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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A NAVE DE PEDRA / Fernando Namora
A NAVE DE PEDRA / Fernando Namora

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

   

 

Quem vem de longe, das terras frescas do litoral, onde o verde salpica os olhos e se debruça nas estradas, e após a transição das ravinas do Zêzere, encontra uma paisagem que passo a passo se atormenta: a Beira Baixa. Aí, transposta que é a charneca com a sua cabeleira rala, nos cômoros a ferida aberta das ribeiras que descem ao Tejo por entre sobressaltos de xisto, ou ainda o dourado da campanha da Idanha, a querer-se alentejana sem o ser - aí, senhores, já a tristeza começa a espessar-se, a montanha crepita tendo por detrás relances de horizontes fundos, e as coisas se tornam graves. Ei-lo, um mundo de soledade, sobre que pesam crimes, mesmo se as frondes e as ramadas lhe escondem as dores do exílio.

Assim, de facto, o sentimos: remoto e em degredo. E Monsanto se chama, de pedra é feito - minha nave coalhada.

 

 

 

 

Lembras-te? Chegaste por uma tarde de Verão. Durante a jornada, que foi um ir sempre mais dentro do ermo despovoado, as aldeolas pareciam-te espectrais, os campos uma queima dos séculos. Tinhas que anos? Os da tua crédula esperança, que eram também os da tua inexperiência. (Vá, recorda. Molha as penas na tinta da lembrança e do hoje fugidio, para os fixares e te teres vivo.) Uma verdura de anos, pouco de fiar num médico que, muitas léguas em redor, a si devia bastar-se. Desafiaram-te: "Aqui te despejamos, ao desamparo do que de ti souberes e puderes. " E de cada vez que o temor te emudecia, que a timidez te suava nas mãos, o desafio repetia-se ou tomava outras formas ameaçadoras. Lembras-te? Se te lembras, céus!, sempre te lembrarás. Foi a tua forja de homem. Nesse cadinho de inclemências te temperaste para o que veio depois.

Assim o sentimos, mundo solitário patinado de fuligens, quando a memória (de quem? a tua?) se põe a confrontá-lo com a paisagem regada do Norte, seja hortejo debruado de vides, seja várzea onde o sol refulge na luminosidade líquida que resiste à cresta do tempo. Lá no Norte de mimos (o Norte foi sempre a tua saudade vingativa e toda a vingança é desforço do débil), vizinho do mar ou das cidades em que nos julgamos mais perto da vida, cada pedaço cheira ao seu dono, quase se habita do sofrer e do júbilo humanos. A terra é cerne, um corpo a pulsar. Por isso lhe ouvimos o riso e lhe saboreamos o renovo em cada ciclo de fecundação. Aqui, perante estes cerros taciturnos, estes alqueives desnudos à fornalha do Estio ou aos Invernos agachados sobre as moradas que lembram fojos (e a neve, a sombra azul sobre o imenso e expectante coágulo branco - lembras-te?), parece que as coisas exalam um frio de entranhas, se repassam de abandono, que ora é desterro, estigma da distância, ora pura melancolia, com o silêncio a unir o instante ao eterno. Coisas que se supõem ao desprezo, longe que os homens andam, tão raro os vemos, escuros como o granito e nele fundidos. O friso álgido da Gardunha, donde parte o vento carregado de gumes, e a raia aguçada são a muralha que fecha tal mundo dentro da sua solitude.

Lembras-te? Por estas sendas, meio colinas, meio planura, ias tu, sem falhar uma semana, na direcção da fronteira. A alimária do Pantaleão te levava de olhos fechados, sabendo de cor os meandros do caminho e o respaldo dos declives, mesmo se viesse uma chamada a desoras e a noite se cerrasse. Ao remanso da marcha, ias lendo a reserva de livros que te deixara o colega de presente, lendo ou meditando, ou observando, que para tudo chegavam os dias sem se lhes ver o fim. Os lagartos e os molossos dos casais perdidos eram os guardiões da charneca. Estes últimos perseguiam-te quase até às abas da serra, ai de ti se lhes caísses nos dentes. Calhava também o Zé Mocho, que tinha a alcunha de Mão Cagada e um faro de mil podengos, fazer-te alto ao virar de um barranco, e num pronto ficavas a saber novas de Espanha e mágoas de Portugal (por onde andaria o mundo?), em que a mentira era o desejo de acontecimento. Davas-lhe alvíssaras em troca, consoante a cotação da notícia - mas quantas vezes lhe premiaste a morte de Franco? Diziam mal do Zé Mocho. Diziam o mesmo do Pantaleão - e, no entanto, este punha-te de bom modo a égua às ordens, e nunca ninguém o viu azedar-se com os falatórios que lhe manchavam a honra. Dizer mal é a respiração das vilas.

Lá na estrema, Penha Garcia das escarpas nacaradas, esperava-te o cortejo dos curandeiros, sinais da miséria ignara, que do barbear e medicar faziam idêntico ofício, teus ajudantes, teus adversários, teus cúmplices, perante os quais a tua fragilidade mais frágil se mostrava. De uma vez, num outro lugarejo daquelas bandas, até o sino tocou a anunciar-te a presença. Mas não lhe sentiste alegria. Eras o intruso, embora tanto lhes quisesses dar.

Lembras-te? Que resta da tua revolta, mordida e bradada? Que resta do que em ti foi genuíno? Apenas o sofrimento de hoje, a culpa à procura de motivo, mais corroedores que o sofrimento de ontem? Ou a capacidade nova de um código de convívio, agora mais desinibido e por isso mais actuante, com esta mesma gente que dantes te intimidava? Não basta que te lembres: rapa nas areias da fonte o que nela ainda é água e bebe e purifica-te.

Por aqui, dizia, se encontra Monsanto. Onde a fraga se torna pesadelo. De longe a vi e a temi, um dorso de monstro a crescer para nós até tomar conta de quase todo o céu, num tempo de já não sei quando e com uma personagem decerto desaparecida, esse eu bisonho a eriçar-se de espinhos, ou de frouxidão embuçada, no trato dos homens. Um eu que só tarde veio a reconhecer que é no gesto sem medo, afinal o gesto que pedia e lhe pediam, que estava o segredo da comunicabilidade.

Homens e panoramas desta estremadura beiroa, de desconfiança em alerta, nos oferecem, pois, a ideia de um viver tão duro quanto marginal. Curtido na servidão e por isso amuado. Se, em muitos outros sítios (a que o viajante esteja afeito, como eu o estava), ao camponês pertence o agro onde mal cabe a sua sombra mas onde planta uma esperançada tenacidade, na Beira Baixa, na maioria dos casos, nem por isso: o campónio tem de seu os braços e aluga-os para subsistir. Ou então, parte: a raia é um ir e vir no mesmo dia, o jogo de morte com a Guarda compensa quem à vida dá mais préstimo que valor; e a cidade também é aceno que tenta, por muito que um jugo seja trocado por outro às vezes maior.

Talvez venha daí a terra ser desabrida, a saber-se amanhada pelo trabalho mercenário, como se pode inferir da toada dos cantares, do ritmo da dança, da melopela da música, associados no mesmo queixume repetitivo, quase um cerimonial de condenados na espera de uma absolvição que não se decifra qual. Como se pode inferir dos capuzes negros que enviuvam os homens e as mulheres em ritos que dir-se-ia talhados para este cenário petrificado. Como ainda se pode inferir de que a ebriedade dada pelas alturas não exalte o sangue de Monsanto e lhe apronte asas para se ousar a um destino diferente.

Quando ali chegaste, o que logo se te evidenciou foi essa rudeza de vida. Que tinha de ser rudeza na gente. E até era rudeza e pesar nas casas: a cor branca da cal, que na Idade Média fora sinal de luto, a avivar-lhes o granito das umbreiras, no mais dispensando serem caleadas. Chegaste, dizia-lo há pouco, por uma tarde com o céu a abrir-se num abismo translúcido, um domingo dos tempos em que uma missa juntava os povoados dispersos no adro da igreja de S. Salvador, matriz da aldeia desde que perdido o seu foro de sentinela da fronteira. E desse começo de tarde - haveria gaviões no espaço?, rodopios de poeira na estrada de Medelim? - até noite adiante, o teu baptismo de joão-semana ainda sem barba na cara somou-se por várias testas rachadas, que o vinho domingueiro tem mau esquentar, e por um peito de ganhão amolgado das patas de um cavalo que alguém lhe atiçara para a prestação de ruins contas. E em toda a tua saga do dia-a-dia, em quase três anos de clinicar, foi esse misto de novidade violenta mas euforizadora e de ressentimento. Em ti e nos demais.

Não te guarda a memória lances macios, nem talvez os desejasses, sazoado que te querias na dura oficina de mestre de ti próprio. Nas lendas de Monsanto, em que o mistério é lôbrego e tão assombrados olhos te faziam abrir, está todo esse existir face a face com a aspereza que não perdoa ao frágil a quem desafia. Lembras-te? Eles vinham até junto de ti, e mesmo na agonia te ocultavam as queixas só para avaliarem o que eras e o que sabias. O seu mutismo tinha um repto assim: "Adivinha, se podes; vence, se és capaz."

Hoje, vais por aí com o Manuel Bicho ao lado e já não te coíbes de entrar numa tasca se de lá se expande a sanfona do Rechena, no feiticeiro e dorido lamento. Vais por aí, escutando o bem e o maldizer, e sentas-te no rebato da porta da Mariana Escariga, e provas-lhe a aguapé e a assadura do bácoro, enquanto ela te põe em dia sobre as idas do tenente Grácio à fazenda da Devesa, onde o esperam as doçuras de umas e outras, aquelas com quem ele reparte a reforma. (Mas vale apontar que ao tenente, teu primo, se deve o Posto da Guarda. Aldeia do galo-de-prata e, no fim de contas, nem uma farda para conter a ladroeira de pernadas de sobro. Agora, sim, com a Guarda já os senhores proprietários se dão ao respeito. E até Monsanto, com tamanha mercê, subiu no despique com os rivais.) A mesma Escariga te ajudará a rememorar os amores do boticário Rodrigues, tão sovina e tão mouco, que ao bater, noite calada, ao postigo da Aninhas, o fazia com um ânimo de despertar meio burgo, cuidando talvez que estava a ser discreto. E o pago era de fuinha, pois, durante a semana, a pobre tinha de estender a mão à esmola dos turistas e ao sábado de franquear a tarimba a outros sem-mulher.

Vais por aí e reconheces que isto pertence ao teu vero mundo, donde afinal nunca partiste. Vais sem agravos e desagravado te sentes, no ar viril que te limpa os sarros. Foram-se os suseranos, já reparaste? - aqueles que guardavam distância de imigrados como tu, porque nem eras da sua raça nem eras povo, em ambos tinhas de colher o teu pão, e tal dependência, quando se lhe nega o tributo, paga-se de outros modos e a preço dobrado. Agora que ninguém te exige sisa ou proveito, és tu próprio, ou assim pensas.

Por essa época, em que todas as quelhas tinham quem as habitasse e em que, ao descer da noite, se ouvia o eco das botarras no empedrado das ruas, tantos eram os burricos e as mulas a ter de levar às fontes, por essa época, com as velhas a pastorearem no barrocal os rebanhos de três cabras, para que ao menos o leite fosse arrimo nos dias mortos, a jorna, a depender do capricho das nuvens e dos mandões, mal dava para metade do ano, já nela incluindo a ceifa de empreitada e a safra para os lagares. (Cansou-te o tema? Mas sabes lá quanto ele doía no viver de tantos, ou continua a doer.) Daí, que o rural se fizesse andarilho, comerciando por essa raia fazenda de dez-réis, ou mesmo aventureiro, expondo-se às tais batidas da Guarda para lhe passar sob os olhos candongas de Espanha (Lembras-te, António Parra, meu herói inventado ou verdadeiro, que tudo bate no mesmo, se o retrato é do real? Lembras-te, Candolas, que o lume te ardia nos pés, apesar do peso das banhas, assim que te punhas a furoar por esses valados furtivos, e um dia me apareceste com duas balas no corpo mas a sorrir, em despedida, para os ganapos que precisavam de reter de um pai a coragem e não o choro?), ou surgisse protagonista de eldorados de volfrâmio, que lhe davam um porte efémero de poderio consciencializado. Daí, sem voltar a cara à terra, antes levando-a nas agonias do coração, que aceitasse ofícios de que nunca ouvira falar, lá nas urbes míticas ou noutros lugares de aparência opulenta, mudando a pele para corticeiro, tecelão, artista de mão-de-obra desqualificada, indo mesmo afrontar o azedume do alentejano nas revoadas migratórias em que não há pessoal que chegue para a seara prenhe, sob o labéu de ratinho mesureiro, alma de escravo que investe sobre o alheio e até do sofrer alheio colhe vantagem. Mas em todo o lado com um lembrar donde veio, e arrogando-se tal peculiaridade, como o afirma a cantiga:

Se não sabeis donde sou, Reparai para o meu canto: Sou do cimo do Castelo, Sou da Vila de Monsanto.

Enquanto isso, o morgado das terras, às vezes amo sem rosto, juntava fanegas, gados, lagares, irmanando no mesmo desdém e nos mesmos cálculos homens e bichos, só atento ao despique com outros feudais que ameaçassem crescer sem lhe pedir licença. Enquanto isso, os povoados castrejos, com as furdas ao lado das casas, paravam no tempo - tal os fragões que os assustam, oscilando no seu poleiro sem afinal tombarem, e testemunham eras que sobrevivem para que o homem saiba quanto é grande, e quanto é pequeno.

Já ao raso da fronteira, temos, pois, Monsanto, por onde cursam águias, sua imagem de soberbia. Vejam-na da estrada, a enrugar o seu carão de penedias, subindo em procissão até ao castelo, ou afoitem-se às suas ruelas (reparem-lhes no nome: Rua da Sarça, Rua do Ferreiro, Rua do Sol Velho), aqui e ali desembocando em barreiras, miradouros de muito ver, que aos domingos eram o rossio dos labregos precisados de conversar após uma semana de solitude nos campos e nos mais dias assembleias de moinantes ou de contrabandistas na espera de uma sazão. Como eu os pintei em A Noite e a Madrugada, onde Monsanto se deturpa em Montalvo, só porque a ficção pede estes disfarces.

Lembras-te: a quem não agradava tal vizinhança era ao senhor Rodrigues, o boticário. Uma ripa de ossos corcovados. O faro trazia-o à porta, a sondar a mesquinha sociedade, e logo se recolhia enjoado da estrumeira de pevides, caroços de azeitonas, tremoços, sinais da mandrieira. Mas sobretudo sinais de gandaia, e é na gandaia que os larápios se instruem. O medo de morte que lhe saqueassem a fazenda fazia-o fechar-se a sete chaves, mais as trancas ao largo e ao alto, assim que a luz se delia nos cerros da Idanha; mas durante as horas de serviço, a um qualquer rapinante fácil seria estender os dedos à frascaria enquanto ele aviava um freguês no interior do santuário: o seu "laboratório". Nele, tamanha doença era o pesadelo com ladrões que, certa ocasião, em Castelo Branco, tendo de esperar pelo transbordo de um comboio só aguardado na manhã seguinte, passara toda a noite num banco da estação para obstar ao risco de, numa hospedaria, um gatuno o esbulhar da carteira. Larápios e comunistas - designação muito lata que abarcava todo o zé-ninguém menos acomodado e todo o que mostrasse indocilidade perante quem tinha o mando na mão - punha-os ele no mesmo saco de injúrias e pavores. Talvez por isso, nunca te deitou um olhar tranquilo. Mas havia mais quem reagisse de igual modo: a bem dizer, tudo o que, de uma ponta à outra da aldeia, fosse gente mais escovada. Ou de religião, ou de teres.

Lembras-te: apesar das prevenções, o senhor Rodrigues era o teu companheiro de gamão. De cada vez, parecia um jogo de vida ou de morte. Que outras emoções restam a um boticário de aldeia que teme as pessoas e se acautela dos fiados? Os nervos lhe danavas só com ameaçá-lo de perder. E se, efectivamente, perdia, o resto desenrolava-se consoante o teu jeito de vencedor. Carregasses-lhe o dedo na ferida - e adeus pedras do gamão. Até que elas findaram no ventre do fornilho, num auto-de fé caudaloso de gritos e veemências, daquela vez em que, de arruaça em arruaça, o fizeste sentir o mais irrecuperável dos vencidos.

Morreu, o senhor Rodrigues? Sequinho como as palhas, deitando sangue pela boca. Mas quem, desse tempo, não morreu em Monsanto?

A minha nave, aproada sobre os horizontes e, como todos os povoados fronteiriços, desavinda com Castela. Mas vejam-na também dos cimos, como se observa uma saia rodada que em todos os seus folhos tem vista, quer da Torre de Lucano, uma vigia sobre o abismo, quer das Torres de Menagem, dos Penedos juntos, dois colossos de frontes ensarilhadas, ou das ameias que dominam mais léguas, lusas ou castelhanas, que os olhos podem abranger: Penamacor, as Idanhas, Monfortinho, S. Salvador, Penha Garcia, Salvaterra e os cerros de Bejar. Todas as suas lombas são uma floresta de alcantis, que se vai amainando no encontro com a planura e nela se esbate ainda em surtos de fúria ou já em oásis de macieza, onde os povoléus deixam, aos poucos, de anichar-se nas lapas.

Em face de desconformidade assim, milagres, quem os queira, topa-os em todas as sendas. Milagres, prodígios ou enigmas que a pedra atesta: S. Pedro de Vir-a-Corça, mais a gruta de Santo Amador, coito do eremita, os Sete Coiros, onde ressoam os medos, as Fontes Encantadas, as Treze Tigelas no côncavo da rocha, talvez malgas de pedintes se não fora o aziago da conta, esquifes talhados no granito ao molde dos corpos, com o céu aberto por tecto, o riso de velha de um penhasco sobranceiro ao mar onduloso da campina, lá onde, numa extensão desmedida, se entornam as sombras do cabeço.

Monsanto, pois, meu poiso dos anos em que, junto destes homens de tolerância gasta, me alistei na vida. Anos viris, incrustados numa paisagem sem lirismos, ela própria o azougue que a fustiga, ela o frio que os longes exalam, a solenidade que lhe vem de dentro, a plebe que a lavoira sem a domesticar. A distância, de uma cor árida, aproxima-se só para lhe morrer aos pés. Daí para cima, são os tais barrocais - trilhos de burros, esfalfamento dos homens, declives assustados dos despenhadeiros que deixam para trás. Mais parecem galgar a ninhos de milhafres, sentinelas da solidão, do que a pousadas de gente de Cristo.

Gente que não poderia ser invulnerável a esse contágio de rispidez. Por isso a achamos prudente no calar, de humildade austera, merencória como o seu terrunho natal, mas, quando preciso, acerba. Se as suas tarefas se cumprem nos baixios, onde o chão se desencrespa em montados, olivedos, trigais, ao lado do paisano do campo, mais brando e loquaz, a sua toca persiste em ser nas alturas, mesmo que só para as horas de um catre aquecido pelo hálito promíscuo dos gados, visto que os bichos também são familiares. É das alturas que o mundo rasteiro se avista, que se aspira a grandeza, que o coração é maior que o peito onde se abriga.

O sonho de terra, porém, leva o Monsantino a arremedar um quintal entre dois penedos, a bem dizer uma concha de húmus transladado amorosamente desde as leiras do campo. Nele crescem hortos e figueiras de má sombra, coisas, todavia, que nascem como das entranhas de uma pessoa. E a pertinácia, de meias com a astúcia, fá-lo espantar dos baldios as raposas ladras, para que as cabeças de gado não tenham assalto de morte, e para que a caça (às vezes filada à unha em armadilhas de quem, por necessidade e instinto, aprendeu as manhas dos bichos) tape as bocas assanhadas pela magreza dos ganhos.

Mas esse jogo de selva na selva encontra fera avara. Logo que os baldios se tornam verdes e uma árvore enforma entalada por rochedos, aparece quem, de leis na mão, abone direitos antigos ao agro sem coleira. E compram-se testemunhas, que toda a fome tem preço, e vergam-se consciências, assim rareando, dia a dia, o espaço que resta ao pobre e assim avantajando o latifúndio do senhor sem rosto.

Lembras-te. Foi como dizes. Ias arrostá-los ao tribunal com a tua arma de Quixote, um caderno de papel onde registavas ostensiva e indignadamente o que ali se mentia e encorajava. E ias de porta em porta atear o ânimo aos frouxos ou aos amedrontados. Mas quem eras tu, clinicastro sem títulos e sobretudo sem a única força que naquelas bandas era reconhecida: a posse de hectares? Porém, incomodavas. Eras a presença acusatória. O mensageiro de uma longínqua mas ameaçadora justiça.

E foi talvez por ti - seria? - que eles se ridicularizaram no descomedimento das razões alegadas, ao basearem o seu direito ao que era de todos num documento... dado por desaparecido num incêndio da conservatória, que tivera lugar muitos decénios antes! O certo, no entanto, é que hoje o baldio tem dono. E já ninguém fala desse tribunal.

Falou-te dele o senhor Rodrigues, uma e outra vez, insinuando quanto te haviam empeçonhado as ruins companhias. Referia-se a quem? Ao Mocho, ao Parra, ao Escarigo, lagarteiros' de má fama? E da ocasião em que lhe exploraste a incapacidade de humor, apresentando-lhe uma conta de serviços na qual incluías "explicações de política internacional" - numa jocosa referência aos vossos debates sobre o que ia pelo mundo -, viste-o ladeira abaixo, a bengala irritadiça a escapar-se aos musgos, para te pagar a contado, cuspindo-te assim o abuso, mas subtraindo à soma as tais "explicações" imbuídas de satanismo. Essas, nunca!

As leis do esbulho. Mas tomando o cenário por exemplo, nem por isso o vilão renuncia, como já o sabeis. Todo o ano, das lonjuras encapeladas, o vento lhe enrija o sangue, o dor da gleba reanimada lhe afervora as narinas. E reacendido, ainda que fechado consigo, de novo o Monsantino pisa os lacraus emboscados nas lajes, arroteia, planta, aduba, não se temendo dos declives que lhe esgotam o fôlego, correndo freguesias à procura de quem lhe aproveite a fibra, e, mesmo de paga madrasta e às vezes clandestina, é no trabalho que se sente dignificado. E depois digam que só a urbe condiciona.

Vai para dezenas de anos, houve quem descobrisse Monsanto, dando-lhe, num galo de prata, o troféu de

' Lagarteiros - nome por que tradicionalmente são conhecidos os Monsantinos. Aldeia mais portuguesa (na brutidade? no casticismo? na miséria resignada?) e, por via disso, assento no mapa. Daí o alvoroço dos forasteiros, citadinos de vária fala, mais até da estranja, que chegam de lenço na testa para se abismarem com o lugar selvagem, com o primarismo no viver e no morar: casebres de uma só telha - a rocha -, quelhas de uma só sombra, apontando todas a escalada até ao rude castelo, que exige bom suor até lhe alcançarem os umbrais, onde há uma inscrição do século xii, ao que parece assinalando a reconstrução da iniciativa de Gualdim Pais, mestre dos Templários. O escudo foi-se: uma águia com garras e asas abertas e uma esfera armilar. Agarrem o ladrão que o levou e mais os outros que pilharam, dentro e fora das muralhas, o que lhes deu na gana.

Os arribadiços chegam, à cata de braveza e folclore (e bom Deus que os encontram, ao menos nos adufes das vitrinas, feitos de pele curtida com preparos especiais), mas logo se despedem, visto que não há jornada assim que não peça estalagem onde uma pessoa se retempere da canseira, e comes e bebes que registem o sair-se de casa para ver e admirar mas também para o regalo de rancho melhorado. Um pesadelo de pedras, por mais excêntrico, não basta para reter o pasmo do turista.

O Monsantino já é indiferente a esse rodopio de curiosos: destacou-lhes dois atoleimados que soletraram a cartilha de cicerones, fabricou-lhes lanternas, loiça pintada com a torre sineira, azadinha para dependurar na sala de visitas, imprimiu-lhes vistas coloridas em bilhetes de recordação - e ala para a lida, que isto de atestados de beleza, quando a conversa de políticos de conversa não passa, nunca governaram a casa de ninguém. Até por vezes a complicam ou, pelo menos, a desfeiam, como é este caso de Monsanto se abonecrar de vivendas que estariam certas em Alvalade, com os zeladores do Património Artístico a assinar de cruz, se esventrar em garagens no bojo das penedas, desbastando o que o homem não mais poderá refazer, ou se mascarrar de tintas carnavalescas, ou, enfim, se pôr num duvidoso catitismo quanto a algumas melhorias que nem sequer se desculpam pelo bem-estar das populações.

O tempo corre - quem o não sabe? -, e já ninguém o deseja pasmado, mas uma coisa é a sua marcha, que muito terá de sacrificar, e outra a gratuita corrupção do que no homem representa harmonia com o seu meio. Soa, portanto, a protesto visceral esta persistência do Monsantino em alegorias, pausas cíclicas no viver igualizador, para que os velhos, por instinto, chamam os novos e que, sob um tradicionalismo já meio desnaturado, são ainda a festa dos olhos, o convite à fantasia, ao rito comunitário, à genuinidade diferenciadora que pode defender o homem da arregimentação.

Uma dessas alegorias repete-se em todos os 3 de Maio, dia grande do adufe, instrumento que, nas mãos das velhas, é o apelo bárbaro mas envolvente à dança e ao descante. De cada vez a toada parece ali mesmo nascida, ao estímulo do próprio ritmo que se vai inflamando. E nela se sente um mundo de paixões e sudários: credulidades, hosanas, penas, labores. Dizem que o povo da cidade nunca inventou um dançar ou uma cantiga. Há quem o faça por ele: o aldeão.

O festejo é no adro do castelo, para ele se sobe em romaria, quando o trigo e o centeio maduros, no oceano da campina que insula a falésia abrupta do morro, glorificam o trabalho criador. A lenda que o justifica, repetida noutros sítios, pois a saga é idêntica onde o povo se tem por corajoso, fala de um cerco de antanho, quando a moirama sitiou a vila primitiva, a que hoje é só ossadas de casas nas abas do castelo. Cerco longo, daqueles que tinham em mira subjugar pela fome.

E quando aos sitiados restava apenas um saco de trigo, com ele engordaram o último vitelo, para depois, num escárnio de abastança, o lançarem pelas muralhas sobre os invasores surpresos. O vitelo foi-se rasgando nas lanças das fragas e ao chegar ao pé dos sitiantes o seu ventre esbarrondado exibia um festim de trigo. Desiludida, a moirama levantou o cerco, assim se retirando.

Quem sabia esta história e mais coisas de Monsanto, mas tudo a preceito, com personagens e datas, era o senhor tenente Grácio. Teu parente? Nunca te faltou parentela, se o parentesco lhes convinha. Anos depois, na cidade, quem te procurasse no hospital levava à frente, porque não?, uma apresentação de primo. Seja primo. Pois o senhor tenente Grácio, a quem o tempo sobejava para investigar e tresler, sabia a história de Monsanto. Fidalgos, guerras, bloqueios, lendas, tudo isso pôs numa brochura de que eu perdi o meu exemplar. Até a população da freguesia, pelo menos durante o último século, ele a tinha de memória. Esmiuçando os varões, as fêmeas e mesmo os nomes dos sucessivos regedores. Dos padres, então, nem hesitava um mi galho, indo a ponto de precisar a área do passal através das várias vicissitudes da Madre Igreja naquela área, que nunca, graças a Deus e às côngruas, haviam sido muitas. E tu que o digas, pois da vez em que o senhor prior quis mudar a traça da matriz de S. Salvador, fazendo-lhe crescer o pé-direito, telhando-a com telha moderna e substituindo-lhe a janela gradeada, ali certa na sua sobriedade, por uma abonecada rosácea mais do seu gosto, o teu refilanço de herege nem o riso mereceu: um padre mandava na sua casa e tu, talvez, na tua. Isso de a igreja (aquela igreja, velha de seis séculos) ser monumento não bulia com a autoridade de quem ali punha e dispunha em negócio de tecto cristão.

O senhor tenente Grácio era teu vizinho. Estás ainda a vê-lo, aos domingos, a distribuir papel selado (que nunca ninguém lhe bateu à porta numa precisão sem sair servido), ou a redigir mais uma petição à Câmara sobre a electricidade que não vinha, ou a esmoer as migas na varanda das traseiras, de cá para lá, sobretudo nos meses de crepúsculo abafadiço. A mulher, Dona Laura, apreciava chá - ou não fosse ela uma verdadeira senhora - e servia-o ao serão com bolinhos de abóbora. Nos intervalos do loto.

Noites e noites de loto. Ele, o tenente, de pensamento longe, talvez na pesquisa histórica, ou nalgum pedaço de mulher que o trouxesse aguado, ou mesmo no seu passado de brioso militar, cuja constelação de medalhas era demasiada para não ser falsa, e nós, as visitas - um comerciante, um reformado da Guarda, um lavrador de mais ou menos e o senhor Rodrigues -, a levarmos a sério os lances para não chegarmos ao fim a perder dez tostões. Todos éramos da meia tigela do burgo - e acabáramos com o clube por isso mesmo, porque nunca havíamos conseguido que lá entrasse um maioral. Se assim tinha de ser, então vá de disfarçar a nossa tacanhez social portas adentro, entre lotos e bolinhos. Em família, portanto.

Tudo o que lhe ouviste e leste de Monsanto, varreu-se-te, e agora faz-te falta. Assim te achas a falar da aldeia sem lhe conhecer a crónica, dado que tens mais presente as pessoas e os seus cuidados. A odisseia da Dona Laura em obter o brasão da família, por exemplo, o legítimo, em granito, para o enxertar na frontaria da casa. Foi laboriosa a busca e a transacção e, por isso, enquanto demorou, ela bastou-se com bordar as armas em todas as almofadas (eram oito) que afofavam a mobília do salão. As do canapé, então, tinham ficado um primor.

O tenente (digamos o teu primo) confiava-se mais ao amor das genealogias comunitárias e não lhe falhava um testemunho, se lhe passasse ao jeito. Como resultado, e a par dos seus escritos sobre os primórdios e glórias e azares da aldeia que fora vila, foi coleccionando peças, moedas e esculturas que documentassem a biografia do burgo, algumas, de resto, bem descaradas, como os falos e os cuses. Foi-lhes chamando suas, tal o senhor padre se apropriara da fachada da igreja.

Pode deduzir-se que o 3 de Maio em Monsanto, assim festejado, é uma legenda de pertinácia e astúcia que o Monsantino faz perdurar talvez porque sinta que ela lhe retrata a maneira de ser, moldada em circunstâncias adversas.

Pertinácia, resistência. Isso se vê no seu fadário de camponês, que é, não obstante, entre todos, o que prefere: ganhão, pastor, arrendatário de courelas, manajeiro. De um ou de outro modo, fecundando o alheio, mas com amor e dádiva lhe sofrendo as malinas, seja crestadura das geadas ou impiedade do sol; com amor e dávida se alvoroçando com o seu procriar. Seco de carnes, soturno no trajo, onde já há mistura castelhana - na boina e na pantalona de bombazina -, que também na fala se denota, reservado no trato, de superstições arreigadas, pois não lhe chega o entendimento para o telurismo que o rodeia, o Monsantino é de emoção contida mas nem por tal menos dramática.

Drama que no simples subsistir se espelha - e nas coisas que primeiramente contam nessa subsistência. Para quem o pão é custoso, o pão se torna epopela. Talvez por isso, é na ceifa que o Monsantino baseia as contas que deita à vida. De jornal ou de empreitada, ceifa é o amparo para o correr do ano, uma pequena certeza entre as muitas incertezas. Mesmo palmilhando as sete partidas à cata de sustento, que o Monsantino não se fecha em casa à espera de milagre, mesmo aceitando, por recurso e não por ofício, o acaso do minério ou do contrabando, a seara chama-o quando entumesce e ele não se nega ao chamado. Vem quase em fúria. Sem se consentir lazeres. Sob a soalheira tórrida, e começando mal a alba alumia, às vezes desgastado de maleitas ou das febres do Estio, comendo e dormindo entre os frascais, é vê-lo dobrado horas sem conto sobre o farfalhar das searas, não respondendo à fadiga. Toda a família o acompanha, ganapo ainda verde ou ancião de brio, e num ápice se despeja a aldeia. É um "tempo sozinho" - como o Monsantino sugere, na sua língua sábia, referindo-se ao êxodo dos lugarejos, onde só restou algum velho muito velho para cuidar do vivo. Quem se negue a esse esforço de desespero não é homem que valha as calças que veste ou mulher que mereça o parir.

Quando a ceifa e a debulha terminarem, o campesino apreciará as medas que se juntam em montanhas de rescaldo ou de fartura, o vaivém dos camiões a transportarem o trigo para as moagens - e tirando o chapéu, reverente ante a fecundidade da terra, repetirá um estribilho que tem tanto de sarcasmo como de raiva: "Os ricos fazem morcelas do suor da nossa testa."

Lembras-te. Escreveste isto ontem. Talvez já não o escrevesses hoje. Quem mudou: tu ou Monsanto?

 

     ONDE O ESCRITOR ENCONTRA UMA IRMÃ

Vai para quinze anos que tenho uma irmã, conquanto nos registos oficiais se teime em dizer que sou filho único. Mas há muitas maneiras de contrariar os registos, sabemo-lo todos, e foi por isso que eu próprio duvidei.

Narremos porém os acontecimentos do princípio, como mandavam as regras antigas, e, disciplinadamente, comecemos mesmo por justificar este relato dos meus plebeus anais familiares: se venho com o incidente a público é como prova de que a cotação do ofício de escritor não é tão reles como se julga. E tanto não é, pelo que iremos ver, que até as almas simples, que vivem longe do purgatório das letras, seguram pelos cabelos a oportunidade de se aparentarem com gente dos livros.

Uma irmã, portanto. Soube-se do caso porque a empregada doméstica do meu amigo Rogério me recebia com duas pedras na mão. Fundamentadamente, concordo, visto que: "Eu bem faço por me conter", dizia ela à dona da casa, "mas um doutor médico que deixa uma irmã em criada de servir..." E à vista de todos: no mesmíssimo bairro onde eu ia seroar, afidalgado, com os peraltas do fonendoscópio ou da caneta. Numa rubrica de egoísmo, era de antologia.

A minha irmã chamava-se (e chama-se) Alzira. Alzira Namora. Aconteceu, porém, que quando fui por ela já a moça batera a asa lá dos sítios. E não houve faro capaz de a localizar.

Isso, aliás, iria repetir-se estranhamente sempre que uma voz embaraçada nos pedia, ao telefone, informes sobre uma tal Alzira que... O senhor ou a senhora desculpem, a vida tem destas coisas, as nódoas caem no melhor fato (que nódoa, façam favor de me dizer), há pessoas que, pelos seus méritos (muito agradecido, minha senhora, mas dispenso o rebuçado, prefiro que me retenha aí a Alzira até eu chegar), pelos seus méritos sobem, enquanto, por exemplo, uma irmã menos dotada... desculpe, enfim, não é para ofender, nem servir é crime, pois não é verdade?, a honradez é que importa, etecetra e tal, etecetra e tal. Pois tudo isso é muito bonito (ou feio, como queiram), mas eu não tenho nenhuma irmã.

E assim estávamos, as pessoas no outro extremo dos fios, a voz comprometida ao telefone, a Alzira decerto à espera na cozinha, ou no átrio, ou até na sala, podia bem ser, sempre era irmã de um médico, irmã de um escritor, as pessoas ao telefone e eu ou a minha mulher a desfazermos o novelo, com uma irritação crescente na negativa: é uma intrujona, é um vigário, segurem aí a rapariga, que estaremos em sua casa num ápice. Qual ápice, qual nada. A Alzira, ao desconfiar da demora, ala que se faz tarde!

O pior é que havia almas menos incrédulas, e a essas bastava que a Alzira se afiançasse minha irmã para o contrato se selar em dois tempos. Até posso imaginar, perdoem a imodéstia, quanto alguns apreciadores de iguarias exóticas se regalaram de ter, portas adentro, uma serviçal de linhagem letrada, que, além do mais, propiciava um saboroso desenferrujar de má-língua: aquele empedernido! Quem diria.

Disse-o muita gente, ao que vai ver-se. Tenho, aliás, um mel danado para estas coisas. Umas vezes, a Alzira, consoante o espírito santo de orelha e o modo como lhe puxavam pela biografia (que se colava à minha), fazia-me transmontano, beirão, alentejano, órfão de pai, órfão de mãe, irmão desnaturado de uma data de pobres de pedir, e por aí adiante - e foram esses disparos sem pontaria que, afinal, me aliviaram do peso da incerteza: a Alzira sabia de mim o pouco e o demasiado que ouvia aos outros. Nem sequer me identificava o berço.

Entretanto, a rapariga foi diversificando o filão. Já não lhe bastava atirar com o meu nome à frente para conseguir soldada em casa mais que tal. Ia coleccionando fiados nas lojas. Um dos lojistas telefonou-me, entre a mesura e a indignação. Que era tempo de eu regularizar a dívida da "minha irmã", pois ela, instada, não só fizera ouvidos moucos mas logo se raspara - para onde? Para onde, desejava eu mais que ninguém saber, e acompanhado de um homem de leis, à porta da ex-patroa debalde bati, que a Alzira fora-se nessa manhã para uma casa da Avenida da República, o número não me recordo já, mas, ao que se apurou, número inventado. A Alzira era e é mestra na arte de despistar.

Seguiram-se uns anos sem notícias dessa irmã fictícia. A Alzira! Querem crer que em muitas ocasiões lhe modelei o rosto? Umas vezes, com imaginação encruada, biliosa, mas outras com simpatia, curiosidade tolerante, com esta costela impressionável que, no cinema, nos faz engolir em seco logo que a fita ameaça acabar mal e fantasiar todo o patife com uma coroa de espinhos na cabeça. A Alzira, enfim, a irmã que não tive. E com que sonhei.

Até que... Todas as histórias têm o seu remate, ou um remate lhes pomos, e esta não fugiu aos cânones. Conheci, finalmente, a Alzira, estive com ela fala à fala, cara à cara. A rapariga a queixar-se-me de um tal médico do Instituto do Cancro, que eu havia muito deixara de ser, médico e escritor de uns livros que ela citava com hesitante rigor, e eu, copo de água na mão, o copo que a Alzira me trouxera da cozinha e fora o pretexto para a ter diante de mim, a lamentá-la de tão ruim sorte, a dar-lhe guita, a incitá-la a um lavar de roupa minucioso, que, por um lado, elucidasse o dono da casa sobre o tamanho de tal enredo e, por outro, me elucidasse a mim próprio.

Fora o caso que aquele senhor brasonado, um tanto melífluo, o papo dos olhos a esconder-lhe a malícia, me telefonara com os mesmos resguardos dos que o haviam precedido em situação idêntica. A Alzira entrara-lhe em casa dezoito dias antes e, ao percebê-lo duvidoso do parentesco, lançara na mesa um trunfo que eu até aí ignorara: nada menos que o testemunho da esposa de um professor universitário. Exacto: a Alzira era minha irmã. Mas nenhum parentesco resiste a um anel de estimação desaparecido em circunstâncias suspeitas, todas as lógicas apontando para a mão leve da Alzira. E por isso o senhor brasonado contactara comigo. E por isso ali estávamos a ouvi-la, após montado o cenário, após aqueles momentos de engolir em seco, o coração miudinho de expectativa, antes de ela entrar na sala. Ao fim de anos de perseguição, ia vê-la! Alguém que já fazia parte da minha vida, da minha crónica, das muitas injúrias, mentiras, raivas que os outros haviam enxertado no que eu era ou julgava ser. Mas que até aí fora apenas um nome.

- Sim, é a minha nova empregada. E por acaso irmã de uma pessoa que talvez o senhor conheça. Um tal...

E a Alzira logo confirmou, glosando-lhe a palavra. E nem foi preciso empurrá-la para o resto do requisitório.

A Alzira: sobre o forte, desmazelada, grosseira, tristonha - que havia nos seus olhos? Credulidade, astúcia? Olhos a tirar para a cor das algas ou para o cinzento do mar quando tem frio. Cabelos de um loiro pardacento, talvez já tivessem sido belos. E os gestos de fadiga.

Tinha dois filhos, a Alzira. De quem? E tivera-me a mim como irmão, ouvia eu dizer da sua boca, irmão de má morte, sem um real de sensibilidade. A história, a traços largos, era: falecidos os pais, eu leiloara ao desbarato os bens da família, largara para Coimbra com os bolsos cheios do que a todos pertencia. Família de Lamego, ou antes, de lá perto, uma aldeia onde um dos nossos irmãos abrira uma bodegazita. Porque não me procurava a Alzira? Não valia a pena. Tentara duas vezes, para nada. Nem a recebera. De uma ocasião, ia eu no meu automóvel, um espada que o trânsito fizera estacar, e um compadre que acompanhava a Alzira ainda disse: "Vai ali o teu irmão. Manda-lhe um sinal, mulher." Para quê sinais, se eu renegara os parentes?

Ouvi isso e muitas mais coisas (sobre mim próprio, senhores!) sem me dar por achado. Eu tinha de sair dali mais ou menos esclarecido, mas o importante é que a Alzira não desconfiasse da armadilha. Assim foi. Nessa mesma noite, a Polícia chamou-me a uma acareação. O anel do senhor brasonado estivera fofamente recolhido no peito da rapariga, fora a cupidez a perdê-la. Já então eu pedira contas à esposa do professor universitário que abonara a Alzira como minha irmã. A Alzira convencera-a, o folhetim tinha um vilão apetecível ("Imagina o senhor quanto o detestei!"), e o certo é que, daí em diante, a senhora dera em proteger a pobre, frágil vítima de um desumano como eu.

Quando a Polícia trouxe a Alzira do quarto para, de surpresa, a plantar na minha frente, e eu, entre furioso e magoado, lhe observei: "Esta tarde esteve a falar com o seu irmão. Ei-lo aqui. Sou eu", ela, sem um estremecimento, retorquiu:

- Não tenho nada a ver com o senhor. Vi-o esta tarde pela primeira vez. O meu irmão é o médico, é o escritor, e se o senhor tem o mesmo nome que ele, entendam-se os dois e deixem-me em paz.

Mitómana? Foi o que receámos. Mas ao averiguar-se que, afinal, a Alzira tinha uma ficha policial carregadinha (nem quero badalar sobre o que lá consta), ela acabou por confessar que toda a meada se tecera com a coincidência do apelido e com a desastrada pergunta de alguém: "Serás tu, rapariga, parente do escritor?"

E até a Alzira achou que não era parentesco que se desprezasse.

Pois digam-me agora que... Mas a moral da história já eu a sugeri no começo.

 

                 AS CIDADES QUE MORREM

Quando Nino Grisanti me guiou pela floresta nova-lorquina, falou-me mais da sua Veneza do que da América que eu desejava conhecer. Tudo lhe servia de pretexto para o confronto, o spaguetti ou as torres de betão. Tudo lhe servia para um saudosismo irónico, que desferia sobre si próprio a mordacidade, tão necessitado estava de ser cauterizado.

A "minha" Veneza decrépita, restos de um festim cujos comparsas se foram embora, as entranhas percorridas por um sussurro que me parecia o eco do tempo submerso, passou a ser também a Veneza de Nino, seu berço, seu apelo, sua nostalgia, qual delas a mais feiticeira, a minha, lúgubre, a dele, inviolada, naquela sua melancolia enigmática. Uma Veneza-memória. Uma Veneza-bruma, dentro da qual se ocultam as feridas que os limos fétidos não cicatrizam, se perdem as pistas de cães vagabundos e emudece o terror dos gatos sequestrados em palácios que ninguém habita. E é ainda a Veneza dos dias da Libertação - ansiosa, estrídula e logo de braços derreados.

Nino contou-me assim: os Venezianos foram assistindo, incrédulos, à retirada dos nazis, porque tudo o que é esperado do mais fundo de nós mesmos e tarda a acontecer acaba por ser dúvida, fadiga, espanto, e depois vieram soldados aliados - vinham do céu ou do mar?, e quem seriam eles, Nino, de que país? -, negra era a sua pele, por último os rapagões do Texas. E então, finda a surpresa, a alegria quis ouvir-se, quis ver-se, explodiu. O desafogo tornou-se rugido e vaga. De que maneira se soltou, Nino? Com que palavras ou actos? Os Venezianos, sem que um apelo os tivesse convocado, confluíram em torrente para a Praça de S. Marcos, coração da sua cidade. A catedral, como todos os incontáveis monumentos da "Sereníssima", havia sido recoberta, durante a guerra, de sacos de areia, serapilheiras, oleados, todo o trapo vindo à mão. Os Venezianos não podiam sentir-se libertos sem que a catedral despisse os disfarces, seu luto, sua injúria, e, tal os homens, expusesse o rosto à luz reencontrada.

Foi uma tarefa, um riso de dois dias. Uma festa de brados e lágrimas. Na impaciência de chegar ao fim, e sem os meios precisos, só mãos, ardor e raiva onde se pediam escadas e guindastes, morreu gente, muitos mais ficaram feridos. Mas todo o preço seria nada para essa hora em que, praça repleta, a última máscara foi apeada.

E depois, Nino? Depois os Venezianos ficaram silenciosos. Graves, apreensivos. De súbito, e só então, os anos de sofrimento e tirania pesaram-lhes sobre os ombros aliviados. Os júbilos, tanto como os pesares longo tempo sofridos, têm destes rescaldos.

Estou agora a lembrar a tua narrativa, a tua parábola, Nino Grisanti. Mais uma vez vais dizer-me que tenho boa memória. Tenho-a lembrado repetidamente após o nosso 25 de Abril - que foi apenas nosso, bem nosso, e não dos soldados de Harlem ou dos rapagões do Texas. Quem haverá aí que, desde então, não saiba o que é a estranhíssima, saborosa dolorosidade do sangue que recomeça a cursar numa artéria que esteve obstruída?

Mas sempre que rememoro Veneza, tenho de reproduzi-la não apenas pela maneira como ela permanece em ti, Nino, como a recordas e como a inventas, mas sobretudo através dos caminhos que lá me levaram.

Voltas largas, como irás ver. Um encontro internacional em Sirmione, sobre algumas recentes pistas da terapêutica gastroduodenal. Dois campos bem estremados em liça: de um lado, anglo-saxões ou os que lhes adoptaram a frieza na pesquisa e a secura na linguagem, e do outro o velho calor latino a aquecer as coisas, tanto, às vezes, que até nelas se vê o que nelas não existe.

Este "racismo" científico, e as lides que o traduzem, impressionam um noviço, são espectáculo. Tomemos um exemplo hipotético: alemães, de coruscante olho azul, dão rédea solta a um italiano que vá aos poucos esbraseando, e até dramatizando (não é, Nino?), a sua oratória comunicativa, e quando o espectador julga que está próxima a girândola final, que ninguém duvida que seja triunfante após ter sido empolgadora, uma questãozinha, na aparência anódina, é posta como grão de areia numa engrenagem melindrosa. A pausa de espanto segue-se um gaguejar ofendido, o gesto suspende-se, e eis que às duas por três desaba sobre a nossa surpresa um monocórdico alude de cifras, gráficos, cabalas apuradíssimas, expressões de uma ciência estilo carro de assalto, que deixa soterrada a cativante mas frágil armação das palavras latinas.

A partir daí, os ares carregam-se. Do diálogo, passa-se rapidamente ao monólogo que nem consente réplicas, e, por fim, só o rolar espesso da lógica anglo-saxónica. Tu bem a conheces, Nino. E é então que eles, os bárbaros, começam benevolamente a sorrir.

Até a nossa adestrada ironia se parte nos dentes desta impiedade rigorosa. Que temos a mais ou a menos do que os "bárbaros", Nino? Já ouvi dizer, quanto a nós, lusos: somos pacientes e inconstantes onde eles são impacientes e perseverantes. Resolvemos com facilidade o que é difícil e estatelamo-nos com o fácil. Ao contrário deles. Ao que soube, há meses aterrou em Lisboa, num congresso médico, um sueco de trajar e lidar hippy. Sobre ele caiu a boa chacota alfacinha, que só tem crista quando dentro de casa: "O tipo esqueceu-se da viola." Mas de seguida se viu que, se ele esquecera a viola, trouxera, porém, o computador.

Este intróito, bem entendido, serve-se de tintas caricaturais. Todavia, com maior ou menor exagero, creio que, apesar do internacionalismo actual da ciência, que igualiza as técnicas e o que delas se colhe, ainda sobra com que o cronista possa destrinçar sem esforço o pesquisador latino do de cepa mais fria.

Mas do que eu queria falar, Nino Grisanti, era, pois, do cenário dessas refregas, pelas quais até a Veneza se chega. Intencionalmente as enquadram em sítios apaziguadores, e intervaladas de festivais gastronómicos que convidam à amenidade no trato e, se for caso disso, às reconciliações. Por obra de tal diplomacia, certamente, a soma dos trabalhos é mais espelho de consonâncias do que de dissonâncias - o que em nada lesa a ciência assim lubrificada.

Ora, Sirmione, burgo termal onde os automóveis têm de pedir licença para entrar, é um promontório lançado sobre o lago Garda, atufando-se de arvoredos e orlando-se de praias, e bem o escolhe quem pretenda desafatigar-se de alvoroços ou quem deseje pôr frente a frente escolas em rivalidade. Não há rugido íntimo que se avenha com esta calmaria. Fui encontrá-lo a preparar-se já para o safari estival, nas lojas, em viveiro, o estendal de quinquilharias castiças; pus-me a imaginar o que serão aquelas vielas romanas, onde um trote furtivo se ouve de lés a lés, quando sobre elas descer a matilha ianque.

Para mim, contudo, Sirmione era apenas uma etapa na jornada para a tua Veneza. Sempre lhe passara de largo, à aristocrática e mercantil cidade dos doges, à cidade dos Ninos Grisanti a quem a América não consegue mudar a pele - que receios me sustinham a tentação, a mim, que gosto de chegar desprevenido a um lugar e só lhe averiguar história, usos e pertences depois desse contacto às cegas? Ouvia dizer que Veneza se afundava, que os seus filhos partiam, que do esplendor antigo restava apenas um odor de decadência, quando não mesmo de putrefacção.

E ali estava chegado, após deixar a um quilómetro a impetuosa Mestre, nada e crescida em dois tempos sobre terra firme, a bem dizer um acampamento de foragidos, dos tais trezentos mil venezianos desertados da sua urbe-espectro. Repesos da fuga, sabe-se lá, ou ainda sob o fascínio da "Sereníssima" e por isso incapazes de a largar dos olhos, mesmo assim amortalhada, como os turistas-aves de rapina a encontram.

O tempo, cinza. A carácter para um cenário desolado. Tal como tu a preferes, Nino, tal como tu a amas, a Veneza de névoas, ecos à deriva, a Veneza de enigmas, que morre sem nos dizer quando, que já estará morta no dia em que ainda a supusermos viva. O céu rondava os telhados livorosos, embaciava as águas onde boiavam detritos. Não tardaria a chuva miúda, o ritual das pessoas a sacudirem as umbelas três vezes, sempre três vezes, antes de entrarem em casa, os uivos da brisa a incitar as chapadas das ondas contra o bojo dos vaporetos.

Numa cidade lacustre, mesmo em agonia, as estradas de água são uma lida (e como teriam sido nos tempos áureos, isso pergunto, embora talvez essa não fosse a tua Veneza, a silente e secreta), sobretudo nas vias mais desafogadas ao tráfego: da garrafa de leite à encomenda de detergente, tudo por ali passa, entregue às portas ou nos armazéns de revenda. Os táxis, que se chamam pelo telefone ou com um estalo dos dedos, são outboards ladinos; os autocarros, uns minicacilheiros a abarrotar de fregueses. Com paragens certas, sítios de estacionamento e alguns problemas de trânsito. Num tempo veloz, o remo, a gôndola, a barcaça desmotori­zada, ainda que o pitoresco e o americano saudosista em terra alheia os apreciem, fazem figura de relíquias. Estão ali ainda, é certo, mas porque alguém os abando­nou à ruína ou à espera do assalto do Verão, durante o qual Veneza, com as orquestras ressuscitadas nos cafés de S. Marcos, é largada à voracidade turística. Por en­quanto, Veneza é ela própria: furtiva, moribunda ou se­parada. Ou tudo isso junto.

Uma pessoa apela-se do comboio e logo dá de caras com as pontes, o dédalo de águas e fachadas corruptas. Mãos cruéis andaram por aqui a esfolar as casas, sejam de vilões ou de príncipes, às vezes ficam retalhos de uma pele de ocre sobre a lepra que as esfarelou. Mas ninguém parece doer-se com isso; ou, então, desistiu-se de reanimar o que morto está. Por dentro destas carca­ças pode até encontrar-se um palace de luxos, que deite as suas janelas para o Grande Canal, alameda fidalga, enquanto as traseiras se gangrenam, mas as janelas as mais das vezes já nem abrem nem fecham, e as portas senhoris estão comidas ao raso das águas. Entra-se nu­ma cidade fantasma, em vão procuro o teu amigo enta­lhador de móveis com quem me disseste, Nino, que ias tomar o aperitivo do meio-dia. Estranhamente habitada de silêncios, hálitos, de um peso que nos assenta o joe­lho no peito. Em vão procuro Laura, a bela do filme. Laura de negro, Laura-Julie Christie, Laura-amor, Lau­ra-quimera. Dos setenta mil venezianos que restaram de cerca de um milhão, topamos alguns, encapotados, de olhar nas lajes, vagueando solitariamente nas prace­tas onde o lixo dá sinais de um êxodo. Ou nas vielas sobressaltadas pelos tais cães que procuram os donos fugidos. Só de raro em raro se vê uma luz interior a alumiar uma janela assombrada, ou um barco bem estimado, entre colunatas que demarcam cais privativos. Aí vai laura de negro, canal adiante, ela ou quem por ela morreu. Laura-quimera, Laura-amor. Abstraindo das ruelas que, ávidas de marcos e dólares, se lançam para a majestosa Praça de S. Marcos, onde a luz, quando a há, é uma poalha de oiro, ou dos sítios mais fadados para o turismo glutão, com os seus inumeráveis restaurantes a ufanarem-se do bom peixe e as suas vitrinas apuradas em objectos do maior requinte (do vidro-arte de Murano aos mármores e brocados) - abstraindo desses sítios, sabe-lo tu melhor do que eu, Nino, em que se nos deparam esquadrões de invasores indecisos por onde iniciar o saque, o resto é um pesadelo, Laura de negro que não existe. Igrejas, estátuas roídas, palácios de abandono, sinos que, de alucinados, acordam de repente durante a noite, restolho de asas, um papel ao vento - um cenário vazio. De mágica beleza, sem dúvida, mas a desfigurar-se.

A morte é sempre pungente, tenha ela a grandeza ou o grotesco que tiver, e tão pungente é a morte das pessoas como das terras. A Veneza saída das águas por milagre humano a elas vai regressar. O seu fantasma perpassa já por aí, com Laura de negro, nos canais baços. Mas, antes disso, é este corpo esplendoroso a decompor-se em espectáculo. E que, por ser belo, com mais tragédia o sentimos.

 

                         A CONSULTA

Isto não faz diferença nenhuma do Porto. Só que não vejo é as pessoas lá de cima andarem atrás de um rabo de sol num dia tão fagueirinho como este. Credo. Não me digam que o doutor estende as mãos para o sol por ter frio num dia assim. Queria vê-los na minha terra, e em janeiro, quando não há uma folha nos quintais. Tudo sequinho do vento, da friagem, que até se entranha nos ossos. Sabem lá o que é reumático. Frio, isto? Queria era vê-los na minha terra. Eu sou de Fóios. Já o disse à menina que me pediu o atestado. Em vez de pôr as mãos naquela babugem de sol, que não é sol nem é nada - que querem vocês neste tempo, a bem dizer no Natal? -, antes ele me despachasse. E a mais estes que estão aqui comigo, num cacifo onde uma pessoa nem pode mexer os pés. Credo, credo. Até me falta o ar. Se isso demora, saio daqui aleijadinha. Aquele já me enfiou um cotovelo nas costas. Na sala, ao menos, estava a gente sentada. Viam-se coisas de mirrar o coração, lá isso é verdade, mas tinha os pés em descanso. Não sei para que me chamaram para aqui. Para me consultarem? Isso julgava eu. Esquecem-se. Não se ralam. Que estará ele a fazer com os papéis? Parece que refila com a enfermeira. Se calhar, é ela a culpada desta demora. Já as conheço. Com elas ainda me entendo menos.

