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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MUSICA DO AMOR / Nora Roberts
A MUSICA DO AMOR / Nora Roberts

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A MUSICA DO AMOR

 

Prólogo

    Natasha caminhava para o dormitório com o brilho do triunfo e uma fera determinação no olhar. Assim Mikhail e Alexei pensavam que seria divertido disfarçar ao cão com seu traje novo de balé. Pois acabavam de descobrir, refletiu, o que acontecia aos irmãos pequenos quando eram descobertos pondo suas sujas mãos em algo que não lhes pertencia.

    Certamente Mike ia coxear durante o resto do dia.

    E o melhor de tudo era que sua mãe os tinha obrigado a lavar o sutiã e a saia com suas próprias mãos. E a estender ambos os objetos para que se secassem. Assim, pensou com um crescente prazer, era provável que seus amigos do bairro os vissem realizando essas tarefas que consideravam femininas.

    Sentiriam-se humilhados.

    Mamãe, disse-se, sempre tinha sabido fazer justiça. Seu castigo era inclusive melhor que a patada na tíbia que ela mesma lhe tinha dado a seu irmão.

    Natasha se voltou para o espelho da parede do dormitório e tentou tranqüilizar-se descendo em um pliér. Aos quatorze anos, desfrutava de um corpo tão esbelto como o de seus irmãos, no que apenas se insinuavam as curvas dos seios e os quadris. As aulas de balé tinham endurecido seus músculos e articulações para adaptá-los às demandas do baile, tinham-na convertido em uma adolescente disciplinada e tinham proporcionado a seu coração o maior dos gozos.

    Natasha sabia que as aulas eram caras, e o muito que seus pais trabalhavam para que ela e seus irmãos pudessem desfrutar do que mais desejassem. E porque sabia, preparava-se quase religiosamente e se esforçava mais que qualquer das alunas com as que compartilhava as classes.

    Algum dia seria uma grande bailarina e, cada vez que dançasse, daria as obrigado por aquele presente.

    Imaginando-se a si mesmo com um vaporoso colam e enquanto escutava como se elevava a música, fechou os olhos, uns formosos olhos de cor castanha dourada, e elevou seu delicado queixo. O cabelo caía em uma cascata de cachos negros por suas costas, balançando-se delicadamente enquanto ela se elevava sobre as pontas e girava com uma lenta pirueta. Ao abri-los, descobriu a sua irmã no marco da porta.

    -Estão a ponto de terminar de lavá-lo -anunciou Rachel.

    Como lhe ocorria quase sempre ao olhar a Natasha, sentia-se sobressaltada por uma mescla de orgulho e inveja. Orgulho de que sua irmã fora tão formosa, de que parecesse tão adorável quando dançava. E inveja porque, aos oito anos, tinha a sensação de que nunca cumpriria os quatorze e de que jamais seria tão bonita e grácil como ela.

    A Natasha nunca lhe caíam os laços, fazendo de seu cabelo uma alvoroçada juba. E além disso levava preso. Eram pequenas, sim, mas ao menos estavam ali.

    Todas as ambições e desejos do Rachel se centravam em ter quatorze anos.

    Natasha logo que sorriu, enquanto se voltava fazendo outra pirueta.

    -E se estão queixando?

    -Um pouco -Rachel sorriu-, quando mamãe não os ouça. E Mike diz que lhe tem quebrado a perna.

    -Estupendo. Merece-se ter uma perna torta por haver tirado minhas coisas.

    -Só era uma brincadeira -Rachel se deixou cair na cama-. Sasha estava tão ridículo com o sutiã e a saia rosa...

    -Uma brincadeira -admitiu Natasha. Aproximou-se do penteadeira e tomou uma escova-. Sim, ao melhor também é uma brincadeira divertida lançá-los ao lago Swan -sorriu com dureza e começou a escovar-se com movimentos bruscos-. Enfim, so são meninos.

    Rachel enrugou o nariz. Para ela os meninos eram virtualmente o pior.

    -Os meninos são estúpidos. Gritam muito e cheiram mal. É muito melhor ser garota -apesar de sua indumentária: uns jeans desgastados, uma camiseta enorme e uma boina de beisebol sobre seu despenteado cabelo, acreditava absolutamente.

    Olhou a sua irmã com gesto iludido.

    -Podemos tentar nos vingar.

    Natasha se havia dito a si mesmo que ela estava por cima dessas coisas, mas estudou ao Rachel com crescente interesse. Rachel podia ser a mais pequena da família, mas era um autêntico demônio.

    -Como?

    -A camiseta de beisebol do Mike -que Rachel cobiçava em segredo-. Acredito que Sasha estaria muito bonito com ela. Quando saírem a estender a roupa, podemos tirar-lhe -Nadie sabe aonde a esconde quando não está vestido.

    -Ninguém sabe onde a esconde quando não ele não está vestido.

    -Eu sei -um enorme sorriso iluminou o bonito rosto do Rachel-. Sei tudo. Direi-lhe isso e te ajudarei a te vingar se...

    Natasha arqueou uma sobrancelha. Era um demônio muito inteligente. Embora tivesse o aspecto de um anjo.

    -Se?

    -Se me deixar seus brincos de ouro, esses aros pequenos com estrelas gravadas.

    -A última vez que deixei um par de brincos perdeu um.

    -Não o perdi. Simplesmente, ainda não o encontrei -parte dela estava desejando zangar-se, mas teria que esperar até que o trato estivesse fechado-. Conseguirei a camiseta, ajudarei-te a vestir a Sasha e manterei ocupada a mamãe. Mas você terá que me deixar os brincos durante três dias.

    -Um dia.

    -Dois.

    Natasha deixou escapar um suspiro.

    -De acordo então.

    Com um dissimulado sorriso, Rachel lhe tendeu a mão.

    -Primeiro os brincos.

    Sacudindo a cabeça, Natasha abriu o joalheiro e os tirou.

    - Como pode ter tanta capacidade para enrolar a outros com so oito anos?

    -Quando é a pequena é completamente necessário -tomou os pendentes e se olhou satisfeita no espelho-. Todo mundo consegue o que quer antes que eu. Se eu fosse a maior, estes brincos seriam meus.

    -Bom, pois não o é, assim são meus. Não os perca.

    Rachel elevou os olhos ao céu e estudou seu reflexo no espelho. Estava convencida de que aqueles brincos lhe faziam parecer maior. Possivelmente como de dez anos.

    -Se for pôr isso possivelmente seria melhor que prendesse o cabelo -Natasha lhe tirou a boina e começou a escovar os cachos do Rachel-. Farei-te um acréscimo para que se vejam bem.

    -Não encontro minha presilha.

    -Pode usar uma sas minhas.

    -Quando você tinha oito anos, parecia-te comigo?

    -Não sei -pensando nisso, Natasha se inclinou para ela, de modo que seus rostos ficavam cara a cara no espelho-. Temos os olhos quase iguais e a boca muito parecida. Mas seu nariz é mais bonito.

    -De verdade? -a idéia de que pudesse ter algo mais bonito ou melhor que sua irmã maior lhe parecia incrivelmente emocionante-. Diz-o a sério?

    -Claro que sim -como compreendia perfeitamente a sua irmã, acariciou-lhe carinhosamente a bochecha-. Algum dia, quando formos maiores, a gente se voltará a nos olhar quando caminharmos pela rua-. "Essas são as irmãs Stanislaski", dirão, "não são muito bonitas?".

    Aquela imagem fez rir ao Rachel, que começou a saltar entusiasmada pela habitação que compartilhavam.

    -E depois verão o Mikhail e Alexi e dirão, "Oh, Oh, ali vêm os irmãos Stanislaski, e isso sempre significa problemas".

    -E terão razão -Natasha ouviu que a porta de atrás se fechava e elevou o olhar para a janela-. Ali estão! Oh, Rachel, é perfeito.

    Os dois meninos, agachando mortificados a cabeça, arrastavam-se para o varal enquanto o cão corria a seu redor.

    -Parecem tão envergonhados -disse Natasha com satisfação-. Olhe que vermelhos estão!

    -Isso não é suficiente. Temos que conseguir essa camiseta! -com os brincos balançando-se em suas orelhas, Rachel agarrou a boina e saiu do quarto.

    Os meninos jamais derrotariam às irmãs Stanislaski, pensou Natasha, e correu atrás dela.

   

  CAPITULO 1

    -Por que todos os homens atrativos estão casados?

    -Essa é uma pergunta com segunda intenção? -Natasha colocou uma boneca de porcelana embelezada com um vestido comprido de veludo sobre uma minúscula cadeira de balanço e se voltou para seu ajudante-. De acordo, Annie, a que homem atrativo refere em particular?

    -A esse homem alto, loiro e maravilhoso que está na vitrine da loja ao lado de uma mulher muito elegante e uma menina preciosa -Annie exalou um pesado suspiro-. Parecem a família perfeita.

    -Então possivelmente estão em comprar o brinquedo perfeito.

    Natasha olhou o conjunto de bonecas vitorianas com seus respectivos acessórios e assentiu com um gesto de aprovação. Parecia exatamente o que queria... Um grupo atrativo, elegante e antigo. As bonecas dispunham de até o último detalhe: de um leque com pregas até uma minúscula taça de porcelana a China.

    Para ela, a loja de brinquedos não só era um negócio, mas também um imenso prazer. Tudo, do mais diminuto chocalho até o mais enorme urso de pelúcia, tinha sido eleito com a mesma atenção ao detalhe e à qualidade. Natasha insistia em ter o melhor em sua loja, já fora uma boneca de quinhentos dólares, com seu próprio casaco de peles, ou um carro de carreiras do tamanho de uma mão e de dois dólares de preço. E quando a eleição do objeto desejado era a correta, estava encantada de teclar na máquina registradora a quantia da venda.

    Nos três anos que tinha aberta a loja, Natasha tinha conseguido converter A Casa da Diversão em um dos rincões mais emocionantes daquela pequena localidade situada na fronteira da Virginia do oeste. Tinha necessitado trabalho duro e muita persistência, mas seu êxito era resultado direto de sua inata compreensão do mundo infantil. Ela não pretendia que os clientes saíssem da loja com um brinquedo. O que queria era que saíssem com o brinquedo que melhor se adaptava a cada cliente.

    Depois de decidir que deveria realizar algumas mudanças, Natasha se aproximou para os carrinhos em miniatura.

    -Acredito que vão entrar -comentou Annie enquanto tentava domar seu curto cabelo castanho avermelhado-. A menina virtualmente está gritando que a deixem entrar Quer que abramos?

    Sempre precisa, Natasha olhou o relógio com forma de palhaço sorridente que tinha sobre a cabeça. -Ainda faltam cinco minutos.

    -E o que são. Cinco minutos? Tash, estou-te dizendo que esse homem é incrível -desejando ver o de perto, Annie se aproximou do corredor no que estavam colocados os jogos de mesa-. OH, sim. Um metro noventa de alto e uns oitenta quilos, e os ombros mais perfeitos que vi em minha vida dentro de um traje. OH, Deus, e é tweed. Jamais tinha visto um tipo capaz de me fazer salivar com um traje tweed.

    -A ti pode fazer salivar até um homem dentro de uma caixa de cartão.

    -A maior parte dos tipos que conheço parecem caixas de cartão -apareceu uma covinha em sua bochecha. Olhou ao redor do mostrador, para os brinquedos de madeira, para comprovar disimuladamente se o homem continuava frente à vitrine-. Deve ter passado algum tempo na praia este verão. Seu bronzeado é fabuloso e tem umas mechas loiras que tem que lhe haver esclarecido o sol. OH, Deus, está-lhe sorrindo a sua filha. Acredito que estou apaixonada.

    Natasha, que naquele momento andava reproduzindo um obstáculo em miniatura, sorriu.

    -Você sempre acha que está apaixonada.

    -Sei Annie suspirou-. Eu gostaria de ver de que cor tem os olhos. Tem um desses maravilhosos rostos magros e angulosos. Estou segura de que é terrivelmente inteligente e teve que sofrer muito nesta vida.

    Natasha lhe dirigiu um rápido e divertida olhar por cima do ombro. Annie, alta e magra, tinha o coração tão doce como um merengue.

    -Estou segura de que a sua mulher a fascinaria sua capacidade para a fantasia.

    -Não é um privilégio das mulheres, a não ser uma obrigação, fantasiar sobre os homens como esse.

    Embora Natasha não podia estar menos de acordo, deixou que Annie fizesse as coisas a seu modo.

    -De acordo, então, abre quando quiser.

   

    -Uma boneca -disse Spence, lhe dando um pequeno puxão de orelhas a sua filha-. Teria pensado duas vezes ao de me mudar para esta casa se tivesse soubessa que havia uma loja de brinquedos a menos de meia hora.

    -Se fosse por ti, compraria-lhe a loja inteira.

    Spence lhe dirigiu um breve olhar à mulher que estava a seu lado.

    -Não comece, Nina.

    Nina, uma atrativa loira, encolheu-se de ombros e olhou à pequena.

    -Quão único queria dizer é que seu pai lhe mima pelo muito que te quer. Além disso, merece um presente por ter sido tão boa durante o filme.

    A pequena Frederica Kimball começou a fazer bicos.

    -Eu gosto de minha casa nova -deslizou a mão na de seu pai automaticamente, alinhando-se com ele contra o mundo inteiro-. Tenho um jardim e um balanço para mim sozinha.

    Nina olhou ao homem e depois à pequena. Ambos elevavam o queixo com idêntica determinação. Ao menos desde que ela podia recordá-lo, jamais tinha ganho uma discussão com nenhum deles.

    -Suponho que então eu sou quão única não parece encontrar nenhuma vantagem a que tenham decidido abandonar Nova Iorque -o tom de sua voz se suavizou enquanto acariciava o cabelo da pequena-. Não posso evitar o estar um pouco preocupada com ti. Em realidade quão único eu quero é que você e seu papai sejam felizes.

    -E o somos -para mitigar a tensão, Spence levantou em braços ao Freddie-. Verdade, pequenina?

    -E está a ponto de ser muito mais feliz ainda -disposta a ceder, Nina tomou a mão do Spence e lhe deu um ligeiro apertão-. Estão abrindo.

    -Bom dia -eram cinzas, advertiu Annie, reprimindo um comprido e sonhador "ah". Abandonou sua fantasia no fundo de sua mente e se dispôs a atender aos primeiros clientes do dia.-No que posso ajudá-los?

    -Minha filha está interessada em uma boneca -Spence deixou à menina no chão.

    -Bom, pois vieste ao lugar adequado -cumprindo com seu dever, Annie dedicou sua atenção à pequena. Realmente era uma coisinha preciosa, com os mesmos olhos cinzas de seu pai e o cabelo loiro e liso-. Que tipo de boneca você gostaria?

    -Uma boneca muito bonita -respondeu Freddie imediatamente-, ruiva e com os olhos azuis.

    -Estou segura de que temos o que quer -ofereceu-lhe uma mão-. Você gostaria de jogar uma olhada?

    Depois de olhar a seu pai procurando sua aprovação, Freddie deu a mão ao Annie e começou a caminhar com ela ao redor da loja.

    -Maldita seja... -Spence tirou o chapéu a si mesmo amaldiçoando.

    Nina lhe estreitou a mão pela segunda vez.

    -Spence...

    -Tenho-me feito falsas ilusões pensando que não importava, que ela nem sequer o recordaria...

    -Que queira uma boneca ruiva e de olhos azuis não significa absolutamente nada.

    -Ruiva e de olhos azuis -repetiu Spence, sentindo o peso da frustração uma vez mais-. Exatamente como Angela. Lembra-se dela, Nina. E isso sim importa -afundou as mãos nos bolsos e começou a caminhar.

    Três anos, pensou. Tinham passado quase três anos já. Freddie ainda usava fraldas. Mas se lembrava da Angela, a formosa e negligente Angela. Nem a mais liberal dos críticos teria considerado a Angela como uma verdadeira mãe. Ela nunca tinha embalado ou cantado a sua filha, nunca a tinha balançado nem tranqüilizado.

    Estudou o rosto de uma boneca de porcelana vestida em tons azuis. Tinha uns dedos diminutos e olhos imensamente sonhadores. Ángela era igual, recordou. Eternamente bela. E fria como o gelo.

    Spence se tinha apaixonado por ela da mesma forma que um homem poderia apaixonar-se por uma obra de arte; admirando a perfeição nas formas e procurando incessantemente o que atrás delas se ocultava. Entre ambos tinham criado aquela pequena e maravilhosa menina que abriu caminho durante os primeiros anos de vida virtualmente sem o apoio de seus pais.

    Mas ele ia esforçasse se com ela. Spence fechou os olhos um instante. Pretendia fazer tudo o que estivesse em sua mão para lhe dar a sua filha o amor, a segurança e a estabilidade que se merecia. Para lhe brindar uma vida real. A palavra parecia banal, mas era a única que lhe ocorria para descrever o que queria para sua filha: o laço firme e sólido de uma família.

    Ela o adorava. E Spence sentiu que cedia a tensão de seus ombros ao pensar em como brilhavam os enormes olhos do Freddie quando a agasalhava pelas noites, em sua forma de apertar os braçinhos quando o abraçava.

    Possivelmente nunca pudesse perdoar-se a si mesmo o haver-se deixado arrastar por seus próprios problemas, por sua própria vida durante os primeiros anos de vida do Freddie, mas as coisas tinham trocado. Inclusive aquela mudança a tinha feito pensando no bem-estar de sua filha.

    Ouviu-a rir e o resto da tensão se dissolveu em uma quebra de onda de puro prazer. Para ele não havia música mais doce que a risada de sua filha. Poderia compor uma sinfonia inteira a partir daquela risada. Ainda não a incomodaria, disse-se. Deixaria que desfrutasse de todas aquelas bonecas antes de lhe recordar que só uma podia ser dela.

    Já mais depravado, começou a emprestar atenção à loja. Ao igual às bonecas que ele tinha imaginado para sua filha, era bonita e luminosa. Embora pequena, entre aquelas paredes se encontrava tudo o que um menino podia desejar. Uma grande girafa dourada e um cão de olhos tristes pendurados do teto. Trens de madeira, carros e aviões, todos eles pintados de cores chamativas, demandavam a atenção dos pequenos de uma mesa que compartilhavam com elegantes miniaturas de móveis. Uma antiga caixa surpresa, com boneco de mola incluído, repousava ao lado de uma estação espacial. Havia bonecas, algumas preciosas, outras encantadoramente feias, jogos de construção e jogos de chá.

    Aquela desordem, já fora estudado ou produto do descuido, fazia muito mais atrativo o lugar. Aquela era uma loja para fingir e desejar, uma abarrotada cova do Aladin desenhada para iluminar o olhar dos meninos. Para fazê-los rir, como ria sua filha naquele momento. Já começava a imaginar que ia ser difícil evitar que Freddie queria visitar regularmente o estabelecimento.

    Aquela era uma das razões que lhe tinham feito mudar-se a uma cidade pequena. Queria que sua filha fosse capaz de desfrutar das vantagens das lojas locais nas que os dependentes logo aprenderiam a chamá-la por seu nome. Poderia caminhar de um extremo a outro da cidade sem as preocupações próprias da grande cidade, como as drogas, os assaltos ou os seqüestros. Não haveria necessidade de instalar sistemas de segurança nem de suportar riscos de tráfico. Nem sequer uma menina tão pequena como sua Freddie se perderia ali.

    E possivelmente, sem todas aquelas pressões, ele mesmo poderia chegar a encontrar alguma paz.

    Levantou a tampa de uma caixa de música; uma caixa de porcelana delicadamente grafite que albergava em seu interior a figura de uma cigana de cabelo negro como o azeviche embelezada com um vestido vermelho de volantes. Nas orelhas, levava dois brincos dourados e nas mãos um pandeiro que penduravam cintas de cores. Nem sequer na Quinta Avenida teria podido encontrar algo tão perfeitamente trabalhado.

    Perguntava-se de onde teria tirado o proprietário aquele objeto que curiosos dedos infantis poderiam chegar a alcançar e inclusive romper. Intrigado, girou a chave e observou girar à figura ao redor de uma diminuta fogueira de porcelana.

    Tchaikovsky. Reconheceu o movimento instantaneamente e sua refinação ouvida apreciou a qualidade do tom. Tratava-se de uma melancólica e inclusive apaixonada peça, pensou, assombrado de ter encontrado um objeto tão primoroso em uma loja de brinquedos. Então elevou o olhar e viu a Natasha.

    Olhou-a fixamente. Não pôde evitá-lo. Ela permanecia a uns metros de distância, com a cabeça alta e ligeiramente inclinada enquanto o observava. Tinha o cabelo tão escuro como o da cigana e emoldurava seu rosto com uma nuvem de alvoroçados, cachos que chegava até seus ombros. Sua pele era escura, de um formoso dourado que realçava o singelo vestido vermelho que levava.

    Não era uma mulher frágil, pensou. Embora fora pequena, transmitia força e poder. Possivelmente fora seu rosto, com aqueles lábios cheios e sem pintar e suas marcadas maçãs do rosto. Seus olhos eram quase tão escuros como seu cabelo e estavam rodeados de largas e espessas pestanas. Inclusive a distância, Spence o sentiu. Sexo, forte e puro. O cheiro do sexo a rodeava ao igual à outras mulheres as rodeava a fragrância de um perfume.

    Pela primeira vez desde fazia anos sentiu seus músculos esticar-se de puro desejo.

    Natasha o viu, reconheceu-o e se ressentiu. Que classe de homem era capaz de entrar em uma loja com sua mulher e sua filha e olhar a uma mulher com uma paixão tão nua?

    Certamente, não o tipo de homem que gostava.

    Decidida a ignorar aquele olhar tal como tinha ignorado outras no passado, aproximou-se dele. -Necessita ajuda?

    Ajuda? Pensou Spence sem compreender. O que ele precisava era oxigênio. Até esse momento, não tinha compreendido quão literal podia chegar a ser a expressão a respeito da capacidade das mulheres atrativas para lhe tirar a respiração a um homem.

    -Quem é você?

    -Natasha Stanislaski -brindou-lhe a mais fria de seus sorrisos-, a proprietária da loja.

    Sua voz pareceu ficar flutuando no ar. Uma voz rouca, vital, com alguns matizes que delatavam suas origens eslavas e acrescentavam erotismo a seu tom. Cheirava a sabão, a nada mais, mas Spence encontrou aquela fragrância imensamente sedutora.

    Como não dizia nada, Natasha arqueou as sobrancelhas. Poderia ter sido divertido impressionar de tal maneira a um homem, mas naquele momento estava ocupada e, além disso, aquele homem estava casado.

    -Sua filha escolheu três bonecas. Possivelmente queira ajudá-la a tomar a decisão final.

    -Sim, um momento. Seu acento... É russo, possivelmente?

    -Sim -perguntava-se se deveria lhe dizer que sua esposa permanecia frente à porta da entrada, aborrecida e impaciente.

    -Quanto tempo leva na América?

    -Desde que tinha seis anos -dirigiu-lhe um olhar deliberadamente frio-. Aproximadamente a mesma idade que deve ter sua filhinha. Me perdoe.

    Spence a agarrou por braço antes de dar-se conta sequer do que estava fazendo. E embora ele mesmo foi consciente da incorreção de seu gesto, o veneno que viu no olhar de sua interlocutora o surpreendeu.

    -Sinto muito, ia perguntar lhe por esta caixa de música.

    Natasha desviou o olhar para a caixa enquanto o ritmo da música ia fazendo-se mais lento.

    -É um de nossos melhores objetos, está feita à mão, aqui, nos Estados Unidos. Está interessado em comprá-la?

    -Ainda não o decidi, mas pensei que possivelmente não se deu conta de que estava nessa estante.

    -Por que?

    -Não é o tipo de objeto que um espera encontrar em uma loja de brinquedos. Poderia romper-se com facilidade.

    Natasha tomou e o colocou em uma prateleira mais alta.

    -E também se poderia arrumar -fez um claro e nela, familiar movimento com os ombros. Um gesto que mais que despreocupação, transmitia certa arrogância-. Acredito que os meninos têm direito a desfrutar de do prazer da música, não lhe parece?

    -Sim.

    Pela primeira vez, um sorriso iluminou seu rosto. Foi um sorriso, tal como Annie tinha advertido, particularmente efetiva. Natasha teve que admiti-lo. Através de seu aborrecimento, sentiu o início da atração. Então Spence acrescentou:

    -De fato, acredito absolutamente. Possivelmente pudemos falar sobre isso durante o jantar.

    Tentando conter-se, Natasha batalhava contra sua crescente fúria. Para ela, de natureza turbulenta e explosiva, era algo difícil, mas se recordou a si mesmo que aquele homem não só ia acompanhado por sua esposa, mas sim também sua filha estava na loja.

    De modo que tragou os insultos que estavam a ponto de aflorar a seus lábios, mas não antes de que Spence pudesse vê-los refletidos em seus olhos.

    -Não -foi tudo o que ela disse enquanto se voltava.

    -Senhorita... -começou a dizer Spence. Mas então Freddie correu para ele, levando em braços uma enorme e andrajosa boneca de trapo.

    -Papai, não é preciosa? -com os olhos brilhantes, mostrou-lhe a boneca, esperando sua aprovação.

    Era ruiva, pensou Spence. Mas não era precisamente bonita. Não, para seu alívio, não se parecia nem remotamente a Angela. Como sabia que era precisamente isso o que Freddie esperava, tomou algum tempo em examinar sua eleição.

    -Esta é -disse ao cabo de um momento-, a boneca mais bonita que vi hoje.

    -De verdade?

    Spence se agachou para ficar à altura de sua filha.

    -Certamente. Tem um gosto excelente. Esta boneca tem uma cara muito divertida.

    Freddie abraçou a seu pai, esmagando a boneca em meio de seu abraço.

    -Posso ficar?

    -Eu pensava que era para mim -enquanto Freddie ria, Spence levantou a menina com a boneca em braços.

    -Eu lhe embrulharei isso -disse Natasha, em um tom muito mais doce. Aquele homem podia ser um canalha, mas era evidente que queria a sua filha.

    -Posso levá-la nos braços -Freddie abraçou com força a sua nova amiga.

    -Muito bem. Então te darei de presente um laço para que o ponha no cabelo, de que cor o quer?

    -Azul.

    -Um laço azul -Natasha se dirigiu para a caixa registradora.

    Nina olhou a boneca e elevou os olhos ao céu.

    -Carinho, isso é o melhor que encontraste?

    -A papai gosta -murmurou Freddie, agachando a cabeça.

    -Sim, eu gosto. Muito além disso -acrescentou lhe dirigindo a Nina um eloqüente olhar. Deixou a sua filha no chão e tirou a carteira.

    Certamente, a mãe não tinha preço, decidiu Natasha. Embora isso não dava a seu marido direito para tentar seduzir a dona de uma loja de brinquedos. Tomou os bilhetes, preparou a mudança e procurou um comprido laço azul.

    -Obrigado -disse a Freddie-. Acredito que sua casa nova lhe vai gostar de muito.

    -Cuidarei-a -prometeu-lhe a menina enquanto tentava atar o laço à lanzuda juba da boneca-. A gente pode olhar os brinquedos ou tem que comprar os -Spence, de verdade, tenho que ir -Nina manteve a porta aberta.

    Nathasha sorriu, depois tomou outro laço e o atou ao liso cabelo da menina.

    -Pode olhar quando quiser.

    -Spence, de verdade, tenho que ir  -Nina sustentava já a porta aberta.

    -Bem -Spence vacilou. Aquela era uma cidade pequena, recordou-se. E se Freddie podia voltar a olhar brinquedos, também poderia fazê-lo ele-. Foi um prazer conhecê-la, senhorita Stanislaski.

    -Adeus -esperou a que as campainhas da porta terminassem de tilintar depois de que se fechasse a porta para murmurar todo tipo de juramentos.

    Annie apareceu a cabeça por cima de uma torre de peças de construção.

    -Perdão?

    -Esse homem.

    -Sim -com um pequeno suspiro, Annie saiu ao corredor-. Esse homem.

    -Vem com sua mulher e sua filha a um lugar como este e me olhe como se estivesse disposto a me comer.

    -Tash -com expressão de dor, Annie se levou uma mão ao coração-, por favor, não me excite.

    -Eu o acho insultante -rodeou o mostrador e golpeou com a mão um saco de boxe-. Convidou-me para jantar.

    -O que diz? -Annie a olhou com imenso prazer, até que Natasha a fulminou com o olhar-. Tem razão. É insultante, sabendo que é um homem casado. Embora sua mulher parecia tão fria como um pescado.

    -Seus problemas matrimoniais não são meu assunto.

    -Não... -o pragmatismo batalhava contra suas fantasias-, imagino que não aceitaste.

    Da garganta da Natasha escapou um som engasgado enquanto se voltava.

    -É obvio que não aceitei.

    -Claro, é obvio -precipitou-se a acrescentar Annie.

    -Esse homem é irritante -disse Natasha, apertando o punho como se estivesse esmagando algo com ele-. Vir a minha loja e me fazer seduzir, que valor!

    -Que te seduziu! -escandalizada e emocionada ao mesmo tempo, Annie agarrou a Natasha do braço-. Tash, não te seduziu, verdade?

    -Tem-me feito isso com o olhar. A mensagem era bastante evidente.

    Irritava-a a freqüência com a que os homens a olhavam, notando-se só em suas qualidades físicas. Só lhes interessava seu aspecto, pensou desgostada. Tinha tolerado sugestões, proposições e propostas desde antes de poder compreender do tudo o que significavam. Mas desde que o compreendia, não estava disposta a suportar nenhuma mais.

    -Se não tivesse vindo sua filha com ele, o teria esbofeteado -agradada com aquela imagem, golpeou o saco outra vez.

    Annie já havia visto furiosa a sua chefa suficientes vezes para saber como podia tranqüilizá-la.

    -É uma menina muito doce, verdade? Chama-se Freddie, não te parece um nome bonito?

    Natasha tomou uma larga e firme baforada de ar enquanto se esfregava o punho com a outra mão.

    -Sim.

    -Contou-me que acabavam de mudar-se ao Shepherdstown, vêm de Nova Iorque. Diz que essa boneca será sua primeira amiga.

    -Pobrezinha -Natasha conhecia perfeitamente os medos e ansiedades que sofria uma menina ao sentir-se de repente em um lugar desconhecido. Inclinou a cabeça, decidida a esquecer-se de seu pai-. Deve ter a mesma idade que JoBeth Riley -uma vez esquecido o aborrecimento, Natasha retornou depois do mostrador e desprendeu o telefone. Não lhe faria nenhum dano lhe fazer uma chamada à senhora Riley.

   

    Spence permanecia na janela da sala de música, com o olhar fixo em um leito de flores. Ter flores ao alcance do olhar e um pequeno e acidentado terreno de que teria que ocupar-se em sua própria casa era uma experiência completamente nova

    Para ele. Não tinha tirado erva em toda sua vida. Sorrindo para si, perguntou-se quando teria que tentar fazê-lo.

    Havia também um arce alto e frondoso, de folhas escuras. Em umas quantas semanas, imaginava que as folhas seriam maiores e de cor muito mais brilhante. Em seu apartamento, situado ao oeste de Central Park, tinha podido desfrutar do passo das estações, mas não da mesma forma, compreendeu.

    A erva, as árvores e as flores que via ante lhe pertenciam. Estavam ali para que ele os desfrutasse e cuidasse. Ali poderia permitir que Freddie saísse a tomar o chá com suas bonecas sem ter que preocupar-se cada vez que a perdesse de vista. Desfrutariam de uma vida agradável, de uma vida sólida para ambos. Havia-o sentido quando tinha ido falar de sua postura com o decano... E havia o tornado a sentir quando tinha entrado naquela casa enorme e labiríntica com a ansiosa agente da imobiliária lhe pisando os talões.

    Não tinha tido que fazer nenhum esforço para vender-lhe pensou Spence. A casa se vendeu sozinha do momento no que Spence tinha posto um pé nela.

    Enquanto observava a um colibri revoar ao redor de uma petunia, soube, com mais convicção que nunca, que tinha tomado uma decisão correta ao abandonar a cidade.

    Desfrutar de uma breve aventura no mundo rural. As palavras da Nina se repetiram em sua cabeça enquanto observava os raios do sol refletidos nas iridescentes asas daquela ave. Era difícil culpá-la por havê-lo dito, por pensar assim quando o tinha visto viver em meio de uma voragem. Spence não podia negar o muito que tinha desfrutado naquelas animadas festas que duravam até o amanhecer, ou das elegantes janta de meia noite, depois de assistir a uma sinfonia ou um balé.

    O tinha crescido em um mundo de glamour, prestígio e riqueza. Durante toda sua vida, tinha habitado em um ambiente no que só o melhor era aceitável. E lhe tinha gostado, tinha que admiti-lo. Verões em Monte Carlo, invernos no Cannes. Fins de semana em Aruba ou no Cancún.

    O não pretendia esquecer-se daquelas experiências, mas podia desejar, e o fazia, ter aceito antes as responsabilidades da vida.

    Tinha-o feito já. Spence observou ao colibri afastar-se como uma bala cor safira. E tanto para sua própria surpresa como para a da gente que o conhecia, estava desfrutando dessas responsabilidades. Freddie o tinha convertido em um homem diferente. Ela marcava todas as diferenças.

    Estava pensando nela quando a viu correndo com sua nova boneca em braços. Tal como Spence tinha imaginado, ia direto para o balanço. Era tão novo que a pintura branca e azul resplandecia sob a luz do sol e o assento de couro ainda brilhava. Com a boneca no regaço e o rosto para o céu, Freddie começou a balançar-se ao tempo que cantava alguma canção que só ela conhecia.

    O amor se agarrava em seu interior como um punho de veludo, sólido e doloroso. Em toda sua vida, jamais, tinha conhecido nada tão puxador e básico como a emoção que Freddie levava a sua vida pelo mero feito de existir.

    Enquanto se balançava para diante e para trás, embalava a sua boneca e lhe sussurrava secretos ao ouvido. Gostava que Freddie se decidiu por uma boneca de trapo. Podia ter eleito qualquer das bonecas de porcelana, mas tinha optado por alguém que parecia tão arruda como necessitada de amor.

    Tinha estado falando da loja de brinquedos durante toda a manhã. Spence sabia já que teria que retornar. Oh, não pediria nada, pensou. Ao menos não diretamente. Utilizaria seu olhar. Divertia-o e desconcertava ao mesmo tempo que sua filha, com só cinco anos, fora já toda uma perita naquele peculiar e efetivo ardil feminino.

    Pensou na loja... E em sua proprietária. Ali não tinha encontrado ardis femininos, a não ser o mais puro desdém. Fez uma careta de desgosto ao recordar sua própria estupidez. Faltava-lhe prática, recordou-se burlando-se de si mesmo e se esfregou o pescoço. E o que era mais, não era capaz de recordar ter experiente jamais uma atração tão intensa. Havia-se sentido como se tivesse sido atravessado por um raio, pensou. E um homem tinha direito a balbuciar um pouco detrás ter sido virtualmente carbonizado.

    Mas sua reação... Franziu o cenho e reproduziu mentalmente a cena. Aquela mulher se havia posto furiosa. Tinha estado condenadamente perto de ficar a tremer de raiva antes que ele tivesse aberto a boca, e parecia disposta a lhe dar uma patada em pleno rosto.

    Nem sequer se tinha tomado a moléstia de rechaçar de maneira educada seu convite. Não, limitou-se a pronunciar uma só e dura sílaba, enfeitada com a mais fria gelada. Tinha reagido como se Spence lhe tivesse pedido que se deitasse ali mesmo com ele.

    Mas a verdade era que Spence desejava fazê-lo. Do primeiro instante, tinha sido capaz de imaginar-se a aquela mulher em algum lugar remoto e escuro, no que o estou acostumado a estivesse talher de musgo e a folhagem das árvores ocultasse a vista do céu. Ali poderia desfrutar de do calor daqueles lábios cheios e sedosos. Poderia entregar-se à paixão selvagem que aquele rosto prometia. Sexo selvagem, sem limite nem razão.

    Bom Deus. Surpreso, Spence tentou recuperar a compostura. Estava pensando como um adolescente. Não, admitiu Spence, afundando as mãos nos bolsos. Estava pensando como um homem que tinha passado anos sem uma mulher. Não estava seguro de se queria dar as graças a Natasha Stanislaski por ter desatado aquelas necessidades outra vez ou se deveria estrangulá-la por isso.

    Mas estava seguro de que ia ver a outra vez.

    -Estou fazendo a bagagem -Nina se deteve no marco da porta e suspirou. Era evidente que Spence voltava a estar absorto em seus próprios pensamentos-. Spence -disse, elevando a voz enquanto cruzava a habitação-. Hei dito que estou fazendo a bagagem.

    -O que? Oh -conseguiu esboçar um distraído sorriso e obrigou a seus ombros a relaxar-se-. Lhe sentiremos falta de, Nina.

    -Alegrará-te de me ver partir -corrigiu-o ela e lhe deu um beijo na bochecha.

    -Não -naquela ocasião o sorriso foi completamente sincera. Nina o advertiu e limpou os restos que a pintura de lábios tinha deixado em sua bochecha-. Agradeço-te tudo o que tem feito para nos ajudar a nos instalar. Sou consciente de quão ocupada está.

    -Não podia permitir que meu irmão se enfrentasse sozinho à vida selvagem da Virginia do oeste -tomou a mão, em uma estranha amostra de sincera preocupação-. Oh, Spence, está seguro do que tem feito? Esquece tudo o que te hei dito até agora e pensa no que está fazendo. É uma mudança tão grande para vocês dois. Que possibilidades oferece este lugar no tempo livre?

    -Cortar a erva -sorriu de brinca a brinca ao ver a expressão de sua irmã-. Sentar no alpendre. Possivelmente inclusive me ponha a compor outra vez.

    -Poderia compor em Nova Iorque.

    -Não tenho escrito nem duas notas em quase quatro anos -recordou-lhe.

    -De acordo -aproximou-se do piano e fez um gesto com a mão-. Mas se queria trocar de vida, poderia haver ido ao Long Island, ou inclusive a Connecticut.

    -Eu gosto deste lugar, Nina. Acredite, isto é o melhor que podia fazer por Freddie e por mim.

    -Espero que tenha razão -sorriu com carinho-. Embora eu sigo acreditando que estará de volta em Nova Iorque em menos de seis meses. E nesse tempo, como única tia da menina que sou, espero ser capaz de apreciar seus progressos -baixou o olhar para sua mão e se zangou ao ver que lhe tinha estilhaçado de forma quase imperceptível uma unha-. A idéia de que vá a uma escola pública...

    -Nina.

    -Não importa -elevou a mão-. Não tem sentido começar a discutir quando estou a ponto de partir. E sou consciente de que é tua filha.

    -Sim, é.

    Nina tamborilou com os dedos a brilhante superfície do piano.

    -Spence, sei que ainda se sente culpado pela Angela. E eu não gosto.

    O sorriso do Spence se desvaneceu.

    -Alguns enganos demoram muito tempo em esquecer-se.

    -Ela não lhe fazia feliz -disse Nina -. Tiveram problemas desde o começo de seu matrimônio. Oh, já sei que não te mostrava muito comunicativo a respeito -acrescentou ao ver que seu irmão não respondia-, mas havia coisas muito evidentes para não dar-se conta do que ocorria. Não era nenhum secreto que Ángela não queria à menina.

    -E não acredito que eu fora muito melhor. Só queria a essa menina porque de algum jeito podia encher os vazios de meu matrimônio. Essa é uma carga muito pesada para uma menina.

    -Cometeu enganos, reconheceu-os e retificou. Angela não se sentiu culpado em toda sua vida. Se ela não tivesse morrido, teria-te divorciado e teria ficado com a custódia do Freddie. O resultado teria sido o mesmo. Sei que parece muito frio. A verdade freqüentemente o é. Eu não gosto de pensar que tem feito este movimento, que trocaste tão drasticamente de vida porque está tentando emendar enganos que cometeu faz muito tempo.

    -Possivelmente haja parte disso em minha decisão. Mas também há muito mais -tendeu a mão e esperou até que Nina se aproximou dele-. Olha-a -assinalou para a janela, para o lugar no que Freddie continuava balançando-se livre como um colibri-. É feliz. E eu também o sou.

   

  CAPITULO 2

      -Não tenho medo.

    -É obvio que não -Spence olhou o valente reflexo do olhar de sua filha no espelho enquanto lhe transava o cabelo. Não necessitava que lhe tremesse a voz para dar-se conta de que estava aterrorizada. O mesmo sentia na boca do estômago uma pedra do tamanho de um punho.

    -É possível que chorem alguns meninos -os olhos do Freddie já estavam cheios de lágrimas-. Mas eu não chorarei.

    -Te vais divertir muito -não estava mais seguro disso que sua filha. E o problema de ser pai era, disse-se, que se supunha que tinha que estar seguro de tudo-. O primeiro dia de colégio sempre é um pouco difícil, mas assim que acostuma a estar ali e conhece todo mundo, tudo é muito mais divertido.

    Freddie fixou nele seu firme olhar.

    -De verdade?

    -A creche você gostava, verdade? -era uma forma de evitar a pergunta, admitiu para si, mas não podia fazer uma promessa que poderia não ser capaz de cumprir.

    -Quase sempre -baixou o olhar ao tempo que acariciava com um dedo o pente amarelo com forma de cavalinho de mar que havia sobre a cômoda-. Mas Amy e Pam não estarão ali.

    -Fará novos amigos. Já conheceste ao JoBeth -pensou naquele menino moreno que se apresentou em casa com sua mãe um par de dias atrás.

    -Suponho que sim. E JoBeth é simpática, mas... -como podia lhe explicar que JoBeth já conhecia resto das meninas?-. Talvez deveria esperar até manhã.

    Seus olhos se encontraram novamente no espelho; Spence apoiou o queixo no ombro de sua filha. Cheirava a aquele sabão verde pálido que ela adorava porque tinha a forma de um dinossauro. Freddie se parecia muito ao Spence, embora seus rasgos eram mais suaves, mais finos, e para seu pai a menina fora imensamente bela.

    -Poderia, sim, mas então amanhã seria seu primeiro dia de colégio. E ainda teria mariposas.

    -Mariposas?

    -Sim, exatamente aqui -aplaudiu-lhe o estômago-. Não sente como se tivesse um montão de mariposas dançando aí dentro?

    Aquilo a fez rir.

    -Algo assim.

    -Eu também as tenho.

    -De verdade? -Freddie abriu os olhos como pratos.

    -De verdade. Eu também tenho que ir ao colégio esta manhã, igual a você.

    Freddie tocou os laços rosas que levava a final das tranças. Sabia que para seu pai não era o mesmo, mas não o dizia porque temia preocupá-lo. Freddie lhe tinha ouvido falar uma vez com tia Nina e recordava o impaciente que se pôs quando sua tia se queixou de que estivesse desarraigando a sua sobrinha durante seus anos de formação.

    Freddie não sabia o que eram exatamente os anos de formação, mas sabia que seu pai se pôs muito triste e, inclusive depois de que a tia Nina se foi, conservava aquele olhar de preocupação. Ela não queria preocupá-lo ou lhe fazer acreditar que tia Nina tinha razão. Se voltavam para Nova Iorque, os únicos balanços que teria seriam os do parque.

    Além disso, lhe gostava dessa casa tão grande e sua habitação nova. Inclusive melhor, o novo trabalho de seu pai estava mais perto, de modo que poderia estar em casa todas as noites antes de jantar. Recordando-se que não devia fazer panelas, Freddie decidiu que se queria ficar naquele lugar, teria que ir ao colégio.

    -Estará aqui quando voltar a casa?

    -Acredito que sim. Mas se não estar eu, estará Beira -disse-lhe, pensando no ama de chaves que desde fazia tanto tempo os acompanhava-. E poderá me contar tudo o que te tenha passado -depois de lhe dar um beijo no cabelo, fez-a levantar-se.

    Freddie parecia surpreendentemente pequena com aquele traje rosa e branco. Mantinha o olhar firme, mas o lábio inferior lhe tremia. Spence lutou contra a necessidade de abraçá-la e lhe dizer que jamais voltaria para colégio nem teria que fazer nada que a assustasse.

    -Vejamos o que te preparou Beira para o almoço.

   

    Vinte minutos depois, estava na calçada, sustentando a mão do Freddie entre a sua. Com quase mais tristeza que sua própria filha, contemplou como se aproximava o ônibus escolar subindo trabalhosamente a costa.

    Deveria havê-la levado pessoalmente ao colégio, disse-se repentinamente assustado... Ao menos durante os primeiros dias. Deveria havê-la levado ele, em vez de colocá-la naquele ônibus cheio de desconhecidos. Mas lhe tinha parecido melhor tratar todo aquele assunto como se fora um pouco completamente natural, que do primeiro momento fora tratada como uma mais do grupo.Como podia deixá-la partir? Só era uma menina. Sua menina. O que ocorreria se estava equivocado? Aquilo não era como equivocar-se na hora de escolher a cor de um vestido para ela. Simplesmente porque aquele era o dia que tinha sido eleito e a hora que outros tinham determinado, ia ter que lhe dizer a sua filha que subisse a esse ônibus e se afastasse de seu lado.

    O que ocorreria se o condutor não tomava cuidado e caía por um precipício? E como poderia estar seguro de que alguém ia assegurar se de que Freddie não se confundisse pela tarde de ônibus?

    O ônibus fez um ruído infernal e de repente se deteve. Spence apertou instintivamente a mão de sua filha. Quando a porta do ônibus se abriu, estava quase preparado para fugir com ela.

    -Olá -disse a acompanhante do chofer com um enorme sorriso. Nos assentos, cantavam e gritavam uns quantos meninos-. Você deve ser o professor Kimball.

    -Sim -tinha já centenas de desculpas para não subir ao Freddie a esse ônibus na ponta da língua.

    -Eu sou Dorothy Mansfield. Os meninos me chamam senhorita D. E você deve ser Frederica.

    -Sim, senhora -mordeu-se o lábio, para evitar voltar-se no regaço de seu pai-. Meu nome é Freddie.

    -Caramba-a -senhorita D esboçou outro enorme sorriso-, me alegro de ouvi-lo. Porque Frederica me parece um nome muito comprido. Bom, sobe pequena. Este é um grande dia. John Harman, lhe devolva esse libero ao Mikey a não ser que queira ir sentado detrás de mim o resto da semana.

    Com os olhos brilhantes, Freddie pôs um pé no primeiro degrau. Tragou saliva e subiu ao segundo.

    -Por que não se sinta com o JoBeth e com a Lisa? -sugeriu a senhorita D amavelmente. Voltou-se para o Spence piscando os olhos um olho e se despediu dele com a mão-. Não se preocupe com nada, professor. Cuidaremos dela.

    A porta se fechou e o ônibus continuou caminhando para diante. Spence só foi capaz de ficar na calçada observando como levavam a sua pequena.

    Spence não teve tempo para vadiar. De fato, tinha tido a sensação de que estava devorando o tempo quase do momento no que pisou na universidade. Teve que examinar seu horário de trabalho, encontrar-se com seus colegas, examinar instrumentos e preparar aulas de música. Teve uma reunião na faculdade, uma comida rápida e dúzias e dúzias de papéis que ler e digerir. Era uma rotina familiar que tinha começado já três anos antes, quando tinha ocupado um posto no Juilliard School. Mas ao igual a Freddie, era o menino novo da cidade, e também ele ia ter que acostumar-se a aquele novo cenário.

    Estava preocupado por sua filha. Imaginava à hora do almoço, sentada no refeitório da escola, uma sala que cheiraria a manteiga de amendoins e a cartões de leite. Estaria encolhida ao final de uma mesa cheia de amigas, sozinha, triste, enquanto os outros meninos riam e brincavam com seus amigos. Podia imaginar-lhe no recreio, separada do resto, olhando ofegante enquanto outros corriam, gritavam e subiam como aranhas pela selva do ginásio. O trauma lhe produziria tal insegurança que a faria desgraçada durante o resto de sua vida.

    E tudo porque a tinha feito subir a aquele maldito ônibus amarelo.

    Para o final do dia, sentia-se tão culpado como se tivesse maltratado a um menino e estava convencido de que Freddie retornaria a casa desfeita em pranto, destroçada pelos rigores do primeiro dia de colégio. Mais de uma vez, perguntou-se se ao fim e ao cabo

    Nina não teria razão. Possivelmente Spence deveria ter deixado a sua filha em paz e haver ficado em Nova Iorque, onde pelo menos Freddie tinha amigos e estava em um entorno familiar.

    Com a maleta em uma mão e a jaqueta ao ombro, começou a caminhar para sua casa. Estava a pouco mais de um quilômetro e meio e o tempo permanecia desacostumadamente quente para a época. Até que golpeasse com força o inverno, podia aproveitar para ir caminhando a sua casa do campus.

    E estava completamente apaixonado pela cidade. Havia lojas preciosas, casas antigas e calçadas repletas de árvores na rua principal. Era uma cidade universitária e estava igualmente orgulhosa de sua antigüidade e sua dignidade. As ruas subiam em costa e aqui e lá tiravam o chapéu lugares nos que as raízes das árvores tinham levantado as calçadas. Passava algum carro de vez em quando, mas a cidade era suficientemente tranqüila para ouvir o latido de um cão ou a música procedente de um aparelho de rádio. Uma mulher que estava tirando as más ervas que cresciam entre os malmequeres, elevou o olhar ao vê-lo passar e o saudou com a mão. Contente, Spence lhe devolveu a saudação.

    Nem sequer o conhecia, pensou. Mas mesmo assim o tinha saudado. Veria-a mais vezes, disse-se, possivelmente plantando bulbos no jardim ou varrendo a neve do alpendre. Chegou até ele a fragrância dos crisântemos. E, por alguma razão, aquilo o alagou de felicidade.

    Não, não se tinha equivocado. Freddie e ele seriam felizes naquele lugar. Em menos de uma semana, tinham conseguido convertê-lo em seu lar.

    Deteve-se na calçada para deixar que passasse um carro e fixou o olhar no letreiro de A Casa da Diversão. Era perfeito, pensou Spence. O nome perfeito. Conjurava risadas e surpresas, ao igual à vitrine no que se exibiam blocos de construção, bonecas bochechudas e pequenos carros, anunciando a presença de secretos tesouros no interior.

    Naquele momento não lhe ocorria nada que desejasse mais que encontrar algo que pudesse levar um sorriso ao rosto de sua filha.

    "Está-a mimando muito".

    A voz da Nina ressonava claramente em seus ouvidos.

    E o que? Olhou rapidamente para o outro extremo da rua e cruzou à calçada de em frente. Sua pequena se montou naquele ônibus amarelo com a valentia de um soldado antes da batalha. Não havia nada mau em recompensá-la com uma pequena medalha.

    A porta tilintou quando entrou. Chegou até ele uma fragrância tão alegre como o som dos sinos. Hortelã, pensou e sorriu. Adorou ouvir os metálicos compases do The Merry-Go-Round Broke Down saindo de atrás do mostrador.

    -É perfeito para ti.

    Tinha esquecido, advertiu Spence, como podia cruzar o ar aquela voz.

    Mas não ia fazer o ridículo outra vez. Naquela ocasião sabia de antemão o aspecto que tinha Natasha Stanislaski, como falava e como cheirava. Tinha ido ali para comprar um presente para sua filha, não para flertar com a proprietária da loja. Sorriu de par em par frente a um velho urso panda. Possivelmente não houvesse nenhum inconveniente em fazer ambas as coisas de uma vez.

