dez minutos depois o refúgio Campestre de M. Edouard Bréon era invadido por uma Con­dessa agitada. Lady Rustonbury, quando resolvia fazer alguma coisa, agia com muita determinação e M. Bréon, sem dúvida, compreendeu que não lhe restava mais nada senão capitular. Deve-se confessar, também, que tinha um fraco por condessas. De origem extremamente modesta, havia che­gado ao auge de sua carreira convivendo cm pé de igualdade com duques e príncipes, fato que nunca deixou de lisonjeá-lo. Andava, porém, descontente desde que se retirara para aquele velho lugarejo inglês. Sentia falta da vida de adulações e aplausos, e a população local não parecia tão pronta a re­conhecê-lo como a princípio supunha que aconteceria. Ficou, portanto, imensamente grato e encantado com o pedido de Lady Rustonbury.

— Farei o que estiver ao meu humilde alcance — res­pondeu, sorrindo. — Como sabe, faz bastante tempo que não canto mais em público. Nem sequer aceito alunos, só um ou outro, por muito favor. Mas já que o Signor Roscari infeliz­mente adoeceu...

— Foi um golpe terrível — disse Lady Rustonbury.

— Não que ele seja realmente um bom cantor — re­trucou Bréon.

E passou a explicar-lhe, com luxo de minúcias, o motivo. Pelo visto, não havia surgido nenhum barítono de valor desde que Edouard Bréon tinha-se aposentado.

— Mme. Nazorkoff será a intérprete da Tosca — disse Lady Rustonbury. — Creio que já a conhece, não?

— Nunca lhe fui apresentado — respondeu Bréon. — Ouvi-a cantar uma vez em Nova York.   Uma grande ar­tista... tem o senso do drama.

Lady Rustonbury sentiu-se aliviada — com esses artis­tas, nunca se sabe — são tão cheios de ciúmes e antipatias esquisitas.

Cerca de vinte minutos mais tarde entrou no saguão do castelo apontando triunfante com a mão para o cantor.

— Convenci o homem — exclamou, rindo. — Nosso pre­zado M. Bréon foi realmente muito gentil. Jamais poderei esquecer.

Todo mundo se aglomerou em torno do francês e a gra­tidão e apreço gerais agiram como um incenso sobre ele. Edouard Bréon, embora já próximo dos sessenta anos, ainda era um belo tipo de homem, alto e moreno, dono de uma personalidade magnética.

— Deixe eu ver — disse Lady Rustonbury. — Onde está Madame...? Ah! Lá está ela.

Paula Nazorkoff não participava das boas-vindas gerais ao francês. Havia ficado calmamente sentada numa cadeira de carvalho de encosto alto, à sombra da lareira, que estava naturalmente apagada devido ao calor reinante, e a cantora se abanava devagar com um imenso leque de folha de pal­meira. Mostrava-se tão isolada e retraída que Lady Ruston­bury receou que se sentisse ofendida.

— M. Bréon. — Levou-o até a presença da cantora. — O senhor falou que ainda não tinha sido apresentado a Ma­dame Nazorkoff.

Com um último abano, quase um floreio, da folha de palmeira, Paula Nazorkoff pousou-a e estendeu a mão para o francês, que a beijou com uma mesura. Um leve suspiro escapou dos lábios da prima-dona.

— Madame — disse Bréon, — nunca cantamos juntos. Eis aí o castigo da minha idade!    Mas o Destino foi bondoso comigo e veio em meu socorro.

Paula riu baixinho.

— É muita amabilidade sua, M. Bréon. Quando eu não passava de uma pobre cantora desconhecida, tinha verda­deira idolatria pelo senhor. O seu Rigoletto... que arte, que perfeição!Era incomparável.

— Ai de mim! — retrucou Bréon, fingindo um suspiro. — Minha época já vai longe. Quantas vezes não cantei Scarpia, Rigoletto, Radamés, Sharpless, e agora... nunca mais!

— Como assim? E hoje à noite?

— Tem razão, madame... me esqueci. Hoje à noite.

— O senhor cantou com várias Toscas — disse a Nazor­koff, arrogante, — mas jamais comigo!

O francês se curvou.

— Será uma honra — disse baixinho. — É um grande papel, madame.

— Que exige não só uma cantora como também uma atriz — interveio Lady Rustonbury.

— Isso é verdade — concordou Bréon. — Eu me lem­bro quando era moço, na Itália, de ter ido a um pequeno teatro que ficava bem fora de mão, em Milão.  A entrada custava uma bagatela, mas aquela foi uma noite de bel canto comparável às do Metropolitan Opera House, de Nova York. A Tosca era uma estreante muito jovem, que cantava como um anjo. Nunca hei de me esquecer da voz dela em Vissi D’Arte, a clareza, a pureza do timbre. Mas carecia de força dramática.

A Nazorkoff concordou.

— Isso só vem com a idade — murmurou.

— De fato. Essa jovem... que se chamava Bianca Capelli... eu me interessei pela carreira dela.    Por meu inter­médio, teve a chance de conseguir grandes contratos, mas foi tola, lamentavelmente tola.

Deu de ombros.

— Tola em que sentido?

A pergunta vinha da filha de Lady Rustonbury, Blanche Amery — uma moça magra de vinte e quatro anos e gran­des olhos azuis.

O francês se virou logo, cortesmente, para ela.

— Hélas! Mademoiselle, ela se envolveu com um tipo que não valia nada, um rufião que fazia parte da Camorra. Ele se meteu em complicações com a polícia e foi conde­nado à morte. Ela veio me procurar, implorando para que eu fizesse alguma coisa para salvar o amante.

Blanche Amery olhava fixamente para o barítono.

— E o senhor salvou? — perguntou, ofegante.

— Eu, mademoiselle! Um estrangeiro? Que podia fazer?

— O senhor não tinha influência? — sugeriu a Nazor­koff com aquela voz grave e vibrante.

— Se tivesse, duvido que quisesse usá-la. O sujeito era indigno. Fiz o que pude pela jovem.

Sorriu de leve, de um jeito que a moça inglesa de repente achou que tinha algo de estranhamente desagradável. Pare­ceu-lhe, naquele momento, que as palavras dele estavam mui­to longe de exprimir a verdade.

— O senhor fez o que pôde — disse a Nazorkoff. — Foi muito amável e ela ficou grata, não é?

O francês deu de ombros.

— O sujeito foi executado — respondeu, — e a jovem entrou para um convento. E voilà! O mundo perdeu uma cantora.

A Nazorkoff riu baixinho.

— Nós, as russas, somos mais volúveis — comentou alegremente.

No momento em que a cantora disse isso, Blanche Amery estava casualmente olhando para Cowan e notou-lhe o rápido olhar de espanto e a maneira de entreabrir e logo fechar os lábios, em obediência a um sinal imperioso de Paula.

O mordomo apareceu à porta.

— O jantar — anunciou Lady Rustonbury, erguendo-se. — Coitados, fico com pena de vocês. Deve ser horrível ter que cantar sempre em jejum. Mas depois vai haver uma ceia ótima.

— Contamos com isso — disse Paula Nazorkoff. Riu de novo, baixinho. — Depois!

 

No interior do teatro, o primeiro ato da Tosca acabava de terminar. A platéia começou a se agitar, trocando opi­niões. Os nobres presentes, simpáticos e amáveis, ocupavam as três poltronas de veludo na primeira fila. Só se escutavam cochichos e murmúrios: a opinião geral era que a Nazor­koff no primeiro ato não tinha correspondido à fama de que vinha precedida. A maioria não compreendia que nisso a cantora mostrava sua arte: no primeiro ato estava poupando a voz e a si mesma. Fazia da Tosca uma criatura leviana, frívola, que brinca com o amor, vaidosamente ciumenta e exigente. Bréon, apesar de sua voz gloriosa já ter passado do apogeu, ainda causava uma impressão magnífica no pa­pel do cínico Scarpia. Não havia nenhum indício do decré­pito libertino na concepção do seu desempenho. Transfor­mava Scarpia numa figura simpática, quase benévola, apenas sugerindo a malevolência sutil por baixo das. aparências. Na última cena, com o órgão e a procissão, quando Scarpia fica parado, pensando, radiante com o plano arquitetado para reter Tosca, Bréon deu mostras de uma arte maravilhosa. Agora subia o pano para começar o segundo ato, que se passa nos aposentos de Scarpia.

Desta vez, quando Tosca entrou, a arte da Nazorkoff tornou-se logo manifesta. Ali estava uma mulher tomada de pavor, interpretando seu papel com a segurança de uma grande atriz. O cumprimento natural dado a Scarpia, a sua despreocupação fingida, as respostas sorridentes! Nessa cena, Paula Nazorkoff representou com os olhos: portava-se com uma serenidade absoluta, um sorriso impassível nos lábios. Só nos olhos, que não paravam de dardejar para Scarpia, traía o que sentia no íntimo. E assim prosseguiu a história, a cena da tortura, o desabafo desesperado de Tosca e a sua entrega total ao cair aos pés de Scarpia, implorando-lhe misericórdia em vão. O velho Lord Leconmere, uma autori­dade em matéria de música, se remexia no assento, cheio de admiração, e um embaixador estrangeiro, sentado a seu lado, murmurou:

— Hoje a Nazorkoff se superou a si mesma. Não existe outra atriz capaz de chegar aos extremos a que ela chega.

Leconmere concordou com a cabeça.

Agora Scarpia já estipulou seu preço e Tosca, horrori­zada, se refugia perto da janela. Aí então se ouve o rufar dos tambores ao longe e Tosca cai prostrada no sofá. Scarpia, parado a seu lado, descreve como os subalternos preparam o patíbulo — faz-se silêncio e de novo ressoa o rufar dos tambores. A Nazorkoff permanece inclinada no sofá, a ca­beça pendendo, quase tocando no chão, encoberta pelos cabe­los. Depois, em requintado contraste com a paixão e a intensidade dos últimos vinte minutos, ouve-se a voz dela, forte, nítida, tal como havia dito a Cowan, a voz de um menino de coro ou de um anjo:

 

“Vissi d’arte, vissi d’amore, no feci mai male ad anima viva. Con man furtiva quante miserie conobbi, aiutai.”

 

A voz de uma criança que se interroga, perplexa. Depois ela cai de novo de joelhos, implorante, até o instante em que Spoletta entra. Tosca, exausta, capitula, e Scarpia pronuncia as palavras fatídicas de duplo sentido. Spoletta torna a sair. Chega então o momento dramático quando Tosca, erguendo o copo de vinho na mão trêmula, enxerga o punhal em cima da mesa e o esconde nas costas.

Bréon se levantou, belo, sombrio, ardente de paixão. “Tosca, finalmente mia!” A punhalada como um raio, e o brado sibilante de vingança de Tosca:

 

“Questo è il baccio di Tosca!” (Este é o beijo de Tosca!)

 

Jamais tinha a Nazorkoff demonstrado tanto prazer no ato de vingança de Tosca. Aquele último e feroz “Muori dannato” num sussurro e, por fim, numa voz estranha, calma, que ressoou por todo o teatro:

 

“Or gli perdono!” (Agora eu o perdoo!)

 

A suave música da morte começa enquanto Tosca pre­para o ritual, colocando as velas de cada lado da cabeça de Scarpia, o crucifixo sobre o peito, parando pela última vez na soleira da porta para olhar para trás. Ouve-se o toque distante dos tambores e o pano cai.

Desta vez a platéia foi tomada de verdadeiro entusiasmo, mas que teve curta duração. Alguém saiu correndo dos bas­tidores para cochichar qualquer coisa a Lord Rustonbury. Ele se levantou, e depois de deliberar um pouco virou-se e fez sinal para que Sir Donald Calthorp, médico de grande fama, se aproximasse. Quase no mesmo instante espalhou-se a notícia entre os presentes. Tinha acontecido uma desgraça. Alguém estava gravemente ferido. Um dos cantores apare­ceu diante do pano e explicou que M. Bréon havia, infeliz­mente, sofrido um acidente — a ópera não podia continuar. De novo circulou o boato: Bréon fora apunhalado, a Nazorkoff perdera a cabeça, entregando-se a tal ponto a seu papel que realmente apunhalara o homem que contracenava com ela. Lord Leconmere, conversando com seu amigo embaixa­dor, sentiu que lhe tocavam no braço. Virou-se e deu de cara com Blanche Amery.

— Não foi acidente — disse a moça. — Tenho certeza de que não foi. O senhor não ouviu, pouco antes do jantar, a história que ele contou sobre aquela jovem na Itália? Aquela jovem era Paula Nazorkoff. Logo em seguida ela mencionou qualquer coisa sobre o fato de ser russa, e eu vi que Mr. Cowan ficou espantado. Ela pode ter adotado um nome russo, mas ele sabe muito bem que ela é italiana.

— Blanche, minha querida — protestou Lord Leconmere.

— Estou lhe dizendo que tenho certeza. Eu vi um jor­nal ilustrado no quarto dela, aberto na página que mostrava M. Bréon em sua casa de campo inglesa. Ela já sabia antes de vir para cá. Eu acho que ela deu alguma coisa para o coitado daquele italiano ficar doente.

— Mas por quê? — exclamou Lord Leconmere. — Por quê?

— O senhor não vê? É a história de Tosca que se re­pete. Ele se apaixonou por ela na Itália, mas ela foi fiel ao amante, e procurou-o para lhe pedir que salvasse o outro. Ele prometeu que salvaria, mas em vez disso deixou que morresse. E agora, por fim, ela conseguiu se vingar. Não ouviu o jeito dela sibilar “lo sono Tosca”? Eu vi a cara que o Bréon fez quando ela disse isso. Foi então que ele desco­briu... que ele a reconheceu!

Paula Nazorkoff estava sentada imóvel no camarim, en­volta num abrigo de arminho branco. Bateram na porta.

— Entre — disse a prima-dona.

Era Elise. Soluçava.

— Madame, madame, ele morreu! E...

— Sim?

— Madame, como lhe dizer? Há dois cavalheiros da polícia aí fora. Querem falar com a senhora.

Paula Nazorkoff levantou-se, imponente.

— Eu vou falar com eles — disse em voz baixa.

Tirou o colar de pérolas do pescoço e colocou-o nas mãos da francesa.

— Isto é para você, Elise.  Você foi muito boa comigo. Não terei necessidade delas lá para onde eu vou. Compreen­de, Elise? Nunca mais cantarei a Tosca.

Ficou por algum tempo parada à porta, passando os olhos pelo camarim, como se estivesse rememorando os últi­mos trinta anos de sua carreira.

Depois, suavemente, murmurou entre dentes o último verso de outra ópera:

 

“La commedia è finita!”

 

O CÃO DA MORTE

Foi por intermédio de William P. Ryan, correspondente de um jornal americano, que ouvi falar pela primeira vez no caso. Estava jantando com ele em Londres na véspera de seu regresso a Nova York e, por acaso, mencionei que na manhã seguinte pretendia ir a Folbridge.

Ele levantou os olhos e perguntou abruptamente:

— Folbridge, na Cornualha?

Ora, é raríssima a pessoa que sabe que existe Folbridge, na Cornualha. Todo mundo sempre pensa que se traía de Folbridge em Hampshire. Por isso o conhecimento de Ryan despertou minha curiosidade.

— É — respondi. — Você já esteve lá?

Ele limitou-se a praguejar. Depois perguntou se por acaso eu não conhecia uma casa chamada Trearne, que fi­cava por lá.

Meu interesse aumentou.

— Claro que conheço.    Por sinal, é para lá que eu vou. É a casa da minha irmã.

— Puxa! — exclamou William P. Ryan. — Só faltava mais essa!

Sugeri que parasse de fazer comentários enigmáticos e se explicasse melhor.

— Bem — disse ele. — Para isso terei que começar por uma experiência que tive no início da guerra.

Suspirei. A história que estou contando aconteceu em 1921. A última coisa que podia me interessar era relembrar a guerra, graças a Deus já quase esquecida... Além do mais, eu sabia que William P. Ryan tinha o costume de ser incrivel­mente prolixo quando se punha a descrever suas experiências de combate.

Mas agora não havia mais jeito de impedir.

— No princípio da guerra, como acho que você sabe, eu me encontrava na Bélgica a serviço do jornal... andando de um lado para o outro. Pois existia um lugarejo... vamos chamá-lo de X. A aldeia mais insignificante que já se viu, mas onde há um convento bastante grande. Freiras de bran­co, como é mesmo que elas se chamam?... Sei lá o nome da ordem. Enfim, não vem ao caso. Pois essa cidadezinha ficava bem no caminho da avançada alemã. Os boches chegaram...

Agitei-me incômodo no assento. William P. Ryan le­vantou a mão, para me tranqüilizar.

— Não se assuste — disse. — Não é uma história de atrocidades germânicas. Podia ter sido, talvez, mas não foi. Para ser franco, aconteceu exatamente o contrário. Os boches atacaram o tal convento... e quando entraram, a coisa toda voou pelos ares.

— Puxa! — exclamei, espantado.

— Negócio estranho, não é? Claro que a primeira coisa que eu diria é que os boches estavam festejando a vitória e começaram a brincar com seus próprios explosivos. Mas parece que não havia nenhuma coisa desse tipo entre os armamentos que eles carregavam. Não era uma unidade encar­regada do transporte de dinamite. Pois muito bem, eu então pergunto a você o que é que um bando de religiosas entende de explosivos? Que freiras danadas, hem?

— De fato, é estranho — concordei.

— Fiquei interessado em ouvir a opinião dos campone­ses sobre o assunto. Para eles a explicação não podia ser mais simples. Tratava-se de um milagre moderno, sensa­cional, cem por cento eficaz. Segundo eles, uma das frei­ras havia criado uma espécie de fama... uma vocação de santa... entrava em transe e tinha visões. E me disseram que foi ela a autora da proeza. Pediu que um raio fulmi­nasse o invasor impiedoso... e não há que negar que ful­minou mesmo... e tudo mais que se encontrava por perto. Milagre bem eficaz, esse!

“Nunca consegui apurar a verdade direito... não deu tempo. Mas naquela época surgiam milagres por tudo quanto é canto... anjos em Mons, e assim por diante. Escrevi o artigo, adicionei uma boa dose de pieguice, explorei bem o lado religioso, e mandei pro jornal. Causou sucesso nos Estados Unidos. Era o tipo da coisa que gostavam de ler naquele tempo.

“Mas (não sei se você vai compreender isto) ao escrever o artigo, fiquei meio interessado. Achei que gostaria de saber o que tinha realmente acontecido. No próprio local não havia nada para se ver. Ainda restavam duas paredes de pé, e numa delas existia uma grande marca de pólvora preta com a forma exata de um enorme cão de caça. Os camponeses das imediações andavam mortos de medo da tal marca. Botaram-lhe o nome de Cão da Morte e não pas­savam por lá depois que anoitecia.

“A superstição é sempre uma coisa interessante. Resolvi procurar a freira autora da proeza. Parecia que continuava viva. Mas tinha vindo para a Inglaterra, junto com um grupo de outros refugiados. Me dei ao trabalho de localizá-la. Descobri que havia ido para Trearne, em Folbridge, na Cornualha.”

Confirmei com a cabeça.

— Minha irmã acolheu uma porção de refugiados bel­gas no começo da guerra. Uns vinte, mais ou menos.

—Pois me prometi que, quando tivesse tempo, iria pro­curar a tal freira. Queria que ela me contasse a sua própria versão da tragédia. Depois, andando sempre às voltas com uma coisa e outra, não pensei mais no assunto. A Cornualha, de qualquer forma, fica meio fora de mão.    Para falar a verdade, tinha-me esquecido por completo dessa história, até que você, ao mencionar Folbridge há pouco, trouxe tudo de volta à minha memória.

— Vou perguntar à minha irmã — disse eu. — Ela deve ter ouvido falar no caso. Só que os belgas, naturalmente, já foram repatriados há muito tempo.

— Lógico. Mesmo assim, se sua irmã souber de alguma coisa, eu gostaria muito que você me comunicasse.

— Pode ficar descansado — prometi.

E a coisa ficou nesse pé.

 

Foi no dia seguinte à minha chegada a Trearne que me lembrei da história. Minha irmã e eu estávamos tomando chá no terraço.

— Kitty — perguntei, — não havia uma freira entre os belgas que você acolheu?

— Você não quer dizer a irmã Marie Angelique, não é?

— É possível que sim — respondi, precavido. — Me fale sobre ela.

— Ah, meu caro! É uma criatura simplesmente fantás­tica. Ainda mora aqui, você sabia?

— Quê? Aqui em casa?

— Não, não, na aldeia. O Dr. Rose... lembra-se do Dr. Rose?

Sacudi a cabeça.

— Eu me lembro de um velho de seus oitenta e três anos.

— O Dr. Laird? Não, esse já morreu. Faz pouco tem­po que o Dr. Rose veio pra cá. É bem moço e cheio de idéias avançadas. Se tomou de um interesse enorme pela irmã Marie Angelique. Sabe, ela sofre de alucinações e não sei mais o quê, e pelo jeito é tremendamente interessante sob o ponto de vista médico. Coitada, não tinha para onde ir... e realmente, na minha opinião, era bem amalucada... só que de uma maneira comovente, se è que você me en­tende... pois bem, como eu ia dizendo, ela não tinha para onde ir e o Dr. Rose, muito gentilmente, arrumou para que ela ficasse na aldeia. Creio que ele está escrevendo uma monografia ou seja lá o que for que os médicos escrevem, a respeito dela.

Fez uma pausa e depois perguntou:

— Mas o que é que você sabe dela?

— Ouvi uma história bastante curiosa.

E contei exatamente o que Ryan tinha me dito. Kitty ficou Interessadíssima.

— Ela parece mesmo o tipo da pessoa que seria capaz de mandar você pelos ares... entende o que eu quero dizer, não é?

— Estou achando — respondi, cada vez mais curioso, — que preciso mesmo falar com essa moça.

— Pois fale. Eu gostaria de saber sua opinião sobre ela. Mas primeiro procure o Dr. Rose.  Por que não vai até a aldeia depois do chá?

Aceitei a sugestão.

Encontrei o Dr. Rose em casa e me apresentei. Parecia ser um rapaz simpático, mas havia qualquer coisa na sua personalidade que não me agradou muito. Era prepotente demais para deixar a gente inteiramente à vontade.

Ficou bem atento quando mencionei a irmã Marie Angelique. Era evidente que estava profundamente interessado. Contei-lhe a história que tinha ouvido de Ryan.

— Ah! — exclamou, pensativo. — Isso explica uma por­ção de coisas.

Levantou rápido os olhos para mim e continuou.

— O caso, de fato, é incrivelmente interessante. Quando ela chegou aqui, era evidente que tinha sofrido algum choque muito grande. Encontrava-se também num estado de grave perturbação mental. Era dada a alucinações de uma natu­reza simplesmente desconcertante. A personalidade dela é absolutamente fora do comum. Talvez o senhor queira vir junto comigo para lhe fazermos uma visita. Vale a pena conversar com ela.

Concordei prontamente.

Dirigimo-nos a um pequeno chalé nos arredores da al­deia. Folbridge é um lugar muito pitoresco. Fica na foz do Rio Fol, sobretudo na margem leste; a margem oeste é escarpada demais para ser povoada, o que não impede que existam algumas casas construídas temerariamente lá por aqueles penhascos. A do médico, por exemplo, estava en­carapitada bem na extremidade do penhasco do lado oeste. Dali se avistavam as grandes ondas batendo contra os roche­dos negros.

O pequeno chalé para onde agora nos dirigíamos ficava afastado da costa, sem vista para o mar.

— A enfermeira local mora aqui — explicou o Dr. Rose. — Eu providenciei para que a irmã Marie Angelique se hos­pedasse com ela. É melhor que permaneça sob cuidados especiais.

— Ela tem comportamento normal? — perguntei, curioso.

— Daqui a pouco o senhor verá com seus próprios olhos — respondeu-me, sorrindo.

A enfermeira local, uma mulherzinha baixota e simpá­tica, estava saindo de bicicleta quando chegamos.

— Boa tarde, enfermeira. Como vai a paciente? — gri­tou o médico.

— Como sempre, doutor. Sentada lá dentro com as mãos no colo e o espírito ausente. Muitas vezes não responde quando lhe falo, apesar de que deve-se levar em conta que ainda não entende bem o inglês.

Rose concordou com a cabeça e, enquanto a enfermeira saía pedalando pela estrada afora, foi até a porta do chalé, bateu com força e entrou.

A irmã Marie Angelique estava reclinada numa pre­guiçosa perto da janela. Virou a cabeça para o nosso lado.

Tinha um rosto estranho — pálido, transparente, com olhos imensos. Pareciam conter uma infinidade de tragédias.

— Boa tarde, irmã — disse o médico, em francês.

— Boa tarde, M. le docteur.

— Permita-me apresentar-lhe um amigo, Mr. Anstruther.

Fiz uma mesura. Ela inclinou a cabeça com um leve sorriso.

— Como está hoje? — perguntou o médico, sentando-se a seu lado.

— Como sempre. — Houve uma pausa. Depois conti­nuou. — Nada me parece real. São dias... meses... ou anos que passam? Eu mal sei. Só meus sonhos me pare­cem reais.

— Ainda sonha muito, então?

— Sempre... sempre... e, o senhor compreende?...  os sonhos parecem mais reais do que a vida.

— Sonha com seu país... com a Bélgica?

Ela sacudiu a cabeça.

— Não. Sonho com um país que nunca existiu... nunca. Mas isso o senhor está cansado de saber, M. le docteur. Já lhe contei várias vezes. — Parou e depois disse bruscamente: — Mas talvez este senhor também seja médico... um especialista de doenças do cérebro?

— Não, não.

Rose quis tranqüilizá-la, mas enquanto sorria, notei como seus dentes caninos eram incrivelmente pontudos e me ocor­reu que havia qualquer coisa de lobo nele. Prosseguiu:

— Achei que talvez tivesse interesse em conversar com Mr. Anstruther. Ele conhece um pouco a Bélgica. Ultima­mente recebeu notícias do seu convento.

Os olhos dela se viraram para mim. Senti que aver­melhei de leve.

— Não é nada, realmente — me apressei a explicar. — Mas outra noite estava jantando com um amigo que me des­creveu as paredes desmoronadas do convento.

— Quer dizer então que desmoronaram!

Era uma exclamação sufocada, dirigida mais a ela pró­pria do que a nós mesmos. Depois, olhando-me mais uma vez, perguntou hesitante:

— Diga-me, monsieur, o seu amigo não descreveu como... de que maneira... desmoronaram?

— Foi devido a uma explosão — respondi, e acrescentei: — Os camponeses têm medo de passar lá de noite.

— Por quê?

— Por causa de uma marca preta nos escombros de uma parede. São muito supersticiosos.

Ela se curvou para a frente.

— Diga-me, monsieur... depressa... depressa... diga-me! Como é essa marca?

— Tem a forma de um enorme cão de caça — respondi. — Os camponeses lhe botaram o nome de Cão da Morte.

— Ah! — exclamou, num grito. — Então é verdade... é verdade. Tudo o que eu me lembro é verdade.    Não foi nenhum pesadelo. Isso aconteceu! Aconteceu!

— O que aconteceu, irmã? — perguntou o médico em voz baixa.

Ela se virou, ansiosa, para ele.

— Eu me lembrava. Lá, nos degraus, eu me lembrava. Me lembrava de tudo. Usei o poder que tínhamos antiga­mente. Fiquei parada nos degraus do altar e pedi que não se aproximassem. Mandei que fossem embora, em paz. Não quiseram ouvir, continuaram vindo apesar das minhas adver­tências. E aí... — Curvou-se para a frente e fez um gesto estranho. — E aí eu soltei o Cão da Morte em cima deles. ..

Recostou-se de novo na cadeira, estremecendo da cabeça aos pés, os olhos fechados.

O médico se levantou, foi buscar um copo no armário, encheu de água até o meio, pingou duas gotas de um frasquinho que tirou do bolso, e depois levou para ela.

— Beba isto aqui — pediu, autoritário.

Ela obedeceu — maquinalmente, por assim dizer. Tinha o olhar distante, como se estivesse contemplando uma visão que só ela podia enxergar.

— Mas então tudo é verdade — murmurou. — Tudo. A Cidade dos Círculos, as pessoas de cristal... tudo. É tudo verdade.

— Parece que sim — concordou Rose.

Falava em voz baixa, apaziguadora, com o nítido propó­sito de estimular e não perturbar a associação de idéias da religiosa.

— Fale-me da cidade — pediu. — Da Cidade dos Cír­culos, não foi isso que você disse?

— Sim... havia três círculos — respondeu maquinal­mente, distraída. — O primeiro se destinava aos eleitos, o segundo às sacerdotisas e o último aos sacerdotes.

— E no centro?

Ela tomou fôlego com veemência e a voz adquiriu um tom de indescritível pavor.

— A Casa de Cristal...

Ao pronunciar essas palavras, levantou a mão direita e traçou com o dedo um contorno qualquer sobre a testa.

