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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A NEVE E O SANGUE / Christian de Montella
A NEVE E O SANGUE / Christian de Montella

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

O reino de Logres está na aurora de um longo inverno. Ninguém sabe, ninguém pode afirmar. O amarelo, o ocre e o ver­melho de um belo outono são radiosos; as florestas que cobrem três quartos do país ressoam com a corrida dos cervos, dos javalis, com a fuga dos esquilos, com o batimento das asas das perdizes e dos faisões. Os primeiros vôos dos gansos selvagens, assim como das flechas brancas apontadas para o sul, atravessam o céu.

Ninguém sabe, ninguém pode afirmar, mas a paz que reina há quase dez anos sobre Logres está ameaçada. Enquanto, no cas­telo de Carduel assim como na cidade de Camelot*, o rei Arthur, os cavaleiros da Távola Redonda e toda a Corte levam uma vida de tranqüilidade e prazeres, alguns vassalos*[1] e barões se reúnem em segredo e conspiram. A paz durou tanto tempo que eles pensam que o reino está enfraquecido. Um rei e seus cavaleiros que não combatem mais, que se divertem em festas, festins, caças e tor­neios*, lhes parecem neste momento presas mais fáceis.

Claro, a idéia de se levantar contra Arthur não surgiu do nada. Depois que cai a noite, certos dias, há meses, um homem e sua escolta se apresentam na grande porta dos castelos. É recebido como um hóspede de nível. Não é um homem estimado, mas é temido. Portando armas* e vestido com tecidos cor de ouro, instala-se no lugar de honra das mesas e fala. Seu timbre é grave e sua voz, doce. Jamais eleva o tom. Parece enunciar evidências: "Arthur envelheceu", diz, "Arthur é um rei fraco. Os Guerreiros Ruivos saxões ocuparam a costa ocidental do reino, e o que ele fez para expulsá-los? Nada. Concluiu com eles uma paz de covarde. Ele não merece mais ser rei."

 

 

  

 

Os vassalos e os barões ficam incomodados com esse discurso. Não dizem nada. Repitamos: eles temem esse homem em trajes de ouro, Mordred. E temem mais ainda a mãe dele — Morgana, a necromante —, meia-irmã do rei. Morgana nunca acompanha o filho, mas mesmo assim todos sentem sua presença. Eles não estão errados: se levantassem os olhos, veriam uma ave noturna, uma coruja, empoleirada sobre uma viga da sala* ou na abertura de uma seteira*. O pássaro os escuta. Às vezes, pisca os olhos. É Morgana, velando pelo filho. Mágica, escolheu essa aparência.

E Mordred é muito persuasivo. Ele diz, com sua voz doce e baixa: "Ajudem-me a me tornar rei, a vencer Arthur. E eu lhes prometo mais poder, mais riquezas do que jamais tiveram. As ter­ras, os feudos e os privilégios dos cavaleiros da Távola Redonda serão divididos entre vocês. O que possuem hoje? Migalhas.

As pobres migalhas das fronteiras do reino. Dentro em breve, se vocês me apoiarem, serão seus donos."Eles acreditam nele, esque­cem o temor, e o admiram. Sim, vão se bater ao lado dele. Morte a Arthur e aos cavaleiros da Távola Redonda!

Mordred vai embora. Vai procurar os saxões. Faz a eles o mesmo discurso. Acrescenta: "Aliemo-nos. Minhas forças mais as de vocês são suficientes para esmagar Arthur e seu exército. Vão ficar na costa, prontos para serem jogados no mar? Não. Enfren­taremos Arthur e dividiremos Logres entre nós." Os duques saxões entram em acordo, depois anunciam a Mordred que ele pode contar com eles. Uma coruja, acima de suas cabeças, pia de satisfação.

Há alguns vassalos que recusam a aliança. Fiéis a Arthur, vão vê-lo para relatar a proposta de Mordred. O rei os escuta, triste. Não só por compreender que pode perder seu reino, mas por tantos barões que ele supunha amigos, companheiros, estarem pre­parando sua derrota. Chama Garvain, seu sobrinho*, e Guinevere, sua esposa — seus melhores conselheiros. Precisam tomar decisões.

— A mais simples — diz Garvain — seria enfrentar Mordred em julgamento*. Se ele for morto, seus aliados perderão toda a vontade de entrar em guerra.

— Mas quem, hoje em dia, é melhor do que ele? — responde Arthur.

— Lancelot — diz Guinevere.

Arthur e Garvain baixam a cabeça. Lancelot é provavelmen­te o maior dos cavaleiros, mas ele desapareceu há dez anos. Está morto? Transformou-se em eremita em uma longínqua floresta da Escócia ou da Irlanda?

— Se ele está vivo — prossegue Guinevere —, um único homem no mundo pode encontrá-lo: Merlin.

— Merlin, há trinta anos, é prisioneiro dos encantamentos de Vivian.

— Vou procurar Vivian. Foi ela que educou Lancelot. Ela libertará Merlin por amor a quem foi mais do que um filho para ela.

Arthur e Garvain se entreolham. Pesam os prós e os contras. O rei faz um sinal com a cabeça:

— Muito bem, Senhora. Parta em embaixada ao Lago, à casa de Vivian.

— Quanto a mim — diz Garvain —, vou com alguns cava­leiros tentar encontrar as pegadas de Mordred.

Foi assim que, na manhã seguinte, duas escoltas deixaram Carduel. Uma foi para o norte, através do País de Gales, condu­zida por Garvain. A outra, acompanhando a rainha, empreendeu a longa viagem através do continente, onde se encontra o domínio encantado de Vivian.

Arthur está sozinho. Sozinho no alto do torreão que domina o mar, a oeste, e, a leste, profundas florestas de folhagens vermelhas como sangue. Ele se pergunta por que a paz perpétua é impossí­vel. Por que Mordred o detesta tanto. Mordred é seu único filho. Uma falta, um pecado, um erro cujas conseqüências jamais deixa­rão de persegui-lo. De repente, levanta a cabeça: o V de um vôo de gansos selvagens foge na direção do mar. Sim, ele pensa, o reino de Logres está na aurora de um longo inverno...

 

Naquela manhã, no País de Gales, o jovem partiu assim que a aurora começou a clarear as árvores e a embranquecer o céu. Levou três dardos, como era seu hábito, e montou seu cavalo preferido, um cavalo de caça* ao mesmo tempo forte, alerta e dócil, capaz de manter um bom desempenho quaisquer que fossem as dificuldades e as armadilhas do terreno. Esporeou-o e partiram ani­madamente pelas veredas da Floresta Perdida.

O jovem vestia roupas de pano grosseiro e resistente que sua mãe, a quem chamavam de Viúva da Floresta, cortara e costurara com as próprias mãos. Vestido daque­la maneira e com a cabeleira loura embaraçada, ele tinha o ar de um jovem selvagem, uma espécie de belo animal feroz e indisciplinado. Trotava entre as árvores, com um sorriso nos lábios, narinas frementes, feliz com o belo outono, dono diante de Deus daquela floresta onde cres­cera sozinho junto da mãe. Nada o contentava mais do que aquelas corridas matinais em perseguição à caça, no meio dos odores de húmus e de folhas caídas, e o desper­tar do canto dos passarinhos.

A manhã se desenrolava como as inúmeras outras que ele passara caçando. Ninguém era tão hábil quanto ele no lançamento do dardo. Quando um vôo de perdizes ou de faisões se dispersava de repente diante de seu cava­lo de caça num frenético bater de asas, ele sempre alcan­çava o alvo.

O sol estava apenas a meio caminho do meio-dia, mas ele já enchera sua bolsa de caçador. Descobriu as fuma­ças* de um cabrito montês, seguiu suas pegadas e logo se deparou com ramos quebrados recentemente: sua alegria de estar ali, de ser quem era e de caçar decuplicou. Ia encontrar uma presa à sua altura.

Algum tempo depois soube, pelo frescor das fumaças, que o cabrito não estava mais muito longe. Imobilizou-se e olhou em volta. Depois fechou os olhos, levantou a cabeça, aspirou o ar. Dezoito anos passados naquela flo­resta haviam lhe dado o olfato de um lobo. Por trás do cheiro forte de seu cavalo e das folhas mortas em decom­posição, ele percebeu o cheiro violento e inquieto do cabrito. Reabriu os olhos e se aprontou para tomar a dire­ção do oeste, quando um barulho o surpreendeu.

Era mais do que um barulho. Eram dez, vinte. O som, fácil de ser reconhecido, dos cascos de vários cavalos mar­telando o solo da floresta. Como também o som, numero­so, dos choques do metal sobre o metal ou contra as madeiras dos galhos. E, ao se aproximar do local onde ele estava parado, os barulhos metálicos viraram uma alga­zarra inquietante. Como a de uma tropa atravessando a floresta, vindo ao seu encontro,

O rapaz, inquieto, deu um tapa no pescoço do cavalo e murmurou-lhe:

— Já tinha ouvido uma coisa dessas?

O cavalo, por sua vez, também ficou inquieto.

—Já sei! — diz o rapaz. —Já sei: minha mãe há muito tempo vem me falando dos diabos que às vezes assom­bram a floresta... Eu não acreditava nela, mas parece que ela tem razão...

Acariciou o cavalo entre as orelhas, para acalmá-lo.

— Não se preocupe. Ela sempre me disse que, para me defender dos demônios, eu tinha que fazer o sinal-da-cruz. Que este simples gesto na direção de Deus e Nosso Senhor Jesus Cristo me protegeria...

Apanhou um de seus dardos e o segurou firmemente na mão.

— Minha mãe é uma mulher. Ela tem pavores de mulher. Não vou fazer o sinal-da-cruz. Que eles venham, os demônios e os diabos! Meus dardos os aguardam...

Do lado direito, no meio dos carvalhos, apareceram cavaleiros. Eram cinco. O rapaz pôs o braço em posição, a fim de atingir o primeiro que estivesse ao seu alcance. Eles avançavam sempre, a trote, na direção dele. Deixaram a penumbra da mata mais densa e irromperam na luz tranqüila da manhã.

O rapaz reteve o braço, admirado.

Não eram demônios. Os cavaleiros cintilavam aos raios oblíquos do sol. Usavam cotas* de um metal bri­lhante, de uma brancura de prata e, suspensos no pesco­ço ou na sela, grandes imagens ovais onde o ofuscaram o mesmo branco, a mesma prata, riscas de metal dourado, escarlate e azul, o desenho de um animal de pé nas patas traseiras, e flores douradas em forma de ferro de lança.

O rapaz recolocou seu dardo junto da coxa e murmu­rou para o cavalo:

— Por Deus! Não são criaturas do diabo, são anjos! Nunca vi nada tão bonito e tão fascinante... Perdoe-me, meu Deus, por haver confundido Suas criaturas com as de Lúcifer.

Com um gesto seco, largou o dardo no chão. Em seguida, desceu do cavalo e, quando os cinco cavaleiros se aproximaram, colocou um joelho no chão. Humilde, cur­vou a cabeça.

O primeiro cavaleiro reteve a montaria e fez um sinal para os outros quatro. Eles se imobilizaram a alguns metros do rapaz.

— Ei, você! Levante-se! Não queríamos assustá-lo. O rapaz, contudo, manteve a cabeça baixa e disse:

— Não tenho medo e sim vergonha: por pouco não os trespassei como simples faisões.

Após um instante de surpresa, os cinco cavaleiros começaram a rir. O rapaz, que nunca tinha imaginado que anjos pudessem rir, ergueu para eles um olhar espantado.

— Não estão com raiva de mim?

— De quê? — perguntou sorrindo o primeiro dos cavaleiros. — Você nos poupou, se compreendi bem. Só podemos lhe ser reconhecidos. Levante-se.

O rapaz obedeceu, lentamente. Não era de seu tempe­ramento obedecer tão depressa, mas toda aquela aventu­ra o deixara aturdido. Não era todo dia que se encon­travam cinco anjos na Floresta Perdida. Viu então que cada um deles carregava na cintura uma longa espada cuja empunhadura era uma cruz.

— Achei que os senhores eram demônios. Criaturas de Lúcifer, de tanto barulho que faziam. Agora sei que os anjos são barulhentos como os diabos. Mas os demônios não são anjos caídos?

Aproximou-se do primeiro cavaleiro.

— O senhor é o arcanjo Miguel ou o arcanjo Gabriel? — perguntou.

Este o encarou um instante, e depois, voltando-se para os companheiros, declarou:

— Quando o escuto, entendo por que chamam este lugar de Floresta Perdida!

Todos desataram a rir. O rapaz corou de raiva. Se eles não fossem anjos, teria se aborrecido e os enfrentado, com o dardo na mão.

— Para anjos — disse mesmo assim —, acho os se­nhores irritantes e inclementes.

— Ah! — exclamou um outro cavaleiro. — Esse meni­no é ingênuo mas melindroso! Tomemos cuidado, Se­nhores — ironizou.

— Vamos, vamos — disse o primeiro cavaleiro. — Deixem-no em paz.

Apoiou os cotovelos no pescoço do seu rocim* e inclinou o rosto para o rapaz.

— Você me lisonjeou, confesso, tomando-me pelo arcanjo Gabriel. Mas eu me chamo apenas Garvain, cava­leiro do rei Arthur.

— Cavaleiro?

O rapaz sacudiu longamente a cabeça.

— O que significa "cavaleiro"? — perguntou final­mente.

— O que nós somos.

— Não sei o que isso quer dizer, mas se é parecer com vocês — exclamou alegremente o rapaz —, bem que eu gostaria de me tornar cavaleiro! Como se faz?

Garvain, Bréhu, Yvain, Galehot e Caradigas — eram estes seus nomes — desataram a rir novamente.

— Escute — disse Garvain —, tenho a impressão de que demoraria um pouco para lhe explicar. Discutiremos isso mais tarde. Enquanto esperamos, gostaria de lhe fazer uma pergunta. Você viu, hoje de manhã, um cavaleiro como nós, mas de elmo dourado, passar em um cavalo negro?

Sem escutar, o rapaz aproximara-se do cavalo de Garvain. Apontou para a lança pendurada na sela.

— O que é isso, Senhor? Um grande dardo? Deve ser difícil de lançar, ou o senhor tem a força de três homens...

Garvain sorriu.

— Isso se chama lança. Mas só que ela não é lançada.

— Então, ela serve para quê?

— Quando você for cavaleiro, saberá — tentou escla­recer Garvain. — Primeiro, responda à minha pergunta: viu passar por aqui um cavaleiro dourado em cima de um cavalo de batalha* negro?

O rapaz parecia não prestar a menor atenção às per­guntas de Garvain. Examinava a lança, com os olhos arre­galados, a boca desdenhosa.

— O que é uma lança que não pode ser lançada? Creio, Senhor, que meus dardos valem mil vezes mais do que sua lança. E isso — prosseguiu, tocando o escudo de Garvain — o que é?

Garvain suspirou.

— Diga-me: você cresceu como um bicho dentro desta floresta, e não é capaz de responder às perguntas que lhe fazem?

— E o Senhor, por que não responde às minhas?

A calma e a paciência de Garvain eram proverbiais. Um outro teria batido naquele rude insolente e retomado a estrada. Mas ele deu-se ao trabalho de uma explicação.

— Muito bem. O que você está tocando aí é um escu­do. Serve para me proteger no combate.

O rapaz deu um passo para trás.

— Como? — zombou. — O senhor tem uma lança que não lança e um escudo para protegê-lo? O senhor é um pouco estranho, para dizer a verdade. Eu, apenas com um dardo, o mataria em menos tempo do que o que o senhor leva para se proteger com o escudo.

Pela primeira vez, Garvain encarou verdadeiramente o jovem. Ele lhe causou uma curiosa impressão — ao mesmo tempo de uma grande idiotice, e de uma grande nobreza de caráter. Decidiu não se irritar com a observa­ção e tentar saber mais sobre aquele jovem de alta estatu­ra, bem desenvolvido, de olhar direto e claro, que se podia acreditar de bom nascimento e de excelente linhagem se não usasse aqueles trajes rústicos e não tivesse exibido tão pouca educação na conversa.

— Tenho uma outra pergunta — disse. — Quem sabe a esta você responderá. Como se chama?

— Perceval — respondeu o jovem, levantando orgu­lhosamente a testa.

— Perceval... De quem é filho e sobrinho*?

— Sou o filho da minha mãe, Senhor. E sobrinho de ninguém que conheça.

Essa resposta fez os cavaleiros rirem de novo. E lhes assegurou que estavam diante de um campônio qualquer, embora mais insolente do que qualquer outro que já tivessem encontrado. Qualquer menino de bom nasci­mento conhece suas duas linhagens: a paterna, mesmo que ele não seja o primogênito; e a materna, que faz de um sobrinho o igual de um filho. Garvain puxou a brida de seu rocim.

— Muito bem, Perceval. Desejo que encontre, da pró­xima vez, cavaleiros tão pouco melindrosos quanto nós. Senão...

— Senão o quê, Senhor? Está querendo dizer que serei obrigado a me servir de meus dardos?

— Se eu lhe deixar essa possibilidade... Chega de con­versa. Já nos divertiu bastante.

Garvain fez um sinal para os companheiros.

— Vamos embora.

Perceval segurou de repente a montaria de Garvain pelo freio, obrigando-a a ficar imóvel.

— Uma última pergunta, Senhor. Por que está usan­do essa camisa de malhas de ferro?

— É uma loriga*. Todos os cavaleiros a usam.

— Por medo dos golpes, Senhor?

Espicaçado, Garvain bateu com o pé nos ombros do rapaz, que vacilou, mas não largou o freio.

— Afaste-se e seja menos arrogante! Minha paciência tem limite.

Retendo com um punho firme o cavalo, Perceval encostou de repente a ponta do dardo sobre o peito de Garvain.

— Não tenho a pretensão de achar que a ponta pode atravessar isso que o senhor chama de loriga. Mas...

Subitamente, suspendeu a arma até o rosto do cava­leiro.

— ... eu estava só caminhando, Senhor, e seria capaz de matar um javali a vinte passos. Direto no olho.

Garvain, furioso, segurou com sua mão enluvada a haste do dardo.

— Escute-me, Perceval, você é apenas um galesinho da floresta. Poderíamos puni-lo definitivamente por sua insolência. E deveríamos.

Ele largou o dardo, que Perceval abaixou até a coxa — nem um pouco impressionado, mas, sim, atento e curio­so. O enfrentamento o divertia. Perguntava-se até onde aquele falso diabo, falso anjo, verdadeiro cavaleiro — mas o que era um cavaleiro? — era capaz de ir para tentar amedrontá-lo. Perceval nunca sentira medo. Desde sua infância, alegre e livre, na floresta, havia cruzado tanto com javalis solitários quanto com matilhas de lobos e bandos de ladrões. Nada nem ninguém que uns poucos gritos de assalto e uma infalível rajada de dardos não tivessem levado a um pedido de clemência.

— Por que não tenta, Senhor?

Sem responder, Garvain fixou seus olhos naqueles outros, tão claros quanto inocentes, de Perceval, a desafiá-lo. Pensou, com uma pontada no coração, que nunca mais tinha se deparado com tanta arrogância no olhar de um rapaz desde seu encontro, anos antes, com o jovem Lancelot, que na época se chamava apenas Acriança.

— Ignoro — disse — se você é mais temerário do que imbecil. Ou o inverso. Admiro sua coragem e por causa disso perdôo sua imbecilidade.

Com o punho bem apertado em volta do dardo, Per­ceval deu três passos para trás.

— Vou poupá-lo, Senhor, pois me fez refletir. Se um javali tivesse me falado como o senhor me falou, eu tam­bém teria admirado sua coragem e perdoado sua imbeci­lidade. E talvez tivesse desejado me tornar um javali. Ora, o senhor não é um javali e sim um cavaleiro, como me disse. Quero me tornar um cavaleiro.

— Não é tão fácil como você parece acreditar. Mas, antes de mais nada, por que quer se tornar um cavaleiro?

— Para faiscar como os senhores! E para, ao atraves­sar uma floresta, me tomarem por um demônio, depois por um anjo!

Dessa vez, apesar da vontade, os cavaleiros contive­ram o riso.

— Isso se chama vaidade, galesinho Perceval. Um cavaleiro não pode ser orgulhoso, e sim humilde.

Perceval fez uma careta de dúvida.

— O senhor não tem uma cara assim tão humilde.

— Se eu não fosse, você já estaria morto.

— Eu ou o senhor. Quem sabe? — recomeçou Perceval sem perder a segurança. — Mas me explique como vou me tornar cavaleiro. Desde que o vi, não há nada no mundo de que tenha mais vontade.

Um outro dos cavaleiros chegou perto de Garvain. Era jovem, magro e tinha uma expressão sorridente e ani­mada.

— Eu me chamo Galehot — disse. — Sou um cavalei­ro novo. Fui sagrado cavaleiro pelo rei Arthur no último dia de São João. É assim que nos tornamos cavaleiros.

— Onde está esse rei Arthur? E o que é a sagração?

— Uma bofetada que você aceitará sem revidar...

— Nunca! — exclamou orgulhosamente o rapaz, dando um passo para trás.

— Então — disse Galehot, a quem a conversa divertia —, quando, para fazer você cavaleiro, o rei Arthur o esbo­fetear, vai bater-lhe de volta?

— Será melhor para ele que saiba se defender! — exclamou Perceval, indignado.

— Então, você jamais será cavaleiro.

— Ah, é? — fez Perceval, perturbado.

Levou um tempo refletindo. Ele perguntou, finalmente:

— Mas o que é um rei? Alguém que tem o direito de esbofetear a pessoa sem que ela se defenda? Então, em vez de cavaleiro, prefiro ser rei.

Sua réplica provocou alguns risos.

— Impossível — disse Galehot.

— Tudo é possível! — falou Perceval. — Matar um estorninho em pleno vôo é impossível; os escudeiros e os sargentos da minha mãe sempre me disseram. Mas eu consigo matar um estorninho em pleno vôo. Olhem!

Levantou de repente os olhos para as árvores da flo­resta, onde passava um bando de pássaros cinza-claros, pequenos e rápidos. Nenhum dos cavaleiros viu o dardo deixar a mão de Perceval. Contudo, um instante depois, ele veio a cair na clareira, com a ponta ensangüentada. Logo em seguida, um pássaro decapitado abatia-se diante dos cavalos de Garvain e Galehot. Era um estorninho.

— Então? — perguntou simplesmente Perceval.

— Então — replicou Garvain, mantendo os olhos fixos no dardo e no pássaro decapitado, impressionado com o feito —, você acabou de me provar o impossível. Ainda assim, não poderá ser rei.

— Prove — disse Perceval.

— Não há nada a ser provado. As coisas são o que são. Os reis são reis. Os cavaleiros, cavaleiros. E os galeses da floresta, galeses da floresta.

— Contudo — interveio Galehot —, é verdade que nada impede um galês de se tornar cavaleiro. É preciso que você vá ver o rei Arthur e lhe apresente seu pedido.

— E onde está esse rei? Quero portar as mesmas armas que os senhores, quero parecer um anjo.

— Vou lhe dizer — disse Galehot —, mas...

— Mas — continuou Garvain —, diga-nos primeiro se viu passar o homem de que lhe falei ainda agora.

— O que é parecido com os senhores? Mas cujo cavalo de batalha é preto e o traje dourado?

— Você entendeu tudo. E então?

Perceval saltou sobre seu rocim, que ele montava em pêlo.

— Vamos fazer a pergunta aos servos* de minha mãe — disse. — Eles começam a trabalhar de madrugada. Devem ter visto melhor do que eu.

— Nós seguimos você.

Perceval colocou seu cavalo atravessado diante do de Garvain.

— Vai dar a palavra, Senhor, que me conta como posso me tornar um cavaleiro?

— Claro que sim, tem a minha palavra. Vamos!

Os cinco cavaleiros seguiram o jovem galês por cami­nhos através da floresta que não teriam podido descobrir nem adivinhar por si mesmos. O sol estava no ponto mais alto quando atravessaram as copas dos últimos carvalhos e galoparam por campos onde numerosos camponeses trabalhavam.

Assim que escutaram o barulho do galope, e depois que viram a tropa chegando até eles, os servos sentiram medo. As moças e as mulheres começaram a correr, fu­gindo para o oeste, onde ficava a aldeia. Os homens em­punharam os forcados e se prepararam, ferozes, para defender a terra que trabalhavam, semeavam, de onde tiravam colheita e subsistência, contra os cavaleiros. Em seguida, Bertrand, o homem forte da aldeia, reconheceu Perceval, seu jovem senhor, cavalgando à frente. Mandou que recolhessem os forcados.

— Bertrand, esses senhores têm uma pergunta a lhe fazer. Responda-lhes como responderia a mim.

Perceval retivera seu cavalo de caça no limite do cam­po trabalhado. Os cavaleiros pararam, permanecendo atrás dele. Bertrand, com o forcado em cima do ombro, avançou alguns passos.

— É apenas uma pergunta, homem — falou-lhe Garvain. — Você viu passar esta manhã um cavaleiro em loriga dourada montando um cavalo de batalha negro?

Bertrand olhou para Perceval, seu jovem senhor, para saber qual deveria ser sua resposta. O rapaz abanou a cabeça.

— Não tenha medo. E diga o que sabe.

Então Bertrand, depois de enfiar o forcado na terra recentemente remexida, virou o tronco para os contrafortes das montanhas que fechavam o horizonte. Estendeu a mão na direção delas.

— Um cavaleiro dourado e seu cavalo preto passaram esta manhã. Se tiver bons olhos, Messire, ainda poderá vê-los subindo a crista.

Perceval, Garvain, Galehot e os outros cavaleiros vol­taram o olhar para a linha escura das montanhas. Discer­niram a minúscula silhueta de um homem a cavalo. Sim, o cavalo era preto. E, ao passar de repente pelo sol, a lori­ga de seu cavaleiro brilhou como ouro.

— É ele — exclamou Garvain. — É Mordred. Vamos.

Os cavaleiros esporearam as montarias, que avança­ram alguns passos dentro dos campos de trabalho. Perce­val estalou os lábios com vigor: seu rocim saltou e foi se colocar atravessado no caminho.

— Calma, Senhores — disse o rapaz. — Precisamos primeiramente nos entender sobre duas coisas. A primei­ra é que esses camponeses trabalham para minha mãe e os senhores não podem pisotear suas lavouras. A segunda é que me devem o nome do castelo onde encontrarei esse rei Arthur que me fará cavaleiro — se ele não me esbofe-tear com muita força...

Ao dizer isso, empunhou um de seus dardos. Garvain, Galehot e seus companheiros retiveram seus cavalos na borda dos campos lavrados.

— Vá a Carduel — disse Galehot.

— O que é Carduel?

— O castelo onde vai encontrar Arthur.

— Onde fica? —Já viu o mar?

— Não. O que é o mar?

— Saberá quando tiver encontrado Carduel. Perceval brandiu o dardo.

— O senhor está zombando de mim.

— De jeito nenhum. Vá em direção ao sul.

— E em seguida?

— Pergunte onde é Carduel. Vão lhe indicar.

Após uma hesitação, Perceval acomodou o dardo dentro da bainha. Os cavaleiros conduziram os rocins ao longo dos campos cultivados, na direção do caminho que levava às encostas das montanhas.

— Senhores! — gritou Perceval quando eles já esta­vam longe. — Por que estão perseguindo esse cavaleiro dourado no cavalo negro?

— Porque somos cavaleiros de Arthur — respondeu Galehot. — Porque queremos evitar a guerra e a pilhagem!

— O que são a guerra e a pilhagem?

Mas o vento do outono carregou com uma borrasca mil folhas mortas e a pergunta de Perceval.

Durante muito tempo ele ficou olhando os cavaleiros diminuírem até alcançar o caminho das linhas da crista. Longe, à frente deles, a loriga de Mordred lançava por vezes um clarão de ouro ao sol. Ele estava algumas horas na frente de seus perseguidores.

Perceval voltou a galope através da floresta. Só tinha uma idéia na cabeça: tornar-se cavaleiro. Ali, no coração da mata, onde as árvores eram mais densas, verdadeira muralha de carvalhos, fez o cavalo de caça andar a passo e o conduziu por uma estreita passagem, conhecida apenas por ele, e, saindo dela, chegou a uma clareira bem extensa. Um solar modesto, protegido por duas torres, elevava-se no local; um riozinho corria ao longo da fachada. Perceval transpôs a passarela que levava à porta e entrou no pátio.

Deixou o rocim aos cuidados de um escudeiro. Com um passo apressado, entrou no solar. Na sala, sentada junto do fogo, uma mulher costurava. Era magra, pálida e, quando levantou os olhos no momento em que o rapaz entrou, uma espécie de alegria inquieta iluminou a melancolia natural do seu rosto:

— Meu filho — disse —, você demorou muito tempo para voltar da caçada. Eu estava ansiosa.

Perceval foi se instalar ao lado dela, junto do fogo.

— Não imagina o que acaba de me acontecer, minha mãe! Acabo de ter o encontro mais extraordinário da minha vida!

Ela franziu ligeiramente as sobrancelhas. A excitação do filho a inquietava. Pousou docemente uma mão sobre a dele, mas ele estava agitado demais para retribuir aquela carícia maternal e abriu os braços de maneira teatral.

— Vou me tornar cavaleiro!

Ela deu um grito imperceptível e levou a mão ao peito, no lugar do coração. Ele nada percebeu, nem sequer a vermelhidão queimando de repente as maçãs do rosto da mãe. Ergueu-se e, caminhando de um lado para outro, começou a contar, com as palavras se entrechocando na boca, seu encontro e sua conversa com Garvain e os qua­tro companheiros. À medida que falava, ela parecia se crispar mais, com as costas curvadas, os punhos cerrados no regaço.

— É isso! — exclamou ele, concluindo. — Nunca vi nada mais lindo no mundo do que aqueles homens! Por isso, decidi partir imediatamente para esse castelo junto do mar, para que o rei Arthur me faça cavaleiro.

— Não...

Sua voz mal chegou a um murmúrio. A mulher fez um esforço para levantar a cabeça e repetiu, com uma voz mais firme:

— Não, meu filho. Não, você não vai fazer isso. Desconcertado, Perceval aproximou-se dela.

— Mas por quê? A senhora nunca me proibiu nada, minha mãe.

— É por essa razão que você será um bom filho e me obedecerá. É verdade que sempre deixei você livre. Mas está fora de questão que você se torne cavaleiro.

— Não compreendo. Ao menos a senhora sabe o que é um cavaleiro?

— Sei o suficiente.

— Então — empolgou-se ele —, não pode me impe­dir de ir ver esse rei Arthur!

— Preste atenção: se você cresceu nesta Floresta Perdida, se eu eduquei você aqui, foi para poupá-lo.

— Me poupar de quê? Me explique de uma vez!

— Não posso lhe explicar nada. Fiz um juramento de nunca falar a você nem de Arthur nem de cavalaria.

— A quem a senhora fez um juramento desses?

— A mim mesma. No dia da morte do seu pai. Essas palavras bastaram para acalmar a raiva de Perceval. Agachou-se junto da mãe e segurou-lhe as mãos. Murmurou:

— De meu pai também a senhora nunca me falou.

— Nem de seu pai, nem de seus irmãos.

— Meus irmãos? Eu tenho irmãos?

— Teve dois. Eram bonitos como você, e igualmente desmiolados. Eu os perdi. Felizmente, Deus me concedeu a graça de fazer você nascer quando eu estava chegando à idade em que as mulheres não têm mais filhos. Jurei que não iria perdê-lo.

Lágrimas rolaram de suas faces magras e enrugadas. Embaraçado, o rapaz pousou delicadamente a ponta dos dedos naquele rosto que ele sempre conhecera triste e inquieto.

— Minha mãe, eu compreendo que isso deva ser um grande sofrimento para a senhora... Mas a permissão para me tornar cavaleiro não significará me perder. Eu voltarei para vê-la e a senhora vai ficar orgulhosa de mim!

Ela sacudiu a cabeça.

— Seus irmãos me disseram um dia a mesma coisa. Nunca mais voltaram.

— Por que eles fizeram isso? Ingratos! Mas eu volta­rei, pode estar certa.

Ela o observou um instante sem dizer nada, depois passou as mãos nos cabelos dele.

— Já se passaram dezesseis anos desde que seus irmãos, seguindo o pai deles, partiram alguns dias antes do dia de São João. É durante essa festa que o rei Arthur sagra os cavaleiros novos. Seus irmãos foram sagrados, receberam a pancada pela mão do rei, e a espada. É costu­me que um grande torneio seja realizado após a cerimô­nia. Os cavaleiros novos, misturados aos melhores com­panheiros de Arthur — Garvain, Yvain, Erec, Cliges e muitos outros —, devem ali mesmo demonstrar seu valor, sua proeza*. Seu pai e seus irmãos foram notáveis, dizem. Brilharam durante horas, derrubando adversários e se apoderando de seus cavalos de combate e armas.

Ela suspirou, baixou a cabeça e prosseguiu com voz baixa:

— A noite caía, anunciando o final da justa*. Prova­velmente embriagados pelos próprios feitos, seu pai e seus irmãos partiram para um último assalto. Cobiçavam, creio, as armas e o cavalo de batalha de Mordred, que era o campeão do partido adversário.

— Mordred... — murmurou Perceval. — Ouvi este nome ainda há pouco. Quem é?

— Mordred é o filho de Morgana, a meia-irmã do rei Arthur. Há quem pretenda ser ele também o fruto do incesto entre esse irmão e essa irmã. Ele é tão impiedoso quanto a mãe, valoroso como seu suposto pai. No dia do torneio, mal completara quinze anos, mas sua mãe lhe fazia todas as vontades e Arthur nada lhe recusava: obte­ve o direito de combater no torneio e os homens de sua facção não se queixaram: eleja mostrava uma temeridade e uma astúcia de velho campeão.

Ela passou as mãos no rosto, enxugando as lágrimas. Subitamente, fixou os olhos nos de Perceval, lendo neles um ódio de que sempre o imaginara incapaz.

— Portanto, na hora em que o sol se punha, seu pai e seus irmãos fizeram os cavalos de batalha galopar e come­çaram a partida contra Mordred. O filho de Morgana fora isolado durante o assalto precedente. Ele devia parecer o combatente perfeito para concluir magnificamente aque­la jornada em que seu pai e irmãos tinham brilhado pelos seus feitos. Mas Morgana estava na platéia. Ela não ia dei­xar o filho ser humilhado. Confesso que, se dispusesse de seus poderes de fada e de necromante*, agiria como ela para salvar a carne de minha carne...

"Enquanto seus dois irmãos partiam para o assalto a Mordred e iam alcançá-lo, seus cavalos, juntos, tropeça­ram. Dizem que um raio, um relâmpago caído de lugar nenhum — o dia estava magnífico, não havia uma única nuvem —, atingiu os cavalos em plena corrida. Seus irmãos caíram com toda a força. A alguns passos de Mordred.

"O cavalo do seu pai, que estava atrás, se apavorou e empinou. Até que seu pai o dominasse, foi tarde demais: Mordred se atirou sobre ele e, enquanto ele não podia se defender, atacou-o com a lança. Ela se quebrou sobre o escudo, escorregou, e sua madeira, agora mais afiada do que a ponta de uma adaga, perfurou o ventre e o quadril de seu pai...

Ela se calou, com os olhos perdidos no vazio. Perceval apertou com muita força a mão da mãe.

— E então? — perguntou. — E meus irmãos? Eles não se levantaram?

Parecendo sair de um mau sonho, ela abanou a cabeça.

— Estavam mortos. Tinham quebrado o pescoço na queda. Quanto a seu pai...

— Sim, meu pai...?

— Os escudeiros o trouxeram para nosso castelo, assim como os despojos de seus irmãos. Ele morreu algu­mas horas depois de chegar. Só teve tempo de me relatar o torneio e a traição de Mordred e Morgana. Você não tinha nem dois anos, não se lembra: levei-o até a cama onde seu pai agonizava; ele o beijou e me disse: "Cuide dele. É nosso último filho. Que a minha linhagem não seja extinta."

"E exalou o último suspiro. Foi então que, seguran­do você nos braços, eu me fiz o juramento de que você jamais seria cavaleiro. Depois dos funerais de seu pai e seus irmãos, me retirei junto com você para este solar no fundo da Floresta Perdida, onde acreditava poder pre­servá-lo para sempre dos sonhos vãos de glória, de tor­neios e de batalhas”.

Ela se recostou na cadeira e chorou.

— Eu fracassei...

Perceval a examinou com curiosidade, como se des­cobrisse uma outra mulher, diferente da que sempre tomara por sua mãe. Depois se levantou, deu alguns pas­sos para trás e declarou:

— Provavelmente suas intenções foram as melhores do mundo, minha mãe. Mas a senhora cometeu uma má ação. Me educou para ser um covarde.

— Não — ela gemeu. — Eu o eduquei para que você vivesse, para que não...

— Cale-se agora! Por sua causa tenho vergonha de mim mesmo. Devia ter me educado com o desejo de vin­gar meu pai e meus irmãos! Preciso reencontrar esse Mordred e sua mãe Morgana. Preciso participar do que a senhora chama de "torneio" e enfrentar cara a cara esse trapaceiro, esse bastardo, esse traidor!

Alucinado de raiva, deu meia-volta e depois avançou a largos passos em direção à porta da sala.

— Perceval, por favor...

Ele não a escutou. Não podia. Imaginava Mordred — acreditava vê-b, silhueta dourada brilhando ao sol, como um desafio ao orgulho, montado em seu cavalo negro como a noite, como a representação do Mal. Seu desejo de se tornar cavaleiro, simples capricho de criança da flo­resta ofuscada pelo brilho das armas e das lorigas, trans­formara-se em uma feroz necessidade de vingança. Atra­vessou o pátio do solar, ordenou a seus escudeiros que lhe preparassem imediatamente o melhor rocim da cavalariça — um animal sólido e rápido, ágil sob a brida, que, dizia para si, valia tanto quanto os cavalos de batalha.

Impaciente, apressou os escudeiros que, para seu gosto, não trabalhavam suficientemente depressa; amar­rou ele mesmo a sela, preparou uma bainha com diversos dardos curtos e saltou sobre o cavalo. Os escudeiros se afastaram, assustados, quando ele fez o rocim se voltar com brutalidade e partiu a galope da cavalariça.

— Perceval!

Ele ignorou o grito da mãe. Atravessou a passarela sobre o rio em meio a um grande barulho de cascos e tábuas. Chegando diante da muralha de carvalhos, foi obrigado a reter a montaria, antes de atravessar a passa­gem muito estreita que ia em direção à floresta e, mais distante, em direção ao mundo. Um instante antes de desaparecer, voltou a cabeça para a entrada do solar.

Viu, ao longe, pequena, frágil e já esquecida, a silhue­ta de sua mãe. Ela o chamou novamente. Ele não respon­deu. Conduziu o rocim através da passagem.

Lá longe, na beira da passarela, sua mãe estava caída de joelhos. "Mesmo que ela implore e chore", disse a si com desprezo, "vou me bater e vingar meu pai, meus irmãos e meu nome." A longínqua silhueta de mulher desabou no solo.

Ele não teve o menor arrependimento, um lampejo de piedade ou de inquietação. Atravessou a muralha de carvalhos.

Perceval alcançou a linha da crista das montanhas pouco antes da noite. O rocim estava cansado. Manteve-o a passo, mas continuou a avançar. Não conseguia se resignar a parar para comer e dormir. Aliás, imerso no furor e no desejo de partir para o que os cavaleiros tinham chamado de "o mar" e que haviam lhe dito encontrar-se ao sul, não quis perder tempo caçando alguma lebre ou perdiz para lhe fornecer a refeição. A lua estava alta, quase cheia, o céu limpo e coberto de estrelas. Naquela noite de prata, Perceval distinguia muito claramente o caminho seguindo a crista.

De súbito, numa depressão do terreno, percebeu o halo avermelhado de um fogo. Prudente, saltou do cavalo. Guiando-o pela brida, aproximou-se lentamente.