    -Estou segura de que ao Bonnie adorará -disse Natasha enquanto lhe levava o carrossel em miniatura a seu cliente-. É um presente de aniversário precioso.

    -Viu-o aqui faz umas semanas e após não falou que outra coisa -a avó do Bonnie tentou dissimular uma careta ao ver o preço-. E suponho que é suficientemente maior como para não rompê-lo.

    -Bonnie é uma menina muito responsável -continuou dizendo Natasha, e então viu o Spence no mostrador-. Em seguida o atendo -a temperatura de sua voz baixou perto de vinte graus.

    -Tome-se todo o tempo que necessite -zangava-o que sua forma de reagir ante ela fora tão intensa cuado os sentimentos da Natasha pareciam ser exatamente os contrários. Era óbvio que tinha decidido que lhe desagradava. Podia ser uma experiência interessante adivinhar as razões de sua antipatia, pensou Spence enquanto observava suas mãos capazes e esbeltas envolvendo o carrossel.

    E lhe fazer trocar de opinião.

    -São cinqüenta e cinco dólares e vinte e sete centavos, senhora Mortimer.

    -Oh, não, querida, na etiqueta põe que são sessenta e sete.

    Natasha, que sabia que a senhora Mortimer tinha que fazer malabares com sua pensão, limitou-se a sorrir.

    -Sinto muito, não lhe hei dito que estava em oferta?

    A senhora Mortimer deixou escapar um ligeiro suspiro de alívio enquanto contava os bilhetes.

    -Vá, este deve ser meu dia de sorte.

    -E o do Bonnie -Natasha decorou o presente com um bonito laço rosa, recordando que era a cor favorita da menina-. Lembre-se de lhe desejar um feliz aniversário de minha parte.

    -Farei-o -a orgulhosa avó levantou o presente-. Estou desejando ver a cara que vai pôr quando o vir. Adeus, Natasha.

    Natasha esperou até que fechou a porta para voltar-se para o Spence:

    -Posso ajudá-lo em algo?

    -Foi um bonito gesto.

    Natasha arqueou uma sobrancelha.

    -A que se refere?

    -Já sabe a que me refiro.

    Teve a absurda urgência de tomar sua mão e beijá-la. Aquilo era incrível, pensou. Tinha já trinta e cinco anos e estava apaixonando-se como um adolescente de uma mulher a que logo que conhecia.

    -Pretendia ter vindo antes.

    -Ah, sim? Sua filha não está satisfeita com a boneca?

    -Não, não é isso, Freddie adora a essa boneca. É sozinho que eu... -bom Deus, quase estava gaguejando. Cinco minutos com ela e se sentia tão torpe como um adolescente em seu primeiro baile. Tentou tranqüilizar-se, não sem esforço-. Tenho a sensação de que a outra vez começamos com o pé equivocado. Deveria me desculpar?

    -Se quiser... -que fora atrativo e um pouco torpe, não significava que tivesse que lhe pôr as coisas fáceis-. Veio sozinho para isso?

    -Não.

    Seus olhos se obscureceram, embora só ligeiramente. Ao adverti-lo, Natasha se perguntou se teria equivocado com sua impressão inicial. Possivelmente não fora tão inofensivo como parecia. Havia algo profundo naqueles olhos, um pouco mais forte e perigoso. Mas o que mais a surpreendia era que o encontrava excitante.

    Desgostada consigo mesma, dirigiu-lhe um educado sorriso.

    -Quer algo mais?

    -Queria comprar algo a minha filha -ao inferno com aquela maravilhosa princesa russa, pensou. Tinha coisas mais importantes das que ocupar-se.

    -E o que é o que queria?

    -Não sei -aquilo era completamente certo. Deixou a maleta no chão e olhou a seu redor.

    Relaxando-se um pouco, Natasha saiu de atrás do mostrador.

    -É seu aniversário?

    -Não -encolheu-se de ombros. Sentia-se ridículo-. É seu primeiro dia de colégio e... Pareceu-me tão valente quando se subiu ao ônibus esta manhã...

    Aquela vez o sorriso da Natasha foi completamente espontânea e cálida. E esteve a ponto de paralisar o coração do Spence.

    -Não deveria preocupar-se. Quando chegar a casa, contará-lhe dezenas de histórias sobre tudo o que tem feito. Acredito que o primeiro dia de colégio é muito mais duro para os pais que para os próprios meninos.

    -Foi o dia mais comprido de minha vida.

    Natasha Rio, foi um som ligeiramente rouco, que resultava impossivelmente erótico naquela habitação cheia de palhaços e ursos de pelúcia.

    -Parece que é você o que necessita um presente. O outro dia o vi olhando a caixa de música. Tenho outra que possivelmente lhe interesse.

    E nada mais dizê-lo, dirigiu-se para a parte traseira da loja. Spence fez tudo o que pôde por ignorar o sutil movimento de seus quadris e a delicada esteira que deixava sua fragrância. A caixa que Natasha lhe mostrou era de madeira esculpida; sobre um pedestal, havia um gato, uma vaca e uma lua crescente. Quando começou a soar Stardust se fixou em um cachorrinho que ria a gargalhadas e em um prato com uma colher.

    -É preciosa.

    -É uma de meus favoritos -decidiu que um homem que queria de tal maneira a sua filha não podia ser mau. Assim voltou a sorrir-. Acredito que seria uma formosa lembrança, algo que poderá conservar até que esteja na universidade e lhe recordará que seu pai esteve todo um dia pensando nela.

    -Se consegue sobreviver ao primeiro grau -esticou-se ligeiramente ao olhá-la-. Obrigado, é perfeito.

    Era algo completamente estranho. Seus corpos apenas se roçaram, mas havia sentido um sobressalto. Por um instante, esqueceu-se de que era um cliente, um pai, um marido, e pensou nele unicamente como homem. Seus olhos tinham a cor de um rio no crepúsculo. Seus lábios, nos que se insinuava apenas um sorriso, eram impossivelmente atrativos, excitantes. Involuntariamente, perguntou-se pela sensação de roçá-los contra os seus. Pela sensação de sentir seu rosto a ponto de fundir-se com o seu e ver-se refletida em seus olhos.

    Retrocedeu surpreendida e manteve a voz fria.

    -Embalarei.

    Intrigado por aquela repentina mudança de tom, Spence se tomou seu tempo enquanto a seguia ao mostrador. Não tinha visto algo estranho naqueles fabulosos olhos? Ou tinha sido seu próprio desejo? Tinha sido algo muito rápido, como uma rajada de calor derretendo o gelo. Mas não podia encontrar nenhuma razão que o explicasse.

    -Natasha -posou uma mão sobre a da Natasha quando esta estava começando a envolver o presente.

    Natasha elevou o olhar lentamente. Já estava odiando-se a si mesmo por ter notado que aquelas mãos eram formosas, de palmas largas e dedos largos. Havia também uma nota de paciência na voz daquele homem que pôs todos seus nervos em tensão.

    -Sim?

    -Por que tenho a sensação de que você gostaria de me colocar em uma panela de azeite fervendo?

    -Está completamente equivocado -replicou.

    -Mas não parece muito convencida -sentiu sua mão flexionar-se sob a sua, suave e forte. A imagem de uma adaga de aço envolto em veludo lhe pareceu completamente adequada para descrevê-la-. Mas tenho problemas para averiguar o que tenho feito exatamente para te zangar tanto.

    -Então terá que pensar nisso. O vai pagar em dinheiro ou com cartão?

    Spence não tinha muita prática com os rechaços. E aquilo foi desagradável para seu ego. Por formosa que fora, não tinha vontades de continuar golpeando-a cabeça contra um muro de tijolo.

    -Em dinheiro -nesse momento se abriu a porta atrás deles e Spence lhe soltou a mão.

    Três meninos, recém saídos da escola, entraram correndo. Um deles, ruivo e com o rosto coberto de sardas, ficou nas pontas dos pés no mostrador.

    -Tenho três dólares -anunciou.

    Natasha dissimulou um sorriso.

    -Vá, hoje é você um homem rico, senhor Jensen. O menino sorriu, revelando o oco que tinha deixado o último dente cansado.

    -Estive economizando. Quero o carro de carreiras.

    Natasha se limitou a elevar uma sobrancelha enquanto contava a mudança para o Spence.

    -E sabe sua mãe que está aqui, gastando suas economias? -seu novo cliente permaneceu em completo silêncio-. Scott?

    Scott se balançava nervoso sobre os pés.

    -Não há dito que não possa fazê-lo.

    -E tampouco que possa -conjeturou Natasha. Inclinou-se sobre o mostrador e lhe atirou brandamente do cabelo- Venha, vá perguntar se o e, quando retornar, o carro continuará em seu lugar.

    -Mas Tash...

    -Não quererá que sua mãe se zangue comigo, verdade?

    Scott pareceu pensar-lhe um instante; Natasha compreendia que para ele era uma decisão muito difícil.

    -Suponho que não.

    -Então vá perguntar se o e eu te guardarei o carro.

    A esperança do Scott pareceu renascer.

    -Promete-me isso?

    Natasha se levou uma mão ao coração.

    -Solenemente -olhou de novo ao Spence e a diversão desapareceu de seu olhar-. Espero que Freddie desfrute de do presente.

    -Estou seguro de que o fará -encaminhou-se para a porta, zangado consigo mesmo por desejar ser um menino de dez anos ao que acabasse de cair um dente.

   

    Natasha fechou a loja às seis. O sol ainda brilhava com força e o ar era úmido. Aquilo lhe fez pensar nas comidas de verão, sob as frondosas árvores do bosque. Uma fantasia muito mais agradável que a do jantar reaquecido no microondas, mas de momento pouco viável.

    Enquanto caminhava para sua casa, observou um casal que entrava em um restaurante, dando-a mão. Alguém a saudou de um carro e ela elevou a mão em resposta. Deveria ter parado no pub da localidade e entreter um momento com uma taça de vinho e a companhia de alguns conhecidos. Encontrar a alguém com quem jantar era tão singelo como aparecer a cabeça por uma dúzia de portas e fazer a sugestão.

    Mas não estava de humor para companhia. Nem sequer para suportar a sua. Era o calor, disse-se a si mesmo enquanto dobrava uma esquina, aquele calor que o alagava tudo durante o verão e que não mostrava nenhum sintoma de estar disposto a lhe ceder o passo ao outono. O calor a punha nervosa. E o fazia recordar.

    Tinha sido durante um verão quando sua vida tinha trocado irrevogavelmente.

    Inclusive naquele momento, anos depois de que ocorresse, às vezes, quando via as rosas florescidas ou escutava o embriagador zumbido das abelhas, revivia a dor. E se perguntava o que poderia ter acontecido. Como seria sua vida se... E se odiava a si mesmo por fazer-se jogar aos desejos.

    Ainda ficavam as rosas, rosas frágeis, rosadas, que sobreviviam a pesar do calor e a falta de chuva. Tinha-as plantado no pequeno pedaço de grama que havia frente a seu apartamento. As cuidar lhe produzia uma mescla de prazer e dor. E o que outra coisa era a vida, perguntou-se enquanto acariciava uma pétala, a não ser ambas as coisas? A cálida fragrância da rosa a seguiu enquanto continuava caminhando até a porta.

    A casa estava em completo silêncio. Ela tinha pensado em ter um gato ou um cachorrinho, para que assim houvesse alguém que a recebesse quando chegasse a casa pelas noites, alguém que a quisesse e dependesse dela. Mas não tinha demorado para dar-se conta do injusto que seria deixar ao pobre animal encerrado em casa enquanto ela estava na loja.

    Ligou o aparelho de música enquanto se tirava os sapatos. Inclusive aquilo era uma prova. O Romeo e Julieta do Tchaikovscky. Podia ver-se a si mesmo dançando aqueles românticos e arrebatadores compasses, rodeada do brilho dos focos e sentindo pulsar aquela música em suas veias, enquanto se movia correntemente, controlando seus movimentos sem dar-se logo que conta. Uma tripla pirueta para mostrar sua perícia sem nenhum esforço.

    Aquilo pertencia ao passado, recordou-se Natasha a si mesmo. Os arrependimentos eram para os fracos.

    Saiu do quarto, trocou sua roupa de trabalho por um vestido solto e sem mangas e pendurou a saia e a blusa com o esmero que lhe tinham ensinado. Era um costume de seus anos de bailarina.

    Havia chá com gelo no refrigerador e uma dessas comidas precosinhadas para esquentar no microondas das que dependia e às que ao mesmo tempo detestava. Rio para si enquanto pulsava o interruptor para esquentá-la.

    Estava-se comportando como uma anciã assobiada e mal-humorada por culpa do calor, pensou. Suspirando, levou-se um copo gelado à frente.

    Aquele homem a tinha tirado de gonzo. Aquele dia, durante alguns minutos, tinha chegado a lhe gostar de inclusive. Tinha-lhe parecido tão doce ao preocupar-se de sua pequena, ao querer recompensá-la por ter tido o valor de enfrentar-se aos primeiros momentos do primeiro dia de colégio. Tinha-lhe gostado do tom de sua voz, sua forma de olhar e sorrir. Durante uns instantes, tinha-lhe parecido um homem com o que poderia rir, com o que poderia falar.

    Mas de repente tudo tinha trocado. Certamente, em parte por culpa dela, admitiu. Mas isso não diminuía a parte de culpa de seu cliente. Natasha havia sentido algo que não havia tornado a sentir em muito, muito tempo. O calafrio da excitação.

    O puxão do desejo. E isso o fazia zangar-se e envergonhar-se de si mesmo. E o fazia enfurecer-se com ele.

    O muito canalha, pensou enquanto tirava o prato do microondas. Paquerar com ela como se fora uma estúpida ingênua e depois retornar a sua casa com sua esposa e sua filha.

    E ainda por cima pretendia que jantasse com ele. Cravou o garfo na fumegante massa com camarões-rosa. Esse tipo de homem esperava sempre algo em troca de um jantar. Era o típico estúpido que pretendia seduzir a uma mulher com um bom vinho e a luz das velas. Voz doce, olhar paciente e mãos inteligentes. E nenhum coração.

    Justo igual a Anthony. Impaciente, apartou seu prato e se aproximou o copo que já começava a empanar-se. Mas já não tinha dezessete anos. Era muito mais sábia. E mais forte. Fazia muito tempo que tinha deixado de ser uma mulher a que se pudesse convencer com falsos encantos e palavras doces. E não era que aquele homem fora especialmente hábil, recordou com um rápido sorriso. O... Deus, nem sequer sabia como se chamava e já o detestava... Era um pouco torpe, sim. E aquilo formava parte de seu encanto.

    Mas se parecia muito ao Anthony, pensou. Alto, com o cabelo loiro e aquelas maneiras tão confiadas que, por outra parte, evidenciavam uma falta total de princípios morais e um coração desumano e mentiroso.

    O que Anthony lhe havia flanco jamais poderia ser medido. Desde aquela época, Natasha tinha procurado assegurar-se de que nenhum homem pudesse lhe fazer dano outra vez.

    Mas tinha conseguido sobreviver. Elevou o copo como se queria brindar por si mesmo. E não só tinha sobrevivido, mas sim, salvo às vezes nas que a assaltavam as lembranças, era feliz. Amava a loja e a oportunidade que lhe proporcionava de estar rodeava de meninos e fazê-los felizes. Em três anos já os tinha visto crescer. Tinha uma amiga maravilhosa e divertida, Annie, conhecidos com os que se levava estupendamente e uma casa que gostava.

    Ouviu um golpe no piso de acima e sorriu. Os Jorgenson já estavam a ponto de jantar. Imaginou a Dom revoando ao redor da Marilyn, que estava a ponto de ter seu primeiro filho. Gostava que estivessem ali, justo em cima dela, felizes, apaixonados e cheios de esperança.

    Aquilo era uma família para a Natasha, a família que tinha desejado ter ela mesma em sua juventude, a que imaginava quando era adulta. Ainda podia ver seu pai preocupando-se com sua mãe durante as gravidez. Em cada um deles, recordou Natasha, pensando em seus três irmãos pequenos. Recordou também a absoluta felicidade de seu pai cada vez que descobria que tanto sua esposa como os bebês estavam sãs e salvos. Ele adorava a sua família. Inclusive depois de tantos anos continuava comprando flores. Quando chegava a casa depois do trabalho, beijava a sua esposa, mas não com um gesto ausente, gasto pelo costume, a não ser com um beijo jubiloso e enérgico. Era um homem loucamente apaixonado por sua esposa depois de quase trinta anos de matrimônio.

    Tinha sido seu pai o que tinha impedido que se fechasse por completo aos homens depois da dor causada pelo Anthony. Ver seu pai e a sua mãe tão unidos a tinha ajudado a manter a pequena e secreta esperança de que algum dia encontraria a alguém que a amaria honestamente.

    Algum dia, pensou, encolhendo-se de ombros. Mas de momento tinha que preocupar-se de seu negócio, sua casa e sua própria vida. Nenhum homem, por formosas que fossem suas mãos ou inteligente que fora, ia desestabilizar sua embarcação. Mas em segredo esperava que a esposa de seu novo cliente não fora capaz de lhe dar a este nada mais que tristeza.

   

    -Um conto mais, por favor, papai -Freddie, com os olhos médio fechados e o rosto luminoso depois do banho, utilizou a mais persuasiva de seus sorrisos enquanto se aconchegava contra Spence em sua enorme cama.

    -Mas se já está dormida.

    -Não, não estou dormido -deu-lhe um beijo, esforçando-se em manter os olhos abertos. Aquele tinha sido o melhor dia de sua vida e não queria que terminasse-. Contei-te que o gato do JoBeth teve gatinhos? Seis gatinhos, papai.

    -Duas vezes -Spence lhe aconteceu o dedo pelo nariz. Sabia reconhecer uma indireta quando a ouvia, e recorreu a uma resposta própria de um pai-: Já veremos.

    Freddie sorriu sonolenta. Sabia, por seu tom de voz, que seu pai se estava abrandando.

    -A senhorita Patterson é muito boa. Nos vai deixar jogar a adivinhar palavras as sextas-feiras.

    -Se você o disser -e ele que se passou o dia inteiro preocupado, pensou Spence-. Tenho a sensação de que te gostou do colégio.

    -É muito bonito -bocejou sonoramente-. Já preencheste todos os formulários?

    -Amanhã mesmo os deixará preparados -absolutamente todos eles, pensou com um suspiro-.Acredito que já é hora de te desligar, preciosa.

    -Um conto mais. Um conto inventado -bocejou outra vez, confortada pelo suave tato do algodão da camisa de seu pai sob sua bochecha e a familiar fragrância de sua loção.

    Spence cedeu, sabendo que a menina ficaria dormido antes de que tivesse chegado ao final feliz. Teceu uma história sobre uma princesa de cabelo escuro, chegada de um longínquo país e o cavalheiro que tentava resgatar a de sua torre de marfim.

    Tolices, pensou Spence enquanto acrescentava um feiticeiro e um dragão a seu relato. Sabia que seus pensamentos estavam voando novamente para a Natasha. Ela também era indubitavelmente bela, mas não acreditava ter conhecido nunca uma mulher menos necessitada de resgate.

    Mas, por má sorte, teria que passar pela loja todos os dias para ir à universidade.

    Ignoraria-a, disse-se. E em qualquer caso, tinha que lhe estar agradecido. Aquela mulher lhe tinha feito desejar, sentir coisas que acreditava não poder voltar a sentir nunca. Possivelmente, estando Freddie e ele por fim instalados, poderia começar a fazer vida social outra vez. Havia muitas mulheres atrativas e solteiras na universidade. Mas a idéia de citar-se com elas não lhe produzia nenhum prazer.

    Sair com elas, corrigiu-se Spence. Os encontros eram para adolescentes e conjuravam visões de filmes de motos, pizzas e mãos suarentas. Ele era um homem adulto e já era hora de que começasse a desfrutar da companhia feminina outra vez. De mulheres de mais de cinco anos, é obvio, pensou, olhando a pequena mão do Freddie unida à sua.

    O que pensaria ela se levasse a uma mulher a casa? Perguntou-se em silêncio. Aquilo lhe fez recordar a dor que via nos olhos de sua filha cada vez que ele e Angela saíam de casa pelas noites para ir ao teatro ou à ópera.

    Aquilo nunca voltaria a ocorrer, prometeu-se enquanto lhe cavava o travesseiro. Colocou à andrajosa boneca a seu lado e a agasalhou. Posou a mão em um dos abajures da cama e olhou a seu redor.

    Freddie já tinha deixado sua estampagem no quarto. As bonecas alinhadas nas prateleiras, com os livros entre elas, e o elefante rosa ao lado de suas sapatilhas de esporte favoritas. O quarto cheirava a xampu infantil e a lápis de cores. Um abajur com forma de unicórnio assegurava que a menina não tivesse medo se despertava em meio da noite.

    Permaneceu ali uns instantes, tirando o chapéu tão consolado como sua filha por aquela tênue luz e saiu sigilosamente da habitação, deixando a porta aberta uns centímetros.

    No piso de abaixo, encontrou a Beira levando uma bandeja com o café. O ama de chaves, uma mexicana de ombros e quadris robustos, dava a impressão de ser um compacto trem de mercadorias quando se transladava de sala a sala. Do nascimento do Freddie, tinha demonstrado ser, não só eficiente, mas também indispensável. Spence sabia que freqüentemente era possível assegurá-la lealdade de uma empregada com dinheiro, mas não seu coração. E do instante no que Freddie tinha entrado em casa envolta em uma palha de chapéu branca, Beira a tinha adorado.

    Beira elevou o olhar para as escadas e curvou os lábios em um sorriso.

    -Foi um grande dia para o Freddie, verdade?

    -Sim, e um que esgotou até o último suspiro. -Beira, não tinha por que te haver incomodado.

    Beira se encolheu de ombros enquanto lhe levava a bandeja com o café ao estudo.

    -Há dito que tinha que trabalhar esta noite.

    -Sim, ao menos um momento.

    -Assim decidi lhe fazer um café antes de me retirar e deitar a ver a televisão -deixou a bandeja em seu escritório-. Minha menina está encantada com a escola e seus novos amigos -não acrescentou que tinha tido que secá-las lágrimas no avental quando tinha visto o Freddie metendo-se no ônibus do colégio-. Estando todo o dia a casa vazia, tive tempo de sobra para fazê-lo tudo. Não fique levantado até muito tarde, doutor Kimball.

    -Não -era uma mentira educada. Sabia que estava muito nervoso para dormir-. Obrigado, Beira.

    -De nada! -levou-se a mão a seu cabelo cinza-. Queria lhe dizer além que eu gosto de muito este lugar. Temia deixar Nova Iorque, mas agora sou feliz.

    -Não nos poderíamos arrumar isso sem você.

    -Claro que sim -replicou ela, quase por respeito.

    Durante sete anos, tinha trabalhado para o doutor Kimball, e tinha desfrutado de do prestígio de trabalhar para um homem importante, um músico respeitado, doutor em música e professor universitário. Do nascimento de sua filha, tinha-lhe tomado tanto carinho a quão pequena estava disposta a trabalhar onde fora.

    Tinha protestado muito por ter que abandonar o formoso apartamento de cobertura de Nova Iorque por uma velha casa em uma cidade pequena, mas Beira era suficientemente ardilosa para saber que o senhor o tinha feito pensando no Freddie. Esta tinha chegado a casa da escola só umas horas antes, tendo emocionada e lhe enumerando os nomes de todas seus amigas. Assim Beira estava contente.

    -É você um bom pai, doutor Kimball.

    Spence a olhou antes de sentar-se detrás de seu escritório. Era perfeitamente consciente de que em outra época Beira o tinha considerado um mau pai. -Estou aprendendo.

    -Sim -colocou com naturalidade um livro na estantería-. Nesta casa tão grande não terá que incomodar-se por interromper o sonho do Freddie se touca o piano pelas noites.

    Spence elevou o olhar outra vez, compreendendo que, a sua maneira, estava-o animando a concentrar-se outra vez na música.

    -Não, não a incomodarei. Boa noite, Beira.

    Depois de um rápido olhar, com a que se assegurava de que não havia nada mais que devesse ordenar, Beira saiu do estudo.

    Uma vez sozinho, Spence se serviu um café e estudou os papéis que tinha sobre a mesa. Os formulários do Freddie descansavam ao lado de seus próprios papéis. Tinha muito trabalho por diante até que se iniciassem as classes a semana seguinte.

    E estava desejando que começassem, apesar de que tentava não arrepender-se de que a música, que em outro tempo soava com tanta facilidade em sua cabeça, permanecesse ainda em silêncio.

 

CAPITULO 3

    Natasha ajustou o gorro, retrocedo que permanecesse em seu lugar mais de cinco minutos. Estudou seu rosto no estreito espelho que havia sobre a pia antes de decidir-se a acrescentar um toque de cor a seus lábios. Não importava que tivesse sido um dia muito ocupado, ou que tivesse os pés destroçados pelo cansaço. Aquela noite tinha que cuidar-se de si mesmo, tinha que recompensar-se pelo trabalho bem feito.

    Cada semestre, matriculava-se em um dos cursos da universidade. Procurava escolher o que lhe parecesse mais divertido, mais intrigante e mais original. Poetas do Renascimento um ano, Automotivação no outro. Naquela ocasião, ia começar um curso sobre história da música que a manteria ocupada duas tardes à semana. E aquela mesma noite começava a exploração de um novo tema. Tudo o que aprendia, entesourava-o para seu próprio prazer, ao igual a outras mulheres entesouravam diamantes e esmeraldas. Não tinham por que ser saberes úteis. Para a Natasha, tampouco era muito útil uma gargantilha de diamantes. Simplesmente, às pessoas gostava de possui-la.

    Tinha um caderno para os apontamentos, os lápis e as canetas e uma grande dose de entusiasmo. Para preparar-se, fazia algumas excursões à biblioteca e tinha estado lendo alguns livros durante as duas semanas anteriores. O orgulho não lhe permitia ir a classe sem saber nada. E a curiosidade o fazia perguntar-se se o professor acrescentaria emoção aos fatos.

    Havia poucas dúvidas sobre as possibilidades de que aquele professor em particular pudesse acrescentar dose de emoção em outros aspectos. Annie tinha estado brincando aquela manhã sobre o novo professor do que todo mundo falava na cidade, o doutor Spencer Kimball.

    O nome lhe parecia muito distinto a Natasha, muito mais que a descrição que sobre seus supostos encantos tinha feito Annie. A informação de Annie procedia da filha de sua prima, que estava especializando-se em Educação Elementar e tinha uma disciplina de música. Um deus solar, havia dito Annie, fazendo rir a Natasha.

    Um autêntico presente dos deuses, murmurou Natasha enquanto apagava as luzes da loja. Conhecia bem o trabalho do Kimball, as obras que tinha composto antes de que, inesperada e inexplicavelmente, tivesse deixado de compor música. E a razão era que, quando formava parte do corpo de baile de Nova Iorque, tinha chegado inclusive a dançar seu Prelúdio em Do menor

    Tinha passado um milhão de anos após, pensou enquanto caminhava. Estava a ponto de encontrar-se com um gênio, de escutar seus pontos de vista e, possivelmente, descobrir novos significados para muitas das obras que já amava.

    Provavelmente tivesse o caráter típico dos artistas, decidiu, agradada ao sentir a brisa sobre seu pescoço. Ou talvez era um tipo excêntrico, que levasse inclusive pendentes. Não importava. Ela pretendia trabalhar duramente. Tomava todos os cursos que fazia como uma questão de orgulho. Ainda lhe doía recordar o pouco que sabia quando tinha dezoito anos. E o pouco que lhe importava tudo o que não tivesse que ver com a dança, admitiu. Ela mesma tinha decidido fechar-se a outros mundos para poder dedicar-se plenamente a um sozinho. E quando se afastou daquele mundo, havia-se sentido tão perdida como uma menina à deriva no meio do Atlântico.

    Tinha encontrado ela sozinha seu próprio caminho para a borda, ao igual a sua família tinha descoberto em uma ocasião a forma de cruzar da agreste Ucrânia até as selvas de Manhattan. A Natasha gostava da mulher americana, independente e ambiciosa, em que se tinha convertido. Aquela mulher capaz de caminhar por aquele enorme e antigo campus com tanto orgulho como qualquer estudante.

    Ouvia-se o eco dos passos no corredor e sussurros distantes que Natasha sempre tinha associado com o igrejas e universidades. De algum jeito, também havia algo religioso naquele lugar; a fé no conhecimento.

    Ela mesma sentia aquela reverência enquanto se dirigia a aula. Quando era uma menina de cinco anos e vivia em uma pequena granja no povo, jamais se teria podido imaginar um edifício como aquele, e tampouco os livros ou a beleza que albergava.

    Alguns estudantes já estavam esperando. Era uma curiosa mescla de alunos, alguns muito jovens e outros de média idade. Todos eles pareciam vibrar com a emoção dos começos. Viu no relógio que faltavam só dois minutos para que dessem as oito. Esperava ver o Kimball ali, com o cabelo revolto, removendo torpemente seus papéis, olhando a seus alunos por detrás dos cristais de seus óculos e classificando-os quase inconscientemente.

    Sorriu com ar ausente a uma mulher que levava uns óculos de massa que a olhava fixamente, como se acabasse de despertar em meio de um sonho. Lista para começar, sentou-se, e elevou o olhar no mesmo instante no que um menino se sentava torpemente na carteira do lado.

    -Olá.

    Olhou-a como se acabasse de lhe dar um golpe, em vez de saudá-lo amavelmente. O jovem se colocou os óculos com um gesto nervoso.

    -Olá. Eu sou... Sou Terry Maynard -terminou bruscamente, como se de repente tivesse recordado seu nome.

    -Natasha -sorriu outra vez. Aquele menino não devia ter chegado ainda aos vinte e cinco anos, era um indefeso cachorrinho.

    -Eu não... Vi-te antes pela universidade.

    -Não -divertia-a ser confundida com uma estudante quando tinha já vinte e sete anos-. Só apontei a esta aula, por diversão.

    -Por diversão? -Terry parecia tomá-la música muito a sério-. Mas você sabe quem é o professor Kimball? -seu mais que evidente admiração fez que virtualmente sussurrasse seu nome.

    -Ouvi falar dele. É músico profissional?

    -Sim. E espero, bom, algum dia, espero chegar a tocar com a Sinfônica de Nova Iorque -ajustou-se os óculos outra vez-. Sou violinista.

    Natasha voltou a sorrir e Terry tragou saliva, movendo notoriamente a noz.

    -Isso é maravilhoso. Seguro que é muito bom.

    -E você que touca?

    -O que me deixam -pôs-se a rir e se recostou na cadeira-. Sinto muito. Não, eu não toco nenhum instrumento. Mas eu gosto de muito a música e pensei que eu gostaria desta aula -olhou o relógio da parede-. Se é que começa alguma vez, isso. Ao parecer, seu estimado professor chega tarde.

    Nesse momento, seu estimado professor corria pelos corredores, amaldiçoando-se a si mesmo por ter aceito aquele horário. Para quando tinha terminado de ajudar ao Freddie com os deveres, quantos animais pode encontrar neste desenho? Tinha conseguido convencer a de que as couves de bruxelas estavam muito bons, em vez de asquerosas e trocou de camisa porque, com seu carinhoso abraço de despedida, sua filha tinha transferido uma misteriosa e pegajosa substância à manga de sua camisa, e a essas alturas, já não havia nada que gostasse de mais que um bom livro e uma taça de brandy.

    Em vez de ter que enfrentar a uma sala-de-aula cheia de rostos ofegantes, todos eles desejando aprender quanto havia flanco ao Beethoven compor a Novena Sinfonia.

    Entrou em classe de um humor terrível.

    -Boa tarde, eu sou o professor Kimball -os murmúrios se apagaram imediatamente-. Antes de nada, quero me desculpar por chegar tarde. E agora, assim que todos vocês tomem assento, começaremos a classe.

    Enquanto falava, escrutinava a sala-de-aula com o olhar. E tirou o chapéu a si mesmo com o olhar fixo no assombrado rosto da Natasha.

    -Não.

    Natasha não foi consciente de que tinha pronunciado aquela palavra em voz alta, embora no caso de havê-lo sido, tampouco lhe teria importado. Aquilo era uma espécie de brincadeira, pensou. Uma brincadeira particularmente pesada. Aquele... Aquele homem com aquela jaqueta elegante e informal era Spencer Kimball, o músico cujas melodias tinha admirado e dançado. O homem que, com apenas vinte anos, tinha conseguido que suas obras fossem interpretadas no Carnegie Hall e tinha sido considerado um gênio. Aquele homem que tinha tentado seduzi-la na loja de brinquedos era o ilustre professor Kimball?

    Aquilo era ridículo, era exasperado, era...

    Maravilhoso, pensou Spence enquanto fixava nela seu olhar. Absolutamente maravilhoso. De fato, era perfeito. Sempre e quando fora capaz de controlar a risada que dançava em sua garganta. Assim que a czarina era uma de suas alunas. Aquilo era melhor, muito melhor, que uma taça de brandy.

    -Estou seguro -disse depois de uma larga pausa-, de que os meses que temos por diante vão ser fascinantes para todos nós.

    Deveria haver-se matriculado em astronomia, disse-se Natasha. Teria aprendido todo tipo de coisas fascinantes sobre planetas e estrelas. Asteróides. Teria desfrutado de muito mais aprendendo coisas sobre... Como era? Ah, sim, a força da gravidade e a inércia. Fora a inércia o que fora. Certamente era muito mais importante para ela averiguar quantas luas tinha Júpiter que estudar aos compositores do século quinze.

    Trocaria-se de disciplina, pensou. Ao dia seguinte, a primeiríssima hora, faria todos os acertos que fossem necessários. De fato, teria se levantado nesse mesmo instante e se teria partido se não estivesse convencida de que Kimball sorriria ao vê-la sair.

    Movendo nervosa a caneta entre os dedos, cruzou as pernas, decidida a não escutar uma só palavra.

    Era uma pena que o professor tivesse uma voz tão atrativa.

    Natasha olhou o relógio com impaciência. Tinha perto de uma hora por diante. Faria o mesmo que quando tinha que esperar na consulta do dentista: fingir que estava em outra parte. Esforçando-se para impedir que a voz do Spence chegasse a seu cérebro, começou a balançar o pé e a rabiscar em seu caderno.

    Não foi consciente de que os ganchos de ferro se converteram em notas, nem de que tinha começado a escutar com atenção cada uma das palavras do professor. Spence conseguia fazer que os músicos do século quinze parecessem vivos, vigorizantes incluso.

    Rondós, ballades e vieralais. Quase podia ouvir as canções do último Renascimento, os muitos altos Kiries e os Glorifica.

    Estava apanhada, envolta naquela antiga rivalidade entre a igreja e o estado e a participação dos músicos na política. Podia imaginar os enormes banquetes aos que assistiam os aristocratas, onde desfrutavam tanto da música como da comida.

    -A próxima vez, falaremos da escola franco flamenca e dos desenvolvimentos rítmicos -Spence olhou sorrindo a seus alunos-. E procurarei chegar logo.

    Já se tinha terminado? Natasha olhou o relógio outra vez e se surpreendeu ao descobrir que eram mais das nove.

    -É incrível, verdade?

    Natasha olhou ao Terry. Seus olhos resplandeciam detrás dos óculos.

    -Sim -custava-lhe admiti-lo, mas a verdade era a verdade.

    -Deveria escutá-lo nas classes de teoria -advertiu com inveja que alguns estudantes tinham rodeado a seu ídolo. Mesmo assim, ele não tinha valor suficiente para levantar-se e unir-se ao grupo.

    -Verei-te... Na terça-feira.

    -O que? Oh, sim, boa noite... Terry.

    -Posso... Te levar a casa se quiser -o fato de que estivesse a ponto de ficar sem gasolina e de que tivesse que ter pacote o amortecedor para que não se soltasse não pareceu afetá-lo.

    Natasha lhe brindou um daqueles sorrisos distantes que estava pondo o coração do Terry a dançar ao ritmo do cha-cha-cha.

    -É muito amável, mas não moro longe.

    Esperava poder sair da sala-de-aula enquanto Spence estivesse ainda ocupado. Mas deveria haver-se imaginado que não seria possível.

    Spence se limitou a posar uma mão em seu braço para detê-la quando estava a ponto de alcançar a porta.

    -Eu gostaria de falar um momento contigo, Natasha -despediu com um gesto ao último de seus alunos, recostou-se na cadeira e lhe sorriu-. Deveria ter emprestado mais atenção a minha lista, mas, mesmo assim, é agradável saber que ainda pode te surpreender a vida.

    -Isso depende do ponto de vista que se considere, professor Kimball.

    -Spence -continuou sorrindo-. A aula terminou.

    -Assim é -seu majestoso assentimento lhe fez pensar outra vez na realeza russa-. Sinto muito, tenho que partir.

    -Natasha -esperou, quase se podia apalpar a impaciência quando Natasha se voltou-. Custa-me pensar que alguém de sua linhagem não crê no destino.

    -No destino?

    -Com todas as aulas de todas as universidades que há no mundo, há-te meio doido estar na minha.

    Natasha não deveria rir. Seria uma estúpida se o fizesse. Mas seus lábios se curvaram em um sorriso antes de que pudesse fazer nada para controlá-lo.

    -E eu que estava pensando que tinha sido uma questão de má sorte.

    -Por que História da Música?

    Natasha aplaudia o caderno sobre seu quadril. -Estive me debatendo entre a História da Música e a Astronomia.

    -Essa tem que ser uma história fascinante. Por que não baixamos a tomar um café? Assim poderá me contar tudo -então a viu; uma fúria como lava líquida que transformava seus olhos aveludados em fogo-. E agora a que vem essa fúria? -perguntou, quase para si-. É que nesta cidade é ilegal lhe convidar a alguém a tomar um café?

    -Você deveria sabê-lo, professor Kimball -voltou-se, mas Spence chegou à porta antes que ela e a fechou com força suficiente para fazê-la retroceder.

    Estava tão furioso como ela, advertiu Natasha. Mas não lhe importava. Embora a verdade era que lhe tinha parecido até então um homem mais doce. Detestável, mas doce. Naquele momento não havia nele um ápice de doçura. Aquelas facções fascinantes pareciam de repente de granito.

    - Esclareça o que quiseste dizer.

    -Abra a porta.

    -Farei-o encantado, assim que me diga -estava zangado isso. Spence se dava conta de que não havia sentido aquela classe de fúria violenta desde fazia anos. E se sentia maravilhosamente-. Sou consciente de que só porque me sinta atraído por ti, não tem por que sentir você o mesmo.

    Natasha elevou o olhar, odiando-se a si mesmo por encontrar aqueles olhos cinzas como as nuvens de um céu de tormenta irresistivelmente hipnóticos.

    -E não o sinto.

    -Estupendo -não podia estrangulá-la por isso, entretanto, lhe teria encantado fazê-lo-. Mas, maldita seja, quero saber por que aponta e disparas cada vez que apareço.

    -Porque isso é o que se merecem os homens como você.

    -Os homens como eu -repetiu Spence, assegurando-se de que tinha ouvido bem-. E isso o que significa exatamente?

    Spence permanecia a seu lado, abatendo-se amenamente sobre ela. Ao igual a tinha ocorrido na loja, quando a tinha roçado, Natasha sentiu um borbulhante estalo de excitação, atração, confusão.

    -Crê que porque tenha um rosto atrativo e um bonito sorriso pode dizer tudo o que queira?

    -Sim -respondeu Natasha antes de que ele pudesse seguir falando, e lhe golpeou no peito com o caderno-. E você acredita que lhe basta estalando os dedos para conseguir que uma mulher caia rendida em seus braços? Pois com esta mulher em concreto se equivoca.

    Seu acento era mais marcado quando se zangava, advertiu Spence, confundido por sua fria calma.

    -Não recordo ter estalado os dedos.

    Natasha soltou um curto e explícito juramento em ucraniano enquanto agarrava o trinco.

    -Quer tomar um café? Estupendo. Tomaremos esse café... E chamaremos a sua esposa para que se reúna conosco.

    -Minha o que? -posou a mão sobre a sua e empurrou, de maneira que a porta que acabava de ser aberta voltou a fechar-se-. Eu não tenho nenhuma esposa.

    -De verdade? -disse com sarcasmo e o fulminou com o olhar-. E suponho que a mulher que foi com você à loja era sua irmã.

    Deveria ter sido divertido. Mas Spence não terminava de lhe ver a graça.

    -Nina? Pois a verdade é que sim.

    Natasha abriu então a porta com um som de desgosto.

    -Isto é patético.

    Transbordante de indignação, saiu ao corredor e se encaminhou para a porta principal. Com um rítmico staccato acorde por completo com seu humor, acribillaba o chão com os saltos enquanto baixava as escadas da entrada principal. Quando de repente a agarraram por detrás para obrigá-la a dá-la volta, esteve a ponto de cair.

    -Tem um gênio diabólico.

    -Ah, sim? -conseguiu dizer-. Tenho muito gênio?

    -Crê que já sabe tudo, verdade?

    Aproveitando a vantagem que lhe proporcionava sua altura, Spence a olhou. Natasha viu escurecer-se seu rosto e advertiu a fúria em sua voz. Spence já não parecia torpe absolutamente, ao contrário, demonstrava estar tendo um controle total sobre a situação.

    -Ou deveria dizer que te crê que já sabe tudo sobre mim?

    -Não custa muito adivinhá-lo -sentia a firmeza com a que Spence sujeitava seu braço. E odiava ser consciente de que, mesclada com seu próprio aborrecimento, florescia uma muito primária atração sexual. Lutando para sufocá-la, jogou a cabeça para trás-. Em realidade, tem você um comportamento muito típico.

    -Pergunto-me se poderia ter pior opinião sobre mim -a fúria começava a mesclar-se com o desejo. -Duvido-o.

    -Nesse caso, posso me dar uma satisfação sem correr o risco de piorá-la.

    O caderno voou quando Spence a estreitou contra ele. Natasha conseguiu emitir um único e surpreso som antes de que a boca do Spence cobrisse a sua. Cobrisse-a, devorasse-a, conquistasse-a.

    Deveria haver resistido. Repetiu-se uma e outra vez que deveria lutar contra ele. Mas foi o impacto, ou ao menos ela rezava para que o fora, o que fez que seus braços caíssem indefesos a ambos os lados de seu corpo.

    Aquilo era um engano. Um engano imperdoável. E, Oh Deus, era maravilhoso. Instintivamente, Spence tinha encontrado a chave para abrir a porta à paixão que durante tanto tempo tinha permanecido dormindo. Natasha sentia que seu sangue fervia. E sua mente se turvava. Escutou tenemente um pouco parecido a uma risada enquanto ambos descendiam para a calçada. O som da buzina de um caminhão, uma alegre saudação e dê novo o silêncio.

    Murmurou algo, um penoso protesto que a envergonhou a ela e foi facilmente ignorada pela língua do Spence, que continuava enredando-se sensualmente com a sua. Seu sabor era como um banquete depois de um comprido tempo de abstinência. Embora Natasha continuava mantendo os braços cansados, inclinou-se para ele, para desfrutar de seu beijo.

    Beijá-la era como caminhar por um campo minado. Em qualquer momento se produziria a explosão que terminaria fazendo-o pedacinhos. Deveria haver-se detido depois do primeiro impacto, mas o perigo encerrava uma grande emoção.

    E ela era perigosa. Enquanto afundava os dedos em seu cabelo, podia senti-la tremer e estremecer-se. Era ela... A promessa, a ameaça de uma paixão titânica. Podia saborear seus lábios, inclusive embora Natasha lutasse por retroceder. Podia senti-la em sua tensa e assustada postura. Porque se Natasha chegava a relaxar-se, poderia fazer dele um escravo.

    Um desejo como jamais o tinha conhecido golpeava seu corpo. Imagens envoltas em fogo e fumaça dançavam por sua mente. Algo lutava em seu interior para ser liberado, como um pássaro batendo as asas em sua jaula. Spence a sentiu esticar-se. E, de repente, Natasha o empurrou, separou-o dela e permaneceu olhando-o fixamente, com os olhos enormes e eloqüentes.

    Não podia respirar. Por um instante, Natasha pensou muito seriamente que ia morrer ali mesmo, afogada naquele vergonhoso desejo. Tentando defender-se, tomou uma enorme baforada de ar.

    -Jamais poderei odiar a ninguém como o odeio a você.

    Spence sacudiu a cabeça para tentar esclarecer suas idéias. Natasha o tinha deixado aturdido, confundido e completamente indefeso. Por seu próprio bem, esperou até estar seguro de que era capaz de pronunciar palavra.

    -Deixa-me em uma posição muito baixa, Natasha -baixou um degrau, para situar-se ao nível de seu olhar. Viu lágrimas em suas pestanas, mas estas eram compensadas pela condenação que refletiam seus olhos-. Eu gostaria que nos assegurássemos de se esse lugar me corresponder pelas razões adequadas. É porque te beijei ou porque gostou?

    Natasha estendeu a mão. Spence poderia ter evitado facilmente a bofetada, mas pensou que Natasha tinha direito a desafogar-se. Quando ouviu o sonoro eco da bofetada, decidiu que já estavam empatados.

    -Não volte a aproximar-se de mim -disse-lhe Natasha, respirando com força-. O advirto, se o fizer, falarei sem me importar o que diga ou quem possa me escutar. Se não fora por sua filha... -interrompeu-se e se agachou para tomar o caderno. Seu orgulho, ao igual a sua auto-estima, parecia pedacinhos-. Não se merece ter uma filha tão encantadora.

    Spence voltou a agarrá-la do braço, mas, naquela ocasião, a expressão de seu rosto lhe fez sentir calafrios a Natasha.

    -Tem razão, nunca mereci e provavelmente nunca merecerei a Freddie, mas sou tudo o que tem. Sua mãe, minha esposa, morreu faz três anos.

    Afastou-se a grandes pernadas sob a luz de uma luz e desapareceu depois em meio da escuridão.

    Natasha apertou com força o caderno contra seu peito e se sentou no último degrau.

   

    Que diabos ia fazer depois daquilo?

    Não ficava outra opção. Por muito que o odiasse, realmente só podia fazer uma coisa. Natasha se esfregou as mãos nas calças e começou a subir os degraus recém pintados.

    Era uma bonita casa, pensou. Havia cortinas nas janelas, as do piso de abaixo eram de um tecido fino de cor marfim, que certamente deixaria passar ampliamente a luz. Em uma das janelas do piso superior, via-se uma cortina com um bonito desenho de unicórnios; certamente aquela seria o quarto da pequena.

    Natasha reuniu valor e cruzou o alpendre para chegar à porta principal. Seria rápido, prometeu-se. Não seria fácil, mas ao menos seria rápido. Bateu na porta, soltou ar e esperou.

    Abriu-lhe uma mulher baixa e gordinha, com o rosto tão moreno e enrugado como uma passa. Natasha tirou o chapéu apanhada em um par de olhos escuros e diminutos, enquanto o ama de chaves se secava as mãos no avental.

    -Posso ajudá-la em algo?

    -Eu gostaria de ver o professor Kimball, se estiver em casa -sorriu, fingindo não sentir-se como se estivessem levando-a ao patíbulo-. Sou Natasha Stanislaski -advertiu que o ama de chaves feichava os olhos, tanto que quase desapareceram entre as dobras de seu rosto.

    Ao princípio, Beira tinha confundido a Natasha com uma das estudantes do senhor e se preparou para tratá-la como correspondia.

    -É você a proprietária da loja de brinquedos.

    -Exato.

    -Ah -com um assentimento de cabeça, abriu a porta de par em par para convidar a Natasha a passar-. Freddie diz que é você uma mulher muito amável, que lhe deu de presente um laço azul para sua boneca. Prometi-lhe voltar a levar a loja de brinquedos, mas só a olhar -fez um gesto para que Natasha a seguisse.

    Quando chegaram ao corredor, Natasha escutou as vacilantes nota de um piano. Viu seu reflexo em um antigo espelho oval e a surpreendeu descobrir que estava sorrindo.

    Spence estava sentado ao piano com a menina no regaço, olhando por cima do ombro da pequena enquanto esta tocava vacilante "Mary tem um cordeirinho". O sol se filtrava pela janela que havia atrás deles e, ao vê-los, Natasha desejou ser capaz de pintar para poder apanhar aquela imagem.

    Era perfeita. A luz, as sombras e as cores da sala conformavam um fundo perfeito. O alinhamento das cabeças e os corpos era muito natural e eloqüente inclusive para uma pose. A menina ia vestida de rosa e branco e tinha desatado o cordão de uma de suas canções. Seu pai se tirou a jaqueta e a gravata e se arregaçou a camisa até os cotovelos, como se fora um trabalhador manual.

    Somavam-se à luminosidade daquele quadro o brilho delicado do cabelo do Freddie e o intenso resplendor dourado do cabelo do Spence. Freddie se recostava em seu pai, com a cabeça apoiada justo sob seu pescoço. Um sorriso de prazer, quase imperceptível, iluminava seu rosto. E envolvendo-o tudo, ouvia-se o singelo ritmo da canção infantil que a pequena estava tocando.

    Spence apoiava as mãos nos joelhos do Freddie, seus dedos largos e formosos se moviam ao ritmo do velho metrônomo que havia sobre o piano. Natasha foi capaz de percebê-lo tudo: o amor, a paciência e o orgulho daquele pai.

    -Não, por favor -sussurrou Natasha, posando a mão no braço de Beira-. Não os incomode.

    -Agora toca a ti, papai -Freddie inclinou a cabeça para ele. Algumas mechas de seu fino cabelo tinham escapado à sujeição das forquilhas e cobriam seu rosto-. Touca algo bonito.

    -Für Elise.

    Natasha reconheceu imediatamente aquela melodia romântica, delicada e, de algum jeito, solitária. Chegou-lhe diretamente ao coração enquanto observava os dedos do Spence acariciar e seduzir as teclas.

    No que estaria pensando? Advertia que os pensamentos do Spence se tornaram íntimos, estavam derrubados para a música, para ele mesmo. Suas mãos fluíam sobre o piano sem nenhum esforço aparente, mas Natasha era consciente de que aquela perfeição jamais se alcançava sem dor e um grande esforço.

    O som ia elevando-se, nota detrás nota, insuportavelmente triste, impossivelmente belo, ao igual às açucenas que descansavam em um vaso sobre o piano.

    Muita emoção, pensou Natasha. Muito dor, embora o sol continuava brilhando através das cortinas de gaze e a menina seguia sorrindo em seu regaço. A necessidade de aproximar-se dele e posar uma mão consoladora em seu ombro, de sustentar ao pai e à menina contra seu coração, foi tão forte que Natasha teve que apertar os punhos para não fazê-lo.

    O volume da música foi descendendo lentamente até que a última nota ficou suspensa no ar como um suspiro.

    -Eu gosto -disse-lhe Freddie-. Inventaste-a você?

    -Não -Spence fixou o olhar em seus dedos enquanto os estendia e os flexionava, para depois tomar a mão de sua filha-. É uma composição do Beethoven-sorriu de novo e posou os lábios na delicada curva do pescoço da menina-. Já tiveste suficiente por hoje?

    -Posso jogar no jardim até a hora do jantar?

    -Bom... O que me dará em troca?

