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A Morte Verde / Erle Stanley Gardner
A Morte Verde / Erle Stanley Gardner

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Morte Verde

 

GELO VERDE À VENDA

O homem que se sentara em frente da secretária de Bertha Cool dava a idéia de que não gostava do cheiro do escritório. A sua atitude era a de um milionário atravessando, constrangido, um bairro da lata. Bertha fitou-me apreensiva, como se algo lhe estivesse a fugir entre os dedos, quando assomei à porta do seu gabinete. O homem examinou-me dos pés à cabeça e dir-se-ia não lhe agradar o que via, nem tencionar mudar  de opinião, num futuro mais próximo, ou longínquo.

Contudo, para ele, Bertha era toda doçuras, pelo que me foi fácil deduzir que o acordo sobre as custas da nossa atividade não fora ainda materializado.

- Ora aqui tem, Mr. Sharpies, o meu sócio Donald Lam - apresentou ela. - O que lhe falta, em músculos, é compensado pelo cérebro - justificou.

Virando-se para mim, elucidou, com um sorriso aliciante:

- Mr. Sharpies é um proprietário mineiro da América do Sul. Tenciona encarregar-nos de um trabalho.

Dizendo isto, Bertha acomodou melhor os seus 80 quilos sobre a cadeira giratória que protestou, estalando.

O seu rosto mantinha a expressão de insinuante confiança, mas os olhos cintilaram-me a mensagem de que o contrato desejado deparava com extrema relutância, por parte do presumível cliente.

Achei melhor sentar-me. Sharpies, que não cessara ainda de avaliar-me, resmungou:

- Não gosto disso!

Como não sabia do que se tratava, fiquei calado e eleacrescentou:

- Não estou para ser «levado».

Disse-o, no mesmo tom que se usa para exprimir: «não sou nenhum saloio a quem se impinja gato, por lebre».

Bertha ia a argumentar qualquer coisa, mas troquei com ela uma olhadela de relance e emudeceu. Contudo, não agüentou o silêncio por muito tempo e acabou por dizer, a despeito do meu sobrolho carregado:

- É para isso que aqui estamos.

- Não tenho a menor dúvida - ripostou Sharpies.

- Sei  muito bem que é para isso que cá estão. Mas tenho de averiguar o que se passa.

- Exatamente, disse eu.

O homem fitou-me, admirado com a minha faculdade de adivinhar do que se tratava e estabeleceu-se nova pausa prolongada, apenas se ouvindo o secuiii da cadeira giratória de Bertha, quando esta agitava a base. Virando-se para mim, Sharpies justificou-se:

- Convém que compreendam a minha posição. Já tive ocasião de explicar o assunto à sua sócia, Mrs. Coo!, e vou resumir-lhe, por alto, a situação. Sou um dos fiéis depositários  legais da herança deixada em testamento pela falecida  Miss Cora  Hendricks. Os  legatários são Miss Shirley Bruce e Mr. Robert Hockley. Como testamenteiros,  figuro eu e Robert L. Cameron. Trata-se de um  fundo  financeiro que  nos  foi  confiado  como  fiéis depositários.  Está familiarizado com  os termos  legais desta situação?

- Sim - respondi laconicamente.

Bertha interrompeu, para elucidar:

- Donald formou-se em Direito e chegou a exercer advocacia forense.

- Nesse caso, porque não continua exercendo a profissão?  - indagou Sharpies, duvidoso.

Bertha abriu a boca, mas tornou a fechá-la, como um enorme peixe fora de água.

- Descobri existir certa fenda na Lei - decidi explicar, que permitia a um indivíduo, que cometesse um homicídio, escapar-se das malhas da Justiça.

- Por meio de um expediente desonesto?

- De maneira alguma. Limitei-me a indigitar, teoricamente, uma lacuna legal que tornava a ação judicial ineficiente. A Ordem dos Advogados não gostou da minha descoberta.

- Dava resultado? - inquiriu Sharpies, interessado.

- Resultou.

- Há-de explicar-me isso, em pormenor, numa outra altura - propôs Sharpies, denunciando certo respeito e admiração.

- Cometi esse erro uma vez - declarei, abanando a cabeça , e não voltarei a cometê-lo. Foi por alguém ter tomado conhecimento da minha descoberta e tê-la posto em prática, que acabei por ser irradiado do foro.Sharpies fitou-me silencioso, por momentos, e em seguida prosseguiu na sua explicação:

- O testamento estipula que Cameron e eu continuemos a administrar o fundo financeiro até que um dos beneficiários atinja 25 anos de idade. Nessa altura, a totalidade dos bens será dividida por ambos, em partes iguais. Isso deixa-nos numa posição de grande responsabilidade. A cadeira de Bertha tornou a ranger, queixosamente.

- Onde é que entramos no problema? - inquiri.

- Bem... queria que fizessem um trabalho...

- Que espécie de trabalho?

- Tenho de explicar-lhe melhor a situação, antes de defini-lo pormenorizadamente. A verdade é que Miss Cora Hendricks faleceu sem herdeiros diretos. Shirley Bruce é filha de um primo de Miss Hendricks, também falecido.

 Quando a mãe de Shirley morreu, aquela tomou conta da pequena órfã. Quanto ao outro legatário, Robert Hockley, nem sequer é parente da falecida Miss Hendricks.  É apenas filho de um seu amigo íntimo que morreu um ano antes dela. Compreende?

Sharpies pigarreou, para aclarar a garganta, e continuou, com um ar importante:

- Ora, Robert Hockley é um jovem de hábitos deveras  irregulares. É um rebelde, de comportamento obstinado, não-cooperativo, suspeito e irritante.

- Joga? - sondei.

- Constantemente.

- Isso custa dinheiro.

- Não há dúvida.

- Costuma dar-lho?

- De maneira nenhuma! - indignou-se Sharpies

Unicamente tem acesso a uma mesada limitada. Mesmo considerando o valor do fundo financeiro a que, um dia, terá direito, a mesada que lhe foi por nós atribuída é mais do que generosa, mas dentro dos limites coerentes.

- E quanto a Miss Bruce? - interessei-me.

Sharpies suspirou, desanuviando-se-lhe a expressão, e esclareceu animadamente:

- Miss Bruce tem uma personalidade exatamente oposta. É uma jovem digna, muito reservada, encantadora, com um verdadeiro sentido das responsabilidades financeiras.

 -Atraente?

- Extremamente bela.

-Loira ou morena?

- Morena... Porque pergunta isso?

- Tive esse palpite - respondi, sorrindo.

Sharpies tornou a pigarrear e replicou:

- A compleição física de Miss Bruce não vem para o caso. Gostaríamos de ser ainda mais generosos para com Robert Hockley, mas não podemos privá-lo, acefalamente,  do montante que lhe caberá, quando da partilha testamentária,  se  começarmos  a  deitar  dinheiro  pela janela fora. Compreenda, Mr. Lam, que é nossa missão continuarmos a administrar a totalidade do fundo financeiro, ampliando os lucros, até à data prescrita. Até lá, se desbaratarmos esse fundo (que é base das nossas operações financeiras lucrativas, por excessiva generosidade de adiantamentos, de certo modo ilegítimos), estamos  a prejudicar os dois beneficiários, iludindo a intenção implícita do testamento, que especifica dever a totalidade  dos fundos administrados ser entregue aos legatários, quando o mais novo de ambos atinja a idade de 25 anos.

- Portanto, Mr. Hockley, enquanto não recebe a sua parte global - resumi , vai gastando os adiantamentos da mesada, por meio do jogo, não é assim?

Sharpies uniu as pontas dos dedos das mãos, esticou os lábios e precisou de uma pausa, para escolher as palavras. Por fim disse:

- Robert Hockley é para nós um verdadeiro problema. Como lhe  recusamos  o avultado montante de dinheiro que nos pede, vai contraindo dívidas, sob a forma de empréstimos... Ultimamente soubemos que pediu uma certa soma emprestada, para se estabelecer com uma oficina de reparação de pára-choques e de guarda-lamas, assim como de galvanização de faróis, etc.

- E o negócio é rendoso? - sondei.

- Ninguém sabe. Tentei averiguar isso e não consegui.

Francamente, duvido que venha a ter qualquer êxito. Não é o tipo de homem que vingue na vida, pelo trabalho. É aquilo a que chamo um anti-social.

Virou-se para Bertha e declarou:

- Nem sei, na realidade, o que me trouxe aqui a dar este passo... Creio que me senti preocupado...

Bertha abriu-se num largo sorriso e observou:

- Procurar o serviço de detetives particulares, é como tomar um banho turco. Se uma pessoa nunca o fez antes, sente-se terrivelmente embaraçada, mas, à segunda vez, já compreende o proveito que dele consegue tirar.

- Bem - prosseguiu Sharpies, vim aqui ver se conseguia obter uma informação muito simples, mas que não posso obter pessoalmente...

- É  o  nosso  ofício - animou   Bertha. - Para  isso aqui estamos.

- Acontece que Shirley Bruce também tem um problema...  mas de outra natureza. Como é óbvio, não podemos  dar mesadas a um dos beneficiários e não as conceder ao outro. Se dermos mil dólares por mês a Miss

Bruce, teremos de dar outro tanto a Hockley...

- Isso representa 24 mil dólares por ano, extraídos do «bolo» - comentei.

- Oh, não, Mr. Lam - cortou ele, apressadamente. Eu disse apenas «se dermos». Não formulei números exatos.Trata-se de uma hipótese. O ponto aonde quero chegar é que Miss Bruce é uma jovem cheia de caráter e de princípios e recusa-se a receber um centime a mais que seja, para além da quantia que entregamos a Hockley.

- Quer dizer que essa moça despreza o dinheiro? Inquiriu Bertha, indignadamente.

- De certa maneira, sim - confirmou Sharpies.

- Não posso conceber uma coisa dessas! -confessou Bertha, revoltada.

- Também me custa vê-la tomar essa atitude – continuou  Sharpies. - Presumo que Shirley considera desleal não procedermos a uma divisão equitativa de mesadas.

 Acha que o que recebe deve ser integralmente igual ao adiantamento que gradualmente vamos fazendo a Hockley.

- Quando deverão receber ambos a totalidade do fundo financeiro? - inquiri.

- Quando o  mais  novo dos  herdeiros  atingir os 25 anos.

- Qual é o mais novo?

- Shirley Bruce... Robert Hockley já tem 25 anos,

- Quando faz Miss Bruce os seus 25?

- Dentro de 3 anos. Robert terá então 28.

Eu sabia somar, mas não lho disse. Preferi sumariar:

- Nessa data, divide-se o fundo equitativamente por ambos... cinquenta por cento a cada um. Se, entretanto, as mesadas adiantadas a um fossem superiores às facultadas  ao outro, este ficaria prejudicado na divisão final do «bolo»?

- Bem... sim... Devo esclarecer que Miss Bruce é uma jovem extraordinária e...

- Já me disse isso - cortei. - Temos, portanto, quese encontram ambos em igualdade de circunstâncias, privilégiose direitos. É o que interessa.

- Sim...

Mudando subitamente de assunto, Sharpies indagou:

- Conhecem Benjamin Nuttall?... Sabem de quem se trata?

- Refere-se ao joalheiro?

- Sim.

- Não o conheço pessoalmente - esclareci, mas

sei onde fica o seu estabelecimento.

- Não é um judeu muito careiro? - inquiriu Bertha.

- Bem... é um cavalheiro que negocia objetos dispendiosos corrigiu  Sharpies. - Está  especializado no negócio de esmeraldas. Ora, acontece que uma parte da fortuna deixada por Miss Cora Hendricks implica a exploração de propriedades mineiras   da   Colômbia...   Sabe alguma coisa acerca de esmeraldas?

Fiz um sinal a Bertha e ela sacudiu a cabeça afirmativamente.

- Bem - continuou Sharpies , como deve saber, o negócio   de   esmeraldas   constitui   um   monopólio   do Governo colombiano. As melhores esmeraldas do mundo são provenientes desse país, e o Governo colombiano controla virtualmente o mercado dessas pedras preciosas.

É ele que determina quantas podem ser retiradas das mina quantas podem ser clivadas e quantas podem ser vendidas, para o valor não se depreciar. Detém praticamente o seu exclusivo. Desta maneira, ninguém sabe qual a evolução do preço das esmeraldas no mercado, antes das decisões governamentais da Colômbia. Por esse motivo, o segredo é da maior importância. Um especulador que possa conseguir, com certa antecedência, essa informação, encontrar-se-á numa posição altamente vantajosa no mercado internacional.

- Que quer dizer com isso? - sondou Bertha, com os olhos cintilando de interesse.

- Por exemplo, explicou ele, há já algum tempo que não se tem prospectado minas de esmeraldas, visto que o Governo considera a exploração atualmente inoportuna.

Tem pedras suficientes para manter o mercado abastecido, temporariamente. O stock que se encontra à venda não está ainda esgotado e, assim, as pedras mantêm o mesmo preço. Quanto menos pedras estão nas joalharias, mais alto é o seu preço. Quando vem novo stock e as pedras são abundantes, o preço desce. Bem, isto ocorre desta maneira, evidentemente, de acordo com a procura... com o interesse do público pelas jóias. O que o Governo colombiano procura é manter o preço elevado das esmeraldas, sem grandes quebras...

- Mas, quanto a essas informações que podem tornar-se valiosas...? - inquiriu Bertha Cool.

- Ninguém pode saber que quantidade de pedras estão ainda em stock, portanto, não se pode prever a flutuação dos preços: se sobem, se baixam, antes da informação do Governo... Contudo, se alguém estiver em posição de conseguir essa informação e se puder transmiti-la a um grande comerciante da especialidade, este poderá fazer negócios mais vantajosos, em relação aos seus concorrentes.

- Devo depreender intervim , que uma parte do testamento de Miss Cora Hendricks incluiu uma mina de esmeraldas?

- Oh, não! Eu não disse isso. A mina que consta da propriedade da falecida Miss Hendricks é de ouro. Eu é que, em virtude dos meus contatos na Colômbia, por causa dessa mina, me familiarizei com o mercado de esmeraldas.

- Que tem isso a ver com Nuttall? interessei-me.

- Como é natural, tenho relações nesse país. Robert Cameron também lá vai, de quando em quando e... bem... sempre vamos obtendo algumas informações por vezes muito valiosas, pela sua oportunidade.

- Tem negócios com Mr. Nuttall, Mr. Sharpies? sondei.

- Oh, não! De maneira nenhuma. As nossas relações estabelecem-se num estrito âmbito de amizade.

- Em resumo, inquiri, que pretendem de nós?

Sharpies tornou a clarear a garganta e disse:

- Há alguns dias  atrás, estava a conversar com Nuttall e naturalmente abordamos o assunto das esmeraldas.

Disse-me ter adquirido recentemente uma interessante jóia antiga, armada em pingente, que ia pôr à venda, ou melhor, de que ia descravar as esmeraldas que o compunham, substituindo-as por outras menos transparentes e mais escuras. As melhores seriam aplicadas numa nova jóia que já mandara desenhar.

Sharpies cruzou as pernas e recostou-se mais comodamente no maple.

- E depois? - perguntou Bertha, inclinada para a frente, quase sem respirar.

- Nuttall mostrou-me o pingente antigo. Pareceu-me já o ter visto antes em qualquer altura... Bem, lembrei-me de que pertencera a Cora Hendricks e que fora esta quem o oferecera, ainda em vida, a Shirley Bruce.

- Nuttall tinha-o em seu poder para reparação, ou para venda?

- Para venda.

-E então?

- Quero descobrir por que motivo Shirley vendeu a jóia. Se precisa de dinheiro e com que fim... bem, é um assunto que eu desejaria averiguar.

- Porque não lho pergunta?

- Não posso. Se ela não me procurou, para pôr-me a par dessa questão, não sou eu quem vai interrogá-la. Tenho de respeitar o seu desejo de sigilo... E ainda há outra possibilidade...

- Qual? - indaguei.

- Alguém a persuadiu a ceder-lhe a jóia, para venda-

 - Chantagem? - admiti.

- Oh, não! De maneira alguma, Mr. Lam. Chantagem é uma palavra demasiado dura...   Prefiro classificar o ato como simples «pressão».

- No meu dicionário essas palavras são sinônimas - observei.

Sharpies não fez qualquer comentário.

- Finalmente - interveio  Bertha,  que  quer que façamos, Mr. Sharpies.

- Primeiro, desejaria que descobrissem quem vendeu o pingente a Nuttall. Não pensem que ele vo-lo dirá.

Os joalheiros são terrivelmente discretos nesses assuntos, protegendo   ciosamente   os   seus   clientes...   Em segundo lugar, que desvendassem por que motivo Shirley se desfez da jóia, por que razão precisa de dinheiro e quanto precisa.

- Como poderei contatar com Miss Bruce - inquiri.

- Apresentar-lha-ei - informou Sharpies.

- E como contatarei com Nuttall?

- Sei lá? Não sei como responder-lhe a essa pergunta. O problema é seu.

Cautelosamente, Bertha sondou:

- Acha que eu poderia ir ao estabelecimento de Nuttall, dizendo-lhe  que  estava  interessada  numa jóia de esmeraldas... num pingente de um certo tipo e formato...

- Não  seja  tola! - retorquiu   Sharpies. - Há   uma probabilidade em mil, de que Nuttall lhe mostre a jóia antiga, que tenciona transformar, antes de mudar-lhe as pedras. Se o fizer, ter-lhe-á indicado um preço e averiguará  o seu poder bancário de compra. Não se esqueça de que já mandou desenhar uma nova armação para as melhores esmeraldas. Mesmo o pingente reconstituído com as menos belas e preciosas, será de um custo elevadíssimo. É coisa para milionários e estes apenas se tentam, ao vê-las nos seus estojos das vitrinas. Não vão procurá-las, designando um tipo especial. Isso faria Nuttall desconfiar de que já conhecia a jóia que tem agora em seu poder. De resto, nunca Nuttall a informaria da maneira como o pingente entrou em seu poder. Para falar francamente, Mrs. Cool, estou convencido de que não será fácil obter essa informação, de que tanto preciso... Será até quase impossível.

Bertha inclinou-se para um lado, indiferente aos protestos pungentes da cadeira e olhando-me de relance, advertiu:

- Usualmente, recebemos um adiantamento sobre o trabalho que nos é encomendado...

- Não  pago  seja  o que  for adiantado – declarou Sharpies peremptoriamente.

- E nós não aceitamos uma investigação, sem esse adiantamento - declarei   com   idêntica   segurança. Assine um cheque de 500 dólares e faça-me um esboço do pingente de esmeraldas.

Sharpies ficou rígido e imóvel, fitando-me surpreso. Bertha estendeu imediatamente a sua caneta de tinta permanente, por cima da secretária.

- Não, obrigado - recusou  Sharpies. - Para desenhar jóias, é melhor utilizar um lápis, para dar-lhes relevo, com sombra e luz...

- A caneta - esclareci, é para o cheque.

 UM GOLPE TRAIÇOEIRO

Entrar-se no estabelecimento de Nuttall era como penetrar-se num congelador. Portas deslizantes, acionadas por raios de luz invisível e olhos eletrônicos, abriam-se e fechavam-se, tornando-se como que muralhas de granito, sendo embora de vidro e aço.

Um elegante e deferente jovem de olhos perspicazes moveu-se calmamente atrás do balcão. Um outro empregado, de certo modo hesitante, mediu-me de alto a baixo, inquiridoramente.

- Nuttall está? - perguntei, omitindo o mister.

- Não tenho a certeza. Pode ser que esteja. Ainda não o vi esta manhã. No caso de já ter entrado, quem devo anunciar?

- Donald Lam.

- De que assunto se trata, Mr. Lam?

Fitei-o bem nos olhos e respondi:

- Sou detetive.

- Bem me pareceu - replicou ele, friamente.

- Também dei  por isso, retorqui, devolvendo-lhe o sorriso glacial.

- Pode dizer-me qual a natureza da sua entrevista com Mr. Nuttall?

-Serei breve.

- Decerto. Nem se esperava outra coisa.

- Estou na pista de uma jóia que foi empenhada.

Creio que está cá.

- Que mal há nisso?

- Há sarilho com ela.

- Pode descrevê-la - solicitou o homem.      

- Não a si.

- Nesse caso... um minuto. Queira esperar aí.

Disse-o num tom que parecia ter querido pregar-me ao solo.

Acendi um cigarro. O homem dirigiu-se a um telefone e após alguns segundos de troca de palavras desapareceu por uma porta ao fundo do salão. O jovem do balcão pusera as mãos por detrás deste, tranquilamente, decerto para fazer soar um sinal de alarme, caso eu esboçasse um gesto de assalto.

Dois minutos mais tarde, o outro regressou com o recado:

- Mr. Nuttall vai recebê-lo. Queira seguir-me.

Fui atrás dele, subi por uma escada estreita que dava acesso a um curto corredor, atravessámos um pequeno gabinete onde uma moça estava a escrever à máquina e terminámos a nossa expedição numa sala muito ampla, iluminada por fortes tubos de néon incrustados  no teto. Reposteiros macios e maples fundos, ultra-fofos, davam ao ambiente uma atmosfera de luxúria.

Só faltavam espelhos e quadros com nus artísticos.

O homem, que se achava sentado a uma secretária de mogno, olhou para mim como se eu fosse um recebedor,  proveniente de uma leprosaria.

- Sou Nuttall - disse.

- Sou Lam - retribuí, no mesmo tom.

- Traz consigo credenciais?

Mostrei-lhe a minha licença de detetive.

- Que quer? ;

- Um pingente de esmeraldas - esclareci.

Manteve  uma  expressão  de jogador de  pôquer :e silabou:

- Descreva-o.

Tirei da algibeira o desenho que Sharpies esboçara e pu-lo sobre a secretária.

Pegou-lhe, olhou-o atentamente, tornou a fitar-me e disse:

- Assuntos desta natureza são geralmente confiados à Polícia, como procedimento de rotina.

- Não se trata agora de rotina - objetei.

Tornou a olhar para o esboço e declarou:

- Neste  momento,  não tenho  nada deste gênero.

Porque veio procurar-me?

- Pensei que fosse especialista em esmeraldas.

- Sim, até certo ponto. Mas não tenho nada deste gênero, nem vi pendentif semelhante.

Realmente pendentif era mais chique do que pingente. Estendi a mão para o desenho.

Hesitou um momento, mas acabou por devolver-me.

- Disse que havia «sarilho» com esse objeto?

- Sim.

- Talvez possa elucidar-me um pouco mais sobre o assunto - sugeriu.

- Se não o viu, não vejo motivo para fazer-lhe perder  mais tempo.

- Pode aparecer por aí...

- Nesse caso, chame a Polícia.

- Sob    a    minha    responsabilidade? - perguntou, indeciso.

- Ou sob a minha, se prefere.

- Prefiro manter-me fora deste assunto - decidiu , até que a Polícia me notifique oficialmente. Presumo que já informou as autoridades, Mr. Lam?

Dobrei o papel e enfiei-o na carteira.

- O meu cliente achou não ser conveniente alertar a Polícia... por enquanto - justifiquei.

- Se quisesse ser um pouco mais franco comigo... talvez eu pudesse fazer uma idéia mais clara das circunstâncias que conduziram a esta situação.

- Se realmente, como diz, não viu o pingente de esmeraldas, não vale a pena preocupar-se com as circunstâncias.

- Sim, tem razão, concordou.

- Muito bom dia, Mr. Nuttall.

- bom dia, Mr. Lam.

Saí da sala e desci por onde tinha vindo. As portas iam-se abrindo, mal eu passava pelos feixes de luz eletrônica.

Dirigi-me para a porta, seguido pelo olhar hostil dos dois empregados da sala de vendas. Bertha estava à minha espera na esquina. Trazia em cima de si as suas melhores peles, cintilando-lhe nos dedos uma profusão de diamantes. Parecia nervosa.

- Okay - disse-lhe eu, após um breve compasso de espera. - É a sua vez. Não se esqueça de fazer-me um sinal, se vir alguém subir as escadas.

Pesadamente Bertha Cool extraiu-se do carro da agência.

- E, sobretudo - acrescentei , não dê uma impressão de cansaço.  Mostre-se desejosa de agradar nesta vida. Lembre-se de que esses tipos da recepção e do balcão vão estudá-la atentamente. Ao mais pequeno deslize,  classificam-na.

- Ninguém me classifica, Donald! Se forem incorretos comigo, parto-lhes a cara. E que raio quer você dizer com isso de «classificam-na»?

- Bem... percebem que é uma detetive inteligentíssima...

Bertha arrancou furiosa em direção à joalharia.

Entrei no carro e fui postar-me numa posição de onde pudesse ver o que se passava, através dos vidros da montra, do lado oposto do passeio. Não se via nada. Recuei um pouco, como que a arrumar melhor o carro, e contentei-me a vigiar a entrada.

Já havia cerca de dez minutos que Bertha se achava lá dentro, quando um homem entrou na loja. Estava à espera de ver uma mulher, mas aquele tipo despertou-me a curiosidade. Surgia uma nova probabilidade e saí do carro.

Minutos depois, saía Bertha. Tirou um lenço da malinha de mão e assoou-se.

Entrei logo no carro e pus o motor a funcionar. Tivemos, contudo, de esperar outros dez minutos, até que o homem aparecesse à saída do estabelecimento. Parecia muito preocupado. Tentou apanhar um táxi, não encontrou nenhum livre e decidiu ir a pé. Durante o percurso, não lhe ocorreu olhar para trás, de maneira que pude segui-lo facilmente até ao seu escritório. Era Peter Jarratt, segundo a placa que tinha à porta, também esclarecedora de que se tratava de um agente de investimentos, corretor da Bolsa.

Parei o carro junto ao passeio, numa demarcação para estacionamento, e esperei.

Passaram vinte minutos antes que um cavalheiro de aspecto próspero, com cerca de cinquenta anos e picos, entrasse no mesmo escritório. Parecia um indivíduo distinto, calmo, com muita confiança em si próprio.

Quando saiu, segui-o até ao seu carro. Era um grande Buick azul, de dois tons. O número de matrícula indicava: 4 E 4704. Provavelmente, não me teria sido difícil segui-lo, mas não valia a pena correr o risco de ele dar por isso, pelo espelho retrovisor. Nem era necessário. Não tinha o tipo de andar ao volante de um carro roubado. Regressei à agência e tratei de identificar o proprietário daquela matrícula. O carro estava registrado em nome de Robert

L. Cameron, 2904 Griswell Drive. Já lhe ouvira o nome. Era pois o parceiro de Sharpies, como testamenteiros de Miss Cora Hendricks e administradores do fundo financeiro.

Fosse como fosse, aquela visita pareceu-me um golpe traiçoeiro, pelas costas do nosso cliente.

 COMPLETAMENTE DISTORCIDO?

O tribunal forneceu-me uma informaçãozinha acerca do fundo financeiro da defunta Cora Hendricks. Na verdade, Harry Sharpies e Robert Cameron eram os testamenteiros  e administradores desse fundo. As condições estipuladas eram mais ou menos as descritas por Sharpies, exceto num ponto. O fundo seria dividido pelos beneficiários, se ambos os testamenteiros morressem antes de o mais novo daqueles atingir vinte e cinco anos.

Pensei um pouco no caso e regressei à agência.

Elsie Brand deixou por momentos de atacar a máquina  de escrever, para oferecer-me um sorriso acolhedor.

- Bertha está? - perguntei, apontando a porta do gabinete da minha sócia com uma inclinação de cabeça. Elsie confirmou.

-Alguém com ela?

- O novo cliente.

- Sharpies?

- Sim.

- Porque voltou cá?

- Não sei. Apareceu ;há coisa de vinte minutos.Bertha  estava  a  almoçar; - ele esperou.  Entraram há pouco.

- Preocupado?

- Deu-me essa idéia.

- Bem - decidi , vou entrar. Não leve esse trabalho  muito a sério, Elsie - aconselhei.

- Já  que fala  nisso - disse  Elsie  Brand rindo, fique sabendo que, mal eu paro de escrever para ir lá dentro pôr um pouco de pó-de-arroz no nariz, encontro-a sempre na volta a olhar-me censuradoramente pela minha «greve».

Abri a porta do gabinete da minha sócia e entrei. Agora que Bertha já tinha o contrato assinado, já não sorria. Falava com Harry, em termos de discutir um problema grave. Estava ligeiramente afogueada.

- Aí está ele, disse Bertha. - Pergunte-lhe.

- É o que vou fazer - declarou Sharpies.

 Fechei a porta e indaguei:

-Há azar?

- Que raio foi você dizer a Nuttall? - inquiriu ele de sobrolho franzido.

- Qual o problema? - sondei.

- Nuttall   telefonou-me,   preocupadíssimo.   Queria saber se eu falara a alguém acerca do pingente que me mostrara, há uns dias.

- Que lhe respondeu?

- Neguei ter falado fosse a quem fosse... Neguei-o terminantemente.

- Nesse caso, está tudo bem.

- Você deve ter feito ou dito qualquer coisa que o levou a fazer-me essa pergunta.

- Se  lhe   interessa - desviei   a   resposta,  descobri  quem vendeu a jóia.

- Não é possível! - espantou-se Sharpies. – Num estabelecimento daquela categoria, ninguém  iria dizer-lhe...

- Foi Robert Cameron - anunciei.

- Homem! quase   gritou   Sharpies. - Você   está doido!

- Cameron agiu por intermédio de um agente de investimento, chamado Peter Jarratt - especifiquei.

- Deus do Céu! - exclamou Sharpies, abismado.

Como conseguiu descobrir tudo isso?

- Que diabo pensava que iríamos fazer? Passear ao Jardim Zoológico?

Após uma pausa, Sharpies declarou, ainda confuso:

- Escutem lá... Tudo isto está completamente distorcido!...  Primeiro, conheço Nuttall, como indivíduo da mais respeitável reputação. Sei qual o código por que se rege. Nunca trairia o nome da pessoa que lhe vendeu o pingente. Depois, Robert Cameron é o meu co-testamenteiro do fundo Hendricks. Conheço-o intimamente, há muitos anos. Nunca faria uma coisa dessas, sem consultar-me. Em terceiro lugar, Shirley  Bruce gosta  imenso de mim. Confia-se-me inteiramente, como se eu fosse seu parente. Costuma até tratar-me por Tio Harry e, se eu fosse realmente seu tio, não estaríamos tão próximos um do outro, como estamos  agora.  Em  contrapartida,  não gosta muito de Cameron... Não quero dizer que o deteste, mas não existe entre eles a confiança mútua e afeição que mantemos entre nós dois. Está a perceber?

- Disse-me que ia apresentar-me a Miss Bruce atalhei. Quando o poderá fazer?

- Primeiro quero falar com  Bob  Cameron.  Quero esclarecer o que se passa. Raios! Quero provar-lhe, Lam, que você cometeu um erro.

- A sua morada é 2904 Griswell Drive. Quando quer lá ir?

Sharpies consultou o relógio e levantou-se.

- Agora   mesmo, replicou   azedamente,   e   se você, como penso, cometeu um erro, darei ordem imediata para  suspenderem   o  pagamento  do  cheque   no Banco.

Bertha ia a dizer qualquer coisa, mas calou-se a tempo. Percebi que não deixaria de descontar o cheque de Sharpies, antes que chegássemos à Griswell Drive.

- Estou pronto para sair, logo que queira, Mr. Sharpies  - anunciei.

UM   CORVO   E   UM   CADÁVER

Já no automóvel, disse a Sharpies:

- Não acha que Shirley Bruce é a única pessoa a quem logicamente se deveria perguntar o que fez ao pingente,  se na realidade ele lhe pertencia?

Abanou a cabeça e decidiu:

- Só mais tarde. Agora não.

Aguardei que explicasse porquê, mas não o fez. Continuou a conduzir o carro, em silêncio. Momentos depois, disse abruptamente:

- Não me pode passar pela cabeça que Bob tenha feito uma coisa dessas, sem me consultar previamente.

Foi a minha vez de permanecer calado.

- Shirley  é  uma  moça  encantadora – prosseguiu Sharpies, realmente maravilhosa, e não quero aborrecê-la, a menos que se torne absolutamente necessário. Não quero dar-lhe a idéia de que estou a imiscuir-me nos seus assuntos.

- Julguei que estivesse interessado em descobrir por que motivo teria empenhado o pingente.

- E estou.

- Não  acha  que   isso já   é   imiscuir-se  nos   seus assuntos?

- Bem... por isso é que o contratei. Quero ficar de fora.

- Estou a ver - disse eu, secamente.

Rodamos ao longo de vários quarteirões, antes de acrescentar:

- Afinal  de contas,  se  Miss  Bruce  procurou   Mr. Cameron, está em boas mãos, não é assim?

- Receio   que   não - replicou   Sharpies,   nervosamente.  Acho que algo está a correr mal, se Shirley se furtou  a falar comigo. Em comparação comigo, Bob é praticamente um estranho para Shirley. Quero dizer... Seria muito mais natural que Shirley me procurasse, do que fosse ter com ele.

Durante outros oito ou nove quarteirões, não abri a boca. Então perguntei:

- Há alguma coisa que eu deva saber acerca de Bob Cameron, antes de falar com ele?

- Prefiro que se mantenha apenas como testemunha decidiu Sharpies. - Quando lá chegarmos, quem fala sou eu.

- Nesse caso - observei, se você disser qualquer  coisa que possa ofendê-lo, não terá depois possibilidade  de voltar atrás. Pelo contrário, se for eu a falar, você não terá mais a fazer do que limitar-se a ouvir. Se eu for longe de mais, não o arrasto comigo nessa responsabilidade.

- Quero que a diplomacia vá para o diabo! – explodiu  Sharpies. - Isso não me  levaria a  lado algum. Se tenho um trabalho a fazer, não o deixo para os outros.

Quero ir com isto para a frente e descobrir o que se passa.

- Às vezes, indo para a frente demasiado depressa, não se descobre coisa alguma. Gostaria de saber um pouco   mais   acerca   de   Cameron - insisti. - Na   realidade,  nada sei a seu respeito.

- Bob anda à volta dos cinquenta e sete anos. Adquiriu  uma certa experiência de exploração de minas, no Klondike; viveu durante certo tempo no deserto, como prospector e partiu, depois, para o Iucatão, Guatemala, Panamá e, finalmente, para a Colômbia. Conheceu Cora Hendricks, em Medellin. Já lá esteve?

- Sou   detetive - repliquei,   e   não   um   globe-trotter.

- É um belo local. Um clima que nem se acredita possa encontrar-se naquelas paragens! Nunca varia mais de cinco ou seis graus, quer entre o dia e a noite, quer entre o Inverno e o Verão. Uma maravilha. Temperatura sempre moderada. As pessoas são amáveis, hospitaleiras, inteligentes e cultas. Sentam-se em pátios magníficos,  em frente das grandes casas de tipo colonial.

- Também  lá esteve? - interessei-me.

- Sim, estivemos lá juntos. Foi aí que conheci Cora Hendricks...   Não em  Medellin,  propriamente dito,  mas na mina do rio.

- E Shirley Bruce?

- Sim, também. Parece que foi ontem e já lá vão... ora deixe-me ver...  cerca de vinte e dois anos!  Cora viera para os Estados Unidos, numa visita. A prima morrera  num acidente de automóvel. O marido desta, pai de

Shirley, já falecera, poucos meses antes, de um ataque do coração. Cora nunca casou. Era uma velha solteirona.

Pegou na orfãzinha, fez as malas e levou-a consigo para a Colômbia. Ela e a mulher do superintendente da mina passaram a cuidar da miúda como se fosse sua própria filha. Enfim, todos ficamos estreitamente afeiçoados à criança.

- Trabalhou na mesma mina? - indaguei.

- Bem... sim e não. Bob Cameron e eu tínhamos uma   propriedade   adjacente...   uma   vasta   prospecção mineira, de sistema hidráulico... uma região interessantíssima.

- E Cora  Hendricks morreu, pouco depois de ter levado Shirley para lá?

- Dentro de três, ou quatro meses.

- E então vocês começaram a ocupar-se de ambas as minas?

- Não imediatamente. Bob Cameron e eu regressamos aos Estados Unidos para oficializar a situação. Não voltamos à América do Sul, antes de um ano. Nesse tempo, viajar não era tão simples como hoje em dia. Não imagina o trabalho que nos deu avaliarmos a extensão da propriedade de Cora Hendricks. Era tão grande que nos deixou verdadeiramente surpreendidos.

- Hum! hum!

- Nesse tempo - prosseguiu Sharpies, não passávamos de um par de aventureiros. Cora era mais velha do que qualquer de nós, uma velha e seca solteirona, mas   ao  mesmo  tempo  encantadora   e  tremendamente esperta. Nunca falara dos seus negócios. Às vezes, sabe?, cheguei a preocupar-me com a pequena Shirley. Cora tratava-a  bem, mas... a miúda sofrera realmente um choque ao perder os pais e Cora tinha um temperamento bastante dominador. A mulher do superintendente da mina tratava Shirley como se fosse sua filha e eu... diabos me levem, partiria o pescoço a quem ousasse fazer-lhe mal.

- Verificou se havia mais parentes do lado da prima de Miss Hendricks?

- Do lado dos pais de Shirley?...  Não. Para falar verdade, não nos preocupamos com isso. Cora apareceu com a miúda e explicou-nos a morte dos pais. Deu-nos a entender que a mãe era uma sua prima em segundo grau, de maneira que nem Bob, nem eu, pensamos mais no assunto... Aborrece-me pensar que Shirley tenha precisado  de dinheiro e não me procurasse.

- E acerca de Cameron? - insisti. - Há alguma coisa que eu deva saber, antes de iniciarmos a nossa entrevista?

- Não creio que haja... Não pense nisso, Lam. Não sei mesmo se será conveniente tê-lo presente como testemunha.

 Talvez Bob queira dizer-me qualquer coisa, em particular...

- Como entender, mas não se esqueça de que ele é capaz de perguntar-lhe como é que você soube essa história do pingente - lembrei.

- Tem razão. Já que está dentro do assunto, deve continuar nele - decidiu Sharpies.

- Como queira.

- Vamos dar a entender que você está ligado a uma associação que procede a investigações de rotina relacionadas  com certo tipo de jóias que surgem no mercado. Arranje uma história que pareça plausível, mas não lhe dê a entender, de maneira alguma, que fui eu quem o contratou.

- Vou meter-me num lindo sarilho, observei.

- Para isso lhe pago - replicou Sharpies. - A propósito, se quer impressionar Bob Cameron, não deixe de prestar um pouco de atenção a «Pancho».

- Quem é «Pancho»?... Um cão?

- Não, um corvo.

- O quê?... Que idéia é essa?

- Sei lá? Bob afeiçoou-se a «Pancho»... Fez desse corvo um animal de estimação e, na realidade, domesticou-o, como se  fosse  um  cão.  É  uma  ave  horrível, soturna, suja, atrevida e barulhenta. Faço o possível por gostar do raio do bicho, mas é malcriadíssimo.

Segundos depois, Sharpies anunciava:

- Cá  estamos. Confesso que  me sinto  profundamente  aborrecido por ter de espiar o meu sócio desta maneira, mas o assunto tem de ser esclarecido. Nem tudo o que temos de fazer na vida é agradável.

Estávamos em frente de uma casa de dois andares, estucada a branco e com telhas rubras; jardim de relva bem tratada, arbustos verdejantes e uma garagem para três carros, nas traseiras. Devia ser necessário gastar uma data de dinheiro para manter aquilo nas perfeitas condições em que se achava.

Sharpies saltou do carro, dirigiu-se para os degraus da entrada e esboçou um movimento para tocar à campainha.  Hesitou e acabou por premir o botão, com um indicador relutante. Dois segundos depois, experimentava o fecho da porta que estava no trinco e abriu-a. Em seguida, afastou-se delicadamente para me dar passagem.

- É melhor o senhor  ir à frente - indiquei. – Eu aqui sou um estranho.

- Tem  razão! concordou Sharpies. - Deve estar no andar de cima, onde passa mais tempo do que cá em baixo. Tem um buraco na parede, mesmo sob o beiral do telhado, por onde o corvo pode entrar e sair, quando lhe apetece.

- Cameron é casado? - interessei-me.

- Não. Vive sozinho... Tem apenas uma criada colombiana que já está com ele há muitos anos. É uma casa demasiado grande, para um tipo solteiro... Onde diabo se meteu Maria?... Eh! Maria!... Está alguém em casa?

A voz ecoou nas salas vazias.

- Deve ter ido às compras - admitiu Sharpies. Bem, subamos.

Segui-o, escada acima. Sharpies abriu a porta do salão. Uma voz roufenha gritou, após emitir uns estalidos com a língua:

«Larápio!  Larápio!...   Louco!  Louco!»

Repercutindo-se nas paredes daquela enorme sala, antes em silêncio sepulcral, os gritos fizeram Sharpies sobressaltar-se. Foi com evidente nervosismo que apostrofou  a negra ave:

- Corvo maldito, cala-te!  Qualquer dia, torço-te o pescoço!

Se Cameron estivesse a ouvi-lo, decerto não teria ficado muito satisfeito. E fora Sharpies quem me aconselhara  a mostrar-me agradado com a presença de «Pancho»!

Ouvi distintamente um bater de asas e os repetidos estalidos. O corpo negro de um corvo precedido do seu enorme bico, surgiu com o seu andar desengonçado.

Sharpies deu alguns passos e estacou:

- Meu Deus! - exclamou.

De onde estava, pude ver os pés e parte das pernas de um homem deitado no chão. Manchando os desenhos do tapete, via-se uma poça de sangue. A mão esquerda do morto ainda empunhava o auscultador do telefone; a base deste, onde brilhava o disco dourado do marcador de números, achava-se pendente, pelo respectivo fio, entre a mesa e o sobrado.

- Meu Deus! - repetiu Sharpies, horrorizado.

O seu rosto tornara-se branco, os lábios estavam contraídos numa linha estreita, com uma expressão que se diria tão cadavérica como a do outro, se não fosse brilharem nela uns olhos apavorados. As mãos tremiam-lhe.

 A maçã-de-adão subia e descia no pescoço esticado para diante.

- É Cameron? - inquiri.

Sharpies correu para a porta. Daí, respondeu a custo:

- Creio que vou vomitar... Sim, é Bob Cameron!

- Ponha a cabeça entre os joelhos - aconselhei.

Isso, assim curvado. Veja se consegue que o sangue lhe aflua um pouco à cabeça. Evite desmaiar agora. Sharpies obedecia, respirando ofegantemente.

Recuei até à porta do salão, para ver o ambiente de longe.

Evidentemente, o homem estivera sentado à grande mesa-secretária e telefonava, quando a morte o surpreendera.

 Caíra para o chão, arrastando o telefone consigo.

«Larápio! Louco!», gritava «Pancho».

A um canto da sala, via-se uma grande gaiola, capaz de abrigar uma águia. A sua porta gradeada de arame dourado estava aberta.

Vi um objeto em cima da mesa, igualmente dourado.

Era uma armação para jóias, idêntica ao pingente que Sharpies desenhara, mas os alvéolos para incrustação das esmeraldas estavam vazios.

Fui-me aproximando gradualmente. Ao lado da armação  de ouro, via-se uma pistola automática de calibre 22.

No chão, um cartucho detonado. Só então reparei num vidro, tão verde e tão brilhante, que os meus olhos se prenderam a ele. Era uma enorme esmeralda. Nunca vira nenhuma como aquela.

Um par de luvas de fina pele de porco achava-se Igualmente sobre a mesa. Pensei que tivesse pertencido às mãos do morto, já que o vira enluvado, quando saíra do escritório de Jarratt.

A causa da morte parecia-me evidente. Alguém lhe enterrara um punhal nas costas, mesmo por baixo do ombro esquerdo. Sem dúvida que a lâmina penetrara até ao coração. Só que não estava lá o punhal.

Aproximei-me de Sharpies, que se sentara no primeiro degrau da escada, com a cabeça entre os joelhos.

Olhou para mim e inquiriu, desnorteado:

- Que devo fazer... agora?

- Tem duas alternativas - respondi.

A sua pele adquirira um tom esverdeado e macilento.

- Ou comunica imediatamente o homicídio à Polícia - expliquei, ou põe-se a andar, sem dar cavaco a ninguém.

 Se toda a emoção que manifesta é verdadeira, pode ficar e aguardar que os «chuis» venham cá ter consigo.

 Se está a representar... nesse caso... o melhor é evaporar-se daqui para fora.

- E quanto a si? A Lei não o obriga a participar às autoridades a descoberta de um cadáver?

Parecia agora recomposto.

- Exatamente.

- Vai fazê-lo?

- Posso telefonar a comunicar o crime, mas não indicarei o meu nome, nem o da pessoa que está comigo.

Neste momento, Sharpies readquirira toda a sua segurança.

- Mas, não deixarão de interrogar-me, de qualquer maneira?

Provavelmente virão a interrogá-lo.

- E não deixarão de perguntar-me onde me achava, no momento do crime?

- É mais do que possível.

- Bem, nesse caso - decidiu Sharpies, é melhor informarmos desde já os polícias.  Não quero espalhar por aí mais impressões digitais do que já deixei.

- Que já deixou? - admirei-me.

- Bem...  não sei...  Posso ter tocado em qualquer coisa - admitiu, receoso.

- Não será nada bom para si, se eles derem com elas... Se as deixou, pode estar certo de que as encontram.

Sondou-me com o olhar, apreensivo.

- Há uma mercearia, um pouco mais abaixo, nesta mesma rua - lembrei. - Passamos por ela, há bocado.

Podemos telefonar daí à Polícia.

- Você é testemunha, Lam, de que estive sempre consigo nesta última hora - lembrou Sharpies, ansioso.

- Comigo só esteve, durante os últimos vinte minutos - precisei.

-Sim, mas antes disso, estive com Bertha Cool.

- Compete   a   Bertha   testemunhar   essa   primeira parte. Somos sócios para umas coisas, mas para outras, cada qual tem a sua independência.