Um homem estava sentado sobre um tronco, virando lentamente um espeto acima de um fogo de cinco grandes pedras. As narinas de Perceval fremiram; a saliva invadiu sua boca. O cheiro era de lebre assada e ele tinha fome. Parou a alguns passos.

— Senhor, seja quem for, peço sua hospitalidade.

O homem pôs a mão no punho da espada e se virou. Perceval, na luz dançante do fogo, reconheceu Galehot, o mais jovem dos cavaleiros que encontrara algumas horas antes. Ele também o reconheceu. Afastando os dedos da espada, relaxou e disse simplesmente:

— Eu o convido para jantar, galês.

— Eu aceito — disse Perceval —, mas não me chame assim.

— Por quê? Você é galês, não?

— Sou e sempre tive orgulho de ser. Mas não gosto da sua maneira de pronunciar esta palavra.

— Ah, não? Por quê?

— Parece uma ofensa.

Galehot retirou o espeto de cima dos dois forcados onde estava sendo virado.

— Venha se sentar, em vez de dizer besteiras. E me recorde seu nome, de maneira que eu não precise mais tratá-lo de galês.

— Perceval.

O rapaz largou a brida do rocim e veio se sentar dian­te do cavaleiro. Com as costas da manga, enxugou os can­tos dos lábios. Tinha cada vez mais fome.

— Onde estão seus companheiros? — perguntou enquanto olhava Galehot cortar a lebre com a adaga.

— Seguiram caminho. Meu cavalo está mancando. Tive que ficar para trás.

Por cima do fogo, Galehot lhe entregou um pedaço da caça. Perceval agarrou-o rapidamente e na mesma hora começou a devorá-lo.

— Você parece ter tanto apetite quanto arrogância — sorriu Galehot.

— O que é arrogância?

O jovem cavaleiro abanou a cabeça.

— Algumas vezes uma qualidade. Mais freqüente­mente um defeito grave. Diga-me, Perceval, o que está fazendo tão longe da Floresta Perdida?

— Vou ver o rei Arthur. E assim serei cavaleiro. Galehot estalou os dedos.

— Assim? — repetiu. — Acredita que alguém se torna cavaleiro, assim?

E estalou os dedos de novo.

— E o senhor, como se tornou cavaleiro? — replicou Perceval, de boca cheia.

— "Como" é uma pergunta sem interesse. Melhor perguntar por quê.

Perceval levantou os ombros e mordeu a carne assada com ferocidade.

— Bem, então, se o senhor faz questão: por quê?

— Por estima a um cavaleiro. Ele era o melhor do mundo. Invencível.

Perceval parou de repente de mastigar.

— Como ele se chamava? — perguntou. — Mordred? Se for ele, eu o vencerei.

Galehot o examinou com uma curiosidade divertida.

— Mordred? Não, Mordred não é o melhor cavaleiro do mundo. Ele é só o mais perigoso. O mais temido. Não estou falando dele.

— Então, de quem está falando?

— Tem razão: eu falo, falo, mas para não dizer nada. Vamos falar sobre você.

Com um gesto seco, Perceval arrancou o osso da coxa da lebre.

— Sei tudo a meu respeito. A conversa seria aborreci­da. Melhor falar de cavaleiros. O senhor já participou de torneios? Ganhou-os?

— Ganha-se, perde-se, você sabe... O importante é participar.

Perceval deu um riso de desdém.

— Participar para perder, isso não faz o meu gênero! Quando eu participar de torneios, será somente para ganhar.

Sempre observando, divertido, o jovem galês, Galehot experimentou com a ponta dos dentes seu pedaço de lebre.

— O rei Arthur agradecerá aos céus ter um cavaleiro como você.

Sem ter nem o temperamento nem a educação, Perceval não compreendeu a ironia e exclamou:

— E terá razão! Só que... O que é ser cavaleiro?

— Boa pergunta. Porém, difícil. Digamos que é ter alguns direitos e muitos deveres.

Perceval jogou por cima dos ombros os ossos da lebre dos quais roera os mínimos pedaços de carne. Ainda esta­va com fome. Apontou com o dedo a parte da caça que Galehot mal tinha tocado.

— O senhor não come? Não tem apetite? Galehot jogou-lhe seu pedaço de lebre. Perceval recebeu-o habilmente nas mãos abertas, enfiou-lhe os dentes, mastigou lentamente e perguntou:

— Todos os cavaleiros são como o senhor? Galehot levantou as sobrancelhas, curioso por ouvir o que aquele galesinho ainda iria inventar em matéria de idiotice insolente.

— Como assim?

— Bom... O senhor não come quase nada, reconhece que fala para não dizer nada, e é tão magro que tenho certeza que eu lhe partiria as costas, na luta, em menos tem­po do que preciso para devorar esta lebre.

Perceval engoliu ainda alguns nacos de carne assada, esperando a explicação de Galehot. Mas o jovem cavalei­ro não disse uma palavra, limitando-se a observá-lo tran­qüilamente. Irritado, Perceval o provocou:

— Então, eu o insulto e o senhor não reage?

— Não vale a pena. Você não é cavaleiro.

— Sou mais forte do que o senhor.

— Provavelmente. Mas, repito, você não é cavaleiro. Não pode fazer nada contra mim.

De repente, Perceval se levantou.

— De pé! — gritou. — Vamos ver!

Galehot apenas cruzou pacificamente os braços, sem se mexer em cima do tronco onde estava sentado.

— Tem certeza de que quer se tornar um cavaleiro? — perguntou. — No momento, só vejo um galesinho furio­so, sem compostura, estúpido e sem educação. O rei Arthur jamais fará de você um cavaleiro. Pior para você.

— Eu serei cavaleiro! E vou lhe partir as costas! Perceval pulou por cima do fogo e foi se postar diante de Galehot. Mas é difícil enfrentar uma pessoa que olha você com desprezo, abanando a cabeça mansamente, dizendo, com uma tristeza fingida:

— Sabe, bastaria muito pouco para você ter um com­portamento menos galês... Há certas coisas que um rapaz precisa saber antes mesmo de pretender ser sagrado ca­valeiro.

— Pelo Sangue de Cristo, me diga, então! Galehot inclinou-se sobre as brasas e esfregou as mãos, como se quisesse aquecê-las. Sorriu para si mesmo, decidido a se divertir um pouco à custa daquele jovem desmiolado. Que provas poderia inventar, e até que ponto aquele galesinho era estúpido o bastante para crer nas mentiras que lhe contavam? Galehot refletiu alguns ins­tantes e saiu-se com o seguinte:

— Vou lhe dar apenas a primeira lição, as outras vai aprender por si mesmo. Escute bem: os cavaleiros se encontram freqüentemente com donzelas. Você certa­mente vai encontrá-las, elas adoram os jovens como você, bem-apessoados e sempre audaciosos. Muitas têm neces­sidade de proteção, e vão buscá-la junto aos cavaleiros. E a meninos como você, evidentemente.

Perceval, concentrado, sentou-se de novo junto do fogo, prestando a maior atenção. Galehot o examinou com um vago sorriso, perguntando-se se tinha razão de zombar tanto dele, e respondeu que sim, pois um certo grau de idiotice arrogante merece uma punição, e inventou:

— Seu primeiro dever, quando encontrar uma donzela, será se colocar a serviço dela. Uma atitude dessas lhe valerá a estima de todos.

— Mas significa o quê, "colocar-se a serviço dela"? E, perdoe minha ignorância, o que é uma donzela?

Galehot não pôde deixar de sorrir.

— Boas perguntas. Uma donzela é um ser como você e eu. Ou melhor, como sua mãe, só que muito mais jovem. Dois detalhes lhe bastarão para reconhecê-la quando a vir: ela trajará um vestido mostrando o pescoço e o alto do busto descobertos.

— Minha mãe não usa isso.

— Claro. Mas é que ela não é mais uma donzela. Ela tem cabelos louros ou castanhos, muito compridos, que lhe descem até a cintura como um tecido dourado ou de seda negra?

— Não. Nunca. Seus cabelos são cinzentos como um dia de chuva.

— Uma donzela tem os cabelos assim. Você não vai se enganar assim que a vir.

Perceval adotou um ar concentrado.

— Certo. Um vestido indecente e cabelos louros ou negros que lhe acariciam as costas. É isto uma donzela?

— Exatamente.

— Ela não tem vergonha de se mostrar desse jeito?

— Não. É seu modo de ser de donzela.

— E o que deverei fazer quando encontrar uma?

— Terá primeiro que conseguir um beijo. Perceval corou e se remexeu.

— Um beijo?

— Sim. É muito importante — disse gravemente Galehot. — Se não roubar esse beijo, ela vai pensar que você a despreza.

— Ah,é?

— Em compensação, ela vai fingir recusar esse beijo. É o costume. Não se impressione. Agarre-a com força se for preciso, ela saberá ser-lhe reconhecida. Em seguida, ela vai querer lhe dar um presente.

— Por quê?

— Porque, assim que a tiver beijado, ela vai amá-lo. Será preciso então que ela lhe dê uma garantia de seu amor. O anel dela, por exemplo, ou sua esmoleira.1[2]

Galehot ergueu os olhos para o rapaz, que o escutava com uma atenção quase dolorosa.

— Devo adverti-lo de que as donzelas não agem como nós, que elas dizem não quando pensam sim, que elas recusam quando aceitam e, conseqüentemente, que você mesmo deverá lhe tomar o anel ou a esmoleira, garantia do amor dela por você. Compreendeu bem?

Perceval abanou a cabeça seriamente.

— Acho que sim. Mas, primeiro uma pergunta: o que é o amor?

Galehot fez cara de quem está pensando, pesando cada palavra de sua resposta.

 

— O amor — disse —, o amor de uma donzela por um cavaleiro se parece com a atração de uma flor pela luz. A donzela é a flor, o cavaleiro, sua luz. Ela não pode ficar sem ele e, graças a ele, ela conserva sua beleza.

Depois de escutar com a boca aberta, Perceval balan­çou a cabeça.

— Não compreendi nada do que o senhor me disse.

— Porque eu não sou uma donzela. Quando você encontrar uma — e do jeito que estou lhe vendo, tão agra­dável à vista, não vai demorar a encontrar —, ela explica­rá à sua maneira o que é o amor. Provavelmente não vai pronunciar esta palavra. Mesmo assim, você saberá que ela o ama.

Perceval resmungou com um pouco de irritação.

— Eu encontro uma donzela, eu lhe roubo um beijo, depois seu anel ou sua esmoleira, e saberei o que é o amor. É isto?

— Praticamente — sorriu Galehot, a quem a ingenui­dade do galês divertia cada vez mais.

Perceval encolheu subitamente os ombros.

— Então é fácil.

— Talvez nem tanto quanto você está pensando. Perceval permaneceu por um momento com os olhos fixos nas brasas. Refletia. E era mais uma razão de diverti­mento para Galehot, ver aquele jovem rude inteiramente absorvido numa atividade que não lhe era habitual: refletir.

— O que pode haver de difícil em roubar um beijo e um anel de uma moça? — perguntou finalmente.

Imaginando que já se divertira bastante, Galehot se enrolou na capa e se deitou de lado.

— Digamos que são as dificuldades do amor. Discuti-las não serve para nada. Faça a experiência.

 

Puxou um pedaço da capa sobre o rosto.

— Agora durma — murmurou. — Falaremos de novo sobre isso quando você tiver encontrado uma donzela...

Perceval, feliz por conhecer tantas coisas novas que sua mãe não havia lhe ensinado, esticou-se junto do fogo de brasas, pensando que as roupas que ela tinha costurado para ele eram melhores do que uma capa, pois não estava sentindo frio e, antes de adormecer, imaginou diversos epi­sódios do maravilhoso destino que o esperava.

 

Quando acordou, Galehot havia desaparecido. O fato de o jovem cavaleiro ter partido sem se despedir incomo­dou Perceval e o aborreceu um pouco. Depois, ele disse a si mesmo que essa maneira de se conduzir era talvez um outro costume da cavalaria, e não pensou mais nisso. O fio caprichoso de uma nascente corria abaixo da crista da montanha. Fez o cavalo beber e molhou o próprio rosto com aquela água gelada. Retomou a estrada.

Não demorou a deixar o caminho da linha da crista para descer ao longo da encosta da montanha, na direção do sul onde haviam lhe dito que acharia o mar e, conse­qüentemente, Carduel, o castelo do rei Arthur. O dia de outono estava bonito como um verão que não quer aca­bar. Nuvens esbranquiçadas, vaporosas, desmanchando-se preguiçosamente num alegre céu azul. E o humor de Perceval combinava com aquele tempo, aquele céu, aque­le azul. Por volta do meio-dia, uma lebre surgiu entre as pedras, quase sob os cascos do cavalo. O rapaz empunhou um de seus dardos curtos que, com um ligeiro assovio, atingiu o animal e o traspassou em plena corrida. Deixou o rocim pastando em um prado inclinado e abundante e acendeu um fogo onde assou a caça.

Foi quando estava sentado em cima de uma grande pedra e enfiava os dentes na carne fumegante e perfuma­da que avistou, quinhentos passos abaixo dele, o que lhe pareceu uma casa de pano, que não resistiria a um vento forte de tempestade. Apertou os olhos: um homem saía, montava em um cavalo e fazia um sinal para um outro indivíduo, que estava na entrada da casa de pano. O homem, o do cavalo, estava vestido com uma loriga ver­melha e tinha a cabeça coberta com um elmo da mesma cor. Quanto à outra pessoa, estava com um vestido bran­co que lhe descobria os ombros e tinha longos cabelos de um preto luzidio.

— Uma donzela — murmurou Perceval para si mesmo. — Eis uma donzela do jeito que sire* Galehot me descreveu.

Viu o homem de vermelho montado no cavalo se afastar em direção à orla de um bosque, no trote, depois entrar nele e desaparecer. E então a donzela voltou para a casa de pano.

Apesar de excitado diante da idéia de que logo mais iria seguir os conselhos de Galehot, Perceval continuou devorando a lebre assada. Há um tempo para tudo: um para recuperar as forças, outro para encontrar donzelas cujos beijos nos ensinarão o que é o amor.

Depois de abafar o fogo e lavar os dedos, os lábios e o queixo em uma nascente, montou novamente o rocim e desceu pelo prado na direção da casa de pano. Chegando perto da entrada, colocou o pé na terra. A porta era tão frágil quanto a estranha residência para a qual ela se abria; bastava afastar as abas. O que ele fez, sem hesitar.

O interior estava quase que inteiramente ocupado por um vasto leito coberto de arminho. Pareceu a Perceval suficientemente largo para nele dormirem cinco homens. Mas ali só dormia uma única pessoa: a donzela. Deitada de lado, os longos cabelos pretos espalhados como um pedaço de noite atirado sobre a terra em pleno dia, seu rosto estava encostado na mão direita aberta. Perceval pensou que nunca vira nada tão bonito — a não ser o vôo de um gavião e a aparição dos cavaleiros na véspera — quanto aquela donzela que dormia. E disse para si mes­mo que a primeira prova que lhe permitiria se tornar cavaleiro se anunciava agradável e fácil.

Colocou um joelho sobre a cama de arminho, aproxi­mou lentamente seu rosto do rosto da donzela adormeci­da. O perfil dela tinha uma delicadeza que lhe lembrou as primeiras folhas macias da primavera. Aquela brancura dos caules recém-brotados, como se ainda estivessem carregados do leite primordial da natureza. Os lábios, contudo, eram vermelhos, um pouco amuados no sono. Vermelhos como as frutas silvestres, morangos selvagens ou framboesas. Não tinha mais que hesitar. Inclinou-se e colou de súbito a boca entreaberta naqueles apetitosos morangos de carne.

Inicialmente, ficou surpreso por não terem gosto de morango. Em seguida, com o fato de a senhorita, ao abrir de repente os olhos, ter se afastado com um sobressalto e começado a berrar, arrastando-se a toda pressa para fora do leito e indo se refugiar em um canto da casa de pano.

— Não tenha medo, Donzela — disse-lhe sorrindo e atravessando a cama de gatinhas. — Não vou lhe fazer nenhum mal. Só vim para conseguir um beijo seu.

Com os braços apertados em torno do peito, com medo, ela recuou mais ainda, tanto quanto lhe permitia o pano da tenda. Ela franzia os olhos, as maçãs do rosto estavam vermelhas, e Perceval percebeu que seus olhos tinham a cor das centáureas em plena floração, e as maçãs do rosto a cor, efêmera, das papoulas dos campos — mas ainda assim lhe parecendo incomparavelmente mais bonitas do que essas flores.

Depois de atravessar o leito em toda a sua largura, pôs-se de pé e deu um passo em direção à moça. Ela berrou:

— Saia! Vá embora daqui imediatamente!

— Não se assuste...

— Meu noivo vai voltar de um momento para o outro: vai matá-lo se o encontrar aqui!

Perceval deu um risinho de ligeira zombaria.

— Está querendo falar do homem a cavalo, de verme­lho, de há poucos instantes? Não se preocupe: eu o vi partir para a floresta, não voltará tão cedo.

Deu mais um passo. Ela estendeu o braço e o dedo, violenta, nervosa:

— Não tente se aproximar!

Sempre sorrindo com calma, Perceval levantou os ombros.

— Creio que nós não nos compreendemos — disse. —Veja, estou a caminho de Carduel, onde o rei Arthur vai me sagrar cavaleiro. E, como talvez a Donzela saiba, devo me conduzir como um futuro cavaleiro. Portanto, devo e vou receber um beijo seu.

Ela o considerou como se estivesse lidando com um louco e gritou:

— De jeito nenhum! Saia desta tenda! Imediatamente! Perceval começou a rir.

— Sim, eu sei, a senhorita está se comportando como tem que fazer. E eu lhe sou reconhecido. Se tivesse aceita­do meu beijo sem se defender, não teria valido grande coisa. Sire Galehot — é um cavaleiro do rei Arthur — me explicou tudo. A senhorita está dizendo não porque pensa sim, está me resistindo para me fazer compreender que está de acordo.

Ela franziu as sobrancelhas, tentando esclarecer aque­le discurso incoerente.

— Um cavaleiro do rei Arthur? — repetiu. — E é esse que falou para o senhor me... roubar um beijo, como o senhor falou?

— Oh, não da senhorita especificamente... Acontece que a senhorita foi justamente a primeira donzela que eu encontrei, só isso. A senhorita ou uma outra...

Uma idéia de repente lhe atravessou o espírito e, subi­tamente em dúvida, ele perguntou:

— Esclareça-me: a senhorita é de fato uma donzela, não?

As duas manchas sobre as maçãs do rosto ficaram mais vermelhas — de indignação.

— Violentar não basta para o senhor! Tem ainda que me injuriar!

Pela primeira vez, ele pareceu pouco à vontade.

— De jeito nenhum... De jeito nenhum... Estou lhe perguntando, Donzela, por não querer cometer um des­lize.

Ele tinha o ar tão jovem e tão... — ela não sabia se o termo "ingênuo" cabia melhor do que "cretino" — que ela se acalmou e teve menos medo. Afastou-se do canto da tenda onde se refugiara e se aproximou do rapaz — o que era também uma maneira de se aproximar da saída da tenda e de, talvez, tentar a fuga.

— Imaginemos — disse lentamente — que eu lhe conceda esse beijo. Você sairia daqui imediatamente?

— Bem, se eu ganhar esse beijo, ficarei satisfeito, sem dúvida. Mas...

— Mas?

— Mas, segundo sire Galehot, eu devo roubar esse beijo. Então, se a senhorita me der o beijo, compreenda que ficarei numa situação difícil. Será que, para um futu­ro cavaleiro como eu, um beijo dado vale tanto quanto um beijo roubado?

Essa argumentação sedutora de Perceval terminou tranqüilizando a moça. Se ele era louco, era uma loucura mansa. Ou fora acometido por uma simples cretinice, o que os seus trajes de pano grosseiro provavam sem nenhuma dúvida: acabara de sair, pela primeira vez, intei­ramente idiota, de alguma floresta, e alguém fizera troça dele. O que não resolvia seu problema naquele exato momento.

— Então — ela disse, aproximando-se disfarçadamente da porta da tenda — eu me sentiria terrivelmente culpada se, por minha causa, o senhor não pudesse se tornar cavaleiro.

— Obrigado. Vejo que a senhorita me compreende.

— De fato. E é por isso que eu não vou lhe dar esse beijo!

Mal pronunciou essas palavras, correu para as abas abertas da tenda, na direção dos campos, na direção da sua liberdade — sua sobrevivência, talvez.

Mas Perceval corria mais rápido do que ela e a alcan­çou. Segurou-a pela cintura, imobilizou-a contra si — ficou atordoado um breve instante com o seu perfume — e exclamou:

— Eu vou roubar esse beijo! E vai ser agora!

E aplicou sua boca sobre a da donzela. Segurava-a com toda a força contra si, e ficou atrapalhado quando ela entreabriu os lábios e ele sentiu a ponta da língua mistu­rar sua saliva com a dela.

Afastou-se.

— A senhorita não tinha que ter se entregado! — pro­testou.

— Um beijo é um beijo — ela replicou. — Aposto que o senhor nunca tinha beijado ninguém.

Ele a soltou. Mas ela permaneceu colada nele, com indo o corpo. Isso o perturbou. Contudo, ele não deu um passo para trás. Na verdade, sequer cogitou de fazê-lo — c seu corpo, menos do que ele.

— Muito bem — ela disse. — O senhor ganhou o seu beijo. Agora vá embora.

— Não posso.

Segurou a mão dela. Tocou o anel de ouro enfeitado com um rubi que ela usava no anular.

— Preciso obter da senhorita uma garantia. Ela tentou retirar a mão. Ele não permitiu.

— Este anel me pertence! Foi meu noivo quem me deu. Vamos nos casar na próxima primavera.

— Não! — replicou Perceval, encolhendo os ombros. — Impossível. É comigo que vai se casar. Quando eu for cavaleiro.

Retirou à força o anel com a pedra vermelha. Ela se de­bateu, soltou-se dele e recuou alguns passos precipitados.

— Meu noivo vai matar você! — gritou.

Ele colocou o anel no dedo mínimo da mão direita.

— Esse homem não foi feito para a senhorita. Tenho certeza de que ele nunca a beijou como eu. Deixe-me encontrá-lo, vou livrá-la dele. Não — acrescentou —, não me agradeça.

Sem prestar atenção na maneira como ela o olhava — como se fosse impossível um idiota daqueles existir sobre a Terra —, ele se dirigiu para a saída da tenda. Segurando uma das abas de pano no antebraço, virou-se para ela, muito contente consigo mesmo.

— A senhorita teve sorte por termos nos encontrado. Agora, tenho o que fazer: o rei Arthur me aguarda. Mas adoraria saber o seu nome, a fim de convidá-la à Corte, dentro em breve.

Ela abanou lentamente a cabeça, incapaz de acreditar que pudesse ter se envolvido com um imbecil daqueles.

— Não vai saber — disse com rancor. — Mas saiba que o meu noivo é chamado de Cavaleiro Escarlate. Lem­bre-se deste nome. Ele vai persegui-lo até a morte!

Ele sorriu com indulgência.

— Percebo neste momento que a senhorita me ama.

— Eu o detesto! Desprezo-o!

— É exatamente a prova do seu amor. E não consegue agir de outro modo.

Tranqüilo e cheio de si, ele saiu da tenda.

Louca de raiva, a moça se atirou sobre o leito, bateu com os punhos no colchão e quis explodir em soluços. Mas as lágrimas não vieram. No fundo, só havia aquela cólera, aquela humilhação e a imagem insistente daquele jovem alto e louro como ela nunca pensara que pudesse existir. Tão bobo. Tão insuportável. Tão seguro de si.

Tão bonito.

 

Perceval continuou em sua rota para o sul. Cavalgou vários dias sem encontrar ninguém, a não ser camponeses ocupados nos cultivos e algumas perdizes e lebres que foram suas refeições habituais.

Numa manhã em que começara a caminhar de madrugada, uma brisa fresca o alcançou, envolvendo-o com um odor poderoso, pegajoso e desconhecido. Algum tempo depois, ele parou o cavalo na beira de uma falésia.

Abaixo, e se estendendo até o horizonte, agitava-se uma água como ele nunca tinha visto, uma água movimentada por ondas que se chocavam, subitamente bran­cas, sobre recifes e uma curta praia. O estrondo subia até ele, acompanhado de borrifos com gosto de sal. Adivi­nhou que aquele espaço imenso e assustador, cinza-esverdeado sob um céu de chuva, era o que os cavaleiros tinham chamado de mar. E soube que chegara ao fim de sua viagem, que o castelo do rei Arthur, Carduel, não estava mais muito longe.

Costeando a beira da falésia, escrutou as vizinhanças, à procura de uma grande casa parecida com o solar de sua mãe na Floresta Perdida. Percebeu, bem ao longe, emba­çado pelo chuvisco, o que lhe pareceu de início rochedos de tamanho descomunal, maciços e cinzentos, encimados por flechas de pedra que pareciam querer alcançar o céu. Continuando a avançar, a imagem se tornou precisa, e ele teve que reconhecer, estupefato, que não se tratava nem de rochedos gigantescos nem de longas flechas de pedra, mas simplesmente de muralhas como ele nunca imagina­ra, e de torres tão altas que ele achou que no seu ponto mais alto seria possível tocar as nuvens.

Pouco depois, no caminho, cruzou com uma carroça conduzida por um homem bem pequenininho, de rosto e mãos negras disformes, vestido com uma cota mal corta­da num pano grosseiro e sujo.

— Quem é você?

— Aquele com quem você tem que cruzar no seu caminho, provavelmente — cantarolou o homenzinho, puxando as rédeas do seu cavalo de tração. — Tudo está escrito antecipadamente, o bem como o mal, não existe acaso, há apenas encontros.

Perceval aproximou sua montaria até bem perto do assento onde estava colocado o homenzinho, cujos pés batiam como os de uma criança muito pequena.

— O mal não lhe foi poupado — disse. — Caso con­trário, você não seria tão pequeno e tão feio.

O outro deu um riso sarcástico e, imitando uma sau­dação reverente, replicou:

— O anão lhe agradece os cumprimentos, galês.

— Como sabe que sou galês?

O anão ergueu o rosto e dilatou as narinas, fingindo aspirar o ar em volta dele.

— Uma questão de cheiro. Cheiro de idiotice, arro­gância e caça pequena. Portanto, um galês.

— Está querendo me insultar? Sua insolência não é proporcional ao seu tamanho.

— Quando Deus e a natureza fazem pessoas como eu, somos obrigados a exagerar os defeitos e as virtudes. Confesso que tenho muitos defeitos. Mas uma ou duas virtudes.

— Gostaria de ver isso! Você tem cara de ser uma peste.

— Galês, galês, galês... — fingiu gemer o anão. — Não me humilhe... Eu poderia informá-lo sobre muitas coisas...

Foi a vez de Perceval rir sarcasticamente.

— Ah, é? Me dê um exemplo, para ver.

Apertando a testa com seus gordos dedos curtos, o anão parecia refletir. De repente, estendeu o indicador para o nariz de Perceval.

— Aposto como está indo para a corte de Arthur! Estou errado? Não. Mesmo sendo um galês turrão, você enfiou na cabeça que quer virar cavaleiro. Então, deixe-me lhe dar um conselho: desconfie da cor vermelha. Tome cuidado com o escarlate.

Surpreso, Perceval respondeu:

— Sempre gostei de escarlate. Do que está falando?

— Do seu destino, talvez.

— Como é que você o conhece?

— Por que não conheceria?

Antes que o rapaz tivesse encontrado uma resposta, o anão apontou o rubi incrustado no anel que ele usava no dedo mínimo.

— Onde você roubou isso?

— Não roubei — replicou Perceval. — É uma garan­tia de amor.

Explodindo num riso de matraca, o anão bateu alegre­mente com as mãos nas coxas. Em sua hilaridade, balança­va-se para a frente e para trás, quase caindo de seu assento.

— O amor! O amor, o amor! Sabe, galês? Eu agrade­ço todos os dias ao céu ter me feito assim feio: isto me poupa de cair na armadilha das donzelas.

— Que armadilha? Não havia nenhuma armadilha. Eu lhe roubei um beijo e este anel, como tinha que fazer.

O anão, subitamente sério, o observou atentamente.

— Sabe o que mais? Não encontrava um varlete* mais estúpido e mais bonito do que você há anos. Esqueci o nome do precedente, já faz tanto tempo... Mas talvez ele ainda não tivesse nome... De todo modo, creia-me: fique como é. Se se parecer com ele, vai ter futuro.

Irritado, perturbado, Perceval apressou-se a virar a brida para pôr um fim naquela conversa. Com uma viva-cidade inesperada, o anão pulou de seu assento e segurou o jovem pelo antebraço.

— Escute-me, galês: está procurando por Carduel, o castelo de Arthur? É aquela cidadela diante de você. Pressinto que divertidas aventuras vão acontecer assim que seu cavalo puser os cascos lá.

Perceval golpeou a mão do anão com as costas da sua para fazê-lo soltar seu braço.

— Vou viver aventuras, claro, e pressinto isso melhor do que você. Mas elas serão gloriosas.

O anão sacudiu a cabeça com um ar de dúvida.

— Entre o ridículo e a glória, há somente um espaço grosso como um fio. O fio de uma espada — que você nem tem.

Dito isso, o anão içou-se rapidamente para o assento, retomou as rédeas e partiu com a carroça.


— Adeus, galês. E, se vir um Cavaleiro Escarlate, passe ao largo. Acredite em mim. Volte para sua floresta. A feli­cidade está na ignorância.

Estalou a língua. Seu cavalo partiu de repente a toda velocidade. Perceval, pouco à vontade, ficou olhando a carroça sacolejante se afastar.

 

Menos de uma hora mais tarde, o rapaz entrava em Carduel. Espantou-se ao encontrar dentro do recinto tantas casas, tão ricas, tantos jardins, tão floridos apesar do outono, e uma tal multidão de mercadores e de deso­cupados parecendo viver ali como em um lugar de paz — uma paz garantida pelos sargentos em armas plantados nas portas da cidade ou patrulhando pelas ruelas. Era uma cidade próspera e alegre.

Avançou ao longo das fachadas, evitando como podia os meninos que de repente atravessavam as vielas na fren­te dos cascos de seu cavalo. Um bando deles atirou-lhe punhados de lama ou seixos, gritando insultos. Perceval não teve raiva: ele mesmo tinha sido um moleque, e se lembrava das armadilhas que preparava e das artimanhas que inventava quando um cavaleiro, imprudentemente, atravessava a Floresta Perdida. Sua mãe havia lhe ensina­do a desconfiar de estrangeiros; tinha apenas se submetido à sua educação. Ele era um estrangeiro em Carduel, e admitia ser tratado como tal pelas crianças.

Logo em seguida, viu-se diante da imponente entrada do castelo. Enquanto conduzia sua montaria pela ponte levadiça que atravessava os fossos, viu avançar ao seu en­contro um cavaleiro de loriga e armas vermelhas como o elmo que cobria sua cabeça. Lembrou-se das palavras do anão e — teria sido por desafio, por aquelas armas de metal vermelho lhe agradarem, ou porque aquele cavalei­ro era o amigo da donzela? — interpelou-o ao passar:

— Olá, Senhor! Está portando belas armas. Surpreso, o Cavaleiro Escarlate deteve seu cavalo de batalha. Trazia uma grande taça de ouro na mão.

— Fico encantado que elas lhe agradem, meu menino — disse, num tom zombeteiro. — Mas não ligo para sua opinião.

Aquele era um tom que não deveria ser adotado com Perceval. Espicaçado, esqueceu-se imediatamente das observações do anão.

— Sim, elas me agradam — disse. — Elas me agradam tanto que vou agora mesmo pedir ao rei para me fazer cavaleiro e dá-las a mim.

O cavaleiro soltou um riso breve. Era estranho, aque­le riso que parecia jorrar de lugar nenhum, por trás de um rosto impassível de ferro onde, através de duas estreitas fendas oblíquas, Perceval distinguia apenas a sombra dos olhos.

— Não hesite, meu menino! Acabo de ver o rei, da parte de Mordred, meu senhor e suserano*. Ele me pare­ceu tão fraco e tão indeciso que talvez precise de jovens insolentes como você para escapar do desprezo que merece. Olhe esta taça de ouro: eu a tomei debaixo do seu nariz, na hora em que ele se preparava para beber nela, e nem ele nem seus cavaleiros tiveram a menor reação. Logres, creia-me, mudará de rei dentro em breve. Acabo de constatar a fraqueza de Arthur e de seus homens.

Perceval nada compreendeu daquele discurso, e aliás nem se importava. Além de achar que aquele cavaleiro vermelho falava um pouco demais, um detalhe apenas reteve sua atenção: o nome que ouvia pela terceira vez.

— Quem é esse Mordred, afinal? — perguntou. — Há alguns dias não paro de ouvir falar dele.

— Saiba que Mordred será dentro em breve o novo rei de Logres. Vá vê-lo, é ele quem vai armar você. Se você merecer. Mas você parece merecer: Mordred adora a juventude e a arrogância.

Perceval era um homem de idéias fixas e curtas. E as únicas que o preocupavam naquele momento eram, pela ordem: ser feito cavaleiro por Arthur, matar em combate aquele Cavaleiro Escarlate e ficar com as armas dele. Qualquer outro assunto não lhe interessava.

— Não tenho tempo para conversas. Até muito breve, Senhor! — disse, esporeando o rocim.

— Até já, se quiser — replicou o cavaleiro.

Seu riso ressoou de novo sob o elmo de ferro e, atra­vessando o pomar, dirigiu-se para um caminho que con­tornava a cidade.

Assim que entrou no pátio do castelo, Perceval viu di­versos escudeiros e sargentos convergindo para ele. Ignorou-os, empurrando com o peitoral do cavalo os dois homens que se colocaram atravessados em seu caminho e, avistando a grande porta da sala cujos batentes estavam abertos, conduziu por ali o rocim.

A sala era de um tamanho e de uma altura inespera­dos. Numerosos cavaleiros e varletes se encontravam em volta de três longas mesas cobertas de pratos de ouro e prata, de carnes e de caça. Nada disso impressionou Perceval que, vendo um homem de ombros poderosos e barba grisalha avançar com as sobrancelhas franzidas ao seu encontro, perguntou-lhe:

— Qual dos senhores é o rei Arthur? O senhor, por um acaso?

— Eu me chamo Ké, sou o senescal* — grunhiu o homem. — Tudo que diz respeito à vida da Corte está sob minha jurisdição. O que quer do rei?

— Que ele me faça cavaleiro.

Ké fez uma careta, meio espantado, meio desdenhoso.

— Comece por descer do seu cavalo — disse. — Vamos conversar, você e eu.

— Inútil. Não tenho nada para lhe dizer. Vim ver o rei, não seus empregados.

Perceval fez seu rocim executar um quarto de volta para se afastar de Ké. Depois, levou-o até a mesa princi­pal, onde numerosos cavaleiros discutiam com veemên­cia, em torno de um homem de expressão severa que, sentado, sem dizer palavra, com os olhos baixos, esfrega­va uma mão na outra nervosamente.

— É preciso reunir os barões e os vassalos à nossa volta — exclamou um dos cavaleiros —, e nos pormos em marcha imediatamente!

— Não — replicou um outro. — Devemos aguardar o retorno de Garvain. Ignoramos as forças de Mordred. Garvain nos trará esta informação.

— Faz três semanas que ele partiu com Yvain e os outros — disse um terceiro. — Como ele ainda não vol­tou, temo o pior.

— Eu também. Nem o duque da Cornualha nem nos­sos barões das Fronteiras do Norte estão aqui. Quanto aos saxões*, parece que estão se agitando bastante há algum tempo e que teriam formado uma assembléia. Vão se aliar a Mordred: ele é capaz de qualquer promessa, assim como de qualquer traição.

— Uma coisa é certa — disse o senescal Ké, que, se­guindo o jovem rude a cavalo, não pudera deixar de se meter na conversa: — Só poderemos contar com nós mesmos. A paz durou tempo demais, Senhores. Nos fez perder a energia, e Mordred sabe disso!

— Ké, provavelmente você tem razão — murmurou o rei Arthur, mantendo o olhar tristemente baixo sobre as mãos que apertavam uma a outra. — Mas o que podemos fazer? Conheço somente um cavaleiro capaz de vencer Mordred. E ele não está entre nós.

— Lancelot? — exclamou Ké, com uma pesada iro­nia. — Se não está morto, então nos abandonou. Era um espírito inflamado.

— Ké, eu o proíbo de falar dele desta maneira — disse firmemente o rei. — Lancelot enfrentou Meleagrant, con­tra a influência maléfica de Morgana e de Mordred. Que outro teria conseguido? Que outro teria me devolvido minha rainha?

Ké, diante da lembrança daqueles acontecimentos de que tinha sido um dos responsáveis, encolheu-se e res­mungou para si mesmo:

— Gostaria, então, que alguém me explicasse por que ele não voltou à Corte para obter o prêmio por sua proe­za. E por que foi até a Irlanda desafiar dezenas de cavalei­ros. É provável que eu seja um velho asno, Sire, mas aque­le homem era um louco.

— Ké — explicou pacientemente o rei —, há cinco anos espero que esse "louco" venha tomar o lugar dele junto a mim. Faz dez dias que Guinevere atravessou o mar e partiu para o Lago. Espero que ela saiba convencer Vivian.

— Sire, acredita de verdade que a Dama do Lago libertará Merlin?

— É preciso. Somente Merlin será capaz de encontrar Lancelot. Onde quer que esteja. Caso contrário, diga-me que outro cavaleiro poderá vencer Mordred antes de ele desencadear a guerra contra Logres?

Perceval, a quem essa discussão incompreensível aborrecia, aproveitou o silêncio que se seguiu àquela per­gunta para fazer avançar seu rocim por entre os cavalei­ros, obrigando-os a se afastar.

— Existe um! — declarou. — Eu!

Arthur levantou os olhos espantados para o jovem em cima do cavalo. E precisou, com um lado da mão, afastar o focinho do rocim que lhe roçava a face.

— Quem é você?

— E o senhor? — replicou tranqüilamente Perceval. — É aquele que chamam de rei Arthur?

Ké e diversos cavaleiros fizeram menção de se atirar em cima daquele mal-educado. Arthur, com um sinal, os fez parar.

— Chamam-me de Arthur, efetivamente. E sou rei. Mas você não respondeu à minha pergunta.

— Chamam-me de Perceval. E sou galês. Cavalgo há vários dias a fim de que o senhor me faça cavaleiro.

Arthur, que havia avaliado com um simples olhar o orgulho do rapaz, ironizou calmamente:

— Neste caso... Presumo que toda a honra seja minha?

— Ainda não sei o que é um cavaleiro, mas, seja quem for esse Lancelot de que falavam sem parar, não vai encontrar um melhor do que eu, confie em mim!

— Muito bem... Você parece bem convincente... Perceval fez um beicinho amuado.

— Não estou tentando convencê-lo, rei Arthur. Sei o que valho. Faça-me cavaleiro. Vim para isso.

Uma insolência como aquela era mais do que rara na Corte: era inesperada. Arthur, que as preocupações do poder e com uma guerra que se anunciava contra Mordred faziam melancólico, encontrou na cena o reconforto do divertimento. Fingindo a maior seriedade, considerou aquele rude jovem a cavalo que desfilava diante dele.

— Gostaria de fazê-lo cavaleiro. Você parece ter a garra. Mas... faltam-lhe as armas.

— As armas? Eu tenho dardos!

— Sim, estou vendo. Entretanto, as armas de um cavaleiro são uma armadura, um elmo, um escudo...

— Uma loriga?

— Ora... E uma loriga, com efeito. Enfim... tudo que um varlete traz para ser feito cavaleiro.

— Eu tenho essas armas.

— Onde?

— Eu encontrei, quando vinha ver o senhor, um cava­leiro com armas de metal escarlate. Vou tomá-las dele.

— Você... vai tomá-las dele?

— Eu o adverti. Ele não ficará surpreso.

—Você o advertiu? Ah... Muito bem...

