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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MODELO ERÓTICA / Erle Stanley Gardner
A MODELO ERÓTICA / Erle Stanley Gardner

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A MODELO ERÓTICA

 

George Ansley abrandou o andamento do carro, procurando a estrada de desvio para a propriedade de Meridith Borden.

Uma névoa fria evolava-se diante dos faróis e o calor do irradiador da viatura embaciava o lado interior do pára-brisas, forçando Ansley a limpá-lo, constantemente, com um lenço.

A propriedade de Meridith Borden estava separada da estrada de desvio por um alto muro de tijolo cujo topo fora incrustado de vidro de garrafa e por duas linhas tensas de arame farpado, ao longo das respectivas arestas.

O grande portão da quinta tinha as portas abertas, de par em par. Ansley dirigiu o carro para a casa que se via ao fundo de uma espécie de avenida, entre áleas de árvores frondosas.

Estacionou diante do pórtico, saiu do carro e premiu o botão daquilo que julgou ser uma campainha, mas ouviu badalar cilindros metálicos, em três tons musicais diferentes.

Um momento depois, o pórtico iluminava-se e a porta foi aberta pelo próprio Borden que indagou:

- Ansley?

- Sim. Lamento vir incomodá-lo a esta hora da noite. Não lhe teria telefonado a marcar este encontro, se o assunto não fosse realmente importante... pelo menos para mim.

- Está bem, Ansley - respondeu Borden, apertando-lhe a mão. - Esta noite estou completamente só. Os criados saíram, pois é o seu dia de folga. Entre e conte-me o que o tem perturbado.

Ansley seguiu Borden para um salão que combinava as funções de sala de estar com as de escritório.

O dono da casa ofereceu ao visitante uma confortável poltrona e foi buscar uma mesinha rodante, adaptada a bar.

- Vai uma bebida? - convidou.

- Já que oferece... sim. Uísque com soda.

Borden atestou dois copos e sugeriu:

- Vamos direitos ao assunto, para não perdermos tempo?

- Estou a ir a caminho da falência.

- Isso é mau! - considerou Borden, sem, pela expressão, manifestar a menor simpatia. - Que está a passar-se consigo?

- Como sabe, consegui o contrato para construção da nova escola, na 94th Street.

- Sim. Você ganhou o concurso, com um orçamento demasiado baixo e, agora, o custo dos materiais subiu...

- Não se trata de um caso de inflação da matéria-prima. Os meus problemas são de natureza laboral.

- Com os operários?

- Não. Com o inspector e os seus acólitos da construção camarária.

- Pode lá ser! Como é isso?

- Andam, constantemente, a interromper-me os trabalhos, inventando defeitos, pegando por tudo e por nada, Medem as vigas de aço e discutem a largura de um milímetro, mandam-me substituí-las, depois de já montadas; criticam as percentagens de cimento e areia, quando nada há que possa condená-las, segundo as normas estabelecidas para a construção. Enfim, servem-se de todos os pretextos para impedir-me de cumprir os prazos de acabamentos parciais e, consequentemente, a data da ultimação final.

Borden emitiu, com a língua, uns estalidos de reprovação e indagou:

- Qual foi a atitude que você tomou?

- Protestei contra a atitude do inspector - respondeu Ansley - e ele sugeriu-me, significativamente:

"- Por que não vai falar com Meridith Borden? Nesta vida, não basta ser-se honesto. O que é preciso é ser-se esperto. De resto, ser honesto não vale um "chavo". Vá ter com ele e combine a maneira de não voltar a ser incomodado. Acredite que estou a dar-lhe um bom conselho."

- Portanto, foi isso que você veio cá fazer?

- Precisamente. Vim pedir-lhe que assobie aos seus cães e lhes ordene que deixem de morder-me as canelas.

- Esses cães não são meus - especificou Borden. - Eu apenas desempenho as funções de relações públicas e, nessa qualidade, como conheço muita gente política, influente, posso contactar com os verdadeiros donos da matilha. Você está, realmente, numa situação péssima. Ganhou um concurso orçamental e agora, por não cumprimento dos prazos, vai perder o dinheiro investido e, pior do que isso, o seu prestígio como construtor civil.

- Pode ajudar-me?

- Sim, mas, como deve calcular, isso vai custar-lhe dinheiro.

- Não importa. Só pretendo que me dêem uma oportunidade de acabar a obra. Quanto é que você quer... por ajudar-me?

- Bem... o dinheiro não vai para os meus bolsos... a não ser uma ligeira percentagem...

- Quanto?

- Mande-me um sinal de dois mil dólares, amanhã de manhã e, depois, mais cinco mil, dos seus dois próximos recebimentos para a obra. No fim, receberei cinco por cento do total que consta do seu orçamento: Nessa altura, falaremos do seu próximo trabalho. Segundo me constou, você vai concorrer a estrada de cruzamento, por cima da Telephone Avenue. É um grande empreendimento e creio que poderá ganhar esse concurso,.. evidentemente, se for eu a mexer os cordelinhos. Que me diz?

- Vou pensar nisso, mas, para já, quero terminar a construção da escola, sem impedimentos constantes.

- Posso ajudá-lo nisso e no resto, Ansley. Pode crer que sou um bom "relações públicas" e sei a quem falar... mas com dinheiro sonante. Hoje em dia, já não se chama a isso corrupção. Os termos têm perdido o seu real significado; agora chama-se-lhe método de trabalho. Você devia ter-me procurado, antes de submeter às entidades superiores o seu orçamento para a construção da escola.

- Porquê? Sempre o fiz, directamente, noutros Estados.

- Os tempos mudaram, sobretudo neste Estado. Aqui, um "relações públicas" é a verdadeira chave para abrir as portas dos compartimentos oficiais. Todos querem comer e eu sei quais são as bocas principais e os respectivos apetites.

- Lamento tê-lo incomodado, Borden, Vou confiar em si.

- Pode estar descansado quanto a esse inspector que o tem "seringado". Amanhã, poderá dizer-lhe que já tratou do assunto comigo. Não terá mais problemas, mesmo que aplique vigas de aço mais baratas e utilize um menor doseamento de cimento. Aqui, nunca houve terramotos e a construção de uma escola não se destina a ser eterna. Não é um Louvre! As reformas do ensino estão, continuamente, a exigir novas condições operacionais. Antes que as paredes abram fendas, as novas escolas terão de ser demolidas ou, pelo menos, modificadas. Não se preocupe com isso e poderá ganhar a dois carrinhos.

Ansley corou. Engoliu a expressão de repugnância que estivera prestes a sair-lhe da boca. Terminou a bebida e pousou o copo.

- Bem, vou andando - decidiu.

Borden sorriu e fez um movimento para acompanhar Ansley à porta.

- Não se incomode... e obrigado.

- Fez bem em procurar o auxílio de um perito em relações públicas. Ninguém mais o incomodará... nem no futuro mais distante. Por meu intermédio vai fazer bons negócios... e uns atrás dos outros.

Escoltou Ansley até à porta e desejou-lhe uma boa noite, quando o viu descer os degraus do pórtico, para a chuva fria.

Ansley compreendeu que os seus problemas com o inspector tinham terminado. Agora, começava a tê-los com a própria consciência. Entrou no carro, ligou o motor e arrancou, direito ao portão de ferro da quinta. Quase o atingia, quando se viu obrigado a travar bruscamente. O piso estava escorregadio e o seu carro derrapou ligeiramente.

O automóvel que lhe surgira, em sentido contrário, deu uma guinada, embateu no lado esquerdo da retaguarda do carro de Ansley, entrou numa derrapagem, em que quase inverteu a marcha e virou-se, chocando com uma árvore.

Quando Ansley conseguiu parar, saiu do carro e correu para o automóvel sinistrado. Patinhou nas poças de água da berma da estrada e pisou a erva alta da álea arborizada. A noite estava escura e a copa do arvoredo tornava o local completamente tenebroso. Não via um palmo, diante do nariz, pelo que decidiu voltar ao carro para munir-se da sua lanterna portátil.

- Está alguém ferido? - gritou, por várias vezes, mas sem obter resposta.

Quando tirou a lanterna do porta-luvas, verificou que aquela tinha as pilhas praticamente gastas, projectando apenas um débil foco de luz. Bateu com a cabeça num ramo baixo e a folhagem molhada fustigou-lhe o rosto. Tornou a perguntar:

- Está alguém ferido?

Os faróis do automóvel tinham-se apagado, quando embatera na árvore. Tinha a porta do condutor aberta. Então, viu uma longa perna de mulher, com um sapato negro, de salto alto. À fraca luz da lanterna, notou que as saias desta estavam subidas até quase à cintura. Nesse momento, a luz da sua lanterna extinguiu-se completamente. Ouvia-se o ruído de um líquido a escorrer, sobrepondo-se ao da chuva. Ansley estacou. Um odor a gasolina chegou-lhe às narinas e compreendeu que não poderia acender um fósforo, sem correr o risco de incendiar o carro. Aproximou-se da mulher, e tocou-lhe na perna cuja meia de nylon estava encharcada; a outra perna, dobrada, achava-se enterrada na erva, debaixo daquela em que ele tocava. Pôs-lhe a mão no peito e verificou que respirava. Tornou a falar à mulher, mas esta não respondia. Então, decidiu-se a voltar a casa de Borden, para pedir auxílio. Não era médico e nada poderia fazer sem luz. Já tinha percorrido duzentos metros, quando ouviu gritar:

- Socorro!

Voltou para trás. Foi encontrar a mulher, ainda com as saias levantadas, expondo a roupa íntima, mas já tentando sentar-se.

- Está magoada? - perguntou Ansley, estendendo-lhe uma mão, para ajudá-la a levantar-se.

Instintivamente, a mulher baixou um pouco as saias, até meio das coxas.

Era uma jovem esbelta, mas Ansley mal podia ver-lhe as feições. Quando conseguiu pô-la de pé, notou que ela tinha os sapatos e os tornozelos enlameados.

- Sente-se bem? Acha que pode andar? A jovem cambaleou, apoiando-se nele.

- Onde estou? Que aconteceu?

- Está ferida? - repetiu Ansley.

- Não sei.

- Vamos já ver isso. Consegue mexer as pernas? Não tem qualquer osso partido?

- Quem... Quem é você? - balbuciou ela.

- Ia a conduzir o meu carro, quando o seu veio contra mim.

- Oh!

- Experimente mover os membros.

- Sim... Parece que não parti osso algum. Ansley ajudou a jovem a dar alguns passos.

- Onde estou? - tornou ela a indagar.

- Na propriedade de Meridith Borden.

- Devo ter-me enganado no caminho.

- Vinha sozinha?

- Sim.

- Tem alguma coisa, no carro, que deseje retirar de lá?

- Só a minha bolsa de mão. Pode alumiar-me?

- Não. Infelizmente a minha lanterna tem as pilhas gastas.

- Tem um fósforo?

- Sim, mas não podemos utilizá-lo. Há gasolina derramada no carro. Foi uma sorte que o depósito não tivesse explodido. Quer que eu procure a sua bolsa?

- Não. Eu trato disso... Se me ajudar, creio que posso entrar pela porta aberta e recuperar as minhas coisas.

Ansley ajudou-a a subir, depois de ela erguer as saias para que não lhe tolhessem os movimentos. Tinha umas pernas magníficas e, noutras circunstâncias, Ansley teria pensado noutra coisa que não fosse a estranha situação em que se achava.

Quando a jovem lhe passou a bolsa para as mãos, Ansley indagou:

- Não deixou qualquer outra coisa, lá dentro? Você está com um simples saia-casaco... e, com este frio.

- Tem razão. Vou procurar o meu casaco de abafo. Levou algum tempo, até que pediu:

- Ajude-me a sair daqui. Não tenho forças para subir...

Ansley saltou para cima do carro virado e puxou a jovem por um braço, visto que o outro tinha o casaco de abafo enrolado, contra o peito.

Momentos depois, já no carro, a jovem pediu:

- Vamo-nos embora daqui.

Ansley hesitou.

- Não seria melhor utilizarmos o telefone de Borden, para comunicar o acidente à Polícia?

- Não vale a pena. Basta anotarmos os números das nossas licenças de condução e os cartões do seguro... tanto mais que não houve ferimentos pessoais.

- Muito bem. Onde quer que a leve?

- Sabe onde ficam os Ancordia Apartments?

- Ainda não estou muito familiarizado com esta cidade.

- Vá seguindo que eu indico-lhe o caminho, logo que atinjamos a estrada principal. O seu carro ficou danificado?

- Como vê, o motor nada sofreu, nem os eixos das rodas. Creio que só um dos lados da retaguarda ficou amolgado.

- Ainda bem. O meu nome é Beatrice Cornell e vivo nos Ancordia Apartments. Os meus amigos tratam-me simplesmente por "Bee".

- Eu sou George Ansley, um construtor civil que se esforça por trabalhar neste Estado.

- Pode indicar-me o número de matrícula do seu carro?

- JYJ 113 - disse Ansley. - Tenho seguro contra todos os riscos... E você?

- Também. O meu carro é CVX 266. Portanto, podemos dispensar os aspectos legais do acidente e passarmos aos factos materiais. Que diabo aconteceu?

- Eu ia a sair da quinta de Borden, quando você passou pelo portão e veio chocar comigo, em derrapagem.

- Ah!... Sim. Lembro-me de ter travado bruscamente, junto do portão, por ter visto um vulto na estrada... ou coisa assim. Julgo que foi um gato. Não desejava entrar nessa quinta, mas virei o volante e... bem, não sei que mais aconteceu, a não ser a pancada que dei no seu carro.

- Sente-se bem? Não ficou magoada?

- Não. Tenho as pernas cheias de lama, mas não arranquei sequer um pedaço de pele.

- A minha licença de condução está no porta-luvas, dentro de uma carteira de celofane. Abra-a e copie-a.

- Não é preciso. Confio em si. Essa formalidade só se torna necessária a pessoas que pretendem levar a cabo um processo litigioso e... não é o nosso caso. Espero que venhamos a ser amigos.

- Também espero que sim. Sinto-me feliz por você não se ter magoado.

- Estou perfeitamente... neste momento. Provavelmente, amanhã, sentir-me-ei um tanto ou quanto "amachucada".

- As contusões, enquanto os músculos estão quentes, não são muito sensíveis... mas, depois, doem.

- Veremos isso, quando esfriarem.

Beatrice riu-se, como se estivesse encantada com o acidente que acabara de sofrer.

- Vejo que é uma mulher muito decidida!

- Gosto de acção... Você disse que aquela propriedade pertencia a um tal Borden?

- Sim.

- Não é sujeito relacionado com os políticos deste Estado?

- Ele intitula-se, simplesmente, "relações públicas".

- É uma maneira sofisticada de exprimir que faz os trabalhos sujos dos politiqueiros que nos governam. Agora, se não se importa, vou fechar um pouco os olhos.

- E eu vou levá-la a um médico. Você tem de ser vista...

- Não seja tolo. Não preciso de médico algum... e, se precisasse, tenho um, no bloco de apartamentos onde vivo. Quando muito, vai receitar-me um sedativo.

A jovem encostou-se para trás, no assento, e fechou os olhos. Rodaram em silêncio e, cinco minutos depois, Ansley parava diante do Ancordia Apartments.

- Chegámos - anunciou Ansley.

- Aqui... Onde? - balbuciou ela, abrindo os olhos. Por momentos, a jovem manteve-se imóvel. Depois, com um sorriso provocador, inclinou-se para Ansley e entreabriu os lábios. Estavam tão perto um do outro que as bocas quase se tocavam. Não resistindo à tentação, Ansley beijou-a.

Ela estremeceu, mas não o repeliu. Só instantes depois, pareceu tomar consciência do que sucedera, afastou-o brandamente e fitou-o com uma vaga indignação.

- Por que fez isto?... Eu estava meio adormecida...

- Perdoe-me. Não pude resistir...

A jovem riu-se.

- Nada tenho a perdoar-lhe... Creio que fui eu quem, inadvertidamente, aproximei a boca da sua. Na minha sonolência, tomei-o por um dos meus amigos que acabasse de trazer-me a casa... Da mesma maneira, Mr. Ansley, foi um beijo de despedida e de agradecimento pelo incómodo que lhe dei, esta noite... Vou tornar a vê-lo?

- Certamente, se assim o desejar. Vou acompanhá-la ao seu apartamento.

- Não. Não precisa de maçar-se mais comigo. Sinto-me perfeitamente.

- De qualquer modo, acho ser meu dever subir consigo...

- De maneira alguma! - recusou a jovem, abrindo a porta do carro. - Mas pode acompanhar-me até à porta.

Ansley saiu apressadamente da viatura, para ajudá-la a descer para o passeio e deu-lhe a mão, mas ela já estava de pé, sorridente e murmurou:

- Estou enlameada, dos pés à cabeça.

Ergueu a saia, exibindo as coxas, mas fê-lo de um modo tão natural que não pareceu uma provocação.

- Bem, no estado em que estou, creio que será melhor eu própria fazer esta inspecção, na intimidade do meu quarto... e sem testemunhas.

Deu uma ligeira corrida para as escadas do edifício e abriu a bolsa. Então, com um gesto de impaciência e desalento, exclamou:

- Que cabeça a minha! Lá tornei a esquecer-me das chaves, no escritório! Você não fique aí especado, por minha causa. Tem o carro mal arrumado, quase no meio da rua. Vá-se embora. Basta-me tocar para o apartamento de uma vizinha minha amiga que logo me abre a porta. Para mal dela, não é a primeira vez que isto me acontece.

Premiu a campainha e a porta não tardou a abrir-se. Manteve-a entreaberta com um pé e disse para Ansley.

- Vou consentir que me dê outro beijo, George. Você deve ser perito em beijar, a não ser que eu estivesse a sonhar com o príncipe encantado da "Bela Adormecida".

Ansley envolveu-a nos braços. Foi um longo beijo a que a jovem correspondeu sensualmente.

- Agora, já estou bem acordada, George. Você é, realmente, um perito. Pressinto que ainda faremos isto, mais vezes... noutra melhor altura. Adeus, George. Telefone-me.

Esgueirou-se para dentro do edifício e a porta fechou-se. Ansley ficou a vê-la afastar-se, através do vidro irritantemente granitado.

Depois de ouvir o estalido do trinco, não teve consciência de que estava a ser ridículo, ali parado, à chuva. Quando se apercebeu do facto, rodou sobre os calcanhares e regressou ao carro. Sentou-se ao volante e começou a rodar, imerso em pensamentos agradáveis amalgamados com outros preocupantes.

 

Perry Mason e Della Street estavam a deliciar-se com um jantar cuidadosamente confeccionado, olhando, de quando em quando, para o palco da orquestra.

Dançaram por duas vezes e voltaram para a mesa. Mason bebia o seu conhaque e Della beberricava o seu Benedictine, quando se aperceberam da presença de um vulto, perto deles.

Della notou que o jovem não sorria, parecendo desejar tratar de um assunto sério.

- Mr. Mason? - perguntou o recém-chegado, com certo nervosismo. - Sou George Ansley. Estava, há alguns momentos, a beber um cocktail, ali no bar, quando olhei para aqui e o vi. Apenas o conheço de vista, Mr. Mason, porque tive oportunidade de, ao chegar a esta cidade, ter assistido, como espectador, a um dos seus debates forenses, no tribunal. Desgosta-me imenso vir perturbar-vos a refeição... Esperei que esta estivesse no fim, para ousar incomodar-vos... Mr. Mason, aqui tem o meu cartão profissional. Preciso do seu conselho, como advogado. Não lhe tomarei muito tempo. Se me der a resposta que pretendo, pode mandar-me a conta dos seus honorários.

- Lamento imenso... - começou Perry Mason a recusar, mas, observando melhor o intruso, mudou de ideia. - Queira sentar-se, Mr. Ansley e tome uma bebida na nossa companhia. Esta jovem é Miss Street, minha secretária particular. Para sua informação, Ansley, só me encarrego de casos que despertem o meu interesse. Geralmente, gravitam em torno de um homicídio, pois sou um advogado criminal que unicamente procura defender pessoas injustamente acusadas de um crime. É esse o seu caso?

- Na verdade, não se trata de qualquer homicídio... Provavelmente, a seus olhos, o meu assunto pouco lhe interessará... mas é terrivelmente importante para mim.

- Muito bem. De que se trata?

- Virtualmente, o meu carro não ficou danificado, mas o que colidiu comigo está completamente destruído. Eu acabava de sair de uma propriedade, com cujo dono tivera uma entrevista, e fui abalroado por um automóvel, conduzido por uma jovem. Esta foi projectada da viatura que se virou, mas não ficou ferida... Pelo menos, aparentemente... e é isso que me perturba.

- A sua exposição, Ansley, não está a fazer muito sentido. Talvez seja conveniente explicar-se melhor - convidou Mason, sorrindo benevolamente.

- Trata-se de uma jovem encantadora, cheia de personalidade... Deu-me a entender que gostava de mim e eu... bem, achei-a extraordinariamente atraente. Contudo, tenho estado a pensar no assunto...

Ansley interrompeu-se, embaraçado.

- Continue - Incitou Mason.

- Depois de tê-la deixado, à porta do apartamento, comecei a pensar que o acidente e o consequente episódio que se passou entre ambos, era estranhamente peculiar. Ela deixou-me beijá-la e pareceu-me sentir-se normal... Contudo, sei que estes casos de colisão de automóveis provocam contusões, por vezes graves, mas que essa gravidade só se manifesta horas depois. Suponho que devo notificar a minha companhia de seguros. Evidentemente, não terei outro remédio senão fazê-lo. Porém, quanto a relatar o acidente à Polícia...?

- A jovem estava inconsciente, quando a encontrou?

- Sim.

- E o carro completamente destruído?

- Sim.

- De que espécie de carro se tratava?

- Um belo Cadillac do último modelo.

- Fixou o número de matrícula?

- Sim. Era CVX 266.

- Muito bem. Comunique o acidente à Polícia. Onde é que ele ocorreu?

- Esse é o problema, Mr. Mason. Não me convém notificar a Polícia, a menos que se torne absolutamente imprescindível.

- Porquê? - estranhou Mason.

- Porque... É uma história complicada e, de certo modo, melindrosa. Escute, Mr. Mason, eu sei que é um homem deveras ocupado e depreendo que veio aqui para descontrair-se dos seus afazeres profissionais. Tenho o discernimento suficiente para perceber que escolhi mal a noite e o momento... mas isto é tão importante para mim! Pressinto que vou necessitar do conselho do melhor consultor jurídico. Receio ter-me metido numa "alhada"...

- Por que não contacta com a Polícia?

- Porque sou um construtor civil. Entrei num concurso oficial para a edificação de um edifício público nesta cidade, e tive a sorte de ser escolhido, em virtud das minhas condições orçamentais. Contudo, mal iniciei os trabalhos, comecei a ser perseguido. Agora, antevejo a falência, a menos que consiga travar a acção dos meus perseguidores.

- Quem são eles?

- Não sei. Mas não se trata de um caso de mania da perseguição da minha parte. Os inspectores municipais começaram a tornar-me a vida impossível, com argumentos totalmente desprovidos de senso comum. Intervêm nas obras, sistematicamente, de maneira a impedir o cumprimento dos prazos estabelecidos.

- Que mais?

- Este é o meu primeiro trabalho, nesta cidade. Não fui ambicioso nos lucros e utilizei, na obra, todo o meu crédito bancário.

- Continuo a não perceber aonde quer chegar Ansley.

- Apontaram-me o indivíduo que poderia remediar a situação. Um tal Meridith Borden, "relações públicas" e homem da confiança de políticos influentes. Exigiu-me o pagamento de "luvas" aos responsáveis pelos impedimentos impostos à construção que tenho em mãos. Trata-se, portanto, de "comprar" a "boa vontade" de entidades oficiais, evidentemente corruptas, por intermédio desse "relações públicas". Ora, no momento do acidente, eu saía da propriedade do referido intermediário, Meridith Borden. É por esse motivo que não desejo meter a Polícia no caso Se for dada publicidade ao assunto, a minha relação com Borden levantará suspeitas de tentativa de corrupção de minha parte. Compreende?

- Muito bem. Deixe a Polícia em paz, mas não deixe de participar o acidente à companhia de seguros. Tem a certeza de que a jovem não ficou ferida?

- Pareceu-me fina... mas há uma coisa que já não me parece tão fina.

Mason olhou de relance para Della Street e notou-lhe, na expressão, um lampejo de desaprovação.

- Agora, Ansley, já começa a interessar-me - confessou Mason. - Sabe o nome dessa rapariga?

- Sim, evidentemente. Chama-se Beatrice Cornell e mora no Ancordia Apartments.

- Viu a carta de condução, com o nome dela?

- Não.

- Por que não?

- Bem... foi esse um dos pormenores que começou a dar-me que pensar. Bee achou não ser necessário um procedimento oficial, em relação ao acidente, visto que ambos estávamos seguros contra todos os riscos... Pelo menos foi o que ela afirmou. Mostrou confiar em mim, pelo que lhe retribuí com a minha confiança. Mas, depois de deixá-la, estranhei a maneira como se comportou em relação ao acidente. Não tenho dúvidas de que ela se dirigia, deliberadamente, para casa de Borden, tanto mais que chocámos à entrada da propriedade e o carro dela virou-se lá dentro. Contudo, afirmou-me que, só por acaso, entrara pelo portão. Vira qualquer coisa como um gato atravessar-se na estrada, travou, derrapou e, ao tentar endireitar a direcção, enfiou pela propriedade. Afiançou-me não conhecer Borden, a não ser de nome, e classificou-o como um indivíduo desonesto.

Mason, que fizera um sinal para chamar o criado, mandou que este trouxesse um cálice de balão e que servisse um conhaque a Ansley. Depois, decidiu:

- O melhor que tem a fazer é contar-me toda a sua história, desde o início.

Della Street tirou um bloco-notas e um lápis da bolsa de mão e aprontou-se a registar a versão de Ansley. Este narrou os acontecimentos, do princípio ao fim. Mason, franzindo as sobrancelhas, inquiriu:

- Tem a certeza de que essa jovem estava realmente inconsciente, quando se acercou dela, pela primeira vez?

- Sim. Perdera os sentidos. Notei que respirava, mas não conseguia ouvir as minhas perguntas acerca do estado em que se achava.

- Só recuperou os sentidos e chamou por socorro, quando você se encaminhavam para cá?

- Exactamente. Por isso, voltei para o pé dela.

- Quanto tempo esteve de costas para ela, a caminho da casa desse tal Borden?

- Não posso precisar. Dois minutos, talvez três. Depois, voltei para trás...

- Sim... E, ao chegar ao pé da jovem, já a encontrou plenamente consciente?

- Sim.

- Quando, momentos antes, a encontrara caída na erva com as pernas inteiramente descobertas, até à cintura, notou algum pormenor especial?

- Que quer dizer com isso? - espantou-se Ansley.

- Por exemplo, a cor das meias; o tipo de sapatos que usava.

- Bem... vi, unicamente, que tem umas pernas magníficas; deve andar pelos vinte e quatro, vinte e cinco anos; é deveras bonita... encantadora, com um cabelo castanho avermelhado; tem olhos muito escuros e sorri facilmente, com uns lábios estupendos e dentes muito brancos e regulares.

- Está bem, Ansley, mas concentremo-nos nos sapatos. Como eram eles?

- Os sapatos? Porquê?

- Podem constituir um pormenor importante.

- Eram escuros, abertos no peito do pé, de salto alto... Depois, ficaram completamente enlameados.

- E ela disse-lhe não desejar ser vista por um médico, não é verdade? - inquiriu Mason.

- Sim. Disse estar bem e...

- Pois eu vou fazer com que ela me diga isso, a mim - decidiu Mason. - Apresentar-me-ei como seu advogado, Ansley, e vou exigir que ela seja vista por um médico, de maneira a termos a certeza de que ficou bem de saúde, sem perigo de uma recaída.

- Verá que ela recusa, Mr. Mason.

- Mas não deixaremos de propor-lhe a consulta médica. Dessa maneira, livramo-nos de responsabilidades.

Virando-se para Della, indicou:

- Faça-me o favor, minha amiga, de telefonar para Miss Beatrice Cornell, dos Ancordia Apartments. Se o número dela não vier na lista, teremos de ir até lá, pessoalmente. Se Miss Cornell atender, faça-me um sinal para que eu fale com ela.

Momentos depois, Della levantava uma mão e Mason dirigiu-se à cabina.

- Um momento, Miss Cornell. Sou Miss Street, secretária de Mr. Perry Mason, advogado. Ele deseja falar consigo... Não, não se trata de qualquer brincadeira. Ele está aqui ao meu lado, por favor não desligue.

Mason empunhou o auscultador.

- Miss Beatrice Cornell? Sou o advogado Perry Mason...

- Que diabo de gracinha é essa?... Já tenho aturado bastantes, mas confesso que essa é nova!

- Não se trata de uma brincadeira. Por que pensou uma coisa dessas?

- Porque os meus amigos sabem que admiro esse advogado e já tenho faltado a algumas reuniões com eles, para ir ao tribunal ouvir os debates em que Perry Mason intervém... Muito bem, admitamos que o senhor é Perry Mason e eu sou a Rainha de Sabá. Por que está a telefonar-me?

- No interesse de um cliente.

- Qual o nome desse seu cliente? - inquiriu a voz, trocista.

- George Ansley. Esse nome diz-lhe alguma coisa?

- Não. Que relação pensa que possa existir entre mim e esse indivíduo?

- É o homem que, ainda há pouco, a levou a casa.

- A mim?- espantou-se Beatrice Cornell.

- Sim, depois do acidente de automóvel.

- De que acidente está a falar, Mr. Mason? Não faço a menor ideia do que se trata!

- Do acidente em que o seu carro, um Cadillac, salvo erro com a matrícula CVX 266, ficou virado na estrada.

Beatrice riu-se e elucidou:

- Sou uma rapariga que trabalha, Mr. Mason! Há já vários anos, desde que meu pai morreu, que não tenho automóvel... e nunca guiei qualquer coisa que se parecesse com um Cadillac. Por que motivo pensa que tive esse acidente?

- Não mora nos Ancordia Apartments?

- Sim. E depois?

- É muito importante, para mim, Miss Cornell, que me faça uma descrição física da sua pessoa.

- Porquê?

- Porque alguém pode ter usado o seu nome e morada, num caso de considerável gravidade.

Após um momento de hesitação, Beatrice decidiu-se:

- Muito bem. Presumindo que o senhor é efectivamente o advogado Perry Mason, vou dar-lhe a descrição física da minha pessoa que consta da carta de condução (1): sou morena, de olhos escuros, tenho um metro e sessenta e cinco de altura e peso cinquenta e sete quilos. Já fiz trinta e três anos. Que mais deseja saber a meu respeito?

- Nada mais e agradeço-lhe muito, pois não há dúvida de que alguém se serviu do seu nome e morada. Conhece alguma jovem; nesse mesmo edifício de apartamentos, que se lembrasse de passar por si, para livrar-se de responsabilidades?

 

(1) As cartas de condução, nos Estados Unidos, apresentam especificações sinaléticas tão pormenorizadas que podem ser utilizadas como bilhete de Identidade. (N. do T.)

 

- Não. De que se trata, Mr. Mason? É mesmo um caso grave?

- Sim. Uma jovem sofreu um acidente de automóvel e Mr. Ansley levou-a, aí a casa, pois ela apresentou-se-lhe como sendo Beatrice Cornell.

- Pode descrevê-la?

- Ainda não conferi esses pormenores com o meu cliente - respondeu Mason, cauteloso. - Desculpe tê-la incomodado. Boa noite.

Desligando, Mason indicou a Della Street:

- Queira contactar, por favor com a Agência de Detectives Drake e encarregue Paul Drake de averiguar tudo quanto se refira a um Cadillac com a matrícula CVX 266. Que se despache o mais depressa possível. Entretanto, vou interrogar melhor esse Ansley.

Chegado à mesa, esclareceu:

- Miss Beatrice Cornell declara nada saber acerca do acidente que você descreveu. Parece que a sinalética dela não confere com a discrição da moça que você, há pouco, referiu. Esta Beatrice afirma ter trinta e três anos, pesar cinquenta e sete quilos, medir um metro e sessenta e cinco de altura e ser morena de olhos escuros, com cabelo preto.

- Não pode ser a mesma. A jovem a que me refiro tem um cabelo castanho avermelhado...

- As mulheres pintam o cabelo com a mesma frequência com que nós mudamos de gravata - objectou Mason.

- Sim, isso é verdade, mas a Beatrice a que me refiro, quando... bem... quando a beijei, não precisou de pôr-se em bicos dos pés, para que os seus lábios chegassem aos meus. Eu meço um metro e setenta 9 quatro. Descontando o tamanho dos saltos, deverá ter um metro e sessenta e oito, pelo menos. Pensando nos sapatos...

Nesse instante, Della Street aproximou-se apressadamente.

- Um momento - cortou Mason. - Parece termos novidades importantes. Que se passa Della?

- O carro Cadillac CVX 266 foi roubado, esta noite. A queixa foi apresentada à Polícia, há pouco mais de duas horas. Agora, Paul Drake está embaraçado, visto que a Polícia quer saber por que motivo é que ele se interessa por um carro, roubado há tão pouco tempo.

- Que fez ele?

- Disse que a informação lhe fora pedida por um cliente e prometeu indicar a esse cliente que se ponha em contacto imediato com a Polícia. Contudo, esta não ficou contente com o secretismo de Drake que, evidentemente, receia meter-se em apuros, já que se trata de um roubo. Não pode ocultar uma pista à Polícia...

- Bem - cortou Mason. - Volte a telefonar a Drake, Della, e diga-lhe que informe a Polícia de que eu sou o cliente que lhe pediu a informação acerca do carro.

- Isso vai deixá-lo, a si, encravado, Chefe! - observou Della. - Não pode ocultar uma pista de um roubo.

- Não sou obrigado a mencionar o nome do meu representante, neste caso. Mr. Ansley não roubou carro algum. Apenas me comunicou um acidente de viação.

Virando-se para Ansley, indagou:

- Que ia dizer-me, há pouco, acerca dos sapatos da sua companheira desta noite?

O construtor mostrou-se confuso.

- Será possível que ela tenha mudado de sapatos?

- Que quer dizer com isso?

- Bem... Não sei... Creio que estou desnorteado. Quando a vi, pela primeira vez, iria jurar que lhe vi um sapato escuro, de salto alto, desses de peito aberto, para traje de noite. Contudo, quando se pôs de pé, tinha os pés e as canelas enlameadas e, já no carro, enquanto dormitava, olhei-lhe, naturalmente para as pernas e notei que usava uns sapatos de calfe castanho e salto largo, médio.

Mason franziu os olhos e considerou:

- Não é provável que uma mulher, inconsciente, tenha mudado de sapatos, após um acidente, muito menos, em cinco ou seis minutos. Portanto, deve tratar-se de duas mulheres diferentes.

- O quê?

- A primeira que você viu estendida na relva, antes de ir tentar pedir auxílio, e outra que substituiu aquela e o chamou, a si, para que não fosse a casa desse tal Borden. Ela não lhe mostrou a carta de condução, não foi o que me disse?

- Não. Achou não valer a pena...

- Pois bem, só nos resta dar uma vista de olhos a esse carro que se virou à entrada da propriedade de Borden.

Voltando-se para Della Street, Mason recomendou:

- Torne a telefonar a Paul Drake e peça-lhe que informe a Polícia de que sou eu quem está a investigar o caso do acidente, mas que, neste momento, não sabe como contactar comigo.

- Pensa que a outra mulher ainda lá se encontra? - perguntou Ansley.

- É o que precisamos de averiguar. Se essa dama do sapato de salto alto estiver gravemente ferida, não poderemos deixar de informar a Polícia... e você terá de responder a uma data de perguntas, quer lhe agrade quer não.

 

Uma chuva fria fustigava o pára-brisas do carro de Perry Mason, quando a luz dos faróis iluminou a entrada da propriedade de Meridith Borden.

- Aqui estamos - indicou Ansley. - O carro dela virou-se, um pouco mais além, para lá dos portões.

Mason travou e tirou uma lanterna eléctrica do porta-luvas do automóvel.

- Vamos lá procurar essa "primeira" mulher. Se não a encontrarmos, teremos de ir a casa de Borden, para informar a Polícia. Que sabe acerca desse sujeito, Ansley?

- Só o conheço de reputação... e tudo quanto ouvi dizer a seu respeito é mau.

- Consta, realmente, que é um tipo desonesto com uma boa porção de inimigos. Repare que este muro está coberto de vidros e tem arame farpado, para evitar um fácil escalamento. O portão tem um mecanismo eléctrico, de maneira a poder ser fechado por meio de um dispositivo de comando, instalado na casa. Provavelmente, a fechadura está munida de um sistema de alarme. Não será de estranhar que, depois de o portão estar fechado, esse Borden solte um cão de guarda. Por conseguinte, convém-nos não nos afastarmos uns dos outros; devemos ir cautelosamente e, ao primeiro sinal de perigo, teremos de correr para sair pelo portão e voltarmos para o carro. Agora, vamos lá ver esse automóvel virado.

