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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A NAU LEÃO / Christian de Montella
A NAU LEÃO / Christian de Montella

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

"GRAAL"

Volume III

A NAU LEÃO

 

O nevoeiro se dissipou, e a ilha, que as ondas quebradas sobre os escolhos já anunciavam ao longe, apareceu-lhe tão assustadora que, agarrado à barra do esquife, Aguingueron começou a gritar de pavor.

Isso se passou no ano de quatrocentos e oitenta e sete. No primeiro dia de janeiro.

Aguingueron navegava no norte da Escócia, no setentrião* do mundo conhecido. Montanhas de gelo flutuavam no seu caminho. Ele não dormia mais há dias. Procurava entre os escolhos e as grandes ondas seu senhor e seu mestre, Perceval o galês.

Alguns meses antes, no equinócio de outono, Perceval, no seu castelo de Beau Repaire, onde vivia em perfeito entendimento com Blancheflor, a suserana, tinha sido acometido, como lhe acontecia todos os anos na mesma época, de uma profunda melancolia. Dentro em breve iria fazer dez anos que o rei Arthur e seus cavaleiros da Távola Redonda tinham morrido na praia de Carduel, em confronto com as tropas desleais comandadas por Mordred. Em breve faria dez anos que Perceval, à época um jovem galês ingênuo e temerário, entrara no castelo de Corbenic, acolhido pelo rei Pellès, o Rei Pescador. Dez anos que, por bobagem, calara as Duas Perguntas que deveria ter feito ao lhe serem apresentados a Lança que sangra e o Graal. Dez anos também que o reino de Logres estava entregue aos bandos de malfeitores e de saxões* — antigo reino onde restavam apenas Camelot*, a capital de Arthur que passara a ser defendida por Lancelot, e Beau Repaire, cuja independência era bravamente defendida por Perceval e sua apaixonada amiga Blancheflor.

Naquele outono, Perceval parecia mais triste do que nunca. Era visto percorrendo as muralhas, com a expressão sombria, mastigando palavras incompreensíveis. Não aparecia mais às refeições. A própria Blancheflor não podia falar com ele; ele a evitava e, no final do dia, não ia ao seu encontro no quarto. Uma manhã, pouco antes da aurora, selou um rocim*, aparelhando-o para uma longa viagem. Aguingueron, que ele havia feito seu senescal, velava por ele há muito tempo. Ele entrou nas cavalariças do castelo e perguntou ao amo:

— Está nos deixando, Senhor?

— Tenho uma busca a realizar — replicou Perceval.

— Se me permite uma observação, o senhor tem Beau Repaire a defender.

Perceval lançou ao gigante Aguingueron um olhar exaltado.

— Só posso defendê-lo melhor se retomar a busca que a minha idiotice impediu de completar.

Aguingueron compreendeu, naquela manhã, que não poderia reter seu senhor e mestre. Correu para acordar Blanchefbr, a fim de informá-la das intenções de Perceval, depois se precipitou nas cavalariças, onde escolheu um possante rocim. Após o quê, partiu atrás do cavaleiro.

Perceval aceitou sua presença, sem, contudo, jamais lhe dirigir uma palavra. Parecia inteiramente absorto em si mesmo. Em alguma reflexão para a qual sua natureza simples e ingênua não o havia preparado. Subiram para o norte. Atravessaram o Muro de Adrien. Entraram na Escócia. O gigante Aguingueron, depois daquele dia longínquo em que o jovem Perceval o vencera e humilhara sob as muralhas de Beau Repaire, tornara-se devotado a ele com toda a sua alma. Seu braço e sua espada foram capazes de ajudar Perceval a abater os inimigos e os obstáculos que surgiram em seu caminho.

No dia do solstício de inverno, alcançaram o cabo mais setentrional da Escócia. Uma nau de velas vermelhas, sem piloto nem tripulação, esperava a umas poucas centenas de metros da margem. Sem hesitar, Perceval saltou do cavalo e entrou no mar. Apesar de Aguingueron chamá-lo, suplicar-lhe que voltasse, Perceval não o escutou. Subiu a bordo da nau de velas vermelhas como um sol de crepúsculo, que, empurrada por um vento destinado só a ela, afastou-se na direção do largo, desaparecendo à noitinha.

Aguingueron montou um bivaque perto da praia. Durante dias esperou. Angustiado. Esperou que seu senhor, seu amo abordasse a margem. Que ele voltasse. Mas nada disso aconteceu, a não ser um frágil esquife de vela negra que, uma tarde, apareceu perto da praia. Aguingueron, gigante de corpo, era uma criança no espírito: temia os prodígios, as feiticeiras e as fadas; qualquer acontecimento inexplicável o apavorava.

Mas gostava de seu amo e senhor mais do que de si mesmo. Fingiu esquecer seus próprios medos e embarcou no estranho esquife. Pela sua lógica simples, a embarcação o conduziria a Perceval — e era a única coisa que contava.

Foi assim que, no primeiro dia do ano de 487, depois de por diversas vezes ter esbarrado em pálidas montanhas de gelo e em negros recifes acidentados, chegou diante de uma ilha que se erguia do mar como mil fragmentos de pedras desafiando o céu.

Cedendo ao terror, encolheu-se no fundo do esquife, certo de que iria naufragar.

Não foi o que aconteceu.

Os ventos se acalmaram. Reinou subitamente um silêncio extraordinário. Aguingueron ergueu-se com precaução e olhou à sua volta: o esquife havia pousado a proa em uma praia de areia negra. Sua vela estava caída.

Armado de nova coragem, Aguingueron saltou em terra firme. Alguns passos na areia, e ele se deparou com um homem estirado no chão, ou melhor, um homem deitado de lado, com os joelhos dobrados contra o peito, os punhos cerrados junto do rosto. Como uma criança no ventre da mãe.

Aguingueron reconheceu o perfil de Perceval, seu amo e senhor. Chamou-o pelo nome. Nenhuma reação. Tocou no seu ombro. Pareceu-lhe estar tocando em pedra. Então o segurou nos braços, suspendeu-o e o levou até o esquife. Mal o tinha colocado na embarcação, os ventos recomeçaram a soprar, enfunando a vela negra.

Aguingueron foi então acometido por um sono de chumbo. Tentou lutar. Adormeceu.

Quando despertou, achava-se sobre a margem onde havia instalado o bivaque. Não havia mais esquife no mar. Um sol de aurora nórdica iluminava a paisagem sem aquecê-la. Perceval, a alguns passos, se espreguiçava, como um homem que dormiu por muito tempo. Aguingueron se precipitou alegremente para ele.

— Como está se sentindo, Senhor? Está melhor?

Franzindo os olhos, Perceval olhou para ele pensativamente.

— Quem é você? — perguntou.

— Mas... — disse Aguingueron, desconcertado. — Sou eu, Senhor! Seu senescal...

Perceval sorriu.

— Senescal?... É o seu nome?...

— Eu me chamo Aguingueron. Lembre-se, eu...

— Aguingueron? Que nome mais engraçado!

Perceval desatou a rir. Logo depois se ergueu, olhando em volta como se descobrisse a existência do mundo. Um raio do sol nascente clareou de repente uma grande poça de chuva na cavidade de um rochedo. Perceval, aparentemente encantado com aquele espetáculo, inclinou-se sobre a poça.

Viu o reflexo de sua própria imagem. Reflexo que ele considerou por um momento, antes de perguntar a Aguingueron — ou a si mesmo:

— Mas diga-me, senescal: e eu, quem sou?

 

                   A mensageira

Na véspera do Pentecostes, dia em que se comemora a descida do Espírito Santo aos apóstolos de Cristo e em que os reis cristãos têm o costume de fazer cavaleiros os varletes* que cresceram a seu serviço, uma moça a cavalo se dirigiu à entrada de Camelot. Estava vestida e coberta de branco. Ninguém podia ver seu rosto. Sua égua também era branca, como a neve de janeiro.

Quando ela se apresentou diante da ponte levadiça suspensa, os guardas a interpelaram:

— O que quer, estrangeira? Quem é você?

— Diga a Lancelot, seu amo, que o rei Pellès me mandou!

Nenhum dos homens de prontidão sobre as muralhas jamais escutara esse nome. Desde a morte de Arthur, não havia mais reis: somente cavaleiros — e duques, chefes de guerra saxões, inimigos. Eles escrutaram através das muralhas, tentando descobrir uma tropa, um bando de Guerreiros Ruivos prontos a investir contra Camelot assim que tivessem baixado a ponte levadiça. Não viram nada nem ninguém.

— Não conhecemos nenhum rei Pellès!

— Lancelot conhece. Vá! E depressa!

A moça coberta de branco tinha tanta autoridade que os guardas não fizeram mais perguntas. Um sargento galgou os degraus de pedra da muralha, saltou no cavalo e galopou pelas ruas despovoadas do burgo, até o castelo. Irrompeu correndo na sala*. Lancelot estava sentado à mesa, cercado pela rainha Guinevere, seu fiel amigo Galehot e pela dezena de jovens que ele escolhera, formados e armados para ser seus cavaleiros.

— O que esta acontecendo? — perguntou Lancelot. — Por que tanta pressa?

— Senhor — respondeu o sargento —, uma mulher toda branca, e seu cavalo também, estão na porta principal. Ela quer ver o senhor.

— Você acha que é uma armadilha?

— Não vi ninguém nas proximidades. Mas o que ela me disse... é estranho...

O sargento hesitava.

— O que ela lhe disse?

— Que tinha sido enviada por um rei.

Houve um rumor de surpresa e de divertimento em volta da mesa.

— Ela deu o nome desse... pretenso rei?

— Sim: Pellès.

Lancelot empalideceu. Guinevere, que estava a sua direita, percebeu e pousou sua mão sobre a do cavaleiro. Ele a retirou imediatamente, fechou os dedos; suas falanges embranqueceram. Seu olhar cruzou o de Galehot, no qual leu a mesma incredulidade que a sua. Desviou os olhos.

— O que ela quer?

— Ignoro, Senhor. Ela disse apenas que o Senhor conhecia o rei Pellès e que devia recebê-la.

Lancelot sacudiu lentamente a cabeça.

— Eu o conheço, de fato — disse. E, dirigindo-se a Galehot, acrescentou: — Você também, não?

Galehot deu de ombros.

— Você viveu uma aventura, cavaleiro, que nos achávamos que não teria desdobramentos.

— Pelo visto, estávamos enganados — murmurou Lancelot.

 

Ladeada por dois sargentos em armas, a donzela do véu branco entrou na sala onde esperavam Lancelot, Guinevere, Galehot e os jovens cavaleiros. Ela não fez nenhuma reverência; nem sequer inclinou a cabeça. Aproximou-se do estrado onde estava instalada a mesa do banquete e se colocou de frente para Lancelot.

O véu branco escondia perfeitamente seu rosto. Mal se podia perceber o brilho muito intenso de um olhar azul.

— Pode falar — disse Lancelot.

— Não lhe peço nenhuma outra coisa — ela replicou. — É o seguinte: pegue imediatamente seu melhor cavalo e siga-me. Alguém esta a sua espera, e o senhor deve vê-lo hoje.

Ela falava com a voz firme e tranqüila de quem está habituada a ser obedecida. Lancelot franziu os olhos, como se pudesse divisar o rosto dela por trás do véu. Antes que ele respondesse, Guinevere interveio:

— A senhorita chegou mascarada. O que tem a esconder?

— Mascarada, eu sou como a verdade. A verdade só se esconde para melhor aparecer.

— Então apareça — replicou Guinevere. — Suspenda seu véu.

— A verdade de que falo não está sob o meu véu.

— E sob o seu véu, qual é a verdade?

— Senhora, antes de suspender o meu véu, suspenda o seu. Por trás de seu belo rosto, o que esta dissimulando?

Guinevere empalideceu. Seus lábios se contraíram, seus olhos faiscaram de irritação e desprazer.

— Quem lhe permite me falar dessa maneira?

A jovem de branco esboçou uma reverência.

— Sou apenas uma mensageira. Perdoe-me. Que sire Lancelot escute minha mensagem. Não ousarei mais nada.

Furiosa, Guinevere ia responder quando Lancelot pousou a mão sobre a dela. Era um gesto que ele nunca fazia. A rainha se calou, com o coração palpitando.

— Todo mundo aqui — disse pausadamente Lancelot — acha que a senhorita está me preparando uma armadilha. Mas a minha opinião é de que essa armadilha seria muito grosseira.

— Portanto, o senhor me segue? — perguntou a donzela de branco.

Os dedos de Guinevere fecharam-se de novo com força sobre os de Lancelot. Ele desprendeu a mão e respondeu:

— Estou pronto para a aventura. Vamos.

Enquanto ele se punha de é, Guinevere agarrou-o pelo punho.

— Você não vai seguir essa moça!

Ele colocou docemente a mão sobre a da rainha, cujas unhas entraram na sua pele.

— Quando voltar, eu lhe explicarei. Qual é o seu temor, na verdade?

— Perdê-lo.

Ele roçou-lhe o rosto com a ponta dos dedos, com uma ternura que surpreendeu a ambos. Havia tanto tempo — dez anos!— que não trocavam gestos simples como esse.

— Eu voltarei — ele disse — Ninguém vai me matar.

Ela baixou os olhos e murmurou:

— Eu sei. Não é isso que eu temo.

 

Pouco depois, Lancelot deixou as muralhas de Camelot atrás da donzela de branco e seu cavalo. Escolhera o melhor rocim, cobrira-se somente com uma cota com as cores de seu escudo, vermelho e branco, e carregava apenas a espada. Ia com a cabeça descoberta. Lancelot era um homem mais de instinto do que de reflexão: decidira confiar naquela mensageira, pressentindo confusamente que estava entrando em uma nova aventura.

Dez anos de combates, dez anos sustentando numerosos cercos não tinham sido para ele uma aventura, simplesmente a repetição monótona de uma situação insuportável, sem saída e sem trégua, e ainda viriam outros combates, outros cercos, que se perpetuariam, ele pensava, até a velhice e a morte. Cavalgando a trote a alguns passos da donzela de branco, ele se dizia que alguma coisa nova, finalmente, iria acontecer.

Há quase dez anos, Camelot, que tinha sido o castelo e a cidade do rei Arthur até sua morte, sofria assaltos de hordas de bandidos e ataques dos saxões que haviam invadido o antigo reino de Logres. Dos jardins e pomares que fizeram sua reputação de calma e tranqüilidade nada sobrara. Camelot vivia como uma cidade sitiada. Se ainda resistia, se perpetuava a cavalaria celta e cristã, era porque um homem, um cavaleiro, após a morte de Arthur, soubera organizar sua defesa e sua sobrevivência: Lancelot, filho órfão de Ban de Bénoïc e de Helena, criado por Vivian, a Dama do Lago.

Dez anos de guerra tinham se passado desde a morte do rei Arthur. Depois da batalha na orla de Carduel, onde quase todos os cavaleiros da Távola Redonda tinham caído, combatendo na proporção de um contra dez as tropas de saxões e os pérfidos cavaleiros sob as ordens de Mordred, o filho de Morgana, ao mesmo tempo filho e sobrinho* de Arthur, que lhes prepararam uma armadilha mortal. Mortal ela tinha sido, evidentemente, mas para quase todos. Na proporção de um contra dez, os cavaleiros da Távola Redonda tinham, cada um, vencido seus dez homens. E Arthur e Mordred, o pai e o filho, tinham se enfrentado no meio dos agonizantes e dos cadáveres — e um matara o outro. Únicos sobreviventes da batalha, Lancelot e o jovem Galehot tinham acompanhado seu rei até o barco que o havia conduzido à ilha de Avalon, onde os mortos se encontram.

Fiel ao juramento que havia feito ao rei moribundo, Lancelot voltara a Camelot para cuidar de Guinevere, a rainha. Fora uma rainha duplamente viúva que ele encontrara. Viúva de Arthur, primeiramente; viúva também do amor proibido que ela sentia por Lancelot. Daquele momento em diante, Lancelot e ela iriam permanecer um ao lado do outro em Camelot, mas esse amor, ao qual não tiveram direito enquanto Arthur estava vivo, se tornara impossível depois da morte dele. Teriam podido — o amor que sentiam era muito forte — enganar um marido e um rei; somente as intrigas de Morgana seguidas da intervenção do Mago Merlin haviam-no impedido. Mas enganar um morto era impensável. Ao menos para Lancelot.

A provação, para ele, era atroz: permanecer dia após dia junto da única mulher que ele sempre amara e proibir-se o mínimo gesto, a mínima palavra, o mínimo olhar de ternura ou de desejo. Talvez, nessa infelicidade íntima, ele tivesse buscado a força e a atividade extraordinárias que lhe permitiram repelir todos os assaltos inimigos, de saxões ou de bandos bárbaros, organizar no estreito espaço do castelo e da cidade de Camelot um novo reino de Logres, um lugar inexpugnável e sagrado. Ele dava ordens, batia-se à frente de suas magras tropas, procurava, entre os filhos dos servos, os que possuíam a força e a coragem para se tornar cavaleiros, formava-os, duramente, e os sagrava quando tivessem merecido. Do despertar até a hora de dormir, seu objetivo era um só: instaurar uma nova cavalaria que, um dia, fosse suficientemente poderosa para vencer e rechaçar os invasores saxões e as hordas sem fé nem lei que pilhavam as terras do antigo reino de Logres.

Mas Guinevere, durante esses dez anos, não tinha podido, como Lancelot, esquecer, na violência dos combates e no sonho de organizar um novo reino ideal, o desejo e o amor que sentia por ele. Ela era a Rainha Viúva. Recebia demonstrações de grande respeito. E, embora tivesse a sorte de não parecer envelhecer — talvez porque o Mago Merlin, o “filho do Diabo”, antes de seu batismo, tivesse pousado a mão sobre sua fontanela —, era tratada com a distância respeitosa devida as velhas senhoras que perderam o marido, portanto seu sustentáculo e razão de ser.

Guinevere, contudo, sabia que sua juventude perpetua não era somente a do rosto e do corpo, mas também a do coração e do espírito. Guinevere sentia necessidade de amar e de ser amada. E por um único ser: Lancelot. Esse Lancelot que não parava de dar ordens, de andar a cavalo, de ir lutar contra os Guerreiros Ruivos — esse Lancelot que só sabia agir com todo ímpeto, ou dormir como uma pedra, entre duas ações.

Em dez anos, ela não pudera vê-lo mais do que alguns instantes a sós. Ele sempre dava um jeito para que muitos de seus cavaleiros estivessem presentes durante seus encontros, ou então, caso ela conseguisse surpreende-lo sem companhia, ele concluía a conversa com algumas palavras e se eclipsava. “Fugia”, pensava ela. Nos últimos dez anos, quantas vezes ela chorara, se refugiara — sozinha, sozinha, sozinha — no seu quarto?

Por que, ela se perguntava ha dez anos, por que não consegui deixar de amá-lo? Teria sido tão mais simples.

 

                  O menino

Sem trocar uma palavra, Lancelot e a mensageira branca atravessaram uma floresta que cheirava a verão e desceram ao longo de um pequeno vale cujos prados já estavam cobertos de papoulas. Na hora em que o crepúsculo se aproximava, transpuseram uma pequena colina. Sobre o flanco sul, Lancelot viu as paredes de uma muralha e as construções de pedra nua de um convento.

— Eu achava que esse local tinha sido há muito tempo destruído e incendiado pelos saxões.

A donzela de branco não respondeu. Fez o cavalo seguir com um breve galope que a conduziu até a porta da muralha. Esporeando o rocim, Lancelot alcançou-a. A porta se abriu imediatamente. Enquanto a moça se afastava rapidamente na direção da cavalariça, um criado se aproximou da montaria do cavaleiro e a segurou pela brida.

— Bem-vindo, bem-vindo! Está sendo aguardado!

Lancelot viu a moça desaparecer dentro da cavalariça, ao mesmo tempo irritado e inquieto por ela tê-lo deixado assim, sozinho. O serviçal, um velho atarracado, segurava as rédeas do cavalo com uma força inesperada.

— Entregue-me seu rocim, sire Lancelot. Eu cuido dele. A noite vai cair, preciso fechar de novo a porta. A vida não anda segura, nestes dias...

Após um momento de hesitação — como aquele serviçal sabia o seu nome? —, o cavaleiro desceu do rocim. Já que fora até ali por gosto pela aventura, era preciso ir até o fim. Saber por que o esperavam e o que esperavam dele.

Mal tinha dado uns poucos passos pela aléia de carvalhos que conduzia a entrada do convento, três outros empregados apareceram não se sabe de onde, cercaram-no, cobriram-lhe as costas com um leve manto de seda branca e o escoltaram. Apesar do calor daquele verão precoce e da proteção daquele traje de acolhida, ele sentiu um arrepio.

O sol se punha, jogando sobre a fachada da construção uma luz oblíqua e vermelha.

No interior, ele teve de transpor diversas grades que iam sendo destrancadas uma de cada vez por uma religiosa baixa e corcunda, cujo rosto, sob o manto, ele não distinguia. Ela dava passinhos curtos ao seu lado, com o enorme molho de chaves tinindo na sua minúscula mão. Penetraram finalmente em uma sala de abóbada baixa, iluminada com tochas, onde Lancelot, um pouco embaraçado, contou doze freiras. De pé, todas parecidas nos trajes cinzentos de sua ordem, formavam um semicírculo diante do qual ele se imobilizou. Os serviçais e a pequena corcunda que o haviam conduzido ali desapareceram por uma porta lateral.

— Seja bem-vindo, Lancelot do Lago — disse então a freira que estava no centro do semicírculo. — Estamos felizes por o senhor ter consentido em vir nos visitar.

Ele inclinou a cabeça, sem uma palavra. A freira que havia falado em primeiro lugar, e que ele supôs ser a madre superiora do convento, deu um passo na direção dele, parou e deslizou as mãos pelas amplas mangas de seu hábito.

— O senhor — prosseguiu — veio até aqui para encontrar um menino. Um menino de que cuidamos e que educamos dia após dia à espera deste momento. Ele é bonito, ele é bem-feito, seu coração é puro. Ele nunca nos decepcionou.

Calou-se por um momento, como se para deixar a Lancelot a oportunidade de responder. Mas ele não disse nada.

— Lancelot do Lago — prosseguiu ela —, nós achamos, nós sabemos que está na hora de esse menino se tornar cavaleiro. E nós achamos, nós sabemos que nenhum outro homem, nestes tempos difíceis e conturbados, é tão bom quanto o senhor para lhe conceder a pancada*.

Lancelot olhou calmamente as freiras, uma após a outra. Achou-as ao mesmo tempo enigmáticas e pacificas. Elas pareciam uma espécie de tribunal — mas, ele dizia a si mesmo, elas não estão me acusando de nada, e no entanto tenho a impressão de estar sendo acusado. De que? Incapaz de encontrar uma resposta ao que talvez não fosse senão uma pergunta inútil, voltou os olhos para a madre superiora.

— Senhora — disse —, é uma grande honra que a senhora esta me fazendo. Entretanto, não posso sagrar um varlete que eu mesmo não tenha formado, ou que não tenha crescido no serviço de um de meus vassalos.

— O senhor irá sagrar esse menino — replicou calmamente a madre superiora. — Depois que o vir, não terá nenhuma dúvida a respeito de seu valor.

Lancelot pousou a mão sobre o punho de sua espada.

—Tudo que quero é acreditar na senhora. Apresente-me o rapaz.

Foi a vez de a madre superiora inclinar ligeiramente a cabeça.

— Nós lhe agradecemos sua indulgente paciência.

Descruzando lentamente os braços, ela tirou as mãos das mangas e bateu palmas duas vezes. Na mesma hora a porta lateral se abriu, dando passagem aos serviçais. Eram sete, todos idosos e atarracados, vestidos de vermelho. Eles formaram uma coluna de honra, três de um lado, três do outro, enquanto o sétimo, erguendo orgulhosamente a cabeça, declarou:

— Eis Galahad!

E então entrou, não um garoto como esperava Lancelot, mas um rapaz de seus dezoito anos, de porte alto e esguio, ombros largos e peito sólido, vestindo uma cota vermelha. Com alguns passos, ele apareceu na luz das tochas. Os traços de seu rosto eram finos como os de uma mocinha. Mas o vigor de seu queixo e o azul mineral e escuro de seus olhos anunciavam um rapaz de caráter forte. Ele atravessou a coluna de honra dos serviçais e veio se colocar no centro da sala, diante de Lancelot.

— É, com efeito, um belo varlete, Madre.

O rapaz baixou os olhos com uma modéstia que o cavaleiro não esperava dele. Lancelot, há dez anos, vinha formando muitos jovens. Mesmo os mais dotados dentre eles frustravam sempre sua esperança de excelência e perfeição — seguros demais de sua força, eles desconheciam a humildade. Ele teve a revelação imediata, ao ver aquele, de que nunca mais iria encontrar um mais bonito, mais forte, mais bem-educado no orgulho temperado com os próprios talentos.

— A senhora deseja — prosseguiu, dirigindo-se a madre superiora — que eu faça desse jovem um cavaleiro?

— Somente o senhor tem o poder e o direito.

— Bem. Mas e ele, deseja ser feito cavaleiro?

Galahad então ergueu os olhos, fixou-os em Lancelot e respondeu com uma voz clara:

— Sim.

Lancelot aproximou-se dele. Eram da mesma altura. O cavaleiro examinou longamente o jovem, em silêncio. Alguma coisa o perturbava, alguma coisa que ele não conseguia compreender. Deu um passo de lado, de repente tomado por uma intuição, e disse a madre superiora:

— Tenho toda a confiança na educação que deram a esse rapaz. Mas... Permitam-me lutar com o bastão com esse... menino. Quero conhecer, além das aparências, seu verdadeiro valor.

— À vontade. Aliás, eu já esperava tal exigência de sua parte.

A velha freira fez um gesto na direção de seus empregados. Um deles deixou a sala enquanto Lancelot continuava a examinar Galahad, que logo baixou os olhos e se manteve assim, fechado e imóvel, até o serviçal voltar com dois bastões.

Lancelot estendeu o braço.

— Traga-os.

O serviçal entregou, primeiro nas mãos de Lancelot, depois nas do rapaz, um bastão de cinco covados* de comprimento.

Lancelot recuou alguns passos, segurou firme sua arma e declarou:

— Mostre-me o que sabe fazer.

 

O combate começou sem que uma palavra tivesse sido pronunciada pelo jovem Galahad. Era, aliás, mais um jogo ancestral do que um combate. Todos os meninos de Logres, de Gales ou da Escócia o tinham praticado: segurava-se o bastão pelo meio e assestavam-se os golpes à direita e à esquerda. Bem antes de obter o direito de possuir uma espada, qualquer criança devia saber dominar esse exercício.

Se, no começo, Lancelot evitou atacar de verdade, querendo avaliar as capacidades de seu adversário, muito depressa teve de empregar toda a sua ciência de combatente e todo o seu ardor para se defender dos assaltos de Galahad. A cada uma de suas fintas, respondia uma contrafinta do moço. A cada um de seus golpes, um golpe equivalente. Lancelot teve a impressão de que todas as suas tentativas eram previstas por seu jovem adversário — e de que ele próprio previa cada ataque de Galahad. Como se cada um deles se batesse contra si mesmo, ou sua imagem num espelho.

Logo estavam suando, sem que nem um nem outro ficasse em vantagem. Eles recuavam, avançavam, mas nunca mais de três passos, embora o combate ocorresse dentro de um círculo do qual não chegavam a sair.

— Perfeito! — disse de repente Lancelot, afastando-se do círculo e pousando a ponta do bastão no chão.—Você sabe lutar.

Galahad, que ia goleá-lo, imobilizou imediatamente seu gesto.

— E também se controlar — acrescentou Lancelot, vendo o bastão de seu adversário parado no meio do caminho, a menos de um palmo do seu rosto. — Você vai receber a grande ordem da cavalaria amanhã de manhã, durante a festa de Pentecostes.

— É do seu agrado, Senhor? — perguntou a madre superiora.

Lancelot examinou de novo o rapaz que acabara de enfrentar.

— Será uma honra encarregar-me dele — replicou.

Galahad devolveu o bastão ao serviçal e, depois de ter lançado um olhar para Lancelot, afastou-se, passando pela coluna de honra. A porta se fechou atrás dele.

— Seu varlete — disse Lancelot — tem bela aparência e sabe lutar. Ele sabe falar? Dizer outra coisa que não seja “sim”? Teria gostado de ouvir o som de sua voz.

— Ele é tímido — respondeu a madre superiora. — O senhor o impressiona.

Lancelot deu um sorriso de dúvida.

— Tímido? Na verdade, não foi o que pareceu. Por Deus, se eu não o tivesse “impressionado”, ele teria me batido?

— Ele não poderia batê-lo, Senhor — disse tranquilamente a madre superiora.

— Por quê?

— Não era o que ele queria.

Lancelot foi conduzido a um quarto. A cama era confortável e larga. Cansado, ele adormeceu bem depressa, sonhando com aquele moço de cota vermelha que manuseava tão bem o bastão...

Sobre o que foram seus sonhos, não temos idéia. De manhãzinha, um raio de sol lhe tocou as pálpebras; ele acordou. Dois criados entraram no quarto. Trouxeram-lhe frutas e caça, que ele devorou. Trouxeram-lhe em seguida uma bacia de água fria, onde se lavou. Os criados esfregaram suas costas com vigor. Ajudaram-no a vestir seu traje vermelho e branco e cobriram-no com uma capa de arminho. Depois o conduziram a sala onde deveria ocorrer a sagração.

As doze freiras estavam lá, silenciosas. A madre superiora, com um gesto, mostrou-lhe onde ele deveria se colocar: no próprio centro do círculo que elas formavam, juntas. Lancelot obedeceu. Pouco depois, o jovem Galahad entrou na sala, sozinho. Como na véspera, estava vestido de vermelho tirante a sangue vivo. Ele veio se colocar diante de Lancelot.

O cavaleiro lhe disse:

— Incline-se.

O jovem colocou um joelho no chão. Lancelot pôs a mão na sua testa e murmurou, de maneira a que só ele ouvisse:

— Varlete, ignoro quem você é, de onde vem e por que fui conduzido até aqui. Saiba que, se me trair, eu o matarei.

