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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A NOITE DO LOBO / Alice Borchardt
A NOITE DO LOBO / Alice Borchardt

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

 

 

Nascido lobo, Maeniel adquire o poder de se converter em homem... Mas não demorará em comprovar que o mundo dos humanos é muito mais complexo, selvagem e perigoso que as montanhas nas quais viveu até agora. O ingênuo lobo homem se vê envolto em uma série de conspirações e vinganças, ao mesmo tempo em que descobre o amor e a paixão das mulheres, a força e o ódio dos homens... E sua própria capacidade para superá-los.

Maeniel e seus companheiros viajarão dos bosques da Gália ao coração da Roma clássica em busca de aventuras, vingança e justiça, enfrentando o poder das legiões, o Senado e mesmo Julho César.

 

 

 

 

                                                       Capítulo 1

O lobo despertou, levantando a cabeça de entre as garras. No alto, a lua estava cheia, mas não era mais que um fantasma errante entre os pinheiros e cedros da montanha. O resto da alcatéia dormia.

Só ele sentia o toque de... Não sabia o que. Os lobos não sentem tristeza. Sequer por eles mesmos.

Ele se levantou e levou a cabo o ritual de arrumar a pelagem, para depois andar silenciosamente até um pequeno riacho formado pelo transbordamento de um lago no alto. Tinha largura o bastante para refletir o céu em sua superfície.

Da morte dela... Não, desde que a mataram ele despertava todas as noites àquela hora, uma hora em que todo o restante deles dormia... Recordando.

À noite têm seus próprios ritmos, ritmos que ressoam na carne, no sangue e nos ossos das criaturas da terra. Só o homem o esqueceu. O homem esqueceu que alguma vez tivesse importância.

Mas para o lobo, chegavam como lembranças, lembranças que não eram deles, fragmentos de um sonho. Tocava uma consciência imortal tão velha como a vida, a experiência de uma criatura ainda ignorante de si mesmo e, portanto imortal. A primeira de nossa espécie, nadando na coluna de água do mar. Naquele momento da noite, ele interrompeu as flexões de seu musculoso corpo e se inundou em um trêmulo resplendor de luz de lua.

Ele, o lobo, compreendeu que havia acontecido uma catastrófica erupção de sua consciência, privando-o do direito de nascimento irradiado por aquele primeiro sonho do oceano.

Seu focinho quebrou a imagem da lua na água tal coma a dor havia quebrado seu sonho.

No alto, as nuvens de passagem ocultaram a lua. Perto da presa cobrada, os lobos de sua alcatéia dormiam em silêncio e sem sonhos.

O ar ao seu redor era frio. Estavam no final do outono, quase novamente no inverno, mas ele sentia um fogo em seu interior... Um fogo que o vento que soprava das geleiras dos passos de montanha não podia apagar. Um fogo que esquentava sua pele sob a pesada pelagem invernal.

Fogo! Eram criaturas de fogo. E o fogo seguia a toda parte. O aroma de queimado impregnava sempre o ar em torno de suas moradas. Terra, ar, fogo e água. Todos os seres vivos da terra participavam daqueles elementos, mas dentre todos, somente o homem era o amo do fogo.

Por quê? Como tinham alcançado aquele poder? Nada em suas lembranças podia lhe dizer.

Quando sua espécie se encontrara pela primeira vez com eles na escuridão e a luta do inverno do mundo, eles controlavam as chamas, as extinguindo e animando-as a vontade e sua única vantagem em uma desumana batalha pela simples sobrevivência contra ao frio e a onipresente noite. Pelo resto, eram coisas nuas e patéticas.

Coisas nuas e patéticas como a que era ele naquele instante, pois quando os últimos raios de lua foram presos pelas nuvens, ele se converteu em um homem.

Recordou o que ela dizia... O que ela havia lhe dito: o fogo era um presente dos deuses.

E ele rira a idéia de presente. Já tinha visto bastante dos humanos para saber que roubavam e saqueavam sem consciência e nem escrúpulos e liam nas mentes dos deuses o que queriam para eles. A adoração e submissão dos fracos e ordens arbitrárias por parte de quem se situavam em posição de governar a sua própria espécie.

—Um presente. - Havia dito ele. - Roubado, talvez?

—Talvez. - Respondeu ela encolhendo os ombros. - Os ladrões foram ludibriados por seu roubo, porque como sempre, o poder é uma espada de duplo fio.

Mas o poder, pensou o homem junto à água, seja qual sejao seucusto é a vida. Sem o roubo, sua espécie não teria sobrevivido ao interminável inverno de antigamente, extinguindo-se como tantas outras.

O homem estirou os braços para cima, como se fosse abraçar a lua, no momento em que a nuvem que passava se tingiu de prata nas bordas, pelo resplendor.

Depois a luz brilhou em seu rosto. Ele perguntou o que queriam realmente os deuses.

Ela, cujo toque lhe dava o poder de mudar de lobo a homem e de homem a lobo, parecia despreocupada pela adoração e nunca lhe pedira agradecimento.

E, de fato, ele sequer sabia se devia lhe estar agradecido, pois, como o fogo, aquele presente trazia consigo sofrimento e dor. Era um presente adornado por um cruel conhecimento e uma consciência de absoluta perda.

Então voltou lobo novamente, alegrando-se por ter deixado de lado uma compreensão da vida que de momento não desejava.

Recordava do fogo, e só fogo... Aquele espírito, aquela eterna ambigüidade que podia proteger, criar e destruir.

E o lobo partiu. A única criatura acordada em um mundo adormecido.

Ser consciente e saber daquela consciência eram uma maldição que lhe corroia pouco a pouco... Uma maldição que devia ser extinta com sangue, fogo e vingança.

Como sabia ele quem era o homem? Havia visto-o. Por que estava seguro de sua culpa? Para o lobo, aquilo teria sido uma pergunta ridícula. Havia cheirado-o, com uma certeza que não podia negar... O aroma da culpa que está além da resolução, ou ira, ou medo.

Inclusive seu mais antigo ancestral, nadando naquele primeiro mar, tinha visto e soubera. E em alguma parte, sua rudimentar consciência pode armazenar a informação apresentada por seus sentidos.

Os humanos, em sua cegueira pensam que a inteligência tem um único caminho: o seu! Mas seu cérebro, mais velho e sábio, embora não tão agudo, sabe que o conhecimento tem muitas rotas e facetas.

Nenhum de nós é uma só coisa. Não mais do que é um arbusto, uma árvore ou inclusive uma má vegetação. Somos uma combinação de muitos fatores, formas, tamanhos, aromas, movimentos e hábitos. Cada um chocando com a consciência dos outros... De outros aos que nunca vemos.

Assim que o lobo conheceu aquele homem, se fixou nele, como naqueles outros, na hora entre o dia e a noite, no lugar que não era nem água nem terra, sem imaginar seu propósito até que era muito tarde. Muito tarde para deter sua tarefa. Uma tarefa que sua mente, como lobo ou como humano, nunca poderia compreender ou sequer perdoar... Nem no ano que havia passado, nem nunca.

Agora o homem em questão havia visto seu rastro perto do curso de água que passava junto a sua granja e estava em guarda.

Não era o único homem cuja culpa o lobo havia sentido, visto e cheirado. Mas o primeiro não tinha suspeitado que estivesse sendo caçado e havia caído facilmente em sua armadilha. Este satisfaria o lobo ao sofrer mais, que o primeiro.

Então ele havia prolongado deliberadamente a espreita durante vários meses. Era o momento de ver quem seria o vencedor, naquele desafio de vontades.

O lobo se moveu em silêncio por um rastro de cervos, através de um escuro bosque renovado, para terras mais trabalhadas. A noite avançou com ele. A terra deixou seu calor ir embora. O ar ficou quieto e o rocio começou a se condensar na vegetação e os arbustos. Os caçadores da meia-noite e o amanhecer dormiam, com a barriga cheia ou vazia, igual suas presas. Nada se movia àquela hora. O lobo baixou o olhar para a granja. Era uma casa redonda, com um telhado de palha de forma cônica. Havia um celeiro de forma muito parecida com a casa, mas menor e aberto dos lados. Perto estava o objetivo do lobo: um curral de ovelhas feito de palha.

A casa e o celeiro estavam à margem de um campo de trigo que levava até um riacho, outro pequeno tributo do rio, à garganta. O granjeiro tinha começado a levar as ovelhas do interior, para a noite.

O lobo se aproximou do campo de trigo, que não lhe oferecia muitos esconderijos. As hastes eram apenas altas para roçar seus ombros e seu ventre. Os farrapos de névoa entre as carregadas espigas umedeciam a pelagem do lobo ao passar entre elas. A terra nua entre as fileiras, estava fria sob seus pés.

Ele se abaixou ao aproximar da granja, deslizando-se pelo chão, parecendo um pouco de pó movido pelo vento através dos sulcos. Mas um obsvegetaçãodor atento teria notado que não havia vento naquela escura hora antes do amanhecer.

Um mastim do tamanho de um bezerro dormia acorrentado a um poste em frente ao curral das ovelhas.

Ele está tão crédulo que dormiu, pensou o lobo. Que tolo. Eu não dormiria comigo perto. Bom... Ele não despertará. O cão não chegou a despertar.

O lobo se deixou cair no curral.

As ovelhas, tiradas de seu sono pelo rugido do predador entre elas, tentaram fugir em todas as direções, todas de uma vez. Duas delas atravessaram as paredes e o curral se desintegrou. Aterrados, os animais saíram em disparada pelo pátio e pelo trigo amadurecido. Um velho carneiro tentou enfrentar o lobo, que flanqueou os chifres abaixados e investiu, lhe fazendo sair rodando. Assustado, o carneiro fugiu com os outros animais.

O lobo fez uma pausa e ficou em pé no pátio, ofegando. Uma das ovelhas empaladas na estrutura do curral em ruínas alterava a noite com seus gritos de angústia. A outra estava morta ao seu lado.

Uma luz se acendeu na casa. Dentro dela, uma mulher começou a gritar maldições e insultos. O lobo se sentou, com a língua oscilando. Custaria-lhes um momento criar coragem.

Poucos segundos depois, um homem saiu, com uma lança em uma mão e uma tocha na outra. Outros dois, armados com paus, seguiram-no com mais cautela. O primeiro lançou um olhar de horror ao mastim morto, depois ao curral derrubado e as duas ovelhas, pois a que estava se lamentando já tinha deixado de lamentar. E ao lobo sentado tranqüilamente diante deles.

Ele investiu contra o animal, com a lança em alto.

O lobo se voltou, desvanecendo na escuridão, como uma nuvem de pó levada pelo vento.

O granjeiro, irracionalmente furioso, perseguiu-o pelo campo de trigo... seguido, embora mais devagar, pelos outros dois.

—Voltemos para a choça. – O lobo ouviu que sussurrava um deles. - ele foi embora. Podemos buscá-lo pela manhã.

O lobo se aplanou expertamente sobre o solo, entre as espigas de trigo e avançou.

Estremecido, o granjeiro elevou a tocha e segurou melhor a lança. Sua transpiração fazia com que a tosca madeira fosse escorregadia. Podia sentir o suor na frente e as axilas. Não via seus dois companheiros, só um círculo de escuridão além da luz da tocha.

Vadeou muito trigo vermelho e amadurecido. As espigas se agitavam, emitindo um suave rumor sob o vento do amanhecer. Deuses! Deuses! Não! Não havia vento: o ar estava imóvel por completo.

O lobo o golpeou alto, entre as paletas. Um par de mandíbulas incrivelmente poderosas lhe esmagaram o ombro e o braço esquerdo enquanto caía... O braço que sustentava a tocha.

Ele notou que a tocha escapava de sua mão, voando livre até cair a uns três metros de distância. Teve poucos segundos para notar o quanto o trigo amadurecido estava seco, como uma isca...

O lobo se deteve na ladeira e deu uma olhada no terrível espetáculo que deixava para trás. O homem sobre o qual havia se lançado já não lutava. Era uma forma enegrecida em meio a muito fogo. Um de seus covardes seguidores estava envolto em chamas e corria loucamente pelos campos, ajudando a propagar o incêndio. O terceiro havia fugido. Ele e a outra mulher da choça sujeitavam a esposa do granjeiro, impedindo que ela se lançasse frenética e inutilmente à sua morte.

Já mais perto das árvores, o lobo voltou a olhar para trás. Os campos de trigo eram um lago de fogo. A casa também havia sido alcançada. A madeira e a palha alimentavam a coluna de fumaça que se elevava no céu. Mesmo as macieiras e a horta de marmelos ardiam, pois o trigo tinha sido plantado em fileiras entre as árvores. Os humanos sobreviventes fugiram para a segurança do rio.

 

 

O homem que saudou Blaze era frágil, grisalho e quase cego. Oh, deuses, pensou ele. Quantos anos se passaram? Ele se recordava de um homem saudável e vigoroso, de uns sessenta anos. Mas devia ter pelo menos oitenta.

O ancião entrou tropegamente na casa de um só cômodo, na realidade uma choça com teto de palha. Os campos, antigamente para alimentar o velho Druida estavam descuidados, vazios de gado e cheios de vegetaçãos ruins. Alguém tinha estivera atendendo a pequena horta e o lago. Cebolas, alhos porros e nabos floresciam junto à porta.

Com um suspiro, Blaze seguiu o velho ao interior. Mir deveria ter sido substituído anos atrás, para poder viver em paz seus últimos dias. Enviado a sua casa na Irlanda, onde cuidariam dele e sua família. Mas naqueles tempos difíceis, nenhum dos seus se preocupara o bastante para incomodar. Ou dispusera de tempo.

O interior da casa estava escuro e a única luz era um pequeno fogo. Uma mulher se inclinava sobre uma panela de barro afundada nas brasas.

Mir a assinalou.

—Minha mulher. – Ele disse. - Não consigo recordar seu nome.

A mulher elevou a cabeça e Blaze viu que era muito jovem, não mais que dezesseis anos. Ao fitá-la mais de perto, ele notou que ela possuía horríveis cicatrizes. Seu rosto estava atravessado por várias linhas inchadas. Parecia como se alguém tivesse usado uma lâmina muito afiada para esfaqueá-la uma e outra vez.

A jovem tentou sorrir ao ver Blaze, mas não conseguiu mostrar mais que uma retorcida careta.

—Vá. - Disse Mir. - Os homens têm que conversar.

Ela assentiu, tirando a panela das brasas.

—Está preparado o guisado? — Perguntou Mir.

Sua mulher assentiu novamente antes de sair. Blaze e Mir se sentaram a mesa. O primeiro contemplou a luz verde e dourada do sol além da porta e estremeceu. Estar naquela casa era como sentar em uma caverna e olhar o brilhante mundo que havia lá fora. Ele viu a garota atravessando o prado e desvanecendo entre os pinheiros.

Um aroma estranho flutuava na casa. Procedia da borbulhante panela.

—Que tipo de guisado é? — Perguntou Blaze.

—Não poderia dizer lhe responder. Nunca o como. Arrumo-me com um pouco de pão e queijo. Minha gente me dá as sobras de suas próprias mesas. E minha horta dá alguns frutos de vez em quando.

—Ela não é boa cozinheira?

—Não sei, simplesmente não me incomodo em comer o que ela prepara. Uma vez vi que ela jogava uma serpente na panela, um punhado de gafanhoto e uma pomba. A serpente estava viva e saiu. Alguns gafanhotos também. A pomba tinha o pescoço quebrado e ficou, mas não estava limpa e tinha todas as plumas. Logo ela jogou três ratos vivos, mas pude resgatar o gato antes que acabasse também na panela. De toda forma, ele fugiu.

Blaze meneou a cabeça como se tentasse limpá-la.

—O gato... Fugiu?

—Sim – Disse Mir. - ela o pegou pela cauda e ao gato não gostou nada.

—Por que ela faz essas coisas? Já perguntou?

—Ela não fala. - Respondeu o velho.

—Oh – Disse Blaze.

Mir encolheu os ombros.

—Ela pertence a este lugar. Necessita de amparo. Não é perigosa e é cálida pelas noites. Poderia estar pior. Designarei alguém para que fique com ela quando eu me for. Mas não o chamei para que falemos dessa meio imbecil, mas sim do lobo.

—Ah, sim. O lobo. Esse lobo que se comporta como um homem.

 

Na noite seguinte, o grande lobo cinza se afastou de sua alcatéia. Era o seu dever se afastar. Tinha atacado humanos, arriscando as vistas de seus companheiros. Os humanos não faziam distinções, vendo todos os lobos como assassinos famintos e destruiriam, às vezes depois de lhes torturar, qualquer lobo que pudessem pegar.

Uma geleira havia criado aquele estanque, anos atrás. Era parte de um pequeno riacho alimentada pelo degelo no verão e por mananciais artesianos naturais, no inverno. De alguma forma, a água não se congelava nunca. O lobo se perguntou muitas vezes por isso, surpreendendo-se ante sua inclinação para a curiosidade. Sua espécie não estava acostumada a se interessar por aquelas coisas.

As primeiras pessoas que chegaram ao vale chamaram o lago de o Espelho da Dama. A Dama em questão já era velha naquela época e estava eclipsada por uma hoste de outras deidades, mas ainda era lembrada, sobretudo durante suas horas, o amanhecer e o crepúsculo. Naqueles tempos, os habitantes do vale evitavam o lugar, temendo poder vê-la caminhando por ali e que se aproximasse ou seja com que fins. A Dama era reverenciada, respeitada, amada e temida. Os encontros com ela podiam ser muito desafortunados e, além disso, quem sabe no que está pensando uma deusa? Talvez também evitassem o lugar porque sabiam que era a manjedoura dos lobos que desciam das montanhas ao anoitecer, para caçar nos vales. À alvorada, eles se reuniam novamente para voltar para suas tocas além do arvoredo.

O sol enviava longos raios além dos picos ocidentais, quando os lobos chegaram para beber. O bosque crepuscular gemia com o passar do vento.

A água fazia honra ao seu nome de Espelho, refletindo o escuro bosque de abetos e o céu do crepúsculo. O lago terminava em uma cascata que caía com brilhante suavidade sobre um lance de negros degraus de basalto e a outro lago menor. De ali se convertia em um riacho que descia pelo pronunciado pendente até as barulhentas águas, vale abaixo.

Ele se aproximou do lago com cautela, atento aos lugares onde podiam esconder predadores à espreita. Não encontrou nada. Oh, alguém tinha estado ali. Alguém velho e de passo leve. Ele percebeu, sem ver motivo de alarme.

Ao chegar ao lago, encontrou-o deserto, salvo pelas andorinhas que procuravam insetos sobre sua superfície, como o cristal. As mulheres que se banhavam sob as quedas de água já haviam ido embora.

As mulheres lhe recordavam aquelas partes mais terna das presas e reduziam a algo pouco próximo da culpa, como podia sentir um lobo. Mas ele achava-as irresistíveis. Uma loba na metade de inverno, com seu ventre inchado pelas crias, os olhos amarelos resplandecendo de medo por seus filhos não nascidos, estava acostumado a ser o melhor argumento de seu companheiro para o celibato.

Mas as fêmeas humanas eram uma sedução ambulante. Cobriam sua pele nua rosa e marrom, com objetos quase iguais, de tão macios. Carentes de pelos, elas eram como pétalas de flor, sedosas, aveludadas e fragrantes. Os lugares quentes de seus corpos tingiam o ar em torno de suas virilhas com uma variedade de aromas, alguns atraentes, embriagadores e por fim, quando se aproximavam do orgasmo... Enlouquecedores. Mas o mais saboroso de tudo era a rendição. Ante a resolução do desejo, elas se submetiam sem reservas, derretendo-se em torno de seu corpo, em seus braços e em seus próprios prazeres sem limites, como se entregassem à morte. De fato, quando a primeira mulher que abraçou alcançou a culminação de seu desejo, ele temeu por um momento que ela tivesse morrido em seus braços. Só o sonoro e persistente bater de seu coração lhe confirmou que não a destruíra em seu impulso.

São escravas, ela havia pensado a princípio, modeladas pelo riacho de seus próprios desejos de macho tal como os cantos rodados do leito do rio cobravam forma sob o riacho sem fim. Atraídas pelo mesmo Eros do ventre da terra e moldadas só para o deleite dos selvagens assassinos machos que as rodeavam e tentavam enlouquecidos possuí-las tantas vezes como fosse possível. Criadas dos pés a cabeça, para enlouquecer. Não havia nada nelas que não pudesse inspirar prazer.

Pequenas, de pés arqueados, tornozelos estreitos, pernas suaves, coxas sedosas, nádegas aveludadas, uma coluna que podia seguir até a nuca com lábios e língua enquanto elas gemiam de deleite, retorcendo-se e ronronando extasiadas como gatas selvagens. E os seios. Ah, deuses, os seios! Os lobos nascem cegos, lutando entre si para chegar até as mamas de sua mãe na escuridão. Aqueles seios que colhia com as mãos e sugava com os lábios levavam a sua memória aquele primeiro e triunfante jorro de leite em sua boca. Os suaves globos, quase como taças eram o aviso de um mundo generoso onde um homem podia beber e derramar até suas virilhas, esquentando todo seu corpo como aquele primeiro e quente gosto A vida havia dito que viveria. Assaltado pelo primeiro temor de uma vida independente de não encontrar calor, comida e amor... O abjeto terror a não sobreviver, aquele primeiro gosto lhe havia dito que o faria, seguindo o caminho até seu estômago e enchendo todo seu corpo de calor.

Às escuras caçadoras de sua espécie ocultavam seus encantos exceto quando tinham que alimentar suas crias. As mulheres não. Empurravam suas tenras belezas a deus, recordando aos homens o poder das mulheres, fazendo com que se sentassem e suplicasse. Sim, a princípio tinha considerado as mulheres escravas, brinquedos de seus selvagens companheiros. Por que não? Não sabiam aquelas mulheres que até as feras mais ferozes fugiam aterradas do homem? Talvez fossem escravas da quase incontida lascívia dos machos... Ou talvez elas a tivessem criado, fomentando-a até que o obcecado macho se convertesse uma presa de seus próprios desejos. Uma presa das mulheres que o satisfaziam.

Encontrou-se com ela em um bosque escuro e ela tinha mudado sua idéia dos homens. Para o seu olfato, os sinais aromáticos que enviavam seus corpos eram mais atraentes que a comida.

Os homens se apinhavam a beira do bosque e a crua sexualidade e violência flutuavam sobre eles como uma espessa névoa. No outro extremo do bosque estavam reunidas as vítimas do sacrifício. Dúzias de jovens, em pé junto à sacerdotisa de túnica escura, estavam agrupadas ao lado de uma pilha de toras fumegantes de madeira. Estavam nuas e suas peles brilhavam por causa do azeite. Vegetaçãos verdes haviam sido jogadas no fogo e as mulheres dançavam devagar e sem coordenação, na espessa névoa, metade vapor e metade fumaça, que se elevava do fogo.

O lobo conhecia o ritual. Já vira visto antes. Também sabia que os homens lutavam entre si pelo privilégio de se unir a caçada.

O procedimento era simples. Quando a ponta da lua tocasse o extremo da rocha ereta, as garotas seriam conduzidas ao arvoredo e os homens as seguiriam. As jovens tinham no máximo dezesseis anos e eram todas virgens. Já não seriam quando saíssem pela manhã. Algumas estariam chorando. Todas sangrariam, pois se não sangrassem ao ser penetradas, seriam açoitadas pelos homens até que brotasse o sangue. E algumas, não poucas, estariam coroadas de flores e teriam estranhos sorrisos no rosto.

O lobo cinza se encontrou atraído à forma humana, pela poderosa magia que flutuava sobre o arvoredo. Cada pelo de seu corpo se arrepiou como os de um gato. Depois, como se lhe tivessem ensopado de água gelada, era um homem e o ar da noite primaveril frio sobre sua pele. Ele abriu a estremecendo, enquanto o canino em seu interior tentava livrar do que parecia uma lasca de gelo. Permaneceu em pé, tremendo violentamente, com seus olhos cravados nas mulheres.

A sacerdotisa que estava observando como se elevava a lua gritou algo ao grupo que custodiava as garotas.

Ouviu o som de um açoite sobre a carne. As garotas se agitaram perto do fogo como éguas assustadas. Agitavam as cabeças, com os longos cabelos no ar. As sacerdotisas levavam longas varas flexíveis de salgueiro. As mulheres giravam e se retorciam, gritando, tentando escapar dos golpes. Mas seguiam lutando e resistindo a entrar no bosque, menos temerosas do que seriam somente alguns açoites, que do que os esperava na escuridão sob as árvores. Não começaram a correr até que viram os homens atravessando o prado na correria... Carregando em silêncio os punhos crispados e um olhar selvagem nos olhos.

A que ele havia escolhido, uma jovem miúda e de cabelo negro, corria sobre as últimas folhas do outono como um cervo ferido. Por mais rápida que fosse ele teria conseguido apanhá-la em segundos, mas com a deliberada perícia de um predador, se conteve até que estivesse no mais fundo do arvoredo envolto pela espessa e negra noite de veludo. A única luz chegava das estrelas, densa, brilhante, reluzindo ali onde o céu era visível entre os galhos.

Ele a apanhou.

Ela gritou.

Seus sentidos de lobo lhe falaram de um leito de vegetaçãos e ele derrubou-a, deixando-a sem ar durante um segundo.

A selvagem penetração não era para um lobo. Ela já estava gritando e chutando, lhe arranhando onde acreditava ser seu rosto na escuridão. Ele queria cheirar, tocar, saborear e por fim, beber sua substância. Enterrou sua cabeça no ponto mais excitante que pôde encontrar seu cérebro de lobo. Um lugar cujas emanações eclipsavam o resto. Suas virilhas. Lambeu vigorosamente seu sexo. Seus gritos e resistências se converteram em outra coisa. Ela ficou quieta, esestendida. Ele encontrou estruturas inexistentes nos lobos. Aprofundou... Era um lugar tenro e saboroso.

Ela chutava violentamente, mas não contra ele. Algo mais que chupar. Ela abriu a boca, gemeu, riu rudemente e depois uivou, emitindo sons que ele pensou que teriam envergonhado uma cadela no cio. Arqueou o corpo para trás, com suas nádegas golpeando o chão. Ele tentou se afastar, mas lhe tinha prendido a cabeça entre as coxas e lhe colocava as mãos entre o cabelo. Ele sentiu desejos de beber até deixá-la seca. E tentou.

Ela estava cheia, como era normal. As lobas também ficavam assim. Mas outras coisas não eram tão normais. Estava quente como um ramo chamuscando em fogo, até o ponto de que parecia arder em febre. Seu coração troava. Ele seguiu e seguiu até que ela se levantou, gritando.

—Me Pegue! Faça-o já!

—Dor - Disse ele. A palavra soou quase como um grunhido, pela falta de prática.

—Por todos os deuses! — Seu corpo estava estremecendo e suas unhas lhe percorriam as costas, marcando sua pele. - Acredita que agora me importa a dor?

Mas a ele sim, importava. Ele descobriu quando entrou pela força em seu domínio íntimo.

Ela caiu para trás, mordendo um lado da mão para não gritar, seu corpo ensopado de repente pelo suor.

—Espere. – Ela sussurrou, colocando palma de sua outra mão contra o peito. Respirava rápida e profundamente, não com ofegos. - O sacrifício é válido. Sinto o sangue. O espírito macho, o touro dos bosques, toma o seu tributo. A dor de uma mulher, seu terror, seu sangue, pertencem-lhe. Eu lhe dei o meu, como fui escolhida para fazer.

Maeniel, mais homem naquele momento do que tinha sido nunca, tentou se afastar. Sua mente perseguia as palavras pelos cegos atalhos de seu cérebro, sem poder encontrá-las. Queria dizer terminou; você está ferida e sangrando. Seu deus deveria estar contente, mas não conseguia formular o pensamento. Não era a única resposta que conseguia formar. Tentou liberar seu membro do corpo dela.

A jovem o abraçou, apertando seus lábios contra os dele. Seus dentes se encontraram através do lábio inferior de Maeniel.

Uma raiva vermelha varreu todo o lobo e toda a humanidade. Por um segundo ele foi como ela queria que fosse, um ser primário e sem consciência. Completou o ato da penetração brutalmente, como uma vingança definitiva.

A pele dela esfriou, os batimentos de seu coração vacilaram. Por um instante, ele acreditou tê-la matado, mas então a jovem se agitou. Chorava, mas sua pele se esquentava cada vez mais rápido. Ao que parecia, quase contra sua vontade, iniciou uma profunda pulsação.

—Oh, não. - Soluçou ela. - Me doerá. Não posso suportar outra vez.

—Agora não! - Disse ele.

Por um momento, ela permaneceu perfeitamente equilibrada entre o prazer e a dor. Depois o prazer inclinou a balança e ambos ficaram presos em uma chamejante tormenta de desejo mútuo que consumiu todas as dúvidas e precauções.

Exploraram apaixonadamente o corpo um do outro sem cessar, com inesgotáveis energias, enquanto a noite avançava. A lua desceu e depois a Plêiades. Tudo que restava eram as frias estrelas solitárias quando o vento do amanhecer começou a soprar.

Ela estava desfeita pelo esgotamento quando se submeteu a ele pela última vez, com as pulsações de seu corpo se incendiando novamente. Ficou estendida sobre as samambaias, como uma mão de carne, com as profundas inalações do sono.

Ele encontrou outro homem dormido, agarrado a um jarro de vinho meio vazio e coberto com uma manta de lã. Ele despertou quando Maeniel tomou ambas as coisas, mas um murro do lobo cinza o devolveu aos braços de Morfeo.

A jovem engoliu o vinho sem despertar, aconchegada sob a manta. Maeniel encontrou um arbusto perto e a coroou com os louros da vitória. A neblina era um resplendor prateado entre as árvores quando ele a deixou, para que a encontrasse o sol.

As lembranças se desvaneceram. Acima das montanhas, o sol se afundava entre as nuvens. O lobo rodeou o lago e trotou para as cascatas, afundando até o peito no lago inferior. Sua cabeça se sobressaía indefesa da água quieta, convidando o ataque de qualquer caçador que houvesse escondido entre as árvores. Não chegou nenhum.

O lobo alcançou a borda, confuso. Os homens eram criaturas vingativas. Estava seguro de que o receberiam ali. Mas não. Ele chegou à suave arena da praia a margem do lago, saiu da água e se sacudiu para se secar.

Sabia que o superavam em astúcia e crueldade. Não podia imaginar o que estariam planejando. Alguma incompreensível loucura como a da garota?

Culpa. Um sentimento conhecido por cães e lobos, além dos homens. Nenhum desfruta a emoção. O lobo cinza tampouco o fazia. Não gostava de recordar. As lembranças da paixão carnal que haviam compartilhado estavam manchados pela imagem de seu final.

Por um momento, o lobo sentiu terror de caminhar às vezes, sobre duas pernas. Os humanos eram cruéis com uma criatividade e um deleite que não podia compreender. Mas ele participava de sua natureza. De fato, estava sendo tentado para se afastar de sua inocência selvagem cada vez mais freqüentemente. Aquilo o assustava, mas ela e outros de sua espécie o faziam seguir adiante.

Teria lhe levado cem anos descobrir que na realidade ela não havia sido formosa. E tampouco jovem. Tinha parido três crianças, um deles morto a pouco tempo e criado outros dois, que já estavam crescidos quando ele conheceu sua mãe. Quando o lobo cinza se inteirou, sentiu-se agradecido. Agradecido por não ter se conhecido antes e de que ela tivesse tido uma vida longa e plena antes de seu encontro casual.

O sol entrou atrás da montanha. A brisa do anoitecer fez ondular a superfície do lago e a pelagem do lobo.

E ele viu o homem.

Estava preparado, pensou o lobo. Ficou imóvel. O obsvegetaçãodor estava em pé nos bosques, perto do alto da colina. Havia escolhido a posição cuidadosamente. A brisa afastava o seu aroma do lobo e ele estava esperando sob a sombra de um dos pinheiros. Só a escura silhueta de um ombro e o inconfundível perfil de um rosto humano o denunciava. Enquanto o lobo olhava, o dia desvaneceu, seus olhos se cruzaram na última luz e ele notou um resplendor... O branco de um olho humano.

Voltou à cabeça deliberadamente e contemplou o obsvegetaçãodor, deixando-o saber que tinha sido visto. O homem não fez nenhum movimento, ameaçador ou não, assim que o lobo se entrou na água, atravessou o lago a nado e partiu.

 

O que acontecia? Perguntou Blaze enquanto voltava para casa de Mir. Tudo o que tinha visto era um lobo. Certo, tratava-se de um lobo enorme, maior que muitos homens. A espessa pelagem cinza sugeria um caçador de montanha, com seu lar nos altos passos, movendo-se com seus companheiros através das geleiras. Blaze tinha visto claramente nas sombras junto ao lago. Mas aquela grossa pelagem cinza e branca seria invisível sobre a neve.

Blaze estremeceu. Não do todo por causa do repentino frio da noite. Sim. Alguém que estivesse abrindo caminho pelos lados podia olhar diretamente a criatura cinza e não vê-la até se encontrar fitando um par de grandes olhos de cor amarela e parda, a alguns palmos diante dele. E então só haveria tempo para alguns instantes de oração.

Tinha ouvido falar de homens mortos por aqueles aristocráticos assassinos selvagens, inclusive de homens que viajavam com grandes grupos armados. Para ouvir aquelas histórias, sempre havia sentido certa impaciência com aqueles idiotas e suas escoltas. As vezes tinham sido levados ante ele pedindo clemência, contando sua história de ter perdido um companheiro ou uma pessoa muito importante e dizendo que não era culpa dele, que não tinham ouvido nenhum grito ou em todo caso, só um e muito breve. Então, quando se apressavam a voltar sob seus passos, encontravam somente algumas poucas gotas de sangue filtrando-se na neve. Depois de ver aquele lobo, inclusive de longe, ele sentiu de repente muito mais simpatia por eles.

Enquanto abria caminho por um lance de espessura excepcionalmente difícil, ele ouviu um sussurro as suas costas. A boca de Blaze se secou de repente e ele descobriu que seus joelhos tinham perdido a firmeza. Mir afirmava que aquele lobo era às vezes um homem e que sempre parecia capaz de pensar como um.

A criatura lhe tinha visto e não havia nada que impedisse o gigantesco predador de despistar caminhando em uma direção, para depois, assim que o tivesse perdido de vista, voltar e ficar as suas costas no escuro bosque.

Blaze procurou entre suas roupas a lampião que lhe tinha dado Mir. Estava sob seu manto, pendurando por uma correia ao ombro. Acendeu rapidamente uma chama, golpeando uma pederneira com um anel de ferro em seu dedo. Quando a mecha se acendeu, ele se deu conta que suas mãos tremiam. Elevou a lampião e viu que estava em uma pequena clareira. Os galhos de um enorme carvalho se estendiam sobre sua cabeça. A terra sob seus pés estava coberta por um mosaico de verdes folhas de carvalho.

Esteve a ponto de se voltar para olhar para trás, mas no último momento se deu conta de que na realidade não queria.

—Pai dos deuses, me proteja. – Ele sussurrou ao passar junto ao grande carvalho. Naquele mesmo instante, viu o fogo que Mir havia acendido diante de sua casa.

Ele soltou um suspiro de alívio e correu para diante. Ao chegar a margem do bosque se deteve por um momento, tentando apagar a chama, de um sopro.

Algo puxou seu manto. Pensando que o teria enganchado em algum ramo,ele se voltou e se abaixou para soltá-lo.

Os olhos estavam apenas algumas polegadas dos seus.

Ele soube que estava gritando. Como uma mulher. Não teria se acreditado ser capaz de gritar assim, mas gritou.

Liberou o manto que o lobo prendia e jogou o lampião em seu lombo. De alguma forma, sem que parecesse se mover, o animal se esquivou do chamejante projétil.

Blaze correu como acreditava que já era incapaz de correr... Como um apavorado criança de doze anos.

Mir o esperava à porta.

Blaze voltou o olhar para a clareira vazia. A fogueira seguia crepitando, as chamas agitando-se em pequenos estalos e elevando-se para o céu. Viu seu manto à margem do bosque, caído como uma mancha negra junto ao vacilante abajur que se apagava pouco a pouco, por causa da umidade das folhas.

- Diga-me... – Ele tentou falar. - Me diga que não sonhei.

—Não. – Respondeu Mir com voz cansada. - Não sonhaste, mas tente não se preocupar muito por isso. Entre. Os aldeãos o honraram com seu melhor hidromel e há pratos cobertos, carnes assadas e pescado na mesa. Eu recolherei seu abajur e seu manto.

—Não. - Se opôs Blaze, lhe segurando por braço. - Ainda poderia estar perto.

Mir o olhou com tristeza.

— Acredito que está. Ele não fez mais que brincar contigo. Se quisesse, ele teria te atacado antes que chegasse a minha casa. Há muito que sei que ele poderia me pegar a qualquer momento. À noite depois de que... Ela... Morreu, eu despertei. Acredito que devia ser tarde, a mais longa e escura da noite. O bosque estava em silêncio; Naquela hora inclusive os peixes do fundo do rio estão adormecidos. Mas ele estava acordado, sentado sobre as ancas, com a cauda em torno do corpo e ao lado do fogo. Seus olhos brilhavam verdes sob a luz. Olhou-me de tal forma que eu soube que, fossem quais fossem nossas intenções, as minhas... As dela... Ele não... —A voz do ancião se perdeu no ar. - Bom, não importa. Eu recolherei o manto e o lampião. Você entra e vá comer.

Blaze entrou na casa. O fogo ardia animadamente. Como lhe havia dito Mir, a mesa estava coberta de pratos e apetitosos aromas se elevavam deles. A garota que tinha visto antes dormia na cama, com o polegar metido na boca.

Ele serviu uma taça de vinho. A jarra fez ruído contra a taça. Ele engoliu o escuro fluido.

Mir voltou com o manto e o abajur.

—Sei que antes não me acreditava. Sei o que pensava. Esse velho caduco da choça passou muito tempo na companhia de cervos e pássaros. Com sua mulher louca e a solidão do bosque. Seu cérebro está transtornado. Era isso o que pensava, não é?

—Suponho que poderia ser. - Suspirou Blaze. - Bom, não sei. Certamente, agora não.

Mir assentiu.

—É uma maldição. Devemos nos liberar dela. É o maior de nossa ordem que ainda fica na Gália. Ajude-nos.

Blaze se sentou a mesa, servindo distraidamente outra taça de vinho. Seus olhos se estreitaram à medida que seus temores desvaneciam e ele começava a pensar.