    Era um jogo antigo entre eles, e um dos favoritos da menina. Rendo, girou em seu regaço e lhe deu um forte e sonoro beijo. Ainda imerso naquele abraço de urso, Spence reparou na presença da Natasha.

    -Olá!

    -A senhorita Stanislaski quer vê-lo, professor Kimball -quando Spence assentiu, Beira se retirou à cozinha. -Olá.

    Conseguiu manter o sorriso, inclusive quando Spence se voltou para ela com o Freddie no regaço. Natasha ainda não se desprendeu da música, que continuava derramando-se em seu interior como uma lágrima.

    -Espero não ter chegado em um mau momento -desculpou-se.

    -Claro que não.

    Depois de um último abraço, Spence deixou ao Freddie no chão e esta correu imediatamente para a Natasha.

    -Já terminei a aula de piano, quer jogar comigo?

    -Não, esta vez não -incapaz de resistir, Natasha lhe acariciou carinhosamente a bochecha-. Em realidade vim a falar com seu papai.

    Era uma covarde, pensou desgostada consigo mesma. Em vez de olhá-lo a ele, continuava dirigindo-se ao Freddie.

    -Você gosta do colégio? Tem à senhorita Patterson de professora, verdade?

    -É muito boa. Nem sequer gritou quando ao Mikey Tower lhe caiu sua coleção de insetos asquerosos ao chão em meio da classe. E eu já sei ler o conto de "Vê, Cachorrinho, Vê" inteiro.

    Natasha se agachou para poder olhá-la aos olhos.

    -"Você gosta de meu chapéu?" -perguntou.

    Freddie se pôs-se a rir ao reconhecer aquela frase do clássico do doutor Seuss.

    -A mim a que mais eu gosto de é a parte da festa.

    -A mim também -rapidamente, atou-lhe os cordões das canções ao Freddie-. Virá logo a me fazer uma visita à loja?

    -De acordo -encantada consigo mesma, Freddie correu para a porta-. Adeus, senhorita Stanof, Stanif...

    -Tash -piscou os olhos o olho ao Freddie-. Todos os meninos me chamam Tash.

    -Tash -Freddie sorriu radiante ao pronunciar seu nome e partiu correndo.

    Natasha escutou chiar as canções do Freddie no corredor e tomou uma larga baforada de ar.

    -Sinto vir a incomodá-lo a sua casa, mas pensei que seria mais... -qual era a palavra adequada? "Apropriado", "cômodo"?-, que seria melhor.

    -De acordo -seus olhos se tornaram frios. Não eram já os do homem que havia meio doido aquela música triste e apaixonada-. Quer te sentar?

    -Não -respondeu com excessiva rapidez. Imediatamente se recordou que o melhor era que ambos fossem capazes de manter uma conversação friamente educada-. Não demorarei muito. Só queria me desculpar.

    -Sim? Por algo em particular?

    O fogo relampejou em seu olhar. Spence desfrutou ao vê-lo, especialmente porque se passou a maior parte da noite amaldiçoando-a.

    -Quando cometo um engano, sempre tento admiti-lo. Mas como sua conduta de ontem foi tão... -Oh, por que sempre lhe faltariam as palavras em inglês quando estava zangada?

    -Inconsciente? -sugeriu Spence.

    Natasha arqueou notavelmente as sobrancelhas.

    -Então o admite?

    -Eu acreditava que foi você a que tinha vindo aqui a admitir algo -desfrutando enormemente daquela situação, sentou-se no braço de uma poltrona estofada de cor azul damasco-. Mas não quero te interromper, segue.

    Natasha esteve tentada, muito tentada, de girar sobre seus calcanhares e partir. Tinha um orgulho tão forte como seu gênio. Mas faria o que tinha ido fazer e depois esqueceria aquele mau momento para sempre.

    -O que disse sobre você... Sobre você e sua filha, foi tão injusto como falso. Embora... Embora estivesse confundida sobre outras coisas, sabia que isso não era certo. E sinto muito havê-lo dito.

    -Já o vejo -pela extremidade do olho, advertiu um movimento através da janela. Voltou-se bem a tempo de ver o Freddie correndo para o balanço-. Será melhor que o esqueçamos.

    Natasha seguiu o curso de seu olhar e suavizou sua expressão.

    -É uma menina preciosa. Espero que lhe permita voltar para a loja de vez em quando.

    O tom de sua voz fez que Spence a estudasse com atenção. Havia nela um deixe de nostalgia, de tristeza possivelmente?

    -Duvido que possa mantê-la longe. Você gosta de muito os meninos, verdade?

    -Sim, é obvio. Em um negócio como o meu é um requisito indispensável. Não quero entretê-lo mais, professor Kimball.

    Spence se levantou para estreitar a mão que Natasha tão formalmente lhe oferecia.

    -Spence, esculte, por favor -corrigiu-a, estreitando delicadamente seus dedos-. No que outra coisa estava confundida?

    Assim que aquilo não ia ser tão fácil como ela pretendia. Uma vez mais, Natasha se consolou dizendo-se que se merecia aquela dose de humilhação.

    -Acreditava que estava casado. Zanguei-me muito e me senti muito ofendida quando me convidou a sair.

    -Assim está aceitando minha palavra de que não estou casado!

    -Não. Consultei o Quem é Quem.

    Spence ficou olhando fixamente durante um instante, depois jogou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada.

    -Deus, que mulher tão confiada. E encontraste algum dado mais que tenha resultado interessante?

    -Só alguns que serviriam para inflar seu ego. Ainda não me soltaste a mão.

    -Sei. E me diga, Natasha, desagradava-te em geral, ou só porque pensava que era um homem casado e não tinha direito a paquerar inocentemente contigo?

    -Paquerar inocentemente? -Natasha quase se engasgou ao pronunciar aquela palavra-. Não havia nada inocente em sua forma de me olhar. Era como se...

    -Como sim...? -insistiu ele.

    Como se já fossem amantes, pensou Natasha, e sentiu como aumentava a temperatura de seu corpo.

    -Eu não gostei -disse cortante.

    -Porque pensava que estava casado?

    -Sim. Não -corrigiu-se rapidamente ao dar-se conta de até onde podia conduzi-los sua resposta-. Simplesmente eu não gostei -Spence se tinha levado sua mão aos lábios-. Não -conseguiu dizer.

    -Então como você gosta que te olhe?

    -Não tem por que me olhar de maneira nenhuma.

    -Claro que sim.

    Spence voltava a senti-lo outra vez. Era aquela intensa e assustadora paixão que parecia estar esperando que alguém a liberasse de qualquer que fora a cela em que Natasha a tinha encerrada.

    -Amanhã de noite estará sentada na aula frente a mim -recordou-lhe.

    -Vou trocar de curso.

    -Não, não o fará -acariciou com o dedo o pequeno pendente que Natasha levava na orelha-. Você gostou de muito da aula. Quase podia ver girar as engrenagens dentro de sua preciosa cabeça. E se de verdade ocorre trocar de aula -continuou dizendo, antes de que Natasha pudesse expor uma resposta-, chegarei a me converter em uma verdadeira moléstia em sua loja.

    -Por que?

    -Porque é a primeira mulher a que desejo há mais tempo de que sou capaz de recordar.

    Natasha sentiu um calafrio de excitação percorrendo suas costas como se fora uma lhe tilintem e fria cadeia. Antes de que pudesse fazer nada para evitá-lo, a lembrança de seu tórrido beijo se apoderou de sua mente, debilitando a de forma perigosa. Sim, tinha sido o beijo de um homem que desejava. E, por muito que ela tivesse tentado resistir, o de uma mulher que também desejava.

    Mas só tinha sido um beijo alimentado pela luz da lua e a brisa noturna. E Natasha sabia dolorosamente bem para onde conduziam os caminhos do desejo.

    -Isso são tolices.

    -Eu diria que é sinceridade -sussurrou Spence, fascinado pelas emoções que refletiam os escuros olhos da Natasha-. E pensei que é o melhor, posto que já superamos nosso desafortunado princípio. E posto que já chegaste à conclusão de que não estou casado, saber que me sinto atraído por ti não deveria te ofender.

    -Não me ofende -respondeu Natasha receosa-. Simplesmente, não me interessa.

    -E tem o costume de beijar a homens que não lhe interessam?

    -Eu não te beijei -liberou sua mão-. Foi você o que me beijou.

    -Isso podemos arrumá-lo -respondeu Spence, aproximando-se dela-. Esta vez me devolverá o beijo.

    Natasha podia haver-se afastado. Spence não a abraçava com força, como a vez anterior, mas sim a rodeava brandamente com seus braços, incitando-a a imitá-lo. Seus lábios foram doces naquela ocasião, doces, persuasivos e pacientes. E Natasha podia sentir o calor que fluía por sua corrente sangüínea como uma droga. Com um ligeiro gemido, rodeou-lhe com os braços e se estreitou contra ele.

    Foi como sustentar uma vela nas mãos e sentir que a cera ia derretendo-se lentamente consumida pelo fogo. Spence pôde dar-se conta de como ia cedendo passo a passo, até que entreabriu os lábios para ele, rendidos e convidativos. Mas inclusive enquanto Natasha o beijava, podia sentir também um pouco muito forte, que resistia e retrocedia. Natasha não queria sentir o que estava lhe fazendo sentir Spence com aquele beijo.

    Impaciente, estreitou-a contra ele. Embora seu corpo se moldou instantaneamente contra o seu e inclinou a cabeça em erótica rendição, havia uma parte da Natasha que ficava sempre fora de seu alcance. E o que lhe estava dando quão único fazia era avivar a fome do Spence.

    Natasha estava quase sem respiração quando Spence a soltou. Custou-lhe um grande esforço, muito esforço, pensou Natasha, recuperar-se. Mas assim que o fez, conseguiu dizer com voz fria e firme:

    -Não quero ter uma relação.

    -Comigo ou com ninguém?

    -Com ninguém.

    -Estupendo -acariciou-lhe brandamente o cabelo-. Assim será mais fácil te fazer trocar de opinião.

    -Sou muito cabeça dura -murmurou Natasha.

    -Sim, já me dei conta. Por que não fica para o jantar?

    -Não.

    -De acordo. Então te convidarei para jantar na sábado de noite.

    -Não.

    -Às sete e meia. Passarei para te buscar.

    -Não.

    -Não quererá que me presente na sábado pela tarde na loja e ponha em um apuro?

    Ao limite de sua paciência, Natasha se encaminhou para a porta.

    -Não posso compreender como um homem capaz de tocar com tanta sensibilidade pode ser tão tolo.

    E tão afortunado, pensou Spence enquanto ouvia fechá-la porta de uma portada. Assim que ficou a sós outra vez, tirou o chapéu a si mesmo assobiando.

   

   CAPITULO 4

    Em qualquer loja de brinquedos, na sábado era um dia caótico. Como tinha que ser. Inclusive para um menino, a palavra "sábado" era mágica, posto que significava que dispunha ao menos de vinte e quatro horas nas que o colégio ficava muito longe para representar algum problema. Havia bicicletas que montar, jogos que jogar e corridas que ganhar. E desde que Natasha tinha aberto a loja de brinquedos, desfrutava dos sábados tanto como sua colorida clientela.

    E era outro ponto negativo contra Spence o que ele fora a razão de que não estivesse desfrutando daquele sábado em particular.

    Havia-lhe dito que não, recordou-se enquanto teclava na caixa registradora o preço de três dinossauros de plástico e um recipiente para fazer borbulhas.

    Mas aquele nome não parecia entender o inglês.

    Porque não encontrava outra razão para a solitária rosa vermelha que lhe tinha enviado. E além à loja, pensou, tentando franzir o cenho enquanto a olhava. O entusiasta romantismo do Annie lhe tinha impedido de desfazer-se dela; embora Natasha tinha atirado a flor, Annie tinha acudido imediatamente a seu resgate, tinha saído à rua e tinha comprado um vaso de plástico que, junto à rosa, ocupava um lugar de honra no balcão.

    Natasha fazia tudo o que estava em sua mão para não olhá-la, para não acariciar suas pétalas fechadas, mas não era fácil ignorar a delicada fragrância que flutuava no ar cada vez que registrava uma venda.

    Por que pensariam os homens que com uma flor podiam abrandar o coração de uma mulher?

    Porque podiam, admitiu Natasha, contendo um suspiro enquanto voltava a olhá-la.

    Mas isso não significava que estivesse disposta para jantar com ele. Natasha jogou o cabelo para trás e contou o montão de moedas que o jovem Hampston lhe tinha entregue em troca de seu gibi mensal. A vida deveria ser assim de singela, pensou enquanto o menino saía precipitadamente da loja com as últimas aventuras do Comandante Zark. Maldita fora, e de fato o era. Tomou ar, tentando reafirmar sua determinação. Sua vida era igualmente singela, por muito que Spence estivesse tentando complicá-la. Para demonstrá-lo, pretendia ir a casa assim que fechasse a loja, dar um banho quente na banheira e passar o resto da tarde tombada no sofá, vendo alguma filme antigo e comendo pipocas.

    Spence tinha sido muito inteligente. Natasha saiu do balcão para aproximar-se de um dos corredores da loja e tentar arbitrar em uma mal-humorada discussão entre os irmãos Freedmont sobre o destino de suas economias comuns. Minta intervinha, Natasha se perguntava se o estimado professor estaria considerando sua relação, ou sua não relação, corrigiu-se, como uma partida de xadrez. Ela sempre tinha sido muito imprudente para ter êxito naquele jogo de mesa em particular, mas tinha a sensação de que Spence podia jogá-lo pacientemente e bem. Em qualquer caso, se pensava que ia ser fácil lhe dar cheque mate, ia levar se uma boa surpresa.

    Spence tinha superado a segunda aula brilhantemente. Não a tinha cuidadoso mais que a nenhum outro aluno e tinha respondido suas perguntas no mesmo tom que utilizava para responder as de outros. Sim, efetivamente, era um jogador muito paciente.

    Mas então, justo quando ela estava começando a relaxar-se, tinha-lhe entregue uma primeira rosa solitária justo no momento em que Natasha saía de classe. Um movimento suficientemente inteligente para pôr em perigo sua rainha.

    Se Natasha tivesse tido valor suficiente, teria atirado a rosa ao chão e a teria pisoteado com o salto. Mas lhe tinha faltada coragem, e por isso tinha que tentar elaborar alguma jogada que lhe permitisse tomar a dianteira. Porque o problema tinha sido que a tinha pilhado despreparada, disse-se a si mesmo. Ao igual a ao lhe enviar aquela rosa vermelha à loja aquela manhã. Se a rosa continuava no balcão, a gente começaria a falar. Em uma localidade tão pequena como aquela, acontecimentos como o enviou de uma rosa vermelha corriam rapidamente da loja de brinquedos ao pub, no pub se fazia público o rumor e de ali chegava a converter-se em tema de todas as sessões de fofoca. Natasha precisava encontrar uma forma de deter aquele rumor. Nesse momento, não lhe ocorria nada melhor que ignorar a rosa. E ignorar também ao Spence, acrescentou. E quanto gostaria de poder fazê-lo.

    Centrando-se no problema que tinha mais próximo, Natasha passou um braço ao redor dos ombros de cada um dos bagunceiros Freedmont.

    -Já basta. Se não deixarem de lhes chamar coisas como ganso e, qual era a outra?

    -Burro orelhudo -disse o mais alto dos meninos.

    -Sim, burro orelhudo -não pôde resistir a tentar recordá-lo-. É um bom insulto. Bom, pois se seguem discutindo, direi a sua mãe que não lhes deixe vir em duas semanas.

    -Não, Tash.

    -E isso significa que todo mundo poderá ver as coisas tão terríveis  que encarreguei para o Halloween antes que vocês -deixou que a ameaça estendesse efeito e apertou carinhosamente o pescoço aos pequenos-. Assim vou fazer lhes uma sugestão. Atirem uma moeda ao ar e que ela dita se tiverem que comprar o balão de futebol ou a equipe de magia. E o que não possam comprar agora, podem-no pedir para Natal. Parece-lhes uma boa idéia?

    Os meninos se olharam fazendo uma careta, sem apartar-se nenhum da Natasha.

    -Bastante boa.

    -Não, têm que dizer que é muito boa, se não, darei-lhes um cabeçada.

    Deixou-os discutindo sobre que moeda utilizariam para o fatal desenlace.

    -Confundiste sua vocação -comentou Annie quando os irmãos saíram da loja de brinquedos com o balão de futebol.

    -E a que vem isso?

    -Deveria estar trabalhando na ONU -assinalou para a vitrine. Os meninos se passavam a bola enquanto se afastavam-. Há poucos meninos tão difíceis de tratar como os irmãos Freedmont.

    -Primeiro consegui que me temam, e depois lhes ofereci uma saída digna.

    -Vê-o? Definitivamente, teria sido perfeita para trabalhar na ONU.

    Natasha sacudiu a cabeça rindo.

    -Temo-me que há outros problemas que não são tão fáceis de resolver -cedendo contra sua vontade, olhou novamente para a rosa. Se pudesse pedir um desejo naquele momento, seria que aparecesse alguém capaz de resolver seu problema.

   

    Uma hora mais tarde, sentiu que alguém lhe puxava a saia.

    -Olá.

    -Olá, Freddie.

    Tentou arrumar o acréscimo que a menina tinha atada com o mesmo laço que Natasha lhe tinha agradável o dia de sua primeira visita à loja.

    -Que bonita está hoje.

    Freddie sorriu radiante e lhe perguntou, de mulher a mulher:

    -Você gosta de minha calça?

    Natasha olhou com atenção o peitilho vaqueiro, evidentemente novo.

    -Sim, eu gosto muito. Eu tenho um igual.

    -De verdade? -nada, desde que Freddie tinha decidido converter a Natasha em sua particular heroína, poderia lhe haver agradado mais-. Comprou-me isso meu pai.

    -Que bem -apesar do que seu sentido comum lhe recomendava, esquadrinhou a loja, buscando-o-. O... Bom, trouxe-te ele?

    -Não, trouxe-me Beira. Há dito que podia olhar tudo o que quisesse.

    -Claro. Me alegro de que tenha vindo -e era certo, advertiu Natasha. Tão certo quanto estava estupidamente desiludida porque não a tinha levado seu pai.

    -Supõe-se que não tenho que tocar nada -Freddie colocou suas ofegantes mãos nos bolsos-. Beira há dito que tinha que vê-lo tudo com os olhos, não com as mãos.

    -É um bom conselho -um conselho que a Natasha não teria importado transmitir a alguns pequenos de dedos rápidos-. Mas há coisas que sim se podem tocar, só tem que me pedir isso

    -De acordo, tem boina e tudo, e vou aprender a fazer almofadas, e palmatórias e muitas outras coisas. Farei algo para ti.

    -Eu adoraria.

      -Isso é maravilhoso. Quando o tiver, deverás ensinará me o -Bem eu...

    Um radiante sorriso dividiu em dois o rosto do Freddie.

    -Meu pai me há dito que esta noite vai jantar com ele a um restaurante.

    -Bom, eu...

    -Eu não gosto de muito os restaurantes. Só eu gosto da pizza, assim que ficarei em casa e Beira nos fará tortinhas ao JoBeth e a mim. As vamos comer na cozinha.

    -Que plano tão divertido.

    -Se você não gostar dos restaurantes, pode vir você também para jantar conosco. Beira sempre faz muitas tortinhas.

    Com um suspiro de impotência, Natasha se agachou para lhe atar um cordão do sapato.

    -Obrigado.

    -Seu cabelo sempre cheira bem.

    Adorando já à pequena, Natasha se inclinou para ela.

    -O teu também.

    Freddie acariciou fascinada os escuros cachos da Natasha.

    -Eu gostaria que meu cabelo fora como o teu. O meu é liso como uma parede -acrescentou, recordando o comentário que sempre o fazia sua tia Nina.

    Natasha acariciou as frágeis mechas do Freddie e sorriu.

    -Quando eu era pequena, todos os anos punham um anjo em cima da árvore de Natal. Era muito bonito, e tinha o cabelo como o teu.

    Freddie se ruborizou de prazer.

    -Ah, aqui está -Beira se abriu passo entre os meninos. Levava um carrinho da compra em uma mão e uma bolsa na outra-. Vamos, vamos, temos que voltar para casa, não vá ser que seu pai pense que nos perdemos -estendeu- a mão ao Freddie e saudou com um gesto a Natasha-. Boa tarde, senhorita.

    -Boa tarde -Natasha arqueou a sobrancelha com curiosidade. Voltava a sentir-se escrutinada pelos olhos escuros daquela mulher, que, além disso, parecia estar esperando algo, pensou Natasha-. Espero que Freddie volte logo por aqui.

    -Com certeza que sim. Para uma menina, é tão difícil resistir aos encantos de uma loja de brinquedos como para um homem resistir a uma mulher formosa.

    Beira deixou que Freddie se adiantasse pelo corredor e caminhou atrás dela. Nem sequer se voltou quando a menina deu meia volta para despedir-se.

    -E bem -murmurou Annie-. A que veio isso?

    Com um sorriso carente por completo de humor, Natasha se colocou uma forquilha no cabelo.

    -Eu diria que essa mulher acredita que tenho planos para seu chefe.

    Annie soltou um grunido impróprio de uma dama.

    -E eu diria que é seu chefe o que tem planos para ti. Oxalá tivesse eu tanta sorte -suspirou, um pouco invejosa-. Agora que já sabemos que nosso vizinho não está casado, já não lhe pode tirar nenhum defeito. Por que não me contaste que foste sair com ele?

    -Porque não penso fazê-lo.

    -Mas ouvi que Freddie te dizia...

    -Convidou-me a sair -esclareceu-lhe Natasha-, mas lhe disse que não.

    -Já entendo -depois de uma breve pausa, Annie inclinou a cabeça-. Quando teve o acidente?

    -Que acidente?

    -Esse que te danificou o cérebro.

    O semblante da Natasha se esclareceu, soltou uma gargalhada e caminhou para a vitrine.

    -Estou falando a sério -disse Annie assim que tiveram cinco minutos livres-. O professor Kimball é maravilhoso, está solteiro e ... -Inclinou-se sobre o balcão para cheirar a rosa-. Deliciosa. Por que não sai um pouco antes da loja de brinquedos e te põe a pensar em coisas sérias, como, por exemplo, no que vai pôr esta noite?

    -Já sei o que me vou pôr esta noite: a bata.

    Annie não pôde evitar um sorriso.

    -Não crê que te está precipitando um pouco? Eu penso que a bata deveria esperar até o terceiro encontro pelo menos.

    -Não vai haver nem sequer um primeiro encontro -Natasha lhe dirigiu um sorriso ao pequeno cliente que se aproximava da caixa registradora.

    Annie demorou outros quarenta minutos em dispor de tempo para continuar a conversação. -Do que tem medo?

    -De fazenda.

    -Tash, estou falando a sério.

    -Eu também -lhe caíram os passadores outra vez, e os tirou' irritada-. Todos os americanos têm medo de fazenda.

    -Estamos falando do Spence Kimball.

    -Não -corrigiu-a Natasha-, é você a que está falando do Spence Kimball.

    -Pensava que fomos amigas.

    Surpreendida por seu tom, Natasha deixou de ordenar os carros de carreiras que seus pequenos clientes tinham desordenado.

    -E o somos, sabe.

    -As amigas falam entre elas, Tash, confiam a uma na outra -suspirou e afundou as mãos nos bolsos de seu largos jeans-. Olhe, sei que te ocorreu algo antes de vir aqui, algo que ainda não conseguiste superar, mas do que nunca fala. até agora, pensei que, como boa amiga tua, o melhor que podia fazer era não te perguntar por isso.

    Tinha sido tão óbvia?, perguntou-se Natasha. Durante todo esse tempo, tinha estado convencida de que tinha enterrado profundamente o passado e tudo o que tinha que ver com ele. Sentindo-se um pouco impotente, alargou o braço para tomar a mão de sua amiga.

    -Obrigado.

    Annie se encolheu de ombros e se voltou para fechar a porta principal. A loja estava vazia e o bulício da tarde já só era um eco.

    -Recorda quando Dom Newman me deixou e me permitiu chorar em seu ombro?

    Natasha apertou os lábios com força.

    -Esse homem não se merecia suas lágrimas.

    -Mas desfrutei chorando por ele -respondeu Annie com um rápido e divertida sorriso-. Precisava chorar, e gritar, e gemer, inclusive me embebedar um pouco. E você esteve a meu lado, dizendo todas essas coisas tão desagradáveis sobre ele.

    -Essa foi a parte mais fácil -recordou Natasha-. Era um burro orelhudo -adorou utilizar o insulto dos Freedmont.

    -Sim, mas um burro terrivelmente atrativo -permitiu-se recordar Annie-. Em qualquer caso, ajudou-me a passar esse momento tão duro, até que cheguei à conclusão de que estava melhor sem ele. Mas você nunca necessitou meu ombro, porque nunca permitiste que nenhum homem atravessasse isto -elevou a mão e pressionou um muro imaginário.

    Divertida, Natasha se inclinou sobre o mostrador.

    -E isso o que é?

    -O Grande Campo de Força Stanislaski -disse-lhe Annie-. Garantido para repelir a homens de vinte e cinco a cinqüenta anos.

    Natasha arqueou uma sobrancelha, sem estar muito segura de se deveria continuar mostrando-se divertida.

    -Não sei se está tentando me adular ou me insultar.

    -Nenhuma das duas coisas. Simplesmente, me escute um momento, quer? -Annie tomou ar, tentando não precipitar-se ao dizer algo que deveria deixar cair pouco a pouco-. Tash, vi-te te desfazer de homens com a mesma facilidade com a que te desfaz de um mosquito. E sem lhe pensar isso duas vezes -acrescentou ao ver que Natasha permanecia em silêncio-. Nunca te vi pensar duas vezes em um homem detrás lhe haver fechado a porta nos narizes educadamente. Inclusive te admirei por isso, por estar tão segura de ti mesma, tão satisfeita, que nem sequer precisava ter um encontro aos sábados para que o ego não te caísse pelos chãos.

    -Não estou segura de mim mesma -murmurou Natasha-. Simplesmente apática quanto às relações.

    -De acordo -assentiu Annie lentamente-, isso o admito. Mas acredito que esta vez é diferente.

    -Ah sim? -Natasha rodeou o mostrador e começou a quadrar as contas do dia.

    -Vê-o? Sabe que vou mencionar o e já fica nervosa.

    -Não estou nervosa -mentiu Natasha.

    -Claro que sim. estiveste nervosa, mal-humorada e distraída desde que Kimball entrou na loja faz um par de semanas. Há três anos, não te vi lhe dedicar a nenhum homem mais de cinco minutos de seus pensamentos. Até agora.

    -Isso é sozinho porque é muito mais irritante que a maioria -ante o olhar ardiloso do Annie, Natasha renunciou a seguir negando-o-. De acordo... Há algo -admitiu-. Mas não me interessa.

    -Tem medo de que te interesse.

    A Natasha não gostou de como soava aquela frase, mas se obrigou a encolher-se de ombros. -É o mesmo.

    -Não, não o é -Annie posou a mão sobre a de seu amiga e a estreitou-. Olhe, não pretendo te empurrar aos braços desse tipo. Pelo pouco que sei sobre ele, bem poderia ter assassinado a sua esposa e tê-la enterrada no jardim. Quão único quero te dizer é que não estará bem contigo mesma até que não deixe de ter medo.

    Annie tinha razão, pensava Natasha mais tarde, sentada em sua cama. Estava de mau humor e distraída. E tinha medo. Não do Spence, assegurou-se Natasha. Jamais voltaria a ter medo de nenhum homem. Mas sim dos sentimentos que podia remover. Sentimentos que tinha esquecido e que não queria voltar a recordar.

    Isso significava que já não ia ser capaz de controlar seus sentimentos? Não. E significava acaso que teria que atuar irracional e impulsivamente sozinho porque o desejo tinha decidido irromper de novo em sua vida? Definitivamente não.

    Só tinha medo porque ainda tinha que provar-se a si mesmo, pensou Natasha, enquanto se aproximava do armário. De modo que aquela noite iria jantar com o insistente professor Kimball, para demonstrar-se que era uma mulher forte, perfeitamente capaz de resistir a uma fugaz atração e voltar depois para a normalidade.

    Natasha contemplou seu guarda-roupa com o cenho franzido. Com um nervoso movimento, tirou um vestido de cor azul com um cinturão de prata. Não era que queria arrumar-se para ele. Em realidade, Spence era totalmente irrelevante. Mas aquele era um de seus vestidos favoritos e estranha vez tinha oportunidade de ficar algo que não fora a roupa de trabalho.

    Spence chamou a sua porta às sete e vinte e oito minutos. E Natasha se odiou a si mesmo pela ansiedade com a que tinha estado olhando o relógio durante toda a tarde. Pintou-se os lábios duas vezes, tinha revisado em mais de uma ocasião o conteúdo de sua bolsa e tinha desejado ferventemente ter demorado algo mais em arrumar-se.

    Estava-se comportando como uma adolescente, disse-se enquanto caminhava para a porta. Aquilo era só um jantar, a primeira e quão última pretendia compartilhar com ele. E Spence só era um homem, acrescentou enquanto abria a porta.

    Um homem assustadoramente atrativo.

    Estava maravilhoso, foi o único que Natasha pôde pensar ao vê-lo com o cabelo penteado para trás e essa meia sorriso nos olhos. A Natasha jamais lhe tinha ocorrido pensar que um homem pudesse estar tão devastadoramente sexy com terno e gravata.

    -Olá -Spence lhe tendeu outra rosa.

    Natasha esteve a ponto de suspirar. Era uma pena que aquele terno cinza não lhe desse um ar mais magistral. Tomou a rosa e a aproximou da bochecha.

    -Não foram as rosas as que me têm feito trocar de opinião.

    -Sobre o que?

    -Sobre jantar contigo -retrocedeu, compreendendo que não ficava outra opção que lhe permitir acontecer enquanto punha a flor em água.

    Spence sorriu, exasperando-a com aquele aspecto encantador e presunçoso ao mesmo tempo.

    -E o que foi o que te convenceu?

    -Tenho fome -deixou um casaco de veludo no braço do sofá-. Vou pôr a flor em água. Sente-se se quiser.

    Não ia ceder nem um ápice, pensou Spence enquanto a via afastar-se. Estranhamente, aquilo só servia para instigar seu interesse. Tomou ar e sacudiu a cabeça. Era incrível. Justo quando acabava de convencer-se de que não havia outra fragrância mais atrativa que a do sabão, Natasha ficava um perfume que o fazia pensar na meia noite e em música de violinos.

    Decidindo que estaria mais a salvo se pensava em outra coisa, estudou a sala. A Natasha gostava das cores vivas, disse-se, notando-se nas almofadas de cor esmeralda que descansavam sobre um sofá de cor safira. Havia um enorme vaso de cobre a seu lado, cheio de sedosas plumas de pavão. Por toda a sala havia velas de diferentes forma e tamanhos, desprendendo uma romântica fragrância a baunilha, jasmim e gardênia. Em uma prateleira colocada em uma esquina, apertava-se um amplo espectro de livros, que foram da literatura popular de ficção, até os mais consagrados clássicos, passando pelos autores locais menos conhecidos.

    As mesas estavam abarrotadas de lembranças, fotos emolduradas, Ramos de flores secas e um grupo de caprichosas figurinhas inspiradas nos contos de fadas. Havia uma casinha de caramelo não maior que a palma de sua mão, uma chapeuzinho vermelho, um porquinho aparecendo a cabeça pela janela de uma casinha de palha e uma formosa mulher sustentando um sapatinho de cristal.

    Instalações práticas, cores vivas e contos de fadas, refletiu Spence, acariciando o sapatinho de cristal. Uma combinação tão intrigante como a própria Natasha.

    Para ouvir que retornava à sala, Spence se voltou.

    -São preciosas -comentou, assinalando uma das figuras-. A Freddie adoraria.

    -Obrigado, faz-as meu irmão.

    -Tem-nas feito seu irmão? -fascinado, Spence tomou a casinha de caramelo e a estudou de perto. Estava esculpida em madeira pulimentada e tão cuidadosamente grafite que cada caramelo ou pirulito parecia comestível-. É incrível. Estranha vez se encontram artesanatos de tanta qualidade.

    Fossem quais fossem suas reservas, Natasha sentiu uma imediata simpatia para ele. Cruzou a sala e se sentou a seu lado.

    -Dedicou-se a esculpir e a esculpir madeira desde que era menino. Algum dia, suas obras estarão nos museus.

    -Deveriam estar já.

    A sinceridade de sua voz atacou o ponto mais vulnerável da Natasha: o Amor da jovem para sua família.

    -Não é tão fácil. É muito jovem, cabeça dura e orgulhoso, assim continua dedicando-se à carpintaria, em vez de dedicar-se a esculpir madeira. Mas algum dia... -olhou sorridente sua coleção-. Estas as fez especialmente para mim, pelo muito que me esforcei para poder ler o inglês nesse livro de contos de fadas que estava em uma das caixas que nos deram na igreja quando chegamos a Nova Iorque. Os desenhos eram tão bonitos que eu estava se desesperada por conhecer as histórias às que se referiam.

    Interrompeu-se, envergonhada por ter falado tanto de si mesmo.

    -Acredito que deveríamos sair.

    Spence se limitou a assentir, decidido a continuar indagando até que Natasha lhe contasse algo mais sobre sua vida.

    -Deveria te pôr a jaqueta -levantou-a do sofá-. Está fazendo frio.

    O restaurante que tinha eleito Spence estava a muito pouca distância, situado em uma das colinas que se abatiam sobre o Potomac. Se Natasha tivesse tido que imaginar que tipo de restaurantes freqüentaria o professor, teria suposto que Spence escolheria um lugar tranqüilo, elegante e com um serviço rápido e discreto como aquele. Depois da primeira taça de vinho, disse-se que devia relaxar-se e desfrutar.

    -Freddie esteve hoje na loja.

    -Já me inteirei -divertido, Spence elevou sua taça-. Quer ter o cabelo encaracolado.

    A estupefação inicial da Natasha deu passo a um sorriso. Tomou a taça com as duas mãos. -Oh, é tão doce.

    -Para ti é fácil dizê-lo. Eu acabo de lhe encher o cabelo de tranças.

    Para sua surpresa, Natasha se imaginou ao Spence trancando pacientemente os murchos e frágeis cabelos do Freddie.

    -É preciosa -voltou para sua mente a imagem da menina sentada no regaço do Spence-. Tem os olhos como os teus.

    -Não me olhe agora -murmurou Spence-, mas acredito que acaba de me fazer um completo.

    Natasha levantou a carta, sentindo-se terrivelmente torpe.

    -Para suavizar o ambiente -repôs-. Estou a ponto de pedir o jantar e te advirto que hoje saltei a comida.

    Como se queria confirmar suas palavras, pediu generosamente. Enquanto estivesse comendo, imaginou Natasha, seria mais fácil controlar a situação. Durante os aperitivos, procurou dirigir a conversação para temas que tinham tratado em classe. Estiveram falando comodamente sobre a música da última parte do século quinze, suas diferentes harmonias e seus músicos viajantes. Spence apreciava a curiosidade e o

    Interesse sincero da Natasha, mas estava decidido a conduzir a conversação para temas mais pessoais.

    -Fale de sua família.

    Natasha se meteu um pedaço de lagosta empapada em molho na boca, desfrutando de seu delicado e quase decadente sabor.

    -Sou a maior de quatro irmãos -começou a dizer, sendo bruscamente consciente de que Spence começava a lhe acariciar a mão que tinha posado na mesa. Afastou a mão de seu alcance. Aquela manobra, obrigou ao Spence a levantar sua taça para dissimular um sorriso.

    -Todos foram espiões?

    Uma faísca de gênio se uniu às luzes que as velas levavam aos olhos da Natasha.

    -É obvio que não.

    -Perguntava-me isso, pelo receio que é a falar disso -com o semblante sério, inclinou-se para ela-. Não vais dizer me qual era sua contra-senha?

    A Natasha tremeram os lábios antes de estalar em uma gargalhada.

    -Não -meteu-se outro pedaço de lagosta e o mastigou lentamente, desfrutando de seu aroma, de seu sabor e textura-. Tenho dois irmãos e uma irmã. Meus pais ainda vivem no Brooklyn.

    -E por que deveste viveu aqui?

    -Queria trocar de ambiente -encolheu-se de ombros-. Você também?

    -Sim -apareceu um leve cenho entre suas sobrancelhas enquanto a estudava-. Disse que tinha a mesma idade que Freddie quando veio aos Estados Unidos. Tem muitas lembranças daquela época de sua vida?

    -É obvio -por alguma razão, Natasha tinha a sensação de que estava pensando mais em sua filha que nas lembranças que ela pudesse ter de Ucrânia-Sempre pensei que as impressões que recebemos durante os primeiros anos de vida nunca se apagam. Já sejam boas ou más, ajudam-nos a ser quem sou -inclinou-se para diante com um sorriso-.Me diga, que lembranças tem de quando tinha cinco anos?

    -Recordo-me sentado ao piano fazendo escalas -era uma lembrança tão nítida que esteve a ponto de tornar-se a rir-. Desfrutando da fragrância das rosas do estufa e observando a neve cair através da janela. Debatendo entre continuar fazendo os exercícios de piano ou sair a jogar parque com minha babá.

    -Você babá -repetiu Natasha, divertida, mas sem nenhuma sombra de brincadeira. Posou o queixo na mão e se inclinou para ele, seduzindo-o involuntariamente com as sombras que o jogo de luzes projetava em seu rosto-. E o que fez?

    -As duas coisas.

    -Assim foi um menino responsável.

    Spence deslizou o dedo por sua boca, lhe provocando um calafrio. Antes de que Natasha retirasse a mão, Spence pôde sentir seu pulso agitado.

    -E que lembranças tem você dos cinco anos?

    Estava tão zangada por sua forma de reagir a sua carícia, que estava decidida a não lhe mostrar nada. Limitou-se a encolher-se de ombros.

    -Meu pai trazia lenha para o fogo. Entrava com a cabeça e o casaco coberto de neve. Recordo a um bebê chorando, meu irmão pequeno. O aroma do pão que minha mãe assava. E como fingia a dormindo enquanto ouvia meu pai lhe falando com minha mãe de escapar.

    -Passou medo?

    -Sim.

    Seu olhar se turvou com as lembranças. Natasha não estava acostumada olhar ao passado, não tinha necessidade de fazê-lo. Mas quando o fazia, as lembranças não fluíam a sua mente com a imprecisa qualidade dos sonhos, a não ser com a nitidez do cristal.

    -Oh sim, muito medo. Muito mais de que passei nunca.

    -Falará-me disso?

    -Por que?

    Os olhos do Spence pareciam haver-se escurecido enquanto os mantinha fixos no rosto da Natasha.

    -Porque quero compreendê-lo.

    Natasha queria trocar de tema, apesar de que as palavras se amontoavam em sua mente. Mas a memória permanecia muito viva para ignorá-la.

    -Esperamos até a primavera e só nos levamos o que podia caber em um carro. Não o dissemos a ninguém, a ninguém absolutamente, e nos montamos no trem. Meu pai disse que nos íamos visitar uma irmã de minha mãe que vivia no oeste. Mas acredito que havia alguém que sabia a verdade, alguém que nos observou partir com os rostos cansados e olhar assustado. Meu pai tinha uns documentos falsificados e também um mapa com o que queria evitar aos guardas da fronteira.

    -Então só foram cinco?

    -Estávamos a ponto de ser seis -deslizou o dedo pelo bordo da taça com expressão pensativa-. Mikhail tinha entre quatro e cinco anos, Alex só dois. De noite, quando podíamos nos arriscar a acender uma fogueira, sentávamo-nos ao redor de meu pai e ele nos contava contos. Aquelas noites eram as melhores. Ficávamos dormindos escutando sua voz e cheirando a fumaça do fogo. Cruzamos as montanhas para chegar a Hungria. Demoramos perto de noventa e três dias em chegar.

    Spence não podia imaginar-lhe nem sequer quando podia vê-lo claramente refletido em seus olhos. Natasha falava em voz baixa, mas nela se refletiam toda a riqueza daquela experiência. Pensando naquela pequena menina, tomou a mão e esperou a que Natasha continuasse.

    -Meu pai o tinha planejado durante anos. Possivelmente levasse sonhando com isso toda sua vida. Tinha nomes de pessoas dispostas a ajudar aos desertores. Aquilo era uma guerra, a guerra fria, mas eu era muito pequena para compreendê-lo. O único que entendia era o medo, o medo de meus pais e das pessoas que nos ajudaram. Da Hungria nos levaram furtivamente a Austria. E a igreja nos possibilitou a chegada a América. Passou muito tempo até que deixei de temer que chegasse a polícia a casa para levar-se a meu pai.

    Retornou de novo à presente, sentindo-se envergonhada por tudo o que tinha contado, e surpreendida ao descobrir sua mão firmemente apanhada na do Spence.

    -São experiências muito duras para uma menina.

    -Também recordo o dia que comi meu primeiro cachorro quente.

    Sorriu e tomou a taça de vinho outra vez. Jamais tinha falado daquilo. Nem sequer com sua família. E nesse momento, enquanto o fazia, sentia uma necessidade se desesperada para trocar de tema.

    -E o dia que meu pai levou a televisão a casa -continuou-. Nenhuma infância, nem sequer a dos que a vivem rodeados de babás, é do todo segura. Mas todos crescemos. Agora eu sou proprietária de um negócio e você é um respeitado compositor. Por que já não compõe? -sentiu que a mão do Spence se esticava sobre a sua-. Sinto muito -desculpou-se rapidamente-. Não tenho direito a lhe perguntar isso Cuando Spence sonriu, Natasha sacudiu a cabeça com impaciência. Spence apertava a mão com força.

    -Não se preocupe -relaxou novamente a mão-. Não componho porque não posso.

    Natasha vacilou um instante, e quase imediatamente disse em um impulso:

    -Conheço sua música. É impossível que um pouco tão intenso desapareça.

    -A verdade é que durante os últimos dois anos não me preocupou muito. Só ultimamente começa a me inquietar outra vez.

    -Não deveria ser tão paciente.

    Quando Spence sorriu, Natasha sacudiu a cabeça com impaciência. Spence lhe sujeitava a mão com força.

    -Não, digo-o a sério. A gente sempre está procurando o momento indicado, o humor indicado e o lugar indicado, e assim vão acontecendo os anos. Se meu pai tivesse esperado até ser maior, ainda estaríamos em Ucrânia. Há coisas que não podem esperar. A vida é muito, muito curta.

    Spence podia sentir a urgência na maneira em que Natasha se aferrava a sua mão. E podia ver a sombra do arrependimento em seu olhar. As razões de ambos os sentimentos o intrigavam tanto como suas palavras.

    -Possivelmente tenha razão -disse lentamente, e se levou a mão da Natasha aos lábios-. Esperar não é sempre a melhor resposta.

    -Está-se fazendo tarde -Natasha liberou sua mão e a posou, apertada em um punho, em seu regaço. Mas isso não evitou o calor que se estendia por seu braço-. Deveríamos ir.

    Quando Spence a acompanhou até a porta, estava relaxada outra vez. E durante o curto trajeto até sua casa, Spence a fez rir lhe contando as estratégias de Freddie para despertar seu interesse pelos gatinhos.

    -Acredito que o de cortar fotografa de gatos das revistas para te fazer um póster foi muito inteligente -voltou-se para apoiar-se contra a porta de sua casa-. Vai deixar lhe ter um?

    -Estou tentando não lhe parecer um incauto.

    Natasha se limitou a sorrir.

    -Nas casas grandes e antigas como a tua, está acostumado a haver ratos no inverno. De fato, acredito que, com uma casa desse tamanho, o mais inteligente seria ficar com dois dos gatinhos do JoBeth.

    -Se Freddie for capaz de me convencer disso, poderá me convencer de algo -enredou um dos cachos da Natasha em seu dedo-. E você terá que submeter a um interrogatório a semana que vem.

    Natasha arqueou as sobrancelhas.

    -Está-me chantageando, professor Kimball?

    -Pode apostar.

    -Pois me temo que terei que suportar esse interrogatório, porque tenho a sensação de que Freddie seria capaz de te convencer de que ficasse com a ninhada inteira se o propor a sério.

    -Só ficarei com o gatinho cinza.

    -Assim já foste a vê-los.

    -Um par de vezes. Não vai convidar me a entrar?

    -Não.

    -De acordo -deslizou as mãos por sua cintura. -Spence...

    -Só estou seguindo seu conselho -sussurrou enquanto aproximava os lábios a seu queixo-. Estou tentando não ser tão paciente -estreitou-a contra ele e procurou o lóbulo de sua orelha com os lábios -. E tomar o que quero -mordiscou-lhe o lábio inferior-, sem perder o tempo.

    Então estreitou seus lábios contra sua boca. Saboreou a acidez do vinho em seus lábios e soube que isso bastaria para embebedá-lo. Os sabores da Natasha eram ricos, exóticos, embriagadores. Ao igual à chegada do outono que se insinuava no ar, seu sabor o fazia pensar em fogueiras e névoas espessas. E seu corpo estava já pressionando-se contra o seu, em um instantâneo e mútuo reconhecimento.

    A paixão não cresceu, não nasceu a partir de um sussurrou. Explorou de tal forma que inclusive o ar que os rodeava pareceu estremecer-se.

    Aquela mulher o convertia em um homem imprudente. Sem saber sequer o que estava sussurrando, percorreu seu rosto com os lábios, voltando, sempre voltando, a sua boca faminta e ardente. Com arrudas carícias, deslizou as mãos sobre ela.

    A Natasha dava voltas a cabeça. Oxalá pudesse acreditar que só se devia ao vinho. Mas sabia que era ele, só ele, que o fazia sentir aquele atordoamento, aquele desespero. Queria ser acariciada. Por ele. Com um gemido, jogou a cabeça para trás e sentiu o risco urgente de seus lábios por seu pescoço.

    E sentiu que aquilo não estava bem. Todos os medos e dúvidas se formavam redemoinhos em seu interior, deixando nela ocos que suplicavam ser cheios. Mas quando estiveram cheios daquele líquido e vibrante prazer, o medo cresceu.

    -Spence -afundou os dedos em seus ombros; estava liberando uma guerra terrível entre a necessidade de detê-lo e o desejo impossível de lhe pedir que continuasse-. Por favor...

    Spence estava tremendo tanto como ela. Ao cabo de uns segundos, enterrou o rosto em seu cabelo.

    -Quando estou contigo me ocorre algo estranho, não consigo me explicar isso.

    Natasha desejava abraçá-lo desesperadamente, mas se obrigou a deixar cair os braços a ambos os lados de seu corpo.

    -Não posso continuar. Isto não pode continuar.

    Spence retrocedeu, só o suficiente para poder lhe emoldurar o rosto com as mãos. O frio da noite e o calor da paixão tinham levado a cor a suas bochechas.

    -Embora queria detê-lo, coisa que não quero, não poderia fazê-lo.

    Natasha continuava olhando-o aos olhos, tentando não deixar-se comover pelo delicado roce de suas mãos.

    -Quer deitar comigo.

    -Sim -não estava seguro de se queria rir ou amaldiçoá-la por ser tão prática-. Mas não é tão singelo.

    -O sexo nunca o é.

    Spence a olhou com os olhos entrecerrados.

    -Não estou interessado em desfrutar de contigo do sexo.

    -Mas acaba de dizer...

    -Quero fazer o amor contigo. Isso é diferente.

    -Não me interessa o romantismo.

    O aborrecimento que relampejou em seus olhos se desvaneceu tão rapidamente como tinha aparecido.

    -Então o sinto. Terei que te desiludir, porque quando fizer o amor contigo, seja quando for, asseguro-te que vai ser muito romântico -antes de que Natasha pudesse fazer nada para evitá-lo, fechou a boca sobre seus lábios-. E essa é uma promessa que pretendo manter.

   

  CAPITULO 5

    -Natasha! Natasha!

    Ao ser tão bruscamente tirada de seus improdutivos pensamentos, Natasha elevou o olhar e olhou a Terry. Levava um largo cachecol branco com raias amarelas para proteger-se da repentina baixada das temperaturas que havia talher a cidade de geada. Enquanto corria atrás dela, ia apartando-se torpemente o cachecol. Para quando chegou a seu lado, tinha os óculos na ponta do nariz e o nariz avermelhado pelo frio.

    -Olá, Terry.

    Aquela curta carreira o tinha deixado sem respiração e teve que deter-se para não agravar sua agitação.

    -Olá. Estava... Vi-te dirigir a aula -em realidade levava esperando-a perto de vinte minutos.

    Sentindo-se um pouco como uma mãe com um filho algo desajeitado, colocou-lhe os óculos e lhe ajustou o cachecol ao redor do pescoço. Com sua respiração agitada, Terry conseguiu que lhe empanassem os cristais dos óculos.

    -Deveria te haver posta luvas -disse-lhe, e lhe aplaudiu a mão gelada.

    Afligido, Terry tentou falar, mas só conseguiu emitir um som estrangulado.

    -Está bem? -Natasha procurou em sua bolsa, tirou um lenço de papel e o ofereceu.

    Terry se esclareceu ruidosamente a garganta.

    -Não -mas tomou o lenço e se prometeu conservá-lo até a morte-. Estava-me perguntando se esta noite, depois de classe, já sabe... Se não ter nada que fazer... Bom, então talvez poderíamos tomar um café. Dois cafés -corrigiu-se desesperado-. Quero dizer, que você tomará um café e eu outro -enquanto o dizia, seu rosto ia adquirindo um suspeito tom esverdeado.

    O pobre menino estava muito sozinho, pensou Natasha, lhe oferecendo um sorriso ausente.

    -Claro.

    Não lhe faria nenhum dano passar um par de horas com ele, decidiu enquanto entrava na aula. E assim deixaria de pensar em...

    Deixaria de pensar no homem que estava esperando à entrada da sala, refletiu Natasha com o cenho franzido; o homem que a tinha beijado duas vezes até deixá-la sem respiração e que naquele momento ria com uma chamativa loira que não devia ter nem vinte anos.

    Com uma careta mal-humorada, sentou-se em sua carteira e enterrou a cabeça no livro de texto.

    Spence soube o momento exato no que Natasha entrou na sala-de-aula. E sentiu uma mais que pequena gratificação ao ver o ciúmes refletidos em seu rosto, antes de que a jovem decidisse esconder a cara depois do livro.       Aparentemente, o destino não se levou muito mal ao mantê-lo até acima de tarefas, tanto profissionais como pessoais durante as duas últimas semanas. Entre o encanamento furado, as reuniões da associação de pais e do grupo de exploradoras e as reuniões na faculdade, não tinha tido nenhuma só hora livre. Mas as coisas foram tranqüilizar se outra vez. Estudou o pouco que podia ver da cabeça da Natasha. Tinha intenção de recuperar quanto antes o tempo perdido.

    Sentado no bordo do escritório, iniciou sua exposição sobre as diferenças entre a música sacra e a profana durante o barroco.

    Natasha não queria mostrar-se interessada. E estava segura de que Spence sabia. Por que se não teria solicitado sua opinião em duas ocasiões?

    Oh, era um tipo inteligente, pensou. Nem o mais ligeiro gesto, nem a mais mínima mudança de entonação em sua voz revelou que mantinha uma relação mais pessoal com ela que com o resto de seus alunos. Ninguém em toda a sala poderia suspeitar que seu amável e inclusive brilhante professor a tinha beijado até as deixar sem sentido não uma nem dois, a não ser três vezes. Nesse momento, estava falando sobre os desenvolvimentos operísticos de princípios do século dezessete.

