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A MONTANHA MÁGICA - P.2 / Thomas Mann
A MONTANHA MÁGICA - P.2 / Thomas Mann

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A MONTANHA MÁGICA

Segunda Parte

 

Humaniora

Hans Castorp e Joachim Ziemssen, trajando calças brancas e jaquetas azuis, estavam sentados no jardim, depois do almoço. Era mais um desses tão elogiados dias de outubro, um dia quente sem ser pesado, de um brilho festivo, e ao mesmo tempo de certo sabor amargo. Um azul de intensidade meridional pairava por cima do vale, em cujo fundo ainda verdejavam alegremente as pradarias sulcadas de veredas e salpicadas de habitações, e de cujas encostas cobertas de matagal selvagem vinham os sons dos cincerros das vacas – esse tilintar metálico, música pacífica e singela, que flutuava, clara e tranqüila, através dos ares calmos, vazios e rarefeitos, aprofundando a atmosfera de solenidade que predomina em regiões altas.

Os primos haviam se instalado num banco numa das extremidades do jardim, diante de um largo circular, plantado de abetos novos. O lugar estava situado na parte noroeste da plataforma cercada, que se elevava uns cinqüenta metros acima do vale e formava o pedestal do Berghof. Permaneciam calados. Hans Castorp fumava. Intimamente experimentava algum rancor contra Joachim, porque este, depois do almoço, não quisera tomar parte na reunião do terraço e, contra o seu desejo, forçara-o a desfrutar a calma do jardim, antes de se entregar ao repouso regulamentar. Era uma atitude tirânica da parte de Joachim. Afinal de contas, não eram eles gêmeos siameses. Podiam separar-se quando as suas inclinações não coincidiam. Ora, Hans Castorp não se achava ali para fazer companhia a Joachim; ele mesmo era paciente. Pensando nisso, amuava-se, e não lhe era difícil suportar o amuo, já que dispunha do recurso do Maria Mancini. Com as mãos nos bolsos da jaqueta, estendendo diante de si os pés calçados de sapatos marrons, deixava pender entre os lábios o comprido charuto acinzentado, que se encontrava na primeira fase da combustão, o que quer dizer que não fora ainda removida a cinza da ponta obtusa. Depois da refeição farta, gozava aquele aroma que voltara a saborear plenamente. Bem podia ser que a sua aclimatação ali em cima consistisse apenas em habituar-se à idéia de não se habituar, e contudo era evidente que, no que se referia às reações químicas do seu estômago e aos nervos das suas mucosas secas e propensas a sangrar, a adaptação se realizara enfim; insensivelmente e sem que ele fosse capaz de observar o progresso, ressuscitara, no decorrer desses sessenta e cinco ou setenta dias, todo o prazer orgânico que tinha a sua origem naquele bem-preparado estimulante ou tóxico vegetal. Hans Castorp regozijava-se de lhe ter reencontrado o sabor. A satisfação moral intensificava o prazer físico. Durante o tempo que passara na cama, fizera economias nos duzentos charutos que trouxera como provisão de viagem, e dos quais ainda sobravam alguns. Mas, junto com a roupa-branca e os trajes de inverno, mandara que lhe enviassem por Schalleen outros quinhentos exemplares do produto bremense, a fim de se ver munido para qualquer eventualidade. Eram bonitas caixinhas envernizadas, ostentando um globo terrestre, muitas medalhas e um edifício de exposição rodeado de bandeiras tremulando ao vento, tudo isso impresso em ouro.

Enquanto estavam assim sentados, eis que o Dr. Behrens atravessou o jardim. Naquele dia tomara parte no almoço, à mesa da Srª. Salomon. Haviam-no visto juntar diante do prato as enormes manzorras. Depois, provavelmente se detivera no terraço, dirigindo a cada enfermo algumas palavras pessoais e exibindo, talvez, o truque dos cordões de sapato, para quem ainda não o tivesse visto. Agora aproximava-se, flanando pelo caminho ensaibrado, sem o jaleco de médico, num fraque de quadradinhos, com o chapéu-coco para trás, e tendo, também ele, na boca um charuto muito preto, do qual tirava grandes baforadas de fumaça esbranquiçada. A cabeça e o rosto com as faces azuladas, que pareciam quentes, com o nariz arrebitado, os olhos azuis, lacrimosos, e o bigodinho torto, eram pequenos em proporção à silhueta comprida, levemente encurvada, e às dimensões das mãos e dos pés. O médico andava nervoso e sobressaltou-se visivelmente ao deparar com os primos. Até deu a impressão de estar um tanto confuso, vendo-se obrigado a ir cumprimentá-los. Fê-lo na sua maneira habitual, jovialmente, citando um verso apropriado de Schiller e pedindo, ao mesmo tempo, a bênção do céu para a digestão dos pacientes. Fez questão de que permanecessem sentados, quando quiseram levantar-se em sua homenagem.

– Não se incomodem! Fiquem à vontade! Nada de cerimônias com um homem humilde como eu! É uma honra que não mereço, tanto mais que ambos os senhores estão enfermos. Não precisam observar essas formalidades. Vamos conservar o status quo.

E manteve-se de pé à frente dos primos, com o charuto entre os dedos indicador e médio da manzorra.

– Que tal esse repolho enrolado, Castorp? Deixe ver, sou perito e amador. A cinza é boa. Que bela morena é essa?

– Maria Mancini, Postre de Banquete, de Bremen, senhor conselheiro. Custa pouco ou nada, uns dezenove Pfennige nas cores selecionadas, mas tem um bouquet que normalmente não se encontra por esse preço. Sumatra-Havana, com capa cor de areia, como o senhor pode ver. É uma mistura meio pesada e muito saborosa, mas que parece bem leve à língua. Esse charuto gosta que se lhe deixe a cinza o maior tempo possível. Em geral não a sacudo mais de duas vezes. Claro que ele tem os seus caprichos, mas o controle da fabricação deve ser muito rigoroso, porque o Maria é de absoluta confiança quanto às suas qualidades e puxa com uma regularidade perfeita. O senhor permite que eu lhe ofereça um?

– Obrigado. Podemos fazer uma troca. – E ambos tiraram as charuteiras.

– Este é de raça – disse o conselheiro áulico, mostrando a Hans Castorp a marca que fumava. – Tem temperamento, sabe? E está cheio de força e de seiva. São Félix, Brasil; sempre preferi este tipo. Um autêntico remédio para qualquer preocupação. Arde que nem aguardente, e sobretudo no fim produz um efeito fulminante. Recomenda-se certa reserva nas relações com ele. Não se pode acender um após outro; isso ultrapassa as forças de um homem. Mas acho melhor um bom trago de vez em quando do que vapor de água durante o dia todo...

Fizeram girar entre os dedos os presentes que acabavam de permutar; examinavam com a objetividade de peritos os corpos esbeltos, que tinham qualquer coisa de vida orgânica, com as costelas oblíquas e paralelas, formadas pelas beiras elevadas e, aqui ou ali, um tanto despegadas, da capa, com as veias expostas que pareciam pulsar, com as pequenas asperezas da pele, e com o jogo da luz sobre as suas superfícies e as suas arestas. Hans Castorp formulou esta impressão:

– Um charuto desses tem vida. Respira, literalmente. Lá em casa me deu na veneta guardar o Maria numa caixa de folha, hermeticamente fechada, para protegê-lo da umidade. O senhor me acredita que ele morreu? Dentro de uma semana pereceram todos, e o que sobrou foram cadáveres com cheiro de couro.

E ambos trocaram as suas experiências acerca da melhor maneira de conservar charutos, sobretudo os importados. O conselheiro apreciava muito esse último tipo, e de preferência fumaria Havanas pesados, mas infelizmente não os podia suportar. Dois pequenos Henry Clay, cujos encantos fruíra durante certo sarau, quase o haviam mandado à outra vida. – Fumei-os com o café – contou –, um após outro, sem prestar atenção. Mas quando terminei, comecei a me perguntar o que se estava passando comigo. Eu me sentia diferente; era uma sensação totalmente estranha, que eu nunca antes experimentara. Já não foi fácil chegar até em casa, e depois não acreditei nos meus próprios olhos. Tinha as pernas geladas, sabe? Um suor frio por todo o corpo; o rosto branco como um lençol; o coração com toda espécie de crises; o pulso ora fininho que nem um fio e mal perceptível, ora galopando a rédea solta; compreende? E o cérebro numa agitação louca... Eu tinha certeza de que dançava a minha última dança. Falo em dança, porque é o termo que então me ocorreu, e que empreguei, falando com meus botões, para caracterizar o meu estado. Pois, no fundo, achei a coisa formidável; pareceu-me uma verdadeira festa, embora eu tivesse um medo terrível. Mais exatamente, eu era todo medo, dos pés à cabeça. Olhe, o medo e a alegria não se excluem, como todo mundo sabe. Um rapaz que está a ponto de possuir pela primeira vez uma garota também treme de medo, e ela, não menos. E todavia se desmancham de prazer. Bem, eu quase me teria desmanchado igualmente. Com o peito arfando, comecei a dançar aquela última dança. Mas a Mylendonk, com as suas aplicações, conseguiu desembriagar-me. Compressas geladas, fricções a escova, uma injeção de cânfora, e assim me salvaram para a humanidade.

Hans Castorp, sentado, na sua qualidade de paciente, contemplava o médico com uma expressão que demonstrava a atividade do seu cérebro. Notou que os olhos azuis, proeminentes, de Behrens, durante a narrativa se haviam enchido de lágrimas.

– O senhor pinta às vezes, não é verdade, senhor conselheiro? – perguntou de repente.

O médico fingiu-se sumamente surpreso.

– Como? Por quem me toma, moço?

– Desculpe. Assim ouvi dizer em qualquer parte, e por acaso me lembrei disso agora.

– Hum, nesse caso não vou negá-lo. Todos nós temos as nossas pequenas fraquezas. Pois é, confesso que essas coisas me acontecem. Anch'io sono pittore, como costumava dizer aquele espanhol.

– Paisagens? – perguntou Hans Castorp lacônica e condescendentemente, num tom que as circunstâncias o faziam adotar.

– Tudo o que o senhor quiser! – respondeu o conselheiro entre acanhado e jactancioso. – Paisagens, naturezas-mortas, animais... Quando se é homem, não se tem medo de nada.

– E retratos?

– Ora, já me sucedeu pintar um retrato. O senhor quer encomendar o seu?

– Ah, ah! Não, mas seria muito gentil da sua parte, senhor conselheiro, se qualquer dia nos mostrasse os seus quadros.

Após ter lançado ao primo um olhar cheio de surpresa, Joachim, por sua vez, apressou-se a afirmar que ele também achava isso muito gentil.

Behrens estava encantado; sentia-se lisonjeado até o entusiasmo. Até corou de tanto prazer, e dessa vez os seus olhos davam a impressão de querer derramar as lágrimas.

– Como não! – exclamou. – Com a maior boa vontade! Se os senhores quiserem, podemos ir já. Venham, venham comigo! Vou lhes preparar um café turco no meu antro! –- E tomou os dois jovens pelo braço, forçou-os a se levantarem e, caminhando entre eles, de braço dado, guiou-os pela vereda ensaibrada em direção ao seu apartamento, que, como já sabiam, se achava bem perto, na ala noroeste do Berghof.

– Tempos atrás – disse Hans Castorp – eu mesmo fiz algumas tentativas nesse gênero.

– Não diga! Coisa sólida, a óleo?

– Não, senhor, não fui além de algumas aquarelas. Às vezes um navio, outras uma paisagem marinha, bagatelas e nada mais. Mas gosto muito de apreciar quadros, e por isso tomei a liberdade...

Essa explicação serviu, sobretudo, para tranqüilizar e esclarecer Joachim a respeito da estranha curiosidade do primo. E com efeito fora mais para ele do que para o conselheiro que Hans Castorp recordara os seus próprios estudos artísticos. Chegaram. Desse lado não havia um portal tão magnífico, flanqueado de lampiões, como do lado da rampa. Alguns degraus encurvados conduziam ao portão de carvalho, que o conselheiro abriu com uma das chaves do seu bem-provido chaveiro. Ao fazê-lo, tremia-lhe a mão. Evidentemente estava nervoso. Acolheu-os um vestíbulo guarnecido de cabides, onde Behrens pendurou o chapéu-coco. Mais para dentro havia um pequeno corredor, que uma porta envidraçada separava do resto da casa. Aos dois lados desse corredor estendiam-se as peças do apartamento particular.O médico chamou a criada e deu ordens. A seguir, entre palavras joviais e animadoras, fez entrar os hóspedes por uma das portas à direita.

Depararam com alguns cômodos mobiliados de modo banalmente burguês, que davam para o vale e se comunicavam entre si, separados apenas por reposteiros: uma sala de jantar em estilo “alemão antigo”; uma saleta de estar e de trabalho, com uma escrivaninha, acima da qual estavam suspensos um boné de estudante e dois sabres cruzados, com alguns tapetes de lã, uma estante e um sofá; e finalmente um gabinete de fumar, de mobília “turca”. Em toda parte viam-se quadros, os quadros do conselheiro áulico. Cheios de cortesia e dispostos a admirá-los, os olhos dos visitantes convergiram imediatamente sobre eles. A falecida esposa do médico estava representada diversas vezes, pintada a óleo e também em fotografia, sobre a escrivaninha. Era uma loura um tanto enigmática, vaporosamente vestida, com as mãos juntas à altura do ombro esquerdo – não juntas firmemente, mas apenas unindo de leve as articulações superiores dos dedos – e com os olhos ora dirigidos para o céu ora bem baixos, escondidos sob as longas pestanas que saíam obliquamente das pálpebras; nunca, porém, a saudosa senhora olhava para a frente, encarando o espectador. Além dela viam-se antes de tudo paisagens alpinas, montanhas cobertas de neve ou de abetos verdes, montanhas envoltas na bruma das alturas, e montanhas cujos contornos secos e nítidos penetravam, sob a influência de Segantini, um céu profundamente azul. Havia ainda cabanas de pastores, vacas de grandes barbelas, pastando, de pé ou deitadas, na pradaria ensolarada, uma galinha depenada, deitada na mesa, por entre legumes, e que deixava pender o pescoço torcido, flores, tipos de montanheses e outras coisas mais – tudo pintado com certo diletantismo fácil, com tintas atrevidamente aplicadas em grossos tufos, que amiúde davam a impressão de terem sido comprimidos da bisnaga diretamente sobre a tela e deviam ter levado muito tempo para secar – processo que não deixava de produzir certo efeito em caso de defeitos graves.

Como numa exposição de pintura, iam contemplando os quadros expostos ao longo das paredes acompanhados do dono da casa, que de vez em quando explicava o respectivo assunto, mas em geral permanecia silencioso, desfrutando, com a orgulhosa reserva do verdadeiro artista, o prazer de olhar as próprias obras em companhia de pessoas estranhas. O retrato de Clávdia Chauchat encontrava-se na saleta de estar, pendurado na parede da janela. Hans Castorp, apenas entrara, já o descobrira de relance, apesar de o quadro se parecer apenas vagamente com o modelo. De propósito, o jovem evitou o lugar. Reteve os seus companheiros na sala de jantar, onde fingia admirar um panorama verde do vale de Sergi, com as geleiras azuladas no fundo. A seguir, por iniciativa própria, dirigiu-se ao gabinete de estilo turco, que examinou com igual atenção, distribuindo muitos elogios. Depois, foi ver a parede da entrada da saleta de estar, insistindo diversas vezes com Joachim para que manifestasse o seu aplauso. Por fim voltou-se e disse com surpresa comedida:

– Este rosto me parece conhecido.

– O senhor a reconhece? – quis saber o Dr. Behrens.

– Claro, acho que não pode haver lugar para um engano. É aquela senhora da mesa dos russos “distintos”, a que tem um nome francês...

– Sim, senhor, a Chauchat. Folgo em ver que o senhor a reconhece.

– Perfeitamente! -mentiu Hans Castorp, menos por falsidade, do que percebendo que ele não deveria ter reconhecido o modelo do retrato, se tudo se tivesse passado corretamente – tão pouco como Joachim o teria feito sem a ajuda dele, o bom Joachim a quem ele pregara esta peça, e que agora começava a dar pela coisa e a sair do engano em que Hans Castorp o induzira. – Ah, sim – disse baixinho, conformando-se com a idéia de contemplar o quadro. Seu primo soubera compensar a ausência da reunião no terraço.

Era um busto de meio perfil, de tamanho um pouco menos que natural, decotado, com um arranjo de véus em volta dos ombros e do peito. Rodeava-o uma larga moldura preta, chanfrada e guarnecida, na parte interior, junto à tela, de uma borda de ouro. Mme. Chauchat parecia dez anos mais velha do que na realidade, como ocorre freqüentemente em retratos feitos por amadores que se esforçam por salientar as características do modelo. Em todo o rosto havia excesso de vermelho. O nariz estava muito mal desenhado. O pintor não acertara o tom dos cabelos, fazendo-o muito semelhante a palha. A boca saíra torta. Ele absolutamente não descobrira ou não conseguira expressar o encanto peculiar àquela fisionomia, ficando tudo estragado pelo exagero de particularidades. O conjunto não passava de um trabalho de troca-tintas, e como retrato não ia além de uma afinidade muito longínqua com o original. Mas Hans Castorp não se mostrava muito exigente quanto à semelhança. As relações que existiam entre essa tela e a pessoa de Mme. Chauchat afiguravam-se-lhe suficientemente estreitas. O quadro devia representar Mme. Chauchat; ela mesma posara para ele naqueles aposentos. Era o que bastava a Hans Castorp, que repetiu com emoção:

– Em carne e osso!

– Não diga isso! – protestou o conselheiro. – Foi um trabalho bravo, e não creio ter produzido uma coisa que preste, apesar de termos realizado umas vinte sessões. Como quer o senhor que se reproduza um rosto tão complicado? A gente imagina que deve ser fácil apanhá-la, com seus zigomas hiperbóreos e aqueles olhos rasgados como riscas na casca de um pão. É o que o senhor pensa! Acertando no pormenor, fracassa-se no conjunto. É um verdadeiro quebra-cabeça. O senhor a conhece? Talvez seja melhor não pintá-la na presença dela, mas de memória. Conhece-a o senhor?

– Sim e não, superficialmente, assim como aqui se conhece o pessoal.

– Bem, eu conheço-a mais por dentro, subcutaneamente; compreende? Estou mais ou menos a par, por determinados motivos, quanto à sua pressão arterial, ao tônus dos seus tecidos e à sua circulação linfática, mas a superfície me opõe maiores dificuldades. O senhor já observou como ela anda? O rosto é tal e qual o andar. Uma criatura felina! Veja, por exemplo, os olhos! Não falo da cor, que também é traiçoeira. Refiro-me à posição e à forma. O senhor dirá que a fissura das pálpebras é rasgada, oblíqua. Mas só na aparência é assim. O que o engana é o epicanto, isto é, uma particularidade que se encontra em certas raças. Tem ele a sua origem no fato de que um excesso de pele, que provém do nariz chato dessa gente, se estende da dobra da pálpebra para além da comissura interior do olho. Basta esticar fortemente a pele por cima da base do nariz, para que o senhor obtenha um olho igual aos nossos. É uma mistificação picante, mas nada honrosa, uma vez que o epicanto, observado de perto, não passa de uma imperfeição de fundamento atávico.

– Ah, então é essa a explicação – disse Hans Castorp. – Não o sabia, mas já faz tempo me interessava conhecer o mistério desse tipo de olhos.

– Ilusão, equívoco, nada mais! – confirmou o conselheiro. -se o senhor os desenhasse simplesmente oblíquos e rasgados, estaria perdido. É preciso realizar essa aparência oblíqua e rasgada assim como o faz a natureza, juntando, por assim dizer, a ilusão à ilusão, e para isso é naturalmente indispensável que o senhor esteja informado a respeito do epicanto. Conhecimentos nunca prejudicam. Olhe, por exemplo, a pele, essa pele do corpo! Acha ou não acha que tem vida?

– É impressionante! – disse Hans Castorp. – É formidável como o senhor deu vida a essa pele. Creio que nunca vi pele tão bem reproduzida. A gente tem a impressão de ver os poros. – E com a borda exterior da mão acariciou o decote do retrato que se destacava muito branco do exagerado vermelho do rosto, como uma parte do corpo que habitualmente não se vê exposta à luz, e assim sugeria, de um modo petulante, fosse ou não intencionalmente, a idéia da nudez – um efeito, em todo caso, bastante grosseiro.

Mesmo assim era justo o elogio de Hans Castorp. O brilho baço da alvura desse busto delicado mas não magro, que se perdia no arranjo dos véus azulados, tinha muita naturalidade. Evidentemente, fora pintado com sentimento; porém, apesar de um quê de adocicado, conseguira o artista dar-lhe uma espécie de realidade científica e de precisão viva. Servira-se do grão da tela, sobretudo na região das clavículas suavemente ressaltadas, para obter, através da tinta a óleo, o efeito da aspereza natural da superfície da pele. Um lunarzinho, na parte esquerda, ali onde os seios começavam a dividir-se, não ficara esquecido, e entre as proeminências aparecia a rede das veias palidamente azuis. Era como se, sob os olhos do espectador, um estremecimento mal perceptível de sensibilidade percorresse essa nudez. Ou, usando uma formulação um tanto ousada: podia-se chegar à idéia de perceber a transpiração, a emanação invisível e viva dessa carne, e quem colasse os lábios contra ela, talvez imaginasse sentir, não o cheiro de tinta e de verniz, senão o de um corpo humano. Assim dizendo, limitamo-nos a reproduzir as impressões de Hans Castorp; mas, embora ele estivesse particularmente disposto, a receber tais impressões, deve-se constatar, com toda a objetividade, que o decote de Mme. Chauchat era, de fato, o que havia de mais notável entre as pinturas da saleta.

O Dr. Behrens, com as mãos nos bolsos, balouçava-se alternadamente nos calcanhares e nas pontas dos pés, enquanto contemplava a sua obra em companhia dos visitantes.

– Folgo em ver, meu caro colega – disse –, folgo até muito em ver que o senhor compreende as minhas intenções. É com efeito útil e nunca prejudica saber também o que se passa debaixo da epiderme, a ponto de ser capaz de pintar um pouco daquilo que propriamente não se vê. Em outras palavras: é bom manter com a natureza ainda uma outra relação que não a puramente lírica. Vamos dizer que não faz mal que a gente exerça acessoriamente a profissão de médico, fisiólogo ou anatomista, e tenha alguns conhecimentos discretos dos dessous. Diga o senhor o que quiser, mas isso tem as suas vantagens e dá, indiscutivelmente, uma certa superioridade. Nessa pele aí há ciência. O senhor pode examiná-la com o microscópio para controlar a verdade orgânica. Nela, o senhor não vê apenas as camadas mucosas e córneas da epiderme, mas também, representado na idéia, o que está embaixo, o tecido do derma, com suas glândulas sudoríparas e sebáceas, com os vasos de sangue e com as papilas; e ainda mais abaixo deve-se imaginar a túnica adiposa, a almofada, sabe? a base que, com as suas numerosas células de gordura, produz as lindas formas femininas. O que se sabe e se pensa, durante o ato criador, também se faz sentir. Guia a nossa mão e causa os seus efeitos; não existe, e todavia existe de alguma forma. E é isso o que dá vida.

Hans Castorp estava todo entusiasmado por essa palestra. Sua testa tingira-se de rubor. Seus olhos brilhavam. Ele não sabia o que responder em primeiro lugar, tanta coisa tinha a dizer. Antes de mais nada, se propunha tirar o quadro da parede da janela e colocá-lo num lugar mais favorável; além disso desejava comentar as observações do conselheiro a respeito da pele, que lhe interessavam vivamente; e finalmente tencionava expressar um pensamento geral e filosófico que lhe ocorrera, e ao qual conferia particular importância. Enquanto levava as mãos ao quadro para dependurá-lo, começou a falar apressadamente:

– Sim, senhor! Sim, senhor! Tem razão, isto é importante. Eu queria dizer... Ou melhor, o senhor disse: “Ainda uma outra relação...” Seria bom manter além da relação lírica – acho que foi assim que se expressou –, além da relação artística, digo eu, ainda uma outra; numa palavra: convém olhar os objetos ainda sob outro aspecto, por exemplo, o aspecto médico. Isso é cem por cento certo – desculpe, doutor –, mas acho mesmo essa opinião sumamente acertada, porque não se trata, no fundo, de relações e aspectos fundamentalmente diferentes, mas, em realidade, de um só ponto de vista. São apenas modificações dele, quero dizer: matizes, ou talvez variantes do mesmo interesse geral, do qual a atividade artística também é apenas uma parte e uma expressão, se assim posso dizer... Ora, com sua permissão, vou tirar o quadro deste lugar, onde não recebe luz nenhuma. Espere, vou colocá-lo aqui no divã, para ver se não... Bem, eu queria dizer: de que se ocupa a ciência médica? Claro que não entendo nada do assunto, mas sei, afinal, que se ocupa do homem. E o direito, a legislação e a jurisprudência? Também do homem! E a lingüística, que ordinariamente anda ligada ao exercício da profissão pedagógica? E a teologia, a cura das almas, o sacerdócio? Todos eles se ocupam do homem; todos são apenas variações de um e mesmo interesse importante e capital, a saber, o interesse pelo homem; são, numa palavra, as profissões humanísticas, e quem quer estudá-las aprende como fundamento antes de tudo as línguas clássicas, não é isso? para obter uma cultura formal, como dizem. O senhor talvez se admire de que eu fale assim, eu que não sou mais que um técnico, de formação científica. Mas, enquanto estava acamado, meditava freqüentemente sobre isso, e me parece coisa excelente, parece-me maravilhoso basear-se cada profissão humanística no elemento formal, na idéia da forma, da bela forma, não é mesmo?... Isso empresta a tudo um caráter tão nobre, tão desinteressado, e dá à coisa um quê de sentimento e de... cortesia... O interesse transforma-se quase que numa proposta galante... quer dizer – provavelmente não emprego os termos próprios –, mas a gente vê como o espírito e a beleza se misturam e no fundo nunca deixaram de ser idênticos... Em outras palavras: a ciência e a arte... de maneira que o exercício das artes constitui também uma parte integrante do conjunto, como quinta faculdade por assim dizer, e que não é diferente de uma profissão humanística, uma variante do interesse humanístico, uma vez que seu tema mais importante e sua preocupação principal são outra vez o homem, como o senhor deve admitir. É verdade que eu só pintava navios e marinhas, quando na minha juventude fiz tentativas nesse sentido; mas o que há de mais atraente na pintura é a meu ver o retrato, porque tem por objeto imediato o homem. Foi por isso, doutor, que lhe perguntei logo se o senhor já linha feito ensaios nesse campo... Não acha que este lugar seria muito mais favorável ao quadro?

Tanto Behrens como Joachim olhavam-no como para verificar se não se envergonhava do seu discurso improvisado. Mas Hans Castorp estava por demais absorto pelo seu assunto para se acanhar. Mantendo o quadro junto da parede do sofá, esperava que lhe respondessem se estava ou não mais bem iluminado ali. Nesse instante, a criada trouxe, numa bandeja, água quente, um fogareiro a álcool e xícaras paia café. O conselheiro mandou-a levar tudo ao gabinete de fumar e disse, dirigindo-se a Hans Castorp:

– Neste caso deveria interessar-se menos pela pintura do que pela escultura... Tem razão, neste lugar recebe muito mais luz. Se o senhor acha que o quadro suporta tanta... Quero dizer, pela plástica, porque ela lida mais pura e mais exclusivamente com o homem em geral... Mas devemos prestar atenção para que a água não se evapore completamente.

– Pois é, a plástica – disse Hans Castorp, enquanto passavam de uma peça a outra. Esquecendo-se de pendurar o quadro novamente ou de colocá-lo no chão, levou-o consigo ao gabinete contíguo. – Não há dúvida, numa Vênus grega ou num tipo de atleta, o elemento humanístico mostra-se com a maior nitidez. No fundo é esse o gênero autêntico, a arte genuinamente humanística, para quem reflete bem...

– Ora, quanto à pequena Chauchat – observou o conselheiro –, acho que ela é antes um motivo pictórico. Parece-me que Fídias ou aquele outro sujeito cujo nome tem uma desinência judaica teriam torcido o nariz a esse tipo de fisionomia... Diga, que é que o senhor está fazendo aí? Por que anda passeando com esse troço?

– Perdão, vou encostá-lo no pé da minha cadeira; ali fica bem, por enquanto... Mas os escultores gregos pouco se preocupavam com a cabeça; o que lhes importava era o corpo. Talvez seja este o elemento verdadeiramente humanístico... E o senhor acha que a plasticidade das formas femininas é só gordura?

– Gordura e nada mais – disse em tom categórico o conselheiro, que acabava de abrir um armário embutido e tirara dele os apetrechos necessários para o preparo de café: um moinho turco em forma de tubo, uma canequinha de cabo comprido, o recipiente duplo para açúcar e café moído – tudo de latão. – Palmitina, oleína, estearina – acrescentou, enquanto derramava de uma lata os grãos de café dentro do moinho e começava a dar voltas à manivela. – Estão vendo, eu mesmo faço tudo, desde o início. Assim o café fica duas vezes melhor... Pois é gordura! Que pensava o senhor? Que fosse ambrosia?

– Não, eu já sabia disso, e contudo é curioso ouvi-lo assim explicado – respondeu Hans Castorp.

Estavam sentados num canto, entre a porta e a janela, em torno de um tamborete de bambu, que suportava uma bandeja de latão, ornada de motivos orientais, onde o aparelho de café encontrara um lugar no meio de utensílios para fumantes. Joachim instalara-se ao lado de Behrens, numa otomana abundantemente guarnecida de almofadas de seda; Hans Castorp numa poltrona provida de rodinhas, na qual apoiara o retrato de Mme. Chauchat. Tinham sob os pés um tapete multicor. O conselheiro áulico deitou colheradas de café e de açúcar na canequinha de cabo comprido, acrescentou água e fez o líquido ferver em cima do fogareiro a álcool. A bebida derramada nas xícaras enfeitadas com um padrão de cebolas tinha uma espuma escura, e seu sabor era tão forte quanto doce.

– Com as formas do senhor é a mesma coisa – continuou Behrens.– A sua plasticidade, se é que se pode falar dela, é também gordura, embora não haja tanta como nas mulheres. Entre nós, a gordura normalmente não vai além da vigésima parte do peso do corpo, ao passo que nas mulheres costuma ser a décima sexta parte. Sem a camada adiposa embaixo da nossa pele, ficaríamos como uns fungões. Com os anos, ela se vai, e então se produz o famoso drapejamento de rugas pouco estéticas. Onde aquela camada tem a maior espessura é no peito, no ventre e nas coxas da mulher, numa palavra, em toda parte onde encontramos alguma coisa para divertir o coração e a mão. As plantas dos pés também são gordurosas e cosquentas.

Hans Castorp fazia girar entre as mãos o moinho de café em forma de tubo. Como o resto do conjunto, era antes de origem indiana ou persa do que turca; assim o indicava o estilo dos ornamentos gravados no latão, cujas superfícies brilhantes se destacavam do fundo baço. Hans Castorp contemplou-os, sem entender, a princípio, do que se tratava. Quando compreendeu, corou violentamente:

– Pois é, são utensílios só para homens – disse Behrens. – Por isso, mantenho-os guardados a chave. A boa da minha cozinheira poderia ter maus pensamentos. Mas parece-me que aos senhores isto não pode fazer mal. Ganhei essas coisas de uma paciente, uma princesa egípcia que nos deu a honra de permanecer entre nós durante um ano. Veja, o desenho se repete em todas as peças. Gozado, hein?

– Sim, é mesmo curioso – respondeu Hans Castorp. – Ah, não, a mim não me impressiona. Seria até possível dar a esses ornamentos uma interpretação séria e solene, ainda que eles fiquem um pouco impróprios para um serviço de café. Ouvi dizer que os antigos representavam isso nos ataúdes. Para eles, o obsceno e o sagrado eram, de certo modo, uma e a mesma coisa.

– Ora, quanto àquela minha princesa – disse Behrens, creio que ela se interessava mais pelo obsceno. Também ganhei dela uns excelentes cigarros, coisa extrafina, que só ofereço em ocasiões excepcionais. – E tirou do armário uma caixa de cores berrantes, que apresentou aos hóspedes, Joachim fez que não, juntando os tacões. Hans Castorp serviu-se e fumou o cigarro extraordinariamente grosso e comprido, adornado de uma esfinge impressa em ouro, e que de fato era maravilhoso.

– Tenha a bondade, senhor conselheiro – pediu Castorp –, de nos contar mais alguma coisa sobre a pele. – Voltara a pôr nos joelhos o retrato de Mme. Chauchat e contemplava-o, reclinado na poltrona, com o cigarro entre os lábios. – Não precisamente da túnica adiposa – continuou. – Dela já sabemos bastante. Mas da pele humana em geral, que o senhor pinta com tanta perfeição.

– Da pele? Interessa-se pela fisiologia?

– Sim, senhor, muito. Sempre tive grande interesse por essa matéria. O corpo humano é um assunto que sempre me preocupou extremamente. Muitas vezes já me perguntei se não deveria ter estudado medicina. Sob certos aspectos, creio que me teria dado muito bem com essa profissão. Pois quem se interessa pelo corpo também se interessa pela doença, e principalmente por ela. Não tenho razão? Por outro lado, isso não quer dizer grande coisa, uma vez que eu teria podido dedicar-me a diversas profissões. Por exemplo, seria possível que eu escolhesse o sacerdócio.

– Não diga!

– Sim, senhor! Às vezes tenho a impressão passageira de que, talvez, a minha vocação seja esta.

– Por que, então, se fez engenheiro?

– Por acaso. Acho que o que me decidiu foram as circunstâncias exteriores.

– Hum, quanto à pele! Que quer o senhor que lhe conte do seu ectoderma? É o seu cérebro externo, sabe? Ontogeneticamente falando, tem a mesmíssima origem que o aparelho dos chamados órgãos sensitivos superiores, aí em cima, no seu crânio. O senhor deve saber que o sistema nervoso central é apenas uma leve modificação da camada exterior da pele; nas espécies inferiores do reino animal ainda não existe a diferença entre central e periférico. Esses bichos servem-se da pele para cheirar e para saborear, compreende? Toda a sua sensualidade reside na pele, o que deve ser bastante agradável, para quem for capaz de se imaginar no lugar deles. Nas criaturas altamente desenvolvidas, porém, criaturas como o senhor e eu, a ambição da pele limita-se à faculdade de sentir cócegas. A pele não passa então de um órgão protetor e transmissor, mas que presta uma atenção infernal a tudo quanto nos possa ofender o corpo. Estende mesmo para fora uma antenas de tato, o velo do nosso corpo, os pêlos fininhos que se compõem somente de células endurecidas e permitem sentir a menor aproximação, muito antes de a própria pele ser tocada. Cá entre nós: é até possível que a função defensiva e protetora da pele não se restrinja exclusivamente à esfera física... O senhor sabe de que maneira fica ruborizado e pálido?

– Só vagamente.

– Devo confessar que nem nós mesmos o sabemos com absoluta precisão, pelo menos no que se refere ao rubor. O assunto não foi ainda completamente esclarecido, pois por enquanto não conseguimos demonstrar nos vasos de sangue a existência de músculos dilatadores que sejam postos em ação pelos nervos vasomotores. Por que intumesce a crista do galo – ou que outros exemplos de jactância se possam citar – é, por assim dizer, um mistério, tanto mais quando se trata de uma influência psíquica. Supomos que haja ligações entre a camada cortical do cérebro e o centro vascular da medula oblongada. E, devido a certos estímulos – por exemplo, quando o senhor se sente muito envergonhado –, entra em jogo essa ligação e começam a agir os nervos vasculares que vão em direção ao rosto; então se dilatam e se enchem os vasos capilares que ali se acham, de maneira que o senhor anda com a cabeça feito um peru e está todo túmido de sangue e mal pode abrir os olhos. Em outros casos, porém, quando nos espera Deus sabe o quê, uma coisa de tremenda beleza talvez, contraem-se os vasos capilares da pele, que então se torna pálida, fria e murcha, e o senhor fica que nem um cadáver, de tanta emoção, com as órbitas lívidas como chumbo e com um nariz branco, afilado, enquanto o nervo simpático faz o coração martelar loucamente.

– Ah! Então é assim que isso acontece?

– Mais ou menos. São reações, sabe? Mas, uma vez que todas as reações e todos os reflexos têm uma finalidade inerente, chegamos nós, os fisiólogos, a supor que também esses fenômenos secundários de emoções psíquicas são, no fundo, meios adequados de defesa, reflexos protetores, como, por exemplo, o arrepio. Sabe o senhor donde nos vêm os arrepios?

– Com franqueza, também não sei claramente.

– Aí se trata de um trabalho das glândulas sebáceas da pele que segregam o sebo cutâneo, uma substância albuminosa gordurenta, que não é lá muito apetitosa, sabe?, mas conserva a pele macia, evita que ela se grete ou rasgue, e a torna agradável ao tato. Nem se pode imaginar que sensação nos daria o contato com a pele humana não fosse a colesterina. Essas glândulas sebáceas dispõem de pequenos músculos orgânicos capazes de pô-las num estado de ereção, e quando fazem isso, sucede ao senhor o mesmo que aconteceu àquele rapaz sobre o qual a princesa derramou um balde cheio de lambaris: sua pele fica feito um ralador, e quando a excitação é muito forte, até se levantam os folículos pilosos; seus cabelos eriçam-se na cabeça e os pêlos, no corpo, exatamente como se dá com um porco-espinho que se defende. Então poderá o senhor afirmar que chegou a conhecer o horror.

– Ora – disse Hans Castorp –, a esse ponto já cheguei várias vezes. Até mesmo me ocorre facilmente horrorizar-me nas mais diversas ocasiões. O que me admira é apenas que essas glândulas se ericem em circunstâncias tão diferentes. Quando alguém risca um vidro com um lápis de pedra, fica-se com arrepios, e uma música especialmente linda me produz o mesmo efeito. Quando, por ocasião da minha confirmação, fui comungar, tive estremecimentos e arrepios que não acabavam mais. E estranho quanta coisa põe em ação aqueles pequenos músculos.

– Pois é – disse Behrens. – Um estímulo vale o outro. O corpo pouco se importa com o porquê dos estímulos. Sejam lambaris, seja a Santa Ceia, as glândulas sebáceas reagem eriçando-se.

-senhor conselheiro – disse Hans Castorp, contemplando o retrato que tinha sobre os joelhos –, há mais uma coisa que eu gostaria de saber. O senhor acaba de falar de processos interiores, da circulação linfática, etc. Como é isso? Eu desejaria ouvir mais a esse respeito, sobre a circulação linfática, por exemplo, se o senhor tivesse a bondade... O assunto me interessa vivamente...

– Acredito – tornou Behrens. – A linfa é o que há de mais fino, mais íntimo e mais delicado em toda a oficina do corpo. Parece que o senhor tem uma vaga idéia disso, desde que me faz essa pergunta. Sempre falam do sangue e dos seus mistérios, e dizem que é um suco todo especial. Mas a linfa é o sumo do suco, a essência, sabe?, o leite do sangue, um líquido delicioso... Após uma alimentação gordurosa tem até a aparência de leite. – E jovialmente, servindo-se da sua linguagem colorida, pôs-se a descrever o sangue, esse caldo de gordura, albumina, ferro, açúcar e sal, vermelho como uma capa de teatro, preparado pela respiração e pela digestão, saturado de gases e carregado de escória produzida pelo processo de renovação, esse caldo de uma temperatura de 38 graus centígrados, que era impelido pela bomba do coração através dos vasos e promovia, em todas ns partes do corpo, o metabolismo, o calor animal, numa palavra, a nossa preciosa vida. Explicou que o sangue não chega diretamente até as células, mas que a pressão exercida sobre ele o fazia transpirar um extrato ou sumo leitoso através das paredes dos vasos, de modo a penetrar em todo lugar, enchendo quaisquer interstícios e dilatando ou distendendo o elástico tecido celular. Era isso o tônus dos tecidos, o turgor, e graças ao turgor, por sua vez, acontecia que a linfa, depois de ter untado amenamente as células e de ter realizado com elas uma permuta de substâncias, era enviada aos vasos linfáticos e voltava ao sangue, à razão de um litro e meio por dia. E o conselheiro discorreu sobre o sistema de condução e de sucção dos vasos linfáticos, tratou do canal lactífero que recolhia a linfa das pernas, do ventre, do peito, de um dos braços e de um lado da cabeça. Passou a falar de uns delicados órgãos – filtros que se encontravam em muitos lugares dos vasos linfáticos –, os chamados gânglios, situados no pescoço, nas axilas, nas articulações do cotovelo, nos jarretes e em outros lugares igualmente íntimos e suaves do corpo. – Aí se podem formar inchações -– explicou Behrens – e é precisamente disso que partimos. Intumescem, por exemplo, os gânglios linfáticos nos jarretes ou nas articulações dos braços, formam-se aqui ou ali tumores semelhantes aos hidrópicos, e quando isso se dá, há sempre um motivo, ainda que pouco simpático. Em certas circunstâncias torna-se então mais que óbvio o diagnóstico de uma obstrução tuberculosa dos vasos linfáticos.

Hans Castorp permaneceu calado. – Pois é – disse baixinho, depois de uma longa pausa – isso mesmo. Eu facilmente poderia ter me tornado médico. O canal lactífero... A linfa das pernas... Essas coisas me interessam muito... Que é o corpo? – exclamou de repente, com impetuosidade. – Que é a carne? Que é o organismo humano? De que se compõe? Explique-nos ainda isso, senhor conselheiro! Explique-o de uma vez, para que a gente fique sabendo!

– É de água – respondeu Behrens. – Parece que o senhor se interessa também pela química orgânica. Na sua maior parte, o corpo humano consta de água, nada mais nada menos, e não vejo razão de se exaltar por causa disso. A substância seca não vai além de vinte e cinco por cento do total, sendo que vinte por cento disso são simples clara de ovo, proteínas -se é que o senhor prefere esse termo mais distinto –, às quais se acrescenta apenas um pouquinho de gordura e de sal. É quase só isso.

– E essa clara de ovo, que é?

– Uma porção de elementos: carbono, hidrogênio, nitrogênio, oxigênio, enxofre, às vezes também um pouco de fósforo. Mas o senhor desenvolve uma curiosidade exuberante. Há também proteínas que se apresentam ligadas a hidratos de carbono, isto é, glicose e amido. Na velhice, a carne torna-se dura, o que vem do fato de aumentar o colágeno no tecido conjuntivo; a cola, sabe?, que é a parte essencial dos ossos e das cartilagens. Que mais quer que eu lhe conte? Temos no plasma muscular uma proteína, o miosinogênio, que no corpo morto coagula, formando a fibrina muscular e produzindo a rigidez cadavérica.

– Ah, sim, a rigidez cadavérica! – disse Hans Castorp alegremente. – Muito bem, muito bem. E depois vem a análise geral, a anatomia do túmulo.

– Sim, naturalmente. O senhor formulou isso de modo muito bonito. Então a coisa torna-se um tanto extensa. A gente se esparrama por assim dizer. Não se esqueça de toda aquela água! E os outros ingredientes são pouco duráveis sem a ação da vida. Em virtude da putrefação, decompõem-se em combinações mais simples, de natureza anorgânica.

– Putrefação, decomposição – disse Hans Castorp. – Não é isso um processo de combustão, uma combinação com o oxigênio, se não me engano?

– Exatamente, há uma oxidação.

– E a vida?

– Também. Também, meu rapaz. Aí também há uma oxidação. A vida é essencialmente uma combustão das proteínas das células, donde provém esse agradável calor animal que às vezes é excessivo. Pois é, viver é morrer, nesse ponto não adianta dissimular. Trata-se de uma destruction organique, como algum francesinho, na sua leviandade inata, qualificou a vida. Ela também cheira assim, e quando temos uma impressão contrária é porque o nosso juízo não é imparcial.

– E quem se interessa pela vida – prosseguiu Hans Castorp – interessa-se sobretudo pela morte. Não é verdade?

– Bem, há sempre uma certa diferença. Viver significa que, na transformação da matéria, se conserva a forma.

– Para que conservar a forma? – perguntou Hans Castorp.

– Para quê? Escute, o que acaba de dizer não tem nada de humanismo.

– A forma é bobagem.

– Decididamente, o senhor está muito enérgico hoje. Tem qualquer coisa de insubordinado. Mas eu me sinto exausto – disse o conselheiro. – Começo a ficar melancólico – acrescentou, cobrindo os olhos com a manopla enorme. – Estão vendo, isto cai sobre mim, de surpresa. Tomei café com os senhores e gostei, e de repente me acontece ficar melancólico. Os senhores me desculpem. Foi para mim uma satisfação rara e me causou um prazer extraordinário...

Os primos levantaram-se de um pulo. Acusaram-se de ter tomado tanto tempo ao senhor conselheiro... Ele fez afirmações tranqüilizadoras em sentido contrário. Hans Castorp apressou-se a levar o retrato de Mme. Chauchat à saleta vizinha e a recolocá-lo no lugar antigo. Não voltaram ao jardim. Behrens mostrou-lhes o caminho através do edifício, acompanhando-os até a porta de comunicação. No estado de alma que o invadira subitamente, a sua nuca parecia mais saliente do que em geral. Piscava os olhos lacrimosos, e o bigodinho oblíquo, devido aos lábios torcidos unilateralmente, assumira uma expressão lamentável.

Enquanto os primos atravessavam os corredores e as escadas, disse Hans Castorp:

– Você não pode negar que foi uma boa idéia.

– Foi pelo menos uma variação – replicou Joachim. – E vocês aproveitaram a ocasião para resolver uma porção de problemas; sim, senhor! Às vezes achei a conversa meio complicada. Mas agora é tempo de fazer um pouco de repouso. Temos ainda uns vinte minutos antes do chá da tarde. Talvez lhe pareça “bobagem” da minha parte insistir tanto nessas coisas, desde que, nos últimos tempos, você se mostra insubordinado. Mas, afinal de contas, você não necessita disso tanto como eu.

 

         Pesquisas

E assim sucedeu o que forçosamente tinha de suceder, e o que Hans Castorp, havia pouco ainda, não teria imaginado ver ali: irrompeu o inverno, o inverno alpino, que Joachim já conhecia, pois que chegara quando o anterior estava no auge. Hans Castorp tinha algum receio dele, se bem que se tivesse preparado otimamente. O primo esforçou-se por tranqüilizá-lo.

– Você não deve pensar que o inverno aqui é excessivamente rigoroso – disse. – Não é nada ártico. O frio não chega a ser sensível, por causa da secura do ar e da ausência de vento. Agasalhando-se bem, pode-se permanecer na sacada até altas horas da noite, sem se sentir frio. Isso se dá graças à inversão da temperatura acima do limite da cerração. Nas alturas mais elevadas, faz mais calor. É uma coisa que antes não se sabia. O frio fica mais desagradável quando chove. Mas agora você já tem o seu saco de repouso, e também acendem a calefação em casos de absoluta emergência.

Por outro lado, não se podia falar nem de um assalto nem de violência. O inverno vinha chegando devagarzinho, e por enquanto não se apresentava de forma diferente da de muitos dias que o verão trouxera consigo. Durante alguns dias soprava o vento sul. O sol ardia, e o vale parecia encolhido e estreitado. Os platôs dos Alpes, junto à saída, afiguravam-se próximos e muito claros. Depois surgiam nuvens, irrompendo do pico Michel e do Tinzenhorn, rumo ao nordeste, e o vale se fez escuro. Começou então a chover copiosamente. Mais tarde, a chuva tornou-se pouco limpa, de um cinzento esbranquiçado, porque a neve acabava de misturar-se com ela. E finalmente sobrou apenas a neve. O vale estava envolto em torvelinhos, e como isso se passasse durante muito tempo e também a temperatura, nesse ínterim, tivesse baixado consideravelmente, a neve não pôde derreter-se toda. Estava úmida, mas subsistia. O vale estendia-se sob um manto branco, fininho, molhado e defeituoso, do qual se destacava o preto das coníferas nas encostas. Na sala de refeições, os radiadores iam amornando. Isso acontecia em princípios de novembro, por volta do Dia de Finados, e não constituía nenhuma novidade. Em agosto passara-se o mesmo, e havia muito o pessoal perdera o hábito de considerar a neve um privilégio do inverno. A toda hora e com qualquer tempo tinha-se neve diante dos olhos, pois sempre cintilavam restos e vestígios dela nas gretas e nas fendas da cordilheira rochosa dos Alpes Réticos, que pareciam fechar a saída do vale, e sempre resplandeciam envoltas em neve as mais distantes majestades montanhosas do sul. Mas tanto a nevada como a queda de temperatura mostravam-se persistentes. Num gris pálido, o céu pendia pesado sobre o vale, desfazendo-se em flocos que caíam silenciosos e incessantes, com uma abundância exagerada e levemente inquietante. O frio aumentava de hora em hora. Chegou a manhã em que Hans Castorp registrou 7 graus no seu quarto, e no dia seguinte eram apenas 5. Isso significava geada, que, embora com certa moderação, continuava. Geara de noite, e agora geava também de dia, desde a manhã até a noite, enquanto a nevada prosseguia, com pequenas interrupções, durante quatro, cinco, sete dias. Daí por diante a neve ia se amontoando, chegando a ser uma calamidade. No caminho obrigatório que conduzia ao banco junto do curso d'água, bem como na estrada que levava ao vale, haviam trabalhado com pás para abrir pistas; mas estas eram estreitas, e não havia jeito de se desviar de quem viesse em sentido contrário. Num caso desses era preciso pisar no dique de neve acumulado na margem da pista e afundar-se até o joelho. Um rolo de pedra, puxado por um cavalo, conduzido no cabresto por um homem, rodava o dia todo pelas ruas de Davos, e uma espécie de trenó, amarelo e de um tipo antiquado, semelhante a uma diligência, com um limpa-neves à frente, para afastar as massas brancas, trafegava entre a estância balneária e a parte setentrional do lugar, a chamada “aldeia”. O mundo, esse mundo alto, estreito e remoto dos dali de cima, aparecia espessamente agasalhado e estofado. Não havia nenhuma coluna, nenhuma estaca que não usasse uma touca branca. As escadarias do Berghof iam desaparecendo, transformando-se num plano inclinado. Almofadões pesados de formas excêntricas oprimiam em toda parte os ramos dos pinheiros. Aqui ou ali, as massas de neve, resvalando, desfaziam-se em pó, que passava por entre os troncos, como uma alva nuvem ou bruma. As montanhas ao redor estavam revestidas de neve, que se afigurava áspera nas regiões mais baixas e ocultava sob uma coberta macia os cumes multiformes, que ultrapassavam o limite das arvores. Reinava a penumbra, com o sol lançando apenas um brilho pálido através da atmosfera velada. Mas a neve difundia uma branda luz indireta, uma claridade leitosa que embelezava o mundo e as pessoas, embora andassem com os narizes vermelhos sob os gorros de lã branca ou de cor.

Na sala de refeições, em torno das sete mesas, a entrada do inverno, a temporada principal nessas paragens, formava o tema predileto das conversas. Dizia-se que haviam chegado numerosos turistas e desportistas, povoando os hotéis da “aldeia” e de “Platz”. A espessura da camada de neve era avaliada em sessenta centímetros, e afirmava-se que a sua qualidade era ideal para os esquiadores. Outros contavam que se trabalhava ativamente na pista de trenó, que de Schatzalp, na vertente noroeste, conduzia ao vale; dentro de poucos dias, ela poderia ser inaugurada, contanto que o Föhn não viesse estragar os projetos. Os enfermos regozijavam-se com a idéia de poder assistir ao recreio dos sadios – dos hóspedes lá de baixo –, que ia recomeçar agora, com festas desportivas e competições, que muitos tencionavam olhar apesar da proibição, gazeando o repouso e escapulindo. Hans Castorp ficou sabendo que haveria uma inovação, o Skikjoring, invenção nórdica, que constava de uma corrida em que os esquiadores participantes se fariam puxar por cavalos. Para ver isso seria necessário dar uma fugida. Também se falava dos festejos do Natal.

Do Natal! Ora essa! Hans Castorp nem pensara ainda nisso. Não lhe causara dificuldades dizer ou escrever que, em virtude do resultado do exame médico, teria de passar o inverno ali em cima, em companhia de Joachim. Mas, como agora notava, isso incluía o Natal, e esse fato tinha sem dúvida algo de espantoso para o seu coração, devido à circunstância – embora não exclusivamente a ela – de ele nunca ter passado essa festa fora do torrão natal e do seio da família. Bem, sendo essa a vontade de Deus, era preciso conformar-se. Já deixara de ser criança, e Joachim tampouco parecia escandalizar-se com essa perspectiva, e aceitava-a sem choramingar. Afinal de contas – dizia Hans Castorp de si para si –, não convinha esquecer em quantos lugares e sob quantas condições diferentes se festejara o Natal no decorrer dos tempos.

Parecia-lhe, entretanto, um pouco precipitado falar do Natal ainda antes do primeiro domingo do Advento. Faltavam até lá ainda umas seis semanas e tanto. Mas o pessoal da sala de refeições saltava-as ou devorava-as – processo interior que também Hans Castorp já sabia executar, se bem que ainda não se houvesse acostumado a fazê-lo com tanta audácia como os seus companheiros mais antigos. Estes consideravam o Natal, ou outras etapas semelhantes no curso do ano, como ótimos pontos de referência ou como uma espécie de aparelhos de ginástica, adequados para se pular agilmente por cima de intervalos vazios. Todos tinham febre; seu metabolismo era aumentado; sua vida física passava-se num ritmo por demais intenso e veloz – talvez explicasse isso o fato de matarem com tanta rapidez tamanhas quantidades de tempo. Hans Castorp não se teria surpreendido se falassem do Natal como de uma data já vencida, e logo se pusessem a discorrer sobre o Ano-Bom ou o Carnaval. Mas não eram tão levianos e tão imoderados na sala de refeições do Berghof. Detinham-se no Natal, festa que dava motivos para preocupações e oferecia problemas. Deliberavam acerca do presente comum que, segundo o costume estabelecido na casa, seria entregue ao diretor, o Dr. Behrens, na véspera do Natal, e para o qual tinham aberto uma subscrição. Como contavam aqueles que estavam no sanatório fazia mais de doze meses, o conselheiro, no ano anterior, fora presenteado com uma maleta. Falava-se desta vez de uma mesa de operações, de um cavalete de pintor, de um casaco forrado de peles, de uma cadeira de balanço e de um estetoscópio de marfim, adornado de qualquer tipo de incrustações. Settembrini, ao ser consultado, recomendou uma obra lexicográfica que, conforme dizia, estava em preparo e se intitulava Sociologia dos males, mas ninguém apoiou a idéia a não ser um livreiro que, havia poucos dias, se encontrava à mesa da Kleefeld. Por enquanto não parecia possível chegar a um acordo. Era difícil entender-se com os pensionistas russos. Os moscovitas declararam que tencionavam dar a Behrens um presente à parte. Durante dias a fio, a Srª. Stöhr manifestou suma inquietação por causa de uma importância de dez francos que, imprudentemente, adiantara à Srª. Iltis para a coleta, e que esta “se esquecera” de devolver. “Esquecera-se” – as entonações que a Srª. Stöhr dava a essa palavra eram multiplamente matizadas, mas todas elas calculadas para expressar a mais profunda incredulidade quanto a essa falta de memória, que parecia à prova de quaisquer alusões e indiretas que a Srª. Stöhr afirmava ter prodigalizado. Diversas vezes, esta se dispunha a renunciar e a perdoar a dívida da Iltis. “Pago, então, por mim e por ela”, declarava. “Está muito bem. A vergonha não é minha.” Mas finalmente descobriu uma solução que comunicou aos comensais, causando hilaridade geral: foi cobrar os dez francos da “administração”, que os incluiu na conta da Srª. Iltis, de modo que a devedora morosa saiu lograda e o assunto foi liquidado.

Terminara a nevada. O céu abria-se parcialmente. Nuvens de um cinzento azulado rasgavam-se e deixavam passar alguns raios de sol que tingiam a paisagem de azul. A seguir, o tempo serenou por completo. Reinava em pleno novembro um frio límpido, um esplendor invernal, puro e constante. Era maravilhoso o panorama que se via através das arcadas da loggia, os bosques empoados, as fendas repletas de neve fofa, o vale branco, ensolarado sob o azul reluzente do céu. E principalmente de noite, quando subia a lua quase cheia, o mundo apresentava-se enfeitiçado de um modo milagroso. Uma cintilação de cristal, um resplendor como de diamantes ostentava-se em toda parte. Muito preta e muito branca elevava-se a floresta. As regiões do céu que se achavam distantes da lua jaziam escuras, bordadas de estrelas. Sombras de contornos nítidos, precisos e intensos, sombras que davam a impressão de ser mais reais e mais importantes do que os próprios objetos, caíam das casas, das árvores, dos postes telegráficos, sobre o solo refulgente. Poucas horas depois do pôr-do-sol, a temperatura descia a 7 ou 8 graus abaixo de zero. O mundo parecia encantado, imobilizado numa pureza glacial, e sua imundície natural ficava submersa e envolta no sonho de um fantástico sortilégio letal.

Até altas horas da noite, Hans Castorp permanecia no seu compartimento da sacada acima do mágico vale hibernal, muito mais tempo do que Joachim, que se retirava às dez horas ou pouco depois. A sua excelente espreguiçadeira, com o colchão composto de três coxins e com o rolo à altura da nuca, achava-se próxima da balaustrada de madeira, ao longo da qual se estendia uma almofada de neve. Na mesinha branca, a seu lado, luzia a lâmpada elétrica, e junto a uma pilha de livros havia um copo de leite gordo, o leite da noite, que era servido às nove horas em todos os quartos dos habitantes do Berghof, e no qual Hans Castorp vertia um cálice de conhaque para adaptá-lo ao seu paladar. Já haviam sido mobilizados todos os recursos de que ele dispunha contra o frio. Enfiara-se Hans Castorp até acima do peito no saco de peles, que se podia abotoar e fora adquirido em boa hora numa casa especializada de Davos. Em torno desse saco lançara, segundo o rito, os dois cobertores de lã de camelo. Além disso usava, por cima da roupa de inverno, um curto casaco forrado de peles. Na cabeça tinha um gorro de lã, nos pés sapatos de feltro, e nas mãos umas espessas luvas que, no entanto, se mostravam incapazes de impedir o enrijecimento dos dedos..

Para que ele permanecesse tanto tempo lá fora – até meia-noite e às vezes mais tarde ainda, quando o casal de “russos ordinários” havia muito se retirara do compartimento vizinho – contribuía, sem dúvida, o feitiço da noite invernal, tanto mais que até as onze horas se entretecia nele a música, que, de longe e de perto, subia do vale. Mas antes de tudo era induzido a isso pela inércia e pela excitação que agiam simultânea e conjuntamente; de um lado, a inércia do seu corpo e o seu cansaço avesso a todo movimento, e do outro, a excitação ativa do seu espírito, ao qual certos estudos novos e fascinantes, que o jovem acabava de empreender, não davam nenhum instante de trégua. O clima incomodava-o; a geada exercia sobre seu organismo um efeito esgotador. Hans Castorp comia muito e aproveitava as fartas refeições do Berghof, onde os gansos assados sucediam a um rosbife acompanhado de legumes. Demonstrava aquele desmedido apetite, que parecia normal entre os pensionistas do Berghof e no inverno se tornava ainda mais intenso do que no verão. Ao mesmo tempo sentia-se tomado de sonolência, de maneira que freqüentemente lhe ocorria, de dia tanto como nas noites de luar, adormecer sobre os livros que manuseava, e dos quais trataremos mais adiante; depois de alguns minutos de inconsciência continuava então as suas pesquisas. Conversas animadas – e mais do que na planície tendia ele ali a falar depressa, sem inibições e até com atrevimento –, essas conversas animadas que mantinha com Joachim, durante os passeios obrigatórios através da neve, esgotavam-no facilmente. Acometiam-no vertigens e tremores, bem como uma sensação de aturdimento e de ebriedade, enquanto lhe ardia a cabeça. Sua curva de temperatura subira desde o começo do inverno, e o Dr. Behrens murmurara qualquer coisa a respeito de injeções às quais costumava recorrer em casos de elevação tenaz da temperatura. Duas terças partes dos pacientes, inclusive Joachim, submetiam-se regularmente a essas injeções. Mas – pensava Hans Castorp – decerto existiam relações entre essa intensa produção de calor que se efetuava dentro do seu corpo e aquela agitação e atividade do espírito que o prendia à espreguiçadeira até muito tarde, na cintilante e gélida noite. A leitura que o cativava sugeria-lhe tal explicação.

Lia-se avidamente nos alpendres de repouso e nas sacadas particulares do Sanatório Internacional Berghof – sobretudo entre os novatos e os pensionistas de curto prazo, pois os pacientes que ali permaneciam por muitos meses, ou mesmo por vários anos, havia muito que tinham aprendido a matar o tempo sem distrações nem esforços intelectuais e a deixá-lo passar graças a um virtuosismo interior. Declaravam até que era uma falta de habilidade, própria de sarrafaçais, essa de se agarrar à leitura. Quando muito admitiam que um livro repousasse sobre os joelhos ou na mesinha, o que já era suficiente para as pessoas sentirem-se abastecidas. A biblioteca do estabelecimento, poliglota e rica em obras ilustradas, continha, de forma ampliada, a literatura que comumente se encontra na sala de espera de um dentista, e achava-se à disposição livre e gratuita dos pensionistas. Também se permutavam os romances alugados numa livraria de Platz. De tempos em tempos aparecia um livro ou um folheto que era violentamente disputado, e para o qual estendia as mãos, com mal dissimulada cobiça, até quem já tivesse abandonado o hábito de ler. A essa altura dos acontecimentos circulava de mão em mão uma brochura mal impressa, adquirida pelo Sr. Albin, e que se intitulava A arte da sedução. O texto estava traduzido, muito ao pé da letra, do francês, conservando a tradução a própria sintaxe desse idioma, o que emprestava ao estilo muita dignidade e uma elegância picante. Explanava o autor a filosofia do amor carnal e da volúpia, no sentido de um paganismo epicurista e mundano. A Srª. Stöhr terminou rapidamente a leitura e achou a obra “formidável”. A Srª. Magnus – a que perdia proteínas – concordou com ela sem reservas, ao passo que seu marido, o cervejeiro, pretendeu ter tirado particularmente algum proveito dessa leitura, mas lastimou que a Srª. Magnus se tivesse inteirado da doutrina do opúsculo, já que essas coisas “amimalhavam” as mulheres e lhes incutiam idéias extravagantes. Tal crítica contribuiu consideravelmente para aumentar o interesse que reinava pela obra. Entre duas senhoras chegadas em outubro, e que freqüentavam o alpendre térreo, a Srª. Redisch, esposa de um industrial polonês, e uma certa viúva Hessenfeld, de Berlim, deflagrou-se depois do almoço uma cena bastante desagradável, quase violenta, que Hans Castorp se viu obrigado a presenciar da sua sacada. Culminou o espetáculo numa gritaria convulsiva e histérica de uma das duas senhoras – podia ser a Redisch, mas também podia ser a Hessenfeld – e no transporte da mulher raivosa para os seus aposentos. A mocidade apoderara-se do tratado ainda antes das pessoas mais maduras. Alguns estudavam-no em comum, depois do jantar, nos mais diversos quartos. Hans Castorp viu como o rapaz da unha comprida o entregava, na sala de refeições, a uma jovem recém-chegada e levemente enferma, de nome Fränzchen Oberdank, que fora trazida pela mãe e usava os cabelos louros repartidos por uma risca.

Talvez houvesse exceções; talvez houvesse pensionistas que enchessem as horas de repouso obrigatório com alguma atividade intelectual de caráter sério, com alguns estudos proveitosos, ainda que o fizessem apenas para conservar o contato com a vida na planície ou para emprestar ao tempo um pouco de peso e de profundidade, evitando destarte que se tornasse tempo e nada mais. Talvez existisse, além do Sr. Settembrini com seus esforços destinados a exterminar os sofrimentos do mundo, e do honrado Joachim com seus manuais russos, ainda este ou aquele com uma mentalidade análoga, senão entre o público da sala de refeições, o que era mesmo pouco provável, ao menos entre os pacientes acamados e moribundos. Hans Castorp inclinava-se a admitir essa hipótese. Quanto a ele próprio, o Ocean steamships já não lhe dizia nada. Por isso mandara vir de casa, junto com as roupas de inverno, alguns livros relacionados com a sua profissão, obras de engenharia, tratados sobre a construção de navios. No entanto, esses volumes haviam sido abandonados a favor de outros, obras didáticas pertencentes a uma faculdade e disciplina muito diferente, cuja matéria despertara o interesse do jovem Hans Castorp. Tratava-se de livros de anatomia, fisiologia, biologia, redigidos em vários idiomas – alemão, francês, inglês – e que lhe tinham sido remetidos um belo dia pelo livreiro do lugar, evidentemente porque Hans Castorp os encomendara por sua própria iniciativa e clandestinamente, durante um passeio que dera até Platz, sem a companhia de Joachim, que a essa hora andara ocupado com a pesagem ou tomara uma injeção. Foi com surpresa que Joachim viu esses livros nas mãos do primo. Eram muito caros, como obras científicas costumam ser. Os preços ainda se achavam anotados no interior das capas ou sobrecapas. Joachim perguntou por que Hans Castorp, se desejava ler esse tipo de literatura, não os pedira emprestados ao Dr. Behrens, que certamente dispunha de um rico sortimento. Mas Hans Castorp replicou que preferia possuir os livros, e que a leitura era bem diferente quando o livro lhe pertencia; além disso, gostava de sublinhar e assinalar certos trechos a lápis. Durante horas a fio, Joachim ouvia do compartimento de sacada do primo o ruído da espátula que ia abrindo as folhas.

Os volumes eram pesados e difíceis de manejar. Para os ler, quando deitado, Hans Castorp apoiava a borda inferior sobre o peito ou o estômago. Isso não deixava de ser incômodo, mas ele o suportava pacientemente. De boca entreaberta, fazia os olhos percorrerem as páginas eruditas, que se achavam quase desnecessariamente iluminadas pela claridade avermelhada do quebra-luz da lampadazinha, já que as poderia ler, se fosse preciso, à luz do luar. Acompanhava as linhas com a cabeça, até que seu queixo repousasse sobre o peito, posição em que o leitor permanecia algum tempo, refletindo, cochilando ou entregando-se a um misto de sono e de meditação, antes de elevar o rosto para ler a página seguinte. Hans Castorp realizava profundas investigações; lia, enquanto a lua seguia, a passo comedido, a sua órbita por cima do vale alpino, cintilante de cristais; lia livros que tratavam da matéria organizada, das qualidades do protoplasma, da substância sensível que, entre a composição e a decomposição, se mantém numa estranha existência intermediária, e da evolução das suas formas desenvolvidas a partir de tipos fundamentais, primitivos e todavia sempre presentes; lia com insistente interesse o que os livros diziam sobre a vida e o seu sagrado e impuro mistério.

Que era a vida? Não se sabia. Tinha ela consciência de si mesma, indubitavelmente, desde que era vida, mas ignorava o que era. Era incontestável que a consciência, sob o aspecto da propriedade de reagir a estímulos, despertava até certo ponto já nas fases mais baixas, menos adiantadas, da vida; não era possível fixar em determinado ponto da sua história coletiva ou individual a primeira aparição de fenômenos conscientes, e, por exemplo, fazer a reação consciente depender da existência de um sistema nervoso. As formas animais mais inferiores não dispunham de nenhum sistema nervoso, e muito menos de um cérebro; ninguém se atreveria, contudo, a negar-lhes a capacidade de sentir estímulos. Além disso, podia-se entorpecer a vida, a própria vida, e não somente certos órgãos especiais destinados à recepção de estímulos, que esta porventura criasse, a saber, os nervos. Podia-se suspender temporariamente a irritabilidade de toda substância dotada de vida, no reino vegetal tanto como no reino animal; era possível narcotizar os ovos e os espermatozóides por meio de clorofórmio, de cloral hidratado ou de morfina. A consciência de si mesma era, pois, uma simples função da matéria organizada em prol da vida, e numa fase mais elevada dirigia-se a função contra o seu próprio portador, convertia-se no desejo de pesquisar e explicar o fenômeno ao qual deu origem, na tendência esperançosa e desesperada da vida para se conhecer a si própria, na auto-investigação da natureza que sempre acaba sendo vã, visto a natureza não se poder resolver em conhecimento e a vida não ser capaz de contemplar os últimos segredos de si mesma.

Que era a vida? Ninguém sabia. Ninguém conhecia o ponto donde brotava a natureza, e no qual ela se acendia. A partir desse ponto, nada havia na vida que não estivesse motivado ou o estivesse apenas insuficientemente; mas a própria vida parecia não ter motivo. A única coisa que se podia, talvez, afirmar a seu respeito era que sua estrutura devia ser de tal modo evoluída que não tinha, nem de longe, igual no mundo inanimado. Entre o pseudópode da ameba e o animal vertebrado a distância era insignificante, desprezível, em comparação com aquela que existe entre o fenômeno mais simples da vida e a outra parte da natureza que nem sequer merecia ser qualificada de morta, uma vez que era inorgânica. Pois a morte não era senão a negação lógica da vida; entre esta, porém, e a natureza inanimada abria-se um abismo por cima do qual a ciência em vão se empenhava em lançar uma ponte. Alguns esforçavam-se por fechá-lo por meio de teorias, que ele sorvia sem nada perder da sua profundidade nem da sua extensão. Para encontrar um laço, haviam-se perdido na hipótese contraditória de uma matéria viva sem estrutura, de organismos não organizados, que se reuniriam espontaneamente na solução de albumina, como o cristal na água-mãe – embora, na realidade, a diferenciação orgânica constituísse, ao mesmo tempo, a condição básica e a manifestação de toda vida, e posto que não se conhecesse nenhuma criatura viva que não devesse a sua existência a um ato de procriação. O júbilo triunfante que saudara o protoplasma primevo, pescado nas mais extremas profundezas do mar, rapidamente chegara a transformar-se em consternação. Demonstrou-se que depósitos de gesso haviam sido confundidos com o protoplasma. Mas os cientistas, para não se deterem à frente de um milagre – pois a vida a compor-se dos mesmos elementos e a decompor-se nos mesmos elementos que a natureza inorgânica, sem nada que a motivasse, seria um milagre –, viram-se forçados a admitir uma geração espontânea, isto é, a origem do orgânico no inorgânico, o que, aliás, era igualmente um milagre. Destarte continuaram a inventar graus intermediários e transições, a supor a existência de organismos inferiores a todos os que se conheciam, mas que, por sua vez, tivessem como predecessores tentativas de vida ainda mais primitivas, os chamados “probiontes” que ninguém jamais veria, porque eram de uma pequenez inframicroscópica, e antes de cujo nascimento hipotético devia ter-se produzido a síntese de combinações de albumina...

Que era, então, a vida? Era calor, o calor produzido pela instabilidade preservadora da forma; era uma febre da matéria, que acompanhava o processo de incessante decomposição e reconstituição de moléculas de albumina, insubsistentes pela complicação e pela engenhosidade de sua estrutura. Era o ser daquilo que em realidade não podia ser, daquilo que, a muito custo, mediante um esforço delicioso e aflitivo, consegue, nesse processo complexo e febril de decadência e de renovação, chegar ao equilíbrio no ponto do ser. Não era nem matéria nem espírito. Era qualquer coisa entre os dois, um fenômeno sustentado pela matéria, tal e qual o arco-íris sobre a queda-d'água, e igual à chama. Mas, se bem não fosse material, era sensual até a volúpia e até o asco, o impudor da natureza tornada irritável e sensível com respeito a si própria, e a forma lasciva do ser. Era um movimento clandestino, mas perceptível no casto frio do universo, uma secreta e voluptuosa impureza composta de sucção e de evacuação, uma exalação excretória de gás carbônico e de substâncias nocivas de procedência e qualidade ignotas. Era a vegetação, a desenvolução, a configuração – possibilitadas pela hipercompensação da sua instabilidade e controladas pelas leis de formação que lhe eram inerentes – de uma coisa túmida de água, de albumina, de sal e de gordura, coisa que se chamava carne e se convertia em forma, em imagem sublime, em beleza, mas, ao mesmo tempo, era o princípio da sensualidade e do desejo. Pois essa forma e essa beleza não eram conduzidas pelo espírito, como nas obras da poesia e da música, nem tampouco por uma substância neutra, absorvida pelo espírito, e que o encarnasse de uma maneira inocente, como o fazem a forma e a beleza das obras plásticas. Era, pelo contrário, conduzida e elaborada por uma substância na qual despertou, de um modo desconhecido, a voluptuosidade, pela substância da própria matéria orgânica que vivia se decompondo, pela carne cheirosa...

Agasalhado de lã e de peles destinadas a evitarem perda de calor, o jovem Hans Castorp repousava acima do vale cintilante, enquanto, nessa noite glacial, iluminado pelo brilho do satélite morto, aparecia-lhe a imagem da vida. Essa imagem flutuava diante dele, em algum lugar do espaço, longínqua e todavia próxima dos sentidos; havia o corpo, de uma brancura embaciada, viscoso, a exalar odores e vapores; havia a pele com toda a impureza e toda a imperfeição que lhe eram peculiares, com manchas, papilas, rugas, descolorações, zonas granulosas ou escamosas, a pele revestida das finas correntes e dos delicados torvelinhos da lanugem rudimentar. Distante do frio da matéria inanimada, essa imagem pairava na sua própria esfera vaporosa, assumindo uma atitude relaxada, com a cabeça coroada de alguma coisa fresca, córnea, pigmentária, que era um produto da sua pele, e com as mãos unidas por detrás da nuca; de sob as pálpebras baixas, mirava o espectador, com aqueles olhos que uma variante da formação da pele na comissura interior fazia aparecer oblíquos, e com os lábios um tanto grossos, entreabertos; apoiava-se numa das pernas, de modo que o osso ilíaco, que suportava o peso, ressaltava nitidamente sob a carne, ao passo que, na perna relaxada, o joelho levemente dobrado roçava o interior da perna de apoio e o pé tocava o solo apenas com a ponta dos dedos. Assim se quedava a imagem; voltava-se sorrindo, certa da sua graça, com os cotovelos luzidios apontando para a frente, na simetria dos membros gêmeos e dos sinais do corpo. À sombra das axilas, de exalação acre, correspondia, num triângulo místico, a noite do regaço, assim como aos olhos a boca vermelha, epitelial, e às corolas rubras dos seios o umbigo alongado em sentido vertical. Sob o impulso de um órgão central e de nervos motores que partiam da medula espinhal, moviam-se o ventre e o tórax, dilatava-se e encolhia-se a cavidade pleuroperitoneal; o hálito, esquentado e umedecido pelas mucosas do trato respiratório, saturado de secreções, escapava por entre os lábios, após ter combinado, nos alvéolos dos pulmões, o seu oxigênio com a hemoglobina do sangue, para possibilitar a respiração interna. Hans Castorp compreendia que esse corpo vivo, a repousar no misterioso equilíbrio da estrutura das suas partes alimentadas de sangue, percorridas por nervos, veias, artérias, capilares, e banhadas pela linfa, esse corpo com a armação interna formada por ossos ocos, cheios de tutano gorduroso, por ossos chatos, ossos curtos e vértebras, consolidados, com a ajuda de sais calcáreos e de cola, à base do tecido gelatinoso, a substância primitiva de apoio, com as cápsulas, as cavidades lubrificadas, os tendões, as cartilagens das suas articulações, com seus mais de duzentos músculos, com seus órgãos centrais a serviço da nutrição, da respiração, da recepção e da emissão de estímulos, com suas membranas protetoras, cavidades cerosas e glândulas ricas em secreções, com o sistema de canais e de fendas da sua complicada superfície interna, que pelos orifícios do corpo desembocava no mundo exterior – Hans Castorp compreendia, pois, que esse Eu era uma unidade viva de categoria superior, muito distante daqueles seres mais simples, reduzidos a respirar, alimentar-se e mesmo pensar com toda a superfície do seu corpo, e se compunha de miríades de tais organismos minúsculos, que, tendo a sua origem num único dentre eles, e multiplicando-se mediante uma divisão sempre e sempre repetida, haviam organizado, diferenciado, desenvolvido os mais diversos usos e funções e tinham chegado a produzir formas que eram a condição e o efeito do seu crescimento.