 

Longe dali, o lobo se reuniu com sua alcatéia em um arvoredo presidido por uma imagem feminina de madeira. Às vezes, em certas festas, as mulheres afligidas pela esterilidade chegavam até ali, para dançar a luz da lua. Pediam à Dama, não tinha outro nome, para ter um filho. Supostamente, os homens não podiam ir até ali sob pena de morte, mas muitos desafiavam a proibição e entravam as escondidas, escondendo-se nas árvores que rodeavam a imagem. Faziam-no porque as mulheres dançavam nuas, dançavam entregues a um ardente desejo e com freqüência se acoplavam em total abandono com aqueles cujas vozes as atraíssem à escuridão e cuja quente semente enchesse seus ventres vazios. No fim, na embriagadora primavera, as abelhas saqueavam as flores de dia e de noite. O que não podia se ganhar no leito conjugal podia ser roubado à luz das estrelas. Mas tudo aquilo chegaria à primavera.

Agora era outono e o inverno montanhês se aproximava rapidamente. Agora, somente os lobos dançavam e brincavam sob a fria luz da lua. Rolavam pela curta vegetação marrom, esfregavam suas cabeças e mandíbulas contra a imagem e finalmente, cantavam a lua, antes da caça.

 

Não, ela não havia sido formosa, mas ele não compreendia as regras da beleza humana. Que rápidos eram para tentar encaixar pela força algo tão mutável e efervescente em um molde tão estreito. Prendam o vento em uma rede ou detenham o jogo da luz solar sobre a água em movimento, e saberá o que é a beleza, mas ainda não terá conseguido captar o desejo, o fogo no ventre que nos leva ao triunfo, o coração quebrado ou ao desespero.

Havia resolvido que a fêmea humana do arvoredo seria a última para ele. Sua dor o havia assustado. Nenhuma loba conhecia tal sofrimento, e talvez nenhuma descobrisse jamais que era a soleira do prazer quase transcendental que a humana tinha mostrado tão livremente ao final. Então ele permaneceu longe do lago e se concentrou em sua tarefa: dirigir a alcatéia e mantê-la alimentada, assegurar o amparo de seus membros mais fracos e manter a ordem. Talvez, se não tivesse perdido sua companheira na liderança, a fêmea que complementava seu poder entre as demais fêmeas, teria conseguido escapar da armadilha que o esperava. Mas a grande fêmea da alcatéia havia morrido sob as garras de uma ursa e ele estava uma estação sem a companheira adequada.

O inverno tinha sido duro. Ninguém mais que ele recordava algo pior. Os romanos assolavam o vale... Embora ele não os conhecesse como romanos, mas simplesmente como homens bem armados e a cavalo, com poderosos arcos compostos e que queriam peles de lobo para algum propósito. Uma alcatéia do vale havia sido dizimada.

Ele guiou à sua, às alturas. Os homens acampados no vale exterminavam as peças de caça, que eram cada vez mais difíceis de encontrar, à medida que avançava o inverno e a neve se tornava mais profunda. Então, quando a alcatéia perseguiu um fraco alce e acabou com ele, não estava disposta a ceder sua presa a uma ursa enfurecida que tentou arrebatar-lhe

Eles eram os líderes, e conheciam seu dever. Como o mais forte, ele guiou o ataque, rodeando, lançando mordidas, distraindo-a enquanto os lobos se alimentavam da fumegante carne e o sangue do alce cansado. A ursa esfomeada, com suas reservas de gordura esgotadas pelo comprido inverno e as necessidades de seu filhote, não se mostrou intimidada nem freada por suas táticas. Voltou-se para os lobos e esteve a ponto de ferir um dos machos de um ano. A alcatéia se afastou do cadáver, grunhindo.

Necessitavam da comida, e o lobo cinza sabia. Alguns dos lobos mais velhos já estavam fracos. Podia perceber pelo aroma do ar que uma tempestade de neve chegava o passo. Se não se alimentavam já, o vento e as baixas temperaturas acabariam com várias vidas naquela mesma noite.

Ele enfrentou a ursa, fazendo com que ela se separasse da presa com um rugido de fúria. Ela voltou sobre suas patas traseiras e lhe lançou um golpe. Ele não foi o bastante rápido e uma marca de finas linhas apareceu em seu flanco. Moveu-se em círculo, tentando ficar atrás dela, mas ela o seguiu. A loba saltou para investir sua inimizade, mas a ursa voltou novamente, ficando de quatro patas e em um movimento muito rápido para que seguisse o olho, enviou a loba rodando pela neve entre sangue e ganidos. Apesar de tudo, a mãe da alcatéia tinha dado ao lobo cinza a oportunidade que necessitava. O lobo atacou o enorme fêmur, que rangeu entre suas mandíbulas. Conseguiu saltar bem a tempo de evitar outro perigoso abraço da ursa. O osso quebrado surgiu através da pele, como uma fêmea de javali. Ela soltou um rugido de dor, girando uma e outra vez no mesmo lugar, a neve misturando-se com o sangue sob suas garras. Ela voltou e voltou, pinçando desesperadamente a ferida que estava matando-a, até que, por fim, seus esforços terminaram e ela caiu para morrer na poça vermelho.

Ignorando o cadáver da ursa, os lobos voltaram para sua presa. A loba ficou em pé, sacudiu a neve e, coxeando se aproximou dele para tomar sua parte. As primeiras nuvens da tempestade de neve chegaram até eles. Flocos de neve salpicavam sua pelagem enquanto terminavam de rebanhar os ossos do alce. Quando acabaram, a ursa era só um montículo branco junto aos ensangüentados restos de sua presa. Então, a loba se afastou coxeando.

Ele tinha o sabor de onde ela ia. À toca onde tinha parido a suas crias durante tantas estações. Tinha a cabeça encurvada e as orelhas para trás. Coxeava muito e parecia estar sofrendo. Outros lobos tinham outro refúgio, e iriam para lá.

Ele a seguiu.

A toca estava além das árvores. Ela subiu e subiu. Os flocos de neve caíam constantemente, cada vez mais numerosos. O céu era de um uniforme cinza escuro que se escurecia imperceptivelmente, apagando a cor do mundo, estrangulando a luz pouco a pouco. Ele seguiu a loba através da desolação varrida pelos ventos.

A luz era cinza azulada quando chegaram à toca. A entrada estava coberta de neve. Ela entrou e encontrou um canto coberto de musgo seco. Tombou ali, quieta.

Ele ficou ao seu lado, prestando a loba o único apoio e ajuda de que era capaz. Seu grande corpo quente se estendeu junto ao dela. Ouviu seu suspiro. Era o mesmo som que emitia depois do sexo. A última primavera não produzira descendentes. Havia sido um ano estéril.

Ela estava com os olhos fechados e o focinho sobre o lombo dele, sob o pescoço. O lobo cinza se enroscou ao redor de seu corpo tão bem como pôde. Fora, o azul do anoitecer se tornou negro. O vento uivava cada vez mais forte enquanto a tempestade de neve percorria as montanhas, passando seus gélidos dedos pelos picos de pedra e as altas geleiras, envolvendo a todo ser vivente e quente que não estivesse coberto em um casulo de morte gelada. Gemendo, suspirando e por fim, gritando o triunfo do frio e a escuridão sobre a luz e o calor, de uma eterna morte gelada sobre a transitiva primavera.

Ele não se deu conta de quando ela morreu. Tudo o que soube foi que em algum momento entre aquelas negras, selvagens e cruéis horas antes do amanhecer. Despertara, para descobrir que já não podia sentir seus batimentos do coração e que, apesar de seu próprio calor, o corpo dela estava esfriando. Quando se moveu, a cabeça da loba escorregou de seu lombo até cair com um suave golpe sobre o musgo. Ela ficou estendida sobre um flanco, com as mandíbulas ligeiramente abertas, a língua se sobressaindo um pouco, os olhos cravados na escuridão, sem vê-la. Ele apoiou a cabeça sobre as patas dianteiras e esperou a chegada do amanhecer.

À alvorada, saiu da toca. A tormenta havia passado. O sol brilhava sobre a neve e o céu era azul.

Ele voltou para dentro: sua companheira permanecia no mesmo lugar. Empurrou-a com o focinho e notou que já estava ficando rígida.

Voltou e saiu. Transformou-se em humano. Deus! Como estava frio, mas aquilo não levaria muito tempo. Moveu a neve empilhada até provocar uma pequena avalanche, selando a entrada não só com neve, mas também com pedras e rochas acumuladas sobre a placa de granito que havia sido o teto da toca.

Quando terminou, se converteu novamente em lobo e marcou o lugar. Marcou-o de uma forma que não entendem os humanos, da forma em que os lobos marcam as armadilhas.

Este é um lugar de morte. Não entrem!

Os lobos não se lamentam. Aquilo mostrava respeito por ela, pelo que tinha sido e o que havia feito. Nada mais.

Depois partiu para se reunir com outros, sob o saliência onde se refugiaram da tormenta.

 

É jovem, pensou Blaze desaprovadoramente, enquanto a observava cavalgar até a choça de Mir. Muito jovem para ser quem pretende ser.

—Quem é? — Perguntou.

—Dryas – Respondeu ela. Ela montava uma formosa égua baia e estava vestida com uma jaqueta de couro e uma escura saia partida que lhe chegava quase aos tornozelos, com um rico bordado de ouro na barra. O comprido manto marrom que cobria seus ombros estava fixo em seu peito por um broche de folhas e flores de papoula.

—Vieste atravessando as linhas romanas? Eles patrulham toda a campina.

—Eu não estava muito longe. – Respondeu Dryas. - A maioria dos governantes parecem ter ido embora, mas restam umas quantas de suas mulheres. Algumas consvegetaçãom o poder. Elas queriam meu conselho para sobreviver agora que a conquista romana se completou. — Dryas desmontou, mantendo as rédeas nas mãos.

—A resposta é que não podemos. - Repôs Blaze. - Nossa única esperança é seguir...

—Ah, já - Disse ela, irritada. - E tentar esses demônios a matar e mutilar o resto de nossos homens e vender mais de nossas mulheres como escravas. Uma escravidão que é só uma forma mais lenta de morrer. Não sejam néscios, eu lhes disse. Preservem o que puderem, façam os acertos que sejam necessários, mas vivam. Ensinem suas tradições a seus filhos. O velho mundo terminou. Começou um novo, e quem sabe aonde levará?

Blaze lhe cravou um gélido olhar.

—É o que esperaria do conselho de uma mulher. Nem mais nem menos. Mas não a convidei a vir aqui, para que me dê lições de política.

Ela tirou o gorro de couro. Uma cascata de encaracolado cabelo negro caiu estendendo-se ao longo de suas costas.

—Não esperava que os pedisse. Os homens o têm feito estupendamente até agora. Pelo menos a metade dos habitantes deste maltratado reino está morto ou foi vendido como escravo. Outros, com suas vidas arruinadas, lutam para sobreviver entre os restos de tudo o que amaram. E você, Archidruida da Gália, manda-me uma mensagem pedindo que envie uma de minhas mulheres, e se atreve a especificar que seja atraente, para que se faça de rameira com um... Um... Lobo. Que tolice está tramando?

O rosto de Blaze se tornou vermelho de fúria. Aproximou dela, sem ter nem idéia do que ia fazer. Jamais havia golpeado uma mulher. Mas as palavras de Dryas feriam a parte mais profunda de seu ser, o lugar de sua alma no qual a agonia de seu povo era a sua própria.

Ela deixou cair o gorro e as rédeas de seu cavalo, jogando o manto a um lado. Usava uma espada, que cintilou a luz do sol em um instante.

—Para trás. – Ela vaiou, mostrando os dentes. - Se der um passo mais, te cortarei a mão. O seguinte, será sua cabeça.

Mir observava a cena com tranqüilidade e com a mesma tranqüilidade ficou entre eles.

—Que vergonha! - Disse. - Que vergonha. – Ele repetiu, olhando para Dryas. - Ele está desarmado e eu sou tão velho, que um criança poderia abusar de mim. E é cruel criticar um homem valente por coisas que talvez ninguém teria conseguido mudar. Moça, por sobressalente membro de sua ordem que seja, há uma verdade que a velhice ensina: todos nós fazemos o que podemos, mas às vezes o destino nos pega pela garganta e ficamos indefesos.

Dryas retrocedeu um passo, embainhando sua espada.

—Perdoe-me velho pai. – Disse ela respeitosamente para Mir. - Passei muito tempo cavalgando e o que vi aqui me põe doente.

Naquele momento, a moça que Mir dizia ser sua mulher saiu e olhou para Dryas.

—Oh! – Sussurrou Dryas ao reparar em seu olhar vazio e o rosto desfigurado pelas cicatrizes. - Em nome de todos os bons espíritos, não me haviam, falado de este tipo de problema.

Mir afastou-se para um lado.

—Faz-se o que pode. – Ele disse. - Sei que os membros de sua ordem tentam acalmar o desespero de quem tem sido levados além da razão pela dor, e às vezes inclusive conseguem recuperar o que está perdido. Faz o que pode.

A moça se aproximou de Dryas, que a segurou pela mão para guiá-la para o bosque.

 

Blaze estava sentado À mesa, bebendo um pouco de vinho, quando entrou Mir.

—O que te parece Dryas? — Ele perguntou

—Muito parecida com os homens – Respondeu o ancião, sentando-se do outro lado da mesa. - É decepcionante. De alguma forma, se espera mais das mulheres. Não me ocorre por que, mas nos voltamos para elas quando esgotamos nossas forças e nossas soluções, como se não compartilhassem nossas debilidades e faltas. Como se pudessem contribuir outra visão e desfazer nossos nós sem necessidade de uma espada. Mas acredito que ela ajudará minha mulher. É a primeira vez que a vejo mostrar confiança em alguém.

Dryas entrou naquele preciso momento. Vestia seu manto e acabava de se lavar. Sentou à mesa.

—Acredito que deveria me sentir adulada ao ser comparada com um homem, mas não posso dizer que esteja e não tenho soluções para seus problemas. E quanto a sua mulher, Mir, não há grande coisa que possa fazer por ela, com ou sem confiança. O dano já aparece. Deixei-lhe alguns remédios que aliviarão sua dor e um que dará um fim para sempre, se for o que escolher. Ouvi sua história.

A cabeça de Mir se elevou bruscamente, em um gesto de surpresa.

—Ela falou!

—A mim, sim. - Disse Dryas. - Conheci sua família: era grande e poderosa. Pode ser que ela seja a última sobrevivente. Os romanos mataram ou escravizaram os outros.

—Então, não está louca? — Perguntou Mir.

—Oh, sim, está. Mas as vezes mostra lucidez a respeito de certas coisas. Pode cultivar a maior parte do que lhe dei na horta. Ocupa-se dela, não?

—Sim.

—Por certo, como ela se chama?

—Não me recordo. – Disse o ancião, evitando o olhar de Dryas.

—Bem. - Respondeu ela. - Segue sem recordar. É tão bom como qualquer outra coisa. Agora, por favor, me dêem um pouco desse vinho e me falem do lobo. Nesta ordem.

Blaze e Mir trocaram um olhar. Ambos pareciam incômodos. Dryas suspirou e pegou a jarra e uma taça.

—Acredito que você é o superior. – Disse Mir candidamente.

—E eu acredito que você está mais familiarizado com o problema. — Foi a resposta do Blaze.

Dryas se serviu de um pouco de vinho.

—Enquanto os dois tentam fazer com que o outro primeiro passe pela porta, acredito que beberei algo.

 

Depois da morte da mãe da alcatéia, o inverno foi ruim. A fêmea mais velha, que sempre sabia onde ir encontrar presas, morreu também, na cinza e pétrea dureza de metade da estação. Estendeu-se para dormir na neve com outros lobos e não despertou na manhã seguinte. O macho havia perdido também seu conselho.

As fêmeas virgens lutavam com fúria cada vez maior pela posição de mãe da alcatéia. As duas candidatas que mais prometiam se infligiram mutuamente ferimentos tão terríveis que ambas morreram, deixando como vencedora, a terceira aspirante. Isso diminuiu a capacidade caçadora da alcatéia, já que as duas lobas eram as assassinas mais rápidas e perigosas. Aquela perda era um duro golpe.

Na primavera ele esteve, é obvio, a disposição da fêmea vencedora. Era uma loba esbelta e nervosa, muito ciumenta de suas prerrogativas como mãe da alcatéia. Acossava sem trégua as demais fêmeas, o que levava a constantes disputas e ao mau humor entre os membros mais jovens.

Apesar de seus sentimentos de frieza para com ela, ele teria acomodado seus desejos. Por fim, ganhou o posto. Era o que lhe exigia a lei da alcatéia. Aceitá-la graciosamente como companheira e ajudar na criação dos filhotinhos.

Mas para sua moderada surpresa, a fêmea não mostrou interesse nele e escolheu dois machos que restavam da alcatéia destruída pelos romanos. Também era seu direito escolher seus próprios companheiros, se desejasse. Ele poderia ter afirmado com mais força. Outros líderes teriam feito, mas ele se sentiu mais aliviado que tudo e a deixou tranqüila.

A fêmea voltou de suas escapadas, por fim satisfeita, prenhe e muito mais tranqüila que quando se foi e ele se deu por satisfeito em não ter que se ocupar de suas necessidades. Além disso, já havia se encontrado com a mulher loira do lago.

A mulher havia descido da pequena aldeia de pastores e granjeiros, para se refrescar nas frias águas, se banhar e arrumar o espesso cabelo loiro avermelhado. Era larga de quadris e seus seios eram grandes e empinados. Os mamilos se sobressaíam incitantes. Sua pele era muito branca e ele observou que ela se mantinha na sombra. Aquela pele não se bronzeava: provavelmente queimaria. A mulher estava coberta de sardas dos pés a cabeça.

Ele foi se acostumando a vê-la a cada dia, enquanto dormitava sobre a rocha plaina que dominava a cascata. Achava-a deliciosa, mas não a maneira de alimento. Habitualmente, ela partia quando o sol estava alto. Mesmo em pleno verão, as águas do lago podiam ser muito frias quando os raios de sol deixavam de cair sobre elas e avançavam as sombras do bosque.

De dia, a mudança era difícil e às vezes impossível. Quando sentia que as alongadas sombras do crepúsculo cobriam sua carne e se estendia uma ponte entre seu mundo e o dos humanos, ela já havia desaparecido.

Muito bem, ele pensou. Umas quantas vezes havia sentido a tentação de se deslizar atrás dela quando voltasse para a choça em que vivia. Uma ou duas vezes, inclusive havia brincado com a fantasia de entrar a noite naquela morada circular com teto de palha. Podia ver inclusive na mais profunda escuridão. Conhecia os aromas da mulher, de certo modo mais reais para ele que seu aspecto.

Depois do banho, era freqüente que ela se relaxasse em um dos poucos lugares ensolarados não invadidos pelos matagais nem escurecidos por velhas árvores. A grande rocha de granito estava enterrada, mas entrava a bastante na água para criar uma plataforma um pouco acima do lago. A parte superior estava muito nua para que crescesse alguma coisa, mas havia um grosso tapete de agulhas de pinheiro. Recebia três ou quatro horas de sol por dia. A radiante luz baixava até as claras águas do lago, cintilando sobre os lúcios, trutas e às vezes pequenos esturjões que iam e vinham como fantasmas na água.

Todo o ano, salvo nos meses mais escuros, flores silvestres rodeavam o tapete de agulhas de pinheiro. O serpol emergia da neve com flores azuis. As violetas floresciam na primavera, brancas, vermelhas escuras e amarelas. Mais avançado o verão, cenouras silvestres, margaridas amarelas, girassóis e dentes de leão iluminavam a vegetação. As campainhas apareciam nos altos pinheiros, escondendo sua murcha beleza à sombra dos troncos cobertos de casca e agulhas.

Sem saber, a mulher deixou sua marca sobre as agulhas caídas. Por exemplo, ele soube que o desejo crescia nela, respondendo a atração da lua pelo menos três vezes por semana. Não sabia onde expressava a mulher aquele desejo, pois ela aparecia sozinha no lago. Sua pele tinha o aroma das flores. Levou-lhe um tempo compreender que aquele aroma não era simplesmente o de sua suave carne, mas do azeite de rosas que ela usava depois do banho. O aroma de suas axilas lhe recordava um pouco o das cebolas... Doces cebolas silvestres passadas pelo fogo. Quando a mulher saia, ele descia até a rocha para beber seu complexo perfume e às vezes rodar sobre o tapete de agulhas de pinheiro.

É obvio, um dia, talvez por acidente, talvez indevidamente, ela ficou mais tempo. Havia chegado bastante tarde. A água estava sob a sombra, mas as árvores e a pequena clareira estavam iluminadas por uma luz dourada. A mulher se banhou rapidamente. A água estava gelada e ela voltou imediatamente para a borda, para descansar no lugar de costume enquanto deixava que o sol da tarde esquentasse seu corpo estremecido.

Ela se estirou sobre a plataforma. O lobo pôde sentir sua lassidão, enquanto o calor fluía através de seu corpo e a fera luz laranja abria passo por entre suas pálpebras. Surpreendeu-se um pouco quando os dedos de sua mão direita dela procuraram o sexo. Custou-lhe alguns instantes compreender o que a mulher estava fazendo. Então se dispôs a contemplá-lo, avidamente.

Uma umidade fazia brilhar o cabelo loiro avermelhado de seu sexo, sob o sol. Seus lábios se abriram um pouco e o lobo pôde ver a ponta de sua língua entre eles. Por fim suas costas se arqueou e a expressão profundamente concentrada se converteu em um repousado sorriso. Ela exalou um profundo suspiro quando a primeira onda percorreu seu corpo, depois abriu os lábios pela segunda vez, emitindo um suave gemido quando a segunda a apanhou com maior intensidade. Seus quadris começaram a se mover como se estivesse acolhendo um amante invisível. Os músculos de seu ventre se contraíram ao fechar seus quadris sobre o membro sonhado. Então ela suspirou mais forte e o lobo se recordou da mãe da alcatéia. A mulher relaxou por completo, suspirou outra vez de prazer e satisfação e adormeceu.

O lobo ficou em pé. Havia tomado uma decisão. Estava amaldiçoado, mas o prazer corria como o fogo em suas veias. Recordava-se do arvoredo. Ele e os lobos sabiam mais que os humanos da Dama que morava ali, pois às vezes haviam visto sua sombra caminhando por ela. Ninguém tinha visto seu rosto e continuado vivo para contar. Alguns poucos haviam dado uma olhada nela no lago ao se aproximar para beber. Ninguém, animal ou humano, voltava para fitar o que olhava as águas acima de seu ombro... Mas ele soube que acabava de ver uma, de suas imagens, refletida em um rosto humano.

A mulher despertou um pouco alarmada ao ver que era tarde e o sol já estava atrás das montanhas, iluminando só as ladeiras rochosas por cima das árvores. Levantou rapidamente, envolvendo-se em seu manto e pronta para se apressar pelo atalho entre as árvores. Quando ela elevou o olhar, o fôlego se deteve em sua garganta.

O homem estava apenas alguns metros de distância. Nu, mas coberto por uma profunda beleza. Ela já havia se casado, tivera amantes e era uma boa conhecedora do que estava olhando. Ele era o exemplar mais magnífico que tinha visto em sua vida. Um sincero e aberto desejo ardia nos olhos dele: uma pergunta, um pedido, uma promessa, uma urgência e por último, mas não menos importante, uma ordem.

 

—Bom, bom, bom. - Disse Dryas com um risinho. - Certamente, não perdeu tempo contigo.

—Obrigado por lembrar em me responder. – Disse Blaze irritado.

—E o que querem que eu faça a respeito?

—Matá-lo. - Disse Mir.

Dryas rompeu a rir e se levantou bruscamente enviando sua cadeira com um chute, para a parede oposta da estadia.

—Oh. Vocês são um par de belezas. — Ela bebeu da taça de vinho que ainda tinha na mão e se aproximou da cadeira, enviando-a novamente para junto da mesa. A cadeira caiu com precisão no mesmo lugar que estivera ocupado antes. Dryas golpeou a parede com o pé e uma chuva de barro caiu da estrutura de palha. - Água e argamassa.

A mulher se aproximou do fogo, pegou uma chaleira e um garfo para carne e deu uma volta pela casa, batendo fortemente os utensílios. Saiu da cabana e caminhou ao seu redor, golpeando com força. Depois voltou, fechando a porta atrás dela.

Os dois homens a olharam atônitos.

—Ouçam! — Ordenou ela. – Vocês dizem que essa criatura pode caminhar sobre duas pernas como um homem. E é muito possível que possa entender o que estamos falando e então vocês se sentam nesta choça e falam de nossos planos em voz alta. Como sabem que ele não está escondido entre a vegetação aqui ao lado? Escutando cada... Palavra... Que... Dizem.

Dryas estava cansada. Fizera uma longa viajem, observando unicamente morte, destruição e dor. Os romanos tinham quebrantado a vontade de resistir do povo, e o que era pior, os caciques que deviam formar a espinha dorsal daquela resistência tinham sido assassinados, escravizados ou comprados pelo poder de Roma e eram incapazes de mudar o destino de sua gente.

Enclaves como aquele eram o que restava de uma nação antigamente poderosa. Aquela enlouquecida e desesperada moça das cicatrizes sobrevivera Com muita dificuldade onde sua sagaz, valente e formosa família havia governado. Não, não governado, mas guiada a uma sociedade que tentava conviver em paz e justiça.

Em sua viagem Através da Gália, Dryas tinha visto morrer algo cuja existência ignorava até então. A dor que embargava seu coração era tão profunda que parecia apagar o sol, mesmo em um dia brilhante. Algo estava morrendo ali, um pouco mais importante que qualquer simples humano que o compartilhasse. Algo maior que a soma de suas partes humanas.

Não só estava assustada por sua destruição, mas também por sua própria incapacidade para compreender o que seus instintos mais profundos diziam que estava acontecendo. Não era uma intelectual, mas uma caçadora, uma pessoa de ação. Os sentimentos de pena ameaçavam afundar sua alma sob uma onda de dor, o que fazia com que descarregasse sua fúria ante aqueles dois velhos néscios... Os sobreviventes de um tipo de pensadores e professores que havia modelado desde o começo dos tempos, o único mundo que ela conhecia.

Dryas respirou fundo, estremecida e cobriu os olhos com a mão. Sentiu na outra, o seco tato dos dedos de Mir. O ancião a tocou suave e gentilmente, como consolaria uma criança.

As lágrimas desceram de seus olhos e quando os abriu para fitar Mir, notou uma cansada compreensão mais profunda do que teria acreditado possível.

Sua fúria e sua dor desvaneceram, deixando-a seca e sentindo-se estúpida por ter bebido tanto vinho com o estômago vazio.

—Então, nega-se a nos ajudar? — A pergunta de Blaze tinha todo o peso da autoridade ultrajada.

Dryas se voltou para ele, com a ira começando novamente a tingir seu rosto.

Mir lhe pegou a mão.

—Esperem! Esperem! Rogo aos dois. Pense Blaze. Ainda resta muito pouco de seu antigo poder. Agora dependemos mais que nunca de nossa boa vontade. E pense você também, moça, que faltando quase todos os melhores guerreiros, devo, como o pastor de um rebanho quase indefeso, protegê-los de uma ameaça que pode destrui-lo com tanta segurança como os romanos.

Dryas cedeu, elevando a taça para mudar de um lugar a outro e pegar mais vinho.

—De acordo. - Grunhiu Blaze. - Já disse o que queria. Os dois disseram.

Dryas se inclinou para diante. Falou muito baixo e em outro idioma, a língua de seu próprio povo.

—Bem. – Ela disse. – Eu os ajudarei. - Seu olhar cravou na porta e as paredes. - Mas ele não precisa saber. Entendem-me?

Mir se limitou a assentir, mas Blaze respondeu no mesmo idioma.

—Deus! Passaram-se anos. Meu domínio da língua... Não é completo e sou condenadamente lento, mas sim, entendo as frases simples.

Ela assentiu.

—Amanhã. Ao sol... Em campo aberto.

Os dois homens devolveram o gesto,e Dryas acabou o vinho, de um gole. Depois chutou novamente sua cadeira, foi até o canto para pegar sua mochila e se voltou para a porta.

—Espere! —exclamou Blaze. - Ele...

Dryas deu uns passos para ele e falou novamente em caledonio.

—Não me ajudem. Silêncio! Sei o que estou fazendo.

Ela se voltou e desapareceu na noite.

 

Ela era uma suculenta fruta proibida para o lobo. Uma mulher amadurecida, envolta em uma confusão de aromas que era quase como o incenso. Aberturas suaves, mas tensas e superfícies de veludo.

Quando a tomou, ela comunicou uma deliciosa e desconhecida sensação a sua mente e seu corpo enquanto ele invadia o dela. O lobo pode notar, quando ela caiu de joelhos diante dele e depois ao empurrá-la para trás, para que se estendesse sobre as agulhas de pinheiro, que o desejava e ao mesmo tempo o temia. E ambas as sensações eram muito profundas.

—Não me faça mal. - Rogou ela.

Ele não fez.

Já estava escurecendo quando ele a liberou, deixando que ela fosse até onde havia ficado sua roupa. Ele se saiu entre as sombras e se deu conta de que a mulher tremia enquanto pegaca os objetos e começava a correr de volta a aldeia.

Como lobo, estava surpreso ante sua reação. Era consciente de que lhe tinha dado prazer, até o êxtase. E mais de uma vez. Compreendia que o medo dela tinha dado fio ao desejo de ambos. Mas o que não podia entender era a razão daquele medo. Pensou ela, que ele ia atacá-la, lhe fazer mal durante um ato que dava tanto deleite aos dois, um ato de prazer?

Quando esteve seguro de que ela já não podia vê-lo, voltou para sua forma de lobo e seguiu a mulher entre os pinheiros, de volta a sua cabana. A tosca granja celta em que vivia.

Ele ficou à margem do bosque quando ela afastou um lado da cortina de pele que cobria a entrada de sua moradia.

—Imona! — Chamou alguém. - Estávamos a ponto de descer até o lago. Olhe, temos as tochas preparadas. O que aconteceu? Onde estava?

—Sinto muito. - Disse ela em voz baixa, quase um balbucio. - Me afastei um pouco para dormir depois do banho. Não pensei que dormiria tanto. O sol já estava atrás das montanhas quando despertei... Voltei tão rápido como...

A outra voz feminina a interrompeu.

—Deveria ter mais cuidado. Juro que acredito que faz estas coisas para trazer a miséria a nós todos.

—Sinto muito, Kat. Não queria lhe preocupar.

Kat e Imona. Pensou o lobo. Kat chiava, guinchava. Maeniel havia encontrado com algumas pequenas feras peludas e com garras: Kat e elas tinham vozes agudas muito parecidas. Permaneciam perto das moradas humanas e viviam do que encontravam nelas. Eram rápidas e podiam subir correndo para as árvores. A voz de Imona era baixa e adorável, mas a tal Kat soava como uma daquelas ferazinhas.

O vento da noite começou a soprar quando as montanhas desprenderam seu calor e o rugido do bosque afogou o resto da conversa.

Imona. Pensou o lobo. Elas têm nomes. Ela tem um nome. Os lobos não. Só eu... O nome que ela me deu ao me fazer mais... Ou menos... Que um lobo. Maeniel. No alto, pequenas nuvens passavam ante a resplandecente meia lua. Os lobos cinza são como essas nuvens: cada um distinto do outro, mas de alguma forma todos iguais. Passam pela vida, vagam pelas montanhas como vagam as nuvens ante a lua, e logo descem a escuridão para serem esquecidos. Eles se dão os nomes que podem recordar. Recordar os que amaram pelo menos por um tempo. Tentam deixar atrás a morte? O lobo estava surpreso. Pensou na mãe da alcatéia, já certamente simples ossos na úmida terra.

E de repente, o lobo compreendeu no que se distinguia do resto da alcatéia. Para eles, se chegavam a pensar na mãe era só uma vaga lembrança. Gemeu brandamente e se sacudiu.

Um lobo uivou ao longe. Depois, tão fluídos e rápidos como as gotas de chuva se unem a um riacho, outros se uniram ao coro. A nova mãe da alcatéia tinha sido a primeira, depois os machos jovens e por último as ligeiras fêmeas virgens. Ele conhecia cada uma das vozes. Que conjuravam imagens e associações emocionais em sua mente. Elevou a cabeça, mas com uma previsão imprópria de um lobo se deu conta do quão perto estava da aldeia. Não era prudente provocar os humanos nem seus poderosos mastins guardiães.

Sabia que sua alcatéia se reuniria no lago antes da caça, então se voltou e entrou no bosque.

 

                                           Capítulo 2

No fora da cabana de Mir, Dryas se envolveu em um manto de lã. O primeiro frio do inverno percorria o prado. Deteve-se um momento para deixar que seus olhos se acostumassem à escuridão. Não tinha que esperar quando era mais jovem, pensou com amargura. Sequer se tinha dado conta da transição. Ainda era jovem, mas a idade começava a fazer seu lento trabalho, embotando as habilidades caçadoras de sua juventude.

Quanto ao lobo, teria que dar crédito às palavras de Mir, a criatura usava de modo distinto, homens e mulheres. De fato, se tivesse um pouco de natureza canina, talvez fosse inofensivo para ela. Os aromas da mulher nem sempre eram confiáveis, mas tinha visto com freqüência ferozes mastins ganindo submissos ao agitar de algumas saias femininas.

Pouco a pouco, seus olhos começaram a distinguir os troncos das árvores e as demais estruturas que rodeavam a cabana de Mir. Moveu devagar com as sombras.

A pequena esposa do ancião tinha falado de um atalho bem marcado que levava até uma clareira e de uma pedra erguida que dominava todo o vale. Assim avançou com cuidado pelo traiçoeiro terreno rochoso até que suas botas encontraram o caminho. O caminho estava fundo pelas numerosas pegadas. Velho, pensou Dryas. Muito antigo e sagrado. Ao seu redor, os enormes pinheiros ocultavam até as estrelas no alto. Não havia lua e não podia ver nada sob as árvores.

A princípio, a costa era suave, mas pouco a pouco foi ficando cada vez mais pronunciada, com um mínimo de giros para a linha das árvores. Não estava segura de quando havia começado a desaparecer o bosque, mas pouco a pouco, à medida que ia subindo, a sensação de caminhar em uma caverna diminuía ao ter cada vez menos árvores e menores, até ser substituídos por vegetaçãos e anãs retorcidas pelo vento. Ao se aproximar mais do acampo aberto, o vento começou a soprar de maneira alarmante.

Geada, ela pensou. Haverá cristal na vegetação antes do amanhecer. De repente ela foi consciente de que caminhava ao nível do solo. Estava em um pequeno prado de montanha, que dominava uma profunda garganta pela qual corria o rio. A vegetação era larga e sedosa, brilhante como o linho cru sob as estrelas.

Recordou as palavras da moça: nenhuma fera doméstica chegava até ali. Só cervos, muflones e cabras montesas. Todos tinham esquecido o por que. Tudo o que diziam ao falar disso era, traz má sorte, ou, não há vegetação suficiente para que valha a pena e o caminho é muito íngreme. Uma boa cabeça de gado poderia romper uma pata.

A um extremo do prado, havia uma massa de granito compacta como um enorme punho. A água fervia de uma greta coberta de musgo perto do alto, caindo até criar uma concha aos pés da pedra e fluindo para o pequeno arroio que passava junto à porta de Mir.

Ela fez uma pausa para recolher suas coisas e seguiu andando com cuidado. O prado acabava a sua direita, em um pronunciado aclive, rochoso a princípio, coberto depois de musgo e vegetação e finalmente por um bosque de pinheiros junto ao rio. A sua esquerda havia um escarpado, que se elevava impraticável até uma série de terraços rochosos que levavam até um pico coberto de neve.

Cuide o manancial, havia-lhe dito a garota. Perto encontrará a escada.

Ao se aproximar da massa de granito, ela notou mãos... E apoios lavrados na rocha. Se a moça não o tivesse dito uma escada, Dryas teria tomado por uma conseqüência natural dos incontáveis séculos de chuva e vento.

Deixou cair sua mochila ao chão e colocou a mão no primeiro oco. Era muito mais profundo que parecia. Começou a subir e se deu conta, para seu pesar, de que havia algo que a garota não lhe tinha contado. A tosca escada rodeava a rocha, de forma que ela estava suspensa sobre o vale.

Quando colocou o pé no escavado onde antes havia estado sua mão, encontrou-se sobre o rio no fundo da garganta. Apertou os seios e o estômago contra a pedra. Os músculos de seu ventre estremeceram.

O orgulho despertou. Ela era Dryas, da linhagem real. Custódia de rainhas e ela mesma, uma rainha. Sim, Dryas, disse-lhe seu sentido comum, mas a moça está mais louca que um touro em época de subida e pode ser que esses escavados não a levem a nenhuma parte. Mas mesmo enquanto pensava, ela tirou o chapéu procurando impacientemente outro cabo. Ao adiantar o pé alguns momentos depois, ela se advertiu que sua mão esquerda pousou sobre uma superfície plaina. Um instante mais tarde estava no alto da rocha, descansando sobre um pequeno suporte virado para o este.

O suporte era bem estreito, mas estava coberto pela mesma vegetação espessa que o prado lá embaixo. No alto, o vento parecia soprar continuamente. Às vezes como uma fúria rugiente, outras como uma suave brisa, nunca cessava e os dedos e bochechas de Dryas começaram a intumescer ao cabo de uns momentos. O calor provocado por seus esforços acabou por se extinguir e o frio começou a deslizar em seu interior. Bem, a garota havia dito que estavam ali. Mas onde?

A lua começou a se elevar sobre um pico longínquo. A sua luz, como tinham previsto os construtores, Dryas pôde ver a elipse de pedras brancas entre a vegetação e a pálida laje no centro, brilhando a gélida luz da lua. Assentiu. Inclusive podia ler aquilo. Parte de seu adestramento tinha consistido em aprender o que significavam tais estruturas. Aquela falava tão claramente como um relógio de sol. Há, ela pensou, formas muito mais simples agora, mas provavelmente inventaram-nas, as criaturas deste calendário lunar. Sim, saber é importante para nós.

A sombra apareceu perto da pedra no centro do círculo, um pouco mais escura que o crescente resplendor da lua e a nebulosa e distante luz das estrelas. Não emergiu da noite, mas em um momento não estava ali e no seguinte sim.