SHARPIES ABUSA DA SORTE

O sargento Sam Buda mostrou-se muito simpático, mas eu sabia que não deixaria de verificar as declarações de Sharpies, com uma lente de aumentar. Contudo, até àquele momento fora cortês e muito afável. Sharpies desfiara a sua história. Era sócio de Robert Cameron em alguns negócios e viera visitá-lo por causa de um assunto de certa importância. Levara-me consigo porque eu... bem... andava a investigar-lhe um outro assunto. Buda reparou na hesitação, mas não fez comentários.

 Em seguida, olhou para mim, deparou-se-lhe uma máscara inexpressiva e tornou a virar-se para Sharpies.

Por enquanto, era este quem mais lhe interessava. Sabia que podia deitar-me a garra em qualquer altura que melhor  lhe conviesse.

- Já o conhecia há muito tempo? - perguntou  a Sharpies.

- Há muitos anos.

-Conhece os seus amigos?

- Eu... certamente.

- Sabe se tinha inimigos?

- Nunca os teve.

Buda olhou para o cadáver e admitiu:

- Pelo menos, teve um, há cerca de hora e meia.

A isto Sharpies não soube que responder.

- Quem é a governanta cá da casa? - inquiriu o sargento.

- Maria Gonzalez.

- Há quanto tempo vivia com ele?

- Trabalhava para ele há já bastantes anos,

-Quantos?

- Oh... nove ou dez.

- Fazia-lhe todo o trabalho?

- Ia às compras, limpava a casa, lavava a roupa e, às vezes, era ajudada por uma mulher-a-dias, mas era a única criada efetiva cá da casa.

- Nesse caso, Cameron não recebia muitas visitas, hem?

- Não... era raro.

- Onde se encontra essa Maria Gonzalez, neste momento?

- Não sei. Pode ter saído às compras, ou ido a qualquer

 outro lado.

Os olhos de Buda faiscaram, ao parafrasear Sherlock

Holmes:

- «Elementar, meu caro Sharpies.»

Este não respondeu.

- Há quanto tempo tinha ele este corvo? – inquiriu bruscamente.

- Há três anos.

- O bicho fala?

- Diz algumas palavras. ;

- Cameron deu-lhe um corte na língua?

- Oh, não! Na realidade, obtêm-se melhores resultados, deixando a  língua dos corvos, tal como a têm.

É um erro pensar-se que falam mais facilmente após essa estúpida operação.

- Como sabe isso?

- Bob explicou-mo.

- Onde é que arranjou este «pássaro»?

- Encontrou-o num campo, quando «Pancho» começava a aprender a voar. Apanhou-o, trouxe-o para casa, começou a alimentá-lo e depois afeiçoou-se-lhe. Como pode ver, está ali um buraco na parede, junto do teto, por onde «Pancho» pode sair para o exterior, quando lhe apetece.  Vai e volta.

- Para onde vai, quando sai?

- Não se afasta muito. Creio que há uma rapariga, numa outra casa, que tem uma gaiola idêntica a esta, onde «Pancho» costuma por vezes abrigar-se.

- Quem é ela?

- Chama-se Dona Grafton, salvo erro. É filha de um dos homens da mina. Cameron conhecia-a bem. Compreende, ele passava a vida entre os Estados Unidos e a América do Sul e conhecia o pessoal da mina melhor do que eu.

- Que tem isso a ver com o corvo?

- Não sei.

- Também eu não.

Sharpies mostrou-se confundido.

- Como me perguntou aonde ia «Pancho» quando saía de casa...

- Onde está ele, agora?

- Não sei. Estava aqui há bocado, quando chegamos. Vai e volta, como lhe disse. Saiu, quando o viu chegar. Provavelmente está agora em casa dessa rapariga.

- Onde mora essa Dona Grafton?

- Não sei.

- Cameron costumava visitá-la? Fazia-lhe a corte?

- Creio que não. Falou-me dela algumas vezes a respeito  de «Pancho», mas não se alongou... Saía pouco... Já não era muito novo, como vê.

- Quantos anos era mais velho de que você?

Sharpies irritava-se com aquele tratamento, a que não estava habituado.

- Três anos - respondeu.

- Mas você ainda anda com companhias femininas?

- Não, no sentido que lhe quer dar, sargento. Apenas mantenho certas relações de pura amizade.

- E Cameron? Tinha amigas?

- Não sei.

- Que pensa disso?

- Nunca fiz conjecturas a esse respeito - retorquiu

Sharpies, pouco à vontade.

- Por que motivo veio hoje aqui?

Desta vez Sharpies respondeu sem pestanejar:

- Vim tratar de certos investimentos referentes a um fundo financeiro de que Cameron e eu éramos administradores... Tínhamos interesses comuns.

Buda meteu a mão numa algibeira e extraiu dela a armação de ouro do pingente.

- Sabe alguma coisa acerca disto? - indagou.

Sharpies olhou para o objeto, com perfeita compostura e declarou laconicamente:

- Não.

Visto o sargento não ter começado a fazer-me perguntas,  acendi um cigarro. Segundos depois, Buda encomendava  a Sharpies:

- Terá de fazer-me uma lista das pessoas com quem Cameron mantinha relações de negócios.

- Assim farei.

Com um ar de indiferença demasiado estudado, Buda declarou:

- Por hoje, creio que nada mais tenho a perguntar-lhe.  Veja lá se, na sua memória, não ficou qualquer outra informação que devesse   prestar-me. Escreva essa lista; registre em frente de cada nome as relações que as pessoas  mantinham com Cameron e pode ir-se embora.

- E eu? - inquiri.

O sargento fitou-me fixamente e esclareceu:

- Já podia ter ido. Sei onde posso encontrá-lo.

- Não, não vá ainda, Lam - sobressaltou-se Sharpies.

 Preciso ainda de si, para...

Tossiu, pigarreou, mas não acabou a frase.

Maria Gonzalez entrou, quando Sharpies terminava a lista. Era magra, escura de pele e andava à volta dos cinqüenta anos, demonstrando certa dificuldade em compreender o que se passava na casa.

Trazia na mão um saco com gêneros de mercearia: um saco bastante pesado. Os polícias tinham-na caçado à entrada da casa, mandando-a ao encontro do sargento Buda.

Quando aparentemente Maria percebeu o que se passara, Sharpies pousou a caneta e começou a falar com ela fluentemente em espanhol.

Olhei para os polícias que guardavam a porta. Se eu fosse Sam Buda, não teria consentido que duas testemunhas  estivessem a trocar impressões, sem a presença de alguém que conseguisse compreendê-las. Se qualquer dos dois polícias sabia espanhol, não o dava a entender. De quando em quando, olhavam para o relógio, como se desejassem calcular a que horas seriam rendidos para irem jantar. Momentos depois, acendiam cigarros.

Sharpies e Maria não se calavam., como se contassem a vida de Cameron desde que ele nascera até que morrera.

Subitamente, Maria fungou e começou a chorar. Tirou um lenço da malinha de mão, assoou-se e desatou aos soluços. De vez em quando, interrompia-se para olhar para Sharpies, aterrorizada, e dava largas à sua loquacidade  a um ritmo de trezentas palavras castelhanas, por minuto.

Fosse o que fosse que ela dizia, Sharpies não mo comunicou. Ergueu a mão, num gesto que significava desejar afastar uma idéia da mente e, com outro, autoritário, mandou-a calar. Depois, ordenou-lhe que se fosse embora.

Não precisava de falar espanhol para perceber, desta vez, o que se passava.

Depois de Maria ter saído. Sharpies voltou à sua tarefa e terminou a lista.

- Que vou fazer agora com isto? - perguntou.

Indiquei-lhe os polícias postados à porta e sugeri:

- Entregue isso a um deles. Diga-lhe que foi o sargento Buda quem lho encomendou.

Sharpies seguiu a minha sugestão.

- Okay!   Creio  que   é  tudo - anunciei   e  encaminhei-me para a porta.

Sharpies olhou para os guardas, um dos quais lhe fez um sinal indicativo de que estávamos livres dos nossos movimentos. Iamos a meio da escada, quando Sharpies pensou em qualquer coisa e voltou para trás.

- Aonde vai? - inquiri.

- Dizer uma coisa à governanta.

- É melhor deixar  isso para outra altura - aconselhei.

 Hoje, já abusou demasiado da sorte. Se for falar novamente com ela, nessa língua incompreensível, os polícias podem desconfiar.

Sharpies fitou-me, indignadamente.

- Que raio quer você dizer com isso?

- Que é melhor para si sair daqui, quanto antes.

- Não gosto desses subentendidos - protestou, mas ;veio atrás de mim, estugando o passo até à rua.

 SHIRLEY   BRUCE

Dentro do carro Sharpies anunciou:

- Vou  agora,  Lam,  apresentá-lo  a Shirley  Bruce.

Quero ser o primeiro a dar-lhe a notícia do que aconteceu a Cameron... E quero descobrir o que se passou com o raio do pingente.

- Por mim, okay - anuí. - Está a pagar-me à hora.

Notei que a sua mão tremia, quando ligou a ignição.

Ao meter a mudança, arranhou os dentes da caixa de velocidades. Na segunda intersecção de ruas, passou com a luz vermelha do semáforo. Travou a tempo, recuou para antes da faixa de peões e embateu no pára-choques do carro que parara antes dele.

- Quer que guie? - ofereci-me,

- Está bem. Estou um pouco nervoso.

Antes que o verde tornasse a aparecer, saí, dei a volta ao carro, enquanto Sharpies deslizava sobre o banco da frente e abria a porta do volante. Nos pára-choques dos dois automóveis não chegara a haver riscos.

Saímos da estrada Western e rodamos para uma zona de apartamentos, até a um ponto onde me disse que parasse. Perguntei-lhe se queria que eu o acompanhasse e respondeu-me afirmativamente.

De entrada, Shirley não me viu. Deu um grito de satisfação e correu para Sharpies. Este tentou manter-se digno, mas ela pendurou-se-lhe ao pescoço e levantou um pé, dobrando a perna pelo joelho. Radiante, exclamou:

- Tio Harry, que bom vê-lo!

Ferrou-lhe uma série de beijos, até que Sharpies conseguiu afastá-la, apresentando-ma:

- Miss Bruce, este é um aa-mii-go me-eu, Mr. Donald Lam.

Ela soltou-se do pescoço de Sharpies, corou embaraçada e, ao cabo de alguns segundos, estendeu-me a mão.

Depois convidou-nos a entrar e sentar-nos. Era uma morena, com todo o fogo de uma opala negra. Pensei que deveria figurar num calendário, desses que exibem beldades magníficas. Tinha curvas, pernas e olhos, de fazer virar a cabeça na rua ao mais circunspecto transeunte. Era realmente uma estampa maravilhosa.

Tinha as maçãs do rosto ligeiramente salientes, o nariz perfeito e a boca, embora pequena, era uma tentação,

- Há quanto tempo o não via, Tio Harry! – censurou ela. - Conte-me o que tem feito. Tem estado sempre ocupado com os seus negócios? Olhe que, nesta vida, temos também de divertir-nos um pouco.

Vendo-o tão sério, sem reagir ao seu entusiasmo, indagou:

- Mas... que se passa?... Está algo a correr-lhe mal?

Sharpies   pigarreou   aclarando   a  garganta,  tirou   a cigarreira do bolso e olhou para mim, como pedindo auxílio.

Encolhi os ombros, franzindo as sobrancelhas dubitativamente.

Ele animou-me com um aceno de cabeça e, portanto, declarei:

-Trazemos más notícias - prologuei. - Lamento, Miss Bruce.

O dedo que levara aos lábios imobilizou-se.

- Sim? - indagou, na mesma posição.

- Robert Cameron foi morto, esta tarde - anunciei.

Pousou a mão lentamente no colo e repetiu admirada:

- Morto?

- Sim.

Os seus olhos não se desprendiam dos meus, quando inquiriu:

- Como?

- Assassinado.

- Assassinado ?

- Sim.

- Quem o matou?

- Por enquanto, ninguém sabe. Quando lhe entregou o pingente? - sondei.

- Que pingente?

- Aquele que Cora Hendricks lhe ofereceu.

- Refere-se ao pendentif de esmeraldas?

- Sim.

- Meu Deus! - exclamou. - Esse...

Calou-se bruscamente e Sharpies franziu o sobrolho.

- Que há acerca disso? - inquiriu. - Você precisou de dinheiro, Shirley? Porque não veio ter comigo? Porque  não aceitou...

O olhar que ela lhe dirigiu, de completa incredulidade, interrompeu-o.

- Eu? Precisei de dinheiro? - admirou-se.

- Sim. Decerto. De outra maneira, não o teria vendido...

- Mas eu não precisei de dinheiro - replicou firmemente.   Apenas quis uma armação mais moderna do que aquela. Pedi a Mr. Cameron que tratasse disso. Pensei que se desenvencilhasse melhor do que eu, nesse negócio.

- Há quanto tempo? - indagou Sharpies.

- Deixe-me ver... Deve ter sido...

- Ontem?... Anteontem?

Shirley abriu os olhos, de espanto, e declarou:

- Talvez há três ou quatro meses, Tio Harry... Sim, pelo menos, há quatro meses atrás.

- E ao fim desse prazo, você não...

- Que prazo?... Que quer dizer com isso, Tio Harry?

Sharpies olhou para mim, cedendo-me a vez.

- Que fez Mr. Cameron com o pingente? - interroguei.

- Vendeu-o, segundo me disse. Um homem chamado Jarratt costuma tratar dessas coisas. Não sei como se faz... como se opera a troca de uma jóia por outra, sem se perder muito dinheiro. Ele fez-me uma oferta... através  de Mr. Cameron, já se sabe...

- Quanto lhe ofereceu ele? - interrompeu Sharpies.

Shirley fitou-o desnorteada e respondeu:

- Eu... se quer que lhe diga, não me lembro, neste momento. Sei que era uma boa oferta, Mr. Cameron achou que era justa e levou a jóia consigo. De resto, disse-me que já consultara outras joalharias.

- E que fez com esse dinheiro, Shirley? – insistiu Sharpies.

A jovem estendeu a mão e exibiu um anel com um enorme diamante.

- Estava   cansada   de   esmeraldas - justificou.

Para falar francamente, já estava farta de vê-las, em toda a vida. Comprei este anel e o resto do dinheiro depositei-o  no banco.

Sharpies fitou-me, perplexo. Fez-me um sinal, para que eu prosseguisse no interrogatório, mas achei melhor fingir que não o entendera. Por fim, o silêncio tornou-se, embaraçoso e perguntei:

- Já agora, ouça-me, Miss Bruce: deu parte desse dinheiro a Robert Hockley?

A jovem estremeceu de indignação. Duas rosetas coloriram-lhe as faces e os olhos brilharam, ofendidos.

- Que direito tem o senhor de fazer-me uma pergunta dessas? Não tem nada com isso.

Olhei para Sharpies, já que ele podia aproveitar esse ponto de partida. Contudo, abriu a boca e tornou a fechá-la.

A jovem virou-se para ele, como que desejando pôr-me fora da conversa, o que me aliviou a expectativa, pois receei que me corresse pela porta fora.

- Oh, Tio Harry, porque o teriam morto? - perguntou.

 - Era tão amável, tão compreensivo, tão considerado por toda a gente!... Tão generoso!

Sharpies concordou com um aceno de cabeça. Impulsivamente, Shirley levantou-se, correu para ele, sentou-se-lhe no braço da cadeira e começou a passar-lhe os dedos pelos cabelos.

- Oh, Tio Harry! exclamou e começou a chorar.

As lágrimas começaram a correr-lhe pelas faces, destruindo  a maquiagem, mas ela não se importou.

- Tome cuidado consigo, Tio Harry. Só o tenho a si. Agora não me resta mais ninguém, neste mundo!

Olhando para o rosto de Sharpies notei que esta idéia o impressionara.

- Porque   me   diz   isso,   Shirley? - perguntou   ele.

- Porque  gosto  de  si,  Tio...   e  porque   me  sinto muito só.

- Bob Cameron disse-te alguma coisa? - estranhou.

- Alguma coisa que te levasse a pensar que ele corria qualquer risco?

A moça abanou a cabeça numa firme negativa.

- Não estou  a  perceber - disse Sharpies. – Confesso  que não entendo nada.

Passou a mão em torno da cintura de Shirley, deu-lhe uma palmadinha afetuosa nas costas e levantou-se do sofá.

- Agora, tenho de ir, Shirley. Há muito que fazer e devo ainda reconduzir Mr. Lam ao seu escritório. Prometi-lhe que não me demoraria aqui, mais do que um  minuto.

Desta vez, a jovem olhou-me com certa simpatia. As lágrimas tinham-lhe umedecido todo o rosto. Depois de sairmos, mas antes de fechar a porta, disse para Sharpies:

- Não esteja  tão ausente,  Harry. Volte  logo  que possa... por favor, Tio Harry.

Ao acharmo-nos na rua, perguntei bruscamente a Sharpies:

- É verdadeira essa história de ela se ter recusado a receber fosse o que fosse do fundo de Cora Hendricks, desde que Robert Hockley não recebesse o mesmo?

- É a verdade absoluta - confirmou.

Fiquei a pensar naquilo. Se assim era, não se justificava uma fingida ternura pelos administradores do Fundo. Na realidade, não precisava de mostrar-se tão afeiçoada ao Tio Harry.

- Este apartamento custa bastante dinheiro - observei.

- Sim - respondeu Sharpies, simplesmente.

- Shirley tem outra fonte de rendimento, além das mesadas do Fundo?

Charles esteve tentado a replicar-me que eu não tinha nada com isso, mas decidiu explicar:

- Tem, sim, certamente, mas não sei quanto obtém de rendimento.

Já que Sharpies estava em maré de responder, senti-me em maré de perguntar:

- Quanto lhe dá de mesada, desse fundo?

- Cerca de 500 dólares por mês.

- E Robert Hockley recebe o mesmo?

Confirmou, com um sacão do queixo.

- Nesse caso, o rapaz devia aguentar-se bem  na vida, sem mais nada - analisei.

- Devia, mas não consegue. Esbanja tudo quanto lhe cai nas mãos. Tem agora uma empresa de reparações de automóveis.  Começou  finalmente a  trabalhar e já  não era sem tempo, pois estava afundado em dívidas até ao pescoço. Talvez o trabalho o reabilite. Pelo menos, espero que assim seja.

- E esse rendimento de Shirley Bruce? - sondei.  Ela trabalha?

- Oh,   não!

- Investimentos?

- Sim. Tem comprado e vendido algumas ações. É uma garota muitíssimo esperta... Não compreendo porque  receou  que  me  acontecesse  alguma  coisa...  Cos diabos, não gosto disso!... É como se receasse que eu venha a ser alvo de uma ameaça qualquer... Bem, vou levá-lo ao seu escritório. Não quero falar mais e peço-lhe, Lam, que não me pergunte mais nada.

Quando parou o carro em frente do edifício da agência, quebrou o silêncio que ele próprio se impusera e indicou:

- Irei  aí mais  tarde,  para  acertarmos  as  nossas contas.

- Não precisa de incomodar-se. Posso dizer-lhe imediatamente.

- Tenho a haver parte do meu adiantamento de 500 dólares?

- Nem pense nisso, desiludi-o.

Franziu o sobrolho e esclareci:

- Não vale a pena alimentar esperanças nesse sentido. Bem se vê que não conhece a minha sócia!

- Quer dizer que Mrs. Cool é agarrada?

- Começa por ser agarrante, até deitar as unhas ao dinheiro e, depois, pode estar certo de que o agarra de tal maneira, que mais ninguém o vê.

- Sim, também me pareceu, respondeu, como se já pensasse noutra coisa.

Sem mais palavra, seguiu para diante.

 TREZE MENOS CINCO

Quando entrei no escritório, Elsie Brand, sem abrandar o ritmo dos dedos sobre o teclado da máquina de escrever, fez-me um sinal alertante, em direção do gabinete de Bertha Cool. Despi o sobretudo e virei a lapela do casaco, como se exibisse um crachá da Polícia, consultando-a  interrogativamente. A jovem confirmou com um aceno de cabeça e atirei-lhe um beijo, com a ponta dos dedos.

Abri a porta do gabinete e fingi-me surpreendido por ver o sargento Buda sentado a um canto da secretária da minha sócia.

- Entre - convidou Buda. - Agora já temos quorum para a nossa reunião.

Mal fechei a porta atrás de mim, o sargento desfechou:

 - Quem é esse Sharpies?

- Um cliente.

- Que queria ele de vocês?

- Que descobríssemos uma coisa que em nada se relaciona com a morte de Robert Cameron – respondi negligentemente.

- Nesse caso, por que motivo foi visitar Cameron?

- Pensei  que ele  pudesse  prestar-nos  uma  informação que nos permitisse avançar na nossa investigação.

- Que  diabo  queria  Sharpies   que  vocês   investigassem?

- Pergunte-lhe.

- Encarregou-o de fazer uma manigância qualquer, depois de entrado naquela casa e antes de chamar os «chuis»?

- Não.

- Sharpies afirmou que esteve consigo constantemente.

- Depende   da   medida-tempo   que   significa   esse «constantemente».

- Constantemente, desde que decidiu visitar Cameron nessa tarde.

- Considera isso um álibi? - sondei.

- Não disse que fosse um álibi, mas Sharpies está convencido de que o é.

- Vim encontrá-lo aqui, palrando com Bertha, cerca de vinte minutos antes de descobrirmos o cadáver esclareci.

Bertha interveio para elucidar:

- Sharpies esteve comigo, coisa de dez minutos, antes de Donald entrar aqui. Elsie declara que ele esperou por mim, cerca de vinte minutos.

- Vinte e dez são trinta, com mais vinte, cinqüenta - somou o sargento , mas tudo isso são tempos aproximados. Vocês estão a falar por estimativas.

- Se soubéssemos que ia ser cometido um crime retorquiu Bertha, tínhamos registrado os tempos, de cronômetro em punho. Devia ter-nos avisado, sargento Buda.

Endireitei o nó da gravata e mostrei-me ligeiramente interessado.

- Há quanto tempo tinha Cameron sido morto, depois de lá chegarmos? - inquiri.

Buda fez uma careta e informou:

- O médico legista é de opinião de que o mataram pouco tempo antes. Talvez uma hora e meia, antes de vocês terem entrado em casa. Uma hora seria o limite mínimo.

- Essa meia hora de diferença vai ser muito importante  - observei , para uma certa pessoa.

- Hum, hum! - resmungou Buda. - Bem sabe como são os médicos.

Ficamos calados durante alguns segundos. Depois o sargento transferiu o olhar de Bertha para mim e insinuou:

- Seria muito conveniente, para vocês, decidirem-se a dar-me mais uns «lamirés» sobre a vossa missão neste caso.

- É simples - declarei. - Harry Sharpies é um de dois testamenteiros e administradores de um fundo financeiro que   Cora   Hendricks   instituiu, antes  de falecer.

Robert Cameron   era   o   outro  testamenteiro.   Sharpies pagou-nos 500 dólares para lhe fazermos um trabalho.

Bem... já foi feito.

Virei-me subitamente para Bertha e inquiri:

- Levantou o cheque?

- Não seja parvo, Lam! Ainda vocês não iam ao fundo das escadas, já eu estava a caminho do banco, para descontá-lo. Era bom como ouro!

- Ora aí tem! -finalizei, dirigindo-me a Buda.

O sargento coçou a cabeça e perguntou:

- Sabe alguma coisa acerca daquele corvo?

- Digamos que é um animal doméstico, uma avezinha  de estimação. Cameron apanhou-o, há muitos anos, quando o bicho ainda mal sabia voar. Chama-se «Pancho» e fala. E já agora fique sabendo, sargento Buda, que não lhe cortaram a língua. É errado pensar-se que os corvos falam melhor, com a ponta da língua aparada.

Buda ficou na dúvida se eu estaria ou não a gozá-lo. Mudando de assunto, indagou:

- Havia uma jóia... uma espécie de pingente antigo. É uma armação de ouro, para incrustação de treze pedras preciosas de tamanho apreciável. Os alvéolos para as pedras estão vazios.

- Hum, hum! - assenti.

- Treze pedras - especificou ele.

- Que têm as treze pedras a ver com o caso - interessei-me.

- Acontece que, ao fundo da gaiola do «pássaro», está uma espécie de ninho. Um dos meus homens vasculhou  aquilo e encontrou seis esmeraldas bem avantajadas.  Sobre a mesa a que Cameron estivera sentado, achamos mais duas.

- Parabéns - elogiei. - O   corvo   deve   ter   sido atraído pelo brilho das pedras preciosas e levou-as, uma a uma, para o seu esconderijo.

Fitando-me   perscrutadoramente,   Buda   prosseguiu:

- Duas e seis são oito.

- Acertou.

- Mas os alvéolos da armação são treze.

- Muito bem - aprovei.

- Isso significa que faltam cinco.

Não me contive e exclamei:

- Bravo.

- Vá para o diabo que o carregue - proferiu Buda, irritadamente. - Estou   averiguando   o   que   sabe   você acerca do pingente.

- Já lho disse.

- Refiro-me às esmeraldas que faltam. Por acaso, não as encontrou?

- Não.

- A jóia é antiga, não é verdade? Pergunto-me onde Cameron a teria arranjado?

- Se   não   a   herdou,   naturalmente   comprou-a.  sugeri. - A não ser que a tivesse roubado.

Buda tornou a fitar-me, desconfiado.

- Sabe uma coisa, Lam? Estou a analisá-lo. Você tem uma lábia que ainda lhe acarreta desgostos. Os rapazes do Departamento de Homicídios acham que nunca nos diz totalmente o que sabe. Dizem que tem uma predisposição doentia para fazer «caixinha» conosco e, como sabe, na sua profissão isso é pouco saudável.

Sorriu-nos e saiu do escritório. Com um suspiro de alívio, Bertha exultou:

- Donald querido, 500 «dele» já cantam!

- Vêm mais a caminho - vaticinei.

-Porque pensa isso?

- Sharpies.

- Que se passa com ele?

- Está aterrorizado.

- Com quê?

- Isso gostaria eu de saber, mas está doente de medo.

- Faz qualquer idéia do motivo?

- De acordo com os termos do testamento, a administração do Fundo, sob tutela, termina com a morte dos testamenteiros, caso estes morram antes de o legatário mais jovem atingir 25 anos. Um já  lá vai. Se o outro «esticar o pernil», o «bolo» é logo dividido a meias, entre os dois beneficiários.

- Era bonito, observou Bertha, descobrirmos de que consta e a  quanto monta o fundo financeiro que Sharpies administra.

- Vou ver se consigo obter uma informação acerca desse brilhante fundo financeiro. Quero farejar todos os pormenores.

- Sabe a quanto monta? - inquiriu Bertha, com os olhos cintilantes.

- Quando foi instituído, na altura da morte de Cora Hendricks, era à volta de 80 mil dólares.

- Não me diga que já foi dilapidado.

- Pelo contrário. Graças à administração de Sharpies e Cameron, vai agora em 200 mil dólares.

- Ainda bem! exclamou Bertha, como se fosse a única herdeira. - Cresceu substancialmente, apesar das mesadas que esses dois... Shirley Bruce e o outro, como se chama ele?...

- Robert Hockley - esclareci.

- ... apesar das mesadas que esses dois... Quanto é que somam, por mês?

- Rendem 500 dólares mensais.

- Isso  mil e duzentos por ano.

- Certinhos.

- Parece impossível! - gemeu ela, em coro com a cadeira giratória. - E há quantos anos têm eles estado a «mamar»?

- Há cerca de 22.

- E o Fundo era realmente de 80 mil dólares?

- Exato.

- Macacos me mordam!  Esse Fundo dá um lucro diabólico!

- É uma mina de ouro, Bertha, em sentido concreto e figurado... E creio que Sharpies deve estar por aí a rebentar,  não tarda muito.

A minha sócia esfregava as mãos avarentas, piscando os olhinhos sôfregos.

- Oh,  Donald   querido! - exclamou. - Que   coisas lindas você sabe dizer à Bertha!

OS MALABARISMOS

Bertha Cool fechara a secretária à chave e fora para casa, sonhar com cheques, ouro e esmeraldas. Fui sentar-me  no gabinete exterior, a tagarelar com Elsie Brand.

- Você precisa de uma ajudante, Elsie, observei.

- Cá me vou aguentando sozinha - respondeu ela.

- Ainda bem que você regressou lá de fora. Nem calcula o que isso representa para mim.

- Calculo, sim: mais trabalho.

Elsie olhara-me de relance e corara. Riu-se nervosamente  e admitiu:

- Sim, consigo cá, há realmente mais trabalho, mas é diferente. Dá gosto trabalhar consigo!

- Isso não é razão para trabalhar como uma moura. Você não pára de dar aos dedos nessa maldita máquina, durante oito horas seguidas, por dia.

- Seguidas, não. Tenho uma hora para almoçar corrigiu.

- Vem a dar no mesmo! Precisa de alguém que a auxilie. Vou dizer a Bertha que arranje uma outra moça que faça o trabalho dela e você, Elsie, passará a ser a minha secretária exclusiva.

-Oh, Donald!... Bertha vai ter um ataque!

- Ela tem a mania de que todas as cartas devem ser individuais, é contra as circulares. Pois bem... que arranje uma secretária para ela e eu guardo-a, a si, para o meu serviço, sempre poderá descansar um pouco mais, Elsie.

- Ela ainda cai para o lado, com uma fúria...

- Não cai nada. Vai ver como a aguento de pé, com estacas de ouro!

Neste momento, o telefone começou a tocar.

- Não   ligue - aconselhei. - Deixe-o   berrar  até esfalfar-se...   Não...   Espere   um   instante...   Pode   ser Sharpies a gritar por socorro. Okay, Elsie, vou atender. Veja lá quem é.

A jovem pegou no auscultador e em seguida, tapando o bocal, anunciou:

- É para si, Donald.

Uma voz incisiva, mas bem modulada, inquiriu do outro lado do fio:

- É Mr. Donald Lam?

- O próprio...

- Da firma Cool & Lam, Investigações Particulares?

- Exatamente. Em que posso ser-lhe útil?

- Daqui, Benjamin Nuttall. Você procurou-me, esta manhã, por causa de um certo pendentif de esmeraldas que fora roubado. Queria falar consigo, acerca disso.

- Não vale a pena - repliquei. - Você disse-me que não vira o pingente e isso bastou-me.

- Sim, na realidade... mas, de certa maneira, a situação  alterou-se e pensei...

- Pensou quê?

- ... que seria vantajoso discutir o assunto consigo, mais pormenorizadamente.

- Considero-me um tipo imaginativo, mas não enxergo  qualquer mudança de situação que justifique discutirmos  acerca de um pingente de esmeraldas que o senhor  afirmou nunca ter visto.

- Bem, tente enxergar desta vez - retorquiu Nuttall secamente. - Está aqui,  em  minha frente, o sargento Sam Buda, a fazer-me perguntas e...

- Okay - acedi. - Daqui a cinco minutos estarei aí. Diga a Buda que já vou a caminho.

Desliguei.

- Quem era? - interessou-se Elsie.

- Benjamin Nuttall. Se Bertha entrar em contato consigo, diga-lhe, por favor, que fui para a joalharia ver se evito que o tipo dê demasiado à língua. Está lá o sargento  Buda. Vou ser obrigado a dar umas explicaçõezinhas.

- Consegue safar-se?

- Só posso sabê-lo depois de tentar.

- Vai   contar-lhes   a   verdade? -  indagou   Elsie, apreensiva.

- A verdade é uma pérola de valor inapreciável! sentenciei.

- E então?...

- Já lá diz o provérbio: «Não se deitem pérolas a porcos»!

A jovem mostrou-se assustada.

- Cuidado, Donald, advertiu, não se meta em sarilhos.

- Tenho-me visto tanta vez metido neles, que já sei de cor a técnica para me escapar deles. O melhor, Elsie, é pôr-se em contato com Bertha e dizer que se mantenha ao largo, até receber notícias minhas. Não convém que a interroguem, sem termos arrumado as idéias depois desta reunião.

- Que tenciona contar-lhes, Donald?

- Dir-lhe-ia,   se   soubesse.  Tudo  depende   do  que Nuttall já tenha dito: se falou ou não de Peter Jarratt ao sargento Buda.

- E se falou?

- Se foi tão longe, vou atirar com esse investidor de capitais aos bichos. Vai fazer toda a despesa da conversa com o sargento Buda. A Polícia «pela-se» por ouvir a voz de um corretor de bolsa que negocia, como intermediário,  em  pedras  preciosas, especialmente quando há esmeraldas de mistura com cadáveres. Não se esqueça de avisar Bertha para que se ponha fora da circulação até saber, por mim, do que se trata. Até breve, encanto dos meus olhos.

Vi-a ainda corar e saí. Ao chegar à porta da joalharia, deparou-se-me um carro da rádio-patrulha da Polícia. Um dos guardas acompanhou-me à porta onde um outro, perante a atitude rígida do empregado de balcão, me conduziu ao topo da escada.

Ao penetrar no gabinete de Nuttall, dei de caras com este, à secretária, tendo sentados em sua frente o sargento Buda e Peter Jarratt. O ambiente era soturno, a atmosfera, carregada de fumo, e a atitude dos circunstantes, envolta num silêncio, também de cortar à faca. Os três lembraram-me um júri incapaz de proferir um veredicto.

- Olá, parceiros - saudei, descontraidamente.

Buda  retribuiu   com  um  grunhido. Virando-se  para Nuttall, indicou:

- Conte-lhe o que acabou de dizer-me.

Cuidadosamente, o joalheiro começou a escolher as palavras. Atuava de maneira a advertir-me de que não falasse de mais.

- Hoje,   ainda   cedo,   este   cavalheiro procurou-me declarando desejar falar-me  acerca de um  assunto de certa importância. Pedi-lhe que se identificasse e exibiu as suas credenciais, provando ser detetive particular, de nome Donald Lam, sócio da firma...

- Passe adiante cortou Buda, impaciente. – Salte por cima disso e diga o que sucedeu.

Calmamente, Nuttall prosseguiu:

- Mr. Lam perguntou-me se eu vira ou sabia algo acerca de um certo pendentif de esmeraldas.

Depreendi que Buda sabia que pendentif era pingente. Nuttall continuou:

- Apresentou-me um esboço da referida jóia, bastante  preciso, desenhado a lápis. Perguntei-lhe, então, por que motivo me procurara e Mr. Lam declarou que o tinham informado de que eu era especialista  na avaliação de esmeraldas.

- Adiante, adiante - instigou Buda. - Conte o resto.

Que razão alegou ele para justificar o seu interesse?

- Não   consigo    lembrar-me   precisamente   desse ponto - declarou Nuttall. - Não me recordo se desejava, ou não, localizar o paradeiro dessa jóia, a pedido de um cliente. Mas fiquei com a impressão de que se tratava de um problema familiar.

Buda virou-se para mim e inquiriu:

- Que foi que o trouxe cá, Lam?

- Isso mesmo. Como Mr. Nuttall acaba de explicar, tentei saber se vira algum pingente daquele tipo.

- Que justificação lhe apresentou?

- Creio que nem falei nisso.

- Ele diz que sim, mas que não se recorda.

- Bem - respondi com uma careta meio sorriso , sabe como é, sargento. Comecei a falar muito depressa, com esse jeito de malabarismo de palavras que nos permite não dizer nada. Apenas queria saber se ele vira, ou não, o pingente de esmeraldas.

Buda mascou a ponta do charuto e olhou-me com certa hostilidade.

- Ponha-se com malabarismos, comigo, e verá aonde é que isso o leva. Por que razão queria você saber se ele vira esse pingente?

- Francamente,    sargento! - indignei-me. – Nunca me passaria pela cabeça usar de malabarismos para consigo.

 Vou contar-lhe a verdade. Um cliente encarregou-me de obter essa informação.

- Porquê?

- Ah, isso, sargento, terá de perguntá-lo ao cliente.

- Harry Sharpies?

- Não posso dizer-lhe, como sabe. A ética profissional proíbe-mo.

Buda chupou o charuto e virou-se para Nuttall.

- Continue - comandou. - Vamos  ouvir  o  resto.

- Nessa altura - continuou o joalheiro, respondi-lhe não  ter qualquer informação  acerca  do pendentif cujo desenho exibia. E era verdade. Só mais tarde, Mr. Jarratt, que já mantivera comigo um ou dois contatos profissionais, me procurou com o fim de eu proceder à avaliação de um pendentif semelhante. Alertado pela anterior  visita de Mr. Lam e admitindo a hipótese de se tratar da mesma jóia, sugeri-lhe que averiguasse, junto da firma Cool & Lam, o que ocorria acerca dela.

- Exatamente - confirmou Jarratt, com um efusivo sacão da cabeça.

Dirigindo-se agora a Jarratt, Buda indagou:

- Onde arranjou esse pingente?

- Recebi-o das mãos de Mr. Cameron. Pediu-me para obter uma avaliação fidedigna.

Buda mascou .o que restava do charuto e cuspiu-o para o escarrador.

- Não gosto disto - resmungou.

Ninguém fez comentários.

- Tenho estado a dar-lhes uma oportunidade de cantarem as vossas histórias, estando todos presentes... mas não foi para se porem à defesa, cobrindo-se uns aos outros. Juntei-vos para chegarmos a uma conclusão positiva  e não para andarem às voltas. Se começam com malabarismos... bem, não gosto disto!

Mantivemo-nos  calados como  ratos. Tornando a interpelar Jarratt, sondou:

- Já desempenhara, antes, qualquer serviço a pedido de Cameron?

Jarratt semicerrou os olhos, fitando o espaço, dois palmos acima da cabeça de Buda e, após um evidente esforço de memória, esclareceu:

- Encontrei-me várias vezes com  Mr. Cameron e creio ter-me encarregado, em tempos, de qualquer operação financeira...   mas  não  me lembro qual. Também isso, sargento, não deve ser importante... Pode ser que me venha à  idéia,  mais tarde...   Neste  momento  confesso...

- Em que se ocupa? Qual é a sua profissão? – inquiriu  Buda, irritado.

- Bem... sou uma espécie de intermediário. Encarrego-me da colocação de certos objetos valiosos que tenham   sido  empenhados,  ou cujos   proprietários   pretendam vendê-los, em melhores condições do que aquelas que se lhes ofereceriam no mercado geral. Estabeleço, portanto, contatos pessoais... mas também me encarrego de investimentos financeiros...

- É um corretor de bolsa oficial?

- Oh, não! Apenas intermediário, procurando obter condições vantajosas para os meus clientes em dificuldades, que não pretendem aparecer pessoalmente num negócio dessa natureza.

- E Cameron pediu-lhe que vendesse esse pingente pelo melhor preço que conseguisse obter?

- Não, sargento. Apenas me pediu que o mandasse avaliar por um especialista idôneo, o que é muito diferente.

- Mas a sua linha de operações é proceder a vendas e resgates de cautelas referentes a objetos penhorados, não é assim?

- Sim, entre outras atividades... Às vezes...

- Frequentemente?

- Sim.

Buda encarou-me e indagou:

- Suponho que andou a farejar por várias joalharias, não?

Não caí na armadilha. Buda não deixaria de confirmar o que eu dissesse.

- Pelo contrário - afirmei, vim aqui em primeiro lugar.

- Porquê?

- Não tive tempo de ir a outros lados, antes daquilo ter acontecido.

- Aquilo o quê?

- A minha visita, com Sharpies, a casa de Cameron.

- Raios!  exasperou-se Buda. - Lá está você com malabarismos.   Está  a dar-me  a   impressão  de prestar todas as informações necessárias, mas anda às voltas, sem irmos parar a lado algum.

- Desculpe, sargento!

- Se tivermos de ficar aqui toda a noite, por mim não  me   importo - ameaçou   Buda. - Você,   Lam,   sabe decerto qual a origem do pingente. Quem é que o tinha?

Quero averiguar isso. Pus os meus homens a correrem todas as joalharias e em nenhuma delas foi vista essa porcaria. Dei com Nuttall e este atirou-me para Jarratt; mais tarde, lembrou-se de si. Agora que estamos todos juntos, não se consegue avançar uma polegada! Porquê, raios?

- Disse-lhe tudo quanto sabia, sargento - respondi.

- Creio que esse pingente foi herdado por uma mulher.

Alguém deve ter-se apercebido de que ela já o não tinha em seu poder. Portanto, quis saber que destino lhe fora dado. Aqui tem.

- Porquê?

- Ora,   sargento!   Suponha   ter   subitamente   descoberto que sua mulher já não está na posse de uma jóia no valor de uns bons milhares de dólares. Havia de querer saber o que lhe tinha acontecido, não?

- Estou a ver - animou-se Buda. - Trata-se de uma questão entre marido e mulher?

- Eu não disse isso - protestei.

- Mas sugeriu.

- Eu? Quando?

- Quando acabou de referir-se à minha mulher replicou

 Buda, irritadamente.

-Oh, não! Não foi mais do que um mero exemplo.

- Diabos o levem - gritou o sargento. - Vim aqui para interrogá-los. Têm pois de responder às perguntas.

- Sim, sargento. Faça o favor...

- É ou não um caso entre marido e mulher?

- Bem, não sei, mas podia ser. Na altura, não fiquei com essa impressão mas pode muito bem ter sido qualquer coisa nesse gênero. Contudo...  ele  não falou  na esposa.

- Disse, ao menos, que não se tratava da mulher?

- Não, sargento. Estou certo de que não se referiu a isso, posso assegurar-lho.

- Favas - explodiu Buda. - Desta maneira não chegamos a lado algum. Acha que se trata de um caso de chantagem?

- Creio que o meu cliente pensou que seria  um outro ângulo a investigar.

- E já o investigou?

- Não.

- Porque não?

- Logo que vi o pingente em poder de Cameron, justifiquei , compreendi que não se trataria de um caso de chantagem. Cameron não era homem para isso. Na realidade a mulher em que o meu cliente está interessado desfez-se da jóia há já bastantes meses e é evidente que Cameron o adquiriu de uma outra fonte mais recente.

Peter Jarratt agarrou-se a esta explicação. Bateu na testa e declarou:

- Ora aí está! Penso que essa é uma possibilidade a ser considerada. É uma hipótese bastante plausível.

Buda resfolegou, num preâmbulo de rugido.

- Deixe isso, sargento - acalmei-o. - Bem sabe que tenho de proteger um cliente, mas, por aquilo que já lhe disse, um bom detetive como o senhor não terá dificuldade  em descobrir a ponta da meada. E sempre lhe digo mais alguma coisa: hoje mesmo, da parte da tarde, fui informado de que a mulher que tinha o pingente se desfizera dele, porque estava enfastiada de esmeraldas e desejara  comprar uma jóia com diamantes. E pelo que Mr. Jarratt declarou, fácil é depreender que Cameron adquiriu o pingente, porque estava interessado em esmeraldas.

- Exatamente - interveio Jarratt. - Sou da mesma opinião. Estou certo de que Mr. Cameron estava interessado em esmeraldas, em virtude dos longos anos que viveu na Colômbia. Penso que sabia qualquer coisa acerca de esmeraldas e esse pingente tinha, segundo me lembro, umas pedras invulgares em transparência e cor... E puríssimas,  sem o menor defeito, o que creio ser raro. Lembro-me  de ter consultado Mr. Nuttall a esse respeito e ele mo ter confirmado.

- Mas - insistiu Buda , quem estava interessado em vendê-las?

- Não se destinavam a venda - repetiu Jarratt.  Unicamente se pretendia uma avaliação.

- E quem era o seu proprietário?

- Mr. Cameron, sem a menor dúvida.

- É positivo nessa afirmação?

- Bem... tudo me leva a presumir que sim.

- E há quanto tempo estava o pingente na sua posse? - indagou Buda.

Jarratt olhou para mim e respondeu:

- Segundo Mr. Lam, há já vários meses.

O sargento começou a tamborilar com os dedos sobre a secretária e inquiriu:

- Mas  por que  diabo  mandou  Cameron  avaliar o pingente tão cuidadosamente, para depois lhe extrair as esmeraldas?

- Talvez um ladrão estivesse metido nisso - sugeri.

- Qual ladrão, qual carapuça! Eu próprio encontrei um jogo de instrumentos de ourives na gaveta da secretária de Cameron.  Foi  ele  mesmo quem descravou as pedras da respectiva armação. Pelo que deduzi, extraiu as esmeraldas dos seus alvéolos e começou a escondê-las em vários locais. Apenas duas tinham ainda ficado sobre a mesa. Outras seis foram enfiadas ao fundo da gaiola do corvo, no canto onde tem uma espécie de ninho de raminhos e palhas secas.

- Oito das treze - sublinhei. - Faltam cinco.

- Não  faltam - replicou   Buda,  embalado. – Numa operação de rotina, desenroscamos o cano do lavatório de mãos da casa de banho, para verificarmos se no bojo de segurança do sifão, haveria vestígios de sangue, já que poderia ter-se dado o caso de o assassino ter ido lavar-se de manchas de sangue. Ficam sempre alguns resíduos diluídos na água acumulada nesse pequeno depósito. Pois bem, encontrámos aí as cinco esmeraldas que faltavam.

- Magnífico! - exclamei. - Bom    trabalho,    sargento. Nesse caso,  não faltam  nenhumas  esmeraldas! Foi uma bela descoberta de sua parte!

Fitando-me iradamente, Buda inquiriu:

- Já agora, Lam, explique-me para que diabo Cameron decidiu esconder essas pedras:  cinco, no cano do lavatório, e seis, na gaiola do corvo, deixando duas sobre a mesa?

- Nunca esperei, sargento, que me tivesse convocado  aqui, para consultar-me quanto à minha opinião!

- Não foi para consultá-lo que o mandei vir - retorquiu  Buda, furioso, mas para  responder ao que  lhe perguntasse. Quero é que me dê fatos! E se continua a raiar-me, por Deus, Lam, juro que lhe caço a licença de detetive.

- Julguei ter-lhe respondido a todas as perguntas, sargento - murmurei contritamente.