— Sim — impacientou-se Perceval, sem entender que o rei zombava dele. — Aliás, ele tinha na mão uma taça de ouro que roubou do senhor sob seu nariz. Ele mesmo me contou.

Surpreso, o rei piscou vivamente os olhos.

— É verdade — disse. — Eu ia beber nela. Ele a apa­nhou de repente, e o vinho se espalhou pela mesa.

— E o senhor o deixou partir?

Arthur fez que sim com a cabeça.

— Saiba que um rei, com mais freqüência do que um cavaleiro, deve saber suportar as ofensas.

— Se é assim, nasci para ser cavaleiro! — desfechou Perceval triunfante. — Pessoalmente, não as suporto! O senhor me dá as armas desse cavaleiro de metal escarlate?

Arthur deu de ombros.

— Se for capaz de tomá-las...

— É como se eu já tivesse feito isso!

Feita essa proclamação, Perceval fez o rocim dar a volta e deixou, no trote rápido do cavalo, a sala onde os cavaleiros, os varletes, os escudeiros e as donzelas ainda se perguntavam que galesinho era aquele.

Nesse momento, ouviu-se um riso, um grande riso claro e alegre. Todo mundo se voltou na direção de Enide, que era o nome daquela que havia rido. E todo mundo se espantou; havia mais de dez anos que Enide não ria.

— O que há com você? — resmungou Ké.

— Acabo de ver sair daqui um rapaz que será um cavaleiro como ninguém jamais encontrou!

— Bobagens!

— Eu sei, eu sinto, eu tenho certeza.

— Maravilha! — gritou então uma outra voz, nasalada e cômica. — Maravilha! O reino está salvo!

Era Daguenet, o louco da Corte. Em sua fantasia cheia de galões, dançava de forma absurda diante da larei­ra, fingindo a maior das alegrias, com os sininhos do tricórnio emitindo seu som ligeiramente agudo.

— Lembrem-se da minha predição! Há anos venho repetindo: Enide rirá no dia em que vir aquele cuja proe­za de cavaleiro eclipsará todas as outras!

E a moça riu novamente.

— Ouçam! Ouçam-na! — clamou o bufão.

Furioso, Ké avançou de repente e a esbofeteou.

— Nada disso tem o menor sentido! Pare de rir!

Ela levou a mão ao rosto, vermelho do tapa, mas nem por isso deixou de sorrir. Daguenet dançou mais ainda diante da lareira.

— Eu tinha lhes feito essa profecia! Eu tinha lhes feito essa profecia!

— Maluquices e falatórios de louco! — rosnou Ké, e, com as duas mãos, empurrou com brutalidade o bufão, que tropeçou, andou para trás e foi cair com as nádegas no fogo.

— Ké, chega! — gritou o rei Arthur. — Modere seu humor, você está me irritando!

Daguenet pulou para fora da lareira soltando grandes gritos e fugiu batendo com fúria nas nádegas para apagar as pequenas chamas que saíam de sua fantasia. Ninguém ousou rir: Arthur tinha elevado a voz e Ké, subitamente consciente de ter mais uma vez se deixado levar por sua natureza belicosa, baixou lastimosamente a cabeça.

— Por que, por que você sempre tem de bancar o velho asno, Ké?

— Lamento, Sire...

O senescal levantou os ombros.

— Eu sou assim...

 

Nesse entretempo, Perceval tinha deixado o castelo. Viu um grupo de cinco cavaleiros subindo a rua principal. Sem se preocupar, atravessou um pomar, passou por uma porta falsa e, mais adiante no caminho, avistou o Cava­leiro Escarlate com a taça de ouro na mão, parecendo estar à sua espera. O rapaz, em compensação, não perce­beu o varlete de nome Ivonet que, passando por atalhos, o havia seguido e alcançado e, instalado sobre um muro, preparava-se para assistir à cena do encontro do galesinho vestido de trapos de habitante de floresta com o cava­leiro de armas vermelhas. Ivonet era conhecido por tudo saber a respeito da vida da Corte, histórias e mexericos. Certamente, não iria se privar do espetáculo — e, mais tarde, do relato — daquele confronto.

— Escute-me bem, Senhor! — gritou Perceval assim que chegou perto do Cavaleiro Escarlate. — Tire imedia­tamente suas armas e deponha-as!

O riso do cavaleiro retumbou sob o elmo.

— Por que razão, pode me dizer?

— Porque é com suas armas que o rei Arthur me fará cavaleiro. Portanto, a partir deste momento, elas me per­tencem.

— Quer dizer que Arthur não tem mais do que galesinhos do seu tipo para enviar ao julgamento?

— Ignoro, Senhor, o que é um julgamento, e não me importo. Desça do cavalo e me entregue suas armas, assim como a taça de ouro que roubou do rei. Será me­lhor para o senhor.

O cavaleiro fez um silêncio, sempre empunhando a lança com uma mão e apertando a brida de seu cavalo de batalha com a outra.

— Você sabia — disse finalmente — que eu nunca tinha visto ninguém tão bobo e tão presunçoso quanto você?

— Eu lhe devolvo sua réplica, Senhor. Acho difícil de compreender que prefira ser morto a me obedecer.

Estendeu o punho onde brilhava o rubi preso ao anel que ele havia tomado da donzela.

— Sua noiva me deu esta garantia. E, antes que me esqueça: ela me deu um beijo, também. O vermelho desta pedra e dos lábios dela fizeram nascer em mim a inveja do escarlate de suas armas.

Cego de raiva, o Cavaleiro Escarlate esporeou de repente o cavalo.

— Por Deus, você merece uma lição!

Atirou-se, com a lança em riste, sobre o jovem galês. Que só teve tempo de fazer seu cavalo desviar para o lado. A lança, contudo, o atingiu na extremidade do ombro. Ele deu um grito de dor.

— O senhor me machucou! — exclamou com indig­nação.

Puxou imediatamente um dardo da bainha e fez o rocim dar uma volta. O cavaleiro, atrapalhado com a armadura e a lança, precisou de mais tempo para recolo­car sua montaria em frente ao adversário.

— Cometeu um erro, Senhor — disse-lhe simples­mente Perceval. — Eu só queria as suas armas.

O Cavaleiro Escarlate não teve tempo de replicar. O dardo disparou da mão do rapaz e, sem sequer danificar as bordas, atravessou a fenda da viseira do elmo. Cravou-se no olho esquerdo do cavaleiro, atravessou o crânio e sua ponta ressurgiu, vermelha e branca de sangue e mio­los, traspassando a parte de trás do casco.

Por um instante, o Cavaleiro Escarlate permaneceu na sela, como que fulminado. Depois, sua mão direita soltou a lança, sua mão esquerda, a brida. O homem caiu pesa­damente na beira do caminho, fazendo um barulho de metais entrechocados.

— Eu avisei, Senhor — suspirou Perceval descendo da montaria.

Aproximou-se do cavaleiro, segurou a haste do dardo, arrancou-o com um golpe seco e o atirou sobre o talude. Depois se inclinou sobre o morto e quis lhe tirar o elmo. Mas, apesar de puxar e empurrar, foi impossível des­prendê-lo da armadura. Desistiu, provisoriamente. Notou a espada presa à cintura do cavaleiro. Segurou a bainha e sacudiu-a em todas as direções. Sem sucesso. Aquela espada que ele cobiçava permanecia indefectivelmente ligada a seu proprietário. Com despeito, blasfemou:

— Por Deus e todos os santos! Essas armas não que­rem deixar o morto!

Então, ouviu um riso de adolescente. Levantou a cabe­ça.

Ivonet, empoleirado no alto do muro, perguntou-lhe:

— Quer que eu o ajude?

Perceval considerou-o com irritação.

— Como poderia? Creio que esse cavaleiro saiu todo armado do ventre da mãe. Para tirá-las, seria preciso cortá-lo em pedaços!

Ivonet, depois de outra gargalhada, saltou agilmente sobre o caminho. Aproximou-se do jovem galês.

— Deixe que eu faço.

Levantando os ombros, Perceval se afastou. O varlete se inclinou sobre o morto e, com uns poucos gestos pre­cisos, retirou-lhe a espada, o elmo e as perneiras. Solicitou a ajuda de Perceval para despir a armadura e a loriga.

— Está vendo? Era simples — concluiu, depois de depositar cada uma das armas sobre o talude.

Vexado, Perceval não respondeu. Mas, quando viu que o varlete começava a despir o cadáver, perguntou:

— O que está fazendo?

— Essa túnica de seda é magnífica e ficaria melhor no senhor do que os seus andrajos.

— O quê? — indignou-se Perceval. — Está querendo que eu troque as roupas quentes e resistentes que a minha mãe costurou por esse traje ridículo de donzela? Está zombando de mim?

— Longe de mim tal idéia — respondeu prudente­mente Ivonet, compreendendo que era melhor não discu­tir as opiniões daquele galês maluco.

— Então é melhor me ajudar a recolocar toda essa tralha.

O que foi feito em pouco tempo. Ivonet, desde os doze anos, estava a serviço de diversos cavaleiros da Corte e os havia guarnecido e desguarnecido de suas armas cen­tenas de vezes, em tempos de torneio ou de batalha.

Sobrecarregado com o peso da couraça* e da loriga, com os movimentos entravados pelas perneiras de metal, Perceval deu alguns passos cambaleantes, desajeitados, quase perdendo o equilíbrio. Ivonet escondeu por trás da mão seu sorriso zombeteiro. Depois ensinou ao galês, em primeiro lugar, que a espada e sua bainha eram duas coi­sas distintas e, em seguida, como puxar a espada da bai­nha. Perceval executou alguns molinetes repentinos; Ivonet recuou com presteza, para ficar fora de alcance.

Após o quê, Perceval acomodou cuidadosamente a espada, recolheu a taça de ouro que havia rolado no cami­nho e a estendeu ao varlete.

—Vá devolvê-la ao rei Arthur, de minha parte. E diga-lhe que não precisa mais se preocupar com Mordred. Eu me encarrego dele.

Segurou a brida do cavalo que pertencera ao Cava­leiro Escarlate.

— Dou-lhe de presente meu rocim. Você verá, é um animal excelente.

Colocou um pé no estribo, parou de repente e olhou para Ivonet, que o fitava com olhos arregalados e um largo sorriso nos lábios.

— Por que está me olhando desse jeito? Eu faço você rir?

— Claro que não, Senhor! Claro que não... O se­nhor... É que, veja, nunca tinha encontrado na vida alguém como o senhor...

Perceval hesitou um instante, decidiu tomar aquilo como um cumprimento e saltou na sela.

— Adeus! — disse. — Avise o rei que, quando voltar, eu lhe trarei a cabeça desse Mordred!

— Como vai achá-lo, Senhor?

— Pouco importa. Vou em direção ao norte. E o acha­rei.

Ivonet continuou no caminho até que a silhueta do cavaleiro tivesse desaparecido por trás das árvores. Ainda estava atônito com o que vira e ouvira. Partiu correndo em direção ao castelo. Tinha que contar tudo aquilo, ime­diatamente!

Havia um grande burburinho na sala do castelo. Nesse entretempo, os cinco cavaleiros que Perceval havia entrevisto tinham voltado de sua missão, e todos haviam se precipitado para os acolher. Atravessando a multidão com um passo apressado, Garvain cumprimentou o senescal, saudou algumas damas e foi ao encontro do rei.

— Quais são as novidades, meu sobrinho? — pergun­tou-lhe Arthur.

— Nenhuma que vá lhe agradar. Perdemos o rastro de Mordred.

O rei baixou a fronte, preocupado.

— Você encontrou alguns de nossos vassalos?

— A maior parte havia deixado suas terras. Ninguém soube nem quis nos dizer para onde tinham ido. Mas uma coisa é certa: foram se juntar a Mordred. E, a esta hora, acredito que estejam conspirando com ele e dividindo o reino antecipadamente entre si.

— Cães! — praguejou o senescal. Arthur levantou lentamente a mão.

— Não sabemos o que resultará desse encontro. Nada é certo ainda: alguns deles permanecerão fiéis a mim.

Garvain fez um esgar.

— Esperemos, Sire.

Nesse momento, Ivonet entrou precipitadamente na sala. Sem fôlego, fremindo de excitação, irrompeu entre os cavaleiros. Yvain segurou o adolescente na passagem.

— O que é isso, varlete? — zombou. — Até parece que o diabo está no seu encalço!

— Isso não seria nada, Senhor, ao lado do que vi. Ivonet virou-se para o rei e, com os olhos brilhando, dirigiu-se a ele, estendendo-lhe a taça de ouro que segu­rava na mão.

— Ele cumpriu a palavra, Sire! Queria que o senhor estivesse lá quando ele desafiou o Cavaleiro Escarlate!

— Mas do que você está falando? — replicou o rei que, preocupado com as notícias que lhe trazia Garvain, esquecera o jovem rude, seu orgulho, sua idiotice e seu cavalo.

— O galês, Sire! O galês que lhe pediu as armas do Cavaleiro Escarlate e que foi tomá-las na mesma hora!

— Como foi isso? — espantou-se o rei. — Está querendo dizer que ele teria sido idiota a ponto de pedir as armas desse cavaleiro? Então ele não compreendeu que eu estava brincando?

— Sire, não creio que ele saiba o que brincar quer dizer. O Cavaleiro Escarlate se deu conta e pagou com a vida. O galês, com um único golpe de dardo sob a viseira, matou-o.

Intrigado, sobrancelhas franzidas, Garvain se aproxi­mou de Ivonet.

— Diga-me: esse galês de que está falando tinha dar­dos, então?

— Sim.

— E como estava vestido?

— Como um vagabundo da floresta. Imagine, Senhor, que ele se recusou a trocar seus andrajos pela túnica de seda da sua vítima!

— Ele falou o nome dele?

— Perceval! — respondeu a voz de Enide, no fundo da sala.

Depois, ouviu-se sua gargalhada.

— Perceval! — repetiu em eco a voz fanhosa do bufão, que pulou na frente de Ké e fez uma reverência grotesca. — Mui grande senhor, eis a primeira e a menor das proe­zas que eu havia lhe profetizado!

— Cale a boca!

Ké deu-lhe uma grande bofetada... que se perdeu no ar, pois Daguenet esquivou-se com habilidade.

— Mui grande senhor, permita a um pobre louco uma pequena previsão que lhe é completamente pessoal...

— Cale essa boca de uma vez!

O bufão, deslocando-se como um macaco, foi se pro­teger atrás de Garvain.

— Mui grande senhor, nunca deveria ter esbofeteado a donzela que dizia a verdade. Perceval vai fazê-lo pagar antes de quarenta dias. E vai lhe quebrar o braço entre o cotovelo e o ombro. E, mui grande senhor, vai ficar sem poder usá-lo durante a metade de um ano.

— Eu vou lhe...

— E eu serei recompensado, eu também, do soco que o senhor me deu e do fogo que me queimou a bunda!

— Desgraçado...

Ké se atirou para a frente, mas se chocou contra Garvain, que o segurou com força pelo ombro, enquanto Daguenet fugia soltando gritos de galinha assustada.

— A idade nunca vai lhe arrefecer o sangue — disse Garvain ao senescal, que se soltava com mau humor.

— Nem lhe clareará o cérebro — acrescentou o rei. — Ké, você compreende o que fez?

O velho senescal encolheu os ombros, resmungando para si:

— Estou pouco ligando para as maluquices de um bufão...

— Ké — recomeçou pacientemente o rei —, não se trata do meu bobo. Trata-se desse jovem Perceval. Você o acolheu tão mal que ele não voltou aqui depois de ter abatido o Cavaleiro Escarlate. Contudo, ele se propunha a ser meu cavaleiro.

— Perdão, Sire, mas ele não tinha cara de...

Subitamente, Arthur se ergueu e deu um murro na mesa. Estava pálido de cólera.

— E se ele se tornar meu inimigo, você vai ficar com cara de quê?

Ké corou violentamente e baixou a cabeça, grunhindo palavras incompreensíveis. Garvain deu-lhe tapinhas nas costas para reconfortá-lo, e se virou para o rei.

— Permita que eu me vá, Sire. Quero agora mesmo retornar ao meu feudo.

— Sobrinho, vai me abandonar nestas circunstân­cias?

— Sire, não o estou abandonando. Neste momento, a única coisa a fazer é aguardar e preparar nossas forças. Vou tratar disso do meu lado. Agora sei que nada está per­dido para nós. Graças ao senescal.

Ké e o rei tiveram a mesma reação de surpresa. Garvain sorriu, bateu mais uma vez nas costas do velho senescal e acrescentou:

—As mais flagrantes inabilidades de Ké são, na verda­de, sinais da Providência.

— Ah, é? — disse o senescal, atordoado.

— São sim, Ké. Sem você, não seríamos o que somos. E, com essas palavras enigmáticas, Garvain saudou o rei Arthur e deixou a sala. Sentia-se mais leve, mais seguro de si, mais determinado do que nos últimos cinco anos. Desde que encontrara Lancelot e, quase na mesma hora, perdera aquele amigo e aquele cavaleiro incomparáveis.

O tempo continuava claro, apesar do outono. O V fremente de um vôo de gansos selvagens atravessava o céu, longe, muito acima dos jardins de Carduel. Garvain foi às cavalariças escolher o rocim mais vigoroso e mais resis­tente. Os escudeiros o arrearam, enquanto ele pensava naquele galesinho que o havia tomado por um arcanjo e naquela silhueta, na beira do mar, na neve, que ele próprio também tomara por um anjo, havia tanto tempo...

 

Depois de viajar por muito tempo, a rainha Guinevere chegou ao Lago. Um ancião magro e encurvado, que, inclinando-se, se apresentou com o nome de Caradoc, conduziu Guinevere e sua escolta pelos caminhos que levavam ao castelo de Vivian. Foi bastante surpreendente vê-lo mergulhar tranqüilamente nas águas do Lago. Mais surpreendente ainda quando Guinevere, após um mo­mento de hesitação, esporeou seu palafrém e o obrigou a penetrar sob a superfície brilhante e cinzenta, como se fos­se se afogar. Mas todos viram a água se afastar, abrir-se à sua passagem, e quando, no momento em que sua cabeça ia ser tragada pela ilusão do Lago, ela virou o rosto e disse: "Sigam-me", os homens de sua escolta obedeceram.

A água de ilusão roçou-os como uma bruma. Mal tinham avançado alguns passos, ela se dissipou, dando lugar a uma luz intensa e doce ao mesmo tempo, a luz de uma primavera perpétua. As árvores frutíferas estavam em flor; as margaridas cobriam as pradarias que desciam numa inclinação abrupta em direção ao fundo de um vale onde corria um rio, em torno do qual as casas e um caste­lo de pedra bege-acinzentada tinham sido construídos. Tudo aquilo produzia um sentimento de paz e harmonia.

Guinevere trotava na frente, ao lado do cavaleiro Erec. Obrigava-se a dissimular sua emoção: aquele lugar idílico e calmo, sonhava, era onde Lancelot crescera. Todo o domínio de si que aprendera como princesa destinada a reinar, depois como rainha de Logres, de repente lhe fal­tava: seu coração batia rápido demais, seu rosto natural­mente pálido enrubescera, ela respirava com dificuldade. Fazia quanto anos que não via Lancelot? Não queria con­tar, nem pensar nisso. Sentia-se culpada. Culpada de covardia. Pior: culpada de traição. Como teria sido sua vida se tivesse confiado em Lancelot mais do que nas mentiras de um espelho mágico onde acreditara assistir à sua noite de amor com uma outra moça?

Uma vida de desonra, decerto, uma vida afastada do mundo. Mas também uma vida de amor. O que existia de mais importante? O respeito dos cavaleiros e do povo de Logres — que ela tinha conservado — ou o amor louco do melhor cavaleiro do mundo — que ela tinha desprezado? Desde que Lancelot desaparecera há dez anos, ela se fazia essa pergunta.

Irritada com seus próprios pensamentos, e com sua inutilidade, Guinevere bateu no flanco de seu cavalo e perguntou ao velho Caradoc que caminhava na frente dela:

— Já estamos chegando?

— A senhora está aqui. Agradeça a Vivian por não tê-la afogado quando entrava no Lago.

— Por que ela faria isso?

Caradoc parou no caminho, a pouca distância de uma ponte levadiça baixada sobre o rio. Virou-se e olhou para a rainha direto nos olhos.

— Dama Vivian amou Lancelot.

Ofendida, e furiosa com o olhar de reprovação que lhe lançava o velho preceptor, Guinevere replicou:

— Quanto a mim, não creio que o tenha detestado. Caradoc inclinou-se numa atitude que, a Guinevere, pareceu irônica.

— Há uma grande diferença entre a Dama Vivian e a senhora, rainha Guinevere: os sentimentos dela são in­tegrais.

— Está querendo dizer que os meus...?

— ... são sentimentos da esposa de Arthur. O que, necessariamente, os ameniza.

— Não gosto do seu sarcasmo, preceptor. O que está querendo dizer?

— Quando Lancelot ainda se chamava apenas Acriança e eu era seu professor, ele me vencia toda tarde no xadrez. Sua estratégia era simples e complexa ao mes­mo tempo: baseava seu jogo no de sua rainha. Uma rai­nha manipuladora e sem audácia, mas que vencia sempre.

Guinevere puxou com tanta força a brida que seu cavalo, surpreso, empinou um pouco.

— O que está insinuando? Que eu seria essa rainha? É esse o retrato que faz de mim?

— Senhora, só a senhora sabe, espero, se estou dizen­do a verdade ou se falei para o ar.

Após o quê, Caradoc, com um passo marcial que não se esperaria de um indivíduo tão velho e tão rígido, atra­vessou a ponte levadiça.

 

— O que você quer?

Vivian se mantinha contra a luz da janela. Envelhe­cera como uma fruta que resseca: o rosto, sem nada per­der de suas proporções, estava marcado por longas e pro­fundas rugas entre os olhos, sobre a testa e no canto dos lábios.

— Vim procurar Merlin — disse Guinevere.

Vivian elevou rapidamente a mão, com os dedos aber­tos. Uma ligeira bruma, parecida com a do lago de ilusão, encobriu seu rosto. Nele só se discerniam agora algumas linhas de força, que lhe davam uma aparência de juventu­de e de beleza.

— Merlin me pertence — respondeu.

Guinevere, que não tinha necessidade de nenhum artifício para parecer jovem e bela — o tempo, misteriosa­mente, parecia não surtir efeito sobre ela —, compreen­deu confusamente que era essa sua vantagem sobre a fada. Sorriu-lhe e se aproximou até dissipar a ilusão de bruma dissimulando os vestígios do tempo sobre o rosto de Vivian. Decidira falar claro, nada esconder sobre seus verdadeiros sentimentos. Tinha durante tanto tempo men­tido ao rei, seu marido, e, evidentemente, a si mesma... Porém, enquanto estivera fazendo aquela longa viagem, concluíra que somente a maior das franquezas, e a mais perigosa para si mesma, conseguiria modificar a determi­nação da Dama do Lago.

— Eis uma afirmação que eu não ousaria fazer, nem a respeito de Arthur nem de Lancelot. São os dois homens que eu amo; nenhum deles me pertence.

Surpresa por Guinevere ousar desde logo confessar seu amor por Lancelot, Vivian franziu os olhos e a observou.

— Você jurou fidelidade a Arthur — disse. — Ignoro se ele pertence a você: você pertence a ele.

— Só pertenço a mim mesma — replicou Guinevere. — Eu me dou, ou me empresto, a quem o mereça e me agrade.

— Cem vezes Lancelot "mereceu-a", como você diz. Você nunca se deu nem se emprestou a ele.

— Estava enganada a respeito dos sentimentos dele.

— E depois? Você sente orgulho em demasia para sentir suficiente amor!

Vivian tinha gritado essas últimas palavras. Cons­ciente de ter se deixado emocionar, fechou os olhos, reco­brou o domínio de si e suspirou longamente. Enquanto isso, Guinevere chegou mais perto dela e tocou-lhe deli­cadamente o braço.

— Não sou sua inimiga, Vivian. Também não sou sua rival. Você sabia, durante todo esse tempo, que Lancelot iria me amar. Ele me amou. E eu o amo também. Confes­sando, eu me entrego a você. Confessando, dou-lhe todo o poder sobre mim. Vivian — acrescentou, tomando-lhe docemente a mão —, você tem razão: eu fui estúpida e orgulhosa. Mas, creia-me, há anos e anos venho sendo punida por minha tolice e meu orgulho. Há anos — anos, Vivian... —, não se passa um segundo sem que eu não pense em Lancelot, sem que eu não lamente minha falta de confiança nele, que nos separou antes mesmo que...

Duas lágrimas se formaram no canto dos olhos de Guinevere e rolaram lentamente por sua face.

—Tantos anos se passaram, Vivian... Solte Merlin. Eu lhe peço.

— Por quê?

— Somente ele poderá encontrar Lancelot, caso ainda esteja vivo.

Vivian soltou delicadamente sua mão da mão da rainha. Preocupada, caminhou pela peça, com os olhos perdidos no vazio. Finalmente, voltou-se em direção a Guinevere.

— Muito bem. Vamos conceder liberdade a Merlin.

Guinevere, emocionada, contente, deu um passo em direção à Dama do Lago. Que a deteve com um gesto.

— Primeiro, quero que me faça uma promessa.

Perturbada, a rainha juntou as mãos sobre o busto, esfregou-as por um instante e terminou por dizer:

— Seja qual for essa promessa, Vivian, eu a cumprirei.

A fada adiantou-se, com seus olhos claros fixos nos olhos também azuis de Guinevere. Quando ficaram face a face, quase rosto contra rosto, Vivian enunciou com uma voz firme:

— Se Merlin o encontrar e o trouxer — e eu não duvi­do de que ele consiga —, Lancelot deverá cumprir sua obra de cavaleiro. Quero dizer com isso que ele ajudará o rei Arthur na guerra contra Mordred e os vassalos traidores.

— Claro, Vivian. Ele o fará. Não precisa ter a menor dúvida.

A Dama do Lago a examinou lentamente: a testa, os olhos, a boca. Os olhos, novamente.

— Lancelot cumprirá seu dever de cavaleiro da Távola Redonda. Ele não tocará em você. E você não tocará nele. Prometa-me.

— Vivian...

— Se alguma vez você pousar a mão nele ou se ele algu­ma vez pousar a mão em você, nosso pacto será desfeito.

— Vivian... Por que você não gosta de mim? O que foi que eu lhe fiz? Você soube antes de mim que Lancelot me amaria. Do quê, então, sou culpada?

— Por sua causa, Guinevere, Lancelot não foi o Eleito.

— O Eleito...? Do que está falando?

— De interesses que ultrapassam sua compreensão, rainha eternamente jovem...

A Dama do Lago segurou de repente Guinevere pelo ombro, enfiando suas unhas na pele branca da rainha.

— Olhe meu rosto. Olhe minhas rugas. Elas me vie­ram desde que Mordred aliou-se aos saxões, desde que Logres começou a correr o risco de passar para o jugo dele. Compreende por quê? Não, você não compreende nada: está apaixonada!... Deixe-me lhe explicar: este mundo, de que Arthur é o afiançador e o defensor, des­moronará se Mordred for vencedor...

As unhas de Vivian enterraram-se tão fortemente no ombro de Guinevere que este chegou a sangrar. Mas a rainha, fascinada pelo rosto crispado e violento da fada, não se mexeu, mal sentiu a dor. Vivian inclinou-se de súbito para o ouvido de Guinevere e murmurou:

— Nós somos parecidas, você e eu: não queremos envelhecer e amamos Lancelot. E, contudo, somos muito diferentes: por causa de você, de seu amor por ele, nosso mundo corre o risco de cair, de morrer. Ora, graças a mim, graças ao meu amor por ele, Lancelot pode salvar este mundo — e a nós duas, minha querida. Eu envelhe­ço na mesma velocidade em que este mundo está mor­rendo. Mas você, você sequer terá tempo de envelhecer: você desaparecerá, simplesmente. Desaparecerá assim que este mundo e Arthur morrerem...

Vivian soltou de súbito o ombro nu de Guinevere e recuou alguns passos, rapidamente. Havia tantas rugas no seu rosto que ela poderia ter mil anos. A rainha, com o coração disparado, fechou os olhos.

Ela escutou um ruído de atrito leve. Reabriu os olhos. Vivian tinha recuperado sua postura habitual, a de uma dama que tinha sido bela e permanecia altiva.

— Vamos ver Merlin — disse a fada.

E então, a parede no fundo da peça se abriu sobre um começo de escadaria.

 

Naquele dia, na sua prisão de ar nos confins dos sub­terrâneos do castelo, Merlin não se deu ao trabalho de mudar de aparência ao sabor de seus humores. Quando viu a rainha Guinevere acompanhar Vivian, soube que a questão era séria e que a hora, finalmente, tinha chegado. A hora de voltar para o mundo real e de agir sobre os acontecimentos e os homens.

Assim, não apareceu para Guinevere nem como velho sábio de barba branca nem como jovem sedutor e brinca­lhão, mas tal como era, quando adotava seu aspecto mais aparentemente humano: um homem de uns quarenta anos, muito moreno, alto e forte, de rosto severo. Havia quase cinqüenta anos que ele fingia ter quarenta — era sua maneira mais simples de parecer consigo mesmo.

— Você também teria sido encerrada em uma prisão de ar, Guinevere? — perguntou, quando as duas mulhe­res se aproximaram do limite, após o qual não podiam mais dar um passo: a parede invisível isolava Merlin em um simulacro de clareira onde corria um riacho junto de uma cabana.

— Por quê? — perguntou a rainha. — Tenho cara de prisioneira?

— Você tem a aparência exata da moça que eu apre­sentei a Arthur, há... muito tempo. Tão jovem como ela. Tão bela como ela.

— Você me lisonjeia.

Merlin atravessou o rio com um salto tranqüilo e se aproximou.

— Eu lhe falo o que meus olhos vêem. Essa juventu­de perpétua.

Encostou as palmas das mãos na parede de ar e de ilusão mágica que o separava das duas mulheres. Voltou o olhar para Vivian.

— Quanto a você, está envelhecendo, minha querida. Para você, o tempo passa.

Os lábios da fada se contraíram de raiva e humilha­ção. Depois, ela se controlou e conseguiu sorrir, lenta­mente.

— Dentre os encantamentos que roubei de você, não constava o da eterna juventude. Ele existe? — ela pergun­tou. — Você me escondeu muitas coisas, muitos dos seus segredos?

— Você me tirou o que queria tirar. Já tinha a juventude e a beleza: por que iria me pedi-las?

— Está querendo dizer que envelheci porque você quer?

As mãos de Merlin se agitaram docemente no ar.

— Você está envelhecendo, Vivian, ficando feia, porque está submetida ao tempo. Acreditava escapar dele? Você não pode. Não sem mim.

— E se eu libertasse você? Merlin deu de ombros.

— Isso não mudaria nada. Nada posso fazer por sua vaidade de mulher. Meus poderes são imensos, porém menores do que a sua vaidade. Sabe por que está envelhe­cendo depressa assim, Vivian? Porque você me fechou aqui. E porque eu sou a garantia da existência de nosso mundo. O mundo de Pendragon, de Uther e de Arthur.

Merlin, de súbito, afastou-se da parede de ar e deu alguns passos ao acaso no prado à beira do riacho.

— Você é uma fada, Vivian, porque este mundo exis­te. Mas, e se ele vier a desaparecer? E se ninguém mais acreditar nas fadas?...

Virou-se e estendeu o dedo para Vivian.

— Nosso mundo está desaparecendo, minha anciã bonitinha. Arthur e seus cavaleiros desaparecerão sob os assaltos dos anglos, dos saxões e dos vassalos traidores.

Com o dedo sempre em riste, avançou passo a passo para Vivian.

— Você e eu, a fada e o mago, logo não seremos mais do que personagens de contos que se contam às crianças para fazê-las dormir e povoar seus sonhos. Apenas nomes: Merlin, Vivian... Apenas uma vaguíssima lem­brança...

A Dama do Lago bateu com as duas mãos abertas na parede de ar, depois as deixou ali, coladas naquela barrei­ra invisível que ela mesma criara.

— Merlin! — gritou. — Se eu libertar você agora e se me jurar que vai achar Lancelot e trazê-lo de volta ao mundo para que ele ajude Arthur a vencer Mordred, eu me... eu me tornarei de novo jovem... e bonita?

Merlin veio pousar as mãos sobre as de Vivian. Ape­nas a espessura da parede de ar, de uma ilusão, de um encantamento os separava.

— Não vou fazer esse juramento. Quem sabe o que aconteceu com Lancelot? Eu ignoro. Posso apenas pro­meter a você tudo fazer para libertá-lo.

Afastou-se, recuando sem desviar o olhar da fada.

— Agora, compete a você correr o risco e tomar a decisão de me libertar.

Tudo se deu de forma muito simples. Vivian juntou as mãos diante do rosto. Fechou os olhos. Permaneceu assim durante um tempo que a Guinevere pareceu inter­minável. Merlin mantinha-se ereto, imóvel, no centro da clareira. Depois, pouco a pouco, sua imagem se tornou fluida. Como se a parede de ar tivesse ficado líquida — uma água percorrida por uma agitação, por ondas cada vez mais poderosas, até se parecerem com altas ondas translúcidas, chocando-se e se superpondo sem espuma. O chão começou a tremer.

Então uma voz grave, rouca, que não era a dela, esca­pou da garganta de Vivian. Ela pronunciava, declamava palavras numa língua desconhecida, que parecia vinda dos mais longínquos tempos, de um universo profunda­mente ameaçador e desconhecido. O chão tremia com toda a força, enquanto as ondas, agora brilhantes como aço líquido, se metamorfoseavam em centenas, milhares de rostos efêmeros, em esgares pavorosos, desprovidos de olhar. A voz jorrada dos lábios da fada adquiriu uma ampli­tude aterradora, como se nascesse daqueles milhares de bocas. Apavorada, Guinevere baixou a cabeça, tapou os ouvidos com as mãos e fechou os olhos. Escutava surda­mente o clamor de uma última nota ao mesmo tempo aguda e muito grave. Depois, mais nada. O silêncio.

A rainha reabriu os olhos.

Vivian jazia no chão, desmaiada. A clareira desapare­cera; restava apenas um subterrâneo talhado direto na rocha, iluminado por algumas tochas crepitantes. Da­quelas trevas quase totais surgiu a sombra de um homem. Guinevere fez menção de recuar. O homem, com alguns passos, chegou bem perto dela e a segurou pelo punho. Ela ia gritar, depois reconheceu Merlin.

— Jovem rainha — ele lhe disse —, estou indo embo­ra neste momento.

Lançou um olhar breve a Vivian, estendida de lado, não longe deles.

— Ela exigiu de você um juramento?

— Sim...

Os olhos pretos de Merlin cintilavam como brasas, escrutando os de Guinevere.

— Eu adivinho qual. Vivian tinha razão. Mas eu tam­bém adivinho que você vai sofrer muito para poder cum­prir esse juramento.

A rainha baixou as pálpebras.

— Eu não conseguirei — murmurou.

— Então me escute, me escute bem: por haver recusa­do o amor de Lancelot quando era tempo, você terá que renunciar a ele para sempre.

— É impossível...

Ele lhe apertou o pulso com mais força. Machucou-a.

— A sobrevivência do reino de Logres, a sobrevivên­cia de nós todos, depende de agora em diante de você. Lancelot, tenho certeza, virá procurá-la. Nem mesmo eu conseguirei impedi-lo. Só você mesma terá o poder de mantê-lo afastado de você.

— Não, não me peça isso... Eu não poderei, Merlin...

— Vai ser necessário!

Largou-lhe o braço, e de repente surgiu na sua mão uma espada cujo ferro luzia em meio à penumbra.

— Segure-a. Ela hesitou.

— Tome esta espada, jovem rainha. Obedeça.

Ela estendeu lentamente uma mão que tremia. Ele a obrigou a apertar os dedos em volta da empunhadura.

— Se Lancelot se aproximar de você, se se aproximar muito, se chegar tão perto a ponto de você acreditar que ele não tem escolha senão tomá-la nos braços, mantenha esta espada entre si e ele. Tenha essa coragem.

Com o dedo mínimo, tocou-lhe de leve a testa.

— Não estou lhe exigindo nenhuma promessa. Sei que você vai agir como deve.

Subitamente, afastou-se dela e se aproximou de Vivian desmaiada. Contemplou-a pensativamente.

— Eu amei você, Vivian — murmurou. — Agi certo? Errei? Quem sabe? Adeus.

Partiu a largos passos para a escada. Junto aos de­graus, virou-se uma última vez para Guinevere, que segu­rava a espada cruzada sobre o peito. Não acrescentou nem mais uma palavra. A sombra negra de sua capa esta­lou com força, como uma vela na tempestade. Ele sumiu através da escadaria.

 

Uma manhã, Perceval chegou a um rio. Era largo demais e fundo demais para que arriscasse a fazer passar seu cavalo. Decidiu seguir a corrente rio abaixo, em busca de um vau.

Desde sua partida da Corte alguns dias antes, atraves­sara uma imensa floresta e não encontrara ninguém pelo caminho. Essa solidão tinha lhe servido para refletir sobre os acontecimentos que se sucederam desde que deixara a Floresta Perdida. A lembrança preferida era a de seu breve encontro com o Cavaleiro Escarlate. De tempos em tem­pos, tocava com satisfação o elmo vermelho suspenso no arção* da sela, a empunhadura da espada, a longa lança que estava carregando. Sentia-se como uma criança que obteve os brinquedos cobiçados. Depois pensou na mis­são que tinha se atribuído: encontrar o famoso Mordred e vencê-lo. Tudo isso parecia muito fácil. Não duvidava de que seu caminho iria conduzi-lo naturalmente até o cava­leiro de couraça de ouro que ele vira brilhar ao sol, muito longe na crista das montanhas, no dia do encontro com os cavaleiros.

Porém, o rio que ele margeava não parecia querer se fazer menos largo nem menos profundo. Suas águas, de um verde pálido, eram furadas em certos locais por sorvedouros negros. Nem um vau, nem uma ponte. Nem uma mínima passagem, nem um modesto barco. Pelo contrá­rio, o leito do rio dentro em pouco se alargou e Perceval levantou a cabeça, aspirando o ar em volta dele. Sim, ele reconhecia aquele odor: era o do mar. Apressou a monta­ria. Num galope tranqüilo, subiu até a beira onde roche­dos negros, agudos, chegavam à superfície. Gaivotas pas­saram acima dele soltando seus gritos estridentes. Ele parou o cavalo.

Ali, diante dele, a embocadura do rio se abria para o mar, e ele não pôde deixar de se extasiar com a beleza daquele espetáculo: a água doce e azul-esverdeada se chocando com a maré montante, misturando-se a ela, deixando-se submergir na água cinzenta com reflexos azul-escuros. E Perceval assistiu a este estranho fenôme­no: a corrente do rio agora se invertera e parecia voltar a subir seu curso, como se a água, em vez de se despejar no mar, procurasse voltar na direção da nascente. Estava tão surpreso e perplexo que não escutou nem sentiu chegar o cavaleiro que se aproximou dele pelas costas.

— Surpreendente, não é? Sonhei muitas vezes que nossas vidas, quando tivessem chegado ao fim como esse rio que morre dentro do mar, também refariam seu curso, nem que fosse por alguns dias, por algumas horas...

Perceval teve um sobressalto e voltou-se. O homem que havia falado trajava elegantes roupas de arminho e apoiava displicentemente os cotovelos no pescoço do cavalo. Não o reconheceu imediatamente.

— Isso que você está admirando se chama macaréu1[3] — prosseguiu o homem. — Eis uma coisa que você certa­mente nunca viu nem suspeitou que existisse em sua Floresta Perdida.

— Quem é o senhor? E como sabe que eu venho da Floresta Perdida?

O homem estalou a língua; sua montaria trotou cal­mamente até a de Perceval.

— Então, galês, desde que vestiu essas roupas verme­lhas, não cruzou mais com nenhum arcanjo?

Espantado, o rapaz franziu os olhos. Viu seu interlo­cutor, que o observava sorrindo.