Dryas estremeceu. A moça estava certa. Ela ficou em pé, retrocedendo até a margem e logo começou a descer por onde havia subido. Mas desta vez se concentrou por completo em quais escavados serviam como escada. Não olhou para cima. Queria olhar, mas descobriu que não podia. Topara com um fenômeno mais aterrador que uma descida por um escarpado suspensa pelas mãos. Temia olhar para cima e ver algo, que só Deus sabia o que... Olhando pela margem... Olhando-a.

 

As flores. Flores de qualquer tipo faziam-lhe recordá-la. Enquanto a havia amado, o mundo estivera imerso no verão, e o alto vale alpino e os prados das terras baixas ardiam em seu fogo.

Além das montanhas, ardiam outros fogos. Não eram tão formosos, só deixavam cinzas e criavam borrões obscuros Através de um claro céu azul. César estava em marcha. Subiria sobre uma pilha de cadáveres até conseguir por fim, a primazia mundial.

Mas o lobo não sabia nada daquilo e tampouco lhe teria importado. O que eram para ele, os fatos do homem? Ele e sua espécie tinham resolvido seus assuntos com o universo, milênios atrás. Viviam de acordo com um código, um código que havia evoluído com sua espécie, da escuridão dos inícios dos mamíferos. Deixavam-se guiar por ele, embora nunca tivessem tentado compreendê-lo. Não pensou nisso enquanto espionava Imona e suas companheiras se apressando colina abaixo ao amanhecer, para desfrutar de um banho no lago.

Ela ficou para trás, atrasando-se, como se sentisse sua presença e estivesse lhe esperando.

Seus braços se fecharam em torno dela, por trás. Tirou-a do caminho, levando-a para trás de uma árvore.

Ela abriu a boca, mas não chegou a gritar. Ele deu-lhe várias oportunidades de fazê-lo, mas a mulher não as quis. De fato, quando se voltou e viu quem era, jogou os braços em seu pescoço para lhe dar um beijo.

Ele nunca tinha sido beijado antes, mas era um aluno rápido. Decidiu que gostava daquela forma de contato humano e que queria aprender mais a respeito. Havia tempo para isso. Carregou-a colina acima, até um lugar resguardado que só um lobo poderia conhecer.

Em um amargo inverno atrás, uma avalanche tinha marcado seu violento passo através da linha de árvores. Quando chegou o verão, fundindo o gelo e a neve, deixou uma massa de rochas, árvores quebradas e espessa vegetação no bosque.

Não era um lugar popular entre os humanos, mas os lobos e os gatos monteses gostavam o bastante. A região em torno dos montes de pedra estava infestada de poços e víboras. Podia se acreditar que estava sobre solo firme e de repente cedia um tronco podre ou um galho quebrado, enviando seu pé ou sua perna em um buraco, retorcendo músculos ou quebrando ossos. As árvores truncadas pela avalanche sempre estavam a ponto de escorregar e cair, cravando seus galhos estilhaçados no explorador descuidado. Não era um bom lugar para passear.

Ela beijou-lhe no pescoço enquanto se deixava levar.

—Doce mãe misericordiosa. – Ela sussurrou. - Acreditei que não voltaria a vê-lo.

Ele riu.

—Não tem medo? Os homens de minha tribo... O matariam se o apanhassem.

—Não acredite que me matar seja tão fácil.

Justo naquele momento, eles chegaram ao lugar que ele estivera procurando, uma pequena clareira sombreada pelos grandes galhos de um pinheiro quebrado e rodeado de blocos de granito e enormes fragmentos de piçarra levados até o solo, pela avalanche. Deixou-a no chão, em um círculo de quebradas facas de pedra.

Ela fez uma pausa, mas só para tirar seu vestido. Estava nua sob ele. Pegou os seios com as mãos, oferecendo-lhe e ele os lambeu a princípio, sugando logo em seguida. Imona se retorceu entre gemidos.

—Não deveria estar fazendo isto. – Ela soluçou.

Ele se deteve por um momento, profundamente confuso.

—Não. - Gemeu ela. - Não pare.

Ela arqueou as costas. Ele pôde sentir seu sexo úmido e quente apertado contrao seu estômago. O aroma de seu desejo flutuava no ar da manhã, tão espesso como o úmido rocio que impregnava a vegetação a seu redor.

—Deseja-me? — Ele perguntou.

—Poderia te devorar! — Sussurrou Imona, frenética e cravou-lhe as unhas no ombro, lhe rasgando a pele.

Ele sentiu começar seus espasmos orgásmicos assim que entrou nela. No breve momento de lassidão entre o primeiro e o segundo, Imona abriu a boca:

—Tenho um marido.

Maeniel não fez nenhum comentário até que ela alcançou seu terceiro clímax. Então, quando já esteve calma, ele perguntou-lhe: — O que é um marido?

A resposta de não o satisfez. Entre os lobos, ninguém tinha tais direitos sobre outro. Os lobos não se uniam por toda a vida. Para ser exato, no sentido humano, sequer se uniam.

O macho mais forte de uma alcatéia conseguia o privilégio de procriar, como fazia a fêmea mais forte. Mas não escolhiam necessariamente um ao outro.

O desejo dependia por completo da receptividade da fêmea. Se não estava receptiva era melhor não tentar. De fato, tentar podia ser muito perigoso.

Imona jazia em seus braços. A névoa se ia dissipando ao seu redor. O sol começava a esquentar as rochas. A mulher dormitava embalada por Maeniel. Ele estava acostumado a dormir com seus companheiros de alcatéia amontoados entre si para se proteger do frio. Parecia-lhe natural dormir abraçados em forma humana. Ela se agitou de repente:

—A comida! Preparei um almoço. Está na bolsa de couro. Certamente a deixei cair perto do caminho do lago.

Maeniel ficou em pé e caminhou até a clareira iluminada pelo sol. Nu, o sol fazia com que seus olhos vacilassem e esquentava sua pele de forma quase dolorosa. Queria mudar, mas sentia que não era possível. Então fugiu para a fresca escuridão sob as árvores.

Mas aquela parte do bosque não oferecia muito amparo depois da avalanche e ele não foi capaz de recuperar sua forma de lobo até encontrar em uma espécie de gruta criada por umas trepadeiras.

Encontrou a bolsa de couro perto de onde tinha interceptado Imona. De repente ouviu vozes, entre elas pôde reconhecer a de Kat.

—Digo-lhes que ela não está! E vi rastros de lobo perto de sua bolsa.

Maeniel pegou a bolsa enquanto ouvia a réplica de outra voz.

—Um lobo? Meu velho e gordo traseiro! Acaso é tola, moça? Esse marido seu não vale nada desde que foi à guerra. Os romanos lhe cortaram a mão e sua dignidade se foi com ela. Nem sequer se molesta em tentar deitar com Imona. Ela deve ter ido se encontrar com algum homem.

—Clarisa! —A voz de Kat tinha o agudo zumbido de uma vespa furiosa. - Leão é meu irmão e sua idade não te dá nenhum direito a...

O lobo cinza se fundiu com o bosque, justo quando as mulheres chegaram ao lugar onde havia estado à bolsa.

—O que? — Gritou Kat ao irromper na clareira e ver que a bolsa não estava. - A bolsa desapareceu!

Protegido por um espesso arbusto, quase impenetrável para os humanos, o lobo permanecia invisível.

Kat, uma mulher miúda e morena, começou a procurar.

—Estava aqui. – Ela insistiu frenética. - Estou segura! Eu a vi a só um momento.

Clarisa riu de forma estridente. Era uma mulher robusta com uma longa cabeleira de cor castanha avermelhada que já começava a branquear.

—Isso é porque terminaram que dar a primeira queda e lhes deu fome. Voltaram e pegaram a bolsa. —Os comentários soavam um pouco incoerentes por causa das ondas de luxuriosa diversão que afogavam a mulher.

Kat não parecia divertida

—Maldita seja! Amaldiçôo o dia em que a deixei entrar na família. Amaldiçôo os olhos em sua cabeça, a língua em sua boca, as orelhas com que ouve e a garganta com que engole...

O corpo do lobo estremeceu quando Clarisa pôs fim às palavras de Kat com uma forte bofetada em seu rosto. O ruído da palmada sobre a carne reverberou entre as árvores.

Kat retrocedeu um par de passos, tropeçou e caiu de costas muito perto do esconderijo do lobo. Levou uma mão a face, com expressão atônita.

—Cadela! – Disse Clarisa. - Se acredita uma bruxa? Fecha essa suja boca e guarde seus maus desejos para ti. O céu sabe que Imona pede muito pouco a sua família. É uma boa trabalhadora e sempre está disposta a se ocupar de qualquer tarefa. É uma criada gratuita para ti, para o seu homem e para essa preguiçosa e velha bruxa de sua mãe. Ela chegou ao seu climatério e não pode ter mais filhos, assim não desonrará sua família. E as duas filhas que deu a Leão foram uma óbvia decepção para todos vós. Tenha um pouco de compaixão, mulher. A vida não foi amável com Imona.

—É a filha de um cacique. – Gritou Kat enquanto ficava em pé.

—Sim, e sempre foi difícil para você aceitar, verdade? — Replicou Clarisa. - Bem, agora já não importa. Só os deuses sabem o que aconteceu com sua gente quando chegaram os romanos.

As duas mulheres se olharam em silêncio.

Foi à palavra, romanos, que encheu o ar de medo, pensou o lobo.

Kat fez um gesto contra o olho do mal.

—Nem os mencione, - ela sussurrou. - Queimaram um povoado no vale o verão passado. Este ano, todo mundo teme que venham novamente.

Clarisa estremeceu. Uma pequena nuvem ocultou o sol e o espesso bosque de pinheiros se tornou mais obscuro ao seu redor.

—Kat, não seja néscia. Tente não ver o que está fazendo Imona. Sua granja necessita de todas as mãos que têm agora. Sua mãe e Leão são inúteis. Você, Imona e Dê é quem carregam a carga. Sem ela, vocês poderiam morrer de fome. Já temos muitos inimigos para estar nos atacando entre.

Embora o tom de Clarisa fosse conciliador, Kat não pareceu ceder.

—Velha e viciosa! Urraca carroñera... Se voltar a pôr as mãos em mim te arrancarei os olhos.

Kat se se voltou, afastando-se para o lago. Clarisa foi atrás dela meneando a cabeça.

A nuvem passou. O sol esquentava o bosque. O lobo cinza levou a bolsa de couro até a gruta, e cheirou o ar. Umidade. A chuva devia estar caindo no passo das montanhas.

Soltou a bolsa, e ouviu algo em sua mente. Deixe-a aqui... Vá. Encontre a alcatéia. Haverá boa caça nos passos das alturas. Guie-a para longe daqui. Longe, longe daqui... Para as geleiras onde a neve nunca se finda. As altas cúpulas estarão cheias de presas em torno de lagos congelados todo o ano, salvo três meses. Em bosques são espessos, o sol do dia mais brilhante nunca chega ao chão e você pode permanecer oculto do homem para sempre. Vá!

O lobo sentiu novamente o toque do desejo. Podia imaginar a mulher, dormindo graciosamente estirada a sombra dos brotos de primavera. A forma de lobo parecia um chato e incômodo disfarce, com uma pesada pelagem que lhe dava muito calor à medida que o sol se elevava no céu. Desfez-se dela como se se despojasse de um grosso manto de lã no primeiro dia de calor da primavera, e ficou em pé... Como homem.

Quando voltou, ela estendeu seus braços para ele.

—Temia que tivesse ido para sempre. – Ela sussurrou, lhe acariciando o cabelo.

Ele estudou seu rosto enquanto jaziam juntos. Queria lhe falar da amarga inveja de sua cunhada e da defesa de Clarisa, mas descobriu que carecia das palavras necessárias para isso. Um lobo podia recordar aquelas coisas, mas não necessariamente ser capaz de comunicar a outro lobo.

Por uns instantes, ele se perguntou o que e quanto dizer, mas a proximidade da mulher começou a lhe excitar até lhe fazer esquecer o que considerava o ressentido resmungar de cadelas ciimentas. As fêmeas e os machos, de classe se mostravam muito protetores com seu modesto status, e passavam grande parte de seu tempo livre trocando mordidas e grunhidos. Tais broncas adolescentes não estavam acostumados a deixar feridos, pois os participantes quase nunca chegavam a brigar. Maeniel estava seguro de que o que tinha ouvido era algo similar. Os fortes entre a alcatéia ignoravam os jovens até que se tornavam muito molestos. Então arrumavam as coisas, geralmente com um grunhido e umas quantas mordidas no lombo.

As marés do desejo varreram a lembrança de sua mente. Tinha em seus braços uma mulher nua, indefesa e complacente, mais que disposta... Faminta dos cuidados de um homem. Podia explorar aquele corpo, uma interminável passagem de louco deleite. Um ramalhete de flores que mostrava novas cores e fragrâncias, texturas e vívidas emoções a cada nova experiência sugerida pela imaginação, às mãos, os lábios e o sexo.

Quando o sol deslizou atrás dos picos do oeste, ambos estavam exaustos. E ele provou pela primeira vez a comida humana, compartilhando um pouco de pão, queijo e vinho com Imona.

Ela bebeu a maior parte do vinho e acabou chorando sobre seu ombro com os braços fechados em torno de seu pescoço.

—O que acontece? — Perguntou ele entre os beijos. - Fiz feito algo... Algo que não quisesse?

Ela soluçou e ficou em pé. Depois se cobriu com o vestido.

—Não... Não... Não... Não... Você é maravilhoso. Amo-te. — Ela limpou as lágrimas com os dedos.

Ele se levantou por sua vez e a atraiu para si. Imona parecia tão leve como uma pluma. Levou-a para as sombras crescentes sob as árvores. O céu no alto estava iluminado pela luz do sol, que se filtrava dourada entre os pinheiros quebrados. As sombras das rochas, os matagais e as árvores eram negras como a tinta. O ouro do céu e o bosque parecia arder como manchas de metal fundido sobre carvão.

Ele sentiu o cheiro do réptil antes de vê-lo. Uma víbora se banhava nos últimos raios do sol sobre uma rocha: sua pele salpicada se confundia com as agulhas de pinheiro e as folhas secas sobre as quais descansava.

Viu que a serpente elevava a cabeça para atacar e interpôs seu largo ombro entre ela e a mulher que tinha nos braços. Imona abriu a boca. Um grave grunhido retumbou no peito de Maeniel. Se fosse linguagem humana, o som teria significado: Não, se souber o que está fazendo, não atacará.

O réptil jogou a cabeça para trás, deixou-se cair e desvaneceu entre as sombras e as folhas mortas do chão.

Imona suspirou aliviada. No alto, a luz desaparecia paulatinamente, tornando mais profundas as sombras ao seu redor.

— Você não é um homem, verdade? — Ela perguntou.

—Não. — Maeniel a soltou, deixando que ela ficasse em pé no caminho.

Os dois podiam ouvir o conversa das mulheres enquanto voltavam para a aldeia.

—Seja o que for, não se deixe apanhar. E volte... Volta, por favor.

Maeniel sentiu que o lobo o puxava para as sombras do bosque, mas levou a seus lábios a mão da mulher em um breve e terno gesto de despedida antes de sair na noite.

 

Ainda tremendo depois da escalada, Dryas atravessou o prado, procurando um lugar resguardado para dormir.

As folhas mortas caídas das escassas árvores e a pouca vegetação retorcida que sobreviviam na ladeira, cobriam literalmente a clareira. Estavam com uma cor branca como o osso por causa do vento e do frio.

Ela encontrou um lugar perto do ponto onde a água saía da rocha. Aqueles lugares sempre eram sagrados: quem fosse descoberto poluindo a pureza da água podia ser castigado com a morte. Fez uma oferenda de pão e vinho, apenas umas migalhas e umas gotas e se hospedou dando as costas ao escarpado. Preparou um fogo com lenha seca recolhida no prado.

Os gravetos haviam estado tanto tempo na vegetação, que não tinham mais umidade que os restos de madeira secas pelo sol em uma praia. Arderam ferozmente durante um momento, para se converter no seguinte em brasas vermelhas como os olhos de um demônio fazendo piscadelas na noite.

Dryas jogou mais ramos ao fogo. As chamas esquentaram a rocha, o que faria com que ela estivesse quente durante a noite. Quando só restaram brasas, ela se enrolou em uma pele de urso e adormeceu.

Como de costume, sonhou.

Uma vez, não muito tempo atrás, os sonhos tinham sido tal tortura que preferia se embebedar até a inconsciência, em vez de se entregar ao descanso natural. Mas aquela má, muito má época tinha terminado e embora às vezes despertasse com lágrimas nos olhos, o pesadelo não conseguia encolher seu coração lhe fazendo ver os mortos e se estivessem vivos. Até no mais profundo sonho, ela conhecia sua pena e aceitava a dor e o vazio.

Era Dryas, a caçadora, professora de espada, escudo e lança. Perita em métodos pelos quais um homem desarmado podia derrotar inclusive um inimigo bem provido. Proprietária do salto de salmão do herói, com todas suas letais permutações. Capaz de ler a trajetória da espada de um inimigo e evitá-la de um salto, ser decapitada. Senhora do feitiço e da loucura da batalha. Guardiã do conhecimento, esquecido inclusive por aqueles que manchavam. Leitora de círculos de pedra e de padrões funerários cuja origem se perdia nas névoas do tempo.

Havia aceitado a tarefa encomendada por Blaze. Devia deter aquele lobo humano que acossava rudemente as pessoas de Mir. Devia pegá-lo. Enquanto Mir e Blaze falavam, ela tinha esboçado um plano para fazer frente a ameaça. Naquela noite tinha dado os primeiros passos, mas certamente não queria que aquele lobo sobrenatural se atentasse em suas intenções.

Não, aquilo não seria nada bom.

Ela despertou um momento antes de voltar a adormecer por completo. Tudo que restara do fogo eram brasas, resplandecendo luzes de alerta na sombra. No alto, o absoluto esplendor das estrelas se arqueava sobre sua cabeça. Seu frio fogo mostrava o passado, o presente e o futuro ao olho capaz de lê-los, traçando mistérios do princípio e do final dos tempos para toda a eternidade.

Ela sentiu um nó no estômago. Estava segura de que alguém a observava. O lobo, ou talvez simplesmente um dos escuros moradores que guardavam o templo da águia, no alto.

Não sabia e nem podia averiguar, mas na realidade, tampouco importava. Qualquer um podia acabar com ela se decidisse fazê-lo. Dryas era a isca em sua própria armadilha. O único que podia fazer era confiar em seu bom julgamento e seguir adiante. Aquele lobo não seria derrotado pela espada e a fêmea de javali, mas sim pelo sigilo e a astúcia. E embora não estivesse muito segura de suas habilidades em tais campos... Devia se disciplinar para não mostrar medo. Então se limitou a bocejar, girando sobre um flanco e se entregou ao sonho.

 

Chegaram os romanos...

As mulheres cobriram de linho os pronunciados pêndulos que rodeavam os prados mais planos. Resistente ao frio e a seca, eles crescia muito e rapidamente, semeando suas próprias sementes a cada ano. No outono, o bicho-tesoura colhia tanto como lhe convinha. Imona era uma delas. Levaria o seu tear a porta de sua humilde morada, alimentaria os frangos, patos e gansos da granja e começaria a trabalhar em seu último projeto.

O verão tinha levado muita caça consigo. A razão, embora o lobo ignorasse era um tanto sinistra: a guarnição romana do vale havia destruído árvores para construir suas paliçadas, e queimado parte do bosque para acautelar revoltas e emboscadas.

Alces, cervos, e mesmo lebres e galinhas selvagem achavam aqueles clareiras cheios de forragem.

Os lobos prosperaram, cobrando suas presas com rapidez e facilidade entre os mais velhos e jovens dos quantos animais que subiam para os pastos da montanha. Até a caçada mais desinteressada contribuía com comida suficiente para que a alcatéia se fartasse de comer e logo dormitasse e brincasse ao longo das formosas noites do inicio do verão.

Ao amanhecer, Maeniel se afastava para cobrir entre as saliências das rochas que dominavam a granja de Imona. Dormia para digerir sua comida noturna e antes inclusive que o resplendor rosáceo começasse a brilhar no céu oriental, ele observava os movimentos da mulher através das paredes de palha enquanto preparava o fogo e começava a cozer o pão e as papas do almoço.

Mais tarde, já alto o sol, ele olhava-a enquanto ela se inclinava sobre o tear, com a lançadeira voando de um ae outro lado para criar outra franja de tecido de brilhantes cores.

Ao meio-dia, a brisa desaparecia. O sol caía a pino, sem piedade. O resto da família se retirava para a casa redonda ou para outros lugares à sombra, para dormir durante as horas de mais calor da tarde.

Era o seu momento. Imona se afastava ladeira acima, para cuidar do linho, como dizia a Kat e ambos se encontravam. Ela não sabia como ele conseguia encontrá-la sempre. Só sabia que a encontrava e aquilo lhe bastava.

Até então, Maeniel havia conseguido um pouco de roupa: uma gasta túnica roubada de um soldado romano que havia passado uma tarde banhando no rio. Era duvidoso que o homem fosse lamentar a perda profundamente ou durante muito tempo. O objeto era uma ruína descolorida e cinzenta, andrajosa além do acreditável. O lobo não reparava em nada de tudo aquilo. Um objeto era para ele era o mesmo que outro. A túnica era larga e o bastante grossa para proteger sua epiderme: depois de um desafortunado encontro com um arbusto de sarças, ele havia descoberto que a pele humana era muito frágil.

Em qualquer caso, só usava a túnica o tempo necessário para alcançar Imona. Depois a tirava para desfrutar de seu abraço. Pois aquilo era o que faziam: amar, comer e passar dormindo o resto da tarde. Às vezes conversavam. De fato, falavam-se freqüentemente. Bem, ela falava e ele escutava. Depois de sua primeira e única pergunta sobre a humanidade de Maeniel, Imona não voltou a lhe fazer outra. Ele não esperava que o fizesse, compreendendo de forma instintiva que ela temia perturbar o delicado equilíbrio que preservava a felicidade entre eles. Uma felicidade quase ultraterrena.

Quando terminavam de fazer amor, comiam a comida que sempre ela trazia. Era uma excelente cozinheira, mas a princípio Maeniel não compreendia. Como um lobo, ele limitava a fazer desaparecer as viandas. Mas os dentes e mandíbulas humanas, moldados por milhares de anos em saborear e compartilhar, não se prestava facilmente ao método lupino de rasgar e engolir.

Depois de estar a ponto de se afogar pela terceira vez, Maeniel aprendeu a saborear a comida à maneira humana e a apreciar a habilidade da mulher. Imona preparava pão com farinha, realçando seu sabor com mel, frutos secos e mesmo queijo duro. Ele aprendeu a desfrutar do sabor do presunto e do toucinho que Imona defumava durante os longos invernos. As inumeráveis salsichas de porco, veado e vaca eram um infinito deleite para os sentidos. E também havia vinho, e às vezes hidromel. Ahhhh...

Ele encontrou uma caverna perto do penhasco, de onde cuidava sua casa. Era pequena e o solo estava coberto de arena, mas era o bastante profunda para ser fresca nos dias mais calorosos.

Eral ali os dias de aprendizado, quando inclusive as pedras queimavam sob o sol do verão. Naquele escuro e tranqüilo lugar, ela lhe ensinou os prazeres de se sentir um pouco atordoado pela bebida e a lânguida lassidão de uma sesta depois de fazer amor.

Quando as sombras das árvores se tornavam mais largas, Kat começava a chamar Imona. Ela se levantava rapidamente e vestia seu vestido.

—É estranho. - Disse ele um dia. - Ela a chama, mas nunca vem te buscar.

—Não quer me encontrar.

—Não?

—Não. - Replicou ela, ficando em pé e olhando através das matas que ocultavam a entrada da caverna. - Sabe o que está acontecendo, mas necessita de mim, dos queijos que faço e minhas malhas trazem o pouco dinheiro que temos.

O lobo recordou as palavras de Clarisa.

—Além disso, - ela acrescentou enquanto lhe dava um beijo de despedida, - acredito que está um pouco assustada do desconhecido. Tipo, quem poderia ser esse homem? A estas alturas, já deve estar segura de que não pertence a nenhuma das famílias desta pequena aldeia. Sim, ela sabe com certeza, mas não está segura em querer te conhecer.

—Não acredito que se preocupe comigo. - Disse ele.

Imona meneou a cabeça.

—Não o faria. — Respondeu. Depois se abriu passo entre a vegetação e começou a descer em ziguezague pela ladeira.

Às vezes, ela ia cuidar do linho. As regiãos de flores azuis semelhavam a uma descuidada tintura da ladeira, afundando-se no verde dos pinheiros.

Embora o linho fosse resistente a seca, precisava ser regado na pior e mais seca época do verão. Imona levava água de um riacho que fluía pelo penhasco, de um jardim a outro, uma tarefa difícil inclusive com a ajuda de Maeniel.

O linho não era o único do que ela cuidava. Nas regiãos da ladeira mais expostas, secas e calorosas, ela cultivava as vegetaçãos que usava para tingir seus fios. A pequena e aromática camomila, a mil em rama, a olivarda... E muito mais que ele não podia dar nome. Algumas eram silvestres. O único que ela tinha que fazer era proteger e animá-las a crescer. Outras, como o saúco, não necessitavam de ânimos, mas precisava colher no momento certo.

Os conhecimentos de Imona sobre tecer e tingir lhe tinham sido transmitidos pelas mulheres de sua família... Mulheres nobres que não faziam por si mesmos a maior parte o trabalho, mas que estavam adestradas para fiscalizar os numerosos trabalhadores atribuídos a suas casas, para produzir grandes quantidades de tecido. Aquelas finas malhas eram vendidas a comerciantes e chegavam de lugares tão longínquos como a Grécia ou as Ilhas Britânicas.

Mas naquela granja, ela estava sozinha e então tinha que se ocupar de todo o trabalho. Mas sempre havia demanda de seus produtos nas feiras trimestres que acompanhavam as grandes festas de cada estação.

Com o tempo, Maeniel chegou a conhecer toda a família... O que não foi muito difícil, pois já restavam poucos. Todos os irmãos de Kat, menos um, haviam morrido nas guerras que devastaram a Galia depois da invasão de César. Como havia dito Clarisa, do trabalho se ocupavam Imona, Kat e seu marido, Dê.

Dê era um homem grande e tranqüilo que temia a língua e o temperamento de sua esposa. O lobo se sentia confuso ante sua laboriosidade, sendo o trabalho contínuo algo tão alheio a sua natureza, como a habilidade de Imona para tecer, até que ela lhe explicou que o trabalho de Dê nos campos lhe permitia escapar da incessante perseguição de Kat.

Maeniel conhecia os aromas de cada um deles. Imona era uma coleção de aromas sedutores. Kat era amarga, como se sua frustração com a vida se comunicasse com sua roupa em uma sucessão de frases severas. Dê cheirava a seu trabalho, a sol e suor.

O marido de Imona, Leão, era o mais estranho de todos. Para o lobo, ele cheirava a morto. Não o cru aroma da presa recém cobrada, sequer o forte aroma de carniça de um cadáver decomposto, mas o seco e mofado mau cheiro de uma pilha de ossos nas sombras, cobertos de manchas escuras de líquen, cinzas e emplastros de musgo.

Quando escurecia, o lobo descia se arrastando, para espiar pelos ocos nas paredes da choça. Via-os comendo junto ao fogo. Uma pequena vela iluminava o interior. Leão comia aparentemente sem prestar atenção em ninguém ao seu redor, enquanto Dê parecia desfrutar de sua comida e da companhia de sua cunhada.

A anciã mãe de Kat, desdentada e exilada da mesa por causa de seus sujos hábitos, sentava-se em um canto, babando sobre uma terrina de papa.

—Eu gosto do que tem agora no tear, Imona. - Disse Dê a Imona.

Ela riu, replicando em voz baixa.

—O vermelho é difícil de conseguir. Encontrar um tintura vermelha que não desapareça com a labainha é coisa do diabo.

O lobo supôs que estavam falando do último tecido de Imona. Tinha contemplado os árduos esforços da mulher no tear, que tinham ocupado a maior parte das três manhãs anteriores. E mesmo enquanto estava com ele, Imona havia parecido preocupada. Mas ao ver o resultado, tinha desfrutado tanto como ela.

Imona tinha usado seu linho mais suave, tingindo-o com o azul, para que brilhasse como uma pérola, acrescentando depois fios verdes e, um toque de vermelho, chamativo para um humano, de cor sangue para um lobo.

—Deveríamos ficar com ele para nós. - Acrescentou Dê. - Talvez pendurá-lo na parede.

O lobo se deu conta de que as paredes da pequena morada estavam decoradas com tapeçarias de brilhantes cores, que captavam a luz do fogo e a devolviam colorida.

Kat replicou bruscamente:

—Do que estão falando? Nada de reservar essa condenada coisa para decorar a parede. Necessitamos de cada sestercio que possamos rebanhar. Sabem que esses romanos virão novamente reclamando um tributo e que esse velho idiota do Mir terá que pagar. O que acontece com vocês? Imona, você passou três dias brincando com esse estúpido tear, tentando que funcionasse corretamente. A quem importam as delicadezas que sua mãe a ensinou tecer? Faça tecidos singelos e fortes. É o que vende!

Imona e Dê se encolheram ante a fúria em sua voz. Mesmo a velha senhora estremeceu, tentando ocupar menos lugar no canto, ante a fúria de sua filha. Só Leão parecia alheio ao ataque de Kat: continuou comendo, com os olhos fixos em um ponto ao longe, ignorando-a.

Dê pigarreou, tentando sorrir.

—Querida, no caso de que devamos vendê-lo, os tecidos finos alcançam um melhor preço que...

—Um melhor preço, um melhor preço... — Replicou Kat com um grunhido. - E quem tem agora dinheiro para luxos?

—Mesmo assim, — interveio Imona em sua própria defesa, um pouco a contra vontade, - é uma habilidade valiosa que tenho. Kat, talvez na próxima feira consiga atrair algumas aprendizes... Pagariam...

—Pagariam... Pagariam... Fala de pagamento... E quando pagará você a esta casa? Todo o gado que enviamos a seu pai por ti... E nunca pudeste conceber um filho varão. Duas meninas choronas... É tudo o que conseguiu Leão quando foi ajudar esse teu irmão contrário os romanos...

Kat gritou quando Leão, que sequer tinha parecido estar escutando, golpeou-lhe fortemente o rosto, com o dorso de sua única mão... À esquerda.

Leão ficou em pé diante de sua irmã por um momento, e depois, tranqüila e maliciosamente, cuspiu sobre seu corpo estendido. Logo se voltou e saiu da choça, para se perder no anoitecer.

Horrorizada, Imona correu para uma jarra e molhou um trapo limpo. Kat se levantou, chorando, e afastou Imona quando a mulher loira tentou aplicar o tecido em seu nariz sangrante.

—Você! – Ela choramingou. – É tudo culpa sua. Ele não teria perdido a mão se não tivesse casado contigo e ido ajudar esse inútil de seu irmão. — Kat se voltou para seu marido. - Você não é um homem. Nem sequer defende sua esposa...

—Cale-se. - Falou Imona, apertando o trapo contra o nariz de sua cunhada.

—Por tudo o que é sagrado, Kat! — Gritou Dê. - Não vejo que isto seja culpa de alguém. Imona não cortou a mão de Leão. César o fez, e ninguém empurrou Leão com uma lança para lhe obrigar a se unir a revolta. Ele fez isso voluntariamente, esperando ganhar glória e botas de cano longo. Bom, pois não conseguiu. E quanto às crianças, ninguém pode predizer como rolarão os jogo de dados. Pelo que posso ver, estamos fazendo tudo o que podemos e seus gritos e espetadas só pioram as coisas.

Imona jogou para trás a cabeça de Kat para deter a hemorragia.

O lobo se afastou da parede da cabana. Bem, os lobos também têm suas disputas, pensou, mas não são tão amargas e nem tão duradouras.

Ele observou Leão vagando através dos campos que rodeavam a casa, e logo entre as árvores. O escuro bosque não era seguro, não para lobos da alcatéia de Maeniel, mas porque também era a morada de ursos, linces e os mais perigosos de todos, javalis selvagens. Com a cabeça alta e as orelhas erguidas, o lobo cinza contemplou como ele se afastava. Deveria ter mais cuidado, mas ninguém o incomodará, ele pensou. Ele leva consigo o aroma da tumba. Eu não o atacaria. Por que outro atacaria?

Ao longe, a alcatéia se levantou, iniciando sua canção noturna. Um prateado resplendor lunar coroou os picos cobertos de neve. As vozes lhe chamavam ao dever. Ele sentiu uma estranha emoção, tão estranha que lhe custou um momento identificá-la e se dar conta que era piedade. Compadecia-se de Imona, presa naquela pestilenta casa durante a noite, enquanto ele era livre para vagar prazerosamente à luz da lua e sob as estrelas.

 

Dryas despertou antes do amanhecer, ainda com a sensação de estar sendo observada. Elevou o olhar para as estrelas. Seu povo tinha estudado os céus durante quatro mil anos. Sabia que em alguns momentos o sol seria um resplendor no horizonte oriental. Afastou de um lado a pele de urso, ficou em pé e começou a caminhar ao longo do riacho que atravessava o prado. Ao chegar ao margem, a água caía formando uma pequena cascata até outra concha de granito, alimentando um lago.

Era como se alguém tivesse disposto guardas: framboesas e amoras se misturavam em espinhosa abundância A margem, as largas e retorcidas trepadeiras careciam de folhas, mas mostravam grande abundância de frutos: negros, azuis, vermelhos e do púrpura escuro de um manto imperial.

Ela recordou as palavras da moça. Ninguém as come. Ninguém pode forçar o passo entre as trepadeiras.

Dryas começou a se despir. Primeiro a blusa, logo a saia dividida, o cinto do peito e o tecido de linho branco que protegia seu sexo.

Desceu segurando-se nas pedras que desciam para o lago. A sensação da água tensionou seus músculos e lhe alvoroçou o cabelo, fazendo com que se estendesse por suas costas.

A sensação não foi de frio, mas de calor. A água estava quente. Em algum lugar próximo, um manancial de águas termais devia se misturar com o arroio. Aquilo explicava também os frutos e a abundante vegetação em torno do lago: devia fazer calor tanto no inverno como no verão.

Seus dedos se meteram entre o musgo enquanto descia. Momentos depois ela estava metida na água até os quadris, tomando o café da manhã com os frutas que reluziam como jóias sobre grossas fortificações negras. Surpreendeu-se desfrutando de sua doçura.

A luz aumentou a seu redor, cada vez mais brilhante, até que ela pode ver que as trepadeiras eram só um fino embora perigoso anel interior. Mais à frente, uma arvoredo de fresnos e marmeleiros bordeava a água. A suculenta fruta amarela dos marmeleiros inclinava os ramos ainda verdes por volta do chão e os vermelhos frutas de fresno reluziam como brasas contra o céu azul da manhã. As vegetaçãos aquáticas do lago faziam que o fundo parecesse de sedoso veludo.

A doçura das frutas era tão embriagador como o hidromel. Pareceu-lhe que não poderia se fartar delas, embora as pegasse e comia tão rápido como era possível. Estirou-se para alcançar um galho coberto de frutos tão negros que brilhavam com reflexos azulados. A vegetação sob seus pés era tão escorregadia, como suave.

Em um momento, sua mente foi invadida pela visão de uma mulher com seu cabelo e sua face esmagando o crânio contra o lado rochoso do lago. Seu sangue era uma mancha vermelho na água até que a cascata a levou, deixando o corpo pálido e sangrado para que afundasse no coração azul do lago e desaparecesse em uma pilha de ossos brancos.

O pânico fez com que se firmasse uma grossa trepadeira. Os espinhos morderam sua carne, mas ela agüentou a dor até recuperar o equilíbrio. Deu-se conta de que estava respirando pesadamente... De fato, estava em estertores. Depois de se afiançar sobre a rocha, ela soltou a trepadeira e lavou a mão. Como em sua visão, o sangue formou uma mancha vermelha, para se diluir depois na água cristalina, deixando as feridas dos espinhos, furiosos cortes vermelhos e brancos em sua pele.

A luz já era brilhante além das trepadeiras, os marmeleiros e os fresnos. O bosque se estendia em uma sucessão tronco pálido, com solo atapetado de folhas douradas.

Dryas era bela. Não tinha pensado naquela beleza durante anos. Mas se pudesse pegar o lobo, as suaves superfícies que lhe tinha outorgado a natureza seriam por fim úteis para alguém.

Naquele momento, ela voltou a sentir uns olhos sobre ela. Ergueu-se, retorcendo seu comprido cabelo negro entre as mãos para sair da água. Seus braços elevados fizeram elevar seus pequenos seios, cones perfeitos coroados por mamilos rosa, enquanto seus olhos procuravam discretamente algum indício do espião.

Nada. Nada que ela pudesse ver. A luz era mais forte e a água formava uma pálida e ondulante cortina azul que caía do alto, tecendo um encaixe de espuma no lago.

Por um momento, só por um momento, a água marcou a silhueta de um corpo feminino, como se houvesse uma mulher invisível sob a cascata.

O fôlego de Dryas ficou preso em sua garganta e a ilusão, se de uma ilusão se tratasse, desvaneceu. E ela notou as orelhas sobre uma saliência de rocha perto do alto da cascata. Duas orelhas pontiagudas, erguidas como se seu dono estivesse absorto na observação de algo.

Sim, tinha acudido. Mas Dryas recordou a silhueta feminina que tinha parecido ver. Algo, ela pensou, alguém não quer que eu tenha êxito.

 

Chegaram os romanos...

Ela estava no alto da colina, colhendo linho com uma foice de ferro. Ele se estendeu sobre a barriga, à sombra de um pinheiro quebrado. Era o final do verão e a tosca túnica protegia sua pele humana da vegetação seca.

Imona elevou os feixos de linho, jogando-os sobre rochas expostas ao sol, onde se secariam e ficariam preparados para o enriamiento. Logo ficou em pé, com foice em mão, olhando para baixo. Limpou o suor da testa e sacudiu o cabelo úmido e pregado ao pescoço, as têmporas e a testa.

O lobo viu como mudava seu rosto.

—Não. - Sussurrou ela, deixando cair à foice.

Ele reagiu sem pensar. Ficou em pé em um instante e passou um enorme braço em torno da cintura, lhe cobrindo a boca com o outro para que não pudesse gritar.