- Ah, pois! - concedeu ele sarcasticamente. - Respondeu a tudo, embora ainda não respondesse a nada.

E deixe estar que esses dois cavalheiros também foram muito úteis. Excelentes colaboradores, mas, não sei porquê,  não cheguei a conclusão alguma!

- Está cansado e nervoso, sargento - considerei. Tem estado a trabalhar continuamente até muito tarde. Na minha opinião, o caso é muito simples. Fui incumbido de descobrir o que acontecera a esse pingente de esmeraldas que desaparecera, identificar quem o tinha em seu poder e porquê. Comecei a efetuar uma ronda às joalharias e...

- ...e apenas por sorte veio bater, logo à primeira tentativa, a uma loja, onde mais tarde alguém apareceria com o pingente em questão.

- Não foi por sorte - objetei. - Comecei por uma joalharia que tem a reputação de estar especializada em esmeraldas.

- E Nuttall disse-lhe que tinha o pingente cá na loja?

- Bem...  não!   Estou convencido de que estava a defender o seu cliente.

- Quer dizer que ele lhe afirmou nada saber da jóia?

- Está visto. A sua negativa foi de cem por cento.

- Nesse caso, sabendo que ele não lhe daria a menor informação, por que raio veio procurá-lo?

- Quando vim, não sabia que Nuttall se fecharia em «copas», para defender o seu cliente.

- Mas acabou por descobrir quem ele era?

- Sim.

- E depois?

- Depois, tive  de  desviar-me dessa  investigação, porque havia uma  hipótese de obter outra  informação mais direta e valiosa. E é tudo.

- Mas essa informação valiosa acabou por conduzi-lo à descoberta do pingente, apesar de tudo, hem?

- Por acaso, assim sucedeu.

- Por acaso, um raio! - vociferou Buda. - Você está a contar-me isso, porque já percebeu que eu também o sabia. Agora, diga-me: como tinha Cameron o pingente consigo? Como diabo foi parar-lhe às mãos?

- Disso, sargento, não faço a menor idéia. Contudo, quanto à origem do pingente, já tive ocasião de informá-lo de que o meu cliente foi falar diretamente com a sua antiga proprietária e que esta lhe explicou ter-se desfeito das esmeraldas, para trocá-las por diamantes... há alguns meses atrás. Como vê, sargento, fui o mais franco possível  consigo. Essa jovem...

- Jovem, hem?

- Sim.

- Estou a ver. Uma paixão serôdia. O velhote e a garota que gosta de jóias!... O seu cliente pensava que ela se desfizera das esmeraldas para...

- Pensava,  mas já  não pensa - atalhei. - Teve  a prova evidente de que ela as trocara por uma outra jóia. Buda riu ruidosamente.

- Tá visto! Ela chegou para ele! Começou a fazer-lhe olhinhos bonitos e ele engoliu a isca, o anzol e a linha! Esse tanso era Cameron?

- Não creio que Cameron tivesse sido tanso alguma vez na vida.

- Isso encaixa - declarou Buda, mais satisfeito.  Já agora uma pergunta: teria sido um rival que decidiu...

- Não creio que Cameron estivesse envolvido em qualquer romance amoroso - cortei, convincentemente.

- Posso afirmar-lhe, sargento - interveio Jarratt, estar convencido de que a única razão que impeliu Cameron a adquirir o pingente residiu no seu especial  interesse  pelas esmeraldas. Eram raras, creio que Mr, Nuttall as avaliou por um preço muito baixo, assim como penso que procedeu dessa maneira, influenciado pelo fato de a armação ser muito antiga, completamente fora de moda.

Estou convencido de que Mr. Cameron pensava poder incrustar   essas   esmeraldas   numa   armação   moderna, valorizando-as grandemente. Representariam, então, uma pequena fortuna...

Nuttall aclarou a voz para declarar:

- Vou ser franco convosco, meus senhores. Efetivamente a minha avaliação foi feita muito à pressa. A armação era   demasiado   antiga   para   despertar   hoje   qualquer interesse. Calculei o valor das pedras, sem atender ao seu valor qualitativo. Só depois de terem saído das minhas mãos é que me lembrei da sua cor invulgar e extraordinária  transparência,   mas,   infelizmente,  já  era muito tarde. Confesso que foi um ótimo negócio que deixei escapar por entre os dedos.

Buda pôs-se de pé e admitiu:

- É bem possível. Naturalmente foi isso mesmo que lhe aconteceu.

Jarratt   meneou   a   cabeça   afirmativamente   e   concordou:

- Tem toda a razão, sargento. Cameron devia estar a aproveitar as esmeraldas para outra jóia diferente, como tive ocasião de aconselhar-lhe.

Neste ponto da conferência, Nuttall tirou da gaveta uma garrafa de uísque com doze anos e concluiu:

- Nestas circunstâncias, cavalheiros, não vejo razão para que se não tome uma bebida.

 UM   «LAMIRÉ»   ESCALDANTE

Certifiquei-me de que  ninguém  me seguia.  Entrei, então,  numa  cabina telefônica e  liguei  para Sharpies. Ouvi-lhe a voz, do outro lado do fio, alegre e rápida.

- Daqui, Sharpies.

- Donald  Lam - anunciei.

A alegria dissipou-se-lhe subitamente.

- Olá! Há novidades?

- Arranjou um advogado?

- Eu... para quê?... Sim tenho um para os assuntos de legislação do fundo financeiro e da contabilidade...

- É bom?

- Um dos melhores.

- Mas está apenas familiarizado com esse gênero de papéis administrativos ou é um tipo desembaraçado, capaz de ladrar num tribunal?

- Estou certo de que é muito competente em debates  forenses.

- Chame-o imediatamente aconselhei.

- Não estou a perceber...

- Fale com ele, porque vai precisar de advogado, como pão para a boca.

- Porquê?

- O sargento Buda vai cair-lhe em cima - avisei.

- Outra vez?

- Outra vez, outra vez e outra vez. Tão cedo, não o largará da mão.

- Receio não compreender aonde quer chegar, Lam.

- Buda chegou à conclusão de que o pingente de esmeraldas está diretamente relacionado com o crime.

- Porquê?... Faltam algumas esmeraldas?

- Já não falta nenhuma. Buda descobriu-as.

- Onde?

- Duas estavam sobre a mesa de Cameron; cinco, na gaiola de «Pancho» e seis, naquele papo metálico do cano que fica debaixo do lavatório da casa de banho: o «bojo do sifão», como lhe chamou o sargento.

- No  lavatório?  Cos diabos!  Que  raio estavam  a fazer num sítio desses?

- Alguém   pensou   ser   um   bom   esconderijo.   Os «chuis» desenroscaram o cano e deram com elas.

- Mas... não consigo perceber...

- Não é o único. Buda também não.

- Como tenciona ele relacionar-me com isso?

- Está tentando relacioná-lo com o pingente.

- Porquê - admirou-se, com certa angústia na voz.

- Porque soube que eu andava a investigar essa história,  no Nuttall, e porque me viu consigo em casa de Cameron. Apesar de ser apenas um detetive dos Homicídios, consegue somar dois e dois.

- Estou arrependido por tê-lo mandado averiguar o caso do pingente, Lam.

- Agora, é tarde - observei.

- Bem sei. Nunca pensei que matassem Cameron, depois disso.

- Teria sido melhor você perguntar diretamente a Miss Bruce o que se passava, como lhe aconselhei, lembra-se?

- Queria descobrir essa história... sem incomodá-la.

- Exatamente. Por essa razão contratou-me e eu cumpri a minha obrigação. Desvendei o enigma. Agora, já nada ganha em andar para trás com os ponteiros do relógio. O tempo não recua, com um truque desses.

- Sim... tem razão.

- Esta  manhã - historiei,  andei   a  investigar o caso do pingente. Pouco mais tarde, fomos a casa de Cameron. Tinham-no morto e o pingente em que ele se achava   interessado   encontrava-se   em   cima   da   mesa-secretária.  Parte das jóias tinham desaparecido. A Polícia deu com elas e Buda concluiu que as esmeraldas são o fulcro do problema.

- Irá interrogá-lo?

- Já me interrogou.

- Quando?

- Acabou agora mesmo.

- Onde?

- No escritório de Nuttall, por cima da joalharia.

Jarratt também lá estava.

- Buda também os interrogou? Que lhe disseram?

- Não muita coisa.

- Portanto, pensa que ele virá falar comigo, a seguir?

- Estou certo disso.

- Que devo dizer-lhe?

- Deixe a sua consciência guiá-lo.

- Mas,  preciso  do  seu  conselho.  Não  pode  ajudar-me?

- A melhor ajuda é aconselhá-lo a consultar o seu advogado. Toda a informação que você lhe prestar será confidencial.  Ele  poderá  falar por  si   e,  se as  coisas começarem a correr mal, deverá dizer-lhe que não responda  a quaisquer perguntas da Polícia. Ora, eu sou detetive particular, de maneira que aquilo que me disser pode ser de natureza a não beneficiar do privilégio de sigilo. Em princípio, tenho o dever de colaborar com a Polícia, não podendo, sob interrogatório oficial, omitir fatos que sejam considerados essenciais para o curso de uma investigação criminal. Se tiverem motivo para suspeitar de que a minha conduta não é estritamente ética, poderão caçar-me a licença profissional. Está a compreender a minha posição... e a sua?

- Sim, creio que sim.

- Tem duas alternativas, Mr. Sharpies - expus.

Pode dizer ao sargento Buda que o pingente pertencia a Miss Shirley Bruce, ou afirmar-lhe que nada sabe a esse respeito.

- Já lhe disse isso. Neguei firmemente conhecer a origem das esmeraldas.

- Por isso lhe aconselho a chamar um advogado.

- Não entrevejo motivo para isso. Que perigo pensa que corro?

- O que declarou à Polícia - expliquei - pode não corresponder à  melhor decisão.  Decerto acabarão  por descobrir que mentiu. Nesta reunião a que acabei de referir-me,  na loja de Nuttall, defendi-o o melhor que pude. Antes que se encontre totalmente atolado no problema, acho que deveria mudar de posição, alegando, por exemplo, que não reconhecera o pingente, quando o vira de alvéolos vazios, mas que, depois de ter pensado melhor no caso, relacionando-o com as esmeraldas, se recordou da possibilidade de já o ter visto antes...

- Não! - opôs-se Sharpies,  com  dignidade. – Vou deixar Miss Bruce completamente afastada deste assunto. Estou determinado a evitar-lhe quaisquer problemas.

- Se ela contar a Buda o que me disse a mim, ficará envolvida no caso.

- Talvez   sim,   em   relação   ao   pingente – admitiu Sharpies , mas não ao crime.

- Vem a dar o mesmo. Desde que saibam que foi dona da jóia encontrada em poder do seu testamenteiro assassinado, não poderá alhear-se das implicações consequentes.

- Interprete a situação como entender – resmungou Sharpies.

- Não tenho  qualquer  interesse  em   interpretá-la. O problema é seu.

- Bem, muito obrigado, Mr. Lam, e creia que aprecio  o serviço que procurou prestar-me, como seu cliente.

- Ex-cliente - corrigi.

- Como ex-cliente? - admirou-se.

- O  senhor  contratou-me  para  desempenhar  uma certa investigação. Ultimei-a corretamente. Neste momento estou fora do assunto. Não lhe devo nada e, meu caro   Mr.   Sharpies,   também   nada   me   deve.   Estamos

ambos livres como o ar.

- Não me parece que possa achar correta essa atitude - protestou ele, secamente.

- Que está errado nela?

- Penso que deveria continuar a apoiar-me neste assunto!

- Que assunto?

- Em todo o problema gerado em volta do pingente.

- No que respeita à minha agência, fomos contratados para descobrir o paradeiro da jóia e qual o seu destino. Cumprimos a nossa obrigação.

- Pois    sim,    mas    verificaram-se    fatos    consequentes...

- Certamente. Em relação a esses novos fatos que poderão requerer uma nova investigação terá, Mr. Sharpies, de  dirigir-se  a  Mrs.  Bertha  Cool...   A  propósito, desde já o advirto de que a Polícia vai interrogar Shirley Bruce e Robert Hockley.

- Para quê?

- Para  confirmarem  as   respectivas   relações  com

Cameron, verificar álibis, etc.

- Obrigado por avisar-me disso - agradeceu Sharpies, agora ansioso por desligar. Adivinhava-se que desejava fazer um telefonema urgente.

- Sempre ao seu dispor, Mr. Sharpies - disse, por despedida, e pousei o auscultador.

Rodei calmamente no carro da agência até ao escritório. A primeira edição dos jornais da manhã já estava nas ruas, com a narrativa do assassínio de Cameron, fotografias do corvo, do local onde o cadáver fora encontrado e do pingente de esmeraldas. Como de costume, fervilhava de teorias dos repórteres, dando largas à sua fertilíssima imaginação. Um deles proclamava, de «fonte fidedigna», que o sargento Buda estava a interrogar o corvo, registrando todas as palavras que este pronunciava e, esperando dessa maneira  obter uma pista que o conduzisse ao misterioso assaltante que espetara uma faca nas costas de Cameron, aparentemente enquanto este falava ao -telefone. Buda pedira aos jornalistas para publicarem um apelo a todas as pessoas que tivessem telefonado à vítima, naquele dia funesto, para que comunicassem com a Polícia.

A pistola automática de calibre 22, encontrada sobre a mesa-secretária do morto, também dava lugar a especulações.  A arma devia ter sido desfechada aproximadamente  no mesmo instante em que o crime fora cometido.  Como a bala não tivesse sido encontrada em parte alguma do salão, admitia-se a hipótese de Cameron ter desfechado o tiro contra o assassino, que, nesse caso, teria ficado ferido. Portanto, seria de considerar a probabilidade de o homicida ter sido forçado a consultar um médico, o que daria uma pista à Polícia.

Subitamente, o telefone tocou. Hesitei, sem saber se deveria atender, ou não. Resolvi disfarçar a voz, anasalando-a e tornando-a mais aguda.

- Daqui   o   porteiro - declarei. - Quer  deixar  um recado?

Aquela voz não me era estranha. Era suave, afável e as palavras bem articuladas.

- Lamento incomodá-lo, mas desejava urgentemente falar com Mr. Donald Lam, da firma Cool & Lam. Talvez possa indicar-me onde ele se encontra.

- Quem fala? - indaguei.

- Não vale a pena dizer o meu nome. Sabe onde poderei contatar com Mr. Lam?

- Tem de deixar o nome - insisti.

- Mas...  trata-se de um assunto confidencial  e...

Neste momento, identifiquei a voz. Era a de Peter Jarratt. Por isso interrompi-lhe a justificação para informar:

- Vem aí alguém...  Um momento...  Deve ser Mr. Lam...  Boa noite, Mr. Lam. Está aqui um cavalheiro ao telefone que deseja falar consigo. Diz ser um assunto urgente...   Está? Mr. Lam acaba de chegar. Atende já.

Pousei o auscultador, deslizei para a porta, silenciosamente, e aproximei-me novamente do aparelho, marcando  audivelmente os passos, como se acabasse de entrar.

- Está lá? Quem fala?

- Peter Jarratt, Mr. Lam.

- Oh, sim... Que deseja, Mr. Jarratt?

- Gostei muito da maneira como se desembaraçou, quando o sargento Buda o interrogava... Foi muito hábil e discreto.

- Obrigado.

- Leu os jornais de hoje?

- Sim.

- Consegui descobrir quem era a pessoa que, ultimamente,  tinha o pingente em seu poder.

- Quem é ela?

- Phyllis Fabens.

- Morada?

- Apartamentos Crestwell, na Nineth Street. Não sei o número da porta, mas você pode averiguar isso. Pensei que esta informação lhe pudesse ser útil.

- Obrigado. Sei onde fica esse edifício de apartamentos.

- Tem para si algum significado especial?

- Não,   por   enquanto - respondi   amavelmente.

Contrataram-me para realizar uma investigação. Ultimei a minha missão e já recebi os respectivos honorários. Portanto,  já estou fora do assunto, mas, de qualquer maneira,  fico-lhe grato pela sua intenção.

- Bem - justificou-se Jarratt,  pensei  que  seria interessante investigar o caso.

- O  melhor é  contatar com  o  sargento  Buda aconselhei.

- Não, não posso fazer isso... Compreende, depois do que se passou, acho que a Polícia deverá ser a última entidade a ser informada...

- Porquê?

- Os polícias podem confundir as premissas e lançar-se  numa pista errada, acusando-me depois de ter tentado desnorteá-los.   Escute,   Lam - prosseguiu   Jarratt, falando agora mais rapidamente , você tem um cliente...

- Tinha - emendei.

- Está bem, mas, de qualquer modo, estou certo de que lhe conviria averiguar melhor o caso. Achei que devia dar-lhe este «lamiré».

- Muito obrigado.

Jarratt, hesitou uns segundos e acabou por murmurar:

- Não tem de quê.

E desligou.

Desci o prédio no elevador e entrei no carro da agência. Em seguida, dirigi-me rapidamente para os Apartamentos Crestwell. As caixas do correio incrustadas na parede da portaria tinham os nomes dos inquilinos e a n.º 328 correspondia a Phyllis Fabens. Toquei à respectiva campainha e ouvi o sinal elétrico que abria a porta automaticamente que, de resto, já estava aberta. Subi ao terceiro piso e bati à porta.

- Quem é? - inquiriu uma voz feminina.

- Chamo-me Lam. Miss Fabens não me conhece.

Ela entreabriu a porta, espreitando-me através da fresta que a corrente de segurança limitava.

- Sou detetive particular - expliquei, e procuro descobrir a pista de uma certa jóia. Creio que sabe qualquer  coisa a esse respeito. Posso entrar?

A jovem fitou-me perscrutadoramente através da estreita abertura. Depois, soltou uma pequena gargalhada,  tirou a corrente de segurança e abriu-me a porta.

- Pode,   sim - consentiu. - Um   homem   que   vai direito ao assunto, sem perder tempo com rodeios, deve merecer confiança. Entre lá.

Era um apartamentozinho agradável, bem arranjado, claro e limpo.

- Por favor, sente-se convidou.

Esperei que ela se sentasse primeiro e ocupei uma cadeira em sua frente.

- Leu os jornais desta manhã? - indaguei.

- Não.

- Ando a tentar descobrir por onde andou certo pingente.

 Deram-me um «lamiré» de que talvez você soubesse alguma coisa a seu respeito.

- Quem lhe deu esse «lamiré»?

- Eis uma pergunta a que um detetive não pode responder - repliquei.

Ficou pensativa durante alguns instantes e depois concordou:

- Sim... compreendo.

Tirei o jornal da algibeira e cuidadosamente dobrei-o de maneira a exibir o desenho do pingente de esmeraldas que fora ali reproduzido.

- Pode  dar-me  qualquer  informação  acerca  desta jóia? - inquiri.

Ela pegou no jornal e leu a legenda que se achava na base da gravura e indicava ser aquele o pingente que fora achado sobre a mesa a que o assassinado se encontrava  sentado, antes de cair para o lado. Especificava que o pingente fora desprovido das respectivas esmeraldas.

Virou a página e acabou por ler todo o artigo. Não manifestou  a mínima surpresa. Estava tranquila e firme.

Enquanto Phyllis estava absorta na leitura, examinei-a com prazer. Devia andar pelos vinte e três, vinte e quatro anos, e tinha cabelos louros, muito claros e soltos. Era muito bonita, com uma pele fresquíssima e sobrancelhas finas, naquele momento ligeiramente unidas,  num esforço de concentração. Os seus lábios não eram demasiado estreitos, para que lhe dessem uma expressão austera. Deveria sorrir facilmente, mas também seria capaz de cerrá-los firmemente se a ocasião assim o determinasse. No seu conjunto a boca era sensitiva e deveras apetitosa.

Baixou o jornal, para indagar:

-Que quer saber?

- Se esse pingente lhe é familiar. Já o viu antes?

- Creio que sim. Contudo, não posso identificá-lo positivamente, por este simples esboço mal  impresso. Deve haver inúmeros pingentes deste gênero. De resto, esse que em tempos possuí, embora tivesse uma armação muito semelhante...  igual, talvez...  não era guarnecido de esmeraldas. Era uma jóia simples, com um rubi sintético, ao meio, e pedras sem valor algum, em volta.

- Que lhe fez?

- Vendi-o.

- A quem?

-Porque o pergunta?

Ri-me e  respondi:

- Se quer que lhe diga, nem sei bem. Talvez porque sou detetive e nesta profissão contraímos esse vício. Bem... para falar-lhe francamente, ando a investigar um caso e careço de todos os pormenores que se relacionem com ele.

Phyllis tornou a olhar para o jornal e os seus olhos cinzento-prata, voltaram, instantes depois, a encontrar os meus.

- Já que está  interessado fique sabendo - disse, devolvendo-me o jornal , que vendi o pingente, só pelo valor do ouro, a um homem chamado Jarratt. É uma espécie de corretor de investimentos na bolsa que ocasionalmente também serve de intermediário na compra e venda de objetos antigos. Pelo menos, foi o que me disseram.

- Como sucedeu entrar em contato com ele? indaguei.

- Fui à sua procura.

Franzi o sobrolho interrogativamente.

Phyllis riu e explicou:

- Levei essa jóia a uma casa da especialidade, pensando que talvez o joalheiro quisesse comprar-ma.

- Nuttall?

- Oh, não! Isso é uma loja de luxo. Fui a uma casa modesta, perto daqui, e levei várias coisas desse gênero.

A mais valiosa era um anel com um diamante de tamanho razoável.  Creio,  segundo  me  disseram,  que  tinha  um pequeno defeito... um risco qualquer que o depreciava. Vendi também conjuntamente um par de relógios antigos, daqueles que as senhoras usavam pendurados ao pescoço...  «de peito», como então lhes chamavam. No lote, ia o pingente e um bracelete. Pagaram-me apenas o seu valor-ouro.

- Como encontrou Jarratt?

- O joalheiro fez-me  uma  oferta e achei-a  muito baixa. Depois de trocarmos algumas impressões, referiu amavelmente haver um homem que se encarregava desse negócio como intermediário, conseguindo às vezes preços mais altos para jóias antigas.

- Deu-lhe a direção de Jarratt?

- Nessa altura, nem me disse como se chamava.

Telefonou-lhe e conseguiu uma oferta quase dupla daquilo que me oferecera..

- Como é natural, aceitou, não?

- Nada disso. Aquele súbito aumento de valor sugeriu-me  que estava a ser levada, de maneira que fui consultar um outro joalheiro, mas este fez-me uma oferta idêntica à primeira. Contei-lhe o que se passara na joalharia anterior e o homem riu-se, acabando por entregar-me um cartão e explicar que o tal intermediário deveria ser Jarratt.

- Foi então ter com ele?

- Sim, e, apesar de cobrar-se da sua comissão, ainda me pagou mais quarenta dólares para além do dobro da oferta inicial.

- Vendeu-lhe todo o lote de objetos antigos? interessei-me.

- Sim.

- Ele   mostrou-se   particularmente   interessado   no pingente?

- Bem...  disse-me que seriam os  relógios  aquilo que decerto conseguiria vender mais facilmente, pois há quem os colecione.

- É uma profissão bem estranha para um homem do seu tipo? - comentei.

- Que tipo é o dele?

- Veste-se em alfaiate caro, guia um bom automóvel e mantém um escritório que evidentemente lhe custa bastante  dinheiro.

- Provavelmente esse negociozinho das jóias é um complemento de qualquer outra ocupação mais rendosa - sugeriu.

- Sim, deve ser isso - admiti. Há quanto tempo contatou com Peter Jarratt?

- Há três ou quatro meses.

- Conheceu Robert Cameron?

- Nunca ouvi falar dele.

- O seu pingente não tinha realmente esmeraldas?

- Oh, não, Deus do Céu! Quem me dera!

- Esteve alguma vez na América do Sul?

- Não seja tolo! Sou uma rapariga que trabalha! Não tenho dinheiro para longas viagens de turismo!

- Em que se ocupa?

- Sou secretária particular de um administrador de uma companhia de seguros.

- Tinha alguma razão particular para vender esses objetos?   Precisava  de  dinheiro  por  qualquer  motivo especial?

Phyllis riu-se e criticou:

- Gosta muito de meter o nariz na vida alheia!

- É uma característica do meu ofício - justifiquei.

- Creio que já lhe disse muita coisa. Esse pingente é muito importante para si?

- Ainda não sei, mas está ligado a esse caso de assassínio.

- Pertencia à vítima... Cameron... não é verdade?

- Suponho que sim, pelo menos, ultimamente.

- Olhe, vou ser franca consigo, Mr. Lam. Esse pingente que vem reproduzido no jornal, não é o meu. O seu desenho é semelhante ao que vendi, só que o meu não tinha esmeralda alguma. Contudo, pode ser que alguém tenha utilizado uma armação idêntica...

- Para quê?

... ou a mesma, para fazer um duplicado.

- Pensa que Jarratt tinha essa intenção?

- Sei lá? Não mo disse.

- Mas, você, que pensa, Miss Fabens?

- Não sou detetive. Pensar é consigo.

- Okay, vou pensar.

Phyllis pôs-se prontamente de pé, calma e segura, como que a despedir-me.

- Bem, muito obrigado. Não sabe mais nada sobre o assunto?

- Nada de nada.

Tornei a agradecer-lhe e, já na rua, telefonei a Jarratt de uma cabina pública. Apanhei-o no escritório.

- Descobriu alguma coisa? - indagou.

- Sim. Avancei um pedaço.

- Ela identificou o pingente?

- O dela tinha um rubi sintético e outras pedrazinhas, sem  valor.  Porque pensou  em  Miss  Fabens? interessei-me.

- Para dizer-lhe a verdade, essa  idéia passou-me pela cabeça. Lembrei-me de que tinha comprado um lote de jóias e objetos antigos, entre os quais dois relógios, com uma certa procura no mercado de colecionadores.

Recordei-me da jovem e fui pesquisar no meu livro de apontamentos onde encontrei esse nome e morada.

- Que fez com as jóias?

- Coloquei-as em vários lugares.

- Vendeu o pingente a Cameron?

- Meu Deus! Nunca! - protestou vivamente.

- Bem, muito obrigado pelo «lamiré».

- Vai servir-se dele?

- Não, meu caro. Ainda não sei aonde nos leva o seu contato com essa moça. Pode não ter nada a ver com o pingente de esmeraldas. Também não sei se a Polícia já vai muito adiantada na pista dos proprietários, por cujas mãos passou a jóia que estava junto ao corpo de Cameron.

Sei apenas que, se der ao sargento Buda um «lamiré» que não conduza a lado algum, o homem pega-me fogo. acusando-me de  malabarismos para desviar as  investigações em que se encontra empenhado. Não caio nessa!

Portanto, boa tarde e adeus. Desliguei, antes   que  Jarratt  continuasse  a  tentar levar-me a transmitir a informação à Polícia.

UM  RAPAZ QUE FALA DE MAIS

Fiquei aliviado ao descobrir que não havia carros da polícia em frente do edifício de apartamentos de alta classe onde vivia Robert Hockley. O homem da portaria, que estava ao balcão, anunciou-me pelo telefone interno e o próprio Hockley abriu-me a porta, quando lá cheguei.

Era jovem, baixote e apinocado, de olhinhos trocistas. Tinha a perna direita mais curta que a esquerda e manteve-se  na abertura da porta, até eu ter terminado a minha apresentação profissional e narrativa do motivo que me levava a procurá-lo. Quando acabei, convidou-me a entrar.

Aquele apartamento devia custar-lhe pelo menos duzentos dólares por mês. Tinha uma enorme secretária atulhada de papelada. O candeeiro que a alumiava apontava para o trabalho em que estivera certamente absorto até eu vir inquietá-lo com a minha intrusão. Hockley notou o que eu estava a notar e não gostou. Eram listas e prognósticos de corridas de cavalos, todo o material do apostador inveterado.

- Então - disse ele, irritado, que me quer?

- Falar-lhe acerca do fundo financeiro de Cora Hendricks - repeti.

- Já mo tinha dito - observou, com certa suspeição no olhar. - E depois? Que sabe acerca disso?

- Sei  bastante. Queria obter uma confirmação de quanto recebe por mesada.

- Não tem nada com isso - retorquiu, num desafio trocista.

- Sou detetive e fui advogado - justifiquei.

- Eu tenho o meu advogado.

- Faço votos para que seja bom. Você era muito afeiçoado a Miss Hendricks?

- Era um estupor.

- Mas não deixou de contemplá-lo com uma choruda herança - observei.

- Pois sim, mas obrigou-me a ter de lamber as botas a um par de filhos da mãe, sempre que preciso de umas «lecas». Que vão para o raio que os parta!

- Mas dão-lhe uma mesada substancial, não é verdade?

- É possível que dêem, e depois?

- Que diz o seu advogado acerca da maneira como administram o Fundo?

- Não encontrou a mais pequena ilegalidade.

- Leu o testamento?

- Vi os termos em que o Fundo foi instituído.

- Mas não viu o testamento? - insisti.

- Sei tudo quanto lá se diz. O meu advogado tratou disso. Para isso lhe pago. Tem verificado as contas e os lucros dos investimentos. Como os testamenteiros têm de deslocar-se, de quando em quando, à América do Sul, também vigia as notas de despesas dessas viagens que são descontadas do Fundo.

-Despesas grandes?

- Razoáveis.

- Mas os  rendimentos do  Fundo têm  aumentado satisfatoriamente,  não é verdade? Shirley recebe uma mesada idêntica à sua... de 500 dólares?

- O que ela e eu recebemos não é da sua conta.

- Creio que, se trocássemos certas informações, o proveito seria mútuo. Já leu os últimos jornais? - sondei.

- Não.

- A Polícia não tarda a bater-lhe à porta - avisei.

- A Polícia?

- Sim.

Desta vez perpassou-lhe uma chama de alarme pelo olhar.

- Para quê? - inquiriu.

- Robert Cameron foi assassinado.

- Quem o matou?

- Não sabem.

Coxeou até à mesa, mexeu nervosamente em alguns papéis, largou-os e tirou uma cigarreira da algibeira do casaco. Enquanto acendia um cigarro, indagou:

- Descobriram o motivo?

- Andam a ver se conseguem.

- Porque veio contar-me isso? - interessou-se.

- Fiz um trabalho para um cliente que estava ligado a esse fundo financeiro e fiquei interessado no assunto.

Falei com Shirley Bruce e pensei que seria interessante falar consigo.

- Para quê?

- Para trocarmos impressões, possivelmente vantajosas  para ambos.

Durante alguns segundos, Hockley fumou em silêncio. Depois, começou a falar rapidamente.

- Não vale a pena mostrar-me hipócrita, fingindo que a morte do velho me constrangeu. Tanto ele como Sharpies são... eram... uns belos patifes avarentos. E o que está vivo continua a sê-lo. Não sei como Shirley se arranja, mas não lhe falta nada. Quanto a mim, tive de arranjar um   raio de  trabalho,   enquanto  esses  tipos  andam a passear de avião, de um lado para o outro.

- Mas Shirley recebe o mesmo que você, mensalmente, não é assim? - insisti.

- Sim... aparentemente. Mas vive à grande. Passa a vida a beijocar os velhos hipocritamente, entre as casas de  beleza,  os  bons   restaurantes e  os  grandes espetáculos. Não sei de onde raio lhe vem tanta massa.

- Era isso que esperava que me explicasse.

- Pergunte-lhe a ela.

- Deve ter quaisquer rendimentos independentes do

Fundo - sugeri.

Hockley riu cinicamente e insinuou:

- Independente, é uma estranha maneira de classificar o método que ela deve usar. É uma beleza espampanante, a que Sharpies  e  Cameron não são de forma alguma indiferentes. Meias de seda, curtos negligees, vestidos de alta-costura, não sei se me faço entender? Pergunte a Sharpies e a Cameron.

- Cameron foi morto, não posso perguntar-lhe, nem as horas, sequer.

- Então pergunte a Sharpies.

- Já tentei, mas não se descoseu. Shirley Bruce é sua parente?

- O quê? Você está tão dentro do assunto e não sabe quem ela é?

- Falei com ela, mas não entramos em pormenores quanto à sua origem.

- Oh,   a   querida   Shirleyzinha - proferiu Hockley, num tom motejador. - A orfãzinha de uma parente afastada...

 Cora Hendricks veio para os Estados Unidos e esteve por cá sete ou oito meses. Quando regressou à Colômbia, levava o bebê com ela. Contou que os pais da pequena  tinham   morrido   inesperadamente,  mas   nunca ninguém soube bem quem eles eram. Bastava somar dois e dois.

- Quer dizer que Cora Hendricks estava grávida e veio dar à luz a filha, aqui, nos Estados Unidos, para que ninguém o soubesse lá na mina?

- Salta aos olhos - comentou Hockley.

- Nesse caso, quem é o pai? - inquiri.

- Bem... creio que já falei de mais. Que se passou com Cameron?

- Foi assassinado. Andava um corvo, à solta, na sala onde isso aconteceu.

- Sei tudo acerca desse animal nojento.

- E estava lá também um pingente de esmeraldas acrescentei.

 - Sabe alguma coisa acerca dessa jóia?

Abanou a cabeça numa negativa.

- Pelo menos terá de admitir um fato incontestável.

Esses dois sujeitos são esplêndidos homens de negócios -observei. - Têm pago todas as despesas e, ao mesmo tempo, aumentado  substancialmente  o valor do  fundo cuja  administração  lhes  foi  confiada.  Tem  crescido  a olhos vistos.

Robert Hockley fitou-me com evidente desagrado e encaminhou-se para o telefone. Levantou o auscultador e discou um número.

- Jim?...  Daqui  Hockley. Acabo de ser informado de que  Robert Cameron foi  assassinado. É necessário confirmar  isso  e  tentar saber pormenores.   É  também essencial averiguar qual a origem dos rendimentos particulares de Shirley Bruce. Está a ver aonde quero chegar?

Durante   alguns   breves   segundos,   o   auscultador emitiu  ruídos contínuos.  Depois,  Hockley disse:

- Está aqui um tipo comigo... Foi ele quem me deu o «lamiré». Diz que os «chuis» vão aparecer por aqui para fazerem perguntas acerca do assunto, à cata de um motivo... Está visto!... Decerto, terei cuidado. Verifique lá isso e, logo que saiba alguma coisa, telefone-me.

Desligou o aparelho e olhou-me, como se acabasse de ver-me pela primeira vez.

- Receio ter falado de mais consigo - resmungou.

- Ponha-se a andar.

- Pensei que talvez...

- Já lhe disse. Ponha-se a andar. Não quero mais conversa.

Avançou para mim, coxeando.

- Está bem, como queira - contemporizei. - Não há motivo para ressentimentos.

- Okay. Dentro de momentos, o meu advogado já poderá aconselhar-me quanto ao que devo fazer... A propósito, tem um cartão seu?

- Tirei um da carteira e entreguei-lho.

Examinou-o e inquiriu:

- Qual deles é você: Cool ou Lam?

- Lam. Cool é uma mulher.

- Bem... pode ser que você seja um tipo fixe. Se o for, é possível que torne a falar consigo. Disse-me que esteve a trabalhar num caso relacionado com o Fundo. Quem o contratou? Sharpies?

Encaminhei-me para a porta e respondi-lhe com um simples sorriso.

- Vá para o diabo! -exclamou ele. - Se descubro que está a trabalhar para Sharpies, torço-lhe o pescoço e não pense que estou a falar em sentido figurado. Dou-lhe mesmo cabo do canastro, ouviu?

Ficou à porta do apartamento, vendo-me avançar para as escadas. Aí, virei-me para trás e adverti-o:

- Há uma coisa, acerca desse testamento, que o seu advogado pode ter votado ao desprezo.

- O meu advogado não desprezou coisa alguma retorquiu.

- Quando   ambos   os   testamenteiros   morrerem prossegui, o Fundo será dividido pelos dois herdeiros.

- Vejo que sabe de mais e que fala de mais criticou.

- Um deles já morreu - concluí, começando a descer as escadas e deixando-o a mastigar mentalmente a insinuação.

 O REBUÇADO DE UM ASSASSINO

Quando, na manhã seguinte, entrei no escritório, Bertha Cool estava à minha espera com um olhar impaciente.

- Querido Donald, você teve um belo êxito. Fez um excelente trabalho. Bertha sabe que nos pôs na pista da «massa».

- Que se passa de novo? - estranhei, deixando-me cair na cadeira.

- Harry Sharpies. O seu trabalhinho para ele foi um autêntico êxito.

- Porquê esse entusiasmo?

- Sharpies telefonou-me, há pedaço. Quer que você o acompanhe, como uma espécie de guarda-costas.

- Durante quanto tempo?

- Garantiu seis semanas.

- Diga-lhe que vá para o diabo.

A cadeira de Bertha gemeu um gritante aquíiiii, quando a minha sócia se endireitou espantada.

- De que raio está a falar, Donald?

- De Sharpies. Diga-lhe que se vá atirar ao mar. Não aceito esse trabalho.

- Que quer dizer com isso de «não aceito esse trabalho»?  - berrou Bertha furibunda. - Que idéia é essa de armar-se   em   prima-dona   de   Ópera?   Quinhentos   «palhaços» por semana não se atiram pela janela à rua. Você está doido ,ou quê?

- Estou  «quê»,  mas, se quiser, aceite você essa missão.

- Eu? - inquiriu ela, espetando o indicador entre os rotundos seios.

- Sim, você.

- Ele não me quer a mim para guarda-costas. Quere-o a si.

- Favas! - exclamei. - Se ele carece de um guarda-costas, precisa de alguém pesado e forte. Eu não sirvo para isso, mas você ficava a «matar» nesse serviço.

A minha sócia fitou-me de olhos esbugalhados.

- Vou dar uma volta - anunciei , e efetuar uma investigaçãozinha. Quero saber que diabo aconteceu ao corvo que Cameron tinha com ele. Sabe alguma coisa acerca disso?

- Não sei,  nem quero saber. Estou-me nas tintas para a passarada. Se você pensa que pode virar as costas a um trabalho que nos pode render mais de dois  mil dólares por mês, está maluco. Vale mais do que sessenta e cinco dólares por dia. Pense nisso!

- Vou pensar.

Subitamente, Bertha mudou de táctica:

- Querido   Donald,   você   está   sempre   a   brincar comigo, para fazer-me arreliar. O que disse foi a reinar, não foi?

Não respondi e ela sorriu-me aliciantemente.

- Bertha devia conhecê-lo melhor. Bertha gosta de depender de si, Donald. Quando você sai por essa porta, à caça de dinheirinho, volta sempre com os bolsos cheios.

Continuei  calado como um rato e ela prosseguiu:

- Ainda me lembro do dia em que você entrou por aí à  procura  de  emprego.  Nessa  altura  não era  fácil arranjar trabalho. Como você, querido, vinha faminto e ficou grato por eu decidir contratá-lo! Recorda-se, Donald?

Estava   mesmo   com   fome!   Nesse   momento,   qualquer trabalhinho, mesmo que fosse de um décimo do valor que Sharpies agora lhe oferece, agarra-lo-ia com ambas as mãos, não seria assim?

- Lá isso era - concordei.

- Nunca me esquecerei do estado de fraqueza em que vinha! Trabalhava como um mouro e qualquer coisa que Bertha lhe ordenasse, você corria logo a executá-la.

E tudo quanto fazia, fazia-o bem feito. Foi por isso que lhe dei sociedade e agora tudo nos corre bem, não é assim, Donald?

- Não tem sido mau - reconheci.

- Sei que me está grato, querido, embora não seja do gênero de falar muito nesse assunto.

Achei que era altura de pôr os pontos nos «ii»:

- Quando   fiz  o   primeiro   trabalho   para   si,   você andava, «ó tio, ó tio», à procura de casos baratuchos que hoje atiraria para o caixote do lixo. Tudo lhe servia desde o recebimento de contas a caloteiros profissionais, até as bisbilhotices para servirem de prova em porcarias de divórcio. Enfim pegava em tudo que as outras agências de  detetives  tinham  repugnância  em   aceitar.   Nessa altura, não fazia a mais pequena idéia do que seriam honorários  de quinhentos dólares por mês.

- Isso é mentira - berrou ela.

- Desde que entrei para a agência - continuei, você começou a andar por aí, a rebolar-se de satisfação, ganhando mais do dobro do que até então auferia. Decerto que lhe estou muito reconhecido, Bertha, pelo que fez por mim ao proporcionar-me a possibilidade de eu me esfolar todo em prol da agência e, portanto, de si. Estou-lhe grato, repito. E você? Que sente a Bertha a meu respeito?

A minha sócia agitou-se na cadeira e rugiu:

- Se atira pela janela estes quinhentos «palhaços» por semana, dissolvo a sociedade e passo a trabalhar sozinha.

- Até   me  dá  jeito - respondi,   levantando-me  e saindo tranquilamente.

Bertha deixou-me afastar da porta alguns passos. Então, ouvi a cadeira estalar e, como um furacão, dei com a minha sócia parada furiosamente à porta do seu gabinete.

- Donald - disse ela, procurando conter a raiva, não se deixe levar pelas palavras...

- Você é que se deixa exaltar pelas palavras - repliquei.

Bertha veio ter comigo à sala de recepção e Elsie Brand, pressentindo que algo de grave se passava, parou de datilografar.

- Não quer trabalhar para mim, Donald? – sondou Bertha, cada vez menos brusca.

- Decerto  que  quero trabalhar consigo,  enquanto você me quiser na firma.

- Mas não quer trabalhar para Sharpies?

- Preciso saber o que, na realidade, ele quer que eu faça.

- Pensa que corre perigo e apenas quer um guarda-costas. Você acha que ele não tem motivo para andar assustado?

- Bem,   há   um   fundo  de  duzentos  mil   dólares... Enquanto Sharpies viver, pode administrá-lo como muito bem entender; quando esticar o pernil, esse fundo é dividido pelos  dois  herdeiros. Eram  dois  administradores, mas o parceiro, Cameron, foi para os anjinhos com uma faca espetada nas costas. Se você dirigisse uma companhia de seguros, provavelmente não estaria muito interessada em segurar Sharpies contra acidentes mortais.

- Você tem a língua a dizer isso e os olhos a exprimirem uma dúvida dos diabos. Não acredita que esteja em perigo de vida?

- O problema é saber se Sharpies acredita realmente nisso.

- Oh, Donald!  Fala como se tivesse alguma coisa contra o homem!

Mudei de assunto, justificando:

- Não estou hoje em maré de tratar disso. Preciso de tempo para estudar uma outra questão.

- Que raio quer você estudar?

- Os hábitos dos corvos - respondi, saindo do escritório  e fechando a porta.

O último olhar que Bertha me lançou denunciava um verdadeiro estado de ira apopléctica. Pela maneira como ouvia, através da porta, martelar na máquina de escrever, Bertha devia ter-se atirado a Elsie, descarregando nela toda a sua raiva.

Voltei para trás e tornei a abrir a porta. Nesse momento, a minha sócia, debruçada sobre a rapariga, dizia, enquanto a moça multiplicava o ritmo dos dedos: ... você não está aqui para ouvir as conversas dos outros. Está aqui para trabalhar e tem muito trabalho para fazer, não é verdade? Então mexa-me esses dedos no teclado e deixe-se de ronceirices...

- Uma outra coisa - interrompi. - Tenho andado a pensar que Elsie precisa de uma ajudante que pode ser também sua secretária. Bertha. Elsie será a minha. Telefone à agência de empregos e arranje-se de maneira a contratar uma empregada eficiente que lhe faça o serviço.

 Entretanto, vou falar ao gerente deste edifício e dizer-lhe que quero ficar com o apartamento, aqui ao

lado deste, que passará a ser o meu escritório. Vou mandar abrir uma porta de comunicação entre os dois apartamentos.

- O quê?...  O quê?... rugiu Bertha Cool, quase sem fôlego.

- Vá, desembuche - incitei.

Mas os seus lábios descontraíram-se, esboçaram um sorriso forçado e perguntou:

- Quem diabo pensa você que é?

- Sou o tipo que «sai à caça de dinheirinho e volta sempre com os bolsos cheios» - concluí, tornando a sair pela porta fora.

Desta vez não ouvi mais recriminações; apenas o ruído de Elsie a trabalhar.

Tratei de descobrir o paradeiro de Dona Grafton, a rapariga que também tinha uma gaiola para o corvo.

Consegui finalmente encontrar a direção na lista telefônica: um bangalô despretensioso num bairro arejado, resultante de um investimentozinho de trinta dólares por mês.

A jovem que me abriu a porta era do tipo desportivo e envergava um fato de treino que lhe realçava as formas perfeitamente dimensionadas. Era morena, mas não desse tipo de cabelo azeviche, como Shirley Bruce, e possuía uma pele fina e clara, como seria pouco natural encontrar  numa loira. Pareceu-me uma boneca jovial e sorriu francamente, quando lhe perguntei:

- Miss Dona Grafton?

- Suponho que seja mais um jornalista para uma reportagem acerca do corvo, não?

- Embora não seja um jornalista, estou realmente interessado   no   corvo - esclareci. - Importa-se   de falar-me um pouco sobre ele?

- Como sucedeu ficar com o corvo? - interessei-me,

- Tenho  muito gosto.  Queira  entrar.  Que  deseja saber?

- Onde pára ele, agora? ;

Riu-se e respondeu:                           :

- Anda aí pelas árvores do bosquezinho fronteiro.

Estava  habituado  a que   Mr.  Cameron   lhe  desse  tudo quanto lhe convinha, eu não posso e a minha senhoria é deveras avessa a tudo quanto sejam animais domésticos, conquanto  «Pancho»   seja  um   animal doméstico  muito especial...

Fizera-me sentar num sofá e ela ocupou uma chaise-longue, em minha frente, únicos assentos confortáveis daquela saleta de estar miniatura.

- Como sucedeu ficar com o corvo? - interessei-me.

- «Pancho» e eu somos velhos amigos. Passou sempre metade do seu tempo comigo.