— O senhor! — exclamou de repente Perceval. — O senhor é... Garvain, não é este seu nome?

— Como então, a memória lhe voltou. O que está fazendo nestas paragens?

Perceval endireitou orgulhosamente os ombros e declarou:

— Estou procurando Mordred, que vou matar! Para sua surpresa e indignação, Garvain começou a rir, como se tivesse acabado de ouvir um excelente gracejo.

— Está me ofendendo, Senhor!

Mas Garvain riu mais ainda.

— Pela última vez, Senhor, pare!

A hilaridade de Garvain acalmou-se pouco a pouco. Com o reverso do indicador, enxugou as lágrimas de riso que brotavam de suas pálpebras, depois cruzou os braços e, com a cabeça sonhadoramente inclinada para o ombro, examinou o rapaz pálido de raiva.

— Você tem um dom, Perceval. Você é o menino mais sinceramente engraçado que já encontrei em toda a minha vida.

O rapaz trincou os dentes e empalideceu mais.

— Se o senhor estivesse armado, eu faria essas estúpi­das gracinhas voltarem todas para dentro da sua garganta!

— Ho! Ho! — fez Garvain arregalando os olhos antes de explodir de rir novamente.

Louco de raiva, Perceval levou a mão à empunhadura de sua espada.

— Eu vou lhe...!

Não disse mais nada. A mão de Garvain abatera-se subitamente sobre a sua e a imobilizara. Seus rostos fica­ram inclinados um para o outro, quase se tocando.

— Você merece uma lição — murmurou Garvain, sempre sorrindo.

E Perceval sentiu que o agarravam pelo ombro. Não teve tempo de resistir: desequilibrado, soltou os estribos e viu-se projetado no chão, sob os cascos do cavalo de Garvain.

Este último afastou lentamente sua montaria. Per­ceval, humilhado, com o rosto e as palmas sujos de lama, levantou-se precipitadamente, embaralhou os tornozelos na própria espada e caiu pesadamente sobre as nádegas.

— Eu não disse que você é engraçado?

Perceval levantou-se de novo, tomando cuidado dessa vez para não se atrapalhar com as próprias armas.

— Eu matei o Cavaleiro Escarlate por muito menos do que os seus insultos!

Segurou a espada e, desajeitadamente, tirou-a da bainha.

— Bata-se comigo, Senhor!

— Aaaahhh! — exclamou Garvain apoiando-se com mais desenvoltura ainda no pescoço do cavalo. — Logo que fica sem os seus dardos, você se torna menos pareci­do com um assassino vulgar. Ainda assim, isso está longe de ser o suficiente para que se assemelhe à metade de um quarto de um cavaleiro...

A lâmina de Perceval assoviou no ar. O rapaz avança­va lentamente para o cavaleiro.

— Quem lhe dá permissão para me tratar de assassino?

— Quem, me diga, galesinho, quem lhe deu permissão para assassinar um cavaleiro?

— Eu o enfrentei! Enfrentei!

Garvain fez um gesto de desdém.

— Com um golpe de dardo sob a viseira? Fácil, não, para um caçador de estorninhos como você?

O cavaleiro, passando tranqüilamente a perna por cima do pescoço de seu cavalo, saltou no chão. Ajeitou as abas do manto de arminho sobre os ombros, limpou a poeira do lado de dentro, negligentemente.

— Um cavaleiro — disse — se serve de uma lança, de um escudo e de uma espada. Para começar. Um cavaleiro enfrenta — enfrenta — seu adversário cara a cara, com armas iguais.

Sem parar de falar, Garvain tranqüilamente tirara o casaco. Depois de dobrá-lo com cuidado, depositou-o sobre a sela do cavalo.

— Agora, galês, mostre-me o que sabe fazer com a espada.

— Contra o senhor? Não tem espada.

— Guarde o que estou lhe dizendo, galês: um cavalei­ro só se bate com armas iguais. Você tem uma espada, eu não tenho. Eu sou cavaleiro, você não é. Estamos, pois, em pé de igualdade.

Perceval hesitou, cocando a cabeça.

— Olhe, Senhor... Eu não posso...

— Por quê?

— Não ser ia justo.

— E eu digo que não fará diferença. Ataque-me.

O rapaz não sabia o que o deixava menos à vontade: se aquele desafio que ele julgava absurdo, ou a pose e os trajes de Garvain, sua cota, camisa e calções* finamente confeccionados com tecidos finos. "Esse cavaleiro se veste como uma donzela", pensava.

—Ataque-me — repetiu Garvain. — Vamos, galês, um pouco de iniciativa!

— Senhor...

— Ah! Você me irrita! — gritou o cavaleiro. Garvain inclinou-se, apanhou um seixo, levantou-se e o jogou em Perceval. O rapaz, espantado com aquele comportamento, teve ainda assim o reflexo de evitar o projétil que ia atingi-lo em pleno rosto.

— Senhor, afinal...

— O que está acontecendo com você? Ataque-me, por Deus e todos os santos! Ou será que, sem os seus dar­dos, você é um covarde, um medroso, um menos do que nada?

Garvain fez menção de apanhar outro seixo. As maçãs do rosto de Perceval coraram com o insulto. Ele soltou uma espécie de rugido colérico, levantou a espada e se precipitou sobre o cavaleiro desarmado.

Este último não pestanejou diante do assalto. No últi­mo instante, quando o jovem galês avançava para ele e lhe assentava um violento golpe de espada, deslizou com agi­lidade, dando um passo de lado. A lâmina roçou-lhe o ombro e foi se enterrar até a metade no chão móvel da margem. Com uma simples joelhada no quadril, Garvain desequilibrou Perceval; com a palma da mão, em seguida, deu-lhe um tapa no ombro: o rapaz caiu de costas, largan­do a espada presa na terra fofa. Um instante depois, essa espada — sua espada — estava na mão de Garvain e a ponta da lâmina fazia-lhe cócegas no queixo.

— Se eu tivesse minha própria espada, galesinho, você estaria com uma grande dor de barriga neste momento. Ferro demais nas tripas, não dá para digerir...

A ponta da espada de empunhadura vermelha roçou o pomo-de-adão do rapaz. Garvain colocou o pé em cima do peito de Perceval.

— Sabe — disse-lhe Garvain —, eu devia cortar o seu pescoço para — impõe-se que se diga — cortar a sua idio­tice pela raiz.

— Faça isso! — rosnou Perceval, levantando o queixo para encostar ele mesmo a garganta na ponta de aço.

Uma lágrima de sangue correu-lhe ao longo do pes­coço.

Garvain retirou subitamente a espada e a enfiou na terra, junto do ombro do rapaz.

— Chega de brincadeiras — disse. — Levante-se.

Estendido na lama, com os braços em cruz, Perceval gritou:

— O senhor me humilhou! Mate-me!

Garvain inclinou-se para ele e falou baixo:

— Vou lhe explicar uma coisa muito importante: há um momento em que é preciso parar de ser idiota...

Ele se endireitou de uma só vez e acrescentou:

— Este momento chegou, pode acreditar em mim.

 

Garvain era proprietário de um castelo na outra mar­gem da embocadura do rio. Era um castelo de grande simplicidade — apenas quatro torres, um torreão central e um quadrado de muralhas — que, na Corte, nenhuma dama ou donzela teria imaginado como sendo o dele. Atribuíam-se a Garvain inúmeros defeitos — venais —, porque, na Corte, ele escolhera desempenhar o papel do mais sedutor, do mais frívolo dos cavaleiros, aquele cuja companhia é a mais agradável às mulheres. As mulheres o amavam, e ele lhes correspondia. Claro, ele era um dos melhores cavaleiros no torneio e na batalha; a maior parte dos varletes almejava servi-lo. Mas, provavelmente, só Arthur, seu tio e seu rei, sabia como Garvain preferia as mulheres às batalhas, os amores aos torneios, fazer rir uma mulher a decapitar seu marido. Garvain sempre vive­ra como se o próprio Deus tivesse colocado a mão sobre seu ombro. Em suma, tinha nascido e vivido como um homem feito para a felicidade.

Naquela tarde, ele instalou Perceval à sua mesa e o ali­mentou prodigamente. Olhou-o enfiar os dentes na ave e na carne, encher a boca de frutas. Fez-lhe apenas algumas poucas perguntas. Sabia tudo o que tinha para saber a respeito daquele jovem rústico: um rapazinho audacioso, arrogante, de excelente nascimento e educação imperfei­ta. Terminada a refeição, mandou que os varletes o con­duzissem a um quarto confortável, onde Perceval dormiu como dormem as pessoas jovens que não têm nenhuma preocupação.

 

— De pé!

Perceval deu um pulo. Estava nu. Viu que no quarto o dia mal surgira ainda, e que Garvain, armado dos pés à cabeça, estava à sua cabeceira.

— De pé, galês! Você tem um bocado de coisas a aprender, e não vai fazer isso sonhando. Ande! De pé!

Pouco tempo depois, ainda tonto de sono, Perceval se viu novamente no pátio do castelo. Dois escudeiros lhe trouxeram um cavalo de batalha. Um terceiro começou a vestir-lhe as armas. Nesse entretempo, Garvain apareceu no pátio, com o escudo pendurado no pescoço, o elmo sob o braço.

— Ainda não está pronto?

— Pronto para o quê, Senhor? — perguntou Perceval enquanto o escudeiro lhe passava a loriga vermelha.

— Para se tornar um cavaleiro.

Dito isso, Garvain, ajudado por um sargento, subiu na sela. Alisou o pescoço de seu cavalo de batalha cinza, olhando Perceval, que os escudeiros suspendiam sobre a própria montaria. O rapaz, com o elmo na mão — com o qual, evidentemente, não sabia o que fazer —, se deixou sacudir por um cavalo que se revelava nervoso e desobediente. Ao se sentir desequilibrado, tomou depressa uma decisão: largou o elmo que não tinha nenhuma vontade de colocar na cabeça, apertou os joelhos e as coxas contra os flancos da montaria e encurtou o tamanho da rédea. O cavalo se tornou obediente.

— E agora, Senhor? — perguntou Perceval.

Com o dedo estendido, Garvain apontou, no centro do pátio, uma espécie de espantalho fixado em uma haste de madeira, provido à esquerda de um escudo e à direita de um simulacro de lança.

— Olhe para mim! — gritou Garvain.

Esporeou o cavalo. O cavaleiro e sua montaria parti­ram em um galope repentino. Garvain brandiu diante de si a lança que segurava junto do lado direito do corpo.

O golpe foi curto e preciso: a ponta da arma atingiu o escudo bem no meio; o espantalho deu diversas voltas em torno da haste.

— É sua vez!

Perceval firmou a lança no punho e contra o quadril. Depois, esporeou a montaria. O cavalo, num sobressalto de dor, disparou com a cabeça abaixada.

— Você deve abater seu adversário! — gritou Garvain. Mas Perceval não precisava que lhe explicassem o que parecia muito simples. Seu cavalo embalado o atirava a toda a velocidade na direção do espantalho. E, para o rapaz, era mais do que um espantalho: já era um inimigo. No último instante, suspendeu ligeiramente a ponta da sua lança. Não bateu no largo escudo construído para o exercício. Enfiou a arma na cabeça de trapos do espanta­lho, e o decapitou.

De início, Garvain não fez nenhum comentário. Naquela velocidade de galope, e sem nenhuma prática de torneio, havia uma chance em cem que alguém tocasse o adversário com tanta precisão, naquele local. Seria preci­so ou um milagre, ou uma destreza quase maléfica. Garvain ordenou a seus escudeiros que fizessem uma outra cabeça para o espantalho. Após o quê, desceu de seu cavalo e se aproximou do boneco feito de madeira e de trapos.

— Você o atingiu em plena face. Muito bem. É habili­doso ou tem sorte. Um verdadeiro adversário seria móvel. Tente outra vez.

Perceval puxou a brida do cavalo e o colocou diante do espantalho que, agora, Garvain segurava.

— É com você!

Na mesma hora Perceval lançou o cavalo a galope. Ergueu a ponta da lança.

Segurando o espantalho, Garvain correu para a fren­te do jovem galês. No último segundo, saltou para o lado. Rolou na poeira do pátio, levantou-se rapidamente, deu uma breve olhada no espantalho: ele não tinha mais cabe­ça. Então Garvain olhou para o jovem cavaleiro e consta­tou que aquela cabeça de madeira e de trapos enfeitava a ponta da lança dele.

Nunca vira ninguém dar prova de tamanha destreza.

 

Passaram o dia naquele treinamento. Garvain ensinou ao rapaz como utilizar o escudo, depois eles fizeram numerosos assaltos de esgrima. O cavaleiro estava impressionado com a facilidade com que Perceval captava os gestos corretos e os reproduzia. No crepúsculo, ele ma­nuseava o escudo, a lança e a espada como se tivesse feito meses de aprendizado junto com os melhores varletes do reino.

— Vamos voltar. Está na hora do jantar.

Os escudeiros acorreram e os ajudaram a despir a loriga, antes de levarem os cavalos para as cavalariças. Garvain e Perceval entraram na sala onde a refeição os aguardava.

— Eu o convido a ficar aqui comigo algum tempo — disse o cavaleiro assim que eles se instalaram à mesa. — Você é talentoso, mas poderia se aperfeiçoar mais.

Perceval enfiou alegremente os dentes em uma fatia de carne.

— Eu lhe agradeço, Senhor — replicou, de boca cheia, com suco e sangue escorrendo pelo queixo. — Mas vou-me embora amanhã de manhã.

— Por que tem tanta pressa?

— Já lhe disse: prometi encontrar Mordred e matá-lo. Garvain sacudiu a cabeça em silêncio. Examinou o jo­vem que comia com grande apetite e péssimas maneiras.

— Então — disse finalmente —, é preciso que eu lhe ensine uma última coisa.

Perceval sacudiu a cabeça com entusiasmo.

— Continue, continue! Estou escutando.

— É o seguinte: meu jovem amigo, você fala demais.

— Eu? — disse Perceval, sinceramente surpreso.

— Você vai a toda parte anunciando que procura Mordred para matá-lo. Mas sabe ao menos a quem está se dirigindo? Imagine se eu fosse um aliado de Mordred. O que acredita que eu teria feito?

— Nós nos teríamos batido, Senhor, suponho...

— Nada de menos garantido. Eu poderia tê-lo acolhi­do sorrindo, oferecido minha hospitalidade e depois, aproveitando o seu sono, mandado assassiná-lo no leito.

— Impossível! O senhor nunca faria isso!

— Eu, não. Mas um outro, a quem você falar demais e que o julgar estúpido e arrogante, decerto não hesitará, se isso puder atrair as boas graças de Mordred, que, veja, é um dos mais poderosos fidalgos do momento, e conta, infelizmente, com numerosos partidários.

Perceval escutou atentamente. Encolheu de novo os ombros.

— Senhor, agradeço a sua solicitude. Mas, eu lhe asse­guro, não precisa se inquietar por mim. Ainda não nasceu quem vai me matar, nem que seja à traição!

— Você tem razão de mostrar tanta segurança, Per­ceval: é corajoso e hábil no combate. Contudo, eu lhe pe­ço para escutar o meu conselho: conduza-se como cava­leiro quando for recebido na casa de alguém, seja ele um príncipe ou um simples vavassalo*. E conduzir-se como um cavaleiro, no caso, é antes de mais nada conter a língua em todas as circunstâncias. Nada revelar de suas inten­ções, sobretudo quando, como agora, pretender perseguir um dos homens mais perigosos do mundo. E, o que quer que aconteça, o que quer que você veja, qualquer estra­nho ou surpreendente espetáculo que se passe debaixo dos seus olhos, saiba permanecer impassível; não faça nenhuma pergunta. A indiscrição é um erro.

Com os olhos pregados em Garvain, o rapaz escutara cada palavra.

— Senhor, eu o respeito bastante para não deixar de lhe obedecer. Portanto, farei o que está me pedindo.

— Vai saber se calar?

— Saberei me calar.

— Até que enfim! — exclamou alegremente Garvain.

— Contudo, Senhor...

— Sim?

—... o senhor me afirma que devo me conduzir como cavaleiro e que devo aceitar as suas recomendações. Mas... quando serei cavaleiro de verdade?

— Levante-se.

Dizendo isso, Garvain colocou-se também de pé e fez um sinal para um dos escudeiros parados junto ao fogo. O escudeiro inclinou-se ligeiramente, dirigiu-se rapida­mente até um pequeno cofre depositado sobre uma mesa de pedra e abriu-o. Garvain segurou Perceval pelo pulso e o conduziu ao centro da sala. Depois se virou para o escudeiro que trazia o que o jovem galês reconheceu como uma espora. Uma magnífica espora de prata. Com a espora na mão, Garvain falou ao rapaz:

— Perceval, eu tenho o poder diante de Deus de fazê-lo cavaleiro. Você será justo e bravo. Jamais usará a espada contra os fracos. Ajudará com seu braço ou seus conse­lhos aqueles e aquelas que estiverem na necessidade ou na adversidade. Você faz o juramento?

— Diante de Deus, sim! — disse orgulhosamente Perceval.

Então Garvain se inclinou, colocou um joelho no chão e prendeu ele mesmo a espora de prata no tornoze­lo direito do rapaz. Ergueu-se, deu-lhe um abraço e acres­centou:

— Você agora é cavaleiro.

— Não vai me esbofetear, Senhor? — perguntou Perceval, espantado.

— Ah, sim — sorriu Garvain. — A pancada... Só o rei pode administrá-la. É privilégio dele.

Um segundo escudeiro aproximou-se deles. Garvain apanhou a espada que ele lhe estendeu e colocou-a sobre as mãos abertas de Perceval.

— Eu lhe dou minha espada. Que nenhuma baixeza de sua parte jamais conspurque sua lâmina.

Garvain deu um passo para trás, enquanto o jovem cavaleiro colocava lentamente a espada no cinto.

— Uma última recomendação: quando combater um cavaleiro, e o tiver vencido, ou se ele estiver apenas ator­doado ou ferido, não dê o golpe de misericórdia. Jamais mate a sangue-frio.

— Eu prometo.

 

No dia seguinte de madrugada, Perceval se aprontava em seu quarto quando Garvain entrou, acompanhado de dois escudeiros.

— Dormiu bem?

— Perfeitamente, Senhor.

Um dos escudeiros foi até a cadeira onde o galês lar­gara suas roupas desordenadamente e, com uma ligeira careta de nojo, fez uma bola com elas, como um pacote.

— Ei! — indignou-se Perceval. — Deixe essas roupas, foi minha mãe que costurou!

Estava prestes a saltar sobre o escudeiro; Garvain o conteve com firmeza pelo braço.

— Eu o fiz cavaleiro, Perceval. Não posso deixar um de meus cavaleiros correr o mundo vestido como um camponês.

— Mas, Senhor...!

— Faz questão de passar vergonha?


— Não, mas... Mas eu me sentia bem dentro dessas roupas! Além disso, elas vêm de minha mãe...

Garvain sorriu de um jeito meio brincalhão, meio enternecido. Fez sinal para que levassem os andrajos. O segundo escudeiro colocou no lugar uma camisa de linho fino, calções vermelhos e uma túnica de seda violeta.

— Agora, vou deixá-lo. Vista-se e vá me encontrar no pátio.

Saiu do quarto, enquanto Perceval, seminu, com as mãos nos quadris, examinava com uma expressão contra­riada seus novos aparatos.

Os primeiros raios de sol douravam as paredes do castelo quando Perceval montou seu cavalo de batalha. Apertou a mão que lhe estendia Garvain, de pé junto dele no pátio.

— Escute seu instinto e siga meus conselhos. Deus o proteja, cavaleiro.

Suas mãos se separaram. Garvain bateu na garupa do cavalo, que saltou para a frente. Perceval saiu do castelo e se afastou na direção do mar, sem se voltar.

 

O gavião passava muito alto no céu. Ele sobrevoara florestas, vales, falésias, o mar; mais falésias, vales, flores-us. Finalmente, parou de bater as asas e, deixando-se levar por um ligeiro vento de altitude, planou em círculos cada vez mais estreitos. Aproximava-se do solo. Seus olhos redondos, intensos e pretos observavam o bosque de pinheiros, acima dele, e a clareira cercada de muros muito altos. Logo chegou tão perto que as manchas de cor — Vermelhas, azuis, amarelas — que desenhavam elegantes arabescos naquela clareira se transformaram em canteiros de flores. Uma alameda de saibro azulado serpenteava ali.

O gavião pousou no alto do muro da cerca e conti­nuou a observar. Sob a copa das árvores centenárias que sombreavam a outra extremidade do jardim, duas silhuetas apareceram. Elas caminhavam pacificamente uma ao lado da outra. Uma era de uma mulher de longa cabeleira loura que, por vezes, inclinava-se e colhia uma flor. A outra era de um homem de compleição forte, de rosto coberto por uma barba ficando grisalha como seus longos cabelos desgrenhados. Com o rosto inclinado para a mulher, ele não parava de lhe falar. O gavião girou brus­camente a cabeça; seus olhos piscaram. Ele escutou.

— Espere, Senhora — dizia o homem —, vou ajudá-la a colher esta flor.

Ele se curvou sobre o canteiro de pervincas; seus dedos roçaram os dedos quase translúcidos da mulher, e pareceram cortar juntos o frágil caule.

— Tome, Senhora. O azul vai sobressair entre os junquilhos como o ouro de seus cabelos realça o brilho de seus olhos.

Sua voz era estranhamente rouca, sem entonação. Pa­recia pronunciar palavras gastas por um hábito de muito tempo, palavras que ele mesmo não escutava mais. O gavião abriu o bico, soltou um breve grito, parecido com uma gargalhada triste e provocante. Batendo duas vezes as asas, pousou sobre o saibro azul da alameda.

E, enquanto o estranho casal formado pela mulher loura muito jovem e pálida e o homem envelhecendo avan­çava na sua direção, a ave se agitou repentinamente: sua plumagem inchou, suas asas se estenderam, todo o seu corpo se abriu, metamorfoseando-se em uma ampla capa de onde brotaram braços estendidos para o céu, depois uma cabeça com cabelos negros — a cabeça descarnada, voluntariosa, de olhar penetrante, com um nariz curvo e aliado como um bico, de Merlin o mágico.

O casal não pareceu ter visto o prodígio. O olhar muito claro da jovem, contudo, estava pousado em Mer­lin, mas sem nenhuma outra expressão além de uma paz um pouco idiota. Quanto ao homem, não desviou o olhar do rosto daquela que o acompanhava. Todo o resto parecia não lhe interessar.

— Lancelot, vim buscar você — disse Merlin.

O homem não reagiu. Cochichou sorrindo algumas palavras no ouvido da moça. Merlin teve que se afastar, dando um passo para o lado. A mulher continuou a avan­çar, ignorando a presença do mágico. Ele estendeu a mão para segurá-la pelo ombro: seus dedos encontraram apenas uma espécie de bruma que se desfez por um instante ao seu contato, e se refez assim que ele retirou a mão.

Merlin, que reconhecera Guinevere, havia evidente­mente adivinhado que ela era uma réplica, um engodo da rainha de carne e sangue. Mas não esperava que ela fosse apenas uma imagem, tão perfeita era a ilusão. Como conhecedor, apreciou os talentos de Morgana, pois para ele não havia nenhuma dúvida de que a meia-irmã de Arthur, a necromante, havia criado aquele jardim, aquela falsa Guinevere e aprisionado o cavaleiro. Só ela seria capaz disso. Com alguns passos, aproximou-se de Lancelot e tocou seu ombro.

— Cavaleiro, olhe para mim.

Sim, o ombro de Lancelot era de fato um ombro humano: tinha realidade e calor. Mas o cavaleiro estava tão profundamente, e há tanto tempo, mergulhado na ilu­são do Vale sem Volta, que parecia ter se transformado também em ilusão — como alguém que está dormindo e não pode escapar de um sonho perpétuo. Ele não ouvia a voz de Merlin; não sentia o contato de sua mão. Aquela voz e aquele contato, excessivamente reais, não perten­ciam mais ao mundo onde seu espírito se refugiara.

Merlin experimentou um curto instante de desânimo. Foi o suficiente para que uma brecha se abrisse no poder protetor de sua própria presença, e para que, de súbito, Morgana aparecesse.

Grande, alta, morena, de uma beleza de ave de rapina, surgiu de repente na alameda, alguns passos atrás do casal e de Merlin.

— Que bela surpresa! — disse, com uma voz estri­dente. — Não esperava mais revê-lo um dia, filho do diabo. O que aconteceu com Vivian para que você este­ja aqui, como um grande pateta, no meio das minhas flores?

— Creio que estive ausente por tempo demais. Vim pôr de novo um pouco de ordem neste mundo.

Morgana soltou um riso malvado.

— Quanta pretensão! "Pôr de novo um pouco de ordem neste mundo"... É tarde demais, Merlin. O mundo girou sem você, e dentro em breve girará muito mais a meu favor!

— Para pretensioso, pretensiosa e meia — ele mur­murou.

Acocorou-se. Estendeu a palma aberta acima do can­teiro de pervincas. Na mesma hora elas murcharam, per­deram o viço, escureceram — e viram-se apenas dezenas de minhocas fervilhando no solo.

— No fundo — disse calmamente Merlin —, suas flo­res são parecidas com você.

E se levantou.

— Merlin! — rosnou Morgana. — Não me faça ficar com raiva, não tente contrariar meus projetos, senão...

— Senão? — perguntou mansamente o mago, conti­nuando a massagear sonhadoramente os dedos.

— Senão, você e eu estaremos em guerra!

— Ah, bom... É só isso — suspirou Merlin. — Sabe, após tantos anos passados na minha prisão de ar, eu me perguntava se meus poderes tinham me abandonado... Parece que não, afinal. Olhe.

Com o braço estendido, os dedos abertos, ele fez um amplo gesto circular englobando todo o jardim. As flores, como se tivessem sofrido o efeito de um gelo instantâneo, secaram, caíram, desagregaram-se e se transformaram em um monte de vermes se contorcendo de forma repugnante.

— Vai se arrepender, Merlin!

— Claro, claro... Entenda, Morgana, eu a conheci criança. Tenho dificuldade de levá-la a sério hoje em dia.

— Você não sabe no que se transformaram meus poderes!

— Eu sei, de todo modo, que você não está assim tão certa a respeito desses famosos poderes, caso contrário não teria vindo em pessoa me enfrentar.

— Merlin, pela última vez...

— Cale-se, está me irritando. Você é apenas uma ilu­são de si mesma.

Virou a mão com os dedos abertos para a necromante. Ela fez uma careta de ódio e de impotência. Pouco a pouco, os traços de seu rosto se embaralharam, se apaga­ram; ela virou apenas uma alta sombra negra. Então Merlin baixou a mão rapidamente na direção do chão: a sombra negra desabou como um vidro que se quebra, e seus pedaços, espalhados no saibro azul, se transforma­ram em um monte furioso de víboras.

Merlin não precisou mais utilizar sua magia. Tão logo a imagem de Morgana foi vencida, transformada em um ninho de serpentes, seu poder sobre o Vale sem Volta desvaneceu-se. Os muros intransponíveis que o cingiam se metamorfosearam em milhões de insetos que voaram juntos, num zumbido extraordinário. Surgiu, acima da clareira, uma espécie de nuvem de trevas que ocultou o céu. Escureceu. Em seguida, a nuvem de insetos se dis­persou aos quatro ventos. Alguns instantes mais tarde, o batimento frenético de seus milhões de asas foi-se ate­nuando, dando lugar apenas ao barulho nítido e brando do riacho que corria dentro do vale.

— Não! Guinevere!

Merlin deu meia-volta. Ali, a alguns passos dele, Lancelot caía de joelhos e estendia os braços — para a falsa Guinevere, cuja imagem, como uma água em sus­pensão, se tornava transparente e escorria. O cavaleiro ten­tava reter entre os dedos alguma coisa, um fragmento, algumas gotas daquela imagem que ele havia acompanha­do, seguido, amado por tanto tempo. Em vão. A falsa Guinevere desapareceu, e Merlin viu sua substância ilu­sória se espalhar na alameda, absorvida pelo saibro.

— GUINEVERE!

Merlin, pela primeira vez, sentiu uma inquietação: e se o cavaleiro não fosse mais capaz de se evadir da ilusão criada por Morgana e de seu próprio amor por Guineve­re? E se ele tivesse vindo apenas para salvar um louco...? Precipitou-se para Lancelot, agarrou-o pelos ombros, sacudiu-o.

— Acorde, cavaleiro. Por todos os deuses do Antigo Mundo, acorde!

—Ali...—falou baixinho Lancelot. —Ali... Ela está ali...

Apontava com o dedo atrás de Merlin. Ele virou a cabeça. E o que viu espantou-o — a ele, filho do diabo, que nada podia espantar. Do saibro da alameda, no ponto onde se liquefizera a imagem da falsa Guinevere, uma planta estava surgindo, e se agarrando, e aumentando, estendendo seus galhos — e, sobre os galhos, flores nas­ciam, se abriam, desabrochavam.

Eram rosas. Rosas azuis.

— Veio me buscar...?

Merlin se virou para Lancelot. O cavaleiro, passando a mão no rosto, tocou sua barba grisalha, deixando os dedos correrem por ela.

— Eu envelheci... Quantos anos se passaram?

— Pouco importa. Está na hora de voltar para o mundo.

Merlin o ajudou a se pôr de pé. Cambaleando, Lance­lot olhou para o mago.

— Quem é você?... Não me responda. Se me tirou deste pesadelo, é porque é uma espécie de amigo.

Lancelot lançou um olhar à própria volta. Não havia mais flores. Até os vermes tinham voltado para a terra. As víboras tinham se dispersado. Não havia mais muros. Um cavalo, selado de branco, passava um pouco mais acima do vale.

— Eu estou livre?

— Sim — disse Merlin. — Mas tome cuidado com essa liberdade.

— Onde está Guinevere?

— Com o rei. Com Arthur. É o lugar dela.

— Ela sabe o que me aconteceu?

— Não. Mas me mandou aqui.

Lancelot, com os olhos perdidos no vazio, balançou lentamente a cabeça.

— Obrigado... Sabe? Eu não estou me dando conta... Estou vivo ou morto? É um novo sonho, uma outra ilusão?

— Tudo é ilusão, cavaleiro. Quaisquer que sejam nos­sas vidas.

— Talvez... — murmurou Lancelot.

Ele se aproximou da roseira plantada na alameda. Colheu uma rosa azul e com ela enfeitou sua camisa. Apontou para o cavalo que pastava não longe deles.

— É o seu?

— É para você. Faça bom uso dele.

Lancelot sacudiu de novo a cabeça, afastou-se alguns passos e parou.

— Guinevere... Ela ainda me ama?

Merlin não respondeu. Apontou para o cavalo.

— Parta, cavaleiro.

— Ela está me esperando?

O mago baixou tristemente a cabeça.

— Temo que sim.

Lancelot não perguntou mais nada. Virou as costas para Merlin e se dirigiu para o rocim. Frases milhares e milhares de vezes repetidas ainda davam voltas na sua cabeça, as que ele dissera, dissera... quantas vezes à falsa Guinevere? Procurava as novas, as jamais pronunciadas, as que pronunciaria quando finalmente estivesse diante da verdadeira rainha.

Quanto a Merlin, antes de se tornar de novo gavião, perguntou-se: seria de fato tarde demais para salvar Arthur, seu reino e todo o mundo? Ele também, o mago, o "filho do diabo", envelhecera, como Lancelot?

Toda a sua magia nada podia contra o tempo.

 

Pouco depois de partir do castelo de Garvain, Perceval deu inteiramente as costas ao mar. Aquele imenso espaço movente, desconhecido, o deixava pouco à vontade. Embrenhou-se na solidão das florestas.

Sentiu-se na mesma hora melhor. Mais ele mesmo. Os troncos das árvores antigas, os fetos, o passo curto da caça fugindo, tudo aquilo o trazia de volta ao que ele era, no mais fundo de si: um garoto da floresta. Os aconteci­mentos tinham sido tão rápidos e tão brutais desde que deixara a mãe, que não tinha tido tempo de refletir sobre o que lhe acontecera. Ali, durante as longas jornadas em que cavalgara tranqüilamente em meio aos carvalhos, pôde fazer o retorno para dentro de si. E o que resultará daquilo? Roubara um beijo e um anel de uma donzela, reencontrara o rei Arthur, matara um Cavaleiro Escarlate de quem portava agora as armas, passara perto de dois dias junto do cavaleiro da Távola Redonda, Garvain, que lhe mostrara não somente o que um cavaleiro deve saber fazer ao manusear o escudo, a lança e a espada, como também o havia sagrado cavaleiro e lhe prodigalizado conselhos. Guardara sobretudo este: sempre "conter a língua", não ficar falando a torto e a direito, respeitar quem o hospedasse em qualquer circunstância...

Depois de passados alguns dias, sozinho na floresta, uma espécie de melancolia o acometeu. Saudade de sua infância — bem próxima, mas já lhe parecendo bem dis­tante —, da Floresta Perdida onde havia crescido e se feito homem. Pensou então na mãe, que lhe permitira aquela infância livre, e lamentou a dureza de seu comportamen­to ao se despedir dela. Reviu a imagem que lhe ficara, ao lançar um último olhar para trás antes de atravessar o arvoredo: uma silhueta desesperada, no umbral do solar, desabando no chão quando ele virará a brida. "Será que está morta?", pensou de repente. "Talvez minha brutali­dade e minhas palavras a tenham matado." Teria sido ele um mau filho?

Diante dessa idéia, seu coração se apertou. Mas, agora, sendo um cavaleiro, não poderia honestamente cumprir seus deveres se fosse culpado da morte da pró­pria mãe. Era preciso saber. Era preciso revê-la. Era preci­so que aquele erro, aquele pecado, aquele malefício de um filho em relação à sua mãe fosse redimido para sempre por intermédio deste ato tão simples: voltar à Floresta Perdida e tomar sua mãe — viva — nos braços.

Esporeou o cavalo. Tinha que deixar essa floresta. Voltar para casa. O cavalo começou a galopar pelo estrei­to caminho entre as árvores. Em direção ao oeste.

Algumas horas mais tarde, enquanto o crepúsculo se anunciava, Perceval e sua montaria saíram da floresta. Logo em seguida o som dos cascos martelando o solo foi abafado, se esvaneceu. Perceval — que, até então, nada via à própria volta de tanto que seu pensamento estava fixa­do na imagem da mãe — percebeu que o cavalo percorria uma longa praia de areia, na maré baixa. Diante dele uma cidadela se erguia, dominando um vasto burgo construí­do sobre as vertentes de uma quase ilha de rochedos.

O rapaz reteve a montaria. E, enquanto o vento do mar o atingia com chuviscos invisíveis, ele examinava a região.

O sol poente, ao longe no horizonte curvo, sombreava de roxo e vermelho as muralhas da cidadela que se erguiam a pique do mar. O vilarejo parecia marcado por traços sangrentos ou negros. E, mais longe, a algumas centenas de passos do recinto, lá onde se estendia a som­bra longa do torreão, torres e muralhas, um acampamen­to tinha sido montado, em um largo semicírculo. No alto das tendas amarelo-douradas, estandartes cor de noite e de sangue estalavam na brisa.

Perceval esporeava de leve a montaria para fazê-la marchar novamente, quando os últimos raios de sol atin­giram o acampamento. Endireitou-se de repente e pôs a mão na empunhadura da espada. Naquela derradeira luz antes do mergulho na noite, alguma coisa havia brilhado, cintilado: uma armadura. Uma armadura de ouro.

— Mordred! — rosnou Perceval.

Fez o cavalo galopar. Mantinha os olhos fixos na ínfi­ma silhueta dourada que lançava clarões de ouro no cre­púsculo. Era ele. Mordred. Ele havia prometido enfrentá-lo. Matá-lo.

Quando o cavalo começou a escalar a encosta de rochedos e de areia que levava ao acampamento, o sol ter­minara de mergulhar no mar. Era apenas um halo verme­lho, ardósia e dourado acima do limite marítimo do mundo. A silhueta de Mordred desapareceu.

— Ande! Ande!

Perceval forçou seu cavalo, com esporas e voz, até o alto da encosta. Até a entrada do acampamento. Ali, con­seguiu perceber o ligeiro cintilar da armadura de Mordred se afastando a galope em direção ao oeste. Perceval quis partir em sua perseguição. Mas compreendeu imediata­mente que precisava atravessar o acampamento inteiro, e que, antes de chegar a Mordred, teria que se bater com seus homens. Eles eram centenas. Ele não tinha nenhuma chance.

Acariciou ternamente o pescoço do cavalo, sem fôle­go depois daquele galope e daquela escalada. O que lhe restava fazer? Em um instante, compreendeu que era muito simples: aquele acampamento de tendas de pano dourado era o de Mordred; era um acampamento de sitiantes; Mordred era o homem que ele deveria enfrentar e matar; um vilarejo e uma cidadela sitiados pelas tropas de Mordred eram, necessariamente, seus amigos, seus aliados naturais.

Aproveitando a noite que se estendia em volta dele, contornou o campo e se apresentou à porta principal do recinto.

 

— O que deseja, cavaleiro?

Perceval levantou a cabeça. À direita da porta princi­pal, o portão de madeira protegendo uma abertura na muralha tinha sido empurrado e um jovem aparecera, com uma tocha na mão. Na claridade trêmula da chama, parecia pálido e magro.

— Peço-lhe que me deixe entrar e me conceda hospi­talidade durante a noite.

— Cavaleiro, será com prazer que o acolheremos. Mas não vai ficar nem um pouco agradecido, creia-me.

Antes que Perceval tivesse tido tempo de perguntar o porquê daquela estranha afirmação, o rapaz fechou nova­mente o portão. Pouco depois, um batente da pesada porta se entreabriu. Quatro sargentos, um após o outro, surgiram sobre a ponte e cercaram Perceval e sua monta­ria. Estavam todos com a espada do lado e tinham um grande machado de guerra suspenso no ombro.

Examinaram-no durante um momento em silêncio. Eram homens de estatura alta, de boa conformação, mas surpreendentemente emagrecidos. Cobrindo a metade de suas faces encovadas, profundas olheiras lhes sublinha­vam os olhos onde ardia a febre.

— Entre, Senhor. Entre em Beau Repaire. Empurraram a porta o suficiente para que o galês pudesse passar com sua montaria. Logo a fecharam no­vamente atrás deles e a embarricaram. Em seguida, escol­taram Perceval pelas ruas inclinadas do burgo.

Nem um fogo, nem a menor chama de vela brilhava por trás das janelas das casas. A maior parte estava aberta, com as portas batendo devido ao vento do mar. As pare­des estavam destruídas, os tetos, desabados. Às vezes, não restavam de pé senão algumas ruínas enegrecidas por um antigo incêndio.

— O que aconteceu? — perguntou Perceval.

— No começo da primavera, as tropas de Mordred nos atacaram de surpresa. Conseguimos expulsá-los, mas o vilarejo, como vê, Senhor, foi devastado. Os habitantes que não foram mortos fugiram de Beau Repaire.

— E agora?

— Há seis meses sustentamos o cerco. O que nossos inimigos não conseguiram pelas armas, esperam alcançar pela privação, a fome e as epidemias.

O sargento se expressava com uma voz fatigada, mas com um tom resoluto. Perceval sentiu que aquele homem estava pronto a morrer para não se submeter aos sitiantes.

Chegaram ao castelo que dominava, a leste, o vilarejo, e, a oeste, o mar. Entraram no pátio onde um varlete veio ao seu encontro. Cobriu os ombros de Perceval com um leve manto de seda cinza, enquanto os sargentos condu­ziam seu cavalo às cavalariças. Uns doze degraus talhados na rocha iam dar na grande sala do castelo.

Estavam lá reunidos, à luz de tochas e velas de sebo, cerca de vinte cavaleiros. Eles interromperam suas con­versas e olharam o jovem desconhecido, com armas ver­melhas e de túnica violeta, entrar na sala. Estavam todos magros, lívidos, seus gestos tornados mais lentos pelo cansaço das privações. Perceberam com mais intensidade ainda a presença cheia de juventude, saúde e segurança daquele cavaleiro com rosto de adolescente.