Três soldados e um oficial da cavalaria ligeira de César cavalgavam para a granja. O lobo não sabia naquele momento, mas o oficial era vago e descuidado. Os soldados levavam armas, mas tinham deixado seus escudos e couraças. Depois deles ia uma carreta guiada por uma mulher das que seguiam às tropas.

Kat e sua mãe estavam trabalhando no pátio da granja. Os soldados deixaram de lado as mulheres e começaram a roubar o celeiro, enchendo sacos improvisados com os tecidos e roupas que encontraram.

Imona mordeu o braço de Maeniel. Ele a ignorou, mas moveu o braço para trás até lhe colocar a mão sobre a boca. A mulher se debateu, lançando-lhe chutes.

Leão saiu, avançando até o tear de Imona, onde ficou ereto e em silêncio. Dê chegou rapidamente, mas se deteve o chegar junto a sua mulher, sem fazer nenhum intento de se opor aos recém chegados.

Quando os soldados terminaram de carregar o grão, começaram a perseguir os animais, prendendo as galinhas e patos pelas patas e jogando-os na carreta.

Imona deixou de lutar. Maeniel lhe tirou a mão da boca.

—Cale-se. – Ele lhe disse. – Ou a deixarei sem sentido. Não pode fazer nada por eles. Se correr para lá, só conseguirá se colocar em perigo.

Um dos soldados se aproximou do chiqueiro. Uma porca estava amamentando seus leitões. O soldado saltou a paliçada e pegou dois deles, retrocedendo enquanto a porca ficava em pé para proteger seus filhos.

Os romanos riram ao ver o soldado, com um leitão sob cada braço, saindo do chiqueiro, com a porca atrás de si. Mas as risadas se converteram em exclamações de assombro quando a cerda investiu contra a paliçada, estilhaçando-a. O soldado apertou o passo. A porca era realmente perigosa.

Os outros dois soldados se desdobraram para os lados, com suas lanças preparadas.

O primeiro falhou seu ataque. O segundo correu para a porca, mas o animal era muito rápido para ele e a lança escorregou inofensiva sobre suas costelas.

O oficial, ainda montado, lançou um selvagem juramento e saltou no chão.

Naquele momento, o soldado que levava os leitões olhou para trás, o que o fez tropeçar e cair. Os leitões soltaram chiados quase humanos de medo e dor, ao sair voando.

A porca era uma maligna fera enorme, com um focinho grande e espumante cheio de dentes capazes de infligir uma ferida fatal em questão de segundos.

O oficial ficou entre a porca e o soldado. Levava um pilum, a lança de batalha romana, com uma ponta de três pés de aço unida a uma haste de madeira.

A lança se enterrou no peito do animal. O oficial teve que se ajoelhar por causa do impacto, mas se manteve firme enquanto a porca seguia avançando, empalando-se, até chegar à haste de madeira. Ali se deteve. Embora o oficial fosse forte, o peso da porca lhe tinha feito retroceder vários metros. O animal estremeceu, soltou uma rajada de sangue pela boca e começou a dobrar as patas.

Maeniel foi o único que viu Leão se mover e não entendeu o porquê. O marido de Imona permaneceu atrás do tear, com o oficial lhe dando as costas. Leão deu um passo para diante, tirou a curta espada romana de sua bainha e em um abrir e fechar de olhos, cravou-a nas costas do oficial.

O mundo ficou paralisado por um instante, uma imagem congelada. Todos fitaram Leão com incrédulo horror. Então o pátio se sumiu no caos.

O oficial gritou. Um grito tão cheio de agonia que arrepiou a pele de Maeniel. O haste da lança caiu de sua mão enquanto ele tentava alcançar o pomo da espada que se sobressaia de seu corpo.

Talvez Imona tenha gritado também, mas se o fez Maeniel nunca chegou a selembrar. Todos os outros sons ficaram afogados pelos gritos procedentes da granja.

O soldado que ainda tinha sua lança, atravessou com ela o corpo de Leão. Dê tentou defender sua esposa e sua sogra:

—Corram! — Ele gritou, empurrando-as.

O soldado que tinha jogado sua lança estava ainda com sua espada, que saiu de sua bainha em um instante. Dê era um granjeiro, não um soldado. Tudo o que tinha era uma picareta que tinha estado usando para arrancar as ervas daninhas. A espada do soldado arrancou-a de sua mão a ferramenta, feriu o braço que a elevava e cravou em seu peito, abrindo passo entre as costelas e perfurando seu pulmão. Dê caiu com as mãos sobre o ferimento do peito enquanto seu coração esvaziava o corpo de seu sangue.

A anciã tentou correr, mas caiu a poucos passos. Kat podia correr, e o fez, mas na direção equivocada. Em vez de correr para a ladeira da colina e se esconder entre as árvores, fugiu para campo aberto, perseguida por dois dos soldados.

A mulher que acompanhava os soldados e guiava a carreta desceu de um salto, correndo para a mãe de Kat, que tentava se levantar. A mulher lhe rompeu a cabeça com uma pedra e depois ajudou ao outro soldado a crucificar Leão sobre a árvore da entrada, cuja sombra estava o tear de Imona. Ele ainda estava vivo e se debateu lançando chutes enquanto o soldado sujeitava seu corpo e a mulher lhe atravessava as mãos com duas facas que tinha tirado da granja. A lança perfurava ainda seu corpo, e a parte dianteira de sua túnica estava molhada em sangue.

Os outros dois soldados voltaram, arrastando Kat por um braço.

Maeniel não sabia com certeza se o oficial romano estava inconsciente ou morto. Embora não reagiu quando a mulher arrancou a espada de seu corpo. Ela tirou uma faca para cortar tiras da túnica de linho do homem e começou a lhe enfaixar. O lobo decidiu que ele não podia estar morto.

Quando começaram ouvir gritos dentro da casa, a mulher elevou o olhar com expressão de desgosto.

Imona começou a se debater novamente.

—Kat! Meu Deus, Kat! Eles a têm na casa.

—E o que vai fazer? — Sussurrou Maeniel. - Lhes oferecer alguém mais com quem se divertir?

A mulher que acompanhava os soldados se aproximou de uma pequena fogueira que ardia em um canto na entrada. Pegou um galho aceso e começou a aplicá-lo no telhado de palha. Em alguns momentos, o fogo começou a se estender.

Os frenéticos gritos de Kat se interromperam e os soldados saíram da casa apressadamente, tossindo e com os olhos irritados pela fumaça.

—Pedaço de merda! - Gritou um deles a mulher. - Ainda não acabamos com ela.

—Irmão de porco e pai de cão, isso é você – Respondeu ela. - Meu amo só está ferido: se Lucius morrer aqui, será sua culpa. Juro! Farei com que o açoitem se ele morrer, porque quero ver se são capazes de foder essa porca até matá-la. Subam na carreta, agora! Há físicos no acampamento!

Os três soldados permaneceram indecisos na porta da casa.

Maeniel ficou em pé e começou a correr colina abaixo. O sol do meio-dia lhe queimava-çhe o rosto e os braços. Só contava com o pobre amparo de sua túnica esfarrapada. Seguiu, desdenhando as espetadas dos espinhos e os arbustos e a pedras cravando nas plantas de seus pés.

Quando chegou a granja, os soldados estavam carregando o oficial na carreta. O sangue do homem se filtrava pelos sacos de grão.

Tentando tranqüilizar seus nervosos cavalos, os soldados dirigiram um olhar apreensivo a Maeniel quando ele saltou de entre os arbustos, gritando. A mulher do carro golpeou os cavalos que puxavam a carreta. Um dos romanos fez ameaça de retroceder e enfrentar Maeniel, mas a mulher gritou, lhe amaldiçoando tão rudemente que o soldado se voltou para seguir a carreta em seu caminho para o vale.

O fogo se estendeu por toda a casa. O telhado estava ardendo e as chamas começavam a se estender para as paredes.

Kat jazia nua no centro da casa, com o corpo ensangüentado. Feixes de palha ardendo caíam a seu redor. As vigas de madeira que suportavam o teto estavam em chamas.

Maeniel teve o tempo justo de levantar a mulher e tirá-la dali enquanto o teto começava a ceder. Saiu no mesmo momento em que uma das paredes vinha abaixo e o telhado caía no chão como um palheiro em chamas.

Imona o tinha seguido até a granja e se ajoelhou junto a sua cunhada.

Maeniel olhou ao seu redor. Kat estava sangrando, inconsciente e maltratada, mas seguia respirando. Os outros estavam além de toda ajuda.

Dê jazia sobre um flanco, com o peito e o braço ferido sob seu corpo. Tinha um aspecto extranhamente tranqüilo. Se não fosse por sua palidez, poderia pensar que estivesse dormindo.

A cabeça da anciã era uma massa de sangue e miolos. As moscas se apinhavam sob calor do meio-dia, enchendo o ar com seu furioso zumbido.

Leão conservava sua expressão indiferente no rosto. Tinha a cabeça caída sobre o ombro, com os olhos abertos. O que fosse que tinha encontrado na morte e na vingança, não parecia ter lhe alterado.

Imona soluçava, embalando a cabeça de Kat em seu colo. Maeniel permaneceu em pé, escutando os sons dos romanos, em sua retirada para a fortaleza do vale.

Imona levantou o olhar para Leão e começou a lhe amaldiçoar incoerentemente.

Uma ligeira brisa refrescou a pele de Maeniel. A tília no qual haviam crucificado Leão estava em flor. O forte aroma quase conseguia ocultar o mau cheiro de sangue e fogo do ar. O tear, derrubado em algum momento da luta, jazia aos pés da árvore... E o sangue de Leão gotejava sobre o mais belo tecido de sua esposa.

Imona gritou, levantando-se de um salto. Kat seguia inconsciente sobre o chão da entrada.

—Estão partindo! — Ela gritou.

O corpo de Maeniel se enrijeceu, pela surpresa.

Imona correu para ele, lhe segurando pelos braços, e começou a sacudi-lo.

—Tem que apanhá-los. Pegá-los e acabar com eles. Se voltarem para acampamento romano e contarem o que aconteceu, destruirão a todos. — Ela arranhou as bochechas, lamentando-se horrivelmente. - Seja o que for, homem ou fera, vá e mate-os.

Maeniel se separou dela, horrorizado por sua histeria e sua ferocidade.

Imona se abaixou para pegar uma pedra da fogueira. A pedra voou para o rosto de Maeniel, lhe abrindo um corte no rosto.

Ainda atônito, ele levou os dedos ao ferimento, comprovando que Imona lhe tinha tirado sangue. Outra pedra lhe acertou a testa e uma terceira nas costelas.

Ele se voltou e correu, seguindo a rota que haviam tomado os romanos em sua retirada. Não teve que correr durante muito tempo. Um soldado ficou para trás, para cobrir a fuga de seus companheiros. Como lobo, Maeniel era perigoso, mas como homem resultava mais torpe que um pato. O caminho tinha um escarpado de um lado e um terreno baixo rochoso do outro.

O pilum do romano golpeou Maeniel no esterno, deslizando por suas costelas e sem lhe ferir nos pulmões. Maeniel cambaleou para trás, até cair rolando pelo terreno baixo. Ficou imóvel no chão, de barriga para baixo.

O soldado não se incomodou em aproximar dele para assegurar de sua morte. Seria muito fácil que seu cavalo se rompesse uma pata, pensou. Além disso, um homem que teria sofrido tal queda não daria mais problemas em nenhum caso. Ele esporeou ao cavalo para se reunir com seus companheiros.

 

                                                     Capítulo 3

Dryas ouviu as vozes antes de chegar a cabana de Mir.

—Sabe que está viva e a quer de volta!

—Bom Deus! — A segunda voz era a de Mir. - É que não compreende em que condições está? Não tem feito o bastante...

Dryas viu que um arbusto se agitava a poucos metros de distância. Moveu a mão para o punho de sua espada, mas ao olhar mais de perto compreendeu que a moça casada com Mir estava escondida atrás dele. A luz do sol que se filtrava entre as árvores iluminava seus ombros e seu rosto. Ela se deu conta de que estava chorando em silêncio, pois as lágrimas corriam por seu rosto e seus olhos estavam desmesuradamente abertos.

—Lhe diga que está morta! — Gritou Mir.

—Não me acreditará! Sabe que não é verdade. E agora, onde ela está? Chame-a para que venha. E não me cause mais problemas, velho!

Depois de uns instantes de ruído, Mir saiu da cabana. O homem enorme que o empurrava o segurava pelo pescoço com a mão esquerda enquanto sustentava na direita um gladius, uma a espada romana, contra suas costas.

—Advirto-o...

Mir se voltou e lhe cuspiu no rosto.

O outro golpeou o ancião na cabeça com o pomo de sua espada.

Mir caiu de joelhos, com um rastro de sangue descendo da maçã do rosto até a mandíbula. Parecia aturdido.

Dryas abriu a boca, horrorizada. Ninguém que conhecesse seria capaz de golpear um homem tão velho e venerável como Mir. Até estando furiosa com Blaze, sequer lhe tinha ocorrido a idéia de tocar o ancião. Os antigos membros da ordem de Mir eram capazes de deter guerras simplesmente entrando no campo de batalha para se interpor entre os combatentes, tal era o respeito que inspiravam.

Dryas não tinha visto ninguém empurrar nenhum deles e muito menos que o golpeasse como um escravo desobediente. Mesmo a moça demente parecia surpresa. Ela estalou os dedos para atrair a atenção da garota, que voltou seu rosto banhado em lágrimas para ela.

Fez-lhe sinais de que fugisse.

A garota obedeceu, primeiro escondida como um animal assustado e logo correndo rapidamente para as árvores.

O desconhecido seguia gritando com Mir.

Dryas desembainhou sua espada e investiu para o casal. O homem que ameaçava Mir não se deu conta do perigo até que ela estava quase sobre eles. Quando a viu reagiu de forma assombrosa. Lançou um chiado mais próprio de uma mulher furiosa e ultrajada, que de um homem, e sua espada voou em uma direção enquanto ele corria em outra.

Por mais rápido que fosse Dryas era mais. Por outra parte, o homem se via freado em sua fuga, pelo fato de que enquanto gritava com toda a força de seus pulmões, parava para erguer toga e a túnica de forma que não se sujassem.

Ao chegar ao margem da clareira, o homem olhou para trás e viu Dryas a um passo de distância, com a espada em uma mão e seu manto enrolado em torno da outra.

O homem tinha uma árvore pela frente e fez uma imitação mais que passável de um esquilo aterrorizado. Dryas acreditou notar que ele usava as unhas para alcançar os galhos mais baixos. A partir daí, seguiu subindo como se se tratasse de uma escada.

Por desgraça para ele, em algum momento do passado, uma tempestade havia quebrado a copa da árvore e os galhos mais altos estava a uns seis metros do chão. Então ele deteve sua ascensão e começou a imitar um cão uivando para a lua.

Dryas embainhou sua espada e contemplou o desconhecido. Mir chegou junto a ela um segundo mais tarde, secando o rosto. Estava com um feio corte junto à sobrancelha esquerda, mas seus olhos estavam limpos e sua mão firme. O homem da árvore seguia gritando.

—Firminius! — Gritou Mir. - Cale-se!

—Firminius? — Perguntou Dryas. - É romano?

—Algo assim - Disse o ancião. - Mais ou menos. Um pouco... De vez em quando.

Mir se abaixou para pegar um pedregulho, lançando-o com grande precisão contra a cabeça de Firminius, que emudeceu, na metade de seu uivo.

—Eu disse que se cale!

Firminius guardou silêncio. Olhou bem para Dryas e esteve a ponto de cair da árvore.

—Pelos deuses! É uma mulher! Oh, céus, ela é uma dessas mulheres. Por Zeus, por Apolo, por Minerva, pelas Três Graças e as Nove Musas... Ela é uma dessas mulheres! Mir, você tem que me vender isso em seguida. Agora. Agora mesmo! Causará sensação em Roma. Eles a adorarão. De verdade, elas lutam nuas? Diga-me que lutam nuas. Você lutará nua? Diga-me que sim, por favor. Oh, céus, uma Amazona. Uma autêntica Amazona viva!

Mir gemeu brandamente, apoiando a testa sobre o tronco da árvore.

Firminius ficou em pé sobre o galho e começou a gritar:

—Socorro! Socorro!

Dryas começou a subir atrás dele imediatamente. Não sabia de quem ele estava chamando, sequer se havia alguém que pudesse ouvi-lo, mas não podia correr o risco.

Firminius a viu subir e correu até o final do galho para saltar cegamente, de modo muito similar a um nadador que mergulharia na água. Seu corpo se estrelou sobre os galhos baixos de um pequeno pinheiro, chocou-se logo com uma peireira e derrubou um espinheiro bastante atraente e aterrissou ruidosamente sobre um monte de folhas secas. As folhas se elevaram em meio de uma nuvem de pó e cobriram Firminius ao cair novamente. Ele ficou quieto.

Firminius precisou ser levado até a cabana de Mir. Os dois haviam sentido se aliviados em lhe ouvir gemer.

—É bastante excitável. - Explicou Mir. - Mas não pretendia me fazer mal.

Dryas grunhiu uma resposta que conseguia combinar certo desagrado ante a tarefa de carregar Firminius e cepticismo ante o testemunho de Mir sobre seu bom coração.

No interior da cabana, com Firminius bebendo uma poção de ervas, Mir lhe deixou claras algumas coisas. Não podia vender Dryas pela simples razão de que não era seu dono. Por outra parte, sua esposa não podia ser enviada a Roma. Estava muito doente.

—Digo-te que esse homem me aterroriza. Me ateroriza por completo. - Gemeu Firminius. - Me aterra inclusive quando está a milhares e milhares de milhas de distância, pulando com essa zorra bruxa ptolomea da Cleopatra. E ali é onde ele está agora. Pelo menos é onde acredito que está. E me acreditem, queridos, ela não deixará que um amante como César se escorra por entre seus dedos de ouro. Podem estar seguros. Claro que estão nisso dia e noite…, Nas flores, no leito, nos divãs… Nos banheiros! Em todas partes! Simplesmente em todas as partes!

Dryas pensou que Firminius parecia um tanto invejoso.

O romano ergueu sua tigela de barro para Mir, para que ele voltasse a enchê-la.

—O que leva isto? Não... Não me diga isso. De todas as formas, não entenderia. Seguro que só conseguiria me assustar e rechaçar o resto. É delicioso e relaxante e minha dor de cabeça desapareceu quase de tudo. Não posso lhe agradecer isso o bastante.

Mir voltou a encher o tigela.

Dryas começava a acreditar que havia sido transferido a dor de cabeça de Firminius.

—Agora me diga outra vez, Firminius. De quem estamos falando? — Perguntou Mir.

—De César, é obvio – Respondeu Firminius, piscando umas quantas vezes. Os olhos dele estavam um pouco frágeis.

— Por que quer minha esposa?

—Oh! Eu não disse?

—Não.

—Bom, ela é aparentada com esse horrível e peludo sujeito. O da Britania. Cunov... Ou algo assim. Pensa que...

—Quem pensa? — Inquiriu Mir.

—César, claro. Pensa que quando voltar do este terá que fazer algo com a Britania... Já sabe, conquistá-la.

—Não - Disse Dryas enquanto caminhava de um lado a outro pela cabana. - Não, não posso deixar que aconteça. César já esteve na Britania, e não pode imaginar a devastação que deixou a seu passo.

—Oh, não posso? — Replicou Mir amargamente.

—Deve morrer! — Exclamou Dryas.

Estavam sozinhos. Firminius tinha partido em um liteira de corda uns momentos antes. A poção de Mir tivera um completo êxito.

—Querida, querida... — Sussurrou brandamente o ancião. - Se consegue imaginar uma forma de conseguir isso, estarei muito agradecido. Mas até agora não consegui idear nenhum plano que assegure sua queda. Como diz Firminius, ele está muito longe e é muito poderoso. Nós estamos aqui e somos muito fracos. Mate o caçador da noite por mim e logo vá para casa e avise sua gente. Não podemos fazer mais nada.

Dryas ficou quieta, olhando para fora, através da porta. Talvez houvesse uma forma.

—O que acontecerá com Firminius?

—Nada. - Disse Mir. - Dormirá quatro ou cinco horas e depois despertará e provavelmente desfrutará de um estupendo jantar servido por seus escravos. Quanto a minha esposa, não fará nada. Preso entre a bigorna e o martelo, já encontrará uma forma de enganar o martelo. Mas ele se mostrou surpreendentemente sincero em seu interesse por ti. Tome cuidado. Não vai querer terminar sua carreira no mercador de escravos de Roma. Venderiam-na como gladiadora. Alguns pagariam muito dinheiro por uma novidade assim. Eles adoram as novidades. E você não sobreviveria muito tempo, mas bem pouco.

 

O lobo homem passou várias horas estendido no terreno lá embaixo, entrando e saindo da consciência. O sol no alto do céu mantinha o lobo à raia. Ele lutava para despertar de tudo e mudar, acossado pelo temor de que o soldado voltasse para lhe matar.

Enquanto dormia, ele sonhou. Estava estendido em uma praia e uma enorme onda se abatia sobre ele. Pareceu deter no alto e logo caiu, rodeand-o de espuma, lhe arrastando para o mar. Era homem, flutuando sem fôlego na água verde jade, logo lobo, com a pelagem molhada... Afogando-se, com os olhos muito abertos, as mandíbulas mordendo desesperadamente o ar e a luz sobre ele.

A segunda onda o elevou, lhe permitindo respirar. A terceira o fez cair sobre a praia, em um desarrumado monte de pelos.

Entrou em um sonho mais profundo para se encontrar vagando pelas montanhas. No alto, duas tormentas, uma procedente do norte e a outra do oeste, uniram-se sobre um vale verde. Da alta rocha sobre a qual se encontrava, o lobo podia vê-las, como uma procissão de sombrios sacerdotes vestidos de cinza, movendo-se acima dos vales, com as cristas coroadas com árvores retorcidas e as altas cúpulas cobertas de gelo e neve.

As duas tormentas formavam uma V, com a base no vale e a parte superior alinhada com as brancas nuvens que pareciam montanhas de ar e luz, de uma pureza de alabastro que nenhuma montanha terrestre poderia alcançar jamais. Ao longe, entre os espirais da tormenta os pássaros vagavam pela clareira céu azul.

De repente, Maeniel sentiu que a consciência de si mesmo, o pensamento e o conhecimento se contraíam em algo tão fino e tênue, que podia passar pelo buraco de uma agulha ou moldar-se em um cristal sempre mutante, com suas facetas resplandecendo ao sol.

Possuía asas e era uma águia. Com as asas desdobradas, ele voava em círculos, sulcando as riachos, acima no céu tormentoso.

O seu eu desvaneceu, igual seu pensamento. Uma interminável alegria encheu sua mente e ele entrou em uma beleza tão velha como o mundo. Uma simplicidade pura, a existência era todo o requerido em um mundo sem fim. Que assim fosse.

As lembranças do lobo eram antigas, mas os da águia eram muito mais. Sobrevoou crédulo em um mundo no qual coníferas de troncos dez vezes mais grossos e três vezes mais altos que a maior árvore que teria visto algum pássaro dominava os penhascos, soltando raízes que partiam a pedra e sujeitavam os troncos como garras gigantes. Estavam curiosamente nus, com pequenas abacaxis e milhares de pequenas folhas como penugem. Guardavam seu lugar sobre úmidos desfiladeiros sem flores e vales oprimidos por um verde resplendor nos quais lutavam os monstros, rugindo sob um dossel de samambaias.

Maeniel sentiu novamente o estranho medo e se afastou, ao parecer a imortal consciência que era muito, muito mais velho que o mundo.

Despertou quando as sombras se acumulavam no terreno. Seguia sendo um homem, mas à medida que a consciência se estendia por seu cérebro, a forma de lobo lhe cobriu como um grosso manto.

Ergueu-se sobre pernas trêmulas. Uma considerável quantidade de seu próprio sangue tinha ficado sobre as rochas, mas descobriu que o lobo estava ileso.

Subiu de volta ao caminho com facilidade. Durante o dia, o verão se aferrava as montanhas, mas ao cair à noite a temperatura baixava e um penetrante frio flutuava no ar.

Embora o sol houvesse desaparecido, o céu continuava brilhando. Uma profunda confusão alterou o lobo. Sentiu, não, ele soube que tinha sido arrastado para aqueles loucos assuntos humanos, mais profundamente do que teria querido.

Correu de volta a granja: à medida que o céu escurecia, a lua parecia se tornar mais brilhante. Era a única luz que restava quando alcançou as estruturas consumidas pelo fogo.

Uma tênue coluna de fumaça se elevava DAS brasas ainda resplandecentes. Os campos de grão se agitavam e sussurravam ao vento da noite. Não haviam queimado, talvez não fossem combustíveis ainda, já que ainda não estavam amadurecidos e preparados para a colheita.

Imona e Kat, as sobreviventes haviam partido. Seu olfato lhe disse que Kat estava ferida, mas viva, quando a levaram. Uma aglomeração de distintos aromas lhe revelou que outros haviam chegado para prestar ajuda depois que ele se fora. As ruínas tinham sido registradas e algo útil que pudesse ser resgatado havia desaparecido.

Só restava uma vítima. Leão, preso à árvore com facas. À luz da lua, seus olhos ainda abertos brilhavam com uma feia imitação de vida. Ao observá-lo mais de perto, o lobo notou que as pupilas estavam invadidas pelo véu da morte. O tear e o tecido de Imona jaziam a seus pés.

Ao longe, o lobo ouviu a chamada noturna de sua alcatéia. Estavam famintos. Umas poucas noites atrás haviam matado um alce e embora o festim tivesse sido abundante, só restava um crânio roído, alguns poucos ossos e restos de pele. A fome dos lobos voltava a se fazer ouvir.

Maeniel permaneceu em silêncio enquanto a chamada alcançava um tom mais alto, cada lobo acrescentando seu próprio uivo, uma ultraterrena identificação à mensagem que cruzava o frio ar.

Ouviu em silêncio. Os campos de trigo abandonados sussurravam sua vã mensagem de uma frutífera colheita... Uma colheita que ninguém poderia recolher. Nas boscosas colinas, o bulbos chamavam uns aos outros. Os últimos rescaldos da casa queimada brilhavam na noite antes de morrer. A árvore suportava sua fruta de carniça. Os pés estavam a pouca distância do chão. Por que desperdiçar aquilo?

Ele elevou o focinho para uivar para o céu prateado pela lua.

 

                                                   Capítulo 4

Imona tinha sido consciente de seu destino quando ouviu os gritos de Kat. A forma em que estava sendo tratada o deixava tudo claro. O resgate se pudesse dizer assim chegou poucos momentos depois de que os romanos desaparecessem pelo caminho.

Alertados pela fumaça, os vizinhos correram para ajudar no possível. Quando descobriram o ocorrido, ficaram presos no pânico. A guarnição romana estaria encantada em se vingar rudemente. Amaldiçoaram Leão, cuspiram sobre seu corpo e o deixaram onde estava.

Estavam discutindo sobre a conveniência de matar Kat e Imona quando chegou Mir. O ancião colocou um pouco de calma no processo. Fez com que os vivos e os mortos fossem transladados a praça forte não romana mais próxima, e enviou mensagens em todas as direções.

Os romanos da guarnição do vale demoraram dois dias para saber do ocorrido. Quando começaram a partir, queimaram todas as granjas e mataram toda a gente de Mir que puderam pegar. Por sorte, Mir não era nenhum néscio e tinha preparado os seu para o ataque. A maioria escapou para os bosques. Naqueles lugares onde a última colheita do verão pôde ser recolhida. Em outros, os aldeãos ocultaram reservas de comida em lugars ocultos dos romanos.

Quando começaram a cair as primeiras neves, as cortes romanas tiveram que retroceder, para se preparar para o inverno, uma estação selvagem inclusive na região comparativamente resguardada daquela guarnição.

A tormenta da cólera romana passou e o povo de Mir sobreviveu... Pelo menos em sua maior parte.

Então, Imona já estava segura de seu destino. Kat estava vivendo com a família de seu marido e Imona sabia, por seus carcereiros que ela dormia com o rosto contra a parede e chorava quase todo o tempo. A única vez que Kat visitou sua prisão amaldiçoou-a vigorosamente e tentou lhe arranhar a face. Imona se alegrou quando a levaram.

O Oppidum era bem pequeno. Todos os centros de população grandes e importantes tinham sido devastados durante a conquista de César. Era como todos outros, um forte no alto de uma colina com um pequeno assentamento que acolhia as grandes reuniões que tinham lugar quando a população rural e dispersa se encontrava para fazerseus negócios. Estava situado à margem do poder romano nos Alpes. A população fixa era relativamente pequena. Talvez não estivesse em poder dos romanos, mas havia conseguido invadir o lugar e queimá-lo pelo menos uma vez.

Imona estava confinada no que tinha sido antigamente um abrigo para tecer, que albergava as escravas cativas de outras tribos, que trabalhavam ali. As janelas eram estreitas ranhuras, mas muito numerosas por causa da necessidade de luz dos bichos-tesouras. As paredes quase pareciam barrotes de uma cela. A estadia era como uma prisão, ninguém podia sair. Havia um um orifício no teto deixava sair a fumaça.

Em algum momento de sua viagem ao Oppidum, Imona tinha recebido uma solta túnica de algodão. Mais tarde, durante a noite, alguém lhe tinha dado um grosso manto de lã. Ela havia vestido os objetos e estava junto ao fogo quando Mir entrou pela porta.

Quando entrou o ancião, ela ficou em pé e se aproximou dele. Ele estava vestido com as roupas rituais, uma túnica branca e uma estranha coroa, um círculo de prata decorado com aves douradas. As aves se sobressaíam da coroa, cada uma em suas próprias áreas, de forma que se moviam e pareciam voar a cada giro da cabeça de Mir. Também usava um grande cinto de couro que segurava uma espada em forma de foice. A parte fora da espada reluzia com a formosa pátina verde do bronze velho. Uma procissão de figuras, como uma incrustação de prata, percorria a margem fora. A curva interior da foice estava afiada como uma lâmina.

Na mão direita ele segurava um papel e na esquerda um colar dourado com arremates em forma de cabeça de leão. Sem dizer uma palavra, ele entregou o papel a Imona, que o abriu e começou a ler.

Querida filha, espero que esta carta te encontre bem.

As lágrimas encheram seus olhos quando reconheceu a letra de seu pai.

Querida filha, espero que esta carta te encontre bem.

Uma razão pela qual espero é que as notícias que devo te dar não são boas. Amanhã enfrentaremos César. Já perdemos uma batalha contra ele e temo minha filha, que ele também nos derrotará na próxima. Nossos navios mercantes não são rivais para seus trirremes, mas devemos lutar. É melhor para um homem morrer rapidamente na batalha que ver destruído todos que ama. Não duvido que ele escreva a seus amigos no Senado de Roma dizendo que eu, o rei dos vénetos, não lhe deixei outra opção. É obvio, será mentira. Ofereci-lhe a rendição completa, reféns, tributo e todo o meu ouro, se ele respeitasse meu povo. Ele só nos ofereceu sobreviver como escravos, para o proveito dos ambiciosos comerciantes que o seguem a toda parte.

Ante tais termos de rendição, o conselho tribal votou por lutar. Fizemos o possível por enviar todas as mulheres e crianças que pudemos para Albion, a Ilha Branca do outro lado do mar. Suas irmãs e filhas partiram para lá com nossos aliados. Sua mãe, para minha grande dor, negou-se a partir, dizendo que encontraria o mundo muito vazio sem mim. Mas te envia seu amor e esta lembrança de honra.

Digo-te novamente que temo nossa derrota. Como está acostumado a dizer, sequer o melhor marinheiro pode ter êxito sem o vento e a maré. E agora estão com os romanos. Partimos para a derrota, mas se recorde minha filha, que o vento muda e a maré baixa. Por desgraça, isso não acontecerá em nossa vida. Até sempre e te cuide.

Imona guardou silêncio por um momento. Os dois podiam ouvir os gritos das crianças brincando lá fora Ela dobrou a carta e a guardou entre seus seios.

Mir lhe deu o colar, mas ela não pegou.

—Quanto tempo me ocultou isto, Mir?

—Durante anos. - Admitiu Mir tristemente. - Já faz anos que morreram. Mas ao ver que ainda tinha esperança e uma possibilidade de ser feliz entre nós, acreditei que embora Leão não se recuperasse n poderia viver sua própria vida. E durante muito tempo desfrutou de certa paz e a esperança; embora fosse fraca, teve um papel nisso, não teve?

—Acredito que sim. - Disse ela em tom apagado.

Fora, alguém chamou as crianças que brincavam em um idioma com vozes mais guturais que sibilantes. E Imona se lembrou de onde estava. Expulsa para sempre, inclusive do pobre lugar que tinha ocupado entre a gente de Mir.

Uma voz feminina ordenou severamente às crianças que se afastassem da cela e de sua sombria hóspede ou seriam consumidos pelo poder que espreitava ali dentro.

—Como eles morreram? — Perguntou Imona.

—Ela tomou veneno. Ele usou sua espada, como corresponde a um guerreiro, sacrificando-se para que seu poder se transmitisse aos sobreviventes de seu povo e pudessem atravessar a vida de escravidão que lhes esperava e chegar a um novo amanhecer.

Ela pegou o colar.

—Você se ocupará de que eu receba trigo e aveia para que possa preparar minha comida diária e um fogo para estar quente durante a noite?

—Sim, mas aqui é mais provável que encontre pão de centeio e cerveja de cevada.

—Arrumarei-me. - Sussurrou ela.

—É o último e o melhor que temos. Todas as grandes famílias desapareceram e os deuses nunca enviarão a majestade a um povo desonrado.

Imona colocou o colar em torno do pescoço.

—Se isso é o que teme Mir, farei o quanto puder.

Ela se voltou e caminhou. Quando voltou a olhar para trás, Mir havia partido. Ela soube então que só o veria uma vez mais e que seria a última para os dois. Talvez mesmo o último que veriam seus olhos antes de morrer.

 

Dryas havia voltado a dormir no prado da montanha. O caminho era rápido e singelo para ela. Ao entrar na clareira próxima a cabana de Mir, descobriu que o ancião voltava a ter convidados. Suspirou ao reconhecer Firminius, mas se sentiu aliviada ao notar que ele estava muito mais tranqüilo. Havia outro homem sentado junto a ele, desfrutando da estupenda manhã. Era um jovem alto, loiro e bonito, vestido com roupas de caça. Usava túnica e as meias de um cavaleiro. Dois cavalos pastavam perto de uma árvore. A esbelta égua cinza de longas patas, com uma sela elaboradamente acolchoada pertencia obviamente a Firminius. O outro cavalo, negro e robusto, de grandes ossos e com uma sela de couro, devia ser do caçador.

E a caça havia sido proveitosa. Meia dúzia de lebres estava em uma um galho de uma árvore, junto a um veado ainda novo. Todos os animais tinham sido expertamente esfolados e despojados de suas vísceras.

Mir e seus dois visitantes falavam em voz baixa quando Dryas se aproximou silenciosamente.

O caçador foi o primeiro a vê-la. Dryas sentiu que seu olhar se cravava nela antes que o jovem desse o menor sinal de ter notado sua presença.

Letal, pensou Dryas. Havia uma mente muito aguda sob aquela cascata de cabelo dourado. Também tomou nota da meia dúzia de leves dardos presos a sela do cavalo negro.

Então Firminius a viu.

—Oh! — Gritou ele em tom agudo. - Aí está. É ela.

O caçador assentiu.

—Sei. Pensei que seria ao notar como ela andava entre as árvores

—Fulvia! – Disse Firminius, dando uma cotovelada em seu companheiro. - Tem a vista mais aguda que a maioria dos homens. Ah, que soldado teria sido.

Fulvia! Pensou Dryas. Uma mulher! Sua imagem mental de um jovem se rabiscou como a água mansa agitada pela brisa. Sim, uma mulher. O suave contorno dos seios, os quadris muito largos e a suave pele de seu rosto revelavam que era uma mulher. Então, somos todos criaturas da ilusão, ela pensou.

A caçadora era bela, de cintura esbelta, costas eretas, seios pesados e tez de pêssego. Também era a mulher mais alta que Dryas já havia visto. Embora não lhe sobrasse nada de carne, não teria mais que setenta e cinco quilos. Dryas não era pequena, mas aquela mulher era bem mais alta.

Mir, Firminius e Fulvia estavam reunidos em torno de uma baixa mesa de metal quase perdida na vegetação. Fulvia se aproximou de Dryas e lhe tocou o ombro.

—Perseguiu Firminius até uma árvore, não? —riu.

—Não considero uma grande vitória. - Replicou Dryas. - Normalmente não sou tão agressiva, mas ele não devia ter ameaçado Mir.

Os dedos do ancião acariciaram o machucado de sua têmpora.

—Uma Amazona. – Disse a caçadora. - ele me prometeu uma Amazona de verdade. Mas não sabemos quão boa é, certo? — Ela perguntou enquanto se voltava para Mir. - Apostaria, e bastante forte, que qualquer gladiador de Roma a faria cair de traseiro do chão ou de costas, no estalar dos dedos.

Fulvia acompanhou suas palavras com um gesto dos dedos.

Dryas sorriu. Sabia que se tratava de uma isca.

—Talvez. – Disse ela enquanto arqueava uma sobrancelha e seus lábios se curvavam em um sorriso. - Mas isso dependeria do resto que tivesse. Além de uma espada, quero dizer. O combate até a morte não é a única modalidade. Nem sequer é o esporte de contato que oferece maior diversão.

Fulvia riu estrondosamente.

Firminius parecia ultrajado.

—Estupendo, mas não espere de mim que a domestique. É certo que seria uma novidade, mas quanto duraria? Não pode me dizer que essa mulher, que não é muito grande, vá ser um desafio para os esplêndidos assassinos que Roma tem. Além disso, o lanista ficará louco se eu aparecer com uma mulher. Completamente louco.

—Fará o que eu lhe digo – Respondeu Fulvia. - Nem mais nem menos. Eu gostaria de ver se tem possibilidades.

Dryas inclinou a cabeça educadamente. Pelos deuses, que arrogantes eram. É como se acreditassem que o mundo existisse para seu deleite e que deviamos estar agradecidos por nos deixar satisfazer seus desejos.

Fulvia se aproximou de seu cavalo e pegou dois dardos.