O corpo que então se lhe afigurava, esse ser singular e esse Eu vivente, era, portanto, uma enorme pluralidade de indivíduos que respiravam e se alimentavam, que, em virtude da sua subordinação orgânica e da sua adaptação a uma finalidade especial, tinham perdido a sua existência própria, a sua liberdade e a sua vida independente, haviam se transformado em elementos anatômicos, a tal ponto que a função de alguns se restringia à irritabilidade em face dos estímulos da luz, do som, do tato, do calor, ao passo que outros apenas sabiam modificar a sua forma, mediante contração, ou segregar líquidos digestivos, e ainda outros estavam desenvolvidos e aptos exclusivamente para proteger, sustentar, veicular humores ou servir à procriação. Havia casos em que se afrouxavam os laços dessa pluralidade orgânica, reunida para formar um Eu elevado, casos nos quais a multidão de indivíduos inferiores não se associava, senão de uma forma superficial e incerta, numa unidade de vida superior. O nosso estudioso meditava acerca do fenômeno das colônias de células; inteirava-se da existência de semi-organismos, de algas cujas células avulsas, apenas envoltas num manto gelatinoso, freqüentemente se achavam muito distantes umas das outras, tratando-se, sem embargo, de formações multicelulares, que, porém, se fossem interrogadas, seriam incapazes de dizer se preferiam ser consideradas uma aglomeração de indivíduos unicelulares ou um ser único, e, referindo-se a si próprias, oscilariam estranhamente entre o “eu” e o “nós”. Aqui a natureza dispunha de um estado intermediário entre a associação altamente social de inúmeros indivíduos elementares a formarem os tecidos e os órgãos de um Eu superior e a livre existência individual dessas unidades avulsas: o organismo multicelular era tão-somente uma dentre as formas do processo clínico segundo o qual decorria a vida, e que constituía um movimento circulatório de ato gerador em ato gerador. A fecundação, a fusão sexual de dois corpos de células, achava-se no início da construção de todo indivíduo multicelular, como também se encontrava no começo de cada série de gerações de criaturas elementares de vida isolada, e sempre reconduzia a si própria. Pois esse ato persistia através de numerosas gerações que não necessitavam dele para se multiplicar mediante contínua divisão, até chegar o momento em que os descendentes nascidos sem o concurso do sexo se vissem novamente obrigados à cópula e o ciclo voltasse a se fechar. Assim, o Estado multiforme da vida, originado da fusão nuclear de duas células geradoras, era a coletividade de muitas gerações de indivíduos celulares, produzidos de modo assexual. Seu crescimento coincidia com a multiplicação deles, e o ciclo gerador fechava-se quando as células sexuais, elementos desenvolvidos com o fim especial da procriação, haviam se formado nele e encontravam o caminho de uma junção que desse um novo impulso à vida.

Com um volume de embriologia fincado no peito, o nosso herói acompanhava a evolução do organismo a partir do instante em que o espermatozóide – um dentre inúmeros e este em primeiro lugar –, avançado por meio de um movimento de flagelo da sua extremidade traseira, chocava a ponta cefálica com a membrana gelatinosa do óvulo e se fundava no cone de atração que o plasma ovular elevava a seu encontro. Não se podia imaginar nenhum truque, nenhuma caricatura em que a natureza não se comprazesse para variar esse processo constante. Havia animais entre os quais o macho levava uma vida de parasita no intestino da fêmea. Outros havia em que o braço do indivíduo fecundante se estendia através da garganta da fêmea até ao interior do seu corpo, onde depositava o esperma, depois do que era decepado e vomitado, para então escapar correndo com os seus próprios dedos, deixando perplexa a ciência que, durante muito tempo, o tratara, em grego ou em latim, de ser independente. Hans Castorp assistia às furiosas discussões entre as escolas eruditas dos “ovistas” e dos “animalculistas”, uns pretendendo que o óvulo era um sapo, um cão ou um homem completo, em miniatura, e que o sêmen não operava senão o crescimento das suas partes, ao passo que outros consideravam o espermatozóide, provido de cabeça, braços e pernas, um ser vivo pré-formado, ao qual o óvulo servia apenas de meio de cultura – até que enfim se punham de acordo, atribuindo iguais méritos às células ovulares e germinais, ambas oriundas de células de reprodução primitivamente indistinguíveis. Via o organismo unicelular do óvulo fecundado, a ponto de se transformar num organismo multicelular, estriando-se e segmentando-se; via os corpos de células unirem-se uns aos outros, construindo uma parede mucosa; via a vesícula seminal introfletir-se e formar uma taça ou cavidade, que então se desempenhava das funções da nutrição e da digestão. Era essa a larva intestinal, a gástrula, o bicho original, a forma básica de toda vida animalesca tanto como de toda beleza carnal. Suas duas camadas epiteliais, a exterior e a interior, o ectoderma e o endoderma, aparecem como os órgãos primitivos, dos quais surgem, por meio de saliências ou depressões, as glândulas, os tecidos, os instrumentos dos sentidos, os apêndices do corpo. Uma tira do ectoderma engrossava, afundava-se numa espécie de sulco, fechava-se formando um tubo para abrigar os nervos, e convertia-se na coluna vertebral, no cérebro. E quando o muco fetal se consolidava a ponto de se tornar fibroso tecido conjuntivo ou cartilagem, visto as células gelatinosas começarem a produzir uma substância glutinosa, em lugar da mucina, via Hans Castorp como em certos pontos as células conjuntivas extraíam dos humores que as banhavam sais calcáreos e gorduras e terminavam por ossificar-se. O embrião do homem mantinha-se encolhido, de cócoras, caudífero, em nada diferente do de um porco, dotado de um enorme pedúnculo abdominal e de extremidades rudimentares, informes, com a larva do rosto dobrada sobre o ventre túrgido, e sua evolução afigurava-se aos olhos de uma ciência de idéias sombrias e pouco lisonjeiras como a repetição resumida de uma genealogia zoológica. Passageiramente, o embrião tinha bolsas branquiais como as arraias. Parece lícito ou forçoso deduzir dos estados evolutivos por ele atravessados o aspecto pouco humano que o homem concluído oferecera nos tempos primitivos. Sua pele, provida de músculos tremedores, destinados a afugentar os insetos, estava coberta de abundante pêlo; era enorme a extensão de sua mucosa pituitária; suas orelhas despegadas e móveis tomavam parte importante no jogo de mímica e eram mais próprias para captar o som do que as nossas orelhas atuais. Naqueles tempos, os olhos, protegidos por uma terceira pálpebra nictante, haviam-se achado aos lados do crânio, com exceção do terceiro olho, cujo rudimento é a glândula pineal, e que era capaz de vigiar o zênite. Esse homem possuíra, além disso, um longo tubo intestinal, numerosos dentes molares e sacos vocais ao lado da laringe, que lhe permitiam urrar; o macho trouxera as glândulas sexuais no interior do abdômen.

A anatomia esfolava e dissecava, para o nosso pesquisador, os membros do corpo humano; mostrava-lhe os músculos e os tendões, tanto os superficiais como os subjacentes, profundos, os da coxa e da perna, do pé e sobretudo do bruço; ensinava-lhe os nomes latinos, com que a medicina, esse matiz do espírito humanístico, os designara e distinguira generosa e galantemente; permitia ao jovem avançar até o esqueleto, cuja estrutura lhe abria novas perspectivas sobre a unidade de tudo quanto é humano, e sobre o fato de se acharem relacionadas com isso todas as disciplinas. Pois nesse ponto recordava-se, de um modo sumamente estranho, da sua verdadeira ou, talvez seja melhor dizer, da sua antiga profissão, do título científico do qual se declarara portador, ao chegar ali, perante as pessoas que encontrara - o Dr. Krokowski e o Sr. Settembrini. Para aprender alguma coisa – fora-lhe bem indiferente o quê – inteirara-se, nas universidades, deste ou daquele fato referente à estática, aos suportes capazes de flexão, à carga e à construção como sendo um emprego vantajoso do material mecânico. Teria sido pueril opinar que a ciência do engenheiro, as leis da mecânica, aplicavam-se à natureza orgânica; mas tampouco se podia pretender que tinham sido deduzidas desta. Apareciam simplesmente reproduzidas e confirmadas por ela. O princípio do cilindro vazado predominava na estrutura dos longos ossos medulares, de maneira que o mínimo exato de substância sólida supria as necessidades estáticas. Um corpo – assim o aprendera Hans Castorp – que, conforme as exigências feitas a ele quanto à tração e à pressão, estivesse composto tão-somente de varas e tirantes de um material mecanicamente adequado poderia suportar a mesma carga que um corpo maciço de igual composição. Da mesma forma era possível observar, na evolução dos ossos medulares, como, à medida que a superfície se ossificava, as partes internas, mecanicamente supérfluas, se transformavam em tecidos gordurosos, o tutano amarelo. O osso femural era uma grua em cuja construção a natureza orgânica, pela flexão que dera às pecinhas ósseas, executava exatamente as mesmas curvas de tração e de pressão que Hans Castorp teria de traçar para a apresentação correta de um aparelho destinado a se desempenhar das mesmas incumbências. O jovem verificava com satisfação que, dessa forma, dispunha de uma tripla relação com o fêmur, ou com a natureza orgânica em geral: a relação lírica, a relação médica e a relação técnica – tão intensos eram os estímulos que acabava de receber. E essas três relações, assim lhe parecia, chegavam a ser uma só pelo seu caráter humano, eram variantes de uma e mesma aspiração premente, eram escolas do pensamento humanístico...

Contudo permanecia inexplicável a obra do protoplasma. Parecia vedado à vida compreender-se a si própria. A maioria dos processos bioquímicos não somente eram desconhecidos, como também era inerente à sua natureza esquivar-se à compreensão. Quase nada se sabia da estrutura, da composição dessa unidade de vida que se chamava a “célula”. Que adiantava demonstrar as partes do músculo morto? Não se podia analisar quimicamente o músculo vivo; já as modificações produzidas pela rigidez cadavérica bastavam para desvalorizar quaisquer experiências. Ninguém compreendia o metabolismo, ninguém sabia nada da natureza da função nervosa. A que qualidades deviam as papilas gustativas a faculdade do gosto? Em que consistiam os diferentes tipos de excitação que os odores produziam em certos nervos sensitivos? Em quê, o cheiro em geral? O odor específico dos animais e dos homens baseava-se na evaporação de substâncias que ninguém era capaz de definir. A composição do líquido que se chamava suor era pouco clara. As glândulas que o segregavam produziam aromas que, entre os mamíferos, desempenhavam indubitavelmente um papel destacado, e cuja importância para a vida humana os cientistas se declaravam incapazes de explicar. A função fisiológica de partes do corpo evidentemente importantes permanecia obscura. Que se deixasse sem solução o problema do apêndice vermiforme, que era um mistério, e o qual, entre os coelhos, sempre se encontrava cheio de um conteúdo pastoso que não se sabia como ali entrava nem como se renovava. Mas, qual era a explicação da substância branca e cinzenta da medulla oblongata, qual a do tálamo que se comunicava com o nervo óptico, e qual a das substâncias cinzentas que se encontram na ponte de Varólio? A medula cerebral e espinhal era a tal ponto sujeita à desintegração, que não havia esperança de penetrar-lhe jamais o segredo da estrutura. A que circunstância se devia a suspensão das unidades do córtex cerebral? O que impedia o estômago de se digerir a si próprio, fato que ocorria às vezes nos cadáveres? Respondia-se: a vida, um singular poder de resistência do protoplasma vivo – e fingia-se não perceber que essa era uma explicação mística. A teoria de um fenômeno tão comum como era a febre estava cheia de contradições. O aumento das combustões tinha como resultado uma produção mais intensa de calor. Mas, por que não aumentava também, como em outras ocasiões, o gasto de calor, para compensar esse fato? Originava-se a paralisia das glândulas sudoríparas de uma contração da pele? Entretanto, tal não se observara senão em casos de calafrios, ao passo que, fora isso, a pele se mostrava quente. A experiência da “picada bulbar” indicava o sistema nervoso central como a sede dos fatores que causavam o aumento da intensidade das combustões, bem como a referida particularidade da pele, que era qualificada de anormal porque ninguém sabia explicá-la.

No entanto, que significava toda essa ignorância em confronto com a desorientação da ciência em face de fenômenos como o da memória, ou daquela memória ampliada, digna da mais alta admiração, que se denominava transmissão hereditária de qualidades adquiridas? Era totalmente impossível chegar apenas a uma idéia vaga de uma explicação mecânica desse trabalho realizado pela substância celular. O espermatozóide que transmitia ao óvulo as inúmeras e complexas peculiaridades da espécie e da individualidade do pai era visível somente com o auxílio do microscópio, e o máximo aumento não bastava para apresentá-lo sob outro aspecto que o de um corpo homogêneo, e para permitir a determinação da sua origem, pois que o sêmen de todos os tipos de animais aparecia idêntico. Eram esses os fatores da organização que impunham a hipótese segundo a qual o mesmo que se passava no corpo superior ocorria nas células que o compunham, quer dizer, que estas também eram organismos superiores, compostos, por sua vez, de minúsculos corpos vivos, de unidades de vida individuais. Dava-se, portanto, um passo do elemento que se supusera como o menor, para outro de dimensões ainda mais reduzidas; sob a pressão da necessidade, as partes elementares eram decompostas em partículas subelementares. Não havia dúvida: assim como o reino animal era formado de diversas espécies de animais, e o organismo dos animais e dos homens de todo um reino de espécies de células, o organismo da célula compunha-se de um novo e múltiplo reino animal em unidades elementares da vida, cujo tamanho ficava muito longe do limite do que era possível ver ao microscópio; unidades que cresciam independentemente, que se multiplicavam segundo a lei de que cada qual só podia reproduzir suas semelhantes, e que, em conformidade com o princípio da divisão do trabalho, serviam, num esforço coletivo, à categoria de vida imediatamente superior à sua.

Eram esses os genes, os bioblastos, os bióforos que Hans Castorp estava encantado de conhecer, naquela noite glacial. Mas, como se achasse inspirado, perguntou-se a si próprio como se apresentaria a natureza elementar dessas unidades a quem as examinasse ainda mais de perto. Sendo portadoras de vida, deviam estar organizadas, pois a vida fundava-se na organização; mas, estando organizadas, não podiam ser elementares, já que um organismo não é elementar, senão múltiplo. Tratava-se, portanto, de unidades de vida inferiores à célula que compunham organicamente. Assim sendo, era, porém, forçoso que elas, apesar do seu tamanho incrivelmente pequeno, fossem por sua vez “construídas”, organicamente construídas, como formas de vida. Pois a idéia da unidade viva identificava-se com a da construção à base de unidades menores, subordinadas, isto é: destinadas às finalidades de uma vida superior. Enquanto a divisão tinha por resultado unidades orgânicas, dotadas das particularidades da vida – a saber, as faculdades de assimilação, de crescimento e de multiplicação –, não havia limites para ela. Com referência a unidades de vida, seria, pois, errado falar de unidades elementares, visto o conceito da unidade encerrar, ad infinitum, o conceito acessório da unidade subordinada e componente; não existia vida elementar, quer dizer, alguma coisa que já fosse vida e ainda continuasse sendo elementar.

No entanto, embora a lógica não lhe aceitasse a existência, devia em última análise existir qualquer coisa dessas, visto que a idéia da geração espontânea, e com isso, da vida originada do não-vivente, não podia ser rejeitada; aquele abismo que em vão se procurava fechar na natureza exterior, o abismo entre a vida e o inanimado, devia de certa forma ser enchido ou transposto no seio orgânico da natureza. Em algum momento tinha essa divisão de conduzir a “unidades”, que, muito embora compostas, ainda não estivessem organizadas e servissem de intermediárias entre a vida e a não-vida, grupos de moléculas que formassem a transição entre as categorias da vida e a mera química. Mas quem chegasse à molécula química já se encontraria nas proximidades de um abismo, cujas fauces escondiam um mistério muito maior ainda do que o que se abre entre as naturezas orgânica e inorgânica. E o abismo que separa o material do imaterial. Pois a molécula se compunha de átomos, e o átomo não tinha nem sequer tamanho suficiente para que fosse adequada a qualificação de “extraordinariamente pequeno”. Era de um tamanho tão reduzido, uma condensação tão ínfima, tão precoce e tão transitória do imaterial, do ainda-não-material, mas já semelhante à matéria, à energia, que mal era possível considerá-lo como matéria, senão como um quê intermediário, limítrofe, entre o material e o imaterial Surgia o problema de uma outra geração espontânea, linda mais enigmática e fantástica do que a gênese original orgânica: o da origem da matéria no imaterial. Com efeito, o abismo entre matéria e não-matéria exigia ser transposto, tão insistentemente, ou ainda com maior insistência do que aquele que existe entre a natureza orgânica e a inorgânica. Necessariamente devia haver uma química do imaterial, das combinações de que resultava o material, assim como os organismos nasciam de combinações inorgânicas. Podia ser que os átomos fossem os protozoários e as moneras da matéria – materiais, quanto à sua natureza, e todavia ainda imateriais. Mas, a quem alcançasse o ponto onde se trata daquilo que “nem sequer é pequeno”, escaparia toda a medida; “nem sequer pequeno” equivalia a “infinitamente grande”, e o passo dado em direção ao átomo manifestava-se, sem exagero, como falta no mais alto grau. Pois, no instante da mais extrema dissecação e diminuição do material, descortinava-se de repente o cosmo astronômico.

O átomo era um sistema cósmico carregado de energia, e em cujo seio gravitavam planetas, numa rotação de espantosa rapidez, em torno de um centro semelhante ao sol, e cujo éter era percorrido, a uma velocidade só mensurável em anos-luz, por cometas mantidos nas suas órbitas excêntricas pela força do corpo central. E isso não é uma simples comparação, como tampouco o seria a que define o organismo multicelular como um “Estado de células”. A cidade, o Estado, a comunidade social organizada segundo o princípio da divisão do trabalho não somente era comparável à vida orgânica, mas até a repetia exatamente. Da mesma forma repetia-se no seio da natureza, na mais extrema redução, o macrocosmo estelar, cujos grupos, nebulosas, constelações, configurações, pairavam, empalidecidos pela lua, ante os olhos do nosso adepto, por cima do vale cintilante de neve. Não seria lícito pensar que certos planetas do sistema solar atômico – esses enxames e essas vias-lácteas de sistemas solares que compunham a matéria –, que um e outro desses corpos celestes do mundo interior se encontravam numa condição semelhante àquela que fazia da Terra uma sede da vida? Para um jovem adepto um tanto embriagado no seu íntimo, e cuja pele se achava num estado “anormal”, para um homem que já não estava completamente sem experiência no terreno das coisas proibidas, tal suposição não somente não era extravagante, mas até se impunha com uma insistência inelutável, parecendo evidente e tendo todo o cunho de lógica e de verdade. A “pequenez” dos corpos celestes do mundo interior seria uma objeção pouco incisiva, já que a medida do que era grande ou pequeno se perdia o mais tardar no momento em que se evidenciava o caráter cósmico das partes “minúsculas” da matéria, e os conceitos de “exterior” e “interior” igualmente viam abalada a sua solidez. O mundo do átomo era um “exterior”, ao passo que, provavelmente, o astro terrestre que habitamos era, organicamente considerado, um profundo “interior”. Não chegara certo sábio, nos seus sonhos audaciosos, a falar dos animais da via-láctea, monstros cósmicos, cuja carne, cujo esqueleto e cérebro se compunham de sistemas solares? Mas, se isso sucedia assim como se afigurava a Hans Castorp, tudo começava apenas no instante em que se imaginava ter alcançado o término. No fundo íntimo e mais remoto do seu ser, talvez se encontrasse, ele mesmo, o jovem Hans Castorp, mais uma vez, mais cem vezes, bem agasalhado, num compartimento de sacada com vista sobre a noite glacial e enluarada dos Alpes, a estudar a vida do corpo, com os dedos enregelados e as faces ardentes, sob o impulso de um interesse médico e humanista.

A anatomia patológica, cujo manual ele segurava, inclinado para a luz vermelha da lampadazinha, informava-o, por meio de um texto entremeado de ilustrações, acerca da natureza da aglomeração parasítica de células e dos tumores infecciosos. Eram formas de tecidos – formas de caráter especialmente exuberante – provocadas pela irrupção de células estranhas num organismo que se mostrara acolhedor e de algum modo – talvez seja preciso dizer: de um modo um tanto perverso – oferecia condições favoráveis ao seu crescimento. O mal não era que o parasita privasse de alimentos o tecido circundante; mas, no decorrer do metabolismo peculiar a toda célula, produzia ele combinações orgânicas surpreendentemente tóxicas e inevitavelmente perniciosas. Conseguira-se isolar e apresentar, sob uma forma concentrada, as toxinas de alguns microrganismos e causara surpresa ver quão minúsculas doses dessas substâncias, que eram simples combinações de albumina, bastavam para originar os mais perigosos fenômenos de envenenamento e a mais rapace perdição, quando introduzidas na circulação de um animal. A aparência exterior dessa corrupção era a de uma excrescência dos tecidos, o tumor patológico, que constituía a reação das células contra o estímulo exercido pelos bacilos estabelecidos entre elas. Formavam-se nódulos do tamanho de grãos de painço, compostos de células cuja estrutura se parecia com a dos tecidos das mucosas, e entre as quais, ou nas quais, se instalavam os bacilos; algumas dessas células, extraordinariamente ricas em protoplasma, tornavam-se gigantescas e multinucleares. Mas essa exuberância conduzia a uma rápida ruína, pois que os núcleos dessas células monstruosas começavam logo a se atrofiar e a se decompor, estragando-se o seu protoplasma em virtude da coagulação; novas zonas do tecido vizinho eram invadidas por aquela irritação estranha; fenômenos de inflamação iam se alastrando e atacavam os vasos adjacentes; os glóbulos brancos, irresistivelmente atraídos, encaminhavam-se ao local do desastre; progredia a morte por coagulação, e nesse ínterim os venenos solúveis das bactérias já haviam embriagado os centros nervosos; o organismo alcançara uma temperatura elevadíssima, e cambaleava, por assim dizer, com ânimo alegre, rumo à própria dissolução.

Até esse ponto adiantava-se a patologia, a teoria da enfermidade, a acentuação da dor física, que, no entanto, como acentuação do elemento corporal, acentuava também a volúpia. A enfermidade era a forma licenciosa da vida. E a vida, por sua vez? Não passava ela, quiçá, de uma doença infecciosa da matéria, assim como aquilo que se podia denominar de geração espontânea da matéria talvez fosse apenas uma enfermidade, uma excrescência causada por uma irritação do imaterial? O início da marcha para o mal, para a voluptuosidade e para a morte dava-se, sem dúvida, no lugar onde, provocada pelo prurido de uma infiltração desconhecida, realizava-se aquela primeira condensação do espírito, aquela vegetação patologicamente exuberante do seu tecido, mescla de prazer e de repulsa, que constituía a fase mais primitiva do substancial, a transição do imaterial ao material. Eis o que era o pecado original. A segunda geração espontânea, a criação do orgânico pelo inorgânico já não era mais do que uma intensificação maligna do progresso do corpo em direção à consciência, da mesma forma que a enfermidade do organismo era um exagero ébrio e um relevo indecente da sua natureza física. A vida chegava a ser apenas o próximo passo no caminho aventuroso do espírito que se tornara impudico, o cálido reflexo do pudor da matéria que fora despertada à sensibilidade e se mostrara disposta a corresponder ao apelo...

Montões de livros achavam-se empilhados na mesinha com a lâmpada. Um jazia no chão, ao lado da espreguiçadeira, sobre a esteira da sacada, e aquele que Hans Castorp estudara por último pesava-lhe sobre o estômago, oprimindo-o e embargando-lhe a respiração, sem que, entretanto, do córtex cerebral partissem aos músculos competentes ordens no sentido de o afastarem. O jovem lera a página até o fim, e seu queixo alcançara o peito. As pálpebras haviam-se fechado espontaneamente por cima dos singelos olhos azuis. Via ele a imagem da vida, a estrutura dos seus membros florescentes, a beleza cuja portadora era a carne. Ela retirara as mãos da nuca; abria os braços, a cujo lado interior, antes de tudo sob a pele delicada da articulação do cotovelo, se desenhavam, azulados, os vasos de sangue, as duas ramificações das grandes veias, e esses braços eram de uma indizível doçura. A imagem aproximou-se dele, inclinou-se para ele, sobre ele. Hans Castorp sentiu-lhe o odor orgânico, sentiu-lhe o pulsar do coração. Alguma coisa quente e delicada enlaçou o pescoço de Hans Castorp, e enquanto ele, desfalecendo de volúpia e de angústia, pousava as mãos sobre o lado externo desses braços, ali onde a pele granulosa, tensa sobre o tricípite era de delicada frescura, sentiu nos lábios a úmida sucção de um beijo.

 

         Dança macabra

Pouco depois do Natal morreu o aristocrata austríaco... Mas antes celebrou-se ainda o Natal, esses dois dias de festa, ou mais exatamente esses três dias, se se incluir o Ano-Novo, que Hans Castorp aguardara com certo pavor, perguntando-se com cética curiosidade como passariam, e que então tinham chegado e decorrido como dias normais, com uma manhã, uma tarde e uma noite, e com um tempo nada extraordinário, de leve degelo, não se diferenciando de outros exemplares da sua espécie. Exteriormente haviam recebido certas distinções e certos adornos, e durante o prazo que lhes era outorgado tinham exercido o seu domínio sobre os cérebros e os corações dos homens, antes de se tornarem passado, próximo e cada vez mais distante, deixando atrás um sedimento de impressões destacadas da vida cotidiana...

O filho do Dr. Behrens, de nome Knut, veio passar as férias em Davos e se alojou com o pai na ala do sanatório. Era um rapaz bonito, mas cuja nuca também já começava a salientar-se em demasia. A presença do jovem Behrens fazia-se sentir no ambiente. As senhoras mostravam-se risonhas, faceiras e irritadiças, e as suas conversas tratavam de encontros com Knut no jardim, no bosque ou na estância balneária. Ele também recebeu visitas: certo número de colegas da universidade subiram ao vale, seis ou sete estudantes, alojados na aldeia, mas que tomavam as refeições em companhia do conselheiro e, reunidos com outros membros do seu grêmio, percorriam em grupos toda a região. Hans Castorp procurava não encontrá-los. Evitava esses jovens, e tanto ele como Joachim esquivavam-se ao contato com eles, pois não tinham nenhuma vontade de conhecê-los. Todo um mundo separava os que viviam ali em cima desses rapazes que cantavam, caminhavam e brandiam bengalas. Hans Castorp nada queria saber nem ouvir a respeito deles. Além disso, a maioria dos visitantes parecia natural do norte da Alemanha; talvez até houvesse entre eles alguns concidadãos, e Hans Castorp experimentava alguma aversão pelos seus conterrâneos. Freqüentemente ventilava, com antipatia, a possibilidade da chegada de hamburgueses ao Berghof, tanto mais que Behrens dissera que essa cidade fornecia ao estabelecimento um considerável contingente de clientes. Era possível que algum patrício seu se encontrasse entre os doentes graves ou moribundos que ninguém via. Visível era apenas um comerciante de faces cavas, que se instalara, fazia algumas semanas, à mesa da Srª. Iltis, e do qual diziam que era natural de Cuxhaven. Ao pensar nessa vizinhança, Hans Castorp regozijava-se com a dificuldade de estabelecer, ali em cima, contato com as pessoas de outras mesas, e com o fato de ser a sua terra natal muito extensa e dividida em diversas esferas. A presença indiferente desse comerciante tranqüilizava em grande parte as preocupações que despertara nele a idéia de topar com outros hamburgueses no recinto do sanatório.

Aproximava-se, pois, o Ano-Novo. Certo dia já estava iminente, e no seguinte tornou-se realidade... Naquela ocasião, quando Hans Castorp se admirara de já ouvir falar do Natal, pelo menos seis semanas o haviam separado da festa, tanto tempo, por conseguinte, quanto deviam durar toda a sua permanência segundo o plano primitivo e mais as três semanas que passara na cama. Mas, as seis semanas de então tinham representado um tempo enorme, sobretudo a sua primeira metade, tal qual se afigurava à retrospectiva de Hans Castorp, ao passo que agora um período teoricamente igual significava quase nada: parecia-lhe que os comensais tinham razão quando faziam tão pouco caso desse lapso de tempo. Seis semanas, nem sequer tantas quantos dias tem a semana – que importância tinham elas, quando se ventilava a outra questão de saber o que era uma dessas semanas, um desses pequenos circuitos de segunda-feira até domingo e até a nova segunda-feira? Bastava considerar o valor e a significação da unidade menor, mais próxima, para compreender que o resultado da adição não podia ser grande coisa, resultado esse que, além do mais e ao mesmo tempo, intensificava sensivelmente o processo de contração, obliteração, encolhimento e destruição. Que era um dia, contado, por exemplo, a partir do momento em que a gente se sentava para almoçar, até a volta desse instante, vinte e quatro horas depois? Nada – apesar de serem vinte e quatro horas. Mas, que era, afinal, uma hora, gasta, por exemplo, no repouso obrigatório, num passeio ou numa refeição – enumeração que esgotava, aproximadamente, as possibilidades de se passar essa unidade de tempo? Outra vez nada. O total desses nadas pesava pouco. O caso tornava-se, todavia, mais sério, quando a escala descia até as unidades menores: esses sete vezes sessenta segundos, durante os quais se mantinha o termômetro entre os lábios, a fim de poder-se prolongar a curva da temperatura, tinham uma vida tenaz e o seu peso era considerável; dilatavam-se até formar uma pequena eternidade, insertavam períodos de extrema solidez na fuga fantasmagórica do tempo graúdo...

O dia de festa mal fora capaz de perturbar o regime habitual dos habitantes do Berghof. Um belo pinheiro já fora erguido, alguns dias antes, ao lado direito da sala de refeições, junto à mesa dos “russos ordinários”, e seu aroma que, através do cheiro dos pratos abundantes, chegava às vezes até os comensais, acendia um quê pensativo nos olhos de algumas pessoas agrupadas em torno das sete mesas. Na hora do jantar do dia 24 de dezembro, a árvore ostentava enfeites variegados de fios de prata, bolas de vidro, pinhões dourados, pequenas maçãs, suspensas em redes, e toda espécie de bombons. As velas de cera multicor brilharam durante e após a refeição. Segundo se dizia, achavam-se arvorezinhas de velas acesas também nos quartos dos doentes acamados; cada qual tinha a sua. E nos últimos dias, o correio trouxera encomendas em abundância. Também Joachim Ziemssen e Hans Castorp haviam recebido remessas da sua terra na longínqua planície, mimos empacotados com carinho, que agora se achavam espalhados pelos seus quartos: roupas engenhosamente escolhidas, gravatas, objetos de luxo, executados em couro e níquel, bem como muitos doces próprios para a festa, nozes, maçãs e maçapão – provisões que os primos contemplavam com um ar incerto, perguntando-se quando chegaria o momento de comer tudo isso. Como Hans Castorp sabia, o seu pacote fora feito por Schalleen, que também comprara os presentes, após uma ponderada deliberação com os tios. A remessa vinha acompanhada de uma carta de James Tienappel, redigida a máquina, mas em seu grosso papel particular. O tio transmitia as felicitações de Natal e os votos por um rápido restabelecimento, os do tio-avô tanto como os seus próprios, e com muito senso prático acrescentava logo as felicitações pelo Ano-Novo, já quase que vencidas, assim como também fizera Hans Castorp, quando, em tempo, escrevera deitado na espreguiçadeira a carta de Natal ao Cônsul Tienappel, comunicando ainda alguns pormenores acerca do seu estado de saúde.

Na sala de refeições, a árvore resplandecia, crepitava, exalava o seu perfume e mantinha viva nos corações e nos espíritos a consciência da hora. Todos se haviam engalanado; os senhores trajavam smoking, e as senhoras exibiam jóias que lhes tinham enviado as mãos carinhosas dos maridos, de todas as zonas da planície. Também Clávdia Chauchat substituíra o costumeiro suéter de lã por um vestido de gala, que tinha, todavia, algo de extravagante, ou melhor, de nacional: era um costume claro, cinturado e bordado, de caráter rústico, russo ou pelo menos balcânico, talvez búlgaro, guarnecido de lantejoulas de ouro, e cujas amplas pregas faziam-lhe a silhueta parecer mais cheia do que normalmente, o que correspondia muito bem àquilo que Settembrini chamava a sua “fisionomia tártara” e sobretudo a seus “olhos de lobo da estepe”. Reinava grande alegria na mesa dos “russos distintos”; foi ali que espocou a primeira rolha de champanha, que então surgiu em quase todas as mesas. Na dos primos, a velha tia pediu-o para a sua sobrinha e para Marusja, e logo se pôs a regalar todo mundo. O cardápio era seleto e terminava com pastéis de queijo e bombons finos, sendo completado por café e licores. De vez em quando, um ramo de pinheiro que se incendiara e tinha de ser apagado depressa provocava um pânico barulhento e exagerado. Settembrini, vestido como sempre, e com um palito na mão, sentou-se um instante, ao fim do banquete, à mesa dos primos. Caçoou com a Srª. Stöhr e passou então a comemorar, em algumas frases, o Filho do Carpinteiro e o Rabino da Humanidade, cujo aniversário se simulava nesse dia. Não se sabia com certeza se ele vivera verdadeiramente. Mas o que nascera naquela época e começava a sua marcha vitoriosa, ininterrompida até hoje, era a idéia do valor da alma individual, junto com a idéia da igualdade – numa palavra, a democracia individualista. A ela brindava, ao esvaziar a taça que lhe haviam oferecido. A Srª. Stöhr achou essa maneira de falar “equívoca e desalmada”. Levantou-se sob protesto, e como, de qualquer modo, os demais já estavam abandonando a sala de refeições, os companheiros de mesa imitaram-lhe o exemplo.

A reunião noturna tornou-se solene e animada pela entrega dos presentes ao Dr. Behrens, que chegou, acompanhado de Knut e da Mylendonk, para passar meia hora com seus pacientes. O ato teve lugar na saleta dos aparelhos ópticos. O presente que os russos ofertavam em separado consistia num objeto de prata, uma bandeja redonda, muito grande, em cujo centro se achava gravado o monograma do conselheiro, e que, evidentemente, não podia ter a menor serventia. Em compensação, o divã, com o qual os demais pensionistas haviam presenteado o médico, servia ao menos para a gente se deitar, conquanto ainda não tivesse nem colcha nem almofadas e fosse simplesmente forrado de pano. Mas, a cabeceira era graduável, e Behrens logo experimentou a comodidade do móvel, estendendo-se ao comprido, com a bandeja inútil sob o braço, cerrando os olhos e pondo-se a roncar qual uma serraria; pretendia ser o dragão Fafnir ao lado do seu tesouro. A hilaridade foi grande. Também Mme. Chauchat riu-se dessa cena; seus olhos estreitaram-se, a boca estava muito aberta, exatamente – assim pareceu a Hans Castorp – como a de Pribislav Hippe quando se ria.

Imediatamente após a saída do diretor, foram ocupadas as mesas de jogo. O grupo russo instalou-se, como sempre, no pequeno salão. Na sala de refeições, alguns pensionistas permaneceram de pé, em torno da árvore de Natal, observando como os tocos de vela se apagavam nos suportes, e saboreando os bombons suspensos dos ramos. Às mesas, já postas para o café da manhã, achavam-se sentadas diversas pessoas, distantes umas das outras, num isolamento silencioso; havia quem apoiasse a cabeça nas mãos.

O primeiro dia de Natal foi úmido e brumoso. Tratava-se apenas de nuvens, segundo afirmava Behrens, nuvens que envolviam o vale. Nunca havia cerração ali em cima. Mas, nuvens ou cerração – em todo caso a umidade era penetrante. A neve caída ia se derretendo na superfície, tornando-se porosa e pegajenta. Durante o repouso obrigatório, o rosto e as mãos enregelavam-se de maneira muito mais penosa do que em dias de frio seco.

O dia distinguiu-se por um sarau musical, um verdadeiro concerto com cadeiras enfileiradas e programas impressos, oferecido aos “dali de cima” pela direção do Berghof. Era um recital de canções, executado por uma cantora profissional que vivia em Davos e dava aulas. Levava ela duas medalhas junto ao decote do vestido de gala. Tinha uns braços que se pareciam com bengalas, e uma voz cujo timbre estranhamente surdo revelava de modo lastimável os motivos da sua permanência nessas alturas. Cantava:

 

           “Eu levo comigo

             O meu amor...”

 

O pianista que a acompanhava residia igualmente na aldeia. Mme. Chauchat estava sentada na primeira fila, mas aproveitou o intervalo para se retirar, de forma que Hans Castorp, a partir desse momento, teve ensejo para escutar a música – de qualquer modo tratava-se de música – com o coração tranqüilo, seguindo a letra das canções que se achava impressa nos programas. Durante algum tempo, Settembrini quedou-se a seu lado, antes que desaparecesse também, após ter feito algumas observações incisivas e plásticas acerca do bel canto surdo da cantora do lugar e de ter observado, com alguma satisfação satírica, que mesmo nessa noite estavam “em família”. Para falar a verdade, Hans Castorp sentiu-se aliviado quando ambos saíram, a mulher dos olhos estreitos e o pedagogo, permitindo-lhe devotar livremente a sua atenção às canções. Julgou acertado que no mundo inteiro se fizesse música, até sob as circunstâncias mais especiais, inclusive nas expedições polares.

O segundo dia de Natal já não se distinguiu em nada, a não ser pela ligeira consciência da sua presença, de um domingo ou mesmo de um simples dia útil. Quando chegou a seu fim, pertencia a festa de Natal ao passado ou, como poderíamos dizer com igual exatidão, ficava relegada ao longínquo porvir, à distância de um ano; haveria novamente doze meses até a época em que o Natal se renovaria no ciclo do ano – afinal de contas apenas sete meses a mais do que Hans Castorp já acabava de passar ali em cima.

Mas, logo após o Natal desse ano, ainda antes do Ano-Novo, morreu o aristocrata austríaco. Os primos souberam por intermédio de Alfreda Schildknecht, a chamada Irmã Berta, enfermeira do pobre Fritz Rotbein, a qual lhes comunicou no corredor o acontecimento, que exigia discrição. Hans Castorp interessou-se vivamente pelo assunto, já que as manifestações de vida do aristocrata haviam formado parte das primeiras impressões que recebera ali – daquelas impressões que, segundo lhe parecia, tinham provocado a sensação de calor no seu rosto, a qual persistia desde então – e também por motivos morais, de natureza quase religiosa. Hans Castorp obrigou Joachim a uma prolongada conversa com a diaconisa, que apreciava com gratidão e tenacidade o diálogo e a troca de opiniões. Era um milagre – dizia ela – que o austríaco houvesse chegado a ver os dias de festa. Desde muito, o cavalheiro mostrara grande resistência, mas ninguém podia explicar com o que conseguira respirar nos últimos tempos. Verdade era que desde alguns dias só se sustentara graças a imensas quantidades de oxigênio; ainda ontem consumira quarenta balões, a seis francos cada um. Isso devia ter custado um dinheirão, como os senhores podiam calcular. Era preciso considerar, além do resto, que a esposa, em cujos braços expirara, ficava completamente sem recursos. Joachim desaprovou esse desperdício. Para que aquela tortura e aquela demora artificial e custosa num caso totalmente desesperado? Não se podia censurar o homem por ter engolido cegamente o precioso gás vivificante, já que o tinham forçado a isso. Porém os que o tratavam deveriam ter procedido com mais siso, deixando-o trilhar com Deus o seu caminho inevitável, independentemente da situação financeira, e ainda mais em consideração a esta. Os vivos também tinham algum direito. E ainda outras coisas nesse tom. Mas Hans Castorp replicou-lhe com ênfase. Censurou o primo por falar quase como Settembrini, sem respeito nem pejo diante do sofrimento. O aristocrata austríaco morrera, afinal, e em face desse fato deviam cessar quaisquer brincadeiras. Era só isso que lhes restava fazer para demonstrarem a sua seriedade, e um agonizante tinha direito a toda a reverência e a todas as honras. Hans Castorp insistia em defender essa opinião. Esperava ao menos que Behrens não tivesse ralhado com o aristocrata, ainda in extremis, fazendo-lhe reprimendas naquela sua maneira ímpia. Não havia sido necessário, declarou a Schildknecht. O moribundo fizera, na verdade, no último momento, uma pequena e inconsiderada tentativa de fuga, procurando saltar da cama. Mas uma simples observação a respeito da inutilidade de tal intento bastara para fazê-lo desistir de uma vez por todas.

Hans Castorp foi ver o defunto. Fê-lo por antipatizar com o sistema estabelecido, que consistia em ocultar tais acontecimentos. Desprezava essa atitude egoísta dos outros, que não queriam saber nem ver nem ouvir essas coisas, e desejava contrariá-la ativamente. À mesa fizera uma tentativa no sentido de mencionar o óbito, mas houvera em face do assunto uma repulsa tão unânime e tão obstinada que Hans Castorp sentira vergonha e indignação. A Srª. Stöhr até se mostrara agressiva. Que idéia era essa de falar daquelas coisas?, perguntara. Que espécie de educação recebera ele? O regulamento da casa protegia os pensionistas cuidadosamente contra o contato com tais histórias, e agora vinha um novato e se metia a falar disso em voz alta, justamente na hora do assado, e ainda em presença do Dr. Blumenkohl, que a qualquer instante podia ter a mesma sorte. (Essas últimas palavras foram tapadas com a mão.) Se isso se repetisse, ela ia queixar-se ao diretor. Em conseqüência dessa atitude, decidira Hans Castorp – e também expressara a sua decisão – prestar a derradeira homenagem ao companheiro falecido, indo visitá-lo no seu leito de morte e rezando uma tácita oração. Convencera Joachim a que o acompanhasse.

Por intermédio da Irmã Berta conseguiram penetrar na câmara mortuária, que se achava no primeiro andar, debaixo dos seus próprios quartos. Recebeu-os a viúva, uma lourinha desgrenhada, exausta pelas vigílias, de nariz vermelho, com um lenço diante da boca; trajava um grosso sobretudo, com a gola levantada, pois fazia muito frio no recinto. Haviam desligado a calefação, e a porta da sacada estava aberta. Em voz abafada, os jovens murmuraram algumas palavras adequadas. A seguir, melancolicamente convidados por um gesto de mão, atravessaram o quarto em direção à cama, avançando nas pontas dos pés, com passo reverencioso e cadenciado, e permaneceram em contemplação diante do leito do morto, cada qual à sua maneira: Joachim, numa posição militar, com os tacões unidos, saudando com uma leve mesura; Hans Castorp, relaxado e pensativo, com as mãos cruzadas sobre o peito, e com a cabeça inclinada para o ombro, exibindo uma fisionomia semelhante àquela com que costumava ouvir música. A cabeça do aristocrata achava-se colocada muito alto, de maneira que o corpo, esse conjunto comprido, berço dos múltiplos processos da vida, com os pés erguidos sob a extremidade da colcha, aparecia tanto mais plano, lembrando uma tábua. Uma grinalda de flores jazia na região dos joelhos, e o ramo de palmas que saía dela tocava as grandes mãos amarelas e ósseas, que repousavam entrelaçadas sobre o peito afundado. Amarelo e ósseo era também o rosto, com o crânio calvo, o nariz adunco, as maçãs acentuadas e o basto bigode ruivo, cuja espessura ainda contribuía para intensificar a concavidade cinzenta das faces hirtas. Os olhos estavam fechados com uma firmeza pouco natural. “Não se fecharam, foram fechados”, pensou Hans Castorp. Chamava-se isso o último tributo, apesar de ser rendido antes em consideração aos vivos do que ao morto. Era preciso fazê-lo a tempo, imediatamente depois da morte; pois, uma vez formada a miosina nos músculos, tornava-se impossível; então o cadáver permanecia estendido, olhando fixamente, e já não se podia manter a doce ilusão do “adormecimento”.

Como perito, sentindo-se no seu elemento sob mais de um aspecto, Hans Castorp detinha-se ao lado da cama, cheio de competência, mas também de piedade. – Parece dormir – disse por compaixão, se bem que houvesse grandes diferenças. A seguir, numa voz convenientemente abafada, entabulou uma conversa com a viúva do aristocrata, informando-se sobre o martírio do marido, sobre os últimos dias e instantes, e sobre o futuro transporte do corpo para a Caríntia. A simpatia e a compreensão que suas perguntas demonstravam tinham um caráter ao mesmo tempo médico e sacerdotal. A viúva expressava-se no seu dialeto austríaco, numa fala arrastada e fanhosa, às vezes interrompida por soluços. Pareceu-lhe notável que dois jovens manifestassem tanta disposição para participar da mágoa alheia; ao que Hans Castorp respondeu que seu primo e ele também estavam enfermos; quanto à sua própria pessoa, já se achara, em idade muito tenra, junto ao leito de morte de parentes próximos; era órfão de pai e mãe, e por conseguinte familiarizado com a morte havia muito tempo. Ela indagou pela profissão que Hans Castorp escolhera. Ele explicou que “fora” engenheiro. Fora? Sim, no sentido de que agora a enfermidade e a duração bastante incerta da sua permanência ali em cima lhe haviam estorvado os planos, o que, indubitavelmente, representava um marco importante e talvez um novo rumo para a sua existência. Isso não se podia prever. (Joachim lançou-lhe um olhar observador e espantado.) – E o senhor seu primo? – perguntou ela.

– Ele deseja ser soldado, lá embaixo. É aspirante.

– Ah! – disse a viúva, e acrescentou que a profissão militar era, com efeito, apropriada para induzir à seriedade. Um soldado devia andar preparado para certas circunstâncias que o pusessem em contato direto com a morte. Talvez lhe fizesse bem habituar-se desde cedo ao seu aspecto. E ela despediu os jovens, expressando gratidão com uma calma amável que não podia deixar de causar respeito a quem considerasse a sua situação angustiosa e, sobretudo, a elevada conta de oxigênio que lhe legara o marido. Os primos voltaram aos seus quartos. Hans Castorp mostrou-se satisfeito com a visita e piedosamente inspirado pelas impressões que acabava de receber.

– Requiescat in pace – disse. – Sit tibi terra levis. Requiem aeternam dona ei, Domine. Você está vendo, quando se trata da morte, ou quando a gente se dirige a um morto ou se refere a ele, o latim entra novamente nos seus direitos. É a língua oficial para esses casos. Vê-se que a norte é coisa bem especial. Mas não é por mera cortesia humanística que se fala latim em sua honra. A língua dos mortos não é o latim que se aprende na escola, sabe? Tem um espírito muito diferente, um espírito completamente oposto, pode-se dizer. É o latim sacro, o dialeto monacal, é a Idade Média, em certo sentido, um canto surdo, monótono, que sai de baixo da terra. Settembrini não gostaria dele; isso não agrada a humanistas e republicanos e a esse tipo de pedagogos; nasceu de outra mentalidade, da outra das duas que existem. Acho que devemos adquirir clareza a respeito das diferentes tendências do espírito, ou talvez seja melhor dizer: a respeito dos seus diferentes estados. Há duas atitudes: a livre e a piedosa. Ambas têm as suas vantagens, mas o que me faz antipatizar com a atitude livre, quero dizer, a de Settembrini, é que ela pretende ter o monopólio da dignidade. Isso é exagerado. A outra atitude encerra também, a seu modo, muita dignidade humana e resulta num vasto conjunto de decência, de procedimento correto e de nobre cerimonial, muito mais do que a atitude livre, embora vise especialmente à fraqueza e à instabilidade dos homens e nela desempenhe um papel importante o pensamento da morte e da decomposição. Você já viu no teatro o Dom Carlos e as coisas que se passam na corte espanhola, quando entra o Rei Filipe todo vestido de preto, com a Ordem da Jarreteira e a do Tosão de Ouro, e tira lentamente o chapéu, que se parece muito com os nossos chapéus-coco. Levanta-o e diz: “Cobri-vos, meus grandes!” ou qualquer coisa nesse sentido. Não se pode negar que isso é um comportamento sumamente comedido. Nele nada nos lembra relaxamento e costumes descuidados. Pelo contrário, a própria rainha diz: “Na minha França tudo era diferente”. Claro, ela acha que tudo isso é excessivamente complicado e meticuloso; desejaria um ambiente mais alegre, mais humano. Mas que quer dizer humano? Tudo é humano. O elemento devoto, humildemente solene, rigorosamente regulado, que é peculiar aos espanhóis, é um gênero muito digno da humanidade, penso eu, e por outro lado essa palavra “humano” pode encobrir qualquer desordem e negligência. Não está de acordo?

– Nesse ponto concordo com você – disse Joachim. – Eu também não suporto a negligência e a moleza. A disciplina é indispensável.

– Pois é. Você diz isso como militar, e eu não nego que no exército entendem desse assunto. A viúva tinha perfeitamente razão quando asseverou que o ofício de vocês tem um caráter sério, porque é sempre preciso contar com a pior das eventualidades e estar preparado para um encontro com a morte. Vocês têm o uniforme que é limpo e justo e requer um colarinho engomado. Essas coisas dão às pessoas um certo decoro. E existem ainda a hierarquia e a obediência, e um soldado presta honra ao outro, cerimoniosamente. Tudo isso se faz dentro do espírito espanhol, por devoção, e no fundo me agrada bastante. Entre nós, os civis, deveria haver muito mais desse espírito, nos nossos costumes e na nossa atitude. É o que eu prefiro e que julgo conveniente. Parece-me que o mundo e a vida foram feitos de tal sorte que deveríamos sempre andar de preto, com uma golilha engomada em lugar do colarinho, e manter uns com os outros relações graves, reservadas e formais, recordando-nos da morte. Eu gostaria que fosse assim. Acho que isso corresponde à moral. Olhe, aí temos mais um desses erros e dessas presunções de Settembrini. É ótimo que a nossa conversa me proporcione uma oportunidade para falar sobre isso. Ele imagina ter monopolizado não somente a dignidade humana, mas também a moral, por causa da sua “atividade prática” e das suas solenidades domingueiras em prol do progresso – como se precisamente nos domingos não se pensasse em coisas bem alheias ao progresso – e com o seu extermínio sistemático dos males; é esse um assunto de que você não está inteirado, mas do qual ele me falou para me instruir. O homem quer exterminá-los sistematicamente, por meio de uma enciclopédia. E se justamente isso me parece imoral?... Claro que não o digo a ele, porque logo me esmagaria com a sua lábia plástica e diria: “Eu o estou prevenindo, engenheiro!” Mas pelo menos tenho o direito de pensar o que quero. “Majestade, conceda-nos liberdade de pensamento!” Vou lhe dizer uma coisa – acrescentou. Nesse meio tempo haviam chegado ao quarto de Joachim, e este se preparava para o repouso. – Vou lhe dizer o que tenho a intenção de fazer. Vivemos aqui lado a lado com pessoas agonizantes e com o mais grave sofrimento e martírio, mas essa gente não só se comporta como se nada tivesse que ver com isso, mas também é protegida e abrigada contra o mínimo contato com essas coisas e contra o seu aspecto. Tenho certeza de que farão desaparecer o aristocrata austríaco, clandestinamente, enquanto estivermos almoçando ou tomando o chá da tarde. Acho isso contrário à moral. A Stöhr já ficou furiosa, quando apenas mencionei o falecimento. Não suporto tamanha estupidez. Que ela não tenha a mínima cultura e pense que “Leise, leise, fromme Weise” é do Tannhäuser, como afirmou há poucos dias à mesa, vá lá; mas, com tudo isso, poderia ter sentimentos um pouco mais morais, e os outros também. Por isso me propus ocupar-me no futuro dos enfermos graves e dos moribundos da casa. Isso me fará bem. Essa visita que acabamos de fazer também me animou, em certo sentido. O coitado do Reuter, do número 25, aquele rapaz que eu vi através de uma frincha da porta, logo nos primeiros dias da minha estadia aqui, provavelmente se encaminhou ad penates, há muito tempo, e foi escamoteado discretamente. Já naquela ocasião tinha os olhos exageradamente dilatados. Mas restam muitos outros; a casa está cheia, e nunca faltam entradas novas. A Irmã Berta ou a Superiora, ou talvez o próprio Behrens nos ajudarão certamente a entrar em relações com algumas dessas pessoas. Isso não pode ser difícil. Supondo que um moribundo esteja fazendo anos, e a gente fique sabendo da data... São coisas que se podem descobrir. Pois bem, enviaremos ao quarto desse homem, ou dessa senhora – a ele ou a ela, segundo o caso –, um vaso com flores, como atenção de dois companheiros anônimos, com os nossos melhores votos para o seu restabelecimento – a palavra “restabelecimento”, por pura cortesia, nunca deixa de ser adequada. Naturalmente acabarão por revelar os nossos nomes às referidas pessoas, e ele ou ela, no seu estado de fraqueza, manda-nos, através da porta, uns cumprimentos amáveis, e talvez nos convide para entrarmos um instante no seu quarto. Então trocaremos algumas palavras humanas com essa pessoa, antes de ela se desagregar. É assim que eu imagino a coisa. Você está de acordo? Quanto a mim, estou resolvido.

Joachim pouco tinha que opor a esse projeto. – É contrário ao regulamento da casa – disse. – Sob certo ponto de vista, você o infringiria. Mas, excepcionalmente, e como você insiste tanto, pode ser que o Behrens lhe dê a licença. Refira-se ao seu interesse pela medicina.

– Sim, entre outras coisas vou me referir a isso também – respondeu Hans Castorp, e, realmente, os motivos de que nascera o seu desejo eram complexos. O protesto contra o egoísmo reinante era apenas um dentre eles. O que ainda contribuía para a sua decisão era, antes de tudo, a necessidade que experimentava o seu espírito de tomar a sério e de poder honrar o sofrimento e a morte; necessidade que ele esperava satisfazer e fortificar pelo contato com os enfermos graves e os agonizantes; tal contato compensaria os múltiplos insultos a que a dita necessidade se via exposta a cada passo, cada dia e cada momento, e que confirmavam, de um modo chocante, certas opiniões de Settembrini. Exemplos que corroborassem isso existiam em abundância. Se interrogássemos Hans Castorp, ele citaria, talvez, em primeiro lugar certos habitantes do Berghof que, segundo a sua própria confissão, absolutamente não estavam doentes e viviam ali por livre e espontânea vontade, sob o pretexto oficial de uma ligeira infecção, mas em realidade só para se divertir, e porque lhes comprazia o estilo de vida dos enfermos; um caso desses era a viúva Hessenfeld, já mencionada ocasionalmente, mulher muito viva cuja paixão era apostar. Apostava com os cavalheiros, apostava a respeito de qualquer assunto, apostava no tempo que haveria, nos pratos que seriam servidos, nos resultados dos futuros exames gerais e no número de meses que seriam impostos a determinada pessoa, em certos trenós, campeões de esqui ou de patinação, quando das competições desportivas, no desenvolvimento das intrigas amorosas que eram tecidas entre os pensionistas, enfim, em mil coisas na sua maioria insignificantes e indiferentes; apostava chocolate, champanha ou caviar, que então eram solenemente consumidos no restaurante, apostava dinheiro, entradas de cinema e beijos a dar ou a receber – numa palavra, com essa sua mania animava e enchia de vida a sala de refeições. Mas tal conduta afigurava-se pouco séria ao jovem Hans Castorp, e a sua simples existência parecia-lhe uma afronta à dignidade desse lugar de sofrimentos.

Pois, no íntimo, ele se empenhava lealmente em proteger essa dignidade e em mantê-la perante si próprio, por mais difícil que isso se lhe tornasse depois de quase meio ano de permanência entre os dali de cima. Os olhares que pouco a pouco conseguira lançar à vida, às atividades, aos hábitos e aos conceitos desse pessoal não eram apropriados para incrementar a sua boa vontade. Havia lá aqueles dois peralvilhos magros, de dezessete e dezoito anos, respectivamente, e cognominados de “Max e Moritz”; suas escapadas noturnas, com o fim de jogar pôquer ou de cair na bebedeira, davam abundante assunto às conversas do mundo feminino. Recentemente, isto é, oito dias depois do Ano-Novo – não nos esqueçamos de que, enquanto contamos a nossa história, o tempo progride sem descanso no seu curso silencioso –, difundiu-se, durante o almoço, a notícia de que o massagista encontrara, em plena manhã, os dois rapazes estendidos sobre as suas camas, ainda trajando os smokings amarrotados. Também Hans Castorp se riu disso; mas essa história, por mais que lhe envergonhasse os sentimentos elevados, não era nada em comparação com as aventuras do advogado Einhuf, de Jüterbog, um quarentão com cavanhaque e com mãos cobertas de pêlos negros, que fazia algum tempo ocupava, à mesa de Settembrini, o antigo lugar do sueco restabelecido; não somente voltava ele noite após noite a casa em estado de completa embriaguez, mas alguns dias atrás nem sequer regressara, sendo encontrado no dia seguinte estatelado no jardim. Passava por um estróina perigoso, e a Srª. Stöhr era capaz de apontar com o dedo para a jovem noiva de um senhor na planície, que, a determinada hora, fora vista saindo do quarto de Einhuf, envolta unicamente num abrigo de peles, sob o qual, segundo o que se afirmava, havia apenas uma combinação. Era escandaloso, não só com respeito à moral em si, mas também escandaloso e ofensivo para Hans Castorp pessoalmente, em consideração aos seus esforços espirituais. Acrescia a isso que ele era incapaz de pensar na pessoa do advogado, sem incluir nos seus pensamentos também Fränzchen Oberdank, aquela mocinha de cabelos lisos, que havia poucas semanas chegara ali, apresentada pela mãe, uma digna matrona provinciana. Quando da sua chegada e após o primeiro exame, Fränzchen Oberdank fora considerada um caso leve. Mas, seja porque houvesse cometido alguma imprudência, seja porque se tratasse de um daqueles casos em que o ar era bom não para combater, senão para fomentar a doença, ou seja ainda porque a pequena se tivesse enredado em certas intrigas e desgostos que lhe tinham prejudicado a saúde – em todo caso sucedeu o seguinte quatro semanas depois do seu internamento: ao voltar de um segundo exame e ao entrar na sala de refeições, jogou a bolsinha ao ar e exclamou em voz muito alta: “Viva! Tenho de ficar aqui um ano inteiro!”, o que provocou uma gargalhada homérica em toda a sala. Quinze dias após, porém, circulou o rumor de que o advogado Einhuf se portara como um canalha para com Fränzchen Oberdank. Aliás, essa expressão é nossa, ou melhor: vai por conta de Hans Castorp, já que os portadores do boato não julgavam o assunto de natureza bastante inédita para justificar palavras tão violentas. Além disso, deram a entender, encolhendo os ombros, que para tais coisas era indispensável a presença de duas pessoas e que, sem dúvida, nada ocorrera sem o consentimento e o desejo de ambos os interessados. Pelo menos era essa a atitude e a opinião moral da Srª. Stöhr diante do caso em apreço.

Carolina Stöhr era simplesmente horrorosa. Se havia algo capaz de perturbar Hans Castorp nos seus sinceros esforços espirituais era a existência e o comportamento dessa mulher. Suas gafes contínuas já teriam bastado. Dizia “agônia” em vez de “agonia”, “insolvente” em lugar de “insolente”, e produzia as mais espantosas tolices sobre os fenômenos astronômicos que originavam um eclipse solar. Afirmava que o excesso de neve era um verdadeiro “flagício”, e certo dia provocou a prolongada surpresa do Sr. Settembrini ao dizer que estava lendo um livro, tirado da biblioteca do estabelecimento, e que lhe interessaria: “Benedetto Cenelli, na tradução de Schiller”[1]. Ela usava de preferência lugares-comuns que atacavam os nervos do jovem Hans Castorp, devido à sua insipidez e à vulgaridade inerente a locuções em moda, como, por exemplo, “É de tirar o chapéu” ou “É um colosso”. E como o adjetivo “formidável”, que o linguajar da moda durante muito tempo usara em lugar de “esplêndido” ou “perfeito”, se mostrasse totalmente gasto, debilitado, prostituído e, por isso, antiquado, adotou ela o último grito, que era a palavra “fenomenal”, achando desde então, seriamente ou por brincadeira, tudo fenomenal, a pista de trenós tanto como a sobremesa vienense e a temperatura do seu próprio corpo – o que igualmente causava uma impressão asquerosa. Acrescia a isso a sua desmedida mania de mexericar. Que ela contasse que a Srª. Salomon usava hoje a sua mais preciosa calcinha de rendas, visto ter hora marcada para um exame e ostentar nessas horas a sua roupa-branca mais fina diante dos médicos, seria ainda admissível; o próprio Hans Castorp já tivera a impressão de que o ato do exame médico, independente do seu resultado, causava prazer às senhoras, que para essa ocasião se enfeitavam com uma garridice toda especial. Mas, que se deveria pensar quando a Srª. Stöhr assegurava que a Srª. Redisch, de Posen, suspeita de sofrer de tuberculose da medula espinhal, era obrigada a marchar uma vez por semana, completamente nua diante do Dr. Behrens? A inverossimilhança dessa afirmação quase igualava o seu caráter escabroso, mas a Srª. Stöhr defendia-a com a maior obstinação e jurava dizer a verdade, apesar de ser difícil compreender por que a coitada despendia tanto zelo, ênfase e insistência em tais assuntos, uma vez que suas próprias preocupações já lhe davam bastante que fazer. De vez em quando acossavam-na acessos de um desassossego covarde e lamuriento, motivado aparentemente por um aumento da sua “lassidão” ou pela ascensão da sua curva. Chegava ela então à mesa soluçando, as faces ásperas e vermelhas inundadas de lágrimas; abafando o choro com o lenço, contava que o Behrens tencionava metê-la na cama; mas ela queria saber o que o médico dissera às suas costas, queria saber o que tinha, o que seria dela, queria arrostar a verdade. Com grande espanto notou certo dia que os pés da sua cama achavam-se dirigidos para o portão de entrada, e quase que desfaleceu ao fazer essa descoberta. Sua raiva e seu horror não foram compreendidos imediatamente; sobretudo Hans Castorp custou a encontrar uma explicação plausível. E daí? Como era isso? Por que não devia a cama estar colocada dessa maneira? – Mas, por amor de Deus, o senhor não compreende? “Com os pés para a frente!...” – Fez um estardalhaço medonho, e foi necessário mudar a posição da cama, se bem que, depois, a luz lhe desse em pleno rosto e lhe prejudicasse o sono.

Tudo isso não era sério e ajudava muito pouco as aspirações espirituais de Hans Castorp. Um incidente pavoroso, que naquela época ocorreu durante uma das refeições, causou ao jovem uma impressão particularmente profunda. Um pensionista recém-chegado, o Professor Popov, homem macilento e taciturno, que tinha o seu lugar à mesa dos “russos distintos”, em companhia da sua noiva igualmente magra e silenciosa, foi tomado, no meio do almoço, por um violento ataque de epilepsia; lançando aquele grito cujo caráter demoníaco e inumano tem sido descrito freqüentemente, caiu ao chão e revirou-se ao lado da cadeira, nas mais horripilantes contorções, agitando os braços e as pernas. Acrescia a isso uma circunstância agravante: acabavam de servir um prato de peixe, de maneira que era de recear que Popov, no seu enlevo convulsivo, cravasse alguma espinha na garganta. O tumulto foi indescritível. As mulheres – em primeiro lugar a Srª. Stöhr, sem que, no entanto, lhe ficassem atrás as senhoras Salomon, Redisch, Hessenfeld, Magnus, Iltis, Levi, etc. – tiveram os mais variados chiliques, a ponto de algumas se igualarem ao Sr. Popov. Seus gritos eram estridentes. Não se via mais que olhos histericamente cerrados, bocas abertas e corpos retorcidos. Uma única senhora preferiu desmaiar em silêncio. Houve crises de sufocação, já que todos haviam sido surpreendidos pelo tremendo incidente no ato de mastigar e de engolir. Parte dos pensionistas desapareceu por tudo que era porta, também pelas do avarandado, não obstante o frio e a umidade que reinavam fora. Mas essa ocorrência tinha, além do seu caráter horrendo, ainda um cunho especial e chocante, em virtude de uma associação de idéias que se impunha e a relacionava com a última conferência do Dr. Krokowski. É que o analista, no decorrer das suas explanações acerca do amor como fator patogênico, tratara justamente na segunda-feira passada da epilepsia; esse mal que a humanidade, em tempos pré-analíticos, considerara alternadamente uma prova sagrada, até mesmo profética, e uma possessão do Demônio – o Dr. Krokowski qualificara-o, em termos ora poéticos, ora inexoravelmente científicos, de equivalente do amor e de orgasmo do cérebro; numa palavra, interpretara-o de tal forma que, aos seus ouvintes, o comportamento do Professor Popov, espécie de ilustração da conferência, afigurava-se como uma revelação descomedida ou um escândalo misterioso. Assim se exprimiu um certo pudor na fuga das senhoras. O próprio Dr. Behrens assistiu a essa refeição, e foi ele, com o auxílio da Mylendonk e de alguns companheiros de mesa jovens e robustos, quem retirou da sala o extático, azul, espumejante, rígido e desfigurado, e o transportou ao vestíbulo, onde Popov permaneceu ainda muito tempo sem sentidos, enquanto os médicos, a Superiora e outros membros do pessoal da casa se ocupavam com ele, antes de o levar numa padiola. Pouco depois, porém, viu-se de novo o Professor Popov, com a noiva, à mesa dos “russos distintos”, terminando, silenciosos e satisfeitos, o almoço, como se nada tivesse acontecido.

Hans Castorp presenciara o incidente com os sinais exteriores de um respeitoso espanto, se bem que, no fundo, também isso não lhe parecesse muito sério, Deus o perdoe! Verdade é que Popov poderia ter se engasgado, por estar com a boca cheia de peixe; mas, em realidade, não se engasgara; apesar da fúria e do paroxismo inconsciente, ainda tivera um pouco de cuidado e fazendo como se jamais se tivesse comportado qual um louco ou um ébrio raivoso. Talvez nem sequer se lembrasse do ocorrido. Essa figura tampouco era de molde a fortalecer o respeito que Hans Castorp sentia diante do sofrimento; também ela aumentava, à sua maneira, o número das impressões de licenciosidade frívola, às quais o jovem, malgrado seu, se via exposto ali em cima, e que desejava enfrentar por meio de uma ocupação com os doentes graves e moribundos, ainda que isso fosse contrário ao uso estabelecido.

No andar dos primos, não longe dos seus quartos, achava-se acamada uma mocinha muito nova ainda, de nome Leila Gerngross, a qual, segundo as informações da Irmã Berta, estava a ponto de morrer. No espaço de dez dias tivera quatro hemoptises violentíssimas, e seus pais acabavam de chegar, a fim de levá-la para casa, enquanto viva, se fosse possível. Tornara-se manifesto, porém, que isso era impraticável. O conselheiro declarara que a pobre da pequena Gerngross não poderia ser transportada. Tinha ela dezesseis ou dezessete anos. Hans Castorp achou que esta era a oportunidade desejada para realizar o seu projeto do vaso de flores e dos votos de restabelecimento. Na verdade, Leila não estava fazendo anos, o que, segundo as previsões humanas, nunca mais ocorreria, já que a data do seu aniversário, como Hans Castorp descobrira, só chegaria na primavera. Mas – opinou ele – isso não devia constituir nenhum obstáculo à tal homenagem caridosa. Num dos seus passeios do meio-dia pela zona da estância balneária, entrou junto com o primo na loja de um florista, respirando com o peito emocionado a atmosfera carregada de perfumes e de um cheiro de terra úmida. Comprou um lindo pé de hortênsias, que enviou ao quarto da jovem moribunda, anonimamente, com um cartão, no qual se lia apenas: “Da parte de dois companheiros, com os melhores votos para o seu pronto restabelecimento”. Sentiu-se alegre ao dar a respectiva ordem, agradavelmente entontecido pelo aroma das plantas e o tépido ar da loja, que, depois do frio exterior, lhe fazia lacrimejar os olhos; seu coração palpitava, e enchia-o uma sensação de aventura, de audácia e do caráter oportuno dessa empresa insignificante, à qual atribuía, em segredo, uma envergadura simbólica.

Leila Gerngross não tinha enfermeira particular; achava-se confiada aos cuidados imediatos da Srta. von Mylendonk e dos médicos. No entanto, a Irmã Berta entrava a toda hora no seu quarto, e foi ela quem informou os jovens quanto ao efeito que produzira a atenção deles. A pequena, naquele mundo estreito em que a confinava o seu estado desesperador, sentira um prazer louco ante a saudação procedente de mãos desconhecidas. A planta achava-se ao lado da cama; a mocinha acariciava-a com os olhos e as mãos, fazia questão que a regassem, e mesmo durante os piores acessos de tosse que a sacudiam ainda mantinha cravados nela os olhos torturados. Também os pais, o major aposentado, Sr. Gerngross, e sua esposa, estavam comovidos e simpaticamente impressionados, e como não conhecessem os habitantes da casa e não soubessem adivinhar o nome dos ofertantes, a Srta. Schildknecht não pudera deixar – como ela própria confessou – de correr o véu do anonimato e de designar os primos como os autores do mimo. Transmitiu-lhes o convite dos três Gerngross, para que fossem apresentar-se e receber a expressão da sua gratidão. Aconteceu pois que, dois dias após, conduzidos pela enfermeira, pisassem sobre a ponta dos pés na câmara de martírio de Leila.

A agonizante era uma criatura sumamente graciosa, lourinha, com uns olhos cor de miosótis; apesar das terríveis perdas de sangue e de uma respiração realizada apenas com um resto insuficiente de tecido pulmonar aproveitável, oferecia um aspecto sem dúvida frágil, mas, no fundo, nada lastimoso. Agradeceu e iniciou a conversa numa voz agradável, embora apagada. Um brilho rosado surgiu-lhe nas faces e nelas permaneceu. Hans Castorp, após ter explicado os motivos da sua ação aos pais e à enferma e quase se ter desculpado por ela, falou numa voz abafada e comovida, cheio de carinhosa deferência. Faltou pouco – e em todo caso existiu o impulso íntimo nesse sentido – para que ajoelhasse ao pé da cama. Durante muito tempo conservou a mão de Leila entre as suas, posto que essa mãozinha quente não estivesse apenas úmida, mas até alagada de suor, pois a menina transpirava abundantemente; suava com tamanha intensidade que sua carne deveria ter-se encolhido e estiolado há muito tempo, não fosse para compensar a transudação, o consumo ávido de limonada, que se achava numa garrafa sobre o criado-mudo. Os pais, aflitos como estavam, mantinham a conversa, em conformidade com o bom-tom, por meio de perguntas a respeito do estado de saúde dos primos e de outros recursos convencionais. O major era um homem espadaúdo, de testa baixa e bigode eriçado, um gigante, cuja inocência orgânica quanto à disposição mórbida e ao físico débil da filha era manifesta. Parecia óbvia a responsabilidade da mulher, uma baixinha de tipo decididamente tísico, cuja consciência se mostrava deveras pesada em virtude da herança que legara à filha. Quando Leila, ao cabo de dez minutos, deu sinais de fadiga – o rosado das faces intensificou-se, enquanto os olhos de miosótis brilharam de forma inquietante – e os primos, advertidos pelos olhares da Irmã Alfreda, despediram-se, a Srª. Gerngross acompanhou-os até fora do quarto, entregando-se a acusações a si própria, que emocionaram singularmente Hans Castorp. Ela, só ela, podia ter a culpa – afirmou a mulher totalmente compungida –, era exclusivamente por sua causa que a pobre menina tinha “aquilo”; o marido nada tinha que ver com a coisa, era absolutamente inocente. Mas também ela – assim assegurou – não sofrera do mal, senão de forma passageira, leve e superficial, quando mocinha. Depois se curara por completo, como lhe haviam garantido, quando quisera casar-se. Gostava tanto da vida e do casamento, que assim conseguira a cura; ao entrar no matrimônio já estava completamente sadia e restabelecida, e seu querido esposo, forte como um carvalho, nunca pensara em tais histórias. No entanto, por mais puro e vigoroso que fosse o marido, sua influência não pudera impedir a desgraça. Pois na filha, reaparecera o horror, o mal enterrado e esquecido, e a menina não fora capaz de vencê-lo, sucumbiria a ele, ao passo que ela própria, a mãe, triunfara e chegara a uma idade menos exposta. A coitadinha, a querida garota, ia morrer; os médicos já não davam nenhuma esperança, e somente a mãe tinha culpa disso, devido aos seus antecedentes.

Os jovens empenharam-se em consolá-la, sugerindo a possibilidade de um desfecho feliz. Mas a mulher do major limitou-se a soluçar. Mais uma vez lhes agradeceu tudo quanto haviam feito pela filha, a hortênsia e a visita com a qual acabavam de distrair a menina e de lhe proporcionar um pouquinho de felicidade. A pobrezinha achava-se deitada ali, no seu tormento e na sua solidão, enquanto outras mocinhas gozavam a vida e dançavam com rapazes bonitos, desejo que a enfermidade absolutamente não aniquilava. Os primos haviam-lhe transmitido alguns raios de sol, talvez os últimos, infelizmente. O pé de hortênsia era como um triunfo num baile, e a conversa com os dois cavalheiros de boa aparência representara para a garota a mesma coisa que um interessante e rápido flerte, como ela – a mãe Gerngross – notara muito bem.

Essas palavras causaram a Hans Castorp impressão desagradável, sobretudo porque a mulher do major pronunciara a palavra “flerte”, não corretamente, à maneira inglesa, senão à alemã, com um nítido “i”, o que o irritou violentamente. Além disso não era ele um cavalheiro de boa aparência, mas visitara a pequena Leila em sinal de protesto contra o egoísmo reinante e num intuito entre médico e sacerdotal. Numa palavra, sentiu-se um tanto decepcionado pelo modo como terminara a empresa, pelo menos no que dizia respeito à opinião da mãe. De resto, porém, a realização do projeto deixou-o animado e satisfeito. Duas sensações, principalmente – o cheiro de terra na loja do florista e a umidade da mãozinha de Leila – haviam remanescido na sua alma e no seu espírito. E como dera o primeiro passo, combinou ainda no mesmo dia com a Irmã Berta uma visita ao paciente dela, Fritz Rotbein, que aborrecia terrivelmente, não só a enfermeira, mas também a si próprio, conquanto, segundo todos os indícios, não lhe restasse mais do que pouco tempo de vida.

De nada adiantou a resistência do bom Joachim; não lhe foi possível esquivar-se. A atividade caritativa e o espírito empreendedor de Hans Castorp foram mais fortes do que a repugnância do primo, cuja manifestação se limitou ao silêncio e aos olhos baixos, uma vez que não poderia justificá-la sem faltar aos sentimentos cristãos. Hans Castorp percebeu isso nitidamente e tirou partido desse fato. Compreendia também com a mais absoluta clareza o sentido militar daquela falta de entusiasmo. Ora, ele próprio sentia-se animado e feliz devido a essas iniciativas, que lhe pareciam proveitosas. Nesse caso era preciso não se importar com a silenciosa resistência de Joachim. Deliberaram juntos sobre se era conveniente mandar ou levar flores também ao jovem Fritz Rotbein, se bem que se tratasse de um moribundo de sexo masculino. Hans Castorp insistia em fazê-lo; na sua opinião, as flores eram indispensáveis; o precedente do pé de hortênsia, de cor violeta e de formas bonitas, agradara-lhe sobremaneira. Assim, decidiu que o sexo de Rotbein era compensado por seu estado desesperador, e que não era preciso que o moço fizesse anos para receber flores, visto os agonizantes terem o direito irrestrito e permanente de ser tratados como aniversariantes. Assim disposto, foi mais uma vez, em companhia do primo, aspirar a atmosfera terrosa e tépida da loja de flores. Entraram, então, no quarto do Sr. Rotbein, com um ramalhete oloroso e recém-molhado de rosas, cravos e goivos, introduzidos por Alfreda Schildknecht, que anunciara a chegada dos jovens.

O moço gravemente enfermo, de apenas vinte anos, mas já um pouco calvo e grisalho, com uma tez de cera e o rosto emaciadado, tinha grandes mãos, grande nariz e grandes orelhas. Quase chorou de tão grato pelo consolo e pela distração. Com efeito, tinha os olhos úmidos de fraqueza quando cumprimentou os dois primos e recebeu o ramo de flores. A seguir, porém, passou a falar, sem transição, embora num quase cochicho, sobre o comércio de flores na Europa e o seu crescente desenvolvimento, sobre a enorme exportação dos horticultores de Nice e de Cannes, sobre os vagões carregados e as remessas postais que saíam diariamente daqueles lugares em todas as direções; discorreu acerca dos mercados atacadistas de Paris e de Berlim, e do abastecimento da Rússia. Bem, ele era comerciante, e seus interesses continuariam orientados nesse sentido, enquanto houvesse vida nele. Seu pai, fabricante de bonecos em Coburgo, enviara-o à Inglaterra para educar-se – contou murmurando – e fora ali que adoecera. Mas haviam diagnosticado a sua moléstia febril como sendo de caráter tifóide e, tratando-a como tal, tinham-no submetido a um regime de sopas aguadas que o debilitara sobremaneira. Ali em cima lhe fora permitido comer, e ele o fizera; sentado na cama, esforçara-se por alimentar-se, com o suor no seu rosto. Entretanto, já era tarde. O mal, desgraçadamente, já lhe atacara os intestinos. Era inútil que lhe enviassem de casa línguas e enguias defumadas, visto ele não suportar mais nada. Agora, seu pai partira de Coburgo, chamado por um telegrama de Behrens. Ia-se fazer uma intervenção decisiva, a ressecção de costelas. Queriam tentá-la em todo caso, se bem que as probabilidades de êxito fossem mínimas. Rotbein cochichou a respeito de tudo isso com a maior objetividade, considerando também o problema da operação exclusivamente sob o ângulo comercial; enquanto vivesse, encararia qualquer assunto sob esse ponto de vista. O preço da intervenção – murmurou –, inclusive a anestesia raquidiana, elevava-se a mil francos, pois tencionavam tirar quase todo o tórax, entre seis e oito costelas, e tratava-se de saber se o capital assim empatado daria algum lucro. O Behrens animava-o, mas tinha interesse evidente em fazer a intervenção, ao passo que o do paciente parecia duvidoso. Ninguém podia dizer-lhe se não era preferível morrer tranqüilamente, na posse de todas as suas costelas.