Momentos depois, Ansley, junto ao automóvel, apontava:

- Foi aqui que encontrei a jovem caída.

O foco da lanterna de Mason varreu a erva e Della Street indicou dois traços paralelos, muito juntos, que se afastavam do local, para debaixo das árvores.

- Este rasto parece ter sido feito por calcanhares de um corpo, provavelmente arrastado pelas axilas. Não há dúvida - concluiu Mason - que devia ter sapatos com saltos altos. Notem os rasgos finos, na lama, entre a erva.

Ansley já se entranhara sob as árvores e observou:

- Esse rasto acaba aqui. Esteve um corpo caído, neste Ponto... mas já cá não está.

- Ou a mulher partiu, pelo seu próprio pé, ou alguém a levou - deduziu Mason.

Procurou pegadas em redor, mas não conseguiu encontrá-las. Na berma da estrada, viu apenas duas, de sapatos femininos. Não havia quaisquer outras, visíveis.

- Deve ter-se ido embora sozinha - acrescentou.- Contudo, como não tinha carro que a transportasse, só nos resta admitir duas hipóteses. Foi para casa de Borden, ou dirigiu-se para a estrada, tentando arranjar uma boleia.

- E essa história do carro roubado-lembrou Ansley - em que situação nos deixa?

- Terei de dizer a Drake que informe a Polícia de tudo aquilo que sabemos. Comunicará às autoridades que um cliente meu viu um carro sair da estrada e virar-se após o despiste; que esse meu cliente fixou o número de matrícula e verificou que a viatura era conduzida por uma jovem; que esta lhe disse chamar-se Beatrice Cornell, não estar magoada e viver nos Ancordia Apartments. São factos verdadeiros e espero que os inspectores considerem esta participação de acidente, como mera rotina.

- E se começarem a exigir mais pormenores?

- é possível que o façam. Depois veremos até que ponto poderemos omitir a sua visita a casa de Borden. Agora, convém-nos sair daqui, o mais depressa possível. Se alguém, da casa, avistou a luz da minha lanterna pode desejar saber o que se passa... soltando o cão, e tenho o palpite de que uma propriedade destas talvez tenha mais do que um par de maxilares, ansiosos por se ferrarem nas nossas canelas. Vamo-nos embora!

Faltava-lhes menos de quatro metros para atingirem a saída, quando se ouviu o som de uma campainha eléctrica e os portões começaram a fechar-se.

Mason ainda correu para eles, mas não chegou a tempo. Ansley tentou abrir o fecho, sem o conseguir e, no mesmo instante, soou uma estridente sereia de alarme.

Encontraram-se fechados dentro da propriedade de Borden, vendo o carro de Mason através do gradeamento dos portões. Tornava-se impraticável passar por cima destes, pois estavam eriçados de pontas de lança afiadas e tinham ainda uma cobertura complementar de arame farpado.

- Por aqui - decidiu Perry Mason. - Despachem-se. Tirou o casaco e lançou-o para cima do muro, de maneira a cobrir os vidros incrustados no topo e as duas linhas de arame farpado que se estendiam ao longo das arestas daquele.

Compreendendo-o, Ansley fez o mesmo. Ajudaram Della Street a subir lá para cima e a jovem ficou a cavalo no muro, logo estendendo a mão, para ajudar Ansley a reunir-se-lhe.

Nesse momento, ouviu-se o ladrar de um cão que se aproximava velozmente. Outro, ladrava ao longe. O ruído da sereia era ensurdecedor.

- Só nos falta que comecem aos tiros - resmungou Mason, ao ser içado por Della, visto que Ansley já saltara para o outro lado do muro. No instante em que Mason ergueu as pernas, puxado por Della, o mastim chegara ao muro e saltou contra este, procurando agarrar o advogado.

De pé sobre os vidros, Mason ajudou Della a sair da sua incómoda posição e, pouco depois, Ansley recebia-a nos braços. Finalmente, Mason saltou, depois de ter retirado os casacos que tinham servido de sela à improvisada cavaleira.

- Como está, Della? Ficou ferida?

- Espero ainda poder sentar-me, pela vida fora. Contudo, Chefe, amanhã, não vou consentir que homem algum me belisque o traseiro.

- Ficou ferida? - interessou-se Ansley. - Não quer ser vista por um médico?

- Posso jurar-lhe que não me agrada nada essa perspectiva. De resto, creio que nenhum dos vidros me feriu. Sinto-me apenas ligeiramente contundida e, se for necessário, talvez aplique um pouco de mercúrio-cromo... Tenho um espelho, lá em casa e prefiro não ter espectadores ao curativo.

Riu-se e foi a primeira a avançar para o carro, a correr. Quando já estavam instalados, Mason arrancou e assobiou baixinho.

- Em que está a pensar, Chefe? - sondou Della.

- Suponham que a outra mulher... a dos saltos altos... entrou nesta propriedade e o cão lhe saltou em cima...

- Santo Deus! - exclamou Della.

- Provavelmente, o cão só é solto quando o mecanismo eléctrico fecha os portões. Esse sistema de segurança já é comum em várias propriedades.

Com espanto de Della e de Ansley, parou o carro e descreveu uma volta em U.

- Que está a fazer, Chefe?

- Lembrei-me de que este sistema de segurança costuma ser completado por um telefone exterior, ligado à casa, para quem queira entrar, depois dos portões fechados. Vamos contactar com Mr. Meridith Borden. Talvez descubramos a tal mulher, lá em casa.

Efectvamente, ao lado direito da entrada via-se uma portinhola que cobria um nicho. Mason abriu-a e pegou no auscultador do telefone.

Uma voz feminina atendeu:

- Está? Quem é?

- Houve um acidente de viação. Encontra-se um carro virado, dentro da vossa propriedade, não muito longe dos portões, É possível que uma mulher esteja dentro da quinta.

- Quem fala?

- Ia a passar na estrada, no meu carro...

- Vou ver o que posso fazer - cortou ela. - Não creio que Mr. Borden deseje ser incomodado, a esta hora.

Um estalido indicou que o telefone se desligara. Mason fez um sinal a Della que logo se aproximou.

- É natural que a mulher que me atendeu tenha ido chamar Borden. Seria melhor ser uma voz feminina a falar com ele. Como eram duas mulheres que seguiam no carro, talvez ele pense que este telefonema seja da outra.

Instantes depois, Della perguntava:

- Mr. Borden?... Sim, é um caso de emergência. Estamos junto aos portões. É possível que uma jovem, que sofreu um. acidente com um automóvel que se virou, ande aí, pela sua quinta, em estado de semi-inconsciência.

Após uns momentos de silêncio o telefone emitiu um zumbido e Della respondeu, com dignidade:

- Não vejo motivo para dizer-lhe o meu nome. Sou apenas uma passageira de outro automóvel que ia a passar na estrada.

Desligou e transmitiu a Mason:

- Quem atendeu declarou ser o próprio Borden. Afirmou que alguém tentara abrir o fecho dos portões do lado de dentro da quinta, desencadeando o alarme automático. Afirmou que já recolheu os cães aos canis e vai ver se encontra a mulher sinistrada. Talvez seja melhor safarmo-nos daqui, antes que ele mande alguém investigar a nossa identidade.

Mason pegou-lhe num cotovelo e levou-a para o carro.

- Então? - perguntou Ansley.

- Cumprimos o nosso dever. Avisámo-lo de que alguém pode andar a vaguear dentro da quinta. Agora, "raspemo-nos", quanto antes.

- Estou numa lástima - queixou-se Ansley. - Tenho o casaco ensopado e esfiapado.

- Eu gostaria de ter a certeza de que só tenho a saia furada - replicou Della, sorrindo.

Mason decidiu:

- A primeira coisa que tenho a fazer é arranjar maneira de "safar" Drake de complicações com a Polícia, por causa do Cadillac roubado. Vou deixá-lo, a si, Ansley, junto do seu automóvel. Meta-se nele e dirija-se directamente para casa. Dispa esse fato, mas não o mande a uma lavandaria. Limite-se a pendurá-lo num cabide do seu guarda-fatos. Se a Polícia se lembrar de levar por diante a investigação, não convém que você seja acusado de ocultação de provas. Não fale a ninguém no que aconteceu esta noite. Eu tratarei do caso... e mando-lhe a conta pelos meus serviços.

Deixou Ansley à porta do clube e, quando este se sentou ao volante do automóvel, Mason recomendou-lhe:

- Vá para casa e mantenha-se quieto. Avise-me, se acontecer mais qualquer coisa.

- Sinto-me satisfeito por ter-me entregue nas suas mãos. Acha que a Polícia não vai exigir que eu relate o acidente.

- Terá de fazê-lo, Ansley, se a outra mulher se encontrar lesionada. Contudo, por enquanto, você não sabe se ela existe. Portanto, não pode saber se ficou ou não ferida. Além disso, o acidente ocorreu, não na via pública, mas numa propriedade privada.

- Nesse caso, não tenho de comunicá-lo à Polícia?

- Eu não disse isso. Estou apenas a sugerir-lhe que deixe o caso comigo. Verei o que posso fazer em seu favor.

Depois de Ansley partir, Mason sondou;

- E você, Della? Como se sente?

- Molhada e sem grande vontade de que me dêem pontapés no fundo das costas. Mas estou pronta para qualquer outra viagem. Quanto a si, Chefe, não pode andar por aí, com a camisa encharcada e o casaco rasgado. Tem de mudar de roupa, quanto antes.

- Paul Drake está metido numa "alhada" e tenho de ir safá-lo, o mais cedo possível. Você vai para casa. Eu subo consigo e espero, enquanto se arranja.

- Não espera coisa alguma. Vai já mudar de roupa. Despacho-me depressa e, depois, sigo directamente para o escritório de Paul.

- Okay, minha amiga. Lembre-se daquilo que recomendei a Ansley. Não mande roupa alguma, da que teve hoje vestida, para a lavandaria. Limite-se a pendurá-la num cabide do seu guarda-vestidos... Tem a certeza de que não se feriu nos vidros ou no arame farpado?

- Talvez tenha ficado com umas ligeiras arranhaduras, mas não em sítio que se veja. Em pé, não me dóe nu... e posso sentar-me, com cuidado. Vá, Chefe, trate de enfiar qualquer coisa enxuta. Não demoro em ir ter consigo.

- O melhor, Della, é meter-se num banho quente.

- Não temos tempo a perder, Chefe. Drake tem prioridade em relação ao meu banho. Não demoro cinco minutos a mudar de roupa.

Mason parou o carro diante do edifício de apartamentos da jovem secretária. Della apeou-se e o advogado Insistiu:

- É melhor subir consigo, Della. Se apenas se demora cinco minutos, iremos juntos para a agência de Drake. Entretanto, tomo uma bebida para aquecer.

- Prepare duas, Chefe... Para mim, com pouca ou nenhuma água.

Enquanto Della Street se enxugava, na casa de banho, Perry Mason encheu dois meios copos de uísque.

- Está visível, Della? - sondou.

- Não estou, mas pode trazer-me a bebida, como se o estivesse. Não é costume dizer-se que, para o médico e para o advogado não há segredos?

Mason, beberricando o seu uísque seco, levou outro, com dois dedos de água, para a casa de banho. Della estava de roupão turco, sobre o corpo nu. Segurou no copo, com a mão direita, enquanto, com a esquerda, aconchegava a gola do roupão ao pescoço, tapando os seios.

- Que pudicícia, Della! - ironizou Mason.

- Estamos ainda em horas de serviço. Há momentos para tudo. Em tempo de trabalho, convém observar-se a hierarquia. Foi sempre essa a nossa regra, não é verdade?

- Sim; mas, vê-la de roupão dá-me vontade de sabê-la em tempo de folga.

- Também adoro esse género de folgas, mas noutras condições. Não, depois de ter passado pelo transe de cavalgar um muro inóspito. Agora, Chefe, vá para a sala, pois tenho de vestir-me no meu quarto. Não demoro mais de três minutos.

Um quarto de hora depois, Della Street e Perry Mason entravam no escritório da Agência de Detectives Drake, que ficava no mesmo piso em que o advogado tinha o seu consultório.

Paul Drake lamuriou:

- Os "chuis" não me têm "largado a perna". Já telefonaram para aqui, duas vezes, a indagarem acerca do teu paradeiro, Perry.

- Okay, Paul! Liga para eles.

Pegando no telefone, Drake pôs-se em contacto com a Polícia.

- Daqui Paul Drake. O meu cliente, que estava interessado acerca do dono do Cadillac CVX 266, acaba de chegar. Vou pô-lo em comunicação convosco. Um momento...

Mason pegou no auscultador.

- Sim, sou Perry Mason... sim, o advogado.

- Por que motivo já está um advogado metido no caso? - estranhou o agente de serviço. - Andamos à procura de um carro roubado e já entrou um advogado "na baila"... E logo Perry Mason!

- Estou a tratar deste assunto, porque me surgiu "na passada". Tenho um cliente que me participou um acidente, dentro de uma propriedade particular. O Cadillac CVX 266 derrapou, despistou-se e virou-se de lado. O meu cliente deu uma boleia à condutora do automóvel sinistrado.

- Essa condutora ficou ferida?

- Não... aparentemente.

- Sabe que se trata de um carro roubado, Mr. Mason?

- Agora sei, porque Mr. Drake me informou disso.

- Onde se encontra essa viatura?

- Na propriedade de Meridith Borden, perito de relações públicas, é uma grande quinta, a cerca de vinte quilómetros da cidade.

- Se é uma quinta com um alto muro em volta, sei onde fica.

- É essa mesma.

- Por que motivo só agora nos presta essa informação- resmungou o agente de serviço. - Fez-nos perder tempo!

- Porque, só há momentos, soube que se tratava de uma viatura roubada. Não sou adivinho, Nada indicava que o assunto fosse importante, visto o acidente ter ocorrido numa propriedade privada e não haver feridos a registar.

- Okay. Quem é o seu cliente?

- Não posso divulgar o nome de um cliente, sem o seu consentimento. Está protegido pelo direito da confidência.

- Olhe lá, Mr. Mason - protestou o agente. - Trata-se de um roubo de automóvel.

- Mas não foi o meu cliente quem o roubou; nem sequer o conduzia. Apenas assistiu ao acidente. Referiu-me a ocorrência e teve o cuidado de registar o número de matrícula da viatura sinistrada. É essa a informação que estou a prestar à Polícia; o roubo do automóvel nada tem a ver com o caso particular do meu cliente.

- Mas nós estamos interessados no caso desse automóvel - insistiu o agente.

- E eu estou interessado no caso do meu cliente... que em nada se relaciona com esse roubo.

Mason desligou, sorriu para Della Street e indicou a Drake.

- Vai para casa, Paul. Se alguém teimar em implicar contigo, atira com a responsabilidade para cima dos meus ombros. Vou deixar o meu carro arrumado no parque de estacionamento do edifício. Depois, levo Della a tomar dois runs com natas, aqui ao lado, ao Purple Swan, antes de levá-la a casa. Seguiremos de táxi, porque nunca guio com álcool no "bucho" e já bebi um uísque, antes de vir para cá.

- Tens medo de que a Polícia te faça o teste da "bexiga" e te meta na "gaiola", com um enxame de bêbedos?

- Não é uma questão de medo, mas de princípio... Põe-te a andar. Se te demoras muito tempo aqui, ainda assistes à intrusão dos "chuis" no teu território... e não te deixarão ir para a cama, tão cedo.

Pegando no chapéu, Drake saiu do escritório, logo seguido de Della e de Mason.

- Poupa a saliva, Perry. A cama, mesmo com um pesadelo, sempre é melhor que um "chui" perguntador.

 

Às nove horas da manhã, Perry Mason foi directo ao seu gabinete particular, penetrou no amplo aposento e viu Della Street, já às voltas com a correspondência quotidiana.

- Viva, Della! Que tal passou a noite? Teve de dormir de bruços?

- Deixe-se de sarcasmos, Chefe! Dormi optimamente, obrigada.

- Nada de golpes, nem arranhões?

- Nem arranhões, nem contusões. Sinto-me fina.

- Nesse caso, não precisou de mercúrio-cromo?

- Bastou-água e sabonete. A pele reagiu bem.

- Portanto, não tem hipótese de concorrer a um prémio de pintura, numa exposição de arte abstracta? Seria uma tela original, em forma de duplo hemisfério!

- Não seja desagradável, Chefe, logo de manhã! É ofensivo equiparar a minha pele a uma tela.

Rindo, acrescentou:

- Paul Drake telefonou, ainda há pouco, e pediu que ligasse para ele, logo que chegasse.

- Vamos a isso - indicou Mason, acendendo um cigarro.

Segundos depois, Della informava:

- Paul prefere vir aqui, falar consigo pessoalmente.

- Notícias de Ansley?

- Nenhumas.

Drake bateu à porta do gabinete particular, com as pancadinhas de código, convencionadas entre ambos.

Della abriu e o detective entrou, com a sua expressão grave, habitual.

- Olá, gentes! Que diabo estiveram a fazer ontem à noite?

- E que diabo de pergunta é essa, Paul? Não estarás a ser impertinente?

- Refiro-me a vocês terem ido à quinta de Meridith Borden.

- Andas a imaginar coisas, Paul? A única coisa que te interessa resume-se a termos informado a Polícia de que um carro se virou, nessa propriedade. Os "chuis" ainda não se dão por satisfeitos com essa ajuda?

- Queres dizer que não estás a par da notícia?

- Que notícia?

- Foi divulgada, no noticiário da rádio, às oito e meia desta manhã.

- "Desembucha" - impacientou-se Mason.

- Meridith Borden, conhecido perito de relações públicas, foi encontrado morto, na sua residência palaciana, às sete horas em ponto. A governanta foi dar com ele, estirado ao comprido, no chão do seu estúdio fotográfico, com um buraco no peito. Aparentemente, o tiro foi desfechado por um revólver.

- A Polícia encontrou a arma?

- Não havia arma alguma, pelo que está afastada a hipótese de suicídio. Contudo, também não havia sinais de luta. Tudo indica que se tratou de um homicídio limpo, quase à queima-roupa.

- Que mais?

- Consta que, pouco depois das onze da noite de ontem, alguém tentou abrir os portões da propriedade de Borden, para sair dela. A Polícia detectou indícios de que algumas pessoas se introduziram na quinta. Por não ser possível abrir a fechadura nos portões de ferro, lembraram-se de galgar o muro e puseram o pobre do cão num terrível estado de nervos. Um alarme automático atroou os ares, durante mais de dez minutos.

- Esse alarme estava em ligação com a esquadra da Polícia local?

- Não. Um motorista, que passava pela estrada, ouviu a sereia e viu a luz de uma lanterna portátil, através do gradeamento da entrada. Pouco depois, uma patrulha do xerife passou por ali e foi informada de que alguém tentara forçar a fechadura dos portões, provocando o alarme.

"Toda a propriedade está cercada por um muro de pedra e cimento, coberto de cacos de garrafas e de arame farpado. Os portões da entrada estão equipados com um mecanismo especial que permite fechá-los, todas as noites, às onze horas em ponto. O mecanismo é accionado a partir da casa, situada a cerca de quinhentos metros. Depois de os portões estarem fechados, só se pode entrar na propriedade, após um telefonema directo, feito da entrada da quinta. Está lá um aparelho para esse efeito. Já sabias tudo isso, não é verdade?"

- Que mais sabe a Polícia a esse respeito? - sondou Mason, despreocupadamente.

- Até agora, os "chuis" ainda não se "descoseram", mas obtive a informação de que detectaram indícios de que mais de uma pessoa andou a "passarinhar" por ali, à procura de qualquer coisa.

- A sério?

- Decerto que não foi por brincadeira! Alguém trepou ao muro, deixando vestígios de tecido, esfarpelado pelos vidros e pelo arame farpado. A Polícia deduz que se tratou de um grupo de três indivíduos, um dos quais do sexo feminino.

- Pode lá ser! Como descobriram isso?

- Viram pegadas de mulher, dos dois lados do muro. Também descobriram pegadas de dois homens. Concluíram que estes ajudaram a mulher a galgar o muro, passando-se os três, em seguida, para o lado exterior.

- Isso é muito interessante! - considerou Mason.

- Interessantíssimo, Perry! Agora, o interesse da Polícia pelo carro roubado recrudesceu.

- A propósito, quando encontraram o carro?

- Só esta manhã. Ontem à noite, telefonaram a Borden, mas não conseguiram obter resposta. Mandaram lá um carro-patrulha, mas os agentes encontraram os portões fechados e, por mais que telefonassem para a casa, ninguém se dignou atender e abrir-lhos. Por conseguinte, decidiram voltar lá esta manhã.

- A Polícia tem alguma indicação quanto à identidade dos intrusos que andaram a vaguear, ontem à noite, pela propriedade de Borden?

- Ainda não, Perry. Pelo menos, ainda nada "badalaram" a esse respeito. Se têm qualquer prova, mantê-na oculta. Não tarda que recebas a visita, esta manhã, dos "ilustres" membros do Departamento de Homicídios. Pretendem interrogar-te acerca desse teu cliente que encontrou o Cadillac roubado, tombado de lado, dentro da propriedade cujo dono foi assassinado. Pensam que se trata de uma acumulação de factos coincidentes, deveras significativa.

- Obrigado por me avisares, Paul. Julgava ter de passar a manhã, entediado com a correspondência rotineira e, afinal, vou defrontar um1 problema excitante. Que mais?

- Já chega, para te excitares. Queres que faça alguma coisa?

- Por enquanto, agradeço-te que te mantenhas quedo e mudo.

- Bem... Não deixarei de transmitir as informações que, entretanto, me forem chegando aos ouvidos. Conhecias esse Meridith Borden?

- Tive ocasião de encontrar-me com ele, um par de vezes, em reuniões mais ou menos sociais. Lamento saber do seu trágico fim. Contudo, o mero facto de um meu cliente ter assistido a um acidente de viação, dentro da propriedade de Borden, não me induz a um interesse especial pelo assassínio de que este foi vítima.

O rosto de Drake simulou alívio.

- Ainda bem que me dizes isso! Já receava que te tivesses metido em mais um caso de homicídio, com o teu cliente e Della a treparem ao muro de uma propriedade privada... e a deixarem pegadas junto de um automóvel roubado. Ainda bem que nada tens a ver com isso, Perry, nem com a tentativa de abrir um portão, fechado por um mecanismo automático, fazendo ressoar um alarme, depois das onze da noite de ontem. Graças a Deus, Perry, não sou desconfiado... como o é a Polícia,

- Obrigado pelo "lamiré", Paul.

- Não tens nada que agradecer-me... mas, não queres, realmente, que te faça um trabalhinho de investigação?

- Não, por enquanto - recusou Mason.

- Okay! Desejo-te boa sorte, pois vais precisar dela. Receio que tenhas a Polícia na conta de uma organização idiota. Embora já tenha dado provas disso, isso só acontece quando não tem provas.

- Que estás a insinuar, Paul? - interessou-se Mason.

- Eu? Nada!... Apenas sei que Della e tu, ontem à noite, foram jantar fora. Vi-os, a ambos, quando saíram deste escritório. Tu envergavas um casaco de desporto, dos que costumas usar aqui, no teu trabalho, com calças cinzentas-escuras; Della trazia um saia-casaco de lã azul-escuro, com um fiozinho branco, de viés, que lhe ficava a "matar"... como, de resto, tudo o que põe em cima. Pouco tempo depois, vocês dois apareceram-me, vestidos diferentemente, para relatares o acidente do Cadillac. Como não quero tornar-me impertinente... não pergunto que raio andaram a fazer, para se despirem e voltarem a vestir-se, em tão escasso lapso de tempo. Ainda por cima, com outra roupa!

- Costuma notar sempre coisas dessa natureza? - indagou Della.

- É o meu ofício! O que quero sublinhar, Perry - prosseguiu Drake -, é que a Polícia não é tão tola como muita gente julga. Quando reúne provas materiais, torna-se genial. Aqueles pedacinhos de fios que os "chuis" descobriram sobre o muro, mesmo junto das pegadas de ambos os lados do terreno que ele divide, podem tornar-se deveras comprometedoras para os escaladores de propriedade alheia, sobretudo, quando, nesta, há um carro roubado e um tipo assassinado.

"Não gosto de ser agoirento, mas iria jurar que a Polícia é muito capaz de começar a averiguar onde passaste a noite com Della e de que maneira vocês estavam vestidos. Depois, pode dar-lhes na gana de investigarem o que aconteceu a essas roupas. Terás alguma relutância, Perry, em exibires as referidas vestimentas?"

- Por que razão me mostraria relutante, Paul?

- Porque essa roupa pode apresentar alguns minúsculos rasgões.

- E se os tiver?

- Pode também ter perdido um ou outro fiozinho. São coisas que acontecem e podem tornar-se significativas, quando esse um ou outro fiozinho se lembra de aparecer no topo de um muro, com vidros e arame farpado. Às vezes... para não dizer sempre... os "chuis" interessam-se por essas insignificâncias e desatam a fazer perguntas que exigem explicações melindrosas.

- E se eu tiver uma explicação não melindrosa, para todas as perguntas?

- Tu lá sabes, Perry. Continuas a não precisar de que eu te dê uma ajuda?

- Depois te digo, Paul. Por enquanto, cá me vou arranjando, nos termos legais.

- Okay, parceiros! Até à vista! - despediu-se Drake. Depois de o detective ter saído, Mason indicou a

Della Street:

- Veja se consegue pôr-me em contacto com George Ansley... mas não meta a Gertie nisto. Em vez de utilizar o PBX, ligue por este telefone directo. Se a Polícia interrogar Gertie, nada saberá acerca deste telefonema.

Momentos depois, a secretária de Ansley atendia, explicando que o patrão estava ausente; não aparecera no escritório, durante toda a manhã, e avisara não ir lá, de tarde.

- Não deixou qualquer número de telefone, para onde possamos comunicar com ele? - perguntou Della?

Ansley devia andar a trabalhar por fora e não deixara indicação alguma quanto ao seu paradeiro movediço. Della pediu à secretária de Ansley que o informasse da necessidade urgente de contactar com Perry Mason.

Contudo, depois de Della desligar, o advogado mudou de programa.

- Creio, minha amiga, que o melhor é desaparecermos da circulação, durante todo o dia de hoje.

- Porquê, Chefe?

- Temos de falar com Ansley, antes que a Polícia me interrogue.

- Porquê, Chefe? - repetiu Della, apreensiva.

- Porque, ontem à noite, o meu carro esteve estacionado do lado exterior da quinta de Borden e alguém pode ter-lhe anotado o número de matrícula. Não se esqueça de que passou por lá um motorista qualquer, enquanto soava o alarme... e viu a luz de uma lanterna... a minha! O chão está todo enlameado, cheio de poças de água, mas não sei se os meus pneus deixaram alguns rastos identificáveis.

"Por outro lado, Della - considerou Mason -, a nossa história não se aguenta de pé."

- Por que não, Chefe?

- Porque relatámos ter o nosso cliente visto um carro sair da estrada e virar-se, já dentro da propriedade de Borden. Ora, o carro virado não pode ser avistado da estrada, a menos que se entre na do desvio para o portão da quinta. Só deste se abrange o local onde o Cadillac embateu na árvore. Sendo assim, como explicar o que estaria o nosso cliente a fazer à porta da propriedade de um tipo que foi assassinado. O Departamento de Homicídios deve estar com um olho em mim, ansiando por pousar o outro, no meu cliente. E, num caso de assassínio, lá se vai pelo ar o privilégio da confidência, a menos que o visado seja mesmo suspeito do crime.

- Acredita, Chefe, na versão de Ansley?

- Até prova em contrário, não tenho motivo para duvidar dela.

- Será possível que a Polícia descubra qualquer prova contra ele... Refiro-me a ter estado, connosco, em cima do muro.

- É possível que venha a descobrí-la, quando souber quem ele é e lhe passar uma busca à casa... e ao guarda-fato. Se o fato que usou ontem tivesse sido mandado para a lavandaria, certamente que não só o limpariam completamente, como o cerziriam. Isso seria uma prova circunstancial contra Ansley, baseada na tentativa de escamoteação de vestígios materiais. Se encontrarem o fato, sujo e esfarpelado, só poderão chegar a duas conclusões: Ansley está inocente, ou é supinamente parvo... o que será difícil de admitir.

- Pelo contrário - objectou Della -, podem considerá-lo demasiado esperto, ou aconselhado por um advogado ultra-sabido.

- Esperemos que não reciocinem com tão longo alcance. Quanto a si, Della, convém que desapareça da circulação, durante todo o dia de hoje.

- Da circulação?

- Refiro-me às tarefas diárias. Vá fazer compras, meta-se num cabeleireiro, enfie-se num cinema, mas não ponha os pés no escritório, nem vá aninhar-se em casa. Tem direito a um dia de folga, não é verdade? Faça de conta que esse dia é hoje. Se forem a sua casa, não poderão interrogá-la, visto não estar lá ninguém que lhes abra a porta... e sem um mandado de busca, assinado por um juiz, não se atreverão a arrombá-la.

- Receia que dêem com a minha saia, esfarpelada?

- Prefiro que não a encontrem tão cedo. Preciso de um dia para manobrar a situação.

- Mas, Chefe, se me caçarem, enquanto ando por fora, que lhes respondo?

- Que é o seu dia de folga. Que, ontem à noite, trabalhou muito. Se lhe perguntarem em quê, responda que nada pode informar, sem a minha autorização expressa, visto que o trabalho do escritório é estritamente confidencial. Mas esperemos que não dêem consigo.

- E se Ansley telefona, enquanto estamos ausentes, em parte incerta?

- Não deve telefonar, a menos que a Polícia lhe deite a "unha". Pela minha parte, vou tentar entrar em contacto com ele, repetidamente, durante a tarde, até conseguir avisá-lo do que se passa.

Mason pegou no chapéu e despediu-se:

- Até logo, Della. Divirta-se.

Com uma expressão preocupada, a jovem viu-o sair para o corredor.

 

Mason tirou o carro do parque de estacionamento interior do edifício e conduziu-o ao longo de vinte quarteirões. Virou à direita e arrumou-o, defronte de um drugstore. Entrou neste e dirigiu-se à cabina telefónica. Na lista de assinantes, procurou o número de Beatrice Cornell, nos Ancordia Apartments. Ligou para ela e uma voz, calma e impessoal, respondeu:

- Está?... Quem fala?

- És tu, Minerva? - perguntou Mason.

- Para que número deseja falar?

- Quero falar com Minerva.

- Aqui não há Minerva alguma - replicou Beatrice.

- Desculpe... Foi engano.

Mason desligou, saiu da cabina e do drugstore e, regressando ao carro, dirigiu-se aos Ancordia Apartments onde não estava Minerva alguma, mas, sim Beatrice Cornell. Esta morava, segundo a lista de inquilinos do quadro das campainhas, no apartamento 108.

Mason premiu o botão respectivo e o trinco automático não tardou a abrir-se. Momentos depois, no primeiro piso, bateu à porta nº 108.

Quando esta se abriu, uma mulher, ainda jovem, apresentou-se, com a eficiência que um negócio exige.

- Sou Miss Beatrice Cornell... Em que posso ser-lhe útil?... Oh! Mas é Mr. Perry Mason!... Afinal, não se tratava de uma brincadeira!

- Desculpe incomodá-la - disse Mason, com uma vénia. - Telefonei-lhe, ontem à noite, um tanto ou quanto intempestivamente...

- Não teve importância. Pelo contrário... Sou uma das suas muitas admiradoras. Vejo que aquilo que se passou, ontem à noite, foi uma realidade. Tenha a bondade de entrar... e de sentar-se, Mr. Mason. Tenho imenso prazer na sua visita. Em que posso ajudá-lo?

A sala de entrada estava mobilada como um escritório. Sobre uma mesa, via-se uma pilha de processos com várias etiquetas, e dois telefones. Ao fundo, estava um armário metálico, do tipo "ficheiro classificador". Havia outra mesinha com uma máquina de escrever e uma cadeira de dactilógrafa. O resto do aposento dir-se-ia uma sala de estar, bastante confortável, com quatro cadeiras e dois sofás.

Beatrice notou a surpresa no rosto de Mason e explicou:

- Tenho apenas duas assoalhadas. A outra é o meu quarto de cama. Como esta é bastante espaçosa, adaptei-a a escritório. Evidentemente, como na cozinha. A casa de banho fica entre esta e o meu quarto. Não podia dar-me ao luxo de pagar uma renda de escritório.

- Parece-me que resolveu o seu problema, inteligentemente. Por conseguinte, juntou o útil... ao útil, de uma maneira deveras agradável.

- Pela sua expressão, Mr. Mason, vejo que está a tentar adivinhar em que negócios me ocupo. Montei uma espécie de serviço de chamadas informativas. Tenho uma lista confidencial de clientes que me telefonam a comunicar mensagens para outros clientes. Por exemplo, vários médicos informam-me por onde pairam, durante a noite, quando já fecharam os consultórios e não se encontram nas respectivas residências. Em caso de emergência, os seus pacientes, previamente informados do número dos meus telefones, podem comunicar comigo, de modo a que eu transmita os recados aos respectivos médicos.

"Também montei um serviço de correspondência postal, para clientes que não estão fixados nesta cidade e só cá vêm acidentalmente. Geralmente, anunciam-se como caixeiros-viajantes, embora, muito possivelmente, este tipo de correspondência seja de natureza amorosa... não sei se me está a entender, Mr. Mason... Faço ainda alguns trabalhos de secretariado. Na verdade, este meu negociozinho não me tem corrido mal e dá-me a vantagem de ser independente... isto é, não tenho de trabalhar para um patrão difícil de aturar. No que me diz respeito, aturo-me bastante bem."

- Dou-lhe os meus parabéns, Miss Cornell! É uma felicidade realizarmos um trabalho que nos apraz e não nos acharmos na dependência de hierarquias desagradáveis... Há quanto tempo tem esta empresa montada?

- Oh! Não lhe chame "empresa". Não passa de um pequeno negócio que, finalmente, começou a render alguma coisa. Organizei-o, há coisa de sete anos e, de início, custou a vingar. Contudo, de há três anos para cá, tornou-se compensador.

- Felicito-a, Miss Cornell. Antes de montar este belo negócio, em que se ocupava... se não estou a ser demasiado indiscreto?

- De maneira alguma, Mr. Mason. Antes de ter esta ideia, fui modelo fotográfico. Depois, comecei a aumentar de peso, aqui e além, e compreendi que, naquela profissão, os anos pesam de mais. Para além dos trinta, a concorrência atira-nos para o lado. Mas tive a sorte de entrever uma saída. Organizei uma lista de jovens modelos e outra, de fotógrafos que desejam contratar profissionais.

"Mas, Mr. Mason, estou certa de que não veio procurar-me para ouvir-me falar dos meus empreendimentos. Suponho que pretende obter qualquer informação acerca de uma jovem que se envolveu num acidente de automóvel, não é isso?"

- Sim, mas também me confesso interessado nas relações que mantém com essas jovens modelos fotográficos.

- É fácil explicar-lhas. Conheço várias raparigas que precisam de ganhar algum dinheiro extra e não se importam de deixar-se fotografar, quer para calendários quer para revistas ilustradas. Muitos dos fotógrafos que conheço são profissionais. Contudo, a grande maioria já é constituída por amadores que leram os meus anúncios nos jornais... Mas que se passou com essa rapariga que sofreu o tal acidente, na noite passada?

- Durante algum tempo - esclareceu Mason -, ficou inconsciente. Depois, indicou ao meu cliente o seu nome e morada, Miss Cornell. Evidentemente, ele trouxe-a a este prédio.

- Estou a ver... e o senhor, Mr. Mason, quis assegurar-se de que eu não era essa jovem?

- Precisamente.

- O acidente foi grave?

- O automóvel ficou parcialmente destruído.

- E a moça não ficou ferida?

- Não... aparentemente. Perdeu os sentidos, mas não por muito tempo.

- Mas deve ter ficado com algumas contusões, ou arranhadelas, não?

- Provavelmente... nas pernas, ou nos tornozelos.

- Pois bem, Mr. Mason, não creio que possa ser-lhe muito útil. Estive aqui, toda a noite, e respondi a cerca de cinquenta telefonemas...

- Conhece Meridith Borden, Miss Cornell? - inquiriu Mason, subitamente.

Beatrice franziu os olhos.

- Sim. Porquê?

- Morreu.

- O quê?... Não me diga!

- A Polícia pensa que foi assassinado, na noite passada.

- Santo Deus!

- E - prosseguiu Mason - o acidente de viação a que me referi ocorreu na propriedade de Meridith Borden. Lembra-se de que esteve a chover, toda a noite? Pois bem; o automóvel, conduzido pela tal jovem, derrapou, despistou-se e foi embater numa árvore, antes de virar-se... logo apôs ter entrado na quinta de Borden.

- O número de matrícula do automóvel não forneceu uma pista?

- Tratava-se de um carro roubado, poucas horas antes.

- Oh, diabo!... Pois bem, Mr. Mason, devo dizer-lhe que Meridith Borden é... quero dizer... era um dos meus clientes.

- Em que qualidade?