Galahad levantou os olhos para o cavaleiro e respondeu com uma voz alta, estridente, mas tranqüila, de criança:

— Senhor, será seu direito.

Espantado, Lancelot meditou um tempo sobre essa frase, depois perguntou em voz baixa:

— Quem é você? O que procura?

— A mesma coisa que o senhor.

— O que e que eu procuro?

— O que eu vou encontrar.

 

Lancelot evitou fazer outras perguntas. Levantou a mão e pronunciou a fórmula ritual:

— Em nome de Deus, eu o faço cavaleiro.

Em seguida, com o punho fechado, atingiu o rapaz no ângulo entre o pescoço e o queixo. Com toda a sua força. Como nunca tinha batido em ninguém durante a pancada — mas como o rei Arthur lhe batera no dia de sua própria sagração.

Galahad mal estremeceu sob o golpe que recebeu. Ele levantou os olhos para Lancelot.

— O que você procura? — murmurou-lhe novamente o cavaleiro.

— Ignoro, Senhor.

Lancelot bateu-lhe uma segunda vez, mas no rosto.

— O que procura? — repetiu.

— O que o senhor jamais descobrira.

Lancelot ergueu de novo o punho. Encontrou o olhar azul-escuro e sem medo do rapaz. Escutou a madre superiora exclamar:

— A pancada, Lancelot! Comporte-se como Arthur teria feito!

Lancelot relaxou o punho e baixou a mão até o quadril.

— O que procura? — perguntou uma última vez a Galahad.

— Olhe em si mesmo, Senhor.

Lancelot, perturbado, pouco à vontade — sem conseguir determinar o porquê —, anunciou:

— Você agora é cavaleiro. Pela Távola Redonda e por Arthur, nosso finado rei.

— E por Cristo — acrescentou o rapaz, erguendo-se.

Observou Lancelot, olhos nos olhos, enquanto a madre superiora exclamava:

— Por Cristo!

E as religiosas repetiam a uma só voz:

— Por Cristo!

Lancelot pousou a mão no ombro de Galahad.

— Então, que Cristo lhe dê prudência, pois, quanto ao resto, habilidade, beleza e coragem, você não tem que invejar ninguém.

O rapaz nem sequer piscou os olhos com esse elogio.

— Agora — acrescentou Lancelot — vamos juntos a Camelot. É necessário que eu o apresente a meus cavaleiros. E à rainha.

— Se o senhor permitir — interveio a madre superiora —, nosso menino ira encontrá-lo mais tarde. Volte em paz para Camelot. Nós temos, o senhor compreende, alguns últimos conselhos a dar a Galahad.

Aborrecido, Lancelot deu um passo atrás.

— Eu o fiz cavaleiro. Ele não tem outros conselhos a receber a não ser de mim.

— Não nos leve a mal. Nossos conselhos, como pode bem imaginar, nada tem a ver com a cavalaria.

Dito isso, a madre superiora aproximou-se, dando a entender a Galahad com um simples movimento de cabeça que estava na hora de ele se retirar; e, enquanto o rapaz saia da sala, ela segurou as mãos de Lancelot.

— Sem o senhor — ela disse —, este país pertenceria aos bárbaros. Doravante, seu lugar é em Camelot. Quanto ao que não conseguiu consumar, seu sangue o obterá.

Ela retirou as mãos das mãos de Lancelot, que procurou retê-las.

— Explique-me, Madre.

— Seja paciente. Volte para sua casa. Lá irá ouvir o que deve saber.

 

                   A pedra de mármore vermelho

Lancelot voltou sozinho para Camelot. A viagem foi rápida, sem maus encontros. O cavaleiro quase lamentava: o que havia visto e vivido no convento o pusera num estado de espírito raivoso. Quatro ou cinco bandidos na estrada o teriam distraído. Teria transferido para eles aquela raiva e também aquela frustração cuja causa não compreendia exatamente.

Tão logo entrou em Camelot, nem sequer teve o prazer de relatar sua aventura. Galehot o aguardava na ponte levadiça e lhe gritou:

— Venha ver o prodígio!

Levou Lancelot até o castelo, recusando-se a responder às suas perguntas. Conduziu-o até a sala, no alto do torreão, onde ficava a Távola Redonda.

— Olhe!

De imediato, Lancelot nada viu de particular. A mesa estava instalada no centro de uma imensa sala quadrada. Talhada diretamente em um carvalho milenar, tinha em volta cadeiras onde haviam se sentado, em um outro tempo, os cavaleiros e seu rei Arthur. Depois, aproximando-se, Lancelot percebeu uma cintilação inabitual em toda a volta da mesa. Deu rapidamente um passo até seu próprio assento — onde o destino nunca lhe dera a oportunidade de se sentar — e notou, na beirada do grande círculo de carvalho, uma inscrição em letras douradas: Lancelot do Lago, filho de Ban de Bénoïc. Estupefato, constatou que, à sua direita, uma outra inscrição dizia: Yvain, cavaleiro do Leão. À sua esquerda: Garvain, paradigma de cavalaria. Começou rapidamente a dar a volta à mesa. Diante de cada assento, as mesmas letras de ouro, gravadas profundamente na madeira, designavam cada cavaleiro a quem pertencia o lugar.

— Quem fez isso? — exclamou ele, virando-se para Galehot.

— Não tenho idéia. Os nomes estavam aí esta manhã, quando entrei na sala.

— O que isso significa?

— Continue, cavaleiro. Olhe o resto.

Lancelot recomeçou a volta à mesa. Ali, diante do lugar que lhe pertencia, encontravam-se, designados também com letras de ouro, os lugares de Perceval, o galês, depois o de Arthur, filho de Uther-Pendragon e rei de Logres.

E, finalmente, o Assento Arriscado.              

Era um assento mais alto e mais largo do que os outros, no qual ninguém jamais se sentara sem ser mortalmente punido no mesmo instante, e do qual se dizia que seria o do Eleito — o cavaleiro puro e sem mácula que consumaria a Busca do Graal. Muitos homens tinham tentado a aventura de sentar-se ali: tinham sido imediatamente engolidos por um abismo de chamas infernais. Apenas dois cavaleiros, muitos anos antes, tinham, por suas aventuras, quase obtido o direito supremo de sentar-se ali: Perceval e o próprio Lancelot.

Este último, tomado por uma estranha apreensão, aproximou-se do Assento Arriscado. Se o nome de cada cavaleiro foi inscrito com letras de ouro na mesa, dizia para si mesmo, aqui deve estar também o nome do Eleito.

Com efeito, ele conseguiu decifrar o seguinte:

 

         Quatrocentos e cinqüenta e quatro anos

         Depois da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo,

         Este assento vai receber seu ocupante.

 

Lancelot, ao mesmo tempo decepcionado e aliviado por nenhum nome ter sido citado, perguntou:

— O que acha disso? Faz algum sentido para você? Alguém conseguiu entrar nesta sala durante a noite?

Galehot deu de ombros.

— Você bem sabe que ninguém teria conseguido fazer esse trabalho numa só noite. Trata-se de um prodígio, cavaleiro, temos de reconhecer. E, se me permitir expressar o que penso, mais do que um prodígio, é o anúncio de novos tempos.

— Novos tempos! — enfureceu-se Lancelot. — Vá contar isso aos saxões e aos bandidos que mantém o país a ferro e fogo!

— Cavaleiro, se a Busca for consumada, tudo então se tornara possível. Deus estará conosco.

— Deus! Ele nos abandonou na praia de Carduel, onde morreram Arthur e toda a fina flor da cavalaria de Logres!

— Não blasfeme, cavaleiro — disse Galehot, aproximando-se de Lancelot. E, pousando-lhe a mão no ombro, acrescentou: — Sei como se sente. Você poderia, você deveria ter concluído a Busca. Mas não fez as Duas Perguntas quando a ocasião se lhe apresentou. Você não foi o Eleito. Não é o Eleito. Teria o reino de Logres sobrevivido, se você tivesse sido menos orgulhoso em sua juventude? Se não tivesse amado... aquela que não deveria ter cobiçado...? Pouco importa, cavaleiro. Aquilo que é, aqui e agora, aconteceu. Você não pode fazer mais nada a respeito. Pense no futuro.

Lancelot baixou a cabeça, tentando se acalmar. Por que essa cólera, afinal? Por estar habituado a idéia de que não haveria um Eleito, já que ele próprio não pudera sê-lo? Por ser obrigado, após lutar durante anos para conservar Camelot e o espírito da Távola Redonda, a ceder o passo a um desconhecido que tomaria seu lugar, suas prerrogativas, sua influência e seu poder? Não, ele sentia no fundo de si mesmo que não eram essas as razões. Não compreendia o verdadeiro motivo de sua cólera.

— Tem razão, Galehot. A cavalaria e a Busca são mais importantes que minha insignificante pessoa.

Lançou um último olhar para as inscrições em letras de ouro que haviam passado a ornar a Távola Redonda.

— Mesmo assim, mantenhamos a prudência — disse ele. — Somos os únicos a saber o que está inscrito diante do Assento Arriscado. Que mais ninguém venha a saber. Se a notícia se espalhasse, seriamos assaltados por uma multidão de intrigantes tentando se passar pelo Eleito.

Galehot aquiesceu com um meneio de cabeça.

Lancelot afrouxou sua capa e a despiu.

— Assim sendo, sou da opinião de que devemos ocultar essa inscrição.

Colocou a capa sobre a enigmática mensagem em letras de ouro gravada diante do Assento Arriscado. Tão logo anunciou: “É melhor assim”, um varlete de dezesseis anos, ruivo e com as faces afogueadas, irrompeu sala adentro.

— Meus senhores! Venham! Venham depressa! Um prodígio! Um prodígio!

— Meu Deus — suspirou Galehot. — De novo...

 

Era uma pedra. Na verdade, um bloco de pedra. Larga e grossa como uma pedra de muralha. E vermelha. Portanto, mármore. Dentro do rio. O rio passando diante da muralha de Camelot. Ou melhor: sobre o rio. Um bloco de mármore vermelho flutuando na superfície da água.

Toda a população da cidade tinha se reunido sobre as muralhas. Homens, mulheres, crianças, velhos, todo mundo assistia ao milagre: uma grande pedra vermelha flutuando preguicosamente sobre a água. E não apenas um bloco de mármore: todos viam ali, fincada até o cabo, uma espada cujo punho de prata cintilava.

Lancelot, chegado até o alto da muralha na companhia de Galehot, também teve de constatar o prodígio.

— Dois prodígios no mesmo dia — soprou-lhe Galehot. — Talvez eu não esteja errado: é o anúncio de novos tempos.

— Antes de falarmos em prodígio — replicou Lancelot —, vejamos se essa pedra é verdadeiramente uma pedra.

— Você é incrédulo demais, cavaleiro.

— Sou desconfiado. É meu papel de chefe de guerra. Vamos!

Desceram até a grande porta, deram a ordem para baixar a ponte levadiça e atravessaram o rio até a outra margem. Lancelot chamou os varletes.

— Apanhem um barco. Recolham essa pedra.

Eles lhe obedeceram com reticência. Não tinham vontade de se aproximar demais de um bloco de mármore vermelho que flutuava — uma diabrura. Mas Lancelot era suficientemente imperioso para que eles não seguissem suas ordens; e Galehot, sempre curioso — e para tranqüilizá-los —, subiu com eles no barco.

Aproximaram a embarcação do bloco de mármore. Galehot não teve nenhuma dificuldade em segurar a empunhadura da espada, e, com umas poucas remadas, trouxeram o mármore vermelho para a margem. Porém, apesar de flutuar na água como se fosse cortiça, a pedra era excessivamente pesada para um único homem. Foram necessários a ajuda e o suor de três outros sargentos que vieram para ajudar, a fim de finalmente içá-la para a terra firme.

Enquanto Galehot saltava para a margem, Lancelot se aproximou. Depois que os sargentos se afastaram, ele permaneceu um momento em silêncio junto do bloco de mármore vermelho. Galehot, antes de todos, distinguiu a inscrição em letras de ouro que ornava a empunhadura da espada. Curvou-se e decifrou-a em voz alta:

— Nenhum homem conseguirá me tirar daqui, a não ser aquele que terá o direito de me manejar, e que será o melhor cavaleiro do mundo. Muito bem — acrescentou —, eis alguém com o mérito da simplicidade. E que esclarece provavelmente o recente prodígio da Távola Redonda.

Pálido, estranhamente nervoso, Lancelot, fascinado, não tirava os olhos da espada. Apesar disso, não pode deixar de dar alguns passos até a pedra.

— Provavelmente, estou errado — murmurou. — Mas estou com vontade de tentar a prova.

— Senhor — disse Galehot com uma voz surda —, tenho a sensação de que estaria errado...

— Sempre se esta errado ao correr um risco. Mas o que foi a minha vida, Galehot, senão uma série de riscos aceitados, enfrentados?

— Senhor! Eu lhe peço! Eu o conjuro a não...

Sem escutar, Lancelot punha o pé esquerdo sobre o bloco de mármore e segurava com as duas mãos a empunhadura da espada, quando ressoou uma voz grave e forte.

— Largue essa espada, Acriança! Imediatamente!

Um homem de estatura alta, enrolado numa vestimenta de burel enegrecida pelo uso, avançou, afastando a multidão. Tinha uma grande barba embaraçada, longos cabelos agrisalhados. Um nariz de bico de águia. E olhos flamejantes e negros. Lancelot, saído do delírio, reconheceu-o na hora.

— Merlin? Eu acreditava que você estivesse morto...

— No que você acreditou não tem importância — disse o mago pousando a mão sobre o ombro do cavaleiro. — Estou aqui.

Apesar da barba, da cabeleira e de seus andrajos de eremita, ele era alto, empertigado, e transmitia uma impressão de força e autoridade.

— Você e os outros que tem a sorte de envelhecer ignoram os inconvenientes da imortalidade. Saiba que precisei dormir dez anos para obter o privilégio de me encontrar aqui, entre vocês, e impedi-lo de cometer as bobagens que o seu orgulho lhe insufla. Você me esgota. Por enquanto — acrescentou, apontando o indicador para Lancelot —, afaste-se dessa pedra. E depressa.

O cavaleiro tratou de obedecer. Merlin. Merlin, o filho do Diabo, cuja lembrança era sempre evocada nas horas de conversa, e que se acreditava desaparecido para sempre ao mesmo tempo que o poder de Arthur sobre o reino de Logres, Merlin estava de volta.

O mago virou-se para a assembléia de jovens cavaleiros, de varletes, de sargentos e de homens de armas que formavam um círculo compacto e atento em volta do bloco de mármore vermelho.

— Escutem o seguinte. Não vou repetir, e pior para os surdos e para os imbecis. Foi dito: “Aquele que tentar pegar esta espada e não conseguir, receberá um grave ferimento.”

Mudando de tom, com a voz quase baixa, anunciou a Lancelot:

— Na verdade, eu acabo de lhe salvar a vida. Acredite-me.

— Devo agradecer-lhe?

— Não haveria razão.

Merlin prosseguiu, falando a toda a audiência:

— Repitam a todos: estão começando hoje as últimas aventuras do Santo Graal! E essa espada, essa espada... será a do Eleito!

— Então não vou deixá-la para nenhum outro, ela é minha e de mais ninguém! — declarou resolutamente Lancelot.

E, sem esperar, plantou o pé esquerdo sobre a pedra, agarrou a espada pela empunhadura e contraiu todos os seus músculos.

— Louco! — gritou Merlin. — Louco de orgulho!

Era tarde demais. Lancelot, agarrado a espada com as duas mãos, tentava, com toda a força, arrancá-la do mármore.

Merlin, furioso, precipitou-se sobre ele e bateu violentamente no seu ombro, obrigando-o a soltá-la.

— Por que está fazendo isso, imbecil?

Sem fôlego, Lancelot recuou alguns passos.

— Eu tinha sido escolhido — resmungou. — Eu devo ser o Eleito.

— Um direito que você perdeu há vinte anos, e você sabe como e por quê!

Com um gesto inesperado, Merlin roçou-lhe a face.

— Nunca lhe disseram que, por causa de meu pai, eu tenho o assustador dom de conhecer o passado e de prever o futuro? Por que você nunca me escuta?

Lancelot afastou rapidamente o rosto, como se a carícia de Merlin o queimasse.

— Não acredito em mais nada. Ou então somente no Mal!

— O Mal! Você não sabe que ele carrega as duas faces de uma mesma verdade?

— Que verdade?

Merlin sacudiu dolorosamente a cabeça.

— Você não devia ter tentado a prova, Lancelot. Essa espada, um dia, vai lhe fazer tanto mal que você daria tudo o que lhe é mais caro para jamais tê-la tocado.

 

                   O Assento arriscado

Conduzidos por Merlin, Lancelot e Galehot entraram na grande sala do alto do torreão. Com um simples gesto, ele lhes fez sinal para que fossem para seus lugares na Távola Redonda. Obedeceram. Pousaram os dedos sobre as inscrições em letras de ouro que os designavam:

Lancelot do Lago, filho de Ban de Bénoïc

Galehot de Sorelois

Merlin estendeu os braços, como um fantasma negro dentro de sua roupa de burel. Pronunciou algumas palavras em uma língua desconhecida — uma língua de feiticeiros celtas que ele passara a ser o último a conhecer. A luz das dezenas de candelabros que iluminavam a sala começou a vacilar. Contudo, não havia nem um sopro de ar.

Galehot foi o primeiro a distinguir o estranho fenômeno. Na penumbra dos candelabros que se extinguiam, outras chamas, pálidas e frias, tremeram em torno dos assentos vazios da Távola. E essas chamas de gelo bem depressa se pareceram com corpos, formando algo parecido com fantasmas, ou talvez almas — formas que se tornaram cada vez mais precisas e claras, tão claras que seu brilho atenuou o brilho dos candelabros moribundos, e Galehot reconheceu, nas aparências indecisas e brilhantes, os cavaleiros que conhecera no passado, antes que toda a cavalaria de Logres tivesse morrido na praia de Carduel.

Yvain, Erec, Lucain le Bouteiller... E Béduier, o condestável... E essa forma, rabugenta, de barba grisalha: sim... Ké, o senescal...

— Garvain, meu mestre!

Era um grito de Lancelot. Ele também reconhecera um dos espectros. Paradigma de cavalaria, diziam as letras de ouro diante do assento: Garvain, o sobrinho do rei, o preferido das damas, o modelo de proeza* e de cortesia — ele estava ali, parecia estar ali, no lugar dele, mais bonito, mais sedutor e mais brincalhão do que nunca.

Depois foi a vez de Galehot soltar um grito:

— O rei Arthur!

Sim, ele o via, ele o via, o rei Arthur, ali, sentado a Távola Redonda, imagem trêmula mas luminosa, trêmula mas com a luz de seu sorriso, que parecia dizer: “Estou aqui. Com vocês. Não os esqueço.”

Durante um tempo de que eles não conseguiram estimar a duração, Galehot e Lancelot viram-se cercados de seus pares e senhores. Como se o tempo tivesse sido abolido. Como se eles não tivessem ficado sozinhos durante dez anos defendendo a lembrança de Logres e de suas leis. Como se a batalha mortal de Carduel nunca tivesse ocorrido. Como se eles não estivessem cercados de espectros suscitados por alguma magia negra, mas dos próprios cavaleiros, finalmente de volta — De qual guerra? De qual caça? De qual aventura? De qual morte? — para tomar seus lugares a Távola Redonda.

Então, ouviram um bater de palmas. Eram palmas de Merlin, de pé, afastado. A chama dos candelabros retomou vida e luz, e as sombras — os espectros — desfizeram-se. Quase na mesma hora, outras batidas se seguiram. Das portas e das janelas da sala se fechando todas juntas. Isso produziu uma espécie de ventania que soprou todos os candelabros. Ficou escuro.

Pouco depois, quando Lancelot e Galehot ainda não ousavam se mover em seus lugares, um surpreendente clarão dourado elevou-se do Assento Arriscado. Ali não havia nenhuma vela, nenhum candelabro, nenhuma lâmpada de sebo, mas ainda assim uma luz suave e amarela apoderava-se pouco a pouco da sala.

Merlin bateu mais uma vez as mãos.

A grande porta se abriu, sozinha, sem intervenção humana. Os dois cavaleiros voltaram os olhos e viram entrar um homem alto e magro, de porte ágil, numa túnica vermelho-escura. Lancelot reconheceu-o: era o jovem Galahad. Galehot ficou surpreso com a beleza plácida do recém-chegado, com sua tez muito pálida, e notou que ele não trazia espada na bainha nem escudo suspenso ao pescoço. Cavaleiro sem armas*.

Merlin avançou para acolhê-lo. Deu-lhe a mão e conduziu-o até a grande sala.

— Senhores — anunciou —, eu lhes apresento o descendente de José de Arimatéia.

Largando a mão do impassível jovem, lançou um longo olhar em torno de si, para a Távola Redonda, para os dois cavaleiros sobreviventes que estavam sentados, e para aqueles cuja lembrança e nomes estavam gravados na madeira e nas memórias, depois prosseguiu:

— Como vocês sabem, José de Arimatéia, depois de recolher o sangue de Cristo sobre a Cruz, teve de deixar a Palestina. Ao final de uma longa navegação, aportou as margens de Logres. Sua primeira precaução foi ocultar o prato, o graal no qual Jesus jantara por ocasião da Ceia e no qual o próprio José recolhera o sangue de Cristo, conservando para sempre o Milagre. Sua segunda precaução consistiu em estabelecer uma cavalaria cristã da qual Arthur foi o último rei, e da qual você, Lancelot, é o ultimo afiançador. José mandou talhar esta Távola Redonda em um carvalho milenar. Atribuiu a cada um de seus cavaleiros um assento, que, a morte deles, outros cavaleiros, após terem feito suas provas, poderiam por sua vez ocupar. Um único desses assentos, o que passou a ser chamado de “arriscado”, ficou sem ocupante.

Merlin tocou o ombro do rapaz vestido de vermelho. Eles começaram a dar a volta em torno da Távola Redonda.

— Houve, vocês sabem, muitos orgulhosos, loucos e ambiciosos que ocuparam esse assento. Vocês sabem também qual a sorte funesta e rápida que lhes foi reservada. Mas é preciso que um dia a lenda e a história se juntem. Combater e sonhar não bastam. É preciso saber combater como se sonha, sonhar como se combate.

Merlin e o rapaz tinham se aproximado do Assento Arriscado. O mago olhou um por um dos dois últimos cavaleiros da Távola Redonda presentes na sala — faltava Perceval. Sua voz anuviara-se com uma tristeza inabitual.

— Vivi a vida de diversos homens. Amei apaixonadamente, enganei e fui enganado com arte. Creio conhecer tudo que e humano. Possuo mais poderes mágicos do que um único homem tem o direito de possuir. Tentei me servir deles com discernimento — algumas vezes, me enganei. Senhores, eu sou aquele, o último, creio, que pode ainda ligá-los ao antigo mundo, o Merlin dos prodígios e dos malefícios postos nas minhas mãos por minha natureza diabólica e meu saber de druida. Enfim, Senhores, eu reconheço diante de vocês — sem me submeter — que o mundo novo reclama uma religião nova, cujos milagres são parábolas, as parábolas revelações, e eu trouxe aqui aquele através do qual esse novo mundo vivera — aquele que, um dia, dentro em breve, se ele levar a termo sua busca, tirara de mim o direito de ainda viver. Havia tanta emoção na voz de Merlin que os dois cavaleiros ficaram com lagrimas nos olhos. Lancelot ergueu-se um pouco de seu assento, quis exclamar: “Nós sempre vamos precisar de você.” Merlin levantou a mão para fazê-lo se calar e respondeu ao que Lancelot não chegara a ter tempo de dizer:

— Esqueça-me. Eu também sou um espectro. O fantasma do seu passado, como todos os que você viu aparecerem ainda agora em torno desta mesa. Só tenho ainda um pouco de existência e de poder para que você e alguns outros continuem acreditando em mim. Isso não vai durar.

Segurou o encosto do Assento Arriscado, puxou-o para trás e fez um ligeiro sinal de cabeça para o rapaz de cota vermelha, que se aproximou até a borda da mesa. E, enquanto empurrava o assento sob o rapaz, declarou:

— Este é o Assento Arriscado. E este é o assento do Eleito.

Os olhos de Galahad, azul-oceano, não tinham sombra de tempestade. Quantos orgulhosos haviam morrido instantaneamente, aspirados pelo inferno, por terem imprudentemente ocupado aquele assento? Lancelot e Galehot olharam-no se sentar com uma espécie de sentimento de horror.

Nada aconteceu.

Ocorreu simplesmente que o burel negro de Merlin desapareceu entre as trevas e se volatilizou. E que Galahad, rapaz alto de rosto branco de donzela, de roupa cor de sangue vivo, agora instalado no Assento Arriscado, pousou o queixo em cima de suas mãos juntas, observou um de cada vez, Lancelot e Galehot, e disse-lhes com doçura:

— Não se preocupem, meus amigos. O Graal me foi destinado. É assim. Vocês não podem fazer nada, nem eu.

 

                     O puro, o predestinado

Galahad se levantou e convidou os dois cavaleiros a descerem até a margem do rio.

— Alguém deve arrancar essa espada de seu bloco de mármore. Não?

Bateu no ombro de Lancelot.

— Você tentou, não foi?

Lancelot se afastou, como se tivesse sido atacado por uma serpente, e não respondeu. Aquele moço o deixava pouco à vontade. Era parecido demais com o que ele mesmo tinha sido; e no entanto parecia representar tudo o que ele não tinha sabido ser. Era insuportável.

Todos três deixaram juntos a sala da Távola Redonda.

No final da escada, Guinevere os aguardava. Cercada por suas serviçais, o cenho franzido, ela encarou Lancelot.

— O que está acontecendo, Senhor? Parece que grandes acontecimentos estão se passando e eu estou sendo deixada de fora. Esquecem-se de que sou a rainha?

— Senhora, perdoe-me esse erro. Tudo aconteceu tão depressa e tão... surpreendentemente, que não tive tempo de avisá-la.

Ele falara com um tom conciliador. Ela se acalmou.

— Admitamos. Agora, esclareça-me. Para que eu possa “me surpreender” também.

Lancelot segurou Galahad pelo braço e o apresentou a Guinevere.

— Ocorreram diversos prodígios, Senhora. Inclusive este: este moço, que eu sagrei cavaleiro hoje pela manhã, ainda agora ocupou o lugar no Assento Arriscado.

— Impossível!

A exclamação escapara a rainha. Suas maçãs do rosto ficaram rosadas de emoção; ela levou a mão ao peito.

— Mas é a exata verdade — afirmou Lancelot. — Vi-o com meus próprios olhos. Assim como Galehot.

Incrédula, ela olhou para Galahad. Aquela estatura sólida e delicada ao mesmo tempo... A forma daquele rosto... O olhar azul e firme... Algo indefinível no seu jeito... Teve de fazer um grande esforço para dominar a perturbação provocada pelas lembranças que de repente a assaltaram: vinte anos antes, um outro rapaz, naquele mesmo castelo, não sabendo o próprio nome nem o do pai e o da mãe — e, algum tempo mais tarde, seu ciúme e seu desespero quando Baudemagus a obrigara a olhar em um espelho de pedra negra...

— Quem é você, jovem?

Ele inclinou a cabeça.

— Senhora, meu nome é Galahad.

— Quem são seus pais? Quem são seus tios? Qual é sua linhagem?

— Proibiram-me de falar sobre isso.

Ela deu um sorriso amargo:

— Claro... Bem — suspirou —, fico feliz que Aquele-que-era-esperado finalmente tenha se sentado no Assento Arriscado. Isso anuncia, suponho, profundas perturbações nestes tempos já perturbados. Fico contente, repito, mas também triste.

— Por quê, Senhora? — perguntou Lancelot.

— Porque eu admirei suas proezas, cavaleiro. Eu lhe dei meu am... minha amizade quando você era o melhor cavaleiro do mundo. O que não é mais o caso.

Lancelot, duplamente ferido — em seu orgulho de guerreiro e em seu amor pela rainha —, quis replicar: “Isso era tudo que havia entre nós?” Mas eles não estavam sozinhos. Ele não tinha o direito de pronunciar tais palavras em público. Disse simplesmente:

— Está retirando sua amizade por mim?

Ela se aproximou e lhe roçou a face com a ponta dos dedos.

— Não se trata disto, mas olhe a realidade de frente: ela tem o claro e sedutor rosto desse rapaz, Galahad. Você não é mais o melhor cavaleiro do mundo. Quem afirmasse isso seria um mentiroso. E espero que você mesmo tenha deixado de acreditar nisso.

— Saiba, Senhora, que nunca acreditei ser o melhor cavaleiro do mundo...

— Contudo — ela replicou com uma estranha emoção —, você era. E ainda é.

Deixou escorregar o dorso da mão pelo rosto enrugado de Lancelot.

— Você permanece e permanecera sendo o melhor cavaleiro dentre todos os que cometeram erros, pecados e faltas.

Virou-se de repente e voltou o olhar para Galahad.

— Eu o saúdo, “melhor cavaleiro do mundo”. Não duvido que vá ilustrar esse título e trazer para ele inúmeras provas.

Galahad inclinou-se mais uma vez.

— Muito obrigado, Senhora.

Nada transparecia em seu rosto — “nenhum sentimento humano”, pensou Guinevere. Com um gesto um tanto rápido demais, ela dispensou Lancelot, Galehot e suas próprias acompanhantes:

— Deixem-me um instante a sós com esse cavaleiro novo. Por favor.

Obedeceram-lhe. Quando a porta foi fechada atrás de Lancelot e dos outros, ela se pôs a examinar Galahad dos pés a cabeça. Ele permaneceu impassível.

— Por que — recomeçou ela, finalmente —, por que você dissimula o que, com um só olhar, eu adivinhei? Por que não pronuncia o nome do seu pai?

Para sua surpresa, Galahad enrubesceu e baixou os olhos.

— Senhora, não me compete dizê-lo.

— Ao menos conhece as circunstâncias que o fizeram nascer?

O rapaz limitou-se a murmurar, como quem recita uma lição aprendida:

— Eu sou o que estava sendo esperado. Eu sou o que obterá o Graal. Isso justifica, Senhora, tudo o que ouviu e ouve ainda de mentiras e sortilégios.