- Como aconteceu isso?

- Meu pai chamava-se Frank Grafton e o corvo chama-se  «Pancho», por causa dele.  Como sabe,  Pancho,

em  castelhano,  é o  mesmo que  Frank,  contração de Francisco, ou Francis.

- Nesse caso, conhecia Cameron?

- Certamente. Desde pequenina.

- E Harry Sharpies?

Ela acenou afirmativamente com a cabeça.

- E Shirley Bruce?... Conhece-a?

- Sei quem é, mas é raro vê-la. Não andamos na mesma esfera.

- Conhece Robert Hockley? - sondei.

- Perfeitamente.

- Estou  interessado  nesse  assunto,  sabe? - confessei.

- Receio que o que eu possa contar-lhe não tenha o menor interesse. Meu pai, Frank Grafton era gerente de umas minas de Miss Cora Hendricks. Esta faleceu quando eu era ainda pequena. Não me  lembro dela. Meu pai morreu num acidente mineiro, três ou quatro anos mais tarde. Tanto Mr. Cameron como Mr. Sharpies eram muito amigos de meu pai e ficaram condoídos com o fato.

Creio que o êxito das minas fora, em grande parte, devido ao trabalho de meu pai. Na realidade a riqueza mineira só se desenvolveu nesses três ou quatro anos após a morte de Miss Hendricks.

- Portanto, o corvo também se afeiçoou a si?

- Oh,  sim!   Somos  grandes  amigos.  Compreende, «Pancho» gosta de fazer um pouco de exercício. Por esse motivo,  Mr.  Cameron  arranjou maneira  de ele  sair e entrar-lhe em casa, quando quisesse, através de um orifício aberto na parede da sala onde «Pancho» tinha a sua gaiola. Eu arranjei-lhe, aqui, uma caixa de madeira, para que pudesse visitar-me e instalar-se quando lhe apetecesse.

Olhei em volta e, nada vendo, indaguei:

- Dentro de casa?

- Não, lá fora, numa das árvores. Quando estou em casa, vem ter comigo e anda por aí à vontade; quando estou fora, vai para a sua caixa. Se lhe dava na gana de ir ter com Mr. Cameron, voava até lá, sempre em liberdade. Agora, depois do que aconteceu, o pobre bicho sente-se muito solitário. Quer vê-lo?

- Teria muito gosto.

Dirigimo-nos às traseiras da casa e Dona mostrou-me uma bela casota instalada na intersecção de um ramo com o tronco de uma árvore.

- «Pancho» tornou a sua gaiola bastante confortável, levando para lá pedacinhos de palha e ervas secas. Não o vejo cá fora. Deve estar escondido na sua espécie de ninho. «Pancho»! «Pancho»!

Saindo pela abertura, o corvo deteve-se uns segundos sobre a placazinha exterior que servia de patamar e depois  voou direito a Miss Grafton que lhe estendera um dedo onde aquele se pousou.

Esfregou o bico no braço da jovem e grasnou: «Larápio! Louco!»

- Isso não se diz, «Pancho»! - admoestou Dona, sorrindo.   Estás   a   portar-te   mal!   Anda cá   para  dentro.

Dizendo isto entrou com o corvo em casa. «Pancho» subira-lhe ao longo do braço, para o ombro. De novo na saleta, Dona disse para o bicho:

- Vá cumprimente Mr. Lam.

Estendi um dedo, mas «Pancho» não quis nada comigo.

«Larápio! Larápio!», acusou-me. Depois emitiu um outro grasnido que a jovem traduziu.

- Está à dizer «Vai-te embora!»

Eu só ouvira «vábóa», mas devo confessar jamais ter estudado «corvolês».

- Mora perto da casa de Mr. Cameron, não é assim?

- Fica a três quarteirões daqui. «Pancho»  andava sempre cá e lá.

- Haverá outros locais, na «lista» de «Pancho»,que ele também visite assiduamente?

- Julgamos que sim - respondeu Dona.

- Julgamos?

- Sim, Mr. Cameron e eu, isto é, ele também pensava que pudesse haver qualquer outro lugar onde se demorava às vezes... «Louco!  ”Válembó”», repetiu ele, aperfeiçoando-se.

Esvoaçando, saiu de casa e voltou para a caixa da árvore. Ouvimo-lo grasnar através da vidraça da janela.

- Mr. Cameron viajava muito, não é verdade? inquiri.

- Sim, naturalmente. As propriedades em que estava Interessado como administrador situam-se na Colômbia.

Por esse motivo, não podia levar constantemente o corvo com ele. Sempre que partia para uma das suas viagens, «Pancho» ficava comigo, pois, na ausência do dono, só raramente voltava à sua gaiola-base.

- Sua  mãe  ainda  vive? indaguei,   mudando  de assunto.

- Sim.

- Cá na cidade?

- Sim. Uma certa reserva nas suas respostas indicou-me que não era gostosamente que falava da mãe.

- Desculpe-me se estou a ser impertinente, mas...

sua mãe tornou a casar?

- Não.

- E você, Miss Grafton, trabalha?.., Sei que esta pergunta é muito pessoal...

Riu-se e replicou:

- Que mal tem? Compreendo que precise de assunto para os seus escritos. Sim, trabalho. Faço desenhos para publicidade comercial. Há uma agência que me encomenda cartazes e desenhos para anúncios, a preto e branco, ou a cores. Também pinto, mas... praticamente só para mim. Gosta de pintura?

- Hum, hum - confirmei.

- Quer ver algumas das minhas coisas?

- Com certeza.

Abriu um armário e tirou para fora uma larga pasta «de cartão que continha vários desenhos e esboços. Num deles, via-se uma bela jovem na amurada de um navio, com o cabelo solto ao vento. Tinha umas lindas pernas e a sua camisola realçava as formas que as camisolas que se prezam devem realçar.

Não sei muito de arte, mas aquela imagem pareceu-me  cheia de vida. A jovem fitava o horizonte perscrutadoramente,  como se tentasse adivinhar o futuro, para além do oceano.

- Gosta? - perguntou Dona, sondando o interesse nos meus olhos.

- Gosto   imenso - afirmei   com   sinceridade. Diz-me  qualquer coisa. Você decerto sentiu o que fazia.

- Sim, é verdade. Pintei isto para uma agência que queria anunciar os prazeres de uma viagem por mar, mas achei que incutira ao desenho demasiada melancolia e enviei outro, mais alegre e convincente, com um par de enamorados em vez de uma jovem solitária.

- Que vai fazer com ela, agora?

- Não sei. Por enquanto, conservo-a comigo. Talvez venha a ser publicada num calendário.

- Juro-lhe que é uma das mais belas pinturas que vi até hoje - confessei. - Parece podermos ver o reflexo do mar nos olhos da moça... e tem esperança... ânsia de aventura...

- É isso o que a imagem lhe transmite?

- Hum, hum - confirmei, encantado.

- Ainda bem. Dá-me uma grande satisfação.

- Quer mostrar-me mais alguns trabalhos?

- Certamente.

Não havia dúvida de que Dona era uma artista profundamente emocional. Depois de ver vários quadros, tornei a pegar no primeiro.

- Gosta realmente desse? - sondou.

- Acho-o maravilhoso. Tem viajado muito?

- Eu? Não, que idéia! Tenho de trabalhar para viver.

O mais que posso oferecer-me é uma vida honesta. Não tenho dinheiro para viagens...

- Mas gostaria de ter dinheiro para viajar?

- Sim, especialmente para pintar à minha vontade, de maneira a não ter de fazê-lo com um intuito meramente comercial...   Mas o outro gênero de arte exige tempo e outras condições de vida. Não se pode viver exclusivamente da arte. a menos que se tenham «proteções» dos comerciantes de pintura.

Subitamente inquiri:

- Fala espanhol?

- Certamente. Desde criança e tenho vários amigos bilingues, com quem se me oferece ocasião de praticar. Aprendi castelhano ao mesmo tempo que aprendi inglês.

- Leu  nos jornais  aquela reportagem, acerca das esmeraldas de Cameron?

- Sim. Li tudo a respeito da morte de Mr. Cameron..

Creio que ele ainda disparou uma arma contra o agressor...

- Bem, não se sabe ao certo. Viu por acaso esse pingente  de esmeraldas, antes da tragédia?

- Não.

- Mas parece que ele o tinha em seu poder, havia já alguns meses... Supõe que ele tencionasse oferecê-lo a alguém?

- Sei lá? Sim, provavelmente. Os homens não usam pingentes!... Como quer que eu saiba?

- Ele interessava-se por joalharia?

- Creio que não. Contudo, era uma pessoa com um caráter muito particular que se interessava por variadíssimas  coisas. Sempre o achei um homem muito agradável.

- E Harry Sharpies?

- Esse é completamente diferente. Não o conheço tão bem. Minha mãe conhece-o melhor do que eu.

- Não gosta dele, Miss Grafton?

- Não direi tanto. É um homem esperto e até penso que se interessa mais por outras pessoas do que Mr. Cameron se interessava. Mr. Cameron vivia para os seus negócios e não mantinha muitas relações sociais. Mr. Sharpies, pelo  contrário,   gosta  já  de   uma certa vida mundana.

- Sabe se gosta de mulheres... como direi?... Como conquistador?

- É possível.

- E Cameron?

- Não, meu Deus! Nada disso. Era totalmente diferente.

 Sempre amável, demonstrando consideração pelas pessoas, mas nunca buscando intimidade.

- Acha que Mr. Cameron gostava de Shirley Bruce, da mesma maneira que Sharpies gosta?

- Não creio. De resto, mal conheço Shirley.

- Mas conhece Sharpies?

- Sim, já lho disse, mas nunca me falou de Shirley quanto a esse aspecto de gostar, ou não gostar. E olhe, Mr. Lam, acho que já falei de mais sobre esse assunto. Tratemos pois, de outras coisas, de corvos, de pintura... Gosta de rebuçados com recheio? Não sou muito gulosa, mas, apesar disso, alguém se lembrou de mandar-me uma caixa deles.

O fecho da porta da saleta rodou e, sem bater, uma mulher entrou pela saleta dentro. Era de meia-idade, mas sem carne a mais. Tinha olhos muito escuros, brilhando sobre as maçãs do rosto salientes. O seu rosto moreno apresentava uma certa coloração de azeitona; o cabelo era negro como as asas de «Pancho». Tinha um ar orgulhoso que o seu nariz arrebitado tornava incongruente.

- Olá, mãe - saudou Dona.

Disse-lhe ter prazer em conhecê-la ao que ela replicou com um superior: «Como está, Mr. Lam?» Olhou de relance para o álbum de desenhos de Dona e proferiu:

- Mais patetices?

Dona riu-se e respondeu:

- Está sempre a «enterrar-me», mãe.

Com uma expressão de desprezo, a mulher retorquiu:

- Isso não dá dinheiro que se veja! Fartas-te de trabalhar, para nada!

- Talvez   um   dia   venha   a ser   famosa – replicou Dona. - Sente-se, mãe.

Mrs. Grafton sentou-se, olhou em volta e viu a caixa de rebuçados.

- De onde veio isso? - inquiriu.

- Pelo correio. Ainda  não comi  nenhum. A caixa acabou de chegar.

- Era melhor que pensasses em casar-te - disse a outra, pegando na caixa e estendendo-a na minha direção.

 Desta vez, a sua voz foi sedutora, ao perguntar:

- Quer um, Mr. Lam?

- Não, muito obrigado.

Mrs. Grafton tirou um rebuçado, meteu-o na boca e comentou:

- Oh, estes polícias!

- Que aconteceu, mãe? - interessou-se Dona, virando-se  para o armário onde guardou a pasta de cartão.

- São doidos! - disse Mrs. Grafton, já no seu segundo rebuçado. - Recebeste o meu recado?

- Sim.

- Portanto sabias que vinha ver-te?

- Sim.

Mrs. Grafton fitou-me, como se quisesse dar-me a entender que eu estava a mais no cenário.

- Bem... tenho de ir andando - declarei, levantando-me.

 - É natural que nos tornemos a ver.

- Para que jornal trabalha? - indagou Dona.

- Não trabalho precisamente para um jornal. Estou apenas interessado no caso...

- Interessado em quê? - interrogou Mrs. Grafton.

- Corvos - respondi, sorrindo.

- Mas... pensei que fosse um repórter - admirou-se Dona.

- Não, não sou.

- Repórteres! exclamou a mãe, indignadamente.

- Não te disse já, Dona, que não devias falar com repórteres? Andas para aí a dar à língua e não há meio de aprenderes que não tens nada que falar acerca do que te não diz respeito...

- Mas, mãe, ele diz que não é jornalista...

- Bem, nesse caso, o que é?

- Importa-se de responder a minha mãe? – pediu Dona, perplexa.

Virei-me para Mrs. Grafton e disse:

- Na realidade, estou interessado em...

Mas neste momento, o rosto da mulher sombreou-se e perguntou à filha:

- Que se passa com estes rebuçados. Dona?

- Porquê, mãe? Que mal têm?

- O recheio deste último tinha um gosto estranhamente  desagradável...

Contorceu o rosto, num espasmo, e subitamente os seus olhos semicerraram-se numa expressão de raiva e de pânico.

- Tu   envenenaste-me! - gritou,   fuzilando   a   filha com os olhos.

- Oh, mãe! - exclamou Dona, angustiada. – Como pode dizer uma coisa dessas?

A mulher rompeu então num diálogo violento, em castelhano, e não havia dúvida de que Dona negava tudo quanto a outra lhe dizia, embora, àquela velocidade de dicção, eu não conseguisse perceber patavina do exaltado diálogo. A certa altura, Mrs. Grafton acabou por gritar, num acesso de fúria:

- Portanto,  é agora a  mim  que querem matar!...

Fitava-me como se eu fosse o agente enviado para essa missão. O seu braço estendeu-se, num movimento rápido, e notei um brilho metálico sulcando o ar. Compreendi  a tempo que se tratava de uma faca pontiaguda que estava prestes a investir na minha direção. Esquivei-me  à arma e segurei-lhe o pulso. Torci-lho e a faca caiu no chão.

Novamente desatou a falar espanhol, a uma velocidade indescritível. O pouco que eu «arranhava» não me permitia entender a mínima palavra. Tentou correr, aflita, para a casa de banho, tropeçou na mesinha do centro e acabou por tornar a sentar-se na chaise-longue onde estivera antes ao lado da filha, mas agora num estado de total prostração. Dobrou-se para a frente e vomitou.

Não dei pela entrada do sargento Sam Buda. Lembro-me  apenas de ter visto alguém, junto de nós, no momento em que Dona e eu carregávamos com Mrs. Grafton para o quarto da rapariga. Esse alguém tentava ajudar-nos. Ergui os olhos e só então vi Buda.

- Que se passa? - inquiriu este.

- Ela pensa que foi envenenada -expliquei.

O sargento olhou para a caixa de rebuçados que estava sobre a mesinha, indagando:

- Rebuçados?

- Sim, com recheio - especifiquei.

Então Buda virou-se para Dona e perguntou:

- Tem mostarda, cá em casa?

- Sim.

- Nesse caso faça  água de  mostarda...   Morna... Obrigue-a a beber tanta quanto ela puder... Tem telefone?

- Não, mas às vezes a senhoria deixa-me utilizar o dela, em casos de urgência.

Buda desapareceu. Dona e eu ficamos sozinhos à cabeceira da doente, forçando-a a ingurgitar a amarga beberagem.  Seguiram-se ondas de náuseas. Momentos depois, voltei à saleta, deixando Dona a sós com a mãe. Comecei a procurar a faca. Vi-a no chão, mas não era a mesma arma sinistra, de cabo oxidado, com que Mrs. Juanita Grafton tentara apunhalar-me. Esta, era uma faca utilitária de cozinha, de cabo de madeira, com um pouco de tinta na lâmina. Não lhe toquei.

Nesse instante, Dona chamou-me. A mãe fora atacada de histeria, gritando e lutando com a filha. Entrei no quarto para ajudar a jovem a dominá-la. Ouvi o ruído das sereias de um carro-patrulha e de uma ambulância, Buda dava instruções aos homens de bata branca. Um destes, médico, afastou-se para o lado.

Momentos depois, achei-me à entrada da casa, com o sargento Buda fitando-me inquiridoramente.

- Porque veio até cá, Lam?

- Estava interessado no corvo.

- Porquê?

- Simples curiosidade.

- Quem é a mulher?

- Juanita Grafton, mãe de Dona.

- Viu-a comer os rebuçados?

Confirmei com um aceno.

- Quantos?

- Três ou quatro.

- Quanto  tempo   levou   ela a  mostrar-se  doente, depois da ingestão dessa porcaria?

- Quase imediatamente.

- Parece  cianeto,  para   ser  tão   rápido – deduziu Buda. - Você, Lam, fique por aí. Quero falar consigo, mais tarde. Venham daí, rapazes. Quero ver que raio contém essa guloseima.

Os enfermeiros levaram a doente para a ambulância. Na casa fronteira, estava uma mulher espiando a cena, furtivamente. O seu intenso interesse, de certo modo despertou o meu. Dei a volta ao bangalô e encaminhei-me para a casota de «Pancho». Este não estava lá. Fui buscar um caixote que se achava nas traseiras, aproximei-me da árvore e revistei  a improvisada gaiola do corvo. Não podia olhar lá para dentro, mas os meus dedos vasculharam todo o interior. Sob um molho de palhas e tronquinhos, tateei umas pedrinhas duras e frias. Tirei-as e o seu brilho verde, intenso, fascinou-me. Meti-as na algibeira. Eram quatro esmeraldas.

Afastei-me dali, depois de recolocar o caixote onde o achara e ainda tive de esperar dez minutos, até que o sargento Buda veio ao meu encontro.

- Que há acerca desses rebuçados, Lam? - indagou.

- Ela comeu-os.

- Bem  sei,  bem  sei.  Como  é  que a  rapariga  osarranjou?

- Cos diabos! - protestei. - Eu aqui sou um estranho.  Sei lá?

- O raio dos rebuçados não nasceram em cima da mesa.

- Também me parece.

- Alguém lhe ofereceu um desses rebuçados?      

- Sim.

- Quem?

- A mãe.

- Mas essa porcaria já cá estava, quando você entrou?

- Francamente, não sei. Estive entretido com outras coisas. A moça pensava que eu fosse um jornalista.

- Viu-a  oferecer um  rebuçado à  mãe?

- Não. Mrs. Grafton abriu a caixa e serviu-se, naturalmente.

- Vejamos, Lam. Você sabe muito bem que a mulher não trouxe a caixa com ela. Portanto, a rapariga já cá a tinha, quando a mãe entrou.

- Deve ser isso. Não liguei grande atenção à caixa de rebuçados.  Estava  tentando  obter  uma  outra  informação...

- Que informação?--interessou-se Buda.

- Nada de especial.

- Para quem está a trabalhar, neste momento?

- Para ninguém, isto é, estou apenas a satisfazer a minha curiosidade pessoal. Digamos que trabalho para mim.

- Que quer dizer com isso?

- Isso mesmo, precisamente.

- Harry Sharpies disse-me que ia contratar a sua agência, para que vocês olhassem pelos seus interesses. Pareceu-me deveras nervoso.

- Fez-nos realmente uma oferta.

- E não estão a trabalhar para ele?

- Não.

- Bertha julga que você se encarregou da segurança do tipo.

- Talvez Bertha se tenha encarregado disso. Eu, não.

- Então, de que anda você à procura?

- Quis apenas dar uma vista geral a este sítio.

- Não me agradam as suas «vistas gerais».

- Está bem. Também não tenciono oferecer-lhe nenhuma.

Após uma espécie de grunhido, o sargento inquiriu:

- Que pensa da miúda?

- Classe.

- Raios, já vi isso. Não sou cego. Estou é a perguntar-lhe

 que pensa dela.

- Parece-me uma moça okay - esclareci.

Buda   contemplou-me   por   uns  segundos  e   depois comentou:

- Sim, já esperava isso. Você é um tipo muito impressionável, quando se trata de catraias bonitas. Muito bem, ponha-se a andar daqui para fora. E nada de abrir o bico acerca desta história dos rebuçados, ouviu?

- Tenho de relatar o caso à minha sócia - lembrei.

- Referia-me aos jornalistas.

- Porquê? É segredo?

- Pode ser conveniente não falar disso, por enquanto. De onde veio essa faca que está no chão?

- Alguém a trouxe para aí.

-Quem?

- A mãe, Mrs. Juanita Grafton.

- A filha não diz isso - observou Buda, interessado.

- É possível. Pareceu-me ter sido a mãe que aparecera com a faca.

- Quem a atirou para o chão?

- Mrs.   Grafton   deixou-a   cair,   quando  se   sentiu doente.

- Mas que diabo andava ela a fazer com uma faca, antes de comer os rebuçados?

- Não sei. A ordem das coisas parece-me muito confusa.

O sargento fitou-me perscrutadoramente e motejou:

- Mas não tão confusa como você está, neste momento.

- Não estou  confuso,  mas ia partir, quando tudo aquilo aconteceu e não reparei em certos pormenores. É muito possível que Mrs. Grafton se tenha servido dessa faca para abrir a lata dos rebuçados.

- Ao sentir-se doente, referiu-se à hipótese de ter sido envenenada?

- Creio que realmente disse à filha que o terceiro, ou quarto, que metera à boca, lhe soubera mal... que o recheio  tinha um gosto amargo...  a veneno, ou qualquer coisa nesse gênero. Comia uns atrás dos outros.

- E não sabe de onde diabo veio a faca?

- Lembro-me de a ter visto, de relance... mas depois a mulher começou a dizer que se sentia mal...

- A filha insiste em que a faca estava sobre a mesa. Viu-a lá, quando entrou?

- Olhe sargento, só posso dizer-lhe aquilo de que realmente me lembro. Estavam várias coisas em cima da  mesinha. Estivemos  a ver pinturas  e desenhos  de Dona. A faca podia ter estado debaixo da pasta de cartão que  os continha.  Francamente não reparei. Também  a caixa de rebuçados podia ter lá estado antes, ou talvez a mãe a tenha trazido da rua. Não me lembro. Quanto à faca, também é possível que a tenha trazido com ela.

- Não - contrariou Buda. - A rapariga afirma que a faca já estava em cima da mesa.

- Então, aí tem.

O sargento fez um gesto de raiva.

- Tenho o quê?

- Você é que sabe.

Buda não gostou deste meu tipo de colaboração. Deu dois passos para o lado, coçando a cabeça e acrescentou:

- Daqui a algumas horas, já saberei mais qualquer coisa acerca desses rebuçados. Nessa altura, tornarei a entrar em contato consigo.

- Quando quiser, sargento.

Passei por ele, saí do bangalô, vi a vizinha, espreitando  por uma das janelas fronteiras, e entrei no carro da agência. Segundos depois punha-me a andar dali para fora.

UM PASSAPORTE PARA A AMÉRICA DO SUL

Elsie Brand veio ter comigo, quando entrei no escritório e segredou-me:

- Ela está danada, Donald.

- Faz-lhe bem - sentenciei. - Aumenta-lhe a temperatura  e extrai-lhe as toxinas do organismo. Deixe-a suar.

- Não está apenas a suar. Está a ferver em cachão, a alta pressão.

- Andou a rezingá-la a si, Elsie?

- Não, mas olhou-me de tal maneira que me meteu medo.  Já tentou  arranjar  uma  empregada,  em  várias agências da especialidade, mas tudo quanto lhe aparece é de péssima qualidade. Antigamente, havia uma data de secretárias excelentes à procura de emprego e só dificilmente  o arranjavam. Agora, é o contrário. A procura é enorme e as moças que se apresentam querem o dobro do salário e não trabalham metade... e essa metade é má.

- Bem - decidi , vou ver o que se passa.

- Cuidado, Donald - advertiu Elsie. - Se vai agora entrar lá dentro, é mais do que certo que se pegam outra vez à bulha. Bertha está desesperada e explosiva.

- Ainda bem. Já é tempo de fazermos algumas mudanças,  cá por casa.

- Não, Donald. Não quero que arranje problemas por minha causa. Sei que vai fazer isso por mim.

- A verdade é que Bertha a obriga a trabalhar por duas secretárias e a maioria dos trabalhos que lhe dá a fazer não têm a menor importância.

- Faz parte do sistema - explicou Elsie. – Bertha diz que pareceria mal a um cliente entrar aqui e ver a secretária sem fazer nada. Daria a idéia de que a agência não tem trabalhos  em  mãos. Quer que, ao abrir-se  a porta, se veja logo uma datilógrafa a martelar a máquina atarefadamente.

- Pois, é como lhe digo. Já é tempo de se alterar esse sistema.

Dirigi-me para a porta do gabinete de Bertha Cool, abri-a e entrei.

Bertha estava sentada à secretária, com o queixo encostado ao externo, respirando ofegantemente. Quando entrei, fitou-me, subindo-lhe a cor ao rosto, mas manteve-se  em silêncio, ainda alguns segundos. Depois, subitamente, a sua cadeira guinchou, mal me viu sentar-me na cadeira dos clientes; debruçou-se sobre a secretária e gritou:

- Quem diabo pensa você que é?

Acendi um cigarro. Ela prosseguiu, esbaforida:

-Já estou farta disto tudo! Tenho-lhe aturado uma data de caprichos, mas agora você está completamente doido! Quem diabo pensa você que é, não me diz?

Exalei uma nuvem de fumo e proferi:

- Empregadas com as qualidades de Elsie recebem hoje, em todo o lado, o dobro do salário que ela vence aqui. A maior parte delas nem sequer lhe chegam aos calcanhares, em trabalho e eficiência. Ora não faz sentido  que noventa por cento das tarefas que executa sejam praticamente dispensáveis. Datilografa comunicados que podiam ser impressos em copiógrafo, pois o seu teor não exige que sejam individuais. Você obriga-a a um trabalho abusivo, unicamente com o intuito de impressionar os clientes, quando estes entram na sala de espera...

- Que tem você com isso? - berrou Bertha. - Pagamos-lhe integralmente o seu ordenado. Não é obrigada a trabalhar para nós, se quiser ir para outro lado. O seu contrato indica que tem de trabalhar oito horas por dia. São oito vezes sessenta minutos, quatrocentos e oito minutos, e eu quero que trabalhe todos os segundos do seu maldito contrato. Pagamos-lhe esse tempo, portanto, é nosso.

Abanei a cabeça.

- Já não se contrata seja quem for, nessas condições  - declarei. - De resto, não há nada que possa apontar  em detrimento de Elsie.  É uma empregada excepcional e, a partir de agora, vai passar a ser minha secretária exclusiva. Você terá de arranjar outra rapariga para a sala de entrada e mande-a começar a escrever à máquina, mal um cliente se aproxime da porta. Pode muito bem ouvir-lhe os passos, antecipadamente.

- Vou continuar a dirigir a agência da maneira que entendo e...

- Se quer realmente dissolver a nossa sociedade, não precisa de berrar tão alto - observei.

Bertha tornou a corar e subitamente empalideceu. Juntou as mãos, entrelaçou os dedos e respirou fundo. Então, contendo-se, conseguiu suavizar a irada expressão do rosto.

- Querido   Donald - disse,   você   sabe   que   a Bertha gosta imenso de si. Mas você não tem a menor queda para negócios. Tem um cerebrozinho esperto como um raio, é astuto como o diabo e sabe destrinçar os mais complicados problemas, mas, quando se trata de dirigir um escritório deste tipo, não dá uma para a caixa e esbanja dinheiro como um  louco furioso. Atira-o fora, como se não valesse nada. Então, com as mulheres, não tem o menor senso comum. Basta que lhe mostrem os dentes, para você ficar logo deitado de costas, com as patas   para  o  ar,  à   espera  que   lhe  cocem   a  barriga. Fique sabendo que já estamos a pagar à Elsie muito mais do que lhe dávamos, quando ela entrou para cá.

- Temos de dobrar-lhe o salário, para equipará-la ao que as outras, mesmo as que não prestam, ganham agora, lá por fora.

Bertha apertou os lábios, com força, numa estreita linha incolor e fulminou-me com os olhos coruscantes. Mas, neste momento, o telefone tocou. A minha sócia esforçou-se por acalmar e pegou no auscultador.

-Sim?... Oh, sim! Estou a ver... Naturalmente que estamos ocupados, Mr. Lam e eu... Não, não, totalmente ocupados... Ele está neste momento a terminar um contrato e, logo que acabe, decerto arranjará tempo... Sim, tentarei contatar com ele. Posso tornar a telefonar-lhe? Qual é o número?

Bertha tomou nota do número do telefone no seu bloco de apontamentos e prometeu:

- Ligarei para aí, logo que ele chegue.

Pousou o auscultador e sorriu-me:

- Seu diabinho! Não sei como você consegue isso, com as mulheres! Ficam sempre malucas consigo!

- Quem era, desta vez?

- Shirley  Bruce. Quer que o Donald vá  imediatamente ao seu apartamento, pois tem um trabalho importante que deseja confiar-nos. Disse saber que os nossos honorários costumam ser elevados, mas, como sempre obtemos bons resultados, está interessada em contratarmos.

 Diz que provavelmente não o apreciou devidamente, da primeira vez que o viu, mas agora deseja imenso que trabalhe para ela. Esmaguei o cigarro no cinzeiro, levantei-me e caminhei  para a porta.

- Aonde vai, Donald? - espantou-se Bertha.

- Sair.

- Vê? Assim  é que gosto de si. Pronto a entrar novamente em ação. Vá para diante e não se preocupe com a questão do escritório. Bertha tratará de arranjar tudo como você quer. Elsie será sua secretária privativa e... não se preocupe com o resto dos pormenores. Deixe tudo comigo, queridinho.

Como eu já tivesse aberto a porta, Elsie ouviu a última parte do discurso da minha sócia. Fitou-me com os olhos desmesuradamente abertos, enquanto eu, tranquilamente  saí do escritório. Da cabina de uma mercearia da esquina, liguei para Shirley Bruce.

- Daqui,  Donald  Lam, da Cool  &  Lam - anunciei.

- Queria falar comigo?

- Oh,  sim.   Desejava  imenso que viesse  ao  meu apartamento.

- Quando?

- Logo que possa.

- Não pode ir ao nosso escritório?

- Lamento, mas não posso. Prometi a umas pessoas ficar em casa todo o dia e não tenho possibilidade de contatar com elas para desfazer o encontro. É muito importante, sabe? Estou disposta a pagar-lhe generosamente todo o tempo que perder comigo. Na realidade, o que pretendo é contratá-lo para uma missão especial. Para ser mais explícita, desejo mantê-lo comigo...

Riu-se nervosamente.

Não repliquei.

- Está lá? - estranhou ela.

- Sim.

- Bem, quero mantê-lo comigo para tratar de um caso muito importante... mas não quero explicar o assunto ao telefone. Fico à sua espera. Venha logo que possa.

- Não posso ir aí a não ser ao fim da tarde.

- Oh!

A sua voz demonstrava desapontamento.

- O que tem para dizer-me demora assim tanto? sondei.

- Porquê?...  Creio que sim...

- A que hora tem o seu encontro com essas pessoas,  aí em casa? De manhã, ou de tarde?

- Não tem hora certa. Disse a uma pessoa amiga que estaria em casa todo o dia.

- Nesse caso, telefono-lhe de tarde. Dessa maneira, escuso de ir aí, enquanto ele estiver consigo.

- Enquanto  ela  estiver  comigo - corrigiu  Shirley, acidamente.

- Estou a ver. Está bem. Dar-lhe-ei uma apitadela para aí, antes de ir.

Desliguei e a seguir telefonei para a Acme Welding And Fender Works. A rapariga que atendeu o telefone mostrou-se hesitante e desconfiada.

- Queira ligar para Robert Hockley - pedi.

- Bem... não posso... Não veio ainda...

- Onde está ele? «

- Quem fala?

- Imprensa...

- Não ouvi o nome...

- Não é nome. É imprensa. Queremos entrevistá-lo. Arranje maneira de descobrir onde é que ele pára.

- Para quê?... Foi ao Serviço de Passaportes.

- Passaportes?

- Sim.

- Que foi lá fazer?

- Buscar o  dele.  Telefonaram-lhe  a  dizer que já estava pronto. Talvez possa telefonar-lhe para lá. Diga que quer falar com Hockley, na secção de passaportes... Talvez o apanhe.

Ouvi o «clique», no outro lado do fio, e desliguei. Então dirigi-me no carro da agência ao hospital onde Mrs. Juanita Grafton fora internada.

Sofrera um ligeiro envenenamento com sulfato de cobre e não lhe foi difícil safar-se. O médico recusou-se a falar do caso, mas não se importou de prestar-me certos esclarecimentos acerca do sulfato de cobre.

- Esse produto - declarou ele, num tom de quem acabara de ler alguma coisa sobre o assunto , é raramente usado como veneno em casos de homicídio, embora possa ser considerado um tóxico ativo. Conquanto provoque náuseas imediatas, torna-se difícil determinar exatamente que quantidade pode constituir a dose fatal, visto que grande parte do produto ingerido é rejeitado pelo estômago.

Mostrei-me muito interessado pela sua narrativa e o interno prosseguiu:

- De fato, uma dose de cinco grãos de sulfato de cobre torna-se um rápido emético. É o melhor antídoto para um envenenamento de fósforo, porque não só atua como emético, limpando o fósforo do estômago, mas também  provoca  uma reação química  reduzindo a ação tóxica daquele.

- Quer dizer que também houve fósforo, neste caso de envenenamento?

- Não, não me fiz entender bem. Tratou-se apenas de envenenamento por sulfato de cobre. Quase todos os rebuçados tinham sido injetados com ele, no recheio...

- Nesse caso, se cinco grãos de sulfato provocam náusea e vômito, essa dose pode não ser fatal, não será assim?

- Bem, as autoridades não concordam inteiramente com isso. Webster, no seu livro de medicina legal e toxicologia, apóia  Von   Hasselt,  considerando  cinco  grãos como dose fatal. Gonzalez, Vance e Helpern, por seu lado, consideram  a sua ação mortífera  altamente variável, admitindo contudo que, não sendo aplicado um vomitório dentro de quinze minutos, a periculosidade aumenta grandemente.

- Muito interessante - observei. - Que aconteceu à doente?

O médico sorriu e elucidou:

- Aparentemente, livrou-se do veneno, pouco depois de tê-lo ingerido, pelo que, quando aqui chegou, apenas vinha num estado de histeria e nada mais.

- Onde está ela, agora?

- Livre de perigo. Vamos dar-lhe alta... Atenção...

Não estou autorizado a falar-lhe da doente, mas apenas do sulfato de cobre...

- Tem razão. Para que é geralmente usado?

- Costumam utilizá-lo na manufatura de pigmentos. Também na cuproplastia e, evidentemente, no fabrico de tintas, etc.

- A sua obtenção, no mercado, não é difícil, pois não?

- Não. Pode ser adquirido em qualquer drogaria. Os pintores costumam utilizá-lo, com frequência.

- Por que motivo o teriam usado para envenenar rebuçados?

- Sei lá? Não faço a menor idéia. Parece-me uma coisa estúpida.

Deixei-o e dirigi-me ao comando-geral da Polícia. Fui encontrar o capitão Frank Sellers sentado à sua secretária. Ter-se-ia mostrado contente por ver-me, se não pensasse que a minha visita tinha água no bico.

Apesar da sua honrosa promoção, continuava desconfiado  comigo e preferia fazer o seu jogo com as cartas recolhidas, encostadas ao peito, para que eu não lhas visse. Conhecíamo-nos há muito tempo, desde que fora sargento no Departamento de Homicídios e houve até uma altura em que se enamorara da Bertha. Ela era suficientemente dura para poder agradar-lhe:

- Olá,  Donald - saudou  ele, que bom vento o traz por cá?

- Apenas   uma   brisa - sosseguei-o. - Nada   de especial.

- Como vai Bertha?

- Rija, como de costume.

Meteu um charuto na boca, mas não o acendeu.

- Quer um? - ofereceu.

- Não, obrigado.

- Em que posso ser-lhe útil, Donald?

- Oh, vim cá por vir... Há já bastante tempo que não nos víamos.

- Pois, agora já estou fora dos homicídios.

- Mas, de vez em quando, lá vai metendo o seu bedelho neles, não é verdade?

- Bem, sim, quando se trata de crimes,  no  meu setor.

- Bertha tem andado animadíssima, com muito trabalho no escritório.

- Calculo. Antes, só se ocupava de pequenos trabalhos  de rotina. Você apareceu e lançou-a nos grandes empreendimentos: sarilhos e alta finança!

- Bem... de certo modo, sim. Bertha tem feito bastante dinheiro, nos últimos tempos.

- Eu sei, mas vocês dois passam a vida a meter o nariz onde não são chamados, censurou Sellers.

- Se não fôssemos chamados, não nos pagariam retorqui.

 - Acha isso errado?

Abanou a cabeça, sorridente, e disse:

- Tenho de pensar na minha carreira. Gosto muito de vocês... e até vos considero do melhorzinho que anda por aí... mas um dia escorregam e levam-me de rastos, a reboque, se não me acautelo.

Mascou a ponta do charuto e inquiriu:

- Trouxe alguma idéia na bagagem, Donald?

Em vez de responder-lhe, peguei na frase anterior:

- Suponha  que   não escorregamos...

- Ora, mais tarde ou mais cedo, estampam-se ao comprido. Tantas vezes vai  o cântaro à fonte...  Você fartou-se de meter o pé na argola.

- Mas numa argola sempre limpa. Nunca ninguém pôde acusar-me de qualquer truque desonesto. E nunca o arrastei para qualquer alhada.

- Pois  não,  porque  não calhou. Você  incutiu  em

Bertha a mania das grandezas e agora fazem uma equipa que se atira de cabeça para os casos mais intrincados, desde que estejam  recheados de «massa». Ora esses casos não podem passar despercebidos. São dessa espécie que vem em todos os jornais, com milionários de primeira página. Se você salta por cima da Lei e é apanhado com a boca na botija, para salvar um cliente tão rico como patife, leva consigo, no mergulho, qualquer polícia honesto que tenha ingenuamente confiado em si, ao ponto de dar-lhe a mão nas suas manigâncias... E a pobre Bertha alinha nisso. Que idade tem ela, agora?

- Não sei.  Conheço-a, já vai  para cinco anos, e continua Exatamente igual ao que era. Calculo que ande entre os trinta e cinco e os quarenta, mas não aparenta... e está cada vez mais geniquenta.

- Então ainda está nova. Quarenta já eu tenho e sinto-me rijo, como quando tinha trinta.

- Você está na mesma, Sellers - afiancei.

- Bem, cá me aguento...

Sorriu e perguntou, mascando outro pedaço do charuto:

- Afinal, Donald, que foi que o trouxe cá?

-Já que insiste... estou interessado num homem chamado Cameron que foi assassinado ontem...

- Okay! É cá do meu sector. Sei tudo a esse respeito.

- O sargento Sam Buda está encarregado do caso...

- Pois está. E você que pretende?

- Cameron era um de dois testamenteiros e administradores  de um fundo deixado por uma tal Cora Hendricks.

- Hum, hum!

- E o outro é um tal Harry Sharpies.

- Vocês ainda estão a trabalhar para ele?

- No que me diz respeito, já não estou. O homem queria que lhe prestássemos um serviço...

- Que espécie de serviço?

- Guarda-costas.

Sellers deu uma gargalhada pouco gentil e exclamou:

- Não me diga! Você, guarda-costas!... Para que raio precisa ele de um «gorila»?

- Não faço idéia.

-O diabo é que não sabe!

Olhei inocentemente para Sellers que, nesse momento,  já tinha mascado mais de metade do charuto.

Com uma careta, observou:

- Diabos o levem, Donald! Continua, como sempre, a fazer «caixinha». Com essa mania, pode arranjar sarilhos  a um tipo que caia na asneira de colaborar consigo.

- Não, se for um amigo. Nunca deixei um amigo enrascado.

Sellers deitou o resto do charuto, empapado, no cesto dos papéis, respirou fundo e indagou:

- Bem, diga lá, que pretende de mim.

- Sharpies parece assustado - prologuei.

- Com quê?

- Isso gostava eu de saber.

- E que quer que eu faça? Que me torne adivinho?

- Tanto Sharpies como Cameron eram, como sabe, administradores do fundo deixado por Cora Hendricks e tutores   dos   seus   herdeiros,   Shirley   Bruce   e   Robert Hockley.

- E depois?

- Ambos   os   testamenteiros   gostavam   muito  de Shirley (Sharpies ainda anda doidinho por ela) e detestavam Bob. Davam à moça tudo quanto ela queria, mas o rapaz só recebia (como recebe) uma pensão mensal. Ora tanto um como o outro dividirão o fundo entre si, quando Shirley completar vinte e cinco anos. Ainda faltam  três. Contudo, se morressem os dois administradores,  o fundo era imediatamente dividido...

- E depois?

- Bem, já morreu um... Cameron, assassinado.

- Hum, hum! A quanto monta esse Fundo?

- Duzentos mil dólares, além de rendimentos chorudos.

- Hum, hum!... Por esse motivo veio ter comigo?

- Exatamente.

- Que pretende de mim, precisamente, Donald?

Não respondi «precisamente», mas acrescentei:

- Há uma coisa interessante, nesse crime. Cameron tinha um corvo domesticado, chamado «Pancho». Ora, foi assassinado, quando estava a falar ao telefone. Tinha um revólver de calibre 22 sobre a mesa, em sua frente. Só um cartucho foi  percutido. Seria interessante descobrir-se porque o disparou... e contra quem deflagrou aquele cartucho.

Sellers mostrou-se interessado.

- Eu estava lá, quando Sharpies descobriu o cadáver. Dei uma vista de olhos pelo local e não vi sinal de impacto de bala. E segundo me consta, os polícias também não conseguiram descobrir onde diabo se incrustou o projétil.

- Está a insinuar, Donald, que a bala deve estar algures, nesse salão? Ou, antes, que alguém chupou com a «ameixa» no corpo e anda para aí a passeá-la.

- Também me constou ser essa a teoria da Polícia.

- Bem, Donald, vou dizer-lhe o que se passou. Cameron disparou o revólver para o teto.

- Para o teto? - admirei-me, pois não vira vestígio do tiro.

- Para um buraco, junto do teto.

- O buraco aberto especialmente para permitir que o corvo entrasse e saísse em liberdade?

- Exatamente.  Os   rapazes  dos   Homicídios  descobriram a bala incrustada na parte superior desse buraco destinado à passagem do corvo. Concluíram que Cameron teria disparado a arma em autodefesa, ou já ferido de morte, indo o projétil encravar-se naquele tunelzinho, pelo que não foi visto durante o primeiro exame policial. Só quando, intrigados com o enigma, começaram a pesquisar o salão e os móveis, centímetro a centímetro, é que deram com o orifício da bala e esta encaixada lá dentro.

- Foi essa então a conclusão dos Homicídios?

- Bem, eu tenho outra teoria - elucidou Sellers, que os rapazes acabaram por perfilhar.

Fez uma pausa, para aumentar o suspense, e eu animei  a «deixa» com um:

- Qual?

- Que o tipo que apunhalou Cameron, pegou  no revólver e, na intenção de simular ter a vítima procurado defender-se, tentou disparar a arma para o céu, através do buraco junto ao teto; só que errou por escassos centímetros e a bala não se projetou  no exterior. Se o tivesse conseguido, a Polícia convencer-se-ia de que o assassino fora atingido por um tiro, lançando-se assim numa pista falsa.

- Homem ou mulher? indaguei.

- Ainda não sabemos.

- Que foi que lhes deu a idéia de ter sido o próprio assassino a disparar o revólver?

- O teste de parafina, nas mãos de Cameron. Não apresentavam partículas de pólvora queimada.

- Impressões digitais?

- Nenhumas.

- E na arma?

- Desfeitas.

- Quer dizer que alguém se deu ao trabalho de limpá-las?

- Não, mas quem empunhou o revólver deve ter-se dado  ao trabalho  de  segurar-lhe  na  coronha  com  um lenço, destruindo quaisquer impressões anteriores remanescentes.  Mas afinal, Donald, que raio quer você de mim?

- Quero ir para a América do Sul.

- Também eu. Ainda não deixei de sonhar com isso.

- Mas eu quero ir imediatamente.

- E que tenho eu com isso?

-Quero que me arranje um passaporte imediato.

- Você está maluco!

- Não, não estou. Pode agarrar nesse telefone, ligar para   o   Serviço   de   Passaportes   do   Departamento   do Estado e dizer-lhes que eu sou um tipo em quem você confia e que estou a trabalhar num caso de homicídio, pelo   que   preciso   imediatamente   de   um   passaporte oficial... já!

- Você está maluco!

- Os passaportes normais levam muito tempo...

- Você está maluco.

- ... e o que tenho a fazer deve ser feito já.

- Mesmo que quisesse ajudá-lo, não teria meios...

Não posso ser-lhe útil... -defendeu-se Sellers.

- Pode, sim, se utilizar a linha de telefone exata. Aquela que conduz à Divisão de serviços especiais, onde não levam cinco dias a verificar a identidade e a história de um cidadão, desde que nasceu, e passam por cima do seu cadastro com os olhos fechados. E, como sabe, não tenho cadastro.

- Bertha que diz a isso?

- Nem sequer sonha com esta minha viagem turística.

- Vai para a América do Sul ao serviço de quem, Donald?

- De mim próprio. Ninguém me contratou.

- Que raio vai você lá fazer.

- Robert Hockley, um dos beneficiários do fundo deixado por Cora Hendricks vai agora para a Colômbia, onde se situa a maioria das propriedades legadas em testamento.

- Quer segui-lo? - interessou-se o capitão Sellers.

- Digamos antes que quero apenas ir até à Colômbia.

- E que me acontece a mim, se me presto a tirar-lhe as castanhas do lume?

- Fica com uma castanha.

- Quente de mais para pegar-lhe! - queixou-se o ex-tenente dos Homicídios.