Era difícil aconselhá-lo. Os primos ponderaram que se deveria levar em conta a excelente técnica cirúrgica do conselheiro áulico. Concordaram em deixar a decisão ao velho Rotbein, que já se achava a caminho. Quando se despediram, o jovem Fritz voltou a chorar um pouquinho; as lágrimas que vertia, embora só fossem produto da sua debilidade, formavam um contraste singular com a seca objetividade da sua maneira de pensar e de falar. Rogou aos primos que repetissem a visita, o que eles prometeram de bom grado. Mas não tiveram ocasião de fazê-lo. O fabricante de bonecos chegou na mesma noite, e logo na manhã seguinte realizou-se a operação, depois da qual o jovem Fritz não se achava num estado que lhe permitisse receber visitas. E dois dias após, Hans Castorp, ao passar em companhia de Joachim pelo quarto de Rotbein, viu que ali se fazia uma faxina. A Irmã Berta, com a sua maleta, já saíra do Berghof, porque fora chamada com urgência para cuidar de um novo moribundo em outro estabelecimento. Suspirando, com o cordão do pince-nez atrás da orelha, encaminhara-se para ali, visto ser precisamente essa a única perspectiva que se lhe abria. Um quarto “abandonado”, um quatro livre, submetido a uma limpeza geral, com ambas as portas abertas e com os móveis empilhados uns sobre os outros, como podiam ver os que passassem por ele a caminho da sala de refeições ou tia saída – um quarto nessas condições oferecia um aspecto significativo e todavia tão costumeiro que mal impressionava as pessoas, e ainda menos a quem um dia se apossara de um quarto que acabava de ser “desocupado” e desinfetado dessa forma, e criara raízes nele. Às vezes se sabia quem acabava de ocupar o respectivo número, coisa que então dava o que pensar. Isso aconteceu no referido caso, como também oito dias depois, quando Hans Castorp, passando pelo aposento da pequena Gerngross, deparou com ele no mesmo estado. Dessa vez, seu espírito se opôs, de início, a aceitar o sentido da atividade que ali reinava. Deteve-se a olhar, pensativo e consternado, no momento em que o Dr. Behrens o encontrou por casualidade.

– Eu estava olhando a faxina – disse Hans Castorp. – Bom dia, senhor conselheiro. A pequena Leila...

– Pois é! – disse Behrens, dando de ombros. Depois de um instante de silêncio, que permitiu a esse gesto produzir o seu efeito, acrescentou: – Pouco antes do final, o senhor ainda se apressou a cortejá-la segundo a regra, não é? Acho muito gentil da sua parte que demonstre algum interesse aos pobres dos pulmões assobiantes nas suas gaiolas, tanto mais que o senhor pessoalmente anda mais ou menos forte. É um traço simpático do seu caráter. Sim, senhor! Não o negue, é um traço muito simpático. Gostaria, talvez, que de vez em quando eu o apresentasse a outros? Tenho lá uma porção de passarinhos, caso o senhor queira vê-los. Agora, por exemplo, vou visitar a minha “abarrotada”. Quer me acompanhar? Vou apresentá-lo simplesmente como um companheiro de infortúnio.

Hans Castorp disse que o conselheiro se adiantara às suas palavras e lhe oferecera justamente o que lhe desejava pedir. Aproveitaria a licença com a maior gratidão e seguiria o doutor. Mas quem era essa tal “abarrotada”? Como se devia interpretar essa palavra?

– Literalmente – respondeu o médico. – De um modo textual, sem a menor metáfora. Deixe que ela mesma lhe conte a história. – Ao cabo de poucos passos chegaram ao quarto da “abarrotada”. O conselheiro áulico atravessou a dupla porta e mandou Hans Castorp esperar um instante. O som de risadas e palavras opressas pela falta de fôlego, mas claras e alegres, ressoou do quarto, quando da entrada de Behrens, para ser logo interceptado pelas portas. E o visitante compassivo tornou a ouvir esse som, quando, poucos minutos após, foi admitido e o Dr. Behrens o apresentou a uma senhora loura, estendida na cama, e que fixava curiosamente no jovem os olhos azuis. Com algumas almofadas nas costas, achava-se entre sentada e deitada. Muito irrequieta, ria-se sem cessar, embora lhe faltasse o fôlego; era um riso cascateante, muito agudo e argentino, nervoso e como que originado por meio de cócegas. Riu-se também das frases com que o conselheiro lhe apresentou o visitante, e quando o médico foi embora, gritou várias vezes atrás dele: – Adeusinho! Muito obrigado! Até logo! – acenando-lhe com a mão. A seguir lançou um suspiro vibrante, voltou a rir num trinado argentino, fincou as mãos no peito que ondeava por baixo da camisola de cambraia, e era incapaz de manter quietas as pernas. Chamava-se Srª. Zimmermann.

Hans Castorp conhecia-a vagamente de vista. Durante algumas semanas, ela ocupara um lugar à mesa da Salomon e do colegial voraz, e sempre se mostrara muito risonha. Depois desaparecera, sem que o jovem se preocupasse muito com a sua ausência. Talvez tivesse partido – opinara ele. Agora reencontrava-a ali, sob a denominação de “abarrotada”, e esperava a explicação dessa palavra.

– Ah! ah! ah! – riu-se ela, como se lhe fizessem cócegas. – É engraçadíssimo, esse Behrens, fantasticamente cômico e divertido. A gente quase morre de tanto rir. Por que não se senta, Sr. Kasten, ou Sr. Karsten, ou como se chama? O senhor tem um nome tão gozado, ah! ah! ih! ih! Desculpe. Sente-se nessa cadeira aí, ao pé da cama, mas permita que eu mexa as pernas, ah! ah! – suspirou com a boca vastamente aberta e logo tornou a trinar. – Simplesmente não posso deixar de fazê-lo...

Era quase bonita, com feições claras, talvez excessivamente acentuadas, porém agradáveis, e com um início de papada. Mas seus lábios eram azulados, e a ponta do nariz tinha a mesma cor, sem dúvida devido à falta de ar. As mãos, de uma magreza simpática, ressaltadas pelos punhos de renda da camisola, eram tão incapazes de sossegar quanto os pés. Tinha um pescoço de mocinha, com duas “saboneteiras” acima das clavículas delicadas, e também os seios, que a dispnéia e o riso mantinham, sob o linho, numa agitação inquieta e forçada, pareciam pequenos e jovens. Hans Castorp resolveu enviar-lhe ou levar-lhe também um ramalhete bonito de flores molhadas e perfumosas, procedentes dos estabelecimentos de horticultura de Nice ou de Cannes. Com certa preocupação compartilhou da hilaridade volúvel e nervosa da Srª. Zimmermann.

– Então o senhor visita os doentes graves? – perguntou ela. – Como isso é divertido e amável da sua parte, ah! ah! ah! Eu mesma não estou muito enferma, imagine! Quer dizer, não o estava nem um pouquinho, até há pouco... Até que recentemente, essa história... Escute e diga não é a coisa mais engraçada que já ouviu... – E lutando por respirar, entre trinos e gorjeios, contou o que lhe ocorrera.

Chegara a Davos um pouco enferma. A doença existira inegavelmente, pois, do contrário, não teria vindo. Talvez nem sequer se tratasse de um caso leve. Mas fora antes leve do que grave. O pneumotórax, essa conquista ainda recente, mas já muito apreciada, da técnica cirúrgica, fora experimentado também no seu caso com o melhor êxito. A intervenção dera o melhor resultado possível. O estado de saúde e a disposição da Srª. Zimmermann haviam melhorado de modo sumamente reconfortante. Seu marido –- pois era casada, embora sem filhos – pudera contar com o seu regresso dentro de três ou quatro meses. Então, para distrair-se, ela fizera uma excursão a Zurique; não houvera outra razão para essa viagem a não ser o desejo de se divertir. E de fato se divertira a valer, mas ao fazê-lo sentira a necessidade de se reabastecer de gás. Confiara esse trabalho a um médico lã de baixo. Um rapaz encantador e tão cômico! Ah! ah! ah! Mas que acontecera? Abarrotara-a! Não havia outro termo, esse já dizia tudo. Embora tomado de toda a boa vontade, o médico não entendia muito do ofício. Numa palavra, ela regressara ao Berghof totalmente abarrotada, isto é, com o coração opresso e sem fôlego nenhum, ah! ah! ih! ih! O Behrens praguejara como o diabo e metera-a imediatamente na cama. Pois agora estava gravemente enferma, posto que não tivesse febre alta. Haviam-na estragado, arruinado mesmo. Ah! ah! ah! Essa cara, essa cara ridícula com que Hans Castorp estava! E ela se riu, enquanto apontava com o dedo para ele; riu-se tanto da cara dele, que também a testa se lhe tingiu de azul. Mas a coisa mais gozada – disse ela – era o Behrens, com seus ralhos e sua rudeza. Já de antemão ela rira, ao notar que estava abarrotada. “A senhora encontra-se em perigo de morte imediata”, gritara o conselheiro, sem mais aquela; esse grosseirão, ah! ah! ah! E novamente pediu desculpas.

Não se esclareceu o motivo por que ela dava essas risadas cascateantes com respeito às declarações de Behrens; se era só devido à sua “rudeza” e porque não acreditava nelas, ou, embora acreditando – o que afinal não podia deixar de fazer –, por achar terrivelmente cômico o caso em si, isto é, o perigo de vida que a ameaçava. Hans Castorp tinha a impressão de que essa última hipótese era a verdadeira, e que realmente ela gorjeava, piava e trinava só em virtude da leviandade infantil e da falta de siso do seu cérebro de passarinho. Isso lhe parecia censurável. Mesmo assim, mandou-lhe flores, mas não tornou a ver a risonha Srª. Zimmermann. Após ter sido sustentada durante alguns dias por meio de oxigênio, ela de fato veio a falecer nos braços do marido chamado por telegrama. “Uma besta quadrada!”, qualificou-a o conselheiro, ao informar Hans Castorp do óbito.

Mas já antes o espírito empreendedor e compassivo de Hans Castorp, ajudado pelo conselheiro áulico e pelo pessoal da enfermaria, estabelecera novas relações com outros doentes graves da casa, e Joachim teve que acompanhá-lo. Teve que acompanhá-lo ao quarto do segundo filho de “Tous-les-deux”, aquele que sobrara; pois fazia muito tempo já que o quarto do primeiro fora faxinado e fumigado. Visitaram também o menino Teddy, que recentemente chegara do Instituto Pedagógico Fredericianum, onde não pudera ficar, dada a gravidade do seu caso. Também foram ver um teuto-russo, o Sr. Anton Karlovitch Ferge, funcionário de uma companhia de seguros, e que era um sofredor de caráter bonachão. E também a infortunada mas muito coquete Srª. von Mallinckrodt, que, tal e qual as demais pessoas que acabamos de citar, foi obsequiada com flores, e à qual Hans Castorp, em presença de Joachim, até levou diversas vezes o mingau à boca... Aos poucos chegaram, a adquirir a reputação de samaritanos ou irmãos de caridade. Um belo dia, o próprio Settembrini interpelou Hans Castorp nesse sentido.

– Sapristi, engenheiro! Ouço dizer coisas sensacionais sobre a sua conduta. O senhor se consagrou à beneficência? Procura justificar-se por meio de boas obras?

– Nem vale a pena falar disso, Sr. Settembrini. Não há nada que mereça ser mencionado. Meu primo e eu...

– Não meta seu primo no assunto! Embora ambos dêem que falar à gente, é do senhor que se trata em realidade. Disso tenho certeza. O tenente é uma personalidade respeitável, mas singela, e seu espírito não corre nenhum perigo que possa inquietar um pedagogo. O senhor não me fará acreditar ser ele quem manda nessa história. O mais talentoso dos dois, mas também o mais ameaçado, é o senhor. E, se me permite empregar este termo, um “filho enfermiço da Vida”, com o qual é preciso preocupar-se. De resto, o senhor me deu licença de fazê-lo.

– Pois não, Sr. Settembrini. Essa licença lhe dei de uma vez por todas. É muito amável da sua parte. E o termo “filho enfermiço da Vida” é bonito. Quanta coisa não inventam os escritores! Não sei se devo orgulhar-me desse título; mas ele soa bem, indiscutivelmente! Pois é, eu me dedico um pouquinho a esses “filhos da Morte”. Acho que é a isso que o senhor se refere. Às vezes, quando tenho tempo, e sem que o regime sofra por isso, ocupo-me com os casos graves e sérios, compreende? Com aqueles que não estão aqui para divertir-se e para entregar-se à licenciosidade, mas que estão morrendo.

– Está escrito: “Deixai que os mortos enterrem os seus mortos!” – replicou o italiano.

Hans Castorp ergueu os braços e expressou com a sua fisionomia que existia muita coisa escrita, isso e também aquilo, de maneira que era difícil discernir o melhor e inspirar-se nele. Inegavelmente, o tocador de realejo apalpara um ponto nevrálgico, como fora de esperar. Na verdade, Hans Castorp estava sempre disposto a escutá-lo, a considerar, sem compromisso, suas teorias como dignas de serem ouvidas, e a admitir, a título de experiência, aquele influxo pedagógico; contudo, não tinha a mínima intenção de renunciar, a favor de certos conceitos educativos, a empresas que, apesar da mãe Gerngross e da sua idéia de um “pequeno flerte”, apesar, também, da natureza prosaica do pobre Rotbein e dos tolos gorjeios da “abarrotada”, pareciam-lhe vagamente proveitosas e de alcance considerável.

O filho de “Tous-les-deux” chamava-se Lauro. Recebera flores, violetas de Nice, de aroma terroso, “da parte de dois companheiros compassivos, com os melhores votos de restabelecimento”. Como o anonimato já se transformara em mera formalidade e todo mundo sabia de quem partiam esses mimos, a própria “Tous-les-deux”, a pálida e enlutada mãe mexicana, dirigiu aos primos, durante um encontro no corredor, algumas palavras de gratidão e convidou-os, com voz rangente e sobretudo com uma gesticulação cheia de mágoa, a receber pessoalmente os agradecimentos de seu filho, de son seul et dernier fils qui allait mourir aussi. A visita realizou-se imediatamente. Manifestou-se que Lauro era um moço de surpreendente beleza, de olhos ardentes, com um nariz aquilino cujas narinas palpitavam, e com esplêndidos lábios, por cima dos quais brotava um bigodinho negro. No entanto, o rapaz exibiu uma atitude tão fanfarrona e tão teatral, que os visitantes – tanto Hans Castorp quanto Joachim Ziemssen -se sentiram aliviados quando a porta do quarto do enfermo voltou a fechar-se atrás deles. “Tous-les-deux” estava envolta em seu xale de lã preta, com o véu negro atado sob o queixo, com as rugas transversais da sua testa baixa e com as bolsas enormes sob os olhos de ágata negra. De joelhos dobrados ia e vinha pelo quarto, baixando aflitamente uma das comissuras da larga boca. De vez em vez aproximava-se dos primos sentados à beira da cama, a fim de repetir, qual um papagaio, a sua trágica frase: “Tous les dé, vous comprenez, messiés... Premièrement l’un et maintenant l’autre...” Enquanto isso, o belo Lauro, falando igualmente francês, entregava-se a altissonantes fanfarrices de um espalhafato insuportável; carregando nos erres, numa voz crepitante, afirmou que esperava morrer heroicamente, comme héros, à l’espagnole, tal qual o irmão, de même que son fier jeune frère Fernando, que também falecera como um herói espanhol; gesticulando, abriu a camisola para oferecer aos golpes da morte o peito amarelado e continuou a comportar-se desse jeito até que um ataque de tosse, fazendo subir-lhe aos lábios uma fina espuma rosada, lhe abafasse as bravatas e induzisse os primos a se afastarem nas pontas dos pés.

Não comentaram entre si a visita que haviam feito a Lauro, e também intimamente abstiveram-se de julgar a atitude do mexicano. Receberam uma impressão mais simpática no quarto de Anton Karlovitch Ferge, de Petersburgo, que, com seu grande e jovial bigode, e com seu proeminente pomo-de-adão, de aspecto igualmente jovial, jazia na cama, refazendo-se, num esforço lento e penoso, da tentativa de pneumotórax a que se sujeitara, e que quase lhe custara a vida na mesa de operações. Fora ali que sofrera um choque violento, o chamado choque pleural, complicação bastante freqüente dessa intervenção moderna. No seu caso, o choque produzira-se de uma forma particularmente perigosa, como colapso completo acompanhado de uma síncope inquietante; numa palavra, o acidente apresentara-se com tamanha veemência, que fora preciso interromper a operação e adiá-la por enquanto.

Os olhos cinzentos, bonachões, do Sr. Ferge dilatavam-se, e seu rosto tornava-se lívido, cada vez que falava daquele acidente que devia ter sido horroroso para ele. -sem narcose, cavalheiros! Muito bem, nós não podemos suportá-la; está contra-indicada em nosso caso; um homem razoável compreende isso e se conforma. Mas a anestesia local não penetra fundo, meus senhores; apenas a carne envolvente. Quando cortam através dela, sente-se, na verdade, apenas uma espécie de pressão ou de pisadura.. Eu estava deitado, com o rosto coberto para não ver nada. O assistente segurava-me da direita, e a Superiora, da esquerda. Era como se me apertassem e comprimissem, mas tratava-se somente da carne que abriam e retiravam por meio de pinças. Então ouvi o Dr. Behrens dizer: “Agora!”, e nesse instante, cavalheiros, começou a apalpar a pleura com um instrumento rombudo... Deve ser assim para que não a fure antes do tempo... Apalpam-na em busca do lugar apropriado para fazer o furo e introduzir o gás... Enquanto ele fazia isso, enquanto passeavam o instrumento por toda a extensão da minha pleura – oh, meus senhores! –, eu não pude mais; tive uma sensação totalmente indescritível. A pleura, cavalheiros, é coisa que não deve ser tocada; não é direito que a toquem, ela não o admite, é tabu, está revestida de carne, isolada e inatingível de uma vez por todas! E agora a haviam posto a descoberto, e o conselheiro apalpava-a. Senhores, comecei a enjoar. Horrível, pavoroso, meus senhores! Eu nunca teria pensado que pudesse existir sensação tão medonha, tão miserável, tão abjeta, nesta terra e em parte alguma do mundo, fora do inferno. Desmaiei. Tive três síncopes ao mesmo tempo, uma verde, uma parda e uma violeta. Além disso penetrava um fedor através do desmaio. O choque pleural atacou-me o olfato, meus senhores. Aquilo fedia loucamente a hidrogênio sulfurado, assim como deve ser o cheiro do inferno. Com tudo isso notei que me ria, enquanto perdia os sentidos; mas não era como se ri uma criatura humana, não! Era o riso mais nojento e mais indecente que já ouvi em toda a minha vida. Pois o apalpamento da pleura, senhores, produz as cócegas mais infames, mais exageradas, mais desumanas. Nisso mesmo consiste aquela maldita e vergonhosa tortura. É o que se chama o choque pleural, que Deus queira que os senhores nunca cheguem a experimentar.

Freqüentemente, e sempre pálido de terror, Anton Karlovitch Ferge tornou a falar dessa intervenção “abjeta”, cuja repetição iminente lhe inspirava um medo enorme. Confessara, aliás, desde o início, ser apenas um homem simples, alheio a todas as coisas “sublimes”, e de cuja alma e intelecto não se deviam esperar realizações extraordinárias, que ele também não exigiria de ninguém. Isso posto, contou histórias bastante interessantes da sua vida antiga, da qual o arrancara a enfermidade, a vida de um viajante a serviço de uma companhia de seguros contra fogo. Partindo de Petersburgo, realizara em todas as direções longas viagens pela Rússia inteira, para visitar as fábricas seguradas e para investigar aquelas cuja situação financeira fosse duvidosa. Pois as estatísticas demonstravam que precisamente as indústrias que andavam mal se incendiavam com a maior freqüência. Por isso, a sua companhia sempre o encarregara da missão de sondar as empresas sob esse ou aquele pretexto e de informá-la, para que ela, por meio de resseguros mais elevados ou pela divisão do risco, pudesse prevenir uma perda sensível. Contava acerca de viagens em pleno inverno através do vasto império, expedições noturnas sob um frio espantoso, que fizera deitado num trenó, metido entre cobertores de peles de cordeiro. Contava como, ao acordar, vira os olhos dos lobos luzir feito estrelas, sob a neve. Levara consigo, num caixote, provisões congeladas, sopa de repolho e pão branco, que fora necessário degelar nas etapas, durante a troca de cavalos; e o pão estivera, nessas ocasiões, tão fresco como se acabasse de sair do forno. Era, entretanto, uma desgraça, quando o degelo se apresentava inopinadamente, pois a sopa de repolho, empacotada em pedaços, derretia-se e espalhava-se toda.

Assim contava o Sr. Ferge, interrompendo-se de vez em quando para fazer notar, entre suspiros, que tudo isso seria muito bonito, se não tivessem de repetir com ele a tentativa de pneumotórax. Não era nada sublime o que ele dizia, mas de caráter real e agradável de ouvir, sobretudo para Hans Castorp, que achava útil aprender alguma coisa a respeito do Império Russo e do seu estilo de vida, de samovares, pastéis de couve, cossacos e igrejas de madeira, com tantas torres em forma de cebola que se assemelhavam a uma colônia de cogumelos. Induziu ele o Sr. Ferge a falar dos habitantes desse país, do seu exotismo setentrional e por isso, aos olhos de Hans Castorp, ainda mais esquisito, da mescla asiática do seu sangue, das suas maçãs salientes e da posição finesa-mongólica dos olhos. O jovem escutava tom interesse antropológico. Pediu também para ouvir algumas frases em russo. O idioma oriental saía rápido, indistinto, sumamente estranho e desprovido de ossos, de sob o bigode jovial do Sr. Ferge, partindo do proeminente pomo-de-adão, de aspecto igualmente jovial, e Hans Castorp – como é peculiar à juventude – divertia-se tanto mais com tudo isso quanto mais proibido era o terreno onde brincava.

Freqüentemente os primos iam passar um quarto de hora no quarto de Anton Karlovitch Ferge. Em outras ocasiões visitavam o pequeno Teddy, do Fredericianum, um rapaz elegante de catorze anos, louro e delicado, com uma enfermeira particular e um pijama de seda branca enfeitado de alamares. Era órfão e rico, segundo ele mesmo contava. Esperava ser submetido a uma intervenção de certa gravidade, a remoção de partes carcomidas, que tencionavam experimentar; mas, quando se sentia melhor, saía às vezes da cama, por uma hora, para participar, no seu belo traje esporte, da vida social lá embaixo. As senhoras gostavam de gracejar com o adolescente, e ele ouvia as suas conversas, como, por exemplo, aquelas que se referiam ao advogado Einhuf, à senhorita da combinação e a Fränzchen Oberdank. A seguir voltava para a cama. Dessa maneira o pequeno Teddy matava elegantemente o tempo e deixava perceber que nada mais esperava da vida a não ser precisamente isso.

No número 50, porém, achava-se a Srª. Natalie von Mallinckrodt, com seus olhos negros e com brincos de ouro nas orelhas, coquete, faceira e todavia uma espécie de Lázaro ou de Jó feminino, castigada por Deus com todo tipo de moléstias. Seu organismo parecia inundado de toxinas, de maneira que um sem-número de enfermidades a acossavam alternada ou simultaneamente. A pele era sobremodo atingida; estava coberta, em grande parte, de um eczema que causava coceiras cruéis e formava chagas em determinados lugares, até nos lábios, o que dificultava a introdução da colher. Revezavam-se na Srª. von Mallinckrodt inflamações internas, ora da pleura ora dos rins, dos pulmões, do periósteo e mesmo do cérebro, com subseqüentes síncopes. Uma insuficiência cardíaca, originada pela febre e pelas dores, angustiava-a sumamente, fazendo com que não conseguisse deglutir por completo os alimentos engolidos, que então permaneciam presos na parte superior do esôfago. Numa palavra, o destino dessa mulher era terrível. Além disso, achava-se a Srª. von Mallinckrodt sozinha no mundo. Deixara o marido e os filhos por amor a outro homem, ou melhor, a um rapazote, que, por sua vez, a abandonara, segundo ela mesma contou aos primos. Assim vivia, sem lar, embora não sem recursos, visto, o marido enviar-lhe dinheiro. Em vez de mostrar uma altivez pouco indicada, tirava proveito dessa generosidade ou paixão persistente, tanto mais que nem a si própria levava a sério e sabia que era apenas uma mulherzinha desonrada e pecaminosa. Baseando-se nessa percepção, suportava todas as calamidades de Jó, com surpreendente paciência e tenacidade, com aquela resistência elementar, própria de uma mulher de raça, que triunfava sobre a miséria do seu corpo trigueiro e transformava numa peça elegante de vestuário até mesmo a atadura de gaze que qualquer motivo repugnante a obrigava a usar na cabeça. Mudava sem cessar as jóias, exibindo corais pela manhã e pérolas à noite. Muito satisfeita com as flores remetidas por Hans Castorp, que, evidentemente, ela atribuía antes à galanteria do que à caridade, mandou transmitir aos dois jovens um convite para tomarem chá junto à sua cama. Bebia esse chá numa chávena de bico, que segurava com os dedos, todos, inclusive os polegares, cobertos até os nós de opalas, ametistas e esmeraldas. Com os brincos de ouro balouçando nas orelhas, contou aos primos tudo quanto lhe acontecera. Falou-lhes de seu marido respeitável, mas cacete, e dos seus filhos igualmente decentes e fastidiosos, que puxavam ao pai e nunca lhe tinham inspirado sentimentos muito calorosos; falou do rapazote, em cuja companhia fugira, e gabou-lhe a poética ternura. Mas os parentes do jovem, servindo-se da astúcia e da força, haviam conseguido afastá-lo dela, e a doença, que então irrompera violentamente e sob múltiplas formas, talvez lhe causasse asco. – Os senhores também me acham asquerosa? – perguntou com faceirice, e sua feminilidade de puro-sangue triunfou do eczema que se estendia pela metade do rosto.

Hans Castorp sentiu apenas desprezo pelo mocinho que experimentara repugnância por ela, e dando de ombros expressou essa opinião. No que tocava a ele próprio, a pusilanimidade do adolescente poético justamente o instigou em sentido oposto: fê-lo procurar oportunidades, em repetidas visitas, para prestar à infortunada Srª. von Mallinkrodt pequenos serviços de samaritano, que não exigiam conhecimentos especiais, como por exemplo meter-lhe cuidadosamente na boca o mingau que lhe serviam no almoço, dar-lhe de beber na chávena de bico, quando se engasgava, ou ajudá-a a mudar de posição na cama, pois além dos outros males existia ainda uma ferida causada por uma operação, que lhe complicava a posição deitada. Exercitava-se ele nesses atos caridosos cada vez que, a caminho da sala de refeições ou de regresso de um passeio, entrava no quarto dela. Nesses casos pedia a Joachim que seguisse sozinho à frente, e alegava que apenas queria informar-se do estado do número 50. Invadia-o então a sensação desagradável da amplitude da sua natureza, uma alegria que se alicerçava na idéia da utilidade e do alcance secreto das suas ações, e com a qual se mesclava certo prazer furtivo causado pela aparência impecavelmente cristã dessas atividades; com efeito, essa aparência era tão piedosa, tão caritativa, tão digna de elogios, que parecia impossível opor-lhe quaisquer argumentos sérios, seja do ponto de vista militar, seja do da pedagogia e do humanismo.

Ainda não mencionamos Karen Karstedt, e contudo era dela que Hans Castorp e Joachim se ocupavam com especial intensidade. Tratava-se de uma cliente particular do conselheiro, que morava fora do estabelecimento. O Dr. Behrens recomendara-a à caridade dos primos. Fazia quatro anos que ela vivia ali em cima. Sem recursos, dependia de uns parentes pouco generosos, que já uma vez a tinham levado, alegando que de qualquer forma morreria em breve. Sua volta devia-se exclusivamente à intervenção do conselheiro áulico. Domiciliara-se na “aldeia”, numa pensão barata. Tinha dezenove anos e era franzina, com cabelos lisos, oleosos, com olhos que, timidamente, procuravam ocultar um brilho que condizia com o rubor hético das faces, e com uma voz caracteristicamente velada, mas de uma sonoridade simpática. Tossia quase sem interrupção, e as pontas de todos os seus dedos achavam-se cobertas de esparadrapos, por estarem roídas pela doença.

A ela é que os primos devotavam um cuidado especial, a pedido do Dr. Behrens, que se dirigira a eles, “uma vez que eram bons rapazes”. A história começou com uma remessa de flores; seguiu-se uma visita à pobre Karen, que os recebeu na sua pequena sacada, na “aldeia”; depois disso, os três organizaram algumas expedições especiais, assistindo, por exemplo, a um concurso de patinação ou a uma corrida de trenó. Pois a temporada de esportes de inverno chegara ao auge, no nosso vale alpino. Durante uma semana ia realizar-se um festival, com numerosas atrações. Até então, os primos haviam prestado apenas uma atenção ocasional e fugaz a esse tipo de espetáculos e de diversões. Joachim era avesso à simples idéia de se distrair ali em cima. Não se encontrava em Davos para se divertir; absolutamente não estava ali para viver e para se conformar com a estadia, tornando-a agradável e variada, senão com a única finalidade de se desintoxicar o mais depressa possível, para que pudesse voltar à planície e entrar no serviço ativo, no serviço verdadeiro, em lugar do serviço da cura, que era apenas um sucedâneo, mas cuja diminuição ele só tolerava malgrado seu. Participar ativamente dos esportes de inverno era-lhe vedado, e desagradava-o figurar como espectador. Quanto a Hans Castorp, sentia-se por demais unido aos dali de cima, num sentido muito estrito e íntimo, para manifestar interesse pela atividade de pessoas que consideravam esse vale como um campo de esportes.

Mas sua caridosa solicitude para com a pobre Srta. Karstedt modificou algum tanto a situação. A não ser que se mostrasse pouco cristão, Joachim não podia fazer objeções. Foram buscar a enferma no seu modesto alojamento, na “aldeia”, e passearam-na, sob um frio abrasado por esplêndido sol, através do bairro inglês, assim chamado por causa do Hotel d'Angleterre, por entre as lojas luxuosas da rua principal, onde tilintavam os guizos dos trenós e flanavam ricos sibaritas e vadios de todas as partes do mundo, habitantes da estância balneária e de outros grandes hotéis, que andavam sem chapéu, trajando modernas roupas esporte, cortadas em fazendas finas e caras, e exibiam caras bronzeadas pelo ardor do sol hibernal e pela reverberação da neve. Desceram, finalmente, até o local de patinação, situado não longe da estância, no fundo do vale, e que no verão servia de campo de futebol. Ouvia-se música. A orquestra da estância dava um concerto no estrado de madeira do pavilhão, acima da pista retangular, atrás da qual as montanhas cobertas de neve se destacavam do fundo azul-escuro. Compraram entradas; abriram caminho através do público, que rodeava a pista nas arquibancadas erguidas em três dos seus lados; encontraram lugares e olharam o espetáculo. Os patinadores, vestidos com jaquetas justas e calças pretas de malha, requebravam-se, adejavam, descreviam figuras, saltavam e giravam. Um casal de virtuoses – profissionais que não participavam das competições – realizou uma proeza que em todo o vasto mundo só ele sabia fazer e desencadeou toques de clarins e salvas de palmas. No campeonato de velocidade, seis moços de diferentes nacionalidades, dobrados para a frente, com as mãos nas costas e, às vezes, com um lenço entre os dentes, deram em árdua luta seis voltas em torno do extenso retângulo. O som de uma campainha misturou-se com a música. De vez em quando, a multidão rebentava em frenéticos aplausos e aclamações.

Era um ambiente colorido aquele que contemplavam os três enfermos, os primos e sua pupila. Ingleses, com boinas escocesas e dentes brancos, conversavam em francês com senhoras de perfumes penetrantes, vestidas dos pés à cabeça com lãs variegadas; algumas usavam calças. Americanos de cabeça pequena, com os cabelos colados ao crânio, e com o cachimbo na boca, usavam casacos com o forro de pele à mostra. Russos barbudos e elegantes, de aparência barbaramente rica, e holandeses, mestiços de malaios, estavam sentados no meio de alemães e suíços. Entremeava-se em toda parte gente de proveniência indistinta, de fala francesa, oriunda dos Bálcãs ou do Levante; um mundo aventureiro pelo qual Hans Castorp demonstrava um certo fraco, e que Joachim rejeitava como sendo equívoco e despido de caráter. Nos intervalos, crianças realizavam concursos humorísticos, tropeçando ao longo da pista com um pé calçado de esqui e o outro de patim; houve também uma competição cm que os meninos empurravam pás nas quais estavam sentadas as meninas. Faziam corridas de velas, sendo vencedor o que conservava a vela acesa até chegar à outra extremidade do campo. Tinham que transpor obstáculos, ou encher regadores com batatas usando colheres de estanho. Os adultos divertiam-se muito. Eram assinaladas as mais ricas, as mais celebres e as mais graciosas entre as crianças – a filhinha de um multimilionário holandês, o filho de um príncipe alemão, e um garoto de doze anos que tinha o nome de uma marca de champanha mundialmente conhecida. Também a pobre Karen lançava gritos de júbilo, interrompidos por acessos de tosse. De tanto prazer, batia as mãos com os dedos carcomidos. Estava cheia de gratidão.

Os primos levaram-na também ao campeonato de trenó. A meta final não ficava longe nem do Berghof nem do domicílio de Karen Karstedt. A pista partia da Schatzalp e terminava na “aldeia”, entre as casas da vertente do oeste. Ali se achava um pequeno pavilhão de controle, que recebia, pelo telefone, a comunicação da partida de cada trenó. Por entre as barreiras de neve gelada, ao longo das curvas de brilho metálico, precipitavam-se os chassis planos, tripulados por homens e mulheres vestidos de lã branca, com faixas das cores de diferentes países em redor do peito; desciam das alturas, um a um, bastante espaçados. Viam-se rostos avermelhados, que a neve açoitava. As quedas, os choques entre dois trenós, que viravam, espalhando pela neve a sua equipe, eram fotografados pelo público. Aqui também tocava uma banda. Os espectadores estavam instalados em pequenas tribunas ou avançavam pelo estreito trilho que se abrira a pá, ao longo da pista, e por cima desta passavam pontes de madeira, igualmente ocupadas pela multidão, a observar a competição dos trenós, que de tempos em tempos deslizavam zunindo. Os cadáveres do sanatório situado lá em cima seguiam o mesmo caminho, a toda a velocidade, por baixo das pontes, acompanhando as curvas, descendo rumo ao vale – pensou Hans Castorp, e também se expressou nesse sentido.

Uma tarde, resolveram levar Karen Karstedt ao cinema “bioscópio” de Platz, porquanto ela se mostrava muito feliz com todas essas diversões. O ar viciado parecia estranho aos três, acostumados como estavam a uma atmosfera puríssima. Pesava-lhes o peito e nublava-lhes a cabeça. Mas nesse ar trepidava uma vida múltipla, que se sucedia na tela, diante dos seus olhos doloridos; uma vida apresentada em pedacinhos, divertida e apressada, cheia de uma inquietação saltitante, nervosa na demora, sempre prestes a desaparecer, acompanhada por uma musicazinha que aplicava o compasso do tempo atual à fuga das imagens pertencentes ao passado, e que, apesar da limitação dos seus recursos, sabia lançar mão de todos os registros da solenidade e da pompa, da paixão, da barbárie e da sensualidade lânguida. Era uma violenta história de amor e de crime, que se desenrolava silenciosamente ante eles. A ação passava-se na corte de um déspota oriental e constava de acontecimentos precipitados, cheios de ostentação e de nudez, saturados da libidinosidade do soberano e da fúria religiosa dos súditos, transbordante de crueldade, de cobiça e volúpia assassina e de um realismo meticuloso, quando se tratava de fazer apreciar a musculatura de uns braços de verdugo – numa palavra, uma coisa fabricada à base do conhecimento íntimo dos desejos secretos da civilização internacional que formava a assistência. Settembrini, como homem de juízo, provavelmente condenaria da forma mais severa esse espetáculo contrário à humanidade; sua ironia reta e clássica fustigaria o abuso da técnica com o fim de dar vida a representações tão cheias de desprezo dos homens. Essa, pelo menos, era a opinião de Hans Castorp, que ele segredou ao primo. A Srª. Stöhr, porém, que também estava no cinema, não longe dos três, parecia toda enlevada, e seu estólido rosto vermelho crispava-se de tanto gozo.

O mesmo aspecto ofereciam, de resto, as fisionomias dos demais espectadores. Quando a derradeira e trêmula imagem de uma seqüência de cenas se desvanecia e se fazia luz na sala, exibindo à multidão o campo das visões em forma de uma tela vazia, faltava até uma oportunidade para bater palmas. Não estava presente ninguém que se pudesse aplaudir e admirar, graças à arte por ele demonstrada. Os artistas que se haviam reunido para dar o espetáculo que o público acabava de desfrutar fazia muito se tinham dispersado. O que se vira eram apenas as sombras das suas façanhas, milhões de imagens, brevíssimos instantâneos, em que se dissecara a sua atividade durante o processo fotográfico, para que fosse possível restituí-la ao elemento do tempo, cada vez que se quisesse, num curso tremeluzente de tanta rapidez. O silêncio da assistência após o fim da ilusão tinha qualquer coisa de inerte e repugnante. As mãos jaziam impotentes em face do nada. As pessoas esfregavam os olhos, miravam fixamente o ar, tinham vergonha da claridade e desejavam voltar à escuridão, para tornar a contemplar, para novamente ver como se desenrolavam, transplantadas para um novo tempo e arrebicadas pela música, aquelas cenas pertencentes a um outro tempo.

O déspota morria vítima de um punhal, lançando, com a boca aberta, urros que não se ouviam. A seguir foram mostradas imagens de todas as partes do mundo: o presidente da República Francesa, de cartola, com a grã-cruz da Legião de Honra, respondendo, do assento de um landô, a um discurso de saudação; o vice-rei da índia, assistindo às bodas de um rajá; o príncipe herdeiro alemão no pátio de um quartel de Potsdam. Viam-se a vida numa aldeia de indígenas de Novo Mecklenburg, uma rinha de galos em Bornéu, selvagens desnudos que tocavam flautas soprando pelo nariz, uma caça de elefantes bravios, uma cerimônia na corte real do Sião, uma rua de bordéis no Japão, com gueixas sentadas atrás de grades de madeira. Viam-se samoiedos agasalhados, atravessando, em trenós puxados por renas, um ermo nervoso da Ásia setentrional; viam-se peregrinos russos rezando em Hebron, e um delinqüente persa que recebia bastonadas. Presenciava-se tudo isso. O espaço ficava aniquilado, e o tempo recuava. O Ali e o Outrora tinham-se transformado num Aqui e num Agora, que deslizavam, dançavam, envoltos em música. Uma jovem marroquina, em trajes de seda listrada, ajaezada de correntes, fivelas e anéis, com os exuberantes seios semidesnudos, aproximava-se de repente, em tamanho natural; tinha as narinas dilatadas e os olhos cheios de vida animalesca. As feições estavam em pleno movimento. Ria-se, exibindo os dentes brancos. Uma das mãos, cujas unhas pareciam mais claras que a pele, era mantida à altura dos olhos, qual uma pala, enquanto a outra acenava para o público. As pessoas fitavam, acanhadas, a encantadora sombra que fingia enxergar e não enxergava, que absolutamente não era atingida pelos olhares, e cujo riso e aceno não se referia ao presente, senão que pertencia ao Ali e ao Outrora, de modo que teria sido absurdo retribuí-lo. Isto, como já dissemos, mesclava o prazer com uma sensação de impotência. Por fim o fantasma desapareceu. Uma clareza vazia estendeu-se por sobre a tela, onde apareceu a palavra “Fim”. Chegara a seu fim o ciclo de espetáculos, e em silêncio a sala se esvaziou, enquanto um novo público já se apertava lá fora, desejoso de assistir a uma repetição dessa seqüência de cenas.

Animados pela Srª. Stöhr, que se uniu a eles, foram ainda visitar o café da estância, por amor à pobre Karen, que juntava as mãos, de tanta gratidão. Ali também havia música. Uma pequena orquestra, com casacas vermelhas, tocava sob a regência de um primeiro-violino tcheco ou húngaro, que, separado da sua banda, se achava no meio dos pares dançantes e investia contra o seu instrumento com frenéticas contorções do corpo. Em torno das mesas exibia-se a vida mundana. Eram servidas bebidas seletas. Os primos pediram laranjada para si próprios e para a sua pupila, para se refrescarem, já que a atmosfera estava quente e carregada de poeira. A Srª. Stöhr preferiu um licor doce. A essa hora – afirmou ela – ainda não reinava muita animação. Um pouco mais tarde, o baile seria bem mais alegre. Numerosos pacientes dos diversos sanatórios, bem como enfermos não internados, que moravam nos hotéis e na própria estância, entrariam na dança, em número muito maior do que agora. Não eram raros os casos graves que nesse salão haviam passado, em plena festa, para a eternidade, emborcando a taça da alegria de viver e sofrendo a hemorragia final in dulci jubilo. O que a crassa ignorância da Srª. Stöhr fez desse “dulci jubilo” foi realmente extraordinário. Tomou a primeira palavra de empréstimo, do vocabulário italiano-musical do marido, dando-lhe a pronúncia “dolce”. A segunda lembrava “jubileu” ou qualquer canto tirolês. Os dois primos inclinaram-se ao mesmo tempo para os canudos dos seus copos quando esse latim se ostentou; mas a Srª. Stöhr não se desconcertou por tão pouca coisa. Pelo contrário, mostrando obstinadamente os dentes de lebre, serviu-se de toda espécie de alusões e de indiretas para descobrir a razão de ser das relações entre os três jovens. Parecia-lhe evidente no que dizia respeito à pobre Karen, que, segundo, a Srª. Stöhr, devia estar satisfeitíssima com a corte que lhe faziam dois cavalheiros elegantes. Menos claro afigurava-se-lhe o caso com relação aos primos, mas, não obstante a sua estupidez e ignorância, a intuição feminina ajudou-a a formar uma idéia, ainda que incompleta e trivial. Adivinhou e deixou entender, mediante alfinetadas, que o verdadeiro cavaleiro era Hans Castorp, ao passo que o jovem Ziemssen era apenas assistente; opinou que Hans Castorp, cuja inclinação por Mme. Chauchat não lhe escapara, cortejava a mísera Karstedt tão-somente como sucedâneo, visto que, evidentemente, não sabia como aproximar-se da outra – opinião muito digna de uma Srª. Stöhr, desprovida de todo fundo moral, insuficiente e baseada numa intuição desprezível. Por isso, Hans Castorp limitou sua resposta a um olhar fatigado e desdenhoso, quando a mulher a expressou de forma banalmente chistosa. Com efeito, as relações com a pobre Karen constituíam para ele uma espécie de sucedâneo e de recurso suplementar, proveitoso de um modo pouco claro, assim como era o caso das suas demais empresas caritativas. Mas, ao mesmo tempo, tinham a sua finalidade própria essas suas ações piedosas. A satisfação que Hans Castorp experimentava ao introduzir o mingau na boca da inválida Srª. von Mallinckrodt, ao ouvir como o Sr. Ferge descrevia o inferno do choque pleural ou ao ver a pobre Karen bater as mãos com os dedos cobertos de esparadrapos, de tanta alegria e gratidão – essa satisfação era, em que pese a sua natureza derivada e relativa, de um caráter espontâneo e puro; tinha a sua origem num espírito formativo oposto àquele que o Sr. Settembrini representava na sua pedagogia, mas suficientemente valioso, segundo a opinião do jovem Hans Castorp, para que se aplicasse a ele o placet experiri.

A casinha onde morava Karen Karstedt achava-se situada nas proximidades do curso d'água e dos trilhos da via férrea, à margem da estrada que conduzia à “aldeia”. Dessa forma era fácil para os primos irem buscá-la, quando, depois do café da manhã, a quisessem levar ao passeio regulamentar. Dirigindo-se à “aldeia”, na intenção de chegar à rua principal, tinham ante os seus olhos o Kleine Schiahorn, em seguida as três agulhas que se chamavam as Grüne Türme, e ainda mais à direita a cúspide do Dorfberg. A um quarto da altura da sua encosta via-se um cemitério, o cemitério da “aldeia”, rodeado de um muro, e que prometia uma linda vista; motivo por que valia a pena escolhê-lo para objetivo de um passeio. Uma bela manhã foram até lá, os três. Aliás, todas as manhãs eram belas nessa época do ano, calmas e ensolaradas, de um azul profundo, com uma atmosfera entre quente e fria, cintilante de alvura. Os primos – um com a tez cor de tijolo e o outro bronzeado – iam sem sobretudo, que teria sido incômodo sob esse sol abrasador. O jovem Ziemssen usava traje esporte e galochas por causa da neve; Hans Castorp calçava da mesma forma, mas levava calças compridas, pois não tinha espírito desportivo suficiente para andar de calções de golfe. Estava-se na primeira metade de fevereiro do novo ano. Sim, o ano mudara desde que Hans Castorp se encontrava ali, e já se escrevia outro número. Um dos ponteiros grandes do relógio que media as eras do universo dera para a frente um passo correspondente a uma unidade; não se tratava de um ponteiro dos maiores, como aquele que se referia aos milênios – muito poucos dentre os que viviam agora chegariam a vê-lo avançar – nem tampouco o dos séculos ou ainda o dos decênios. Mas o ponteiro dos anos acabava de movimentar-se, embora Hans Castorp se achasse ali fazia pouco mais de meio ano apenas, e daí por diante permaneceria parado, à maneira dos ponteiros de certos relógios grandes, que só de cinco em cinco minutos se põem em movimento. Antes que fizesse novo avanço, o ponteiro dos meses teria de avançar dez vezes, um pouco mais, portanto, do que fizera desde a chegada de Hans Castorp. O mês de fevereiro já não figurava no balanço, visto um mês começado ser um mês liquidado, assim como uma moeda trocada já se conta como gasta.

Os três companheiros dirigiram-se, pois, certo dia, ao cemitério situado na encosta do Dorfberg. Mencionamos esse passeio para manter o nosso relato rigorosamente completo. Devia-se essa iniciativa a Hans Castorp, e Joachim, que a princípio se mostrara contrário, levando em consideração a pobre Karen deixara-se convencer e reconhecera que não adiantaria tentar iludi-la e esconder-lhe, à maneira da covarde Srª. Stöhr, tudo quanto lhe pudesse lembrar o fim. Karen Karstedt ainda não se entregava às idéias otimistas, peculiares à última fase da enfermidade; estava a par do seu estado, e sabia o que significava a necrose das pontas dos dedos. Não ignorava tampouco que os seus parentes avarentos não admitiriam o luxo de se transportar o féretro ao seu país natal, e que depois do exitus lhe designariam um modesto lugarzinho ali em cima. Numa palavra, podia-se opinar que o objetivo desse passeio, do ponto de vista moral, era mais próprio para ela do que muitos outros, como, por exemplo, o ponto de partida dos trenós ou o cinema. Por outro lado, era apenas um ato decente de camaradagem visitar os lá de cima, desde que não se quisesse considerar o cemitério como mera curiosidade ou como um terreno neutro de passeio.

Subiam lentamente, em fila indiana, porque a trilha aberta a pá não permitia irem lado a lado. Deixando atrás e abaixo as mais altas das casas construídas na vertente, olhavam, enquanto subiam, a paisagem familiar na sua magnificência invernal, que mais uma vez se deslocava na perspectiva e lhes abria um outro aspecto. Dilatava-se rumo ao nordeste, em direção à entrada do vale. Surgia a esperada vista do lago circular, rodeado de bosques, congelado e coberto de neve. Atrás da sua margem oposta, os planos inclinados das montanhas pareciam encontrar-se no solo, e mais além assomavam cumes desconhecidos, sobrelevando uns aos outros, diante do céu azul. Os três contemplaram tudo isso, detendo-se na neve, em frente ao portão de pedra que dava acesso ao cemitério. A seguir entraram, abrindo os batentes de ferro, que estavam simplesmente encostados.

Também no interior acharam trilhas limpas de neve, que passavam por entre as elevações dos túmulos cercados de grades e estufados de neve, esses leitos bem-dispostos e simétricos, com sua cruzes de pedra ou de metal, e com seus pequenos monumentos adornados de medalhões e dísticos. Não se ouvia nem se via ninguém. A calma, o isolamento, a paz do lugar pareciam profundos e íntimos em muitos sentidos. Um anjinho ou menino de pedra, com um boné de neve colocado obliquamente na cabeça, quedava-se em alguma parte no meio das moitas e fechava os lábios com um dedo; podia passar pelo gênio do lugar, quer dizer, o gênio do silêncio, de um silêncio que se afigurava nitidamente como a negação e o antípoda da palavra falada, como um ato de emudecer, portanto, mas absolutamente não era desprovido de conteúdo ou de vida. Para os dois visitantes do sexo masculino aquela seria sem dúvida uma ocasião de tirar os chapéus, se os tivessem levado. Mas, já que andavam descobertos – também Hans Castorp passara a fazê-lo –, limitaram-se a uma atitude reverente, caminhando com o peso do corpo sobre as pontas dos pés e fazendo uma espécie de pequenas mesuras para os lados, enquanto seguiam, em fila indiana, Karen Karstedt, que conduzia o cortejo.

A forma do cemitério era irregular. Começava por estender-se num retângulo estreito em direção ao sul, para depois ampliar-se em dois sentidos, por meio de outros retângulos. Evidentemente se haviam feito necessários repetidos aumentos, tendo sido acrescentadas partes dos campos vizinhos. Mesmo assim, o recinto parecia novamente ocupado na sua quase totalidade, ao longo dos muros tanto como na zona interior, menos apreciada em geral. Era difícil assinalar um lugar onde mais alguém, em caso de emergência, pudesse ser enterrado. Discretamente, os três companheiros caminharam durante longo tempo pelas estreitas trilhas e corredores, entre as sepulturas. Estacavam, de vez em quando, para decifrar um nome com as respectivas datas de nascimento e de morte. As pedras sepulcrais e as cruzes eram simples e demonstravam pouco aparato. No que toca às inscrições, os nomes eram das origens mais diversas: havia ingleses, russos ou ao menos eslavos, mas também alemães, portugueses e outros. As datas, porém, contavam uma história delicada; o intervalo que separava uma da outra era geralmente de extraordinária brevidade; o número de anos decorridos entre o nascimento e o exitus elevava-se, na média, a vinte ou pouco mais; muita juventude e pouca gente sisuda povoava o acampamento, um povo volúvel que viera aqui de todas as partes do mundo e se adaptara definitivamente à existência horizontal.

Em determinado lugar, entre a multidão de jazigos, no interior do campo-santo, quase no seu centro, encontraram um pedacinho de terra ainda rasa, do comprimento de um homem deitado, um pedacinho desocupado, entre dois túmulos em cujas pedras estavam penduradas coroas de perpétuas. Detiveram-se ali, a moça um passo à frente dos seus companheiros, e leram as tristes inscrições gravadas nas pedras, Hans Castorp numa atitude de abandono, com as mãos entrelaçadas, a boca aberta e os olhos sonolentos; o jovem Ziemssen em posição de sentido, não somente ereto, mas até um pouco inclinado para trás. E ambos os primos, possuídos de uma curiosidade simultânea, lançaram um olhar de esguelha para o rosto de Karen Karstedt. Ela percebeu, apesar de toda a discrição, e deixou-se ficar ali, acanhada e humilde, com a cabeça avançada um tanto obliquamente. Com os olhos piscando nervosamente, esboçou um sorriso forçado.

 

         Noite de Valburga

Dentro de poucos dias faria sete meses que o jovem Hans Castorp se achava nessas alturas, ao passo que o primo Joachim, com cinco meses a mais nas costas, já se podia lembrar de quase doze meses de estadia, um ano inteiro, em conta redonda – redonda no sentido cósmico, uma vez que a Terra, desde o dia em que ali o deixara a potente locomotivazinha, dera uma volta completa em torno do Sol e regressara ao ponto onde então se achava. Estava-se na época do carnaval. Aproximavam-se os folguedos da terça-feira, e Hans Castorp indagou dos pensionistas com mais de um ano de permanência que tal era a festa ali em cima.

– Magnífica! – respondeu Settembrini, a quem os primos haviam encontrado durante o exercício matinal. – Esplêndida! – acrescentou. – É tão alegre como no Prater; o senhor vai ver, engenheiro. “Cá viemos mui lampeiros figurar de cavalheiros...” – citou, e sua boca se pôs a transbordar de ironias, que ele acompanhou de gestos apropriados da cabeça, dos braços e dos ombros: – Que quer o senhor? Na própria maison de santé realizam-se às vezes bailes para os loucos e os idiotas. Pelo menos é o que li em alguma parte. Por que razão não o fariam também aqui? O programa contém as mais diversas danças macabras. Infelizmente, alguns dos convidados do ano passado não poderão estar presentes, uma vez que a festa termina às nove e meia...

– Isso significa... Ah, sim! Essa é boa! – riu-se Hans Castorp. – O senhor inventa cada coisa! Às nove e meia! Você ouviu esta? É muito cedo para que “certa parte” da assistência do ano passado possa comparecer, acha o Sr. Settembrini. Ah, ah! é fantástico! Trata-se da parte que nesse ínterim disse definitivamente vale à carne, sabe? Você compreendeu o meu trocadilho?...[2] Mas estou mesmo curioso para ver isso – continuou. – Parece-me muito certo que aqui se celebrem as festas quando se apresentam. Assim, as etapas são marcadas, como de costume, por meio de entalhes, para que não haja uma monotonia confusa, que seria muito tediosa. Tivemos o Natal, e notamos o começo do ano novo. E agora vem o carnaval. Depois se aproximará o Domingo de Ramos -será que aqui servem rosquinhas? —, haverá a Semana Santa, a Páscoa e Pentecostes, seis semanas mais tarde. Em seguida será o dia mais longo do ano, o solstício de verão, e logo nos encaminharemos para o outono...

– Pare! Pare com isso! – exclamou Settembrini, elevando os olhos para o céu e comprimindo as têmporas com as palmas da mão. – Cale-se! Não posso ouvir como o senhor se excede dessa maneira...

– Perdão, quero dizer, justamente... Bem, parece que o Behrens se decidirá finalmente a me dar aquelas injeções para me desintoxicar. Tenho constantemente temperaturas entre 37,4 e 37,7. Isso não se modifica. Sou e continuo sendo um filho enfermiço da vida. Não sou propriamente um paciente a longo prazo. Radamanto nunca me condenou a uma pena determinada, mas acha que seria absurdo interromper o tratamento prematuramente, depois de tantos meses que estou aqui, e depois de ter, por assim dizer, empatado um tempo considerável. De que serviria fixar um prazo? Isso não significaria nada, pois quando ele diz, por exemplo: “Meio ano, pouco mais ou menos”, trata-se do mínimo, e é preciso que a gente se prepare para mais. Vejo isso no caso de meu primo, cujo fim devia ter chegado ao princípio deste mês – digo “fim” no sentido da alta definitiva —, mas, da última vez, o Behrens lhe acrescentou mais quatro meses até a cura completa. Sim, senhor, e depois que haverá? Haverá o solstício de verão, como eu já disse, sem a mínima intenção de melindrá-lo, e novamente estaremos a caminho do inverno. Ora, por enquanto só teremos o carnaval, e o senhor já sabe que acho muito acertado e bonito que a gente celebre todas as festas na ordem, como estão marcadas no calendário. A Srª. Stöhr me contou que o porteiro tem à venda umas cornetas de brinquedo.

Era verdade. Desde o café da manhã na terça-feira de carnaval, que chegara depressa, ainda antes que se tivesse tempo de avistá-la de longe – desde as primeiras horas da manhã, ouvia-se na sala de refeições toda espécie de sons produzidos por instrumentos de sopro, que roncavam ou trilavam carregados do melhor humor. Durante o almoço foram jogadas serpentinas da mesa de Gänser, Rasmussen e da Kleefeld; algumas pessoas, como a Marusja dos olhos redondos, já levavam carapuças de papel, igualmente compradas no alojamento do porteiro coxo. Pela noite, porém, desenvolveu-se na sala e nas dependências uma animação festiva, no decorrer da qual... Unicamente o autor sabe por ora o que se passou no decorrer dessa animação festiva do carnaval, devido ao espírito empreendedor de Hans Castorp. Mas não nos deixemos arrastar pelo nosso conhecimento da história a abandonar a circunspeção do nosso estilo. Atribuamos ao tempo a honra que merece e não precipitemos a narrativa. Talvez até retardemos um pouco o curso dos acontecimentos, participando das inibições morais do jovem Hans Castorp, que por tanto tempo haviam atrasado a sua realização.

À tarde, todo mundo foi a Davos-Platz para olhar o movimento carnavalesco nas ruas. Desfilavam as fantasias, us pierrôs e os arlequins, agitando as matracas. Entre os pedestres e as pessoas fantasiadas que ocupavam os trenós enfeitados e providos de guizos, iam sendo travadas batalhas de confete. Na hora do jantar, os pensionistas reuniram-se sumamente alegres em torno das sete mesas, decididos a manter o entusiasmo público nesse recinto fechado. As carapuças de papel, as cuícas e as cornetas do porteiro tinham sido vendidas com grande rapidez. O Promotor Paravant dera início aos disfarces mais completos, vestindo um quimono de senhora e um rabicho postiço, que, segundo as exclamações vindas de todos os lados, pertencia à esposa do Cônsul-Geral Wurmbrand; por meio de um encrespador, puxara para baixo as pontas do bigode, de maneira que parecia um chinês perfeito. A “administração” não ficava atrás. Cada mesa estava adornada de uma lanterna de papel, que mostrava uma lua multicor e tinha no seu interior uma vela acesa. Settembrini, ao entrar na sala e passar perto da mesa de Hans Castorp, citou uns versos que podiam referir-se a essa iluminação:

 

       – “Perceberá candeios de mil cores.

       Há lá festa; há de achar-se acompanhado...”

 

– murmurou com um sorriso fino e seco, enquanto, negligentemente, se dirigia ao seu lugar, onde o receberam com pequenos projéteis, bolinhas cheias de um líquido perfumado, que se quebravam com o choque e molhavam as vítimas. Numa palavra, a animação festiva foi extraordinária desde o início. Estrondeavam gargalhadas; serpentinas dependuradas dos lustres balançavam-se agitadas pelas correntes de ar; no molho dos assados boiavam confetes. A anã não tardou a trazer, com passo apressado, a primeira garrafa de champanha num recipiente de gelo. Misturavam o champanha com vinho da Borgonha, obedecendo a uma sugestão do advogado Einhuf. Pelo fim da refeição, apagaram-se as luzes do teto e a iluminação limitou-se às lanternas, que lançavam sobre o ambiente o claro-escuro variegado de uma noite italiana. A essa altura dos acontecimentos o bom humor era geral, e na mesa de Hans Castorp houve muitos aplausos quando Settembrini entregou um bilhete a Marusja, que tinha o lugar mais próximo dele. A moça, enfeitada de um gorro de jóquei, de papel de seda verde, fez circular o papelzinho, no qual se liam os seguintes escritos a lápis:

 

“Mas veja que esta noite é a festa das diabruras cá no monte; e eu também sou uma das figuras. Mas vá lá; faltarei contanto que releve a um pobre fogo-fátuo o modo como o leve”.

 

O Dr. Blumenkohl que, a essa época, novamente andava muito mal de saúde, esboçou aquela expressão, ou melhor, aquela contração dos lábios que lhe era peculiar, e murmurou algumas palavras relativas à procedência desses versos. Hans Castorp, por sua vez, achou-se na obrigação de dar uma resposta humorística. Tencionou escrever no bilhete uma réplica, que, na verdade, não poderia ser muito significativa. Remexeu os bolsos em busca de um lápis, mas não o encontrou e tampouco pôde consegui-lo de Joachim ou da professora. Pedindo auxílio, seus olhos estriados de vermelho dirigiram-se para o leste, no canto traseiro da sala, bem à esquerda. Viu-se então como aquela intenção fugaz degenerava em associações de idéias tão longínquas, que Hans Castorp empalideceu, esquecendo-se totalmente de seu intuito primitivo.

Havia, além disso, outros motivos para empalidecer. Mme. Chauchat, que tinha o seu lugar ali atrás, engalanara-se por causa do carnaval; trajava um vestido novo, ou pelo menos um vestido que Hans Castorp nunca a vira usar – de uma seda leve e escura, quase preta, que não cambiava senão de vez em quando com um brilho dourado-castanho; o decote, redondo e discreto, qual o de um vestido de garota, mal mostrava o pescoço, a junção das clavículas e, atrás, as vértebras da nuca, um tanto salientes sob os cabelos soltos, em virtude da posição avançada da cabeça; mas os braços de Clávdia estavam desnudos até os ombros, esses braços delgados e todavia cheios, braços frios, provavelmente, e que se destacavam tão brancos da seda escura do vestido, que Hans Castorp, fechando os olhos, murmurou de si para si: – Deus meu! – Nunca antes deparara com esse tipo de vestido. Conhecia vestidos de baile com decotes tais como permitia ou até prescrevia o caráter da festa, decotes muito mais amplos do que este, sem, contudo, produzirem efeito igualmente sensacional. Evidenciou-se, antes de tudo, ter-se enganado redondamente o pobre Hans Castorp, ao supor que o encanto e a insensata sedução desses braços, que só conhecia através de um véu de gaze fina, iam ser menos intensos sem essa auréola sugestiva. Engano! Ilusão fatal! A nudez completa, acentuada e deslumbrante desses magníficos membros de um organismo intoxicado, constituía um espetáculo muito mais emocionante do que a auréola de outrora, uma visão à qual não se podia responder de outra maneira que baixando a cabeça e repetindo, em voz surda: - Deus meu!

Pouco mais tarde chegou outro bilhete com o seguinte conteúdo:

 

       “Quem viu jamais melhor sociedade?

         Tudo moças, perfeitas donzelas!

         Tudo moços digníssimos delas!

         Que promessas à posteridade!”

 

Ressoavam aclamações e bravos. Já tinham progredido até o cafezinho, que era servido em pequenos bules de barro pardo; outros tomaram licores, como por exemplo a Srª. Stöhr, que gostava imensamente de bebidas fortes e doces. Os comensais começaram a levantar-se e a circular pela sala. Visitavam-se uns aos outros; trocavam de mesa. Parte dos pensionistas já passara para os salões, enquanto outros, mais sedentários, continuavam a fazer honra à mistura de vinhos. Settembrini chegou então pessoalmente, com a xícara de café na mão e o palito entre os dentes. Sentou-se como visitante à cabeceira da mesa, entre Hans Castorp e a professora.

– “Montanhas do Harz” – disse. – “Região entre Schierke e Elend.[3]“ Será que lhe prometi demais, engenheiro? “Que feira! Gira-me a cabeça!” Mas espere um pouco, ainda não se esgotou o nosso engenho. Ainda não chegamos ao apogeu; estamos longe do fim. Como se ouve dizer, haverá outros disfarces. Algumas pessoas se retiraram, e isso nos permite esperar muita coisa. O senhor vai ver.

Com efeito, apareciam novas fantasias. Senhoras vestidas de homem, com os rostos enegrecidos mediante rolhas tisnadas, e que ofereciam um aspecto pouco natural, de opereta, pela opulência das suas formas. Cavalheiros que, por sua vez, se haviam fantasiado de mulher, trajando longos vestidos, em cujas saias tropeçavam, como, por exemplo, o estudante Rasmussen, numa roupa preta, enfeitada de lantejoulas, exibindo um decote cheio de espinhas e abanando-se, pela frente e por trás, com um leque de papel. Apareceu um mendigo, arrastando-se de joelhos dobrados, apoiado numa muleta. Um pensionista transformara roupas de baixo e um chapéu de senhora numa fantasia de pierrô; empoara o rosto de tal maneira que os olhos adquiriam uma expressão estranha, e, por meio de batom, dera à boca um certo relevo de sanguinolêncía; era o rapazote de unha comprida. Um grego da mesa dos “russos ordinários”, dotado de pernas bonitas, pavoneava-se em ceroulas de malha lilás, com uma golilha de papel e um florete, pretendendo ser um fidalgo espanhol ou um príncipe de conto de fadas, Todas essas fantasias haviam sido improvisadas, a toda a pressa, depois do fim da refeição. A Srª. Stöhr também não pôde permanecer no seu lugar por mais tempo. Sumiu, para logo reaparecer disfarçada de arrumadeira, com a saia e as mangas arregaçadas; tinha as fitas da touca de papel amarradas por baixo do queixo; munida de balde e vassoura, pôs-se a trabalhar, passando o pano molhado sob as mesas, entre as pernas das pessoas sentadas.

“A velha Baubo vem sozinha...”,

 

citou Settembrini ao vê-la, e não deixou de acrescentar, na sua pronúncia clara e plástica, o verso seguinte. Quando ela ouviu essas palavras, chamou-o de “galo italiano” e mandou-o parar com essas “porcarias”. Em nome da liberdade própria das máscaras, tuteou-o; pois esse tratamento já fora adotado em toda parte durante a refeição. Settembrini esteve a ponto de retrucar, quando uma barulheira e uma onda de gargalhadas, vindas do vestíbulo, o interromperam e atraíram a atenção da sala.

Seguidas de pensionistas que saíam dos salões, entraram solenemente duas estranhas figuras, que apenas acabavam de fantasiar-se. Uma vinha em trajes de diaconisa, mas seu hábito preto estava coberto, desde o pescoço até a barra, de faixas brancas, transversais; listras curtas, próximas umas das outras, e longas, mais espaçadas, dispostas à maneira da marcação de um termômetro. Levava um dos indicadores à boca pálida e trazia, na outra mão, uma papeleta de temperatura. O outro mascarado vinha vestido de azul, com os lábios e os sobrolhos pintados de azul, e com manchas azuis no rosto e no pescoço; usava um gorro de lã azul, colocado obliquamente na cabeça, e trajava uma espécie de macacão de alpaca azul, feito de uma só peça, atado nos tornozelos por meio de fitas e com enchimento na parte central do corpo para formar uma enorme barriga. As figuras foram reconhecidas como sendo a Srª. Iltis e o Sr. Albin. Ambos levavam cartazes de papelão, nos quais se podia ler: “A Irmã Muda” e “Joãozinho Azul”. A passo saltitante deram volta à sala.

Quantos aplausos não receberam! Houve aclamações a não acabar. A Srª. Stöhr, com a vassoura debaixo do braço e com as mãos fincadas nos joelhos, riu-se desmedida e ordinariamente, como lhe permitia o seu papel de arrumadeira. Unicamente Settembrini mostrou-se reservado. Seus lábios, sob a bela curva do bigode, comprimiram-se sobremaneira, após um rápido olhar aos dois mascarados, alvo de tantas palmas.

Entre as pessoas que, formando o cortejo do Azul e da Muda, haviam voltado das dependências à sala de refeições, achava-se também Clávdia Chauchat, em companhia de Tamara, a moça dos cabelos lanosos, e daquele comensal de tórax côncavo, um certo Buligin, que usava smoking. Mme. Chauchat, no seu vestido novo, roçando a mesa de Hans Castorp, passou pela sala em diagonal, até a mesa do jovem Gänser e da Kleefeld, onde estacou, mãos nas costas, conversando e rindo, com os olhos oblíquos, enquanto os seus companheiros continuavam a seguir os fantasmas alegóricos e abandonavam a sala atrás deles. Também Mme. Chauchat enfeitara-se com uma carapuça de carnaval. Não era nem sequer um gorro comprado, mas sim daquele tipo que se faz para crianças, um tricórnio dobrado de papel branco. Usava-o atravessado, o que lhe ficava muito bem. O vestido de seda cambiante entre marrom-escuro e dourado deixava ver os pés e tinha saia godê. Nada mais diremos dos braços. Estavam nus até os ombros.

– “Repara!” – ouviu Hans Castorp a voz do Sr. Settembrini recitar como que de longe, enquanto seus olhares acompanhavam Mme. Chauchat, que, prosseguindo no caminho, se aproximava da porta envidraçada e saía da sala. – “É Lilith.”

– Que Lilith? – perguntou Hans Castorp.

O literato, gostando da pergunta correspondente ao texto, replicou:

– “Lilith, a primeira mulher de Adão. Cuidado!...”

Além deles, somente o Dr. Blumenkohl ainda permanecia à mesa, no seu lugar distante. Os demais companheiros, entre eles Joachim, tinham passado para os salões. Hans Castorp disse:

– Hoje estás cheio de poesia e de versos. Que Lilith é essa, afinal? Adão casou-se duas vezes? Eu não sabia disso...

– É a lenda hebraica que o diz. A tal Lilith transformou-se num fantasma noturno, perigoso aos jovens, sobre tudo pelos seus lindos cabelos.

– Que horror! Um fantasma noturno com lindos cabelos! Isso não te agrada, hein? Então chegas e acendes, por assim dizer, a luz elétrica, para fazer os jovens voltarem ao bom caminho, não é? – disse Hans Castorp, divagando, porque bebera grandes quantidades daquela mistura de vinhos.

– Escute, engenheiro, deixe disso! – ordenou Settembrini, de cenho carregado. – Sirva-se do tratamento que se emprega no Ocidente entre as pessoas cultas; use a terceira pessoa, por favor! Essa maneira de falar que o senhor está experimentando absolutamente não condiz com a sua pessoa.

– Mas por que não? É carnaval. É a forma geralmente aceita nesta noite...

– Sim, senhor, devido a um prazer imoral. O “tu” entre pessoas estranhas, isto é, entre pessoas que normalmente se tratam por “o senhor”, constitui repugnante selvageria, um jogo com o estado primitivo, um jogo silencioso que abomino, porque, no fundo, se dirige contra a civilização e contra a humanidade desenvolvida, e isso de uma forma insolente e despudorada. Eu não tratei o senhor por “tu”. Apenas citei um trecho da obra-prima da sua literatura nacional. Servi-me, portanto, de uma linguagem poética...

– Eu também! Também eu falo, em certo sentido, poeticamente. É porque o momento me parece próprio para fazê-lo, só por isso! Não digo que me seja natural e fácil tratar-te por “tu”. Pelo contrário, custa-me certo esforço; lenho que me obrigar a isso. Mas faço-o com prazer, faço-o alegremente e de todo o coração...

– De todo o coração?

– Sim, de todo o coração. Podes acreditar-me. Já faz tempo que vivemos juntos aqui em cima! Uns sete meses; podes fazer o cálculo. Segundo os conceitos daqui não é grande coisa, mas, quando penso nas idéias que reinam lá embaixo, é tempo considerável. Bem, e esse tempo, nós o passamos um ao lado do outro, porque a vida nos reuniu aqui. Encontramo-nos quase todos os dias e tivemos palestras interessantes, freqüentemente sobre assuntos dos quais lá embaixo eu não entenderia patavina. Mas aqui era diferente. Aqui achei-os importantes e pertinentes, de modo que todas as vezes que a gente discutia, prestei muita atenção. Ou melhor: todas as vezes que tu me explicavas as coisas na qualidade de um homo humanus, pois eu, com a minha falta de experiência, pouco sabia contribuir para o tema e apenas me limitava a achar digno de ser ouvido tudo quanto dizias. Graças a ti aprendi e compreendi muita coisa... O que me contaste de Carducci é o de menos, mas as relações que existem entre a república e o belo estilo, ou entre o tempo e o progresso da humanidade – se não houvesse o tempo seria impossível o progresso da humanidade, e o mundo não passaria de um charco estagnado e uma poça pútrida... Que saberia eu de tudo isso, se tu não me tivesses ensinado? Trato-te simplesmente por “tu” e não te dou outro nome. Desculpa-me, mas não sei como te falar de outra forma. Não há jeito. Aí te achas sentado, e chamo-te “tu”, simplesmente; é o quanto basta. Tu não és um homem qualquer que leva um nome, tu és um representante, Sr. Settembrini, um representante, neste lugar e a meu lado. Eis o que és – confirmou Hans Castorp, e com a palma da mão bateu sobre a toalha. – E agora quero agradecer-te – prosseguiu, aproximando a sua taça, cheia de borgonha misturado com champanha, da xícara de café do Sr. Settembrini, para tocá-la em cima da mesa –, agradecer-te pelos cuidados que, durante estes sete meses, me devotaste de maneira muito amável; quero agradecer-te porque ajudaste nos seus exercícios e nas suas experiências o calouro que eu era e que se via assaltado por tantas impressões novas; porque procuraste exercer sobre mim uma influência corretiva, totalmente sine pecunia, por meio de historietas ou de forma abstrata. Tenho a sensação nítida de que chegou o momento de expressar a minha gratidão por isso e por tudo, e de pedir-te perdão por ter sido um mau aluno, um “filho enfermiço da vida”, como me chamaste. Quando me disseste isso, fiquei muito comovido, e cada vez que me lembro sinto a mesma emoção. Um filho enfermiço é o que fui sem dúvida também para ti e para a tua veia pedagógica, da qual me falaste logo no primeiro dia. Claro, pois aí temos mais uma dessas relações que tu me mostraste, a que existe entre o humanismo e a pedagogia. Com o tempo, eu descobriria muitas outras relações ainda... Perdoa-me e não guardes de mim recordações desfavoráveis! À tua saúde, Sr. Settembrini, viva! Esvazio a minha taça em homenagem aos teus esforços literários pelo extermínio dos sofrimentos humanos – terminou; e, inclinando-se para trás, sorveu em grandes tragos a mistura de vinhos. A seguir levantou-se, dizendo: – E agora vamos reunir-nos aos outros.

– Escute, engenheiro, que lhe deu na veneta? – perguntou o italiano, com os olhos cheios de surpresa, e também se pôs de pé. – Isso soa como uma despedida...

– Não; por que despedida? – respondeu Hans Castorp, esquivo. Esquivou-se não somente nas suas palavras, mas também fisicamente, descrevendo meio círculo com o corpo e avizinhando-se da professora, Srta. Engelhart, que viera buscá-los. No salão de música – anunciou ela – o conselheiro em pessoa estava preparando e distribuindo um ponche de carnaval, que a “administração” oferecia aos pensionistas. Que fossem para lá imediatamente se desejassem beber um copo. E eles se puseram a caminho.

Realmente, o Dr. Behrens achava-se no salão, rodeado pela multidão dos pensionistas, que lhe estendiam pequenos copos com asas. À sua frente havia a mesinha redonda do centro, coberta por uma toalha branca. Nela se via uma terrina, da qual o conselheiro tirava, com uma concha, a fumegante bebida. Também ele dera à sua aparência um cunho levemente carnavalesco, acrescentando ao avental de médico, que levava como sempre, uma vez que a sua atividade não conhecia descanso, um autêntico fez turco, carmesim, com uma borla negra a balouçar-se junto à orelha. Essa combinação parecia-lhe disfarce suficiente; bastava para levar aos limites da excentricidade e da pândega a sua aparência já em si fora do comum. O longo avental branco exagerava o tamanho do conselheiro. Quando se fazia abstração da curvatura da nuca, endireitando-a mentalmente e fazendo o corpo alcançar a sua altura verdadeira, a silhueta do homem, com a cabecinha de singulares colorido e aspecto, parecia aumentada. Pelo menos ao jovem Hans Castorp, esse rosto jamais se afigurara tão esquisito como nesse dia, quando contrastava com o ridículo fez vermelho; essa fisionomia achatada, com o nariz arrebitado, com a pele azulada, que dava a impressão de estar quente, com os olhos azuis lacrimosos e saltados sob as sobrancelhas de um louro quase branco, e com o bigodinho claro a torcer-se obliquamente por cima da boca arqueada, de lábios grossos. Procurando evitar o vapor quente que, turbilhonando, saía da terrina, o médico fazia a beberagem parda – um falso ponche açucarado – manar num arco que se estendia da concha até o copo apresentado. Acompanhava isso com incessantes discursos na sua gíria alegre, de modo que contínuas gargalhadas associavam-se à distribuição da bebida.

– “No topo monta Dom Urião” – explicou Settembrini em voz baixa, apontando para o conselheiro áulico. Em seguida, a corrente separou-o de Hans Castorp. Também o Dr. Krokowski estava presente. Baixote, atarracado e enérgico, tinha o casaco de alpaca preta suspenso dos ombros, com as mangas pendendo vazias, a ponto de produzir o efeito de um dominó; mantendo a taça à altura dos olhos, conversava jovialmente com um grupo de mascarados de sexo trocado. Ouviram-se sons de música. A paciente com a cara de anta tocou ao violino, acompanhada pelo rapaz de Mannheim, o Largo de Haendel e depois uma sonata de Grieg, de caráter nacional e adequado ao ambiente de salão. Houve aplausos benevolentes, até nas duas mesas de bridge que tinham sido armadas, e em torno das quais se haviam instalado pessoas fantasiadas, com garrafas em baldes de gelo ao lado. As portas estavam abertas. Também no vestíbulo achavam-se pensionistas. Um grupo cercava a mesa redonda, com a terrina de ponche, olhando o conselheiro empenhado em introduzir um novo jogo de salão. Desenhava ele com os olhos fechados, de pé, inclinado por cima da mesa, mas deitando a cabeça para trás, para que todos pudessem ver que realmente não abria os olhos. Nas costas de um cartão de visita, esboçava a lápis uma figura, às cegas. Eram os contornos de um porco o que a sua manopla desenhava sem a ajuda dos olhos; um porquinho visto de perfil, um tanto simplificado, mais esquemático do que naturalístico, porém incontestavelmente a essência de um porquinho, que o conselheiro ia traçando sob essas condições difíceis. Exigia muita habilidade, e ele dispunha dela. O olhinho rasgado entrou, pouco mais ou menos, onde devia entrar, talvez um pouco perto do focinho, mas, de qualquer maneira, em seu lugar; o mesmo se deu com a orelha pontuda e com as perninhas que pendiam da arredondada pança; prolongando a linha das costas, igualmente redondas, o rabinho formava um sacarolhas muito elegante. Todos exclamaram “ah!”, quando a obra estava concluída, e apressaram-se a imitar a proeza, tomados da ambição de igualar o mestre. Mas eram muito poucos os que sabiam desenhar, com os olhos abertos, um porquinho apresentável, e ainda menos às cegas. Que monstros não resultaram das suas tentativas! Não havia nenhuma relação entre os traços. O olhinho colocado fora da cabeça; as patinhas dentro da pança, que por sua vez ficava vastamente aberta; o rabinho enrolava-se em algum lugar longe do corpo, sem nenhuma relação orgânica com a figura principal, formando um arabesco independente. Houve ondas de risadas. O grupo aumentou. Foi atraída a atenção dos jogadores de bridge, que se aproximaram, curiosos, com as cartas abertas em leque na mão. A assistência controlava os olhos de quem experimentava, para certificar-se de que ninguém estivesse fazendo trapaça, como alguns tentavam, na sensação da sua impotência. Os espectadores riam-se aberta ou secretamente, enquanto o candidato cometia seus erros cegos, e rebentavam de júbilo quando ele, abrindo os olhos, contemplava a sua obra absurda. Uma confiança falaz em, si próprios impelia todos a participar da competição. O cartão, apesar de bem grande, encheu-se rapidamente em ambos os lados, de maneira que os desenhos entravam uns nos outros. O conselheiro sacrificou um segundo cartão, que tirou da sua carteira, e sobre o qual o Promotor Paravant, segundo um plano premeditado, tentou desenhar o porquinho num só traço, com o único resultado de malograr de forma muito pior do que os outros; os rabiscos que saíram de seu lápis não somente não se pareciam com nenhum porco, mas tampouco recordavam, nem de longe, qualquer coisa deste mundo. Novos gritos, novas gargalhadas e tumultuosas felicitações. A seguir foram buscar cardápios na sala de refeições, para que diversas pessoas, cavalheiros e senhoras, pudessem desenhar ao mesmo tempo. Todos os competidores tinham seus vigilantes e seus espectadores, cada um dos quais esperava a sua vez de se apossar do lápis que estava sendo usado. Havia apenas três lápis, que eram arrebatados. Todos eles pertenciam a pensionistas. O conselheiro, ao ver que o jogo estava bem encaminhado, desapareceu acompanhado do assistente.