—Posso arrojar uma lança mais longe que muitos homens. Vejamos como faz você. — Ela sopesou um dos dardos em sua mão direita. - Vê aquele abedul ali? — Ela perguntou assinalando uma esbelta árvore perto da margem da clareira. Sua casca brilhava cinza e prata sob o sol da manhã.

A árvore estava a quase trinta metros de distância. A lança voou até cravar em seu tronco. O abedul estremeceu, soltando uma chuva de folhas verdes e pardas sobre a vegetação.

Dryas equilibrou a lança, abrindo sua palma e comprovando o peso. A ponta caiu apenas umas polegadas. Uma arma esplêndida, ela pensou.

Fulvia a contemplava com olho crítico.

A mente de Dryas se centrou no dardo que seguia cravado no tronco. Seus pés se separaram enquanto ela adotava a postura adequada. Sua mão se moveu pela haste, procurando o ponto de equilíbrio. Quando sentiu que o havia encontrado, deixou que a arma voasse.

O dardo descreveu um arco mais pronunciado que o de Fulvia. Ao baixar, sua cabeça em forma de folha cravou profundamente no tronco, um pouco por cima da primeira lança.

—Impressionante! — Exclamou Fulvia. - Eu adoraria caçar contigo. Sua lança cravou mais que a minha. Se fosse um alce ou um cervo, já estaria agonizando. Mas agora devo ver sua habilidade com as espadas.

—Só se forem de madeira - Disse Dryas, desatando sua espada enquanto falava.

—Mir, – disse Fulvia em tom autoritário, - você tem espadas de madeira?

Mir se levantou e entrou na cabana.

Fulvia, pensou Dryas, é completamente indiferente à dor alheia. Sua auto-suficiência é tal que a crueldade é um ato reflitivo.

Mir saiu novamente com uma meia dúzia de espadas de madeira, que deixou cair sobre a mesa.

Fulvia escolheu uma arma curta e larga, de forma muito parecida com o gladio hispano usado pelos legionários.

Dryas estudou as demais espadas e no final se decidiu por outra mais longa.

Fulvia começou a passar à espada de uma mão a outra.

Ela vai tentar algum truque que acha inteligente, penrou Dryas. Decidiu se concentrar em evitar os acidentes. Retrocedeu, afastando-se dos dois homens sentados à mesa e se encontrou em terreno baixo. Estava na área descia para o arroio. Fulvia foi atrás dela e Dryas sentiu um toque de medo. Estava segura de que a mulher queria lhe fazer mal, embora não soubesse o porquê. Agressividade natural? Desejos de humilhar Firminius, que havia elogiado sua habilidade? Ou simplesmente a pura e fria necessidade de dominar, que Dryas tinha visto em tantos homens e mulheres?

Sofrer um ferimento era uma possibilidade muito real. Embora as espadas fossem de madeira, podiam servir como paus: um golpe dado por um braço tão poderoso como o de Fulvia podia infligir uma dolorosa lesão ou mesmo romper um osso. Dryas sentiu que devia colocar um rápido fim a tudo aquilo.

Fulvia lançou a espada no ar por cima de sua cabeça. A arma começou a cair, girando e a pegou entrechocando as mãos.

—Que mão, pequena caçadora? — Ela gritou. - Esquerda ou direita?

Dryas segurou bem sua espada de madeira. Sim, é aproximadamente do mesmo tamanho e peso que a espada leve que uso, ela pensou.

Fulvia pegou a espada com a mão esquerda e quase no mesmo instante, lançou um golpe contra o braço esquerdo de Dryas.

Foi uma formosa manobra, que teria conseguido acabar com um oponente inferior, pensou Dryas. Mas enquanto formava aquele apreciativo pensamento, contra-atacou, deixando-se cair sobre um joelho, de forma que a espada passasse inofensiva acima de sua cabeça. Em seguida golpeou para cima. Forte, mas não muito. Embora Fulvia não se preocupasse com ferimentos que podia causar, ela sim.

A ponta da espada acertou Fulvia no abdômen, de um lado das costelas. O ar saiu do corpo dela com um audível suspiro. O giro de Fulvia fazia com que a espada de Dryas se cravasse em seu abdômen com mais força que pretendia. A mulher caiu no chão, sem fôlego e completamente incapacitada.

O rosto de Mir se manteve inexpressivo, mas os cantos de seus lábios torceram para cima.

Firminius rompeu a rir loucamente. Estirou o braço com o polegar para baixo, gritando:

— Recebeu o seu. Corte-lhe a garganta, pequena Amazona.

Dryas se perguntou do que ele estaria falando, pois não reconheceu a forma em que o povo romano condenava um gladiador derrotado. Baixou sua espada e se afastou, mas sem tirar o olho de Fulvia. Estava muito bem adestrada para se aproximar de um inimigo caído, por mais ligeiramente que tivesse entrado em combate, antes de se assegurar de suas condições físicas e emocionais.

Por algums momentos, tudo o que pôde comunicar Fulvia foi sua dor. Logo, a vergonha, a mortificação e o aborrecimento, mas não a raiva e por fim uma espécie de admiração foi aparecendo em seu rosto.

Dryas se perguntou se teria cometido um engano ao derrotar a mulher romana. Se a tivesse deixado ganhar, Fulvia a teria deixado de lado como um ser sem importância, mas agora...

A romana ficou em pé algo vacilante. Lançou um olhar venenoso a Firminius, que seguia gargalhando.

—Isso, – ela disse quando conseguiu recuperar o fôlego, - foi um magnífico golpe.

—Obrigada. – Respondeu Dryas, inclinando a cabeça em sinal de respeito. Logo voltou a deixar a espada de madeira na mesa.

—É muito, muito boa.

Dryas voltou a inclinar a cabeça.

—É que passei a vida praticando. Comecei aos seis anos.

—Tão jovem... Assombroso! — Contribuiu Firminius. - Acredito que te equivocava com o ludus, querida. De fato, eu adoraria vê-la ante seu lanista. — Firminus lambeu os lábios com evidente diversão.

Dryas ficou quieta, disposta a fugir. Não tinha idéia de que um ludus fosse simplesmente a escola onde se adestrava os escravos para convertê-los em gladiadores, nem que o lanista era o diretor de tal escola e o instrutor de luta. Só compreendeu a escura advertência nos olhos de Mir.

—Tem algo para escrever? — Perguntou-lhe.

O ancião ficou em pé e voltou dali a um momento com uma tabuleta de cera e um estilo. Dryas escreveu sua lista na tabuleta, devolvendo a Mir. Depois se voltou para seu cavalo, que estava sob as árvores.

—Espere. - Chamou Fulvia. - Não vá, desfrute desta formosa manhã conosco.

—Sinto muito, minha senhora, mas devo partir. Tenho assuntos a resolver.

Dryas saiu a trote da granja de Mir, afastando-se pelo caminho.

Fulvia esfregou o flanco, rilhando os dentes e em voz baixa, enviou Dryas a reunir com as Fúrias.

—Dryas é perigosa. - Disse Mir.

A mulher assentiu e o ancião viu a luxúria brilhando em seus olhos.

 

 

O lobo se agitou no interior da caverna. Fora, o sol estava alto. Havia passado a manhã dormindo. As nuvens se amontoavam sobre o passo. O lobo elevou a cabeça, ligeiramente confuso ao cheirar a chuva no vento, da mesma forma que a primeira vez que tomou a mulher perto dos restos da avalanche. Elevou a cabeça, farejando, convencido de que ela estava fora da caverna, mas então compreendeu que o aroma procedia dos farrapos de um velho manto que Imona havia deixado tempo atrás junto à entrada. O vento o agitara, levando seu aroma.

Como lobo, ele deu umas rápidas voltas sem se mover do lugar e voltou a dormir. Havia passado a noite procurando-a, seguindo o rastro de quem a tinha levado, através das montanhas e para um território desconhecido para ele. Só havia se detido para se alimentar de uns patos descuidados, que surpreendeu dormindo à beira de um lago. Devorou o primeiro tão rapidamente que ele não chegou a despertar. O segundo só pôde abrir os olhos e começar a desdobrar suas asas antes que ele lhe rompesse o pescoço.

O resto do bando se agitou em um tumulto de asas e chamadas de alarme, em uma daquelas situações nas quais a capacidade de um lobo para comer rapidamente era um fator de salvação. Havia matado no território de outra alcatéia e sabia que a conduta dos patos sobreviventes alertaria os outros lobos de sua presença. Mas engoliu sua comida e seguiu a marcha com tanta presteza que os lobos só encontraram rastros quando chegaram para investigar as causas do alarme noturno dos patos. Já havia atravessado o vale quando a lua desceu e chegado a um escuro e espesso bosque quando os uivos de sua própria alcatéia o chamaram para casa.

Ele despertou com o ruído de um trovão. Uma baforada de vento entrou na caverna, formando um pequeno redemoinho sobre o pó do solo. O vento era frio e o lobo compreendeu que o enganosamente agradável clima do outono estava terminando.

Sentiu a tentação de se agasalhar com o manto de Imona, mas o impediu uma detestável dor no fundo de seu coração. Então se retirou para o fundo da caverna, enroscando-se novamente em um oco bem resguardado. Colocou a espessa cauda sobre o focinho e dormiu novamente.

Ele soubera quando voltou com sua alcatéia, que nunca a encontraria. Pela primeira vez em sua vida, havia sentido uma guerra em sua própria alma enquanto lutava com idéias e conceitos que o cérebro de um lobo não estava preparado para compreender.

Já tinha quebrantado um antigo tabu chamando à alcatéia para que se alimentasse de restos humanos. Não que não houvesse lobos que o fizessem, eles e as aves de rapina eram habituais cariniceiros dos campos de batalha desde o começo dos tempos, mas não as alcatéias poderosas e independentes como a sua. Deixavam aquela conduta aos devoradores de lixo que rondavam perto das moradas humanas e dependiam pela metade de seus refugos... O ocasional cadáver não enterrado ou os proscritos doentes e despreparados que podiam ser mortos impunemente.

Sua espécie estava acostumada topar com a agressão humana quando enfrentava jovens guerreiros desejosos de provar sua dignidade em combate singular com o lobo mais forte que pudessem encontrar. Às vezes os humanos ganhavam e se afastavam do campo de batalha levando uma pele de lobo, com a cara e a mandíbula superior como capuz na cabeça, com as patas dianteiras sobre os ombros. Em outras ocasiões eram os lobos que se afastavam, às vezes lambendo as feridas e outras não.

Ele e seus camaradas conheciam os humanos desde muito tempo atrás, quando ambas as espécies caçavam juntas Através das planícies glaciais, o verão era uma estação muito breve e o inverno uma dura ordalía de dez meses. O povo do fogo caçava suas presas com lanças de madeira, com pontas de facas de pedra. Caçavam em grupos como os lobos e todas as demais criaturas, inclusive o urso gigante, temiam-nos.

Sua espécie os enfrentou em incontáveis ocasios, bandos nômades de humanos armados com pedras e dardos. Os humanos eram desumanos com todas as criaturas, inclusive entre eles.

Um macho que não fosse o bastante forte para caçar com o resto dos guerreiros morria em sua primeira prova. Uma mulher que não fosse o bastante forte para dar a luz e depois levantar e seguir o bando era abandonada aos numerosos carniceiros oportunistas que rondavam pela tundra. Sim, ele e sua espécie tinham aprendido a temer os humanos muito tempo atrás, como todas as demais criaturas.

Os humanos tinham mudado pouco, após. Tornaram-se mais preparados e preguiçosos, mas sua crueldade era a mesma. Ele sentiu medo por Imona.

A lei da alcatéia dizia que não devia abandonar os seus, mas sua voz interior insistia em que Imona era tão importante para ele como a alcatéia e merecia que ele se preocupasse com ela, tanto como por seus companheiros.

Ele resolveu o problema sendo fiel a ambas as posturas. Já tinha chegado o outono e os animais selvagens desciam das montanhas de forma muito parecida com a dos os pastores levavam seus rebanhos para os vales para passar o inverno.

Incontáveis animais se transladavam. O lobo deu uma breve cabeçada ao voltar com seus companheiros à alvorada. No meio da amanhã estava acordado, com o resto da alcatéia o seguindo irritadamente.

Ele viu sua oportunidade em algum momento avançado da tarde. Os carneiros estavam em plena migração. As pequenas criaturas similares a antílopes das montanhas mais altas e escarpadas caíam muito poucas vezes em poder dos lobos. Eram grandes corredoras, capazes de se mover por superfícies onde só se aninhavam os falcões e os predadores mais ágeis ficavam atrás. Mas ali estava procurando novos pastos, ao sentir chegar o inverno, como seus primos maiores.

Os machos sem companheiras estavam em um grupo afastado das fêmeas e suas crias. Deviam ser uns dez, reunidos sobre uma saliência pronunciada e coberta de arbustos que pareciam brotar diretamente da rocha. Sob eles a neve cobria a instável superfície deixada pelas avalanches do ano anterior. Era uma armadilha mortal, se o lobo tivesse visto alguma, mas se quisesse encontrar Imona teria que alimentar à alcatéia.

Os carneiros estavam tão tranqüilos a respeito de sua segurança, que ignoraram ao lobo quando ele começou a descer. Alguns poucos levantaram as cabeças, estudaram-lhe e voltaram a sua busca de ervas secas e o ocasional broto verde entre os arbustos invernais.

Quando ele saltou, mesmo os outros lobos pensaram que estava louco. Ficaram assombrados por sua perda de sensatez, pois a demência não é algo que costuma afetar os lobos.

Os carneiros correram. Os mais ágeis chegaram a parte mais escarpada da ladeira, mas um bom pouco deles aterrissaram sobre a neve.

Bastante, pensou o lobo.

Aquela saliência não era tão pronunciada como a superior, mas de toda forma estava profundamente inclinada para a ravina que dominava o vale. Se tivesse sido mais avançado o inverno, a neve estaria mais congelada, suportando as patas dos leves animais. Se tivesse sido mais logo, os carneiros teriam conseguido se manter firmes sobre a rocha. Mas era a época justa do ano, para o desastre.

A neve se acumulou sobre uma camada de lama congelada e cedeu, arrastando carneiros, lobos e pedras soltas em um torvelinho branco, enviando a todos pelo ar, sobre a queda de cem metros até o vale.

O terror primitivo para todos, inclusive para os animais, é a queda. Mas também é rápido. O medo apagou todo o traçado de pensamento da mente do lobo e então ele golpeou o solo.

 

                                                 Capítulo 5

Fulvia voltou para sua vila com Firminius, para desfrutar da leve colação que constituía o almoço romano. Comeu em pé, a sombra de uma colunata aberta que marcava a divisão entre os luxuosos aposentos da proprietária de um lado e a granja de outro.

A colunata tinha portas corrediças que podiam ficar fechadas ao longo da margem de fora, isolando aquele mundo privado de riqueza e comodidades, das penalidades e moléstias, mas no momento estavam abertas. Fulvia obsservava seus homens esquartejar o cervo.

Firminius estava sentado com as costas para o poeirento pátio, contemplando o magnífico peristilo, o pátio central da residência da senhora.

—Não entendo como pode olhar isso enquanto come. Feche as portas, rogo-lhe.

Fulvia pegou um cacho de uvas de mesa, de profunda cor púrpura. Estava com os lábios manchados por seu suco.

—Não me incomoda.

—Pode ser que não a incomode, mas arruína por completo meu apetite. - Gemeu Firminius.

—Uma esplêndida presa, irmã minha, mas a razão por que estamos vendo isto me escapa por completo. — Quem tinha falado era um esbelto e pálido jovem que se sentava um pouco afastado, sobre uma cadeira de madeira cheia de almofadas e equipada com varas, para seu transporte. Ele se inclinava retorcidamente sobre as almofadas. Seu rosto e seu corpo estavam a sombra, mas o sol da tarde tocava um de seus pés calçados com sandálias.

—Estou me assegurando de que não danifiquem a carne. - Explicou Fulvia. - E não o farão se souberem o que lhes convém. Esse macho estava em perfeitas condições, pois foi engordado com os frutos do outono. Estou convencida de que ele se fartou de endrinas, amoras e maçãs silvestres. Morreu quase imediatamente. Eu não gosto das caçadas longas, quando quero comer bem. Matei-o só com um dardo, quando ele estava comendo plantas aquáticas. Quero estar segura de que o esfolem e o esquartejam bem e de que a carne fique pendurada em um lugar afastado do calor e da umidade. E, enquanto meu olho estiver sobre eles, sei que farão um bom trabalho.

—Naturalmente. – Disse Firminius enquanto se servia de vinho branco, de uma jarra de cristal. - Provavelmente se valorizam a vida.

—Não sei o que dizer de suas vidas, mas suas peles... Certamente. — Suspirou o jovem, da cadeira.

Os homens do pátio terminaram com sua sangrenta tarefa. O cervo erado um animal bastante grande e eles partiram com as peças de carne sobre os ombros, para a mais próxima das estruturas de teto de palha.

Firminius fez um gesto a um servente, que se aproximou para fechar as grandes portas. A estadia ficou nas sombras. O criado se situou junto a Firminius e lhe falou em voz baixa antes de ir.

Fulvia se sentou em uma cadeira próxima e se serviu de um pouco de vinho e uma fatia de pão com queijo.

—Estou convencida, - ela disse, - de que o queijo do leite das vacas alimentadas nestes altos prados alpinos é superior à carne. Uma comida com este queijo é mais satisfatória que o porco assado O...

Dois homens entraram na casa. Um era o servente vestido de escuro que havia fechado as portas e guiava a outro, um homem menor, pelo braço e com curta corrente presa a um colar de ferro. Deteve-se em frente à Firminius.

—Aqui está. – Ele disse sem mais preâmbulos ou explicações.

—Não parece grande coisa. - Repôs Firminius entreabrindo os olhos. A brilhante luz do peristilo entrava por trás dos dois homens, invadindo as sombras da estadia.

Fulvia ficou em pé para abrir dois painéis de madeira das portas e uma suave luz alagou o lugar.

—Segue sem parecer.

E assim era. Tratava-se de um homem de baixa estatura. Usava curto o encaracolado cabelo escuro, possuía grandes olhos pardos e compleição olivácea, como se tivesse passado muito tempo ao sol. Seu corpo, pequeno e compacto não era tão musculoso para ser o de um atleta ou um trabalhador de serviços pesados. A expressão de seu rosto tampouco ajudava muito. Parecia angustiado, temeroso e um tanto perdido.

—O que estou olhando? — Perguntou Fulvia a Firminius. O homem da cadeira parecia ter se recostado para tirar uma sesta. Estava com a cabeça afundada sobre o peito e de olhos fechados.

—É o novo físico de seu irmão!

—O que? Isso? - Disse ela, fazendo um violento gesto para o homenzinho com seu enorme braço. Era quase tão alta como ele... Sem se levantar da cadeira.

Os olhos do homem da cadeira se abriram novamente.

O objeto daquele escrutínio pareceu mais assustado se fosse possível.

—Você me diz, - Firminius cravava o dedo sobre o braço de sua cadeira a cada palavra, para enfatizar sua irritação, - que dê ordens a meu agente no Cos de comprar o melhor físico grego. Insiste em que não economize em gastos e compre o melhor que há. Todo mundo sabe que os físicos gregos são os melhores e que o envie logo porque está muito insatisfeita com Hippos, por que ele não cura seui rmão e suas tarifas são exorbitantes. Além disso, não é o bastante atento e se queixa até tremer o telhado. E gasta. Os deuses saberão quanto dinheiro. Não é nenhuma trapaça, verá! Dizem que ele tem uma grande reputação onde estudou e praticou a medicina. E agora sequer recorda o quanto me importunou! Poderia chorar. Eu vou chorar. Não basta com que me tenha preso a esta repulsiva terra bárbara, cheia de bárbaros repulsivos, onde minha delicada sensibilidade se vê ofendida diariamente por suas miseráveis grosserias, e sequer tem o bom sentido de recordar as ordens que me deu em primeiro lugar.

Fulvia elevou as mãos.

—De acordo, de acordo. Juro ante todos os deuses que lamento e me desculpo. Sinto muito. Agora se tranqüilize, por favor.

—A verdadeira razão de seu descontente com Hippos é que ele te dava poucas esperanças de sobrevivência para mim. - Interveio o jovem.

Firminius sufocou um soluço. Tirou um lenço de renda da manga de sua túnica e começou a secar os olhos.

Fulvia se levantou de um salto, avermelhada e com um olhar assassino nos olhos. Voltou-se para o homem da cadeira.

—Cale-se, Lucius. Hippos é um cretino presumido e ambicioso. Não o queria nem para cuidar de um cão que gostasse. No melhor dos casos, ele é um incompetente e no pior um praticante de magia negra e um abortista...

—Sim... Bem. – Disse Lucius. - E a serviço das melhores famílias de Roma. Perguntava-me quando você se daria conta.

—Muito bem. Está de acordo então na necessidade de outro médico? — Perguntou Fulvia. - A forma em que se apegava a esse ridículo... Faz com que me assuste procurar um físico de mais habilidade.

—Se apegava a ele, - grunhiu Firminius, irritado, - porque podia subornar o bastardo para que fizesse tudo o que lhe pedisse.

—É isso verdade? — A voz de Fulvia teria conseguido serrar uma coluna de mármore.

—Mais ou menos. - Admitiu Lucius, um tanto envergonhado.

—Muito bem. - Vaiou ela assinalando o homem preso pelo servente. - Agora tem um novo físico e é sua única responsabilidade. Ouviu? – Ela disse olhando o escravo. – E você, fracote, mais te vale ser tão bom como dizem, porque o dia em que meu irmão morrer o farei crucificar.

O homem empalideceu.

—Não fará nada disso. - Rugiu Lucius, erguendo-se na cadeira.

Fulvia retrocedeu momentaneamente, afetada pelo tom de Lucius. Era a velha autoridade do o chefe da família, da casa, com poder de vida e morte sobre mulheres, crianças e escravos.

—Fulvia, nunca me opus a você, porque não tenho nem a vontade nem a energia para tanto, mas não ficarei aqui sentado enquanto aterroriza alguém que pode ter algum dia minha vida em suas mãos. Ouve-me?

Os olhos de Fulvia encontraram os chamejantes de seu irmão.

—Então está disposto a aceitar outro físico.

—Sim, se a tranqüiliza e aja como uma mulher sensata. Farei o que você queira.

Fulvia respirou fundo e voltou seu frio olhar para o escravo, que se encolheu visivelmente.

—Muito bem. Tirem-lhe esse colar do pescoço. Meu irmão, deixo-o aqui com ele para que se conhçam. Agora, Firminius, como estava dizendo, acredito que estes queijos são superiores tanto em sabor como em conservação. Pelo menos, espero, pois comprei dez montes.

—Dez montes! — Gritou Firminius. - Acaso está louca, mulher? Perdeu o sentido ou está possuída por algum espírito maligno? Tem um comprador em Roma?

—Certamente, tenho. — Fulvia pegou um punhado de azeitonas negras especiais e caminhou para a porta. - Inclusive tenho o dinheiro em depósito com um banqueiro do Foro. Como os enviamos, por mar ou por terra?

—Por mar, por mar. Uma longa viajem por terra consumiria a maior parte dos benefícios da venda. A estação está bastante avançada, mas...

Suas vozes se perderam enquanto entravam no peristilo e começavam a passear junto ao lago ornamental.

A corrente se desprendeu ruidosamente do pescoço do homem.

—Sente-se. – Disse Lucius, assinalando a cadeira que Firminius acabava de abandonar.

O servente fez com que o homenzinho se sentasse, com tanta energia que ele soltou um gemido chiado de angústia.

Lucius suspirou, despedindo o servente com um gesto da mão.

—Deixe-nos.

O homem vacilou.

—Vá! – Disse Lucius. Quando o criado obedeceu, ele voltou sua atenção para seu novo físico.

Ele estava sentado e alerta, lhe observando. Tinha as mãos apoiadas sobre a mesa. Estavam tremendo.

—Por favor, se sirva um pouco de vinho. A jarra de prata contém um falerno passável e a de cristal um branco bastante agradável, daqui perto. Qualquer dos dois poderá te reconfortar. Tremem-lhe as mãos.

—Não, meu senhor. - Disse o homenzinho, falando pela primeira vez. - Não são as mãos o que me treme, mas todo o corpo.

Lucius sorriu de repente, parecendo muito menos imponente.

—Minha irmã tem esse efeito sobre as pessoas, mas não se preocupe. Estou acostumado a frustrar seus pequenos planos quando desejo. Assegurarei-me de que nunca se concretize a ameaça que fez. Agora, me diga, você tem algum nome que goste de colocar em meu conhecimento?

—Fio, meu senhor. - Respondeuo escravo, servindo vinho.

—Muito bem, Fio. Na breve conversa sobre suas origens, antes que começassem todos os gritos, acredito que Firminius mencionou que havia nascido livre.

Fio assentiu com o nariz na taça.

—O que o levou então ao maior mercador de escravos do mundo? Descobri que geralmente se deve a três motivos: dívidas, captura na guerra ou política.

Fio pensou um momento.

—Política. – Ele disse. - Mas não por minhas posturas, mas sim pelas de meu pai.

—Ahhh... – Disse Lucius.

—Assim é, meu senhor. Minha família era de classe e riqueza média, em minha cidade natal. Aos dezesseis anos, converti-me em aprendiz de um físico e minha irmã em aprendiz de bicho-tesoura aos quatorze anos. Por desgraça, e digo por desgraça, porque assim resultou, tivemos um extraordinário êxito. Aos vinte anos, minha irmã tinha já sua própria loja, e eu era um dos físicos mais populares da cidade. A nova riqueza deu a meu pai tempo livre para meter em política.

—Escolheu o lado errado? — Perguntou Lucius.

—Oh, sim, meu senhor. Como qualquer queda, a de minha família foi vertiginosa. Logo me aconteceu... Foi que me encontrava no mercador de escravos do Cos e que o agente de Firminius estava olhando meus dentes. Embora o que tivessem a ver com outra coisa, escapa a meu entendimento.

—Bem, de todas as razões pelas quais pode cair um homem, acredito que a política é a que mais eu gosto. Significa que não tem uma excessiva devoção a vícios mais molestos, como mulheres, jogos de dados ou o vinho. Não obstante, poderia ser dado a intriga.

Fio sacudiu a cabeça.

—Não, não tenho experiência em nada disso. Se imaginasse o que estava acontecendo, teria tomado providências em relação a meu pai e não me encontraria nesta situação.

—Esplêndido! Ouça então meu conselho. Mantenha-se afastado de minha irmã Fulvia. É uma das poucas pessoas que conheci cuja mordida é mais perigosa que seu latido. E quando lhe esgotam as idéias cruéis, dissimuladas e traiçoeiras, esse pequeno cogumelo venenoso do Firminius lhe proporciona em seguida material fresco, para ela seguir com sua carreira de crimes.

Fio parecia surpreso.

—É sua irmã e atribuí suas ameaças a cólera ante o físico que o deu por condenado as Sombras, em uma idade tão nova. Depois, ela o ama.

Lucius soltou uma risinho.

—Não sei se me ama ou só quer um herdeiro masculino para a fortuna familiar. A lei romana favorece os homens. Neste momento, Fulvia intimida... Ou domina, suborna, assusta ou aterroriza, escolhe o que queira... A todos os irmãos de nosso pai, de forma que eles saltam assim que ela estala os dedos. Mas quem sabe o que acontecerá quando morrerem todos e sejam substituídos por pessoas menos maleáveis. Um precioso filho póstumo, a muitos anos de sua maturidade seria perfeito para ela. Poderia ser facilmente controlado por seus pedagogos e tutores até que ela decidisse sobre sua maioridade... Ou não.

—Soa detestável, meu senhor. — O comentário de Fio soou cuidadosamente acolchoado.

—Ela segue enviando mulheres à minha casa. Por sorte ou por desgraça, não posso fazer nada com elas.

—Mmmh... — Fio procurou pela mesa encontrar um pouco de pão e um pedaço de queijo, que começou a comer imediatamente. - Mas, meu senhor, é consciente de seu dever para a família e seus antepassados.

—Não comece com isso. - Grunhiu Lucius. - Todas as semanas eu recebo uma lição sobre as máscaras mortuárias de nossa família.

Fio mudou de um lugar a outro um pouco de vinho, para ajudar a passar o pão e o queijo.

—Poderia ser esse rechaço ao sexo feminino, assunto de inclinação, meu senhor? — Ele perguntou delicadamente.

—Não. Tenho uma grande inclinação, mas também muita dor e fadiga. E não é preciso dizer meu senhor, a cada frase. Se pular isso de vez em quando, entenderei.

Fio seguiu observando a mesa até encontrar várias tabuletas de cera e um estilo.

—Crê que posso usá-las?

—Se não houver nada escrito, se sirva.

—Não há nada. — Fio pegou o estilo e colocou uma das tabuletas diante dele. - Agora, qual parece ser o problema?

Lucius suspirou profundamente.

—Pequeno grego, eu acredito que pode ser um muito bom físico. Faz coisa de um ano, eu era oficial da Quarta Legião Augusta, destinada perto daqui. Um dia me pus ao mando de um pelotão...

 

O lobo despertou entre as rochas aos pés de um escarpado. Sabia que estava muito ferido, talvez moribundo.

O mundo escureceu ao seu redor. As folhas e agulhas de pinheiro se acumulavam a seu lado. Homem ou lobo, ele sabia que aquilo não era possível. As árvores que o rodeavam e se abatiam sobre ele não cresciam naquelas alturas.

Ele se debateu, tentando se mover e a dor atingiu sua mente, arrastando todos os pensamentos em uma riacho vermelho. Ficou estendido e quieto e a dor pareceu ceder. Sabia que devia chamar a mudança ou morreria.

Abriu os olhos e voltou a contemplar as sombrias e ameaçadoras árvores. A escuridão aumentou. Mais à frente do bosque havia uma cascata. O lobo não podia ver de onde chegava a água, somente um pano de fundo branco, tão brilhante que parecia iluminado de dentro, em um pálido resplendor frente à escuridão do bosque.

A espuma se elevava até grande altura, molhando o musgo e fazendo com que brilhasse como esculturas de esmeralda à luz.

O vento soprava fazendo gemer as velhas árvores... Em um som profundamente intemporal, que falava com locais da mente do lobo que o homem dificilmente entenderia.

—Voce pertence a mim. - Dizia. - Somos um só. Estivemos aqui durante anos antes que existisse o homem e estaremos durante anos depois que ele se for.

As árvores já estavam muito escuras e a cascata era uma cortina de luz. O vento soprou novamente e uma neblina de gotas cobriu o rosto do lobo, lhe cegando no momento. Ele se sentou como um homem.

Podia ver a si mesmo. Era como se estivesse separado da musculosa figura perfilada pela luz de prata, olhando por trás. Como humano, ele era impressionante. Cabelo curto, encaracolado e castanho. Pele morena. Um rosto transbordante de resolução. A figura de uma pessoa em sua primeira juventude.

A espuma voltou a lhe salpicar. O bosque lançou seu antigo grito de posse terrena e o lobo despertou, sacudindo-se e ficando em pé entre os restos de uma velha avalanche. O escuro bosque e a cascata haviam desaparecido.

As presas que haviam procurado jaziam entre as rochas. Pelo menos uma dúzia de carneiros haviam caído na armadilha de neve. Era o bastante para alimentar a alcatéia durante uma semana.

Ele elevou o focinho ao céu e os chamou. O lobo se encontrava esfomeado. Como líder, correspondia-lhe escolher sua parte. Quando chegaram seus companheiros o encontraram se alimentando.

Havia esperado que o recebessem bem. A resposta mais habitual ao reaparecimento de um companheiro querido é saudá-lo, com focinhos se tocando, os beijos e o reconhecimento dos amigos e da família. Mas o lobo cinza ficou surpreso e decepcionado. Havia corrido riscos além do que podia esperar e a suspeita havia se despertado nos corações de outros lobos.

Ele se sentiu ofendido e depois indiferente. Seus pensamentos voaram para Imona e seu destino. Assim, quando chegou o crepúsculo, ele deixou a alcatéia adormecida, comendo a carne que havia conseguido para ela e atravessou a montanha.

Atravessou o território da outra alcatéia onde tinha matado os patos. A comida que tinha ingerido lhe permitia viajar longas distâncias sem necessidade de matar.

Quando deixou para trás os domínios da alcatéia vizinha, começou a procurar moradas humanas. A primeira que encontrou estava abandonada, e seu único ocupante era um irritado texugo que vivia nos restos de uma granja em ruínas. Os romanos a tinham queimado tempo atrás. Além do aroma do texugo, o lobo pôde detectar os tênues eflúvios do sangue e o fogo da batalha.

O texugo se elevou sobre suas patas traseiras, lhe desafiando. Os texugos são animais pequenos, mas duros e perigosos. Sequer os lobos brigam com eles sem um bom motivo. Maeniel partiu dali.

A luz brilhava no este e já quase havia amanhecido. O lobo encontrou um estreito suporte junto às árvores e se acomodou ali para dormir, com a espessa cauda sobre o focinho. Estava tão bem escondido que ninguém que passasse perto poderia vê-lo. Despertou ao anoitecer. As árvores eram como sentinelas marrons na névoa vespertina.

Seguiu viajando enquanto o dia se convertia em noite e a luz se desvanecia entre os pinheiros ao seu redor. No alto, um céu embotado escurecia a lua e as estrelas. Os picos das montanhas mais altas reluziam cobertos de gelo.

Ele deixou para trás as árvores, movendo-se entre pendentes de rocha e prados de montanha cujos caules de vegetação truncados brilhavam sob o frio. Aqueles pastos estavam vazios e assim seguiriam até que os pastores voltassem a subir seus rebanhos na primavera.

A casa que havia deixado para trás era um buraco vazio e sem fogo, abandonado ao vento e com gelo começando a se formar nas paredes. Mas ela havia estado ali. Seu aroma era tênue na cabana, mas mais forte no celeiro e no curral, onde ainda havia um pouco de calor sob a palha úmida que estava cobrindo de cristais da geada.

O lobo desceu colina abaixo, seguindo os rebanhos levados aos pastos mais baixos, para escapar do gélido abraço do inverno nas alturas. Aquela granja era grande, quase como a vila no vale de Mir.

O clima ali não era tão balsâmico como no resguardado vale. As casas eram de pedra, com paredes cobertas de argamassa contra o frio. Os telhados eram altos, bicudos e com abundância de palha. O lobo se deteve, olhando para o grupo de edifícios amontoados, como em busca de calor em seu nicho da montanha.

Os animais, vacas, ovelhas e cabras, agrupavam-se em pastos ou currais próximos das casas. Os cães ladravam nos pátios. Era o maior assentamento humano que ele já havia visto. Certo, a fortaleza romana do vale era maior, mas o lobo, consciente do destino da alcatéia das terras baixas, nunca tinha se incomodado em se aproximar.

O pelo de seu pescoço se arrepiou, e um grunhido começou a nascer em sua garganta.

Lá embaixo, um cão ladrou novamente e logo se uniu a ele um coro de ganidos e uivos. O vento arrepiou novamente a pele do pescoço do lobo. Soprava atrás dele, para as terras baixas, à medida que as altas agulhas de pedra desprendiam o calor do dia. O vento levava seu aroma aos cães.

O lobo cinza tinha uma opção. Voltar e esperar até que as luzes que vacilavam atrás das janelas de pergaminho da casa desaparecem e cães e homens dormissem. O vento amainaria e o ar ficaria tão quieto e silencioso como o brilho das estrelas no céu noturno. Então ele poderia sair sem ruído de seu esconderijo, movendo-se tão discretamente como um farrapo de névoa sobre as montanhas, investigar a granja e o celeiro e ir até a casa, para descobrir se ela tinha estado ali.

Mas embora tivesse aprendido muito dos seres humanos, os que haviam conhecido não lhe tinham ensinado a virtude superior da paciência.

Ele ignorou ao lobo e deixou que o homem traçasse seu caminho. O lobo cinza se introduziu na espessura, para rodear a granja e se aproximar de cara com o vento.

A princípio teve êxito. Movendo-se discretamente pelo grande pátio aberto, passou junto a um curral de vacas sem alarmá-las. Muitas delas eram vacas leiteiras cujas crias haviam sido sacrificadas e seus corpos secavam no amargo outono, caídas de sua viagem das alturas e agradecidas por suas rações invernais de feno e aveia.

As ovelhas eram outra coisa. Estavam desenvolvendo suas espessas pelagens de inverno e muitas eram mães de cordeiros um pouco crescidos, mais próximas a seus parentes selvagens que as estúpidas ovelhas domésticas.

Havia meia dúzia de cães acorrentados no pátio, incluindo dois que provocaram no lobo um instantâneo calafrio de terror. Eram duas feras gigantescas, com enormes dentes e mandíbulas. Ambos eram bem mais pesados que ele.

Uma das ovelhas deu ciência de sua presença. Era um cordeiro jovem de menos de um ano e não sabia o que era, então que se limitou a lhe fitar inexpresivamente do curral. Não obstante, despertou a mãe, que lançou um suave balido de alarme. As ovelhas começaram a se agitar incômodas no recinto.

O lobo se afastou delas, para um dos celeiros. Logo que entrou, soube que ela havia estado ali. O lugar estava impregnado de seu aroma. Mas aonde tinha ido depois?

Ouviu um ruído atrás dele e se se voltou. De forma rápida e silenciosa, seu corpo se apertou contra a palha, até ficar escondido e imóvel.

Havia uma mulher em pé na porta, protegendo uma vela com a mão. O vento estava a ponto de apagá-la. Toda sua atenção estava fixa em restaurar a saúde da pequena e vacilante chama. Uma vez dentro, a salvo do vento, a luz cintilou novamente, iluminando o celeiro.

—Aaah - Disse ela, alegre. Então viu a enorme forma cinza escondida sobre o feno.

Seu grito bastou para despertar todos os seres vivos em algumas milhas a volta. Os cavalos se agitaram nervosos, o gado se inquietou e as ovelhas iniciaram um coro de medo.

O lobo baixou a cauda e as orelhas e fugiu. Passou disparado junto à garota da porta e os currais do gado, como uma pedra de funda lançada para a noite.

Mas antes de se afastar do vespeiro que havia sacudido, ele ouviu o grito: Soltem Aos cães! O lobo assentou sua carreira, rápida, mas sem fugir aterrorizado, seguro de que poderia deixar para trás mesmo o cão mais poderoso. A crueldade não havia sido despertada ainda nele, que não conhecia suas próprias forças, mas tampouco entendia o que estava lhe perseguindo.