- Poderá deixá-la arrefecer, o tempo que quiser.

- E se você se mete num sarilho que nos trame aos dois? Não quero que a castanha me estoure nas mãos.

- Não vai  haver sarilho algum. Você  não estaria interessado num relatório acerca do que Robert Hockley vai fazer à Colômbia?

 

- Não.

- De qualquer modo, não tem nada a perder. Sabe muito bem que o Departamento da Polícia não iria pagar as despesas a um detetive que você quisesse mandar à América do Sul, só porque Robert Hockley resolveu lá ir. É pois uma sorte para si conhecer um detetive particular, competente,  que vai   para  aí,  a  suas  próprias expensas. Você limita-se a encarregar esse detetive de fazer-lhe um  relatório acerca do que descobrir. Como essa viagem não implica despesas para o Estado, você fica livre de aborrecimentos.

- Como posso estar certo de que não haverá azar?

- Nunca o atraiçoei, Sellers - lembrei.

- Não, mas passava a vida a cortar-me as voltas.

- Mas nunca o prejudiquei e você sempre lucrou em ajudar-me. No fim de cada caso, ganhava sempre por ter-me dado ouvidos.

O capitão Sellers olhou para o telefone e perguntou:

- Para onde quer que ligue?

- Para o Departamento de Passaportes da Secretaria de  Estado - sugeri. - E é  melhor você pôr uma

certa ênfase, quanto a urgência e importância da minha missão. Se o conseguir, verá como não terá de queixar-se...  Antes pelo contrário.

UMA   JOVEM   CAPAZ   DE   TUDO

Já era bastante tarde quando cheguei ao apartamento de Shirley Bruce. Apertou-me molemente a mão ao abrir-me a porta e os seus olhos pareciam afetuosos como a língua de um cão.

- Suponho que ficou surpreendido ao saber que eu o procurava - prologou.

- A  minha vida  é um  chorrilho de  surpresas retorqui.

- Você tem qualquer coisa que inspira confiança adulou.

- Obrigado.

Sem retirar a mão da minha, puxou-me para o interior do àtriozinho. Envergava uma camisola fininha de nylon que se lhe colava às formas, como uma segunda pele, tornando-a terrivelmente atraente e excitante. O decote em forma de V descia-lhe até onde o perigo do abismo nos deixava sem respiração. Sem me largar a mão, aproximou-se mais de mim e disse em voz baixa:

- A   minha   amiga   está   cá.   Não   fale   em   nada, enquanto ela cá estiver. Vou apressar-me a pô-la a andar.

Em voz mais alta convidou:

- Queira entrar Mr. Lam.

Penetrei na sala. Uma mulher recostada em várias almofadas, estava deitada na chaise-longue, coberta com uma manta de peles. Na posição em que se achava, só podia ver-lhe o cabelo negro de azeviche e a curva acentuada da maçã do rosto.

- Sente-se, Mr. Lam - propôs Shirley e acrescentou - A   minha   amiga   está   bastante   em   baixo,   pois sofreu há pouco uma terrível experiência.

Virando-se para a outra disse:

- Querida Juanita, quero apresentar-te Mr. Lam... o amigo de que te falei.

O vulto deitado na chaise-longue endireitou-se. A manta escorregou para o chão descobrindo-lhe momentaneamente as pernas, que não eram nada más. Com os olhos fitando-me como adagas, Juanita Grafton proferiu venenosamente:

- Esse homem estava lá, quando ela tentou assassinar-me.

 É um amigo dela. Não confies nele, sou eu que te digo...

- Cala-te! - intimou Shirley.

Juanita Grafton obedeceu prontamente à ordem da jovem que se virou para mim insinuantemente, ao mesmo tempo que demonstrava certa curiosidade interrogativa,

- Já tive ocasião de encontrar-me com Mrs. Grafton - expliquei. - Fui entrevistar-lhe a filha, acerca do corvo «Pancho», quando  Mrs. Grafton comeu  uns rebuçados envenenados. Assisti a tudo...

- Para que foi entrevistar Dona? - inquiriu Shirley, como se fosse um juiz e eu o réu.

- Estava a investigar a morte de Cameron - justifiquei.

-Para quê?

- Para salvar a pele. A Polícia sabia que eu estava com Sharpies, quando se descobriu o cadáver do sócio. Ora, os «chuis» não gostam que os detetives particulares andem por aí a descobrir cadáveres.

- Mas porque foi falar com Dona? Suspeita dela?

Encolhi os ombros e sorri, declarando:

- A ética não me permite divulgar a fonte das minhas informações.

- Mas foi interrogá-la?

- De certa maneira, sim.

- Dona desconfiou que você suspeitava dela?

- Disse-lhe apenas que pretendia algumas informações acerca do corvo.

- Ela ficou a saber o seu nome?

- Sim, mas pensa que eu seja um repórter de um jornal qualquer.

- Oh! - disse  Shirley,  mostrando  uma  expressão de alívio. Em seguida, sorriu-me olhando-me com um desafio acariciante.   Era   realmente   uma   fêmea   magnífica, sabendo aliciar um homem tentadoramente.

Nesse momento, Juanita Grafton rompeu num discurso rápido, em castelhano.

- Oh, cala-te - interrompeu-a Shirley, em inglês.  Fazes-me dores de cabeça. Quando se trata de doces, és uma   glutona.   Mesmo   que   não   estejam   envenenados, comes tantos que até ficas doente. Se queres que te diga o que penso... nem sequer creio que estivessem envenenados.

- Afianço-te que me senti muito mal e desmaiei. Levaram-me  para o  hospital.  Enfiaram-me  um  tubo de borracha pela boca abaixo, para fazerem uma lavagem de estômago. Senti que morria...

- Está bem, pronto, mas agora, estás fina. Deixa-te de armares em inválida. Já estou farta de ouvir-te. Vai antes fazer-nos um pouco de chá.

Obedientemente, Mrs. Grafton levantou-se, dobrou a manta e saiu da sala. Em voz baixa, Shirley elucidou:

- Juanita tem sangue espanhol e um temperamento dos  diabos.  É sul-americana,  compreende?  Era  casada com um engenheiro de minas que morreu num acidente de trabalho. Estou de certo modo, embora indiretamente, interessada nessas minas que fazem parte do fundo de Cora Hendricks...

- Há quanto tempo está ela neste país?

- Oh, vem e vai. Vive cá durante algum tempo e depois volta para a Colômbia. Quando está por cá, vive como uma grande dama, mas creio que, na Colômbia, trabalha   como   criada,   ou   qualquer   coisa   no   gênero. Quando arranja dinheiro suficiente, economizando tudo quanto pode, volta para os Estados Unidos e dá-se ares de pessoa importante... mas não falemos mais dela. Tenho outras coisas para dizer-lhe.

- De que se trata?

Mudou-se para a chaise-longue e convidou-me a sentar-me a seu lado. O assento ainda estava quente do corpo de Juanita Grafton. Shirley aproximou mais o seu corpo do meu, encostando a perna à minha. Pegou-me na mão e começou a brincar-me com os dedos, enquanto sussurrava:

- Dizem que você é um rapaz muito eficiente...

- É uma questão de opinião - repliquei, modestamente.

- A verdade é que inspira confiança.

 - Ainda bem.

- Agrada-lhe saber que sinto o mesmo?

Os seus românticos olhos escuros fitaram-me sedutoramente. Bateu as longas pestanas, como borboletas, e declarou:

- O Tio Harry gosta muito de mim.

- Dei por isso.

Ficou um pouco atrapalhada e em seguida riu-se nervosamente.

- Diz isso porque me viu beijá-lo?

- Mais ou menos.

- Oh... mas eu sempre beijei o Tio Harry. É como se fosse um verdadeiro tio para mim.

- Nesse caso, você tem uma certa tendência incestuosa, não?

- Que disparate! Quando beijo, beijo mesmo. Não sou garota para meias medidas.

- Foi a impressão que me deu.

Neste instante a sua voz pareceu zangada.

- Que quer dizer com isso?

- Que quis você dizer com isso? - sondei.

- Que  não  sou  fingida. Quando faço uma coisa,gosto de fazê-la bem.

- Então, foi isso mesmo que eu quis dizer.

- Creio que se referia a outra coisa...

- Às vezes tenho dificuldade em expressar-me convenientemente - desculpei-me.

Chegou-se ainda mais para mim e os seus dedos entrelaçaram-se nos meus. Os seus olhos estavam cheios de promessas, quando murmurou:

- Sou uma impulsiva, sabe, Lam? Sou capaz de tudo, quando sinto estes impulsos por alguém.

- Por vezes, as pessoas com essa natureza emocional, são capazes de tudo, para o bem e para o mal observei.

- Exatamente - confirmou. - Há   pessoas   por quem sinto uma súbita inclinação e outras que detesto

logo à primeira vista.

- Logo à primeira vista?

- Sim. É um sentimento intuitivo.

- E a meu respeito? Gostou logo de mim?

Notei certo embaraço nos seus olhos e senti-lhe as unhas firmarem-se na pele da minha mão. Durante alguns minutos, permanecemos calados. Depois, Shirley inquiriu subitamente:

- Como soube, Donald, que dei dinheiro a Robert Hockley?

- Não soube.

- Mas perguntou-me se lho dera.

- Apenas quis saber se isso acontecera.

Shirley meteu a mão por baixo da camisola e tirou um papel dobrado que tinha entalado no cós da saia. Estendeu-me.

Era um cheque assinado por ela, datado de uma semana anterior e pagável à ordem de Robert Hockley, no valor de 2000 dólares; estava endossado e apresentava o carimbo de Pago, aposto pelo banco. Devolvi-lhe.

- Porque   não   diz   nada,   Donald? - perguntou, perante o meu mutismo.

- Que quer que lhe diga?

- Não está interessado em saber porque lhe dei estes dois mil dólares?

- O motivo tem alguma importância?

-Tem, sim. Quero que o saiba. Ao princípio Bob estava azedo comigo. Queria que eu convencesse o Tio Harry... a dar-me mil dólares por mês, de maneira que ele recebesse idêntica mesada...

- Recusou?

- Sim. Não queria incomodar o Tio Harry, mas tive pena de Bob e passei-lhe este cheque.

- Como empréstimo?

- Como oferta.

Da cozinha, Juanita Grafton perguntou:

- Onde diabo tens tu o bule chinês para servir o chá?

Num tom impaciente, Shirley respondeu:

- Não sei. Não me aborreças. Se não encontras o bule chinês, traz-nos o chá noutra coisa qualquer.

Virou-se para mim e sussurrou-me, ainda mais sedutoramente:

- Temos de apressar-nos, porque Juanita é terrivelmente  curiosa. Donald, preciso que me ajude.

- Em quê e porquê?

- Gosto imenso do Tio Harry e estou com medo, por ele.

- Medo de quê?

- Não sei bem. É apenas um pressentimento, mas creio que corre perigo.

- Que quer que faça?

- Que o proteja. Vai fazer isso por mim, não vai, querido Donald?

- Não  sou  o que  se  chama  um  guarda-costas observei.

- Mas é um rapaz muito esperto e adivinha o perigo de onde ele vem...

- Que quer que faça? - repeti. - Concretamente?

- Você   ainda   não   percebeu   que   Harry   está   em perigo?

- Porquê?

- Quer obrigar-me a pôr os pontos nos «ii»?

- Acho melhor.

- Trata-se dessa história do fundo deixado por Cora. Há quem tenha grande interesse em que Harry desapareça, o mais cedo possível, para poder receber a respectiva parte da herança.

- Quer dizer que Cameron foi assassinado por causa disso?

 - Não sei se o foi por esse motivo, mas o fato é que está morto.

- Não há dúvida.

- E pode acontecer o mesmo ao Tio Harry – concluiu  ela.

- Isso significa que você ficaria apta a receber imediatamente  uma data de «massa» - indigitei.

- Eu? - exclamou Shirley,  rindo-se  nervosamente.

- Sim, decerto que também não deixaria de receber a minha parte do fundo, mas não me referia a mim.

- Referia-se a Robert Hockley?

- Bem, não quero nomear seja quem for. Apenas pretendo que proteja o Tio Harry.

- Essa   função   não   é   da   minha   especialidade recusei.

- Pagar-lhe-ei bem, Donald. Tenho dinheiro da minha conta particular.

- E como poderia eu explicar a Sharpies que você me contratou para tomar conta dele?

- Não precisaria de explicar-lhe. Você passaria a andar com ele, a par e passo, recebendo os honorários que ele está pronto a pagar-lhe para que o proteja. Os que receberia de mim não teria que comunicar-lhe. Estaria junto dele, dia e noite, e ganharia a dobrar.

- Não me agrada ter de andar a seu lado, dia e noite. Posso dar-lhe azar.

Subitamente os dedos de Shirley deixaram de apertar os meus. Notei que se tornara pensativa. As suas maçãs do rosto, salientes, mostravam, sob a maquiagem,  o seu tom de pele moreno, ligeiramente azeitonado.

- Que quer dizer com  isso de «dar-lhe azar»? sondou.

Nesse momento, Juanita Grafton entrou na sala, com um tabuleiro rolante. Shirley olhou-a exasperada, de relance, mas logo se recompôs, mostrando-se uma perfeita hospedeira. Serviu-nos

 o chá. Juanita Grafton não dava indícios de qualquer fraqueza  ou doença e andava em volta de Shirley carinhosamente, não parecendo, nesse momento, discordar que a jovem me tivesse por amigo. Pelo contrário, viu-nos sentados, lado a lado, muito mais colados um ao outro do que seria conveniente para uma entrevista de trabalho, e sorriu-me amistosamente. Ninguém poderia negar que fosse bonita. De certo modo, a sua beleza assemelhava-se à de Shirley. A certa altura, disse-me:

- Deve ter-me achado uma mãe desnaturada. Mr. Lam!

- Porquê?

- Por ter admitido a hipótese de minha filha ser capaz de envenenar-me.

- Esse assunto não me dizia respeito - repliquei.

- Ora, está a dizer-me isso por delicadeza, mas se soubesse o que senti naquele momento...

- Acaba   com   isso,   Juanita - ordenou   Shirley.  Donald não está interessado no que sentes a respeito de Dona.

- Mas ele viu-me acusá-la de querer envenenar-me- prosseguiu  a  outra. - Fiquei  histérica...   Nós...   que somos do Sul, somos naturalmente emocionais...

Limitei-me a esboçar um sinal de concordância compreensiva.

- Pronto - interveio Shirley. - Isso não tem a menor importância, Juanita.

Esta não tirava os olhos do meu rosto. Eram botões negros,   perfurantes,   parecendo  implorar  compreensão.

- Para nós, pessoas do Sul - continuou , a família é muito importante. Somos  muito mais agarrados aos filhos, do que as do Norte. Sei isso, porque tenho vivido em ambos os países... E temos muito receio pelas companhias... pelas amizades que os filhos possam contrair com desconhecidos...

- Só falei com Miss Grafton uma vez na vida. Nunca a vira antes e tratou-se meramente de uma entrevista profissional -justifiquei.

- Portanto, não é amigo dela?

- Apenas acabava de conhecê-la.

- E ela não lhe falou a meu respeito?

- Só falámos de «Pancho».

- Não consigo percebê-la bem, Señor Lam. Há um grande abismo entre nós duas. Ela é muito mais do Norte, do que eu. É ambiciosa em relação à sua arte... Acredita, Señor Lam, que a arte possa afastar duas pessoas... mãe e filha?

Aquilo parecia-me um disparate, mas não lho disse.

- No   meu   país - prosseguiu   ela,   as   pessoas acham que devemos ser ricas em amigos. Ser ricas em pesos, sem o ser em amigos, é uma infelicidade. Está a compreender-me?

- Nunca estive no seu país - respondi , mas já ouvi falar disso.

- Mas é assim e agora minha filha Dona virou-se contra mim. Não tem confiança na própria mãe. Apenas quer dedicar-se à sua arte, cheia de ambição: a ambição do êxito. Ora, que êxito poderá ter uma rapariga, na vida, sem amor?

- Quer dizer que Dona não tem amigos? - indaguei.

- Pois não. Põe-nos a todos de lado. Estuda e trabalha. Diz que quer unicamente desenvolver os seus talentos e sacode os que procuram amá-la. Criou uma espécie de deserto em sua volta.

- Os rapazes de Palm Springs não devem deixá-la muito só, nas dunas - comentei.

- Que quer dizer com isso? - espantou-se. – Está a brincar?

- Está visto que está a brincar, Juanita interveio Shirley. - Donald   usa   esse   expediente   para   ouvir-te falar, mas compreendeu muito bem o que quiseste dizer-lhe... Quer mais chá, Donald?... Um pouco de leite e açúcar?... Oh! Desculpe!

O bulezinho de leite escorregou-lhe dos dedos e quebrou-se  no chão.

- Depressa,   Juanita - disse   Shirley,   vai   buscar-me um pano para apanhar isto.

Imediatamente a outra deu um salto e correu para a cozinha.

- Arranja  um  outro  bulezinho  com   leite – gritou Shirley.

Virou-se para mim e pediu:

- Desculpe-me, Donald.

- Não precisa de desculpar-se. Você fez isso de propósito.

Os seus olhos sorriram, como confessando termos algo em comum, e disse cumplicemente:

- Ninguém    pode    esconder-lhe    nada,   pois    não, Donald?

Não fiz qualquer comentário.

- Há   uma   coisa   que   gostaria   imenso  que   você fizesse por mim, Donald. Robert Cameron devia ter uns cofres de depósito, em qualquer lado. Não deviam estar em seu nome. Acha que seria possível você mobilizar alguns homens que corressem os diferentes bancos, tentando

 descobrir...

Juanita Grafton voltou, neste momento, com um pano de limpeza e novo bulezinho de leite. Pôs este sobre a mesa e começou a limpar o chão.

- Um pouco mais de leite no seu chá? – inquiriu Shirley amavelmente, inclinando-se para mim.

Representou o papel de dona de casa, até que Juanita voltou para a cozinha. Então insistiu:

- Penso realmente que Cameron tinha esses cofres alugados, sob outro nome.

- Ocultando valores que pertenceriam ao fundo de Miss Hendricks?

- Não sei, mas dava tudo por descobrir isso.

- Não precisa de contratar detetives para averiguá-lo declarei. - Quando uma pessoa morre, o estado

da Califórnia recebe uma taxa aplicada sobre as heranças: o imposto de transmissão. Há quem utilize os cofres de depósito para tentar evitar o pagamento desse imposto. Como é natural o estado não gosta disso. Portanto, há uma data de leis que regulam e punem quem procura furtar-se a essa taxa. Quando alguém morre, os bancos são os primeiros a denunciar ao estado a existência de cofres-depósito. Ora os bancos sabem quem alugou os cofres, mesmo sob outro nome...  Basta perguntar-lhes.

- Está a fazer troça de mim?

- Não. Estou simplesmente a dizer-lhe que não tem que preocupar-se com os cofres particulares de Mr. Cameron. O estado da Califórnia encarregar-se-á disso, por si.

Shirley tornou a chegar-se mais a mim e ronronou:

- Vai proteger o Tio Harry, não vai?

- Creio que não.

- Porquê?

- Porque tenho outras coisas a fazer.

- Que coisas?

- Ganhar a minha vida.

- Mas eu disse-lhe que lhe pagaria generosamente... e o Tio Harry também; ganharia a «dois carrinhos»...

- Bem sei, mas sou capaz de não ter tempo para esse serviço.

- Quer dizer que não quer?

Da cozinha, Juanita gritou que só havia um restinho de leite.

- Ponha-o  num  bule  e  traga-o - ordenou  Shirley, impacientemente.

- Ela trabalha para si? - inquiri.

- Meu Deus! Não! É unicamente uma amiga, mas às vezes aborrece-me.

- Oh!

- Bem, compreende - tentou  explicar a jovem.  Ela trabalha na Colômbia, como criada de servir e eu, sem querer, acabo por tirar uma certa vantagem disso. Mas creio que ela é solícita comigo, por ser mais velha e gostar de ser útil  às pessoas  a quem  se afeiçoou. Depois, não se entende com a filha e vem desabafar comigo. Embora eu às vezes me aborreça, a verdade é que a estimo profundamente e seria capaz de fazer por ela fosse o que fosse.

Mais uma pinga de chá, com umas gotas de leite, e a visita chegou a seu termo. Shirley acompanhou-me à porta. Olhou para trás, por cima ,do ombro, para certificar-se de que Juanita não podia ver-nos, do sítio onde estava sentada, e colou o corpo ao meu. Então, ofereceu-me os lábios beijando-me sofregamente, com tanta força, que começou a dar-me idéias... Os seus dedos enterraram-se nos cabelos e as unhas magoaram-me a nuca.

- Querido! - exclamou,  quando  também   ela  teve necessidade de vir à superfície, para tomar ar.

Então, sem mais uma palavra, virou-se e regressou à sala. Abri e fechei a porta silenciosamente depois de sair para o frio do crepúsculo.

 INVESTIGAÇÃO   DUPLA

Vi vários carros estacionados em frente do prédio de Shirley Bruce. Dirigi-me para o da agência, sentei-me ao volante e comecei a rodar tranquilamente. À minha frente arrancara um carro. O condutor pusera o motor a funcionar, mal eu entrara no meu. Tinha um outro tipo sentado a seu lado.

Pareciam não me ligar a menor importância. Toquei o claxon e ultrapassei-os. Nesse momento, reparei que um outro carro, que estivera estacionado atrás do meu, também se pusera em marcha, seguindo-me à mesma velocidade. Foi a vez dele tocar o claxon e passar-me à frente. O tipo que vinha ao volante nem sequer se dignou olhar para mim, o mesmo fazendo o tipo que identicamente seguia sentado a seu lado.

Tanto os de um carro, como os do outro, deviam ser muito calados, pois não falavam entre si. Aquilo deu-me que pensar. Não pareciam ser «chuis», mas, se eram detetives particulares, alguém estava a gastar uma data de «massa» para seguir-me, numa cidade tão grande como a nossa.

Durante alguns minutos, deixei-os manterem-se nas suas posições relativas. Depois acelerei, quando vi que um dos semáforos ia sinalizar um «vermelho», e passei à justa. O carro que me seguia, acelerou também e passou em nítida contravenção de trânsito, obrigando os que vinham da sua direita a travarem com um embirrento chiar de pneus.

Virei para a esquerda na esquina imediata e parei, encostado ao passeio. O carro que me seguia foi forçado a abrandar deselegantemente e conseguiu estacionar bastante atrás do meu. Então, saí para a rua, aproximei-me da janela do pendura e perguntei:

- Okay, meninos. De que se trata?

Ficaram mudos e quedos, continuando a olhar em frente, como se eu não existisse. Sabiam-se apanhados com a boca na botija e não tinham resposta a dar. Regressei ao meu carro e segui viagem, sem que os visse prosseguir na perseguição. O outro, que antes estivera à minha frente, não tivera oportunidade de virar na esquina em que eu o fizera, tendo seguido na onda do tráfego.

Dei ainda algumas voltas, certificando-me de que não tinha mais «sombras» na minha pegada. Quando me dei por satisfeito, dirigi-me ao escritório de Peter Jarratt. Este não queria falar comigo. Como me disse, ia naquele mesmo instante fechar o escritório para sair. Afirmou que nada mais sabia do assunto, além do que já me contara por telefone, quando me dera o «lamiré» sobre o pingente. Não poderia a nossa entrevista ser adiada para o dia seguinte?

Disse-lhe que não era essa a minha idéia e, impaciente, consultando o relógio, Jarratt pediu que me despachasse. Sentei-me em frente da sua secretária de nogueira polida, cruzei as pernas calmamente e examinei-o com mais atenção do que tivera ocasião de fazê-lo, quando o vira na loja de Nuttall.

Era um tipo alto, ossudo, de trinta e dois ou trinta e três anos e com dois terços da cabeça brilhantemente calvos. O cabelo que lhe faltava sobre o crânio era compensado pelo que lhe sobrava nas felpudíssimas sobrancelhas

 Parecia nervoso, apressado, constrangido. Franziu o sobrolho, provavelmente convencido de que a sua expressão, nessas circunstâncias, impressionava o seu interlocutor. Depois de trocarmos duas ou três frases preambulares,  inquiri:

- Que intenção foi a sua, quando me atirou para a pista de Phyllis Fabens?

- De quando em quando, efetuo alguns negócios em joalharia antiga. É um dos ramos de que me ocupo, nas minhas atividades... E aconteceu ter-me lembrado de que adquirira a Miss Fabens um pendentif antigo...

- Trabalha muito em joalharia antiga, Jarratt?

- Nem por isso. A procura é fraca.

- Mas sempre vai encontrando quem lhe fique com a mercadoria, não é verdade?

- Sim, às vezes...

- Por que motivo não falou ao sargento Buda nesse seu ramo de atividade?

- Porque não mo perguntou... especificamente.

- Não quis prestar-lhe essa informação voluntariamente?

- Você  também  não  se  mostrou  muito   loquaz ripostou ele, agastado.

- Cameron era um dos seus compradores habituais de jóias antigas?

- Não, de maneira alguma - respondeu ele apressadamente.

- Suponhamos portanto que Miss Fabens falou verdade e que lhe vendeu um pingente antigo. Revendeu-o a Cameron?

- Não, nem por sombras! - tornou Jarratt a negar imediatamente.

- Lembra-se a quem o vendeu?

- Agora não faço a menor idéia...

- Mas lembrou-se da jovem a quem o comprara insinuei.

- Bem... Ao ver o desenho do pendentif de esmeraldas de Mr. Cameron, lembrei-me realmente que adquirira um idêntico e... bem, fui consultar as minhas fichas e dei com o nome e morada de Miss Fabens. Apenas quis prestar-lhe um favor, Mr. Lam... Portanto não compreendo que se sirva disso para abusar...

- Pois é. Há favores que são mal recebidos. A propósito, Miss Fabens mostrou-se muito amável comigo...direi até demasiado prestável, até certo ponto, e depois aborreceu-se...

- Lamento. Quis unicamente ser-lhe útil, Mr. Lam.

- Porquê esse seu súbito interesse em ajudar-me?

Jarratt não respondeu e prossegui:

- Miss  Fabens contou a sua história, muito bem recitada, talvez um tanto ou quanto depressa de mais. Estava tão interessada em cooperar, que  me pareceu estar feita consigo.

- Posso assegurar-lhe, Mr. Lam, que tal nunca aconteceu.

- Está no seu direito, o que não me impede de pensar que Cameron comprou aquela velha armação com pedras   sintéticas,   desincrustou-as,   substituindo-as   por esmeraldas verdadeiras e confiou-lhas, a si, para que as levasse a Nuttall, a fim de obter uma avaliação. Logo que este as avaliou, Cameron levou a jóia para casa e tratou de tornar a tirar-lhe as esmeraldas.

- Isso  não  faz  sentido - disse  Jarratt. – Nada prova que foi ele quem as substituiu...

- Pois não. Por isso vim ter consigo, para que me explique o comportamento do seu falecido cliente. Pode fazê-lo?

- Não.

- Mas, não há dúvida que foi isso que aconteceu. Você comprou um pingente antigo, mas de pedras sem valor, vendeu-o a alguém que trocou essas pedras por riquíssimas esmeraldas e depois foi avaliar o conjunto a um joalheiro especializado. Em seguida, o seu comprador tornou a retirar as esmeraldas da armação e... foi assassinado. De certa maneira, você é como Roma.

- Que quer dizer com isso de Roma?

- Todos os caminhos vão dar a si.

Jarratt coçou o lóbulo da orelha, nitidamente preocupado.

- Não me parece que o pendentif que comprei a Miss Phyllis Fabens fosse o mesmo que foi achado em poder de Mr. Cameron - declarou.

- Mas, nessa altura, não os achou parecidos?

- Bem... eram ambos de armação antiga e, nessa altura, pensei que fossem o mesmo.

- E agora já não lhe parecem parecidos?

- Não sei, já não tenho a certeza.

- Torna-se   vitalmente   importante   descobrir  onde Cameron adquiriu aquela armação. A quem comprou ele o antigo pingente?

- Francamente,   Mr.   Lam,   não  posso   adiantar-lhe mais nada. Seria trair a confiança de um cliente. Uma tal quebra de sigilo iria prejudicar grandemente um mercado que me é lucrativo. Apenas lhe posso dizer que Mr. Cameron   estava  a  desenvolver  um   pequeno  trabalho, chamemos-lhe detetivesco, quando foi morto. Suspeito que procurava descobrir de onde proviera a armação que

adquirira e só por esse motivo tornou a desmontar as esmeraldas.

- Quer dizer que Cameron, estando de boas relações com  o Governo  colombiano, que controla a venda de esmeraldas, procurava descobrir quem incrustara aquelas numa armação antiga?

- Bem, creio que posso apoiar essa sua sugestão, sem quebra da ética profissional.

- Obrigado, Jarratt. Lamento ter interpretado mal a reação de Miss Fabens. Começo a pensar que você é muitíssimo mais esperto do que eu pensei, ao primeiro contato.

- Obrigado - disse também Jarratt, dando-me em seguida as boas-noites.

Quando me achei na rua e abri a porta do carro da agência, olhei em torno para assegurar-me de que não estaria a ser seguido. Com espanto meu. dei de caras com os outros dois automóveis que, antes, me tinham perseguido. Deviam ter descoberto aonde eu fora, por telepatia, pois nenhum deles pudera vir atrás de mim.

As duas parelhas, sentadas nos respectivos bancos dianteiros,  não pareciam ser muito inteligentes. Contudo, ali estavam elas à espera que eu saísse do escritório de Jarratt. Entrei no carro e fui-me embora.

 BUDA   NÃO   LARGA   A   PRESA

Já estava bastante escuro, quando entrei no edifício da agência. O homem do elevador olhou-me com expressão  cúmplice e advertiu:

- Tem aqui alguém à sua espera.

Virei-me e vi dois tipos avançarem também para o elevador. Eram dois «paisanas» facilmente identificáveis.

- Há azar? - inquiri.

- Queremos falar consigo.

- Na esquadra?

- Porquê na esquadra? - espantaram-se. Provavelmente julgavam-se disfarçados de capitalistas em férias.

- Porque não precisam de letreiro, para se perceber quem vem dentro desses fatos malfeitos - retorqui. Não gostaram da apreciação e um deles disse: - tá bem, espertalhão. O sargento Buda quer falar consigo.

- De acordo. Ele sabe perfeitamente onde fica o meu escritório.

- Mas ele quere-o lá, no Departamento.

- Têm mandado de captura?

- Não, mas temos outros meios de o arrastar conosco.  Quer experimentar?

- Toca a andar, rapazes - decidi. - Não quero que

Buda pense que me nego a colaborar com ele. Vou no meu carro e vocês seguem-me.

- Porque  não  quer vir  conosco? - perguntou  o outro suspeitosamente.

- Porque vocês podem não voltar aqui, quando eu estiver de regresso. Tenho o meu carro, no parque de estacionamento deste  edifício. Venham  atrás  de  mim.

- Não. Você é que nos segue - indicou o «chui».  Vamos devagarinho, para que se não perca.

Guiaram-me até um bairro de moradias dispendiosas, com varandas e garagens particulares. Pararam em frente de uma delas e notei que já se achavam vários carros da Polícia estacionados nas proximidades. Quando saí do carro, já um dos meus guias se me acercara, dizendo:

- Okay, vamos lá.

Atravessámos um átrio onde se achava um polícia fardado. Foi este que me conduziu diante de uma porta a que bateu. E foi o próprio Sam Buda quem a abriu. Sem mais preâmbulos, inquiriu:

- Sabe que casa é esta, Lam?

- Sim. Harry Sharpies deu-me esta direção.

- Já cá tinha estado?

- Nunca cá pus os pés.

- Que sabe acerca de Sharpies?

- Pouca coisa.

- Está a par dos seus negócios?

- Nadinha. Lembre-se de que já me perguntou isso, noutra altura.

- Bem   sei,   mas   as   coisas   mudaram,   de   então para cá.

- Que lhe aconteceu?

Buda fitou-me, fazendo uns olhinhos estreitos, perscrutadores e indagou:

- Porque pensa que lhe tenha acontecido alguma coisa?

Mostrando-me exasperado, repliquei:

- Não é difícil. Você manda dois «paisanas» caçarem-me à entrada do escritório e trazerem-me para aqui, a reboque. Vi carros da Polícia estacionados à beira da casa. Um outro «chui» recebeu-me principescamente no átrio. Você abre a porta e desata a fazer perguntas, sem os   cumprimentos   de   cortesia   que   me   são   devidos. O assunto é Sharpies. Como detetive, eu teria os meus dias contados se não fosse capaz de depreender que alguma coisa aconteceu ao ricaço. Que raio lhe sucedeu?

- Sharpies pediu-lhe que  lhe servisse de guarda-costas?

-Sim.

- De que tinha ele medo?

- Não sei.

- Mas, você, que pensa?

- Não penso nada.

- Quando um homem contrata outro para servir-lhe de guarda-costas, diz-lhe por que motivo o faz e de que diabo tem medo - deduziu Buda.

- Assim é, mas Sharpies não chegou a contratar-me.

- Porquê?

- Porque não fui nisso.

Buda mostrou-se admirado.

- Não foi nisso? Por que raio recusou?

- Porque a coisa não me cheirou bem. Francamente, não me pareceu que Sharpies estivesse com medo, fosse do que fosse.

- Lam, você vai explicar-se melhor, valeu? – propôs o sargento, quase cortesmente.

Após a minha visita a Frank Sellers, não me convinha  hostilizar a Polícia e comecei:

- Pode ter-se dado o caso de Sharpies me ter contratado, a primeira vez, para acompanhá-lo na descoberta do cadáver de Cameron. Foi ao nosso escritório, antes de Bertha Cool chegar, para que a datilógrafa o visse e anotasse a hora a que ele entrara. Falou com Bertha e esperou por mim. Mal eu lhe falei de Cameron, aproveitou a deixa para levar-me a casa do tipo. Quando lá chegámos, demos com ele transformado em cadáver.

- Você não me contou isso antes - censurou Buda.

- Pois não. Como você disse, «as coisas mudaram, de então para cá». Sharpies já não é nosso cliente.

- Nesse caso, pensa que Sharpies tenha matado Cameron e se tenha servido de si, como álibi?

- Não seja  tonto, repliquei,  logo acrescentando respeitosamente , sargento. Não estou sequer a insinuar que ele tenha assassinado o sócio. Estou apenas a responder-lhe ao que me perguntou: por que motivo não quis voltar a trabalhar para Sharpies.

- Lá tornamos ao mesmo - protestou Buda. – Qual foi o motivo?

- Suponhamos   que,   quando   estive   em   casa   de Cameron, descobri qualquer coisa que me levou a suspeitar de Sharpies.

- Que coisa? - inquiriu o sargento, começando a exaltar-se.

- E você a dar-lhe! Eu disse «suponhamos». É uma hipótese explicativa de um motivo. Não quer dizer que tenha visto qualquer coisa. Contudo, Sharpies pode ter pensado que eu vi «essa coisa» e, por isso, decidiu contratar-me como  guarda-costas,  amarrando-me  a  ele,  pelo sigilo profissional. Queixou-se à  Polícia de que corria perigo e tinha-me a seu lado, atado de pés e mãos, vinte e quatro horas por dia. Eu teria de ir para onde ele fosse. Suponha agora que me levava para um lindo deserto, ou para uma frondosa floresta... e suponha que eu nunca mais voltava?

- Refere-se a assassínio?

- Tudo é possível  nesta vida, sargento. Sharpies desaparecia e alguém viria a dar com o meu gentil cadáver abandonado  algures...   Um  bravo detetive,  morto no cumprimento do dever, ao «defender» o seu cliente.

- Isso parece um filme ordinário, comentou Buda.

- A mim, parece-me um pesadelo.

- E foi por essa razão que não quis trabalhar para ele?

- Bem, também não disse isso. Apenas apresentei uma hipótese.

- Mau!... Então por que raio não aceitou o contrato?

- Não sei... Talvez por mero pressentimento...

- Ah! Agora você deu em psíquico, hem?

- Chame-lhe o que quiser.

- Alguém lhe deu um «lamiré»?

- Não. Digamos antes que tive um palpite.

Buda olhou-me aborrecido.

- É   uma   rica   história! - apreciou. - Não   posso fazê-lo comparecer em tribunal perante um júri e declarar: tenho aqui uma testemunha que tem um palpite. Queiram meter este palpite num saco de celofane e apensá-lo ao processo, como prova A do presente caso.

Após uns segundos de hesitação, comandou:

- Venha cá.

Atravessámos o átrio, dirigimo-nos a uma grande porta de madeira apainelada e penetrámos num salão ricamente decorado, com reposteiros orientais e tapetes a condizer, iluminado por grandes candelabros de cristal. Atravessámo-lo em direção a outra porta semelhante que dava acesso a uma sala mais pequena, apenas do tamanho de um court de ténis, meio biblioteca, meio escritório.

Era uma imagem do caos. As cadeiras estavam de pernas para o ar e a mesa virada sobre um dos lados. Um tinteiro, no chão, entornava a tinta sobre a alcatifa. Os tapetes estavam desalinhados, como se alguém tivesse estado a lutar em cima deles. Uma estante seccionada tinha sido virada e as várias portas de vidro dos respectivos compartimentos estavam abertas, espalhando os livros pelo chão. A porta do cofre encontrava-se aberta e alguns papéis que este continha estavam dispersos e amarrotados.

- Então? - inquiriu o sargento. - Que pensa disto?

- Está a pedir-me que colabore consigo? - sondei.

- Hum, hum! - respondeu de cenho franzido, numa confirmação simpática.

- Nesse caso - prologuei, considero elementar ter este cofre sido aberto, antes de Sharpies ser presumivelmente atacado.   Como   pode   verificar,   meu   caro Watson.

- Continue - animou Buda.

- Também observamos estar ali um elástico partido e uma pilha de sobrescritos aparentemente endereçados, numa   caligrafia   feminina - interrompi-me   para   pegar num dos sobrescritos , a Harry Sharpies. O nome do remetente, aposto ao canto superior esquerdo, é de uma tal Shirley Bruce que parece residir...

Buda arrancou-me o sobrescrito das mãos, dizendo:

- Você não está autorizado a tocar em nada.

- Os   sobrescritos  parecem  estar todos  vazios prossegui, e obviamente não se guardam sobrescritos vazios num cofre, de onde se conclui que as cartas que continham foram retiradas e levadas para outro lado.

- Quero que me dê fatos e não teorias – interveio Buda,

- Que espécie de fatos?

- Quem teria raptado Sharpies? !

Franzi o sobrolho admirado.

- Pensa que Sharpies foi raptado?

- Oh, não! - replicou Buda, com sarcasmo. - Lembrou-se de virar isto de pernas para o ar, partir umas

coisas, rasgar outras, sujar a alcatifa com tinta e, depois de tudo isso, dar uma volta em balão.

- Quer dizer que Sharpies desapareceu?

- Sharpies desapareceu.

- Nesse caso, como veio dar com isto? - indaguei.

- Uma das criadas procurou Sharpies, para dizer-lhe que podia ir jantar. Como não o visse noutro lado, veio a este gabinete e notou o estado em que tudo isto estava. Portanto, pensou que o melhor seria telefonar à Polícia.

- E  o sargento  trouxe-me  cá  para  interrogar-me?

- Exatamente. Conhece essa Shirley Bruce?

Fiz o gesto de tirar o lenço da algibeira e colocá-lo em cima da mesa.

- Que  raio  está  a  fazer  com   isso? – estranhou Buda.

Apontei-lhe para a mancha carmim que ressaltava do lenço.

- Veja - apontei. - Está a ver isso?

- Sim.

- Pois bem, é baton de Shirley Bruce.

Buda fitou-me com uma expressão de surpresa que, de certo modo, atenuava a irritação que o invadia.

- Como raio conseguiu você isso? - inquiriu.

Preferi responder-lhe indiretamente:

- É uma jovem impulsiva. Gosta das pessoas, ou detesta-as. É do gênero de adorar um indivíduo, ou odiá-lo. Quando me conheceu, gostou de mim, ou pelo menos deu-me a entender que gostava e bastante.

- Acho que devo visitar essa moça.

- Deve fazê-lo, quanto antes - aconselhei.

- Por que motivo lhe mostrou  ela tanta afeição?

- Não estou bem certo. Creio que pretendia que eu lhe fizesse um certo trabalhinho.

- Que espécie de trabalhinho?

- É melhor perguntar-lhe, já que a ética me impede que o denuncie. Por isso sugeri que fosse vê-la.

- Fez o que ela queria? - sondou Buda.

- Não.

O sargento apontou para a marca de baton no lenço e indagou:

- Mesmo depois disso?

- Nem sequer depois disso - declarei, muito sério

- Bem,  Lam, vamos  lá ver se me  ajuda. Não  há dúvida de que Sharpies é um tipo de posição e tem certos amigos influentes. Tinha uns negócios com Cameron e este foi   assassinado.   Em   seguida,  pediu   proteção  à Polícia...

- À Polícia? - estranhei.

- Sim. Queria que lhe fornecêssemos um guarda-costas.

- Estou a ver, deduzi. - A Polícia não levou o sujeito muito a sério, nem esteve na disposição de pôr-lhe um homem a reboque, dia e noite. Isso é trabalho para um detetive particular...  Com que então, foi primeiro à Polícia?

- Sim... não vejo onde está a graça.

Meti a gargalhadinha forçada na algibeira e respondi:

- Não tem nenhuma. Pensei  apenas que Sharpies quisesse manter-me colado a ele, sendo tudo o mais puro cenário...

- Não há dúvida de que percebeu não conseguir um guarda-costas da Polícia.

- Ele disse-vos de que diabo tinha medo?

- Foi muito vago.

- Pois... tinha de ser. Se realmente estivesse receoso de qualquer coisa grave, não deixaria de pô-la em pratos limpos.

- Deu  a entender que a  pessoa ou  pessoas que assassinaram   Cameron,   podiam   pretender   dar-lhe   o mesmo tratamento.

- Explicou porquê?

- Não.

- Insinuou, ao menos, algum motivo?

- Nenhum.

- E vocês não tiveram curiosidade em sondá-lo um pouco mais?

- Geralmente temos, mas,  neste caso,  não avançámos  muito, já que não estávamos na disposição de satisfazê-lo com a proteção pedida. Foi por essa razão queprocuramos obter alguns pormenores através de si, Lam. Faz alguma idéia do que se trate?

- Nenhuma, como já lhe disse. Um polícia meteu a cabeça pela ombreira da porta e anunciou:

- A outra está aqui.

- Faça-a entrar - ordenou Buda.

Ouvi logo a seguir passos pesados martelando o salão contíguo e um «chui» escoltou Bertha Cool até à porta.

- Queira entrar, Mrs. Cool, convidou o sargento.

Bertha olhou para ele com olhos esgazeados e depois fitou-me enfurecida.

- Que diabo se passa? - inquiriu.

- Pretendemos  algumas   informações – esclareceu Buda, e temos pressa nelas, Mrs. Cool.

Bertha olhou em redor e indagou, admirada:

- Mas que raio estiveram a fazer por aqui?

- Não  fomos   nós,   Bertha... sosseguei,  e   Buda elucidou:

- Aparentemente, Mr. Sharpies foi  vítima de  um assalto. Deve ter sido atacado e o fato é que desapareceu. Da última vez que foi visto, estava no seu quarto. A criada que lhe levou o chá, esta tarde, declarou que o viu a trabalhar em frente de vários papéis. Eram quatro horas. Notou que a porta do cofre já estava aberta, nessa altura.

- E que diabo tem isso que ver com a minha vida? Refilou  Bertha.

- É o que queremos descobrir.

A minha sócia olhou-me de relance e disparou:

- Pergunte aqui a este espertalhão das dúzias. Tem a mania de que sabe tudo. O Donaldinho vê tudo, ouve tudo e não diz nada. como o macaco sábio. É o raio do sócio que me coube na rifa.

- Bem, Mrs. Cool, conte-me o que sabe, na generalidade  - propôs Buda.

- Sharpies  veio   ao   nosso   escritório  e  encomendou-nos  um certo trabalho. Chamei o Donald e este encarregou-se  de tudo.

- Qual foi a sua função, como sócia, no presente caso?

- Fui  ao banco transferir o cheque para a nossa conta da agência.

- E depois?

- Sharpies declarou estar interessado em que Donald lhe servisse de guarda-costas, noite e dia, durante seis semanas.

- Por que motivo Lam se recusou a aceitar o trabalho?

- Não mo pergunte a mim. Esse tarado que lho diga. Provavelmente achou   que   o  cliente  tinha  mau  hálito, piorreia ou qualquer maleita secreta que uma senhora não deve mencionar. Sei lá?

- Não estou a pedir-lhe sarcasmos, mas fatos... interrompeu Buda.

- Está a pedir-me uma coisa que não tenho - replicou Bertha. - Também   eu   desejava saber   por  que razão o meu sócio deita o dinheiro da firma pela janela fora.

- E   também   nada   sabe   acerca   disto? – inquiriu Buda, num gesto  largo que abrangia todo o aposento.

- Não sei nem quero saber e, se pensa que vou arrumar  toda esta tralha, está muito enganado.

- Creio que é tudo - resmungou o sargento abrindo a porta para nos deixar sair. Em seguida, fechou-se lá dentro.

Enquanto nos encaminhávamos para a saída, Bertha começou a arengar-me:

- Nada disto teria acontecido, se você...

- Cale o bico - ordenei. - Tudo aquilo foi forjado.

- Porque pensa isso?

- Você já atirou alguma vez uma estante daquelas ao chão?

- De que raio está a falar?

- Da   estante   de   compartimentos com   portas   de vidro.

- Você está maluco, não está, Donald? Nunca tive uma coisa daquelas e se a tivesse, não me punha a fazer karate com ela.

- Okay!

- Okay, o quê?

Mantive-me calado e Bertha, já roída de curiosidade, adoçou a voz:

- Vá lá, Donald querido, não amue com a Bertha. Conte lá o que se passa com essa estante.