No meio da multidão, Hans Castorp observava por cima do ombro de Joachim o trabalho de um dos desenhistas; tinha o cotovelo apoiado nesse ombro e o queixo agarrado com toda a mão, enquanto a outra se fincava no quadril. Falava e ria. Também queria desenhar. Reclamou em voz alta e recebeu um lápis, um pedaço bem curtinho, que mal se podia segurar entre o polegar e o indicador. Protestou contra esse toco, com os olhos fechados erguidos para o teto; resmungou em voz alta e praguejou contra a insuficiência do lápis, enquanto a mão apressada rabiscava no cartão uma espantosa monstruosidade, que por fim se estendia até sobre a toalha. – Isso não vale! – exclamou em meio às merecidas risadas. – Como se pode com um troço... Que vá para o diabo! – E atirou na terrina de ponche o toco assim acusado. – Quem tem um lápis decente? Quem me empresta um? Tenho de desenhar outra vez. Um lápis! Um lápis! Quem tem outro lápis? – gritou, voltando-se para todos os lados, com o antebraço esquerdo ainda firmado na mesa, e agitando no ar a mão direita. Não pôde obter nenhum. Eis que deu meia-volta e atravessou a peça, continuando a gritar. Foi em direção a Clávdia Chauchat, que, como ele sabia, se achava perto do reposteiro diante da salinha e dali observava sorrindo o alvoroço em torno da mesa de ponche.

Atrás de si, Hans Castorp ouviu chamar, em palavras sonoras e estrangeiras: – Eh! Ingegnere! Aspetti! Che cosa fa, ingegnere! Un po' di ragione, as! Ma è matto questo ragazzo! – Mas abafou essa voz com a sua própria. Viu-se então como o Sr. Settembrini levantou a mão acima da cabeça – gesto usado em seu país, de um sentido difícil de se expressar em poucas palavras, e que ele acompanhou de um “Eh!” prolongado –, depois do quê abandonou o ambiente carnavalesco... Hans Castorp, porém, achando-se no meio do pátio ladrilhado, fitou de muito perto o azul verde-cinzento desses olhos providos de epicanto, acima das maçãs salientes, e disse:

– Tu não tens, por acaso, um lápis?

Estava pálido como a morte, tão pálido como naquele dia quando, manchado de sangue, após o passeio solitário, fora assistir à conferência. Os nervos que controlavam os vasos capilares de seu rosto funcionavam de tal maneira que a pele exangue emurcheceu, lívida e fria, fazendo com que o nariz parecesse mais pontiagudo e a parte abaixo dos olhos adquirisse uma cadavérica cor de chumbo. O nervo simpático, por sua vez, mandava o coração de Hans Castorp martelar num ritmo tão acelerado que já não se podia falar de uma respiração regular. Calafrios percorriam o corpo do jovem, devido a um trabalho das glândulas sebáceas, que se eriçavam junto com os folículos pilosos.

A mulher do tricórnio de papel contemplou-o de alto a baixo com um sorriso que não revelava nenhum vestígio de compaixão ou desassossego diante do aspecto transtornado de Hans Castorp. O sexo feminino ignora, aliás, tal compaixão e desassossego diante dos terrores que traz consigo a paixão, esse elemento que, evidentemente, lhe é muito mais familiar do que ao homem, o qual, por natureza, não se dá com ele. Daí acontece que a mulher nunca o vê numa situação dessas sem sentir vontade de escarnecer e de mostrar uma alegria maliciosa. Por outro lado, o homem protestaria contra qualquer testemunho de compaixão e de desassossego.

– Eu? – respondeu àquele “tu” a enferma dos braços desnudos... – Sim, pode ser. – No seu sorriso e na sua voz talvez transparecesse um pouco da emoção que se produz, quando, depois de prolongadas relações mudas, se profere a primeira palavra; é uma emoção sutil que secretamente inclui o passado inteiro no momento presente. – Tens muita ambição... és muito... ardoroso – continuou zombando na sua pronúncia exótica, com o “r” estrangeiro e o “e” demasiado aberto. A voz levemente velada, agradavelmente rouca, dava às palavras uma acentuação esquisita que as fazia parecer completamente novas. Enquanto isso, remexia a bolsinha de couro, vendo se descobria um lápis. De sob um lenço tirou uma minúscula lapiseira de prata, frágil e fininha, artigo de fantasia inútil para trabalho sério. O lápis de outrora, o primeiro, fora diferente, mais prático e mais autêntico.

– Voilà – disse ela, pondo diante dos olhos de Hans Castorp a pequena lapiseira, que segurava pela ponta, entre o polegar e o indicador, balouçando-a ligeiramente.

Como ela fingisse oferecê-la e negá-la ao mesmo tempo, ele, então, fez menção de pegá-la, sem a receber; quer dizer, levou a mão à altura do objeto, bem próximo dele, com os dedos prontos para apanhá-lo, mas sem concluir o ato. Do fundo das órbitas cor de chumbo, seu olhar fixava-se alternadamente na lapiseira e no rosto tártaro de Clávdia. Seus lábios exangues estavam abertos e permaneciam assim sem que ele se servisse deles para falar, quando disse:

– Estás vendo? Eu já sabia que tinhas um lápis.

– Prenez garde, il est un peu fragile – respondeu ela. – C’est à visser, tu sais.

E enquanto as duas cabeças se avizinhavam por cima da lapiseira, explicou-lhe ela o mecanismo, que nada tinha de anormal. Fazendo-se girar a rosca, aparecia uma mina de grafite, delgada qual uma agulha, provavelmente dura e pouco própria para escrever.

Permaneciam inclinados um para o outro. Como ele trajasse smoking, podia escorar o queixo no colarinho engomado.

– Pequenino, mas com carinho – disse Hans Castorp, com a testa quase tocando a dela, mas falando em direção ao lápis, sem mover os lábios e portanto suprimindo as consoantes labiais.

– Ah! És também espirituoso? – tornou ela com uma rápida risada, endireitando-se e abandonando-lhe a lapiseira. (Deus sabe do que ele se servia para fazer espírito, já que, manifestamente, não tinha nenhuma gota de sangue na cabeça.) – Pois então, vai, não percas tempo! Desenha, desenha uma figura, faze um figurão! – Tinha-se a impressão de que ela, de forma igualmente espirituosa, procurava afastá-lo.

– Não. Tu ainda não desenhaste. Deves desenhar também – disse Hans Castorp, sem pronunciar as labiais. Ao mesmo tempo recuou um passo, como para fazê-la seguir.

– Eu? – perguntou ela novamente com uma surpresa que parecia referir-se antes a outra coisa do que à sua proposta. Sorrindo, mas um tanto perturbada, permaneceu imóvel durante um momento. Depois, porém, obedecendo ao magnetismo do recuo de Hans Castorp, deu alguns passos em direção à mesa de ponche.

Verificou-se, entretanto, que o interesse pelo jogo decaíra nesse ínterim e estava nas últimas. Havia ainda quem desenhasse, mas já não encontrava espectadores. Os cartões jaziam cobertos de garatujas. Todos tinham manifestado a sua incapacidade. A mesa achava-se quase deserta, tanto mais que uma contracorrente começava a agir. Os pensionistas acabavam de notar a saída dos médicos, e de repente alguém sugeriu que se dançasse. Logo se puseram a tirar a mesa do centro da sala. Vigias foram colocados nas portas da sala de correspondência e da saleta de música, com a ordem de dar um sinal para interromper o baile, caso reaparecessem o “Velho”, Krokowski ou a Superiora. Um rapaz eslavo atacou com fervor o teclado do pequeno piano de nogueira. Os primeiros pares começaram a girar pelo interior de um círculo irregular, formado por poltronas e cadeiras, nas quais estavam sentados os espectadores.

Hans Castorp fez um vago gesto de mão, como para dizer adeus à mesa que se afastava. Apontou com o queixo para alguns assentos livres que descobrira na saleta, e para um cantinho bem abrigado à direita do reposteiro. Não falou, talvez porque a música lhe parecesse muito barulhenta. Colocou, para Mme. Chauchat, uma poltrona forrada de pelúcia, no lugar que antes assinalara pantomimicamente. Para si mesmo apossou-se de uma cadeira de vime, de braços redondos, e que gemeu e rangeu, quando nela se sentou. Inclinou-se para Mme. Chauchat, apoiando os cotovelos nos braços da poltrona, com a lapiseira na mão e com os pés para trás, embaixo da cadeira. Ela, por sua vez, afundou-se no estofamento coberto de pelúcia; seus joelhos achavam-se muito levantados, mas, apesar disso, cruzou as pernas e balançou um dos pés, cujo tornozelo, acima da margem do sapato de verniz preto, desenhava-se sob a seda igualmente preta da meia. À sua frente estavam sentadas outras pessoas, que se levantavam para dançar e cediam o lugar a outras, cansadas. Era um constante vaivém.

– Estás com um vestido novo – disse Hans Castorp, para ter o direito de olhá-la, e ouviu como ela respondia:

– Novo? Então conheces o meu vestuário?

– Tenho ou não tenho razão?

– Tens, sim. Mandei fazê-lo aqui, recentemente, no Lukacek, na aldeia. Ele trabalha muito para as senhoras daqui. O vestido te agrada?

– Muito – respondeu ele, envolvendo-a mais uma vez no seu olhar, antes de baixar os olhos. – Queres dançar? – acrescentou.

– E tu, gostarias? – perguntou ela, sorrindo, com as sobrancelhas alçadas, ao que ele replicou:

– Gostaria, sim, se tivesse vontade.

– És mais levadinho do que eu pensava – observou ela, e quando ele se riu desdenhosamente, acrescentou: – Teu primo já se foi?

– Pois é, é meu primo – confirmou Hans Castorp sem necessidade. – Eu também notei que ele não está mais aqui. Acho que já se recolheu.

– C’est un jeune homme très étroit, très honnête, très Allemand.

– Étroit? Honnête? – repetiu ele. – Entendo o francês muito melhor do que falo. Queres então dizer que ele é um pedante. Achas que os alemães são pedantes, nous autres Allemands?

– Nous causons de votre cousin. Mas c'est vrai, vocês são um pouco bourgeois. Vous aimez l’ordre mieux que la liberté, toute l’Europe le sait.

– Aimer... aimer... Qu’est-ce que c’est? Ça manque de définition, ce mot-là. Um ama, outro possui, comme nous disons proverbialement – afirmou Hans Castorp e prosseguiu: – nos últimos tempos meditei às vezes sobre a liberdade. Isto é: ouvi esta palavra com tanta freqüência, que me fez refletir. Je te le dirai en français o que pensei a respeito. Ce que toute l’Europe nomme la liberté est peut-être une chose assez pêdante et assez bourgeoise en comparaison de notre besoin d'ordre – c'est ça!

– Tiens! C’est amusant. C’est ton cousin à qui tu penses en disant des choses étranges comme ça?

– Não, c'est vraiment une bonne âme, uma natureza singela, cujo espírito não corre nenhum perigo, tu sais. Mais il n'est pas bourgeois, il est militaire.

– Não corre perigo? – repetiu ela com alguma dificuldade... – Tu veux dire: une nature tout à fait ferme, sûre d'elle-même? Mais il est sérieusement malade, ton pauvre cousin.

– Quem te disse isso?

– Aqui a gente anda bem informada sobre os outros.

– O Dr. Behrens te disse isso?

– Peut-être en me faisant voir ses tableaux.

– C’est-à-dire: en faisant ton portrait!

– Pourquoi pas? Tu l’as trouvé réussi, mon portrait?

– Mais oui, extrêmement. Behrens a três exactement rendu ta peau, oh vraiment, très fidèlement. J’aimerais beaucoup être portraitiste, moi aussi, pour avoir l’occasion d'étudier ta peau comme lui.

– Parlez allemand, s’il vous plaît!

– Oh, eu falo alemão também quando falo francês. C’est une sorte d’étude artistique et médicale – en un mot: il s’agit des lettres humaines, tu comprends. E então, não queres dançar?

– Não. Acho isso pueril. En cachette des médecins. Aussitôt que Behrens reviendra, tout le monde va se précipiter sur les chaises. Ce sera fort ridicule.

– Tens tanto respeito a ele?

– A quem? – disse ela, pronunciando a interrogação com uma brevidade exótica.

– A Behrens.

– Mais va donc avec ton Behrens! Além disso falta espaço para dançar. Et puis sur le tapis... Vamos ver como dançam os outros.

– Pois sim, vamos – concordou ele, e pôs-se a olhar, sentado junto dela, com o rosto pálido; os olhos azuis que tinham a expressão pensativa do avô observaram os saracoteios dos enfermos disfarçados, no salão e na biblioteca. A Irmã Muda saltitava com o Joãozinho Azul; a Srª. Salomon, fantasiada de cavalheiro engalanado, de casaca e colete branco, com uma camisa engomada de peito saliente, com um bigode pintado e com um monóculo, girava nos saltinhos altos dos seus sapatos de verniz, que, inaturalmente, saíam por baixo das calças de homem; seu par era o pierrô, cujos lábios luziam num vermelho de sangue no rosto caiado, e cujos olhos se pareciam com os de um coelho albino. O grego de mantilha requebrava suas pernas harmoniosas, revestidas de ceroulas violeta, em torno de Rasmussen, decotado e resplandecente de lantejoulas escuras. O promotor público, no seu quimono, a Srª. Wurmbrand e o jovem Gänser dançavam juntos, a três, mantendo-se abraçados, ao passo que a Stöhr bailava com a sua vassoura, que apertava contra o coração, e cujas crinas acariciava como se fossem a cabeleira hirsuta de um homem.

– Vamos, sim – repetiu Hans Castorp mecanicamente. Falavam baixinho, no meio dos sons do piano. – Vamos sentar-nos aqui e olhar como num sonho. Para mim, isto é um sonho, sabes? estarmos sentados assim – comme un rêve singulièrement profond, car il faut dormir très profondément pour rêver comme cela... Je veux dire: c’est un rêve bien connu, rêvé de tout temps, long, éternel, oui, être assis près de toi comme à présent, voilà l’éternité.

– Poète! – disse ela. – Bourgeois, humaniste et poète – voilà l’allemand au complet, comme il faut.

– Je crains que nous ne soyons pas du tout et nullement comme il faut – replicou ele. – Sous aucun égard. Nous sommes peut-être des filhos enfermiços da vida, tout simplement.

– Joli mot. Dis-moi donc... Il n’aurait pas été fort difficile de rêver ce revê-là plus tôt. C’est un peu tard que monsieur se résout à adresser la parole à son humble servante.

– Pourquoi des paroles? – disse ele. – Pourquoi parler? Parler, discourir, c’est une chose bien républicaine, je le concède. Mais je doute que ce soit poétique au même degré. Un de nos pensionnaires, qui est un peu devenu mon ami, Monsieur Settembrini...

– Il vient de te lancer quelques paroles.

– Eh bien, c’est un grand parleur, sans doute, il aime même beaucoup à réciter de beaux vers – mais est-ce un poète, cet homme-là?

– Je regrette sincèrement de n’avoir jamais eu le plaisir de faire la connaissance de ce chevalier.

– Je le crois bien.

– Ah! Tu le crois?

– Comment? C’était une phrase tout à fait indifférente, ce que j’ai dit là. Moi, tu le remarques bien, je ne parle guère le français. Pourtant, avec toi je préfère cette langue à la mienne, car pour moi parler français c’est parler sans parler, en quelque manière – sans responsabilitê, ou comme nous parlons en rêve. Tu comprends?

– A peu près.

– Ça suffit... Parler – continuou Hans Castorp – pauvre affaire! Dans l’éternité, on ne parle point. Dans l’éternité, tu sais, on fait comme en dessinant un petit cochon: on penche la tête en arrière et on ferme les yeux.

– Pas mal, ça! Tu es chez toi dans l’éternité, sans aucun doute, tu la connais à fond. Il faut avouer que tu es un petit rêveur assez curieux.

– Et puis – disse Hans Castorp —, si je t’avais parlé plus tôt, il m’aurait fallu te dire “vous”!

– Eh bien, est-ce que tu as l’intention de me tutoyer pour toujours?

– Mais oui. Je t’ai tutoyé de tout temps et je te tutoierai éternellement.

– C’est un peu fort, par exemple. En tout cas, tu n'auras pas trop longtemps l’occasion de me dire “tu”. Je vais partir.

A palavra custou a lhe penetrar a consciência. Em seguida, ele sobressaltou-se, lançando em redor de si olhares confusos, como faz quem é despertado de repente.. Sua conversa desenvolvera-se com certa lentidão, porque Hans Castorp falava o francês de modo lerdo, como que numa meditação vacilante. O piano, que se calara durante algum tempo, voltou a ressoar, agora sob as mãos do rapaz de Mannheim, que substituíra o jovem eslavo e colocara na estante um álbum de músicas. A Srta. Engelhart estava sentada a seu lado e virava as folhas. A assistência do baile já se tornara menos numerosa. Grande parte dos pensionistas parecia ter adotado a posição horizontal. Ninguém mais se achava nas poltronas à sua frente. Na biblioteca, alguns jogavam cartas.

– Que vais fazer? – perguntou Hans Castorp, consternado...

– Eu vou partir – repetiu ela, aparentemente surpreendida pelo seu aspecto estarrecido.

– Não é possível – disse ele. —– Estás apenas brincando.

– Nem um pouquinho. Estou falando com a mais absoluta seriedade. Partirei.

– Quando?

– Ora, amanhã. Après diner.

Um cataclismo de vastas dimensões produziu-se nele. Depois, disse:

– Aonde vais?

– Muito longe daqui.

– A Daghestan?

– Tu n’es pas mal instruit. Peut-être, pour le moment...

– Estás, então, curada?

– Quant à ça... non. Mas Behrens acha que no momento não se pode fazer grande coisa aqui. C’est pourquoi je vais risquer un petit changement d’air.

– De maneira que voltarás?

– Isto não se sabe. Sobretudo não sei quando. Quant à moi, tu sais, j’aime la liberté avant tout et notamment celle de choisir mon domicile. Tu ne comprends guère ce que c’est: être obsédé d’indépendance. C’est de ma race, peut-être.

– Et ton mari au Daghestan te l’accorde – ta liberté?

– C’est la maladie qui me la rend. Me voilà à cet endroit pour Ia troisième fois. J’ai passe un an ici, cette fois. Possible que je revienne. Mais alors tu seras bien loin depuis longtemps.

– Achas, Clávdia?

– Mon prénom aussi! Vraiment tu les prends bien au sérieux les coutumes dü carnaval.

– Será que sabes até que grau estou doente?

– Oui... non... comme on sait ces choses ici. Tu as une petite tache humide là-dedans et un peu de fièvre, n’est-ce pas?

– Trente-sept et huit ou neuj l’après-midi – explicou Hans Castorp. – E tu?

– Oh, mon cas, tu sais, c’est un peu plus complique... pas tout à fait simple.

– Il y a quelque chose dans cette branche des lettres humaines dite la médecine – disse Hans Castorp – qu'on appelle bouchement tuberculeux des vases de lymphe.

– Ah! Tu as mouchardé, mon cher, on le voit bien.

– Et toi?... Perdão. Deixa que agora te pergunte uma coisa, com insistência e em alemão: naquele dia, quando me levantei da mesa, para ir ao exame médico, faz seis meses... Tu te voltaste para me olhar... Ainda te lembras?

– Quelle question! Il y a six mois!

– Tu sabias aonde eu ia?

– Certes, c’etait tout à fait par hasard...

– Soubeste pelo Behrens?

– Toujours ce Behrens!

– Oh, il a représenté ta peau d’une façon tellement exacte... D’ailleurs, c’est un veuf aux joues ardentes et qui possède un service de café très remarquable... Je crois bien qu’il connaisse ton corps non seulement comme médecin, mais aussi comme adepte d’une autre discipline des lettres humaines.

– Tu as décidément raison de dire que tu parles en rêve, mon ami.

– Soit... Laisse-moi rêver de nouveau après m’avoir réveillé si cruellement par cette cloche d’alarme de ton départ. Sept mois sous tes yeux... Et à présent, où en réalité j’ai fait ta connaissance, tu me parles de départ!

– Je te répète que nous aurions pu causer plus tôt.

– Terias gostado?

– Moi? Tu ne m’écbapperas pas, mon petit. Il s’agit de tes intérêts, à toi. Est-ce que tu étais trop timide pour t’approcher d’une femme à qui tu parles en rêve maintenant, ou est-ce qu’il y avait quelqu’un qui t’en a empêché?

– Je te l’ai dit. Je ne voulais pas te dire “vous”.

– Farceur! Réponds donc – ce monsieur beau parleur, cet Italien-là qui a quitté la soirée – qu’est-ce qu’il t’a lancé tantôt?

– Je n’en ai entendu absolument rien. Je me soucie très peu de ce monsieur, quand mes yeux te voient. Mais tu oublies... il n’aurait pas été si facile du tout de faire ta connaissance dans le monde. Il y avait encore mon cousin avec qui j’étais lié et qui s’incline très peu à s’amuser ici: il ne pense à rien qu’à son retour dans les plaines, pour se faire soldat.

– Pauvre diable. Il est, en effet, plus malade qu’il ne sait. Ton ami Italien du reste ne va pas trop bien non plus.

– Il le dit lui-même. Mais mon cousin... Est-ce vrai? Tu m’effraies.

– Fort possible qu’il aille mourir, s’il essaye d’être soldat dans les plaines.

– Qu’il va mourir. La mort. Terrible mot, n’est-ce pas? Mais c’est étrange, il ne m’impressionne pas tellement aujourd’hui, ce mot. C’était une façon de parler bien conventionnelle, lorsque je disais: “Tu m’effraies”. L’idée de la mort ne m’effraie pas. Elle me laisse tranquille. Je n’ai pas pitié – ni de mon bon Joachim ni de moi-même, en entendant qu’il va peut-être mourir. Si c’est vrai, son état ressemble beaucoup au mien e je ne le trouve pas particulièrement imposant. Il est moribond, et moi je suis amoureux, eh bien!... Tu as parlé à mon cousin à l’atelier de photographie intime, dans l’antichambre, tu te souviens?

– Je me souviens un peu.

– Donc ce jour-là Behrens a fait ton portrait transparent.

– Mais oui.

– Mon Dieu! Et l’as-tu sur toi?

– Non, je l’ai dans ma chambre.

– Ah, dans ta chambre. Quant au mien, je l’ai toujours dans mon portefeuille. Veux-tu que je te le fasse voir?

– Mille remerciements. Ma curiosité n’est pas invincible. Ce será un aspect très innocent.

– Moi, j’ai vu ton portrait extérieur. J’aimerais beaucoup mieux voir ton portrait intérieur qui est enfermé dans ta chambre... Laisse-moi demander autre chose! Parfois un monsieur russe qui loge en ville vient te voir. Qui est-ce? Dans quel but vient-il, cet’homme?

– Tu es joliment fort en espionnage, je l’avoue. Eh bien, je réponds. Oui, c’est un compatriote souffrant, um ami. ]’ai fait sa connaissance à une autre station balnéaire, il y a quelques années déjà. Nos relations? Les voilà: nous prenons notre thé ensemble, nous fumons deux ou trois papiros, et nous bavardons, nous philosophons, nous parlons de l’homme, de Dieu, de la vie, de la morale, de mille choses. Voilà mon compte rendu. Est-tu satisfait?

– De la morale aussi! Et qu’est-ce que vous avez trouvé en fait de morale, par exemple?

– La morale? Cela t’intéresse? Eh bien, il nous semble qu’il faudrait chercher la morale non dans la vertu, c'est-à-dire dans la raison, la discipline, les bonnes moeurs, l’honnêteté – mais plutôt dans le contraire, je veux dire: dans le péché, en s’abandonnant au danger, à ce qui est nuisible, à ce qui nous consume. Il nous semble qu’il est plus moral de se perdre et même de se laisser dépêrir que de se conserver. Les grands moralistes n'étaient point des vertueux, mais des aventuriers dans le mal, des vicieux, des grands pécheurs qui nous enseignent à nous incliner chrétiennement devant la misère. Tout ça doit te déplaire beaucoup, n’est-ce pas?

Ele permaneceu calado. Estava ainda sentado da mesma forma que antes, com os pés cruzados muito para trás, sob o assento. Inclinava-se para a frente em direção à mulher reclinada com o tricórnio de papel. Tinha entre os dedos a lapiseira que pertencia a ela. Com os olhos tão azuis como os de Hans Lorenz Castorp, o jovem fitava a sala que se esvaziara. Os pensionistas haviam-se dispersado. O piano, no canto diagonalmente oposto, não deixava ouvir senão alguns sons suaves e espaçados, produzidos com uma mão só pelo enfermo de Mannheim, a cujo lado se achava a professora, folheando um tomo de músicas que tinha sobre os joelhos. Quando se interrompeu a conversa entre Hans Castorp e Clávdia Chauchat, o pianista cessou de tocar, deitando no colo também a mão que até então acariciara o teclado. A Srta. Engelhart prosseguiu estudando as notas. Os quatro únicos remanescentes da festa carnavalesca conservavam-se imóveis. O silêncio prolongou-se por alguns minutos. Sob o seu peso baixaram-se lenta e cada vez mais profundamente as cabeças do par sentado junto do piano, a do jovem de Mannheim em direção ao piano, e a da Srta. Engelhart para o álbum de músicas. Por fim, como se se tivessem posto secretamente de acordo, levantaram-se ambos ao mesmo tempo e com grande discrição. Caminhando suavemente, nas pontas dos pés, e evitando lançar um olhar para o outro canto da sala, a cabeça baixa e os braços rigidamente pendurados, sumiram-se o rapaz de Mannheim e a professora pela sala de correspondência.

– Tout le monde se retire – disse Mme. Chauchat. – C’étaient les derniers; il se fait tard. Eh bien, la fête de carnaval est finie. – E ergueu os braços a fim de tirar com as duas mãos o gorro de papel do cabelo arruivado, cuja trança cercava a cabeça qual uma coroa. – Vous connaissez les conséquences, monsieur.

Mas Hans Castorp fez que não, com os olhos fechados, sem modificar, de resto, a sua posição.

– Jamais, Clavdia – respondeu. – Jamais je te dirai “vous”, jamais de la vie ni de la mort, se é que se pode dizer assim; deveria ser possível. Cette forme de s’adresser à une personne, qui est celle de l’Occident cultivé et de la civilisation humanitaire, me semble fort bourgeoise et pédante. Pourquoi, au fond, de la forme? La forme, c’est la pédanterie elle-même! Tout ce que vous avez fixé à l’égard de la morale, toi et ton compatriote souffrant – tu veux sérieusement que ça me surprenne? Pour quel sot me prends-tu? Dis donc, qu’est-ce que tu penses de moi?

– C'est un sujet qui ne donne pas beaucoup à penser. Tu es un petit bonhomme convenable, de bonne famille, d’une tenue appétissante, disciple docile de ses précepteurs et qui retournera bientôt dans les plaines, pour oublier complètement qu’il a jamais parlé en rêve ici et pour aider à rendre son pays grand et puissant par son travail honnête sur le chantier. Voilà ta photographie intime, faite sans appareil. Tu la trouves exacte, j’espère?

– Il y manque quelques détails que Behrens y a trouvés.

– Ah, les médecins en trouvent toujours, ils s’y connaissent...

– Tu parles comme Monsieur Settembrini. Et ma fièvre? D’où vient-elle?

– Allons donc, c’est un incident sans conséquence qui passera vite.

– Non, Clavdia, tu sais bien que ce que tu dis là n’est pas vrai, et tu le dis sans conviction, j’en suis sûr. La fièvre de mon corps et le battement de mon coeur harassé et le frissonnement de mes membres, c’est le contraire d’un incident, car ce n’est rien d’autre – e seu rosto pálido, com os lábios trêmulos, inclinou-se ainda mais para o rosto da mulher – rien d’autre que mon amour pour toi, oui, cet amour qui m’a saisi à l’instant où mes yeux t’ont vue, ou, plutôt, que j’ai reconnu, quand je t’ai reconnue toi – et c’était lui, évidemment, qui m’a mené à cet endroit...

– Quelle folie!

– Oh! L’amour n'est rien, s’il n’est pas de la folie, une chose insensée, défendue et une aventure dans le mal. Autrement c’est une banalité agréable, bonne pour en faire de petites chansons paisibles dans les plaines. Mais quant à ce que je t’ai reconnue et que j'ai reconnu mon amour à toi – oui, c’est vrai, je t’ai déjá connue, anciennement, toi et tes yeux merveilleusement obliques et ta bouche et ta voix, avec laquelle tu parles – une fois déjà, lorsque j’étais collégien, je t’ai demandé ton crayon, pour faire enfin ta connaissance mondaine, parce que je t’aimais irraisonnablement, et c’est de là, sans doute c’est de mon ancien amour pour toi que ces marques me restent que Behrens a trouvées dans mon corps, et qui indiquent que jadis aussi j’étais malade...

Seus dentes batiam. Enquanto ia divagando, retirou um pé de sob o assento rangente. Ao avançar esse pé, tocou o chão com o outro joelho, de maneira que se ajoelhava diante dela, com a cabeça baixa e o corpo todo trêmulo. – Je t’aime – balbuciou – je t’ai aimée de tout temps, car tu es le Toi de ma vie, mon rêve, mon sort, mon éternel désir...

– Allons, allons! – disse ela. – Si tes précepteurs te voyaient...

Mas Hans Castorp sacudiu a cabeça, desolado, com o rosto junto ao tapete, e respondeu:

– Je m’en ficherais, je me fiche de tous ces Carducci et de la République éloquente et du progrès humain dans le temps, car je t’aime!

Ela acariciou-lhe suavemente com a mão os cabelos aparados da nuca.

– Petit bourgeois! – disse. – Joli bourgeois à la petite tache humide. Est-ce vrai que tu m’aimes tant?

E arrebatado por esse contato, já sobre ambos os joelhos, com a cabeça deitada para trás e com os olhos fechados, continuou ele a falar:

– Oh, l’amour, tu sais... Le corps, l’amour, la mort, ces trois ne font qu’un. Car le corps, c’est la maladie et la volupté, et c’est lui qui fait la mort, oui, ils sont charnels tous deux, l’amour et la mort, et voilà leur terreur et leur grande magie! Mais la mort, tu comprends, c’est d’une part une chose mal famée, impudente, qui fait rougir de honte; et d’autre part c’est une puissance très solennelle et très majestueuse – beaucoup plus haute que la vie riante gagnant de la monnaie e farcissant sa panse – beaucoup plus vénérable que le progrès qui bavarde par les temps – parce qu’elle est l’histoire et la noblesse et la pitié et l’éternel et le sacré qui nous fait tirer le chapeau et marcher sur la pointe des pieds... Or, de même, le corps, lui aussi, et l’amour du corps, sont une affaire indécente et fâcheuse, et le corps rougit et pâlit à sa surface par frayeur et honte de lui-même. Mais aussi il est une grande gloire adorable, image miraculeuse de la vie organique, sainte merveille de la forme et de la beauté, et l’amour pour lui, pour le corps humain, c’est de même un intérêt extrêmement humanitaire et une puissance plus éducative que toute la pédagogie du monde!... Oh, enchantante beauté organique qui ne se compose ni de teinture à l’huile ni de pierre, mais de matière vivante et corruptible, pleine du secret fébrile de la vie et de la pourriture! Regarde la symétrie merveilleuse de l’édifice humain, les épaules et les hanches et les mamelons fleurissants de part et d’autre sur la poitrine, et les côtes arrangées par paires, et le nombril au milieu dans la mollesse du ventre, et le sexe obscur entre les cuisses! Regarde les omoplates se remuer sous la peau soyeuse du dos, et l’échine qui descend vers la luxuriance double et fraîche dês fesses, et les grandes branches des vases et des nerfs qui passent du tronc aux rameaux par les aisselles, et comme la structure des bras correspond à celle des jambes. Oh, les douces régions de la jointure intérieure du coude et du jarret avec leur abondance de délicatesses organiques sous leurs coussins de chair! Quelle fête immense de les caresser ces endroits délicieux du corps humain! Fête à mourir sans plainte après! Oui, mon Dieu, laisse-moi sentir l’odeur de la peau de ta rotule, sous laquelle l’ingénieuse capsule articulaire sécrète son huile glissante! Laisse-moi toucher dévotement de ma bouche l’arteria femoralis qui bat au front de la cuisse et qui se divise plus bas en les deux artères du tibia! Laisse-moi ressentir l’exhalation de tes pores et tâter ton duvet, image humaine d’eau et d’albumine, destinée pour l’anatomie du tombeau, et laisse-moi périr, mes lèvres aux tiennes!

Não abriu os olhos, depois de ter terminado de falar. Permaneceu sem se mover, com a cabeça deitada para trás, estendendo as mãos com a lapiseira de prata, estremecendo e vacilando sobre os joelhos. Ela disse:

– .Tu es en effet un galant qui sait solliciter d’une manière profonde, à l’allemande.

E lhe pôs na cabeça o gorro de papel.

– Adieu, mon prince Carnaval! Vous aurez une mauvaise ligne de fièvre ce soir, je vous le prédis.

Com essas palavras, resvalou a cadeira, deslizou pelo tapete, rumo à porta, sob cujo umbral hesitou um instante, meio voltada, levantando um dos braços nus, com a mão a repousar no gonzo. Por cima do ombro disse baixinho:

– N’oubliez pas de me rendre mon crayon.

E saiu.

 

         Transformações

Que é o tempo? Um mistério: é imaterial e – onipotente. É uma condição do mundo exterior; é um movimento ligado e mesclado à existência dos corpos no espaço e à sua marcha. Mas deixaria de haver tempo se não houvesse movimento? Não haveria movimento sem o tempo? É inútil perguntar. É o tempo uma função do espaço? Ou vice-versa? Ou são ambos idênticos? Não adianta prosseguir perguntando. O tempo é ativo, tem caráter verbal, “traz consigo”. Que é que traz consigo? A transformação. O Agora não é o Então; o Aqui é diferente do Ali; pois entre ambos se intercala o movimento. Mas, visto ser circular e fechar-se sobre si mesmo o movimento pelo. qual se mede o tempo, trata-se de um movimento e de uma transformação que quase poderiam ser qualificados de repouso e de imobilidade: o Então repete-se constantemente no Agora, e o Ali repete-se no Aqui. Como, por outro lado, nem sequer os mais desesperados esforços nos podem fazer imaginar um tempo finito ou um espaço limitado, decidimo-nos a configurar eternos e infinitos o tempo e o espaço, evidentemente na esperança de obter dessa forma um resultado, senão perfeito, ao menos melhor. Ora, estabelecer o postulado do eterno e do infinito não significa, porventura, o aniquilamento lógico e matemático de tudo quanto é limitado e finito, e a sua redução aproximada a zero? É possível uma sucessão no eterno ou uma justaposição no infinito? São compatíveis com as hipóteses de emergência do eterno e do infinito, conceitos como os da distância, do movimento, da transformação, ou a simples existência de corpos limitados no Universo? Quantas perguntas improfícuas!

Hans Castorp ventilava intimamente esses problemas e outros semelhantes. Desde que chegara ali em cima seu cérebro sempre se mostrara disposto a esse tipo de indiscrições e sutilezas; é possível que certa volúpia sinistra, conquanto poderosa, expiada nesse meio tempo, o tenha preparado especialmente para isso, despertando nele o audacioso desejo de empreender tais especulações. Interrogava-se a si próprio, interrogava o bom Joachim, interrogava o vale coberto desde tempos imemoriais com espessa neve, se bem que não pudesse esperar de nenhuma dessas instâncias qualquer coisa parecida com uma resposta, sendo difícil dizer qual dentre os três era o menos capacitado para lhe satisfazer a curiosidade. Se dirigia a si mesmo essas perguntas, era justamente por não encontrar resposta alguma. Quanto a Joachim, era quase impossível interessá-lo por essas coisas; pois, como Hans Castorp o expressara certa noite em francês, o primo não pensava noutra coisa a não ser em regressar à planície e fazer-se soldado. Com essa esperança, cuja realização ora parecia próxima, ora se distanciava maliciosamente, Joachim vivia travando um duelo que aos poucos se tornara encarniçado. Recentemente se mostrava inclinado a decidi-lo por meio de um golpe de violência. Sim, o bondoso, o paciente, o honrado Joachim, para o qual a disciplina e o cumprimento do serviço representavam a vida, sucumbira a tendências rebeldes. Insurgia-se contra a “escala de Gaffky”, aquele sistema de exame mediante o qual verificavam e designavam lá no laboratório do subsolo – no “labor”, como se costuma chamá-lo – o grau em que o enfermo estava infeccionado pelos bacilos, conforme estes apareciam na matéria analisada apenas isoladamente ou em enormes quantidades. Desta forma, o coeficiente da escala de Gaffky podia ser mais ou menos elevado, e tudo dependia dele, que indicava inequivocamente as possibilidades de cura com que o enfermo teria de contar. Não era difícil determinar, segundo essa escala, o número de meses ou de anos que certo doente deveria ainda permanecer ali em cima, desde a “visita de médico”, de apenas meio ano, até o veredicto de “prisão perpétua”, que em muitos casos enunciava muito pouco quanto à sua duração real. Era, pois, contra a referida escala de Gaffky que se rebelava Joachim; francamente renegava toda fé em sua autoridade; não o fazia de modo ostensivo, diante dos seus “superiores”, mas na presença do primo e até mesmo à mesa. – Estou farto disso. Não me deixarei iludir por mais tempo! – disse em voz alta, numa dessas ocasiões, enquanto o sangue lhe subia ao rosto bronzeado. – Faz quinze dias, eu tinha Gaffky número 2, uma bagatela, e as mais risonhas perspectivas; e hoje tenho 9, estou literalmente infestado, e nem se pode pensar na planície. Que o diabo compreenda essas coisas! Isto é insuportável. Lá em cima, na Schatzalp, há um homem, um camponês grego; foi mandado da Arcádia por um agente; é um caso sem esperança, tuberculose galopante, e o exitus pode produzir-se de um dia para outro; mas nunca na vida esse homem teve bacilos no esputo. Por outro lado, aquele gordo capitão belga que partiu curado, quando cheguei aqui, tinha Gaffky número 10; os bacilos iam pululando nele, e todavia tinha apenas uma pequena caverna. Que me deixem em paz com Gaffky! Eu vou fazer o ponto final; volto para casa, mesmo que isso me custe a vida. – Assim falou Joachim, e todos ficaram consternados, quando viram esse jovem pacato e comedido em tal estado de revolta. Hans Castorp, ao ouvir como o primo ameaçava abandonar tudo e regressar à planície, não pôde senão lembrar-se de algumas palavras que certa pessoa pronunciara em francês. Mas guardou silêncio. Que mais deveria ser feito? Arvorar-se diante do primo em modelo de paciência, como fazia a Srª. Stöhr, que realmente exortava Joachim a que deixasse essa atitude de obstinação blasfema, que se resignasse humildemente e se guiasse pelo exemplo da lealdade com que ela, Karoline, perseverara ali em cima, renunciando com suma força de vontade a retomar as suas tarefas de dona-de-casa em Cannstatt, a fim de devolver qualquer dia a seu marido uma esposa completa e definitivamente curada? Não, a isso não se atrevia Hans Castorp, tanto mais que desde o carnaval tinha a consciência pesada com relação a Joachim. Isto é, sua consciência dizia-lhe que o primo devia considerar certos fatos – de que eles não falavam entre si, mas que Joachim indubitavelmente não ignorava – como uma espécie de traição, de deserção e de infidelidade, no que se refere a um par de olhos redondos e castanhos, a uma pouco justificada mentalidade risonha, – e a um perfume de flor de laranjeira a cujos efeitos Joachim se via exposto cinco vezes por dia, mas que afrontava austera e decentemente, baixando os olhos para o prato... Até na resistência muda que Joachim lhe opunha às especulações e reflexões sobre o “tempo”, Hans Castorp pensava encontrar vestígios dessa pudicícia militar, que continha uma reprovação dirigida à sua própria consciência... E quanto ao vale hibernal, sob a espessa camada de neve, esse vale ao qual Hans Castorp, da sua excelente espreguiçadeira, endereçava as mesmas perguntas metafísicas – aqueles picos, cimos, vertentes, bosques marrons, verdes ou avermelhados, quedavam-se no meio do tempo, silenciosos, envoltos pelo tempo dessa terra no seu fluxo calmo, ora resplandecentes no profundo azul do céu, ora escondidos pelas brumas, ora abrasados, nas suas regiões mais altas, pelo clarão rubro do sol poente, ora cintilando num brilho duro de diamantes sob o feitiço de uma noite de luar – mas sempre cobertos de neve, desde havia seis meses imemoriais, embora decorridos num abrir e fechar de olhos. Todos os pensionistas declaravam que já não podiam suportar aquela neve, que lhes repugnava, e que as suas necessidades, nesse sentido, já tinham sido satisfeitas durante o verão. E agora essas quantidades de neve, todos os dias – montões de neve, almofadões de neve, encostas de neve —, isso ultrapassava as forças humanas, era veneno para o espírito e a alma. E eles punham óculos de cor, verdes, amarelos, vermelhos, para poupar os olhos, mas sobretudo para proteger o coração.

Fazia então seis meses que o vale e as montanhas, estavam ocultos sob o manto de neve? Fazia até sete! O tempo progride enquanto contamos a história – o nosso tempo que dedicamos à narrativa, mas também aquele tempo longínquo que Hans Castorp e seus companheiros de infortúnio passavam na neve lá de cima. E esse tempo continuava trazendo consigo transformações. Tudo estava bem encaminhado para tornar realidade o que Hans Castorp, na terça-feira de carnaval, durante o regresso de, Davos-Platz, antecipara em palavras precipitadas, para a maior indignação do Sr. Settembrini. Verdade é que o solstício do verão ainda não se achava iminente, mas a Páscoa já passara pelo vale branco, o mês de abril ia avançando, e a vista sobre o Pentecostes desdobrava-se livre; em breve começaria a primavera, com o degelo. Não se derreteria toda a neve; nos cumes ao sul, nas gretas dos rochedos da cordilheira rética, ao norte, sempre haveria neve, sem falar daquela que cairia nos próprios meses de verão, mas se fundiria imediatamente. Não obstante, o transcurso do ano prometia inovações decisivas para dentro de pouco tempo. Pois, desde aquela noite de carnaval, em que Hans Castorp pediu emprestado a Mme. Chauchat um lápis, que devolveu mais tarde, para receber em troca, a seu pedido, um outro objeto, uma lembrança, que levava consigo, no seu bolso – desde aquela noite já tinham escoado seis semanas, duas vezes mais do que Hans Castorp primitivamente pretendera passar ali em cima.

Com efeito, seis semanas haviam transcorrido desde a noite em que Hans Castorp travara conhecimento com Clávdia Chauchat e voltara a seu quarto muito mais tarde do que Joachim, o primo consciente de seus deveres. Seis semanas, desde o dia seguinte, que acarretara a partida de Mme. Chauchat, sua partida interina, sua viagem temporária a Daghestan, lá muito longe, no leste, ainda além do Cáucaso. Essa partida tinha caráter provisório; tratava-se apenas de uma ausência por enquanto; Mme. Chauchat tencionava voltar, não se sabia quando, mas qualquer dia estaria de regresso, voluntariamente ou malgrado seu – de tudo isso guardava Hans Castorp afirmações diretas e verbais, proferidas, não durante o diálogo em língua estrangeira que acabamos de relatar, senão no lapso intermediário que, de nossa parte, deixamos transcorrer em silêncio, o lapso durante o qual interrompemos o curso ligado ao tempo da nossa narrativa e admitimos que reinasse exclusivamente o tempo em si. Em todo caso recebera o jovem essas afirmações reconfortantes, antes de voltar ao quarto número 4; pois, no dia seguinte, não trocara mais nenhuma palavra com Mme. Chauchat; mal chegara a vê-la; olhara-a duas vezes de longe: uma vez durante o almoço, quando ela, trajando uma saia de casemira azul e um casaquinho de lã branca, se dirigira à sua mesa, a passo silencioso, cheio de graça, após ter fechado com estrondo a porta envidraçada; nessa ocasião, o coração de Hans Castorp pulsara até a garganta, e somente a severa vigilância que lhe devotava a Srta. Engelhart impedira-o de esconder o rosto entre as mãos... E a segunda vez dera-se às três da tarde, quando da partida de Mme. Chauchat, à qual Hans Castorp, propriamente falando, não assistira, mas que observara de uma janela do corredor, que dava para a rampa do sanatório.

Esse acontecimento desenrolara-se da mesma forma que Hans Castorp, durante a sua estadia ali em cima, já tivera diversas oportunidades de ver. O trenó ou a carruagem parava na rampa; o cocheiro e o criado amarravam as bagagens; diante do portão aglomeravam-se pensionistas do sanatório, os amigos de quem regressava, curado ou não, à planície para ali viver ou morrer, ou simplesmente pessoas que deixavam de cumprir com os seus deveres de regime, para presenciar a ocorrência; um funcionário da “administração”, de sobrecasaca, e às vezes os próprios médicos, estavam presentes; por fim se apresentava a pessoa que partiria, quase sempre de rosto radiante, saudando, condescendentemente, os curiosos que a rodeavam e que permaneceriam no lugar, e era visível que a aventura iminente lhe aumentava de modo poderoso a vitalidade... Dessa vez, quem saíra do edifício fora Mme. Chauchat, risonha, carregada de flores, envolta num comprido abrigo de viagem, de uma fazenda felpuda, com gola de pele, e usando um enorme chapéu. Acompanhava-a o Sr. Buligin, seu compatriota de peito sumido, que faria parte da viagem na sua companhia. Também ela parecia cheia de animação alegre, como todos os que partiam – devido à simples perspectiva de uma mudança de existência, quer se viajasse com autorização do médico, quer se interrompesse a estadia em virtude de um tédio desesperado, com a consciência inquieta, e por própria conta e risco. Mme. Chauchat tinha as faces coradas; tagarelava sem cessar, provavelmente em russo, enquanto alguém lhe agasalhava os joelhos com um cobertor de peles... Não somente os patrícios e os companheiros de mesa de Mme. Chauchat, mas também grande número de outros pensionistas tinham comparecido ao bota-fora. O Dr. Krokowski, esboçando um sorriso enérgico, mostrava os dentes amarelos em meio à barba. Chegavam cada vez mais flores. A tia-avó ofereceu à viajante uns “confeitos”, espécie de marmelada russa. A professora estava presente, e também o moço de Mannheim – este a certa distância, espiando melancolicamente; seus olhos aflitos, resvalando ao longo da fachada, descobriram Hans Castorp junto à janela do corredor, e por alguns instantes fixaram nele o olhar turvo... O Dr. Behrens deixou de aparecer. Evidentemente já se despedira da viajante em outra ocasião, num ambiente mais particular... Em seguida, entre acenos e aclamações da assistência, os cavalos puseram-se em movimento, e, enquanto o avanço do trenó fazia o corpo de Mme. Chauchat reclinar-se no espaldar, seus olhos oblíquos percorreram mais uma vez, sorrindo, toda a extensão do edifício do Berghof; durante uma fração de segundo detiveram-se sobre o rosto de Hans Castorp... Pálido, o jovem que ficava atrás dirigiu-se a toda a pressa ao seu quarto, onde assomou na sacada, para ver lá de cima, mais uma vez, o trenó que, com os guizos tilintando, deslizava estrada abaixo, em direção à “aldeia”; depois se deixou cair numa cadeira e tirou do bolso do casaco a lembrança que recebera, o penhor que desta vez não consistia em lasquinhas de madeira avermelhada, mas sim numa chapinha de vidro, tarjada de preto, que devia ser mantida contra a luz para que se enxergasse alguma coisa: o retrato interno de Clávdia, que não mostrava o rosto, senão o delgado esqueleto do seu busto, envolto, de um modo transparente e espectral, na suave forma da carne, e também deixava perceber os órgãos da cavidade torácica...

Quantas vezes não contemplara Hans Castorp esse retrato, quantas vezes não o apertara aos lábios, no curso do tempo que decorrera desde então, trazendo consigo transformações! O tempo acarretara, por exemplo, a sua adaptação a uma vida levada ali em cima na ausência de Clávdia Chauchat, separada dele por um vasto espaço. Essa adaptação viera mais depressa do que se poderia imaginar: o tempo, nessas alturas, tinha um caráter especial e parecia feito para produzir hábitos, ainda que fosse apenas o hábito de não se habituar. O estrondo da porta envidraçada, ao começo das cinco refeições por demais opulentas, já não era de se esperar, e de fato não se repetiu. Em outros lugares, a uma enorme distância, Mme. Chauchat batia agora as portas – manifestação ligada e mesclada à sua índole e à sua doença de modo semelhante àquela relação que existe entre o tempo e os corpos no espaço: talvez toda a sua enfermidade constasse disso e de nada mais... Mas ela, embora invisível e distante, permanecia presente, sem ser vista, no espírito de Hans Castorp; era o gênio do lugar, que o jovem conhecera e possuíra numa hora nefasta, cheia de doçura e de pecado, hora incompatível com as pacatas cançõezinhas da planície. E era o retrato espectral desse gênio o que ele levava na altura do coração tão violentamente torturado fazia nove meses.

Durante essa hora, seus lábios trêmulos haviam balbuciado muita coisa extravagante, ora num idioma estrangeiro, ora na sua língua materna, falando quase inconscientemente, numa voz meio apagada. Proferira ele propostas, sugestões, projetos e intentos insensatos, que, com toda a razão, não tinham encontrado aprovação nenhuma. Quisera acompanhar o gênio para além do Cáucaso, segui-lo, esperar por ele no lugar que os seus caprichos de nômade escolhessem para o próximo domicílio, nunca mais se separar dele; e muitas outras idéias irresponsáveis da mesma qualidade. O que o nosso jovem insignificante guardava daquela hora de intensa aventura era precisamente o referido penhor espectral e a possibilidade – que tocava as raias do provável – de que Mme. Chauchat voltasse a Davos para uma quarta estadia, mais cedo ou mais tarde, conforme o decidisse a doença que lhe proporcionava a sua liberdade. Mas, fosse cedo ou tarde – e também isso fora dito na hora da despedida —, em todo caso se acharia Hans Castorp então bem longe, desde muito tempo; seria ainda mais difícil suportar o sentido desdenhoso dessa profecia, se não se pudesse ponderar que certas coisas não são vaticinadas para se realizar, mas precisamente na intenção contrária, como uma espécie de sortilégio destinado a evitar-lhes a realização. Profetas desse gênero escarnecem o futuro, predizendo-lhe como se passará, para que tenha vergonha de tomar realmente o rumo anunciado. E se o gênio, no decorrer da conversa relatada e fora dela, chamara Hans Castorp de joli bourgeois au petit endroit humide, o que representava, pouco mais ou menos, uma tradução das palavras de Settembrini sobre o “filho enfermiço da vida”, era o caso de se perguntar qual dos dois elementos dessa mistura da sua natureza seria o mais forte, o bourgeois ou o outro... Além do mais, o gênio não levara em conta que ele próprio já se fora e voltara diversas vezes, de maneira que Hans Castorp também poderia estar de volta no momento oportuno, ainda que, na verdade, se detivesse ali em cima pelo único motivo de não ter necessidade de voltar ali. Para ele, como para muitos outros pensionistas, era justamente essa a razão da sua permanência.

Uma das profecias irônicas daquela noite de carnaval acabava de tornar-se realidade: Hans Castorp teve uma papeleta de temperatura bastante feia; a curva subia acentuadamente, formando um pico elevado que ele registrara com sensação solene; depois de uma ligeira queda prolongava-se numa espécie de planalto um tanto ondulado, que se mantinha constantemente acima do nível das suas temperaturas habituais. Tratava-se de uma temperatura anormal, cuja elevação e persistência, segundo a opinião do Dr. Behrens, não era explicável pelos sintomas encontrados nos pulmões de Hans Castorp. – Evidentemente, meu amigo, o senhor está mais intoxicado do que se podia esperar da sua prezada pessoa – disse o médico. – Hum! Vamos experimentar as injeções. Isso lhe fará bem. Dentro de três ou quatro meses se sentirá como peixe na água, se a coisa correr conforme as previsões deste seu criado. – Daí sucedeu que Hans Castorp tinha que se apresentar, duas vezes por semana, logo após o passeio da manhã, ao laboratório, para tomar a sua injeção.

Ambos os médicos, ora um, ora outro, ministravam o remédio, mas o conselheiro fazia-o com perícia, de um só golpe, esvaziando a seringa no próprio momento da picada. De resto não se preocupava com o lugar em que picava, de maneira que às vezes resultava uma dor infernal, e o ponto acometido permanecia por muito tempo duro e ardente. Além disso a injeção atacava fortemente o organismo em geral, abalando o sistema nervoso à maneira de um violento esforço desportivo. Isso e também a elevação momentânea da temperatura, que o remédio produzia, atestavam-lhe o poder que possuía. Era o que o conselheiro predissera e o que acontecia, segundo a regra e sem que o fenômeno anunciado desse motivo para queixas. A história toda levava apenas um instante, quando, finalmente, chegava a vez da pessoa; num ápice recebia-se o contra veneno sob a pele da coxa ou do braço. Mas, em certas ocasiões, quando o Dr. Behrens se achava bem disposto e não entristecido pelo tabaco, era possível entabular, durante a injeção, uma rápida palestra com ele, que Hans Castorp procurava dirigir, pouco mais ou menos, do seguinte modo:

– Lembro-me com o maior prazer daquela agradável hora de café que passamos na sua casa, senhor conselheiro, no outono do ano passado. Ainda ontem, ou talvez um pouco antes, falei com meu primo a esse respeito...

– Gaffky 7 – disse o médico. – É o último resultado. O rapaz decididamente não faz menção de se desintoxicar. E contudo nunca me suplicou tanto como agora, nunca insistiu tanto comigo em ir-se embora, para brandir o sabre. Esse criançola! Anda choramingando por causa dos seus quinze meses, como se fossem séculos que ele desperdiça aqui! Quer partir de qualquer maneira. Então já lhe disse a mesma coisa? O senhor deveria falar-lhe da sua parte, seriamente e com firmeza. Esse sujeito vai se arruinar totalmente, ao engolir antes do tempo a poética cerração de vocês, com aquilo que ele tem à direita, em cima. Um ferrabrás como ele não precisa de muita massa cinzenta, mas o senhor, como homem mais circunspecto e como civil de formação burguesa, tem a obrigação de fazê-lo entrar no juízo, antes que ele cometa alguma loucura.

– É o que faço, senhor conselheiro – respondeu Hans Castorp, sem deixar de dirigir o rumo da conversa. – Faço isso muitas vezes, quando ele procura rebelar-se, e eu acho que Joachim voltará à razão. Mas os exemplos que a gente tem diante dos olhos nem sempre são os melhores. É isso o que está ruim. A cada instante há alguém que parte; partem para a planície, por iniciativa própria, sem verdadeira autorização, e no entanto com uma alegria festiva, como se a partida fosse justificada. Isso exerce uma certa sedução sobre caracteres fracos. Faz pouco tempo, por exemplo... deixe ver quem partiu recentemente... Uma senhora, da mesa dos “russos distintos”, Mme. Chauchat. Ouvi dizer que ela viajou para Daghestan. Bem, Daghestan, eu não conheço o clima daquela região. Pode ser que seja menos desfavorável do que o nosso ar da praia. Mas em todo caso é um país plano, do nosso ponto de vista, embora geograficamente talvez seja montanhoso; não sou muito forte nessas coisas. Como é possível viver lá embaixo sem estar curado, num país onde faltam os conceitos básicos e ninguém tem uma idéia das nossas regras nem sabe quando se deve observar o repouso ou tomar a temperatura? Aliás, ela tenciona voltar de qualquer jeito, como me disse ocasionalmente... Mas, afinal, por que chegamos a falar dela?... Pois é, aquele dia encontramos o senhor no jardim; não é, doutor? Lembra-se ainda? Quer dizer, o senhor nos encontrou a nós, quando estávamos sentados num banco – sei ainda qual foi – e fumávamos. Ou melhor, quem fumava era eu, pois meu primo não fuma, inexplicavelmente. E o senhor também estava fumando. Então oferecemos um ao outro as nossas marcas preferidas; lembro-me perfeitamente. O seu Brasil me agradou muitíssimo, embora seja preciso tratá-lo como a um potro, com prudência; senão, acontece alguma coisa como aquela que se passou com o senhor depois dos dois pequenos Havanas, quando esteve a ponto de dançar a sua última dança. A gente pode gracejar sobre aquilo, porque tudo terminou bem... Recentemente encomendei em Bremen mais algumas centenas de Maria Mancini. Estou muito acostumado a essa marca, que me é simpática sob todos os aspectos. É verdade que o frete e a alfândega a encarecem sensivelmente, e se o senhor me aumentar de novo o prazo da minha permanência, sou capaz de me converter ao fumo daqui. Nas vitrines se vêem charutos muito bonitos... E depois tivemos oportunidade de ver os seus quadros; lembro-me como se fosse hoje. Gostei sumamente dos seus trabalhos. Fiquei mesmo surpreendido ao ver quanta coisa o senhor consegue fazer com tintas a óleo. Eu nunca me atreveria a tanto. Foi nessa ocasião que vimos também o retrato de Mme. Chauchat, com a pele magistralmente reproduzida. Francamente, senti-me entusiasmado. Naquela época ainda não conhecia o modelo, ou apenas de vista e de nome. Depois, pouco antes da sua partida, cheguei a conhecê-la pessoalmente.

– Não diga! – respondeu o conselheiro áulico. Era a mesma resposta que dera – o leitor nos permita esse retrospecto – quando Hans Castorp, antes do primeiro exame médico, lhe comunicara que tinha um pouco de febre. E não disse mais nada.

– Sim, senhor, conheci-a pessoalmente – confirmou Hans Castorp. – Sei por experiência que não é fácil entabular relações com pessoas estranhas aqui em cima, mas entre Mme. Chauchat e eu a coisa arranjou-se, casualmente, à última hora. Saiu uma palestra que... – Hans Castorp acabava de receber a injeção, e aspirando o ar por entre os dentes, deu um chiado de dor. – Fff! Dessa vez tenho certeza, doutor, que o senhor acertou num nervo importantíssimo. Ah! sim, está doendo barbaramente. Muito obrigado, um pouquinho de massagem faz bem... Pois é, saiu uma palestra que fez com que nos conhecêssemos melhor.

– Sim? E então? – perguntou o conselheiro, sacudindo a cabeça, com cara de quem espera uma resposta cheia de elogios e põe na pergunta, de antemão, a confirmação dos esperados elogios, baseada na experiência própria.

– Acho que o meu francês claudicou bastante – esquivou-se Hans Castorp. – Afinal de contas, donde saberia eu falar melhor? Mas, no momento preciso, as palavras estão à mão, de maneira que conseguimos entender-nos mais ou menos bem.

– Não duvido. E então? – voltou o Conselheiro a indagar, acrescentando por sua conta: – Bonitinha, não é?

Hans Castorp, abotoando o colarinho, achava-se de pé, com as pernas e os cotovelos escancarados, e com o rosto levantado para o teto.

– No fundo é uma velha história – disse. – Acontece nas estações de cura que duas pessoas ou até duas famílias vivam durante semanas sob o mesmo teto e contudo completamente distanciadas. Um dia travam conhecimento, apreciam-se sinceramente, e ao mesmo tempo ficam sabendo que uma delas está a ponto de partir. Imagino que tais ocorrências deploráveis se passem freqüentemente. Num caso desses, a gente gostaria de conservar, pelo menos, um certo contato, ter notícias um do outro, quero dizer, por correspondência. Mas Mme. Chauchat...

– Ué... ela não quer? – riu-se o conselheiro jovialmente.

– Isso mesmo. Ela não quis saber disso. Será que ela também não escreve ao senhor, assim de vez em quando?

– Que idéia! – respondeu Behrens. – Ela nem pensa nisso. Primeiramente por preguiça, e além disso, em que língua escreveria? Eu não sei ler russo. Arranho-o um pouco, em caso de necessidade, mas não leio nem uma palavra. E o senhor tampouco, não é? Bem, e quanto ao francês ou ao alemão, nossa gatinha sabe miá-los com muita graça, mas para escrever se veria em apuros. Não se esqueça da ortografia, meu amigo! Sim, senhor, com isso temos de nos conformar. Mas ela volta de vez em quando. É uma questão de técnica ou de temperamento, como eu já lhe disse. Uns partem às vezes e precisam voltar mais dia menos dia, enquanto outros ficam logo o tempo suficiente para nunca mais terem necessidade de voltar. Se o seu primo partir agora – não deixe de lhe dizer isso bem claramente – é possível que o senhor ainda esteja aqui para assistir às solenidades do regresso dele.

– Mas, doutor, quanto tempo acha o senhor que eu...

– Que o senhor? Que ele! Acho que ele ficará menos tempo lá embaixo do que passou aqui em cima. Esta é a opinião da minha humilde pessoa, e seria muita amabilidade sua se a transmitisse a ele.

Era aproximadamente nesses termos que se desenrolava esse tipo de conversa, dirigidas com astúcia por Hans Castorp, embora com um resultado entre nulo e ambíguo. Quanto ao tempo que era preciso permanecer ali para presenciar a volta de um enfermo partido prematuramente, a resposta fora equívoca, e, no que se refere a certa pessoa desaparecida, fora até nula. Hans Castorp nada ouviria dela, enquanto os separasse o mistério do espaço e do tempo; ela não lhe escreveria, e ele tampouco encontraria uma oportunidade para fazê-lo... Mas, refletindo bem, como poderia ser de outra forma? Não fora uma idéia muito pedante e burguesa da sua parte essa de sugerir uma troca de cartas, ao passo que outrora considerara desnecessário e nem sequer desejável que se falassem? E lhe “falara” ele realmente, no sentido que o Ocidente culto dá a essa palavra? Falara-lhe naquela noite em que estivera a seu lado? Não se expressara apenas numa língua estrangeira, como que num sonho, e de modo pouco civilizado? Para que então escrever em papel de carta ou cartões-postais, como os dirigia de vez em quando ao pessoal lá de casa, na planície, a fim de relatar as vicissitudes dos resultados dos exames médicos? Não tinha Clávdia razão de se sentir desobrigada de escrever, devido à liberdade que a doença lhe outorgava? Falar, escrever – deveras um assunto eminentemente humanista e republicano, um assunto para o mestre Brunetto Latini, que redigira aquele livro sobre as virtudes e os vícios, doutrinara os florentinos e lhes ensinara a discursar e a governar a sua república em conformidade com as regras da política...

Com isso, os pensamentos de Hans Castorp começaram a rumar para Lodovico Settembrini, e ele corou, assim como fizera certa vez quando o escritor entrara de súbito no seu quarto de doente, acendendo repentinamente as luzes. Sem dúvida, Hans Castorp poderia ter dirigido ao italiano também as suas perguntas relativas aos enigmas transcendentais, fosse apenas para provocá-lo ou para resmonear, sem a esperança de receber uma resposta do humanista, que só se preocupava com os interesses terrestres da vida. Mas, desde o baile de carnaval e a cena emocionada com que Settembrini saíra da saleta de música, as relações entre Hans Castorp e ele haviam-se entibiado até certo ponto, o que se explicava pela consciência pesada de um e pelo profundo agastamento pedagógico do outro. A conseqüência era que se evitavam mutuamente e, durante semanas inteiras, não trocaram palavra alguma. Continuava Hans Castorp a ser um “filho enfermiço da vida” aos olhos do Sr. Settembrini? Não, provavelmente o desenganara este homem que procurava a moral na virtude e na razão... E Hans Castorp punha-se a recalcitrar com relação ao Sr. Settembrini; cerrava o cenho e franzia os lábios cada vez que se encontravam, enquanto o olhar negro e brilhante do italiano pousava nele numa reprovação silenciosa. Não obstante, essa birra se desfez imediatamente, quando o literato, semanas após, voltou a lhe dirigir a palavra, se bem que o fizesse apenas de passagem e sob a forma de alusões mitológicas, cuja compreensão requeria certa cultura ocidental. Foi depois da refeição; encontraram-se perto da porta envidraçada que já não se fechava com estrondo. Ao passar pelo jovem, e na intenção de não se demorar junto dele, Settembrini disse:

– Pois então, engenheiro, gostou da romã?

Hans Castorp sorriu, satisfeito, mas um tanto acanhado.

– Como?... Que é que o senhor quer dizer, Sr. Settembrini? Uma romã? Mas não nos serviram romãs! Nunca na vida comi... Isto é, um dia, sim, bebi xarope de romã com soda. Achei muito doce.

O italiano, que já se achava a alguma distância, virou a cabeça e retrucou:

– Aconteceu algumas vezes que os deuses ou os mortais visitaram o reino das sombras e encontraram o caminho de volta. Mas os habitantes do Inferno sabem que quem comeu dos frutos desse reino lhes pertence para sempre.

E prosseguiu no caminho, com as suas eternas calças claras de tecido xadrez, deixando atrás Hans Castorp, que deveria sentir-se “trespassado” por essas palavras cheias de significação. E, com efeito, o jovem se ressentiu até certo ponto, posto que, entre irritado e divertido em virtude de tamanha pretensão, murmurasse de si para si:

– Latini, Carducci, spaghetti, deixe-me em paz! Mesmo assim, essas primeiras palavras que lhe haviam sido concedidas, tornaram-no muito feliz. Pois, apesar do troféu, da macabra lembrança que ele levava sobre o coração, afeiçoara-se ao Sr. Settembrini, a cuja presença ligava grande importância, e a idéia de se ver para sempre rejeitado e abandonado pelo italiano indubitavelmente lhe pesaria na alma de modo mais opressivo e mais cruel do que os sentimentos de um aluno que rodasse nos exames e gozasse das vantagens da ignomínia, à maneira do Sr. Albin... Contudo, não se atreveu a entabular, da sua parte, uma conversa com o seu mentor, e este deixou passar outras semanas inteiras antes de entrar novamente em contato com seu discípulo enfermiço.

Isso sucedeu quando as ondas marinhas do tempo, rolando no seu ritmo eternamente invariável, haviam trazido a Páscoa, que foi celebrada no Berghof, assim como eram observadas escrupulosamente todas as etapas e todos os marcos miliários, para se evitar a monotonia confusa. Na hora do café da manhã cada pensionista encontrou ao lado do talher um tufo de violetas; no segundo café da manhã, todos receberam ovos coloridos, é a mesa festiva do almoço estava enfeitada de coelhinhos de açúcar e chocolate.

– Já fez alguma vez uma viagem por mar, tenente, ou o senhor, engenheiro? – perguntou o Sr. Settembrini, quando, depois da refeição, com o palito entre os dentes, se aproximou da mesinha dos primos, no vestíbulo. Como a maioria dos pensionistas, tinham abreviado, nesse dia, de um quarto de hora o repouso principal, para instalar-se diante de uma xícara de café e de um cálice de conhaque. – Esses coelhinhos e esses ovos coloridos relembram-me a vida num vapor grande, diante de um horizonte vazio há semanas, no deserto salino. Tal vida se passa sob condições cujo perfeito conforto não consegue fazer esquecer, senão superficialmente, a sua natureza monstruosa, ao passo que nas zonas mais profundas da alma a consciência dela continua doendo em forma de um secreto horror... Reencontro aqui o espírito com que, a bordo de uma arca dessas, as festas da terra ferma são piedosamente observadas. Refletem-se nisso as reminiscências de pessoas que vivem fora do mundo, recordações sentimentais do calendário... Na terra firme seria hoje a Páscoa, não é? Na terra firme celebram hoje o aniversário do rei – e nós também o fazemos, o melhor que podemos. Nós também somos criaturas humanas... Não tenho razão?

Os primos concordaram com ele. Realmente, era assim. Hans Castorp, comovido pelo fato de o italiano ter falado com ele, e instigado pelo remorso, elogiou a observação em altos brados. Achou-a espirituosa, magnífica, literária, e fez tudo para lisonjear o Sr. Settembrini. Indiscutivelmente, era apenas de um modo superficial – assim como o Sr. Settembrini acabava de expressar-se com tanta plasticidade – que o conforto de um transatlântico fazia olvidar as circunstâncias e o seu caráter perigoso. Se ele podia tomar a liberdade de desenvolver algumas idéias por sua conta – havia nesse conforto perfeito até uma certa provocação, algo semelhante àquilo que os antigos chamavam hybris (para agradar ao seu interlocutor, chegou a citar os próprios antigos!) Mencionou também a altivez do Rei Baltasar e outras coisas nefandas. Por outro lado, porém, o luxo a bordo envolvia – usou mesmo o verbo “envolver” – um grande triunfo do espírito humano e da honra humana. O homem, ao transferir esse luxo e esse conforto para as águas coroadas de espuma salgada e ao mantê-lo ali, audaciosamente, plantava, por assim dizer, o pé na cerviz dos elementos, das potências bravias, e isso envolvia a vitória da civilização humana sobre o caos, se lhe era permitido servir-se dessa expressão...

O Sr. Settembrini escutou-o atentamente, com os pés e os braços cruzados, enquanto, num gesto gracioso, cofiava com o palito o bigode sinuoso.

– É interessante – disse. – O homem não pode fazer observações gerais de certa extensão, a respeito de qualquer assunto que seja, sem se trair inteiramente, sem depositar nelas, malgrado seu, toda a sua personalidade, sem representar, de alguma forma parabólica, o tema fundamental e o problema primitivo da sua vida. É isso o que acaba de lhe acontecer, engenheiro. Aquilo que o senhor disse agora brotou de fato do fundo de seu Eu e expressou também, de um modo poético, o estado momentâneo desse Eu: continha a fase experimental...

– Placet experiri – riu-se Hans Castorp, pronunciando o “c” à italiana e sacudindo a cabeça afirmativamente.

– Sicuro, se se trata, no caso em apreço, da paixão respeitável de explorar o mundo e não de mera licenciosidade. O senhor mencionou a hybris. Serviu-se desse termo. Mas a hybris da razão em face das potências tenebrosas é a mais alta humanidade, e quando atrai sobre si a vingança de divindades ciumentas, per esempio, quando a arca de luxo vai a pique, achamo-nos sempre à frente de um fim honroso. Também a façanha de Prometeu era hybris, e as torturas que ele padeceu no penedo da Cítia são consideradas por nós o mais sagrado dos martírios. Mas que se deve dizer daquela outra hybris, da perdição na experiência libidinosa, feita com as potências contrárias à razão e hostis ao gênero humano? Há honra nelas? Pode haver honra em tal conduta? Si o no?

Hans Castorp mexia a colher na xícara, se bem que esta não contivesse mais nada.

– Engenheiro, engenheiro! – prosseguiu o italiano, meneando a cabeça, e a mirada dos olhos negros fixou-se pensativamente no espaço. – Não teme o senhor o furacão do segundo círculo do Inferno, o furacão que agita e sacode os pecadores da carne, os infelizes que sacrificaram a razão à volúpia? Gran Dio! Quando tenho a visão do senhor varrido pelo vendaval, voando de cá para lá, de cabeça para baixo, sinto-me com vontade de cair ao chão, de tanto pesar, assim como cai um cadáver...

Riram-se, contentes de ouvi-lo gracejar e dizer coisas poéticas. Settembrini, porém, acrescentou:

– O senhor vai se lembrar, engenheiro, como na noite de carnaval, bebendo vinho, se despediu em certo sentido de mim. Sim, senhor, foi uma espécie de despedida. Bem, hoje é a minha vez. Tal como os senhores me vêem agora, estou a ponto de lhes dizer adeus. Vou sair desta casa.

Os primos ficaram pasmados.

– Não é possível. Está apenas brincando! – exclamou Hans Castorp, como o fizera numa ocasião semelhante. Estava quase tão assustado como naquele outro dia. Mas também Settembrini replicou:

– Nem um pouquinho. É como digo. Além disso, o senhor já andava preparado para ouvir essa notícia. Avisei-o de que estava decidido a levantar as minhas tendas e a estabelecer-me definitivamente em qualquer parte da “aldeia”, logo que se mostrasse insustentável a minha esperança de poder voltar, dentro de um prazo mais ou menos previsível, ao mundo do trabalho. Que quer o senhor que eu faça? Esse momento chegou. É coisa certa que não me posso curar. Posso prolongar a minha vida, mas só aqui. A sentença, o veredicto final é “prisão perpétua”. O Dr. Behrens acaba de pronunciá-lo com o seu peculiar bom humor. Muito bem, tiro as conseqüências. Aluguei uma habitação. Estou tratando do transporte dos meus modestos bens terrenos e dos utensílios do meu ofício literário... Não fica longe daqui, na “aldeia”. Nós nos veremos seguidamente, não há dúvida. Não perderei o senhor de vista, mas, como habitante da mesma casa, tenho a honra de me despedir.

Era essa a comunicação que Settembrini lhes fizera no domingo de Páscoa. Os primos se haviam mostrado extraordinariamente comovidos. Demorada e repetidamente falavam com o literato sobre a sua decisão e as modalidades que lhe permitiriam observar o regime também na sua morada particular; tratavam do modo de levar adiante aqueles vastos trabalhos enciclopédicos que tomara a si, a sinopse de todas as obras-primas das belas-letras sob o ponto de vista dos conflitos originados pelo sofrimento e do seu extermínio; finalmente se informaram também a respeito dos futuros aposentos do Sr. Settembrini, que se achavam na casa de um “merceeiro”, como se expressava o italiano. Esse merceeiro alugara o andar superior da sua casa a um alfaiate natural da Boêmia, que por sua vez sublocava cômodos... Essas conversas, conforme explicamos, já pertenciam ao passado. O tempo ia avançando, e desde então já trouxera consigo mais de uma transformação. Settembrini realmente deixara de morar no Sanatório Internacional Berghof, e passara-se para a casa de Lukacek, alfaiate de senhoras, onde morava fazia semanas. Sua mudança não se realizara num trenó, senão a pé. Saíra ele envolto num curto sobretudo amarelo, de mangas e gola de peles. Acompanhara-o um homem, transportando, num carrinho de mão, a bagagem literária e terrena do escritor, que fora visto afastar-se, brandindo a bengala, após ter beliscado, com o dorso de dois dedos, as faces de uma das criadas, postada junto ao portão do edifício... Como já ficou dito, o mês de abril achava-se relegado quase inteiramente – mais de três quartas partes – à sombra do passado. Verdade é que ainda reinava pleno inverno. Pela manhã, a temperatura atingia uns escassos 6 graus acima de zero, nos quartos, ao passo que fora fazia 9 abaixo. Quando se deixava o tinteiro na sacada, durante a noite, a tinta congelava-se, formando um pedaço de gelo parecido com hulha. Mas era coisa sabida que a primavera vinha se aproximando. De dia, quando brilhava o sol, já se sentia pairando no ar um suave e delicado pressentimento. O período do degelo estava iminente, e a isso estavam ligadas as transformações que, irresistivelmente, se realizavam no Berghof. Nem sequer a autoridade e a palavra viva do conselheiro eram capazes de deter-lhe a progressão, posto que combatesse o preconceito popular contra o degelo, em toda parte, nos quartos e na sala, por ocasião de exames, visitas e refeições.