Seu corpo pareceu mais rígido e, sempre de olhos fecha­dos, oscilou um pouco — depois, de repente, endireitou-se de um salto, como se tivesse acordado bruscamente.

— Que foi? — perguntou, confusa. — Que que eu esta­va falando?

— Não foi nada — respondeu Rose. — Você está can­sada. Quer descansar. Nós já vamos embora.

Parecia meio estonteada quando saímos.

— Então — disse Rose, já do lado de fora. — Qual foi a sua impressão?

Lançou-me um olhar penetrante enquanto caminhávamos.

— Acho que ela está completamente desequilibrada — respondi, devagar.

— Foi isso que lhe pareceu, é?

— Não... para dizer a verdade, ela quase que me con­venceu... de uma maneira até estranha.    Ouvindo o que ela falava, tive a impressão de que, de fato, havia feito tudo aquilo que descrevia... operando uma espécie de gigantesco milagre. O jeito como ela acredita nisso me parece bastante autêntico. É por isso que...

— É por isso que o senhor diz que ela está desequili­brada. Tem razão. Mas agora encare o caso sob outro as­pecto. Suponhamos que ela tenha, realmente, feito aquele milagre... suponhamos que ela, pessoalmente, tenha destruí­do um prédio e centenas de seres humanos.

— Pelo simples poder da vontade? — retruquei, sorrindo.

— Não diria bem isso. O senhor sabe que uma pessoa pode destruir uma multidão apertando um botão que contro­lasse um sistema de minas.

— Sim, mas isso é uma coisa mecânica.

— De fato, é uma coisa mecânica, mas é a utilização e o controle de forças naturais. As trovoadas e a usina elé­trica são, fundamentalmente, a mesma coisa.

— Sim, mas para controlar a trovoada nós temos que recorrer a processos mecânicos.

Rose sorriu.

— Vou escapar pela tangente. Existe uma substância chamada gaultéria, que aparece na natureza em forma de vegetal, mas que também pode ser obtida sintética e quimicamente no laboratório.

— E daí?

— O que eu quero dizer é que muitas vezes há duas maneiras de chegar ao mesmo resultado.    A nossa é, reconhe­cidamente, a sintética. Mas talvez haja outra. Os incríveis resultados conseguidos pelos faquires hindus, por exemplo, não se explicam satisfatoriamente com qualquer resposta fácil. As coisas que chamamos de sobrenaturais não têm, necessaria­mente, nada de sobrenatural. Uma lanterna elétrica seria sobrenatural para um selvagem. O sobrenatural é apenas o natural daquilo cujas leis ainda não entendemos.

— Que quer dizer? — perguntei, fascinado.

— Que não posso excluir por completo a possibilidade de que o ser humano talvez seja capaz de armazenar uma grande força destruidora e usá-la para atingir seus objetivos. Os meios pelos quais ele conseguiria isso poderiam nos pa­recer sobrenaturais... mas na realidade não são.

Arregalei os olhos.

Ele riu.

— Trata-se apenas de uma especulação — disse, des­preocupado... — Me diga uma coisa, o senhor não reparou no gesto que ela fez quando mencionou a Casa de Cristal?

— Ela passou a mão pela testa.

— Exatamente. E traçou um círculo com o dedo. Tal como um católico ao fazer o sinal da cruz. Agora vou lhe contar uma coisa bastante curiosa, Mr. Anstruther. A pala­vra cristal já foi usada tantas vezes nas divagações da minha paciente, que decidi fazer uma experiência. Peguei um cristal emprestado e um dia mostrei-o inesperadamente para tes­tar a reação dela.

— E daí?

— Bem, o resultado foi muito interessante e sugestivo. Ela endureceu todo o corpo e ficou olhando para o cristal como se não pudesse acreditar no que estava vendo. Depois caiu de joelhos diante dele, murmurou algumas palavras... e desmaiou.

— Que palavras que ela disse?

— Muito estranhas. “O Cristal! Então a fé ainda vive!”

— Que coisa incrível!

— Dá para a gente pensar, não é? Agora vem a parte curiosa. Quando ela voltou a si do desmaio, tinha-se esque­cido de tudo. Mostrei-lhe o cristal e perguntei se sabia o que era. Me respondeu que imaginava que fosse uma dessas bo­las de cristal usadas pelos adivinhos. Perguntei-lhe se nunca tinha visto uma. Ela respondeu: “Nunca, M. le docteur”. Mas eu notei que estava com o olhar perplexo. “O que é que a está preocupando, irmã?”, perguntei. Ela respondeu: “É que acho tão estranho. Nunca tinha visto antes um cris­tal e no entanto... me parece que já conheço tão bem. Tem uma coisa... se ao menos eu pudesse me lembrar....” O esforço que fazia para recordar era evidentemente tão penoso que eu proibi que pensasse mais naquilo. Isso foi há duas semanas. Venho contemporizando de propósito. Amanhã vou fazer uma nova experiência.

— Com o cristal?

— É. Quero que ela olhe bem para ele. Acho que o resultado vai ser interessante.

— Que espera descobrir? — perguntei, curioso.

A pergunta era ociosa, mas o resultado foi inesperado. Rose se empertigou todo, avermelhou, e quando respondeu seu comportamento havia mudado sem que se desse conta. Estava mais formal, mais profissional.

— A explicação para certos desequilíbrios mentais que não se compreendem direito. A irmã Marie Angelique é um objeto de estudo muito interessante.

Quer dizer, então, que o interesse de Rose era unicamen­te profissional? — pensei.

— Não se importa que eu venha junto? — perguntei.

Talvez fosse imaginação minha, mas me pareceu que ele hesitou antes de responder. Tive a súbita intuição de que não queria que eu fosse.

— Claro que não.   Não faço a menor objeção.

E acrescentou:

— O senhor não pretende se demorar muito por aqui, não é?

— Só vou ficar até depois de amanhã.

Deu-me a impressão de ter ficado contente com a res­posta. Desanuviou a testa e começou a falar sobre certas ex­periências efetuadas recentemente em cobaias.

 

Na tarde do dia seguinte me encontrei com o médico na hora marcada e fomos juntos à casa da irmã Marie Angelique. Ele estava todo gentil, talvez para desfazer a im­pressão causada na véspera.

— Não leve muito a sério o que eu disse — comentou, rindo.  — Não vá pensar que me dedico a ciências ocultas. O diabo é que eu tenho uma fraqueza infernal para tirar as coisas a limpo.

— É mesmo?

— É sim, e quanto mais fantásticas, mais eu gosto.

Riu como a gente ri de uma fraqueza engraçada.

Quando chegamos ao chalé, a enfermeira local queria consultar Rose sobre não sei o quê, de modo que fiquei a sós com a irmã Marie Angelique.

Vi que ela me analisava minuciosamente. Não demorou muito, disse:

— A nossa querida enfermeira me falou que o senhor é irmão daquela senhora tão educada que mora lá no casa­rão para onde me levaram quando vim da Bélgica.

— Sou, sim — confirmei.

— Ela foi muito boa pra mim. É uma ótima pessoa. Calou-se, como que remoendo uma idéia.   Por fim per­guntou:

— M. le docteur também é uma ótima pessoa? Fiquei meio atrapalhado.

— É sim.   Quero dizer... acho que é.

— Ah! — Fez uma pausa e depois acrescentou: — Não há que negar que ele tem sido muito bom pra mim.

— Sem dúvida nenhuma.

Ela levantou bruscamente os olhos.

— Monsieur... o  senhor... o senhor que agora está conversando aqui comigo... o senhor acha que eu estou louca?

— Ora, irmã, uma idéia dessas nunca me...

Ela sacudiu lentamente a cabeça — interrompendo meu protesto.

— Será que estou louca? Sei lá... as coisas que eu lembro... as coisas que esqueço...

Suspirou, e nesse instante Rose entrou na sala.

Cumprimentou-a alegremente e explicou o que desejava que ela fizesse.

— Sabe, há certas pessoas que possuem o dom de ver coisas num cristal. Desconfio que você também possua esse dom, irmã.

Pareceu inquieta.

— Não, não, eu não posso fazer isso. Tentar adivinhar o futuro...  isso é pecado.

Rose ficou surpreso. Não contava com aquela reação. Mudou logo de tática.

— Não se deve querer ver o futuro, tem toda a razão. Já o passado... é diferente.

— O passado?

— Sim... existem muitas coisas estranhas no passado. Que voltam como relâmpagos... entrevistos um instante... e depois desaparecem de novo. Não procure enxergar nada no cristal, já que isso não lhe está permitido. Apenas pegue-o nas mãos... assim. Olhe para ele... olhe bem. É... olhe bem no fundo... cada vez mais. Já está se lembrando, não é? Está, sim. E também ouve minha voz, falando com você. Agora responda minhas perguntas.  Não está me ou­vindo?

A irmã Marie Angelique tinha pegado o cristal como ele pedia, segurando-o com estranho respeito. Depois, à me­dida que ia olhando bem para ele, seu olhar se tornou vago, como se não estivesse vendo mais nada, e deixou pender a cabeça. Parecia estar dormindo.

O médico tirou-lhe o cristal delicadamente das mãos e colocou-o em cima da mesa. Levantou-lhe o canto da pálpe­bra. Depois veio sentar-se ao meu lado.

— Temos que esperar que acorde. Acho que não vai demorar muito.

Tinha razão. Ao cabo de cinco minutos, a irmã Marie Angelique se mexeu. Abriu languidamente os olhos.

— Onde estou?

— Aqui... em casa. Você dormiu um pouco. Sonhou, não sonhou?

Ela confirmou com a cabeça.

— Sonhei, sim.

— Foi com o Cristal?

— Foi.

— Conte pra nós.

— O senhor vai me achar louca, M. le docteur.   Pois imagine, no meu sonho, o Cristal era um emblema sagrado. Cheguei, inclusive, a conceber um segundo Cristo, um Mes­tre do Cristal, que morreu pela sua fé, cujos discípulos fo­ram caçados... perseguidos... Mas a fé sobreviveu.

— Sobreviveu?

— Sim... durante quinze mil luas cheias... quero di­zer, durante quinze mil anos.

— Quanto tempo dura uma lua cheia?

— O tempo de treze luas comuns. Sim, foi na décima-quinta milésima lua cheia... eu, naturalmente era uma Sacerdotisa do Quinto Signo na Casa de Cristal.   Foi nos primeiros dias do advento do Sexto Signo...

Franziu as sobrancelhas e uma expressão de medo pas­sou-lhe pelo rosto.

— Cedo demais — murmurou. — Cedo demais. Um en­gano... Ah, sim! Agora me lembro! O Sexto Signo!

Meio que saltou em pé, depois recostou-se de novo, pas­sando a mão pelo rosto e murmurando:

— Mas que estou dizendo? Deliro. Essas coisas nunca aconteceram.

— Vamos, não se preocupe.

Mas ela o olhava, perplexa, angustiada. — M. le docteur, eu não entendo. Por que é que eu te­nho esses sonhos... essas fantasias? Eu tinha apenas dezesseis anos quando entrei para a vida religiosa. Nunca viajei. No entanto sonho com cidades, com pessoas e costumes es­tranhos. Por quê?

Apertou a cabeça entre as mãos.

— Nunca foi hipnotizada, irmã?   Nem entrou em esta­do de transe?

— Nunca fui hipnotizada, M. le docteur. Quanto ao transe, quando eu rezava na capela, meu espírito muitas vezes se alienava do corpo e eu ficava uma porção de horas como se estivesse morta. Era, sem dúvida, um estado de bem-aven­turança, um estado de graça... como dizia a Reverenda Ma­dre. Ah, é? — Prendeu a respiração. — Agora me lembro. Nós também chamávamos isso de estado de graça.

— Gostaria de fazer uma experiência, irmã — disse Rose numa voz bem natural. — Talvez disperse essas lembranças penosas. Vou lhe pedir que olhe mais uma vez para o cris­tal. Depois lhe direi uma determinada palavra. Você res­ponderá com outra. Continuaremos assim até que se sinta cansada.   Concentre seus pensamentos no cristal e não nas palavras.

Enquanto eu tornava a desembrulhar o cristal e o en­tregava à irmã Marie Angelique, reparei na maneira respei­tosa com que ela o pegava. Pousado sobre o veludo preto, ficou entre as delgadas palmas de suas mãos. Ela o fitava com aqueles maravilhosos olhos profundos. Houve um cur­to silêncio e depois o médico disse: “Cão”.

A irmã Marie Angelique respondeu imediatamente: “Morte”.

 

Não pretendo descrever todos os pormenores da expe­riência. O médico pronunciou muitas palavras sem impor­tância nem sentido. Repetiu outras várias vezes, pra obtendo a mesma resposta, ora obtendo uma resposta diferente.

Naquela noite comentamos o resultado da experiência no pequeno chalé do médico nos penhascos.

Ele pigarreou e puxou seu caderno de notas mais para perto.

— Estes resultados são interessantíssimos... muito curio­sos. Em resposta às palavras “Sexto Signo”, nós Obtivemos uma profusão de outras: Destruição, Roxo, Cão, Poder, de­pois novamente Destruição e, por fim, Poder. Mais tarde, como talvez tenha observado, inverti o método, com os se­guintes resultados. Em resposta a Destruição, obtive Cão; a Roxo, Poder; a Cão, novamente Morte, e a Poder, Cão. Isso está tudo inter-relacionado, mas numa segunda repetição de Destruição, eu obtive Mar, que parece totalmente descabido. Para as palavras “Quinto Signo”, eu obtive Azul, Pensamen­tos, Pássaro, novamente Azul e, por fim, a frase bastante su­gestiva Abertura do espírito à percepção. A partir do fato de que “Quarto Signo” evoca a palavra Amarelo, e depois Luz, e que “Primeiro Signo” é respondido por Sangue, eu de­duzo que cada Signo tenha uma cor própria, e possivelmente um símbolo próprio, sendo que o do Quinto seria um Pássa­ro e o do Sexto um Cão. Desconfio, porém, que o Quinto Signo representasse o que se conhece comumente pelo nome de telepatia — a abertura do espírito à percepção. O Sexto Signo, sem dúvida, representa o Poder da Destruição.

— Qual o significado de Mar?

— Isso, confesso que não sei explicar. Eu pronunciei a palavra depois e obtive a resposta comum de Barco. Para o Sétimo Signo, houve primeiro Vida, e na segunda vez Amor. Para o Oitavo Signo, obtive a resposta Nenhum. Suponho, portanto, que Sete era a soma e o número dos signos.

— Mas o Sétimo não foi atingido — exclamei, numa súbita inspiração. — Pois com o Sexto chegava a Destruição!

— Ah! O senhor acha, é? Mas nós estamos levando essas... divagações malucas muito a sério. Elas de fato, só possuem interesse sob um ponto de vista médico.

— Certamente atrairão a atenção dos investigadores de fenômenos psíquicos.

Os olhos do médico se franziram.

— Meu caro senhor, eu não tenho a menor intenção de divulgá-las ao público.

— Então o seu interesse... ?

— É unicamente profissional. Está claro que tomarei notas sobre o caso.

— Compreendo.

Mas, pela primeira vez, percebi que não estava com­preendendo nada. Levantei-me.

— Bem, desejo-lhe uma boa noite, doutor. Amanhã parto de volta para a cidade.

— Ah!

Tive impressão de que havia satisfação, talvez alívio, atrás dessa exclamação.

— Desejo-lhe boa sorte nas suas investigações — con­tinuei, despreocupadamente. — Da próxima vez que nos en­contrarmos, não solte o Cão da Morte em cima de mim, hem?!

Enquanto falava, segurava-lhe as mãos e senti o susto que levou. Mas logo se recompôs. Os lábios se abriram num sorriso, mostrando os longos dentes pontudos.

— Que poder para um homem que se embriagasse com ele!  — exclamou. — Ter a vida de cada ser humano na palma da mão!

E alargou ainda mais o sorriso.

 

Esse foi o fim da minha ligação direta com o caso.

Mais tarde, o caderno de notas e o diário do médico che­garam às minhas mãos. Vou reproduzir aqui os seus rápidos apontamentos, embora vocês hão de compreender que eles só caíram realmente em meu poder algum tempo depois.

5 de agosto. Descobri que a irmã M.A. entende por “Eleitos” aqueles que reproduziram a raça. Eram, pelo vis­to, venerados e exaltados acima do Sacerdócio. Veja-se o contraste com os cristãos primitivos.

7 de agosto. Convenci a irmã M.A. a me deixar hipno­tizá-la. Consegui provocar-lhe o sono e o transe hipnótico, mas não estabeleci nenhuma relação.

9 de agosto. Teriam existido civilizações antigas perto das quais a nossa fosse insignificante? Por estranho que pa­reça, tudo indica que sim, e eu sou o único homem que possui a pista...

12 de agosto.  A irmã M.A. não se mostra nada susce­tível à sugestão quando hipnotizada. No entanto, o estado de transe é facílimo de ser provocado. Não posso entender.

13 de agosto. A irmã M.A. mencionou hoje que em “estado de graça” o “portão precisa ficar fechado, para que ninguém mais domine o corpo”. Interessante — mas descon­certante.

18 de agosto. Quer dizer, pois, que o Primeiro Signo não é senão... (faltam palavras que foram apagadas)... en­tão quantos séculos vai levar para chegar ao Sexto? Mas se houvesse um atalho para o Poder...

20 de agosto. Providenciei tudo para que M.A. viesse para cá com a enfermeira. Disse-lhe que é indispensável man­ter a paciente sob a ação da morfina. Estarei louco? Ou será que sou o Super-homem, com o Poder da Morte em mi­nhas mãos?

 (Aqui terminam os apontamentos.)

 

Creio que foi no dia 29 de agosto que recebi a carta. Vinha endereçada a mim, aos cuidados de minha cunhada, numa letra deitada de estrangeira. Abri o envelope com certa curiosidade. Dizia o seguinte:

 

Cher Monsier,

Falei só duas vezes com o senhor, mas sinto que é uma pessoa em quem posso confiar. Não sei se meus sonhos são verdadeiros ou não, mas ultimamente se tornaram mais ní­tidos... E, monsieur, de uma coisa estou absolutamente cer­ta, o Cão da Morte não é nenhum sonho... Nos dias de que lhe falo (não sei se foram reais ou não). Aquele que era o Guarda do Cristal revelou cedo demais o Sexto Signo ao Povo... O mal se apossou de seus corações. Ganharam o poder de matar à vontade — e injustamente — tomados de cólera. Embriagaram-se com a volúpia do Poder. Quando percebemos isso, nós que ainda éramos puros, logo vimos que mais uma vez não completaríamos o Círculo nem atingiría­mos o Signo da Vida Eterna. E aquele que estava escalado para ser o próximo Guarda do Cristal teve que agir. Para que os velhos perecessem e os novos, depois de séculos sem fim, pudessem ressurgir, ele soltou o Cão da Morte em cima do mar (cuidando para não fechar o Círculo) e o mar se levantou na forma de um Cão e tragou a terra por com­pleto. ..

Já me lembrei disso antes — nos degraus do altar, na Bélgica...

O Dr. Rose pertence à Irmandade. Ele conhece o Pri­meiro Signo e a forma do Segundo, embora ninguém, salvo alguns eleitos, esteja a par do seu significado. Por meu in­termédio ele chegaria ao Sexto. Até agora consegui resistir-lhe — mas me sinto cada vez mais fraca, monsieur, e não convém que um homem atinja o poder antes da hora. Muitos séculos hão de se passar antes que o mundo esteja preparado para receber o poder da morte em suas mãos... Eu lhe suplico, monsieur, o senhor que tanto preza o bem e a verdade, me ajude... antes que seja tarde demais.

Sua irmã em Cristo,

Marie Angelique.

 

Deixei o papel cair no chão. A terra sob os meus pés parecia menos firme que de costume. Depois comecei a me reanimar. A crença da coitada, por mais autêntica que fosse, tinha quase me contagiado. Mas não havia dúvida. O Dr. Rose, com seu fanatismo para tirar as coisas a limpo, estava ultrapassando dos limites de sua condição profissional. Eu ia correr até lá e...

De repente dei com uma carta de Kitty no meio da cor­respondência. Abri o envelope. Dizia:

 

Aconteceu uma coisa horrível. Você se lembra do chalezinho do Dr. Rose, lá no penhasco? Pois, ontem à noite, houve um desmoronamento de terra e o doutor e aquela pobre freira, a irmã Ma­rie Angelique, morreram. Os destroços na praia são um verdadeiro horror — tudo amontoado de uma maneira fantástica — de longe parece um enorme cão...

 

A carta me caiu das mãos.

Os outros fatos talvez fossem coincidência. Um tal de Mr. Rose, que eu descobri que era um parente rico do mé­dico, morreu repentinamente, naquela mesma noite — di­zem que fulminado por um raio. Ao que me consta, não houve nenhum temporal nas imediações, mas duas pessoas declararam ter ouvido uma trovoada. E no corpo do morto apareceu uma queimadura elétrica “de uma forma curiosa”. Em seu testamento deixava tudo para o sobrinho, o Dr. Rose.

Ora, suponhamos que o Dr. Rose conseguisse obter o segredo do Sexto Signo por intermédio da irmã Marie An­gelique. Ele sempre me deu impressão de ser um sujeito inescrupuloso — que não hesitaria em dar cabo da vida do tio se tivesse certeza de que ficaria impune. Mas uma frase da carta da irmã Marie Angelique não me sai da cabeça: “... cuidando para não fechar o Círculo...” O Dr. Rose não teve esse cuidado — talvez ignorasse as medidas que devia tomar ou até nem soubesse que precisava fazer isso. E assim a Força que usou se voltou contra ele, fechando o círculo...

Mas claro, que bobagem! A explicação é perfeitamente natural. Que o doutor acreditasse nas alucinações da irmã Marie Angelique apenas prova que o cérebro dele também estava levemente desequilibrado.

No entanto, às vezes eu sonho com um continente sub­marino onde a humanidade outrora viveu e atingiu um grau de civilização muito mais adiantado que o nosso...

Ou será que a memória da irmã Marie Angelique funcio­nava de trás para diante — como alguns dizem que é possí­vel — e que a tal Cidade dos Círculos se encontra no futuro e não no passado?

Bobagem — claro que tudo foi só alucinação!

 

A CIGANA

Macfarlane já havia reparado que seu amigo Dickie Carpenter sentia uma estranha aversão por ciganos. Ignora­va o motivo. Mas quando Dickie rompeu o noivado com Esther Lawes, os dois homens abandonaram, momentanea­mente, a reserva que existia entre eles.

Fazia um ano que Macfarlane estava noivo de Rachel, a irmã caçula de Esther. Conhecia ambas desde a infân­cia. Vagaroso e precavido em tudo, não quis logo admitir a si mesmo a atração cada vez maior que o rosto inocente e os sinceros olhos castanhos de Rachel exerciam sobre ele. Não era uma beleza como Esther, não! Mas indescritivelmente mais pura e mais meiga. O noivado de Dickie com a irmã mais velha pareceu estreitar o laço que unia os dois amigos.

E agora, ao fim de poucas semanas, rompido o noivado, Dickie, o pobre Dickie, estava arrasado. Até então, tudo havia corrido bem em sua juventude. Tinha decidido, acer­tadamente, ingressar na Marinha. A vocação que sentia pela vida de marinheiro era inata. Possuía qualquer coisa de viking, primitivo e direto, uma natureza que não encontrava serventia para sutilezas intelectuais. Pertencia àquela raça inarticulada de rapazes ingleses que rejeitam toda emoção e acham especialmente difícil traduzir em palavras os seus pro­cessos mentais...

Macfarlane, escocês Casmurro, mas dotado de uma ima­ginação celta que dissimulava muito bem, fumava e ouvia o amigo se debater num mar de palavras. Já previa aquele desabafo. Mas esperava que o assunto fosse outro. Porque, para princípio de conversa, não houve referências a Esther Lawes. Pelo visto, tratava-se apenas da história de um ter­ror infantil.

— Tudo começou com um sonho que tive quando crian­ça. Não propriamente um pesadelo.   Ela... você sabe, a ci­gana ... simplesmente me aparecia em tudo quanto era so­nho... até nos mais agradáveis (ou na idéia que uma criança faz do que seja agradável... uma festa cheia de busca-pés e outras coisas). Eu ficava me divertindo até mais não po­der, e de repente sentia, sabia, que bastava levantar os olhos e lá estava ela, parada como sempre, me olhando... Com olhos tristes, sabe, como se soubesse de alguma coisa que eu não compreendia...  Não dá pra explicar por que... mas aquilo me assustava que era um horror. Todas as vezes! Eu acordava berrando de medo e a minha velha ama-seca então me dizia: “Pronto! O menino Dickie já sonhou de novo com a cigana!”

— E as ciganas de verdade nunca assustaram você?

— A primeira vez que vi uma delas foi muito depois. Isso também foi estranho. Eu andava atrás de um cachorri­nho meu que tinha fugido. Saí pelo portão do jardim e me embrenhei por uma trilha do mato. Nós morávamos, então, na Floresta Nova, sabe? Cheguei a uma espécie de clareira no fundo, onde havia uma ponte de madeira sobre um riacho. E bem ao lado dessa ponte estava parada uma cigana — de lenço vermelho na cabeça — tal como no meu sonho. Fiquei logo assustado! Ela me olhou, sabe?... Com aquele mesmo olhar — como se soubesse de alguma coisa que eu ignorava, e estivesse triste por causa disso... E aí ela disse bem baixinho, sacudindo a cabeça para mim: “Eu, se fosse você, não iria por aí”. Não sei por que, mas aquilo me dei­xou morto de medo. Passei correndo por ela e cruzei a pon­te.  Acho que estava podre.  Seja como for, cedeu com o meu peso e caí no riacho. A correnteza era muito forte e quase me afoguei. Escapei por pouco. Nunca mais me esqueci. E me parece que tudo aconteceu por causa da cigana...

— Muito embora tivesse sido ela quem preveniu você?

— Sim, acho que sim. — Dickie fez uma pausa, depois continuou: — Eu contei a você esse meu sonho, não porque tenha qualquer coisa que ver com o que sucedeu depois (ao menos suponho que não tenha), mas porque é o ponto de partida, por assim dizer. Agora você vai ver o que eu en­tendo por “sensação da cigana”. De modo que estamos na primeira noite em que fui à casa dos Lawes. Eu mal tinha chegado do exterior. Era uma sensação tremendamente estranha voltar à Inglaterra. Os Lawes sempre foram amigos da minha família. Eu não via as meninas desde os meus sete anos, mais ou menos, mas o irmão, Arthur, era grande ami­go meu, e depois que ele morreu, a Esther sempre me escre­via e me mandava jornais. Me escrevia cartas divertidíssimas! Me animavam a mais não poder. Quem me dera ser mais pontual com a correspondência. Fiquei com uma von­tade doida de vê-la. Me parecia esquisito conhecer alguém tão bem só por carta. Bom, a primeira coisa que fiz foi ir à casa dos Lawes. A Esther não estava quando cheguei, mas esperavam que viesse a qualquer momento. Durante o jan­tar, sentei ao lado de Rachel e enquanto eu olhava aquela mesa comprida, de um canto a outro, me veio uma sensação estranha. Parecia que havia uma pessoa me olhando, fixa­mente. Fiquei meio sem jeito. Foi então que eu vi...

— Quem?

— Mrs. Haworth... quem você queria que fosse?

Macfarlane quase que disse: “Pensei que estivesse falan­do da Esther Lawes”. Mas permaneceu calado. Dickiecon­tinuou.

— Havia nela qualquer coisa completamente diferente dos outros. Estava sentada ao lado do velho Lawes, escutan­do solenemente o que ele dizia, com a cabeça inclinada. Ti­nha um negócio de tule vermelho em torno do pescoço. Acho que estava meio desfiado, porque ficava eriçado na nuca como pequenas labaredas... Eu perguntei à Rachel: “Quem é aquela ali? A morena... de mantilha vermelha!”

“— Você quer dizer a Alistair Haworth? Ela está com uma mantilha vermelha. Mas ela é loura. Louríssima.”

“E era mesmo, sabe? O cabelo dela tinha uma linda tonalidade clara, brilhante, de amarelo. No entanto, eu seria capaz de jurar que era morena. É estranho como os olhos podem enganar a gente... Depois do jantar, a Rachel nos apresentou e saímos a caminhar pelo jardim. Falamos sobre a reencarnação...

— Nem parece você, Dickie!

— De fato, não é?  Eu me lembro de ter dito que acha­va que era uma explicação bem plausível de como às vezes a gente parece que já conhece certas pessoas — como se as tivesse encontrado antes. “As pessoas que se amam, você quer dizer...” comentou ela. Havia qualquer coisa estranha na maneira com que ela disse isso — qualquer coisa de suave, de ansioso. Me lembrava... não sei bem o quê. Con­versamos mais um pouco, e aí o velho Lawes nos chamou do terraço — dizendo que a Esther tinha chegado e queria me ver. Mrs. Haworth pôs a mão no meu braço e pergun­tou: “Você vai entrar?” “Vou”, respondi, “acho que seria melhor”, e aí então... aí...