- Fotógrafo amador. Gostava de fotografar "nus artísticos" e comparticipava em concursos da especialidade... parece que com bastante sucesso. Ganhou alguns prémios... Telefonava-me, de quando em quando, a encomendar-me novos modelos femininos, sempre jovens e esbeltos.

- Fê-lo recentemente?

- Não muito. Creio que, ultimamente, firmara um contrato privativo com uma garota que não se importava que ele lhe fizesse umas certas festas, no intervalo das poses fotográficas... por dinheiro, é claro.

Mason arvorou o seu melhor sorriso e elucidou:

- A razão que aqui me trouxe foi tentar confirmar que moça se serviu do seu nome e morada. Indubitavelmente, Miss Cornell, ela conhece-a suficientemente bem e, com toda a probabilidade, também conhecia Borden. É uma garota mais alta e mais nova do que Miss Cornell; tem cabelo castanho arruivado e olhos castanhos-escuros. Tocou para este apartamento e a porta foi-lhe aberta. Pelo menos...

- Por volta das dez da noite? - interrompeu Beatrice.

- Provavelmente.

- Lembro-me de que tocaram à campainha, lá de baixo, da entrada do prédio. Premi o botão que abre o trinco, mas ninguém subiu... Evidentemente, não liguei importância ao facto, porque isso sucede com muita frequência, quer por engano de uma visita para outro inquilino quer por brincadeira de malandretes do bairro.

- Costuma abrir o trinco automático, mesmo sem saber quem tocou à campainha? - sondou Mason.

- Certamente. Parto do princípio de que pode ser um cliente e, no meu negócio, não convém perdê-lo. No caso da correspondência postal, os interessados vêm-na buscar, pessoalmente.

- Compreendo. Agora, concentremo-nos nessas jovens modelos. Conhece alguma cuja sinaletica corresponda à da moça de que lhe falei?

- Bem... tenho várias raparigas que trabalham comigo nesse ramo - respondeu Beatrice, com certa relutância. - Mas não gosto de trair os interesses dos meus clientes.

- Muito bem, Miss Cornell. Compreendo perfeitamente os seus escrúpulos, de maneira que vou tentar um outro método de aproximação. Estou aqui na qualidade de fotógrafo amador e preciso que me apresente a uma jovem modelo que não seja exageradamente magricela. Quero-a sem canelas descarnadas e com seios que se vejam, para fotografias de nu artístico. Pode pôr-me em contacto com alguma das suas profissionais cuja sinalética se aproxime daquela que, ainda há pouco, lhe descrevi?

- Bem... tenho algumas fotografias das minhas clientes modelos. É o meu mostruário. Deseja vê-lo, Mr. Mason.

- Por favor, Miss Cornell.

Ela sorriu e frisou:

- É um assunto estritamente comercial. Estas garotas cobram vinte dólares por hora, a contar do momento em que deixam o apartamento onde vivem, até que regressam a ele. O senhor, Mr. Mason, terá de facultar-lhes o meio de transporte e, se quiser que enverguem trajes especiais, terá também de fornecer-lhes o guarda-roupa adequado. Se as convoca para um período que coincida com o horário habitual das refeições, terá de alimentá-las decentemente. Algumas, para não dizer quase todas, possuem alguns equipamentos apropriados, como biquinis, mini-saias, penteadores transparentes... e a pele que Deus lhes deu, quando vieram ao mundo, e que elas souberam tratar, com mais ou menos cosméticos. Algumas não dispensam uma amiga, para servir-lhes de chaperon e, neste caso, Mr. Mason, terá de pagar dez dólares por hora à dama de companhia... o que perfaz trinta dólares horários. Outras, arriscam-se a pousarem sozinhas, caso já conheçam o cliente, na certeza de que é, exclusivamente, um fotógrafo respeitável. Outras ainda, arriscam-se para o que der e vier... ponto final.

- Posso obter as fotografias e as moradas das suas modelos, Miss Cornell?

- Oh, não, Mr. Mason! Isso é o "segredo da abelha". Mostro-lhe as fotografias que estão numeradas. As moradas são o meu ganha-pão, visto que recebo uma comissão por cada contrato. As fotografias só mostram os modelos em biquini. O cliente tem de imaginar o resto, se assim o desejar.

- Magnífico - aprovou Mason. - Convém-me. Vamos lá ver esse mostruário fotográfico.

Beatrice ergueu-se e pediu:

- Queira esperar um momento, Mr. Mason.

Foi ao quarto de cama e ouviu-se o ruído de uma gaveta a ser aberta; depois, a ser fechada. Voltou com um álbum fotográfico que, pelos vistos, por uma questão de maior segurança, não ficava guardado no ficheiro do escritório.

Mason estudou as várias fotografias de 18x24, eliminou várias e indicou:

- Gostaria de entrevistar, no meu estúdio fotográfico, as modelos seis, oito e nove.

- Vai custar-lhe vinte dólares à hora, por cada uma.

- Está bem.

Beatrice abriu um livro de moradas, mas Mason interrompeu-a:

- Um momento, Miss Cornell... Tive uma ideia melhor. Telefone a cada uma das suas modelos e pergunte-lhes se estão hoje disponíveis para tirarem fotografias em biquini.

- Se lhes paga o combinado, estou certa de que nenhuma delas se negará em deixar-se fotografar nas posições que o senhor desejar, com biquini... e até sem ele. Mas olhe que tenho 24 modelos. Está disposto a dispender tanto dinheiro? As fotografias eróticas, por este sistema, saem bastante caras!

- Arrisco - decidiu Mason.

- Como queira, Mr. Mason. Vou atirar-me ao telefone.

Ao terceiro telefonema, Beatrice piscou um olho ao advogado, dizendo para o bocal:

- Um momento, querida... Bem... nesse caso, telefono-lhe mais tarde.

Desligou e explicou:

- Era Dawn Manning, uma moça de corpo admirável e de pernas perfeitíssimas; tem uns seios como os da Lolobrígida...

- Por que terá de telefonar-lhe mais tarde? - interessou-se Mason.

- Porque acaba de informar-me de que, durante quatro ou cinco dias, não poderá pousar para fotografias. Tem umas nódoas negras nas canelas, em virtude de um acidente de automóvel que sofreu ontem à noite.

- Obrigada, Miss Cornell. É exactamente essa garota que me interessa. Pode anular as duas marcações anteriores.

- Que quer que eu faça?

- Consegue convencê-la a vir aqui?

- Mas Dawn diz que não está em estado de pousar...

- Não interessa. Diga-lhe que o seu cliente pretende apenas vê-la, antes de firmar um contrato consigo. Pago-Lhe o que for necessário, como se viesse trabalhar.

Beatrice Cornell franziu o sobrolho e hesitou:

- Daw vai pensar que a atraiçoei!

- De maneira alguma. Você limitou-se a fazer o seu trabalho de rotina. Não sou senão um fotógrafo amador que veio consultá-la, por ter lido um dos seus anúncios. Você, minha querida Miss Cornell, fica livre de quaisquer responsabilidades.

- Bem... Vai fingir que é fotógrafo?

- Por acaso também gosto de fotografia, embora, até hoje, me tenha limitado a temas paisagísticos. Só agora me inclino para os eróticos.

- Nesse caso, seria melhor que tivesse vindo equipado com uma máquina fotográfica - advertiu Beatrice.

- Há algum estabelecimento da especialidade, aqui perto?

- A quatro quarteirões daqui. Sou cliente da casa... e o patrão também é meu cliente. Faz trabalhos para uma tipografia que imprime calendários. Quer que o avise de que vai lá, Mr. Mason?

- Não. Prefiro apresentar-me como um cliente fortuito. Acha que tenho tempo de estar de volta, antes que essa Dawn Manning apareça?

- Deve ter tempo, tanto mais que ainda vou telefonar-lhe.

- Catita! Estarei de volta, em menos de meia hora.

 

Trinta minutos depois, Mason regressava ao apartamento de Beatrice Cornell. Trazia consigo uma Strobolite de lentes gémeas e uma dúzia de rolos de filme, tanto a preto e branco como a cor.

Dawn Manning já tinha chegado e Beatrice fez as apresentações.

A jovem notou logo que a máquina de Mason era novinha "em folha" e, piscando os olhos cinzentos-ardósia, indagou:

- É amador, Mr. Mason?

- Hum, hum!

- E começou há muito pouco tempo, na arte, não é verdade?

Havia um tom de ironia na sua voz.

- Bem... - justificou-se o advogado. - Confesso que só agora... Bem... Gostava de experimentar...

- Nus artísticos?

- Mais ou menos... Digamos, antes, biquinis.

Dawn tirou lestamente o casaco e a camisola que se lhe amoldava ao corpo.

- Como vê, Mr. Mason, tenho bons seios e boas pernas. Se procura uma modelo profissional, pode crer que fica bem servido. Eu própria posso sugerir-lhe as posições mais eróticas... sem serem obscenas, evidentemente. Há uma grande diferença entre erotismo e pornografia. Isso tem-me criado bastantes problemas com a maioria dos amadores, não sei se me entende...

- Mr. Mason é uma pessoa correctíssima - interveio Beatrice. - Já lhe disse isso ao telefone, Dawn! Não é homem para exigir-lhe posições indecentes e não tem a menor intenção de aproveitar-se da situação para apalpá-la... desculpe-me o termo, Mr. Mason. Nesta profissão adoptamos, geralmente, uma linguagem um tanto ou quanto livre.

- Pago-lhe o que for estipulado - acrescentou Mason - e verá que não terá motivos para arrepender-se.

- Muito bem. Aceito a proposta, mas só poderei cumprir o contrato, daqui a uns quatro ou cinco dias, visto que tenho as pernas ligeiramente contundidas.

- Teve um acidente de viação, Miss Manning?

- Sim... e também muita sorte em "safar-me", apenas com umas nodoazinhas negras. Podia ter sido bem pior.

Mason tirou a cigarreira de ouro da algibeira e sondou:

- Importam-se que fume Miss Cornell... Miss Manning?

- Esteja à sua vontade - disse Beatrice.

Dawn estendeu o braço para aceitar um dos cigarros de Mason. Os seus olhos mostraram-se interessados pelo metal do isqueiro.

- Tem dores? -inquiriu Mason.

- Não... mas não me sinto nos meus melhores dias. Levantei-me tardíssimo. Para falar francamente, fui acordada pelo telefonema de Beatrice. Enfiei uns trapos e vim logo directamente para aqui.

- Sem tomar o pequeno-almoço?

Dawn riu-se e elucidou:

- Eu e o pequeno-almoço detestamo-nos sem nos conhecermos. Tenho de vigiar o peso, já que a minha "linha" constitui a mercadoria que tenho à venda. Quer ver melhor as minhas pernas?... Sem tirar as meias, evidentemente. O nylon sempre encobre as contusões.

Antes que Mason anuisse à sugestão, já Dawn despia as saias. Ficou em calcinhas que usava por cima do ligueiro.

Apontando-o, Mason inquiriu:

- As mulheres não costumam usar o ligueiro por cima das... bem, disso?

- Sim, mas nesta profissão, se o cliente deseja fotografar-nos, apenas com o ligueiro, torna-se mais prático usá-lo sobre a pele, pois não se perde tempo.

- Compreendo. Dadas as circunstâncias, posso ir ao seu apartamento. Pagarei as horas que lhe fizer perder - propôs Mason. - Desejava falar consigo...

Dawn Manning corou, indignada.

- De maneira alguma, Mr. Mason. Não sei quais são as suas intenções, mas desde já lhe digo que só pouso com chaperon. Vou sempre acompanhada por uma amiga minha... e isso vai custar-lhe mais dez dólares por hora... a menos que traga a sua mulher consigo.

- Muito bem - concordou Mason. - Nesse caso, Miss Cornell pode servir-lhe de chaperon. Falaremos na presença desta sua amiga.

- Acerca de quê? Das fotografias?

- Para falar francamente, Miss Manning, estou apenas interessado nas nódoas negras.

- Nas nódoas negras?

- Exactamente. Gostava de verificar a extensão dessas contusões.

- O quê? - espantou-se Dawn. - Que raio de tara sexual é a sua?

- Não é sexual, mas legal. Acontece que sou advogado.

- Mr. Mason! - interpôs-se Beatrice, simulando espanto. - Não percebo...

- Se é advogado - cortou Dawn -, deve saber que incorreu numa falta grave ao fazer-me levantar da cama, sob falsos pretextos...

- Não pode acusar-me de falsos pretextos. Você, Dawn, está a ser paga pelo tempo que perder comigo. Já paguei a Miss Cornell um adiantamento...

- Muito bem, Mr. Mason - exasperou-se Dawn. - Toca a pôr as cartas na mesa. Que diabo pretende de mim?

- Informações acerca do acidente de que foi vítima, na noite passada.

- Porquê? Alguém tenciona processar-me?

- Não necessariamente. Estou disposto a pagar-lhe todo o tempo que dispender comigo. Se não deseja falar na presença de Miss Cornell, poderemos ir para onde preferir. Miss Cornell não ficará prejudicada na comissão que lhe cabe.

Tirando a carteira da algibeira, Mason abriu-a e extraiu quarenta dólares.

- Eis já aqui as duas horas adiantadas do tempo que estou a tomar-lhe. Miss Cornell pode ficar com o que já recebeu de sinal, como sendo a sua comissão. Está disposta a falar-me desse acidente?

- Muito bem; Mr. Mason. Concisamente, que pretende saber?

- Tudo. Como se viu envolvida nesse acidente?

Após um momento de hesitação, Dawn declarou:

- Ontem à noite, estive numa reunião de fotógrafos e de modelos, minhas colegas. Bebemos uns copos e dançámos um pouco. Entre profissionais, respeitamo-nos mutuamente e, por vezes, passamos uns momentos divertidos. Contudo, a certa altura, decidi ir para casa e saí... sozinha.

"Na rua, estava a tentar apanhar um táxi, pois chovia a potes e os transportes rareavam. Um grande Cadillac parou junto a mim, mas comecei a andar para evitar o habitual "engate" de um conquistador de rua. Porém, para minha surpresa, vi uma mulher sair do carro e vir direita a mim. Estranhei, porque, mesmo que quisesse ser amável e dar-me uma boleia, escusava de meter-se à chuva.

"Pois bem, Mr. Mason, para meu maior espanto, a mulher, muito nova ainda, perguntou-me:

"- Você esteve naquela reunião, não é verdade?... Também me vim embora ainda há pouco. Estou exausta. Quer que a leve a casa?

"Estranhei o facto, pois não éramos mais de duas dúzias de pessoas, todas mais ou menos conhecidas e eu não me lembrava de tê-la visto."

- Onde ocorreu essa reunião? - inquiriu Mason.

- Na Mesa Vista, à saída da cidade.

- Queira continuar, Miss Manning.

- Eu já tinha o casaco de abafo molhado e entrei no carro. Ela começou a falar disto e daquilo... e, subitamente, perguntou-me:

"- Chama-se Manning, não é verdade?... Dawn, salvo erro?

"Confirmei e comecei a convencer-me de que ela devia ter lá estado, na reunião, embora eu não tivesse reparado na sua presença."

- Ela disse-lhe como se chamava? - indagou Mason.

- Não e isso também me causou estranheza, já que, geralmente, as pessoas costumam apresentar-se, em circunstâncias semelhantes. A certa altura, perguntou-me insinuantemente:

"- Não se importa que eu passe por casa de um amigo? Fica no caminho...

"Respondi-lhe que estava imensamente cansada e que apenas pretendia apanhar um táxi para ir para a cama, mas ela jurou-me que não se demoraria, senão um minuto, e que seria uma entrada por saída... Se eu quisesse, poderia ficar no carro e que, depois, me levaria a casa.

"Nesta altura, comecei a preocupar-me. Aquela insistência começava a contundir-me com os nervos. Mas chovia, estávamos longe do centro da cidade, não se via passar um único táxi e... bem... fiquei a ver em que paravam as modas."

- Por que motivo se sentiu nervosa, Miss Manning?

- Isso leva muito tempo a explicar e relaciona-se com a minha vida particular.

- É segredo inconfessável? - sondou Mason, sorrindo.

- Inconfessável não é. Sucede que fui casada. Manning é o meu nome de solteira. Passei a usar o meu antigo apelido, depois de ter-me divorciado. Esta história é um pouco confusa, Mr. Mason. O meu ex-marido é Frank Ferney... sócio de Meridith Borden. É um "aldrabão", um verdadeiro perito em fraudes.

"Quando nos separámos, eu não tinha meios para ir instalar-me em Reno e aí passar o tempo legal que permite a concessão do divórcio. Contudo, Frank concordou em divorciar-se e ir para Reno, à sua custa. Tratámos de toda a papelada necessária, mas o patife nunca se divorciou.

"Pois bem, Mr. Mason, resolvi fazer de conta que estávamos definitivamente divorciados e acabei por verificar que as aparências eram tomadas por realidades e que tudo corria "sobre rodas"... Nunca mais pensei no caso e continuei a fazer a minha vida, como modelo."

- Referiu-se, há instantes, a Meridith Borden - observou Mason. - Como é que ele entra no enredo?

- Não sei muito a seu respeito. É um tipo influente nos meios políticos e, fora disso, também é fotógrafo amador. Contratou-me, como modelo, para umas sessões de nu artístico e, durante uma delas, conheci um político que se embeiçou por mim. Foi o princípio da "bronca".

- Porquê? - interessou-se Mason.

- Porque Borden preparara o cenário, antecipadamente. Queria servir-se de mim, de maneira a ter um pé para pressionar o amigo, em matéria de assuntos políticos. Recusei e... bem... fiquei a saber que o patife do meu marido fora quem sugerira a Borden que me contratasse como modelo. Fui pedir explicações a Frank e ele jurou-me tê-lo feito na melhor das intenções, pois, na realidade, nada tinha contra mim e pensara poder ajudar-me, daquela maneira, a ganhar mais "massas".

- Nessa altura, Miss Manning, que decisão tomou?

- Mandei Frank e Borden para o diabo e aconselhei o político pinga-amor a largar-me da mão, quanto antes. Textualmente, mandei-o fotografar o traseiro da esposa, que lhe saía mais em conta do que o meu.

- Compreendo. Só não entendo como tudo isso se relaciona com o acidente de automóvel.

- Já lho explico. A certa altura, a mulher que me deu boleia mencionou, casualmente, ter-lhe alguém contado que eu tencionara divorciar-me de Frank, mas que ele "roera a corda".

"Nesse momento, percebi que estávamos a entrada da propriedade de Borden. Já pode calcular, Mr. Mason, como fiquei! Deitei a mão ao volante, para impedi-la de passar o portão. Ora, nesse mesmo instante, vinha um carro, em sentido contrário, a sair da quinta... Bem sei que a culpa foi minha. Eu não devia ter torcido o volante, mas a verdade é que não podia consentir que aquela fêmea me levasse, à força, para aquilo que pensei ser uma armadilha qualquer. O Cadillac despistou-se, embateu no outro carro e foi estampar-se de encontro a uma árvore. Ainda me apercebi de que se virava e... nada mais."

- Como "nada mais"? - incitou Mason. - Para estar agora aqui, Miss Manning, deve ter ocorrido mais alguma coisa!

- Fiquei aturdida com o choque. Creio, mesmo, que perdi os sentidos, visto que, quando abri os olhos, estava estendida na erva, com o vestido completamente encharcado... porque, como o Cadillac estava sobreaquecido, eu despira o casaco de abafo. Percebi que me encontrava dentro da quinta de Borden e lembrei-me do que me acontecera. Olhei em volta e não vi a outra.

Dawn calou-se, passando as mãos pela cara.

- Continue, por favor-animou Mason. - Como saiu de lá?

- Estava gelada e a tremer. Levantei-me, desnorteada, caminhei por cima da erva, até ao muro; segui por este e reencontrei a estrada de acesso ao portão. Saí da propriedade e comecei a palmilhar a estrada, até que passou um carro cujo motorista me levou para a cidade.

- Sabe o nome desse motorista?

- Não. Não mo disse e também não lho perguntei. O tipo fez o possível por convencer-me a ir para a cama com ele. Defendi-me como pude e inventei ter tido uma desavença com o meu noivo e não estar com disposição para dar "cambalhotas" com o primeiro estranho que me aparecia. Beatrice pode confirmar-lhe que, na nossa profissão, sabemos desenvencilhar-nos dos importunos, passando-lhes "a mão pelo pêlo", diplomaticamente. Basta não os ferir no seu amor próprio. Bajulamo-los com os piropos que todos os machos gostam de ouvir e, depois, ferramos-lhes com a "nega". Só os drogados são perigosos...

- Evidentemente! - concordou Mason. - Queira prosseguir, Miss Manning.

- Apesar de toda a minha táctica, o homem queria à força acompanhar-me a casa, para uma última tentativa. Guiava só com a mão esquerda e não preciso de dizer-lhe onde enfiava a outra. Eu tinha de lutar, brandamente, para não o enfurecer, como se não desgostasse das suas explorações, mas não estivesse com disposição para orgasmos. Como o estupor não desistisse, esperei que ultrapassasse um autocarro e, ao ver a paragem imediata, disse-lhe que morava ali. O tipo parou e saltei para o passeio, antes que ele saísse do carro.

- Esse homem não a perseguiu na rua?

- Não, porque, entretanto, o autocarro chegava à paragem. Subi lá para dentro e só então me apercebi de que não trazia a minha bolsa de mão comigo. Nem dinheiro, nem bâton, nem chaves, nem qualquer identificação. Por sorte, o condutor foi amável... à sua maneira... e, sem escândalo, deixou-me apear na paragem seguinte. Tive de ir a pé para casa... mais de três quarteirões... e toquei para uma vizinha de apartamento, para que me abrisse a porta do prédio e me deixasse dormir lá em casa.

- Sabe a que horas tudo isso se passou?

- Tenho a certeza de que o acidente ocorreu, precisamente, às nove horas e três minutos.

- Como pode ser tão precisa? - estranhou Mason.

- Porque o vidro do meu relógio de pulso ficou em estilhaços e os ponteiros pararam, nessa hora.

- Sabe, aproximadamente, a que horas deixou a propriedade de Borden?

- Calculo que fossem dez menos vinte cinco, visto que cheguei a casa da minha vizinha às dez e um quarto... Porquê, Mr. Mason? Isso interessa-lhe para alguma coisa?

- Pode vir a ser importante... mas o que sobretudo me interessa é a descrição dessa mulher que lhe ofereceu a boleia.

- Está interrogar-me, como se eu estivesse num tribunal! -lamuriou-se Dawn.

- Vá lá, Miss Manning - incitou Mason, sorrindo sarcasticamente. - Estou a pagar-lhe o tempo que gasta comigo. Como era ela?

Dawn soltou uma gargalhadinha nervosa e descreveu-a:

- Deve andar entre os vinte e os trinta; é, mais ou menos, da minha altura, ou seja, um metro e sessenta e nove... talvez um pouco mais larga do que eu, nas ancas, mas, de qualquer modo, bem proporcionada. Como vê, não tenho muito ilíaco.

- Cabelo?

- Castanho, a dar para o ruivo... Fiquei com a impressão de que era morena, apesar do cabelo avermelhado... Talvez muito bronzeada.

- E os olhos?

- Escuros. Dava a ideia de que nem sequer tinham pupilas.

- Conseguiu notar isso?

- Sim, quando olhava para mim, para convencer-me a ir visitar o amigo.

- Mais algum pormenor?

- Usava anéis em ambas as mãos. Reparei nisso, porque guiava sem luvas. Se quer que lhe diga, eram diamantes e dos grandes.

- Como estava vestida?

- Não levava chapéu e o casaco era de um tom bege, por acaso de muito bom corte... por cima de um vestido verde-claro de boa modista, que lhe ia bem com a cor da pele.

- Já a conhecia de algum lado?

- Eu?... Nunca a vira na minha vida!

Mason olhou para Beatrice e sondou:

- Esta descrição diz-lhe alguma coisa, Miss Cornell.

Beatrice franziu as sobrancelhas e murmurou:

- Neste momento, não estou a ver quem seja, mas alguns desses sinais são-me vagamente familiares.

- Muito bem - concluiu Mason. - Por agora, Miss Manning, dou-me por satisfeito com as suas informações. Muito obrigado. Só preciso de algumas fotografias.

- Mesmo com nódoas negras? - riu-se Dawn.

- Adoro nódoas negras!

- Como queira, Mr. Mason - aquiesceu Dawn. - Prepare a sua Strobolite, Com ou sem soutien?

- Pode deixá-lo, como está, para não se constipar... E não preciso de fotografar-lhe a cinta do ligueiro... mas solte-o das meias, Gosto de ver a pele das pernas.

- Como queira - repetiu Dawn, logo indicando: - Beatrice, corre as cortinas e prepara os projectores. Vamos trabalhar.

 

A Cafeteria era um restaurantezinho onde se confeccionava comida caseira. Tinha pequenas mesas para duas pessoas, mas cada comensal servia-se a si próprio. Perry Mason, fazendo deslizar a bandeja de plástico, pelo tampo de zinco do balcão, escolheu pepinos recheados de carne picada, cenouras fritas, uma omoleta com ervas aromáticas e queijo-creme com ananás. Pagou, na caixa, e dirigiu-se para uma mesinha, junto da vidraça que dava para a rua. Sentou-se e notou um vulto, de pé, atrás de si.

- Essa cadeira está livre? - perguntou o homem. Com certa irritação, Mason replicou:

- Não está, mas há meia dúzia de mesas vazias, aqui ao lado.

- Importa-se de que eu me sente nessa?

Mason virou-se e deparou-se-lhe o Tenente Tragg do Departamento de Homicídios.

- Olá, Tragg! - saudou. - Não sabia que você também vinha comer aqui! O refeitório da Polícia faliu?

Tragg pousou a sua bandeja e apertou a mão do advogado, sorrindo prazenteiramente.

- É a primeira vez que venho almoçar aqui. Disseram-me que a comida era excelente.

- E é. A comida é caseira, mas a casa também tem uns petiscos tentadores. Apesar do incómodo, agora generalizado, do self-service, reconheço a virtude compensadora da prontidão com que nos despachamos. A esta hora de ponta, com o excesso de comensais, os restaurantes com mesas e criados têm um serviço demasiado moroso para quem tem horas de trabalho. E essa história de comer, de pé, como um cavalo à manjedoura, não só é detestavelmente incómoda mas também reduz o prazer gastronómico e acaba por ter repercussões nocivas na digestão. Como descobriu esta casa?

- Modus operandi - respondeu Tragg. - Digamos que por método de trabalho.

- Troque isso por miúdos, Tragg.

- Não sei se ainda se lembra da última vez em que desapareceu, quando eu andava à sua procura para obter umas informaçõezinhas acerca de um caso. Quando consegui falar consigo, Mason, você respondeu-me que estivera a interrogar uma testemunha, enquanto almoçava num restaurante chamado Cafetaria, onde serviam comida caseira.

- Eu disse-lhe isso?

- Sim. Portanto, registei na memória que, quando o célebre Perry Mason pretende esconder-se da Polícia, escolhe comida caseira. Consultei a lista telefónica classificada, liguei para esta Cafetaria a indagar se, porventura, o conheciam e vim esperá-lo a dez metros da porta. Quando você entrou, senti tanta fome que não pude deixar de imitá-lo. Aqui tem o meu modus operandi.

- É genial! - comentou Mason, rindo.

- Portanto, também concluí que você veio aqui entrevistar uma testemunha que ainda não apareceu... ou não vem mesmo. É esse o caso?

- Não. Ainda não falei com essa testemunha.

- Esplêndido. Portanto, posso ser-lhe útil, quando a entrevistar?

- Creio que não, Tragg.

- Mas talvez você possa ser-me útil, a mim.

- Está a contratar os meus serviços, como advogado?

- Não tenho posses para tais luxos, Não se esqueça de que não passo de um mísero tenente da Polícia.

- Bem... Almocemos tranquilamente e, depois, veremos em que posso ajudá-lo.

Comeram calmamente, quase em silêncio. Quando Tragg acabou os seus ovos mexidos com presunto e pimentos morrões, empurrou o prato para o lado e tirou um charuto da algibeira. Cortou-lhe a ponta com um canivete e suspirou.

- Neste momento, sinto-me mais humano. Voltemos à "vaca fria".

- Que "vaca fria"?

- É uma expressão que o meu pai usava, para reiniciar uma conversa interrompida. No fundo, vim prestar-lhe um favor, Mason, em troca de outro. Você anda a pisar terreno movediço e eu vim estender-lhe uma vara a que se apoiar.

- Que espécie de terreno movediço? - sondou Mason, atacando o queijo-creme com ananás. - Não comece a fumar esse horroroso tabaco, antes de eu terminar esta deliciosa sobremesa.

Tragg pousou a caixa de fósforos na mesa e comunicou:

- Meridith Borden foi assassinado e você andou a "passarinhar" pelo local, Fez soar um alarme e galgou o muro de uma propriedade privada. Depois, como um pateta, não informou a Polícia das suas andanças. Pelo contrário, decidiu desaparecer das vizinhanças, pelo que o ilustre procurador do Distrito, Hamilton Burger, deu saltos de euforia e mandou que lhe entregassem uma contrafé, para comparecer perante o Grande Júri. Deve ir lá esperá-lo, com fanfarras.

- Deixe-o dar saltos, Tragg. Burger está demasiado gordo e esse exercício só lhe faz bem.

- Mas mal a si, Mason. Você já defendeu demasiados casos, sempre na "corda bamba". Não se esqueça do velho ditado: "Tantas vezes vai o cântaro à fonte, que, de uma delas, lá fica." Você tem a mania de meter-se na "linha de fogo" à procura de provas, em vez de deixar-se ficar na retaguarda do seu escritório, à espera de que elas vão ter consigo. Ora, na "linha de fogo", arrisca-se a ficar queimado. Por que raio não nos procurou a comunicar um homicídio.

- Não sabia que ele tinha sido cometido.

- Isso é o que você diz.

- Exactamente, é o que eu digo. Só hoje soube do assassínio de Borden.

- Que andou por lá a fazer? - inquiriu Tragg.

- Se eu lho disser, você não me acredita. Pensará que estou a mentir-lhe.

O tenente contemplou o charuto apagado, pensativamente.

- Não, Mason. Sei que é useiro e vezeiro em cortar as voltas ao procurador do distrito; sei que, se tiver uma oportunidade, é capaz de baralhar armas e provas materiais; sei que, para proteger um cliente, mete-se, quixotescamente, nas piores "alhadas"... mas também sei que não mente.

- Bem, Tragg, vou contar-lhe o que se passou. Estava eu, placidamente, a jantar como um cidadão tranquilo, quando me apareceu um homem a informar terem-no envolvido num acidente de viação. Tinha razões para supor que alguém tivesse ficado ferido e eu decidi ir com ele investigar o sinistro, no local onde ocorrera. Quando estávamos na propriedade de Borden, os portões fecharam-se. Aparentemente, tinham sido cerrados por um mecanismo comandado da casa, a cerca de quinhentos metros. Eram precisamente onze horas da noite.

- Sim, os portões fecharam-se automaticamente, às onze horas.

- Portanto, ficámos fechados numa ratoeira. Ainda por cima, um belo doberman, pouco amigável, veio a ladrar, na nossa direcção, com visíveis intenções de nos esburgar as canelas. Não tivemos outro recurso, senão galgarmos o muro.

- "Tivemos", quem?

- A parelha que ia comigo.

- Della Street fazia parte dessa parelha... Mason não confirmou, nem desmentiu.

- ... e o outro parceiro, provavelmente, era George Ansley - concluiu Tragg.

Mason conservou o mutismo.

- Muito bem. Você foi à cata de uma testemunha. Quem era essa testemunha? - insistiu Tragg.

- Para falar francamente, fui procurar o condutor do carro que se virou na quinta de Borden.

- Pois, pois, e encarregou Paul Drake de descobrir a identidade desse condutor... Mas ele informou-o de que o carro fora roubado, não é verdade?

- Sim, mas só mais tarde. Quando o encarreguei do caso, nenhum de nós sabia do roubo da viatura.

- Não me está a ajudar muito, Mason.

- Estou a responder-lhe às perguntas.

- Por que não me conta toda a história, sem que eu tenha de arrancar-lhe a saca-rolhas?

- Prefiro esse sistema. Tragg mostrou-se impaciente.

- Pois, pois, você só responde, depois de assegurar-se daquilo que eu já sei.

- Se você estivesse no meu lugar, o que faria?

- Neste caso especial, de um roubo de automóvel, seguido de um homicídio, não deixaria de prestar todas as informações à Polícia. E, no seu lugar, sem omissões.

- Porquê?

- Porque estou a tentar dar-lhe- uma saída, Mason. Se você se mostrasse mais cooperante, eu iria ali ao fundo, ao telefone, e ligaria para o Departamento, dizendo que escusavam de entregar-lhe a contra-fé, visto que você tinha sido correcto comigo... isto é, com a Polícia.

- Era capaz de fazer-me esse jeito? - perguntou Mason, fingindo-se admirado.

- A si, sim!

- Não está a "reinar"?

- Estou o mais sério possível. Para que diabo pensa que vim aqui almoçar consigo?

- Julguei que gostasse de comida caseira!

- O refeitório da Polícia ainda não faliu... embora nada tenha de caseiro.

- Estou a ver... Você deu-se ao trabalho de vir aqui; pôs dois "chuis" à paisana a vigiarem todos os meus passos e, entretanto, o procurador do distrito comunicará aos jornais que o advogado Perry Mason foi desmascarado pelo inteligente detective, Tenente Tragg, do Departamento de Homicídios.

- Está muito enganado, Mason. Ninguém sabe que vim a este restaurante... e não há "paisanas", a uma milha em redor.

- Muito bem, Tragg. Nesse caso, vou contar-lhe toda a história, embora, naturalmente, omita o nome do meu cliente.

"Um pouco depois das dez horas da noite, Della Street e eu estávamos a jantar, quando um homem apareceu, mostrando-se preocupado com o que lhe sucedera uma hora antes. Um carro chocara com o dele e virara-se, dentro da propriedade de Meridith Borden. Ao sujeito deparou-se-lhe uma mulher, caída na erva, com as saias levantadas até à cintura. Estava viva, mas inconsciente. Compreendendo que nada poderia fazer, às escuras e debaixo de chuva, decidiu ir buscar auxílio à casa de Borden.

"Alguns minutos depois, ouviu a mulher gritar por socorro e voltou para trás. Aparentemente, a sinistrada recuperara os sentidos. Continuava com as saias levantadas, exibindo umas magníficas pernas. O homem ajudou-a a levantar-se. Notou, então, que ela tinha os pés enlameados, coisa em que, momentos antes, não reparara. A mulher assegurou-lhe que não tinha qualquer osso partido, nem estava ferida, apenas admitindo que se achava ligeiramente contundida nos tornozelos e canelas.

"Como ela lhe pedisse que a levasse a casa, o homem conduziu-a à morada então indicada.

"Depois de eu o ter interrogado acerca de alguns pormenores, começou a suspeitar da possibilidade de ter-se tratado de duas mulheres e não apenas de uma. Admitiu a hipótese de a primeira mulher, que ele vira caída no chão, ter sido substituída pela outra que tomara a mesma atitude, com idêntica disposição das saias, para assim poder iludi-lo. Provavelmente, a segunda mulher arrastara a primeira para outro lugar e, depois de. ter ocupado o lugar desta, gritou por socorro."

- Porquê?

- Para que o homem não fosse pedir auxílio a Borden.

Tragg tornou a fitar o charuto, com o espírito concentrado, e decidiu-se a acendê-lo. Após duas fumaças, meneou a cabeça, lentamente, e soprou:

- "Encaixa"!... Isso já parece fazer sentido. Que fez você, esta manhã, Mason?

- Procurei descobrir quem era essa segunda mulher, ou seja, aquela que o sujeito acompanhara a casa.

- Que descobriu?

- Fui à morada que a jovem dera ao homem... depois de apresentar-se como sendo Beatrice Cornell.

- Que morada? - cortou Tragg.

- Os Ancordia Apartments. Efectivamente, uma Beatrice Cornell vive nesse prédio de apartamentos onde também montou um negociozinho de informações telefónicas e de contratos de garotas que actuam como modelos fotográficos. Essa Cornell é uma mulher talentosa e possui um belo arquivo de endereços de clientes. Afirmou não ter saído do apartamento, ontem à noite, e acreditei nela.

- Continue - incitou Tragg.

- Concluí que a moça, que se apresentara como sendo-Beatrice Cornei!, devia conhecê-la.

- Porquê?

- Porque, quando o homem a acompanhou ao edifício, ela tocou à campainha e a porta foi-lhe aberta. Depois de beijar o seu "salvador"...

- Cordialmente, como agradecimento?

- Você Tragg, já tem idade de saber como essas coisas são! Foi um beijo cheio de promessas de encontros futuros.

- Pois, pois. Que mais aconteceu?

- A jovem entrou no prédio... e esperou que o homem se afastasse. Depois, tornou a sair e apanhou um táxi.

- Como sabe isso?

- Deduzi... meu caro "Watson"!

- E que mais fez, além de deduzir isso?

- Fui visitar Miss Cornell que me apresentou o álbun> -mostruário de beldades que se deixam fotografar a vinte dólares à hora, com qualquer roupa, ou sem ela, e em qualquer posição... desde que não seja obscena.