Vinham os pensionistas – assim perguntava – para se dedicar aos esportes de inverno, ou como enfermos, como pacientes? Por que cargas-d'água precisavam de neve, de neve gelada? Desfavorável a temporada de degelo? Era, pelo contrário, a mais favorável de todas. Comprovadamente o número de doentes acamados era menor nessa época do ano, em todo o vale, do que em qualquer outra estação. No mundo inteiro as condições climáticas para tuberculosos eram piores do que ali, no momento. Quem tivesse um pingo de juízo deveria persistir e aproveitar o efeito fortalecedor dessa fase do clima alpino. Depois, estariam imunizados contra todos os golpes e ataques do tempo, blindados contra qualquer clima do mundo, contanto que esperassem a realização da cura completa, etc. No entanto, o conselheiro falava em vão. A animosidade contra o degelo achava-se arraigada nas cabeças. A freqüência da estação de cura diminuía. Pode ser que a aproximação da primavera agitasse o coração da gente e tornasse irrequietas e ávidas de mudanças até pessoas sedentárias. Em todo caso aumentava de forma inquietante o número das partidas arbitrárias, das partidas “em falso”, e isso também do Berghof. A Srª. Salomon, de Amsterdam, por exemplo, apesar do prazer que lhe causavam os exames médicos e a subseqüente ostentação de roupa interior de rendas finas, partiu “em falso”, de um modo totalmente arbitrário, sem a mínima autorização, e não porque se sentisse melhor, senão por andar cada vez pior. O início da sua permanência ali fora muito anterior à chegada de Hans Castorp, Fazia mais de um ano que ela chegara, com uma afecção muito leve, em virtude da qual lhe tinham receitado uma temporada de três meses. Depois de quatro meses fora-lhe assegurado que estaria “boa daqui a quatro semanas”; mas, seis semanas após, já não se falava em cura. Era preciso – assim se dissera – que ela permanecesse no mínimo outros quatro meses. E dessa forma o tempo continuara a escoar-se – afinal de contas, isso não era nenhum calabouço nem uma mina siberiana. A Srª. Salomon ficara e exibira a sua mais fina roupa de baixo. Como, porém, depois do último exame, e na iminência do degelo, lhe houvessem falado de um novo acréscimo de cinco meses, por causa de síbilos à esquerda, em cima, e indiscutíveis anomalias do ruído respiratório abaixo da axila esquerda, perdera a paciência. Sob protesto, invectivando a “aldeia” e Davos-Platz, o famoso ar das montanhas, o Sanatório Internacional Berghof e os médicos, partira para o seu lar em Amsterdam, cidade úmida, cheia de correntes de ar.

Era isso razoável? O Dr. Behrens encolheu os ombros e levantou os braços, deixando-os, em seguida, cair ruidosamente sobre as coxas. O mais tardar no outono – disse – a Srª. Salomon estaria de volta, e então seria para sempre. Teria ele razão? Já o veremos, uma vez que ainda nos acharemos por algum tempo desta terra ligados ao nosso oásis de prazeres. O caso Salomon não era, porém, o único da sua espécie. O tempo trazia consigo transformações; sempre fora assim, mas em geral isso se produzira de uma forma mais paulatina, menos escandalosa. A sala de refeições mostrava grandes lacunas, em todas as sete mesas, na dos “russos distintos” como na dos “ordinários”, nas longitudinais tanto como nas transversais. Não se podia, contudo, tirar disso uma conclusão certa a respeito do número de pensionistas da casa. Houvera também chegadas, como sempre as havia. Os quartos, talvez, continuassem ocupados, mas então se trataria de pacientes cujo estado final lhes restringia a liberdade de escolher o domicílio. Na sala de refeições, como já verificamos, faltavam muitos, que ainda não tinham perdido essa liberdade; algumas lacunas, entretanto, estavam abertas de um modo particularmente incisivo e vazio, como, por exemplo, a que deixara o Dr. Blumenkohl, que acabava de falecer. Seu rosto fora assumindo cada vez mais intensamente aquela expressão de quem tem na boca qualquer coisa de sabor repugnante; depois acamara-se definitivamente e afinal morrera – ninguém sabia precisar quando. O assunto fora tratado com a costumeira discrição. Uma lacuna! A Srª. Stöhr tinha o lugar pegado a essa lacuna e horrorizava-se disso. Por esse motivo, mudou-se para o outro lado do jovem Ziemssen, ocupando a cadeira de Miss Robinson, que recebera alta como curada, ao passo que, à sua frente, a professora, vizinha esquerda de Hans Castorp, permanecia firme em seu posto. No momento achava-se sozinha naquele lado da mesa, pois os outros três lugares estavam vagos. O estudante Rasmussen, que dia a dia se tornara mais obtuso e mais sonolento, achava-se de cama e era considerado moribundo. A tia-avó, com sua sobrinha e com Marusja, a moça dos seios opulentos, estavam em viagem – servimo-nos do termo “viagem”, como todos o faziam, uma vez que a sua volta próxima passava por fato indubitável. No outono já estariam de regresso – podia-se chamar àquilo de “partida”? Muito depressa chegaria o solstício de verão, logo após o Pentecostes, que estava iminente, e, uma vez alcançado o dia mais longo, viria a rápida descida, rumo ao inverno. Numa palavra, a tia-avó e Marusja quase estavam de volta, e era melhor assim, já que a risonha Marusja absolutamente não ficaria curada e desintoxicada. A professora ouvira falar de blastomas tuberculosos que a Marusja dos olhos castanhos trazia no peito exuberante, e que já tinham sido operados diversas vezes. Quando a Srª. Engelhart mencionou isso, Hans Castorp lançou um rápido olhar a Joachim, que inclinava para o prato o rosto subitamente cheio de manchas terrosas.

A alegre tia-avó dera aos comensais – isto é, aos primos, à Srª. Stöhr e à professora – um jantar de despedida no restaurante, uma comezaina com caviar, champanha e licores, durante a qual Joachim se conservara taciturno, proferindo só poucas palavras numa voz quase surda. Tanto assim que a tia-avó, com o seu espírito afetuoso, procurara confortá-lo, chegando até a tratá-lo por “tu”, em completo abandono das conveniências civilizadas. – Não há de ser nada, paizinho. Não te importes, mas come, bebe e conversa! Daqui a pouco a gente voltará – dissera ela. – Vamos todos comer, beber e falar, e não nos entregar à tristeza. Deus mandará o outono antes do que esperamos. Como vês, não há motivos para mágoas. – Na manhã do dia seguinte distribuíra, como lembrança, vistosas caixinhas de confeitos a quase todas as pessoas presentes na sala de refeições. A seguir, empreendera a viagem, em companhia das duas moças.

E Joachim? Como se achava ele? Sentia-se aliviado e livre desde aquele dia, ou sofria a sua alma severas privações em face dos lugares vazios à mesa? Sua impaciência insólita e insubmissa, sua ameaça de partir sem autorização, caso continuassem a lográ-lo – tinham elas, porventura, a sua origem na ausência de Marusja? Ou explicava-se, pelo contrário, o fato de ele, por enquanto, não se ir embora e aquiescer aos elogios do degelo que o conselheiro lhe prodigalizava – explicava-se esse fato pelo outro, de que Marusja, a moça dos seios opulentos, não partira seriamente, mas sim para fazer uma simples viagenzinha, da qual estaria de regresso dentro de cinco das menores unidades de tempo que se conheciam ali em cima? Ai dele! Havia na sua conduta um pouco de tudo isso, e todas essas razões influíam igualmente sobre ela. Hans Castorp percebia-o, sem que jamais falasse com Joachim a esse respeito. Abstinha-se estritamente de mencionar o assunto, assim como Joachim evitava pronunciar o nome de outra pessoa que também se ausentara numa viagenzinha.

Nesse meio-tempo, fora ocupado o lugar de Settembrini à mesa. Quem era que ali se encontrava, ao lado de uns pensionistas holandeses de apetite tão estupendo que cada um deles costumava pedir três ovos fritos, ainda antes da sopa que formava o início dos cinco pratos do jantar normal? Era Anton Karlovitch Ferge, aquele que experimentara a infernal aventura do choque pleural. Sim, o Sr. Ferge abandonara o leito; mesmo sem o pneumotórax, seu estado melhorara de tal maneira que lhe permitia passar levantado a maior parte do dia e participar das refeições, com seu bigode hirsuto e bonachão, e o grande pomo-de-adão, de aspecto igualmente jovial. De vez em quando, os primos conversavam com ele na sala ou no vestíbulo, e faziam também alguns dos passeios regulamentares em sua companhia, quando o acaso os associava. Sentiam uma certa simpatia por esse sofredor ingênuo, que declarava nada entender de assuntos sublimes, mas, feita essa confissão, sabia contar agradavelmente histórias relativas à fabricação de galochas e falar de regiões longínquas do Império Russo, de Samara e da Geórgia, enquanto chafurdavam, no meio da cerração, através da massa aguda de neve derretida.

A essa época, os caminhos eram realmente impraticáveis; achavam-se em plena dissolução, e a bruma pairava por cima deles. Verdade é que o conselheiro afirmava não se tratar de neblina, senão de nuvens; mas isso era simples questão de palavras, segundo a opinião de Hans Castorp. A primavera ia travando uma violenta luta, que, com inúmeras recaídas no rigor do inverno, se prolongou através de meses inteiros até meados de junho. Já em março, quando brilhava o sol, mal se podia suportar o calor na sacada e na espreguiçadeira, apesar das roupas ligeiríssimas e do guarda-sol. Certas senhoras acreditavam na chegada do verão e apareciam ao café da manhã com vestidos de musselina. O seu procedimento era até perdoável em face das peculiaridades do clima alpino, que favorecia o equívoco pela confusão meteorológica das estações. Mas também havia na sua precipitação uma boa parte de visão curta e de falta de imaginação, próprias da estupidez de seres que só vivem do momento para o momento, incapazes de pensar em mudanças da situação atual; além do mais expressava-se nisso a avidez de variação e a impaciência com que devoravam o tempo. O calendário dizia: março, o que significava primavera e equivalia a verão. Por isso, os vestidos de musselina eram tirados da mala, para serem exibidos antes da entrada do outono. E de fato sobreveio uma espécie de outono. O mês de abril trouxe consigo dias sombrios, de um frio úmido, cuja chuva incessante se transformou aos poucos em neve que caía turbilhonando. Os dedos enregelavam-se na loggia; os dois cobertores de lã de camelo voltaram a prestar serviços, e pouco faltou para que se recorresse novamente ao saco de peles. A “administração” decidiu-se a reacender a calefação, e todos se queixavam de se ver esbulhados da primavera. Pelo fim do mês tudo estava oculto sob uma espessa camada de neve, mas logo surgiu o Föhn[4], previsto, pressagiado pelos pensionistas mais experientes e mais sensíveis. A Srª. Stöhr, bem como a Srta. Levi, a da pele de marfim, e também a viúva Hessenfeld eram unânimes em afirmar que já o tinham pressentido, antes que se mostrasse a menor nuvem por cima dos cumes da formação de granito, lá ao sul. Em seguida, a Srª. Hessenfeld começou a demonstrar uma propensão para crises de choro, a Levi acamou-se, e a Srª. Stöhr, exibindo obstinadamente a dentadura de lebre, exteriorizava de hora em hora o supersticioso receio de uma hemoptise, em vista da crença de que o Föhn causava ou favorecia tais acidentes. Reinava um calor incrível. Desligaram a calefação. Durante a noite deixava-se aberta a porta da sacada, e, não obstante, o termômetro marcava pela manhã 11 graus no interior do quarto. Derretiam-se enormes quantidades de neve, que ia assumindo uma cor de gelo e se tornava porosa e esburacada. Os montões desfaziam-se, como se quisessem esconder-se debaixo do sol. Tudo ressumbrava, gotejava, marulhava; nos bosques se ouvia o ruído de pingos que caíam e de massas de neve que deslizavam dos galhos; as barreiras acumuladas ao longo dos trilhos, os pálidos tapetes que cobriam os prados, sumiam-se, ainda que a neve fosse por demais abundante para desaparecer depressa. Produziram-se fenômenos maravilhosos, surpresas primaveris durante os passeios obrigatórios pelo vale, espetáculos deslumbrantes, nunca vistos. Desdobrava-se um campo plano; o fundo era formado pelo cume cônico do Schwarzhorn, ainda envolto em neve, e a cuja direita se erguia, bem próxima, a geleira de Scaletta, também coberta de neve profunda. A pradaria, com um monte de feno no meio, igualmente se achava sob a neve, embora a camada já aparecesse mais fininha e mais rala, interrompida, aqui e ali, por elevações escuras de terra e perfurada em toda parte pela grama seca. Mas os andarilhos notaram a natureza irregular da camada de neve que revestia esse prado: ao longe, em direção, às encostas arborizadas, era mais espessa; à sua frente, porém, diante dos seus olhos, o capim desbotado, ressequido pelo inverno, estava apenas salpicado, pintalgado, floreado de manchas brancas... Olharam-nas mais de perto; pasmados, inclinaram-se por cima delas e verificaram que não era neve, mas flores, flores de neve, neve de flores, pequenos cálices sobre curtas hastes, alvos ou de um azul esbranquiçado; eram crocos, deveras, que haviam brotado aos milhões do solo do campo encharcado, em tal quantidade que facilmente podiam ser tomados por neve, com a qual de fato se confundiam a alguma distância.

Os passeantes riam-se do seu equívoco, exultavam de alegria diante desse milagre que se realizava à vista deles, dessa adaptação imitadora, desse mimetismo graciosamente tímido por meio do qual a vida orgânica se atrevia a ressurgir. Colhiam flores, contemplavam e examinavam as delicadas formas dos cálices, enfeitavam as lapelas, levavam um ramalhete para casa e colocavam-no num copo d'água, nos seus quartos. Pois a rigidez inorgânica do vale durara muito tempo – muito tempo, embora parecesse pouco.

Mas a neve de flores foi recoberta por neve autêntica, e as soldanelas azuis bem como as prímulas amarelas e vermelhas, que a substituíam, não tinham melhor sorte. Como era difícil para a primavera abrir caminho e triunfar do inverno! Dez vezes vira-se obrigada a recuar antes que se pudesse firmar nessas alturas – até a próxima irrupção do inverno, com o torvelinho branco, o vento glacial e a calefação acesa. Em princípios de maio – enquanto falávamos das flores de neve, chegou o mês de maio – era uma verdadeira tortura escrever na sacada um simples cartão-postal destinado à planície, pois os dedos ressentiam-se da umidade própria de um novembro rigoroso. As cinco ou seis árvores frondosas que existiam na região estavam despidas como as da planície em janeiro. Chovia dias a fio; durante uma semana inteira abatiam-se as águas, e sem as qualidades reconfortantes das espreguiçadeiras do tipo usado ali em cima, teria sido extremamente duro passar numerosas horas de repouso ao ar livre, em meio ao vapor das nuvens, e com o rosto molhado, enrijecido. No fundo, porém, tratava-se de uma chuva de primavera, e quanto mais durava mais se dava a conhecer como tal. Quase toda a neve fundia-se sob o seu efeito. Já não se via branco, só aqui e ali um cinzento gelado de aspecto sujo. E agora, finalmente, os campos começavam a reverdecer.

Que bênção para os olhos esse verde dos prados, após o branco sem fim! Havia, além disso, ainda um outro verde cuja delicadeza e suavidade graciosa ultrapassavam de longe as da grama fresca. Eram os feixes de agulhas novas dos lariços. Hans Castorp, nos seus passeios regulamentares, raramente deixava de acariciá-los com a mão ou de roçar a face de encontro a eles, tão irresistível era o encanto da sua maciez e da sua frescura. – Sinto vontade de me tornar botânico – disse o jovem a seu companheiro. – Realmente, essa ciência me tenta, só pelo prazer que experimento diante desse despertar da natureza, depois do inverno que passamos aqui em cima. Olhe aí, rapaz, há gencianas na encosta, e isto aqui é uma espécie de violeta amarela que eu não conhecia. E vejo também ranúnculos do mesmo tipo que cresce lá embaixo. São duplos e pertencem à família das ranunculáceas. É uma planta especialmente bonita e híbrida, sabe? Veja como ela dispõe de uma porção de estames e de grande número de ovários, um androceu e um gineceu, se me lembro bem. Acho que acabarei comprando uma ou outra obra botânica, para me instruir um pouco melhor nesse campo da vida e da ciência. Como o mundo se torna colorido, agora!

– Em junho haverá mais cores ainda – disse Joachim. – A floração destes prados é célebre. Mas creio que não esperarei até lá... Será que o seu desejo de estudar botânica se deve à influência de Krokowski?

De Krokowski? Que significava isso? Ah sim, era porque o Dr. Krokowski, numa das suas últimas conferências, entrara na botânica. Estaria redondamente enganado quem supusesse que as transformações acarretadas pelo tempo pudessem fazer o Dr. Krokowski desistir das suas conferências. Continuava a realizá-las de quinze em quinze dias, de sobrecasaca, embora não de sandálias, que só calçava durante o verão e portanto voltaria a calçar em breve. Discorria ainda uma segunda-feira sim, outra não, na sala de refeições, como naquele dia em que o novato Hans Castorp, manchado de sangue, chegara atrasado. Durante nove meses, o analista tratara do amor e da doença, nunca em demasia, mas em doses pequenas, palestras de meia hora e quarenta e cinco minutos; assim desdobrara ante o seu público os tesouros da sua sabedoria e das suas idéias. Todos tinham a impressão de que nunca se veria obrigado a parar com essas conferências e que isso continuaria assim interminavelmente. Era uma espécie de Mil e uma noites bimensal, prolongando-se à vontade, de preleção em preleção, e sumamente apropriada a satisfazer, à maneira dos contos de Xerazade, a curiosidade de um príncipe e a dissuadi-lo de atos violentos. Na sua abundância ilimitada, o tema do Dr. Krokowski fazia pensar na empresa em que colaborava Settembrini, a Enciclopédia dos males. Podia-se julgar a variabilidade do assunto pelo fato de que o conferencista recentemente até se ocupara da botânica, ou mais precisamente: de cogumelos... Por outro lado, parecia ter dado um novo rumo às suas palestras: falava de preferência do amor e da morte, o que dava lugar a numerosas observações de cunho ora delicadamente poético, ora inexoravelmente científico. Nessa urdem de idéias, o sábio, com o seu sotaque arrastado à maneira oriental e com o seu “r” carregado, chegara a tratar da botânica, isto é, dos cogumelos, essas criaturas da sombra, luxuriantes e fantásticas, oriundas da vida orgânica, de natureza carnal, e muito afins com o reino dos animais. Na sua estrutura entravam produtos do metabolismo animal, albumina e glicogênio. E o Dr. Krokowski citara certo cogumelo famoso desde a Antigüidade clássica, devido à sua forma e às capacidades que se lhe atribuíam, um fungo cujo nome latino continha o epíteto impudicus, e cujo aspecto recordava o amor, ao passo que o odor relembrava a morte. Era evidentemente um cheiro cadavérico, o que se desprendia do impudicus, quando destilava da sua cabeça campanular aquele muco viscoso, esverdeado, que a recobria e era o portador dos espórios. Entre as pessoas ignorantes esse cogumelo continuava sendo considerado um afrodisíaco.

Ora, essa palestra não deixara de ser um tanto forte para as senhoras, conforme opinou o Promotor Paravant, que, graças ao apoio moral da propaganda do conselheiro, perseverara firme no sanatório, apesar do degelo. E também a Srª. Stöhr, que igualmente demonstrava bastante força de caráter para não arredar pé e resistia à sedução de uma partida “em falso”, observou à mesa que o Dr. Krokowski fora um pouco “obscuro” ao referir-se àquele cogumelo clássico. “Obscuro”, disse a desgraçada, profanando a sua doença por esse lapso inominável. Mas Hans Castorp estranhou, antes de tudo, o fato de ter Joachim aludido ao Dr. Krokowski e à sua botânica, porque em outras ocasiões nunca haviam falado do analista, como tampouco das pessoas de Clávdia Chauchat ou de Marusja. Não o mencionavam; preferiam passar em silêncio a sua existência e atividade. Dessa vez, porém, Joachim se referira ao assistente num tom mal-humorado, como, aliás, a observação de não querer aguardar a floração dos prados revelara o mesmo mau humor. O bom Joachim parecia perder aos poucos o equilíbrio. Sua voz vibrava de irritação, e ele já não se mostrava tão brando e tão comedido como antes. Fazia-lhe falta o perfume de flor de laranjeira? Levavam-no ao desespero as peças que lhe pregava a escala de Gaffky? Sentia-se ele incapaz de resolver se era melhor esperar o outono ali em cima ou arriscar uma partida não autorizada?

Na realidade existia ainda outra coisa à qual se devia a vibração agastada da voz de Joachim, e que o fazia mencionar num tom quase sarcástico a conferência botânica de poucos dias atrás. Era esse um fato que Hans Castorp ignorava, ou melhor: ele não sabia que Joachim o notara. Pois ele próprio, o espírito propenso a aventuras, o filho enfermiço da vida e da pedagogia, estava muito bem a par do assunto. Numa palavra, Joachim descobrira certas façanhas do primo, surpreendera-o, de inopino, numa traição semelhante àquela que Hans Castorp cometera na terça-feira de carnaval. Tratava-se de uma nova deslealdade, agravada pela circunstância indubitável de ter chegado a ser um hábito.

O ritmo constante e monótono do curso do tempo, a organização minuciosa e prefixada do dia normal, que era sempre o mesmo, idêntico a si próprio, repetindo-se a ponto de criar confusão, a eternidade parada que tornava difícil compreender por que tinha a faculdade de acarretar transformações – essa ordem inabalável do programa diário incluía, como todos se recordam, a ronda do Dr. Krokowski entre três e meia e quatro horas da tarde. A essa hora, o assistente passava por todos os quartos, de sacada em sacada, de uma espreguiçadeira à outra. Quantas vezes já se repetira o dia normal do Berghof, desde aquele momento em que Hans Castorp, na sua posição horizontal, se melindrara ao perceber que o assistente dava uma volta em torno dele e não o levava em conta! Desde muito tempo o visitante de outrora convertera-se num “camarada”. Freqüentemente o Dr. Krokowski servia-se mesmo dessa palavra, quando se dirigia a ele; e essa palavra um tanto militar, cujo “r” o médico pronunciava de modo exótico mediante um só estalo da língua na região anterior do palato, soava horrivelmente na sua boca, como Hans Castorp fizera notar a Joachim. Sem embargo, estava até certo ponto em harmonia com o seu jeito enérgico, alegre e jovial, que parecia convidar à confiança alegre, mas era em parte desmentido pela palidez e pela negrura do médico – o que causava aquela aura de equívoco que sempre pairava em volta dele.

– Pois então, camarada, como vai a coisa? – dizia o Dr. Krokowski, cada vez que, vindo do casal de bárbaros russos, se aproximava da cabeceira da cadeira de Hans Castorp. E sempre que ouvia essa alocução animada, o enfermo, com as mãos sobre o peito, esboçava o mesmo sorriso forçado e amável, contemplando os dentes amarelos do assistente, que apontavam no meio da barba preta. – Descansou bem? – costumava prosseguir o Dr. Krokowski. – Sua curva desceu? Ah, subiu hoje? Não faz mal. Isso se arranja até o dia do casamento. Bom proveito! – E com essas palavras de som igualmente horroroso, devido ao “r” carregado, já continuava o seu caminho, passando para o compartimento de Joachim. Afinal de contas, só se tratava de uma ronda destinada a verificar se tudo estava em ordem.

Às vezes, porém, o Dr. Krokowski demorava-se um pouco mais ao lado de Hans Castorp. Então o homem espadaúdo, com o infalível sorriso másculo, conversava com o camarada sobre isto e aquilo. Falava do clima, de partidas e chegadas, da disposição do paciente, do seu bom ou mau humor, e também da sua situação pessoal, da sua origem e do seu futuro, antes de dizer “Bom proveito” e de prosseguir na ronda. E Hans Castorp que, para variar, tinha as mãos entrelaçadas na nuca, respondia-lhe, igualmente sorrindo, a todas as perguntas – com uma sensação penetrante de repulsa, sim, mas, não obstante, respondia. Abafavam a voz. Se bem que a divisão de vidro separasse os compartimentos apenas incompletamente, Joachim não podia escutar a conversa do outro lado, para o que, de resto, não fazia a menor tentativa. Ouvia até como o primo se levantava da cadeira e entrava no quarto, acompanhado do Dr. Krokowski, provavelmente para lhe mostrar a papeleta de temperatura. E ali continuava o colóquio por algum tempo ainda, a julgar pelo atraso com que o assistente, vindo do corredor, entrava no aposento de Joachim.

De que falavam os camaradas? Joachim não perguntava, mas se um dentre os leitores não lhe seguisse o exemplo e ventilasse a questão, faríamos notar, de forma generalizada, que existem muitos assuntos e muitas razões para o intercâmbio espiritual entre homens e camaradas, cujos conceitos fundamentais têm o cunho do idealismo, e dos quais um foi levado, pelo seu caminho formativo, a considerar a matéria como o pecado original do espírito, ou como uma perigosa excrescência dele, ao passo que o outro, o médico, se acostumou a ensinar o caráter secundário da enfermidade orgânica. Somos da opinião que eles terão que discutir e trocar numerosas idéias com respeito à matéria como degeneração desonrosa do imaterial, à vida como impudicícia da matéria, e à doença como forma depravada da vida. Talvez palestrassem, baseados no tema de conferências em curso, sobre o amor como fator patogênico, sobre a natureza metafísica dos indícios, sobre focos “antigos” e “recentes”, sobre venenos solúveis e filtros de amor, sobre a iluminação – do inconsciente, a bênção da análise das almas e a reversão dos sintomas. Que sabemos nós dos assuntos por eles tratados, uma vez que tudo isso não passa de conjetura e suposições feitas em resposta à hipotética pergunta: “De que falavam o Dr. Krokowski e o jovem Hans Castorp?”

Por outro lado, agora já não conversavam mais. Aquelas palestras pertenciam ao passado, tinham-se estendido por poucas semanas apenas. Presentemente, o Dr. Krokowski não se demorava com esse doente mais do que com qualquer outro. “Pois então, camarada?” e “Bom proveito!” – a isso as suas visitas haviam voltado a limitar-se, na maioria das vezes. Em compensação, porém, fizera Joachim outra descoberta, justamente a que ele julgava uma traição da parte de Hans Castorp. Fizera-a totalmente sem querer, sem se ter dado o trabalho de espionar o primo, o que se afastaria da sua retidão militar. Sucedeu simplesmente, numa quarta-feira, que lhe interromperam o repouso e o chamaram ao subsolo, para que o massagista o pesasse. Foi então que recebeu a surpresa. Descia pela escada, a escada limpinha, coberta de linóleo, donde se abria a vista sobre a porta da sala de consultas, a cujos lados havia os dois gabinetes de “radioscopia”, à direita o do organismo, e à esquerda, dobrando o corredor, o da alma, sito um degrau mais abaixo, com o cartão do Dr. Krokowski pregado à porta. A meia altura da escada, Joachim estacou, pois Hans Castorp, que vinha da injeção, acabava de sair da sala de consultas. Com ambas as mãos fechou a porta que atravessara depressa e, sem olhar em torno de si, voltou-se para a direita, rumo à outra, na qual o cartão se achava fixo por meio de percevejos. Alcançou-a com poucos passos silenciosos e cadenciados. Bateu nela, inclinando-se e avizinhando o ouvido do dedo que batia. E quando ressoou do calabouço o barítono do dono do gabinete, dizendo “Entre!”, com um estalo exótico do “r” e com um som desfigurado das vogais, Joachim viu como o primo desaparecia na penumbra da caverna analítica do Dr. Krokowski.

 

         Mais alguém

Dias longos – os mais longos, objetivamente falando, com referência ao número das suas horas de sol; pois a extensão astronômica era incapaz de influir sobre a pouca duração do dia avulso tanto como dos dias em geral, na sua fuga monótona. O equinócio da primavera já se passara havia três meses. Chegara o solstício de verão. Mas o ano natural ali em cima seguia o calendário com certa relutância. Somente nesses dias a primavera começara a impor-se definitivamente, uma primavera ainda livre de todo o peso do verão, aromática, transparente e leve, com um azul de esplendor argentino e com uma abundância infantil de cores na floração dos prados.

Nas encostas, Hans Castorp encontrava as mesmas flores das quais Joachim, na sua amabilidade, lhe pusera no quarto alguns exemplares, então os últimos, para lhe dar as boas-vindas: aquilégias e campânulas. Isto significava que o ciclo do ano estava a ponto de se fechar sobre si. Mas quantas variedades da vida orgânica não tinha brotado do solo, por entre a nova esmeraldina das vertentes e das pradarias: estrelas, cálices, campanas e outras formas menos regulares, enchendo com o seu perfume seco o ar abrasado pelo sol! Assomavam lícnides alpinas e amores-perfeitos selvagens em enormes quantidades, bem-me-queres, margaridas, prímulas amarelas e vermelhas – tudo muito maior e mais lindo do que Hans Castorp conhecia da planície, se é que ali prestara atenção à flora. Também se viam soldanelas balouçando as campanazinhas providas de pestanas, soldanelas azuis, purpúreas e rosadas, especialidade da região.

O jovem ia colhendo essas flores graciosas; levava ramalhetes ao sanatório, e isso numa intenção muito séria; não o fazia apenas para adornar o quarto, senão para se dedicar, como se propusera, a estudos rigorosamente científicos. Adquirira alguns apetrechos florísticos, um manual de botânica geral, uma pazinha de tamanho adequado para desenterrar as plantas, um herbário e uma lupa forte. Com isso se punha a trabalhar na sacada, já em trajes de verão, num dos ternos que trouxera consigo quando da sua chegada, o que também evidenciava que o ano em breve completaria o giro.

Havia flores frescas em diversos jarros sobre tudo que era mesa no interior do quarto, bem como na mesinha com a lâmpada, que se achava ao lado da excelente espreguiçadeira. Flores meio murchas, já um tanto débeis, mas ainda cheias de seiva, encontravam-se espalhadas pelo parapeito e pelo chão da sacada, enquanto outras, cuidadosamente desdobradas, iam sendo comprimidas por grandes pedras colocadas sobre duas folhas de mata-borrão, que lhes absorviam a umidade, para que Hans Castorp pudesse classificar os preparados ressequidos e achatados no seu álbum, onde os fixava com tiras de papel gomado. O jovem estava deitado, com os joelhos erguidos, uma perna sobre a outra, enquanto o manual aberto lhe repousava sobre o peito, com o dorso para cima, formando uma espécie de cumeeira. Mantinha o vidro espesso e polido da lupa entre os ingênuos olhos azuis e uma flor, cuja corola removera parcialmente com o canivete, a fim de poder melhor examinar o tálamo. Grandemente aumentado pela lente, o objeto parecia intumescer, assumindo extravagantes formas carnosas. Ali estavam as anteras a derramar da extremidade dos filamentos o pólen amarelo! Sobre o ovário eriçava-se o estilete canelado, e por meio de um corte longitudinal era possível ver o canalzinho por onde os grãos e os utrículos do pólen, boiando numa secreção açucarada, eram arrastados até a cavidade do gineceu. Hans Castorp contava, conferia e comparava; fazia estudos a respeito da estrutura e da posição das pétalas do cálice e da corola, tanto dos órgãos masculinos como femininos; confrontava aquilo que via com gravuras científicas e esquemáticas; verificava com satisfação a exatidão científica na estrutura das plantas que conhecia; passava, então, a determinar, com a ajuda de Lineu, aquelas cujos nomes ignorava, quanto à seção, ao grupo, à ordem, à série, à família e à espécie. Como dispusesse de muito tempo, conseguiu realizar alguns progressos na sistemática botânica, à base da morfologia comparativa. Abaixo da planta seca colada na página do herbário, escrevia numa bela caligrafia o nome latino que a ciência humanística galantemente lhe outorgara; a seguir acrescentava as peculiaridades características. Por fim mostrou tudo ao honrado Joachim, que ficou surpreso.

À noite, Hans Castorp contemplava os astros. Apossara-se dele o interesse pelo transcurso do ano, posto que já tivesse assistido na terra a mais de vinte voltas em torno do sol, sem nunca se importar com essas coisas. Se nós mesmos involuntariamente nos servimos de termos como “equinócio da primavera”, fizemo-lo em conformidade com a maneira de pensar do nosso herói, levando em conta as suas ocupações presentes. Pois dessa espécie eram os termini que nos últimos tempos ele gostava de empregar, novamente pasmando o primo pelos seus conhecimentos especializados.

– Agora o Sol se acha a ponto de entrar no signo de Câncer – disse, por exemplo, durante um passeio. – Você sabia disso? É o primeiro signo de verão do zodíaco; compreende? Depois, o Sol passará por Leão e por Virgem, em direção ao ponto do outono, um dos pontos equinociais, aonde chegará em fins de setembro, quando a sua posição voltará a coincidir com o equador do céu, como ocorreu recentemente em março, com a entrada do Sol no signo de Áries.

– Isso me escapou – respondeu Joachim, um tanto carrancudo. – Que sabedoria é essa? Signo de Áries? Zodíaco?

– Sim, senhor, o zodíaco, o círculo dos signos. As velhíssimas constelações: Escorpião, Sagitário, Capricórnio, etc. Não é possível não se interessar por isso. Há doze signos, como até você deve saber. Três para cada estação, os ascendentes e os descendentes, a órbita das constelações que o Sol perfaz. Acho isso grandioso! Imagine que os encontraram pintados no teto de um templo egípcio; era até um templo de Afrodite, nas proximidades de Tebas. Os caldeus também os conheciam; os caldeus, sabe? Aquele velho povo de magos, de origem árabe e semítica, sumamente versado em astrologia e em profecias. Também eles já estudaram o cinturão celeste, por onde se movimentam os planetas, e subdividiram-no nesses doze signos, os dodecatemoria, tais como nos foram transmitidos. É notável! Isso é a humanidade!

– Agora você já diz “humanidade”, como Settembrini.

– Sim, como ele, ou talvez de modo um pouco diferente. A gente deve aceitá-la assim como ela é, e de qualquer maneira trata-se de uma coisa impressionante. Penso nos caldeus com grande simpatia, quando fico deitado, olhando os planetas que eles também já conheciam. Verdade é que não conheciam todos. Urano foi descoberto só recentemente, por meio do telescópio, faz cento e vinte anos.

– Recentemente?

– Pois, sim, é o que chamo “recentemente”, em comparação com os três mil anos decorridos desde a época deles. Mas quando estou na minha cadeira, contemplando os planetas, esses três mil anos, por sua vez, transformam-se em “recentemente”, e eu me recordo intimamente dos caldeus, que também os viram e pensaram à sua maneira a respeito deles. E isso é a humanidade.

– Muito bem. Você está revolvendo idéias grandiosas no seu cérebro.

– Você diz “grandiosas” e eu as chamo “íntimas”. Depende do ponto de vista... Mas, quando o Sol entrar no signo de Libra, daqui a três meses, aproximadamente, os dias voltarão a ser mais curtos, de forma que o dia e a noite serão iguais. E mais tarde continuarão diminuindo, até a época do Natal, como você sabe. Mas não se esqueça de que os dias aumentarão novamente, enquanto o Sol passar pelos signos de inverno, Capricórnio, Aquário, Peixes, pois o ponto da primavera torna então a aproximar-se, como já o fez três mil vezes desde os tempos dos caldeus, e os dias prosseguirão aumentando, até daqui a um ano, quando chegar de novo o princípio do verão.

– Claro!

– Nada de claro! Em realidade, isso não passa de uma ilusão. Durante o inverno, aumentam os dias, e quando chega o mais longo, em 21 de junho, com o início do verão, já começa a descida, voltam a diminuir, enquanto nos encaminhamos para o inverno. Isso lhe pareceu “claro”, mas quem faz abstração dessa tal “clareza” passa por momentos de angústia e pavor e sente necessidade de agarrar-se em qualquer coisa firme. É como se algum espírito brincalhão tivesse disposto o mundo de tal forma que ao princípio do inverno começasse em realidade a primavera, e ao início do verão, o outono... Você tem a impressão de que lhe pregam uma peça, de que o fazem girar, mostrando-lhe a perspectiva de um ponto onde se dará meia-volta. Falar-se em voltas, quando se anda num círculo! Ora, o círculo consta de um sem-número de pontos em que se muda de direção. As voltas não podem ser medidas. Não há rumo que persista, e a eternidade não é uma linha reta, mas um carrossel.

– Pare com isso!

– Festejos de solstício! – exclamou Hans Castorp. – Solstício de verão! Fogueiras acesas nas montanhas e cirandas dançadas de mãos dadas ao redor das labaredas erguidas! Nunca vi isso, mas ouvi dizer que é assim que fazem os homens primitivos, quando celebram a primeira noite de verão, com a qual se inicia o outono, essa hora meridiana e esse ponto culminante do ano, donde, então, parte a descida. Dançam, giram e exultam. De que exultam, na sua primitividade? Você é capaz de compreendê-los? Por que sentem essa alegria desenfreada? Será porque o caminho começa a descer, em direção às trevas, ou talvez porque subiram até esse momento e agora se acham em cima, no ponto da inflexão inevitável, que é a noite da plenitude do verão, o apogeu, mesclado de depressão e altivez? Chamo as coisas pelo seu nome, com as palavras que me ocorrem. É uma presunção melancólica ou uma melancolia presumida o que faz os homens primitivos exultar e dançar em torno das chamas. Agem assim por puro desespero, se você me permite essa expressão, em homenagem ao círculo falaz e à eternidade sem rumo duradouro, na qual tudo se repete.

– Não permito nada – resmungou Joachim. – Por favor, não me meta nessa história! São assuntos meio estrambólicos esses com que você se ocupa à noite, durante o repouso.

– Pois é. Não quero negar que você emprega o seu tempo de um modo mais vantajoso, quando estuda a sua gramática russa. Em breve dominará perfeitamente esse idioma. Olhe, rapaz, isso será muito útil para você, se um dia houver uma guerra, o que queira Deus não aconteça!

– Queira Deus não aconteça? Você fala como um civil. A guerra é necessária. Sem guerras, o mundo apodreceria dentro de pouco tempo, como disse Moltke.

– Bem, parece que ele tem tendência para isso – replicou Hans Castorp. Estava a ponto de falar novamente dos caldeus, que também haviam feito guerras e conquistado a Babilônia, se bem que fossem semitas e quase judeus. Mas, nesse momento, os primos repararam em dois senhores que, caminhando à sua frente, tinham sido interrompidos na sua conversa pelo som da voz de Hans Castorp e se voltavam para olhá-los.

Passou-se isso na rua principal, entre a estância balneária e o Hotel Belvedere, durante o caminho de regresso à “aldeia”. O vale estendia-se engalanado, num vestido de cores suaves, claras e alegres. O ar era delicioso. Uma sinfonia de prazenteiros aromas de flores campestres enchia a atmosfera pura, seca, impregnada de um sol luzidio.

Reconheceram Lodovico Settembrini, ao lado de um desconhecido. Parecia, porém, que o italiano, por sua vez, não os avistara ou não desejava encontrar-se com eles, pois desviou rapidamente o olhar e, gesticulando, absorveu-se na palestra com o companheiro; até se esforçou por avançar mais depressa. Mas, quando os primos, passando à direita dele, o saudaram com uma mesura humorística, fingiu surpresa enorme e extremamente agradável, exclamando “Sapristi!” e “Vejam só!”. No entanto, procurou dessa vez retardar o passo, para que os primos pudessem passar e distanciar-se, o que eles não compreenderam, ou melhor: não notaram, porque não viram nenhuma razão para isso. Sinceramente satisfeitos pelo reencontro depois de uma longa separação, detiveram-se a seu lado e apertaram-lhe a mão, informando-se sobre o seu estado de saúde e olhando, numa expectativa cortês, para o companheiro dele. Assim o forçaram a fazer o que, evidentemente, preferia evitar, mas o que se afigurava aos jovens a coisa mais natural e mais indicada do mundo, isto é, apresentá-los ao estranho. Fê-lo, finalmente, com uns gestos amáveis e com palavras joviais, quando o grupo já estava a ponto de se pôr em movimento, de maneira que os apertos de mão cruzaram-se diante do seu peito.

O desconhecido, que tinha aproximadamente a idade de Settembrini, era, como ficaram sabendo, o vizinho dele, o outro inquilino do alfaiate Lukacek. Segundo entenderam os jovens, chamava-se Naphta. Era um homem pequeno, magro, escanhoado e de uma fealdade tão chocante que quase merecia ser qualificada de corrosiva; causou espanto aos primos. Tudo nele parecia cortante: o nariz adunco que dominava o rosto, a boca de lábios, finos e comprimidos, as grossas lentes dos óculos de aros leves, atrás dos quais apontavam os olhos de um cinzento claro, até mesmo o silêncio que o homem guardava, e que fazia supor que também a sua maneira de falar seria incisiva e lógica. Não usava chapéu, como era costume ali, e andava sem sobretudo; suas roupas eram, aliás, muito bem-feitas: um terno de flanela azul-escura com listras brancas, de corte elegante, não exageradamente moderno, como verificaram os relances críticos e mundanos dos primos, que se encontraram com um olhar do pequeno Sr. Naphta, igualmente examinador, mas mais rápido e mais penetrante, que lhes deslizou pelos corpos. Não soubesse Lodovico Settembrini usar com tanta graça e dignidade o paletó hirsuto e as calças de tecido xadrez, sua pessoa teria destoado desfavoravelmente da aparência distinta dos seus companheiros. Tal não se dava, porém, de maneira alguma, porque as calças tinham sido passadas havia pouco, de modo que à primeira vista pareciam quase novas – obra de seu senhorio, como supuseram os primos. Se o feioso Naphta, pela qualidade e pela elegância mundana das suas roupas, achava-se mais próximo dos primos do que de seu vizinho, aproximavam-no deste e distanciavam-no dos jovens não somente a sua idade mais avançada, como também outra coisa que facilmente se deduzia da tez dos quatro homens: a dos primos era avermelhada e trigueira pelo efeito do sol, ao passo que a de Settembrini e de Naphta era pálida. No decorrer do inverno, o bronze do rosto de Joachim assumira um matiz ainda mais escuro, e o semblante de Hans Castorp luzia, rosado, sob a cabeleira loura. A ação dos raios, entretanto, não exercera efeito algum sobre a palidez latina do Sr. Settembrini, que formava um conjunto nobre com o bigode negro. E a pele do seu companheiro, embora de cabelos louros – eram de um louro cinzento, metálico e desbotado, e ele usava-os penteados para trás, alisados, desnudando a testa fugidia –, mostrava igualmente o tom baço e esbranquiçado das raças morenas. Dois dos quatro levavam bengala: Hans Castorp e Settembrini; Joachim não a apreciava, por razões militares, e Naphta, depois de apresentado, voltara imediatamente ajuntar as mãos atrás das costas. Eram mãos pequenas e delicadas, tais quais os pés, em harmonia com a sua estrutura. O fato de ele estar constipado e o modo débil, ineficaz como tossia, não causavam espécie.

Aquele ligeiro quê de perplexidade ou de agastamento que Settembrini mostrara ao ver os jovens foi vencido por ele com grande elegância. O italiano exibiu um humor radiante e acompanhou a apresentação de toda sorte de chistes. Designou, por exemplo, o Sr. Naphta como princeps scholasticorum. Afirmou que a alegria “campeava magnificamente na sala do seu peito”, como dizia Aretino; e isso era devido à primavera, a primavera que lhe enchia o coração. Os senhores sabiam – continuou – que ele tinha muita coisa que objetar ao mundo dali de cima e que já desabafara freqüentemente. Mas, glória a essa primavera alpina, que pelo menos passageiramente o reconciliava com todos os horrores dessa esfera! Nela não havia nada de tudo quanto a primavera da planície tinha de perturbador e de excitante. Nada de efervescência nas profundidades, nada de brumas carregadas de eletricidade! Só clareza, secura, aprazimento e graça austera! Isso harmonizava com seu gosto, era superbe.

Os quatro andavam numa fila irregular, lado a lado, onde o caminho o permitia; mas quando se encontravam com outros transeuntes, Settembrini, que formava a ala direita, tinha de descer da calçada, e às vezes se interrompia por um instante o alinhamento, porque um ou outro dentre eles ficava atrás ou dava um passo para o lado ora Hans Castorp, que caminhava entre o humanista e Joachim, ora Naphta, na extremidade esquerda. Naphta soltou uma breve risada, com voz sobre a qual o resfriado exercia um efeito de surdina, e que ao falar recordava o som de um prato rachado em que se bate com o nó do dedo. Apontando com a cabeça para o italiano, disse com um sotaque arrastado:

– Ouçam só o voltairiano, o racionalista. Elogia a natureza, porque mesmo nas condições mais fecundas ela não nos perturba com brumas místicas, mas conserva uma secura clássica. Como se diz umidade em latim?

– O humor – exclamou Settembrini por cima do ombro esquerdo –, o humor na concepção que o nosso professor tem da natureza, consiste no seguinte: à maneira de Santa Catarina de Siena, ele pensa nas chagas de Cristo, ao ver prímulas vermelhas.

Naphta retrucou:

– Isto seria antes engenhoso do que humorístico. Mas, pelo menos assim se confere espírito à natureza, e ela carece dele.

– A natureza – tornou Settembrini, em voz abafada, já não falando por cima do ombro, senão em direção ao chão – absolutamente não necessita de espírito. Ela própria é espírito.

– O senhor não se aborrece com o seu monismo?

– Ah, então confessa que é por amor à distração que o senhor divide o mundo em dois campos adversários e separa Deus e a natureza?

– Acho interessante que o senhor fale de amor à distração para designar aquilo que tenho em mente, quando digo “paixão” e “espírito”.

– Imaginem que o mesmo homem que usa palavras tão retumbantes para necessidades tão frívolas, às vezes me censura a retórica.

– O senhor insiste em afirmar que o espírito significa frivolidade. Mas ele não tem culpa de ser dualista por natureza. O dualismo, a antítese, é o princípio motor, o princípio passional, dialético e espirituoso. Ver o mundo dividido em dois campos adversários isto é espírito. Todo monismo é fastidioso. Solet Aristoteles quaerere pugnam.

– Aristóteles? Aristóteles transferiu a realidade das idéias gerais para dentro dos indivíduos. Isso é panteísmo.

– Errado! Se o senhor concede caráter substancial aos indivíduos, se procura distanciar do geral a essência das coisas e dar a ela um lugar no fenômeno individual como os bons aristotélicos Tomás e Boaventura então dissolve toda união entre o mundo e a idéia suprema; ele ficará fora do divino, e Deus é transcendental. Isto, meu senhor, é Idade Média clássica.

– Idade Média clássica! Acho deliciosa essa combinação de palavras.

– O senhor me desculpe, mas admito o conceito do clássico onde ele cabe, que dizer: cada vez que uma idéia alcança o seu ponto culminante. A Antiguidade nem sempre era clássica. Verifico no senhor uma antipatia contra... o movimento livre das categorias, contra o absoluto. Também não quer o espírito absoluto. O que quer é que o espírito seja sinônimo de progresso democrático.

Espero que estejamos de acordo quanto à convicção de que o espírito, por mais absoluto que seja, nunca deve tornar-se o advogado da reação.

– Ele é, porém, sempre o advogado da liberdade.

– Por que disse “porém”? A liberdade é a lei do amor humano, e não o niilismo e a maldade.

– Que evidentemente lhe causam medo.

Settembrini levantou a mão acima da cabeça. A discussão ficou em suspenso. Os olhos de Joachim passaram, perplexos, de um para outro interlocutor, ao passo que Hans Castorp, com as sobrancelhas alçadas, cravava o olhar no chão. Naphta falara de um modo cortante e apodítico, se bem que fosse ele quem se empenhara em prol da liberdade mais ampla. A sua maneira de contradizer, com os lábios crispados, e de comprimir imediatamente depois a boca, era sobremodo desagradável. Settembrini ora lhe resistira com respostas joviais, ora pronunciara as suas réplicas com um belo fervor, por exemplo quando exigira a unidade de certas concepções básicas. Agora, enquanto Naphta permanecia calado, começou o italiano a dar aos primos explicações a respeito da existência desse desconhecido, compreendendo a necessidade de alguns esclarecimentos que eles deviam experimentar depois de toda aquela disputa com Naphta. Este o deixou falar sem ligar importância ao assunto. O Sr. Naphta – explicou Settembrini, realçando, à maneira italiana, com a maior ênfase, a situação da pessoa por ele apresentada – era professor de línguas antigas nos últimos anos dos cursos do Fredericianum. Fazia cinco anos que seu estado de saúde o obrigara a morar ali e a convencer-se de que ele necessitava de uma permanência muito prolongada. Por isso abandonara o sanatório e estabelecera-se numa residência particular, justamente na casa do alfaiate Lukacek. O ensino secundário do lugar fora bastante inteligente para assegurar-se o concurso desse exímio latinista, ex-aluno de um seminário, como Settembrini se expressava um tanto vagamente. E o Sr. Naphta conferia grande brilho a esse estabelecimento... Numa palavra, o humanista elogiava muito o feioso Naphta, posto que este acabasse de travar com ele uma espécie de contenda abstrata e que essa discussão rixenta estivesse a ponto de reiniciar-se.

Com efeito, Settembrini passou nesse momento a dar ao Sr. Naphta explicações acerca dos primos. Nisso lembrou-se de que já antes lhe falara a respeito deles. Aquele era, pois, o jovem engenheiro “das três semanas”, no qual o Dr. Behrens encontrara um lugar úmido – disse ele – e ali se achava a esperança da organização do exército prussiano, o Tenente Ziemssen. Falou então da impaciência de Joachim e dos seus projetos de partida, acrescentando que, indubitavelmente, se julgaria mal o engenheiro se não se lhe atribuísse o mesmo desejo ardente de voltar ao seu trabalho. Naphta fez uma careta e disse:

– Os senhores têm um patrono eloqüente. Longe de mim pôr em dúvida a fidelidade da interpretação que ele acaba de dar aos seus pensamentos e desejos. Trabalho, sempre o trabalho! Esperem um pouco, logo começará a me tratar de inimigo da humanidade, “inimicus humanae naturae”, se eu me atrever a evocar tempos em que aquela clarinada não teria produzido o costumeiro efeito. Houve épocas em que o oposto do seu ideal era infinitamente mais estimado. Bernardo de Clairvaux, por exemplo, ensinava uma hierarquia da perfeição bem diferente daquela com que sonha o Sr. Lodovico. Querem conhecê-la? A categoria mais baixa achava-se no “moinho”; a segunda, no “campo”, e a terceira, a mais louvável – tape os ouvidos, Settembrini! – no “leito do repouso”. O moinho é o símbolo da vida terrena, e me parece bem escolhido como tal. O campo designa a alma do homem leigo, que é amanhada pelo sacerdote e pelo diretor espiritual. Essa categoria já é mais digna. No leito, porém...

– Basta! Já sabemos disso! – gritou Settembrini. – meus senhores, agora ele vai lhes explicar as finalidades e o uso da cama.

– Eu ignorava que o senhor era tão inocente, Sr. Lodovico. Quem viu como pisca o olho às moças... Onde está a sua ingenuidade pagã? A cama é o lugar da coabitação do amante com a amada, e como símbolo significa o isolamento contemplativo do mundo e da criatura, para os efeitos da união com Deus.

– Arre! Andate, andate! – exclamou o italiano, quase chorando. Todos se riram. Mas Settembrini acrescentou com gravidade:

– Ah, não, senhor! Eu sou europeu, sou do Ocidente. A sua hierarquia é puramente oriental. O Oriente abomina toda espécie de atividade. Lao-tsé ensina que o ócio é mais proveitoso do que qualquer outra coisa existente entre o céu e a terra. Se todos os homens cessassem de agir, haveria na terra a mais perfeita calma e felicidade. É essa a união de que fala o senhor.

– Não diga! E a mística ocidental? E o quietismo que conta com Fénelon entre os seus adeptos e doutrina que toda ação representa um erro, já que a veleidade de ser ativo ofende a Deus, o único que deve agir? Cito as proposições de Molinos. Tenho a impressão de que a possibilidade espiritual de encontrar a salvação no repouso se acha universalmente difundida entre os homens.

Nesse ponto, Hans Castorp interveio. Com a coragem que confere a singeleza, intrometeu-se na discussão, dizendo, enquanto seus olhos fitavam o vazio:

– Contemplação, isolamento. Essas coisas têm o seu valor. Tudo isso soa razoável. Nós, aqui em cima, vivemos num isolamento bastante intenso, indiscutivelmente. A cinco mil pés de altura, achamo-nos deitados nas nossas espreguiçadeiras extraordinariamente cômodas; os nossos olhares abaixam-se sobre o mundo e as criaturas, e então nos ocorre toda espécie de idéias. A dizer verdade, e pensando bem, a cama, ou melhor, a espreguiçadeira me fez progredir bastante nos últimos dez meses e me proporcionou mais idéias do que o moinho, na planície, no curso de todos os anos passados. Isso não se pode negar.

Settembrini encarou-o com os olhos negros onde assomava um brilho melancólico. – Engenheiro! – disse em voz opressa. – Engenheiro! – E pegando Hans Castorp pelo braço reteve-o um momento, como se quisesse falar com ele em particular, nas costas dos outros.

– Quantas vezes não lhe disse que uma pessoa deve saber quem é e pensar do modo que lhe convém? Não obstante todas as proposições, cabem ao homem ocidental a razão, a análise, a ação e o progresso, não a cama onde se espreguiça o monge.

Naphta, que ouvira as palavras do italiano, disse, voltando-se para trás:

– O monge! Aos monges deve-se a cultura do solo europeu. Graças a eles, a Alemanha, a França e a Itália deixaram de estar cobertas de mato virgem e de pântanos e nos fornecem trigo, frutas e vinho. Os monges, meu caro senhor, trabalharam, e trabalharam bastante...

– Ebbè, pois então!

– Perdão! O trabalho do religioso não tinha a sua finalidade em si, quer dizer, não era nenhum narcótico, nem tampouco se empenhava em fazer progredir o mundo ou em obter vantagens comerciais. Era um exercício puramente ascético, uma parte de disciplina expiatória, um meio para conseguir a salvação. Proporcionava uma proteção contra a carne e servia para exterminar a sensualidade. Seu caráter – permita que eu saliente isso – absolutamente não era social. Era o mais imaculado egoísmo religioso.

– Fico-lhe muito grato pelos esclarecimentos que me deu e folgo em ver que a bênção do trabalho se impõe até contra a vontade do homem.

– Sim, senhor, contra a intenção dele. Nesse ponto, descobrimos nada menos que a diferença entre o útil e o humano.

– Descubro antes de tudo, e com indignação, que o senhor volta a dividir o mundo em dois princípios.

– Lastimo ter incorrido no seu desagrado, mas é preciso separar e classificar as coisas e manter a idéia do Homo Dei livre de elementos impuros. Os bancos e o ofício dos cambistas são uma invenção de vocês, os italianos; que Deus lhes perdoe! Mas os ingleses inventaram a sociologia econômica, e isso o gênio do homem nunca lhes poderá perdoar.

– Ora, o gênio da humanidade inspirou também os grandes economistas daquelas ilhas... O senhor queria dizer alguma coisa, engenheiro?

Hans Castorp afirmou que não, mas pôs-se a falar, sem embargo, e tanto Naphta como Settembrini escutaram-no com certa curiosidade.

– Acho, Sr. Naphta, que o senhor deve simpatizar com a profissão do meu primo e aprovar a pressa que ele tem de exercê-la novamente... Quanto a mim, sou civil cem por cento, e meu primo censura-me isso freqüentemente. Nem sequer fiz o serviço militar e sou inteiramente adepto da paz. De vez em quando tenho até chegado a pensar que eu poderia facilmente tornar-me sacerdote. Pergunte a meu primo se não lhe falei às vezes nesse sentido. Mas, abstraindo minhas inclinações pessoais – talvez nem seja precisamente necessário abstrai-las por completo –, tenho muita compreensão e simpatia pela classe militar. Esse ofício tem de fato um lado barbaramente sério, um lado “ascético”, com a sua licença – o senhor empregou esse termo há poucos instantes –, e o soldado deve sempre estar preparado para entrar em contato com a morte... com a qual, em última análise, também o sacerdócio tem que lidar; de que mais se ocupariam senão disso? Daí provém a bienséance da classe militar, e a hierarquia, a obediência, e o pundonor espanhol, se me permitem essa .expressão. Nesse caso é indiferente se alguém usa o colarinho engomado da farda ou uma golilha. Isso vem a dar no mesmo, no “ascetismo”, como o senhor o definiu com tanta precisão... Não sei se consegui formular as idéias que...

– Como não – confirmou Naphta, lançando um olhar em direção a Settembrini, que fazia girar a bengala e contemplava o céu.

– E por isso penso eu – continuou Hans Castorp – que as inclinações de meu primo Ziemssen deveriam ser simpáticas ao senhor, segundo tudo quanto acaba de dizer. Não me refiro “ao trono e ao altar” e a outros binômios desse gênero, por meio dos quais certa gente, pessoas exclusivamente ordeiras, bem-intencionadas e nada mais, costumam justificar a solidariedade. Mas quero dizer que o trabalho da classe militar, isto é, o serviço – “serviço” é bem o termo adequado nesse caso –, é realizado sem nenhum interesse em vantagens comerciais e não tem nenhuma relação com a “sociologia econômica”, da qual falou o senhor. Por isso, os ingleses têm muito poucos soldados, alguns para a Índia, alguns em casa, para os desfiles...

– Não adianta continuar, engenheiro – interrompeu-o Settembrini. – A existência militar – digo isto sem a mínima intenção de contrariar o nosso amigo, o tenente – é insustentável do ponto de vista espiritual, por ser meramente formal, sem conteúdo próprio. O protótipo do soldado é o lansquenete, o mercenário que se alista tanto por esta como por aquela causa. Numa palavra, houve os soldados da Contra-Reforma espanhola, os soldados dos exércitos da Grande Revolução, os napoleônicos, os garibaldinos, os prussianos. Vamos falar novamente no soldado quando eu souber por que causa ele se bate.

– Mas o fato de que se bate – replicou Naphta – permanece uma peculiaridade evidente da sua classe. Nisso temos que concordar. É possível que ela não seja suficiente para tornar essa classe “sustentável do ponto de vista espiritual”, no sentido que o senhor dá a essas palavras, mas coloca-a numa esfera que escapa por completo à concepção positiva que o burguês tem da vida.

– Aquilo que o senhor acha por bem qualificar de “concepção positiva do burguês” – retrucou o Sr. Settembrini, da borda dos lábios, entesando as comissuras da boca sob o bigode ondulante, enquanto o pescoço fazia um estranho movimento de parafuso, como para escapar oblíqua e bruscamente do colarinho –, o que o senhor assim qualifica estará sempre disposto a defender de todas as formas possíveis as idéias da razão e da moral e a sua influência legítima sobre as almas jovens e vacilantes.

Fez-se silêncio. Os jovens olhavam diante de si, perplexos. Depois de ter dado alguns passos, disse Settembrini, cuja cabeça e pescoço tinham voltado à posição normal:

– Não se admirem. Esse senhor e eu temos freqüentes discussões, mas tudo se passa amigavelmente e sobre o fundamento de muitas idéias comuns.

Fazia bem ouvir isso. Era um modo de falar cavalheiresco e humano, da parte do Sr. Settembrini. Mas Joachim, igualmente cheio de boas intenções e empenhado em dar à conversa um cunho inofensivo, disse como que coagido por alguma coisa mais forte do que a sua vontade:

– Falávamos casualmente da guerra, meu primo e eu, enquanto íamos atrás dos senhores.

– Foi o que ouvi – respondeu Naphta. – Apanhei essa palavra e me voltei. Estavam tratando de política? Examinavam a situação mundial?

– Qual nada! – riu-se Hans Castorp. – Como chegaríamos a fazer isso? A profissão de meu primo impede-o de se preocupar com a política, e eu renuncio espontaneamente a discuti-la, porque nada entendo dela. Desde que estou aqui não abri um único jornal...

Settembrini, como já fizera em outra ocasião, achou censurável essa indiferença. Demonstrou imediatamente estar a par dos acontecimentos importantes, que julgou com otimismo, uma vez que as coisas estavam tomando um rumo favorável para a civilização. A atmosfera geral da Europa estava cheia de pensamentos pacíficos e de planos de desarmamento. A idéia democrática achava-se em marcha. O italiano assegurou ter recebido informações confidenciais, segundo as quais os Jovens Turcos acabavam de ultimar os preparativos para uma empresa revolucionária. A Turquia como Estado nacional e constitucional – que triunfo do espírito humano!

– A liberalização do Islã! – escarneceu Naphta. – Essa é boa! O fanatismo esclarecido; ótimo! A propósito, esse assunto interessa ao senhor – acrescentou, dirigindo-se a Joachim. – Se Abdul Hamid cair, terminará a influência alemã na Turquia, e a Inglaterra vai arvorar-se em protetora... Convém que os senhores tomem muito a sério as relações e as informações do nosso Settembrini – prosseguiu, e também isso soava um tanto impertinente, uma vez que ele próprio parecia julgá-los inclinados a não prezar devidamente o italiano. – Ele anda muito bem informado sobre as questões nacionais-revolucionárias. Na terra dele há pessoas que mantêm muito boas relações com a comissão inglesa dos Bálcãs. Mas que será dos convênios de Reval, Sr. Lodovico, se os seus turcos progressistas levarem a melhor? Eduardo VII já não poderá conceder aos russos a abertura dos Dardanelos e se a Áustria, apesar de tudo, se decidir a fazer uma política balcânica ativa...

– Sempre as suas profecias sinistras! – ripostou Settembrini. – Nicolau ama a paz. A ele se devem as conferências de Haia, que representam feitos morais de primeira ordem.

– Ora, a Rússia precisava obter algum descanso, depois do seu pequeno desastre no Oriente.

– Acho muito feio, da sua parte, zombar do desejo de aperfeiçoamento social que sente a humanidade. O povo que contrariasse um esforço desse gênero indubitavelmente cairia no ostracismo moral.

– De que serviria a política se não desse a uns e outros uma oportunidade para se comprometer moralmente?

– O senhor está adotando a causa do pangermanismo?

Naphta encolheu os ombros, cujo nível era um tanto desigual. Além da sua fealdade parecia mesmo um pouco torto. Não se dignou responder. Settembrini concluiu:

– Em todo caso é cínico o que acaba de dizer. No generoso empenho que faz a democracia para impor-se internacionalmente, o senhor quer ver um mero ardil político...

– E o senhor deseja que eu encontre em tudo isso idealismo ou até religiosidade? Trata-se dos derradeiros e muito débeis arrancos de um restinho de instinto de auto-conservação, que ainda sobra a um já condenado sistema do mundo. A catástrofe virá e deve vir; está avançando por todos os caminhos e de todos os modos. Considere, por exemplo, a política britânica. A necessidade que sente a Inglaterra de garantir a esplanada da fortaleza indiana é legítima. Mas quais são as conseqüências? Eduardo sabe tão bem como o senhor e eu que os governantes de Petersburgo têm de desforrar-se do revés sofrido na Manchúria e precisam urgentemente desviar o perigo da revolução. Mesmo assim orienta – e não tem outra escolha – o expansionismo russo em direção à Europa, desperta rivalidades adormecidas entre Petersburgo e Viena...

– Ora, Viena! O senhor se preocupa com esse obstáculo ao progresso do mundo provavelmente por reconhecer, no império caduco de que ela é a capital, a múmia do Santo Império Romano-Germânico.

– E eu acho que o senhor é russófilo, provavelmente devido a uma simpatia humanística pelo césaro-papismo.

– Senhor, até mesmo do Kremlin a democracia pode esperar mais do que da corte de Viena, e é vergonhoso para o país de Lutero e de Gutenberg que...

– Talvez não seja somente vergonhoso, mas também estúpido. No entanto, tal estupidez é igualmente um instrumento da fatalidade...

– Ah, deixe-me em paz com a fatalidade! Basta que a razão humana queira ser mais forte do que ela, e logo o consegue.

– Não se pode querer senão o destino. A Europa capitalista quer o seu.

– Quem não abomina a guerra com suficiente intensidade acredita na sua vinda.

– A sua abominação é logicamente abrupta, enquanto não tomar o próprio Estado como ponto de partida.

– O Estado nacional é o princípio deste mundo, que o senhor gostaria de atribuir ao Diabo. Mas torne as nações livres e iguais, proteja as pequenas e fracas contra a opressão, faça justiça, crie fronteiras nacionais...

– A fronteira do Brenner, já sei. A liquidação da Áustria! Se eu ao menos soubesse como o senhor pretende realizar isso sem uma guerra...

– E eu gostaria de saber quando e onde condenei a guerra nacional.

– Mas parece-me que ouvi...

– Não, senhor, posso confirmar as palavras do Sr. Settembrini – interveio Hans Castorp, que acompanhara a discussão, caminhando com a cabeça inclinada para o lado e deixando o olhar atento passar de um a outro interlocutor. – Meu primo e eu tivemos diversas vezes o prazer de conversar com ele sobre esse assunto e outros semelhantes; isto é, em realidade limitamo-nos a escutar, enquanto ele desenvolvia e formulava as suas opiniões. E assim sou capaz de confirmar, e também meu primo deve ainda lembrar-se, que o Sr. Settembrini mais de uma vez nos falou com grande entusiasmo do princípio do movimento, da rebelião e do aperfeiçoamento do mundo, que, por natureza, não é um princípio muito pacífico, segundo me parece. E ele afirmava que esse princípio teria ainda de vencer grandes obstáculos antes de triunfar em toda parte e antes de se realizar a república universal, grande e feliz. Eram essas as suas palavras, embora, naturalmente, se expressasse de uma forma muito mais plástica e mais literária do que eu; isso se entende. Mas uma coisa eu sei com absoluta certeza e até gravei textualmente na minha memória, porque me assustei na minha qualidade de fanático civil; foi quando disse que esse dia havia de chegar, se não pelos pés das pombas, sobre as asas das águias. O que me causava espanto eram as asas das águias; disso me recordo ainda. Acrescentou que era preciso aniquilar a Áustria, para abrir caminho à felicidade. Não se pode, portanto, dizer que o Sr. Settembrini reprove a guerra em si. Tenho razão, Sr. Settembrini?

– Mais ou menos – disse o italiano, laconicamente, desviando o rosto e brandindo a bengala.

– Que lástima! – sorriu Naphta, malicioso. – O seu próprio discípulo apresenta as provas das tendências bélicas do senhor. Assument pennas ut aquilae...

– Até Voltaire admitiu a guerra civilizadora e recomendou a Frederico II a guerra contra os turcos.

– Em vez de fazê-la, este se aliou a eles, ah, ah! E depois, a república universal! Não me atrevo a perguntar o que será dos princípios do movimento e da rebelião uma vez alcançadas a felicidade e a união. Nesse instante, a rebelião se tornaria um crime...

– O senhor sabe perfeitamente, e também esses jovens sabem, que se trata de um progresso da humanidade, concebido como infinito.

– Mas todo movimento é circular – objetou Hans Castorp. – No espaço e no tempo; é isso o que nos ensinam as leis da conservação da massa e da periodicidade. Recentemente, meu primo e eu conversamos a esse respeito. Será que se pode, em presença de um movimento fechado, sem rumo constante, ainda falar de um progresso? Quando fico deitado, à noite, e contemplo o Zodíaco, isto é, a metade que é visível, e penso naqueles povos antigos, cheios de sabedoria...

– Engenheiro, ao senhor não convém cismar e devanear – interrompeu-o Settembrini. – Cumpre-lhe confiar-se decididamente aos instintos dos seus anos e da sua raça, que devem obrigá-lo à atividade. Também a sua formação científica deve associá-lo à idéia do progresso. O senhor vê como em períodos indeterminados a vida perfez uma evolução que a elevou desde o infusório até o homem. Diante disso não pode duvidar de que haja ainda infinitas possibilidades de aperfeiçoamento a se abrirem ao homem. Mas, se o senhor insistir na matemática, conduza a sua marcha circular de perfeição em perfeição e conforte-se com o conceito do século XVIII, segundo o qual o homem, originalmente bom, feliz e perfeito, foi depravado e corrompido somente pelos erros sociais e, graças a um trabalho crítico na estrutura da sociedade, voltará a ser bom, feliz e perfeito...

– O Sr. Settembrini deixa de acrescentar – aparteou Naphta – que o idílio de Rousseau é uma trivialização racionalista da doutrina eclesiástica da fase primitiva em que o homem era livre do Estado e do pecado, a fase inicial da proximidade de Deus e da relação filial com Ele, que nos incumbe reencontrar. O restabelecimento da Cidade de Deus, porém, após a dissolução de todas as formas terrenas, acha-se situado no ponto em que se tocam a terra e o céu, o que é acessível aos sentidos e o que os ultrapassa. A salvação é transcendental, e quanto à sua república universal capitalista, meu caro doutor, é bastante estranho ouvir o senhor falar de “instinto”, referindo-se a ela. A tendência instintiva toma inteiramente o partido do nacionalismo, e o próprio Deus implantou nos homens o instinto natural que induz os povos a se separarem uns dos outros, formando Estados diferentes. A guerra...

– A guerra – gritou Settembrini. – Até a guerra, meu caro, já teve que servir ao progresso, como o senhor não pode deixar de admitir, ao lembrar-se de certos acontecimentos da sua época preferida; falo das Cruzadas. Essas guerras civilizadoras favoreceram de modo sumamente feliz as relações entre os povos, no que diz respeito ao intercâmbio econômico e político-comercial. Reuniram a humanidade ocidental sob o signo de uma idéia.

– O senhor mostra-se bem tolerante para com a idéia. Em compensação, empregarei muita cortesia numa pequena retificação: as Cruzadas, assim como a intensificação comercial que produziram, absolutamente não exerceram uma influência internacionalista. Pelo contrário, ensinaram os povos a se distinguirem entre si e estimularam fortemente o desenvolvimento da idéia do Estado nacional.

– É exato no que se refere à relação entre os povos e o clero. Sim, senhor, naqueles tempos começou a firmar-se a consciência do Estado nacional, contra a presunção hierárquica...

– E, todavia, isso que o senhor chama de presunção hierárquica é apenas a idéia da união dos homens sob o signo do espírito.

– Já conhecemos esse espírito. Não precisamos dele, obrigado.

– É lógico que o senhor, com a sua mania nacionalista, abomine o cosmopolitismo da Igreja que triunfa sobre o mundo. Eu gostaria apenas de saber como tenciona conciliar isso com o horror que sente com relação à guerra. O seu culto do Estado, à maneira antiga, deve fazer do senhor um paladino da concepção positiva do direito, e como tal...

– Chegamos a falar do direito? No direito dos povos, meu caro senhor, continua viva a idéia do direito natural e da razão universalmente humana...

– Qual! O seu direito dos povos é outra trivialização rousseauniana do jus divinum, que nada tem que ver com a natureza nem com a razão, mas se baseia na revelação...

– Deixemos de discutir a terminologia, professor! Continue o senhor tranqüilamente a chamar de jus divinum o que eu reverencio sob os nomes de direito natural e direito dos povos. O essencial é que acima dos direitos positivos dos Estados nacionais se eleva um outro direito, superior e geral, permitindo resolver, mediante arbitragem, as questões de interesses em litígio.

– Arbitragens! Ora! Um tribunal de árbitros burgueses, que decide acerca das questões da vida, descobre a vontade de Deus e determina o curso da história! Bem, aí temos os pés das pombas. E onde ficam as asas das águias?

– A moralidade burguesa...

– Olhe, a moralidade burguesa não sabe o que quer. De um lado gritam pelo combate à diminuição da natalidade e exigem que se reduzam as despesas necessárias para a educação dos filhos e para o seu preparo profissional. E do outro lado, estamos sufocando no meio da multidão; todas as profissões estão de tal modo abarrotadas, que a luta pelo pão de cada dia ofusca os horrores de todas as guerras passadas. Praças arborizadas e cidades ajardinadas! Fortalecimento da raça! Mas para que o fortalecimento, quando a civilização e o progresso desejam que não haja mais guerras? A guerra seria o remédio contra tudo e para tudo. Para o fortalecimento e mesmo contra a diminuição da natalidade.

– O senhor está brincando. Isso já deixa de ser sério. A nossa discussão está se desintegrando, e o faz no momento oportuno. Chegamos! – disse Settembrini, e com a sua bengala mostrou aos primos a casinha, diante de cuja cancela acabavam de parar. Estava situada perto da entrada da “aldeia”, à beira da estrada, da qual a separava apenas um estreito jardim. Era de aparência modesta. Uma parreira silvestre, brotando de raízes desnudas, rodeava o portão da casa e estendia um braço retorcido ao longo do muro, na direção da janelinha do rés– do– chão, à direita, onde se achava a vitrine de um pequeno armarinho. O rés-do-chão pertencia ao “merceeiro”, como explicou Settembrini. A habitação de Naphta ficava no primeiro andar, ao lado da oficina do alfaiate, e ele, Settembrini, estava domiciliado na água-furtada, onde tinha um estúdio quieto.

Com uma amabilidade surpreendente e acentuada, Naphta expressou a esperança de que esse encontro fosse seguido por muitos outros. – Não deixem de visitar-nos – pediu. – Eu diria: venham visitar-me, não tivesse o Dr. Settembrini direitos mais antigos à amizade dos senhores. Apareçam quando quiserem, cada vez que tiverem vontade de palestrar um pouco. Aprecio muito o intercâmbio com a juventude, e também não me falta por completo a tradição pedagógica... Se o nosso grão-mestre adjunto – e apontou para Settembrini – pretende conferir ao humanismo burguês o monopólio da capacidade e da vocação pedagógica... é preciso desmenti-lo. Até breve!

O italiano fez algumas objeções. Havia certas dificuldades, segundo disse. Os dias que o tenente ainda passaria ali em cima estavam contados, e o engenheiro, sem dúvida, redobraria o seu zelo na observação do regime, para que pudesse segui-lo o mais depressa possível e partir para a planície.

Os jovens concordaram com ambos, primeiro com um e depois com o outro. Acabavam de aceitar, com uma mesura, o convite de Naphta, e reconheceram, momentos após, a inteira razão dos argumentos de Settembrini. Dessa forma, tudo ficou no ar.

– Como é que ele o chamou? – perguntou Joachim, enquanto subiam pela curva da estrada que conduzia ao Berghof.

– Eu entendi “grão-mestre adjunto” – respondeu Hans Castorp. – Estou justamente pensando a respeito disso. Deve tratar-se de algum gracejo. Eles usam entre si uns títulos esquisitos. Settembrini intitulou Naphta de princeps scholasticorum, o que também não está mal. Acho que os escolásticos eram os sábios teólogos da Idade Média, filósofos dogmáticos, se me lembro bem. De fato mencionaram diversas vezes a Idade Média, e com isso me recordei de uma observação que Settembrini fez logo no primeiro dia: que havia aqui em cima muita coisa que lhe parecia medieval. Viemos a falar nisso por causa do nome de Adriática von Mylendonk... E lhe agradou o homem?

– O baixinho? Não muito. Ele disse certas coisas de que gostei. Claro que as arbitragens não passam de poltronaria. Mas o próprio homem não é do meu gosto; que me adianta que alguém diga coisas bem ditas, se ele mesmo é um sujeito duvidoso? E você não pode negar que esse Naphta é um tipo suspeito. Aquela história do lugar da coabitação é indubitavelmente escabrosa. Além disso, ele tem um nariz de judeu; você não viu? Só os semitas têm esses corpos minguados. Será que você pretende seriamente visitar esse indivíduo?

– Naturalmente vamos visitá-lo – declarou Hans Castorp. – Quanto ao físico minguado, você julga como militar. Olhe, os caldeus tinham o mesmo tipo de nariz e todavia sabiam muito bem a quantas andavam, não somente em matéria de ciências ocultas. O Naphta também tem qualquer coisa de ocultista. Ele me interessa bastante. Não quero afirmar que já possa formar uma opinião a seu respeito, mas se a gente se encontrar mais amiúde com ele, talvez chegue a entendê-lo, e não acho impossível que a nossa inteligência em geral saia lucrando com isso.

– Ora, rapaz, você torna-se cada vez mais inteligente aqui em cima, com a sua biologia e botânica e com os seus pontos de inflexão inevitáveis. E desde o primeiro dia se preocupou com o “tempo”. Mas me parece que estamos aqui para ficar mais sadios e não mais sábios; mais sadios e completamente sãos, até que enfim nos devolvam a liberdade e nos enviem à planície como curados.

– “Nas montanhas vive a liberdade” – cantarolou Hans Castorp frivolamente. – Diga-me primeiro o que significa a liberdade! – acrescentou, falando. – Naphta e Settembrini também discutiram isso e não chegaram a um acordo. “A liberdade é a lei do amor aos homens”, diz Settembrini, e isso me lembra o seu avô, o carbonário. Mas, por mais corajoso que fosse o carbonário e por mais corajoso que seja o nosso amigo Settembrini...

– Pois é, ele ficou furioso quando se falou da coragem pessoal...

– ...creio contudo que ele tem medo de certas coisas que o pequeno Naphta não teme; compreende? Na liberdade e na coragem dele acho que há muita bobagem. Você acredita que Settembrini teria bastante valor de se perdre ou même de se laisser dépérir?

– Por que se mete a falar francês?

– Porque... Bem, a atmosfera aqui é tão internacional... Não sei qual dos dois deve gostar mais dela, se Settembrini, por causa da república universal burguesa, ou se Naphta, com sua cosmópole hierárquica. Prestei muita atenção, como vê, mas não consegui me esclarecer sobre isso. Pelo contrário, tive a impressão de que aquela discussão virou uma bruta mixórdia.

– É sempre assim. Você pode ter certeza de que dos bate-bocas e das trocas de opiniões sai somente confusão. Eu já lhe disse: o que importa não são as opiniões que um homem tem, mas sim a questão de saber se é ou não é um tipo decente. O melhor é não ter opinião e cumprir o dever.

– Pois sim, você pode falar desse modo porque é um lansquenete e leva uma existência puramente formal. Mas comigo é diferente: sou civil e me sinto, por assim dizer, responsável. E me irrita ver tamanha confusão quando um prega a república universal, internacional, e abomina a guerra por princípio, mas ao mesmo tempo é tão patriota que reclama a todo custo a fronteira do Brenner, ao passo que o outro considera o Estado uma obra do Diabo e decanta a união geral que surge no horizonte, mas no próximo instante defende o direito do instinto natural e zomba das conferências de paz. Temos de visitá-los para formar uma opinião. Você diz, na verdade, que estamos aqui não para nos tornar mais inteligentes, mas para melhorar nossa saúde. Mas, meu caro, acho que deve ser possível combinar essas duas coisas. Caso contrário, você chegaria a dividir o mundo, e isso não pode dar certo.