    O pulôver de pescoço alto e a jaqueta tweed: davam um ar informalmente elegante e completamente responsável. E, por seu posto, como sempre ocorria, tinha a toda a classe nas Palmas daquelas formosas e eloqüentes mãos que empregava para reforçar seus argumentos. Quando sorriu para ouvir o comentário de um dos alunos, Natasha ouviu suspirar a jovem loira que estava sentada dois assentos atrás dela. E como ela tinha estado a ponto de fazer a um pouco parecido, endireitou-se rigidamente no assento.

    Provavelmente, haveria centenas de mulheres dispostas a sair com ele, disse-se. Um homem com seu aspecto, que falava como ele e beijava como ele, seguro que tinha que estar muito solicitado. Era o típico homem que fazia promessas em meio da noite a uma mulher e terminava despertando na cama de outra.

    Enfim, era uma sorte que ela já não acreditasse naquele tipo de promessas.

    Algo estava ocorrendo no interior dessa preciosa cabeça, pensou Spence. Natasha estava escutando-o como se ele conhecesse a resposta a todos os mistérios do universo e de repente se sentou rigidamente e tinha fixado o olhar no vazio, como se estivesse desejando estar em qualquer outro lugar. Spence teria jurado que estava zangada, e que seu aborrecimento tinha que ver diretamente com ele. O porquê era algo que escapava totalmente de seu alcance.

    Cada vez que tinha tentado falar com ela depois de classe durante as últimas semanas, Natasha tinha saído disparada da universidade. Mas aquela noite tentaria ser mais rápido que ela.

    Natasha se levantou assim que terminou a aula. Spence a viu sorrir ao menino que estava sentado atrás dela e agachar-se depois para recolher os livros e a caneta que o menino tinha atirado ao levantar-se.

    Como se chamava aquele jovem? Perguntou-se Spence. Maynard. Isso era. O senhor Maynard assistia a várias de suas classes e conseguia passar completamente inadvertido em todas elas. Mas, naquele momento, o muito discreto senhor Maynard estava agachado, roçando com o joelho a perna da Natasha.

    -Acredito que já está tudo -Natasha empurrou amigavelmente os óculos do Terry para impedir que caíssem.

    -Obrigado.

    -E não se esqueça o cachecol -advertiu-lhe. Olhou então para cima. Alguém lhe estava tendendo a mão para ajudá-la a levantar-se-. Muito obrigado, professor Kimball.

    -Eu gostaria de falar contigo, Natasha.

    -De verdade? -olhou brevemente a mão que Spence posava em seu braço e foi procurar o casaco e os livros. Sentindo-se como se estivesse outra vez em meio de uma partida de xadrez, decidiu rebater agressivamente seu movimento-. Sinto muito, terá que esperar. Tenho um encontro.

    -Um encontro? -conseguiu dizer Spence, conjurando imediatamente a imagem de um tipo galhardo, alto, moreno e musculoso.

    -Sim, me desculpe -sacudiu a mão com a que Spence lhe agarrava o braço para ficar o casaco.

    Posto que os dois homens que tinha a ambos os lados pareciam igualmente paralisados, trocou-se os livros de braço e ficou a outra manga do casaco.

    -Já está preparado, Terry?

    -Bom, sim, claro -fixava o olhar no Spence com uma mescla de admiração e confusão-. Mas posso esperar se quer falar antes com o professor Kimball.

    -Não é necessário -agarrou-o por braço e se dirigiu com ele para a porta.

    Mulheres, pensou Spence enquanto se sentava depois do escritório. Tinha aceito já o fato de que nunca as tinha compreendido. E estava começando a pensar que jamais o faria.

    -Caramba, não crê que deveria ter esperado para saber o que queria o professor Kimball?

    -Já sei o que quer -disse entre dentes, enquanto empurrava a porta da faculdade. O frio vento do outono esfriou suas bochechas-. E não estou de humor para discutir esta noite.

    Quando Terry tropeçou na irregular calçada, Natasha se deu conta de que virtualmente o estava arrastando e diminuiu o passo.

    -Além disso, pensava que íamos tomar um café.

    -E é certo -quando Natasha lhe sorriu, ajustou-se o cachecol como se fora a estrangular-se.

    Foram caminhando a um pequeno café no que a metade das mesas estavam vazias. Na barra, dois homens falavam sobre suas respectivas cervejas. Em uma esquina, um casal se beijava, ignorando por completo suas bebidas. A Natasha sempre tinha gostado daquele café, com sua luz tênue e as fotos do James Dean e Marilyn. Cheirava a tabaco e a vinho. Havia um enorme aparelho estéreo em uma estantería no que soava um velho tema do Chuck Berry, a suficiente volume para compensar a falta de clientes. Ao sentar-se, Natasha sentiu a vibração dos baixos através da cadeira.

    -Nos ponha um café, Joe -gritou-lhe ao homem que estava detrás da barra. Apoiou os cotovelos na mesa e se inclinou para diante-. Então -disse ao Terry-, como vai tudo?

    -Muito bem -não podia acreditar. Estava ali, sentado com ela. Tinham um encontro. Ela mesma o havia dito.

    Ia ter que animá-lo um pouco. Com paciência, Natasha se tirou o casaco. O calor do bar a obrigou a subi-las mangas do casaco por cima do cotovelo.

    -Para ti tudo isto deve te resultar muito diferente. Onde me disse que tinha estudado?

    -Graduei-me no estado de Michigan -como os lentes lhe tinham embaciado outra vez, via a Natasha envolta em uma fina e misteriosa névoa-. Quando... Quando me inteirei de que o professor Kimball ia dar classes aqui, decidi me matricular nesta universidade.

    -Assim veio aqui pelo Spence... Pelo professor Kimball, quero dizer.

    -Não queria perder esta oportunidade. O ano passado fui a Nova Iorque para ouvi-lo em uma conferência -Terry levantou a mão e esteve a ponto de atirar o, de açúcar-. É incrível.

    -Suponho que sim -murmurou Natasha enquanto lhes serviam o café.

    -Onde te tinha metido? -perguntou- o garçom a Natasha, lhe apertando carinhosamente o ombro-. Não te vi em todo o mês.

    -O negócio vai muito bem. Como está Dála?

    -Já passou à história -lhe pisco os olhos um olho-. Agora posso ser todo teu, Tash.

    -Terei-o em conta -com uma risada, voltou-se para o Terry-. Ocorre-te algo? -perguntou-lhe ao ver que tentava afrouxar o pescoço da camisa. -Sim. Não. Esse é... Seu namorado?

    -Meu... -para evitar soltar uma gargalhada diante de Terry, bebeu um sorvo de café-. Refere ao Joe? Não -esclareceu-se garganta e bebeu outra vez-. Não, não é meu namorado. Só somos... -procurou a palavra adequada-, colegas.

    -Oh -exclamou Terry, com uma mescla de alívio e insegurança-. Só pensava que ele... Bom.

    -Estava brincando -desejando tranqüilizá-lo, apertou-lhe carinhosamente a mão-. E o que me diz de ti, está-te esperando uma namorada em Michigan?

    -Não. Não há ninguém, ninguém em seu absoluto -voltou a mão e agarrou com força a da Natasha.

    Oh, Deus, ao dar-se conta do que ocorria, Natasha ficou boquiaberta. Só uma estúpida não se teria dado conta, pensou, enquanto fixava o olhar nos admirados e míopes olhos do Terry. Uma estúpida, acrescentou para si, que estava muito pendente de seus próprios problemas para dar-se conta do que estava passando diante de seus narizes. Ia ter que andar-se com cuidado, decidiu. Com muito cuidado.

    -Terry -começou a dizer-, é um encanto.

    Bastaram aquelas palavras para que ao Terry começasse a lhe tremer a mão... E a taça de café terminasse em sua camisa. Com um movimento rápido, Natasha se levantou, agarrou um guardanapo e começou a limpá-lo.

    -É uma sorte que aqui nunca sirvam o café quente. Lave a camisa com água fria e não se notará nada.

    Afligido, Terry tomou as mãos. Natasha tinha inclinado a cabeça e a fragrância de seu cabelo o estava enjoando.

    -Amo-te -espetou-lhe e tentou procurar sua boca; mas os óculos se deslizaram até a ponta de seu nariz.

    Natasha sentiu seus lábios na bochecha, frios e trementes. E compreendeu que tentar ser cuidadosa não era a melhor forma de abordar aquela difícil situação. Terei que recorrer à firmeza. E rápido.

    -Não, não me ama -disse com voz enérgica, ao tempo que o apartava para evitar que se manchasse com o café derramado na mesa.

    -Não?

    A resposta da Natasha o tinha deixado completamente confundido. Aquilo não se parecia nada às fantasias que tinha ido tecendo. Em uma delas, salvava-a de ser atropelada por uma caminhonete que tinha perdido os freios. Em outra, tocava-lhe a canção que tinha estado compondo para ela e Natasha, presa de paixão, caía em seus braços. Mas sua imaginação não tinha alcançado a recrear a Natasha lhe limpando o café da camisa e lhe dizendo que não estava apaixonado por ela absolutamente.

    -Claro que sim -replicou, tomando a mão outra vez.

    -Isso é ridículo -respondeu Natasha-. Você me cai bem e eu te caio bem.

    -Não, é muito mais que isso. Eu...

    -De acordo, e por que está apaixonado por mim?

    -Porque é muito bonita -conseguiu dizer enquanto fixava o olhar em seu rosto-. É a mulher mais formosa que vi em toda minha vida.

    -E isso te parece suficiente? -separou sua mão da do Terry e apoiou nela o queixo-. E se te dissesse que eu antes era uma benjamima, ou que eu gosto de atropelar animais com o carro? Ou é possível que tenha estado casada três vezes e tenha assassinado a todos meus maridos enquanto dormiam.

    -Tash...

    Natasha soltou uma gargalhada, mas resistiu a tentação de lhe beliscar a bochecha.-O que quero dizer, é que não me conhece o suficiente para me amar. Se de verdade me conhecesse, não lhe daria tanta importância a meu aspecto.

    -Mas... Mas penso continuamente em ti.

    -Porque convenceste a ti mesmo de que seria formoso estar apaixonado por mim -Terry parecia tão desolado que Natasha posou a mão sobre a sua-. Mas me sinto muito adulada.

    -Isso significa que não sairá comigo?

    -Agora mesmo estou saindo contigo -empurrou a taça de café frente a ele-. Mas como amigos -disse antes de que crescesse de novo a esperança em seu olhar-. Sou muito major para ser outra coisa que seu amiga.

    -Não, não o é.

    -Oh, claro que sim -de repente Natasha se sentia como se tivesse cem anos-. Claro que o sou.

    -Crê que sou estúpido -murmurou Terry. A emoção e a confusão iniciais deram passo a uma terrível humilhação. Terry sentia que as bochechas lhe ardiam.

    -Não, claro que não -suavizou a voz e procurou suas mãos outra vez-. Terry escuta...

    Mas antes de que pudesse fazer nada para impedi-lo, Terry empurrou sua cadeira e se levantou.

    -Tenho que ir  -e sem mais, saiu correndo do café.

    Amaldiçoando-se a si mesmo, Natasha tomou o cachecol que se cansado ao chão. Não tinha sentido segui-lo naquele momento. Terry necessitava tempo. E ela necessitava um pouco de ar fresco.

    As folhas estavam começando a cair e as que já tinham escapado das árvores voavam pelas calçadas empurradas pelo vento. Era a classe de dia que Natasha adorava, mas nesse momento logo que reparou nisso. Tinha deixado o café sem terminar para sair a dar um comprido passeio pela cidade.

    Enquanto se dirigia para sua casa, disse-se ao menos uma dúzia de vezes que deveria ter tratado melhor a teimosia de Terry. Por culpa de sua estupidez, tinha ferido a um jovem sensível e vulnerável. Algo que podia ter evitado se tivesse emprestado um mínimo de atenção ao que estava passando diante de seus narizes.

    E, entretanto, deixou-se cegar por seus sentimentos para outro homem.

    Ela sabia muito bem o que era acreditar que se estava apaixonado, desesperadamente apaixonado. E sabia também o que doía descobrir que a pessoa a que amava não correspondia esses sentimentos. Já fora cruel ou amável, o rechaço da pessoa amada sempre doía.

    Deixou escapar um suspiro e acariciou com a mão o cachecol que levava no bolso. Alguma vez teria sido ela tão confiada e indefesa? Sim, respondeu-se a si mesmo. E muito, muito mais.

   

    Já era hora, pensou Spence enquanto a via aproximar-se para casa. E, evidentemente, tinha seus pensamentos a milhares de quilômetros dali. Possivelmente estaria pensando em seu encontro, decidiu, tentando não chiar os dentes. Pois bem, ia assegurar se de que em menos de uns segundos tivesse algo mais em que pensar.

    -Não te trouxe para casa?

    Natasha se parou em seco com um involuntário gemido. Sob a luz do alpendre, viu o Spence ali sentado. Era o último que necessitava, pensou enquanto se passava a mão pelo cabelo. Com o Terry se havia sentido como se estivesse chutando a um cachorrinho indefeso. E naquele momento ia ter que enfrentar-se a um lobo enorme e faminto.

    -O que está fazendo aqui?

    -Me congelar.

    Natasha esteve a ponto de soltar uma gargalhada. A respiração do Spence se convertia em vapor frente a seu rosto. Com aquele vento gelado, a temperatura devia estar rondando os cinco graus centígrados. Ao cabo de um momento, Natasha decidiu que demonstraria ser muito pouco solidária se alegrava de que Spence tivesse passado as últimas horas sentado no frio cimento.

    Spence se levantou enquanto ela continuava aproximando-se da casa. Como podia haver-se esquecido de quão alto era? Perguntou-se Natasha ao vê-lo erguido.

    -Não convidaste a seu amigo a tomar uma taça?

    -Não -tomou o trinco e abriu a porta. Não necessitou a chave porque, ao igual à maior parte dos habitantes da cidade, quase sempre a deixava aberta-. Se o houvesse convidado, te teria posto em uma situação muito embaraçosa.

    -Não sei se "embaraçosa" seria a palavra mais adequada.

    -Em qualquer caso, suponho que posso me considerar afortunada ao não te haver encontrado me esperando dentro de casa.

    -O teria feito -murmurou-, se me tivesse ocorrido tentar abrir a porta.

    -Boa noite.

    -Espera um maldito momento -colocou a mão na fresta da porta antes de que Natasha pudesse fechar-lhe nos narizes-. Não estive aqui sentado durante horas por gosto. Quero falar contigo.

    Houve algo satisfatório no breve e infrutífera resistência que se produziu na porta.

    -É tarde.

    -E cada vez o será mais. Se fechar a porta agora, vou esmurrar a até que todos seus vizinhos apareçam à janela.

    -Cinco minutos -disse-lhe em tom diferente-. Convidarei a uma taça de brandy e irá.

    -É todo coração, Natasha.

    -Não -deixou o casaco no respaldo do sofá-. Asseguro-te que não.

    Desapareceu na cozinha sem dizer uma palavra mais. Quando voltou com duas taças de brandy, Spence estava no centro da habitação, com o cachecol do Terry entre as mãos.

    -A que está jogando, Natasha?

    Natasha deixou a taça do Spence na mesa e bebeu um pequeno sorvo da sua.

    -Não sei a que te refere.

    -O que faz saindo com meninos sem nenhuma experiência?

    Natasha endireitou as costas e esticou imediatamente a voz.

    -Com quem sai ou deixe de sair não acredito que seja teu assunto.

    -Claro que o é -replicou Spence, sendo nesse momento consciente do muito que lhe importava.

    -Não, não o é. E Terry é um jovem muito amável.

    -"Jovem" me parece uma palavra mais que adequada -Spence atirou o cachecol a um lado-. Certamente, é muito jovem para ti.

    -De verdade? -uma coisa era que ela o dissesse e outra que Spence o lançasse como uma acusação-. Acredito que isso teria que decidi eu.

    Tinha havido outro tempo no que Spence se considerou amável e considerado com as mulheres. Mas ao parecer essa época já tinha passado.

    -Então possivelmente deveria dizer que é muito velha para ele.

    -Oh, sim -apesar de si mesmo, Natasha começou a ver o lado cômico da situação-. Isso está muito melhor. Vai tomar te a taça ou lhe vais pôr isso?

    -Beberei-me isso, obrigado -elevou a taça, mas em vez de levar-lhe aos lábios, olhou de novo ao redor da sala.

    Estava ciumento, compreendeu. Era patético, mas estava ciumento de um estudante torpe e quase gago. E por culpa daquele absurdo sentimento, estava-se pondo em ridículo.

    -Escuta, possivelmente deveria começar outra vez.

    -Não sei por que quer voltar a começar algo que não deveria ter começado nunca.

    Mas como um cão faminto que acabasse de apanhar um osso, Spence não era capaz de deixar de roer.

    -É mais que evidente que não é seu tipo. Natasha o fulminou com o olhar.

    -Ah, e pode saber-se qual é meu tipo? Spence elevou sua mão livre.

    -De acordo, só uma pergunta mais antes de que me remoa definitivamente a língua. Está interessada nele?

    -É obvio que sim -imediatamente se amaldiçoou a si mesmo; era impossível utilizar ao Terry como barricada contra Spence-. É um menino muito agradável.

    Spence quase se relaxou, tomou o cachecol outra vez e a colocou sobre o respaldo do sofá.

    -Que faz com seu cachecol?

    -Trouxe-a porque a deixou no café -ao vê-la, tão clara e luminosa frente às cores escuras de seu sofá, sentiu-se como a mais maligna mulher fatal-. A deixou depois de que lhe tenha quebrado o coração. Pensa que está apaixonado por mim -deixou-se cair em uma cadeira, sentindo-se miserável-. Oh, não sei por que estou falando contigo.

    O olhar desolado da Natasha fez sorrir ao Spence, que lhe acariciou carinhosamente o cabelo. Mas o pensou melhor e decidiu manter seu tom enérgico.

    -Está falando comigo porque está muito afetada e eu sou o único que está aqui.

    -Suponho que sim -não protestou quando Spence se sentou frente a ela-. É um menino muito doce e nervoso, e eu não tinha nem idéia do que sentia, ou do que pensava que sentia. Deveria me haver dado conta, mas não fui consciente disso até que Terry se atirou o café na camisa, e... Não dele ria.

    Spence, que continuava sorrindo, sacudiu a cabeça.

    -Não me estou rindo dele. Acredite, sei exatamente como deve haver-se sentido. Há mulheres que lhe fazem sentir-se a um incrivelmente torpe.

    Seus olhares se encontraram.

    -Não paquere comigo.

    -Não pretendo paquerar contigo, Natasha.

    Impaciente, Natasha se levantou e começou a passear pela sala.

    -Está trocando de tema.

    -De verdade?

    Natasha sacudiu a mão com impaciência enquanto caminhava.

    -Feri seus sentimentos. Se tivesse sabido o que estava passando, poderia havê-lo impedido. Não há nada -disse apaixonadamente-, nada pior que amar a alguém e ser rechaçado.

    -Não -Spence o compreendia. E podia ver pelas sombras que rodeavam seus olhos que também ela o entendia-. Mas você não acha que esteja realmente apaixonado por ti.

    -Ele acha. Perguntei-lhe que por que o pensa, e sabe o que me há dito? -deu meia volta, o cabelo se formou redemoinhos ao redor de seu rosto com aquele movimento-. Diz que está apaixonado por mim porque sou bonita. Isso.

    Elevou as mãos e começou a caminhar outra vez. Spence se limitava a observá-la, fascinado por seus movimentos e pela cadência musical que o aborrecimento imprimia a sua voz.

    -Quando o há dito, entraram-me vontades de esbofeteá-lo e lhe gritar que demônios lhe passava. Uma cara só é uma cara, Por Deus. Esse menino não sabe nem o que penso nem o que sinto. Mas como me olhava com esses olhos tão grandes e tão tristes, não fui capaz de gritar-lhe -Isso é fácil de reparar.

    -Comigo não tem nenhum problema para gritar.

    -Você não tem uns olhos grandes e tristes, e além não é um menino que pensa que está apaixonado.

    -Não sou um menino -confirmou, colocando-se atrás dela e agarrando-a pelos ombros. Embora a sentiu esticar-se, obrigou-a a dar meia volta-. E de ti eu gosto de muitas mais que seu rosto, Natasha. Embora também seu rosto eu gosto de muito.

    -Você tampouco sabe nada de mim.

    -Sim, claro que sim. Sei que viveste situações que nem sequer sou capaz de imaginar. Sei que amas e sente falta da sua família, que entende aos meninos e os quer de maneira quase natural. É organizada, cabeça dura e apaixonada -deslizou as mãos por seus braços para as posar depois outra vez em seus ombros-. Sei que estiveste apaixonada -agarrou-a com força para evitar que se afastasse-, e que não está preparada ainda para falar sobre isso. Tem uma mente curiosa e chicoteada e um grande coração, e você gostaria não sentir atraída por mim. Mas o caso é que te atraio.

    Natasha baixou levemente as pálpebras para ocultar seus olhos.

    -Então parece que sabe mais sobre mim que eu sobre ti.

    -Isso é fácil arrumá-lo.

    -Não sei por que poderia querer arrumá-lo. Ou por que deveria tentar fazê-lo.

    Spence roçou seus lábios, mas se apartou antes de que Natasha pudesse rechaçá-lo.

    -Há algo entre nós. Acredito que essa deveria ser razão suficiente.

    -Possivelmente o haja -começou a dizer-. Não -retrocedeu quando Spence tentou beijá-la outra vez-. Não, por favor, esta noite não estou muito forte.

    -Uma boa maneira de me fazer me sentir culpado se dito aproveitar minha vantagem.

    Natasha sentiu uma estranha mescla de alívio e desilusão quando Spence a soltou.

    -Convido o para jantar -disse-lhe em um impulso.

    -Agora?

    -Amanhã. Só para jantar -acrescentou, perguntando-se se não deveria estar arrependendo-se já daquele convite-. Se trouxer a Freddie.

    -Ela adorará. E a mim também, claro.

    -Estupendo. Então, ficamos às sete em ponto -tomou o casaco do Spence e o estendeu-. E agora terá que ir.

    -Deveria aprender a dizer o que pensa -meio rindo, Spence aceitou o casaco-. Uma coisa mais.

    -Só uma?

    -Sim.

    Rodeou-a com os braços para lhe dar um de seus compridos, duros e embriagadores beijos. Teve a satisfação de vê-la deixar cair fracamente sobre o braço do sofá quando a soltou.

    -Boa noite -disse-lhe, e saiu à rua, onde tomou com gosto uma baforada de ar gelado.

   

    Era a primeira vez que Freddie recebia um convite para jantar em um jantar de adultos e estava esperando impaciente enquanto seu pai se barbeava. Normalmente, gostava de observá-lo deslizar a lâmina através da espuma que cobria seu rosto. Havia inclusive vezes nas que em segredo desejava ser um menino para poder repetir algum dia aquele ritual. Mas aquela noite tinha a sensação de que seu pai estava sendo terrivelmente lento.

    -Podemos ir já?

    Ainda em bata, Spence se secou os restos de espuma.

    -Possivelmente seja melhor esperar a que me ponha as calças.

    Freddie elevou os olhos ao céu.

    -E quando lhe vai pôr isso?

    Spence a levantou em braços e lhe mordiscou brandamente o pescoço.

    -Assim que te largue.

    Tomando-se sua palavra ao pé da letra, Freddie correu escada abaixo, chegou ao vestíbulo e começou a contar até sessenta. Quando ia pelo cinqüenta, sentou-se no último degrau e começou a brincar com o cordão de seu sapato esquerdo.

    Freddie já o tinha averiguado tudo. Seu pai ia casar se ou com o Tash ou com a senhorita Patterson, porque as duas eram muito bonitas e tinham uns sorrisos preciosos. Depois, a que se casasse com ele, iria viver com eles a sua casa nova. Logo teriam um bebê. Ela preferia que fora uma menina, mas se conformaria com um irmãozinho, embora os meninos podiam chegar a ser muito pesados. Todo mundo estaria contente, porque todo mundo se quereria. E seu pai voltaria a ficar a tocar o piano até muito tarde pela noites.

    Quando ouviu que Spence baixava as escadas, Freddie se levantou de um salto e girou para olhá-lo.

    -Papai, contei até sessenta um milhão de vezes.

    -Seguro que te esqueceste que trinta outras vezes -tirou o casaco do Freddie do armário e a ajudou a vestir -De nada.

    -Não, não me esqueci -ou ao menos não acreditava haver-se esquecido-. Mas demoraste muitíssimo -com um suspiro, empurrou-o para a porta.

    -Ainda é cedo.

    -A Natasha não importará.

    Nesse momento, Natasha estava metendo um pulôver pela cabeça e perguntando-se por que teria convidado a ninguém para jantar, particularmente a um homem ao que sua intuição lhe pedia evitar. Levava todo o dia distraída, preocupada se por acaso estaria bem o jantar e se o vinho seria o adequado para acompanhá-la. E nesse momento se estava trocando de roupa pela terceira vez.

    Era algo completamente impróprio dela, disse-se a si mesmo enquanto olhava com o cenho franzido seu reflexo no espelho. Aquele pulôver azul e as malhas a tranqüilizaram. Tinha um aspecto natural, decidiu Natasha, tudo lhe resultaria mais fácil. Completou seu traje com uns pendentes compridos de prata, aparou-se o cabelo e correu à cozinha. Acaba de comprovar o molho quando bateram na porta.

    Chegavam antes da hora, pensou, permitindo-se soltar um juramento antes de correr a abrir a porta.

    Estavam maravilhosos. Todo seu nervosismo se desvaneceu em um sorriso. A imagem da menina arranca-rabo com firmeza à mão de seu pai lhe chegou diretamente ao coração. De forma natural, sem sequer pensá-lo, agachou-se para beijar ao Freddie em ambas as bochechas.

    -Obrigado por me convidar para jantar -Freddie recitou a frase e olhou a seu pai em busca de aprovação.

    -De nada.

    -A papai não o vai beijar?

    Natasha vacilou um instante e depois advertiu o rápido e desafiante sorriso do Spence.

    -É obvio -posou formalmente os lábios em suas bochechas-. Este é o recebimento tradicional em ucrânia.

    -Estou-lhe muito agradecido a glasnot -ainda sorrindo, Spence tomou a mão e a levou aos lábios.

    -Vamos jantar borchst? -quis saber Freddie.

    -Borchst? -perguntou Natasha arqueando a sobrancelha enquanto ajudava à menina a tirar o casaco.

    -Quando lhe hei dito à senhora Patterson que eu e papai íamos dever jantar a sua casa, há-me dito que os russos chamam borscht à sopa de beterraba -Freddie conseguiu não dizer que lhe parecia uma palavra um pouco grosseira, mas Natasha imaginou.

    -Temo-me que não vamos comer sopa -disse-lhe muito séria-. Mas tenho feito outros pratos que são também tradicionais. Espaguetes e almôndegas.

    Tudo transcorreu de maneira surpreendentemente fácil. Comeram na velha mesa dobradiça, ao lado da janela, e a conversação foi dos problemas do Freddie com a aritmética até a ópera Napolitana. Natasha só necessitou um pequeno empurrão para ficar a falar de sua família e Freddie se mostrou muito interessada em saber o que se sentia sendo a irmã maior.

    -Não brigávamos muito -refletiu Natasha olhando o café, com o Freddie sentada em seus joelhos-. Mas quando o fazíamos, quase sempre ganhava eu, porque era a maior e a mais resmungona.

    -Agora não é resmungona.

    -Às vezes sim, quando estou zangada -olhou ao Spence, recordando e arrependendo-se de lhe haver dito que não se merecia ao Freddie-. Mas logo me arrependo.

    -Que a gente brigue não significa que se não goste -murmurou Spence.

    Estava fazendo tudo o que estava em sua mão para não pensar no perfeita que lhe parecia a imagem do Freddie sentada no regaço da Natasha. Estava indo muito longe e muito rápido, advertiu-se a si mesmo. Para todos os que estavam envoltos naquela relação.

    Freddie não estava segura de compreender o que seu pai dizia, ao fim e ao cabo, só tinha cinco anos. Mas então recordou que logo teria seis anos.

    -Vai ser meu aniversário.

    -De verdade? -perguntou Natasha impressionada-. Quando?

    -Dentro de duas semanas. Virá a minha festa?

    -Eu adoraria -Natasha olhou ao Spence enquanto Freddie recitava todos o maravilhosos tesouros que havia na loja.

    Não era muito prudente deixar-se apanhar pela pequena, disse-se. Não quando aquela menina estava tão unida a seu pai que o fazia desejar a Natasha costure que ela tinha deixado atrás dela. Spence lhe sorriu. Não, não era prudente absolutamente. Mas era impossível resistir.

 

  CAPITULO 6

    -Varicela -repetiu Spence uma vez mais. Permanecia no marco da porta, observando dormir à pequena-. O pior presente possível de aniversário, pequena.

    Faltavam dois dias para que Freddie fizesse seis anos e, por isso o médico havia dito, para então seu corpo inteiro estaria talher daquelas pintas que de momento só cobria seu ventre e seu peito.

    Logo se passaria, havia-lhe dito o pediatra. Mas a enfermidade tinha que seguir seu curso. Para ele era fácil dizê-lo, pensou Spence. Ao fim e ao cabo, ele não era o pai daquela menina que o olhava com olhos chorosos. E tampouco era sua filha a que não descia de trinta e nove graus de febre.

    Freddie nunca tinha estado doente, recordou Spence enquanto se esfregava os olhos cansados. Oh, sim, de vez em quando tinha tido um espirro, mas nunca tinha tido nada que não pudesse curar uma aspirina infantil. Passou-se a mão pelo cabelo; Freddie gemeu no meio do sonho e tentou procurar o frescor no travesseiro.

    A chamada de Nina não o tinha ajudado. Spence tinha tido que empregar-se a fundo para evitar que subisse ao primeiro avião que saísse de Nova Iorque e se apresentasse em sua casa. Mas o que não tinha podido impedir de era que Nina lhe dissesse que, indubitavelmente, Freddie tinha agarrado a varicela porque assistia à escola pública. Era uma tolice, é obvio, mas quando via sua pequena tombada na cama, com o rosto ruborizado pela febre, o sentimento de culpa era quase insuportável.

    A lógica lhe dizia que a varicela era algo completamente normal na infância. Mas o coração lhe reprovava o não ser capaz de encontrar algo para curá-la.

    Pela primeira vez, deu-se conta do muito que desejava ter a alguém a seu lado. Não para que se ocupasse de tudo ou suavizasse o lado mais duro da paternidade. Não, só para que estivesse ali. Para que compreendesse o que se sentia quando sua filha estava doente, ou triste, ou doída. Alguém com quem falar em meio da noite quando a preocupação ou o prazer lhe impediam de conciliar o sonho.

    E quando pensava nesse alguém, só lhe ocorria Natasha.

    Seria um grande salto, recordou-se enquanto voltava ao lado da cama. Um passo que não estava seguro de poder dar outra vez... E muito menos de poder cair em terra com os dois pés.

    Refrescou a frente do Freddie com o trapo úmido que Beira lhe tinha levado. A menina abriu os olhos. -Papai.

    -Sim, bonita, estou aqui.

    Ao Freddie tremiam os lábios. -Tenho sede.

    -Vou te buscar uma bebida fresca.

    Doente ou não, Freddie sabia como aproveitar-se da situação.

    -Posso tomar um refresco de pós? Spence lhe deu um beijo na bochecha.

    -Claro, de que classe?

    -Dos azuis.

    -Azule então -beijou-a outra vez-. Agora mesmo volto -estava baixando já as escadas quando soou o telefone e, ao mesmo tempo, bateram na porta-. Maldita seja, Beira, atende o telefone, quer? Eu abrirei a porta -ao limite da paciência, abriu bruscamente a porta.

    O sorriso que Natasha tinha estado ensaiando durante toda a tarde desapareceu imediatamente de seu rosto.

    -Sinto muito. Temo-me que chego em um mau momento.

    -Sim -mas a convidou a passar-. Beira... Oh, bem -acrescentou quando viu que se aproximava o ama de chaves-. Freddie quer um refresco de pós azuis.

    -Eu o prepararei -Beira cruzou as mãos diante do avental-. A senhorita Barklay está ao telefone.

    -Diga... -Spence se interrompeu e soltou uma maldição quando Beira franziu os lábios. A Beira não gostava de dizer nada a Nina-. De acordo, eu a atenderei.

    -Acredito que deveria ir  -disse Natasha, sentindo-se muito tola-. Só vim porque não tinha ido a classe esta noite e me perguntava se estaria bem.

    -É Freddie -Spence olhou o telefone e se perguntou se poderia estrangular a sua irmã através dele-. Tem varicela.

    -OH, pobrezinha -teve que dominar a necessidade de subir a ver a menina. Não era filha dela, recordou-se. Nem aquela era sua casa-. Não te incomodarei mais.

    -Sinto muito. As coisas estão um pouco revoltas.

    -Não se preocupe. Espero que logo fique bem. E se necessitar algo, não duvide em me chamar.

    Nesse momento, Freddie chamou a seu pai com uma voz que era ao mesmo tempo um lamento e um grasnido.

    Foi o olhar de impotência que Spence dirigiu para as escadas a que fez que Natasha ignorasse os argumentos de sua razão.

    -Quer que subida um momento? Posso ficar com ela até que a situação esteja outra vez sob controle.

    -Não. Sim -Spence deixou escapar um comprido suspiro. Se não falava com a Nina nesse momento, quão único conseguiria seria que voltasse a chamar-. Agradeceria-lhe isso -correu ao telefone-. Nina.

    Natasha se guiou pelo resplendor da luz, para chegar ao quarto da pequena. Encontrou-a sentada na cama e rodeada de bonecas. Duas enormes lágrimas corriam por suas bochechas.

    -Quero que venha meu papai -disse, evidentemente triste.

    -Agora mesmo virá -com o coração destroçado, Natasha se sentou ao bordo da cama e estreitou ao Freddie em seus braços.

    -Não me encontro bem.

    -Sei. Olhe, te soe o nariz.

    Freddie se queixou e apoiou a cabeça no peito da Natasha; suspirou, encontrando muito agradável a diferença entre o duro peito de seu pai e o fofo de Beira.

    -Fui ao médico e me tomei o remédio, mas nem sequer assim posso ir amanhã à reunião das exploradoras.

    -Haverá outras reuniões assim que os remédios lhe façam efeito.

    -Tenho varicela -anunciou Freddie, debatendo-se entre o desconforto e o orgulho-. Tenho febre e um sarpullido.

    -É uma coisa muito chata a varicela -disse Natasha brandamente e colocou uma despenteado mecha de cabelo da menina detrás de sua orelha-. Não sei a quem lhe terá ocorrido inventá-la.

    Os lábios do Freddie se curvaram em um pequeno sorriso.

    -JoBeth a teve a semana passada, e também Mikey. Agora já não poderei celebrar minha festa de aniversário.

    -Poderá celebrar a festa mais adiante, quando todo mundo esteja bem.

    -Isso é o que diz meu pai -uma nova lágrima começou a rodar por sua bochecha-. Mas não é o mesmo.

    -Não, mas talvez é preferível assim.

    Freddie olhou com curiosidade o pendente dourado da Natasha.

    -Por que?

    -Assim terá mais tempo para pensar no muito que te vai divertir. Quer que te embale?

    -Sou muito grande para que me embalem.

    -Mas eu não -envolveu ao Freddie em uma manta e se aproximou com ela em braços à cadeira de balanço. Limpou-a de pelúcia e colocou um coelhinho nos braços do Freddie antes de sentar-se-. Quando eu era pequena e estava doente, minha mãe sempre me embalava em uma velha e enorme cadeira de balanço que tínhamos ao lado da janela e me cantava. Por mal que me encontrasse, bastava que me embalasse para que me sentisse melhor.

    -Minha mãe não me embalava -ao Freddie doía a cabeça e tinha umas vontades terríveis de meter o polegar na boca, mas sabia que era muito major para fazê-lo-. Não gostava.

    -Isso não é verdade -instintivamente, esticou seu abraço-. Estou segura de que te queria muito.

    -Queria que meu papai me levasse muito longe.

    Desconcertada, Natasha posou a bochecha na cabeça do Freddie. O que podia lhe dizer depois daquilo? As palavras do Freddie tinham sido muito contundentes para as considerar produto de sua fantasia.

    -Às vezes a gente diz coisas que não sente e depois se arrepende muito. Seu pai te enviou longe de casa?

    -Não.

    -Vê?

    -E você gosta?

    -Claro que eu gosto -balançava-se brandamente, para diante e para trás-. Eu gosto de muito.

    Aquele movimento, acompanhado do delicado perfume e a voz da Natasha, conseguiu tranqüilizar ao Freddie.

    -Por que não tem uma menina pequena?

    A dor estava ali, uma dor surda, profundo. Natasha fechou os olhos, tentando vencê-lo. -Possivelmente a tenha algum dia.

    Freddie enredou os dedos no cabelo da Natasha, procurando consolo.

    -Cantará-me como te cantava sua mãe?

    -Claro que sim. E você tenta dormir. -Não vá.

    -Não, ficarei contigo um bom momento.

    Spence as observava do marco da porta. Baixo aquela tênue luz, pareciam-lhe dolorosamente belas. Sua filha, pequena e com o cabelo liso como a seda, em braços daquela mulher de pele dourada. A cadeira de balanço rangia enquanto Natasha cantava uma velha canção ucraniana que certamente conhecia da infância.

    Comoveu-o de forma tão completa, tão única, como o tinha comovido abraçá-la. Mas de uma vez era algo completamente diferente; algo que lhe transmitia tal serenidade que poderia passar-se toda a noite as olhando.

    Natasha elevou o olhar e o viu. Spence parecia tão triste que não pôde menos que lhe sorrir. -Já está dormindo.

    Spence sentia uma estranha debilidade nas pernas e esperava que essa debilidade se devesse às incontáveis vezes que tinha tido que subir e baixar as escadas durante as últimas vinte e quatro horas. Cedendo a aquela debilidade, sentou-se no bordo da cama.

    Estudou o rosto ruborizado de sua filha, que descansava sereno no oco do braço da Natasha.

    -Parece que em vez de melhorar, cada vez está pior.

    -Claro que melhor -acariciou brandamente o cabelo do Freddie-. Todos passamos por isso quando fomos meninos. E, por surpreendente que pareça, sobrevivemos.

    Spence deixou escapar um comprido suspiro.

    -Suponho que me estou comportando como um idiota.

    -Não, é um encanto.

    Observava-o enquanto continuava balançando-se, perguntando-se se teria sido muito difícil para ele tirar adiante a aquela menina sem contar com o amor de uma mãe. Suficientemente difícil, decidiu, como para que se merecesse ao menos o mérito de ter conseguido que sua filha crescesse feliz e segura. Voltou a lhe sorrir.

    -Quando qualquer de nos adoecíamos quando fomos meninos, e ainda hoje, meu pai acossava ao médico e depois se ia à igreja a acender umas velas. E quando chegava a casa, recitava um velho canto cigano que tinha aprendido de sua mãe. Cobria todos os frontes.

    -De momento eu sozinho acossei ao médico -Spence conseguiu sorrir-. Acha que poderia recordar esse canto?

    -Tentarei fazê-lo por ti -levantou-se com o Freddie em braços-. A sotaque na cama?

    -Obrigado -entre os dois arrumaram a cama-. De verdade.

    -De nada -Natasha olhou ao Spence por cima da menina e, embora sorriu, estava começando a sentir-se incômoda-. Acredito que deveria partir. Os pais das meninas doentes precisam descansar.

    -O menos que posso fazer por ti é te oferecer uma taça -levantou o copo que havia aos pés da cama-. Que tal um refresco de pós? É dos azuis.

    -Acredito que por esta vez passarei -rodeou a cama para aproximar-se da porta-. Quando baixar a febre, seguro que se aborrecerá. Então sim que terá que te esforçar em entretê-la.

    -Alguma sugestão? -tomou a Natasha da mão enquanto baixavam as escadas.

    -Pinturas. Uns lápis novos. Normalmente o melhor é o mais simples.

    -Como é possível que alguém como você não tenha uma dúzia de filhos? -não lhe fez falta advertir que se esticava para ser consciente de que acabava de cometer um engano. Pôde ver a tristeza aparecer e desaparecer de seus olhos-. Sinto muito.

    -Não tem por que -rapidamente recuperada, tomou seu casaco do cabide que o tinha deixado-. Se te parecer bem, eu gostaria de dever ver ao Freddie outro dia.

    Spence tomou o casaco e a ajudou a ficar o -Sim.

    -Se não gostar de uma dessas coisas azuis, que tal um chá? Agradeceria que me acompanhasse.

    -De acordo.

    -Sozinho... -voltou-se e esteve a ponto de se chocar com Beira.

    -Eu prepararei o chá -disse o ama de chaves, depois de dirigir um último olhar a Natasha.

    -Sua ama de chaves pensa que tenho planos para ti -disse-lhe Natasha assim que se assegurou de que Beira já não podia ouvi-la.

    -Espero que não a desilusões -disse Spence enquanto conduzia a Natasha para o estudo de música.

    -Temo-me que lhes vou desiludir aos dois -pôs-se a rir e se aproximou do piano-. Mas deveria estar muito ocupado. Todas as garotas jovens da universidade falam do professor Kimball -pressionou a língua contra o interior de sua bochecha-. É um tipo atrativo, Spence. A opinião popular está dividida entre você e o capitão da equipe de futebol.

    -Muito divertido.

    -Estou brincando, mas me diverte verte em apuros -sentou-se e deslizou a mão pelo teclado-. Aqui é onde compõe?

    -Sim, aqui era onde compunha.

    -É uma pena que já não o faça -Natasha tocou uma série de acordes-. A arte é mais que um privilégio. É uma responsabilidade -tentou tirar uma melodia e depois, com um som de impaciência, sacudiu a cabeça-. Não posso tocar. Era muito grande quando tentei aprender.

    Ao Spence gostava de vê-la sentada ao piano, com o cabelo caindo sobre seus ombros e ocultando ao mesmo tempo parte de seu rosto. Seus dedos descansavam ligeiros sobre o piano no que Spence havia meio doido desde que era menino.

    -Se quer aprender, eu posso te ensinar.

    -Preferiria que compor uma canção -era mais que um impulso, pensou. Aquela noite Spence parecia necessitar um amigo. Sorriu e lhe tendeu a mão-. Vêem aqui, comigo.

    Spence elevou o olhar e viu que nesse momento entrava Beira com uma bandeja.

    -Deixa-a aí mesmo, Beira. E obrigado.

    -Vai querer algo mais?

    Spence olhou a Natasha. Sim queria algo mais. Queria muito mais.

    -Não, boa noite -ouviu os passos arrastados do ama de chaves afastando-se-. Por que está fazendo isto?

    -Porque precisa rir um pouco. Vêem, escreve uma canção para mim. Não tem por que ser boa.

    Spence se pôs-se a rir.

    -Quer que te escreva uma canção má?

    -Pode ser terrível inclusive. Quando se a toques ao Freddie se tampará as orelhas e rirá como louca.

    -Uma canção terrível sobre tudo o que tenho feito estes dias? -ao menos estava suficientemente contente para sentar-se a seu lado no piano-. Mas se o faço, terá que prometer solenemente que não repetirá nada do que aqui escute diante de meus alunos.

    -Com a mão no coração.

    Spence começou a tocar as teclas. Natasha o interrompia de vez em quando, para lhe dar inspiração. Não era tão terrível como podia ter sido, considerou Spence enquanto tocava um acorde. Ninguém diria que era uma canção brilhante, mas tinha um primitivo encanto.

    -Me deixe tentá-lo -Natasha se jogou o cabelo para trás e se esforçou por repetir as notas.

    -Aqui -como fazia em outras ocasiões com sua filha, Spence pôs as mãos sobre as da Natasha para guiá-la. A sensação, advertiu, era completamente diferente-. Relaxe -sussurrou-lhe ao ouvido.

    Natasha desejava poder fazê-lo.

    -Ódio fazer as coisas mau -conseguiu dizer. Com as Palmas das mãos do Spence firmemente posadas sobre as suas, lutava para concentrar-se na música.

    -Está-o fazendo estupendamente -seu cabelo, suave e fragrante, acariciava-lhe a bochecha.

    Enquanto se inclinavam sobre as teclas, ao Spence não lhe ocorreu pensar que não havia meio doido desde fazia anos. Oh, sim, havia meio doido... Beethoven, Gershwin, Mozart e Bernstein, mas apenas se divertiu... Tinha passado muito tempo da última vez que se aproximou do piano somente para divertir-se.

    -Não, não, isso deveria ser uma Do menor.

    Natasha tocou obstinadamente a Ré maior outra vez.

    -Eu gosto mais assim.

    Spence lhe sorriu de brinca a orelha. -Quer colaborar?

    -Em realidade acredito que o fará melhor sem mim.

    -Eu não acredito -o sorriso do Spence desapareceu enquanto posava uma mão na bochecha da Natasha-. De verdade, não acredito.

    Aquilo não era o que Natasha pretendia. Ela queria animá-lo, ser seu amiga. Não pretendia despertar aqueles sentimentos em ambos, sentimentos que sabia seria muito mais prudente ignorar. Mas estavam ali, palpitantes. Por capitalista que fora sua força de vontade, não podia negá-los. Inclusive o mais ligeiro roce de seus dedos lhe causava dor, o fazia desejar, o fazia recordar.

    -O chá se está esfriando -mas Natasha não se apartou. Nem sequer tentou levantar-se.

    Quando Spence se inclinou para roçar seus lábios, limitou-se a fechar os olhos.

    -Isto não pode nos conduzir a nenhuma parte -murmurou.

    -Já o tem feito -Spence posou a mão em suas costas; uma mão forte, possessiva, em marcado contraste com o delicado roce de seus lábios-. Penso em ti constantemente, em estar contigo, em te acariciar. Jamais desejei a ninguém como desejo a ti.

    Lentamente, deslizou a mão por seu pescoço. De ali descendeu até seu ombro e desceu pelo braço até que seus dedos se uniram sobre as teclas do piano.

    -É como a sede, Natasha, uma sede constante. E quando estou contigo, sei que você sente o mesmo.

    Natasha queria negá-lo, mas a faminta boca do Spence vagava por seu rosto, fazendo tremer a seu de desejo. Ela também precisava ser acariciada, também o desejava. No passado, tinha-lhe resultado fácil fingir que ser desejada não era necessário. Não, nem sequer tinha tido que fingi-lo. Até que Spence tinha aparecido em sua vida, tinha sido certo.

    E de repente, como se alguém tivesse aberto uma porta, como se alguém tivesse aberto uma luz até então apagada, tudo tinha trocado. Desejava-o, bastava-lhe saber que a desejava para que o sangue lhe acelerasse nas veias.

    Desfrutaria disso só um instante, disse-se a si mesmo enquanto se aferrava a seu cabelo e estreitava sua boca contra a sua. Solo um momento.

    Estava ali outra vez, aquela sensação vertiginosa que estalava assim que estavam juntos. Muito rápido, muito quente, muito real para poder suportá-lo. Muito lhe impactem para poder resistir.

    Era como se Spence fora o primeiro, embora em realidade não o fora. Como se fora o único, embora isso fora do todo impossível. Enquanto se entregava naquele beijo, desejava desesperadamente que a vida pudesse começar outra vez naquele momento, com ele.

    Ali havia algo mais que paixão. As emoções que se agitavam dentro dela quase o estavam afogando. Havia desespero, medo, e uma generosidade sem fundo que o estava deixando estupefato. Nada voltaria a ser singelo nunca mais. E ao sabê-lo, uma parte do Spence tentava retroceder, pensar, raciocinar. Mas o sabor da Natasha, quente, potente, arrastava-o até o coração do fogo.

    -Espera -pela primeira vez, Natasha admitiu sua própria debilidade e apoiou a cabeça em seu ombro-. Estamos indo muito rápido.

    -Não -Spence afundou os dedos em seu cabelo-. demoramos anos em chegar até aqui.

    -Spence -fazendo um enorme esforço para recuperar o equilíbrio, Natasha se endireitou-. Não sei o que fazer -disse lentamente, olhando-o-. E para mim é muito importante saber o que tenho que fazer.

    -Acredito que isso podemos averiguá-lo -mas quando se inclinou para ela para beijá-la outra vez, Natasha se levantou rapidamente e retrocedeu.

    -Para mim não é tão singelo -nervosa, apartou-se o cabelo da cara com ambas as mãos-. Sei que pode parecer que o é por minha forma de te responder. E sei também que para os homens é mais fácil, de algum jeito, é algo menos pessoal.

    Spence se levantou com deliberada lentidão. -por que não me explica isso?

    -Só significa que sei que aos homens resulta mais fácil justificar as coisas como esta.

    -Justificar -repetiu Spence, balançando-se sobre os pés. Como podia haver-se zangado tão rapidamente quando solo uns segundos atrás se sentia como se o tivessem enfeitiçado?-. Diz-o como se fora um crime.

    -Não sempre encontro as palavras adequadas -estalou-. Eu não sou professora de universidade. Não aprendi a falar inglês até os oito anos, e não fui capaz de lê-lo até muito depois.

    Spence tentou controlar seu mau gênio enquanto escrutinava seu rosto. Seus olhos se obscureceram com algo que ia mais à frente do aborrecimento. Natasha permanecia erguida frente a ele, com a cabeça alta, mas Spence não era capaz de discernir se era a sua uma postura orgulhosa ou defensiva.

    -E isso que tem que ver com isto?

    -Nada. E tudo -frustrada, deu meia volta e saiu ao corredor em busca de seu casaco-. Ódio me sentir estúpida, ódio ser estúpida. Eu não pertenço a este lugar. Nunca deveria ter vindo.

    -Mas o tem feito -agarrou-a pelos ombros e o abrigou voou até o primeiro degrau da escada-. Por que vieste?

    -Não sei. Mas não importa o porquê.

    Spence lhe apertou o ombro com impaciência.

    -Por que tenho a sensação de que estamos tendo duas conversações ao mesmo tempo? O que é o que está passando por sua cabeça, Natasha?

    -Desejo-te -disse Natasha apaixonadamente-. E não quero te desejar.

    -Deseja-me.

    Antes de que Natasha pudesse apartar-se, estreitou-a contra ele. Não houve paciência naquele beijo, e tampouco persuasão. Tomou tudo o que Natasha lhe entregava, até que esta esteve segura de que já não ficava nada para lhe dar.

    -E isso é o que te incomoda? -sussurrou contra seus lábios.

    Incapaz de resistir, Natasha posou as mãos em seu rosto, desenhando sua forma perfeita.

    -Tenho motivos para que me incomode.

    -Conta-me.

    Natasha sacudiu a cabeça e naquela ocasião, quando retrocedeu, Spence a soltou.

    -Não quero que minha vida troque. Se acontecesse algo entre nós, sua vida não trocaria, mas a minha com certeza que sim. Quero estar segura, não o entende?

    -Vai voltar a me repetir que os homens e as mulheres vêem estes assuntos de maneira diferente?

    -Sim.

    Aquilo lhe fez perguntar-se ao Spence quem teria sido o homem que lhe tinha quebrado o coração.

    -Acredito que é muito inteligente para pensar de verdade o que está dizendo. O que sinto por ti já trocou minha vida.