— O quê?

— Parece tão absurdo. Mrs. Haworth disse: “Eu, se fosse você, não entrava...” — Fez uma pausa. — Aquilo me assustou, sabe? Me assustou tremendamente. Foi por isso que lhe contei o sonho... Porque, veja você, ela disse aqui­lo exatamente do mesmo modo... bem na calma, como se soubesse de alguma coisa que eu não sabia. Não se tratava apenas de uma mulher bonita que queria me reter lá fora no jardim com ela. A voz dela só era amável... e cheia de pesar. Quase como se estivesse adivinhando o que ia acon­tecer... Creio que fui grosseiro, pois me virei e deixei-a... saí praticamente correndo em direção à casa. Pra mim, re­presentava uma segurança.   Percebi então que tinha sentido medo dela desde o início. Foi um alívio enxergar o velho Lawes.   Esther estava lá, do lado dele... — Hesitou um ins­tante, e depois murmurou de um jeito meio obscuro: — Não houve dúvida... bastou vê-la e senti que estava perdido.

A imaginação de Macfarlane se concentrou logo em Es­ther Lawes. Alguém certa vez a descrevera como “um me­tro e oitenta de perfeição judaica.” Parecia-lhe uma descri­ção fiel, pois lembrava-se de sua altura fora do comum e de sua esgalga elegância, a brancura de mármore do rosto, o nariz delicadamente aquilino e o esplendor negro dos cabelos e dos olhos. É, não se admirava que a candura juvenil de Dickie tivesse capitulado. Esther jamais seria capaz de acelerar a pulsação de Macfarlane, mas ele reconhecia a sua magnificência.

— E então — continuou Dickie, — noivamos.

— Em seguida?

— Bom, uma semana depois. E ainda assim ela levou quase quinze dias pra descobrir que não se interessava por mim...

Deu uma risadinha amarga.

— Foi na última noite, antes de eu voltar para o navio. Eu vinha vindo da aldeia, pelo meio do mato... e aí eu vi ela...  a Mrs. Haworth, quero dizer. Estava com um gorro vermelho, e... por um segundo, sabe?... levei um susto! Já contei meu sonho a você, de modo que fica fácil enten­der... Depois caminhamos juntos um pouco. Não que ti­véssemos dito alguma coisa que Esther não pudesse escutar, sabe?...

— Não?

Macfarlane olhou desconfiado para o amigo. Estranho como as pessoas revelam coisas de que elas mesmas não se dão conta!

— E aí, quando eu já estava me virando para voltar para casa, ela me fez parar. E disse: “De qualquer manei­ra, daqui a pouco você estará em casa. Mas eu, se fosse você, não me apressaria a chegar lá...” E então eu senti... que havia alguma coisa horrível à minha espera... e... e mal eu cheguei, a Esther veio ao meu encontro e disse que tinha descoberto que realmente não gostava de mim...

Macfarlane murmurou qualquer coisa, compreensivo.

— E Mrs. Haworth? — perguntou.

— Nunca mais tornei a vê-la...  até agora de noite.

— Agora de noite?

— É. Na casa de saúde daquele tal de Dr. Johnny.  Exa­minaram a perna que eu feri no negócio do torpedo.   De uns tempos para cá anda me incomodando muito. O sujeito aconselhou que eu operasse — vai ser uma coisa bem sim­ples. Depois, quando ia saindo de lá, encontrei uma enfer­meira de suéter vermelho por cima do uniforme, e ela me disse: “Eu, se fosse você, não faria essa operação...” Vi então que era Mrs.  Haworth. Ela se afastou tão depressa que não me deu tempo de pedir que esperasse. Encontrei outra enfermeira e perguntei por Mrs. Haworth.   Mas ela me respondeu que ali não havia ninguém com esse nome... Achei esquisito...

— Tem certeza de que era ela?

— Ah! Claro que tenho... ela é muito bonita, com­preende?... — Fez uma pausa e depois acrescentou: — Eu, naturalmente, vou fazer a tal operação... mas... mas caso eu morra ...

— Que absurdo!

— Lógico que é. Mas, mesmo assim, estou contente de ter contado essa história da cigana a você... Sabe, se eu pensasse mais um pouco, me lembraria de outras vezes...

 

Macfarlane subiu a pé a íngreme estrada da charneca. Entrou no portão de uma casa perto do alto do morro. Aper­tando os lábios, tocou a campainha.

— Mrs. Haworth está?

— Sim senhor, vou chamá-la.

A empregada deixou-o numa sala comprida, de teto bai­xo, com janelas que davam para a charneca deserta. Fran­ziu um pouco a testa. Não estaria fazendo um papel incrivel­mente ridículo?

Aí teve um sobressalto. Uma voz cantava baixinho lá em cima:

 

“A cigana mora na charneca...”

 

Depois, silêncio. O coração de Macfarlane começou a bater mais rápido. A porta se abriu.

A alvura estonteante, quase escandinava, da mulher, cau­sou-lhe o impacto de um choque. Apesar da descrição de Dickie, ele a imaginava morena como uma cigana... E de repente lembrou-se das palavras do amigo, do tom estranho que tinham. “Ela é muito bonita, compreende?...” A beleza perfeita, incontestável, é rara — mas era exatamente o tipo de beleza que Alistair Haworth possuía.

Refez-se do choque e adiantou-se para ela.

— Creio que a senhora não tem a mínima idéia de quem eu seja. Consegui seu endereço com os Lawes. É que... sou amigo de Dickie Carpenter.

Ela olhou bem para ele. Depois disse:

— Ia dar uma volta. Até lá em cima na charneca. Não quer vir junto?

Empurrou a porta envidraçada e dirigiu-se à encosta. Ele foi atrás. Encontraram um homem corpulento, de ar meio imbecilizado, sentado numa cadeira de vime, fumando.

— Meu marido. Nós vamos dar um passeio lá pela charneca, Maurice. E depois Mr. Macfarlane virá almoçar conosco. O senhor virá, não é?

— Sim... muito obrigado. — Seguiu-lhe os passos cal­mos, morro acima, e pensou consigo mesmo: — “Por quê? Por quê, Santo Deus, ela foi casar com aquilo?”

Alistair tomou a direção de umas pedras.

Vamos sentar aqui. E agora conte... o que veio me contar.

— Já sabia?

— Eu sempre sei quando vão acontecer coisas ruins. É ruim, não é? A respeito do Dickie?

— Ele fez uma pequena operação... com bastante êxi­to. Mas o coração dele devia estar fraco. Morreu durante a anestesia.

Não sabia direito o que esperava ver no rosto dela — mas certamente não era aquela expressão do mais absoluto cansaço... Ouviu-a murmurar:

— Outra vez... ter que esperar... tanto tempo... tan­to... — Levantou os olhos: — Mas o que é que o senhor queria me dizer?

— Apenas isto. Alguém avisou que ele não devia fazer a tal operação.   Uma enfermeira.   Ele pensava que fosse a senhora. Foi?

Ela sacudiu a cabeça.

— Não fui eu, não. Mas tenho uma prima que é enfer­meira. Ela se parece bastante comigo.   Acho que deve ter sido isso. — Levantou os olhos de novo. — Mas pouco im­porta, não é mesmo? — E aí então, de repente, arregalou os olhos. Prendeu a respiração. — Ah! — exclamou. — Ah, que engraçado! O senhor não compreende...

Macfarlane ficou intrigado. Ela continuava olhando fi­xamente para ele.

— Pensei que compreendesse... Devia compreender. O senhor dá impressão de que também tem...

— Tenho o quê?

— O dom... a maldição... dê-lhe o nome que quiser. Creio que o senhor tem. Olhe bem para aquele buraco no meio das pedras. Não pense em nada, só olhe... Ah! — ex­clamou, reparando no leve sobressalto que ele teve. — En­tão... viu alguma coisa?

— Deve ter sido minha imaginação. Por um instante me pareceu que estava cheio de...  sangue!

Ela concordou com a cabeça.

— Eu sabia que o senhor tinha. Aquilo ali é o lugar onde os antigos idólatras do sol sacrificavam as vítimas. Eu descobri isso sem precisar que ninguém me dissesse. E tem horas que sei exatamente a sensação que eles sentiam — qua­se como se eu mesma tivesse presenciado tudo... E há qualquer coisa nesta charneca que me dá impressão de que já estive aqui antes... como se estivesse voltando para casa. Claro que é natural que eu tenha esse dom. Sou uma Ferguesson. Existem casos de vidência na minha família. E mi­nha mãe foi médium até casar com meu pai. Chamava-se Cristine. Era bastante conhecida.

— A senhora entende por “dom” o poder de ver as coi­sas antes que aconteçam?

— É, antes ou depois... tanto faz. Por exemplo, eu vi o senhor se perguntar por que me casei com Maurice... vi, sim! Não adianta negar! Foi simplesmente porque sem­pre pressenti que havia qualquer coisa horrível pairando so­bre ele... Quis salvá-lo dessa ameaça... As mulheres são assim mesmo. Com esse meu dom, posso impedir que isso aconteça... se for possível... Não pude ajudar o Dickie. E ele não quis compreender... Teve medo. Era muito moço.

— Tinha vinte e dois anos.

— E eu tenho trinta. Mas não foi isso que eu quis di­zer. Há tantas formas de se dividir; pelo comprimento, pela altura e largura... mas dividir pelo tempo é a pior de todas...

Ficou muito tempo calada, pensativa.

A surda pancada de um gongo na casa lá embaixo os trouxe de volta à realidade.

Durante o almoço, Macfarlane pôs-se a observar Mau­rice Haworth. Era, indiscutivelmente, apaixonadíssimo pela esposa. Tinha no olhar uma devoção cega, canina, radiante de felicidade. Macfarlane também reparou na ternura, na solicitude maternal, com que ela lhe correspondia. Despe­diu-se depois do almoço.

— Acho que vou ficar mais um dia ainda lá na estala­gem. Posso aparecer de novo para conversarmos? Amanhã, por exemplo?

— Claro que pode.   Mas...

— Mas, quê?...

Ela passou rápido a mão pelos olhos.

— Sei lá.   Eu...  eu tive a sensação de que nunca mais nos tornaríamos a ver... foi só isso... Adeus.

Ele desceu vagarosamente a estrada. A despeito de si mesmo, parecia que uma mão gélida apertava-lhe o coração. Não havia nada nas palavras dela, lógico, mas...

De repente surgiu-lhe um carro pela frente. Encostou-se rente à cerca... escapando por um triz. Uma estranha pali­dez turvou-lhe o rosto...

 

— Deus do céu, estou com os nervos em petição de mi­séria — murmurou Macfarlane, acordando no outro dia de manhã.

Procurou recapitular, friamente, os acontecimentos da tarde anterior. O carro, o atalho até a estalagem e o ne­voeiro brusco que o fez se perder no caminho sabendo da existência de um perigoso brejo a pouca distância dali. Depois o cano da chaminé da estalagem, que tinha caído, e o cheiro de queimado que havia sentido durante a noite e ter­minou localizando: um carvão ardendo no tapete da lareira. Nada de mais naquilo tudo! Absolutamente nada — a não ser as palavras de Mrs. Haworth, e aquela certeza que seu coração se recusava a admitir: que ela sabia...

Empurrou longe as cobertas com súbita energia. A pri­meira coisa a fazer era se levantar e ir falar com ela. Isso desfaria o quebranto. Quer dizer, se conseguisse chegar lá são e salvo...   Céus, quanta bobagem!

Não comeu quase nada. Às dez horas já estava subin­do a estrada. Meia hora depois, tocava a campainha. Só então se permitiu dar um longo suspiro de alívio.

— Mrs. Haworth está?

Era a mesma velha da véspera. Mas tinha no rosto uma expressão diferente — de profundo pesar.

— Ah! meu senhor. Então ainda não soube?

— Não soube o quê?

— Miss Alistair, aquela coisinha linda.   Foi o fortifican­te que ela sempre tomava de noite. O coitado do capitão fi­cou fora de si. Quase enlouqueceu. Pegou o frasco errado da prateleira no escuro... Mandaram chamar o médico, mas quando ele veio já era tarde demais...

No mesmo instante Macfarlane se lembrou das palavras: “Sempre pressenti que havia qualquer coisa horrível pairando sobre ele... posso impedir que isso aconteça... se for pos­sível...” Ah! mas ninguém escapa do Destino... Estranha fatalidade profética, que tinha destruído onde procurava salvar...

A velha criada continuou:

— Aquela coisinha linda! Tão meiga e bondosa que era, sempre com pena de tudo o que se encontrasse em apuros. Não suportava ver ninguém sofrendo. — Hesitou, e depois acrescentou: — Não quer ir vê-la lá em cima no quarto? Pelo que ela me disse, parece que já fazia muito tempo que se conheciam, não? Ela me disse que fazia muitíssimo tempo...

Macfarlane subiu os degraus da escada atrás da velha até chegar ao quarto que ficava sobre a sala de visitas, de onde tinha vindo aquela voz cantando na véspera. A parte superior das janelas era de vitrais, que projetavam uma luz vermelha na cabeceira da cama... Uma cigana de lenço vermelho na cabeça... Que ridículo, estava se deixando le­var pelos nervos de novo. Olhou demoradamente, pela últi­ma vez, para Alistair Haworth.

 

— Há uma moça aí que quer falar com o senhor.

— Há? — Macfarlane olhou distraído para a estalajadeira. — Ah! Desculpe, Mrs. Rowse, ando vendo fantasmas.

— É mesmo? Eu sei que há coisas estranhas que apa­recem na charneca depois que anoitece. A dama de branco, o ferreiro do diabo, o marinheiro e a cigana...

— Como é que é? Um marinheiro e uma cigana?

— É o que dizem, Mr. Macfarlane. Uma história que ouvi contar muitas vezes quando moça.  Um romance que acabou mal, já faz bastante tempo... Mas há anos que nin­guém tem visto mais os dois.

— Ah é? Não sei... sabe lá se agora não vão reapa­recer...

— Credo! As coisas que o senhor diz! E a moça...?

— Que moça?

— A que pediu para falar com o senhor. Ela ficou lá na sala. Disse que se chamava Miss Lawes.

— Ah!

Rachel! Sentiu uma curiosa sensação de contração, de mudança de perspectiva. Tinha andado aventurando por ou­tros mundos. E se esquecido de Rachel, que pertencia ex­clusivamente a esta vida... De novo aquela curiosa mudança de perspectiva, aquela volta a um mundo de apenas três dimensões.

Abriu a porta da sala. Rachel — com seus olhos cas­tanhos e francos. E de repente, como que despertando de um sonho, sentiu-se invadido por um jorro quente de alegre realidade. Estava vivo — vivo! Pensou: “Existe apenas uma única vida de que se pode ter certeza! Esta aqui!”

Rachel! — exclamou, e, levantando-lhe o queijo, beijou-a nos lábios.

 

O LAMPIÃO

A casa, indiscutivelmente, era velha. Como, aliás, toda a praça, que possuía aquele ar de digna reprovação das cida­des antigas que se gabam de ter uma catedral. A n.° 19, porém, dava uma impressão de ascendência patriarcal: tudo nela era mais solene, mais cinzento, pretensioso e gélido. Austera, sinistra, marcada por esse tipo de tristeza caracte­rístico das residências há muito tempo desabitadas, destacava-se das demais.

Noutra cidade, seria logo qualificada de “mal-assom­brada”, mas Weyminster era avessa a fantasmas, considerando-os pouco respeitáveis, a não ser como apanágio de uma “família tradicional”. De modo que ninguém jamais se refe­ria à n.° 19 como uma casa mal-assombrada. Apesar disso, lá estava a placa, há anos: “Vende-se ou Aluga-se”.

 

Mrs. Lancaster chegou no carro da imobiliária e con­templou a casa com agrado. O agente, que havia falado durante todo o percurso, eufórico com a idéia de se ver livre de uma vez por todas da n.° 19, meteu a chave na fecha­dura da porta sem parar de fazer comentários lisonjeiros ao imóvel.

— Quanto tempo faz que está desocupada? — perguntou Mrs. Lancaster, interrompendo de maneira bastante brusca aquela enxurrada de palavras ininterruptas.

Mr. Raddish (da firma Raddish & Foplow) ficou meio confuso.

— Há... há algum tempo — respondeu, sem jeito.

— Logo vi — disse Mrs. Lancaster secamente.

O vestíbulo, mal iluminado e frio, tinha qualquer coisa de sinistro. Outra mulher de mais imaginação sentiria calafrios. Acontece, porém, que Mrs. Lancaster era uma cria­tura extremamente prática. Alta, de cabelos castanhos muito escuros e que já começavam a embranquecer, examinava tudo com impassíveis olhos azuis.

Examinou a casa de alto a baixo, fazendo de vez em quando perguntas oportunas. Terminada a inspeção, voltou a uma das salas de frente que davam para a praça e enca­rou o corretor com expressão decidida.

— O que é que há com essa casa?

Mr. Raddish foi pego de surpresa.

— Naturalmente, uma casa sem móveis sempre fica meio triste — disse, esquivando-se a uma resposta direta.

— Isso é bobagem — retrucou Mrs. Lancaster. — O alu­guel chega a ser ridículo de tão baixo para uma casa des­tas... é simplesmente irrisório. Deve haver algum motivo. Vai ver que é mal-assombrada.

Mr. Raddish teve um pequeno sobressalto, mas perma­neceu calado.

Mrs. Lancaster olhou-o fixamente. Depois de alguns instantes, continuou:

— Claro que isso tudo é bobagem. Não acredito em fantasmas nem nada e, pessoalmente, não vejo nenhum incon­veniente em ficar com a casa. Mas os empregados, infeliz­mente, são muito crédulos e se assustam com a maior facilidade. Quer me fazer a gentileza de dizer exatamente o que é que... ela tem de mal-assombrada?

— Eu... eu... francamente não sei — gaguejou o corretor.

— Tenho certeza de que o senhor sabe — afirmou cal­mamente Mrs. Lancaster. — Não posso alugar a casa sem saber. O que houve aqui? Algum crime?

— Absolutamente! — protestou Mr. Raddish, chocado com a idéia de uma coisa tão incompatível com a respeita­bilidade da praça. — É... é... só uma criança.

— Uma criança?

— É. Não sei exatamente como foi a história — acres­centou, relutante. — Existe, lógico, uma porção de versões diferentes, mas parece que há uns trinta anos, mais ou me­nos, um sujeito chamado Williams alugou-a. Ninguém o conhecia. Não tinha empregados nem amigos e raramente saía durante o dia. Mas era pai de um garotinho. Quando já fazia uns dois meses que morava aqui teve que ir a Londres, e mal chegou à cidade, alguém o identificou como um homem “procurado” pela polícia, não sei bem sob que acusação. Mas devia ser coisa grave, porque ele preferiu se matar com, um tiro de revólver a se entregar. Enquanto isso o menino continuou morando aqui, sozinho na casa. Durante algum tempo teve o que comer, esperando diariamente que o pai voltasse. Infelizmente, haviam-lhe recomendado que jamais, sob qualquer hipótese, saísse ou falasse com alguém. Era uma criança fraca, doente, e nem pensou em desobedecer. De noi­te, os vizinhos, ignorando que o pai estivesse ausente, muitas vezes ouviam o pobrezinho soluçando na terrível solidão e tristeza da casa vazia.

Mr. Raddish fez uma pausa.

— E... e... o garoto morreu de fome — concluiu, com o mesmo tom com que poderia ter dito que tinha começa­do a chover.

— E é o fantasma dessa criança que costuma assombrar a casa? — perguntou Mrs. Lancaster.

— Não é nada de grave, realmente — apressou-se a assegurar Mr. Raddish. — Ninguém nunca viu nada.  A única coisa que dizem, um absurdo evidentemente, é que se ouve a criança... chorando, sabe?

Mrs.  Lancaster dirigiu-se à porta da rua.

— Gostei muito da casa — declarou. — Por esse preço, não consigo outra igual. Vou pensar no caso e depois lhe informo.

 

— Ficou mesmo com um aspecto bem alegre, não é, papai?

Mrs. Lancaster olhou com ar de aprovação para seus novos domínios. Tapetes multicores, móveis bem enverniza­dos e uma profusão de enfeites tinham transformado por completo o aspecto lúgubre da n.° 19.

Estava falando com um velho magro, encurvado, de om­bros caídos e fisionomia delicada, mística. Mr. Winburn não se parecia com a filha. Na verdade, não se poderia conce­ber maior contraste entre o espírito prático, resoluto, de uma e o alheamento sonhador de outro.

— É, sim — respondeu, sorrindo, — ninguém seria ca­paz de imaginar que a casa fosse mal-assombrada.

— Não diga asneiras, papai! Ainda mais logo no pri­meiro dia.

Mr. Winburn sorriu de novo.

— Está bem, minha filha. Fica combinado, então, que aqui não existe nenhum fantasma.

— E por favor — continuou Mrs. Lancaster, — não comente essas coisas na presença de Geoff. O senhor sabe como ele tem imaginação.

Geoff era o filhinho de Mrs. Lancaster. A família se compunha de Mr. Winburn, da filha viúva, e Geoffrey.

A chuva começou a bater na vidraça — taque-taque, taque-taque.

— Escute só — disse Mr. Winburn. — Não parece as pisadas de uma criança?

— Está mais com jeito de chuva — retrucou Mrs. Lan­caster, sorrindo.

— Mas agora, agora foi uma pisada — afirmou o velho, curvando-se mais para escutar melhor.

Mrs. Lancaster teve que rir.

— É o Geoff, descendo a escada.

Mr. Winburn também riu. Estavam tomando chá no vestíbulo e ele tinha ficado de costas para a escada. Virou-se na cadeira para ver o neto.

O pequeno Geoffrey vinha descendo com passo lento e sereno, tomado de assombro infantil pela casa nova. Os de­graus eram de carvalho envernizado e não possuíam tapete. Ele se aproximou e ficou de pé ao lado da mãe. Mr. Winburn teve um leve sobressalto. À medida que o menino atra­vessava o recinto, ouviam-se nitidamente outros passos na escada, como se alguém o estivesse seguindo. Passos arras­tados, estranhamente penosos. Encolheu os ombros, incré­dulo. “Deve ser a chuva”, pensou.

— Estou olhando o pão-de-ló — comentou Geoff, com o tom admiravelmente imparcial de quem observa um fato digno de nota.

A mãe apressou-se a atender a indireta.

— Como é, filhinho, gostou da casa nova? — perguntou.

— Muito — respondeu Geoffrey, de boca cheia. — À beça.

Depois dessa última declaração, que traduzia evidente­mente a mais profunda alegria, voltou a calar-se, apenas preocupado em liquidar o pão-de-ló com a maior rapidez possível.

Engolida a última dentada, desatou a falar.

— Ah! Mamãe, a Jane disse que a casa tem sótão. Posso ir lá dar uma olhada nele? Talvez tenha alguma porta se­creta. A Jane diz que não, mas eu acho que deve haver. Em todo caso, sei que tem que ter canos, canos de água (com uma expressão deslumbrada), eu posso brincar com eles, e, ah! posso ir olhar a cal-dei-ra?

Destacou as sílabas da última palavra com êxtase tão flagrante que o avô se envergonhou de pensar que aquele prazer incomparável da infância só lhe evocava o quadro de uma água que não tinha jeito de esquentar e contas e mais contas do bombeiro hidráulico.

— Vamos deixar isso pra amanhã, querido — disse Mrs. Lancaster. — Por que você não busca o seu jogo de arma e faz uma casa bonita, ou uma locomotiva?

— Não quero fazer casa nem locomotiva.

— Por quê?

— Não estou com vontade.

— Faça uma caldeira — sugeriu o avô.

Geoffrey se animou.

— Com canos?

— É, com uma porção de canos.

Radiante, Geoffrey correu a buscar o jogo.

A chuva continuava a cair. Mr. Winburn prestou aten­ção. Sim, decerto era aquilo que tinha escutado. Mas se parecia muito com passos.

Naquela noite teve um sonho esquisito.

Sonhou que estava andando por uma cidade, que dava impressão de ser uma metrópole. Era, porém, uma cidade infantil: não havia pessoas adultas, apenas crianças, verda­deiras multidões de crianças. No sonho todas corriam para ele, gritando: “Ele também veio?” Pelo visto, compreendeu o que queriam dizer e sacudiu tristemente a cabeça. Aí então as crianças deram-lhe as costas e começaram a chorar, so­luçando amargamente.

A cidade e as crianças sumiram com o sonho, mas quan­do despertou, os soluços ainda ressoavam-lhe nos ouvidos. Apesar de completamente acordado, ouvia tudo com a maior nitidez. Lembrou-se, então, de que Geoffrey dormia no an­dar de baixo, ao passo que aquele som de dor infantil vinha do de cima. Sentou na cama e riscou um fósforo. No mes­mo instante os soluços cessaram.

Mr. Winburn não contou à filha nem o sonho nem o que ouviu depois. Tinha certeza de que não era imaginação sua. E de fato, não demorou muito a ouvir tudo de novo, desta vez durante o dia. O vento uivava na lareira, mas o som era diferente — nítido, inconfundível: pequenos so­luços inconsoláveis, de partir o coração.

Descobriu, também, que não era o único a ouvi-los. Por acaso passava por perto quando a criada comentou com a copeira que “não achava que aquela babá fosse boa pro me­nino Geoffrey, ainda hoje de manhã ele estava se acabando de tanto chorar”. Ora, Geoffrey tinha descido para o café e o almoço, radiante de saúde e felicidade, e Mr. Winburn sabia que não era Geoff que chorava, e sim a tal criança cujos passos arrastados já o haviam assustado mais de uma vez.

Só Mrs. Lancaster nunca ouvia nada. Talvez não pos­suísse ouvidos para captar sons de um outro mundo.

Um dia, porém, também levou um susto.

— Mamãe — queixou-se Geoff. — Bem que a senhora podia me deixar brincar com aquele menininho.

Mrs. Lancaster, sentada à escrivaninha, levantou os olhos com um sorriso.

— Que menininho, meu bem?

— Não sei o nome dele. Estava lá no sótão, sentado no chão, chorando, mas saiu correndo quando me viu. Acho que é tímido (com certo desprezo), ainda é muito pequeno. Depois, quando eu estava com o jogo de armar lá no quarto dos brinquedos, ele veio e ficou parado na porta, olhando pra mim. Parecia tão só, como se também tivesse vontade de brincar. Eu disse: “Vem armar uma locomotiva”, mas ele não respondeu, ficou só olhando — como se estivesse vendo uma caixa de bombons que a mãe dele tivesse dito que não era pra mexer. — Geoff suspirou, evidentemente se lembrando de certas reminiscências bem pessoais. — Mas quando per­guntei pra Jane quem era ele e disse que queria que brincasse comigo, ela me respondeu que não havia nenhum menininho na casa e que eu parasse de inventar histórias. Não gosto mais da Jane.

Mrs. Lancaster se levantou.

— Mas ela tem razão. Não há nenhum menininho.

— Mas como é que eu vi? Ah! mamãe, por favor, deixe eu brincar com ele. Parecia tão só, tão triste. Eu queria tanto fazer qualquer coisa pra ele se sentir melhor.

Mrs. Lancaster já ia abrir a boca de novo, mas o pai sacudiu a cabeça.

— Geoff — disse ele, com toda a delicadeza, — o coi­tado daquele menininho vive, de fato, muito só, e talvez você possa fazer alguma coisa para consolá-lo. Mas você tem que descobrir por si mesmo... que nem num quebra-cabeça, viu?

— É por que eu estou ficando grande que tenho que fazer tudo por mim?

— É, é por isso, sim.

Mal o garoto saiu da sala, Mrs. Lancaster virou-se impa­ciente para o pai.

— Papai, que coisa mais absurda. Encorajar o menino a ir atrás de conversas de empregada!

— Nenhuma empregada contou isso a ele — disse o ve­lho, com delicadeza. — Foi ele mesmo quem viu... o que eu ouço, o que talvez poderia ver, se tivesse a idade dele.

— Mas isso é ridículo! Como é que eu não vejo nem ouço nada?

Mr. Winburn sorriu, de uma maneira estranha, cansada, mas não respondeu.

— Como é, hem? — repetiu a filha. — E por que o se­nhor foi dizer que ele podia ajudar o... o... seja lá o que for. Tudo isso é tão... tão impossível.

O velho ficou olhando-a, pensativo.

— E por que não? — perguntou. — Lembre-se destas palavras:

 

“Que lampião serve de guia

Ao passo incerto do inocentei

— Um instinto infalível

É a resposta do Onipotente.”

 

“O Geoffrey tem isso... um instinto infalível. Todas as crianças têm. Com o correr dos anos, a gente perde, não confia mais nele. Às vezes, quando já estamos bem velhos, ele reaparece, atenuado, mas é na infância que a luz do lampião brilha mais intensamente. Foi por isso que achei que o Geoffrey podia ajudar.

— Eu não entendo — murmurou Mrs. Lancaster, desa­nimada.

— Eu também não. Aquela... aquela criança está so­frendo e quer... se libertar. Mas de que modo? Não sei, mas... só de pensar me arrepio... uma criança... soluçan­do desse jeito.