Bem as conheço, lá do Porto. Ai minha Nossa Senhora, o que uma pessoa se gasta num hospital! E quem não quiser aturar, que se fique com o mal que tem. Saberá ele que o estou a ver daqui? É quase o doutor do Porto, só mais enxuto. Não comem muito em Lisboa, não, que eu bem reparei ontem em casa da que foi patroa da minha filha. Uma postazita de peixe no fundo do prato. E pão, um quase nada. Olha, lá discutem eles. O doutor mexe nos papéis, se calhar não queria ver tantos na sua frente. São os nossos papéis, onde eles assentam o que a gente tem. É como no Porto. Sabem tudo o que uma pessoa sente, é só lerem. O raio do cotovelo do homem. Se queria largueza, não viesse para aqui. Não tenho culpa de nos fecharem nesta gaiola. Podia muito bem estar sentada na sala. Vinha uma aragem da porta, mas com o meu xaile dobrado no pescoço... Deu-mo o meu filho vai para dois anos, quando... Eh lá, comadre, que ele mandou chamar alguém. Santa Teresinha queira que me calhe a mim. Miquelina da Conceição? Sou eu, sou eu, vou já aí. Agora é que têm pressa. Zangadonas, credo. Eu tenho lá a culpa disto se atravessar no caminho! Põem um pano diante de uma pessoa e depois... Vá, menina, sou eu. Não precisa de me apregoar outra vez. Até parece que há fogo, credo. Ah, assim sentadinha numa cadeira é que estou bem. Agora ali dentro, meia hora de pé, minha Santa Filomena, até a gente nem sabe se as pernas são de carne, se de chamiço. Pois sou eu, sou. Miquelina. Miquelina da Conceição. A enfermeira já sabe. De que me queixo? Estive no Porto. Tinha aqui uma bostelinha no nariz. Mas se ele não levanta os olhos dos papéis é porque tem outros cuidados na ideia. Vou dizer outra vez. Eu estive no Porto. Tinha aqui uma bostelinha no nariz. Só depois disso, quer dizer, curaram-me, deram-me uma injecção. Estive onde? No Porto, senhores. É lá em riba, para os lados da minha terra.

Sou de Fóios. O senhor não conhece? Tem os olhos a modo tristes, este médico. Parecem longe da gente. Ia fazer curativo à maternidade, primeiro foi na maternidade. O doutor amuou-se com a caneta. Sacode-a no papel, está mesmo arrenegando, não vá ele estragar-me o que lá está dito. Se não me ouve, para que falo? O doutor tem a testa cortadinha de raleiras. Nem parece um moço. Já se me tem afigurado que os rapazes de agora são todos assim. Se calhar, foi à tropa. Com o meu Francisco também aconteceu o mesmo. Ninguém depois o segurou na terra. Tinha os olhos aborridos como este. Moidinho por dentro. Mas com um doutor desconfio que a guerra é outra coisa. Ah, o raio da caneta sempre esguichou. Vamos ver se ele agora me ouve, estou aqui a fazer esperar a minha senhora, a que foi patroa da minha filha. Tratou-me bem. A comida é que não é muita. Mas com os meus diabetes... Que lhe disse eu? Ora, disse que o doutor lá de cima me deu uma injecção. Quem? O doutor. Fez-me a análise às urinas e a um bocadinho que me tirou daqui. E depois disse-me: agora vá para a terra. E untou-me com um remedinho. E disse também: olhe, agora isso vai sarar. Lá se engasgou outra vez a caneta. Raio. Trastes destes nas mãos de um doutor! Tem mesmo os olhos enfadados. Com o meu rapaz também foi assim. Veio da tropa e... Untou-me, sim senhor. Untou-me com um remedinho, meu senhor. Pôs-me aqui uma tira no nariz. Disse ele: agora vá para a terra. Passados oito ou dez dias, está melhor, mas tem de ir fazer tratamento pelo raio X, mais gente lhe dá esse nome, eu agora já sei, já ouvi. Pois sim senhor, senão, disse ele, senão isso não melhora, torna a rebentar e pode dar coisa ruim. E depois fui para a terra, apresentei-me ao senhor doutor Garrido, mostrei-lhe a carta que trouxe. Está aqui. Parece que ele não a quer. Olha, não faz caso nenhum da carta. Não a quer ou ainda não me está a ouvir bem?

Seja como ele quiser. Tanto se me dá. Pois. E disse ele assim: traz atestado? Eu disse assim: não, senhor doutor Garrido, eu vivo pobrezinha. Ai não traz atestado? Não trago, não senhora. Então, se não traz atestado, tem de ir para Lisboa. Eu disse assim: então no Porto, ora uma destas, então no Porto uma pessoa não pode... E ele disse: no Porto, santinha, não há tratamentos destes. É de admiração, pois não é, senhor doutor? E eu agora vim para aqui. Nem conheço aqui ninguém. Ui, até cansa o peito ter de explicar as coisas de uma assentada. Lá despachado é ele a escrever. Mas sempre gostava eu de saber que escreve ele se ainda não lhe disse nada da minha ruindade. Olha-me, sim, e agora até me olha de outro jeito, parece que já lhe saiu a molinha dos ossos, mas está-se-me cá a afigurar que ainda pensa noutra coisa. Vai falar-me. Diz que o deixe falar a ele por um migalhinho. Pois não. Sim, meu senhor. Quer fazer-me uma perguntinha. Diga, meu senhor. Quando é que isto começou? Quando é que dei pela bostela no nariz? Tem bons modos, tem, não é como a fúria da enfermeira. Mal empregados olhos, não, mal empregada testa tão cortadinha de canseiras. É de tresler, é dos estudos. Ou, se calhar, é dos cheiros. Que porcaria de cheiros no hospital, meu rico Santo António, até o estômago se anoja. No mais, asseadinho. Limpeza, valha a verdade. Olhe, meu senhor, o ano passado, no Verão, nasceu-me uma borbulinha assim aqui, e eu depois... Uma borbulinha já com uma cabecinha de matéria. E eu esfolei-a. Espremi-a a ver se melhorava. Se foi há um ano? Mas se eu disse ainda agora que sim! Ah, está bem, é para a caneta escrever. E ligeira, até cuida a gente que ela vai adiante das falas. Há um ano? Foi, já o disse. O homem é duro de ouvido. Já me tinha parecido. O que eu gosto é de ver que o riso lhe entrou nos olhos. Agora sim. Agradou-se da Miquelina. Já no Porto os médicos engraçavam comigo. Fez um ano no Verão, senhor doutor. Eu depois... Eu depois esfolava-a a lavar a cara. Como não me doía, não fazia caso. Mordia-me muito e deu-me em doer. E então fui ao pé de um doutor. Oh, que eu sou de Fóios. E fui ao doutor, ao doutor Garrido. Que ele também é muito amigo.

E eu disse para mim: olha, vamos ao senhor doutor Garrido, que é um doutor muito entendido. Vamos lá.

E eu fui lá e ele disse: como começou? Perguntam todos o mesmo, desculpe o senhor que lhe diga. Olhe, senhor doutor, foi no ano passado, no Verão. Esta feridinha aqui. Você já devia ter cá vindo. Mas eu não me doía. Descuidos, é o que é, devia ter cá vindo. A gente é pobre, só quando... Bem. Ele ao depois pôs-me um remedinho e uma tira. Foi numa quarta-feira. Disse ele: agora venha cá na segunda-feira. Se eu deixei passar a segunda, a terça e por aí fora? Pois engana-se, meu senhor, não sou parva nenhuma. Engana-se, assim Deus me salve, meu senhor. Eu fui. Palavrinha que fui numa segunda-feira e olhe que tornei. E ele disse: então como está isso? Olhe, senhor doutor, encontro-me na mesma. Disse ele: então temos de pensar noutras providências. Dou-lhe uma carta e vai a um doutor do Porto. Fui com aquela carta ao senhor doutor do Porto.

E depois ele perguntou se... como... Será que a enfermeira se agonia com a conversa? Pois não ouça. Se calhar, também lhe doem os pés de estar ali perfilada. Uma pessoa não pode estar toda a manhã ora sobre um pé, ora sobre o outro. Que desande. Para o que está a fazer... Não sei o que elas se julgam. As coisas têm de ser ditas como é dado, senão os doutores nem entendem. Eu bem vejo que os olhos do doutor, eh, já lhes passou o quebranto, ou a tristura, não sei bem, estão a dizer-me: volte-se para mim e deixe lá os arneses da enfermeira. Que esperem, eu também já esperei, primeiro lá fora, na sala, que mundão de gente, e depois ali dentro. Nem já sentia o corpo. E então com o cotovelo daquele lingrinhas espetado nas costas... Se ela não quer ouvir, que não ouça. É mesmo um cheiro que faz tonturas. E depois ele disse: há-de tirar análise de urina. Foi o meu filho que veio comigo, o que está casado no Porto. Foi comigo ao doutor e tiraram-me a análise. Se não quer ouvir, que não ouça. Estou aqui para explicar as coisas bem explicadas. Que julga ela? Tem frio? Também eu. Não, eu não tenho. Sabem lá o que é frio. Até o doutor tem as mãos a apanhar esta merdinha de sol. O sol arreda-se e elas vão logo atrás dele. Depois põem-se a escrever, não se fartam, credo. Ainda gostava de saber... E que eu ainda não disse nada. Mas ele escreve, com mil diabos. O quê, não sei. E lá com ele. Eu calo-me. Deixo-o escrever. Ah, bem. E depois ele disse: agora... E deu-me uma injecção. Nem a gente conta as coisas como é dado a olharem-nos assim. Mas para que me hei-de moer? Se eu não estivesse doente, não estava aqui, não. Fiz a viagem de comboio, foi uma data de dinheiro. O meu filho é que me valeu. E também a senhora da minha filha. Vim aqui direitinha sem me perder. Uma injecção e tirou-me dois bocadinhos deste lado. Eu deitava sangue, credo, que nem um cabrito. Quer ver? Veja, apalpe à vontade, é aqui. Limpava com gaze e depois o sangue parou. Tirou-me daqui dois chibinhos e meteu num frasco. Sim, dois chibinhos. Que disse eu para se rirem com tais caras? Até o estafermo da enfermeira. E a outra, lá detrás, a esticar o nariz. Dois chibinhos, pois, meu senhor. Dois bocadinhos assim, uma coisa de nada. Ah, já percebeu. Estará ele a caçoar ou fala a sério? Há um diabo a tossir não sei onde. É tosse ou mangação? Estas pessoas não têm parança. Ele é doentes, ele é doutores, anda tudo numa fona. A gente nem sabe para onde se deve voltar. Que pressas, que aflições. E o povo de gente, ali fora, à entrada! Não me deixaram ficar no corredor. Acomode-se, santinha. E aonde, digam-me lá. No cacifo? Eu é que sei como fiquei com os pés. Os chibinhos? Tirou-mos, meu senhor. E depois ele disse ao meu filho que os levasse a outro hospital para tirarem uma análise. O meu filho levou-os. Sim, aos chibinhos. E a fúfia a dar-lhe com a risota. Mas ela a modos que come o riso, não o deita para fora. Nunca engracei com gente assim. Bem feito se lhe doem os pés. E o doutor também não é de fiar. Isto de gente da cidade... Não engraço com eles, pronto. Riem-se de quê, vamos lá a saber. Do que eu digo? Eu não sou mulher para queixas, não. Pobrete mas alegrete. E ao depois o doutor Freitas, lá o do Porto, meu senhor, hein, curou-me e disse assim: olhe, agora vai para cima, para a terra, e de vez em quando molhe com um bocadinho de álcool. Por via da côdea cair. A côdea, sim. E ela a dar-lhe, a fúfia, a meter-se na conversa. O raio do homem tossiu outra vez por detrás do lençol. Que estarão eles a fazer-lhe que os mais não possam ver? E cá o rapazelho, desde que as agonias lhe saíram dos olhos, desde que borrifou o papel com a caneta... Eh, uma mosca. Querem lá ver, um mosquedo destes, numa casa asseada! Sim, meu senhor. Álcool para deitar aqui. E depois, mais tarde, lá saiu a codita, e disse ele: mas olhe que isto não é para melhorar. Se foi primeiro o chibinho e depois a codita? Não entendem, estes raios. Não entendem coisíssima nenhuma. E vinha uma pessoa de tão longe. De Fóios. Do Porto para cá foi de comboio. Vim sempre com umas ânsias! Sozinha. Mas cá cheguei. É aqui Lisboa? Credo, só luzes. Não vejo nada. Tanta bulha, que até fico com uma zoada nos ouvidos. Fica uma pessoa mouca. Que tussa à vontade. E os do cacifo que se enfadem, que eu também já estive lá dentro. Um tempo danado. E de pé. Não, meu senhor. Depois ele deitou-me aqui uma pomadinha, pôs mais uma tira no nariz e disse: agora pode ir para a terra, que isso vai sarar, mas ao cabo de quinze dias tem de cá voltar. Tem de cá voltar para fazer tratamento num aparelho, porque isso rebenta outra vez, rebenta uma vez e outra e pode dar coisa ruim, digo-lho eu. Eu depois fui para cima. Olhe, senhor doutor, fazia favor, dava-me uma carta. Não entendiam, acabou-se. Via-se logo. A carta não é de vossemecê, pedi-a mas foi ao outro doutor, o de Fóios. Dava-ma e eu vou mostrá-la a... Levei-a ao doutor Garrido. Ele esteve a ler. Disse ele: mau. Senhor doutor, eu sou pobre, eu não tenho... Disse ele: mau. Traz atestado? Trago, sim. Então apronte-se para marchar até Lisboa e fazer tratamento. Ao tal raio X. E no Porto, senhor doutor? Eu como tenho o meu filho no Porto e calha às vezes ir vê-lo... Então ele disse: você tem de ir é para Lisboa, que tratamentos desses não os apanhamos no Porto. Vai uma pessoa e... A semana passada mandou-me o atestado, eu vim ontem, mas ontem não tinha cá ninguém, não senhor. Tinha uma filha a servir numa senhora, eh, que rica senhora, benza-a Deus. E a minha filha escreveu. Que eu a senhora não a conhecia. A minha filha escreveu para a senhora, para me ir esperar ao comboio, que eu não conheço aqui ninguém, nunca aqui vim. Eh, o doutor deixou de me olhar direito. Um rapazelho. Se calhar também já se enfadou. Não pode uma pessoa explicar-se, enfadam-se logo. Mas se é ele que pergunta!... Pergunta assim assim. Não pergunta grandes coisas, não. Escreve. Médicos, lá os de cima. Se tive alguma doença? Era o que eu ia dizer. Tive, pois. Olhe, eu, o ano passado, estive malzinha e vim ao doutor e ele descobriu-me os diabetes. Os diabetes, sim, que admiração é essa? O rapaz é duro de ouvido. Pois os diabetes. E aqui há anos tive um sentimento do pulmão esquerdo, mesmo por baixo desta costela. Aqui. Mas tratei-me com o doutor Garrido. O senhor doutor conhece-o? Que mais? Ora, melhorei. É um doutor entendido. O que é que tomei para os diabetes? Para os diabetes tomava uns comprimidos.

Custava um tubo... não, já não me lembra. Comprimidos deste tamanho. Tinha vinte comprimi­dos e tomava-os vai não vai. Ele depois... Não, o bo­ticário é que disse: olhe, estes comprimidos tem de os tomar metade, um por dia, mas é metade ao meio-dia e metade à noite. Bebe uma pinguinha de água e depois mais tarde... Como me senti? Eu, meu senhor? Eu vim ao Porto, que eu tinha aquela doença. Eu como tinha o meu filho no Porto, sim, bem, disse lá ao meu homem: vai ao Porto ver. O senhor doutor Garrido não estava lá, que ele é de Trevões, no Douro, e vai fazer consulta ao Lagoeiro. Mas ele não estava lá e ao depois disse o meu homem: olha, vai então ao Porto, o teu filho que te leve a um doutor e depois o senhor doutor te vê. Disse-me então que eu tinha os diabetes, tirou-me a análise à urina e disse logo: você... E depois fui para ci­ma. Vá: tosse, tosse, abre as arcas do peito, que eu bem vejo que é uma tosse velhaca. Que disse eu para estes diabinhos não pararem de tossir? Vim do Porto de comboio consultar estes senhores, tenho de responder ao que me perguntam. E eu é que sei o que a viagem me custou. Não sou nenhuma empata, não senhor. Se é saudável, ele? O meu marido, coitadinho, também vive com tratamento, que ele há quatro anos também esteve no Porto por causa do fel dos fígados e do estômago, tudo chega a uma pessoa, que ele vive também da dieta, coitadinho. Até compramos leite para ele tomar porque lho receitaram no hospital do Porto. Se você se dá bem com o leite, beba-o à farta. Ele dá-se bem, graças a Deus. Vive também de tratamento, senhor doutor. De manhã, só o leite, com um naquinho de trigo. À farta, não? E as posses? Onde tenho eu o leite para lhe dar? Ao menos uma cabrinha, mas o pasto é dos outros. Pois é, à farta. E ao meio-dia as batatinhas com uma lasquinha de bacalhau e com uma pitadinha de molho. Azeite, sim. E à noite outra vez o leite. Quem me dá o dinheiro para o leite e para o bacalhau é o meu filho. Os filhos são a riqueza dos pobres, não é o que dizem? Quem quer saber dos velhos, meu senhor? Pois o meu homem vive assim. Ele agora até tem passado malzinho. Há ocasiões em que lá para cima, nem bacalhau uma pessoa... Nem um cheirinho dele. Vai todo para as Áfricas, é. Mas os pobres soldados também têm de comer. O meu... Vinha assim esquisito, vinha. Não falava, não contava nada. Agora já há, meu senhor. Muito delgadinho, mas há. E a vida da gente. Vão os homens das vendas comprá-lo ao Porto. E a gente dá mais alguma coisa para ele ir comendo, coitadinho. E eu também como. Porque o senhor doutor me receitou que eu podia comer duzentos gramas de peixe cozido e um quarto de quilo de batatas. Para o meu mal, o mal que eu tenho. Agora ele é um homem que come poucochinho. Quem? O meu homem. É de pouco alimento. Eli, aquele que passa por trás dos varões também leva uma tira na cara. Quem põe o pé nestas casas, prepare-se para ser desfeado. Tem de ser. Que a mim não me rala. Uma pessoa, se vem a estes sítios, sujeita-se. Eli, este velhinho faz pena. Até se baba. Credo, não há quem o ampare. Olhem que o homem de Deus vai cair! A fúfia, pois. E a sua obrigação. Os cheiros é que é o pior. Se não lancei fora há pouco foi por vergonha. Este cheiro meteu-se-me nas tripas. E às vezes há um barulho que desce por estes canos, parece que faz rebentar as paredes. Que trovoada. O velhinho faz pena. Lá fora havia uma porção deles. Doentes não faltam aqui. Alguns vêm deitados em camas, amarelinhos, benza-os Deus. Estar aqui todo o dia, credo. Ná, não era ofício para mim. Agora o senhor doutor Garrido, que não sabia... Disse ele: bem, como a senhora tem os diabetes, vai-se primeiro tirar uma análise às urinas, e depois dois bocadinhos de carne, que me tirou daqui, para ver o tratamento que... Eu era para trazer no... uma carta... e esqueceu-me, não ma puseram aqui. Era para mostrar ao senhor doutor. Era, sim. Lá me corta ele as falas. Às tantas, uma pessoa nem sabe aonde vai. Todas as coisas têm o seu seguimento, sempre ouvi dizer. Já me perdi. Ai, senhor doutor, não conheço aqui ninguém. Tenho esta senhora que foi a quem a minha filha escreveu para me vir mostrar o hospital. Eu nunca aqui vim, meu senhor. Agora eu disse assim ao senhor doutor: fazia favor, a minha análise. E ele disse assim: olhe, vai... E o homem a escrever! Que pode ele escrever se não ouviu o resto? Escreve, escreve. O raio da caneta parece que lhe chegaram lume ao rabo. Que escreva. Ai Nossa Senhora me valha. Porque é esta aflição? Sim, meu senhor. Se eu melhorar até ao Natal... Não vou chorar, não, meu senhor. É só assoar-me. Constipei-me. Não, meu senhor, deste lado não me tiraram coisíssima nenhuma. Deste lado, não. E ele teima na sua, hein? Só foi daqui. Cá está a marca. Os chibinhos, pois. Manga comigo. Pela certa que está a mangar comigo. Não lhe vou responder. Isto é consulta ou quê? Daqui nunca tive nada. Daqui estava bem. Depois fui para casa, passei o dia de Todos-os-Santos no Porto. Como ainda não estava melhor... E então apanhei uma destas constipações! Eu estava a fungar, meu senhor. E então assoei-me. Pôs-se-me este lado todo inchado, senhor doutor, até o olho, a vista, nem podia enxergar nada. E a boca? Era assim. E eu disse: olha como está este lado. Da outra banda, não, estava bem. Se era igual? Era, sim. Foi, sim senhor. Apareceu-me já ao depois de ter tirado o que lá estava. Até me diziam que era um coxo. Isto de mulheres velhas, meu senhor... Disse assim: olha, se é coxo, vou cortá-lo. Vossemecê não sabe o que é um coxo? Assim uma coisa. E das aranhas. Quando passa a aranha assim na cara da gente, e dizem que faz um coxo. Uma ideia cá das pessoas. Os aranhiços, os aranhões, não há falta deles, não. Pela cara.

Dizem que é coxo. Eu ao depois fui cortá-lo. As aranhas que fazem o coxo. Na cara da gente ou nas mãos. Mas isto é de mulheres velhas. E eu ao depois fui cortá-lo. Eu, uma rapariga? Vossemecê está a caçoar. Rapariga, nem a gente já se lembra quando isso foi. Mas era coxo. Foram as outras mais velhas que disseram. Qual faca, meu senhor. Com rezas é que é. As palavras de Deus, se não fizerem bem, mal também não fazem. Oh, mas isto não passou, senhor doutor, cá o tenho outra vez. Disse assim: olha, secou-se-me deste lado e arrebentou do outro. Pois como pode ele entender se não me ouve com atenção! Foi do outro, meu senhor, eu até pôs-se-me a cara deste lado, a cara e o olho, nem via nada, um trambolho. E o nariz, desta banda aqui, muito inchado. Metia medo. Ainda passei dois dias na cama, malzinha que só eu sei. Até se me meteu na ideia que foi devido ao tratamento. Vai pôr-me boa, meu senhor? Isso é que eu quero. Ah, boa... Tenho. Vou nos sessenta e cinco, senhor doutor. Uma carrada deles. São muitos, são. Uma pessoa gasta-se. Nos pobres é assim. Trabalheiras. Tive nove filhos e um desmancho de três meses. Nove filhos é obra. Tenho cinco vivos e quatro no céu. Ai, meu senhor. Cinco vivos. Olhe, meu senhor, na nossa terra leva-se muita lida e passa-se muita fome. A gente, na nossa terra, vive-se com muito trabalhinho e... Bem, agora já não, agora já há batatas. Agora começou a ir para lá um homem com batata de fora e a gente compra três ou quatro sacos, tem batatas para todo o ano. E ao certo, ao certo, há os fins da vindima e depois quem tem azeitinho, colhe azeitinho, ou vinho, ou umas couvinhas, a gente ao depois paga os juros no fim das vindimas. Quem tem alguma coisinha. Paga o juro, sim senhor. A quem? Ora, ao homem das batatas. E depois a gente, às vezes, até vai pedir. Eu tenho um filho que anda a ganhar. Diz ele: bem, minha mãe, já temos a casinha farta. Que ele agora anda na tropa. O outro já saiu, está no Porto. Paga-me as batatas. A gente, com a batatinha, com o caldinho... Que eu agora, por minha desgraça, não posso comer o caldinho com massa, nem arroz. Tem sido só com batatinhas e couve. É dos diabetes. Carne? Qual carne. A gente não pode. O senhor doutor receitou-me que eu só podia comer um quarto de quilo de batata por dia, meio quartilho de leite e um caldinho de batata e couve. Hortaliça podia comer nem que fosse quatrocentos gramas. Agora as batatas era um quarto de quilo e podia... pois, meio quartilho de leite. Ora, e pão nenhum, senão dois moletinhos. Moletes, sim. Chamam-lhe moletinhos. Cá no Porto são assim compridos e custam vinte escudos o quilo. Como eu vivo lá longe, já se sabe, às vezes... Dois moletes por dia. Mas eu vivo longe, não mando vir, nem tenho dinheiro para mandar vir um. Às vezes o que como é um bocadinho de pão de centeio e também de broa. Às vezes chego a casa, tenho apetite, como um bocadinho de pão de centeio e já mato a fome. E digo assim: ai, agora ando sempre com fome e nem posso comer um caldinho. E eu que tanto gostava do caldinho de feijão e arroz e massa e agora... Louvado seja Nosso Senhor. Tenho uma filha e diz ela assim: olhe que este mal ou põe a gente cega ou maluca, por isso vossemecê não abuse. Havia lá um senhor de Fóios que se pôs cego e dizem que era ele que abusava de comer. Está a gente sempre com medo, porque a gente depois cega. O doutor dizia assim: a senhora precisa é de comer carne. Não comer batatas, comer carne. O doutor mandou-me comer carne cozida, duzentos gramas, mas a gente não pode. A gente come sardinha assada e esta minha filha diz: agora coza um molhinho de couve-sancha. Sancha, pois. Não conhecem nada, estes raios. E ela, que está prà'li com aquelas sinalefas, se calhar nunca comeu couves, hein? Coza umas folhas de couve-sancha e coma com as batatas. É assim a vida dos pobres, meu senhor. Ela estava aqui a servir, sim, mas agora já se casou. Foi-se casar e agora a patroa da minha filha... Ela é que escreveu pra onde esteve a servir e foi por isso... Ela disse: então que venha. A tua mãe que venha, mas eu também tenho de ir fazer uma operação, um tratamento ao hospital, e posso ir ensinar-lhe aonde é o hospital. Mas eu, sim, eu nunca vi aquela senhora, nem a conhecia, e trouxe... quer ver o quê? Ela então disse: a tua mãe que traga um ramo de flores para eu conhecer quem ela é. Teve graça. Foi assim. Umas florinhas do meu quintal. Neste tempo não há muitas, não, e a geada arreganha-as todas. Pois eu vivo na minha terra, em Fóios, e nunca aqui vim. Se gostei da viagem? Ai, meu senhor, vinha cheia de comboio. Tudo a fugir dos olhos, põe-se a cabeça à roda. De Lisboa ainda não vi nada, mas é um Porto um bom bocado maior. Cheguei ontem de noite, senhor doutor. Gostei foi da noite. Tudo luzes acesas, tudo uma noite de estrelas de volta da gente. Mas eu ainda não vi nada. Cheguei à estação, fiquei ali pasmada, com o braçado de flores. É aqui Lisboa? E, sim senhor. Bonito, não digo que não. Depois a senhora apareceu. A senhora onde estava a minha filha, e eu dormi em casa dela e ela veio então trazer-me aqui ao hospital. E ela estava ali à minha espera. As flores vinham mesmo arrebentadinhas de todo, não serviram para nada, foram deitadas numa cesta lá na estação. E ela então disse: mas olhe que eu não posso porque também eu vou fazer operação. Tenho de ir curar-me. Sim, minha senhora, eu ao depois vamos a ver. Gostei, sim senhor, não vou mentir que não. Mas vinha já cheinha de viagem. Nunca fiz uma viagem tão comprida. Não, meu senhor, nunca tinha vindo cá. E ao Porto vinha desde que o meu filho está casado. Vim lá três vezes. Ou mais, sim, já nem me lembra. Cheia de viagem, não podia pôr as flores no chão, era sempre nos braços, como quem traz um menino, já nem os sentia, mas gostei de ver aqueles campos a correr. Só aliviei os braços pra comer uma codinha. Comi pouco. Vinha na carruagem, ao pé da janela, e dizia assim: aqui onde é? Ai, que linda cidade. Bem, eu gostei muito. Eu não sei ler, meu senhor, mas perguntava as cidades. Aqui onde é? Lá me diziam. Da que mais gostei? Gostei mais desta aqui, que é limpinha. Sede é que eu tive. Comer não me apetecia. A senhora ainda me mostrou de noite: olhe, vê? As luzes e o Cristo-Rei, havia uma estrela encarnada a pendurar-se no céu. Olhe aqui. Gostei muito. Do Cristo-Rei, gostei muito dele. Era ao longe e havia uma corda de estrelas pelo meio, era um rio, pareciam pirilampos a nadar. A senhora mostrou-me e disse que da casa dela também se via o Cristo-Rei. Isto é que são terras. Não, meu senhor, viver é na minha terra. Sei lá, é assim. Eu dormi em casa dela e ela agora de manhã veio cá pra me ensinar o hospital. Disse ela: olhe que eu também tenho de ir fazer operação. Ela disse: bem, eu vou-lhe ensinar, tenho de ir à operação, e veio comigo, está ali à minha espera. E depois a minha filha disse: em Coimbra compre uma arrufadinha. Ai, não comprei nada, meu senhor. Mesmo nadinha. Eu vinha cheia de paixão por me lembrar que tenho de passar o Natal aqui, sem o meu homem e sem a minha filhinha. A gente, já se sabe, chora porque... Também é da constipação, é. Quê, meu senhor? Eu antes queria isso, meu senhor, e eu disse... Mas ela... Ai, a minha filha disse: para se sarar, quanto mais depressa melhor. Ir passar o Natal e voltar para o resto do tratamento? Ai, a despesa é muita. É muito longe, vem uma pessoa fartinha de comboio. É muito dinheiro. Eu também pensava... Quê, já estou despachada? Assim de repente, ora uma destas, o cabrão do homem. Nem me chegou a perguntar nada. E que me vão fazer? Esperar, já esperei há bocado. Que já me chamam outra vez? Isso diz ele. Sou a Miquelina, sim senhor. Da Conceição. Querem ver que ela ainda não o sabia! Mal uma pessoa começa a contar o que sente, viram-nos logo o traseiro. Vão-me tirar um chibinho do outro lado? Se é isso... E onde mo tiram? Está bem, meu senhor. Espero, sim senhor. Mas olhe, senhor doutor, eu também queria tirar a análise ao sangue, a ver dos diabetes, a ver se estão adiantados. Se é assim, está bem. Porque lá o senhor doutor não tirou. Só foi à..., com licença do senhor doutor, às urinas. Os bocadinhos que me tirou daqui... o homem já não me ouve... foram coisinhos de nada. Mas ele disse ao meu filho: tem de... Sem isto não se pode fazer tratamento à sua mãe e pode acabar numa infecção. Inácia Rosa Clemente se calhar é esta. Não me consultaram, é o que é. Guardo o papel, sim senhor. Espero lá fora, sim senhor. Posso então ir-me embora? Eu... amanhã, aman... am... a... Lá vão rebentar os canos. Cabrão do homem.

 

                             O "GRINGO"

Não se podia continuar com tal cão lá em casa. Uma ladração obsessiva, um ladrar só por ladrar, houvesse ou não intruso em perspectiva, houvesse ou não canzoada à vista, um ladrar gratuito, demente, que enchia os ouvidos e esburacava os miolos das pessoas até apetecer desatar aos gritos. Um ladrar de empreitada, mais talvez de noite, por ser a hora em que todo o ruído ganha o eco das pedras atiradas ao vidro do silêncio; - e imaginem agora esse ladrido em Monsanto, a meio da cumeeira, que já é a dois passos do tecto do mundo, onde não há som que logo não ressoe por uma data de barrancos, outeiros e valados! Um ladrar sem pausas: quando é que, afinal, o raio daquele cão dormia?

Gringo. Chamava-se Gringo. Um nome que eu lera num livro mexicano, muito antes de o ouvir nos filmes com parentela nos westerns. O Gringo aparecera-nos em casa numa altura mesmo azada para nos apegarmos a um bicho, ainda que ladroento, e fora por isso que íamos adiando uma decisão. Morrera-nos o Pinóquio havia pouco tempo, num lance que até fujo de recordar - e, tendo-se sabido do caso, não nos faltavam ofertas de cães. Mas nem pensar em tal. Um cão que viesse render o Pinóquio parecia-nos inimaginável. Uma ofensa à nossa dor.

Um dia, porém, entrou-me no consultório um homem vindo lá do diabo, dos confins da serra, com um presente misterioso aconchegado sob o capote.

- Senhor doutor: sei que teve um grande desgosto por causa do animal. E, por via disso, trago-lhe uma coisinha para os seus meninos.

- Meninas...

- Tanto faz. Crianças.

E a coisinha era o Gringo. Um novelo de lã, como se usa dizer. Mas eu acho que estaria mais certo: um novelo de neve. Todo ele uma brancura de pêlo, salvo a malha entre as orelhas, no sítio onde, já naquela idade, se viam três refegos de desconfiança, de viveza, ou lá do que era. Viera o homem da serra, andara duas léguas com essa coisinha debaixo do capote só para me sarar o desgosto pela morte de um rafeiro - como recusar? Como dizer-lhe que eu jurara não voltar a ter um cão portas adentro?

E lá o levei para a família. Gringo. Pinóquio é que não.

Todavia, perguntou-se logo de que modo aquela bolinha de carne tinha já alguma braveza nas goelas. Metia a língua no caco da comida e, ao mesmo tempo, ladriscava. Ou então, entre o levantar do focinho para remedar o protesto e a lambedela nas migas, decorria tão pouco que à gente se afigurava haver simultaneidade na manobra. Porquê a refilice? Memória de maus tratos, estranheza do ambiente. Palpites benévolos, pois o Gringo ia-se fazendo cão de dia para dia, esquecera já donde viera, ajeitara-se sem reservas a todas as mãos que o ameigavam, mas, fossem quais fossem as circunstâncias e as pessoas, ladrar era a sua expressão vital. Vivia para ladrar. Ladrava porque estava vivo. E múltiplas combinações se poderiam fazer destas pedras do mesmo jogo. A mais certeira, porém, devia ser: no Gringo, ladrar, ladrar assim, era uma manifestação de folia.

Mas vou a contar depressa de mais.

O Gringo, ao ser apresentado às pessoas da casa, ainda de olho rameloso, optou sem hesitar por minha mulher, deixando mesmo de lado as crianças, e passou a segui-la com uma teima que nada pôde refrear e muito menos corrigir. Mas seguia-a ganindo e ladroando, as orelhas ora derrubadas, ora em lança, consoante o modo como lhe corriam os dedos pelo lombo. Às vezes, era só um rouquido; outras, um gemido choroso - mas, em lhe dando a veneta, de pronto se retesava a nervura das pernas e explodia a arruaça. Gritava, gritava, e, ao chegar da noite, minha mulher viu-se forçada a preparar-lhe um ninho aos pés da cama. Qual ninho! Era na nossa cama que o Gringo decidira dormir e foi lá que acabou por anichar-se. Só por aquela noite, coitadinho do bicho, estava assustado entre gente desconhecida, até debaixo dos cobertores tinha um ou outro repente de mau génio. O pior é que esse alvoroço nunca mais serenou. No dia seguinte, o Gringo, já a receber no faro o que havia de cobiçoso, investigou a casa peça por peça, no quintal outro tanto, sobretudo a zona das capoeiras, subindo e descendo os degraus com a ajuda das minhas filhas, visto que, de íngreme que é o chão, todo em ladeira, não há dois palmos de terreno sem um socalco. Mas sempre na chiada. Ninguém dormiu um par de noites, pois era preciso que o canito se habituasse à manta que lhe fora posta na cozinha velha, por cima da qual se mandara fazer a varanda, que era uma espécie de mirante privilegiado sobre os longes da Covilhã e onde os presuntos de borrego, ali comidos, refinavam de paladar. Manta? Que ficássemos nós com ela. O Gringo vinha para o ar livre, debruçado no muro, a ladrar. Ladrava toda a noite e, por último, não havia cão de Monsanto que não entrasse no coro. Se lhe deitavam um ralho, esmorecia o brado por instantes, já certo de que outro o renderia, e até se punha com um modo desolado se alguém viesse por ele. Mas nesse fingimento não se lhe apagava o azougue na menina dos olhos.

A ti Emília, a quem os dentes nasceram na nossa casa, pois já contava três gerações, e que nem fazia ideia do que podia ser uma insónia, à terceira noite sem pregar olho teve de pedir providências à minha mulher. E quanto à vizinhança, suponham o que quiserem. Julgo mesmo que, em toda a rua, o aspecto sonâmbulo das pessoas, começando por mim, provinha do mau dormir. Cão do diabo. Maldito Gringo. Dava uns pinotes de esparvoado, e era-o com certeza. Todo de rompantes. Às vezes, corria, corria sem ver nada à frente ainda que o obstáculo lhe entrasse pelos olhos, e depois punha-se a latir, dorido e espantadiço, e, num súbito arremesso, a ladrar a um responsável imaginário.

Primeiro muito delicadamente, os vizinhos vieram insinuar-me que talvez aquele cão não estivesse talhado para uma casa na vila. No campo, sim, queriam-se animais barulhentos. O Gringo não era feio, ninguém poderia dizer o contrário, só talvez com o rabo um tanto desmedido, a pedir cutelo, e medrava que dava gosto, mas quanto a aranzel, Deus meu! Sabia-se lá se havia um "borborinho" (alma penada das que tinham acampado em Monsanto) metido naquela cabeça tonta, naquele ladrar de má morte.

Tínhamos uma espécie de jaula desocupada, onde certa vez se fechara um raposo, e decidimos pregar-lhe uma rede nova bem pregada, com uma portinhola estreita, por onde o Gringo entrasse e saísse a custo, quando de manhã lhe déssemos rédea. Todavia, o Gringo, uma coisa de nada de cão, patinha curta, só garganta e rabo, espatifou a rede a meio da noite, ladrou, ladrou, e pela primeira vez meteu-se com a capoeira: foi um vai-se acabar o mundo de alarido e galinhas depenadas. Mata-se este cão, este danado Gringo!

Curioso que até a mansarrona da égua do Pantaleão embirrava com o sujeito. A égua, se fosse preciso, estava ali horas defronte da casa, esperando pachorrentamente que eu me aviasse para irmos a algum doente mais distante, até nem se ralando muito com a moscaria, mas em apercebendo o Gringo, o desaforo do Gringo, disparatava. Coice que fervia. Mate-se este Gringo. Pois se até a égua, a "minha bonita", na fala terna do Pantaleão... E a "bonita" não queria eu desconsiderar, visto que era a única alimária de Monsanto que me fizera esquecer o meu tempo de cavalaria, com aquele tenente que começava a recruta deste modo encorajador para os futuros bacharéis: "Fiquem sabendo: aqui não há doutores de merda. São todos filhos da mesma mãe." Que fossem, pois claro, mas afinal não eram. Tudo corrido a filho desta e daquela se havia a suspeita de bacharel no caso. Apenas o Mascarenhas, bem recomendado, merecia tratamento de excepção. E um dia em que o nosso tenente o confundira com outro, o insulto já quase não tivera emenda: "Seu filho da... Oh, senhor Mascarenhas, então é o senhor? Ponha o calcanharzinho pra baixo, gaita!"

Pois até a égua do Pantaleão embirrava com o Gringo;

- Es capaz de te informar se os cães podem mudar de feitio? - inquiria minha mulher, não sei com que intenções. E nessa altura foi-se-me bem evidente quanto ela andava abatida, olhos e rosto pisados, e sobretudo uma sombra de melancolia, a reflectir talvez ideias fixas.

O Gringo passou para a loja, onde guardávamos os cereais e os potes de azeite, e na manhã seguinte, ao acudam aqui da ti Emília, vimos que tudo aquilo se transformara num campo de batalha. Havia garrafas partidas, batatas e cebolas ao desbarato e um dos potes entornado. Quanto ao Gringo, sobre o murcho, parecia bocejar de tédio após uma noitada sem emoções. No entanto, veio ao chamo a babar-se em fio, negaceando ao aproximar-se das mãos, deitando olhadelas interrogativas, que, porém, me pareceram mais de gozo do que de inquirição. Quando sentiu que a coisa ia aquecer, disparou para longe, numa guinada.

Malvado bicho. E a soberbia dele com os da sua raça! A soberbia dos bem comidos numa roda de famintos. Passeava-se por entre eles, o rabo comprido em penacho, e já não era por uma questão de reflexo condicionado que ele alçava a perna e quase lhes mijava em cima. Estou certo que havia ali o desdém do farto. Quando a ti Emília atirava da janela para a rua, como se via fazer a toda a mulher de Monsanto, as águas da cozinha, e já lhe esperavam o gesto uma caterva de rafeiros de pele e osso, o nosso Gringo ia à porta saborear a cena e incitar as brigas. Só lhe faltava traçar as patas e um palito nos dentes. Uma vez por outra, animava o espectáculo com um rosnanço a algum famélico menos expedito, até vê-lo escapulir-se de mirada triste quelha abaixo. Terminado o festim, lá vinha a ladração. O sossego desaparecera daquela rua de Monsanto.

O sossego e os pedintes. Eram levas deles, todo um exército de decrepitudes, misérias e momice de uma raia onde o pão tinha de ser uma luta épica ou o vexame de destroçados. Neles se misturava o errante, para quem o pedir era o preço da liberdade. Os cães, em Monsanto e em todo o lado, não se davam bem com os farroupilhas, salvo se tinham estes por donos. Mendigo próximo, e já se sabia que o pêlo se lhes arrepiava. Com o Gringo, porém, as coisas iam a um ponto descomandado. Ladrava, obviamente, ladrava como se a aldeia estivesse a ser assaltada, mas, não contente com isso, fazia por açular todo o camarada disponível e, em coisa de minutos, uma bela matilha adensava-se para a expulsão dos lazarones. Aqui entre nós, eu começava a acreditar na hipótese do tal "borborinho" posto em figura de Gringo.

Até que nos visitou o primo Valério. O primo Valério (nem sei em que grau, mas ninguém cuida disso na Beira Baixa) vivia e vive ainda na Aldeia do Bispo. Vive, é um modo de dizer: tem lá casa, pois ele anda quase sempre a mercadejar azeitonas e madeiras por onde calha. Porém, caçador em corpo inteiro, sempre de olhos afilados no jeito de pontaria, tem gosto pelos cães e cães não lhe faltam na sua casa da Aldeia, a que regressa de tempos a tempos para o seu repouso de guerreiro.

- Ó prima Isaura, que tem vossemecê? Para que lhe serve um médico a postos?

Foi esta a saudação do primo Valério logo ao fundo das escadas, de tal sorte era combalido o parecer da minha mulher.

- Deixe-me cá, primo Valério. Temos um cão que nos deu cabo da vida. Só se cala pondo-o debaixo dos cobertores. Ladra a toda a hora.

- Mas então o Pinóquio deu nisso?

- O Pinóquio morreu.

O primo nem quis perceber. E embora nos custasse raspar em tal ferida, tivemos de o pôr em dia com as nossas mágoas.

O Pinóquio, o medricas do Pinóquio, ai-jesus da casa, ficara-se nos dentes de um destes galfarros da charneca, em cuja focinheira se estampa uma ferocidade insaciada, em cujos olhos chispam raivas, seja homem ou bicho que lhe passem no encalço. E tudo porque a nossa filha, a mais nova, a mais brava, que fora de burricada a um piquenique a Penha Garcia, resolvera apear-se e atravessar um restolho sem companhia de ninguém. O Pinóquio logo apanhara nos ventos o odor a inimigo, pondo-se entre o ir e o não ir, já derreado de susto, mas a garota insistira. Saltara-lhe o tal forçudo ao caminho, e mal a patorra pesada deitara a criança por terra, o Pinóquio veio de lá, ele que não valia nada, ele que de um rato se temia, e chamou a si a ira da fera. Tiveram de ser várias pessoas a tirá-lo, já estrafegado, das fauces do canzarrão. Só durou mais o tempo de se ver nos braços da dona, que nem lágrimas tinha para tamanha e grave dor, e sempre nos braços o trouxe para casa.

O primo Valério ouviu sem comentários. O mais que poderia dizer foi o que disse:

- E agora calhou-vos um refilão. Deixe lá, prima, eu levo esse traste. Se ele tiver pinta de caçador, não lhe faço favor nenhum.

- Lá isso tem - replicámos nós em simultaneidade. - Gringo! - experimentou o primo Valério.

O podengo, de língua arfante, acudiu ao chamo, logo se entenderam.

Pronto. Acabara-se o pesadelo, acabara-se o Gringo. E sem que qualquer de nós lhe lamentasse, por um instante, a partida.

Um alívio de duas semanas. Passadas elas, o primo Valério, que espaçava de anos as suas visitas, aparecia-nos de novo para almoçar.

- Oiça cá, prima Isaura, onde diabo é que foram arranjar aquele malvado?

- O Gringo?

- O Gringo.

Que acontecera? Logo no primeiro dia, o Gringo degolara uma ninhada de pintos, indo a enterrá-los em lugar secreto. E ouvira as censuras com o ar ocioso de quem não sabe que paródias inventar para a noite seguinte. Mas o pior era o ladrar, e seríamos os últimos a mostrar admiração por esse facto. A vizinhança, tal como em Monsanto, protestara de grande, e o primo Valério vira-se coagido a levar o Gringo para uma propriedade que tinha nos arredores de Penamacor. Mas qual! O quinteiro suportara o bicho nos primeiros dias, visto que fora o patrão a trazê-lo; por fim, porém, como é que uma pessoa podia aguentar-se no trabalho sem uma noite dormida? O cão, preso, ladrava; à solta, revolvia o tomatal, punha as galinhas em pânico e não havia noite que uma delas não ficasse esfarrapada. Para mais, vendo-se no campo, começara a enchouriçar-se com os companheiros e até a requestar a sua fêmea e a enciumar-se com os machos. Numa das vezes, juntara-se na quinta uma alcateia deles, o Gringo engalfinhara-os e depois pusera-se de parte, um olho nalgum ganhão que aparecesse, o outro num galináceo mais afoito. "A gente não pode ter cá um animal destes, patrão."

Como havia de ser? Estaríamos condenados ao Gringo? O primo Valério, contudo, impressionado com o nosso pesaroso mutismo, teve uma ideia súbita: a tia Narcisa! A tia Narcisa vivia no campo, no isolamento de uma fazenda, e era surda.

E foi-se pela tia Narcisa.

- Traz o cão, rapaz. A mim, infelizmente, não me incomoda ele, que sou mouca.

E o Gringo transitou directamente da quinta do primo Valério para a fazenda da tia Narcisa. E cativante, que era o feiticeiro, a impar de ralé! A tia Narcisa logo se agradou de perro tão ladino e maneirinho e apurou-se a afofar-lhe a casota que lhe estava destinada.

Perspectiva falaz. Se a tia Narcisa tinha os ouvidos empedernidos, o mesmo não sucedia ao pessoal espalhado pelas redondezas: numa légua em redor, pelo sossego da noite, não havia tecto onde não chegasse o clamor de tal cão. Nem pensar em dormir enquanto o bicho vivesse por perto. Tanto ele, como as pessoas, durante o dia, pareciam esforçar-se por não se pegar do sono, sustendo-se de pé por obra e graça dos nervos, mas ele, o desalmado, mesmo com a quebreira nas pernas, ainda conseguia aqueles ladridos queixosos e roucos.

E ali estava o primo Valério a dar conta dessas vicissitudes. Posta de banda a solução da tia Narcisa ("só o posso ter mais uns dias, rapaz, e até já tenho medo de me afeiçoar a ele"), que outra saída haveria para o assunto? O ladrar do Gringo tinha fama de Monsanto a Penamacor, ninguém mais iria querê-lo em casa. Que fazer, então? A pergunta era uma maneira de insinuar que o primo Valério não deixaria de recambiar-nos o Gringo.

Podia ouvir-se uma abelha no quintal, no silêncio que se seguiu. Olhávamos uns para os outros mas a fugir de olhar, quando, num dos seus repentes de ilumi

nado, o primo Valério se pôs a furoar numa nova pista:

- O cão faz cobiça, isso ninguém o desmente. Tem um modo engraçado, uma coisa que prende. Ora, como há uma feira na Lardosa no próximo domingo, se eu lá levasse o Gringo e...

Ficou-se nas reticências, talvez por nos ver hesitantes, de um lado o sentimento, do outro a razão.

Dias depois, apenas soubemos que o primo Valério, com efeito, convidara o Gringo a saltar para a furgoneta e ambos se tinham apresentado na feira, que era suficientemente longe e que, pelos vistos, fora uma senhora feira. Gringo no chão, saracoteando o rabo, uma barafunda de gente, mas não tardara que várias pessoas se agradassem do bicho, que, aliás, bem chamava para si as atenções. Quem é, quem não é o dono ("mas que lindeza de cão!"), até que uma mulher, sondando à volta a ver se lhe davam pelo furto, pegou no Gringo e foi prendê-lo disfarçadamente a uma carroça. Nessa altura, o primo Valério nem aguardou pelo acesso de ladração e afastou-se ligeiro para a furgoneta, dizendo adeus à Lardosa.

O Gringo encontrara novo dono, que não se sabe se tomou como castigo a raça de cão a que o acaso o tentara.

Mas, aqui entre nós, qualquer dia ponho-mo ao caminho a saber onde pára o raio do Gringo. Faz-me falta.

 

             OS DOMINGOS DE VILLE D'AVRAY

Os domingos de Ville d'Avray. Houve um filme com esse nome. Recordam-se como era?

Um arrabalde citadino feito de brumas e clandestinidade, árvores que pareciam desprender-se do céu denso como estalactites de névoa, e, num tal silêncio de conjuras, que até reprimia os ganidos do vento, emparedando-o em muros e altas sebes, o sobressalto das pessoas sempre que alguém desconhecido ali chegava. Em cada janela um olhar furtivo. Ou a sensação de que ele poderia lá estar. Por último, duas solidões de mãos dadas: um homem a quem a guerra ulcerara e uma criança a gelar-se no desabrigo de um hospício. Era o tempo da suspeita, o tempo do medo.

Mas não é do filme que venho falar-vos. Nem, aliás, a Ville d'Avray que eu conheci era taciturna e desconfiada. Longe disto. As árvores estavam em festa, quer nas áleas odorosas, quer nos cerros onde se escondiam, lá mais dentro, moradias tranquilas, e o céu limpo tinha uma largueza de Verão. As pessoas olhavam-nos sem reserva, a guerra fora esquecida, e em atmosfera tão sugestiva de amenidades dificilmente poderíamos imaginar que ainda houvesse hospícios, terrores, crianças infelizes. O correr dos anos havia dado outro cenário e outro recheio aos domingos de Ville d'Avray.

Porém, antes de chegarmos aí, recuemos à véspera, que também teve que se lhe diga, talvez porque todo o sábado que se preza é já um domingo em gestação.

Fora assim. Um amigo, metendo-se no caudal de retirantes do fim-de-semana, levara-me a La Frette, lugarejo de residências que não dão cobiça a ninguém, construídas sobre airosas vertentes mas num afogadilho e sem gosto de quem receia ser apanhado pelos vizinhos na mesma intenção. O Parisiense, como o Londrino, como qualquer habitante das metrópoles apinhadas, o que busca é desafogo: corre ao primeiro oásis e nele arma uma tenda, embora não tarde que a proliferação de tendas igualmente descambe numa atmosfera balburdiada de cidades precárias, apenas com a diferença de que nestas se vai de pijama para o quintal. Mas o devorar da paisagem é o mesmo. Como também o é o ar fuliginoso.

Em La Frette, empinado num varandim sobre o Sena, vivia Jacques Chardonne, de quem talvez já poucos se lembrem. Ali o seu retiro de águia de soberbo porte. Estou a ouvi-lo: "Eu supunha silenciosa a região onde habito. Mas todos nós perdemos a noção do silêncio. O silêncio descobri-o ontem à noite: faz medo." E mais adiante: "Fui eu que desejei a minha solidão. Na solidão nada existe. Algumas vezes, um clarão. Donde virá ele?"

Jacques Chardonne, na minha memória um rosto com qualquer coisa de leonino. Mas na semelhança havia também caricatura - porquê? Um rosto a associar-se a outro da minha infância, esse fabuloso, o do doutor João Antunes, que foi padre, mecenas, glutão, femeeiro, numa espécie de majestade que desce à rua para se cumprir entre os marginais.

Por essa altura, dir-te-lam em Paris, que não mudara muito desde o tempo de Mesmer, dir-te-lam os que vivem dentro da floresta e, por isso, não vêem as árvores, que um dos quatro monstros sagrados da literatura francesa contemporânea, dos tais já com assento na história, era esse ancião emproado, secreto rival de Mauriac, com quem discutia as palmas do estilo mais puro, do discurso melhor lavrado. Jean Rostand, por exemplo, ia pelos que não hesitavam em considerar Chardonne o maior prosador do seu tempo.

Em La Frette. Onde não seria fácil pôr-lhe a vista em cima, embora, creio eu, muito gostasse de ser visto e mais ainda de ser ouvido. Mas a distância prestigia, e ele sabia-o. Meia Paris obedecia aos seus bilhetinhos recomendando um afilhado.

Orgulhoso monarca no exílio, exílio voluntário, escolhera, pois, o seu refúgio a vinte quilómetros da corte, que é um modo de dizer Paris, numa casa de campo sem brasão, igual a tantas outras dos míseros vilões fugidos ao frenesi da urbe. Era dele esta máxima: "Não basta ser modesto; é preciso sê-lo com discrição." Exilara-se havia dezenas de anos, nos tempos em que La Frette era ainda província, uma colina de hortejos e prados, quando não de areias, que mirava enfastiadamente o Sena sem pressas de chegar a Paris e as barcas tão vagarosas como o rio, lembrando, na sua ociosidade, jangadas sem governo. Escrevia ele: "Prefiro toda a renúncia ao apetite de grandeza, peste do género humano, e esta raça de orgulho que é a febre dos fracos."

Hoje, La Frette está longe de ser o isolamento que Chardonne desejara. Cada fatia das lombas verdejadas tem um quintal, uma vivenda, e não são os arbustos extremando esses favos que conseguem dar às pessoas a ilusão de que escaparam à promiscuidade.

Julgo, porém, que Chardonne não dava por isso, que se imaginava realmente um eremita excêntrico. Ou então fazia o seu papel. Na fase tardia em que o visitei sugeriu-me mais um actor reformado que viveu gloríolas e prolongava, no ocaso, o hábito de representar e ser aplaudido, do que o leão de juba cediça, mas ainda com rugidos de soberano. Bem pesadas as comparações, talvez fosse afinal ambas as coisas, pois no decurso da conversa, umas vezes empolada e tediosa, outras com fulgores de aristocrata das letras que não desaprendeu a cartilha, acabávamos por sentir o leão decadente ou por estremecer à vista das suas cóleras esplendorosas.

De língua afiada para os que ainda permaneciam no palco, para os que recolhiam gabos e tundas, peso e contrapeso da notoriedade, o auditório de Jacques Chardonne reduzira-se quase só à sua companheira e a algum noviço de passagem. Ela, alta, afável, modos desempenados, bem fazia por poupar as visitas ao monólogo prolixo do marido, que, vigilante e melindroso, tinha artes de lhe neutralizar a manobra, falando sempre. Falando por si e por todos, sem uma aberta, como se gravasse um disco que o descuido de uma pausa pudesse inutilizar.

Enquanto recitava a ladainha escrupulosamente ensaiada, os seus olhitos sagazes e tirânicos, dois furões nas pálpebras entumecidas, perscrutavam com severidade a resistência de cada ouvinte. Um afrouxar na atenção e ei-lo a mudar de voz, engrossando-a, gorgulhando-a, eis o amuo a obscurecer-lhe as pupilas coriscantes. A censura era flagrante. E se ela não bastasse, Chardonne preveniria num timbre rouco, um dedo em jeito de garra desembainhada apontado ao distraído: "Um momento, caro senhor. Estou a terminar." E logo as cabeças, reverentes por fora e azamboadas por dentro, se perfilavam numa exausta tentativa de concentração.

Nessa tarde, Jacques Chardonne (estou a revê-lo de laço branco num colarinho muito justo, um retrato num álbum antigo, mas talvez a lembrança se baralhe com a imaginação), nessa tarde ele escolhera um número especial do seu repertório, a mim dedicado: Portugal. Um Portugal turístico, à moda do S. N. I., barretes campinos, fados, pé descalço, um Portugal Chardonne. A Grécia, a Bretanha ("Oh, sim, a Bretanha, caro senhor, tem de conhecê-la") e este rincão de sol e viúvas inconsoláveis chorando impérios eram os últimos bastiões da autenticidade. "E a ilha da Madeira também. Se me permite, a minha Madeira, tenho-a no coração. Dediquei-lhe um livro, como sabe." E isto de merecer uma obra a Chardonne...

Aos povos que se crismam de civilizados, pátrias da degenerescência industrial e da descaracterização, faltava-lhes o cerne da origem, tinham-no perdido. Imitavam-se, confundiam-se, o viço a dessorar-se, tal os pinheiros sangrados. Mas Portugal, ah, esse, trancara as portas a contágios, não se deixara violar. Nas suas veias não corria a linfa aguada de uma Europa já sem cédula de identidade.

Esbocei um estorvozinho céptico, doseadamente atrevido, à óptica lusa do anfitrião. Conheceria ele as fraudes desse verismo folclórico? Mas Chardonne não me ouviu, não me ouviria. Os seus tímpanos apenas consentiam o ressoar deleitado do que acabara de me dizer.