    Aquilo a aterrorizou, sobre tudo porque estava desejando acreditá-lo.

    -Os sentimentos vêm e vão.

    -Sim, alguns. Mas o que ocorreria se te dissesse que estou apaixonado por ti?

    -Não te acreditaria -a voz lhe tremia enquanto se agachava para recuperar o casaco-. E me zangaria contigo por me dizer isso .

    Possivelmente fora melhor esperar até que chegasse o momento no que pudesse fazer que acreditasse.

    -E se te dissesse que até que te conheci não sabia que estava sozinho?

    Natasha baixou o olhar, muito mais comovida pelo que acabava de lhe dizer que por qualquer palavra de amor.

    -Acreditaria-.

    Spence quis tocá-la outra vez; mas se limitou a deslizar a mão por seu cabelo.

    -De verdade o crê?

    Seus olhos eram mais que eloqüentes quando o olhou. -Sim.

    -Então pensa nisto. Eu não tinha intenção de te seduzir... Não vou dizer que não tenha pensado nisso, mas te asseguro que não pretendia que acontecesse estando minha filha doente no piso de acima.

    -Não me seduziste.

    -Assim agora decidiste arremeter contra meu ego.

    Aquilo lhe fez sorrir.

    -Não houve sedução. A sedução suporta planos de persuasão. E eu não quero ser seduzida.

    -Terei-o em conta. Em qualquer caso, não acredito que queira diseccionar tudo o que sinto como se fora um concerto do Beethoven. Isso estragaria todo o romantismo.

    Natasha voltou a sorrir.

    -Eu não quero romantismo.

    -Pois é uma pena -e além disso era mentira, acrescentou para si, recordando como o tinha cuidadoso quando lhe tinha agradável a rosa-. Posto que a varicela me vai manter ocupado durante um par de semanas, terá algum tempo para pensar. Vai voltar?

    -Para ver a Freddie -ficou o casaco e transigiu-. E para verte a ti.

   

    E voltou. O que começou como uma rápida visita para lhe levar ao Freddie um bem merecido presente, converteu-se em quase toda uma tarde que dedicou a tranqüilizar a uma menina triste e coberta de grãos e a um esgotado e frenético pai. Surpreendentemente, desfrutou terrivelmente fazendo-o e, durante os dez dias seguintes, converteu-se em um hábito passar-se por ali durante a hora do almoço para tentar encantar a uma ainda receosa Beira ou depois do trabalho para lhe dar ao Spence a hora de paz e tranqüilidade que tanto desejava.

    Quanto ao romance, banhar a uma menina com pintas em talco distava muito de ser algo romântico. Apesar de tudo, Natasha tirava o chapéu a si mesmo cada vez mais atraída pelo Spence e mais apaixonada por sua filha.

    Viu o Spence fazendo tudo o que estava em sua mão para alegrar a seu triste e incômoda paciente durante o dia de seu aniversário e depois ela mesma o ajudou a escolher os dois gatinhos que ia receber Freddie como presente. À medida que o sarpullido foi desaparecendo e aumentando o aborrecimento, Natasha tentava substituir a rapidamente esgotada imaginação do Spence com seus próprios contos. -Só um mais.

    Natasha agasalhou ao Freddie até o queixo. -Isso é o que há dito faz três contos.

    -É que os conta muito bem.

    -Me adular não vai servir te de nada. Chegou minha hora de ir à cama -Natasha olhou o enorme despertador do Freddie e arqueou as sobrancelhas escandalizada-. E a tua.

    -O médico me há dito que posso voltar para colégio na segunda-feira pela manhã. Diz que já não sou contajosa.

    -Contagiosa -corrigiu-a Natasha-. Alegrará-te de ver seus amigos outra vez, verdade?

    -A quase todos -tentando ganhar tempo, Freddie brincou com o bordo dos lençóis-. Virá para ver-me quando não estiver doente?

    -Acredito que poderia -inclinou-se sobre a cama para lhe dar um abraço e levantar um dos gatinhos-. Assim poderei ver o Lucy e ao Desi.

    -E a papai.

    Natasha acariciou receosa os brinca dos gatinhos. -Sim, suponho que sim.

    -Você gosta, verdade?

    -Sim, é um bom professor.

    -Você também gosta.

    Freddie não acrescentou que tinha visto seu pai beijando-a aos pés da cama a noite anterior, quando ambos pensavam que estava dormindo. Ao vê-los, havia sentido algo estranho no estômago. Mas, ao cabo de um minuto, aquela estranha sensação lhe tinha parecido agradável.

    -Casará-te com ele e viverá conosco?

    -Vá, isso é uma proposição? -Natasha conseguiu sorrir-. Freddie, me alegro muito de que me queira, mas só sou amiga de seu papai. Igual a sou amiga tua.

    -Se devesses vivesse conosco, seguiríamos sendo amigas.

    Aquela menina, disse-se Natasha, era tão inteligente como seu pai.

    -E não poderemos seguir sendo amigas se vivo em minha própria casa?

    -Suponho que sim -começou a fazer panelas com o lábio inferior-. Mas seria melhor que vivesse aqui, como a mamãe do JoBeth. Ela faz bolachas.

    Natasha se inclinou para ela, roçando com o seu o nariz da pequena.

    -Assim que me quer por minhas bolachas.

    -Quero a ti -Freddie rodeou o pescoço da Natasha com os braços-. E se viver conosco serei muito boa.

    Surpreendida, Natasha abraçou com força à menina e a balançou em seus braços.

    -Oh, pequena, eu também te quero.

    -Então, casará-te conosco.

    Dito assim, Natasha não sabia se tornar-se a rir ou ficar a chorar.

    -Não acredito que o matrimônio seja a resposta para nenhum de nós neste momento. Mas seguirei sendo seu amiga, e virei a verte e a te contar contos.

    Freddie exalou um comprido suspiro. Sabia perfeitamente quando um adulto estava evitando uma resposta, e se deu conta de que o mais sábio seria retroceder um pouco. Particularmente quando já tinha tomado uma decisão. Natasha era exatamente a mãe que queria. E, além disso, era uma mulher capaz de fazer rir a seu pai. Freddie decidiu então que seu mais secreto e solene desejo de Natal seria que Natasha se casasse com seu pai e levasse a casa uma irmãzinha.

    -Promete-me isso? -perguntou-lhe.

    -Com a mão no coração -Natasha lhe deu um beijo em cada bochecha-. E agora a dormir. irei procurar a seu pai para que subida a te dar as boa noite.

    Freddie fechou os olhos e curvou os lábios em um secreto sorriso.

    Com o gatinho em braços, Natasha baixou as escadas. Tinha atrasado a contabilidade do mês e um inventário para ir ver o Freddie aquela noite. De modo que lhe ia tocar ficar a trabalhar até tarde, decidiu, levando o gatinho à bochecha.

    Ia ter que começar a ser prudente com o Freddie, e consigo mesma. Uma coisa era que ela se apaixonasse pela pequena e outra muito diferente que a menina a quisesse até o ponto de desejar que fora sua mãe. Mas como podia esperar que uma menina de seis anos compreendesse que os adultos freqüentemente tinham problemas e temores que lhes impediam de escolher os caminhos mais singelos?

    A casa estava em silêncio, mas havia luz no estudo. Deixou no chão o gatinho, sabendo que sairia correndo para a cozinha.

    Encontrou ao Spence no escritório, estirado no sofá, de forma que as pernas lhe penduravam de um dos braços. Com aquela desalinhado casaco e os pés descalços, sua imagem estava muito longe da de um brilhante compositor ou um professor de música. Não se tinha barbeado.

    Natasha se viu obrigada a admitir que aquela sombra sutil o fazia parecer inclusive mais atrativo, sobre tudo combinada com seu cabelo despenteado e mais comprido do que o levava habitualmente.

    Ficou-se dormido com uma almofada sob a cabeça. Natasha sabia, porque Beira tinha sido suficientemente amável para explicar-lhe que Spence se passou duas noites sem dormir durante os piores acessos de febre de sua filha.

    Natasha era consciente também de que Spence tinha tido que fazer jogos malabares para poder organizar seus horários e estar na universidade e em casa durante o dia. Em mais de uma ocasião, quando tinha ido ver o, tinha-o encontrado rodeado de papéis.

    Ao princípio, Natasha via o Spence como um homem mimada, que tinha conquistado seu talento e sua posição quase desde seu nascimento. E possivelmente tinha nascido com aquele talento, disse-se, mas tinha trabalhado muito duro, por ele e por sua filha. E não havia nada que Natasha admirasse mais em um homem.

    Estava-se apaixonando por ele, admitiu. De seu sorriso e seu mau gênio, de sua devoção e de seu dinamismo. Possivelmente, só possivelmente, pudessem chegar a compartilhar algo. Com prudência, com cuidado, sem promessas.

    Natasha queria ser seu amante. Jamais tinha desejado nada parecido. Com o Anthony, simplesmente tinha acontecido, tinha sido algo puxador que ao final a tinha deixado feita pedacinhos. Mas não ocorreria o mesmo com o Spence. Nada nem ninguém poderia lhe fazer tanto dano outra vez. E a existência do Spence representava uma oportunidade, solo uma oportunidade de ser feliz.

    Aproveitaria-a? Com movimentos muito lentos, estendeu a manta que havia sobre o respaldo do sofá e cobriu ao Spence com ela. Fazia muito tempo que não corria nenhum risco. Possivelmente tivesse chegado o momento de fazê-lo. Roçou sua frente com um beijo. E possivelmente tivesse encontrado a um homem pelo que merecia a pena corrê-lo.

   

   CAPITULO 7

    Um gato negro chiou tétricamente. Um violento golpe de vento abriu uma porta de dobradiças ferrugentas e ao tempo que se ouvia uma portada, estalava a gargalhada de um louco. Ouvia-se um som semelhante ao do sangue fervendo pelas paredes e baixando até o chão enquanto os prisioneiros sacudiam as cadeias. O final foi um grito penetrante seguido de um desesperado gemido.

    -Muito bons -comentou Annie detrás ouvir aqueles efeitos enquanto fazia explorar uma bola de chiclete na boca.

    -Deveria ter encarregado mais objetos destes -Natasha tomou uma peruca laranja e converteu um inofensivo urso de pelúcia em um macabro Halloween-. Este é o último que fica.

    -Depois de esta noite, terá que começar a pensar no Natal -Annie se tornou para trás o gorro negro e sorriu, mostrando seus dentes enegrecidos-. Olhe, aqui vêm os Freedmont -esfregou-se as mãos e cacarejou como uma bruxa sinistra-. Se este disfarce realmente foi bom, deveria ser capaz de convertê-los em rãs.

    Não o conseguiu, mas se lhes vender umas cicatrizes de látex e sangue de pega.

    -Me pergunto o que terão reservado a seus vizinhos estas criaturas para esta noite -murmurou Natasha.

    -Nada bom -Annie se colocou sob um morcego-. Não deveria ir ?

    -Sim, agora mesmo -Natasha brincou com a cada vez mais reduzida seção de máscaras e narizes-. Os focinhos de porco se vendem melhor do que tinha imaginado. Não sabia que havia tanta gente desejando disfarçar-se de gado -tomou um deles e o colocou no nariz-. Possivelmente deveria deixá-los na loja todo o ano.

    Reconhecendo as táticas de sua amiga, Annie se passou a língua pelos dentes para dissimular um sorriso.

    -Foste admiravelmente amável ao te oferecer como voluntária para decorar a casa de Freddie para a festa de esta noite.

    -Não me custa nada -respondeu Natasha, odiando-se por estar tão nervosa. Deixou o focinho de porco em seu lugar e passou um dedo pela tromba de um elefante que acompanhava uns óculos-. Como fui eu a que sugeri que celebrasse uma festa na noite do Halloween para substituir a de seu frustrado aniversário, pensei que deveria ajudar.

    -Uh-uh. Pergunto-me se seu pai irá disfarçado de príncipe azul.

    -Spence não é nenhum Príncipe Azul.

    -Será então o lobo feroz? -com uma gargalhada, Annie elevou as mãos em gesto de paz-. Sinto muito. Mas é que eu adoro verte tão nervosa.

    -Não estou nervosa -era uma horrível mentira, admitiu Natasha enquanto empacotava o que ia ser sua contribuição à festa-. Já sabe, pode vir se quiser.

    -E lhe agradeço isso. Mas prefiro ficar em casa, para proteger a dos desmandos desses terríveis pré-adolescentes. E não se preocupe -acrescentou antes de que Natasha pudesse dizer nada-. Eu fecharei.

    -De acordo. Possivelmente sozinha...

    Natasha se interrompeu quando ouviu o tilintar da porta. Outro cliente, pensou, assim disporia de algo mais de tempo. Quando se encontrou frente a Terry, não foi capaz de dizer quem dos dois estava mais surpreso.

    -Olá.

    Terry tragou saliva, tentando desfazer o maior nó que se formou em sua garganta e baixou o olhar para o disfarce da jovem.

    -Tash?

    -Sim.

    Esperando que já a tivesse perdoado, sorriu e lhe tendeu a mão. Terry se tinha trocado de sitio em classe e cada vez que Natasha tinha tentado aproximar-se dele, tinha-a esquivado. Naquele momento estava apanhado, confundido e inseguro. Tocou a mão que Natasha lhe oferecia e depois se meteu a mão no bolso.

    -Não esperava verte aqui.

    -Não? -Natasha inclinou a cabeça-. Esta é minha loja -perguntou-se se Terry estaria dando-se conta da razão que tinha ao dizer o pouco que a conhecia e suavizou a voz-. Esta loja é minha.

    -É tua? -olhou a seu redor, incapaz de dissimular a impressão que lhe causava-. Caramba. É impressionante.

    -Obrigado, devias comprava algo ou só a olhar?

    Terry se ruborizou intensamente. Uma coisa era entrar em uma loja, e outra muito distinta entrar em uma loja cuja proprietária era a mulher a que tinha professado seu amor.

    -Eu sozinho... Bom...

    -Quer algo para a noite do Halloween? -sugeriu Natasha-. Acredito que há algumas festas na universidade.

    -Sim, bom, pensei que poderia me passar por um par delas. Suponho que é uma tolice, mas...

    -Halloween é um assunto muito sério em A Casa da Diversão -disse-lhe Natasha solenemente. Enquanto falava, ouviu-se outro grito esmigalhado pelos alto-falantes-. Vê-o?

    Envergonhado de haver-se sobressaltado, Terry esboçou um débil sorriso.

    -Sim. Bom, estava pensando em comprar uma máscara ou algo assim. Já sabe -fez um gesto com suas mãos enormes e ossudas e as colocou depois no bolso.

    -Você gostaria de parecer sinistro ou divertido?

    -Eu... Né... Não pensei nisso.

    Natasha teve que resistir a necessidade de lhe acariciar pormenorizada a bochecha.

    -Ao melhor faz uma idéia quando vir o que fica. Annie, este é meu amigo Terry Maynard. É violinista.

    -Olá -Annie observou como se deslizavam seus óculos até a ponta de seu nariz depois de que a saudasse com um nervoso assentimento de cabeça e pensou que era adorável-. Levaram-se quase tudo, mas ainda ficam algumas coisas interessantes. Por que não da olhada? Eu te ajudarei a decidir.

    -Tenho que partir  -Natasha começou a reunir suas bolsas, esperando que aquela visita tivesse situado sua relação com o Terry em um terreno mais sólido-. Que desfrutes da festa, Terry.

    -Obrigado.

    -Annie, verei-te amanhã.

    -De acordo. E procura não jogar muito -tornando-se outra vez o gorro de bruxa para trás, brindou ao Terry um sorriso-. Assim é violinista, verdade?

    -Sim -dirigiu a Natasha uma última e arrependido olhar. Quando se fechou a porta atrás dela, sentiu uma pontada de dor, mas muito pequena-. Estou recebendo algumas aulas na universidade.

    -Magnífico. E sabe tocar o Peru no Palheiro?

    Fora, Natasha se debatia entre ir de carro ou andando até sua casa. O ar frio a ajudava a limpar a mente. As árvores tinham trocado. A gloriosa combinação de cores de na semana anterior, com aquele amálgama de laranjas, amarelos e vermelhos, transformou-se em um pardo avermelhado. As folhas, já completamente seca, desprendiam-se dos ramos e se amontoavam nas calçadas. Assim que Natasha começou a caminhar, sentiu-as ranger sob seus pés.

    As flores mais resistentes permaneciam, mas com uma fragrância muito intensa, muito diferente do passado, doçura das flores no verão. O ar era mais frio, mais limpo, pensou Natasha enquanto desfrutava dele.

    Girou na rua principal para uma rua em que as árvores roçavam os telhados das casas. Dos alpendres de todas elas penduravam as cabaças, sorrindo enquanto esperavam ser iluminadas. De vez em quando, viam-se máscaras com camisas e velhos jeans pendendo dos ramos nus das árvores. Nos degraus se agrupavam bruxas e fantasmas, esperando o momento de assustar e deleitar aos vizinhos com seus truques.

    Se alguém lhe tivesse perguntado a Natasha por que tinha eleito um lugar tão pequeno para viver, aquela teria sido uma de suas respostas. Ali a gente se tomava todo o tempo necessário para esvaziar uma cabaça, para reunir um montão de roupa velha e criar com tudo isso um cavaleiro sem cabeça. Aquela noite, antes de que saísse a lua, os meninos começariam a correr pelas ruas, vestidos de fadas e duendes. Suas bolsas terminariam cheias de doces e bolachas caseiras, enquanto os adultos fingiriam não reconhecer a aqueles diminutos palhaços, demônios e vagabundos. E de quão único os meninos teriam medo seria de que seus disfarces resultassem acreditáveis.

    Sua menina teria já sete anos.

    Natasha se deteve um instante e se levou a mão ao estômago, até que conseguiu bloquear a tristeza daquela lembrança. Quantas vezes se havia dito a si mesmo que aquilo pertencia ao passado? E quantas vezes tinha conseguido o passado deslizar-se de novo em sua vida?

    Tinha que reconhecer que cada vez o fazia com menos freqüência, mas sempre era igualmente duro e inesperado. Podiam passar dias, meses incluso, sem que aflorasse, destroçando-a, deixando-a confundida, débil.

    Ouviu o som do motor de um carro e uma buzina.

    -Oi, Tash.

    Natasha pestanejou várias vezes e conseguiu elevar a mão para saudar, embora não conseguiu identificar ao condutor, que continuou alegremente seu caminho.

    Tinha que voltar para presente, disse-se a si mesmo, pestanejando outra vez e fixando seu olhar no redemoinho de folhas que dançava a seus pés. Estava ali, não ia voltar para passado. Anos atrás, convenceu-se de que só havia uma direção possível, que só se podia seguir adiante. Tomou ar lentamente, e comprovou aliviada que tinha conseguido recuperar-se. Aquela noite não havia tempo para tristezas. Natasha lhe tinha prometido organizar uma festa a uma menina e pretendia fazê-lo.

    Não pôde evitar um sorriso enquanto subia as escadas da casa do Spence. Este já tinha estado trabalhando, advertiu. Duas enormes cabaças flanqueavam o alpendre. Eram a Comédia e a Tragédia, alguém sorria e a outra estava carrancuda. No corrimão, tinham estendido um lençol branco de tal maneira que parecia um fantasma em pleno vôo. Um morcego de cartão com os olhos vermelhos pendurava do beiral do telhado e em uma cadeira de balanço velha, ao lado da porta, permanecia sentado um monstro terrível que sustentava sua cabeça sorridente na mão. Sobre a porta tinham colocado a silhueta de uma bruxa removendo um caldeirão fumegante.

    Natasha ficou um nariz de bruxa e chamou. Estava rindo quando Spence abriu a porta.

    -Ou me dá de presente um doce, ou arrisca a uma brincadeira pesada -advertiu-lhe Natasha, recreando as petições dos pequenos na noite do Halloween.

    Spence ficou sem fala. Por um momento, pensou que o estava traindo a imaginação. A cigana da caixa de música estava frente a ele, com os brincos de ouro pendurando das orelhas e o bracelete do mesmo material na boneca. Levava seu arbusto de cabelo selvagem sujeita por um lenço de cor safira que flutuava até sua cintura. No pescoço levava umas cadeias de ouro, que acentuavam seu esbeltez. O vestido vermelho era idêntico ao da cigana, apertado no sutiã e vaporoso a partir da cintura, da que penduravam infinitas tiras de cores.

    Seus olhos enormes e escuros tinham adquirido um ar misterioso com as femininas artes para a maquiagem. Seus lábios, cheios e vermelhos, mostravam um gesto insolente. Spence só demorou alguns segundos em vê-lo tudo, do insinuante encaixe negro que aparecia pelo decote do vestido até a prega. Mas teve a sensação de que levava horas na porta de sua casa.

    -Tenho uma bola de cristal -disse-lhe Natasha. Meteu-se a mão no bolso e tirou uma bola transparente-. Se puser prata em minha mão, mostrarei-te seu futuro.

    -Meu deus -conseguiu dizer Spence-, está preciosa.

    Natasha se limitou a soltar uma gargalhada e se meteu na casa.

    -Ilusões. Esta noite está feita para elas -olhou rapidamente a seu redor e voltou a colocar a bola de cristal no bolso-. Onde está Freddie?

    Spence sentia como lhe suava a mão com a que sujeitava o pomo da porta.

    -Ela está... -seu cérebro demorou alguns segundos em voltar a ficar em funcionamento-. Está em casa do JoBeth. Preferia que não estivesse revoando a meu redor enquanto o organizava tudo.

    -Uma boa idéia -estudou suas calças poeirentas-. Esse é seu disfarce?

    -Não. Estive pendurando aranhas.

    -Te darei uma mão -sorrindo, estendeu-lhe as bolsas-. Trouxe alguns truques e alguns efeitos do mais sinistro. Por onde você gostaria de começar?

    -Tem que perguntá-lo? -perguntou Spence rapidamente, passou-lhe um braço pela cintura e a estreitou contra ele.

    Natasha jogou a cabeça para trás, tinha toda uma réstia de palavras de aborrecimento e desafio nos olhos e na ponta da língua. Mas então Spence fundiu os lábios com os seus. As bolsas caíram de suas mãos. E assim que os liberou, afundou os dedos em seu cabelo.

    Aquilo não era o que queria. Mas sim o que necessitava. Sem vacilar, entreabriu os lábios, convidando-o a uma maior intimidade. Ouviu o fico gemido de prazer que escapou dos lábios do Spence e foi seguido por outro dela. De algum jeito, tinha a sensação de que era ali onde lhe correspondia estar, justo na porta de sua casa, sentindo a fragrância das flores quedas alagando o ar e a brisa do outono sobre eles.

    Era perfeito. Spence podia saborear e sentir a perfeição daquele momento enquanto estreitava o corpo da Natasha contra o seu e sentia seus lábios quentes e flexíveis.

    Não era uma ilusão. E tampouco uma fantasia, apesar dos lenços de cores e os pendentes dourados. Era real, estava ali e era dela. E antes de que a noite tivesse terminado, ele o teria demonstrado.

    -Ouço violinos -murmurou Spence enquanto deslizava os lábios por seu pescoço.

    -Spence -Natasha só era capaz de ouvir os batimentos do coração de seu próprio coração, que soavam como um trovão em sua cabeça. Fazendo um esforço sobre-humano por recuperar a prudência, separou-se de seu, abraço-. Faz-me fazer coisas que me digo que não devo fazer -depois de tomar ar, olhou-o com firmeza-. Vim a te ajudar com a festa de Freddie.

    -E o aprecio -fechou lentamente a porta-. Mas também aprecio seu aspecto, e seu sabor, e seu tato.

    Ela não deveria excitar-se tanto por só um olhar. Não deveria, sobre tudo quando aquele olhar lhe dizia que, anunciasse o que anunciasse a bola de cristal, Spence já sabia qual era seu destino.

    -Este não é um momento adequado.

    Spence adorava aquele tom de voz majestoso, próprio de uma czarina tratando a um camponês.

    -Então encontraremos um momento melhor.

    Exasperada, Natasha tomou suas bolsas.

    -Ajudarei-te a pôr mais aranhas se me promete ser o pai de Freddie e só o pai de Freddie enquanto o fazemos.

    -De acordo -não via outra forma de sobreviver a uma noite com vinte meninos de primeiro grau disfarçados em casa. Mas a festa pensou, não ia durar eternamente-. Enquanto dure a festa, seremos colegas.

    A Natasha gostou de como soava aquela palavra. Tomou uma das bolsas e procurou em seu interior. Tirou uma máscara de um rosto sanguinolento e cheio de cicatrizes que colocou imediatamente no Spence.

    -Toma. Está muito bonito.

    Spence a ajustou até que foi capaz de ver a Natasha através das frestas dos olhos e sentiu uma infantil necessidade de olhar-se imediatamente no espelho do vestíbulo. Sorriu por detrás da máscara.

    -Me vou afogar.

    -Até dentro de um par de horas não -tendeu-lhe a outra bolsa-. Toma, preparar uma casa enfeitiçada leva seu tempo.

    Demoraram duas horas em transformar o elegante salão do Spence em uma horripilante masmorra, feita para os ratos e os gritos de tortura. Do teto até o chão, pendurava um papel negro e laranja. Das esquinas, pendiam anjos sinistros com o cabelo formado por aranhas. Uma múmia com os braços cruzados descansava em um rincão do salão. Sedento e talher de pó, um Drácula de olhos sanguinolentos se escondia entre as sombras, preparado para atacar.

    -Não te parece que talvez passam muito medo? -perguntou Spence enquanto pendurava um jogo de cabaças-. Só têm seis anos.

    Natasha tomou uma aranha de borracha que pendurava de um fio e a empurrou para ele.

    -Claro que não. Uma vez, meu irmão fez um cavaleiro sem cabeça. Tamparam-nos os olhos ao Rachel e a mim e nos fizeram entrar na habitação em que estava ele. Mikhail me colocou a mão em uma terrina de uvas e me disse que eram olhos.

    -Que desagradável -decidiu Spence.

    -Sim -adorou recordá-lo-. Havia também uns espaguetes...

    -Não siga -interrompeu-a Spence-. Faço-me uma idéia.

    Natasha soltou uma gargalhada e se ajustou um pendente.

    -Em qualquer caso, passava-me isso maravilhosamente bem e sempre desejava ter tido a idéia antes que ele. Esta noite os meninos se levariam uma grande desilusão se não encontrassem a nenhum monstro esperando-os. Assim que os tenha assustado, que é o que mais gosta, quão único tem que fazer é acender a luz para que vejam que tudo é falso.

    -É uma pena que agora não haja uvas.

    -Não se preocupe. Quando Freddie for maior, ensinarei-te a fazer uma mão sangrenta com uma luva de borracha.

    -Estou desejando que chegue o momento.

    -E que tal vai a comida?

    -Beira não parou que trabalhar em todo o dia -com a máscara no alto da cabeça, Spence olhou a seu redor. Estava satisfeito, realmente satisfeito com o resultado, e também de que o tivessem conseguido ele e Natasha juntos-. Encarregou-se de tudo, dos ovos de cores até do ponche das bruxas. Sabe o que teria estado muito bem? Algum aparelho para fazer fogo.

    -Esse é o espírito do Halloween -o sorriso do Spence a fez rir e lhe dar um comprido beijo-. Isso o deixaremos para o ano que vem.

    Ao Spence adorou que falasse com tanta naturalidade do futuro. O ano que vem, e o ano seguinte ao ano que vem. Um pouco aturdido pela velocidade que estavam tomando seus pensamentos, olhou-a em silêncio.

    -Ocorre algo mau?

    -Não -Spence sorriu-. Tudo vai estupendamente.

    -Aqui tenho os prêmios -desejando descansar as pernas, Natasha se sentou no sofá, ao lado de um cansado espírito maligno-. Para os jogos e os disfarces.

    -Não tinha por que te haver incomodado.

    -Já te disse que gostava de muito fazê-lo. Este é meu favorito -tirou uma caveira, apertou um interruptor e a deixou no chão, onde começou a mover-se pestanejando.

    -Seu favorito -com a língua apoiada no interior da bochecha, Spence levantou a caveira, que continuou vibrando em sua mão.

    -Sim. É horripilante, verdade? -inclinou a cabeça-. Já não ficam muitas esperanças ao pobre Yorik.

    Spence se limitou a rir, apagou a caveira e se baixou a máscara.

    -E a mim tampouco; muita carne sólida para derreter -Natasha já se estava rindo quando Spence se aproximou dela para levantá-la-. Nos dê um beijo.

    -Não -decidiu ao cabo de um momento-. É muito feio.

    -De acordo -obediente, Spence se tirou a máscara-. E assim?

    -Muito pior -com gesto solene, baixou-lhe a máscara outra vez.

    -Muito graciosa.

    -Nem tanto, mas me pareceu necessário -agarrou-o por braço e percorreu a habitação com o olhar-. Acredito que vai ter um grande êxito.

    -O êxito será dos dois -corrigiu-a-. Além disso, já sabe que Freddie está louca por ti.

    -Sim -Natasha sorriu contente-. O sentimento é mútuo.

    Ouviram que se abria a porta da entrada e depois um grito.

    -Falando de Freddie...

    Os meninos chegaram, primeiro pouco a pouco e depois quase em avalanche. Quando o relógio deu as seis, o salão estava cheio de bailarinas, piratas, monstros e super heróis. Nenhum bastante valente para percorrer sozinho a habitação, embora alguns a inspecionaram até três vezes. De vez em quando, alguma alma de valor inquebrável se animava a tocar timidamente a múmia ou a acariciar a capa da Drácula.

    Quando se acenderam as luzes, ouviram-se gemidos de desilusão, mas também alguns suspiros de alívio. Freddie, vestida como a boneca que tinha comprado na loja de brinquedos, abriu seus tardios presentes de aniversário quase desenfreada.

    -É um bom pai -murmurou Natasha.

    -Obrigado. Mas por que o diz?

    Tomou sua mão, entrelaçando os dedos com os seus, sem perguntar o motivo pelo que se sentia tão estupendamente estando com a Natasha no aniversário de sua filha.

    -Porque não partiste nenhuma só vez a tomar uma aspirina e logo que tem feito um gesto quando Mikey atirou o ponche no tapete.

    -Isso é porque estou reservando minhas forças para quando vir Beira.

    Spence se tornou a um lado para evitar uma colisão com uma princesa de conto que estava sendo perseguida por um duende. Ouviam-se gritos em um canto da sala, pontualmente enfeitados pelos chiados insuportáveis procedentes do novo disco que estava no estéreo.

    -Quanto ao da aspirina... Quanto tempo crê que agüentarão?

    -Oh, não muito mais que nós.

    -É um consolo.

    -Agora nos poremos a jogar. Surpreenderá-te ver o rapidamente que passam duas horas.

    Natasha tinha razão. Depois de que tivessem cansado tudo os narizes postiços em uma cabaça, as cadeiras musicais fossem já só uma lembrança, escolheu-se o melhor disfarce e se comeu a última maçã flutuando sobre um balde de água, os pais começaram a chegar para levar-se a seus relutantes duendes e monstrinhos. Mas a diversão não tinha terminado.

    Em grupinhos e agarrados pela mão, foram a casa dos vizinhos em busca de barras de chocolate e maçãs de caramelo. O frio vento da noite e as folhas quedas das árvores seriam coisas que recordariam depois de ter bebido até a última gota de chocolate.

    Eram quase as dez quando Spence conseguiu colocar a uma exausta e emocionada Freddie na cama.

    -Foi a melhor festa de aniversário que tive em minha vida -disse-lhe-. Me alegro de ter tido a varicela.

    Spence lhe aconteceu um dedo pela cara para lhe tirar uma bolinha de nata.

    -Eu não sei se iria tão longe, mas me alegro de que te tenha divertido.

    -Posso...?

    -Não -deu-lhe um beijo no nariz-. Se comer outro doce mais vai explodir.

    Freddie rio, estava muito cansada para procurar outra estratégia. As lembranças começavam já a formar redemoinhos-se em sua cabeça.

    -O ano que vem me disfarçarei de cigana como Tash, vale?

    -Claro. E agora durma. Vou levar a Natasha a sua casa, mas Beira ficará contigo.

    -Vai casar logo com o Tash para que possa ficar conosco a dormir?

    Spence abriu a boca, e voltou a fechá-la quando Freddie a abriu em um enorme bocejo.

    -De onde tira essas idéias? -murmurou.

    -Quanto se demora para ter um irmãozinho? -perguntou Freddie enquanto fechava os olhos.

    Spence lhe acariciou a cara, agradecendo que se ficou dormida e lhe tivesse evitado uma resposta.

    No piso de abaixo, encontrou a Natasha limpando o pior de todo aquele desastre. Quando viu o Spence, ergueu-se e se jogou o cabelo para trás.

    -Quando a casa fica em um estado tão terrível, tem-se a segurança de que a festa foi um êxito -algo na expressão do Spence a fez olhá-lo com os olhos entrecerrados-. Ocorre algo mau?

    -Não, não, é Freddie.

    -Suponho que lhe doerá o estômago -disse Natasha, compadecendo-a imediatamente.

    -Não, ainda não -encolheu-se de ombros com uma meia risada-. Sempre consegue me surpreender. Não... -disse-lhe, e lhe tirou uma bolsa de lixo das mãos-. Já tem feito o bastante.

    -Não me importa, Spence.

    -Sei.

    Antes de que Spence pudesse tomar a mão, Natasha entrelaçou suas mãos.

    -Acredito que deveria ir. Amanhã é sábado, o dia que mais trabalho temos.

    Spence se perguntava o que seria, em vez de acompanhá-la a casa, poder levá-la simplesmente até o dormitório, até sua cama.

    -Levarei-te a casa.

    -Não se preocupe. Não tem por que fazê-lo.

    -Eu adorarei -a tensão havia tornado. Seus olhares se encontraram e Spence compreendeu que também ela a sentia-. Está cansada?

    -Não -tinha chegado já o momento das verdades, compreendeu Natasha.

    Spence fazia o que Natasha lhe tinha pedido: limitar-se a ser o pai do Freddie durante a festa. A festa já tinha terminado. Mas a noite não.

    -Você gostaria que fôssemos andando?

    As comissuras dos lábios da Natasha se elevaram em um sorriso e tendeu a mão ao Spence.

    -Sim, eu adoraria.

    Fazia mais frio já, no vento se anunciava a chegada do inverno. No céu brilhava uma lua cheia de um branco glacial. As nuvens dançavam a seu redor, cobrindo a de farrapos de sombra. Sobre o sussurro das folhas, ouviam-se o eco das risadas dos meninos. Indevidamente, o velho carvalho da esquina tinha sido envolto em tiras e tiras de papel higiênico pelos adolescentes.

    -Eu adoro esta época -murmurou Natasha-. Especialmente as noites nas que há um pouco de vento. E eu adoro cheirar a fumaça das chaminés.

    Na rua principal, os meninos maiores e os estudantes da universidade continuavam passeando com máscaras aterradoras ou os rostos pintados. Uma pobre imitação do homem lobo saltava frente às cristaleiras das lojas e era respondido com gritos e risadas femininos. Um carro, cheio de fantasmas, deteve-se seu lado durante o tempo suficiente para baixar os guichês e assustá-los.

    Spence olhou o carro enquanto este girava com os passageiros uivando ainda.

    -Não recordo ter estado em nenhum lugar no que Halloween se tome tão a sério.

    -Espere a ver o que acontece Natal.

    A própria cabaça da Natasha brilhava no alpendre, junto a uma terrina cheia de barritas de chocolate.

    Havia um letreiro na porta: Toma sozinho uma. Ou verá.

    Spence sacudiu a cabeça ao vê-lo.

    -De verdade funciona?

    Natasha logo que olhou o sinal.

    -Conhecem-me.

    Spence se agachou para tomar uma.

    -Posso acompanhá-la com um brandy?

    Natasha vacilou. Se o deixava passar, seria inevitável que continuassem o beijo que aquela tarde tinham interrompido. Tinham passado já dois meses, pensou. Dois meses de perguntas, de andar-se com rodeios e de fingimentos. Mas ambos sabiam que aquilo teria que terminar antes ou depois.

    -É obvio -abriu a porta e lhe cedeu o passo.

    Imediatamente, correu para a cozinha para servir as taças. Já só era questão de si ou não, respondeu-se a si mesmo. Natasha conhecia a resposta desde antes daquela noite e estava preparada para ela. Mas o que era o que realmente queria dele? E o que esperaria Spence dela? E como, quando se entregasse a ele da forma mais íntima que era capaz de imaginar, seria capaz de fingir que não necessitava mais?

    Não podia necessitar nada mais, recordou-se Natasha. Sentisse o que sentisse por ele, algo que sem dúvida cada vez era mais profundo, muito mais profundo do que se atrevia a admitir, a vida tinha que continuar tal como estava. Sem promessas. Sem corações quebrados.

    Spence se voltou quando Natasha retornou ao salão, mas não disse nada. Seus próprios pensamentos eram uma mescla confusa. O que queria? Estar com ela, certamente. Mas com quanto seria capaz de conformar-se? Estava seguro de que nunca voltaria a desejar a ninguém. E lhe parecia tão fácil sentir cada vez que a olhava....

    -Obrigado -tomou a taça de brandy e observou a Natasha enquanto bebia-. Sabe? A primeira vez que subi a um estrado para dar uma conferência, ficou a mente completamente em branco. Por um terrível momento, não podia recordar nada do que tinha pensado dizer.

    -Não tem por que dizer nada.

    -Isto não é tão fácil como pensava -tomou a mão e o surpreendeu encontrá-la fria e tremente.

    Instintivamente, a levou aos lábios para lhe beijar a palma. E o ajudou saber que Natasha estava tão nervosa como ele.

    -Não quero te assustar.

    -Tudo isto me assusta -podia sentir o medo expandindo-se dentro dela-. Às vezes a gente diz que penso muito. Possivelmente seja verdade. E se o é, é porque sinto muito. Houve uma época -apartou a mão da do Spence. Precisava ser forte por si mesmo-. Houve uma época de minha vida -repetiu-, em que permiti que alguém decidisse por mim. E há enganos que se pagam até a morte.

    -Isto não é um engano -deixou a taça na mesa para emoldurar seu rosto com as mãos.

    Natasha lhe rodeou as bonecas.

    -Não quero que o seja. Não pode haver promessas, Spence, porque prefiro não contar com elas a me encontrar com um punhado de promessas mortas. Não necessito nem quero palavras bonitas. É muito fácil as dizer -sujeitou-o com força-. Quero ser seu amante, mas necessito respeito, não poesia.

    -Já terminaste?

    -Necessito que me compreenda -insistio Natasha.

    -Estou começando a fazê-lo. Deveu amá-lo muito...

    Natasha deixou cair as mãos, mas se endireitou antes de responder:

    -Sim.

    A dor o surpreendeu. Não podia sentir-se ameaçado por alguém do passado. O também tinha um passado. Mas se sentia ameaçado, e se sentia ferido.

    -Não me importa quem fora, e me importa um cominho o que aconteceu -era mentira, sabia. Uma mentira, além disso, com a que antes ou depois deveria enfrentar-se-. Mas não quero que pense nele quando está comigo.

    -E não penso, pelo menos da forma a que refere.

    -Não quero que pense nele de maneira nenhuma.- Natasha arqueou uma sobrancelha.

    -Não pode controlar meus pensamentos, nem nada sobre mim.

    -Equivoca-te -estimulado pelo ciúme, estreitou-a em seus braços. Foi um beijo furioso, premente, possessivo. E tentador. Natasha tirou o chapéu tão perto da submissão que se desfez de seu abraço.

    -Não quero ser possuída -o medo a equivocá-la fazia falar em tom desafiante.

    -Temos que jogar sempre com suas normas, Natasha?

    -Sim, se forem justas.

    -Para quem?

    -Para os dois -pressionou-se as têmporas com os dedos um instante-. Não deveríamos nos zangar -disse mais rapidamente-. Sinto muito -ofereceu-lhe um abraço e um sorriso-. Temo-me que aconteceu muito tempo da última vez que estive com alguém. E também da última vez que desejei está-lo.

    Spence tomou sua taça e fixou nela o olhar enquanto fazia girar o liquido.

    -Contigo me resulta difícil permanecer zangado.

    -Eu gostaria de pensar que somos amigos. Eu nunca fui amante de um amigo.

    E ele nunca tinha estado apaixonado por uma amiga. Aquela foi uma dura e aterradora admissão que, além disso, estava seguro de não poder pronunciar em voz alta. Possivelmente se deixava de comportar-se de maneira tão torpe, poderia demonstrar-lhe Incapaz de deixar de ir, Natasha se apoiou em uma janela.

    -Somos amigos -tomou a mão, rodeando os dedos da Natasha com os seus-. Os amigos confiam o um no outro, Natasha.

    -Sim.

    Spence olhou suas mãos unidas.

      -Por que não...?

    Um ruído na janela o interrompeu e lhe fez voltar a cabeça. Antes de que pudesse mover-se, Natasha o sujeitou com força. Spence não demorou nem um segundo em dar-se conta de que não estava assustada, a não ser divertida. levou-se a mão livre aos lábios.

    -Acredito que é uma boa idéia ser amiga de meu professor -disse, elevando a voz e lhe fazendo ao Spence um gesto com a cabeça para que continuasse falando.

    -Eu... Ah, me alegro de que Freddie tenha encontrado tantos bons amigos desde que nos viemos -observou estupefato que Natasha ficava a pinçar dentro de uma gaveta.

    -Esta é uma cidade muito formosa. É obvio, como em todas, às vezes surgem problemas. Ouviste falar da mulher que escapou do manicômio?

    -De que manicômio? -ante o olhar impaciente da Natasha, seguiu-lhe a corrente-. Não, acredito que não.

    -A polícia o manteve em segredo. Sabem que está nesta zona e não querem que estenda o pânico -Natasha provou a lanterna que tinha tirado e assentiu ao comprovar que as pilhas estavam a pleno rendimento-. Está completamente louca, já sabe, e gosta de seqüestrar a meninos pequenos. Depois os tortura de forma horripilante. As noites de lua enche os surpreende e os agarra por forma terrível. E antes de que possam gritar, aperta-lhes com força a garganta.

    Enquanto o dizia, girou para a sombra que via na janela, colocou-se a lanterna sob o queixo e a acendeu.

    Os irmãos gritaram a coro. Ouviu-se um estrondo, depois um grito e a seguir uns passos em carreira.

    Incapaz de deixar de rir, Natasha se apoiou no batente da janela.

    -Eram os irmãos Freedmont -explicou ao Spence quando conseguiu recuperar a respiração-. O ano passado penduraram um rato morto na porta de casa do Annie -levou-se uma mão ao coração enquanto aparecia à janela. Quão único conseguiu ver foram duas sombras correndo rua abaixo.

    -Acredito que este ano se tornaram as voltas.

    -Oh, deveria lhes haver visto as caras -secou-se uma lágrima-. Acredito que não vai voltar a lhes pulsar o coração até que se sintam a salvo na cama.

    -Este Halloween não o vão esquecer nunca.

    -Todos os meninos deveriam ter em sua vida um susto digno de recordar para sempre -sem deixar de sorrir, colocou-se outra vez a lanterna sob o queixo-. O que te parece?

    -Que já é muito tarde para me assustar -tomou a lanterna e a deixou a um lado. Fechou a mão sobre a da Natasha e o fez levantar-se-. Já é hora de averiguar quanto é ilusão e quanto é realidade.

   

   CAPITULO 8

    Era real. Dolorosamente real. A sensação de sua boca contra a sua não deixou nenhuma dúvida sobre que estava viva e necessitada. O tempo, o espaço, já não significavam nada. Eles sim que poderiam ter sido uma ilusão. Mas Spence não. E tampouco o desejo. Sentia-o brotar vertiginosamente em seu interior com o só roce de seus lábios.

    Não, não era singelo. Natasha tinha sabido desde a primeira vez que tinha saboreado seu beijo, desde a primeira vez que se permitiu acariciá-lo, que ocorresse o que ocorresse, não seria fácil. Mas isso era precisamente o que ela tinha a absoluta certeza de querer: a simplicidade, um caminho sem obstáculos.

    Mas não seria possível com ele.

    Aceitando-o, rodeou-o com os braços. Naquela noite não teria passado nem futuro. Só o momento de abraçar com força e desfrutar.

    Resposta por resposta, desejo por desejo, abraçaram-se. A luz do abajur projetava suas sombras contra a parede. Estas se ergueram e depois ficaram muito quietas.

    Quando Spence a levantou em braços, Natasha murmurou um protesto. Havia dito que não seria possuída e o dizia a sério. Mas aconchegada contra ele não se sentia débil. Sentia-se amada. Agradecida, pressionou os lábios contra o pescoço do Spence. E enquanto este a levava para o quarto, permitiu-se render-se.

    A única luz do dormitório era a da lua. Aparecia através da cortina de gaze, suave, fica, como apareceria um amante pela janela para encontrar a sua amada.

    Seu amante não disse nada enquanto a deixava aos pés da cama. Mas seu silêncio o dizia tudo.

    Spence se tinha imaginado aquele momento. Parecia impossível, mas era certo. A imagem tinha sido clara, nítida. Tinha visto a Natasha com seus cachos selvagens emoldurando seu rosto, com seus olhos escuros e serenos e sua pele resplandecendo como o ouro que levava. E em sua imaginação tinha visto mais, muito mais.

    Lentamente, tirou-lhe o lenço que sujeitava parte de seu cabelo e o deixou flutuar sigilosamente até o chão. Natasha esperou. Sem apartar os olhos dos seus, Spence foi soltando um a um todos os lenços, safira, esmeralda, amarelo... até que ficaram como uma oferenda de cores a seus pés. Natasha sorriu. Com só dois dedos, Spence deslizou o vestido de seus ombros e pressionou os lábios contra a pele que ele mesmo tinha deixado ao descoberto.

    Um suspiro e um estremecimento. Natasha alargou os braços para ele e teve que fazer um sério esforço para respirar enquanto lhe tirava a camisa. Sentiu a pele do Spence tensa e suave sob suas palmas. Podia sentir o tremor de seus músculos quando deslizava sobre eles suas mãos. E quando posou os olhos nos seus, pôde ver a chama de fúria e paixão que os tinha escurecido.

    Spence tinha que lutar contra todos seus instintos para não despi-la imediatamente, para não rasgar as barreiras que os separavam e tomar tudo o que queria. Natasha não o deteria. Via-o em seus olhos, desafiantes e ao mesmo tempo todo desejo.

    Mas Spence lhe tinha prometido algo a Natasha. E embora ela dizia que não queria promessas, ele estava disposto a cumprir sua palavra. Natasha teria todo o romantismo que ele fora capaz de lhe dar. Fazendo um esforço sobre-humano para dotar-se de paciência, desatou a linha de botões de suas costas. Os lábios da Natasha se curvaram em um sorriso quando a estreitou contra seu peito. Com movimentos suaves, baixou as calças do Spence até seus quadris. E, quando o vestido da jovem começava a deslizar-se até o chão, Spence voltou a abraçá-la com força para lhe dar um comprido beijo.

    Natasha se balançou. Parecia-lhe ridículo, mas a verdade era que se estava enjoando. As cores pareciam dançar em sua cabeça ao ritmo de uma frenética sinfonia que não era capaz de deter. Seus braceletes tilintaram quando Spence lhe elevou as mãos para desenhar um pequeno círculo de beijos sobre sua boneca. O tecido sussurrou, mais nota para a canção, quando Spence deslizou o chamativo vestido por seus quadris.

    Não teria podido acreditar que pudesse ser tão bela. Mas naquele momento, estando frente a ele com só uma fina camiseta vermelha e o brilho do ouro, parecia-lhe mais formosa do que um homem podia chegar a suportar. Tinha os olhos quase fechados, mas a cabeça erguida... Um gesto de orgulho habitual nela que lhe sentava perfeitamente. A luz da lua a banhava.

    Lentamente, elevou os braços e os cruzou frente a ela para baixar as alças  de seus ombros. O tecido tremeu sobre seus seios, ato-se um instante a eles e caiu depois até seus pés. Então foi sozinho o brilho do oro o que cobria sua pele. Excitante, erótico. Natasha esperou, e elevou os braços novamente... Para ele

    Pele contra pele; fracos gemidos escapando de sua boca. A boca do Spence encontrou a formosa boca da Natasha, enviando impactantes quebras de onda de prazer e dor através deles. O desejo descobriu o desejo, arrastando-os além de toda razão.

    Inevitável. Aquela foi a única palavra nítida no meio do caos mental da Natasha enquanto deslizava as mãos sobre ele. Uma força tão intensa, um desejo tão profundo, podia ser outra coisa, salvo inevitável. Assim Natasha aceitou essa força, aceitou esse desejo com todo seu coração. Esqueceu-se a paciência. Levava muito tempo negando-se seu desejo por ele. Spence também o queria tudo, tudo o que Natasha era, tudo o que ela tinha. Mas antes de que pudesse demandar-lhe Natasha o estava entregando. Quando ambos se deixaram cair na cama, as mãos do Spence estavam já procurando avidamente, para dar e tomar prazer.

    Como ia ter sabido que seria algo tão enorme, tão puxador? Tudo nela era vívido, intenso, agudo. Seu sabor era uma embriagadora mescla a brandy e a mel quente. Sua pele tão suntuosa como a pétala de uma rosa empapada pelo rocio noturno. Sua essência era tão escura como sua própria paixão. Seu desejo tão afiado como o bordo de uma cuchilla.

    Natasha se arqueou contra ele, lhe oferecendo, desafiando-o, gritando de prazer enquanto Spence procurava e encontrava seus segredos. O prazer o penetrava enquanto sentia o corpo pequeno e ágil da Natasha contra o seu. Forte e voluntariosa, rodou sobre ele para explorar e explorar até que o ar se converteu em fogo nos pulmões do Spence e seu corpo esteve a ponto de fundir-se. Médio louco, Spence se tombou sobre ela, e estendeu os lençóis. Quando voltou a incorporar-se, pôde ver a cortina de seu cabelo flutuando como uma nuvem escura sobre seu rosto e o brilho rico e profundo de seus olhos enquanto se aferravam ao seus. Sua respiração estava tão acelerada como ele mesmo; o corpo da Natasha tão entregue como ela.

    Nem antes tinha encontrado nem jamais encontraria, compreendeu Spence, a alguém que encaixasse tão perfeitamente com ele. O que ele necessitava, necessitava-o ela. O que ele desejava o desejava ela. Antes de que Spence pudesse perguntar, ela já estava respondendo. Pela primeira vez em sua vida, Spence entendia o que era amar com a mente, o coração e a alma além de com o corpo.

    Natasha não pensava em nada, salvo nele. Quando a tocava, sentia-se como se fora a primeira vez que alguém o fazia. Quando sussurrava seu nome, como se fora a primeira vez que o ouvia. Cada vez que sua boca encontrava seus lábios, era como o primeiro beijo... Como um beijo que tivesse estado esperando e desejando durante toda sua vida.

    Suas mãos se encontraram, palma com palma, seus dedos se enredavam os uns com os outros com avidez, como se fossem movidos por uma única vontade. olharam-se o um ao outro enquanto Spence se afundava nela. E se fez uma promessa, que ambos sentiram. Em um instante de pânico, Natasha sacudiu a cabeça. Mas então Spence começou a mover-se dentro dela, e ela com ele.