- Portanto, nus artísticos. Conheço o género, dos arquivos da Polícia. São um pretexto para intimidades pornográficas que, muitas vezes, degeneram em crimes de natureza vária, desde a chantagem ao homicídio. Que mais?

- Acabei por encontrar uma moça que parece corresponder à discrição sinalética feita pelo homem que a acompanhara à porta da casa.

- Como conseguiu descobri-la?

- Pelo processo de exclusão das que não correspondiam àqueles sinais.

- Só pelas fotografias? Teve uma sorte dos diabos!

- Não se tratou de um caso de sorte, mas de perspicácia.

- Que espécie de perspicácia?

- Procurei uma jovem modelo que tivesse os tornozelos contundidos.

- Lógico! Você, para mero advogado que é, daria um bom detective. Que mais aconteceu?

- Consegui atrair essa moça ao apartamento de Miss Cornell e paguei-lhe duas horas de tempo perdido comigo, além da comissão para a "patroa" e das despesas de táxi. Depois de bem conversadinha, desbobinou toda a história.

- Conte lá. Sou todo ouvidos!

- Disse ter estado numa reunião de amigos, em Mesa Vista, e que, ao sair, não conseguindo arranjar um táxi, pois chovia a potes, viu um grande Cadillac parar, junto dela. Não se tratava de um condutor, mas de uma mulher que saiu do carro para oferecer-lhe boleia. Contudo, já a meio do caminho para a cidade, a boa samaritana anunciou desejar passar por casa de um amigo e, momentos depois, entrava na estrada de desvio para a propriedade de Borden. Na altura em que passava os portões, surgiu um outro carro, em sentido contrário...

- O do seu cliente?

Mason calou-se.

- Continue lá a sua história - pediu Tragg. - Estava a interessar-me, sabe?

- Estava a contar-lhe a história que Dawn Manning me impingiu. Declarou ter conhecido Meridith Borden e não gostar do seu "género". O ex-marido da Manning estava associado a Borden e ambos tentaram servir-se dela para poderem pressionar um certo político deste Estado. A jovem Manning recusou-se a prestar-lhes esse favor, por considerá-lo bastante sujo. De resto, o ex-marido não chegara a ser ex, pois enganara-a, furtando-se a ultimar o divórcio, no Reno. A mulher do Cadillac, dissera-lhe ter estado na mesma reunião e mencionara estar a par desse divórcio logrado.

"Dawn Manning, não querendo entrar na quinta, torceu o volante e provocou a colisão das duas viaturas. Ficou inconsciente, cerca de meia hora. Depois, saiu da propriedade, pelo seu pé, e arranjou uma boleia até à cidade."

- Nessa altura os portões da quinta ainda estavam abertos?

- Sim... segundo a versão da insinuante Manning.

- E ela foi para casa?

- Sim.

- Você acreditou nessa história da "carochinha"?

- Bem... pelo menos, "encaixa" na minha teoria.

- Talvez... E quanto à outra mulher, essa que conduzia o Cadillac e que o seu cliente levou até aos Ancordia Apartments?

- Não me referi a cliente algum. Quanto a essa jovem beldade, pressinto que também deve conhecer Beatrice Cornell, mais ou menos intimamente. Não só utilizou o seu nome e morada, como conhecia os costumes da casa, pois Beatrice abre o trinco eléctrico da porta do prédio a quem quer que seja, na presunção de que se trate de um cliente. E, como a mulher disse ter estado na tal reunião... ou não esteve, pois não há prova disso... de onde a Manning saíra, é natural que se dê com outras jovens modelos e com fotógrafos profissionais. Se quer que lhe diga, Tragg, "cheira-me" a que também foi modelo "erótico". Pelo menos, gosta de mostrar bem as pernas.

Tragg estudou a ponta fumegante do charuto e rolou-o nos dedos, antes de inquirir:

- Que mais fez, Mason, para localizar essa outra moça?

- Nada, ainda. Estou a pensar no caso.

- Okay! Pense bem e actue. Pensando melhor, vamos actuar juntos.

Mason abanou a cabeça. Com um gesto de impaciência. Tragg sondou:

- Porventura, Mason, pensa que pode recusar-se a isso?

- Talvez possa.

- Isso é o que você julga. Será que um advogado famoso não percebe que estou a dar-lhe uma probabilidade única?

- Qual?

- A de evitar sarilhos e de poder dar uma vista de olhos ao cenário da peça. Vou abrir-lhe a porta do teatro e deixá-lo meter o nariz pelos bastidores. Venha daí.

Em vez de sair, Tragg dirigiu-se à cabina telefónica da Cafetaria, fazendo sinal a Mason para que o seguisse. Fez uma chamada e, ao desligar, proferiu:

- Okay, Mason! Desta vez você acertou. Está "limpo".

- Obrigado.

- E não vamos incomodar a sua excelente secretária. Em vez de interrogar Miss Street, vou "tirar nabos da púcara" a George Ansley. Está interessado em acompanhar-me?

- Como é que esse George Ansley entra na sua peça?

Tragg fez uma careta que pretendia parecer um sorriso e esclareceu:

- Quando o seu cliente pôs o casaco em cima do muro, os vidros de garrafa e o arame farpado arrancaram-lhe alguns fios. E não só fios do tecido de lã. Alguns deles eram de uma etiqueta de alfaiate. Um trabalhinho de rotina levou-nos ao artífice que tem etiquetas com fios vermelhos e dourados. Aí, obtivemos vários nomes e moradas de clientes. Com mais um pouco de rotina, chegámos ao seu cliente.

- Tão simples como isso?

- A rotina é morosa, mas costuma dar bons resultados. Desta vez nem sequer foi muito morosa. O tecido de lã era de fabrico recente e o alfaiate só trabalha, neste Estado, há dois anos.

- Não quer falar com Beatrice Cornell? – estranhou Mason.

- Para quê?

- Aquele mostruário de garotas modelos e a lista de clientes, que ela possui, podem dar-nos uma boa pista da jovem que utilizou o seu nome e morada.

- É possível, mas, primeiro, vamos pelo caminho mais curto.

- Qual é?

- Investigarmos as companhias de táxis - elucidou Tragg. - Já sabemos essa morada dos Ancordia Apartments... e sabemos a hora: um pouco antes das dez. O seu cliente contactou consigo, no restaurante, poucos minutos depois das dez, e vocês três foram à propriedade de Borden, antes de os portões se fecharem: portanto, antes das onze... Quantos minutos antes?

- Cerca das onze menos dez - satisfez Mason.

- Perfeito. Por conseguinte, temos os dados cronológicos. A Polícia está, neste momento, a investigar os serviços de táxis. Há uma cabina telefónica no átrio dos Ancordia Apartments. É de supor que, numa noite chuvosa como aquela, a jovem beijoqueira tenha chamado um táxi por telefone, em vez de ir para a rua, ensopar-se, com poucas probabilidades de arranjar transporte...

- Parece-me uma boa estratégia - apoiou Mason.

- Simples rotina - suspirou o tenente. - Que me diz a irmos ambos no meu carro? Posso comunicar, por rádio, com a Central da Polícia, de maneira a termos, continuamente, notícias frescas.

- Ser-se oficial da Polícia dá imensas vantagens - comentou Mason, pensativo.

- Às vezes, também tem desvantagens, pois não nos arriscamos a "pisar o risco" da legalidade, como alguns advogados espertalhões que eu conheço. Mas deixemos isso. Vamos lá, Mason.

 

O receptor do carro de Tragg emitiu uns zumbidos e uma voz soou:

- Chamo viatura XX-Especial. Chamo viatura XX-Especial. Tragg empunhou o microfone emissor e respondeu: - XX-Especial responde; Tenente Tragg.

A voz replicou:

- Sirva-se da cabina telefónica e contacte com a Central. A informação que pediu não pode ser dada por rádio.

- Okay - respondeu Tragg, pousando o microfone no respectivo encaixe.

Sorriu para Mason e esclareceu;

- Isto significa que já localizaram qualquer coisa de interesse. Não podem dar, por rádio, este género de informações, pois há amadores... e patifes... que têm aparelhos comutados com as emissões da Central da Polícia para os rádios-patrulhas. É como nas guerras. Para cada arma se inventa um escudo e para cada novo escudo se inventa nova arma. Mal a Polícia começou a estar equipada com emissores-receptores de rádio, logo a escória do Crime tratou de munir-se de postos de escuta. Esta "graça" leva-nos a evitar transmitir, por este meio, informações confidenciais.

Parou o carro, junto de uma cabina pública e saltou para o passeio. Mason viu-o fazer a ligação e, em seguida, começar a tomar apontamentos num bloco-notas.

Quando o tenente regressou ao carro, tinha um sorriso rasgado.

- Vamos lá, Mason - explicou, animadamente. - A primeira sessão da peça vai começar.

- Tem a certeza de que se trata da peça que nos interessa ver?

- Bem... nunca se tem a certeza de coisa alguma, mas a actriz desta promete representar bem. É uma mulher de cerca de trinta anos, de belo aspecto carnal, com um metro e sessenta e oito de altura, cerca de cinquenta e sete quilos, arruivada, que chamou um táxi dos Ancordia Apartments, na noite passada. Disse chamar-se Miss Harper. O motorista do táxi que a recolheu ali, declarou tê-la conduzido aos Dormain Apartments, em Mesa Vista. Portanto, é para lá que seguimos, neste momento.

- Uma probabilidade, em cem? - perguntou Mason.

- Digamos uma, em dez. Se falhar, paciência, É uma virtude que nos não falta. Buscam-se outros táxis que tenham recebido chamadas dos Ancordia; depois, os que andaram pelas ruas, na "babugem" dos passageiros. Leva mais tempo, mas pode resultar. O motorista que "pescou" uma passageira, à noite, quase sempre ainda se lembra desse "peixe", no dia seguinte. Basta que indiquemos a zona aproximada onde o apanhou a "nadar".

Tragg carregou no acelerador ao longo das ruas principais, fez algumas viragens e rumou para Mesa Vista.

- Sabe onde ficam esses apartamentos?

- Já ando neste ofício, há muito tempo. Podia ser motorista de táxi.

Pegou no microfone e transmitiu:

- Carro XX-Especial chama Central.

Ao ser atendido, avisou:

- Dirijo-me para o local indicado por telefone. Voltarei a comunicar, logo que regresse à circulação.

 

Os Dormain Apartments tinham uma frontaria deveras pretenciosa e uma porta giratória de acesso ao átrio. O recepcionista olhou para Mason e para Tragg e baixou a vista para o que estava a ler, mas, subitamente, tornou a erguê-la, como se algo o tivesse alertado.

Tragg avançou para o balcão e perguntou ao recepcionista:

- Tem cá alguém de nome Harper?

- Tenho dois inquilinos. Qual deles prefere?

- Uma mulher, com cerca de trinta anos, medindo um metro e sessenta e oito de altura e pesando cinquenta e sete quilos.

- Deve ser Loretta Nann Harper. Vou telefonar-lhe a informá-la de que tem visitas.

Tragg fez deslizar, sobre o balcão, a carteira que abriu, exibindo o seu cartão de tenente da Polícia.

- Não telefone - indicou. - Vamos subir. Qual é o número?

- É o 409... Espero que nada tenha sucedido...

- Vamos apenas interrogar uma testemunha. Escusa de apoquentar-se.

Mason seguiu Tragg até ao elevador e tornou a observar:

- Não há dúvida que ser oficial da Polícia dá muitas vantagens.

- Se andasse mais vezes comigo, Mason, mudava de opinião. Quantas vezes, depois de nos esforçarmos por caçar uma testemunha, conseguimos desencová-la, mas logo depara-se-nos um advogado que a aconselha a não abrir a boca; e quantas vezes temos de sentarmo-nos no banco das testemunhas e sermos interrogados por um advogado que nos lança em rosto: "- Você é um oficial da Polícia, não é verdade? Nesse caso, como não notou a cor das meias da mulher que viu a vinte metros de si? Devia ter reparado nesse pormenor, não é assim? Não é para isso que o público lhe paga?"

Mason sorriu, reconhecendo:

- Há alguma verdade nisso.

Quando o elevador parou, percorreram o corredor até à porta 409. Bateram e ninguém respondeu. Depois de duas insistências, ouviu-se um certo rumor no interior do quarto. Finalmente a porta entreabriu-se, sendo logo sustida por uma corrente de segurança.

- Quem é?

Uma vez mais Tragg mostrou a carteira aberta.

- Sou tenente do Departamento de Homicídios. Desejava falar consigo, Miss Harper, por um minuto.

- Eu... estava a vestir-me.

- Está decente?

- Bem... mais ou menos.

- Nesse caso, deixe-nos entrar.

Após uma hesitação a mulher soltou a corrente de segurança e abriu a porta.

- Estava a vestir-me para sair...

- Ainda não saiu hoje? - perguntou Tragg.

- Não.

Os dois homens entraram no apartamento que estava luxuosamente mobilado. Da cozinha evolava-se um agradável aroma a café, recentemente feito.

A mulher, de aparência ainda muito jovem, era bonita e esbelta. Um roupão de banho cobria-a dos joelhos até quase ao pescoço, visto que ela lhe aconchegava a gola com a mão.

- Tem um esplêndido alojamento! - elogiou Tragg.

- Gosto dele.

- Vive aqui, só?

- Sim... se isso é da sua conta.

- Tem espaço à farta!

- Não gosto de viver num cubículo. Porque vieram procurar-me?

- Desejamos falar com uma jovem que ontem à noite, por volta das nove e quarenta e cinco... dez horas, esteve nos Ancordia Apartments. Pensámos que pudesse ajudar-nos com algumas informações.

- Porquê eu? - sondou Loretta.

- Prefiro que me responda às perguntas, em vez de fazê-las. Serviu-se do nome de Beatrice Cornell, quando George Ansley a deixou à porta daqueles apartamentos?

- Ele disse ter-me deixado aí? Afirmou que fiz isso?

- Foi, ou não, o que aconteceu? - impacientou-se Tragg.

- Realmente, tenente, não vejo por que tenho de responder a essas perguntas, antes de saber com que fim.

- Muito bem, Miss Loretta Harper. Tive o cuidado de vir falar-lhe, aqui, em vez de mandá-la rebocar para os "Homicídios". Estamos a investigar o caso de um acidente de automóvel...

- Que acidente?

- Aquele em que você foi "cuspida" para fora de um carro, dentro da propriedade de Meridith Borden; um acidente em que outra mulher ficou desmaiada, tendo-a você arrastado, pelas axilas, para debaixo das árvores e, escondendo-a, assim, da vista de Ansley; depois dessa farsa, foi colocar-se no mesmo lugar em que a outra estivera, estendida na relva, e gritou por socorro. Dessa maneira, evitou que Ansley fosse pedir auxílio a Borden; ao mesmo tempo, iludiu-o, pois convenceu-o de que era a mesma sinistrada que ele vira, sem sentidos, momentos antes.

Perante um tal dilúvio de informações, Loretta mordeu o lábio superior e convidou:

- Queira sentar-se, Tenente Tragg... E esse é...?

- Mr. Mason - apresentou Tragg. Perry Mason inclinou-se, numa vénia.

- Bem... - murmurou Loretta. - Espero, tenente, que consiga deixar o meu nome fora desse assunto...

- O melhor é começar por esclarecê-lo, sem rodeios. Como aconteceu ter andado a conduzir um carro roubado?

- Eu não andava a guiar um carro roubado! - protestou ela, com veemência, dando grande ênfase ao "eu".

- Então quem o conduzia?

- Dawn Manning! E guiava-o, como uma louca!

- Por que motivo você ia com ela?

- Porque me forçou a entrar no carro.

- Forçou-a, como?

- Apontando-me uma pistola.

- Isso é rapto!

- Está visto que se tratou de rapto. Fiquei tão furiosa que me senti capaz de matá-la, se tivesse com quê.

- Muito bem, Miss Harper, continue. Que sucedeu?

- Dawn acusou-me de eu andar "metida" com o marido dela.

- E é verdade?

- Dawn não tinha o direito de dizer o que disse a meu respeito. Frank divorciara-se dela, portanto, nada havia que o impedisse de tentar refazer a sua vida. Dawn também faz o que lhe dá na gana, como se fosse uma...

- Quem é esse Frank? - perguntou Tragg.

- Frank Ferney, ex-marido de Dawn.

- E ela usa o apelido de Manning?

- Sim... O seu nome profissional é Dawn Manning.

- Que profissão exerce?

- Não precisa que eu lho explique por miúdos, pois não, tenente? Consta que é a mais velha profissão do mundo, embora possa disfarçar-se com outra actividade qualquer, complementar.

- Diga-me agora, Miss Harper, como entrou para esse carro roubado.

- Tem a certeza de que fora roubado?

- Absoluta. Um Cadillac de matrícula CVX 266, roubado na noite passada.

- Se Dawn o roubou, decerto teve a intenção de baralhar as pistas.

- Pode ser. Conte-nos toda a história, pelo princípio - pediu Tragg.

- Eu estava num jantar íntimo com um casal antigo. A certa altura, saí para comprar cigarros e cubos de gelo, enquanto os meus amigos estavam a ver televisão.

“Deviam ser umas oito e quarenta e cinco. Parei, num sinal vermelho do semáforo. Quando mudou para verde, comecei a atravessar a rua. Nesse momento, um automóvel atravessou-se-me em frente e a porta abriu-se. Uma voz de mulher ordenou-me: "Entre". Fiquei espantada."

- Já a conhecia?

- Nunca me encontrara pessoalmente com ela, mas conhecia-a de vista.

- Mas ela conhecia-a bem, pelos vistos!

- Aparentemente, também sabia quem eu era.

- Então, que fez, Míss Harper?

- Hesitei e Dawn insistiu:

"-Entre cá para dentro! Preciso de falar-lhe.

"-Acerca de quê? - inquiri.

"-A respeito de Frank.

"Então apontou-me uma arma à barriga. Não tive outro remédio senão obedecer-lhe. Dawn, mal eu fechei a porta, contou-me que Frank lhe dissera ter ido para Reno, para obter o divórcio, mas que nãu o fizera. Dawn pensara ter ficado livre para poder casar-se outra vez, mas acabou por verificar que Frank só lhe concederia o divórcio a troco de dinheiro. Parece que um rico fotógrafo amador estava na disposição de entrar com a "massa" para libertar Dawn de Frank.

Fiquei danada com aquela história, visto Frank nunca ter confessado que estava ainda casado com Dawn. Esta queria que eu fizesse uma declaração escrita de que eu e Frank éramos amantes. Parecia louca, com um ataque de histeria. A mão que empunhava a arma tremia.

- Não precisava dela para meter as mudanças? - sondou Tragg.

- Aquele Cadillac tinha mudanças automáticas.

- Estou a ver... Continue.

- A certa altura, meteu o carro por uma estrada de desvio e dirigiu-se para um grande portão de ferro. Nesse momento, vi os faróis de um automóvel, em sentido contrário, saindo da propriedade. Dawn travou e o carro derrapou, indo embater no automóvel e, depois, numa árvore, iá dentro da quinta. Ficou tombado, de lado, mas Dawn já tinha sido atirada para fora, pela porta que se abrira... ou ela mesma abrira, antes do embate.

- É pouco provável que um condutor, tentando endireitar a direcção de um automóvel, tenha tempo e reflexos para abrir a porta.

- Bem... É possível que Dawn tenha sido "cuspida" do carro, quando este embateu no outro, ou na árvore. Eu estava aterrorizada e não me lembro, com precisão, do que possa ter acontecido. Só me recordo de ter trepado, agarrada ao volante, para fora do carro e saltado para o chão. Nesse momento, um homem saiu do outro automóvel, com uma lanterna na mão. Esta pouco iluminava, mas não quis que me visse ali e escondi-me. Fui para debaixo das árvores, mas ainda vi Dawn caída no chão, perto do Cadillac. A minha ideia era não ver o meu nome nos jornais. Queria, por tudo, evitar um escândalo.

- E depois?

- O homem perguntou se alguém ficara ferido e ainda o vi inclinar-se sobre Dawn, apontando-lhe a lanterna que acabou por apagar-se. Então, depois de tornar a perguntar se ela estava magoada, dirigiu-se para a casa, ao fundo da quinta. Por esse motivo, decidi evitar que ele fosse buscar mais testemunhas. Deixei-o afastar-se um pouco e resolvi substituir Dawn, no local onde ela se achava estendida. Arrastei-a para debaixo das árvores e coloquei-me tal como ela se achara, momentos antes, exactamente na mesma posição e com as saias subidas até à cintura. Então, gritei por socorro. Tencionava convencer o homem a levar-me para a cidade. Chovia a "cântaros"!

- Que mais fez?

- Ele voltou para trás e eu fingi-me desnorteada, sem saber onde estava. Sentei-me e ele ajudou-me a levantar da erva molhada. Lembrei-me de que a minha bolsa de mão ficara no Cadillac, assim como o meu casaco de abafo. Decidi ir buscá-los e aproveitei para também trazer a bolsa de Dawn, que escondi dentro do casaco, embrulhado numa rodilha.

- Por que fez isso?

- Queria ter a certeza de quem ela era... Fi-lo para minha própria segurança. Podia ter cartas reveladoras... Sei lá?... Agi num impulso de curiosidade...

- Que mais aconteceu?

- O homem declarou ser George Ansley e eu pedi-lhe que me levasse a casa; mas disse-lhe chamar-me Beatrice Cornell e morar nos Ancordia Apartments. Para evitar mais explicações, simulei ter ficado estonteada e fechei os olhos, até o carro parar. Então despedi-me dele e saí.

- Que mais?

- Dirigi-me à porta do edifício e toquei para o apartamento de Beatrice Cornell. Ela abriu o trinco eléctrico e, depois de despedir-me desse Ansley, fechei a porta. Quando vi o carro dele afastar-se, telefonei da cabina do átrio e chamei um táxi.

- E depois?

- Quando o táxi chegou, mandei o motorista trazer-me aqui... e é tudo.

- Por que motivo Dawn Manning quis levá-la a casa de Meridith Borden? - perguntou Tragg, franzindo o sobrolho.

- Porque Frank... o ex-marido dela... trabalha com esse Borden. Dawn pensava que Frank estivesse lá, mas não estava.

- Como sabe isso?

- Porque eu o deixara com o casal meu amigo, a ver televisão. Há pouco não quis referir-me a isso, mas ele era o quarto comensal do jantarinho íntimo que tínhamos organizado. Frank não é meu amante, mas... enfim... é meu namorado. Dispunha-se a casar comigo... Já acabou o seu interrogatório?

- Ainda não. Você, Miss Harper apoderou-se de um objecto alheio. Isso implica-a num crime de furto. Quero que me entregue a bolsa de Dawn Manning.

Loretta foi buscá-la à gaveta de uma cómoda e entregou-a ao tenente que não a abriu, limitando-se a inquirir:

- Viu o que ela continha, Miss Harper?

- Dei-lhe uma vista de olhos, mas nada encontrei de interessante.

Mason interveio para perguntar:

- Pode indicar, com exactidão, que horas eram, quando Dawn Manning a forçou a entrar no Cadillac?

- Não vi as horas, mas calculo que ainda não fossem nove; aproximadamente, entre as nove menos um quarto, nove menos dez.

- E quando se verificou o acidente?

- Deviam ser já nove horas... talvez, mesmo, alguns minutos depois das nove.

- Ansley, após de ter caminhado para a casa, voltou para trás e veio ter consigo. Que horas eram, nesse momento?

- Não faço ideia... isto é, não consultei o relógio. A noite estava completamente escura... De resto, nem sequer me lembrei de ver as horas, mas já deviam ser umas nove e vinte. Ele trouxe-me directamente para casa.

Tragg franziu o sobrolho e proferiu:

- Devo adverti-la, Miss Harper, de que violou o Código de Acidentes de Viação, não comunicando à Polícia um acidente em que uma pessoa ficara sinistrada. Isso é considerado crime.

- Não era eu quem conduzia o carro. Não sou responsável pelo desastre. Não tenciono processar a causadora do acidente e tenho razões pessoais para não desejar ver-me envolvida em qualquer espécie de processo.

Tragg tirou um charuto da algibeira e respondeu;

- Muito bem, Miss Harper. Vista-se depressa, pois quero que me acompanhe ao gabinete do procurador do distrito, a fim de ser aí interrogada.

- Suponho, Tragg - observou Mason -, que não deseja a minha presença, nesse interrogatório.

- Adivinhou, Mason. A sua missão acabou. Apertaram as mãos e o advogado ironizou:

- Obrigado, tenente.

- Não tem de quê.

 

Mason telefonou para Beatrice Cornell.

- Daqui, Perry Mason. Até que ponto você conhece Dawn Manning?

- Não muito bem.

- Seria ela capaz de mentir acerca de um assassínio?

- No caso de estar envolvida nele?

- Exactamente.

- Certamente que o faria... como toda a gente.

- Tem namorados?

- Certamente... É uma moça normal.

- Lembra-se, Miss Cornell, de eu ter-lhe perguntado, da outra vez, ao telefone, se você sofrera um acidente de automóvel.

- Sim... e eu respondi-lhe não ter sofrido acidente algum.

- Porventura tem um registo gravado desse meu telefonema?

- Sim. Costumo, por regra, gravar todos os telefonemas que recebo, pois isso torna-se necessário no meu negócio. Porquê?

- Tenho necessidade de verificar o factor tempo. Sabe a que horas fiz esse telefonema?

- Um momento, Mr. Mason. Segundos depois, esclarecia:

- O seu telefonema foi feito às dez horas e trinta e três.

- E gravou a nossa conversa?

- Como gravo todas as comunicações telefónicas.

- Obrigado, Miss Cornell. Não destrua essa gravação. Pode vir a tornar-se importante.

- Pode ficar tranquilo a esse respeito.

Depois de desligar, Mason telefonou para o escritório.

- Olá, Gertie! Della está por aí?.

- Não, Mr. Mason. Disse-me estar de folga, por ontem ter trabalhado até muito tarde.

- Está bem, Gertie. Mais alguma chamada?

- "Montes" delas, Mr Mason. E tem sido muito procurado.

- Está alguém no escritório, neste momento?

- Sim.

- À minha espera?

- Sim.

- Alguém da Polícia?

- Não me parece.

- Quem?

- Disse chamar-se George Ansley e ter recebido uma mensagem de Mr. Mason.

- Okay, Gertie. Meta-o no meu gabinete particular e feche-o à chave. Não deixe mais ninguém entrar lá dentro. Vou já para aí.

Arrumando o carro a dois quarteirões da Cafetaria de cozinha caseira, Mason tomou um táxi e dirigiu-se ao escritório. Instantes depois, entrou pela porta do seu gabinete, de acesso directo ao corredor, e foi encontrar Ansley sentado no maple superestofado, a ler um jornal.

- Olá, Mr. Mason. Ainda bem que veio. Tem novidades a dar-me?

- Tem andado, todo o dia, em circulação? -indagou o advogado.

- Não todo o dia. Vim para cá, às duas horas da tarde. Li o Jornal.

- Só nessa altura é que teve conhecimento do assassínio?

- Sim.

- Muito bem, Ansley. Preciso de saber, pormenorizadamente, todo o teor da sua conversa com Borden, quando foi visitá-lo. Antes de mais, diga-me, com a máxima franqueza: voltou lá, depois de termo-nos separado, ontem à noite?

- Santo Deus! Não! Que diabo iria eu lá fazer?

- A Polícia pode vir a suspeitar de que você ajustou contas com ele

- Que disparate! Eu não tinha qualquer motivo para isso, Mr. Mason.

- Ter, tinha! Não foi ele, mais ou menos, o responsável por o tal inspector lhe prejudicar o curso das obras?

- Mais ou menos... sim. Mas a minha conversa com ele resultou. Já fui informado de que tudo está a correr "sobre rodas".

- Você possui uma arma?

- Nunca tive arma alguma.

- Onde estacionou o seu carro?

- Lá em baixo, no parque do edifício.

- Muito bem, Ansley. Vamos dar-lhe uma vísta de olhos, especialmente ao seu porta-luvas.

- Para quê?

- Para procurarmos uma prova.

- Que prova?

- Da história que me contou. É uma simples verificação.

 

Quando chegaram ao carro, Ansley abriu a porta e, em seguida, escolheu a chave do compartimento das luvas.

- Que raio é isto! - admirou-se.

- Que se passa?

- O porta-luvas estava aberto e eu costumo fechá-lo, sempre, à chave, pois já uma vez me roubaram a lanterna de pilhas e um mapa de estradas... Só se, ontem à noite, com toda aquela confusão, guardei a porcaria da lanterna e esqueci-me de fechar o porta-luvas.

- Veja o que tem lá dentro.

- Meu Deus! - exclamou Ansley, espantado. - Está aqui uma arma!

Era um revólver de aço azulado.

- Não lhe mexa e torne a fechar essa portinhola - intimou Mason.

Nesse momento, uma voz, por detrás deles, perguntou:

- Importam-se que eu também dê uma vista de olhos? Era o Tenente Tragg que afastou Mason para o lado e mostrou a Ansley as suas credenciais de oficial da Polícia.

- Tenente do Departamento de Homicídios - apresentou-se, verbalmente.

Meteu a mão no porta-luvas e retirou o revólver, cautelosamente.

- É seu? - indagou, virando-se para Ansley. Este negou veementemente:

- De maneira alguma. Nunca possuí uma arma e nunca vi isso aí dentro!

- Okay. Vou levar este revólver comigo. Borden foi assassinado com uma arma de calibre 38, tal como esta.

- Não está a sugerir que foi morto com essa arma, pois não?

- Não estou a sugerir coisa alguma. O Departamento de Balística irá manifestar-se a esse respeito. É melhor vir comigo, Ansley.

- Mas não pense que essa arma é minha, tenente!... Mr. Mason vem connosco?

Tragg soltou uma risadinha, abanando a cabeça.

- Não. Mr. Mason tem um dia muito atarefado e não pode preocupar-se com um assunto tão trivial. Pode explicar por que motivo, veio procurar um advogado tão ocupado e tão perito em processos de homicídio?

- Não o procurei por esse motivo. O assunto que aqui me trouxe...

- Eu sei, eu sei-cortou Tragg. - Venha daí comigo. Os rapazes da "Balística" decidirão o que houver a decidir acerca deste lindo revólver. Se for a arma que matou Borden, é natural que tenhamos de conversar mais paulatinamente. Adeus, Mason. Falaremos, noutra altura mais propícia. Lamento ter de incomodar o seu cliente... mas você bem sabe como estas coisas são.

- Se sei! - resmungou Mason, vendo Tragg empurrar, virtualmente, George Ansley para o automóvel, sem distintivo, da Polícia.

 

O escrivão, que assistia ao Juiz Erwood, indicou à assistência da audiência, no tribunal, que podia sentar-se. O magistrado proferiu:

- Caso do Povo versus Ansley. Está aberta a audiência.

- A Defesa está pronta - indicou Perry Mason.

- A Acusação está pronta - disse Sam Drew, um dos adjuntos do procurador do distrito, Hamilton Burger.

- Iniciem-se os debates - determinou o juiz. Sam Drew levantou-se.

- Se o Tribunal me permite, desejo esclarecer que, nesta audiência preliminar, a Acusação não pretende apresentar todas as provas de que dispõe, nem sequer incriminar, definitivamente, o réu de um homicídio do primeiro grau. Contudo, exporá as provas que induzem à admissão de que o réu cometeu esse crime. Esta é, meus senhores, a única função de uma audiência preliminar.

- Correcto - apreciou o Juiz Erwood. - A finalidade desta audiência é, apenas, apresentar provas suficientes que permitam considerar o réu culpado de um crime. Qual é a primeira testemunha da Acusação?

Drew chamou um agente da Polícia que apresentou uma carta topográfica da propriedade de Meridith Borden e outra, em maior- escala, mostrando a cidade e os arredores, assim como a localização de um cabaret designado por Golden Owl Night Club.

- Só pretendemos referir, aqui, factos essenciais. A Defesa deseja interrogar a testemunha?

- Não. Obrigado - declinou Mason.

- A testemunha é dispensada - disse o Juiz Erwood. - Queira chamar a próxima, Mr. Drew.

Este chamou Marianna Fremont que servira, como governanta, em casa de Borden, durante vários anos.

A mulher, de meia idade, declarou ter estado de folga, nessa segunda-feira. No dia seguinte, ao chegar, no seu carro, aos portões da quinta, encontrara-os fechados, pelo que deduzira que o patrão ainda estivesse na cama. Isso não era desacostumado, pois Borden deitava-se, muitas vezes, depois das quatro da manhã.

Como tinha uma chave, a governanta manipulou o fecho eléctrico automático, abriu os portões e, depois de voltar para o carro, dirigiu-se à casa. Como habitualmente, foi arrumar o carro nas traseiras do prédio.

- Que fez, então? - inquiriu Drew.

- Entrei em casa.

- Viu alguma coisa pouco comum?

- Nessa altura, tudo me pareceu normal.

- Que mais fez?

- Preparei o pequeno-almoço de Mr. Borden e fui levar-lho ao quarto.

- Encontrou-o deitado?

- Não... nem sequer encontrei um bilhete com qualquer recado.

- E isso ainda lhe pareceu natural?

- De maneira alguma. Nunca tal acontecera. Mr. Borden tinha sempre o cuidado de informar-me, quando saía e não tomava as refeições em casa.

- Muito bem - disse Drew. - Que mais aconteceu?

- Verifiquei que Mr. Borden não se deitara, nessa noite. A cama não tinha sido desfeita e a almofada estava completamente lisa.

- Queira prosseguir, Miss Fremont.

- Naturalmente, comecei à procura dele... de qualquer coisa que me indicasse o que sucedera. Então, fui dar uma espreitadela ao estúdio fotográfico.

- Que entende por estúdio fotográfico, Miss Fremont?

- é um aposento que Mr. Borden transformou em estúdio para tirar fotografias, tendo um quarto anexo, para câmara-escura.

- Para que fim Mr. Borden. construíra esse estúdio?

Miss Marianna Fremont admirou-se da pergunta.

- Essa é boa! Para tirar fotografias!

- A quem? - indagou Drew.

Apercebendo-se do objectivo da pergunta, a governanta esclareceu:

- Às mulheres que lá iam para esse fim: modelos fotográficos, como lhes chamam. Despem se e põem-se em posições indecentes...

- Deixemos isso, Miss Fremont - cortou Drew. - Queira descrever esse estúdio.

- É uma sala, com cortinas negras nas janelas, que podem correr sobre uns varões, ora deixando entrar a luz do dia, ora tapando-a. Também tem vários projectores de iluminação, com grandes lâmpadas, com uns discos transparentes, coloridos, que podem: ser-lhes adaptados. Ao fundo tem uns cenários, que podem enrolar-se por meio de um dispositivo especial. O que lá estava, nessa terça-feira de manhã, representava um céu com nuvens e ramaria de árvores...

- Deixemos isso - repetiu Drew. - Que mais viu, Miss Fremont?

- A grande máquina fotográfica... Mas Mr. Borden tinha outras, portáteis, de que também se utilizava. Cada uma delas custou uma fortuna...

- Passemos adiante, Miss Fremont. Que encontrou no chão desse estúdio?

- Encontrei Mr. Borden, deitado ao comprido, de costas, com um buraco no peito, feito por uma bala...

- Não, Miss Fremont-interrompeu Drew. - A senhora não pode testemunhar que esse orifício tivesse sido produzido por uma bala. Apenas faz uma suposição. Que mais viu no corpo de Mr. Borden?

- Muito sangue, que saíra pelo tal buraco.

- O seu patrão estava morto.

- Como é que ele havia de estar? Estava teso como uma tábua!

- Que medidas tomou?

- Telefonei à Polícia e disseram-me...

- É quanto basta, Miss Fremont. O Juiz Erwood perguntou a Mason:

- A Defesa deseja interrogar a testemunha?

- Sim, senhor doutor juiz.

Virando-se para a governanta, Mason inquiriu:

- Pode descrever, com maior pormenor, a maneira como Mr. Borden jazia no chão?

- Bem... Estava de costas... de papo para o ar. Drew interveio:

- Temos fotografias tiradas pela Polícia.

- Se a Acusação tenciona juntá-las ao processo, posso dispensar a testemunha - concedeu Mason -, mas desejo vê-las, imediatamente.

Drew apresentou uma fotografia de 18x24 que entregou ao juiz; depois, estendeu outra a Mason e ainda outra ao escrivão.

- Estas fotografias serão apenas apensas ao processo - determinou o Juiz Erwood. - Chame a próxima testemunha, Mr. Drew. ,

O adjunto do procurador do distrito nomeou:

- Detective Gordon C. Gibbs.

- Pertence à Força de Polícia Metropolitana?

- Sim, sir.

- Na terça-feira passada teve ocasião de entrar no apartamento do réu?

- Sim, sir.

- Ia munido de um mandado de busca?

- Sim, sir.

- De que estava incumbido de procurar, nesse apartamento?

- Roupas manchadas de sangue, ou algo que relacionasse o réu com um crime de homicídio.

- Encontrou algumas provas dessa natureza?