— Foi essa a lição que lhe ensinaram?

— Senhora, uma vez que meu pai é tão importante para a senhora, e que a senhora o conhece, diga a senhora mesma o nome dele.

— Com todo o prazer. Seu pai é Lancelot do Lago.

— Se isso é verdade, Senhora, nos logo saberemos.

— Não brinque comigo! — ela se exasperou. — Sou a única a reconhecê-lo? Que novo sortilégio, que nova intriga sua mãe inventou para que um homem tão clarividente quanto Galehot e até seu próprio pai não o tenham reconhecido?

— Meu pai me reconhecerá quando chegar a hora. Não veja nisso nem sortilégio nem intriga. Os acontecimentos seguirão o curso que a Busca decidir.

— E se eu chamasse Lancelot agora e lhe dissesse a verdade?

— Eu não a impediria, Senhora.

Ele se inclinou uma última vez.

— Agora, tenho que descer até o rio. Uma espada, creio, me espera.

Ele deixou o local. Guinevere ficou muito tempo de pé, sozinha, depois da partida dele. Lágrimas molharam sua face. Ela ignorava a razão de sua tristeza. Seria ciúme? Viu-se no grande espelho suspenso na parede.

— Eu conservei minha beleza — disse para si mesma. — Para que ela serve? É um engodo... Estou velha, estou velha, eu sou velha... Esse filho que Lancelot teve com Ellan e o que jamais — jamais! — teremos juntos...

 

Uma multidão esperava Galahad na beira do rio. Lancelot e Galehot estavam junto do bloco de mármore com uma espada enterrada. E, quando o rapaz se aproximou para alcançá-los, todos notaram que o vermelho da pedra e o vermelho de sua cota eram exatamente do mesmo tom de escarlate.

Galahad fez com simplicidade o que tinha de ser feito. Estava ali para retirar uma espada fixada dentro do mármore. Sem uma palavra, foi até o bloco de pedra, segurou a empunhadura da espada com o punho de sua mão direita e puxou. A lâmina deslizou com um barulho de metal atritado. Galahad levantou a espada acima do ombro, permaneceu impávido sob as aclamações do publico, depois enfiou-a na bainha vazia à altura de seu quadril.

Foi aplaudido. Todos tinham consciência de ter assistido a um acontecimento extraordinário, como não ocorria desde o dia em que o jovem Arthur retirara Excalibur da bigorna em que estava presa. Tantos anos tinham se passado desde aquele prodígio, que a maior parte das pessoas não acreditava mais nele a não ser como uma lenda que e relatada, a noite, ao pé de um fogo se extinguindo na lareira. Mas entre eles havia um homem que tinha visto Excalibur, que a havia carregado, manuseado, que a havia atirado dentro da água perto de Carduel, quando Arthur estava morrendo: Galehot. Quando a arma foi brandida por Galahad, ele empalideceu. Inclinou-se ao ouvido de Lancelot e cochichou:

— É a espada de Arthur...!

— Tem certeza?

— Creia-me, Lancelot: é Excalibur.

O cavaleiro bateu-lhe sonhadoramente no ombro:

— Então é verdade: nós veremos se consumar a Busca... O reino de Logres será restabelecido dentro em breve.

Galehot balançou dolorosamente a cabeça.

— Temo, cavaleiro, que não seja assim tão simples...

— O que quer dizer?

Galehot não tirava os olhos daquele jovem de cota vermelha que aceitava as aclamações da multidão com uma tranqüilidade perfeita.

— Não sei. Tenho a impressão de que você e eu já pertencemos a um mundo esquecido... Não me sinto pronto para aceitá-lo.

Lancelot segurou-o pelo braço e apertou-o amistosamente contra si.

— Você tem um defeito, Galehot: você pensa. Pare de refletir. Somos cavaleiros, você e eu, e devemos agir. É só esta a questão. Você não acha esse homem impressionante?

— Certamente... Mas tenho a lembrança de ter conhecido e acompanhado um outro — que eu não achava menos impressionante. Era você, cavaleiro.

— Obrigado, Galehot. Mas tenho quarenta anos, sou quase um velho. Combati tanto que todos os meus ossos doem hoje. Vi o Graal, há vinte anos, e não soube fazer as Duas Perguntas. Pois, no fundo, eu não era o Eleito, não é?

— Foi você que decidiu não sê-lo.

— Você acha?

Galehot encolheu os ombros.

— Você preferiu o amor, cavaleiro. Preferiu Guinevere. Ela poderia ter sido o seu graal, se...

— Se...?

Galehot afastou-se.

— Lembre-se: eu penso, eu reflito demais...

— Mas é o que me diverte em você.

— Então, permita-me diverti-lo mais uma vez. A última.

Apontou para Galahad.

— Cavaleiro, quem é esse menino?

— ...Não compreendo... Galahad...?

— Olhe para ele. Olhe para ele com os meus olhos. Meus olhos de vinte anos atrás.

Lancelot examinou o rapaz de cota vermelha que apertava mãos no meio da multidão, o rapaz a quem as mulheres apresentavam seus bebês para que ele os benzesse — o rapaz em cuja direção estendiam-se mãos que pareciam querer tomar dele um pouco de sua força e de sua serenidade.

— E então...? — perguntou Lancelot.

— E então, o que vejo nele é você mesmo. A parte mais penosa de você, a que você abandonou ao amar Guinevere.

— E então?

— Então, eu não gostaria que aquele que vai apanhar o Graal fosse maçante como um dia de chuva, ou como um Galahad.

— Ele é o Eleito, Galehot. O Puro, o predestinado. Todos os sinais estão a favor dele.

— Esqueça os sinais. E pegue o Graal.

— Por quê? Como?

— Volte a ser você mesmo.

 

                   O escudo

De madrugada, Galahad foi às cavalariças, mandou aparelhar um rocim jovem, rápido e flexível e deixou Camelot. Pouco depois, Lancelot montou um cavalo de forte constituição e partiu no seu encalço.

Da mais alta janela do torreão, Guinevere viu-o desaparecer no horizonte. Ela chorava.

 

Na noite da véspera, um último prodígio acontecera.

Lancelot mandara organizar um banquete na grande sala em honra a Galahad. Na verdade, Camelot, há muito tempo, vivia como uma cidade sitiada. Os viveres eram racionados. O abastecimento dependia das caçadas na floresta — sempre arriscadas, pois, em vez de javalis ou cabritos monteses, arriscava-se a cair em uma emboscada de bandidos ou nas mãos de uma tropa de saxões — e da cultura dos campos em volta da muralha que, pelas mesmas razões e apesar da guarda que era montada lá, eram insistentemente destruídas ou saqueadas. Lancelot desculpara-se antecipadamente com Galahad:

— Nós somos pobres, cavaleiro. Só podemos festejá-lo com um caldo de legumes e de galinha.

Ao que o rapaz simplesmente respondera:

— Não tenha medo. Deus provera tudo.

Depois que a rainha Guinevere veio se sentar, cada um se instalou, por sua vez, em volta da imensa mesa sobre o estrado. Lancelot convidara para o banquete todos os jovens cavaleiros que ele tinha formado e todas as donzelas. Os varletes estavam prontos para executar suas tarefas.

A noite, que é tardia nessa época do ano, começava a cobrir um céu de verão sem nuvens. De repente, um trovão ressoou, acompanhado de um raio cuja luz cegante atravessou as janelas e veio iluminar a grande sala como se fosse pleno dia. E pareceu que o tempo tinha sido suspenso.

O clarão ardente do relâmpago persistiu, ofuscando os convivas. Ninguém mais se mexeu, ou fez sequer um movimento. Os que estavam falando emudeceram, a boca entreaberta com sons que não podiam mais sair. Os que estavam gesticulando viram-se paralisados em pleno movimento.

Apareceu então, no meio da mesa muito longa, algo com a forma de um grande prato coberto com um pano vermelho. Uma sílaba, uma palavra — cantante como uma nota desconhecida — percorreu a sala, embora todos os ocupantes estivessem privados da palavra: “Graal... Graal...”

O prato oculto sob o tecido vermelho elevou-se acima da mesa e a atravessou, lentamente, em um sentido, depois no outro. A sua passagem, os perfumes mais suaves e mais apetitosos encheram as narinas dos convivas. Sob seus olhos, a mesa se cobriu das mais finas iguarias. Eles não lhes encostaram a mão, mas cada um teve a sensação deliciosa de experimentá-las, de comê-las, de se saciar. Nunca tinham conhecido refeição mais suculenta. De repente, o prato e seu pano desapareceram; a estranha e fulgurante luz se extinguiu. O tempo recomeçou a correr.

Os convivas recuperaram, então, a fala. E logo ocorreram exclamações de surpresa. Depois, alguém pronunciou a palavra: “O Graal...” E todos acompanharam, como em uma litania:

— O Graal... O Graal... O Graal...

Sobre a grande mesa, as iguarias maravilhosas haviam se volatilizado. Mas ninguém tinha mais fome. Aquela refeição milagrosa parecia ter alimentado para sempre Lancelot, Guinevere e sua gente.

O cavaleiro inclinou-se ao ouvido de Galehot:

— Creio que neste momento não há mais dúvida. O Graal está destinado a Galahad.

— Está querendo dizer que o senhor mesmo renuncia a ele?

Lancelot não respondeu. Relanceando o olhar límpido de Galahad, que não piscou, levantou-se e declarou solenemente:

— Jovem cavaleiro, nossos votos, e particularmente os meus, o acompanharão na Busca! Que o Céu esteja com você!

Então todos os homens se ergueram e, por sua vez, repetiram a uma só voz:

— Que o Céu esteja com você!

Naquela mesma noite, Guinevere convocou Lancelot ao seu quarto. Com o rosto tenso, o olhar febril, ela deu alguns passos nervosos até a janela, fingindo observar a noite clara de verão.

— Eu adivinhei o que você quer — disse.

— Adivinhou o quê?

— Eu o conheço. Não vai se contentar em desejar o sucesso desse rapaz. Vai querer ajudá-lo.

— Você sabe perfeitamente que um cavaleiro só pode partir para a busca sozinho.

Ela se virou bruscamente para Lancelot. Seus olhos estavam cheios de lágrimas.

— Então me jure que amanhã de manhã eu vou encontrá-lo aqui, neste quarto! Que você não terá partido com ele!

Ele baixou a cabeça.

— Não posso fazer esse juramento.

— Por quê? Por que quer ajudar esse Galahad a consumar um destino que não é o seu?

— Farei o que devo fazer — limitou-se ele a responder com uma voz firme.

Não mais se dominando, ela se atirou contra ele, apertando-o nos braços. Mas ele permaneceu assim, frio na aparência, com as mãos soltas.

— Lancelot! Lancelot, você não compreende que não quero perdê-lo?

— Não vai me perder.

— Vou sim! — exclamou ela, afastando-se dele. — Eu sinto, eu pressinto: você não vai voltar dessa aventura que não é sua!

Ele a contemplou por um momento, sério, atento e calmo. Estendeu a mão e tocou-lhe a face.

— Guinevere — disse docemente —, nunca amei ninguém a não ser você.

E, enquanto ela caía em prantos, ele se virou e deixou o quarto.

No dia seguinte, ao nascer do sol, ele cavalgava sobre as pegadas de Galahad.

 

No quinto dia de viagem, o jovem cavaleiro chegou diante de uma abadia de pedra branca. Ela se erguia, imaculada, diante da folhagem de uma densa floresta de carvalhos. Ele se apresentou à entrada. Após quatro noites acampando a luz das estrelas, desejava ter um pouco de conforto e de companhia.

Os monges o acolheram solicitamente. Vestiam hábitos vermelhos, e Galahad se perguntou a que ordem pertenceriam, que ele não conhecia. Mas, por discrição, não fez a pergunta. Enquanto seu cavalo de batalha era levado a estrebaria, ele foi introduzido em uma sala baixa, que estreitos vitrais em camaïeu[1] escarlate mal chegavam a iluminar.

Naquela penumbra de sol poente, teve a surpresa de distinguir a alta silhueta de um homem armado. Com a mão na empunhadura de sua espada, ele deu ainda alguns passos. Sim, era exatamente o que suspeitara: o homem era um saxão — um Gigante Ruivo.

Galahad esboçou o gesto de puxar a espada. O monge que o acompanhava segurou-lhe o punho com uma mão firme.

— Aqui ninguém luta, cavaleiro — murmurou. — Aliás, o escudeiro do duque Ordic não comprará briga com o senhor. Venha.

O monge o levou até o gigante saxão. Galahad, a luz da chama carregada pelo monge, viu um homem estendido em um colchão de palha solto no chão. Cabelos louros avermelhados, olhar pálido como gelo, ele era também um saxão. Sua cota grosseira estava toda molhada de sangue, correndo de uma grande ferida no ventre. Com um rápido olhar, Galahad compreendeu que o homem estava morrendo.

Interrogou o monge com o olhar, e este se limitou a murmurar, enigmático:

— Nós avisamos o duque. Ele não quis ouvir.

Pendurou a tocha em um anel preso na parede e se afastou sem mais uma palavra. Desconcertado, Galahad hesitou, depois decidiu acocorar-se a cabeceira do moribundo.

— O que lhe aconteceu?

O homem baixou por um instante as pálpebras, sob o efeito de uma violenta dor. Quando as reergueu, seus olhos de gelo brilhavam de febre.

— Quem é você? — perguntou com uma voz rouca. — Um celta, não é?

— Um cavaleiro da Távola Redonda.

Um sorriso irônico passou furtivamente pelo rosto pálido do moribundo.

— Quer dizer que eles ainda existem?... Escute...

Ele deu um longo suspiro que terminou com um gemido. Seus lábios se moveram no vazio; depois, com uma respiração entrecortada, repetiu:

— Escute...

Com uma mão fraca, fez um sinal para que ele aproximasse o ouvido:

— ...Escute bem... Eu vou morrer, mas você... você é um fantasma...

— Por que?

— Seu mundo... não existe mais... Nós destruímos todos os sinais dele... Até a lenda... Hoje eu perdi, mas... mas nós somos os vencedores...

Os olhos de gelo fixaram-se em um ponto inacessível e, enquanto sua última faísca se apagava, ele repetiu:

— ...Os vencedores...

Galahad permaneceu por um momento com o joelho no chão, perto daquele duque saxão que até o último instante tinha se declarado seu inimigo. Não sentia nem raiva nem rancor. Numa prece silenciosa, recomendou a Deus a alma que havia deixado aquele corpo. Ergueu-se e afastou-se até o fundo da sala, onde o monge o esperava. Antes de atravessar a porta, virou-se: o gigantesco Guerreiro Ruivo, escudeiro do duque Ordic, levantara nos braços o cadáver de seu chefe e o carregava chorando.

 

— O senhor vai me explicar?

Galahad tinha sido convidado a se sentar à mesa comum da abadia. Sob os capuzes vermelhos, os monges faziam silenciosamente uma refeição frugal de pão preto e legumes. Ao cavaleiro serviram caça e vinho clarete. O monge que presidia a cabeceira da mesa estendeu o dedo diante dele. Galahad virou a cabeça. Um magnífico escudo branco ornado com uma cruz escarlate estava pendurado na parede.

— O duque Ordic, que você viu morrer, chegou aqui esta manhã. Ele entrou a força em nossa abadia. Tinha escutado falar desse escudo. Decidira roubá-lo. Apesar de todas as minhas advertências, ele o apanhou, pendurou no próprio pescoço, subiu novamente no cavalo, rindo da peça que achava estar nos pregando, e foi-se embora.

O monge se interrompeu para mastigar um pedaço de pão.

— E depois? — impacientou-se Galahad.

— Esta noite, ele voltou. As entranhas traspassadas. Nós recolocamos o escudo no lugar. Quanto a Ordic, você sabe, ele morreu.

Galahad balançou lentamente a cabeça, lançou de novo um olhar para o escudo suspenso na parede e, esperando inutilmente outras explicações, resolveu finalmente pedi-las.

— Devo compreender que há uma relação entre esse escudo e o ferimento mortal de Ordic?

— Acertou, jovem. Esse escudo está aqui há mais de quatrocentos anos. A abadia foi construída para abrigá-lo, e nossa ordem fundada para garantir a sua guarda.

— Fundada por quem?

O monge sorriu.

— Vejo que você sabe ir ao essencial. Vou lhe responder: por José de Arimatéia. Já ouviu falar desse homem santo?

— Claro. José de Arimatéia despregou Nosso Senhor Jesus Cristo da cruz da infâmia. Recolheu Seu sangue no Graal. E, muitos anos e muitas aventuras mais tarde, aportou nas margens do antigo reino de Logres.

O monge franziu as sobrancelhas e ergueu um indicador meticuloso:

— Ele fundou o reino de Logres, jovem. E esse escudo foi dele. Quer escutar sua história?

— Por favor.

O monge inspirou profundamente, fechou os olhos e começou:

— Quando José chegou às terras que se tornaram o reino de Logres, teve que enfrentar numerosos chefes de clãs. Ele era um grande cavaleiro e não teve nenhuma dificuldade em vencê-los e em submetê-los. Um único, que se chamava Pèlles, ofereceu-lhe resistência por muito tempo. Por tanto tempo e tão duramente que José decidiu ir encontrá-lo, não só para convencê-lo de que aquela guerra era inútil e mortífera, mas sobretudo para fazê-lo compreender o Santo Mistério da Crucificação e da Ressurreição de Cristo.

“Pellès aceitou o encontro em seu castelo de Corbenic. E José falou tão bem que Pellès pareceu se render aos argumentos. Na realidade, ele não retivera senão uma única coisa do longo discurso de José: aquele prato maravilhoso que estava em poder dele, o Graal, podia realizar todos os prodígios, e principalmente o de conceder a imortalidade a quem ficasse com ele.

“Pellès, sob pretexto de mostrar sua submissão, foi até Camelot, a cidade que José acabara de fundar. Prestou juramento a José, que, como recompensa da fidelidade recente, lhe ofereceu o próprio escudo: ‘Este escudo branco, livre de toda mácula’, disse-lhe solenemente, ‘o protegera de qualquer ferimento em combate’. Na mesma noite, enquanto todas as pessoas no castelo dormiam, Pellès entrou furtivamente na sala da Távola Redonda onde estava guardado o Graal, oculto sob um tecido vermelho. Aproximou-se, e sentiu o que todo homem sente a proximidade do Graal: o sentimento de uma completude, de uma felicidade perfeita. Ele segurou a beira do tecido e suspendeu-o. Perfumes sem igual o embriagaram. A imortalidade, dizia para si. A imortalidade estava ali, à espera de um único gesto apenas: que ele experimentasse o Alimento que repousava dentro do Graal. ‘Não envelhecerei mais, não morrerei mais’, pensava, exaltado. Não estava completamente errado.”

O monge interrompeu o relato, tossiu de leve e mastigou cuidadosamente um pedaço de pão preto.

— E depois? — perguntou Galahad com impaciência.

— Nosso Senhor não aprova o orgulho — disse sentenciosamente o monge. — Quanto a José, ele era mais do que um santo: era um homem prudente. Desconfiara da conversão fácil demais de Pellès. Seguira-o até a sala do Graal. E, no instante em que o traidor suspendia o pano vermelho, ele o atingiu com um golpe de lança. O ferro atravessou o quadril de Pellès de um lado ao outro. A haste se partiu nas mãos de José.

“Depois disso, mandou transportar o ferido para o quarto. Ali, ele mergulhou os dedos na chaga e traçou uma cruz sobre o escudo branco que oferecera algumas horas antes. ‘Esta cruz de sangue’, disse, '’marcará para sempre a sua deslealdade. Você não morrerá, Pellès: você tocou o Graal e, conseqüentemente, roubou uma parte de imortalidade. Mas esse milagre será seu castigo. Você não morrerá, Pellès, mas viverá doente, no seu castelo de Corbenic, numa terra para sempre estéril. De hoje em diante, você se tornou, para a sua desgraça, o guardião do Graal. Viverá no sofrimento de suas pernas mortas, na esperança de que alguém o livre de uma vida miserável, sempre igual e sem fim, hora após hora, repetida. Pois, saiba, Pellès, doravante você só terá um objetivo na vida: escapar da sua maldição. Obter o direito de morrer para se juntar a comunidade dos homens, obter o direito de chegar à direita de Deus, para esperar o Juízo Final!’”

O monge fora se exaltando à medida que o relato avançava. Na última silaba, ele bateu com o punho na mesa. Todos os monges encapuzados pararam de comer. Galahad, calmamente, apontou para o escudo branco com a cruz vermelha pendurado na parede.

— Então esse é o escudo de Pellès? Por que ele está aqui?

O monge encolheu os ombros, como se a resposta aquela pergunta fosse evidente:

— Porque nós esperamos o melhor cavaleiro do mundo.

Por pouco Galahad não respondeu: “Sou eu.” Mas as freiras de sua infância o tinham educado bastante bem para que ele conseguisse calar essas palavras de orgulho. Ele disse simplesmente:

— Explique-me.

— José fundou esta abadia e nossa ordem a fim de que guardássemos esse escudo até que ele viesse a pertencer ao melhor cavaleiro do mundo, aquele que reencontraria o Graal e livraria Pellès da maldição.

— Como os senhores poderiam reconhecê-lo?

O monge deu um risinho de mofa.

— De todo modo, nos reconhecemos facilmente os que não são o “melhor cavaleiro do mundo”: todos voltam aqui devidamente estripados, como o duque Ordic!

Galahad sorriu.

— Muito bem. Amanhã de manhã, eu pendurarei esse escudo no meu pescoço e retomarei a estrada.

— Não cometa essa loucura, cavaleiro! Não viu o que aconteceu com Ordic?

— Era um saxão, não um cavaleiro.

Pela primeira vez, o monge observou Galahad.

— Restam tão poucos cavaleiros... Eu os conheço todos, agora. Lancelot, Perceval, Galehot... Mas você, quem é você? De onde vem?

— Pouco importa de onde eu venho. Amanhã partirei com o escudo. E não voltarei.

 

Galahad levantou-se antes da aurora. Tinha dormido como uma criança. Contudo, assim que se viu de pé, sentiu um ardor como nunca tinha experimentado. Vestiu-se as pressas, colocou na cinta a espada e desceu para a grande sala onde, na véspera, tinha visto morrer o duque saxão Ordic. Encontrou sem dificuldade a porta que conduzia ao cômodo onde tinha jantado em companhia dos monges.

O escudo branco com a cruz vermelha estava lá, e parecia brilhar tenuemente na penumbra. Galahad retirou-o da parede. No momento em que ia pendurá-lo no pescoço, escutou uma voz as suas costas:

— Compreende bem o risco que está correndo?

Galahad virou-se para o monge que, de braços cruzados, as mãos escondidas nas mangas, o observava com um ar ao mesmo tempo severo e intrigado.

— Não tenha medo — replicou. — Terminaram os tempos em que os senhores tinham que guardar este escudo.

O monge inclinou a cabeça.

— Acredito em você — murmurou.

 

Algumas horas mais tarde, o cavalo de Galahad descia tranquilamente na direção de um vale florido onde corria um riacho, quando um homem a cavalo surgiu. Vestia uma armadura completa, do elmo as perneiras, e brandia uma lança grossa e longa como o tronco de um carvalho jovem. Sem uma palavra, sem sequer um desafio, ele galopou, com a lança em riste, direto para Galahad.

Galahad teve tempo apenas de aprontar o escudo. Com a mão esquerda, segurou a empunhadura de couro e, esporeando o cavalo, colocou-o resolutamente à frente. Depois, com a mão direita, arremetendo seu cavalo de batalha, puxou a espada da bainha.

Lança contra espada: suas chances de vencer o assalto eram bastante escassas. Mas ele não se preocupava. Galahad fora educado na certeza da própria valentia e invencibilidade.

Contudo, no instante precedente ao choque, experimentou uma ligeira apreensão. Agarrou-se com mais firmeza ainda ao escudo. Instintivamente, fechou os olhos e contraiu as pálpebras, pronto para aparar o formidável golpe do cavaleiro desconhecido.

Mas não aconteceu nada.

No momento em que o choque deveria ter ocorrido, ele reabrira os olhos, e assistira a este estranho fenômeno: a ponta da lança do cavaleiro tocou seu escudo, mas sem que ele apresentasse o menor estremecimento, a menor vibração. A arma grossa como um carvalho jovem pareceu, ao contato do escudo, se desagregar como um ligeiro nevoeiro. E a lança foi desaparecendo em todo o seu comprimento, fazendo com que o escudo alcançasse o corpo do homem a cavalo e, num surpreendente silêncio, o atravessasse inteiramente, como se ele fosse uma imagem.

Aturdido, Galahad puxou o freio, diminuiu o galope de seu cavalo, forçou-o a fazer meia-volta. Ao longe, atrás dele, a algumas dezenas de passos, só o que restava era a silhueta cada vez mais fluida do cavaleiro desconhecido e sua montaria. Em alguns segundos, ela se desfez, deixando no ar somente uma espécie de fumaça avermelhada se dissipando muito depressa.

Durante muito tempo, Galahad ficou ali, com o escudo em uma mão, a espada na outra, se perguntando o que, diabos, poderia ter acontecido. Claro, durante sua infância, tinham-lhe dito e repetido a exaustão que ele iria enfrentar muitos prodígios. Ele começava a compreender que eles seriam bem mais surpreendentes do que tudo que pudera imaginar na época.

 

                   O louco de Beau Repaire

Durante todos aqueles dias, Lancelot seguiu as pegadas de Galahad. Poderia ter apressado o passo, alcançá-lo: sequer cogitava de fazê-lo. Lancelot conhecia a regra de ouro da Busca: o cavaleiro que a efetua deve fazê-lo só, sem aliado e sem ajuda. E, mesmo que Lancelot tivesse partido com a intenção principal de levar seu apoio a Galahad em caso de perigo muito sério, sua segunda intenção, velada, era mais profunda, mais essencial: a Busca, que ele não conseguira realizar enquanto fora o Eleito. O Graal, que ele não conseguira descobrir. Queria ao menos assistir ao triunfo de Galahad. Ver e saber. Tornar-se, se não o cavaleiro eleito que não podia mais ser, ao menos a primeira testemunha do Milagre do Graal.

Durante todos aqueles anos, tinha se sentido culpado pela ruína do reino de Logres, persuadido de que, se ele tivesse consumado o que deveria, nada teria acontecido, Arthur ainda estaria vivo, e todos os seus cavaleiros. Possivelmente nisso residia a verdadeira razão da frieza com que ele passara a tratar Guinevere: culpava-se por tê-la amado, por amá-la sempre, e por saber que esse amor não havia engendrado, pensava, senão o desmoronamento do reino.

Alcançou a abadia com um dia de atraso em relação a Galahad. Lá, um monge o acolheu e lhe contou o que se passara, primeiro com o duque saxão Ordic, em seguida com o jovem cavaleiro que tinha tomado o escudo de José. Lancelot não se demorou. Após uma refeição frugal, partiu de novo, vagamente inquieto com a sorte de Galahad, mas secretamente seguro de que o rapaz estava certo em ter apanhado aquele escudo, que lhe era destinado, e de que, no lugar dele, teria feito exatamente o mesmo.

No vale cujo córrego ele acompanhava, parou devido a pegadas estranhas. Desceu do rocim, ajoelhou-se e passou lentamente os dedos pelo mato e pela terra queimados. Aquilo não poderia ter sido feito por um simples fogo de acampamento. Aliás, não havia nem cinzas nem carvão de madeira naquela área.

Perplexo, montou de novo no rocim e se afastou lentamente, sem perder de vista o curioso local de mato e terra queimados. Alguns metros adiante, ele compreendeu. Ou, pelo menos, sem verdadeiramente compreender do que se tratava, ele viu. Viu que aqueles “vestígios” desenhavam exatamente as silhuetas de um cavaleiro armado com uma lança e de seu cavalo.

Consumidos no local. Desintegrados no ar. Sem deixar em sua passagem pela terra nada além daquela marca de incêndio no mato próximo do córrego.

Ele estremeceu. Esporeou a montaria. O céu, à direita, escurecia; e se avermelhava, à esquerda, com o sol que se punha. Estava na hora de descansar. Registrou as pegadas de Galahad, que parecia se dirigir para o cruzamento dos caminhos, depois do vale.

Decidiu que voltaria ali no dia seguinte e que retomaria o caminho atrás de Galahad. Antes disso, devia uma visita a um de seus pares. O último deste mundo. Cuja cidade e castelo ficavam a não mais do que uma hora, na direção do mar.

 

— O que está acontecendo aqui?

— Estamos de luto, Senhor — respondeu Aguingueron.

— Alguém morreu? Perceval?

— A alma dele, Senhor. A alma dele...

Lancelot entrara sem problemas em Beau Repaire. Os sargentos de guarda na ponte levadiça o haviam imediatamente reconhecido. Não pudera deixar de notar suas expressões fúnebres, assim como o pano preto que velava seus escudos. Perguntara-lhes para quem era o luto. Arrasados, tinham se limitado a responder que, no castelo, ele saberia mais.

As ruas da cidade estavam desertas, embora a noite ainda não tivesse caído inteiramente. Em cima das portas das casas, panos pretos tinham sido pregados. Inquieto, Lancelot acelerara o trote do cavalo para chegar ao castelo. Lá, dois varletes o haviam acolhido no pátio. Enquanto um conduzira seu cavalo às estrebarias, o outro lhe colocara sobre os ombros um manto de seda negra e, sem uma palavra, levara-o até a entrada da sala.

Ela estava vazia. Fracamente iluminada por duas tochas que projetavam duas longas sombras sobre as paredes altas. Sozinho, sentado perto da lareira, Aguingueron triturava distraidamente as brasas do fogo com a ponta de sua espada. O gigante parecia ter encolhido, de tanto que uma mágoa, visivelmente, o acabrunhava.

Animara-se muito pouco ao reconhecer Lancelot e levantar-se para acolhê-lo.

— A alma dele? — repetiu Lancelot, quando Aguingueron respondeu às suas perguntas. — A alma de Perceval morreu? O que você quer dizer?

— Não sei, Senhor. Ninguém sabe. Perceval, meu amo, não é mais do que uma sombra de si mesmo. E nós mesmos — acrescentou com uma voz trêmula — não somos mais do que uma sombra dessa sombra...

Lancelot segurou-o firmemente pelo braço.