- Quando tiver uma à mão, experimente atirá-la ao chão - insinuei.

- Vá para o diabo! - explodiu ela. - Que raio de conversa é essa? Às vezes apetece-me dar-lhe com uma tranca na cabeça e estrangulá-lo com as minhas próprias mãos.

- Se   alguém   atirasse   abaixo   uma   estante   deste tipo... um lindo armário de portinhas de vidro, estas estilhaçavam-se completamente. Note que as portas estão abertas, ainda por cima. Ora quem o pôs nessa posição, fê-lo com jeito...

- Para não o estragar?

- Não Bertha. Para evitar fazer ruído.

- Raios o partam, Donald!  Não há dúvida de que tem miolos.

- Os livros foram espalhados pelo tapete - continuei, mas nenhum deles ficou aberto, ao cair da respectiva prateleira. As cadeiras ficaram todas na mesma posição, com as costas contra o chão, e o tinteiro, se tivesse sido  projetado de  cima  da  secretária  para  o tapete, tinha espalhado tinta pelo caminho. Ora nada se vê no trajeto da queda. Apenas se entornou no chão.

- Pronto, tem razão - concedeu Bertha. - Trata-se de  uma falsificação do cenário. Sharpies  deve ter-nos roído a corda. Amanhã vão abrir uma porta entre o seu novo apartamento e o nosso e Elsie Brand passa a ser sua secretária privativa. Que mais quer, Donald?

- Duas semanas de férias - declarei, no momento em que entrávamos no carro da agência.

- O quê?

- Vou para a América do Sul. Sempre ambicionei ver essa região.

Bertha deu um salto no assento do carro e os amortecedores rangeram convulsivamente.

- Que raio está para aí a disparatar? - rugiu. – Era o que faltava, seu meia-leca ordinário! Vai de férias mas é para o Inferno. Se eu não precisasse da sua cabeça, era eu mesma quem lhe dava cabo dela. Diabos o levem!

- Quer ir para sua casa, ou para o escritório? indaguei,  atencioso.

- Para o escritório - berrou Bertha com os olhos fora das   órbitas. - Alguém   tem   de   trabalhar naquela maldita firma!

 AVISO A 5000 METROS DE ALTITUDE

O grande avião voava a 5000 metros de altitude. Lá longe, a oriente, começava a matizar-se uma tênue claridade.

 Os passageiros dormiam recostados nas cadeiras inclinadas, salvo um deles, perto da cabina de pilotagem, que mantinha a luz acesa e lia um jornal impresso em castelhano.

A certa altura, pequenos poços de ar fizeram o avião estremecer ligeiramente. O céu, a leste, iluminou-se numa explosão de luz, quando o Sol rompeu a barreira do horizonte. Pela janela pude avistar, lá em baixo, pedaços verde-escuros de floresta, que rompiam por entre as nuvens. Finalmente, da pequena cozinha de bordo chegou-me  o aroma de café fresco. Os passageiros começaram a despertar, as hospedeiras  abordaram-nos com o café e pão quente e o homem sentado a meu lado sorriu-me sociavelmente e disse:

- Sabem bem, hem?

Era um tipo alto, forte e ossudo, sem gordura a mais, que devia andar pelos cinquenta e picos. Tinha um olhar penetrante e devia conhecer a região que sobrevoávamos. Horas antes, ouvira-o falar castelhano com um sul-americano.

- Vem mesmo a calhar - concordei.

- É uma boa psicologia esta a que aplicam no tratamento dos passageiros. Geralmente, nas viagens de avião, uma pessoa sente-se deprimida, ao amanhecer. Não é a mesma coisa do que viajar de noite num comboio, em que se acorda com «os pés no chão», por assim dizer; enquanto que nos transportes aéreos, sobrevoando nuvens e floresta densa, o bicho terrestre sente uma constrangedora  insegurança.  Portanto  é deveras  acertado  este «bom-dia»  de cafezinho quente e sorrisos joviais das hospedeiras.

- Já tem feito esta viagem, mais vezes?

- Hum, hum... Daqui a pouco acaba-se a floresta do litoral e surgem as montanhas. Em breve verá o Sol transformar  tudo isto num encanto verde, com laivos de amarelo,  recortado pelos rios, salpicado de picos rochosos negros  e  cinzentos...   Parece uma  flor a desabrochar, espreguiçando as pétalas.

- Vejo que tem uma clara sensibilidade poética apreciei.

O homem, nitidamente anglo-saxão, mas de tez bronzeada  pelo sol, tornou-se sério e declarou:

- Creio que uma pessoa que tenha vivido na Colômbia,  acaba por apreciar, de uma maneira mais intensa, as coisas belas da vida.

- É natural da Colômbia? - interessei-me.

- Não nasci cá, mas vivo em Medellin há trinta e cinco anos.

- Que tal é o lugar?

- Lindo. Os Andes são sempre verdes e belos. O ar da montanha é puríssimo e fresco. Os vales são fertilíssimos e o clima é maravilhoso. À distância que nos encontramos  do  equador,  as  mudanças de temperatura  são muito pouco sensíveis... a amplitude térmica é deveras reduzida, o que nos dá um perfeito equilíbrio... Depois, sabe?... As orquídeas nascem aos milhares, por todo o lado. A água brota da terra, em ribeiras, torrentes, cascatas maravilhosas... Bem, desculpe-me este entusiasmo. Receio tornar-me  ridículo,  como um  folheto de propaganda  turística...

- Deve, portanto, conhecer imensa gente em Medellin,  não? - sondei.

- Conheço toda a gente Formamos um grande grupo intimamente relacionado.

- A população é pequena?

- Creio não me ter explicado bem... Referia-me aos norte-americanos   que   aqui   vivem.   Constituímos   uma espécie de clube, não sei se me entende?... Começam por vir para cá como gerentes ou como técnicos, provenientes dos Estados Unidos e, a pouco e pouco, vão-se fixando,   à   medida   que   promovem   empreendimentos pessoais   e   negócios   internacionais.   Gradualmente  vamo-nos  relacionando  com  os   nativos e  acabamos   por aprender-lhes a  linguagem...  embora haja compatriotas nossos que conseguem viver por cá mais de quatro anos, sem proferirem uma única palavra de castelhano.

- Conheci um homem, numa reunião, que me elogiou muito este país. Creio que era administrador financeiro, ou proprietário de umas minas... Cameron...

- Bob Cameron?

- Sim, tenho realmente a impressão de que o seu primeiro nome era Bob... Robert Cameron.

- Sei muito bem quem é, conquanto o não tenha visto nos últimos tempos. Ele está ligado à administração de um fundo financeiro dos herdeiros de Cora Hendricks. É um bom tipo.

Franzi as sobrancelhas, como que fazendo um esforço para recordar e disse:

- Exatamente.  Creio que  ele  mencionou  ter um parceiro nessas  funções...  Sharper,  ou qualquer coisa nesse gênero...

- Sharpies - corrigiu o outro. - Esse não vem cá tantas vezes. Quando muito aparece duas ou três vezes por ano.

- Que espécie de minas são essas?

- Não sei bem... Como disse que se chamava?

Eu nada lhe tinha dito, mas apresentei-me:

- Lam.

- Eu chamo-me Prenter... George Prenter. Para onde vai?

- Se quer que lhe diga francamente, não sei. Desejaria  encontrar qualquer coisa interessante para um pequeno investimento... Tenho algum dinheiro de parte... não muito...  Pretendo portanto dar uma vista de olhos pelo território...

- Qual a sua primeira paragem?

- Não tenho destino certo. Já que me falou em Medellin,  posso começar por aí.

- Vai ver como não fica desapontado. As pessoas são encantadoras, no nosso grupo. Bem, não pense que vai encontrar velhas famílias aristocráticas. Na maioria são burgueses que se adaptaram a este tipo de vida tropical,  formando  uma  sociedade  à  parte.  Decerto,  não conseguirá ser logo recebido em casa deles, de pé para a mão, mas ao cabo de alguns dias, sentir-se-á muito bem acolhido, começando a choverem convites para se lhes reunir.

- Como se divertem por cá?

- Dessa maneira, reunindo-se, ora em casa de uns, ora em casa de outros. Todos eles trabalham nos seus negócios, mas à noite encontram-se e, nos fins-de-semana fazem um pouco de desporto, dão largos passeios... entretenimentos deste tipo... compreende? Nada de vida noturna.  Isso não existe por aqui. Em compensação fomentam-se  amizades que acabam por tornar-se muito sólidas e úteis. A verdade é que, no seu conjunto, têm mais cultura, mais cortesia e interesse mútuo do que a grande maioria dos norte-americanos, Exatamente porque vivem longe do seu país, formando um núcleo em terra estranha. Em vez de hostilizar-se, apoiam-se.

- Pareceu-me que Cameron estava a fazer bastante dinheiro, por cá - insinuei.

- Se quer que lho diga, não sei muito acerca dos seus negócios. É um tipo muito calado.

- Também conheci uma certa Mrs. Grafton... Creio que ela também é destes mesmos lados. Conhece-a? sondei.

- Refere-se   certamente   a   uma   Juanita   Grafton. É viúva de um técnico mineiro, falecido há anos num acidente qualquer...

- Sim, estou agora a lembrar-me de que me referiu algo nesse sentido. Fiquei até com a impressão de que vivia nos Estados Unidos, como uma ricaça...

- Está a fazer confusão, Mr. Lam - retificou o meu parceiro. - Passa-se precisamente o contrário. Juanita é natural daqui e parece que trabalha na América do Norte, como uma moura... governanta, ou qualquer coisa assim, para vir passar, depois, algumas temporadas, como uma grande dama. É uma espécie de cigarra e de formiga incorporadas na mesma pessoa. Vai para lá ganhar, economizando quanto pode, para vir depois gastar desafogadamente  o  dinheiro  arrancado  à  força  do  seu trabalho. Quando vem a Medellin, não mexe um dedo, mas queixa-se de «labutar como uma escrava, lá no Norte», como ela diz.

- Tem a certeza disso? admirei-me. - Não é realmente em Medellin que ela trabalha, para gastar o seu dinheiro nos Estados Unidos?

- De maneira nenhuma! Aqui, até vai acumulando uma boa maquia, em depósitos bancários. É realmente uma mulher de extraordinária força de vontade, para conseguir  viver dessa maneira.

Durante alguns momentos, permanecemos calados, enquanto voávamos por cima de altas montanhas.

- Daqui a pouco - anunciou Prenter, vai ver um magnífico lago, com uma série de casas à volta. É um cenário maravilhoso. Estamos entrando na «cintura» do café. Não deixará de apreciar o café colombiano. Nada amargo, com um aroma fabuloso... Uma bebida aromática, gostosíssima, em nada comparável com a mistura que nos servem nos Estados Unidos. A Colômbia, como sabe, é fertilíssima, com grandes explorações agrícolas.

- Não  sabia.  Tinham-me  falado  especialmente na exploração mineira... Não é aqui que extraem esmeraldas da terra?

- Exatamente.

- Não será possível obtê-las a um preço barato?

- O melhor é não pensar nisso. Lá poder arranjá-las, pode, mas é perigoso ser apanhado a levá-las de cá para fora.

- Porquê?

- Porque   o   Governo   controla   essa   exploração   e também o seu comércio internacional.

- Nesse caso não poderei fazer investimentos, nesse campo.

Prenter  fitou-me  perscrutadoramente  e  respondeu com estranha secura:

- Não.

- Hum,  hum - emiti,  compreendendo. - Falou-me com tanto entusiasmo do país que ainda mais aumentou a  minha curiosidade.  Não  conhece  porventura  um  tal Robert Hockley?

- Não. Que faz ele?

- Não sei bem... Creio que tem rendimentos provenientes de uma propriedade situada para estes sítios...

- Que   espécie   de   rendimentos?...   Propriedades?

- Também  não  posso precisar...  Conheço-o vagamente.

Prenter abanou a cabeça negativamente e calou-se.

Depois de sobrevoado o lago, o nosso avião descreveu uma larga curva e preparamo-nos para aterrar em Guatemala.

Depois desta paragem, Prenter mostrou-se pouco loquaz. A certa altura, após termos retomado o vôo, inquiri:

- A seguir, é Panamá, não é verdade?

- Já falta pouco - esclareceu.

Novo silêncio demorado. Subitamente, Prenter encarou-me  e disse:

- Penso ser minha obrigação dar-lhe um conselho.

- Ficar-lhe-ei agradecido.

- Não abra o bico acerca de esmeraldas.

Fitei-o evidenciando a maior das surpresas.

- Porquê?... Que mal há em falar de esmeraldas? -indaguei.

- É   monopólio  governamental.  Aqui,  controlam  o comércio de todas as esmeraldas que andam por esse mundo. Se começar a mostrar-se interessado nesse tipo de investimento, de que o Governo possui, praticamente, o domínio do mercado, podem-se-lhe deparar verdadeiras dificuldades. Agora que estamos a caminho do Panamá, devo avisá-lo de que não deve abrir a boca a esse respeito.  As autoridades   locais,  se   o   pressentirem   interessado  nesse assunto, são capazes de arranjar-lhe maneira  de lhe interditarem a entrada no país.

- Quer dizer que não aceitam o meu passaporte dos Estados Unidos?

- Oh, não! Nada tão às claras. Vai entrar numa terra de cordialidade e diplomacia, mas descobrirá que a sua documentação se encontra com certas imprecisões técnicas,  de vistos, ou qualquer coisa nesse gênero. Pense nisso - advertiu.

- Pode estar descansado - prometi , e obrigado.

- Não tem de quê... Não sei realmente qual é o seu objetivo desta viagem, mas o melhor que tem a fazer é fazer-se mero turista. E agora, vou descansar um pouco. Bom dia.

Dito isto recostou-se e fechou os olhos, adormecendo ou fingindo dormir, até que nos mandaram apertar os cintos para a aterragem. Mesmo nessa altura, não fez o menor comentário. Foi apenas com um brevíssimo aceno de cabeça que se despediu de mim, ao pormos pé em terra.

NUM SARILHO EM ESPANHOL

Aquela informação sobre a provável atitude das autoridades panamianas, foi-me muito útil. Ajudou-me a manter os olhos bem abertos e a travar a língua. A Polícia  local trabalhava lentamente, mas com uma perfeição que demonstrava ter todas as suas peças muito bem oleadas.

Respondi a todas as perguntas convenientes e tive a satisfação de voltar ao avião, sem sentir um funcionário bater-me afetuosamente nas costas para informar-me de que os meus papéis não estavam perfeitamente em ordem. Nesta última parte da viagem para Medellin, George Prenter tivera o cuidado de não se sentar a meu lado, o que poderia justificar-se pelo fato de haver agora mais lugares vazios e alguns até junto das janelas. Preferiu  um destes.

Antes de chegarmos ao nosso destino, entretive-me a admirar a magnífica paisagem e, como comprara um dicionário de Inglês-Espanhol, tratei de aperfeiçoar algumas  frases. Já em terra, isso ajudou-me a tomar um táxi, a ir para um hotel do centro da cidade, a trocar alguns cheques de viagem e a apresentar-me no Consulado dos Estados Unidos. Depois fui à Polícia e um inspetor, Señor Maranilla, entregou-me uma carta do capitão Frank Sellers. Rezava assim:

Caro Donald,

Bertha anda a ferver a alta pressão. Não sei bem em que negócio você me meteu, mas creio que está numa boa pista.

Robert Hockley arranjou um passaporte, comprou um bilhete de avião para Medellin e desapareceu. O seu bilhete permitia-lhe Ir até ao Panamá. Aí, embora o comandante do aparelho tivesse esperado por ele quase uma hora, a verdade é que nunca mais foi visto. Houve muita comoção, mas de Hockley nem vestígios.

Ora, meu caro Donald, você viu o tipo e pode identificá-lo em qualquer lugar. Estive em contato com a Polícia de Medellin e espero que você se lhe apresente, para ajudar os meus colegas daí a descobrir o desaparecido... Pelo menos, foi esse o pretexto que inventei, para justificar ter-lhe arranjado o passaporte oficial de urgência. Telegrafe-me,  se descobrir qualquer coisa de jeito.

Li a carta e senti-me mais animado, já que andávamos todos mais ou menos interessados no mesmo indivíduo, além de que o cicerone que eu precisava se punha ao meu dispor. O Señor Rudolfo Maranilla era pequenino, geniquento e de movimentos rápidos. Tinha os olhos orlados de pés-de-galinha,  cantos dos lábios ligeiramente erguidos, num eterno sorriso, mas a sua expressão de jogador de póquer dava-lhe um ar de tipo difícil de enganar.

Ouviu a história que lhe contei e inquiriu num inglês excelente:

- Está portanto interessado em fazer alguns investimentos,

 Señor Lam?

- Exatamente.

- Em propriedades mineiras?

- Creio que sejam as que oferecem melhores vantagens.

- E quer dar uma vista de olhos pelas que já estão em plena exploração, não é verdade?

- Precisamente.

- Bem, vamos facultar-lhe essas visitas. Há alguma que deseja visitar, em especial?

- É a primeira vez que cá venho - expliquei. – Não estou familiarizado...

- Mas conhece esse Robert Hockley, não é assim?

- Já falei com ele uma vez.

- E esse seu conhecido está igualmente interessado em minas?

- Creio que está. Consta-me que é um dos beneficiários do fundo legado por Cora Hendricks. Os testamenteiros desse  fundo  são   Robert Cameron   e   Harry Sharpies... ou melhor, eram, porque o primeiro foi recentemente  assassinado.

- É  verdade,  Señor Lam, que  infelicidade!  Pobre señor Cameron. Conheço bem as propriedades de que são administradores e estou às suas ordens. O meu carro está pronto a levá-lo até lá, amanhã, às nove horas da manhã. Irei consigo e teremos um motorista, de maneira que   podemos   conversar   descontraidamente,   sem   nos preocuparmos com a estrada.

Quando deixei o comando da Polícia verifiquei que tinha dois tipos a seguir-me para todo o lado. Aquele clima, que todos elogiavam, parecia-me abafado e sinistro. As estradas que saíam para fora da cidade estavam pejadas de caminhantes, e não se via qualquer aldeia ao pé. Deviam fazer aqueles longos percursos diariamente, para poupar alguns centimes de autocarro e lembravam formigas, carregadas com os mais diversos fardos. Não se entendia uma só palavra do que diziam, pois só falavam um espanhol característico, mas também lhe imprimiam uma velocidade estonteante. Pareciam pobres, mas altamente orgulhosos. Caminhavam de dorso ereto e queixo levantado.

No dia seguinte, tomei o pequeno-almoço às sete e meia da manhã: um sumo de qualquer fruto, meio doce, meio picante, bananas que sabiam a ananás, uma bela farte de abacate e papaia com sumo de toranja. Depois, ovos quentes à la coque, tosta Melba e café colombiano, que era negro na chícara e ambarino na colher, realmente muito agradável.

Quando terminei esta suculenta refeição, já não me importava que todo o Exército da terra estivesse à minha espera.

Mal soaram as nove horas nos sinos das igrejas, o automóvel do Señor Maranilla parou em frente do hotel. O homem saiu do carro, com a mão estendida na minha direção saudando efusivamente:

- Buenos dias  señor proferi eu,  civilizadíssimo.

- Bom dia, Mr. Lam - retribuiu na sua voz melodiosa.

O motorista pegou na minha mala e colocou-a no porta-bagagens, enquanto me instalei confortavelmente no banco de trás, ao lado do meu companheiro. Durante algum tempo cruzamos uma planície, quase sem trocarmos impressões. Depois, a paisagem alterou-se e penetrámos nas curvas de um Canyon de solo avermelhado, coberto de abundante vegetação. Em breve estávamos

 completamente rodeados de floresta e as curvas,ora ascendentes, ora descendentes, surgiam cada vez mais apertadas. Maranilla terminou o seu sexto cigarro e fitou-me interrogativamente.

- É uma paisagem extraordinária - apreciei.

Não comentei, contudo, a maneira como o motorista guiava. As rodas guinchavam no asfalto, parecendo a todo o momento irmos despenhar-nos num desfiladeiro. O homem ia agarrado ao volante, hirto, com os olhos fixos na estrada. Seguíamos a uma velocidade assustadora,  pelo meio da estreita via, cavalgando as duas faixas de rodagem.

- Aqui - elucidou Maranilla, se um carro sai da estrada e se projeta por aí abaixo, só por acaso conseguimos  dar com ele.

- O seu motorista guia muito depressa, não acha? - observei, cada vez mais preocupado com a sua estranha imobilidade, como que pregado ao assento, enquanto as mãos faziam o volante correr de um lado para o outro, constantemente.

- Conhece   o   caminho   perfeitamente – sossegou Maranilla.

- Não há perigo que venha outro carro, em sentido contrário?

- Ele saberá evitá-lo.

Se o meu coração já ia contraído, do tamanho de uma ervilha, pior ficou, quando sucedeu o que eu preconizara. Uma camioneta surgiu subitamente da curva e andamos, uns belos segundos, com as rodas da direita, escavando a poeira da berma, rente ao precipício. Quando consegui retomar fôlego, atravessávamos uma pequena vila de montanha, sem parar, e tomamos então uma outra estrada secundária, muito mais estreita e suja.

Estava a suar por todos os poros e despi o casaco, o calor aumentava gradualmente com a subida do Sol. A meio da manhã atravessámos uma ponte sobre um ribeiro torrentoso, mas com pouca água naquela época do ano, como o meu companheiro esclareceu. Deixámos para trás mais uma aldeia e parámos junto a uma grande cancela de madeira, onde se via uma tabuleta quadrada indicando: Mina do Trevo Duplo. Tinha também um emblema constituído por uma ferradura e dois trevos, brotando de um mesmo pé e pintados a verde.

As poucas casas que se avistavam tinham sido reparadas, mas denunciavam já ter mais de cinquenta anos. Outras, apenas repintadas, não teriam mais de vinte. Um homem alto e magro, com o fato manchado de branco, veio receber-nos. Era Felipe Murindo, gerente da mina. Aparentemente não falava inglês. Eis uma dificuldade com que eu não contara. O Señor Maranilla falou em castelhano e Murindo virou-se para mim e apertou-me a mão. Depois, o inspetor colombiano manteve nova palestra com o gerente, acabando por traduzir-me parte dela:

- Expliquei a Murindo que você é um amigo dos administradores e que veio à Colômbia, para visitar a mina.

- Isso é absolutamente exato! exclamei, para o caso de Murindo compreender um pouco de inglês.

- Não se canse - interveio Maranilla. - Com esta gente não vale a pena entrar em pormenores. Dizemos-lhes o que pretendemos, limitando-nos a prestar-lhes as indicações necessárias. Mais do que isso é tempo perdido.

Contudo, pareceu-me que a conversa entre eles fora bastante prolongada, quase em forma de interrogatório a que Murindo respondia predominantemente com negativas.  Demos uma volta pela mina que me pareceu instrumentalmente  primitiva.

Depois, o gerente explicou como se «lavavam» as terras, derramando a lama obtida para umas caixas, equipadas com uma espécie de filtro, onde se detinha o ouro, entre resíduos de areia. Maranilla traduzia tudo, pacientemente.

Voltamos para o escritório onde, uma hora antes, havíamos «desembarcado». Subitamente apareceu um carro desconjuntado, fazendo um ruído de chapas e de motor decrépito, fortemente audível desde as últimas curvas da estrada. Vi sair dele um indígena que se dirigiu à janela traseira,  gesticulando em enérgica discussão. Alguém, no assento dos passageiros, tentava abrir a porta e movia-se lá dentro convulsivamente. Então, com a maior surpresa, vi de relance, através do vidro, o rosto transpirado, vermelho  e furioso de Bertha Cool.

O   motorista   nativo falava  em  espanhol   e   Bertha  berrava:

- Afaste esse raio de cheiro a alho da minha cara e abra esta maldita porta.

O homem recusava-se a fazê-lo. Então Bertha, com um dicionário em punho, acabou por conseguir dizer-lhe:

- Abra la puerta. Estoy apressurada.

Foi   um  brilhante  esforço,  mas  vão.  Entretanto,  o señor Maranilla perguntou-me:

- É uma amiga sua?

- Porquê?... Sim.

E corri para a delapidada carripana. Ao ver-me, Bertha gritou-me:

- Abra-me esta maldita porta.

- Olha, quem ela é! A minha amiga, Mrs. Cool! exclamei, jovialmente.

- Tire-me daqui, Donald - suplicou ela, ou parta-me  estes vidros.

- Vim até cá visitar a mina de que Robert Cameron e Harry Sharpies eram administradores. O Señor Maranilla,  inspetor da Polícia Estadual, teve a amabilidade de conduzir-me até cá. É a Mina do Trevo Duplo. Uma maravilha...

Iradamente, Bertha rugiu:

- Cale-se lá com esse falatório e rebente-me com esta porta.

- Se me dá licença - interveio Maranilla, creio que esta senhora precisa da minha intervenção. Quer um intérprete? - ofereceu-se, gentilmente.

- O intérprete que vá para o diabo! - berrou Bertha. - Quero é sair daqui.

- Este cavalheiro - elucidou  Maranilla, apontando para o indígena , quer que a senhora lhe pague uma diferença de débito de cinco pesos.

- Qual cinco pesos, qual carapuça! Este tipo é um mentiroso. Falei-lhe em espanhol e disse-lhe precisamente para onde queria vir. O filho da mãe quis que lhe pagasse uma ida e volta adiantada e caí nessa esparrela. Agora quer mais dinheiro. O vidro está perro e não abre. As portas também estão fechadas à chave, ou então só abrem pelo lado de fora. Que raio de negócio é este?

- Mas há uma diferença de doze milhas, entre a vila e a mina - explicava Maranilla. traduzindo as justificações do motorista.

- Mesmo que assim seja, cinco pesos é caro de mais para doze milhas - protestou Bertha.

- Ele diz que, se não quiser pagar-lhe, torna a levá-la para a vila.

Tirei cinco pesos do bolso e entreguei-os ao homem. Este sacou de uma chave e abriu a porta do carro.

- Muchas gracias - agradeceu ele. - La señora és también mui graciosa.

- Está a dizer que a senhora é muito amável, traduziu  Maranilla.

- Se soubesse falar a língua desse estupor refilou Bertha, dizia-lhe onde devia meter o «amável».

Momentos depois, Maranilla explicava:

- Conheço esse motorista, há muitos anos. Arranjou as portas de maneira que só podem abrir-se com uma chave, do lado de fora. Dessa maneira consegue evitar que os seus clientes se raspem sem pagar, o que já lhe aconteceu muitas vezes. Espero que a sua amiga  não tenha ficado aborrecida.

Não valia a pena elucidá-lo quanto ao que Bertha sentia naquele instante. Expressava-o brilhantemente, com os olhos desorbitados e suando às estopinhas.

Felipe Murindo disse qualquer coisa a Maranilla que se apressou a esclarecer Bertha:

- O gerente da mina diz que as suas instalações aqui, embora modestas, estão à sua disposição, minha senora.

Bertha, com duas grandes malas de viagem aos pés, arfava de indignação. Percebia-se que tinha descido do avião, enfiado no decrépito veículo e atravessado a floresta, de uma assentada.

Entrámos no escritório da mina, onde havia uma casa de banho com abundante água fresca. Bertha pegou num COPO e bebeu-o por duas vezes, quase sem tomar fôlego. Depois, desabafou:

- Apre! Já me sinto melhor... mas não muito!

Deixou-se cair numa cadeira de verga que resistiu ao impacto e resmungou:

- Meu Deus! Que lugar este onde vim enterrar-me.

Rudolf o Maranilla indagou diplomaticamente:

- Creio não ter compreendido inteiramente qual o objetivo da sua visita, senora...?

- Só se soubesse ler os pensamentos, é que poderia compreendê-lo. Sou Bertha Cool.

Nesse momento, Maranilla disse:

- Já venho.

Saiu dirigindo-se ao motorista, que pusera o motor a trabalhar,  e   Bertha  perguntou-me,  apontando Murindo:

- Esse tipo fala inglês?

- Não,  aparentemente,  mas não  podemos  confiar nestes tipos. Justifiquei a minha presença na mina, com o pretexto de estar interessado em fazer um pequeno investimento numa qualquer exploração deste gênero.

- Bem - replicou Bertha , não vim aqui para deitar dólares aos pássaros. Esta viagem vai ser paga com o dinheiro da agência.

- Sem mencionar nomes, adverti-a, parece que alguém está interessado em que façamos um trabalho especial, não é isso?

O indígena partira e Maranilla falava agora com o motorista que nos trouxera.

- Nem sei bem no que estamos a trabalhar neste momento - explodiu   Bertha. - Quem   são   esses   dois gorilas, aí fora?

- Um deles é muito esperto, Bertha - avisei , e o outro, provavelmente também o é, embora não pareça.

- E este gerente?

- Também não deve ser parvo.

Felipe Murindo sentou-se e começou a enrolar um cigarro. Acendeu-o e sorriu-nos.

- Você fala espanhol, Donald?

-O pouco que sei não serve para falar - desiludi-a.

Bertha puxou do dicionário e disse, pouco depois:

- Cer-ve-já!

 Lentamente Murindo explicou que só tinha cerveja quente.

- Era só o que me faltava! - protestou Bertha. Cerveja quente! Esse tipo, lá fora, é da Polícia?

- Hum, hum - confirmei.

- E o outro é motorista?

- Provavelmente é mais do que isso. Deve ser seu ajudante.  É  melhor  arranjar uma justificação para ter vindo até cá, aconselhei.

- Essa é boa! Sou uma cidadã dos Estados Unidos, no pleno direito de fazer turismo.

- Não a este canto especial da terra. Veio em missão especial?

- Sim, recebi instruções do nosso cliente.

- Falou   com   ele   pessoalmente? - inquiri,   pois sabíamos ambos que ele desaparecera.

- Por carta - elucidou ela.

Calámo-nos, porque ouvimos os motores de dois automóveis. Num deles, estava Maranilla, ao lado do seu parceiro e no outro, acabado de chegar, tão velho como o que trouxera Bertha, vinham dois homens de espingarda, entre as pernas, a baioneta calada, fardados de caqui. Um outro, também uniformizado, estava sentado ao lado do motorista. No meio dos detrás, vinha Harry Sharpies; no meio dos da frente, Robert Hockley. Qualquer deles parecia ter perdido a própria roupa interior nas corridas de cavalos.

- Macacos me mordam! - exclamou Bertha ao avistá-los.  Que raio vieram fazer aqui?

Maranilla, devia ter mudado de idéias, pois desceu do seu carro e veio ter conosco. Com uma cortesia do Velho Mundo, ofereceu a Bertha um cigarro e disse:

- Permite-me que me sente?

Bertha olhou para ele, pasmada. O motorista de Maranilla  entrou também no escritório.

Virando-se para mim, Maranilla inquiriu:

- Está   portanto   interessado   em   propriedades   de exploração mineira, Señor Lam?

Confirmei, com um aceno de cabeça.

- A informação que acabamos de receber - disse o inspetor, é ligeiramente contrária. Sabemos ser um detetive particular e que esta senora, que veio num avião logo a seguir ao seu, é sua sócia, Mrs. Bertha Cool.

O motorista de Maranilla interveio para esclarecer:

- Fomos também informados de que o Señor Lam, durante a viagem, fez várias perguntas acerca de esmeraldas. Estamos interessados no seu interesse.

- A quem tenho a honra de falar? - inquiri diplomaticamente.

- Ramon Jurado. 

-Da Polícia?

- Não.

Maranilla resolveu explicar:

- Pertence a uma organização do Estado, acima da Polícia. Serviu-nos de motorista para saber o motivo da sua visita.

- Represento   o   Governo - confirmou   o  outro. Tudo  quanto   diz   respeito   a   esmeraldas   interessa-me muito.

- Estou a ver, murmurei.

- Que foi que a trouxe aqui, señora Cool? – indagou  Jurado.

- Não tem nada com isso - retorquiu Bertha.

- Ainda bem, ainda bem! - replicou ele.

- Ainda bem o quê?

- Que não tenho nada com isso. Porque se o motivo se relaciona com esmeraldas, pode estar certa de que tenho... e muito.

Bertha fechou a boca e Jurado decidiu:

- Creio  ser  melhor  começarmos  a  interrogar os outros.

Maranilla deu algumas ordens para o exterior e os guardas tiraram Sharpies e Hockley do carro e empurraram-nos nada amavelmente, com as coronhas, para o local onde nos achávamos.

- Queiram sentar-se - disse Maranilla.

Jurado tornara a resumir-se à sua situação de motorista apagado.

- Qual dos señores é responsável por a señora Cool se achar entre nós?

- Nunca a vi antes - declarou Sharpies.

Hockley limitou-se a encolher os ombros.

- Então, então, cavalheiros - animou Maranilla.  Isso complica a vossa situação. Sugiro que comecem a cooperar conosco.

- Raios! - exclamou Hockley. - Lam pode explicar-lhes o que se passa. Vim cá para averiguar os negócios deste velho.

Com o queixo apontou para Sharpies.

- Muito  bem,  muito  bem - aplaudiu  Maranilla.  Mr.  Lam pode responder por Mr. Hockley e provavelmente  Mr. Sharpies pode responder por Mr. Lam.

Sharpies começou a falar em castelhano e Maranilla cortou-lhe o discurso:

- Fale inglês, por favor, Senhor Sharpies.

- Eu nada tenho a ver com os negócios desses três - interrompeu Hockley, mas  Maranilla fê-lo calar com um gesto. Depois de consultar Jurado, de relance, disse:

- Soubemos que algo de peculiar se passava com esta mina. E soubemos outras coisas, como por exemplo, que o mercado de esmeraldas não tem estado normal. Têm saído muitas pedras, da Colômbia, sem que o nosso Governo tenha tomado conhecimento dessa exportação ilegal.

Vendo uma interrogação no meu rosto, prosseguiu:

- É proibido a qualquer pessoa, neste país, possuir esmeraldas em bruto, ou seja, não lapidadas, sem autorização especial do Governo. E é um crime grave exportá-las para além-fronteiras. Ora há uma maneira especial de se lapidarem as nossas esmeraldas que permite verificarmos  se  surgem  outras,  no  mercado  internacional, que não apresentem a nossa, chamemos-lhe «marca» de lapidação. Deste modo certificamo-nos da existência de contrabando.

Esbocei um sinal de que começava a compreender. Com um rápido e disfarçado piscar de olho, Maranilla prosseguiu:

- Aqui o Señor Sharpies, tem feito várias viagens à Colômbia e considerávamo-lo fora de suspeitas.  Desta vez, porém, revistámos-lhe a bagagem e... será preciso que lhe mostremos o que nela achamos?

Esta última frase interrogativa destinava-se a Sharpies. Este umedeceu os lábios com a língua e rouquejou:

- Nada tenho a declarar a esse respeito.

Maranilla tirou de uma algibeira um estojo de pele de aligator, extraindo dele um saquinho de camurça. Bertha inclinou-se para diante, sem dissimular uma intensa avidez no olhar.

Parecia ter nascido um lagozinho cintilante e verde» no pequenino saco de camurça.

- Ora   acontece - continuou   o   inspetor,   que alguns agentes governamentais descobriram uma certa escavação do outro lado do monte onde se situa a mina de ouro desta propriedade. Enviámos um geólogo especialista em esmeraldas e foi com grande surpresa que este descobriu, em algumas rochas removidas, umas pedras de invulgares dimensões e qualidade... esmeraldas, bem entendido. Noutra expedição secreta a esta mina, concluiu tratar-se de um dos mais fartos filões que

ultimamente se conhecem.

- Nada sei acerca disso, declarou Sharpies, acrescentando,  após pigarrear nervosamente: - Essa escavação  encontra-se realmente nesta propriedade?

- Sim e tem sido explorada, nos últimos três anos... talvez quatro.

Sharpies virou-se para o gerente da mina e ia a abrir a boca, quando Maranilla se interpôs:

- Nada de espanhol.

Sharpies calou-se. O inspetor prosseguiu:

- Os nossos agentes nos Estados Unidos começaram a investigar o que se passava e descobriram um corvo deveras interessado em esmeraldas e também um homem que fora assassinado junto de um pingente a que tinham sido extraídas as respectivas esmeraldas, e ainda um detetive particular que se mostra muito interessado em pedras preciosas dessa mesma natureza. Concordará, señor Lam, que tiveram razão em ficar perplexos, para não dizer desconfiados.

Sorri discretamente, confirmando o que Maranilla expunha, com um breve aceno de cabeça. O inspetor continuou:

- Entretanto, os nossos agentes mantinham o señor Jarratt sob cuidada vigilância, notando que as atividades deste intermediário se revestiam de grande discrição e interesse. Ora o Señor Lam também parecia investigar os negócios do Señor Jarratt.

Virando-se para Sharpies, inquiriu:

- Por acaso, Señor Sharpies, não conhecerá o señor Jarratt?

- Não - respondeu o visado, secamente.

- É pena - lastimou Maranilla, porque esse Jarratt é um homem muito esperto. Admitimos a hipótese

de que tivessem negócios em comum...

Dirigindo-se aos guardas, o inspetor ordenou:

- Levem esses dois lá para fora.

Prontamente repetiu a ordem em espanhol. Hockley fez um gesto de protesto e disse:

-Ouçam lá: eu nada tenho a ver com essas negociatas. Vim apenas tentar descobrir se havia qualquer manigância desonesta na maneira como Cameron e Sharpies têm vindo a administrar o fundo de que Miss Cora Hendricks nos fez herdeiros, a mim e a Shirley Bruce. Cheirava-me a patifaria e mal desembarquei nesta terra...

- Discutiremos esse assunto noutra ocasião – decidiu  Maranilla, fazendo um gesto aos guardas, para que se retirassem com os presos.

Quando estes deixaram o escritório, virou-se para mim e declarou delicadamente:

- Peço-lhe   perdão,   Señor   Lam,   e   a   si   também, Señora Cool, mas o gerente desta mina não fala inglês. Ora como temos de fazer-lhe algumas perguntas, só nos resta a possibilidade de o inquirirmos em espanhol. Portanto, não nos levem a mal o fato de os excluirmos da sequente conversação.

- Tenha  a  bondade,   inspetor - repliquei   cordialmente.

 Creio ter encontrado a resposta a muitas das minhas dúvidas.

Maranilla sorriu, com nova piscadela de olho, desta vez sem disfarce e começou a interrogar Murindo. Parecia acusá-lo de qualquer coisa que o gerente negava terminantemente.  Durante alguns minutos, mantiveram-se nas mesmas posições dialogais, até que Murindo começou  a dar sinais de animal acossado e a perder a sua atitude de pertinaz negativa. Finalmente, tendo-lhe sido oferecido um cigarro, desatou-se-lhe a língua e falou durante mais de cinco minutos, quase ininterruptamente.

Por fim, Maranilla olhou para mim e disse:

- É  pena que  não entenda  espanhol, Señor  Lam. O caso está a esclarecer-se rapidamente. Este desgraçado...Murindo...  acaba de confessar que, há alguns anos foi descoberto um filão de esmeraldas. Nessa altura, resolveram abandoná-lo ostensivamente, como se fosse uma  escavação  infrutífera.  Contudo,  a exploração  progredia secretamente, estando dela incumbidos o próprio Murindo   e   um   outro   trabalhador   de   sua   confiança. O Señor Cameron ia gradualmente levando as esmeraldas para os Estados Unidos, sendo nisso ajudado, mas menos frequentemente... só uma ou duas vezes por ano... pelo Señor Sharpies.

- Estou a ver - murmurei.

- E agora, Señor Lam, se porventura a vossa firma Cool e Lam foi contratada por Sharpies, pode encontrar-se numa situação deveras delicada. É lamentável, confesso, mas as vossas relações com Sharpies têm de ser esclarecidas. Gostaria que me fornecessem todos os pormenores da vossa missão e agradeço que sejam absolutamente francos na vossa exposição.

- Esse Sharpies - começou  Bertha, queria que lhe fornecêssemos um guarda-costas permanente, dia e noite...

Interrompi-a para declarar:

- Creio que talvez fosse melhor ser eu a explicar a situação, já que mantive os contatos pessoais com ele.

- No que me diz respeito - insistiu Bertha, nada temos a ver com essa história...

- Creio, Bertha, que será melhor pormos as autoridades locais a par de todos os pormenores.

A minha sócia fulminou-me com um olhar rancoroso, como se desejasse cravar-me uma faca no coração, mas não abriu a boca. Então declarei:

- É   uma   longa   história,   mas   tentarei   abreviá-la. A única dificuldade que se me apresenta é: por onde começar?

- Pelo princípio - disse Maranilla, com determinação.   Pelo princípio do princípio.

- Sharpies   procurou-nos - comecei ,   para   que descobríssemos o paradeiro de um pingente de esmeraldas que fora entregue para venda numa certa joalharia.

Declarou, então, que essa jóia pertencia a uma jovem, Shirley Bruce, que a herdara da falecida Cora Hendricks. Maranilla incitou-me a prosseguir, com um discreto movimento de cabeça. Calmamente continuei:

- Iniciei a minha investigação e descobri que fora Robert Cameron quem entregara o pingente para venda, ou pelo menos para avaliação. Isto pareceu-me estranho e informei Sharpies do que descobrira. O nosso cliente sugeriu-me então que fôssemos visitar Cameron. Quando lá chegámos, este fora assassinado. Aparentemente tinha sido apunhalado, enquanto fazia um telefonema.

Notei que tanto Maranilla como Jurado me escutavam atentamente, com os olhos semicerrados. Não exteriorizavam  qualquer sentimento especial, mas, apesar da sua imutável expressão, apercebi-me de uma ligeira aprovação.

- Continue - exortou o inspetor.

- Quando Sharpies e eu deixámos a casa de Cameron,  fomos visitar Shirley Bruce. Esta disse-nos ter entregue o pingente a Cameron, para venda, alguns meses atrás...   Decidi  então analisar a  natureza do fundo da herança. Envolvia cerca de duzentos mil dólares e verifiquei que, por morte de ambos os administradores do Fundo e testamenteiros de Cora Hendricks, aquele seria dividido equitativamente pelos dois herdeiros. Mas também descobri que enquanto viviam, os dois testamenteiros, ou mesmo apenas um deles, neste caso, Sharpies, poderia favorecer um dos herdeiros mais do que o outro.

Por   outras   palavras,   não   era   possível   verificar   com extrema precisão se...  através de umas  mesadas que iam  distribuindo...   a  divisão era  realmente  equitativa. O certo é que, com a morte de ambos os administradores do Fundo, este passava imediatamente para as mãos dos legatários, Robert Hockley e Shirley Bruce.

- Pensou, portanto, que a morte de Cameron apenas precedia a de Sharpies? - inquiriu Maranilla.

- Não tenho essa certeza. Apenas sei que Sharpies pensou correr um certo perigo e quis contratar-me para guarda-costas. Como é natural, achei esta decisão deveras  estranha.

- Estranha, porquê?

- Eu não daria um guarda-costas de grande poder defensivo - confessei.

- Parece-me, Señor Lam, que tem muito bons miolos  apreciou Maranilla.

- Lá   isso   tem - interrompeu   Bertha. - O   nosso cliente ofereceu o triplo dos nossos honorários habituais.

Com um gesto cortês, mas peremptório, o inspetor reduziu a minha sócia ao silêncio, declarando:

- Por agora só estou  interessado em escutar as declarações do Señor Lam. Terei depois muito gosto em ouvi-la, señora Cool.

- Aparentemente - prossegui, Shirley Bruce era uma criança, ainda bebê... quando Cora Hendricks morreu.  E verifiquei que todo o dinheiro do Fundo, as propriedades da mina e tudo o mais, seriam divididos por ela e pelo outro herdeiro. Nessas circunstâncias, se o pingente  tivesse pertencido a Cora Hendricks e se Shirley Bruce o recebera de suas mãos... quando é que isso teria acontecido e em que circunstâncias? Quando viva, Miss Hendricks não iria certamente presentear uma criança de peito, ou pouco mais, com uma jóia daquela natureza. Decerto incluiria o pingente na herança que um dia a pequenina viria a receber.

Maranilla mostrava-se agora claramente interessado.

- Continue, continue - animou, impaciente.

- Sharpies  tivera  o cuidado  de  fazer-se  acompanhar por mim, quando fora a casa de Cameron. Não sei se então sabia ou não o que iríamos descobrir... E também teve o cuidado de fazer com que eu o acompanhasse, quando foi a casa de Shirley Bruce... Ora, estou absolutamente certo de que já sabia o que a jovem iria contar-me.

- Prossiga - incitou o inspetor.

- Há várias coisas deveras peculiares na morte de Cameron. Primeiro, a arma de calibre 22 que se achava sobre a mesa. Fora disparado um tiro. A Polícia acredita que o assassino pretendera aparentar que Cameron disparara a arma, antes de ter sido apunhalado. Isso poderia dar ao assassino uma hipótese de justificação de autodefesa. Como a bala não fora encontrada, a Polícia deveria também admitir que o assassino ficara ferido, antes de apunhalar Cameron. Porém, no prosseguimento das investigações, descobriu-se  que  o assassino teria  disparado a arma para um buraco aberto na parede, junto ao teto... destinado à passagem do corvo... de maneira a que o projétil se perdesse no exterior... um simples tiro para o ar. Contudo, a bala foi incrustar-se no lado superior do tunelzinho aberto na parede.

Maranilla olhou para Jurado com um aceno de concordância,  quase imperceptível. Jurado, por sua vez, limitou-se  a pestanejar, inexpressivamente.

- Quando a Polícia efetuou o teste de parafina nas mãos  de  Cameron - continuei ,  verificou   que  estas não apresentavam o menor vestígio de pólvora queimada. Aparentemente a vítima não disparara a arma. Portanto, concluíram ter sido o assassino quem a utilizara. Um teste efetuado no tambor do revólver, para avaliação do fator tempo, demonstrou que Cameron foi morto depois de aquele ter sido disparado.