   

   

    -Outra vez -foi tudo o que Natasha pôde dizer enquanto Spence atirava brandamente dela-. Spence.

    -Outra vez, sim -cobriu sua boca, tirando a de sua sonolência para envolvê-la em uma renovada paixão.

    Desejava-a inclusive mais que antes, depois de saber o que podia chegar a haver entre eles, mas com um fogo mais estável e menos furioso. Naquela ocasião, embora o desejo era igualmente agudo, a loucura era menos intensa. Spence pôde então deleitar-se na sutilidade de suas curvas, a suavidade de seus ângulos e nos suspiros que era capaz de lhe arrancar com solo acariciá-la. Era como fazer o amor com uma deusa primitiva, nua, mas coberta de ouro. Depois de tanto tempo, por fim pôde saciar sua sede, lentamente, sem pressas, depois dos primeiros goles glutões.

    Como teria chegado a acreditar que sabia o que era amar a um homem ou ser amada por ele? Estava experimentando aquele dia prazeres que jamais tinha conhecido. Aquilo era ser empapada até ficar farta. Fazia correr as mãos sobre ele, ao tempo que absorvia as eróticas sensações de sua língua, a suavidade de seus dentes, o jogo daqueles dedos tão inteligentes. Não, todos eles eram prazeres novos, muito novos. E seu sabor significava liberdade.

    E enquanto a lua se elevava até o céu, Natasha se elevou com ela.

   

    -Acreditava que tinha sido capaz de imaginar o que seria estar contigo -com a cabeça apoiada em seu ombro, Spence deslizava a mão por seu braço-. Mas nem sequer se parecia.

    -E eu pensava que nunca estaria nesta situação contigo -Natasha sorriu em meio da escuridão-. Mas estava completamente equivocada.

    -Graças a Deus. Natasha...

    Natasha sacudiu rapidamente a cabeça e posou um dedo em seus lábios.

    -Não diga nada. É muito fácil deixar-se levar pelo romantismo sob a luz da lua -e muito fácil acreditar tudo o que queria lhe dizer, acrescentou para si.

    Embora impaciente, Spence conseguiu reprimir as palavras que queria dizer. Já tinha cometido um engano em outra ocasião por desejar muito, por querer ir muito rápido. E estava decidido a não cometer os mesmos enganos com a Natasha.

    -Deixa-me te dizer que já alguma vez poderei olhar como o tinha feito até agora uma cadeia de ouro?

    Rindo brandamente, Natasha lhe beijou no ombro.

    -Sim, me pode dizer isso Spence.

    Spence brincou com seus braceletes. E posso te dizer que sou feliz? -Sim.

    -E o é você?

    Natasha inclinou a cabeça para olhá-lo.

    -Sim. Mais feliz do que pensava que poderia chegar a ser. Faz-me sentir... -sorriu, fazendo um rápido movimento com os ombros-. Faz-me sentir mágica.

    -Esta noite foi mágica.

    -Tinha medo -murmurou Natasha-. De ti, disto. De mim -admitiu-. Passou muito tempo da última vez.

    -Também para mim -ao ver que se movia nervosa, tomou uma das cadeias com a mão-. Não estive com ninguém desde que morreu minha esposa.

    -Queria-a muito? -sinto muito, acrescentou rapidamente enquanto fechava os olhos com força-. Não tenho direito a lhe perguntar isso - lhe tomou a mão para levar aos lábios.

    -Sim, claro que o tem -apertou os dedos com firmeza-. Amei-a uma vez, ou possivelmente me apaixonei pela idéia que me tinha feito dela. Mas a idéia desapareceu muito antes de que ela morrera.

    -Por favor. Esta noite não é noite para falar do passado.

    Quando se sentou, Spence o fez a seu lado e emoldurou seu rosto com as mãos.

    -Possivelmente não, mas há coisas que preciso te dizer, coisas das que eu gostaria de falar.

    -Tão importante é o passado?

    Spence advertiu um deixe de desespero em sua voz e desejou poder conhecer a razão.

    -Eu acredito que poderia chegar a sê-lo.

    -O importante é o presente, o agora -fechou suas mãos sobre as do Spence-. E agora quero ser sua amiga e sua amante.

    -Então sei ambas as coisas.

    Fazendo um considerável esforço, Natasha conseguiu tranqüilizar-se.

    -Possivelmente não queira falar de outras mulheres enquanto estou na cama contigo.

    Spence sentia que estava provida e lista para discutir. Com um movimento que a pilhou completamente despreparada, inclinou-se para beijar sua frente.

    -Deixarei-te utilizar esse argumento de momento.

    -Obrigado -acariciou o cabelo do Spence-. Eu gostaria de passar esta noite contigo, toda a noite -sacudiu a cabeça com uma meio sorriso-. Mas não pode ficar.

    -Sei -tomou a mão para levar-lhe aos lábios-. Freddie começaria a me fazer perguntas embaraçosas se não estivesse em casa à hora do café da manhã.

    -É uma menina muito afortunada.

    -Eu não gosto de deixar a dessa forma. Natasha sorriu e o beijou.

    -Estou disposta a ser pormenorizada, sempre e quando a outra mulher só tenha seis anos.

    -Amanhã te verei -aproximou-se ainda mais a ela e aprofundou seu beijo.

    -Sim -com um suspiro, Natasha lhe rodeou o pescoço com os braços-. Uma vez mais -murmurou, arrastando-o para a cama-. Só uma vez mais.

   

    Natasha permanecia sentada atrás do escritório em seu abarrotado despacho. Levantou-se cedo para pôr ao dia o aspecto mais prático de seu negócio. Já tinha atualizado o livro de contas e recheado todas as faturas. Faltavam menos de dois meses para o Natal e já tinha recebido todos os pedidos. As mercadorias ocupavam até o último rincão da habitação. Gostava de sentir-se rodeada dos desejos dos meninos e saber que na manhã de Natal, o que naquele momento estava armazenado em caixas em sua loja, seria motivo de gritos de assombro e alegria.

    Mas também terei que ocupar-se de questões práticas. Natasha só tinha começado a pensar nas vitrines, a decoração e os descontos. E logo teria que decidir se ia contratar a alguém a tempo parcial para a temporada de Natal.

    Nesse momento, no meio da amanhã, sabendo que Annie estava a cargo da loja, tirou seus livros de texto e os apontamentos. Antes dos negócios, estavam os estudos. E ela se tomava as aulas muito a sério.

    Foram fazer lhes um exame sobre o barroco, e pretendia lhe demonstrar a seu professor, e amante, que sabia defender-se perfeitamente.

    Possivelmente não fora tão importante lhe demonstrar que era capaz de compreender e aprender. Mas tinha havido outros momentos de sua vida, momentos que, estava segura, Spence jamais poderia compreender, nos que se havia sentido incompetente, inclusive estúpida. A pequena com um incorreto inglês, a magra adolescente que pensava mais no baile que nos livros, a bailarina que lutava com força para ser capaz de suportar as ofensas durante os ensaios, quão jovem tinha escutado a seu coração em vez da sua cabeça.

    Natasha não era já nenhuma delas, e ao mesmo tempo, continuava sendo todas. Necessitava que Spence respeitasse sua inteligência, que a visse como a uma igual, e não só como a mulher a que desejava.

    Estava sendo uma chata. Com um suspiro, Natasha se recostou na cadeira e brincou com as pétalas da rosa vermelha que tinha na mesa. Ou mais que uma chata, estava equivocada. Spence não se parecia em nada ao Anthony. Exceto por algumas vagas similitudes fisicas, aqueles dois homens eram virtualmente opostos. Um deles era um brilhante bailarino e o outro um músico brilhante, mas Anthony tinha demonstrado ser além egoísta, desonesto e, ao final, covarde.

    Natasha jamais tinha conhecido a um homem mais generoso e amável que Spence. Era honrado e compassivo. Ou era seu coração o que estava falando? Teria que assegurar-se. Mas seu coração, pensou, não tinha uma garantia como a de um brinquedo de corda. Quanto mais tempo passava ao lado do Spence, mais profundamente apaixonada se sentia. Tão apaixonada, de fato, que tinha havido momentos terroríficos nos que tinha estado a ponto de deixar seus temores a um lado e dizer. Tinha devotado seu coração a um homem em outra ocasião, um coração puro e frágil. Quando o haviam devolvido, estava já marcado para toda a vida.

    Não, não havia garantias.

    Como poderia voltar a correr esse risco? Inclusive sabendo que o que estava vivendo naquele momento era diferente, muito distinto de tudo o que lhe tinha ocorrido quando era quase uma menina de dezessete anos, como ia correr outra vez o risco de abrir-se a esse tipo de dor e humilhação?

    As coisas estavam melhor tal como estavam, assegurou-se. Eram dois adultos, que desfrutavam do um com o outro. Eram amigos. Tirou a rosa do vaso e se acariciou com ela a bochecha. Era uma pena que ela e seu amigo dispor de tão escassas horas para estar juntos. Havia uma menina em que pensar, e também horários e responsabilidades. Mas naquelas horas nas que seu amigo se convertia em seu amante, era capaz de conhecer o verdadeiro sentido da palavra felicidade.

    Obrigando-se a voltar para presente, deixou a rosa no vaso e tentou concentrar-se nos estudos. Ao cabo de cinco minutos, soou o telefone.

    -Bom dia, A Casa da Diversão.

    -Bom dia, assunto pessoal.

    -Mamãe!

    -Está muito ocupada ou tem um momento para falar com sua mãe?

    Natasha se aferrou ao telefone com ambas as mãos, adorando o som da voz de sua mãe.

    -É obvio que tenho um momento. Todos os momentos que queira.

    -Estava sentindo saudades, porque faz já duas semanas que não me chama.

    -Sinto muito -durante duas semanas, Spence tinha sido o centro de sua vida. Mas não podia lhe dizer isso a sua mãe-. Como está papai, bom, como estão todos?

    -Estamos todos estupendamente. A papai subiram o salário.

    -Que bem.

    -E Mikhail já não sai com essa garota italiana -Ninguéma deu graças a Deus em ucraniano e Natasha soltou uma gargalhada-. Alex, é obvio, segue saindo com um montão de garotas. Um menino preparado, meu Alex. E Rachel só tem tempo para estudar. E Natasha como está?

    -Natasha está bem. Como bem e durmo muito -acrescentou, antes de que Ninguéma pudesse perguntar-lhe -Por supusto, tenho montes de amigos.

    -Me alegro. E a loja?

    -Estou já preparada para me enfrentar à campanha de Natal e espero vender mais que o ano passado.

    -Quero que deixe de nos enviar dinheiro.

    -E eu quero que deixe de preocupar-se por seus filhos.

    O suspiro de Ninguéma fez sorrir a Natasha. Aquela era uma velha discussão.

    -É uma mulher muito cabeça dura.

    -Como minha mãe.

    Era completamente certo, embora Ninguéma não estava disposta a admiti-lo.

    -Já falaremos disso quando vier ao jantar de Ação de Obrigado.

    Ação de Obrigado, pensou Natasha. Como podia havê-lo esquecido? Sujeitando o auricular entre a orelha e o ombro, passou as folhas do calendário. Faltavam menos de duas semanas.

    -Não posso discutir com minha mãe o dia de Ação de Obrigado -Natasha tomou nota mentalmente de que devia chamar à estação-. Chegarei na quarta-feira pela tarde. Eu levarei o vinho.

    -Com que você venha já basta.

    -Irei eu com o vinho -rabiscou uma nota. Ia ser difícil tomar-se algum tempo livre, mas jamais se perdeu, nem a perderia nunca, uma festa com a família-. Tenho vontades de lhes ver outra vez.

    -Possivelmente possa trazer para algum amigo.

    Aquela sugestão formava parte já da rotina, mas, pela primeira vez, Natasha vacilou. Não, disse-se a si mesmo, sacudindo a cabeça. Por que ia querer Spence passar o dia de Ação de Obrigado no Brooklyn?

    -Natasha? -era óbvio que a afinada intuição de Ninguéma lhe tinha permitido adivinhar o debate mental no que se havia imerso sua filha-. Tem um amigo?

    -É obvio, tenho montões de amigos.

    -Não faça a lista com sua mãe. Quem é ele?

    -Ele não é ninguém -elevou os olhos ao céu quando Ninguéma começou a envenená-la a perguntas-. De acordo, de acordo. É um professor da universidade. É viúvo -acrescentou-, e tem uma filha pequena. Só estava pensando que possivelmente poderiam me acompanhar eles, isso é tudo.

    -Ah.

    -Esse "ah" é muito eloqüente, mamãe, mas te equivoca. Só é um amigo e eu tenho muito carinho à menina.

    -Há quanto o conhece?

    -Vieram a viver aqui ao final do verão. Eu sou aluna em um de seus cursos e a menina vem à loja de vez em quando -todo isso era certo. Não era toda a verdade, mas era verdade. Esperava ser capaz de parecer despreocupada-. Se tiver oportunidade de vê-lo, perguntarei-lhe se gostaria de vir.

    -A menina pode dormir contigo e com o Rachel.

    -Sim, se...

    -O professor pode ficar com o quarto do Alex. E Alex pode dormir no sofá.      -É possível que tenham outros planos.

      -De acordo. Se o vir, o perguntarei.

    -Convida-o a vir -insistiu Ninguéma-. E agora, ao trabalho.

    -Sim mamãe. Quero-te.

    Já parecia, pensou Natasha enquanto pendurava o telefone. Quase podia ver sua mãe sentada ao lado da desvencilhada mesinha do telefone esfregando-as mãos.

    O que pensaria Spence de sua família? E o que pensaria sua família dele? Desfrutaria do Spence de um jantar buliçoso e familiar? Natasha pensou no jantar que tinham compartilhado, na elegante mesa e o discreto serviço. Em qualquer caso, era possível que já tivesse outros planos, decidiu. Assim não tinha por que preocupar-se.

    Vinte minutos depois, voltou a soar o telefone. Provavelmente era sua mãe, pensou Natasha, disposta a lhe fazer uma dúzia de perguntas sobre seu "amigo". Preparada para enfrentar-se a elas, Natasha desprendeu o telefone.

    -Bom dia, Casa da Diversão.

    -Natasha.

    -Spence? -automaticamente olhou o relógio-. Por que não está na universidade? Está doente?

    -Não, não. Estou em um descanso entre classes. Tenho perto de uma hora livre. E necessito que venha.

    -A sua casa? -havia urgência na voz do Spence, mas uma urgência que não tinha nada que ver com a tristeza e estava muito próxima à emoção-. Por que? O que acontece?

    -Você sozinho tem que vir, fará-o? Não é algo que te possa explicar. -Sim, de acordo. Está seguro de que não está doente?

    -Não -para ouvi-lo rir, Natasha se relaxou-. Não, não estou doente. Jamais me hei sentido melhor. Vem depressa.

    -Em dez minutos estou ali.

    Natasha se levantou e desprendeu seu casaco. Spence parecia diferente. Feliz? Não, eufórico, satisfeito. Mas por que ia estar eufórico um homem em meio da manhã? Possivelmente estivesse doente, voltou a dizer-se. Botou as luvas e saiu à loja.

    -Annie, tenho que... -interrompeu-se, pestanejou e cravou o olhar na imagem do Annie sendo sonoramente beijada pelo Terry Maynard-. Eu ... Perdão.

    -Oh, Tash, Terry sozinho... Bom, ele... -Annie se soprou a franja e sorriu como uma parva-. Vai?

    -Sim, tenho que ver alguém -mordeu-se o lábio para dissimular um sorriso-. Não demorarei mais de uma hora. Pode te fazer carrego de tudo?

    -Claro -Annie se arrumou o cabelo enquanto Terry permanecia a seu lado, exibindo no rosto todas as gamas possíveis de vermelho-. Está sendo uma manhã muito tranqüila. Tome todo o tempo que queira.

    Possivelmente o mundo tivesse decidido enlouquecer aquele dia, pensou Natasha enquanto corria para a rua. Primeiro chamava sua mãe e já estava preparando-se para tirar o Alex de sua cama para ceder-lhe a um desconhecido. Spence lhe pedia que fora a sua casa a ver algo em meio da manhã. E depois descobria ao Annie e ao Terry beijando-se diante da caixa registradora. Enfim, solo podia tratar as coisas de uma em uma. E Spence era o primeiro da lista.

    Subiu os degraus da casa de dois em dois, com a suspeita de que Spence estava sofrendo um ataque de febre. Quando lhe abriu a porta antes de que tivesse chegado até ela, convenceu-se por completo. Os olhos lhe brilhavam com força e estava ruborizado. Levava o pulôver enrugado e o nó da gravata desfeito.

    -Spence, está...?

    Mas antes de que pudesse terminar de dizê-lo, Spence já a estava abraçando e beijando-a nos lábios enquanto girava como um louco.

    -Pensava que não foste chegar nunca.

    -Vim tão rápido como pude -instintivamente, posou a mão em sua bochecha. O estranho brilho de seu olhar a fez olhá-lo com os olhos entrecerrados. Não, não era febre, decidiu. Ao menos não da classe que requeria atenção médica-. Se me tiver feito vir para isto, me vais pagar isso.

    -Por... Não -respondeu com uma gargalhada-. Embora seja uma idéia maravilhosa. Realmente maravilhosa -beijou-a até conseguir que Natasha estivesse de acordo com ele-. Tenho a sensação de que poderia fazer o amor contigo durante horas, dias e semanas.

    -Suponho que lhe sentiriam falta de em classe -murmurou Natasha. Tentou recuperar a compostura e retrocedeu um instante-. Parece muito emocionado. Há-te meio doido a loteria?

    -Melhor ainda. Vêem -lembrou-se da porta que tinham deixado aberta, fechou-a e a levou a estudo-. Sente-se e não diga nada.

    Natasha obedeceu, mas quando viu que Spence se aproximava do piano, começou a levantar-se.

    -Spence. Eu gostaria de ouvir um concerto, mas...

    -Não fale -disse-lhe com impaciência-, te limite a escutar.

    E começou a tocar.

    Natasha demorou sozinho uns segundos em dar-se conta de que aquela peça não tinha nada que ver com nada do que tinha ouvido até então. Com nada do que tinha sido escrito antes. Um calafrio percorreu seu corpo e apertou com força as mãos sobre o regaço.

    Paixão. Cada nota se enchia com ela, elevava-se com ela, transbordava paixão. Natasha só era capaz de olhá-lo fixamente, de olhar a intensidade de seus olhos e a fluida graça dos dedos sobre as teclas. A beleza daquela imagem a comoveu, cravando-se em seu coração e no mais recôndito de sua alma. Como era possível que Spence tivesse sido capaz de converter em música seus mais íntimos sentimentos?

    À medida que ia passando o tempo, sentia como se ia precipitando seu pulso. Não teria podido falar e logo que podia respirar. E então a música se converteu em algo triste e forte. E vivo. Fechou os olhos enquanto sentia aquela melodia estreitando-se contra ela, sem ser consciente de que as lágrimas tinham começado já a deslizar-se por suas bochechas.

    Quando a música cessou, continuou sentada, calada e muito quieta.

    -Não tenho que te perguntar o que te pareceu -murmurou Spence-. Estou-o vendo.

    Natasha se limitou a sacudir a cabeça. Não tinha palavras. Não havia palavras.

    -Quando o tem composto?

    -Estes últimos dias -a emoção da canção o tinha deixado esgotado. levantou-se, aproximou-se até ela e lhe tendeu as mãos para insisti-la a levantar-se. Quando seus dedos se encontraram, Natasha pôde sentir a intensidade que Spence tinha vertido em sua música-. Tornei a compor -levou-se a mão da Natasha aos lábios-. Ao princípio estava apavorado. Comecei para ouvi-la em minha cabeça, como me ocorria antes. Foi como alcançar o céu, Natasha. Não posso explicá-lo.

    -Não, não tem por que fazê-lo. Pude-o escutar.

    Natasha o compreendia, pensou Spence. De algum jeito, estava seguro de que o faria.

    -Pensava que só me estava fazendo ilusões, ou que quando me sentasse ali... -olhou para o piano-, tudo se desvaneceria. Mas não se desvaneceu. Deus, é como que alguém te devolva as mãos ou os olhos.

    -Sempre esteve ali -Natasha elevou as mãos até seu rosto-. Só estava descansando.

    -Não. Foste você a que me devolveu. Disse-lhe isso já em outra ocasião, minha vida trocou desde que te conheci. Mas não sabia quanto. Tudo isto foi por ti, Natasha.

    -Não, foi por ti. Só por ti -abraçou-o e beijou seus lábios-. E isto só é o princípio.

    -Sim -afundou as mãos em seu cabelo e lhe fez inclinar brandamente a cabeça-. É o princípio -estreitou-a com firmeza quando Natasha deveria havê-lo afastado-. Se tiver ouvido o que acabo de tocar, se o compreendeste, sabe a que me refiro. E sabe também o que quero.

    -Spence, agora não deveria me dizer nada. Tem as emoções a flor de pele. É fácil que confunda o que te faz sentir a música com outras coisas.

    -Isso são tolices. O que passa é que não quer me ouvir dizer que te amo.

    -Não -um calafrio provocado pelo terror percorreu suas costas-. Não quero. E se eu te importasse de verdade, não me diria isso.

    -Põe-me em uma situação muito difícil.

    -Sinto muito. Quero que seja feliz. E enquanto as coisas continuem como até agora...

    -E durante quanto tempo poderão continuar como até agora?

    -Não sei. Eu não posso dizer o que você está desejando me dizer. Nem sequer posso sentir quão mesmo você -elevou o olhar para encontrasse com seus olhos-. E desejaria podê-lo sentir.

    -Estou competindo contra outro homem?

    -Não -rapidamente tomou suas mãos-. Não. O que senti por... O que senti antes -corrigiu-se-, foi uma fantasia. A fantasia de uma menina. Isto é real. Mas não tenho força suficiente para suportá-lo.

    Ou força suficiente para entregar-se a seus sentimentos, pensou Spence. Sabia que isso causava dor a Natasha. E possivelmente pelo intensamente que a desejava, sua impaciência estava caso uma pressão que poderia separá-los em vez de uni-los.

    -Então não te direi que te amo -beijou-a na testa-. E que te necessito em minha vida -beijou seus lábios brandamente-. Ainda não -entrelaçou os dedos com os seus-. Mas chegará um momento, Natasha, no que lhe direi isso. Você me escutará. E será capaz de me responder.

    -Faz-o soar como uma ameaça.

    -Não, simplesmente é uma dessas promessas que não quer ouvir -beijou-a nas bochechas, com tal naturalidade que a confundiu-. Agora tenho que voltar para trabalho.

    -Eu também -procurou as luvas, mas solo para brincar nervosa com eles-. Spence, para mim significa muito que tenha querido compartilhar isto comigo. Sei que é como dar uma parte de ti mesmo. Estou muito orgulhosa de ti e por ti. E me alegro de que tenha querido celebrar isto comigo.

    -Vêem jantar comigo esta noite. Então sim que o celebraremos.

    Natasha voltou a lhe sorrir.

    -Eu adoraria.

    Natasha não comprava champanha muito freqüentemente, mas lhe parecia o mais apropriado. Necessário inclusive. Uma garrafa de vinho era pouco em troca do que lhe tinha devotado aquela manhã. Aquela melodia tinha sido um regado que Natasha sempre entesouraria. Com ela, Spence lhe tinha dado tempo e lhe tinha permitido conceber fugazmente uma esperança.

    Possivelmente Spence a amasse. Se de verdade acreditava, podia dar-se algum tempo para fortalecer seus sentimentos. Se acreditava, teria que contar-lhe tudo. E isso era, inclusive mais que seus próprios sentimentos, o que ainda a fazia conter-se.

    Mas aquela era uma noite de celebração.

    Bateu na porta e tentou lhe sorrir sobriamente a Beira.

    -Boa noite.

    -Senhorita.

    Com aquele pouco comprometido recebimento, Beira abriu a porta de par em par. Mantinha sua opinião sobre a Natasha em completo secreto. Era certo, aquela mulher fazia feliz ao senhor e parecia haver tomado carinho ao Freddie. Mas depois daqueles três anos nos que tinha estado a cargo deles, Beira receava de qualquer com quem tivesse que compartilhá-los.

    -O doutor Kimball está no escritório com o Freddie.

    -Obrigado. Trouxe champanha.

    -Eu o servirei.

    Com um pequeno suspiro, Natasha observou a Beira afastar-se. Quanto mais reservada se mantinha o ama de chaves, mais decidida estava ela a ganhar.

    Ouviu as risadas do Freddie quando se aproximava do estudo, e as de outra menina também, advertiu. Quando apareceu à porta, viu o Freddie e ao JoBeth, abraçadas a uma à outra e gritando. E como não foram gritar? Pensou Natasha com um sorriso. Spence levava um casco ridículo e blandía um tubo de cartão como se fora uma arma.

    -Os vagabundos que encontro no navio me servem para alimentar ao Monstro Beta -advertia-lhes-. Tem uns dentes gigantes e um fôlego pestilento.

    -Não! -com os olhos abertos como pratos e o coração lhe pulsando de emoção e terror, procurava refúgio-. Não, o Monstro Beta não.

    -O que mais gosta de são as meninas -com uma risada diabólica, agarrou ao JoBeth, que não deixava de gritar, sob o braço-. Aos meninos se as traga inteiras, mas quando lhe dou meninas de comer, mastiga-as e as mastiga.

    -Que asco! -exclamou JoBeth, e se tampou a boca com as mãos.

    -Pode estar segura -e enquanto o dizia, Spence se agachou e levantou a aterrada Freddie-. Já podem ir rezando. ides ser o primeiro prato -e com um amortecido "ooh", derrubou-se com elas no sofá.

    -Venceremo-lhe! -anunciou Freddie, subindo sobre ele-. As Irmãs Mágicas lhe vencerão.

    -Esta vez sim, mas a próxima ganhará o Monstro Beta -enquanto soprava para apartar a franja de seus olhos, viu a Natasha na porta-. Olá -Natasha encontrou adorável seu envergonhada sorriso-. Sou um pirata espacial.

    -Oh, vá, isso o explica tudo -antes de que tivesse entrado na sala, as duas meninas abandonaram ao pirata espacial e correram para ela.

    -Sempre ganhamos -explicou-lhe Freddie-. Sempre, sempre.

    -Me alegro de ouvi-lo. Eu não gostaria que o Monstro Beta se comesse a ninguém.

    -Só o inventa -explicou-lhe JoBeth prudentemente-. O doutor Kimball faz que as coisas inventadas pareçam reais.

    -Sim, sei.

    -JoBeth também vai se ficar jantando. Você é a convidada de papai e ela é minha convidada.

    -Parece-me muito bem -agachou-se para beijar ao Freddie e ao JoBeth-. Como está sua mamãe?

    -Vai ter um bebê -JoBeth enrugou o nariz e se encolheu de ombros.

    -E você a está cuidando?

    -Já não tem náuseas pelas manhãs, mas papai diz que vai se pôr muito gorda.

    Tristemente invejosa, Freddie correu para ela. -Vamos a meu quarto -disse ao JoBeth-, vamos brincar com os gatinhos.

    -Lave o rosto e as mãos -disse-lhes Beira, que entrava nesse momento com o champanha na geladeira-. E depois desçam para jantar devagar, caminhando como senhoritas, e não correndo como elefantes -olhou para o Spence-. A senhorita Stanislaski trouxe champanha.

    -Obrigado, Beira -lembrou-se então do ridículo casco que levava.

    -O jantar estará lista dentro de quinze minutos -avisou o ama de chaves antes de sair.

    -Agora já terá a certeza de que tenho planos para ti -murmurou Natasha-. Está segura de que vou detrás de seu dinheiro.

    Spence desarrolhou a garrafa rindo.

    -E tem razão. Mas também vai detrás de meu corpo -o champanha borbulhou nas taças.

    -Eu gosto de muito, sim. Seu corpo -aceitou a taça com um sorriso.

    -Então possivelmente goste de desfrutar dele mais tarde -aproximou sua taça a da Natasha-. Freddie me retorceu o braço até conseguir que a deixasse ir dormir a casa do JoBeth. Assim não terei que te abandonar, poderei ficar contigo esta noite. Toda a noite.

    Natasha bebeu um sorvo de vinho, deixando que seu sabor explorasse na língua.

    -Sim -respondeu. E lhe sorriu.

 

  CAPITULO 9

    Natasha contemplou as sombras dançantes que o abajur projetava nas paredes da habitação. Lentamente, brincavam sobre as cortinas, acariciavam a cadeira de balanço do rincão e a rosa seca que impulsivamente tinha metido em uma garrafa vazia de leite e tinha deixado sobre a cômoda. Seu quarto, pensou. Sempre tinha sido muito dela. Até...Com um meio suspiro, deixou que sua mão descansasse sobre o coração do Spence. Já não havia silêncio. O vento se levantou para arrojar uma tardia chuva contra as janelas. Na rua, o vento e o frio prometiam uma manhã coberta de geada. Mas Natasha não tinha frio; desfrutava de um agradável calor nos braços do Spence.

    O silêncio que havia entre eles resultava tão cômodo como tinha resultado seu amor. Aconchegaodos o um contra o outro, permaneciam muito quietos, satisfeitos, deixando que as horas fossem passando segundo a segundo. Cada um deles celebrava em silêncio o não ter que despertar em uma cama solitária.

    Spence deslizou a mão por sua coxa, por seu quadril e entrelaçou os dedos com os seus.

    Soava uma música no interior da cabeça da Natasha... A melodia que Spence lhe tinha devotado aquela manhã. Sabia que recordaria cada nota, cada acorde durante o resto de sua vida. E aquilo solo era o princípio para o Spence, um novo começo. A idéia ela adorava. Nos anos que tinha por diante, poderia escutar aquela música e recordar o tempo que tinham acontecido juntos. Cada vez que a ouvisse, poderia celebrar aquela união, inclusive embora a música o fizesse afastar-se dela.

    Mas tinha que perguntar-lhe .

    -Voltará para Nova Iorque?

    Spence lhe beijou o cabelo brandamente. -por que?

    -Começaste a compor outra vez -podia imaginar-lhe em Nova Iorque, elegantemente vestido, assistindo à estréia de sua própria sinfonia.

    -Não preciso estar em Nova Iorque para compor. E se de verdade começasse a fazê-lo, isso seria razão de mais para ficar aqui.

    -Freddie.

    -Sim, está Freddie. E também você.

    Natasha se moveu nervosa sob os lençóis. Imaginou ao Spence assistindo a uma festa particular depois da estréia, no Rainbow Room ou em algum clube privado. Ali poderia dançar com mulheres formosas.

    -O Nova Iorque que você vivia não se parecia nada ao meu.

    -Me imagino -Spence se perguntou por que parecia lhe importar tanto a Natasha-. Alguma vez pensaste em voltar?

    -A viver não, mas sim de visita -era uma tolice, disse-se, que ficasse tão nervosa por culpa de uma pergunta tão singela-. Minha mãe me chamou hoje.

    -Surgiu algum problema em sua casa?

    -Não. Só me chamou para me recordar que logo ia ser a comida de Ação de Graças. Quase o tínhamos esquecido. Todos os anos celebram a comida juntos... E comemos como alguma vez. Irá a sua casa a passar o dia?

    -Estou em minha casa.

    -Refiro-me à casa de sua família -incorporou-se para observar seu rosto.

    -Só tenho ao Freddie. E a Nina -acrescentou-. Mas ela sempre vai ao Waldorf.

    -E seus pais? Nunca te perguntei se ainda tem pais ou onde vivem.

    -Estão em Cannes -ou era em Monte Carlo? De repente se deu conta de que não estava seguro. Não tinha muita relação com eles.

    -Não voltarão para casa a passar a festa?

    -Nunca estão em Nova Iorque no inverno.

    -Oh -por muito que o tentasse, Natasha não era capaz de imaginar uma festa sem sua família.

    -Nunca jantávamos em casa o dia de Ação de Graças. Sempre saíamos, normalmente estávamos viajando -em suas lembranças da infância havia mais imagens de cidades que de pessoas, mais música que palavras-. Quando me casei com a Angela, normalmente saíamos para jantar a um restaurante e depois íamos ao teatro.

    -Mas... -obrigou-se a interromper-se e ficou em silêncio.

    -Mas o que?

    -Quando tiveram ao Freddie...

    -Nada trocou.

    Tombou-se de costas, com o olhar cravado no teto. Teria querido lhe falar de seu matrimônio, de si mesmo, do homem que tinha sido, mas decidiu atrasar o momento. Era muito logo, refletiu. Como podia construir nada quando ainda não tinha terminado de limpar os escombros de seu passado?

    -Nunca te falei que a Angela.

    -Não tem por que fazê-lo -sacudiu a cabeça outra vez. Ela o tinha convidado a dormir em sua casa, não a rastrear os fantasmas do passado.

    -É por mim -sentou-se na cama e estirou o braço para alcançar a garrafa de champanha que se levaram no quarto. Encheu duas taças e tendeu uma a Natasha.

    -Não necessito explicações, Spence.

    -Mas está disposta a me escutar?

    -Sim, se for importante para ti.

    Spence demorou um momento em preparar o que ia dizer.

    -Eu tinha vinte e cinco anos quando a conheci. Estava no topo do mundo, no que à música se referia e, para ser sincero, aos vinte e cinco anos não havia nada que me importasse mais. Tinha passado toda minha vida viajando, fazendo exatamente o que eu gostava e tendo êxito no que era mais importante para mim. Acredito que ninguém me negou nunca nada, nem me impediu de fazer algo. Quando a vi, quis-la.

    Interrompeu-se para beber um sorvo de champanha e voltou a cabeça. A seu lado, Natasha fixava o olhar na taça, observando o movimento das borbulhas.

    -E ela te quis.

    -A sua maneira. A pena foi que sua atração para mim era tão superficial como a minha para ela. E ao final resultou ser igualmente destrutiva. Eu amava as coisas formosas -Riu com ironia e voltou a beber-. E estava acostumado às ter. Ela era deliciosa como uma boneca de porcelana. Movíamo-nos nos mesmos círculos, assistíamos às mesmas festas, tínhamos os mesmos gostos em literatura e música.

    Natasha se trocou a taça de mão, desejando que suas palavras não a fizessem sentir-se tão triste.

    -É importante ter coisas em comum.

    -Oh, tínhamos muitíssimas coisas em comum. Ela era tão mimada e consentida como eu, igualmente egoísta e ambiciosa. Não acredito que compartilhássemos nenhuma qualidade digna de admiração.

    -É muito duro contigo mesmo.

    -Então não me conhecia -e descobriu que agradecia profundamente que assim fora-. Era um jovem muito rico que dava tudo o que tinha é obvio porque sempre o tinha tido. Mas as coisas trocam -murmurou.

    -Só as pessoas que nascem com dinheiro podem considerá-lo uma desvantagem.

    Spence a olhou; viu-a sentada, com as pernas cruzadas, agarrando a taça com as duas mãos. Seu olhar era solene e direto, e lhe fez sorrir para si.

    -Sim, tem razão. Pergunto-me o que teria acontecido se te tivesse conhecido quando tinha vinte e cinco anos -acariciou seu cabelo, mas não aprofundou nesse ponto-. O caso é que Angela e eu nos casamos, e em menos de um ano, antes de que se secou a tinta de nosso certificado de matrimônio, já nos tínhamos aborrecido um do outro.

    -Por que?

    -Porque naquele momento fomos muito parecidos. Quando começamos a nos distanciar, eu me propus fazer todo o possível para arrumar as coisas. Nunca tinha fracassado em nada. O pior de tudo era que queria que o matrimônio funcionasse, mais para satisfazer a meu próprio ego que por causa de meus sentimentos para ela. Estava apaixonado pela imagem de Ángela e da imagem que conformávamos juntos.

    -Sim -Natasha pensou em si mesmo e em seus sentimentos para o Anthony-. Compreendo-o.

    -De verdade? -sua pergunta foi sozinho um sussurro-. Levou anos compreendê-lo. Em qualquer caso, assim que o consegui, houve outras coisas que tivemos que considerar.

    -Freddie -interveio Natasha outra vez.

    -Sim, Freddie. Embora continuávamos vivendo juntos e, cumpríamos com as formalidades do matrimônio, Angela e eu já fazíamos vistas separadas. Mas em público e em privado fomos... Civilizados. Não posso te dizer o demandante, destrutivo e civilizado que pode chegar a ser o matrimônio. Era uma fraude, para ambas as partes. E os dois fomos igualmente culpados. Um dia chegou a casa furiosa, lívida. Lembrança como se aproximou do móvel bar e deixou cair o visom ao chão. Serve-se uma taça, esvaziou-a de um gole e a estrelou contra a parede. E me disse que estava grávida.

    Sentindo a garganta seca, Natasha bebeu.

    -Como se sentiu?

    -Estupefato. Estava impactado. Nunca tínhamos pensado em ter um filho. Já fomos suficientemente meninos, suficientemente mimados nós sozinhos. Ángela tinha tido muito pouco tempo para pensar no que ia fazer, mas já tinha uma resposta: viajaria a Europa e abortaria em uma clínica privada.

    Algo se esticou no interior da Natasha.

    -E era isso o que você queria?

    Spence desejou, Deus, como o desejou, ter podido responder com um inequívoco "não".

    -Ao princípio não sabia. Meu matrimônio estava destroçado, jamais tinha pensado em ter filhos. Parecia-me o mais sensato. Mas depois, e não estou seguro de por que, pus-me furioso. Suponho que foi porque uma vez mais, era o caminho mais fácil, o mais fácil para os dois. Ela sozinho queria que estalasse os dedos e a ajudasse A... Desfazer-se daquele inconveniente.

    Natasha apertou a mão em um punho. Spence não podia saber quanto lhe estavam doendo suas palavras. -E o que fez?

    -Cheguei a um acordo com ela. Se ela tinha o filho, daríamo-lhe outra oportunidade a nosso matrimônio. Se abortava, eu me divorciaria e me asseguraria de que não pudesse desfrutar do que ela considerava sua parte do dinheiro dos Kimball.

    -Porque você sim queria ter esse filho.-Não -era duro admiti-lo, ainda lhe custava fazê-lo-. Porque queria que minha vida transcorresse tal como a tinha imaginado. Porque sabia que se havia um aborto, as coisas jamais poderiam arrumar-se. E pensava possivelmente que, se compartilhávamos algo assim, poderíamos voltar a arrumar as coisas entre nós.

    Natasha permaneceu em silêncio um momento, absorvendo suas palavras e as vendo refletidas em suas próprias lembranças.

    -Às vezes a gente pensa que um bebê pode arrumar o que já está quebrado.

    -E isso não é certo -terminou Spence por ela-. Ninguém deveria fazer uma coisa assim. Para quando Freddie nasceu, eu já tinha perdido minha conexão com a música. Não podia escrever. Angela teve a Freddie e a passou a Beira, como se fora um gatinho. E eu não a tratei muito melhor.

    -Não -Natasha o agarrou pela boneca-. Vi-te com ela. Sei quanto a quer.

    -Agora. O que me disse aquele dia, nas escadas da universidade, sobre que não me merecia isso, doeu-me porque era verdade -viu que Natasha sacudia a cabeça, mas continuou-. Cheguei a um acordo com a Angela e durante mais de um ano o mantivemos. Eu logo que via a menina porque estava muito ocupado acompanhando a Angela ao balé ou ao teatro. Deixei de trabalhar por completo. Não fazia nada. Jamais atendi a Freddie, nem lhe dava de comer, nem a banhei, nem a cuidei pelas noites. Às vezes, ouvia-a chorar no outro quarto e me perguntava o que era esse ruído. Depois o recordava.

    Spence tomou a garrafa para encher outra vez sua taça.

    -Em uma ocasião, antes de que Freddie fizesse dois anos, comecei a pensar e me dava conta do que tinha feito com minha vida. E do que não tinha feito. Enojava-me. Tinha uma filha. Havia-me flanco mais de um ano me dar conta disso. Não tinha um matrimônio, nenhuma esposa nem a música, mas tinha uma filha. Decidi que tinha uma obrigação, uma responsabilidade, e já era hora de que enfrentasse a ela. Assim é como pensei em Freddie ao princípio, quando comecei a pensar nela. Como se fora uma obrigação -bebeu outra vez e sacudiu a cabeça-. Era pouco melhor que ignorá-la. Ao final vi, vi realmente, quão formosa era essa pequena e me apaixonei por ela. Levantei-a do berço, terrivelmente assustado, e a sustentei em braços. Começou a chorar, chamando Beira.

    Spence riu ao recordá-lo e fixou o olhar na taça.

    -Demorou meses em chegar a sentir-se cômoda comigo. Para então, eu já lhe tinha pedido a Angela o divórcio. Ela aceitou minha oferta sem pestanejar. Quando lhe disse que queria ficar à menina, desejou-me sorte e se largou. Jamais retornou para ver o Freddie, nenhuma só vez durante os meses nos que os advogados estiveram brigando para chegar a um acordo. Depois me inteirei de que tinha morrido. Um acidente em iate no Mediterrâneo. Às vezes tenho medo de que Freddie recorde como era sua mãe. De que recorde como era eu.

    Natasha recordou o que Freddie lhe tinha contado de sua mãe quando a tinha balançado. Deixou a taça a um lado e emoldurou o rosto do Spence entre as mãos.

    -Os meninos perdoam -disse-lhe-. É fácil perdoar quando se quer a alguém. É mais duro, é muito mais duro, perdoar-se a gente mesmo. Mas tem que fazê-lo.

    -Acredito que já comecei a fazê-lo. Natasha lhe tirou a taça.

    -Quero te fazer o amor -disse simplesmente, e o abraçou.

    Uma vez apaziguada a paixão, tudo era diferente. Mais lento, mais suave, mais rico. De joelhos na cama, encontraram-se em um beijo. Foi uma larga e lenta exploração de gostos que já começava a lhes resultar inquietantemente familiares. Natasha queria lhe demonstrar o que significava para ela, e que o que estavam compartilhando aquela noite pertencia a mundos distintos dos que procediam. Natasha queria consolá-lo, excitá-lo, desencardi-lo.

    Um suspiro, um murmúrio, depois um lento e líquido gemido. Os sons foram seguidos por uma ligeira e breve carícia. Deslizou as gemas dos dedos por sua pele. Natasha conhecia o corpo do Spence tão bem como o seu, conhecia cada ângulo, cada plano, cada rincão. Quando a respiração do Spence se converteu em um sussurro, Natasha riu. Enquanto o observava à luz das velas, beijou sua têmpora, sua bochecha, as comissuras de seus lábios, sua garganta. Sentia-o palpitar por ela.

    Natasha era mais erótica que qualquer fantasia. Seu corpo se balançava aproximando-se e afastando-se dele, mas seus olhos não se separavam dos seus, resplandecentes, conscientes, enquanto seu cabelo caía como uma corrente de escura seda sobre seus ombros nus.

    Quando Spence a acariciou, deslizando as mãos por todo seu corpo, Natasha jogou a cabeça para trás. Mas não havia nada de submissão em seu gesto. Era uma demanda: estava pedindo que lhe desse prazer.

    Com um suave gemido, Spence baixou a boca dos lábios da Natasha até sua garganta e sentiu o desejo cravando-se como um punho em suas vísceras. Com a boca cada vez mais ávida, riscou um caminho por seu corpo, detendo-se em seus seios cheios. Podia sentir seu coração, quase saboreá-lo, enquanto o notava pulsar contra seus lábios. Natasha afundava as mãos em seu cabelo, aferrava-se a ele com força enquanto se arqueava.

    Antes de que pudesse pensar em alcançá-la, Natasha já estava voando sobre as cúpulas do prazer.

    Sem respiração, estremecida, abraçava-se a ele. Logo que era capaz de sussurrar enquanto ele a ajudava a tombar-se na cama. Tentava recuperar o controle de seu corpo, mas Spence já tinha feito pedacinhos sua vontade e toda sua capacidade de controle.

    Isso era sedução. Ela não a tinha pedido, e tampouco a tinha desejado. Mas naquele momento a recebia com prazer. Não podia mover-se, não podia protestar. Indefesa, afogada em seu próprio prazer, permitia-lhe fazer dela o que quisesse. Os lábios do Spence vagavam livremente sobre sua pele empapada em suor. Suas mãos jogavam com ela como se estivessem afinando habilmente um instrumento. Natasha sentia como se relaxavam seus músculos até alcançar uma total lassidão.

    Sua respiração começou a agitar-se. Ouvia música. Sinfonias, cantatas, prelúdios. A debilidade se transformou em força enquanto o abraçava, desejando sentir seu corpo contra o seu.

    Lenta, tormentosamente, Spence percorria seu corpo, deixando um caminho de gelo e de fogo, de prazer e dor. Seu próprio corpo se estremecia quando Natasha se movia debaixo dele. Procurou sua boca para afundar-se nela e não deixou de beijá-la quando Natasha cravou os dedos em seus quadris.

    Uma e outra vez, Spence os levava até o limite, mas uma vez ali retrocedia, prolongando e multiplicando o prazer. O pescoço da Natasha era uma coluna branca com a que Spence se deleitava cada vez que a via elevar-se para ele. Sentia seus braços a seu redor como um laço de seda. Sentiu o fôlego da Natasha em sua bochecha, em sua boca, onde cristalizou em seu nome, como se fora um rogo murmurado contra seus lábios.

    Quando se deslizou em seu interior, inclusive o prazer se fez pedacinhos.

   

    Natasha despertou e sentiu o aroma do café e o sabão e a gozosa sensação de que alguém lhe beijasse o pescoço.

    -Se não despertar -sussurrou-lhe Spence ao ouvido-, vou colocar me outra vez na cama contigo.

    -De acordo -disse Natasha com um suspiro e se acurrucó contra ele.

    Spence dirigiu um largo e relutante olhar para seus ombros, que apareciam nus entre os lençóis.

    -É tentador, mas devo estar em casa dentro de uma hora.

    -Por que? -Natasha o buscou com os olhos ainda fechados.

    -São quase as nove.

    -As nove? Da manhã? -abriu os olhos imediatamente e se sentou na cama. Prudentemente, Spence apartou a taça de café de seu alcance-. Como podem ser nove?

    -Bom, é algo que está acostumado a passar depois das oito.

    -Mas eu nunca durmo até tão tarde -jogou-se o cabelo para trás com ambas as mãos e conseguiu enfocar o olhar-. Está vestido.

    -Desgraçadamente -confirmou-lhe, mais relutante ainda ao ver como os lençóis se deslizavam até sua cintura-. Levarão ao Freddie a casa às dez. Me tomei banho -alargou o braço e começou a brincar com seu cabelo-. Ia despertar te, para ver se queria te reunir comigo, mas estava tão profundamente dormida que não tive coração para fazê-lo -inclinou-se para lhe mordiscar o lábio inferior-. Nunca te tinha visto dormida.

    A Natasha bastou aquela ideia para sentir como corria o sangue sob sua pele.

    -Deveria haver despertado.

    -Sim -ofereceu-lhe a taça de café com uma meio sorriso-. Agora compreendo que cometi um engano. Cuidado com o café -advertiu-lhe-. Está muito mau. É a primeira vez que o faço.

    Sem deixar de olhá-lo, Natasha bebeu um sorvo e fez uma careta.

    -Realmente, deveria haver despertado -mas bebeu corajosamente outro gole, pensando no gesto tão doce que tinha tido ao levar-lhe à cama-. Tem tempo para tomar o café da manhã? Posso preparar algo.

    -Eu adoraria. Pensava comprar um donuts na padaria que está ao final da rua.

    -Não sou capaz de fazer uma confeitaria como a da padaria, mas te prepararei uns ovos -rendo, deixou a taça a um lado-. E um bom café.

    Em menos de dez minutos, Natasha, envolta em uma bata vermelha, estava fritando fatias de presunto. Ao Spence gostava de vê-la assim, com o cabelo revolto e os olhos ainda sonolentos. movia-se competentemente da cozinha até a encimera, como uma mulher acostumada a fazer esse tipo de tarefas.

    Fora, um céu apagado e cinza empapava as ruas da fria chuva de novembro. Spence ouviu passos no piso de acima e depois uma suave melodia. Era uma peça de jazz, procedente da rádio dos vizinhos. ouvia-se também o chiado do presunto no fogo e o zumbido do aquecedor sob a janela. Música matutina, pensou Spence.

    -Poderia chegar a me acostumar a isto -comentou, expressando seus pensamentos em voz alta.

    -A que? -Natasha colocou duas fatias de pão no torrador.

    -A me levantar contigo, a tomar o café da manhã contigo.

    A Natasha tremeram as mãos, como se seus pensamentos acabassem de trocar repentinamente de rumo. Depois começou a trabalhar outra vez sem dizer nada absolutamente.

    -Pareceu-te mal o que hei dito, verdade?

    -Não é questão de que me tenha parecido bem ou mau -com movimentos rápidos, tendeu-lhe uma taça de café.

    Começou a dar meia volta, mas Spence a agarrou pela boneca. Quando se obrigou a olhá-lo, Natasha advertiu que a expressão de seus olhos era muito intensa.

    -Não quer que me apaixone por ti, Natasha, mas isso não é algo que nenhum dos dois possamos escolher.

    -Sempre se pode escolher -respondeu ela com receio-. O problema é que às vezes é difícil tomar a decisão correta, ou saber qual é a correta.

    -Então já não há nada que fazer. Estou apaixonado por ti.

    Viu a mudança que se produziu em seu rosto, que de repente pareceu abrandar-se; e viu também algo em seus olhos, algo profundo e incrivelmente belo. Mas de repente desapareceu.

    -Vão se queimar os ovos.

    Spence apertou os punhos enquanto Natasha se voltava para a cozinha. Lentamente, flexionou os dedos.

    -Hei dito que te amo e você se preocupa pelos ovos.

    -Sou uma mulher prática, Spence. Tive que aprender a sê-lo -mas lhe resultava difícil pensar, muito difícil, quando sua mente e seu coração atiravam em direções contrárias. Preparou os pratos com o mesmo cuidado com o que teria preparado um jantar de estado. Pensando uma e outra vez nas palavras que ainda rondavam em sua cabeça, levou-os a mesa e se sentou frente a Spence.

    -Muito recentemente que nos conhecemos.

    -O suficiente.

    Natasha se umedeceu os lábios. O que percebeu na voz do Spence tinha mais que ver com a dor que com o aborrecimento. E não havia nada que Natasha desejasse menos que lhe fazer danifico.

    -Há coisas sobre mim que não sabe. Coisas que ainda não estou preparada para te contar.

    -Não importa.

    -Claro que importa -tomou ar-. Há algo entre nós. Seria ridículo tentar negá-lo. Mas amor... "Amor" é a palavra maior do mundo. Se compartilharmos essa palavra, então tudo trocará.

    -Sim.

    -E não posso deixar que as coisas troquem. Disse-te do primeiro momento que não haveria promessas nem projetos. Não quero que minha vida troque, que deixe de ser o que é agora.

    -É porque tenho uma filha?

    -Sim e não -pela primeira vez desde que Spence a conhecia, os gestos da Natasha expressavam abertamente seus medos-. Continuaria querendo ao Freddie embora te odiasse. Por isso ela é. te querer a ti só serve para querê-la mais. Mas tanto para mim como para ti, as coisas trocariam de forma radical se decidíssemos dar um passo adiante. E não estou preparada para assumir a responsabilidade de educar a uma menina -escondida depois da mesa, levou-se a mão ao estômago-. Mas com o Freddie ou sem ela, não estou disposta a dar o próximo passo adiante. Sinto muito, e te compreenderia se não queria voltar para ver-me.