 

Um mês depois dessa conversa, Geoffrey adoeceu seria­mente. O vento leste tinha sido implacável e ele não era uma criança forte. O médico sacudiu a cabeça e disse que o caso era grave. Foi mais explícito com Mr. Winburn e confessou que as esperanças eram praticamente nulas.

— De todo jeito, o menino já estava condenado mesmo — acrescentou. — Há muito tempo que os pulmões estão afetados.

Foi enquanto cuidava de Geoff que Mrs. Lancaster co­meçou a se dar conta daquela — outra criança. A princípio os soluços eram parte inseparável do vento, mas aos poucos, tornaram-se mais nítidos, inconfundíveis. Por fim já os es­cutava nos momentos de calma absoluta: soluços infantis — monótonos, desesperados, confrangedores.

Geoff piorava cada vez mais e no seu delírio falava sem parar no “menininho”.

— Eu quero ajudar ele a ir embora, eu quero, sim! — gritava.

À fase do delírio seguiu-se um período de letargia. Geof­frey ficava totalmente imóvel, quase sem respirar, semi-in­consciente. Não havia nada a fazer, senão esperar e zelar. Aí então veio uma noite sossegada, clara e tranqüila, sem um sopro de vento sequer.

De repente a criança se mexeu. Abriu os olhos. Olhou por cima do ombro da mãe, na direção da porta aberta. Ten­tou falar e ela se curvou para ouvir melhor as palavras que ele sussurrava:

— Tá bem, já vou — murmurou, perdendo de novo os sentidos.

A mãe sentiu-se subitamente apavorada. Correu para o lado do avô. Perto dali, num canto qualquer, a outra crian­ça ria. Alegre, contente, triunfante, seu riso inocente ecoa­va pelo quarto todo.

— Estou com medo, estou com medo — gemeu Mrs. Lancaster.

O pai passou-lhe a mão pelos ombros, protetor. Uma brusca rajada de vento pegou-os de surpresa, mas foi passa­geira e deixou o ar calmo como antes.

O riso tinha parado. Agora começava-se a ouvir outro ruído, tão fraco que quase nem se distinguia, mas que foi aumentando até se tornar bem nítido. Passos — passos le­ves, aproximando-se rapidamente.

Taque-taque, taque-taque, corriam — aqueles pezinhos vacilantes, familiares. Só que... não era possível... sim, agora outros passos de repente se misturavam a eles, mo­vendo-se de um jeito mais ágil e mais leve ainda.

Pai e filha saltaram logo para a porta.

Cada vez mais próximos, passando diante deles, bem per­to, taque-taque, taque-taque, caminhavam juntos os pés in­visíveis das duas crianças.

— Mas são duas... duas!

De repente, pálida de medo, virou-se para o berço en­costado à parede. Mas o pai a conteve com delicadeza e apontou para o corredor.

— Lá — disse simplesmente.

Taque-taque, taque-taque — cada vez mais longe.

E por fim — o silêncio.

 

O ESTRANHO CASO DE SIR ANDREW CARMICHAEL

 (Extraído das anotações do Dr. Edward

Carstairs, ilustre psicólogo, já falecido.)

Sei perfeitamente que há duas maneiras distintas de en­carar os curiosos e trágicos acontecimentos que passo a regis­trar aqui. Quanto a mim, pessoalmente, nunca mudei de opinião. Aconselharam-me a escrever toda a história em de­talhes e creio mesmo que a minha obrigação para com a ciência é não permitir que fatos tão estranhos e inexplicáveis fiquem relegados ao esquecimento.

Foi por intermédio do telegrama de um amigo, o Dr. Settle, que entrei pela primeira vez em contato com o caso. Além de mencionar o nome Carmichael, o telegrama não era nada explícito, mas tratei logo de pegar em Paddington, o trem das 12h20m para Wolden, em Herefordshire.

O nome de Carmichael não me era estranho. Eu havia conhecido ligeiramente o falecido Sir William Carmichael de Wolden, embora não o tivesse mais visto durante os últimos onze anos. Sabia que tinha um filho, o atual baronete, que já devia ser um rapaz de seus vinte e três anos. Lembra­va-me vagamente de certos boatos em torno do segundo casa­mento de Sir William, mas a única idéia bem definida que guardava na memória era uma impressão nada favorável da segunda. Lady Carmichael.

Settle estava me esperando na estação.

— Que bom você ter vindo — disse, apertando-me a mão.

— Não fiz mais que minha obrigação. Parece que o caso tem algo que ver com a minha especialidade, não?

— Muito, por sinal.

— Trata-se de um problema psíquico, então? — arris­quei. — Que apresenta aspectos fora do comum?

A essa altura já tínhamos recolhido a minha bagagem e estávamos sentados num cabriolé, a caminho de Wolden, que distava cerca de cinco quilômetros da estação. Settle demorou um pouco para responder. De repente desabafou:

— Não dá pra entender essa história! Imagine você um rapaz de vinte e três anos, completamente normal em todos os sentidos, o tipo do sujeito simpático, amável, um pouqui­nho presunçoso, o que é explicável, sem nada de excepcional­mente inteligente, talvez, mas, enfim, o verdadeiro protótipo do jovem inglês de classe superior. Uma noite ele vai pra cama com a saúde de sempre e no dia seguinte é encontrado perambulando pela aldeia, num estado de semi-imbecilidade, incapaz de reconhecer as pessoas que lhe são mais caras e próximas.

— Ah! — exclamei, entusiasmado. O caso prometia ser interessante. — Perda total de memória? E isso aconteceu...

— Ontem de manhã. Nove de agosto.

— E não houve nada... nenhum choque que você sai­ba... pra explicar esse estado?

— Nada.

Veio-me uma súbita suspeita.

— Você não está me escondendo alguma coisa?

— N... não.

A hesitação dele confirmou a minha suspeita.

— Eu preciso saber de tudo.

— Não tem nada que ver com o Andrew... é com... com a casa.

— Com a casa? — repeti, espantado.

— Você tem lidado muito com essa espécie de coisa, não é, Carstairs? Já “testou” uma porção de casas suposta­mente “mal-assombradas”. Qual é a sua opinião sobre o assunto?

— Em cada dez casos, nove são vigarices — respondi. — Só que o décimo... bem, já deparei com fenômenos absoluta­mente inexplicáveis do ponto de vista materialista comum. Eu acredito nas forças ocultas.

Settle concordou com a cabeça. Naquele momento aca­bávamos de cruzar pelos portões do parque. Ele apontou o chicote para uma mansão branca e baixa na encosta de um morro.

— Lá está a casa — disse. — Sabe... há qualquer coisa sinistra... horrível... naquela casa.    Todos nós sentimos... E olhe que eu não sou supersticioso, hem?

— Que tipo de assombração é? — perguntei. Ele olhou bem para a frente.

— Prefiro não lhe dizer nada. Sabe como é, se você... chegando aqui sem prevenção nenhuma... e ignorando por completo a situação... também visse... bem, aí...

— Sim — concordei, — tem razão, é melhor assim. Mas eu gostaria que você me contasse mais coisas sobre a família.

— Sir William — disse Settle — casou duas vezes. O Andrew é filho da primeira mulher. Faz nove anos que ele casou de novo e a atual Lady Carmichael é meio mis­teriosa. Pode ser que seja inglesa, mas desconfio de que tem sangue asiático.

Fez uma pausa.

— Settle — disse eu, — você não gosta de Lady Car­michael.

— Não gosto, não — confessou francamente. — Sempre me pareceu que há qualquer coisa de sinistro em torno dela. Bem, mas como ia dizendo, a segunda mulher deu à luz outro filho, também varão, que hoje está com. oito anos. Sir Wil­liam morreu há três anos e o Andrew herdou o título e a casa. A madrasta e o irmão por parte de pai continuaram morando com ele aqui em Wolden. Devo dizer a você que a propriedade se acha praticamente arruinada. Quase toda a renda de Sir Andrew é gasta na sua manutenção. Sir Wil­liam deixou apenas algumas centenas de libras anuais para a esposa, mas o Andrew felizmente sempre se entendeu bem com a madrasta e ficou encantado em morar com ela. Ora...

— Sim?

— Dois meses atrás, o Andrew noivou com uma graça de moça, uma tal de Miss Phyllis Patterson. — E, baixando a voz com um toque de emoção, acrescentou: — Os dois deve­riam casar no mês que vem. Ela está atualmente hospedada aqui.. Imagine só a aflição dela...

Curvei a cabeça, calado.

Já estávamos perto da casa. À nossa direita, o gramado verde descia suavemente pela encosta abaixo. De repente vi uma cena simplesmente deslumbrante. Uma jovem subia o gramado em direção à casa. Não usava chapéu e o sol realçava--lhe o brilho do glorioso cabelo dourado. Trazia uma grande cesta de rosas na mão e um belo gato persa cinzento se enroscava carinhosamente entre seus pés, quando caminhava.

Olhei para Settle com uma expressão interrogativa.

— Aquela é a Miss Patterson — disse ele.

— Coitada — comentei, — coitada. Que lindo quadro que ela faz com aquelas rosas e aquele gato cinzento.

Ouvi um leve ruído e me virei rapidamente para o meu amigo. As rédeas tinham-lhe escapado dos dedos e seu rosto estava completamente branco.

— Que foi? — exclamei.

Ele custou a se refazer.

— Nada — respondeu, — nada.

Ao cabo de alguns instantes chegamos e entrei atrás dele na sala verde de visitas, onde o chá estava sendo servido.

Uma mulher já madura, mas ainda bonita, levantou-se e veio ao nosso encontro de mão estendida.

— Este é o meu amigo Dr. Carstairs, Lady Carmichael.

Não saberia explicar a onda de repulsa instintiva que me invadiu ao pegar a mão daquela mulher. Bonita e impo­nente, movia-se com uma graça morena e langorosa que parecia confirmar as suspeitas de Settle sobre seu possível sangue oriental.

— Foi muito gentil em vir, Dr. Carstairs — disse, com voz grave, musical, — para tentar ajudar a resolver nosso grande problema.

Dei uma resposta trivial qualquer e ela me passou o chá.

Não demorou muito, a moça que eu tinha visto no gra­mado lá fora entrou na sala. Não estava mais com o gato, mas ainda trazia a cesta de rosas na mão. Settle nos apre­sentou e ela se adiantou, impulsivamente.

— Ah! Dr. Carstairs, o Dr. Settle nos falou tanto sobre o senhor. Tenho a sensação de que poderá fazer alguma coisa pelo pobre do Andrew.

Miss Patterson, não há que negar, era lindíssima, embora fosse pálida e tivesse fundas olheiras.

— Minha cara — disse, tranqüilizador, — não precisa ficar desesperada. Esses casos de perda de memória, ou de dupla personalidade, quase sempre são de curta duração. A qualquer momento o paciente pode recobrar o pleno uso de suas faculdades mentais.

Ela sacudiu a cabeça.

— Não acredito que seja caso de dupla personalidade — disse. — Isso não tem nada do Andrew. Não é a perso­nalidade dele. Não é ele. Eu...

— Phyllis, querida — atalhou a voz suave de Lady Car­michael, — aqui está o seu chá.

E qualquer coisa na expressão dos olhos dela ao pousa­rem na moça me deram a certeza de que Lady Carmichael não gostava da futura nora.

Miss Patterson recusou o chá e eu, para amenizar o tom da conversa, perguntei:

— O gatinho não vai ganhar um pouco de leite?

Ela me olhou de modo meio estranho.

— O... gatinho?

— É, o seu companheiro de poucos minutos atrás, no jardim...

Um estrondo me interrompeu. Lady Carmichael tinha virado a chaleira do chá, derramado a água quente por todo o soalho. Enquanto eu fazia o que podia para remediar a situação, Phyllis Patterson olhou para Settle com uma expres­são interrogativa. Ele se levantou.

— Você não quer ver o paciente agora, Carstairs?

Fui imediatamente atrás dele. Miss Patterson nos acompanhou. Subimos a escada e Settle tirou uma chave do bolso.

— Às vezes ele tem a mania de sair perambulando por aí — explicou. — Por isso em geral tranco a porta quando saio de casa.

Girou a chave na fechadura e nós entramos no quarto.

Havia um rapaz sentado junto à janela, onde os últimos raios de sol caíam em cheio. Estava parado de uma maneira curiosa, meio curvado, com todos os músculos relaxados. A princípio julguei que não tivesse percebido nossa presença, mas de repente notei que, sob as pálpebras imóveis, nos observava atentamente. Ao encontrarem os meus, seus olhos baixaram e pestanejaram. Mas ele não se mexeu.

— Venha, Andrew — disse Settle, alegremente. — Miss Patterson e um amigo meu vieram fazer uma visita a você.

Mas o rapaz sentado à janela se limitou a pestanejar. Pouco depois, porém, vi que nos observava de novo — fur­tiva e dissimuladamente.

— Quer chá? — perguntou Settle, sempre em voz alta e alegre, como se estivesse falando com uma criança.

Colocou na mesa uma xícara cheia de leite. Arqueei as sobranchelhas, surpreso, e Settle sorriu.

— Engraçado — disse, — a única bebida que ele suporta é leite.

Não demorou muito, sem se apressar demais, Sir Andrew desenroscou-se, membro por membro, da posição encolhida em que estava e dirigiu-se lentamente à mesa. De repente me dei conta de que seus movimentos eram completamente silenciosos, que os pés não faziam barulho ao pisar no chão. Assim que chegou à mesa, espreguiçou-se de uma maneira incrível, apoiando-se numa perna e espichando a outra para trás. Prolongou esse exercício ao máximo, e depois bocejou. Nunca vi bocejo igual! Parecia que ia engolir a cara inteira.

Aí então voltou sua atenção para o leite, debruçando-se sobre a mesa até que os lábios tocassem na bebida.

Settle respondeu ao meu olhar de interrogação.

— Não quer saber de usar as mãos. Parece que regre­diu a uma fase primitiva. Que estranho, não é?

Senti que Phyllis Patterson se encolhia um pouco contra mim, e pousei-lhe a mão no braço, para tranqüilizá-la.

O leite por fim acabou e Andrew Carmichael espre­guiçou-se mais uma vez. Depois, com o mesmo passo abso­lutamente silencioso, voltou à poltrona da janela, onde se sentou, agachado como antes, pestanejando para nós.

Miss Patterson puxou-nos para o corredor. Tremia dos pés à cabeça.

— Ah! Dr. Carstairs — exclamou. — Não é ele... esse negócio que está aí dentro não é o Andrew! Eu sentiria... eu saberia.. .

Sacudi tristemente a cabeça.

— O cérebro é capaz das coisas mais estranhas, Miss Patterson.

Confesso que estava intrigado com o caso. Apresentava aspectos fora do comum. Embora nunca tivesse visto antes o jovem Carmichael, havia qualquer coisa na sua estranha maneira de caminhar e no modo como pestanejava que me lembrava alguém ou algo que não conseguia definir direito.

Naquela noite o nosso jantar transcorreu calmamente, a conversa correndo por conta de Lady Carmichael e de mim mesmo. Depois que as mulheres se retiraram, Settle pergun­tou qual a impressão que eu havia tido da minha anfitriã.

— Devo confessar — respondi, — que sem a menor causa ou motivo, antipatizo solenemente com ela. Você tinha toda a razão, ela possui sangue oriental e, a meu ver, acen­tuados poderes ocultos. É uma mulher de incrível força magnética.

Settle parecia prestes a dizer alguma coisa, mas se con­teve, limitando-se a observar pouco depois:

— Ela vive praticamente só para o filho menor.

Em seguida ao jantar, fomos sentar de novo na sala verde de visitas. Tínhamos terminado de tomar café e conversáva­mos meio cerimoniosamente sobre os assuntos do dia, quando o gato se pôs a miar da maneira mais comovente do lado de fora da porta, pedindo para entrar. Ninguém prestou a mí­nima atenção e eu, como gosto muito de bichos, daí a pouco me levantei.

— Posso deixar o pobrezinho entrar? — perguntei a Lady Carmichael.

Tive a impressão de que estava com o rosto muito pálido, mas fez um gesto com a cabeça que interpretei como uma aquiescência e então fui abrir a porta. Mas encontrei o cor­redor totalmente deserto.

— Que estranho — comentei. — Seria capaz de jurar que tinha ouvido um gato miar.

Ao voltar para o meu lugar, notei que todos me obser­vavam atentamente. Não sei por que, mas aquilo me deixou meio constrangido.

Recolhemo-nos cedo. Settle me acompanhou até o quarto.

— Tem tudo que você precisa? — perguntou, olhando em torno.

— Tenho sim, obrigado.

Mas ele se demorou ainda um pouco, sem jeito, como se quisesse tratar de um assunto que não tivesse coragem de abordar.

— A propósito — comentei, — você não falou que havia qualquer coisa de sinistro nesta casa?    Por enquanto me pa­rece perfeitamente normal.

— Acha que seja uma casa alegre?

— Bem, isso também não, devido às circunstâncias atuais. É óbvio que está passando por uma grande dor. Mas quanto a qualquer influência anormal, eu não hesitaria em lhe dar um atestado de saúde perfeita.

— Boa noite — retrucou Settle abruptamente. — E bons sonhos.

Sonhar, não há que negar que sonhei. O gato cinzento de Miss Patterson, pelo visto, não me saía da idéia. Tive impressão de sonhar a noite inteira com o maldito animal.

De repente acordei assustado e percebi o motivo por que não conseguia esquecer o tal gato. O danado não parava de miar do lado de fora do meu quarto. Impossível dormir com aquele alarido. Acendi a vela e fui abrir a porta. Mas em­bora o miado persistisse, o corredor estava vazio. Ocorreu--me outra idéia: “Vai ver que o infeliz ficou trancado nal­gum canto e não pode sair.” O fundo do corredor era à esquerda, onde se achava situado o quarto de Lady Carmi­chael. Dirigi-me, portanto, para o lado oposto, mas mal tinha dado os primeiros passos quando o barulho recomeçou atrás de mim. Virei-me bruscamente e tornei a ouvir o mesmo miado, desta vez nitidamente à minha direita.

Qualquer coisa, no mínimo alguma correnteza de ar no corredor, me provocou um calafrio e voltei logo para meu quarto. Agora reinava ali o mais absoluto silêncio e não tardei muito a pegar de novo no sono — para despertar nou­tro dia glorioso de verão.

Enquanto me vestia, avistei da janela o perturbador do meu repouso noturno. O gato cinzento deslizava lenta e furtivamente pelo gramado. Julguei que fosse atacar um pe­queno bando de passarinhos que trinava, alisando as penas com o bico, a pouca distância.

Mas aí aconteceu uma coisa estranhíssima. O gato se aproximou e passou direto pelo meio dos passarinhos, quase roçando o pelo contra eles — que nem levantaram vôo. Não dava para entender — parecia absurdo.

Fiquei tão impressionado com o fato que não pude dei­xar de mencioná-lo na mesa do café.

— A senhora sabe que tem um gato totalmente fora do comum?

Ouvi logo um tilintar de xícara contra o pires e notei que Phyllis Patterson, de lábios entreabertos e respiração ofe­gante, me olhava fixamente.

Houve um silêncio momentâneo e depois Lady Carmi­chael, de um jeito francamente antipático, respondeu:

— O senhor deve ter-se enganado. Aqui em casa não há gatos. Nunca tive gato nenhum.

Era evidente que eu tinha metido os pés pelas mãos da pior maneira possível, por isso me apressei a mudar de assunto.

Mas aquilo me deixou intrigado. Por que Lady Car­michael afirmava que não havia nenhum gato na casa? Per­tenceria, talvez, a Miss Patterson e a dona da casa ignorava sua presença ali? Lady Carmichael era bem capaz de ter uma dessas estranhas aversões por gatos, tão comuns hoje em dia. Não me parecia uma explicação plausível, mas me vi forçado a me contentar provisoriamente com ela.

Nosso paciente continuava no mesmo estado. Desta vez lhe fiz um exame completo e pude analisá-lo mais minuciosa­mente do que na véspera. Por minha sugestão, providenciou--se para que passasse a maior parte do tempo em companhia da família. Com isso eu esperava não só dispor de uma oportunidade melhor para observá-lo quando estivesse despre­venido, como também que a rotina cotidiana normal pudesse avivar-lhe alguma centelha de inteligência. Sua conduta, po­rém, permaneceu imutável. Andava sempre quieto e dócil, parecia distraído, mas na realidade ficava sempre atento a tudo, de uma maneira intensa e bastante sorrateira. Uma coisa certamente me surpreendeu — a grande afeição que demonstrava pela madrasta. Ignorava Miss Patterson por completo, mas sempre dava um jeito de se sentar bem perto de Lady Carmichael, e uma vez o surpreendi esfregando a cabeça contra o ombro dela numa muda manifestação de carinho.

Fiquei preocupado com o caso. Não podia deixar de sen­tir que havia uma pista para tudo aquilo que, por enquanto, não atinava qual fosse.

— Que caso mais estranho — declarei a Settle.

— Sim — concordou, — é muito... sugestivo.

Olhou para mim — meio furtivamente, achei.

— Me diga uma coisa — continuou. — O Andrew... não lhe lembra nada?

Essas palavras me causaram um efeito desagradável, me fazendo pensar na impressão que tinha sentido na véspera.

— Me lembra, como? — perguntei.

Ele sacudiu a cabeça.

— Talvez seja imaginação minha — murmurou. — Pura imaginação.

E não quis mais tocar no assunto.

Havia um mistério impenetrável em torno do caso. Eu ainda continuava obcecado pela sensação desconcertante de ter deixado escapar a pista que me esclareceria tudo. E tam­bém havia mistério em torno de um ponto menos importante. Refiro-me ao episódio insignificante do gato cinzento. Por um motivo ou outro, aquilo já estava me dando nos nervos. Sonhava com gatos — tinha a impressão constante de ouvi--los miar. De vez em quando via ao longe, de relance, o belo animal. E o fato de existir algum mistério relacionado com ele me irritava de uma forma insuportável. Uma tarde, ce­dendo a um impulso súbito, recorri ao criado para obter a informação que me interessava.

— Você pode me dizer uma coisa sobre o gato que estou sempre vendo por aí? — perguntei.

— Gato, doutor?

Parecia respeitosamente surpreso.

— Não havia... não há, aliás, um gato aqui na casa?

— A patroa já teve um gato, doutor. Um grande bichano de estimação. Mas tivemos que dar fim nele. Uma pena pois era um belo animal.

— Um gato cinzento?  — perguntei, cauteloso.

— Sim senhor. Persa.

— E você diz que ele foi destruído?

— Sim senhor.

— Tem absoluta certeza disso?

— Ah, absoluta, doutor! A patroa não quis mandar chamar o veterinário... fez tudo sozinha.    Faz pouco menos de uma semana. Foi enterrado debaixo daquele pé de faia comum, doutor.

E retirou-se da sala, me deixando a sós com os meus pensamentos.

Por que Lady Carmichael afirmava tão categoricamente que nunca tinha tido um gato?

Minha intuição me dizia que esse detalhe aparentemente sem importância do gato era, de certo modo, significativo. Procurei Settle e levei-o para um canto.

— Settle — disse. — Quero fazer-lhe uma pergunta. Você nunca viu ou ouviu um gato aqui nesta casa?

Não pareceu surpreso com a pergunta. Eu até diria que já esperava por ela.

— Ouvir, eu já ouvi — respondeu. — Mas nunca vi.

— Como? — exclamei. — E aquele primeiro dia, no gramado com Miss Patterson?

Encarou-me bem firme.

— Eu vi Miss Patterson caminhando pelo gramado. Mais nada.

Comecei a compreender.

— Quer dizer então — retruquei, — que o gato...?

Ele confirmou com a cabeça.

— Eu queria ver se você... com o espírito despreve­nido... ouviria o que todos nós ouvimos...

— Ah, mas então vocês também ouvem os miados dele?

Ele confirmou de novo.

— Que estranho — murmurei, pensativo. — Jamais ouvi falar de um gato fazendo assombrações.

Contei-lhe o que o criado tinha me informado. Ele mani­festou-se surpreso.

— Isso pra mim é novidade.   Não sabia disso.

— Mas que sentido pode ter? — perguntei, desesperado.

Ele sacudiu a cabeça.

— Deus sabe lá! Mas lhe digo uma coisa, Carstairs... eu estou com medo. Aquele... aquele miado tem um tom de... ameaça.

— Ameaça? — retruquei vivamente. — Para quem?

Ele espalmou as mãos.

— Como posso saber?

Foi só depois do jantar daquela noite que me dei conta do que ele queria dizer. Estávamos sentados na sala verde, tal como na noite da minha chegada, quando se ouviu — o miado forte, insistente, de um gato do lado de fora da porta. Mas desta vez havia um traço inconfundível de cólera no seu tom — um feroz uivo felino, prolongado e ameaçador. E por fim, quando cessou, o gancho de metal do outro lado da porta foi sacudido violentamente como que por uma pata.

Settle se levantou de um pulo.

— Juro que isso não é imaginação — exclamou.

Correu à porta e escancarou-a.

Não havia nada ali.

Voltou enxugando a testa. Phyllis estava pálida e trêmu­la, Lady Carmichael branca como um cadáver. Só Andrew, feliz da vida, a cabeça aninhada no colo da madrasta, parecia calmo e imperturbável.

Miss Patterson pousou a mão no meu braço quando subi­mos a escada.

— Ah, Dr. Carstairs! — exclamou. — Que será isso? Que significam todas essas coisas?

— Por enquanto ainda não sabemos, minha filha — res­pondi. — Mas pretendo descobrir. Não precisa ter medo. Estou convencido de que não há nenhum perigo pessoal para você.

Ela me olhou, meio em dúvida.

— Acha que não?

— Tenho certeza — afirmei.

Lembrei-me da maneira carinhosa com que o gato cin­zento havia-se enroscado entre seus pés e não tive mais dú­vidas. A ameaça não pairava sobre ela.

Demorei um pouco a pegar no sono, mas por fim caí num cochilo inquieto, do qual despertei com uma sensação de choque. Escutei um barulho de arranhão, de estalo, como se estivessem arrancando ou rasgando violentamente qualquer coisa. Saltei da cama e saí como uma bala para o corredor. No mesmo instante Settle surgiu à porta do seu quarto, que ficava defronte ao meu. O barulho vinha do meu lado esquerdo.

— Você está ouvindo, Carstairs?   — exclamou ele. — Está ouvindo?

Corremos logo até a porta de Lady Carmichael. Não tinha passado nada por nós, mas o barulho parou. Nossas velas se refletiam de leve nas brilhantes almofadas da porta de Lady Carmichael. Entreolhamo-nos fixamente.

— Sabe o que era? — perguntou ele à meia-voz.

Acenei com a cabeça.

— As unhas de um gato puxando e rasgando alguma coisa.

Senti um calafrio. De repente soltei uma exclamação e baixei a vela que estava segurando.

— Olhe isto aqui, Settle.

“Isto aqui” era uma cadeira encostada à parede — cujo assento tinha sido puxado e rasgado em longas tiras...

Nós a examinamos minuciosamente. Ele olhou para mim e confirmei com a cabeça.

— Unhas de gato — disse ele, respirando com veemên­cia. — Inconfundíveis. — Virou-se da cadeira para a porta fechada. — Eis aí a pessoa que está ameaçada: Lady Car­michael!

Não consegui dormir mais naquela noite. As coisas tinham chegado a tal ponto que era preciso fazer algo. Para mim, só existia uma pessoa de posse da chave da situação. Desconfiei que Lady Carmichael soubesse mais do que pretendia.

Ela estava mortalmente pálida quando desceu no outro dia de manhã e mal tocou na comida que tinha no prato. Eu seria capaz de garantir que só uma vontade de ferro a mantinha em pé. Depois do café, pedi para lhe falar em particular. Fui direto ao assunto.

— Lady Carmichael — comecei. — Tenho motivos para crer que a senhora corre um perigo gravíssimo.

— Não brinque — retrucou, com maravilhosa des­preocupação.

— Nesta casa — continuei, — existe uma Coisa... uma Presença... que lhe é francamente hostil.

— Que bobagem — murmurou, com desdém. — Como se eu fosse acreditar numa asneira dessas.

— Na noite passada — frisei secamente, — a cadeira diante da sua porta ficou reduzida a frangalhos.

— É mesmo? — Arqueou as sobrancelhas, fingindo-se surpresa, mas percebi que aquilo não era novidade para ela. — No mínimo, alguma brincadeira de mau gosto.

— Nada disso — protestei, com certa ênfase. — E quero que a senhora me conte... para o seu próprio bem... — Parei.

— Conte o quê? — perguntou-me.

— Tudo o que possa esclarecer esse assunto — disse, bem sério.

Ela riu.

— Não sei de nada — afirmou. — Absolutamente nada.