Para me afiançar que essa retórica nada tinha que ver com a cortesia, incomodou-se a ir ao seu gabinete de trabalho, numa passada solene, buscar-me o manuscrito do seu próximo livro. Próximo e último. Porque - notasse eu bem - "um escritor deve calar-se antes de o espelho da autocrítica lhe acusar as primeiras rugas". Rugas do espírito, entenda-se, pois havia muito que o rosto de Chardonne, numa cabeça aliás bem direita, era uma velha leira escalavrada.

Nesse livro (não seria o último, afinal, anos depois seguiu-se-lhe Propos comme ça, um Chardonne ainda em boa forma), nesse livro, de que eu iria ter a honra de provar as frases de apoteose, ele confirmava, na verdade, o seu desvelo por um povo, como o nosso, in

crustado num tempo que morreu, para regalo dos apreciadores de raridades.

Finda a leitura e findos os cumprimentos de quem a estimara, serviu-se a merenda bem merecida. Nesse intervalo, Chardonne concedeu mudar de tema – pelo menos na aparência. Alguém se referira a William Shirer, o cronista da ascensão e queda do III Reich, e ao dono da casa não desagradou o desvio. Shirer, pelos vistos, andava por essa altura a meter o nariz na França da última guerra, a França de Pétain e da Resistência, e Shirer era um investigador duro, não ia deixar as coisas pela rama. Ninguém duvidava de que ele viraria do avesso o depoimento dos que, ainda vivos, tinham sido personagens da grande e da pequena história.

Shirer, dizíamos nós? E Chardonne, então, num pigarro já elucidativo do quanto se sentia em terreno seu, pousou a chávena ainda fumegante e dispôs-se a um daqueles estonteadores malabarismos de palavra que os Franceses parecem beber no leite materno. Shirer? Shirer iria talvez ficar perto da verdade, mas nunca chegaria a deitar-lhe a mão. E ao insinuar as areias movediças dos anos do heroísmo e da vergonha, de um lado os insubmissos, do outro os colaboracionistas, mas às vezes tão intrincados que toda a extrema seria um risco, Jacques Chardonne ameaçava-nos com o muito que sabia e a maioria ignorava. Não apenas esse tempo fora túrbido. Também o fora a maranha de conluios que o precedera. Revelações incómodas, algumas explosivas, haviam sido escamoteadas dos arquivos. Como é que Shirer, um estranho, poderia reconstituir um passado de tão enredadas cumplicidades?

Mas ele, Jacques Chardonne, o anacoreta de La Frette, fora tu cá, tu lá, com meia França, vivera os lances estando dentro deles, e a sua memória, esporeada pelo uso, estava ainda fresca. Seria ele quem deitaria o fogo à mecha, antecipando-se à barrela da história.

Com este remate, despediu-se. Ao vê-lo dirigir-se para o seu santuário, manuscrito debaixo do braço, sem voltar a cabeça faustosa uma única vez, imaginei-o um divo a recolher-se ao camarim após ter ateado, no palco, o sucesso que lhe era imposto pela histeria dos admiradores.

Ao que depois me foi dito, nem todos poderiam gabar-se de ele conceder tão demorada audiência a um mísero desconhecido como eu. Penso que obsequiou em mim, seguramente, os pescadores cenográficos da Nazaré.

Era a vez de a senhora Chardonne nos levar ao jardim. Parecia tão desoprimida quanto nós, que nos sentíamos colegiais no soar do recreio. As suas bonitas flores, tão afectuosamente encorajadas a servirem-se do céu luminoso e da terra criadora, não precisavam de fáceis louvores. Um renque de margaridas de todos os matizes, mas sobressaindo os roxos e os azuis sarapintados de branco. Dálias folhudas, altas como girassóis. E gerânios dando a volta aos canteiros.

Os nossos espantos, vindos cá de dentro, acendiam-lhe o sorriso desvanecido e a vivacidade loquaz. Uma senhora sem idade, pois a juventude não lhe esmorecera nos olhos marinhos, às vezes frios, outras com uma doçura fatigada.

Ela pediu-nos então que descêssemos a vertente, que tentássemos descobrir, lá ao fundo da cerca, entre os fetos, algum cogumelo que tivesse inchado com as orvalhadas das últimas manhãs. O desnível era de respeito, o terreno caía a pique. Só o desafiaria quem tivesse uma desenvoltura física exercitada e, sobretudo, coração novo. Não seriam os sessenta anos da senhora Chardonne, ainda que empertigados, a ousarem-se aos alpinismos dos socalcos cavados do minibosque, no termo do qual corria a estradinha aldeã, por onde, naquele momento, pedalava, assobiando, o carteiro da paróquia.

Fui dos que, por caprichosas artes, triunfaram na busca. Os meus olhos, aliás ignaros do que pudesse ser um verdadeiro morille, parente do cogumelo lusitano, toparam nada menos que três, enquanto os outros pesquisadores nem pinta deles. Que pasmos, que aleluia de crianças! E pus-me a ruminar neste contraste de feitios: franceses, gente adulta, a expandirem, quando menos se espera, uma puerilidade que lhes purifica os gestos, lhes lava a expressão do que lá houve de remordido - e, naquelas circunstâncias, só por verem, nas mãos de um iniciado, um troféu de cogumelos! Que nos fez perder a nós, portugueses sisudos, portugueses com medo de não ter medo do ridículo, a catártica espontaneidade, o riso que ri por tanto ou por tão pouco?

E assim, afortunado descobridor de morilles, mais se reforçou a simpatia da dona da casa. Por gosto dela, teríamos esquecido o retorno a Paris.

À hora do adeus, junto da cancela que ela não quis fechar enquanto não desaparecêssemos na dobra da rua, ainda me repetiu com a festa dos olhos já ensombrada:

- E agora espero que fiquemos amigos.

Amigos, sim. Mesmo que eu não voltasse mais a La Frette, onde o sol, a fazer-se poeirento, nos avisava de que o crepúsculo ia descer.

 

No dia seguinte, o tal domingo de Ville d'Avray.

Em Paris, na roda das artes e da ciência, isto sugere um domingo passado no convívio de Jean Rostand, que a si próprio se considera um marginal reticentemente tolerado pelos seus pares. Estes censuram-lhe o franquear de portas aos curiosos do saber, enquanto outros, ouvindo falar das suas madurezas, o têm por extravagante. (Há cinquenta anos isolado, sem viajar, e todavia homem do mundo, activamente participante de tudo o que nele sucede.) E ainda há os que se impressionam com a sua lura de bruxedos: sapos, reservas de rãs, alfarrábios, quartos de dormir que dão directamente para câmaras de alquimia. A todos, porém, mete respeito - e aí conta o que o biologista vai colher do homem de qualidade.

Esse convívio domingueiro de Ville d'Avray com figura tão grada não requer, contudo, santo-e-senha à entrada. Jean Rostand, no qual a simplicidade pede meças à sabedoria, e como outros da sua igualha que me têm surpreendido no meu jornadear por terras várias, não pergunta donde vem nem que procura a todo aquele que mostre interesse em contactá-lo. Adultos e adolescentes usam e abusam dessa hospitalidade, sobretudo recorrendo à via epistolar, mas ele responde sempre, como outrora, ainda rapazola, lhe respondera o entomologista Fabre. O que Rostand não mais esqueceu. Então, se o visitante traz recado de um amigo, amigo é também. Pois que se aliste na turma dos domingos de Ville d'Avray.

Essa lhaneza fez-me logo recordar um episódio de anos atrás. Chegado a Paris, e após uma encalorada rixa com a minha timidez, sempre me dispus a visitar Gabriel Marcel, a quem devia um dos mais generosos estímulos da minha via-sacra de escritor. A carta que dele recebera seria, porém, suficiente para atravessar as muitas barreiras que defenderiam o filósofo de intrometido como eu? Fui subindo as escadas do vetusto prédio da Rua Tournon, quase certo de que não tardaria a descê-las. Quê, a porta escancarada? Ter-me-la enganado no andar? Iria sabê-lo, após um toque furtivo na campainha.

A empregada que veio lá de dentro não me deixou avançar no intróito, indicando-me, sem mais aquelas, para que lado do corredor deveria seguir. Então nem sequer importava o nome do arribadiço?

E, de súbito, eis-me numa saleta coalhada de gente. Lá estava, coçando a barbicha de fauno travesso, Gabriel Marcel. Daí a nada, ele empurrava-me para a sem-cerimónia do colóquio, após esclarecer a quem estava, sem as ênfases do protocolo, que espécie de avis rara eu era.

Soube depois que todas as quintas-feiras as coisas se passavam assim: entrava-se e saía-se da casa de Gabriel Marcel com muito mais desembaraço que na cidadela de um contínuo da nossa praça.

Voltando a Jean Rostand: também ele, a quem o tempo parece sobrar (investigador, leitor de tudo o que é livro, jogador de xadrez, escritor que dá animação e acessibilidade à ciência mais fechada, uma vez por outra desviado da divulgação para nos propor as suas reflexões sobre o ofício de viver), também ele não dispensa palestrar com miúdos e graúdos que vêm fruir a sua palavra ágil, fervilhante, que acompanha as velozes mudanças da nossa época com uma apetência que a si própria se fustiga e renova. Em cada gesto deste homenzinho buliçoso há uma inquietude de quem resolveu não se render à usura dos anos. Por isso ele diz da morte: "Ela não me inquieta: aborrece-me. Morrer é odioso e estúpido. Sou um mau morredor. " Com menos literatura, mas com mais sabor, lhe ouvi:

- Se um dia lhe chegar a notícia que o Jean Rostand morreu, fique sabendo que foi contra vontade.

Os gestos. O dinamismo que os desassossega é o mesmo que reluz nas suas pupilas de rato endiabrado ao escutar os outros, seja um caloiro, ainda adolescente, que vem mostrar-lhe uma retorta onde formigam vidas misteriosas, seja uma velha dama guarnecida de rendas que nos decifra, num esguicho de voz, O Imortal - último e como sempre intrigante filme de Robbe-Grillet.

Eu havia imaginado Jean Rostand, cuja estátua a vereação de Ville d'Avray vai inaugurar sem o preconceito de que as pessoas precisam de morrer para que as meçam em todo o seu tamanho, havia-o imaginado grave e distante, a retocar a sua postura para a galeria das celebridades, respirando o mundo lá de fora por uma fresta enjoada e timorata, embora talvez sob um disfarce paternal, por onde dificilmente entrasse uma traiçoeira corrente de ar. Nada disso. Aí o tinha tal ele era: o colarinho às três pancadas, uma fatiota que qualquer dos nossos marçanos lançaria ao caixote do lixo, os bigodes de foca, o olhar doce quando em repouso mas sempre pronto a deixar-se inflamar. Aí o tinha saltando de um assunto para outro, numa turbulência de modos que o fazia ir desta para aquela cadeira, deste para aquele grupo, atento ao menor respingo de dúvida, de amuo, de contradita, disparando uma pergunta com prazer rabino e aguardando que a perplexidade se generalizasse para então arremessar um juízo que ele sabia desencadeador de opiniões discordes, portanto fecundas. Tudo isso e a desafectação sem cálculo, até a singeleza com que indagava e elucidava ("Em filosofia, queridos amigos, nunca fomos mais longe que os Gregos"), faziam de Jean Rostand não o sábio no seu trono de infalibilidades, mas o interlocutor poupado à esclerose da presunção.

Estávamos em Maio e o dia aquecera. A varanda do salão, com o langor das tardes provincianas, descia por uma escadaria até ao jardim, onde havia um gigantesco viveiro de batráquios, que chegara a ser povoado por uns quarenta mil ("Examinei-os um por um", asseverava ele, numa toada que nada tinha de jactanciosa, antes divertida). Na copa das árvores corria um rumor odoroso.

Mas a vivenda, vista cá de fora, com empenas que avançavam e recuavam, tinha o seu quê de secreto.

E o mistério persistia ou adensava-se se se pusesse o pé lá dentro. Pelo cuidado com que se abriam e fechavam portas (e por uma delas eu observara, fugidiamente, uma sala em penumbra, na qual se pressentia alguém que, embora curioso da nossa presença, a ela se esquivava), já me parecera que ali havia coisas melindrosas de contar.

Aliás, fui deduzindo, pelas meias palavras de um amigo, que esta casa era não só a oficina de um dos maiores cientistas do nosso tempo ("A ciência? Os seus poderes vão muito longe, talvez demasiado longe" , mas também o cenário dos seus dramas. Uma infância solitária creio que naquela mesma moradia, entre um pai arredio e adulado, o autor de Chantecler, Edmond Rostand, e a mãe da alta roda, a poetisa Rosemonde Gérard, talvez não menos embevecida consigo própria. Um filho dos Rostand dedicado às dissecações e às provetas? Heresia.

O drama, porém, nem esteve na aridez e no antagonismo paternos. Outras provações o esperavam, e algumas delas até um visitante fortuito, como eu, as poderia testemunhar. Talvez por isso, o biologista foi temperando o homem e o homem o biologista. Assim se entendia melhor o cunho da obra de Jean Rostand. "Não há moral puramente intelectual. Quando luto contra a bomba atómica, mostro os seus perigos, mas falo também de fraternidade."

Na cave, o laboratório - que adivinhávamos algures, num sítio inesperado e súbito, cujo acesso poderia estar meio oculto pelas rimas de livros ou pela presença obsessiva dos retratos de família. Nele passava o dia, fora as horas disciplinadas em que, na biblioteca, redigia os seus escritos. Ao lado deste salão caseiro, em que, aos domingos, acolhia a ranchada de amigos, no tal compartimento que desafiava a imaginação (seriam esculturas, aqueles perfis esbranquiçados, envolvidos de sombra, que eu entrevira por um instante?), escondia-se o irmão poeta, para muitos genial, o irmão louco.

Essa loucura não era a única tragédia viva da família. A mulher de Jean Rostand, que me fixara todo o tempo com um olhar congelado, roçando pelos móveis um braço mortiço, cuja mão se embuçava numa luva negra, tinha os gestos sincopados de parkinsoniana. Ao estender-me o tabuleiro dos bolos ou o bule do chá, numa imposição de autómato que cumpre um mando e não sabe dar-lhe seguimento, parecia exigir-me que eu esvaziasse um e outro, tanto demorava a oferta, tão insistentemente me perfuravam os seus olhos estáticos.

Enquanto eu apreciava os numerosos quadros que cobriam de alto a baixo as paredes, alguns deles retratos de Jean Rostand, e os objectos e os livros preciosos, sinais de uma ou de várias vidas incomuns, enquanto eu seguia, de atenção contraída, o vaivém das conversas e a modulação ritmada de cada frase do mestre, esses olhos, tal os olhos de uma pintura que se ferram aos nossos, não me largavam um momento. Sentia-os devassadores, mesmo sem me certificar disso, sentia-os ferinos e indecorosos na sua teimosia de criança que caprichou num objecto de observação - embora a senhora, ao dirigir-se-me, sempre com urbanidade, não mostrasse qualquer resguardo pelo estranho que fora admitido na confraria. O que não obstava ao meu mal-estar.

Averiguei ainda outras desventuras na crónica dos Rostand, na qual o génio artístico, ao enxertar-se na ciência, produziu, como a história ensina, bastardias singulares. Entre esses infortúnios, o que escolhera como personagem um filho do biologista, a quem tudo, merecimento e vocação, parecia talhar para grandes destinos. O acidente, aliás, enredava-se na demência do poeta que ali tão perto de nós, mas simultaneamente tão apartado, decerto nos estava a ouvir, sabia-se lá se cobiçoso de participar.

Em tudo isso eu pensava enquanto ia observando a viveza desenfadada de Jean Rostand. Carregado de tarefas, no signo de uma nova biologia, e carregado de amarguras, sofridas, porém, com peito forte e sobretudo com o pudor de exibi-las - esse homem, aos setentas e tal anos, permanecia sem um desfalecimento na sua confiança e na sua vitalidade e, mais ainda, neste sadio gosto da vida, neste ir ao encontro dos reptos à inteligência.

Aí o tínhamos sorridente, dir-se-ia que poupado a chagas íntimas, a afagar com malícia o bigode desmazelado, nem um minuto de parança no cadeirão onde se recostara à espreita de um dito que espevitasse o diálogo. E se o dito fosse irreverente, seria ele o primeiro a deitar mais achas na irreverência. Só uma coisa nos era vedado: o esboço, sequer, de uma lisonja. Ao mais ligeiro ameaço, Jean Rostand cerrava os olhos, agastado, o protesto estorvava-lhe a fala, as mãos, embravecidas, pareciam sacudir um contacto indesejável.

 

Tocou-se muito ponto nessa tarde domingueira de Ville d'Avray.

Paris, que sempre saboreou os fabricantes de sensações, discutia a recém-aparecida Planète - uma aliciadora enciclopédia do que ignoramos, do que, real, suposto ou fantasiado, ainda não achou explicação. Planète ia ao encontro da velha gula pelos enigmas, por um saber misturado com intuição e misticismo, a que uma espécie de ritual iniciático dava um mais intenso paladar. Nas suas páginas se reviviam as civilizações vindas do fundo dos tempos e neles perdidas, os viajantes das galáxias, a redescoberta do corpo e o incitamento ao maravilhoso, mas também a recusa ao preconceito institucionalizado.

As boas gazetas de Paris, por ciúme ou repúdio a essa ardilosa afronta às ciências exactas, concediam-lhe galas de um ataque rabioso, acusando-a de negociar com a bossa humana para o indecifrável - delito tanto mais sem desculpa quanto o nosso tempo se tem empenhado em desacreditar milagreiros e taumaturgos, em liquidar as últimas reservas do obscurantismo.

Claro que Planète, dirigida por uma equipa com sangue na guelra, defendia-se bem, não lhe faltando, aliás, peões de brega: no seu convite à imaginação e ao risco, à literatura do insólito e ao excitante realismo fantástico, satisfazia a clientela mais jovem, em briga com o viver burocratizado, e seduzia também todos os que aplaudiam o desvelar de incógnitas silenciadas por um certo tipo de maquinação. Vai daí, e como a sua tiragem, nervo da guerra, fazia sombra aos que lhe disputavam o mercado, não lhe escasseavam frechas para ripostar. À cabeça do número dez da revista, o seu director, Louis Pauwells, escrevia: "Somos sempre criticados por três categorias de gente: os que fazem o contrário do que fazemos, os que fazem a mesma coisa e os que nada fazem", e, confirmando o que já fora dito, reclamava o direito a ousar-se a hipóteses aventurosas e a submetê-las, como prescrevia Henri Prat, à livre discussão. Quanto ao mais, o arruído traduzia apenas a insofrida dor de cotovelo.

Ora, chegado a Paris no acesso da refrega, bulia-me a curiosidade por conhecer a opinião de Jean Rostand. Não foi preciso adiantar-me. Entre os presentes, estava um cortesão delambido, pintor, com a fidalguia atestada no dedo anular e os méritos na fitinha da lapela, um destes comendadores brasonados no melhor estilo latino-mediterrânico, que falava adocicadamente, mostrando uma fileira avantajada de molares. E o nosso cortesão, de ademanes duvidosos, às tantas pôs uma acha no lume da conversa:

- Permita-me, mestre, que solicite o seu parecer sobre o escândalo Planète.

Jean Rostand embuçou o sorriso ladino.

- Escândalo? Não dramatize, não dramatize.

E ajeitando-se melhor na cadeira, espalmando a mão sobre a testa inclinada com faguice, um modo seu que parecia dosear a impetuosidade do que lhe acudia à língua, foi-nos dizendo que Louis Pauwells e os seus acólitos não eram pecos. A revista tinha os condimentos precisos, o seu desdém pela ciência académica e pelos templos da ortodoxia contentava muito insatisfeito, e por isso mais era de temer. De temer, ouvíramos bem, pois actuava no leitor por meios afinal opostos aos que prometia usar. Planète, em suma, conduzia a "uma falsa excitação da inteligência" e... sim senhor, ele dava-nos razão no reparo, mas os cientistas probos que, com a sua colaboração, pareciam aboná-la, haviam, decerto, sido iludidos por um programa que lhes fora dissimulado.

A história - prosseguia Rostand - estava salpicada desses surtos de manipuladores de quimeras, encobertos sob as mais atraentes especulações e opondo-se à irrefreável marcha da pesquisa objectiva. Mas nenhuma das recidivas do obscurantismo - no caso da Planète talvez colorida por uma tinta bem francesa de snobeira intelectual - lograra um único resultado positivo quanto ao porvir da humanidade. Ele, Jean Rostand, estava confiado em que a nossa época já podia resistir, sem retrocessos, ao engodo de tais sereias.

Não só o pintor brasonado apoiou o ponto de vista do autor de La pensée d'un biologiste, que, por ironia das coisas, tempos depois seria citado, em ar de fiança, na mesma Planète, a propósito da obra do americano Robert Ettinger sobre a utilização científica do frio na demiúrgica pretensão do homem em se tornar imortal. A velha dama a que me referi, na sua serenidade um tanto enfática e distante, não foi menos incisiva no aplauso. Mas fê-lo sem qualquer acento de louvaminha.

Todos os que ali estávamos mal poderíamos prever que não tardaria que a nossa conversa fosse desenvolvida publicamente por Jean Rostand, ao acrescentar à sua definição do autêntico espírito da ciência - "rigor, escrúpulo e humildade" - mais esta senha de combate: "A certas toxinas distribuídas pelo público é necessário opor os anticorpos da razão." Desse modo, ele punha-se ao lado de Paul Langevin, que escrevera nunca a humanidade haver conhecido mais alto ideal de amor e de luz do que o racionalismo portador de fraternidade e de audácia intelectual. A verdadeira audácia, e não aquela que assopra bolas de sabão.

Umas palavras mais sobre a velha dama. As surpresas que ela me reservara não tinham acabado ainda. Passado o débil protesto de um escritor que me acompanhara, manifestamente rendido ao irrequietismo de Planète, tanto como vulgarizadora ("uma vulgarização estimulante, quem o poderá negar?") como denunciadora das tibiezas e das jactâncias da ciência oficiosa, passada essa frouxa discordância, que mal desafinou o coro dos positivistas, a tal dama pasmou-me com um festival de vivacidade intelectual.

Vissem-na, com os seus não sei quantos anos a ressequirem-lhe os dedos e o pescoço sardento, vissem-na a discorrer, numa firme desenvoltura, sobre tudo o que em arte é tentativa de fazer explodir os becos sem saída. E o que expunha quanto aos novos caminhos da criação, quanto a inquietudes formais, na literatura, no cinema, nas artes plásticas, não pretendia que o achássemos arrojado, sobretudo nela, vinda de um tempo moldado noutros esquemas. Falava, em suma, com naturalidade.

A dama convidava-nos a que ponderássemos, por exemplo, num Robbe-Grillet. Tanto no Robbe-Grillet romancista como no cineasta. Na sua arte fria, na sua desmontagem minuciosa, talvez árida (aridez todavia discutível) mas sempre agudíssima, do nosso estar entre as coisas e fazer parte delas, não havia solução de continuidade entre a vida exterior e a vida interior. Talvez nunca se tivesse ido tão longe nessa subtil conectação. Depois, a senhora, um tanto coagida pelos nossos apartes, esboçou uma árvore genealógica desde Proust aos últimos rebentos da "escola do olhar", passando por esse vulcão, sob alguns títulos aberrante (e já extinto?), que era Lawrence Durrel.

E Jean Rostand, que opinava? Estaria ele também assim actualizado? Chegar-lhe-iam as folgas para se interessar por outros ramos que não fossem aqueles em que era um erudito e um inovador?

Olhei-o quase com alvoroço. Ele, ouvinte atento, apenas aguardava a oportunidade de aclarar algumas frases da sua amiga. Na primeira maré, dizendo "o mundo novo precisa de uma expressão nova", logo ramificou a conversa para a arte abstracta, para a arte informal da Natureza e até para as "estruturas vivas", que nessa estação eram o chamariz de várias galerias do Bairro Latino, aliás bem necessitadas de um ciclone de novidade, pois o retrocesso a um figurativo conformista era desconsolador: paisagenzinhas anémicas, de um bucolismo soporífero, que fariam inveja às senhoras prendadas da Rua Barata Salgueiro.

A referência às "estruturas vivas" foi-me mesmo particularmente dirigida, de supetão, decerto para me animar à contradita:

- Gostaria de saber se lhes encontra o que poderíamos talvez chamar um artificialismo decorativo. Acha isso?

Arte, exposições? E o pintor adamado enfiou uma peçonhazinha de salão: que enfarte do miocárdio era aquele, o de Cocteau, a permitir-lhe, dias depois, patrocinar a estreia do seu último afilhado no mundo da pintura? De bengala, afofado num coxim, mas presente...

Jean Rostand nem sorriu. Hesitou em responder-lhe e, por último, ergueu à luz o tubo de ensaio que um assistente (saído de que porta?) lhe viera mostrar. Travou com este um diálogo rápido, a meia voz. A sua expressão concentrada, demudada, parecera alhear-se de nós, das literatices, dos enredos de soalheiro. Mas não. De improviso, atacou a fundo, de um modo sacudido, o meu zeloso espiar do que se passava em roda:

- E vocês, escritores portugueses, que mensagem nos propõem?

Senti-me apanhado em falta. Ou um aldeão na cidade. Mas os meus espantos, se se dava por eles, não eram pelo que ouvia mas por quem o dizia. Pusessem ali um senhor importante da nossa terra, mesmo com menos peso nos anos, e, à parte a empáfia, vê-lo-íamos a deslocar a cavaqueira para terrenos onde se julgasse dono, tendo por verduras de desocupados futilidades como a arte nova vaga, e pusessem ali uma dama fim-de-século das nossas chazadas lisboetas e vê-la-íamos cochilar à primeira referência a charadas como "escola do olhar" e coisas que tais. Pois nessa parçaria de Ville d'Avray quem ia à frente na compreensão e no entusiasmo pelo que de audaz se lia e se via pelo mundo eram um sábio de laboratório, a quem seria lícito que a ciência chegasse e sobrasse, e uma definhada sobrevivente de um tempo em que Zola estava na lista dos porcalhões. E daí eu me sentir o tal aldeão em Paris.

Ia a tarde no fim quando alguém se referiu à recente entrevista de Jean Rostand na televisão e ao apelo dos espectadores para que ele aparecesse de novo no mágico écran. Rostand justificou a sua escusa. Arma terrível, a televisão. Com dois gumes. A imagem, mais do que a leitura e a palavra oral, grava-se bem no fundo da memória do público. Tarda que se lhe arranque da retina e, por isso, dificilmente o espectador admite que a mesma imagem, num intervalo escasso, venha sobrepor-se ao que com tanta agressividade se fixou. A insistência descai logo na banalização e até no apagamento do que fora impacte.

A uns bons anos de distância de eu ter ouvido estes comentários de Jean Rostand, e agora que os revivo, reparo quanto continuam a ser actuais e adaptáveis a qualquer contexto. Quanto, em suma, deveríamos, hoje mais do que nunca, analisar-lhes o fundamento e as repercussões.

E Rostand prosseguia: a difusão gritante, impositiva, da nossa época, dá com uma das mãos o que tira com a outra. Daí, por exemplo, que as vozes publicitárias da sociedade produtivista se mostrem um condimento tão forte que uma pitada a mais pode destemperar a iguaria.

Ia a tarde no fim e urgia o regresso. No entanto, o nosso desejo, o meu desejo, seria dilatar esse perturbante encontro com o homem simples e sábio de Ville d'Avray. Aqui o prolongo, evocando-o, embora em desluzidas notas de um provinciano que, ao amolecer na chateza dos dias, se reanima, às vezes, com as lembranças das suas escapadas aos lugares onde o mundo ferve.

 

   A MEDICINA E A VIDA , A CIÊNCIA EM QUESTÃO

A vida é um habitar do tempo e o tempo não se repete. Quando voltamos aos lugares, às pessoas, às coisas - os lugares já não são os mesmos, as pessoas mudaram, as coisas evoluíram. E o mesmo aconteceu connosco. Se, por hipótese, os lugares tivessem quedado estáticos, teríamos sido nós a deslocarmo-nos relativamente ao que fomos ontem.

Foi, aliás, essa ideia interiorizada de mobilidade, esse alertar para as céleres metamorfoses que se vão operando no mundo (no panorama sociopolítico, na ciência, nos juízos, no quotidiano, e portanto em nós próprios) que presidiu, quase insistentemente, a muitas das ponderações que, nos últimos anos, fui registando em escritos vários. Talvez porque o contacto às vezes súbito, para não dizer mesmo traumatizante, com atmosferas bem distintas da nossa, nas quais as viragens se revelavam como uma espécie de sismo emocional, intelectual e sensorial, me tivessem acordado cedo para uma contrastação, frequentemente dolorosa, com a atonia do nosso viver. Daí que (aponto-o sem descabido alarde) eu me mostrasse seduzido pela perturbadora transformação das sociedades e pelo modo como a apreciamos e nela nos integramos, antes que esses temas acabassem por ser o lugar-comum do que se foi lendo na imprensa, incluindo obviamente a nossa.

Esse acordar prematuro manifestou-se em mim, observador interessado, através de confusões e precipitações, sem dúvida, mas, por vezes, já com alguns contornos de relativa precisão - provavelmente porque os impactes produzem amiúde um faiscar revelador, como a luz abrupta de um raio que rasga os ares antes de eles se abrirem, mais clarificador do que a apreensão de quem assiste ao gerar dos fenómenos e os vai gradualmente assimilando. De qualquer modo, revejo-o agora, a esse despertar, como sinais de uma sensibilidade arrepiada, que, ao exprimir o que captava nessa alba sobre uma noite em ruínas, se ousou a propostas de diagnose, conquanto tímidas, assentes numa semiologia ainda contraditória, como aliás, em muitos aspectos, contraditória continua a ser. Mas creio que se tratou de uma ousadia sempre disciplinada por aquela humildade que, no decurso dos dias, permite a rectificação.

O mundo, portanto, tem mudado em vertigem e, durante a mudança, foi-nos chamando, para não dizer forçando, a uma visão nova das coisas. Não importa, sequer, averiguar se as mutações desta época, no seu conjunto (somando os aparentes avanços e deduzindo os aparentes retrocessos), representaram um decisivo passo em frente relativamente aos padrões convencionais, pois que, quando nos transfiguramos, logo também se refazem as normas de aferição e também porque, fazendo nós parte do próprio movimento, escapa-nos a perspectiva fria, que até poderia tornar-se nocivamente refreadora. E a história sempre precisou destes ciclos tumultuosos e quentes, que ela depois sabe digerir.

E a ciência - a ciência em geral e a ciência médica em particular, que mais toca pela porta dos meus interesses e das minhas vivências? Que rosto nos apresenta hoje, agora, após estes fustigados anos de vendaval?

Como tudo o mais, ela foi abalada de raiz, posta em questão. Do cientismo dos mandarins, cioso de privilégios e soberbo do seu alto pedestal sobre os demais ramos do saber e da actividade humana, do cientismo que tudo quis explicar e tudo quis dirigir, que chamou a si as façanhas mais espectaculares, as especulações mais fulgurantes e aliciadoras, passou-se ao anticientismo reactivo, caído nas mãos do irracional, tal como a cultura do culturismo foi segregando os seus anticorpos, a contracultura. Por muito que em cada geração se pense o contrário, por muito que a nossa verdade pretenda ser a verdade, a última verdade, as ideias e os comportamentos por ela gerados ou nelas reflectidos são um contínuo fluxo e refluxo, mesmo que nada possa repetir-se da sua figuração anterior. Quando uma tendência corre para o extremo, logo se estica a corda da sua autoritária supremacia, até os fios se debilitarem e, por último, se partirem. E tudo recomeça com a maré a subir no outro extremo. Este processo pode ser rápido, com uma evidência gritante, para muitos estonteadora, mas também por vezes doseado por alongadas fases de resistências, que se ocultam sob falsas acalmias. Nem por tal, porém, o vulcão se extingue. Num repente, ei-lo que exala as suas lavas. Que não são forçosamente crestadoras.

Em suma: o esplendor da ciência que foi à Lua esquecendo a Terra, que criou mais instrumentos de morte do que de vida, que poluiu os campos, os rios e os ares, que fez das cidades selvas inabitáveis, que se dobrou ao rigor abstracto dos ordenadores, que despendeu vinte e quatro biliões de dólares no projecto Apolo, do qual certamente pouco mais resultou que um estandarte de prestígio içado numa paisagem nua - teve como refluxo a revolta instintiva, às vezes pueril, arcaizante ou isotérica, contra a razão.

A ciência que robotizou a existência sem cuidar da sua qualidade, fornecendo o utensílio mas desinteressando-se do seu uso, que perdeu de vista as aspirações profundas do homem comum ou, pelo menos, agiu de modo que esse homem se sentisse ignorado, instigando-o assim a desertar para a indiferença, o obscurantismo e a marginalidade, acabou por se ver entre o isolamento, a breve trecho erosivo, e a descida da sua torre até ao real, lá onde se clama por uma ciência "ao serviço da sociedade". Não se poderia, de facto, compreender que, por exemplo, como aponta Stanley Greenfield, alguns dos problemas prementes da vida dos nossos dias estivessem, afinal, já resolvidos nos laboratórios por essa ciência debruçada sobre si própria, inevitavelmente a caminho de uma crise de culpabilidade, apenas porque os seus desígnios obsessivamente "cientificados", aristocratizantes, desdenhassem a aplicação comezinha no quotidiano. Ou talvez ainda, em certos casos, por outras mais turvas razões.

Quanto à ciência médica, este breve apontamento. Diz-nos Gerard Bonnot que "a medicina americana está na vanguarda da pesquisa. Mas acontece que oitenta por cento dos médicos dos Estados Unidos são especialistas: quando alguém adoece, eles não estão para se incomodar. O clínico, enfim, desapareceu da América", justamente quando o doente (ou o homem solitário e angustiado para quem a "doença" é um abcesso de fixação, um apelo que requer resposta) dia a dia mais se mostra carente desse clínico portador de uma medicina dialogante, que tem em conta o homem na sua singularidade e na sua totalidade.

O panorama europeu não discorda muito do americano, ou tende a discordar bem menos do que se supõe. O doente vai sendo olhado como um interveniente embaraçoso na trama imbrincada da assistência médica, que não vê alternativa para a "tecnicização" e sofisticação, e para a qual, consequentemente, os parâmetros da eficácia têm de passar além das subjectividades. E, todavia, o último simpósio que reuniu médicos franceses exercendo nos mais diversos grupos humanos, do mundo citadino ao mundo rural, concluiu unanimemente pelo acréscimo generalizado do doente "funcional", isto é, aquele que padece sem haver um substrato orgânico para o seu sofrimento, o doente, enfim, que procura o médico como dantes procurava o confessor: para se aliviar dos pesos íntimos.

Em face disto, perguntar-se-á então de que vale ao homem comum esse tal progresso médico, o magnífico apetrechamento técnico que reduz a gráficos, cifras, toda a complexidade orgânica e logo lhe impõe uma decifração, da qual o senso clínico quase chega a ser ostensivamente arredado. Pergunta esta que converge no que se tem chamado a antimedicina, processo, afinal, idêntico ao anticientismo e à anticultura - uma medicina que, revalorizando ou reformulando o contexto socioafectivo, digamos assim, põe em causa os conceitos patogénicos e terapêuticos e, a partir daqui, a própria atmosfera sob que decorre o binómio médico-enfermo, por vezes arriscando-se (mas conscientemente) a pisar os terrenos do curandeirismo.

Por outro lado, eis o que referem as estatísticas: em 1970, a América, mal-grado o ostentoso desenvolvimento da sua medicina, nela empregava duas vezes menos pessoas (dentistas incluídos) do que a reparar automóveis. A máquina à frente do homem, num modelo gregário produtivista.

A reconversão, pois, terá de ser o homem à frente da máquina, embora se trate já de um "novo" homem, visto que o que somos é inelutavelmente um produto do que criámos. O objectivo, após esta fase de auto-acusação e de autopunição de uma sociedade que teve a coragem de fazer o inventário das suas taras e de as pôr a nu, parece orientar-se, por conseguinte, para a descoberta das vias harmoniosas que "responsabilizem" o cientista perante o mundo de hoje, de que ele tem sido, ou pretende ser, um demiurgo forjador, e para a aplicação "humanística" dos progressos científicos, de modo que cada homem se sinta uma unidade específica e responsável na sua necessária conciliação com a comunidade.

 

           ENFERMAGEM, PROFISSÃO INDESEJADA

Andaram encrespados os ares da enfermagem, para não fugirem a este explodir de gravames, que, muito naturalmente, tem os seus furacões, os seus remoinhos, as suas árvores da inércia áspera e salubremente sacudidas. Que ficará da ramaria desfolhada pela tormenta? Árvores mais reverdecidas, mais folhudas? Decerto. Mas, num ou noutro caso, quem sabe, talvez a cinza fria da frustração.

Vejamos: as sociedades têm, como nós, indivíduos, o seu próprio sistema circulatório. Artérias, linfas, húmus. E cada coração que nelas derrame a sua vitalidade, sazoada ou intempestiva, mesmo para nelas se imolar, animará esse coração maior, que somos todos - aquele que, por fim, germina do que pareceu fugidio, desgarrado e até suicida. Se o silêncio vier no desfecho, que seja de plenitude, o rescaldo de laboriosidades, nunca de sufocação.

A enfermagem, dizíamos, tem ultimamente participado deste clima de sismos purificadores. Ouvimos-lhe reivindicações longa e surdamente incubadas (como tantas ou quase todas o foram neste país, por isso agora torrenciais), vindas à boca no primeiro assomo do protesto e à flor da boca mantidas enquanto lá permanecer tão cobiçado sabor, vimos-lhe o faiscar de zelos quanto ao nome a dar a coisas e a situações, assistimos a um revigorado empenho no abrir de canais promocionais que encorajem os vários naipes da profissão, mas nada ou pouco se ouviu e se viu sobre o que, afinal, mais se avantaja: a visceral recusa, em todo o lado observada, contra o modo como tem sido vivida a enfermagem. Recusa visceral? Assim o creio, e admito mesmo que as variantes reivindicativas, lá bem no cerne, têm essa rejeição como fundamento maior: rejeição a que absurda

mente perdurem, numa quase tácita cumplicidade entre dirigentes e dirigidos, as condições que fazem da enfermagem uma das actividades mais indesejadas. Com um pronto e natural reflexo: escassez de profissionais e consequente deficiência dos serviços que prestam à colectividade.

O problema, todavia, não é nosso (ou só nosso), mas sim, praticamente, de todos os países. A rareza de enfermeiros, do mesmo modo, tem raízes, ou parte delas, que ultrapassam os contextos sociogeográficos. Se há uma singularidade no caso português, ela deve-se, sobretudo, aos anacronismos, displicências e barafundas do nosso dispositivo assistencial, que permitem o contra-senso de haver enfermeiros excedentes onde eles se dispensariam (cargos burocráticos, de secretaria, etc.) e às vezes nenhuns onde se clama pela sua presença - com um total inesperadamente próximo do que a OMS recomenda, fartura de que poucos países se podem gabar. Isto é: na nossa pecha para a incongruência, padecemos de forte escassez sem que, globalmente, ela exista. Estas dessincronias são obviamente agravadoras das tais condições repudiadas - embora a qualidade do elemento humano e os resquícios de uma tradição humanitarista em tudo o que à doença se refere, mesmo se em rápido declínio, tenham feito adiar o que pode vir a ser, ao que vou sabendo, uma situação preocupante.

Essa desabonadora singularidade não chega, porém, para explicar tudo e, daí, a surpresa no facto de as reivindicações que os ventos da mudança fizeram soltar não apontarem ao miolo da questão. Para além de aspectos formais, porventura significativos e até estimulantes na sua ressonância reabilitadora, para lá de uma provisória "facilitação", que ninguém pretende que se instale como mentalidade ou como receita, mas justificável sempre que se torne premente encontrar meios de suprir carências de reflexo colectivo - para lá ou a par de tudo isso, creio que importaria, concertados os profissionais numa clarificação dos seus objectivos, encontrar as vias para um novo rosto da enfermagem. Aquele rosto que, pelo menos, a faça mais apetecida.

Com efeito, muito em particular neste mester, não poderá haver profissionais capazes se os quadros forem exíguos. Um enfermeiro que tome a peito o seu papel na sociedade actuará como tal se, por hipótese, lhe distribuírem cinquenta doentes durante oito horas de labor intenso; esse mesmo enfermeiro já não dará idênticas provas da sua competência se, em lugar de cinquenta, os doentes forem duzentos e o horário tiver de dilatar-se por turnos sucessivos (e isto acontece mais vezes do que os leigos possam supor), na eventualidade de o colega que o deveria render se vir impossibilitado de fazê-lo. A fadiga que conduz à indiferença e ao descuido não terá graves repercussões em vários ofícios; pode tê-la, tem-na muitas vezes, quando é a doença que está em causa. Não seria, pois, de prevenir essa saturação? Sem dúvida. Mas enquanto qualquer obreiro de outras lavras achará boas razões para largar a sua tarefa, essas razões não servem para o médico e para o enfermeiro, salvo, evidentemente, se substituídos.

Como se disse, os números citados são mera referência. Um único enfermeiro pode sobrar para cem doentes e não bastar para meia dúzia. Depende do tipo de enfermidades, das idades dos enfermos e do apetrechamento de que se dispõe - o que nem sempre é posto em consideração, justamente pela míngua de quadros. Tal como os horários. Em certos serviços hospitalares, alvoreados de urgências e alarmes, uma lida seguida de duas horas excede à larga, como desgaste físico e psíquico, o cumprimento de um trabalho sem sobressaltos que se estenda por um dia inteiro. E como comparar, no mesmo espaço de tempo, o labor de uma instrumentista numa sala operatória, em que cada gesto tem de ser expedito e preciso, impondo uma apuradíssima atenção, e o labor burocrático da mesma enfermeira em funções de cunho administrativo?

A consulta de estatísticas sobre o binómio enfermeiros-população leva-nos a algumas perplexidades. Os números variam, são mesmos discordes, em parte, creio, porque ao se demarcarem as categorias profissionais ("auxiliares" e "enfermeiros diplomados" - designações correntes, embora se leiam outras) e as necessidades respeitantes a cada uma delas, pouco clara se torna a respectiva relação. Por outro lado, aquele binómio terá inevitavelmente de reger-se pelas características da população, sua densidade urbana e rural, seu estádio socioeconómico, seus grupos etários predominantes e, enfim, seu modo de vida. Quando, por exemplo, nos é dito que o Brasil necessita, até 1980, de preparar mais 56 250 enfermeiros e 181 250 auxiliares, tais números têm em conta, confessadamente, "a deficiência de médicos no interior", que força a recorrer à via mais curta de técnicos da saúde: pessoal paramédico. Não é esta a solução desejável, longe disso, mas é aquela que as circunstâncias transitoriamente podem impor. O mesmo sucedeu e sucede, em vários países acordados para a civilização ou em que a assistência escolheu novas feições, quanto à formação acelerada de quadros médicos e de enfermagem - até ao dia em que seja possível dispor de profissionais preparados sem olhar a pressas.

Todavia, ocupada desta ou daquela maneira, neste ou naquele clima humano, a enfermagem é a profissão que, ao lado da medicina, tem como seu quotidiano olhar de frente aquilo que nos cega: a doença e a morte. O sol não se pode olhar assim. Tão-pouco a doença e a morte. Mas sendo, pois, uma profissão traumatizadora, muito exigindo de quem a pratica, sensibilidade, coragem e têmpera, mesmo àqueles em que esses atributos pouco se revelaram, que ao menos lhe suavizem as mordentes arestas e, em suma, lhe compensem os fardos com umas tantas motivações.

O problema não é nosso, repita-se, e na mesma hora em que projectei este escrito chegou-me o relato de um congresso de enfermagem, em Curitiba, no seguimento de um encontro de ministros da Saúde, no Chile, em 1972. Nele se diz: "A falta de enfermeiros no Brasil é alarmante, pois existem apenas 0,8 para cada 100 leitos, quando o ideal seria 8 profissionais para esse número de leitos." E para justificar a carência, os congressistas sublinharam unanimemente "a falta de interesse e a desvalorização da enfermagem. Os enfermeiros são mal remunerados, as escolas insuficientemente equipadas e raros os professores qualificados". O mesmo informador esclarece que sessenta e quatro por cento dos que desempenham serviços de enfermagem são meros práticos, visto os diplomados, além de em número manifestamente exíguo, acabarem, numa boa percentagem, por abandonar a profissão.

Em Notícias Médicas lê-se noutro local: "Ao estudar-se a realidade do mercado de trabalho da enfermagem no Brasil, fica evidente que, se de um lado a oferta tende a crescer, na medida em que os órgãos oficiais pretendem incentivar a formação de pessoal paramédico [...] por outro, há uma série de entraves que dificultam o desempenho da enfermagem e afastam o candidato, principalmente o preconceito social e o baixo nível do ensino."

Estas e aquelas mesmas palavras poderiam aplicar-se à maioria dos países. E quem diz enfermeiros quer dizer sobretudo enfermeiras, pois tradicionalmente a enfermagem vem sendo exercida por mulheres, embora o elemento masculino tenda a prevalecer em certas clínicas, como as ortopédicas, psiquiátricas e urológicas. A realidade, por conseguinte, é esta: enquanto as necessidades de recrutamento se multiplicam, pois ano a ano a assistência se apetrecha com mais empenhado propósito de eficácia, assim acompanhando a crescente promoção à saúde das populações (com várias inferências, entre elas a maior procura da casa de saúde e do hospital), enquanto isso, vinca-se a fuga a tão dura e simultaneamente negligenciada profissão. A panorâmica é sombreada ainda com este aspecto: se dantes se tinha por suficiente uma enfermagem improvisada, só olhos e mãos, hoje, que os cuidados ao doente, sem dúvida mais diferenciados e melindrosos, reclamam saber-se os porquês do ver e do actuar, consciencializando o acto, já não é lícito depreciar (pelo descaso, pelo preconceito que vem lá muito de trás, pela quebra na exigência) os préstimos do enfermeiro-enfermeira, reduzindo-os a uma elementar e rude serventia - o que desde logo pressupõe uma modelação ética, a reforçar a modelação técnica. Para as tais serventias rudimentares haverá outras categorias profissionais, de modo algum desprimorosas para quem as desempenha, muito pelo contrário (nem é o desprimor que está em causa), mas que já não se podem confundir com enfermagem.

A saúde dos povos requer, portanto, sempre mais e melhores enfermeiros. Em contrapartida, pouco se fez para tornar a enfermagem cobiçada: ao que os factos atestam, a indiscutível melhoria do ensino, a triagem que pôs rigor no recrutamento, sem o qual se compromete a dignificação, não alterou substancialmente a inapetência por tal carreira. A verdade é que, se a enfermagem era árdua e paradoxalmente mal remunerada, continua a sê-lo. Sob vários aspectos, poderemos mesmo dizer que, na actualidade, é mais penosa, quanto ao acréscimo de estudos e responsabilidades que lhe são inerentes, e relativamente menos compensadora do que há anos atrás. Progrediu, perante o consenso geral, a sua cotação? O seu peculiaríssimo labor, misto de vocação e de dádiva, prestigiou-se em confronto com tempos ainda recentes? Não custa aceitar a afirmativa. Mas as "estimas" e os "sacerdócios" pouco influenciam, no presente, a escolha de uma profissão, sobretudo num quadro sociológico desprovido de apelos e mobilizações exaltantes. Na opção por uma tarefa vários ingredientes contam e, entre eles, o prémio e a "qualidade" dessa tarefa. Cada vez mais a vida, no seu todo harmonioso, tem duas faces: o esforço, o modo como ele se aplica e respectiva finalidade, e o lazer, seu corolário, que, num sentido amplo, poderíamos definir como a maior ou menor disponibilidade para se fruírem outras perspectivas da existência. O esforço não deve frustrar o gosto de viver como o gosto de viver tem de incorporar o esforço.

Ora, a enfermagem, como tem evoluído, é seduzida por uma mancheia de acenos e acha-se depois com uma mancheia de nadas. Sujeitas a uma lida absorvente, em que o excesso, com frequência, deteriora a "finalidade", com horários tensos e irregulares, as enfermeiras (visto que, na maioria dos casos, de mulheres se trata) saem as mais das vezes a porta do hospital já vencidas perante outra lida que as espera (donas de casa, mães de família), ou só pensando em se restaurarem das energias esgotadas; por último, o vencimento do fim do mês fica aquém de uma escriturária. Com esta diferença: à escriturária pede-se, em regra, um curso de comércio de comedida duração ou uma escolaridade média; à enfermeira, presentemente, exige-se: cinco ou sete anos de liceu, mais três de ensino especializado, acrescidos de um ano de estágio. Para todos os efeitos, um bacharelato.

Não admira, então, que tal carreira esfrie os jovens, hoje ainda mais do que ontem impacientados com os cursos morosos e em que essa morosidade nem sempre se justifica. E não admira, também, que, como consequência, se recorra a profissionais de enfermagem mais aligeiradamente preparados - até porque, em boa verdade, nem todos os actos de enfermagem justificam tão alongadas bases, mesmo tendo em conta que se deve aspirar a uma enfermagem de nível, solicitada que é por uma medicina complexa, e nunca a uma enfermagem elementar. A vida ou a validez futura de um doente hospitalizado dependem tanto do médico como do enfermeiro. Em certas circunstâncias, mais deste do que daquele.

Todavia, a pressão das realidades e até a progressiva diversificação de tarefas no largo leque da saúde aconselham, dentro de designativos dignificantes, hierarquias maleáveis. Isso, aliás, só poderá contribuir para que a profissão sinta o estímulo à promocionalidade conquistada e seja assumida em plenitude. Não se tome, pois, hierarquia como sinónimo de casta, de diferenciação social que vai fechando as portas de acesso. Hierarquia existe, e tem de existir, em todas as actividades e em todos os lugares em que são exercidas. Temo-la na medicina, por exemplo, do estagiário ao director de serviço, e, no entanto, esses médicos passaram pelas mesmas escolas; temo-la sempre que graduamos a preparação teórica consoante as funções que lhe estão destinadas. Nenhuma sociedade, como nenhum labor, dispensam a disciplina, da qual a hierarquização faz parte. Tudo depende dos matizes de que ela se reveste.

Mas nem as soluções de recurso, nem a própria afinação no distribuir de encargos, têm obstado às carências da enfermagem. De todos os lados, da América dos dólares à Suécia das coroas, passando pela Inglaterra em maré de austeridades, soam vozes apreensivas. Tanto dos países com falta de mão-de-obra como daqueles que a têm em demasia. Há anos, um semanário francês foi junto de enfermeiras a averiguar dos porquês da situação, fazendo preceder o inquérito de frases assim:

"Cada vez dispomos de menos enfermeiras. Se se verificasse um epidemia de severas proporções, essa escassez teria consequências dramáticas."

"A carência de pessoal compromete seriamente os serviços hospitalares."

"Os hospitais são lugares onde quase ninguém deseja trabalhar."

"Quais os motivos desse desinteresse e dessa fuga?"

Eis um resumido balanço dos testemunhos reunidos.

Certas alegações para o mal-estar, diga-se mesmo ácida desilusão, que se observa nas enfermeiras aparecem repetidas em quase todos os depoimentos: injusta remuneração, um tipo de trabalho que oscila entre ser fatigoso, absorvente e deprimente, em muitos casos incompatível com uma vida doméstica serena, ambiência sem correctivos para as agressões emocionais a que sujeita, sem oásis de amenidade e conforto que tornassem recuperadores os fugazes momentos de ócio, e ainda (pormenor que, decerto, não havia sido previsto) falta de creches e infantários, anexos ao hospital, dedicados aos filhos das enfermeiras.

Quanto à remuneração, todas as entrevistadas lhe reservam ásperos comentários, confrontando-a com a de outras actividades de bem menor responsabilidade e incomodidade. Se os proventos das enfermeiras se equiparam - acentua uma das depoentes - aos de uma professora primária (lembre-se que o paralelo se situa em França), esta, porém, usufrui quatro meses de férias por ano, tem os domingos e as quintas-feiras livres, ao passo que as enfermeiras devem bastar-se com uma folga por semana, férias magras quando as azáfamas do serviço consentem, e ninguém para lhes cuidar dos filhos durante as densas horas de trabalho.

(Cifras recentes, do Brasil, dão como média 3500 cruzeiros mensais, no caso do que chamam "enfermeiros graduados", o que os coloca bem acima dos seus colegas portugueses. Na altura do referido inquérito em França, que a rápida depreciação da moeda desactualizou quanto a este particular, a média era de 800 francos, de qualquer modo também a larga distância da bitola portuguesa da mesma época.)

Pelo que respeita às cruezas da profissão, as entrevistadas acusam a irregularidade dos horários, desacertados com os do comum das pessoas, e a tensão a que, durante essas horas, são submetidas. Em princípio, oito horas de trabalho: das 7 às 15, das 15 às 23. Ou a noite. Um ritmo desordenado que logo repercute na vida privada da enfermeira. Em relação aos seus familiares, ela acaba por ser olhada como um parente caprichoso, de humor instável, que entra e sai quando menos se espera, que raramente pode conciliar-se com a pauta caseira de lidas e lazeres, que, aos poucos, assume uma personalidade de quem já não pertence ao mundo dos outros.

Para agudizar este panorama (e também segundo os mesmos testemunhos), a crise não é só de enfermeiras, mas também, ou sobretudo, dos seus mais próximos ajudantes, reduzidos a um terço dos quadros previstos. Daí, as enfermeiras se verem forçadas a "tudo fazer", já que a dactilógrafa pode deixar o memorando na máquina de escrever, completando-o no dia seguinte, enquanto os doentes, esses, têm as mesmas precisões, haja ou não o pessoal devido - do que resulta os horários se tornarem puramente teóricos. E se algumas das enfermeiras adoecem ou se vêem coagidas a faltar por motivos imperiosos? As que estão têm de se manter no seu posto. Calcule-se em que estado físico e emocional, após essa usura de esforços suplementares, a enfermeira regressa ao seu meio familiar.

Ouçamos este depoimento mais pormenorizado. A penúria de enfermeiras assentaria num duplo problema: não só o número de candidatas se vai reduzindo, dado que as jovens dos nossos dias já não se enternecem com o chamariz de um "ideal" que escraviza e deixa a bolsa vazia, mas também as defecções, durante e após o curso, aumentam em cada ano. Ou trocam a enfermagem por outro modo de vida menos duro e mais rendoso, ou desistem do trabalho fora de casa, ou, enfim, optam pelas instituições privadas, por via de regra mais generosas. As enfermeiras de dispensários, colégios, fábricas, etc., têm os mesmos horários das pessoas de "vida normal" e não são obrigadas a deixar que o marido "jante sozinho". São ainda aliciadas pelo complemento de gratificações periódicas, horas extraordinárias (se assim o desejarem) a tabela dobrada, ao passo que o hospital "só sabe exigir".

Quanto às condições que possam suavizar os dias e as noites de rude labuta, as enfermeiras ouvidas nem sequer foram além do que actualmente se tornou vulgar: uma sala tranquila que lhes seja reservada, onde verdadeiramente possam repousar, ler, ouvir música, pois até há pouco, nos momentos de saturação, as mais das vezes tinham de se contentar "com uma cadeira esquecida a um canto". Do mesmo modo, as já referidas creches e os jardins infantis, para recreio e resguardo dos filhos das enfermeiras, "facilitariam as coisas".

Completando este bosquejo da enfermagem de hoje, aponte-se quanto esta profissão teve, naturalmente, de acompanhar o rápido evoluir das técnicas da saúde. Da profilaxia à terapêutica, do rastreio à reabilitação. O estudo dos doentes demanda uma multiplicidade insaciada de exames, em que a enfermagem também colabora, e em particular os tratamentos, progressivamente mais complexos, pedem um saber e uma vigilância incompatíveis com uma enfermagem inapta. Em certos serviços, como os da reanimação e os pós-operatórios, essa vigilância, além de avisada, tem de ser constante. Se há, pois, mester que peça um acerto sucessivo com as novidades teóricas e práticas, é este - e, no entanto, quando se fala em reciclagens e remodelações no programa de estudos, é de uso esquecer a enfermagem. Decerto pela imagem convencional que dela persiste.

Por outro lado, desapareceram as religiosas, e o inquérito francês não deixa de tocar nesse ponto. Durante as vinte e quatro horas do dia, elas tinham o mesmo tecto do enfermo. O hospital era o seu lar. Por isso, e embora a sua preparação nem sempre correspondesse aos níveis actualmente requeridos, bastava uma religiosa onde hoje são precisas três enfermeiras.

Se, por último, relembrarmos que os hospitais proliferam e têm de proliferar, que frequentemente a qualidade da assistência médica em muito depende da qualidade da enfermagem, que não só o homem doente necessita da enfermagem, mas também, e cada vez mais, o homem que quer preservar a sua saúde - até onde se exacerbará a conjugação de factores que sublinham o problema?