- Sim, sir.

- Que provas detectou?

- Um casaco com dois pequenos rasgões, esfiapados, e com manchas castanhas no peito. Levei-o para o laboratório e os peritos descobriram que essas manchas eram...

- Um momento! - cortou Drew. - Os peritos do Laboratório da Polícia testemunharão acerca desse pormenor. Que mais verificou, Mr. Gibbs?

- Que os fios do casaco, nos pontos dos rasgões, correspondiam aos que foram recolhidos...

- Não pode testemunhar a esse respeito, Mr. Gibbs! - tornou a interromper o adjunto do procurador do distrito. Só os peritos do Laboratório devem mencionar esse facto, em Tribunal. Conseguiu verificar a quem pertencia esse casaco?

- Sim, sir.

- Como procedeu a essa identificação do casaco do réu?

- Levei-o ao encarregado da lavandaria mais próxima. Este declarou ser ali que o réu, George Ansley, costumava mandar limpar os seus fatos e o resto da roupa. Identificou o casaco como sendo o do réu... mas, julgo que também não posso testemunhar, quanto à maneira como esse encarregado os identificou.

- Exactamente, Mr. Gibbs, não pode. Só ele poderá testemunhá-lo, em Tribunal.

Ansley inclinou-se para Mason e segredou:

- As manchas de sangue a que ele se referiu já estavam no casaco, antes de eu ter ido a casa de Borden. Costumo, frequentemente sangrar um pouco pelo nariz. Naquela tarde de segunda-feira, tive uma dessas pequenas hemorragias. Estanquei-a com o lenço, mas caíram-me alguns pingos no casaco. Depois, como já eram horas de encontrar-me com Borden e as manchas pouco se notavam, não perdi tempo a ir mudar de fato. É essa a explicação.

- Contra-interrogatório - indicou Drew, dirigindo-se a Mason.

Este perguntou à testemunha:

- Sabe qual a origem desse sangue?

- Não, sir. Só posso testemunhar acerca das manchas que detectei no casaco.

- E não sabe que o réu sofre de hemorragias nasais, intermitentes?

Encolhendo os ombros, Gibbs respondeu:

- Não, sir, nem me competia averiguar a origem das manchas que detectei no casaco. Isso compete ao Laboratório da Polícia.

- Portanto, também não pode testemunhar, em relação ao momento em que esses pingos de sangue mancharam o casaco?

- Não, sir... pelo mesmo motivo.

- Obrigado - concluiu Mason. - É tudo.

- Chamo agora o Tenente Tragg a depor - anunciou Drew.

Este avançou para o banco das testemunhas, indicou o seu nome, profissão e posto e prestou juramento. O ajunto do procurador do distrito perguntou-lhe:

- Conhece o réu, George Ansley?

- Sim, conheço-o.

- Quando o encontrou, pela primeira vez?

- Na terça-feira, dia nove.

- Onde o encontrou?

- No parque de estacionamento do edifício onde o advogado Mr. Perry Mason, tem instalado o seu escritório.

- Teve alguma conversa com o réu, nessa altura? Pode fazer um relato do teor dessa conversa?

- Posso, sim. Interroguei-o acerca de um revólver que se achava no porta-luvas do seu carro.

- Pode descrever esse revólver?

- Sim. Era um Colt de calibre 38, de aço azulado, do modelo conhecido por "modelo de polícia".

- Verificou o número dessa arma?

- Tinha o número 613096.

- Que fez a essa arma?

- Entreguei-a ao Departamento de Balística.

- Sabe o nome do perito a quem confiou o referido revólver?

- Entreguei-o a Alexander Redfield.

- Logo a seguir a ter encontrado a arma, que fez, Tenente Tragg?

- Disse ao réu que me acompanhasse ao Departamento de Homicídios.

- Quando lá chegaram, o réu prestou algumas declarações?

- Sim. Declarou ter estado, na noite de segunda-feira, em casa de Meridith Borden. Tendo-lhe eu perguntado se estaria disposto a descrever o seu encontro com Borden e a fazer um relato por escrito, aquiesceu, redigiu-o e assinou-o.

- A Polícia fez ao réu algumas promessas de atenuantes, caso escrevesse essas declarações, pelo seu próprio punho?

- Não lhe foi feita qualquer promessa.

- Foi submetido a qualquer espécie de pressões ou ameaças?

- Ninguém o ameaçou ou pressionou.

- Muito bem, Tenente Tragg. É tudo.

Virando-se para o juiz, Drew indicou:

- O revólver de aço azulado, "modelo de polícia", de marca Colt e calibre 38, com o número 613096, deve ser apenso ao processo, se o tribunal assim o permitir.

- Seja apenso - determinou o Juiz Erwood. Dirigindo-se a Mason, inquiriu:

- A Defesa deseja contra-interrogar a testemunha?

- Não, senhor doutor juiz - dispensou Mason. Seguidamente, Drew chamou Marvey Dennison a depor. Este testemunhou ser proprietário de uma loja de ferragens e objectos metálicos, conhecida por Valley Wiew Hardware Company, há mais de três anos. Tendo-lhe sido apresentado, pela Polícia, o revólver número 613096, verificou que esse número constava dos seus registos de armas; que o dito revólver, embora devesse encontrar-se em armazém, pois não fora vendido a cliente algum, desaparecera da respectiva prateleira. Acrescentou que, dois anos antes, fora informado, por um dos empregados, de que tinham sido roubados alguns artigos do armazém. Admitia a possibilidade de esse revólver ter sido roubado mais ou menos naquela altura. Contudo, como já tinha passado muito tempo, nada mais podia precisar.

Depois de Drew ter dispensado a testemunha, Mason absteve-se de contra-interrogá-la e o Juiz Erwood convidou a Acusação a prosseguir.

- Chamo Alexander Redfield - disse Drew.

Após este ter sido devidamente identificado, quanto à sua capacidade profissional, e ajuramentado, o adjunto do procurador do distrito mostrou-lhe a arma, declarando:

- Este é o revólver Colt de calibre 38, apenso ao. processo, como prova nº 13. O número de série do fabricante é 613096. O senhor, Mr. Redfield, é um perito de balística, experiente na identificação de armas de fogo e de munições. Já alguma vez, Mr. Redfield, teve ocasião de examinar esta arma?

- Sim, recentemente.

- Disparou com ela alguma bala?

- Sim.

- Pode descrever, sumariamente, o teste a que a sujeitou?

- Posso, sim. Cada cano de uma arma apresenta, nas estrias, particularidades individuais que podemos designar por irregularidades e que deixam, nas balas por ele disparadas, certas marcas detectáveis ao microscópio. Desta maneira, podemos identificar o cano que disparou uma bala.

- A partir das marcas que as estrias desse cano imprimiram na superfície da bala? - precisou Drew.

- Exactamente.

- Muito bem, Mr. Redfield. Queira prosseguir na discrição do teste, operado com este revólver.

- Disparámos a arma contra um alvo, especialmente preparado, que consiste num fundo caixote cheio de desperdícios de pano e algodão em rama. Esta operação destina-se a recuperar a bala disparada pela referida arma. Em seguida, analisámos o projéctil recolhido, sujeitando-o a uma observação microscópica, a fim de detectarmos, nele, as marcas causadas pelas estrias do cano da arma. Estas marcas foram, ulteriormente, fotografadas com uma máquina fotográfica especial e devidamente ampliadas.

"Na posse de uma outra bala, identicamente examinada ao microscópio e fotografada pelo mesmo processo, tornou-se possível comparar as marcas, nela detectadas, com as da bala sujeita ao teste.

- Teve ocasião de comparar as duas balas?

- Sim.

- Quem lhe entregou a bala para comparação?

- O procurador do distrito.

- Quando lhe foi ela entregue?

- Na tarde de terça-feira, dia nove.

- Portanto, essa bala foi-lhe confiada, antes de proceder ao teste com a arma apensa ao processo?

- Exactamente.

- Analisou ambas as balas?

- Sim.

- Pode apresentá-las ao Tribunal?

A testemunha tirou da algibeira dois pequenos sacos de plástico, cada qual contendo um projéctil.

- Peço que estas provas sejam apensas ao processo - solicitou Drew.

O Juiz Erwood anuiu ao pedido e o adjunto do procurador do distrito continuou:

- Procedeu à comparação das duas balas. Mr. Redfield?

- Sim. Foram disparadas pelo mesmo cano, ou seja, pelo cano da arma Colt, 38, número 613096.

Numa atitude exultante, Drew declarou:

- A bala que o procurador do distrito confiou ao perito de balística da Polícia foi retirada do corpo de Meridith Borden, o que prova que este foi assassinado pela mesma arma com que se procedeu ao teste agora referido, ou seja, o revólver encontrado no porta-luvas do carro do réu.

Virando-se para Mason. Drew indagou:

- Deseja contra - interrogar a testemunha?

- Considero-o desnecessário - declinou Mason. - Tenho a maior confiança na integridade e qualidade pericial de Mr. Alexander Redfield.

- É tudo - concluiu Drew.

Foram depois ouvidas novas testemunhas que depuseram acerca das condições em que a bala fora extraída do cadáver de Borden, entre elas o médico cirurgião que efectuara a autópsia. Uma vez mais, Mason dispensou o contra-interrogatório e o Juiz Erwood recostou-se na cadeira de espaldar alto, manifestando alívio, por a audiência decorrer calmamente, sem interrupções, motivadas por objecções da Defesa.

Em contrapartida, Sam Drew, que conhecia os métodos de Perry Mason, começou a sentir-se nervoso. Esperava que, de um momento para o outro, o advogado da Defesa, desencadeasse um dos seus ataques inesperados, de efeitos explosivos, contra a Acusação.

Chamou uma nova testemunha que também assistira à autópsia, na qualidade de perito em hematologia.

- Pode dizer-me, doutor, se entre as suas qualificações, também tem experiência na análise de quaisquer objectos que tenham recebido sangue? Especificamente, refíro-me a matérias têxteis que apresentem manchas de sangue?

- Sim, tenho essa experiência.

- Vou mostrar-lhe um casaco manchado de sangue. Teve ocasião de examinar estas manchas?

- Sim.

- Pode dizer-me de que espécie de sangue se trata... se é sangue humano, ou de animal, digamos, irracional?

- Trata-se de sangue humano.

- Pôde determinar de que grupo sanguíneo?

- Pude sim. Esse sangue é do grupo designado por AB.

- É um grupo sanguíneo muito comum?

- Bem, posso apenas dizer que, nos Estados Unidos, é um grupo sanguíneo bastante raro. Só cerca de doze por cento da população tem sangue desse grupo.

- Qual era o grupo sanguíneo do falecido Mr. Meridith Borden?

- Era AB.

- Pode contra-interrogar - propôs Drew, virando-se para Mason.

Este inquiriu, serenamente:

- Pode dizer-nos, doutor, quando foram feitas as manchas de sangue?

- Não, com exactidão.

- Depois de coagulado e seco, o sangue muda de cor?

- Sim... e mantém-se muito tempo com esse aspecto. Não é possível determinar, com precisão, em que altura secou, a não ser poucas horas depois de ter sido derramado.

- Sabe, doutor, a que grupo pertence o sangue do acusado?

- Não... Não tive oportunidade de analisá-lo. Provavelmente o seu grupo sanguíneo é O.

- Por que diz isso?

- Porque é o mais comum. Cerca de cinquenta por cento da população dos Estados Unidos tem sangue do grupo O.

- Mas não há prova alguma de que o sangue do acusado não seja AB, pois não?

- Não. Não é provável que o seja, mas é possível. A única coisa que posso testemunhar é ser do grupo AB o sangue encontrado no casaco que examinei, ou seja, o mesmo da vítima, Meridith Borden.

- É tudo - concluiu Mason.

Virando-se para Ansley, perguntou, em surdina:

- Sabe qual é o seu grupo sanguíneo?

- Não faço a menor ideia... Nunca me preocupei com isso. A única coisa que sei é ter sangrado do nariz, por volta do meio-dia, na segunda-feira em que fui visitar Borden, à noite.

- Queira a Acusação chamar a próxima testemunha - indicou o Juiz Erwood.

Drew consultou os seus apontamentos e nomeou:

- Jasper Horn.

Era um sujeito de movimentos vagarosos, de nariz protuberante e cabelos crespos. Ergueu a mão calosa e prestou juramento.

- Em que se ocupa, Mr. Horn? - interrogou o adjunto do procurador do distrito.

- Sou capataz de obras de construção civil.

- Conhece o réu, George Ansley?

- Sim, sir.

- Tem trabalhado para ele?

- Sim. Dirijo os trabalhadores de uma obra que lhe foi confiada pela Câmara Municipal: uma escola pública.

- Chamo a sua atenção para a manhã de segunda-feira passada. Teve alguma conversa com o réu a respeito da construção dessa escola?

- Sim, sir. O inspector camarário andava, constantemente, a meter o nariz na obra, inventando todos os defeitos possíveis, de resto injustificáveis, apenas com o fito de atrasar os trabalhos.

- Discutiu com esse inspector camarário, Mr. Horn?

- 'tá visto que discuti, pois o homem passava a vida a mandar desfazer o que já estava feito, para impedir-nos de cumprir o prazo de acabamento. Além disso, fazia-nos, escusadamente, gastar imenso material nas alterações que, sistematicamente, nos impunha.

- Relatou essa conversa ao réu, George Ansley?

- 'tá visto que relatei.

- E fez-lhe alguma sugestão, para evitar que essa fiscalização continuasse a prejudicar o andamento das obras?

- Disse a Mr. Ansley que, se quisesse travar aquela perseguição, seria melhor falar com Meridith Borden que era um "relações públicas" com grande influência nos meios políticos deste Estado. Já cá trabalho, há muito tempo, e ganhei alguma experiência. Noutros casos semelhantes, o construtor responsável, só conseguiu "safar-se" da perseguição camarária, "conversando" com Borden.

- Em que termos sugeriu ao réu que fosse falar com o falecido Mr. Borden?

- Disse-lhe que, se fosse esperto, deveria "conversar" com Borden.

- E que respondeu o réu, nesse momento?

Horn hesitou e olhou para Ansley.

- Queira respoder a pergunta - insistiu o adjunto do procurador do distrito. - Não se esqueça de que já foi interrogado pela Polícia, logo após o crime, e que assinou as declarações, então prestadas.

- Quando me interrogaram, não me informaram de que Borden tinha sido assassinado. Apenas me perguntaram como estava a correr a obra e se Mr. Ansley seria um "papa-açorda" incapaz de reagir ao que estavam a fazer-lhe.

- Isso não interessa para o caso. Queira responder à pergunta que lhe fiz, acerca da resposta do réu à sua sugestão de ir falar com Mr. Meridith Borden.

Contrafeito, Horn declarou:

- Mr. Ansley disse que, preferia arranjar uma pistola e ferrar um tiro em Borden, a ter de pagar "tributo" a essa pandilha de politiqueiros que anda a engordar à custa...

- Bem... é quanto basta - interrompeu Drew. - O que interessa é saber-se que o réu manifestou estar na disposição de abater Mr. Borden.

Levantou-se um rumor entre a assistência e o Juiz Erwood viu-se na necessidade de martelar no tampo da tribuna com o maço de madeira, para impor silêncio. Quando este se restabeleceu, Drew disse para Mason:

- Pode contra-interrogar.

Perry Mason, brandamente, perguntou:

- Essa conversa, Mr. Horn, travada entre o senhor e Mr. Ansley, teve lugar na segunda-feira, de manhã?

- Sim, sir.

- Depois de ter discutido com o inspector camarário?

- Sim, sir.

- E não tornou a falar com o mesmo inspector, na manhã do dia imediato, terça-feira?

- Objecção - interpôs Drew. - Essa pergunta é incompetente, irrelevante e imaterial. O crime foi perpetrado na véspera. Qualquer conversa ulterior a segunda-feira é descabida. De resto, trata-se, evidentemente, de uma declaração "por ouvir dizer".

- Penso - interveio Mason - que tenho o direito de esclarecer todas as conversas tidas por Mr. Horn com o inspector camarário, desde que, de algum modo, se refiram a Mr. Ansley e a Mr. Borden. A função de uma audiência preliminar é, indubitavelmente, verificar se há motivos suficientes para considerar o réu culpado de homicídio... mas também para verificar se as provas circunstanciais, em que esses motivos se baseiam, não serão inconsequentes. Aparentemente, Mr. Horn relatou uma frase de Mr. Ansley que pode ser interpretada como uma ameaça, mas torna-se imprescindível determinar se essa ameaça teria encontrado justificação para materializar-se.

- Autorizo a resposta à pergunta - decidiu o Juiz Erwood. - De resto, Mr. Drew, não se trata de uma declaração "por ouvir dizer", visto que a testemunha foi dela protagonista directa. Todo o depoimento da testemunha, ao responder às perguntas da Acusação, decorreu no mesmo teor. A Defesa tem, pois, o direito de usar o mesmo processo... e, se o autorizei à Acusação, foi, fundamentalmente, por ser legal em matéria processual... Queira interrogar, Mr. Mason.

- Quando na terça-feira de manhã o senhor, Mr. Horn, falou com o inspector camarário, tornou a questionar com ele? Qual o assunto versado nessa conversa?

- O inspector informou-me de que já tinha recebido ordens superiores e que não voltaria a implicar connosco a respeito da obra.

- E isso foi no dia imediato a Mr. Horn ter sugerido a Mr. Ansley que fosse falar com Meridith Borden?

- Sim, sir.

- Obrigado. Nada mais - terminou Mason.

A próxima testemunha foi Beeman Nelson, encarregado da lavandaria onde Ansley mandava limpar os fatos. Confirmou que o casaco que a Polícia lhe mostrara pertencia, efectivamente, ao réu e que ele próprio o limpara, na sexta-feira anterior ao crime. O casaco e as respectivas calças tinham sido entregues ao réu, sem a mais pequena mancha.

Quando Perry Mason teve ocasião de interrogar a testemunha, indagou:

- Já alguma vez, anteriormente, Mr. Nelson encontrou manchas de sangue nos fatos de Mrs. Ansley?

- De sangue?... Nunca!

- Que espécie de manchas encontrou nos fatos de Mr. Ansley?

- Creio que de café. Eram castanhas-escuras e tive sempre dificuldade em limpá-las.

- Mas as manchas de sangue também apresentam essa cor castanha-escura, Mr. Nelson! Como sabe que não eram de sangue?

- Bem... francamente, não sei... Pensei que fossem de café.

- Mas podiam ser de sangue?

- Objecção-interpôs Drew. - A pergunta exige uma opinião da testemunha, não baseada no seu conhecimento do facto, mas da sua admissibilidade.

- Se o Tribunal me permite - replicou Mason -, é intenção da Defesa apontar para o facto de o réu sofrer, frequentemente, de pequenas hemorragias nasais. A Acusação procura provar que o sangue encontrado no casaco do réu proveio de Meridith Borden, mas, apenas baseou essa prova na classificação do grupo sanguíneo AB. Contudo, não efectuou as diligências necessárias para verificar qual o grupo sanguíneo do réu. Enquanto esse teste não for efectuado, a prova carece de virtualidade; por outras palavras, nem sequer é prova de coisa alguma.

Drew levantou-se, com exaltação e retorquiu:

- Mesmo que o grupo sanguíneo do réu seja AB, isso não o iliba das suspeitas formuladas pela Acusação, já que sabemos, pelas análises periciais, que o sangue da vítima era desse mesmo grupo.

- Precisamente - redarguiu Mason. - E como esse grupo sanguíneo não é exclusivo da pessoa de Borden, a Acusação não pode provar que as manchas de sangue encontradas no casaco do réu proviessem do ferimento daquele. Demonstra-se, assim, a inanidade dessa pretensa prova.

Virando-se para a testemunha, Mason dispensou-a, com um sorriso.

- Obrigado, Mr. Nelson.

Drew não conseguiu esconder a sua irritação ao chamar Frank Ferney ao banco das testemunhas.

- Era empregado de Mr. Meridith Borden, Mr. Ferney? - inquiriu.

- Sim, sir.

- Em que capacidade?

- Era seu assistente para os assuntos gerais; uma espécie de colaborador em tudo quanto ele desejava que se fizesse, desde receber mensagens, marcar entrevistas, organizar reuniões e entreter os convidados, fornecendo-lhes o que desejassem.

- Em relação à segunda-feira passada, o senhor, Mr. Ferney, achava-se de serviço?

- Não. Estava de folga. Passei o fim da tarde com uma amiga e só regressei a casa de Mr. Borden muito tarde.

- A que horas deixou essa casa?

- Às seis da tarde.

- Conhece Marianna Fremont?

- Certamente! Era governanta de Mr. Borden.

- Os dias de folga de Miss Fremont eram as segundas-feiras?

- Precisamente. As suas folgas coincidem com as minhas. Mr. Borden desejava ficar só, às segundas-feiras, para dedicar-se à fotografia.

- Ela cozinhava as refeições?

- Sim, menos às segundas, evidentemente.

- Nesse dia, quem as cozinhava?

- Ninguém. Quando estava sozinho, Mr. Borden comia ovos com bacon ou sanduíches. Nessas alturas, eu próprio dava um jeito na cozinha, para coisas muito simples, como o aquecimento de salsichas ou de outra comida enlatada, uma salada... Era como se estivéssemos acampados.

- E quando o senhor, Mr. Ferney, se achava ausente?

- Evidentemente, comia fora.

- Refiro-me a Mr. Borden.

- Algumas vezes, saía para comer num restaurante da cidade, ou arranjava-se como podia, satisfazendo-se com uma alimentação frugal.

- Sabe a que horas Mr. Borden jantou, nessa segunda-feira?

- Objecção - interpôs Mason. - Trata-se de uma pergunta incompetente, irrelevante e imaterial, visto que a testemunha estava ausente. Quando muito, a resposta poderia basear-se em "ouvir dizer", o que a invalida.

- Se o Tribunal me permite - insistiu Drew -, esta pergunta é muito importante, para o estabelecimento da hora do crime. A autópsia não pôde precisar o momento da morte. Só foi possível calcular-se um período de tempo muito lato, entre as oito e meia e as onze e meia, visto que os peritos apenas puderam basear-se na temperatura do corpo, no desenvolvimento do rigor mortls e na lividez post-mortem. A única maneira de se restringir aquele período seria determinar-se a hora a que a vítima ingeriu a sua última refeição.

- Compreendo - disse o Juiz Erwood -, mas, evidentemente, a testemunha não pode responder a essa pergunta, por não ter estado presente. Se porventura "ouviu dizer", a pessoa que lhe referiu essa hora terá de testemunhar o facto em tribunal. A objecçãoo não pode deixar[ de ser aceite.

- Mas, senhor doutor juiz - insistiu Drew -, essa testemunha não existe. Ninguém, que se saiba, assistiu a essa refeição. Peço ao Tribunal que me permita formular a pergunta de outra maneira.

- Faça o favor.

Virando-se novamente para Ferney, o adjunto do procurador do distrito inquiriu:

- A que horas Mr. Borden costumava jantar, às segundas-feiras?

- Objecção! - repetiu Mason, dissimulando um sorriso. - Mesmo que a testemunha estivesse presente às refeições de Mr. Borden, na maioria das segundas-feiras... o que não é o caso, já que é o seu dia de folga... uma generalidade não pode constituir facto específico.

- Objecção aceite - decidiu o juiz. Num rosnido, Drew concedeu:

- A Defesa pode contra-interrogar a testemunha.

Mason encarou Ferney, gravemente.

- Toda a propriedade de Mr. Borden está rodeada por um muro alto?

- Sim.

- Tem portões com uma fechadura automática, controlado, da casa, por um dispositivo eléctrico?

- Sim.

- Há qualquer outro meio de ingresso na casa, sem ser por esses portões?

- Sim, pelo portão das traseiras.

- Onde se situa esse portão?

- Nas traseiras da garagem que está junto ao muro, por detrás da casa.

- Em: que consiste esse portão?

Numa sólida e pesada porta de ferro que se encontra sempre fechada.

- Tem uma chave, Mr. Ferney, que lhe permita abrir esse portão?

- Certamente.

- E a governanta, Miss Fremont?

- Também.

- E, evidentemente, Mr. Borden também possuía uma, idêntica, não?

- Sim. Todos três tínhamos uma chave desse portão.

- Mais alguém a possuía?

- Não... que eu saiba.

- Esse portão é suficientemente largo para permitir a entrada de um automóvel?

- De maneira alguma, é demasiado estreito. Só permite a passagem de uma ou duas pessoas de cada vez. Chamamos-lhe portão, por ser pesado, feito de chapa de aço.

- Portanto, os automóveis só têm acesso ao interior da propriedade, pelos portões principais?

- Sim.

- Estavam abertos, durante o dia?

- Sim, até às onze horas da noite. Então eram fechados automaticamente.

- E, durante todo o dia, quando Mr. Borden estava vivo, qualquer carro podia entrar, sem que as pessoas da casa se apercebessem disso?

- Não. A entrada dos portões tem um tubo de borracha, incrustado no terreno que, ao ser calcado pelo rodado de uma viatura, transmite, por acção pneumática, um toque de campainha eléctrica, bem audível dentro de casa.

- Estou a ver... - murmurou Mason, pensativo. - Como são fechados os portões, às onze horas? O dispositivo automático está comutado a algum relógio, ou é accionado manualmente?

- Manualmente. Às onze horas, Mr. Borden mandava premir o botão que accionava o dispositivo automático. Esse botão eléctrico está instalado junto da porta, no átrio.

- E como se procede para abri-los, de dentro de casa?

- Da mesma maneira. Premindo um botão idêntico, colocado por baixo do primeiro.

- Compreendo. Quando os portões se encontram fechados, há alguma maneira de abri-los, do lado de fora da quinta?

- Sim, por meio de uma chave especial, de secção em cruz, que actua no mecanismo, abrindo o trinco e anulando temporariamente o alarme.

- Temporariamente? Por quanto tempo?

- Depois de se destravar o trinco, com a chave, os portões abrem-se automaticamente e mantêm-se nessa posição durante cerca de dois minutos, tempo suficiente para que o condutor de uma viatura possa voltar para ela, arrancar e passar os portões. Depois disso, fecham-se só por si.

- Quem não possui essa chave, tem alguma maneira de anunciar a sua presença e pedir para entrar na propriedade?

- Sim. Há um nicho no muro, ao lado direito dos portões, que contém um telefone. A visita comunica com a casa e a entrada é-lhe, ou não, franqueada.

- Se alguém tentar abrir os portões, manipulando o trinco, que acontece?

- Soa um sinal de alarme, do tipo sereia, quer a manipulação seja exterior quer interior.

- isso significa que ninguém pode entrar ou sair da quinta, sem ter a chave dos portões, ou sem estar autorizada por alguém da casa?

- Exactamente. O sistema de segurança está perfeitamente montado e dispensa o salário de um ou dois porteiros.

- Disse há pouco, Mr. Ferney, que Mr. Borden, às segundas-feiras, se dedicava à fotografia?

- Sim, embora também fotografasse, ocasionalmente, modelos profissionais, noutros dias da semana.

- Portanto, nas segundas-feiras, Mr. Borden passava grande parte do seu tempo no estúdio e na câmara escura?

- Praticamente, toda a noite, depois do jantar, até resolver deitar-se. De resto, o estúdio tinha um largo divã, para o caso de ele desejar repousar.

- Costumava ajudá-lo, Mr. Ferney?

- Nunca. Quando Mr, Borden se fechava no estúdio, queria estar só. Não tolerava a presença de mais ninguém, fosse quem fosse.

- Mas não costumava fotografar modelos profissionais?

- Oh, sim. Mas essas raparigas... eram como se fizessem parte do apetrechamento fotográfico. Tinha vários cenários, para fundos, e elas pousavam de acordo com os desejos de Mr. Borden.

- E mantinha a porta fechada?

- Sempre. Tinha um fecho de segurança interno.

- Quanto a esses modelos, Mr. Borden servia-se deles, exclusivamente, para poses fotográficas.

- Objecção! - quase gritou Drew. - Este contra-interrogatório é impróprio, requerendo informações inteiramente estranhas à matéria em causa.

- Objecção mantida - concordou o Juiz Erwood.

- Muito bem, senhor doutor juiz - acatou Mason. - Não tenho mais perguntas a fazer a esta testemunha.

O adjunto do procurador do distrito olhou para o relógio e observou:

- Se o Tribunal me permite, lembro que já está quase na hora para interrupção dos debates. A Acusação já expôs as suas provas básicas e presume serem estas suficientes para admitir-se a culpabilidade do réu...

- Se o Tribunal também me permite - interveio Mason, pondo-se de pé -, a Defesa tem o direito de apresentar testemunhas e expor a sua teoria.

- A que se refere, advogado? Não estamos perante um grande júri. Esta audiência é meramente preliminar.

- A Defesa tem essa noção, mas, senhor doutor juiz, a Acusação considera ter exposto provas básicas bastantes para admissão da culpabilidade do réu. Contudo, há um ponto que contraria essa admissão e estabelece a maior dúvida.

- Que ponto? - impacientou-se o juiz.

- O que se refere ao elemento tempo.

- Pode esclarecer o Tribunal, quanto a esse ponto?

- Se o meu cliente cometeu o crime, só poderia perpetrá-lo, antes das nove horas da noite de segunda-feira.

- Nenhuma prova indica que o crime não pudesse ter sido cometido, antes das nove horas.

- Mas a Defesa pode provar que Meridith Borden permaneceu vivo, muito depois das nove da noite.

- Mr. Mason deseja apresentar um alibi para o réu?

- Sim, senhor doutor juiz.

- Nesse caso, dado o adiantado da hora, a sua exposição deverá ser muito breve... e clara, para não provocar um extenso prolongamento dos debates.

- É propósito da Defesa ser a sua argumentação o mais breve e clara possível.

- Muito bem, Mr, Mason. Queira expor a sua teoria, devidamente fundamentada.

- Pretendo provar que, se o acusado matou Meridith Borden, o crime só poderia ter ocorrido antes das nove da noite... e tenciono demonstrar que não pôde ser cometido antes dessa hora.

"O cadáver de Meridith Borden foi descoberto no seu estúdio fotográfico. Portanto, depois da sua entrevista com o réu, Borden foi para esse estúdio; conclui-se que deveria ter alguém na sua companhia, pois não iria fotografar-se a si próprio.

"Evidentemente, Borden, conquanto contra os seus hábitos, poderia ter recebido a visita do réu, no estúdio fotográfico. Até é possível admitir-se a hipótese... embora incongruente... de que tenha desejado fotografá-lo.

"Dado que as segundas-feiras de Borden eram destinadas a fotografar modelos, a Defesa não entende por que motivo a Polícia não fez referência a quaisquer fotografias. E, se investigou esse ângulo do caso, por que motivo a Acusação omitiu essas provas."

- Numa audiência preliminar, a Acusação não tem obrigação de apresentar à Defesa todas as provas em poder da Procuradoria do Distrito - contestou Drew.

- Isso significa que a câmara fotográfica continha filme impressionado?

- Sim, mas não há qualquer indicação de quando essas fotografias foram tiradas.

- Se o Tribunal me permite, a Defesa considera essencial que esse filme seja revelado, visto poder indicar a verdadeira identidade do criminoso: a pessoa que esteve no estúdio, depois das nove horas.

- O filme foi revelado? - indagou o juiz, dirigindo-se a Drew.

Este respondeu, visivelmente contrariado:

- Sim, senhor doutor juiz.

- E também foram feitas provas fotográficas?

- Sim; senhor doutor juiz.

- Nesse caso, deviam ter sido apensas ao processo.

- Não o foram, porque nada indica que Borden tivesse estado a fotografar modelos, depois das nove horas. Essas fotografias podem ter sido tiradas na véspera ou em qualquer outro dia.

- A Defesa considera imprescindível a apresentação dessas fotografias em Tribunal - declarou Mason.

- Muito bem - concordou o juiz. - A Acusação deverá apresentá-las, no prosseguimento da audiência, na parte da tarde. Agora, faremos um intervalo, para almoço, até às duas horas.

Mason juntou-se a Paul Drake que ficara a aguardá-lo à saída e disse-lhe:

- Faz o sinal aos teus homens, conforme foi combinado. Drake fechou o punho e baixou o polegar para o chão, como um romano, pedindo a morte de um gladiador circence. A esse sinal, três dos seus detectives teriam de ir entregar, com a máxima urgência, contra-fés a Loretta Harper, Dawn Manning, Beatrice Cornell, à Drª Mar-garet Callison e a Frank Ferney, achando-se este ainda no tribunal.

- Okay - resmungou Drake. - Aí vão os meus homens desempenharem-se da missão de que os incumbiste, mas isto não vai servir-te de coisa alguma. O Juiz Erwood gosta de que as audiências a que preside decorram rapidamente, sem problemas, à laia de "atar e pôr ao fumeiro". Esse Drew, da Procuradoria do Distrito, é da escola de Hamilton Burger e segue-lhe as pisadas. Vai atirar-se, como "gato a bofe", a estas testemunhas, interpondo objecções de toda a espécie.

- Tanto melhor, Paul. Se o fizer, o juiz fica "danado" com ele e não comigo.

- Mas que esperas, Perry, que essas testemunhas te digam, para além do que já sabes? Nada podes provar...

- Tenciono provar alguma coisa. As versões de Loretta Harper e de Dawn Manning são escandalosamente contraditórias. Portanto, uma delas mente. Apesar da Manning se apresentar como uma bela imagem da inocência, a verdade é que, logicamente, poderia ter ficado, dentro da propriedade de Borden, depois das nove. Quem nos diz que não entrou na casa? Pode ter lá permanecido, até o crime ser cometido... por outrem, ou por ela própria.

- Oh, Perry! - preocupou-se Drake. - Drew vai armar um "banzé" dos diabos, protestando sistematicamente.

- Magnífico! Isso fará desesperar o juiz.

- Resta saber, Perry, se contra ele... ou contra ti.

 

Quando o Tribunal reabriu, às duas horas da tarde, Paul Drake segredou a Perry Masom

- "Topa-me" Sam Drew. Está tão radiante que não consegue manter as mãos quietas. Deve ter calçado sapatos de sola de chumbo, para não dar pulos de entusiasmo. Repara que até morde a beiçola inferior, para não desatar a rír de euforia. Alguma coisa sucedeu, durante o intervalo das audiências, que lhe deu tamanho alento. Além disso, Perry, consta que Hamilton Burger foi informado de qualquer facto importante e vai aparecer, no julgamento, para assistir à tua derrocada. Nada lhe daria maior prazer do que ver-te perder uma causa.

- Fazes alguma ideia do que se trata?

- Não tenho a mínima hipótese de sabê-lo, mas não há dúvida de que esses sujeitos não escondem o seu regozijo, antecipando-se a uma vitória certa. Na minha opinião...

Interrompeu-se, porque o escrivão, utilizando o maço de madeira do juiz, mandou a assistência levantar-se, no momento da entrada do magistrado na sala de audiência.

Após o Juiz Erwood ter-se sentado e feito um sinal à assistência para que o imitasse, proferiu:

- Caso do Povo versus Ansley. Está pronto a prosseguir, Mr. Mason?

- Sim, senhor doutor juiz.

- Nesse caso, queira chamar a testemunha.

- Miss Della Street. Elucido o Tribunal de que Miss Street é minha secretária particular.

O juiz franziu as sobrancelhas e ia a fazer qualquer advertência, mas calou-se. Certamente pensara no privilégio da confidência que não só abrange os advogados mas também os detectives e as secretárias particulares, em certas matérias. Contudo, se Perry Mason convocara Miss Street para testemunhar, devia saber "as linhas com que se cosia".

Della Street, depois das formalidades usuais, sentou-se no banco das testemunhas.

Nesse momento, a porta da sala de audiências abriu-se e o procurador do distrito, Hamilton Burger, apareceu, com um aspecto triunfan-te, soprando cumprimentos para a esquerda e direita e indo sentar-se ao lado de Sam Drew.

- Tem desempenhado as funções de minha secretária confidencial, Miss Street?

- Sim, sir.

- Conhece o acusado?

- Sim, sir.

- Quando o viu pela primeira vez?

- Na noite de segunda-feira, dia 8 do corrente.

- Onde o viu?

- No Golden Owl Night Club.

- Lembra-se da hora desse encontro?

- Deviam ser, aproximadamente, dez horas menos dois ou três minutos.

- Que sucedeu nesse clube?

- Mr. Ansley aproximou-se da mesa onde estávamos sentados e pediu-lhe que...

Mason levantou a mão, mas já Drew intervinha:

- Objecção! A testemunha não pode referir o que o réu, em qualquer altura, possa ter dito. As declarações do réu não fazem fé, mesmo que tivesse sido ajuramentado, antes de proferi-las... e num tribunal. De resto, trata-se de testemunho "por ouvir dizer".

- Essa objecção era desnecessária. A Defesa não pretendia que a testemunha relatasse a conversa tida com o acusado. Só tem em vista esclarecer o que foi feito pelo acusado, depois desse encontro. Queira responder , à pergunta, Miss Street - solicitou Mason.

- Depois de Mr. Ansley ter exposto um caso e formulado um pedido a Mr. Mason, todos três deixámos o Golden Owl Night Club.