- Portanto, a arma desfechou a bala para a abertura na parede, antes de o assassino apunhalar Cameron, não é assim? - precisou Maranilla. - Que maravilhoso deve ser poder a Polícia dispor de equipamentos técnicos tão avançados!... Laboratórios, médicos especializados em necrologia, químicos... tudo isso!... Mas continue, señor Lam.

- Quando o cadáver de Cameron foi por nós encontrado, o pingente fora desprovido das respectivas esmeraldas. Estas tinham sido desincrustadas dos alvéolos. A Polícia encontrou duas delas sobre a mesa; descobriu outras seis, numa espécie de ninho, no interior da gaiola do corvo e veio a desencantar, posteriormente, outras cinco, escondidas no bojo do sifão de um cano de lavatório,  que fora desenroscado, para esse efeito, e reposto na sua posição primitiva. Temos, portanto, oito esmeraldas,  mais cinco.

O inspetor juntou as pontas dos dedos das mãos e murmurou pensativamente:

- É um prazer ouvir isso.

- Desde o princípio que considerei o trabalho que Sharpies  me  confiara, demasiado simples.   Pareceu-me deliberadamente   preparado.   Se   o   pingente   pertencera efetivamente a Shirley Bruce, logo que Sharpies soube que  fora  vendido,  devia  logicamente  ter procurado  a jovem para averiguar o motivo, já que são tão amigos. Se Shirley estivera com dificuldades  monetárias, teria procurado  Sharpies  que   lhe daria  quanto dinheiro  ela precisasse. E se, na realidade, a moça estivesse farta do pingente de esmeraldas e quisesse trocá-lo por um anel, como justificou, também não teria procurado Cameron  e sim Sharpies. Nada daquilo encaixava.

- Tivemos razões para investigar as atividades de Peter Jarratt - informou Maranilla. - Os nossos agentes acabaram por interessar-se igualmente por Shirley Bruce. Entretanto relataram-nos  que  o Señor Lam  se  apercebera de que eles o seguiam e confessaram que conseguiu iludi-los. Contudo, retomando a pista de Jarratt tornaram a encontrá-lo, Señor Lam, no mesmo trilho. Poderá explicar-me o que sucedeu?

- Efetivamente apercebi-me de que estava a ser seguido, mas ignorava quem mandara operar essa perseguição; compreendi que não eram polícias oficiais e parti do princípio de que seriam detetives particulares, embora estranhasse que não me tivessem respondido, quando os interpelei... provavelmente não quiseram denunciar-se, pela pronúncia. Quanto a Jarratt, aconteceu que me telefonara, informando ter o pingente pertencido a uma tal Phyllis Fabens. Esta esclareceu ter possuído um pingente daquele formato, mas com um rubi e outras pedras sem valor, em vez de esmeraldas. Ao princípio pensei que se tratasse de uma pista falsa, forjada por Jarratt.

- «Forjada»? - estranhou Jurado.

- Quer dizer «preparada para induzir em erro» explicou  Maranilla.

- Oh, sim, já percebo - disse o outro.

- Continue,  por favor,  Señor  Lam - pediu  o  inspetor.

- Contudo, depois de ter falado com Jarratt, elaborei uma teoria diferente. Fiquei com a idéia de que esse intermediário adquiria guarnições de jóias antigas, incrustadas  de pedras valiosas, para vendê-las a Cameron. Este dar-se-ia então ao trabalho de remover essas pedras da respectiva armação, substituindo-as por esmeraldas valiosas. Dessa maneira, a jóia, assim guarnecida, pareceria uma preciosidade antiga. Ora, sendo antiga, as esmeraldas nela incrustadas não tinham que estar sujeitas ao controlo governamental   da  Colômbia,  pois  aparentemente não provinham de exploração mineira atual.

- Ah, ah! exclamou Maranilla, demonstrando verdadeiro interesse e apertando as mãos.

Inexpressivamente, Jurado observou:

- Essa sua informação, Señor Lam, ter-nos-ia sido muito mais útil, se a tivesse prestado, antes de termos preso Sharpies.

- Certamente,     certamente - intercedeu Maranilla,  mas o Señor Lam vai agora, sem dúvida, explicar-nos outros fatos...

- Provar-vos-ei a minha boa vontade, informando-os de uma coisa de que ninguém mais sabe.

- Só virá em auxílio da sua posição neste caso animou Maranilla.

- Esse corvo que vivia com  Cameron tinha uma outra gaiola, numa outra casa, e nesse novo ninho descobri cinco esmeraldas.

O inspetor franziu o sobrolho, mas Jurado conservou  a sua habitual cara de pau.

-Sabe  explicar  o   motivo, Señor  Lam? – sondou Maranilla.

- Explicar, não saberei, mas concebi  uma teoria.

- Estamos muito interessados nela - afirmou o inspetor.

Bertha interveio, para protestar:

- Raios, Donald! Para que diabo está a desbobinar assuas descobertas a esta gente? A nossa investigação vale dinheiro.

Suavemente, Maranilla elucidou:

- O Señor Lam está a falar para tirá-la a si de um enorme  sarilho,  señora  Cool.  Talvez  ainda   não  tenha compreendido a situação em que se encontra, envolvida numa suspeita de cumplicidade no contrabando de Sharpies. Entrou  neste país, contratada por um criminoso, em conformidade com a lei colombiana, não se esqueça disso.

Bertha engoliu em seco. Corou, mas não retorquiu, juntando firmemente os lábios, num mutismo forçado. Apressei-me a continuar:

- Estranhei o fato de, após terem incrustado as esmeraldas no pingente antigo e após este ter sido posto à venda, Cameron  as tivesse novamente extraído dos respectivos, alvéolos.

- Também   estranhamos   isso - confessou   Maranilla.

- Suponho que alguém tinha um stock ilegítimo de esmeraldas e que cinco dessas pedras lhe desapareceram.

 Talvez soubesse quem lhas levara, mas ignorava o que fizera com elas. Deve ter esperado que essas esmeraldas  tornassem a aparecer, podendo então recuperá-las. O seu problema era estar de posse de um stock de esmeraldas, desfalcado em cinco pedras. Pensou então desmontar o  pingente de treze esmeraldas  (consideradas legítimas por serem «antigas») e esconder cinco, num local onde ninguém poderia encontrá-las. A partir daí, poderia procurar «legitimamente» onde se encontravam as «ilegítimas» que haviam desaparecido, como se fossem as pertencentes à jóia antiga.

- Compreendo.  Esse  «alguém»  era  Cameron, que não se atreveria a reclamar oficialmente as cinco esmeraldas do seu stock de contrabando. Apenas poderia tentar recuperar, às claras, as pedras provenientes de um pingente antigo e pretensamente não controladas pelo mercado internacional de monopólio colombiano.

- Compreendo.  Esse  «alguém»  era Cameron, que não esperava vir a ser assassinado, nem que a Polícia se lembrasse de vasculhar-lhe o bojo do sifão do lavatório.

- É uma teoria deveras interessante - apreciou o inspetor.

- O teste da parafina aplicado às mãos de Cameron - prossegui,   não  apresentou   partículas  de   pólvora queimada embebidas na derme. Daí, a Polícia concluiu que não fora ele, mas sim o assassino, quem disparara a arma.   Contudo,   desprezou   um   fato   deveras   significativo...

- Qual?

- ... Um par de luvas que se achava sobre a mesa, junto dessa mesma arma.

- Quer dizer que  alguém  utilizara as  luvas,  para dispará-la? - inquiriu Maranilla.

- Parece-me   muito   improvável   que   o   assassino, depois de ter disparado o tiro, se demorasse para descalçar as luvas, em vez de levá-las consigo. Se queria dar a impressão de que Cameron as tinha calçadas, ao disparar o tiro, deveria ter-lhas enfiado nas mãos, para induzir a Polícia nesse sentido. Não o fazendo, todo o seu expediente falhava, visto que, se Cameron as tivesse postas, ao disparar a arma, não poderia ter tornado a tirá-las, já que a sua morte foi praticamente instantânea.

Pela primeira vez, desde que eu começara a falar, Jurado mostrou-se emocionado. Deu uma ligeira palmada num joelho e exclamou:

- Amigo! Já descobri!

Maranilla disse-lhe qualquer coisa em espanhol e Jurado confirmou com um breve movimento de queixo. Levantaram-se simultaneamente e dirigiram-se para a porta. Aí, o inspetor voltou-se para trás e disse-nos:

- Desculpem-nos, por alguns momentos.

Saíram, deixando-nos a Bertha e a mim, sentados a transpirar, enfrentando o desgraçado e apavorado gerente da mina, Señor Murindo.

PALAVRAS   SEM   SIGNIFICADO

Ouvimos o som dos passos dos dois representantes da autoridade colombiana afastarem-se. Bertha abriu a boca para dizer qualquer coisa, mas mudou de idéia. Durante alguns segundos, permanecemos num silêncio abafado, apenas cortado pelo zumbido do vôo circular de moscas e mosquitos. Subitamente, Felipe Murindo começou a falar, em espanhol. Fazia-o lentamente, pronunciando as palavras com clareza. Quando concluía não ter sido percebido, repetia a frase, com um olhar suplicante para que o compreendêssemos.

- Onde tem o seu dicionário? - pedi a Bertha.

- Para que o quer? Não vai servir-lhe de nada refilou  ela, entregando-mo.

Abri o livro, sorri a Murindo e comecei a deslizar o dedo pelas colunas das palavras espanholas. Peguei-lhe no dedo indicador e coloquei-o ora na palavra castelhana, ora na inglesa. Com surpresa minha verifiquei que muitas palavras dos nossos diferentes idiomas tinham raízes semelhantes. Pouco depois consegui perguntar-lhe:

- Hay aqui uno interprete?

- Oh, no, Madre de Diós! No interprete! – protestou o homem, abanando a cabeça e dando a entender que não convinha qualquer testemunha.

Então, consegui dizer-lhe, embora com notória dificuldade,  que falasse muito lentamente. Murindo aquiesceu e momentos depois, estendia a mão direita, pedindo:

- Pesos... Dinero!

- Que   diabo   está   ele   pedindo? - inquietou-se Bertha, só à vista do gesto.

- Está dizendo que pode prestar-nos algumas informações  valiosas, se estivermos na disposição de assegurar  o pagamento dos seus diligentes serviços - traduzi.

- Que vá para o diabo que o carregue! – explodiu Bertha. - Era o que faltava, passar-lhe para essas mãos sujas o nosso querido dinheirinho... E lá está você, como sempre, a entrar nessas jogadas, em que esbanja o que tanto nos custa a ganhar! Que  informações pode ele prestar-lhe, não me diz?

- Não sei.

- Então é melhor descobrirmos isso, antes de pagar-mos. Deixe-me eu tentar a coisa.

Mas Murindo não sabia ler e começou a falar lentamente,  pelo que me apressei a registrar todos os sons das suas frases; conquanto o ortografia não fosse correta, mais tarde tentaria traduzir a mensagem. Em boa hora eu aprendera taquigrafia e sons fonéticos! Mal Murindo acabou, ouvimos passos no exterior e instantes depois Maranilla e Jurado surgiram na ombreira da porta.

Com um gesto natural, Bertha pegou no papel que eu acabara de garatujar e ia enfiá-lo na bolsa, mas mudou de idéia e deixou-o sobre a mesa, em frente do punho fechado.

- Creio já termos descoberto o que se passou anunciou  Maranilla. - Essa teoria das luvas e das cinco esmeraldas foi-nos muito útil. Temos agora a explicação para o caso.

- E acerca de Hockley? - interessei-me.

Cautelosamente o inspetor esclareceu:

- O mais que posso dizer é que Hockley chegou à conclusão de que a mina dava muito mais lucros do que aqueles que  estavam  a  ser revertidos  para  o  Fundo. Estava certo de que Shirley  Bruce recebia uma soma muitíssimo superior à mesada estipulada e desconfiou que esse dinheiro proviesse da mina e não de quaisquer outros   rendimentos  que  ela  possuísse.  Confessou-nos sinceramente que viera até cá para caçar Sharpies com «a boca na botija». Se o apanhasse em flagrante, numa qualquer fraude de valores, poderia processá-lo judicialmente e demiti-lo de administrador do Fundo, que passaria automaticamente para os herdeiros.

Consultou Jurado com os olhos e prosseguiu:

- O Señor Hockley conhece um aviador, no Panamá, cujo nome se recusa a denunciar, o que bastante nos aborrece, mas a verdade é que penetrou neste país secretamente... Embora a sua história nos pareça verdadeira, violou tecnicamente várias disposições legais. Com o seu rosto inexpressivo e olhos bovinos, Jurado encarou-me pensativamente e declarou:

- De acordo com a conclusão da teoria do señor Lam, a história de Hockley destrói o motivo que poderia ter para assassinar Cameron.

- Talvez essa conclusão não seja a exata. Teremos de continuar a analisar todos os fatos.

- Exatamente - concordou Jurado com secura. Vêm  agora conosco para Medellin, não é verdade? Podemos  aí encerrar o caso.

- E Hockley? - indaguei.

- Soltá-lo-emos mais tarde, sob custódia. Não temos motivos graves para mantê-lo preso.

- E Sharpies?

Maranilla sorriu e elucidou:

- Vemo-nos forçados a retardar um pouco mais a sua partida. Creio que esta região sempre lhe agradou...

- E eu? - inquiriu Bertha, apreensiva, espetando um indicador no peito.

O inspetor fez uma ligeira vênia e proferiu:

- Minha cara señora Cool, pode partir em qualquer altura. O Señor Lam conseguiu ilibá-la de todas as suspeitas que podíamos reservar a seu respeito... E como lhe será difícil encontrar meios de transporte cômodos e baratos, queira  acompanhar-nos no nosso carro que está, evidentemente, à sua inteira disposição.

Com um trejeito de impaciência, Bertha protestou:

- Mas eu paguei àquele malandro uma viagem de «ida e volta»...  Maldito oportunista! Quero que o obriguem a levar-me de regresso a Medellin. Era o que faltava!... Explorar-me e ficar, ainda por cima, a rir-se à minha custa!

MORTE   EM   PEDAÇOS

A noite não estava cálida nem fresca. Um ar aveludado, brando, tépido, acariciava-me a pele e os sentidos. Era como se me descontraísse flutuando numa piscina maravilhosa das «Mil e Uma Noites». Uma enorme lua, sobre os Andes, iluminava os edifícios de Medellin, tão antigos, como a terra era jovem.

Estávamos, Maranilla e eu, sentados no Club Union, beberricando refrescos. A certa altura, Ramon Jurado veio instalar-se em minha frente. Vinha agora trajado de branco, quase elegante, mas as feições do seu rosto mantinham aquela aparência de inexpressiva solidez que, à primeira vista, poderia parecer indesbastável estupidez.

O Club Union era um edifício de salas espaçosas com enorme pátio ao ar livre. Nos Estados Unidos julgar-se-ia reservado a elementos snob de uma sociedade sofisticada, mas ali, os seus frequentadores apenas pertenciam a uma comunidade hospitaleira, agradável, quase familiar. A atmosfera era acolhedora e o ambiente indubitavelmente confortável. Na piscina, em nossa frente, o luar espelhava-se na tranquila superfície das águas.

A meia-noite aproximava-se e Bertha Cool ainda não aparecera. Eu deixara um recado no hotel para que contatasse  comigo, logo que chegasse.

- Toma outra bebida? - ofereceu Maranilla.

- Só mais uma, aceitei.

O inspetor fez um sinal com a mão e aproximou-se um criado, mas este tinha também um recado a transmitir-lhe.  Dirigiu-me um: «Desculpe-me, senhor», em inglês, e dirigiu-se a Maranilla, em castelhano. O inspetor levantou-se e ainda estava ausente, quando o criado voltou com as bebidas.

- Gosta disto, aqui? - perguntou Jurado.

- Muito. Agradar-me-ia viver cá.

- Sim,  é   realmente  uma  vida  privilegiada  a  que levamos, neste clima.

- Parece que lhe agrada viver - comentei.

- Cada um faz o possível para aproveitar o melhor que a vida nos pode facultar.

- Admiro  a  maneira  como  as  coisas  correm  por aqui - apreciei. - Gosto   da   maneira   como   bebem. Fazem-no devagar e nunca demasiadamente. Parece ninguém  sofrer de preocupações.

- Procuramos sempre evitá-las, Señor Lam. Infelizmente, nem sempre o conseguimos. A propósito, desculpe-me quebrar a doce tranquilidade desta noite e permita-me que lhe faça algumas perguntas.

- As que quiser - concedi.

- Segundo a sua teoria, quando Cameron entrou em casa, vindo da rua, trazia as luvas calçadas, não é verdade? Portanto, deve ter visto qualquer coisa que o levou a servir-se da arma, não?

- Talvez não o fizesse imediatamente - admiti.  Talvez tivesse tentado um outro meio e só se servisse

da arma como último recurso.

- Sim,   é   lógico...   Muito   interessante – concluiu Jurado.

Tirei um bloco-notas da algibeira e li-lhe um apontamento  que colhera dias antes:

- «Biblioteca dos Amantes da Natureza». - O segundo  volume intitula-se Aves da América e contém uma descrição pormenorizada da vida de várias aves, entre as quais os corvos, atribuindo a estes uma habitual propensão cleptómana, como é usual nas pessoas que furtam objetos, só pelo prazer de levá-los consigo, sem um objetivo determinado de roubo. Os corvos têm realmente  a paixão de esconderem pequenos objetos brilhantes ou coloridos, pedacinhos de metal polido, como colheres de  chá,  pequeninas tesouras,  etc.  Levam-nas para o ninho.

- Muito interessante - repetiu Jurado.

Neste instante, o criado aproximou-se de Jurado e transmitiu-lhe qualquer informação em espanhol. Pareceu-me que o chamavam ao telefone. Afinal, a chamada era para mim. Do outro lado do fio, ouviu-se Bertha, gaguejando de indignação.

- Estou certa de que me arma... me armaram uma cilada! - barafustou ela. - Que o diabo os leve para as pro... as profundezas do Inferno!

- De   nada   lhe  serve   gaguejar - observei. – Que aconteceu?

- Estes sujos polícias cá da terra atreveram-se a prender-me. Disse-lhes que Maranilla me declarara estar «livre como o ar», mas os tipos não me perceberam ou fingiram não entender o que me fartei de berrar-lhes aos ouvidos.

- Está bem, Bertha - acalmei-a. - Já passou e agora está em liberdade. Tome um banho tranquilo e descontraia-se.

 Quando se despachar, venha ter comigo. Terei muito gosto em pagar-lhe uma bebida.

- Cale-se   lá! rugiu a  minha  sócia,  ofegante.  os tipos revistaram-me!

- Refere-se aos polícias?

- Bem, não diretamente, mas lançaram-me em cima uma matrona que executou esse trabalho infame... e a filha da mãe apanhou-me o papel...

- Aquele que...?

- Sim! explodiu ela.

Levei alguns segundos a pensar naquilo.

- Raios... diga alguma coisa, Donald! - protestou.

- Estou a pensar.

- Diabos  o  levem...   Pense depressa.  Puxe pelos miolos e faça qualquer coisa.

- Que quer que eu faça?

- Que  entre em  ação em vez de se  armar em Confúcio. Não temos tempo para meditações inativas.

- Espere aí por mim. Vou já ter consigo. Os tipos não lhe devolveram o papel?

- Não seja parvo! Está visto que não!

- Não   utilizaram   um   intérprete,   ou   alguém   que falasse inglês?

- Um dos gorilas falava inglês, mas quando eu lhe perguntava qualquer  coisa,  respondia-me com  um   «no sabe» de fazer perder a cabeça a um santo!

- Bem, esqueça-se disso. O pior já passou. Creio já ter descoberto uma maneira de sairmos desta alhada. Vou ver o que posso fazer. Espere aí por mim.

Desliguei o telefone e voltei para a mesa. Maranilla também regressara. Tinha aproximado a sua cadeira da de Jurado e falavam em voz baixa. Olharam-me, sorriram e sentei-me ao pé deles.

- Cavalheiros - declarei,   tenho   um   pedido   a fazer-vos. Pode ser irregular, mas é muito importante.

- De que se trata? - inquiriu o inspetor.

- Gostaria que se pusessem em contato com a Polícia  local, quanto antes. Acho que Felipe  Murindo...  o gerente da mina... deveria estar em lugar seguro... bem guardado.

- Bem guardado? - estranhou Jurado.

- Sim. Gostaria de assegurar-me de que se encontra  a salvo.

Os dois homens trocaram um olhar entre si.

- Receio - disse Jurado , que o seu pedido chegue um pouco tardiamente, Señor Lam.

- Que quer dizer com isso?

- A chamada que há pouco levou Rudolfo Maranilla ao telefone estava relacionada com Felipe Murindo.

Tive a impressão de que metera a «pata na poça». Devia ter permitido que o inspetor falasse no assunto em primeiro lugar, mas não podia adivinhar que o telefonema se relacionasse com Murindo. Agora já era demasiado tarde.

- Que aconteceu? - indaguei.

- Aparentemente, por volta das cinco horas desta tarde - esclareceu Maranilla, verificou-se uma explosão  acidental  num  grande  armazém  de dinamite,  que reduziu a escombros a casa do gerente.

- E Murindo?

- Desfeito em pedaços.

JURADO   MORDE   OS   DEDOS

Durante alguns momentos, permanecemos em silêncio, bebendo os nossos refrescos. Quando acabei o meu, empurrei o copo para o centro da mesa e declarei:

- Meus senhores, foi  uma  noite deliciosa e tive muito prazer na vossa companhia.

- Sente-se - disse Jurado com secura.

Em contrapartida, Maranilla sorriu afavelmente.

- Então, então, Señor Lam. Terá de admitir que não é lisonjeiro ser-se subestimado dessa maneira.

- Receio não perceber aonde quer chegar.

- Não há dúvida que este acidente na mina – observou  o inspetor, foi deveras oportuno... para alguém.

- Sim?

- Após o seu comentário, seria terrivelmente estúpido da minha parte deixá-lo ir-se embora, sem que me dê uma explicação mais completa acerca do motivo por que o fez.

- Deixe-me pensar melhor, antes de entrar em explicações.  Preciso primeiro de falar com a minha sócia.

Como se estivesse a referir-se a uma simples viagem  de avião, Jurado disse:

- E antes de tornarmos a vê-lo, pode ser que lhe aconteça alguma coisa.

Depreendi que não me deixariam partir, sem lhes ter desvendado toda a história.

- Devia ter-nos contado isso mais cedo – censurou Maranilla.

- O homem ficou tão assustado, quando lhe falei em servir-se de um intérprete para transmitir-nos o que desejava confessar... Portanto.

Soltei uma curta risada e concluí:

- Reconheço que a minha posição é bastante embaraçosa.

- Muito - replicou o inspetor azedamente. - Tratamo-lo  com tanta cortesia profissional, que nos constrange  verificar a sua tentativa de supressão de provas.

- Deixe-se disso, protestei. - Não se tratava de provas, bem o sabe. Não era nada que pudesse interessá-los.

- Como sabe?

- Pensei que nada tivesse a ver convosco.

- Na nossa profissão, tudo nos interessa. Farei o que puder, mas as coisas agora já não são tão simples. A sua sócia podia ter-nos entregue o papel e receberia um  recibo, para que aquele  lhe fosse devolvido mais tarde. Fez mal em ocultar um tal documento às autoridades.

- Já  viu   como  é  a   minha  sócia - justifiquei.  É incapaz de permanecer tranquila quando a acicatam. Decerto que se fartou de apresentar pedidos que ninguém quis   atender,   simulando   não   compreenderem inglês. Isso enfureceu-a predispondo-a a não colaborar. Só lhe falavam em espanhol...

- Quando se viaja num país de língua castelhana, desconhecendo-a, deve-se utilizar um intérprete.

- Bem sei, mas o fato é que não tínhamos nenhum à mão, defendi-me, e sem o expediente do papel, nunca viria a saber o que Murindo queria transmitir-me.

- Faz uma idéia do que fosse?

- Não.

- Lembra-se de algumas palavras que ele tenha proferido  e você registrado no seu apontamento?

- Sim. Disse hijo, madre... e cria... e, se não me engano, também ama.

- Cria?... Talvez ama de cria, não?

- Exatamente, agora me lembro: ama de cria.

- Isso significa, em inglês, ama de criança.

Jurado   e   Maranilla   trocaram   novamente   olhares entendidos e subitamente o rosto de Maranilla tornou-se circunspecto.

- Essa frase relaciona-se com a sua investigação particular?

- Bem... parece-me estranho - declarei, que um homem a quem se entregou a gerência de uma mina, não soubesse ler nem escrever. Murindo não foi capaz de ler as palavras castelhanas no dicionário que lhe apresentei.  Para lhe darem um lugar de tal importância deve ter feito um serviço muito  importante a Cameron. Provavelmente  foi o primeiro a descobrir o filão de esmeraldas.  Devia explorá-lo e entregar as pedras ao patrão.

- Porque chegou a essa conclusão?

- Porque o homem que descobriu o filão devia saber algo que lhe assegurasse o lugar. Estava certo de que nenhum dos administradores do Fundo o despediria, apesar de não saber ler nem escrever.

- Isso é tão lógico, Señor Lam, que a situação se torna cada vez mais estranha.

Subitamente Jurado mordeu os dedos, como se tivesse desvendado qualquer coisa altamente valiosa. Desta vez, estava verdadeiramente emocionado com a idéia que lhe viera ao espírito. Então, após ter trocado um rápido olhar com Maranilla, declarou:

- Muito bem, Señor Lam, pode partir quando quiser.  Se tem um encontro marcado com a sua sócia, não se prenda por nós. Não há razão para que o detenhamos por mais tempo.

Deixei-os e fui para o hotel. Enquanto atravessava a noite suave e tépida, reconheci desejar vivamente saber que diabo teria Ramon Jurado descoberto, que o levara a morder os dedos com

tanto entusiasmo.

AMBOS OS EXTREMOS CONTRA O CENTRO

Bertha Cool terminara o seu encontro com a banheira. Estava de roupão ligeiro e chinelas de quarto e um uísque com soda duplo parecia ter agido eficientemente para levantar-lhe o moral.

- Que diabo pensa que aconteceu ao papel? – inquiriu  ela, mal me viu, à laia de saudação.

- Que diabo pensa que aconteceu a Felipe Murindo?- repliquei.

- Prenderam-no?

- Uma tonelada de dinamite explodiu-lhe nas traseiras da casa. Foi, naturalmente, um acidente, mas o homem ficou reduzido a pequeninos pedaços. Se não recuperarmos esse meu apontamento, jamais saberemos que raio pretendia dizer-nos.

- Bem - decidiu Bertha , vou queixar-me ao cônsul americano. Coisas desta natureza não podem suceder a uma cidadã norte-americana.

- Você não vai queixar-se ao cônsul, nem a ninguém

- contrariei.

- Porque não?

- Porque esta gente daqui não é tão simples como você imagina. Apesar da sua delicada subtileza, tornam-se imensamente duros quando se trata de qualquer assunto que envolva esmeraldas.

Num tom de sarcasmo mal conseguido, Bertha ripostou:

- Está-se mesmo a ver! Eu estou aqui apenas de passagem, mas para pessoas como você, que andam por cá há longos anos, já familiarizadas com os costumes locais, esses assuntos não constituem o menor segredo!

- Meta esse sarcasmo no caixote do lixo, Bertha. Faça o que lhe digo.

A minha sócia corou e retorquiu exaltada:

- Não pense que lhe admito que me dite o que vou, ou o que não vou fazer.

- Mas tem de admitir que a  informe de que se encontra numa posição deveras precária. Não se esqueça de que veio até cá contratada por Harry Sharpies.

- E depois? Isso que tem?

- As autoridades podem, em qualquer altura, considerarem-na sua cúmplice.

- Não podem provar uma coisa que não é verdadeira...  E eu não vou deixar passar em claro o que fizeram: prenderam-me, revistaram-me e não permitiram que me explicasse. Só sairei daqui, depois de lhes ter arranjado um sarilho dos diabos. Hão-de ficar sabendo com quem se meteram!

- Você esquece-se de que Cameron foi assassinado e ainda não descobrimos o motivo por que o eliminaram. Sabemos que tanto Cameron, como Sharpies e Shirley Bruce,  estavam  envolvidos  num  plano para  contrabandearem esmeraldas da Colômbia para os Estados Unidos a fim de comercializá-las ilegalmente. Devem andar fartos lucros   nesse   negócio.  Ora o  nosso  Governo  também detesta contrabando e enfia os traficantes  na cadeia, sem grandes cortesias.

- Que vão fazer a Sharpies? - interessou-se Bertha.

- Provavelmente terão certa dificuldade em arranjar provas contra ele. Não há dúvida de que as autoridades da Colômbia encontraram esmeraldas em bruto, por lapidar, em seu poder; essas pedras foram extraídas de uma mina colombiana, mas a verdade é que não surpreenderam Sharpies a exportá-las para fora do país. Esse seria o grande crime... E como não deram entrada ilegal nos Estados Unidos, o nosso Governo nada tem com isso.

- Mas... quanto ao contrabando que fizeram antes?

- Era   Cameron   quem   fazia   mais viagens para   a Colômbia e era também ele quem se encarregava do trabalho-base.

- E Shirley Bruce?

- Vão ver-se em palpos de aranha para provarem a sua implicação no caso. A história que ela contou acerca de ter herdado o pingente pode ter-lhe sido transmitida por Sharpies, para justificação, no caso de qualquer inquérito  incomodativo.

- Mas como justificará ela a «massa» que tem recebido,  a mais, do fundo comum? - interessou-se Bertha.

- Não tenho dúvidas de que o Governo dos Estados Unidos vai cair sobre ela, através do Departamento de Impostos. Por aí, não conseguirá safar-se.

- E nós, com tudo isso, em que ficamos?

- Ficamos onde sempre desejei que estivéssemos - declarei. ou seja, completamente fora do que venha a acontecer a Sharpies.

- Como adivinhou que ele era um patife?

- Não adivinhei, mas pressenti que o espertalhão já sabia tudo acerca do pingente, quando nos procurou, armado em anjinho.

- Tem miolos de um verdadeiro diabinho, Donald! admitiu Bertha, embora resmungando. - Conte lá o que sabe, querido. Caber-nos-á alguma coisa disto tudo?

- Cameron morreu. Várias pessoas irão beneficiar com a sua morte. Alguém tentou envenenar Dona Grafton, embora  tivesse  sido  Juanita   Grafton  quem   ingeriu   o veneno. As suspeitas recaem fortemente sobre Robert Hockley. E agora que Felipe Murindo também foi assassinado...  Ora só duas pessoas se encontravam na Colômbia ligadas hipoteticamente à morte de Cameron:  Sharpies e Hockley. Se os dois assassínios estão relacionados, o nosso campo de suspeitas fica obviamente muito reduzido. Mas, falta ainda explicar como.

Bertha respirou fundo e observou:

- Sharpies e Hockley estavam detidos pela Polícia. Não podiam ter matado Murindo.

- Pensa porventura que a explosão da mina foi realmente  acidental?

- Não - admitiu Bertha. - Foi demasiado oportuna.

- Quando decidi vir até cá, estava quase certo de que as esmeraldas eram extraídas da mina de ouro do Trevo Duplo. O meu objetivo era obter quaisquer provas que me permitissem deitar as unhas a Sharpies. Infelizmente para nós,  as  autoridades  colombianas  andavam igualmente na sua pista. Contudo, sinto qualquer coisa, no meu subconsciente, que começa a germinar e a desenvolver-se.

Bertha arregalou os olhos, cheia de curiosidade.

- Vamos, meu rapaz. Puxe pela cabeça, Donald querido,  e veja se também podemos extrair uns dinheirinhos dessa sua idéia.

- Estou convencido de que será possível...

- Pense, Donald! Terá isso alguma coisa a ver com o assassínio de Cameron?

- Está visto. Foi esse o nosso ponto de partida é daí que devemos prosseguir na nossa investigação.

- Detesto  parecer obtusa - disse  Bertha .  mas não percebi essa história das luvas e da arma ter sido disparada, como último recurso. De que raio estava você a falar?

- Robert Cameron desfechou a arma, mas falhou o tiro.

- Como  diabo   sabe   que   falhou? - admirou-se Bertha.

- É a única explicação.

- Quer dizer que apontou ao buraco, mas a bala foi encravar-se   na   madeira  do  tunelzinho, em vez  de  se perder no ar?

- Cameron   não   tencionava   acertar   no   vazio   do buraco, Bertha - esclareci. - Não acompanhou a minha conversa com Maranilla e com Jurado?

Bertha enfureceu-se momentaneamente.

- Como quer você que  eu tivesse  percebido,  se vocês só falavam por subentendidos? De que raio estavam a tratar?

- É   simples.   Cameron  tinha   as   luvas   calçadas, quando disparou o revólver de calibre 22... Deixe lá o calibre!... Ele disparou a arma contra o assassino?

- Não Bertha!... Contra «Pancho».

- Contra o corvo? - exclamou a minha sócia, espantada.   Macacos   me   mordam!   Você   está   «pílulas»!... O corvo era o seu bicho de estimação. Por que raio iria ele atirar contra o «pássaro»?

- Porque os corvos não sabem contar - esclareci.

Bertha  fitou-me,  fulminando-me  com   um  olhar  de raiva impotente.

Nesse momento o telefone tocou. Bertha pegou no auscultador e disse:

- Está? - e logo berrou para o bocal: - Fale inglês, ou então vá para o diabo que o carregue!... Oh! -exclamou, numa voz subitamente branda. Escutou, por algum tempo. - Certamente. Muito obrigado. Vou já dizer-lho,

- Quem era? - interessei-me.

- Rudolfo Maranilla. Telefonou para informar-nos de que Sharpies e Hockley fugiram da prisão, pouco depois de terem estado conosco na mina. As circunstâncias da fuga implicaram suborno. A matrona que me revistou insiste em que metera o papel num sobrescrito e que pusera este sobre a secretária do capitão da Polícia. Sharpies e Hockley desapareceram da esquadra e o sobrescrito  com o papel, também.

- Isso  explica  muita  coisa - comentei,  e  Bertha prosseguiu:

- Maranilla encarregou-me de pedir-lhe, Donald, que o autorize a colocar um guarda às portas dos nossos quartos. Sugere-nos que tomemos as maiores precauções.

- Simpático da sua parte - apreciei.

- Raios! Lá está você! Põe-se sempre a jogar com um pau de dois bicos. Não vê que estamos entalados? De um lado, os «chuis» e do outro, os assassinos! São ambos os extremos contra o centro, e os do meio é que se «lixam»!

- Há pedaço, você estava mais animada - observei.

- Há pouco, estava a pensar em dinheiro e agora penso em dinamite!

 POR FAVOR, VÃO-SE EMBORA

No dia seguinte, logo após o pequeno-almoço, Maranilla  telefonou-me. A sua voz era suave, mas firme. Lamentava que Sharpies e Hockley tivessem fugido do calabouço da esquadra. Não podia dar pormenores da ocorrência, mas o principal responsável pela sua conservação  na prisão ia ser castigado por negligência, ou pior: suborno. O inspetor aceitava a situação filosoficamente, reconhecendo que os oficiais da Polícia, na América do Sul, estavam, na generalidade, muito mal pagos... Mesmo nos Estados Unidos, durante a «proibição» contra o álcool, quando os polícias eram muito bem pagos, havia identicamente casos de suborno...

- No-o-o-o?

- Si-i-i-i! - confirmei. - Muitos   «chuis»   recebiam luvas, para deixarem escapar os gangsters... Mas, quanto a Sharpies e Hockley, tem notícias deles?

- Ainda não. Quando abriram a porta para que Sharpies fugisse, o outro aproveitou a «deixa» e saiu atrás dele. Portanto, a vossa estada aqui constitui para nós uma grande responsabilidade que não queremos, de modo algum, prolongar.

 Não fiz comentários.

- O vosso trabalho terminou e estou certo de que a sua estimável sócia, a encantadora señora Cool, ficará encantada por regressar ao seu escritório. De resto, a situação criada pode vir a implicá-la em novas complicações... não sei se está a entender-me, Señor Lam?... Portanto, nada mais têm a fazer neste país.

- Quando devemos partir?

- Dois amigos meus, que deveriam seguir no avião desta tarde, foram deveras simpáticos e, em face das circunstâncias, acederam em desistir das suas passagens, que estão à vossa disposição.

- Contudo,  há  ainda alguns ângulos do problema que eu gostaria de investigar aqui - objetei.

- Seria  para   nós  muito desagradável, se  acontecesse qualquer coisa de trágico a dois visitantes dos Estados  Unidos - insinuou  Maranilla.

- Contudo - insisti, gostaria de descobrir mais qualquer coisa acerca dos antecedentes de Felipe Murindo.

- Suplico-lhe, Señor Lam, que não persista nessa idéia. As passagens de avião estão à vossa disposição. Nós já sabemos tudo quanto interessa acerca do passado de Murindo.

- O que é?

- Herdou virtualmente o seu emprego. Viveu sempre na mina, desde miúdo. A mãe levou-o para lá, quando tinha apenas nove anos e o rapaz começou a trabalhar, desde então, na exploração mineira. Aprendeu todos os métodos utilizados e foi gradualmente promovido. Deve ter posto todos os salários de parte e ser muito avarento, porque tem uma enorme quantia depositada no banco. Deixou imenso dinheiro... Foi ele quem comprou novas propriedades para o Fundo.

- Hum, hum!

- Desculpe, Señor Lam, se pareço estar a envolver o caso Murindo  num  certo  mistério.   No  nosso  ofício temos de ser muito cautelosos e não tirar conclusões precipitadas. No-o?

- No-o! - contrariei.

O inspetor riu-se e subitamente decidiu:

- Então, esta tarde, às duas horas em ponto.

- Não sei como Bertha Cool vai aceitar essa decisão...

- Tanto o meu Departamento, como o de Ramon Jurado,  têm muita coisa a fazer e não podemos continuar a proteger-vos de qualquer atentado. Depois...  não se esqueça de que a sua estimável sócia veio para cá contratada por Harry Sharpies... Bem... estarei no aeroporto, para assistir à vossa largada. Por favor, vão-se embora.Não faltem. Adios, amigo!

Transmiti  a notícia a Bertha. Esta recebeu-a indignada.

- Quer dizer que nos põe na rua?

- No ar, Bertha, no ar! E temos muita sorte porque a nossa partida foi facilitada pela amabilidade de dois passageiros que nos cederam as passagens.

- Diabos  o levem,  Donald!  Você adquiriu  as  maneiras dengosas  destes  passarões, tá  bem,  deixemos este malfadado país.

- Eu vim para cá de minha livre vontade, mas você apareceu aqui ao serviço de um contrabandista e, quiçá, de um assassino. Espero que tenha recebido o pagamento adiantado para as despesas...

Pela expressão do rosto da minha sócia, percebi que desta vez se espalhara ao comprido.

- Mr.  Sharpies  disse-me que  não olhasse  a despesas,  pois   tudo   ficaria   por   sua   conta – respondeu Bertha, com dignidade.

- A sério? Deu-lhe instruções por escrito?

- Escreveu-me  a  informar que  ia embarcar numa missão de suma importância; se nada mais me dissesse, dentro de vinte  e quatro horas, eu  deveria  seguir de avião para a Colômbia e ir ao seu encontro na Mina do Trevo Duplo. Se aí não o encontrasse, deveria dirigir-me ao cônsul dos  Estados  Unidos, em  Medellin, para que investigasse o seu desaparecimento.

- Tudo isso escrito à máquina?... E você veio logo por aí fora, de malas aviadas?

- Porque não?

- E está convencida de que era realmente isso que Sharpies pretendia de si?

- É possível  que também quisesse que eu verificasse que raio esse Hockley viera cá fazer.

- Sharpies   incluiu  um  cheque,  na  carta  que   lhe enviou?

- Bem,   não...   Mas   prometeu   pagar – retorquiu Bertha azedamente.

Soltei uma gargalhada. Os olhos de Bertha fitaram-me com um estranho brilho de enfurecimento gradual, à medida que se consciencializava  de que podia vir a não receber um centime.

- Ao menos, a carta estava assinada? - inquiri.

Esta minha deixa tranquilizou-a um pouco e pareceu recompor-se.

- Para um homem que tem sido meu sócio durante tanto tempo, Donald, devia conhecer-me melhor, tá visto que está assinada e fique sabendo que se o tipo se lembrasse de recusar-me a «massa» que me deve, enfiava-o numa máquina de picar carne e espremia-o até à última gota de sangue.

OS CORVOS NÃO SABEM CONTAR

Na Cidade do México recebi um telegrama de Ramon Jurado. Constava apenas de um nome señora Lerida; e de um número de rua, em Los Angeles.

- Que significa isso? - inquiriu Bertha.

- Evidentemente, da morada da señora Lerida.

- Favas! Não se ponha às voltas comigo. Não sou estúpida a esse ponto e sei ler. Quem pensa você que seja essa «fúfia»?

- Não faço a menor idéia. Jurado deve estar a pretender alguma colaboração minha, num assunto que está fora da sua jurisdição.

- Você e Jurado! Raios partam a vossa diplomacia.

Na manhã seguinte o avião já sobrevoava o planalto, aproando aos Estados Unidos. Durante toda a viagem notei que Bertha estava mergulhada em profundos pensamentos, mas só depois de contornarmos a costa azul do golfo da Califórnia, indagou, num tom de voz conciliatório:

-Donald, querido, quem matou Cameron?

- Não sei.

- Por que motivo ainda não sabe?

- Porque não tenho a certeza do motivo por que o mataram.

- Quando o souber, descobre o assassino?

- Já é meio caminho andado, Bertha; o motivo ajudará  muito.

- Vá, continue, refilou a minha sócia exasperada.

- Continue a fazer jogo escondido comigo, para ver se me importo.

Virou a cara para a janela e ficou-se a olhar a paisagem. Ajustei a inclinação das costas da cadeira, graduei o jato de ar individual, no interruptor móvel do teto, e passei pelas brasas. Só acordei em Mexicali. Quando chegamos ao aeroporto de Los Angeles, verifiquei  que Bertha viera a fazer cálculos mentais de alta aritmética.

- Donald querido, quanto pensa que vamos «sacar» com este caso?

- Não sei.

- Pois é melhor que comece a pensar nisso. Até agora, estou farta de gastar dinheiro, a descoberto!

- O problema é seu, Bertha.

- O   problema   é   meu,   uma   «ova»!   A  agência   é comum. E se me envolvi em todas estas despesas, a culpa é sua, porque não me informou de que Sharpies era um patife.

- Nessa altura, apenas desconfiava. Por isso me recusei a servir-lhe de guarda-costas. Você sabe onde eu estaria, se tivesse aceitado o contrato que ele me propunha? E onde você também estaria, se não fosse eu colaborar «diplomaticamente» com aqueles «passarões», como você usa dizer?... Estávamos metidos numa enxovia de  Medellin,  a  suar de  calor,  ou  outra qualquer cela abafada e infecta, isolada na selva colombiana. E não teríamos meios de nos escaparmos tão facilmente como Sharpies, que fala a língua dos indígenas e pode suborná-los com montes de dinheiro, ali à mão. De resto, não sabemos se Sharpies, a esta hora, não estará de novo engaiolado.

- Sharpies! Bah!... Não ficará lá muito tempo.

- Ele, não!... Basta-lhe passar um cheque e mexer algumas amizades,

- Eu também  saberia raspar-me  de  lá – bazofiou Bertha.

- Pois, pois, chamando um  intérprete e  largando uma data de «massa»!

- Cale-se, Donald - intimou a minha sócia. –Nem me fale nisso!

Seguimos para a cidade, na carrinha do aeroporto,

- Vem até ao escritório? - indagou Bertha.

- Não.

- Então, não venha!

- Obrigado, não vou!

A minha sócia apeou-se e enfiou pelo edifício da agência. Saí da carrinha do aeroporto e dirigi-me à garagem, para retirar o carro. Momentos depois, estava a caminho do local onde Dona Grafton tinha o seu bangalô. Foi ela quem abriu a porta ao meu toque de campainha.

- Olá - saudou, com os olhos a brilharem de satisfação,  ao estender-me a mão. - Entre, Lam.

Sentámo-nos e a moça declarou:

- Quero agradecer-lhe, Lam. Tentei entrar em contato consigo, mas a sua secretária informou-me de que tinha saído para fora da cidade.

- Que desejava de mim, especificamente?

- Apenas agradecer-lhe por ter sido tão simpático... tão estupendo, na maneira como tratou do assunto... sem denunciar certos pormenores. Acho que foi maravilhoso. Dona deveria estar a referir-se à minha discrição, quanto à caixa de bombons e à faca.

- Não tem  de quê...  Nada fiz de especial - respondi.

- Pateta.  Não  seja  tão  modesto.   Por  onde  tem andado?

- Colômbia.

- Foi à América do Sul? - admirou-se.

- Exatamente.

O seu rosto iluminou-se.

- Deve ser maravilhoso viajar dessa maneira... ir a vários  lugares, quando  nos  apetece.  Fez  uma viagem pouco demorada - observou.

- Sim. Creio que descobri qualquer coisa.

- O quê?

- Conhece  um  homem  chamado  Felipe   Murindo?

Dona riu-se.

- Certamente, isto é, não o conheço pessoalmente, mas sei quem é, porque ouvi várias vezes Mr. Cameron falar dele. É o gerente da mina...

- Morreu.

- Como aconteceu isso?

- Numa explosão acidental de dinamite.

- Oh!

- Mas pode pôr o acidental entre aspas.

- Quer dizer que foi...

- Assassinado.

-Mas... quem?... Por que motivo o mataram?

- Se eu o soubesse, também sabia por que razão assassinaram Robert Cameron.

- Quer dizer que ambos os crimes estão relacionados,  um com o outro?

- Penso que sim... Tudo o indica.

- Mas não percebo como é que dois crimes...  a tantas milhas de distância... tão separados...