Vão desaparecendo as profissões-sacerdócio, ou que se iludiam com essa legenda. A enfermagem terá sido uma delas, já que, afinal, nunca contou com outros aliciamentos (até o matrimónio, no caso das mulheres, durante uma escura fase, lhe foi vedado!), salvo nas épocas em que se deixou equiparar a uma função de "trabalhos pesados". Aí, nem sacerdócio podia haver. Com essa página de há muito voltada, toda uma mentalidade teve de ser refeita. Já o foi, parece, da parte da enfermagem. Resta que o seja da parte de quem terá de reformular a profissão.

 

         VIDA E MORTE DO HOMEM MODERNO

Há quem pense que nada mais abstracto do que uma cifra. Por isso, as estatísticas, em que confiamos para maior rigor dos nossos juízos, são em boa parte aquilo que nelas desejamos ver. Lembro-me que, há anos, quando se passaram em revista, com números na mão, as possíveis causas de cancro, e nessa acirrada busca logo sobressaiu a coincidência entre o maior uso de certas substâncias e o incremento de várias localizações tumorais, um cientista suíço veio pôr água na fervura com esta ironia: "Também o consumo de botões de camisa tem progredido e, se vamos pelas estatísticas, haverá então que relacioná-los com a medrança do cancro."

Assim, quando se fala da velhice e dos incómodos problemas que a acompanham (de respeitado, guardião de sabedorias, o velho passou a ser a imagem do que na vida é ruína e marasmo, contra ele se assanhando uma espécie de ressentimento biológico), quando se fala de velhice, dizia, sem hesitar se parte de um lugar-comum que as estatísticas parecem fundamentar: no nosso tempo, vive-se mais, isto é, a esperança de vida dilatou-se.

Esta pretensa conquista é creditada à medicina, que hoje domina o que ontem era incurável, desse modo reduzindo a área da "selecção natural", e à melhoria crescente da qualidade de vida naquilo em que ela mais se reflecte na saúde e no bem-estar.

Com efeito, as doenças infecciosas e outros males ceifadores, que dantes iniciavam a razia nas primeiras idades e a continuavam, já com menos ímpeto, nos estádios maduros, encontraram na armadura profiláctica e nas modernas terapêuticas um adversário do seu talhe, o que foi assegurando à maioria dos infantes a possibilidade de chegarem a velhos. A par disso, as carências nutricionais e outras, responsáveis por débeis e enfermiços, viram-se combatidas pelo progresso, na larga ressonância da palavra, desde progresso material e educacional à higiene mais apurada.

São as estatísticas que o afirmam. Somos todos nós que o repetimos. Porém, voltando os números do avesso, que se nos depara, afinal? Só isto: que a duração de vida tem, pelo contrário, diminuído e que não pára de diminuir. Em que ponto, então, as cifras deformam a realidade, sabendo-se, de prova provada, que a esperança de vida, que era de 35 anos na Idade Média, foi trepando até aos vitoriosos 70 anos do presente? É que, antes de 1900, cerca de 50 por cento das crianças não passavam o cabo dos 4 anos de idade, fosse qual fosse o meio social, já que a medicina mesmo junto dos abastados era pobre. Presentemente, o quadro é inverso: quase todas elas chegam a adultos. Os cálculos, portanto, devem ser feitos a partir dos 45 anos de idade, o que, segundo certos sociólogos, nos mergulha numa verificação pessimista: vivemos hoje menos tempo e menos viveremos ainda se o mundo acelerar a sua prosperidade, pois é nos países de evolução ronceira que a esperança de vida tem demorado a decrescer. Tais sociólogos dão-nos mesmo esta precisão: a longevidade começou a ser ameaçada desde o aparecimento da agricultura e dos agregados urbanos. O homem, em suma, ao criar, para melhor viver, teve de exigir muito da sua adaptabilidade, a qual, em variados aspectos, se faz à custa de mutilações e, ao que se deduz, do encurtamento da existência.

Mas esta real ou aparente contradição não aparece isolada. Ainda que o parentesco ultrapasse os terrenos da biologia, de algum modo podemos associá-la a um outro lugar-comum (e não só estatístico) que os factos desmentem: o da velhice começar, nos nossos dias, mais tarde. Não falta quem o festeje, e tudo, a um primeiro relance, se junta para o comprovar.

Vejamos. A velhice recua de ano para ano porque a medicina também aqui obra nesse sentido, e sem que para isso necessite de elixires de bruxedo, porque o viver de hoje incita os idosos a participarem do que, dantes, era quase privilégio dos novos, fazendo-os sentir-se mais jovens, mais dentro do que na existência é acção e movimento, porque a fisiologia se exalta com este permanente estímulo ao que virá e não ao que passou, com a atmosfera remexida que convida à interferência. A velhice recua, sem ter de hipotecar a alma ao diabo, porque a actividade é inimiga das escleroses, porque, enfim, os homens se recusam à inércia quando tantas e saborosas coisas os chamam à agitação.

E porque a velhice é adiada mais e mais, dilatando a vida que merece ser vivida, foi surgindo o problema das populações que são gerontes na idade e ainda vigorosas no espírito, no ardor, na apetência e na capacidade de permanecerem activas. Foi-se salientando o drama dos velhos a quem as neoconvenções impõem uma prococe e injusta reforma, que é a espera da morte, a agonia crucificada, quando, afinal, a morte ainda vem longe e ainda se responde com entusiasmo ao apelo da vida. Se continua e continuará a existir uma patologia da senectude, que a medicina, em muitos aspectos, tem atenuado, prolongando a validez do homem idoso e o seu préstimo à colmeia social, uma nova e sombria patologia se agiganta: a do homem a quem a idade oficial (e não a fisiológica) condena ao ócio desencantado, a segregação, à solitude. Para todos os efeitos, à morte civil.

E porque o desocupado gasta e não rende, e as comunidades não podem dar-se ao luxo de sustentar uma população parasitária que tende sempre a crescer, e porque os conflitos psicológicos (à escala individual, familiar e colectiva), inerentes a uma tal situação, manifestam um progressivo agravamento e uma complexa e pungente sintomatologia - gerontologistas e governantes têm ensaiado várias soluções visando reintegrar os idosos na vida activa e, consequentemente, produtiva.

Mas aqui chegamos a um paradoxo. Neste mundo de incoerências, com uma das mãos se dá e com a outra se tira. Enquanto se procura corrigir os malefícios de um longo período da existência em que o homem se sabe válido e lhe regateiam as oportunidades de o provar, um certo tipo de sociedade competitiva, que espreme os indivíduos até à última gota do seu sumo, no objectivo de um rendimento máximo no tempo mais curto, sociedade de emulações impiedosas que destroem em vez de instigarem, lança fora os destroços desse desgaste que provocou, desgaste físico e sobretudo emocional, logo que se esboça ou se prevê uma quebra na capacidade dos seus robots.

Deste modo, a idade crítica, para lá da qual o fruto parece definitivamente espremido, de ano para ano começa mais cedo. Anteontem, situava-se nos 50, ontem nos 40 e hoje nos 35. E isto é particularmente evidenciável nos chamados "quadros", que, pelo seu adestramento profissional e aptidões, desempenham tarefas de maior responsabilidade - as mais invejadas (e portanto mais vulneráveis), as mais traumatizantes e também as que o fracasso e o chicote da concorrência menos poupam. Para essa sociedade, há sempre quem possa revelar-se melhor do que quem está e existe sempre quem possa superar os limites do dinamismo. Por isso se atiça um sentimento de insegurança, que actua como mecha do êxito. Uma atmosfera assim dilapida e desumaniza? Antecipa a usura? Pois bem: encurte-se a idade da luta, assopre-se o fogo para arder mais depressa. Dispensem-se os guerreiros antes do momento em que a contenda os sangre.

Que pode então esperar o homem de 35-50 anos que investiu fé e labor na valorização do seu futuro e, após uma breve fase de intranquila actividade, se vê posto de lado como refugo? Onde aplicar a sua experiência, as suas ambições, como retribuir o que deve à sociedade e como receber o que esta continua a dever-lhe? O que o espera é a frustração. A deprimente evidência que está a mais, que a sua vida, ao chegar à plenitude, logo é coagida à inutilidade. Espera-o um longo purgatório, para o qual há apenas olhos e apodos ferozes, já que o declínio dos outros se tornou o espelho vivo do nosso próprio e irrevogável declínio, numa época em que ele é mais temido do que nunca o foi, espera-o a eutanásia da idade. Se, entretanto, acontecer ser reintegrado na comunidade que o despediu, sê-lo-á quase sempre por mercê e não já por direito.

Assim vai sucedendo em todos os países em que se reproduziram as mesmas circunstâncias de desvirtuada competitividade. A França, por exemplo, avalia em 20 000 o número dos seus "quadros" que se desempregaram a partir dos 35 anos e confessa que, diariamente, são por dezenas os que se inscrevem no Apec, espécie de "exército de salvação" com a incumbência de descobrir caridosas oportunidades para os diplomados inactivos. Mas, em cada trimestre, essa associação apenas consegue "reclassificar" (terminologia fagueira, que não esconde a dureza do que exprime) cerca de 200 dos seus representados. Na Suécia, o problema é idêntico, só diferindo a mezinha, baseada num sistema que previne a doença antes de ela eclodir: mal os seus "quadros" entram em funções, logo um organismo lhes prevê a "incapacidade", e cada caso é individualizado de modo a assegurar-lhe uma tarefa de semi-reforma no dia em que se concretize o risco de perda de emprego.

No entanto, com terapêutica profiláctica ou curativa, subsiste o drama psicológico e social: a velhice começa mais cedo, embora nos seja dito que começa mais tarde. E o que isso significa sabem-no os homens que nos parecem e se sentem jovens - mas marcados já pelo ferrete da invalidade.

 

             O MARTELO-PILÃO E O MOSQUITO

"Não vamos servir-nos de um martelo-pilão para esmagar um mosquito", escreveu M. Muller ao comentar o uso e abuso de fármacos potentes, cujos efeitos secundários são tantas vezes o reverso da sua eficácia, em casos banalíssimos da clínica - o que, dia a dia, mais é de ponderar sabendo-se quanto o acesso facilitado à assistência médica incita o apetite dos consumidores de remédios e sabendo-se quanto o desenvolvimento das doenças psicossomáticas, uma das expressões da insegurança do homem actual, se traduz por esta cifra: oitenta por cento da clientela dos consultórios é constituída de funcionais, ou seja, em termos grosseiros, de enfermos imaginários, que, porém, sofrem e exigem os mesmos cuidados do enfermo com uma lesão objectivável.

Um psicossociólogo não desprezará o facto: a civilização dos nossos dias, a do homem que a antropologia tem por aculturado, é, entre outras justificadas definições, a civilização da droga, no sentido de emprego ávido, desmesurado e crónico de medicamentos e não apenas do estupefaciente de má fama. Numa época em que os valores, os ritos, as estruturas, que funcionavam como "próteses sociais", se foram desacreditando, sem que, por ora, apareçam outros, suficientemente sólidos, a substituí-los, o remédio actua como sucedâneo, como derivativo e também como anestésico de um viver que, por ter perdido o seu sistema de referências, mais se expõe ao sentimento de precariedade, de inutilidade sofrida na solitude, tanto como a uma dor sem substrato, que nem por tal é menos crua.

O médico não podia escapar à engrenagem que o fenómeno criou, ao próprio clima de perplexidades que

O envolve e coage. Ele não se ilude quanto ao desmando do que prescreve, mas, isoladamente, a sua lucidez fica desarmada. Ele até pode considerar o angustiado menos anormal do que o indivíduo de nervos de aço, já que este resta coarctado da parte mais sensível e dinâmica de si próprio, enquanto naquele as antenas vibram

e os mecanismos de defesa se alertam - mas o homem de hoje não suporta a angústia, exigindo que lha façam calar, ou refugia-se na ideia da doença, fulcro de atenções, ainda que a mezinha, que delas é um dos rituais, o apanhe num círculo vicioso de dependências psíquicas e físicas.

Com efeito, a apetência dos doentes, ou dos que como tal se consideram, pelo medicamento, espertada por uma divulgação mal compreendida, representa hoje uma teia de imposições a que o médico dificilmente pode resistir. A essa apetência junta-se um compreensível zelo de actualização de receituário, cujos limites ou cujo fundamento são difusos, ao qual não parece alheia a temida censura do enfermo, atento em medir, pela opulência da terapêutica, a autoridade dos vários clínicos que consulta, e junta-se ainda o humaníssimo propósito de buscar o efeito imediato, aliviador para o enfermo e prestigiante para quem o obteve. Daí, a todo o passo recorrer-se ao martelo-pilão para dar cabo do mosquito. O mosquito é esborrachado, sem dúvida, mas também é maltratada a cena das suas tropelias.

Assim, nesta era triunfal da farmacologia, toda ela lançada para as sucessivas mas também efémeras novidades, começa já a avultar, em certos casos tragicamente, o preço por que se paga a eficiência e a presteza. E por muito festejável que seja esse progresso - e sem dúvida que o é -, não podemos esquecer que quase toda a terapêutica é uma agressão ao organismo. Agressão calculada, e na mais legítima das intenções, para o proteger de uma ofensa que supomos de gravidade maior, mas nem por isso se pode desvalorizar o facto de o organismo nem sempre agradecer o que lhe é imposto ou fornecido intempestivamente. O nosso corpo, em suma, é feito de sábios equilíbrios, de delicadas orquestrações, de mecanismos de auto-regulação, e nunca aceita de bom grado alianças que não pediu e sobretudo as que, de violentas, podem ser mais penosas de suportar do que as moléstias que as justificaram.

Por conseguinte, à medida que o poder das drogas faz crescer os riscos, mais se impõe a regra de bom senso que, desde a Antiguidade, se recomenda à medicina: não se exceder no seu afã de beneficiar, pelo confronto entre os malefícios da doença e os inconvenientes do medicamento que se lhe poderia opor. Nisso esteve e está o mérito da clínica, que o próprio progresso tornou ainda mais de assinalar. A responsabilidade do médico acentua-se de todas as vezes que, muito naturalmente, é seduzido por uma conquista da terapêutica, a qual, na generalidade, se anuncia pelo que nela merece exaltação, ficando na sombra o que pede cepticismo, embora pareçam severas as instituições chamadas a depor. Neste surto eufórico de pesquisa copiosa (que, em grande parte, traduz um mercado em desesperada emulação), a verdade é que a medicina e a sua clientela vêem-se mais solicitadas pelo que na novidade existe de positivo do que de duvidoso. Ambas as partes confiam por necessidade de confiar e também porque é sempre entorpecente da crítica precavida uma atmosfera festejadora de um êxito que repercuta na vida humana.

Essa receptividade, digamos assim, teria de ser mais cedo ou mais tarde abalada por surpresas. Tais decepções logo provocaram um alarme público decerto tão excessivo como a credulidade que o precedera, multiplicando-se os requisitórios contra as drogas de biografia manchada e, por contágio, igualmente contra as que o tempo sancionou ou se têm por imprescindíveis - todavia, por muitas fobias que se desencadeiem, o que prevalecerá é a promoção viciada ao remédio. Perante a qual o médico se sente e se sabe frágil. A ele cabe, em todo o caso, a avaliação dos sinais deste ponto crítico, inevitável sempre que o incremento de uma ciência se desajusta com os parâmetros sociais e psicológicos sob que é aplicada. A clínica foi, através da história, frequentemente posta em apuros por essas dissonâncias, hoje agravadas pelas crescentes limitações à iniciativa do médico, a quem se pede, simultaneamente, tacto, ousadia e liberalidade na medicação. Todavia, ainda mesmo que ele conseguisse dosear as pressões contraditórias e impor o seu aviso a muitos dos farmacómanos, sempre sobrariam os que cobiçam o remédio só porque é remédio e encontram modo de satisfazer a cobiça.

Muller, pelo que respeita tanto o medicamento-novidade como o medicamento que deu provas, propõe uma cartilha de prudência, assente em três perguntas fundamentais:

- O medicamento será útil no caso que se nos apresenta? E, sendo útil, será indispensável?

- Se o reconhecemos indispensável, em que dose deveremos recomendá-lo e de que meios dispomos para lhe dominar os riscos?

- Quais esses riscos? Excederão eles os danos da doença a tratar?

Um questionário obstinado, portanto - mas a dúvida nunca foi deprimente, pelo contrário, nem deve confundir-se, como advertia Claude Bernard, com o pessimismo inibidor.

Adoptado esse código de segurança, não se trata, então, de dispensar qualquer terapêutica de fresca data, por lhe desconhecermos as ressacas, mas de disciplinar o seu emprego segundo normas acauteladas. Para as tornar efectivas, haverá que ter, primeiro, um conhecimento minucioso da droga em questão - e é o que as autoridades sanitárias pretendem ao reclamarem um inventário exaustivo das características dos novos produtos, muito embora essa particularização só possa ser completada pela análise dos efeitos a distância, uma "distância" nunca fácil de precisar.

Por entre recifes, resta ao médico, por conseguinte, cuidar da sobriedade da sua actuação. Ainda que o seu exemplo não seja decisivo, é, porém, refreador. Tal sobriedade, aliás, é tranquilizadora, pois mostra mais poder aquele que esmaga o mosquito com uma simples pressão do polegar do que o alvoroçado que faz apelo a uma esquadrilha de bombardeiros. Quando um destes nos roça o telhado, até as paredes ameaçam aluir.

 

             AVENÇAS MÉDICAS:

             UMA EXCENTRICIDADE SOCIOLÓGICA?

As avenças médicas, creio que ainda em uso nalgumas zonas do País, um pouco em obediência à tradição e outro tanto por temor de doenças arrastadas que levam de surpresa coiro e cabelo, representam uma curiosa modalidade de seguro social, onde ele não existia ou tardou, que carece de ser apreciada nas suas facetas peculiares.

Foram as regiões do Centro e do Norte, terras do minifúndio, onde o homem nem é pedinte nem remediado, que mostraram maior apreço por esse liame ritualista entre o médico, pela força das realidades desambicioso, e a sua clientela de fracos teres. "A avença", dizia-me um filosofante colega da minha vila natal, "traduz apenas miséria: a deles e a nossa." Deles, porque, na sua maioria, não poderiam arriscar-se a uma assistência médica de pulso livre, ainda que moderadamente remunerada. Nossa, porque, nesses tempos em que assentar praça na clínica era comer o pão que o diabo amassou, víamo-nos forçados a preferir o pouco, mas certo, às flutuações de uma freguesia de rurais que, entre morrer da doença ou da cura, optavam pela agonia mais breve. Para ilustrar a sua sentença, o colega evocava o caso de um parto laborioso, a que assistira com a ajuda de outro médico, que fora retribuído com... uma garrafa de licor. Sendo o parto, coisa solene, tido como serviço extraordinário, fora das obrigações da avença, o aldeão, que nunca lograra amealhar para um imprevisto, correra à taberna a munir-se do presente, para com ele tapar a boca dos partejadores.

Miséria, pois, seria a razão de ser de tal contrato: um ou dois alqueires de milho, por ano, cobrindo as mazelas de uma tribo familiar. Podem hoje rir-se, incrédulos ou zombadores, os jovens médicos que isto ouçam, mas saibam que foi assim que começaram os seus confrades de há 30 anos, quando a cada partido médico, por mais sáfaro e exilado que fosse, acorriam dezenas de bacharéis, não sem mobilizarem o apadrinhamento dos caciques, e quando, enfim, a assistência pública à doença pouco ia além da enfermaria do hospital.

Miséria, aceito, mas a ela permito-me acrescentar outras razões. A minha experiência de médico andarilho ofereceu-me ensejo de interpretar de vários modos a maior predilecção da gente beiroa pela avença, em confronto com os povos do Sul. O Beirão, se por um lado tem bossa de migrador, por outro, na sua terra, apega-se à estabilidade das praxes, cria laços e é-lhes fiel, pondo nisso gosto e brio. A avença médica assenta-lhe bem. Vai ao encontro do seu instinto acautelado e até das manhas com que se foi defendendo dos jugos sociais. O homem de além-Tejo, esse, quase sempre sem uma jeira de terra que o amarre a ilusões, repele convénios que lhe limitem o orgulho de ser livre na sua pobreza. Nada possuindo, mais dono é de si próprio, a todo o momento disponível para escolher, optar. Mesmo que assim o risco seja maior e o exceda. A avença com o médico seria sentida como um elo subjugador.

A avença médica, portanto, foi quase exclusiva dos povos do Tejo para cima e não demarcou, ao que julgo, apenas uma geografia de mínguas - embora estas, repito, lhe estejam nos fundamentos. Acontecia até que era justamente no Sul que esse acordo partia da iniciativa das famílias abastadas, que o propunham com liberalidade. Talvez fosse grato ao maioral da planície ter o médico sob a sua asa suserana - esse médico que, no comum dos casos, vinha de longe como pelintra emigrante. O feudal desforrava-se assim, com rasgos da sua bolsa, da casta universitária que lhe ofendia a suserania.

Em certas comarcas do litoral e da Beira-serra (ia eu a dizer), a avença tinha raízes fundas e significados de múltipla feição. Por exemplo: um dos gestos de maioridade a que um mancebo poderia arrogar-se, perante o agregado a que pertencia, mesmo antes do serviço militar ou do casamento emancipador, era romper com a dependência que o ligava à avença mantida pelo chefe de família. Ia ele próprio ajustar-se com outro médico, ou com o mesmo - o que importava é que o avençado passasse a ser ele. A avença traduzia, pois, um acto social, uma amostra de responsabilidade assumida. Esse tributo tinha uma época para ser remido, logo após as colheitas, e, fosse pago em grão ou em moeda correspondente, apetecia enroupá-lo num certo cerimonial, acrescentando-lhe uns mimos, peça de caça ou bico de capoeira, e as mais das vezes reforçando-lhe a justificação com uma consulta metida à força. Amiúde, o cabeça-de-casal fazia-se acompanhar da tribo e, em particular, de algum membro de quem se pudesse apregoar uma notória façanha: a admissão no seminário, por exemplo.

Por via de regra, tal contrato durava uma vida. E tinha o seu código de honra. Podia suceder que os azares da clínica minassem a confiança posta no médico, levando o avençado a procurar outras providências, podiam atravessar-se amuos e enfados nessas relações, mas, Setembro chegado, a avença lá ia ter aonde a palavra do campónio se empenhara. Se arribasse um novo joão-semana a uma povoação dominada pelo regime da avença (portanto fechada às aspirações de um principiante), exprimia hospitalidade, saudação de boas-vindas, que certo número de paroquianos, entre os de maiores cabedais, logo se propusessem como avençados. E depois as coisas corriam por si: hoje um descontente, amanhã um moço que acabasse de constituir família, aos poucos o neófito nas artes médicas ia somando os alqueires precisos para viver com modéstia asseada e aos poucos se ia sentindo adoptado pela comunidade. E sublinhe-se que, não raro, nessa adopção desempenhava decisivo papel o colega ou os colegas já com o seu ninho assente.

O número de avenças testemunhava, como é bom de deduzir, o prestígio de um médico. Por último, significava o seu património, o seu aforro, que, num ou noutro caso, podia mesmo ser herdado e até negociado. Lembro-me que, à maneira das "clientelas" negociáveis de certos países, a viúva de um médico dos meus sítios pôde trespassar as avenças do legado do seu marido a outro médico recém-chegado ao burgo.

A avença, posta assim em termos de acordo livremente estabelecido e obrando como seguro, incitava a um tipo de clínica de características singulares - umas decerto reflectindo as estreitezas da ambiência que as impunha, mas outras de incontroversos benefícios no trato médico-doente. Ao médico interessava mais prevenir a enfermidade nos seus clientes do que remediá-la; assim, mesmo sem dar por isso, ia alargando a sua cota de higienista, pelo conselho oportuno, pela iniciativa de alcance público - e, de um ou de outro modo, ìa actuando como membro activo, particularmente responsável, de uma confraria que o chamava a funções tão várias quanto exaltantes. O doente nunca era um "desconhecido" cuja história pregressa tivesse de ser esmiuçada de cada vez: desde as raivas dos dentes, o médico sabia-lhe as mazelas e as taras, as penas físicas e as morais. Era o médico deles, o "seu" médico. Juiz, defensor, sábio, confidente. Para ele, pois, se reservava a' primeira perdiz caída no restolho, a travessa mais alindada do arroz-doce do festejo íntimo.

Nem tudo, porém, corria nessa bonança de entendimentos, já que o facto de ser o "seu" médico se prestava também ao abuso e à mofinice, tanto como, da parte do joão-semana, por vezes tendia à rotineira de quem se vê ao abrigo de uma clínica instável. Mas feitas as contas, creio que, no tempo em que esse contrato tinha clima para vigorar, o saldo foi largamente positivo.

Para o ser, bastaria, aliás, que o regime de avença houvesse defendido o "médico de família" (que outro molde não devia desejar-se ao médico dos pequenos: povoados) do desagregamento para que tantas contingências o têm lançado. Até quando ele poderá revestir essa personalidade, é difícil prevê-lo, em boa medida pela acelerada mudança nos hábitos, no convívio, na' teia social, que, no mesmo passo, transformou o médico e transformou o doente, e também porque a natureza das relações entre assistente e assistido foi baldeada pelas novas estruturas da medicina. O progresso, mesma o mais frutuoso, tem as suas dores e as suas vítimas, Mas há que olhar apenas o que dessas dores nasceu.

Com efeito, o médico de província, tal como o pina` tei atrás com aguadas românticas, é hoje quase só um; lembrança. Penso que o primeiro sinal do seu abastardamento foi a banalização. Ele deixou de ser uma das personagens gradas dos burgos, modelo de dignidade, tolerância, siso; o povo apercebeu-se das suas gulas ciumeiras intestinas, da sua impaciente sedução por outros centros, das suas frustrações profissionais e econó micas - e daí a queda gradual de um mito. Ou antes; de uma mitologia. Perante essa banalização, a clientela fez-se céptica e mais caprichosa do que dantes, logo se tentando por beneficiar das fraquezas de quem, até aí, se impusera pela exemplaridade.

Por outro lado, com o avivar da concorrência, a avença passou a ser olhada pelos médicos novos como um monopólio anacrónico, um reduto por detrás do qual a medicina das purgas e sinapismos se protegia do assédio dos competidores. E, nessa surda ou franca liça, as armas empregues foram-se degradando, com o povo reverenciado a sentir-se mestre do jogo: um vinho que sempre lhe apetecera beber. Aos seus favores acudia essa maranha de licenciados, caudilhos, alcoviteiros, toda a politiqueira local - a gente a quem ele, povo, devia servidão. A avença passou a ser disputada como os votos dos eleiçoeiros e cada noviço das medicinas que despontasse numa terreola logo contava com o exuberante apoio de um influente, que não desperdiçava o ensejo de, pela ameaça ou pela blandícia, arrastar o vilão para as hostes do seu partido.

Se a tabela da avença, ainda que magra, não desprestigiava o médico que a recebia, isso deixou de acontecer quando se viu às claras que esse mesmo médico se deixara enredar em aflitas pactuações para a obter em emulação com os colegas. Aí se exibia quanto, afinal, o mester da medicina bem mal assegurava a independência económica, o que era um abrir de portas a inseguranças de variada espécie.

Coisa idêntica se processou, mas talvez com maior gravidade, na altura em que um bom quinhão da assistência se pôs sob a alçada das organizações corporativas - assistência essa feita quase só à custa dos médicos, que por ela cobravam uma remuneração aviltante. Oferecia-se ao povo o espectáculo desprimoroso de um médico que, a troco de dois vinténs, e mesmo esses rogados, se transformara num assalariado que, fosse dia, fosse noite, devia sujeitar-se a todas as exigências e desmandos daqueles a quem servia e que depressa se comportavam como patrões.

Curioso isto: raramente a avença dera ao povo sentimento de que o médico dependia da sua bolsa, salvo quando o cacique se interpôs; raramente os deveres que o contrato impunha eram desvirtuados ou sublinhados numa hora de azedume; raramente, em suma, a autoridade moral e profissional do médico se viu comprometida pelo facto de o avençado se fazer valer como tal. Mas bastou que essas melindrosas relações passassem a ter um intermediário - no caso uma instituição que menosprezava o médico, quer pelo vexame do soldo escasso, quer pelo que lhe exigia - para que rapidamente médico e enfermo se olhassem de viés, com a consequente adulteração do que cada parte devia à outra. Lembro-me de um campónio, fiel às libações dominicais, que não perdia semana sem apelar durante a noite ao médico da Casa do Povo, para que este lhe observasse o estado da sua hérnia. Pois não recebia o médico o seu salário para atender quem padecia?

Aos abusos o médico foi respondendo, de humano que é, com um crescente mercenarismo, feito de ressentimentos e desencantos.

Tudo isso, sabe-se, se enleava com problemas sociais de vária casta e vária monta, mas uma evidência era de ponderar: iam-se perdendo, nos pegos de um assistência mal amanhada, as virtudes da medicina tradicional, a que acompanhara o doente desde os sarampos da escola aos catarros da velhice, sem, em contra partida, lhe sanar os vícios e lhe preencher os hiatos.

Mas hoje, cuido eu, a avença pertence quase só às curiosidades médico-sociológicas, tanto mais que o próprio clínico rural, cuja personalidade inevitavelmente evoluiu, para melhor e para pior, vai desaparecend da cena da vida e da literatura, sôfrego da cidade que garante recreios e confortos, lá onde o diálogo médic -doente se dissolve no anonimato.

 

                   O DOENTE, NOSSO HÓSPEDE

A saúde é um dos primeiros direitos do cidadão, nos alvores da assistência até foi timbre da acolhida aos jornadeeiros chegados à urbe, e vem de longe que os hospitais, aos poucos perdendo o ferrete misericordioso, são reconhecidos como um dos seus esteios. Não há, pois, projecto reformista ou revolucionário, respeitante ao combate à doença, que não aponte à assistência hospitalar, mobilizadora insaciável de verbas, gente, equipamento, sempre desactualizada mesmo quando não pára de actualizar-se, e também palco de sudários, que os leigos mal suspeitam. Até poderíamos dizer, com algum exagero desculpável, que a tentacularidade do hospital, como desafio aguçador de engenhos e como sangradouro de operosidades, chega a ser possessiva, em detrimento do que se sabe basilar: a defesa do homem com saúde, objectivo cimeiro de uma sociedade harmoniosa, que prefere prevenir a remediar.

Mas quedemo-nos pelo hospital-centro curativo (ou centro reabilitador), colmeia imbrincadíssima em permanente estado de ebulição, cujo inevitável gigantismo não o poupa à crescente complexidade dos seus problemas, desde os inerentes à própria função aos que o bicho-homem lhe acrescenta. E tantos eles são, que os mais honrados propósitos de serenamente planear e de avisadamente governar, quando desapoiados do refundir radical da urdidura gregária em que a saúde se entretece, depressa gastam o fôlego. A verdade é que, entre outras carências de fundo, nos falta uma planificação hospitalar que defina e reparta atribuições, que hierarquize dispensando as flâmulas de prestígio, que concilie cada unidade num dispositivo global. Não existindo essa trama conectadora, os rasgos parcelares poderão dinamizar células avulsas mas não o tecido que as agrega. Mesmo se fosse de considerar cada hospital emancipado de um organograma da saúde, nem por isso o defenderíamos, antes pelo contrário, da romaria de aturdimentos, desde o afluxo opressivo de enfermos à concomitante debilitação das engrenagens que os servem, a todo o momento chamadas a superarem-se e a todo o momento excedidas pelo que se lhes pede. E o preço de tal desajuste logo repercute naquilo que é o nervo de todo o empreendimento humano: as próprias pessoas que têm de lhe dar vida. Que nos expressam essas pessoas? Fadigas, rotinas saturadoras e alienantes, desânimos que levam à impotência corrosiva. Por último, a fuga "psicológica" à realidade recusada.

Mas isto de falar de hospitais é areia movediça. Enfia-se um dedo no assunto, logo se enterra o corpo todo. Aliás, cada vez mais distanciado dessa vivência, nem me acho com dez-réis de autoridade para reabordá-la. Assim, e porque me referi a sudários, limitar-me-ei a umas anotações corriqueiras sobre o ambiente hospitalar, nos últimos anos oscilando entre continuar ser depósito de sofredores de que a comunidade se desembaraça, ou padrão ostentatório da filantropia pública e privada, tendo porém em conta o largo mosaico de gradações intermédias.

Para começar: qual desses climas ainda impera? Julgo que o primeiro. E a indecisão na resposta apenas ilustra o visceral protesto em lhe admitir a sobrevivência.

Todavia, mesmo avultando o traumatizante hospital-lixeira, em que o doente é apenas uma coisa, e coisa de fraca monta, a mentalidade que o justificou, paradoxalmente, está morta. E daí que mais traumatizante ele seja. E esse paradoxo, esse traumatismo, que aceleram a todos os níveis, cuido eu, a decomposição da dinâmica hospitalar. O absurdo da situação, como todas as absurdidades, acaba por banalizar o que é extraordinário, por legitimar o que é degradante. Como se os passageiros de um barco prestes ao naufrágio tacitamente empedernissem os sentidos face à ameaça, para que a catástrofe vá até ao fim. E ir até ao fim será a alternativa para um outro barco bem diferente daquele que, afundando-se, nos afundou.

Com efeito, a assistência hospitalar, ainda sob o estigma de asilo ou lazareto, reduzida, portanto, a uma tarimba mais ou menos sórdida, a uma enfermagem desconsiderada, a uma medicina que vê no doente mera iconografia patológica, a meios terapêuticos doseados pelo crivo do orçamento - parece pesadelo de outras eras. Só que, contraditoriamente, tudo isso existe, só que, dramaticamente, tudo isso perdura. A quotidianidade hospitalar é uma permanente violentação das consciências, estou em crer que mesmo para aqueles que dela colhem proveito. E as violentações ou levam ao estoiro ou à fisiológica mas acidulada acomodação.

Todavia, clareando um pouco este negrume, muita coisa não terá mudado, mesmo nos hospitais antigos, álgidos na aparência e nas entranhas, ex-conventos, ex-albergarias sem outro préstimo? Mudou, sem dúvida. Mudou no apetrechamento médico-cirúrgico (embora muitas vezes sem gente preparada para o usar, e lá caímos no fogo-de-vistas) e mudou na tal mentalidade perante o assistido, quando ela consegue sobrepor-se às condições que a desarmam. Mudou até quanto à exigência na mudança, e com isto, sim, deu-se o grande passo. Se dantes, por exemplo, tudo o que visasse um nadinha de aconchego era considerado supérfluo, esbanjamento, hoje, nos sítios em que o cenário se desenxovalhou, o doente hospitalizado é já outro doente um ser humano. E um ser humano fragilizado pela doença, portanto mais carente de zelos, participando objectivamente dessa atmosfera de amenidades aquilo a que se chama conforto.

Um professor da Faculdade de Medicina de Coimbra, referindo-se, num tempo de pioneirismo, à tradicional vala comum de miséria física e não menos de dignidade humilhada, que foram os nossos hospitais teve uma frase eloquente dos conceitos responsáveis pela persistência dessa anomalia: "Onde não vêem lixo parece-lhes que há luxo."

Ora, é o caminhar do lixo para o luxo, pelo inconformismo de alguns ou pela ufania de outros (que tem sido, entre nós, os saltos em frente senão rompantes "personalidades"?), que permite confrontar as diferen ças de clima e de eficácia entre os hospitais como estendais de mazelas e os hospitais casas de cura, para tal não dispensando o "supérfluo". Mas observe-se, de passagem, que o que hoje nos poderia parecer luxo, se a isso chegássemos, sê-lo-ia mais por contraste com alfurjas de ontem do que relativamente a um futuro projectado nos nossos dias. E perspectivar é olhar amanhã como se ele fosse um presente efémero. Além de que, quando se trate de saúde, que se peque por excesso e nunca por defeito. Tenha-se ainda em conta que a manutenção de uma unidade hospitalar será decerto menos onerosa quando as coisas existem, e existe funcionantes, do que quando têm de ser supridas por arremedos. Concretizando: o tempo médio de internamento, fulcro de toda a gestão, depende fundamentalmente da oportunidade e da qualidade dos serviços prestados, e estes, por sua vez, são indestrinçáveis dos meios disponíveis e obviamente da maneira como a organização os utiliza. Voltando à simbologia, dir-se-á então que, com o luxo, se poderá tornar um hospital rendível (o máximo de doentes, admitidos e recuperados, no mínimo dos prazos) mas não com o lixo. O que subentende o enfermo como sujeito e nunca como pretexto.

Codificando esta directriz - que, apesar dos bons intentos, está longe de ser dominante -, não encontrei até hoje melhor legenda do que a frase do que foi um dos ministros da Saúde franceses: "O doente, nosso hóspede." Nela se sintetiza toda uma evolução no acolhimento hospitalar e toda uma prática no modo de a objectivar. Se uma pessoa, na sua normalidade física e psíquica, é sensível ao trato recebido em tecto alheio, essa sensibilidade, repetimos, agudiza-se com a doença. O enfermo, em suma, é alguém que nos procura numa fase vulnerável da sua vida, exposto a maiores dependências e daí precisando de particulares atenções. Uma hospitalidade confortadora pertence ao seu decálogo de direitos, no mesmo passo contribuindo grandemente para rectificar as condições anómalas que a própria doença gera.

Apelo aqui um episódio que, na sua aparente insignificância, me demarcou (já lá vão uns anos) as tentativas, no tempo olhadas como "luxuosas", de assistir o doente na sua totalidade humana. Visitava eu um amigo internado numa enfermaria, quando se achegou uma funcionária para lhe oferecer um maço de cigarros, dizendo: "Soubemos que o senhor aprecia esta marca. Aqui tem um maço."

Um gesto de nada? Talvez bastante para criar a tal permuta de afectuosidades que transforma o doente desindividualizado, peça avariada, no nosso "hóspede". A funcionária em questão fazia parte do Serviço Social desse estabelecimento hospitalar, que, desde porto de abrigo para todo o atarantado que não soubesse orientar-se em formigueiro tão labiríntico, até medianeiro entre o doente e a longínqua família, serenava múltiplos alarmes, preenchia desesperantes vazios. O doente tinha gosto por ler? Pois a funcionária punha-lhe uma biblioteca às ordens. Ou escrevia-lhe as cartas que ele não podia escrever. Ou fazia de conselheira, palestradora, confidente, consoante o estado de espírito do enfermo.

O ministro francês, ao redigir a circular que despertou esta conversa com o leitor, tinha os mesmos propósitos: "humanizar" o hospital. Embora o documento em causa se referisse especialmente aos estabelecimentos psiquiátricos (cá e lá objecto das mais acerbas mas fundadas críticas), o que nele se declarou cobre a assistência hospitalar em geral. As instalações, antes de mais, bem entendido (pois os lugares fazem as pessoas, tanto como as pessoas influenciam os lugares), mas logo de seguida a actuação dos técnicos da saúde, em quem vai esfriando a necessária motivação. E aí entra o ministro nas condições ambientais, esmiuçando-as: leitos que não sejam catres, enfermarias que não sejam desertos de promiscuidade, desvelos que não se confundam com o que às vezes até parece violência. Mas, e evidente, a metamorfose deseja-se ainda mais ambiciosa: salas de convívio, refeitórios, solários, jardins, campos de jogos. Alimentação apropriada, cuidada, atraente. Vestuário "correcto", de tons alegres, à escolha do enfermo, num "plano de dignidade humana", a substituir a fatiota desgraciosa e deprimente, que mais parecia uniforme de presidiários. Objectos íntimos, sem esquecer produtos de beleza e outras ninharias, ao dispor do assistido e singularizando o seu território privado, aparelhos de recreação audiovisual, tudo, enfim, que remedasse a ambiência doméstica e apagasse as chocantes distinções entre o padecente zé-ninguém, que aceita o pão duro da assistência esmoler, e aquele que pode usufruir os mimos de uma assistência remunerada do seu bolso.

Bibliotecas, salas de cinema e teatro, departamentos de terapêutica ocupacional foram ainda, entre mais coisas que se tornaram banais, aspectos que o ministro focou. Já longe do lixo, nem por isso eles se devem considerar prodigalidades que desvirtuem a estada num hospital, lugar de cura e não estância de veraneios, pois todos esses "luxos" são afinal terapêutica e, conjuntamente, meios preventivos da degenerescência do clima hospitalar. Tanto para os hospitalizados como para aqueles de quem depende que a hospitalização seja proveitosa - e breve.

Se a legenda "o doente, nosso hóspede", restringida assim a uma ambiência, fica muito aquém do que verdadeiramente pode dar expressão a uma política da saúde, não deixa, porém, de lhe imprimir um cunho orientador. O que, por si, legitima a atenção que nos pode merecer, agora que o nosso país, na via das reestruturações sociais, se prepara, consequentemente, para refundir as estruturas mentais que lhes são indissociáveis.

 

                   DO OUTRO LADO DA MESA

Do outro lado da mesa, um agente da Polícia Judiciária. Correcto mas frio, e no seu rosto, e mais ainda em toda a atmosfera intimidadora, na qual um homem se sente culpado sem precisar de o ser, um vago odor a censura ou mesmo a severidade prestes a usar o castigo.

Tema: o curandeirismo. Réu: aquele homem apático, bronco, que a lembrança enevoada me associa a Monsanto e ao seu viver gentio, e que chega a vexar-nos com a sua tão resignada inconsciência. Ao menos, queríamo-lo ladino, para justificar os impressos, os agentes e a máquina de escrever onde se regista, com a crueza de um ferrete, o que cada um responde à lei que lhe pede contas. O meu papel: o de um médico a quem os azares da clínica levaram a cruzar-se com os delitos (poderemos julgá-los, depois de lhes saber o porquê?) do espécime da credulidade popular ali presente - a credulidade de quem prevarica e a de quem é vítima da prevaricação.

De um e do outro lado da mesa falou-se, pois, de curandeiros - começando por um jogo de sondagem e esquiva, bola cá, bola lá, a crescer de viveza, mas longe, porém, da tensão de uma refrega. Depois o diálogo saltou os muros do convencional, o funcionário sentiu-se mais pessoa do que inquiridor, o teclado da máquina emudeceu. (Os meus cumprimentos ao representante da lei: nele vibrava a face humana dos factos, que a sua argúcia ia pesquisar de um modo hábil e reflectido.) Logo se via quanto se esforçava por chegar à raiz do problema, do qual desafectadamente se confessava alheio. Mas uma raiz tão esquiva aos que a apreciam com olhos leigos, que bem difícil será reconhecê-la. Não chegaria lá este funcionário escrupuloso. Não chega lá as mais das vezes a justiça, que tem de sentenciar sob fórmulas preconceituosas. Foi por sabê-lo que a máquina de escrever emudeceu. Seria?

Nestas quase três décadas, tenho escrito um bom par de páginas sobre curandeiros. Nelas se foram espelhando muitas horas envenenadas, de espanto, revolta, insegurança, acerca das chagas de uma realidade que o anedotário só de raro em raro consegue disfarçar. Horas de logro ou de drama para os enfermos e para a medicina (ah, reparem, para a medicina!), antes de o serem para mim. Pois quem faz clínica entre o povo e nele tem de se fundir, mesmo que a mistura não passe de circunstancial, é posto à prova a toda a hora por essa praga. Desde o primeiro dia, e pode acontecer que desde o primeiro cliente. Por isso, aí estão as personagens da crendice, farsantes ou convictos, a balizarem a minha biografia de joão-semana. De todos, mais ou menos, fui referindo lances e artes, quer os de raposice, quer os de arrepiadora irresponsabilidade. Mas uns e outros culminando bastas vezes na tragédia, que nem sempre o médico vai a tempo de evitar. E aí, sim, há enredos em que uma pessoa se vê entre o arriscar vidas humanas às audácias daqueles curandeiros que nelas reincidem, quando sentem campo livre, e o recurso ao aparelho da justiça, do qual, afinal, se não teme, porque nestes cuidados é brando, e pune mas não corrige. (Punir! Palavra detestada, que dia a dia se aprende a detestar mais ainda.)

Num desses enredos um dia me vi. Fora o caso de uma raparigota que o tifo pusera às portas da morte, no tempo em que o cloranfenicol era botica de ricos e o médico tinha de estender a mão à caridade pública, se ninguém mais o fazia por ele, para conseguir o dinheiro preciso. Ainda em período melindroso da cura, o "virtuoso", que ia medicando nas minhas costas, impusera que a doente, pela calada da noite, fosse de carroça por esses outeiros até um dado sítio onde deveria deixar-se defumar por umas ervas miraculosas. Dessa feita, a minha tolerância estoirou. E o curandeiro foi parar ao tribunal.

Defendeu-o a legião das suas vítimas. E como seria de prever, o odioso caiu todo sobre mim. Não bem sobre mim: sobre a medicina, que peca por ser legal e ter por si a sabedoria encartada, os códigos e os preconceitos. Além de que o povo, que deu em todas as épocas um exemplo de contestação dos sistemas, pende sempre para os fora-da-lei, a quem confere o halo dos martírios, indo a ponto de os fazer heróis, mitos, o que é um modo de se desforrar de tantas arbitrariedades que os poderosos lhe impõem em nome dessa mesma lei. E mais, talvez, quando se trata do mundo obscuro da doença, que desde o começo dos tempos teve que ver com os poderes indecifráveis. A medicina, ao que parece, aprende-se nos livros, mas estes não ensinam o dom de manipular as forças do bem e do mal. Nada mais cativo da influência irracional que o homem fragilizado pela doença. Por isso todos nós temos um pouco não de médico mas de curandeiro e todos somos capazes de nele confiar. Ainda que nem a nós próprios o confessemos.

Monsanto não foi nem é muito atreita a curandeiros, decerto porque durante largos anos teve médico às ordens e às medicinas se foi amoldando, conquanto em simultaneidade não dispense as velhas benzedeiras, como a ti Serafina, as bruxas, como a Zefa do lugar Maria Martins, os esconjuros e os maus-olhados. Mais de reparo, e que me lembre, foram algumas surtidas de barbeiros de Alcafozes, entre elas uma sessão de sangria numa adolescente anemiada de tísica e, como é de uso nas aldeias, umas beberragens prescritas às crianças, que levam Abril a Outubro num penar de gastrenterites e Outubro a Abril num penar de catarros, até o organismo mostrar que venceu a selecção natural a que brutalmente é sujeito.

Mas se Monsanto não fazia medrar tal fauna ou não a abrigava portas adentro, havia ali, na área do partido, um farto viveiro deles. Só Penha Garcia, aldeola alcandorada no friso espinhoso da raia, tinha uns quatro à sua conta. O aprendizado vinha-lhes de uma vaga serventia nalgum hospital, nos anos da tropa, e dela se faziam valer em miudezas de enfermagem, a que se iam juntando iniciativas sempre mais atrevidas, já sem falar dos seus préstimos de sacadores de moelas com injecção e tudo, que eram fora parte da avença de barbeiros. Mas a maioria dispensava o ensino. Ou a prática. Nasciam fadados para a arte. E usavam sem pelas essa virtude.

Por isso ali estávamos, eu e o agente. Que sucedera? O homem bronco que nos ouvia sem parecer interessado nas nossas falas, nem sequer no caso, era um tal Ernesto. Dobre-se a língua: senhor Ernesto, curandeiro em Penha Garcia. Assim avelhado, pele muito franzida e olhar de abulias, nem um regresso ao longe do tempo me teria ajudado a reconhecê-lo. A imagem que eu guardara era a de um homem de frenesis, cabelo de ouriço, que se sumia por uma azinhaga logo que dava razão de que eu, vindo de Monsanto às segundas-feiras da praxe, acabara de entrar no povoado, enquanto os seus colegas eram os primeiros a vir receber-me e a pôr-me em dia sobre as notícias em matéria de doenças.

No homem de agora desaparecera todo o antigo sinal de ardilosa vivacidade.

E que fizera ele? Fui-o sabendo aos poucos da boca do agente. O relato era doseado por - digamos assim - uma espécie de precavida reserva. O Ernesto, após um rosário de tropelias - e de muitas tivera eu notícia -, ousara-se a uma transfusão. Mas não uma transfusão qualquer: sangue novo de cabrito, acabado de sacrificar para o efeito, nas veias de uma criança de ruins cores. Dessa vez, a ocorrência tinha reboado até às autoridades do concelho. E ali estava o Ernesto.

E eu, a que era chamado? Eu e mais todos os médicos que durante esses anos tinham feito ou faziam vida na área de Monsanto? O agente, do outro lado da mesa, iria dizer-mo. É que todos soubéramos da existência do Ernesto, pois não é verdade? E caláramos. Pois não é verdade? Alguns, mesmo, haviam manifestado complacência pela actuação do curandeiro, dela até se aproveitando em ligeiros serviços de mediação entre o enfermo e o médico que mora distante: injecções, o penso, a vigilância de certos sintomas pelos quais se pode avaliar da urgência numa nova visita. Isto é: os médicos do concelho toleravam-no, assim estimulando, eles próprios, o curandeiro. Estavam ali as provas. O advogado do Ernesto não deixaria de as fazer valer. Tivera eu também conhecimento, nos meus tempos de Monsanto, das actividades ilegais do homem ali presente? Tivera. E denunciara-as? Não.

Céus, como perceber o contra-senso? Pois não era o curandeirismo o tumor maligno da medicina? Não acusava ele a ignorância, os medos e ainda a debilidade económica do povo por ele iludido e parasitado? Quem melhor do que os médicos lhe sabiam os logros e tantas vezes os crimes, colocando-se, portanto, na situação de os poder e dever delatar? Mas então...

Então, as lidas do Ernesto eram de mim conhecidas, sim senhor. Apanhei-lhe quantas receitas quis na farmácia de Monsanto, já não me lembra se das que metiam soros ou hormonas, pois o homem corria todo o formulário, e até uma delas a enviei para um jornal, que lhe publicou o símile. Havia mesmo a certeza de que ele estabelecia negócio directo com um laboratório de Lisboa, na época em que isso era moeda corrente. O Ernesto tinha uma gorda reserva de drogas em casa, coisa que naturalmente danava as farmácias do sítio. Elas, porém, temiam-se de uma queixa, no receio de que o curandeiro, como represália, desviasse a clientela do boticário que tomasse uma iniciativa hostil. O Ernesto ia mesmo alargando a área da sua clínica, tanto para os lados de Monfortinho e Vale Feitoso como para os de Monsanto, progredindo ao raso dos casais da serra, uma gente isolada, que só à hora da morte apelava por um médico. Então...

Então, senhor agente, esta questão do curandeirismo não cabe aí nessa página de papel. Nem em códigos estritos. Eu próprio o tinha (a ele, curandeirismo) sob a minha telha. Já não digo em Monsanto, que é, como o senhor imagina, um condado de léguas, mas no meu consultório. Apresento-lhe a ti Genoveva. Herdei-a do colega que para aquelas terras me acenara. Analfabeta, sim. Ajeitada, contudo, a repetir os gestos triviais que podem dar ajuda nos labores de um médico. O fervor das seringas e da ferraria, o segurar um braço mais irrequieto, coisas assim desse teor, e por fim até a injecção subcutânea. Eu sabia, porém, que a ti Genoveva aumentava as suas rendas com iniciativas de conta própria, embora refreadas pela sua situação de colaboradora do médico. Prescrevia a sua pomada de botica e não já a "banha de flor", espremia o seu furúnculo, metia o dedo em regiões secretas para opinar sobre o estado das madres, e o mais que se julgasse ao alcance do seu engenho. De cada vez que fazia a ronda pelos doentes acamados que precisavam de injecções, é evidente que não se escusava a uma observaçãozinha suplementar em mazela ligeira. A sua face grave e o seu olhinho buliçoso abonavam-lhe sabedoria. Não colhera já a experiência de três médicos? Os seus princípios não haviam sido de comadre de aldeia, pelos quais merecera a promoção?

Até que, certa ocasião, a ti Genoveva me entrou em triunfo pelo consultório. Eu e os outros como eu sempre lhe tínhamos proibido que ensaiasse uma injecção nas veias. Pois nesse dia, só para me provar que as nossas cautelas eram infundadas, ela aplicara o óleo canforado nas veias do doente e não no músculo. Óleo canforado! Nas veias! Nem dei tempo a vazar o pânico. Abalei a correr até junto do enfermo, que, nesse dia, estava de bem com o seu anjo-da-guarda. Foi o que nos valeu.

Aí tem, senhor agente. Diga-me agora de quem era a culpa da existência da ti Genoveva. Dos médicos? Então deite fora a ti Genoveva e faça-a substituir por uma enfermeira, visto que, sem um auxiliar, é que em Monsanto, montanha-russa de cristas, um médico não pode clinicar. E se não for a enfermeira, outra ti Genoveva que vier será sempre a boçal a remedar uma ajudante. E a tentar-se por um mesmo curandeirismo.

E que repare no contexto. Observe estas amostras do que a enfermidade e a farmacopeia são para o Mon santino. Adoece um coitado, mesmo tendo-se prevendo com uma ferradura atrás da porta? E a maleita resiste aos infusos, aos amuletos de corno de carneiro preto e às "ervas-da-hora", que são plantas que se colheram durante as cerimónias da Ascensão? E altura de se tirarem os "acidentes". Três pingos de azeite da candeia num prato branco meio de água, pingos a desenhar uma cruz. Se o azeite se derrama, a prova foi feita: o padecente está mesmo "acidentado". E, então, toca a chamar as mulheres bentas, rivais das bruxas mas nem por isso de destemer, para intervirem com as rezas preceituadas. E o médico e a botica que esperem, não sendo para ali chamados. Eis a fórmula da "reza do ar": palha centeia, salva-branca, alecrim, erva-do-paraíso, rosmaninho, alfazema, três pedrinhas de sal e a "cana-do-ar"; e emparceirando com as defumações, as competentes palavras de virtude.

Agora, se a doença não é logo de morrer mas de secar, doença maligna, a cura também não está nos doutores: recomenda-se que se pendure ao pescoço um canudo de lata com um lagarto vivo dentro; à medida que o bicho vai desfalecendo, também o mal desfalece, e quando tiver deixado de espernear o mal será findo.

O pobre tem agonia prolongada? Que se lhe ponha a enxerga ao correr das traves, para que a morte se despache e seja serena. Morte, aliás, aceite com uma fatalista naturalidade, dela se advertindo os moribundos, para que se prepare com tempo a sua ritualização, o que não invalida toda uma liturgia de prantos, que são a dor e o carpir espectacularizados.

O menino tem quebradura? Que o levem na noite de S. João junto de um carvalho novo. Que se rache o tronco, dispondo de um lado três Marias e do outro três Joões. A primeira Maria passa o menino por de cima do tronco e confia-o ao primeiro João: "Toma lá, João, este menino podre, dá-me cá um são." E o primeiro João passará depois o menino quebrado à segunda Maria, e por aí adiante, repetindo-se de cada vez a frase mágica acompanhada de um Credo. O tronco do carvalho será, por fim, ligado com um ramo de trovisco, e "durante um ano" - descreveu a doutora Maria Leonor de Carvalhão Buescu, no seu livro de Monsanto - "nem a criança nem a família podem passar perto do carvalho. Se esta solda, passado um ano, solda a criança; se o carvalho seca, continua quebrada".

Estávamos, portanto, a falar de curandeiros. Aqui há anos, senhor agente, escrevi eu mais ou menos as seguintes palavras: o curandeirismo espiga entre nós como na maioria dos países, o clima da doença favorece-o, nutre-o, embora o assanhe a miséria e a incultura. Ilustra-o ora um anedotário jocoso, que preenche conversas de soalheiro, ora o drama que as gazetas apontam sem que a lição vá prestar a outros. O curandeirismo, que a lei persegue sem muito se afervorar nessa perseguição, conta, portanto, com a penúria, o infantilismo e a boçalidade, mas também se apoia numa teia de conivências: do homem da rua, que tanto faz ler a sua sina como ouve o parecer de um compadre entendido em patologias, da autoridade administrativa, que até pode calhar recorrer a um endireita, do médico (do médico, porque não?), do legislador, do agente que está do outro lado da mesa, do juiz que terá de apreciar os elementos deste inquérito, todos eles com uma hierarquia pessoal de delitos, no rol dos quais o curandeirismo é, por via de regra, um incidente de comicidades. Todos nós, enfim, já lhe sentimos a tentação ou lhe experimentámos a peçonha, sem nunca chegar, verdadeiramente, a uma atitude de repúdio activo.

E que chegássemos. Quem estaria aí para acabar com as superstições, as debilidades e as angústias em que o curandeirismo se cultiva? Quem põe o técnico onde o curandeiro se propõe preencher um vazio? E quem toma a iniciativa de aplicar a lei, de esclarecer, incitar e fornecer armas ao agente, de prevenir o fascínio, de desmascarar a fraude e, enfim, de ser rigoroso no correctivo quando tudo o recomenda?