— O que você está me dizendo não faz sentido. Leve-me até ele. Vamos!

 

Um cenário de miséria esperava Lancelot no quarto onde o gigante o introduziu. Nenhum leito com cobertura de arminho e baldaquim bordado a ouro e seda. Nenhum assento confortável diante do fogo. E, aliás, não havia fogo na lareira. Nenhuma tapeçaria colorida sobre as paredes e em volta das janelas.

Não. Apenas uma enxerga desconjuntada atirada em um canto. Paredes úmidas, escorrendo água. Trapos de panos rasgados acima das janelas, como se tivessem sido arrancados em um acesso de fúria. Na lareira, cinzas frias.

E, encolhida sobre um banco de pedra da lareira, uma silhueta pálida, ausente, balançando-se para a frente e para trás, cantarolando.

Lancelot se aproximou da lareira, reconheceu naquele homem de barba grisalha e embaraçada, envolto em um grosseiro pano marrom, o famoso e já legendário Perceval, o galês. Virando-se rapidamente para Aguingueron, exclamou:

— Como pode deixar seu amo viver neste...?

Não encontrou uma palavra para expressar o que o cenário daquele quarto lhe inspirava. Aguingueron baixou a cabeça.

— É escolha dele, Senhor... Ele destroçou as tapeçarias, destruiu a cama a golpes de machado e atirou os pedaços pela janela. Ele nos proibiu de acender o fogo no quarto...

— Pelo Sangue de Cristo, qual a razão?

— Nós adoraríamos saber, Senhor.

— Mas você, você, não tem idéia?

Aguingueron levantou lamentosamente os ombros.

— Foi... depois da viagem que ele fez...

— Que viagem?

— Lá, no setentrião, quando aquela nau o levou...

— Do que está falando, pelo diabo e por todos os Santos?

Aguingueron não se deu ao trabalho de responder. De repente, a sombra marrom surgiu da lareira sem fogo e se atirou sobre Lancelot, agarrando-o pelas abas de seu manto.

— O mundo vai morrer! — vociferou. — O mundo morreu! Fuja! Fuja para o mais longe possível!

— Perceval... Perceval, sou eu, Lancelot. Não me reconhece?

— Que importância tem seu nome? Que importância tem tudo o mais? Eu vi! Eu vi...

Lancelot agarrou Perceval pelos ombros e o sacudiu.

— O que foi que você viu? Diga-me!

— As conseqüências do meu erro...

Perceval, repentinamente, perdeu toda a energia. Lancelot se sentiu segurando um boneco de pano. Levou-o, praticamente carregado, até a enxerga, onde o deitou.

— Qual foi o seu erro? Quais foram as conseqüências? O que foi que você viu?

Os olhos de Perceval não conseguiam se fixar nos de Lancelot. E, se os encontrassem, seria como se não fossem capazes de enxergar.

— Os mortos voltam... Os mortos nos esperam... Eles estão aqui... Aqui, quando eu velo o Graal... Eles me odeiam... Morreram por mim... E eu... eu...

— Que mortos, Perceval? Você viu o Graal? E quem? E o quê?

— Minha mãe... meu pai, meus irmãos... Minha mãe, sobretudo... E Morgana, e Mordred... Morgana. Mordred!

— Morgana e Mordred morreram, Perceval.

— Sim... Eles morreram. Minha mãe também, e meu pai, e meus irmãos. E eles estavam lá. Tanto ódio...

Os olhos de Perceval se reviraram. Brancos. Todo o seu corpo se enrijeceu.

— Perceval, Perceval!

Não adiantava nada. Perceval desmaiara.

 

— Perdoe-me, Senhora — disse Lancelot. — Eu ignorava que ele estivesse tão mal.

O quarto era enfeitado com tapeçarias de cor violeta e branca. A própria Blancheflor estava vestida de violeta e branco.

— O senhor pode fazer alguma coisa por Perceval? — perguntou.

— Ignoro do que ele está sofrendo.

Ela replicou, com um tom de ironia:

— Da mesma coisa que o senhor, Lancelot. Ele se sente culpado e cheio de desânimo.

— Senhora... — protestou Lancelot.

—Vamos, cavaleiro, para que esconder? Vocês nasceram e foram educados para obter o Graal. Perceval também, à sua maneira. Todos dois fracassaram. Ora, para homens como vocês, o fracasso é impossível. Durante dez anos, bravamente defenderam Camelot, e Perceval me ajudou a preservar a independência de Beau Repaire. Mas esses combates cotidianos não são para vocês, nunca os satisfizeram. Quando se teve a oportunidade de poder salvar o mundo, de realizar proezas e um sonho, torna-se difícil envelhecer lutando pela sobrevivência de um simples castelo e sua aldeia. Estou errada, cavaleiro?

— Não — reconheceu a contragosto Lancelot.

— Então, faça-me um favor. Leve Perceval com o senhor. Fiquei sabendo que muitos prodígios aconteceram em Camelot nestes últimos tempos. E que um jovem partiu em busca do Graal. Esses acontecimentos, suponho, estão relacionados diretamente com a sua presença aqui, não? Queria encontrar um antigo Eleito, como o senhor. Acabou encontrando um louco. Parta com ele.

— Por quê?

— Porque esse louco não está louco, tenho certeza. Não sei o que ele viu quando a nau o levou, e antes que Aguingueron o encontrasse nessa ilha do diabo. Mas creio que o senhor vai precisar dele.

Lancelot repetiu:

— Por quê?

Ela fez um gesto de irritação.

— Vai saber antes de mim. Se houver alguma coisa para saber.

Lancelot meneou a cabeça diversas vezes, refletindo. Depois, disse:

— E a senhora, vai ficar aqui? Sozinha?

— Sempre soube lutar sozinha. E...

Ela hesitou. Caminhou até uma janela. Contemplou o céu cinzento.

— Talvez — murmurou —, talvez Perceval tivesse conseguido fazer o que lhe era destinado se, uma noite, eu não lhe tivesse mentido.

Ela se virou bruscamente, enfrentando Lancelot, olhos nos olhos.

— É preciso desconfiar das mulheres e do amor, cavaleiro. Mas não estou lhe ensinando nada de novo, não é?

 

Montaram os melhores cavalos de Beau Repaire. Lancelot ia à frente. Aguingueron permanecia ao lado de seu amo, Perceval. A aurora de verão se embranquecia por trás da floresta do leste; as árvores pareciam negras contra o céu.

— Para onde partimos? — perguntou Aguingueron.

— Ignoro — disse Lancelot. — Seguiremos as pegadas.

— Quais pegadas, Senhor?

Antes que Lancelot pudesse responder, Perceval gritou, levantando a cabeça para o céu:

— Corramos! Corramos! Vamos para a morte!

Aguingueron aproximou seu cavalo do cavalo de Perceval. Pousou a mão no ombro dele.

—Vamos, meu amo... Acalme-se.

Perceval começou a rir. Um riso assustador. Então urrou:

—Você não viu o futuro! VOCÊ NÃO SABE!

 

                   Sete

Galahad viajou dois dias inteiros sem transtornos. Na manhã do terceiro dia, avistou um castelo com altas e fortes muralhas, ao pé do qual corria um rio tumultuoso. O tempo estava bom e claro; o céu resplandecia; uma cotovia cantou. Galahad esporeou a montaria.

Atravessou o vale que o separava do rio e do castelo. Aproximava-se de uma mata de salgueiros plantados sobre a margem, quando escutou alguém o chamando:

— Senhor!

Era a voz de uma moça. Ele a procurou com os olhos em toda a volta, mas não viu ninguém. Atrás dele, uma outra voz, ainda de uma moça, chamou-o, por sua vez:

— Senhor!

Ele se virou rapidamente. Mas também não havia ninguém.

— Senhor!

Terceira voz, que, dessa vez, lhe pareceu provir da mata. Irritado, conduziu o rocim naquela direção.

— Senhor!

A quarta voz parecia saída diretamente da água barulhenta do rio.

— Senhor! Senhor! Senhor!

Cada uma das vozes o chamava de um lugar diferente. Eram sete. De tanto virar sobre si mesmo, ele teve uma vertigem — e seu cavalo também, que ele sentiu como se sumisse debaixo dele. Ele o imobilizou, recuperou-se e gritou sem se dirigir a ninguém:

— Quem está me chamando, afinal? Quem são vocês? Tem um corpo, um rosto? Se são espíritos, saibam que não me metem medo!

— Por quê? — perguntaram juntas as sete vozes.

— Não acredito em espíritos: como poderia ter medo deles?

Essa lógica paradoxal as fez refletir. As vozes não responderam. Galahad esperou um momento, segurando a rédea do rocim, tomado por um estranho nervosismo que o fazia patear.

— Ninguém mais tem o que dizer? — perguntou, com um tom de desafio zombeteiro. — Adeus, então!

Ele puxou o freio; o cavalo deu a volta, pronto para partir no trote.

— Espere, cavaleiro!

Com um seco movimento do punho, fez o cavalo voltar mais uma vez. E se viu diante da mata de salgueiros. Ou melhor: diante do que já não eram, de forma alguma, árvores. Sob seus olhos, em alguns instantes, os salgueiros se metamorfosearam. Seus longos galhos curvados quase até o chão se transformaram em cabeleiras. Seus troncos maciços afinaram e se redesenharam em graciosos corpos jovens. Enfim, suas raízes se arrancaram do solo para se tornarem longos pares de pernas de pele de seda branca. Três das moças assim surgidas eram louras, três morenas, e a sétima, ruiva como o fogo.

Foi ela quem tomou a palavra:

— Cavaleiro, temos um favor para lhe pedir.

Galahad olhou as sete moças, cada uma mais bonita do que a outra, mas todas partilhando a mesma expressão sombria e o mesmo olhar velado por uma profunda tristeza.

— Estou escutando.

— Você foi o primeiro que não se assustou com as nossas vozes. O primeiro que zombou do sortilégio que nos aprisionava. Você está vendo: isso nos libertou.

Galahad inclinou galantemente a cabeça.

— Vocês me encantam, Donzelas. Mas não tenho nenhum mérito. Creio em Deus; não posso, pois, acreditar nos espíritos da antiga superstição.

A moça ruiva o examinou com seus olhos de um verde intenso, onde parecia flutuar uma espécie de clarão de chama.

— E no Espírito do Mal, você acredita?

Galahad fez o sinal-da-cruz.

— Acredita — ela prosseguiu — em Lúcifer?

— Cale-se! — ele rugiu. — Não pronuncie o nome do Inimigo!

As pálpebras da moça baixaram-se lentamente. Pouco depois, ela reabriu-as: a chama que havia parecido brilhar em seus olhos apagara-se.

— Cavaleiro, escute o favor que lhe pedimos: livre esse castelo dos que o tomaram e ocupam há sete anos. Você nos libertou do sortilégio; liberte-nos da escravidão.

— Quem são os que as mantêm presas?

— Vá ao castelo, cavaleiro. Logo saberá.

Com essas palavras, a moça se voltou para as companheiras e as levou para a margem do rio.

Galahad não tinha escolha senão obedecer-lhe.

Rapidamente chegou a um vau que lhe permitiu atravessar a correnteza sem dificuldade. Começara a percorrer a larga pradaria que precedia a ponte levadiça quando, do castelo, saíram sete cavaleiros. Tinham vestido as couraças de guerra e cada um deles carregava uma lança. Quando chegaram a cem passos de Galahad, pararam, flanco a flanco, e o que estava no meio da fileira gritou:

— Afaste-se desse castelo! Ou vai encontrar somente a morte!

Antes mesmo de responder, Galahad puxou a espada da bainha. A lâmina de Excalibur cintilou ao sol da manhã.

Em seguida segurou o escudo branco com a cruz escarlate. Ao verem aquilo, os sete cavaleiros baixaram juntos suas lanças, apontando-as para o cavaleiro.

— A morte! — clamaram a uma só voz.

E seus pesados cavalos de batalha* estremeceram. Galahad, por sua vez, esporeou seu rocim:

— Por Cristo!

Teria sido estúpido e suicida chocar-se de frente contra aquela falange de sete cavaleiros armados com lanças. Galahad tirou proveito da rapidez e da maleabilidade de seu jovem rocim, muito mais leve, mais rápido e mais esperto que os poderosos cavalos de batalha de seus adversários. No momento em que não se encontrava a mais de vinte passos de suas lanças, Lancelot virou a brida para a esquerda e galopou tão rápido que alcançou a extremidade da falange, chegando até o último cavaleiro. A lança estalou como um pedacinho de madeira contra o escudo branco, e a lamina da Excalibur assoviou: a cabeça com capacete do cavaleiro volteou nos ares.

Na mesma hora, Galahad fez seu cavalo voltar. A falange de cavalos de batalha muito pesados ainda tentava retornar, desordenadamente. O cavaleiro escolheu o homem que estava mais próximo e o fez sofrer a mesma sorte do primeiro. Dois outros se precipitaram sobre ele, juntos. As pontas de suas lanças atingiram o escudo: Galahad não estremeceu, mesmo sob o assalto. As lanças se partiram com um golpe seco, e um instante depois Excalibur fez seu trabalho, cortando em dois um dos cavaleiros, arrancando o braço do segundo.

— Onde está a morte que vocês tinham me prometido? — gritou Galahad, forçando seu cavalo na direção dos três últimos cavaleiros.

Eles tinham parado seus cavalos, flanco contra flanco. Apontaram as lanças formando um feixe de aparência intransponível. Urraram:

— A morte!

— A vida! — respondeu-lhes Galahad.

E, sem hesitar, lançou o rocim a galope, com o escudo branco com a cruz vermelha firmemente apertado contra o corpo.

Três lanças.

Um escudo.

— A vida!

Então, no instante em que ia sofrer o choque do assalto, no instante em que, por instinto, fechou os olhos, as três lanças, os três cavalos de batalha, seus três cavaleiros se desagregaram como estatuas de areia, e uma grande chama amarela os envolveu — eles desabaram no solo numa chuva de cinzas incandescentes. Correndo a toda a velocidade, Galahad e sua montaria os atravessaram, os traspassaram, como um milagre. Depois que o cavaleiro interrompeu a corrida de seu cavalo e olhou para trás, não viu nada além de algumas fracas chamas se extinguindo no meio das plantas da pradaria.

Passou um tempo pendurando de novo o escudo ao pescoço e recolocando a espada na bainha. Mal pode se espantar com o que tinha sob os olhos: nos lugares onde vencera cada um dos sete cavaleiros, havia apenas sete imagens de cavaleiros desenhadas no mato queimado. Como três dias antes, no vale próximo da abadia.

Galahad fora educado para não se espantar com nada que teria assustado um simples mortal. Disse a si simplesmente que os “sinais”, as “pegadas” na sua estrada para o Graal se repetiam, e que isso era ao mesmo tempo um bom sinal — ele seguia o caminho justo — e inesperado: tinham lhe informado que ele teria de vencer inimigos e prodígios; começava a compreender que deveria enfrentar malefícios e o Inimigo. O Diabo, Satã e seus demônios, Lúcifer e seus anjos negros.

Com esse pensamento, estremeceu. Não conseguiu evitar. O caminho, e os combates, seriam bem mais difíceis do que tudo que havia imaginado.

 

Quando acabou de transpor a ponte levadiça e entrou no pátio do castelo, crianças acorreram ao seu encontro. Nenhuma se parecia com nenhuma. Havia uma ruiva, uma loura, um menino de cabelos negros e olhos azuis; havia dois cuja pele, de um, era de um marrom-claro, a do outro, marrom-escura; havia um de rosto chato e olhos negros que quase não eram vistos através da fenda das pálpebras; um último, de cabelos crespos, dentes brancos e sorridentes, de tez escura. Pareciam não ter mais de sete anos.

— A vida! A vida! A vida! — gritavam e cantavam, saltitando em torno do rocim.

Galahad olhou-os cercando seu cavalo, depois desmontou. Na mesma hora eles se precipitaram para ele.

— Galahad, cavaleiro, nós esperávamos por você há sete anos!

— Ei! Calma, calma... Há sete anos estavam mamando na mãe de vocês e eu não tinha nem o dobro da idade de vocês hoje...

— Mas você já era você! — disse o menino de rosto chato e olhos apertados.

— Certamente... Mas vocês já eram vocês?

— E nos sabíamos que você viria! — exclamou o menino de cabelo ruivo.

— Como assim?

— Porque era você! — replicou o menino marrom-claro.

— Explique-me.

— É o seguinte — continuou o menino de cabelos crespos e dentes brancos. — Adivinhe de onde viemos!

— Eu... tenho medo de não saber, não...

— Nós viemos... — começou o menino de cabelos crespos.

Mas, cutucado, teve de se calar e foi o menino louro quem disse:

— Nós viemos do Paraíso terrestre!

— Do...? Do Paraíso terrestre?...

— Sim — interveio o menino marrom-escuro. — Era lá que vivíamos. Salvo estes últimos sete anos.

— Vocês viviam no... no Paraíso terrestre?

— Ah! Era melhor do que aqui! — disse o garoto de cabelo crespo.

— Graças a você, nós vamos voltar para lá — acrescentou o menino de olhos apertados.

— Ah, é?... Então, será que vocês são... são...

— Exatamente! — disse o garoto moreno de olhos azuis.

— Nós somos anjos! — exclamou o menino marrom-claro.

— Anjos?

— Oh! — disse o menino ruivo. — Anjos de um nível inferior.

— Mas anjos, mesmo assim! — exclamou orgulhosamente o menino marrom-escuro.

— Bem... E o que estão fazendo aqui?

Os sete meninos — os sete anjos — se entreolharam. Deram-se cotoveladas, fizeram mímicas, caretas. Finalmente, um deles, o de cabelo crespo, se decidiu a falar:

— Bom cavaleiro, eis o caso. Eu lhe explico. Você está no castelo dos Sete. Mas é um castelo engraçado...

— Em que sentido?

— Não é verdadeiramente um castelo — respondeu o menino ruivo.

O de cabelo crespo empurrou-o com o ombro e se adiantou:

— De fato, é um... como direi? Um domínio do Inferno.

— Como?

— Os sete cavaleiros que você enfrentou...

— Ele os fez passar vergonha! — gritou o menino marrom-escuro, e todos repetiram: VERGONHA!

O de cabelo crespo franziu as sobrancelhas.

— Vocês não sabem de nada! Anjos de terceira categoria! Calem a boca e deixem que eu conto.

— Continue — disse Galahad.

— Aqueles sete cavaleiros eram os sete pecados capitais*. Os que reinam sobre o comportamento dos homens quando eles não escutam Deus. Você os venceu. E, como eles também eram os Sete Anjos Negros de Lúcifer, isso quer dizer que você venceu o Diabo.

Galahad balançou a cabeça muito tempo, refletindo.

— E quem — perguntou finalmente — são as sete moças que eram salgueiros na beira do rio?

Os meninos trocaram novamente olhares. Finalmente, foi o anjo louro que respondeu.

— A tentação.

— A tentação?

— Sim, exatamente — disse o menino moreno de olhos azuis. — Quando elas não eram árvores, eram como?

— Não sei... Moças?

— Provavelmente — disse, impaciente, o de cabelo crespo. — Mas, moças como?

Galahad refletiu por um instante. Depois deu de ombros.

— Sedutoras — respondeu.

Os meninos caíram na gargalhada.

— Qual é a graça? — perguntou Galahad.

— Você é mais “anjo” do que nós! — exclamou o menino ruivo.

— Ora! — prosseguiu o menino de olhos apertados. — Você não viu? Elas estavam nuas!

Nova explosão de riso geral. Vexado, Galahad perguntou:

— É tão cômico assim que eu não tenha percebido?

— É que você resistiu à maior das tentações — disse sentenciosamente o garoto marrom-escuro.

Galahad estalou os dedos, como que tomado por uma iluminação:

— E então, a nudez delas... Era também uma armadilha?

— Na qual você não caiu. Parabéns.

Caíram todos na gargalhada de novo.

— Bem — disse Galahad, sentindo-se um pouco idiota. — E agora?

O de cabelo crespo estendeu o indicador para a porta do castelo.

— Agora, vá embora. Pegue o caminho da direita. E siga em frente.

— E...

Galahad não pôde dizer mais nada. Sob seus olhos estupefatos, asas cresceram sobre as frágeis omoplatas dos meninos, e, numa última explosão de riso, eles voaram, desaparecendo por trás do torreão.

Ele ficou um momento ali, no pátio daquele castelo deserto, rememorando o que acabara de escutar. Depois, subiu a sela.

Ia sair do pátio quando sentiu, naquele dia de junho, um vento glacial lhe roçar os ombros. Virando-se de repente, percebeu uma grande sombra desaparecendo na parede da muralha do leste.

O Inimigo. Lúcifer e seus demônios.

A sombra ressurgiu, cobrindo-o um instante com sua asa gelada, depois atravessou novamente o pátio. Mal alcançou a muralha do oeste, ela voou novamente, como um pássaro da noite, em direção ao outro lado do castelo.

Galahad não se mexeu mais. Apertou as abas de sua capa em volta dos ombros; estava com frio. A sombra passou assim outras cinco vezes. Depois se desvaneceu.

Sete.

Sete vezes a sombra passou.

Seus anjos maus talvez tivessem sido derrotados, mas não o chefe deles.

Galahad levantou os olhos para o céu claro e gritou, como um desafio:

— Por Cristo, a vida!

Golpeou com os calcanhares o flanco de seu cavalo. Lentamente, calmamente, afrontosamente, o rocim e seu cavaleiro deixaram o recinto do castelo dos Sete.

 

                   A encruzilhada dos caminhos

— O futuro! Você não sabe! VOCÊ NÃO SABE DE NADA!

— Chega — grunhiu Lancelot. — Paremos por aqui. Eles seguiam há três dias uma estrada serpenteando entre as florestas. Tinham visto ao longe a silhueta de um castelo que, apesar da claridade do céu de junho, parecia recoberto por uma sombra imensa e negra. “Vamos nos manter no nosso caminho”, dissera Lancelot. “Tudo que nos parece estranho ou enigmático não é para nós.”

Aguingueron jamais poria em dúvida uma ordem — ou um simples desejo — de Lancelot. Quanto a Perceval, apenas cochilava, a maior parte do tempo, em cima do cavalo. Era impossível arrancar dele a menor frase coerente.

Salvo nos momentos, imprevisíveis, em que começava a esbravejar:

— O futuro! Você não sabe! Você não sabe de nada!

Aguingueron reteve a montaria de Perceval. Lancelot fez seu cavalo se aproximar.

— Segure-o. Domine-o, pelo Sangue de Cristo! Ele me enerva.

O gigante, para quem tocar no seu amo era pior do que uma injúria, replicou:

— Não fique nervoso, sire Lancelot. Ele vai se calar. Logo. Eu lhe garanto. Logo...

Exasperado, Lancelot puxou a espada e bateu com o lado da lâmina no ombro de Aguingueron.

— Você vai me obedecer, não?

— Senhor...

— Se não me obedecer, vai voltar imediatamente para Beau Repaire. Não preciso de você.

Aguingueron baixou humildemente a cabeça.

— Mas, ele, o meu amo, sim... Ele precisa de nós... Do senhor.

— Então, amarre-o no cavalo. E amordace-o. Não suporto mais seus gritos.

— Senhor...

— VOCÊ NÃO SABE! — berrou então Perceval.

Com uma careta, Lancelot afastou seu cavalo e disse, secamente:

— Obedeça, Aguingueron. Faça-nos este favor.

 

Uma hora mais tarde, os três homens chegaram a um cruzamento. O caminho se dividia em dois: uma estrada para o nordeste, a outra para o noroeste. No ponto que separava as duas estradas possíveis, um mendigo estava sentado no chão, de cócoras, um manto marrom e sujo sobre as costas. Um capuz escondia seu rosto. Lancelot gritou-lhe:

— Ei! Você! Ei!

O mendigo ergueu lentamente o rosto. Lancelot fez menção de recuar: o homem, muito velho, de rosto marcado por mil rugas, a pele acinzentada, fixou sobre ele uns olhos vermelhos como brasa.

Quem é você, você que está me interpelando?

A voz do velho mendigo era ao mesmo tempo profunda e murmurante. Um murmúrio que parecia a Lancelot se insinuar dentro do seu ouvido, como se o homem tivesse colado nele os lábios.

— Um viajante — replicou. — Você teria visto passar um jovem cavaleiro, recentemente? Sabe que estrada ele tomou?

O velho se ergueu com uma agilidade surpreendente. Com um amplo movimento dos braços, recolocou no lugar o manto — cujas dobras caíram sobre ele como se fosse um traje real. Baixou o capuz. Seu crânio era calvo. Brilhante e cinzento como uma pedra polida. Entre suas pálpebras, via-se apenas uma vermelhidão, como um fogo interior.

Quem é você? — repetiu.

Então Lancelot percebeu que, embora escutasse a voz murmurando no seu ouvido, os lábios do velho permaneciam fechados e imóveis.

— E você? — perguntou.

O barqueiro[2]. Eu indico a quem me pede o caminho que deve tomar.

— Estou pedindo.

Você é um simples viajante ou é um cavaleiro?

— Se você tivesse olhos para ver, não faria essa pergunta! Trate de me indicar o caminho, está me deixando impaciente!

O velho balançou mansamente a cabeça e fechou os olhos.

Você tem o tom e o orgulho de um cavaleiro — disse finalmente, sem que seus lábios se mexessem. — Então me escute.

Estendeu os braços em cruz, revelando, na ponta das grandes mangas de seu manto, mãos descarnadas como garras, cinzentas.

Cavaleiro errante — enunciou com uma voz grave que não era a sua —, eis duas estradas que se oferecem a você. Há uma que não deve ser tomada. Ninguém consegue chegar ao seu término se não for virtuoso e digno cavaleiro.

Aguingueron, nervoso, agitava-se sobre seu cavalo.

— Senhor — disse — esse... boneco que fala sem abrir a boca... essa voz dentro da minha cabeça... Acredite-me, deveríamos desistir...

— Cale-se! — disse Lancelot secamente.

Cavaleiro errante — prosseguiu o ancião —, se escolher o caminho da esquerda, saiba que não lhe será fácil superar as dificuldades, pois logo será posto à prova.

Ditas essas palavras, o mendigo levantou as pálpebras. Seus olhos não mais faiscavam como um fogo se extinguindo, mas simplesmente tinham se tornado novamente os de um mendigo qualquer, lacrimosos e cansados. Ele abriu bruscamente a boca, como que a procura de um pouco de ar, vacilou, cambaleou e desabou sobre as nádegas. Aparvalhado, olhou um a um os três cavaleiros: Lancelot, o gigante Aguingueron e Perceval, amarrado e amordaçado em sua montaria. Ele umedeceu os lábios.

— Ah, bem... Senhores... Não teriam uma moedinha?

Aguingueron esfregou os olhos, as maçãs do rosto, depois as bochechas.

— Evidentemente — resmungou com fatalismo. — Era um sortilégio...

— Tanto melhor — recomeçou a andar Lancelot. — Eis a prova de que estamos no caminho certo.

Aguingueron suspirou.

— Sim, Senhor! Mas qual, ao certo? A direita ou a esquerda?

Lancelot encolheu os ombros com desprezo.

— Você não o ouviu? A esquerda é a das provas difíceis. Portanto, é a estrada certa. Vamos!

Fez seu cavalo avançar pelo caminho da esquerda.

— Espere, Senhor! — disse Aguingueron. — Isso quer dizer que o caminho da direita é o mais fácil?

— Evidentemente! É por isso que vamos pegar o outro!

— Desculpe-me, Senhor, mas não estou entendendo... Imagino que tenhamos que andar depressa...? Não?... Por que se lançar no caminho mais difícil, portanto — presumo — o mais lento?

— Porque eu sou cavaleiro! Porque eu sou Lancelot! Porque eu sou eu! E porque o caminho de um cavaleiro, o caminho de Lancelot, o meu caminho e necessariamente calçado de provas! Não vê que é lógico?

— Lógica mais esquisita — murmurou Aguingueron.

— O quê?

— Hã? Nada, Senhor. Nós... Nós o seguimos.

O gigante, puxando pela brida o cavalo sobre o qual seu amo Perceval estava amarrado, tomou, de ma vontade, a estrada que Lancelot escolhera. Enquanto cruzava com o velho mendigo, este, de repente, ergueu os braços para o céu; seus olhos se avermelharam. E uma voz murmurou nos ouvidos de Aguingueron e de Lancelot:

Ah... O orgulho... O orgulho... O orgulho...

 

Uma hora mais tarde, Galahad se apresentou na mesma encruzilhada. O mesmo velho mendigo estava lá, sentado, no ângulo das duas estradas. Quando Galahad se aproximou, observando-o com curiosidade, ele se levantou, fez voarem as mangas de seu manto, e seus olhos se tornaram vermelhos como brasa.

Quem é você, você que está me interpelando?

Surpreso com aquela voz que lhe murmurava no ouvido, Galahad sacudiu com força a cabeça, como quem espanta um mosquito e seu zumbido.

— Ora! — disse ele, rindo. — Quem é você que... na verdade, nem cheguei a interpelar?

O barqueiro. Eu indico a quem me pede o caminho que deve tomar.

— Muito bem, você vem a calhar. Indique-me: a direita ou a esquerda?

Você é um simples viajante ou é um cavaleiro?

— Ah, é cego! Você escuta o que lhe falo? Quem acredita que eu seja?

Você tem o tom e o orgulho de um cavaleiro. Então me escute.

— Acertou.

Cavaleiro errante, eis duas estradas que se oferecem a você. Há uma que não deve ser tomada. Ninguém consegue chegar ao seu término se não for virtuoso e digno cavaleiro. Se escolher o caminho da esquerda, saiba que não lhe será fácil superar as dificuldades, pois logo será posto à prova.

Galahad apoiou os cotovelos no pescoço do cavalo, refletindo.

— Portanto — disse finalmente —, no caminho da esquerda, deverei vencer muitos adversários?

Ah... O orgulho...

— E no caminho da direita, o que vai me acontecer?

A essa simples pergunta, o velho mendigo começou a crescer, crescer, crescer... O cavalo de Galahad teve medo, mas não seu cavaleiro, que o dominou e ficou ali, assistindo ao que aconteceria em seguida.