Todos aqueles olhares febris pousados nele, e o súbi­to silêncio, perturbaram um pouco Perceval. Ele buscou uma frase, uma palavra para dizer — depois subitamente se lembrou da recomendação de Garvain: "Quando lhe oferecerem hospitalidade, saiba conter a língua em todas as circunstâncias." Então fechou os lábios e se calou, contentando-se em percorrer a assistência com o olhar, sem ter consciência de que essa atitude podia se passar por arrogância e desafio.

Felizmente, a tensão que reinava na sala diminuiu por si mesma quando uma voz jovem e clara disse:

— Seja bem-vindo.

Nesse momento, uma moça começou a descer os degraus para se juntar aos cavaleiros e a Perceval.

Trajava uma túnica preta e estrelada de prata, debruada de arminho. Seus cabelos louros lhe cobriam os ombros até as costas, como uma capa luminosa e leve. Mais pálido do que o marfim, seu rosto era tão fino que nele apenas se distinguiam o brilho sorridente e franco de seus olhos azuis, abertos em fendas oblíquas na direção das têmporas, e a mancha vermelha como sangue de sua boca pequena. Nunca se vira uma donzela com tamanha beleza e tamanha graça.

Mas Perceval ainda não vira muita coisa do mundo, e o que acreditava saber sobre moças tinha ouvido de Galehot e durante o encontro que se seguira com a noiva do Cavaleiro Escarlate. Não ficou, portanto, nem um pouco impressionado com aquela aparição. Para reconhe­cer a verdadeira beleza, é preciso já tê-la encontrado. Na Floresta Perdida, Perceval nunca ouvira aquela palavra, beleza, e, se o sentimento, apesar de tudo, o havia atingido algumas vezes — um cervo imóvel, à espreita; a plumagem multicolorida de um faisão; ou simplesmente as nuanças da luz nas nuvens ou nas folhagens —, ele ainda não dissera: "É bonito." Apreendia as sensações como elas vinham, depois as esquecia.

Assim, quando a donzela, chegando ao final dos degraus, foi ao seu encontro, sorridente e amistosa, ele não sentiu nenhuma atração por ela. Pela atitude deferente dos cavaleiros, pela elegância de suas roupas, com­preendeu que ela era a dona do lugar. Isso fazia dela sua anfitriã, e ele concluiu que devia seguir com ainda mais empenho o conselho de Garvain: "conter a língua".

Ela parou diante dele. Pareceu um pouco surpresa com o seu silêncio e sua expressão impassível, mas, como boa anfitriã, não lhe fez nenhuma crítica. Tomou-lhe gra­ciosamente a mão.

— Cavaleiro, com certeza não será recebido aqui como merece. Mas suponho que, para chegar até nós, teve que percorrer o acampamento de nossos sitiantes e atra­vessar as ruínas do burgo. Não preciso, pois, acrescentar nada sobre nossa situação. Aceite nossa hospitalidade pelo que ela é, e eu lhe desejo que encontre proximamente uma melhor do que a nossa.

Ninguém, nunca, tinha se dirigido a ele com tanta doçura e naturalidade. Ele ficou encantado com o tom daquela moça e com a delicadeza dos dedos que ela desli­zara entre os seus.

Após um novo sorriso, levou-o a uma peça afastada da sala. O teto estava pintado como um céu de noite: ele reconheceu as estrelas, as constelações que freqüente­mente admirara em sua infância. Ela o conduziu até um leito. Sentaram-se lado a lado. Alguns cavaleiros se apro­ximaram, instalando-se sobre assentos ou direto no chão em volta deles.

Perceval, com as costas rígidas, as mãos espalmadas nos joelhos, calava-se obstinadamente. O silêncio lhe custava, ele que era muito falador por natureza. Sentia-se, portanto, muito orgulhoso por estar seguindo com tanta firmeza os conselhos de Garvain. Nos olhos da moça ele acreditou perceber incompreensão, e escutou os cavalei­ros que começavam a falar baixo.

— Quem é ele?

— Por que não diz uma palavra?

— Ele é mudo?

— Ou bobo?

— Tem grande compostura. Não acho que seja idiota, é impossível.

— Mas, ainda assim, de onde saiu? Tenho a impres­são de já ter visto essa loriga vermelha.

— Olhe seu tornozelo direito: tem uma espora de prata. Novinha. Acaba de ser sagrado cavaleiro. Por um rico vassalo.

— Quem, na sua opinião?

— Pouco importa. Eu lhe garanto, é um idiota.

— Por quê?

— Tem a oportunidade de se sentar junto de nossa donzela, e não lhe diz nem uma palavra, mal a olhou.

— Comportamento de idiota, tem razão. De todo modo, não de um cavaleiro.

— E se ele tiver roubado a espora de prata? Indignado, Perceval ardia de vontade de replicar a todo aquele falatório. "Conter a língua"! Claro, mas não ao preço dessa humilhação! Apertara os punhos e prepa­rava-se para encarar aqueles homens que zombavam dele, quando a moça pousou docemente os dedos sobre seu punho.

— Cavaleiro — disse —, sem querer ser indiscreta, posso saber de onde vem e o que o trouxe aqui?

Ela compreendera que ele não lhe diria uma palavra se ela não lhe dirigisse a palavra primeiro. Quanto a ele, sentiu-se reconhecido por ela lhe oferecer a ocasião, fi­nalmente, de se expressar.

— Nestes últimos dias, atravessei a floresta ao sul de seu castelo.

Voltou o olhar para os cavaleiros que tinham se cala­do e o escutavam com atenção.

— Antes disso — prosseguiu com orgulho —, tive a honra de ser armado pelo cavaleiro Garvain e de me hos­pedar em sua residência. Ele me deu alguns conselhos e um ensinamento de que espero me mostrar digno.

Um rumor de surpresa admirativa percorreu a peça.

— Meu bom amigo — declarou a moça —, gostei da forma como disse isso. O senhor falou com muita delica­deza e cortesia. Conheço Garvain. Quem não o conhece? É um homem honrado e sobrinho do rei Arthur. Ele só pode ter lhe dado o melhor dos ensinamentos.

A moça se pôs de pé.

— Permita que me apresente: meu nome é Blancheflor.

Ele também se ergueu e inclinou a cabeça.

— Perceval — disse simplesmente.

Ela fez um imperceptível movimento de surpresa. Felizmente, aprendera a permanecer segura de si, quais­quer que fossem as circunstâncias, para que um jovem rústico como o galês percebesse alguma coisa.

— Muito bem, Perceval, já que este é o seu nome — prosseguiu ela, conduzindo-o pela sala —, nossa hospitali­dade vai lhe parecer bem medíocre, depois da que o senhor deve ter conhecido em casa do poderoso e rico Garvain. Toda a nossa provisão, esta noite, consiste em seis peda­ços de pão e, pela graça de Deus, um cabrito que um de meus homens matou esta manhã com uma flecha. Posso ver neste fato o presságio de que o senhor passaria por nossa casa.

Com um sinal, ela mandou arrumar as mesas. Os varletes obedeceram com pressa. E foi com a mesma pressa que todo mundo se sentou para jantar. Aqueles homens, que a fome atormentava há meses, devoraram o cabrito e o pão com enorme apetite. A própria Blancheflor comia com visível prazer, e a refeição terminou muito depressa e sem que uma palavra fosse pronunciada.

Após o quê, a donzela e diversos de seus cavaleiros acompanharam Perceval até seu quarto. Os outros, assim como a maior parte dos sargentos, se prepararam para uma noite de vigília e alerta: desde o primeiro assalto das tropas sitiantes, temia-se uma nova traição da parte deles, um ataque noturno em contradição com todas as leis da cavalaria.

Perceval viu com satisfação que o leito que lhe ofere­ceram era dos mais confortáveis. Não pedia mais nada. Depois de lhe desejarem boa-noite, os cavaleiros se retira­ram. Blancheflor hesitou; depois, baixando as pálpebras, pousou seus dedos frágeis sobre o punho do rapaz.

— Se eu ousasse, cavaleiro...

Qualquer outro teria ficado perturbado com aquele contato, emocionado com aquela voz subitamente tími­da. Mas Perceval não se deu conta de nada. Aquela cama, aquele travesseiro, aquelas cobertas espessas eram tudo o que lhe interessava no momento. Tinha cavalgado muito, e dormido várias noites na floresta. Bocejou e se espreguiçou.

As faces da moça coraram. Ela recuou um passo.

— Perdão, cavaleiro. O senhor está com sono...

— De fato — reconheceu ele, apalpando o colchão.

— Então vou deixá-lo.

Ela saiu rapidamente do quarto.

Foi só depois que ela fechou a porta que Perceval pensou como tinha gostado da súbita vermelhidão de suas maçãs do rosto, que realçava a tez pálida como o pêlo de uma raposa das neves, e combinava com o ver­melho brilhante de seus lábios. Pensamento fugidio, efê­mero, que escapou de seu espírito assim que se deitou na cama. Adormeceu na mesma hora, sem preocupações e sem sonhos.

Mas, se Perceval dormia como um animal numa toca bem quente, Blancheflor, por outro lado, não podia fechar os olhos. Ela se virava e revirava na cama, sem conseguir expulsar a angústia que a atormentava há vários dias — desde que seu velho senescal, que sempre se ocupara da intendência do castelo, lhe informara que não restava pra­ticamente nada das reservas de grãos e carne desidratada. Estava chegando o momento em que, se não quisessem morrer de fome, teriam que fazer uma escolha terrível: ou abrir as portas da cidadela e se submeter aos homens de Mordred, ou então tentar uma saída, um enfrentamento de um contra dez, e morrer em combate. Nos dois casos, Mordred iria ganhar. E quanto a ela... não ousava sequer imaginar a sorte que lhe estava reservada...

Mas esse jovem cavaleiro, formado por Garvain, tinha se apresentado no castelo dela. Não podia acreditar que fosse um acaso. Deus tinha desejado. Claro, ela achara as maneiras desse Perceval bem estranhas — para não dizer grosseiras. E ela conhecia sobre ele dois segredos que deveria ter lhe contado tão logo ele se apresentara. Mas, afinal, que importância isso tinha? Não estava pedindo a ele para saber manter uma conversa, e sempre haveria tempo, mais tarde, de lhe confessar o que ele precisava saber... Quanto mais ela refletia, na ansiedade da insônia, mais dizia a si mesma que uma única coisa contava: que ele soubesse combater como um aluno de Garvain devia saber fazer. Ela dispunha no castelo de uns vinte cavalei­ros de excelente educação — conversadores notáveis, delicados, engraçados. Nenhum, contudo, que fosse capaz, com uma espada e um cavalo, de realizar o único feito — ela tinha certeza disso, naquele momento, e se ergueu no leito — que os salvaria, a ela e a sua cidadela.

Vestiu por cima da camisa um curto casaco de seda escarlate e, descalça, sem se preocupar mais com as conve­niências, saiu do quarto e correu silenciosamente pelos corredores até o quarto de Perceval.

Ele dormia como uma criança. Ela acendeu uma curta vela e examinou o rosto dele. Um adolescente. Uma penugem delicada mal dourava ainda seu queixo e sua face. Contudo, ela o havia visto portando suas armas de cavalei­ro, montado em um cavalo de batalha de alto preço, ele lhe dissera ter sido formado por Garvain, e ela estava segura de que ele não mentia. Ela tinha que ousar. Tinha que convencê-lo, cercá-lo por todos os lados. "Seduzi-lo, se não houver outro meio", disse a si mesma, finalmente.

Ajoelhou-se à cabeceira. E ali, com a decisão tomada, deu livre curso à sua angústia. Abandonou-se a si mesma. Chorou. Seu rosto logo ficou coberto de lágrimas. O pranto sacudiu seu peito, ela soluçou, suspirou. Tanto e tão bem que Perceval terminou por abrir os olhos.

Surpreso, viu o rosto desfeito de Blancheflor curvado sobre ele. Por reflexo, encostou a mão no ombro dela.

— O que houve? Por que está chorando?

Ela inclinou tristemente a cabeça para o lado e esfre­gou a face na mão de Perceval.

— Estou chorando porque todos nós vamos morrer, cavaleiro...

— Como?

— Estou chorando por meus cavaleiros, meus varletes, meus serviçais, meu castelo e por mim mesma. Amanhã, ou um dia depois, estaremos à mercê dos homens de Mordred...

— Como assim?

Ela sentiu que ele estava atento — e perturbado: não tirava a mão dela e, como por distração, acariciava-lhe delicadamente o ombro. Ela foi se esgueirando na cama do rapaz até se deitar do lado dele.

— O senhor comeu conosco esta noite nossos últi­mos pães — soprou-lhe no ouvido, aconchegando-se mais contra ele, que não se desviou. — Há seis meses, Aguingueron, que dirige o cerco para Mordred, nos mata de fome sem piedade. Eu tinha trezentos e dez cavaleiros; não me restam mais do que vinte. Os outros, quando não morreram de fome, ou no combate, ou de doença, me traíram. Mesmo que quiséssemos, não poderíamos en­frentar amanhã Aguingueron e seus homens sem que morresse até o último dos nossos...

— Ignoro quem é esse Aguingueron. Mas, se ele é cavaleiro, não vai matá-la, minha bela.

— Vai ser bem pior: serei sua cativa. Ele me entregará a Mordred. E eu prefiro morrer por minhas próprias mãos!

Ele a apertou contra si, firmemente.

— A senhorita não vai fazer isso! Eu a proíbo.

— Com que direito, cavaleiro? Uma vez que eu não teria escolha...

Ele a apertou mais ainda, e experimentou uma sensa­ção que nunca tinha conhecido: um calor e uma exalta­ção de todo o corpo que, ao mesmo tempo, o faziam incompreensivelmente feliz e lhe embaralhavam o pensa­mento. Tratou de se controlar.

— Escute, Blancheflor, há certamente uma outra solução...

— Sim — murmurou ela —, haveria uma... Aproximou os lábios da boca de Perceval, roçando-a.

Ele não ousou se mexer. Esqueceu todas as recomenda­ções de Galehot sobre a conduta a adotar com as donze­las. Aspirou o perfume de Blancheflor, impregnou-se do seu calor e não pensou em mais nada.

— ... Bastaria... bastaria um cavaleiro... Um cavaleiro com suficiente proeza e linhagem suficientemente alta... Que não temesse desafiar Aguingueron...

Ela acariciou o rosto dele, beijou-o. Ele nunca tinha experimentado nada igual.

— Por que — ele perguntou com uma voz rouca —, por que um de seus cavaleiros já não fez isso?

— Muitos se arriscaram. Foram vencidos. Humi­lhados. Aguingueron é um gigante...

De repente, ela se afastou dele, virou-lhe as costas e recomeçou a soluçar.

— Não sei por que estou lhe contando isso, cavalei­ro... O senhor não pode fazer nada contra minha desgra­ça... Amanhã, assim que o senhor tiver ido embora, man­darei abrir as portas da cidadela, e que Deus me proteja!

Ela fez menção de ir embora da cama precipitada-mente. Ele a segurou pelo ombro, forçou-a a se deitar de novo junto dele. Ela resistiu um pouco, quase nada — apenas o suficiente para que ele acreditasse que ela pode­ria lhe escapar.

— Blancheflor — declarou —, está fora de questão eu a abandonar a quem quer que seja. E menos ainda a Mordred. Se basta que um cavaleiro combata esse Aguingueron...

— Ninguém consegue vencê-lo...

— Não, eu consigo — disse ele, com aquela simplici­dade orgulhosa que o caracterizava.

Ela fingiu novamente querer se soltar dele, ir embora.

— Não — protestou —, o senhor não conhece Aguingueron!

— Como não? Ele tem mais braços, mais pernas ou mais cabeças do que eu? Não, não é? Então eu o baterei.

— Perceval... — sussurrou ela, aproximando os lábios do rosto do cavaleiro.

— Está resolvido. Não vamos mais discutir. Mas eu lhe peço um favor...

— Pode falar...

— Passe a noite comigo nesta cama. Ela é suficiente­mente larga para nós dois. Dormiremos muito bem juntos.

— Acredita?

— Eu quero.

— Então... eu também...

 

Blancheflor acordou primeiro, pouco antes da aurora. Correu silenciosamente para o seu quarto. Nem a cama­reira nem as serviçais estavam ainda de pé. Penteou ela mesma os longos cabelos, depois se vestiu como na noite da véspera, com sua túnica de seda preta estrelada. Logo em seguida ouviu nos corredores os cavaleiros e seus sar­gentos voltando da vigia da noite e acordando os outros. Quando o castelo recobrou vida, ela voltou ao quarto de Perceval.

Também ele tinha se levantado e estava vestido. Ela constatou com satisfação que ele ajustava a loriga, mas fez como se nada percebesse.

— Cavaleiro — ela lhe disse —, perdoe minha atitude dessa noite. Eu me deixei levar pelo desespero e pelo medo. Eu lhe peço para se conduzir como um homem de honra e se esquecer do que se passou entre nós.

— Por quem me toma, minha bela? — protestou ele. — Garvain, meu mestre, me ensinou a conter a língua.

— Eu lhe agradeço, então. Agora, parta. Desejo que encontre no caminho lugares mais agradáveis e mais hos­pitaleiros do que aqui.

Ele ergueu as sobrancelhas com assombro.

— Nenhum lugar, nenhuma parte, será mais agradá­vel do que foi este quarto, esta noite.

— Cavaleiro — disse ela, baixando pudicamente os olhos —, por favor. Nós dissemos que estava esquecido...

— Esquecido? Impossível! Mas, tranqüilize-se, isso vai permanecer em segredo... um certo tempo.

— O que quer dizer?

Ele segurou a espada e a cingiu à cintura.

— Isso significa que você pode dizer adeus às suas preocupações. Vou agora mesmo encontrar o seu Aguingueron e desafiá-lo. Portanto, esta noite, ele estará morto, i- suas tropas levantarão o cerco complacentemente. Em conseqüência, poderemos revelar nosso... segredo a todos no final deste dia que promete ser bastante divertido.

Blancheflor franziu as sobrancelhas.

— Como assim? Por que esta noite revelaremos o que você chama de "nosso segredo"?

— É muito simples, minha bela: vou me casar com você!

Ela não esperava, decerto, uma declaração como aquela. Mesmo assim, permaneceu segura de si e refletiu sobre a melhor maneira de responder sem parecer de forma alguma que estava recusando.

— Cavaleiro, creia que me sinto infinitamente tocada por sua proposta. Mas não gostaria que você fosse se dei­xar matar simplesmente por amizade a mim...

— Quem está falando de se deixar matar? E quem está falando de amizade? Blancheflor, eu a...

— Cavaleiro — ela o cortou precipitadamente —, não pronuncie palavras que me partirão o coração para sem­pre, se você insistir na sua louca decisão. Você não tem a idade nem a envergadura para fazer frente a um cavaleiro tão valente, tão forte e tão grande quanto o que o espera lá fora, diante das muralhas.

Com raiva, ele bateu com o pé no chão, feito uma criança.

— Minha bela — exclamou —, mesmo que o seu Aguingueron fosse três vezes mais gigantesco do que você afirma, nada me impediria de ir combatê-lo!

Furioso, apanhou o escudo vermelho e se dirigiu a passos largos para a porta.

— Você tem razão! Estou errado em colocar uma condição à minha vitória.

Antes de desaparecer nos corredores, virou-se de repente para Blancheflor.

— Diga o que disser, não vai me fazer renunciar a este combate nem ao meu amor por você.

— Perceval... Devo lhe fazer uma outra confissão... Mas ele já tinha partido.

Não foi atrás dele. Ele se conduzira exatamente como ela esperava que se conduzisse: para ela, isso era o essen­cial. Se ela tivesse desejado retê-lo, obrigá-lo a desistir, seria apenas para espicaçar seu orgulho. Sem dúvida — disse a si mesma, agira mal com ele. Seduzira-o, fingira ternura a fim de que ele combatesse por ela, calara o que sabia de... Mas, antes de ser uma mulher jovem, ela era, desde a morte do pai, a senhora dessa cidadela, a respon­sável perante Deus pela vida de seus últimos cavaleiros e serviçais, seus últimos fiéis. Que ele vencesse Aguingueron, se fosse capaz. Em seguida...

Em seguida, ela deveria contar-lhe o duplo segredo que guardara cuidadosamente para si quando, ao se apre­sentar, reconhecera nele o Perceval que...

Mas isso já era uma outra história.

 

Cavaleiros e escudeiros acompanharam o rapaz até a entrada da cidadela. Os sargentos de sentinela deram-lhe passagem e abriram a porta principal.

— Senhor — disseram —, que Deus o ajude. E des­graça a Aguingueron, que tirou a vida de nossos cavaleiros!

Quando viu as lágrimas correndo pelo rosto daqueles homens, Perceval ficou comovido demais para responder. Esporeou o cavalo, partindo para a ponte acima dos fos­sos, em direção ao acampamento dos sitiantes.

Estes haviam notado sua saída. Os guardas tinham dado a notícia: "Um cavaleiro desconhecido se aproxi­ma!" Foram buscar Aguingueron em sua tenda, onde ele, seminu, destroçava uma lebre assada a grandes dentadas.

— Então? — rosnou, quando um sargento entrou.

— Senhor, um cavaleiro acaba de deixar a cidadela. Ele avança na nossa direção.

Aguingueron deu um riso de escárnio e, em seguida, virando-se sobre o assento, bateu no próprio peito. Ele era largo e musculoso como o peitoral de um cavalo de lavoura. Seus braços eram mais grossos do que as coxas do melhor de seus cavaleiros. Ergueu-se de um salto. Imenso, quase tocava com a testa a tela de sua tenda.

— Que última farsa é esta? Já não derrubei cavaleiros suficientes? Por que Blancheflor ainda me manda outros?

Com um gesto brutal, atirou no chão a mesa em cima da qual comia.

— Que venham me vestir e trazer minhas armas! — rugiu.—Vou dar nesse cavaleiro as palmadas que ele me­rece! E anunciem em todo o acampamento que antes do cair da noite estaremos em Beau Repaire! E eu, na cama da pretensiosa Blancheflor!

O sargento saiu rapidamente. Pouco depois, cinco varletes entraram na tenda e se apressaram a armar o gigante Aguingueron. Sua loriga era tão pesada que eram necessários dois jovens para erguê-la e fixá-la sobre seu torso.

— Apressem-se!

Dois varletes se ajoelharam para lhe prender as esporas. Um outro apresentou-lhe a espada. Um outro ainda ofereceu o elmo. Aguingueron afastou-o com desprezo.

— Não há mais um cavaleiro digno deste nome no castelo de Blancheflor. Ela está me enviando um doente, um velho. Não preciso de elmo. Vou derrubá-lo como um exercício!

O gigante saiu da tenda. Do lado de fora, um cavalo de batalha robusto e musculoso tinha sido preparado para ajusta. Com o pé no estribo, ajudado por dois sar­gentos e dois varletes, Aguingueron suspendeu sua impressionante massa de músculos e de metal, e se pôs na sela. Segurou com um só punho a dupla brida.

— Vamos punir o presunçoso!

Apresentaram-lhe sua lança. Ele a apanhou e a colo­rou debaixo da axila como se se tratasse de um simples e frágil ramo. Fez o cavalo trotar.

— Que todo mundo se prepare para entrar na cidade­la! — ordenou, — Este cerco já durou demais.

Contornou as tendas até o limite do acampamento. Suas tropas já tinham se reunido nos acessos, aguardan­do o combate. Ele viu, sobre as muralhas, os homens de Blancheflor, também eles espectadores. Foi só depois de ter reconhecido a silhueta da donzela entre os cavaleiros, entre duas ameias*, que ele se dignou lançar um olhar ao seu adversário.

E imediatamente caiu na gargalhada.

Sem dúvida, não era um velho nem um doente que estavam lhe enviando. Era ainda mais engraçado: um garoto! Um garoto louro, sem elmo, de rosto cor-de-rosa e imberbe de varletezinho.

— Vamos! — exclamou numa última risada. — Não posso enfrentar você: ainda ontem você mamava na sua mãe! Volte para o colo dela, e fique por lá!

Para sua surpresa, o rapaz respondeu com outras gar­galhadas.

— Vamos, cavaleiro! Você é tão gordo e tão pesado que o seu cavalo deve rogar a Deus para que alguém o jogue no chão! Ele vai me ficar grato por aliviá-lo de suas nádegas enormes!

Um rumor de perplexidade percorreu as fileiras dos sitiantes. Nenhum deles sequer imaginaria que alguém pudesse desafiar seu chefe com aquele tom injurioso. O próprio Aguingueron ficou surpreso e não conseguiu replicar imediatamente.

— E então? — provocou-o Perceval. — Já terminou seu falatório? Faz mal, gordão, pois são provavelmente as últimas palavras que pronunciará antes de eu enviá-lo para o inferno!

— Para o diabo com as suas palhaçadas! — rugiu Aguingueron. — Mostre-me se é tão valente ao sustentar um assalto quanto é linguarudo!

— Vou demonstrar isso dentro de instantes. Mas, pri­meiro, entendamo-nos: assim que eu tiver vencido você, suas tropas levantarão acampamento e abandonarão o cerco da cidadela!

— Tudo o que você quiser, meu garotinho! Eu pode­ria da mesma forma lhe prometer a lua, as estrelas e todo o universo! Acredite-me: você já está morto!

Ele nem sequer chegara a pronunciar a última sílaba e Perceval já esporeava o cavalo. Os dois cavaleiros lança­ram-se um contra o outro. Todos dois seguravam a lança na mão direita, o escudo na esquerda. Perceval estava louco de orgulho, Aguingueron, louco de raiva. O orgulho foi mais maldoso do que a cólera. Quando o gigante se ati­rou com toda a força contra o adversário, este, com um hábil movimento de escudo, conseguiu desviar o golpe, enquanto sua própria lança atingia o escudo de Aguin­gueron bem no centro. Ela voou em pedaços, sob a violên­cia extrema do choque. O gigante soltou os estribos, balan­çou para trás e caiu do cavalo. Viu-se de barriga na poeira.

Perceval não quis se aproveitar daquela vantagem, no entanto decisiva. Em vez de atacar de novo o homem no chão, parou o cavalo e desmontou. Tirou a espada da bainha.

— Levante-se, gordo! Vejamos se você é menos desa­jeitado com os pés no chão do que com o rabo na sela!

Aguingueron, atordoado, pôs-se de joelhos. Ouviu seus homens urrando para encorajá-lo. Recuperou o fôle­go. Ergueu-se sobre os pés, puxou a espada e, rosnando como um javali, precipitou-se sobre seu jovem adversário.

Desse momento em diante, Perceval não fez outra coisa senão brincar com ele. Ele era mais ágil, mais rápido e mais flexível. Aguingueron batia com toda a sua força — e seus golpes só encontravam o vazio, sua lâmina se enfia­va na terra. Perceval dava um passo de lado, mostrava as nádegas para o gigante, afastava-se rapidamente e gritava:

— Vamos, vamos! Venha aprender a se bater, gordo!

A humilhação de Aguingueron chegou ao fim quan­do Perceval, cansado, assim decidiu. Com três lances de esgrima, aparou os ataques pouco inspirados do gigante, e depois, com um último golpe, arrancou a espada de suas mãos fatigadas.

Exaurido, Aguingueron caiu de joelhos, depois cur­vou a nuca.

— Por todos os santos... — murmurou, estupefato. — Você ganhou...

Perceval, excitado por seu triunfo, suspendeu a lâmi­na... mas não a abateu sobre o pescoço que se oferecia. De repente se lembrara da recomendação de Garvain: "Se seu adversário foi vencido, não o mate sem razão."

— Jovem amigo — dizia justamente Aguingueron —, reconheço minha derrota. Poupe-me. Eu lhe peço.

Perceval respirou fundo, seus músculos se relaxaram, seus nervos se acalmaram, ele encostou a ponta da espa­da no chão.

— Por que eu deveria lhe poupar a vida?

— Você merece, de fato, tirá-la. Mas para que ela lhe serviria? Quem acreditará que um garoto como você, sem traição, venceu um guerreiro da minha categoria? Nin­guém... Então, se me deixar viver, prometo me apresentar diante de todos como testemunha de minha própria der­rota. De sua vitória.

— E daí? Dentro em breve contarei tantas vitórias que ninguém poderá colocar em dúvida que humilhei você!

— Cavaleiro, pela última vez, conceda-me esta graça. Eu me coloco à sua inteira disposição.

— Não posso fazer isso. A menos que você se coloque a serviço de Blancheflor.

Aguingueron balançou a cabeça.

— Impossível, jovem amigo. Eu provoquei a morte do pai dela e da maior parte de seus cavaleiros. Assim que eu tiver transposto suas muralhas, ela mandará me atirar no mais escuro de seus calabouços, na mais profunda de suas masmorras...

Perceval ergueu a espada.

— Então, você escolheu seu destino.

— Não, jovem amigo, espere... Eis o que lhe propo­nho: a partir deste momento, eu levanto o cerco e parto com os que permanecerem fiéis dentre os meus homens para Camelot. O rei Arthur, que deixou Carduel, instalou-se lá há uma semana. Levarei o testemunho de sua vitória sobre mim e me colocarei a serviço do seu rei.

Perceval refletiu por um instante. A proposta era ten­tadora e lisonjeira. Imaginou a cara que faria o senescal Ké vendo chegar os cativos que ele enviava a Arthur. Recolocou a espada na bainha e encostou a mão no ombro do gigante.

— Levante-se. Aceito a sua oferta. Aguingueron baixou humildemente a mão do jovem cavaleiro.

— A partir deste momento, sou seu devedor. Devo-lhe uma vida.

Pouco depois, numerosos cavaleiros saíram da cida­dela e se aproximaram de Perceval para cumprimentá-lo. Ele ouviu os cumprimentos com simplicidade, modesto, e com uma certa impaciência. Uma única coisa agora lhe importava: reencontrar Blancheflor. Não tinha dúvidas de que a proeza que acabara de demonstrar dissiparia as reti­cências dela em aceitar sua proposta: casar-se com ele. Por dever, obrigou-se a ficar ali por um tempo, assistindo ao desmonte das tendas, ao aparelhamento dos cavalos, e depois, quando teve certeza de que sua missão fora cum­prida, de que o cerco tinha sido levantado, saudou uma última vez Aguingueron, que lhe renovou a promessa de ir até Arthur e lhe assegurou sua fidelidade até a morte. Os dois homens se apertaram as mãos.

— Deus o guarde, Perceval.

O gigante virou a brida. O jovem cavaleiro o imitou e, não agüentando mais, esporeou o cavalo.

No interior de Beau Repaire, Perceval foi aclamado. Diminuiu o passo do cavalo antes de entrar no pátio do castelo. Desceu do cavalo. Foi depressa para a sala.

Lá, cercada por alguns cavaleiros, Blancheflor o espe­rava. Ela lhe estendeu graciosamente a mão. Ele colocou um joelho no chão, pousou os lábios sobre os dedos dela c disse:

— Você recuperou sua liberdade, Donzela.

— Obrigada.

Levantou os olhos para ela. Estava séria, e pareceu-lhe preocupada.

— Neste momento — acrescentou ele —, vim lhe pedir para unir sua liberdade à minha.

Ela fechou os olhos, desviando a cabeça.

— Tenho vergonha...

— Mas... de quê, Donzela?

— Eu deveria já ter lhe falado ontem à noite. Não consegui. Só pensei em mim, em meus homens, em meu castelo... Perdoe-me.

Perturbado, ele se levantou.

— Não compreendo nada do que...

Ela o interrompeu com um gesto. Dirigiu-se para uma pequena peça de teto estrelado. Ele a seguiu. Esta­vam sozinhos.

Enquanto ela dava alguns passos, com um ar pensativo, ele ficou imóvel e, fervendo de impaciência, esperou. Finalmente, ela voltou os olhos para ele. Sua tristeza, de que ele não compreendia a causa, tocou-lhe dolorosa­mente o coração.

— Perceval, eu lhe devo duas confissões. A primeira, só a compreendi essa noite, quando, ao me relatar suas aventuras, você me contou de onde vinha e quem era a sua mãe. Nós somos primos.

Ela se aproximou dele.

— Sua mãe e a minha eram irmãs.

Ele sacudiu a cabeça, como se não pudesse acreditar.

— É a verdade, Perceval. Nós somos primos-irmãos. O que fizemos juntos essa noite, Deus nos proteja, foi um duplo pecado...

— Mas... se não sabíamos!

— A amizade que imediatamente sentimos um pelo outro deveria nos ter alertado. Era a voz do sangue. Nós fomos suficientemente loucos para confundi-la com amor.

— Mas mesmo assim! — bradou ele. — Mesmo que nossas mães tenham sido irmãs, isso não impede o amor!

Ela chegou até ele. Tomou-lhe as mãos, com doçura.

— Você bem sabe que sim, Perceval. Esse amor nos é proibido. Pela lei, pela Igreja.

Ele se afastou dela, louco de raiva, de frustração.

— Eu a amo, Blancheflor! Eu a quero!

— Bom amigo, meu primo — ela lhe disse a meia voz —, compreendo o que está sentindo. Mas não é a única coisa que tenho para lhe contar...

— Vamos, diga logo. Não pode haver nada pior...

— Escute-me — ela disse, segurando-lhe novamente as mãos — e me perdoe antecipadamente por este novo sofrimento.

— Fale...

— Assim que você partiu, sua mãe, Perceval, caiu seriamente doente.

— Minha mãe...?

Arrasado por esse novo golpe do destino, não conse­guiu acrescentar uma palavra.

— Eu não teria permanecido neste castelo, teria logo corrido para ela. Agora, graças a você, farei isso, se for pre­ciso. Mas, meu primo...

Apertando suas mãos nas dele, ela colocou-as sobre o peito.

— ... e você que tem de ir vê-la. É de você que ela sente saudade.

E, sem se dar conta de que estava agindo sem pieda­de, ainda acrescentou:

— É, eu creio, por causa da sua ausência que ela está morrendo.

— NÃO!

O urro de Perceval foi tão cruel que pareceu ressoar em todas as peças do castelo. Soltou-se das mãos de Blancheflor, deixou a pequena sala correndo e passou no meio dos cavaleiros sem vê-los, com os olhos embaçados pelas lágrimas e o coração cheio de culpa.

No pátio, viu seu cavalo sendo levado para as cavalariças, saltou na sela e saiu a galope.

Tinha que voltar para casa. Tinha que voltar para a Floresta Perdida.

Mas, mesmo fazendo seu cavalo andar no limite de sua velocidade e de suas forças, não conseguia se livrar desta imagem: sua mãe, frágil silhueta, desabando na entrada do solar — nem desta certeza atroz: abandonando-a, desobedecendo-lhe, tinha sido ele, ELE, que a matara.

 

Aguingueron era um homem simples. Servira a Mordred sem jamais se fazer perguntas: na qualidade de vassalo, devia-lhe obediência e fidelidade completas. Se tinha se mostrado impiedoso com os inimigos, era sim­plesmente para cumprir com seu dever de chefe de guer­ra. Vencido em julgamento por Perceval, indultado no l mal de sua derrota, ele se sentia obrigado a seguir rigoro­samente as leis da cavalaria. E essas leis o impeliam a se colocar convictamente a serviço de seu vencedor.

Assim, após ter dado ordem a suas tropas de marchar em direção a Camelot para se constituírem prisioneiras, i ornou a decisão de precedê-las. Escolheu os três rocins mais robustos do exército, montou o primeiro e levou os outros dois junto. Pôde, desse modo, galopar quase noite e dia. Quando um rocim se esgotava, ele selava e aparelhava o segundo e retomava a estrada. Quando chegou às portas de Camelot, a terceira montaria, no limite de suas forças, desabou sob ele.

A noite tinha caído. A pé, ele se apresentou aos guar­das. Sua estatura e autoridade bastaram para persuadi-los a deixá-lo entrar. O sargento lhe ofereceu um cavalo. Ele atravessou a cidade até o castelo. Lá, varletes vieram ao seu encontro. Entregou o cavalo, recusou o manto de seda com que um deles procurava cobrir-lhe os ombros e se deu conta repentinamente de que tinha passado três dias e três noites sem dormir e sem comer. Teve um atordoamento. Conseguiu chegar até a entrada da sala. Suas proporções, o número e o tamanho das chaminés onde se assavam cabritos, o número e o tamanho das velas que a iluminavam, a multidão de cavaleiros, de donzelas e de serviçais que se apressavam, discutiam, riam — tudo aquilo terminou por tonteá-lo. Caiu desmaiado.

 

— Quer dizer que ele não tinha barba na cara, era da metade do seu tamanho e o bateu em julgamento?

— Eu já contei aos senhores.

— E ele portava, segundo você, armas vermelhas?

— Uma túnica violeta também...

— E ele lhe disse como se chamava?

Estendido em cima de um colchão em um canto da sala, Aguingueron fechou os olhos para não ver mais aqueles rostos, rostos que não acabavam mais, se incli­nando sobre ele e o atormentando com perguntas.

— Não... Não — disse. — Ignoro como se chama.

— Mas vocês se bateram, não foi? — grunhiu uma voz desagradável.

— Batemo-nos, de fato, mas não fomos apresentados. Eu o chamava de "menino"... ele me chamava de "gordo".

Caíram na gargalhada. Aguingueron ergueu-se de um salto e rosnou:

— Basta!

Os risos cessaram na mesma hora. Depois o gigante viu a multidão de rostos, caretas, risos se afastar, abrindo passagem para um homem de estatura bem alta, barba loura, de olhar penetrante.

— Sua história me interessa, Aguingueron. Venha se sentar à minha mesa. Tenho certeza de que você está com fome.

— Ah, estou sim!

O gigante se pôs de pé e seguiu o homem louro até uma mesa à qual só tinham permanecido sentados um cavaleiro de nobre e tranqüila aparência e uma jovem de enorme beleza.

— Aguingueron — disse o homem louro —, eis Guinevere, minha mulher, e Garvain, meu sobrinho. Quanto a mim, sou Arthur. O rei que você combateu por ter feito juramento de obediência a Mordred.

— Sire — afiançou o gigante —, desde meu juramen­to ao "menino", estou a seu serviço.

— Encantado de ouvir isso. Sente-se. E conte-nos tudo o que sabe. Quando viu Mordred pela última vez?

— Na véspera da minha justa com o "menino". Mordred partiu no crepúsculo, certo de que a cidadela se entregaria às minhas tropas logo nos dias seguintes.

— Aonde ele estava indo? — perguntou Garvain, empurrando para o gigante um ganso recheado.

Narinas arreganhadas, Aguingueron aspirou o aroma da ave. Sua mão enorme se abateu sobre o prato, arrancou uma coxa fumegante da carcaça grelhada e a levou à boca. Enfiou-lhe os dentes com a satisfação de um lobo dego­lando uma ovelha.

— Estou escutando — prosseguiu Garvain.

— Sim, nós o estamos escutando — disse Arthur.

— É o seguinte — disse Aguingueron. — O plano de Mordred é bem simples. Ele vai tomar Carduel. Os se­nhores deixaram poucos homens lá. Mordred conhece o lugar, creio — cresceu lá —, conhece todas as suas fra­quezas, todas as saídas, todos os subterrâneos, todos os segredos.

Aguingueron destroçou entre os dedos a carne agar­rada nos ossos da coxa do ganso. Botou tudo na boca.

A gordura lhe escorria pelo queixo, pela barba e pelo pes­coço. Com um mesmo movimento, Garvain e Arthur se inclinaram para ele.

— E em seguida?

— Em seguida? — replicou o gigante, com a boca cheia. — Em seguida, é muito fácil...

Foi a vez dele de se inclinar sobre a mesa. Estava fedendo a cavalo — o suor dos três rocins que ele havia esgotado sob seu peso para chegar a Camelot. Sua larga cara vagamente sorridente se aproximou, conspirando, dos rostos de Arthur e de Garvain.

— Digamos que Mordred tome Carduel quase sem nenhuma oposição. Isso parece natural, não?