Senhor agente, esta conversa seria um nunca acabar. E ficaríamos talvez na mesma. Porque falamos de um problema em que a mão que sonda, por mais que aprofunde, não se vê abordar o fundo. Se, para o caso que aqui nos tem face a face, mas com a mesa de permeio, curandeirismo é isolamento, ignorância, mínguas de assistência, e se também é pluralidade de tarefas que excedem o médico, a ponto de torná-lo quase inacessível quando lhe distribuem (insista-se com o nosso exemplo de Monsanto) uma dúzia de lugarejos, talvez quinze mil almas, talvez uma área que nem em cinco horas de cavalgada se atravessa, se curandeirismo é isto, do mesmo modo e sobretudo é um substrato social. Sem deixar de ser, repita-se, uma das expressões dessa atmosfera singular: a doença.

Eis, pois, o médico desapoiado ante a erva daninha. Médico e curandeiro frente a frente - ainda que seja o enfermo o objecto desse disputar de terreno. O que está de roda, familiares, autoridades, síndicos, limitam-se a assistir, ou até a ver despique no que é apenas anomalia, e a esperar que seja o médico a dar os passos que aos demais compete. Mas suponhamos que o médico age, pondo em movimento um aparelho que é repressor em vez de ser preventivo. Será ele a aparecer no tribunal público com o labéu de acusa-cristos. De enciumado. De defensor dos seus interesses e para tal chamando a espada dos esbirros. Porém, como até os esbirros exigem ser convencidos ou as aparências de um convencimento, vá de querer que seja o médico a arrebanhar testemunhas que de repente se escondem, perdem a memória, torcem a verdade em benefício de quem os lesou. Todo o preço do assalto ao fortim do curandeiro paga-lo-á o médico. Aquele surgirá mais glorificado na estima do povo, tanto como a medicina sairá desacreditada.

Por essas e por outras, dizia-me no dealbar da minha jornada um médico sereno: "Há castigos que fazem o jogo do castigado. Nisto de curandeirismo, o bom aviso, quanto a nós, médicos, manda que se finja ignorar e, ignorando, se persuada. Medicina é também pedagogia." E esse médico, que o calo do ofício fizera acautelado, ia efectivamente por detrás dos curandeiros - e quantos eram na minha vila de infância! -, simulando aceitar-lhes a "colaboração", simulando, remediando e, sobretudo, educando. Isso basta? Isso bastou? Decerto que não. Mas ao médico não cabe ir além do que pode. E do que lhe quadra.

Volte-se a Monsanto. Vejam-se estas fúrias terrenas, a sueira que representa ir no mesmo dia a não sei quantos povoléus diferentes separados por escarpas, veja-se esta geografia adusta onde, num mar de quilómetros, há (havia) apenas um médico (agora nem um); um médico - com vossa licença um sujeito de carne e osso, que não pode estar simultaneamente aqui e ali, que nem sempre pode cumprir os seus sete ofícios de clínico dobrado de enfermeiro, sanitarista, missionário, assistente social, mestre-escola e o mais que as circunstâncias lhe impõem. E saibam que cada doente em perigo, distanciado de todos os outros doentes graves (quem não o é, quando o homem se sente menos forte que a moléstia que o agride?) por meio dia de caminho, não espera do joão-semana apenas uma receita: espera a assistência, ou seja, o encorajamento, de quase todas as horas. Espera dele, e só dele, a mão que vê, suaviza, que injecta a droga miraculosa, espera o berro ou o afago oportunos, a decisão, os gestos rotineiros como a leitura do termómetro, o aconchegar da ligadura ou o preparo do clister (até isso, pois então!), o conselho minucioso no modo de ingerir o medicamento, mil e um nadas do á-bê-cê da quotidianidade clínica. Se o rude quase tudo desconhece da cartilha do bem se zelar na saúde e na doença, também o médico, a lei, a cidade, enfim, quase tudo desconhecem desse mesmo rude e do médico que o assiste.

Pois, senhor agente, aí sentado do outro lado da mesa, que é o médico entre o povo? Se for a um consultório desses como o que havia em Monsanto, verá que cenas e diálogos lhe sugerem um pioneirismo de que hoje só com legenda aceitamos. Ouça aqui, aproxime-se. Estou a dizer a este campónio: "Uma pastilha é isto que eu tenho entre os meus dedos. Parte-se ao meio. Sim, com uma faca. Uma pastilha inteira é de mais para vossemecê. Engole-se com água. As pastilhas devem ser engolidas com água. Três vezes ao dia. Às comidas. Agora repita. Não, santinho, não é assim. Vossemecê não ouviu bem. Três vezes ao dia e não três vezes a cada comida. Vá, diga." E volta-se ao começo da explicação, já emaranhada por novas dúvidas.

Caso raro? Não tanto como julga. Podia contar-lhe um punhado de histórias eloquentes sobre as baralhadas, umas de riso, outras de arrepiar, que esta gente faz com a tomada dos medicamentos. Dever-se-á deixar um pobre destes à mercê dos seus dislates quando se trate de terapia melindrosa, de achaque sério? Penso que não. Alguém, pois, terá de averiguar se a mezinha foi bem utilizada, se surtiu efeito, se se desmandou em reacções secundárias. Alguém mais expedito ou mais afeito a estas andanças. Alguém que dê a injecção, que acerte no uso do antiflogístico, que registe as febres, que recolha a gota de sangue ou a urina para análise, que faça cumprir os preceitos terapêuticos, que vá ao lume vigiar a dieta. Alguém em quem o médico, pelo menos dentro da hipótese do bom senso, do possível relativamente ao desejável, possa confiar um pouco mais do que no enfermo lapuz ou nos seus às vezes lúgubres familiares. A quem tal papel? A um dos tais colaboradores sanitários, técnicos, enfermeiros, assistentes, o que lhes queiram chamar, que sabemos existirem abundantes em países mais felizes? Mas, entre nós, onde estão eles e o pago para os compensar e a estrutura que os integre numa finalidade e não em aparências?

Voltemos ao médico, voltemos de novo a Monsanto e a todos os Monsantos. O médico desagua no burgo (desaguava - visto que agora, a bem dizer, já a maioria se recusa à tarimba nos meios onde profissionalmente quase tudo é penoso) e não tarda que, sob o título de enfermo ou de samaritano, se apresente um sujeito prestável, que lhe traz "informações" sobre um certo empalamado e logo se oferece para resolver problemas que pareciam de custosa solução: desde um transporte a que se peça ligeireza ao amealhar de cobres para uma botica mais premente. De caminho, escoltando o médico e insistindo num pendor de medianeiro, insinua os seus dotes de "prático": ensinaram-lhe a desembaraçar-se nas injecções, sabe olhar para um termómetro e, numa pressa, ajeita-se mesmo a aliviar um aflito de um queixal cariado. Um hábil negócio pressente-se por detrás dessas diligências. Mas em tais circunstâncias o médico não vê no sujeito o curandeiro: vê a pessoa que, por certo menos desastradamente que a maior parte das outras, poderá suprir a família que não entende o modo de administrar a medicação, o enfermeiro que não existe, o sanitarista que nem de nome é previsto, vê nele o informador que, mesmo grosseiramente, lhe dará parte do evoluir do mal.

E assim se descai num tipo de tolerância, ambíguo e confuso, que o homem que está do outro lado da mesa apontou nos meus colegas e interpreta como conivência. Como um incitamento à prevaricação vindo donde menos seria de esperar. Compreenderá o homem que está do outro lado da mesa que, posto na pele do médico, teria de proceder de igual modo? Que essa tolerância é o menor dos males, já que, através dela, se poderá vigiar mais de perto as afoitezas do curandeiro? Sangue de cabrito nas veias de uma criança. Mas isso deu-se repare lá, senhor agente, justamente quando naquelas bandas deixou de haver a presença frenadora e preventiva de um médico.

Esses "práticos", pelas mesmas razões que os abeiram do João-semana, infiltram-se amiúde nos serviços oficiais ou oficiosos de assistência, aí se alistam, aí criam musgo. Não possuem diplomas para a tarefa, mas como obter verbas para importar os autênticos?

Agrada isto ao médico? Não, senhor agente. A ele menos do que a ninguém. E nem chega a ser uma questão de agrado ou desagrado, mas de vexame, de frustração. Diga-me, porém, senhor agente, como poderá ele modificar tal panorâmica. As opções, as verdadeiras, excedem-no. Pertencem a outros.

E enquanto mo diz, aí tem o Ernesto. Veja-lhe nos modos todo um povo que ele representa. Pois o Ernesto, senhor agente, se é réu, também deveria ser acusador. É uma das vítimas.

 

           QUEM DEVE VIVER, QUEM DEVE MORRER

Época de aquisições que mudam radicalmente a face do Mundo, época exaltante que pretende ser uma nova Renascença, época de perplexidades. A nossa época. A que vivemos com um arrepiante sentimento de que ela nos rejeita a toda a hora se não a sabemos acompanhar no ritmo que nos impõe. Se não logramos a agilidade necessária para a compreender e nela nos fundirmos. E também se não formos capazes de lhe assegurar as estruturas que as suas estonteantes conquistas reclamam. Terá havido época como esta, em que o homem tivesse tido tão impositiva consciência de viver um presente misturado com o futuro, tão lúcida e perturbadora emoção de assistir a um fim e a um princípio?

Como as demais ciências e artes, a medicina é impulsionada aceleradamente para esse amanhã, muitas vezes sem ter tempo de ponderar para onde vai e que uso fazer dos seus novos instrumentos. Cada progresso pede um acerto com a mentalidade que lhe corresponde, mas um acerto com prontidão; pede frequentemente um preço, que pode ser alto, que pode não ter sido previsto ou que a mecânica social não se acha organizada para satisfazer. A técnica põe nas mãos da medicina, em certos casos num abrir e fechar de olhos de varinha de condão, o que ela ambicionou em décadas de sonho ou nem chegou, sequer, a ambicionar - mas é uma dádiva que cria distúrbios e problemas árduos. Na maioria das vezes, a outros compete resolvê-los; no entanto, entre o estremecimento e a sua "quietação", decorre uma fase em que a medicina, por assim dizer, fica no desamparo de uma impotência solitária.

São vários e cruéis, esses problemas. A um, em particular, vou referir-me, sentido que é dos mais pungentes: o de o médico saber que dispõe de recursos para salvar um doente e não os poder aplicar, só porque o seu custo lhes restringe a utilização. É o que o professor Jean Hamburger, especialista de afecções renais, definiu assim: "Chegou o dia em que é preciso decidir que doentes temos de deixar morrer."

Com efeito, certos inventos científicos tornaram possível adiar a morte em situações que, ainda há pouco, eram fatais, mas, por tão onerosos, tanto para uma bolsa particular como até para a bolsa dos organismos colectivos, não podem generalizar-se. Desde modo, a cura ou, pelo menos, o prolongamento da vida, em determinadas circunstâncias, ficaram condicionados por aquilo que nunca deveria condicioná-los: a suficiência económica de uma comunidade que apregoa a saúde como um dos alvos prioritários. Os factos, porém, falam por si: o preço da saúde sobe tão desmesuradamente que, dentro em pouco, ultrapassará as possibilidades da maioria dos países, mesmo dos abastados. A imensa receita da assistência burocratizada, por melhor que a administrem e desde que a apliquem tendo em vista a eficácia e não apenas a aparência, vê-se progressivamente aquém dos encargos que criou - e ainda é ela a única que poderá distribuir, sem privilégios, os meios com que a técnica dotou a medicina.

Os exemplos abundam, mas um deles, nos últimos tempos posto em destaque na Inglaterra e na França com eloquentes minúcias, bastará para nos ilustrar a agudeza da questão. Dêmos de novo a palavra ao professor Hamburger: "Desde 1960, é possível manter vivos os urémicos, graças ao rim artificial. Tal é o caso de uma jovem mulher amputada dos dois rins faz três anos e que pode levar uma existência praticamente normal desde que se apresente, uma ou duas vezes por semana, no Centro de Nefrologia do Hospital Necker. O custo desse tratamento, se se quiser aplicá-lo aos dez mil urémicos que morrem anualmente em França, será de cinquenta mil francos por doente, acrescidos ao milhão e meio de francos para a construção e equipamento de cada novo centro. Em dez anos, o número de doentes, que se multiplicará também por dez anualmente, atingirá cem mil, ou seja, em cifras sonantes, uma despesa global à roda de trinta e cinco biliões de francos." Trinta e cinco biliões - estimativa, aliás, agora já de longe desactualizada e sempre sem parar de desactualizar-se. De qualquer modo, e pondo optimismo nos cálculos, mais de oitenta por cento das disponibilidades totais do Seguro Social para tudo o que lhe cabe cumprir nos doze meses do ano.

A Inglaterra, ao fazer as mesmas contas - ela, que tantas tem feito e revisto sobre o insaciável problema da saúde -, ainda enegrece mais o quadro. Cada doente mantido em "sobrevivência" junta-se aos novos doentes que surgem em cada dia, numa cadeia de pesadelos, que se teme esmiuçar. Por muito que se dramatize a situação, pecar-se-á por defeito e nunca por excesso. E assim nos sangra a pergunta: que enfermos seleccionar? Aos quais garantir o direito à vida?

A diálise renal é apenas uma entre as proliferadas amostras deste dilema. Talvez a mais espectacular, mas dezenas de outras (conquanto, por ora, menos prementes) se agudizam em cada hora que passa, à medida que a medicina melhor se apetrecha e se acentua a promoção à saúde das populações, com o respectivo esclarecimento público do que se pode esperar da ciência. Assim o caso dos enxertos. Teoricamente e praticamente, a vida está desimpedida ou a desimpedir-se: dentro em pouco, os enxertos tornar-se-ão actos cirúrgicos rotineiros. Mas se a técnica resolveu os óbices, ou está prestes a resolvê-los (a técnica e, bem entendido, a investigação), que dizer do investimento que o aplicar dessa façanha demanda? Um investimento "colossal", respondem vagamente os especialistas, nem se atrevendo ao risco de uma cifra.

Não é preciso, todavia, recorrer a esses exemplos extremos para que nos assuste a perspectiva do preço da saúde. Medo paradoxal, deprimente, mas justificado. Uma operação a coração aberto - assinala Henri Trinchet - "devora sete anos de quotizações de um beneficiário da Assistência. A isso se acrescentam as despesas de três a seis meses de hospitalização e de um ano de convalescença. Há uns anos, a França dispunha somente de dois centros onde seria possível praticar este género de intervenções (um em Paris, outro em Lião). Presentemente, existem cerca de vinte. Há curtos anos, cada um desses centros registava duas operações por semana; hoje, efectuam-se bem mais de duas por dia". E outro francês, Clément Michel, dá a sua achega ao retrato, de um modo que tem tanto de pitoresco como de persuasivo: "Quando minha avó padecia dos seus reumatismos, punha uma castanha-da-índia no bolso e aguardava melhores dias. Na nossa época, o Seguro Social ter-lhe-ia fornecido, durante anos e anos, tratamentos dispendiosíssimos só para a aliviar."

É este o panorama. Apreciado com óculos foscos, mas realistas. Se os progressos da medicina já hoje escolhem entre nações endinheiradas e nações pobres, num futuro próximo nem a abundância das primeiras chegará para que todos possam usufruir as armas da ciência. Ou então, de brasa na consciência, os povos decidir-se-ão por outra armadura médico-social, em que se possa aliviar (ou eliminar) o peso destes contra-sensos: meios poderosos para benefício da colectividade, que a mesma colectividade se vê forçada a que sejam apenas benefício de alguns.

 

           BENFEITORES E BENFEITORIAS

Na terreola onde nasceu, apartada do Mundo mas centro do seu mundo, terreola que o viu pé-descalço, o emigrante que um dia abalou e, depois de comer urtigas, pôde regressar de bolsa engordada e com o desejo de afirmar a sua nova personalidade de um modo que se grave na memória curta dos homens, é tentado por duas ou três soluções de raiz:

A reconstrução da igreja, que a usura do tempo desfeiteou, pois o brio de um paroquiano sofre com a humildade ou a decrepitude da casa de Deus, que os antigos plantavam no cimo das colinas, na testa das povoações, para que ela se mostrasse altiva e dominadora aos olhos forasteiros;

Uma nova escola, folgada e airosa, de rubra telha marselha, onde se forjam os que, como ele, assim ousados, farão a comunidade prosperar, visto que, seja igreja, seja escola, o emigrante, tomando-se como símbolo, já não pode admitir sinais de penúria na terra que o criou;

E, finalmente, um hospital, abrigo para os que, mais do que ninguém, necessitam que a solidariedade da colmeia se manifeste.

E é por isso que, nesta pátria de provincianos que se semeiam pelos cinco continentes e as mais das vezes recolhem ao berço tão provincianos como quando partiram, se foram multiplicando as igrejas novas ou restauradas na mais desajustada arquitectura que se possa imaginar, ao sabor do capricho ou da ingénua perspectiva de grandeza de quem abonou a iniciativa, se foram multiplicando as escolas sem condições funcionais, até que as autoridades responsáveis tomaram as rédeas na mão, e foram proliferando os hospitais de burgo, edifícios mortos ou em agonia desde que nasceram, apenas fachada, apenas depósitos de instrumentagem misteriosa, à margem de qualquer plano coerente e das realidades médico-sociais dos povoados onde os edificaram. Merecem o nome de hospitais? Chamemos-lhes antes padrões do alarde dos benfeitores. Paredes sem vida. Casarões que, de tempos a tempos, asilam um velho, um pedinte, um inválido que não têm onde morrer, pois não há doentes, nem médicos, nem enfermeiras que lhes justifiquem a serventia, nem, sequer, lastro financeiro para dar continuidade ao seu funcionamento.

Ainda recentemente, soube que numa região do Norte existem três hospitais apetrechados com liberalidade por benfeitores em despique, ostentando aparelhagem radiológica de primeira ordem - e, em todo o distrito, apenas uma radiologista. Aparelhagem de museu, portanto, que muito provavelmente faria bom jeito noutros lugares.

Num país como o nosso, onde a assistência médica tem tanto problema insolucionado em todos os escalões e nos vários aspectos da sua emaranhada estrutura, num país que ainda não pôde coordenar (nem poderá tão cedo) os desfasados e atribulados compartimentos estanques da luta contra a doença, foi irresponsabilidade malbaratar assim as desgovernadas intenções dos que julgam beneficiar a sua terra com um aparatoso hospital - desolada paisagem de salas operatórias onde não se opera, de leitos desocupados, de batas que ninguém veste, enquanto nas urbes densas se despedem doentes por falta de vagas.

E esta uma das tantas heranças que o disciplinador Serviço Nacional de Saúde em gestação terá de resolver. Resolver com realismo, que a muitos irá parecer desdém pelas iniciativas locais, mas não há alternativa.

Vou ilustrar com um exemplo. Aqui há tempos, enfiava eu pela estradinha esventrada da aldeia dos meus pais, cujas ruas são matos a curtir, e eis que se me deparou um agregado de pavilhões, novinhos em folha, insólitos naquelas bandas. Insólitos no estilo, na alvura das paredes, na garridice dos telhados e na franqueza com que haviam sido talhadas as janelas, pois em tais ermos a caliça é esbanjamento de morada rica e tudo o que vá além de um postigo desconfiado é desafiar tolamente a braveza do Sol e a fúria das nortadas. Os ditos edifícios, transplantados da cidade para a charneca, situavam-se, a bem dizer, num descampado. A um quilómetro, a sede da freguesia, que é um largo e dois cotovelos de rua; mais distantes ainda, os lugarejos que a procuram aos domingos para ouvir missa e fazer honras às tabernas. Ao todo, vamos lá, mil almas. Tínhamos fábrica em perspectiva? Ou armazéns de resinosos, nutridos pelas matas de pinho que vestem as serranias onde apenas florescem urzes? Mas fábrica de quê, se, por ali, o solo arenoso não guarda seivas nem surpresas industrializáveis, se aos homens, quando o sangue lhes pede inconformismo, só resta fugir ao pasmo e tentar a sorte noutros mundos?

O caso era, de facto, outro. A desmesurada construção, obra de milhares de contos, destinava-se a hospital. Imaginada e erguida por um filho da freguesia, emigrante bem sucedido, estava ali como um testemunho do labor tenaz e afortunado e como um rasgo de dadivosidade. Um homem aventura-se, gasta-se, triunfa, mas a sua vitória tem de ser dividida pelos demais.

Dividida com quem? Com os alheios? Com a gente da vila, presumida e hostil? Com a gente da cidade, mais estrangeira ainda? Não: com os da terra. Com os amigos de infância, com os velhos desprotegidos que nos viram medrar, com as crianças enfermiças que podiam ser os nossos filhos, com as mulheres que, na sua labuta sem domingos, nem se sentem mães como desejariam sê-lo e nem se lembram, quantas vezes, que são doentes até ao dia em que cairão de pé. Dividida, portanto - mas de que maneira? Através de alguma coisa que seja a visita do progresso e sobreviva ao esquecimento: o hospital.

Até aí, que existia na freguesia para acudir à urgência de um aflito? A desmantelada Misericórdia, ninho de ratos, que serve de celeiro ou de hospedaria de indigentes, visto que o orçamento mal chega para uma caixa de compressas. Se assim é, vá de lançar um repto à governança: constrói-se o hospital que dignifique o viver da nossa tribo, coisa de encher o olho e de estimular os brios, e o repto há-de forçar o erário público a apetrechá-lo, a dar-lhe o uso que a sua vultosa aparência impõe. E assim, no ermo, levanta-se, soberbo, o hospital, grita-se o desafio à vila, à cidade, aos senhores que, lá longe, emproados ou indiferentes, não poderão ignorar mais aquele povo no seu exílio de matos, corvos e moinhos de vento. E aí está o hospital.

Aí está o padrão da aldeia. Paredes, janelas, telhados vermelhos, uma babugem de erva seca no pátio deserto. O correr dos dias, o impiedoso encontro com as realidades, dirão depois que o ermo não justifica sonho tamanho, empreendimento de tal porte, enquanto a vila, a cidade, não têm metade das camas hospitalares de que necessitam, metade dos médicos, enfermeiras, instrumental e dinheiro indispensáveis para as exigências prementes, entre as quais se contam as daquele ermo e de todos os ermos que, forçosamente, terão de desaguar num mesmo rio, que é o hospital distrital, sob pena de uma assistência esfarelada, carente e de fôlego precário, que nem chega a aliviar a sobrecarga dos grandes centros, onde a medicina dispõe (ou deveria dispor) das armas que lhe permitem actuar com real eficácia. Se o benfeitor, agora, pode mirar-se na sua benemerência, o País, por seu lado, juntou mais uma unidade morta às muitas dezenas de outras unidades do mesmo teor, que, no seu conjunto, não valem uma só, quando nesta se concentrem os técnicos e os apetrechos que verdadeiramente lhe dêem préstimo e lhe dêem vida.

É evidente que não reincidiremos neste desperdício de ingénuas boas vontades. Mas o pôr cobro na filantropia mal entendida deveria acompanhar-se de uma campanha de esclarecimento, de tintas socioeconómicas, no sentido de orientar com proveito o dinheiro daqueles que desejam canalizá-lo para empreendimentos de interesse colectivo.

 

                   CONVERSAS DE ACASO

Alguns capítulos agregados a esta rubrica Conversas de Acaso acusam uma nítida circunstancialidade - e o mesmo se poderá dizer das restantes partes da presente colectânea. Uns foram escritos durante a longa noite das mordaças, e desse clima social, em certas das suas incidências, serão porventura testemunho, como é o caso de Política e Senso do Real (cuja publicação, aliás, foi impedida pela Censura) e Uma Patologia do Desespero; outros reflectem, ou tentaram reflectir, o curso esforçado, sujeito a inevitáveis arritmias, apreensões, paroxismos, aberrâncias, do processo para uma nova face da sociedade portuguesa. Numa tão rápida sucessão de factos, demarcando o ruir de estruturas e o germinar de outras, todo o registo de uma atmosfera assiste ao seu próprio envelhecimento. Todavia, esta célere desactualização é já de si significativa e por isso se entendeu que a circunstancialidade referida não comprometeria a convivência neste volume de peças de ontem e de peças de hoje, pois afinal o que se pretende é que o conjunto, dentro das suas exiguidades, tenha para o leitor um préstimo documental.

 

     UM PAÍS SONHADO, UM PAÍS PERDIDO

Mesmo quando dele se discorde, é reconfortante assistir à lucidez serena do ministro Melo Antunes ao conversar sobre as vias para um novo modelo da sociedade portuguesa, que terá de ser pertinaz, generosa e austera. E necessariamente criadora de valores bem distintos dos que nos têm motivado. Ele próprio disse da sua esperança em que existam "reservas de lucidez" para destrinçar entre o possível e o quimérico, entre a utopia demagógica, paralisadora e consequentemente funesta (embora a utopia, a genuína, possa em muitos aspectos ser dinâmica), e o senso do real; entre, enfim, o suicídio a que o aventureirismo conduz e o enfrentamento honesto, ainda que impopular, das circunstâncias. Não se referiu, porém, à serenidade. Bem sabemos que esta é quase de regra associada à lucidez, mas nem sempre, sobretudo em períodos revoltos. Há muita gente que neste país troveja em vez de reflectir, há muita ameaça, muita cólera, que produzem os anticorpos da desconfiança, quando tanto necessitamos da sabedoria que empolgue pela eficácia e pela discrição. O alarido é próprio dos falsificadores, como a violência é disfarce dos inseguros; pois cheguemo-nos então aos que, fortes da sua verdade, nem temem nem atemorizam e ajudemo-los a construir o que só é fácil no desfazer.

Mas ajudar a construir não é esconder o que pensamos se vindo da recta consciência, antes ferirmo-nos, às vezes, com palavras bem opostas às que nos apeteceu que fossem ditas. A isso, aliás, e com nitidez, o primeiro-ministro nos incitou.

O País está emocionalmente exausto. A fadiga, ensina-o a fisiologia, é um somatório de excessos, um acumulação de toxinas resultantes dos processos de desgaste. A participação vibrante, que pode ser e é uma festa realentadora, o motor que nos impulsione para rasgos de que nos julgaríamos incapazes, a atmosfera solidarizante que mistura o indivíduo no grupo, tecendo pontes entre ilhéus de egoísmo, arrisca-se à degenerescência se, por fim, se desbarata no gesto inútil, no verbo sonoroso mas vazio, na decepção, ou naquele es tado de confusionismo aturdidor onde já não se distin gue a boa da má semente. O ardor depressa descai no desnorteamento ou na abulia, tal um coração corre do ímpeto à síncope, quando passa do uso tonificante a abuso letal. O sol e a chuva são a vida de uma seara ou a sua morte.

Não sei se se tem ponderado suficientemente no que ocorre dentro de nós e à nossa volta; se se tem apercebido, em toda a sua amplitude, que, neste momento, o País, crispado, balburdiento e simultaneamente surdo, porque todos falam e já ninguém ouve, num sanha que, por sê-lo, perdeu o alvo e daí apontando in discriminadamente a qualquer alvo, num frenesi de idiossincrasias que a si próprio se esgadanha - que o País, dizia, apela visceralmente para a tal lucidez, para a tal serenidade.

Sem o que tudo poderá acontecer. No corpo humano, tão complexo e tão ordenado, há fenómenos similares. A febre é uma manifestação de defesa, portanto salutar; todavia, quando exasperada, atinge os centros vitais. Por isso a medicina a doseia. No organismo melindroso que é hoje a sociedade portuguesa, despertada de um longo coma de desalentos, sonolências e fatalidades, no qual coexistiam anacronicamente estruturas e conjunturas de vários estádios históricos, desde o feudalismo a um capitalismo inepto, a chicotada foi necessária, a explosão foi e é a vida que se definhara e agora ressuscitou, mas não lhe podemos exigir que alcance de um dia para o outro o cume de montanhas quando nas suas artérias circula, aos espasmos, um sangue corajoso mas por ora anemiado.

Consolidar, consolidar cada passo que se dê em diante, tem sido uma voz persistentemente soada, pois sabe-se que o esfomeado de muitos dias vomita quando satisfaz a sua fome de maneira descomedida - mas os impacientes, por gula, alarvice ou por cálculo, não a escutam. Ou interpretam-na a seu modo e com essa interpretação até os melhores são minados pela receada inutilidade dos esforços que tantos se apostam em comprometer. Ou manipulam-na, sabendo (ou não sabendo) que existe um limiar da manipulabilidade para lá do qual o homem, no advertir de Sartre, já nem chega a fazer aquilo que fizeram dele mas permite que façam dele seja o que for.

Sem dúvida que o País precisa de ser mobilizado. Todos o proclamamos. Porém, não há mobilização sem objectivos definidos e sem objectivos realistas, sem fé individual e colectiva, sem a confluência de vontades através do naturalíssimo confronto de discordâncias, pois toda a harmonia assenta na diversidade, no leal intercâmbio de ideias. E já que falámos em Sartre, ouçamo-lo de novo: "Onde termina a comunicação, nada mais resta do que espancar, queimar, enforcar." Não queremos queimar nem ser queimados. Isso já aconteceu entre nós, povo brando e povo cruel, vezes de mais. Ansiosamente receptivo à mudança e todo ele adesão a um clima moralizador que nos limpe de tantas degradações, mas sem dúvida alertado pelo instinto, que acaba por defendê-lo do entusiasmo crédulo, o que o País no entanto sente, aquilo que lhe é dado ver, é a inquietante meia face das coisas, o contraste entre o que, na cena política, é iluminado com fulgor e o que se esconde numa equívoca sombra, o desfasamento, que tanto pode ser dramático como intencional, entre o que se afirma e o que se observa, o extravio do húmus ideológico que transforma adversários em inimigos ferozes, assim poluindo a vivência quotidiana, que deveria ser e é preciso que seja fraternizadora, a debilitante rarefa ção do Poder, que não responde a nenhum porquê, ascensão súbita de neoconvertidos, alguns deles precisando de apagar à pressa nódoas da véspera e por isso calando-nos com a sua intolerância ou a sua truculência e, entre mais, a uma insidiosa docilização das consciências, conquanto se apregoa a hora alta das liberdades, que só sabemos usar na lisonja ou no denegrimento.

Ora, cada acto sectário, cada selvajaria, cada irresponsabilidade, cada sacrifício do interesse nacional ao interesse pessoal ou tribal, ou ainda à paixão que se julga redentora e é assoladora, está a comprometer o País que todos queremos ver enfrentando os seus próprios desafios, a comprometer o seu futuro e desde já o seu presente. Um país não pode ser mobilizado com brados e factos que, psicologicamente, sociologicamente, sejam o contrário dessa mobilização. Tenhamos a coragem de reconhecer que muito do que vai sucedendo em todos os cenários ou são sinais compensatórios de velhas frustrações, ou recidivas, em nenhuma época inteiramente apagadas, do nosso fadário de perseguidores-perseguidos ou de perseguidos-perseguidores (a delação foi, nos nossos Santos Ofícios, honrada pelo consenso geral), quando não mesmo formas trágicas da urgência na autopunição e na autodestruição. Tenhamos a coragem de reconhecer que nos vamos desperdiçando em guerrilhas fratricidas, em obscuridades angustiosas porque bem desejariam ser claras, e até no uso obsessivo de um vocabulário aparentemente exaltador mas, por último, alienante e estupidificante, o qual, a médio prazo, refluirá sobre os seus manipuladores. Não se é progressista só porque bradamos contra o reaccionarismo; não se é tolerante só porque decorámos evangelhos. E as filiações partidárias, por si só, não bastam para balizar estas mentalidades. Inteiramente de acordo com o primeiro-ministro Vasco Gonçalves quando ele acentua que a democracia, essa democracia que golfa das profundezas do povo como uma contrariada aspiração secular e se confundiu com a própria legitimidade do movimento revolucionário, apenas se constrói com democratas. Mas a democracia é uma forma de viver e uma forma de conviver, sendo a primeira o que a segunda for.

Permitam-me que das minhas ecléticas leituras chame aqui, a propósito, Confúcio - ciclicamente vilipendiado ou enaltecido. Disse ele: "Se a linguagem não estiver acertada, aquilo que se diz não é aquilo que se quer dizer, e então as obras não resultam; se as obras não resultam, a moral e a arte não prosperam; se a moral e a arte não prosperam, então a justiça não acerta; se a justiça não acerta, o povo não sabe onde colocar o pé e a mão. Portanto, não se tolere nenhuma arbitrariedade nas palavras. E é tudo isso que importa."

Por outro lado, quanto à sintomatologia dos refluxos perante o que é vacuidade ou de aplicação adulterada (os esquemas mentais não se refazem com slogans em que os significantes, por fim, se esvaziam de significado e em que os significados acabam por trair os significantes), não se esqueça que a consciência gregária precisa de um rosto tanto para a crença como para as razões da descrença, precisa de vítimas e precisa de culpados mesmo que ela própria se sinta estranhamente responsabilizada no processo colectivo. E se os heróis de hoje, porque ocuparam os postos de decisão, falham na resposta aos anseios da comunidade, será esta a ver neles o rosto dos desapontamentos que entretanto se levem à peanha das crucificações. O que mais uma vez nos exporia a negros presságios. Releia-se a história, pondere-se o comportamento dos homens na extrema versatilidade do seu reagir, e sem dificuldade se encontrará ilustração para o que, na crónica portuguesa, é um imbrincamento de alma livre e de alma escrava, de generosidades e de ferezas. O povo português não é o de Júlio Dinis; é o de Aquilino: indómito e cobarde, sáfaro e imaginoso, ingénuo e solerte, compassivo e selvático. Como a terra, que vai da várzea macia aos penhascos convulsos.

Aqui há semanas, Joel Serrão escreveu um belo artigo, "O regresso", sobre a necessidade de nos descondicionarmos dos últimos cinco séculos de história, como ponto de partida para um futuro que se deseja original. E originais sempre nos declarámos; até, por vezes, na ausência de uma individualidade imune à modelação alheia. Ele serviu-se, em epígrafe, de um poema de Fernando Pessoa: E outra vez conquistemos a Distância / Do mar ou outra, mas que seja nossa. Isto sim, é refazer estruturas psíquicas bloqueadoras, donde nascerão novos desígnios, novos valores, é a revolução cultural no sentido correcto da ideia. Mas esse descondicionamento exige uma prévia reformulação do que somos, sujeitos, como todos os povos, a estigmas e fantasmas, exige que nos descolonizemos política e economicamente, exige de uma vez para sempre, e se isso for possível, saber quem somos. A atitude de espírito com que um povo considera a sua história orienta já o seu viver presente, disse António Sérgio, ou seja, que a mentalidade com que abordamos a história é ela também já história. Ora, se à miragem e à retórica temos de opor o rigor, este não obriga necessariamente ao aviltamento. E uma desapaixonada observação coloca-nos desde logo perante um estranho destino histórico, ainda por decifrar, que tanto nos põe no castelo das nuvens, às vezes empolgante loucura, como nos atrai ao lodaçal, quase sem períodos intermédios de equilibrado doseamento destes contrastes; e o mais estranho ainda é que aquilo que nos seduz pelo abismo pode ser um mecanismo emocional e mental feito de larguezas de espírito, e que o acaso poético, que nos excede e nos leva a exceder-nos, pode ter móbiles mesquinhos.

Dizendo assim, também me tentarei por uma transcrição. Um verso de José Régio. De um País sonhado para um País perdido. Talvez o tal destino histórico que temos de esconjurar não ande longe desta legenda fatalista. Pois não queiramos repeti-la. Expliquemos o passado, encaremo-lo sem devoções mas também sem preconceito infamante, para que, ao repormo-lo no túmulo, ele nos liberte para o amanhã, que precisamos que seja sem demora o hoje, pelo menos na desmistificada avaliação do que nos espera. Mas se todos somos poucos para guiar o sonho na sua viagem, alguns bastam, por insânia ou leviandade, para nos envolver nas brumas dos horizontes perdidos, que outro Régio sintetizará, daqui a dias ou daqui a anos, em mais um verso de amargura.

 

         CULTURA E ANIMAÇÃO CULTURAL

A ideia de cultura e o intento de a incorporar no quotidiano dos estratos humanos que dela se viram arredados estão, como se sabe, na ordem do dia, e as diligências nesse sentido não esqueceram articular-se na necessária alfabetização sociopolítica.

Ninguém deixará de aplaudir tais propósitos. Aos partidos caberá, em simultaneidade, orientar lealmente para uma opção. Que deve ser isenta da demagogia manipuladora da boa-fé dos que só agora foram acordados para a responsabilidade da escolha. Neste país que foi de trevas, nesta hora crucial, cada gesto e cada palavra contam. Neste país, nesta hora, há que ter, em todas as circunstâncias, o senso da ressonância histórica de qualquer das nossas atitudes, sobretudo daquelas que repercutem na comunidade. Para o melhor e para o pior, e por longos anos de aposta no devir.

E porque assim é, mais se justifica que a ideia de cultura se clarifique tanto quanto possível, desembaraçando-a dos convencionalismos que a têm desfigurado. Com efeito, suponho que, para a maioria das gentes, cultura associa-se a uma concepção elitista de sabedoria. Cultura, embora sob um halo nebuloso, confunde-se com erudição, não necessariamente especializada, mas, em todo o caso, aferida por um modelo refinado, sucedendo até que mais vezes se tem por instruído aquele que abordou múltiplos ramos do conhecimento sem se deixar absorver por nenhum, possuindo com quase todos a familiaridade bastante para lhes transpor a porta sem a insegurança de quem entra num quarto escuro. Homem cultivado, homem de livros, com curiosidade e saberes incomuns, e frequentemente também de falas que parecem excêntricas, compartilha, portanto, de uma sugestão de casta e, além disso, impregna-se fortemente de uma tinta de viver passivo. A esse homem vogando por altas zonas acima do real tolera-se, porém, tal passividade, que surge assim, aos olhos do consenso público, ora como benigna esquisitice, ora como uma espécie de regalia indissolúvel das coisas do espírito.

O primeiro ponto a clarear começa aqui. Enquanto esta ideia de cultura persistir, os esforços no intuito de consciencializar as populações em estado de obscurantismo e de as defender de uma receptividade crédula não poderão ser tão frutuosos quanto se deseja, já que, por um lado, esses esforços parecerão deslocados do auditório a que se dirigem e, por outro, perdurará o sentimento de que as palavras ouvidas, as manifestações culturais observadas (mas não saboreadas) correspondem a uma amostra artificiosa e fugaz daquilo que diz respeito a uma forma de vida contemplativa ou ociosa, e de algum modo extravagante, por isso encarada com um misto de deferência, ironia e tolerância - para todos os efeitos, alheamento. Coisas deles, dos outros, que nada sabem da vida autêntica, daquela que é resposta activa aos desafios diários e não consente fugas às circunstâncias. Deste modo, as tais palavras ouvidas, as manifestações culturais a que se assiste, inscrever-se-ão no quadro do "espectáculo", do qual restará a lembrança de um mundo estranho e longínquo que por ali perpassou.

Que é, pois, verdadeiramente cultura, cuja noça importa definir e incutir, para que as pessoas a sintam onde quer que residam, onde quer que sonhem e lidem onde quer que lutem, seja aonde for que se exprima como células vivas do tecido social? A definição não é fácil precisamente porque terá de incluir tudo o que diferencia a existência como simples função económico-fisiológica da existência como acto participante e criador - um canto profundo que irrompe de cada um de nós, indivíduos, e de uma sociedade enquanto organismo solidarizado no intercâmbio desses impulso singulares.

A cultura será, por conseguinte, uma certa maneira de nos situarmos no mundo, interrogando-o, interpretando-o e refazendo-o, de nos dispormos no xadrez gregário, uma certa maneira de conceber o trabalho, os lazeres e a fruição de tudo isso, uma certa maneira de apreender a novidade e de a legar, já transfusionada, ao que receberão de nós um universo inevitavelmente modificado.

Nada, pois, menos passivo que cultura. Todo o fenómeno cultural pressupõe alvoroço e adesão fecundante às coisas e aos seres - deles e delas recolhendo as linfas que, após subtis alquimias, irrigam o que de mais vital existe na trama colectiva. Nada menos passivo e nada menos aristocrático. Sabe-se, aliás, que é nas épocas de crise, quando o homem joga astuciosamente com a sua esterilidade e o seu desespero, que se propõe uma cultura amaneirada, de difícil acesso, que, como todo o cerimonial ofuscador, não tem verdade nem tem fé.

O camponês que inventa uma dança ou uma cantiga referentes ao seu mundo de anseios e labores, o pastor que, nas horas solitárias, esculpe bichos, objectos ou figurantes do seu agro, o aldeão que representa um auto tradicional e lhe acrescenta a sua perspectiva das paixões, o citadino que pratica desporto num estádio, a criança que traduz, num desenho, uma cena familiar - todos eles fazem cultura, e fazem-na, sobretudo, se cada um desses actos for diverso dos que, no tempo e no espaço, de algum modo se lhes assemelharam.

Porque é justamente na diversidade, e não na obediência a um figurino, que os valores culturais o são como tal e oferecem ao homem a chave da adaptação, o mesmo que dizer: da sobrevivência. Políticos, sociólogos, economistas, são agora unânimes em acusar de paralisadora a uniformidade para que tendíamos, reduzida a orbe, pela informação globalizada, às dimensões de uma vitória, em que os acontecimentos e a instantânea reacção por eles provocada eram impostos aos homens de qualquer lugar e de qualquer contexto. O apelo, agora, mostra timbre bem distinto: é dirigido ao que existe de específico em cada povo, em cada agregado, em cada indivíduo, repositório decantado de experiências acumuladas, que a prática a todo o momento reformula, pois essa especificidade revela-se muito mais capaz de agir positivamente sobre o mundo, de integrar as verdades novas, de rectificar as desigualdades, do que a artificial padronização de um estilo de vida.

Ainda há pouco Renê Dubos nos chamava a atenção para a extraordinária estabilidade biológica e psicológica do fenómeno humano, à qual se opõe, naturalmente, a plasticidade social. Mas o dinamismo desta, que reflecte uma insaciada insatisfação perante os condicionalismos exteriores, será tanto mais actuante quanto preservar a identidade de uma organização estrutural já apurada. Quando se fala, bem justificadamente, em revolucionar os esquemas mentais para a edificação de uma sociedade diferente, aponta-se para um dos aspectos mais decisivos da problemática actual (e não apenas nossa); todavia, há que ter em conta que todo o organismo violentamente sacudido na sua composição tende, após a surpresa do abalo, a retrair-se como um protoplasma ameaçado, a recompor-se segundo os velhos esquemas. Tarde ou cedo, assistir-se-á ao refervilhar dos anticorpos mobilizados no sentido de bloquear as forças sentidas como intrusas. As sintomatologias de "rejeição" (digamos regressivismo), de natureza existetencial, ou política, ou cultural, que se vão observando e que nenhum tipo de sociedade tem sido imune, bem atestam. Nunca será abusivo equiparar a fisiologia das

sociedades à fisiologia humana. E esta dar-nos-á úteis ensinamentos, sobretudo quando em presença de uma textura social particularmente frágil ou esclerosada. Num ou noutro caso, a resistência é débil.

A animação cultural, portanto, nesta fase de rude mentarismo das populações, deveria ter em vista fundamentalmente a sensibilização dos espíritos aos seus próprios valores. Ensinar as pessoas a servirem-se dos seus sentidos, a entenderem, a interferirem, a reconhecerem, afinal, o significado e a relevância dos actos que as testemunham. Como escreveu Michel Guy: "Dar ao público os meios de se identificar." O convívio com obras de arte, a romagem a monumentos e museus, a organização de exposições, palestras, festivais, de pouco, valem, ou o seu vinco será efémero, se as pessoas se, sentirem de "fora", se não tiverem sido gradual e insistentemente preparadas para um desfrute genuíno. Daí que a cultura, para ser assumida e dinamizada, precise dos veículos mais diversos. E não dispense nenhum dos domínios da actividade humana, a escola, a oficina, o recreio. Em todos eles deverá erguer-se uma antena que capte e transmita esse estremecimento pujante que vibra num povo inteiro quando tem alguma coisa a escutar e a dizer-nos.

Educar, revelar, adestrar o gosto. Mas, primeiro que tudo, incitando as iniciativas espontâneas dos interessados.

De contrário, desenharemos abstracções num papel impávido, edificaremos templos mortos, como parece ter sucedido à maioria das casas de cultura com que muitos países, ditos civilizados, julgaram satisfazer as necessidades culturais dos cidadãos.

 

                 UM ROSTO A UM ESPELHO

Sugerem-me este testemunho a propósito dos vinte cinco anos de Retalhos da Vida de Um Médico. O que pode (ou deve) testemunhar um autor sobre a própria obra, demais a mais decorrido já um quarto de século? Conquanto os nossos livros sejam marcos da nossa vida no seu árduo caminho para o silêncio e neles habite uma vivência tão persistente como um vínc de infância ou uma longa espera, a verdade é irmo-nos distanciando do que escrevemos, embora, em cada página, se deixe uma ferida a sangrar. Ou por isso mesmo. Aquilo que extraímos de nós, se foi autêntico, correspondeu a uma vital inquirição sobre o que fomos, donde partimos e para onde vamos, se foi a incessante tentativa de nos situarmos relativamente a outros e de sabermos como os outros se situam em relação a nós, se foi o abrir de uma pista singular com mãos de tormento, se foi essa espera que o ardor fez posse antecipada, se aquilo, pois, que extraímos de nós com tão dolorosa veracidade corresponde assim a uma mutilação visto ser uma dádiva definitiva, então que escritor não volte atrás para identificar, menos ainda reaver, a parte de si mesmo que se viu sacrificada.

Na ferida aberta corre um sangue que aos poucos se tornou uma mistura de sangues: o do escritor que foi e o do escritor que é, cujas dissemelhanças são as do tempo fluindo e do que o vai preenchendo, corre o sangue das personagens que lhe deram vida e não beneficiaram da catarse que toda a criação artística representa, dos leitores que dela se abeiram e nela se confundem numa obscura e complexa osmose, de toda a trama socioafectiva que, afinal, a gerou. Porque uma obra não é uma coisa, mas sim, de facto, uma ferida. Daí ela se esquivar às abordagens pretensamente objectivas e aos instrumentos pretensamente rigorosos de aferição. Porque uma obra só perdura enquanto sangrar, isto é, enquanto for lida, questionada, lacerada com ódio ou amor (nenhuma subsiste intacta); porque, enfim, o acto literário não está apenas no escrever, mas também no ler, no jogo de refracções entre criador-fruidor, nas consonâncias ou dissonâncias, de instável e variadíssima natureza, que se estabeleceram entre aquele que se confessa e aquele que recebe, e frequentemente assume, a confissão. Por isso um texto nos parece diferente de cada vez que o lemos e até diferente para o próprio autor.

Creio que os Retalhos, livro de uma experiência intensa e de uma escrita tosca mas sentida, talvez sejam um pouco de tudo isso: inquirição e dádiva, ambas humildes e ambas sem cálculo. Livro mutilador. Começou por ser o desabafo de um jovem médico, crédulo e impreparado, num repente posto ao desabrigo de um mundo humaníssimo mas impiedoso, onde, por entre dúvidas, vacilações, revoltas, cobardias, foi deixando fundas cicatrizes do seu ofício de viver, e, desde logo, em simultaneidade, um breve reflexo de um Portugal sofrendo a tirania da ignorância e da penúria, da injustiça e do primarismo, um Portugal dramático sem registo no tempo mas com o odor do tempo, quase sem relevo para nós, que, tendo-o dentro dos olhos, era como uma paisagem quotidiana de que já nem sabemos captar a gudeza das suas peculiaridades, embora ela nos penetre até ao fundo de nós mesmos, sendo às vezes preciso o espanto de olhos alheios para que os nossos se espantem também.

Evoco, a propósito, um comentário de Castro Soromenho ao ter notícia de algumas reacções da crítica estrangeira aos primeiros passos dos Retalhos da Vida De Um Médico além-fronteiras: "Vai ver que só agora estes tipos se aperceberão da denúncia que o seu livro representa." Não irei nesta hora sublinhar currículos, que não me cabem e de que não necessito, mas pouco tardou que se confirmassem os vaticínios de Castro Soromenho.

E, por falar em camaradas, uma coisa quero repetir: o livro nasceu sem programa. Nasceu de um acaso embora, decerto, fossem quais fossem as circunstâncias ele tivesse acabado por existir, como um vulcão que mais cedo ou mais tarde, tem de se esvaziar. Certo dia José Ribeiro dos Santos, que, com Mário Neves, dirigia um magazine que deu brado, o Ver e Crer, pediucolaboração; e, meses depois, colaboração assídua. Mas que espécie de assiduidade poderia assegurar um clinicastro exilado, algures, numa província inóspita, sem convívio nem estímulo intelectual, escrevedor de romances entre duas visitas médicas a ermos penosos, se não o memorial da sua própria e dura quotidianidade? E assim, sempre incitado por José Ribeiro dos Santos fui falando dos meus dias sofridos, da gente e da terra áspera que se haviam tornado o meu universo.

O livro ia crescendo, encorpando, ia-se individuali zando sem eu o aperceber. Até se declarar como tal. Nisso, aliás, interveio outro companheiro e admiráv ilustrador dessas narrativas: Manuel Ribeiro de Pavia. O passo seguinte seria, todavia, dos mais incertos encontrar um editor. Cada geração esquece, ou ignora, que as gerações precedentes tiveram de se temperar nos mesmos sonhos, nas mesmas cruzadas, nos mesmos obstáculos, só diferindo o timbre - mas o certo é que a maioria dos escritores do meu tempo encontrou fechadas as portas que hoje se pode julgar que sempre estiveram abertas. Embora eu tivesse já alguns livros publicados, ninguém se interessou pelos Retalhos. Por último, nem sequer tipografia que me desse crédito nas despesas da edição. E aqui, nesta urdidura de solidariedade, surge mais alguém: o editor Eduardo Salgueiro, o homem de rasgos e orgulhos que, com a Inquérito, revolucionou a edição em Portugal, acertando-a com o longínquo e desconhecido mundo da cultura. Eduardo Salgueiro não hesitou em se arriscar na edição dos Retalhos. E mais do que editá-lo, deu-lhe o que sempre teve para dar: o calor que se põe naquilo em que nos realizamos.

Esta pequena "biografia" dos Retalhos já eu a contara há um par de anos, mas creio que se justifica que nela insista agora.

E então - que disse eu, afinal, dos Retalhos, tentando ser fiel à ideia de que uma obra, quando gerada de uma verdade intrínseca que assim se exorciza e depois transferida para o diálogo com os outros, sua aventura, sua metamorfose, sua aleatória sobrevivência, essa obra não deve ser revisitada pelo autor, que, no caso, fica sujeito ao equívoco do herói que se vai despedindo da adolescência para viver, viver como homem ferido mas maduro, desconhecendo que essa despedida só acaba para morrer? Que disse eu, pois, atento a essas razões, sem, contudo, me alhear da convicção de que só os escritores sabem o que custa escrever uma obra, que nada, enfim, iguala o julgamento que passa por nós mesmos?

Disse pouco, disse talvez demasiado. Mas a esse pouco ou a esse muito acrescento ainda: há uma estirpe de escritores ligados ao real, ia a dizer às raízes, às coisas que nos dão aquilo que nós lhes demos, às coisas que nos parecem simples, porque são genuínas, mas onde todas as paixões e todas as odisseias atingem a sua maior diferenciação. Não se trata de literatura verista, longe disso, mas de criações que só existem em função do sentir e nas quais entramos e das quais saímos como de uma casa habitada cuja gente e cujo recheio passaram a ser-nos familiares.

Julgo pertencer a essa despretensiosa linhagem. Por isso, desejaria que os Retalhos, que são um manuscrito na garrafa, um insaciado apelo a afectos compartilhados, apesar das atracções e recusas, das tibiezas e ímpe tos que neles se contrapõem, fossem reconhecidos pel leitor como um desses livros franqueados à convivência, donde se entra e donde se sai como de um tect familiar.

 

               O CHOQUE DAS GERAÇÕES

Numas fases, a história adormece, noutras, agita-se, e com essa agitação tudo dentro e fora de nós se acelera, participando, com febre ou dor, no salto em frente.

O conflito de gerações faz parte de tal processo. Tão necessário à dinamização da sociedade humana, ele preludia sempre o renovo, por isso o devemos incitar e nunca reprimir. Mas para que o antagonismo resulte frutuoso, à geração contestada compete valorizar o repto através de uma atitude que não só domine a enciumada intolerância mas também a renúncia fácil dos seus fundamentos, pois, de contrário, pouco útil será a confrontação.

Com efeito, não se perca de vista que em toda a mudança se procura, finalmente, um acerto entre a tendência natural da vida para a estabilidade e os incidentes, as explosões que a contrariam, defendendo-a do marasmo. Daí que o conteúdo utópico de certas propostas, por muito que lhes falte lastro e provas, tenha um valor dialéctico estimulante. Para que a existência tenha um sentido é preciso que alguns lha neguem.

Se o que é novo, para ter a força que vença a inércia, necessita da impetuosa recusa ao que lhe parece caduco, não será, portanto, menos desejável que as verdades postas em causa se esquivem à passividade.

Tolhidas pelo comodismo ou pelo susto é que de nada servem. Há um equilíbrio a descobrir no próprio terreno da liça, a ele cabe proteger os jovens da suficiência insolente, que conduz à gratuitidade e lhes desaproveita a vocação para a dádiva. Esse equilíbrio, porém, só o descobrirá quem encontre da parte dos mais velhos simultaneamente compreensão e firmeza - o que vai sendo raro. Os mais velhos ou se encasulam numa estéril rigidez ou, se são receptivos ao curso irresistível das coisas, e até nele queiram interferir, preferem ceder do que arriscar-se ao papel de moderadores. Há neles o sentimento de culpa kierkegardiano: na sua angústia de passarem por culpados acabam por sê-lo.

O agora tão discutido Conrad Lorenz diz que o drama está no facto de os jovens, que têm carradas de razão em muitas das suas fúrias contra os seus ascendentes, não defrontarem uma civilização interessada na própria defesa, provavelmente porque essa civilização sabe que não merece defender-se. Mas a tomada de fortins sem estorvo abre um caminho rápido para que se sinta (e aqui chegamos a Nietzsche) que o mundo tal como é não deveria existir e que o mundo tal como de veria ser não existe. Logo, viver (agir, sofrer, desejar) é absurdo.

Falou-se há pouco em receptividade. Esta, porém, mesmo quando evidenciada, nem sempre basta. Entre o radicalismo no negar e a rijeza na preservação do que é negado há uma vasta fronteira de possíveis rupturas. E há ainda um elemento que, frequentemente, joga ao invés do que seria lícito esperar. Na verdade, um dos fenómenos salientes desta época é o da "cumplicidade" das gerações maduras nas transformações que vão demudando a face do mundo. Talvez porque as contradições, tanto como os abalos, foram repartidos por novos e velhos, e também porque a inquietude perdura hoje bem mais do que ontem, justamente por ser espertada no viver intenso que é o nosso, acontece que os vários grupos etários podem achar-se, ombro a ombro, nas mesmas largadas e nas mesmas metas - e isso não agrada aos jovens, que logo se encrespam na sua vontade de demolir, que é uma forma de distanciação. Aliás, quanto mais os jovens são digeridos pelo sistema, mais as camadas que se lhes seguem, e numa fase cada vez mais precoce, agudizam a sua intransigência e a sua virulência. As mazelas inerentes às sociedades industriais fazem o resto. Um resto que facilmente pode ir até ao irracionalismo, pois embora o seu vocabulário pareça racionalista, certos jovens que se apresentam como ponta de lança da esquerda cultural alinham os seus gestos por vedetas políticas que têm por infalíveis, enquanto clamam o seu horror à autoridade, ou fazem do seu protesto, polarizado em ideais generosos e espartanos, uma festa orgíaca, a decantada saturnal da sociedade de consumo. E como se declaram pacifistas, querem provar que permanecem agressivos através do culto romântico pela violência. A estes será decerto inútil lembrar que, perante imperativos do processo dialéctico, o dizer "sim" poderá resultar às vezes bem mais subversivo do que dizer "não", por muito que nos inflame a sonoridade da negativa.

Íamos então referir que a vertigem sob que evoluímos no presente, rompendo liames históricos, quebrando próteses sociais, tanto apanha os jovens que se abrem ao futuro como as gerações já modeladas, e que essa circunstância nem por tal facilitou as osmoses entre ambas as partes. De logro em logro, os jovens talvez receiem entender-se com os que lhes legaram falsos valores, mesmo que neles se observe uma aposta no devir. Receiam que uma maleabilidade conciliatória os faça cair na armadilha das domesticações. Por isso, a cada exame de consciência das gerações anteriores, a cada um dos seus actos de humildade, de corajoso julgamento de uma crise que pede reflexão antes de se optar pelas directivas fundamentais, os jovens respondem lançando mais pedras aos deuses antigos, acidulando a sua irredutibilidade, para que nada reste dos templos do passado.