    Debatendo-se entre a frustração e a fúria, Spence se levantou e se aproximou da janela. A chuva continuava caindo fracamente, empapando as flores do jardim. Natasha tinha passado por algo enorme e vital. E não confiava ainda nele, Spence sabia. Depois de tudo o que tinham compartilhado, não confiava nele. Ao menos não o suficiente.

    -Sabe que não posso deixar de verte, e tampouco deixar de te amar.

    Claro que poderia deixar de amá-la, pensou Natasha, mas descobriu que tinha medo de dizer-lhe Era egoísta, terrivelmente egoísta, mas queria que Spence a amasse.

    -Spence, faz três meses nem sequer te conhecia.

    -Então estou precipitando as coisas.

    Natasha se encolheu de ombros e começou a cravar os ovos.

    Spence a estudava de detrás. Observava seus dedos inquietos deslocar-se do garfo à taça e depois da taça ao garfo. Não estava precipitando absolutamente nada e ambos sabiam. Inclinou-se contra a janela, pensando nisso. Algum canalha lhe tinha quebrado o coração e Natasha tinha medo de que voltassem a romper-lhe outra vez.

    Muito bem, pensou. Conseguiria lhe fazer trocar de opinião. Com um pouco de tempo e a mais sutil forma de pressão. Convenceria-a, prometeu-se a si mesmo. Pela primeira vez em sua vida, não pensava que nada podia ser mais importante que sua música. Durante os últimos anos, tinha aprendido a ver as coisas de maneira diferente. Sua filha era imensamente mais importante, mais preciosa e mais bela que toda a música do mundo. E tinha aprendido em só umas semanas que uma mulher também podia ser tão importante como sua filha, de uma forma distinta, sim, mas igualmente importante.

    Freddie o tinha esperado a ele, Deus a benzera. O podia esperar a Natasha.

    -Quer ir ao cinema?

    Natasha se tinha preparado para enfrentar-se a seu aborrecimento, assim que se limitou a olhá-lo confundida por cima do ombro.

    -O que?

    -Hei dito que se você gostaria de vir ao cinema. A ver um filme -como se nada tivesse passado, voltou a sentar-se à mesa-. Prometi ao Freddie que a levaria esta tarde ao cinema.

    -Eu... Sim -apareceu em seus lábios um receoso sorriso-. Eu gostaria de ir com vós. Não está zangado comigo?

    -Sim, estou zangado -Spence lhe devolveu o sorriso enquanto começava a comer-. Assim se vier, terá que comprar as pipocas.

    -De acordo.

    -De tamanho grande.

    -Ah, agora começo a compreender sua estratégia. Faz-me sentir culpado para que depois tenha que me gastar meu dinheiro contigo.

    -Isso. E quando te arruinar, terá que te casar comigo. Uns ovos riquíssimos -acrescentou, quando Natasha o olhou boquiaberta-. Deveria comer os teus antes de que se esfriem.

    -Sim -Natasha se esclareceu garganta-. Posto que me ofereceste um convite, eu vou fazer outra. Lhe pensava haver isso dito ontem de noite, mas me tiveste muito distraída.

    -Recordo-o -Spence esfregou o pé da Natasha com o seu-. Resulta muito fácil te distrair, Natasha.

    -Possivelmente. É sobre a chamada de minha mãe e o dia de Ação de Graças. Disse-me que se queria, podia levar a alguém a casa -olhou os ovos com o cenho franzido-. Mas suponho que você já tem outros planos.

    Spence esboçou um sorriso lento e satisfeito. Possivelmente não tivesse que esperar tanto como pensava.

    -Está-me convidando à comida de Ação de Graças de sua família?

    -Em realidade o convite é de minha mãe -precisou-. Sempre faz muita comida e tanto a ela como a meu pai gosta de estar bem acompanhados. Quando me disse isso, pensei em ti e no Freddie.

    -Me alegro de saber que pensa em nós. Obrigado.

    -De nada -disse, zangada consigo mesma por estar alargando tanto o que deveria ter sido um singelo convite-. Sempre estou acostumado a partir na quarta-feira pela tarde em trem e volta as sextas-feiras de noite. Como na sexta-feira não terá que trabalhar, pensei que ao melhor gostaria de vir comigo.

    -Teremos que comer broscht?

    Natasha curvou os lábios em um sorriso.

    -Poderia lhe pedir a minha mãe que o fizesse -apartou seu prato a um lado quando viu que os olhos do Spence resplandeciam-. Não quero que te forme uma idéia equivocada. Simplesmente é um convite de amiga a amigo.

    -Muito bem.

    Natasha o olhou com o cenho franzido.

    -Acredito que ao Freddie gostará de desfrutar de uma comida familiar.

    -Muito bem outra vez.

    Sua excessiva complacência a fez bufar frustrada.

    -Que a comida seja em casa de meus pais não significa que queira te levar ali por... -sacudiu a mão, enquanto procurava uma frase apropriada-, para procurar sua aprovação ou para te apresentar.

    -Quer dizer que seu pai não vai levar me a seu escritório para me perguntar quais são minhas intenções?

    -Não temos despacho -murmurou Natasha-. E não. Já sou uma mulher adulta -como Spence sorria de brinca a orelha, olhou-o arqueando uma sobrancelha-. Embora possivelmente se dedique a te estudar discretamente.

    -Comportarei-me tudo quão bem possa.

    -Então virá?

    Spence se recostou em seu assento, deu um sorvo a seu café e sorriu para si.

    -Não me perderia isso por nada do mundo.

 

  CAPITULO 10

    Freddie permanecia sentada no assento de atrás, coberta com uma manta até o queixo e abraçado a sua boneca de trapo. Como queria desfrutar de suas próprias fantasias enquanto viajava, fingia dormir e a verdade era que cochilava realmente de vez em quando. A viagem até Nova Iorque era muito grande, mas estava muito emocionada para aborrecer-se. Ouvia-se uma suave melodia na rádio. Como boa filha de seu pai, podia reconhecer que se tratava de uma peça do Mozart, mas como menina, lhe teria gostado que pusessem algo que pudesse cantar. Tinham deixado já a Beira em casa de sua irmã, em Manhattan, onde o ama de chaves pensava ficar até no domingo. E nesse momento Spence se dirigia em seu enorme e silencioso carro para o Brooklyn.

    Para o Freddie supôs uma pequena desilusão que não tivessem ido de trem, mas gostava de aconcherga-se e escutar a seu pai e a Natasha enquanto falavam. Não emprestava muita atenção ao que diziam. Ouvindo suas vozes era suficiente.

    Sentia-se quase doente de emoção ante a idéia de conhecer a família da Natasha e compartilhar com ela um enorme peru. Embora o peru não gostava de muito, Natasha lhe havia dito que poderia encher-se com o molho de arándanos e succotash. Ela nunca tinha comido succotash, mas o nome lhe parecia divertido e sabia que estaria bom. Mas embora não o estivesse, embora não gostasse, estava decidida a comer-se tudo, a ser educada e a deixar o prato limpo. JoBeth lhe tinha contado que sua avó se zangava quando não se comia todas as verduras, assim Freddie não ia correr riscos.

    Sentiu uma piscada de luzes sobre suas pálpebras fechadas. Curvou os lábios ligeiramente para ouvir a gargalhada da Natasha unindo-se à risada de seu pai. Em sua imaginação, já eram uma família. Em vez de uma boneca de trapo, Freddie cuidava atentamente de seu irmãzinha enquanto conduziam todos para casa dos avós. Era como a canção, pensou, embora não sabia se a casa dos avós estaria sobre o rio. E além não acreditava que tivessem que cruzar nenhum bosque.

    Sua irmãzinha se chamava Katie e tinha o cabelo negro e encaracolado como o da Natasha. Quando Katie chorava, Freddie era quão única podia consolá-la. Katie dormia em uma caminha, no quarto de Freddie, e Freddie sempre se assegurava de agasalhá-la com sua mantinha rosa. Os bebês podiam constiparse, Freddie sabia. E quando o faziam, terei que lhes dar os remédios com um conta-gotas. E todo mundo dizia que Katie se tomava muito melhor os remédios quando as dava Freddie.

    Encantada consigo mesma, Freddie abraçou a sua boneca.

    -Vamos ver a avó -sussurrou-lhe, e começou a tecer uma nova fantasia ao redor da visita.

    O problema era que Freddie não estava segura de como devia fingir que eram seus avós. Ao melhor não gostava dos meninos, pensou. Ou possivelmente não queriam que fossem ver os. Quando chegasse ali, sentaria-se em uma cadeira com as mãos cruzadas no regaço. Assim era como dizia a tia Nina que se sentavam as senhoritas. Freddie odiava ser uma senhorita. Mas só teria que estar umas horas sentada, sem falar em voz alta e nunca, nunca, correria pela casa.

    Zangariam-se com ela e a olhariam com o cenho franzido se lhe caía algo ao chão. Possivelmente lhe gritassem. Tinha-lhe ouvido dizer ao JoBeth que seu pai gritava, especialmente quando o irmão maior do JoBeth, que estava já em terceiro grau, tinha tomado um dos paus de golfe de seu pai e se pôs a lançar pedras com eles no jardim de sua casa. Uma das pedras tinha quebrado a janela da cozinha.

    Possivelmente rompesse ela uma janela sem querer. Então Natasha não se casaria com seu pai nem ficaria com eles. Não haveria mãe nem nenhuma irmãzinha, e seu pai deixaria de tocar música pelas noites.

    Quase paralisada por seus pensamentos, Freddie se encolheu em seu assento à medida que o carro reduzia a velocidade.

    -Sim, excursão aqui -ao ver seu bairro, a Natasha subiu ainda mais o ânimo-. Já quase estamos, à esquerda. Agora teria que estacionar... Olhe, aí -assinalou um oco detrás da caminhonete de seu pai. Evidentemente, os Stanislaski tinham comentado no bairro que foram chegar sua filha e uns amigos e tinham decidido cooperar.

    Ali sempre eram assim as coisas, pensou. Os Poffenberger viviam a um lado da casa e os Anderson ao outro desde que Natasha podia recordar. Uma família lhe levava a outra a comida quando havia alguém doente e se alternavam par ir procurar aos meninos ao colégio. Tinham compartilhado penas e alegrias. E tinham abundado as fofocas.

    Mikhail tinha estado saindo com a bonita filha dos Anderson, e anos depois tinha sido o padrinho de suas bodas, quando a garota se casou com um dos amigos do Mikhail. Os pais da Natasha eram os padrinhos de um dos bebês dos Poffenberger.

    Possivelmente essa fora a razão pela que, quando Natasha tinha descoberto que necessitava um novo lugar para começar uma nova vida, decidiu-se por uma cidade que recordava a seu lar. Possivelmente não em seu aspecto, mas sim no tipo de relações que se estabeleciam entre a gente.

    -No que está pensando? -perguntou-lhe Spence.

    -Só estava recordando -voltou a cabeça para lhe sorrir-. Me alegro de voltar -saiu à calçada e se estremeceu ao sentir o ar gelado. Depois abriu a porta traseira para que saísse Freddie-. Freddie, está dormindo?

    Freddie permanecia encolhida, com os olhos abertos.

    -Não.

    -Já chegamos. É hora de sair do carro.

    Freddie tragou saliva e apertou a boneca contra seu peito.

    -E se não gostam?

    -A que vem isto? -Natasha se agachou a seu lado e lhe apartou o cabelo da cara-. Estiveste sonhando?

    -Ao melhor não gosta e não querem que esteja ali. Talvez acreditam que sou uma peste. Há muitas pessoas que pensam que os meninos são uma peste.

    -Então há muita gente estúpida -disse Natasha energicamente, enquanto lhe grampeava o casaco.

    -Ao melhor. Mas é possível que eu não gostem.

    -E se você não gosta deles?

    Isso era algo que não lhe tinha ocorrido pensar. Freddie se esfregou o nariz com o dorso da mão, considerando o que acabam de lhe dizer, antes de que Natasha lhe desse um lenço.

    -São simpáticos?

    -Eu acredito que sim. Mas você mesma o decidirá quando os conhecer, de acordo?

    -De acordo.

    -Senhoritas, acredito que deveriam escolher outro momento para sua conversação -Spence permanecia a pouca distância delas, ocupando da bagagem-. O que está acontecendo aqui? -perguntou, quando se reuniu com elas na calçada.

    -É uma conversação entre mulheres -respondeu Natasha, piscando os olhos o olho ao Freddie e fazendo-a rir.

    -Magnífico -Spence começou a caminhar sobre a calçada, seguindo a Natasha-. Não há nada melhor que suportar um vento glacial enquanto se sujeitam trezentos quilogramas de bagagem. O que leva aí, tijolos?

    -Só algumas coisas que considero essenciais -encantada com ele, voltou-se e lhe deu um beijo na bochecha... Justo no momento no que Ninguéma abria a porta.

    -Bem -agradada, Ninguéma se cruzou de braços-. Já disse a papai que chegaria antes de que terminasse Johnny Carson.

    -Mamãe!

    Natasha subiu correndo os degraus da entrada para abraçar a sua mãe. Aquela era a essência que sempre recordava; uma deliciosa mescla a talco e noz moscada. E como sempre, o corpo forte e firme de sua mãe. O aspecto forte de Ninguéma parecia acentuar-se com as rugas que as risadas e as preocupações tinham deixado em seu rosto.

    Ninguéma murmurou umas palavras de afeto e beijou a Natasha nas bochechas. Ao ver sua filha, via-se si mesmo vinte anos atrás.

    -Venha, não deixe que seus convidados morram de frio.

    O pai da Natasha apareceu naquele momento no vestíbulo e a levantou em braços. Não era um homem alto, mas os anos que tinha passado trabalhando na construção tinham conferido a seus braços a dureza do granito. Soltou uma gargalhada e beijou a sua filha.

    -Miúdos maneiras -declarou Ninguéma enquanto fechava a porta-. Yuri, Ninguéma trouxe convidados.

    -Olá -Yuri tendeu sua calosa mão ao Spence-: Bem-vindo.

    -Estes são Spence e Freddie Kimball -enquanto fazia as apresentações, Natasha advertiu que Freddie deslizava a mão na de seu pai.

    -Encantados de lhes conhecer -tão carinhosa como sempre, Ninguéma os beijou aos dois-. Lhes tirem os casacos e sentem-se. Seguro que estão cansados.

    -Agradecemos o convite -começou a dizer Spence. Depois, sentindo que Freddie estava nervosa, levantou-a em braços e a levou a comilão.

    Era uma sala pequena, com as paredes empapeladas e uns móveis já velhos. Mas havia toalhas de mesa de agulha de crochê nos braços das poltronas, a madeira resplandecia e havia preciosas almofadas em qualquer parte. Entre as novelo e quinquilharias, apareciam as numerosas fotos emolduradas da família.

    Um rouco fôlego lhe fez baixar ao Spence o olhar. Havia um cão cinza em uma esquina que começou a mover a cauda quando viu a Natasha. Fazendo um óbvio esforço, levantou-se e foi rebolando até ela.

    -Sasha -Natasha se agachou para enterrar o rosto na pelagem do cão. Soltou uma gargalhada quando o animal voltou a sentar-se e se recostou contra ela-. Sasha é muito velho -explicou ao Freddie-. O que mais gosta de é dormir e comer.

    -E beber vodca -assinalou Yuri-. Agora beberemos todos. Exceto você -acrescentou, apontando com o dedo o nariz do Freddie-. Você tomará champanha, verdade?

    Freddie riu brandamente e se mordeu o lábio. O pai da Natasha não era exatamente como se imaginou a seu avô. Yuri não tinha o cabelo branco como a neve nenhuma grande barriga. Em realidade, tinha o cabelo negro e branco ao mesmo tempo, e não tinha nenhuma barriga absolutamente. Falava de forma divertida, com uma voz vibrante e amável. E cheirava muito bem, como as cerejas. E seu sorriso era muito bonito.

    -O que é o vodca?

    -Uma bebida russa -respondeu-lhe Yuri-. Uma bebida que se faz de cereais.

    Freddie enrugou o nariz.

    -Isso sonha asqueroso -disse, e imediatamente se mordeu o lábio. Mas quando Yuri estalou em gargalhadas, conseguiu esboçar um tímido sorriso.

    -Natasha te terá contado que a seu papai sempre gosta de brincar com as meninas -Ninguéma lhe deu uma cotovelada a seu marido nas costelas-. Isso é porque em seu coração segue sendo um menino. Gosta de um chocolate quente?

    Freddie se debatia entre a segurança da mão de seu pai e uma de suas tentações favoritas. E Ninguéma lhe estava sorrindo, não com um desses sorrisos ridículos com as que os adultos olhavam às vezes aos meninos. A de Ninguéma era um sorriso carinhoso como a da Natasha.

    -Sim, senhora.

    Ninguéma assentiu agradada pelos bons maneiras da menina.

    -Talvez prefere vir comigo. Ensinarei-te a fazer uns merengues enormes.

    Esquecendo seu acanhamento, Freddie abandonou a mão do Spence para tomar a de Ninguéma.

    -Tenho dois gatos -disse-lhe orgulhosamente enquanto entravam na cozinha-. E o dia de meu aniversário tive varicela.

    -Sentem-se, sentem-se -ordenou-lhes Yuri, assinalando para o sofá-. Vamos tomar uma taça.

    -Onde estão Alex e Rachel? -com um suspiro satisfeito, Natasha se afundou no sofá.

    -Alex se foi com sua noiva ao cinema. É uma garota muito bonita -disse Yuri, elevando seus brilhantes olhos ao céu-. E Rachel está em uma conferência. Um desses importantes advogados de Washington, D.C. que veio à universidade.

    -E como está Mikhail?

    -Muito ocupado. Está arrumando um apartamento no Soho -aproximou-lhes as taças e brindou com eles antes de beber-. Assim -disse ao Spence enquanto se sentava em sua poltrona favorita-, dedica-te a ensinar música.

    -Sim. Natasha é uma de minhas melhores alunas de História da Música.

    -É uma garota muito inteligente minha Natasha -recostou-se na cadeira e estudou ao Spence sem nenhuma discrição, desmentindo os prognósticos da Natasha-. Assim são bons amigos.

    -Sim -Natasha reparou incômoda no brilho dos olhos de seu pai-, somos amigos. Spence veio a viver à cidade este verão. Ele e Freddie viviam em Nova Iorque.

    -Vá, isso sim que é interessante. Assim foi coisa do destino.

    -Eu gosto de pensar que sim -mostrou-se de acordo Spence, desfrutando da conversação-. Tive a sorte de ter uma filha pequena e de que Natasha seja proprietária de uma loja de brinquedos terrivelmente tentadora. E, além disso, ela se matriculou em uma de minhas classes. De modo que lhe foi impossível me evitar quando começou a ficar cabeça dura.

    -É muito cabeça dura, sim -confirmou Yuri com tristeza-. E sua mãe também. Eu, entretanto, sou mais simpático.

    Natasha bufou zombadora.

    -A cabezonería e a falta de respeito são dois rasgos próprios das mulheres da família -Yuri bebeu outro gole-. Essa é minha desgraça.

    -Possivelmente algum dia eu tenha a sorte de poder dizer o mesmo -Spence sorriu por cima do bordo do copo-. Quando conseguir convencer a Natasha de que se case comigo.

    Natasha se levantou imediatamente, ignorando o sorriso de seu pai.

    -Posto que já lhes subiu o vodca à cabeça, irei ver se a mamãe fica um pouco de chocolate para mim.

    Yuri se levantou da cadeira para alcançar a garrafa enquanto Natasha desaparecia.

    -Enfim, deixaremos o chocolate para as mulheres.

   

    Natasha despertou ao amanhecer, com o Freddie aconchegava em seus braços. Estava na cama em que tinha dormido quando era menina, na mesma habitação em que ela e sua irmã tinham acontecido incontáveis horas rendo, falando e discutindo. O papel das paredes era o mesmo. Rosas quedas. Cada vez que sua mãe ameaçava pintando-o, Rachel e ela protestavam. Sentia algo especial ao despertar rodeada pelas mesmas paredes que a tinham acompanhado durante a infância e através da adolescência.

    Voltou a cabeça e pôde ver a escura juba de sua irmã na cama do lado. Os lençóis e as mantas estavam todas revoltas. Típico do Rachel, pensou com um sorriso. Rachel tinha mais energia dormindo que a maior parte da gente acordada. Tinha chegado a casa pouco depois da meia noite, ardendo de entusiasmo pela conferência a que tinha assistido, cheia de abraços, beijos e perguntas.

    Natasha beijou a Freddie no cabelo e se separou dela com cuidado. A menina se aninhou nos lençóis, fazendo um suave som. Natasha se levantou lentamente. Necessitou um momento para recuperar o equilíbrio quando pôs os pés no chão. Quatro horas de sonho, decidiu, eram motivo suficiente para que qualquer se enjoasse ao levantar-se.

    Quando chegou ao piso de abaixo, recebeu-a o aroma do borbulhante café. Embora naquele momento não gostava, seguiu a fragrância até a cozinha.

    -Mamãe -Ninguéma já estava trabalhando e estirava com o pau de macarrão um bom pedaço de massa-. É muito cedo para estar cozinhando.

    -Oh, nunca é muito logo para começar a preparar a comida do dia de Ação de Obrigado. Quer um café?

    Natasha se levou a mão ao estômago.

    -Não, acredito que não. Suponho que esse vulto coberto de lençóis que há no sofá é Alex.

    -Sim, chegou muito tarde -Ninguéma apertou os lábios brevemente, com gesto de desaprovação, e se encolheu de ombros-. Já não é um menino.

    -Não, e terá que te enfrentar a isso, mamãe, seus filhos já cresceram. E você os criaste muito bem.

    -Não tão bem, Alex ainda não aprendeu a recolher os meias três-quartos -sorriu, esperando no fundo que seu filho não a privasse do último vestígio da maternidade tão logo.

    -Papai e Spence se deitaram muito tarde?

    -A papai adora falar com seu amigo. É um homem muito agradável -Ninguéma fez um círculo de massa e o colocou em uma fonte-. E muito atrativo.

    -Sim -mostrou-se de acordo Natasha, não sem receio. -Tem um bom trabalho, é responsável e quer a sua filha.

    -Sim -voltou a dizer Natasha.

    -Por que não casa com ele, se ele tiver tantas vontades de casar-se?

    Natasha imaginava que chegaria aquele momento. Reprimiu um suspiro e se apoiou contra a mesa da cozinha.

    -Há muitos homens amáveis, responsáveis e atrativos, mamãe. Deveria me casar com todos eles?

    -Não há tantos como crê -sorrindo para si, Ninguéma começou a preparar uma terceira base de massa-. Não o ama? -como Natasha não respondeu, o sorriso de Ninguéma se alargou-. Ah.

    -Não comece. Spence e eu sozinho nos conhecemos há dois meses. Há muitas coisas que ele não sabe de mim.

    -Conte a ele.

    -Não acredito que seja capaz.

    Ninguéma deixou o pau de macarrão para emoldurar o rosto de sua filha com duas mãos cobertas de farinha. -Ele não é como o outro.

    -Não, já sei, mas...

    Impaciente, Ninguéma sacudiu a cabeça.

    -Continuar te guardando algo que aconteceu faz tanto tempo só vai servir te para te provocar uma enfermidade. Tem um bom coração, Tash, confia nele.

    -Quero confiar -abraçou a sua mãe-. Amo-o mamãe, mas ainda me assusta. E ainda me dói -exalou um comprido suspiro-. Preciso usar a caminhonete de papai.

    Ninguéma não perguntou aonde ia. Não precisava fazê-lo.

    -Sim, se quiser, posso te acompanhar.

    Natasha se limitou a beijar a sua mãe e sacudiu a cabeça.

   

    Natasha saiu uma hora antes de que Spence baixasse com olhos cansados as escadas. Intercambiou com o ancião cão cinza uma olhadas de compreensão. Yuri tinha sido generoso com o vodca a noite anterior, tanto com seu convidado como com seu mascote. E nesse momento, Spence se sentia como se estivessem golpeando-o com uma cadeia na cabeça. Movendo-se como um autômato, encontrou a cozinha, seguindo o aroma da massa no forno e a feliz fragrância do café.

    Ninguéma o olhou, soltou uma gargalhada e assinalou a mesa.

    -Sente-se -serve-lhe uma taça de café, forte e negro-. Bebe. Vou preparar te o café da manhã.

    Como um homem agonizante, Spence se aferrava com as duas mãos à taça de café.

    -Obrigado, não quero incomodar.

    Ninguéma logo que sacudiu a mão enquanto tomava uma frigideira.

    -Sei o que é um homem com ressaca. Seguro que Yuri te fez tomar muito vodca.

    -Não, ocupei-me de tomá-lo eu sozinho -Ninguéma abriu um frasco de aspirinas e o deixou em cima da mesa-. Deus a benza, senhora Stanislaski.

    -Ninguéma. Quando estava bêbado me chamava Ninguéma.

    -Não recordo me haver sentido assim desde que estava na universidade -comentou enquanto tirava três aspirinas-. Não posso imaginar por que naquela época me parecia tão divertido -conseguiu esboçar um débil sorriso-. Mmm, há algo que cheira maravilhosamente.

    -Você adorará meus bolos -colocou umas salsichas na frigideira-. Ontem conheceu o Alex, verdade?

    -Sim -Spence não protestou quando Ninguéma lhe encheu a taça de café pela segunda vez-. Esse foi motivo suficiente para seguir bebendo. Tem uma família maravilhosa, Ninguéma.

    -Estou orgulhosa dela -Rio enquanto as salsichas chispavam na frigideira-. Embora às vezes também me preocupam meus filhos. Bom, você já sabe o que é ter uma filha.

    -Sim -olhou-a sorridente, imaginando o aspecto que teria Natasha um quarto de século depois.

    -Natasha é a que vive mais longe. E a que mais me preocupa.

    -É uma mulher muito forte.

    Ninguéma se limitou a assentir e acrescentou uns ovos à frigideira.

    -É um homem paciente, Spence? -Acredito que sim.

    Ninguéma o olhou por cima do ombro.

    -Pois não seja muito paciente.

    -É estranho, Natasha me disse o mesmo uma vez.

    Agradada, Ninguéma pôs a torrar uma fatia de pão.

    -É uma garota inteligente.

    Nesse momento se abriu a porta para dar passo a um moreno, sonolento e sorridente Alex. -Cheira a comida.

   

    Começaram a cair as primeiras neves, flocos pequenos, muito espaçados, que se formavam redemoinhos com o vento e se desvaneciam antes de chegar ao chão. Havia algumas costure, Natasha sabia, belas e apreciadas, das que se podia desfrutar durante muito pouco tempo.

    Estava sozinha, de pé, envolta em um ar frio que não sentia. Exceto por dentro. A luz era cinza, mas não deprimente; era impossível que o fora com aqueles diminutos flocos de neve dançando frente a ela. Não tinha levado flores. Nunca o fazia. Pensava que ficariam muito tristes em uma tumba tão pequena.

    Açucena. Fechou os olhos, permitindo-se recordar o que tinha sentido ao sustentar aquela pequena e delicada vida em seus braços. Seu bebê. Milaya. Sua pequena. Aqueles enormes olhos azuis, recordou Natasha, aquelas mãos deliciosas e diminutas.

    Como a flor da que tinha tomado seu nome, Açucena, tinha sido adorável e se murchou em muito pouco tempo. Natasha ainda podia ver açucena, pequena, ruborizada e enrugada, com os punhos fechados, quando a enfermeira a tinha posado em seus braços. Inclusive podia sentir ainda a doce dor que sentia quando a menina atirava brandamente de seu peito. Recordava a sensação de sua pele suave e cálida, o aroma de talco e a colônia, e a tranqüilidade de balançá-la até tarde na noite sobre o ombro.

    Tinha terminado tudo tão rápido, pensou Natasha. Só umas preciosas semanas. Nem o passado do tempo nem todos os rogos permitiriam que pudesse chegar a compreendê-lo. Aceitá-lo possivelmente, mas jamais o compreenderia.

    -Quero-te, Açucena. Sempre te quererei -inclinou-se para pressionar a mão contra a fria erva. Levantou-se, voltou-se e se afastou de novo caminhando entre os luminosos flocos da neve.

   

    Aonde teria ido? Havia dúzias de lugares aos que podia ter ido, assegurou-se Spence. Era uma tolice preocupar-se. Mas não podia evitá-lo. Se sua intuição não lhe falhava, tinha a certeza de que todos os membros da família da Natasha sabiam exatamente onde estava, mas se negavam a dizer-lhe.

    A casa estava já cheia de ruídos, de risadas e dos aromas daquela comida festiva. Tentou sacudi-la sensação de que, onde fora que Natasha estivesse, necessitava-o.

    Havia muitas coisas que Natasha não lhe tinha contado. Era algo que lhe tinha ficado claro como o cristal assim que tinha visto as fotografa que estavam no salão. Natasha, com malhas e sapatilhas de balé, ou com uma saia de gaze e as pontas. Natasha, com o cabelo firmemente recolhido e elevada na cúpula de um grande jato.

    Natasha tinha sido bailarina, evidentemente profissional, mas nunca o havia dito.

    Por que teria renunciado ao balé? E por que tinha mantido a que sem dúvida tinha sido uma parte importante de sua vida em segredo?

    Ao sair da cozinha, Rachel o viu com uma das fotografa na mão. Manteve-se em silêncio um momento, estudando-o. Ao igual à sua mãe, aprovava o que via. Advertia nele força e delicadeza. E sua irmã se merecia ambas as coisas.

    -É uma bonita fotografa.

    Spence se voltou. Rachel era mais alta que Natasha, mais esbelta. Levava o cabelo talhado a capas ao redor do rosto. Um rosto dominado por uns olhos mais dourados que castanhos.

    -Quantos anos tinha?

    Rachel afundou as mãos nos bolsos das calças enquanto cruzava a habitação.

    -Dezesseis, acredito. Então já estava no corpo de baile. Muito entregue ao balé. Eu sempre invejei a graça do Tash. A verdade é que eu era muito desajeitada -sorriu e trocou de tema-. Sempre fui mais alta e magra que os meninos, tinha fama de ir atirando tudo com os cotovelos. Onde está Freddie?

    Spence deixou a fotografa em seu lugar. Sem dizer nada, Rachel lhe estava advertindo que se tinha mais pergunta que fazer, deveria fazer-lhe a Natasha.

    -No piso de acima, vendo o desfile com o Yuri.

    -Meu pai nunca o perde. Acredito que nada o desiludiu mais na vida que o dar-se conta de que fomos muito grandes para nos sentar em seu regaço para ver as limusines.

    Uma risada procedente do piso de acima fez que ambos se voltassem para as escadas. Ouviram-se umas fortes pisadas. Como um torvelinho rosa, Freddie baixou as escadas para aterrissar nos braços do Spence.

    -Papai, papai faz ruídos de urso. Uns ruídos enormes.

    -E te esfregou com a barba na bochecha? -quis saber Rachel.

    -Crava um montão -Freddie Rio, deu meia volta e subiu outra vez as escadas, esperando que Yuri voltasse a fazer-lhe.

    -Está passando-lhe em grande -decidiu Spence.

    -E também papai. Que tal a cabeça?

    -Melhor, obrigado -ouviu o motor de uma caminhonete e olhou para a janela.

    -Acredito que minha mãe me necessita -Rachel se meteu na cozinha.

    Spence permaneceu na porta, esperando-a. Natasha estava muito pálida, parecia cansada, mas sorriu ao vê-lo.

    -Bom dia -deslizou as mãos ao redor da cintura do Spence e o estreitou com firmeza.

    -Está bem?

    -Sim -sim, estava bem, compreendeu, desde que o tinha abraçado. Sentindo-se mais forte, retrocedeu-. Pensava que dormiria até tarde.

    -Não, faz um momento já que me levantei. Onde estava?

    Natasha se tirou o cachecol.

    -Tinha umas coisas que fazer -depois de desprender do casaco, pendurou-o no armário-. Onde está todo mundo?

    -Sua mãe e Rachel estão na cozinha. E a última vez que o vi, Alex estava falando por telefone.

    Naquela ocasião, Natasha sorriu abertamente.

    -Certamente enrolando a alguma garota.

    -Isso parecia. E Freddie está com seu pai, vendo o desfile.

    -E meu pai estará na glória -acariciou-lhe a bochecha com o dedo- Não vai beijar me?

    Havia necessidade em suas palavras, pensou Spence enquanto se inclinava para ela. Uma necessidade profunda, privada, que Natasha ainda se negava a compartilhar. Sentiu seus lábios gelados quando os beijou, mas logo se suavizaram e entraram em calor. Ao final os curvou em um sorriso.

    -É bom para mim, Spence.

    -Esperava que chegasse a te dar conta -mordiscou-lhe juguetonamente o lábio inferior-. Já te encontra melhor?

    -Sim, muito melhor. Me alegro de que esteja aqui -apertou-lhe a mão-. O que te pareceria tomar um pouco do chocolate quente de minha mãe?

    Antes de que pudesse responder, Freddie baixou correndo as escadas outra vez, para jogar-se nos braços da Natasha.

    -Já tornaste!

    -Sim, já tornei -Natasha se inclinou para beijá-la na frente-. O que estava fazendo?

    -Estava vendo o desfile com papai. Sabe falar como o pato Donald e me deixa me sentar em cima dele.

    -Já vejo -aproximou-se ainda mais a ela e advertiu uma ligeira fragrância a gominola-. Segue comendo-se ele todas as amarelas?

    Freddie riu brandamente enquanto dirigia um rápido e receoso olhar a seu pai. Spence tinha uma opinião muito diferente a do Yuri sobre as gominolas.

    -Mas não importa. eu gosto mais das vermelhas.

    -E quantas vermelhas te comeste? -perguntou-lhe Spence.

    Freddie levantou os ombros e os deixou cair despreocupada. Era um gesto, advertiu Spence com certa diversão, quase idêntico ao da Natasha.

    -Não muitas. Vais dever ver o desfile conosco? -atirou da mão da Natasha-. Está a ponto de sair Papai Noel.

    -Agora mesmo -já por costume, agachou-se para lhe atar o cordão do sapato-. E lhe diga a papai que não lhe direi nada das gominolas a mamãe. Sempre e quando me deixar alguma.

    -De acordo -respondeu Freddie e correu escada acima.

    -Yuri lhe causou uma grande impressão -observou Spence.

    -Papai causa uma grande impressão a todo mundo -começou a incorporar-se e sentiu que a habitação lhe dava voltas. Antes de que pudesse agachar-se outra vez, Spence a sujeitou.

    -O que te passa?

    -Nada -pressionou-se a cabeça com a mão, esperando que cessasse o enjôo-. Levantei-me muito rápido, isso é tudo.

    -Está muito pálida. Venha, sente-se -passou-lhe o braço pela cintura, mas Natasha sacudiu a cabeça.

    -Não, estou bem, de verdade. Só um pouco cansada -aliviada ao ver que a quarto tinha deixado de mover-se, sorriu-lhe-. A culpa é do Rachel. Teria ficado falando toda a noite se eu não me tivesse ficado dormida.

    -Não comeste nada?

    -Pensava que foi doutor em música -sorriu e lhe aplaudiu a bochecha-. Não se preocupe, assim que entre na cozinha minha mãe ficará a me dar de comer.

    Justo nesse momento, abriu-se a porta da rua. Spence viu que a Natasha lhe iluminava a cara.

    -Mikhail! -com uma gargalhada, jogou-se nos braços de seu irmão.

    Mikhail tinha a fisionomia atrativo de toda a família. Era o mais alto dos irmãos, e se inclinou para abraçar a Natasha com força. Seu cabelo se frisava sobre as orelhas e seu pescoço. Levava um casaco já velho e umas botas em não muito melhor estado. Spence observou suas mãos, umas mãos largas e belas e só demorou uns segundos em compreender que, embora Natasha adorava a todos os membros de sua família, entre os dois irmãos havia algo especial.

    -Joguei-te muito de menos -Natasha retrocedeu o suficiente para beijá-lo nas bochechas, e depois voltou a abraçá-lo-. Joguei-te muito de menos, de verdade.

    -Então por que não vem mais freqüentemente? -separou-se dela para olhá-la.

    Não lhe importou a palidez de suas bochechas, mas como sentiu que tinha frite as mãos, compreendeu que tinha estado fora. E sabia perfeitamente onde tinha passado a manhã. Murmurou algo em ucraniano, mas Natasha se limitou a sacudir a cabeça e a lhe estreitar as mãos com força. Com um encolhimento de ombros muito parecido aos da Natasha, Mikhail trocou de tema.

    -Mikhail, quero que conheça o Spence.

    Enquanto se tirava o casaco, Mikhail estudou atentamente ao Spence. Frente à amistosa aceitação do Alex, ou a discreta valoração do Rachel, Spence se viu submetido a um prolongada e fixo olhar que fez evidente que, se Mikhail não o passava, não vacilaria em dizer-lhe .

    -Conheço seu trabalho -disse por fim-. É excelente.

    -Obrigado -Spence lhe sustentou o olhar-. Posso dizer o mesmo do teu -como Mikhail arqueou uma sobrancelha com expressão interrogante, esclareceu-lhe-: Vi as figurinhas que esculpiu para a Natasha.

    -Ah -apareceu em seus lábios a sombra de um sorriso-. A minha irmã sempre gostaram dos contos de fadas -ouviu-se um grito no piso de acima, seguido por uma estrondosa gargalhada.

    -Essa é Freddie -explicou-lhe Natasha-. É a filha do Spence. Está-lhe alegrando o dia a papai.

    Mikhail deslizou o polegar em uma das barras da calça.

    -É viúvo, verdade?

    -Exato.

    -E agora te dedica a dar aulas na universidade.

    -Sim.

    -Mikhail -interrompeu-o Natasha-. Deixa de representar o papel de irmão maior. Eu sou maior que você.

    -Mas eu sou mais alto -e com um rápido e radiante sorriso, passou-lhe um braço pelos ombros-. Bom, me diga, o que tem que comer?

    Aquilo era excessivo, decidiu Spence enquanto observava à família reunida ao redor da mesa. O enorme peru colocado no meio da toalha de agulha de crochê só era o princípio. Fiel aos costumes de seu país de adoção, Ninguéma tinha preparado uma comida tradicional americana, em que não faltavam nem o purê de castanhas nem os bolos de cabaça.

    Com os olhos abertos como pratos, Freddie observava como ia chegando fonte detrás fonte. A sala transbordava de vozes e risadas, todo mundo falava com todo mundo. A baixela estava conformada por peças procedentes de diferentes jogos. Sasha permanecia convexo debaixo da mesa, esperando que alguma mão discreta e dadivosa lhe proporcionasse algum bocado. A menina estava sentada em uma lhe bamboleiem cadeira, em cima da lista telefónica de Nova Iorque. E no que a ela concernia, aquele era o melhor dia de sua vida.

    Alex e Rachel começaram a discutir sobre algum tema da infância. Mikhail se uniu a eles pare lhes dizer que ambos estavam equivocados. Quando pediram sua opinião a Natasha, esta sacudiu a cabeça, voltou-se e disse ao Spence algo ao ouvido que o fez tornar-se a rir. Ninguéma, com as bochechas rosadas pelo prazer de ter reunida a toda a família, elevou a taça ao tempo que tomava a mão do Yuri.

    -Já está bem -disse Yuri, conseguindo que se fizesse um completo silêncio na mesa-. Depois poderão seguir discutindo sobre quem perdeu essa ratinha branca do laboratório. Agora façamos um brinde. Quero dar as obrigado por esta comida que Ninguéma e minhas filhas nos prepararam. E também à família e aos amigos que vieram a desfrutar dela. E damos obrigado, como o fizemos durante a primeira celebração de Ação de Graças a que assistimos neste país, porque somos livres.

    -Pela liberdade -disse Mikhail, elevando sua taça.

-Pela liberdade -afirmou também Yuri. Os olhos lhe encheram de lágrimas quando olhou ao redor da mesa-. E pela família

 

   CAPITULO 11

    Aquela noite, com Freddie sentada em seu regaço, Spence escutava ao Yuri enquanto este contava histórias de seu antigo país. Embora o resto do dia tinha sido uma ruidosa briga por tomar a palavra, aquele era um momento tranqüilo e depravado. Ao outro lado da habitação, Rachel e Alex se divertiam com um jogo de mesa. Discutiam de vez em quando, mas sem aquecimentos.

    No canto, Natasha e Mikhail permaneciam sentados, cabeça contra cabeça. Spence ouvia seus murmúrios e se fixava em como, de vez em quando, tomavam as mãos ou se acariciavam a bochecha. Ninguém a estava sentada à mesa, sorridente, e corrigia de vez em quando a seu marido enquanto trabalhava na capa de outra almofada.

    -Mulher -Yuri assinalou a sua esposa com a boquilha da pipa-, recordo-o como se tivesse sido ontem.

    -Recorda-o tal como gosta de recordá-lo.

    -Tak -Yuri se meteu a pipa na boca-. O que eu recordo serve além para melhorar a história.

    Quando Freddie se estirou, Spence se levantou com ela.

    -Será melhor que a leve a cama.

    -Eu o farei –Ninguém a deixou seu trabalho a um lado e se levantou.

    Murmurando palavras carinhosas, tomou à menina em braços. Sonolenta e agradecida, Freddie a rodeou com os braços.

    -Balançará-me?

    -Sim -comovida, Ninguém a a beijou no cabelo e se dirigiu para as escadas-. Balançarei-te na cadeira em que balançava a meus pequenos.

    -E me cantará?

    -Cantarei-te uma canção que me cantava minha mãe, quer?

    Freddie bocejou e deixou cair a cabeça.

    -Tem uma filha preciosa -ao igual a Spence, Yuri observava à mulher e à menina subindo as escadas-. Terão que vir mais freqüentemente.

    -Acredito que me vai resultar difícil impedir-lhe .

    -Será sempre bem-vinda, igual a você -Yuri soltou uma baforada de fumaça-, inclusive se não te casa com minha filha.

    Aquela declaração provocou dez segundos de tenso silêncio, até que Alex e Rachel se inclinaram de novo sobre o jogo dissimulando seus sorrisos. Yuri não se incomodou em dissimular a sua quando Natasha se levantou.

    -Não há leite suficiente para amanhã pela manhã -decidiu de repente-. Spence, por que não compra um pouco de leite comigo?

    -Claro.

    Segundos depois, saíam à rua com seus casacos e cachecóis. Natasha agradeceu sentir aquele ar gelado. Por cima de suas cabeças, o céu estava espaçoso e talher de estrelas.

    -Seu pai não pretendia te pôr em uma situação embaraçosa -começou a dizer Spence.

    -Claro que o pretendia.

    Spence não se incomodou em dissimular uma risada enquanto lhe acontecia o braço pelos ombros. -Sim, suponho que sim. Eu gosto de sua família.

    -A mim também. Pelo menos quase sempre.

    -Tem sorte dos ter. O ver o Freddie aqui me tem feito me dar conta de quão importante é a família. Suponho que nunca me esforcei por estar mais perto da Nina ou de meus pais.

    -Mas seguem sendo sua família. Ao melhor em minha família estamos tão unidos porque quando chegamos aqui solo nos tínhamos .

    -É certo que minha família nunca teve que cruzar montanhas em um trem húngaro.

    Aquilo a fez rir.

    -Rachel sempre esteve ciumenta porque ela ainda não tinha nascido. Quando era pequena, vingava-se de nós nos dizendo que ela era mais americana porque tinha nascido em Nova Iorque. Mas não faz muito tempo, alguém lhe disse que se queria ser advogada, deveria ir pensando em trocar o sobrenome -com uma nova gargalhada, elevou o olhar para o Spence-. Sentiu-se ofendida, e muito ucraniana.

    -É um bonito sobrenome. Você poderia mantê-lo profissionalmente depois de casar comigo.

    -Não comece.

    -Deve ser a influência de seu pai -olhou a porta da loja, onde tinham posto já o pôster de "fechado"-. A loja está fechada.

    -Sei -voltou-se para ele-, só queria dar um passeio. E agora que estamos aqui, em um portal às escuras, posso te beijar.

    -Boa idéia -murmurou Spence, e baixou a boca para seus lábios.

   

    Natasha estava zangada consigo mesma por haver-se dormido durante a viagem de volta a casa. Sentia-se como se tivesse passado uma semana subindo montanhas, em vez de quarenta e oito horas em casa de seus pais. Para quando conseguiu despertar por última vez, estavam cruzando já a fronteira de Maryland e se dirigiam para a Virginia do oeste.

    -Já está -endireitou-se em seu assento e dirigiu ao Spence um olhar de desculpa-. Não estou servindo de muita ajuda.

    -Não se preocupe, parece que precisava descansar.

    -Comi muito e quase não dormi -olhou ao assento de atrás, onde dormia Freddie respirando ruidosamente-. Não te tenho feito muita companhia.

    -Ainda pode repará-lo, lhe vejam um momento a casa comigo.

    -De acordo.

    Era o menos que podia fazer, pensou Natasha: Beira ia estar fora até no domingo, de modo que poderia ajudá-lo a deitar ao Freddie e a preparar um jantar ligeiro.

    Estacionaram em frente da casa e saíram, levando as malas e à menina entre eles.

    -Eu a deitarei -murmurou Spence-, não demorarei.

    Natasha esperou na cozinha, preparando um chá e uns sándwiches. Era ridículo, pensou. Natasha não só estava esgotada, mas sim estava faminta. Para quando Spence baixou, Natasha já tinha posto a mesa da cozinha.

    -Está dormindo como um tronco -escrutinou a mesa com o olhar-, vá, tem-me lido o pensamento.

    -Com dois passageiros inconscientes, não pudeste parar para comer nada.

    -O que é o que temos?

    -Uma velha tradição ucraniana -Natasha jogou a cadeira para trás-. Atum.

    -Maravilhoso -decidiu Spence, depois de dar uma primeira dentada ao sándwich.

    Era mais que o sándwich. Gostava de tê-la ali, sentada frente a ele, sob a luz da cozinha enquanto a casa permanecia em silêncio.

    -Suponho que manhã abrirá a loja.-É obvio. Vai ser uma casa de loucos a partir de agora até Natal. Contratei a um estudante a tempo parcial, amanhã começará -levantou a taça e lhe sorriu por cima do bordo da taça-. Imagine quem é.

    -Melony Trainor -respondeu ele, nomeando a estudante mais atrativa e ganhou um empurrãozinho no ombro.

    -Não. Estaria muito ocupada paquerando com os clientes para trabalhar. Terry Maynard.

    -Maynard? De verdade?

    -Sim. Quer utilizar o dinheiro para comprar um amortecedor novo. Além disso... -interrompeu-se dramaticamente-, ele e Annie estão saindo juntos.

    -Não está brincando? -sorriu de brinca a orelha e se recostou contra o respaldo-. Bom, terá que reconhecer que refez sua vida feita pedacinhos muito rapidamente.

    Natasha arqueou uma sobrancelha.

    -Não parecia pedacinhos, só um pouco maltratada. Há três semanas, estiveram vendo-se diariamente.

    -Parece que vai a sério.

    -Isso acredito. Annie está preocupada porque acredita que é muito velha para ele.

    -Quantos anos lhe leva?

    Natasha se inclinou para frente e baixou a voz.

    -Oh é muito mais velha que ele. Quase um ano inteiro.

    -Diga isso para ela.

    Com uma gargalhada, Natasha se recostou outra vez contra o respaldo da cadeira.

    -É bonito vê-los juntos. Só espero que não se esqueçam dos clientes enquanto se olham encantados o um ao outro -encolheu-se de ombros e voltou a tomar a taça-. Acredito que irei cedo e começarei a decorar a loja.

    -Ao final do dia estará esgotada. Por que não deves janta conosco?

    Natasha inclinou a cabeça com curiosidade.

    -Cozinhará você?

    -Não -sorriu e se terminou o sándwich-. Mas farei um encargo magnífico. Posso conseguir uma caixa inteira de frango ou de pizza. Inclusive sei como fazer que lhe tragam comida a China a casa.

    -Deixarei que você seja o que escolha o menu -levantou-se para limpar a mesa, mas Spence tomou a mão.

    -Natasha -levantou-se e lhe acariciou o cabelo com a mão livre-. Quero te dar as obrigado por ter compartilhado comigo estes dois últimos dias. significou muito para mim.

    -Para mim também.

    -Mas continúo sentindo falta do estar a sós contigo -inclinou-se para roçar seus lábios-. Sobe ao quarto comigo. Tenho muitas vontades de que façamos o amor em minha cama.

    Natasha não protestou. Tampouco vacilou. Deslizou o braço pela cintura do Spence e subiu com ele.

    Spence deixou o abajur da mesinha de noite acesa. Natasha pôde ver as cores escuras e masculinas que tinha eleito para seu quarto. Azul de meia-noite e verde bosque. Um óleo emoldurado dominava toda uma parede. Via também a silhueta de deliciosas antiguidades. A cama era enorme, um generoso espaço privado talher por uma colcha grosa e suave. Era um lugar especial, compreendeu Natasha, consciente de que Spence não tinha levado ali a nenhuma outra mulher.

    No espelho que havia em cima da cômoda, viu seu reflexo enquanto permaneciam lado a lado; e se viu si mesmo sorrir quando Spence lhe acariciou a bochecha.

    Era um momento para saborear. A fadiga que antes a assaltava tinha desaparecido por completo. Nesse momento só sentia o prazer de amar e ser amada. Era difícil falar, mas, quando o beijou, seu coração falou por ela.

    Despiram-se lentamente um ao outro.

    Natasha lhe tirou o pulôver por cima da cabeça. Lhe desatou os botões da jaqueta e a empurrou por seus ombros. Com os olhos fixos nos do Spence,

    Natasha foi lhe desabotoando a camisa. Lhe tirou o pulôver de algodão, deixando que seus dedos a acariciassem até que o tirou por completo. Natasha lhe desatou as calças. Spence separou os três colchetes que sujeitavam as calças da Natasha a sua cintura. Com mãos ágeis, desprenderam-se ambos das últimas barreiras que os separavam.

    Movendo-se lentamente, Natasha pressionou as mãos contra as costas do Spence. Inclinaram as cabeças para experimentar todo tipo de sensações com um comprido beijo. Foi um puro desfrute. Seus corpos ardiam, suas bocas procuravam. Parecia tudo tão fácil ali...

    Sem dizer uma só palavra, separaram-se os dois de mútuo acordo. Spence tirou a colcha, e se meteram juntos na cama.

    Na intimidade não havia rival, pensou Natasha. Não havia nada comparado com aquilo. Seus corpos se esfregavam o um contra o outro, e os lençóis sussurravam com cada um de seus movimentos. Os gemidos da Natasha respondiam aos murmúrios do Spence. O sabor e a fragrância da pele do Spence lhe resultava já familiar, algo pessoal. Sua carícia, delicada, persuasiva e cada vez mais premente, era tudo o que Natasha desejava.

    Natasha era, simplesmente, bela. Não só por seu corpo, ou por seu formoso rosto, mas também por seu espírito. Quando se movia com ele, havia uma harmonia mais intensa que a que Spence era capaz de criar com sua música. Natasha era sua música... Sua risada, sua voz, seus gestos. Mas também sabia que não tinha modo de dizer-lhe Que só podia demonstrar.

    Fez o amor com ela como se fora a primeira e a única vez. Natasha nunca se havia sentido mais elegante, mais grácil. Nunca se havia sentido tão forte ou tão segura.