Arthur e Garvain o aprovaram com um imperceptível meneio de cabeça.

— O inverno não vai começar dentro de uma sema­na? — prosseguiu o gigante. — E, exatamente antes do inverno, Sire Arthur, qual é o seu hábito? O senhor volta para Carduel. Dizem que lá faz melhor inverno do que em Camelot, que o mar e os ventos amenizam o clima, que, quando chega lá, as lareiras ardem como no Inferno, e que faz mais calor do que na casa do Diabo.

Aguingueron hesitou, dando de ombros.

— Eu mesmo não sei de nada. Nunca tive a honra de ser recebido em Carduel. Mas muitos dizem isso, na In­glaterra, na Escócia e até na Irlanda.

— O que é que eles sabem? — replicou Garvain. — Eles acompanham Satã tão de perto que chegam a conhe­cer o calor das suas chamas?

Arthur pousou a mão sobre o pulso de seu sobrinho para que recobrasse a calma. Garvain se calou.

— Aguingueron — disse o rei —, então você é da opi­nião de que Mordred vai atacar Carduel?

— Sim, Sire. Talvez já esta noite, enquanto discuti­mos...

— E em seguida? Qual é o plano dele?

— Já lhes disse: é bem simples. Quando, dentro de alguns dias, se aproximar de Carduel, sargentos e serviçais o acolherão. O senhor entrará no seu castelo. Sem temor. Deixará seu rocim e suas armas com os escudeiros. Entrarão, seus homens e o senhor, em uma sala onde ardem os grandes fogos de que tanto gostam. As mesas terão sido preparadas. Magníficas. Apetitosas. O senhor se instalará, Sire, convidará sua esposa e seu sobrinho, Garvain, e todos os cavaleiros que o acompanharam. Então...

— Então?

— Então serão como ratos em uma armadilha... esses sargentos, esses servidores serão homens de Mordred. Vão atacá-los ao final do jantar, quando a boa comida e o vinho os tiverem amolecido.

— Impensável! — gritou Arthur. — Mordred é capaz de tudo, de fato, mas não de um massacre, não de cem assassinatos!

— Eu lhes contei o que sei. Tem a liberdade de não acreditar em mim, Sire...

Aguingueron enfiou os dentes na coxa do ganso. Arthur olhou para Garvain.

— Qual é a sua opinião?

— Não creio que esteja mentindo.

 

Uma hora mais tarde os cavalos estavam selados, os cavaleiros e os sargentos cobertos por suas armaduras, o rei Arthur e seu sobrinho Garvain em cima dos rocins, que pateavam à frente do exército. Após um curto conciliábulo com Garvain e seus melhores cavaleiros, Arthur decidira considerar verossímeis as revelações de Aguin­gueron e partir para Carduel na mesma hora. Tudo estava de acordo: a guerra contra Mordred estava sendo trama­da há muito tempo; era preciso agir. Foi, pois, com uma efervescência bastante alegre que os cavaleiros tinham se preparado às pressas. Tinham grande vontade de com­bater, pois a cilada armada por Mordred, segundo Aguingueron, ia contra todas as leis da guerra e da Távola Redonda. E seria — pensavam — muito engraça­do pegá-lo em sua própria armadilha.

A maior parte dos varletes permaneceu em Camelot, sob as ordens de Uriens. Era preciso assegurar a proteção da rainha. Guinevere não acompanhara o marido, que não queria que ela corresse qualquer risco. Para que se acreditasse, contudo, em sua entrada em Carduel, e para que Mordred e seus homens, caso já tivessem tomado o lugar, não suspeitassem de nada, Galehot se propusera a ir no seu lugar. Tinha raspado a barba, se disfarçado de Guinevere, e viajava em uma liteira com suas serviçais. Alguns cavaleiros, de brincadeira, o declararam "uma bonita mulher". Foi preciso que Garvain interviesse, seca­mente, para que voltassem à ordem.

— Ou vocês se calam imediatamente, ou vou fazer todos se disfarçarem de mulher!

Os risos cessaram. Ninguém gostaria de pôr um ves­tido; assim como ninguém desejaria enfrentar as raivas, raras porém célebres, do sobrinho do rei.

Os cavaleiros puseram-se a caminho três horas depois de a noite cair. Levavam junto numerosos cavalos de substituição, de maneira a alcançar mais depressa o destino. Cerca de trinta sargentos carregavam as tochas; o céu estava negro. E era um espetáculo inquietante aque­les homens a cavalo, silenciosos, avançando no meio das trevas, com o reflexo avermelhado das chamas se moven­do sobre o metal das longas e dos elmos.

Mal tinham percorrido algumas léguas quando Arthur, que cavalgava à frente, acreditou perceber uma silhueta de cavaleiro se deslocando no sentido inverso, a alguns passos da estrada, ao longo da borda da mata.

— Você viu? — perguntou a Garvain, cujo rocim avançava flanco a flanco junto do dele. — Lá longe, aque­le homem...?

— Onde? Que homem?

O rei estendeu o braço para apontá-lo, no mesmo momento em que uma súbita abertura nas nuvens de outono que ocultavam o céu descobria uma lua no seu primeiro quarto. Uma luz cinza prateada aureolou a silhueta do cavaleiro. Apenas um instante, antes de o mo­vimento das nuvens esconder de novo a lua. O suficiente, contudo, para que Garvain murmurasse:

— Não... Eu não acredito...

— Você o reconheceu, não? — disse o rei.

— E o senhor também?

— Sim. É Lancelot, tenho certeza.

— Uma sombra, meu tio... Nada mais que uma som­bra. Aliás, não o estou vendo mais.

— Mas você o viu? — exclamou Arthur. — Só podia ser ele.

— Como estaria lá? E por que, se for ele, passaria afastado?

— Eu sei que é ele! Você o reconheceu também. A embaixada de Guinevere foi um sucesso. Merlin devolveu a liberdade a Lancelot!

Exaltado, o rei afastou a montaria para deixar passar seu exército. Garvain aproximou-se dele.

— O que vai fazer, Sire?

— Não compreende? Se Lancelot está de volta, não temos mais nada a temer de Mordred! Ele é o melhor dos cavaleiros, ele voltou para salvar meu reino!

— Sire, tantos anos se passaram...

— Não importa! — gritou Arthur. — Continue a con­duzir nossos homens até Carduel.

— O que vai fazer, Sire?

— Vou alcançar Lancelot, ele e eu vamos nos encon­trar, e que Mordred tome cuidado!

— Sire...

— Vá, sobrinho! Execute minhas ordens!

Mal terminou de pronunciar estas últimas palavras, o rei esporeou o rocim e partiu no encalço de uma sombra — de uma lembrança — de uma esperança.

Lancelot — pois era ele — tinha cuidadosamente evi­tado encontrar a tropa que marchava à luz de tochas. Desde que Merlin o libertara dos encantamentos de Mor-gana, tirando-o do Vale sem Volta, ele havia percorrido florestas, vales, rios. Só tinha uma idéia na cabeça: rever Guinevere. Uma obsessão bastante estranha, uma vez que durante os anos passados no Vale sem Volta ele de fato vira apenas a ela. De repente, de volta à realidade, precisava confrontar aquele longuíssimo pesadelo, aquela intermi­nável ilusão com uma Guinevere de carne e osso. Não mais uma imagem: uma mulher.

Irritado com a presença daquele exército que não previra, fez o cavalo galopar assim que a lua desapareceu dentro das nuvens, embrenhando-se por entre as árvores. Algum tempo mais tarde, chegou à entrada de Camelot.

Uma dúzia de sargentos em armas guardava a porta principal. Uma chuva gelada, grossa, começou a cair. Lancelot desceu do cavalo e observou as cercanias. Subi­tamente, sem que a tivesse escutado chegar, uma carroça parou ao seu lado.

— Então? — falou-lhe o anão que a conduzia. — No que está pensando? Vai pegar um resfriado, cavaleiro, debaixo desta chuva. Ou então se afogar!

Lancelot se aproximou da carroça.

— Tenho a impressão de que você e eu já nos encon­tramos...

— Ora, o tempo passou. E o que vale a memória? Quer entrar em Camelot? E sem que os sargentos o vejam?

— Você compreende depressa, nanico.

— Porque dentro do meu coração não sou o nanico que você vê. Sou um homem, portanto fui uma criança: sonhei, eu também, em me tornar um cavaleiro como você...

O anão bateu grotescamente as pernas.

— Minhas pernas são curtas demais! — exclamou rindo. — Mal poderia cavalgar um asno! Suba aqui atrás, cavaleiro. Faça uma cara contrita. E o resto é comigo...

Lancelot, dizendo a si mesmo que não tinha outra escolha, largou o rocim e pulou na carroça. O anão esta­lou o chicote. Os animais andaram. Na porta principal, um sargento se interpôs, segurando os cavalos de tração pelo freio.

— O que está aprontando aí, nanico? A esta hora, bem sabe que gente como você não tem o direito de entrar.

— Bom e amável senhor — disse o anão fingindo a maior das humildades —, foi o próprio rei, com quem cruzei ainda há pouco, que me ordenou trazer este crimi­noso para dentro de seus muros.

O sargento deu uma olhada em Lancelot. De pé na carroça, a barba e os cabelos grisalhos, desgrenhado, tinha o aspecto de um homem que passara anos em uma masmorra.

— O que foi que ele fez?

— Isso, amável e bom senhor, deve perguntar a ele. Quanto a mim, não tenho essa audácia. Sou apenas o ,mão da carroça: levo para o castigo os criminosos que o mereceram.

Fechando um olho, o sargento, com o outro, exami­nou Lancelot.

— Ele não parece muito perigoso...

— Sou da sua opinião — recomeçou o anão —, mas esta não era a de Arthur, nosso rei, que Deus o tenha em sua Santa Guarda...

Fingiu fazer os cavalos retomarem o caminho.

— Mas, uma vez que o senhor decidiu assim, desobe­decerei ao rei.

Com um gesto rápido, o sargento segurou as rédeas da parelha.

— Quem concluiu que eu decidi uma coisa dessas? Não vai ser um nanico da sua laia nem esse velhote que vão me assustar.

— Falemos claro, meu bom senhor: posso ir embora?

O sargento deu uma última olhada em Lancelot, jul­gou que ele tinha de fato o ar de um campônio sem importância e rosnou:

— Passe. E não quero mais ouvir você.

— Muitíssimo obrigado, bom senhor.

— Cale-se, já disse, e suma!

O sargento entregou as rédeas ao anão. A carroça entrou em Camelot.

Ela prosseguiu, sacolejando pelos sulcos do caminho, até chegar perto do castelo.

— Agora, cavaleiro, vai saber se virar, suponho? Lancelot saltou da carroça. Abarcou com o olhar os muros e as torres da residência real. Seus olhos pararam em uma larga janela que se abria sobre os jardins.

— Obrigado — murmurou. — E vá embora.

— Oh — fez o anão —, eu me vou mesmo, cavaleiro... O resto, o que vai acontecer agora, não me diz mais res­peito.

— Adeus — falou maquinalmente Lancelot, que não tinha de fato compreendido o que o anão queria dizer nem, na verdade, prestado atenção nas suas palavras.

Avançou, com um passo decidido, em direção à entrada do castelo.

Não escutou o riso que, então, sacudiu o anão. Não o viu bater alegremente suas pernas muito curtas. Também não o viu, continuando a rir, saltar para fora da carroça, ficar sobre os pés, estender os tocos de braço para o céu — e se transformar. Ele começou a crescer, a emagrecer e a se transformar numa mulher morena, de rosto pálido, de nariz fino mas curvo como um bico, olhos de ave de rapina, de interminável cabeleira de azeviche.

— Vá ver Guinevere — escarneceu Morgana. — Vá vê-la e amá-la. É tudo o que espero de você. E eu, eu adoro, adoro, ADORO que você me ajude a fazer Merlin se tornar ridículo!

Ela não conseguia se impedir de rir às gargalhadas. Ouviu os sargentos correndo ao seu encontro. Teria se divertido bastante transformando-os em ratos. Mas, bem... Não tinha tempo nem poder para desperdiçar, gritou uma fórmula mágica — algumas palavras numa língua desconhecida —, transformou-se em coruja e, abrindo o bico em um grito zombeteiro, voou.

 

— É você...?

— Eu era tão jovem... Está me reconhecendo?

— Eu também era tão jovem, e você está me reconhe­cendo... Então, é você...

— Não chore.

Lancelot insinuou-se sem problemas no castelo. Muitos anos antes, passara ali apenas o tempo de uma festa de São João e o de ser armado pelo rei Arthur. Mas, na ocasião de suas noites de insônia no Vale sem Volta, tinha revivido tanto a lembrança daquelas poucas horas que teve a impressão, ao subir as escadas e percorrer os corredores, escondendo-se nos vãos assim que sargentos ou serviçais se aproximavam, de conhecer sua planta como se nunca tivesse saído dali. Chegando ao quarto da rainha, só hesitou um instante: não tinha mais o direito de recuar, tempo demais havia sido perdido desde que Guinevere o abandonara a si mesmo, uma manhã, na beira de uma falésia.

Entrou. A peça estava mal iluminada por algumas velas. Na penumbra de uma abertura de janela, percebeu uma silhueta lhe virando as costas. Aproximou-se bem devagar.

Ela não teve um sobressalto. Não deu nenhum grito. Tinha se virado lentamente. Viram-se face a face. "Guine­vere...", ele murmurara. Levantara a mão, imobilizando os dedos bem perto daquele rosto que o tempo parecera não ter tocado, que ele mesmo não tinha a audácia de tocar. Ela não mudara. Ele sentiu vergonha de se mostrar para ela naqueles trapos. Sentiu vergonha da sua barba grisa­lha. Sentiu vergonha de ter envelhecido.

Ela lhe sorriu, e de repente ele se sentiu presa de uma dúvida atroz: e se, mais uma vez, ela fosse apenas uma ilu­são, mais uma maldade que lhe infligia Morgana? Como podia ser possível que nada, nem os anos nem o sofri­mento, tivesse enrugado ou tirado o viço de seu rosto?

Pela expressão dele, ela deve ter compreendido seu espanto e suas dúvidas. Ergueu a mão e tomou delicada­mente a dele. Ela sentiu que ele começou a tremer, imperceptivelmente. Atraiu-lhe os dedos até o próprio rosto e deixou-os ali.

Ela era doce, e tépida, e viva, e real.

— É você? É mesmo você?

— Eu estava esperando sua volta.

Então ele pôde enfim fazer o gesto que lhe tinha sido proibido durante anos no Vale sem Volta: segurar Guinevere nos braços, apertá-la contra si com toda a força, quase sufocá-la. Com os lábios no pescoço dela, respirou seu perfume.

— Eu a amo — disse.

— Lancelot...

Ela não tinha vontade, acreditou jamais ter a força — mas conseguiu fazer com que ele desapertasse o abraço. Afastou-se ligeiramente dele. Não conseguia, entretanto, desviar seus olhos dos dele, retirar as mãos que ele puse­ra na sua cintura.

— Eu a amo — ele repetiu, e isso parecia uma pergun­ta cuja resposta, o eco, ele esperava e temia.

Ela soube que não tinha o direito de lhe mentir. Que linha feito uma promessa a Merlin. Compreendeu que ele sofrera demais com a separação para que ela ousasse decepcioná-lo imediatamente.

— Eu também, Lancelot, eu o amei.

Ele deu um passo para trás, como se ela lhe tivesse batido em pleno rosto.

— Você me amou... Está querendo dizer que...?

— Não!

Ela o agarrou pelos ombros.

— Não, cavaleiro, se eu o amei, significa que vou amá-lo sempre. Mas...

— Mas?

— Tive que fazer um trato com Merlin para conseguir que ele libertasse você.

— Qual?

— Lancelot, você sabe, como eu, que nosso amor é uma traição. Nós traímos Arthur em nossos corações. E nunca poderemos nos livrar dessa falta.

— Não existe falta em se amar! Eu renuncio a tudo por você. Renuncio a ser cavaleiro, renuncio à minha honra, renuncio à minha vida.

Ele a puxou contra si. Não soube se a forçava ou se ela se deixava atrair.

— Se você me ama, renuncie também a si mesma. Não será mais rainha, nós seremos párias, mas ficaremos juntos...

— É impossível, Lancelot. É impossível...

— Está enganada. Só precisa tomar a decisão, me escolher.

— Eu lhe repito: meu coração traiu o rei. Mas meu corpo lhe permanecerá fiel.

— Mentira!

Furioso, começou a andar pelo quarto.

— Está mentindo para si mesma! Não pode separar o coração e o corpo! Eu fiz isso, Guinevere, obrigado, força­do, durante anos, prisioneiro com a sua imagem, prisio­neiro da sua imagem, e não desejo a ninguém tamanho inferno cotidiano!

— Acalme-se, eu lhe peço...

— Tenho necessidade de tocá-la, necessidade de beijá-la, necessidade de que você seja minha!

Ela fechou os olhos, virou-lhe as costas e voltou para a penumbra da janela. Como se quisesse se esconder.

— Lancelot, você falou em renunciar, ainda agora. É o que devemos fazer. Devemos renunciar a nós mesmos. Não temos escolha.

— Eu não quero!

— Sabe o que está acontecendo desde que você desa­pareceu — ou, talvez, desde que nos amamos contra todas as regras que deveríamos seguir? Mordred, o filho de Morgana, pacientemente aliou à sua causa a maior parte dos nobres da Inglaterra, da Escócia e de Gales, e os invasores anglos e saxões. Está se preparando para fazer a guerra. Pior: preparou uma armadilha para assassinar o rei e seus cavaleiros. Nosso mundo pode desmoronar, Lancelot, dentro de muito pouco tempo.

Ela se virou com rispidez para o cavaleiro. Seus olhos brilhavam com uma chama estranha.

— E é por nossa culpa, Lancelot, nossa culpa! Eu, a rainha, você, o melhor dos cavaleiros, nós traímos nosso rei! O que valem o reino de Logres, a Távola Redonda e seus princípios, quando você e eu os tratamos com des­prezo?

— Você está louca... Escutou demais Merlin — gritou Lancelot. — Creia em mim: se houver uma batalha, uma guerra, eu serei o primeiro a me bater ao lado de Arthur!

— Então vá lutar! — urrou ela, fora de si. — E me deixe! Me deixe!

Desatou a soluçar. Lancelot, com alguns passos, foi para junto dela e a tomou nos braços. Ela se agarrou a ele e o beijou na boca.

— Guinevere, você está vendo que... Ela o fez se calar com um novo beijo.

— É claro — ela disse —, é claro que eu tenho neces­sidade de você, necessidade de ficar nos seus braços... É claro, confesso, que queria unir nossos corpos como nos­sos corações já estão ligados. Contudo...

Ela se separou dele, tão depressa que ele não pôde retê-la. Foi abrir um cofre no fundo do quarto. Retirou dali uma espada.

— Olhe: esta espada me foi dada por Merlin. Apontou a lâmina para Lancelot.

— Ainda não somos capazes, nem um nem outro, de aceitar não nos tocarmos. Muito bem. É assim. Há um leito neste quarto. Vamos nos deitar nele. Mas com uma condição: que eu coloque esta espada entre nós. Devemos nos impor e vencer esta prova.

Lancelot segurou rapidamente a lâmina com sua mão nua. O sangue começou a pingar entre os dedos.

— Você é implacável, Guinevere. Mas, já que é preci­so... Eu mesmo vou cravar esta espada.

 

Avançaram até o leito, cada um do seu lado. Com um gesto, Guinevere retirou a coberta de arminho. Com um gesto que parecia uma resposta, ou um desafio, Lancelot enterrou a espada de Merlin no meio do colchão. De tal maneira que os dois lados cortantes da lâmina ameaçassem quem quisesse ultrapassar aquela fronteira simbólica.

Depois, sem desviar o olhar dos olhos do cavaleiro, Guinevere deixou cair o vestido. Nua, ela se deitou no leito. Lancelot, por sua vez, tirou as roupas — seus trapos. Por sua vez, deitou-se, nu, naquele leito.

Quando viu Guinevere tão próxima, não conseguiu se impedir de estender a mão para tocá-la. Seu braço raspou a lâmina da espada.

— Perdão — murmurou.

— Por quê? — ela disse.

E segurou o braço dele, encostando os lábios na feri­da, sem parar de olhá-lo nos olhos. Pouco depois, adormeceram.

Quando Arthur entrou em Camelot, tinha o coração em festa. Estava certo de ter visto Lancelot naquela som­bra que fugia através da floresta. Ele o conhecera pouco, mas o suficiente para saber seu valor incomparável. Sua extraordinária proeza. Lancelot não havia vencido Meleagrant, o seqüestrador de Guinevere? Não havia enfrentado as provas mais difíceis, atravessado, por exem­plo, a Ponte da Espada? Por que, depois, nunca mais vol­tara a Camelot para obter a recompensa de seus feitos, Arthur jamais conseguira explicar. Lancelot, depois de derrotar Meleagrant e salvar a rainha, tinha se perdido em combates duvidosos com a maior parte dos cavaleiros da Escócia e da Irlanda, e com muitos duques saxões e seus capitães. Claro, ele havia derrotado todos eles, mas que necessidade tinha de acrescentar essas vitórias sempre recomeçadas à sua proeza contra Meleagrant, que por si só teria valido na Távola Redonda um lugar à direita do rei? Arthur nunca compreendera.

Ao entrar em Camelot, espantou-se de não ver nem sargentos nem cavaleiros lhe barrando a entrada. Sua capital de verão parecia no mínimo mal defendida quan­do ele não estava lá. Chegou ao pátio do castelo sem que ninguém tivesse tentado pará-lo no caminho. Provavel­mente, disse a si mesmo para se tranqüilizar, é porque eu sou o rei: fui reconhecido de longe, não ousaram me controlar. Ocorreu-lhe, contudo, uma pergunta: e se Aguingueron estivesse me enganando? E se me fez ir com meus melhores homens a Carduel para deixar o campo livre a um ataque-surpresa dos homens de Mordred?

Arthur, descendo do cavalo, deu uma olhada à própria volta. Não, nada parecia diferente. Aliás, quatro varletes se precipitaram ao seu encontro para cuidar de sua monta­ria e lhe oferecer um manto de seda. Ele os afastou com um gesto.

— Um cavaleiro entrou aqui há menos de uma hora? Os varletes se consultaram com o olhar. O menos tímido deles respondeu que não, ninguém havia entrado naquele pátio desde a partida das tropas.

— Não ponham meu cavalo na cavalariça. Parto novamente dentro em breve.

Arthur deixou ali os varletes e entrou na sala. Estava escuro. Um sargento, de sentinela diante da porta, pre­cipitou-se e disse a seu rei que ia buscar imediatamente uma tocha.

— Inútil. Uma vela basta.

O sargento acendeu rapidamente o pavio da vela e a estendeu a Arthur.

— Volte para o seu posto. Outra coisa... Ninguém entrou, ainda agora?

— Não, Sire.

— Tem certeza?

— Eu teria visto.

Com o castiçal na mão, Arthur atravessou a sala. A luz trêmula da chama levantava sombras inquietantes e imensas na vasta peça. "Devo ter sonhado", disse a si mesmo o rei. "Ou então Lancelot não veio à minha casa." Galgou os primeiros degraus da escada que levava aos quartos. "Estimei demais Lancelot", pensou. "Minha ami­zade e minha esperança é que devem ter suscitado seu fantasma..."

Arthur percorreu um, dois, três corredores, e subiu outra escada. Reinava no castelo um silêncio inquietante. O rei se perguntou mais uma vez se as revelações de Aguingueron não teriam sido uma armadilha. A luz do castiçal não lhe clareava mais do que um ou dois passos à frente dentro das trevas da noite.

Chegou diante do quarto de Guinevere. Nenhum raio de luz sob a porta. "Ela está dormindo", disse a si mesmo. "Ela está dormindo, vou assustá-la: ela acha que parti para enfrentar Mordred. Vamos deixá-la repousar..."

Arthur deu um passo para trás. "É melhor ir embora." Um grito abominável lanhou-lhe os nervos. Ecoando nos corredores. À luz da vela, ele acreditou perceber a sombra voadora de uma ave engolfando-se na escadaria. E aquele grito... "Uma coruja", pensou.

Mau presságio.

Uma violenta corrente de ar quase apagou a chama da vela. Ele a protegeu com a mão. O grito da ave noturna croou novamente, repercutindo em eco: "Ha hi! Ha hi! Ha hi!" Teve a impressão de ouvir: "Traído! Traído! Traí­do!" Empurrou a porta do quarto.

A janela estava aberta. O vento batia nas tapeçarias. O rei, com a palma em concha para proteger a chama da vela, avançou pelo quarto.

Descobriu primeiro um corpo branco, esbelto e arre­dondado ao mesmo tempo, deitado de lado. Pelo louro dos cabelos, reconheceu sua mulher. Guinevere.

Mais outro passo. Depois outro.

A luz da vela desvelou pouco a pouco um outro corpo, do outro lado da cama. Nu, ele também. Deitado na mesma posição que Guinevere, com os joelhos dobra­dos, braços cruzados contra o peito. Era o corpo adorme­cido de um homem de forte compleição, com barba e cabelos grisalhos.

Arthur acreditou estar enlouquecendo. De ciúme. De desgosto. Mal tinha virado as costas e Guinevere o enganava com um outro homem... Um homem envelhecendo, hirsuto... Sem se dar conta, deu mais alguns passos.

Foi então que viu a espada.

Uma lâmina cravada até a metade no colchão, entre os dois corpos. Entre sua mulher, nua, e aquele estranho, também nu. Arthur contornou a cama, aproximando-se do homem. Tinha uma única vontade, um único pensa­mento: matá-lo. Inclinou-se lentamente sobre ele.

Aquele perfil. Aquelas faces. Aquele queixo.

Desvairado, Arthur examinava o homem deitado junto de sua mulher. Lancelot... Era Lancelot. Ou, mais precisamente, era o homem maduro em que o tempo o transformara.

— Lancelot...

Mal pronunciou esse nome, Arthur se ergueu. Uma vez mais considerou os dois corpos, deitados face a face. E que uma espada separava.

Uma espada.

Num gesto de ciúme assassino, Arthur agarrou-a. Levantou-a, pronto para atingir Lancelot, decapitá-lo. "Ele me enganou!"

Não conseguiu, de início, concluir seu golpe. Seus olhos se fixaram na mulher, em Guinevere, nua, dormin­do pacificamente.

"Ela me enganou!"

Apenas essa idéia lhe traspassava o coração. Ia matar os dois. Todos dois mereciam.

Abateu a espada sobre o pescoço de Lancelot dor­mindo.

 

— Não!

A espada tinha atingido — Arthur não sabia o quê. Até que um homem de cabelos pretos, rosto marcado de rugas profundas, olhos de um negro de carvão e ardor de fogo, se materializou diante dele, com o punho cerrado sobre a lâmina.

— Merlin?... É você?...

— Imbecil! — rugiu o mago arrancando com força a espada da mão do rei. — E você? Tem certeza de ser Arthur, aquele que eu fiz nascer do ventre de Igraine, das entranhas de Uther? Aquele a quem apresentei a mais bela moça de todos os reinos, e que se casou com ela?

— Merlin...

— Se você é rei, não o é nem de Logres nem da Távola Redonda! Você é imperador, Arthur! Imperador dos imbecis!

—Vamos, Merlin... Fale mais baixo, você vai acordá-los...

— Imbecil, eu lhe digo! E repito: dos imbecis, o impe­rador! — urrou Merlin.

Depois, mudando de repente de tom:

— Por que acredita que estão dormindo? Porque eu quis. Por que acredita que essa espada estava cravada entre as nudezas deles? Porque eles decidiram. Porque, me ouça, eles respeitam você, mais do que se amam. Pois, quer saber de uma coisa? Ninguém no mundo se amou como esses dois. Isso o faz sofrer, escutar isso o deixa com ciúme? Você tem razão, mas está errado: você é um rei, Arthur, não qualquer rei, mas o rei que eu escolhi, que fiz nascer, que eduquei e que levei ao poder. Você tem direi­tos, claro. Mas, sobretudo, deveres.

Merlin enterrou de novo a espada entre os corpos adormecidos de Lancelot e Guinevere.

— Não toque neles. Não é nem seu dever nem seu direito. Eles pagaram bastante caro a traição que comete­ram. Vão pagá-la até a morte.

Com um salto extraordinário, Merlin transpôs o leito e ficou diante de Arthur.

— Nosso mundo tem suas leis. Por vezes, nossos des­tinos as transgridem. O destino de Guinevere era amar Lancelot. O destino de Lancelot, amar Guinevere. Você nada pode fazer — eles mesmos se encarregarão do pró­prio castigo.

— E meu destino? — perguntou Arthur.

Merlin estendeu teatralmente os braços para o céu.

— Ah! Vejo em você novamente aquele que gosto que seja! Um rei de verdade, um verdadeiro chefe: sempre, sempre, pensar apenas em si mesmo e no seu lugar, no seu papel.

O mago se inclinou para o ouvido de Arthur:

— Guinevere e Lancelot não são seus inimigos. Não é pelo fato de se amarem que não amam você. Perdoe-lhes a fraqueza. E vá embora. Você sabe o nome dos seus ver­dadeiros inimigos. Você é um rei, Arthur. Nosso rei. A últi­ma esperança de nosso mundo. Mate Mordred. Ninguém pode fazer isso em seu lugar.

— Mas eu não sou o melhor dos cavaleiros. Sou ape­nas o rei deles. No combate, não estou à altura de Mordred...

Merlin segurou o rosto dele nas mãos, como se faz com uma criança.

— Meu bom, meu caro rei, convença-se desta idéia: você não o vencerá sem morrer.

— Não estou compreendendo...

O mago apanhou a coberta de arminho abandonada ao pé do leito. Jogou-a sobre Lancelot e Guinevere, des­nudados e adormecidos. A lâmina, muito afiada, a dividiu em dois pedaços cobrindo cada um dos corpos.

— E eles, crê que compreendem? — perguntou a Arthur. — Crê que não vão morrer? Contudo, se nosso mundo deve sobreviver, será devido a eles...

 

Depois de deixar a cidadela de Blancheflor, Perceval fez seu cavalo galopar tanto que ele desabou sob seu peso. O coração do animal fraquejara. Perceval se levantou, ileso. Não tinha mais montaria.

Caminhou várias léguas. Para andar mais depressa, livrou-se da loriga, das perneiras de ferro, em seguida do elmo. Largou o escudo e a lança junto do cadáver do cavalo. Sendo cavaleiro, era como se estivesse andando nu. Só a espada batia ainda em seu quadril.

Mas ele não ligava. Desde que Blancheflor lhe infor­mara do estado de sua mãe, e que ele era o causador, sentia-se apenas uma criança — uma criança ingrata, desnaturada, dizia para si mesmo. Um filho que a mãe tinha sempre protegido, e que talvez tivesse se enganado, talvez tivesse errado em educá-lo deliberadamente afastado do mundo — mas ela fizera isso acreditando que era para o bem dele, e ele não tinha nenhum direito de ficar zanga­do com ela, nenhuma desculpa para tê-la abandonado num assomo de mau humor. Havia vivido só para ele. Se ela morresse, também seria por ele, por culpa dele.

Sempre caminhando, atravessou, sem se dar muita conta, um bosque de carvalhos mortos. As árvores esta­vam negras, seu galhos não tinham folhas. O solo era parecido com cinza, fina, cinzenta e volátil.

De repente, surgiu uma colina de mato muito verde descendo até a beira de um rio. Perceval deixou-se ir por ali. Um barco seguia o curso da água. Sentado na frente, um velho pescava. Perceval o interpelou:

— Ei! Pescador! Diga-me onde posso encontrar um vau para atravessar esse rio!

O velho levantou a linha, colocou a vara perto dele e observou o jovem cavaleiro.

— Você me parece bem apressado. De onde vem, desse jeito? E onde está o seu cavalo?

Então Perceval se deu conta, pelo tom da voz dele, de que não estava tratando com um velho qualquer. O pesca­dor, notou, trajava um manto escarlate jogado sobre os ombros como uma capa. Vestimenta real. Sem se conter, perguntou:

— Em que país estou, Senhor? Galopei tanto estes últimos dias que devo ter me perdido.

— Você acabou de entrar na Terra Gaste, meu amigo. Eu sou o rei. Meu nome é Pellès.

O rapaz, impressionado, também se apresentou. Pellès o examinou com mais atenção.

— Perceval? Não conheço nenhum cavaleiro com este nome.

— É que eu sou cavaleiro novo, Sire. Monsenhor Garvain me sagrou.

— Neste caso...

Eles se falavam enquanto avançavam rio abaixo, o rei Pellès deixando a barca se guiar pela fraca correnteza e Perceval caminhando ao longo da margem.

— Escute, cavaleiro novo, não há vau até léguas daqui. O melhor que você faz é subir a bordo. Segure!

Com uma força e uma destreza inesperadas para um ancião, Pellès lançou uma corda a Perceval. O rapaz puxou a barca até a margem. Entrou nela.

— Muito bem — disse Pellès. — Pegue os remos. Perceval obedeceu. Remou energicamente na direção da outra margem.

— Não — disse o velho rei. — Suba a corrente. Vamos até o meu castelo.

— Sire, não tenho tempo. Preciso...

Não disse mais nada. Acabara de se lembrar do con­selho de Garvain: enquanto não fosse questionado, ele devia "conter a língua". Ademais, sentia vergonha de confessar àquele rei que estava voltando às pressas para casa porque sua mãe estava morrendo por sua causa.

— Dê-me este prazer — disse Pellès. — O dia já está muito avançado. Eu lhe ofereço hospitalidade. Você parte novamente amanhã de madrugada.

— Sire, eu...

— Amanhã eu lhe darei um cavalo das minhas cavalariças. Vai percorrer uma distância maior do que a que conseguiu esta tarde a pé.

Não havia o que discutir.

Um embarcadouro de madeira se projetava até o meio do rio. Perceval levou a barca até ali. Amarrou-a, depois saltou sobre as pranchas.

— Preciso de você — disse Pellès.

— Perdão, Sire?...

Pellès, então, suspendeu as abas de seu manto, exibin­do para o rapaz suas pernas. Magras, elas se pareciam com dois galhos mortos.

— Preciso de você — repetiu. — Preciso que me car­regue.

Perceval, embaraçado, hesitou.

— A menos — prosseguiu Pellès — que não se sinta capaz. Nesse caso, vá até o castelo e traga meus serviçais.

O jovem cavaleiro virou a cabeça na direção da imen­sa torre de pedras cinzentas que se erguia um pouco mais longe, franqueada por duas torrinhas frágeis. Nunca tinha visto um castelo parecido — mas também nunca tinha escutado falar do reino da Terra Gaste. Fixou os olhos no velho rei dentro da barca: era um homem de forte corpulência, que devia ter sido de um vigor excepcional antes de as pernas pararem de carregá-lo. Perceval tinha, multi­plicada por cem, a vaidade de todos os jovens: não supor­tava que pusessem sua força em dúvida. Desceu para a barca, inspirou profundamente, abaixou-se e segurou o ancião nos braços, suspendendo-o.

Ficou surpreso: Pellès lhe pareceu extraordinaria­mente leve. Ele não pesava, apesar da corpulência e de seu tamanho, mais do que uma criança pequena. Perceval pulou por cima da borda da barca, subiu sem dificuldade para o embarcadouro e, com o velho rei nos braços, dirigiu-se para a imensa torre cinzenta de seu castelo.

— Eu tinha certeza — disse Pellès.

— De quê, Sire?

— De que não acharia melhores braços para me car­regar.

— É que... o senhor me parece tão leve...

— Gosto que me fale assim. Um outro que não você — ou mesmo você, há pouco — teria dito: "É que eu sou forte."

— Eu quase falei.

Pellès riu mansamente.

— Porque você é orgulhoso. Mas — e é melhor para você e para mim, é um maravilhoso presságio — você tem a modéstia do seu orgulho.

Sem nada compreender desta última frase, Perceval decidiu não replicar. O corpo do velho rei não pesava naquele momento mais do que uma pluma. Ele o carre­gou até o castelo.

 

Mal tinham se apresentado diante dos fossos, a ponte levadiça já estava sendo baixada. Perceval a atravessou com Pellès nos braços. No pátio, varletes os acolheram, suspendendo o rei e o colocando em uma liteira. Outros domésticos cobriram o jovem com um manto escarlate parecido com o que protegia Pellès. Em seguida, foi con­duzido a uma das torrinhas e levado até um quarto onde um banho fumegante o aguardava. Tinham-no despido. Ele deixara que o fizessem. Um varlete o enrolou com um lençol de linho branco antes que ele entrasse no banho, se sentasse e, subitamente acalmado pela água muito quen­te, se abandonasse ao simples prazer do repouso.

— Bom dia, cavaleiro.

Perceval abriu os olhos. Todos os varletes tinham dei­xado o quarto. Uma moça acabara de entrar, segurando pela mão um menino de uns dez anos, de uma beleza agreste e simples, com um porte de príncipe. Com um gesto reflexo, Perceval verificou que o lençol de linho cobria bem sua nudez.

— Senhora?...

— Sou Ellan, a filha do rei Pellès. E esse é o meu filho, Galahad. Viemos saudar o hóspede de meu pai.

— Muito bem... Obrigado... Eu a saúdo igualmente...

Ellan fez um sinal ao filho para que ele se afastasse em direção à janela. Ele obedeceu e sentou-se sobre o banco de pedra da abertura, mantendo os olhos — de um azul profundo e calmo — sobre o jovem cavaleiro sentado no banho.

— Sabe — começou Ellan — que meu pai escolhe seus hóspedes com tanto... discernimento que o senhor é o segundo até hoje que vi entrar aqui?

— Hã... Eu aprecio esta honra, acredite...

Ellan apanhou uma cadeira e se sentou, bem perto do banho de Perceval. Ele estava pouco à vontade. Aquela jovem era bonita, sem que conseguisse estimar sua idade — e, sobretudo, ela o observava de uma maneira intimidante. O que queria ela?

— Quantas façanhas o senhor executou estas últimas semanas? — perguntou de repente.

— Fa... Façanhas?

— O senhor mostrou, tenho certeza, uma proeza fora do comum...

— Eu...

Seria o fato de se encontrar quase nu no banho? Seria o tom inesperado, vagamente ameaçador, empregado por essa desconhecida para lhe falar? Perceval se sentia muito menos vaidoso que de hábito.

— Eu venci um Cavaleiro Escarlate — disse. — Tomei suas armas.

— Bravo. E o que mais?

— Eu... eu enfrentei Aguingueron, um gigante a ser­viço de Mordred... já ouviu falar de Mordred?

— Nada de perguntas estúpidas, cavaleiro. Sim, todo mundo sabe quem é Mordred.

Ela inclinou subitamente o rosto para ele. Seus olhos brilhavam com uma chama estranha.

— Mordred tem uma mãe, Morgana, que é capaz de tudo.

— Parece...

— Capaz, por exemplo, de adquirir toda e qualquer aparência humana ou animal.

— Ah,é?

— Capaz, portanto, de dar a seu filho, Mordred, toda e qualquer aparência, toda e qualquer identidade.

Quis replicar que, nesse caso, talvez fosse essa a razão de ele ter tanta dificuldade para encontrar o tal Mordred. Não teve oportunidade. Ela aproximou mais ainda o rosto do dele, quase tocando-o. E murmurou:

— Quer seja Mordred ou não, me escute bem: o Graal não é para o senhor. O senhor não é, não será jamais o Eleito.

— O...? Do que está falando?

— Lancelot poderia, deveria tê-lo sido. Fracassou. Por culpa de Guinevere... Se ele tivesse me amado...

Ela se pôs subitamente de pé. Parecia muito determi­nada, quase colérica. Perceval não compreendia nada. Nada. "É uma louca", pensou.

— O Graal e o mundo não pertencerão ao senhor, Perceval, Mordred, ou quem quer que seja. Ignoro até onde irá a cegueira de meu pai. Mas, creia-me: o senhor vai me encontrar sempre ao longo do seu caminho.