Eram cães de guerra, assassinos de homens, criados para ser soltos na batalha, para acossar e matar os inimigos em sua retirada ou para estender o caos em seus comboios.

O lobo cinza fugiu montanha acima, seguro de que o terreno enganoso e a altura cobrariam seu preço sobre os cães. Afinal eram criaturas propriedade do homem, preguiçosas e dependentes de seus amos.

Ele estava acostumado a fugas e perseguições. A natureza o adestrara desde dia de seu nascimento.

Mas ficou preso sem se dar conta, ao chegar ao alto da última elevação. Olhou para baixo, observando uma paisagem rochosa que não oferecia possibilidades de fugir com rapidez. O terreno era enganoso. As nuvens que envolviam os picos haviam deixado sua umidade no largo pendente até o vale e essa umidade tinha começado a gelar. Seria como caminhar sobre cristal. O lobo se voltou para correr ao longo do escarpado. .

Os dois cães notaram que ele diminuía a velocidade. A sede de sangue os fez apertar o passo. Sabiam que ele estavam bem perto e experientes assassinos como eram, separaram-se para atacá-lo pelos dois lados.

O lobo viu que a vegetação aberta acabava em ponta, com um escarpado vertente de cada lado. Se os cães o apanhassem em terreno aberto, acabariam com ele. Poderia ter seguido correndo cegamente, para o gelado terreno rochoso onde os dois cães de guerra o teriam derrubado e desmembrado seu cadáver.

Mas o homem dentro dele falou. Palavras ressoaram em seu cérebro pela primeira vez. Pare, estúpido! Retroceda. Lembre-se o que é! Recorde o que sabe. O que aprendeu há muito tempo.

Ele se converteu trôpegamente em homem. Sua mão direita se movia como se tivesse vida própria, procurando a primeira vantagem que conhecesse o cambaleante semimono de muito tempo atrás, a primeira vantagem outorgada pela escura e antiga mãe da vida a ele e a seus descendentes, para sempre. A arma.

Sua mão direita se fechou sobre uma pedra.

Os dois enormes cães chegaram, um pela esquerda e o outro pela direita. Ele se deixou cair sobre um joelho, com o braço esquerdo elevado para proteger o rosto.

O cão a sua esquerda passou a seu lado, escorregando sobre a vegetação cristalizada. As mandíbulas do segundo fecharam em torno de seu antebraço. Maeniel esperou ouvir o rangido dos ossos, mas se surpreendentemente que não chegou a se produzir. Compreendeu que não importava quão fortes fossem aqueles cães, nunca poderiam se igualar ao poder de um lobo forjado no mais feroz dos fogos: a sobrevivência.

Estrelou a pedra com todas suas forças contra o crânio do cão, que se estilhaçou como madeira podre. O animal soltou seu braço ao morrer.

Mas o outro cão havia recuperado já o equilíbrio e se lançava à carga.

Ele estava com a mão direita intumescida pelo golpe que havia matado ao cão. A pedra caiu de seus dedos insensíveis. Aguarde ele saltar. Ordenou-lhe uma fria voz em seu cérebro.

Os quartos traseiros do cão abandonaram o solo. Maeniel, o homem, voltou-se, deixando cair sua perna sobre o lombo do animal. Manteve-a ali, firmemente, com um braço em torno de seu corpo e a mão esquerda enterrada em sua garganta. Seus dedos encontraram os delicados anéis cartilaginosos que formavam a traquéia... E os esmagaram.

O cão caiu no chão, agonizando e Maeniel, lobo novamente, desceu trabalhosamente pela ladeira para o escuro vale.

 

Fio se fez cargo da vida de Lucius, mas sem recorrer às ordens dadas a gritos e nem as desagradáveis intrusões. Lucius descobriu que seu novo escravo era um professor do tato, da sugestão e da indireta. Era amável, mas firme; educado, mas o bastante obstinado para dar lições a uma mula. E nem as ameaças, nem os rogos podiam distraí-lo de seus objetivos, tampouco o suborno ou a evasão, fosse discreta ou violenta.

A donzela de Lucius era Alia, uma mulher que havia lhe salvado a vida ao levá-lo rapidamente de volta ao acampamento romano. Também havia see tinha convertido em uma mulher livre por aquilo, como mostra da gratidão de Fulvia por ter salvado a vida de seu irmão. Era uma boa criada, obediente e trabalhadora, mas tinha a inteligência de um toco de carvalho, a personalidade de um abajur de bronze e a face de uma tartaruga. Para o total e absoluto assombro de Lucius, Fio se dava às mil maravilhas com ela.

Depois do almoço, do dia da chegada de Fio, os portadores que carregavam sua cadeira voltaram para levá-lo para sua casa. A estadia era luxuosa, com móveis decorados com ouro, mas cheirava mal e estava cheia de imundície.

Os lençóis da cama não tinham sido trocadas nem lavadas em semanas. Ninguém havia se incomodado em esvaziar seu urinol, o que contribuía para o mau cheiro. Mas o aroma mais poderosa era o da carne podre e o carvão queimado que saía dos braseiros em cada canto da estadia.

Alia estava em pé no centro da câmara, com expressão apurada. Duas das donzelas de Fulvia riam da porta em frente. Os serventes baixaram a cadeira de Lucius e se retiraram para as dependências dos criados, para desfrutar de uma sesta.

—Tragam-me um pouco de vinho! — Grunhiu Lucius.

Alia se apressou a obedecer. As duas garotas continuaram observando Fio e Lucius entre risinhos.

—Supõe-se que devem cuidar de mim, mas uma delas é egípcia e a outra foi capturada em algum lugar da Arábia, esquecido pelos deuses. Nenhuma das duas fala latim e eu não falo muito mais, além das noções de grego, próprias de um cavalheiro. Alia é ornamento e conheço sua língua o bastante para pedir água, vinho ou sexo. Além disso, não tenho nem idéia. Cada noite poluo uma das piscinas dos luxuosos banhos de minha irmã e logo volto para minha casa para me embebedar até perder o sentido. A maior parte dos dias consigo convencer alguém para que me troque às vendagens. Geralmente, algum dos portadores de minha cadeira, mas às vezes não me importa e me limito a ficar aqui, olhando o teto. O pior de tudo é que estou apodrecendo vivo por culpa dessa ferida mal cheirosa aberta em minhas costas. Fulvia sabe, essa hiena do Hippos sabia e também todos os criados.

Fio não respondeu ao seu amo, mas falou com as duas garotas do outro lado do corredor. As escravas abriram a boca, interrompendo seus risinhos e se apressaram a entrar. Alguém começou a tirar a roupa da cama enquanto a outra levava o urinol.

Lucius ficou boquiabert. Jamais tinha visto uma mudança tão rápida em dois seres humanos.

—Falam um grego excelente. - Explicou Fio. - Uma delas é uma hetaira da Alexandría e a reconheci imediatamente.

A câmara logo foi transformada diante de seus olhos. A janela foi aberta para limpar o ar. Os braseiros, já necessários por causa do crescente frio das noites, foram esvaziados e voltados a ser cheios de carvão. O piso foi esfregado, a cama equipada com um colchão limpo e seus correspondentes lençóis e travesseiros, tudo isso cheirando a linho limpo e seco ao sol. Então Fio ajudou Lucius a chegar até a cama e mudar de roupa.

Tiveram sua primeira discussão por causa do vinho que Lucius queria beber antes da sesta. Fio preferia uma bebida bem aguada e misturada com mel, enquanto que Lucius se inclinava pelo vinho falerno puro. Lucius perdeu, cedendo quando seus argumentos começaram a soar vazios, mesmo para ele.

Aquela primeira derrota foi o anúncio das seguintes. Seu café da manhã deixou de consistir em vinho tinjo alegrado com ópio e alguns figos, passando a consistir em ovos duros, queijo suave, fruta e vinho branco aguado. O almoço era o mesmo.

No jantar, Fio não deixou lugar a duvida a respeito da preferência da comida sobre a bebida, substituindo o vinho da noite por uma infusão tranqüilizadora preparada por ele, com valeriana que recolhia no jardim.

De algum jeito, sempre conseguia convencer Lucius a dar uma volta pelo jardim em sua companhia, depois de cada refeição. Com o tempo, a volta se converteu em duas ou três, ou inclusive quatro voltas ao redor do lago. Finalmente, Lucius chegou a ser capaz de caminhar comodamente durante longos períodos, deixando de necessitar da cadeira.

Mas as noites eram o pior. A febre de Lucius aumentava e os tremores e a dor esquecida durante o dia o impediam de dormir. Ele se retorcia em uma agonia de sofrimento físico e emocional.

Alia chamava Fio, que ia com remédios para aliviar a dor e baixar a temperatura do paciente e lençóis limpa para o leito ensopado de suor. O físico ficava com freqüência até o amanhecer, lendo para Lucius, livros da bem sortida, mas poeirenta biblioteca da vila.

Embora Lucius se negasse a admitir, o regime estava dando resultado. Ele já se sentia melhor. Os simples, naturais e indolores remédios de Fio eram bem melhores que as exóticas torturas de Hippos. Sangrias, por exemplo, o deixavam enjoado, detento das náuseas e fraco durante dias. Os selvagens purgantes o faziam sentado sobre o urinol noites inteiras, até ficar vazio de tudo o que não fosse uma mucosidade sanguinolenta e sofrendo cãibras estomacais que duravam vários dias. Hippos usava também ferros quentes. Nunca os empregara com ele, pois Lucius havia lhe subornado para que não fizesse nada ou para que permanecesse o mais afastado possível, para irritação de Fulvia.

Mas o que mais temia Lucius, a única coisa ante realmente o aterrava, era… A esperança. Pois a esperança não alcançada é ao final de contas, a tortura definitiva dos condenados. Quem se encontra na situação de morrer lentamente, renunciam logo a ela para poder agüentar o resto de sua existência com fortaleza, sem dor pelo que será indevidamente perdido. Há muito que Lucius havia abandonado toda esperança, mas ela estava de volta, retornando sobre as asas da manhã.

Chegou um dia no qual despertou se dando conta de que havia passado a noite dormindo sem ser atormentado pela dor ou pela febre. Ficou deitado em silêncio, respirando o ar limpo e fresco da montanha. Um ar fragrante como a primavera, doce como o perfume de mil flores e suave como o primeiro brilho da manhã atravessando o bosque.

E soube que iria viver. Talvez acabasse com uma terrível cicatriz e coxeando para sempre. É claro que nunca voltaria a ser o jovem forte e atordoado que havia cavalgado com as legiões. Mas viveria e com o tempo o mundo lhe ofereceria seus tesouros. Sim, havia mudado para sempre e estava para ver quanto e de que modo. Mas podia aceitar como parte de sua vida e seguir adiante. Acima de tudo viveria e ficaria bem. O que havia sido esperança forjaria nos dias seguintes até ser uma certeza.

Ele fechou os olhos e se deixou levar por um sono tranqüilo, com a alma em paz.

 

                                                  Capítulo 6

Ainda estremecido por sua apurada fuga, o lobo atravessou o pendente rochoso. Mais à frente havia pastos de vegetação alta e marrom, ligeiramente polvilhada de geada. Por fim, ele chegou ao bosque. Uma luz esverdeada se filtrava entre as árvores.

Amanhecia. O lobo estava exausto. Queria comer e dormir, mais que qualquer outra coisa, mas aquele bosque não era bom lugar para procurar nada disso.

Atravessou o que parecia um antigo salão cheio de colunas. Os galhos entrelaçados no alto bloqueavam a luz solar, criando um fresco espaço verde. O lobo corria sobre um tapete pardo de folhas mortas, que ofereciam um sustrato incrivelmente rico para os enormes gigantes: céu e terra chegavam a um acordo, mas aquilo era um deserto para o lobo.

Ele seguiu viajando. Sequer ouvia o canto dos pássaros sobre ele. Às vezes, uma rajada de vento sacudia as copas das árvores, que entoavam suspirando um profundo canto de vidas longas e uma paz extraordinária. Fazia com que tudo relacionado aos mamíferos parecesse novo como a estrela fugaz que atravessava o céu do crepúsculo, deixando uma esteira de luz. Você e sua espécie são recém chegados a terra, disseram-lhe as árvores. E o homem, uma aberração na prolongada trama do tempo, um nó nos fios das Damas Tristes.

Que assim seja. Pensou o lobo. Estava tranqüilo. Sentia-se satisfeito com o que era. E, por certo, há coisas que o faziam parecer crianças. As rochas, o mar e as estrelas.

Enquanto o bosque anunciava seu triunfo eterno e inevitável, começou a ceder terreno. O solo era cada vez mais rochoso.

Finalmente, o lobo chegou a uma escarpadura, uma espora de rocha da que dominava o vale inteiro. O bosque se estendia por milhas e milhas, com seu centro atravessado por um grande rio. Uma franja de cor azul e ouro reluziam sob a primeira luz do amanhecer, curvando e retorcendo-se através da tapeçaria de árvores verdes, pardas e avermelhadas.

Como atravessar? Um humano desanimaria, mas isso era algo do qual carecia a natureza dos lobos. Maeniel se voltou e seguiu sua viagem.

Já era perto do meio-dia quando ele chegou ao rio. Entrou em um estreito atalho feito pelo homem ao longo da ribeira, trotando tão perto da margem, como era possível. Naquele ponto, o rio era largo, profundo e de cor escura. Ele era uma criatura intrépida e poderosa, mas não de todo temerária. Para um animal de seu tamanho, seria um suicídio tentar atravessá-lo a nado.

Ah, bem, ele pensou. Água. Ele entrou até a metade das patas, para beber. Nmerosas formas nadadoras se afastaram apressadas de seu focinho. Ele seguiu bebendo enquanto as observava. Corpos pequenos e redondos, pequenas patas dianteiras e grandes patas traseiras. Rãs. Argh!

Uma vez saciada sua sede, ele se moveu devagar, com a cauda ondeando brandamente acima de seu lombo. As nadadoras eram lentas e torpes, o preço que pagavam pelo frio cada vez maior. Havia uma estendida no fundo. Snap! Hum... Não é ruim! Não era um sabor familiar para ele, mas estava boa. E havia muitas, apinhadas no verdor de flores amarelas, no fundo lamacento e sob as folhas das plantas aquáticas. Haviam por toda parte. Que bom! Snap! Mais outra. Ele quase sentia falta de um molho para acompanhar. Imona estava lhe corrompendo. Quando a encontrasse, esperava que ela o corrompesse um pouco mais. Snap! Hmmm, não enchia muito um animal de meu peso, mas há muitas e eram melhores que as alcachofras que ela me preparava. Snap! Snap! Snap! Delicioso.

O lobo continuou, avançando devagar riacho abaixo, alimentando-se à maneira de sua espécie, até que ouviu ruídos de luta no caminho do rio. Alguém começou a gritar.

O lobo cinza vacilou um momento entre homem e lobo. Os gritos eram urgentes. Gritos de dor e de desespero. Ele era uma criatura de aspecto protetor e mesmo a desdita humana o afetava.

A pouca distancia caminho, um homem jazia no chão e outros dois estavam moendo-o a chutes.

O lobo se converteu em humano e considerou brevemente as circunstâncias. Circunstâncias como a largura do rio e a dificuldade de atravessar sem ajuda, decidindo que valia a pena tentar. Mas devia se apressar. O homem do solo estava claramente em apuros; tinha deixado de gritar e se enroscara como uma bola, tentando proteger seus órgãos vitais.

Maeniel correu para os dois agressores, gritando enquanto se aproximava. Eles deixaram de ameaçar sua vítima. Um deles tirou sua espada. Os dois usavam peças de armadura romana e tinham aspecto de desertores de alguma das companhias montadas de César.

O soldado se colocou em guarda e Maeniel pôde ler o desprezo em seus olhos, pois ele estava nu e desarmado.

Maeniel estava decidido a não se deixar derrotar tão facilmente, como em seu primeiro combate contra humanos. Aproximou-se do soldado. Direto agora, disse-lhe seu cérebro. Terá que se mover.

O soldado se moveu, lançando um selvagem golpe para baixo, que teria aberto seu crânio até os dentes.

O semilobo se limitou a aumentar sua velocidade, passando por baixo da trajetória do golpe. Sua mão esquerda se fechou sobre a mão do braço que sustentava a espada. Seu punho direito se estrelou sobre o rosto do soldado. Foi doloroso. Ele não tinha previsto que fosse machucá-lo tanto. De toda forma, ele conseguiu arrebatar a arma de seu inimigo.

Um instante depois compreendeu por que ele havia cedido a arma tão facilmente. O homem que ele acabava de golpear estava morto.

Seu companheiro deixou de chutar a vítima. Olhou atônito para a ruína vermelha que ficara do rosto de seu cupincha e para o gigante nu que sustentava a espada na mão. – Ele correu. Três cavalos e uma mula bem carregada esperavam junto ao caminho. O ladrão saltou sobre uma das selas com a facilidade que dá a prática continua, pegou as rédeas da mula e fugiu apressadamente.

A vítima se levantou cambaleante e começou a gritar com o fugitivo. Logo começou a correr atrás dele com um trote saltitante, sem deixar de gritar imprecações, juramentos e maldições que soava pelo menos em três idiomas distintos.

Maeniel, ansioso de não perder seu investimento de tempo e energia, imitou o homem, blandindo a espada.

O lamacento caminho tinha sido alagado por uma chuva recente, o que freava o passo do cavalo do bandido e ainda mais o da sobrecarregada mula. O cavalo reduziu sua velocidade, mas a mula afundou no barro até os joelhos.

O bandido freou o cavalo e puxou a corda da mula, que havia caído de joelhos. O animal não agüentou com resignação. Com um bramido de fúria e indignação, ela plantou sobre suas quatro patas, jogou a cabeça para trás e arrancou a corda de mãos do cavaleiro.

O ladrão se ergueu sobre os arreios e deu um apreensivo olhar para Maeniel e o furioso comerciante, antes de picar esporas para fugir.

O mercadorr deixou de correr ao chegar junto à mula, que tinha conseguido sair do barro, para um terreno mais firme.

—Traidora! — Ele gritou em dois idiomas, depois de cuspir na cara da mula. O animal não pareceu se alterar com aquilo, então ele lhe deu uma bofetada.

A mula protestou, com certa moderação, na opinião de Maeniel e o comerciante lhe deu um murro no focinho. As mulas são animais duros, mas a região entre os olhos de qualquer eqüino é muito sensível.

Maeniel chegou bem a tempo de jogar para trás o homem antes que um dos quatro cascos da mula lhe partisse a cabeça. Então, o mercadorr cambaleou até chegar a uma oportuna árvore caída e se sentou para sofrer um ataque de histeria.

Maeniel viu uma fatia de pão e o que parecia ser um pedaço de queijo se sobressaindo de um dos alforges da mula. Apesar das ameaças e os coices, seu aroma não incomodava nada à mula. Ele pode se servir de algo para comer.

O queijo estava duro e ressecado, igual o pão. Maeniel, que normalmente se interessava pela comida humana, decidiu que gostara mais de seu interrompido aperitivo de rãs.

Ele voltou junto ao cadáver do primeiro ladrão e ficou em pé, mastigando o pão e o queijo e pensando confuso nas razões de sua morte. Era certo que não havia batido tão forte, mas ali estava o homem, inquestionavelmente morto. Maeniel suspirou. Não quisera matar seu adversário, só detê-lo. Por fim, ele tirou o cinto da cintura do cadáver e colocou a espada em sua bainha.

A histeria do mercadorr estava amainando.

—O que vai fazer? Roubar-me como queriam seus dois amigos? —Ele acusou em tom alterado.

Maeniel o olhou, com o longo e tranqüilo olhar que o líder da alcatéia dedica a um lobo de menor classe surpreendido em um ato de insubordinação.

O mercadorr compreendeu abruptamente que suas acusações podiam ser inapropriadas... Ou mesmo perigosas naquela situação.

—Não são meus amigos. – Disse Maeniel. - E não pretendo te roubar. A única coisa que quero é passar para o outro lado do rio. Se souber como atravessá-lo, me ensine. Se não, diga-me, para que eu não perca mais tempo falando contigoe vá embora.

—Atravessar o rio? — Perguntou o mercadorr. - Quer atravessar o rio?

—Acabo de dizer. – Respondeu Maeniel, pacientemente.

—Há um transportador a algumas umas milhas, caminho abaixo.

—O que é um transportador?

O mercadorr ficou boquiaberto.

Notando que o cavalo do homem morto seguia perto, Maeniel começou a rebuscar em seus alforges e encontrou uma túnica limpa, uma manta suja, mais pão e queijo e uma dura salsicha que parecia estragada. Ele colocou a túnica. Ficava um pouco pequena, mal lhe cobrindo os joelhos. Ele desprezou a manta, mas decidiu ficar com a comida. Ignorou a túnica e a calça que usavam o morto. Estavam muito além de seu olfato animal.

O mercadorr tentou lhe explicar o conceito de transporte e acabou tendo bastante êxito. Maeniel já havia visto botes.

—Quer dizer que é um bote, mas que em lugar de se mover por toda parte, vai só de um lado a outro do rio? — Ele perguntou.

—Sim, mas já são bastante lugares.

Ele assentiu e os cinco se colocaram em marcha. Maeniel guiava das rédeas do cavalo do ladrão e o mercadorr montava seu próprio cavalo enquanto puxava da corda da mula. O animal se sobrepôs ao seu ataque de mau humor e aceitou a situação com filosofia.

O mercadorr se chamava Decius. Um humano se sentiria irritado por sua incessante conversa, mas o lobo respeitava, pois era uma fonte de informação útil. Decius falava e, salvo por alguma pergunta ocasional para dirigir o fluxo de palavras, Maeniel ouvia.

E ele soube que Decius não havia sofrido assalto por parte dos dois ladrões, mas que havia contratado seus serviços como guardas, em sua última parada.

—Às vezes funciona. – Ele explicou a Maeniel em tom envergonhado. - Empreitam-se alguns lobos para manter longe o resto da alcatéia.

—Suponho que sim. - Repôs Maeniel sem se comprometer.

—E falando disso, acredito que há lobos de verdade pela região.

Maeniel se sentiu tentado a dizer, somente eu, mas por fim achou que mais lhe valeria guardar silêncio.

Decius alongou o pescoço, olhando ansiosamente para o caminho.

—Acredita que é verdade que há lobos?

—Não. - Foi tudo o que se arriscou a responder Maeniel.

—Nenhum lobo? Como sabe?

Maeniel decidiu dar a seu companheiro algo distinto no que pensar.

—Não há lobos por aqui, somente ursos.

Decius deu um pulo tão violento que seu cavalo se assustou.

—Ursos! — Ele gritou.

—Sim e dos grandes.

—Onde?

—No bosque.

—Bem, até eu sei isso – Disse Decius em tom condescendente. - Mas em que parte do bosque?

—Justo ao dobrar a próxima curva do caminho.

Decius se pôs a rir.

—Sim? E como pode saber?

Estavam dobrando a curva naquele preciso instante.

As nuvens começavam a se juntar no alto. O vento era cada vez mais forte e açoitava as árvores ao seu redor, enviando um redemoinho de folhas marrons pelo caminho.

Maeniel se deteve, com as fossas nasais abertas. Respirou profundamente. Todo um complexo de sensações do lobo alagou seu cérebro. O ar tinha um aroma úmido e penetrante. Chuva ou talvez neve antes da manhã. Um velho aroma de queimado. E o rastro fresco de um urso. Ele estivera ali pouco tempo antes. Por quê? O lobo não temia o grande animal e duvidava que Decius tivesse motivos para temê-lo. Se o urso estava à espreita, seriam os cavalos o que o atraía. O ossudo castrado que Maeniel guiava ou a carnuda égua montada por Decius.

O caminho se aproximava do rio, depois da curva. Decius riu nervosamente.

—Bem, meu amigo. Onde está esse urso do qual falava? E como sabemos que está aqui?

Maeniel assinalou para um ponto coberto de barro perto do caminho.

—Aí!

Os rastros de garras estavam ainda frescas. O barro que se elevara pela pressão continuava úmido.

Havia pelotas de barro de bom tamanho junto aos rastros. As marcas de garras sobre a casca estavam a uns bons palmos sobre a cabeça de um homem.

Decius se sobressaltou, assustando novamente sua égua. A mula trincou sonoramente no súbito silêncio.

— Ele sabe que estamos aqui? — Perguntou Decius.

—Segue se movendo. E sim, ele sabe. Ele nos cheira.

—A que? — Decius parecia com a margem do pânico.

—A medo.

Decius obedeceu e eles deixaram para trás a árvore.

O céu havia se colorido de um tom cinza. O vento mudou. A égua de Decius captou o aroma do urso e começou a se agitar e jogar a cabeça para o alto, mostrando os sintomas eqüinos do pânico. Todos os sentidos de Maeniel, humanos e lupinos, esforçavam-se ao máximo. O que estava fazendo ali um urso naquela época do ano? Normalmente estavam gordos, preguiçosos, sonolentos e a ponto de hibernar. Então ouviu o zumbido das abelhas.

—É obvio. Siga! - Urgiu Decius, mas a assustada égua não avançava.

Algumas das abelhas chegaram até eles, começando a zumbir ao seu redor. Uma delas penetrou nas distendidas narinas da égua de Decius, e o confuso inseto obedeceu à ordem de um milhão de anos: Quando entrar em contato com a pele de um inimigo, se sacrifique. A abelha cravou seu ferrão profundamente, talvez gritando: morra cavalo!

A égua de Decius deu um salto. O mercadorr se elevou no ar, deixando um bom espaço entre seu traseiro e a sela, voltando a cair com um grito justo antes que o animal disparasse.

Dessa vez, o movimento da égua não foi entorpecido por nada. Ela saiu ao galope caminho abaixo em uma velocidade assombrosa. Decius soltou a corda da mula, pois necessitava das duas mãos para se segurar no pomo da sela.

—Yi, yi, yi, yi, yi, yeee! —Os gritos se prolongaram enquanto a égua saía do caminho e se internava no bosque que margeava o rio.

Maeniel ficou quieto enquanto o ruído dos cascos da égua e os gritos de Decius desvaneciam ao longe. Examinou as alternativas, decidindo que havia pouco que pudesse fazer, salvo pegar a corda da mula, seguir o mercadorr e esperar o melhor.

Ervas e sarças invadiam o caminho. Maeniel pensou que antes ele havia sido muito transitado, mas que nos últimos tempos tinha ficado abandonado por alguma razão inexplicável.

Os cascos da égua de Decius haviam aberto marcas pardas na hervosa superfície. No alto, os galhos das árvores ocultavam o céu quase por completo. O caminho se retorcia, o atraindo cada vez mais para o interior do bosque.

Ele elevou o olhar e viu que o céu estava escurecendo. As tormentas nas alturas estavam estendendo seu alcance até os vales.

O caminho piorou. Ali, uma grande rocha bloqueava a passagem. Acolá, um grupo de carvalhos ao redor de um escuro lago obrigava o viajante a fazer um desvio. Além dos carvalhos, uma árvore partida ao meio por um raio interrompia o caminho.

A mula bufou e fez ameaça de retroceder, tentando plantar-se no lugar e se negando a seguir adiante, mas Maeniel não permitiu. Deixou cair à corda e, pegando o animal pela brida, obrigou-a a passar pelos galhos da árvore caída. Seu próprio cavalo o seguiu docilmente, como se estivesse acostumado aos loucos caprichos de seu amo humano.

Ele encontrou Decius do outro lado da árvore, estendido de barriga para cima sob um galho. Estava inconsciente, com um ferimento avermelhado na testa. Sua égua esperava pastando um pouco mais adiante, no caminho.

Maeniel se ajoelhou junto ao mercadorr. Sim, o homem estava respirando, mas inconsciente. O que podia fazer?

O céu estava muito escuro.

Poderia se converter em lobo e ir embora. Deixar aquele néscio. Os humanos eram poderosos em grupo, mas fracos individualmente. Se o deixava a mercê da tormenta, Decius morreria com toda segurança.

Maeniel era quente e compassivo por natureza. Muitos lobos da alcatéia, vendo as penalidades e problemas da liderança, ignoravam suas oportunidades de tomar o comando. Só os que eram como ele, aceitavam voluntariamente aquela carga. Ele suspirou, erguendo Decius nos braços. Um pequeno floco de neve pousou em sua mão. Para sua surpresa, os cavalos e a mula o seguiram, confiando no amparo humano.

Mais flocos de neve giraram pelo ar à medida que aumentava o vento. Mais à frente, Maenielnotou um campo aberto. Talvez tivesse moradas humanas por perto. Poderia deixar Decius, para que eles cuidassem do mercadorr enquanto ele seguia adiante. Mas ao deixar para trás a última curva, viu que o caminho levava somente até uma vila queimada.

Nem era um edifício tão elaborado como os do vale. Era somente grande casa rodeada por uma série de estruturas, protegido por uma paliçada.

A casa era uma pilha de escombros enegrecidos. A restante estrutura de fora não era mais que madeiros chamuscados entre a vegetação. Só restava uma em pé. Embora tivesse sido incendiada, só havia queimado um lado. O telhado veio abaixo, convertendo-se em um suporte. Aquilo serviria para dar proteção ao ferido Decius e aos animais durante a noite. O lobo não tinha problemas para sobreviver. Estava equipado para tudo o que pudesse necessitar. Uma vez que os deixasse a salvo ali, só teria que mudar de pele e abandoná-los.

Maeniel estremeceu. Estava nu e o vento atravessava sua fina túnica de linho, gelando sua pele. Os flocos de neve eram cada vez mais numerosos e grossos.

Ele apressou a marcha. O edifício semi-ruido tinha sido um estábulo. As casinhas haviam desaparecido, mas ainda restava um casebre contra uma parede e uma espessa camada de palha sobre o solo de pedra. Ele deixou Decius sobre a palha e desensilhou os dois cavalos e a mula.

Decius estava respirando, mas não mostrava indícios de recuperar a consciência. Maeniel o deixou com a cabeça apoiada sobre uma das cadeiras, cobrindo-o com uma manta que encontrou entre a carga. O trigo havia voltado a crescer em algumas regiãos do campo, o que lhe levou alguns minutos colher o suficiente para alimentar os animais. Depois acendeu um fogo. A lenha não era problema, com os ramos mortos que havia entre as árvores e os madeiros caídos entre as ruínas. O único problema era impedir que as chamas incendiassem o telhado.

Maeniel se sentiu confuso. Os cavalos e a mula mastigavam pacificamente e Decius dormia. Ele estremeceu ao olhar através das gretas da parede. A neve caía com mais rapidez, tornando difícil distinguir os perfis do bosque e os campos, à luz moribunda. As rajadas de vento agitavam os galhos, fazendo cair suas últimas folhas e estendendo a geada.

Um lobo uivou ao longe, outro o respondeu e um terceiro acrescentou um comentário. Um coro inteiro deu a réplica. Maeniel soltou um risinho. Ao que parecia, o tempo era ainda pior nas cúpulas e algumas das passagens estavam bloqueados pela neve. Haviam atravessado bem a tempo.

Poucos lobos que viviam no passar do rio estavam no coro que respondia a alcatéia da montanha. Os humanos os perseguiam mais que aos da montanha. Estavam preocupados... Algo a respeito de humanos do outro lado do rio.

Mas a linguagem dos lobos é lacônica e Maeniel não pôde averiguar muito mais de suas canções, mais que não caçariam aquela noite sob a tormenta, mas esperariam até o amanhecer. Era certo que haveria animais presos pela neve. Presas fáceis.

Ele se voltou para o fogo. O refúgio se tornara confortável. O vento do norte batia o extremo caído do telhado. O gelo e a neve se acumulavam sobre as paredes, selando o calor do interior. A espessa camada de palha isolava o solo.

Maeniel não teve necessidade de procurar na bolsa de Decius. Seu olfato localizou farinha, sal, salsichas e azeite. Havia aprendido umas quantas coisas com Imona, então não passou muito tempo antes de ter uma oleosa empanada cozendo sobre uma pedra plaina no fogo. Ele desfrutou do jantar.

Imona! Maeniel ficou em pé para se despojar da túnica e da espada. Um instante depois, se converteu em lobo e corria para a neve e a escuridão.

 

                                               Capítulo 7

Imona!

Os dias passavam, surpreendendo-a às vezes, parecendo fluir rapidamente do amanhecer ao crepúsculo, enquanto ela estava perdida em suas lembranças do passado.

Em outros, se limitava a cambalear sobre seus torpes pés, com a mente vagando de um pesar a outro, cada tristeza levando consigo lágrimas que não faziam nada para aliviar sua dor, mas a deixavam com os olhos avermelhados e dores de cabeça.

Havia mulheres, criadas dirigidas por uma dama bem vestida que jamais cruzava seu olhar com o de Imona. Preparavam a comida, trocavam sua roupa de cama e em certas ocasiões a banhavam, quando o desespero fazia com que ela se esquecesse de cuidar de si mesma. Mas nenhuma delas tentava se comunicar com Imona.

Nossas lembranças de tempos felizes não nos consolam quando a escuridão abre a garganta, esperando nossas almas.

Havia coisas que Imona simplesmente se negava a se lembrar. Seus pais, por exemplo, e sua infância na costa bretã. Mas se permitia recordar o mar. A água cor esmeralda rompendo contra as rochas e formando brancas espumas.

Ou a forma em que a luz mudava no amanhecer sobre a água, em um esplêndido arco íris de sutil beleza que distinguia qualquer alvorada ou crepúsculo, dos outros.

Às vezes podia sentar, fechar os olhos e sentir o cheiro do ar salgado. Inclusive se iludia em poder ouvir os gritos das gaivotas ou saborear a umidade da pálida névoa que chegava do oceano, detendo toda atividade ao longo da costa, envolvendo o mundo inteiro em seu silêncio, de alguma forma sagrado.

Não se incomodava em pensar em seu marido, sequer nos primeiros anos de seu matrimônio, quando haviam sido felizes e ele havia lhe dado duas filhas, antes que partisse, por desejo da família, para combater os romanos. Não pensava nisso porque sua mente se retorceria, tentando encontrar formas em que ela teria conseguido prever seu destino e impedir a mutilação que devastou de tal forma seu corpo e sua alma... Esvaziando-o de tal forma de esperança, que acabou por cometer o ato que significou a ruína para todos.

Quando pensava nele eram os piores dias, nos quais se negava a comer ou a se lavar. Cobria sua cabeça com o manto e chorava sem cessar por ele, por ela mesma, pela pobre e meio louca Kat, por seu lerdo mas amável marido Dê e inclusive pela velha senhora. Salvo Kat, todos estavam mortos entre as cinzas do que uma vez fora sua casa.

Mas havia dias que ela conseguia purgar a culpa e o arrependimento de sua mente. Naqueles dias, ela pensava nas montanhas e na primeira vez que as vira.

Como filha de uma nobre casa, havia sido enviada a seu marido em um carro coberto de peles, puxado por quatro bois brancos, previstos para o sacrifício na cerimônia de seu matrimônio, para contentar os deuses domésticos de seu marido e alimentar os convidados.

A princípio, viajar no carro tinha sido uma aventura. Além disso, a viagem se interrompia freqüentemente, ao se deter para serem tratados com atenção nas casas dos vassalos de seu pai. Mas uma vez deixado para trás o território familiar, o carro se convertera em uma espécie de prisão. Vivia ali, comendo e dormindo entre suas donzelas, podendo sair só um momento ao anoitecer, para se aliviar e tomar um banho se houvesse por perto um lago ou riacho, fortemente custodiada. Quando se queixava, a velha senhora que viajava com ela lhe pedia que tivesse paciência.

Assim, na manhã em que ouviu agitação e mais conversa que o normal entre os homens de armas perto do carro, arrastou-se atrevida entre as mulheres adormecidas, afastou para o lado a cortina de couro e se deixou cair junto ao condutor. Olhou para cima, boquiaberta e ouviu a risada do homem de barba cinza.

—É algo digno de se ver! As montanhas! - Disse ele. - Parecem sustentar mesmo o céu.

Certamente. Era pouco depois da alvorada e os picos cobertos de neve estavam banhados pela luz dourada. As largas e esbeltas colunas de rocha seguiam envoltas em uma sombra azul. Uma onda de verde suavizava os altos prados e a névoa baixava entre os gigantes coroados de neve como rios de nuvens.

—É aonde vou? — Perguntou ela.

O condutor assentiu.

—Então eu gostarei. Estou segura.

E não se equivocava. Breves mas formosos verões, compridos e preguiçosos dias cuidando rebanhos de vacas e ovelhas em pastos além das árvores. Incríveis outonos nos quais frutos de todo tipo pareciam competir pela atenção dos humanos. Pêssegos, ameixas e cerejas enchiam as plantas dos altos vales. Maçãs verdes, vermelhas, rosadas e inclusive brancas criavam tal abundância que custava acreditar. As matas estavam enegrecidas pelas amoras e frutas. Veados, carneiros e alces vagavam pelos bosques. Quando voava a neve, todos caçavam javalis na espessura.

Levavam a vida de heróis. Caçar, lutar, jogar xadrez, entreter os visitantes com histórias e canções. No fim, fartos de carne de vaca e veado, presunto, queijos brancos e amarelos, pão normal e sem levedo, tudo regado a vinho italiano, hidromel e cerveja, ela descansava a cabeça sobre o ombro de seu marido e suas pálpebras começavam a se fechar antes que os convidados saíssem ou as últimas tochas se apagassem.

Às vezes, ela despertava e ele a levava a sua câmara. Em outras ocasiões, ele a tomava em seus braços e a carregava como uma menina. Estava rodeada por um mundo de delícias, antes... Antes que chegassem os romanos.

Sua mente se separava do sofrimento posterior. Para que se atormentar? Simplesmente tinha deixado de importar.

Seu o outro e único visitante era o chefe daquela gente. Cacique, magistrado ou o nome que fosse, chegava acompanhado por seus guerreiros, como se uma companhia de homens armados pudesse rechaçar a escuridão que a rodeava, flutuando sobre seus dias e suas noites.

Imona estava no canto da estadia. À medida que se aproximava o fim de ano e a colheita era introduzida nos celeiros, as noites eram cada vez mais frias. Tinha avivando o fogo, tentando expulsar o frio de seu corpo.

Ele bateu na porta.

—Adiante. - Disse ela e ouviu a chave girando na fechadura.

O chefe entrou, rodeado por seus homens. Um golpe de ar frio entrou com eles.

Imona ficou em pé. Embora usasse um grosso vestido de linho sob o tosco manto de lã, estremeceu.