- A que horas?

- Precisamente às dez horas e vinte e dois minutos.

- Quando mencionou "todos três", a quem se referia.

- Ao senhor, Mr. Mason, a Mr. George Ansley e a mim.

- Aonde nos dirigimos?

- A propriedade de Meridith Borden.

- Os portões estavam abertos, ou fechados?

- Estavam abertos.

- Que fizemos, nessa propriedade?

- Tínhamos deixado o carro, junto aos portões, do lado exterior da propriedade. Entrámos nela, pelo nosso pé e, durante cerca de dez a quinze minutos, inspeccionámos o local, não muito longe da entrada.

- Então, que aconteceu?

- Os portões fecharam-se.

- Que mais sucedeu?

- Mr. Ansley dirigiu-se aos portões e tentou abrir o fecho, mas essa sua tentativa desencadeou uma serei-a de alarme.

- Objecção! - interpôs Drew. - A testemunha está a expressar uma conclusão, pois ignorava a natureza automática desse alarme.

- Evidentemente - concordou Mason. - A Defesa só está interessada na sequência da acção. Que mais ocorreu, Miss Street?

- O alarme soou estridentemente, acenderam-se projectores exteriores, na casa, a cerca de quinhentos metros, e ouviu-se o ladrar de um... ou mais cães.

- E depois?

- Para nos protegermos, tivemos de trepar para o muro, no preciso momento em que um1 cão se aproximava, tentando morder-nos.

- Que mais?

- Descemos do muro, para o lado exterior da propriedade.

- Sabe que horas eram, nesse momento?

- Escassos minutos depois das onze.

- Então, que sucedeu?

- Dirigimo-nos aos portões da entrada.

- Com que objectivo?

- Procurar um telefone. Descobrimo-lo e falámos, por ele, para a casa.

- Um momento! Um momento! - interrompeu Drew. - Trata-se de uma conclusão da testemunha, visto não poder saber se o telefone estava, ou não, ligado à casa.

- Não se trata de uma conclusão da testemunha - replicou Mason -, visto alguém ter atendido a chamada. O que interessa é o facto material em si. Existe um telefone, à entrada da propriedade de Borden e a testemunha falou por ele.

- Objecção rejeitada - decidiu o juiz, franzindo o sobrolho para Drew. - Continue a responder, Miss Street, limitando-se ao que ocorreu, sem mencionar o nome da pessoa que atendeu a chamada, visto que a senhora não podia identificá-la pela voz.

- Muito bem, senhor doutor juiz. Tentarei seguir essas normas... - murmurou Della Street, contricta. - Mr. Mason, depois de falar ao telefone, desligou-o, mas eu tentei renovar a chamada.

- Que chamada?

- Mr. Borden respondeu, do outro lado do fio, e..

- Objecção! - gritou Drew, pondo-se de pé. - Trata-se, novamente, de uma mera conclusão da testemunha...

O Juiz Erwood levantou a mão, reduzindo o adjunto do procurador do distrito ao silêncio e virou-se para Della.

- Está a testemunhar que Mr. Borden falou consigo ao telefone?

- Sim, senhor doutor juiz.

- Conheceu-o, enquanto foi vivo?

- Não, senhor doutor juiz.

- Então, como sabe que se tratava de Mr. Borden?

- Porque ele declarou ser Borden.

- Por outras palavras, a pessoa que atendeu a chamada, fosse lá quem fosse, apresentou-se como sendo Mr. Borden, não é isso?

- Sim, senhor doutor juiz.

Este abanou a cabeça, como que descoroçoado com a falta de discernimento feminino e considerou:

- Objecção aceite. Evidentemente, trata-se de uma conclusão da testemunha, sem qualquer prova que a fundamente. Contudo, pode testemunhar acerca da sequência dessa conversa.

- Objecção! - repetiu Drew. - Se o Tribunal me permite e com o devido respeito, a Acusação vê-se na posição de objectar, a menos que a testemunha possa provar que, efectivamente e sem deixar lugar a dúvidas, se tratava de Mr. Borden quem esteve a responder ao telefone.

O Juiz Erwood, tornou a franzir o sobrolho, com evidente descontentamento. Espetou um dedo e esclareceu:

- De acordo com as testemunhas apresentadas pela Acusação, Mr. Borden encontrava-se sozinho em casa; de acordo com uma testemunha da mesma Acusação, sabemos que o telefone, junto aos portões, se encontra ligado à mesma casa. Portanto, torna-se admissível a presunção de que foi Mr. Borden quem atendeu o telefonema de Miss Street, conquanto não constitua prova. Além disso, o Tribunal está interessado em ouvir o teor dessa conversa, àquela hora da noite. Queira prosseguir, Miss Street.

Esta, com o seu ar mais cândido, continuou:

- A voz do homem perguntou quem falava e eu respondi que íamos a passar na estrada e pretendíamos falar com Mr. Borden. A voz declarou ser Mr. Borden e que não queria ser incomodado. Eu disse tratar-se de uma situação de emergência e que tínhamos motivos para acreditar que uma jovem que sofrera um acidente de automóvel, dentro da quinta, andava por lá, a vaguear. Então a voz masculina respondeu que alguém tentara manipular o fecho dos portões e accionar o mecanismo de alarme; tinha, dessa maneira, solto os cães. O homem disse já ter chamado os animais ao canil e desligado o alarme; acrescentou que os cães estavam ensinados a não morder, mas só a ladrar... Foi mais ou menos isto... Queria saber quem falava e recusei-me a indicar-lhe o meu nome, já que eu era simplesmente uma pessoa que passava na estrada de desvio.

- Que mais sucedeu? - perguntou Mason.

- Desliguei o telefone e informei-o, Mr. Mason, de que...

Interrompeu-se, olhou para a mesa da Acusação e, novamente para Mason, acrescentando:

- Desculpe... Já sei que não posso contar o que a seguir lhe disse.

A sua expressão era a de uma ingénua, confusa.

- Que horas seriam, nessa altura? - indagou Mason.

- Talvez onze e um quarto... mais ou menos, quando falei ao telefone.

- Que mais fizemos, nessa noite?

- Conduzimos Mr. Ansley ao Golden Owl Night Club onde ele deixara o seu carro.

- Até que horas estivemos com Mr. Ansley?

- Até cerca das onze e meia... onze e trinta e cinco.

- Portanto, pode testemunhar, baseada nos factos que presenciou, que o réu esteve na nossa companhia, desde as dez e três minutos, até às onze e meia?

- Sim, com absoluta certeza.

Mason virou-se para Drew, concedendo:

- Pode contra-interrogar.

Com uma careta, o adjunto do procurador do distrito recusou:

- Não tenho perguntas a fazer a essa testemunha.

- Não deseja interrogá-la? - estranhou o Juiz Erwood. Drew abanou a cabeça. O juiz sublinhou:

- O Tribunal deve alertá-lo, Mr. Drew, para o facto de que, ao abdicar deste contra-interrogatório, se torna forte a presunção de que a testemunha falou efectivamente e pessoalmente, com Mr. Borden.

- Perfeitamente, senhor doutor juiz, mas a Acusação não deseja contra-interrogar essa testemunha.

- Muito bem - disse o juiz, asperamente.

- É tudo - concluiu Mason.

- Se o Tribunal me permite - proferiu Hamilton Burgen pela primeira vez -, a Acusação deseja chamar, novamente, Frank Ferney.

Depois de Ferney se sentar no banco das testemunhas, Burger observou:

- Como já prestou juramento nesta audiência, podemos passar ao interrogatório directo. Ouviu, Mr. Ferney, o depoimento da testemunha Miss Street?

- Sim, sir.

- Sabe quem era a outra pessoa que se achava ao telefone, em casa de Mr. Borden?

- Sei, sim, sir.

- Quem era ela?

- Era eu.

- E o senhor declarou ao telefone ser Mr. Meridith Borden?

- Sim, sír

Com uma vénia sarcástica, o procurador do distrito convidou Mason:

- Pode contra-interrogar.

Perry Mason levantou-se, para enfrentar a testemunha.

- Durante a audiência desta manhã, o senhor, Mr. Ferney, declarou ter deixado a casa de Mr. Borden, às seis horas da tarde e que passara parte da noite com uma sua amiga. Foi realmente isso?

- Sim, mas voltei, depois do jantar. Tenho um quarto de cama em casa de Mr. Borden. É-aí que durmo.

- A que horas regressou a casa?

- Bem... talvez às onze horas menos dez minutos.

- Como entrou na propriedade? - inquiriu Mason.

A testemunha sorriu, Drew sorriu, Hamilton Burger sorriu, todos eles com um ar vagamente irónico.

- Fui de automóvel, até às traseiras da propriedade.

- Sozinho? - perguntou Mason, duramente.

- Não, sir. Estava acompanhado.

- Quem estava consigo?

- Uma mulher.

- Quem era essa mulher?

- A Drª Margaret Callison.

- Que faz ela?

- É médica veterinária.

- Como entraram na propriedade? - repetiu Mason.

- Abri a porta das traseiras e fui buscar o cão ao automóvel. A Drª Callison estacionara a sua carrinha, perto da porta, e eu levei o cão para o canil. Deviam ser umas onze horas menos dez ou menos cinco. Perguntei à Drª Callison se desejava tomar alguma coisa e ela aceitou acompanhar-me numa bebida. Depois expressou o desejo de falar com Mr. Borden acerca do animal.

- Que mais fez, Mr. Ferney?

- Fui ao estúdio fotográfico, mas não respondeu. Presumi que... Creio que não interessa o que presumi...

- Continue - incitou Mason. - Não vou interpor qualquer objecção e creio que a Acusação também não -tem essa intenção. - Apenas desejo saber o que, verdadeiramente, aconteceu, pois não tenho motivo, neste caso, para recear os factos.

- Bem... - prosseguiu Ferney - presumi que Mr. Borden estivesse na câmara-escura a executar qualquer revelação e servi mais uma bebida à Drª Callison e outra, a mim próprio. Como de costume, os projectores exteriores acenderam-se e a porta automática do canil abriu-se.

"Ouvi os cães ladrarem, embora me parecesse que o doente não acompanhara o outro, limitando-se a ladrar, perto da casa. Expliquei à Drª Callison que alguém mexera no fecho dos portões e que precisava de ir ver o que se passava. Desci e saí da casa, para meter os cães no canil.

"Enquanto estava fora, ouvi o telefone tocar. A Drª Callison atendeu e, quando entrei em casa, ela relatou-me tratar-se de alguém que desejava falar com Mr. Borden, pelo que respondera que Mr. Borden não desejava ser incomodado."

- Que mais? - indagou Mason.

- Pouco tempo depois, o telefone voltou a tocar.

Atendi, pensando ser a Polícia a informar-se do motivo por que soara o alarme. Ouvi uma voz de mulher que reconheço, agora, como sendo a de Miss Street cuja versão do telefonema confirmo inteiramente. Mais palavra, menos palavra, declarei ser Mr. Borden, falei-lhe do fecho do portão, do alarme e dos cães.

Mason fitou Ferney, com olhos pensativos.

Hamilton Burger e Sam Drew mostravam-se exultantes, perante a ineficácia do contra-interrogatório do advogado da Defesa.

- Costuma intitular-se Mr. Borden, sempre que atende o telefone? - inquiriu Mason.

- Sim, sempre que ele não deseja ser incomodado, quer por ter-mo declarado, expressamente, quer por eu o presumir, baseado nos seus hábitos. A noite, o telefone do salão fica desligado e sou eu quem atende as chamadas, do meu quarto.

Mason avançou lentamente para a testemunha.

- Pode fazer-me uma descrição da Drª Callison?

- Por que não? É uma médica veterinária que lida magnificamente com cães.

- Jovem?

- Nunca lhe perguntei a idade, mas creio que anda à volta dos trinta, trinta e dois anos.

- É uma mulher forte?

- Oh, não! É muito bem formada. Num tom céptico, Mason sondou:

- Não tencionava recebê-la no seu quarto de cama? Ferney mostrou-se subitamente exaltado.

- Não! Essa pergunta contém uma insinuação indecente! Burger ergueu-se e levantou os braços.

- Senhor doutor juiz! Senhor doutor juiz! - protestou. - Este contra-interrogatório acaba de tomar um rumo ilegítimo, degenerando num insulto gratuito a uma mulher honrada.

O Juiz Erwood fitou Perry Mason, severamente, censurando.

- Efectivamente, a insinuação da Defesa é descabida! - Mas vendo um brilho arguto nos olhos de Mason, acrescentou:- A menos que o senhor advogado tenha alguma razão especial para fazê-la.

- Sim. senhor doutor juiz. A testemunha declarou que, à noite, atendia as chamadas do seu quarto de cama. Por conseguinte...

- Mas não, naquela altura - interrompeu Ferney, iradamente.- Desta vez, eu respondera ao telefone do salão.

- Contudo, à noite, fica um telefone ligado ao exterior, no estúdio fotográfico, e outro no seu quarto de cama, não é assim?

- Sim. À noite, o telefone do salão é comutado para o meu quarto. Mr. Borden quando levanta... isto é, quando levantava o auscultador, podia ouvir a minha comunicação telefónica para o exterior. Se eu dizia que Mr. Borden não desejava ser perturbado e tal não era o caso, ele próprio entrava na linha, falando directamente com o seu interlocutor.

- Compreendo. Portanto, se não levou a Drª Callison para o seu quarto, isso significa que ambos permaneceram no salão, não será assim?

- Precisamente.

- Mas a maneira como testemunhou podia induzir as pessoas em erro, não é verdade?

- Sim; é possível. Geralmente, atendo todos os telefonemas nocturnos, do meu quarto, mas, como não podia levar a Drª Callison para lá, tive de atender a chamada, pelo telefone do salão.

- Muito bem, Mr. Ferney. Procuremos, agora, averiguar melhor as funções da Drª Callison. É médica veterinária e estava a tratar de um cão?

- Exactamente.

- E o senhor, Mr. Ferney, ficara de contactar com ela, para trazer o cão para casa?

- Sim.

- A que horas?

- Por volta das nove da noite.

- Mas não lhe telefonou a essa hora, pois não?

- Não.

- Por que não?

Ferney hesitou, antes de responder:

- Bem... Creio que me esqueci das horas.

- Compreendo... Quando se lembrou de telefonar-lhe?

- Por volta das dez e meia.

- É assim tão esquecido, Mr. Ferney? - inquiriu Mason, simulando uma surpresa cómica.

- Bem, já que tem tanto interesse em saber a verdade... acontece que fui para casa da minha noiva, onde se organizara uma festazinha com alguns amigos íntimos... e embriaguei-me. Aí tem.

- Estou a ver... E saiu de casa da sua noiva, para apanhar ar e refrescar as ideias?

- Não - respondeu Ferney, apressadamente. - Deitei-me no quarto dela, para ver se me sentia melhor, depois de repousar um pouco.

- Quem é a sua noiva? - inquiriu Mason, inesperadamente.

- Loretta Harper.

Mason arqueou as sobrancelhas e, em1 seguida, cerrou-as, sondando:

- Já foi casado, Mr. Ferney?

- Sim.

- Divorciou-se?

- Senhor doutor juiz - protestou Drew. - A pergunta é irrelevante, incompetente e imaterial.

- Pelo contrário - considerou o juiz. - O Tribunal está muito interessado nesta matéria. O depoimento desta testemunha aponta para um conjunto de circunstâncias deveras peculiares. Queira responder à pergunta, Mr. Ferney.

- Fui casado... e não cheguei a divorciar-me.

- E está, presentemente, noivo de Miss Loretta Harper... não foi o que disse?

- Sim.

- Qual é o nome da sua actual mulher... visto que não chegou a divorciar-se dela?

- Usa o nome de Dawn Manning.

- Usa?... Porquê?

- É modelo fotográfico e escolheu esse nome profissional.

- Muito bem. Por conseguinte, nessa noite de segunda-feira, 8 do corrente... a noite do crime, o senhor esteve no apartamento de Loretta Harper. Onde se situa?

- A cerca de um quilómetro e meio da casa de Borden, na vila de Mesa Vista.

- A que horas chegou lá?

- Pouco depois de ter saído de casa de Borden.

- Portanto, não jantou com Borden?

- Não. Já declarei ter jantado em casa da minha noiva que preparava uma pequena reunião, com um casal amigo e comigo.

- E o senhor, Mr. Ferney, embriagou-se?

- Bem... Já tinha bebido uns cocktails e, durante o jantar, fizemos umas saúdes. Depois, fui para a cozinha preparar mais cocktails e ficou uma boa porção no agitador de licores... Os meus amigos não queriam beber mais e... bem, ingeri o resto. Não fiquei totalmente embriagado, mas senti-me estonteado, com a cabeça a andar à roda, como se flutuasse. Sentei-me na cozinha, com a cabeça entre as mãos, e foram dar comigo naquele estado. Ainda mais embaraçado fiquei, quando decidiram deitar-me na cama de Loretta... e ali me deixaram estendido, a dormir.

- Completamente vestido?

- Creio que me tiraram os sapatos... Despiram-me o casaco e penduraram-no nas costas de uma cadeira.

- Que mais aconteceu?

- Deviam faltar dez minutos para as dez, quando Loretta me acordou. Contou-me ter sido assaltada...

- Não interessa o que ela lhe contou - cortou Hamilton Burger.- Limite-se a expor os factos. Já que Mr. Mason está tão interessado no elemento tempo, forneça-lhe todos os dados.

- Bem..... Ao acordar, perguntei quanto tempo estivera a dormir, olhei para o relógio e só então me lembrei de que tinha ficado de ir ao consultório da Drª Callison buscar o cão doente. Corri para o carro...

- Tinha-o deixado defronte de casa de Loretta Harper? indagou Mason.

- Exactamente. Com bastante dificuldade, guiei até ao consultório da Drª Callison, que mora no piso superior do mesmo prédio, e confessei-lhe o motivo do meu atraso. Foi muito simpática comigo, mostrou-se compreensível, quanto ao meu estado, e ofereceu-se para levar-me, na sua carrinha, juntamente com o cão, a casa de Mr. Borden, tanto mais que desejava falar-lhe acerca do estado do animal.

- Entrou pela porta das traseiras?

- Sim. Já o tinha aqui dito!

- Tem uma chave dessa porta?

- Evidentemente. Pus o cão doente no canil... e foi tudo.

- Por que motivo a Drª Callison não se foi logo embora?

- Também já declarei que ela desejava falar com Mr. Borden acerca do cão.

- Estou a compreender. Portanto, o senhor, Mr. Ferney, entrou em casa e tentou localizar Mr. Borden. Não foi isso?

A testemunha hesitou, antes de responder.

- Sim. Subi ao estúdio e não o encontrei lá.

- Que fez em seguida?

- Voltei para o pé da Drª Callison e convidei-a a entrar, por uns momentos.

- Para quê?

- Bem... Quis fazer-lhe as honras da casa.

- Que quer dizer com isso?

- Oferecer-lhe uma bebida. Era uma maneira de agradecer-lhe a gentileza que tivera em trazer-me a casa, na carrinha.

- E levou-a para o salão?

- Sim. É aí que Mr. Borden tem... tinha o seu bar, a um dos cantos do aposento.

- E, antes disso, chamara por ele?

- Sim.

- Várias vezes?

- Sim.

- E ele não respondeu.

- Não.

- Então, que fez?

- Não me recordo de todos os pormenores, mas a sereia do alarme começou a "bramir", os cães desataram a ladrar, furiosamente, e eu decidi ver o que estava a passar-se. Assobiei aos cães, para chamá-los e metê-los no canil e, quando voltei para casa, vi que a Drª Callison estava a telefonar. Pensei logo que deveria estar em comunicação com alguém que se encontrasse a falar pelo aparelho que se encontra junto dos portões.

- Que mais?

- O telefone continuou a tocar, depois dela ter desligado, e foi a minha vez de atender... Declarei ser Borden...

Repentinamente, Mason virou-se para a mesa da Acusação e indagou:

- Já estarão visíveis as fotografias obtidas a partir do filme que se encontrava na máquina do estúdio de Mr. Borden?

- Já tem essas fotografias, Mr. Hamilton Burger? - perguntou o Juiz Erwood, secundando Mason. - O Tribunal está interessado em vê-las.

- Se o Tribunal me permite - respondeu o procurador do distrito -, devo declarar que estou absolutamente certo de que estas fotografias não têm qualquer relação com o processo em causa. Tanto a Acusação como a Polícia partiram do princípio de que o filme foi impressionado em data anterior ao crime.

- Não perguntei, Mr. Burger, em que princípio a Procuradoria do Distrito e a Polícia se basearam, quanto à data em que as fotografias foram tiradas. A minha pergunta foi, simplesmente: "Já tem essas fotografias, Mr. Hamilton Burger?"

- Sim, senhor doutor juiz. Já aqui as temos.

- Muito bem. Queira apresentar uma cópia de cada fotografia ao Tribunal e outra, ao advogado da Defesa.

- Sim, senhor doutor juiz - aquiesceu Burger -, mas a Acusação não deseja que estas fotografias sejam apensas ao processo.

- Por que não?

- Quando Vossa Honra as tiver visto, logo compreenderá.

- Queira explicar-se melhor, Mr. Burger - insistiu o juiz.

- O falecido Mr. Borden era um amador fotográfico e dedicava-se a fotografias... espectaculares, para revistas e para calendários. Não se trata de uma actividade ilegal, nem sequer pornográfica, mas a verdade é que Mr. Borden cultivava aquilo a que vulgarmente se chama "nu artístico". As fotografias representam modelos profissionais, raparigas jovens, despidas, em posições mais ou menos eróticas.

- Deixe-me vê-las e passe-as também ao advogado da Defesa - determinou o Juiz Erwood, sem dissimular o seu interesse.

Hamilton Burger, visivelmente contrariado, passou a ambos cópias, em duplicado, de várias fotografias.

Mason examinou-as, pensativo.

As fotografias mostravam Dawn Manning pousando, nua, em várias posições, quer de frente, de pernas abertas, tapando os seios, pudicamente, quer de costas, ajoelhada, espreitando por cima do ombro, quer, ainda, deitada de lado, com as pernas separadas, como lâminas de uma tesoura, e com o dedo indicador comprimindo a base do púbis.

O Juiz Erwood pigarreou e demorou-se a examinar as fotografias. Depois, apreciou, um tanto ou quanto guturalmente:

- Estas fotografias são deveras eróticas. Evidentemente, se a Defesa o requerer, não vejo motivo para que não possam ser apensas ao processo,.. que não se destina a uma biblioteca pública infantil.

- A Defesa - confirmou Mason - requer que sejam apensas ao processo. Virando-se para Ferney, inquiriu:

- Já viu estas fotografias, Mr. Ferney?

- Não, sir.

- É conveniente que lhes dê uma vista de olhos - considerou o juiz.

Mason estendeu-lhas e a testemunha pareceu vivamente escandalizada.

- Santo Deus!... Mas esta... esta é a minha mulher!... Dawn Manning.

Sam Drew, depois de conferenciar, em surdina, com Hamilton Burger, perguntou:

- Tem a certeza, Mr. Ferney, de que só o senhor telefonou de casa de Mr Borden, pouco depois das onze da noite de segunda-feira, dia oito do corrente?

- Sim, sir.

- Foi o senhor quem se intitulou Mr. Borden?

- Sim, sir.

- Mas, por seu conhecimento próprio, não sabe se Mr. Meridith Borden se encontrava ainda vivo, ou se Já estava morto, não é assim?

- Nessa altura, não sabia se estava vivo ou morto.

- E chamou por ele, repetidas vezes?

- Sim, sir.

- E nunca obteve resposta?

- Nunca obtive qualquer resposta.

. - E foi a Drª Callison quem atendeu ao telefone, pouco depois das nove... imediatamente antes de si?

- Bem... não imediatamente. Passaram-se alguns segundos, entre os dois telefonemas.

- Muito bem. Obrigado, Mr. Ferney.

Mason declarou não ter mais perguntas a fazer à testemunha e desejar voltar a chamar Harvey Dennison, para novo contra-interrogatório.

- O gerente da Valley View Hardware Company? - perguntou Hamilton Burger.

- Exactamente.

- Alguma objecção? - indagou o juiz. Sorridente, o procurador do distrito satisfez:

- A acusação não tem qualquer objecção a apresentar. A Defesa pode contra-interrogar Mr. Dennison, as vezes que quiser... e pelo tempo que quiser...

Harvey Dennison regressou ao banco das testemunhas e Mason inquiriu:

- Por acaso, Mr. Dennison, conhece uma jovem chamada Dawn Manning?

- Sim, conheço.

- Ela foi, porventura, alguma vez, sua empregada?

- Foi-o, sim.

- Quando?

- Há cerca de três anos... foi quando entrou para a firma. Saiu há coisa de seis meses.

- Lembra-se se Miss Dawn Manning era sua empregada, na época em que desapareceu do armazém um revólver Co/t, número 613096?

- Um momento! - Um momento! - interveio Burger, excitado. - Trata-se de contra-interrogatório impróprio, visto que a pergunta contém, implicitamente, uma acusação velada, o que é completamente irrelevante, incompetente e imaterial.

- A objecção é recusada - decidiu o juiz, abanando a cabeça. - A testemunha responda à pergunta.

- Bem... nessa altura, Miss Manning, estava ao nosso serviço- confirmou Dennison.

- Esse era o seu nome de solteira?

- Creio que sim. Nunca lhe conheci outro.

- Sabe se ela já era casada?

- Não devia sê-lo... Creio que se manteve no emprego, até casar-se.

- Lembra-se do nome do homem com quem ela casou?

- Não... Não me lembro.

- Obrigado, Mr. Dennison. é tudo.

- Um momento! - interveio Hamilton Burger, irritado. - Foi aqui feita a acusação de que Miss Manning roubou o revólver com que o crime foi cometido. Cumpre-me interrogar Mr. Dennison a esse respeito.

- Queira interrogá-lo - concedeu o Juiz Erwood.

- O senhor, Mr. Dennison - perguntou Burger -, acredita que a sua empregada, Miss Manning, tenha roubado um revólver do armazém onde trabalhava?

- Nunca pensei em tal coisa. Miss Manning sempre me pareceu uma jovem da maior honradez.

- Nunca duvidou da sua honestidade?

- Nunca tive motivo para isso.

- Obrigado - sibilou Burger, ainda com evidente irritação.

- A Defesa deseja continuar o interrogatório directo desta testemunha? - sondou o juiz.

Ainda sorrindo, Mason prosseguiu:

- O senhor, Mr. Dennison, nunca teve ocasião de duvidar da honestidade de Dawn Manning, mas confirma que ela trabalhava na sua firma, quando o referido revólver desapareceu. Miss Manning tinha acesso ao armazém?

- Todos os empregados da firma tinham e continuam a ter acesso ao armazém. É aí que se encontram os artigos de venda ao público... Evidentemente, aqueles que não se acham expostos nas prateleiras da loja.

- E sabe, Mr. Dennison, se alguma vez o réu foi seu empregado?

- Senhor doutor juiz! - exclamou Burger, exaltado. - O rumo deste interrogatório é impróprio. O réu não foi considerado suspeito de ter roubado esse revólver. Pode tê-lo adquirido noutro lugar qualquer...

- Tal como a pergunta foi formulada - redarguiu o juiz -, considero-a legítima. A testemunha pode responder por sim, ou não.

Harvey Dennison declarou:

- Não. Mr. Ansley nunca foi empregado da firma.

- Era cliente habitual?

- Não.

- Lembra-se de tê-lo visto, como cliente exporádico?

- Não... Nunca o vi.

- Os seus clientes têm acesso ao armazém onde se encontram as armas de fogo?

- Nenhum cliente tem acesso ao armazém, nem mesmo aos artigos que se encontram por detrás do balcão de vendas.

- É tudo - concluiu Mason.

- Deseja contra-interrogar a testemunha, Mr. Burger? - sondou o Juiz Erwood, mordendo o lábio para reprimir um sorriso.

- Não, senhor doutor juiz - respondeu o procurador do distrito, tão furioso que mal podia pronunciar as palavras.

- Pode abandonar o banco das testemunhas, Mr. Dennison - disse o juiz, intimamente divertido, mas evitando deixá-lo transparecer.

Sam Drew e Hamilton Burger conferenciavam em segredo, Por fim, Drew pôs-se de pé e declarou:

- Apesar das desesperadas tentativas da Defesa, o réu não tem o mínimo alibi. Em contrapartida, foi provado que Meridith Borden foi assassinado no seu estúdio foto­gráfico, por meio de uma arma que, subsequentemente, foi encontrada no porta-luvas do carro do réu; também ficou demonstrado que este ameaçara... ou declarara estar predisposto a assassinar Borden, por meio de uma arma de fogo; foi admitido, sem contestação plausível, que o réu teve motivo e oportunidade para levar a cabo a sua predisposição.

"Para todos os efeitos, esta é uma audiência preliminar. A Acusação não tem por objectivo a condenação definitiva do réu, mas, unicamente, apresentar provas suficientes, susceptíveis de considerá-lo culpado de crime de homicídio em primeiro grau."

- Se o Tribunal me permite - interrompeu Mason -, a Acusação não pode, por enquanto, fazer a sua alega­ção final.

- Por que não? - estranhou o juiz.

- Porque a Defesa ainda não terminou o interrogatóriodirecto das testemunhas convocadas, por contrate, para a presente audiência, e cuja lista foi, regulamentarmente, entregue ao Tribunal e à Acusação.

- Como é isso? - admirou-se o juiz, virando-se para o escrivão. - Há mais testemunhas convocadas?

- Sim, senhor doutor juiz - confirmou o funcionário do Tribunal.

- Por que motivo a Acusação já entrou no período das alegações finais?

- Bem... - titubeou Drew. - Como se fez uma pausa prolongada... e a Defesa não se manifestou...

- A Defesa - retorquiu Mason - manteve-se, respei­tosamente, à espera que o senhor procurador do distrito e o seu ilustre adjunto, terminassem um longo diálogo. A pausa foi apenas devida à consideração que os repre­sentantes da Acusação me merecem. Contudo, visto que decidiram começar a expor as suas alegações finais, a Defesa limitou-se, passivamente, a ouvi-las.

Novamente, o Juiz Erwood reprimiu o riso e determinou.

- Queira prosseguir, Mr. Mason.

- Chamo Miss Loretta Harper.

Loretta avançou, de queixo levantado e lábios cerrados, numa linha estreita, manifestando firme determinação. Depois de identificar-se e prestar juramente, sentou-se no banco das testemunhas.

- Pode dizer-nos onde reside, Miss Harper? - começou

Mason.

- Em Mesa Vista.

- A que distância fica essa vila da casa do falecido Meridith Borden?

- A cerca de quilómetro e meio.

- Conhece o réu. Mr. George Ansley?

- Até tê-lo encontrado na propriedade de Mr. Borden, nunca lhe pusera a vista em cima.

- Está relacionada com Frank Ferney?

- Estou, sim.

- Conhece a mulher dele que se chama... ou usa o nome de Dawn Manning?

- Sim.

- Lembra-se das ocorrências da noite de segunda-feira, dia oito do corrente mês?

- Certamente que me lembro.

- Pode relatar-nos, com exactidão, o que sucedeu nessa noite?

- Objecção! - interpôs Hamilton Burger. - A pergunta é incompetente, irrelevante e imaterial. O que sucedeu a esta testemunha, na noite do crime, nada tem a ver com o presente caso.

O Juiz Erwood franziu o sobrolho e perguntou a Mason:

- Pode relacionar, directamente, o seu interrogatório com o processo em causa?

- Sim, senhor doutor juiz. Formularei a pergunta, noutros termos... Miss Harper pode informar o Tribunal dos acontecimentos ocorridos, na noite do crime, dentro da propriedade de Meridith Borden?

- Sim. Lembro-me perfeitamente do que se passou.

- Nesse caso queira relatar os factos.

- Dawn Manning, que conduzia um carro, levou-me para dentro dessa propriedade. Guiava apenas com uma mão, porque empunhava uma arma, na outra...

- Um momento! Um momento! - interrompeu Hamilton Burger. - A Defesa não pode introduzir, na presente causa, ocorrências que nada tenham a ver com o crime.

- Eu próprio farei a pergunta - resolveu o Juiz Erwood, visivelmente interessado. - A que horas, Miss Harper, entrou, com Miss Manning, na propriedade de Mr. Borden?

- Quando passámos os portões, deviam ser umas nove horas.

- A objecção é recusada - decidiu o juiz. - Queira continuar o interrogatório directo, Mr. Mason... isto é um Tribunal de Justiça e não podemos obstruir os caminhos da Defesa, com tecnicidades específicas. Se outras pessoas, além do réu, se encontraram dentro da propriedade da vítima, numa altura abrangida pelo período provável do respectivo homicídio, devem prestar o seu testemunho. Portanto, queira prosseguir, Miss Harper.

- Como Dawn ia a guiar com uma só mão, empunhava uma arma, na outra, e chovia torrencialmente, não conseguiu manter a direcção, derrapou no piso molhado e foi embater numa árvore. Então o carro virou-se, ficando tombado de lado, com uma porta aberta...

Mason interrompeu-a para inquirir:

- Houve algum motivo especial para essa derrapagem?

- Sim. Vinha um carro em sentido contrário, a sair da quinta.

- Quem o conduzia?

- Mr. George Ansley. Cruzou-se connosco, ao sair dos portões. O automóvel de Dawn embateu na rectaguarda do carro de Mr. Ansley e, depois, despistou-se, indo bater na árvore, já dentro da propriedade de Borden.

- Que mais sucedeu?

- Devo ter batido com a cabeça em qualquer lado... Não senti dores, mas fiquei completamente aturdida. Só dei por mim estendida na erva encharcada... Tinha a roupa completamente ensopada.

O Juiz Erwood inclinara-se para a frente, prestando a maior atenção ao relato. Drew e Hamilton dialogavam surdamente. Loretta Harper continuou:

- Vi Mr. Ansley acercar-se, na nossa direcção, com uma lanterna eléctrica, mas o facho de luz era muito fraco. Mesmo assim, quando este se projectou na erva, pude avistar Dawn Manning estendida um pouco mais adiante. Então ele...

- Refere se ao réu Mr. George Ansley?

- Sim. Ele apontou o foco da lanterna para as pernas de Dawn, mas, nesse momento, a luz apagou-se. Depois de hesitar um momento, encaminhou-se em direcção a casa.

- Então, que fez, Miss Harper?

- Aproveitei a ocasião e fui ver em que estado Dawn se encontrava. Estava sem sentidos, mas não me pareceu ferida. Peguei-lhe pelas axilas e arrastei-a para debaixo das árvores, afastando-a do carro. Em seguida, lembrei-me de um estratagema de sair dali e regressar à cidade, sem me envolver em sarilhos. Dawn tinha as saias subidas até à cintura. Deitei-me onde ela se achara, momentos antes; levantei as minhas saias, tal como vira as dela... e postei-me, mais ou menos na posição em que Mr. Ansley a encontrara. A escuridão era praticamente total, naquele lugar.

- Que mais fez?

- Gritei. Não queria que Mr, Ansley fosse à casa de Borden pedir auxílio. Chamei por ele e fingi-me aturdida, como se tivesse acabado de recuperar os sentidos. Ele ajudou-me a levantar, quis assegurar-se de que eu não ficara ferida e propôs-se levar-me a um médico. Recusei e pedi-lhe que me levasse a casa.

- Entretanto, que sucedera a Miss Manning? Num tom venenoso, Loretta sibilou:

- Desaparecera do local para onde eu a arrastara. Foi buscar a arma e...

- Um momento, um momento! - interrompeu Burger.

- A testemunha está a presumir um facto que não pode ter presenciado, visto que, como anteriormente disse, a escuridão era "praticamente total".

- Viu Miss Manning recuperar a arma, Miss Harper?

- inquiriu o juiz.

- Não, senhor doutor juiz... mas foi certamente o que aconteceu. Dawn desaparecera do sítio onde eu a deixara. Dirigiu-se para a casa de Borden...

- Miss Harper não pode referir-se à hipótese,- não testemunhada, de Miss Manning ter ido buscar a arma. Queira a Defesa prosseguir o interrogatório directo.

- O réu levou-a a casa? - perguntou Mason.

- Não.

- Julguei ouvi-la dizer que ele a levara a casa - admirou-se o Juiz Erwood.

- Foi o que Mr. Ansley também julgou. Mas eu dera-Lhe uma morada falsa. Disse-lhe viver nos Ancordia Apartments e ele levou-me até esse edifício.

- Se o Tribunal me permite - interveio Burger -, estamos a enveredar por um trilho divagante, completamente alheio a esta causa. Esses apartamentos nada têm a ver com a propriedade de Mr. Borden...

O juiz levantou a mão, para interromper o procurador do distrito e perguntou à testemunha:

- Por que afirmou que Miss Manning se dirigiu para a casa de Mr. Borden? Porventura viu-a dirigir-se nessa direcção?

- Não... mas tenho a certeza de que o fez. Mrs. Ferney... isto é, Dawn Manning, levantou-se do lugar onde eu a deixara estendida... Estou certa de que foi para casa de Borden. Ela costumava pousar para ele, como modelo fotográfico. Borden pagava-lhe...