— Posso lhe assegurar, Senhora...

— Olhe! — interrompeu ela apontando o menino que, comportadamente sentado na abertura da janela, fixava neles seus olhos tão claros e tão calmos que pare­ciam os de um anjo. — Olhe meu filho! Só lhe faltam alguns anos para crescer, e o Graal e o mundo serão dele.

Ela recuou e chamou com um sinal o jovem Galahad, que veio até ela. Colocou a mão na nuca do menino e, antes de deixar o quarto com ele, acrescentou:

— Se for preciso, matarei o senhor com minhas pró­prias mãos.

Após o quê, puxando o filho, saiu.

 

O jantar, naquela noite, se desenrolou como nenhum outro a que Perceval tivesse sido convidado.

Primeiro, quando os varletes reapareceram para o tirar do banho, secar, ungir e vestir, ele não parou de rememorar a visita de Ellan. O que de nada lhe serviu: não conseguia entender nada do que ela lhe dissera. Foi, pois, com um certo mal-estar que se deixou conduzir até a sala do castelo.

Fizeram-no entrar em uma peça maior do que ele teria podido imaginar. Uma lareira gigantesca. Um teto tão alto que a luz das tochas e dos castiçais, mesmo ace­sos às centenas, não o iluminava. E, no centro da sala dez vezes mais espaçosa do que a sala principal de Camelot, o velho rei Pellès o esperava, estendido em um leito quadra­do. Nem cavaleiros, nem donzelas, nem varletes, nem domésticos. O vazio. Apenas o rei Pellès, enfermo, recostado em almofadas escarlates — e ele próprio, atravessan­do aquele deserto de lajes cinzentas até alcançar o ancião.

— Sente-se, cavaleiro — disse Pellès, dando tapinhas no leito.

Perceval olhou em volta: nada, não havia nada naque­le enorme espaço, a não ser o rei enfermo, seu leito e ele. Sentiu uma vaga vertigem. Mas obedeceu. Foi se instalar na beira do leito.

— Meu amigo — continuou Pellès —, retomemos nossa conversa do ponto onde a interrompemos. De onde está vindo hoje?

— De uma cidadela de propriedade de uma donzela, Blancheflor, que estava sendo sitiada pelas tropas de Mordred.

— Ah... Beau Repaire... Eu conheço... E o que foi lazer lá?

— Eu estava passando. Pellès deu um riso amistoso.

— Certo. E, passando, o que foi que fez?

— O que teria feito qualquer cavaleiro no meu lugar: Enfrentei em julgamento o lugar-tenente de Mordred.

— Aguingueron? Dizem que é um gigante, e imbatível.

— Mesmo assim eu o bati.

Pellès riu novamente, com uma satisfação cuja causa Perceval não compreendia.

— O senhor parece feliz com esta notícia, Sire. Aguingueron e Mordred são seus inimigos?

— Não tenho inimigos. Ou, por outra, não os te­nho mais.

— O senhor tem sorte...

— Não. É simplesmente porque não sou mais deste inundo.

— Ah...

Perceval sentiu na ponta da língua uma pergunta que o aborrecia desde o banho: "E quem é essa Ellan, que se apresentou a mim como sua filha e me falou sem que eu compreendesse uma só palavra de suas intenções?" Mas reteve a pergunta. "Conter a língua": sempre "conter a lín­gua". Jamais falar de si. Perceval procurou uma réplica neutra, uma simples cortesia, e saiu-se com esta:

— Ferido como está, Sire, devia evitar pescar sozinho em um barco.

— Eu evito, meu amigo, eu evito, não se preocupe. Salvo quando encontro um jovem cavaleiro como você.

Antes que Perceval pudesse responder, o rei bateu quatro vezes as mãos. Um varlete apareceu. Trazia uma longa lança branca. Dirigiu-se ao leito onde Pellès estava recostado, e Perceval, sentado. O rapaz se perguntou o que aquilo significava. E se perguntou ainda mais quan­do, ao se aproximarem o varlete e a lança, constatou este curioso fenômeno: a ponta da arma sangrava. Um sangue vermelho fresco, como se tivesse saído de uma ferida feita naquele instante. E aquele sangue escorria, gota a gota, ao longo da haste. O varlete que a carregava passou diante do leito, suficientemente próximo para que Perceval per­cebesse que não se enganara: o sangue brotava sem cessar da ponta da lança. Ele abriu a boca para perguntar qual era o prodígio. Calou-se.

Não, não devia fazer nenhuma pergunta indiscreta. Como Garvain havia lhe ensinado. Ser cavaleiro é também saber se calar com discernimento. "Você nunca deve mos­trar que alguma coisa, qualquer coisa, o surpreende." Como um bom aluno, Perceval fingiu não ter ficado surpreso.

Contudo, seu assombro ainda não tinha chegado ao fim. Quando o varlete da lança desapareceu por uma pe­quena porta na outra extremidade da sala, dois novos varletes entraram, cada um com um candelabro na mão. A luz das velas era surpreendente. Eram dez, mas brilhavam como mil. Ofuscado, Perceval pôs os dedos diante dos olhos. Sentiu a mão do rei Pellès segurar-lhe o pulso. Olhou.

Seguindo os dois varletes com os candelabros, uma jovem entrava. Sobre suas duas mãos, ela trazia um prato largo, que chamam de "graal", incrustado de ouro e pedras preciosas. Perceval reconheceu imediatamente a moça: era Ellan, a que se apresentara como filha do rei e, acompanhada do filho, dissera-lhe coisas tão estranhas e ameaçadoras ainda agora. O inacreditável brilho, que não se sabia se provinha dos candelabros ou então do ouro do próprio Graal, impressionou tanto Perceval que, dessa vez, ele se esqueceu dos conselhos de Garvain e decidiu lazer uma pergunta. Ia formulá-la quando viu, no fundo da sala, o filho de Ellan, o menino com um olhar tão claro, tão luminoso, tão intenso que aquilo lhe pareceu outro prodígio, junto do qual o brilho dos candelabros e do Graal não era nada.

Ele baixou os olhos. Deixou desfilar diante de si os varletes e Ellan — os candelabros e o prato de ouro orna­do com pedras preciosas. Só ergueu os olhos quando eles passaram pela outra porta, no fundo da sala, pela qual também desaparecera a lança que sangrava.

O rei Pellès agarrou-o pelo pulso.

— O que está acontecendo? Por que não diz nada?

Os dedos de Pellès apertaram-no tão forte que ele sentiu dor. Mas não procurou se soltar. Nem responder.


Aliás, sentia-se incapaz de responder. Como se nunca tivesse sabido pronunciar uma palavra.

— Olhe! — rosnou Pellès. — Olhe de novo!

E o varlete da lança, depois os dos candelabros, depois Ellan e seu prato de ouro voltaram à sala. Percorreram lentamente, solenemente, o mesmo caminho da ida. Um caminho que os fazia passar perto do leito onde Perceval estava sentado, com o pulso dolorido sob os dedos aper­tados de Pellès.

— Olhe...

Perceval olhou. E, ao olhar, sentiu-se atormentado por duas perguntas. Acreditou que devia fazê-las, de qualquer maneira. Mas, apesar de mexer os lábios, elas não saíram. Estava mudo. Paralisado. Não via senão os olhos azuis, angelicais e fixos do menino chamado Galahad. E, quando conseguiu desviar o olhar, foi para encontrar o de Ellan.

Pareceu-lhe que sua boca se transformara em um pedaço de madeira, sua língua em um seixo. Duas per­guntas, duas perguntas simples porém essenciais se reviravam, reviravam dentro da sua cabeça. Ele não ia fazê-las.

O cortejo dos varletes e da moça desapareceu pela porta onde de onde tinha saído inicialmente. Os dedos de Pellès soltaram o punho de Perceval. O rei berrou:

— CHEGA! Libertem-me, pelo Sangue de Cristo! NÃO AGÜENTO MAIS!

Depois disso o ar turbilhonou em volta de Perceval — e ele sentiu que o turbilhão seqüestrara seu espírito. Murmurou:

— Tenho duas perguntas...

Era tarde demais. Desmaiou.

 

Despertou de madrugada. Uma água gelada molhava suas faces. Resmungou, abrindo os olhos, e protegeu ins­tintivamente o rosto.

Acima dele, numa luminosidade de céu de inverno, havia grossas nuvens cinzentas e pesadas, de onde caía uma tempestade de neve. Em volta dele, as paredes em ruínas do que devia ter sido uma torre muito grande. Estava deitado em um colchão de palha apodrecida, no meio de lajes meio desconjuntadas entre as quais cres­ciam ervas daninhas.

Perceval se levantou penosamente. Tinha dor nas cos­tas. Sentia frio. A neve era cada vez mais densa. Estava cobrindo muito depressa o piso da larga sala em ruínas. Tudo se tornava branco.

Como meu espírito — pensava Perceval com apenas uma imagem na cabeça: uma lança sangrando gota a gota em cima de um prato de ouro e pedras preciosas. E este grito: "CHEGA!" Um ancião de barba cinzenta. Uma moça, também, e um menino. Seus olhares.

— Duas perguntas... — murmurou ele, titubeando na neve.

Duas perguntas. Ele se lembrava que deveria ter feito duas perguntas.

Quais?

Ao pé do leito desconjuntado, encontrou, meio recoberto de neve, um manto de arminho e escarlate. Enrolou-se nele. Fazia cada vez mais frio. Tinha fome, sede. Estava esgotado como se nunca tivesse dormido.

Saiu das ruínas. Diante dele, numa luz muito pálida, tudo era branco.

Minha mãe...

Enrolou-se no calor do arminho e do escarlate. Sua mãe... Era ela que ele tinha que encontrar. Antes que morresse.

Curvou-se, apanhou a neve com as mãos e esfregou-a vigorosamente no rosto. Isso terminou de acordá-lo.


 

No mesmo instante, longe dali, Lancelot também acordava.

Foi o frio que o tirou do sono. Abrindo os olhos, Constatou que não havia fogo na lareira, uma vez que a janela estava escancarada. Flocos espessos, mas leves, pla­nando, caíam até no vão da janela. Levantou-se. As lem­branças da véspera voltaram, em fragmentos. Guinevere. A discussão entre eles. A decisão que tomaram. A espada.

Olhou para fora. Estava tudo branco. Camelot inteira estava enterrada sob o grande silêncio da neve. Ele estre­meceu. Estava nu. Virou-se para o leito.

Guinevere ainda dormia. A espada cravada junto de seu quadril. Uma coberta de arminho cobria-a pela metade.

Aproximou-se dela. Ajoelhou-se. Roçou sua têmpora com um beijo. Ainda não acreditava completamente, após tantos anos passados na ilusão do Vale sem Volta, que ela estivesse viva, e quente.

— Vá-se embora. Agora você precisa ir embora.

Teve um sobressalto, olhou em volta: não havia nin­guém dentro do quarto. Contudo, aquela voz... aquela voz lhe lembrava alguém...

— Não vou lhe repetir: vá embora. Aquela voz... Sim. Era a sua própria...

— Quem está falando? Onde você está?

— Eu lhe falo como se você falasse a si mesmo. Vá embora. Lancelot procurou com o olhar de onde vinha aquela voz.

— Lancelot, você tem que fazer sua escolha: ou Guinevere ou Arthur.

— Há anos eu escolhi! Mostre-se!

— Estou aqui. No seu coração. É ele que você deve escutar.

— Meu coração não me falaria desse jeito!

— Bem, eu não tenho tempo a perder. Toque no seu pescoço.

O quê?

— Passe os dedos no seu pescoço, estou lhe dizendo! Lancelot obedeceu contra a vontade. Encontrou, com a ponta do indicador, um longo corte que ainda sangrava, entre a nuca e a garganta.

— É isto — disse a voz. — Agora, examine a lâmina cra­vada na cama.

Lancelot obedeceu de novo. Havia sangue manchan­do o corte da espada.

— É o seu — disse a voz. — Arthur poderia ter decapitado você.

— Arthur? O rei veio... nos surpreendeu?

— Ele mesmo — repreendeu-o Merlin —, e mesmo que ele não tivesse surpreendido você, nu, no mesmo leito que a rainha, você seria perdoável por ter feito o que fez?

— Eu... eu a amo...

— E DAÍ? QUER DIZER QUE VOCÊ A AMA MAIS DO QUE A SEU REI?

A voz se tornara ensurdecedora. Mesmo assim, Guinevere não acordava.

— Não é a mesma coisa — gemeu Lancelot. — Não é o mesmo amor...

—Então trate de determinar qual você deve escolher! Trate de saber quem eu sou, quem você é! O que você deve fazer!

— Não...

Do canto mais escuro do quarto, um homem tinha saído. Estava nu, como Lancelot. Mas, sobretudo, ele era: Lancelot nu. Era ele mesmo que atravessava a peça, ele mesmo, só que mais jovem, sem barba grisalha, sem todas aquelas rugas que lhe marcavam a testa, a comissura dos lábios, o canto dos olhos. Um Lancelot de antes do Vale sem Volta, um Lancelot como, disse a si mesmo subita­mente, deveria sempre ter permanecido; e sido.

— Você não existe... Você é uma ilusão, uma mentira...

— Errado! É você a ilusão e a mentira! Você que me traiu, me mentiu, me encerrou, por sua estupidez, no Vale sem Volta!

— Cale-se!

Lancelot atirou-se sobre a sombra, seu duplo — sobre si mesmo. Rolaram no chão. Tinham a mesma força. E era atroz ter que desferir socos naquele rosto que tinha sido e deveria ainda ser o seu; ter que se defender de sua própria sombra, de si mesmo.

Esgotados, os dois Lancelot pararam a luta. Não tinham mais fôlego.

Um dos dois terminou por perguntar:

— O que devemos fazer? Ao que o outro respondeu:

— Sejamos nós mesmos.

— Quem?

— A criança que Vivian educou.

 

Naquela manhã, dois cavaleiros partiram em direção ao norte. Um, com rosto de adolescente, sonhava apenas com a mãe. Deixava, a pé, as ruínas de um castelo que ele tinha visto, na véspera, imenso e acolhedor. O outro, com a barba precocemente grisalha, tentava esquecer seu exclusivo e único amor. Deixava, a cavalo, o castelo de Camelot, com a certeza no coração de que não voltaria jamais.

Todos dois avançavam em meio a uma paisagem de neve. Sob um céu cinzento de prata, o silêncio era total. Os pássaros e os animais que, no outono, não tinham migrado para regiões mais clementes, tinham se refugiado em seus ninhos, suas tocas, seus esconderijos. Tudo dor­mia. Exceto os homens.

Exceto aqueles dois cavaleiros que iam para seu des­tino, e milhares de outros — soldados, sargentos, varletes, os próprios cavaleiros, reis ou príncipes — exércitos intei­ros, que se dirigiam para o castelo de Carduel, à beira do mar da Irlanda.

Muitos deles morreriam.

Nem o jovem Perceval nem Lancelot pensavam nisso. E, se tivessem sabido, nem teriam ligado. Todos dois tinham em mente apenas o destino de uma mulher: uma mãe, uma amante.

Eram parecidos como o cristal de um floco de neve se parece com outro. Eles não sabiam. De resto, nada pode­riam fazer. O passo de Perceval, os cascos do rocim de Lancelot iam deixando suas marcas na neve.

E, enquanto isso, Merlin, o "filho do diabo", tinha pousado, sob a forma de um gavião, nas Altas Terras da Escócia. Retomou a forma humana e começou a andar. Não sabia para onde ia. Não se fazia essa pergunta. Estava cansado. Decidira não fazer mais nada. Deixar o mundo correr para o seu destino, nem que fosse para sua derrota.

Foi então que Morgana cometeu o mais grave erro de sua existência. Planando com suas asas de coruja, ela pas­sara a noite sobrevoando as tropas comandadas por seu filho, Mordred. Ela havia admirado o número, e a discipli­na, e o brilho das armas. Dizia a si mesma que havia feito sua parte: graças a ela, Arthur surpreendera Lancelot no leito de Guinevere — e, portanto, o rei era um homem já ferido, já vencido, já acabado. Traído pelos dois indivíduos que ele mais amava no mundo. Quanto ao cretino daque­le novo Eleito, aquele galesinho Perceval, ela não tinha precisado afastá-lo do caminho do Graal: a própria filha de Pellès, a ciumenta e terrível Ellan, se encarregara de impedi-lo de fazer as Duas Perguntas. Tudo porque seu rebento, aquele Galahad, o bastardo de Lancelot... Ah! Se Ellan estava imaginando que seu pequeno Galahad iria obter o Graal, estava redondamente enganada! O Graal, e portanto o poder absoluto sobre o universo, estava desti­nado somente a um homem, somente a um cavaleiro, somente a um filho, e seria o seu: Mordred!

Exaltada, esvoaçava pelo céu, acima da cabeça de Merlin, que ela havia alcançado sobre as colinas nevadas das Terras Altas. Ele era o único que ainda podia se atra­vessar em seu caminho. Contrariar o destino de Mordred. Era preciso eliminá-lo, matá-lo, erradicá-lo. Ele tinha a aparência tão cansada... Ia ser fácil.

Ela não tinha dúvidas de que Merlin decidira não mais intervir na marcha do mundo. Mesmo sabendo disso, iria, como coruja, bater as asas e deixá-lo entregue à tristeza? Não. Ela o odiava demais.

Lançou-se sobre Merlin, deu-lhe uma bicada no crâ­nio, depois foi pousar um pouco mais adiante, sobre um rochedo.

Contorcendo-se de dor, Merlin esfregou o crânio. Examinou os dedos ensangüentados. A coruja caçoava dele, piscando os olhos na sua frente. Irritado, ele se incli­nou, apanhou uma pedra e...

Isso — esse gesto — Morgana não previra. Ela se transformava em ave noturna como quem se diverte, quando se tem poderes de feiticeira e se pode mudar de aspecto, e voar. Transformar-se em ave noturna, para ela, não tinha nada em comum com ser uma ave. Foi obriga­da, naquela manhã, a se confrontar com a realidade.

Bastou uma pedra. A pedra que Merlin, furioso, atirou com toda a sua força de mago.

Antes mesmo de compreender o que estava aconte­cendo — e achando, portanto, que não ia lhe acontecer mais nada depois daquela pedrada —, Morgana recebeu a pedra bem em seu olho esquerdo de coruja, no exato ins­tante em que se preparava para readquirir sua verdadeira aparência.

O impacto matou a coruja no ato.

Merlin acreditou perceber uma espécie de grande sombra se abrindo em torno da coruja quando a pedra bateu nela. Mas a neve caía cada vez com mais intensida­de, e mesmo um mago como ele não conseguia enxergar muita coisa.

— Bicho nojento — resmungou. — Bem feito...

E, enxugando os olhos embaçados pelos flocos de neve, recomeçou a andar.

Atrás do rochedo, o despojo da coruja morta se trans­formou lentamente num grande corpo de mulher. Que, por sua vez, desapareceu pouco a pouco sob a neve.

— Que eles se virem sozinhos — resmungava Merlin escalando a subida de uma colina das Terras Altas. — Fizeram de tudo na minha ausência... Não vou ser eu, agora, quem vai livrá-los de Morgana...

Contudo, ele começava a se sentir melhor. Como se o véu negro de sua tristeza se rasgasse. Parou, respirando profundamente. Sim, subitamente, o mundo lhe parecia mais claro. Uma onda de alegria, de alívio percorreu seu corpo. Era inexplicável.

Esfregou a testa. Uma idéia atravessou-lhe o espírito. Uma intuição.

— Morgana? — chamou. — Morgana? MORGANA! Soube que jamais obteria resposta. Então, desatou a rir.

 

Perceval chegou à entrada da Floresta Perdida após dois dias de caminhada. Na véspera, tinha se apresentado em um lugarejo e comprado um cavalo de lavoura, em troca do anel que havia "obtido" da donzela, no começo de suas aventuras. Recuperara as forças com uma sopa de cevada, recusara a hospitalidade dos aldeões e prossegui­ra viagem à noite. A neve parará de cair. O céu se abrira. Tinha cavalgado em uma paisagem fantasmagórica — o branco da neve brilhando sombriamente sob a fraca luz das estrelas e de uma lua no seu primeiro quarto.

Atravessou a cortina de árvores que proibia a aproxi­mação do solar familiar a todos que não conhecessem a passagem. Ali também tudo estava branco. Nem um ani­mal, nem o menor grito de passarinho. As largas patas do cavalo de lavoura se enterravam chiando na neve fresca.

Atravessou a ponte que passava por cima dos fossos. O pátio do solar estava imaculado. Nenhum traço, ne­nhuma pegada. Perceval gritou:

— Olá!

O eco da sua voz pareceu absorvido, abafado pela neve. Ninguém veio ao seu encontro.

Cada vez mais inquieto, desceu do cavalo e, largando-o ali, dirigiu-se para a entrada da sala.

Estava escuro e fazia frio. A alta chaminé principal estava apagada. Aproximou-se, tocou nas cinzas: nenhum fogo, havia muito tempo, fora aceso naquela lareira.

— Olá! Tem alguém aqui?

A pergunta repercutiu em vão entre as paredes da sala. Perceval subiu as escadas que levavam ao resto do solar.

Seguiu os corredores até a entrada do quarto. A porta estava entreaberta. Ele hesitou, empurrou-a. Ela se abriu rangendo para uma peça tão gelada quanto o resto da casa. Viu primeiro a chaminé extinta. Depois o leito. O leito onde repousava um corpo.

Por instinto, recuou um passo. Ele não poderia, disse a si mesmo, ele não podia... entrar naquele quarto — mortuário.

Nesse momento, um raio de sol varou a janela. Foi pousar, com sua luz fria e dourada, sobre a cama. Sobre o corpo.

— Mãe... — murmurou Perceval.

Lutando contra si mesmo, contra seu próprio desejo de fuga, sua recusa daquela realidade inaceitável, deu alguns passos pela peça. Até a cama. O sol, naquele instante, iluminou toda a janela e clareou o rosto da mulher estendida, com as mãos cruzadas sobre o peito e os olhos fechados.

— Mãe... — repetiu ele, e caiu de joelhos à cabeceira da morta.

Chorou.

— Perdoe-me... Fui um mau filho...

A lembrança de sua mãe desfalecendo na entrada do solar enquanto ele ia embora para longe voltou, terrível, ao seu espírito. "Se eu tivesse dado meia-volta...", pensou. "Se eu tivesse cuidado dela a metade do que ela cuidou de mim, durante a vida inteira..."

Mas nada se pode contra a morte. Nem contra a pró­pria culpa. Não se pode fazer voltar o tempo, corrigir os erros antigos. Nada mais verdadeiro do que isto: ele havia abandonado a mãe, ela morrera. Morta. Morta... Nunca mais falaria com ela. Nunca mais poderia lhe explicar que ele precisava partir naquele dia, que a Providência o havia feito encontrar cavaleiros, que era inevitável que sentisse vontade, necessidade de segui-los, imitá-los, ultrapassá-los.

"E para fazer o quê?", perguntava-se, colocando a mão sobre as mãos geladas da morta. "O que consegui, a não ser a vaidade de ter matado o Cavaleiro Escarlate, humilhado o gigante Aguingueron, perdido para sempre Blancheflor sem ter podido amá-la? Você tinha razão, minha mãe: ser cavaleiro não serve para nada. É apenas o orgulho. E meu orgulho a matou..."

Contemplou por mais um momento aquele rosto onde todas as rugas, todas as preocupações, todos os temores tinham desaparecido com a morte. Um rosto quase de mocinha, lívido, como ele nunca havia conheci­do. Ele não se perguntou por que seus serviçais e seus sargentos tinham desertado do solar. Provavelmente tinham partido para outros lugares à procura de um teto, uma proteção, na esperança de melhor fortuna. Segurou nos braços o cadáver da mãe, suspendeu-o contra o peito e, como se não pesasse nada, levou-o para fora do quarto, desceu a escada, atravessou a sala, depois o pátio e a ponte dos fossos, caminhou pela clareira que a neve reco­bria de silêncio.

O corpo estava rígido. Sua mãe, morta já há vários dias. Só o frio a havia preservado de uma pavorosa cor­rupção. Depositou-a na neve.

Depois, sob o carvalho que ela preferia — uma árvore muito velha que, ela dizia, tinha sido plantada por seu tri­savô —, ele cavou uma tumba. Quando o buraco lhe pareceu suficientemente profundo para que nenhuma ave carniceira o desenterrasse, depositou o corpo. Co­briu-o com um lençol de linho branco que havia encon­trado dentro dos armários.

Quando a tumba não era mais do que um pequeno monte na clareira, ele apanhou a espada, cortou dois galhos baixos do velho carvalho, talhou-os e juntou-os. Transformou-os em uma cruz. Fincou-a na frente da tumba.

Durante muito tempo permaneceu ali, sem dizer nada, enquanto a neve recomeçava a cair. Em pouco tempo, o montículo ficou branco. Pouco depois, ele havia desaparecido no meio da brancura uniforme do inverno.

— Eu fui cavaleiro contra sua escolha — disse então Perceval. — De agora em diante, vou sê-lo por você.

Com um único movimento, deu as costas à tumba. Foi procurar o cavalo. Subiu nele. Todos dois estavam cobertos de neve; quase não se podiam distingui-los naquele branco que nivelava e amortecia todas as coisas.

Perceval esporeou a montaria, fazendo-a deixar a cla­reira. Ignorava aonde iria. Estava órfão. Tudo lhe era indi­ferente.

Lancelot escolhera um rocim sólido nas cavalariças de Camelot. Durante três dias, atravessara uma paisagem branca. Às vezes, a neve tinha caído tão forte, estava tão alta, tão profunda, que ele só conseguia avançar com grande dificuldade. Tinha, então, que descer da montaria e, puxando-a pela rédea, conduzi-la por caminhos que o inverno apagara, onde a espessura da neve era tamanha que ele afundava até os quadris, e o rocim, até o peitoral.

Não cessava de pensar naquele outro ele mesmo contra o qual tivera de lutar. A ilusão. Sempre a ilusão. A ilusão, sempre. Depois da de Guinevere, seu amor, tinha sido confrontado com a ilusão de si mesmo, e qual dos dois — o Lancelot jovem, irritante e cheio de certezas, ou o Lancelot no qual se transformara — tinha razão? Recu­sava-se a se fazer essa pergunta. Tinha sido aquele jovem, não negava. Mas ele era, devia admitir, esse homem precocemente amadurecido, que tinha uma escolha a fazer. Tripla escolha. Ou — e este era seu primeiro sentimento ao fugir de Camelot — ele se instalaria num mundo à parte e passaria a viver no fundo de uma floresta; ou renunciaria ao juramento de cavaleiro, seqüestrando Guinevere e traindo Arthur; ou então se juntaria ao rei, assegurando-lhe sua fidelidade, combatendo a seu lado e sacrificando por ele seu amor por Guinevere.

Progredindo com dificuldade na neve cada vez mais densa — como se o inverno tivesse se abatido sobre o mundo e se preparasse para congelá-lo —, descobriu-se incapaz de escolher entre essas três possibilidades. Sentia-se pronto a renunciar a tudo, tanto quanto a lutar por seu amor, ou então a lutar contra seu amor e por seu rei.

Quando seguia por um vale estreito cujo rio pouco a pouco se transformava em gelo, deu de cara com um jovem puxando sozinho seu próprio cavalo. Um gordo e paciente cavalo de lavoura.

— Camponês — gritou Lancelot —, afaste-se, quero passar!

Os dois se viram face a face. O mais jovem replicou:

— Velho, é você que vai afastar sua barba e seu rocim do meu caminho.

Lancelot o examinou calmamente dos pés à cabeça.

— Seu cavalo é mais robusto do que o meu, mas seus ombros são um pouco frágeis, camponês. Repito: afaste-se. Sou Lancelot do Lago, cavaleiro da Távola Redonda. Você me deve a passagem.

— Ah! — falou Perceval, pois evidentemente era ele. — Um cavaleiro! O senhor pertence à classe de homens que eu mais detesto no mundo.

— Ora, veja! E por quê?

— Porque eu os estimei demais.

Lancelot pensou por um instante em Guinevere, e disse a si que aquela definição de amor-ódio não lhe pare­cia inteiramente despropositada.

— Pelo seu sotaque, suponho que você é galês. Ora, se você é galês, provavelmente não conhece muita coisa das regras da cavalaria.

— Considera os galeses cretinos, Senhor? Ousa?

Lancelot observou aquele pequeno galo que o desa­fiava. Ele não tinha vontade de matar ninguém. E sobre­tudo um jovem bobo daqueles, galês ainda por cima, que tinha mais inépcia e coragem do que meios de enfrentá-lo. Pacificamente, deu de ombros.

— Afastem-se, seu cavalo gordo e você, para o lado. Nós nos cruzaremos como se nunca tivéssemos nos visto.

— Mas por que eu é que teria de passar ao largo, Senhor?

— Diferença de idade — disse calmamente Lancelot. — Respeite minha barba grisalha.

De repente, Perceval tirou a espada da bainha.

— Eu não respeito senão os que sabem se bater, e ousam!

Lancelot fechou os olhos e deu um longo suspiro.

— Você é muito, muito enjoado, galesinho...

E, rapidamente, empunhou a espada e a apontou para o rapaz.

— Eu falava como você quando tinha a sua idade. Eu era muito bobo.

A espada de Perceval se abateu sobre Lancelot. Que aparou tranqüilamente o golpe.

— Eu era muito bobo — prosseguiu — e muito presunçoso. Mas tinha razões para tanta bobagem e presun­ção. E você, por acaso as tem? Prove!

As lâminas se chocaram com um claro barulho de metal. Os dois cavaleiros, com neve até as coxas, se enfrentaram. Lancelot soube que tinha envelhecido quando compreendeu que se contentaria em se defender, que seu adversário não era mais do que um menino com uma grande vaidade, e que não levaria a lição que esperava lhe dar até o ponto de matá-lo. Quanto a Perceval, nada sabia nem dizia a si mesmo. A não ser que estava pronto a esquecer o desgosto pela morte de sua mãe no confronto com um adversário.

Quando os dois duelistas têm a mesma força, como Lancelot e Perceval, a vitória se deve a um nada. Esse nada foi a calma de um dos dois combatentes. Lancelot, com um golpe, terminou arrancando a espada das mãos de Perceval. Na volta do movimento, ele encostou a ponta da arma sobre a garganta dele.

— O que devo fazer agora? Diga-me. Devo matar você?

— O senhor ganhou. É seu direito.

— De que me vale ter ganho? O que faço com esse direito?

Lancelot baixou a lâmina da espada.

— Este que você tem à sua frente, meu rapaz, é um traidor de seu rei. Você é que deveria ter me matado, se Deus e as regras de cavalaria estivessem certas.

— Eu também sou um traidor, Senhor. Um traidor da minha mãe.

— O que está querendo dizer?

— Sou responsável pela morte dela.

Lancelot o fitou por um instante. Depois, recolocou a espada na bainha.

— Siga seu caminho, galês. E esqueça minha vitória. E esqueça sua mãe...

— Jamais.

— Então esqueça seu sofrimento. Se o seu erro tives­se sido maior do que o meu, você teria me vencido.

Dizendo isso, Lancelot subiu no dorso do rocim.

— Cavaleiro, o senhor está errado — retorquiu Perceval. — Quanto mais se está errado, mais se perde em jul­gamento. No nosso enfrentamento, foi o senhor que saiu vencedor.

— Deixe de ser bobo. Nosso mundo pertence ao diabo. Eu o bati porque sou mais esperto e mais experien­te que você. Qualidades do demônio. E pare de se sentir culpado pela morte da sua mãe. Se quer se tornar um grande cavaleiro, galês, um verdadeiro guerreiro, você deve ser órfão, solitário e viúvo.

Lancelot puxou a rédea do rocim.

— Não ame, rapaz. Não ame jamais, se quiser ser um grande cavaleiro e sobreviver.

Aplicou uma violenta esporeada na montaria. Ferido nos flancos, ela se desprendeu da neve, saltou e se afastou ao longo do rio que arrastava pedaços de gelo.

Perceval, que se perguntava se havia compreendido tudo, alisou o pescoço do seu grande cavalo de lavoura.

— De acordo com você... É isso um verdadeiro cava­leiro?...

Perceval continuou seu caminho. Dormiu umas pou­cas horas no abrigo de uma gruta naquela noite. O encontro com o cavaleiro de barba grisalha o deixara pouco à vontade. Tanto por causa do que Lancelot havia lhe dito — que ele ainda estava tentando entender — quanto pelo acontecimento que ele nunca tinha imagina­do: aquele Lancelot de barba de velho o havia batido. Pela primeira vez na sua curta vida, Perceval se deu conta de que não era invencível.

Ora, como todos os jovens, ele crescera se acreditan­do invencível e se imaginando imortal — ele, assim como seus próximos. Em pouco tempo tinha sido derrotado e obrigado a encarar a morte da mãe. Todas aquelas certe­zas tinham sido abaladas. A morte era possível, real, certa, fazia parte da vida. A derrota também.

Como se uma não existisse sem a outra.

De manhã, havia nevado tanto, que ele não soube como despertou do frio que podia tê-lo matado. Saindo da gruta, acariciou, ao passar, o flanco do seu gorducho cavalo. Ao chegar do lado de fora, olhou em volta. Encon­trava-se em uma imensa clareira inteiramente coberta de neve. A alguma distância viu tendas, um acampamento, e, pelas auriflamas que estalavam no cume, reconheceu-o como sendo o do rei Arthur. Disse então a si que era cava­leiro e que, como tal, deveria se apresentar no acampa­mento e receber as ordens do rei em pessoa.

Mas não tinha dado três ou quatro passos, quando uma revoada de gansos selvagens atravessou o céu. O que os extraviara, o inverno precoce, as nevascas? Eles voa­vam desordenadamente, soltando gritos de agonia.

Perceval levantou a cabeça. Compreendeu muito depressa o que se passava; um falcão os perseguia. Ainda estava alto no céu, mas eles o haviam visto. Tinham se reaproximado do solo, mas fora um erro: a neve estava tão branca ao sol da manhã que eles ficaram ofuscados. Soltando gritos de pavor, batiam freneticamente as asas. Um deles se afastou do grupo. O ganso passava acima da cabeça de Perceval quando, na velocidade de uma pedra que cai, o falcão se abateu sobre ele. Atordoado pelo cho­que, o ganso caiu, com as asas mortas, dentro da clareira.

Perceval correu em sua direção. Foi o bastante para desviar a ave rapace que, desdenhando sua presa, fugiu para cima das árvores. O ganso estava ferido no pescoço. Ele se levantou penosamente. Sacudiu-se. E, antes que Perceval o alcançasse, conseguiu voar, com um pesado bater de asas.

Deixou como marcas apenas três gotas de sangue na neve.

O jovem cavaleiro parou. Depois, sem pensar, deixou-se cair de joelhos. Olhou aquelas três gotas de sangue, dispostas em um triângulo quase perfeito sobre a brancura do prado. Três toques de vermelho que de repente lhe trouxeram à memória o rosto de Blancheflor. Aquela gota, maior e mais viva, como uma boca, como os lábios ver­melhos da moça. E as duas outras, já meio absorvidas pela neve, já rosadas, como maçãs do rosto.

Um sinal. Percival achou que era um sinal. Aquela ave, ferida pelo ataque do falcão, lhe tinha sido enviada pela Providência. Para que ele recordasse. Para que ele se lembrasse que a vida o esperava, que ela podia ser brutal, e triste, e injusta, mas que ele não tinha nem idade nem o direito de dar as costas a ela. Tinha deixado o solar fami­liar com a certeza de que não valia a pena se preocupar com mais nada no mundo. Estava errado. Havia Blan­cheflor, em algum lugar. Pouco importava que ela o tivesse recusado, pouco importava que fosse sua prima, apenas isto importava: três gotas de sangue na neve haviam sido suficientes para reavivar o sentimento mais intenso e mais perturbador que ele já conhecera: estava apaixonado.

— Ei! Você! O que está fazendo aqui tão cedo?

Perceval sobressaltou-se. A voz era rouca, desagradá­vel, autoritária. Sentiu-se como se tivessem lhe arrancan­do a alma, ao precisar desviar os olhos da sua visão. Falou, com raiva:

— E quem é você, para me incomodar e me falar nesse tom?

Mal tinha pronunciado essas palavras, reconheceu o homem a cavalo, com loriga e capa forradas de pele. O senescal Ké.

Ele também o reconheceu, com desprazer. Voltaram-lhe na mesma hora ao espírito as profecias de Enide e do bufão. "Palhaçadas", pensou. "E eu vou provar."

— Então é você, galês! O que está fazendo aqui? Está nos espionando a pedido de Mordred?

— Engula seus insultos, Senhor! Eu me preocupo com Mordred tanto quanto o senhor. Siga seu caminho e me deixe em paz.

Ké fez seu cavalo avançar alguns passos. Apontou para o acampamento, mais longe.

— Vamos, galês, você terá que me seguir até o rei para se explicar.

— Não tenho nada a explicar. Eu lhes enviei o gigan­te Aguingueron para que ele fizesse isso. Ele não lhes disse nada?

— Claro! Mas será que tenho que acreditar no que conta um antigo lugar-tenente de Mordred? Ele também não achava que você perseguia o chefe dele? Ora, é aqui que estou encontrando você. É o rei, é o exército, somos nós que você persegue.

Perceval fez um gesto de irritação.

— Eu não persigo mais nada nem mais ninguém...

— Ah! — ironizou o senescal. — Renunciou tão depressa a brincar de cavaleiro?

— Senhor — disse com firmeza o rapaz —, eu traí o juramento que uma mulher tinha feito e ela morreu. Siga seu caminho e vá dizer ao rei, e a quem quiser ouvir, que Perceval o galês renuncia à cavalaria.

Ké fez seu rocim avançar mais. Pôs a mão na bainha da espada.

— Chega de bobagens. Siga-me até o rei por bem, ou então...

— O senhor está me cansando...

E Perceval, com essas palavras, virou as costas para o senescal. Depois de uma última olhada nas gotas de san­gue que a neve, naquele momento, tinha bebido pratica­mente inteiras, afastou-se em direção ao local onde deixa­ra a montaria.

Furioso com aquela atitude que, para ele, equivalia a uma afronta, Ké esporeou o rocim, puxou a espada e se lançou, soltando um grito de raiva.

O que se passou em seguida o próprio Ké não conta­ria a ninguém. O caso teria sido muito humilhante.

Quando estava a apenas uns poucos passos do rapaz e se aprontava para atacá-lo com a face da lâmina, Perceval se virou de repente. A espada estava na sua mão. Ele não procurou evitar o choque. Limitou-se a um ágil passo de lado quando o rocim veio para cima dele e seu peitoral roçou-lhe o ombro, e já foi golpeando.

Com uma única estocada atingiu o senescal no braço, partindo-o.

A predição tinha se realizado.

Olhou o rocim diminuir a marcha. Ké, com as costas estranhamente curvadas de dor, deixou-se cair sobre o pescoço do animal.

Perceval recolocou a espada na bainha e, sem uma palavra, atravessou a clareira branca na direção da gruta para retomar o cavalo, e a estrada.

 

Aguingueron tinha falado a verdade. Os homens de Mordred, levados por seu lugar-tenente Clamadieu, tinham se apossado à traição de Carduel. Uma parte dos sargentos, dos varletes e dos cavaleiros que se encontra­vam lá tinha sido morta, a outra, encerrada nas masmorras. Os homens de Clamadieu tomaram suas roupas e seus lugares; receberam ordem de esperar a chegada do rei Arthur e de seu séqüito.

Mas o que Aguingueron ignorava é que a maior parte das tropas de Mordred, que se aliaram a ele em toda a Bretanha, e até na Escócia e na Irlanda, tinha se espalha­do pelas florestas circunvizinhas. Se a armadilha prepara­da em Carduel não funcionasse, se Arthur e os seus ficas­sem em vantagem sobre os homens de Clamadieu, eles seriam cercados por milhares de adversários.