E nem advertindo-a do perigo que corria consegui fazê-la mudar de atitude. No entanto estava convencido de que ela sabia realmente muito mais do que qualquer um de nós, e de que possuía uma pista que ignorávamos por completo. Mas percebi que era totalmente impossível obrigá-la a falar. Resolvi, porém, tomar todas as precauções a meu alcance, pois tinha certeza de que Lady Carmichael estava ameaçada por um perigo real e imediato. Antes que se reco­lhesse na noite seguinte, Settle e eu passamos uma vistoria rigorosa em seu quarto. E combinamos nos revezar para ficar cuidando do corredor.

Eu me encarreguei do primeiro turno, que transcorreu sem incidentes, e às três horas Settle me substituiu. Sentia-me cansado depois da noite insone da véspera e peguei logo no sono. E tive um sonho curioso.

Sonhei que o gato cinzento estava sentado ao pé da minha cama, com os olhos fixos nos meus, num estranho ar de súplica. Aí, com a facilidade dos sonhos, percebi que ele queria que eu saísse atrás dele. Saí, e ele foi na frente, descendo a grande escadaria e tomando a direção da ala oposta da casa, até chegar a uma sala que era evidentemente a biblioteca. Parou ali num canto e ergueu as patas dian­teiras, pousando-as numa das prateleiras de livros mais baixas, enquanto me fixava de novo aquele olhar comovente de súplica.

Depois o gato e a biblioteca sumiram e eu acordei, des­cobrindo que já havia amanhecido.

A vigília de Settle também transcorrera sem incidentes, mas ele se mostrou interessadíssimo quando lhe contei o sonho. Pedi que me levasse à biblioteca, que coincidia nos mínimos detalhes com a visão que havia tido dela. Pude in­clusive indicar o lugar exato em que o animal tinha-me lança­do aquele último olhar de tristeza.

Ficamos parados ali em muda perplexidade. De repente me veio uma idéia e me curvei para ler os títulos dos livros no canto que já mencionei. Notei a existência de uma bre­cha entre os volumes.

— Tiraram um livro daqui — declarei a Settle.

Ele também se curvou para a prateleira.

— Olhe só — disse ele. — Aqui atrás há um prego que arrancou um pedaço do volume que falta.

Destacou com cuidado o pedacinho de papel. Não tinha mais que uns três centímetros quadrados — mas trazia im­presso duas palavras muito significativas: “O gato...”

Entreolhamo-nos.

— Este negócio já está me dando arrepios — disse Settle. — É a coisa mais sinistra que vi em toda a minha vida.

— Eu só queria saber que livro é esse que está faltando aqui. Você acha que existe meio de descobrir?

— Talvez haja um catálogo por aí. Quem sabe se Lady Carmichael...

Sacudi a cabeça.

— Lady Carmichael não nos dirá nada.

— Acha que não?

— Tenho certeza. Enquanto a gente fica tentando adi­vinhar, tateando no escuro, Lady Carmichael sabe. E pelo jeito tem motivos pessoais para continuar calada. Prefere correr o pior dos riscos a romper o silêncio.

O dia se passou numa monotonia que me fez lembrar a calmaria antes da tempestade. E tive a estranha sensação de que o problema estava em vias de ser solucionado. Conti­nuava tateando no escuro, mas em breve poderia enxergar. Os fatos estavam todos ali, prontos, à espera do pequeno clarão de luz que os ligasse entre si, revelando seu significado.

E ele de fato veio! Da maneira mais estranha!

Foi quando nos achávamos todos reunidos na sala verde, como sempre, depois do jantar. Quase ninguém abria a boca para falar. O ambiente estava tão quieto mesmo, que de repente um ratinho passou correndo pelo soalho — e num segundo a coisa aconteceu.

Com um pulo enorme, Andrew Carmichael saltou da cadeira. Seu corpo inseguro partiu como uma flecha no en­calço do rato, que tinha desaparecido atrás do lambril, e ficou agachado ali — à espreita — trêmulo de expectativa.

Foi medonho! Jamais passei por outro momento tão paralisante como aquele. Não tive mais dúvidas quanto ao que Andrew Carmichael me lembrava com seus passos furti­vos e olhares atentos. E como um raio, me veio a explicação, violenta, incrível, inconcebível. Rejeitei-a como inadmis­sível, inimaginável! Mas não pude tirá-la da idéia.

Não me lembro direito do que aconteceu depois. Tudo parecia confuso e irreal. Só sei que conseguimos subir a escada e trocar nossos boas-noites rapidamente, quase com medo de nos olharmos nos olhos, para não enxergar neles alguma confirmação de nossos próprios temores.

Settle postou-se diante da porta de Lady Carmichael para cumprir o primeiro turno da vigília, ficando combinado que me chamaria às três da madrugada. Não era por Lady Carmichael que eu receava agora: estava ocupado demais com aquela minha teoria fantástica, inadmissível. Dizia a mim mesmo que era impossível — mas não podia tirá-la da idéia, fascinado.

E aí então, de repente, um grito estremeceu a quietude da noite: a voz de Settle, me chamando. Saí para o corre­dor como uma bala.

Ele martelava e batia com força na porta de Lady Car­michael.

— Diabo que a carregue! — exclamou. — Ela se tran­cou por dentro!

— Mas...

— O troço está aí dentro, rapaz! Aí com ela! Não está ouvindo?

Detrás da porta trancada vinha o miado feroz, prolon­gado, de um gato. E logo em seguida um grito horrível — e depois outro... Reconheci a voz de Lady Carmichael.

— A porta! — berrei. — Temos que arrombá-la. Daqui a pouco será tarde demais.

Metemos os ombros contra ela, e empurramos com toda a força. Deu um estrondo — e quase caímos dentro do quarto.

Lady Carmichael jazia na cama, banhada em sangue. Poucas vezes vi quadro mais horrendo. O coração ainda ba­tia, mas os ferimentos eram terríveis, pois a pele da gar­ganta estava toda arrancada e dilacerada... Horrorizado, murmurei: — “As unhas...” — E me passou um calafrio de terror supersticioso pela espinha.

Fiz os curativos e apliquei as ataduras com o máximo cuidado, sugerindo a Settle que seria melhor guardar se­gredo sobre a origem exata dos ferimentos, principalmente com Miss Patterson. Redigi um telegrama, mandando cha­mar uma enfermeira do hospital, para ser remetido assim que abrisse a agência de telégrafo local.                     

A luz do dia já vinha entrando pela janela. Olhei para o gramado lá embaixo.

— Vá se vestir que temos que sair — disse abrupta­mente a Settle. — Lady Carmichael já se encontra fora de perigo.

Ele se aprontou logo e fomos juntos ao jardim.

— Que vai fazer?

— Desenterrar o cadáver do gato — respondi, lacônico. — Preciso me certificar...

Encontrei uma pá num galpão de ferramentas e começa­mos a escavar debaixo do grande pé de faia comum. Por fim, nossos esforços foram recompensados. Não era um trabalho agradável. Já fazia uma semana que o animal tinha morrido. Mas vi o que queria ver.

— Este é o gato — disse. — O mesmo que vi no pri­meiro dia que cheguei aqui.

Settle cheirou. Ainda dava para sentir um aroma pene­trante de amêndoas.

— Ácido prússico — constatou.

Confirmei com a cabeça.

— Em que você está pensando? — me perguntou, curioso.

— Na mesma coisa que você!

Minha suposição não constituía novidade para ele — percebi logo que também já lhe tinha passado pela idéia.

— É impossível — murmurou. — Impossível!   Isso con­tradiz toda a ciência...  a ordem natural das coisas... — Calou-se, estremecendo. — Aquele rato ontem à noite — disse. — Mas... ah, não pode ser!

— Lady Carmichael é uma mulher estranhíssima.  Possui poderes ocultos... hipnóticos. Seus antepassados vieram do Oriente. Como saber o uso que terá feito desses poderes com uma pessoa de índole vulnerável e afetuosa como An­drew Carmichael? E não esqueça, Settle, que se ele ficar sendo um irremediável débil mental, dependente dela, todos os seus bens passam praticamente às mãos de Lady Carmi­chael e do filho... que, segundo você me disse, ela adora. E o Andrew ia casar!

— Mas, que vamos fazer, Carstairs?

— Nada — respondi. — A não ser nos interpor entre Lady Carmichael e a vingança.

Lady Carmichael melhorou aos poucos. Os ferimentos ci­catrizaram tão bem quanto se poderia esperar — mas pro­vavelmente ficaria com as marcas daquela terrível agressão para o resto da vida.

Nunca me senti mais desarmado. A força que nos ha­via derrotado continuava à solta, incólume, e embora de mo­mento inativa, sabíamos que não podia estar fazendo outra coisa senão aguardando uma boa oportunidade. Decidi tomar uma providência. Assim que Lady Carmichael se sentisse suficientemente bem para ser removida, teria que ser levada para longe de Wolden. Talvez houvesse uma chance de que aquela terrível manifestação não pudesse segui-la. De modo que o tempo foi passando.

Marquei a data de 18 de setembro para a remoção de Lady Carmichael. Na manhã do dia 14 surgiu uma crise im­prevista.

Eu estava na biblioteca comentando com Settle os deta­lhes do caso quando uma criada entrou, às pressas, agitada.

— Ah, doutor! — exclamou. — Venha logo! O Mr. An­drew... ele caiu no lago. Tropeçou dentro do barco, que começou a balançar, perdeu o equilíbrio e caiu! Eu vi tudo lá da janela.

Não quis saber de mais nada. Saí correndo da sala, se­guido por Settle. Phyllis estava perto da porta e tinha es­cutado a história da criada. Correu junto conosco.

— Não precisam ter medo — gritou. — O Andrew nada muito bem.

Mas eu estava com maus pressentimentos e me apressei ainda mais. A superfície do lago parecia um espelho. O bar­co vazio flutuava, indolente — mas nem sinal de Andrew.

Settle tirou o paletó e as botas.

— Vou mergulhar — disse. — Você pegue a vara do outro barco e comece a sondar. Não é muito fundo.

O tempo deu impressão de passar tremendamente lento enquanto procurávamos em vão. Por fim, quando já estáva­mos perdendo as esperanças, encontramos o corpo aparente­mente sem vida, de Andrew Carmichael e o levamos para a margem.

Jamais poderei esquecer a expressão angustiada do rosto de Phyllis.

— Ele não... não... — Seus lábios se recusaram a ar­ticular a terrível palavra.

— Não, não, minha filha — exclamei. — Não tenha medo. Nós já vamos fazê-lo recuperar os sentidos.

Mas no íntimo tinha poucas esperanças. Ele tinha fica­do meia hora debaixo d’água. Mandei Settle buscar cober­tas quentes e outras coisas necessárias na casa, e comecei a aplicar a respiração artificial.

Trabalhamos energicamente por mais de uma hora, mas ele não dava sinais de vida. Pedi para Settle ocupar meu lugar e me aproximei de Phyllis.

— Acho que não vai adiantar — disse-lhe delicadamen­te. — Não podemos fazer nada pelo Andrew.

Ela ficou um instante totalmente imóvel e aí, de repente, se jogou de joelhos para o corpo inanimado.

— Andrew! — bradou, desesperada. — Andrew! Volte pra mim! Andrew... volte... volte!

A voz ecoou no silêncio. Subitamente toquei no braço de Settle.

— Olhe! — disse eu.

Um leve indício de cor tinha surgido no rosto do afo­gado.  Auscultei-lhe o coração.

— Continue com a respiração — exclamei. — Ele está voltando a si!

Agora os segundos pareciam voar. Num período de tempo maravilhosamente curto, os olhos dele se abriram.

Foi então que, bruscamente, percebi a diferença. Aque­les ali eram olhos inteligentes, humanos...

Pousaram em Phyllis.

— Oi, Phil — murmurou, quase sem forças. — É você? Pensei que só fosse chegar amanhã.

Ela ainda não se animava a falar, mas sorriu-lhe. Ele olhou em torno, cada vez mais espantado.

— Mas, escute aqui, onde é que eu estou? E... como me sinto mal!  Que me aconteceu? Olá, Dr. Settle!

— Você quase se afogou... foi isso que lhe aconteceu — explicou Settle, carrancudo.

Sir Andrew fez uma careta.

— Sempre ouvi dizer que a sensação depois era me­donha! Mas como vim parar aqui? Algum ataque de so­nambulismo?

Settle sacudiu a cabeça.

— Temos que levá-lo para casa — disse eu, dando um passo à frente.

Ele me olhou fixamente e Phyllis me apresentou.

— O Dr. Carstairs, que está hospedado aqui.

Nós o levantamos e nos dirigimos à casa. De repente ergueu a cabeça, como se lhe tivesse ocorrido uma idéia.

— Escute aqui, doutor, isto não vai me atrapalhar pro dia doze, vai?

— Dia doze? — retruquei, hesitante, — você quer dizer doze de agosto?

— É... sexta-feira que vem.

— Hoje é quatorze de setembro — disse Settle brus­camente.

O espanto dele era flagrante.

— Mas... mas eu pensava que fosse oito de agosto?! Então devo ter andado doente?

— Sim — atalhou logo Phyllis, com aquela voz suave, — você esteve muito doente.

Ele franziu a testa.

— Não posso entender. Ontem à noite, quando fui dor­mir, me sentia perfeitamente bem...  só que não foi ontem, lógico. Mas tive um sonho. Eu me lembro que sonhei... — A testa se franziu ainda mais, enquanto ele puxava pela memória. — Uma coisa...  o que era mesmo?... uma coisa horrível... que alguém tinha feito pra mim... e fiquei fu­rioso... desesperado... E então sonhei que era um gato... é, um gato! Engraçado, não é? Mas o sonho não foi nada engraçado. Foi mais... medonho! Só que não consigo me lembrar direito. Mal começo a pensar, tudo se vai.

Pus a mão no seu ombro.

— Não procure pensar, Sir Andrew — aconselhei grave­mente. — Contente-se em... esquecer.

Olhou-me intrigado e concordou com a cabeça. Ouvi Phyllis soltar um suspiro de alívio.    Tínhamos chegado à casa.

— Por falar nisso — perguntou Sir Andrew de repente, — onde está minha mãe?

— Ela tem andado... doente — respondeu Phyllis, de­pois de uma pequena pausa.

— Ah!  Coitada! — A voz revelava autêntica preocupa­ção. — Onde está ela? Lá no quarto?

— É — disse eu, — mas é melhor não ir pertur...

As palavras me morreram na boca. A porta da sala de visitas se abriu e Lady Carmichael, envolta num roupão, sur­giu no vestíbulo.

Fixou os olhos em Andrew e, se algum dia já vi um olhar de terror absoluto, carregado de culpa, foi o dela. Seu rosto nem parecia humano de tão apavorado que estava. Pôs a mão na garganta.

Andrew se adiantou para ela, com expansividade infantil.

— Olá, mãe! Então, também andou doente? Puxa vida, que pena que me dá.

Ela recuou, arregalando os olhos. Aí, de repente, com o grito lancinante de uma alma penada, caiu de costas pela porta aberta.

Corri e me debrucei sobre ela, e depois fiz sinal para Settle se aproximar.

Não diga nada— pedi. — Leve-o discretamente lá para cima e volte aqui.   Lady Carmichael está morta.

Ele desceu em questão de minutos.

— Que foi? — perguntou. — De que ela morreu?

— De susto — respondi, implacável. — Do susto de ver Andrew Carmichael, o verdadeiro Andrew Carmichael, nova­mente vivo! Ou talvez você, como eu, prefira interpretar como um castigo divino!

— Quer dizer... — Hesitou.

Olhei-o bem nos olhos para que compreendesse.

— Uma vida em troca de outra — expliquei, de modo significativo.

— Mas...

— Sim, eu sei que um acidente estranho e imprevisto permitiu que o espírito de Andrew Carmichael voltasse ao seu corpo. O que não impede que Andrew Carmichael tenha sido assassinado.

Ele me olhou, meio a medo.

— Com ácido prússico? — perguntou em voz baixa.

— É — respondi, — com ácido prússico.

Settle e eu nunca divulgamos nossa opinião sobre o caso. Duvido muito que alguém fosse acreditar. Segundo o ponto de vista ortodoxo, Andrew Carmichael teve simplesmente um ataque de amnésia, Lady Carmichael feriu a própria garganta num acesso de loucura passageira e a aparição do Gato Cin­zento foi mera imaginação.

Mas existem dois fatos a meu ver incontestáveis. Um é a cadeira rasgada no corredor. O outro é ainda mais signi­ficativo. Encontrou-se um catálogo da biblioteca que, depois de busca exaustiva, provou que o volume desaparecido era uma obra antiga e curiosa sobre as possibilidades da meta­morfose de seres humanos em animais!

Mais uma coisa. Folgo em dizer que Andrew não sabe de nada. Phyllis guardou o segredo daquelas semanas no fundo do seu coração e tenho certeza de que jamais irá revelá-lo ao marido que tanto ama e que voltou à vida atendendo ao apelo da voz dela.

 

O CHAMADO DAS ASAS

Silas Hamer escutou-o pela primeira vez numa gélida noite de fevereiro. Vinha caminhando com Dick Borrow, de volta de um jantar oferecido pelo neurologista Bernard Seldon, e como Borrow se mostrasse excepcionalmente calado, Silas Hamer perguntou-lhe com certa curiosidade em que es­tava pensando. A resposta de Borrow foi inesperada.

— Eu estava pensando que, de todos aqueles homens reunidos lá hoje à noite, apenas dois poderiam afirmar que são felizes. E que esses dois, por estranho que pareça, somos eu e você!

A expressão “por estranho que pareça” era adequada, pois não poderia haver duas pessoas mais diferentes que Richard Borrow, o ativo pároco dos bairros proletários, e Silas Hamer, o sujeito untuoso e complacente, cujos milhões constituíam um fato de notoriedade pública.

— Engraçado — ponderou Borrow. — Sabe que você é o único milionário feliz que conheço?

Hamer ficou um instante calado. Quando tornou a fa­lar, tinha mudado de tom.

— Já fui um mísero moleque que vendia jornais tiri­tando de frio. Vivia sonhando com o conforto e o luxo que a riqueza poderia me proporcionar, e que hoje tenho... mas não com o poder que me traria. Eu queria ter dinheiro, não para usar como uma força, mas para esbanjar à vontade... comigo mesmo! Você vê como sou franco. O dinheiro não compra tudo, dizem. É a pura verdade. Mas eu posso com­prar tudo o que eu quero... portanto, dou-me por satisfeito. Sou materialista, Borrow, um rematado materialista.

A claridade da rua bem iluminada confirmava essa pro­fissão de fé. As linhas nédias do corpo de Silas Hamer estavam ampliadas pelo grosso casacão forrado de peles e a luz branca ressaltava-lhe as dobras da papada. A seu lado, Dick Borrow formava um contraste marcante com seu rosto magro de asceta e olhar fanático de vidente.

— Quem eu não consigo entender é você — disse Hamer com ênfase.

Borrow sorriu.

— Eu vivo no meio da miséria, da indigência, da fome... de todas as calamidades físicas! E uma Visão suprema me preserva. Não é fácil de entender, a menos que se acredite em Visões, o que não me parece que seja o seu caso.

— Não — disse Silas Hamer, impassível. — Eu não acredito em nada que não possa ver, ouvir e tocar.

— Justamente. Eis aí a diferença entre nós dois. Bem, adeus, porque agora a terra vai me tragar!

Tinham chegado à porta iluminada de uma estação do metrô que fazia a rota da casa de Borrow.

Hamer continuou andando sozinho. Sentia-se satisfeito por ter mandado o carro embora, preferindo voltar a pé para casa. O ar estava revigorante e gélido, tornando-o deliciosa­mente cônscio da proteção quente do casacão forrado de pele.

Parou um pouco na beira da calçada antes de cruzar a rua. Um enorme ônibus vinha se aproximando pesadamente. Hamer, com a sensação de dispor de uma infinidade de tem­po, esperou que passasse. Se fosse atravessar na frente dele, teria que se apressar — coisa que detestava fazer.

A seu lado, um verdadeiro escombro da raça humana, cambaleando de bêbado, caiu na sarjeta. Hamer ouviu um grito, a inútil freada do ônibus, e depois — ficou olhando feito idiota, com um horror cada vez maior, para um monte flácido de trapos inertes no meio da rua.

Como por passe de mágica, formou-se logo uma aglomeração de gente, tendo por núcleo dois guardas e o motorista do ônibus. Mas os olhos de Hamer continuaram cravados, em mórbida fascinação, naquela trouxa inanimada que já tinha sido um homem — um homem que nem ele! Estremeceu como se estivesse diante de uma ameaça.

— Não precisa ficar com remorso, chefe — comentou um sujeito de aspecto rude a seu lado. — O senhor não podia fazer nada. Esse cara já estava condenado mesmo.

Hamer olhou-o fixamente. A idéia de que lhe fosse pos­sível, de alguma maneira qualquer, salvar o homem, sinceramente, nunca lhe havia passado pela cabeça. Repeliu-a como absurda. Ora, se tivesse sido tão tolo assim, a essas horas talvez estivesse... Interrompeu bruscamente o raciocínio e afastou-se da multidão. Sentia-se tomado de um pavor inde­finido, sem fim. E viu-se forçado a admitir que estava com medo — com um medo horrível — da Morte — da Morte que vinha, com horrenda rapidez e implacável certeza, tanto para os ricos como para os pobres...

Acelerou o passo, mas aquele medo inédito não o aban­donava, estrangulando-o com suas gélidas garras.

Ficou admirado de si mesmo, pois sabia, por índole, não ser covarde. Há cinco anos, refletiu, não teria sentido este medo. Porque naquela época a Vida não lhe era ainda tão doce... Sim, eis aí a explicação, a chave do mistério: o apego à Vida. Estava no auge do prazer de viver, que só conhecia uma ameaça — a Morte destruidora!

Afastou-se da rua iluminada. Uma passagem estreita, entre altos muros, oferecia um atalho para a praça onde fi­cava sua residência, famosa pelos tesouros artísticos que continha.

O barulho das ruas movimentadas atrás dele começou a diminuir, até se perder na distância. A única coisa que ouvia agora era o som abafado dos próprios passos.

E aí então, das trevas à sua frente, chegou-lhe outro. Um homem sentado no chão, junto ao muro, tocava flauta. Naturalmente fazia parte do vasto clã de músicos ambulan­tes, mas por que teria escolhido um lugar tão estranho como aquele ali? Ainda mais que a esta hora da noite a polícia... Hamer interrompeu de repente o pensamento ao perceber, com um choque, que o homem não tinha pernas. A seu lado havia um par de muletas encostado no muro. E agora Hamer via que não era flauta que ele tocava, mas um instru­mento esquisito, cujas notas saíam muito mais agudas e níti­das que as de uma flauta.

O homem continuou tocando, sem fazer caso da aproxi­mação de Hamer, com a cabeça bem jogada para trás, como se estivesse enlevado com a própria música, extraindo notas claras e jubilosas, cada vez mais altas...

Era uma melodia estranha — a rigor não chegava a ser uma melodia, apenas uma única frase musical, um pouco no estilo do pequeno grupeto de notas executado pelos violentos em Rienzi, repetido sem cessar, mudando sempre de tom, variando de harmonia, crescendo mais e mais, até atin­gir uma liberdade completa e infinita.

Não lembrava nenhuma música que Hamer conhecesse. Possuía qualquer coisa de estranho, de sugestivo — de ins­pirado... aquilo... Agarrou-se freneticamente com as duas mãos a uma saliência do muro a seu lado. Só tinha cons­ciência de uma coisa — que precisava se firmar no chão — a qualquer preço, precisava se firmar no chão...

De repente percebeu que a música havia parado. O ho­mem sem pernas estendeu o braço para pegar as muletas. E ali estava ele, Silas Hamer, segurando-se feito doido num contraforte de pedra, pela simples razão de que lhe tinha vindo a idéia totalmente grotesca — absurda, pensando bem — de que ia se erguer do chão — de que a música o estava levando pelos ares...

Riu. Que idéia completamente maluca! Claro que seus pés jamais, por um instante sequer, haviam deixado a terra firme, mas que alucinação mais estranha! O rápido taque--taque da madeira batendo na calçada indicou-lhe que o alei­jado estava indo embora. Ficou olhando até que o vulto do homem se perdeu nas trevas. Que tipo esquisito!

Seguiu adiante mais devagar. Não conseguia tirar da memória a lembrança daquela sensação estranha, inadmis­sível, de que o chão tinha sumido sob seus pés. . .

E então, num impulso súbito, virou-se e tomou às pres­sas a direção em que o outro desaparecera. O sujeito não podia ter ido muito longe — logo o alcançaria.

Mal avistou o vulto mutilado sacudindo-se lentamente pela rua, gritou:

— Ei! Espere aí.

O sujeito parou e ficou imóvel até que Hamer chegasse perto. Um lampião aceso pouco acima de sua cabeça reve­lava-lhe todos os traços. Silas Hamer levou uma surpresa que lhe cortou a respiração. O aleijado possuía a cabeça mais extraordinariamente bela que jamais tinha visto. Impos­sível precisar-lhe a idade. Sem dúvida já não era criança, mas sua característica predominante era a Juventude — uma juventude e uma vitalidade simplesmente impressionantes!

Hamer encontrou uma estranha dificuldade para começar a conversa.

— Escute aqui — disse, sem jeito. — Eu queria saber... que negócio era aquele que você estava tocando agorinha mesmo?

O sujeito sorriu... de um modo que de repente o mundo parecia se inundar de alegria...

Era uma velha melodia — uma melodia antiqüissima... De muitos anos, de séculos atrás.

Falava de uma maneira extraordinariamente clara, com uma elocução impecável, imprimindo o mesmo valor a todas as sílabas. Lógico que não podia ser inglês, mas Hamer não atinava com a sua nacionalidade.

— Você não é inglês, não é? De onde você veio?

De novo aquele sorriso aberto, cheio de alegria.

— Do além-mar, moço. Vim há muito tempo... há muitíssimo tempo.

— Deve ter sofrido um grave acidente. Foi recente?

— Já faz algum tempo, moço.

— Que azar perder as duas pernas.

— Que se há de fazer? — retrucou o sujeito, na maior calma. Fixou os olhos com estranha solenidade no seu inter­locutor. — Foi maldade deles.

Hamer largou um shilling na mão dele e se afastou. Estava intrigado e vagamente inquieto. “Foi maldade deles!” Que expressão mais curiosa! Evidentemente referia-se a uma operação para alguma espécie de doença, mas — como tinha soado estranha.

Hamer chegou em casa pensativo. Procurou em vão es­quecer o incidente. Deitado na cama, já com a sensação incipiente de sonolência, ouviu um relógio da vizinhança dar uma hora. Uma nítida pancada e depois o silêncio — interrompido por um ruído levemente familiar... Identificou-o logo. O coração de Hamer começou a bater depressa. Era o sujeito que tocava na rua, não muito longe dali...

As notas vinham jubilosas, o lento grupeto com seu apelo à alegria, a mesma frase curta, obsessiva...

— Que coisa mais fantástica — murmurou Hamer; — é incrível. Parece que tem asas...

Cada vez mais claras, mais agudas — as ondas se suce­dendo, superpostas, até atingi-lo. Desta vez não relutou: deixou-se arrastar... Foi subindo — subindo... levado por aquelas ondas sonoras, cada vez mais alto... Triunfantes e livres, elas o empolgavam.

Cada vez mais agudas... já ultrapassavam os limites do som humano, mas ainda continuavam — subindo mais, e mais, e mais... Alcançariam a meta final, a culminância perfeita?

Subindo...

Havia alguma coisa puxando — puxando-o para baixo.Uma coisa enorme, pesada e insistente. Puxava-o inexoravel­mente — para trás, e para baixo... para baixo...

Estava deitado na cama olhando a janela oposta. Depois, ofegando muito, penosamente, estendeu o braço. O movi­mento pareceu-lhe singularmente incômodo. A maciez da cama lhe era opressiva, assim como as pesadas cortinas da ja­nela que impediam a passagem da claridade e do ar. Parecia que o teto ia esmagá-lo. Sentia-se sufocado, asfixiado. Mexeu--se de leve sob as cobertas e teve impressão de que o peso do seu corpo era o que mais o oprimia...

 

— Preciso de um conselho, Seldon.

Seldon recuou sua cadeira alguns centímetros da mesa. Já fazia certo tempo que se perguntava qual o propósito desse jantar a dois. Quase não tinha falado com Hamer desde o inverno e nessa noite havia percebido uma mudança inde­finível no amigo.

— É apenas o seguinte — disse o milionário. — Ando preocupado comigo mesmo.

Seldon sorriu, olhando para o outro lado da mesa.

— Você está com um aspecto ótimo.

— Não se trata disso. — Hamer fez uma pausa e acres­centou, bem calmo: — Acho que estou ficando louco.

O neurologista levantou a cabeça, subitamente interes­sado. Serviu-se de um cálice de vinho do porto, num gesto meio lento, e depois perguntou tranqüilamente, mas com o olhar fixo no amigo:

— Por que você acha isso?

— Por causa de uma história que me aconteceu. Uma história inexplicável, incrível. Não pode ser verdade, por­tanto devo estar enlouquecendo.