Aconteceu que o mendigo, quando ficou mais alto e mais largo do que dois homens, desabou de repente sobre si mesmo, como uma bola cheia de ar picada por um alfinete.

E, com uma voz ao mesmo tempo moribunda e estridente, o velho começou a guinchar, enquanto se abatia sobre si mesmo:

À direita... À direita... À direita! Ele não deve seguir à direita!

Foi entretanto o que fez, na mesma hora, Galahad. Ele escutou um ultimo grito:

À direita não!

Depois um suspiro muito, muito longo.

Ele não se voltou.

 

                 Encontros com o diabo

Durante dias, o caminho seguido por Galahad passou tranqüilamente ora ao longo de vales avermelhados pelas papoulas, ora através de bosques de carvalhos onde caía uma doce luz filtrada pelas folhagens. Ele não encontrou ninguém. Nenhum saxão, nenhum grupo de bandidos, mas também nenhuma cidadezinha, nem casa, nem castelo. Parecia-lhe estar percorrendo uma região anterior ao tempo dos homens.

A caça era abundante e sem temor. Cervos, perdizes, lebres, nenhum animal fugia à sua aproximação. E, como era preciso se alimentar, acontecia-lhe de matar mais de um, mas nunca tinha a impressão de caçá-los. Eles estavam ali, numerosos, e, mesmo que uma flecha abatesse um deles, os outros não se mexiam.

Pensou no que lhe tinham dito os sete anjinhos: o Paraíso terrestre. Mas ainda assim tinha dificuldade em acreditar que, através de sabe-se lá qual prodígio — ou simplesmente pela escolha que fizera da estrada da direita da encruzilhada —, ele tivesse entrado lá. Não, era ao mesmo tempo mais simples e mais complicado do que isso. Tinha a ver com a Busca do Graal e sua eleição de “melhor cavaleiro do mundo”. A estrada em direção a seu objetivo supremo se abria larga e calma diante dele.

Essa idéia, contudo, o decepcionava um pouco: se seu caminho prosseguisse assim, ele não teria que exibir suas qualidades de coragem, de proeza e de habilidade. Não gostava de imaginar que sua vitória seria assim tão fácil.

Estava errado em se preocupar.

 

Na tarde do sétimo dia, ele encontrou uma longa e alta muralha barrando o horizonte de leste a oeste. Quando chegou suficientemente perto, percebeu que ela havia sido deixada ao abandono há muito tempo. Algumas partes do muro estavam parcialmente demolidas. Ervas daninhas cresciam entre as pedras. Nenhuma sentinela circulava por trás das seteiras roídas por um musgo cinzento.

Soube que tinha alcançado a metade de seu percurso.

Durante sua infância, no convento onde o haviam educado as freiras e a madre superiora, Galahad havia sido educado para se tornar quem ele deveria ser. Aprendera a ler e a contar, claro, aprendera o manuseio do bastão, depois o da espada, da lança e da maça de armas; aprendera a montar e a dominar um cavalo. Também aprendera certos segredos, que deviam lhe permitir lutar vitoriosamente contra as magias negras e brancas do Antigo Mundo, o de Merlin, Vivian e Morgana, o dos druidas, dos magos e dos feiticeiros. Tinha também estudado, sobre um grande pergaminho de magníficas iluminuras, o mapa dos reinos de Logres, de Gales, da Escócia e da Irlanda. A madre superiora lhe dissera: “Você deve conhecer este mapa melhor do que as linhas da palma das suas mãos, melhor ainda do que os traços do seu rosto. Este mapa é um espelho. Graças a ele, você se reconhecerá nas ilhas de nossos reinos como você se reconhece quando se inclina na direção do seu próprio reflexo na água.” E acrescentara: “Você foi Eleito pela Providência, mas isso não basta: tem que merecer sua eleição, deve trabalhar e aprender. Desses reinos, um dia, se Deus quiser e se você seguir fielmente Suas vias, você será o salvador e o rei.”

Foi, portanto, sem especial emoção que Galahad caminhou ao longo da alta e estranha muralha até descobrir uma passagem que lhe permitisse atravessá-la. Pois aquela muralha, para ele, nada tinha de estranha: era, ele soubera ao estudar o pergaminho do mapa, o que se chamava de Muro de Adrien. Uma longa muralha elevada séculos antes por antigos invasores, que eram chamados de “romanos”, e destinada a proteger a Inglaterra das incursões selvagens das tribos caledonianas que viviam ao norte. Galahad sabia também que, atravessada aquela muralha, entraria em um mundo desconhecido.

Inclinou-se sobre o pescoço do cavalo e lhe acariciou o focinho.

—Vamos — disse. — Ainda falta percorrer metade do caminho.

 

Depois do Muro de Adrien, a paisagem mudou. Aos vales verdejantes e às florestas de carvalhos sucederam largas extensões planas de charneca e fragmentos de pedra. Depois, um dia de caminhada mais tarde, elevaram-se colinas sem árvores, onde soprava um vento surpreendentemente frio, apesar do verão.

Galahad avançava. Escalava encostas às vezes escarpadas de montes caledonianos. Tornava a descer em direção ao que se parecia com vales, porém estreitos, de difícil acesso, onde se agitavam córregos gelados como torrentes.

Foi ao transpor um deles que de repente o cavalo tropeçou. Apesar de toda a sua ciência de cavaleiro, Galahad não conseguiu impedir sua queda. Caíram pesadamente. O jovem cavaleiro rolou entre as urzes e as pedras, que lhe arranharam o rosto. Quando se levantou, compreendeu na hora que o acidente era grave. O cavalo, estendido sobre o flanco, relinchando de dor, tentava em vão se erguer.

Galahad, ajoelhando-se perto dele, falou-lhe baixinho ao ouvido. O cavalo se acalmou. O jovem cavaleiro examinou cada uma de suas pernas e teve que se render às evidências: a dianteira direita tinha se partido na queda. O cavalo não andaria nunca mais.

Um cavalo que não anda mais é simplesmente um fantasma de cavalo. Galahad ficou ali, por um momento, cheio de tristeza. Sabia o que lhe restava fazer, mas sua ligação com aquele companheiro que o havia carregado durante semanas o impedia de agir imediatamente, com frieza. Ergueu-se, olhando à sua volta: havia apenas a charneca, a terra árida, e um vento que turbilhonava, invisível porém presente, em volta deles. Tirou o punhal do cinto. Acocorou-se junto da cabeça do seu cavalo. Com a mão esquerda, acariciou-lhe ternamente as narinas.

— Perdoe-me. Mas devemos nos separar.

O cavalo descansou a cabeça no mato, como se tivesse compreendido, como se tivesse se resignado com o inelutável. Galahad respirou profundamente, depois, com um gesto rápido e preciso, enfiou a lâmina do punhal no pescoço do animal. Cortou profundamente sua garganta.

Alguns instantes mais tarde, o cavalo estava morto. O sangue que escorria aos borbotões de seu pescoço avermelhava a charneca. Galahad, com um movimento de raiva, atirou o punhal dentro da água trepidante do córrego. Em seguida, recolheu o escudo, pendurou-o no pescoço, recuperou seu arco e as flechas na bolsa do cavalo morto e, com lágrimas nos olhos, recomeçou a andar, a pé, em direção ao norte.

 

Caminhou durante muito tempo. A noite, naquele fim de mês de junho, caía tarde. Mas, apesar do cansaço, não quisera fazer uma parada mais cedo. Detestava aquela paisagem sempre igual, aquele vento que não parava de açoitá-lo, e esperava, contra toda lógica, chegar a um lugar menos difícil, algum vale coberto de plantas carnudas ou entre as árvores tranqüilizadoras de uma floresta.

Com a noite, ele teve que parar. A lua se escondia por trás de grossas nuvens: ele não enxergava mais do que cinco passos adiante. Deu-se conta então de que, inteiramente tomado pelo sofrimento de ter perdido sua montaria, se esquecera de caçar. Não tinha nada para comer.

Em um córrego lavou o rosto e as mãos, depois bebeu longamente para enganar a fome. Estendeu-se na charneca. E bem depressa adormeceu.

Um sonho tomou conta imediatamente de seu sono.

Ele está em uma aldeia devastada por um incêndio. Todas as casas se queimaram. De pé só restam ruínas enegrecidas. Ele erra pelas ruas, à procura de alguém, um sobrevivente. Não encontra ninguém.

A aldeia foi construída sobre uma colina. As casas — suas ruínas, de agora em diante — elevam-se nas encostas. No cume, ele descobre uma herdade. Pequeno castelo sem torreão, que o incêndio parece ter poupado. A ponte levadiça está baixada sobre o fosso. Galahad, no seu sonho, dirige-se para lá.

Quando alcança a entrada dessa passarela, nota à sua direita a longa pedra de uma tumba. Aproxima-se. Uma voz, gemendo, distorcida, sai de dentro dela: “Liberte-me”, ela geme, “liberte-me...”

Galahad inclina-se para a frente. Desliza os dedos sob a pedra da tumba. Ela é tão pesada que quatro homens não poderiam fazê-la deslizar. Contudo, ele a suspende sem esforço — ela não lhe parece pesar mais do que uma pluma. Ele a solta de lado, abrindo a tumba.

Uma sombra jorra de lá. De negra que era a princípio, ela passa a dourada. Ela brilha na noite, como um metal na forja. Tem forma humana. De seu ventre corre sangue, de um vermelho luminoso.

— Quem é você? — pergunta-lhe Galahad.

— Primeiro me informe quem você é — replica-lhe o espectro de ouro.

Galahad vê então no fundo da tumba um caixão cuja tampa traz uma inscrição reluzente em letras de prata. Ele lê:

“Aqui repousará um leopardo

Que engendrou um leão...”

Ele ergue os olhos. O espectro dourado se atira sobre ele. Uma mandíbula de dentes parecidos com adagas de aço se abre para degolá-lo. Surpreso, Galahad afasta os braços. Com um grito de despeito, o espectro fecha as mandíbulas e recua.

Esperarei o dia em que você tiver cometido a falta após a qual eles o abandonarão.

— Quem é você?

— Mordred! Meu nome é Mordred!

— Você está morto!

— Pois saiba que alguns mortos voltam de Avalon: eles só precisam querer!

O espectro coloca a mão sobre a ferida de seu ventre, como que para conter o sangue que corre sem cessar.

— Lancelot cometeu a falta! Perceval cometeu a falta! Você vai fazer a mesma coisa... Eu espero... Eu espero...

 

Galahad despertou com um sobressalto. Estava suando. Contudo, na madrugada cinzenta das charnecas escocesas, fazia frio. Ergueu-se, esfregando o rosto.

Quando afastou as mãos, viu, a alguns passos de onde estava, um magnífico cavalo de batalha negro bebendo no córrego.

Era a primeira vez que tinha a oportunidade de admirar um cavalo tão bonito, tão nobre. Sob o pêlo de um negro tão negro que a luz nascente da aurora fazia vibrar reflexos azuis, os músculos das pernas, dos flancos e do peitoral eram tensos como linhas de força. Galahad foi até a beira do córrego, aspergiu o rosto com a água para expulsar as últimas imagens do seu sonho — seu pesadelo? — e se aproximou do cavalo. Tocou-lhe o flanco.

O cavalo espantou-se, mas sem se afastar. Pareceu apreciar a carícia de Galahad em seu pescoço.

— E então — disse ele —, quem foi que me enviou você?

O animal esfregou amistosamente as narinas no ombro do jovem cavaleiro.

— Não se trata de um inimigo, parece.

Galahad foi recolher suas armas, pendurou o escudo no pescoço, passou o arco e a aljava sobre o ombro e cingiu a espada.

— Bem — disse ao cavalo preto, aproximando-se dele —, você não tem sela nem brida, mas creio que vamos nos entender bem, você e eu.

Colocou as duas mãos sobre o garrote do animal.

— Ainda temos um bocado de caminho a percorrer. Com um impulso, saltou sobre as costas do cavalo. Que, imediatamente, empinou. Galahad só teve tempo de agarrá-lo pela crina para não cair.

— Upa!

Nenhum grito, nenhuma ordem servia para nada. O cavalo levantou de repente a cabeça para o céu — e então Galahad viu seus olhos, que eram vermelhos como o fogo. Sentiu os flancos do cavalo vibrarem entre suas pernas, como uma força que ele não podia domar.

E o cavalo negro partiu a galope.

Galahad nunca experimentara uma sensação como aquela, de poder. Agarrava-se como podia à longa crina. E, enquanto sua montaria de olhos de fogo transpunha os córregos e atravessava a charneca como um cavalo selvagem, um cavalo louco, ele não tinha mais do que um único pensamento na cabeça: não cair.

 

Mas caiu.

No limite da charneca, um lago surgiu. Um lago de águas negras como a noite. Dentro do qual o cavalo mergulhou, negro como a água era negra.

Galahad sufocou. Abriu os olhos: não via nada. Teve a presença de espírito de largar a crina do cavalo. Viu-se então flutuando entre duas águas — ou melhor: lentamente, irresistivelmente atraído para o fundo, de tanto que pesavam suas armas.

Vou me afogar.

Livrou-se do arco e da aljava e desfez-se da cota de malha. Estava cada vez mais leve, mas continuava a afundar na direção do fundo do lago.

Dentro de suas águas negras, cegas.

Uma única solução: abandonar também... o quê? Sua espada, Excalibur, ou seu escudo, o de José de Arimatéia? Os dois? Mas então ficaria nu, sem mais armas para completar a Busca...

O ar lhe faltava.

Vou me afogar... Estou me afogando...

O escudo de José?... A espada de Arthur?

Desesperado, passou-lhe pela cabeça que era melhor afogar-se do que abandonar suas armas. Com os pulmões privados de ar, começou a sufocar.

Como tomou a decisão? Não saberia jamais. Ela se fez sozinha. Sentia, quase inconsciente, que estava mergulhando cada vez mais fundo no lago negro. Sua mão, apertada no punho de Excalibur, arrancou-a de sua bainha e brandiu-a. Num último esforço, ele estendeu o braço para a superfície do lago — o céu.

A espada teve uma espécie de sobressalto na sua mão. Simultaneamente, uma onda percorreu-lhe o braço, alcançando-o em pleno peito.

Ele perdeu a consciência.

 

Quando acordou, jazia sobre a margem do lago. Excalibur, pousada do seu lado, cintilava suavemente. Ele abriu toda a boca e aspirou um bocado de ar, enorme.

Era bom... Respirar. Simplesmente respirar...

Pouco depois, virou de lado. Vomitou o que lhe pareceu tonéis e tonéis de água.

Pouco importava: estava vivo. Salvo por sua espada — forjada, há séculos e séculos, pelas Fadas da Água.

Tentou ficar de pé, despencou. Vomitou mais uma vez — um pouco de saliva. Desmaiou.

A noite caía. Um vento fresco descia do norte, poderoso, regular. Galahad recobrou a consciência.

Levantou-se penosamente. A cabeça ainda girava. As pernas mal o sustentavam. Isso o deixou furioso. Seu corpo de jovem, aguerrido em todas as provas, nunca o havia traído desse jeito. Jamais sentira uma fraqueza assim.

Sacudiu-se como um cachorro. Uma aparência de vigor voltou-lhe aos membros, ao coração. Sentiu-se nu: não tinha mais espada nem escudo. Com uma espécie de angústia, examinou com os olhos a charneca à sua volta, tornando-se violeta devido ao sol poente. Avistou Excalibur, largada a alguns passos. E o escudo de José, um pouco mais longe. Com alívio, recolocou a espada na bainha e pendurou de novo o escudo no pescoço.

Deu-se conta então de que estava com frio. Estava tremendo. Suas roupas não tinham secado. O lago estava alguns passos atrás dele, com suas águas mais escuras do que uma noite sem estrelas. Deu alguns passos para se afastar e subir de novo a encosta.

Ali, percebeu a sombra alta e inquietante de um castelo. Era um castelo como ele nunca tinha visto antes. Todo de torres estreitas, de alturas diferentes, recortadas em forma de ameias. Ele contou sete dessas torres. Apertadas umas contra as outras a ponto de parecer não existir nenhuma muralha. A leste, em uma orgia de vermelho cor de sangue, o sol desaparecia.

Galahad tomou o caminho do castelo.

Alcançou-o em pouco tempo e verificou que de fato não estava cercado por nenhuma muralha. Compunha-se simplesmente daquelas sete torres desiguais. Também não havia fosso. Não havia obstáculos, defesas a transpor. Galahad se viu diante da porta da primeira das torres, a mais central, a mais elevada. Empurrou o batente.

No interior, uma luz suave, de um amarelo dourado, clareava uma grande sala sem móveis e sem ornamentos. Entrou, com um passo hesitante. À esquerda, uma lareira suficientemente larga para caber um espeto com três javalis, na qual crepitavam belas chamas. De um lado e do outro da lareira, duas figuras estavam esculpidas, de um homem e de uma mulher, pareceu-lhe — mas talvez fossem dois pássaros noturnos, duas aves de rapina. O artista que as havia cinzelado na pedra tinha feito tão bem seu trabalho que era difícil decidir-se por uma aparência ou por outra. Seres humanos? Monstruosas corujas? Impossível determinar.

— Boa-noite, cavaleiro.

Galahad virou-se de repente para a voz que acabara de interpelá-lo às suas costas. Descobriu uma moça que vinha ao seu encontro. Não compreendeu por que não a tinha visto assim que entrara na sala.

Depois, não se perguntou mais nada.

Pois ela lhe pareceu de uma incrível beleza. Descrevê-la com palavras não lhe prestaria homenagem à altura do que a vista captava com um único olhar. Loura, seus cabelos pareciam ouro misturado aos tons ensolarados do trigo maduro. Olhar altivo, mas zombeteiro e sério. Os olhos verdes, risonhos, amendoados. O nariz tão reto e tão delicado de proporções que um ínfimo movimento em falso do escultor divino que o havia formado teria podido quebrá-lo. A tez era branca e perfeita, e as maçãs do rosto sombreadas de um tom de rosa que as realçava. Finalmente, um corpo esguio e ágil num leve vestido que não chegava a dissimular as curvas do peito e dos quadris.

— O senhor deve estar exausto, depois de uma viagem tão longa — ela lhe disse com uma voz que combinava perfeitamente com sua beleza.

Caminhou até ele e envolveu seus ombros com um manto de seda branca. Contudo, ele pensou vagamente, ainda há pouco ela não tinha nada nas mãos... Ela retirou o escudo que ele carregava no pescoço e o encostou numa parede.

Roçou-lhe o braço.

— Venha. Precisa recuperar as forças.

Conduziu-o na direção do fogo, onde ele viu dois assentos, uma mesa e, sobre a mesa, uma refeição completa com caça, carnes e vinhos. Tudo aquilo tinha aparecido? Ou ele estava tão fraco ao entrar na torre que não tinha visto na hora? Para esta pergunta, ele não procurou mais a resposta por muito tempo. Deixou-se guiar até uma das cadeiras e, quando ela lhe roçou o ombro, murmurando: “Jante, belo cavaleiro”, ele se sentou.

O calor do fogo lhe fez bem. Suas roupas molhadas secaram em um instante. A moça instalou-se na outra cadeira, na frente dele. Ele tinha dificuldade em não devorá-la com os olhos, de tão bela que ela era. Ela lhe sorriu como quem sorri para um amigo de longa data, e despejou um vinho escuro no seu copo.

— Beba, cavaleiro. Vai se sentir melhor.

Ele obedeceu, sem desviar o olhar dela. Com efeito, o vinho pareceu correr imediatamente em suas veias, aqueceu-o e acalmou-o. Ele estendeu a mão para um faisão assado, arrancou a coxa e a asa e enfiou-lhes os dentes com prazer. Balançando a cabeça, a moça o aprovava, o encorajava.

— Quem é a senhorita? — perguntou ele.

— A dama deste castelo. Sua anfitriã.

— Está sozinha aqui?

— A maior parte do tempo.

— Não tem medo? Sem muralhas nem guarnição para protegê-la?

Ela riu.

— Do que eu teria medo? Do senhor, cavaleiro?

— A senhorita não sabe quem eu sou.

— O senhor é quem é. E eu sou quem sou. Em seguida, nos apresentaremos.

Ela lhe serviu outro copo de vinho. Ele enxugou os lábios com as costas da mão e bebeu, até a última gota. Depois disso, sentiu-se ainda de melhor humor.

— Meu nome é Galahad — disse. — E o seu?

Sorridente, os olhos verdes faiscando, ela brandiu o indicador diante da boca, pequena, vermelha e fresca como uma cereja.

— Psiu... Para que ficar dando nomes? Para mim o senhor está aqui, na minha frente, e isso basta.

A voz da moça tinha tanta doçura, nobreza e persuasão que ele se julgou um tosco por ter ousado perguntar seu nome. Como ela lhe servia mais um copo de vinho, ele bebeu.

— Quantas vezes lhe disseram que é bela? — perguntou. — Todos os senhores da região devem querer desposá-la!

— A região, cavaleiro, é bastante deserta. E, de todo modo, eu não me caso.

Ele riu, descobrindo no fundo de si mesmo um sentimento que até então nunca tinha experimentado: a vaidade. Mergulhou os lábios no novo copo de vinho que ela acabara de completar.

— É que a senhorita ainda não tinha me encontrado — disse.

— Talvez — ela respondeu, sorrindo com graça e inclinando a jarra de vinho para o copo já vazio.

Galahad segurou-o e bebeu-o de um único trago. Uma estranha euforia percorreu-lhe o corpo. Sentia-se pronto para todas as loucuras e, ao mesmo tempo, não pensava em mais nada a não ser naquela mulher muito bonita que estava diante dele; esquecera quem ele era, o porquê de haver percorrido todo aquele caminho até o castelo, qual era sua missão. Estava abobalhado de tão feliz, abobalhado de tão bêbado e quase já apaixonado.

— A senhorita se casaria comigo? — perguntou.

Ela deu levemente de ombros, inclinando adoravelmente a cabeça para o lado.

— O senhor é bonito. É cavaleiro... Por que não?

Essa resposta bastou à novíssima vaidade de Galahad. Ele se levantou de repente — a cabeça rodava um pouco — e estendeu a mão à moça.

— Nós agradamos um ao outro — disse. — Seria uma pena nos deixarmos sem...

A moça observou a mão estendida, sem pegá-la, e ergueu as sobrancelhas:

— Sem o quê?

— Sem que tenhamos nos apresentado.

Ela pareceu refletir. Serviu-lhe um novo copo de vinho.

— O senhor mal comeu. Beba, ao menos.

— Com prazer.

Galahad segurou o copo, ergueu-o: “À senhorita!” e bebeu. Ao colocá-lo sobre a mesa, desajeitadamente, ele se quebrou. A moça tomou-lhe a mão.

— Venha — ela murmurou. — Vamos nos conhecer.

 

Pôs-se a conduzi-lo. Subiram uma escada em caracol. Ela não largava a mão dele.

Era a escada? Seu desejo por ela? A bebida vermelha escura que ela o havia feito beber e que ele havia provado pela primeira vez? Atordoado, ele vacilava.

De repente, um corredor se abriu no alto da escada. A moça começou a correr, sempre levando-o. Empurrou uma porta: estavam em um quarto onde um grande leito de baldaquim ocupava a maior parte do espaço.

Ela o tomou nos braços. Ele nunca tinha sentido a presença e o calor de um corpo feminino contra o seu. Sensação que o atordoou mais ainda. Inclinou o rosto sobre ela, quis lhe dar um beijo. Ela virou a cabeça.

— Espere — sussurrou. — Primeiro você precisa tirar sua espada...

— Sim... Sim, tem razão...

Ele se afastou. Ia retirar o cinto onde a espada batia, quando, impaciente, ela encostou seus dedos ali.

— Espere... Vou retirá-la para você...

Subitamente, ele ouviu uma voz de criança no seu ouvido — a voz de um menino, ou de um anjo.

— Você está bêbado e é bobo... Não se deixe enganar!

Ele sobressaltou-se.

— Quem falou?

Ele recuou. Soltou-se. O quarto, em torno dele, começou a turbilhonar. E a mudar de aspecto: o magnífico leito de baldaquim se transformou numa pavorosa enxerga fervilhando de baratas; as paredes do quarto, em pedras em ruínas. E a bela jovem, quando a olhou enquanto ela tentava retirar-lhe a espada, em uma imensa ave de rapina noturna, coruja de olhos móveis e amarelos, de nariz adunco. A visão do horror durou apenas um instante.

Ele soltou um grito de terror. Jogou-se para trás.

— A sua espada! — murmurou-lhe a voz de criança, ou de anjo.

Ele segurou Excalibur pela empunhadura. Tirou-a da bainha. Brandiu-a diante de si.

Diante de si e na frente da bela moça.

Foi como se ele tivesse lhe aplicado um golpe violento. Ela pulou para trás. Seu sorriso — tão atraente — se transformou em um esgar atroz. Seus cabelos, finos e dourados, estalaram como um estandarte — e se metamorfosearam em um ninho de serpentes, de víboras e de áspides assoviando de raiva. Os olhos, de um verde tão sedutor, ficaram amarelos. O nariz, tão delicado, se tornou um bico.

Em pânico — e ainda bêbado—, Galahad recuou, estremeceu, caiu sentado. Diante dele, a mulher mudava de rosto de um instante para o outro.

O primeiro — o agradável, o bonito — lhe dizia:

— Você me ama, cavaleiro...

O segundo — a cabeça de ave de rapina noturna:

— Você vai morrer...

E, ao seu ouvido, a vozinha de criança ou de anjo repetia:

— Sua espada, sua espada!

Então Galahad compreendeu: encostou-se na parede, segurou Excalibur afastada do punho — seus dedos, retalhados, começaram a sangrar ao tocarem a lâmina — e a brandiu da maneira como ela o protegia: representando uma cruz. A cruz do suplício de Cristo para salvar os homens.

A jovem, a coruja — o monstro —, soltou um uivo dilacerante. Agitando a cabeça em todos os sentidos, procurava um modo de poder escapar daquela cruz formada pela empunhadura da espada. Não havia escapatória.

A mulher-ave-de-rapina incendiou-se de repente. Mesmo se atirando contra todos os cantos do quarto, não conseguiu escapar ao fogo que nascia de si mesma, ou seja, de sua própria natureza de diabo. Desabou uivando sobre a cama e terminou de se consumir, em meio a atrozes convulsões.

Quando Galahad se levantou e se aproximou dela, não restava mais sobre a cama do que um montinho de cinzas. E, no quarto, um abominável fedor de enxofre.

Ele caiu de joelhos e vomitou, com grandes soluços, todo o vinho maléfico que o haviam feito beber. O vinho, tudo o que ele vomitou escorreu como um fluido pelo quarto. Formou poças no chão, alcançando a base das paredes.

A sala, depois a torre, depois o castelo, desapareceram. Tudo se desvaneceu como se jamais tivesse existido. Galahad se viu, de joelhos, as entranhas lhe doendo, no meio da charneca e da noite. Seu escudo branco com a cruz vermelha jazia no mato do seu lado. Ele o apanhou e o pendurou ao pescoço.

— Falhei — murmurou.

Ao que a voz de criança ou de anjo replicou no seu ouvido:

— Não, você ganhou. Ou quase cometeu o erro de seu pai, Lancelot: amar quem não é para você. Levante-se, Galahad. Você tem que chegar até o fim da Busca.

O jovem cavaleiro apertou as mãos contra os ouvidos e berrou, de joelhos, olhando para o céu negro da noite caledoniana:

— Deixem-me em paz! Não quero mais saber de anjos em torno de mim! Sou um cavaleiro! Sou o Eleito! Se tenho que realizar a Busca — e vou conseguir —, eu o farei sozinho e sem ajuda!

— Você tem razão. Você disse o que esperávamos que dissesse

Galahad levantou a cabeça. Diante dele, na charneca, viu um cavalo branco como a flor da macieira, que um menino segurava pela rédea. Pôs-se de pé e se aproximou. O menino era o anjo ruivo que ele havia encontrado na companhia de seus semelhantes, os anjos, no castelo dos Sete. O anjo ruivo estendeu-lhe a rédea do cavalo branco.

— Tome.

Galahad sacudiu a cabeça.

— Não obedeço. Nem aos anjos de Nosso Senhor.

— O que você quer?

— Ir até o fim da Busca. Mas contando apenas comigo.

— Isso é orgulho.

— Não. É assim que tem de ser, só isso. O Cavaleiro Eleito não tem necessidade de ajuda.

— Por quê?

— Se lhe facilitarem a tarefa, ele não terá conseguido nada. Só há um estado e uma palavra para designá-lo: sozinho.

— Pretende dispensar nossa ajuda?

— Pretendo encontrar o Graal.

— Sozinho?

— Sozinho.

O anjo ruivo — que falara com a voz de todos os anjos de seu conjunto de anjos — largou a rédea do cavalo branco. Recuou para a bruma que se formara durante aquela conversa. Antes de desaparecer dentro dela, acrescentou:

— Vejamos... Vejamos se você é o Eleito...

 

O nevoeiro ficava mais denso. Galahad, com a espada na mão, procurou, à direita, à esquerda, ao sul, ao norte, se havia um inimigo — ou um anjo. Terminou admitindo que estava sendo ridículo ao golpear sombras no meio da bruma. Recolocou Excalibur no lugar e segurou o cavalo branco pela brida.

Preto. Branco. Quais são as cores do Diabo? O Diabo pode tudo, e, principalmente, enganá-lo. Mas esse cavalo, afinal, lhe havia sido apresentado por um anjo.

Galahad verificou seus arreios: sim, ele tinha uma sela, ornamentada talvez com excesso de riqueza, mas uma sela de cavaleiro de Logres. A brida e o freio eram iguais aos que teriam sido colocados em Camelot ou em qualquer outro lugar proibido aos demônios e aos diabos.

— Eu sou o Eleito — rosnou, como que para persuadir-se.

E, de um salto, montou no cavalo branco.

Foi o tempo exato de empunhar a brida e o animal disparou como uma flecha, a todo o galope, rápido e ritmado. A charneca passava a grande velocidade. Um vento suave os empurrava, homem e cavalo, direto para o norte.

O animal só parou quando o mar proibiu-o de ir mais longe.

Altas ondas cinzentas e frias se atiravam contra altos rochedos cinzentos sob um céu cinzento. Galahad tinha alcançado o setentrião das ilhas. Do outro lado, ninguém sabia o que esperava o viajante — o navegador.