Mordred, na entrada de um bosque de onde podia ver o castelo e a estrada que levava a ele, aguardava febril­mente, enquanto o dia surgia. Estava nervoso. Morgana, sua mãe, deveria ter vindo encontrá-lo há vários dias. Embora não duvidasse de suas próprias capacidades guerreiras nem do resultado da batalha decisiva que esta­va prestes a travar, sentia-se pouco à vontade: sempre tivera a mãe do lado e, sem ela, perdia um pouco da segu­rança, sua arrogância não era mais do que uma brutalida­de cega. Morgana era seu pensamento, sua ambição, sua inteligência. Precisava dela.

Com um grunhido de satisfação, deu subitamente um passo à frente. Um cavaleiro se aproximava, a todo o galope.

O homem, ao chegar diante de Mordred, saltou do cavalo e veio se inclinar diante do chefe.

— E então? — perguntou.

— Senhor, o rei está bem perto daqui. Mordred cerrou os punhos.

— Finalmente! Ele se joga na nossa armadilha!

— Não tenho certeza, Senhor...

— Por quê? Fale!

— A rainha não o acompanha. Não há nenhuma dama ou donzela. São varletes disfarçados de mulher e Galehot fantasiado de Guinevere que vieram no lugar delas. E o rei vem seguido de todos os seus cavaleiros e de todas as suas tropas.

Mordred, furioso, rosnou:

— Então é porque foi avisado. Fomos traídos!

— Creio que sim, Senhor. Aguingueron o gigante cavalga ao lado deles.

— Por todos os diabos! Eu o tinha deixado diante de Beau Repaire, a cidadela dessa Blancheflor: ele ia fazer o último assalto! O que aconteceu, você sabe?

— Ouvi dizer que ele foi desafiado e vencido em jul­gamento.

— Impossível! Quem, em Beau Repaire, teria sido capaz?

— Um jovem cavaleiro desconhecido, que chamam de Perceval o galês.

— Um galês! Mas de onde saiu esse indivíduo? Sem esperar a resposta, Mordred segurou o espião pelo ombro e o empurrou rudemente para o cavalo.

— Vá avisar o exército do norte! Que ele espere meu sinal! O assalto ocorrerá dentro em breve! Vá!

O homem partiu a galope. Mordred soltou um longo grito de raiva, levantou a cabeça para o céu e clamou:

— Minha mãe! Minha mãe! Onde a senhora está?

 

Uma hora mais tarde, Arthur e seu exército avistaram Carduel. Um sol encoberto por nuvens cinzentas clareava com uma luz lívida as muralhas do castelo e, atrás dele, o mar de um verde sombrio. À frente, a floresta era branca e preta: árvores desfolhadas cobertas de neve.

— Então? O que diz? — perguntou a Garvain, que voltava de uma missão de reconhecimento.

— Não gostei do que vi. Carduel está calmo demais: nem uma silhueta sobre as muralhas, ninguém nas proxi­midades. E encontrei pegadas frescas de um cavalo que se dirigia para a floresta.

— A floresta... Chegou perto dela?

— Não. Achei que tinha visto por ali sombras inquietantes. Brilhos de metal...

— Você acredita...? — disse Arthur, pensativo.

— Sim. Há homens em emboscada na floresta.

— Muito bem. Advirta nossos homens para que este­jam preparados para qualquer eventualidade. E avance­mos em direção a Carduel.

— Qual é sua decisão, Sire? Arthur fez um gesto fatalista.

— Nessa floresta, pode haver tanto uma esquadra quanto um exército. Não sabemos nada. Comportemo-nos como se fosse um exército. Que os capitães venham até mim. Vou lhes dar as minhas ordens.

— Sire — disse Garvain, com um tom inquieto —, e se Mordred nos espera com todos os seus aliados? Não somos suficientemente numerosos.

— E daí? Nunca seremos tão numerosos quanto eles. Quer que fujamos? Pessoalmente, eu não quero. A sorte do reino será lançada hoje, se Deus tiver decidido assim.

Para encerrar qualquer discussão, o rei esporeou seu cavalo. Garvain olhou-o se afastar. Depois, com o coração apertado, foi procurar os capitães.

 

Assim que o rei explicou a estratégia da guerra aos capitães encarregados das tropas, cada um partiu em sua missão.

Erec e seus homens, escoltando a liteira onde se encontrava Galehot fantasiado de Guinevere, tomaram o caminho do castelo. A ponte levadiça baixou à sua aproxi­mação. Eles entraram no pátio, calmamente. Quando ouviram a ponte levadiça ser suspensa de novo com um grande barulho de correntes, atacaram. Erec e uma parte de seus homens precipitaram-se a cavalo pela sala adentro. Lá os esperavam duas dúzias de homens em armas. Não se trocou uma palavra, não se perdeu um instante: o comba­te foi imediato. Enquanto isso, Galehot e a outra parte das tropas investiam contra o castelo por suas diversas portas.

O fator surpresa, com o qual tinham contado Clamadieu e seus sargentos, virou-se contra eles. Não estavam esperando aquele ataque imediato e determinado. Em menos de um quarto de hora foram dizimados, e Clamadieu, desarmado e acossado numa escada por Erec, rendeu-se. Na mesma hora, Galehot subiu na torre mais alta e agitou o estandarte do rei.

— Eles ganharam! — exclamou Garvain, mostrando o sinal a Arthur.

Estavam no alto de uma pequena colina de onde podiam vigiar toda a circunvizinhança.

— Perfeito. Saberemos onde nos escondermos se alguma coisa der errado. Espero que Yvain, Bréhu e Caradigas consigam o mesmo sucesso.

Yvain e seus homens tinham fingido dar meia-volta. Na realidade, tinham contornado a floresta para penetrar nela mais ao sul, onde, se tudo corresse bem, ninguém os alcançaria.

O plano parecia funcionar maravilhosamente. Avan­çaram profundamente em meio à folhagem sem encon­trar vivalma. Até o momento em que, numa pequena cla­reira, viram várias dezenas de homens ocupados em des­montar um bivaque e em aparelhar seus cavalos.

Começaram o assalto.

A luta parecia fácil. Com um estrondo de cascos mar­telando o solo, atiraram-se sobre os homens a pé. Derru­baram um grande número e já acreditavam na vitória quando, irrompendo de três lados da clareira, viram-se atacados, cercados por três dúzias de Guerreiros Ruivos.

Eles se defenderam o melhor que puderam, mantendo seus cavalos flanco a flanco, num grupo compacto de onde assoviavam os golpes de espada e de maça.

Mas os guerreiros saxões eram mais numerosos do que eles, mais altos, mais pesados. Os cavaleiros caíram um depois do outro.

Quando Yvain compreendeu que era o único que continuava montado, e apesar de um ferimento no ombro que sangrava abundantemente, jogou-se ousadamente em cima de seus adversários gritando:

— Por Deus e pelo rei!

A lâmina enorme de um saxão o decapitou no ato. Sua cabeça rolou na clareira, que não era mais do que um campo de lama e de sangue.

Em outros pontos da floresta, Bréhu, Caradigas e seus cavaleiros sofreram sorte idêntica. Bateram-se até o últi­mo dos seus, contra assaltantes freqüentemente dez vezes mais numerosos. Mas, para cada um deles que morria, caíam ao menos cinco de seus adversários. Nunca, na his­tória da Távola Redonda, seus cavaleiros tiveram que demonstrar tanta audácia e tanta proeza. E, mesmo que nenhuma das três esquadras comandadas por Yvain, Bréhu e Caradigas tivesse um único sobrevivente, elas provocaram uma devastação dentro do exército de Mordred, o qual saiu enfraquecido de suas forças assim como de sua coragem. A novidade dos três assaltos ocorridos se espalhou muito depressa, bem como as suas con­seqüências. Agora, ninguém mais tinha certeza de que a desproporção de forças seria suficiente para garantir a vitó­ria quando fosse necessário enfrentar a maioria das tropas de Arthur. Um sentimento de temor se difundiu até entre os Guerreiros Ruivos, e o duque saxão que os comandava teve a tentação de voltar atrás quando ficou sabendo que quase a metade de seus gigantes em pele de urso jazia nas clareiras onde tinham se desenrolado os combates.

Quando o sol espectral de inverno alcançou seu ponto mais alto, Arthur parou de esperar o retorno de seus cava­leiros. Compreendeu que nenhum voltaria e que era preci­so, naquele momento, conduzir seu exército à batalha.

— Ainda há tempo de nos retirarmos para Carduel — disse Garvain.

— Não.

— A rainha está sozinha em Camelot. Se formos ven­cidos, ela cairá nas mãos de Mordred.

Arthur, esboçando um ar sombrio, não respondeu. Guinevere, pensava, já estava em outras mãos. As de Lancelot. Então, o que lhe restava fazer, senão se conduzir como rei, como chefe de guerra? Sentiu-se viúvo em seu coração. Levantou a espada acima da cabeça e deu a ordem:

— Por Deus e pela Távola Redonda!

Duzentas vozes lhe responderam com um longo cla­mor. Garvain viu lágrimas brotarem no canto das pálpebras do rei. Desviou os olhos. Arrependeu-se de ter suge­rido a retirada. Sim, a sorte do reino, e do mundo, do mundo deles, seria determinada nas próximas horas. Não havia escolha.

Sob o comando do rei, o exército se movimentou. Passou sob as muralhas de Carduel e desceu na imensa praia da maré baixa. Lá, ele se abriu em semicírculo. Estava diante da floresta, cujas últimas árvores se erguiam a quinhentos passos. Atrás dele, a espuma das ondas lam­bia os cascos dos cavalos.

— Por que escolher esta praia para campo de batalha, Sire? — perguntou Garvain.

— Porque recuar é impossível.

Pouco depois, tropas a pé saíram do abrigo das árvo­res. Elas avançaram lentamente, e podia-se acreditar que não parariam de avançar, de tão numerosas que eram. No mínimo mil homens, estimou Garvain. Depois foi a vez dos cavaleiros e dos guerreiros saxões. Três boas centenas de cavaleiros.

Finalmente Mordred apareceu. Seu cavalo de batalha negro estava coberto por uma armadura de um pesado tecido de fio de ouro. Sua armadura, das luvas às perneiras, era de ouro também. Ia com a cabeça descoberta, os longos cabelos pretos flutuando negligentemente à brisa do mar. Os cavaleiros e os Guerreiros Ruivos se afastaram, como se formassem uma fileira em sua honra. Ele imobilizou o cavalo atrás de seus guerreiros da infantaria. Mais de trezentos passos ainda o separavam de Arthur. Mas sua voz atravessou sem dificuldade aquela distância.

— Arthur! Esta tarde, você não será mais nem meu rei nem meu pai! Esta tarde, até a última lembrança da Távola Redonda terá sido apagada! Esta tarde, um outro mundo e um outro rei se levantarão sobre esta praia que será o seu cemitério! Esta tarde, só haverá um único nome em todos os lábios: Mordred!

E todo o seu exército repetiu em coro, como um grito de guerra:

— MORDRED! MORDRED! MORDRED! Garvain aproximou sua montaria do cavalo guerreiro do rei.

— Responda-lhe, Sire! Para que ele não fique com a última palavra...

— A última palavra, eu lhe direi quando ele morrer.

 

A batalha se desenrolou durante horas.

De início a vantagem esteve com os homens de Arthur. Eles bateram, golpearam, retalharam as tropas a pé, em cima das quais tinham atirado seus cavalos. De mil combatentes, não restaram cem de pé, que fugiram para salvar suas vidas. Foi então que Mordred e seus cavaleiros atacaram.

Foi uma confusão de cavalos e de armas, uma balbúrdia de gritos de guerra, de dor e de raiva. No centro de sua cavalaria, Arthur combatia com extraordinária bravura, batendo de todos os lados mas sempre com discernimen­to, escolhendo arremeter contra os grupos de Gigantes Ruivos que sabia serem os mais perigosos adversários. Ele os enganava com a mesma velocidade com que se defen­dia, com a habilidade de suas dissimulações, a surpresa do golpe fatal. Em volta do rei, os inimigos caíam um após o outro. E, quando um saxão tentava atacá-lo por trás, havia sempre Garvain, que não o deixava, para livrá-lo daquele covarde.

Quanto a Mordred, permanecia na retaguarda da batalha, contentando-se em mover-se em círculos à direi­ta e à esquerda, procurando jamais tirar os olhos de Arthur. De tempos em tempos, erguia os olhos para o céu e era ouvido chamando:

— Minha mãe! Minha mãe!

Garvain defendia o rei contra um saxão que se prepa­rava para abater a maça sobre sua nuca, quando sentiu uma pavorosa dor nas costas. Encontrou um meio de degolar o Guerreiro Ruivo com um golpe de espada, antes de despencar sobre o pescoço do seu cavalo. Golpeou ao acaso — procurando atingir o inimigo que o havia ferido nas costas. Depois, perdeu a consciência.

Como um títere desarticulado, escorregou para baixo do cavalo.

Quando recobrou a consciência, estava estendido sobre a areia. A dor nas costas era atroz. Em volta dele, a praia estava coalhada de cadáveres de homens e de cava­los. Arrastou-se até o grande corpo de um cavalo agoni­zante, e se abrigou.

Lá adiante, entre a praia e a floresta, algumas dezenas de homens ainda se batiam. No meio, o rei e Ké, o senescal. Eram dez, vinte, trinta contra eles! Garvain tentou se erguer. Devia prestar socorro a Arthur, seu suserano, seu tio... Mas suas pernas não obedeciam mais.

Seu rei ia morrer, vencido por adversários numerosos demais... Viu Mordred, em sua pretensiosa e ridícula armadura de ouro, mantendo-se afastado do combate. Com os olhos pregados nos últimos combatentes que assaltavam um Arthur solitário.

— Medroso — murmurou. — Covarde imundo... Mas ele não podia fazer nada. Seu ferimento o havia privado do uso das pernas. Arrastou-se contra o cadáver quente do cavalo, e nele apoiou sua têmpora.

— Tome cuidado!

O apelo vinha de sua esquerda. Ele virou a cabeça. Um outro grupo lutava, na beira do areai. Galehot. Galehot e Erec, que haviam deixado o castelo de Carduel para vir ajudar os amigos. Como Arthur e Ké, enfrentavam uma vaga de adversários. O sangue de múltiplos ferimen­tos maculava suas lorigas.

E um cavaleiro acabara de se atirar naquela confusão. Não vestia nenhuma armadura, nenhuma proteção. Sua barba era grisalha. Vendo-o, Garvain esqueceu a pavorosa dor nas costas. Aquele porte... Aqueles ombros...

O homem de barba grisalha e em simples camisa — como se não temesse nem os golpes nem o inverno — alcançou, com três golpes rápidos como um raio, três adversários. Ele entrou na confusão como uma lâmina entra em uma carne. Em muito pouco tempo, dez, quin­ze, vinte cavaleiros foram mortos ou jogados no chão. Parecia que cada um de seus golpes alcançava um objetivo.

Aquele porte... Aquela maneira de combater...

0 homem da barba grisalha movimentou a espada uma última vez e gritou a Galehot:

— Atenção ao assalto! Afaste-se!

Galehot obedeceu na hora àquela ordem. Mas não sem exclamar:

— Senhor! É mesmo o senhor?

— E quem você queria que fosse? — replicou o homem de barba grisalha de quem, de repente, Garvain lembrou o nome: Lancelot. — Afaste-se, estou lhe dizendo!

Lancelot... Garvain sentiu de súbito uma grande paz, .....um imenso alívio. Seu amigo estava vivo, e de volta. E ele próprio não teria mais que proteger o rei: o melhor cavaleiro do mundo, saído não se sabe de quais limbos, se encarregaria disso.

Lá adiante, Ké acabara de ser abatido com um golpe de maça. Arthur estava sozinho.

— O rei... Vá salvar o rei! — quis lhe gritar Garvain. Mas sua voz não conseguiu chegar suficientemente longe. Ele estava morrendo.

— O rei... Vá salvar o rei...

Fez um esforço para não desmaiar. E fez bem: pois o que viu então o alegrou mais, talvez, do que todos os ins­tantes de felicidade que tinha conhecido em sua vida.

Assim que Galehot obedeceu, Lancelot precipitou seu cavalo no assalto aos Guerreiros Ruivos que cercavam Arthur. Derrubou três a golpes de espada, fez recuar os outros, disse ao rei: "Para trás, Sire! Para trás! Eu o protejo!", e se atirou sobre os saxões que hesitavam entre o combate e a fuga. Matou dois, trocou alguns golpes com um terceiro; os sobreviventes fugiram.

Restavam apenas, sobre os quinhentos passos que separavam a praia e a floresta, centenas de cadáveres e de feridos. E, sozinho, Mordred, cujo cavalo empinava. E, sozinho, Arthur, que descia de seu cavalo e corria para Garvain, junto de quem Galehot já tinha se ajoelhado.

— Meu sobrinho, meu amigo... Eu lhe devo cem vezes a vida durante esta batalha... Você não pode morrer.

Mas Garvain não olhava nem para Galehot nem para Arthur. Seus olhos não abandonavam Lancelot, sempre a cavalo, se aproximando de Mordred, que gritava para o céu:

— Minha mãe! Minha mãe! Não me abandone! MINHA MÃE!

Arthur se acocorou perto de Garvain.

— Meu sobrinho, meu preferido... Como você está?

— Creio que a Providência decidiu que eu ia aban­doná-lo aqui, Sire. Não chore, eu lhe peço... Vai me per­der, mas encontrou o melhor dos cavaleiros: Lancelot.

— Garvain...

— Cale-se, Sire. Escute-me, e você também, Galehot: diga a Lancelot que pouco importa minha morte, eu a procurei. Não estava destinada ao senhor, meu rei, mas eu devia fazer tudo sem temor de que ela acontecesse. Diga-lhe que estou orgulhoso de que ele também tenha agido como seu cavaleiro. Eu morro e o deixo à mercê de seus adversários. Ele está vivo, e o salvou. Ele é melhor cavalei­ro do que eu. O senhor deve amá-lo, Sire, como ele o ama...

— Garvain, você não sabe...

— Não quero saber, Sire... Eu sei. Eu sei que, enquan­to eu esperava a volta de Lancelot de pé a noite inteira em uma torre, Guinevere também o esperava na intimidade do seu quarto. Eu sei disso, Sire.

Garvain fez um esforço para se virar sobre o flanco e segurar o pulso de Arthur.

— Também sei que eles jamais o enganaram. Nem nos corpos nem na fé. O resto... São fraquezas humanas.

Os dedos de Garvain apertaram com mais força o pulso do rei.

— Prometa-me, Sire, prometa a um moribundo que vai perdoá-los. Que já os perdoou...

Arthur inclinou-se sobre Garvain, cuja voz não era mais do que um sopro.

— Por você, vou fazer essa promessa.

— Obrigado...

Não foi mais do que um suspiro. O último de Garvain, modelo da cavalaria, favorito das damas, e que, por ter escolhido a delicadeza, o prazer e a felicidade fácil, nunca foi julgado à altura de sua proeza. Garvain estava morrendo, e com ele toda uma arte da polidez e da cora­gem se apagava.

Galehot chorou. Mas Arthur permaneceu com os olhos secos. Sentiu-se tomado por uma cólera sem prece­dentes. Ergueu-se e olhou, estonteado, em volta dele: mortos, mortos, mortos, sangue e lama. Não era para isso que tinha sido rei. Por ter cometido um erro fazendo um filho em Morgana, o mundo inteiro deveria pagar por isso agora? Não havia mais vivos em volta dele a não ser Galehot e, estropiado, pálido e cinzento como um espec­tro a cavalo, Lancelot.

— Meu reino não vai terminar num dia assim tão cruel!

O sol se punha lentamente sobre o mar. E, lá também, era sangue se espalhando sobre o mar — como que para se juntar ao sangue de todas as vítimas daquela batalha sem misericórdia.

— Mordred! — gritou Arthur. — Quem é a causa deste desastre? Você ou eu? Ou nós dois juntos?

Mordred estava lá. A duzentos passos. Coberto de ouro no meio dos pedaços de cadáveres. Arthur virou-se para Galehot:

— Dê-me uma lança!

Naquele momento, o cavalo de Lancelot parou junto do rei.

— Sire, deixe Mordred com sua derrota — disse. — Ele não tem mais exército, nunca mais terá aliados. O senhor ganhou.

—A que preço? — replicou Arthur. — A morte absur­da de toda uma geração de homens de valor!

— Nós ainda estamos aqui, Sire.

— Quem?

— O senhor, Galehot... E eu, se o senhor aceitar...

O rei abanou longamente a cabeça, em silêncio. Depois estendeu a mão para Galehot, que lhe apresenta­va uma lança. Segurou-a debaixo do braço, avaliando o equilíbrio.

— Que venha a vida, que venha a morte, Lancelot. Você me tomou Guinevere, o essencial da minha vida.

— Ela está à sua espera, Sire. Ela sempre o preferiu.

— Preferir não é amar — replicou o rei. — O amor não é uma escolha.

— Perdoe-me, Sire, mas está errado. O amor é como esta batalha: só alguns sobrevivem.

— Você é um deles. No que devo acreditar?

— Deixe-me enfrentar Mordred, vencê-lo e ir-me em­bora. Eu lhe faço o juramento de que nunca mais me verá.

— Você é provavelmente mais forte do que Mordred — disse Arthur abanando lentamente a cabeça. — Mas eu? Eu preciso me provar.

— Sire... Não faça isso...

— Você não tem o direito de me proibir.

Arthur levantou a ponta da lança e se dirigiu a Mor­dred, cujo cavalo errava no meio dos corpos.

— Terminemos nossa batalha. Você acredita que é uma questão de direito de suserania sobre meu reino, minhas ilhas? Não, Mordred. A questão é apenas entre mim e você.

— Eu o odeio! — urrou Mordred. — O que fez com Morgana, com a minha mãe?

— A questão também não é mais a sua mãe. O caso é entre nós dois. Decida-se.

Mordred chicoteou a anca do cavalo. Partindo a galo­pe para a frente de Arthur, bradou: — Por Morgana! Pela minha mãe! E a voz cansada de Lancelot respondeu, para o rei:

— Que Deus o ajude...

Arthur segurou a lança com as duas mãos. E começou a correr para a frente de Mordred. Não procurou traspassar o cavalo. Mordred tirara a espada da bainha e suspen­dera o escudo, pronto a receber o choque. Arthur, com grande habilidade, atingiu em cheio o cavaleiro sob o escudo. A lança, apesar da armadura, cravou-se na loriga, rasgando-a e furando Mordred. Preso à empunhadura da lança como uma caça à flecha, Mordred foi arrancado da sela e seu cavalo continuou correndo, enquanto o cavalei­ro, traspassado nas entranhas, milagrosamente caía de pé.

Qualquer pessoa, no seu lugar, teria morrido na hora. Ele, quando compreendeu que seu ferimento era mortal, projetou-se para diante, com toda a força que lhe restava. A lança cravou-se até a bainha. Mordred não tinha larga­do a espada. Atingiu o pai, Arthur, e o feriu na têmpora.

Todos dois tombaram. Mordred morreu quase ins­tantaneamente. Quanto ao rei, Galehot e Lancelot se precipitaram para socorrê-lo. Uma longa e profunda ferida tinha lhe aberto o crânio. Ele ainda estava consciente. Mas era muito tarde para salvá-lo.

— Sire, Sire — disse Galehot —, o que podemos fazer? O rei, com o rosto todo ensangüentado, virou penosamente a cabeça.

— A tarde está caindo, logo será noite... Estou ouvin­do barulhos... O que está acontecendo?

0 cavaleiro novo e o cavaleiro de barba grisalha levantaram os olhos para o campo de batalha: a noite caía, sombras deslizavam furtivamente entre os cadáveres, ladrões e saqueadores tinham chegado, deslizando de um corpo ao outro, de um morto a um ferido, para roubar, à primeira claridade da lua, seus colares, seus anéis, suas jóias e suas armas. Os que não estavam inteiramente mor­tos, eles os matavam para facilitar a rapina. Era um espe­táculo excessivamente desolador para que Lancelot ou Galehot dissessem ao rei a verdade.

— Não é nada, Sire, é o vento. Nós vamos levá-lo ao castelo. Lá, vamos cuidar do senhor.

Seguraram o rei pelas axilas e suspenderam-no. Ele tinha o rosto vermelho do sangue que não parava de cor­rer da ferida na têmpora. Não conseguiu ficar de pé.

— Minha cabeça dói muito... Deitem-me novamen­te... Por favor...

Obedeceram. Com mil precauções, deitaram-no na areia. Arthur segurou Galehot pelo pulso.

— Você vai fazer um último favor ao seu rei. Pegue minha espada...

Galehot retirou a arma da bainha. Pareceu-lhe então que uma força estranha segurava seu braço. Olhou, com uma espécie de temor, cintilar a lâmina daquela espada legendária, a espada dos reis de Logres, Excalibur.

— Agora você vai até a beira do mar. E vai jogar Excalibur o mais longe possível no mar. Voltará para me dizer o que viu.

— Às suas ordens, Sire.

Galehot se levantou e se afastou em direção à mar­gem. A mesma força estranha continuava a se irradiar pelo seu braço, até o coração. Quando parou no limite extremo das ondas, observou o mar quase negro, no momento em que o sol acabara de se pôr. Esboçou o gesto de atirar a espada. Não o concluiu. Não conseguiu se decidir. Era a arma do poder sobre aquelas terras, sobre o mundo delas, e, se ela também desaparecesse, como o rei, o que restaria da esperança de ver renascerem dias melhores?

Sua decisão foi tomada: escondeu Excalibur sob uma aba de sua capa e voltou para junto do rei, cuja cabeça ferida estava sendo sustentada por Lancelot.

— Pronto, Sire.

— Bem. E o que você viu?

— Nada. Nada além do mar e da noite caindo.

— Então, Galehot, você está me mentindo. Não exe­cutou minha ordem. Vá, vá jogar essa espada. Se quiser que eu o estime ainda antes de meu último suspiro, obedeça.

— Mas, Sire...

— Você não deve hesitar, se gosta de mim... Atormentado, Galehot olhou para Lancelot, em busca de seu apoio. Mas o cavaleiro limitou-se a balançar ape­nas uma vez a cabeça: obedeça.

Então, Galehot partiu novamente para a orla das Ondas. Respirou fundo e atirou Excalibur com toda a força. Cintilante, ela volteou acima do mar, tornou a cair r, no instante em que ia tocando a água, uma longa mão branca de mulher emergiu das ondas, fechou os dedos ao redor do cabo, mantendo-a brandida na direção do céu, e depois mergulhou lentamente, levando a espada com ela. O jovem cavaleiro voltou até Arthur e Lancelot. Relatou-lhes o prodígio ao qual acabara de assistir.

— Perfeito — disse o rei. — O que deveria ser feito, foi feito. Agora é minha vez de ir embora.

Virou com muito esforço a cabeça para Lancelot.

— Meu amigo, eu não soube perdoar você; a morte vai fazê-lo em meu lugar. Saiba, contudo, que você me fez muita falta. Se estivesse junto a mim desde o começo desta batalha... Mas é assim. Não tem importância... Dentro em breve você será liberado de todo o juramento que fez a mim. Guinevere está sozinha em Camelot. Aja como acha que deve... Você vai entrar em tempos difíceis. Os cavaleiros de nosso mundo morreram quase todos hoje. Grandes desordens ocorrerão, e ninguém sabe que novo mundo elas engendrarão... Que Deus o ajude.

Lágrimas rolaram pelo rosto de Lancelot, prendendo-se em sua barba. Ele não pronunciou nem uma palavra. Curvou-se e beijou o rei na têmpora, no próprio local do ferimento.

— Acabemos — murmurou Arthur. — Levem-me para o pontão de Carduel. Estou sendo esperado.

 

Junto do ancoradouro de madeira, uma grande barca tinha acostado. Sua vela era branca, mas as silhuetas a bor­do eram negras: três mulheres dissimuladas sob grandes ca­puzes. Nem Lancelot nem Galehot podiam ver seus rostos.

— Coloquem-me na barca — disse-lhes Arthur. Eles o puseram sobre almofadas no fundo do barco.

— Adeus.

Compreenderam que o rei lhes pedia para o deixa­rem. Voltaram para o ancoradouro. As três mulheres, então, vieram cercar Arthur. Ouviram-nas chorar. Uma delas, acariciando a testa do rei, disse com uma voz melancólica:

— Meu irmão, finalmente estamos reunidos.

— Morgana?... Você também?

— Eu o precedi de alguns dias, meu irmão. No lugar para onde vamos, espero que você me perdoe, assim como eu me arrependo.

— Vai ser difícil. Depois de tantas desgraças, de tamanho desastre...

— Eu sei. As duas outras mulheres de preto desfizeram as amar­ras. Imediatamente a brisa enfunou as velas. A barca afastou-se rapidamente sobre o mar.

— Sire! Sire! — gritou Galehot. — O senhor vai voltar?

— Não perca a coragem. Parto para Avalon. Dizem que lá nos curamos de todas as feridas... o vento carregou as últimas sílabas.

Os dois cavaleiros permaneceram muito tempo sobre o embarcadouro. Até que a vela branca desapareceu na noite do horizonte.

 

De manhã, os dois cavaleiros estavam longe do mar, de Carduel e do campo de batalha. Tinham cavalgado a noite inteira, lado a lado, sem pronunciar uma palavra. No inverno, sob a neve, tudo parecia tão morto quanto o que eles tinham deixado para trás.

Pararam suas montarias na encruzilhada de três estra­das. Estavam esgotados, cobertos de lama e de sangue.

— Nós nos separamos aqui — disse Lancelot.

— Que estrada vai pegar, Senhor?

— A de Camelot. Tenho uma obrigação a cumprir.

O olhar de Lancelot se embaçou de repente. Acres­centou, com os olhos no vazio:

— Pela primeira vez na vida, não sei direito o que devo fazer...

— Deixe-me acompanhá-lo.

— Não. Viva a sua vida. Você é um dos últimos cava­leiros deste mundo. Você é necessário em outro lugar.

— Onde?

— Vá aonde seu desejo o levar. Você saberá.

— Meu desejo me leva a permanecer junto do senhor.

— Está errado.

— Sou eu que decido.

Lancelot agarrou de repente o cavalo de Galehot pela brida.

— Não quero saber de você!

O rapaz baixou os olhos, ferido como se o cavaleiro o tivesse esbofeteado.

— Então é porque não gosta de mim...

— Ao contrário. Gosto de você o bastante para obrigá-lo a ser livre. Vá embora, Galehot. Torne-se o que você deve ser. Só vai conseguir longe de mim. Sem mim.

— Senhor...

— Vá embora!

Com a palma da mão, Lancelot deu um tapa violento na anca do rocim do rapaz. O cavalo se assustou, saltou e partiu num galope desordenado pela estrada do oeste.

Então Lancelot esporeou sua montaria e tomou a estrada do sul, que levava a Camelot.

Pensava em seu encontro com Guinevere. Pensava que, de agora em diante, iria ficar permanentemente junto dela. Isso não lhe trazia nenhuma alegria. Sabia que nenhum amor seria mais possível entre eles. Havia traído um rei, não trairia um morto.

Tempos difíceis, dissera Arthur. Sim, os tempos seriam difíceis: hordas se abateriam sobre aquele reino sem rei, sem cavaleiros, sem regras, seria preciso se bater dia após dia... Mas bater-se nunca provocara medo em Lancelot. Era sua maneira de viver, o sentido profundo de sua existência.

Mais difícil seria o tempo que ele passaria junto de Guinevere. Sem se permitir o direito de tocá-la nem de lhe falar de amor. Estava cavalgando para Camelot, mas era como retornar ao Vale sem Volta. Com apenas esta dolorosa diferença: Guinevere nada teria de ilusão...

Pela primeira vez em dias, o sol apareceu por entre as nuvens. Lancelot chegou a um rio. O gelo estava derre­tendo.

Ou então — disse repentinamente a si mesmo — Guinevere sempre foi uma ilusão. Minha ilusão.

— Talvez... — murmurou.

Depois, com um salto, fez seu cavalo atravessar o rio.

 

Mais longe em direção ao norte, um outro cavaleiro se fazia perguntas semelhantes.

Perceval seguira por muito tempo à beira do mar. E, agora, a alta cidadela de Beau Repaire se erguia diante dele.

O que ia dizer a Blancheflor? Como ela o acolheria? Não tinha idéia. Sabia apenas que a imagem dela, reaviva­da por três simples gotas de sangue na neve, não parará de obcecá-lo. Sabia apenas que, se ainda lhe acontecesse ter de combater como cavaleiro, só o faria a serviço dela.

Como ela o acolheria? O que ele lhe diria? Tinha ape­nas essas duas perguntas na cabeça. Ignorava que eram duas outras perguntas, muito mais simples, que seu desti­no esperava dele. Ignorava que tinha se enganado de cami­nho e que um velho rei enfermo aguardava seu retorno.

Mas isso iria se passar em um outro tempo, e como ele poderia imaginar que a sorte o tinha destinado não a uma moça de lábios vermelhos e maçãs do rosto rosadas, mas à misteriosa possessão de uma Lança que sangra e de um Graal?

Perceval se aproximou da entrada da cidadela. Seu coração batia a ponto de estourar. Ia rever Blancheflor.

 

E, no meio de uma charneca das Terras Altas da Escó­cia balida por ventos turbilhonantes, abandonada às aves rapina e aos lobos, Merlin, o "filho do diabo", chorava.

Na véspera, e durante a noite inteira, apesar das cen­tenas de léguas de distância, tinha passado por todos os sofrimentos dos cavaleiros mortos em combate. Primeiro fora acometido por um tremor irreprimível, ficara preso na charneca com todo o corpo se agitando, dos pés à cabeça. Depois sentira cada golpe de espada, cada golpe de maça, cada ferimento, cada membro quebrado. Urrava de sofrimento, com os olhos saltando das órbitas, a face lívida. Urrava tão forte e com tanta dor que os gaviões, as águias e os lobos fugiram de seus territórios, aterrados. Era um clamor como jamais se tinha escutado. O clamor, num só homem, de uma só boca, de todo um mundo agonizando, mutilado, estripado, assassinado.

Mais tarde, depois que a noite caiu, Merlin desabara sobre as urzes nevadas. Continuava a tremer. Ele falava. Falava, ou melhor, palavras, gritos, frases, vozes jorravam em desordem de seus lábios. Todas as palavras, gritos, todas as frases, as vozes dos cavaleiros cujas almas deixa­vam os corpos. E as palavras, e a voz de Arthur, finalmen­te. Merlin contorcia-se no chão. Tinha tanta dor de cabe­ça... Esfregara a cabeça, como se quisesse arrancar aquela dor. Em vão. E tinha aberto as mãos, e as contemplado: estavam vermelhas, meladas de um sangue que não era o seu, e que não parava, não parava, não parava de correr, como uma fonte maléfica...

Tivera a visão alucinada de uma barca de vela branca, e de três mulheres sem rosto debaixo de seus capuzes ne­gros. Subitamente calmo, mergulhara na inconsciência...

 

Naquela manhã, ele despertou no meio da charneca. Imediatamente olhou as palmas das mãos: não, não havia sangue. Pusera-se de pé. Com dificuldade. Um imenso cansaço o oprimia. A cabeça rodava — imagens desfila­vam muito depressa diante de seus olhos, aturdindo-o: imagens fugidias de mil combates, armas traspassando as carnes, ossos rachando sob os golpes, cabeças rolando na neve e no sangue...

Nesse momento, livre dessas visões, Merlin está ereto, de pé na charneca; levanta os braços para o céu. E chora.

 

 

Léxico

ameia: recorte no cimo de muralha ou torre.

arção: parte arqueada e saliente de sela de montaria.

armas: trata-se tanto de armas defensivas (armadura, elmo, loriga e escudo) quanto de armas ofensivas (lan­ça, espada). Por armas entende-se também o brasão.

calções: parte do vestuário masculino (armadura) que ia da cintura até os joelhos.

Camelot: ao mesmo tempo cidade e castelo principal (com Carduel) do rei Arthur. Em geral, um castelo se ergue perto de uma cidade ou de uma aldeia, garantindo a proteção delas.

cota: armadura de couros retorcidos ou de malhas de ferro que cobria o corpo.

couraça: armadura feita de metal ou couro, usada sobre o peito e as costas para proteger os cavaleiros de golpes inimigos.

fumaças: termo de caça. Excrementos de animais cujos rastros estão sendo seguidos.

julgamento: duelo judiciário. Quando, como é o caso entre Arthur e Meleagrant, os dois adversários não são iguais na hierarquia feudal, o que ocupa a posição mais alta é representado por um campeão.

justa: torneio em que dois cavaleiros armados de lanças, indo um na direção do outro, procuram cada qual desmontar o oponente.

longa: veste de malha com escamas de metal, usada pelos guerreiros da Idade Média.

necromante: a necromancia é a arte mágica de evocar os mortos para conhecer o futuro ou descobrir um se­gredo. Na Idade Média, era chamada de necromante a maior parte dos mágicos e dos feiticeiros.

proeza: neste caso, o conjunto das qualidades de bravura do cavaleiro.

rocim: o rocim é um cavalo que serve para qualquer uso e para qualquer terreno. O cavalo de batalha é um cavalo usado em combate; o palafrém, um cavalo de cerimônia. Existe também o cavalo de caça, e o de tra­balho na lavoura, grande e forte.

sala: peça principal do castelo, onde são realizadas as ati­vidades sociais: refeições, recepções, cerimônias, etc.

saxão: por volta da metade do século V, os saxões, vindos da Germânia, e os anglos, vindos da Dinamarca, em­preendem a invasão da Grã-Bretanha. Arthur e seus cavaleiros são celtas, povo autóctone.

senescal: oficial que governa a casa do rei e tem também atribuições militares, financeiras e judiciárias.

servo: na sociedade feudal, aquele que era ligado à gleba, e dependente de um senhor, embora não fosse um escravo.

seteira: pequena abertura nas muralhas, pela qual se arre­messavam setas contra os inimigos ou sitiantes.

tirei título dado a um soberano, quando se está falando com ele.

sobrinho: na Idade Média, o tio tinha uma importância freqüentemente maior do que o pai no aprendizado e, mais tarde, na carreira de um jovem nobre.

suserano: senhor que concede um feudo, ou seja, terras, a um vassalo, o qual deve como contrapartida serviço e fidelidade. O rei Arthur não possuía nenhuma terra pessoalmente; todas eram atribuídas como feudo a vassalos, também denominados barões.

torneio: ao contrário da imagem que os filmes populariza­ram sob este nome (e que, na verdade, corresponde ao julgamento), os torneios consistiam essencialmente no enfrentamento de dois ou vários grupos de cavaleiros, em um terreno por vezes muito extenso que podia compreender um bosque, um vilarejo, um rio, etc. O torneio era uma batalha com fileiras, o simulacro de Uma ação de guerra. Cavaleiros sem feudo nem herança podiam, se fossem suficientemente hábeis e audaciosos, fazer sua reputação e sua fortuna (como os atletas de hoje em dia): tinham o direito de tomar o equipamento e a montaria dos adversários que tives­sem vencido e vendê-los, às vezes muito caro. Eram então admitidos no círculo dos reis e dos príncipes e os representavam em toda parte, na qualidade de campeões. Em seguida, pelo casamento, subiam na hierarquia social da época.

varlete: adolescente a serviço de um senhor, junto do qual faz o aprendizado antes de ser, por sua vez, cavaleiro (dizia-se valete ou vallet).

vavassalo: na hierarquia feudal, vassalo do nível mais baixo. O vassalo pode ser ele mesmo suserano de um vassalo menos poderoso. O vavassalo é um vassalo que, por ser pobre demais, não pode ele mesmo ter vassalos.

 

 

[1]  As palavras seguidas de um asterisco remetem ao léxico no final do livro.

[2] Bolsa onde se guardam esmolas, usada à cintura. (N.T.)

[3]  Macaréu: onda de arrebentação produzida em certos estuários pelo encontro da corrente descendente do rio e as águas da maré montante (como a pororoca amazônica). (N.T.)

 

 

 

                                                                                                    Christian de Montella

 

 

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