O auto-de-fé das hierarquias apreciou-os inicialmente o Ocidente surpreso como desmandos selvático que não poderiam repetir-se numa civilização zelosa da sua cultura. Depressa se viu, no entanto, que era essa mesma cultura, álibi burguês, a ser posta no pelourinho. A edificação de uma "outra" sociedade parecia exigir que se amputassem, a frio, os alicerces da precedente. Daí, a sanha com que, na praça pública, se passaram a inventariar os mandarins e as suas obras, a provocante ligeireza nos juízos, o desdém por toda a sorte de esquemas ideológicos que não prescrevessem a razia, a mistura de sensibilidade irada e de dogmatismo absoluto, o gosto, enfim, por desacreditar o que até aí merecera o respeito colectivo.

Bem longe estão estas palavras de um requisitório. São, antes, uma tentativa de diagnóstico. Aliás, inclino-me sem reservas para o lado da juventude, a quem cumpre ser o que é, o que sempre foi: inconformista, combativa. Mas o inconformismo que varre indiscriminadamente para o caixote do lixo as coisas depuradas, estuantes, vivas, e as coisas pútridas é intranquilo e anárquico. Têm decerto bons argumentos os que afirmam que os verdadeiros contra-revolucionários são aqueles que, em nome de uma pureza revolucionária, impedem toda a transfiguração sob o pretexto de que ela se inscreve no interior da engrenagem. E o conhecido adágio de que as grandes balbúrdias geram sempre as ásperas ditaduras, uma vez o arraial terminado, deve entender-se tanto no sentido figurado como no sentido literal.

A juventude contestante, ou parte dela, sofre de um vazio ético que importa preencher. Cresce fulgurantemente a capacidade de imaginação e de inovação - nervo do progresso - e, quanto mais cresce, mais se deseja saber para que serve. No preenchimento desse vazio, na resposta a essa inquirição, indispensável se julga o cotejo a peito descoberto entre os que já passaram por uma vivência sazonadora e os que estão descomprometidos para a discutir. Se a adaptabilidade dos mais velhos é de desejar, mas uma adaptabilidade que venha de dentro e não cale a sua voz (não é a coragem o melhor antídoto do medo?), do mesmo modo a vida, no seu movimento, precisa da desinibição dos novos em denunciarem o que faliu. A sensação de impotência das massas perante os opressores, quando se acham aturdidos por brados irrealistas, não difere muito do íntimo desamparo dos jovens quando a estes se não depara uma salutar contradita.

Estar no mundo é, para o homem, projectar-se na existência dos outros, viver a sua vida em activo intercâmbio com os demais, organizar-se em função dos acordos e desacordos que o ligam aos seus semelhantes, quer ao nível dos afectos, quer das crenças e dos actos. E evoque-se, a propósito, que Jung descreveu duas formas de pensamento: o pensamento dirigido e o onírico. O primeiro tem por objecto a comunicação: expõe-se aos opositores, cria novidades, adaptações, permutas, imitações da realidade, ao mesmo tempo que age sobre ela; o segundo afasta-se do real, liberta tendências subjectivas e nada produz que sirva à acção sobre as coisas. Deste modo, a recusa ao pensamento dirigido vai traduzir-se por isolamento e frustração, não só pela fuga ao debate convivente como pelo fechar-se na subjectividade individual, que subtrai à linguagem o seu carácter dialogador, universalista.

O mesmo Jung, ao falar-nos da conciliação dos contrários, permite deduzir que ela assegura a assimilação dos acontecimentos de que o homem é teatro, integrando-os na consciência, no mundo conceptual, e, sobretudo, assim nos poupando ao regresso ao universo arcaico, feito de trevas, resíduos, mitos, que é uma espécie de nostalgia da irresponsabilidade da infância, a tal "marcha sacrílega para trás", apontada por Nietzs che, conquanto nos queira fazer crer que o seu alvo está lá muito adiante.

 

                   EXTREMAMENTE IMPORTANTE

Todos sabemos que o País desentupiu. De mudo, passou a falador e, de falador, a verborreador. Uma catarse, uma revelação. Afeitos ao papel soletrado, ninguém nos imaginaria tão propensos à palavra ágil e resistente. Mas somos. Temos pulmão para horas de improviso.

Inevitavelmente, não se atravessa este processo de salubre desafogo, este saborear da língua desatada, sem uma boa dose de desperdício. E até de expressões caricatas. Surpreende-me, mesmo, que um tema assim, a assentar como uma luva no cronista de primeira água que é Francisco Mata, não o tenha já seduzido. Ou, então, escapou-me o que ele possa ter escrito nalguma das minhas ausências.

O País interroga-se, pois, dialoga, pesquisa, inventaria, acusa-se, exorciza-se, faz psicoterapia de grupo. Tenta descobrir-se, identificar-se, purificar-se, mesmo quando o verbo o puxa para a irrealidade. Tenta redimir-se. E, sem dúvida, lá chegará. Tem de chegar. Mas como a fala, às vezes, toma o freio nos dentes e se estimula com a própria sonoridade, estamos sob o risco de nos quedarmos pela palavra. De com ela nos recrearmos, nos aturdirmos e anestesiarmos. Ou pior ainda: de a esvaziarmos de conteúdo.

O País fala. Fala bem mais que trabalha. No escritório, na oficina, nos plenários, nos cafés, e sobretud na rádio e na TV. Aí, é uma enxurrada. Quando, já es tonteados ou exaustos de loquacidades, fechamos nosso aparelho, a oratória continua no aparelho do vi zinho. Não há paredes nem tectos que a isolem. Esto a ouvi-la neste momento, acreditem, num fragor de calhaus despenhados, creio que no vizinho do andar de cima. Até ao dia (talvez já próximo) em que todos aparelhos se fechem. Parece que há sinais disso. A tregra do oito ou oitenta. Quando o oitenta é atingido pum, a receptividade estoira. E, nessa altura, tardia mente nos aperceberemos de que esbanjámos o que tão necessário é e será: a palavra. Na sua justa medida.

Um dos aspectos que, como ouvinte, mais me tem impressionado é o da "extrema importância" de tudo que se diz. Não há mesa-redonda, entrevista, sabatin em que o depoente não nos previna desde logo ser "extremamente importante" o que dele iremos escutar. Às vezes, fica-se pelo "muito importante", mas é raro. E, se esqueceu prevenir-nos da solenidade do que debita, corrige o esquecimento no final: de qualquer modo, antes ou depois, não nos furtamos a essa constrangedora importância. Assim se chega a outra revelação: além de palradores, somos relevantes. O que, na maioria dos casos, tal as bazófias ou as truculências, esconde a timidez. Ou a insegurança.

Ora, como na teia das relações humanas também participa o contágio, e de que maneira, todas as nossas vozes dia a dia se vão sentindo importantes e é, por conseguinte, em nome dessa importância que eu trago aqui uma sugestão. Uma sugestão obviamente importante. Como tal, espero que a rádio e a TV, a quem ela mais se destina, a tomem em merecidíssima conta.

Homem da terra e que ama a terra, as coisas que nos moldam e em que nos fundimos, muito antes de, por esse mundo além, se levantar o estandarte da ecologia, feito protesto e feito modo, já eu a sentia na carne. (Esqueça o leitor a toada irónica do prelúdio destas glosas e tente agora ler-me noutra "onda".) Já eu a sentia e sobre ela escrevia. Lembro-me, entre mais desabafos assomadiços, dos escritos que publiquei, há um ror de anos, quando se iniciaram as ofensas ao que vim a chamar "o meu poiso de serenidades" - Monsanto. Monsanto é uma explosão de fraguedos, as moradas nascem da pedra e a pedra nasce das casas, e tudo o que for abate ou desfiguração dos barrocos é um crime ao que a Natureza lá pôs, para regalo e qualidade de vida dos homens, e que nenhum homem poderá reconstituir uma vez destruído ou desfigurado. Isto nada tem que ver com as condições sociais e o êxodo das gentes (ou terá, se pusermos os olhos no futuro), com a agonia da povoação, com tudo o que em Monsanto persiste apartado do mundo e do tempo e urge espertar e rectificar.

Mesmo ao lado da torre de menagem, que a sabedoria do povo, durante séculos, deixou, solitária e altiva, na sua peanha de fragas, construiu-se uma aberrante moradia "citadina", a que nem faltaram as pombinhas de cerâmica no telhado, e que, "fisicamente", se apoderou da soberba e folgada perspectiva, onde a torre era o pedestal harmonizado com os acidentes naturais. Isto sob as bênçãos da Senhora Câmara. Isto apesar de a área em questão, incluindo os rochedos e os templos medievos, pertencer preventivamente à alçada (benévola?, distraída?, desautorizada?) dos "monumentos nacionais". Bem se eriçou este Quixote contra o desaforo - debalde. A morada lá está. Sacrílega. E os penhascos em redor foram sendo, conjuntamente ou seguidamente, espatifados, furados, domesticados, para edificação de... garagens. Mesmo se os homens apagassem a injúria da moradia catita, não poderiam restituir à paisagem o seu amputado perfil.

Monsanto, repito, explosão de fraguedos, deixa de ser Monsanto se a explosão for serenada ou camuflada. Pois muito se tem feito e se continua a fazer nesse sentido. Há cerca de três décadas, os baldios que iam do sopé ao cume da erupção fragosa, por isso apelidados de "barrocais", chamaram-nos à sua pertença os que até as leis podiam manipular. O esbulho, que eu, refilando, acompanhei par e passo, registei-o, como já disse, em páginas de romance - A Noite e a Madrugada. Pois embora a encosta abrupta nem permita florestação rendosa, de tão difícil se torna o corte e o transporte de madeira, o certo é que as rocas foram sendo embuçadas de eucaliptos em plantio compacto. A rudeza do morro, que só na rudeza nua e majestática tem o seu verdadeiro porte, ficou assim dessorada. Sem lucro para ninguém.

Agora o caminho para o castelo. A aldeia, ofegante da ladeira, queda-se a meia vertente. Dali para cima, talharam-se carreiros e degraus na cordilheira de alcantis, mas sem os lesar de morte, sem os deformar. Obra dos antigos, que tinham a ecologia no instinto. Quem se agrade de trepar ao castelo e admirar o que de lá se abrange, pois que encha o peito e se atreva ao desafio de ir pelo seu pé. Se não puder, paciência. Tem um burrico às ordens. Mas que se pense em satisfazer as molezas do turista motorizado e, para isso, se queira abrir uma serpenteada estrada até às muralhas, é de bradar aos céus. Porque não há artifícios técnicos que evitem novo massacre dos penedos. A estrada terá de lacerar rochas e mais rochas, terá inevitavelmente de assolar muita coisa que resultou de milhões de anos de abalos e sedimentações.

O massacre, aliás, começou há muito, quer fracturando e desfazendo a pedra em benefício nem sei de quê, às vezes um hortejo sem quaisquer condições de produtividade, enquanto a planura feudal se desperdiça, quer para dar largueza a um veículo particular (até as esquinas da primorosa igreja da Misericórdia foram lascadas nesse intuito!), quer pelo puro e selvagem capricho de destruir.

E na minha terra natal, Condeixa - estais lembrados, patrícios? A entrada da vila era um esplendoroso renque de carvalhos e faias, uma data de vezes centenários, o farfalhar denso da ramaria em cúpula, formando um túnel que nunca se descerrava. Poucas as vilas com essa monumentalidade arbórea a servir-lhe de átrio. O progresso estreitou a estrada, exigiu opções? De acordo. Mas a solução imediata foi derrubar festivamente a alameda, em vez de passar ao largo. A história, porém, teve um desfecho que a faz ainda mais macabra. Decorridos anos, a estrada não parou de dilatar-se e, para isso, decidiu, só então, rodear a vila, dizer-lhe adeus de longe, deixando-a sem árvores e sem vida.

Os exemplos da minha experiência seriam um nunca acabar. Mas o pior é que, citando Monsanto, citando Condeixa, estou simbolicamente a referir-me a todos os povoados deste país. A todos os atropelos, raivas, cegueiras, holocaustos sem remédio que, de norte a sul, no litoral e no interior, nas aldeias e nas cidades (oh, nas cidades, onde moram os sábios!), se foram multiplicando contra o meio ambiente, contra a harmonia, a beleza e o património comum. Contra a sensibilidade de todos nós. Uma monstruosa danificação que é preciso denunciar e a que é preciso pôr cobro sem mais adiamento. Uma viciadora poluição que tantas vezes, impudicamente, se disfarçou no benigno manto do progresso.

Estas laudas vêm no curso de outras lidas no jornal A Capital, acerca da iniciativa da Câmara Municipal de Coimbra de pôr uma comissão a zelar pela sua ofendida urbe. Transcrevo: "Coimbra tem sido, ao longo dos tempos, vítima dos mais bárbaros atentados à sua existência como cidade. Com o mais soberbo desrespeito por um património, não apenas artístico, mas social, destrói-se a velha Alta, zona riquíssima do ponto de vista social e artístico, para nela se inserir um conjunt arquitectónico de cariz neonazi, que é um verdadeir insulto aos admiráveis volumes formados pelos Estudo Gerais, capela manuelina, renascentista, e biblioteca setecentista."

Constituirão a comissão um artista e um arqueólogo, um arquitecto paisagista, um historiador de arte e um elemento do Gabinete de Urbanização.

Pois que, por todo o país, se constituam comissões idênticas. Há, infelizmente, trabalho para dúzias delas.

Mas isso não basta, cuido eu. O povo tem de saber, tem de participar. E aqui entra a minha sugestão. A tal "extremamente importante". Um dos programas mais populares da TV francesa (se bem me lembro, intitula-se O que não devia ter sido feito) tem por objectivo mostrar com provas à vista, provas que nos sacudam as inércias e as complacências, os horrores praticados por toda a França quanto a urbanismo, arquitectura, violentação dos ambientes. Quanto à ecologia. O espectador pode comparar o antes com o depois. E ajuizar. E educar o seu gosto, ao mesmo tempo que se exercita na profilaxia de novos erros ou abusos. As fotografias, gravuras, filmes e outros documentos permitem o confronto. Os "notáveis" locais, perante o assanhamento da opinião pública alertada, tremem à ideia de chegar a sua vez e, quando podem, antecipam-se à devassa, eles próprios correndo a emendar o emendável e a impedir as mutilações ainda na fase de projecto.

Parece-me que um programa nesta linha de esclarecimento ecológico seria bem útil entre nós. Há gente para isso. A TV que a chame. As equipas de dinamização cultural que incluam o tema no seu reportório. Porque - ninguém o negará - é um tema "extremamente importante". E com um material ilustrativo que, ai de nós, sobra para uma geração.

                 POLÍTICA E SENSO DO REAL

Certas frases podem ressaltar de um conjunto e grudarem-se à memória. De uma, dita por um homem público canadiano, me lembro quando a oportunidade a favorece: "O meu ideário político, ao ser aplicado, assenta no senso do real." E idêntica máxima, embora noutra zona, ouvi-a eu de um colega reputadíssimo, que, durante o curso, não passara da mediania: "O segredo da minha clínica? Está no senso comum. Ponho-o ao serviço do que vou observando e do que me foi ensinado.-Digamos que esse tal senso, de invocação frequente mas de raro convertido em actos se sairmos da esfera do povo, é uma expressão da sabedoria colectiva. Um património incessantemente actualizado e enriquecido, pois que posto à prova nos permanentes choques culturais a que são submetidas as sociedades humanas. Uma clarificação de experiências que a dinâmica das realidades tanto confirma como rectifica. Em suma: um saber para uso prático, directamente deduzido da vida vivida, que cada geração recebe, questiona, amplia e, já com uma nova face, transmite à geração que se segue.

Não o entendemos, pois, como um freio à mudança: antes como o desejável interlocutor da exaltante novidade, da impulsionadora utopia - pois tanto a novidade como a utopia precisam de senso do real para com ele se medirem, para averiguarem o que nelas resiste à necessária confrontação, para, enfim, se acordarem com o que, no homem, é defesa instintiva contra o que lhe não convém. Esse senso, a par da fé nos homens, é o que Pierre Juquin, um dos teorizadores do Partido Comunista Francês, chama "o impulso para toda a acção histórica eficaz"; ele não repele o que possa vir discutir ou até ameaçar os valores em que se fundamentou: feito o balanço, incorpora o que deve ser incorporado, desembaraça-se do que saiu vencido da prova de sobrevivência, e de tudo faz e refaz a indispensável decantação. Querelando as ideias imobilizadas mas, simultaneamente, articulando a visão teórica com a experiência, bases do progresso constantemente aperfeiçoável, o senso do real assegura, assim, a sincronia dialéctica com os factos.

É bem certo que, com a crescente mobilidade das populações e com a acelerada transformação dos modos de vida, a sabedoria empírica (que, evidentemente, resulta de áreas definidas pelos hábitos e por uma relativa durabilidade das vivências) perdeu grande parte do seu crédito, mas continua a verificar-se, através dos estudos genéticos e sociais (aliás indestrinçáveis), que persiste na espécie humana uma resistência ao que violente o legado individual e colectivo.

A um tempo herança e aquisição permanente, o senso do real, de um ou de outro modo, forja-se num painel tão largo quanto possível de contactos com a realidade, que correspondem a multiplicadas possibilidades de interferência e de escolha. Toda a alienação, como todo o elemento segregador, representam o que o biologista americano professor Dubos descreveu como um obstáculo "às faculdades de desenvolvimento do indivíduo", ao referir-se aos meios humanos em que as pessoas, por esta ou aquela reserva de ordem económica, social, religiosa, etc., não se expõem à "rua".

A "rua" equivale a um espectro variado de descobertas e aprendizados nos quais nos temperamos e pelos quais - volto a recorrer a Dubos - se desenvolvem "as faculdades de compreensão, coordenação, síntese e julgamento". Ela significa, portanto, a mistura com o real, a abertura a uma variabilidade de opções - o que é essencial ao pleno amadurecimento da pessoa, já que viver é optar, em todos os momentos e em todas as circunstâncias.

E, posto isto, chegamos à pergunta que estava no meu propósito: terá a política que ver com o senso do real, como nos faz crer o tal canadiano? E, se tem, poder-se-á rastrear a sua presença no caso português?

Ora, se metermos a paixão no bolso ao inventariar os últimos decénios de vida política portuguesa, que história julgará com severidade, entre as vicissitudes que instigaram ao erro e os erros de que resultaram vicissitudes, não deixará de evidenciar-se uma oposição democrática que, impedida de se definir e de amadurecer, foi acentuando o pendor para um desbaratar da fé e das energias e não menos para um irrealismo quase indissociável desse holocausto. Isto explica-se, sabe-se pelas condições anómalas da sua luta, que, de cada vez, tem de reanimar um corpo paralisado e simultaneamente acudir aos confusos brados da improvisação, que tem de esconder o rosto, deformar a voz e ao mesmo tempo fazer-se ver e ouvir, que tem de apelar para a audácia e a bravura quando, numa sociedade desoprimida, nem uma nem outra deveriam ser chamadas - mas reflecte também o pouco uso que damos ao senso do real. Pois só assim se entende que desacertos tardiamente reconhecidos e deplorados se repitam na vez seguinte. Ou seja, as lições recebidas e sofridas em bem pouco são aproveitadas.

O nosso gráfico emocional, que tem que ver com esse desperdício da experiência, é uma antologia de dissonâncias: ora expelimos um fogo de lavas, ora somos um vulcão extinto; tanto parecemos compreender que se deu uma viragem na paisagem social, aqui e ali já irreconhecível relativamente ao que a havia padronizado, como nos apegamos a uma visão dogmática, portanto conservantista, assente em parâmetros de um mundo que passou. Um pouco por todo o lado, vai-se tendo em conta a mutação das sociedades, as correcções e as inversões que acompanharam o surto económico e a evolução na mentalidade de certas classes ofuscadas por uma súbita promoção material ou, pelo menos, por um enleador acesso ao consumo - sendo assim que os partidos mais definidos, os que pareciam menos flexíveis, não tardaram a acertar-se com os novos apelos e com a nova disposição das pedras no tabuleiro, sem que, com isso, desmintam os seus fundamentos.

Por contraste, no nosso caso, ao passarmos do ideal ao real, os alvos perdem rapidamente os seus contornos, a estratégia e a táctica que toda a acção exige desviam-se para as refregas do pessoalismo, para as demandas inoportunas, e nessas malhas se adulteram, se desperdiçam. O que devia ser concreto torna-se vago, as realidades desfiguram-se, o toque a desunir logo surge como uma inevitabilidade ou até como um propósito dominante, quando o senso do real, apoiando-se numa definição de princípios, pediria a fria pesquisa dos pontos de conjugação, avaliando-lhes seguidamente, com o mesmo rigor e a mesma objectividade, se eles bastariam para uma actuação concertada, embora nunca incongruente. O saber-se que existem razões profundas para este desfasamento com os factos não justifica que nos deixemos desvirtuar por elas.

Mas deixamos. Forçado à passividade ressentida e cumprindo a pena perpétua de menoridade política a que o condenaram, exilado no pior dos exílios, que é o de viver na sua terra sem exprimir o desejo de como nela prefere viver, o homem português foi-se expondo aos males que pululam numa atmosfera frustrada, desde a indiferença à operosidade que depressa renuncia à eficácia. A operosidade queda-se pelo gesto, faz dele u fim e não um meio. E seja para onde for que olhemos aí temos, supuradas, as lesões de uma tal frustração. Num mundo que se questiona, que se incita à revisã sem pausas do que é, para onde vai e de que modo ca minha, vamos permanecendo um dos ilhéus da descon fiança enquistada, a quem não desagrada de todo um halo de martírio, um corpo que burocraticamente se deixa entorpecer, embora, de tempos a tempos, contrariando-se de um protesto espasmódico, que lhe demarca os ciclos de involuntária atonia. Em bem pouco contrariamos a sedução por recusar as realidades quando a sua linguagem nos descontenta e para a sangria fratricida, que é uma das mais trágicas e anemiadoras expressões das vontades bloqueadas.

Nestas últimas décadas, ainda não houve diligência política no sentido de mobilizar a opinião pública que não se tivesse somado por desgastes a que aquele duplo irrealismo nos conduz. As pessoas mudam, os desistentes são rendidos, os maus guerreiros substituídos, dir-se-á, pois o que importa é o que eles representam ou pretenderam representar - mas lembremos que se paga sempre caro a leviana avaliação (ou a não avaliação) de como as massas reagem aos acontecimentos e também de que não se pode reavivar e desiludir indefinidamente a esperança.

 

         O ESCRITOR E O PRÉMIO

(Palavras lidas quando do recebimento do Grande Prémio SOPEM)

Já que o regulamento do Grande Prémio SOPEM preceitua que este seja entregue em acto público, aqui nos encontramos para o efeito, embora eu tivesse preferido que tal acto decorresse na intimidade.

Para levar mais longe a franqueza, acrescento que não desejei este prémio, não o esperei e estive mesmo relutante em aceitá-lo. Sabem disso alguns dos presentes e, sobretudo, sei-o eu. E, não obstante, ele foi e é triplamente significativo: resultou de um escrutínio secreto, isento, portanto, de tudo o que se possa atravessar entre o que se pensa e o que se faz; pela multiplicidade de votantes qualificados, reflecte um espectro largo de adesões; e, finalmente, destina-se a assinalar não uma obra isolada mas a soma de um esforço, que, por desluzido que seja, é sempre mais árduo do que quem está de fora supõe. Será, aliás, a voz de um sentimento profundo se eu confessar que, de todos os prémios até hoje por mim recebidos, neste ponho uma estima particular: com efeito, receber das mãos dos meus confrades o testemunho de que a tarefa a que me tenho devotado, e que eles, tal como eu, conhecem por dentro e não apenas como juízes, mereceu estímulo e crédito, compensa-me de algum modo de pesares e dúvidas que, quase inevitavelmente, são o preço de quem, através da arte, procura situar-se entre os outros homens.

Porquê, então, a minha surpresa e depois a minha hesitação perante este prémio - ou melhor: perante qualquer prémio que eventualmente me fosse atribuído? A surpresa tem uma explicação singela: nunca me escasseou a capacidade, o gosto, o entusiasmo de admirar, e como também nunca fui ameaçado pela hipervalorização do que fiz e do que faço, acontece que, sempre que colocado na situação detestável e detestada de confronto, é o mérito de muitos dos meus camaradas que vejo sobressair, embora eu prefira encontrar neles não a excelência relativa mas a diferenciação; no caso presente, era para mim óbvio que o Grande Prémio SOPEM teria de correr vários nomes antes de chegar ao meu. Daí, a surpresa.

Sei bem quão fácil é dizer estas coisas, dizê-las protocolarmente não as sentindo, já que a modéstia exibida é a forma mais eficaz da vaidade. Mas digo-as sem pretensão de convencer os que me ouvem. Aos que sabem de há muito que assim penso (ou seja, que é este meu modo de ser) não preciso de lhes confirmar a pers pectiva; aos outros, que continuem a julgar-me como lhes aprouver ou lhes for mais conveniente.

Agora quanto à hesitação. A vida é um cumprir de ciclos biológicos; somos todos os dias os mesmos e somos todos os dias diferentes - tal o mundo em que nos inserimos e de que somos personagens activas. Ou, dizendo de outro modo, o curso da existência vai-nos, propondo ou impondo metamorfoses sucessivas de um todo coerente, ainda que a uma distância curta o não pareça. Vamos mudando, em suma, mas continuando a ser a mesma pessoa. Ora, este prémio saiu-me ao caminho num momento em que, talvez pela confluência súbita de factos frustradores, eu me sujeitava a mais uma periódica revisão, como sempre severa, prelúdio dos tais acertos ou desacertos com o que em nós se interroga, se rebela e se depura sem nunca chegar ao termo desse inconformismo e dessa depuração. Às vezes, por entre desfigurações em que não me reconheço (mas quem se reconhece nos espelhos alheios?), ouço rumores que me têm por homem simples. E sincero. Sempre me soube bem ouvir isso, pois creio que bate certo. Aliás, simplicidade e sinceridade não são dotes - são um molde. Mas sou um homem simples que é simultaneamente de uma amarga complexidade. Ambas as coisas são compatíveis e frequentemente inseparáveis. Complexo, pois, daqueles em que ferve uma inquietação que a si própria assiduamente pede contas, um perseguir de uma limpidez ambicionada que às vezes na procura se turva; e desses debates íntimos, que raros suspeitam, podem resultar sentenças radicais, conquanto nem sempre judiciosas, tanto como um sereno e gradual afastamento de tudo o que é peripécia, remoinho, infernos vãos. Os jovens, ou os que compõem uma imagem de uma assentada, dificilmente imaginam quantos logros se vão deitando fora no correr dos anos, quantas opções e selecções deliberadamente se enfrentam; mas o que resta deste contestar permanente, e dia a dia amadurecido, valoriza-se, ganha outra clareza e até outra dimensão. Não foi preciso que outros nos dissessem que da vida vivida se chega à verdadeira sabedoria e que só do encontro das propostas com a realidade se avalia o que nelas era berro gratuito, para deduzirmos que assim é - nós, os que já vivemos tempo bastante para a dor e para a alegria, para a fé e para a descrença, para o florir e o murchar das ideias em disputa, para o cotejo entre o que se herda e o que se conquista, e de tudo isso colhemos uma lição.

Toda a seara, enfim, precisa de mondas. De contrário, muita da seiva se perde em favor das ervas ruins. Ora, a cena literária, onde se desenrolam as mercês e as injúrias, é amiúde a erva daninha da literatura. Aos poucos o vamos verificando, mesmo que mercês e injúrias não nos desviem da rota escolhida e não adulterem o que de veraz permanece em nós. Mas há nelas um poder erosivo. Quase tudo, aliás, no nosso meio céptico e fatigado, são forças de erosão, sem excluir algumas donde se esperaria o encorajamento que resulta do convívio animoso, da controvérsia viva mas leal, do companheirismo combativo. Tem a literatura uma missão a um tempo congregadora e perturbadora; mas ela encontra-se inevitavelmente inferiorizada quando os valores em que se fundamentam a agitação fecundante e a fraternização se vêem hostilizados e poluídos, mesmo que só da parte de uma minoria.

Ia a dizer, portanto, que este prémio me chegou numa fase em que eu me empenhava no difícil e talvez ilusório objectivo de conciliar o papel de actor com o de cobiçado espectador, ou seja, o de escritor que voluntariamente se arreda da teia literária, da qual, aliás, passo a passo já se havia desembaraçado, para ser mais fiel à literatura. Tal afastamento poderá confundir-se, em alguns aspectos, com a fadiga, o desencanto, a saturação - mas todo o processo selectivo tem os seus riscos e as suas mutilações. No entanto, após decénios de labor perseverante, e por muito que se sintam os desgastes, creio que já será tarde para a desistência, embora seja ainda cedo para me defender do circunstancial. E é isso que pretendo.

Disse Saroyan que, quando se começa, o escrever é uma arrogância e, por fim, uma humildade. Não se devem tomar estas palavras à letra, cuido eu, antes no seu mais vasto e até metafórico sentido. A arrogância sugere aqui desafio, crista alevantada, euforia, e também desperdício de energias e propósitos; e a humildade tanto pode evocar crista caída como orgulho amadurado, experiência que sedimentou e por isso se quer recatada. Pouco importa a interpretação que os outros lhes dêem ao apreciá-las em nós; importa assumi-las adentro do significado que lhes damos. Fui arrogante, isto é, afoito e confiado, sem nunca calar uma humildade de raiz, e sou ou desejo-me humilde esperando que a tal arrogância não tenha desfalecido.

A minha dúvida, por conseguinte, esteve em ajustar o recebimento de um prémio, que é uma das manifestações do ritual literário, no qual frequentemente se exprimem esterilizadoras paixões, com o forte apelo a renunciar à participação nesse rito. Recusar, todavia, seria estar em desacordo com o meu próprio gesto (tão espontâneo como o da atribuição deste prémio), de ter aderido à Sociedade Portuguesa de Escritores Médicos, que, congénere de muitas outras no mundo (pois não é apenas entre nós que a medicina se dá bem com as letras e as artes), se quer exemplo de uma vontade de diálogo, de convívio, de diligência e até de brio profissional, num meio onde as iniciativas deste género são encaradas com suspeita e às vezes eliminadas com rancor e onde, em suma, tantas coisas concorrem para uma desencantada solitude. Por outro lado, se ponderarmos e observarmos serenamente, chegamos à evidência de que tudo o que na vida é vida precisa, afinal, de ritualização. E quando derrubamos um rito, porque nele nos imobilizámos, porque nele vemos um tempo ultrapassado, é para o substituir por outro. Por mais voltas que se dêem, por mais descomprometidos de fórmulas que julguemos ser, um anti-rito é já um novo rito. As acções, as crenças, os sentimentos, ao procurarem um gesto ou uma voz que os traduza logo têm de se sujeitar a uma liturgia. E temos de convir que, de todas as liturgias literárias, os prémios, mal-grado os seus vários senões e abastardamentos, ainda são dos males que menos afectam a literatura. Um prémio não faz um escritor, mas, pelo menos, não o desencoraja. O que já é muito.

Enfim: pesadas as razões, e mais uma vez exposto a contradição, que, segundo alguns, é uma espécie de fatalidade das pessoas sinceras, aqui estou a receber este prémio com alto mais discreto júbilo, pois ele baliza uma jornada que só eu sei o que me tem exigido e a que a medicina, forja da compreensão e da verdade, deu um cariz de que espero nunca me desviar. E ao recebê-lo não me sinto galardoado, já que o escritor não escreve para receber honras e galardões: sinto-me, sim fraternizado com todos aqueles que, médicos e escritores como eu, dessa simbiose colheram um modo sadio de comunicar - que tão necessário é (sublinhou-o Oscar Wilde) à arte mais nobre.

O mesmo Oscar Wilde, ao registar as suas andanças pela "Tanquelândia", conta-nos que se lhe deparou num salão de baile o seguinte dístico: "Roga-se ao público que não atire sobre o pianista, que faz o melhor que pode." Com palavras aparentadas dou por findo este elóquio: decerto que o Grande Prémio SOPEM me dá com uma das mãos o que com a outra me reclama. Mas, com ele ou sem ele, sou o pianista que tem feito o melhor que pode.

 

     DEMOCRACIA E EXCLUSIVIDADE DE DECISÃO

Penso que o melhor serviço que se pode prestar à governação é comentar os actos públicos com honesta franqueza, o que tanto pressupõe a crítica, se for caso disso, como o aplauso, este, porém, dado de testa levantada. E o pior serviço será, contrariamente, o louvor incondicional e mesureiro. O País somos nós todos, os que opinam desta e daquela maneira, e é no confronto leal e desinibido de ideias díspares, mas igualmente apostadas no interesse comum, que uma sociedade viva pode ser edificada.

Comecei por estas palavras porque o que se segue é um louvor. Mas podia ser uma crítica. Sinto-me tão disponível para uma dessas atitudes como para a outra.

Não conheço o ministro Costa Brás, ignoro as suas tendências, o que obviamente não obsta a que lhe observe um amadurecido convívio com os problemas e também - ou assim me parece - uma indiferença pelos volúveis favores da galeria, que, hoje como ontem, aqui ou em qualquer quadrante, ondula ao capricho da viração.

O ministro Costa Brás tem claramente optado por uma descentralização administrativa, que é um dos esteios da prática democrática, incitando os municípios, os distritos, as regiões a tomarem consciência da sua identidade e a zelarem-na por todos os meios. Zelarem -na preenchendo, desse modo, aquele "vazio cívico" resultante do afastamento dos indivíduos das motivações que mobilizam a vontade. Após decénios de hipotecada submissão ao Terreiro do Paço, autoritário distribuidor de avarezas e benesses, esta é uma linguagem nova num país suicidiariamente macrocéfalo.

Ainda há meses, andarilhando eu mais uma vez pela Holanda (onde muito há que ver e sopesar), reflectia sobre o seguinte contraste: a Holanda, palmo e meio de terra e nem por tal menos próspera, compõe-se de um rosário de pequenas e médias cidades, cujo idêntico desenvolvimento e poder atractivo estabiliza ou distribui harmoniosamente as populações; Portugal compõe-se de aldeias, lugares de exílio, a elas acrescentando aberrantemente, num estuário propício, uma urbe fagoci tária - Lisboa. Na qual desaguam os sonhos e os desesperos, as ucharias e as misérias, de todo um mapa desolado. Um país inteiro sôfrego de acorrer à metrópole, lá onde o mundo se abre, um país inteiro a anemiar-se até à erosão para irrigar uma parcela. Este contraste, só por si, explica as salientes diferenças no viver. e na mentalidade entre os dois povos. Mas se a Holanda reparte por múltiplos agregados a sua disciplinada' vitalidade, e se se dá bem com isso, é porque o Governo central sempre tem deixado espaço livre para a iniciativa e para a decisão dos indivíduos civicamente organizados, quer ao nível de corporações, quer de "territórios cientes da sua realidade" - para usar uma. legenda de Denis de Rougemont. Dá-se, ao que se verifica, uma espécie de libertação das potencialidades.. regionais expectantes, que previne o marasmo do conjunto, e que, enfim, revela quanto os particularismos, se funcionalmente concertados, são uma das garantias, da saúde dos povos.

Aliás, e insistindo no ocasional cotejo com o país dos polders, tenha-se em vista que entre o mundo rural (se é que a ideia convencionada aqui assenta) e o citadino não há estremas frustrantes, nem as físicas nem as culturais. Ambos se interpenetram e até certo ponto se prolongam, os usos os mesmos, as curiosidades e os acessos à sua satisfação sem diferenças de maior, isto apesar de uma herança calvinista muito ciosa da sua pauta de valores, em que o dinheiro é sacrossanto. O lavrador que passou o dia nas tarefas do seu campo, quando regressa a casa e deixa os socos à porta, cuida de si como um director de empresa. Também ele teve estudos, e às vezes largos (o obreiro agrícola pode ser frequentemente um estudante universitário), e também participa do mundo evoluído. Se o virem depois à mesa, numa ambiência de confortos e asseios, e mais tarde num serão que não dispensa os livros, o teatro, o concerto, de modo algum o aparentarão com o labrego cumprindo um ofício primário num lugar morto.

Tem mazelas a burguesíssima sociedade holandesa, conservadora de quatro costados, pois tem, e aí estiveram os provos para as lancetarem, pondo a nu que as bitolas altas dos salários, os consumos fartos, os aforros, não satisfazem o visceral desejo de criatividade, não calam o sentimento de impotência perante o destino colectivo, quando este se esfuma ou corrompe - mas reconheça-se o que há de edificativo neste povo que perdeu a mentalidade de assistido para se tornar cidadão, povo voluntarioso, de há muito empenhando a sua robustez no incessante combate com a Natureza, em vez de o aplicar na belicosidade guerreira.

Povo eficaz, dispondo de suficientes amortecedores sociais para digerir as contestações utópicas, sem, todavia, desdenhar o que nelas há de revigorante: o inconformismo, o semear da dúvida fértil, preventivos da rotinização. Mas a eficácia, como ia dizendo, passa pela bem assumida maioridade das unidades que constitue o todo e que, destuteladas nas suas vocações e nas suas preferências, se responsabilizam perante si próprias, as sim se estimulando, e ao mesmo tempo se responsabilizam perante os vínculos que as congregam. É um erro impor às colectividades uma maneira de trabalhar u forme, um figurino existencial que as violente ou uma subalternidade que as condene à demissão. Que é obviamente, um poder que defina os objectivos naci nais e se exprima sobre o essencial, mas quando se trata de decisões que toquem as pessoas no seu molde e agregados humanos no cerne das suas aspirações, esse poder deve escutar, persuadir - nunca impor.

O tempo em que os conflitos entre as perspectivas regionais e as da administração se resolviam pela força pecha latina, parece ter acabado. Como acabou a própria profilaxia dessas contendas através da mediação caudilhos docilizados. Os problemas das comunidades quando vistos por alheios e arbitrariamente, deixava de o ser não apenas pela deterioração dos ângulos de análise mas também pela reaccional indiferença dos interessados - aos poucos rendidos à lava da descrença da fadiga. Há, na verdade, períodos históricos que se podem caracterizar fundamentalmente por essa imensa fadiga. Que paralisa ou instiga ao abandono. Sempre que um povo deserta, do seu mester, do seu agro ou do seu país, sobretudo se em caudais de desilusão, as coisas vão mal. À escala restrita do agro ou do país. E às vezes é a primeira a mais eloquente.

É contra esta atonia colectiva que se devem levantar, exaltando-se, as energias diversificadas, para lá de egoísmos locais, para lá até do frequente desfasamento (que pode chegar à contradição) entre o discurso político e as realidades. E nem sequer, ao optarmos por este caminho, pelo qual se recriará uma comunidade através da recuperação cívica da sua diligência, estaremos a estorvar o curso da história. O reagudizar da sensibilidade das regiões com vincada diferenciação cultural, ecológica, existencial é hoje um fenómeno generalizado. Quanto mais se cerra a malha que faz depender os povos uns dos outros, mundializando os problemas, e se uniformizam os costumes pela coacção dos mass media, mais, afinal, irrompe do fundo das gentes, que em grupos humanos geográfica ou etnicamente definidos vão tecendo a sua especificidade, aquilo que não se submete a suseranias nem à padronização.

Tenho, pois, ouvido o ministro Costa Brás segundo

esta cartilha democrática. Tenho-o ouvido num país que, apesar de haver suportado três séculos de Inquisição e meio século de salazarismo, ou por isso mesmo, quer rejeitar os exclusivismos de opinião e de decisão.

E aplaude quem o desperta para esse tardio, esfomeado  resgate.

 

         ESTA LISBOA DAS ÁRVORES QUE NÃO TEM

Visto que o homem, afinal, olha e defende nas coisas a sua imagem, o que nelas é sua criação, não sei até que ponto os problemas da ecologia não terão sido enunciados de um modo simplista, sob padrões abusivamente generalizados. Com efeito, o homem faz e refaz sem cessar o meio onde vive, consoante as suas necessidades, hábitos, tendências; é ele, pois, a modelar o que o cerca, o reinventar uma natureza, depois de gradualmente se ter desfeito da que encontrou. Mas como nem em todo o lado as necessidades e os engenhos e os gostos que elas geram são os mesmos, tanto como diverge, de umas regiões para outras, o ritmo das mudanças, não há que esperar uniformidade no que cada um pede à sua ambiência. O que para alguns tem fascínio ou um certo significado, nada diz a outros. O homem, em suma, lavra o seu ambiente e é por ele lavrado.

Por isso, pergunto se o citadino de raiz, cuja paisagem foi de sempre o favo repleto, o arranha-céus ou a chaminé fabril, e a ela se afeiçoou, compreenderá muito bem que se lhe fale, por exemplo, com enlevo ou nostalgia, de flores, de prados, de árvores - e do quanto tudo isso importa para a qualidade de vida. A ecologia, como risco e como desafio, descobriu-a o homem não à medida que ia modificando o seu mundo, ao mesmo tempo que se modificava, mas sim quando exigiu de mais, ou excessivamente depressa, das suas faculdades de adaptação a condições novas. Quando descobriu que havia um limiar para essa adaptabilidade, uma norma a zelar, para lá das quais viriam as mutilações e, quem sabe, o fim da espécie. Poder-se-á então dizer que, fora dos casos em que a estrutura biológica do ser humano é agredida, cada um enfrenta e sente os problemas ecológicos que correspondem ao seu molde físico e mental, ao estádio evolutivo da civilização a que pertence e até às diferenciações individuais.

Mas voltando ao citadino nado e criado na cidade: conheço um bom par deles que nem dão pela carência de espaços verdes, como não dão pela falta de céu, o céu largo onde cabem as estrelas, embora saibam remotamente que essa carência os empobrece. Falar-lhes, pois, da brisa que parece soltar-se das árvores, do pino do Verão, do fervedouro da urbe a serenar-se nos jardins, do apaziguamento dos sentidos ao escaparem-se do betão para as relvas, falar-lhes do ar gordo que os bosques tornam leve e límpido - é usar uma linguagem que precisa de decifração, ainda que esse mesmo citadino, por contágio de um mundo que corre para todas as estradas da errância, já não dispense o domingo de praia ou de campo e deserte da sua cidade sempre que pode, sem ao certo saber que perigo o faz debandar, por dias ou por horas, ou que aceno o atrai para esse rito das multidões em fuga.

O citadino, creio, perdeu o sentido biológico dessas coisas. Aos poucos se foi deixando emparedar e insensibilizar na frieza das ruas despidas. Se, nos dias de fogo, amodorrado pelo deserto de sol em que vão transformando a sua urbe, lamenta a míngua de sombras, de abrigos de verdura, essa lamentação penso que traduz mero desconforto, um protesto superficial sem vínculo em qualquer sentimento profundo. Mas quem, desde o berço, confundiu paisagem com bredos e pinhos aprendeu que as árvores interferem na vida dos homens, no seu modo de ser e de fruir, quem teve ensejo de identificar o ar que se respira pelos odores que o im pregnam, como se apura, pelo travo, a casta de um vinho, e quem, mais tarde, soube que as clareiras verdes corrigem os climas, defendem a saúde, intervêm decisivamente no espigar das crianças - esses têm de sentir instintiva rebelião dos jovens contra os agressores da Natureza, o seu combate ecológico, que é simultaneamente um pretexto e uma finalidade, quase uma alegoria; esses têm de se doer, nas entranhas, por assistir a este crescimento sôfrego de uma cidade airosa, como Lisboa, a odiar o arvoredo.

Lisboa odiar as árvores? Que heresia, hão-de clamar os que vão plantando aqui e ali uns raminhos esguios e melancólicos, mais ou menos perdidos numas fatias de erva, a compensar a destruição encarniçada das árvores antigas, suficientemente autênticas e frondosas para seduzir os pássaros, para nos darem quietação e frescura e, sobretudo, para nos transmitirem uma realidade vegetal. Hoje, Lisboa galga por aí fora, impaciente, de olhos vendados, sempre a fugir do mar-rio que lhe deu uma personalidade contrariada (deve ser a única cidad do Mundo que desperdiça a sorte de ter nascido à beira do mar e de um estuário prodigioso), hoje Lisboa rasga avenidas entaladas entre anómalos prédios que as sufocam, corrige-as de mau humor no dia seguinte e prossegue na sua sina de buracos e entulhos, semeando mi lhares e milhares de pessoas em cada novo bairro sem lhes assegurar um jardim, uma alameda, um tufo de árvores dignas desse nome, que convide as pessoas a interromperem, por instantes, o frenesi da sua existência.

Dizem as estatísticas que temos hoje mais árvores em Lisboa. E acredito que assim seja - seria difícil o contrário. Mas já se confrontou esse acréscimo com o aumento da população e da área habitável? Eu pergunto isto, e perguntá-lo-á muita gente, porque, ao olharmos à volta, encontramos sempre os mesmos oásis de há muitos anos - mas esses traçados com largueza, sem considerar o terreno perdido para aquelas alucinantes arrematações dos empreiteiros, que dia a dia devoram o que restava das plácidas moradias rodeadas de um vergel, erguendo em seu lugar casernas que se disputam na aridez e na fealdade. O que encontramos de novo, envergonhados da sua tísica presença, são os tais arbustos espigadotes, que qualquer safanão do vento verga até ao chão, e cuja sombra tem medo do sol.

Não, a Lisboa das árvores, do Passeio Público, da Tapada da Ajuda, do Campo Grande, parece ter acabado. E creio que as imposições dos tempos não têm que ser chamadas a justificar-lhe o fim. Pois que dizer, então, das novas metrópoles (estou a lembrar-me, por exemplo, de Toronto), que mais parecem um imenso parque atravessado de ruas e picotado de imóveis audazes do que uma colmeia de milhões de habitantes? E será apenas coincidência que Toronto seja simultaneamente uma cidade toda ela futuro, onde a juventude insubmissa reina, e uma cidade de paz?

E posto cá fora o desabafo de provinciano, falemos agora com objectividade. O problema dos espaços verdes, directamente relacionado com o equilíbrio homem-ambiência e portanto com a saúde pública (na Rússia, edificam-se cidades-modelo, nas quais o arvoredo e a vegetação provaram ser capazes de crivar a atmosfera de poluições assassinas), tem sido debatido em todo o lado, em boa parte como reacção à fúria das novas construções empilhadas e desnudas, que, tal como se agrava, vai representando uma ameaça à estética das urbes e às condições de sanidade. Dos países nórdicos, já sabemos quanto respeitam o lema de que o homem, seja citadino ou aldeão, deve viver dentro da Natureza e não contra ela ou fora dela. A todo o passo o viageiro encontra terras do tempo novo que, para o serem, não precisaram de destruir o que preserva a ecologia. Perante um renque de árvores seculares (às vezes perante uma só), o urbanista pensa primeiro no modo de o integrar nas exigências do progresso, não se poupando a labores para o conseguir; aqui, na nossa Lisboa, se a árvore é estorvo, ou tida como tal, forçam-nos a crer que nem por um segundo se estuda uma alternativa, se hesita no sacrifício. O derrube chega a parecer triunfal.

Em França, mais ao pé da nossa porta, o problema mereceu já repetidas controvérsias públicas e depoimentos (e protestos) da Academia de Medicina, visto que os médicos, sempre tão esquecidos, poderiam ser bons conselheiros em questões deste quilate. A exemplo da cruzada de outros países, a Academia chegou a emitir o voto de que todas as áreas ainda disponíveis fossem rigidamente reservadas a futuros "espaços verdes" - e, no entanto, Paris, sabem-no os que a conhecem, é uma cidade aparentemente farta de jardins, bosques, quintais, e onde uma avenida parece sinónimo de duas fileiras de bem copadas árvores. Apesar disso, segundo os cálculos desmistificadores dos técnicos, a capital francesa é das cidades mais saturadas de casario: conta pobremente com três por cento de espaços verdes, em duro contraste com os seis por cento de Nova Iorque, nove por cento de Berlim, dez por cento de Londres e quinze por cento de Viena. O número de habitantes para um hectare de espaço verde é de 10 000 em Paris, de 1500 em Nova Iorque, 1300 em Londres e 500 em Berlim. A cobertura total em parques e jardins, na Paris dos nossos dias, soma 424 hectares, não incluindo os 1794 hectares dos bosques de Bolonha e de Vincennes e outros de menor fama. No parecer dos higienistas, porém, as necessidades teóricas elevar-se-iam a 140 hectares para jardins-de-infância, 1200 para parques de desporto e 6200 para outros espaços verdes ajardinados, ou seja (cifras decerto já desactualizadas) um somatório de 20 metros quadrados para cada parisiense.

Não sei se estes cômputos, pelo que respeita à Lisboa de há 30 anos, nos humilhariam; mas desfavorecem-nos, com certeza, em relação à chamada Lisboa Nova, teimosamente subsidiária das árvores, dos lagos, das estátuas, da verdura que os nossos pais e avós, sem olhar por certo a estatísticas e higienes, apenas para oferecerem a si próprios beleza e serenidade, generosamente nos legaram.

 

           UMA PATOLOGIA DO DESESPERO

Um certo agressivismo verboso que se tem exibido, nos últimos tempos, nos meios letrados, reflexo, talvez mais eloquente do que qualquer outro, da patologia da nossa ambiência em geral, pediria uma análise liberta das inibições (e portanto dos convencionalismos) para que tende uma atmosfera coerciva, seja de que lado corram os ventos da coacção.

Basta que alguém se distancie um pouco ou temporariamente desta cena de jubilosos justiceiros, que confundem o culto da felonia com o combate pela verdade, e medite no espectáculo do qual se afastou, para se dar conta da degenerescência de propósitos e actos a que nos deixámos chegar. As coisas e as pessoas postas no altar dos sacrifícios, sob os nossos olhos transformados em fuzis, são na maioria dos casos meros pretextos: o que está em causa é todo um acumular de anseios traumatizados, todo um cerco de constrangimentos que se foi fechando, todo um modo de ser português - dorido, desistente, masochista, e por isso mesmo mais capaz da verrina -, acirrado pelo clima de uma época que favorece múltiplas viciações daquele sentimento salubre de que é preciso pôr em questão o que está para dar lugar ao que vem, não porque o protesto confira um certo lustre cultural e social, como se vê amiúde nos arraiais da burguesia, mas porque a vida é sempre renovo e a indocilidade do espírito o seu motor, ainda que nesse renovo se repitam erros tidos como definitivamente resgatados - sentimento esse que não é de hoje, bem entendido, mas que nos nossos dias se tem feito ouvir com mais corajosa clareza.

Quanto ao nosso modo de ser, lembre-se um artigo de João Medina na revista Vértice sobre a "miséria portuguesa", decerto agora reagudizada pelos malogros disfarçados num activismo tribal, pela incapacidade crescente de se definirem objectivos, pela debilitação das nossas vontades - o que nos vai sublinhando os ressentimentos, veneno da sociabilidade, e aguçando as intransigências, que levam aos abandonos e à surdez. Quanto melhor se sabe o que se quer, menos intransigente se é: a tolerância que não compromete a firmeza é já de si um sinal de força. Por outro lado, mas associando-se sempre à restante sintomatologia, têm-se reacendido as erupções da nossa costela mesquinha, que gostosamente se expressa através de um vício de há muito classificado, o vício pequeno-burguês do despeito, cuja voz pode percorrer toda a gama dos embustes e com ela procura desforrar-se das impotências.

Da nação enferma de langor - como nos relembra João Medina -, da pecha do "malquerer e escarnecer" de si própria (em que os psicanalistas costumam ver o instinto da morte), da nação dessorada colectivamente, que já não estrema a fadiga da descrença, parece termos passado a uma forma desesperada de aviltamento, desviado para a guerrilha pessoal, de paranóia que demite a inteligência e investe à doida, exaltando-se com a demagogia no derrubar. Com efeito, não haverá na beligerância à flor da pele, no rancor expectante que se faz passar por inconformismo, um dissimulado deleite pela autodestruição? O apetite pelas excomunhões, de sonoridade desmesurada relativamente àquilo que as desencadeia, pretenderá esconder mazelas profundas e o deletério convencimento da sua incurabilidade? Um psicossociólogo diria que ameaçamos porque nos julgamos ameaçados, castigamos para desafiar o castigo, condenamos nos outros aquilo que em nós não pôde ir além de uma aspiração, tratando-se, assim, de um mecanismo psíquico pelo qual nos imolamos aos comportamentos repressivos.

Quanto à época em que este acirramento se inscreve (com especial ilustração, repetimos, nas elites), penso que será útil anotar que vão proliferando os observadores que vêem na cultura europeia, tanto a das direitas como a das esquerdas, uma cultura de censores, os quais possuem todos os segredos de se apoderarem das palavras e das atitudes para lhes deturparem o significado. Esses mesmos comentadores advertem que existe uma crescente analogia entre alguns temas, gestos e vocabulário de cariz pretensamente progressista e os do fascismo do pré-guerra. Já, aliás, o sabíamos: antes de constituir uma ideologia, o fascismo é uma mentalidade, que tem impregnado muitos daqueles que o dizem combater e usam a mais odiosa forma de se ser nazi, que é a de actuar como tal usando, porém, o álibi das bandeiras democráticas. Desse modo se sentem legitimados e impunes. E desse modo exercem uma pressão sobre aqueles que, sabendo quanto a berrante truculência é aplaudida, temem que os julguem retrógrados pelo facto de distinguirem entre um salutar estilo irreverente e os seus subprodutos, entre os antídotos da paralisia das consciências e o falso inconformismo, que apenas cobiça a notoriedade.

Os homens são indissociáveis da linguagem que empregam e da lupa que escolhem para aplicarem ao trabalho alheio. Carlo Levi, ao ponderar tanto no parasitismo como no terrorismo intelectual, escreveu que eles, esses censores, estão diante das obras como comissários de segurança perante réus, coscuvilhando morbidamente o delito, e que os olhos deles brilham de prazer quando descobrem ou julgam descobrir o crime oculto. E há seja o que for eficazmente solidário nas seitas da devassa e da denúncia (no ódio todos se sentem irmãos) e há muito de narcisismo primário e de mimetismo pueril nesta sanha no desfazer, a servir-se de vazas obtidas com um impressionante espírito de denegrimento, que perante nada recua: actos ou escritos isolados do seu contexto e assim se prestando à deformação, alegações sem base ou torpemente insinuadoras (que, na primeira oportunidade e ajustadas a outras pessoas, até podem mudar radicalmente de significado), factos distorcidos - e sobretudo essa veemência feita só de raiva. O que caracteriza o estado narcísico é que nele tudo se quer, e depressa, arredando violentamente os obstáculos ou o que é sentido como tal, com a iconoclastia dos ambiciosos que não têm meios para alimentar a sua ambição.

Pois, como dizíamos, esta análise assenta em particular na panorâmica mais recente da nossa intelligentsia (sem, porém, lhe ser específica), onde o vale-tudo foi erigido em virtude. Desde sempre que a burocracia da má-fé precisou de certas modas para se nutrir, e o azedume é uma delas, e desde sempre que as obras, tal como os homens, tiveram os seus inimigos (para usar palavras de Valéry), mais ainda se alguma espécie de prémio as bafejou - mas, entre nós, chegou-se a um apuro em que as pessoas, ao apresentarem o que resultou do seu labor, se sentem antecipadamente culpadas do vago delito de que falava Carlo Levi, ou, se assim não acontece, alguém fará o possível por que elas o sintam.

Dizendo isto põe-se em causa a crítica? De modo nenhum. A crítica é livre, ou deve sê-lo, sejam quais forem as circunstâncias e ainda que a verdade que nela se proclame acabe por se revelar leviana - já que a verdade aceita o primeiro que lhe chame sua -, sabendo-se que toda a sociedade que a dispense, cale ou reprima é uma sociedade morta ou que vai morrer; e mesmo quanto aos indivíduos, que, se forem por ele poupados ou a desdenharem, mau sinal nos dão da sua real valia. Uma coisa, porém, é a crítica, por sua natureza dinamizadora, e outra as suas desfigurações, que as mais das vezes, sob a capa da legitimidade de se expor uma opinião, servem de vazadouro a idiossincrasias pessoais, a complexos e a gulas recalcadas, quando não significam apenas o intento de, agredindo (e toda a agressão é espectacular), chamar sobre si as atenções. O certo é que, no mundo da cultura, não se conhece um único caso de beleguim que se tenha imposto pelo seu talento. A injúria é a linguagem daqueles que não têm razão ou que não conseguem fazer-se ouvir pelo mérito próprio.

Com efeito, por muito que a palavra "crítica" venha a ser hasteada enfaticamente, o que nos últimos tempos tem feito carreira no nosso palco provinciano é a acrobacia da retórica, de timbre irracionalista, a graçola soez, o insulto vingativo, sob o tradicional gáúdio de uma claque para quem as frechadas no parceiro são uma espécie de expurgação de abcessos íntimos. A ponto de se prever o êxito de uma iniciativa jornalística (seja folha literária, porta-voz de tertúlia, ou suplemento de gazeta, não menos doméstico) pelo molho virulento que nela se programar. Programa esse, aliás, estrategica mente dirigido, com alvos de eleição. Só que, por vezes, esses orquestradores caem na armadilha do aprendiz de feiticeiro e terminam vítimas das fúrias que soltaram: mais cedo ou mais tarde, a mecha queima as' mãos de quem a acendeu.