— Não se afobe — disse Seldon, — e me conte tudo.

— Eu não acredito no mundo sobrenatural — começou Hamer. — Nunca acreditei. Mas essa história... Bem, é melhor eu contar tudo desde o princípio. A coisa teve início no inverno passado, numa noite depois que vim jantar aqui com você.

E com poucas e concisas palavras, descreveu os inciden­tes do percurso que tinha feito a pé até a casa e a estranha continuação.

— Foi aí que começou tudo. Não sei direito como explicar a você... a sensação, quero dizer...  mas era mara­vilhosa! Diferente de tudo que já senti ou sonhei. Pois desde então nunca mais parou. Não todas as noites, apenas de vez em quando. A música, a sensação de estar sendo levado pelos ares, o vôo sublime... e depois aquela resistência ter­rível, a impressão de estar sendo puxado de volta para a terra, e finalmente a dor, a dor física, palpável, do despertar. Que nem quando se desce de uma montanha muito alta, sabe? Aquela dor que a gente sente no ouvido. Pois essa é a mesma coisa, só que mais intensa, trazendo uma sen­sação horrível de peso... de enclausuramento, de asfixia...

A voz sumiu e ele fez uma pausa.

— Os empregados já pensam que estou louco. Não pude suportar mais o telhado e as paredes — mandei arrumar um quarto na parte de cima da casa, a céu descoberto, sem nada de móveis, tapetes ou outras coisas sufocantes... Mas mes­mo lá as casas vizinhas me causam quase o mesmo efeito. O que eu preciso é de campo aberto, um lugar onde possa respirar... — Olhou para Seldon no outro lado da mesa. — Então, o que é que você diz? Acha que dá pra explicar?

— Hum — fez Seldon. — Explicação é o que não falta. Você se deixou hipnotizar por alguém ou por si mesmo. Ficou com os nervos abalados. Inclusive pode ter sido apenas sonho.

Hamer sacudiu a cabeça.

— Essas explicações não me servem.

— Mas existem outras também — disse Seldon, hesi­tante, — só que via de regra ninguém admite.

— Você está pronto a admiti-las?

— De modo geral, sim! Há uma porção de coisas que não conseguimos entender e que são, normalmente, inexpli­cáveis.    Fora as que ainda não se sabe, o que me leva a crer que a gente deve manter o espírito aberto.

— Que me aconselha a fazer? — perguntou Hamer, depois de um silêncio.

Seldon inclinou-se vivamente para a frente.

— Para começar, vá-se embora de Londres e procure o seu “campo aberto”. Talvez os sonhos terminem.

— Não posso fazer isso — retrucou Hamer logo. — A coisa chegou a tal ponto que não posso passar sem eles. Nem quero.

— Ah! eu já imaginava. Outra alternativa é encontrar o tal sujeito, o aleijado. Você já lhe atribui tudo quanto é espécie de poderes sobrenaturais. Fale com ele. Desfaça o quebranto.

Hamer sacudiu de novo a cabeça.

— Por que não?

— Tenho medo — respondeu, simplesmente.

Seldon fez um gesto de impaciência.

— Não acredite tão cegamente nessas coisas! A tal me­lodia, o ponto de partida pra tudo, como é que é?

Hamer cantarolou-a e Seldon escutou com uma carranca intrigada.

— Meio que lembra um trecho da abertura de Rienzi. Tem qualquer coisa que anima a gente... como se tivesse asas. Mas não deu pra me arrancar do chão! Agora, quanto aos tais vôos que você já teve, são todos exatamente iguais?

— Não, nada disso. — Hamer inclinou-se entusiasmado para a frente. — Eles se expandem. Cada vez enxergo mais coisas. É difícil de explicar. Sabe, sempre me parece que vou chegar a uma determinada altura — para onde a música me transportou — não de maneira direta, mas por uma suces­são de ondas, cada qual ultrapassando a outra, até o ponto mais alto que posso atingir. Aí eu fico lá até ser arrastado de volta. Não se trata de um lugar, é mais uma sensação. No início, quer dizer, depois de certo tempo, comecei a me dar conta de que havia outras coisas ao meu redor esperando que pudesse percebê-las. Veja um gato, por exemplo. Ele tem olhos, mas quando nasce não enxerga nada. É cego e precisa aprender a ver. Pois foi o que me aconteceu. Meus olhos e ouvidos mortais não me serviram pra nada, mas no­taram algo que ainda não era flagrante — algo que ainda não possuía forma. E que aos poucos foi crescendo... cau­sando sensações de luz... depois de som... e cor... Tudo muito vago e indefinido. Eu tinha mais a consciência de que aquilo existia do que propriamente via ou ouvia. Primei­ro vinha uma luz, uma luz que ficava cada vez mais forte e nítida... depois areia, grandes extensões de areia avermelhada... e, aqui e ali, cursos de água retos, compridos, como canais...

Seldon prendeu logo a respiração.

— Canais! Que interessante. Continue.

— Mas essas coisas não interessavam — não tinham mais importância. O que valia era o que eu ainda não podia ver... mas já ouvia... Um som semelhante ao ruflar de asas. Não sei por que, não dá para explicar, mas era uma maravilha! Não existe nada no mundo igual àquilo. E de­pois aconteceu outra maravilha... eu vi, afinal... as Asas! Ah, Seldon, as Asas!

— Mas o que era? Homens... anjos... pássaros?

— Sei lá. Ainda não deu pra distinguir. Mas a cor que elas tinham! Cor de asa... aqui não existe... uma cor fantástica.

— Cor de asa? — repetiu Seldon. — Como é que é?

Hamer jogou as mãos para cima, impaciente.

— Você acha que dá pra explicar? Seria o mesmo que tentar descrever o azul para uma pessoa cega! É uma cor que você nunca viu... cor de asa!

— E depois?

— Depois?   Mais nada. Só cheguei até aí. Mas a volta fica cada vez pior... mais penosa. Não consigo entender o motivo. Tenho certeza de que meu corpo nunca sai da cama E que na altura aonde eu chego não possuo presença física. Por que, então, sinto o corpo dolorido dessa maneira tão confusa?

Seldon sacudiu a cabeça, calado.

— A volta... é uma coisa horrível. O puxão que eu sinto... depois a dor, a dor em todos os membros e nervos, meus ouvidos dão impressão de que vão arrebentar. Por fim tudo me oprime, me pesa, me vem uma sensação medonha de enclausuramento. Preciso de luz, de ar, de espaço — prin­cipalmente de espaço para respirar! E preciso de liberdade.

— E que fim levaram todas as outras coisas que tanto o interessavam? — perguntou Seldon.

— Isso é que é pior. Eu continuo tão interessado nelas como antes. Senão mais ainda. E essas coisas, o conforto, o luxo, o prazer, parece que entram em conflito com as Asas. Há uma luta permanente entre elas... e só quero ver como é que isso vai terminar.

Seldon ficou calado. A estranha história que acabava de ouvir era, de fato, bastante incrível. Seria tudo ilusão, uma alucinação desvairada — ou haveria qualquer possibilidade de que fosse verdade? E nesse caso, por que logo com Hamer...? Não resta dúvida de que o materialista, o ho­mem que preza a carne e renega o espírito, é a última pessoa que a gente supõe capaz de ter visões de um outro mundo.

Do lado oposto da mesa, Hamer o observava, ansioso.

— Eu acho — disse Seldon, hesitante, — que a única coisa que você pode fazer é esperar. Pra ver o que acontece.

— Não posso! Estou lhe dizendo que não posso! Essa sua opinião prova que você não entendeu. Isso está me ras­gando pelo meio, essa luta horrenda... mortal, interminável, entre... entre... — Vacilou.

— Entre a carne e o espírito? — sugeriu Seldon.

Hamer baixou os olhos e fixou-os na mesa.

— Acho que a gente pode lhe dar esse nome.  Seja como for, é insuportável... Não consigo me livrar...

Bernard Seldon tornou a sacudir a cabeça. Sentia-se preso nas garras do inexplicável. Fez outra sugestão.

— Eu, se fosse você — aconselhou — procurava o tal aleijado.

Mas enquanto ia para casa, murmurou consigo mesmo:

— Canais... não sei, não.

 

Silas Hamer saiu de casa na manhã seguinte com uma nova determinação no modo de andar. Resolvera seguir o conselho de Seldon e encontrar o homem sem pernas. No íntimo, porém, estava convencido de que a busca seria infru­tífera e que o sujeito havia desaparecido por completo, como se a terra o tivesse tragado.

Os prédios escuros de ambos os lados da viela impediam a passagem do sol, tornando-a sinistra e misteriosa. Só num ponto, na metade do caminho, existia uma brecha no muro, por onde caía um jorro de luz dourada que iluminava com fulgor um vulto sentado no chão. O vulto... sim, era o sujeito!

O instrumento parecido com flauta estava encostado no muro, ao lado das muletas, e ele fazia desenhos nas pedras do calçamento com giz colorido. Já tinha completado duas maravilhosas e delicadíssimas cenas bucólicas, com árvores ondulantes e um córrego que pareciam vivos.

Hamer ficou novamente em dúvida. Seria um simples músico ambulante, um desenhista de calçadas? Ou se tra­tava de algo bem diferente...?

De repente o milionário perdeu a paciência e gritou, veemente e irritado:

— Quem é você?   Afinal, quem é você?

O outro olhou bem para ele e sorriu.

— Por que não responde? Fale, rapaz, fale!

Então reparou que o sujeito estava desenhando com in­crível rapidez numa laje em branco. Hamer acompanhou-lhe os movimentos com os olhos... Alguns traços largos, e surgiram árvores gigantescas. Depois, sentado num bloco de pedra... um homem... tocando um instrumento pare­cido com flauta. Um homem de rosto estranhamente belo — e patas de bode...

A mão do aleijado fez um movimento brusco. O homem continuou sentado na pedra, mas as patas de bode desapare­ceram. Tornou a fixar os olhos em Hamer.

— Foi maldade deles — disse.

Hamer arregalou os olhos, fascinado. Porque o rosto que tinha diante de si era o mesmo do desenho, só que, de maneira incrível, estranha, ainda mais belo. Purificado por uma intensa e requintada alegria de viver.

Hamer se virou e saiu quase correndo viela afora, em busca da luz do sol, repetindo sem cessar:

— Não é possível. Não é possível... Eu enlouqueci... estou sonhando!

Mas não conseguia esquecer aquele rosto — o rosto de Pã...

Chegou à praça e sentou num banco. Era uma hora deserta. Algumas babás seguravam crianças no colo à som­bra das árvores e, feito ilhas esparsas no mar, pontilhando as extensões de grama, viam-se as formas reclinadas dos desocupados...

As palavras “um vagabundo desprezível” representavam para Hamer o supra-sumo da miséria. Mas agora, de re­pente, sentia inveja deles...

Parecia-lhe que, de todos os seres vivos, eram os únicos verdadeiramente livres. A terra a seus pés, o céu lá no alto, o mundo inteiro para perambular... não estavam enclausu­rados nem acorrentados.

Então ocorreu-lhe, como um raio, que o que o prendia de modo tão inexorável era justamente aquilo que mais idola­trava e prezava acima de tudo — a riqueza! Ele a tinha imaginado como a coisa mais consistente do mundo, e agora. preso a suas correntes de ouro, percebia a verdade de suas próprias palavras. Era o seu dinheiro que o mantinha cativo. . .

Mas era? Seria mesmo? Não existiria uma verdade mais profunda e evidente de que ainda não se havia dado conta? Era o dinheiro ou o amor que ele sentia pelo di­nheiro? Estava preso aos grilhões que ele próprio escolhera; e a corrente não era a riqueza em si, mas o amor que sentia por ela.

Agora via claramente quais eram as duas forças que o estavam dilacerando pelo meio: aquela cálida conjuntura materialista que o envolvia e cercava, e, do lado oposto, o apelo nítido, imperioso — do que resolveu denominar de Chamado das Asas.

E enquanto um lutava com unhas e dentes, o outro des­prezava a guerra, não se rebaixando a pelejar. Apenas cha­mava — chamava sem parar... E ele ouvia com tamanha nitidez que quase distinguia as palavras.

— Não podemos entrar num acordo — pareciam dizer. — Porque eu estou acima de tudo. Se você obedecer ao meu chamado, terá que abdicar de tudo e romper as forças que o retêm. Porque só os Livres poderão chegar aonde eu levo.. .

— Não posso — exclamou Hamer. — Não posso... Algumas pessoas se viraram para olhar aquele homen­zarrão ali sentado, falando sozinho.

Pediam-lhe, portanto, um sacrifício, o sacrifício daquilo que lhe era mais caro, que fazia parte de si mesmo.

Parte de si mesmo — e então lembrou-se do homem sem pernas...

 

— Céus, que ventos o trazem por aqui? — exclamou Borrow.

E, de fato, Hamer estava pouco familiarizado com o am­biente daquela missão religiosa do East End.

— Já escutei uma porção de sermões — respondeu o milionário, — todos dizendo o que vocês fariam, se dispuses­sem de fundos. Vim apenas lhe dizer o seguinte: pode con­tar comigo.

— Quanta generosidade — disse Borrow, meio surpreso. — Quer fazer um grande donativo, então?

Hamer sorriu, irônico.

— Creio que sim. Praticamente tudo o que tenho.

— Quê?

De um modo brusco e eficiente, Hamer explicou os de­talhes. A cabeça de Borrow estava girando.

— Quer... quer dizer que você vai doar toda a sua fortuna para ser empregada em benefício dos pobres do East End, nomeando-me seu curador?

— Exatamente.

— Mas por quê... por quê?

— Não posso explicar — disse Hamer, hesitante. — Lembra daquela conversa que tivemos em fevereiro a respeito de visões?  Pois eu tive uma.

— Que maravilha!

Borrow curvou-se para a frente, os olhos brilhando.

— Não há nada de especialmente maravilhoso nisso — retrucou Hamer, mal-humorado. — Pouco estou ligando para a pobreza do East End. A única coisa que lhes falta é coragem! Eu fui bem pobre... e dei um jeito de sair da miséria. Mas preciso me ver livre do dinheiro e não quero que ele caia nas mãos dessas sociedades idiotas. Você é um cara em quem posso confiar. Alimente corpos e almas com ele... de preferência nessa ordem, porque eu sei o que é passar fome, mas faça o que você quiser.

— Nunca vi coisa igual — balbuciou Borrow.

— O negócio já está pronto e decidido — continuou Hamer. — Os advogados finalmente acertaram os detalhes e já assinei tudo. Você não imagina como andei ocupado du­rante estes últimos quinze dias. Livrar-se de uma fortuna é quase tão difícil quanto ganhá-la.

— Mas você... não ficou com coisa alguma?

— Nem um níquel — respondeu Hamer, todo alegre. — Ao menos...  não é bem verdade.   Ainda tenho duas moedas no bolso.

E deu uma risada.

Despediu-se do amigo espantado e saiu da missão, cami­nhando pelas ruas estreitas e mal-cheirosas. As palavras que acabava de dizer com tanta alegria voltaram-lhe com uma do­lorosa sensação de perda. “Nem um níquel!” De toda a sua vasta fortuna, não havia guardado nada. Agora sentia medo — medo da pobreza, da fome e do frio. O sacrifício, para ele, não tinha encanto.

Mas no fundo estava cônscio de ter-se livrado do peso e da ameaça que pairavam sobre ele. Já não se sentia opri­mido nem preso. O rompimento das correntes fora obtido à custa de cauterizações e dilaceramentos, mas a visão da liber­dade estava ali mesmo para fortalecê-lo. Suas necessidades materiais talvez atenuassem o Chamado, mas não poderiam amortecê-lo, pois ele sabia que era uma coisa imortal que jamais morreria.

Havia no ar um toque de outono e o vento soprava gé­lido. Sentiu frio e estremeceu, e depois, também, estava com fome — se esquecera de almoçar. Aquilo representava uma amostra do futuro que o aguardava. Era incrível que tivesse desistido de tudo: da tranqüilidade, do conforto, do calor! Seu corpo bradava, em vão... Mas de repente tornou a sen­tir aquela grata e estimulante sensação de liberdade,

Hamer hesitou. Encontrava-se perto de uma estação do metrô. Tinha duas moedas no bolso. Veio-lhe a idéia de tomar o trem para ir até o parque, onde havia visto os desocupados reclinados na grama, quinze dias atrás. Além dessa extravagância, não possuía planos para o futuro. Ago­ra acreditava piamente que estivesse louco — gente sã não agia como ele tinha agido. Mas, nesse caso, a loucura era uma coisa maravilhosa e sensacional.

É, agora iria para o campo aberto do parque, e havia um significado especial no fato de ir até lá pelo metrô. Por­que o metrô para ele significava todos os horrores da vida enterrada, enclausurada... Sairia lá do fundo daquele apri­sionamento para a liberdade do amplo gramado e das ár­vores que ocultavam a ameaça das casas opressoras.

A escada rolante levou-o rápida e inexoravelmente para baixo. O ar estava abafado e inerte. Postou-se na extremi­dade oposta da plataforma, longe da massa de gente. À sua esquerda ficava a abertura do túnel, de onde o trem não tardaria a sair feito cobra. Sentiu que o lugar todo irradiava uma maldade sutil. Não havia ninguém perto dele, a não ser um rapaz encolhido num banco, mergulhado, aparentemente, em estupor alcoólico.

Ao longe ouviu-se o leve ronco ameaçador do trem. O rapaz se levantou e veio arrastando os pés, cambaleante, para o lado de Hamer, e parou na beira da plataforma, olhando para o túnel.

Aí então — aquilo aconteceu tão rápido a ponto de pa­recer quase incrível — perdeu o equilíbrio e caiu...

Cem idéias cruzaram, simultaneamente, pela cabeça de Hamer. Lembrou-se de um monte de trapos confusos atro­pelado por um ônibus e ouviu uma voz rouca dizendo: “Não precisa ficar com remorso, chefe. O senhor não podia fazer nada.” E com isso se deu conta de que esta vida ali só po­dia ser salva, se o fosse, por ele mesmo. Não havia mais ninguém por perto e o trem vinha vindo... Tudo lhe ocorreu com a rapidez de um raio. Sentiu uma estranha e calma lucidez de raciocínio.

Teve um breve segundo para decidir. Sabia que naquele momento o seu pavor da morte continuava inquebrantável. Sentia um medo terrível. E depois — não seria uma espe­rança descabida?   Um desperdício inútil de duas vidas?

Para os espectadores, horrorizados, na outra extremidade da plataforma, pareceu não haver hiato entre a queda do rapaz e o pulo do homem atrás dele — e depois o trem, sur­gindo à toda velocidade na curva do túnel, impotente para frear a tempo.

Hamer pegou rapidamente o rapaz nos braços. Nenhum impulso natural de bravura o movia, seu corpo trêmulo não fazia mais que obedecer à ordem do espírito desconhecido que exigia o sacrifício. Com um último esforço, atirou o ra­paz para cima da plataforma, e deixou-se cair nos trilhos...

Aí então, de repente, perdeu todo o medo. O mundo material não mais o retinha. Estava livre dos grilhões. Por um instante, teve a impressão de ouvir a alegre flauta de Pã. Depois — mais perto e mais forte — sobrepujando todo o resto — veio o ruflar triunfante de inúmeras Asas... en­volvendo-o e fechando-se sobre ele...

 

FLOR DE MAGNÓLIA

Vincent Easton estava esperando sob o relógio de Victo­ria Station. De vez em quando erguia os olhos, inquietos, para os ponteiros. Pensou consigo mesmo: “Quantos ho­mens não esperaram aqui por uma mulher, que não apareceu?”

Sentiu uma pontada súbita. Suponhamos que Theo não viesse, que tivesse mudado de idéia? Isso é comum com as mulheres. Que certeza podia ter — que garantia ela lhe dera? Até que ponto a conhecia bem? Não o desconcertara desde o início? Parecia que existiam duas mulheres diferen­tes — aquela criatura linda, que gostava tanto de rir, ca­sada com Richard Darrell, e a outra silenciosa, cheia de mis­térios, com quem tinha passeado pelo jardim de Haymer’s Close. Igual a uma flor de magnólia — assim a imaginava — talvez porque fora à sombra de um pé de magnólia que ha­viam trocado o primeiro, arrebatado, incrédulo, beijo. O ar estava impregnado do perfume das flores e uma ou duas pé­talas, aveludadas, cheirosas, tinham caído de mansinho, pousando naquele rosto erguido, tão nacarado, macio e silente como elas. Flor de magnólia — exótica, perfumada, miste­riosa.

Isso tinha sido há duas semanas — no segundo dia que se haviam encontrado. E agora a esperava para ficar sem­pre em sua companhia. Tornou a sentir uma pontada de in­credulidade. Ela não viria. Como fora capaz de acreditar nisso? Implicava em abandonar tantas coisas. A bela Mrs. Darrell não podia se safar impunemente de uma situação dessas. Aquilo seria comentado como um prodígio, um es­cândalo de repercussões incalculáveis, que jamais ficaria es­quecido de todo. Existiam maneiras melhores, mais convenientes, de fazer uma coisa dessas — um divórcio discreto, por exemplo.

Mas nem tinham se lembrado disso — ele, ao menos, não tinha. E ela, teria? Como poderia saber, uma vez que ignorava por completo o que ela pensava? Havia-lhe pedido que fugissem quase a medo — pois, afinal de contas, quem era ele? Ninguém especial — um dos mil plantadores de la­ranja no Transval. Que vida que lhe oferecia — depois do esplendor de Londres! E no entanto, já que a queria tão desesperadamente, precisava pedir-lhe.

Ela consentira, tranqüilamente, sem hesitações nem pro­testos, como se ele estivesse pedindo a coisa mais simples do mundo.

— Amanhã? — tinha perguntado, espantado, quase não acreditando.

E ela lhe havia prometido que sim, com aquela voz suave, submissa, tão diferente do brilho risonho de sua con­duta em sociedade. Quando a enxergara pela primeira vez, comparara-a a um diamante — irradiando faíscas, refletindo a luz de cem facetas diversas. Mas naquele primeiro con­tato, naquele primeiro beijo, se transformara miraculosamen­te na suavidade velada de uma pérola — uma pérola nacarada, semelhante a uma flor de magnólia.

Ela lhe prometera. E agora esperava que cumprisse a promessa.

Olhou de novo o relógio. Se não viesse logo, perderiam o trem.

Sentiu-se invadido por uma onda de pessimismo. Ela não ia vir! Claro que não. Como fora tão bobo a ponto de con­tar com isso? Que significavam as promessas? Encontraria uma carta quando chegasse a casa — explicando, protestan­do, dizendo todas as coisas que as mulheres dizem ao se des­culpar pela falta de coragem.

Ficou irritado — e amargurado de frustração.

Então viu-a aproximar-se pela plataforma com um leve sorriso nos lábios. Caminhava devagar, sem pressa e sem agitação, como se tivesse toda a eternidade pela frente. Es­tava de preto — um vestido preto que modelava-lhe o cor­po — e um chapeuzinho que emoldurava a maravilhosa palidez nacarada do rosto.

Tomou-lhe a mão, murmurando feito idiota:

— Então você veio... você veio. Afinal!

— Lógico.

Como sua voz parecia calma! Calma!

— Pensei que não viria — disse, soltando-lhe a mão, ofegante.

Ela arregalou os olhos — grandes, lindíssimos, numa ex­pressão de assombro, o assombro ingênuo de uma criança.

— Por quê?

Não respondeu. Preferiu se virar e chamar um carrega­dor que passava por perto. Não dispunham de muito tem­po. Os poucos minutos restantes correram entre atropelos e confusão. Por fim sentaram no compartimento reservado e as casas tristes da parte sul de Londres começaram a des­filar diante deles.

 

Theodora Darrell estava sentada à sua frente. Finalmen­te era dele. E agora via quão incrédulo tinha sido até o último minuto. Não ousara acreditar. Deixara-se amedron­tar por aquela qualidade mágica, indefinível, que ela possuía. Parecia-lhe impossível que algum dia viesse a lhe pertencer.

Agora não havia mais suspense. O passo decisivo tinha sido dado. Olhou-a. Estava reclinada no canto, completa­mente imóvel, com aquele leve sorriso ainda nos lábios, oi olhos baixos, as longas pestanas negras pousadas na curva nacarada da face.

Pensou: “Em que estará pensando? Em mim? No ma­rido? O que é que ela acha dele, afinal? Será que nunca o amou? Será que o odeia ou simplesmente lhe é indiferen­te?” E, como uma ferroada, ocorreu-lhe a idéia: “Não sei. Jamais saberei. Eu a amo e não sei nada a seu respeito — nem o que pensa, nem o que sente.”

Concentrou os pensamentos em torno do marido de Theodora Darrell. Tinha conhecido uma porção de mulheres casadas que se mostravam sempre prontas a falar sobre os maridos — de como eram incompreendidas, de como ignora­vam seus sentimentos mais delicados. Vincent Easton refle­tiu cinicamente que esse era um dos métodos de conquista mais conhecidos.

Mas, a não ser casualmente, Theo nunca se referia a Richard Darrell. Easton sabia dele só o que era publicamen­te notório: um sujeito popular, bonito, simpático e despreocupado. Todo mundo gostava de Darrell. A esposa sempre parecera viver muito bem em sua companhia. O que nada provava, refletiu Vincent. Theo era uma moça fina — que não exporia suas mágoas em público.

E entre eles não se registrara nenhum comentário. Des­de aquela segunda noite que se tinham visto, quando passea­ram juntos pelo jardim, calados, roçando os ombros, e ha­via sentido o leve tremor que o contato provocava nela, não se mostrara disposta a explicações, a definir sua posição. Retribuíra-lhe os beijos, uma criatura muda, trêmula, des­pida de todo aquele brilho consistente que, aliado à sua be­leza imaculada, tinham-na tornado famosa. Jamais fizera uma referência ao marido. Na hora, Vincent ficou-lhe gra­to por isso. Como era bom encontrar uma mulher que não perdia tempo em provar a si mesma e ao amante que dispu­nham de motivos justos para se entregarem ao amor.

Mas agora aquela secreta conspiração de silêncio o in­quietava. Voltava-lhe de novo a pavorosa sensação de nada saber a respeito dessa criatura estranha que estava pronta a unir sua vida à dele.   Sentia medo.

Com o intuito de se tranqüilizar, curvou-se para a frente e pousou a mão no joelho coberto pelo vestido preto no assento fronteiro. Tornou a perceber o leve tremor que a sacudiu e estendeu o braço para pegar-lhe a mão. Curvan­do-se mais, beijou-lhe demoradamente a palma. Sentiu a reação dos seus dedos. Levantando a cabeça, olhou-a nos olhos, e ficou contente.

Reclinou-se no banco. Por enquanto não queria mais nada. Estavam juntos. Ela era dele. Daí a pouco comen­tou num tom despreocupado, quase de brincadeira:

— Você está muito calada.

— Estou?

— Está, sim. — Esperou um instante, depois perguntou, mais sério: — Tem certeza de que não está... arrependida?

Os olhos dela se arregalaram.

— Claro que tenho!

Não duvidou da resposta. Existia por trás dela uma fir­meza de convicção.

— Em que está pensando? Gostaria de saber.

— Acho que estou com medo — respondeu ela, em voz baixa.

— Com medo?

— Da felicidade.

Então foi sentar-se ao lado dela e abraçou-a, beijando lheo rosto e o pescoço macios.

— Eu te amo — disse. — Te amo... te amo.

A resposta veio na entrega do corpo, na impetuosidade dos lábios.

Depois retornou ao lugar anterior. Pegou uma revista e ela fez o mesmo. De vez em quando, entreolhavam-se por cima da página. E então sorriam.

Chegaram a Dover logo depois das cinco. Teriam que pernoitar ali para atravessar o Canal da Mancha no outro dia de manhã. Theo entrou na sala do apartamento do ho­tel seguida por Vincent, que trazia na mão alguns jornais vespertinos que largou em cima da mesa. Dois criados do hotel trouxeram a bagagem e se retiraram.

Theo virou-se da janela onde havia ficado parada olhan­do para fora. No minuto seguinte estavam abraçados.

Ouviu-se uma batida discreta na porta. Separaram-se de novo.

— Que raiva — resmungou Vincent, — pelo visto nunca conseguiremos ficar sós.

Theo sorriu.

— Pois é — disse baixinho, e sentando-se no sofá pegou um dos jornais.

Era o garçom com o chá. Deixou-o sobre a mesa, pu­xando-a mais para perto do sofá onde Theo estava sentada; lançou um rápido olhar em torno, perguntou se não queriam mais nada e foi embora.

Vincent, que tinha ido até o quarto ao lado, voltou à sala.

— Vamos ao chá — disse, todo alegre, mas de repente parou no meio do caminho. — Que foi? — perguntou.

Theo havia dado um pulo do sofá. Olhava fixamente para a frente, com a fisionomia mortalmente pálida.

Vincent aproximou-se às pressas.

— Que é, meu bem?

Como resposta, ela lhe entregou o jornal, apontando a manchete com o dedo.

Vincent pegou-o.