 

         Da Cidade de Deus e da redenção pelo mal

No seu compartimento da sacada, Hans Castorp classificava uma planta, que se achava vegetando em numerosos lugares desde que começara o verão astronômico e os dias se tornavam mais curtos. Tratava-se da aqüilégia, espécie de ranunculácea que cresce em forma de arbusto, de longo caule, com flores azuis ou violetas, mas também castanho-avermelhadas, e com folhas bastante amplas, de aspecto herbáceo. A planta encontrava-se aqui e ali, mas abundava especialmente naquele sítio tranqüilo onde Hans Castorp a vira pela primeira vez, fazia quase um ano: o remoto desfiladeiro no meio do bosque atravessado pelo torrentoso e murmurante regato, com a pequena ponte e o banquinho onde terminara o seu passeio prematuro, arriscado e prejudicial, e ao qual voltava de vez em quando.

Não ficava longe para quem se encaminhasse ali com um espírito menos empreendedor do que revelara Hans Castorp naquele dia. Partia-se da meta final das corridas de trenó, na “aldeia”, e subia-se parte da encosta trilhando a vereda através do bosque, cujas pontes de madeira transpunham a pista de trenó, que descia da Schatzalp. Sem perda de tempo devido a desvios, cantigas e descansos, era possível alcançar o recanto pitoresco em aproximadamente vinte minutos. Quando Joachim se via forçado a ficar em casa, em virtude de certas obrigações do serviço – exames, radiografias, análises de sangue, injeções ou pesagens – Hans Castorp aproveitava dias de bom tempo para caminhar até lá, depois do segundo café da manhã, e às vezes já depois do primeiro; acontecia também que ele ocupasse as horas entre o chá da tarde e o jantar numa visita ao seu lugar predileto, a fim de passar algum tempo sentado no banco onde outrora o acometera a violenta hemorragia. Com a cabeça inclinada, escutava então o marulhar da torrente e contemplava a paisagem a rodeá-lo, com a multidão de aquilégias azuis que novamente floresciam no fundo do vale.

Era só para isso que ia lá? Não! Deixava-se ficar no banco, para estar sozinho, para entregar-se às suas recordações, para recapitular as impressões e as aventuras e para refletir sobre todas essas coisas. Eram numerosas, variadas e ao mesmo tempo difíceis de coordenar, pois afiguravam-se-lhe multiplamente entrelaçadas e confundiam-se a tal ponto que mal se podia distinguir a realidade dos meros pensamentos, devaneios e produtos da imaginação. Mas todas eram de natureza aventurosa, tanto que a sua lembrança fazia parar ou martelar o coração do jovem, que continuava emocionável como sempre, desde o primeiro dia que passara ali em cima. Ou provinha, porventura, a estranha agitação do seu coração impulsivo do simples raciocínio de que, nesse mesmo lugar onde, num instante de vitalidade reduzida, lhe aparecera Pribislav Hippe em carne e osso, a aqüilégia estava em flor, não “ainda”, mas “novamente” e que as projetadas “três semanas” dentro em breve se transformariam num ano inteiro?

Por outro lado, já não lhe sangrava o nariz ao sentar-se no banco, ao lado do regato torrentoso; essa fase já passara. Sua aclimatação, cujas dificuldades Joachim lhe predissera logo no começo, e que realmente se mostrara um tanto penosa, realizara progressos; depois de onze meses podia ser considerada completa, e nada mais se devia esperar nessa direção. As reações químicas do seu estômago tinham-se regularizado e adaptado. O Maria Mancini recuperara o antigo sabor, e os nervos das ressequidas mucosas de Hans Castorp havia muito se regozijavam novamente com o aroma dessa marca pouco dispendiosa, que o jovem, por uma espécie de lealdade, ainda mandava vir de Bremen, cada vez que as suas provisões se iam esgotando, embora produtos tentadores se oferecessem nas vitrines de Davos. Não formava o Maria um certo elo entre ele, o arrebatado, e a sua velha pátria, na planície? O charuto não estabelecia e conservava essas relações de um modo mais eficaz do que faziam, por exemplo, os cartões-postais que Hans Castorp de vez em quando dirigia aos tios lá de baixo, a intervalos que se tornavam cada vez maiores, na mesma proporção em que ele próprio, acomodando-se aos conceitos ali vigentes, assumia em face do tempo uma atitude mais generosa? Eram de preferência cartões com vistas bonitas do vale, ora coberto de neve, ora no seu aspecto estival; só ofereciam ao remetente o espaço justo para relatar o último boletim médico, o resultado de um exame mensal ou geral, na forma adequada aos conhecimentos dos parentes; isto é, para participar-lhes, por exemplo, que as observações óticas e acústicas acabavam de registrar uma incontestável melhora, mas que ele ainda não estava desintoxicado, e que a temperatura levemente elevada que o termômetro continuava mostrando tinha a sua origem em alguns pequenos lugares que persistiam, mas seguramente desapareceriam de todo, contanto que se tivesse paciência; dessa forma evitava-se o desgosto de ter de voltar a Davos algum tempo depois. Hans Castorp podia ter certeza de que ninguém esperava dele trabalhos epistolares mais extensos; suas missivas não se endereçavam a nenhuma esfera humanista e eloqüente. As respostas que recebia tampouco eram muito expansivas. Costumavam acompanhar as ordens de pagamento que vinham de casa, os juros da sua herança paterna, tão imponentes, na moeda suíça, que nunca conseguia gastá-los por completo, antes da chegada de uma nova remessa. As respostas consistiam em algumas linhas escritas à máquina, assinadas por James Tienappel, com lembranças e votos de restabelecimento da parte do tio-avô e às vezes também do navegante Peter.

Segundo Hans Castorp comunicou aos seus, o conselheiro deixara, havia pouco, de ministrar-lhe aquelas injeções. O enfermo não se dera bem com elas, que lhe causavam dores de cabeça, falta de apetite, perda de peso e grande cansaço; tinham começado por fazer subir-lhe a temperatura, e mais tarde não haviam conseguido acabar com ela. A febre continuava ardendo-lhe sob a face rosada, e o calor seco que ele sentia subjetivamente recordava-lhe que a aclimatação para um filho da planície, com o seu clima úmido, consistia antes de tudo na aquisição do hábito de não se habituar; nem o próprio Radamanto chegava a consegui-la, como evidenciava a sua tez azulada. “Há muitos que nunca se acostumam”, dissera Joachim, e parecia que era esse o caso de Hans Castorp. Pois os tremores da nuca, que haviam começado a molestá-lo pouco depois da sua chegada, não davam mostras de cessar, senão que se reproduziam inevitavelmente durante os passeios tanto como no meio das conversas, e mesmo naquele refúgio inundado de flores azuis, aonde o jovem se retirava para refletir sobre o complexo das suas aventuras. Assim, aquele jeito com que Hans Lorenz Castorp gravemente apoiara o queixo no nó da gravata, quase se tornara um vezo do neto, que, ao imitar o avô, não deixava de lembrar-se do colarinho alto do velho, essa forma interina de golilha de gala, bem como do fundo de ouro pálido da pia batismal, dos sons obscuros de “bis, tris, tetra” e de outras coisas afins, que o levavam a novas reflexões acerca do curso da sua vida.

Pribislav Hippe não mais lhe aparecia em carne e osso, como fizera onze meses atrás. A aclimatação de Hans Castorp estava terminada; as visões tinham cessado; o jovem já não jazia estendido no banco, com o corpo posto fora de ação, enquanto o seu eu se detinha num presente longínquo. Tais incidentes haviam deixado de ocorrer. A nitidez e a viveza dessa reminiscência, quando a evocava, mantinham-se nos limites normais e saudáveis. Pode ser que Hans Castorp se sentisse inspirado por ela, ao tirar do bolso a lembrança de vidro que ali guardava num envelope forrado, dentro da sua carteira. Era uma pequena chapa que, mantida horizontalmente, paralela ao chão, parecia preta, espelhante e opaca, mas, elevada contra a luz, aclarava-se e exibia coisas humanísticas: a imagem transparente do corpo humano, o arcabouço das costelas, os contornos do coração, o arco do diafragma e as bolsas do pulmão, bem como os ossos da clavícula e do braço, e tudo isso rodeado por um invólucro pálido e vaporoso, a carne que Hans Castorp insensatamente desfrutara na semana do carnaval. Não era de admirar que o seu coração emocionável parasse ou se precipitasse cada vez que o jovem contemplava esse presente e depois prosseguia fazendo o balanço ou refletindo acerca de “tudo”, encostado no espaldar tosco do banco, com os braços cruzados, a cabeça inclinada para o ombro, ao som dos murmúrios da torrente e à vista das flores azuis de aqüilégia.

A forma sublime da vida orgânica, a figura humana, pairava diante dele, como em certa noite gélida e estrelada, no decorrer de estudos eruditos. Seu aspecto íntimo relacionava-se, para o jovem Hans Castorp, com numerosos problemas e discrimes, dos quais o bom Joachim talvez não tivesse nenhuma obrigação de ocupar-se, mas que nele, como civil, despertavam uma sensação de responsabilidade; verdade é que na planície nunca reparara neles, e provavelmente jamais teria chegado a descobri-los, mas aqui o fazia, nesse isolamento contemplativo, onde as pessoas olhavam de cinco mil pés de altura sobre o mundo e as criaturas e tinham as suas próprias idéias a respeito de todas as coisas, quiçá devido a uma superexcitação do corpo, originada por venenos solúveis, e cujo calor seco lhes abrasava o rosto. Esse pensamento o fazia lembrar-se de Settembrini, o pedagogo-tocador de realejo, cujo pai nascera na Hélade, e que explanava o amor àquela forma sublime sob os aspectos da política, da rebelião e da eloqüência, consagrando a lança do cidadão sobre o altar da humanidade. Também pensava no camarada Krokowski e nas práticas a que, fazia algum tempo, se entregava em companhia do assistente, no gabinete tenebroso; cismava com respeito à natureza dupla da análise, procurando descobrir até que ponto ela era favorável à ação e ao progresso, e onde começava a ser afim do túmulo e da sua anatomia mal-afamada. Evocava as imagens dos dois avôs, o rebelde e o conservador, que se vestiam de preto por motivos diferentes; ponderava o valor de um e de outro. Refletia acerca de complexos tão vastos como são a forma e a liberdade, o espírito e o corpo, a honra e a vergonha, o tempo e a eternidade. E certa vez experimentou uma breve mas violenta vertigem ao recordar-se de que a aqüilégia estava novamente em flor e o ano se fechava sobre si mesmo.

Hans Castorp usava um termo estranho para designar essa ocupação séria do seu intelecto, à qual se dedicava no pitoresco retiro. Chamava-a “reinar”; servia-se dessa denominação de uma brincadeira pueril, palavra da sua infância, para aplicá-la a uma distração que lhe era cara, ainda que viesse acompanhada de terror, de vertigens, de toda espécie de tumultos do seu coração e aumentasse o calor que lhe abrasava o rosto. Mas não lhe parecia inconveniente que o esforço exigido por essa atividade o obrigasse a apoiar o queixo no nó da gravata; pois essa atitude estava em harmonia com a dignidade que lhe conferia o ato de “reinar”, em face da forma sublime que lhe pairava ante os olhos.

“Homo Dei” – assim chamara o feioso Naphta aquela forma sublime, enquanto a defendia contra a sociologia inglesa. Seria então de admirar que Hans Castorp, devido à sua responsabilidade civil e no interesse do seu “reino”, se julgasse na obrigação de fazer, em companhia de Joachim, uma visita ao homenzinho? Settembrini não gostava disso; Hans Castorp tinha bastante inteligência e sensibilidade para percebê-lo com toda a clareza. Já aquele primeiro encontro não agradara ao humanista, que abertamente procurara evitá-lo e por razões pedagógicas quisera proteger os jovens, particularmente Hans Castorp, contra o contato com Naphta, embora o próprio Settembrini se desse e discutisse com ele. Assim são os educadores. A si mesmos concedem as coisas mais interessantes, alegando já “ter idade” para elas; à juventude, porém, proíbem-nas, pretendendo fazê-la sentir que ainda não “tem idade”. Ainda bem que ao tocador de realejo não cabia de forma alguma proibir a Hans Castorp o que quer que fosse; nem sequer fizera uma tentativa nesse sentido. Era suficiente que o “discípulo enfermiço” escondesse a sua sensibilidade e fingisse alguma ingenuidade para que nada mais o impedisse de corresponder amavelmente ao convite do pequeno Naphta. Foi o que fez, junto com Joachim, que o acompanhou malgrado seu. Encaminharam-se à habitação de Naphta, poucos dias depois do primeiro encontro, numa tarde de domingo, logo após o repouso principal.

Do Berghof até a casinha do portão rodeado com a parreira eram apenas poucos minutos de descida. Os primos entraram, deixando à direita a porta do armarinho, e galgaram a estreita escada parda que os conduzia à porta do primeiro andar. Ao lado da campainha via-se uma placa com o nome do alfaiate Lukacek. Abriu-lhes a porta um garoto vestido com uma espécie de libré – jaqueta listrada, e polainas –, um criadinho de cabelos aparados rente e de faces coradas. Perguntaram pelo Sr. Prof. Naphta, e como não tivessem levado cartões de visita, deram os seus nomes, que ele prometeu repetir ao Sr. Naphta (não mencionou o título). A porta do quarto oposta à entrada achava-se aberta e permitia um olhar à oficina, onde Lukacek, apesar do domingo, estava costurando, sentado sobre a mesa, à moda turca. Era um homem pálido e calvo. Sob o nariz adunco, desmedidamente grande, pendia o bigode negro com uma expressão azeda, cobrindo as comissuras da boca.

– Bom dia! – disse Hans Castorp.

– Grütsi! – respondeu o alfaiate no dialeto suíço, se bem que este não combinasse nem com seu nome nem com o seu aspecto, e tivesse um som artificial e esquisito.

– Trabalhando firme? – prosseguiu Hans Castorp, sacudindo a cabeça. – Mas é domingo.

– Trabalho urgente – explicou Lukacek, lacônico, e continuou cosendo.

– É coisa fina, então? – opinou Hans Castorp. – Será para uma festa ou coisa que o valha?

O alfaiate deixou a pergunta por algum tempo sem resposta. Cortou o fio com os dentes e voltou a enfiar a agulha. Depois fez que sim.

– Vai ficar bonito? – indagou Hans Castorp novamente. – É com mangas?

– Sim, com mangas, é para uma velha – replicou Lukacek com nítido sotaque tcheco. A volta do criadinho interrompeu essa conversa entabulada no umbral da porta. O Sr. Naphta convidava os senhores a entrar, anunciou o rapaz, abrindo aos jovens uma porta situada a dois ou três passos para a direita e levantando um reposteiro. Os visitantes foram recebidos por Naphta, que os esperava de pé sobre um tapete verde-musgo, calçando chinelos enfeitados de galões.

Ambos os primos ficaram surpreendidos diante do luxo do gabinete de trabalho, arejado por duas janelas; chegaram a sentir-se deslumbrados, pois a pobreza da casinha, de sua escada e do mísero corredor não deixava nem de longe prever aquilo, e o contraste dava à elegância do aposento de Naphta um cunho de conto de fadas, que ele em realidade não tinha e tampouco teria aos olhos de Hans Castorp e de Joachim Ziemssen. Inegavelmente, a mobília era distinta e até suntuosa, a tal ponto que, apesar da escrivaninha e das estantes de livros, não estava de acordo com o caráter de um gabinete de trabalho. Havia demasiada seda – seda cor de vinho, seda purpúrea: os reposteiros que escondiam as toscas portas constavam desse material, bem como as sanefas das janelas e os forros de um terno de móveis agrupados num dos lados mais estreitos da peça, em frente à segunda porta e diante de um gobelino que cobria a parede na quase totalidade da sua extensão. Eram poltronas de estilo barroco, com um leve estofamento nos braços, dispostas em torno de uma mesa redonda, incrustada de metal, atrás da qual se achava um sofá do mesmo estilo, guarnecido de almofadas de veludo de seda. As estantes de livros ocupavam as partes das paredes situadas entre as duas portas. Elas, tanto como a escrivaninha, ou melhor, a secretária provida de uma tampa de correr, e que tinha o seu lugar entre as janelas, eram de acaju lavrado, com portas envidraçadas e revestidas de seda verde. Mas, no canto à esquerda do sofá, via-se uma obra de arte, uma grande escultura de madeira pintada, posta sobre um pedestal recoberto de pano vermelho; uma Pietà cujo aspecto ingênuo e expressivo até as raias do grotesco causava profundo espanto. A Virgem era representada com uma touca, de cenho carregado, retorcendo de tanta mágoa a boca semi-aberta; tinha sobre os joelhos, o Salvador, uma figura de erros primários nas proporções, e cuja anatomia crassamente exagerada documentava a ignorância do artista; a cabeça caída estava crivada de espinhos; o rosto e os membros, manchados e mesmo inundados de sangue; grossas gotas de sangue coagulado brotavam da ferida lateral e dos sinais que os pregos haviam deixado nas mãos e nos pés. Inegavelmente, essa obra assombrosa dava um acento particular ao aposento abundante de seda. Também o papel de parede, que aparecia acima das estantes e ao lado das janelas, fora evidentemente escolhido pelo sub-locador: o verde das listras verticais era o mesmo do tapete macio estendido por cima de um revestimento vermelho. Somente para o teto baixo não houvera remédio; continuava frio e cheio de fendas. No entanto, pendia dele um pequeno lustre veneziano. As janelas achavam-se veladas por cortinas de cor creme que chegavam até o chão.

– Viemos ter um colóquio com o senhor – disse Hans Castorp, enquanto os seus olhares se fixavam na piedosa e horripilante escultura, lá no canto, antes do que no dono do excêntrico gabinete. Este notava com satisfação que os primos haviam cumprido a sua palavra. Com um gesto convidativo da mãozinha direita, Naphta quis conduzi-los até as poltronas forradas de seda. Mas Hans Castorp, como que magnetizado, foi diretamente à Pietà de madeira e plantou-se diante dela, com os braços fincados nos quadris e a cabeça inclinada para o lado.

– Que é isso que o senhor tem aqui? – perguntou em voz baixa. – É formidável. Onde já se viu tamanho sofrimento? É coisa antiga, naturalmente?

– Século XIV – respondeu Naphta. – Com toda a probabilidade de origem renana. Impressiona o senhor?

– Enormemente – disse Hans Castorp. – Quem olha isso simplesmente não pode deixar de ficar impressionado. Eu nunca teria pensado que uma coisa pudesse ao mesmo tempo ser tão feia – perdão! – e tão bela.

– Produtos de um mundo da alma e da expressão – replicou Naphta – são sempre feios de tanta beleza e belos de tanta fealdade. Essa é a regra. Trata-se da beleza espiritual, não da beleza da carne, que é absolutamente estúpida. E não só isso, ela é também abstrata – acrescentou. – A beleza do corpo é abstrata. Unicamente a beleza interior, a da expressão religiosa, tem realidade.

– Fico-lhe grato pela precisão com que o senhor discerniu e classificou isso – disse Hans Castorp. – Século XIV? – repetiu, para certificar-se. – Mil trezentos e tantos? Sim, isto é a encarnação da Idade Média. Reconheço, por assim dizer, a idéia que fiz dela nos últimos tempos. No fundo não sabia nada a seu respeito. Sou um homem do progresso técnico, se é que me cabe mencionar a minha pessoa. Mas aqui em cima tive diversas ocasiões para entrar em contato com os conceitos da Idade Média. A sociologia econômica ainda não existia naqueles tempos, é escusado dizer. Qual é o nome do artista?

Naphta deu de ombros.

– Que importa? – replicou. – Nós não deveríamos fazer essa pergunta, desde que na época em que a obra nasceu ninguém se preocupou com ela. Isso aí não é da autoria de um cavalheiro de marcada individualidade; é anônimo e coletivo. Provém, aliás, de uma Idade Média muito avançada, do gótico, signum mortificationis. Nessa escultura, o senhor nada mais encontrará daquela tendência de suavizar e de embelezar que ainda a época românica julgava indispensável para a representação do Crucificado. Nada de coroa real, nada de majestoso triunfo sobre o mundo e o martírio da morte. Tudo aqui revela da forma mais radical o sofrimento e a debilidade da carne. É com a estética gótica que na realidade começam o ascetismo e o pessimismo. O senhor talvez não conheça o tratado de Inocêncio III: De miseria humanae conditionis, uma pecinha literária sumamente engraçada, que data de fins do século XII. Mas somente esta arte pode servir para ilustrá-la.

– Sr. Naphta – disse Hans Castorp, depois de ter dado um profundo suspiro –, tudo o que o senhor acaba de explanar interessa-me muito. Signum mortificationis, foi o que disse? Gravarei isso na memória. E antes o senhor usou os termos “anônimo” e “coletivo”; parece-me que vale a pena refletir sobre eles. Infelizmente o senhor supõe com razão que eu não conheço o livro daquele papa – acho que Inocêncio III foi um papa. Se bem compreendi o senhor, é uma obra ascética e engraçada, não é? Devo confessar que nunca teria imaginado que essas duas coisas pudessem andar juntas. Mas, pensando bem, compreendo. Claro, um tratado sobre a miséria humana oferece muitas oportunidades para gracejos à custa da carne. Pode-se obter essa obra? Recorrendo aos restos do meu latim, talvez seja capaz de entendê-la.

– Tenho este livro – respondeu Naphta, indicando com a cabeça uma das estantes. – Fica à sua disposição. Mas, por que não nos sentamos? O senhor pode ver a Pietà também do sofá. Está justamente chegando um pequeno lanche...

Era o criadinho que trazia o chá acompanhado de uma bonita cesta guarnecida de prata na qual havia um bolo cortado em fatias. Atrás dele, porém, pela porta aberta – quem é que entrava a passo alado, com um sorriso fino, e dizendo “Sapristi” e “Accidenti”? Era o Sr. Settembrini, domiciliado no andar superior e que descera na intenção de fazer companhia aos visitantes. Contou que pela sua pequena janela vira os primos chegar. Terminara depressa uma página da enciclopédia, que estava redigindo naquele momento, para, então, convidar-se a si mesmo. Era absolutamente natural que ele descesse. Sua familiaridade antiga com os habitantes do Berghof autorizava-o a isso, e havia ainda as suas relações e o seu intercâmbio intelectual com Naphta, que, apesar das profundas divergências de opinião, eram muito intensas. Assim, o anfitrião cumprimentou-o com um simples aceno, sem mostrar a mínima surpresa. Isso não impediu que a sua entrada deixasse em Hans Castorp, e bem nitidamente, uma dupla impressão. De um lado sentiu que o Sr. Settembrini acabava de comparecer para evitar que eles – Joachim e sobretudo ele, Hans Castorp – ficassem a sós com o pequeno e feioso Naphta, e para criar, pela sua presença, um contrapeso pedagógico; do outro, era manifesto que o italiano absolutamente não desprezava, senão aproveitava com muito gosto a oportunidade para abandonar por algum tempo a sua água-furtada e deixar-se estar no distinto aposento, forrado de seda, de Naphta, tomando um chá elegantemente oferecido. Antes de se servir, esfregou as mãos amareladas, por cujas costas se estendiam pêlos negros, a partir dos dedos mindinhos; a seguir, saboreou com evidente e não dissimulado prazer as fatias do bolo entremeado de veias de chocolate.

A conversa continuou a ocupar-se da Pietà, porque Hans Castorp, com olhares e palavras, se agarrava ao assunto, dirigindo-se ao Sr. Settembrini e procurando, por assim dizer, pô-lo em contato crítico com aquela obra de arte. Entretanto, a fisionomia do humanista denotava com toda a clareza o horror que lhe causava esse adorno do quarto, quando se voltou para olhá-lo; pois ao sentar-se dera as costas ao canto onde se achava a escultura. Por demais cortês para dizer tudo o que pensava, limitou-se a criticar os erros nas proporções e na anatomia do grupo, infidelidades à verdade natural, que estavam longe de comovê-lo, por não terem a sua origem na incapacidade de um artista primitivo, senão que documentavam a má vontade, um princípio fundamentalmente hostil. Nesse ponto, Naphta concordou com ele maliciosamente. Sem dúvida não se podia falar de inabilidade técnica. Tratava-se, sim, de um consciente ato do espírito que se emancipava da natureza, cuja desprezibilidade era proclamada, no sentido religioso, pela enérgica negação do menor respeito a ela. Mas Settembrini declarou que o menosprezo da natureza e de seu estudo era incompatível com a humanidade e, em oposição à absurda falta de forma, cultivada pela Idade Média e pelas épocas que a imitavam, pos-se a encomiar em palavras eloqüentes a herança greco-romana, o Classicismo, a forma, a beleza, a razão e a alegria piedosamente fundada na natureza, que eram os únicos chamados a melhorar a causa do homem. Nisso interveio Hans Castorp, perguntando o que se devia pensar, nesse caso, de Plotino, o qual expressara a vergonha que sentia de seu corpo, e de Voltaire, que em nome da razão se revoltara contra o escandaloso terremoto de Lisboa. Absurdo? Aquilo também era absurdo, mas refletindo bem podia-se chegar à opinião de que no absurdo se revelava a honestidade do espírito, e a absurda hostilidade da arte gótica contra a natureza era, em última análise, tão honesta quanto a atitude de Plotino e de Voltaire, já que nela se expressava igual emancipação do fado e do fato, e o mesmo orgulho indócil que se recusava a abdicar diante do poder estúpido que representava a natureza...

Naphta soltou uma risada, que lembrou muito o mencionado prato rachado e terminou num acesso de tosse. Settembrini disse com distinção:

– O senhor prejudica o nosso anfitrião mostrando tanto espírito, e dessa forma demonstra a sua falta de gratidão pelos excelentes doces. Será que o senhor tem queda para a gratidão? Refiro-me àquele tipo de gratidão que consiste em fazermos um bom uso dos presentes que recebemos...

Ao ver que Hans Castorp ficou envergonhado, o italiano acrescentou com a maior amabilidade:

– O senhor é conhecido como maganão, meu caro engenheiro. Seu jeito de zombar amistosamente da verdade em absoluto não me faz desesperar do amor que tem a ela. O senhor sabe muito bem que somente pode ser qualificada de honesta aquela sublevação do espírito contra a natureza, que visa à dignidade e à beleza do homem, e não a outra que tem, senão por finalidade, pelo menos por conseqüência, o seu aviltamento e a sua humilhação. O senhor tampouco ignora quantas atrocidades desumanas, quanta intolerância sanguinária produziu a época à qual aquele artefato que se acha atrás de mim deve a sua existência. Basta que eu lhe chame à memória esse tipo horroroso do juiz de hereges, por exemplo a sinistra figura de um Conrado de Marburgo, e o infame furor dos sacerdotes contra tudo quanto se opusesse à tirania do sobrenatural. O senhor está longe de reconhecer a espada e a fogueira como instrumentos do amor aos homens...

–... a cujo serviço – interrompeu-o Naphta – trabalhou a máquina por meio da qual a Convenção expurgou o mundo de maus cidadãos. Todos os castigos da Igreja, inclusive a fogueira, inclusive também a excomunhão, foram impostos para salvar as almas da pena eterna, o que não se pode dizer do entusiasmo exterminador dos jacobinos. Permito-me observar que toda justiça penal e capital que não brote da fé no além é uma sandice bestial. E quanto ao aviltamento do homem, sua história coincide exatamente com a do espírito burguês. O Renascimento, a Época das Luzes, as ciências naturais e a economia política do século XIX não se esqueceram de ensinar nada, absolutamente nada, que fosse próprio para favorecer esse aviltamento, começando pela nova astronomia, em virtude da qual o centro do universo, o magnífico cenário onde Deus e o Diabo disputavam a posse da criatura por ambos almejada, foi transformado num insignificante planetazinho, e que pôs um fim provisório à grandiosa posição do homem no cosmo, sobre a qual se fundava a astrologia.

– Provisório?

Quando Settembrini fez essa pergunta, ameaçadoramente, havia na sua expressão qualquer coisa de um inquisidor ou juiz de hereges que espera que a pessoa interrogada se comprometa com palavras abertamente criminosas.

– Com efeito. Para algumas centenas de anos – confirmou Naphta friamente. – Se não nos enganam todos os sinais, estamos na iminência de uma reabilitação da escolástica, também nesse ponto. O processo já se acha em pleno andamento. Copérnico será derrotado por Ptolomeu. A teoria heliocêntrica encontra cada vez maior oposição espiritual, e as empresas inspiradas por essa resistência provavelmente surtirão êxito. A ciência sentirá a necessidade filosófica de restituir à Terra todas as honras que o dogma eclesiástico lhe queria reservar.

– Mas como? Oposição espiritual? Necessidade filosófica? Surtir êxito? Que sorte de voluntarismo manifesta-se em tudo isso? E onde fica a pesquisa incondicional? E o conhecimento puro? Onde fica a verdade, senhor, que anda intimamente ligada à liberdade, e cujos mártires, longe de insultarem a Terra; como acha o senhor, permanecerão o eterno adorno deste astro?

O Sr. Settembrini tinha uma maneira vigorosa de interrogar. Estava sentado, muito ereto, e deixava cair sobre o pequeno Naphta as suas palavras honestas. Pelo fim levantou a voz poderosamente, manifestando assim a mais absoluta certeza de que a resposta do seu adversário só poderia consistir num silêncio consternado. Enquanto falava, segurava entre os dedos um pedacinho de bolo. Depois, porém, depositou-o no prato, pois ao cabo de todas essas perguntas não tinha vontade de trincá-lo.

Naphta retrucou com uma calma desagradável:

– Meu amigo, não existe conhecimento puro. É indiscutível a legitimidade da concepção eclesiástica da ciência, que se pode resumir nas palavras de Santo Agostinho: “Creio para que possa conhecer”. A fé é o órgão do conhecimento, e o intelecto é secundário. A sua ciência incondicional não passa de um mito. Há sempre uma fé, um conceito do mundo, uma idéia, numa palavra: uma vontade, e cabe à razão explicá-la e comprová-la. Em todos os casos, chega-se ao “Quod erat demonstrandum”. A simples idéia da prova contém, psicologicamente considerada, um elemento muito voluntarista. Os grandes escolásticos dos séculos XII e XIII eram unânimes na convicção de que na filosofia não podia ser verdade o que era falso perante a teologia. Deixemos de lado a teologia, se o senhor assim o quiser; mas uma humanidade que não reconhecesse que nas ciências naturais não pode ser verdade o que é falso perante a filosofia não seria humanidade. A argumentação do Santo Ofício ante Galileu rezava que sua tese era filosoficamente absurda. Não pode haver argumentação mais incisiva.

– Ora, ora! Os argumentos do nosso pobre e grande Galileu mostraram-se mais sólidos. Não, professore, falemos seriamente! Diante destes dois jovens atentos responda-me à seguinte pergunta: acredita o senhor em uma verdade, na verdade objetiva, científica, que a lei suprema de toda moralidade nos manda procurar, e cujos triunfos sobre a autoridade formam a gloriosa história do espírito humano?

Hans Castorp e Joachim voltaram os seus rostos de Settembrini para Naphta, o primeiro mais rapidamente do que o segundo.

– Tal triunfo – replicou Naphta – não é possível, porque a autoridade é o próprio homem, seu interesse, sua dignidade, sua salvação, e entre ela e a verdade não pode existir nenhum antagonismo. Elas coincidem.

– A verdade seria, por conseguinte...

– Verdadeiro é o que convém ao homem. Nele se acha resumida toda a natureza; em toda a natureza, apenas ele foi criado, e toda a natureza foi feita só para ele. Ele representa a medida das coisas, e sua salvação é o critério da verdade. Um conhecimento teórico que carecesse da relação prática com a idéia da salvação do homem seria de tal maneira desprovido de interesse que deveríamos negar-lhe todo valor como verdade e não poderíamos admiti-lo. Os séculos cristãos achavam-se completamente de acordo a respeito da irrelevância das ciências naturais para o homem. Lactâncio, a quem Constantino, o Grande, escolheu como preceptor de seus filhos, perguntou com toda a franqueza que classe de bem-aventurança obteria por conhecer o lugar onde nasce o Nilo, ou por saber os disparates que os físicos dizem com referência ao céu. Será que o senhor pode refutá-lo? Se a filosofia platônica foi preferida a qualquer outra, é porque não se preocupava com o conhecimento da natureza e sim com o conhecimento de Deus. Posso lhes garantir que a humanidade está a ponto de reencontrar o caminho que leva a esse ponto de vista, e de perceber que a tarefa da ciência verdadeira não é correr atrás de conhecimentos ímpios, mas eliminar, por princípio, o que é nocivo ou apenas irrelevante sob o prisma da idéia; numa palavra: cabe-lhe dar provas de instinto, comedimento e capacidade de escolher. É pueril pensar que a Igreja tenha defendido as trevas contra a luz. Ela teve três vezes razão ao proscrever a busca incondicional do conhecimento das coisas, isto é, uma busca que despreze tomar em consideração o elemento espiritual, o objetivo da conquista da salvação. E o que mergulhou o homem nas trevas e o enterrará cada vez mais são precisamente as ciências naturais, incondicionais e afilosóficas.

– O senhor acaba de ensinar um pragmatismo – retrucou Settembrini – que basta transportar para o plano político para lhe pôr em evidência o caráter pernicioso. É bom, é verdadeiro, é justo o que convém ao Estado. Sua salvação, sua dignidade, seu poder representam o critério ético. Muito bem! Isso abre as portas a qualquer crime, e a verdade humana, a justiça individual, a democracia que se arranjem...

– Sugiro o emprego de um pouquinho de lógica – tornou Naphta. – Ou Ptolomeu e a escolástica têm razão, e o mundo é finito quanto ao tempo e ao espaço. Nesse caso, a divindade é transcendental; a oposição entre Deus e o mundo existe, e também o homem é um ser dualista: o problema de sua alma consiste no antagonismo entre o físico e o metafísico, e tudo quanto é social fica à distância, desempenhando papel secundário. Essa é a única forma de individualismo que julgo conseqüente. Ou então os seus astrônomos renascentistas encontraram a verdade, e o cosmo é infinito. Então não há mundo transcendental, não há dualismo. O além acha-se absorvido pelo aquém; desaparece a oposição entre Deus e a natureza; e como nesse caso a personalidade do homem, em vez de ser o campo de batalha de dois princípios inimigos, é harmoniosa e una, o conflito que se trava no interior do homem baseia-se exclusivamente naquele dos interesses individuais e coletivos. A finalidade do Estado torna-se, à boa maneira pagã, a lei moral. Ou um ou outro.

– Protesto! – gritou Settembrini, enquanto o seu braço teso estendia ao anfitrião a xícara de chá. – Protesto contra a insinuação de que o Estado moderno signifique a servidão diabólica do indivíduo! Protesto pela terceira vez contra aquela alternativa vexatória entre o prussianismo e a reação gótica diante da qual o senhor nos quer colocar! A democracia não tem outro sentido a não ser o de um corretivo individualista de toda forma de absolutismo do Estado. A verdade e a justiça são as jóias da coroa da ética individual, e no caso de um conflito com os interesses estatais talvez até assumam a aparência de potências inimigas do Estado, posto que, em realidade, visem ao seu bem superior, ao bem supra terreno. O Renascimento como origem da idolatria do Estado! Que lógica mais bastarda! As conquistas – emprego essa palavra no sentido literal! –, as conquistas do Renascimento e do Século das Luzes, meu caro senhor, chamam-se personalidade, direitos do homem, liberdade!

Os ouvintes soltaram a respiração que haviam contido durante a grande réplica do Sr. Settembrini. Hans Castorp não pôde deixar de bater, embora discretamente, na borda da mesa com a palma da mão. – Magnífico! – murmurou entre dentes, e também Joachim mostrou-se altamente impressionado, conquanto o prussianismo houvesse sido mencionado em sentido desfavorável. A seguir, porém, ambos se voltaram para o interlocutor que acabava de ser rechaçado. Hans Castorp o fez com tamanha impaciência, que fincou o cotovelo na mesa e o queixo no punho mais ou menos na posição de quem desenha um porquinho, e fitou o Sr. Naphta de muito perto e com imensa atenção.

Este se achava sentado calmamente, como que afiado, apoiando as mãos magras sobre os joelhos.

– Tentei introduzir um pouco de lógica na nossa discussão – disse ele – e sua resposta baseia-se em sentimentos elevados. Que o Renascimento tenha dado à luz tudo aquilo que se chama liberalismo, individualismo, humanismo burguês é um fato que eu conhecia mais ou menos bem. Mas o seu “sentido literal” deixa-me inteiramente frio. A idade “conquistadora”, heróica, dos seus ideais há muito que passou; esses ideais estão mortos ou agonizantes, e aqueles que lhes darão o golpe de misericórdia já se acham próximos. Se não me engano, o senhor se arvora em revolucionário. Mas, se acredita que o resultado das revoluções vindouras será a liberdade, iludiu-se redondamente. O princípio da liberdade cumpriu o seu destino e chegou a ser antiquado nos últimos quinhentos anos. Uma pedagogia que ainda hoje pretende ser a filha do racionalismo e vê os seus meios formativos na crítica, na libertação e no culto do eu, na destruição de formas de vida determinadas de um modo absoluto – tal pedagogia pode obter ainda hoje passageiros triunfos retóricos, porém o seu caráter atrasado é óbvio para os espíritos avisados. Todas as organizações verdadeiramente educadoras souberam sempre o que em realidade deve ser o último objetivo da pedagogia: a autoridade absoluta, a obrigação de ferro, a disciplina, o sacrifício, a renúncia a si próprio, o domínio da personalidade. Em última análise, desconhece e não ama a juventude quem pensa que ela sente prazer diante da liberdade. O que ela aprecia mais é a obediência.

Joachim empertigou-se. Hans Castorp corou. O Sr. Settembrini torcia nervosamente o belo bigode.

– Não, senhor! – prosseguiu Naphta. – O segredo e a existência da nossa era não são a libertação e o desenvolvimento do eu. Do que ela necessita, o que deseja, o que criará é – o terror.

Abafara a voz ao pronunciar esta última palavra. Não se movera. Apenas as lentes dos seus óculos haviam relampejado rapidamente. Os ouvintes tinham estremecido, todos os três, também Settembrini, que imediatamente se dominou e tornou a sorrir.

– E posso informar-me – indagou – quem ou o que (como vê, limito-me a interrogar e nem sei como formular a pergunta), quem ou o que o senhor imagina como portador desse – custa-me repetir a palavra – desse terror?

Naphta continuou imóvel, afiado e relampejante.

– Estou às ordens – disse. – Penso não me enganar quando pressuponho que estamos de acordo com respeito ao estado primitivo ideal do homem, à sua liberdade de governo e de poder, à sua relação filial e imediata com Deus, na qual não havia nada de domínio e de serviço, nada de lei e de castigo, nada de injustiça, de união carnal, de diferenças de classe, de trabalho e de propriedade, mas exclusivamente igualdade, fraternidade, perfeição moral.

– Muito bem. Concordo com isso – declarou Settembrini. – Concordo, exceção feita do ponto da união carnal, que evidentemente deve ter existido sempre, uma vez que o homem é um vertebrado muitíssimo desenvolvido, em nada diferente de outros seres...

– Como quiser. Verifico que em princípio somos da mesma opinião, no que se refere ao estado primordial, paradisíaco, isento de lei e ligado imediatamente a Deus, esse estado que se perdeu em virtude do pecado original. Creio que poderemos trilhar lado a lado mais um pedaço do caminho; reduziremos então o Estado a um contrato social que, levando em conta o pecado, foi estabelecido como proteção contra a injustiça, e veremos nisso a origem do poder soberano...

– Benissimo! – exclamou Settembrini. – O contrato social! Aí temos o Século das Luzes, ali temos Rousseau. Eu nunca teria pensado...

– Permita-me. Neste ponto separam-se os nossos caminhos. Do fato de que toda potência e todo governo pertenciam primitivamente ao povo, e que este transmitiu o seu direito de legislação e a totalidade de seu poder ao Estado, ao príncipe, deduz a sua escola, antes de mais nada, que o povo tem o direito de se rebelar contra a realeza. Nós, porém...

“Nós?”, pensou Hans Castorp, cheio de curiosidade “Quem é nós? Não devo esquecer de perguntar a Settembrini a quem se refere este ‘nós’.”

– Nós, porém – continuou Naphta —, talvez não sejamos menos revolucionários do que o senhor. Nós sempre concluímos desse fato, em primeiro lugar, a supremacia da Igreja sobre o Estado secular. Pois, se a origem não-divina do Estado não estivesse escrita na sua testa, bastaria recordar precisamente o fato histórico de ele derivar da vontade do povo e não, como a Igreja, de uma fundação de Deus, para demonstrar que ele é, se não uma obra do mal, pela menos um produto da emergência e da imperfeição pecaminosa.

– O Estado, senhor...

– Já sei o que o senhor pensa do Estado nacional. “Acima de tudo o amor à pátria e o infinito desejo de glória!” Esta frase é de Virgílio. Corrija-a o senhor pelo acréscimo de um pouco de individualismo liberal e surge a democracia. Mas isso não modifica em princípio a sua relação para com o Estado. O senhor não parece chocar-se com a circunstância de que a alma do Estado é o dinheiro. Ou tenciona, acaso, desmenti-la? A Antigüidade era capitalista, devido ao seu culto do Estado. A Idade Média cristã percebeu com toda clareza o iminente capitalismo do Estado secular. “O dinheiro será o imperador” é uma profecia do século XI. Nega o senhor que ela já se cumpriu integralmente e que dessa forma se realizou a diabolização total da nossa vida?

– Meu amigo! O senhor continua com a palavra. Estou impaciente por saber quem é o Grande Desconhecido, o portador do terror.

– Curiosidade muito ousada na boca do representante de uma classe social que é portadora daquela liberdade que arruinou o mundo! Posso a rigor dispensar a sua réplica, porque não ignoro a ideologia política da burguesia. O seu objetivo é o império democrático, a apoteose com que o princípio do Estado nacional eleva-se a si próprio a Estado universal. O imperador desse império? Conhecemo-lo. A sua utopia é horrorosa, e todavia neste ponto voltamos, de certo modo, a estar de acordo. Pois a sua república universal capitalista tem qualquer coisa de transcendental. Com efeito, o Estado universal é a transcendência do Estado secular, e acreditamos ambos em que à perfeição da fase primitiva da humanidade corresponde uma fase final perfeita, situada à distância no horizonte. Desde os dias de Gregório Magno, fundador da Cidade de Deus, a Igreja considerou-se incumbida de reconduzir os homens ao governo de Deus. O papa pretende a soberania não para si próprio; sua ditadura delegada era um meio e um caminho para alcançar a meta da salvação, uma forma de transição do Estado pagão ao reino celeste. O senhor falou, diante destes seus discípulos, dos atos sanguinários da Igreja e da sua intolerância vingadora, e mostrou-se sumamente tolo ao fazê-lo. Pois o zelo religioso naturalmente não pode ser pacifista, e o próprio Gregório disse: “Maldito seja o homem que impede a sua espada de derramar sangue!” Já sabemos que o poder é mau. Mas o dualismo do bem e do mal, do aquém e do além, do espírito e da potência, deve ser – para que chegue o reino – passageiramente substituído por um princípio que reúna o ascetismo e o domínio. É isso o que chamo a necessidade do terror.

– O portador? Quem será o portador?

– O senhor me pergunta ainda? Será que à sua mentalidade manchesteriana escapou a existência de uma doutrina sociológica que representa a vitória do homem sobre o economismo, e cujos princípios e objetivos coincidem inteiramente com os do Estado cristão de Deus? Os padres da Igreja qualificavam o “meu” e o “teu” de palavras funestas e chamavam à propriedade privada usurpação e roubo. Condenavam a posse de bens por ser a terra, segundo o direito natural e divino, comum a todos os homens, produzindo os seus frutos para o uso geral. Ensinavam que somente a cobiça, uma conseqüência do pecado original, defendia os direitos de posse e criara a propriedade particular. Eram bastante humanos, bastante hostis ao comércio para considerar a atividade econômica em geral um perigo para a salvação da alma, isto é, para a humanidade. Odiavam o dinheiro e os negócios, e a riqueza capitalista era para eles o combustível das chamas do inferno. A lei econômica fundamental, a saber, que o preço resulta da relação entre a oferta e a procura, foi desprezada de todo o coração por eles, que reprovavam o aproveitamento de circunstâncias favoráveis como exploração cínica da miséria do próximo. Existia contudo, aos seus olhos, uma exploração mais nefanda ainda: a do tempo, a monstruosidade de se fazer pagar um prêmio pelo simples transcurso do tempo, esse prêmio que são os juros, e de se abusar dessa forma, para vantagem de uns e para prejuízo de outros, de uma instituição divina e geral, o tempo.

– Benissimo! – exclamou Hans Castorp, deixando-se levar, pelo seu entusiasmo, a empregar a fórmula de aprovação do Sr. Settembrini. – O tempo... Uma instituição divina e geral... Isto é sumamente importante!

– Sim, senhor – prosseguiu Naphta. – Esses espíritos realmente humanos julgavam asquerosa a idéia de um aumento automático do dinheiro. Incluíam no conceito da usura qualquer especulação ou anatocismo e declaravam que todos os ricos ora eram ladrões ora herdeiros de ladrões. Iam ainda mais longe. Partilhavam a opinião de São Tomás de Aquino, segundo a qual o comércio em si, o mero negócio comercial, a compra e venda no intuito de obter um lucro, mas sem transformação nem melhoramento da mercadoria, representava uma profissão ignominiosa. Não eram propensos a apreciar muito o próprio trabalho, pois ele é apenas um assunto ético e não religioso, e se realiza a serviço da vida e não de Deus. E desde que não se tratava de outra coisa senão da vida e da economia, exigiam que uma atividade produtiva formasse a condição de toda vantagem econômica e a medida da respeitabilidade. Honrosos pareciam-lhes o agricultor e o artífice, mas não o mercador e o industrial. Queriam eles que a produção se acomodasse às necessidades e abominavam a produção em massa. Bem, depois de séculos de soterramento ressurgem todos esses princípios e padrões econômicos no movimento moderno do comunismo. A semelhança é completa, até no significado da reivindicação da soberania, que pleiteia, contra a camada internacional de comerciantes e especuladores, o trabalho internacional, o proletariado do mundo, que hoje em dia opõe a humanidade e os critérios da Cidade de Deus à depravação burguês-capitalista. A ditadura do proletariado, essa exigência de salvação política e econômica dos nossos tempos, não tem o sentido de um domínio pelo domínio e por toda a eternidade, mas sim o de uma ab-rogação temporária do conflito entre o espírito e o poder sob o signo da cruz, o sentido de se triunfar sobre o mundo dominando-o, o sentido da transição e da transcendência, o sentido do Reino. O proletariado retomou a obra de Gregório; sente arder no seu íntimo o zelo piedoso do grande papa e, como ele, tampouco poderá impedir as suas mãos do derramamento de sangue. Sua incumbência é espalhar o terror para a salvação do mundo e para a conquista do objetivo da redenção, que é a relação filial com Deus, sem a interferência do Estado e das classes.

Foi essa a sutil exposição de Naphta. Fez-se silêncio no pequeno grupo. Os jovens olhavam o Sr. Settembrini, como se fosse ele quem devesse reagir dessa ou daquela forma.

– É pasmoso – disse o italiano. – Francamente, confesso que estou emocionado. Eu não teria esperado por essa. Roma locuta. E como falou! Diante dos nossos olhos executou um salto mortal hierático, e a contradição que porventura houvesse nesse adjetivo foi “ab-rogada temporariamente”. Sim, senhor! Repito: é pasmoso! O senhor admite a possibilidade de objeções, meu caro professor? Falo de objeções feitas exclusivamente sobre o fundamento da lógica. O senhor acaba de esforçar-se por nos fazer compreender um individualismo cristão, baseado na dualidade de Deus e do mundo e por demonstrar a sua primazia sobre toda mobilidade determinada pela política. Poucos minutos depois levou o socialismo até a ditadura e o terror. Como consegue o senhor reconciliar essas duas coisas?

– As contradições – replicou Naphta – podem reconciliar-se. Somente o meio-termo, e a mediocridade são irreconciliáveis. Como já me permiti observar, o seu individualismo é deficiente, é apenas um compromisso. Corrige a sua ética paga por meio de um pouco de cristianismo, um pouco de direito do indivíduo e um pouco de pretensa liberdade. Isso é tudo. Um individualismo, porém, que parte da importância cósmica, da importância astrológica da alma individual, um individualismo não social, mas religioso, que concebe a humanidade não como o antagonismo entre o eu e a sociedade, mas como o conflito entre o eu e Deus, entre a carne e o espírito – tal individualismo genuíno se harmoniza muito bem com a comunidade mais intensamente coercitiva...

– É anônimo e coletivo – disse Hans Castorp.

Settembrini mirou-o com os olhos arregalados.

– Cale-se, engenheiro! – ordenou com uma severidade que se devia atribuir ao seu nervosismo e à tensão do seu espírito. – Instrua-se, mas deixe de externar suas opiniões!... Recebi uma resposta – prosseguiu, voltando-se novamente para Naphta. – Ela pouco me consola, mas, ao menos, é uma resposta. Encaremos todas as conseqüências que provêm dela... Com a indústria, o comunismo cristão rejeita a técnica, a máquina, o progresso. Com aquilo que o senhor qualificou de camada de comerciantes, com o dinheiro e os negócios lucrativos, que a Antigüidade colocava muito acima da agricultura e do artesanato, reprova a liberdade. É evidente, salta aos olhos que dessa forma – tal como aconteceu na Idade Média – todas as relações particulares e públicas ficam presas ao solo. E o mesmo se dá – custa-me dizê-lo – com a personalidade. Se o solo é o único que alimenta, é também o único que pode outorgar a liberdade. Artífices e camponeses, por mais alto que seja o conceito de que gozam, se não possuem terras, são servos de quem as possuí. Com efeito, até uma fase muito adiantada da Idade Média, as grandes massas, inclusive nas cidades, compunham se de servos. No curso da nossa palestra, o senhor mencionou de vez em quando a dignidade humana. Não obstante, defende uma moral econômica à qual são inerentes a servidão e o aviltamento da personalidade do homem.

– Sobre a dignidade e o aviltamento – disse Naphta – pode-se discutir. Por enquanto, eu ficaria muito satisfeito se essa associação o fizesse ver na liberdade menos um belo gesto do que um problema. O senhor observa que a moral econômica cristã, com toda a sua beleza e mentalidade humana, cria servos. Eu oponho a isso que a causa da liberdade ou das cidades, como se poderia dizer de uma forma mais concreta —, que essa causa, por elevada e ética que seja, acha-se historicamente ligada à mais desumana degeneração da moral econômica, a todas as atrocidades do espírito moderno de comerciantes e especuladores, à dominação diabólica do dinheiro e dos negócios.

– Faço questão de que o senhor não se esquive por meio de antinomias e de ambigüidades, mas professe clara e inequivocamente ser partidário da mais negra das reações.

– O primeiro passo em direção à verdadeira liberdade e humanidade seria abandonar esse medo covarde da idéia de reação.

– Agora basta! – disse o Sr. Settembrini numa voz levemente trêmula, enquanto afastava de si a xícara e o prato, que já estavam vazios. Levantou-se do sofá forrado de seda. – Por hoje chega, é suficiente para um só dia, segundo me parece. Professor, obrigado pelo saboroso lanche e pela conversa sumamente espirituosa. Os deveres do regime reclamam os meus amigos do Berghof, e eu gostaria, antes de irem, de mostrar-lhes o meu cubículo lá em cima. Vamos, cavalheiros! Addio, padre!

Desta vez até chamou Naphta de “padre”. Hans Castorp, com as sobrancelhas franzidas, tomou nota do apelido. Os primos deixaram que Settembrini organizasse a partida, dispondo deles e nem sequer perguntando se Naphta queria ou não unir-se a eles. Os jovens despediram-se também, agradecendo, e foram convidados a voltar em breve. Acompanharam o italiano, Hans Castorp levando emprestada a obra De miseria humanae conditionis, um volume cartonado, em precário estado de conservação. Lukacek, com a sua barba, melancólica, continuava sentado à mesa, trabalhando no vestido com mangas, destinado àquela velha, quando passaram pela sua porta, para ganhar a íngreme escada que conduzia à água-furtada. No fundo não se tratava de mais um andar, senão simplesmente do vão do sótão, com o madeiramento despido abaixo das telhas e com a atmosfera estival de um depósito, cheirando a madeira quente. Mas o sótão abrigava dois compartimentos que o capitalista republicano habitava. Serviam de gabinete de estudo e de dormitório ao colaborador beletrista da Sociologia dos males. Mostrou-se alegremente aos jovens amigos. Qualificou a habitação de isolada e íntima, a fim de lhes sugerir os epítetos adequados de que poderiam servir-se para elogiá-la, o que de fato fizeram unanimemente. Era encantadora – acharam ambos —, tão isolada e tão íntima, exatamente como dissera o Sr. Settembrini. Lançaram um olhar ao pequeno dormitório, onde, à frente do estreito leito, se estendia um pequeno tapete de retalhos, e depois voltaram ao gabinete de trabalho, mobiliado de modo não menos despojado, mas que mostrava, ao mesmo tempo, uma ordem um tanto espalhafatosa e até fria. Cadeiras toscas e antiquadas em número de quatro, com assentos de palha, achavam-se colocadas simetricamente dos lados das portas, e também o sofá estava encostado à parede, de modo que o centro da peça pertencia somente a uma solitária mesa redonda, coberta com uma toalha verde, na qual se via, para fins de adorno ou de refresco, uma sóbria garrafa de água com um copo enfiado sobre o gargalo. Livros encadernados e brochuras encontravam-se apoiados obliquamente uns nos outros sobre uma pequena estante, e junto à janelinha erguia-se sobre pernas altas uma papeleira leve, diante da qual havia um pedacinho de feltro espesso, de tamanho apenas suficiente para que se pudesse ficar de pé em cima dele. Durante um momento, Hans Castorp, a título de experiência, pôs-se no lugar onde o Sr. Settembrini costumava trabalhar, estudando, para fins enciclopédicos, as belas-letras sob o ponto de vista do sofrimento humano. Fincando os cotovelos na tábua inclinada, o jovem declarou que ali se podia viver de um modo isolado e íntimo. Nessa mesma posição – opinou – devia o pai de Lodovico, com seu nariz fino e comprido, ter ficado diante da sua escrivaninha, em Pádua. E Hans Castorp inteirou-se de que realmente essa era a papeleira do saudoso sábio; também as cadeiras de palhinha, a mesa e a própria garrafa de água haviam pertencido a ele. E mais ainda: as cadeiras provinham do avô, o carbonário; haviam feito parte da mobília do seu escritório em Milão. Isso era impressionante. A fisionomia das cadeiras tomava aos olhos dos jovens ares de insubmissão política. Joachim levantou-se daquela em que se instalara inocentemente, com as pernas cruzadas, e olhou-a desconfiado, sem voltar a sentar-se. Hans Castorp, porém, de pé diante da papeleira de Settembrini-pai, pensava no filho que agora trabalhava nela, associando a política do avô e o humanismo do genitor, com o fim de criar obras beletrísticas. Pouco depois saíram todos os três. O escritor ofereceu-se a acompanhar os primos pelo caminho de regresso.

Caminharam um bom pedaço sem falar, mas o seu silêncio estava relacionado com Naphta, e Hans Castorp não tinha pressa. Estava certo de que o Sr. Settembrini não deixaria de mencionar o vizinho, e que só os acompanhara na intenção de fazê-lo. Não se enganou. Depois de um suspiro dado para tomar impulso, o italiano começou dizendo:

– Senhores, eu desejaria adverti-los.

Como Settembrini fizesse uma pausa, Hans Castorp indagou com fingida surpresa: – Contra o quê? – Poderia ter perguntado: “Contra quem?” Mas preferiu a forma impessoal, para documentar a extensão da sua inocência, ainda que o próprio Joachim soubesse muito bem de que se tratava.

– Contra a personalidade que acabamos de visitar – respondeu Settembrini – e que eu tive de apresentar-lhes contra a minha vontade. Os senhores sabem que isso aconteceu por mero acaso e não houve jeito de evitá-lo. Mas a responsabilidade me cabe e pesa sobre mim penosamente. É minha obrigação expor à juventude, da qual os senhores fazem parte, os perigos espirituais que acarreta o contato com esse homem. Devo pedir-lhes que mantenham em limites seguros as relações com ele. Sua forma é lógica, mas sua natureza é confusão.

Hans Castorp replicou que, realmente, não se sentia à vontade com Naphta. Suas palavras deixavam-no às vezes com uma sensação esquisita. Podia-se pensar em alguns momentos que ele pretendia afirmar seriamente que o Sol girava em torno da Terra. Mas, como poderiam eles, os primos, ter imaginado que fosse inconveniente travar relações sociais com um amigo do Sr. Settembrini? Não acabava ele próprio de dizer que haviam conhecido Naphta por seu intermédio? Tinham-no encontrado em sua companhia; o homem passeava com ele, que tomava o chá na sua casa, assim sem cerimônia, e tudo isso demonstrava, afinal...

– Sem dúvida, meu caro engenheiro, sem dúvida! – a voz do Sr. Settembrini soava suave, resignada, e contudo levemente trêmula. – São objeções que se impõem, e por isso o senhor tem razão de fazê-las. Muito bem, estou disposto a defender-me. Vivo sob o mesmo teto com esse senhor. Freqüentes encontros são inevitáveis. Uma palavra traz a outra. A gente trava conhecimento. O Sr. Naphta é homem inteligente, o que é coisa rara. Tem um temperamento discursivo, assim como eu. Que me condene quem quiser, mas aproveito a oportunidade de cruzar as lanças da idéia com um adversário de qualidade até certo ponto igual. Não tenho mais ninguém, nem perto nem longe... Numa palavra, não nego que o visito e que ele me visita. Também passeamos juntos. E discutimos. Discutimos encarniçadamente, quase todos os dias. Mas confesso que a oposição e a hostilidade da sua maneira de pensar representa para mim precisamente um atrativo a mais para me encontrar com ele. Tenho necessidade do atrito. As convicções não vivem, a não ser que tenham ocasião de lutar, e eu, por minha parte, tenho sólidas convicções. Mas como poderiam os senhores afirmar o mesmo das suas próprias pessoas? O senhor, tenente, ou o senhor, engenheiro? Não estão armados para se defender contra miragens intelectuais. Correm o perigo de que essas sutilezas meio fanáticas, meio maliciosas, lhes prejudiquem o espírito e a alma.

Hans Castorp admitiu tudo isso. Seu primo e ele próprio eram, provavelmente, naturezas um tanto expostas. A velha história dos filhos enfermiços da vida; claro! Mas a ela podia-se opor Petrarca com a sua divisa, que o Sr. Settembrini conhecia. Em todo caso era digno de ser ouvido o que Naphta explanava. Que não fossem injustos: aquilo que ele dissera sobre o tempo comunista, por cujo transcurso ninguém deveria receber um prêmio, era mesmo notável. E também eram muito interessantes as suas idéias sobre a pedagogia, coisas que ele, Hans Castorp, nunca teria chegado a saber sem Naphta...

Settembrini cerrou os lábios, e Hans Castorp apressou-se a acrescentar que, naturalmente, ele se abstinha de tomar partido e de formar uma opinião. Simplesmente achara dignos de serem ouvidos os argumentos de Naphta sobre os desejos da juventude. – Explique-me o senhor uma coisa – continuou. – Esse Sr. Naphta (digo “esse senhor” para indicar que não simpatizo com ele irrestritamente; pelo contrário, observo com relação a ele uma rigorosa reserva mental...)

– E o senhor faz muito bem! – exclamou Settembrini, cheio de gratidão.

– ...ele acaba de dizer horrores contra o dinheiro, a alma do Estado, segundo se expressava, e contra a propriedade particular, que tachava de roubo; numa palavra, atacou a riqueza capitalista, da qual, se não me engano, afirmou que era o combustível das chamas do inferno. Parece-me que se serviu dessa expressão. Em altos brados elogiou a condenação medieval do anatocismo. E apesar de tudo isso ele próprio faz... O senhor me desculpe, mas ele deve... É uma verdadeira surpresa quando se entra na casa dele. Toda aquela seda...

– Pois é – sorriu Settembrini. – A tendência dos seus gostos é característica.

– ...e os belos móveis antigos – prosseguiu Hans Castorp nas suas reminiscências —, a Pietà do século XIV... o lustre veneziano... o criadinho de libré... e bolo de chocolate em abundância... É preciso que ele pessoalmente...

– O Sr. Naphta, pela sua pessoa – explicou Settembrini —, é tão pouco capitalista quanto eu.

– Mas... – perguntou Hans Castorp. – As suas palavras escondem um “mas”, Sr. Settembrini.

– Bem, essa gente não deixa nenhum dos seus na miséria.

– Quem é “essa gente”?

– Aqueles padres.

– Padres? Que padres?

– Ora, engenheiro, eu falo dos jesuítas.

Fez-se um momento de silêncio. Os primos mostraram sinais da mais viva consternação. Hans Castorp exclamou:

– Não é possível!... Cruzes! O homem é um jesuíta?

– O senhor adivinhou – respondeu o Sr. Settembrini cerimoniosamente.

– Não, nunca na vida teria eu... Como poderia pensar? É por isso que o senhor o chamou de “padre”.

– Foi um pequeno excesso de cortesia – tornou Settembrini. – O Sr. Naphta não é padre. Se por enquanto ainda não atingiu esse grau, a culpa é da enfermidade. Mas ele passou pelo noviciado e fez os primeiros votos. A doença forçou-o a interromper os estudos teológicos. Depois, teve ainda alguns anos de serviço como prefeito num instituto da ordem, isto é, como preceptor ou mentor de jovens alunos. Isso vinha ao encontro das suas inclinações pedagógicas. E aqui pode continuar a satisfazê-las, ensinando latim no Fredericianum. Vive em Davos faz cinco anos. Não se pode dizer ao certo quando será capaz de partir, se é que um dia o será. Mas Naphta pertence à ordem, e mesmo que os laços que o ligam a ela fossem mais frouxos, nunca lhe faltaria nada. Eu já expliquei aos senhores que ele, pessoalmente, é pobre, quer dizer, não possui bens. Claro, é a regra! A ordem, por sua vez, dispõe de imensas riquezas e cuida dos seus, como os senhores podem ver.

– Barba...ridade! – murmurou Hans Castorp. – E eu nem sabia ou pensava que uma coisa dessas pudesse existir realmente! Um jesuíta! Sim, senhor!... Mas diga-me mais uma coisa: se ele está bem provido e amparado por aquela gente, por que cargas d'água vive então... Absolutamente não quero criticar a sua habitação, Sr. Settembrini O senhor está muito bem instalado na casa de Lukacek, de um modo agradavelmente isolado e sobretudo tão íntimo... Mas sou de opinião que esse Naphta, uma vez que anda tão cheio da nota, para usar esse termo vulgar... Por que não aluga uma moradia mais vistosa, com uma entrada elegante e peças grandes, numa casa distinta? Há mesmo qualquer coisa de misterioso e aventureiro nesse jeito de morar num quartinho desses, com todas aquelas sedas...

Settembrini deu de ombros.

– Devem ser razões de tato e de gosto que determinaram a escolha – disse então. – Acho que sua consciência anticapitalista se sente melhor quando ele habita o quarto de homem pobre e compensa isso pela maneira como o habita. Talvez haja também questões de discrição metidas nisso. Não se deve ostentar a todo mundo que se é abastecido pelo Diabo. Adota-se uma fachada pouco impressionante, atrás da qual se dá livre curso ao gosto sacerdotal pela seda...

– É esquisito! – disse Hans Castorp. – É completamente novo e emocionante para mim, como confesso com toda a franqueza. Não, de fato estamos muito gratos, Sr. Settembrini, porque nos apresentou esse homem. Creia-me que freqüentemente voltaremos a visitá-lo. Isso ficou combinado. Relações assim ampliam o horizonte de maneira inesperada e permitem olhar para um mundo cuja existência a gente absolutamente ignorava. Um autêntico jesuíta! Quando digo “autêntico” estou dando margem àquilo que me preocupa, e que não posso deixar de observar. Eu pergunto: é ele realmente um jesuíta como os outros? Sei muito bem que o senhor pensa que não pode haver norma, quando se trata de pessoas que o Diabo abastece. Mas o que eu gostaria de saber é outra coisa, que se pode resumir na pergunta: “É ele autêntico como jesuíta?” É isso que me interessa. Naphta acaba de dizer uma porção de coisas – o senhor sabe a que me refiro – sobre o comunismo moderno e o zelo piedoso do proletariado, que não deve impedir as suas mãos de derramarem sangue. Numa palavra, ele disse coisas que não quero comentar; comparado com esse homem, o seu avô, com sua lança do cidadão, era um cordeirinho inocente; não me leve a mal essa expressão! E ele pode fazer isso? Tem a aprovação dos seus superiores? É compatível com a doutrina romana, uma vez que dizem que a ordem intriga o mundo inteiro em prol dela? Não é tudo isso – como se diz? – herético, anormal, incorreto? Essas idéias me ocorrem a respeito de Naphta, e eu gostaria muito de saber o que o senhor pensa.

Settembrini sorriu.

– É muito simples. O Sr. Naphta é, realmente e antes de mais nada, um jesuíta genuíno e completo. Mas em segundo lugar é um homem de espírito – do contrário eu não procuraria a companhia dele – e como tal empenha-se em encontrar novas combinações, adaptações e associações, ainda em busca de variações modernas. Os senhores me viram surpreendido diante das suas teorias. Comigo, ele nunca se revelara até esse ponto. Servi-me do estímulo que a presença dos senhores evidentemente exercia sobre ele para provocá-lo, a fim de que dissesse, em certo sentido, a última palavra. E essa palavra foi bastante excêntrica e bastante monstruosa...

– Sim... E por que não chegou a ser padre? Acho que ele tem a idade necessária.

– Eu já lhe disse que a doença o impediu, temporariamente...

– Hum... Mas, se Naphta é em primeiro lugar um jesuíta, e em segundo, um homem de espírito que anda em busca de combinações, não acredita o senhor que esse outro elemento, o acessório, provém da enfermidade?

– Que quer dizer com isso?

– Olhe, Sr. Settembrini, parece-me o seguinte: ele tem uma mancha úmida que o impede de ser padre. Mas aquelas suas combinações também o teriam impedido, e sob esse aspecto pode-se dizer que as combinações e a mancha úmida pertencem à mesma categoria. Ele é, à sua maneira, uma espécie de filho enfermiço da vida, um joli jésuite com uma petite tache humide.

Haviam chegado ao sanatório. No terraço em frente ao edifício detiveram-se ainda um instante, antes de se separarem. Formaram um pequeno grupo, enquanto outros pensionistas, que andavam ociosos nas proximidades do portão, observavam a sua palestra. O Sr. Settembrini disse:

– Mais uma vez, meus jovens amigos, advirto-os. Não posso proibir-lhes a continuação das relações uma vez estabelecidas, desde que se sintam impelidos pela curiosidade. Mas criem em torno do coração e do cérebro uma couraça de desconfiança. Nunca deixem de opor uma resistência crítica. Eu definirei esse homem numa única palavra: é um voluptuoso.

Os primos fizeram uma careta. A seguir perguntou Hans Castorp:

– Um quê? Ora veja! Mas ele pertence a uma ordem. Pelo que sei, existem ali alguns votos que devem ser feitos, e além disso Naphta é tão minguado e tão débil...

– O senhor fala muito ingenuamente, engenheiro – retrucou o Sr. Settembrini. – Aquilo nada tem que ver com a debilidade, e quanto aos votos há certas reservas. Porém, eu falei num sentido mais lato e mais espiritual, na esperança de encontrar alguma compreensão da sua parte. Lembra-se ainda do dia em que o visitei no seu quarto – já faz muito, muitíssimo tempo –, o senhor passava pelo período de acamamento obrigatório, logo depois da sua admissão como paciente...

– Como não! O senhor entrou na hora do crepúsculo e acendeu a luz. Recordo-me como se fosse hoje...

– Bem, naquele dia o curso da palestra, como graças a Deus acontece freqüentemente, levou-nos a certos assuntos elevados. Creio que falamos até da vida e da morte, da natureza digna da morte, contanto que seja uma condição e um complemento da vida, e do caráter de bicho-papão que ela assume quando o espírito comete o pavoroso erro de isolá-la como princípio. Senhores – prosseguiu o Sr. Settembrini, aproximando-se muito dos dois jovens e estendendo-lhes o polegar e o dedo médio da mão esquerda à maneira de uma forquilha, como para apanhar-lhes a atenção, enquanto erguia o indicador da direita em sinal de admoestação... –, gravem na sua memória que o espírito é soberano, que sua vontade é livre, que determina o mundo moral. Porém, se dualisticamente isola a morte, esta se converte, real e virtualmente, graças à vontade do espírito, numa potência própria, oposta à vida, num princípio antagônico, na grande sedução; e seu império é o da voluptuosidade. Os senhores perguntam: “Por que da voluptuosidade?” E eu respondo: porque a morte dissolve e redime, porque traz a redenção, mas não a redenção do mal, e sim a redenção pelo mal. Dissolve a ética e a moralidade, redime da disciplina e da moderação, liberta para a volúpia. Se os advirto contra o homem que os senhores, malgrado meu, conheceram por meu intermédio, se os exorto a que blindem os corações com a tríplice couraça da crítica, no contato e nas discussões com ele, é porque todos os seus pensamentos têm caráter voluptuoso, pois estão colocados sob a proteção da morte, que é uma potência sumamente licenciosa, como eu já lhe disse, engenheiro, naquela ocasião – lembro-me bem da expressão que usei; sempre guardo na memória as expressões precisas e incisivas que tive oportunidade de formular –, é uma potência dirigida contra a civilização, o progresso, o trabalho e a vida. E o mais nobre dever do educador é pôr as almas dos jovens ao abrigo das suas emanações mefíticas.

Seria impossível falar de forma mais clara e mais elegante do que o Sr. Settembrini acabava de fazer. Hans Castorp e Joachim Ziemssen agradeceram-lhe todos os conselhos, despediram-se e subiram até o portal do Berghof, ao passo que o Sr. Settembrini regressava à sua papeleira de humanista, um andar acima da cela forrada de seda do Sr. Naphta.

A visita dos primos à casa de Naphta, que acabamos de descrever, foi a primeira que lhe fizeram. Seguiram-se a ela duas ou três outras, uma até na ausência do Sr. Settembrini, e todas elas forneciam ao jovem Hans Castorp material para as suas reflexões, quando se deixava estar no seu retiro florido de azul e “reinava”, enquanto pairava ante seus olhos interiores aquela forma sublime que se chama Homo Dei.

 

         Irascibilidade e mais uma coisa sumamente chocante

Dessa forma veio o mês de agosto e, logo no seu princípio, o primeiro aniversário da chegada do nosso herói. Felizmente, a data passou despercebida. Ainda bem que foi assim. Hans Castorp pressentira-a com certo mal-estar. E isso era a regra ali em cima. Ninguém gostava do dia da chegada. Os veteranos e mesmo os pensionistas com apenas um ano de permanência não costumavam comemorá-lo. Se bem que normalmente se aproveitasse qualquer pretexto para festividades e bebedeiras alegres, se bem que o número dos acentos gerais e importantes que marcavam o ritmo e a pulsação do ano fosse aumentado por muitíssimos outros de natureza privada e irregular, se bem que aniversários natalícios, exames médicos, iminências de partidas, quer autorizadas, quer “em falso”, dessem motivos para comezainas no restaurante e para festins regados a champanha, essa data habitualmente era relegada ao silêncio. Os pensionistas passavam por cima dela ou esqueciam-na realmente. Em todo caso, podiam-se fiar em que os outros tampouco a recordariam com muita precisão. Sem dúvida, era costume prestar atenção às subdivisões do tempo; observava-se o calendário, a sucessão, a volta de determinado dia. Mas medir e contar aquele tempo que para uma certa pessoa se associava ao espaço ali de cima – isto é, o tempo particular e individual – cabia a principiantes e a pacientes de curto prazo; os mais traquejados preferiam a imensidão, a eternidade despercebida, o dia que era sempre o mesmo, e cada um tinha suficiente delicadeza para supor nos demais o desejo que ele próprio alimentava. Dizer a um enfermo: “Hoje faz três anos que o senhor está aqui”, seria julgado inábil e brutal. Era coisa que não acontecia. A própria Srª. Stöhr, por maiores que fossem os seus defeitos, demonstrava nesse ponto bastante tato e polidez, de maneira que nunca cometeria tamanha gafe. Sua enfermidade, o estado febril de seu corpo, estavam ligados, inegavelmente, a uma crassa ignorância. Havia só poucos dias, ela falara à mesa da “afetação” dos ápices dos seus pulmões, e durante uma conversa sobre assuntos históricos, declarara que as datas dos grandes feitos da história eram para ela uma espécie de “anel de Polícrates”, deixando estupefatos os comensais. Era, porém, inimaginável que fosse recordar, em fevereiro, ao jovem Ziemssen a data do seu jubileu, ainda que talvez se lembrasse dela; pois a sua infortunada cabeça estava naturalmente cheia de datas e coisas inúteis, e a Srª. Stöhr gostava de fazer as contas dos outros. Mas a tradição impedia-a de falar.

E o mesmo se deu no aniversário da chegada de Hans Castorp. No curso da refeição, a desgraçada procurara uma vez piscar-lhe o olho de modo significativo; mas como a fisionomia do jovem não desse nenhum sinal de compreensão, apressara-se a bater em retirada. Também Joachim deixará de manifestar-se, e todavia não esquecera a data em que fora à estação de Davos-Dorf para receber o primo visitante. Mas Joachim, por natureza pouco inclinado a conversar – muito menos do que Hans Castorp se mostrava ali em cima, sem falar de certos humanistas e disputadores da sua roda —, Joachim exibia nos últimos tempos uma taciturnidade singular e surpreendente. Só se expressava em monossílabos, embora o seu semblante revelasse um violento trabalho interior. Era evidente que a estação de Davos-Dorf despertava nele outras idéias que não as de chegada e de recepção... Mantinha intensa correspondência com a planície. Dentro dele, decisões iam amadurecendo. Os preparativos que fazia aproximavam-se do fim.

O mês de julho fora quente e cheio de sol. Mas com o princípio do novo mês irrompeu uma onda de mau tempo, com uma umidade brumosa e com chuvas mescladas de neve, seguidas de uma nevada incontestável. Esse tempo estendeu-se, interrompido por alguns esplêndidos dias de verão, além dos fins de agosto, até pleno setembro. No começo, os quartos continuavam conservando o calor do período estival precedente; registravam-se dez graus no seu interior, o que passava por temperatura agradável. Mas aos poucos aumentava o frio, e o aspecto da neve que caía sobre o vale causou viva satisfação, porque só ele – a queda de temperatura não teria bastado – decidiu a “administração” a acender o aquecimento central, em primeiro lugar na sala de refeições e depois também nos quartos; e quem, após ter cumprido o dever do repouso, se desembaraçasse dos seus dois cobertores e, abandonando a sacada, entrasse no aposento, podia tocar com as mãos úmidas e enregeladas os radiadores reanimados, cuja emanação seca intensificava o ardor das faces.

Era isso o inverno? Os sentidos dificilmente se esquivavam a essa impressão, e todos lamentavam “terem sido roubados do verão”, posto que eles mesmos, ajudados por circunstâncias artificiais e naturais, por um pródigo consumo de tempo, o tivessem escamoteado a si próprios. A razão argumentava que ainda viriam uns belos dias de outono, talvez até toda uma série deles, e de tamanho esplendor cálido que não seria excessiva honra atribuir-lhes o nome de verão – uma vez que se fizesse abstração da órbita do sol já menos oblíqua e do fato de anoitecer mais cedo. Mas o efeito que a paisagem hibernal exercia sobre a alma era mais forte do que esse tipo de consolo.. Os enfermos colocavam-se junto à porta cerrada da loggia e contemplavam com repugnância o torvelinho que se abatia lá fora. Pelo menos era essa a atitude de Joachim, que disse numa voz oprimida:

– Será que aquilo vai recomeçar agora?

Hans Castorp respondeu do fundo do quarto:

– Seria um pouco prematuro. Só pode ser passageiro, apesar da aparência terrivelmente definitiva. Se o inverno consiste na escuridão, na neve, no frio e nos radiadores quentes, temos outra vez inverno; não há como negar. E quando considero que o inverno apenas acaba de terminar e mal passou o degelo – em todo caso nos parece que recém-saímos da primavera; não acha também? –, bem, então tomo um susto, francamente! Essas idéias são perigosas para o nosso otimismo. Vou lhe explicar por quê. Quero dizer que o mundo normalmente está organizado de maneira a corresponder às necessidades do homem e a estimular-lhe a alegria de viver; isso se deve admitir. Não vou ao ponto de dizer que a ordem natural das coisas, por exemplo, o tamanho da Terra, o tempo que ela precisa para dar uma volta em torno de si mesma e em torno do Sol, o ciclo das estações, o ritmo cósmico, se o quer chamar assim – que tudo isso obedeça às nossas necessidades; tal afirmação seria muito pretensiosa e simplista; seria pura ideologia, como dizem os filósofos. Mas o caso é que as nossas necessidades e os fatos básicos e gerais da natureza estão, graças a Deus, de acordo uns com os outros. Digo: “Graças a Deus!” porque aí temos realmente um motivo para dar graças a Ele. Na planície, quando vem o verão ou o inverno, já passou tanto tempo desde o verão ou o inverno anterior, que a estação que chega nos é outra vez nova e bem-vinda, e disso deriva a alegria de viver. Mas aqui em cima essa ordem e esse acordo têm sido perturbados, primeiro porque no fundo não há verdadeiras estações, como você mesmo me disse certa vez, mas somente dias de inverno e dias de verão pêle-mêle, numa completa mixórdia, e segundo porque aquilo que decorre para nós aqui não é tempo, de maneira que o inverno, quando chega, não é novo, mas sim o mesmo que o passado. Daí se explica o mau humor com que você está olhando pela janela.