Suando, o cavalo branco imobilizou-se. Galahad desceu. Deu alguns passos em uma praia de rochedos pontudos. Apesar da bruma de um céu eternamente baixo e nublado, distinguiu, ao longe, exatamente antes do horizonte, o recorte negro de uma ilha.

Quando se virou, o cavalo branco não estava mais lá.

Não se espantou. Nada mais podia surpreendê-lo.

Era no que acreditava.

Tratou de se instalar naquela praia para uma longa temporada. Catou madeira morta para o fogo, e recolheu feixes de plantas e plantas mais altas para com elas construir uma cabana onde poderia dormir abrigado dos ventos gélidos do norte.

Em seguida, pôs-se a esperar.

 

                   O caminho do orgulho

Enquanto isso, Lancelot, seguido de má vontade por Aguingueron e, à força, por Perceval amarrado à montaria, tomara o caminho da esquerda.

O caminho, pavimentado em certos trechos, provavelmente tinha sido uma via romana, do tempo da invasão de César, alguns séculos antes. Ia dar diretamente numa floresta.

— Sire Lancelot — suplicou Aguingueron —, voltemos à encruzilhada. Esta floresta não está me cheirando nada bem.

Lancelot não respondeu. Dava-se conta perfeitamente de que ele mesmo nunca percorrera em sua vida floresta mais tenebrosa, mais densa, de folhagem mais espessa e de um verde tão escuro que mais parecia negro. Em qualquer outra circunstância, teria feito o caminho de volta, por elementar prudência. Mas achava que recuar, agora, seria renunciar. Tinha a sensação de reviver a mesma aventura de vinte anos antes, quando era o Eleito — ou deveria ter sido. Mas, vinte anos antes, ele ia direto ao perigo e ganhava sempre. Não podia admitir que o tempo passara, que seu tempo passara. Esporeou raivosamente o cavalo. Entrou na floresta.

A marcha foi difícil. À medida que avançavam, os troncos das árvores ficavam mais juntos, mal deixando lugar para a montaria passar. Pouco tempo depois, o caminho desapareceu, como que absorvido pelo mato fechado. Aguingueron tinha cada vez mais dificuldade em seguir Lancelot, pois seu cavalo e ele eram, muitas vezes, largos demais para se introduzirem pelas estreitas passagens entre as árvores.

— Cavaleiro, vamos desistir, eu lhe peço! Logo, logo, não vamos mais conseguir seguir nem para a frente nem para trás.

— Cale-se! Se continuar a gemer, eu lhe...

Lancelot pusera raivosamente a mão na espada. Aguingueron permitiu-se pousar sua mão enorme sobre o ombro do cavaleiro.

— Vamos — disse com uma voz conciliadora. — Seja razoável. Voltemos para Beau Repaire.

— Retire sua mão!

— Cavaleiro, o senhor tem outras responsabilidades hoje em dia. O que resta de Logres só sobrevive graças ao senhor. Imagine se os saxões atacarem Camelot na sua ausência... E Beau Repaire. Tenho certeza de que Blancheflor saberá se defender. Mas por quanto tempo? Quanto tempo a lembrança de Logres poderá sobreviver à sua ausência? Assim que souberem que o senhor não está mais lá, os saxões avançarão sobre Camelot. Até o presente, eles hesitaram. Porque têm medo, cavaleiro. Medo do senhor. Sem o senhor, Logres cairá.

Aguingueron nunca falara tanto antes. Nunca, há vinte anos, Lancelot admitira e tampouco recebera conselhos — salvo, vez por outra, de Galehot, seu amigo. Acariciando maquinalmente seu cavalo entre as orelhas, ele refletiu. Claro, Aguingueron podia ter razão. O que aconteceria com Camelot sem ele? E, claro, era apenas o orgulho que o obrigava a querer seguir o caminho de Galahad em direção ao Graal. Se fosse honesto consigo mesmo, deveria reconhecer que não esperava apenas seguir aquele novo Eleito, mas, na verdade, ultrapassá-lo. Chegar antes dele ao final da Busca. Suspirou.

— Tenho quarenta anos, Aguingueron. Dentro de alguns anos, serei um velho. Hoje, todos os ferimentos e todos os golpes que recebi, todas as minhas cicatrizes doem tanto que me acho debilitado como um homem de oitenta anos. E tudo isso para quê? Fracassei no cumprimento do meu destino, Aguingueron. Não fui quem deveria ter sido.

— O senhor é o cavaleiro mais respeitado e mais adulado a milhares de léguas à sua volta.

Lancelot balançou dolorosamente a cabeça.

— Não. Eu sou o que traiu o rei. Se Logres não existe mais, é por minha culpa.

— Então, Perceval, meu amo, é tão culpado quanto o senhor! Ele também foi o Eleito, e ele também falhou na sua missão divina.

— E olhe só para ele! — retorquiu Lancelot. — Hoje está louco.

— Não terá sido, Senhor, por ter conhecido o que ao senhor nunca foi permitido?

— O quê?

— Ele obteve uma segunda chance. Eu, que o segui neste inverno até as margens do setentrião, que fui encontrá-lo em uma ilha assustadora, posso afirmar — tenho a convicção — que ele viu o Graal. E foi por ter chegado tão próximo, quando tinha perdido o direito a ele, que agora ele se encontra nesse estado lamentável.

— E daí? O que está insinuando?

Aguingueron levou um tempo escolhendo as palavras que empregaria. Não queria ferir Lancelot, mas devia-lhe a verdade, ao menos a verdade da qual estava intimamente convencido.

— Não cometa o mesmo erro de meu amo. Se ele enlouqueceu por retomar, dez anos depois, a Busca que não completou, acho que...

— Que...?

— Que o senhor se arrisca à mesma sorte.

— Está querendo dizer que vou perder a cabeça?

Aguingueron baixou humildemente os olhos sob o olhar furioso de Lancelot.

— Não me queira mal por lhe falar com sinceridade: para mim, o fato de ter seguido Galahad e se embrenhado nesta floresta do diabo é um sinal de que o senhor não está no seu juízo normal...

— Bobagens!

A cólera de Lancelot se transmitiu a seu cavalo, que logo começou a patear. Ele teve grande dificuldade em dominá-lo, mas isso lhe deu tempo suficiente para poder refletir. Aproximou-se de Perceval sempre amarrado e amordaçado em cima da montaria.

— Escute, Aguingueron: somente Perceval poderá nos dizer se você tem razão. Vou libertá-lo. Veremos para onde ele conduzirá seu cavalo. Se ele sair desta floresta e voltar à encruzilhada, eu o seguirei. Se não...

— Eu lhe suplico! — gritou o gigante. — Não!

Era tarde demais. Com um golpe de adaga, Lancelot cortou as cordas que amarravam Perceval à montaria. Depois lhe arrancou a mordaça.

— Não! — berrou mais uma vez Aguingueron.

Tão logo se viu liberado, Perceval se ajeitou sobre a sela e clamou:

— Você não vê o futuro! VOCÊ NÃO SABE!

E partiu a galope. Evitou como por milagre as passagens muito estreitas entre as árvores. E desapareceu na penumbra sob a copa das árvores.

— Não devia ter feito isso, cavaleiro...

— Sigamos suas pegadas! — replicou Lancelot.

A contragosto, Aguingueron seguiu o cavaleiro que se embrenhava rapidamente no labirinto da floresta.

Galhos muito baixos o esbofeteavam à sua passagem. Lancelot não se incomodava. Apenas galopava. Aguingueron, atrás, tentava como podia não perdê-lo de vista.

E, de repente, quando os troncos pareciam mais densos do que nunca, mais intransponíveis, desembocaram numa grande clareira inundada de sol.

Ofuscados por aquela luz repentina, piscaram com força os olhos e pararam os cavalos. Sobre uma espécie de altar, no centro da clareira, repousava uma coroa de ouro e rubis. Ela cintilava tão violentamente ao sol que terminou ofuscando-os. Mas entreviram mesmo assim Perceval que, escorregando para o lado da sela, inclinava-se para apanhar a coroa. Ele a brandiu em triunfo e, de repente, jogou-a para Lancelot, gritando:

— Você não sabe nada! Aprenda!

Com um gesto reflexo, Lancelot agarrou a coroa. Era pesada e magnífica.

— Perceval!

Não adiantava chamá-lo. Perceval esporeou o cavalo e embrenhou-se na floresta.

— Cavaleiro — disse Aguingueron —, o que significa essa coroa?

— Não sei. Não se parece com nada que eu conheça.

Essas palavras tinham acabado de ser pronunciadas quando, de lugar nenhum, surgiu um cavaleiro. Seu elmo, sua armadura e seu escudo eram brancos. Seu cavalo, ajaezado da mesma cor. Tinha no punho uma enorme clava, que até o gigante Aguingueron teria dificuldade para manejar.

— Uma armadilha! — exclamou Aguingueron. — Largue essa coroa, cavaleiro, e fujamos!

Lancelot deu um risinho de mofa. Colocou a coroa de ouro e rubis debaixo do braço esquerdo, depois segurou o escudo.

— Você não sabe nada — escarneceu. — A aventura continua! E ninguém jamais me venceu!

Enquanto o enigmático cavaleiro branco sacudia o cavalo de batalha e levantava bem alto a clava, Lancelot puxou a espada.

— Pela Távola Redonda! — rugiu. — E por Deus!

Os adversários precipitaram-se um contra o outro. Os cascos de seus cavalos batiam num ritmo infernal sobre o solo da clareira. No instante de atingir o cavaleiro branco, Lancelot berrou:

— À morte!

Golpeou. Sua espada assoviou no ar, acertou o escudo branco, e se espatifou. Não teve tempo de se surpreender. Recebeu um golpe de clava que partiu seu escudo em dois e o atirou no chão.

Atordoado, rolou sobre si mesmo. Quando se levantou, meio tonto devido à queda, só tinha na mão direita uma espada quebrada e, na esquerda, um escudo partido. Não viu chegar o segundo assalto do cavaleiro branco: a clava o atingiu no ombro. Com um grito de dor, caiu de costas, largando o escudo fendido.

E foi assim, estendido de costas, vencido, humilhado, que ele viu o cavaleiro branco galopar na sua direção, inclinar-se de lado e lhe arrancar a coroa de ouro e de rubis que ele pendurara no antebraço.

Em silêncio, o misterioso cavaleiro colocou a coroa dentro da bolsa da sela, instalou a clava dentro da outra bolsa e suspendeu a viseira de seu elmo, lançando um último olhar para a clareira. Com estupor, Lancelot acreditou reconhecer no rosto dele a claridade azul-escura dos olhos, os traços fortes e delicados ao mesmo tempo, a expressão de orgulho de um outro Lancelot, vinte anos mais moço.

Um instante mais tarde, o cavaleiro tornava a baixar a viseira do elmo e desaparecia, como um espectro, na orla das árvores.

Lancelot, esgotado por aquele combate perdido, perturbado pela visão de seu próprio rosto no vencedor, deixou-se ficar ali, de costas. Olhou o céu acima dele, pelos espaços entre as árvores.

— Fui vencido — murmurou. — Estou velho...

 

Aguingueron montou um acampamento na clareira. Fez um fogo, cortou galhos e construiu um simulacro de cabana para proteger o sono de Lancelot; de uma só flechada, matou um faisão solto entre as árvores, depenou-o, eviscerou-o e assou-o no espeto.

Lancelot recusou-se a experimentá-lo. Virou-se sobre seu colchão de ervas e adormeceu.

Um sonho, logo em seguida, veio atormentá-lo.

Primeiro surge uma capela. Simples e pequena. Lancelot se vê, no sonho, dormindo a alguns passos. Da floresta surge uma liteira carregada por sete homens. Eles a depositam na entrada da capela.

Um cavaleiro está estendido nela. Lancelot tenta, em seu sonho, levantar-se, ir falar com o cavaleiro em cima da liteira. Em vão. Seu corpo não lhe obedece mais.

O cavaleiro se levanta da liteira. E Lancelot o reconhece. É ele mesmo, porém vinte anos mais jovem.

O jovem Lancelot entra na capela. Segue até o altar, sobre o qual brilham as sete chamas de um candelabro de prata. E, atrás das sete velas, um prato coberto por um pano vermelho brilha também.

No seu sonho, Lancelot sabe que se trata do Santo Graal.

Ele faz um grande esforço para despertar. Não consegue.

Ele se vê — quer dizer, vê o Lancelot de dezoito anos, que tanto se parece com ele mas que, contudo, não é ele — se aproximar do altar e do Graal e pousar-lhe os lábios. E se erguer, como que movido por uma nova energia.

— Deus, Meu Senhor — exclama —, muito obrigado! Estou agora mais jovem e mais forte do que nunca fui!

Saindo da capela, despede-se com um gesto dos sete homens que carregaram sua liteira. Volta os olhos para o velho Lancelot que dorme. Esboça um esgar de desdém.

— É preciso — murmura — que esse cavaleiro tenha cometido erros imperdoáveis para não lhe ser permitido acordar, levantar-se e saudar o Santo Graal. Que morra com sua vergonha...

Depois disso, o jovem Lancelot apanha o escudo fendido do velho Lancelot — e ele se solda imediatamente. Pega a espada quebrada, que recupera na hora uma lâmina longa e afiada. Um cavalo de batalha cinza-pálido sai da floresta. Ele o monta e, com o escudo e a espada nas mãos, desaparece.

— Minha espada! Meu escudo!

Lancelot, finalmente, conseguira escapar de seu sonho. De gatinhas, atravessou a clareira, à procura de suas armas.

Não as encontrou.

Uma voz lhe soprou então no ouvido:

— Lancelot, mais duro do que a pedra, mais amargo do que a madeira, mais nu do que a figueira, como você ousou partir novamente em busca do Graal? Vá embora. VÁ EMBORA! Este caminho não é seu!

O cavaleiro caiu de joelhos, tapando com as mãos os ouvidos. Mas isso não adiantou nada: a voz lhe falava do mais fundo de si mesmo.

 

De manhã, Lancelot sacudiu Aguingueron, que ainda dormia.

— Levante-se.

O gigante gemeu, espreguiçou-se, sacudiu-se.

— Sim?... Senhor?...

— Eu refleti a noite inteira. Você tem razão.

Aguingueron, preso nas brumas do sono, esfregou desajeitadamente o rosto.

— Quer dizer, Senhor?...

Lancelot segurou-o pelo braço e o obrigou a ficar de pé.

— Quer dizer que você vai pegar o caminho de volta e chegar o mais depressa possível a Camelot. Lá, transmitirá a rainha...

— Só um momento, Senhor! Lembre-se do que se passou ontem: eu perdi meu amo, Perceval. Tenho de reencontrá-lo.

— Se alguém deve reencontrá-lo, este alguém sou eu, Aguingueron. Confie em mim.

O gigante o observou com uma expressão dividida: respeito, sem dúvida, mas também muita incerteza. Lancelot compreendeu-o e perguntou:

— Do que tem medo, exatamente?

— Bem... Cavaleiro... Que a loucura do meu amo seja contagiosa...

— Não se preocupe. Tive um sonho esta noite. E compreendi.

— Compreendeu o quê?

— Que estou vivendo minha última aventura. Ajude-me, Aguingueron. Preciso de você. Por favor.

Isso foi pronunciado com tanta humildade, que o gigante ficou embaraçado.

— Pode falar — grunhiu, constrangido.

— Quero que você volte a Camelot, que vá ver a rainha e que diga a ela isto... Você tem boa memória?

— Terei, se for preciso.

— Então escute e decore: “Guinevere, minha rainha, não me espere mais. Não voltarei a Camelot. O erro que cometemos juntos deve ser reparado. E saiba, saiba que jamais deixei de amá-la.” Compreendeu?

Aguingueron enrubescia à medida que a mensagem que devia transmitir se tornava mais pessoal. Ele limpou a garganta.

— Hã... sim... Eu acho...

— Então, repita.

— Senhor, eu...

— Repita, é uma ordem!... E uma prece...

Baixando os olhos, Aguingueron repetiu palavra por palavra a mensagem que Lancelot lhe confiara.

— Muito bem — disse este último. — Se gosta de mim, se tem estima por mim, suba imediatamente no seu cavalo e não faça nenhuma pergunta.

Aguingueron obedeceu. Saltou sobre a montaria. Antes de se embrenhar na floresta, perguntou, com uma voz bem baixinha:

— Então... Não vamos mais vê-lo?

— Só Deus sabe. Quanto a você, saiba que detém um segredo cuja revelação causaria um grande mal à rainha. Sabe disso, não é?

— Acredite, Senhor, na minha fidelidade e no meu silêncio.

— Eu acredito.

Lancelot bateu na anca do cavalo, que teve um sobressalto e partiu a galope. O animal e seu cavaleiro desapareceram por entre as árvores, sob as folhagens negras.

 

                   Cavaleiros brancos, cavaleiros negros

Lancelot retomou seu caminho algum tempo depois.

Sentia-se perseguido pelas imagens de seu sonho. Às vezes, como quem espanta moscas, agitava a mão diante do rosto. Mas não espantamos tão facilmente um sonho que percebemos esclarecer tudo a nosso próprio respeito.

As árvores da floresta lhe pareceram menos coladas, menos densas, menos inimigas. Ele ia direto para o norte. Muito depressa deixou as árvores e se viu novamente numa paisagem de vales sem árvores, acinzentados, onde o verão nunca chegava. Os córregos corriam como torrentes.

Nunca se sentira tão cansado na vida. Ainda rememorava o enfrentamento com o cavaleiro branco, sua humilhação. Por que não estivera à altura daquele primeiro assalto? Por que sua espada e seu escudo tinham se partido ao primeiro choque? A resposta a esta pergunta ele adivinhava sem admitir: estava vivendo uma aventura que não era para ele. Mas, dizia para si, ele tinha sido “o melhor cavaleiro do mundo”. Por que não sou mais? Por que de agora em diante tantas derrotas? Perdi o direito a uma última vitória, ao triunfo em uma última aventura?

Ruminando esses pensamentos, chegou a uma capela edificada no alto de uma colina cercada por duas torrentes.

Desmontou, examinou o local — que lembrava o sonho que tivera — e, embora suas mãos começassem a tremer — ou porque suas mãos começassem a tremer —, entrou na capela.

Ela era simples e nua. Paredes de pedra lisa sem ornamento. Uma simples rosácea de vitral azul iluminava o coro. Um altar mais despojado do que uma mesa de camponeses. Diante do qual, com as mãos em prece, um padre de sobrepeliz salmodiava cantos incompreensíveis.

Lancelot avançou até o altar e se ajoelhou ao lado do padre.

— Você chegou, Lancelot — disse o padre, com os olhos fechados e as mãos juntas.

— Como me reconhece? Não está me vendo...

— Eu estava à sua espera, Lancelot, e você está aqui. Vou lhe contar uma história. Ouça.

“Um rei distribuiu um dia a seus cavaleiros o que guardava em seu tesouro. Ao primeiro, deu mil moedas de ouro. Ao segundo, duas mil. E cinco mil ao terceiro.

“Este último bem depressa chegou junto ao rei: ‘Eis outras cinco mil moedas de ouro que ganhei graças às que você me ofereceu. Elas são suas.’

“O segundo, por sua vez, voltou à corte, de posse de suas duas mil moedas de ouro. Ele também as ofereceu ao seu rei dizendo: ‘Destas duas mil moedas de ouro, eu não soube fazer nada de melhor. É justo que as devolva.’

“O primeiro, que tinha recebido apenas mil moedas de ouro e se sentira lesado na partilha, enfiou-as em um esconderijo secreto e não tocou mais nelas. Nunca mais reapareceu diante de seu rei, uma vez que não ganhara nada e nada queria devolver.”

O padre abriu finalmente os olhos e olhou para Lancelot.

— Vocês foram três a receber, de Nosso Senhor, o tesouro da Eleição. Você foi o primeiro deles, Lancelot, aquele que obteve, por certo, o pedaço mais mesquinho. O que fez dele?

“Escondeu-o dentro de si mesmo. Essa força indestrutível que devia lhe permitir obter o Graal, você a utilizou para fins egoístas. Só pensou em si — ou no seu amor pela rainha Guinevere, mas privilegiar esse amor era, ainda e sempre, só pensar em si. E, pior do que tudo, você passou meses procurando, não como encontrar o Graal, mas como encontrar a morte em um combate inútil. Você traiu Deus, Lancelot. Você traiu a si mesmo.”

Lancelot caiu de joelhos.

— Meu padre — disse —, eu reconheço todos os meus erros.

— Todos?

— Todos...

— Mesmo o de ter amado indevidamente a rainha?

Lancelot desabou, com a cabeça entre as mãos. O padre prosseguiu, implacável:

— Reconhece que amou indevidamente a rainha Guinevere?

Lancelot se levantou. Tinha os punhos fechados. De repente, bateu no próprio peito.

— Eu reconheço — exclamou —, eu reconheço não ter feito o que devia para que o reino de Logres vivesse e se perpetuasse...

O padre o agarrou pelo ombro.

— Não tente subtrair-se à confissão! Mais uma vez eu lhe pergunto: reconhece ter indevidamente amado Guinevere?

O cavaleiro empurrou o padre, que caiu junto do altar.

— Não! — gritou Lancelot. — Não!

Inclinou-se para o padre, imobilizando-o no chão e bradando no seu ouvido:

— Ninguém jamais amará essa mulher como eu amei, nem como essa mulher me amou! Não posso renegá-la, eu me recuso a renegá-la! Eu a amo mais do que tudo! Um sentimento que está além do pecado, da maldição, da minha própria vida!

— Acalme-se, cavaleiro... Acalme-se.

Lancelot se levantou, deixando assim o padre recuperar o domínio de si — e uma certa segurança que ele devia sobretudo ao seu hábito e à sua ordem.

— Cavaleiro — ele perguntou, com uma voz um pouco trêmula —, você não encontrou um cavaleiro que o derrotou e recuperou uma coroa de ouro e de rubis?

— De fato...

O padre limpou nervosamente as abas de seu hábito e de sua sobrepeliz.

— E ele o venceu com uma facilidade que você mesmo não compreende?

— Sim...

— É — prosseguiu o padre com um pouco mais de segurança na voz — que você escolheu, na encruzilhada, a via da esquerda. A da cavalaria terrestre, na qual sempre triunfou: inimigos, provas, era só o que você queria, na sua juventude, pelo simples prazer de vencê-los. Você se recusa a envelhecer: você escolheu esse caminho. Ora, o caminho da direita, que você recusou, é o da cavalaria celeste. Nele, pouco importam os combates: ninguém ganha, nessa estrada, a não ser vencendo a si mesmo. Poderia tê-lo escolhido: preferiu um outro.

— Por quê?

— Por orgulho. O tempo e as responsabilidades não conseguiram modificá-lo: você só sonha com a glória. Como se a glória de ter salvado o que restou de Logres não bastasse... Você quer mais, Lancelot, quer sempre mais...

“A coroa de ouro e rubis na clareira da floresta não tinha nenhum significado, nada representava na Busca. Era apenas um engodo diante de seu orgulho. Mas você a quis. Precisava dela. Apanhou-a sem se perguntar o que ela representava. Ela brilhava, você a apanhou. E Deus lhe enviou um de seus anjos sob a forma de um cavaleiro branco parecido com você para punir seu orgulho.”

Com raiva, Lancelot apertou os punhos. Bateu na parede mais próxima. Suas falanges sangraram.

— O senhor quer dizer, padre, que foi Deus quem me puniu por eu ser, admitamos... corajoso, bravo e forte? E a voz que me soprou ao ouvido que eu era mais duro do que a pedra, mais amargo do que a madeira e mais nu do que uma figueira?

Ele sacudiu o padre, que tropeçou e bateu na quina do altar.

— Explique-me isso, se puder!

— É... é tão simples que você mesmo poderia ter imaginado...

Lancelot brandiu o punho.

— Não me tome por um idiota...

— Ao contrário... Ao contrário... Eu lhe explico... Comecemos pela pedra... Ela é dura, por natureza. Mas também foi ela que, quando o povo de Israel fugia do Egito conduzido por Moisés, deu a água que permitiu a todos os fugitivos beber. Portanto, da pedra por vezes vem a doçura da vida... Foi nesse sentido que a voz o acusou de ser duro como a pedra. Você recusa a doçura que tem em si, está cheio de amargura por não ter executado sua missão de Eleito. Então se tornou amargo como madeira morta, como vigas que são talhadas para sustentar poderosos edifícios, mas que por não serem empregadas por nenhum carpinteiro terminam apodrecendo largadas na terra.

— Mas por que a figueira?

— Lembre-se deste episódio dos Evangelhos: Nosso Senhor Jesus entrou em Jerusalém, foi acolhido por uma multidão que celebrava a Páscoa, mas quando, cansado, quis encontrar uma casa para dormir, ninguém consentiu em acolhê-lo. Então ele saiu da cidade e parou debaixo de uma figueira. Essa figueira era grande, bonita e sólida, carregada de galhos e de folhas. Contudo, não carregava nenhum fruto. Você é como essa figueira, Lancelot. Tem todas as seduções e todas as forças, mas seu coração está seco. De todos os frutos que você poderia ter trazido para o reino de Logres, você foi avaro, a ponto de não ter nenhuma descendência. Salvo aquela que lhe foi roubada, uma noite, pela filha do Rei Pescador.

Ellan... — murmurou Lancelot.

— Sim. Ellan. Dela, que você maldisse e condenou por ter lhe enganado, você tem um fruto, um filho que salvará sua estirpe.

Lancelot, perturbado, agarrou o padre pelas abas da sobrepeliz.

— Quem é? Onde está esse filho que supostamente tenho?

— Lancelot... Pare de cegar a si mesmo. Você sabe quem é esse filho.

O cavaleiro soltou o padre e recuou, dando alguns passos desvairados pela capela.

— Está querendo dizer que...?

— Sim. Deixe falar seu coração.

Lancelot segurou a cabeça entre as mãos e murmurou:

— Galahad...

— Você compreendeu.

O cavaleiro virou-se brutalmente para o padre. Com o olhar enlouquecido.

— Está tentando me enganar! Se Galahad é meu filho, por que não o reconheci imediatamente, assim que o encontrei?

— O orgulho, Lancelot, sempre o orgulho... A recusa de seu fracasso. Aprenda a envelhecer, aprenda a ter idade para ser pai.

— Eu ainda não estou velho! — rugiu Lancelot. — Quem ainda pode me bater?

O padre ergueu os ombros.

— Você sabe, Lancelot, você viu: um cavaleiro branco igual ao que você era há vinte anos tomou-lhe a coroa na clareira. E, quando você enfrentou Galahad no bastão, foi por respeito que seu filho não o humilhou.

Lancelot, sentindo subitamente uma fraqueza extrema, se sentou — ou melhor, desabou num canto da capela.

— O que devo fazer agora?

O padre se aproximou e, furtivamente, tocou-lhe a testa, como quem acaricia uma criança chorando.

— Aceitar a realidade.

— Como assim?

— Envelhecer em paz consigo mesmo.

 

Lancelot despertou. Não se lembrava de ter dormido. Esfregou os olhos, ergueu-se penosamente e olhou à sua volta: estava dentro de uma capela em ruínas. Teto desabado, paredes destruídas, vitral partido em mil pedaços. Nenhum padre nas proximidades. Simplesmente a lembrança, desagradável, do que ele havia falado. Era a realidade ou um sonho? Não tinha idéia.

Envelhecer... Que estranho e doloroso conselho... Lancelot saiu da capela cambaleando. Diante da entrada, no meio das ervas daninhas, achou uma espada e um escudo. A espada, quando a segurou na mão, sopesando-a, lhe pareceu sólida e bem equilibrada. Quanto ao escudo, era cinzento, e parecia sólido também. Lancelot, armado, montou no cavalo.

Ainda não tinha recuperado toda a sua capacidade de pensar. Deixou à montaria a liberdade de encontrar seu caminho. Desceram para o sopé da colina e seguiram um atalho fácil, que hesitava todo o tempo entre os vazios dos vales e suas encostas.

Uma hora mais tarde, desembocou em uma comprida e larga pradaria. Sentia-se melhor e teve o reflexo de reter o cavalo: ali, no prado, sete cavaleiros brancos estavam diante de sete cavaleiros negros. Seus chefes soltaram juntos um grito de guerra. Atiraram-se uns contra os outros.

Muito depressa, Lancelot compreendeu que os cavaleiros negros não tinham nenhuma chance contra os cavaleiros brancos. Já no primeiro assalto, quatro deles tinham sido derrubados pelos adversários. Sem que nenhum cavaleiro branco tivesse tocado o chão.

O segundo assalto se desenrolou como deveria ser: sete cavaleiros brancos contra três cavaleiros negros — os negros tinham pouca chance de ganhar. Mais outros dois caíram. E um único cavaleiro branco.

“Você está velho demais... Você tem que envelhecer...” Lancelot rememorava o que o padre lhe dissera — ou que ele sonhara. Puxou a espada, esporeou o cavalo e escolheu deliberadamente seu campo: o dos cavaleiros negros — o dos mais fracos. Queria sua última aventura, sua última proeza, sua última vitória.

Atirando-se a galope contra seus adversários, acertou no primeiro que encontrou uma estocada certeira sob o elmo. Para sua surpresa, a lâmina de sua espada ricocheteou. Como se ele tivesse atingido uma rocha. Furioso, precipitou-se no meio da confusão. Normalmente, teria derrubado tantos inimigos quantos golpes de espada tivesse acertado.

Mas, ali, nenhum deles pareceu se abalar com a sua intervenção. Pior: ele escutou alguns dos cavaleiros brancos caçoando, no momento de aparar um golpe que em outras circunstâncias os teria decapitado na hora. Compreendeu que seu braço perdera a força que tinha feito sua reputação. Compreendeu que enfrentava gente mais forte do que ele. Compreendeu que não estava mais à altura de nenhum combate no caminho do Graal.

No terceiro assalto, todos os cavaleiros negros acabaram no chão. Só Lancelot insistia em lutar, volteando a espada, contra seis cavaleiros brancos. Sua arte de combate, espetacular, era maravilhosa: mesmo assim, não chegava a tocar em ninguém.