— FALÊNCIA DE HOBSON, JEKYLL & LUCAS — leu.

O nome da grande firma londrina não lhe dizia nada, mas no fundo sentiu a irritante certeza de que devia ter al­gum significado para ela. Fitou Theo com uma expressão interrogativa.

— Richard é dono da Hobson, Jekyll & Lucas — ex­plicou ela.

— O seu marido?

— É

Vincent voltou ao jornal e leu cuidadosamente a lacôni­ca informação que trazia. Frases como “súbito colapso finan­ceiro”, “aguardam-se graves revelações”, “outras firmas atin­gidas”, produziram-lhe um efeito desagradável.

Um movimento súbito fez com que levantasse os olhos. Theo estava endireitando o chapeuzinho preto diante do es­pelho. Virou-se ao ouvir o barulho que ele tinha feito. Encarou-o com firmeza.

— Vincent... tenho que voltar para o Richard.

Ele saltou em pé.

— Theo... não seja absurda.

— Tenho que voltar para o Richard — repetiu, maqui­nalmente.

— Mas, minha querida...

Ela indicou o jornal caído no chão.

— Isso aí significa a ruína... a bancarrota. Não posso escolher justamente o dia de hoje para abandoná-lo.

— Você já o tinha abandonado antes de ouvir falar nisso. Seja razoável!

Sacudiu a cabeça, pesarosa.

— Você não compreende. Eu tenho que voltar para ele.

E nada conseguiu demovê-la. Estranho que uma criatu­ra tão meiga e dócil pudesse ser inflexível assim. Recusou-se a discutir. Deixou que ele dissesse tudo o que tinha a di­zer, sem interrompê-lo. Abraçou-a, procurando quebrar-lhe a força de vontade pela escravização dos sentidos, mas embo­ra seus lábios macios retribuíssem os beijos, sentiu nela qual­quer coisa arredia e inexpugnável que resistia a todos os rogos.

Por fim largou-a, farto e aborrecido de tanto esforço em vão. Dos rogos passou ao rancor, acusando-a de jamais tê-lo amado. Também isso ela ouviu em silêncio, sem pro­testos, enquanto o rosto, mudo e confrangedor, desmentia-lhe as palavras. Terminou dominado pela raiva, proferindo todas as crueldades que lhe ocorreram, só querendo feri-la para vê-la ajoelhada a seus pés.

Por fim calou-se: não havia mais nada a dizer. Sentou com a cabeça entre as mãos, de olhos fixos no tapete de pelo vermelho. Ao chegar à porta, Theodora parou, um vulto preto de rosto branco.

Estava tudo acabado.

— Adeus, Vicent — disse baixinho.

Ele não respondeu.

A porta se abriu — e depois se fechou.

 

Os Darrells moravam numa casa em Chelsea — uma casa de estilo antigo, curiosa, situada no meio de um jardin­zinho todo especial. Bem na frente da casa havia um pé de magnólia, coberto de fuligem, sujo, encardido, mas mesmo assim de magnólia.

Theo levantou os olhos para ele, parada no degrau da porta, cerca de três horas depois. Um sorriso súbito lhe des­fez o ricto amargo da boca.

Foi direto ao gabinete nos fundos da casa. Um homem caminhava de um lado para outro — um homem jovem, de rosto bonito e expressão desfigurada.

Soltou um suspiro de alívio ao vê-la entrar.

— Graças a Deus que você apareceu, Theo. Me disse­ram que você tinha levado toda a bagagem e ido não sei para que lugar fora da cidade.

— Eu soube da notícia e voltei.

Richard Darrell passou-lhe o braço pela cintura e pu­xou-a para o divã. Sentaram-se lado a lado. Theo desvenci­lhou-se do abraço de um modo que parecia perfeitamente natural.

— A situação é muito grave, Richard? — perguntou, serena.

— Tão grave quanto possível... o que não é dizer pouco.

— Me conte tudo!

Ele recomeçou a caminhar para cá e para lá, enquanto falava. Theo ficou sentada, observando-o. Ele não podia sa­ber que de vez em quando as luzes do gabinete enfraqueciam e sua voz sumia nos ouvidos dela, ao mesmo tempo que outra sala, de um hotel em Dover, surgia-lhe nitidamente dian­te dos olhos.

Apesar disso, conseguiu prestar bastante atenção. Ele tornou a sentar-se no divã a seu lado.

— Ainda bem — concluiu, — que eles não podem to­car na sua parte do casamento. A casa também lhe per­tence.

Theo concordou com a cabeça, pensativa.

— Pelo menos ficaremos com isso — disse. — Então a situação não está tão má, não é?   Significa apenas que tere­mos que recomeçar tudo de novo, só isso.

— Pois é, exatamente. Você tem razão.

Mas qualquer coisa na voz dele soava falso e Theo de repente pensou: “Não é só isso. Ele não contou tudo.”

— Não há mais nada, Richard? — perguntou, delicada­mente. — Nada pior?

Ele hesitou apenas uma fração de segundo, e aí:

— Pior? Que poderia haver?

— Sei lá — respondeu Theo.

— Tudo vai se acertar — disse Richard, dando mais a impressão de que procurava tranqüilizar a si mesmo do que a Theo. — Claro que vai.

De repente passou-lhe o braço pela cintura.

— Que bom que você veio — exclamou. — Agora que já está aqui, tudo entrará nos eixos.   Aconteça o que aconte­cer, tenho você, não é?

— É, sim — concordou com doçura e desta vez deixou que o braço dele ficasse na cintura.

Ele beijou-a, segurando-a contra si, como se de certo modo estranho tirasse consolo da sua proximidade.

— Tenho você, Theo — repetiu dali a pouco e ela, como antes, respondeu:

— É, sim, Richard.

Ele deslizou do divã para o soalho a seus pés.

— Estou exausto — disse, mal-humorado. — Deus dó céu, que dia que foi hoje. Medonho!   Não sei o que faria se você não tivesse chegado. Afinal de contas, para que é que serve a mulher da gente, não é mesmo?

Ela não respondeu, apenas sacudiu a cabeça, concor­dando.

Ele pousou a nuca no colo dela. O suspiro que deu pa­recia de uma criança cansada.

Theo pensou outra vez: “Tem alguma coisa que ele não me disse. O que será?”

Deixou cair a mão maquinalmente nos sedosos cabelos escuros dele e começou a afagá-los com delicadeza, como uma mãe consolando o filho.

Richard murmurou vagamente:

— Agora que você está aqui, tudo entrará nos eixos. Você não vai me deixar em falta.

Sua respiração se tornou lenta e regular. Adormeceu. A mão dela continuou a lhe afagar a cabeça.

Mas olhava fixamente, sem enxergar nada, para a es­curidão que tinha diante de si.

 

— Você não acha, Richard — perguntou Theodora, — que seria melhor me contar tudo?

Isso foi três dias mais tarde. Estavam na sala de visi­tas, fazendo hora para jantar.

Richard teve um sobressalto e avermelhou.

— Não sei o que você quer dizer — disse, esquivan­do-se à resposta.

— Não sabe?

Ele lançou-lhe um olhar rápido.

— Bem, claro... existem detalhes.

— Não acha que para poder ajudar você eu devia saber de tudo?

Olhou-a de um modo estranho.

— Por que é que você acha que eu preciso da sua ajuda?

Ficou um pouco espantada.

— Bem, Richard... eu sou sua mulher, não sou?

De repente ele sorriu, com aquele sorriso de antes, sim­pático, despreocupado.

— De fato é, Theo. E muito bonita, por sinal. Nunca suportei mulheres feias.

Pôs-se a caminhar de um lado para outro, como sempre fazia quando alguma coisa o preocupava.

— Não vou negar que de certo modo você tem razão — disse, afinal. — Há outra coisa, sim.

Calou-se.

— Qual?

— É difícil à beça explicar esse tipo de coisa às mulhe­res. Sempre interpretam logo tudo errado... tomam uma coisa... bem, pelo que ela não é.

Theo não disse nada.

— Sabe — continuou Richard, — a lei é uma coisa, e o que está certo e errado é outra, bem diferente. Eu posso fazer uma coisa perfeitamente certa e direita, mas que a lei não encararia assim. Em nove de cada dez vezes, a gente é bem sucedido, mas aí, na décima... bem, se dá com os burros n’água.

Theo começou a entender. Pensou: “Por que não me admiro? Será que no fundo sempre soube que ele não era honesto?”

Richard prosseguiu falando. Para se justificar, entrou em explicações desnecessárias. Theo ficou contente que ele encobrisse os detalhes exatos da história com esse manto de verbosidade. O assunto dizia respeito a uma vasta extensão de terras na África do Sul. Não lhe interessava saber exa­tamente o que Richard tinha feito. Ele lhe garantia que moralmente agira com correção e boa-fé, mas que legalmen­te — bem, não havia como negar o fato de que se achava sujeito a um processo penal.

Enquanto falava, a todo instante lançava olhares furti­vos à mulher. Estava nervoso e contrafeito. E não parava de se desculpar, tentando atenuar a gravidade do caso com explicações que até uma criança veria logo que eram supér­fluas. Por fim, num acesso de justificação, entregou-se ao desespero. Talvez fosse pura impressão de Theo, que na­quele momento tinha um brilho escarninho no olhar, porém ele se jogou numa poltrona ao lado da lareira com a cabeça entre as mãos.

— Eis aí a situação, Theo — disse, alquebrado. — E agora, o que você acha?

Ela correu prontamente a se ajoelhar ao pé da poltrona, encostando o rosto no dele.

— O que se pode fazer, Richard? O que é que vamos fazer?

Puxou-a contra si.

— Está falando sério? Você vai ficar do meu lado?

— Mas claro, meu bem. Lógico.

Então, impelido a contragosto pela sinceridade, disse:

— Sou um ladrão, Theo. Numa linguagem bem clara, a coisa se resume nisto... não passo de um ladrão.

— Pois então sou a mulher de um ladrão, Richard. Es­tamos juntos no mesmo barco.

Ficaram um instante calados. Não demorou muito, Ri­chard recuperou parte do seu ar despreocupado.

— Sabe, Theo, eu tenho um plano, mas depois a gente fala nisso. Já está na hora do jantar. Precisamos ir trocar de roupa.  Ponha aquele vestido de cor creme, você sabe qual é... o modelo de Caillot.

Theo arqueou as sobrancelhas, com espanto.

— Para passar a noite em casa?

— Sim, sim, eu sei. Mas eu gosto dele. Anda, ponha, seja boazinha. Fico todo animado quando a vejo bem vestida.

Theo desceu para jantar com o Caillot. Era uma cria­ção em brocado cremoso, recamado por um tênue fio de ouro, sob um fundo rosa pálido para dar um pouco de cor ao conjunto. Possuía um decote ousado nas costas e nada poderia ser mais indicado para exibir a alvura deslumbrante do pescoço e dos ombros de Theo. Agora lembrava real­mente uma flor de magnólia.

Richard pousou os olhos nela com aprovação entu­siástica.

— Muito bem! Sabe, você fica simplesmente sensacio­nal nesse vestido.

Foram jantar. Richard passou o tempo todo nervoso e diferente, dizendo piadas e rindo sem o menor motivo, como se estivesse se esforçando em vão para esquecer suas preo­cupações. Theo tentou várias vezes trazer à baila o assunto que tinham discutido antes, mas ele sempre se esquivava.

Por fim, de repente, quando ela se levantou para ir dor­mir, ele abordou a questão.

— Não, não vá ainda. Tenho uma coisa para lhe dizer. Sobre esse negócio miserável, sabe?

Theo se sentou de novo.

Ele começou a falar rápido. Com um pouco de sorte, a coisa toda poderia ser abafada. As aparências estavam rela­tivamente a salvo. Bastava que certos papéis não chegassem às mãos do síndico da massa falida...

Fez uma pausa significativa.

— Papéis?  — retrucou Theo, perplexa. — Quer dizei que você pretende destruí-los?

Richard teve um esgar.

— Eu os destruiria assim que me caíssem nas mãos. O diabo é consegui-los!

— Com quem estão, afinal?

— Com um sujeito que nós dois conhecemos... Vincent Easton.

Theo deixou escapar uma exclamação. Procurou disfar­çar, mas Richard já tinha percebido.

— Sempre desconfiei de que ele sabia de alguma coisa da história. Foi por isso que o convidei para vir cá uma por­ção de vezes. Não se lembra como lhe pedi pra ser amá­vel com ele?

— Me lembro, sim — disse Theo.

— Por um motivo ou outro, nunca consegui travar ami­zade com ele. Não sei por quê. Mas ele gosta de você. Eu diria até que gosta um bocado de você.

— Gosta, sim — confirmou Theo, a voz bem nítida.

— Ah! — fez Richard, satisfeito. — Isso é ótimo. Ago­ra você já está vendo aonde quero chegar. Estou certo de que se você procurasse o Vincent Easton e pedisse para ele lhe entregar os tais papéis, ele não recusaria. Mulher boni­ta, você sabe... essa espécie de coisa.

— Não posso fazer isso — disse logo Theo.

— Que bobagem.

— Nem pensar.

O rosto de Richard aos poucos foi-se cobrindo de man­chas vermelhas. Ela viu que ele estava furioso.

— Minha filha, acho que você não entendeu bem a si­tuação.   Se isso vier a público, sou capaz de ir para na ca­deia. Significa a ruína... a desgraça.

— Tenho certeza de que Vincent Easton não usará os tais papéis contra você.

— Não se trata disso. Ele talvez nem perceba que eles me incriminam. Só se forem tomados conjuntamente com... os meus negócios...  com os dados que fatalmente hão de achar.  Ah! Não posso entrar em detalhes. Ele vai me arrui­nar sem saber o que está fazendo, a menos que alguém lhe explique tudo.

— E por que você não faz isso? Escreva para ele.

— Grande coisa ia adiantar! Não, Theo, só temos uma única esperança. Você é o nosso trunfo. Você é minha mu­lher. Precisa me ajudar. Vá procurar o Easton agora de noite...

Theo não pôde conter um grito.

— Agora de noite não. Amanhã, talvez.

— Meu Deus, Theo, será que você não compreende? Amanhã talvez seja tarde demais. Se você for agora... ime­diatamente ... à casa do Easton. — Notou que ela vacilava e procurou tranqüilizá-la. — Eu sei, minha filha, eu sei. É uma coisa hedionda que estou lhe pedindo. Mas é um caso de vida ou morte: Theo, você não vai me desapontar, vai? Você disse que faria tudo para me ajudar...

Theo ouviu-se falando com uma voz dura, seca.

— Mas não isso. Tenho motivos.

— É um caso de vida ou morte, Theo. Estou falando sério. Olhe aqui.

Abriu bruscamente a gaveta da escrivaninha e tirou um revólver. Se havia no gesto qualquer coisa de teatral, ela não percebeu.

— Ou você vai ou eu me mato. Não posso enfrentar o escândalo. Se você não fizer o que estou pedindo, serei um homem morto antes do amanhecer. Juro solenemente que é a pura verdade.

Theo soltou um grito abafado.

— Não, Richard, isso não!

— Então me ajude.

Jogou o revólver em cima da mesa e ajoelhou-se aos pés dela.

— Theo, minha querida... se você me ama... se al­gum dia você me amou... faça isso por mim.  Você é minha mulher, Theo. Não tenho mais ninguém a quem possa re­correr.

E continuou assim, sem parar, murmurando, imploran­do. E por fim Theo ouviu-se dizendo:

— Está bem... eu faço.

Richard levou-a até a porta e chamou-lhe um táxi.

 

— Theo!

Vincent Easton deu um pulo, encantado, sem poder acre­ditar no que via. Ela estava parada à porta. O abrigo de arminho branco pendia-lhe dos ombros. Easton achou que nunca a tinha visto tão linda.

— Você veio, afinal.

Ela levantou a mão para impedir que ele se aproximasse mais.

— Não, Vincent, não é o que você está pensando — disse, numa voz baixa, sôfrega. — Foi meu marido que me mandou aqui. Ele acha que existem uns papéis que po­dem... causar-lhe dano. Eu vim pedir a você para me en­tregá-los.

Vincent ficou totalmente imóvel, olhando para ela. De­pois deu uma risadinha.

— Então é isso, é? Bem que outro dia me pareceu que Hobson, Jekyll & Lucas não me era estranho, mas na hora não consegui atinar direito. Não sabia que seu marido esti­vesse ligado à firma. Já faz certo tempo que a situação não mais anda boa para eles. Me encarregaram de examinar o assunto. Desconfiei de que fosse algum subordinado. Nun­ca pensei que se tratasse do próprio chefão.

Theo nada disse. Vincent olhou-a com curiosidade.

— Isso não lhe faz diferença? — perguntou. — O fato de que o... bem, pra falar com franqueza, de que o seu marido seja um vigarista?

Ela sacudiu a cabeça.

— Que coisa incrível — exclamou Vincent. Depois acrescentou, calmamente: — Quer esperar um pouco? Vou buscar os papéis.

Theo sentou numa cadeira. Ele entrou na peça ao lado. Não demorou muito, voltou e entregou-lhe um pequeno em­brulho.

— Obrigada — disse Theo. — Tem fósforo?

Pegando a caixa que ele lhe alcançou, ajoelhou-se dian­te da lareira. Depois que os papéis ficaram reduzidos a cin­zas, levantou-se.

— Obrigada — repetiu.

— De nada — respondeu ele, formalmente. — Deixe eu chamar um táxi pra você.

Levou-a até o carro e esperou na calçada até que se afas­tasse. Que entrevista mais estranha e cerimoniosa. Desde o início nem tinham ousado olhar um para o outro. Bem, pa­ciência, era o fim. Iria embora, para o estrangeiro, tentar esquecer.

Theo inclinou a cabeça pela janela e falou com o mo­torista do táxi. Não podia voltar logo para a casa de Chel­sea. Precisava de espaço para respirar. Rever Vincent cau­sara-lhe um abalo terrível. Se ao menos — se ao menos. Mas repreendeu-se. Não sentia o mínimo amor pelo marido — porém devia-lhe lealdade. Estava desanimado. Tinha que fi­car a seu lado. Fosse lá qual fosse a falta que houvesse cometido, amava-a: a ofensa era contra a sociedade e não contra ela.

O táxi perambulou pelas largas ruas de Hampstead. Fo­ram dar no campo, e um sopro de ar puro, revigorante, re­frescou as faces de Theo. Já tinha recuperado o controle. O táxi tomou rapidamente o rumo de Chelsea.

Richard veio recebê-la no vestíbulo.

— Puxa, como você demorou.

— Demorei?

— É... um tempão. Está tudo... em ordem? Seguiu-a, com um olhar de ave de rapina. Suas mãos tremiam.

— Está... está tudo em ordem, então? — repetiu.

— Eu mesma os queimei.

— Ah!

Ela entrou no gabinete, jogando-se numa grande poltro­na. Tinha o rosto pálido como um cadáver e o corpo des­feito pelo cansaço. Pensou: — “Se ao menos agora eu pu­desse ir dormir e nunca, nunca mais acordar!”

Richard a observava. Não parava de lançar-lhe olhares tímidos, furtivos. Ela nem notou. Ser-lhe-ia impossível.

— Deu tudo certo, então?

— Já disse que sim.

— Tem certeza de que eram os tais papéis? Você olhou?

— Não.

— Mas como...

— Tenho certeza, estou lhe dizendo. Não me aborreça, Richard. Eu não agüento mais.

Richard se mexeu, nervoso.

— Sim, sim. Já vi.

Caminhou irrequieto de um lado para outro. Dali a pou­co aproximou-se e pousou-lhe a mão no ombro. Ela se des­vencilhou.

 — Não me toque. — Tentou rir. — Desculpe, Richard. Estou muito nervosa. Tenho a impressão de que não supor­to contato nenhum.

— Sei. Compreendo. Recomeçou a andar pela sala.

— Theo — exclamou de repente. — Lamento profun­damente.

— O quê? — Levantou os olhos, meio atônita.

— Não devia ter deixado que você fosse lá a esta hora da noite. Nunca pensei que ficaria sujeita a qualquer... dissabor.

— Dissabor? — Deu uma risada. Parecia achar graça na palavra. — Você nem imagina! Ah, Richard, você nem imagina!

— Não imagino o quê?

— O que esta noite me custou — respondeu, bem séria, com os olhos fixos na sua frente.

— Meu Deus! Theo! Jamais pretendi... Você... você fez isso, por mim? O cretino! Theo... Theo... Nunca supus. Nunca me passou pela cabeça.  Meu Deus!

Agora estava ajoelhado a seus pés, balbuciante, abra­çando-a pela cintura. Ela se virou e olhou-o com certa sur­presa, como se as palavras tivessem, finalmente, conseguido chamar-lhe a atenção.

— Eu... eu nunca pretendi...

— O que é que você nunca pretendeu, Richard?

O tom de sua voz o assustou.

— Me diga. O que foi que você nunca pretendeu?

— Theo, não falemos mais nisso.Não quero saber. Nunca mais quero pensar nesse assunto.

Agora o encarava, totalmente lúcida, com todas as fa­culdades alertas. As palavras saíram claras e nítidas:

— Nunca pretendeu... O que é que você acha que aconteceu?

— Não aconteceu nada, Theo. Vamos fingir que não aconteceu.

Continuou encarando-o, até que começou a se dar con­ta de tudo.

— Você acha que...

— Não quero...

Interrompeu-o.

— Você acha que o Vincent Easton exigiu um preço pelas tais cartas? Acha que eu...  paguei a ele?

— Eu... eu nunca pensei que ele fosse desse tipo de homem — disse Richard, alquebrado e de maneira pouco convincente.

 

— Não pensou?  — Cravou-lhe os olhos.   Ele baixou a cabeça. — Por que me pediu pra por este vestido agora de noite?  Por que me mandou ir lá sozinha, a esta hora? Você achou que ele... gostava de mim.  Queria salvar a sua pele... a todo custo... inclusive da minha honra.

Levantou-se.

— Agora entendo. Você pretendia isso desde o iní­cio... ou pelo menos encarou como uma possibilidade, e não se deixou intimidar.

— Theo...

— Não tente negar. Richard, eu julgava que há anos conhecia tudo o que era possível conhecer a seu respeito. Quase de saída, percebi que você não era o que se chama uma pessoa correta. Mas pensei que comigo fosse.

— Theo...

— Pode negar o que acabo de dizer?

Viu-se forçado a ficar calado.

— Escute, Richard. Tem uma coisa que preciso lhe contar. Há três dias, quando você sofreu esse golpe, os cria­dos lhe disseram que eu estava fora... que tinha ido para o campo. Não foi bem assim. Eu tinha fugido com o Vin­cent Easton...

Richard soltou um som inarticulado. Ela o deteve com a mão.

— Espere. Nós estávamos em Dover. Eu vi um jor­nal... me dei conta do que havia acontecido. Aí então, como você sabe, voltei.

Fez uma pausa.

Richard pegou-a pelo pulso. Fixou-lhe um olhar pene­trante.

— Você voltou... a tempo?

Theo soltou uma risadinha amarga.

— Sim, eu voltei, como você diz, “a tempo”, Richard.

O marido afrouxou o aperto do braço. Ficou em pé, junto à lareira, a cabeça atirada para trás. Estava bonito e até um pouco digno.

— Nesse caso — disse, — posso perdoar.

— Pois eu não.

As três palavras saíram bruscas. E tiveram o efeito de uma bomba naquela sala tranqüila. Richard deu um passo à frente, de olhos arregalados, boquiaberto, formando um quadro quase ridículo.

— Você... o que foi que você disse, Theo?

— Eu disse que não posso perdoar! Ao abandonar você por outro homem, eu pequei — não no sentido literal, talvez, mas na intenção, o que vem a dar no mesmo. Se pequei, porém, foi por amor. Você também não me tem sido fiel desde que casamos. É sim, eu sei. Mas o perdoei, porque realmente acreditei que me amasse. Mas o que você fez, hoje à noite, é diferente. É uma coisa revoltante, Richard... uma coisa que nenhuma mulher perdoaria. Você me vendeu, a sua própria esposa, para comprar segurança!

Pegou o abrigo e virou-se para a porta.

— Theo — gaguejou ele, — aonde você vai?

Ela olhou-o por cima do ombro.

— Nesta vida tudo tem seu preço, Richard. Preciso pa­gar com a solidão o pecado que cometi. Quanto a você... bem, você arriscou a coisa que amava, e saiu perdendo!

— Você vai embora?

Ela suspirou fundo.

— Vou. Não existe nada que me prenda aqui.

Ele ouviu a porta se fechar. Passaram-se séculos, ou apenas alguns minutos? Qualquer coisa caiu de mansinho do lado de fora da janela — a última das pétalas de magnólia, macia, perfumada.

 

NÃO FOSSE O CACHORRO

A mulher de ar respeitável atrás da mesa da agência de empregos tossiu de leve e olhou atentamente para a moça sentada a sua frente.

— Recusa-se, então, a aceitar o cargo? Acaba de apa­recer agora de manhã. Consta que fica numa região muito bonita da Itália. Um viúvo com um garotinho de três anos e uma senhora idosa, mãe ou tia dele.

Joyce Lambert sacudiu a cabeça.

— Não posso me ausentar da Inglaterra — disse, com a voz cansada. — Tenho motivos. Será que não daria para me arranjar um trabalho que fosse por dia?

A voz tremia um pouco — de modo quase imperceptí­vel, pois a mantinha sob controle. Os olhos azuis escuros fitaram implorantes a mulher da agência.

— É muito difícil, Mrs. Lambert. O único emprego de governanta diarista de que disponho exige todos os requisi­tos. A senhora não possui nenhum. Os meus livros estão cheios de candidatas... literalmente cheios. — Fez uma pau­sa. — Mora com alguém que não possa deixar só?

Joyce confirmou com a cabeça.

— Criança pequena?

— Não, não é criança, não.

E um leve sorriso iluminou-lhe o rosto.

— Pois sinto muito. Farei o possível, lógico, mas...

A entrevista estava, evidentemente, encerrada. Joyce se levantou. Mordia os lábios para impedir que as lágrimas aflorassem aos olhos quando saiu do escritório abafado para a rua.

— Não faça isso — repreendia-se com firmeza. — Deixe de ser uma boba chorona.  Você está em pânico... é isso que está havendo... você está em pânico. E ninguém lucra nada ao se entregar ao pânico. O dia mal começou e muita coisa ainda pode acontecer. E depois sempre tenho a tia Mary por umas duas semanas. Vamos, criatura, apresse o passo, não deixe seus parentes ricos esperando.

Percorreu Edgware Road, atravessou o parque e depois desceu até Victoria Street, onde entrou nas lojas Army & Navy. Dirigiu-se à sala de estar e sentou-se, olhando o relógio. Era pouco mais de uma e meia. Passaram-se rapida­mente cinco minutos e aí então uma senhora idosa com os braços cheios de embrulhos precipitou-se sobre ela.

— Ah! Você já está aí, Joyce. Acho que cheguei meio atrasada. O serviço no restaurante não é mais tão bom como antes. Você decerto já almoçou, não?

Joyce hesitou e por fim respondeu, calmamente:

— Já, sim, obrigada.

— Eu sempre almoço às doze e trinta — disse tia Mary, instalando-se comodamente com seus embrulhos.  — Há me­nos movimento e a atmosfera é mais agradável. Os ovos com caril aqui são ótimos.

— São, é? — retrucou Joyce, sem forças.

Teve a sensação de que mal podia suportar a idéia de ovos com caril — aquela fumacinha quente saindo deles — aquele cheiro delicioso! Afastou-a resolutamente da imaginação.

— Você está com a cara anêmica, minha filha — disse tia Mary, que tinha um corpo bem fornido. — Não caia nessa mania moderna de não comer carne. É pura boba­gem. Uma boa posta de pernil nunca fez mal a ninguém.

Joyce teve que se conter para não retrucar: “E até que viria bem.” Se ao menos tia Mary parasse de falar em co­mida. Deixar a gente na esperança, ao marcar encontro à uma e meia, e depois se pôr a comentar ovos com caril e fatias de carne assada — ah! que crueldade — que crueldade.

— Pois é, minha cara — continuou tia Mary. — Recebi sua carta...  você foi muito simpática em levar ao pé da letra o que eu disse. Eu tinha falado que ficaria contente com sua visita em qualquer ocasião, o que é a pura verda­de... mas acontece que acabo de receber uma oferta sim­plesmente ótima pra alugar a casa. Realmente boa demais pra se deixar escapar, ainda mais que vão trazer baixelas e roupas de cama.   Cinco meses. Eles vêm na quinta-feira e eu vou para Harrogate. De uns tempos para cá meu reumatis­mo anda me incomodando muito.

— Compreendo — disse Joyce. — Que pena, não é?

— De modo quê terá que ficar para outra ocasião. É sempre um prazer receber sua visita, minha cara.

— Obrigada, tia Mary.

— Sabe que você está com ar anêmico, mesmo? — con­tinuou tia Mary, olhando-a atentamente.  — E magra, tam­bém. Está quase um caniço. Que fim levou aquela cor saudável que você tinha? Você sempre teve uma cor tão bonita. Procure fazer bastante exercício, viu?