Tudo isto seria pouco mais que folclore, a pobre macaqueação de um estado de espírito purificador que trouxe a terreiro a verdadeira face das coisas, se não indiciasse, antes de mais, a tal corrosiva impotência. Nem só o automobilista que encontramos na estrada a vociferar por insignificâncias, metamorfoseado num rabioso que põe demência em todos os gestos, nem só essa personagem nevrosada documenta um clima de emoções bloqueadas, de energias que se desviaram do seu curso natural. O exemplo do intelectual a criar sucedâneos para o seu desejo de interferir e de se afirmar é mais significativo, pela própria natureza dos seus interesses e da sua representatividade colectiva. Os ataques obsessivos a confrades por motivos de nada ou por motivos que resultam da falsificação de situações, tanto como a crispada atitude de suspeita ou de belicosidade, que de tudo se serve, ilustram a transferência do potencial de acção para desvios cada vez mais afastados do terreno em que deveria cumprir-se.

Em suma: encontramo-nos perante uma conhecida sintomatologia compensatória, de alvos simulados, que se reaviva nas épocas em que individual e colectivamente existe um mais agudo sentimento de fracasso. E como a violência cega é uma escalada, vai-se sempre mais longe para apagar e sobretudo para legitimar o excesso anterior. Da difícil autocrítica, cada vez mais arredia, passou-se ao fácil criticismo; do juízo sereno, ainda que sem peias, passou-se à diatribe exibicionista; do fazer, que pede esforço e responsabiliza, passou-se à irresponsabilidade do berro oco.

Ora, tudo tem o seu efeito, o seu preço, e tudo, por fim, acaba por desencadear os mecanismos de resposta. Assim é na biologia humana, assim é no corpo social. Os efeitos, esses, começam a evidenciar-se por sinais de erosão, cuja gravidade o tempo apreciará; quanto aos mecanismos da resposta, que eles possam em definitivo voltar a página deste canibalismo de desespero e ir ao encontro de uma sabedoria que aponte as vias de uma autêntica atmosfera de inquietude. Porque essa, sim, é criadora.

 

         O OFÍCIO DE ESCREVER

(RESPOSTAS A UM INQUÉRITO DO JORNAL "DIÁRIO POPULAR" CONDUZIDO POR JACINTO BAPTISTA)

Sente-se integrado numa geração?

Toda a obra autêntica manifesta-se pela descoberta de um mundo, do qual o escritor possui meios próprios de abordagem. Temos, assim, que essa obra é singular, nos trilhos que percorre, naquilo que nos revela e n maneira como a revelação nos é comunicada. Mas, por outro lado, não só cada obra apresenta um mosaico de nexos com muitas outras, assentando a sua especificidade no uso particular que o autor faz de tais referentes, como existe uma sociologia de criação literária tendo em conta os horizontes históricos. Por conseguinte, uma obra literária, sendo autónoma e inconfundível, acha-se simultaneamente enlaçada numa família de espíritos congregados por uma certa sensibilidade à atmosfera da época e pela resposta aos desafios que esta lhes põe. Quer dizer, portanto, que, com maior ou menor nitidez, na maioria das obras detecta-se a cumplicidade de uma geração. A história atravessa a escrita como um impetuoso caudal de interferências. É sobre esse caudal que a literatura elabora os seus materiais e os organiza segundo um molde em que se declara a marca do tempo e a personalidade do criador.

Pelo que respeita à minha geração (e este "minha" já responde à pergunta), penso ter sido uma das que, na panorâmica literária portuguesa, mais vincou saliências identificadoras.

Parece-lhe que seja o acto de escrever dissociável da inserção do escritor-cidadão na comunidade?

Creio que o acto de escrever não pode ser dissociado da existência cívica. Todo o texto se insere numa urdidura complexa, a do homem situado, que é, afinal, a sua motivação. A obra surge do reencontro, feito de afinidades ou antagonismos, ou de ambas as coisas, entre o projecto do autor e a perspectiva histórica que lhe é oferecida. Desde que nos fale do homem (e é sempre esse o seu discurso), das suas inquirições sobre quem é e para onde vai, a literatura tem, pois, de falar-nos do modo como ele se implanta e se sente no mundo. Por isso se diz que, na análise literária, o conhecimento do contexto restitui ao texto o seu dinamismo. No entanto, entre a intencionalidade afectiva e a consciente, às vezes é a primeira que se revela mais aguda na apreensão do clima do tempo, talvez porque as suas antenas sejam mais sensíveis, aquelas que, afinal, distinguem o artista e frequentemente o põem em desacordo com os seus contemporâneos.

Para quem escreve? Para si, para os outros escritores, para o leitor comum? (Alguma vez para a gaveta?)

Em todas as obras alguém se dirige a outros, através dos medianeiros de que se saiba servir. A obra é, pois, o binómio confissão-confessor - uma teia muito viva de confluências e divergências, que nos questiona e no questionamos, sem jamais se chegar à esterilidade de um desfecho. Experiência fundamentalmente humana, o escrever não é, portanto, mera alquimia cerebral, mas uma permuta de dádivas, recusas, insatisfações. Somos modificados pelas nossas leituras e, do mesmo modo no que foi lido existe uma prévia representação de todos nós, enquanto leitores, que sucessivamente vai sendo reformulada.

Quanto a mim, escrevo porque sinto necessidade de escrever e sem pensar naqueles que, eventualmente, poderão escutar-me. Muitos dos meus originais têm ficado na gaveta.

Crê desejável a profissionalização (e a sindicalização) do escritor?

Tenho tido opiniões diferentes, e até opostas, a este respeito. Creio, porém, que o tema lucrará em ser posto deste modo: se o escritor puder profissionalizar-se sem, com isso, comprometer as oportunidades de vivência variada, renovável, fecundante, que um ofício não "literário" mais vezes proporciona, então a profissionalização, além de dignificadora e libertadora, terá vantagens. De contrário, fico duvidoso, pois, na maioria dos escritores, o contacto directo e a todo o momento espertado com a vida no seu respirar quotidiano e nos seus múltiplos cenários é o estímulo primacial da criação. Não queiramos ver os escritores habitantes dos cafés, aos poucos reduzindo o grande teatro do mundo a esse minipalco de soalheiros, ou então eremitas lucubradores de fastios. Mas à alternativa ponho uma ressalva: o ofício "alheio", se por ele se optar, não deverá absorver o tempo e as energias do escritor para lá de limites estiolantes.

A hipótese de sindicalização leva-nos a outras questões sem, aliás, nos afastar da primeira. E aproveito o ensejo para focar uma delas: seja qual for o tipo de sociedade em que se viva, a literatura é, reconhecidamente, uma das expressões do génio de um povo ("uma espécie de memória nacional", como a definiu um escritor romeno); por conseguinte, a actividade que lhe é adstrita merece ou usufrui crédito social. No entanto, se alguns países traduzem, na prática, esse reconhecimento, garantindo ao escritor "bolsas de trabalho" que o defendam de contingências injustas e frustradoras e, por último, a segurança na invalidez e na velhice (um direito de que nenhum cidadão pode ser arredado), a maioria das nações nem sequer tem enunciado o problema - que é mesmo problema, tal como o passado e o presente abundantemente nos certificam, e, por vezes, com uma crónica bem dramática.

É certo que o ofício de escrever apresenta particularidades que podem embaraçar a sua inclusão num esquema estereotipado de segurança social, pois tanto é escritor aquele que produziu uma única mas valiosa obra como aquele que fez da escrita uma tarefa regular, e, entre mais factores em jogo, dir-se-á ainda que o escritor dispõe (em teoria) de direitos autorais mesmo depois de, eventualmente, ter dado por finda a sua actividade. Porém, a isso se responderá: nada mais caprichoso, e portanto falível, que a audiência de uma obra literária, hoje num convívio intenso com o leitor, amanhã subitamente apagada (todo o escritor passa por um ou vários purgatórios), e, na mesma ordem de ideias, estará desde logo condenado ao abandono da colectividade o tal escritor de obra escassa (ponha-se o exemplo de Cesário Verde), mas de nível incomum. Por outro lado, se o fisco reconhece o escritor como contribuinte, não o distinguindo, quanto a isso, de qualquer outro profissional, de modo algum se entende que o dispositivo gregário o desconheça totalmente como beneficiário. A garantia social que uma segunda profissão possa prestar, corrigindo esta injustiça, é aleatória, pois, entre outros aspectos, a experiência mostra que o homem de letras não prima pela estabilidade nos lugares em que, naturalmente, se sente constrangido.

Para não alongar o rosário de questões e réplicas possíveis, terminarei dizendo: o assunto foi estudado em vários países, entre eles os escandinavos e o Brasil (a França, nessa matéria, acaba de dar um passo de grande rasgo e exemplaridade), para já não citar aqueles cujo esquema socioeconómico desde logo elimina o problema. E as soluções práticas encontradas poderiam orientar-nos na norma mais adaptável às nossas realidades.

Um último sublinhado acerca da hipótese de profissionalização: que esta, a concretizar-se, guarde sempre as suas distâncias da "funcionarização", da "burocratização", que seriam as lavas mais assoladoras no caminho do escritor. O profissional forçado a escrever, mesmo que a coacção não seja estatuída mas apenas interiorizada, porque a colectividade espera dele uma resposta fértil ao estímulo concedido, é escritor ameaçado na sua força e na sua autenticidade criadoras.

Considera a segunda profissão uma solução inevitável? Que lhe parece preferível: uma segunda profissão fatalmente alheia ao ofício das letras ou o recurso às actividades menores ou marginais da vida intelectual (traduções, colaborações em jornais e revistas, na rádio e na televisão)?

Na sequência das considerações precedentes, resta-me acrescentar que, no caso de segunda profissão, me parece desejável uma actividade afastada do ofício das letras. De contrário, acho eu, corre-se mais facilmente o risco de saturação e até de viciação. É, aliás, da experiência dos sociólogos e dos biologistas que a mudança de tarefa retempera, em vez de acentuar as fadigas, além de, numa boa percentagem dos casos, exaltar potencialidades ignoradas ou em vias de esgotamento. Estou a referir-me, obviamente, aos exemplos propostos no questionário: traduções, colaborações na imprensa, etc. Se tivermos em conta outro género de actividades afins, mas não justapostas, como orientação de centros culturais ou bibliotecas, cargos públicos mais conviventes com a cultura, etc., nesse caso parece-me que o risco apontado desaparece.

Julga que deverá o Estado ajudar (directa ou indirectamente) o escritor?

Deve, e a prática acentua que, nos países em que esse apoio se efectiva de vários modos, a cultura participa no quotidiano das gentes, impregna-o, modifica-o no sentido da desejada plenitude. Mas é evidente que tal ajuda nunca deverá pressupor um condicionamento, seja qual for a forma capciosa sob que ele se embuce.

Chegado a este ponto do inquérito, recebo o Boletim da Associação Portuguesa de Escritores, dedicado à posição do escritor na nossa sociedade, no qual se sugerem medidas concretas para os diferentes problemas dos direitos e das funções do escritor. A vaguidão do que deixo dito atrás mais se pronuncia perante esse documento minuciosamente sistematizado. Oxalá ele encontre o acolhimento que lhe é devido.

Que pensa do mecenato, oficial ou particular, que se exerce através de prémios, bolsas de estudo, colocações burocráticas?

Pelo mesmo motivo, considero esta pergunta relacionada com as respostas precedentes. Todavia, e ainda a propósito dos senões de uma tarefa paralela, se esta na verdade for absorvente, não resisto a citar aqui uma conhecida advertência de Proust: "Quantas tarefas assumimos para evitar aquela! (A de escrever.) (...) Apenas acontece que as desculpas não figuram na arte, as intenções não lhe são abonadas; a todo o momento o artista deve escutar o seu instinto, o que faz que a arte seja o que há de mais real, a mais austera escola da vida e o verdadeiro Juízo Final."

Partilha a ideia de que a ficção (e, em especial, o romance) tem os dias contados?

Há muito que se fazem dobrar os sinos pelo romance. Mas o certo é que ele resiste. Sendo a arte uma assimilação do mundo, creio que o romance se acha particularmente apetrechado para uma vasta e variegada captação do que somos e do que nos rodeia. Ele mostra, em suma, um fôlego e uma eficácia muito vincados relativamente a outros géneros, tendo-se esquivado, até aqui, aos sucessivos espartilhos que lhe pretendem impor, os quais, esses sim, poderiam conduzi-lo ao mortal desfasamento com as situações históricas.

Suponho até que às vezes se confunde entre perdurabilidade do romance como género literário e os períodos em que, por usura, ele revela uma fatigada atonia das normas em vigor. Essas fases têm-se verificado, e outras se seguirão, mas elas correspondem, afinal, a rupturas salutares. A literatura (e não apenas a ficção, bem entendido, embora seja nesta que o fenómeno mais se acusa) tem apresentado um processo cíclico de aproveitamento da linguagem quotidiana, que depois gradualmente se vai especializando e codificando, até ao ponto limite em que de novo se faz a irrupção, por assim dizer violenta, da linguagem comum, mais comunicativa. É o que talvez esteja em vias de se repetir, após a extrema "codificação" a que se foi assistindo. (Quando falo em "linguagem", essa referência pretende abranger todos os elementos organizados da obra literária.)

Há quem tenha posto mesmo a seguinte hipótese: a literatura, na sua inevitável necessidade de renovação, deixa-se periodicamente penetrar de uma literatura de "massas", cujo carácter subversivo é mais evidente se a posição do escritor o for também. Teria sido esse o caso, por exemplo, de Dostoievski, que, no opinar de Chlovski, soube fundir romance policial, romance de aventuras, romance à Eugene Sue, com o denso romance de sondagem psicológica.

Nos dois últimos decénios, o romance tem oscilado entre a destruição dos seus esquemas tradicionais e a integração de elementos novos, alguns deles convencionalmente específicos de outras formas literárias. Sinais de perplexidade ou de pujante ruptura? De qualquer modo, o que importa é que o romance se sintonize, de cada vez, com a sua época. Que consiga respeitar a familiaridade do leitor com o mundo criado pelo escritor (e os liames para essa familiaridade variam com os tempos), que, enfim, assegure aquele antigo "privilégio" de perdurar na memória e no coração dos homens como perduravam os romances que, servindo-se dos tais esquemas em progressivo desuso, sentíamos humanamente habitados.

 

Quantas horas trabalha (e quantas páginas produz por dia? Levanta-se cedo? Deita-se tarde? Que tempo dedica, diariamente, a ler e a escrever?

O meu ritmo quotidiano não tem grandes irregularidades, mas também está longe de ser rígido. Levanto-me a hora normal e trabalho pela manhã. Leio à tarde e um pouco à noite, deitando-me quase a horas aldeãs, pois preciso de descontar os clarões de insónia, minha perseverante companheira.

A produtividade do meu trabalho é escassa. Uma página diária "definitiva", isto é, depois de sujeita a sucessivas mondas e alterações, e tendo ainda em conta o muito que não chega a ser aproveitado, para mim já é satisfatório.

Esboça um plano do livro que vai escrever ou deixa-se guiar pela inspiração do momento? (Acredita na inspiração?)

Não tenho regras. Cada livro pede o seu processo. Mas há, em todo o caso, um mínimo de "plano". Quanto à inspiração, depende do que consideramos por tal. Não há dúvida que há períodos ou momentos em que, no acto da escrita, convergem factores singularmente propícios, em grande parte correspondendo à maturação de materiais que foram incubando ou se clarificaram após uma fase nebulosa. Mas o ingrediente primacial da "inspiração" continua a ser o esforço. Isto tem sido dito de vários modos, todos eles, porém, acentuando o afinco e a pertinácia exigidos pela literatura, que é quase "um trabalho braçal".

Qual o seu ambiente de trabalho? Precisa de isolamento para escrever?

Preciso de isolamento, preciso de silêncio. (O ruído, para mim, é das piores poluições do mundo de hoje.) Há anos a esta parte, a ambiência que me é mais favorecedora é a aldeia. Os meus últimos livros, na sua montagem e redacção finais, foram escritos na aldeia.

Escreve à mão ou à máquina?

O esboço é escrito à mão, a versão definitiva à máquina. Acontece, porém, que certos escritos mais circunstanciais redijo-os directamente à máquina e verifico que o estilo tem outra limpidez e resulta mais solto. Creio, pois, que a máquina talvez desembarace a linguagem de muito desperdício. Como em tudo, o hábito terá aqui muita influência.

Enquanto escreve, fuma? Bebe? Utiliza outros estimulantes?

Fui um fumador desmarcado, a ponto de provocar no organismo um fenómeno de rejeição. A escrever, fumava sem parança. Presentemente, não fumo e quase não bebo. Café a meia manhã, como intervalo no trabalho, às vezes um pouco de uísque puro, pela tarde. Fico-me por aí.

Tem caderno de apontamentos (ou um diário) e utiliza-o quando uma ideia lhe ocorre?

Tenho cadernos, sim. Mas o curioso é que raramente os utilizo. Em cada viagem, aponto sempre impressões, registo factos, diálogos, peripécias ocasionais mas eventualmente significativos. Dessas viagens têm resultado alguns livros. Pois, na maioria dos casos, só depois de concluídos é que os confronto com as notas recolh' das. Estas funcionam, decerto, como alertadores do mecanismo da memória.

Escreve com facilidade ou laboriosamente? Dá-lhe prazer escrever? Corrige muito ou pouco o manuscrito. As provas tipográficas?

O que disse atrás, a propósito de "produtividade" aplica-se a esta pergunta. Alguma coisa, porém, talvez possa acrescentar. Tenho usado frequentemente a palavra "tormento" ao referir-me ao acto de escrever. Mau riac foi mais longe, ao dizer que todas as aventuras es pirituais são calvários. Por isso, escrever com facilidade ou laboriosamente não representa negação ou confirmação dessa tortura.

Quanto a "provas tipográficas", elas são apenas (falo do meu caso) um dos estádios do nunca terminado acerto com a insatisfação do autor. E isto seja qual fora reedição a que correspondam.

De que livros de consulta se serve habitualmente (enciclopédias, dicionários, prontuários, gramáticas)?

Depende, obviamente, do tipo de obras que escrevemos. Consulto por vezes dicionários, quase sempre no objectivo de apurar a intencionalidade dada a um vocábulo. A nossa língua é muito fluida, muito subjectiva, e conquanto a dinâmica de todos os idiomas os defenda da norma desfasada com a vida, a todo o passo nos arriscamos ao emprego menos rigoroso, excessivamente ubíquo, digamos assim, de certas palavras.

Que livros (de consulta ou não) sempre o acompanham? Quais os seus "livros de cabeceira"?

Os meus "livros de cabeceira" vão variando e a sua gama é sortida. Desde Simenon a Rilke, quase tudo pode lá ser encontrado. Creio, todavia, que, além de obras de sociologia, talvez se possa detectar uma predilecção: diários, testemunhos, etc., de escritores. Do género, enfim, do Ofício de Viver de Pavese.

Que autores mais o influenciaram na infância e na juventude?

Tenho respondido a esta pergunta sei lá quantas vezes e de todas elas de modo diverso, pois há sempre um autor que se esquece nessa farta lista. Gorki, Tchekov, Huxley, Lawrence, Caldwell, depois Malraux e Elio Vitorini, muitos, enfim.

Com que escritores mais aprendeu tecnicamente?

Durante alguns anos, talvez Huxley, talvez Caldwel. Depois, gradualmente, suponho que fui evoluindo para aquilo que é o habitual: os processos que utilizamos e que, anteriormente, outros já utilizaram, tornam-se nossos porque participam da elaboração de um estilo que, desde que exista, é único. Isto é: cada escritor (repito) possui uma chave para a apreensão do mundo, moldada na oficina diária da sua lida, e as duplicações tentadas pelos imitadores poderão adaptar-se a falsas fechaduras mas não àquela que desejam abrir.

Era bom em redacção, na escola?

Tenho uma vaga ideia que sim.

Lê os seus escritos a alguém, antes de os publicar? A quem? Acata as sugestões e as críticas dos amigos? Dos críticos encartados?

A regra, que tem tido escassas excepções, é não mostrar os originais a ninguém. Seria demorado explicar o porquê. Ao assunto, aliás, dediquei algumas páginas de Estamos no Vento. Não se trata de descaso pela opinião dos outros, longe disso, mas de pudor ou coisa aparentada. E ainda de saber que cada pessoa que nos lesse o original daria um parecer diferente. Sendo assim (e é desejável que o seja), o escritor que se arrisque com a sua verdade ou com o seu erro, embora admita, sem hesitação, que essa mesma diversidade de juízos, se ponderada com sensatez, possa salientar deslizes que ao autor escapam numa fase de insuficiente distanciamento. Creio, pois, que este pormenor se relaciona fundamentalmente com o modo de ser de cada um.

Quanto à crítica, o tema teria muitos ângulos de apreciação e, por conseguinte, várias implicações. Leio as críticas com disciplinada humildade, com atento respeito, delas tenho colhido úteis ensinamentos, pois até na crítica deliberadamente malévola há sempre motivos para reflexão, mas também não abdico do que eu próprio penso. Ou melhor: confronto sempre a opinião alheia com a minha, sabendo, como sei, quanto sou severo para comigo. É claro que, uma vez por outra, certos escritos que festivamente se ostentam como "crítica" convidam-nos a refrescar a memória com algumas fábulas de La Fontaine, mas à parte isso, que é o folclore, que é a debilidade daqueles a quem só resta a agressão-exibição, convirá talvez dizer, após dezenas de anos de ofício da literatura (em todos os sentidos a que o "ofício" se estende), convirá dizer que, por inteligente, imparcial, despremeditado, sensível, que seja o leitor (e o crítico é um leitor especializado), ele tende a transformar o texto no seu texto, a encontrar nele o que lá deseja encontrar, ou, inversamente, a não ver o que lá está. Isto é: a aferi-lo por um modelo pessoal. Não temos de estranhar que assim aconteça, visto não poder existir neutralidade na leitura, por muito que o leitor procure métodos frios de análise, os quais, na sua escolha, denunciam já uma atitude perante a obra a apreciar; mas para lá desse quase inevitável condicionamento, há a crítica flagrantemente apaixonada, que, tal como o amor-paixão, desfigura. Notemos, todavia, que, através da injúria ou do silêncio calculado, pode detectar-se, quantas vezes, a admiração. A crítica subjectivista, retórica, tem sido muito combatida por se prestar a estes partidarismos; a verdade, porém, é que ela pode ser mais facilmente controlada do que aquela crítica objectiva que vicia os dados da sua pretensa objectividade. Tudo isto, enfim, justifica que ao lado da sociologia da criação literária exista a sociologia do livro e que para se avaliar verdadeiramente uma obra, nas suas diversas perspectivas, se julgue útil, de todas as vezes, psicanalisar a crítica por ela provocada.

Para muitos, o leitor ideal seria o "plurileitor", a soma das leituras feitas por múltiplos críticos e leitores, tornando-se dia a dia mais indesejável impor uma unidade de leitura e recusar todas as outras em nome da justeza daquela que adoptamos. Se, em literatura, existe uma pluralidade de sentidos, deve existir a mesma pluralidade de leituras. O próprio Roland Barthes, tão hasteado em oráculo, confessava: "A nova crítica deve tornar-se rapidamente um novo lixo, para que apar outra coisa."

Qual a parte de intervenção autobiográfica nos seus livros?

Mesmo no escritor mais "inventivo" tem de haver referências autobiográficas. Os fios que servem para subtil tecedura da criação busca-os o escritor no mais secreto de ele próprio, ainda que as figuras urdidas nada se lhe assemelhem.

Escrevi o primeiro livro aos 16 anos.

Preocupa-o o rigor dos dados circunstanciais (históricos, científicos, etc.) convocados para a narração?

Há muitas formas de "rigor". Suponhamos uma biografia ou uma crónica romanceadas: pode partir-se de um acontecimento preciso, mas, sem lhe lesar a factualidade e o sentido, dar-lhe um colorido fantasiado. Isso tenho feito.

Como escolhe os nomes para as suas personagens?

Um nome? Eis, na verdade, um pormenor que sint importante. A escolha tem, antes de mais, de ajustar-se às características da personagem. Há nomes afectivamente atraentes, outros não. Depois, cuido ainda da sua qualidade fonética. Seleccionar um nome, em suma, participa do tratamento dado à personagem.

Que género de livros lê? E jornais? E revistas?

Sou de leituras sortidas. Da poesia ao ensaio. Quanto à ficção, quase todos os géneros me tentam. Sem excluir a literatura policial ou de antecipação científica, onde se contam obras-primas. Leio (ou folheio) uns três jornais por dia. Quanto a revistas, e sem que nisto se veja provincianíssima presunção, dou preferência às que nos vêm de fora. Sou leitor regular de dois ou três semanários estrangeiros e de outros tantos mensários.

Assiste a conferências? A sessões culturais? A comícios políticos? Frequenta tertúlias literárias? Bibliotecas? Vai ao cinema (com que frequência)? Ao teatro? Vê televisão? Visita os museus, as galerias, as exposições? Viaja?

Nunca me seduziram "actos públicos". Tertúlias, essas, acabaram há muito, pelo menos para mim. Sou talvez um solitário. Voluntariamente. Em média, vou uma vez por semana ao cinema. Bem menos vezes ao teatro. É que custa muito mais suportar um teatro que não seja de nível pelo menos médio do que um mau filme. Raramente vejo televisão. E se isto acontece agora, mais ainda acontecia dantes. Sempre reagi à televisão, primeiro por um repúdio a que chamarei biológico, depois como resultado das leituras e observações que me foram esclarecendo esse desagrado. Estou de acordo com aqueles que aspiram a que se extirpe a televisão das nossas vidas, sob pena de nos destruirmos tal como somos ou desejamos ser. A humanidade, nos seus fundamentos actuais, dificilmente resistirá a este fascínio traumatizante e mediocrizante que é a TV, tanto a nível psíquico como físico. A única maneira de o espectador se imunizar dessa crispação diária é a adaptação e, para se adaptar, robotiza-se. Se a generalidade das pessoas conhecesse os estudos feitos sobre os malefícios da TV, sentir-se-ia alarmada, embora talvez não tivesse coragem para se defender do contágio. O espectador habitual já perdeu a sua identidade: integrou-se na comunidade dos despersonalizados. Bem sei que existe uma sociologia da televisão, como existe do desporto competitivo, e que, numa sociedade desalienada, a droga televisiva terá menos nocividade, já que, nesse caso, se trata de um medium orientado sob outros esquemas, mas nem assim se elimina boa parte dos seus riscos, nomeadamente a agressão ao nosso todo psicossomático.

Visito galerias, após as inaugurações. Viajo com frequência. Sobretudo dentro do meu País, onde tanto há que ver, descobrir, fruir. Amo o meu País.

A sua opção política (ou vinculação, se ela existe tem influência naquilo que escreve?

Por muito que às vezes se pretenda dissociá-los, o escritor forma, com o homem, uma peça inteira. Por conseguinte, a opção política, no sentido mais depurado que dêmos à expressão, corre nas veias do escritor. Todavia, sobre essa relacionação do escritor com um vínculo partidário, algumas observações, desde logo discutíveis, haveria que fazer: a literatura é feita por homens livres e que prezam essa liberdade. Ora, mesmo não esquecendo que o conceito de liberdade é pau para muita colher, em nome dela justificando-se tantas formas de demagogia e tantas formas de tirania, não esquecendo que a sua definição (se é que ela é possível) varia com as épocas, os códigos, a área sociopolítica, e, dentro da mesma época e das mesmas normas, com as circunstâncias, não esquecendo, ainda, que a liberdade até tem sido entendida como uma abstracção tão contraditória e tão utópica que, afinal, a arte seria o único meio de o homem iludir os constrangimentos - tendo presente essa fluidez de parâmetros, dizia, não esqueço simultaneamente que, em contrapartida, as expressões da ausência de liberdade podem revestir-se de formas muito concretas: económicas, políticas, sociais, culturais, raciais, etc. E que o escritor é dos primeiros a senti-las e a acusá-las, através da sua particular sensibilidade para captar o mal-estar colectivo. Ao escritor cabe, pois, um papel não de obediência ao formulário em que necessariamente toda a ideologia se organiza, mesmo que essa seja também a sua ideologia, mas, sim, o incómodo papel de contestante. Mesmo em termos de utilidade social, ao escritor deveria sempre estimular-se esse inconformismo dialéctico, contra o qual nada prevalece. Toda a sociedade que pretenda dispensá-lo, por fortes que pareçam as suas razões, condena-se a mentir a si própria, a corroer o que em si haverá de renovador e vital.

Por outras palavras, digamos que, para o escritor, a política é uma ética, enquanto para o político é uma prática - com todas as especificidades que esta diferença comporta. Daí que, por vezes, ao intelectual repugnem tácticas e estratégias que o político, seu companheiro de ideias, utiliza de alma leve. Assim se conclui que deveríamos pedir a cada um deles o que cada um tem para dar, sem exigirmos, como é hábito nosso, que ambos se confundam no mesmo padrão. O questionar, o pôr e pôr-se em causa, é um atributo do intelectual; pois incitemo-lo ao seu magnífico uso. À literatura, que é uma espécie de consciência colectiva, como alguns a definem, cabe a infatigável ou até heróica preservação dos "choros da alegria", que é outro modo (talvez lírico mas certeiro) de dizer liberdade.

Qual o impacte que provocou em si, como escritor, o 25 de Abril?

O 25 de Abril foi sentido depois. O 24 de Abril já estava ferido de morte, o seu dia seguinte significou apenas o terminar de uma longa agonia. Quando assim é, não há impacte, pelo menos para os que se sentiam dentro do processo. Há alívio, alívio no entanto imbrincado no cansaço das esperas acumuladas e de súbito desabadas, alívio feito ainda das perplexidades a que todo o homem responsável é sujeito, há o espanto de nos sabermos protagonistas de uma história que já fora escrita e, por isso, quase nos parece impossível de ser vivida, há, enfim, aquela lava de desespero de nos acharmos imóveis, ou cativos de nós próprios, quando à volta o chão estremece.

 

                PROSAS SOLTAS

Todo o homem traz consigo um destino de cigano. Por mais que os vínculos o prendam ao seu agro, como raízes que precisam de chão familiar para dar corpo à árvore, o certo é que a inquietude, ou seja lá o que for de nome mais inspirado, tal os braços da mesma árvore, procura o espaço sem estremas, ao alto e ao largo, até onde puder chegar. Esses braços ainda persistem verdes, a insistirem no crescer, no dia em que as árvores murchem - e igual coisa se dirá do homem, que, por mais que os anos o gastem e as canseiras ou os desenganos o segurem aonde está, ainda teima em dilatar os olhos para lá dos portões do seu horizonte.

Pertence à condição humana essa fome do ir além, que ora se exprime em odisseia ou em aventura, e quanto mais o viver se consciencializa, menos ela se satisfaz ou se conforma.

Provinciano de magra bolsa, e num tempo em que viajar era luxo de uns tantos ou estigma de desesperados, levou anos que eu atravessasse as fronteiras com destino alongado, pois, até aí, fora um ir furtivo à outra margem da raia, em escapadelas de acaso, no ofício de clinicastro de algum camponês perdido nas geografias, outras vezes como repórter de dramas, na companhia de contrabandistas arriscadiços. Mas dia a dia se me empolava no peito essa sedução, entre impaciente e ceosa, por experimentar outros ares que a imaginação fazia extravagantes.

Ponderava eu então, e com certeiros fundamentos que a tal ardência que nos chamava ao convívio com outras gentes e outros poisos servia de poderoso veículo de solidariedade entre os povos - que, gerados da mesma cepa, se vão porém diferenciando consoante matrizes, até ao ponto, às vezes, de se encararem com surpresa, senão com acinte. Ponderava eu assim, mal prevendo que em viageiro me tornaria, que se os paíse estão descobertos, de lá nos vindo as notícias e os sinais testemunhadores, não o está o homem. Porque a desconfiança, a reserva e mais sentimentos aparentados são formas de desconhecimento, tanto como a fraternidade para que tendemos, se os sistemas que a modelam correrem os quatro cantos do Globo, é uma consequência do "conhecer", conhecer de olhos nos olhos, mãos abertas para que nelas não se suspeitem navalhas. Repare-se que até no quotidiano isso se declara: o convívio vai desbastando as incompatibilidades, instiga a ler por dentro o que, lido por fora, nos parece escrito em adversas letras.

Daí que, por idênticos motivos, as embaixadas do que mais atesta o íntimo de um povo, embaixadas culturais (no que a cultura tem de mais vivo), sempre eu as tivesse considerado a mola real do intercâmbio entre nações. O político, mesmo que seja a contragosto, leva para o auditório internacional a frase calculada, o gesto medido, leva interesses a comerciar ou a discutir, dele, enfim, não pode reter-se um perfil estreme do povo que representa; o turista, esse, é uma lotaria de riscos, um pasmo de basbaque ou um desfrutador preconcebido, e aliás, por muito que do seu fugidio rasto deixe uma imagem atractiva, depressa ela se esfuma; mas, no meu ver, o caso já é outro quando os mensageiros, repito, são o povo expresso na arte, na ciência, no folclore genuíno, em tudo o que é o pulsar do seu coração, em tudo o que é a sua vitalidade.

Não admira, pois, que os países para quem a arte, o saber, a técnica, a tessitura colectiva são vivência, um modo de estar no mundo, como agora a torto e a direito se diz, tanto prezem esses seus embaixadores e tantas missões de amizade lhes distribuam. Como ainda recentemente se viu com os inexcedíveis corais soviéticos. E indo na corrente da ideia, não admira também que certos povos incluam assiduamente escritores, ou gente afim, nas suas turmas diplomáticas. A América Latina de há muito que é disso exemplo. 

Corridos os anos, e já com a cidade a dosear-me as tibiezas e os deslumbramentos prévios, confirmei o que ponderara: o contacto com o desconhecido é uma lucidez que se acende tanto no voo cego das nossas fantasias como no escuro das nossas suspeições. E calhou até que o tal primeiro contacto com o mundo de longe, mundo visionado, tivesse sido em assembleia científica. Ainda hoje perdura a confiante e solidarizadora imagem que me deixou. Mas ainda que assim não houvesse sucedido, ao menos teria certificado, de observação directa, que a índole de um povo está presente até no uso dado a factos que, na sua objectividade, julgaríamos avessos a diversas modulações. E teria, enfim, aberto a primeira clareira na nebulosidade deturpadora que é sempre o imaginar-se as coisas sem se chegar a vê-las como são.

Por tudo isto, que é nada perante o que fica por acrescentar, e agora que nos lavámos de manchas frustrantes, multipliquemos sem demora as diligências no sentido de nos pormos em diálogo com os outros através daquilo que nos possa revelar a personalidade (a cultura, no sentido amplíssimo e de modo algu aristocratizante da palavra), que em nós foi sempre u versalista, mesmo quando a fecharam a sete chaves.

Cada povo tem, naturalmente, as suas vocações, seus timbres. E, quanto mais peculiarizados, mais capazes, afinal, de cativar a estima alheia. Não nos iniba mos, pois, com as nossas sublinhadas modéstias em quase tudo, de tanto que nos fomos autoflagelando com o menosprezo: na mais discreta fonte há uma água que lhe é própria, cuja composição nem os grandes caudais poderão repetir.

De qualquer modo, a única via para avaliarmos os outros e, através deles, nos avaliarmos também, é a convivência sem complexos. E entre os benefícios que ela nos presta não se ponha de lado justamente a clara identificação do que somos e os estímulos que dos outros iremos colher. O da fraternização, só por si (nós, povo sensível, com o mundo nos olhos, franqueado no receber e sem sobrancerias), bastaria para que não adiássemos essas jornadas de comunicabilidade - que, na fase resgatadora em que estamos, contribuiria para necessária atmosfera de mobilização colectiva.

 

           FERNANDO DA FONSECA

           OU UMA GERAÇÃO QUE DESAPARECE

Pela lei natural da vida, uma grande geração desaparece. Escritores, mestres de pensar, médicos, políticos, ideólogos e activistas, às vezes juntos na mesma pessoa, homens cuja obra marcou o seu tempo. E, directa ou indirectamente, nos marcou a todos nós.

António Sérgio, Francisco Gentil, Bento Caraça, Aquilino, Jaime Cortesão (entre tantos) e agora Fernando da Fonseca. Uma gente assim não se repete. O que foram, o que fizeram, a maneira como actuaram e influenciaram pertenceu a uma época. Que em definitivo acabou.

Sinto como um privilégio (e isto sem ênfase protocolar) ter convivido, num ou noutro caso bem de perto, com alguns deles. E também privilégio ter registado o modo como os observei e admirei.

Agora Fernando da Fonseca. Um jovem idoso ou um idoso jovem, como queiram (velho é que não), que ainda nas vésperas da sua morte fazia projectos de uma viagem ao Brasil, de fugida, como podia ser ao Canadá ou à China, quase apetece dizer no intervalo entre duas visitas médicas, a horas ou a desoras, pois as incomodidades não contavam para ele. Ou ignorava-as. Viver para Fernando da Fonseca era isso mesmo: lidar, girar. Sem parança. Sob o fogo do irrequietismo, quem sabe se doseado, se mais atiçado ainda, pela contagiante jovialidade. Um homem que sorria à vida, parafraseando Rodrigues Miguéis, um "médico completo", como o definiu Sir Clement Pric Thomas. "O médico completo, realçada essa condição pela excepcional qualidade do seu intelecto, pela lhaneza com que acolhe os seus doentes, pela lealdade impecável com que trata quantos dele se aproximam." Virtudes de um código em desuso, ou atributos de que o presente começa a manifestar uma desesperada nostalgia?

Transcrevi aquele depoimento, de alguém de nomeada, como poderia ter buscado qualquer outra passagem do volume que reuniu testemunhos sobre o magistério profissional, moral e cívico, e de acção dinamizadora, para não dizer revolucionária, de Fernando da Fonseca na actividade que escolheu e a que com tanta exemplaridade se devotou. Até ao último dia. E como se ess último dia fosse o recomeçar para mais um dilatado Ve rão de laboriosidades e optimismos.

Num país que tem medo (ou já o perdeu?) de esfolar as mãos quando aplaude quem o merece, a publicação desse volume (não póstumo, pasme-se!) foi por isso mesmo significativa. Apesar de tudo, floresça o despeito, a indiferença e as mais das vezes a moeda falsa ainda sucede, por entre a cerrada floresta de mistificadores, aproveitar-se um bom pretexto para estremar trigo do joio. Para, enfim, dar voz à admiração, que longe de ser subserviência, é, assim me parece, uma for ma exaltante de assumirmos aquilo que de outros recebemos.

Não fui discípulo de Fernando da Fonseca. Nem pertencia à sua farta leira de amigos e colaboradores, farta porque a irradiação do seu saber e da sua cordialidade, o jeito fascinante de se repartir e de mobilizar que nos demais havia de mobilizável, fizeram prosp rar, de geração para geração, a grada seara do companheirismo, do labor em espírito colectivista, e de tal modo que, a par de Pulido Valente, suponho não ter havido figura da medicina portuguesa, neste século, que mais tenha congregado uma tão entusiástica aposta numa nova medicina - a medicina do inconformismo e do rigor, da insaciada curiosidade científica, desembaraçada até do bordão estrangeiro, a medicina do respeito pelo doente, a medicina da probidade e da paixão. "Aliciador" lhe chamou Pimenta Prezado, quando, na Assembleia Nacional, protestou contra o seu coercivo afastamento da cátedra - um dos gestos mais estúpidos do obscurantismo salazarista. "Aliciação, digo bem, mas científica - que aglutina à sua volta grande número de médicos dos mais brilhantes da minha geração, incita-os ao estudo, ao trabalho, ampara-os, protege-os, forma um grupo de escol com uma produção científica enorme."

Isto declarou-se na Assembleia, para ouvidos moucos. Isto souberam-no e sentiram-no quantos ainda hoje são o tal escol da medicina portuguesa.

Não fui discípulo de Fernando da Fonseca, repito. Apenas um conhecido, que o acaso fazia topar num corredor de hospital, num gabinete de consulta, à cabeceira de um enfermo, na antecâmara de um tribunal (onde, por vezes, nos encontrámos para apoiar os justos, que a inquisição pidesca fazia sentar no banco não do opróbrio mas da honra), um conhecido, porém, sempre saudado com a despremeditada afabilidade que dele podiam esperar o príncipe ou o vilão. Depois, o tempo e as circunstâncias, algumas amarguradas, aproximaram-nos mais. Acabei por sabê-lo um amigo.

Mas bastariam os tais acasos, dos quais amiúde se deduz o que um convívio mais íntimo desmente, para eu anotar aqui o que sempre pensei de Fernando da Fonseca. Os motivos desse registo irei explicá-los.

Não é evidentemente de hoje que, ao ponderarmos nas responsabilidades do professor, que tem de ser sábio e tem de ser gente, a quem se pede competência e se pede exemplo, de quem se espera viveza e não rotina, censuramos os que, por inépcia ou presunção ocupam uma cátedra quase só para lhe colher os frutos mundanos, furtando-se à verdadeira missão que lhes cumpre: descobrir em cada um dos discentes a melhor seiva e dar-lhe o alento que a fecunde; fazer amar uma tarefa como veículo de realização pessoal e de integração no mundo dos outros, que é também o nosso mundo.

Forja de homens e de profissionais, rejeitando marcar estes dois desígnios, forja de sobriedades e não de ufanias, a escola tem de julgar-se pelo que produz, são seu espelho aqueles a quem deu alforria.

Neste enquadramento, que juízo fazer de Fernando da Fonseca? António Câmara, quando da tal afronto exoneração (afrontosa para a ciência, para a cultura, para o País), depôs deste modo: "(...) Mais: trata-se de um educador; trata-se de um impulsionador da investi gação; trata-se de uma destas presenças capazes de levar o entusiasmo a todos, mesmo os mais desanimados E passos adiante: "Este professor é justamente um desses homens que convém manter nas universidades, esses que as robustecem, que as levam ao seu verdadeiro ca minho da educação, do ensino e da investigação. Hou vesse mais exemplos destes, e acabaria por perder-se uso da sebenta, com todos os seus vícios, deixaria de verificar-se, como tão frequentemente sucede, o resvalar da maioria dos professores para o verbalismo e para o emprego quase exclusivo da ciência alheia."

Com efeito, em muitos dos rasgos da medicina portuguesa actual, por caminhos em que dantes raros se afoitavam, na serena maturidade com que os vamos apresentando ao mundo, na apreciação descomplexada do que os outros nos propõem, na sagacidade dos nossos clínicos, nos quais ainda não murchou a arte médica sem, por tal, comprometer o que à observação objectiva e à técnica se deve pedir, encontramos a presença de dois ou três excepcionais capitães (já citámos Pulido Valente, nunca será de mais citá-lo), por si só balizando uma época de oiro da nossa medicina. Entre eles, porventura o mais fadado para as subtis relações humanas que o ensino e a clínica comportam, incitador de vocações e semeador de camaradagens, homem da tolerância.

 

* do diálogo, o mestre Fernando da Fonseca

 

Pelo que fui averiguando, talvez a maior saliência do seu magistério haja sido a insatisfação. O ir sempre em frente, "cada vez mais e melhor", como dele acentuou Bernardino Freire, ao referir-se à "Universidade do Rego", pois universidades foram, no sentido de viveiro de inquietudes, todos os ambientes em que a sua personalidade pôde fulgurar: o Hospital de Santa Maria, o Hospital do Rego, por último o Instituto de Oncologia, onde ousou abrigá-lo o professor Gentil, que não era homem para ceder às interdições vindas fosse donde fosse e se sentia no seu instituto como num território arvorado em independente, aberto aos réprobos a quem se fechavam todos os lugares.

Clínico da cabeça aos pés, como um caçador nato o pode ser desde o faro à presteza no gatilho, todo ele sensibilidade, astúcia, perspicácia, mas tudo isso virtudes apuradas na ponderação, sempre que se encontrava perante uma patologia dissimulada logo se acendia a dúvida inquietadora, que directamente conduzia à pesquisa. E como cada resposta a uma pergunta desperta novas inquirições, esse jogo incessante entre o que se especula e o que se objectiva, atiçando-se mutuamente, nunca se deu por findo. E assim se foi fomentando, a partir das zonas obscuras da prática médica, a euforia da investigação, o hábito de certificar o que se suspeita, e assim, em luta áspera com o vencidismo, a burocracite e a míngua de recursos, se foi dominando o nosso sentimento de incapacidade face aos reptos da ciência médica.

A perseverança do professor Fonseca, negando-se a empecilhos, às ciumeiras em alerta e sobretudo ao desânimo, foi decerto um dos sustentos dos seus triunfos, aliás quase sempre arrolados no currículo dos colaboradores. As primeiras decepções jamais o faziam descrer de uma hipótese sedutora. "De uma vivacidade invulgar", como lhe apontaram Castro Amaro e Manuel Pinto, tanto surpreendia pela audácia como pela "profundidade, firmeza e seriedade nos seus actos". Essa operosidade mais fertilizadora se tornou por decorrer numa atmosfera desanuviada de constrangimentos (tirante os de fora), mesmo os que as normas do trabalho científico podem forçar. Ele entendia que o investigador, parente não muito afastado do artista, precisa de conciliar a improvisação com a disciplina, mas a disciplina que vem de dentro, não a imposta. Todavia, e sem que esse objectivo se sublinhasse, todos se viram por ele distribuídos nos postos que mais lhes seriam propícios.

Não bastam, porém, a inteligência e a sabedoria para que um homem se prolongue nos que vão amadurecendo sob o seu incitamento. Alguém que se admire pelos seus dons profissionais não é necessariamente aquele que se deseje como padrão e, sobretudo, aquele que melhor nos desvenda para melhor nos revelarmos. É preciso mais: temos de lhe sentir qualquer espécie de grandeza. Desde a têmpera à generosidade.

Em Fernando da Fonseca houve um pouco de todos esses ingredientes, sem esquecer o pronto despertar de uma corrente afectiva. Daí acontecer que, já sem funções docentes, ele tivesse prosseguido o seu mestrado, quer no laboratório, quer na conversa fortuita ou aprazada numa roda de médicos, de todas as vezes, enfim, em que a medicina ou o enfermo estivessem em causa e, a seu lado, houvesse um interlocutor com os mesmos interesses. Ao conselho do clínico juntava-se frequentemente o do homem de aviso experimentado.

A ambos fui estando atento. E foi por assistir com que artes ele, o pedagogo, continuava ateando em cada um dos discípulos de ontem a exigência na tarefa bem cumprida, a autenticidade de carácter, a recusa à assimilação passiva das teorias na berra, contrapondo-lhes a crítica e o prazer em exercê-la, que me achei a retocar, ano a ano, o meu perfil de Fernando da Fonseca.

Creio que ele se realizou de muitas maneiras e que uma só decerto não lhe teria bastado. Não por cobiça de mercês e haveres, que os teria recolhido em excesso, caso fosse esse o alvo. Certa vez negou-se mesmo a uma condecoração, pois desempenhar com eficácia uma incumbência não lhe parecia mais que o normal cumprimento do dever - e isto do "dever", em época de ciclópicos desafios, voltará inevitavelmente à cartilha da vida em comunidade. Mas, entre essas múltiplas vias de realização, ponho à frente a clínica, que talvez não lhe tivesse consentido muitas horas placidamente dormidas, esse tipo de magistério fugido às normas, palavra aqui, sugestão acolá, mais convívio que ensinança, numa prodigiosa capacidade de rápida apreensão e de rápida clarificação analítica. Matéria-prima de um povo que mostre participar da edificação do seu futuro e que queira saber-se responsável, essas sucessivas vagas de jovens, hoje, por sua vez, na situação de transmissores do saber, preparou-os ele no sentimento de que a sua actividade devia inscrever-se no cerne do País - um acto cívico, um acto social e, acrescente-se, um acto moral. Mesmo para os que dele se foram distanciando, uns por imperativos de carreira, outros por exílio forçado (disso fui testemunha), sempre houve nos seus dias repletos um instante de pausa para lhes assinalar o seu activo interesse por tudo o que lhes dissesse respeito. Chegava a coligir regularmente notas da imprensa, recensões médicas, e enviá-las aos que, no degredo, ávidos estavam desse perdurar de liames profissionais e afectivos.

Um homem constrói-se dia a dia, quando assim o quer. Mas sabemos que há virtualidades inatas. A argúcia observada no professor Fonseca, a destreza com que apartava o essencial do acessório, a facilidade com que, manuseando apenas os dados da observação, se orientava para a mais profícua das investigações ou até se antecipava aos seus resultados, foram dotes que uma experiência cultivada instiga mas que só parcialmente faz gerar. E que ele (repito uma vez mais) nunca reservou para si. Concitando sem coagir, insinuando de maneira que as insinuações não orientassem em demasia, quedando-se, pois, no termo justo em que a iniciativa alheia é avivada e não violentada, rondaram por largas centenas os estudos que, sob o seu impulso, se levaram a cabo nos serviços onde soprou o vento forte do seu dinamismo, e foram pelo menos uma dezena as doenças por ele identificadas entre nós, embora tal proeza se esperasse mais de um homem de laboratório, em que ele, aliás, vai não vai se tornou, sempre que ao laboratório o levaram a curiosidade e a necessidade de preencher largos vácuos do nosso apetrechamento científico. Todavia, ele não descuidou prevenir-se, e prevenir os demais, contra a tentação da suficiência e dos monopólios da verdade.

Tentação a que não resistiu, essa, foi a do abuso no esforço. Quando a doença, aqui há uns anos, lhe saiu ao caminho, chamando-o a contas de ser useiro em estorvá-la, compelindo-o a uma inactividade que não lhe estava no sangue, desafiou-a pela primeira vez com imprudência, mas ele sabia que, para além da sua pressa em voltar à liça, as patologias são também o que for a vontade em as contrariar. Até ao lance final. Morrendo de pé. Digamos liricamente: homenagem da morte a quem, uma vida toda a combatê-la, não desejara outro fim.

Numa ambiência em que as pessoas desaprenderam de trabalhar em equipa, envenenadas as relações humanas pela suspeita, pelo azedume, pela emulação desvirtuada, os que acompanharam Fernando da Fonseca e se exercitaram na sua oficina não conheceram os sóis que se empinam para que o seu brilho ofusque, cegando, nem os palacianos que se entrechocam no servilismo adulador, nem, ainda, o afã de se fechar nas mãos de um o que só nas mãos de vários pode proliferar. Tiveram, pois, características de singularidade, quanto ao nosso meio, os ilhéus laboriosos de que o professor Fonseca foi o animador. Neles se respirava a consciência da importância do que ali se empreendia, sim senhor, e até o gosto do triunfo, porque não?, mas sem prejuízo da simplicidade. Pôde ver-se muitas vezes (peço licença para o desenfado do exemplo) esse homem, que trepara a altos cumes do prestígio social, a quem os maiores tiravam o chapéu, interromper uma empreitada para, feito ganapo entre outros ganapos, jogar futebol com o motorista e os assistentes, num campo improvisado, tanto como o víamos indiferentemente obsequioso para com um ilustre ou um zé-ninguém.

O companheirismo a que me referi, que agrupou, sem atritos, pessoas de várias constelações, seduzidas por esse factor comum de trabalho realizado com amor, não se reduziu à esfera profissional. Sempre que necessário, dilatou-o ao quotidiano, ao que neste é um desfazer de fronteiras entre os labores, os interesses e os pesares de cada qual. Um homem interveniente. Antes que os apelos chegassem até ele, já o professor Fonseca se aprestava ao seu encontro. Estou a vê-lo e a ouvi-lo, um braço sobre os ombros do interlocutor: "Ora diga lá, meu amigo..." Surdo aos comodismos que o traumatismo dos dias repetidos às vezes promovem, nem sequer se acastelava na hesitação. Mesmo como soldado, que fora nele mais um assumir de responsabilidades cívicas. Consta da sua ficha que "o tenente-médico Fernando da Fonseca pertence ao Batalhão de Infantaria 23 do C. E. P., que voluntariamente se ofereceu, em Outubro de 1918, para constituir uma unidade de assalto, a qual tomou parte na última ofensiva, como batalhão independente incorporado na 140.a brigada britânica. Condecorado com a medalha da Vitória, medalha comemorativa das Campanhas da França do Exército Português, com a legenda "França 1917-18", com o grau de cavaleiro da Ordem de Cristo, é autorizado a usar o distintivo da Torre e Espada e uma palma dourada sobre a fita das insígnias da Ordem de Cristo".

E os louvores não ficaram por aí. Carlos Ferrão pôde assim frisar que "as suas observações e comentários sobre problemas sociais, a que dedica um empenho militante de todas as horas, reflectem o espírito com que interpreta os seus deveres de cidadania".

Interveniente, pois. E como, mesmo sob o agre da injustiça, ele respondeu sem ódio ao que o ódio desafia, a sua voz guardou a força da razão e da serenidade.

Não precisou Fernando da Fonseca de morrer para que as pessoas o vissem como fora - o que é outra rareza da sua biografia. Pois o inventário da sua vida já havia sido feito numa altura em que ainda o esperavam largos anos de lida. Um inventário que é um grosso volume de preitos calorosos, expressivamente colaborado por gente das mais distintas franjas ideológicas e profissionais. Mas faltam nele os testemunhos anónimos, que seriam milhares. Os daqueles a quem ele incitaria deste modo: "Ora diga lá, meu amigo..."

 

                       AS FORMIGAS

Magro e alto, não era apenas a sua palidez que nos dava a sugestão de suave nobreza e de melancólica fragilidade. Havia um não sei quê mais. Qualquer coisa que nele sentíamos de premeditadamente transitório, a esquivar-se da violência ou do alarido da vida. No meio académico dessa época, de rude turbulência, o Arnaldo Vinhas parecia uma haste efémera que, por entre o trigo varonil, espera que o vento a debulhe antes da ceifa. Outras vezes, dir-se-ia uma presença ilusória: os olhos cinzentos despediam-se sem sabermos para onde; só o corpo esguio ficava. E apetecia tocar-lhe a pele desmaiada, a boca triste, para averiguarmos se se tratava, de facto, de uma afiguração.

Éramos um grupo numeroso, de estudantes que erguiam um punho rebelde contra a universidade que nada tinha para responder às nossas dúvidas e ao nosso apelo. Mas nesse arrebatamento de jovens que procuravam novos caminhos para a poesia, para a esperança, para uma consciência gregária em busca de raízes diferentes das que nos haviam legado, ele, o poeta dos versos amargurados e surpreendentemente maduros, participava sem a febre que grita, embora com segurança, na jornada que mal começáramos; e se os seus versos falavam serenamente de uma alvorada recolhida nas mãos do amor, seduzindo mais pelo sortilégio magoado das palavras do que pela extorção, as suas acções de homem, conquanto discretas, tinham a firmeza que vem da coerência assumida com veracidade. Resolvíamos as misérias escamoteadas, as mentiras, as opressões, denunciando-as numa voz fogosa, empolgávamo-nos com os nossos próprios dramas, e ele, que tinha um drama bem maior que o de qualquer de nós, escondia-o no seu pudor quase feminino. A sua interferência no mundo dos homens começava sempre por uma hesitação. Mas, se hesitava, era apenas porque, rodeado de companheiros que exibiam as vicissitudes pessoais ou comuns e nelas acendiam o seu clamor, essa interferência poderia ser contagiada de ostentação, desmascarando -lhe as dádivas e as agruras que ele, em contraste com todos os outros, sentia timidez em revelar. Ninguém suspeitaria que no Arnaldo Vinhas de batina impecável, rosto fidalgo, mãos escrupulosamente cuidadas, habitando um quarto burguês que era uma ofensa aos nossos tugúrios, se encobria o filho de uma gente modesta, lá dos cerros donde também me acenava a infância, cerros, pinheiros solitários, velas rangentes de moinhos de vento - e os amigos que, por fim, o souberam, logo, lhe romantizaram a legenda, carregando-a de apetecidas tintas de negrume. Mas, com ou sem demasias de imaginação, toda lançada em odisseias de Graal, o certo que, na Coimbra desse tempo, a vida nunca poderia ser fácil para estudantes como o Vinhas - embora que lhe pusesse os olhos na aparência fosse levado a só ver nela requintes e um dorido alheamento. Ausências de poeta, direis.

A poesia do Vinhas, conheceis-la? Poesia delicad que, mesmo quando amarga, lembrava os orvalhos filtrando o halo do amanhecer, poesia enternecida, qurrespondia ao "canta, doçura, até à última palpitação ad noite e da brisa" de St.-John Perse - versos clássicos ritmados que resistiam ao tumulto dos que, à sua beira, apregoavam contra as seduções do estilo. Mas ele sabia que só o fascínio da arte nos faz compartilhar a palavra que se quer semeada.

Foi em silêncio que o Arnaldo Vinhas trabalhou até ao esgotamento para se impor às circunstâncias, sem consentir que elas o adulterassem, e foi em silêncio que, adoecendo, desapareceu do nosso convívio. Tão discretamente que apenas sentimos surpresa quando no-lo disseram exilado num sanatório. Falou-se que um médico da cidade, nosso amigo, pagava do seu bolso o internamento - mais um lance da nossa tendência para pôr a fantasia ao serviço do solidarismo ou dos martírios.