Com um único golpe de clava, quase sem esforço, um dos cavaleiros brancos fez sua espada saltar da mão. Em seguida, um outro enfiou a ponta da lâmina na sua garganta.

Lancelot, vencido, humilhado, triste, rendeu-se.

Foi amarrado a seu cavalo. Não ofereceu nenhuma resistência. Levaram-no. Depois que a noite caiu, os cavaleiros brancos montaram um acampamento, fizeram um fogo e assaram lebres que haviam caçado na estrada. Não disseram sequer uma palavra.

Foi posto diante do fogo do acampamento. Deram-lhe carne para comer. Ninguém falava com ele.

Quando consentiram que retirasse as armaduras e se deitasse sobre um leito improvisado em volta do fogo, um dos cavaleiros brancos se aproximou de Lancelot, retirou seu elmo e lhe sorriu.

Lancelot reconheceu o rosto do padre da capela.

— Por que não me escutou? Por que lutou contra gente mais forte e mais numerosa do que você?

— Porque pertenço à Távola Redonda. Porque sou cavaleiro.

— Você perdeu, mesmo assim. Reconheça.

Lancelot ergueu o queixo e, de repente, cuspiu no rosto do padre-cavaleiro.

— Reconheço que você trapaceou para me vencer. Reconheço que Deus lhe deu poderes que Merlin, meu padrinho, não consegue neutralizar. Reconheço estar duplamente velho: por minha idade, e por meu pertencimento ao Antigo Mundo.

De repente, Lancelot segurou com a mão a lâmina da espada do padre-cavaleiro branco e colocou a ponta sobre sua própria garganta.

— Mate-me. O que está esperando? Ouse... Faça-me este favor.

Enfrentaram-se por um instante com o olhar. Depois, o padre-cavaleiro abriu os dedos, largando a empunhadura da espada.

— Você é uma lenda, Lancelot. Não quero ser aquele que o degolou.

— Tem medo de mim? Por quê? Estou à sua mercê...

O padre-cavaleiro meneou lentamente a cabeça. Sorriu, tristemente.

— Não preciso matá-lo, Lancelot: você não existe mais. Você mesmo falou: dentro em breve, não será mais do que uma lembrança. Uma lembrança de um mundo antigo sem futuro.

 

Uma nova aurora despontou na charneca.

Lancelot abriu os olhos. Afastou o tecido de lã que o cobria e se sentou. O fogo do bivaque não era mais do que cinzas fumegantes. Em volta, a charneca cintilava de orvalho. Os cavaleiros brancos e o padre, chefe deles, não estavam mais lá. Será que tinham mesmo existido? Lancelot esfregou o rosto coberto pela barba. Ainda estava vivo? Ou, há dias, nada fazia além de atravessar sonhos e pesadelos? Levantou os olhos para o céu baixo, cinza-ardósia. Um sopro de vento frio o fez estremecer. A umidade da manhã tinha revelado todas as dores de seus velhos ossos, de seus velhos músculos, de suas velhas cicatrizes de guerreiro.

Estou vivo, admitiu. Tenho um corpo, e ele me dói.

Ficou de pé e massageou os quartos. Tinha fome, tinha sede. Conseguiu descobrir uma minúscula fonte, mais abaixo, onde matou a sede e lavou as mãos e o rosto. Voltou para junto do fogo morto e, no meio das cinzas frias, encontrou um pouco de carne de caça. Foi limpá-la na água da fonte e comeu, lentamente, sentado em cima de uma pedra. Sem parar de mastigar, observou um cavalo de batalha baio que se aproximava dele, tranqüilamente.

Pouco depois, descobriu, sem surpresa, uma sela, um freio e uma brida abandonados não longe dali. Selou o cavalo e montou.

 

A montaria o levou assim durante muitas horas, em direção ao norte. Até que chegaram a um rio largo. A água rápida e fria espumava contra as pedras de um vau.

O que havia do outro lado? Normalmente, Lancelot teria se perguntado. Teria respondido: uma nova aventura. De agora em diante, ele não se importava. Desiludido de tudo e de si mesmo, só seguia adiante ainda porque seu cavalo seguia adiante.

Mas, mal o cavalo mergulhara os cascos na água gelada do vau, sete arqueiros apareceram na outra margem. De onde vinham? Como tinham aparecido? A Lancelot pouco importava. Nada mais parecia ter importância para ele. Estou velho. Nunca mais viverei aventuras.

Não despendurou o escudo do pescoço. Não puxou a espada. Sarcástico, estendeu os braços e gritou:

— Lancem suas flechas, arqueiros! Eu sou o seu alvo!

Estranhamente, aquelas poucas palavras pareceram desconcertar os arqueiros. Eles se entreolharam, depois baixaram os arcos.

— Vamos! — disse-lhes Lancelot. — Acabemos com isso, por favor!

No meio da tropa dos sete arqueiros, houve um dar de ombros, caretas de incompreensão, um conciliábulo. Ao fim do qual um deles foi designado. E, enquanto os comparsas, com as armas aos pés, assistiam ao fato como a um espetáculo, ele brandiu o arco, fechou um olho e disparou a flecha.

Ela entrou profundamente no peitoral do cavalo baio que, com um relincho de dor, desabou de lado.

Lancelot caiu junto com ele. Rolou sobre a margem, mas não fez nenhum esforço para se proteger nem, em seguida, para se levantar. Ficou ali, estendido de costas no mato e na greda. Não se preocupou com o que os arqueiros iriam fazer em seguida. Braços em cruz, fixou os olhos no céu onde as nuvens cinzentas e densas como uma floresta lúgubre se abriam para dar lugar a uma estreita clareira azul. Um raio de sol iluminou o cavaleiro no chão.

— Finalmente você se tornou sensato? — perguntou uma voz que parecia jorrar do raio de luz.

Lancelot começou a rir baixinho.

— Nunca... Eu me chamo Lancelot e não sou sensato. Jamais serei.

— Mas renuncia ao Graal?

— Renuncio...

— Bem.

— ...renuncio à velhice e à derrota. Vou partir em busca de meu próprio Graal, um vez que o verdadeiro, o divino, me foi proibido.

— Não existe um outro Graal! — rosnou a voz.

Lancelot ficou de pé lentamente.

— Ainda assim — declarou calmamente —, eu tenho o meu.

— Qual?

— Há em algum lugar, bem ao sul destas regiões, passado um outro mar, duas mulheres que deixei à própria sorte, apesar de lhes dever a vida: Vivian, que me educou, e Helena, minha mãe. Há um reino, chamado Bénoïc, de que meu pai, o rei Ban, foi espoliado por um traidor. Está na hora, antes da minha própria morte, de vingar a dele. Está na hora, antes de aceitar que eu esteja velho, de dar um pouco de alegria à velhice de Vivian e de Helena.

Fez-se um grande silêncio no céu. As nuvens não paravam de mudar de aspecto e de forma, como se submetidas à turbulência de um grande vento. Afinal, a voz disse:

— Sua vida, ou os anos que restam dela, lhe pertencem, Lancelot. Tem razão de consagrá-la ao restabelecimento da justiça conspurcada e a levar a felicidade àquelas que lhe fizeram ser o que você foi, o que é e o que será. Aprecio que tenha escolhido este último desafio. Mas devo mais uma vez lhe perguntar e você deve responder sem rodeios: renuncia ao Graal?

Lancelot caiu de joelhos. Bateu com os punhos no chão. Deu um longo grito de raiva e de decepção.

— Sim! — exclamou. — Sim, eu renuncio! Não que eu queira — nada, no fundo de mim, deseja renunciar —, mas eu renuncio ao Graal!

— Renuncia definitivamente ao amor de Guinevere?

—Vocês nunca vão me deixar em paz... Sim... Sim, eu renuncio ao amor de Guinevere... Mas nada, nem mesmo minha traição, poderá tirar de mim este milagre: nós nos amamos mais do que tudo, mais do que a nós mesmos, mais do que a vida!

— Se você não tem remorso, não posso perdoá-lo.

— Por que você me perdoaria? Pois se eu mesmo não me perdôo!

— Lancelot... reconheça seu erro.

— O amor não é um erro. O amor é. E ponto final. Estou velho, talvez, mas ainda não suficientemente covarde para negar as evidências.

O céu se fechou de repente em uma massa de nuvens negras, carregadas de chuva.

Lancelot ficou um momento ali, com os braços levantados, esperando que alguma coisa — uma trovoada, o raio, alguma manifestação brutal da cólera divina — o alcançasse e punisse sua insolência.

Nada aconteceu.

O cavaleiro ficou quase decepcionado. Depois recolheu o escudo, pendurou-o ao pescoço, verificou que uma espada estava encostada em seu quadril, e partiu, a pé, para o sul.

A viagem seria longa e, provavelmente, cheia de emboscadas. Mas duvidava que ainda fosse encontrar invencíveis cavaleiros de essência divina ou diabólica — provavelmente toparia com bandidos famintos dispostos a explorar o humilde viajante. Iriam conhecer algumas surpresas, caso o atacassem...

Ele recuperara as forças morais. Sim, tinha renunciado à Busca do Graal e ao amor de Guinevere. Mas os dois eram impossíveis. Caminhando com passos largos pela charneca escocesa, imaginava-se a centenas de léguas dali, num país onde conhecera uma inigualável infância. Retornar ao Lago, rever Vivian, abraçá-la... E realizar finalmente o que todo filho de rei traído deve ao pai: recuperar o reino de Bénoïc do usurpador...

E Lancelot deixou de se sentir velho. Tinha projetos. E combates a ganhar.

 

                       As lendas morrem

vivia do que encontrava nas proximidades: peixes que ele pescava na ponta do cabo, aves que matava no interior das terras, plantas que colhia e que as freiras que o tinham educado lhe ensinaram a reconhecer.

O verão e seus intermináveis crepúsculos também passaram. O outono começou, e de repente o dia ficou menor: o sol se levantava cada vez mais tarde e se punha cada vez mais cedo. Ficou frio. Sentiam-se o inverno e suas noites chegando. Galahad cortou outras plantas para consolidar sua cabana, na qual os ventos do noroeste batiam cada dia um pouco mais forte.

Uma manhã — uma dessas terríveis manhãs do norte em que tudo é cinza, mar e céu —, ele foi até a margem e encontrou um barco. Que balançava tranqüilamente sobre a onda da maré crescente, flutuando a uma certa distância da praia de rochedos. Sua vela principal tremulava com uma brisa mais clemente e suave do que habitualmente. Um turbilhão do noroeste enfunou a vela: Galahad reconheceu, pintada com alguns traços, a forma de um leão.

— Finalmente!

Correu até o bivaque, recolheu o essencial de sua bagagem (um escudo e uma espada) e foi de novo para a margem. Entrou no mar com um sentimento de alegria: a aventura, finalmente, recomeçava! Subiu a bordo da nau.

Pouco depois, um vento soprou, enchendo a vela pintada com um leão: o barco afastou-se em direção ao largo.

Galahad precipitou-se para a parte de trás. Se tinha o desejo de conhecer o capitão e o piloto, ficou decepcionado. Ninguém segurava o longo remo que servia de leme. O rapaz colocou a mão nele, com a intenção de dirigir ele mesmo a embarcação. Mal o tocou, uma força invisível atirou o grosso cabo de madeira para o lado, e Galahad foi parar no chão.

Prudente, e com o ombro dolorido, Galahad não procurou mais tomar nas mãos o destino da nau. Deixou-se guiar.

 

A navegação, sempre à vista das costas escocesas, prosseguiu durante todo o dia, em um mar surpreendentemente calmo. Galahad visitou o interior do barco, que estava vazio, à exceção de um grande e pesado pano escarlate dobrado com cuidado sobre uma mesa. E, sobre o pano, repousava a haste partida de uma lança. Galahad passou a mão na madeira. Letras de sangue apareceram desenhadas, dizendo:

“Ninguém pode me empunhar, a não ser aquele que me devolverá meu ferro.”

O rapaz, sem hesitar, fechou os dedos sobre a haste partida. As letras sangrentas se apagaram para dar lugar a esta outra mensagem, em letras de ouro:

“Quem me devolver meu ferro devolverá a honra a sua linhagem.”

O enigma não impressionou Galahad. Ele passou o toco de haste pelo cinto e soube que estava seguindo o caminho correto.

 

Enquanto a breve tarde de outono caia, a vela se abateu e a embarcação se dirigiu rapidamente para a margem.

O local, no crepúsculo, assustava: uma floresta de árvores mortas parecia mergulhar até dentro das ondas, de um cinza de prata, que se formavam e quebravam sem cessar. Galahad teve a breve vontade de segurar o leme, mas, prudente, não se mexeu. A nau se imobilizou a poucas braças da margem coberta de mata.

Então saiu de lá um cavaleiro. Que saltou precipitadamente de sua montaria e, sem hesitar, correu na direção do mar, agarrou-se na amurada do barco e, suspendendo-se de costas, saltou a bordo. Caiu de pé, batendo com os calcanhares no convés da nau, mas, de repente, com um breve assovio, uma flecha de ouro irrompeu dentre as árvores e veio se enterrar no seu flanco. Ele caiu, sem um grito.

 

— Quem é você?

A nau, desde que o homem subira a bordo, tinha retomado sua rota marítima. Anoitecera. Galahad acendeu o pavio de uma lâmpada e passeou a claridade trêmula sobre o rosto do desconhecido estendido de costas, com a boca entreaberta, os olhos esgazeados.

— Você não sabe... A morte, a morte... Sempre recomeçada... Você não viu...

— O que eu deveria ter visto? — perguntou Galahad, baixinho.

— Ajude-me... Ajude-me a levantar...

O jovem cavaleiro suspendeu o desconhecido pelas axilas e encostou-o contra o mastro. O homem respirou profundamente, com os olhos fechados. Quando os reabriu, tinha recuperado um pouco de força e de lucidez. Inclinou a nuca para trás, examinando a vela branca com a insígnia do leão.

— Naveguei em um barco destes — disse. — A vela dele era vermelha...

— De onde você vem? Como se chama?

O desconhecido olhou para Galahad com uma estranha curiosidade misturada com amizade. Em vez de responder aquelas perguntas muito precisas, disse:

— Claro... Só podia ser você. Você se parece com ele de tal maneira! É filho dele, não?

— Sim, sou filho dele — respondeu Galahad, que não precisava que o nome de Lancelot fosse pronunciado para compreender.

O desconhecido deu palmadinhas nas pranchas do convés.

— Sente-se. Vou lhe contar uma história.

 

— No dia do solstício de inverno, eu subi em uma nau de velas vermelhas. Foi no inverno passado? Não sei mais. Durante um tempo de que ignoro a duração, perdi o juízo e a memória, vivi num sonho — ou melhor, num pesadelo... Mas retomemos minha aventura desde o começo...

“Foi no tempo em que eu tinha a sua idade. No tempo em que deixei a floresta da minha infância para me tornar cavaleiro. Um tempo em que nada nem ninguém me fazia medo. A ignorância, para mim, tomava o lugar da coragem.

Ela me protegeu, mais tarde me perdeu.

“Meu nascimento fazia de mim, sem que eu me importasse, sem mesmo saber, o Eleito que deveria retomar a Busca que seu pai teve que abandonar. Como seu pai, mas por outras razoes, eu fracassei.

“Mas jamais admiti esse fracasso. Durante anos ele me consumiu como uma pavorosa melancolia. Uma mulher me amava, eu a amava também. Tinha que defender um domínio e um castelo, e os defendi. Tudo isso você sabe, uma vez que seu pai conheceu os mesmos deveres e o mesmo mal interior.

“Uma noite, tive um sonho. Eu me via cavalgando até o extremo norte da Escócia. Embarcava em seguida em uma nau de velas vermelhas. Ela me conduzia para uma ilha. Nessa ilha, um castelo me acolhia, com a ponte levadiça baixada. Nesse castelo, uma grande luz imaculada me cercava e eu via, de repente, diante de mim... Você sabe bem do que estou falando: eu via o Santo Graal. Eu reparava meu erro de juventude e fazia as Duas Perguntas. Depois...”

Perceval se calou um instante. Tomou a mão de Galahad. Em torno deles, o navio perseguia sua corrida dentro da noite. Não se sentia a menor brisa. Contudo, a vela com a cabeça de leão continuava enfunada.

— Eu acordei. O sonho continuava no meu coração com uma surpreendente precisão. Li nele um sinal: o da minha nova eleição. Enfim, eu disse a mim mesmo, vou poder reparar minha falta inicial, meu erro. A Providência está me dando uma segunda chance.

“A aurora ainda não tinha despontado. Eu me vesti, armei, desci as cavalariças e selei meu melhor cavalo de guerra. Meu senescal, Aguingueron, um gigante que me ama com um amor quase feminino, quis me impedir. Não o escutei. Autorizei-o a me seguir.

“Deixamos Beau Repaire e, em duas semanas, atingimos o setentrião da Escócia. Lá, diante da praia, a nau de velas vermelhas me aguardava. Embarquei, sem nenhuma hesitação. Abandonei Aguingueron, meu senescal e minha consciência, sobre a margem.

“Não vou lhe contar os detalhes da minha travessia. Digamos apenas que foi muito menos pacífica do que a nossa. Desde as primeiras braças em direção ao largo, vagalhões mais altos do que uma espinha de dragão sacudiram, balançaram, varreram a nau a tal ponto que acreditei cem vezes que ia me afogar. Mesmo em pleno dia estava escuro como a noite. Ainda assim, as ondas, que logo se tornaram altas como colinas, eram cor de ouro. E, quando quebravam contra a nau, pareciam imensas aves noturnas, de asas abertas... Ignoro quanto tempo se passou até o momento em que me vi encalhado na areia negra de uma praia minúscula, encravada entre duas falésias.

“O navio tinha desaparecido. Pensei que ele tivesse afundado. Todos os meus membros doíam, todos os ossos também. Eu me levantei. Caminhei.

“Logo encontrei um caminho escarpado que ia dar no alto de uma falésia. Estava esgotado, mas alguma coisa me obrigava a avançar, avançar, avançar sempre...”

Perceval passou a mão na testa. Estava suando. Galahad o fez beber alguns goles de água.

— Obrigado... Onde eu estava?... Ah, sim... Quanto tempo caminhei entre os rochedos negros? Não sei. Finalmente, cheguei às proximidades de um castelo.

“Reconheci-o na mesma hora, pela grande torre de pedra cinzenta ladeada por duas torres menores. Era Corbenic, o castelo do rei Pellès, do Rei Pescador. O castelo do Graal.

“Não fiquei surpreso que se erguesse ali, naquela ilha ao largo do setentrião das terras conhecidas. Seu pai, jovem, encontrou Corbenic na fronteira de Logres. Quando eu tinha a sua idade, também o descobri perto de Logres — mas numa outra fronteira. Corbenic é um domínio ao mesmo tempo maldito e sagrado: fica onde aquele que o procura e o merece o faz reviver.

“Como você pode imaginar, entrei no castelo. Meu coração palpitava. Esquecera as dores do meu corpo, esquecera os dez anos passados no arrependimento, no remorso pelo meu fracasso. Sim, eu iria finalmente dar ao mundo o Graal. Faria as Duas Perguntas. Eram tão simples...

“Como na minha primeira visita, dez anos antes, encontrei o rei Pellès estendido no seu grande leito no centro da sala. Deitado de lado, ele fez um sinal para que eu me aproximasse. Ele sorria. Ele me estendia a mão. Eu disse a mim mesmo: ele esta me acolhendo, ele perdoou meu primeiro mau passo, ele me escolheu.”

Perceval agarrou o braço de Galahad, curvou-se para ele e sussurrou:

— Eu sou um idiota, eu sou um estúpido, eu sou um asno. Pellès não escolhe, eu teria sabido se eu fosse o Eleito. Pellès, há séculos, espera. Só isso.

“Mas, sempre cheio de orgulho por ter obtido uma nova oportunidade, não vi nada, não compreendi nada. Não consegui enxergar que aquele rei inválido estirado no seu colchão era uma ilusão do meu espírito, não compreendi que havia caído numa armadilha.

“Irresistivelmente atraído por aquela mão que ele me estendia, fui até ele. Embora tivesse a impressão de que ele se embaçava, como uma imagem, como uma miragem...”

 

Uma brisa suave e perfumada percorreu o convés, da proa a popa, sem que a vela parasse de se enfunar, sem que a nau deixasse de mergulhar na noite. Perceval pediu mais um pouco de água. Galahad a derramou nos seus lábios rachados.

— Assim que ele fechou a mão sobre a minha, compreendi que tinha sido ludibriado. Enganado. Engabelado. Tarde demais... A ilusão dissipara-se. Aquele cuja mão eu segurava — ou que retinha a minha — não se parecia mais em nada com Pellès. Era jovem, pálido, desdenhoso, inteiramente coberto por uma armadura cor de ouro: Mordred.

“— Você está morto! — eu lhe gritei.

“— Talvez, ele replicou. Mas você, por que ainda está vivo? Este mundo ainda não o cansou?

“Eu queria livrar minha mão do domínio dele. Em vão. Ele era forte demais.

“— O que você veio procurar aqui? — perguntou. — Uma segunda oportunidade? Isso não existe.

“— Então por que você está aqui, se está morto? Não é a sua segunda chance?

“Ele começou a rir.

“— Você não muda nada, Perceval! Tão forte, tão cheio de capacidades — e tão idiota...

“Ele apertou mais os dedos: acreditei que ia me triturar as falanges. Impossível escapar do seu domínio.

“— Sabe o que nos diferencia, Perceval? É que você obedece ao seu destino e ao seu deus. Já eu tomei o partido do Diabo, e nós negociamos longamente, avidamente, uma aliança bem compreendida de nossos interesses mútuos... Você é um santo, ou quase, Perceval. E eu sou um maligno, um maligno associado ao Maligno. Até mesmo minha morte eu soube negociar!

“Ele apertava cada vez mais os dedos nos meus. Um frio glacial tomava conta do meu braço, do meu ombro, do meu peito.

“— Venha comigo, Perceval... Junte-se a mim. Junte-se a nós. Deixe de ser o único a lutar contra a terrível e malvada realidade do mundo... Venha... Venha para o reino dos mortos...

“— Eu sentia tanto frio que acreditei que meu coração ia parar de bater. Então, não sei por quê, gritei:

“— A vida!

“Mordred teve um sobressalto de horror, e afrouxou o aperto da minha mão. Contudo, não o suficiente para que eu libertasse meus dedos.

“— A vida? — rosnou, atraindo-me para o seu rosto, e seu bafo fedia a enxofre. — A vida é um erro que corrige a morte. Olhe para mim, Perceval, você que me perseguiu durante semanas com a intenção de me matar: tenho mais poderes do que nunca!

“— Os poderes do Diabo!

“— Só o Diabo é real! — gritou ele. Olhe...”

Perceval suspirou, fechou os olhos e descansou a nuca contra o apoio do mastro.

— Teria sido melhor que eu tivesse me calado... Ele colocou minha mão, que segurava com toda a força, sobre a própria testa. Então, um bilhão de imagens se precipitaram dentro da minha cabeça.

“Elas se chocavam a toda a velocidade. Todas se pareciam: pelo sangue. Sangue, sangue, sangue por toda parte, sempre... Minha palma encostada na testa de Mordred captava todos os crimes, todos os assassinatos, todos os massacres, todas as guerras passadas, presentes e por acontecer... E todos aqueles crimes, todos aqueles assassinatos, todos aqueles massacres, todas aquelas guerras se pareciam pela razão mais simples do mundo: um assassinato se parece sempre com um assassinato, um massacre, com um massacre, uma guerra, com outra. E só sangue, dor e luto. O Graal, jovem, não mudará nada.”

Perceval respirava com dificuldade. Galahad umedeceu-lhe a testa, as faces, o pescoço.

— E em seguida, cavaleiro...?

— Em seguida? Eu não tinha mais coragem nem inconsciência para suportar o que a memória demoníaca de Mordred me mostrou. Vi milhões de homens correndo na lama ceifados pelo fogo e pela explosão de armas que outros homens inventaram. Vi mulheres, crianças e velhos humilhados, nus, empilhados em salas e assassinados por sua própria respiração envenenada. Vi cidades inteiras arrasadas por imensos incêndios jogados do alto do céu. Vi irmãos matando os próprios irmãos, filhos denunciando os pais, mães queimando vivas suas filhas, amigos assassinando amigos. Vi armas cujo poder de destruição você não poderia imaginar. Vi tantos horrores que não tenho palavras para lhe contar...

— Não é possível... Mordred o enganou, cavaleiro. Não é a verdade. Isso não pode ser o futuro!

— Você não é obrigado a acreditar em mim... Aliás, se acredita em mim ou não, não vai fazer diferença...

De repente, Perceval começou a tossir, como se alguma coisa o sufocasse. Deslizou molemente para o lado. Galahad inclinou-se sobre ele.

— Levante-se, cavaleiro! Você não tem o direito de... de me abandonar assim...

Num fio de voz, Perceval murmurou:

— Encontre o Graal... Eu sei que você vai encontrá-lo... Mas...

Segurou Galahad pelo ombro. Com uma força inesperada, obrigou-o a enfrentá-lo cara a cara, seus rostos a poucos centímetros um do outro.

— ...Mas... Mordred me contou uma última coisa, naquele dia, antes que eu perdesse os sentidos...

Perceval afrouxou de repente a mão que segurava o ombro de Galahad. Seus olhos se reviraram.

— O que foi que ele lhe contou? — perguntou o jovem cavaleiro, tentando segurar o corpo de Perceval, que escorregava para trás, sem força.

— Escute bem...

Galahad curvou-se sobre ele, encostando o ouvido na sua boca. Perceval sorriu e disse:

— As lendas não morrem, se alguém as realiza...

Foram, com um último suspiro, suas últimas palavras. Um ciclo se encerrava. Partido da floresta das infâncias e da ignorância de si mesmo, feito cavaleiro para trazer o Último Conhecimento ao mundo, tendo perseguido sua Busca vã pondo em risco sua própria razão, Perceval morria sobre o mar primordial, de onde vem toda a vida, e para onde ela deve retornar.

Galahad desceu para o interior da nau. Apanhou o pano vermelho dobrado sobre a mesa. Subiu de novo ao convés e enrolou com cuidado o corpo de Perceval. Carregou-o nos braços. Colocou-o por um momento sobre a amurada e olhou a onda, cinza-prateada, que acalentava suavemente o casco. A aurora surgia.

— Que o mar o conduza a Avalon, a última estada de seu povo!

E empurrou o corpo por cima da borda.

Galahad seguiu-o muito tempo com os olhos. Coberto de vermelho, ele flutuava, indeciso. Até que uma corrente, como que destinada somente a ele, de repente o segurasse e o levasse para o horizonte.

 

                   A lança e o escudo

A ilha se formou por dentro do nevoeiro. Era alta e lúgubre. A nau não mudou de direção. Seguiu direto para a margem. Suas velas, perdendo o apoio do vento, caíam, inertes, contra o mastro. O navio diminuiu pouco a pouco a velocidade e, sem um barulho, a proa tocou a areia de uma praia. A nau se imobilizou, ligeiramente inclinada para o lado direito.

Galahad prendeu no pescoço o escudo branco com a cruz vermelha, verificou se prendera bem no cinto a espada e a empunhadura quebrada da lança misteriosa e saltou em terra. A noite caía.

Descobriu sem dificuldade um atalho que escalava o flanco da falésia escura. Foi por ele, com um passo rápido. Não tinha comido nada durante o dia inteiro. Mas não chegava a se dar conta disso. Sentia em si uma força que nada tinha em comum com qualquer outra que conhecera. Isso se chama exaltação. Tinha a intuição alegre de estar chegando ao objetivo sagrado para o qual nascera e fora educado.

No cume da falésia, a paisagem não oferecia nenhuma surpresa. Uma charneca plana, cinzenta, cujo mato parecia nunca ter florido, se estendia a perder de vista. Como um deserto. Galahad voltou a caminhar. As urzes mortas estalavam sob seus passos. Uma poeira fina se elevava, levada por um discreto noroeste.

Logo em seguida, a noite se instalou completamente. Por felicidade, no céu limpo a lua e as constelações difundiam luz suficiente para que o jovem cavaleiro não se sentisse perdido nas trevas. Depois de uma hora de caminhada, ele distinguiu, a sua direita, a silhueta de uma enorme torre quadrada ladeada por duas torres menores.

— Corbenic!

Teve que se conter para não correr.

 

Depois de atravessar a passarela por cima do fosso, entrou num pátio cujo calcamento estava coberto de cinzas. Esperava que varletes viessem acolhê-lo e aquecer seu ombro com o manto de boas-vindas. Mas ninguém apareceu. Experimentou, pela primeira vez, um começo de inquietação. Levantou a cabeça: nenhuma luz transparecia nas janelas e nas seteiras do torreão quadrado. Expulsando suas dúvidas, atravessou o pátio. Encontrou uma porta principal com os batentes escancarados.

No interior, a sala era maior, mais alta e larga do que a torre parecia poder conter, mesmo sendo esta muito grande, alta e larga. Foi acometido por uma angustiante impressão de déjà-vu. Como se já tivesse estado naquele castelo, naquela sala, uma outra vez, e não conseguisse se lembrar. Em uma lareira gigantesca, cujo interior era sustentado por quatro colunas, quatro cabritos monteses estavam sendo assados simultaneamente. O cozimento da carne desprendia um cheiro que reavivou em Galahad a sensação de fome. Mas o momento não era para ágapes. O que o trouxera ali, do sul ao norte dos antigos reinos celtas, depois sobre o mar setentrional, era aquele homem repousando em um grande leito quadrado que ocupava o centro exato da sala. Um velho de barba grisalha, embrulhado numa capa de arminho, e que, erguendo-se penosamente sobre um cotovelo, lhe fez sinal para se aproximar.

— Até que enfim você chegou...

Galahad avançou pela imensidão deserta da sala. Cada passo seu ressoava em múltiplos ecos. Chegando ao pé do leito, inclinou-se em sinal de respeito.

— Venha! Venha para perto de mim — disse o ancião. — Venha aqui e fique à vontade.

Bateu com a mão na beira do leito, perto dele. Galahad obedeceu. Sentou-se. O velho homem lhe confiscou a mão: uma refém entre as suas. Que estavam geladas. Como as mãos de um cadáver. Galahad fez um grande esforço para não recusar aquele contato.