—Fechem a maldita porta. - Rugiu o chefe. - Onde se criaram, bastardos, em um estábulo? Vamos nos congelar!

A porta se fechou de repente.

—Malditos! Não disse para que me deixassem surdo, só que fechem essa puta porta!

—O vento... — Começou a explicar alguém.

—Oh, cale-se! Cale-lhes de uma vez! Não voltem a me interromper!

Fez-se um absoluto silêncio.

Imona esfregou as mãos. Estava misturando farinha e cerveja frouxa, para fazer seu café da manhã seguinte. Considerava a farinha bastante suspeita, pois estava cheia de farelo de cereais e com freqüência ela encontrava fécula de bolota e raiz de espadaña na mistura.

O chefe pigarreou, para limpar a garganta.

—Sou Cynewolf, líder desta gente. Vim perguntar como está, minha senhora e se necessita de alguma coisa. - Embora tivesse começado com força, sua voz terminou a frase, bastante trôpegamente.

Imona sentiu uma maliciosa diversão e decidiu não mostrar piedade para com ele.

—Quando eu era a esposa de um granjeiro nas montanhas, ninguém recordava que era a filha de um rei. Agora, aqui, com meu destino se abatendo sobre mim, sou reconhecida e honrada pela classe de minha família. Obrigado, senhor Cynewolf, por suas saudações e respeito. São com o frio vento que penetra pela porta. Embora o vento mostre mais gentileza. Pode ir, meu senhor. Deixem-me sozinha.

Cynewolf parecia incomodado. Esse desconforto o honra, pensou Imona. Demonstrava que não queria fazer, o que devia fazer dentro de alguns dias, mas Imona suspeitou que aquele desconforto não o deteria. Não, nem por um instante.

Seu rosto tinha uma expressão erma e triste. Mas, como correspondia a um líder, ele estava cheio de resolução. Ele olhou para trás, para seus homens.

—Saiam. Deixem-nos. – Ele lhes disse.

Os homens obedeceram, empurrando-se e pisando uns nos outros em sua pressa em fugir.

O cacique atravessou a estadia até chegar junto à Imona. Depois de baixar um joelho no chão a seus pés, olhou as chamas com os olhos entreabertos. A farinha para o café da manhã de Imona repousava em uma terrina sobre uma pequena e baixa mesa.

Cynewolf pegou um punhado de farinha e o arrojou às chamas. Um penetrante aroma de queimado encheu a casa.

—Esta farinha diz tudo! — A voz de Cynewolf era uma severa mistura de ira e desespero. - Nossas boas granjas do outro lado do rio desapareceram. Foram queimadas anos atrás... Quando eu não quis lhe enviar cavaleiros para que o ajudassem contra os meus na Galia. Mas ao final, ele conseguiu sua cavalaria. Mas nunca pudemos voltar. As guarnições romanas nos rechaçaram. Este ano as mulheres recolheram montes de fruta do carvalho e espadaña. No inverno passado arrancamos a casca das árvores, mas mesmo assim morreram muitos dos nossos. Perdi meu filho maior o ano passado e minha filha mais jovem no anterior.

O cacique passou a mão pelos olhos, para afastar uma visão maligna e logo ficou em pé fitando Imona.

—Me mostraria misericordioso se pudesse, mas não é assim. Não me atrevo. O romano curtido e de bochechas fundas é uma calamidade para seu povo.

—Meu povo desapareceu. - Disse ela brandamente.

—Sim, mas o meu vive ainda. Esse romano não deve atravessar o Anel. Não deve!

—Pergunte à Dama! – Disse Imona. - Acatarei a resposta. — Ela tirou o colar de ouro do pescoço, entregando-o a Cynewolf. - Se ela disser sim, me devolva o colar. Se disser não, irei para a casa de uma de minhas filhas. Não serei bem-vinda, mas irei. Sou uma perita no tear. Encontrarei um lugar em alguma parte.

Cynewolf permaneceu em silêncio, dando voltas no colar em sua mão.

—É a filha de um rei. Devo-te isso. Sim. – Ele suspirou. – Acredito que lhe devo isso.

O cacique se voltou e saiu da estadia.

 

Os romanos.

Cynewolf caminhou para o rio. O Oppidum estava situado no alto. As pessoas reunidas se acampavam em grande número pelos pendentes que levavam ao salão principal e as oficinas apinhadas em torno da sede do poder. Ele percorreu a enlodada rua entre as moradias semidestruídas e queimadas pelos romanos em sua última incursão.

Fez uma pausa e olhou para cima. O sol brilhava no céu, mas soprava o vento do norte. As rajadas de ar que agitavam seu manto e atacavam suas orelhas tinham uma gélida mordida. O céu estava cheio de nuvens. Em alguns pontos eram bastante tênues e deixavam ver o azul no alto, enquanto em outros eram cinza e estriadas como o gelo do rio.

Sim, ele pensou, o rio. Apressou-se. Devia ter geado um pouco na noite anterior, pois de tanto em tanto, o barro rangia ao romper os cristais de gelo sob seus pés.

Ele podia se recordar de sua longínqua infância naquele mesmo assentamento felizmente ocupado na primavera. Não havia um, mas três ferreiros trabalhando, fazendo armaduras, espadas, utensílios de granja e muitas outras coisas que as pessoas necessitavam. Um ourives e sua família reservavam as melhores criações para os guerreiros e mulheres da família de Cynewolf... A família governante.

Mulheres, escravas e livres se apinhavam nos abrigos dos teares, criando esplêndidos tecidos. Os mercadors levavam algumas peças tão longe para o norte, como a legendária terra dos pictos, perdida nas névoas hiperbóreas e outras tão longe para o sul, que esquentavam os romanos frente à úmida miséria do inverno mediterrâneo. Presunto, toucinho e salsichas enchiam os defumadores, escurecendo nas espessas e frias nuvens, ou curando-se em sal no interior de porões frescos, mesmo no verão.

Mas acabara. Uma vez, sim. Uma vez tivera filhos e também filhas. Uma vez. Os deuses devem ser de madeira e pedra. Ele não tinha pensado que doeria tanto.

Havia chegado aos limites do assentamento e podia baixar o olhar pelo verde pendente até o resplendor azul cinzento da superfície da água.

Numerosos grupos de familia se agrupavam em torno de tendas e choças improvisadas de cortinas das carretas.

Sim, uma vez aquela gente parecia feliz. Guiavam cavalos e rebanhos de vacas, ovelhas e cabras. Seus carros estavam carregados de tecido, cerveja, maçãs secas, pêras, cerejas, presuntos e queijos da montanha. De noite, os fogos faiscavam vivamente enquanto os matrimônios eram contratados, os regateios concluídos e todo mundo ficava de acordo com alguém mais. E as noites terminavam com banquetes, narrações, poesias e canções sobre uma cortina de fundo de chamas e tantas brasas volantes que rivalizavam com as estrelas do céu noturno.

Agora, os homens junto aos quais passava desviavam seu olhar e as mulheres ao ver o colar de ouro em sua mão puxavam de seus filhos para trás de suas saias, tocavam os amuletos que levavam no pescoço e tentavam fingir que Cynewolf não existia.

Mesmo ali onde o sol brilhava ainda, eram de pele cinzenta, fisionomias afiadas e atitudes temerosas. Seus carros, antigamente transbordantes de produtos para a venda e o comércio, estavam vazios.

Ele desceu pelo pendente, para as árvores da margem. Quando chegou à água, envolveu-se melhor em seu manto. O vento soprava com força, fazendo com que o ar parecesse mais frio do que se podia esperar, tão perto do meio-dia.

A luz do sol aparecia e desaparecia. Os salgueiros penduravam-se sobre o riacho, com os longos galhos inclinando suas folhas de cor verde amarelado e forma de lâmina, para a agitada superfície. Quando o vento se acalmava e brilhava o sol, os galhos castanhos e as folhas amarelas se refletiam nitidamente nas tranqüilas águas, como se o rio tivesse dado um irmão gêmeo ao salgueiro submergido.

Uma menina gargalhou em alguma parte.

Os deuses eram de madeira e pedra. Não sabiam nem lhes importava que a carne e o sangue, mais passageiros, sofressem. Arrojaria o colar à água. Deixaria ir Imona. Deixaria que envelhecesse como as demais mulheres, ante o tear, tecendo e movendo a lançadeira para frente e para trás entre as luzes e sombras projetadas por uma lamparina de azeite. Podia fechar os olhos e vê-la ali, com os seios baixando, os quadris alargando-se e o cabelo com mechas acinzentadas e depois prateadas, trabalhando até que o tempo dissolvesse sua pele e depois seus ossos, e a levasse como levava o rio, as douradas folhas do salgueiro.

A menina riu novamente. A luz do sol brilhou sobre o colar e o lago sob o salgueiro.

Ele viu a menina que ria refletida na superfície da água. Que menina? Ele soriiu e compreendeu que a menina era sua filha. A mais jovem. E então se lembrou onde estava sua filha.

Quando recuperou seus sentidos, estava ajoelhando A meio caminho pendente acima, segurando o colar com ambas as mãos.

Uma de suas esposas estava em pé diante dele. Alix, a primeira e maior de todas. Não a mãe de sua filha. Não! Ela havia... Não muito tempo depois de...

Ele entregou o colar a Alix, com mãos trêmulas.

— Leve-o à mulher.

—E o que lhe digo?

—Não diga nada. Não é preciso. Ela entenderá.

Depois que Alix partiu, Cynewolf ficou ali durante um bom momento, tentando se convencer de que não tinha visto o que acabava de ver e ao não conseguir, de racionalizá-lo. Mas não pôde fazer nenhuma das duas coisas. Assim que ficou em pé lentamente, pensando que suas articulações se endureciam com a idade, ele andou até sua morada e pediu vinho. Jarras e jarras de vinho.

O colar foi entregue Imona com uma só mão, enquanto Alix usava a outra para cobrir o rosto com o véu. Como havia ordenado Cynewolf, Alix não disse nada. Alix, o salgueiro.

Imona fez o mesmo que Cynewolf. Bebeu todo o vinho e a cerveja que lhe deram e contemplou como aparecia e desaparecia a luz do sol. Não naquela noite, mas no dia seguinte. Um dia a mais no mundo. Amanhecer e crepúsculo, nem dia e nem noite. Junto ao mar, nem água e nem terra. Um dia que não pertencia propriamente há nenhum ano. A noite mais Santa. Noite sagrada. A porta da eternidade. Imona estremeceu e sabendo que não havia nada mais a fazer, contemplou ociosamente o sol enquanto o vento empurrava as nuvens do norte.

 

 

O lobo estava se preparando para o frio. A tripla grossura de sua pelagem repelia a água e os fortes amparos de seu pelo não acumulariam gelo, nem nas condições mais frias e úmidas. As longas garras estavam isoladas contra o frio do solo e as garras e almofadinhas ofereciam uma boa tração mesmo sobre o escorregadio gelo. Seu tamanho já lhe dava uma vantagem sobre a maior parte de sua espécie. Havia poucos lobos que se avultassem tanto como um humano, mas ele sim. O grosso revestimento de gordura sobre seus músculos, a energia dinâmica que alimentava sua mudança de homem a lobo e viceversa, lhe servia também para isolar-se do frio das noites de inverno.

Sentia alguns remorsos por ter deixado Decius. O urso ou os outros lobos podiam encontrá-lo. Então ele se moveu em círculos, explorando os restos da granja incendiada. Logo descobriu que tinha sido o cenário de uma selvagem batalha com muitas baixas. Seu olfato de lobo, mesmo em meio aquele frio, descobriu os restos de incontáveis homens e feras.

A vila não era sozinha. Uma aldeia se elevara em outro tempo, além de seus campos. Os únicos indícios das estruturas habitadas pelos pequenos granjeiros eram alguns postes velhos e um rançoso aroma de madeira queimada. Também haviam deixado seus mortos. Em sua maior parte já tinham desaparecido, reclamados pela terra, mas o seco aroma dos ossos velhos revelou ao lobo onde jaziam.

Estava escuro. Nevava cada vez mais, mas o lobo cinza seguiu traçando círculos, tentando se assegurar de que os bosques não albergassem nenhuma ameaça para seu protegido humano. Não encontrou nada.

Os lobos não caçariam aquela noite. Os ursos? Só tinha um interesse ali: a colméia da árvore. Seus sentidos o teriam alertado da chegada do frio muito antes que ao lobo dos seus. Teria procurado sua toca com antecipação, fazendo provisão de gordura ou grávida das crias que nasceriam no meio do inverno. A colméia era como um jantar antes de se deitar.

Seu último círculo levou a lobo até o caminho. Mesmo as abelhas estavam tranqüilas. Haviam reparado os destroços causados pela ursa e permaneciam nas profundezas do tronco oco, isoladas pelo menos de uma grossa casca, madeira e serragem. Cada abelha estava com pelo menos outras três, pendurads em uma escura cortina que cobria suas larvas e o favo carregado de mel. Estavam quentes e cantavam. Brandamente. O lobo se deteve para ouvir.

Estavam contentes. A rainha estava viva e ilesa. A maior parte das larvas que necessitariam para repovoar a colônia havia sobrevivido também e o mel restante era mais que suficiente para agüentar os meses de frio.

Acima das cabeças dos insetos, os galhos começaram a ressoar quando a neve sobre elas se converteu em gelo sob o vento do norte. As abelhas cantavam também, à força da árvore, apesar de estar meio podre e falha pelo raio. Estavam convencidas de que era o bastante forte para protegê-las durante pelo menos outro ano. Durmam agora, durmam enquanto o mundo lá fora fica coberto pela morte branca. Durmam.

O lobo seguiu adiante, ignorando a estranha canção de berço. Ali, na fria e escura noite, ele encontrava em seu elemento.

Onde estava Imona? Supôs que a teriam levado para o outro lado do rio. Embora soubesse pouco dos fatos dos humanos era consciente de que o rio marcava os limites do poder de Roma.

Mesmo para um lobo tinha sentido que sua gente a levasse aonde os romanos não pudessem castigá-la pelos atos de seu marido. Mas uma vez mais à frente do rio, para onde a teriam levado?

Ele correu pelo caminho. Via melhor que qualquer humano naquela imprecisa escuridão cheia de neve e evitava as poças que podiam molhar suas garras. Aquilo não o incomodaria muito, mas ter que se deter para arrancar o gelo reduziria sua velocidade. Seu estômago começou a se queixar.

Um lobo sempre queria mais carne do que comia normalmente um humano. Maeniel ansiava por algo mais que o pão e o queijo que acabava de comer, mas podia postergar a caça vários dias, em caso necessário.

Não obstante, estava cada vez mais desanimado. Estava há vários dias viajando através de terras selvagens e havia passado quase uma semana desde que encontrara o último rastro de Imona. Não tinha provas de que ela estivesse ali.

A temperatura baixava rapidamente. Já não chapinhava nas poças ao se descuidar. O gelo estava se formando por todo o bosque, incluindo o caminho. Estava a ponto de renunciar, voltar e comer e se fosse possível, voltar ao refúgio para dormir, quando o aroma da fumaça de lenha chegou até seu nariz.

Ele aumentou a velocidade e ao passar a seguinte curva do rio, viu as tênues luzes de um assentamento próximo. Não eram umas poucas casas apinhadas em torno do embarcador de um transportador. O bote estava sobre a borda, meio encravado na neve e no barro gelado. As poucas e míseras choças que formavam o assentamento estavam bem fechadas contra a tempestade de neve.

O lobo se deteve confuso. E agora?

Olhou o rio. Estava com uma cor negra e seu resplendor oleoso ficava embaciado pelas massas de neve que se acumulavam sobre sua superfície.

O lobo se sentou. Maldita seja! Pensou o homem que compartilhava seu cérebro. Então ele elevou o olhar.

O céu estava coberto de nuvens. O acampamento do outro lado do rio anunciava sua presença mediante o vermelho resplendor de seus fogos refletido nas nuvens.

O lobo ficou em pé e trotou através da tela de arbustos que cobria a ribeira. Alguns ainda estavam verdes, e os espinhos e brotos desprediam uma entristecedora fragrância. Louro? Não. O olfato canino é vinte vezes mais poderoso que o humano. O lobo podia fazer distinções das quais nenhum homem seria capaz.

Seu focinho tocou um bago. Azul, tinha a essência do azul, aninhando entre folhas de brilhante verde escuro. Sua língua deu uma lambida, saboreando o azul, verde e o cinza do bago. Azul quase violeta, penetrante verde das folhas, com uma fragrância metade incenso e metade congelamento. E cinza, deslizando como a fresca névoa que descia das cúpulas até os vales da montanha, enquanto o sol poente brilhava sobre os picos, pintando-os com uma luz dourada quase insuportavelmente formosa.

Seu focinho encontrou outro bago e logo outrou e mais outro. O homem teria conseguido tremer de terror, sair fugindo. Mas o lobo contemplou o outro mundo e se deixou reclamar por ele. Para a fera, para o lobo, o ontem e o amanhã eram ilusões. O agora era tudo o que existia. O agora e o sabor dos frutas sobre a língua.

Estava em um jardim, na magia entre o amanhecer e a saída do sol. Ou era no pálido crepúsculo entre o pôr-do-sol e a noite? Sequer o lobo podia dizer, embora normalmente pudesse. A saída e o pôr-do-sol têm uma fragrância diferente. Mas não ali, com o ar saturado do perfume das moitas de frutas.

O frio havia desaparecido, sendo substituído por um agradável frescor. O rio também e um pequeno arroio, apenas capaz de cobrir suas garras, fluía em seu lugar, aas refletia belamente o profundo violeta e o débil rosa de um céu opalescente,

Tinham-lhe dado muitos mapas ao nascer. Um, dos céus que lhe dizia como passava cada dia, mês e ano. Outro, das montanhas e os segredos das estações. Pistas e caminhos quase invisíveis que podiam ser seguidas sob a luz do sol e das estrelas, a chuva e a neve; forma de guiar até tudo o que necessitaria na vida e, também na morte. Mas nunca havia recebido um mapa daquele lugar. Ele tomou o presente e talvez assim ficasse vinculado para sempre.

Abriu caminho através da espessura verde que resistia a neve, o gelo e a morte, descendo por uma suave pendente sem que suas cautelosas garras de lobo levantassem uma mancha, e subiu por outra suave costa, até que a neve arrastada pelo vento lhe deu na cara. Ele se encontrou contemplando um acampamento na colina, na outra borda do rio. O Oppidum, na borda oposta do porto do transportador.

 

                                       Capítulo 8

Ao lobo a neve não incomodava, nem o vento e nem o frio. Os lobos são animais de clima duro. Seus pés não se congelam e era agraciado que seu corpo podia reduzir a temperatura quase ao nível da neve congelada, sem prejudicar por isso a atividade e nem a circulação. Maeniel não era consciente disso, mas não sentia nenhum desconforto nem sobre a mais fria temperatura.

A pelagem inferior de um lobo é isolante. Os pelos exteriores impedem a entrada de umidade e como sabem todos os povos das regiões frias, não fica coberto de gelo. De fato, Maeniel se encontrava muito cômodo mesmo em uma nevasca como aquela.

Mas era consciente de que seu outro eu não seria tão afortunado. Então ele se encaminhou rumo ao assentamento que via diante dele. O lobo queria correr e encontrar Imona e se ela estivesse ali, mudar e levar-lhe. O homem lhe disse que não fosse estúpido. Como humano, ele morreria antes da manhã, nu e sem refúgio.

Não. Seria melhor pensar um pouco em como conseguir seu objetivo. Primeiro, encontrar Imona! Ela podia não estar ali. Se não tivesse encontrado o caminho aberto pelos frutas, talvez tivesse se rendido e dado a volta. Mas talvez não. O mais provável teria sido que tentasse atravessar o rio a nado e morresse ali.

Ao entrar no assentamento humano, ele descobriu que podia se mover com bastante liberdade. Seu pelo cinza tornava difícil vê-lo em meio a neve e os humanos de vista aguda para descobri-lo, o tomariam por um cão grande.

A princípio ele se moveu furtivamente, deslizando de uma sombra a outra, mas não demorou em se dar conta de que aquilo só serviria para despertar as suspeitas dos humanos. Enquanto trotasse tranqüilamente, com a cabeça encurvada, a língua pendurando e aspecto inofensivo seria ignorado. Ninguém acreditaria que um lobo fosse vagar entre os humanos tão despreocupadamente.

Não vai mal por ora, ele pensou até alcançar as portas do Oppidum, no alto do pequeno monte.

Protegia-o uma alta paliçada com grossas portas de madeira e spots de ferro. As portas estavam fechadas e dos dois lados havia tochas flamejando em cestos de ferro, o suficiente para permitir a três guardas armados e de aspecto formidável, uma boa visão.

Ele se sentou na escuridão, onde não podia ser visto, para considerar as circunstâncias. Estaria Imona ali? Não podia saber. O número e variedade de aromas gerados pelos humanos, suas feras, suas casas de pele e sua comida cozida era quase aflitivo para seus sentidos animais.

Mas então, um golpe de vento agitou a neve, obrigando os guardas da porta a voltar às costas, para proteger seus olhos do frio ataque e quase extinguindo as tochas da porta.

Sim, ela estava ali. Seu perfume. Seu corpo vivo. Um aroma quente e cheio de lembranças que só podia pertencer a ela. Ela estava ali. Aquilo não era um descuidado rastro sobre a terra úmida ou um pouco de cabelo preso nos espinhos de um sarçal. Era a mensagem comunicada ao ar por um ser vivo cujo coração pulsava, cujos pulmões se enchiam e esvaziavam do ar e cuja mente pensava e sonhava além da fria noite, as portas de madeira e a paliçada que lhe mantinha fora.

Sentiu um alívio mais profundo do que havia esperado. Não se tinha dado conta de quão temeroso havia ficado e nem se tinha permitido compreender a tristeza que o teria embargado se Imona tivesse desaparecido de sua vida e nunca mais tornasse a vê-la. Que espaço tão grande abriria em seu coração.

Para o ingênuo humano e o lobo inocente nele, tudo parecia simples. Cruzaria a porta, chamaria Imona e ela iria para junto dele. Estava seguro de que poderia dirigir a alcatéia e cuidar dela ao mesmo tempo. Podia ocultá-la não só de sua própria gente, mas também dos romanos se fosse necessário. Mas, como atravessar a porta?

Naquele momento ouviu o ruído de rodas, rangendo e chiando, esmagando a neve recém caída. A sombria forma de um grande carro puxado por mulas emergiu da escuridão, chegavao até a porta.

Um dos guardas olhou para o condutor.

—O que é isso?

—Pescado muito luxurioso.

O guarda meneou a cabeça.

—Pescado? Deixe-o aí fora, e passe pela portinhola. – ele disse assinalando uma porta menor na porta grande.

—O que? Está louco? Porque está se te arrisca que o senhor do lugar se inteire de que você deixa um carro carregado de comida onde podem ser roubado. Deixei seis barris de pescado salgado naquela chusma lá embaixo... – O homem disse assinalando as fogueiras disseminadas pela colina as suas costas. - Se souberem de que há comida aqui fora, ao amanhecer não restará nem um grão de sal nos barris.

O guarda suspirou ruidosamente.

—Posso me lembrar quando não era assim.

—Sim, eu também. - Replicou o condutor. Mas agora é assim. Abra as portas antes que me congelem os testículos. Estou há muito tempo em companhia deste pescado fedido e minha pele cheira mal. Quero um pouco de cerveja, uma cama quente e se for possível, uma mulher que não se importe com o aroma de pescado.

O lobo viu o que lhe pareceu uma oportunidade e se aproximou do carro, deslizando sob ele enquanto um dos guardas começava a abrir a porta.

Mas uma vez sob o veículo, ele ficou surpreso ao ver uma criatura. Era branca e pequena, abundantemente salpicada de manchas de cor escura e seu curto pelo fazia com que tremesse com violência. Começou a ladrar com força assim que o lobo colocou o focinho sob o vagão.

O homem blasfemou. O lobo grunhiu. Um animal mais inteligente teria guardado silêncio, mas o lobo não contava com o poder da estupidez. O pequeno animal se limitou a ladrar mais rápido e mais forte.

—O que acontece? — Perguntou o guarda.

—Um cão vagabundo, acredito. - Disse o condutor. - O pequeno é meu.

O guarda pegou um punhado de gelo e barro e o atirou no lobo. O golpe acertou dolorosamente as costelas do animal, lhe arrancando um ganido.

—Fora daqui! Fora! — Gritou o guarda.

Enfurecido, o lobo saltou para ele.

O guarda levava o típico escudo retangular dos celtas, uma armação de madeira reforçada com pele. Ao ver que o lobo se aproximava, ele se cobriu com o pesado escudo.

O lobo deixou escapar um ruído que parecia mais de dor que de fúria e depois retrocedeu como um caranguejo para a neve e a escuridão.

Quando recuperou o controle de si mesmo, o carro já havia passado e a porta estava fechada novamente.

A dor de seu pescoço e seu ombro passou a ser uma tortura, a algo mais ou menos passível, mas demorou bastante antes que ele pudesse apoiar a pata no chão novamente... E mais tempo, antes que fosse capaz de andar sem certa claudicação.

Depois de um momento, ele conseguiu liberar sua mente da ira, da frustração e a dor, convencido então de que nada relacionado com aqueles loucos seres humanos era jamais tão fácil como parecia.

No fundo do coração de cada canídeo espreita um vigarista. Ele ficou na escuridão, esforçando em ouvir a conversa dos guardas.

De algum jeito, ele havia conseguido erigir um abrigo perto da porta. Ao avançar a noite e fazer mais frio, cada vez eram menos os viajantes que interrompiam sua bebida.

A nevasca havia aumentado. Os flocos, que tinham começado como um fino pó eram já tão grosso, que era difícil ver além de vinte metros em qualquer direção. Sim, o vento muito forte pela tarde se apaziguou, mas então os flocos de neve caíam em vertical e acumulando-se, de forma que o lobo podia ouvi-los enquanto começavam a envolver a terra e cada estrutura perto do Oppidum, sob um grosso manto branco. O lobo deslizou para o abrigo dos guardas até que ficou o bastante perto para distinguir seus três ocupantes.

O maior, um gigante barbudo, já estava inconsciente. Ele roncava apoiado contra a parede. Os outros dois estavam sentados à mesa. Um dormia com a cabeça nos braços. O outro, um homem ruivo e narigudo, era o problema. Ele estava acordado e mal-humorado. O lobo se aproximou um pouco mais da porta.

—Saia daqui! — Grunhiu o homem, enquanto começava a procurar um projétil.

O lobo ficou de barriga para acima com um ganido, tentando mostrar uma total careta canina.

—Bastardo! Você tentou me morder e agora que te chutei o traseiro quer que sejamos amigos.

O lobo choramingou brandamente e se aproximou, arrastando-se sobre o ventre e meneando a cauda.

—Agora quer ser meu camarada... Que encanto. —A fala do guarda era um pouco confusa, mas pouco a pouco um desagradável sorriso foi se estendendo por seus lábios. Ele voltou a encher sua taça de vinho. - Vêem aqui – ele disse chamando o lobo com uma mão enquanto estava com a taça na outra.

O focinho do lobo já estava dentro do abrigo. Maeniel calculou o efeito provável de uma taça cheia de vinho sobre seus vulneráveis olhos e seu tenro focinho. Nada bom. Mas ele estava sóbrio e o ruivo não. Nem ele era um humano distraído pelos jogos de mãos. Mesmo assim, o ruivo era rápido e esteve a ponto de lhe acertar.

O vinho voou pelo ar, mas em vez de cair sobre os olhos de um lobo, salpicou pernas humanas. O guarda se encontrou olhando para o rosto de um homem. Um rosto forte, enérgico, mas com os mesmos olhos do que ele havia tomado erroneamente por um cão vagabundo.

Foi sua última visão por algum tempo, já que um segundo depois o punho de Maeniel se estrelou contra sua mandíbula.

Os outros dois guardas não despertaram, e só um deles se agitou um pouco em sonhos. O que estava sentado à mesa grunhiu, se moveu um pouco e seguiu dormindo. O outro, apoiado na parede, não deixou de roncar.

Maeniel pegou a túnica, as meias e o manto do ruivo, mas teve a noção de lhe deixar com a roupa interior e o calçado.

Deteve um momento para se assegurar de que o homem seguia respirando; não queria nenhuma outra morte, como a do bandido. Depois saiu do abrigo. A paliçada não era nenhum problema. Ele saltou-a rapidamente e começou a procurar Imona.

Ela estava sentada na escuridão, envolta em seu grosso manto, quando a mecha do abajur se apagou. Não teve energia e nem a coragem para atravessar a gélida casa e reacende-la. Ficou recostada em seu canto, presa ao desespero emocional e a miséria física. A temperatura do interior igualava a tempestade de neve lá fora e começava a formar gelo nas paredes.

Tudo o que restava do fogo eram pequenas brasas vermelhas, que brilhavam e se apagavam com o vento.

A princípio, nem os ruídos a despertaram. Foi somente quando ouviu a voz dele sussurrando seu nome e quando ficou em pé e correu para as tabuletas que protegiam a janela. Alguém havia pregado uma por dentro e a outra por fora, formando um jogo de barrotes tão sólido como ele nunca havia visto antes. Mas somente havia um problema: estavam podres.

Seu grande punho rompeu a de abaixo, e depois fez voar a de cima. E ele viu o rosto de Imona, olhando-o da escuridão. Colocou a mão e entrou e ela tomou.

Imona a apertou contra sua bochecha, e ele sentiu uma cálida umidade. Por um instante se perguntou se tinha deixado de sopro o vento e a neve caía em vertical, mas logo se deu conta de que ela estava chorando.

—Acreditei que ninguém se lembraria de mim, que não importava a ninguém. Mas você veio. Recordou e se preocupou. Por isso eu te amo.

As faces e os lábios de Imona eram como veludo e seda sobre seus grandes e duros dedos.

Ele era um homem. Piscou, fitando a escuridão da rua coberta de neve. Sim, usava a túnica, as meias e o manto do guarda da porta, mas estava descalço. Seus dedos já estavam congelando e cada polegada exposta de sua pele estava fria.

—Venha. – Ele disse, lhe apertando a mão. - Vamos embora daqui. Amar é... O amor é algo que ansia. Não posso entender bem, mas é dormir sempre com o estômago cheio, estar quente as noites ou encontrar lugares frescos, seguros e resguardados para descansar durante o dia. Posso te dar tudo isso. Caçarei e matarei por para você. Posso te afastar de sua espécie, que quer te fazer mal e a defenderei contra aqueles da minha, que a ataquem. Venha comigo, Imona. Venha... Sou livre. Esqueça esses estranhos e combatentes humanos. Venha. Só me custará um momento romper estes barrotes. Conheço um lugar em que posso te levar. Você estará bem e quente lá. Venha comigo já! — Ele a puxou pela mão, além dos barrotes. - Vêm! Temo que não tenha muito tempo. Tive que golpear o homem da porta e pegar suas roupas para chegar aqui. Ele ou algum de seus companheiros de bebedeira pode dar o alarme.

Ela soltou-lhe a mão, retrocedendo. Só podia ver a silhueta de seu rosto. Seus olhos eram buracos cheios de sombra.

Ela viu seu perfil. Deuses! Era um jovem, ela pensou. Fosse o que fosse era jovem. O que me espera em seu lar selvagem? Cada manhã me custa um pouco mais me levantar. Cada vez que tenho um espelho e pente, encontro mais cabelos cinza.

—Não. – Ela sussurrou brandamente. - Não.

—Por que não?

Sua voz soou tão forte na rua vazia que Imona temeu por ele.

—Sssh! Darão o alarme e o descobrirão!

O braço de Maeniel voltou a passar pela janela, tentando pegar novamente o dela.

Imona pegou a mão do homem, entrelaçando-a com a sua e apertando-a contra sua testa.

—Cale-se. Cale-se por sua vida, meu querido amor. Silêncio, por favor. Irei, mas... Mas não esta noite.

—Não? – Ele disse, voltando a baixar a voz. - Por que não?

—Por que... — Imona procurou uma explicação, alguma desculpa. - Porque devo fazer algo antes de ir. Algo que tenho que fazer. Amanhã.

Perto, um homem gritou.

Brilhou a luz de uma tocha.

—Lobos! Bandidos!

A mão desapareceu e Imona pode ver a forma de um lobo onde ele estivera de joelhos momentos antes.

Rapidamente, ela voltou a colocar as pranchas em seu lugar. Ele partiu e o momento ficou para trás. Imona compreendeu que havia decidido. Qual era tal decisão.

Lá fora, o pequeno assentamento bulia de atividade pelo alarme, mas Imona estava segura de que a perseguição seria em vão. Acrescentou um pouco de lenha as brasas que restavam, fazendo com que se avivassem. Depois jogou o resto da lenha no fogo que esquentou a casa e a encheu de uma brilhante luz amarela.

Passou o que lhe pareceu um longo momento olhando as chamas, sentindo uma estranha paz. Logo procurou seu leito e se deitou, ainda contemplando as chamas, sem sonhar com a vida ou a morte, só com as montanhas e em como elas se elevavam, elevando limpos campos de neve como facas para um céu azul escuro.

Os primeiros momentos foram muito ocupados para o lobo. Uma fêmea de javali afundara várias polegadas no barro, no mesmo lugar que ele tinha ocupado momentos antes. Por terríveis momentos, ele rolou preso na túnica e no manto e logo ficou livre, correndo pelo lodo gelado entre as casas.

Trotou desorientado, perdido naquele assentamento circular. Ficou algo confuso, quase até o extremo de se deixar pegar, quando repentinamente se deu conta de que estava em meio de uma rua com grupos de caçadores de ambos os lados. Afastava-se das tochas de uns, para se encontrar cara a cara com as de outros.

Como um lobo, ele não perdeu tempo com vacilações. Saltou para o telhado do edifício mais próximo, conseguindo se afiançar um pouco sobre a palha gelada. Quando chegou ao alto, ele pode observar entre a neve, a dentada silhueta da paliçada. Saltou.

O vermelho resplendor em seus olhos mostrou seus perseguidores indo atrás dele, por cima da paliçada. O lobo podia correr sobre uma camada de neve gelada, mas os humanos afundavam até os joelhos. Deixou-os para trás em seguida.

Tentou em vão voltar para o lugar que lhe tinha permitido atravessar o rio. Correu ao longo da margem, mas encontrou a porta fechada, os estranhos matagais verdes presos no gelo e os frutas congelados como escuros pedregulhos entre os ramos.

Movendo-se com o passo usado por sua espécie para cobrir longas distâncias, ele seguiu a margem por um bom trecho, mas sem encontrar uma saída. Finalmente se deteve em um ponto onde a riacho se estreitava entre os bancos.

O vento voltava a soprar com força, mas quase não nevava mais. Os flocos eram finos e tênues, como a princípio e no alto, as nuvens se separavam, mostrando partes de um céu cheio de estrelas.

O gelo ao longo de ambas as margens se tornava cada vez mais espesso. Atirou-se à água e não teve que nadar muito. Sacudiu-se até ficar seco, já na outra borda.

A culpa chegou às margens de sua mente quando, pela primeira vez em muito tempo, ele pensou no mercadorr romano. Guardou silêncio enquanto seus irmãos da montanha começavam a cantar. Estavam a caça, agora que a neve tinha deixado de cair e Decius estava ferido e indefeso. Talvez não tivessem interesse no homem, mas teriam nos dois cavalos. Os lobos podiam acabar com eles e Decius em um instante.

Maeniel começou a correr.

 

                                     Capítulo 9

Quando o lobo cinza chegou à choça, a neve seguia caindo abundantemente lá fora. Quando ele ficou em pé como um homem, encontrou-se duro de frio. Tremendo, vestiu novamente sua túnica. A choça estava às escuras. O fogo estava reduzido a brasas. Maeniel avivou as chamas, acrescentando madeira enegrecida, mas não queimadas de tudo ainda, que havia recolhido fora. As chamas iluminaram a choça, e ele notou que o lugar onde tinha deitado Decius estava vazio.

Ele chegou perto do fogo em busca de calor. Ainda não era o bastante humano para falar palavrões, mas começava a compreender por que os homens pareciam viciados naquele curioso costume.

Ficou em pé e baicou a cabeça para não golpear o crânio com o teto e olhou pela porta.

Nada, somente escuridão e pálidas nuvens de neve movidas pelo vento. No canto onde havia deixado os dois cavalos e a mula, algo soprou pisoteando o chão. Ele olhou para lá e viu a mula. A brida a prendia local onde estivera comendo. O animal puxava com força, provando a resistência de sua atadura, com os olhos em branco.

Maeniel se aproximou da porta. Estão lá fora, ele pensou. Arrancou a roupa e correu para a escuridão, mudando de forma.

Já não estava cego. O aroma era forte e procedia dos campos. Correu para o leve ruído de farejar que eles faziam. O primeiro que viu foram seus olhos, brilhantes na escuridão, refletindo a luz do fogo da cabana. Depois as escorregadias e letais formas cinza. Eles estavam investigando algo que havia no chão. Provavelmente Decius.

O lobo se perguntou se valia à pena se preocupar com o humano. Era muito possível que já estivesse morto. Mas uma vez assumido o amparo de Decius, sentia-se obrigado a continuar em seu papel. O que me diferenciou do cão, sob a carreta? Ele pensou.

Um fragmento de lembrança chegou até ele. Lembrança ou um sonho?

Eram os selvagens caçadores da tundra. Às vezes, quando o inverno parecia interminável e a fome não era uma vaga sensação, nem um amável instinto de caçar e comer, mas uma selvagem agonia nas vísceras, uma obsessiva cobiça, aqueles cruéis senhores da caça se voltavam uns contra os outros.

Assim foi como os lobos encontraram o pequeno e condenado grupo de mulheres e crianças fugindo através da gélida noite. Só eram quatro fêmeas e três crianças muito jovens para caçar. Pelos aromas que chegavam das fogueiras atrás deles, estava seguro de que a carne tirada dos ossos de seus homens assava no fogo de outra banda.

Aqueles fugitivos eram os únicos que haviam sido bastante rápidos para escapar. Os lobos se desdobraram atrás deles em um semicírculo, preparados para fazer deles suas presas. Embora fossem mulheres e crianças, os lobos tinham medo e esperaram até que eles se refugiaram sob um pinheiro caído, entre o tronco e o solo, livre de neve graças aos ramos. Os humanos não se atreveram a acender fogo por medo de seus perseguidore, e ficaram juntos na escuridão, tentando conservar o calor.