— É o que estou fazendo hoje — retrucou Joyce, sotur­na. Levantou-se. — Bem, tia Mary, tenho que ir andando.

E toca a voltar — desta vez pelo St. Jame’s Park, e subindo por Berkeley Square, Oxford Street e Edgware Road, passando além de Praed Street até o ponto em que Edgware Road resolve mudar de nome. Depois dobrar para um lado, através de uma série de ruelas sujas, chegando finalmente a uma determinada casa encardida.

Joyce enfiou a chave na fechadura e entrou no pequeno vestíbulo abafado. Subiu a escada até o último patamar e parou diante de uma porta, por baixo da qual saía um baru­lho de focinho farejando, logo seguido por uma porção de ganidos e latidos.

— Sim, Terry querido... é mamãe que voltou pra casa.

Quando a porta se abriu, um corpo branco se atirou so­bre a moça — um velho terrier de pelo duro, muito felpu­do e com duvidosos olhos turvos. Joyce agarrou-o no colo e sentou-se no chão.

— Terry querido! Querido, querido Terry. Você gosta da mamãe, Terry? Você é louco pela mamãe, não é, Terry?

E Terry provava que sim, agitando a língua sem parar, lambendo-lhe o rosto, as orelhas, o pescoço, sempre sacudin­do furiosamente o toco do rabo.

— Terry querido, que vamos fazer? Que vai ser de nós? Ah, Terry querido, estou tão cansada.

— Ora, ora, senhorita — disse uma voz rude às suas costas. — Se quiser parar de abraçar e beijar esse cachorro, aqui tem uma boa xícara de chá quente para tomar.

— Ah! Mrs. Barnes, quanta gentileza.

Joyce levantou-se às pressas. Mrs. Barnes era uma mu­lherona de aspecto temível. Mas sob a fachada de megera escondia-se um coração inesperadamente bondoso.

— Uma xícara de chá quente nunca fez mal a ninguém — proclamou Mrs. Barnes, expressando o sentimento unâni­me de sua classe.

Joyce tomou um gole providencial. A senhoria obser­vava-a disfarçadamente.

— Encontrou alguma coisa, senhorita... senhora, aliás?

Joyce sacudiu a cabeça, com o rosto anuviado.

— Ah!  — suspirou Mrs.  Barnes.  — Bem, parece que hoje não é o que se pode chamar de um dia de sorte.

Joyce ergueu vivamente os olhos.

— Ah, Mrs. Barnes... não vá me dizer que...

— Pois é... o Barnes. De novo desempregado. Nem sei o que vamos fazer.

— Ah, Mrs. Barnes... eu tenho que... quero dizer, a senhora decerto precisa...

— Ora, não se impressione, minha filha. Não nego que ficaria contente se você tivesse encontrado alguma coisa... mas já que não encontrou...  paciência. Terminou o chá? Vou levar a xícara.

— Ainda tem um pouquinho.

— Ah! — exclamou Mrs.Barnes, com ar de censura.

— Vai dar o resto pro danado desse cachorro... Eu sei como a senhora é.

— Ah, por favor, Mrs. Barnes. Só uma gotinha. A senhora não se importa mesmo, não é?

— Não adiantaria nada me importar. A senhora é doida por esse bicho imprestável. É isso mesmo... é exatamente o que ele é. Hoje de manhã, por pouco não me mordeu.

— Não é possível, Mrs. Barnes! O Terry não faria uma coisa dessas.

— Rosnou pra mim... me arreganhou os dentes. Eu estava apenas querendo ver se não se poderia dar um jeito naqueles seus sapatos.

— Ele não gosta que ninguém mexa nas minhas coisas. Ele pensa que tem a obrigação de protegê-las.

— Ué, o que tem ele que pensar? Cachorro não tem nada que pensar. O lugar dele é num quintal, preso na cor­rente pra assustar ladrões.Está muito cheio de manhas! A senhora devia dar fim nele, isso é o que eu digo.

— Não, não e não. Nunca. Nunca!

— Como queira — retrucou Mrs. Barnes.

Tirou a xícara da mesa, juntou o pires do chão, onde Terry acabava justamente de lamber o resto, e retirou-se ma­jestosamente da peça.

— Terry — disse Joyce. — Venha conversar comigo aqui. Que é que nós vamos fazer, meu anjo?

Instalou-se na poltrona, vacilante, com Terry no colo. Jogou o chapéu longe e reclinou-se. Pôs as patas de Terry de cada lado do pescoço e beijou-o carinhosamente no fo­cinho e no meio dos olhos. Depois começou a falar-lhe numa voz bem macia, torcendo-lhe delicadamente as orelhas entre os dedos.

— Como é que nós vamos fazer com a Mrs.  Barnes, Terry? Estamos lhe devendo quatro semanas... e ela é tão boazinha, Terry...  tão boazinha. Jamais nos poria no olho da rua. Mas não podemos nos aproveitar da bondade dela, Terry. Não podemos fazer isso. Também, por que é que o Barnes tem que andar desempregado? Detesto o Barnes. Vive bêbado.E quem vive bêbado, anda sempre desempre­gado. O engraçado é que eu não vivo bêbada, Terry, e es­tou desempregada.

“Não posso deixá-lo, querido. Não posso. Não há nin­guém com quem eu pudesse deixá-lo... ninguém que tratasse direito de você, que está ficando velho, Terry... doze anos... e ninguém quer um cachorro velho, já meio cego, surdo e um pouco... sim, só um pouquinho... rabugento. Você comigo é um amor, querido, mas não é com qualquer pes­soa que você é um amor, não é? Você rosna. É porque sabe que o mundo está ficando contra você. Nós só temos um ao outro, não é, querido?”

Terry lambeu-lhe delicadamente o rosto.

— Fale comigo, querido.

Terry deu um gemido longo, demorado — quase um suspiro, depois meteu o focinho na orelha de Joyce.

— Você confia em mim, não confia, meu bem? Você sabe que eu nunca o deixaria. Mas que vamos fazer? A coisa já está nesse pé, Terry.

Recostou-se no fundo da poltrona, com os olhos entrecerrados.

— Você se lembra, Terry, daqueles bons tempos de anti­gamente? Você, eu, o Michael e papai.  Ah, o Michael... o Michael! Era a primeira licença dele, e ele queria me dar um presente antes de voltar para a França. E eu disse para ele não ser extravagante. E aí nós estávamos lá no campo... e foi tudo uma surpresa. Ele me pediu para olhar pela janela, e lá estava você, aos pulos, do lado de fora, na ponta de uma corda comprida. O homenzinho engraçado que o trouxe, um homenzinho que cheirava a cachorro. Como falava! “Este cachorro é o máximo, dona. Olhe só, não é uma beleza? Eu disse que assim que a moça e o cava­lheiro o vissem, diriam: ‘Este cachorro é o máximo’!”

“Não parava de dizer isso... e foi assim que o chama­mos durante muito tempo... o Máximo! Ah, Terry, você era uma graça de filhote, com a cabecinha sempre de lado, sacudindo aquele rabinho ridículo! E o Michael foi-se em­bora para a França e eu fiquei com você... o cachorro mais querido do mundo. Você lia todas as cartas do Michael co­migo, lembra? Você cheirava o papel e eu dizia... ‘É do papai’, e você entendia. Éramos tão felizes... tão felizes. Você, o Michael e eu. E agora o Michael está morto, você ficou velho, e eu... ando tão cansada de ser corajosa.”

Terry lambeu-a.

— Você estava lá quando veio o telegrama. Se não fosse você... se eu não tivesse você para me consolar...

Calou-se durante alguns minutos.

— E desde então nunca mais nos separamos... enfren­tando juntos todos os reveses da sorte... e tem havido uma porção, não é? E agora estamos nesta situação. Só restam as tias do Michael, que me acham tolerável. Não sabem que ele perdeu todo aquele dinheiro no jogo. Não devemos contar isso para ninguém. Eu não me importo... bem que ele fez. Todo mundo tem direito de ter algum defeito. O que interessa é que ele gostava muito de nós dois, Terry. Os parentes estavam sempre implicando com ele e dizendo coisas desagradáveis. Nós é que não vamos lhes dar essa chance. Mas bem que eu queria também ter parentes. É muito incômodo não contar com ninguém.

“Ando tão cansada, Terry... e com uma fome infernal. Não posso acreditar que só tenho vinte e um anos... me sinto uma velha de setenta. Não sou realmente corajosa... apenas finjo que sou. E estou ficando com idéias tremenda­mente mesquinhas. Ontem fui a pé até Ealing, imagine, pra visitar a prima Charlotte Green. Pensei que se aparecesse lá às doze e trinta ela decerto me convidaria para al­moçar. Mas aí, quando cheguei, achei que já era filar demais. Simplesmente não pude. Então refiz todo o caminho a pé. O tipo da asneira. Ou a gente resolve ser filante logo de uma vez ou então nem vale a pena começar. Acho que não tenho força de caráter.”

Terry deu outro gemido e encostou o focinho preto no olho de Joyce.

— Você ainda tem um focinho gostoso, Terry... bem frio, parece picolé. Ah, eu gosto tanto de você! Não posso me separar de você. Não vou “dar fim” em você, não. Não posso... não posso... não posso.

A língua quente lambeu com veemência.

— Você compreende, não é, meu anjo? Você faria tudo para ajudar a mamãe, não faria?

Terry tirou as patas, desceu e foi até um canto com passo inseguro. Voltou trazendo uma tigela amassada entre os dentes.

Joyce não sabia se devia rir ou chorar.

— Você está fazendo a única proeza que sabe fazer? A única coisa que lhe ocorreu para ajudar a mamãe? Oh, Terry... Terry... ninguém há de nos separar! Eu faria tudo. Faria mesmo? A gente fala isso... e depois, quando se vê o que tem que fazer, a gente diz: “Ah, mas assim também não.” Será que eu faria tudo?

Ajoelhou-se no soalho, ao lado do cachorro.

— Sabe como é, Terry, o negócio é o seguinte. Gover­nantas de crianças não podem ter cães, e damas de com­panhia de senhoras idosas também não. Só mulher casada é que pode, Terry... cachorrinhos felpudos de raça, que elas levam para fazer compras... e se uma prefere um velho terrier cego... ué, por que não?

Desfez a testa franzida e nesse momento bateram duas vezes na porta da rua.

— O carteiro. Será que...

Levantou-se de um salto e desceu correndo a escada, voltando com uma carta.

— Talvez seja. Se ao menos... Abriu o envelope.

 

“Prezada senhora,

Examinamos o quadro e na nossa opinião não se trata de um Cuyp autêntico, sendo seu valor pratica­mente nulo.

Atenciosamente,

Sloane & Ryder.”

 

Joyce ficou parada com a carta na mão. Quando tor­nou a falar, sua voz estava mudada.

— Acabou-se o que era doce — disse. — Foi-se a nossa última esperança. Mas não nos separaremos. Há uma saí­da... e não vou precisar bancar a filante. Terry querido, tenho que dar uma volta. Mas não demoro.

Joyce desceu correndo a escada até o canto escuro do telefone. Ali pediu um determinado número. Atendeu uma voz masculina, que logo mudou de tom ao reconhecer a iden­tidade dela.

— Joyce, meu bem. Você não quer sair comigo pra gente jantar e dançar hoje à noite?

— Não posso — respondeu Joyce despreocupadamente. — Não tenho nada pra vestir.

E sorriu amarelo só de lembrar os cabides vazios no seu pobre guarda-roupa.

— Que tal se eu fosse até aí agora pra gente conversar? Qual é o endereço? Santo Deus, onde fica isso? Puxa, você anda meio na lona, hem?

— Completamente.

— Ainda bem que você reconhece. Até já.

Cerca de quarenta e cinco minutos mais tarde o carro de Arthur Halliday estacionava diante da casa.

Sem dissimular seu assombro, Mrs. Barnes levou-o até a porta de Joyce.

— Minha filha... que buraco horrível. Como é que você veio parar num lugar destes?

— Com um pouco de orgulho e outras emoções nada lucrativas.

Falava com bastante desenvoltura, olhando ironicamente para o homem à sua frente.

Muita gente achava Halliday bonito. Era um homen­zarrão de ombros largos, louro, de olhinhos azuis muito cla­ros, e queixo quadrado.

Sentou-se na poltrona vacilante que ela lhe ofereceu.

— Bem — comentou, pensativo. — Parece que você já aprendeu uma lição. Escute aqui... esse bicho aí não morde?

— Não, não precisa ter medo. Eu o tenho mais como... um cão de guarda.

Halliday a analisava de alto a baixo.

— Você está arrependida, Joyce — disse à meia voz. — É isso, não é?

Joyce confirmou com a cabeça.

— Eu já lhe disse, meu bem. No fim, sempre consigo tudo o que quero. Eu sabia que, com o tempo, você termi­naria vendo o que mais lhe convinha.

— Minha sorte é que você não mudou de idéia — disse Joyce.

Olhou para ela, desconfiado. Com Joyce, nunca se sabia direito aonde ela queria chegar.

— Quer casar comigo?

Ela fez que sim.

— Quando você quiser.

— Pra ser franco, quanto mais cedo, melhor.

Riu, olhando em torno.

Joyce avermelhou.

— Por falar nisso, tem uma condição.

— Uma condição?

Ficou desconfiado de novo.

— É, o meu cachorro. Ele tem que ir comigo.

— Esse espantalho velho? Você pode ter qualquer es­pécie de cachorro que quiser. Não se preocupe com o preço.

— Mas eu quero o Terry.

— Ah! Está bem, você é quem sabe.

Joyce continuou encarando-o.

— Você não ignora... não é?... que eu não o amo? Nem um pouco.

— Não me incomodo com isso. Não sou dado a frico­tes. Mas nada de sujeiras, minha filha. Se você casar co­migo, a coisa é pra valer.

As faces de Joyce se tingiram de vermelho.

— Você vai ver como valerá a pena — disse.

— Que tal um beijo agora?

Avançou para ela. Joyce esperou, sorrindo. Tomou-a nos braços, beijando-lhe o rosto, os lábios, o pescoço. Ela não ofereceu resistência nem se afastou. Por fim soltou-a.

— Vou lhe comprar um anel — disse. — Que é que você prefere, brilhantes ou pérolas?

— Um de rubi — respondeu Joyce. — O maior que tiver... cor de sangue.

— Que idéia mais estranha.

— Eu gostaria que fizesse contraste com a pequena ferra­dura de pérolas que foi tudo que o Michael pôde me comprar.

— Vamos ver se desta vez dá mais sorte, não é?

— Você se expressa que é uma maravilha, Arthur.

Halliday foi-se embora rindo.

— Terry — disse Joyce. — Me lamba... me lamba com força... por todo o rosto e no pescoço... principalmente no pescoço.

E enquanto Terry obedecia, ela murmurou pensativa:

— Se concentrar noutra coisa... é o único jeito. Você não seria capaz de adivinhar no que foi que eu pensei... em geléia... geléia numa mercearia. Fiquei repetindo para mim mesma: morangos, groselha, framboesa, ameixa. E talvez, Terry, ele se canse logo de mim. Tomara que sim, não é? Dizem que isso sempre acontece depois que os homens casam com a gente. Mas o Michael jamais cansaria... jamais... jamais... Ah! O Michael...

 

No outro dia de manhã Joyce se levantou com o cora­ção feito chumbo. Soltou um suspiro profundo e no mesmo instante Terry, que dormia na cama com ela, correu a beijá-la, afetuoso.

— Ah, querido... querido! Agora temos que ir até o fim. Mas se ao menos acontecesse alguma coisa. Terry, querido, não daria pra você ajudar a mamãe? Eu sei que se pudesse, você ajudava, não é?

Mrs. Barnes trouxe um pouco de chá com pão e man­teiga e se desmanchou em cumprimentos.

— Puxa vida, imagine só, a senhora casar com aquele moço. Ele veio num Rolls. Quase nem acreditei. O Bar­nes chegou até a se esquecer da bebida, só de pensar que tinha um Rolls parado aí na porta. Ora, mas já se viu? Não é que esse cachorro está sentado no peitoril da janela?

— Ele gosta do sol — disse Joyce. — Mas é meio peri­goso. Volte pra dentro, Terry.

— Eu, se fosse a senhora, acabava com a vida miserável do coitadinho — opinou Mrs.  Barnes, — e fazia seu noivo comprar um daqueles cachorrinhos lanudos que as grã-finas carregam nos regalos.

Joyce sorriu e chamou Terry de novo. Ele se levantou com certa dificuldade e naquele momento exato ouviu-se da rua lá embaixo o barulho de uma briga de cachorros. Terry esticou o pescoço para frente e também começou a latir com força. O peitoril era antigo e frágil. Cedeu, e Terry, muito velho e rígido demais para recuperar o equilíbrio, caiu.

Dando um grito desesperado, Joyce desceu correndo a escada e saiu pela porta da frente. Em poucos segundos estava ajoelhada do lado de Terry. Este gania de dar pena, numa posição que indicava que tinha ficado bem machucado. Ela curvou-se sobre ele.

— Terry... Terry querido... querido, querido...

Na maior fraqueza, ele tentou mexer o rabo.

— Meu filhinho... mamãe vai curar você... filhinho querido...

Começou a se formar um ajuntamento, quase só de me­ninos pequenos.

— Ele caiu lá da janela.

— Puxa, se machucou feio.

— Garanto que quebrou a espinha.

Joyce não prestava atenção.

— Mrs. Barnes, qual é o veterinário que fica mais perto daqui?

— Tem o Jobling... na Mere Street... se conseguir levá-lo até lá.

— Um táxi.

— Com licença.

Era a voz simpática de um senhor idoso que acabava de saltar de um táxi. Ajoelhou-se ao lado de Terry, levan­tou-lhe a parte superior da boca, depois passou a mão por baixo do corpo do cachorro.

— Tenho a impressão de que há hemorragia interna — disse. — Parece que não quebrou nenhum osso. É melhor levá-lo pro veterinário.

E, junto com Joyce, levantou o cachorro. Terry deu um gemido de dor, cravando os dentes no braço de Joyce.

— Terry... não foi nada... não foi nada, meu velho. Colocaram-no dentro do táxi, que saiu chispando. Joyce enfaixou o braço com um lenço, distraída. Terry, aflito, tentou lambê-lo.

— Eu sei, querido. Eu sei. Você não fez de propósito. Não foi nada. Não foi nada, Terry.

Afagou-lhe a cabeça. O homem do lado oposto olhou para ela, mas não disse nada.

Chegaram bastante rápido ao veterinário e tiveram a sorte de encontrá-lo em casa. Era um sujeito de cara ver­melha e jeito antipático.

Examinou Terry sem a menor delicadeza, enquanto Joyce assistia a tudo, desesperada. As lágrimas lhe escorriam pelo rosto. Não parava de falar numa voz baixa, tranqüilizante.

— Não foi nada, querido Não foi nada...

O veterinário se endireitou.

— Impossível dizer com exatidão. Preciso examinar melhor. Vai ter que deixá-lo aqui.

— Ah! Não posso.

— Sinto muito, mas vai ter. Preciso levá-lo lá para baixo. Eu lhe telefono daqui a... meia hora, digamos.

Angustiada, Joyce cedeu. Beijou Terry no focinho. Cega de tanto chorar, desceu a escada tropeçando. O homem que a tinha ajudado ainda estava lá.  Havia-se esquecido dele.

— O táxi continua aí. Vou levá-la de volta.

Sacudiu a cabeça.

— Prefiro ir a pé.

— Eu a acompanho.

Pagou ó táxi. Ela mal se dava conta da presença dele caminhando discretamente a seu lado, sem abrir a boca. Quando chegaram à casa de Mrs. Barnes, ele lembrou:

— O seu pulso. Precisa fazer alguma coisa.

Ela olhou para o lenço.

— Ah! Não foi nada de grave.

— Vai ter que lavar direito e passar uma atadura me­lhor. Deixe-me entrar que eu ajudo.

Subiram juntos a escada. Ela deixou que ele lavasse o ferimento e o enfaixasse com um lenço limpo. Disse ape­nas uma coisa.

— Terry não fez por querer. Ele nunca, nunca, faria por querer. Simplesmente não se deu conta que era eu. Devia estar sentindo uma dor atroz.

— É, acho que sim.

— E talvez agora estejam maltratando horrivelmente o pobrezinho, não é?

— Tenho certeza de que estão fazendo todo o possível por ele. Assim que o veterinário ligar para cá, a senhora vá buscá-lo pra cuidar dele em casa.

— Sim, claro.

O homem fez uma pausa e depois se dirigiu à porta.

— Espero que tudo dê certo — disse, sem jeito. — Passe bem.

— Passe bem.

Só dois ou três minutos mais tarde se lembrou de que ele tinha sido gentilíssimo e nem se lembrara de agradecer-lhe.

Mrs. Barnes apareceu de xícara na mão.

— Agora, filhinha, tome este chá quente. Estou vendo que ficou em pedaços.

— Obrigada, Mrs. Barnes, mas não vou querer.

— Far-lhe-ia hem, minha querida. Não se impressione tanto. O cachorrinho vai ficar bom, e mesmo que não fique, aquele seu noivo pode lhe dar outro, mais bonito...

— Não, Mrs. Barnes. Não. Por favor, não me leve a mal, mas prefiro que me deixem em paz.

— Ora, já se... olha o telefone.

Joyce disparou feito bala. Tirou o fone do gancho. Mrs. Barnes desceu atrás, ofegante. Ouviu Joyce dizer:

— Sim... é ela mesma. Quê? Ah! Ah! Sim. Sim, obrigada.

Repôs o fone no gancho. Mrs. Barnes se assustou com a expressão que viu no rosto dela. Parecia destituída de vida.

— O Terry está morto, Mrs. Barnes — disse. — Mor­reu lá sozinho, sem mim.

Subiu a escada e, entrando no quarto, fechou a porta com decisão.

— Mas já se viu — exclamou Mrs. Barnes para o papel da parede do corredor.

Cinco minutos depois, enfiava a cabeça pela porta. Joyce estava sentada bem tesa na cadeira.  Não chorava.

— É o seu noivo. Mando subir?

Uma luz repentina iluminou os olhos de Joyce.

— Mande sim, por favor. Eu gostaria de falar com ele.

Halliday entrou, todo expansivo.

— Bem, cá estamos. Não perdi muito tempo, hem? Vim disposto a levar você agora mesmo pra longe deste lugar horrendo.Você não pode ficar aqui. Ande, pegue as suas coisas.

— Não precisa, Arthur.

— Não precisa? Que história é essa?

— O Terry morreu. Não preciso mais casar com você.

— De que é que você está falando aí?

— Do meu cachorro... do Terry. Ele morreu. Eu só ia casar com você pra não ter que me separar dele.

Halliday arregalou os olhos, enquanto o rosto averme­lhava cada vez mais.

— Você está louca.

— É provável. Pra gostar de cachorro, tenho que estar.

— Quer dizer que ia casar comigo só por causa... Ah, mas que absurdo!

— Por que é que você pensou que eu ia casar com você? Você sabe que eu o detesto.

— Você ia casar comigo porque eu lhe poderia dar uma vida muito boa... e de fato posso.

— Na minha opinião — retrucou Joyce, — isso é um motivo bem mais revoltante que o meu. Seja como for, não se fala mais nisso. Não vou me casar com você!

— Será que já percebeu que está me tratando mal pra burro?

Ela olhou calmamente para ele, mas com um tal clarão nos olhos que ele teve que recuar.

— Não acho. Já ouvi você dizer que queria aproveitar bem a vida. Era isso que você pretendia conseguir comi­go... e a minha antipatia por você só contribuiu para au­mentar a sua vontade. Você sabia que eu o detestava e sentiu prazer nisso. Ontem, quando deixei que me beijasse, ficou decepcionado porque não me esquivei nem me encolhi. Há qualquer coisa de brutal em você, Arthur, qualquer coisa de cruel — qualquer coisa que gosta de ferir... Ninguém pode tratá-lo tão mal quanto você merece. E agora faça o favor de sair do meu quarto, sim? Não quero ninguém aqui.

Ele começou a gaguejar um pouco.

— Qu... que vai fazer? Você está sem dinheiro.

— O problema é meu. Vá-se embora, por favor.

— Sua diabinha. Sua diabinha absolutamente enlouquecedora. Não pense que me dou por vencido, hem?

Joyce riu.

A risada foi tão inesperada que o desnorteou por com­pleto. Desceu a escada sem jeito e partiu no carro.

Joyce deu um suspiro. Pôs o chapeuzinho de feltro preto surrado e por sua vez também saiu. Andou maquinal­mente pelas ruas, sem pensar nem sentir nada. Sabia que no fundo havia uma dor à espreita — que não tardaria a se manifestar, mas que por enquanto era misericordiosa­mente vaga.

Passou diante da agência de empregos e hesitou.

— Tenho que fazer alguma coisa. Existe o rio, claro. Quantas vezes já não pensei nisso. Acabar simplesmente com tudo. Mas é tão frio e úmido. Acho que não sou va­lente que chegue. Me falta coragem.

Entrou na agência.

— Bom dia, Mrs. Lambert. Infelizmente ainda não apa­receu nenhum emprego para trabalhar só por dia.

— Não faz mal — disse Joyce. — Agora posso aceitar qualquer espécie de emprego.  A... pessoa que morava co­migo... foi-se embora.

— Então já pode ir para o estrangeiro?

Joyce sacudiu a cabeça.

— Posso, sim. Quanto mais longe, melhor.

— Por acaso, Mr. Allaby está aqui neste momento, en­trevistando candidatas. Vou mandar a senhora falar com ele.

No minuto seguinte Joyce estava sentada num comparti­mento, respondendo perguntas. Havia qualquer coisa no seu interlocutor que lhe parecia vagamente familiar, mas não conseguia lembrar onde já o tinha visto. De repente suas idéias se aclararam um pouco, ao perceber que a última pergunta era um tanto insólita.

— A senhora se dá bem com velhas? — perguntou Mr. Allaby.

Joyce teve que sorrir.

— Creio que sim.

— Sabe o que é, a tia que mora comigo tem um caráter meio difícil. Ela gosta muito de mim e no fundo é um encanto de criatura, mas tenho a impressão de que uma moça poderia achá-la meio difícil às vezes.

— Creio que sou paciente e bem-humorada — disse Joyce, — e sempre me dei muito bem com pessoas de idade.

— A senhora teria que fazer certas coisas para a minha tia e, além disso, cuidar do meu filho pequeno de três anos. A mãe dele morreu no ano passado.

— Compreendo.

Houve uma pausa.

— Então, se acha que o emprego lhe convém, podemos considerar tudo resolvido. Partiremos na próxima semana. Eu lhe avisarei a data exata, e suponho que gostaria de rece­ber um pequeno adiantamento de salário para se aprontar.

— Muito obrigada.   É muita gentileza sua.

Já estavam de pé. De repente Mr. Allaby disse, sem jeito:

— Eu... eu não gosto de me intrometer... mas que­ria...  gostaria de saber... o seu cachorrinho ficou bom?

Joyce olhou-o bem pela primeira vez. Enrubesceu, e seus olhos azuis escureceram a ponto de se tornarem quase negros. Imaginava-o idoso, mas não era tão velho assim. Cabelo grisalho nas têmporas, rosto simpático, marcado pela idade, ombros meio caídos, olhos que eram castanhos e tinham qualquer coisa da brandura tímida de um cão. Joyce achou que, de fato, se parecia um pouco com um cachorro.

— Ah, é o senhor — disse. — Só depois me lembrei... nem cheguei a lhe agradecer.

— Não precisava. Eu nem esperava, mesmo. Sabia como a senhora estava se sentindo. E como vai o pobrezinho?

As lágrimas brotaram nos olhos de Joyce. Rolaram-lhe pelas faces. Nada no mundo conseguiria retê-las.

— Morreu.

— Oh!

Foi só o que disse, mas para Joyce esse Oh! era uma das coisas mais consoladoras que já tinha ouvido. Continha tudo o que não se pode exprimir por palavras.

Depois ele continuou, com a voz entrecortada:

— Eu também já tive um cachorro. Morreu há dois anos. Naquele tempo eu vivia com uma porção de gente que não podia entender o que isso significava para mim. Foi uma coisa horrível ter que fingir que não tinha aconte­cido nada de mais.

Joyce concordou com a cabeça.

— Eu compreendo... — disse Mr. Allaby.

Pegou a mão dela, apertou-a com força e soltou-a. Saiu do pequeno compartimento. Joyce fez o mesmo depois de alguns minutos, combinando vários detalhes com a senhora de ar respeitável. Quando chegou em casa, Mrs. Barnes re­cebeu-a na soleira da porta com aquele prazer da tristeza, tão típico da sua classe.

— Mandaram o corpo do pobrezinho do cachorro pra casa — anunciou. — Está lá em cima no seu quarto. Eu falei pro Barnes e ele se ofereceu pra cavar uma sepultura bonitinha nos fundos do quintal...

 

                                                                                            Agatha Christie

 

 

                      

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