— Então, é você... Você que eu espero desde... Oh! Eu não conto mais os anos — nem os séculos...

Largou a mão do jovem e, com um gesto teatral, afastou a aba de seu manto de arminho, descobrindo suas pernas. Pernas mortas, atrofiadas. Como pernas de criança enxertadas no corpo de um ancião que se percebia ter sido de estatura poderosa — há muito tempo.

— Preciso lhe explicar por que perdi o uso de minhas pernas?

— Não. Nem tem que me dizer seu nome. O senhor é Pellès, o rei inválido, o Rei Pescador.

— Bem! Bem! — aprovou o ancião, encantado.

— E eu sou aquele que obterá o Graal.

Pellès riu, nervosamente.

— Ah, meu menino, você não sabe como rezei para finalmente encontrar um jovem cavaleiro como você!

Galahad replicou friamente:

— O senhor se esquece de que sei tudo a seu respeito. Deveria sentir vergonha de se queixar de seu estado, já que esta assim só por causa de seu perjúrio.

O sorriso se apagou do rosto devastado de Pellès.

— Você é bem insolente...

Tornou a segurar a mão de Galahad, prendendo-a entre seus dedos deformados, tortos, cor de chumbo, como os de uma múmia.

— Você sabe, não é tudo assim tão simples... Se eu não tivesse tentado roubar o Graal, você não existiria, Galahad... Sua existência não teria nenhum sentido... Reflita sobre isso. Sem a traição de Judas, Cristo não teria sido morto na cruz e os homens não teriam o direito a salvação de seus erros... Sem minha traição, Arthur e todos os seus cavaleiros e você — você também, você sobretudo — seriam apenas homens de guerra, de violações e rapinas. Homens de poder. O poder do mais forte...

Ele apertou mais os dedos.

— Olhe para mim...

No seu rosto, quatro séculos de maldição tinham marcado profundamente seus traços: o tom da pele de Pellès era o de um cadáver de carnes ressecadas, de olhos líquidos e glaucos como lodo marinho.

— Eu sou a pavorosa realidade do mundo, Galahad. Você é a sua ilusão, eternamente jovem, mas vã. Você está por cima. Aproveite enquanto ainda pode...

Repugnado, Galahad levantou-se de um salto e soltou a mão. Ele disse, quase sem conseguir respirar:

— Acabemos com isso. Vou fazer as Duas Perguntas. Eu vim para isso!

Pellès o examinou por um momento, sorrindo.

— Não... Não, não é assim que funciona... As Duas Perguntas... seria muito fácil para você: foi educado para saber quais eram. Onde estaria o desafio? Pois você procura desafios, não é?...

— Acabemos com isso, estou lhe dizendo!

— Um pouco de calma, meu rapaz. Você está aqui para me livrar da maldição.

— E o Graal?

— Ah, sim... O Graal... Muito bem, você o obterá como um bônus, como um presente.

— Por quê? Por que esse favor?

— Não é um favor, é o seu destino, Galahad. Uma mulher o concebeu para me libertar. E você nasceu para consumar sua obra.

— Não é verdade! Estou aqui por causa do Graal!

Pellès apontou com um dedo deformado para uma porta da imensa sala.

— Ei-la, a mulher. Saúde-a.

A porta se abriu. Uma Dama coberta com véus brancos se apresentou.

— É a minha filha — acrescentou Pellès. — É Ellan. É sua mãe.

 

A Dama coberta com véus brancos... Foi com essas palavras que Galahad, durante toda a sua infância no convento, designara a mulher que aparecia uma vez por ano, no Pentecostes, e, depois de conversar com a madre superiora, passeava na sua companhia pelo claustro. Ela tinha uma voz doce. Fazia-lhe sempre as mesmas perguntas: O que ele aprendera de novo? Ganhava de seus mestres na espada? Dominava seus cavalos? Compreendia que ia se tornar o melhor cavaleiro do mundo?

Ele sentia uma ternura estranha por aquela Dama da qual nunca via o rosto. Tinha vontade, às vezes, de se aconchegar contra ela. No recinto do convento, a madre superiora e suas freiras cuidavam bem dele, mas jamais, jamais ele tivera direito a um gesto meigo, um carinho, uma palavra de amor. Ele respondia com aplicação a todas aquelas perguntas, da mesma forma como se esforçava, o ano inteiro, entre duas festas de Pentecostes, duas de suas visitas, para vencer todas as provas que as freiras lhe impunham. Na esperança, sempre decepcionada, de que tanta aplicação, tanta excelência, tanta vontade de fazer bem-feito fossem recompensadas pelo mais simples dos gestos: os dedos finos, translúcidos, da Dama branca lhe roçando o rosto, ou percorrendo delicadamente seus cabelos. Ou, por milagre, que ela o convidasse a se aconchegar contra si, e que o apertasse nos braços, apertasse, apertasse...

Esse sonho jamais se realizou. Com uma voz controlada, um pouco seca, a Dama branca lhe dava parabéns pelos progressos, depois o incitava a fazer mais esforços ainda.

— Contamos com você — ela lhe dizia invariavelmente, antes de se separarem.

Ele desejava que ela lhe dissesse: “Conto com você.” Ou, mais simplesmente: “Gosto de você.” Ela não parecia conhecer, ou querer pronunciar, essas palavras mágicas.

 

E o coração de Galahad pulou no peito quando ouviu aquelas outras palavras, caídas da boca feia, dos lábios negros e retorcidos de Pellès: “É a sua mãe.”

O rapaz avançou alegremente para a Dama branca.

— Eu queria tanto revê-la... Nunca tive dúvidas de que a senhora...

Ela levantou bruscamente a mão, com a palma aberta, na sua direção.

— Pare! Não se aproxime mais!

Ele se imobilizou imediatamente. Não compreendia.

— Estou tão feliz de...

— Por favor — ela o interrompeu —, controle-se. Eu não o mandei educar para você se conduzir assim. Está feliz? Melhor para você. E esqueça imediatamente esse sentimento imbecil.

— Mãe...

— Não me chame assim! Sou sua mãe pelo ventre e pela linhagem. Nada mais.

— É isto, então, ser mãe... Não é?

— Cale-se!

Ela avançou em direção a ele. Estendeu a mão. Ele acreditou que ela o estava convidando a segura-la. Ela empurrou a mão dele para o lado. Foi direto ao cinto e a empunhadura quebrada, brandindo-a sob o nariz dele.

— Eis por que você está aqui. Para reparar os estragos de tempos antigos. Para prestar homenagem a sua linhagem.

Colocou a empunhadura quebrada nos dedos dele, com força.

— Volte para junto do rei. Para junto do seu avô.

Galahad baixou a cabeça. Nunca tivera a experiência da tristeza. Nem do sofrimento. Descobriu que era como um golpe de espada na barriga, lhe tirando todas as forças. E a vontade de viver. Sua educação de Eleito o havia preparado para todas as provas, menos para essa.

— Mãe — repetiu, mesmo compreendendo que essa palavra estava definitivamente proibida para ele.

— Obedeça-me — ela replicou. — Não temos tempo a perder. O Diabo e Mordred seguem suas pegadas.

Ele voltou para junto do leito onde Pellès estava estendido. Aquele velho lhe era insuportável, com sua pele escurecida pelos séculos e as conseqüências de seu perjúrio. Deixou que ele lhe tomasse a mão que segurava a empunhadura partida.

— Não fique tão melancólico, jovem... Você veio buscar o Graal? Você o terá. Basta me fazer um último serviço. Concorda?

Com os olhos fechados, Galahad aquiesceu com um movimento de cabeça.

— Bem... Então se aproxime... Venha... Não tenha medo... Não tem nada a temer. Tudo a ganhar...

Galahad reabriu os olhos. Pellès dirigiu a extremidade quebrada da madeira da empunhadura contra seu quadril invalido.

— Sim... Sim — sussurrava o velho rei. — Eu sinto... Eu sinto chegar a libertação...

De repente apareceu, atravessando o quadril de Pellès, de um lado a madeira quebrada, do outro o ferro ensangüentado de uma lança. Com um clarão, os dois pedaços da empunhadura se colaram. Pellès soltou um grito assustador. Sua pele mudou de cor, tornando-se em alguns instantes branco-rosada e flexível. Sua barba grisalha voltou para dentro das faces, revelando um rosto jovem e firme. A cabeleira se tornou mais densa, e castanha.

— Por Cristo, eu me arrependo de minha traição! — berrou.

Empunhou a lança, agora já inteira, que lhe transpassava o quadril e, com um ululo de animal ferido, arrancou-a.

No ponto onde o sangue deveria jorrar, Galahad viu uma chaga cujas bordas rosadas se fechavam, se suturavam, desapareciam. Assustado, recuou.

Pellès enfiou violentamente a lança no centro de seu leito. Ele tinha recuperado a juventude, a força — e suas pernas. Saltou sobre os pés e clamou, com os braços afastados para o céu:

— Livre!

Então, num terrível silêncio, as paredes da sala desabaram. Por cima do leito quadrado, onde Pellès rejuvenescido gritava sem parar: “Livre! Livre! Livre!”, só havia agora o céu noturno constelado de estrelas. Estrelas que, de repente, se agitaram, voltearam em desordem contra o tecido negro da noite, depois se juntaram em uma única bola de luz fria.

— Livre!

Não se via mais uma nuvem. Mas um trovão rugiu. Um raio, de uma brancura ofuscante, rasgou o céu.

— Livre! LIVRE!

Na segunda trovoada, o raio atingiu Pellès em cheio. Ele desapareceu como se nunca tivesse existido.

 

                   A ilha

— Siga-me!

A Dama branca, Ellan, arrastou Galahad atrás de si. O castelo de Corbenic tinha se evaporado como um sonho ao despertar. E a charneca, o mato morto que Galahad pisoteara, crescia a olhos vistos, florescia, lançava em toda a volta seu perfume. Depois foram árvores, árvores inteiras, que jorraram da terra, elevando seus troncos, estendendo seus galhos, exibindo suas folhas como se fossem palmas abertas para o céu.

— Vá! Vá! Mais depressa!

Galahad tropeçou em um pé de urze. Recuperou o equilíbrio e bateu com a testa em um carvalho que, num instante, crescera bem diante dele. Não compreendia mais nada do que lhe estava acontecendo. Atordoado, procurou com os olhos Ellan, que corria na frente dele, sem jamais se deixar prender por aquela vegetação que ressuscitava em profusão e em excesso, após séculos de maldições e de deserto.

Bem depressa chegaram a um atalho, cuja inclinação levou-os a uma praia de areia negra. Lá, Galahad viu um navio que as ondas faziam jogar tranqüilamente.

— Suba a bordo! — disse-lhe Ellan. — E vá embora!

— Venha comigo.

Ela sacudiu a cabeça.

— Você não entende nada, Galahad. Você é uma criança.

— Sim. A sua criança. O seu filho.

Com um gesto de ternura, aproximou suas mãos dos ombros de Ellan. Com as palmas das mãos, ela o repeliu. Ele esperava tão pouco aquele gesto que tropeçou para trás, e quase caiu. Ela falou com raiva, com os dentes cerrados:

— Escute-me, Galahad: eu amei seu pai, ele não me amou. Você é o filho da mentira, do despeito e do ciúme.

Como a criança enganada que era, Galahad gemeu:

— É impossível... Você é a filha do Rei Pescador... Meu pai era o maior cavaleiro do mundo... Eu sou filho de vocês, filho de vocês, de todos dois. Vocês tem que ter se amado!

Pela primeira — e última — vez, Ellan acariciou a face de Galahad.

— Responda a minha pergunta: quando ele encontrou você, Lancelot, seu pai, ele o reconheceu?

— ...Não...

— Está vendo?

Ela percorreu a praia, parou no limite das ondas que, num último sopro de espuma, lambiam a areia negra. Voltou-se: Galahad a seguia de má vontade.

— Vamos! Seu destino o aguarda! É a única coisa que conta.

O jovem chegou até onde ela estava. A última onda morria a seus pés. Ellan disse:

— Há quanto tempo você carrega esse escudo?

Galahad baixou os olhos para o escudo que transportava suspenso ao pescoço.

— Desde que o tomei do monastério que o mantinha guardado.

— Ah?... Tem certeza de que e sempre o mesmo?

— Evidentemente!

— De uma olhada...

Ele encolheu os ombros. Despendurou o escudo. Colocou-o diante de si. E teve que reconhecer:

— A cruz... A cruz vermelha desapareceu...

Com efeito, o escudo estava imaculado. Branco como a alma ou a asa de um anjo.

— Por quê? — perguntou a Ellan.

— Você bem sabe. Viu morrer seu avô... A cruz vermelha desse escudo tinha sido traçada com o sangue de sua ferida nos quadris. Você reuniu as duas partes da lança, salvou a alma de meu pai. O escudo voltou a ser como era quando José o ofereceu a ele...

— E agora?

— Agora? Seja você mesmo: um cavaleiro errante, invencível e solitário. Você irá até o fim?

— Como assim?

Ela lhe apontou o horizonte marinho que um sol tímido clareava.

— Você é o único a sabê-lo. E foi por isso que eu o pus no mundo.

— Por que se recusa a ser minha mãe?

Lentamente, ela recuava dentro do nevoeiro que se adensava sobre a ilha. Ela ia se apagando. Murmurou:

— Você não precisa de mim...

Logo, ele não a distinguia mais. Ela desapareceu como uma sombra.

 

Galahad subiu a bordo daquela nova nau. As velas eram vermelhas. A figura de proa, possivelmente esculpida pelo melhor dos artesãos, reproduzia a cabeça de um leão rugindo, caninos prontos para o ataque, lábios arreganhados, bigodes nervosos, focinho franzido de furor, orelhas recolhidas, rentes ao crânio.

Durante um dia inteiro, a nau com a proa de leão traçou sua rota em um mar calmo. Quando a noite caiu. Galahad levantou os olhos para as estrelas — conhecia o nome e o lugar de todas as constelações. E compreendeu que a nau se dirigia para o norte.

 

Na terceira manhã da travessia, quando Galahad já se desesperava por não chegar a lugar nenhum, o sol nascente descortinou-lhe um espetáculo extraordinário. Uma grande muralha translúcida barrava todo o horizonte.

A aurora refletia-se nela com longas chamas cor de laranja e escarlate. Parecia um gigantesco espelho de cristal erguido acima de ondas cor de mercúrio.

Fazia um frio terrível. Galahad cobrira-se com dois casacos, mas ainda tiritava.

A nau, com todas as velas enfunadas, navegava diretamente para a muralha que, quanto mais se aproximava, mais alta parecia.

De repente, estalou um trovão. Contudo, o céu não carregava nenhuma nuvem. Era como uma tempestade invisível, sem nuvens e sem raios. Depois de um instante de descanso, o trovão recomeçou a ribombar, com um estrondo de tremor de terra. Sob os olhos perplexos de Galahad, um espectro surgiu das ondas, o espectro gigantesco de um cavaleiro em armadura de ouro cavalgando um cavalo de batalha cor de espuma.

Ele reconheceu naquele ser monstruoso o cavaleiro de seu sonho, o que ele havia libertado de sua própria tumba. Mordred. Compreendeu que o Inimigo o havia investido de um poder desmedido. Compreendeu que era aquela a derradeira e mais terrível prova que teria de enfrentar.

Com um salto, o colossal cavalo de espuma propulsou seu cavaleiro nos ares. Mordred brandiu uma espada flamejante e, com um urro que parecia conter todo o ódio do mundo, abateu-a sobre a muralha de gelo. Ela se partiu de alto a baixo, como um espelho. Fendida, rasgou-se com um estrondo de desabamento que se confundia com o longo e atroz rugido do fantasma dos Infernos.

Galahad sentiu que uma chuva lhe chicoteava o rosto. Enxugou os olhos com um lado da manga e olhou acima da muralha de gelo cada vez mais alta, cada vez mais próxima. Sob um outro golpe de Mordred, ela se rachou em um segundo lugar, de onde jorraram milhões de minúsculas gotas geladas.

O cavaleiro soube desde logo o que ia se passar. Não imaginava poder sair daquilo vivo. Precipitou-se para o fundo da nau. Agarrou a barra do leme.

O milagre se consumou: ela lhe obedeceu. Deixou-se guiar. Agarrando-se a ela com todo o seu peso, obrigou a nau a mudar de direção. As velas vermelhas se desviaram do vento, estalaram no vazio; o navio traçou no mar uma longa curva. Então o vento retomou a posse das velas, inflou-as, enfunou-as. A nau deslizou para o sul, fugindo da muralha de gelo.

Tarde demais.

Quando a segunda rachadura alcançou a primeira, no cume, tudo rachou, em um estrondo ensurdecedor. E, enquanto o monstro de espuma mergulhava novamente nas vagas, arrastando seu cavaleiro de armadura de ouro, foi uma montanha, uma montanha de gelo, que se soltou, vacilou e de repente desabou, interminavelmente, dentro do mar.

No momento em que ela se chocou contra a superfície com todo o seu enorme volume, Galahad agarrou-se com as duas mãos na barra do leme, pronto para receber o choque.

Com efeito, um vagalhão gigantesco, da altura de uma colina, porém rápido como a corrida de uma lebre, se elevou e rolou em perseguição a nau. Nenhum vento, nenhuma manobra de marinheiro teria conseguido salva-la. A massa de água espumosa a alcançou como um raio, tomou-a, submergiu-a, virou-a e revirou-a como um brinquedo na mão de um gigante, e, para terminar, atirou-a, quebrada, triturada, no sulco de água que se formara.

Quase afogado, Galahad ainda encontrou forças para se agarrar a um pedaço de mastro boiando não longe dele. O mar estava gelado. Transido, achou que ia morrer, depois perdeu a consciência.

 

Branca, a luz.

Tão branca que transpassava suas pálpebras.

Galahad abriu os olhos, mas precisou fechá-los de novo imediatamente, ofuscado. Recuperou pouco a pouco a consciência de seu corpo e de si mesmo. Estava estendido de costas. Encostou as mãos no chão, de um lado e de outro dos quadris. A superfície que tocava era dura, e inacreditavelmente lisa. Apoiando-se nela, ergueu-se. Constatou com espanto que não estava sofrendo. Que suas roupas estavam secas. Com precaução, reabriu os olhos, protegendo-os com a mão como viseira.

De início, não viu nada alem de uma intensa ofuscação. Piscou os olhos uma porção de vezes, bem depressa, até que as pupilas se acostumaram. Pode finalmente olhar a volta dele.

A margem dava a impressão de estar uniformemente coberta de gelo. Ela se elevava em uma colina suave e regular, sem a menor aspereza. Galahad tateou mais uma vez o solo: tépido como uma pedra aquecida pelo sol. Uma pedra translúcida e branca. Diamante? Perturbado, pôs-se de pé. A alguns passos, o mar cor de mercúrio batia suavemente, quase estático. O horizonte estava vazio, o céu de um azul muito pálido, o sol lívido.

Nenhum sinal do espectro de Mordred, nenhum destroço da nau.

Depois de uma última olhada nas vizinhanças desertas, Galahad resolveu caminhar. Subiu ao longo da encosta, em direção ao desconhecido.

Muito depressa, atingiu o cume. A ilha (mas era uma?) estendia-se a perder de vista, cintilando sob um sol, contudo, bem pálido. Barrando o horizonte, erguia-se uma pequena capela branca, de proporções bem pequenas. Galahad foi para lá. Quando chegou mais próximo, distinguiu sua entrada, uma abertura sem porta sob um arco quebrado. Parou por um instante. Uma claridade rósea palpitava como um coro no interior da capela.

Depois de um último momento de hesitação, Galahad deu os últimos passos que o separavam dela. Entrou.

As paredes eram nuas. Ao fundo, um vitral de rubis difundia uma luz repousante. Sobre um altar de madeira se encontrava um objeto coberto por um tecido escarlate.

Galahad se sentiu cheio de uma grande alegria serena, pois soube que chegava ao termo de sua Busca. Inclinou a cabeça, pôs um joelho no chão e persignou-se. Depois se aproximou do altar. Suas mãos tremiam. Ele as estendeu na direção do Objeto oculto sob o pano vermelho.

Então, uma voz ressoou atrás dele:

— Galahad, você conseguiu o direito de se sentar finalmente no seu lugar, entre nós!

Quando ele se virou, o que viu não o surpreendeu. Agora, mais nada conseguia assombrar seu coração. Em vez da capela, elevavam-se as paredes de uma vasta sala redonda. E, no centro daquela sala redonda, uma mesa quase tão grande quanto, e redonda, claro.

Eles eram... quantos? Cem, quinhentos, mil? Uma multidão de cavaleiros em armas estava de pé em volta da Távola Redonda. Como se os tivesse conhecido desde sempre, Galahad podia dizer o nome de cada um: Erec, Yvain, Ké o senescal, Calogrenant, Aiglin des Vaux, Agloval, Béduier o condestável, Carmaduc, Bliobéris, Mé-lior de l’Épine. E Garvain, o paradigma de cavalaria. E Perceval, Perceval, que tinha morrido nos seus braços e lhe sorria. E dezenas, dezenas de outros, que tinham se tornado ilustres durante quatro séculos nos combates de Logres.

Na primeira fila, ele reconheceu o rei Arthur e quis se prosternar diante dele. Um outro homem, de alta estatura, vestido simplesmente com um burel grosseiro, interpôs-se e, segurando-o pelos ombros, forçou-o a permanecer de pé.

— Se alguém aqui deve se ajoelhar, é cada um de nós. Para lhe agradecer por ter se juntado a nós e por nos trazer a Esperança.

— Quem é o senhor? É o único que não consigo reconhecer.

O homem lhe segurou a mão e, fixando-o diretamente nos olhos, apresentou-se:

— Meu nome é José de Arimatéia. Você é o último homem da minha linhagem. Aquele que devia completar a minha obra.

— José... — balbuciou Galahad. — Eu sou... eu sou seu descendente?

— Sim. Por Lancelot, que é o seu pai, e que é o filho de um filho de um filho de um filho de meu próprio filho. Por Ellan, sua mãe, você é também da linhagem de Pellès, o traidor, o novo Judas. Graças a você, todas as maldições de Logres foram absolvidas.

José conduziu amavelmente Galahad até o altar.

— Agora — disse —, chegou a sua hora de completar o que deve ser feito.

Apontou-lhe o Objeto que repousava sobre o altar, coberto com o pano vermelho.

— Nós o estamos escutando. Faça a primeira das Duas Perguntas.

Galahad, nervoso, fechou os olhos. Sabia, por intermédio da educação que lhe haviam dado as freiras, que o grande mistério das Duas Perguntas residia em sua simplicidade extrema. Reabriu os olhos, respirou e perguntou:

Que Objeto é esse?

— É o Graal, cavaleiro — respondeu José. — O prato sagrado onde o Messias fez sua primeira refeição e onde eu recolhi Seu sangue sobre a cruz.

Depois disso, José o pegou pelo braço e o fez voltar para a sala onde os mil cavaleiros esperavam, com a respiração suspensa. Um deles saiu das fileiras. Adiantou-se. Era Perceval. Tinha nas mãos a Lança que sangra. De seu ferro, gota a gota, um sangue vermelho brotava, inexoravelmente.

— Agora, faça a segunda das Duas Perguntas.

Galahad pronunciou com lentidão:

De quem é o sangue?

— De Nosso Senhor sobre a cruz quando Longino, o romano, feriu-lhe a costela.

Na mesma hora o ferro da lança parou de sangrar. Perceval, com um grito de alegria, quebrou-a sobre seu joelho e jogou fora os dois pedaços. Mal tocaram o chão, desfizeram-se e transformaram-se em poeira.

— A Vontade de Deus foi consumada! — exclamou José.

A assembléia dos cavaleiros da Távola Redonda aplaudiu.

— Resta o último ritual! — disse José.

Sem que houvesse necessidade de lhe explicar, Galahad voltou para o altar. Segurou uma ponta do tecido vermelho e, com um gesto, descobriu o Prato Sagrado. O Graal. Exalaram-se perfumes inigualáveis, perfumes de flores e de frutas, perfumes de primavera e de verão, odores de outono, aromas de caça e de vinho, fragrâncias de madeira, fragrâncias de inverno ao abrigo, tranqüilizadoras e calorosas, e tudo aquilo formava no ar imagens alegres, serenas e saborosas, as imagens de uma vida no paraíso terrestre. Todos os cavaleiros reconheceram nelas os momentos de felicidade de suas próprias existências, e encontraram uma plenitude como nunca tinham experimentado.

Depois, a capela se abriu para o céu. Uma mão sem corpo, derramando em volta de si uma imensa paz de espírito, recolheu o Graal e levou-o consigo.

Todos os cavaleiros, e José, e Arthur, e Galahad caíram de joelhos.

 

Assim que o teto se fechou e que a mão celeste desapareceu, Galahad foi o primeiro a se levantar. Atravessando as fileiras de cavaleiros prosternados, saiu da capela.

Do lado de fora, o deserto de diamante branco tinha dado lugar a uma paisagem disposta em vales onde corriam córregos de água clara, onde crescia uma erva espessa salpicada de botões-de-ouro, de centáureas e de papoulas. As árvores de um pomar, a alguns passos, estavam carregadas de frutas do mundo todo. Passarinhos cantavam nos galhos de uma floresta de carvalhos.

Uma mão pousou amistosamente bem no ombro de Galahad. Ele se virou: era Perceval.

— Onde estamos? — perguntou o jovem cavaleiro.

— Na ilha de Avalon — respondeu Perceval. — A ilha onde se encontram os mortos de Logres.

— E o...

Baixando os olhos, Galahad conteve a pergunta que lhe queimava os lábios. Perceval a fez por ele:

— E o seu pai está entre nós? Não, Lancelot não está aqui.

— Então ele está...? — disse Galahad, sem dissimular seu alívio.

— Está vivo, sim. E talvez um dia venha a precisar de você.

— Eu vou deixar esta ilha?

— Seu lugar não é em Avalon. Ainda não.

 

Arthur, Garvain, Perceval e José acompanharam Galahad até a beira do mar. A nau com a cabeça de leão o aguardava, com as velas dobradas. Brancas.

— Está na hora de você ir embora — disse José.

— Mas, Senhor... Eu queria lhe fazer uma última pergunta.

— Pode falar.

— Como... Como vou encontrar o mundo?

— O que está querendo dizer?

— Bem, é que durante toda a minha infância me repetiram, me educaram na crença de que, se eu obtivesse o Graal, mil anos de felicidade reinariam sobre o mundo...

José trocou um olhar com Arthur. Embaraçado, pousou a mão sobre o ombro do rapaz.

— Como explicar a você...? Quando certas coisas, essenciais, devem ser executadas, não é raro que a lenda tome conta delas. E, quando essa lenda é propagada por magos, filhos do Diabo, às vezes eles... mentem.

— O que está querendo dizer? Que Merlin inventou esses “mil anos de felicidade sobre o mundo”?

— Não é assim tão simples — interveio Arthur. — Eu conheci Merlin bem. Ele não mentiria deliberadamente. Apenas... apenas era um homem do Antigo Mundo, o mundo dos feiticeiros e dos prodígios. Para ele, o Graal era apenas um objeto mágico, de uma magia mais poderosa e mais sutil do que ele era capaz de compreender.

— Fui eu — prosseguiu José — quem disse, depois de ter subtraído o Graal à cobiça dos guerreiros primitivos de Logres: “Aquele que o encontrar fará Nosso Senhor reinar mil anos sobre este mundo.” Merlin interpretou minhas palavras a sua maneira.

Perturbado, Galahad virou-se para Perceval:

— Então o que você viu, quando Mordred pousou a mão do Diabo na sua testa... é verdade? Aquelas guerras, aqueles massacres, aqueles crimes abomináveis...? É verdade?

Perceval baixou a cabeça.

— Mordred, por intermédio do Diabo, conhece o futuro — murmurou.

— Mas então... — exclamou Galahad. — Então... Tudo o que eu fiz não serviu para nada!

José segurou-o firmemente pelos ombros:

— Acalme-se. Você realizou o que tinha de ser realizado. Agora, vai retornar ao mundo dos vivos. Você continua sendo um cavaleiro, Galahad. E graças a homens como você, e a outros no futuro, que este mundo não sucumbira inteiramente ao Inimigo! A felicidade sobre a terra é a vitória, sempre contestada, nos combates travados por aqueles que se recusam a se curvar as vontades do Maligno. Você entende?

Sacudindo os ombros, Galahad livrou-se do braço de José. Deu alguns passos pela orla. Refletia. Terminou fazendo que sim longamente com a cabeça.

— Sim, entendo — disse. — Mesmo que não aceite.

— Mas não precisa aceitar, meu rapaz. É o que lhe permitira lutar, ainda e sempre.

Sem uma palavra, Galahad aquiesceu com um movimento de cabeça.

— Agora — disse José acompanhando-o até a nau —, retorne para o lugar de onde veio. E viva com honra. Um lugar na Távola Redonda — o melhor! — esperará sua volta para nós. Não o desmereça.

Galahad saltou com desenvoltura a bordo do navio. As velas se desdobraram. Içadas até o alto do mastro, elas acolheram a brisa, enfunando-se.

— Adeus! — ele gritou, enquanto a nau se afastava da orla.

— Até um dia! — responderam José, Arthur e Perceval, apagando-se suavemente, como fantasmas que eram.

 

Mais tarde, pedaços de gelo começaram a boiar sobre a água cinza. O céu estava baixo, pesado como chumbo. Fazia muito frio.

Galahad compreendeu que havia atravessado a fronteira das águas de Avalon. Acabara de voltar para o mundo real. Outras aventuras, e toda uma vida, o esperavam. Esse pensamento bastou para esgotá-lo.

Foi para o interior da nau. Havia uma cama e diversas cobertas de arminho. Deitou-se, enrolou-se e adormeceu.

Um cavaleiro de armadura de ouro e olhos de fogo o espiava de algum lugar, bem no fundo dos seus sonhos.

 

* As palavras seguidas de um asterisco remetem ao léxico no final do livro.

[1] Pintura em que se utilizam apenas os vários tons de uma mesma cor. (N.T.)

[2] Referência a Caronte, personagem da mitologia grega que transportava em seu barco as almas rumo ao Hades, o reino dos mortos. (N.T.)

 

                                                                                Christian de Montella  

 

                      

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