– Muito obrigado – disse Joachim. – E agora que você me explicou o fato, parece-me tão satisfeito que até se conforma com a coisa em si, apesar de que ela... Não senhor! – exclamou Joachim. – Basta! Isso é uma porcaria! Tudo é uma enorme e nojenta porcaria! E se você, pela sua conta... Eu... – A passo apressado saiu do quarto, fechando furiosamente a porta atrás de si e, se não enganavam todos os sinais, havia lágrimas nos seus belos e brandos olhos.

O outro ficou atrás, consternado. Não tomara muito a sério certas decisões do primo, enquanto este se limitara a ameaças feitas em altos brados. Agora, porém, que alguma força operava silenciosamente no interior de Joachim e o primo se comportava como acabava de fazer, Hans Castorp aterrorizou-se, porque compreendia que esse militar era bastante homem para passar a agir. E o jovem ficou pálido de medo, medo que sentia por ambos, pelo outro e por si próprio. “Fort possible qu'il aille mourir”, pensou, e como isso indubitavelmente fosse uma sabedoria de terceira mão, mesclou-se com ela ainda a tortura de uma velha e jamais tranqüilizadora suspeita, enquanto continuava a cismar: “Será possível que ele me vá deixar sozinho aqui em cima, a mim que somente subi para visitá-lo?” E daí chegou a acrescentar: “Mas isso seria maluco e horroroso, a tal ponto que sinto como meu rosto se gela e meu coração lateja desordenadamente. Pois se eu ficar sozinho nestas alturas – e é isso o que farei, se ele partir; que o acompanhe absolutamente não entra em questão! —, nesse caso (agora o meu coração parou por completo!), nesse caso é para sempre, é para todos os tempos, porque eu sozinho nunca na vida reencontrarei o caminho que conduz à planície...”

Tais foram as temerosas reflexões de Hans Castorp. Aquela mesma tarde devia trazer-lhe certeza sobre o curso do porvir. Joachim declarou as suas intenções. Foram lançados os dados. Caiu o golpe decisivo.

Depois do chá desceram ao bem-iluminado subterrâneo para apresentar-se ao exame mensal. Era em princípios de setembro. Ao entrarem na atmosfera seca do consultório encontraram o Dr. Krokowski sentado no seu lugar diante da escrivaninha, ao passo que o conselheiro, com as faces muito azuladas, e com os braços cruzados, encostava-se à parede. Com o estetoscópio, que segurava numa das mãos, ia dando leves golpes no seu ombro. Bocejou em direção ao teto. – Bom dia, meus filhos – disse em voz fatigada. No decorrer da cena que se seguiu, continuou manifestando uma disposição bastante lânguida, cheia de melancolia e de renúncia geral. Provavelmente acabava de fumar. Mas tivera também alguns desgostos autênticos, dos quais os primos já tinham ouvido falar, incidentes de sanatório, de um gênero suficientemente conhecido. Tratava-se de uma jovem, de nome Ammy Nölting, que se internara no Berghof pela primeira vez no outono do ano retrasado e recebera alta nove meses depois, em agosto; mas já em setembro reaparecera, porque não “se sentira bem” em casa; em fevereiro, fora novamente mandada para a planície, com pulmões onde já não se percebia o menor ruído estranho; mas em meados de julho voltara a ocupar o seu lugar à mesa da Srª. Iltis. Haviam surpreendido a dita Ammy, à uma hora da madrugada, em companhia de um enfermo chamado Polypraxios, o mesmo grego que na noite do carnaval causara sensação pela elegância das suas pernas, um jovem químico, cujo pai possuía uma fábrica de tintas no Pireu. Polypraxios fora apanhado no quarto de Ammy, por uma amiga loucamente enciumada, que ali chegara pelo mesmo caminho que ele, isto é, pelas sacadas, e, dilacerada de mágoa e de raiva diante do quadro que se lhe oferecera, fizera uma gritaria medonha, alarmando todo mundo e dando origem a um escândalo extraordinário. Behrens vira-se obrigado a despedir os três, o ateniense, a Nölting e a amiga, que, de tanta paixão, não se importara com a própria honra. Acabava de discutir o chocante assunto com o assistente a cuja clientela particular haviam pertencido tanto Ammy como a amiga. Ainda durante o exame dos primos prosseguiu preocupando-se com o caso, num tom sombrio e resignado; era um perito tão consumado na arte da auscultação que sabia explorar o interior de um enfermo enquanto falava de outra coisa, e ainda ditava ao assistente os fenômenos verificados.

– Pois é, gentlemen, sempre essa maldita libido! – disse. – Claro que os senhores se divertem com a história. Pouco se lhes dá... Vesicular... Mas um diretor de sanatório fica com nojo dessas coisas; podem... Maciez... podem me acreditar. Que culpa tenho eu de que a tísica ande freqüentemente acompanhada de extrema concupiscência? Respiração levemente rude... Não fui eu quem arranjou o mundo dessa maneira. Mas antes que a gente se dê conta disso, acha-se no papel de um dono de rendez-vous. Diminuição do murmúrio, abaixo da axila esquerda... Temos a análise, proporcionamos oportunidades para desabafarem. Que adianta? Quanto mais se abrem esses piratas, mais assanhados se tornam. Eu recomendo as matemáticas... Aqui melhorou; desapareceram os roncos... A ocupação com as matemáticas, digo eu, é o melhor remédio que existe contra a lascívia. O Promotor Paravant, que muito sofria da tentação, meteu-se a estudá-las. Anda às voltas com a quadratura do círculo e sente-se bastante aliviado. Mas a maioria é por demais estúpida e preguiçosa para isso; quê Deus lhes perdoe!... Vesicular... Olhe, eu sei perfeitamente que a mocidade aqui em cima facilmente toma um mau caminho e se deprava por completo. Antigamente fiz algumas tentativas de intervir nesses casos de devassidão. Mas aconteceu que qualquer irmão ou noivo me perguntava à queima-roupa o que eu tinha com isso. Desde então limito-me a ser um simples médico e nada mais. Ligeiro estertor à direita, na parte superior...

Estava terminado o exame de Joachim. O Dr. Behrens enfiou o estetoscópio no bolso do avental e esfregou os olhos com a manzorra esquerda, como costumava fazer, quando “se ausentava” ou se sentia melancólico. Quase maquinalmente, entre bocejos mal-humorados, recitou a sua lição:

– Pois então, Ziemssen, ânimo! É verdade que nem tudo corre exatamente como o exige o manual de fisiologia. Aqui e ali anda ainda encrencado, e o senhor, por enquanto não liquidou a sua conta com Gaffky. Pelo contrário, comparado com a última vez, até subiu um grau na escala. Desta vez são seis. Mas não chore por causa disso! Quando chegou aqui, estava mais doente do que hoje; isso lhe dou por escrito. E se o senhor ficar conosco ainda uns cinco ou seis menses... Não acha que menses soa melhor do que meses? Eu tenciono só dizer menses, daqui em diante...

– Senhor conselheiro... – começou Joachim. Estava de pé, com o torso desnudo, numa atitude tesa. Tinha o peito saliente, os calcanhares unidos e as mesmas manchas terrosas no rosto que tivera em certa ocasião, quando Hans Castorp pela primeira vez notara que esse era o modo como empalidecia a tez bronzeada.

– Se o senhor – prosseguiu Behrens, sem se importar com a interrupção – continuar aqui cumprindo religiosamente os deveres do regime, durante meio ano, pouco mais ou menos, será um homem curado e poderá tomar Constantinopla de assalto. Terá bastante fortaleza para conquistar todas as fortalezas que quiser...

Deus sabe quantos trocadilhos o médico, na sua disposição sombria, ainda teria feito, não o tivessem desconcertado o aspecto imperturbável de Joachim e a sua manifesta intenção de falar, e de falar corajosamente.

– Senhor conselheiro – disse o jovem –, eu lhe queria dar parte de que resolvi viajar.

– Ora veja! Quer tornar-se viajante? Eu pensava que o senhor, uma vez curado, pretendia ingressar nas fileiras.

– Não, senhor conselheiro, tenho de partir imediatamente, daqui a uns oito dias.

– Escute! Será que o entendo bem? O senhor quer ir-se, quer pôr-se em fuga? Sabe que isso se chama deserção?

– Não, senhor conselheiro, eu não o considero assim. Preciso apresentar-me ao meu regimento.

– Mesmo que eu lhe diga que dentro de meio ano sem falta poderei autorizá-lo a partir, mas antes desse prazo, não?

Joachim ia assumindo atitude cada vez mais militar. Recolhendo o ventre, disse laconicamente, em voz sufocada:

– Faz mais de um ano e meio que estou aqui, senhor conselheiro. Não posso esperar mais tempo. No começo, o senhor me disse: “Três meses”. Depois, o meu tratamento foi sucessivamente prolongado por outros três ou seis meses, e ainda não estou curado.

– A culpa é minha?

– Não, senhor conselheiro. Mas eu não posso esperar mais tempo. Não me é possível aguardar aqui a cura completa, a não ser que eu queira perder o momento oportuno. Tenho de partir logo. Necessito ainda de algum tempo para me equipar e para tomar diversas providências...

– A sua família concorda com o seu procedimento?

– Minha mãe está de acordo. Já ficou tudo combinado. A 1.° de outubro entrarei no Regimento 76, como aspirante.

– Enfrentando todos os riscos? – perguntou Behrens, fixando nele os olhos injetados...

– Sim, senhor conselheiro – respondeu Joachim, com os lábios trêmulos.

– Hum! Está bem, Ziemssen – disse o conselheiro, mudando de expressão. Relaxando a sua posição, cedeu em toda a linha. – Está bem, Ziemssen. Mexa-se! Parta! Deus o acompanhe! Já vejo que o senhor sabe o que quer. Uma coisa é certa, que as conseqüências são da sua conta e não da minha, desde o momento em que o senhor toma a si a responsabilidade. Ajuda-te, e ajudar-te-ei. O senhor parte por sua conta e risco; eu não garanto nada. Mas, afinal, tudo pode sair bem. O senhor escolheu uma profissão que se exerce ao ar livre. É perfeitamente possível que se dê bem com ela e consiga triunfar.

– Sim, senhor conselheiro.

– E esse jovem da classe dos civis? Será que o senhor deseja participar da romaria?

Essa pergunta dirigia-se a Hans Castorp. Achava-se este ali, tão pálido como há um ano atrás, quando daquele exame do qual resultará o seu internamento; quedava-se no mesmo lugar de então; e novamente se viam com absoluta nitidez as batidas do seu coração, que pulsava à flor da pele.

– Para mim depende tudo da sua opinião, senhor conselheiro – respondeu.

– Da minha opinião? Bem! – E puxando-o pelo braço, Behrens aproximou-o de si. Auscultou. Percutiu. Não ditou nada. A coisa foi rápida. Quando terminou, disse:

– O senhor pode partir.

Hans Castorp balbuciou:

– Quer dizer... Mas como? Estou curado?

– Sim, o senhor está curado. Daquele lugar à esquerda, em cima, já não vale a pena falar. Sua temperatura não pode ter relação com ele. Não sei dizer de onde ela vem. Acho que não tem grande importância. Quanto a mim, o senhor pode partir.

– Mas, senhor conselheiro... Permita-me a pergunta... O senhor está falando sério?

– Se eu falo sério? Mas como? Que idéia é essa? Eu queria saber o que o senhor pensa de mim. Por quem me toma? Por um dono de rendez-vous?

Era uma explosão de cólera. O azul das faces do médico intensificara-se, assumindo um tom violeta, devido à congestão ardente. A crispação unilateral do lábio, sob o bigodinho, acentuara-se violentamente, a ponto de descobrir os amarelados dentes de cima. Avançando como um touro a cabeça com os olhos saltados, lacrimosos e estriados de sangue, berrou:

– Não admito isso! Antes de tudo fique sabendo que não sou dono de nada! Sou um funcionário desta empresa! Sou médico! Sou exclusivamente médico; o senhor me compreende? Não sou alcoviteiro, não sou nenhum Signor Amoroso da Via Toledo, na bela Nápoles; entendeu-me bem? Sou um servidor da humanidade sofredora! E se os senhores tiverem formado uma opinião diferente a respeito da minha pessoa, podem ambos ir às favas ou ao diabo ou águas abaixo, conforme a sua livre escolha! Boa viagem!

A passos longos e apressados saiu pela porta que dava para a ante-sala do gabinete de radiografia, e fechou-a estrondosamente atrás de si.

Os primos olharam para o Dr. Krokowski em busca de um conselho. Mas este enterrou o nariz na papelada, que o absorvia por completo. Vestiram-se às pressas. Enquanto subiam pela escada, disse Hans Castorp:

– Foi terrível, aquilo. Você já o viu assim em outra ocasião?

– Assim, nunca. São aqueles seus ataques de loucura cesárea. A única coisa que se pode fazer é agüentá-los sem perder a linha. Claro que ele estava nervoso por causa da história de Polypraxios e da Nölting. Mas você viu... – continuou Joachim, e era visível que o prazer de ter lutado com êxito lhe enchia o coração e lhe oprimia o peito – você viu como ele cedeu terreno e capitulou, quando percebeu que eu não estava brincando? Basta que a gente se mostre enérgico e não se deixe atemorizar. Agora recebi uma espécie de autorização... O próprio Behrens disse que, provavelmente, conseguirei triunfar... Daqui a oito dias partiremos... Em três semanas, já me apresentarei ao meu regimento – terminou, corrigindo-se a si próprio e limitando à sua própria pessoa esses projetos que lhe faziam a voz vibrar de alegria.

Hans Castorp permaneceu calado. Não comentou a “autorização” de Joachim, nem tampouco a sua própria, da qual igualmente poderia ter falado. Preparou-se para o repouso. Introduziu o termômetro na boca. Com umas poucas manobras velozes e precisas, cheias de arte aperfeiçoada, envolveu-se nos seus dois cobertores de lã de camelo, em conformidade com aquela prática sagrada da qual ninguém tinha idéia na planície. Depois, deixou-se ficar estendido, imóvel, transformado num rolo simétrico, sobre a excelente espreguiçadeira, no meio da umidade fria da tarde de princípios de outono.

As nuvens carregadas de chuva deslizavam muito baixo. A bandeira do estabelecimento achava-se arriada. Restos de neve encontravam-se nos galhos molhados do abeto. Do alpendre do andar térreo, donde, fazia mais de um ano, ressoara pela primeira vez a voz do Sr. Albin, o murmúrio de conversas abafadas subia até os ouvidos do jovem que cumpria o seu serviço, enquanto seus dedos e seu rosto rapidamente se tornavam frios, úmidos e enregelados. Hans Castorp estava acostumado a isso e aceitava com gratidão o estilo de vida ali de cima, que havia muito era para ele o único imaginável e lhe outorgava a bênção de ficar deitado ao abrigo de tudo e de poder entregar-se a toda sorte de pensamentos.

Era coisa resolvida. Joachim partiria. Radamanto dera-lhe alta – não rite, não como curado, mas em todo caso dera-lhe alta, com uma meia aprovação, em virtude da sua atitude firme. O primo viajaria no trem de bitola estreita, desceria à “baixada”, até Landquart, até Romanshorn, para depois transpor o vasto e profundo lago, sobre o qual cavalgara o cavaleiro da lenda; e finalmente, regressaria, atravessando a Alemanha inteira. Viveria lá embaixo, no ambiente da planície, rodeado de pessoas que ignoravam por completo como se devia viver, que nada sabiam do termômetro, nem da arte de se envolver nos cobertores, do saco de peles, dos três passeios cotidianos, de... Era difícil, difícil esgotar tudo quanto desconheciam lá embaixo. Mas a idéia de que Joachim, depois de ter passado mais de um ano e meio ali em cima, viveria doravante entre os ignorantões – essa idéia que só dizia respeito a Joachim, e apenas vaga, hipoteticamente, a ele, Hans Castorp, perturbou-o de tal forma que fechou os olhos e fez com a mão um gesto de defesa. – Impossível, impossível! – murmurou.

Uma vez que era impossível, continuaria ele a viver ali em cima sozinho, sem Joachim? Sim. Por quanto tempo? Até que Behrens lhe desse alta como curado, e isso seriamente, não como acabava de fazê-lo. Mas, em primeiro lugar era esse momento de tal forma indeterminado, que para fixá-lo só se podia repetir aquele gesto vago que Joachim esboçara em certa ocasião; e, em segundo lugar, era duvidoso que o impossível de agora se tornasse mais possível no futuro. O contrário parecia mais provável. Era preciso reconhecer lealmente que nesse momento em que o impossível talvez ainda não fosse tão impossível como o seria mais tarde, uma mão estava sendo estendida para segurá-lo; pelo fato da partida “em falso” de Joachim, eram-lhe oferecidos um bastão e um guia para conduzi-lo à planície, para onde ele, pela sua própria força, jamais encontraria o caminho. A pedagogia humanística, se ficasse sabendo dessa oportunidade, quanto não o exortaria a que agarrasse o bastão e aceitasse o guia! Ora, o Sr. Settembrini representava coisas e potências interessantes, sem dúvida, mas não exclusivas e absolutas; e o mesmo ocorria com Joachim. O primo era militar. Partia, quase na hora do projetado regresso de Marusja, a moça dos seios opulentos, que, como sabemos, devia voltar a 1.° de outubro. Ao civil Hans Castorp, porém, a partida afigurava-se impossível precisamente porque ele tinha de esperar por Clávdia Chauchat, de cuja volta, por enquanto, nem sequer se falava. “Eu não o considero assim”, dissera o primo, quando Radamanto usara o termo “deserção”, que, com referência a Joachim, evidentemente não passava de um disparate e de um exagero do médico agastado. Mas ao civil apresentavam-se as coisas sob um aspecto diferente. No seu caso – ah, indubitavelmente era assim, e fora na intenção de desenvolver essa idéia decisiva do complexo dos seus sentimentos que se estendera na espreguiçadeira, apesar do frio úmido – no seu caso seria mesmo desertar se ele aproveitasse a ocasião e partisse mais ou menos “em falso” para a planície; fugiria então das responsabilidades que se desdobravam diante dele, devido à visão daquela forma sublime que se chamava Homo Dei; desatenderia os deveres que lhe impunha o seu “reino”, deveres laboriosos e excitantes, que ultrapassavam as suas forças inatas e todavia o enchiam de uma felicidade aventurosa, quando se consagrava a eles no seu compartimento de sacada ou naquele lugar florido de azul.

Hans Castorp tirou o termômetro da boca, com tamanha violência como só lhe acontecera numa única ocasião: quando o usara pela primeira vez, logo depois de ter adquirido da Superiora o delgado instrumento. Examinou-o com a mesma curiosidade de então. O mercúrio subira consideravelmente. Mostrava 37,8 – quase 9.

O jovem jogou para longe os cobertores, levantou-se de um salto, deu alguns passos rápidos através do quarto, em direção à porta do corredor. Depois voltou à cadeira. Achando-se novamente na posição horizontal, chamou em voz baixa a Joachim e informou-se da temperatura do primo.

– Não tirei – respondeu este.

– Bem, eu tenho tempus – disse Hans Castorp, servindo-se da expressão da Srª. Stöhr. Joachim, atrás da divisão de vidro, permaneceu silencioso.

Mais tarde nada disse tampouco, nem nesse dia nem nos seguintes. Não fez perguntas a respeito dos projetos e das decisões de Hans Castorp, que, dada a brevidade do prazo, tinham de se revelar naturalmente, por atos ou pela ausência de atos. E foi a segunda alternativa que se deu. Hans Castorp parecia ter aderido ao quietismo, segundo o qual agir significava ofender a Deus, que se reserva o privilégio de fazê-lo. Em todo caso limitara-se sua atividade, nesses últimos dias, a uma visita a Behrens, da qual Joachim sabia, e cujo resultado lhe era fácil imaginar. O primo havia declarado que se permitia recordar as numerosas advertências antigas que o conselheiro lhe fizera no sentido de que esperasse a cura completa, para que não tivesse necessidade de voltar, e atribuir-lhes maior importância do que às palavras veementes, pronunciadas num minuto de exaspero. Tinha 37,8 e não se podia considerar como formalmente autorizado a partir. A não ser que aquilo que o conselheiro proferira naquela ocasião devesse ser interpretado como uma expulsão – medida que ele, Hans Castorp, não achava merecer –, desejava comunicar a sua decisão, à qual chegara pelo caminho do raciocínio calmo e em desacordo consciente com Joachim: permaneceria por enquanto ali e aguardaria sua desintoxicação total. A isso, o médico respondera aproximadamente: “Muito bem” e “Vamos pôr uma pedra no que se passou!” e “Isso é falar razoavelmente. Eu vi logo que o senhor tem mais talento para ser um bom paciente do que aquele desertor, aquele ferrabrás”. E outras coisas nesse gênero.

Fora esse, segundo as conjeturas mais ou menos exatas de Joachim, o curso da entrevista. Por isso não disse nada. Apenas verificou em silêncio que Hans Castorp não imitava as medidas que ele mesmo tomava para preparar a viagem. Por outro lado, o bom Joachim andava mais que atarefado com os seus próprios problemas. Realmente não lhe era possível preocupar-se com a sorte e o futuro domicílio do primo. Uma tempestade agitava-lhe o peito, como facilmente se pode compreender. Ainda bem que tinha deixado de tomar a temperatura pretendendo que o termômetro se quebrara, caindo no chão; se a houvesse tomado, teria talvez obtido resultados perturbadores, sobreexcitado como estava, possuído de alegria e de impaciência, que ora lhe abrasavam as faces com um ardor sombrio, ora as faziam empalidecer. Já não era capaz de permanecer deitado. Durante todo o dia, Hans Castorp ouvia-o percorrer o aposento a passos largos, e eram precisamente as horas, quatro vezes por dia, em que no Berghof predominava a posição horizontal... Um ano e meio! E agora voltaria à planície, estaria em casa, apresentar-se-ia realmente ao regimento, se bem que para isso tivesse apenas meia autorização. Não era brinquedo, absolutamente! Hans Castorp tinha plena compreensão dos sentimentos do primo que ali caminhava, irrequieto. Dezoito meses, todo o ciclo de um ano e mais a metade de outro – Joachim passara-os nessas alturas, criando raízes profundas nesse solo, seguindo os trilhos do regime que aqui vigorava, desse plano inalterável da vida de sanatório, que observara durante sete vezes setenta dias, em todas as estações – e agora regressaria aos seus, viveria no “estrangeiro”, entre os ignorantes! Quantas dificuldades de aclimatação não o esperariam lá embaixo? E seria de admirar que não somente houvesse alegria na grande excitação de Joachim, senão também um quê de angústia, de mágoa causada pela despedida de tantas coisas muitíssimo costumeiras? Sem falar de Marusja...

Mas a alegria preponderava. O coração e a boca do bom Joachim estavam transbordantes dela. Ocupava-se só de si próprio, desinteressando-se do futuro do primo. Dizia que tudo seria novo e viçoso – a vida, ele mesmo, o tempo, cada dia, cada hora. Voltaria a desfrutar um tempo valioso, anos de juventude que decorreriam lentamente e pesariam na balança. Falava da mãe, a tia de Hans Castorp, que tinha os mesmos olhos meigos e negros de Joachim; da mãe que não vira durante todo esse tempo passado nas montanhas, porque ela, esperando a volta do filho, do mesmo modo que este, de mês em mês, de semestre em semestre, nunca se resolvera a visitá-lo. Falava, com um sorriso entusiástico, do juramento à bandeira que prestaria dentro em breve: a cerimônia solene era realizada em presença da bandeira, e jurava-se sobre o próprio estandarte. – Não diga! – admirou-se Hans Castorp. – Seriamente? Sobre um pau e um pedaço de pano?

– Sim, senhor. E na artilharia juram sobre o canhão, simbolicamente.

– Que costumes românticos! – observou o civil. – Costumes que merecem a qualificação de sentimentais e fanáticos.

A isso, Joachim limitou-se a sacudir a cabeça, cheio de orgulho e de felicidade.

Absorvia-se nos preparativos. Pagou a última conta na “administração”. Dias antes do prazo que se fixara a si mesmo, começou a arrumar as malas. Emalou as roupas de verão e as de inverno. Mandou o criado costurar dentro de uma capa de aniagem o saco de peles e os cobertores de lã de camelo; talvez lhe pudessem ser úteis por ocasião das grandes manobras. Pôs-se a dizer “adeus” a todo mundo. Fez uma visita de despedida a Naphta e Settembrini – sozinho, pois o primo não o acompanhou, dessa vez, nem tampouco perguntou pelo que o italiano observara quanto à partida iminente de Joachim e à “não-partida” de Hans Castorp. Para este, pouco importava saber se Settembrini dissera “Vejam só!” ou “Sim, sim, sim!”, ou talvez um e outro, ou se ainda acrescentara “Poveretto!”

Chegou então a véspera da viagem, o dia em que Joachim percorreu pela última vez todas as fases do programa diário, cada refeição, cada repouso, cada passeio, e também se despediu dos médicos e da Superiora. E surgiu a própria manhã do dia da partida. Com os olhos ardentes e as mãos frias, Joachim apareceu na hora do café. Não dormira a noite toda. Mal engoliu um bocado, e quando a anã anunciou que a bagagem já se achava amarrada no carro, levantou-se de um pulo, a fim de dizer adeus aos companheiros de mesa. A Srª. Stöhr verteu lágrimas, durante a despedida, as lágrimas fáceis e insípidas peculiares às pessoas incultas; mas, por trás das costas de Joachim, fez à professora uma careta, encolhendo os ombros e meneando a mão espalmada para manifestar, de uma forma sumamente ordinária, as suas dúvidas quanto à propriedade da partida do jovem e ao seu futuro bem-estar. Hans Castorp reparou nesse gesto, enquanto, já de pé, esvaziava a sua xícara, para seguir o primo. Restava ainda distribuir as gorjetas e retribuir, no vestíbulo, os cumprimentos oficiais de um emissário da “administração”. Como sempre, alguns pensionistas estavam presentes para assistir ao bota-fora: a Srª. Iltis, com o “esterilete”, a Levi, a moça da pele de marfim, o excêntrico Professor Popov, em companhia da noiva. Abanaram os lenços, quando o coche, refreado nas rodas traseiras, desceu pela rampa. Joachim recebera um ramalhete de rosas. Usava chapéu, ao contrário de Hans Castorp.

A manhã era magnífica, o primeiro dia de sol depois de muitos nublados. O Schiahorn, as Grüne Türme, o cimo do Dorfberg, destacavam-se do azul como símbolos inabaláveis, e os olhos de Joachim repousavam sobre eles. – É mesmo uma lástima – observou Hans Castorp – que o tempo tenha melhorado tanto, precisamente no momento da partida. Parece que há nisso uma certa maldade, uma vez que a impressão final desfavorável facilita a separação. – Ao que Joachim replicou que não precisava de nada que lhe tornasse a separação mais fácil, e que esse tempo era ótimo para o seu preparo militar. Assim se daria muito bem lá embaixo. Afora essas poucas palavras, não falaram muito. Dada a situação de cada um deles em particular e a que existia entre eles, realmente não sobrava assunto para grandes conversas. Além disso, o porteiro coxo achava-se sentado à sua frente, ao lado do cocheiro.

Eretos, sacudidos sobre o estofamento duro do carro, haviam deixado atrás o regato e os trilhos de bitola estreita. Seguiram então a estrada espaçadamente ladeada de habitações e paralela ao leito da via-férrea. Finalmente, pararam na praça pedregosa, em frente à estação de Davos-Dorf, que não era muito mais que um telheiro. Hans Castorp assustou-se ao reconhecer tudo isso. Desde a sua chegada, que se realizara de tardezinha, fazia mais de treze meses, não voltara a ver a estação. – Foi aqui que cheguei – constatou desnecessariamente, e Joachim limitou-se a responder: – Pois é... – enquanto pagava o cocheiro.

O enérgico porteiro coxo dedicou-se à compra da passagem e ao despacho das bagagens. Os primos achavam-se lado a lado sobre a plataforma, diante do trenzinho, junto do pequeno compartimento forrado de cinzento, onde Joachim pusera o sobretudo, o cobertor de viagem enrolado e as rosas, para reservar o seu lugar. – Bem, agora pode ir prestar o seu romântico juramento – disse Hans Castorp, e Joachim tornou: – Sem falta! – E que mais? Encarregou o outro de transmitir as últimas saudações, lembranças aos de baixo, lembranças aos de cima. Depois, Hans Castorp limitou-se a desenhar com a bengala no asfalto. Quando soou o sinal prevenindo os passageiros da iminência da partida, sobressaltou-se. Olhou Joachim, e este o olhou por sua vez. Apertaram-se as mãos. Hans Castorp esboçou um sorriso indeciso, ao passo que os olhos do primo mostravam-se sérios, tristes e insistentes. – Hans! – disse então... Grande Deus! Onde, em todo o vasto mundo, já se viu uma coisa tão chocante? Joachim acabava de tratar Hans Castorp pelo primeiro nome, não por “você” ou “rapaz”, como sempre havia feito; desconsiderando todos os seus princípios de rigidez e de reserva, abandonando-se a uma exuberância escandalosa, pronunciara o nome de batismo do primo. – Hans – repetiu, enquanto lhe apertava a mão com uma pressa angustiada. Hans Castorp notou que a nuca de Joachim, exausto pela insônia, pelo nervosismo da viagem e pelo abalo da despedida, tremia como fazia a sua própria, quando estava “reinando”. – Hans – disse Joachim, instantemente —, não deixe de seguir-me em breve! – Com isso saltou para o estribo. Fechou-se a porta. Ouviu-se um apito. Os carros entrechocaram-se. A pequena locomotiva pôs-se em movimento. O trem estava partindo. O viajante abanou o chapéu pela janela. O outro, que ficava atrás, respondeu com a mão. Com o coração profundamente emocionado permaneceu ainda por muito tempo ali, sozinho. Depois, regressou devagar pelo caminho que Joachim, havia mais de um ano, lhe tinha mostrado.

 

         Assalto rechaçado

A roda girava. O ponteiro ia avançando. Já terminara a época do salepo e da aqüilégia; o cravo silvestre desaparecera também. As estrelas azuis da genciana, bem como os pálidos e venenosos lírios verdes, tornavam a apontar na grama úmida. Por cima dos bosques pairava uma aura avermelhada. O equinócio de outono acabava de transcorrer. O Dia de Finados achava-se próximo, e para os mais treinados consumidores do tempo, também o domingo do Advento, o dia mais curto do ano, e a festa do Natal. Por enquanto, porém, desfiava-se ainda uma série de belos dias de outubro, dias da espécie daquele em que os primos haviam ido ver os quadros do conselheiro.

Desde a partida de Joachim, Hans Castorp não mais tomava as refeições à mesa da Srª. Stöhr, a mesma que o Dr. Blumenkohl abandonara para morrer, e onde Marusja procurara abafar no lencinho perfumado de flor de laranjeira a sua maljustificada hilaridade. Agora achavam-se ali pensionistas novos, pessoas completamente desconhecidas. O nosso amigo, porém, entrado no terceiro mês do segundo ano da sua estadia, recebera da “administração” um outro lugar, numa mesa vizinha, mais próxima da porta que dava para o avarandado, colocada perpendicularmente entre a antiga e a dos “russos distintos”, numa palavra: a mesa de Settembrini. Sim, novamente lhe coubera a ponta, em frente ao lugar do médico, que em cada uma das sete mesas ficava reservado ao uso esporádico do conselheiro ou do seu assistente.

Na outra extremidade, à esquerda do assento do médico-presidente, tronejava sobre diversas almofadas aquele mexicano corcunda, o fotógrafo diletante, cuja expressão, em virtude de seu isolamento lingüístico, se assemelhava à de um surdo. A seu lado ficava a solteirona da Transilvânia, que como já deplorara Settembrini, pretendia interessar o mundo inteiro pelo seu cunhado, se bem que ninguém soubesse nada desse homem nem quisesse saber. Tendo atrás da nuca uma bengala de punho de prata, que também lhe prestava serviços durante os passeios regulamentares, via-se essa criatura, a certas horas do dia, junto da platibanda da sua sacada, empenhada em alargar o peito chato como uma bandeja por meio de exercícios respiratórios. Defronte a ela achava-se um tcheco, que chamavam Sr. Wenzel, já que ninguém era capaz de pronunciar o seu nome de família. Settembrini, em seu tempo, fizera às vezes tentativas no sentido de articular a exótica seqüência de consoantes de que se compunha esse nome; claro que não o fizera numa intenção séria, senão para demonstrar graciosamente a impotência da sua nobre língua de latino em face daquele amontoado selvagem de sons. Esse homem, embora fosse redondo como uma bola e se distinguisse por uma voracidade sensacional mesmo entre os pensionistas, afirmava, desde havia quatro anos, que estava fadado a morrer. Durante as reuniões noturnas, tocava de vez em quando, num bandolim enfeitado de fitas, as canções da sua terra, ou contava historietas das suas plantações de beterrabas, onde trabalhavam exclusivamente lindas pequenas. Mais perto de Hans Castorp, a ambos os lados da mesa, encontravam-se os Magnus, o cervejeiro de Halle e a sua esposa. Uma atmosfera de melancolia pairava em torno desse casal, porque ambos estavam perdendo substâncias essenciais para o metabolismo: o homem, açúcar, e a mulher, proteínas. A disposição de alma, sobretudo da pálida Srª. Magnus, parecia desprovida do menor traço de esperança. A vacuidade do espírito desprendia-se dela como um bafio de adega, e de forma ainda mais pura do que a inculta Srª. Stöhr representava ela a combinação de enfermidade e estupidez, de que Hans Castorp se escandalizara espiritualmente, sendo por isso repreendido pelo Sr. Settembrini. O Sr. Magnus revelava maior viveza e loquacidade, embora só daquele gênero que outrora originara as explosões da impaciência literária de Settembrini. Além disso, era colérico e freqüentemente tinha atritos com o Sr. Wenzel por motivos políticos e outros. Exasperavam-no as aspirações nacionalistas do tcheco, e ainda mais o fato de ele ser partidário do antialcoolismo e pôr em dúvida a moralidade da profissão de cervejeiro. Em oposição a isso, o Sr. Magnus, com o rosto rubro, defendia a perfeição higiênica da bebida à qual os seus interesses se achavam tão intimamente ligados. Em tais ocasiões, o Sr. Settembrini costumava fazer, humoristicamente, o papel de pacificador. Hans Castorp, no lugar dele, sentia-se menos hábil e não dispunha de suficiente autoridade para substituir o italiano.

O jovem não mantinha relações pessoais senão com dois dos seus comensais: o primeiro era A. C. Ferge, de Petersburgo, seu vizinho da esquerda, o sofredor bonachão que, sob as brenhas do bigode ruivo, sabia falar ora da fabricação de galochas ora de regiões longínquas, do círculo polar, das neves eternas do cabo Norte, e de vez em quando acompanhava Hans Castorp num dos passeios regulamentares. O segundo, porém, que se unia a eles cada vez que se oferecia uma oportunidade, e tinha o seu lugar na outra extremidade da mesa, em frente ao mexicano corcunda, era o homem de Mannheim, aquele moço de cabelos ralos e dentes defeituosos; chamava-se Wehsal, Ferdinand Wehsal, comerciante, e era o mesmo cujos olhares haviam ficado presos, com um desejo melancólico, à graciosa pessoa de Mme. Chauchat; desde o carnaval procurava obter a amizade de Hans Castorp.

Fazia-o com obstinação e humildade, com um servilismo suplicante que tinha, aos olhos de Hans Castorp, qualquer coisa de horroroso e repulsivo, porque compreendia o seu sentido complicado; mesmo assim, o jovem esforçava-se por acolhê-lo humanamente. Com uma expressão calma – pois sabia que o menor franzimento do cenho deixaria o rapaz pusilânime encolhido e sobressaltado – tolerava as maneiras subservientes de Wehsal, que aproveitava todas as ocasiões para inclinar-se diante dele e para bajulá-lo; permitia até que o outro, durante os passeios, lhe carregasse o sobretudo, função de que Wehsal se desempenhava com certo fervor; suportava a própria conversa escusa do homem de Mannheim. Wehsal tinha a mania de ventilar problemas como este: era ou não era razoável declarar o seu amor a uma mulher que se amava, mas que manifestamente não correspondia? Que achava da declaração de amor sem esperança? Ele, da sua parte, atribuía-lhe extraordinário valor; segundo a sua opinião, encerrava ela uma felicidade indizível. O ato da confissão, embora despertando repulsa e acarretando grandes vexames, garantia contudo por um instante o pleno contato amoroso com o objeto do desejo, que era forçado a receber a confidencia e a entrar na esfera da própria paixão. Mesmo que tudo terminasse nesse ponto, a perda eterna não representaria um preço excessivo pela volúpia desesperada de um único momento. O desabafo era um ato violento, e quanto maior a repugnância que se lhe opusesse, mais gozo proporcionaria... A essa altura, uma lua que anuviou a fisionomia de Hans Castorp fez com que Wehsal retrocedesse. Para dizer a verdade, tinha ela a sua origem na presença do jovial Sr. Ferge, o qual, como afirmava com freqüência, ficava totalmente alheio a quaisquer assuntos elevados e complexos, e não na austeridade puritana do nosso herói. Como sempre nos empenhamos em apresentá-lo nem melhor nem pior do que era, não omitimos o seguinte fato: certa noite, quando estava a sós com Hans Castorp, o pobre Wehsal, em palavras incolores, insistiu com ele para que lhe confiasse, por amor de Deus, alguns pormenores daqueles acontecimentos e daquelas experiências da noite de carnaval, que se haviam realizado depois do fim do baile; Hans Castorp atendeu a esse pedido com tranqüilidade benevolente, sem que – ao contrário do que o leitor talvez acredite – esse diálogo tivesse cunho leviano ou vil. Temos todavia razões fortes para manter afastados dessa cena tanto o leitor como nós próprios, e limitamo-nos a acrescentar que a partir do referido dia Wehsal carregava com redobrado ardor o casacão do condescendente Hans Castorp.

Já falamos bastante a respeito dos comensais de Hans Castorp. O lugar à sua direita estava vazio. Não fora ocupado senão passageiramente durante alguns dias, por um visitante. Um parente viera de visita da planície, um emissário, como se poderia dizer – numa palavra: tratava-se de James Tienappel, tio de Hans.

Era fantástico ver de repente como vizinho de mesa um representante e enviado da pátria, um homem que ainda trazia fresca no tecido inglês do terno a atmosfera do antigo, do submerso, da vida passada, do mundo dos vivos que existia lá embaixo. Mas era forçoso que isso acontecesse. Havia muito que Hans Castorp contara com tal ofensiva da planície e mesmo previra com exatidão a personalidade que seria incumbida do reconhecimento; o que, aliás, não fora muito difícil, já que Peter, o navegante, mal entrava em questão, e quanto ao tio-avô Tienappel era coisa sabida que nem dez cavalos o arrastariam a essas regiões, cuja pressão atmosférica lhe seria sumamente perigosa. Não, tinha de ser James o encarregado de investigar, em nome da família, a situação do parente extraviado. Hans Castorp esperara mesmo que ele chegasse antes. Desde que Joachim regressara sozinho e pusera a família a par do estado das coisas ali de cima, o assalto era iminente, mais do que iminente. Dessa forma, Hans Castorp não se surpreendeu nem um pouquinho, quando, duas semanas exatas depois da partida do primo, o porteiro lhe entregou um telegrama. Abriu-o, cheio de pressentimentos, e ficou sabendo da próxima chegada de James Tienappel. Este teria de resolver alguns assuntos pendentes na Suíça e aproveitaria a ocasião para fazer uma excursão até as alturas de Hans. Chegaria daí a dois dias.

– Bem! – pensou Hans Castorp. – Ótimo! – pensou, e acrescentou intimamente qualquer coisa parecida com “Corno quiser!” – Ah, se você tivesse idéia – disse, falando, nos seus pensamentos, com o parente que se aproximava. Numa palavra, inteirou-se da notícia com a mais completa calma. Transmitiu-a ao Dr. Behrens e à “administração”. Mandou reservar um quarto; o de Joachim estava ainda disponível. Dois dias após, à hora da sua própria chegada, isto é, pelas oito horas, já depois do escurecer, entrou no mesmo veículo mal-estofado em que havia pouco acompanhara Joachim, e encaminhou-se à estação de Davos-Dorf, para receber o emissário da planície que vinha endireitar a situação.

Com a tez rubicunda, sem chapéu nem sobretudo, achava-se à beira da plataforma quando o trenzinho entrou na estação. Pela janela do compartimento convidou o tio a descer tranqüilamente, porque já chegara ao seu lugar de destino. O Cônsul Tienappel – era vice-cônsul e substituía dignamente o pai também nesse cargo honorário – apareceu friorento, envolto no seu casaco de inverno. (Com efeito, a noite de outubro estava bastante fria, e pouco faltava para que pudesse ser qualificada de gélida; de madrugada certamente faria uma temperatura abaixo de zero.) Desembarcou, ali Clemente surpreendido, o que manifestou à maneira um tanto preciosa, ultracivilizada, peculiar aos cavalheiros distintos do norte da Alemanha. Cumprimentou o sobrinho-quase-primo, expressando, com enfáticos elogios, a satisfação que experimentava ao encontrá-lo com tão bom aspecto. Verificou que o porteiro coxo o dispensava de preocupar-se com a bagagem. Saiu da estação e galgou, em companhia de Hans Castorp, o alto e duro assento do coche. Sob o céu abundantemente estrelado puseram-se a caminho, e Hans Castorp, com a cabeça deitada para trás, explicou ao tio-primo as paragens celestes, circunscrevendo com palavras e gestos esta ou aquela constelação cintilante, e chamando os planetas pelos nomes. Enquanto isso, o outro, prestando maior atenção à pessoa do seu companheiro do que ao cosmo, dizia de si para si que era talvez admissível e não rematada loucura falar das estrelas, precisamente nesse momento, nesse lugar, e sem mais aquela, mas que existiam outros assuntos mais urgentes. Perguntou desde quando Hans Castorp estava tão familiarizado com aquele mundo longínquo, ao que o sobrinho replicou que devia esses conhecimentos ao repouso noturno que fazia na sacada, durante a primavera, o verão, o outono e o inverno.

– Como? Você fica de noite na sacada?

– Sim. E você fará a mesma coisa. Não há jeito de escapar a isso.

– Perfeitamente, compreendo – disse James Tienappel, complacente e um tanto intimidado. Seu irmão de criação continuou conversando sossegada e monotonamente. Sem chapéu, sem sobretudo, estava sentado junto dele, na frescura quase gelada da noite outonal. – Você não se ressente do frio? – perguntou James, que tiritava sob a grossa fazenda do casacão. Sua maneira de falar parecia ao mesmo tempo precipitada e hesitante, já que os seus dentes manifestavam a tendência de entrechocar-se. – Nós não sentimos o frio – respondeu Hans Castorp calma e laconicamente.

O cônsul não se cansava de olhá-lo de lado. Hans Castorp não procurou informar-se sobre os parentes e os conhecidos de casa. Recebeu, agradecendo impassivelmente, as lembranças que James lhe transmitiu, inclusive as de Joachim, que já se apresentara ao regimento e estava radiante de alegria e orgulho. Fê-lo sem pedir informações pormenorizadas a respeito das coisas da sua terra. James sentiu-se inquietado por um quê de natureza vaga, o qual não sabia se era irradiado pelo sobrinho ou se tinha a sua origem no seu próprio estado físico. Olhou em torno, sem distinguir muita coisa da paisagem alpina. Aspirou profundamente o ar, soltou-o e declarou que o achava magnífico. – Certamente – respondeu o outro. Não era sem motivo que esse ar adquirira tanta fama. Possuía virtudes poderosas. Acelerava a combustão geral, e no entanto permitia ao corpo assimilar as proteínas. Curava doenças que todos os homens traziam latentes em si, mas antes costumava dar a elas um vigoroso estímulo e causar, por meio de um impulso geral proporcionado ao organismo, a sua irrupção triunfal.

– Perdão! Por que triunfal?

– Sim. Você nunca notou que a irrupção de uma doença representa uma espécie de triunfo e constitui de certo modo uma festa do corpo?

– Perfeitamente, compreendo – apressou-se o tio a concordar, sem que pudesse conter o tremor da mandíbula inferior. A seguir anunciou que permaneceria oito dias, isto é, uma semana, ou melhor uns sete ou apenas seis dias. Repetiu que o aspecto de Hans Castorp lhe parecia extraordinariamente bom; o sobrinho estava muito mais robusto, devido a esse tratamento, cuja duração se estendera além de toda expectativa. Assim, era de supor que Hans Castorp regressaria junto com ele.

– Ora, ora, que precipitação é essa? – disse o jovem. O tio James falava à maneira lá de baixo. Bastaria que estudasse um pouco o “nosso” ambiente e se aclimatasse a ele, para que mudasse de idéia. Tudo dependia da cura definitiva. Só o definitivo tinha importância, e recentemente o Dr. Behrens lhe pespegara mais seis meses. Ao ouvir isso, o tio tratou-o por “meu filho” e perguntou se estava louco. – Está completamente doido?! – exclamou. Afinal de contas, essas férias já duravam quinze meses, e agora se falava de mais meio ano! Deus do céu, a gente não tinha tanto tempo! Mas Hans Castorp deu uma risada serena e abrupta, com a cabeça erguida em direção às estrelas. Pois sim, o tempo! Nesse ponto, justamente, com referência ao tempo humano, James teria de retificar, antes de mais nada, os conceitos que trouxera consigo da planície, antes de abrir a boca aqui em cima. – No seu interesse falarei seriamente com o Dr. Behrens, amanhã mesmo – prometeu Tienappel.

– Não deixe de falar – disse Hans Castorp. – Você gostará dele. É um tipo interessante, ao mesmo tempo enérgico e melancólico. – A seguir apontou para as luzes do Sanatório Schatzalp e se referiu, de passagem, aos cadáveres que eram transportados pela pista do trenó.

Jantaram juntos no restaurante do Berghof, depois de Hans Castorp ter levado o visitante ao quarto de Joachim, para dar-lhe uma oportunidade de se lavar um pouco. A peça fora fumigada com H2CO – contou Hans Castorp – Como se se tratasse, não de uma partida “em falso”, mas de uma de caráter bem diferente, quer dizer, de um exitus em vez de um exodus. E quando o tio pediu uma explicação do sentido dessas palavras, disse o sobrinho:

– É a gíria local; nossa maneira de falar... Joachim desertou. Fugiu para as fileiras do exército. Isto também existe. Mas, vamos, ligeiro, para que a gente ainda arranje alguma comida quente! – Sentaram-se um à frente do outro no restaurante agradavelmente aquecido, sobre o alto estrado. A anã atendeu-os sem demora, e James encomendou uma garrafa de borgonha, que foi trazida deitada numa cestinha. Chocaram os copos e deixaram-se penetrar pelo doce ardor do vinho. O sobrinho falou da vida que se levava ali em cima, no ciclo das estações; mencionou certas personagens da sala de refeições; passou para o pneumotórax, cujo processo explicou, citando o caso do jovial Sr. Ferge e alongando-se sobre o fenômeno horripilante do choque pleural, sem omitir as três síncopes de cor diferente, que o russo pretendia ter sofrido, bem como a alucinação do olfato, que desempenhava um papel importante no momento do choque, e da gargalhada que soltara ao desmaiar. Hans Castorp conduzia toda a conversa. James comeu e bebeu muito, segundo o seu costume, com um apetite que a mudança de ar e a viagem haviam estimulado. Mesmo assim interrompia de vez em quando o processo de alimentação e permanecia com a boca cheia, sem pensar em mastigar; mantendo a faca e o garfo em ângulo obtuso sobre o prato, cravava os olhos em Hans Castorp, aparentemente sem se dar conta disso. De resto, o sobrinho tampouco se melindrava com esse procedimento do tio. As veias inchadas ressaltavam nas fontes do Cônsul Tienappel, que estavam cobertas de ralos cabelos louros.

Não trataram dos acontecimentos da pátria, nem de coisas familiares ou pessoais, nem da cidade, nem dos negócios, nem finalmente da firma Tunder & Wilms, Estaleiros, Fábrica de Máquinas e Caldeiras, que prosseguia aguardando a chegada do jovem Hans Castorp, o que, porém, estava tão longe de ser a sua única ocupação, que caberia perguntar se de fato continuava esperando. Decerto, James Tienappel já aludira a todos esses assuntos, enquanto o carro os levava ao sanatório, e mais tarde tornara a fazê-lo, mas eles haviam caído ao chão e jaziam mortos, rejeitados pela indiferença tranqüila, decidida e perfeitamente natural de Hans Castorp, por algo que o tornava, em certo sentido, intangível e inatacável e fazia pensar na sua insensibilidade quanto ao frio da noite outonal ou naquelas suas palavras: “Nós não sentimos o frio”. Talvez fosse por isso que o tio o olhava de vez em quando, fixamente. A conversa focalizou também a Superiora, os médicos, as conferências do Dr. Krokowski. James poderia assistir a uma delas, se a sua estadia durasse oito dias. Quem dissera ao sobrinho que o tio tinha a intenção de ouvir a palestra do médico? Ninguém. Mas dava-o por garantido, presumia-o com uma segurança tão plácida, que o simples pensamento de não presenciar esse espetáculo devia parecer absurdo ao outro. Daí sucedeu que o tio se apressou a dizer “Perfeitamente, compreendo”, como para prevenir a suspeita de ter projetado uma coisa impossível. Era precisamente essa a força cujo efeito indistinto, porém imperioso, fazia com que o Sr. Tienappel, sem querer, fitasse o sobrinho – agora já com a boca aberta, pois obstruíra-se-lhe o canal respiratório do nariz, ainda que o cônsul não tivesse gripado. Ouviu como o parente falava da enfermidade que ali em cima formava o interesse profissional comum a todos, e da predisposição que certas pessoas tinham para contrai-la. Foi posto a par do caso do próprio Hans Castorp, caso sem gravidade, mas de cura lenta; da atração que os bacilos exerciam sobre o tecido celular das ramificações dos brônquios e dos alvéolos pulmonares; da formação de tubérculos; da secreção de venenos solúveis e embriagadores; da decomposição das células e do processo de caseificação, a cujo respeito era interessante saber se o mal se deteria em virtude de uma petrificação calcária e de uma cicatrização do tecido conjuntivo, curando-se dessa forma, ou se, pelo contrário, estenderia a sua área, criando cavernas cada vez maiores e corroendo o órgão. James Tienappel ficou sabendo da forma loucamente acelerada, “galopante”, desse processo, que em poucos meses e mesmo em algumas semanas levava ao exitus; informou-se sobre a pneumotomia, técnica magistralmente praticada pelo conselheiro, e sobre a ressecção pulmonar, que fariam no dia seguinte, ou em breve, numa doente recém-chegada em estado gravíssimo, uma escocesa outrora muito formosa, mas agora atacada de gangraena pulmonum, a necrose dos pulmões, de modo que nela operava uma peste negro-esverdeada, que a obrigava a respirar durante todo o dia uma solução vaporizada de ácido carbólico, para que não perdesse o juízo de tanto nojo de si própria... E de súbito aconteceu ao cônsul, inopinadamente e para a sua maior confusão, desatar a rir. Explodiu numa gargalhada, procurou imediatamente conter-se, dominou-se, espantado, tossiu e empenhou-se em disfarçar, por todos os meios, a gafe inexplicável. Verificou, porém, entre tranqüilizado e novamente inquieto, que Hans Castorp absolutamente não prestara atenção a esse incidente que não lhe podia ter escapado; bem ao contrário, o sobrinho passou por cima dele com uma displicência que não era devida ao tato, à consideração ou à cortesia, senão à mera indiferença e impassibilidade, e manifestava uma tolerância de dimensões exorbitantes, como se, de havia muito, fosse incapaz de estranhar ocorrências dessa espécie. No entanto, o cônsul, seja porque desejava encobrir posteriormente com um manto de siso e de lógica o seu acesso de hilaridade, seja por qualquer outro motivo, enveredou de repente numa conversa “só para homens” e, com as veias frontais túrgidas, meteu-se a falar de uma chansonnette, cantora de cabaré, mulher para lá de boa, que a essa época se exibia no bairro de Sankt Pauli e com os seus encantos carregados de paixão virava a cabeça ao mundo masculino da república hamburguesa. No decorrer dessa narrativa, a língua do tio James mostrou-se um tanto embargada, mas não havia necessidade de se preocupar com isso uma vez que a complacência inabalável do seu interlocutor evidentemente incluía esse fenômeno. Contudo, notou o tio, pouco a pouco, a imensa fadiga da viagem que o dominava, a tal ponto que já por volta das dez e meia optou pelo fim do encontro. Intimamente sentiu pouca satisfação quando no vestíbulo toparam com o Dr. Krokowski, que estava lendo um jornal junto à porta de um dos salões, e ao qual James Tienappel foi apresentado pelo sobrinho. Como resposta às palavras enérgicas e alegres do assistente, o cônsul foi incapaz de proferir mais do que “Perfeitamente, compreendo”. Deu-se por feliz quando o sobrinho, anunciando que iria buscá-lo às oito para o café da manhã, passou pelo caminho da sacada, do quarto desinfetado de Joachim para o seu próprio. Então o cônsul pôde finalmente deixar-se cair sobre a cama do desertor. Tinha na boca o cigarro que estava habituado a fumar antes de adormecer, e por um triz não provocou um incêndio, porque duas vezes começou a cochilar com o toco aceso entre os lábios.

James Tienappel, que Hans Castorp chamava “tio James” ou simplesmente “James”, era um homem de pernas longas, à beira dos quarenta, que trajava ternos de tecidos ingleses e roupa de baixo de nívea alvura; tinha cabelos de um amarelo canário, olhos azuis, pouco distantes entre si, um bigodinho de palha, semi-aparado, e mãos cuidadosamente tratadas. Esposo e pai havia alguns anos, nem por isso se vira forçado a abandonar a espaçosa vivenda do velho cônsul, à Avenida de Harvestehude; desposara uma moça da sua classe social, que era tão civilizada e distinta quanto ele e falava da mesma maneira suave, acelerada, correta e polida. Lá embaixo, era considerado um homem de negócios muito enérgico, circunspecto e – apesar de toda a sua elegância – friamente realista. Mas, num ambiente onde reinavam costumes diferentes, por ocasião de viagens, pelo sul da Alemanha, por exemplo, assumia certa atitude de adaptação precipitada, uma pressurosa e cortês tendência para renegar a si mesmo, que absolutamente não revelava uma falta de fé na própria cultura, senão, ao contrário, a consciência da limitação que a fazia forte, bem como o desejo de corrigir o seu particularismo aristocrático e de não deixar perceber a menor surpresa diante de formas de existência que lhe pareciam incríveis. “Claro, perfeitamente, compreendo”, apressava-se a dizer, para que ninguém pensasse que ele, embora distinto, era um espírito estreito. Chegara a Davos com uma missão precisa e concreta, com o encargo e na intenção de intervir com firmeza na situação do parente pachorrento, de “arrancá-lo”, segundo ele mesmo dizia, e de devolvê-lo ao lar. E, todavia, não deixara de perceber que estava operando em terreno estranho. Desde o primeiro momento sentira-se acolhido por um mundo singular, um ambiente moral cuja segurança de si próprio não era menos forte do que a sua, e até a ultrapassava. Aconteceu assim que a sua energia de homem de negócios entrou imediatamente num conflito com a sua boa educação, e mesmo num conflito dos mais graves, uma vez que a confiança altiva desse ambiente novo se manifestava deveras esmagadora.

Era precisamente isso o que previra Hans Castorp, quando, no seu íntimo, respondera ao cônsul com um sereno “Como quiser”. Mas não há motivo para acreditar que o sobrinho conscientemente tirasse partido, contra o seu tio, da força de caráter do mundo ambiente. Hans Castorp já estava por demais identificado com esse meio para que pudesse proceder assim. Não era ele quem se valia dessa força; pelo contrário, tudo ocorria com a simplicidade mais natural, a partir do momento em que o primeiro pressentimento da inutilidade da sua empresa vagamente roçou o espírito do cônsul, até o clímax e o desfecho, que Hans Castorp, apesar de tudo, não pôde deixar de acompanhar com um sorriso melancólico.

Na primeira manhã, depois do café, durante o qual o veterano apresentou o visitante à roda dos comensais, Tienappel travou conhecimento com o Dr. Behrens, que, comprido e corado, remando com as mãos, atravessava a sala em companhia do assistente pálido, vestido de preto, e passava de mesa em. mesa com o seu retórico “Dormiu bem?” de todos os dias. E o cônsul ficou sabendo, da parte do conselheiro, que não somente era uma excelente idéia fazer companhia ao neveu solitário, mas que isso parecia recomendável também no seu próprio interesse, porque, evidentemente, estava muito anêmico. Anêmico, ele, Tienappel? – E bastante! – retrucou Behrens, enquanto, com o indicador, abaixava uma das pálpebras inferiores do cônsul. – No mais alto grau – acrescentou. – O senhor faria muito bem se durante algumas semanas se instalasse comodamente na sacada, estendendo-se na espreguiçadeira e imitando em todos os pontos o exemplo de seu sobrinho. No seu estado, o procedimento mais inteligente é portar-se como se estivesse atacado de uma leve tuberculosis pulmonum, que, aliás, existe latente em todas as pessoas.

– Perfeitamente, compreendo – apressou-se o cônsul a responder. Com os olhos acompanhando por um instante a figura do médico, com a nuca saliente, que remava ao se afastar, deixou-se ficar com a boca semiaberta, numa atitude polida e pressurosa, ao passo que Hans Castorp, a seu lado, se mantinha perfeitamente calmo e impassível. Depois começaram o passeio em direção ao banco junto do curso de água, que era o que o momento exigia. A seguir, James Tienappel fez a sua primeira hora de repouso, instruído por Hans Castorp, que, além do plaid que o tio trouxera consigo, lhe emprestou ainda um dos seus cobertores de lã de camelo – por causa do bom tempo outonal bastava-lhe sobejamente um só cobertor – e lhe ensinou com todo o cuidado, manobra por manobra, a arte tradicional de se enrolar. Mesmo depois de o cônsul já se achar agasalhado e convertido numa múmia lisa e cilíndrica, o sobrinho desmanchou tudo e mandou o tio repetir o processo inteiro, corrigindo-o apenas em caso de necessidade. Mostrou-lhe ainda como o guarda-sol era fixado na cadeira e orientado em relação ao sol.

O cônsul pôs-se a gracejar. O espírito da planície era ainda forte nele e fê-lo zombar daquilo que aprendia, assim como já zombara da extensão preestabelecida do passeio que haviam dado depois do café. Mas, ao ver o sorriso plácido e incompreensivo com que o sobrinho acolhia as suas ironias, e no qual se espelhava toda a confiança serena que inspirava a tradição local, assustou-se, temeu pela sua energia de negociante e resolveu solicitar a entrevista decisiva com o conselheiro, sem demora, o mais rápido possível, nessa mesma tarde, quando ainda pudesse conduzi-la com as forças e idéias lá de baixo. Pois sentia que estas iam diminuindo, e que o espírito do lugar, aliado à sua boa educação, constituía adversário perigoso.

Notou além disso que o médico lhe dera um conselho totalmente supérfluo, ao sugerir-lhe que, em virtude da sua anemia, se submetesse ao regime dos enfermos; evidenciou-se que isso vinha por si mesmo, que, aparentemente, não se podia imaginar nenhuma outra alternativa, e de antemão era impossível para um homem bem-educado como ele discernir até que ponto a tranqüilidade e a imperturbável segurança de Hans Castorp criavam essa aparência, e até onde essa impossibilidade existia real e irrestritamente. O fato de o segundo café da manhã sumamente abundante seguir-se ao primeiro repouso pareceu-lhe apenas natural, e dessa refeição resultou, de um modo convincente, o passeio até Davos-Platz, depois do qual Hans Castorp tornou a embrulhar o tio. Embrulhou-o – essa é a palavra adequada. E ao sol de outono, numa cadeira cujo conforto era indiscutível e mesmo digno dos mais altos elogios, deixou-o estendido, assim como ele próprio ficava, até que o ribombante gongo os convidou a tomar, em companhia dos demais pensionistas, o almoço, que estava excelente, saborosíssimo, e era de tal maneira farto, que o subseqüente repouso geral se afigurava, não como um mero hábito exterior, senão como uma necessidade interior, à qual todos se submetiam por convicção pessoal. Isso continuou até o estupendo jantar e a reunião noturna no salão, em torno dos instrumentos ópticos. Nada havia que objetar contra uma ordem do dia que se impunha com tão branda naturalidade; ela não teria oferecido nenhuma oportunidade para objeções, mesmo que as capacidades críticas do cônsul não se encontrassem minguadas em virtude do seu estado, que ele não queria qualificar precisamente de mal-estar, mas que representava uma combinação desagradável de fadiga e excitação, acrescida de calor e de frio.

A fim de marcar uma hora para a ansiosamente almejada entrevista com o conselheiro Behrens, James Tienappel seguira a via hierárquica. Hans Castorp dirigira o requerimento ao massagista, que o encaminhara à Superiora, cuja pessoa singular o Cônsul Tienappel chegou a conhecer nessa ocasião. Surgiu ela na sua sacada, onde o achou deitado, e suas maneiras estranhas sujeitaram a dura prova a boa educação do cônsul, estendido sem defesa no invólucro cilíndrico dos cobertores. Que o prezado rapaz – assim se expressou a enfermeira-chefe – tivesse paciência durante alguns dias, pois o conselheiro andava atarefado com intervenções cirúrgicas e exames gerais. A humanidade sofredora tinha preferência, em conformidade com a ética cristã, e como o cônsul alegasse estar bem de saúde, devia acostumar-se ao fato de não ser ali em cima o número 1 e de ter de esperar na fila até chegar a sua vez. Seria diferente se porventura quisesse pedir um exame médico, o que a ela, Adriática, não causaria espécie. Bastava olhar-lhe os olhos, assim de perto, para ver que estavam turvos e irrequietos. A julgar pelo seu aspecto, absolutamente não dava a impressão de estar com o organismo em perfeita ordem; que a compreendesse bem: não lhe parecia lá muito limpo... Tratava-se de saber – terminou a Superiora – se o cônsul desejava uma consulta ou uma entrevista de caráter particular.

– Uma entrevista particular, naturalmente – assegurou o cônsul, do seu leito.

Nesse caso devia esperar até que fosse chamado. O conselheiro não dispunha de muito tempo para entrevistas particulares.

Numa palavra, tudo se passou de modo bem diverso daquele que James imaginara. A conversa com a Superiora abalara-lhe consideravelmente o equilíbrio. Por demais civilizado para dirigir-se com desabrida franqueza ao sobrinho cuja calma impassível demonstrava o pleno acordo em que Hans Castorp se achava com os fenômenos ali de cima, e para dizer-lhe quão horrorosa lhe parecia aquela megera, limitou-se a sondar cautelosamente o terreno. Fez notar que a Superiora era, sem dúvida, uma senhora muito original, o que o sobrinho admitiu em parte, após ter lançado ao ar um olhar vagamente interrogador. Perguntou por sua vez ao tio se a Mylendonk lhe vendera um termômetro. – Não! A mim? Ela costuma fazer isso? – tornou o tio... Mas a fisionomia do sobrinho demonstrava claramente – e isso era o pior – que ele não se teria admirado nem um pouquinho se o contrário tivesse acontecido. “Nós não sentimos o frio”, podia-se ler no rosto de Hans Castorp. O cônsul, porém, ressentia-se do frio, ressentia-se dele sem cessar, apesar de a cabeça lhe arder. Se a Superiora realmente lhe houvesse oferecido um termômetro – disse ele de si para si –, decerto o teria rejeitado; mas talvez tivesse feito mal, porquanto não convinha a um homem civilizado usar o termômetro de outra pessoa, como, por exemplo, o do sobrinho.

Assim decorreram alguns dias, uns quatro ou cinco. A vida do emissário avançava sobre trilhos – sobre os trilhos que se achavam preparados para ela, e dos quais parecia inimaginável apartar-se. O cônsul fez experiências, recebeu impressões – não nos queremos dar o trabalho de observa-lo nessa empresa. Um belo dia, no quarto de Hans Castorp, apanhou uma chapinha de vidro preto que, recostada num minúsculo cavalete lavrado, se achava na cômoda, junto com outros objetos pessoais com que o morador do asseado aposento comprazia-se em adorná-lo. Mantendo-a contra a luz, verificou tratar-se de um negativo fotográfico. – Que é isso? – perguntou o tio, enquanto o olhava... Havia motivo para perguntar assim. O retrato não tinha cabeça; era o esqueleto de um torso humano, envolto numa névoa de carne um torso feminino, segundo se podia reconhecer. – Isso? É uma lembrança – disse Hans Castorp. Ao que o tio replicou: – Perdão! – Repôs o retrato no cavalete e afastou-se depressa. Isto é apenas um exemplo das experiências e das impressões por que James Tienappel passou nesses quatro ou cinco dias. Participou também de uma conferência do Dr. Krokowski, uma vez que era impossível não fazê-lo. E quanto à ambicionada entrevista particular com o Dr. Behrens, teve a satisfação de obtê-la no sexto dia. Marcaram-lhe uma hora, e depois do café da manhã desceu ao subsolo, decidido a dizer algumas palavras enérgicas a respeito de seu sobrinho e do tempo que este desperdiçava ali.

Quando voltou, perguntou numa voz suavizada:

– Onde já se viu isso?

No entanto, era evidente que Hans Castorp já ouvira coisa semelhante e que essa impressão tampouco o faria sentir frio. Assim o tio cortou a conversa, e às perguntas pouco curiosas do sobrinho limitou-se a responder: – Ah, nada! – A partir daquele momento, porém, manifestou um novo hábito: o de olhar obliquamente para cima, com o cenho franzido e os lábios em bico, para, logo depois, virar a cabeça num movimento brusco e fixar em direção oposta o olhar que acabamos de descrever... Seguira também a entrevista com Behrens um curso diferente daquele que o cônsul previra? Falara-se, no curso dela, não somente de Hans Castorp, mas também do próprio James Tienappel, a tal ponto que a conversa perdera o caráter de uma entrevista particular? A conduta do cônsul indicava isso. Mostrava-se ele altamente animado, tagarelando muito, rindo-se sem motivo, acotovelando o flanco do sobrinho e exclamando: – Que tal, meu velho? – De vez em quando reaparecia aquele olhar primeiro numa e depois noutra direção. Mas seus olhos seguiam também rumos mais precisos, tanto à mesa como durante os passeios regulamentares e as reuniões noturnas.

A princípio, o cônsul não prestara maior atenção a uma certa Srª. Redisch, esposa de um industrial polonês, que tinha o seu lugar à mesa da Srª. Salomon, de momento ausente, e do colegial voraz, com os óculos redondos. E de fato não passava ela de uma das numerosas damas que povoavam os alpendres de repouso; era uma baixinha morena, cheia de corpo, já não muito jovem, ligeiramente grisalha, com uma pequena papada engraçadinha e olhos castanhos bastante vivos. Sob o ponto de vista da sua cultura, absolutamente não poderia comparar-se com a esposa do Cônsul Tienappel, lá embaixo, na planície. Mas, na noite de domingo, depois do jantar, o cônsul fizera, no vestíbulo, uma descoberta, graças a um vestido preto, muito decotado e enfeitado de lantejoulas, que a Srª. Redisch trajava: tinha ela seios, seios de mulher, muito comprimidos e de uma alvura mate, seios cuja linha de separação era visível até muito embaixo. Essa descoberta abalara o homem maduro e refinado até o fundo da sua alma, entusiasmando-o como se fosse coisa inédita, insuspeitada e nunca vista. Procurou travar conhecimento com a Srª. Redisch e conseguiu-o. Conversou demoradamente com ela, primeiro de pé e depois sentado. Cantarolava quando ia recolher-se. No dia seguinte, a Srª. Redisch já não envergava o vestido preto com as lantejoulas, mas apareceu toda encoberta. O cônsul, porém, sabia o que sabia e permanecia fiel às suas impressões. Empenhava-se em encontrar-se com a senhora durante os passeios regulamentares, a fim de caminhar a seu lado, palestrando com ela de forma particularmente galante e insistente. À mesa bebia à sua saúde, o que ela retribuía com um sorriso que fazia brilhar as cápsulas de ouro que revestiam alguns dos seus dentes. Numa conversa com o sobrinho, o cônsul chegou a declarar que a Srª. Redisch era realmente uma “mulher divina”, depois do que tornou a cantarolar. Hans Castorp suportava tudo isso com serena indulgência, e sua fisionomia expressava que essas coisas lhe pareciam naturais. Mesmo assim não contribuíam para consolidar a autoridade do parente mais velho e condiziam mal com a missão do cônsul. A refeição durante a qual ele saudou a Srª. Redisch com o copo erguido – e isso por duas vezes, ao chegar o prato de peixe, e mais tarde, quando serviam o sorvete – era a mesma que o Conselheiro Behrens tomou à mesa de Hans Castorp e do visitante, uma vez que era seu costume comer sucessivamente em cada uma das sete mesas, onde lhe ficava reservado um talher numa das pontas. Com as enormes manzorras juntas diante do prato, e com o bigodinho retorcido, o médico deixava-se ficar entre o Sr. Wehsal e o corcunda mexicano, com o qual conversava em espanhol – sabia todas as línguas, inclusive o húngaro e o turco. Com os olhos azuis, saltados e estriados de sangue, observou como o Cônsul Tienappel saudava a Srª. Redisch com a taça de bordeaux. Mais tarde, no decorrer da refeição, o conselheiro fez uma pequena preleção, animado por James, que, através de toda a extensão da mesa, lhe perguntou à queima-roupa o que se passava com o homem quando apodrecia. Pediu ao conselheiro, que estudara todas as coisas fisiológicas, cuja especialidade era o corpo, e que se podia intitular uma espécie de príncipe do corpo, que lhes informasse do que ocorria quando a carne se decompunha.

– Antes de tudo lhe estoura a barriga – explicou o conselheiro, fincando os cotovelos na mesa e inclinando-se para as mãos postas. – O senhor acha-se estendido sobre o seu leito de serragem e de estilhas, e os gases – não sabe? – começam a inchar-lhe o cadáver, a intumescê-lo poderosamente, assim como meninos malvados fazem com as rãs que enchem de ar. Aos poucos, o senhor se transforma num verdadeiro balão. Finalmente, a pele do seu ventre não suporta mais a tensão e rebenta. Pum! Com isso, o senhor sente grande alívio. Faz como Judas Iscariotes quando caiu do galho: todas as suas entranhas se derramam. Bem, e depois disso o senhor volta, em certo sentido, a ser apresentável. Se lhe concedessem uma licença poderia visitar a sua família sem causar o menor escândalo. É o que se chama deixar de feder. Quando a gente sai então ao ar livre, torna-se de novo um tipo decente, como aqueles cidadãos de Palermo que estão pendurados nos subterrâneos do convento dos capuchinhos, fora da Porta Nuova. Pendem ali sequinhos e elegantes e gozam de estima geral. O que importa é somente deixar de feder.

– Compreendo – disse o cônsul. – Muito obrigado. E no dia seguinte, pela manhã, tinha desaparecido.

Fora-se, partira com o primeiro trenzinho para a planície. Claro que deixara tudo em ordem. Quem poderia pensar o contrário? Liquidara a conta, pagara o preço de um exame médico, e clandestinamente, sem nada dizer ao sobrinho, aprontara as duas maletas. Provavelmente o fizera à noite ou de madrugada. Quando Hans Castorp, na hora do café da manhã, entrou no quarto do tio, encontrou-o desocupado.

Com as mãos nos quadris, exclamou: – Ora essa! – Foi nesse instante que a sua fisionomia esboçou um sorriso melancólico. – Ah, sim! – disse, sacudindo a cabeça. Alguém acabava de fugir, precipitadamente, numa pressa silenciosa, como se precisasse aproveitar a resolução de um dado momento e tudo se tratasse de não perder a oportunidade. Atirara as suas coisas na maleta e sumira, sozinho, não acompanhado, sem ter cumprido a sua honrosa missão, dando-se por muitíssimo feliz por ter escapado são e salvo, esse homem de valor, o trânsfuga que desertava para a bandeira da planície, o tio James! Pois então, boa viagem!

Hans Castorp não deixou ninguém perceber que nada soubera da iminência da partida do parente visitante. Especialmente escondeu a sua surpresa ao porteiro coxo, que acompanhara o tio até a estação. Recebeu do lago de Constança um cartão-postal que o informava de que James, chamado por telegrama, se vira obrigado a regressar à planície por causa de negócios. Não quisera incomodar o sobrinho... Uma mentira formal! “Desejo que sua estadia continue agradável.” Era ironia? Nesse caso seria bastante forçada, julgou Hans Castorp, pois o tio decerto não pensara em gracejos e zombarias quando se lançara ao trem. Pelo contrário, verificara, pálido de terror, numa visão íntima, que, se agora voltasse à planície, depois de ter passado oito dias ali em cima, continuaria ainda durante um tempo considerável a achar redondamente errada, contrária à natureza e inconveniente, a vida de uma pessoa que, após o café da manhã, ao invés de sair para o passeio regulamentar e a seguir estender-se ao ar livre, embrulhada em cobertores segundo o ritual, se encaminhasse ao escritório. E essa percepção assustadora fora o motivo imediato da sua fuga.

Terminou assim a tentativa da planície de se reapossar do fugitivo Hans Castorp. O jovem não se iludiu quanto à importância decisiva que o malogro completo, por ele previsto, tinha no que se referia às suas relações para com a gente lá de baixo. Significava isso, da parte da planície, a renúncia definitiva, que ela aceitava dando de ombros, e para ele, a liberdade completa, em face da qual o seu coração aos poucos deixava de estremecer.

 

         “Operationes spirituales”

Leo Naphta era natural de um lugarejo situado nas proximidades da fronteira entre a Galícia e a Volínia. Seu pai, do qual falava com respeito – sentindo evidentemente que já se distanciara bastante do mundo da sua origem para poder julgá-lo com benevolência – seu pai fora schochet, açougueiro ritual. Esse ofício era diferente – e quanto! – daquele que exercia o açougueiro cristão, um mero artífice e comerciante. O pai de Leo não era nem uma nem outra coisa. Era uma autoridade de caráter religioso. Examinado pelo rabino quanto à sua habilidade piedosa, autorizado por ele a abater, em conformidade com os preceitos do Talmude, o gado que a lei de Moisés considerava apto para esse fim, Elia Naphta, cujos olhos cheios de espiritualidade plácida haviam brilhado, segundo a descrição do filho, com um esplendor estelar, revelara ele próprio, em todo o seu ser, o cunho sacerdotal, uma solenidade que relembrava que a função de degolar animais coubera nos tempos antigos aos sacerdotes. Às vezes, Leo, ou Leib, como o chamavam na infância, tinha ocasião de ver o pai desempenhar-se das suas tarefas rituais, o que fazia no pátio, ajudado por um oficial enorme, um rapagão daquele tipo atlético que se encontra entre os judeus. Ao lado desse gigante, o frágil Elia, com a barba loura aparada em forma oval, parecia ainda mais delgado e mais franzino. E contra o animal atado e amordaçado, mas, não aturdido, o pai brandia a grande faca de schochet, abrindo-lhe um profundo talho à altura da vértebra cervical, enquanto o ajudante apanhava, em tigelas que se enchiam rapidamente, o sangue fumegante que brotava do corpo. O menino contemplava esse espetáculo com aquele olhar de criança, que muito além das aparências visíveis penetra até a sua essência, e que o filho de Elia, o dos olhos estelares, deve ter possuído em grau incomum. Sabia Leo que os açougueiros cristãos tinham a obrigação de atordoar os animais com um golpe de maceta ou de machado, antes de matá-los, e que essa prescrição lhes era imposta a fim de evitar ao gado um tratamento torturante e impiedoso. Seu pai, por sua vez, embora muito mais delicado e muito mais sábio do que aqueles lorpas, e ainda dotado de olhos estelares como nenhum deles, procedia conforme a lei, dando o golpe mortal à rês não aturdida e deixando-a derramar o seu sangue até cair exausta. O menino Leib percebia instintivamente que o método desses grosseiros goim era inspirado por uma bondade fácil e profana, e que dessa forma não se prestava ao ato sagrado a mesma honra que ele gozava em virtude do rigorismo solene do rito paterno. O conceito da devoção ligava se, no seu íntimo, ao da crueldade, assim como na sua imaginação o aspecto e o cheiro do sangue a jorrar acompanhavam a idéia do sagrado e do espiritual. Pois compreendia perfeitamente que o pai não se devotara ao seu ofício sanguinário pelo mesmo gosto brutal que talvez determinasse a escolha de robustos rapazes cristãos e do seu próprio ajudante; motivos espirituais haviam-no influenciado, apesar do seu físico frágil, e em harmonia com os seus olhos estelares.