Hamilton Burger levantou-se, mas o juiz ergueu a mão, detendo-o.

- Escusa de objectar, senhor procurador do distrito. Sei discernir a diferença entre uma conclusão da testemunha e uma declaração de facto presenciado. Contudo, temos, apensas ao processo, fotografias que comprovam essa conclusão da testemunha. Eu tenho, aqui, as respectivas cópias.

Pegou nas fotografias que se achavam sobre a secretária e estendeu-as a Loretta.

- Reconhece a pessoa representada nestas fotografias?

- Sim, senhor doutor juiz. É Dawn Manning.

- Pode testemunhar que Miss Manning foi a pessoa que, na noite de segunda-feira, dia oito do corrente, pelas nove horas, entrou na propriedade do falecido Mr. Meridith Borden?

- Sim, sem a menor sombra de dúvida.

O juiz fez um gesto para Mason e este respondeu-lhe com outro, dispensando a testemunha.

- A Acusação pode contra-interrogar - determinou o juiz.

Novamente, Burger e Drew estavam absortos num sussurrante diálogo. O primeiro, de certo modo sobressaltado pelas palavras do juiz, inquiriu:

- Como pode afirmar, Miss Harper, que Miss Manning se dirigiu para casa de Mr. Borden, se não a viu fazê-lo, com os seus próprios olhos?

- As fotografias provam - replicou Loretta - que ela foi para lá.

- Não argumente comigo - irritou-se Burger, apontando um dedo tremente para a testemunha. - A sua afirmação baseia-se, unicamente, no facto de ter visto essas fotografias.

- Não só nesse facto.

Mason aproveitou a "deixa" e sondou:

- Tem mais alguma prova? A senhora, Miss Harper, também esteve nessa casa?

- Não, mas Frank esteve lá... Frank Ferney... Frank bateu à porta do estúdio e uma mulher gritou-lhe:

"- Vai-te embora!

"Frank reconheceu a voz da sua própria mulher."

- Objecção - rugiu Burger. - Trata-se de testemunho "por ouvir dizer".

- Objecção aceite.. Contudo, estamos perante uma situação deveras peculiar. O Tribunal entende dever tentar esclarecer melhor este assunto. Afirmou, há pouco, Miss Harper, de que era Miss Manning quem guiava o carro que as conduziu a propriedade de Mr. Borden?

- Absolutamente.

- Guiava-o com uma só mão?

- Tal como já disse.

- E empunhava uma arma na outra?

- Precisamente.

- Com que intenção a levava na mão?

- Tinha-a apontada à minha barriga.

- E, durante toda a viagem, manteve-a apontada ao seu ventre?

- Sim, senhor doutor juiz.

- Miss Harper! A história que nos conta é verdadeiramente insólita!

- É a pura verdade. Dawn roubara o automóvel em que me raptou. Portanto, podia, muito bem, ter roubado também a arma. Esta parecia-se com o revólver que está, ali, sobre aquela secretária. Era do mesmo tamanho, formato... e igualmente de aço azulado. Frank Ferney tem estado a tentar protegê-la. Façam-no contar a verdade acerca do que, realmente, aconteceu. Ele...

- Alto lá! - cortou o juiz. - Estamos, agora, a afastar-nos dos limites que definem a área desta causa. A sua declaração, Miss Harper, é absolutamente irrelevante... Tem alguma pergunta a fazer, senhor procurador do distrito?

Burger abanou a cabeça.

- Mr. Mason? - indagou Erwood.

- Não, senhor doutor juiz. A Defesa dispensa esta testemunha, mas deseja voltar a contra-interrogar Mr. Frank Ferney.

- Objecção - gritou Burger, levantando-se, de salto. - Essa testemunha já foi contra-interrogada, exaustivamente, sobre a matéria...

- Contudo - observou o juiz -, verificou-se uma inesperada ramificação... uma ampliação do campo da matéria em causa. O Tribunal determina que Mr. Ferney regresse ao banco das testemunhas, a fim de ser novamente sujeito a um contra-interrogatório.

Ferney, visivelmente contrafeito, reocupou o banco das testemunhas. A um sinal do juiz, Mason inquiriu:

- Quando entrou em casa, depois de ter levado o cão doente para o canil, o senhor, Mr. Ferney, subiu ao estúdio fotográfico de Mr. Borden?

- Sim.

- A porta estava aberta ou fechada?

- Fechada.

- Bateu a essa porta?

- Sim.

- Que sucedeu?

- Uma voz de mulher respondeu: "Vai-te embora!"

- Por que não nos referiu esse facto, da primeira vez que testemunhou?

- Porque ninguém mo perguntou.

- Mas não declarou que, ao bater à porta, não obteve resposta?

- O que eu disse, precisamente, foi que, tendo eu chamado por Mr. Borden, não obtivera resposta... de Mr, Borden.

- Reconheceu a voz feminina que lhe respondeu?

- Sim. Era a voz de minha mulher, Dawn.

- Refere-se à pessoa que tanto usa o nome de Mrs. Ferney como o de Dawn Manning?

- Sim.

- É tudo - terminou Mason.

- Não tenho perguntas a fazer a essa testemunha - rosnou Burger, cuja ira começava a degenerar em desnorteamento.

- Um momento - proferiu o Juiz Erwood, detendo a testemunha que já se retirava. - O senhor declarou ter batido à porta. Porventura tentou abri-la?

- Não. Estava sempre fechada à chave, quando Mr. Borden se encontrava lá dentro... com um modelo fotográfico.

- Nesse caso, por que não pediu a Mrs. Ferney que lha abrisse?

- Porque, se o tivesse feito, Mr. Borden dispensaria, imediatamente, os meus serviços. Eu era, ali exclusivamente, um seu empregado. O facto de estar ainda casado com Dawn, devia-se a eu não ter ultimado o divórcio. Porém, para todos os efeitos, já não nos considerávamos marido e mulher. Borden sabia-o e estava no seu direito de contratar os modelos que desejasse. Dawn era livre de fazer o que entendesse, tal como eu o era.

- Por que motivo não ultimou o divórcio, Mr. Ferney?

- Tive uma desinteligência com o meu advogado. Tornava-se necessária a minha estada em Reno, o que era dispendioso. Os honorários do meu advogado ainda o eram mais. Desisti e considerei a nossa separação um facto consumado, embora não confirmado legalmente.

Com uma vénia, Mason interveio:

- Se o Tribunal me permite, desejaria interrogar a testemunha acerca de certo pormenor cronológico.

Virando-se para Ferney, inquiriu:

- Disse ter deixado a casa de Borden, às seis horas da tarde?

- Sim.

- Para onde foi?

- Para casa da minha noiva, Miss Loretta Harper.

- Chama-lhe noiva, apesar de não estar divorciado?

- Sim.

- Ela sabia que o senhor, Mr. Ferney, ainda se achava legalmente casado?

- Bem... nessa altura ainda o não sabia.

- Portanto, mentiu-lhe?

Ferney hesitou. Depois, ganhando coragem, respondeu, desafiadoramente:

- Sim... era a única maneira... Menti-lhe, sim.

- Quem estava presente no apartamento de Miss Harper, quando o senhor lá chegou?

- Só Loretta.

- O casal convidado chegou mais tarde?

- Sim, cerca de um quarto de hora depois.

- Quem eram essas pessoas?

- Mrs. e Mr. Jason Kendell.

- Quanto tempo essas pessoas permaneceram no apartamento de Miss Harper?

- Até Loretta regressar a casa, depois de ter sido raptada.

- A testemunha não sabe, por conhecimento próprio e directo, que Miss Harper fora raptada - objectou o juiz. - É uma declaração por presunção e "ouvir dizer".

- Em que piso se situa esse apartamento? - indagou Mason.

- No quarto piso.

- E o senhor, Mr. Ferney, depois de umas bebidas, antes, durante e depois do jantar, ficou intoxicado?

- Sim.

- Quem o levou para o quarto de Miss Harper?

- Lembro-me de que Loretta, ajudada por Milicent e por Jason... Mrs e Mr. Kendell... me tiraram os sapatos e estenderam sobre o leito.

- Adormeceu?

- Sim. Quando acordei, olhei para o relógio e lembrei-me de que ficara de contactar com a Drª Callison.

- Nessa altura, telefonou-lhe, pessoalmente?

- Não. Loretta já tinha regressado ao apartamento e foi ela quem telefonou à médica veterinária, enquanto eu corri para o carro.

- Já estava completamente normal, livre dos efeitos do álcool?

- Ainda não. Tive de conduzir o carro, lentamente, até ao canil da Drª Callison, pois achava-me estonteado, apesar de já ter dormido bastante.

- Nesse caso, como teve capacidade de, pouco depois, ter ingerido mais bebidas, na companhia da Drª Callison?

Ferney mostrou-se perturbado e balbuciou:

- Eu... bem... o ar da noite...

Loretta Harper saltou da cadeira onde se achava sentada, entre a assistência, e gritou:

- Conta-lhes a verdade, Frank! Deixa de proteger essa galdéria!... Mr. Mason! Pergunte-lhe o que ele disse à Drª Callison.

O Juiz Erwood bateu com o maço na secretária e censurou:

- Miss Harper. Não pode intervir nos debates. Mantenha-se quieta e calada, caso contrário, terei de ordenar a sua expulsão da sala.

- Desculpe, senhor doutor juiz - justificou-se Loretta -, mas não pude conter-me. Frank ouviu...

- Cale-se, Mr. Harper, ou tenho de irradiá-la, sob prisão. Loretta sentou-se, tremendo de indignação. Virando-se para Ferney, o juiz indagou:

- Que foi que o senhor disse à Drª Callison?

- Bem... quando íamos a deixar a casa de Borden, disse à Drª Callison que me parecera ter ouvido um tiro.

- Um tiro?

- Sim... foi o que me parecera ter ouvido.

- Apesar disso, continuou na carrinha da Drª Callison, de regresso ao canil veterinário?

- Sim.

- Por que não ficou em casa de Mr. Borden, já que é aí que vive?

- Porque tinha deixado o meu carro defronte do canil da Drª Callison. Precisava de ir buscá-lo.

- A que horas lá chegaram?

- Por volta das onze e meia... ou, talvez, um pouco depois dessa hora.

- E, após ter recuperado o carro, regressou a casa de Mr. Borden?

Ferney hesitou, antes de responder:

- Não. Não dormi lá, nessa noite.

- Se o Tribunal me permite- interveio Mason. -, gostaria de fazer mais uma pergunta à testemunha.

Tendo Erwood acedido com um movimento de cabeça, Mason perguntou:

- Não é um facto, Mr. Ferney, que o senhor, em certo momento da noite de segunda-feira, dia oito do corrente, disse a Miss Loretta Harper que sabia que a sua mulher, Dawn Manning, assassinara Meridith Borden, e que o senhor iria fazer tudo quanto pudesse para protegê-la?

Ferney manteve-se calado.

- Sim ou não? - inquiriu o juiz.

Movendo-se impacientemente no banco das testemunhas, Ferney titubeou:

- Bem... É possível que eu lhe tenha dito...

- Sim ou não? - insistiu o juiz.

- Sim, disse-lhe isso - confirmou Frank Ferney, depois de olhar, desesperado, para Loretta Harper, pois antevia a possibilidade de ela ser chamada a testemunhar a esse respeito.

- A Defesa dispensa a testemunha - declarou Mason.

- A Acusação não tem perguntas a fazer-lhe - resmungou Burger.

O Juiz Erwood suspirou e disse, surdamente:

- A testemunha está dispensada... A Defesa deseja chamar mais alguma testemunha?

- Sim, senhor doutor juiz. Foi entregue uma contrafé à Drª Margaret Callison, pelo que solicito ao Tribunal a continuação da audiência, até que esta testemunha possa comparecer...

- Objecção - gritou Drew. - Tanto a Acusação como a Defesa ouviram as testemunhas convocadas. Não podemos prolongar a audiência, por tempo indeterminado...

- A convocação da testemunha Callison, consta da lista de citações, entregue ao Tribunal pela Defesa? - indagou o Juiz Erwood, virando-se para o escrivão.

Este, depois de ter consultado os seus papéis, respondeu:

- Sim, senhor doutor juiz.

- Mas - insistiu Drew -, como essa testemunha não se apresentou...

- O Tribunal vai determinar um intervalo de dez minutos - resolveu o juiz, pondo termo à argumentação do adjunto do procurador do distrito.

Perry Mason dirigiu-se a Paul Drake e perguntou-lhe:

- Já entregaram a contrafé à veterinária?

- Deve vir a caminho.

- Okay, Paul. Vai para a entrada do tribunal e "atira-a" cá para cima, logo que chegue.

Virando-se para Della, sondou:

- Notou alguma coisa de peculiar, neste caso?

- Loretta está furiosa por Ferney ter tentado proteger a mulher.

- Deve haver mais qualquer coisa, por detrás de tudo isso. Borden era um "relações públicas" de políticos corruptos a quem comprava "facilidades". Evidentemente, lidava com imenso dinheiro e não podia aparecer, descaradamente, à luz do dia, como intermediário de subornos. Tinha de agir ocultamente... e tinha de proteger-se.

- Que quer dizer com Isso?

- Lembrei-me de que, tal como Beatrice Cornell, Borden devia ter gravações de todas as conversas, para o caso de ver-se envolvido num sarilho. A sua protecção baseava-se no receio que os políticos teriam de comprometerem-se. Estes tratariam de protegê-lo. Por conseguinte, Borden deveria gravar todas as conversas... incluindo a que travou com Ansley.

- Acha que isso possa ajudar o seu cliente?

- Talvez... e até muito.

- Não compreendo aonde quer chegar.

- Se Ansley foi lá, para matá-lo, não se daria ao trabalho de contratá-lo na qualidade de relações públicas.

- Podia ter-se enfurecido, depois de feita a combinação.

- Sim... podia, mas, nesse caso, a Acusação não desprezaria essa hipótese. Já teria usado essa arma, contra o meu argumento de que Borden conseguira que o inspector camarário deixasse de intervir na obra de Ansley, pelo que este já não teria motivo para desejar matá-lo... antes pelo contrário, com vista às construções futuras que Borden lhe prometera.

- Oh, Chefe! - animou-se Della Street. - Isso parece, realmente, lógico.

- Onde está o Tenente Tragg?

- Ficou sentado na sala de audiências.

- Óptimo! - exclamou Mason, mostrando os dentes, num esgar quase risonho. - Tragg não deixará de contar a verdade.

 

Quando o Juiz Erwood regressou à sala de audiências, o procurador do distrito, Hamilton Burger, levantou-se para declarar:

- Se o Tribunal me permite, a Acusação apresenta a sua objecção contra o facto de a Defesa ter convocado, por contrafé, a Drª Margaret Callison, citada como testemunha da presente causa.

"Torna-se evidente que a Defesa, incapacitada de materializar a sua presunção de existência de um alibi que invalide a incriminação no réu, procura lançar-se numa "expedição de pesca", buscando arrastar, na "rede", factos esporádicos e facilmente alienáveis, mas susceptíveis de confundir momentaneamente as permissas e de atrair a atenção para outros pretensos suspeitos do homicídio perpetrado na pessoa de Mr. Meridith Borden.

"O advogado da Defesa é já sobejamente conhecido pela sua tendência para transformar meros casos forenses em verdadeiras sessões espectaculares, ultrapassando, largamente, os limites processuais, normativos das audiências. Esta estratégia não é só ilegítima, mas também causa, reprovávelmente, uma dispensável morosidade no curso dos debates e, implicitamente, uma condenável perda de tempo.

"Por conseguinte..."

- A Acusação-interrompeu o Juiz Erwood - alheando-se da "condenável perda de tempo", tem a pretensão de impedir que a testemunha, citada pela Defesa, tenha oportunidade de fazer o seu depoimento em Tribunal?

- Bem... - balbuciou Burger - em breves palavras, é essa a intenção da Acusação.

- Muito bem, Mr. Burger. Podia tê-la exposto, efectivamente, em breves palavras. Contudo, o Tribunal rejeita a objecção da Acusação.

"Queira a Defesa chamar a testemunha, Drª Callison, para que preste juramento."

Sorrindo gentilmente, Mason declarou:

- Se o Tribunal me permite, desejo sublinhar que, até hoje, como advogado da Defesa, apenas tenho contribuído para que a Procuradoria do Distrito sirva integralmente a Justiça, evitando a condenação de pessoas inocentes. De resto, os "Anais Judiciários" deste Estado constituem a mais abalizada prova do que afirmo... a a Imprensa, sempre atenta ao fenómeno criminal, tem-no divulgado publicamente.

- Contudo, compreendo o ansioso empenho da Procuradoria do Distrito em não deixar escapar, das "malhas da sua rede", o réu que conseguiu apresentar ao público, na impossibilidade de encontrar o verdadeiro culpado.

"Porque a intenção da Defesa é desvendar a Verdade, não pode abster-se de utilizar os meios legais para ouvir as necessárias testemunhas. Mas, já que o ilustre procurador do distrito manifesta a sua perturbada preocupação pela presença de uma nova testemunha, a Defesa tentará dispensá-la, se tal lhe for possível. Para tal, requer contra-interrogar novamente a testemunha, já ajuramentada, Tenente Tragg do Departamento de Homicídios."

- Aí está! - exclamou Burger, desabridamente. - Aí está uma nova "expedição de pesca"!

- Devo advertir os senhores advogados - interveio o Juiz Erwood - de que não vou tolerar mais quezílias de natureza pessoal, neste Tribunal a cuja audiência presido... Por que deseja, Mr. Mason, voltar a contra-interrogar o Tenente Tragg?

- Precisamente, senhor doutor juiz, para evitar delongas com o interrogatório de uma nova testemunha.

- Queira chamar o Tenente Tragg - decidiu o juiz. Logo que Tragg se sentou no banco das testemunhas,

Mason inquiriu:

- Já relatou, neste Tribunal, o que viu no estúdio do falecido Mr. Meridith Borden?

- Já, sim, sir.

- Mas não é verdade que encontrou, nesse estúdio, uma prova material de considerável importância que foi habilmente suprimida no processo?

- Senhor doutor juiz - gritou Hamilton Burger. - Essa pergunta contém uma insinuação insidiosa contra a Procuradoria do Distrito. Protesto veementemente contra...

- Um momento, Mr. Burger - interrompeu-o o Juiz Erwood, erguendo a mão, imperativamente. Em seguida, de cenho cerrado, fitou Mason e inquiriu:

- O advogado da Defesa abrange a gravidade do que acaba de proferir? Está apto a confirmar a supressão de uma prova, tal como insinuou?

- A confirmação depende exclusivamente da testemunha. Porém, como a Defesa conhece a integridade moral do Tenente Tragg, não duvida de que ele irá depor com a maior veracidade.

- Queira interrogar a testemunha, Mr. Mason.

A maneira como Tragg manifestou a sua preocupação despertou o interesse do juiz que se inclinou para diante, concentrando toda a atenção no tenente do Departamento de Homicídios.

- Receio não ter entendido bem o alcance do termo supressão - defendeu-se Tragg.

- Não é verdade que foi encontrado, por si ou por elementos da sua equipa de investigação, uma prova de evidente importância? Não é um facto de que o senhor, Tenente Tragg, foi industriado no sentido de nada revelar a esse respeito, no decurso do seu interrogatório, neste Tribunal?

- Objecção! - interpôs Hamilton Burger, exaltado.- Este contra-interrogatório é impróprio, por carência de fundamento; baseia-se na suposição de que a testemunha encontrou uma prova e de que, ulteriormente, uma entidade superior hierárquica ou a própria Procuradoria do Distrito mandou suprimi-la ou intimou um oficial da Polícia a manter silêncio quanto a esse facto; mais ainda, a Defesa não descreveu nem sequer mencionou a natureza da prova.

- Objecção recusada - ripostou o juiz. - O Tribunal deseja esclarecer a materialidade ou venalidade da presente insinuação... Responda à pergunta, Tenente Tragg.

- Não sei, precisamente a que prova Mr. Mason se refere.

Mason levantou-se e encarou o oficial da Polícia, indagando:

- Não é um facto, tenente, ter revistado minuciosamente, com o desvelo que o caracteriza, o estúdio e a câmara-escura do falecido Mr. Meridith Borden? Não é um facto, tenente, ter encontrado, durante essa busca, um microfone ligado a um gravador de som, contendo a gravação magnética da conversa travada entre Mr. Borden e Mr. George Ansley, réu da presente causa? E não é um facto, tenente, ter-lhe sido sugerido, por Hamilton Burger, que não mencionasse a existência dessa prova de registo acústico, durante a presente audiência?

- Responda à pergunta - intimou o juiz, surpreendido pelo visível embaraço do tenente dos "Homicídios" que se torceu na cadeira para olhar, de relance, para Burger, como que a indicar-lhe encontrar-se entre a espada e a parede. Finalmente, encarando Mason, respondeu:

- Sim, sir. Encontrei um microfone em casa de Mr. Bordem.

- E não encontrou o respectivo gravador de som?

- Sim, sir.

- E esse aparelho não continha uma fita magnética Impressionada?

- Sim, sir.

- E essa fita magnética não continha, gravada, a conversa travada entre Mr. Borden e Mr. Ansley?

- Não sei. Não me foi dado ouvi-la, integralmente, e não reconheci as vozes dos interlocutores.

- Que destino lhe deu, tenente?

- Entreguei-a, regulamentarmente, ao senhor procurador do distrito.

- Mas sabe que essa gravação constava de uma conversa entre dois interlocutores, não é verdade?

- Sei, sim, sir.

- E não é também verdade que Hamilton Burger o instruiu no sentido de não referir, neste Tribunal, a existência de tal gravação?

- Um momento! Um momento! - rugiu Burger, com expressão apoplética. - Antes que a testemunha responda à pergunta, interponho a mais veemente objecção, por tratar-se de uma pergunta argumentativa, incompetente, irrelevante e imaterial, ferida de impropriedade, no âmbito de um contra-ínterrogatório; sobretudo, porque a resposta se basearia em "ouvir dizer".

- O Tribunal considera a pergunta unicamente ferida de impropriedade, por exigir uma resposta baseada em "ouvir dizer" - replicou o Juiz Erwood. - A Defesa deve formular -a pergunta em termos legítimos, aceitáveis pelo Tribunal.

- Muito bem, senhor doutor juiz - acatou Mason.- Diga-me, tenente, se, da primeira vez que foi chamado a depor, o interrogaram acerca dos objectos que encontrara no estúdio de Mr. Borden?

- Sim, sir. Interrogaram-me acerca dessa matéria.

- E teve ocasião de descrever todos os objectos que encontrou, durante a sua busca?

- Não fui interrogado, especificamente, acerca de todos os objectos que se encontraram em casa de Mr. Borden.

- Portanto, só descreveu alguns objectos, omitindo a existência de outros. Mas não é verdade que existiu uma intenção formal de que esse gravador de som não fosse mencionado, durante esta audiência, a não ser que lhe fosse dirigida uma pergunta específica a esse respeito?

- Objecção! - bramiu Hamilton Burger, completamente fora de si. - A pergunta é argumentativa... é...

- Objecção rejeitada! - determinou Erwood. - A pergunta foi formulada, de acordo com as regras processuais. Se a testemunha foi industriada no sentido de não mencionar a existência desse gravador, não há dúvida de que pode responder se houve, ou não, uma "intenção formal" de omissão, referente a essa prova. Queira responder, tenente.

Após uma hesitação, Tragg encolheu os ombros e declarou:

- Sim, Mr. Mason, fui instruído no sentido de não me referir à gravação recolhida na busca.

- E quem o instruiu nesse sentido, foi, ou não, o promotor do distrito, Mr. Hamilton Burger?

- Foi, sim, sir.

- Objecção - hurrou Burger, afogueado.

- Rejeitada-redarguiu .o juiz, num sopro sibilante.

- Onde se encontra, presentemente, essa gravação, tenente? - indagou Mason, calmamente.

- Não sei, sir.

- Não sabe a quem a entregou?

- Sei que a entreguei ao senhor procurador do distrito, mas não posso testemunhar quanto ao lugar onde se encontra, presentemente.

- Peço ao Tribunal - solicitou Mason -que a referida gravação seja apensa ao processo e apresento, desde já, o requerimento verbal para que também seja emitida no decurso desta audiência. Evidentemente, uma conversa travada entre a vítima e o seu pretenso assassino reveste-se da mais alta importância, tanto mais que foi registada na própria noite do crime.

Desesperado, Hamilton Burger tornou a erguer-se da cadeira e argumentou, roucamente:

- A referida conversa demonstra claramente que o réu tinha motivo bastante para assassinar Mr. Borden. De resto, nada prova que, após uma conversa, mesmo cordata, entre dois interlocutores, um deles não tenha decidido assassinar o outro.

- É à Acusação que cumpre tentar fazer essa prova - retrucou Mason, quase desinteressadamente.

- Sou eu quem decide quais as provas que a Acusação deverá apresentar em Tribunal. Até agora, as que já foram apresentadas são mais do que suficientes para demonstrar a implicação do réu no assassínio de Borden.

Novamente levantando a mão, o Juiz Erwood inquiriu:

- Tem essa gravação em seu poder, Mr. Burger?

- Sim, mas não era intenção da Acusação...-começou a escusar-se o procurador do distrito.

- É melhor que passe a tê-la - ripostou o juiz.- Quanto tempo é necessário para ir buscar a gravação?

- Bem... cerca de meia hora. Estamos no fim do período desta sessão...

- Como, meia hora? Onde se encontra ela?

- Na Procuradoria, mas...

- Aqui ao lado?... Queira apresentá-la, Mr. Burger, dentro de dez minutos, a menos que os seus serviços não tenham os arquivos devidamente ordenados.

Mason, atenciosamente, virou-se para Burger, e declarou:

- A Defesa não vê inconveniente, quanto à demora de meia hora. Considera a emissão da gravação tão importante que está na disposição de esperar todo o tempo que o senhor procurador do distrito entender convir-lhe.

Drew puxou pela toga negra de- Burger e cochichou-lhe uma breve frase, nervosamente.

Furioso, o procurador do distrito rugiu:

- Era o que faltava!... A gravação estará aqui, dentro de dez minutos. A Defesa apenas tenta demorar, o mais possível, a audiência, até que a testemunha ausente, Drª Callison, tenha tempo de comparecer no Tribunal.

Com um sorriso sarcástico, o Juiz Erwood resolveu:

- Faça-se um intervalo de meia hora. A audiência prosseguirá, ao cabo desse período de tempo.

Furioso, Burger lançou-se pela porta fora, com Drew atrás dele, puxando-lhe pela toga e esforçando-se por acalmá-lo.

Quando o Juiz Erwood entrou no seu gabinete, contíguo à sala de audiências, arvorava uma expressão de desagrado e determinação.

 

Cinco minutos antes da reabertura da audiência, Paul Drake surgiu na sala do Tribunal, acompanhado por uma mulher atraente e bem vestida. Ambos pareciam ofegantes.

Mason, que se achava a conversar com George Ansley, viu-os aproximarem-se e levantou-se.

- Esta é a Drª Margaret Callison, médica veterinária - apresentou Drake. - Este é Mr. Perry Mason, advogado de Mr. George Ansley.

- Como está, Mr. Mason - saudou a médica. - Tenho lido, com frequência, notícias elogiosas a seu respeito... mas não esperava ter o gosto de conhecê-lo, pessoalmente.

O seu sorriso era manifestamente caloroso, ao acrescentar:

- Quando Mr. Drake me mostrou a contrafé e me afirmou que eu fora citada por si, até me custou a acreditar... Contudo, receio nada saber acerca do que aconteceu.

- Tenho muito gosto em conhecê-la, Drª Callison... Talvez, se me contar tudo quanto sabe, eu possa relacionar alguns factos fundamentais. Em princípio, doutora, uma contrafé, neste caso, destina-se a que uma testemunha faça o seu depoimento em Tribunal. Porém, se me narrar sucintamente os factos que presenciou, na noite em que Mr. Borden foi assassinado, talvez eu possa prescindir do incómodo que lhe daria ao sujeitá-la a um interrogatório formal. Conte-me o que sucedeu nessa noite, doutora.

- Um dos cães de Borden fora-me confiado para tratamento, mas, como ele gostasse de manter os animais em casa, durante a noite, mandava-me o doente, para o meu canil-enfermaria, pela manhã, e tornava a mandar alguém buscá-lo, ao fim do dia. Por norma, o animal ficava comigo, durante doze horas diárias, para cuidados clínicos.

- E naquela segunda-feira?

- Levaram-me o cão, às nove da manhã, e Mr. Ferney combinara vir buscá-lo às nove da noite. Como não aparecesse, pensei que tivesse ficado detido, por motivos de trabalho ou por qualquer outro impedimento, e aguardei que me telefonasse. Acabei por receber um telefonema, informando-me de que Mr. Ferney não pudera contactar comigo, mais cedo, por um motivo imperioso, mas que já ia a caminho de minha casa, para buscar o cão. Eu moro por cima do meu consultório veterinário...

- E a senhora que fez, Drª Callison? - cortou Mason, olhando para o relógio.

- Respondi que iria meter o cão na carrinha, de maneira a estar pronto a seguir, quando Mr. Ferney chegasse, tanto mais que eu desejava falar com Mr. Borden acerca do cão. Já não é novo e algumas glândulas, com a idade, têm tendências para calcificar...

- Que aconteceu, doutora, quando chegaram a casa de Borden? - tornou a interromper Mason.

- Quando entrámos em casa, Mr. Ferney foi procurar Borden ao estúdio fotográfico, mas tornou a descer, informando-me de que o patrão, naquele momento, não desejava ser incomodado.

- Alguma vez Ferney deixou de ser visto por si, enquanto estiveram na casa?

- Só quando subiu ao estúdio. Ouvi-o bater à porta e chamar por Borden, mas, evidentemente, não podia vê-lo, pois estava no piso superior.

Neste momento, o Juiz Erwood entrou na sala de audiências, o escrivão vibrou a martelada ritual para impor silêncio e Mason, baixando a voz, inquiriu apressadamente:

- Acha, doutora, que Ferney teria podido, entretanto, entrar no estúdio e voltar a sair?

- Oh, não, Mr. Mason. Não teve tempo para isso. Bateu à porta e chamou, duas vezes, mas voltou logo para baixo... Contudo, Mr. Mason, devo dizer-lhe uma coisa: quando Mr. Ferney regressou à sala, pareceu-me preocupado, com uma expressão quase angustiada e...

- Silêncio - impôs o escrivão que, nas audiências preliminares, também desempenhava as funções habituais do bailio judicial. A um sinal do juiz, acrescentou:-Podem sentar-se.

- O gravador está pronto, Mr. Hamilton Burger? - perguntou Erwood.

- Sim, senhor doutor juiz. Porém, a Acusação objecta...

- Queira pô-lo a funcionar, Mr. Burger.

De má vontade, o procurador do distrito, com ajuda de Drew, premiu um botão do aparelho e ouviu-se, distintamente, a voz de Borden:

- Não se preocupe com isso e poderá ganhar a dois carrinhos.

Depois ouviu-se Ansley dizer:

- Bem, vou andando... Não se incomode... e obrigado. E Borden terminou, observando:

- Fez bem em procurar o auxílio de um perito em relações públicas. Ninguém mais o incomodará... nem no futuro mais distante. Por meu intermédio vai fazer bons negócios... e uns atrás dos outros... Boa noite, Ansley.

Durante cerca de dez ou quinze segundos, o diálogo interrompeu-se, bruscamente, dando lugar a um silêncio apenas perturbado por quase imperceptíveis ruídos, característicos do desbobinar da fita magnética, sem ser impressionada. Depois, ouviu-se um estalo surdo, isolado e nada mais.

- Que foi esse estampido, Mr. Burger? - indagou Erwood.

- O som da explosão de um cartucho de armas de fogo, senhor doutor juiz.

- Muito bem, Mr. Mason - disse o juiz -, queira chamar a testemunha Ferney que estava a ser interrogada pela Defesa, antes do intervalo da sessão.

Ferney voltou a sentar-se no banco das testemunhas, aparentemente adoentado. Perry Mason perguntou-lhe:

- Quando bateu à porta do estúdio de Mr. Borden, que sucedeu?

- Não obtive resposta.

Mas, quando voltou à sala, que transmitiu à Drª Callison?

- Bem... não me lembro, exactamente, das palavras que empreguei.

- Não a informou de que Mr. Borden, naquele momento, não desejava ser incomodado?

- Bem... eu... - balbuciou Ferney - creio que lhe disse qualquer coisa, nesse género.

- E quando saíram da casa de Mr. Borden, não é verdade que o senhor, Mr. Ferney, declarou à Drª Callison ter ouvido, nesse instante, um tiro?

- Julguei ter ouvido um ruído, semelhante a um tiro.

- É tudo - disse Mason.

O procurador do distrito observou:

- Se o Tribunal me permite, a presente gravação prova que, logo após o diálogo entre o réu e a vítima, ocorreu o ruído de uma detonação.

- Objecção - interpôs Mason. - A síntese dessa audição, feita por Mr. Burger, peca por imprecisão. A detonação não ocorreu "logo após", como referiu, mas depois de um prolongado período de mutismo, injustificado numa interlocução.

- Objecção aceite. Queira continuar, senhor advogado de Defesa.

- Evidentemente, senhor doutor juiz, Mr. Borden não recebeu Mr. Ansley no seu estúdio fotográfico. O microfone estava oculto na sala e, certamente, era comutado por um botão interruptor ligado ao estúdio, visto que o gravador se encontrava neste último aposento. Ora, a vítima foi encontrada assassinada no chão do estúdio onde se encontraram manchas de sangue.

Por conseguinte... e um teste pericial o comprovará... o estalo surdo que se ouviu não resultou da detonação de uma arma de fogo, mas de o bater da porta, no momento em que Mr. Ansley deixou a casa de Mr. Borden. Este, logo a seguir, foi premir o comutador que desligava o gravador.

- A Acusação tem alguma observação a fazer? - perguntou o juiz.

- Aparentemente, o gravador foi desligado, após a detonação da arma de fogo, mas o assassino, George Ansley, teve oportunidade para fazê-lo, logo que desceu à sala.

Erwood olhou para Mason que, sorrindo, abanou a cabeça e contestou:

- É evidente que George Ansley não podia adivinhar onde se encontrava o gravador e o botão que o comutava no piso inferior. Era a primeira vez que se encontrava em casa de Borden. Não sabia que a sua conversa com aquele estava a ser gravada.

"Além disso, senhor doutor juiz, foi testemunhado em Tribunal, pelo capataz, em conversa com o inspector camarário, que, por indicações superiores, não haveria mais interrupções na obra da escola. Isso prova que Borden, depois de falar com Ansley, telefonou para alguém que deu tal ordem ao inspector. Portanto, Ansley não podia ter manipulado o gravador e não tinha motivo para assassinar Borden."

Olhando para o procurador do distrito, o Juiz Erwood proferiu:

- Tudo indica que a Acusação não reuniu provas suficientes para sujeitar o réu a um julgamento perante o Grande Júri. Não se provou que a arma, encontrada no porta-luvas do carro de Mr. Ansley lhe pertencesse... e o facto de ter sido aí encontrada, no dia seguinte ao crime, concede-lhe o benefício de dúvida, visto poder ter sido "plantada" por outrem, com o propósito de comprometê-lo. Não se provou que Ansley tivesse sido introduzido no estúdio fotográfico, tanto mais que a conversa foi gravada na sala, ou seja, no piso inferior. Finalmente, não se provou a existência de motivo, visto que tanto Mr. Ansley como Mr. Borden acordaram um expediente para eliminar a obstrução ao curso da obra. Portanto, tudo indica que o réu foi processado por um crime que, aparentemente, não cometeu. O Tribunal recomenda ao procurador do distrito a necessidade de não dispender, escusadamente, as verbas do erário público, por negligência na recolha e interpretação das provas. Quanto ao réu, Mr. George Ansley, pode ir em liberdade.

O Juiz Erwood levantou-se e saiu da sala de audiência.

Então, entre a assistência, ergueu-se um rumor de regozijo e os jornalistas correram para um Mason sorridente e para um Burger que tapava a cara com a manga negra da toga, tentando furtar-se às fotografias. E ambos foram perseguidos, ao longo dos corredores.

 

Já passava das nove e meia da manhã, quando Perry Mason entrou no escritório, sorriu para Della Street e comentou:

- Os jornais fartaram-se de maltratar o nosso "amigo" Hamilton Burger... Há novidades?

- Temos um novo cliente.

- Sim?... Desta vez, quem mataram?

- Meridith Borden.

Mason arqueou as sobrancelhas, numa irónica interrogativa.

- Como conseguiu ele tornar a ser assassinado?

- Dawn Manning telefonou - explicou Della. - Está numa cela da "Detenção" de mulheres e autorizaram-na a consultar um advogado.

- Mason dirigiu-se novamente para a porta.

- Onde vai, Chefe?

- Aonde me chamam.

- O quê? Vai defendê-la depois de, virtualmente, tê-la acusado do assassínio de Borden?

- Porventura eu acusei-a desse homicídio?