    Quando Spence se incorporou sobre ela, ela se arqueou para encontrar-se com ele. E foi perfeito.

    -Eu gostaria que ficasse.

    Natasha enterrou a cabeça em seu pescoço.

    -Não posso. Freddie poderia fazer perguntas pela manhã que não saberia como responder.

    -Eu tenho uma forma muito fácil das responder. Direi-lhe a verdade, que te amo.

    -Não é tão singelo.

    -É a verdade -incorporou-se para olhá-la aos olhos. Escureceram-se sob a luz do abajur-. Amo-te, Natasha.

    -Spence.

    -Não, não quero raciocínios nem desculpas. Isso pertence ao passado. Diga que crê.

    Natasha o olhou aos olhos e viu neles o que já sabia.

    -Sim, acredito-te.

    Spence tinha direito ou seja o tudo, disse-se, mas Natasha sentia o sabor do pânico na boca. -Amo-te. E tenho medo.

    Spence se levou a mão da Natasha aos lábios e lhe beijou os dedos com firmeza.

    -Por que?

    -Porque já estive apaixonada em outra ocasião e nada, nada, poderia ter terminado pior.

    Estavam outra vez aquelas sombras do passado, pensou Spence com impaciência. Umas sombras contra as que nem sequer podia lutar porque não conhecia seu nome.

    -Nenhum dos dois chegamos ilesos até aqui, Natasha. Mas temos oportunidade de fazer algo novo, de fazer algo importante.

    Natasha sabia que tinha razão, sentia que tinha razão, mas não era capaz de dizer-lhe -No -se inclinó para apoyar la mejilla contra la de Spence-. Durante los meses pasados, he llegado darme cuenta de eso. Y también de que lo que siento por ti no se parece a nada de lo que he sentido antes -había algo más que quería decirle, pero las palabras parecían atascarse en su garganta-. Por favor, no me hagas hablar más. Creo que ya es suficiente.

    -Eu gostaria de estar segura, Spence, mas há coisas sobre mim que não sabe.

    -Que foi bailarina.

    Natasha se esticou, cobriu-se com os lençóis até o peito e se sentou na cama.

    -Sim, fui.

    -E por que não me comentou isso?

    -Porque essa época já terminou.

    Spence lhe apartou o cabelo da cara.

    -por que o deixou?

    -Tive que escolher -voltou a dor, mas solo um instante. voltou-se para ele e sorriu-. Não era tão boa. OH, sim, tinha um nível aceitável e, possivelmente, com o tempo, poderia ter chegado a ser bailarina principal. Possivelmente... Isso era algo que em outra época desejava com todas minhas forças. Mas desejar algo não sempre implica que possa chegar a acontecer.

    -Falará-me disso?

    Era uma forma de começar algo que Natasha sabia que teria que fazer alguma vez.

    -Não é muito divertido -elevou a mão e a deixou cair sobre os lençóis-. Comecei tarde a dançar, quando chegamos aqui. Através da igreja, meus pais conheceram a Martina Latovia. Muitos anos atrás, tinha sido uma importante bailarina soviética, mas abandonou o país. Chegou a fazer-se muito amiga de minha mãe e se ofereceu a me dar aulas. Para mim foi algo maravilhoso. Como não falava bem o inglês, logo que podia fazer amigos. Aqui tudo era diferente.

    -Posso imaginar o -¿De qué demonios estás hablando? -recordó la furia con la que había fijado sus ojos en ella.

    -Tinha quase oito anos quando comecei a dançar. Era difícil ensinar a meu corpo a mover-se como não o tinha feito nunca. Mas trabalhei muito duramente. Madame era muito boa comigo e me animava constantemente. Meus pais estavam tão orgulhosos... -Rio com calor-. Papai estava convencido de que seria a seguinte Pavlova. A primeira vez que dancei com sapatilhas de ponta, mamãe chorou. A dança é uma obsessão, alegre e dolorosa. É um mundo diferente, Spence. Não posso explicá-lo. Para conhecê-lo, terá que pertencer a ele.

    -Não faz falta que o explique.

    Natasha o olhou.

    -Não, a ti não -murmurou-. Porque você sabe o que é a música. Uni-me ao corpo de baile quando tinha quase dezesseis anos. Era maravilhoso. Possivelmente não conhecia outros mundos, mas era feliz naquele.

    -E o que ocorreu?

    -Havia um bailarino -fechou os olhos. Era importante expô-lo tudo com muito cuidado, sem pressas-. Suponho que terá ouvido falar dele, Anthony Marshall.

    -Sim -Spence conjurou imediatamente a imagem de um bailarino loiro e alto, com um corpo musculoso e incrivelmente grácil-. Vi-o dançar muitas vezes

    -Era magnífico. É-o -corrigiu-se-. Embora faça anos que não o vejo dançar. Tivemos uma relação. Eu era muito jovem, muito jovem. E cometi um grande engano.

    Por fim a sombra tinha um nome. -Apaixonou-te por ele.

    -OH, sim. De uma forma ingênua e idealista. Da única forma que pode apaixonar uma menina de dezessete anos. E pensava que também ele me amava. Disse-me isso, com palavras e com feitos. Era encantador, romântico... e eu queria acreditá-lo. Prometeu-me matrimônio, um futuro juntos, ser seu casal no mundo da dança, tudo o que eu estava desejando ouvir. Rompeu todas suas promessas, e com elas também meu coração.

    -Por isso agora não quer que eu te faça promessas.

    -Você não é Anthony -murmurou e posou a mão em sua bochecha. Seus olhos eram escuros, belos, e sua voz parecia mais exótica com as emoções que nela se acumulavam-. Acredite, sei. E por isso não lhes comparo, pelo menos agora. Não sou a mesma mulher a que lhe bastavam umas quantas palavras vazias para construir toda classe de sonhos.

    -Não -inclinou-se para apoiar a bochecha contra a do Spence-. Durante os meses passados, cheguei me dar conta disso. E também de que o que sinto por ti não se parece com nada do que hei sentido antes -havia algo mais que queria lhe dizer, mas as palavras pareciam entupir-se em sua garganta-. Por favor, não me faça falar mais. Acredito que já é suficiente.

    -Por agora, mas não me basta com isto. Natasha procurou seus lábios. -Só por agora.

   

   

    Como era possível? Perguntou-se Natasha. Como podia lhe ocorrer algo assim quando estava começando a confiar em si mesmo? Como ia enfrentar se a um pouco tão enorme novamente?

    Era como retornar ao passado, como ter que começar outra vez, quando sua vida tinha trocado tão drasticamente. Sentou-se na cama, esquecendo-se já de sua preocupação pela roupa que ia se pôr para ir ao trabalho, sobre como começar um dia normal. Como foram ser as coisas normais depois daquilo? Como podia esperar que voltassem a ser normais alguma vez?

    Sustentava um pequeno vial na mão. Tinha seguido as instruções exatamente. Só era uma precaução, havia-se dito a si mesmo. Mas no fundo de seu coração conhecia a resposta. Tinha-o sabido desde que tinha ido ver seus pais duas semanas atrás. E tinha estado evitando enfrentar-se à realidade.

    Não era a gripe a que lhe provocava náuseas pelas manhãs. Não era o excesso de trabalho ou o estresse o que a fazia estar tão cansada, nem o motivo de seus repentinos enjôos. O singelo teste de gravidez que tinha comprado na farmácia lhe demonstrava o que já sabia e temia.

    Estava grávida. Havia tornado a ficar grávida. A quebra de onda de júbilo foi completamente eclipsada por um medo profundo que lhe gelava os ossos.

    Como era possível? Já não era nenhuma menina e tinha tomado precauções. Deixando as questões mais românticas a um lado, tinha sido suficientemente pragmática e responsável para ir ver o médico e começar a tomar a pílula assim que se deu conta de que sua relação com o Spence ia continuar. Sim, estava grávida. Era impossível negá-lo.

    Como ia dizer se o cobriu-se o rosto com as mãos e se balançou para diante e para trás, como se queria dar-se alguma forma de consolo. Como ia passar por tudo isso outra vez, quando o que tinha ocorrido anos atrás ainda estava dolorosamente gravado em sua memória?

    Sabia que Anthony já não a amava, se realmente alguma vez a tinha amado. Mas quando se inteirou de que levava a seu filho em seu ventre, emocionou-se. E estava convencida de que Anthony compartilharia sua alegria. Quando tinha ido ver o, quase transbordante de entusiasmo, resplandecendo de júbilo, a crueldade do Anthony a tinha destroçado.

    A contra gosto, tinha-lhe deixado entrar em seu apartamento, recordou Natasha. E que difícil tinha sido para ela continuar sorrindo quando tinha visto uma mesa disposta para dois, as velas acesas, a porcelana a China... Um cenário que freqüentemente tinha preparado para ela quando a amava. Mas Natasha se persuadiu a si mesmo de que não importava. Assim que lhe contasse o que ocorria, tudo trocaria.

    E tudo tinha trocado.

    -De que demônios está falando? -recordou a fúria com a que tinha fixado seus olhos nela.

    -Fui ao médico esta manhã. Estou grávida de quase dois meses -tinha-lhe tendido a mão-. Anthony...

    -Esse é um truque muito velho, Tash -tinha respondido ele com indiferença, mas parecia que estava tremendo. A grandes pernadas, tinha-se aproximado da mesa para servir uma taça de vinho.

    -Não é um truque.

    -Não? Então como pudeste ser tão estúpida? -tinha-a agarrado do braço para sacudi-la. A magnífica juba do Anthony voava rebelde-. Se te procuraste problemas, não espere que eu seja o que os arrume.

    Aturdida, Natasha tinha levantado a mão para esfregar o braço ali onde Anthony a tinha agarrado. O que ocorria era que Anthony não a tinha entendido, havia-se dito a si mesmo.

    -Vou ter um filho. Teu filho. O médico diz que nascerá em julho.

    -Possivelmente esteja grávida -encolheu-se de ombros e tinha esvaziado a taça de vinho-. Mas isso não é meu assunto.

    -Deveria.

    Anthony a tinha cuidadoso então com olhos glaciais.

    -Como posso saber que é meu?

    Para ouvi-lo, Natasha tinha empalidecido. Enquanto permanecia ali, frente a ele, tinha recordado como se havia sentido a primeira vez que tinha estado a ponto de atropelá-la um ônibus em sua primeira excursão à cidade de Nova Iorque.

    -Sabe, tem que sabê-lo.

    -Eu não sei nada. E agora, se me perdoar, estou esperando a alguém.

    Em seu desespero, Natasha o tinha agarrado do braço.

    -Anthony, não o compreende? Vou ter teu filho.

    -Teu filho -corrigiu-a-. O problema é teu. Se quiser que te dê um conselho, deshaz dele.

    -Que... -Natasha não era tão jovem nem tão ingênua como para não saber o que lhe estava propondo-. Não posso fazer isso.

    -Quer dançar, Tash? Tenta reatar as classes depois de tomar nove meses de descanso para dar a luz a um mucoso, seguro que terminará renunciando. Amadureça, Natasha.

    -Já amadureci -tinha posado a mão em seu ventre, com um gesto de amparo e defesa-. E penso ter este filho.

    -Você decide -tinha famoso sua taça de vinho-. Mas não espere me colocar a mim nessa confusão. Tenho uma carreira em que pensar. Acredito que será melhor que vá -tinha decidido-. Convence a algum fracassado para que se case contigo e te dedique a ser dona-de-casa. Em qualquer caso, jamais teria chegado a ser nada mais que uma bailarina medíocre.

    De modo que Natasha tinha tido a seu filho, e o tinha adorado, durante um breve, breve tempo. E de repente descobria que havia outro em caminho. Não acreditava que fora capaz de suportá-lo. E tampouco se atrevia desejá-lo quando sabia quão duro era perdê-lo.

    Frenética, arrojou a prova ao outro lado da habitação e começou a tirar roupa do armário. Tinha que ir. Tinha que pensar. Afastaria-se dali, prometeu-se, e pressionou os dedos contra os olhos até que conseguiu tranqüilizar-se. Antes de partir, tinha que dizer-lhe Spence algo.

    Conduziu até sua casa, lutando para tranqüilizar-se enquanto se aproximava no carro. Como era sábado, os meninos jogavam em calçadas e jardins. Alguém a chamou ao passar, e ela conseguiu saudar com a mão. Viu o Freddie brigando com os gatinhos na erva.

    -Tash! Tash! -Lucy e Desi se esconderam enquanto Freddie corria para o carro-. Vieste a jogar?

    -Não, hoje não -conseguiu esboçar um sorriso e beijou à menina nas bochechas-. Está seu pai em casa?

    -Está tocando. Desde que chegamos aqui, tornou a tocar. Eu tenho feito um desenho, o vou mandar a papai e a canção de ninar.

    Natasha se esforçou por manter o sorriso nos lábios para ouvir como chamava Freddie a seus pais. -Estou segura de que eles adorarão.

    -Vêem, ensinarei-lhe isso.

    -Dentro de um momento. Antes preciso falar com seu pai, a sós.

    Ao Freddie começou a lhe tremer o lábio inferior. -Está zangada com ele?

    -Não -pressionou um dedo contra o nariz da pequena-. vá procurar a seus gatinhos. Falarei contigo antes de ir.

    -De acordo.

    Mais tranqüila, Freddie deu meia volta, lançando uns gritos com os que quão único ia conseguir era que os gatinhos continuassem escondidos sob os arbustos, refletiu Natasha.

    Era melhor não pensar em nada, disse-se enquanto batia na porta da casa. Depois tentaria expor as coisas lenta e tranqüilamente, como uma adulta.

    -Senhorita -Beira abriu a porta. Sua expressão era menos distante que normalmente. A descrição do Freddie do dia de Ação de Obrigado tinha conseguido lhe abrandar o coração.

-Se não estar ocupado, eu gostaria de ver o doutor Kimball.

    -Passe -Beira tirou o chapéu a si mesmo franzindo ligeiramente o cenho enquanto estudava a Natasha-. Está bem, senhorita? Está muito pálida.

    -Sim, estou bem. Obrigado.

    -Gosta de tomar um chá?

    -Não, não... Não ficarei muito.

    Beira assentiu, embora pensava em segredo que Natasha tinha o aspecto de um coelhinho encurralado.

    -Encontrará-o no estudo de música. Aconteceu-se quase toda a noite trabalhando.

    -Obrigado.

    Natasha se aferrou a sua bolsa e passou ao vestíbulo. Podia ouvir a música que Spence estava tocando, era uma peça muito triste. Ou possivelmente fora seu próprio humor, pensou, enquanto pestanejava para conter as lágrimas.

    Quando o viu, recordou a primeira vez que tinha entrado naquela sala. Possivelmente tinha começado a apaixonar-se por ele aquele dia, quando o tinha visto ali sentado com a menina em seu regaço, rodeados pela luz do sol.

    Tirou-se as luvas e os retorceu nervosa entre as mãos enquanto o observava. Spence estava completamente perdido, captor e cativo ao mesmo tempo da música. E ela estava a ponto de trocar sua vida. Spence não lhe tinha pedido algo assim, e ambos sabiam que o amor não sempre era suficiente.

    -Spence -murmurou seu nome quando a música cessou, mas ele não a ouviu.

    Natasha advertiu a intensidade de sua inspiração, ao vê-lo rabiscar sobre o pentagrama. Não se tinha barbeado. Aquilo a fez desejar sorrir, mas ao fazê-lo encheram seus olhos de lágrimas. Levava a camisa enrugada, com os primeiros botões desabotoados. O cabelo despenteado. Enquanto Natasha o observava, passou-se a mão por ele.

    -Spence -repetiu Natasha.

    Spence elevou o olhar, ao princípio mal-humorado. Depois sorriu.

    -Olá. Não esperava verte hoje.

    -Annie se está ocupando da loja -retorcia-se as mãos-. Precisava te ver.

    -Me alegro de que tenha vindo -levantou-se, embora a música continuava soando em sua cabeça-. Por certo, que horas são? -olhou o relógio com ar ausente-. É muito cedo para te convidar a comer. Gosta de um café?

    -Não -bastava-lhe pensar no café para que lhe revolvesse o estômago-. Não quero nada. Precisava te dizer... -fechou as mãos em um punho-. Não sei como... Quero que saiba que nunca pretendi... Não pretendo te obrigar a nada.

    Voltavam a lhe faltar as palavras. Spence sacudiu a cabeça e caminhou para ela.

    -Se tiver ocorrido algo mau, por que não me diz isso?

    -Estou tentando-o.

    Spence tomou a mão e a conduziu para o sofá. -Acredito que o melhor é ir diretamente ao assunto.

    -Sim -levou-se a mão à cabeça, que lhe estava dando voltas-. Já vê, eu... -advertiu a preocupação em seus olhos e, de repente, tudo se voltou negro. Quando recuperou a consciência, estava sentada no sofá, com o Spence ajoelhado a seu lado, lhe acariciando as bonecas.

    -Tranqüilize -murmurou-. Não mova. Vou chamar te ao médico.

    -Não, não faz falta -incorporou-se com muito cuidado-. Estou bem.

    -E um inferno -sentia sua pele fria e úmida sob sua mão-. Está gelada e pálida como um fantasma. Maldita seja, Natasha, por que não me há dito que não estava bem? Levarei-te a hospital.

    -Não preciso ir ao hospital, e tampouco a um médico -a histeria bulia em seu coração. Lutou por dominá-la e se obrigou a falar- Não estou doente, Spence. Estou grávida.

   

  CAPITULO 12

    -O que? -Spence fez quão único foi capaz de fazer; apoiado sobre os calcanhares , fixou nela o olhar-. O que há dito?

    Natasha queria ser forte. Tinha que sê-lo. Spence a estava olhando como se acabasse de golpeá-lo com um instrumento.

    -Estou grávida.

    Spence sacudiu a cabeça, tentando chegar a assumi-lo.

    -Está segura?

    -Sim -o melhor era ser realista, disse-se Natasha. Spence era um homem civilizado. Não haveria acusações, não haveria crueldade-. Esta manhã me tenho feito um teste. Suspeitava-o há um par de semanas, mas...

    -Suspeitava-o -apertou as mãos em um punho. Natasha não estava tão furiosa como o tinha estado Angela. Mas parecia estar destroçada-. E não comentaste isso.

    -Não vi a necessidade de fazê-lo até que não o soube. Não queria preocupar-se.

    -Já entendo. Assim é como está você, Natasha, preocupada?

    -O que estou é grávida -disse energicamente-. E pensei que tinha direito ou seja. Vou sair uns dias -embora estava tremendo por dentro, tentava conservar a calma.

    -Vai? -confundido, temendo que Natasha pudesse deprimir-se outra vez, e furioso, agarrou-a-. Agora me dê um condenado minuto. Vem aqui a me dizer que está grávida e agora, tranqüilamente, diz-me que vai -sentia-se como se acabassem de lhe dar um murro nas vísceras-. Aonde?

    -Simplesmente vou -ouviu sua própria voz, brusca e irascível e se levou a mão à cabeça-. Sinto muito. Acredito que não estou levando isto como deveria. Preciso me afastar daqui.

    -O que precisa é ficar aqui sentada até que tenhamos esclarecido tudo.

    -Já não posso seguir falando disto -sentia uma intensa pressão em seu interior, como a pressão das águas contra um dique-. Não, ainda não. Não até que... Só queria que soubesse antes de ir.

    -Não vai a nenhuma parte -agarrou-a por braço para impedir que se levantasse-. E certamente que vamos falar. O que quer de mim? E o que pretende que diga? "Caramba, Natasha, que notícia tão interessante. E quando pensa retornar?".

    -Não quero nada -naquela ocasião elevou a voz, incapaz de controlar-se. As paixões, as tristeza, os medos se transbordaram ao mesmo tempo que suas lágrimas-. Nunca quis nada de ti. Não queria me apaixonar por ti, não queria te necessitar. Não queria levar teu filho em minhas barriga.

    -Isso está bastante claro -apertou-lhe o braço com força e deixou de reprimir seu próprio gênio-. Isso está claro como o cristal. Mas o caso é que leva o meu filho dentro de ti e agora vai ficar aqui para que falemos do que vamos fazer a respeito.

    -Hei-te dito que necessito tempo.

    -Já te dei tempo mais que suficiente. Ao parecer, o destino tornou a tomar as coisas de sua mão e terá que te enfrentar a ele.

    -Não posso voltar a passar por tudo isto outra vez. Não posso.

    -Outra vez? Do que está falando?

    -Tive um filho -apartou-se para cobrir seu rosto com as mãos. Todo seu corpo começou a tremer-. Tive uma menina. Oh, Meu deus.

    Estupefato, Spence posou a mão delicadamente em seu ombro.

    -Tem uma filha?

    -Tive-a -as lágrimas brotavam, quentes e dolorosas, do centro de seu coração-. Mas morreu.

    -Tranqüilize, Natasha. Me fale disso.

    -Não posso. Não o compreenderia. Perdi-a. Meu bebê. Não poderia suportar que voltasse a me ocorrer outra vez -não era capaz de falar do ocorrido-. Você não sabe, não pode saber o muito que isso dói.

    -Não, mas posso tentar compreendê-lo - abriu os braços para ela-. Quero que me fale de todo isso para poder entender.

    -E isso o que mudaria?

    -Isso teremos que vê-lo. Para ti não é bom estar agora tão preocupada.

    -Não -passou-se a mão pela bochecha-. Não é nada bom estar tão preocupada. E sinto estar me comportando desta forma.

    -Não te desculpe. Sente-se. Vou trazer te um chá e falaremos -conduziu-a até uma cadeira e ela não resistiu-. Em um minuto estou aqui.

    Demorou menos de um minuto, estava seguro, mas quando retornou, Natasha já tinha ido.

   

    Mikhail esculpia um bloco de madeira de cerejeira e escutava uma cinta de rock and roll através dos aparelhos de surdez. Uma música que encaixava perfeitamente com o humor que parecia exsudar a madeira. Fora o que fora o que havia em seu interior, e ainda não estava muito seguro do que era, sabia que se tratava de algo jovem e cheio de energia. Cada vez que esculpia, escutava música, já fora de blues, uma peça do Bach ou simplesmente o assobio constante dos carros que corriam sob a janela de seu apartamento. Isso lhe deixava a mente livre para explorar o meio no que suas mãos trabalhavam.

    Aquela noite sua mente estava muito dispersa e sabia que estava demorando. Olhou por cima da mesa de trabalho para seu abarrotado e desordenado apartamento de só dois quartos. Natasha estava acurrucada no sofá que Mikhail tinha resgatado da rua o verão anterior. Tinha um livro entre as mãos, mas seu irmão não acreditava que tivesse passado uma só página em vinte minutos. Ela também se estava demorando.

    Tão zangado consigo mesmo como com ela, tirou-se os aparelhos de surdez. Solo tinha que voltar-se para estar na cozinha. Sem dizer nada, acendeu um dos fogos da cozinha e preparou um chá. Natasha não fez nenhum comentário. Quando se aproximou dela com duas taças e as deixou na mesa, elevou o olhar para ele.

    -Oh. Dyakuyu.

    -Já é hora de que me diga o que vais fazer.

    -Mikhail...

    -Estou falando a sério -deixou-se cair em um almofadão que havia aos pés do sofá-. Leva aqui quase uma semana, Tash.

    Natasha conseguiu esboçar um sorriso. -Já está disposto a me jogar?

    -Possivelmente -mas tomou a mão e a acariciou brandamente-. Não tenho feito nenhuma pergunta porque sabia que era isso o que queria. Tampouco contei a papai e a mamãe que apareceu em minha casa em meio da noite, pálida e assustada, porque me pediu que não dissesse nada.

    -E lhe agradeço isso.

    -Pois deixa de me agradecer isso fez um de seus gestos habituais, caracterizados quase sempre por sua brutalidade-. E me conte tudo.

    -Já te expliquei que precisava me afastar um pouco e não queria que papai e mamãe se preocupassem comigo -encolheu-se de ombros e tomou uma das taças-. Assim não comece a preocupar-se você.

    -Já estou preocupado. Me conte o que ocorreu -inclinou-se e tomou pelo queixo-. Tash, conta-me.

    -Estou grávida -estalou, e deixou a taça de chá de novo na mesa.

    Mikhail abriu a boca, mas como as palavras se negavam a sair de seus lábios se limitou a abraçá-la. Tomando ar lentamente, Natasha lhe devolveu o abraço.

    -Está bem?

    -Se. Fui ao médico faz um par de dias. Disse-me que estava bem, que os dois estávamos bem.

    Mikhail se separou dela e estudou seu rosto.

    -O pai é o professor?

    -Sim, é o único homem que houve em minha vida.

    O olhar do Mikhail se obscureceu.

    -Se esse canalha te tratou mal...

    -Não -surpreendeu-a ser capaz de sorrir, enquanto tomava as mãos do Mikhail-. Não, não me tratou mal.

    -Então não quer ter a seu filho -quando Natasha baixou o olhar para suas mãos unidas, Mikhail entrecerró os olhos-. Natasha?

    -Não sei -separou-se dele para levantar-se e caminhar entre os desmantelados móveis do apartamento do Mikhail e os blocos de madeira e pedra.

    -O há dito?

    -É obvio que o hei dito -enquanto se movia, juntava e separava a mãos. Para tentar tranqüilizar-se, deteve-se o lado da árvore de Natal do Mikhail, uma arvorezinha de uns trinta centímetros que Natasha tinha decorado com papel de cores-. Mas não lhe dava oportunidade de me dizer nada depois de dizer-lhe Estava muito afetada.

    -Não quer ter esse filho.

    Natasha se voltou e o olhou com os olhos abertos como pratos.

    -Como pode dizer isso? Como pode pensar uma coisa assim?

    -Porque está aqui, em vez de tentando arrumar as coisas com esse professor de universidade.

    -Necessito tempo para pensar.

    -Acredito que pensa muito.

    Não era algo que Natasha não tivesse ouvido antes. Natasha apertou os lábios.

    -Isto não é como escolher a cor de um vestido. Vou ter um filho.

    -Por que não se senta e te tranqüiliza?

    -Não quero me sentar -começou a caminhar de novo pela habitação, empurrando ao fazê-lo uma caixa de madeira com o pé-. Em primeiro lugar, não pretendia me envolver emocionalmente com ele. Inclusive quando o fiz, quando ele conseguiu que fora impossível não me apaixonar, sabia que era importante tentar manter as distâncias. Queria me assegurar de que não voltaria a cometer enganos. E agora... -fez um gesto de impotência.

    -Spence não é Anthony. Este bebê não é Açucena -quando se voltou, viu seus olhos transbordantes de emoção e se levantou para aproximar-se dela-. Eu também a queria.

    -Sei.

    -Não pode julgar isto pelo que ocorreu, Tash -beijou-a delicadamente nas bochechas-. Não é justo para ti, nem para seu professor nem para o bebê.

    -Não sei o que fazer.

    -Ama-o?

    -Sim, amo-o.

    -E ele te ama?

    -O diz...

    Mikhail apanhou suas mãos inquietas.

    -Não me diga o que ele diz, me diga o que sabe.

    -Sim, ama-me.

    -Então deixa de te esconder e volta para casa. Deveria manter esta conversação com ele, não com seu irmão.

   

    Spence se estava voltando louco lentamente. Ia cada dia ao apartamento da Natasha, convencido de que naquela ocasião lhe abriria a porta. Cada vez que não o fazia, aproximava-se da loja para pressionar a Annie. Logo que tinha reparado na decoração natalina das vitrines, no gordo e alegre Papai Noel, nos anjos ou nas luzes de cores que rodeavam as casas. E quando o fazia, franzia mal-humorado o cenho.

    Tinha tido que fazer um esforço sobre-humano para manter o espírito natalino e não defraudar ao Freddie. Tinha comprado uma árvore e tinha passado horas decorando-o com ela e ajudando-a a fazer réstias de pipocas. Tinha escutado diligente a lista de presentes que sua filha queria para Natal e a tinha levado às lojas de departamentos para que se sentasse no colo de Papai Noel. Mas seu coração não estava com ela.

    Tinha que parar, disse-se a si mesmo, enquanto observava cair a neve através da janela. Fora qual fora a crise a que tinha que enfrentar-se, ou o caos no que se converteu sua vida, não podia danificar os natais ao Freddie.

    A menina perguntava todos os dias pela Natasha. E isso fazia mais difíceis as coisas, porque Spence não tinha respostas. Tinha visto o Freddie representando o papel de anjo no espetáculo que tinham organizado na escola e tinha desejado que Natasha estivesse com ele.

    E o que dizer de seu futuro filho? Logo que podia pensar em outra coisa. Nesse mesmo instante, Natasha poderia estar levando no ventre a irmãzinha que

Freddie tanto desejava. Um bebê, Spence era consciente disso, ao que ele já queria desesperadamente. A menos que... Não queria pensar onde tinha ido Natasha, o que poderia ter feito. Mas como ia pensar em outra coisa?

    Tinha que haver alguma forma de encontrá-la. Quando o fizesse, rogaria-lhe, suplicaria-lhe, intimidaria-a e a ameaçaria até que Natasha estivesse disposta a voltar com ele.

    Tinha tido uma filha. Aquilo o aturdia. Uma filha que tinha perdido, recordou Spence. Mas como? E quando? Sua mente estava abarrotada de perguntas para as que necessitava uma resposta. Natasha havia dito que o amava e sabia que dizê-lo tinha sido muito difícil para ela. Mesmo assim, tinha que aprender a confiar nele.

    -Papai -Freddie entrou bruscamente no estudo, incapaz de pensar em outra coisa que nos seis dias que faltavam para Natal-. Estamos fazendo bolachas.

    Spence olhou por cima do ombro e viu o Freddie sorrindo, com a boca melada de açúcar verde e vermelha. Spence a levantou em braços e a abraçou.

    -Quero-te, Freddie.

    Freddie Rio e o beijou.

    -Eu também te quero. Quer fazer bolachas conosco?

    -Dentro de um momento. Agora tenho que sair.

    Ia aproximar se da loja. Pensava encurralar ao Annie até que lhe dissesse onde tinha ido Natasha. Dissesse o que dissesse aquela jovenzinha, Spence não podia acreditar que Natasha se partiu sem lhe deixar a seu ajudante um número de telefone no que pudesse localizá-la.

    Freddie começou a fazer panelas enquanto brincava com o último botão da camisa do Spence. -Quando voltará?

    -Logo -beijou-a antes de deixá-la de novo no chão-. E quando voltar lhes ajudarei a fazer bolachas. Prometo-o.

    Satisfeita, Freddie voltou correndo com Beira. Sabia que seu pai sempre cumpria suas promessas.

   

    Natasha permanecia frente à porta da casa enquanto a neve caía. Havia lucecitas de cores no telhado e ao redor dos postes do alpendre. Perguntava-se que aspecto teria a casa quando as acendessem. Viu um enorme Papai Noel na porta, com um saco tão carregado de presentes que o obrigava a dobrar o espinhaço para arrastá-lo. Recordava a bruxa que tinham colocado ali para o Halloween. Aquela tinha sido a primeira noite que Spence e ela tinham feito o amor. A noite, estava segura, em que tinha sido concebido seu filho.

    Por um instante, esteve a ponto de dar meia volta, dizendo-se a si mesmo que deveria voltar para seu apartamento, desfazer as malas, e recuperar o fôlego. Mas isso seria esconder-se outra vez. E já levava muito tempo escondendo-se. Reunindo valor, bateu na porta.

    Assim que a abriu, os olhos de Freddie resplandeceram. Deixou escapar um grito e saltou aos braços da Natasha.

    -Voltou! Levo um montão de tempo te esperando!

    Natasha a estreitou com força em seus braços, inclinando-se para diante e para trás. Aquilo era o que Natasha queria, o que necessitava, compreendeu enquanto enterrava o rosto no cabelo de Freddie.

    Como podia ter sido tão tola?

    -Só foram uns dias.

    -Foram dias e dias. Temos uma árvore de Natal, e luzes. E já temos comprado seu presente. Comprei-o eu nas galerias. Não volte a ir.

    -Não -murmurou Natasha-. Não irei nunca mais -deixou ao Freddie no chão e entrou na casa, protegendo do frio e a neve.

    -Perdeu-te a obra da escola. Eu fiz de anjo.

    -Sinto muito.

    -Fizemos as coroas na escola e nos ficamos isso, assim posso te fazer a obra quando quiser.

    -Eu adoraria.

    Segura de que tudo ia voltar para a normalidade, Freddie tomou a mão.

    -Equivoquei-me uma vez. Mas me lembrei de tudo. Mikey se esqueceu do que tinha que dizer. Eu disse: "nasceu um menino em Presépio" e "paz na terra". E Glória ao Deus.

    Natasha riu pela primeira vez desde fazia dias.

    -Eu gostaria de te haver visto. Representará-o depois para mim?

    -De acordo. Estamos fazendo bolachas -sem soltar a mão da Natasha, começou a arrastá-la para a cozinha.

    -Seu papai está te ajudando?

    -Não, teve que sair. Mas há dito que voltaria logo e me ajudaria. Prometeu-me isso.

    Entre aliviada e desiludida, Natasha seguiu ao Freddie à cozinha.

    -Beira, Tash tornou.

    -Já vejo -Beira apertou os lábios. Justo quando começava a pensar que Natasha poderia ser boa para o senhor e para a menina, essa mulher se partiu sem dizer uma só palavra. Mesmo assim, estava disposta a cumprir com seu dever:- Quer tomar um café ou um chá, senhorita?

    -Não, obrigado, não quero incomodar.

    -Tem que ficar  -Freddie atirou outra vez da mão da Natasha-. Fizemos um boneco de neve, e renas, e Papai Noel - mostrou-lhe a que considerava uma de suas melhores criações-. Pode ficar esta.

    -É preciosa -Natasha olhou um boneco de neve com ruges de açúcar vermelha no rosto e o bordo de seu chapéu um tanto machucado.

    -Vai chorar? -perguntou-lhe Freddie.

    -Não -Natasha conseguiu conter as lágrimas-. É que me alegro de ter voltado para casa.

    Justo quando o estava dizendo, abriu-se a porta da cozinha. Natasha soltou o ar que estava contendo quando entrou Spence na sala.

    Spence não disse nada. Com a mão ainda no trinco, ficou olhando-a fixamente; era como se a tivesse conjurado por meio de seus caóticos sentimentos. Havia neve derretendo-se em seu cabelo e nos ombros de seu casaco. Seus olhos brilhavam chorosos.

    -Papai, Tash está em casa -anunciou Freddie, e correu para ele-. Está fazendo bolachas conosco.

    Beira se tirou rapidamente o avental. Fossem quais fossem suas dúvidas, eclipsaram-se assim que viu o rosto da Natasha. Beira sabia reconhecer a uma mulher apaixonada quando a via.

    -Necessitamos farinha. Vamos, Freddie, temos que ir comprar a.

    -Mas eu quero...

    -Quer fazer bolachas, mas para isso necessitamos farinha. Vamos, vai por seu casaco -e com grande eficiência, tirou o Freddie da casa.

    Uma vez sozinhos Spence e Natasha continuaram onde estavam; o momento parecia querer alargar-se eternamente. O calor da cozinha estava enjoando a Natasha. Tirou-se o casaco e o deixou no respaldo de uma cadeira. Queria falar com ele, razoavelmente. Mas não ia poder fazê-lo se deprimia a seus pés.

    -Spence -seu nome pareceu ricochetear nas paredes. Tomou ar-. Esperava que pudéssemos falar.

    -Assim agora decidiste que falar pode ser uma boa idéia.

    Natasha começou a dizer algo, mas trocou de opinião. Quando ouviu o cronômetro da cozinha, voltou-se, ficou uma luva e tirou as últimas bolachas do forno. Tomou seu tempo em tirar as da bandeja.

    -Tem direito a estar zangado comigo. Levei-me muito mal contigo. Mas agora tenho que te pedir que me escute, e espero que possa me perdoar.

    Spence a olhou em silencio durante comprido momento.

    -Realmente sabe como distender uma discussão.

    -Não vim aqui a discutir contigo. Tive tempo para pensar e me dei conta de que escolhi a pior das formas para te dizer que estava grávida e depois me parti -baixou o olhar para suas mãos, que entrelaçava nervosa-. O que tenho feito não tem perdão. Só posso dizer que tinha medo e estava muito confundida e emocionada para pensar com claridade.

    -Uma pergunta -interrompeu-a Spence, e esperou até que Natasha elevou a cabeça. Precisava lhe ver a cara-. Ainda está grávida?

    -Sim -a estupefação e confusão inicial se transformou de repente em compreensão e arrependimento-. Oh, Spence, não sabe o muito que sinto te haver feito pensar que poderia... -pestanejou para apartar as lágrimas, sabendo que ainda tinha as emoções a flor de pele-. Sinto muito, fui a casa do Mikhail, a ficar uns dias com ele -soltou ar-. Posso me sentar?

    Spence se limitou a assentir e se aproximou da janela enquanto Natasha se sentava depois da mesa. Com as mãos apoiadas na coxa, olhou para a neve que continuava caindo.

    -Estive a ponto de ficar louco, me perguntando onde estava, como estava. Foi em tal estado que temia que pudesse fazer algo antes de que tivéssemos tido oportunidade de falar.

    -Jamais teria feito o que está pensando, Spence. É nosso filho.

    -Mas disse que não o queria -voltou-se de novo para ela-. Disse que não queria acontecer outra vez por tudo isso.

    -Tinha medo -admitiu Natasha-. E é certo, não queria voltar a ficar grávida. Mas eu gostaria de te contar tudo.

    Spence desejava, terrivelmente, aproximar-se dela, abraçá-la e lhe dizer que nada importava. Mas como era consciente da importância que tinha que falassem, aproximou-se da cozinha.

    -Quer um café?

    -Não. O café me dá náuseas -sorriu um pouco quando viu o Spence enredando-se com a cafeteira-. Por favor, quer sentar?

    -De acordo -sentou-se frente a ela e estendeu as mãos-. Adiante.-Já te contei que me tinha apaixonado pelo Anthony quando estava no corpo de baile. Tinha sozinho dezessete anos e começamos a sair. Foi meu primeiro amante. E o único, até que apareceu você.

    -Por que?

    Responder a aquela pergunta foi muito mais fácil do que Natasha esperava.

    -Porque não havia tornado a me apaixonar até que te conheci. Mas o amor que sinto por ti é muito distinto das fantasias que despertava em mim Anthony. Contigo já não há sonhos de cavalheiros andantes e princesas. Contigo tudo é sólido, real. Cotidiano, rotineiro no sentido mais formoso da palavra. Compreende-o?

    Spence a olhou. A casa estava em silêncio, isolada pela neve. Cheirava a bolachas recém feitas e a canela.

    -Sim.

    -Temia sentir algo tão forte por ti ou por qualquer outro porque depois do que nos tinha ocorrido ao Anthony e a mim... -esperou um momento, surpreendida de poder estar falando sem que a assaltassem a dor ou a tristeza-. Acreditei-, acreditei tudo o que me disse, tudo o que me prometeu. Quando descobri que lhe tinha feito as mesmas promessas a outras muitas mulheres, fiquei destroçada. Discutimos, e se desfez de mim como se fora uma menina pesada. Poucas semanas depois, descobri que estava grávida. Estava emocionada. No único no que podia pensar era em que levava um filho do Anthony no ventre. Pensava que quando ele soubesse, daria-se conta de que tínhamos que estar juntos. Então o disse.

    Spence procurou sua mão sem dizer uma só palavra.

    -As coisas não ocorreram tal como me imaginava. Zangou-se. Disse-me umas coisas... Bom, isso agora não importa -continuou-. O caso é que não me queria, e tampouco queria a esse menino. Nesses poucos minutos, amadureci anos inteiros. Anthony não era o homem que eu teria querido que fora, mas ia ter um filho dele. E eu queria esse bebê -esticou os dedos sobre a mão do Spence-. Queria-o desesperadamente.

    -E o que fez?

    -A única coisa que podia fazer. Já não podia seguir dançando. Assim deixei a companhia e voltei para minha casa. Sei que fui uma carga para meus pais, mas eles me ajudaram. Consegui trabalho em umas lojas de departamentos. Vendendo brinquedos -sorriu ao dizê-lo.

    -Deveu ser muito difícil para ti -tentou imaginar-lhe adolescente, grávida, abandonada pelo pai de seu filho e lutando para refazer sua vida.

    -Sim, foi. E também foi uma época maravilhosa. Meu corpo mudou. Depois dos dois primeiros meses, nos que me sentia terrivelmente frágil, comecei a me sentir forte. Tão forte, Spence. De noite, tombava-me na cama e lia livros e livros sobre os bebês e o parto. E o fazia a minha mãe milhares de perguntas. Inclusive costurei... Terrivelmente mal, claro -disse com uma tranqüila risada-. Meu pai construiu um berço e minha mãe costurou uma aba com flores e laços rosas. Era precioso -sentiu a chegada das lágrimas e sacudiu a cabeça-. Posso beber um pouco de água?

    Spence se levantou, encheu um copo na pia e o deixou frente a Natasha.

    -Tome todo o tempo que necessite, Natasha -sabendo que ambos o necessitavam, acariciou-lhe o cabelo lentamente-. Não tem por que me contar isso tudo agora.

    -Preciso fazê-lo -bebeu lentamente, enquanto esperava a que Spence se sentasse outra vez-. Chamei-a Açucena -murmurou-. Era tão bonita, tão pequena e tão suave. Até então não sabia que era possível amar a alguém como se quer a um menino. Podia passar horas vendo-a dormir, era tão emocionante, tão admirável que essa coisinha tivesse saído de mim.

    Lágrimas silenciosas começaram a deslizar-se por suas bochechas. Sentiu a mão do Spence em suas costas.

    -Era um verão muito quente e eu estava acostumado a tirá-la em seu carrinho, para que desfrutasse de do ar e do sol. A gente se parava a olhá-la. Logo que chorava, e quando a embalava e a punha em meu peito me olhava com uns olhos enormes. Já sabe o que é isso. Você tem ao Freddie.

    -Sei. Não há nada como ter um filho.

    -Ou como perdê-lo -disse Natasha brandamente-. Foi tão rápido. Só tinha cinco semanas. Uma manhã, levantei-me surpreendida de que tivesse dormido durante toda a noite. Tinha os seios cheios de leite. O berço estava ao lado de minha cama. Inclinei-me para tomá-la em braços. Ao princípio não o compreendia, não podia acreditá-lo... -interrompeu-se e se levou a mão aos olhos-. Lembrança que chorava e chorava... Rachel se levantou correndo, o resto da família entrou na habitação e minha mãe me tirou à menina -continuavam caindo lágrimas por seu rosto. Cobriu-se a cara com as mãos e se permitiu chorar como estava acostumado a fazê-lo em privado.

    Spence não podia dizer nada, não havia nada que dizer em uma situação como aquela. Em vez de procurar palavras absurdas, levantou-se, sentou-se a seu lado e a abraçou. Natasha continuava chorando com apaixonada tristeza. Depois de um entrecortado soluço, voltou-se e se abraçou a ele, aceitando seu consolo.

    Spence sentia suas mãos convertidas em punhos em suas costas. Pouco a pouco, foi relaxando-se nos braços do Spence. As lágrimas cederam e com elas também a dor, por fim compartilhado.

    -Estou bem -conseguiu dizer ao final. apartou-se e procurou um lenço de papel na bolsa. Spence o tirou para lhe secar ele mesmo as bochechas-. O médico o chamou "morte súbita". Ao parecer não há nenhuma razão que o justifique -fechou os olhos outra vez-. De algum jeito, isso é pior ainda. Não saber por que, não estar seguro de se poderia ter feito algo para remediá-lo.

    -Não -tomou o rosto com as mãos e ela abriu os olhos-. Não faça isso. Escute. Só posso imaginar tudo pelo que pudeste passar, mas sei que quando ocorre algo tão terrível, normalmente é impossível evitá-lo.

    -Custou-me muito chegar a aceitar o que nunca cheguei a compreender -tomou as mãos-. Ao cabo de um tempo, comecei a viver outra vez. Voltei para trabalho e ao final me vim aqui e montei a loja. Acredito que se não tivesse sido por minha família, teria morrido -permitiu-se um momento, para deixar que a água fria umedecesse sua garganta seca-. Não queria voltar a me apaixonar por ninguém. E então apareceu você. E Freddie.

    -Os dois lhe necessitamos, Natasha. E você nos necessita.

    -Sim -tomou a mão e a levou aos lábios-. Quero que me compreenda, Spence. Quando descobri que estava grávida, foi como revivê-lo tudo. Não sabia se ia sobreviver se tinha que acontecer todo isso outra vez. Tenho tanto medo de querer a este bebê. E, entretanto, já o adoro.

    -Vêem aqui -fez-a levantar-se sem lhe soltar as mãos-. Sei o muito que queria a Açucena, e que sempre a amará lamentará sua perda. Agora sei. Nada pode trocar o que passou, mas este é um lugar diferente, uma época distinta. Quero que compreenda que vamos viver juntos este embaraço, que estaremos juntos no parto. Tanto se me quer como se não.

    -Tenho medo.

    -Então passaremos medo juntos. E quando este bebê tever oito anos e comece a montar em bicicleta, seguiremos passando medo juntos.

    Os lábios da Natasha se curvaram em um tremente sorriso.

    -Quando o diz, quase posso acreditá-lo.

    -Pois acredita-o -inclinou-se para beijá-la-. Porque é uma promessa.

    -Chegou já o momento das promessas -seu sorriso cresceu-. Amo-te -era fácil dizê-lo. Tão fácil como senti-lo-. Quer me abraçar?

    -Só com uma condição -secou-lhe uma lágrima com o polegar-. Quero lhe dizer ao Freddie que está esperando um irmãozinho ou uma irmãzinha. Acredito que vai ser o melhor presente de Natal para ela.

    -Sim -sentia-se mais forte, mais segura-. O diremos juntos.

    -De acordo. E agora tem cinco dias.

    -Cinco dias para que?

    -Cinco dias para fazer todos os planos que queira fazer, para conseguir que venha sua família, para comprar um vestido e tudo o que possa necessitar para as bodas.

    -Mas...

    -Nada de mas -emoldurou-lhe o rosto entre as mãos para silenciá-la-. Amo-te, desejo-te. É o melhor que ocorreu em minha vida do nascimento do Freddie e não penso te perder. Vamos ter um filho, Natasha -sem deixar de olhá-la, posou a mão em seu ventre-. Um filho que desejo. Um filho ao que já quero.

    Com um gesto de confiança, Natasha deixou descansar sua mão na do Spence.

    -Se estiver comigo, não terei medo.

    -Temos um encintro aqui, a véspera de Natal. Quero despertar o dia de Natal com minha esposa.

    Natasha preciso apoiar-se em seus braços para não perder o equilíbrio.

    -Assim, sem mais?

    -Assim, sem mais.

    Com uma gargalhada, Natasha lhe rodeou o pescoço com os braços e disse uma só palavra:

    -Sim.

   

  Epílogo

    A véspera de Natal era o dia mais formoso do ano para a Natasha. Era uma data para celebrar o amor e a família.

    A casa estava em silêncio quando chegou. Aproximou-se da árvore de Natal e acendeu as luzes. Fez girar a um anjinho que pendurava de um ramo e se voltou para o estudo.

    Na mesa, havia uma rena de papel maché com só uma orelha. O presépio da classe de plástica do Freddie. A seu lado, descansava um gordinho boneco de neve sustentando um sino entre as mãos. No suporte da chaminé havia um precioso nascimento de porcelana. Baixo ele, penduravam as meias nas que Papai Noel deixaria seus presentes. O fogo crepitava no lar.

    Um ano atrás, frente a essa mesma chaminé, Natasha tinha prometido amar, honrar e cuidar de seu marido. Tinham sido as promessas mais fáceis de manter de toda sua vida. E desde aquele mesmo dia, aquela casa se converteu em seu lar.

    Seu lar. Tomou ar, absorvendo as fragrâncias do pinheiro e as velas. Era tão maravilhoso estar em casa. A última hora da tarde, os clientes tinham abarrotado a loja de brinquedos. Mas por fim ia poder desfrutar de sua família.

    -Mamãe! -Freddie entrou correndo no salão, com um enorme laço vermelho-. Está em casa.

    -Sim, estou em casa - rindo, levantou-a em braços e girou com ela.

    -Levamos a Beira ao aeroporto para que possa passar o Natal com sua irmã, e depois estivemos vendo os aviões. Papai há dito que quando chegasse a casa, jantaríamos e cantaríamos canções de natal.

    -E isso é exatamente o que vamos fazer -Natasha tomou o enorme laço que Freddie levava entre as mãos e o colocou à menina no ombro-. Isto o que é?

    -Estou embrulhando um presente, eu sozinha. É para ti.

    -Para mim? E o que é?

    -Não lhe posso dizer isso

    -Oh, sim, claro que pode. Olhe -sentou-se com ela no sofá e começou a lhe fazer cócegas-. É muito fácil -disse enquanto Freddie gritava e se retorcia.

    -Torturando outra vez à menina -comentou Spence do marco da porta.

    -Papai! -Freddie conseguiu liberar-se e correu para ele-. Não o hei dito!

    -Sabia que podia contar contigo, preciosa. Olhe quem se despertou -levava a bebê em braços.

    -Olá, Brandon -completamente apaixonada por pequeno, Freddie lhe tendeu o laço para que o bebê pudesse jogar com ele-. É muito bonito, como você.

    Brandon Kimball era um bebê de seis meses e bochechas rosadas e encantado com o mundo em geral. Tomou o laço com uma mão e agarrou uma mecha de cabelo do Freddie com a outra.

    Caminhando para eles, Natasha lhe tendeu os braços.

    -Que menino tão grande -murmurou, enquanto o bebê a buscava. Estreitou-o contra ela e lhe deu um beijo no pescoço-. Que bonito!

    -É igual a sua mãe -Spence acariciou os cachos negros do bebê.

    Como se estivesse de acordo com o que seu pai acabava de dizer, Brandon soltou um feliz grunhido. Quando começou a retorcer-se, Natasha se agachou para deixá-lo no tapete.

    -É seu primeiro Natal -Natasha o observou equilibrar-se para atormentar a um dos gatos. Lucy se escondeu rapidamente debaixo do sofá. Não era nenhuma parva, pensou Natasha contente.

    -E nosso segundo -Spence se voltou para a Natasha-, e feliz aniversário.

    Natasha beijou ao Spence uma vez. Imediatamente voltou a beijá-lo.

    -Alguma vez te hei dito que te quero?

    -Acredito que não tornaste a me dizer isso desde que te chamei esta tarde.

    -Passou muito tempo após -rodeou-lhe a cintura com os braços-. Quero-te. E quero te dar as obrigado pelo ano mais maravilhoso de minha vida.

    -Absolutamente de nada -olhou por cima do ombro e viu que Freddie acabava de evitar que Brandon tirasse um adorno do ramo de uma árvore-. Mas o que vem vai ser muito melhor.

    -Promete-me isso?

    Spence sorriu e voltou a beijar a Natasha.

    -É obvio.

    Freddie deixou de arrastar-se detrás do Brandon para olhá-los. Ao final, ter um irmãozinho tinha resultado muito divertido, mas ela continuava desejando em segredo uma irmãzinha. Sorriu ao ver seus pais abraçados.

    Possivelmente o próximo Natal.

 

                                                                                            Nora Roberts

 

 

                      

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