Ficou-nos um livro seu. As árvores permanecem mesmo depois que o Outono as desfolha. E nas raras vezes em que, no meio da excitação que eram os nossos dias, havia uma pausa para o lembrarmos - a ele, ao homem, e não ao poeta dos versos serenos, que esse nunca deixara de estar presente -, era ainda o companheiro esguio, solene, de mãos macias, como se o seu corpo jamais tivesse experimentado asperezas, que nos habitava a memória.

Alguém, mais tarde, nos preveniu que o sanatório despedira o Vinhas. Para que ele fosse morrer a casa. Não, não era a casa: na vilória natal, tinham-lhe preparado o catre num casarão que, em tempos, remediara de hospital. Ali, pelo menos, havia sol fulgurando nas janelas rasgadas e um horizonte que se estendia pelos outeiros saibrosos.

O cenário desse catre de agonia descrevia-o ele num poema que nos chegara às mãos, o último do seu diálogo com o mundo. Anos depois, era sempre comovidamente, com um arrepio doloroso, que o repetia aos meus ouvidos deleitados:

Se acordado, sofrendo,

E se a dormir, sonhando Que sou lago.

Adeus, ó canas, cá me vou secando!

À míngua de nascente eu parto evaporado Sem me ver partir!

E lá estavam elas, as canas, ao fundo da colina, ru morejantes e amarelecidas pelas baforadas do vento suão.

Vi-as naquele dia em que um amigo comum me bateu à porta para que eu, como médico, fosse observar Vinhas.

- Ele está por um fio. Mas, ao menos, tenta dar -lhe algum alívio.

Fui encontrá-lo, sozinho, no tal albergue de bafios No alto do morro calvo, da poeira vermelha, esse lar de ninguém parecia o último e demantelado fortim de uma ilha saqueada pela erosão. Levavam-lhe lá os alimentos uns ilusórios remédios e os afagos que ele desejara tão ardentemente pela voz da poesia. Mas se lá lhe chegavam, já não podiam iludir-lhe nem a morte nem a solidão, que a desesperada ternura da mãe fazia habitar. E sabia que o fim estava próximo.

- Quando voltas? - perguntou-me.

- Um dia destes.

- Gostaria que viesses. Mesmo que só te acompanhe a piedade.

As minhas rugas de protesto, adiantou:

- A piedade tem um coração humano, não te parece? Mas se tardares... já não me encontras. - E num' sorriso de desbotada ironia: - Penso em ir-me daqui.

E sabia também que apenas o sofrimento era a vida que nele persistia. Sofrimento e vida partiriam juntos.

- Chega-se a gostar da dor. Aquece-nos o sangue, quando ele arrefece. Já alguém to confessou, na tua experiência de médico?

O sofrimento, a solidão. O silêncio que esconde, nas entranhas, rugidos de lava.

Apenas o rumor de traças infernais, A roerem humanos, ocultas, danadas, Como caruncho em madeiras De casas abandonadas.

Poucas mais palavras dissemos. Eu tinha pressa em fugir dali. Do casarão, da poeira, das traças que, danadas, roíam o Vinhas e o que nele se identificava.

Dias depois, deram-me a notícia da sua morte e levaram-me, de novo, até ele, para que dois ou três amigos estivessem presentes naquela hora. Tudo terminara. Tudo? Não: a face sórdida da existência que ele sempre arredara de si, porque no seu amor à beleza havia ciúme e obsessão, viera escarnecê-lo nos últimos instantes. Era ainda um corpo íntegro, que o caruncho não começara a esfarelar, e já as suas mãos nobres estavam coalhadas de formigas. Corriam-lhe, ávidas, sobre a pele exangue. Multiplicavam-se às centenas, hediondas, surgindo por debaixo da mortalha para se aglomerarem nas suas mãos nuas. As mãos dele, senhores!

Sempre que recordo esse camarada de um tempo maravilhoso, são as formigas que vêm assolar-lhe a imagem. É o insulto que a vida escolheu para quem lhe combatera os lodos e sobre eles passou como um verso imaculado.

 

' Nota. - Os versos transcritos nesta crónica meio inventada pertencem ao livro Voz Que Escuta, de Políbio Gomes dos Santos, por se adaptarem ao clima do que aqui se narra.

 

           AS LUZES BRILHAM INTENSAMENTE

(A PROPÓSITO DE "O DESERTO" DE FELIX CUCURULL)

Eis um livro austero, de um escritor austero. Nele se dispensam, ou se recusam, os atavios de que o fabrico literário se serve para aliciar o leitor: a frase burilada, de recheio farfalhudo ou empolgante, a adjectivação sonorosa, a trama ladina que lança o engodo para logo o subtrair, a apoteose de fogo-de-artifício. Nada disso. A literatura de Fèlix Cucurull é uma literatura descarnada, dir-se-ia ascética: feita de palavras ásperas que, para quem as saiba ouvir, para quem as saiba ler, vibram como cordas retesadas; feita de uma grave simplicidade; feita de um pudor que reprime a fácil emoção, dirigindo-se sem coacções aos nervos e sobretudo à consciência do leitor. Tudo nela é profunda e dramaticamente sério: o desencanto, a fraternidade, a tristeza, a poesia, a revolta. E, sendo sério, tem de ser regrado. É esse o modo de se exprimir do autor. Denunciando um mundo onde tantas e tão opostas coisas acontecem, a sua voz não precisa de se mostrar escaldante, exortativa, agitada, não precisa de percorrer o teclado de temperaturas discordes para que saibamos que esse mundo é vário, com madrugadas e agonias tumultuosas, que nele se entrechocam sentimentos extremos. As violências, os choros, as iras que Cucurull nos descreve, tanto como os seus protestos ou as suas acusações, nunca chegam a explodir diante ou à margem de nós: hão-de explodir dentro de cada um, pois assim sucede também no escritor; nunca chegam a ser espectáculo, que é o meio por que os gritos se transformam em silêncio. Retidos, os conflitos e as ambiências permanecem no leitor num estado de mortificante saturação. Permanecem numa expectativa dolorosa e alertada. Por isso mesmo, fecunda.

Com efeito, nestas ou nas muitas outras páginas de Fèlix Cucurull, está-se sempre à beira de um cataclismo, de um clamor que seja rugido, de uma luta que seja raiva, de um afecto que se incendeie em paixão; mas ele, escritor, não consente o salto para o desmedido. Daí, a sua força, força refreada, que é também magia para quem lhe saboreie a discreta mas poderosa comunicabilidade. Se ele retrata os egoístas, os frívolos, o quotidiano macanizado em que a desesperança se tornou um hábito, se documenta uma cidade ou um povo encarcerados, em que o cárcere operou como lenta e corrosiva degradação, se aponta os humildes e os crédulos, que sobrevivem porque não morrem mesmo quando por eles passa a foice dos bárbaros, se disseca os pérfidos nutridos pelo guano da desonra - despoja-se de todos os ardis para no-lo revelar. Por isso, atenção: cada uma das suas palavras desenfeitadas diz apenas o necessário e diz muitíssimo na sua nudez, cada gesto tem um significado que a moderação parece desmentir. Trata-se de uma secura dilacerante: que o diga o leitor a quem ela fere. Raramente nos tem sido oferecida anatomia tão implacável e eficaz do mundo actual com tal severa economia de processos. Com tanta, repita-se, austeridade.

Tudo o que a arte descreve é importante, sem que essa importância tenha de ser reclamada. Assim é na vida. E assim acontece com o escritor: o escritor Fèlix Cucurull. Ele e a sua voz confundem-se na mesma inviolável seriedade, quer participem do que é banal quer do extraordinário, quer comunguem no riso ou na desventura. Para ele e para a sua voz não há coisas supérfluas, não se desdenham os nadas que já perderam evidência - as falas do dia-a-dia, as tarefas que se repetem, o existir condicionado que esvazia as emoções -; o estar presente é sempre um acto responsável. Um acto sério. Não são essas pequenas coisas que são supérfluas, mas sim as roupagens que tentam desvirtuá-las.

Vem-nos então este escritor da Catalunha, mensageiro do homem contemporâneo desajustado num mundo de felonias e cicatrizes que não deve ser o seu, cronista de opressões, de tédios, de embustes que, porém, não levam à rendição, pois sob a inconsciência de muitos arde sempre a lúcida ou instintiva consciência de alguns, arauto de rebeldias que jamais se deixam espezinhar, intérprete da dualidade entre a vida e a morte, vida que se escolhe para campo de batalha ou morte que se procura como lance final de um desafio sem pactuações, intérprete de um mundo árido por onde corre o vento acerado dos desertos, mas da pior aridez, a habitada, intérprete da confiança que ainda floresce nas terras devastadas -, chega-nos este escritor da Catalunha-mártir, com a sua mensagem em que não há regionalismos, paisagens típicas, gente castiça, e pergunta-se que muito ou que pouco o afasta de nós, que distingue a sua arte, de seiva genuína, da arte do nosso ou de outro povo. E a pergunta leva-nos depressa a uma das saliências do escritor: a sua universalidade. Ele apresenta-se bem diferente de um português, de um italiano, de um alemão, cria atmosferas que não são as nossas, conquanto sobre elas pesem os mesmos agravos, usa uma linguagem e prefere uma técnica que não sabemos ou não desejamos utilizar - e, no entanto, os seus temas dizem-nos respeito, as suas vicissitudes pertencem-nos, o mundo sufocado, brutal, frio, em que as suas personagens se movem é, ou podia ser, o nosso mundo. A arte de Fèlix Cucurull, enfim, representa-nos, responde aos apelos dos homens de qualquer latitude.

Acontece ainda algo de mais intrigante: as situações ou os heróis que ele desvenda, totalmente despidos de verismo, mas não de veracidade, aproximam-se, às vezes, de uma irrealidade simbólica que parece sobrepor-se ao real, tentam-se pela fábula erradia ou por um rigor deslocado dos factos; não obstante, mais além, acompanhando o escritor na aventura, sentimos que essa ousada manipulação do tempo, do espaço e da verosimilhança dos acontecimentos está certa, que nela se recria a autenticidade. Daí, que nos achemos, e tão agudamente, nas suas personagens, seja qual for o cenário e a estranheza da intriga.

Escritor catalão, pois, mas de linhagem universal, e investigador de problemáticas que, de uma pungente actualidade, testemunham os homens da nossa época a inventariarem-se com tortura e em busca de uma solução, de vencidos ou de vencedores, pela qual se totalizem; escritor pessoalíssimo, escolhendo uma via de modernidade que, sem falsificações e arremedos, é sua e de mais ninguém. Debalde, com efeito, lhe procuramos parentescos no modo de tecer uma história ou de a narrar, e sobretudo na escolha do ângulo de focagem, embora sejam perceptíveis as afinidades de temperamento, de pesquisa e de consciencialização da vida, expressas num estado de amargurada tensão, com outros grandes escritores dos nossos dias. Deles o separa, contudo, a dureza cortante, quando importa ser duro, ou a ternura recatada, quando se funde no sofrimento alheio.

Nesta corrida de Enric Pórtoles após desfechar a arma do castigo, dobrando uma esquina, e outra e mais outra ainda, porque o desvairo não pode ser a meta final do desespero - assim lho confirma a mulher desconhecida que lhe restitui a solidariedade, veículo da esperança -; na emocionante identificação entre o "companheiro" e Quirze-o-Solitário, que basta para que a solidão seja povoada; no contraponto entre espoliadores e espoliados da narrativa que tem por título Paciência, na qual o inconformismo revolve as cinzas da resignação; na gratuitidade e no absurdo da guerra, que mais evidenciam que são os vivos, e não os mortos, que devem ter os olhos abertos para que se saiba identificar a justiça; nesse Bravi a quem as circunstâncias gangrenam o sonho e as intenções e que, no momento de reconhecer que um homem sozinho nada resolve, nada refunde, é já um seixo na torrente - em toda a galeria deste livro reencontramos, talvez ainda mais dorido e ríspido, o escritor que em O Último Combate, Miragem e As 21.13, culminando na terrível panorâmica dos desvios e das angústias do pós-guerra que é O Silêncio e o Medo, prestigiou a literatura catalã e vincou a posição do intelectual no mundo de hoje, incitando-nos à confiança, pois ele, que combateu nas linhas de fogo por vitórias apenas adiadas, pode afirmar com propriedade: "Através do fumo e da poeira, as luzes brilham intensamente."

 

   FERREIRA DE CASTRO, O HOMEM, O ESCRITOR

Não se vive para cima de meio século de ofício das letras sem passar por purgatórios. Modas que chegam, modas que partem, gerações que se sucedem, cada uma empunhando, muito legitimamente, um novo estandarte, confrarias literárias que se afirmam guerreando, ainda que apontem a alvos os menos indicados, fluxos e refluxos que são a própria seiva da cultura, e, enfim, entre tantos mais factores estimulantes ou erosivos, mas todos naturais, a acrimónia pelos que obtêm audiência - sentida como uma espécie de tara, talvez a única que não se perdoa.

Ferreira de Castro, exemplo de militância literária e cívica, um nome universal onde os nomes nem nacionais chegam a ser, não pôde, obviamente, ficar isento desses episódicos limbos. Embora o seu prestígio "popular", digamos assim, jamais tivesse declinado, numa ou noutra fase o minimundo caprichoso das letras teve para com ele alguns prejuízos e algumas desatenções. As correntes literárias em permanente e desejada mobilidade, a quase inevitável "revolta contra o pai" observada naqueles que escolhem um caminho e, num dado momento, desvalorizam as fontes para evidenciarem a sua emancipação, e talvez sobretudo um certo aristocracismo letrado, que aos poucos vai criando o seu dialecto e abjurando os que o recusam, tudo isso, pois, teria forçosamente de repercutir em Ferreira de Castro, numa alternância de esquecimentos e devoções.

Repita-se: estas marés são a normalidade. E só passa por elas quem as merece. Apenas os medíocres podem fruir as unanimidades, a paz de não terem detractores, estes tanto mais ferozes quanto mais se agiganta o objecto da sua contestação. Qualquer sociologia da literatura nos ensinará isto e muitas outras coisas afins - já que o fenómeno literário não é unicamente a obra, mas também os múltiplos intervenientes na complexa resposta do escritor ao desafio que lhe foi lançado.

Na hora em que tão sentidamente deploramos a morte de um escritor que o foi com rara constância e não menos rara nobreza, outros, com mais aptidão e saber, lhe louvarão os méritos; por mim, tenta-me passar os olhos pelo que, na sua biografia, encontramos de ilustrativo de tais arritmias no favor e desfavor dos seus pares, apenas porque me parece singularmente significativo o modo como o escritor a elas reagiu. Nesse reagir está as mais das vezes uma das fortes saliências do seu carácter e da sua estatura intelectual.

Como reagiu Ferreira de Castro? Com uma impressionante serenidade, que, porém, nunca foi sobranceria. Há os que respondem às afrontas com esse mesmo recato, talvez com a mesma aparente grandeza - mas fazem-no porque se põem a distância, fazem-no por orgulho e até por desdém. Eles lá em cima, o arruído cá em baixo. De todo o meu convívio com Ferreira de Castro, que os anos apertaram e iluminaram, me ficou essa lição de serenidade genuína (que não era frieza, sublinhe-se bem), despoluída de tudo o que se assemelhasse a agravo. Ferreira de Castro, que conhecia os homens, que vivera a vida na sua acre mas desmistificadora verdade, que chegara à literatura pela mão da experiência e dela nunca se arredou, compreendia as várias motivações humanas que amiúde estão por detrás do aplauso ou da reserva, e se algumas vezes lhe apercebi desencanto ou mágoa, a mágoa de uma personalidade emotiva, com tudo vibrando e a tudo se dando, logo tal reacção se apagava no seu modo de ser generoso, que não admitia ressacas e muito menos vindictas. Creio que na obra de Ferreira de Castro se encontra, com particular nitidez, a continuidade de um discurso literário; ainda mais nítida, porém, é a continuidade na ideia que ele fazia dos homens, pela qual desenhamos o nosso próprio perfil. Numa e noutra dessas continuidades salienta-se-nos o agir no sentido de tornar o mundo mais habitável, o ressurgir da esperança de cada vez que a crucificam, mas também um gosto contemplativo, a amorosa fruição dos seres e das coisas. Quando ele, sobretudo no crepúsculo da sua vida, nos dizia que não desperdiçava o convívio com a Natureza, as errâncias por entre as frondes verdes, em favor de uma página escrita, quando dava livre curso às suas emoções, mesmo as que poderiam julgar-se fragilizadas, era profundamente sincero. Não pretendia retocar-nos ou empolar-nos uma imagem; pelo contrário: desafiava-a. Avança-se para o silêncio de vários modos. Um deles é esse deixar que na tela pintada se desbotem as exuberâncias, para que reste o fundamental.

Em Ferreira de Castro a serenidade referida deve ser ainda de acentuar se nos reportarmos aos ventos instáveis da literatura. Nas épocas dramáticas a arte toma um tom mais grave, dirige-se-nos com uma voz mais empenhada, misto de amargura, rebeldia, paixão, e simultaneamente preferindo uma linguagem comunicativa, visto as mensagens só existirem na medida em que forem captadas e o seu significado ressoe e se recrie de cada vez que um leitor com ela estabeleça uma permuta de sensibilidades. Não se trata, porém, de uma "facilitação" da arte literária, de prestar um serviço, de fazer prova de solidariedade. Trata-se de um acto assumido com a totalidade do ser, após convergências e recusas quantas vezes tempestuosas, com todas as cargas afectivas que o processo suscitou.

Ferreira de Castro viveu uma existência dramática, num tempo dramático e num contexto em que a condição humana se viu particularmente humilhada. Ora, em face de tal drama e de tal contexto, ele foi um dos que primeiro e mais afoitamente reconheceram (ou mais agudamente sentiram - pois nele obra e vida não se estremam) que a literatura ou nos fala do homem e da maneira como este se encontra no mundo, assumindo o real e sobre ele actuando, ou outros discursos (dizem alguns) a substituirão com vantagem. Se percorrermos a obra de Ferreira de Castro de uma ponta à outra, veremos que nela sobressai, hoje como ontem, esse propósito de testemunhar agindo, denunciando, exortando, mas sem que por um momento se ponha em causa a fraternidade. Se houve escritor que exemplificou quanto a literatura é comunhão entre os homens, desígnio transformador, apelo à justiça e nunca à intolerância, apelo ao convívio confiante e nunca ao sectarismo que escorre sangue, se houve escritor que mostrou quanto a libertação intelectual é indissolúvel da libertação social e por esta se bate, se houve, em suma, escritor "humanista", esse foi Ferreira de Castro.

Mas referi-me às virações do mundo das letras. A literatura que se soltou das grades esotéricas e, reencontrando a gente verdadeira, os pesares comuns à maioria dos homens, a si própria se reencontrou, a literatura que, com Ferreira de Castro como pioneiro, foi específica de um tempo português e no mesmo passo, e por isso mesmo, se fez universal - nem sempre, durante estas ásperas décadas, esteve na crista da onda. Pelo contrário. Em especial nos últimos anos, quando o formalismo gratuito se agudizou, querendo isolar as obras das estruturas mais vastas que as englobam (histórica, política, social) e, isolando-as, apoucou as que se negavam a essa gratuitidade, nos últimos anos, quando os volúveis, que adulam as maçonarias episodicamente triunfantes e por elas são adulados, correram a desembaraçar-se de laços comprometedores, como agora estão de novo de faro no vento - Ferreira de Castro deu mais um sinal daquela serenidade a que me referi. Nem um gesto de perplexidade. Nem uma ruga de ressentimento. Aceitou e deu alento aos autênticos renovadores, sabedor que as águas da literatura, opostas ao conservantismo, não correm duas vezes pelo mesmo leito, mas permaneceu ele próprio - fiel às suas opções, às suas directrizes, ao seu molde, como fiel sempre foi às suas amizades. Serenamente coerente. Como na vida.

Morre Ferreira de Castro no momento histórico em que a sua arte libertadora se mantém viva numa terra que ele tanto incitou a que recuperasse a sua identidade. Morre com um povo inteiro a chorá-lo, a respeitá-lo, a honrá-lo. Um povo que, agora, pode fazer soar bem alto a sua dor de perdê-lo e a sua vontade de o honrar. Do homem anónimo ao presidente da República todos fizeram desta última homenagem um acto nacional. E isto acontece pela primeira vez no nosso país após 48 anos de ofensa à cultura. Um escritor restituído à sua fusão na comunidade. Um país restituído ao seu querer e à sua estima pelos que, em páginas imperecíveis, lhe gravaram a odisseia.

Morre Ferreira de Castro - mas eis que, tomando em conta estas circunstâncias, a sua morte se tornou um símbolo de tudo quanto foi luta e de quanto é vitória.

 

           CARTA ABERTA A ALVES REDOL

Meu caro António:

Lembras-te, decerto, da última viagem que fizemos juntos, para nos reunirmos a amigos, entre os verdes pinos de D. Dinis, numa casa onde mora ainda a presença vivíssima dos pioneiros da Seara Nova. Foram horas de saúde e riso (porque nós sabíamos rir), sem que as coisas sérias ficassem arredadas desse ar puro da alegria partilhada, depois a descoberta das praias e lagoas próximas que não vêm no mapa, o entardecer nos juncos, que pareciam fascinados da sua sombra espectral no rubor da água, e finalmente o retorno à cidade que se sobressalta com as pessoas que, neste quotidiano precavido, não perderam o jeito de se abrir às emoções.

Sem o suspeitarmos, já então a doença estava dentro de ti. A tua face ossuda, umas vezes amarelenta, outras terrosa, e a mirada erradia não serviam de alerta. Sempre as víramos assim. E nem podia supor-se perto da morte quem tão confiadamente amava a vida, quem, ponderando os dias de ontem e os dias que estávamos a viver, deles partia para um olhar sobre o futuro. Um olhar de um ardor sazonado, que nunca, todavia, dispensa a audácia, o risco, a inquietude insaciada. Com a paixão que em ti sempre se furtou ao solene, ao impudor, ao drama espectacularizado. Com a frescura e a insubmissão que te conhecíamos, mesmo se às vezes estremecidas por um não sei quê de maliciosa melancolia, que é o travo dos anos, quando já se experimentaram os seus vários sabores. Porque (tu bem o sabias, Redol) ser jovem quando a idade a isso nos obriga pouco significa perante aquela juventude que continua a sê-lo mesmo na fase fatigada em que as chamas do inconformismo começam a esmorecer.

Regressávamos, pois, à cidade. Tínhamos uns cem quilómetros à frente, havia tempo para conversa mais folgada. Creio que a ambos seduzira a ideia de arrumar provisoriamente, em voz alta, e talvez sob o lamiré do que ouvíramos horas antes a Alberto Ferreira, tantas inquirições, feitas com orgulhosa humildade (saberão muitos o que isso é?), tantas dúvidas (porque só os tolos as não têm), que eram as de todos os que haviam chegado, uma vez mais, à hora de reacerto com o mundo em arrebatada e arrebatadora viragem. Não éramos da raça de aceitar que a esclerose nos endurecesse as veias, mas também não éramos da raça volúvel, da que corre atrás de todas as berrantes e fáceis verdades e não possui nenhuma, da que, enfim, aspira no vento o que no vento é episodicamente intenso e, tremendo com a ameaça de descer ao purgatório dos esquecidos ou dos postos em questão com virulência, estende os dedos à última palavra, a que parece triunfante, sem cuidar de apurar se ela, vinda donde veio e exprimindo o que exprime, lhe está adequada. Escrevemos como o tempo manda, mas se em nós há um apelo veraz, a que damos a resposta requerida, escrevemos sem trair a fidelidade a nós próprios. Aquela fidelidade que em ti, Redol, foi também constância numa opção, embora nem por tal a tivesses fechado em fórmulas sectárias, reconhecendo, como Aragon, que não há certeza que não nos chegue pelo caminho da dúvida, de uma espécie de sofrimento desconhecido daqueles para quem tudo é confortavelmente definitivo.

Além do mais, tínhamos no sangue o tempero dos anos árduos, de uma experiência que tudo exigiu para não nos deixar a sós com a intolerância, com o azedume dos malogros (que nunca deixámos que degenerassem em frustrações), com a fragilidade das vitórias que se julgam ultimadas, e tínhamos este aprendizado do coração e da inteligência abertos para um incessante progredir, alargar, desbravar, para um encontro com o novo sempre referenciado pelo homem e que, na sua novidade genuína, fecunda e rejuvenesce. Disponíveis para o que vem com a pura seiva da mudança, lucidamente receptivos a um evoluir no modo de interrogar e estar no mundo, não esquecendo, contudo, que nenhuma voz, por muito que na aparência se mostre a mais adiantada, anula a validade das que a precederam ou lhe são diferentes. Tal como uma personagem de Montherlant, não fazíamos nem fazemos grande caso da cultura dos que não respeitam a cultura dos outros. Disponíveis, em suma, como tu o foste: sem tingir a cor dos olhos com que apreciavas os homens e o que aos homens serve e desserve. Poucas gerações, como a nossa, se defenderam tão voluntariosamente do torpor de uma imagem convencionada e, no mesmo passo, tanto respeitaram a que lhe deu uma identidade. Identidade essa, aliás, que talvez explique uma ainda tímida mas gradual sedução (matizada de nostalgia) que se vem observando, da parte dos mais jovens, pela atmosfera desse período em que as vozes da luta tiveram uma exaltante nitidez.

Assim, nessa tarde domingueira, atravessando vilas em que o domingo já não era o mesmo dantes, fomos revendo o tempo, o que o povoara tendo-nos como personagens activos, as solicitações de ontem e as solicitações de hoje, a maneira por que nesse ontem havíamos agido e a maneira por que neste hoje deveríamos agir, concertados como estávamos em ir sempre mais além, agora fortalecidos por uma vivência clarificadora.

Mais além. Mas bem dentro do mundo coração vivo, sem esquecer que o artista só é leal perante esse desiderato quando é leal para consigo, isto é, quando se comporta como artista, porfiando na pesquisa, na insatisfação, na qualidade, sem esquecer, ainda, que o belo pertence ao mundo histórico, às coisas objectivas, reais, e não apenas à subjectividade, e que esse mesmo belo, como fora apontado por Victor Hugo e corroborado por Paul Eluard, não se degrada por servir o homem e os seus resgates. Um mundo de que fazem parte o sonho e o maravilhoso - a tua obra, aliás, está colorida desse prodigioso halo da imaginação, tão indestrinçável do homem e tão indestrinçável da arte.

Nesse ir em diante, e após quantas agras provas, sentíamo-nos imunes ao vestuário formalista arrogado em meio e fim, com que tantas vezes se embuçam o abandono ou a impotência, incitando-nos ao movimento, ao incessante refazer de perspectivas, ao gosto da rebeldia, que sempre foi nossa, despojando-a, porém, dos fogaréus de uma hora, de que as mais das vezes nem cinza resta, conscientes, em suma, do que em nós houve de escasso, de fruste ou de excessivo, e do seu porquê, embora também conscientes do que perdurou. Atentos àquilo em que nos empenháramos: o encontro com os problemas de muitos sem ignorar os problemas de alguns e a sua mútua incidência, reabilitando o que a literatura esquecera ou desdenhara durante um dos seus cíclicos aristocratismos - encontro íntimo, empolgante, com o dar e o receber de sangues que se misturam num só, e sob a tónica de uma época de abalos decisivos, na qual ao horror se opunha a generosidade, ambos sem limites e ambos à escala colectiva. Incorporar a grandeza que cada um tem dentro de si na grandeza do mundo envolvente, recolocando assim os termos do confronto eu-mundo numa inter-relação desoprimida da hipertrofia do homem solitário que se compraz com a sua solidão e a fecha na morbidez obcecada. Uma experiência que, pelos seus fundamentos e características, se negava a receituários, portanto dinâmica, tal como os anos provaram, e que, numa panorâmica histórica, trouxe às letras portuguesas o que nelas apenas acontecera de fugida: o enfrentar sistemático da nossa realidade social despida de véus e em todos os seus estratos, a análise do homem português na sua totalidade subjectiva e objectiva, situando-o, porém, em parâmetros universais, o destemor perante formas literárias que tinham inibido gerações sucessivas (donde nasceu a seara grada do nosso romance actual, que já não vive de um caso, quando muito de alguns, mas de múltiplos e multiplicados casos?), e ainda o afinco no labor, erguido à condição, mesmo se precária, de ofício, no que a palavra sugere de constância, pertinácia, não improvisação, de aposta no devir. Uma experiência, por último, em sempre vigilante recomeço: receptiva ao que o tempo lhe corrige, instila e propõe. (Não estará a rigidez esterilizante naqueles que gritam contra a rigidez que não houve)

É a tua obra exemplar de tudo isso. Um cerrar dentes. Uma saga de fraternidade - porque não revalorizar esta palavra? Um amplo testemunho do que foi o homem português, citadino ou rural, nestes trinta anos de lento, dramático despertar para a consciência das suas agruras e do seu exílio do mundo em marcha, para a qual os teus livros contribuíram de um modo que pode medir-se pela hostilidade que provocaram. Uma li= ção de obra "colectiva", no sentido, ultimamente reavivado, de obra que, embora de nítido cerne pessoal, na qual o mundo de cada vez se recria (porque uma coisa é a vida e outra a sua expressão em arte), se penetra de um estro solidário, de coincidências no querer, no sentir e no manifestar. Um documento de como se pode ser fiel a uma visão do mundo sem recusar as permutas com o que vai desaguando nos rios da literatura para os fertilizar ou encapelando-os para os rejuvenescer, antes compelindo-se à insatisfação, que é a matéria-prima da desejada mobilidade para que todos concorremos. Tinhas a idade da tua perseverança e da tua fé. A idade do teu irrequietismo. Só aos que se deitam sobre o comprazimento pessoal as urtigas lhes crescem na alma dessorada. Assim, dos Gaibéus ao Muro Branco, passando pelo Cavalo Espantado e pelas esquecidas Histórias Afluentes, que remoçar de voz e que jornada de tenacidade num destino de escritor que se fundiu ao do homem! Quantos conseguiram ou conseguirão repeti-la? Uma obra muito mais dominada, e com mão exigente, do que os observadores superficiais julgam ver, pois a maioria deles põem-se comodamente a generalizar o que foi incipiência de uma fase de urgências, afinal a mesma que ainda hoje leva alguns, como Peter Watkins, a proclamar sem complexos que a sua geração não tem tempo de burilar o que precisa de dizer, pois o que importa é colocar as pessoas perante "evidências", enquanto não for "demasiado tarde". Um domínio paciente, que em cada página se desafiava e superava, visto que, tendo tu ousado um novo olhar sobre as coisas, havia que descobrir as palavras ajustadas, seleccioná-las, domar-lhes a impetuosidade, encontrar-lhes o peso e o valor, tanto como havia que atender a que o amadurecimento tem de ultrapassar a consciência intuitiva dos primeiros passos, seja na vida, seja na arte - até ao dia em que tudo já parecesse menos penoso, tanto para ti como, sobretudo, para os que viessem depois. Tarefa de duro artesão (quanta hora sofrida te custou?), que mal transparece neste teu dir-se-ia fácil coloquiar com o leitor, num jeito desenfastiado e directo, neste teu hábil assimilar do vocabulário das pessoas reais, cujas faculdades criadoras, de herança em herança, confluem no artista, mas sem que, na sobriedade perseguida, desfaleça a ardência que põe o coração no que se narra, sem que empobreça o lirismo que deu às tuas obras uma ressonância épica e o nível estético que nenhuma obra dispensa se pretende comunicar com os homens de hoje e com os de amanhã.

Foste o escritor que quiseste ser, e ainda um dos tais que nunca perdem a lucidez e a serenidade quando discutidos, já que durar trinta anos na cena literária, num tempo que se tornou de presenças efémeras, teria forçosamente de descontentar: é da sabedoria dos povos que os auditórios gostam de suprimir o objecto da sua admiração logo que se saturaram da admirá-lo, saturação que hoje vem depressa e em termos impacientes. Por analogia, evoque-se, a propósito, o depoimento do ideólogo chileno Volodia Teitelboim, também ele romancista: "Cumpre-se com os protagonistas da história o facto de, após desempenhado o seu papel, serem um pouco como aquele que fecunda a rainha das abelhas: matam-no imediatamente."

Os sociólogos da literatura explicam os movimentos literários pela sequência rítmica das gerações, cada uma com a sua tónica, e dizem que a paisagem das letras tem de mudar radicalmente de setenta em setenta anos

E parcialmente de trinta e cinco em trinta e cinco - periodicidade esta que a aceleração das coisas decerto desactualizou. Teremos, pois, como lei biológica o eclipse de nomes, géneros, figurinos que dominaram uma época, até o jogo das ressacas lhes restituir o prestígio e frequentemente o poder atractivo, uma vez que, mesmo não se repetindo a linguagem de uma certa quadra, pois todas têm a que lhe é específica, tal como não se repete o seu contexto (que ela própria, sobre ele actuando, quer modificar), podem, no entanto, reproduzir-se circunstâncias de vária ordem que reanimem modos de observar que pareciam extintos ou, pelo menos, a sua reabilitação numa perspectiva valorativa.

É sempre apaixonante e apaixonado o entrechoque de gerações: os que chegam, numa salubre intransigência, recusam o parentesco com os que vieram encontrar, mas não tarda que se reavaliem os filões desprezados, no sentido de se apurar, na hora da testa fria que nunca deixa de vir, o que se recebeu e o que, na ruptura, houve de fertilização de uma experiência herdada, um vazar de "vinhos novos" em "velhos odres", para recorrer uma vez mais a Teitelboim, entrevistado numa hora crucial por José Fernandes Fafe. Todas as literaturas apresentam a sua árvore genealógica, uma continuidade feita de viragens, dissonâncias, colisões revivificadoras, e o exame global da sua biografia assinala-nos quanto foram vãs as tentativas de lhe abrir brechas ou incompatibilidades pelas quais se apagasse a pista da sua linhagem. As fases sem uma raiz identificadora demarcam justamente os períodos de crise, de que, a distância, só fica a lembrança de uma erosão. Embora o favor actual vá para a negação primária (que é uma espécie de desespero e, como observou Pierre Juquin, um niilismo fomentado pela grande burguesia, que com ele se recreia e com ele impede propostas para o futuro), a verdade é que rejeitar em bloco a cultura que nos precede seria comprometer as possibilidades de uma cultura nova, visto que cada literatura, como cada povo, tem de remodelar a sua imagem a partir da sua experiência, do seu modo de ser, do seu estilo, e não através de rasgos incoerentes.

As obras de cunho realista, muito naturalmente, não poderiam escapar a este sobressalto cíclico na ritmia literária, que tem sempre as suas personagens criadoras ao lado dos pregoeiros de autos-de-fé. Mais ainda as obras que, como a tua, haviam preferido os heróis simples. Os humilhados e ofendidos. A voga era outra. Esses heróis faziam enjoar o novo-riquismo intelectual, petulante e académico, em que o escritor foi sendo conivente sem lhe averiguar a aridez. O que valeu estas palavras a um Oscar Lewis: "Hoje em dia, até a maior parte dos novelistas se preocupam tanto com provar a existência da alma da classe média que perderam o contacto com os problemas da pobreza e as realidades de um mundo em transformação." Do mundo em transformação, sublinho eu, que terá inevitavelmente de deixar para trás tudo aquilo que o ignora, como é o caso desse aristocracismo segregador.

O ataque às obras apostadas no real foi acerbo, logo seguido do pressuroso sacudir de parentesco daqueles que sempre manobram no sentido de vestir a camisola do clube na berra, mesmo que o seu jogo não mude ou não possa mudar de estilo - mas suponho que o efeito mais saliente dessa onda de denegrimento foi o de acelerar um processo renovador havia muito em marcha, já que a geração de 40 sempre evidenciou um bem pouco comum reajuste com o tempo, seu empenho desde a primeira hora, a procura de novas aquisições para novas sínteses, justamente o oposto aos esquemas atrofiadores de que era acusada. A animosidade, por vezes obsessiva, contra a visão realista, traduzida sobretudo em slogans, em alergias pessoais e raramente em debate de ideias (à boa maneira portuguesa...), encrespou-se talvez por isso mesmo. A vitalidade (nos outros) acaba por ser irritante, até quando posta em causas a que intimamente aderimos. Mas a contradita teria sido a mesma se tais obras apresentassem uma matriz diferente, embora o que nelas há de atenção ao processo de vida social (sem, todavia, de modo algum obstar a transposição do "real" histórico para o "real" literário) embraveça os que agora apenas admitem uma arte absorvida pela aventura formalista, pelo atrito da palavra, pelo que, como tão lucidamente adverte Urbano Tavares Rodrigues, pode vir a ser um "barroquismo insignificativo", que outras épocas já conheceram sob rótulos e álibis de vária ordem. Trata-se de uma intolerância inerente ao próprio fluir das gerações, tanto mais sectária quanto menos convicta ou quanto mais vigorosas as resistências que pretendem quebrar.

Sobre tudo isso, meu caro Redol, conversámos no regresso a Lisboa. Sobre o homem-escritor e o homem-cidadão, que em ti são uma e a mesma coisa. Está ainda quente na minha memória a tua frase de que a nossa geração, pela qual tanta experiência passou, foi das raras que pôde proceder a uma "síntese" entre o que começou por ser e aquilo que lhe foi oposto, reconhecendo, sem qualquer constrangimento, que toda a herança cultural nem é produto exclusivo de uma classe nem de um só modo de exprimir o génio e o saber, sendo antes uma cadeia ininterrupta de sonhos, lutas, inquietações divergentes, e, do mesmo modo, que não pode haver soluções estáticas porque a cultura não é um reflexo passivo da sociedade que documenta e sobre que actua, mas, como esta própria, implica movimento, pesquisa, testemunho crítico do que está e apetência ao que vem. Daí, que a nossa geração mostre ultrapassar o tal cabo dos condicionalismos históricos, por via de uma alertada inconformidade, que a levou longe do ponto de partida sem, porém, o renegar - como muitos exemplos o vão mostrando, em particular entre os que, mais sensíveis à marcha do mundo e às suas vozes demudadas, deram, por isso mesmo, repetidos pretextos aos caçadores de bruxas, afinal os que, em horas de dúvida, se foram para outras tendas mais favorecidas. Aos que a supõem ou dizem instalada, no que o vocábulo sugere de confortável fruição do esforço investido, parecem ignorar (será que ignoram, Redol?) o fervor posto num combate que nunca se deu por findo e as circunstâncias acentuadamente adversas em que ele se travou. E a coragem de nos mantermos bem dentro de um viver militante, onde se situam os palcos e os lances, em vez de nos colocarmos à sua margem, ainda que sob o risco de nos vermos mais perto de contradições e mais expostos a anestesias, que é uma espécie de concludente jogo da verdade; e também o nosso modo de ser incómodos, a começar por nós próprios, pela dispensa do fazer-vista e da gratuitidade, assim nos defendendo de um tipo de irreverência que mal se resguarda das ciladas do conservantismo, cujo enleio tem mil caras e frequentemente usa as do disfarce.

Estarei a falar de literatura, daquilo que à literatura pertence? - perguntarão alguns que nos ouvem. Sim, estou a falar de literatura, que tudo isso espelha, mesmo quando nada pretende espelhar e se ufana de parecer luxo, requinte, diversão; que, seja qual for o seu atavio, as suas ambições ou desambições, terá de ser sempre o reflexo de uma sociedade. Estou a falar, sobretudo, da tua literatura, meu caro Redol. Da que tendo-se comprometido nesse homem dignificado pela consciência do que é e do que o rodeia, nunca aceitou o apodo de arte utilitária, antes correspondeu a uma veracíssima necessidade de participação no mundo dos homens, que a atmosfera da época mais apelava, a uma "fundamental espontaneidade", a uma certa carga de sentimentos e de ideias, com a sua óptica adequada, que conferia às coisas o seu significado, pois, tal como os Gregos viram a arte, o valor estético resulta do modo específico de iluminação e de apropriação do real. Da tua literatura, repito, que, contestando e contestando-se, se abriu sem cálculo às novas solicitações e à nova maneira de lhes responder, esquivando-se à fibrosante submissão a uma "escola", sem, todavia, se deixar enredar pelo que vem esvaziando a arte, debilitando-a com a recidiva de uma deliciada incomunicabilidade.

Pensarão os demais que, dizendo isto e outras coisas (leiam o que foste escrevendo, com despretensiosa sabedoria, nos prefácios às tuas reedições), os de 40 julgam possuir a fórmula mágica ou o elixir da longa vida? Mas é contra a petulância dos receituários que nos insurgimos. Contra as certezas dogmáticas, incluindo as daqueles que alardeiam a guerra aos dogmatismos. Contra os que pretendem ter descoberto a "verdade" e não a "sua verdade" e, varrendo o terreiro com jactância, crêem poder prescrever-lhe uma única norma de repovoamento, que, aliás, talvez seja de todas a mais precária e é sem dúvida a mais estéril.

Nunca tivemos, Redol, essas certezas, nunca as quisemos ter, ainda que a tentação haja ameaçado alguns daqueles que, em todas as épocas, escolheram a suficiência como estandarte. Tem havido alegria e tormento na nossa tarefa e, dia a dia, nela mais ressalta uma característica da literatura portuguesa que não tem sido muito assinalada: a paixão no modo de a viver, que representa uma entrega do escritor ao que vai criando, com a dúvida estimulante e o sofrimento e a tal orgulhosa humildade que lhe são simultâneos. Em frequentes desabafos que tivemos um com o outro nestes últimos anos, nas tuas flutuações de ânimo, na alternância de horas arredias e de horas conviventes, pude observar em ti esse pendor para ir ao fundo do devotamento dramático que é testemunharmo-nos e aos outros homens através da arte. Uma dádiva incompatível com a superficialidade narcisista, com um certo diletantismo literário que, nada tendo que ver com o renovo salutar mas com ele pretendendo confundir-se, é sinal dos períodos em que o homem procura o que lhe compense os malogros e lhe apague as demissões. Tu mo dizias: uma coisa será o homem interveniente e outra o criador, mas com dificuldade se pode entender que este último consiga murar-se do primeiro; se tal acontece, um deles ilude-se, pois é o ser social, no homem e no criador, que determina a consciência.

Discutimos, pois, o que fizemos e vivemos – uma crónica a que nem faltam episódios fratricidas. Pelo menos, nela actuou a leal severidade para com os companheiros, que reflecte uma não menos severa autocrítica (embora com as simultâneas e inevitáveis inquinações do compadrio), pela qual nos fomos retemperando para estar presentes na elaboração de um futuro tão novo que fez ruir quase todas as estruturas mentais dos dias de ontem. Por isso, não hesitámos em participar deste sismo de mudança, por nós anunciado antes que tivéssemos sentido o chão a fender-se, este grito visceral que diz bem alto o que não quer, que é também o que sempre não quisemos (a desumanização, as tiranias, as escravidões, o uso alienador do que o homem vai conquistando, o medo, a hipocrisia, um viver sem chama), e em colaborar no que terá de ser proposto em troca do que é recusado, ao mesmo tempo que não ocultámos o nosso alarme perante o indiferentismo que se mascara de intervencionismo snobe, perante a moeda falsa dos falsos convertidos, o arruído leviano que, num dia, enxovalha o que um ano ou dias depois se reconduz à peanha das sacralizações, os inquisidores profissionais cuja notoriedade apenas subsiste com as fogueiras da inquisição. O tal cepticismo que é alegria ao revérbero das manipulações, interferência assumida com a sinceridade que a tudo se expõe e, por isso mesmo, se preserva da mistificação, que é vida-mistura-com a vida a que muitos depressa se negam, que é, enfim, aquela constância reanimada que, quando a maioria já parou de fadiga ou desalento, te levou a escrever essa obra ímpar da nossa literatura, O Barranco de Cegos, obra sem prémios, sem o passaporte para o futuro assegurado pela crítica orquestrada, obra que não admite aquelas chancelas restritivas tão do gosto do nosso meio.

Repara, aliás, meu caro António, que nem uma única vez falei do tal "neo-realismo" que a tantos provoca as raivas de uma primeira dentição. A crisma, restringidora como todas as crismas, nunca me agradou. E se às vezes contrariamente a utilizei, foi pela pressão do hábito das codificações. Prefiro falar de geração, no que a podemos definir por "grupo de escritores de todas as idades (embora, naturalmente, haja uma idade predominante) que, por ocasião de certos acontecimentos, toma a palavra" e lhe dá um certo timbre. A definição nem é minha, mas esta ou outra teria sempre de exprimir um mecanismo complexo, avesso a esquematismos. Por isso, Redol, estou em crer que a personalidade da nossa geração esteve aí, para além do "timbre" próprio: no quanto se soube diferenciar e, simultaneamente, multiplicar em vozes singularizadas a partir do momento em que tomou a palavra. Uma árvore não se ramifica toda para o mesmo lado, salvo se teme a fúria dos ventos e nesse temor se dobra para, evitando ser fustigada, se resignar ao definhamento. Investigar o homem e o seu tempo através desta ou daquela via, sob esta ou aquela tonalidade, não invalida, antes robustece, a tal tónica que demarca um período literário, evoluindo, como tudo o mais, segundo leis sócio-históricas. Cada geração, no sentido que lhe estamos a dar, é uma realidade cronológica, simultaneamente prolongamento de um património assimilado ou reactivado criticamente e qualquer coisa de novo. O que aconteceu de peculiar na nossa literatura a partir dos anos 40 foi essa "novidade", bem caracterizada, se exprimir através de uma estimuladora diversificação: com efeito, o que nela há de identificador está em ti, testemunhador de epopeias, como nos companheiros que de ti se distinguiram na "maneira" e na temática, e ainda nos que se foram seguindo, com as suas novas terras a descobrir mas cada vez mais afoitos pelo exemplo recebido. Várias, em suma, as focagens, várias as rotas, e um propósito idêntico: o levantamento social e existencial do homem português referenciado por uma época, por um contexto específico, onde, no entanto, dia a dia mais repercutem os outros contextos, já que o mundo deixou de compartimentar-se em eventos ou aspirações isolados. Nessa identificação, porém, sem dúvida sobressai a tua obra, pelo que foi, pelo que é, por tudo o que assim a modelou, mesmo no que poderá julgar-se marginal à literatura e, contudo, bastas vezes é o seu decisivo motor: a vontade em ir até ao fim, a força interior de quem tem uma missão a cumprir.

Entendamo-nos, porém, meu caro Redol: que não pareça que ponho na tua boca aquilo que já não podes confirmar ou desmentir. Tudo o que aí digo é, evidentemente, da minha única responsabilidade, e dito com a ênfase que me permite o saber-me, desde sempre, um dos menos acomodados a uma "norma" literária, fosse ela qual fosse, a uma arregimentação, e o sentir-me cada vez mais longe do que em literatura pretende sublinhar-se como edificante. Do mesmo modo, ao falar de ti (também sob um prisma pessoal), nesta hora que pede aclaração como pede que o querer não esfrie, é de nós ou de mim que falo, pois olhar os outros representa sobretudo olharmo-nos num espelho onde procuramos, amiúde com desespero, a nossa verdadeira imagem por entre o embaciado que lá deixaram as respirações alheias.

A pesquisa incessante que nos move e empolga e tortura, neste labirinto que só a morte decifra (e nem sempre), não tem, afinal, outro objectivo: saber quem somos através do que julgamos saber dos outros e através do que os outros julgam saber de nós. Porque, meu caro António (António Alves Redol, filho legítimo de um Ribatejo de larguezas, desafios e também lirismos), um homem, por mais esforços depuradores, é feito daquilo que é e daquilo que nunca foi, daquilo que de si próprio supõe e daquilo, justo ou injusto, que os demais lhe acrescentam. Assim, gradualmente, se talha uma personalidade só por acaso fiel ao retrato autêntico, mas que neste vai incorporando a inverdade abusiva que lhe é enxertada. Mesmo se calha o abuso denunciar-se, perdura o halo da enxertia, ou dela persiste uma ferida mal sarada, visto que nos custa rectificar um gesto, um palpite, um facto tal como inicialmente nos foram propostos e por nós admitidos, em especial se a proposta desfavorecia a pessoa em causa. Estamos quase sempre mais interessados na face escura que ensombra os outros, e por isso lhe damos crédito, do que na face limpa que os ilumina. De humano barro somos feitos, como relembram todas as escrituras.

Aos cinquenta anos, António (António Alves Redol, homem de têmpera curtida, com as lavas e as maresias do seu varonil Ribatejo), já não temos ilusões a esse respeito: acaba por se impor uma imagem de nós que é um misto do que somos e, mais ainda, do que não somos, e chega-se a perguntar que maquinadora ambiguidade haverá neste enigma de duas pessoas que se apresentam como uma só e às vezes pouco têm de comum, já não digo quanto ao que de si próprias pensam mas quanto aos acontecimentos em que uma e outra figuram como protagonistas: a pessoa-real e a pessoa-ficção elaborada pela simpatia ou pela malquerença e naquela integrada. E nem quando nos despedimos dos mortos deixamos de lado as nossas paixões: das exéquias nos servimos para retocar ou vincar um retrato que acerte com as nossas tendências e também para dizer mais afoitamente, por detrás de um escudo protector, o que hesitamos em proclamar a peito descoberto.

Terias sido verdadeiramente o Redol (o Redol homem-escritor) cujo perfil vem de há muito a ser desenhado? Talvez, embora não esqueça o aviso de Marguerite Yourcenar de que "é pela idealização ou pela crítica mordaz a todo o custo, pelo pormenor pesadamente exagerado ou prudentemente omitido que se desqualificam quase todos os biógrafos: o homem construído substitui o homem compreendido". Creio até que, abstraindo um excessivo linearismo de traço, esse perfil está quase certo e corresponde ao que poderíamos chamar a verosimilhança de toda a legenda, mesmo quando esta emaranha ou simplifica o modelo donde partiu. Prefiro, no entanto, juntar-lhe uma densidade de temperamento que te amacia a rijura, por vezes esculpida com mão tosca, uma veia contemplativa que dá cambiantes mais subtis ao teu pudor e à tua sóbria obstinação, que te faz mais frágil e, por isso mesmo, valoriza o que em ti é forte, que te desvela a sensibilidade numa aparência áspera.

Todavia, tens passado por figura particularmente representativa do que deu um rosto à nossa geração, essa que viveu um tempo de odisseia sem recuar perante o preço e da odisseia guardou o respeito pela coerência, em certos lances coloridos de uma tinta romântica, e não sei a que ponto os rigorismos do juízo a favor ou contra terão esquematizado a tua personalidade, desse modo limitando-a, como, pelo mesmo esquematismo, nem sempre puderam abranger a amplitude da geração de que foste um dos grandes impulsionadores. Insinuei-o a propósito da tua obra - que é bem a tua imagem -, mais esquiva a uma pauta do que se tem pretendido, já que o preconceito dissolve as complexidades na mancha grossa da catalogação. Escritor do povo - oh, os temíveis slogans -, sim, estará certo dizer isso de ti, nem enjeitarias o qualificativo, visto que, com a tua obra, o povo liberta-se do naturalismo folclórico, entrando em corpo inteiro no palco dos heróis romanescos, onde a carne e o sangue se fazem arte a partir de uma bem entendida reciprocidade, mas posto na nossa boca letrada sinto-lhe um ressoar equívoco que não é o mesmo que lhe darias, como não lho dariam todos os que conhecem realmente o povo e a sua riquíssima diferenciação, o seu não elementarismo, que é só elementarismo para quem dele fala de ouvido. Como não lho daria o próprio povo (no sentido rasgado que a palavra tem, recusada a restritiva "rudimentarização" que tendenciosamente lhe insinuam) que te leu e na tua obra encontrou virtuosidade, desdém pelo intelectualismo afectado de brasão no anel, o calor das identidades que fazem a verdadeira estatura de um escritor.

Essa estatura que, assim reconhecida ou suspeitada, nunca chegará a ser medida. Não o foi também num Eça, num Júlio Dinis, num Camilo, em todos os que, mais cedo ou mais tarde, romperam as fronteiras do clã selectivo e experimentaram o ambicionado convívio com os leitores mais dissemelhantes e mais livres para amar ou detestar. Nesses escritores de eco amplo, de que és um deles, se encontrará (será isso, Redol?) o que Soljenitsyne, em contraste com a arte-moda que alimenta os dogmatismos literários e as simplificações, ou arte obediente a uma pressão transitória, chamou a arte que traduz "as relações entre a sua época e a eternidade", abrangendo, por conseguinte, as tais complexas afinidades que uma minoria só por si não pode reflectir e que, tendo embora a marca de um tempo, se reaviva dialectícamente perante os homens de qualquer tempo.

Com efeito, as mais das vezes se esquece que um escritor pode não ser, ou não é apenas, aquilo que a minoria intelectual nele viu, sobretudo se a esse juízo falta o recuo necessário para o descontaminar do preconceito. Estamos dentro da floresta: as árvores parecem-nos o que nelas incidentalmente sobressai ou se apaga relativamente às nossas prevenções. Não que seja de desvalorizar essa focagem de entendidos, longe disso, todavia a par dela haverá que atender à maneira como reage o mundo de leitores anónimos, mas com a eloquência da sua pluralidade de matizes (o diálogo sem castas a que aludiu Brecht a propósito de A Mãe), e ao que para esses leitores representa a obra com a qual divergiram ou coincidiram. Eles participam do fenómeno literário com um desafogo que permite escolher e sancionar sem coacções partidárias, podendo assim sugerir-nos, com uma adesão despreconcebida, que obra foi mais aberta à diversidade da condição humana.

E aqui, António, cabe, pois, acentuar o teres sido um escritor de maiorias, que não significa forçosamente ser um escritor dispensado pelas minorias, ainda que estas dificilmente perdoem tal largueza de trato. Esses muitos descobriram decerto na tua obra o que nós, os letrados, mal começámos a averiguar. Sabemos já, porém, como o soube logo o leitor, que não poderá prescindi-la todo aquele, hoje ou amanhã, interessado nas incidências desta época no homem português sem que o seu vinco documental lhe haja reduzido a universalidade e a sobrevivência que pertencem às obras verdadeiras: as que recusam ser mero instrumento de uma apologia.

Contudo, esse carácter testemunhador, tão precioso para nós que o vivemos, tem em parte ofuscado outras virtudes não menos frisantes do teu perfil literário: um saber de ofício, que a arquitectura segura mas ousada dos teus romances ostenta, um gosto pelo risco, tanto na amplitude como na composição, uma minúcia escrupulosa no estudo das personagens e dos ambiente (os que acompanharam de perto o teu labor conhecem bastos episódios ilustrativos desta paciente planificação), um tempero picaresco que põe rédea no desmando dramatizante, um arguto aproveitar da seiva da língua sem cair no onanismo da escrita, um fôlego de registar, em tão cansadiça literatura como a nossa, a penetrante subtileza no dar a minúcia por entre a pincelada larga da epopeia, a capacidade de ir dentro do simples e do complexo, a surpresa recheada de pormenores densos, que escapam a uma leitura desatenta porque ignoram o efeito, e esse chamejar de talento que te permite explosivas mudanças de ritmo, de cenário, de intonação, soberbas provas de um escritor que pode aceitar os seus próprios reptos e, mais do que aceitá-los, os instiga com euforizadora irreverência.

Referi-me, Redol, aos teus leitores, nos quais se fecundou a tua mensagem. Eles não foram e não são muitos por acaso, pois há duas espécies de grandeza: a que, mais espectacular, advém do confronto do mundo com o nosso eu, e a que confronta o eu com o mundo em que se funde. Foi esta a tua grandeza. O porquê da tua audiência. O porquê da tua actualidade. Daí, que falar de ti seja, de facto, falar do que caracterizou uma geração: entre outras relevâncias, o haver transformado o monólogo, em que a nossa literatura se confinara, num diálogo amplo, numa arte interpenetrada com a vida, em que o homem surge na dimensão que lhe é própria: a sua realidade subjectiva projectada na sua realidade dialéctica.

Foi num domingo de já não sei quando, Redol, que falámos disto e de tantas mais coisas. Foi ontem, foi talvez hoje, foi sempre. Sentimo-nos bem com os amigos, saboreámos a doçura habitada da tarde, o mar e os pinheiros, as gentes e a franqueza confiante que pusemos num permutar de ideias e emoções. Sentimo-nos bem e, por isso, essa tarde foi sempre, foi amanhã e não apenas ontem. Ouço-te ainda as palavras, embora aqui lhes tenha desfigurado a inspiração, vejo a tua face escavada, os olhos, entre joviais e doridos, postos em diante, a sua meta apetecida, e relembro-te como a um vivo que continua a jornada a nosso lado, uma jornada solidária que a todos pertence, sejam quais forem as janelas que queiram abrir. Uma jornada que tu desejaste que não se deixasse crestar pelo desfalecimento.

 

                                                                                Fernando Namora

 

 

                      

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