- Pelo menos, foi o que o juiz depreendeu da sua alegação final.

- Depreendeu mal. Pelo contrário, prevejo que Hamilton Burger se vai meter numa situação deveras embaraçosa, se pretender acusar Dawn da morte de Borden.

- Oh, Chefe! Como pode pensar uma coisa dessas, se todas as provas que evidenciou no Tribunal, a indigitam como implicada no crime?

- As provas não a implicam em coisa alguma... pelo menos com essa gravidade.

- Mas ela terá de admitir que mentiu.

- Entre mentir e assassinar, há uma diferença abissal.

- Oh, Chefe, não se meta nisso! Suponha que Hamilton Burger manipula os factos, de maneira que lhe seja impossível, a si defendê-la. Já conhece o temperamento do Juiz Erwood... e as suas ideias acerca do pecado de desbaratar-se tempo, numa audiência e, portanto, dinheiro dos constituintes. Ele estava do seu lado, quando defendeu George Ansley, mas, agora, vai ficar furioso consigo.

- Porquê?

- Pensará que o Chefe, virando as provas contra Dawn, estava a "mangar" com ele.

- Nah!... Não foi contra Dawn que eu "virei" as provas... De resto, esta nova causa é um desafio a que não posso "virar" a cara. E, além disso, não se esqueça, Della, de que Dawn é uma garota de "se lhe tirar o chapéu"!... E nada nos diz que Erwood seja novamente chamado para presidir a esta "viragem" de conclusões.

- Ora! Logo que Burger saiba que o Chefe foi visitar Dawn, mexerá todos os cordelinhos para que o Juiz Erwood volte a sentar-se no Tribunal... com o fim de ajustar contas consigo, pelo seu atrevimento!

- Quer apostar, Della?... Dez contra um?

- Não me arrisco, Chefe, mas o juiz vai fazer-lhe a vida negra.

- Bem, adeus, Della! Se alguém precisar de falar comigo, durante as próximas duas horas, estarei a tagarelar com Dawn Manning, ou no caminho de ida e volta. Portanto, terá de tomar nota da mensagem e, se for urgente, tente telefonar para a "Detenção" das mulheres.

 

Mason achava-se sentado na vasta sala de visitas da prisão, cujo parlatório era constituído por uma série de vidraças justapostas, invulgarmente espessas, com circos perfurados, como os de passador, por onde, anteriormente, as presas podiam comunicar com os visitantes. Contudo, agora, esses orifícios circulares encontravam-se tapados e substituídos por microfones, visto, no decurso de um inquérito a casos de homossexualidade lésbica e toxicomania, ter-se registado infiltração de estupefacientes. Dawn Manning fitou Mason, com os seus olhos cinzentos e considerou:

- Não há dúvida, Mr. Mason, de que me atirou às feras!

- Está convencida disso?

- Escusa de desculpar-se. Sei perfeitamente que, quando defender um cliente, empenha-se em salvá-lo, doa a quem doer. Defendeu George Ansley e arrancou-o às fauces dos lobos, mas atirou-me para o meio da alcateia faminta. A situação em que me encontro devo-a a si e a esse maravilhoso marido que o diabo me atirou para cima do lombo. Nunca pensei que tal pudesse a acontecer-me.

- Pediu-me que viesse aqui, para censurar-me pelo que lhe sucedeu? - perguntou Mason, irritadamente.

- Não. Pedi-lhe que viesse falar comigo, porque desejo que seja meu advogado.

- Que mais?

- Não tenho muito com que pagar-lhe, mas suponho que lhe mereço alguma consideração. O "sinal" é muito avultado?

- O adiantamento sobre futuros honorários não é muito importante. Um dólar basta. O que importa é que, ao falar comigo, se restrinja a dizer-me a verdade.

- Tudo quanto lhe contei foi verdade... pelo menos, quase tudo.

- Sabia que Frank não chegara a divorciar-se de si?

- Só vim a sabê-lo naquela altura.

- Sabia que ele era amante... digamos "amigo íntimo" de Loretta Harper?

- Já sabia que ele andava com ela, mas juro nunca a ter visto, na minha vida, até à história do Cadillac.

- Mas você, Dawn, era uma das modelos registadas na lista da Beatrice Cornell e já pousara para Meredith Borden, não é verdade?

- Sim, mas nunca lhe consenti que me fotografasse em atitudes obscenas e muito menos, que ele me pusesse as patas em cima. Uma coisa é erotismo, que sugere lascívia, e outra coisa é pornografia que mostra o sexo degradantemente. O primeiro pode constituir, realmente, um excitante erótico, por vezes com uma pincelada de brejeirice; o segundo nada tem de belo e geralmente destina-se a degenerados, com taras sexuais.

"Borden nunca me sugeriu que pousasse em atitudes pornográficas. Apenas se serviu de mim, para comprometer um "amigo" político, a fim de pusteriormente lhe extorquir favores de natureza administrativa cambiáveis em metal sonante. Por outras palavras, Mr. Mason quis transformar-me em minhoca para o seu anzol. Contudo, antes que o tal político ficasse fisgado, recusei-me a entrar-lhe na boca. "Pirei-me" e nunca mais lhe apareci."

- Ocorreu alguma cena entre você e Borden?

- A mim pareceu-me esplêndida, pois esbofeteei-lhe as bochechas de porco.

- Poderá o procurador do distrito provar essa querela digamo-la, violenta?

- Certamente que pode, pois estavam outras pessoas presentes.

- Ameaçou matá-lo, nessa altura?

- Claro que o ameacei. Disse-lhe, de caras que o mataria como a um cão raivoso.

- E tudo isso foi testemunhado por terceiros?

- E de que maneira! O estalo da bofetada foi tão forte que até me assustou. Fiquei com a mão a arder e ouviram-me repetir, claramente, que lhe daria cabo do "canastro".

- Nesse caso, Dawn, não se encontra em muito boa posição.

- Sei perfeitamente que me encontro numa posição do diabo... e de rabo para o ar!... Desculpe a expressão, Mr, Mason, mas na minha profissão...

- Bem sei - cortou Mason, sorrindo. - Miss Cornell já me elucidou que as suas modelos usam uma linguagem libertina.

Tornando-se subitamente grave, inquiriu:

- Matou-o, Miss Manning?

- Não, Mr. Mason. Vou contar-lhe o que se passou. Mal percebi onde estava, pensei logo em afastar-me dali.

- Por que não o fez?

- Fiz, sim, Mr. Mason! "Raspei-me" imediatamente dali para fora.

- Nesse caso, como explica o aparecimento das fotografias eróticas que foram exibidas no Tribunal?

- Não foi Borden quem mas tirou!

- Olhe que a própria máquina fotográfica não hesita em desmenti-la.

- Não sei explicar como o diabo das fotografias foram lá parar, mas nunca pousei para ele, naquelas atitudes. Só o fiz para fotógrafos profissionais que as comercializaram com> revistas ilustradas e calendários.

- Tem alguma arma, Dawn?

- Nunca possuí arma alguma.

- Não teve um revólver nas mãos?

- Nunca, Mr. Mason!

- Contudo, na sua profissão, é natural que uma mulher precise de proteger-se...

- Que quer dizer com isso, Mr. Mason?

- Se ficar fechada num estúdio, a sós com um fotógrafo, e se começar a desnudar-se em frente dele, pode acontecer que o artista não consiga refrear os instintos e...

- Ah!... E onde queria, Mr Mason, que eu ocultasse o revólver? Num ligueiro, por exemplo, ou no... no cabelo?

"Francamente, Mr. Mason! Uma mulher que escolheu a profissão de modelo, tem de tomar conta de si própria. Pode defender-se de muitas maneiras, mas não anda com armas enfiadas, seja lá onde for!"

- Okay, Dawn! Arranjou advogado. Vou encarregar-me da sua defesa.

 

O Juiz Erwood espraiou o olhar pela sala de audiências, atulhada de gente até à porta e proferiu, com azedume:

- Caso do Povo versus Dawn Manning. Está aberta a audiência preliminar.

- Estamos prontos - disse Hamilton Burger, impando de autoconfiança.

- Deve o Tribunal depreender que o senhor, Mr. Mason, se apresentou para defender a acusada? - perguntou Erwood.

- Sim, senhor doutor juiz - respondeu Mason, plácidamente.

- Na última vez que o senhor aqui esteve... e bem recentemente, Mr. Mason, o senhor empenhou-se em apresentar provas que dirigiram todas as suspeitas sobre a presente ré... Direi mesmo, provas substancialmente condenatórias do procedimento de Dawn Manning, praticamente indigitando-a como autora do crime.

- Desse modo, a Acusação tem a sua missão facilitada. Resta-lhe saber utilizar as mesmas provas, À Defesa competirá agora demonstrar a inanimidade dessas provas, através do contra-interrogatório.

O Juiz Erwood hesitou, sem saber se deveria exprimir uma censura ao evidente descaramento do advogado, mas preferiu indicar:

- Queira iniciar os debates, senhor procurador do distrito.

Hamilton Burger delegou em Sam Drew o trabalho rotineiro de ouvir as testemunhas que já tinham deposto sobre a mesma matéria: localização do cadáver, causa da morte, natureza do projéctil fatal, características da arma e, finalmente, as fotografias de Dawn Manning, pousando, nua, em atitudes eróticas. Quando Drew concluiu os mencionados interrogatórios, Hamilton Burger chamou Harvey Dennison a testemunhar O encarregado da loja de ferragens, repetiu o seu relato acerca do desaparecimento do revólver.

- A Defesa deseja contra-interrogar a testemunha? - perguntou Erwood.

- Sim, senhor doutor juiz. Virando-se para a testemunha, indagou:

- Obviamente, Mr. Dennison, o senhor deu-se ao trabalho de consultar os registos em que baseou o seu depoimento, não é assim?

- Sim, sir.

- A Acusada trabalhava para a sua empresa, durante o período em que se verificou a falta da arma?

- Sim, sir.

- Não pode precisar a data em que o revólver desapareceu do armazém?

- Não, sir.

- Esse armazém tem uma porta para as traseiras do edifício?

- Sim, sir, mas está sempre fechada. Só é utilizada para cargas e descargas e, nessa altura, é sempre vigiada por um empregado que controla a entrada e saída da mercadoria.

- Quantos empregados trabalham na empresa?

- Temos vendedores, na loja; um distribuidor-arrumador, no armazém; escriturários, um contabilista e um moço de recados, nos escritórios; ao todo doze assalariados.

- Incluindo os sócios?

- Não. Somos três.

- Por conseguinte, qualquer uma dessas quinze pessoas poderia ter-se apoderado da arma?

- Bem... sim, teoricamente, qualquer delas teria possibilidade de tirar a arma do armazém, mas...

- Diga-me agora, Mr. Dennison: não foi unicamente detectado o roubo dessa arma, pois não? Verificou-se o desaparecimento de outros objectos, não é verdade?

- Sim, tal como declarei, anteriormente.

- Que espécie de objectos?

- Objecção! - interpôs Burger, sem grande entusiasmo.- A pergunta é incompetente, irrelevante e imaterial, pois só o revólver se relaciona com a causa em debate. Não viemos aqui para perder tempo...

- O Tribunal - considerou o Juiz Erwood - valida a objecção, a menos, que Mr. Mason demonstre que a pergunta seja pertinente.

- A Defesa propõe-se demonstrar a pertinência da pergunta, senhor doutor juiz.

- Nesse caso, prossiga, Mr. Mason.

- Pode indicar, Mr. Dennison, a natureza desses objectos?

- Sim, sir. Desapareceram alguns artigos de desporto, como caixas de anzóis especiais, designados por "moscas" e "borboletas", para pesca fluvial; caixas de munições e outros artigos deste género.

- De considerável valor monetário?

- Sim... Todo o dinheiro é de considerar.

- De grande tamanho e peso?

- Oh, não! Nada de volumoso.

- Portanto, portátil, de fácil deslocação?

- Certamente.

- Susceptíveis de serem escondidos num fato comum?

- Certamente - respondeu Dennison, admirado com a ignorância do advogado da Defesa.

- Os artigos desaparecidos foram em grande número?

- Bem... mais de uma dúzia.

- E também deram pela falta de dinheiro?

- Sim, várias vezes.

- Nada mais - disse Mason, dispensando a testemunha.

- Um momento! - interveio Burger. - A Acusação precisa de fazer duas perguntas, em novo interrogatório directo. Diga-me, Mr. Dennison o desaparecimento desse revólver coincidiu com o dos restantes artigos desportivos?

- Não, sir. Quando fizemos o inventário dos roubos, a falta dessa arma foi registada. Só quando a Polícia nos consultou e procurámos a arma, no armazém, demos pelo seu desaparecimento, embora estivesse registada na "existência" para vendas ao público.

- Mas podia ter sido roubada, logo a seguir ao referido inventário, não é verdade?

- Objecção - interpôs Mason.- A pergunta é argumentativa e exige uma suposição da testemunha.

- Vou formular a pergunta de outra maneira - replicou Burger. - A ré era ainda sua empregada, quando se fez o inventário das faltas em armazém?

- Era, sim, sir.

- E continuou a sê-lo, durante mais de um ano?

- Sim, sir.

- É tudo - disse, triunfante Hamilton Burger.

- A Defesa deseja continuar o contra-interrogatório? - indagou Erwood.

- Sim, senhor doutor juiz. Virando-se para Dennison, inquiriu:

- Dessas quinze pessoas, ainda continuam catorze ao serviço da empresa?

- Sim, Sim. A vaga de Miss Manning não chegou a ser preenchida.

- Nada mais, Mr. Dennison.

- Se o Tribunal me permite - anunciou Burger -, a Acusação dispensa o interrogatório de Frank Ferney. Devo sublinhar que Mr. Ferney deve ser considerado uma "testemunha hostil", visto pretender proteger a ré.

Mason pôs-se de pé.

- Deseja objectar, Mr. Mason?

- Sim, senhor doutor juiz. A Acusação não pode coibir-se de interrogar uma testemunha, visto que, desse modo, impede o respectivo contra-interrogatório. Ora, este torna-se imprescindível para a Defesa.

- Queira interrogar a testemunha, senhor procurador do distrito.

Encolhendo os ombros, Burger perguntou:

- Chama-se Frank Ferney e era empregado de Mr. Meridith Borden, na altura da sua morte?

- Sim, sir.

- E encontrava-se em casa de Mr. Borden, na noite do crime?

- Sim, sir.

- A que horas...

- Objecção - interrompeu Mason.

- Com que fundamento? - espantou-se o juiz.

- Com o fundamento de Mr. Ferney ser casado com a ré, Mrs. Dawn Manning Ferney. Segundo a Lei, a mulher não pode testemunhar contra o marido e o marido não pode testemunhar contra a mulher. O matrimónio foi contraído, há três anos.

- Francamente, senhor doutor juiz! - animõu-se Burger. - A testemunha está divorciada da ré... Pelo menos, encontrava-se separada dela, há mais de um ano, precisamente há dezoito meses.

- Mas o divórcio não foi decretado - contestou Mason.

Virando-se para Ferney, inquiriu: - Não é um facto encontrar-se ainda casado com Mrs. Dawn Ferney?

- Não - respondeu ele, calmamente. - A ex-Mrs. Ferney já não é minha mulher.

- Desde quando deixou de sê-lo? - interrogou Mason, prevendo uma armadilha de Burger.

- Desde ontem. O divórcio foi decretado, em Reno, no Nevada.

- Foi de avião, até Nevada, a fim de obter o divórcio e poder testemunhar contra a ré?

- Sim, sir. Ao cabo de um ano de separação, o divórcio, em Reno, dispensa o mês de estada no território do Nevada.

- Mas ainda estava casado com a ré, quando o crime foi cometido?

- Bem... nessa altura ainda estava, mas o senhor procurador do distrito assegurou-me que...

- Estou preparado para justificar a validade do divórcio, nestas circunstâncias especiais. Cito os Casos do "Povo versus Godines, 17,721, Califórnia" e do "Povo versus Loer, 159,112, Califórnia".

- Essas decisões foram, ulteriormente, removidas do Código-contestou Mason - pelo caso do "Povo versus Mullings, 139,229, Califórnia". A Lei anulou a validade do anterior critério.

- Francamente, senhor doutor juiz! - dramatizou Burger. - O advogado da Defesa está a reportar-se, apenas, a uma mera particularidade de comunicações confidenciais e eu referi-me a uma norma de facto! Tive o cuidado de ler cuidadosamente o processo litigioso que Mr. Mason acabou de citar.

- Nesse caso, Mr. Burger - replicou Mason -, interrogue a testemunha acerca do que ouviu, quando bateu à porta do estúdio de Borden. Declarou, em Tribunal, ter ouvido a mulher responder-lhe: "Vai-te embora!"

- E isso que tem?

- A Acusação vai negar ter sido a ré quem se encontrava dentro do estúdio de Borden?

- Não, mas a expressão "vai-te embora" é impessoal. A ré não sabia com quem estava a falar.

- Como prova que ela não sabia? Da mesma maneira que a testemunha reconheceu a voz da mulher, esta reconheceu a voz do marido. A validade de uma prova equipara-se à da outra. Se a primeira não foi aceite pela Acusação, não há prova testemunhal válida de que a pessoa que se encontrava dentro do estúdio, com Borden, era Mrs. Ferney; se for aceite, a segunda identifica-se-lhe em pertinência e validade.

- Mas não se trata de uma comunicação confidencial - replicou Burger, visivelmente embaraçado com o argumento de Mason.

Este retorquiu:

- A Lei explicita que "aquilo que os cônjuges se dizem, quando a sós, é sempre considerado comunicação com o privilégio da confidência". Ora, nessa altura, a ré estava ainda casada com a testemunha. Mesmo não tendo cometido o crime, sem nada que lhe exigisse uma confidência especial, a comunicação da mulher com o marido tem de ser considerada confidencial. Tendo-o cometido, mais se justifica o privilégio da confidência... Ou, presentemente, a Acusação já não considera Mrs. Ferney culpada de homicídio? Sendo assim, deve ser libertada.

- Isto é uma farsa! - criticou Burger, aturdido.

- O Tribunal adverte o senhor procurador do distrito da necessidade de observar a devida correcção, durante os debates, e de abster-se de críticas pessoais. Compete à Acusação provar que a ré se apoderou da arma e que se achava no interior do estúdio da vítima, no momento do crime.

- Muito bem, senhor doutor juiz - proferiu Burger, irritado. - Dispenso o testemunho de Mr. Ferney e chamo a depor Loretta Harper.

Esta declarou ter estado numa reunião com Frank Ferney e um casal, Milicent e Jason Kendell; que, pouco antes das nove horas, saíra de casa para ir comprar cubos de gelo e cigarros; que fora raptada pela ré, com um revólver apontado à barriga; que a ré a acusara de andar "metida" com o marido; que guiava um Cadillac de mudanças automáticas, apenas utilizando a mão esquerda; e que, após uma derrapagem, sofrera um acidente, já dentro da propriedade de Borden, para onde a conduzira compulsivamente.

Admitiu ter utilizado o nome da ré, ao aproveitar a boleia de Ansley; ter declarado morar nos Ancordia Apartments e ter-se servido do nome de Beatrice Cornell, para justificar, perante Ansley, a sua entrada naquele prédio. Acrescentou tê-lo feito, para não se ver "envolvida" no acidente. Depois, regressara, de táxi, a casa e fora acordar Frank Ferney, para que este comparecesse ao encontro combinado com a Drª Callison.

- Pode contra-interrogar - concedeu Hamilton Burger. Mason inquiriu:

- Diga-me, Mrs. Harper: mora nos Dormain Apartments?

- Sim.

- Qual o número do seu apartamento?

- 409.

- Lembra-se de ter visto a ré empunhando uma arma, no momento do acidente?

- Sim.

- Quer dizer que, mesmo no momento do perigo eminente, quando o carro embateu no automóvel que surgiu em sentido contrário e, seguidamente, chocou de frente contra uma árvore, a ré empunhava essa arma?

- Bem... sim.

- Viu a referida arma, depois do acidente?

- Não... não vi. Penso que o revólver tenha caído na curva...

- É tudo - disse Mason. - Chamo Beatrice Cornell.

Após as formalidades da praxe, inquiriu:

- A ré, Dawn Manning, consta da sua lista de modelos fotográficos?

- Sim, Mr. Mason... perdão... sir.

- No dia nove do corrente mês, alguém lhe pediu para contratar Miss Manning para um trabalho profissional?

- Sim, sir.

- E, nessa altura, teve ocasião de ver-lhe as pernas, particularmente a zona dos tornozelos?

- Sim, sir.

- Pode descrever o que viu?

- Miss Manning tinha as canelas esfoladas, com um visível arranhão na esquerda e uma grande nódoa negra no tornozelo direito.

- Nesse mesmo dia nove, alguém teve ocasião de fotografar as pernas de Miss Manning? Pode descrever o que se via nas fotografias que então foram tiradas?

- Viam-se, claramente, os arranhões e a contusão que acabei de referir.

- Vou mostrar-lhe uma fotografia, Miss Cornell. É capaz de reconhecê-la?

Beatrice pegou-lhe e afirmou prontamente:

- É uma das fotografias que foram tiradas, nesse dia nove, mostrando as mencionadas feridas e nódoa negra.

- Obrigado, Miss Cornell. A Acusação pode contra-interrogar.

Sorrindo, Hamilton Burger indagou:

- Por conseguinte, as suas declarações vêm confirmar o testemunho de Miss Loretta Harper, de que a ré sofreu um acidente de automóvel?

- Sim... sir.

- Obrigado, Miss Cornell.

E virando-se para Mason, com uma vénia vagamente trocista, Burger disse:

- Muito obrigado, Mr. Mason.

- Não tem de quê - respondeu este, com grave cortesia. - Chamo a depor Morley Edmond.

A nova testemunha apresentou-se, indicou a morada e classificou-se como fotógrafo profissional, perito de laboratório, membro de várias sociedades fotográficas e detentor de múltiplos prémios da especialidade, além de colaborador de diversas revistas ilustradas.

- Vou mostrar-lhe, Mr. Edmond - começou Mason -, umas fotografias da acusada que foram apensas ao processo em causa. Já está familiarizado com estas fotografias?

- Estou, sim, sir.

- Já as tinha visto antes?

- Sim. Examinei-as cuidadosamente.

- E está familiarizado com a máquina fotográfica que se encontrava no estúdio de Meridith Borden?

- Sim, conheço-a perfeitamente, por tê-la também examinado.

- Pode dizer ao Tribunal se estas fotografias foram tiradas com essa máquina?

- Um momento! Um momento! - gritou Burger. - Não responda a essa pergunta, antes de eu ter tempo de interpor uma objecção. A pergunta exige uma conclusão da testemunha, absolutamente escusada, visto a prova física responder por ela própria. O filme original destas fotografias foi encontrado dentro da referida máquina.

- Em que baseia, especificamente, a sua objecção, senhor procurador do distrito? - sondou o juiz.

- A Defesa está a pedir a opinião de um perito que não pode testemunhar contra uma prova material evidente.

Trata-se, apenas, de um expediente para estabelecer a confusão e prolongar a audiência, com propósitos não explícitos, mas obviamente ilegítimos.

O Juiz Erwood fitou Mason, interrogativamente.

Este justificou-se:

- A Defesa propõe-se provar que o filme original destas fotografias foi "plantado" na máquina de Meridith Borden.

- Mas como pode provar que não foi tirado nessa mesma máquina? - admirou-se Erwood.

- É precisamente para esse fim, senhor doutor juiz, que a presente testemunha foi convocada... Na sua opinião, Mr. Edmond, como perito fotográfico, pode dizer-nos se estas fotografias foram tiradas com a máquina de Meridith Borden?

- Não podem ter sido tiradas com essa máquina - declarou a testemunha.

- Em que baseia a sua opinião?

- Na dimensão da imagem, impressionada no filme. A dimensão da imagem é determinada pela distância focal das lentes e pela distância do objecto fotográfico, em relação à máquina.

"Se a distância focal das lentes for curta, em relação à área que se pretende cobrir, aquelas permitem abranger-se um mais amplo campo de cobertura do filme, mas o tamanho do objecto, na fotografia, é menor Pelo contrário, se a distância focal das lentes for muito longa, em relação à área a cobrir, a imagem apresenta-se de maior tamanho, mas o campo de cobertura do filme torna-se muito mais reduzido.

"Para conseguir-se que o filme nos dê uma boa cobertura do campo e de objecto, é necessário jogar-se com a distância focal das lentes e a distância entre a máquina e o referido objecto.

"Certamente, senhor doutor juiz, já teve ocasião de observar, na televisão, o fenómeno, aparentemente insólito, de uma imagem focada, em primeiro plano, nos surgir mais pequena do que outra, de segundo plano, que não fica devidamente focada. As lentes da câmara de televisão não podem focar, simultaneamente, dois planos, como é compreensível.

"Para evitar esta anomalia visual, as lentes de longa distância focal são usadas na fotografia de retratos..."

- Mas isso - interrompeu o juiz - que tem a ver com a máquina do falecido Mr. Borden?

- É simples. A imagem total da acusada, que se vê nas presentes fotografias, não chega a ser maior do que, uma vez e meia, a distância perpendicular Com as lentes da máquina de Borden, de mais longa distância focal, e tomando em consideração as dimensões do seu estúdio, é fisicamente impossível obter uma imagem total; a imagem ocuparia, unicamente, metade da distância perpendicular da fotografia.

"Mesmo que a máquina fosse colocada a um canto do estúdio e o modelo, no canto diametralmente oposto, para se aproveitar o máximo distanciamento permitido pelo aposento, a imagem de um filme "cinco por sete" seria materialmente maior do que a que se vê nas fotografias reveladas.

"Portanto, sou forçado a concluir que estas fotografias da ré não foram tiradas pela máquina de Meridith Borden, dentro do seu estúdio. Só com muito maior distância, entre a máquina e o modelo, seria possível obterem-se idênticas fotografias. Num estúdio com aquelas dimensões, para se obterem estas fotografias, seria necessária uma máquina com outras lentes."

- Queira contra-interrogar, Mr. Burger-indicou o juiz. A voz do procurador do distrito soou impregnada de sarcasmo.

- Quer o senhor dizer, Mr. Edmond, que as fotografias tiradas pela máquina de Mr. Borden, não podiam provir das lentes com que ela está equipada! O filme foi extraído do interior dessa máquina, Por mais que se esforce, "senhor perito", é impossível negar a evidência. Seria como achar-se um indivíduo no Jardim Zoológico, perante uma girafa, e declarar peremptoriamente: "Este animal não existe!"

Ouviram-se risadas na sala.

- Deve evitar exemplos faceciosos, Mr. Burger - censurou Erwood.

Edmond respondeu:

- Não me equiparo a essa espécie de comentador, no Jardim Zoológico. Conheço toda a arte e a técnica moderna da fotografia e sei, perfeitamente, o que pode ser feito com máquinas, lentes e distâncias, assim como sei o que se torna impossível realizar. Tive o cuidado, antes de vir a este Tribunal, de fazer diversos testes com uma máquina idêntica à de Borden, com as mesmas lentes, respeitando integralmente as dimensões do seu estúdio. Procedi à comparação das dimensões das imagens e, se necessário, posso reproduzir aqui os filmes obtidos e as respectivas cópias fotográficas. Qualquer outro perito poderá vir confirmar o meu depoimento, se o Tribunal assim o entender.

Hamilton Burger pareceu encolher-se dentro da toga e declarou:

- A Acusação vai manter-se baseada na prova física de que o filme encontrado na máquina de Mr. Borden, foi impressionado por essa máquina, dando origem às fotografias aqui presentes. Uma prova física é sempre mais válida do que qualquer teoria fantasiosa. Nada mais tenho a perguntar à testemunha.

- James Goodwin - chamou Mason.

A testemunha identificou-se e qualificou-se como arquitecto, autor do projecto de construção e, simultaneamente, construtor do edifício conhecido por Dormem Apartments.

Apresentou várias plantas do edifício e, em particular, a do quarto piso, onde Loretta Harper tinha o seu apartamento.

Hamilton Burger limitou-se a lançar-lhe uma olhadela, não encontrando motivo para objecção. Perry Mason, após breves perguntas acerca da disposição dos quartos, dispensou a testemunha e a Acusação absteve-se de contra-interrogá-la, por não encontrar interesse na matéria.

Então, o Juiz Erwood determinou que as partes em presença iniciassem as respectivas alegações.

O procurador do distrito foi, excepcionalmente, breve. Declarou que, numa audiência preliminar, em que bastava provar-se um fundamento plausível de que o réu fora autor do homicídio em primeiro grau, não havia necessidade de prolongarem-se os debates com pormenores técnicos. Na causa em juízo, o testemunho de Loretta Harper fora mais do que bastante para a incriminação da ré.

- Queira a Defesa proceder às suas alegações - indicou o juiz, apressadamente, como que satisfeito com as de Burger e entediado com o arrastar da audiência.

- Se o Tribunal me permite - começou Mason -, declaro que as fotografias da acusada, apensas ao processo, não foram tiradas com a máquina de Meridith Borden nem no seu estúdio, conforme o depoimento do perito fotográfico; e chamo a atenção do Douto Tribunal para outra prova física: segundo o depoimento de Loretta Harper, a acusada ficara ferida e contusa no acidente, após o que teria ido para casa de Borden.

"Ora, no dia seguinte, a acusada não desejava ser fotografada, como modelo profissional, em virtude desses mesmos ferimentos. Apesar disso foram tiradas fotografias, uma das quais apresentada no curso desta audiência.

"Contudo, se o Douto Tribunal se debruçar sobre as fotografias, apresentadas pela Acusação e apensas ao processo, e as examinar atentamente, poderá verificar que as pernas da acusada, nitidamente focadas, não apresentam a mínima beliscadura. E como a acusada, nessa noite, só se teria dirigido a casa da vítima, após o acidente, fica provado à evidência que aquelas fotografias só podiam ter sido tiradas em1 data anterior à morte de Borden.

"Por outro lado, sabemos que a acusação é modelo profissional, ganhando a vida a fazer-se fotografar por ofício. Portanto, teria sido possível ao verdadeiro criminoso obter, premeditadamente, um filme da acusada, ainda não revelado, para mais tarde o "plantar" na máquina de Borden.

"A mais fácil maneira de obter esse filme seria o próprio criminoso ter tirado, tempos antes, aquelas fotografias. Contudo, para colocá-las na máquina do assassinado, teria também de ter fácil acesso à casa deste e ao seu estúdio.

"Alguém roubou um revólver do armazém de ferragens. Esse alguém foi um homem. Se a acusada fosse suficiente desonesta para roubar uma arma para sua própria protecção, decerto teria escolhido uma pistola automática, mais pequena e chata, susceptível de ser guardada na sua bolsa de mão. Não iria escolher um revólver Colt, de calibre 38, "modelo polícia", de tamanho considerável e de formato "masculino".

"É razoável supor que Frank Ferney, enquanto cortejava a acusada, a visitasse no armazém de ferramentas e que ela aí o introduzisse, à socapa, pela porta das traseiras, para se beijarem, no dia da folga do outro empregado. Este, só por alturas dos fornecimentos, vigiava a porta do armazém. Portanto, os namorados ficavam sós. E bastaria que a acusada se ausentasse um momento, para que Ferney, abusando da confiança dela, pudesse apropriar-se de uma arma.

"Quanto ao alibi apresentado pelo mesmo Frank Ferney, basta analisar a planta do quarto piso do edifício de apartamentos onde disse ter ficado a dormir, para verificar-se que não tem a mínima consistência. Ferney podia ter-se fingido embriagado e, do quarto de dormir de Loretta Harper, não lhe seria difícil sair pela janela e descer à rua, pela escada de incêndio exterior. Isto, mesmo sem ser considerada a provável cumplicidade de ambos.

"De resto, o estado de embriaguez, alegado por Ferney, torna incoerente o seu testemunho de que se serviu... a ele e à Drª Callison... mais duas bebidas alcoólicas, depois de ter estado, como declarou, tão doente, ao ponto de só poder guiar o seu carro, lentamente."

- A Defesa - menosprezou Burger -, tem-se limitado a acumular suposições, sem a menor materialidade...

- As fotografias que mostram as pernas da acusada são provas bem materiais e físicas - ripostou Mason:

- Ora, ora! Qualquer fotografia pode ser retocada, em poucos minutos!

O Juiz Erwood, franzindo o cenho, interveio:

- Devo lembrar o senhor procurador do distrito de que o filme não é susceptível de ser retocado. Além disso, tanto ele como as fotografias estiveram constantemente sob a tutela da Procuradoria do Distrito. Custa-me a crer, Mr. Burger, que o senhor tivesse deixado transviar essas provas materiais, para que um estranho as alterasse. Depois de saírem das suas mãos, Mr. Burger, essas mesmas provas, estiveram permanentemente em poder deste Tribunal. Não vai, certamente, supor que eu sou cúmplice do assassino.

Hamilton Burger deixou-se cair na cadeira, miseravelmente acabrunhado.

Erwood determinou:

- Que a ré, Míss Dawn Manning, seja descriminada. A audiência é adiada, sine die, até à reformação do processo pela Procuradoria do Distrito.

Perry Mason, Della Street, Paul Drake, George Ansley e Dawn Manning achavam-se no gabinete particular do advogado.

Dawn dizia, sorridente:

- E eu que pensava, Mr, Mason, que o senhor me atirara, deliberadamente, às feras!

- Acerca do estado actual do caso, que pensa que tenha acontecido, Chefe? - interessou-se Della.

- Borden deve ter surpreendido Ferney a fazer qualquer falcatrua com o dinheiro dos subornos. Estavam grandes quantias em jogo e Borden não podia aparecer nos bancos, de caneta em punho, a assinar cheques, nem a fazer depósitos. A missão de Ferney seria dar o devido rumo às "massas" e, provavelmente, começou a "abotoar-se" com algumas, para si.

"De cumplicidade com Loretta Harper, Frank Ferney planeou levar Miss Manning a casa de Borden. Tratou-se, efectivamente, de um rapto que teria resultado, se não tivesse ocorrido o desastre com o carro. Para esse rapto, Loretta tivera o cuidado de roubar o Cadillac. Ferney tinha o alibi da bebedeira fictícia que, em caso de necessidade, os Kendell não deixariam de confirmar.

"A visita de Ansley a Borden foi inesperada. Depois dele sair, Ferney aguardou que Loretta lhe aparecesse com Miss Manning, mas a amante surgiu-lhe sozinha. Subiram ao estúdio e mataram Borden. Em seguida, voltaram para os Acoordia Apartments e o alibi de um serviria para o outro."

- Mas como explica, Mr. Mason, a troca de filme, na máquina de Borden?

- Creio, Miss Manning, ser a pessoa mais indicada para explicá-la. Se puxar pela memória, há-de lembrar-se de qualquer altura em que o seu próprio marido... quando ainda o era, de facto... lhe tirou fotografias eróticas...

- Ferney tirou-me "montes" delas. Foi ele quem me convenceu a largar as "ferragens" e a tornar-me modelo fotográfico... e, depois, a casarmos. Só não percebo por que motivo guardou um filme ainda por revelar.

- Porque, há ano e meio, quando se separaram, resolveu ter algo que pudesse, eventualmente, servir de arma contra si. Há homens muito previdentes, sabe? Se, por exemplo, você tornasse a casar, com um tipo rico e ciumento, seria um bom meio de chantagem.

- O grandecíssimo filho de uma... de uma...

Dawn calou-se, provavelmente em atenção a Della, ou talvez também Ansley que não cessara, desde o início da reunião, de dirigir-lhe uns olhos de "carneiro mal morto".

O telefone tocou e Della, depois de atender, anunciou:

- É para si, Paul.

Drake pegou no auscultador, escutou, durante alguns momentos e, depois, disse para o bocal:

- Okay. Obrigado. Se souber mais pormenores, ligue para aqui.

Virando-se para Mason, elucidou:

- Era um dos meus informadores, da Polícia. Acertaste em cheio, Perry. Ao cabo de duas horas de interrogatório, Ferney foi-se abaixo e confessou. Não foi preciso atirarem-lhe para cima com ameaças; as provas já o tinham esmagado. O mais interessante do caso é que, ao saber-se caçado, acusou Loretta de ter sido a autora do plano para liquidarem Borden, lançando as culpas para os ombros de Miss Manning.

- O azar de ambos foi tanto, que até Burger conseguiu desencovar uma testemunha que viu Ferney subir pela escada de incêndio dos Dormain Apartments. A Polícia já podia ter dado com essa testemunha, visto que se trata de um vizinho das traseiras; o homem telefonara para a esquadra, a comunicar ter visto um presumível ladrão.

Um carro-patrulha de Mesa Vista dera um salto até lá, mas nada encontrou, visto que Ferney já se enfiara no quarto de Loretta.

- Bem - sugeriu Dawn Manning -, seria gentil que alguém me desse uma boleia...

- Terei muito gosto - ofereceu-se George Ansley prontamente. - Por acaso, já tencionava ir para esses lados...

- Mesmo que não fosse, Miss Manning convencê-lo-ia a dar uma "curva" - insinuou Della sorrindo matreiramente.

 

                                                                                 Erle Stanley Gardner  

 

                      

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