Riu-se e corrigiu:

- Quero  dizer...  que  podem ter eles em  comum, assim tão afastados? Um aqui em Los Angeles e o outro na Colômbia.

- Porque está tão nervosa, Dona, a falar tão rapidamente?  - sondei.

- Não estou nervosa e se estivesse, seria natural. Você fala de assassínios, como se estivesse a discutir a ementa do seu próximo pequeno-almoço.

- Quando foi que você pensou, pela primeira vez, que sua mãe matara Cameron?

- Ela não o matou.

- Você está, neste momento, como os miúdos que assobiam oara ganhar coragem. Em que ocasião chegou à conclusão de ter sido sua mãe quem o matou?

- Não quero falar nesse assunto.

- Deve haver qualquer coisa que sabe e que não disse a ninguém. Qualquer coisa que tem reservada no seu espírito e que eu gostaria que me revelasse.

- Tenho muita pena - lamentou Dona, mas parece-me que não vamos ser amigos.

- Decerto que, se eu telefonar a Sam Buda, será ele a interrogá-la. Mas gostaria que se convencesse de que unicamente pretendo ajudá-la.

- Acusando a minha mãe de assassina?

- Descobrindo os fatos verdadeiros, o que é diferente. De resto, a verdade acabará por vir à superfície,de qualquer maneira.

Dona manteve-se calada e prossegui:

- Acredite que lamento tudo isto. Esperei que confiasse em mim e tenho realmente esperança de conseguir ajudá-la. Tal como as coisas estão, neste momento, terei de permitir que seja a Lei a interrogá-la.

- Que quer dizer com ajudar-me?

- Ainda não sei bem como. Não tenho a certeza de que alguém possua a resposta exata. Temos de conhecer os fatos, antes de descobrirmos a verdade. Mas sei que, após sua mãe ter puxado da faca contra si, você trocou essa faca por uma outra, quando talvez pensasse que eu não estava a vê-la. Porque não me conta agora a verdade?

- Minha   mãe   encontrou-se   com   Cameron,   nessa manhã - murmurou ela.

- Alguém  lhe disse para não falar nisso, fosse a quem fosse?

- Minha mãe. Pediu-me segredo. ;

- Que lhe disse ela?

- Que anulara o encontro e que não o vira.

- Acreditou-a? :

- Não. Sabia que não era verdade.

- Sabe, portanto, que ela foi visitar Cameron?

- Sim... penso que o tenha feito.

- Vou descrever-lhe os fatos, tal como imagino que tenham  sucedido. Talvez, depois, possa falar-me mais francamente.

- Diga lá.

- Harry Sharpies e Robert Cameron começaram por ser administradores e testamenteiros do fundo legado por Cora Hendricks. Esse fundo consistia basicamente numa mina que funcionava com material antiquado. Depois os dois administradores equiparam-na com maquinaria mais moderna e aumentaram grandemente a produção mineira e adquiriram outras propriedades adjacentes. Desta maneira, a exploração valorizou-se muito consideravelmente. Havia dois beneficiários e os testamenteiros procuraram

tratá-los equitativamente, com imparcialidade e honestidade. Mas um desses beneficiários cresceu e tornou-se numa jovem de beleza explosiva que conseguiu hipnotizá-los a ambos. Os dois administradores tinham atingido uma idade em que as respectivas cabeças se deixam facilmente influenciar pela lisonja de uma insinuante «beldade».

Dona mantinha-se silenciosa sem tirar os olhos do meu rosto.

- Felipe Murindo tornou-se gerente dessa mina prossegui, e das restantes propriedades confinantes. Tinha um belo salário e, certamente, outras gratificações, visto que deixou uma bela conta bancária, em Medellin. Demasiado dinheiro para um rapaz que nunca frequentara  uma escola em toda a sua vida.

- Aonde quer chegar? - sondou Dona.

- Há coisa de três anos, Cameron descobriu uma formação rochosa, um pouco acima do rio, que lhe pareceu prometedora. Iniciaram-se algumas escavações que, subitamente, foram interrompidas, pela simples razão de que se tratava de uma mina de esmeraldas. Continuaram, contudo, a explorar esse filão secretamente e Cameron começou a voar, a intervalos regulares, entre os Estados Unidos e a Colômbia. Era um homem muito considerado e a Alfândega colombiana não suspeitava dele. A verdade, porém, é que  Cameron  passou,  em contrabando, uma larga quantidade de esmeraldas em bruto, para este país. As esmeraldas eram lapidadas e polidas por alguém que ainda não surgiu no cenário.

- Que   faziam   com   essas   esmeraldas? - interessou-se  Dona.

- Sharpies e Cameron mostraram-se então especializados em joalharia antiga. Provavelmente o lapidador das esmeraldas era quem substituía as pedras das jóias antigas, por aquelas que lapidara. Desta maneira, as jóias com esmeraldas, que apareciam no mercado internacional, por serem muito antigas, ficavam fora da ação controladora do Governo da Colômbia, que apenas vigiava a produção atual, já que dela detém o monopólio para todo o mundo. Escapavam assim à vigilante mão-de-ferro das autoridades colombianas. Nem Sharpies nem Cameron podiam declarar ao Departamento de Impostos a origem  dessas esmeraldas contrabandeadas. E aqui surge a grande incógnita: por que motivo falaram desse negócio a Shirley Bruce? Apenas por estarem seduzidos pelos seus encantos, ou por uma outra razão qualquer? Alguém teria informado Shirley do negócio secreto dos dois testamenteiros? O certo é que começaram a dar a essa moça parte dos lucros, provavelmente um terço líquido do seu comércio ilícito.

- Compreendo - murmurou Dona.

- Porém,  certo dia,  Cameron  pecou  por falta  de cuidado. Esqueceu-se de que tinha um corvo em casa. Estivera a trabalhar com um stock ilegal de esmeraldas e, por qualquer motivo teve de sair de casa, deixando-as sobre a mesa. Quando voltou, verificou faltarem cinco daquelas pedras preciosas. A princípio deve ter ficado atônito,   sem   perceber   o   que   acontecera.  Depois   viu «Pancho» com uma esmeralda no bico. Primeiro, Cameron deve ter sido persuasivo, tentando que o corvo lhe devolvesse  a pedra; mas «Pancho» sabia ter cometido uma maldade e que provavelmente seria castigado. Por isso fugiu, voando para o buraco da parede, sempre com a esmeralda no bico. Cameron compreendeu que não podia deixá-lo partir. Não queria correr o risco de que aparecessem  esmeraldas, no exterior, não controladas pelas autoridades.  Pegou  no  revólver e  apressadamente  disparou  um tiro, mas  «Pancho» foi  mais  rápido e escapou-se  pela abertura. Cameron quase o atingira, mas a verdade é que não lhe acertou.

- Pobre «Pancho»! exclamou Dona.

- Depois,   Cameron   lembrou-se   de   que   faltavam outras quatro no seu stock ilegal; reconheceu que se achava  metido num  sarilho terrível,  caso essas cinco esmeraldas, ou mesmo apenas algumas delas, fossem encontradas, em qualquer lugar, sem que pudesse justificar a sua proveniência. O corvo era seu, portanto as esmeraldas seriam relacionadas com a sua atividade na Colômbia. Acabaria por ser interrogado pelos controladores do mercado e o seu futuro naquele país ficaria destruído.  Lembrou-se então de desmontar o pingente antigo. Deixou duas esmeraldas sobre a mesa, foi esconder seis no ninho de «Pancho» e outras cinco (o número das que faltavam) num local onde ninguém iria descobri-las. Se alguém encontrasse as esmeraldas contrabandeadas, furtadas pelo corvo, diria serem estas procedentes da velha jóia que já fora avaliada por um joalheiro idôneo e que estivera anteriormente à venda no mercado de antiguidades.

Dona fitava-me com os olhos muito abertos.

- Continue - pediu. - Que aconteceu depois?

- Contudo, antes de Cameron tentar descobrir para onde fora o corvo, fez um telefonema,  mas, enquanto empunhava o auscultador, o assassino penetrou na sala onde se achava.

- Quem? - indagou  Dona, emocionada.

- Alguém com  quem  mantinha grande intimidade, alguém em quem confiava, não pensando que fosse capaz de matá-lo. A prova é que continuou a telefonar, enquanto essa pessoa se colocou atrás dele. Quando se preparava para pousar o auscultador, o assassino, calmamente, silenciosamente, aproximou-se dele e cravou-lhe um punhal no coração... pelas costas.

- E as esmeraldas? Que lhes aconteceu?

- Oito, como lhe disse estavam na sala, com Cameron;  as outras cinco, escondeu-as no bojo do sifão de um lavatório onde a Polícia as desencantou.

- Essas são as que desmanchou do pingente, mas as outras cinco, que «Pancho» levou?

- Bem... essas encontrei-as na caixa que lhe serve de gaiola, naquela árvore além... Sim, essa mesma que você construiu para «Pancho».

- Mas, nesse caso, há esmeraldas a mais! Não havia apenas  treze  no pingente?   Portanto,  essas   cinco  que encontrou na caixa da árvore, eram as de contrabando!

- Exatamente. «Pancho» não sabia o medonho problema em que andava a envolver o seu dono. Que quer, Dona?... Como vê os corvos não sabem contar.

- Mas, quanto ao assassínio, porque mataram Cameron?  Quem foi que o matou?

- Para responder a essa pergunta, tenho primeiro de descobrir   a   verdadeira   razão   por   que   Murindo   foi escolhido   para  gerente  da  mina.  E tenho  também de esclarecer que relação existe entre a morte de Murindo e a de Cameron. E falta-me ainda saber por que motivo Sharpies se virou contra Cameron.

- Posso dizer-lhe  uma   coisa   que   talvez   ajude cedeu

 Dona.

- O que é?

- Shirley Bruce  não era tão  íntima de  Cameron, como o era de Sharpies.

- Como sabe isso?

- Por nada de concreto...  por pequeninas coisas.

Sharpies e Shirley, andavam muito ligados...

- Relações carnais? - sugeri.

- Bem, não queria dizer tanto...

- Pois eu digo.

- Cameron e Sharpies eram amigos... não amigos íntimos, mas davam-se bem um com o outro. O primeiro era mais reservado, o outro, mais emotivo. Ora a certa altura aconteceu qualquer coisa de grave entre ambos. Não sei bem o quê. Apenas sei que Cameron pediu a minha mãe que fosse visitá-lo e ao falar com ela ao telefone, embora não percebesse o que ele lhe dizia, notei que devia estar perturbadíssimo.

- Quando aconteceu isso?

- Na manhã em que foi assassinado.

- E sua mãe foi falar com ele?

- Sim.

- A que horas?

- Por volta das nove e meia.

-Que aconteceu?

- Não  sei, Donald,   mas  não  pode ter acontecido aquilo!

- Não, se realmente sua mãe o visitou a essa hora. Eram de fato nove e meia?

- Foi a hora a que ela se referiu.

- Quando lhe falou nisso?

- Nessa mesma tarde. Parecia fora de si, à beira de uma crise de histeria. Compreendi que algo terrível acontecera. Ela tentou repetidamente contatar com Sharpies, mas não o conseguiu. Então telefonou a Shirley Bruce, mas esta não a quis receber, a não ser no dia seguinte.

- E depois?

- Depois, conseguiu finalmente falar a Sharpies e o que este lhe disse acabou por sossegá-la totalmente.

- Quando foi isso?

- De tarde...  pelo meio da tarde... Shirley tem a mania de armar-se em rainha, mas mesmo assim, minha mãe adora-a. Passa a vida a dizer-me que eu devia ser como Shirley, mais isto e mais aquilo, e quase me deixa maluca. Está sempre a censurar-me... Foi toda a vida assim. Para ela só tenho defeitos e só Shirley é um modelo de perfeições.

Pensei um bocado e arrisquei:

- É possível que você esteja muito perto de uma coisa que procuro...

- O que é?

- Para já, quero que me faça um favor, imediatamente,  sem perda de um instante.

- Que quer que faça?

- Que venha já comigo falar a uma pessoa.

- Quem é ela?

- Uma tal señora Lerida. Sabe quem é?

- Lerida - repetiu Dona franzindo as sobrancelhas pensativamente. - Não, não creio que a conheça. Vive aqui, na cidade?

- Sim.

- De que vamos falar-lhe, quando a virmos?

- Far-lhe-ei   algumas  perguntas,  na  sua  presença.

- Porquê, na minha presença?

- Preciso que me sirva de intérprete. E também porque penso que você estará interessada nas respostas.

-Acerca da morte de Cameron?

- Sim.

- Muito bem - anuiu Dona , irei consigo mas nada farei que possa vir a prejudicar minha mãe.

- Sua mãe costuma andar sempre armada com uma faca?

- Sim.

- E sabe utilizá-la?

- Sim. Sempre disse que uma mulher não pode andar por aí desprotegida. Desde pequena que procurou ensinar-me a manejar uma faca.

- Oh, estou a ver. E você aprendeu?

- Sim. E até a lançá-la a distância.

- E também a usa?

- Não.

- Nunca?

- Nunca.

- Onde está o corvo? - inquiri  subitamente, mudando  de assunto.

- Suponho que esteja na gaiola da árvore.

- Acha que «Pancho» sentiu a falta de Cameron?

- Decerto...  muito. Sabe o que a Polícia lhe fez? Puseram uma rede na abertura por onde ele entrava em casa  do  dono.  O  pobre  «Pancho»  farta-se de  atacá-la com o bico, coitado, sem conseguir destruí-la. Torna-se patética a sua teimosia, voando até lá e embatendo com o corpo na rede.

- Você afeiçoou-se a «Pancho»?

- Sim, muito.

- E ele, a si?

- Sim, embora não tanto como estava afeiçoado a Cameron.   Como   é   natural,   agora,  vai-se   aproximando mais de mim.

- Continua a pintar? - interessei-me.

- Sim. Porque o pergunta?

- Mera curiosidade.

- Estou sempre a trabalhar para ganhar a vida... e por gosto.

- Tem vendido alguma coisa?

- Um pouco, aqui e ali.

- A sua mãe dá-lhe dinheiro?

- Porque me pergunta isso?

- Porque estou  interessado em saber...   Pode ser mais importante do que você possa pensar.

- Não. Tive sempre de lutar pela vida, desde que cheguei à idade de trabalhar. Minha mãe não aprova o gênero de trabalho que escolhi e a que me dedico. Tenho de fazer economias para sobreviver. Custa-me falar-lhe desta miséria, mas tenho a paixão da minha arte.

- Continua a parecer-se com a jovem que vi naquele desenho - lembrei.

- A que perscrutava o horizonte? - sondou ela, com olhos sonhadores.

- Sim, essa mesma, que olhava para além da tela em que estava pintada, que olhava para o futuro. Você põe muito de si, naquilo que pinta. Um dia começará a ser procurada, como uma grande artista...  que já é. Verá. Venderá imensos quadros e terá um nome célebre: Dona Grafton!

Dona agarrou-me na mão, impulsivamente.

- Oh, Donald! - exclamou. - Você é como um tônico!  Às vezes procuro não me desencorajar, mas... Oh, Donald, deixemos isso... E não fale a ninguém no que lhe disse acerca das minhas relações com minha mãe, nem no seu encontro com...

- Toca a andar - interrompi-a. - Vamos falar com a señora Lerida.

 UMA TESTEMUNHA ASSOMBRADA

O endereço que Jurado me telegrafara conduziu-nos a um bairro dos arredores, de estruturas arruinadas pelo tempo, que os senhorios decerto não pensavam em reparar, limitando-se a aproveitar os últimos dólares das rendas de aluguer, até que o camartelo limpasse a zona para nova e moderna fase de construção. E aqui e além, viam-se chaminés de velhas fábricas, enchendo o céu de fumo, enquanto motores e pilões produziam um ruído contínuo e desagradável por todo o bairro.

A casa que procurávamos não estava sequer pintada, pois a tinta que levara, muitos anos atrás, já caíra, arrastada pela caliça que cobrira os tijolos de adobe, agora descarnados e meio corroídos pelas chuvas. Uma pequena escada de degraus muito gastos dava acesso à entrada, de porta empenada e rachada. Bati a esta e nada aconteceu.

 Repeti a chamada, mas ninguém veio abrir, nem Sequer respondeu. Voltei para o carro, descorçoado, onde Dona me animou:

- Não desista, Donald. Experimente outra vez. Talvez essa mulher seja velha e surda. Tenho o pressentimento de que alguém está lá dentro.

Desta vez Dona veio comigo e bati com tal força na porta, que cheguei a recear desconjuntá-la. A certa altura os dedos da jovem cerraram-se no meu braço e notei que até parara de respirar.

- Escute, Donald... Ouvi um ligeiro ruído... Passos a aproximarem-se.

Efetivamente alguém arrastava chinelas por um soalho de madeira e a porta abriu-se. As paredes internas apresentavam grandes faltas de estuque, com as fasquias e a greda à vista e, como deduzira, não havia qualquer cobertura no chão de tábua que, se fora branca, estava agora parda de sujidade.

- Quem  é? - disse  a  mulher,  em  tom   roufenho.

Não era uma voz de quem está na sua casa, perante um intruso, ou uma visita amável, mas de alguém que passou a vida a ser escorraçada, a obedecer a outrem e que chegou a tal ponto de saturação que tanto se lhe dá que venha seja quem for.

- Queremos falar consigo - anunciei.

Virou-nos as costas, deixando a porta aberta, como se preferisse ouvir-nos, lá dentro, do que sobre a soleira da porta. De certo modo ,era um convite para entrarmos. Seguimo-la até uma minúscula sala, iluminada por uma lâmpada que pendia do teto, pelo próprio fio elétrico. Servia simultaneamente de sala de estar, de quarto de cama e até virtualmente de cozinha, pois tinha um pequeno fogão a um canto, do lado oposto ao ocupado por uma cama de ferro. Três cadeiras de estilos diferentes e ao mesmo tempo sem estilo algum, constituíam o restante mobiliário. A cama não tinha coberta; o travesseiro não tinha fronha. A mulher virou-se para nós e olhou-nos, conformada, sob o círculo de luz.

Devia ter bastante idade; anos e anos ingratos. Sacos de pele pendiam-lhe das pálpebras inferiores, sob os olhos cansados e tristes, desinteressados de tudo. O cabelo branco estava despenteado. O rosto era escuro, enrugado, denunciando o seu sangue mestiço, espanhol e índio. Como não nos convidasse a sentarmo-nos, tomei essa iniciativa e disse-lhe:

- Não vamos ficar de pé. Sente-se aí.

Ela olhou para trás, como se procurasse uma proteção e obedeceu. A proteção estava sobre uma prateleira, suspensa da parede por duas escápulas: meia garrafa de gim, porque a outra em nada a ajudaria, já que estava vazia.

- Conhece Felipe Murindo? - inquiri.

Ela acenou com a cabeça, afirmativamente.

- Há quanto tempo o conhece?

- É meu filho.

- Manda-lhe dinheiro?

Pela primeira vez a señora Lerida mostrou-se cautelosa.

- Porquê? - indagou. - Quem   são   os   senhores?

- Quem mais lhe dá dinheiro?

Ficou calada.

- Estou  aqui para  arranjar-lhe  uma vida decente. Não  se  compreende  como  possa  viver nesta  miséria.

Fiz um gesto em redor, apontando o cenário.

- É quanto me basta - respondeu filosoficamente.

- Não é  suficiente. Devia ter com que  se vestir decentemente, com que se alimentar convenientemente e possuir algum conforto. Creio que ainda faz trabalhos pesados, não?

Os seus olhos eram aquosos, perenemente lacrimejantes. Encolheu os ombros e disse surdamente:

- Não importa. Não preciso mais do que isto.

- Há quanto tempo veio da Colômbia?

- Já não sei. Foi há muito tempo.

- É  triste  que  não tenha  voltado  a ver os  seus amigos. Podia estar com eles, pelo menos duas vezes por ano, se quisesse, indo e voltando de avião. Não gostaria de tornar a ver a sua terra?

Desta vez os seus olhos ganharam algum brilho e repetiu:

- Quem são os senhores?

- Entregue-se   nas   minhas   mãos.   Quer   voltar   à Colômbia, não quer? Gostaria de levar uma vida mais decente, não é verdade?

- Fala espanhol? - inquiriu.

- Esta jovem, que veio comigo, fala espanhol - expliquei.

Então a señora Lerida começou a exprimir-se em castelhano, primeiro lentamente, em stacato, e depois fluentemente, com grande rapidez.

Dona Grafton traduziu:

- Deseja muito voltar a ver o filho, os seus amigos e a terra onde nasceu. Diz que aqui não tem nenhuns amigos.

- Diga-lhe que tudo isso se pode arranjar, agora que a descobri.

Em seguida, perguntei diretamente:

-Viveu na Mina do Trevo Duplo?

Confirmou com a cabeça.

- Aí desempenhava as funções de criada e de ama... Foi ama de uma criança que Cora Hendricks levou para lá, após uma viagem aos Estados Unidos?

Como não respondesse, pedi a Dona que vertesse a pergunta para espanhol. Mas a mulher mostrava-se agora suspeitosa. Então, decidi ser mais preciso:

- A criança que voltou para os Estados Unidos não era a mesma que Cora Hendricks levara para a mina. Depois da sua morte, efetuaram uma substituição. A mulher do   que   era   então   superintendente   da   mina   fez essa troca, de maneira que a sua própria filha, mandada para os   Estados   Unidos, viria  a ser herdeira  de  uma grande   fortuna.   A   verdadeira   criança   que   Cora   Hendricks levara consigo para a Colômbia ficou como sendo filha de Juanita Grafton. É ou não verdade? Esta informação é de extrema importância.

A mulher não respondeu. Olhava-me agora com uma assustada atenção, notoriamente crescente. Virou-se para Dona, como a implorar uma mais clara tradução. Por sua vez, Dona fitava-me com verdadeiro assombro. Notando a incredulidade no seu rosto, disse-lhe:

- Não temos tempo para reações emotivas. Esqueça-se das implicações pessoais, e traduza o que eu disse, pelo amor de Deus.

A jovem verteu em espanhol as minhas deduções e a mulher respondeu-lhe, quase por monossílabos. Dona Grafton, emocionadíssima, começou a falar mais depressa e a gesticular. A certa altura, a señora Lerida tornou-se mais loquaz e finalmente os seus lábios desencadearam uma série de frases aceleradamente.

Quando acabou, Dona virou-se para mim. Os seus olhos mostravam-se espantados e ao mesmo tempo intimamente magoados. Com os lábios trementes, lutando contra a intensa emoção, declarou numa voz estranhamente grave:

- É verdade! Esta mulher não sabia que, devido a essa substituição, a verdadeira filha de Juanita Grafton... falsa herdeira, viria a receber uma fortuna. Pensava que tinham assim procedido para se evitar um escândalo a Cora Hendricks, por se tratar de um caso desonroso... de amores ilícitos que procuravam ocultar. Diz que se coloca inteiramente nas suas mãos.

- Bem, agora isto é importante. Veja se descobre se Robert Cameron falou com ela recentemente.

A señora   Lerida  não precisou  de   intérprete  para inquirir:

- É verdade que o Señor Cameron foi assassinado?

- Sim.

- É pena. Foi bom para mim. Deu-me dinheiro.

- Quando?

- Na véspera. Deu-me dinheiro num dia e, no outro, mataram-no.

- Falou com ele.

- Um pouco.

- Comunicou a alguém ter falado com ele?

- Não. Não contei a ninguém.

- Está absolutamente certa disso?

- Posso jurá-lo.

Virei-me para Dona e indiquei:

- Diga-lhe que deverá repetir tudo quanto nos disse, de maneira a podermos escrever as suas declarações em espanhol.  Então terá dinheiro,  mais do que  suficiente, para voltar à Colômbia e tornar a ver os seus amigos. Eu tratarei de tudo.

Não foi preciso traduzir. Com filosófica resignação, a señora Lerida declarou:

- Concordei   com   tudo.   Podemos   beber   qualquer coisa?

Pedi então a Dona Grafton:

- Por favor, vá telefonar imediatamente ao comando-geral da   Polícia   e   peça   para  falar   ao   capitão Frank Sellers. Diga-lhe para arranjar um intérprete de espanhol, e que o traga  aqui, juntamente com  um  notário. Que venham já, sem a menor demora.

- Podíamos levá-la lá - sugeriu Dona.

- Não. Quero que ele venha aqui, para ouvi-la neste mesmo ambiente. Ficará mais impressionado. Além disso, não quero perder esta mulher de vista.

- Mas podíamos deixá-la aqui, enquanto íamos falar com ele. Por telefone...

- Nem pense nisso. Já virei, uma vez, as costas a uma testemunha e uma tonelada de dinamite desfê-la em cisco. Lamento muito incomodá-la, Dona, mas você vai meter-se no carro da agência e correr ao telefone mais próximo. Faça o que lhe digo. Eu fico aqui com ela. Não quero que lhe aconteça nada, enquanto não obtivermos o seu depoimento escrito. Espero que compreenda acrescentei, com ligeiro sarcasmo, o motivo desta minha decisão. E o que vai acontecer, quando você tiver esse depoimento em suas mãos.

- Donald! exclamou Dona. - Estou a fazer um terrível esforço para não pensar nisso.

Dona saiu, deixando-me com a velha e a sua garrafa, meio vazia, de gim, naquela sala de soalho sujo.

 NADA MAIS DO QUE UMA TEORIA

A señora Lerida assinou, com mão trêmula, o seu depoimento. O capitão Sellers dobrou a folha de papel, enfiou-a na algibeira interior do sobretudo e olhou-me significativamente.

Segui-o ao longo do estreito corredor, até à porta.

- E agora? - sondou.

- Poderá mantê-la sob custódia, como testemunha material? - sugeri.

- De quê?

- Das circunstâncias relacionadas com o assassínio de Cameron.

- Está a ver se consegue cortar uma boa talhada do bolo, não está, Lam?

- Deixe-se  disso,   Frank - protestei.

- A única coisa de que ela é testemunha material, é de ter sido ama de bebês, nessa mina da Colômbia. Todo o resto, você vai fartar-se de andar em bolandas, para prová-lo. Uma coisa é uma pessoa fazer um depoimento escrito e outra é manter as suas declarações, em tribunal, sob o fogo cerrado de um contra-interrogatório. Ainda se arrisca a ser acusada de fraude, por suborno, de calúnia e outras coisas mais. Não se esqueça de que estão duzentos  mil dólares em jogo. Vão remover o céu e o inferno,  para  desfazer  essa  teoria   da   substituição  das crianças.

- Esqueça-se da substituição  e  pense  apenas  no assassínio   de   Cameron - propus. - Concentre-se   na possibilidade de desvendar o crime.

- Como, não mo dirá, Donald?

- Cameron e Sharpies eram apenas testamenteiros de um Fundo. Nada tinham que ver com o fato de Dona Grafton   ter   sido  substituída   por   Shirley   Bruce.   Mas quando se meteram no negócio ilegal das esmeraldas, a falsa Shirley Bruce, por qualquer razão, entrou de Conluio com eles.

- Muito bem - disse Sellers , suponhamos que os três eram cúmplices desse negócio resultante de contrabando... E depois?... Que relação tem isso com o fato de Cameron ter levado uma facada que o mandou desta para melhor?

- Creio que Sharpies descobriu, há alguns anos, a história de Felipe Murindo. Foi ele quem conservou Murindo, como gerente da mina. Cameron andava no negócio das esmeraldas, mas era Sharpies quem olhava pela administração da Mina, onde só lhe bastava ir duas vezes por ano. Cameron nada sabia da troca dos bebês. Sharpies guardara   segredo   dessa   substituição,  tanto  mais   que devia andar louco por Shirley.

- É uma mera hipótese - criticou Sellers.

- De certo modo, sim, mas vistas as coisas, sob um outro ângulo, é mais do que isso. Você devia ter visto Shirley Bruce e o seu «Tio» Harry, juntos. Já não diria ser uma mera hipótese.

- Oh, oh! Assim, hem? - sugeriu Sellers, juntando o indicador e o médio, significativamente.

- Assim mesmo e com «mais molho» - confirmei.

- Diga mais - incitou.

- No dia da sua morte, Cameron desconfiara da verdade. Resolveu agir. Foi falar com a señora Lerida e obteve a confirmação da infame troca dos bebês. Depois chamou Juanita  Grafton, falsa  mãe de  Dona,  mãe  de Shirley, e co-autora da depredatória mistificação. O que Cameron lhe disse, levou alguém a lançar-lhe uma faca às costas.

- A lançar-lhe? - estranhou Sellers.

- Sim. Juanita Grafton não só é boa atiradora de facas, como ensinou essa arte às respectivas filhas.

Sellers franziu o sobrolho.

- Entretanto - prossegui , Shirley Bruce decidiu fazer de Pai Natal com Bob Hockley. Foi visitá-lo e ofereceu-lhe um presente de dois mil dólares.

- Porquê?

- Porque sabia que o seu  co-herdeiro pedira  um passaporte para a Colômbia e ela não queria que ele lá fosse meter o nariz. Pensava poder mantê-lo por cá, a gozar essa «massa», nas corridas de cavalos. Mas, enganou-se  nos cálculos, porque o tipo partiu. Por essa razão. Sharpies teve de ir atrás dele, para tentar entravar-lhe as investigações. E contratou Bertha, para que o socorresse,caso as coisas lhe corressem mal, apelando para o cônsul dos  Estados   Unidos.  Ao  mesmo  tempo, tanto  Shirley como  Sharpies  quiseram  afastar-me  do  inquérito  que, particularmente, eu persistia em levar a cabo.

- Não percebo como essa Shirley lhe entregou os dois mil «palhaços», sem se assegurar de que Hockley desistia da partida - objetou Sellers.

- Bem, esperou que as apostas o detivessem, mas a sua visita teve uma outra finalidade muito mais importante: enquanto o visitou, roubou-lhe uns cristais que se achavam num frasco rotulado como sendo «veneno» e datilografou um endereço, utilizando a sua máquina de escrever. Portanto, não gastou os dois mil  «paus», em vão.

- Vá   para   diante - incitou   Sellers. - Continue   a falar que eu continuo a ouvir. Daqui para a frente limito-me a escutar. Tudo isso pode ser realidade, mas também  pode tratar-se de mais uma das suas rutilantes fantasias.

- Duas pessoas estavam diretamente interessadas em que Cameron não agisse, depois de saber a verdade, acerca da troca de identidade dos bebês. Juanita Grafton e sua filha Shirley Bruce. Tinham de calá-lo para sempre.  O segredo de Felipe Murindo não poderia ser divulgado de modo algum. Por isso o mataram, logo a seguir a Cameron, quando compreenderam  que  Hockley  ia a caminho.

- Nenhuma delas poderia matar Murindo.

- Mas  Sharpies  ter-se-ia  encarregado  de  arranjar alguém que lhe dinamitasse a casa, com a testemunha lá dentro - alvitrei.

- Como   chegou   a   essas   conclusões? - interessou-se  Sellers.

- Reunindo várias pontas da meada. Quando conheci Juanita Grafton, vi-a enraivecer-se contra a jovem que se presumia ser sua filha, tentando esfaqueá-la. Encontrei-a  em casa de Shirley e notei que Juanita a adorava, amimando-a como se fosse sua escrava... ou melhor, sua verdadeira mãe. Depois, desvendei uma história espantosamente discrepante. Aqui, em  Los Angeles, Juanita Grafton vive abastadamente, com a justificação de que trabalha na Colômbia, como uma moura, para fazer economias; em Medellin, justifica a sua ostensiva abastança, declarando que trabalha desalmadamente, como criada de servir, nos Estados Unidos... E tem uma gorda conta bancária. Murindo, que apesar de analfabeto, é gerente da mina de Cora Hendricks, tem  identicamente (tinha, porque o assassinaram) um chorudo depósito no banco local. Este Murindo estava disposto a vender-me a informação. Falou de filha e de ama, mas não percebi o resto. Junte estas pontas da meada, Frank, e tudo se lhe torna transparente como a água. De resto, note que Dona Grafton não se parece nada com a pseudo-mãe, enquanto que Shirley reúne todas as características fisionômicas de Juanita Grafton. Um tipo, com dois dedos de testa, não precisa de ser detetive, para dar por isso.

Sellers tirou um charuto da algibeira, cortou-lhe a ponta com os dedos, cuspiu-a para o passeio e, contra os seus hábitos, riscou um fósforo e acendeu o havano.

- Raios!   Que   embrulhada! - exclamou. - Se   me atiro a isso de cabeça, fico com ela entalada numa data de sarilhos. Teorias, mais teorias, sem uma única prova!

- Note que a pessoa que assassinou Cameron sabia utilizar bem uma faca. Essa pessoa estava com ele na sala...   Coloque-se,   Frank,   na   situação   de   Cameron. Recebe a confirmação de que Shirley Bruce é uma impostora.  Sabe que Sharpies está feito com ela. Decide tomar uma atitude honesta. Está a encarar essa pessoa, quando o telefone toca. Vira-se para atender à chamada, voltando as costas à visita. Deve ainda ter dito, pelo telefone: «Venha cá imediatamente. Acontece que...»

- Pensa que ele estava a falar a Sharpies?

- Não. Chamava Hockley. Ia dizer-lhe que descobrira algo de enorme importância e que as provas se encontrariam na Colômbia. Essa faca cerrou-lhe os lábios para sempre.

- Nesse  caso,  por que   motivo   Hockley   não  nos referiu essa conversa telefônica?

- Porque preferiu ir a Medellin, recolher as provas, antes   que   as   fizessem   desaparecer.   Não  quis  dar  o alarme.

- Pensa que foi Juanita Grafton quem o matou?

- Não. Depois de Cameron ter visitado a Señora Lerida, falou com ela, nessa mesma manhã. Juanita ficou terrivelmente perturbada, histérica, durante toda a tarde, até que Sharpies lhe telefonou. Então, mostrou-se novamente  calma, tranquilizada.

- Sharpies anunciou-lhe a morte de Cameron?

- Evidentemente. «Morto o bicho, morta a peçonha». Já não corriam perigo ela e a filha.

- Isso reduz grandemente o número de suspeitos comentou  Sellers.

- A um só - conclui.

O capitão coçou a nuca, como sempre fizera quando estava embaraçado.

- Cos   diabos,   Lam - considerou,   você,   afinal, nada tem, a não ser uma teoria.

- Era tudo quanto Colombo tinha - repliquei e voltei  para dentro de casa.

A voz de Bertha soava melosa, como compota de amoras, ao anunciar triunfalmente abriu a porta onde se via uma placa: Donald Lam e por baixo: Particular. Era uma suíte de dois escritórios. No primeiro, da entrada, estava Elsie Brand martelando as teclas da máquina de escrever. Por detrás dela ficava o meu gabinete. Estava mobilado faustosamente: maples superestofados, uma secretária brilhantemente polida e uma rica carpete cuja cor condizia esteticamente com a da alcatifa.

- Gosta? - sondou  Bertha, apreensivamente.

- Hum,   hum! - confirmei.   Dirigindo-me   a   Elsie, inquiri: - Como vai isso? Que está a fazer?

Bertha apressou-se a intervir:

- A nova datilografa é muito lenta. Havia um pouco de trabalho excedente e decidi...

Tirei as folhas de papel e os químicos do rolo da máquina de Elsie e estendi-os a Bertha.

- Se a garota que arranjou é insuficiente para fazer o seu trabalho, contrate outra. Elsie Brand está exclusivamente ao meu serviço.

A minha sócia respirou fundo e murmurou:

- Muito bem, Donald.

Elsie   olhou   para   mim   com   um   sorriso  tímido   e declarou:

- Sei que está procurando ser-me agradável, Donald, mas tenho trabalhado toda a minha vida. Tenho estado aqui, dia após dia, durante oito horas, batendo as teclas. Creio que, se nada tiver que fazer, até adoeço...

- Deixe-se disso, Elsie. Você vai fazer o que fazem as demais secretárias particulares. Quando não tiver trabalho urgente, põe uma revista em cima dessa mesa e entretém-se a ler, até que ouça passos de um cliente. Só nessa altura desempenhará o seu  papel de secretária atarefadíssima.  Mal  o tipo entre  no meu  gabinete, já pode continuar a sua leitura.

- Oh, Donald. Não serei capaz disso.

- O que você não pode é dar cabo do sistema nervoso a trabalhar continuamente, como uma autómata. Não quero uma assistente computadora. Detesto máquinas. A partir de agora, trate de sossegar.

Elsie olhou para Bertha. Esta sorriu benignamente e disse:

- Querido Donald, ainda não tive ocasião de contar-lhe  o que aconteceu. Vamos para o seu gabinete particular...  para eu lhe dar as boas notícias.

- Estamos bem aqui. Este é suficientemente particular.  Que se passa?

- Você tinha razão na sua teoria do assassínio de Cameron.  Essa garota,  Dona Grafton, está-lhe  infinitamente agradecida e Frank Sellers diz que você é um encanto de rapaz.

-Que aconteceu?

- Shirley Bruce resolveu confessar.

- A mãe está implicada no caso?

- Juanita nada sabia, quanto ao crime, mas Sharpies suspeitava   do  que   realmente   acontecera,   embora  se tivesse calado. Esse tipo, Murindo, falou de mais. Julgando que Cameron estava a par da substituição dos bebês, referiu-se a isso, acidentalmente, e o velho ficou terrivelmente chocado. Uma coisa era o seu negociozinho ilegal de esmeraldas e outra, uma infame mistificação, na troca de herdeiras. Mal chegou cá, começou a investigar o que se passava e conseguiu, depois de uma série de diligências, localizar a mãe de Murindo... essa Señora Lerida. Chamou Juanita lá a casa e tentou convencê-la a admitir o que acontecera. A mãe de Shirley ficou aterrorizada, mas susteve a mentira. Contudo, Cameron já sabia o suficiente para pôr o assunto em «pratos limpos». Então, chamou Shirley e disse-lhe que o seu jogo sujo acabara, de uma vez para sempre. Contudo, foi suficientemente estúpido para virar-lhe as costas, quando decidiu telefonar a Hockley.

- E Hockley, pressentindo que andava  uma certa canalhice no ar, mas não tendo ouvido integralmente o que Cameron pretendia dizer-lhe, pensou que se tratasse de qualquer falcatrua, na administração do Fundo, e resolveu  investigar o que se passava na mina.

- Exatamente. Por isso foi até ao Panamá, de onde voou   clandestinamente   para   a   Colômbia...   E   com   o dinheiro que Shirley lhe dera...

- É a ironia do destino! - sentenciei. - E Sharpies?

- Sharpies suspeitava do que se passava, mas não estava implicado no crime. Partiu também para a Colômbia, atrás de Hockley. Queria tentar evitar que ele começasse a interrogar as pessoas de lá, levantando naturais suspeitas e podendo até descobrir algo acerca da falsa identidade de Shirley. Também tencionava trazer um novo stock de esmeraldas.

- Por que diabo se lembrou ele de contratar-me para investigar   o   paradeiro   do   velho   pingente? - interessei-me, já que a verdadeira intenção ainda estava nebulosa.

 - Porque o Serviço Secreto colombiano começaraa suspeitar do contrabando de esmeraldas  e os  seusagentes já andavam na pista de Jarratt. Antes que chegassem a suspeitar da parelha Cameron e Sharpies, estesresolveram estender uma cortina de fumo defensiva, provando que o pingente, que Nuttall tivera em seu poder,era  efetivamente   uma  jóia   antiga,   herdada  por  umamoça, cuja mãe adotiva, Cora Hendricks, vivera realmente na América do Sul. Os agentes do Serviço Secretocolombiano seguiram a pista de Jarratt até Nuttall, masaí ficaram com as pernas cortadas, pois, aparentemente,o pingente que este lhes mostrou era uma jóia antiga.Nada encontraram de suspeito contra Cameron.

- Estou a ver...

- Sharpies  decidiu  então contratá-lo, Donald, porque pretendia ter um detetive que pudesse testemunhar (seguindo a pista de Nuttall, Jarratt e Shirley), que se tratava de uma jóia antiga, trocada por um anel de diamante.

- É evidente que, notando uma anormalidade no mercado de esmeraldas, tão bem controlado pelo Governo colombiano, os seus agentes fossem ter com um especialista: Nuttall  e, obviamente, com  um  intermediário: Jarratt. Exercendo pressão sobre ambos, dariam de nariz com Shirley e quem diz Shirley... diz Cameron e Sharpies. A única maneira de estes se «limparem» de suspeitas era obterem, através de mim, a prova de que nada havia de ilegítimo de sua parte, pois o pingente fora herdado,  há muitos anos. Não é assim?

- Exatamente, Donald. Depois, quando Cameron foi assassinado, Sharpies entrou em pânico. Não tinha realmente  motivo para recear que lhe acontecesse o mesmo, como você pensou, mas o homem convenceu-se de que o sócio fora «justiçado» pelos agentes do Serviço Secreto colombiano. Nessa altura não sonhava sequer que a causa da morte de Cameron fosse outra.

- Hum, hum!

- Porém, a morte de Cameron assustou Jarratt, que preferiu esclarecer a origem da armação do pingente. Este, na realidade, fora adquirido a Phyllis Fabens. Por isso o lançou a si nessa pista, Donald. Se as coisas dessem para o torto com Shirley, Jarratt queria ficar livre de qualquer cumplicidade. E Shirley foi aconselhada a declarar que o pingente, que se encontrou em poder de Cameron, não era o seu... aquele que trocara pelo anel.

- Sharpies não sabia que Shirley fora a casa de Cameron? - indaguei.

- Não.  Quando começou  a  suspeitar de qualquer coisa, a sua adoração por Shirley sobrepôs-se à dúvida incipiente.

- E o veneno?

- Shirley foi à oficina de Hockley. Ofereceu-lhe os dois mil dólares como prova de amizade e confiança. Aproveitou um momento em que o rapaz estava fora do gabinete, ocupado com um cliente, viu um frasco contendo  sulfato de cobre (com um rótulo de advertência a quem o manipulasse,  indicando  «veneno») e pensou que este fosse um produto tóxico fulminante.  Decidiu então utilizá-lo, para desembaraçar-se de Dona Grafton. À pressa, meteu um papel na máquina de escrever do gabinete de Hockley e redigiu o nome e endereço da sua próxima vítima, para com ele rotular a embalagem exterior da caixa de rebuçados. Fez um soluto de sulfato de cobre e injetou-o no recheio dos rebuçados. Depois, enviou-os a Dona, por um portador. Se a Polícia investigasse a premeditada morte de Dona, cairia sobre Hockley. O azar da filha, foi a gulodice da mãe. E a não-filha safou-se por um triz.

- E eu também - lembrei. - Quanto a Sharpies, foi ele quem esteve por detrás da explosão de dinamite?

- Não. Foi o ajudante de Murindo que ultimamente fazia todo o trabalho, na mina de esmeraldas. Como só Murindo poderia relacioná-lo com essa exploração ilegal e como as autoridades já suspeitavam deste, resolveu eliminá-lo.

- Vejo que  Frank Sellers e Maranilla fizeram um bom trabalho - apreciei.

- Oh, Donald querido, não seja tão modesto. Todos reconheceram que, se não fosse você, não teriam deslindado coisa  alguma.  Não é maravilhoso, meu  diabinho esperto. A Bertha está encantada! Você conseguiu cortar uma bela talhada do bolo! Dona Grafton vai dar-nos uma percentagem de tudo aquilo que receber. Será uma data de «massa», querido.

- E Sharpies?

- Terá de prestar contas de todas as esmeraldas que extraiu da mina. Todas elas pertencem ao Fundo. Cameron  fez imenso dinheiro com elas, que agora terá de ir engrossar o bolo, o que significa que engrossará ainda mais a nossa talhada. Está a ver, queridinho? É por isso que a Bertha gosta tanto de si! Ainda por cima, o meu advogado afirma que Sharpies terá de pagar-nos uma data de «massa» pelos riscos que me fez correr e por todo o trabalho de investigação que desenvolvemos. Você é um diabinho cheio de miolos. A Bertha já não poderia passar sem si!

- Bem, já que Sellers está em boa disposição de espírito, diga-lhe que terá de abrir bem os olhos, para que Shirley se lhe não escape pelas malhas da Justiça.

- Ora, Donald, não se preocupe. Essa não escapa. Sellers atirou-lhe para cima com uma acusação de assassínio premeditado, do primeiro grau.

- Isso julga ele... agora - adverti, mas logo que ela se sente no banco dos réus, em frente do júri, e cruzar as pernas, começando a queixar-se de que sempre considerara Cameron um verdadeiro pai, até àquele momento em que o velho foi atacado de fúria sexual, atirando-se  a ela, tentando violá-la...

- Oh, Donald! Shirley não pode alegar uma coisa dessas... Pois se o homem estava a telefonar...

- Quer apostar «umas notas», em como vão acreditar  num ato desesperado de legítima defesa?

- Não, Donald. Notas, não. O dinheiro não se fez para atirar pela janela fora.

A nova empregada da recepção bateu timidamente à porta. Elsie Brand saltou da cadeira e correu a abrir. A outra trazia um embrulho retangular.

- É para Mr. Lam - indicou. - Veio por portador...

- Parece uma vidraça de janela - avaliou Bertha.

- Que diabo é isso, Elsie?

Esta consultou-me com o olhar e lendo nele a minha anuência, abriu o embrulho.

Do papel desfolhado brotou uma tela em que estava pintada uma jovem, olhando o oceano... para lá do horizonte... para o futuro... sonhadoramente. Trazia apenso um cartão manuscrito. Elsie estendeu-mo.  Era uma letra feminina, legível, firme; Sei que gosta disto, Donald. A sua sócia disse-me que estava a arranjar-lhe um novo gabinete particular. Ficaria encantada, se pendurasse esta minha recordação numa parede à sua vista. Espero que me visite, quando os seus afazeres lho permitirem. Com todo o meu amor e gratidão, a sempre sua, Dona.

 

                                                                                            Erle Stanley Gardner

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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