Com efeito, Elia Naphta era um sonhador e um pensador; não se limitava a estudar a Tora, mas também interpretava a Escritura, cujas máximas discutia com o rabino, altercando com ele não raras vezes. Na região, e não somente entre os seus correligionários, era considerado homem extraordinário, que sabia mais do que os outros, em parte devido à sua piedade, em parte também graças a conhecimentos suspeitos, talvez, e em todo caso contrários, à ordem natural das coisas. Havia nele um quê de irregularidade sectária, algo de um confidente de Deus, de um Baal-Chem ou Zaddik, quer dizer, um taumaturgo, tanto mais que realmente curara certa feita uma mulher de uma erupção maligna, e em outra ocasião, um garoto de convulsões, e tudo isso por meio de sangue e de versículos. Mas foi precisamente esse nimbo de uma piedade um tanto ousada, no qual o cheiro de sangue da sua profissão desempenhava o seu papel, que se tornou a causa da sua perdição. Em conseqüência de um motim e de uma irrupção ,da fúria popular, provocada pela morte não esclarecida de duas crianças cristãs, Elia foi trucidado de forma horrorosa: encontraram-no crucificado, fixo com cravos à porta da sua casa incendiada. Sua esposa, tísica e acamada, abandonou em seguida o país, com os filhos, o menino Leib e seus quatro irmãozinhos, todos se lamentando e gemendo, de braços erguidos ao céu.

Graças à previdência de Elia, a família não estava inteiramente desprovida de recursos. Encontraram asilo numa cidadezinha do Vorarlberg. Ali a Srª. Naphta se empregou numa fiação de algodão, onde trabalhou enquanto as suas forças lhe permitiram, e os filhos mais velhos freqüentaram a escola primária. Mas se a sabedoria ministrada por esse estabelecimento bastava ao talento e às necessidades dos irmãos de Leo, absolutamente não se dava o mesmo com ele. Herdara da mãe o germe da doença pulmonar, e do pai, além da compleição delgada, um discernimento fora do comum, dons intelectuais que desde cedo andavam unidos com instintos altivos, com a ambição do sublime, com a nostalgia angustiosa de formas de vida mais aristocráticas, e lhe infundiam o desejo apaixonado de elevar-se acima da esfera da sua origem. Fora da escola, o adolescente de catorze ou quinze anos formava o seu espírito de modo impaciente e descontrolado, por meio de livros que soube arranjar e com os quais nutria a inteligência. Pensava coisas e manifestava idéias que induziam a mãe a encolher a cabeça entre os ombros e a levantar ao céu as magras mãos espalmadas. Pela sua índole e pelas suas respostas chamou durante o ensino religioso a atenção do rabino distrital, homem pio e erudito, que o escolheu para aluno particular e lhe satisfez a predileção formal com aulas de hebraico e de línguas clássicas, e a ânsia de lógica com ensinamentos matemáticos. Mas a solicitude do homem foi muito mal recompensada. Evidenciou-se cada vez mais nitidamente que ele acolhera uma serpente em seu seio. Repetiram-se as contendas que outrora houvera entre Elia Naphta e seu rabino; não se puseram de acordo; entre o professor e o discípulo surgiram divergências religiosas e filosóficas que se agravavam de forma crescente, e o honrado teólogo muito teve que sofrer em virtude da insubmissão intelectual do jovem Naphta, da sua tendência crítica e cética, do seu espírito de contradição e da sua dialética afiada. Acrescia a isso o fato de que a sutileza e a rebeldia intelectual de Leo acabavam de assumir um caráter revolucionário. O contato com o filho de um deputado socialista do Reichsrat e com o próprio representante popular haviam orientado para a política o espírito do adolescente e imprimido o rumo da crítica social à sua paixão pela lógica. Leo ousou manifestar idéias que fizeram eriçar-se os cabelos do bom talmudista, orgulhoso da sua própria lealdade, e que finalmente desmancharam a amizade entre o professor e o aluno. Numa palavra, as coisas chegaram ao ponto de Naphta ser amaldiçoado pelo seu mestre e definitivamente expulso do seu gabinete de estudos. Isso sucedeu justamente na época em que sua mãe, Rakel Naphta, estava agonizante.

Também por esse tempo, imediatamente após o transpasse da mãe, Leo travou conhecimento com o Padre Unterpertinger. O jovem de dezesseis anos estava sentado, solitário, num banco do parque de Margaretenkopf, numa colina situada a oeste da cidadezinha, à beira do Ill, donde se descortinava uma vista ampla e alegre sobre o vale do Reno. Achava-se ali, absorto em sombrios e amargos pensamentos quanto ao seu destino e futuro, quando um professor do Instituto Jesuítico Stella Matutina, ao passear pelo parque, sentou-se a seu lado, pôs o chapéu no banco, cruzou as pernas sob a sotaina de padre secular, e após ter lido algumas páginas do seu breviário, entabulou uma conversa que se tornou muito animada e estava fadada a decidir a sorte de Leo. O jesuíta, homem experiente, de trato afável, pedagogo apaixonado, bom psicólogo e hábil pescador de almas, aguçou o ouvido, desde as primeiras frases, articuladas com sarcástica clareza, que o mísero judeuzinho proferia em resposta às suas perguntas. Sentiu nelas o sopro de uma espiritualidade aguda e atormentada, e penetrando mais a fundo, topou com uma sabedoria e uma elegância maliciosa do pensamento que o exterior maltrapilho do rapaz apenas tornava mais surpreendentes. Falaram de Marx, cujo Capital Leo Naphta estudara numa edição popular, e daí passaram para Hegel, do qual ou sobre o qual o jovem também lera o suficiente para formular algumas observações incisivas. Fosse por uma inclinação geral para o paradoxo, fosse devido à intenção de agradar, chamou Hegel de “pensador católico”; quando o padre, sorrindo, lhe perguntou em que se fundava essa opinião, uma vez que Hegel, na sua qualidade de filósofo oficial da Prússia, devia ser considerado lógica e essencialmente como protestante, replicou o jovem que as próprias palavras “filósofo oficial” confirmavam que, no sentido religioso, embora naturalmente não no sentido eclesiástico-dogmático, a sua afirmação da catolicidade de Hegel estava certa. Pois – Naphta gostava muitíssimo dessa conjunção que na sua boca adquiria um caráter triunfal e inexorável e fazia-lhe os olhos relampejar atrás dos óculos, cada vez que tinha oportunidade de inseri-las nas suas deduções – pois o conceito da política se achava psicologicamente ligado ao do catolicismo; formavam eles uma categoria que abrangia tudo quanto era objetivo, operante, ativo, realizador, e produzia efeitos exteriores. A essa categoria opunha-se a esfera pietista, protestante, que tinha a sua origem na mística. No jesuitismo – acrescentou —, tornava-se evidente a natureza política e pedagógica do catolicismo. Essa ordem sempre considerara seu domínio a estadística e a educação. E citou Goethe, que, embora arraigado do pietismo e indiscutivelmente protestante, tinha um forte cunho católico, em virtude do seu objetivismo e da sua doutrina de ação, chegando a defender a confissão auricular e mostrando-se quase jesuíta como educador.

Não importa que Naphta tivesse dito essas coisas, por acreditar nelas, ou por achá-las espirituosas, ou finalmente na intenção de comprazer ao seu interlocutor, como faz um homem pobre que deve lisonjear e calcula com precisão o que lhe pode ser útil ou prejudicial. Fosse como fosse, o padre preocupou-se menos com o valor verdadeiro dessas palavras do que com a inteligência geral que elas documentavam. A conversa foi continuada, e dentro em pouco o jesuíta conhecia a situação particular de Leo. A entrevista terminou com um convite de Unterpertinger para que Naphta o visitasse no instituto.

Destarte aconteceu que Naphta pôs os pés no solo do Stella Matutina, cujo nível científica e socialmente elevado desde muito o atraía. E mais do que isso: graças ao rumo que as coisas acabavam de tomar, obteve um novo mestre e protetor, mais disposto do que o anterior a lhe apreciar e estimular a índole; um mentor cuja bondade, fria por natureza, baseava-se no conhecimento do mundo, e em cujo circulo de vida o jovem anelava penetrar. Semelhante a muitos judeus talentosos, Naphta tinha um instinto ao mesmo tempo revolucionário e aristocrático; era socialista e também dominado pelo sonho de participar de uma forma de vida soberba, distinta, exclusiva e ordenada. A primeira manifestação que lhe inspirara a presença de um teólogo católico fora, embora se apresentasse sob a forma de pura análise comparativa, uma declaração de amor à Igreja Romana, que se lhe afigurava como uma potência nobre e espiritual, quer dizer antimaterial, contrária à realidade hostil do mundo, e portanto revolucionária. Essa homenagem era sincera e tinha raízes no fundo do seu ser: como ele próprio explicava, o judaísmo, graças à sua orientação terrena e objetiva, graças ao seu caráter socialista e à sua espiritualidade política, achava-se muito mais próximo da esfera católica, era infinitamente mais congênere dela, do que o protestantismo na sua mania de ensimesmar-se e na sua subjetividade mística. Assim, a conversão de um judeu à religião católica representava, do ponto de vista da Igreja, um processo muito mais fácil do que a de um protestante.

Separado do pastor da sua comunidade religiosa de origem, órfão, desamparado, e ainda ansioso por respirar um ar mais puro, por gozar o estilo de vida que lhe cabia devido ao seu talento, Naphta, que desde havia algum tempo atingira a idade legal que o capacitava para escolher a sua religião, estava tão impaciente por consumar o ato da conversão, que o seu “descobridor” podia dispensar o menor esforço no sentido de conquistar essa alma, ou melhor, esse cérebro extraordinário, para o mundo da sua confissão. Já antes de receber o sacramento do batismo, Naphta encontrara, através da influência do padre, asilo provisório no Stella Matutina, que lhe garantia o seu alimento material e intelectual. Domiciliou-se ali, abandonando, com a maior equanimidade e com a insensibilidade de um aristocrata do espírito, os seus irmãos mais moços à caridade pública e àquele destino que eles mereciam em virtude dos seus dons medíocres.

As terras do educandário eram tão extensas quanto os seus edifícios, que podiam abrigar aproximadamente quatrocentos alunos. O conjunto abrangia bosques e prados, meia dúzia de campos de jogo, celeiros, estábulos para centenas de vacas. O instituto era ao mesmo tempo um pensionato, uma granja-modelo, uma academia de esportes, uma escola de sábios e um templo das musas; pois, sem cessar, havia representações teatrais e concertos. A vida era senhoril e claustral. A disciplina, a elegância, a alegria discreta, a espiritualidade, a cultura esmerada, a precisão do variadíssimo programa diário – tudo isso afagava os instintos mais profundos de Leo. O moço transbordava de felicidade. Ministravam-lhe excelentes manjares num vasto refeitório, onde o silêncio era de regra, assim como nos corredores do estabelecimento, em cujo centro um jovem prefeito, sentado numa cátedra elevada, lia em voz alta para os alunos que tomavam a refeição. O zelo que Naphta desenvolvia nos estudos era ardente, e apesar da sua debilidade física fazia toda espécie de esforços para não se deixar superar, à tarde, nos jogos desportivos. A devoção com que todas as manhãs assistia à primeira missa e participava do ofício dominical devia causar prazer aos padres pedagogos. Seu comportamento e suas maneiras satisfaziam-nos da mesma forma. Nos dias de festa, pela tarde, depois de comer doces e beber vinho, ia passear, trajando o uniforme cinzento e verde, com o colarinho engomado, boné e barras nas calças.

Sentia-se deslumbrado de gratidão diante das considerações com que eram tratados a sua origem, o seu cristianismo recente e a sua situação particular em geral. Ninguém parecia saber que ele se beneficiava de uma bolsa. O regulamento da casa desviava a atenção dos companheiros do fato de ele não ter nem família nem pátria. Quanto à remessa de víveres ou guloseimas existia uma proibição geral. Encomendas que chegavam apesar disso eram repartidas entre todos, e também Leo recebia a sua parte. O cosmopolitismo da instituição impedia que a sua origem racial aparecesse de modo evidente. Existiam ali jovens provenientes de terras longínquas, sul-americanos de raça lusa, cujo aspecto era mais “judeu” do que o de Leo, e dessa forma o conceito deixou de subir à tona. O príncipe etíope que entrara ao mesmo tempo que Naphta era até um negro típico, com cabelos lanosos, e contudo sumamente distinto.

Na classe de retórica, Leo manifestou o desejo de estudar teologia, para que pudesse um dia pertencer à ordem, se é que fosse julgado digno. Isso teve por conseqüência que a sua bolsa foi transferida do segundo internato, onde o regime era mais modesto, para o primeiro. Agora era servido à mesa por criados, e seu cubículo no dormitório achava-se situado entre o de um nobre silesiano, o Conde von Harbuval e Chamaré, e o do Marquês di Rangoni-Santacroce, de Modena. Passou brilhantemente pelos exames e, fiel aos seus propósitos, abandonou o educandário e mudou-se para o noviciado na vizinha aldeia de Tisis, onde passou a levar a vida de humildade obediente, de subordinação muda e de adaptação religiosa, vida que lhe proporcionava prazeres espirituais no sentido das concepções fanáticas de épocas distantes.

Nesse meio tempo, a sua saúde sofreu um abalo, menos por causa do rigor da vida de noviço, que não carecia de oportunidades para fortalecer o corpo, do que em virtude de processos que se desenvolviam no seu íntimo. A sutileza e a sagacidade dos processos pedagógicos de que ele era objeto iam ao encontro dos seus talentos particulares, e ao mesmo tempo provocavam-nos. Durante as operações espirituais às quais consagrava os seus dias e ainda parte das suas noites, no curso de todos esses exames de consciência, contemplações, ponderações e introspecções, enredava-se ele, devido a uma paixão maliciosa pela contenda, em milhares de dificuldades, contradições e dúvidas. Leo era o desespero, e também a grande esperança, do diretor dos seus exercícios, a quem cossava dia a dia com sua fúria dialética e sua falta de ingenuidade... “Ad haec quid tu?”, perguntava, com as lentes dos óculos cintilando. E o padre, posto contra a parede, não tinha outro recurso senão recomendar-lhe a prece, para que conseguisse a tranqüilidade do coração, ut in aliquem gradum quietis in anima perveniat. Mas, essa “tranqüilidade” consistia, quando obtida, num completo embotamento da vida individual e na redução fatal a um mero instrumento, era a paz de um cemitério do espírito, cujos sinistros sinais exteriores Naphta podia muito bem estudar entre os seus companheiros em mais de uma fisionomia de olhar parado, e que ele mesmo nunca lograria alcançar por outro caminho que não o da ruína corporal.

Fala em favor do nível intelectual dos seus superiores que essas reservas e objeções não diminuíam a estima que Naphta gozava junto deles. O próprio padre provincial chamou-o pelo fim dos dois anos de noviciado, conversou com ele e autorizou-lhe a admissão na ordem. O jovem escolástico, que recebera quatro ordenações inferiores – as do porteiro, do acólito, do leitor e do exorcista – e também fizera os votos “simples”, ficou assim pertencendo definitivamente à Companhia. Partiu para o colégio de Falkenburgh, na Holanda, a fim de se dedicar aos estudos de teologia.

Tinha então vinte anos, e nos três anos seguintes, sob a influência de um clima prejudicial e de excessivos esforços intelectuais, o mal hereditário realizou tamanhos progressos, que sua permanência no colégio só teria sido possível com perigo de vida. Uma hemoptise que sofreu alarmou os seus superiores, e depois de ele se achar durante semanas inteiras entre a vida e a morte, enviaram o jovem precariamente restabelecido ao lugar donde viera. No mesmo estabelecimento onde fora educado, encontrou Leo uma colocação como prefeito, vigilante dos alunos e professor de humanidades e filosofia. Esse interlúdio fazia parte do regulamento, só que normalmente depois de poucos anos de serviço se voltava ao colégio, para prosseguir e concluir os sete anos de estudos teológicos. Isso não foi dado ao Irmão Naphta. Ele continuava enfermo. O médico e os superiores julgaram que o serviço nesse lugar, com o seu ar saudável, a companhia dos alunos, e as ocupações agrícolas eram o que lhe convinha por enquanto. Naphta recebeu a primeira ordenação superior e obteve assim o direito de cantar a Epístola na missa solene dos domingos – direito que ele não exercia, em primeiro lugar porque lhe faltava por completo o talento musical, e em segundo, por causa da doença, que lhe tornava a voz esganiçada e fazia-a pouco apta para cantar. Não progrediu além do subdiaconato. Não alcançou o diaconato, tampouco a ordenação sacerdotal. Como a hemoptise se repetisse e a febre não desse mostras de ceder, teve que submeter-se, à custa da ordem, a um tratamento prolongado. Instalara-se em Davos, onde se encontrava fazia mais de cinco anos. Mal se podia falar de um tratamento, senão de uma condição fixa da sua existência, que exigia atmosfera rarefeita, e que alguma atividade como professor de latim no ginásio dos enfermos tornava menos penosa...

Essas coisas, além de outros pormenores, chegavam ao conhecimento de Hans Castorp pela boca do próprio Naphta, quando o visitava na sua cela forrada de seda, ora sozinho, ora acompanhado dos seus comensais Ferge e Wehsal, que apresentara ao seu anfitrião, ou quando o encontrava num passeio e regressava junto com ele até a “aldeia”. Ia conhecendo esses detalhes ao acaso, em fragmentos ou sob a forma de narrativas coesas, e não somente os achava extraordinariamente interessantes, mas também incitava Ferge e Wehsal a considerá-los sob o mesmo prisma, o que de fato acontecia. Verdade é que o primeiro nunca deixava de acrescentar a restrição de não entender de coisas sublimes (uma vez que unicamente a experiência do choque pleural o elevara acima das mais humildes entre as contingências humanas). Wehsal, porem, regozijava-se visivelmente com a carreira afortunada de um homem outrora opresso pelo destino, essa carreira que agora, como para abater qualquer soberba, se via interrompida e parecia encalhar no mal físico que eles tinham em comum.

Hans Castorp, por sua vez, lamentava essa estagnação e recordava com orgulho e desassossego o honrado Joachim, que num esforço heróico rasgara a rede resistente da retórica de Radamanto e desertara para a sua bandeira, a cuja haste – segundo imaginava o jovem – devia estar agarrado, erguendo três dedos da mão direita para prestar o juramento de fidelidade. Também Naphta tinha uma bandeira à qual jurara, e sob cuja proteção se encontrava, como ele mesmo dizia, ao informar Hans Castorp acerca da organização da ordem; mas, manifestamente, em vista de todas as suas reservas e combinações, era-lhe menos fiel do que Joachim à sua. O civil Hans Castorp, amigo da paz, sempre que escutava o antigo ou futuro jesuíta, sentia, contudo, consolidada a sua opinião de que cada um dos dois devia olhar com simpatia a profissão do outro e perceber o parentesco estreito que existia entre ela e a própria. Eram castas militares, tanto uma como a outra, e isso sob muitos aspectos, o do ascetismo e o da hierarquia, o da obediência e o do pundonor espanhol. Este último desempenhava um papel importantíssimo na ordem de Naphta, que tinha a sua origem na Espanha, e cuja regra de exercícios espirituais, espécie de precursora do regulamento que Frederico da Prússia deu à infantaria, era, na sua forma original, redigida em espanhol. Por isso ocorria freqüentemente a Naphta empregar termos espanhóis nas suas narrativas e explicações. Falava então das dos banderas em torno das quais os exércitos se agrupavam para a grande batalha, o do Inferno e o da Igreja, um na região de Jerusalém, chefiado por Cristo, o capitán general de todos os justos, e o outro na planície da Babilônia, onde Lúcifer exercia o cargo de caudillo ou chefe de bando...

Não era o Instituto Stella Matutina uma verdadeira escola de cadetes, cujos alunos, distribuídos em “divisões”, iam sendo orientados no sentido honroso de uma bienséance militar e clerical, que representava, por assim dizer, uma combinação de “colarinho engomado” e “golilha espanhola”? As idéias da honra e da distinção, que na classe de Joachim desempenhavam tão brilhante papel, com quanta nitidez – assim pensava Hans Castorp – não apareciam naquela que Naphta desgraçadamente tivera de abandonar devido à doença! A crer nele, a ordem compunha-se exclusivamente de oficiais ambiciosos, cujo único pensamento era distinguir-se no serviço. (Insignes esse, dizia-se em latim.) Segundo a doutrina e o regulamento do fundador e primeiro geral, o espanhol Loyola, tais homens prestavam serviços maiores, serviços mais grandiosos do que todos aqueles que agiam guiados pela mera razão. Realizavam a sua obra ex superrogatione, indo além do seu dever; não se limitavam a resistir à rebelião da carne (rebellioni carnis), o que não passava, em suma, daquilo que faz todo homem dotado de mediano bom senso, mas também combatiam as tendências para a sensualidade, o egoísmo e o amor às coisas mundanas, até em assuntos que geralmente eram considerados lícitos. Pois agir em detrimento do inimigo (agere contra), quer dizer, atacar, era mais honroso e mais importante do que apenas defender-se (resistere). “Debilitar e desbaratar o inimigo”, rezava o regulamento de campanha, e mais uma vez o seu autor, o espanhol Loyola, estava plenamente de acordo com o capitán general de Joachim, o prussiano Frederico e sua máxima estratégica: “Atacar, atacar! Não dar tréguas ao inimigo! Attaquez donc toujours!”

Mas o que os mundos de Naphta e de Joachim tinham em comum, antes de mais nada, era a relação com o sangue e o axioma de que não se devia impedir a mão de derramá-lo; nisso, sobretudo, concordavam estritamente, como mundos, como ordens e como classes, e a um amigo da paz parecia notável o que Naphta contava de tipos de monges-guerreiros da Idade Média, que, ascetas até o esgotamento e no entanto ávidos de poder espiritual, não haviam poupado sangue no seu esforço de estabelecer a Cidade de Deus e o reino do sobrenatural; falava dos belicosos templários que julgavam mais meritório morrer na luta contra os infiéis do que na cama, e para os quais matar ou ser morto por amor a Jesus não era crime, senão glória suprema. Ainda bem que Settembrini não estava presente quando Naphta expôs essas idéias! Caso contrário, não teria deixado de fazer o papel de tocador de realejo desmancha-prazeres e de fazer soar a flauta pastoril da paz, não obstante o seu próprio projeto de guerra santa, nacional, civilizadora, contra Viena, que ele absolutamente não rejeitava, ao passo que o sarcasmo e a mordacidade de Naphta castigavam de preferência essa paixão e esse fraco do seu adversário. Cada vez que o italiano se inflamava por esse gênero de sentimentos, o outro lhe opunha um cosmopolitismo cristão, chamando todos os países, e ao mesmo tempo nenhum, de sua pátria e repetindo em voz cortante a frase de um geral da sua ordem, de nome Nickel, segundo o qual o patriotismo era “uma peste e a morte certa do amor cristão”.

Lógico que era em nome do ascetismo que Naphta tratava de peste o amor à pátria – pois, quanta coisa não encerrava esse termo, aos seus olhos, quanta coisa não contrariava, segundo a sua opinião, a ascética e o reino de Deus! Isso não somente se aplicava ao afeto à família e ao lar, mas também ao apego à saúde e à vida. Era precisamente por eles que Naphta censurava o humanista, quando este encomiava a paz e a felicidade; num tom rixoso, acusava-o de amor carnalis, de amor ao conforto do corpo, commodorum corporis, e declarava à queima-roupa que conceder a menor importância à vida e à saúde demonstrava a impiedade de pequenos burgueses.

Isso se deu durante a grande controvérsia sobre a saúde e a doença, que certo dia, já nas proximidades do Natal, surgiu dessas divergências, no curso de um passeio de ida e volta a Davos-Platz, através da neve. Todos eles participaram dela, Settembrini, Naphta, Hans Castorp, Ferge e Wehsal – todos ligeiramente febris, aturdidos e ao mesmo tempo excitados pela caminhada e pela discussão no frio glacial das alturas, e sem exceção sujeitos a calafrios. E fosse o seu papel preponderantemente ativo, como o de Naphta ou Settembrini, ou sobretudo receptivo, limitado a breves apartes, sentiam-se todos tomados de tão intenso zelo que, esquecidos de tudo, estacavam aqui e ali, formando um grupo absorto, gesticulante, de pessoas que falavam simultaneamente e obstruíam o caminho, sem se importar com os demais transeuntes, os quais tinham de contorná-los, a não ser que se detivessem também, aguçando o ouvido e escutando, pasmados, aquelas digressões extravagantes.

O ponto de partida da disputa era no fundo Karen Karstedt, a pobre Karen, com as pontas dos dedos corroídas, que acabava de falecer. Hans Castorp nada soubera da repentina piora e do exitus; do contrário não teria deixado de assistir, como bom camarada, ao seu enterro, tanto mais que gostava de funerais. Mas, devido à costumeira discrição, inteirara-se demasiado tarde do passamento de Karen, quando esta já se adaptara definitivamente à existência horizontal no jardim do anjinho de pedra, com o oblíquo boné de neve. Requiem aetemam... Hans Castorp dedicou à sua memória algumas palavras amistosas, o que induziu o Sr. Settembrini a zombar das atividades caritativas de Hans e das visitas que fizera a Leila Gerngross, ao comerciante Rotbein, à abarrotada Srª. Zimmermann, ao filho fanfarrão de Tous-les-deux e à torturada Natalie von Mallinckrodt. Retrospectivamente caçoou das flores caras com que o engenheiro homenageara essa ridícula e miserável cambada. Hans Castorp observou que os beneficiários das suas atenções, exceção feita, provavelmente, à Srª. von Mallinckrodt e ao adolescente Teddy, estavam efetivamente mortos, ao que Settembrini retrucou perguntando se esse fato, porventura, os fazia mais respeitáveis. – Mas existe uma coisa – tornou Hans Castorp – que se chama reverência cristã diante do infortúnio. – E antes que Settembrini tivesse ocasião de corrigi-lo, começou Naphta a falar de piedosos excessos de caridade que a Idade Média presenciara, de casos assombrosos de fanatismo e fervor, a que haviam conduzido os cuidados prestados aos doentes; filhas de reis tinham beijado as fedorentas chagas de lázaros, expondo-se voluntariamente ao contágio da lepra e chamando de rosas as úlceras assim contraídas; haviam bebido a água na qual acabavam de banhar enfermos purulentos, e declarado que nada no mundo lhes sabia melhor.

Settembrini fez menção de vomitar. Alegou que o estômago se lhe revolvia, menos por causa do asco físico que provocavam essas imagens e visões do que devido à loucura monstruosa que se documentava em tal concepção de filantropia ativa. Aprumando-se, voltou à sua antiga dignidade alegre, ao falar das formas modernas e progressistas da caridade humanitária e da repressão triunfal das epidemias. Aquelas atrocidades opôs a higiene, a reforma social e os grandes feitos da ciência médica.

– Esses produtos da probidade burguesa – replicou Naphta – teriam sido de pouca utilidade para os séculos a que o senhor se refere. Nenhuma das partes interessadas poderia ter lucrado com eles, nem os enfermos e os míseros, nem tampouco os felizes que se mostravam caridosos, não por compaixão, mas em prol da salvação da própria alma. Ora, uma reforma social coroada de êxito teria privado os afortunados do meio mais importante de que dispunham para justificar-se, e os outros, do seu estado sagrado. A manutenção constante da pobreza e da enfermidade realizou-se portanto no interesse de ambos os partidos, e esse conceito continuará sustentável enquanto for possível defender o ponto de vista puramente religioso.

– Um ponto de vista sórdido – declarou Settembrini e um conceito cuja imbecilidade quase não vale a pena combater. Pois a idéia do “estado sagrado”, bem como aquilo que o engenheiro, sem pensar independentemente, disse a respeito da “reverência cristã diante do infortúnio”, são mentiras, baseadas numa ilusão, numa simpatia errônea, num engano psicológico. A compaixão que uma pessoa sadia manifesta a um enfermo, levando-a até a veneração simplesmente por ser incapaz de imaginar como ela mesma suportaria tais sofrimentos – essa compaixão é exagerada. O enfermo não tem direito a ela, que surge de um erro de raciocínio ou de imaginação, uma vez que o homem são atribui ao doente a sua própria maneira de experimentar emoções, ideando que este seja, de certo modo, uma pessoa sadia que tenha de suportar os tormentos de um enfermo – o que é um equívoco crasso. O enfermo é justamente um enfermo, com a natureza particular e o modo de sentir modificado que a doença acarreta. Esta prepara a sua vítima com o fim de adaptá-la a si própria. Há diminuições de sensibilidade, desfalecimentos, narcoses providenciais, medidas da natureza, no sentido do ajustamento e alívio morais e espirituais, fenômenos que o homem são, na sua ingenuidade, se esquece de levar em conta. O melhor exemplo, oferece-o toda essa súcia de tuberculosos aqui de cima, com a sua luxúria, sua estupidez, sua leviandade e sua falta de vontade de curar-se. Numa palavra, basta o compassivo e reverente homem sadio adoecer, para que note que a enfermidade o põe realmente num estado à parte, mas não num estado honroso, e que ele costuma levá-la excessivamente a sério.

A essa altura da controvérsia, Anton Karlowitch Ferge indignou-se, tomando a defesa do choque pleural contra aquela difamação e falta de respeito. Mas como? Seu choque pleural era levado excessivamente a sério? Impossível! O enorme pomo-de-adão e o jovial bigode subiam e desciam, enquanto ele se revoltava contra qualquer menosprezo dos sofrimentos por que passara naquela ocasião. Declarou ser apenas um homem simples, viajante de uma companhia de seguros, alheio a todas as coisas sublimes. A própria conversa de que estava participando ultrapassava de muito o seu horizonte. Mas, se Settembrini tencionava incluir o choque pleural no que acabava de dizer – esse inferno de cócegas, com o fedor de enxofre e as três síncopes de cores diferentes –, via-se na obrigação de protestar com toda a cortesia e humildade. Pois nesse caso não cabia falar de diminuições de sensibilidade, de narcoses providenciais e de erros de imaginação. Tratava-se, sim, da maior e mais horrível infâmia que existia sob o sol, e sem a ter experimentado não se podia imaginar a atrocidade que...

– Ora, ora, ora! – disse Settembrini. O colapso do Sr. Ferge ia ficando cada vez mais grandioso à proporção que o tempo passava. Chegava aos poucos a ser usado em torno da cabeça como uma auréola. Quanto a ele, Settembrini, fazia pouco-caso de enfermos que exigiam ser admirados. Ele próprio estava doente, e bastante; mas, sem a menor afetação, sentia-se antes inclinado a envergonhar-se disso. De resto, falava de um modo impessoal, filosófico, e o que acabava de observar sobre as diferenças entre o homem sadio e o enfermo, no que se referia à sua natureza e sua maneira de sentir, não era coisa sem pé nem cabeça. Que eles se lembrassem das doenças mentais, das alucinações, por exemplo. Se um dos seus interlocutores – o engenheiro ou o Sr. Wehsal – descobrisse essa noite, à hora do crepúsculo, num canto do quarto o seu falecido pai, que o olhasse e lhe dirigisse a palavra, seria isso, para a pessoa em apreço, uma experiência muitíssimo emocionante e perturbadora, que a faria duvidar dos seus sentidos e da sua razão e a induziria a sair imediatamente do quarto e a consultar um psiquiatra. Não era verdade? Mas o engraçado consistia precisamente no fato de essas coisas não poderem acontecer a nenhum deles, porque tinham o espírito são. Se, porventura, lhes ocorresse, já não estariam sãos, mas doentes, e não reagiriam como um homem sadio, quer dizer, espantando-se e fugindo, senão que aceitariam o fenômeno como se fosse perfeitamente normal, entabulando uma conversa com o espectro, como os alucinados costumavam fazer. E acreditar que a alucinação constituía para estes um motivo de espanto saudável era justamente o erro de imaginação que cometiam aqueles que não estavam enfermos.

O Sr. Settembrini falava de forma cômica e plástica do pai defunto no canto do aposento. Ninguém pôde evitar o riso, nem sequer Ferge, apesar de sentir-se melindrado pelo desdém com que o humanista encarara a sua aventura infernal. Este, por sua vez, aproveitou-se da animação reinante para expor e defender pormenorizadamente a não-respeitabilidade dos alucinados e dos pazzi em geral. Essa gente disse – permitia-se, sem motivo justificável, muita coisa, e freqüentemente seria bem capaz de refrear a sua demência, como ele mesmo pudera verificar por ocasião de visitas que fizera a asilos de lunáticos. Quando um médico ou uma pessoa estranha aparecia no limiar da cela, o alucinado, na maioria das vezes, reprimia as suas caretas, seu falatório e sua gesticulação, e conduzia-se decentemente, durante todo o tempo que se sentia observado, para logo depois relaxar de novo. Pois, em muitos casos, a loucura representava um relaxamento, uma vez que servia de refúgio a naturezas débeis e de medida de proteção contra golpes excessivamente graves do destino, que tais pessoas não se atreviam a suportar com lucidez. Mas todo mundo poderia alegar o mesmo, e ele, Settembrini, guiara à razão, pelo menos passageiramente, numerosos loucos, pela simples força do seu olhar, opondo a suas divagações uma atitude de lógica inexorável...

Naphta deu uma risada sardônica, ao passo que Hans Castorp afirmou crer literalmente em tudo quanto o Sr. Settembrini acabava de dizer. Imaginava como este, esboçando um sorriso sob o bigode, fitara o débil mental com intransigente lógica, e compreendia então perfeitamente por que o pobre-diabo se via forçado a conter-se e a fazer honra à lucidez, embora, provavelmente, considerasse a chegada do Sr. Settembrini uma importunação sobremodo desagradável... Mas também Naphta visitara hospícios de alienados. Recordava-se de ter passado pelo pavilhão dos “furiosos”, onde havia deparado com cenas e quadros perante os quais – Deus Nosso Senhor! – o olhar razoável e a influência corretiva do Sr. Settembrini dificilmente teriam logrado êxito. Cenas dantescas, quadros grotescos, cheios de horror e de tormento: os loucos desnudos, acocorados no banho contínuo, em todas as posições do terror de espírito e do estupor apavorado, alguns gritando de tanta desolação, outros com os braços erguidos e as bocas escancaradas, soltando gargalhadas nas quais se misturavam todos os ingredientes do inferno...

– Pois é! – disse o Sr. Ferge, tomando a liberdade de relembrar-lhes aquela risada que lhe escapara antes do colapso.

Numa palavra, a pedagogia inexorável do Sr. Settembrini teria falhado por completo em face das visões do pavilhão dos “furiosos”. O espanto brotado da reverência religiosa seria nesse caso uma reação mais humana do que aqueles raciocínios arrogantes e moralistas que o nosso iluminadíssimo cavaleiro rosacruz e vigário de Salomão se comprazia em opor à insânia.

Hans Castorp não teve tempo de refletir sobre os títulos que Naphta acabava de conferir a Settembrini. Apressadamente decidiu informar-se a esse respeito na primeira ocasião que se oferecesse. No momento, porém, o curso da conversa monopolizava-lhe a atenção, porque Naphta estava examinando com acrimônia as tendências gerais que determinavam o humanista a tributar, por princípio, todas as honras à saúde e a fazer o possível para aviltar e menosprezar a doença – ponto de vista que, na verdade, manifestava extraordinária e quase admirável renegação de si mesmo, uma vez que o próprio Sr. Settembrini estava enfermo. Mas a sua atitude que, apesar da dignidade impressionante, não deixava de ser redondamente errada, resultava de uma estima e de uma deferência em face do corpo que não se podiam justificar senão quando este ainda se encontrava no seu estado primordial, próximo de Deus, e não no da degradação, in statu degradationis. Criado imortal, tornara-se ele presa da perversidade e da corrupção, devido à depravação da natureza e por causa do pecado original; era mortal e putrescível e só podia ser considerado um cárcere ou calabouço, útil, quando muito, para despertar o senso do pudor e da confusão, pudoris et confusionis sensum, como dizia Santo Inácio.

Hans Castorp intrometeu-se dizendo que também o humanista Plotino dera expressão a esse mesmo senso. Mas o Sr. Settembrini, levantando a mão por cima da cabeça, pediu-lhe que não confundisse os conceitos e se limitasse a um papel receptivo.

Continuando nas suas deduções, Naphta derivou o respeito que a Idade Média cristã devotava à miséria do corpo da aprovação religiosa que demonstrava ante o aspecto do sofrimento da carne. Pois as chagas do corpo não somente tornavam manifesta a queda que lhe acontecera, mas também correspondiam, de modo edificante e religiosamente satisfatório, à perversidade venenosa da alma, enquanto a formosura do corpo era um fenômeno falaz, ofensivo à consciência, que era conveniente rejeitar mediante a mais profunda humilhação diante da enfermidade. Quis me liberabit de corpore mortis hujus? Quem me libertará do corpo desta morte? Nessas palavras expressava-se a voz do espírito, que era para todos os tempos, a voz da verdadeira humanidade.

Nunca! Era uma voz das trevas, segundo a opinião que o Sr. Settembrini adiantou em palavras emocionadas; a voz de um mundo para o qual ainda não nascera o sol da razão e da humanidade. Sim, embora a sua própria pessoa física se achasse cheia de tóxicos, mantivera o seu espírito bastante sadio e livre de pestilência para enfrentar garbosamente o papista Naphta em matéria de corpo, e para expor a alma ao ridículo. Chegou até a glorificar o corpo humano como autêntico templo de Deus. A isso Naphta retrucou que esse tecido não era outra coisa senão o véu estendido entre nós e a eternidade; o que teve por conseqüência que Settembrini lhe proibiu de uma vez por todas servir-se da palavra “humanidade”; e assim por diante...

Com os rostos transidos de frio, sem chapéus, os pés protegidos por galochas, pisavam a superfície endurecida, rangente, polvilhada de cinzas, da camada de neve que aumentava a altura da calçada, ou abriam caminho através das massas porosas que enchiam a sarjeta; Settembrini estava abrigado num jaquetão de inverno, cuja gola e punhos de castor, puídos devido ao uso, pareciam como que sarnentos, mais que vestia com elegância; Naphta trajava um sobretudo preto, completamente fechado, que lhe ia até os pés e estava forrado de peles, das quais, porém, nada se via na parte exterior. Assim caminhavam, discutindo com apaixonado ardor todos aqueles princípios. Acontecia freqüentemente que, em vez de se dirigirem um ao outro, interpelavam Hans Castorp; cada qual lhe expunha e submetia o seu ponto de vista, limitando-se a designar o adversário com a cabeça ou o polegar. O jovem ia entre eles e voltava a cabeça para o respectivo interlocutor, aprovando ora este, ora aquele; às vezes estacava, com o corpo inclinado para trás, gesticulando com a mão agasalhada por uma luva de pelica forrada, e proferia uma opinião particular, naturalmente pouco valiosa. Enquanto isso, Ferge e Wehsal giravam em torno dos três, quer se mantendo à sua frente, quer ficando atrás, ou também avançando na mesma fila, até o tráfego interromper o alinhamento.

Sob a influência de apartes destes últimos, a conversa começou a ocupar-se de assuntos mais concretos. Em rápida seqüência, e sob crescente interesse de todos, foram tratados os problemas da incineração dos mortos, do castigo corporal, da tortura e da pena de morte. Foi Wehsal quem trouxe à baila o açoitamento e Hans Castorp achou que esse tema condizia com a índole do rapaz de Mannheim. Ninguém se surpreendeu quando o Sr. Settembrini, em palavras esmeradas, invocando a dignidade humana, investiu contra o emprego desse método brutal na pedagogia e além disso no direito penal. Tampouco causou surpresa o fato de Naphta falar a favor das bastonadas, e apenas a sinistra audácia com que o fazia provocou um leve espanto. Segundo ele, era absurdo proferir, nesse caso, disparates acerca da dignidade humana, já que a nossa verdadeira dignidade se baseava no espírito e não na carne; e como a alma humana estivesse por demais inclinada a tirar do corpo toda a sua alegria de viver, os sofrimentos infligidos a este representavam um meio altamente recomendável para estragar o prazer que na alma despertavam as coisas sensuais; para separá-la da carne e reconduzi-la ao espírito, que dessa forma voltaria a dominar. Era pura tolice considerar o castigo corporal como particularmente humilhante. Santa Isabel foi fustigada, até sangrar, pelo seu confessor, Conrado de Marburgo, e como conta a lenda, isso “arrebatou-lhe a alma até o terceiro coro”; ela mesma vergastou uma pobre velha que estava muito sonolenta para se confessar. Era possível que alguém seriamente se atrevesse a qualificar de inumanas e bárbaras as flagelações a que se sujeitavam os membros de certas ordens ou seitas, e de um modo geral as pessoas de sentimentos mais profundos, a fim de fortalecer dentro de si o princípio do espírito? Ver um progresso real na abolição do açoitamento pelos países que se julgavam adiantados era uma opinião que apenas se tornava mais cômica pela inabalável firmeza com que costumava ser defendida.

– Bem, em todo caso deve-se admitir – opinou Hans Castorp – que, no antagonismo entre a carne e o espírito, é sem dúvida alguma a carne quem encarna (a carne encarna; ah, ah, essa é boa!) o princípio mau e diabólico. Pois o corpo pertence naturalmente à natureza (Que acham desta?), e a natureza, em oposição ao espírito e à razão, é intrinsecamente má, misticamente má, como eu poderia dizer, se quisesse ostentar minha cultura e meus conhecimentos. Partindo desse ponto de vista, é apenas lógico tratar o corpo de acordo com ele, quer dizer, aplicar-lhe meios de castigo que também merecem ser designados como, misticamente maus. Se o Sr. Settembrini tivesse tido a seu lado Santa Isabel, quando a fraqueza do corpo o impediu de participar do congresso progressista em Barcelona, quem sabe...

Todos se riram, e como o humanista fizesse menção de protestar, Hans Castorp apressou-se a contar das sovas que ele mesmo levava em outros tempos.

– Nos primeiros anos do ginásio ainda existia o costume de ministrar esse castigo; havia palmatória, e embora os professores, por certas considerações sociais, se abstivessem de me pôr as mãos, apanhei certa vez uma surra de um condiscípulo mais forte, um rapagão robusto, que me bateu com uma vara flexível nas nádegas e nas barrigas das pernas, que estavam cobertas somente pelas meias. Aquilo doeu de maneira infame, pavorosa, inesquecível, realmente mística. Entre soluços convulsivos, cheios de vergonha íntima, brotaram-me lágrimas de raiva, de humilhação e de desespero. – E Hans Castorp acrescentou ter lido que nas prisões os mais rudes assassinos choramingavam que nem criancinhas quando eram açoitados.

Enquanto o Sr. Settembrini escondia o rosto nas mãos revestidas de luvas de couro muito gasto, Naphta, com o sangue-frio de um estadista, perguntou como poderiam ser iluminados criminosos renitentes a não ser por meio do cavalete e do bastão, que eram perfeitamente adequados ao ambiente de uma casa de correção. Um cárcere humano era um meio-termo estético, um compromisso, e o Sr. Settembrini, apesar da sua bela eloqüência, no fundo nada entendia de beleza. No que dizia respeito à pedagogia, o conceito da dignidade humana defendido por aqueles que queriam excluir os castigos corporais tinha, segundo Naphta, a sua raiz no individualismo liberal da época burguesa e humanitária, no absolutismo esclarecido do Eu, que estava a ponto de extinguir-se e de dar lugar a idéias sociais menos efeminadas, que já se achavam iminentes, idéias de disciplina e de docilidade, de coação e de obediência, às quais era inerente uma sagrada crueldade, e que modificariam novamente a concepção da escarnação do nosso cadáver.

– Vem daí a célebre frase “Perinde ac cadaver” – chacoteou Settembrini. A isso, Naphta objetou que não era um crime de lesa-majestade administrar uma sova ao mesmo corpo que Deus destinara à horrorosa ignomínia da putrefação, para punir o nosso pecado. E assim começaram a falar da incineração dos mortos.

Settembrini fez o elogio desse processo: – Essa ignomínia pode ser remediada – disse alegremente. Considerações práticas e motivos idealistas determinavam a humanidade a acabar com ela. E o italiano declarou ter participado dos preparos de um congresso internacional para a cremação, que se reuniria provavelmente na Suécia. Projetava-se expor um crematório modelo, junto com um columbário, ambos construídos em conformidade com as experiências feitas até essa época. Era de prever que tal apresentação originaria sugestões e estímulos de vasto alcance. Que método mais antiquado e obsoleto, esse de enterrar os mortos, dadas as condições da vida moderna! A extensão das cidades! A transferência dos chamados campos-santos para a periferia, em vista do espaço que exigiam! Os preços dos terrenos! O caráter prosaico que assumiam os funerais, devido à necessidade de se usarem os meios modernos de transporte! Sobre todas essas coisas, o Sr. Settembrini conseguiu fazer observações sensatas e incisivas. Motejou da figura do viúvo inconsolável que realizava todos os dias uma peregrinação à sepultura da saudosa defunta, para palestrar com ela no próprio local. Era necessário que um homem com essa mentalidade idílica dispusesse em abundância inexplicável do mais precioso bem da nossa vida, a saber: do tempo. Além disso, o intenso movimento que reinava nos cemitérios centrais das cidades modernas decerto o curaria desse sentimentalismo atávico. A destruição do cadáver pelo fogo – quanto mais limpa, mais higiênica, mais digna e mesmo mais heróica não era essa visão, em confronto com o costume de abandoná-lo à lamentável decomposição e à assimilação executada por organismos inferiores! O próprio sentimento se conformava mais facilmente com esse processo novo que correspondia à necessidade de permanência, peculiar aos homens. O que sucumbia à ação do fogo eram as partes inconstantes do corpo, que já em vida estavam sujeitas ao metabolismo, ao passo que as outras, que menos participavam desse fenômeno e acompanhavam o homem quase sem modificação, através da sua existência de adulto, eram também as que resistiam ao fogo e formavam as cinzas, com as quais os sobreviventes recolhiam aquilo que o falecido possuíra de imperecível.

– Que maravilha! – disse Naphta. Ah, essa era muito, mas muito boa! As cinzas como a parte imperecível do homem!

– Claro! – retorquiu o italiano. Naphta pretendia manter a humanidade na sua atitude irracional diante dos fatos biológicos. Persistia naquela fase de religião primitiva, para a qual a morte representava um bicho-papão, rodeado de tão misterioso terror que era impossível dirigir sobre ele o claro olhar da razão. Que barbárie! O espanto em face da morte remontava a épocas de um nível cultural extremamente baixo, nas quais a morte violenta fora a regra, e o cunho horripilante que a revestia por muito tempo se associara, no sentimento do homem, à idéia da morte em geral. Graças ao desenvolvimento da higiene e da consolidação da segurança pessoal, porém, a morte natural tornava-se comum, e ao trabalhador moderno a visão do repouso eterno, após o esgotamento normal das suas forças, absolutamente não se afigurava medonha, senão esperada e desejável. Não, a morte nada tinha de fantasma nem de mistério; era, sim, fenômeno inequívoco, racional, fisiologicamente necessário e simpático. Perder um tempo excessivo com a sua contemplação seria roubar à vida o que lhe cabe. Por isso tencionava-se combinar com aquele crematório modelo e o columbário, que era o “recinto da morte”, um “recinto da vida”, no qual se aliariam a arquitetura, a pintura, a escultura, a música e a poesia, no sentido de afastar o espírito dos sobreviventes do espetáculo da morte, do luto obtuso e da lamentação inativa, e de encaminhá-lo para os bens que a vida oferecia...

– O mais depressa possível – zombou Naphta. – Para que não se exceda no culto da morte e não vá demasiado longe na reverência tributada a um fato tão simples. Verdade é que sem esse fato não haveria arquitetura, nem pintura, nem escultura, nem música, nem poesia.

– Ele foge para as fileiras do exército – murmurou Hans Castorp, como que num sonho.

– A obscuridade da sua observação, meu caro engenheiro – respondeu-lhe Settembrini –, deixa transparecer o seu caráter censurável. É preciso que a experiência da morte seja, em última análise, a experiência da vida; do contrário, não passa de um espantalho.

– Serão empregados símbolos obscenos no “recinto da vida”, assim como se encontram em alguns sarcófagos antigos? – perguntou Hans Castorp seriamente.

– Em todo caso haverá alimentos fartos para os sentidos – declarou Naphta. – Esculpido em mármore e pintado a óleo, o corpo será exibido pelo gosto clássico; esse corpo pecaminoso que subtraem à podridão. Isso não pode surpreender, uma vez que, de tanto carinho, nem sequer se permite que o castiguem...

A essa altura da conversa, Wehsal interveio mencionando a tortura. Esse tema parecia exercer sobre ele uma atração particular. Que pensavam os amigos da confissão arrancada por meio de tormentos? Ele, Ferdinand, sempre gostara de aproveitar, por ocasião das suas viagens comerciais, as oportunidades para visitar, nos centros de cultura antiga, aqueles recantos quietos onde outrora se realizara esse tipo de exploração da consciência. Conhecia as câmaras de tortura de Nuremberg e de Ratisbona, que estudara de perto no interesse da sua formação intelectual. Com efeito, por amor à alma o corpo fora ali submetido a um tratamento pouco delicado, empregando-se nisso processos muito engenhosos. E nem sequer houvera gritarias. A pêra, a famosa “pêra”, que não era nenhuma guloseima, costumava ser fincada na boca aberta, e logo reinava um silêncio absoluto, apesar da mais intensa atividade...

– Porcheria! – resmungou Settembrini.

Ferge observou que, sem menosprezar a pêra e a atividade silenciosa, não se inventara ainda nenhuma tortura mais infame do que a apalpação da pleura. Nem naqueles tempos poderiam ter imaginado coisa pior.

– Bem, fizeram isso para curá-lo – objetou Settembrini.

– A alma obstinada e a justiça ofendida – argumentou Naphta – justificam igualmente uma supressão passageira da misericórdia. Além disso, era a tortura um produto do progresso nacional.

O italiano duvidou de que Naphta estivesse em seu juízo perfeito.

Ah, sim, não divagava. O Sr. Settembrini era apenas um beletrista e, evidentemente, não estava familiarizado com a história do processo na Idade Média. Esta era de fato progressivamente racionalista, no sentido de ser Deus, aos poucos, eliminado da jurisprudência, em prol de ponderações baseadas na razão. Foi abolido o ordálio, porque haviam notado que o mais forte vencia, ainda que a justiça não se achasse a seu lado. Pessoas da mentalidade do Sr. Settembrini, céticas e críticas, tinham feito essa observação e conseguido a substituição do antigo e ingênuo processo penal pela Inquisição, que já não se fiava na intervenção de Deus, senão que se empenhava em arrancar ao réu a confissão da verdade. Nenhuma condenação sem confissão! Que consultassem a gente do povo: esse instinto estava profundamente arraigado. Por completa que fosse a cadeia das provas – a condenação era considerada injusta enquanto faltasse a confissão. Como obtê-la? Como descobrir a verdade, além dos meros indícios, além da simples suspeita? Como saber o que escondiam o coração e o cérebro de quem dissimulava a verdade, de quem se recusava a revelá-la? Quando o espírito se mostrava recalcitrante, não existia outro recurso senão o de apelar ao corpo, que era mais acessível. A tortura, como veículo da confissão indispensável, era imposta pela razão. Mas quem reclamara e introduzira o processo baseado na confissão era o Sr. Settembrini, e por conseguinte cabia-lhe também a responsabilidade pela tortura.

O humanista pediu aos demais que não acreditassem em nada disso. Tratava-se de gracejos diabólicos. Se a teoria do Sr. Naphta fosse certa, se realmente a razão tivesse inventado aquela atrocidade, isso demonstraria, quando muito, o quanto necessitava ser escorada e esclarecida, e quão poucos motivos tinham os adoradores do instinto natural para recear que um dia as coisas se passassem na terra de um modo excessivamente razoável. No entanto, não havia dúvida de que o seu interlocutor se equivocara. Aquela monstruosidade jurídica não podia ser derivada da razão, porquanto os seus alicerces jaziam na crença no inferno. Que eles lançassem um olhar aos museus e às câmaras de tortura. Isso bastava para perceber que aqueles métodos de beliscar, esticar, tostar e apertar com parafusos manifestamente haviam brotado de uma imaginação pueril e obcecada, do desejo de imitar piedosamente o que acontecia nos lugares do castigo eterno, lá no além. Ainda se tencionara fazer, dessa forma, o bem do malfeitor. Supusera-se que a sua própria alma sofredora lutava pela confissão, e que só a carne, como princípio do mal, se opunha a essa boa vontade. De maneira que se pensara prestar um serviço caridoso ao subjugar a carne por meio de tormentos. Loucura de ascetas!...

Naphta quis saber se os antigos romanos tinham sofrido da mesma loucura.

– Os romanos? Ma che!

No entanto, também eles costumavam empregar a tortura como elemento processual.

Um impasse lógico... Hans Castorp procurou encontrar uma saída, trazendo à baila o problema da pena de morte, por sua própria iniciativa, como se lhe competisse imprimir outro rumo a uma discussão dessas. A tortura estava abolida, se bem que os juizes de instrução ainda usassem uma técnica parecida para amolecer os acusados. Mas a pena de morte parecia imortal, era indispensável. Os povos mais civilizados conservavam-na. Os franceses tinham feito péssimas experiências com o seu sistema de deportações. Simplesmente não havia o que fazer, na prática, com certas criaturas antropóides, a não ser cortar-lhes a cabeça.

Não se tratava aí de “criaturas antropóides” – corrigiu-o o italiano –, mas de homens como o engenheiro e como o próprio Settembrini. Apenas eram fracos de vontade, vítimas de uma sociedade mal organizada. E falou de um grande criminoso, várias vezes assassino, pertencente àquela espécie que os promotores públicos, nas suas acusações, costumam qualificar de “bestial”, ou de “feras com cara de homem”. Esse homem cobrira de versos as paredes da sua cela, e os seus versos absolutamente não eram maus, eram mesmo muito melhores do que os que os promotores fabricam de vez em quando.

Isso lançava uma luz singular sobre a arte, segundo observou Naphta. Mas fora disso não havia nada de curioso nesse fato.

Hans Castorp havia esperado que Naphta advogasse a conservação do suplício. Opinou que este talvez fosse tão revolucionário quanto o Sr. Settembrini, mas o era no sentido conservador, como revolucionário do conservantismo.

– Ora – sorriu o Sr. Settembrini, muito senhor de si —, o mundo passará por cima dessa revolução do retrocesso anti-humano. O Sr. Naphta prefere difamar a arte a admitir que ela confere a dignidade de homem até ao indivíduo mais depravado. Com um fanatismo desses não se pode conquistar a juventude ávida de luz. Acaba de ser fundada uma liga internacional com o objetivo da abolição da pena de morte em todos os países civilizados. Eu tenho a honra de fazer parte dela. Ainda não foi escolhido o lugar onde se realizará o seu primeiro congresso, mas a humanidade pode ter confiança em que os oradores que ali fizerem ouvir a sua voz hão de surgir munidos de argumentos. – E o humanista enumerou esses argumentos, entre eles sobretudo o da possibilidade sempre existente do erro judiciário, do “assassínio legal”, e o outro de que nunca se devia abandonar a esperança de ver o criminoso emendar-se. Citou até a sentença: “Minha é a vingança”, e também explicou que o Estado, desde que mais se empenhasse no aperfeiçoamento do homem do que na violência, não tinha direito de retribuir o mal pelo mal. Rejeitou a idéia da “punição”, após ter combatido a da “culpa”, sobre a base de um determinismo científico.

A seguir, a “juventude ávida de luz” teve que presenciar como Naphta torcia o pescoço a cada um desses argumentos. Escarneceu da relutância de derramar sangue e do respeito à vida manifestados pelo filantropo. Afirmou que tal culto da vida individual provinha das épocas mais triviais da burguesia armada de guarda-chuva. Mas bastava que estivesse em jogo uma única idéia que ultrapassasse a da “segurança”, qualquer coisa superpessoal, superindividual – o que era o único estado digno do homem e portanto o estado normal, num sentido superior – e imediatamente a vida individual não só era sacrificada, sem titubear, à idéia superior, mas também oferecida espontaneamente pelo próprio indivíduo. A filantropia do senhor seu antagonista, acrescentou Naphta, esforçava-se por privar a vida de todos os seus acentos sombrios e mortalmente sérios; empenhava-se na castração da vida, inclusive por meio do determinismo da sua chamada ciência. Mas a verdade era que a idéia da culpa não podia ser abolida pelo determinismo, e, pelo contrário, tornava-se ainda mais grave e mais formidável graças a ele.

– Essa não é má! Será que o senhor exige que a desgraçada vítima da sociedade se sinta realmente culpada e se encaminhe ao cadafalso por convicção?

– Sim, senhor. O criminoso acha-se compenetrado da sua culpa como de si próprio. É tal como é e não quer ser diferente, e justamente nisso reside a culpa. – O Sr. Naphta transportou então a culpa e o mérito da esfera empírica para a esfera metafísica. Verdade era que no fazer e no agir reinava a determinação; ali não havia liberdade, mas esta existia onde se tratava do ser. O homem era assim como queria ser e continuaria a querê-lo até o seu extermínio. Se assassinava, porque gostava disso “mais do que da vida”, não pagava um preço excessivo dando essa vida. Que morresse, já que gozara a mais profunda volúpia.

– A mais profunda volúpia?

– Sim, senhor, a mais profunda de todas.

O outro crispou os lábios. Hans Castorp pigarreou de leve. Wehsal deixou cair o maxilar, enquanto o Sr. Ferge dava um suspiro. Settembrini observou com finura:

– Está se vendo que há uma maneira de generalizar que dá ao assunto um matiz pessoal. O senhor teria vontade de matar?

– Isso não é da sua conta. Mas se o tivesse feito, garanto-lhe que me riria na cara dos ignorantes humanitários que se dispusessem a alimentar-me de lentilhas até o meu óbito natural. Não há nenhum sentido no fato de o assassino sobreviver ao assassinado. Esses dois, sem a presença de mais ninguém, tão sozinhos como jamais o são duas criaturas a não ser numa circunstância análoga, participam, um agindo e o outro sofrendo, de um segredo que os une para sempre. Seus destinos são inseparáveis.

Settembrini confessou displicentemente que carecia do órgão capaz de compreender tal misticismo da morte e do homicídio, e que não lamentava essa falta. Não tinha nada que objetar aos talentos religiosos do Sr. Naphta – indiscutivelmente superiores aos seus próprios —, mas fazia questão de declarar que não lhos invejava. Uma invencível necessidade de asseio mantinha-o distante de uma esfera onde aquela reverência diante do infortúnio, havia pouco mencionada pela juventude cúpida de experiências, reinava evidentemente não apenas no sentido físico, mas também no sentido espiritual; numa palavra: uma esfera onde a virtude, a razão e a saúde de nada valiam, ao passo que o vício e a enfermidade desfrutavam da mais alta estima.

Naphta confirmou que de fato a virtude e a saúde não constituíam estados religiosos. – É de grande importância – acrescentou – deixar perfeitamente claro que a religião nada tem que ver com a razão e com a ética, uma vez que nada tem que ver com a vida. Esta se alicerça em condições e bases que pertencem em parte à teoria do conhecimento, em parte ao domínio da moral. As primeiras chamam-se tempo, espaço, causalidade; as segundas, moralidade e razão. Todas essas coisas não são apenas estranhas e indiferentes à religião, mas até mesmo lhe são hostilmente antagônicas; pois precisamente elas é que formam a vida, a pretensa saúde, isto é, a maneira de ser inteiramente filistéia e o espírito cem por cento burguês, cuja antítese absoluta e genial é justamente o mundo religioso. Aliás, não quero negar que a esfera da vida possa produzir o gênio. Existe um modo de viver burguês de inegável probidade monumental, uma majestade de filisteu, que se pode julgar digna de reverência, desde que não se esqueça que ela, assim como se planta diante de nós, na sua dignidade quadrada, com as mãos nas costas e o peito saliente, representa a irreligiosidade personificada.

Hans Castorp levantou o dedo indicador como um escolar. Disse que não queria melindrar nenhum dos dois partidos. Mas uma vez que indubitavelmente estavam falando de progresso, do progresso da humanidade, e por conseguinte de política, da república da eloqüência e da civilização do Ocidente culto, gostaria de expressar a opinião de que a diferença, ou, se o Sr. Naphta insistia nesse ponto, o antagonismo entre a vida e a religião tinha a sua origem no que existia entre o tempo e a eternidade. Pois o progresso realizava-se exclusivamente no tempo e não tinha lugar na eternidade, dando-se o mesmo com a política e a eloqüência. Ali, as pessoas apoiavam, por assim dizer, a cabeça no regaço de Deus e fechavam os olhos. E esta era, numa formação confusa, a diferença entre religião e moralidade.

Settembrini replicou que a sua maneira ingênua de exprimir-se era menos inquietante do que seu medo de ferir sentimentos alheios e sua tendência para fazer concessões ao Diabo.

Ora, no que tocava ao Diabo, o Sr. Settembrini, e ele, Hans Castorp, já haviam discutido fazia muito tempo. “O Satana, o ribellione!” Restava saber a que diabo acabava de fazer concessões. Àquele da rebelião, da crítica e do trabalho, ou ao outro? Que impasse perigosíssimo: um diabo à direita, um diabo à esquerda. Como, em nome do Diabo, era possível escapar a ambos?

– Dessa forma – objetou Naphta – não se apresentava de maneira própria a situação, tal como o Sr. Settembrini desejava vê-la. O essencial, na sua concepção do universo, era que fazia de Deus e de Satã duas pessoas ou dois princípios diversos, colocando a vida entre eles, como objeto de disputa, aliás em conformidade completa com as idéias da Idade Média. Em realidade, porém, Deus e o Diabo eram uma e a mesma coisa, e ambos se opunham à vida, ao modo de viver burguês, à ética, à razão, à virtude, devido ao princípio religioso que juntos representavam.

– Que embrulhada asquerosa! Che guazzabuglio próprio stomachevole! – explodiu Settembrini. – O bem e o mal, a santidade e a malvadez, tudo misturado! Sem discernimento, sem vontade! Sem a capacidade de reprovar o que era reprovável! – Sabia o Sr. Naphta o que estava negando, ao confundir, em presença da juventude, Deus e Satã, e ao rejeitar o princípio ético em nome dessa execranda dualidade? Negava o valor, negava toda escala de valores – era espantoso dizê-lo! Bem, nesse caso não existiam o bem e o mal, mas apenas o universo sem ordem moral. Tampouco existia o indivíduo com a sua dignidade crítica, mas somente a coletividade absorvente e niveladora de tudo, e o ocaso místico no seu seio. O indivíduo...

Que coisa deliciosa ver o Sr. Settembrini tornar a considerar-se um individualista! Mas para sê-lo. era preciso conhecer a diferença entre a moralidade e a bem-aventurança, que esse cavalheiro iluminista e monista ignorava redondamente. Numa esfera onde se concebia a vida, de um modo estúpido, como tendo a sua finalidade em si própria, e não se procurava um fim e um objetivo que a ultrapassassem, reinava uma ética social, uma ética de espécie, uma moralidade de vertebrado, mas nada de individualismo. Este prosperava exclusivamente no terreno do religioso e do místico, no pretenso “universo sem ordem moral”. Que era, afinal, e que se propunha fazer a tal moralidade do Sr. Settembrini? Achava-se ligada à vida e por isso não ia além do útil. Era, portanto, despida de heroísmo num grau deveras lamentável. Servia para se chegar a ser velho, feliz, rico, sadio e nada mais. E essa mentalidade filistéia, baseada na razão e no trabalho, era para o Sr. Settembrini uma ética! Quanto a ele, Naphta, tomava a liberdade de qualificá-la de mísero modo de viver burguês. Settembrini exigiu do seu interlocutor que se moderasse. Mas a sua própria voz vibrava de paixão quando declarou ser insuportável que o Sr. Naphta falasse sem cessar do modo de viver burguês, Deus sabia por quê, num tom de aristocracia desdenhoso, como se o contrário – e ninguém ignorava o que era o contrário de viver – fosse qualquer coisa mais distinta.

Novos chavões, novas deixas! Dessa vez tinham chegado ao problema da distinção e à questão da aristocracia. Hans Castorp, rubro e exausto pelo frio e pela multiplicidade de assuntos, além disso inseguro quanto à inteligibilidade ou ao atrevimento febril da sua própria linguagem, confessou com os lábios quase inertes que sempre visionara a morte trajando uma golilha engomada à moda espanhola, ou pelo menos um uniforme um tanto menos solene que incluía um colarinho alto, ao passo que a vida usava um simples colarinho moderno... Mas ele mesmo, assustando-se diante dos devaneios ébrios e da inconveniência das suas palavras, apressou-se a afirmar que não era precisamente isso o que tencionava dizer. Queria, no entanto, saber se não existiam pessoas, certas criaturas humanas, que era impossível imaginar como mortas, justamente por serem por demais ordinárias. Isso significava que pareciam a tal ponto feitas para a vida que davam a impressão de ser incapazes de morrer e indignas de receber a consagração da morte.

O Sr. Settembrini expressou a esperança de que Hans Castorp dissesse essas coisas somente para encontrar oposição. O jovem sempre o acharia disposto a socorrê-lo quando se tratasse da defesa espiritual contra tais tentações. “Feito para a vida”, dissera ele, empregando essas palavras num sentido pejorativo. “Digno da vida!” Eis o termo de que convinha servir-se em seu lugar, e os conceitos logo se encadeariam em verdadeira e perfeita ordem. “Digno de viver” essa idéia conduzia imediatamente, por meio de uma associação fácil e natural, à outra, “digno de amor”, idéia tão intimamente ligada à primeira, que se podia dizer que só era digno de verdadeiro amor o que era verdadeiramente digno de viver. O conjunto dessas duas qualidades – digno de viver e digno de amor – exprimia o que se chamava distinção.

Hans Castorp achou essas deduções encantadoras e sobremodo interessantes. Disse que o Sr. Settembrini o conquistara por completo pela sua teoria plástica. Que se argumentasse como se quisesse – e havia certos argumentos, como, por exemplo, aquele que afirmava ser a doença uma forma de existência superior e ter por isso algo de solene –, mas uma coisa era certa, a saber: que a enfermidade acentuava em excesso o elemento corporal, que reduzia e restringia o homem inteiramente ao corpo e prejudicava dessa forma a sua dignidade a ponto de aniquilá-la, pelo fato de nos rebaixar ao estado de mera carne. A doença era portanto inumana.

– Pelo contrário, a doença é sumamente humana – retrucou Naphta em seguida. – E ser homem é ser doente. Em realidade, o homem é essencialmente um enfermo. O fato de ele estar doente é o que o torna homem, e aqueles que desejam curá-lo e induzi-lo a fazer as pazes com a natureza, a “voltar à natureza”, embora nunca tivesse sido natural, toda essa corja de regeneradores, de paladinos da alimentação crua, de vegetarianos, naturistas e helioterapeutas que se exibem hoje em dia à guisa de profetas, enfim, todos os adeptos de Rousseau não almejam outra coisa a não ser desumanizar e embrutecer o homem... Estão falando de humanidade e de distinção. O homem é um ser nitidamente desprendido da natureza e sente-se no mais alto grau oposto a ela. O que o distingue de qualquer outra forma de vida orgânica é precisamente o espírito. Nele, isto é, na doença, baseia-se a dignidade do homem e a sua distinção. Numa palavra: ele é tanto mais homem quanto mais enfermo, e o gênio da enfermidade é mais humano do que o da saúde. É estranho ver como alguém que se finge de filantropo fecha os olhos diante destas verdades fundamentais da humanidade. O Sr. Settembrini preconiza o progresso. Como se o progresso, se é que existe uma coisa assim, não fosse devido exclusivamente à enfermidade, isto é, ao gênio, que, por sua vez, nada é senão doença! Como se os homens sadios não tivessem vivido, em todos os tempos, das conquistas feitas pelos doentes! Houve quem se abismasse consciente e voluntariamente nas regiões da doença e da loucura, a fim de adquirir para a humanidade conhecimentos suscetíveis de transformar-se em saúde, depois de serem ganhos pela insânia, e cuja posse e exploração, depois do sacrifício heróico, já não dependessem da enfermidade e da demência. Esta era a genuína morte na cruz...

“Ah!”, pensou Hans Castorp. “Vem à tona o jesuíta de idéias próprias, com suas combinações e sua maneira de interpretar a morte na cruz! Já se vê por que não chegou a ser padre, joli jésuite à la petite tache humide!” E dirigindo-se, intimamente, a Settembrini, acrescentou: “Agora, leão, é a sua vez de rugir”. E este se pôs a “rugir”, declarando que tudo quanto Naphta acabava de sustentar não passava de miragens, rabularias e confusão feita para enganar o mundo. – Diga! – lançou na cara do seu antagonista. – Diga-o sob a sua responsabilidade de educador, sustente sem rodeios, na presença dessa juventude em formação, que o espírito é enfermidade! Sim, senhor, é com tais argumentos que os conduzirá ao espírito e lhes inspirará fé nele! E declare ainda que a doença e a morte são nobres, ao passo que a saúde e a vida são vis, porque este é o método mais garantido para levar o educando a servir a humanidade! Davvero, è criminoso!


– E qual um cruzado saiu em defesa da distinção inerente à saúde e à vida, essa distinção que a natureza conferia, e que não precisava preocupar-se quanto ao espírito. Proclamou “a forma”, à qual Naphta, com altivez, opôs “o logos”. No entanto, aquele que nada queria saber do logos professava “a razão”, enquanto o paladino do logos defendia “a paixão”. Tudo isso era confuso. “O objeto”, dizia um, e o outro respondia: “O eu”. Por fim se puseram a falar, um de “arte” e o outro de “crítica”. Mas sempre voltavam à “natureza” e ao “espírito”, discutindo qual dos dois era mais nobre e ventilando o “problema aristocrático”. Dessa contenda, entretanto, não resultou nem clareza nem ordem, nem sequer de caráter dualista e militante. Pois as posições não somente eram opostas, como também se confundiam. Os adversários, ao invés de se limitarem a combater-se reciprocamente, amiúde se contradiziam a si próprios. Settembrini muitas vezes dera vivas retóricos à crítica, e sem embargo punha-se agora a reivindicar as honras do princípio nobre para o contrário dela, que, segundo ele, era a arte. Em outras ocasiões, Naphta surgira mais de uma vez como defensor do “instinto natural”, perante Settembrini, que tratara a natureza de “potência estúpida”, de mero “fato e fado”, diante dos quais a razão e o orgulho do homem não tinham direito de abdicar. A essa altura dos debates, porém, Naphta colocou-se ao lado do espírito e da “doença”, porque somente nesse campo se encontravam a distinção e a humanidade, ao passo que o italiano se arvorou em advogado da natureza e da sua nobreza sadia, sem pensar em emancipar-se dela. Não menor era a embrulhada no que dizia respeito ao objeto e ao eu. Nesse ponto, a confusão – que aliás para eles era sempre a mesma – parecia mais irremediável do que nunca, chegando a um ponto em que absolutamente não se sabia mais qual dos dois antagonistas era o homem piedoso e qual o livre-pensador. Naphta proibia a Settembrini, em termos severos, qualificar-se de “individualista”, já que negava a oposição entre Deus e a natureza, estabelecia como o problema do homem, como o seu conflito interior, unicamente a contenda entre os interesses individuais e coletivos, e portanto se aferrava a uma ética burguesa, ligada à vida considerada como, finalidade em si, uma ética desprovida de heroísmo, que visava ao útil e via a lei moral nos objetivos do Estado; ele, Naphta, por sua vez, sabia muito bem que o problema interno do homem tinha a sua raiz no antagonismo entre o real e o transcendental; por isso representava o verdadeiro individualismo, o individualismo místico, e era em realidade o campeão da liberdade e do “sujeito”. Mas, se era assim – pensou Hans Castorp –, que seria feito então do “anonimato” e da “coletividade”, para salientar, a título de exemplo, uma única incoerência? Que acontecera com aquelas opiniões precisas que Naphta exteriorizara, durante o colóquio com o Padre Unterpertinger, quanto à “catolicidade” do filósofo oficial, Hegel, ao laço íntimo que ligava os conceitos “político” e “católico”, e à categoria do “objetivo” que formavam juntos? A estadística e a educação – não tinham elas sempre formado o campo particular das atividades da ordem de Naphta? E que tipo de educação! O Sr. Settembrini, indiscutivelmente, era um pedagogo diligente, zeloso até as raias do importuno e do maçante; mas, com respeito à objetividade ascética, desprezadora do eu, os seus princípios nem de longe podiam arriscar-se a competir com os de Naphta. Mando absoluto! Disciplina de ferro! Coação! Obediência! O terror! Tudo isso talvez tivesse o seu aspecto honroso, porém levava em pouquíssima consideração a dignidade crítica do indivíduo. Era o regulamento militar do prussiano Frederico e do espanhol Loyola, pio e austero até o sangue. Restava apenas uma única pergunta, a saber, como Naphta chegara a esse sanguinário absoluto, embora confessadamente não acreditasse em nenhum conhecimento puro e em nenhuma ciência incondicional; numa palavra: embora não acreditasse na verdade, naquela verdade objetiva, científica, cuja busca representava para Lodovico Settembrini a lei suprema de toda a moral humana. Nesse ponto, a piedade e a austeridade estavam ao lado do Sr. Settembrini, ao passo que parecia relaxado e licencioso o procedimento de Naphta, que subordinava a verdade ao homem e declarava que verdade era aquilo que mais convinha a este. Não se parecia essa maneira de fazer a verdade depender dos interesses do homem, com o modo de viver burguês e com a mentalidade utilitarista dos filisteus? Nisso não se manifestava propriamente aquela objetividade de ferro. Havia nessas idéias muito mais liberdade e individualismo do que Leo Naphta estaria disposto a admitir – posto que elas tivessem um sentido “político” semelhante àquele de certa máxima de Settembrini, segundo a qual a liberdade era a lei do amor ao próximo. Saltava aos olhos que assim se ligava a liberdade ao homem, da mesma forma como Naphta o fazia com a verdade. Tal procedimento era decididamente mais ortodoxo do que liberal, mas também essa diferença ameaçava apagar-se no curso das definições. Ah, esse Sr. Settembrini! Havia boas razões para que ele fosse literato, sendo neto de um político e filho de um humanista. Magnanimamente preocupava-se com a crítica e com a beleza da emancipação e dirigia-se cantarolando às mocinhas que encontrava na rua. Enquanto isso, o pequeno e penetrante Naphta achava-se coibido por votos severos. E, não obstante, este era quase um devasso, tamanha a sua liberdade de pensamento, e aquele um puritano, sob certos aspectos. O Sr. Settembrini temia o “espírito absoluto” e queria a todo o transe identificar o espírito com o progresso democrático. Espantava-se diante da libertinagem religiosa do militar Naphta, que misturava Deus e o Diabo, a santidade e a malvadez, o gênio e a doença, não reconhecendo nenhuma espécie de escala de valores, de julgamento racional e de vontade. Quem era, afinal de contas, o livre-pensador e quem o homem pio? Onde se achava a verdadeira posição, o genuíno estado do homem? Devia ele desfazer-se, de modo tão libertino quanto ascético, no seio da coletividade absorvente e niveladora de tudo, ou cumpria-lhe tomar o partido do “indivíduo crítico”, em cujo interior se debatia o conflito entre a estroinice e a austeridade virtuosa do burguês? Infelizmente, os princípios e os aspectos colidiam uma e outra vez; havia abundância de contradições íntimas, e era extremamente difícil para a responsabilidade de um civil não somente chegar a uma decisão em meio às divergências, como simplesmente manter os elementos da discussão separados numa forma clara e pura. A dificuldade era tamanha, que parecia tentadora a idéia de atirar-se de cabeça de encontro ao “universo sem ordem moral” de que falara Naphta. Era a encruzilhada geral, o emaranhamento completo, a grande confusão, e Hans Castorp acreditava perceber que os adversários se teriam mostrado menos encarniçados se durante a sua querela essa confusão não lhes houvesse pesado sobre a alma.

Tinham subido juntos até o Berghof. A seguir, os três pensionistas haviam acompanhado os externos de volta, até defronte de sua casinha, e ali permaneceram ainda muito tempo de pé sobre a neve, enquanto Naphta e Settembrini se digladiavam – pedagogicamente, como Hans Castorp bem sabia, e no intuito de influenciar a formação da juventude ávida de luz. Para o Sr. Ferge, todos esses assuntos eram por demais elevados, como repetidas vezes deu a entender, e Wehsal demonstrou pouco interesse desde que haviam deixado de falar de flagelações e torturas. Hans Castorp, com a cabeça baixa, sulcava a neve com a ponta da bengala e refletia sobre a grande confusão.

Finalmente separaram-se. Era impossível conservarem-se eternamente de pé, e o colóquio não tinha limites. Os três pensionistas do Berghof tomaram novamente o rumo do seu domicílio, e os dois pedagogos rivais tiveram de entrar juntos na sua casinha, um para alcançar a sua cela forrada de sedas, e o outro para subir ao seu cubículo de humanista, com a papeleira e a garrafa de água. Hans Castorp, porém, encaminhou-se ao seu compartimento da sacada, com os ouvidos cheios do tumulto e do estrépito das armas dos dois exércitos que, avançando de Jerusalém e da Babilônia, sob as dos banderas, haviam-se entrechocado no alvoroço de uma batalha confusa.

 

[1] Referência a Vita, memórias do escultor Benvenuto Cellini, traduzidas por Goethe. (N. do E.)

[2] “Vale” é uma palavra latina que significa “adeus”. É usada no final de um texto quando o autor se despede dos leitores. O trocadilho aqui se refere à palavra “carnaval” (Karneval = carne + vale). (N. do E.)

[3] Cenas do Fausto de Goethe. As demais citações de Settembrini são extraídas da mesma obra, particularmente da seção intitulada “Noite de Valburga”. (N. do E.)

[4] Vento do sul. (N. do E.)

 

                                                                                CONTINUA

 

                      

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