Mas a noite estava contra eles. A pior tempestade de neve de toda a estação varreu a geleira. Mesmo os mais fortes sentiram a intensidade do frio. Alguns, como o boi almizclero, formaram um círculo para proteger as fêmeas e crias. Os cervos, inclusive os gigantes, morreram congelados onde estavam, como os cavalos, os alces e as renas. Os mais velhos e os mais jovens morreram na gélida escuridão.

Mesmo os bem protegidos lobos sabiam que ficar em campo aberto era morrer. Então que se aproximaram devagar do refúgio dos humanos. Mostraram as presas ao princípio, mas a fêmea que guiava os fugitivos pronunciou a ordem de calma.

Os lobos machos se sentiam incômodos ante a idéia de atacar alguém tão saturado de aroma de fêmea como aqueles humanos. Para as lobas, as crianças cheiravam a toca, leite quente e pele suave. Uma criança começou a chorar na escuridão e sua mãe o levou a peito. Era algo que tanto humanos como lobos compreendiam.

As grossas pelagens dos lobos protegiam do frio tão bem como teria feito o fogo e os humanos encontraram um toque consolador em um mundo de morte gelada. Pois ali, a fera era mais amável que o homem.

Quando despertaram à alvorada, a mulher ou talvez a fêmea, ainda não de todo humana, soube que algo novo havia acontecido. Algo novo havia chegado ao mundo. Os homens teriam conseguido arruiná-lo: os homens arruínam as coisas tentando averiguá-las muito ou pior, desconfiando de um acontecimento incomum. Mas a aceitação é coisa da mulher e por isso ela aceitou os lobos que a rodeavam enquanto abria passo pela neve seguida de lobos e humanos.

Pouco tempo depois descobriu como sabia que aconteceria. Um pequeno rebanho de alces presos pela neve junto a um rio. Todos comeram bem aquela noite. O novo bando de lobos e mulheres viajaram juntos durante muito tempo. E os lobos seguiram sendo lobos, mas sempre eram bem-vindos aos fogos das mulheres.

A lembrança desapareceu enquanto o lobo cinza se aproximava do grupo. O membro mais alto e grande da alcatéia lhe cedeu o passo, caminhando lentamente e com as patas rígidas em meio a nevada.

Maeniel se aproximou do corpo de Decius. Sim, estava quente, ainda vivo e o que era mais aterrador, consciente, com os olhos muito abertos pelo medo fixos nos lobos. Maeniel ficou perto do mercadorr e grunhiu na cara do líder da outra alcatéia.

Outros lobos, mesmo o líder, pareciam indecisos. Valia à pena aquele andrajoso pedaço de carne humana atirado na neve? Valia à pena se arriscar a ser ferido se o grande estranho decidisse lutar pelo que obviamente considerava sua presa?

Maeniel avançou alguns passos. Os outros retrocederam, quase desaparecendo no redemoinho branco.

Maeniel se escondeu, baixando a cabeça e os quartos traseiros. Esperava um ataque por trás, mas descobriu que não era o objetivo da outra alcatéia.

Os animais que havia deixado no estábulo chiaram. Apenas um instante depois, a alcatéia avançou para ele.

Uma oportunidade e Maeniel se tornou humano.

Mas talvez fosse Decius que salvou a situação ao lançar o grito mais horrível que o lobo cinza já ouvira.

Os lobos fugiram aterrados, dispersando-se.

Maeniel pegou Decius, o jogou no ombro e saiu disparado para a choça. Ao entrar, foi deslocado pela égua de Decius, que se chocou com ele, derrubando-o e levando parte da parede de argamassa com ela. Havia um lobo sobre sua garupa e outro em sua garganta. A égua resistiu, inclinando-se para um lado. O lobo que tinha na garupa perdeu o equilíbrio e caiu sobre a neve. Logo se tornou para trás e o lobo que lhe mordia a garganta se soltou, deixando uma linha de feridas sangrentas em seu pescoço.

Está feito, pensou Maeniel. Agora terei que lutar contra todos. É provável que acabem conosco antes do amanhecer. Ele deixou Decius gritando e se debatendo na neve e entrou para pegar a espada e sair novamente.

A égua estava enfrentando a alcatéia de lobos. Maeniel deu um salto para ficar ao seu lado e lhe cravou a espada onde o pescoço se une a cabeça. O animal morreu imediatamente, com o sangue saindo de seu pescoço como uma fonte. Maeniel pegou Decius e entrou na choça.

Levou-lhe alguns momentos bloquear a porta. Logo ele avivou o fogo. Estava tremendo violentamente quando vestiu a túnica.

Decius se sentou, com os dentes tiritando e com suas extremidades de cor azul, agachado perto da mula e do cavalo que restou junto à parede mais afastada. Estava com o cabelo arrepiado. Maeniel nunca tinha visto um humano com o cabelo assim. Sabia que os humanos eram capazes de manipular seus folículos como os gatos ou os cães, mas nunca tinha visto acontecer.

Puderam ouvir os grunhidos e ruídos procedentes de fora, quando a alcatéia começou a se alimentar da égua morta.

—Aaah! — Gritou Decius. - O que vai fazer? Comer a mim também? Aaah!

—Não. - Grunhiu Maeniel, soando muito parecido a seus congêneres do fora. - Não comemos uns aos outros. Deixamos isso para vós.

Decius o olhou piscando, sem compreender.

—Matei a égua para salvar nossas vidas. - Explicou Maeniel.

—Você é um deles. — Os dentes de Decius se entrechocavam com tanta força, que Maeniel tinha problemas para lhe entender.

—Não. - Respondeu, quase caindo de esgotamento. - Não sou um deles, mais do que você é. — Ele se surpreendeu ao compreender que estava dizendo a verdade e descobriu lágrimas correndo por sua face. Deu-se conta de sua profunda dor, de sua pena por algo perdido que não podia compreender e nunca seria capaz de explicar.

Suas lágrimas pareceram tranqüilizar Decius. O mercador não podia acreditar que, fosse Maeniel o que fosse, pudesse sofrer tanta dor e depois cometer um ato de crueldade.

Compartilharam a comida e o vinho que restava. O calor do fogo dentro da choça fundiu a neve e o gelo sobre as paredes de fora, mas a água se congelou novamente, formando uma camada isolante. De fato, quase começou a ser acolhedor.

Maeniel não perguntou a Decius o que tinha acontecido. O romano parecia um tanto confuso e provavelmente lhe acontecia o mesmo. Decidiu que provavelmente precisaria dele para atravessar o rio no dia seguinte e poder entrar no Oppidum onde estava encerrada Imona.

Seguia decidido a resgatá-la. Pensava que ela não lhe tinha entendido. Devia entrar novamente e fazer com que ela ouvisse a voz da razão. Todas as criaturas masculinas acreditam estar do lado da razão. Maeniel não era uma exceção. Não tinha idéia do que pretendiam os habitantes do assentamento fazer com ela, mas conhecendo os humanos como os conhecia, não podia acreditar que suas intenções fossem boas.

Enquanto isso devia manter aquele estúpido romano com vida, o bastante sadio para lhe ajudar a conseguir seu objetivo.

Maeniel agradeceu aos poderes universais, que o vinho tivesse acalmado Decius. Ele estava enrodilhado sobre a palha, coberto com seu manto e muito perto do fogo, enquanto suas extremidades recuperavam a apropriada cor rosácea. Por um tempo, a dor de se recuperar do congelamento o distraiu dos ruídos que faziam os lobos ao se alimentar.

—Estarão ali pela manhã? — Ele perguntou a Maeniel.

—Não.

—Está seguro? Conhece-os bem?

Maeniel estava se esforçando para abrir um buraco na parede de argamassa, para observar o que acontecia lá fora. Voltou-se, dedicando a Decius um de seus longos e lentos olhares.

—A resposta é não. Não são meus amigos mais do que eram os bandidos, mas conheço bem os hábitos dos lobos.

—Isso, eu posso acreditar. - Murmurou Decius.

—Acredite. Sou uma autoridade no assunto. Esta alcatéia foi obrigada a descer das montanhas por causa da tempestade de neve. Provavelmente estão há dias sem comer, do contrário, não teriam se arriscado a se aproximar tanto das moradas humanas e nem do fogo.

Por fim, com a ajuda de um pau pontiagudo, ele conseguiu abrir um pequeno orifício através da parede e a crosta de gelo. Olhou para fora. As sombrias silhuetas cinza estavam ainda perto dos restos da égua e a neve estava quase parando de cair. Os flocos eram já pequenos e escassos. No alto, via-se a lua entre as nuvens e de vez em quando, o resplendor de algumas estrelas.

—Não, a tormenta de neve passou. Eles partirão quando tiverem se fartado e esteja a ponto de amanhecer O mais provável é que não voltem.

Decius deixou escapar um suspiro e se pôs a roncar. Maeniel se encolheu do outro lado do fogo. O interior da choça era agradavelmente quente. O cavalo sobrevivente e a mula dormitavam no canto do casebre. Maeniel contemplou a fumaça elevando-se para o teto, procurando o ponto mais alto onde o telhado se unia a única parede sobrevivente, enroscando-se até quase parecer líquido antes de escapar para fora.

Sim, uma vez éramos bem-vindos às suas fogueiras. Ele se recordou do rosto da mulher, onde ao lado havia descansado sob a árvore. Seus olhos se abriram cuidadosos. O lobo tinha tido uma visão heróica. Certo, as sobrancelhas da mulher não eram tão altas como eram as dos atuais humanos, mas ele vira em seu rosto o que podia chegar a ser um mundo dirigido pela inteligência. Aquilo e o conhecimento de que ambos eram aliados, seres vivos e quentes, carne e sangue, sentindo fome e amor. E fora, na crua noite gelada, no escuro e eterno frio de um ermo sem vida, estendia suas garras para tomá-los e encerrar suas almas em um negrume eterno. Ao fazer um pacto para combater aquilo, alcançariam a maior das vitórias. O antigo lobo havia compreendido e Maeniel fez o mesmo por sua vez. Dormiu como os lobos, com o sono leve e despertou quando a alcatéia da montanha rodeou seu refúgio antes da alvorada, para voltar logo para sua toca no bosque.

Eles saíram bastante depois do amanhecer. Decius procurou entre os vultos até encontrar um pouco de roupa para Maeniel, uma túnica limpa e meias. O mercador usava botas, mas Maeniel teve que se arrumar com meias e sandálias. Ele se sentia cômodo, embora o sol estivesse no alto e a temperatura houvesse aumentado.

Decius voltou a organizar seus pertences e selou o cavalo e a mula, sem mencionar nada do ocorrido na noite anterior. Uma ou duas vezes disse sentir-se um pouco enjoado e estava seguro que o golpe em sua cabeça lhe tinha entorpecido.

Maeniel não o contradisse. Quando saíram da choça, nenhum dos dois olhou para o lugar onde jaziam a cabeça, os cascos e alguns ossos da égua.

O mercador estava montado sobre o fraco cavalo castrado do bandido. Maeniel o seguia a pé, guiando a mula.

O sol já estava alto no céu quando eles chegaram ao caminho do rio. Alcançaram o transportador meia hora depois da viagem. A embarcação estava no outro lado do rio, então os dois homens tiveram que esperar. Decius evitava olhar para Maeniel.

O sol brilhava no céu. O gelo formado durante a noite estava se fundindo, umedecendo o bosque como se tivesse chovido. A neve fundiu salvo nos lugares a sombra e o rio brilhava como o diamante, mas o vento continuava frio.

Decius estremeceu um pouco ao sentir a brisa do rio. Retrocedeu para compartilhar com o Maeniel o refúgio que ofereciam os grandes corpos dos animais.

—Não... Não posso recordar o que aconteceu ontem à noite, mas sei que provavelmente você me salvou a vida.

—Mais de uma vez. - Replicou Maeniel.

—Isso eu pensei. – Ele lhe disse ainda, sem fitá-lo. - Me surpreendeu que não me deixasse abandonado ou levasse meus pertences. Contêm coisas valiosas.

—Não para mim.

—Não? Sim! Bem, depois do que vi ontem à noite posso acreditar que umas poucas bagatelas de ouro não o impressionem. Mas se é o ouro, o que quer?

—Necessito de sua ajuda para atravessar o rio e entrar naquele assentamento.

—E o que pensa fazer uma vez ali?

—Roubar uma mulher.

—Oh, não! — Gemeu Decius. - Não se dá conta do que nos acontecerá se ofendermos o cacique local? Oh, me ajude, pai de todos os deuses. Se Cynewolf não me matar, Fulvia fará com toda segurança.

—Quem é Fulvia? Deixe de choramingar e se explique.

—Fulvia é minha senhora. Eu sou um de seus libertos. Oh, irmãs de Zeus, eu era muito mais feliz como escravo e assistente de banho, antes que aquele sujo do Firminius decidisse que eu tinha um bonito traseiro. – Ele fez um gesto para o rio. - Acaso acredita que tinha vindo a este buraco miserável, gelado e cheio de gradeio por minha própria vontade? Sabe a quantidade de vinho que bebem estes selvagens?

—Provavelmente não tanto como os romanos – Disse Maeniel, exasperado.

—Bom... Pode ser que não... Oh, em nome de Isis, o que importa isso? É o bastante para encher de ouro as bolsas de Fulvia e da família Basilia, para não mencionar minha liberdade e a comissão que levarei.

—Mas você já é livre! — Maeniel murmurou as palavras entredentes.

Decius riu falsamente.

—Oh, sim, provavelmente segundo a lei e em teoria! Mas não posso imaginar Fulvia ou Firminius fazendo caso de nenhuma lei conhecida. Não. A verdade é que depende disto. Se eu não mantiver o monopólio de Fulvia com estes espantosos galos e agrados a esse enorme e peludo cacique do outro lado do rio, eles recuperarão parte de suas perdas me vendendo em um leilão. Já vi Fulvia fazer a outros que cometeram um engano no pior momento. Por favor, por favor. Rogo-lhe que não me meta em confusão que provocará, ao ofender a hospitalidade do cacique.

Maeniel soltou um grunhido que fez tremer os joelhos do mercador.

—Começo a acreditar que todas as coisas que não vi ontem à noite são certas – Disse Decius. Mas ao olhar ao seu redor, ele se encontrou sozinho. - Ele se foi. – Ele murmurou.

Estava começando a se sentir aliviado quando um grande lobo cinza saiu trotando do bosque e ficou junto a seu joelho.

—Não. - Murmurou o romano. - Ele não se foi.

O transportador se separou da margem oposta. Um homem que levava um pequeno rebanho de ovelhas, talvez oito ou dez, uniu-se a Decius no embarcadouro. Depois dele chegou uma dama sobre um esplêndido cavalo castrado, acompanhada por dois homens a pé.

Às ovelhas não gostavam nada do lobo cinza e se amontoaram em torno do pastor.

A dama desmontou, situando-se junto a Decius. Era obviamente de nobre de berço, como demonstravam suas jóias. A magnífica imagem de seu cavalo e os dois guerreiros bem armados que a seguiam deixavam claro que não era uma pessoa comum.

Usava uma pesada capa com o capuz arremessado para trás. Era muito bela, mas obviamente já tinha deixado para trás sua juventude. Havia fios cinza em seu cabelo adornado com cadeias de ouro e recolhido junto às orelhas. Era possível ver finas rugas em suas bochechas e pequenas linhas em torno de seus olhos.

A mulher ignorou Decius, olhando pensativa ao longe e contemplando a laboriosa travessia do transportador. Ela fechava a capa em torno do pescoço com uma mão, enquanto a outra estava ao lado de seu corpo.

O lobo aproximou seu focinho da mão dela. Aaah! Ele pensou, carne doce, limpa e perfumada. Carne de mulher. Aroma de mulher. Mulher, mulher, suave mulher. Aaah!

Ela sentiu seu contato na palma da mão e baixou o olhar.

—Oh, que magnífico animal. É seu? — Ela perguntou a Decius oferecendo sua mão ao lobo. Maeniel cheirou os suaves dedos com entusiasmo. Embora ninguém quer renunciar por completo sua dignidade, ele meneou sua grande cauda peluda.

Então ela lhe acariciou a cabeça, lhe coçando atrás das orelhas. A boca do lobo se abriu para lhe dedicar um grande e feliz sorriso.

—Tão bonito e tão bem educado... – Disse a mulher a Decius. - É afortunado em ter um animal tão esplêndido.

O lobo voltou à cabeça, para dedicar a Decius uma versão mais irônica de seu sorriso. Decius recuperou o controle de sua garganta e respondeu:

—Oh, sim, minha senhora. Ele... — Sua voz se fez indevidamente mais aguda, e ele teve que pigarrear. - Ele foi muito útil em minha viagem.

—Sim, bem. Pode ser, mas assusta minhas ovelhas. - Comentou o pastor.

A mulher lhe dedicou um encantador sorriso.

—Estou segura de que suas ovelhas não têm nada que temer com um homem forte como você cuidando delas.

O pastor pareceu ficar sem palavra. Decius suspirou.

A mulher voltou a coçar o lobo entre as orelhas. Para o experiente olho de Decius, seu companheiro aparentava estar extasiado.

—Oh, você é um bom menino. Estou segura de que quando chegarmos a fortaleza de meu irmão do outro lado do rio poderei te encontrar um bom e grande osso e com carne.

—Seu irmão! — Exclamou Decius. - Então, devem ser a dama Enid.

—Em efeito.

—Que agradável é poder lhes saudar! – Disse Decius. - Estou aqui para transmitir ao seu irmão as saudações da dama Fulvia e da família Basilia. Saudações e presentes de seus amigos romanos.

—Que amável de sua parte. - Ronronou Enid.

A dama respondeu bem ante a perspectiva de um bracelete de ouro respeitosamente devotado, quando chegaram ao outro lado do rio.

Foi como o lobo se encontrou sob a mesa no grande salão do chefe Cynewolf, ocupado com o osso prometido, enquanto Decius adulava e subornava seu anfitrião.

Havia coisas como duas deliciosas jarras de vinho em prata e bronze, com arremates em forma de cabeças de animais nas asas e nas tampas. Um serviço para seis pessoas, taças de vinho, um prato para bolos e taças com homens e donzelas nus sobre uma bandeja adornada com os mesmos homens, enquanto privavam as donzelas de seu direito a tal nome.

—Oooh, que atrevid! – Gargalhou Enid.

—São valiosas? — Murmurou o cacique enquanto as tateava.

—São de prata pura. – Disse Decius.

Cynewolf apertou o polegar contra o fundo da bandeja, sem que cedesse.

—Não acredito. A prata pura é muito branda.

—Bem, — cedeu Decius, - terá que misturar um pouco de metal mais vil com o precioso, para que este seja útil. Talvez isto os satisfaça mais – ele continuou lhe oferecendo uma dúzia de colares de ouro.

O chefe duplou um e grunhiu, ao parecer satisfeito com sua flexibilidade.

—Para estar seguros, - continuou o mercador com voz suntuosa, - esperamos para este ano o mesmo pedido de vinho... Ou talvez maior.

Havia outros dois homens sentados a mesa com o chefe. Um deles vestia-se ao estilo romano, toga incluída... Na realidade uma afetação, pois não era cidadão romano. O lobo não sabia, mas Cynewolf e o rico granjeiro sentado ao outro lado da mesa, sim.

O lobo examinou seu osso de cima a baixo. A carne tinha desaparecido arrancada pelas presas caninas e os molares traseiros. Cabia a possibilidade de que se rompesse e aquele osso era grande, mas o lobo mentalmente ewncolheu os ombros e mordeu.

Crack! O som reverberou na silenciosa sala. Todos os homens presentes se sobressaltaram e também a única mulher, Enid.

Decius estremeceu, sem saber muito bem por que. O salão, circular segundo o velho costume, estava coberto por um alto telhado cônico. O fogo, também de acordo com a tradição, estava enegrecido e apagado. A única luz era a do dia que chegava através do buraco para a fumaça do telhado. Outro cone na ponta impedia que entrasse a chuva e a neve, pelo que a luz que chegava era indireta e tênue. Uma mesa redonda, também tradicional, rodeava o fogo.

O cacique colocou o ouro a um lado.

—Não podemos falar de negócios hoje. Traz má sorte.

Decius limpou a garganta.

—Amanhã, então.

Mir entrou no salão. Usava uma larga capa escura que cobria seu corpo e um capuz sobre a cabeça. Nenhum dos três homens sentados a mesa olhou diretamente no rosto. Ele caminhou em silencio até a mesa e se sentou junto a eles.

Do outro lado da sala, Decius e o lobo o olharam. O osso rangeu novamente quando o lobo extraiu a medula.

—Amanhã. - Disse o homem sentado junto ao chefe.

—Amanhã. - Repetiu o homem da toga.

—O dia de hoje não é de bom augúrio. - Explicou Mir.

Decius descobriu que, por alguma insondável razão, estava com a boca seca.

—Enid - Disse Mir. - Vá e se assegure de que ela se lave e coma a papa.

A doce e amistosa expressão de Enid desvaneceu de seu rosto e a dama pareceu contrariada. Estava examinando distraídamente uma das taças de prata, mas de repente a deixou com um golpe sobre a mesa e dirigiu um olhar de fúria a Mir.

O ancião a encarou sem vacilar e Enid foi primeira a afastar os olhos.

Por um instante, o lobo pensou que ela parecia mais velha. A dama ficou em pé e, sem dizer uma palavra, abandonou o salão.

Decius tremeu novamente e se recordou que não tinha visto uma só fogueira em todo o assentamento apesar do frio. Sentia como se algo velho e escuro tivesse entrado na sala e se enroscado como uma serpente, esperando na escuridão.

O lobo gemeu brandamente sob a mesa, de forma quase inaudível e Decius compreendeu que seu peculiar amigo também o havia sentido.

—Falta pouco para o anoitecer. - Disse o cacique a Decius. - Vá à estadia que lhe deixamos, mas não acenda fogo. É proibido. Tranque a porta e não saia até a manhã.

—S-s-sim. - Gaguejou Decius se levantando. Havia pão, queijo e um frasco de vinho sobre a mesa; pegou tudo para levar. - Vou... Vou. Já vou. —E ele saiu.

O lobo ficou escondido e em silêncio, com o osso esquecido e o ventre sobre o piso. Lamentou não ter ido antes e ter se entretido com aquele miserável Decius. Lamentou não ter conseguido convencer Imona para que se fosse com ele na noite anterior.

O que tinha acontecido? Teria se assustado por causa da tormenta? Não sabia. O que estava acontecendo a seu redor? Não entendia os propósitos humanos e seus fins estranhos e às vezes contraditórios. Só sabia que desconfiava deles... Desconfiava até o fundo de seu coração e a medula de seus ossos de lobo.

—Quando? — Perguntou o chefe a Mir. O ancião não o olhou.

—ao esntrar do sol, entre o dia e a noite. Quando não é nem dia e ou noite, em um lugar que não é nem seco ou úmido, nem pedra ou terra. Então... — Mir levantou o olhar para o buraco da fumaça. A tênue luz se estava desvanecendo.

O lobo saiu do salão para a rua cheia de barro. O sol tinha entrado atrás da paliçada e por não haver tochas ou velas, tudo estava sumido na escuridão.

Onde estava Imona? Ele se deu conta que daquela vez não ia poder encontrá-la. Na noite anterior o vento estava soprando, levando consigo o fétido aroma das ruas cobertas de barro, lixo e refugos domésticos. Um aroma que afligia seu olfato e que reinava onde se congregasse um grande número de humanos. Naquele labirinto de indícios humanos, Imona estava tão perdida para o lobo como quando Mir a levou de sua granja no vale.

O lobo teve que se mover para evitar ser pisoteado quando de repente as ruas se encheram de gente. Todos estavam vestidos igual a Mir, com capas negras e capuzes. Não se olhavam uns aos outros e depois de uns momentos Maeniel compreendeu o motivo: algumas daquelas formas não estavam realmente ali, eram somente sombras que passavam através das paredes sem nenhuma dificuldade apreciável.

Perto dele havia uma mulher, muito doente ou assustada, já que o calor que despredia de seu corpo era visível para o lobo.

—Os mortos! — Ele gemeu brandamente. - Os mortos estão aqui.

Os pelos do lobo se arrepiaram quando outra figura encapuzada passou junto a ele, irradiando um frio fétido e letal. Estava no fundo de um gélido rio e os peixes lhe arrancavam a carne dos ossos. Sua mente desvaneceu: o simples medo da morte dissolvia toda razão. Só restava um vórtice de terror, desespero e amarga raiva.

Imona, pensou o lobo. Seu pensamento era uma imagem, a de um rosto de mulher sorrindo.

A multidão se movia em direção à porta e o lobo foi atrás dela. Ao cruzá-la, viu Imona.

Ela não se encontrava longe da porta e estava com Mir de um lado e Enid do outro. Ela era a única vestida de branco.

O lobo abriu caminho entre as pernas da multidão, tentando chegar até ela, mas era muito lento. Antes que pudesse se aproximar, Imona, Mir e Enid começaram a andar, seguidos por um séquito de homens... Homens prósperos de meia idade, com capas de tecido mais grosso que o de Mir e os rostos cobertos. O lobo captou o aroma da hostilidade, um cheiro ruim, entre a hostilidade e o medo.

Aquilo o forçou a retroceder. Alguém vestido de negro, cujas roupas não podiam se mover com o vento. Fedia e não tinha mais mente que o primeiro que havia sentido. Balbuciava insensatamente, odiando, odiando e blasfemando contra o abismo que o reclamava. Segurando com dedos descarnados tudo o que tocasse, inclusive a si mesmo.

A brisa soprou mais forte e os humanos encapuzados se apegaram as capas sujeitando-AS contra o vento. O ar era gelado. Apesar do sol que havia brilhado durante o dia, a noite seria fria. A neve da noite anterior fundiu e o caminho que tomaram Imona e Mir os conduziu ao longo da paliçada, para a parte traseira da fortaleza.

A vegetação sob seus pés estava marrom e murcha, com emplastros enegrecidos salpicando a grama. Quando a procissão chegou a parte de atrás da fortaleza, seguiu avançando colina abaixo.

O lobo estava já mais perto, e pôde ver que a túnica que Imona usava não era verdadeiramente branca, mas sim da cor natural da lã de ovelha, uma mistura de branco e cinza, com nervuras de cor óxido aqui e acolá, contribuídas pelos carneiros de montanha.

O sol estava já bem perto do horizonte e os longos e enviesados raios vermelhos derramavam sua última luz de ouro e fogo sobre os bosques aos pés da cheia.

Imona usava um colar em torno do pescoço e a luz do crepúsculo o fez brilhar. O capuz de Enid estava jogado para trás e o lobo pôde distinguir suas tranças enroscadas junto às orelhas. Imona parecia flanqueada por duas figuras negras muito parecidas com as que rodeavam o lobo.

Imona e seus companheiros entraram no bosque. A luz do crepúsculo era um resplendor vermelho entre as árvores nuas. A tormenta da noite havia varrido os restos do verão. Galhos que podiam ter conservado algumas folhas avermelhadas, marrons e amarelas estavam despovoadas por completo. Mesmo os carvalhos estavam nus.

A falange de olhos estranhos rodeou Imona e seus dois acompanhantes depois de deixar para trás um enorme tronco que se elevava como um pilar do mundo. Seus galhos estavam decorados com muérdago, verde sobre o marrom da madeira seca e com manchas de frutas brancos iluminados pelo crepúsculo.

Salvo por alguns dos gigantescos carvalhos, o bosque era baixo. As árvores eram pequenas, de tipo renascido. Em alguns pontos, os espessos matagais quase bloqueavam o caminho, obrigando o grupo a abrir passo entre eles.

O caminho terminava abruptamente em um buraco parcialmente cheio de água. Para o lobo, aquele escuro lago tinha um aroma tánico, turva, algo que contribuíam em parte, as folhas de outro enorme carvalho sobre o lago.

Imona falou em voz alta no silêncio do bosque golpeado pelo inverno.

—Aqui! — Ela se deteve, logo caminhou até a margem do lago e elevou os braços invocando a luz última.

O sol, tocando uma colina diretamente em frente a ela, brilhou sobre seu rosto.

O lobo piscou, mas Imona manteve firme o olhar na bola ardente enquanto ela afundava atrás da colina.

Um terrível gemido se elevou das figuras encapuzadas em torno do lobo. Um grito choroso de vivos e mortos.

Os braços de Imona caíram. O sol se fora, mas não a luz sobre a colina. O céu resplandecia e um claro crepúsculo azul enchia o vazio.

Enid ofereceu uma taça a Imona.

O lobo avançou. Já estava bem perto, apenas a alguns metros do pendente que descia até a margem. Quase estavam às escuras. Podia desafiar a qualquer, vivo ou morto, que o encontrasse na sombra, à noite e sob as árvores.

Seus olhos sondaram os rostos em torno da mulher de branco. Viu resolução em alguns e lástima, esperança, medo e fascinação em outros. Uns poucos pulsavam com algo mais escuro e ele tomou nota deles. O que estavam fazendo?

—Não! - Disse ela, afastando a taça. - Já tomei a papa, é suficiente.

Ela tirou os alfinetes que sustentavam o vestido pelos ombros e deixou que o objeto caísse a seus pés. Seu corpo estava branco sob o resplendor azulado.

O cacique avançou por entre as sombras atrás dela.

Imona tirou o colar do pescoço, entregando-o a Mir.

Então Cynewolf a golpeou com todas as suas forças na parte de atrás da cabeça.

O lobo ficou paralisado ante aquela brutalidade tão repentina e sem sentido para ele.

Mir tirou uma faca curva de bronze e abriu a garganta da mulher.

No momento em que a faca passou pelo pescoço de Imona, o lobo viu que ela estava condenada. Antes que o sangue alagasse a ferida, ele viu claramente os brancos tendões e a laringe que mantinham a cabeça ereta e davam forma à fala, se partindo e logo as longas e escuras veias, que levavam o sangue ao cérebro e de volta, cortadas em duas. Por mais velho que fosse Mir, seu golpe foi preciso e certamente misericordioso, embora Imona seguisse se movendo quando seu corpo despareceu no lago a seus pés.

Enid se voltou, cobrindo o rosto com o capuz.

O cacique estava de joelhos, com a cabeça sobre a terra úmida. Outros caíram ao chão, os vivos e os mortos, os culpados e os inocentes.

Só Mir permaneceu em pé, sua mão tremendo depois do corte, a espada em forma de foice ainda na mão.

O lobo se moveu como um pedaço de escuridão até chegar junto à Mir.

Enid descobriu seu rosto com um suspiro de alívio, um alívio que durou pouco ao reaparecer a face de Imona, poucas polegadas sob a superfície da água. Enid gemeu e voltou a tampar o rosto.

Umas poucas bolhas saíram dos lábios de Imona, subindo até romper perto das plantas aquáticas. Então, seus olhos, aquelas belezas de cor verde cinzenta nos quais tantas vezes ele se viu refletido, abriram para fitá-lo por um instante, como se fosse uma despedida. Logo se fecharam e seu rosto ficou oculto pela negra mancha de sangue que saía de sua garganta aberta.

Enquanto afundava no lago, Imona teve tempo para um último pensamento de queixa. A demora em morrer. Mas não demorou tanto, pois já não pensava nada mais enquanto atravessava a ponte da luz estelar para o silêncio definitivo.

 

                                               Capítulo 10

Não tinha passado muito tempo desde morte de Imona, quando o lobo visitou Mir. A alcatéia aceitara sua volta do Oppidum, mas não como líder. A loba, mãe da alcatéia, já gerando novas crias corria com um sobrevivente da alcatéia das terras baixas, expulsa pelos romanos.

Aquele lobo era enorme, embora estivesse um tanto maltratado. Faltava-lhe uma orelha e uma mecha de pelo branco em seu ombro marcava a cicatriz que lhe havia deixado o gladio de um legionário romano. Tinha uma das presas dianteiras quebrada. Era nervoso, cruel e rápido em ofender. Como resultado, o resto da alcatéia o temia e desconfiava dele.

Parecia ver todos os machos maiores de um ano como rivais. Em situações que o lobo cinza teria resolvido com um simples olhar de desaprovação, Ombro Branco lançava grunhindo. E em encontros mais sérios, atacava e mordia... Mordia forte.

O novo líder esteve a ponto de deixar aleijado um dos jovens machos por causa de alguns restos de pele. O transgressor passou uma semana coxeando depois ser mordido na pata e no pescoço. Depois daquilo, os jovens começaram a desertar da alcatéia, procurando companhia mais amistosa.

A fêmea não era um pouco melhor e entre as fêmeas o problema era bem mais grave. Eram as melhores e mais eficazes caçadoras e responsáveis, coletivamente, da maior parte das matanças.

Permaneciam virgens até os quatro anos. Esbeltas e poderosas assassinas capazes em caso necessário, de vencer em uma carreira ao íbice e a cabra montesa.

Elas também foram se distanciando e o lobo cinza soube que algumas delas também iriam embora. Mas não podia impedir. Teria conseguido desafiar facilmente o lobo Ombro Branco. Antigamente teria desafiado, mas nem a destruição da alcatéia parecia capaz de comovê-lo.

Uma noite decidiu visitar Mir e matá-lo.

O inverno havia chegado às alturas e o alto bosque de pinheiros estava coberto por vários metros de neve. A caça era cada vez mais escassa. No dia anterior, a alcatéia tinha conseguido meia dúzia de lebres, algumas marmotas e vários ninhos de ratos de campo desenterrados da neve. Não era o bastante e os lobos sabiam.

Naquele ritmo, não demorariam a morrer de fome. Só o lobo cinza tinha idéia do verdadeiro problema: os romanos. Custava muito alimentar aos trezentos homens que César havia destacados ali, permanentemente. Havia abundância de pão de trigo em seus armazéns, mas a carne escasseava.

Os soldados se dedicavam a caçar. Não estavam interessados no jogo limpo, mas na eficiência. Elaboraram uma espécie de grande funil e dispuseram arqueiros e lançadores em seu extremo inferior e mais estreito. Os legionários ocuparam seus postos como batedores, guiando os animais para o extremo estreito, onde seus executores esperavam.

O lobo contemplava tudo, oculto atrás de espessas matas.

Os soldados matavam, gargalhando e competindo por cada criatura que saía pela abertura do funil.

Nenhuma era muito pequena e nem certamente, muito grande. Pisotearam os ratos de campo e afogaram as ratazanas. Era um aprimoramento de reserva para os oficiais. A matança de cervos foi algo nauseabundo, pois eles chegaram muito depressa e não e não foi possivel matar com limpeza.

A branca neve se converteu em uma pisoteada massa vermelha sobre a qual os feridos jaziam em seus grunhidos ou tentando correr, com as vísceras se arrastando sob eles até que alguém os exterminava com uma tocha ou um dardo. Os cervos foram deixados para o final, pois não se separariam de suas mães, nem quando as cervas estavam rígidas sobre a neve ensangüentada.

As tenras crias eram outra delicadeza para a mesa do comandante. Os legionários as penduravam vivas pelas patas traseiras e lhes cortavam a garganta para que sangrassem.

Em algum momento da larga tarde começou a nevar novamente e os pequenos flocos iniciaram sua tarefa de limpar o cenário da matança, devolvendo a neve sua cor branca. Todos os animais haviam morrido e o único som que restava era o das maldições e queixa dos açougueiros enquanto esfolavam sua colheita.

Estremecido, o lobo se afastou, voltando para o lugar onde era o lar da família de Imona. O vale e o bosque ao seu redor eram um deserto branco.

O lobo entrou na caverna onde tantas vezes havia desfrutado do amor no verão e dormiu ali. Despertou o tempo necessário para beber e se aliviar e voltou a dormir.

Sim, certo. Eles eram definitivamente os senhores da criação. Ele não pensou muito no que tinha visto. Havia se decidido que não queria pensar.

No terceiro dia ele saiu disposto a se unir novamente à alcatéia e rodeou o lugar onde era a casa antes. O velho aroma da madeira queimada apagava outros rastros. Ele se aproximou da tília, no qual estavam muitos restos para lhe recordar que os ossos de Leão seguiam misturados com o danificado tecido que Imona tecera. O tear tinha sido de cedro e seus fragmentos cediam seu estranho e limpo aroma, do que era uma tumba. O lobo cinza voltou com a alcatéia.

Naquele anoitecer, Ombro Branco se levantou de seu leito na neve e depois de se sacudir, se dirigiu para o vale. Outros o seguiram. Quando Maeniel viu a direção que tomavam, se deteve e baixou as orelhas.

Seus pensamentos não eram os de um lobo. Ele sabia o quanto perigosos que eram os humanos.

Teria conseguido ficar na neve e retomar o sono ou simplesmente ter ido caçar em qualquer outra parte. Todos os membros da alcatéia eram livres, submetidos somente por seu medo em caçar ou sobreviver sozinhos. Ninguém dá ordens a um lobo.

Então as orelhas do lobo moveram para trás e depois para frente. Alguns lobos passaram ao seu lado e pareciam enganosamente aborrecidos, ninguém os teria considerado perigosos.

O lobo meneou suas orelhas novamente e se sacudiu para limpar s restos de neve da pelagem, em um gesto equivalente a encolher os ombros. Depois seguiu seus companheiros.

Poucas horas depois, os lobos descansavam na neve sob um dossel de altos pinheiros que cobriam as ladeiras em torno da fortaleza.

Se não fosse inverno e o terreno estar coberto por uma grossa camada de neve, os lobos teriam sido descobertos pelas sentinelas que percorriam as plataformas ao longo da paliçada. Mas na neve, sua camuflagem era quase perfeita.

O grande lobo cinza arrancou um pouco de gelo do pelo da barriga e determinou que os romanos não eram estúpidos. Eles haviam destruído as árvores mais próximas de sua fortaleza, para construir a paliçada e os robustos edifícios do interior. Aquilo fazia com que uma emboscada fosse virtualmente impossível. Os soldados protegiam qualquer pesoa que entrasse ou saísse da fortaleza.

Por que a observarmos, então? Ele se perguntou. Deu algumas voltas sobre si mesmo, cobriu o focinho com a cauda e voltou a dormir.

Despertou horas mais tarde. Ombro Branco se levantara e estava seguindo furtivamente um pequeno grupo de soldados que tinham saído da fortaleza em um carro. O tempo estava ficando pior. Embora a manhã estivesse muito avançada, o céu se tornara mais escuro e pequenos flocos de neve começavam a cair do alto. Um deles caiu sobre seu focinho e Maeniel pôde ouvir o suave rangido quando suas patas se afundaram na neve. Tudas as árvores que restaram em torno da fortaleza eram altos abetos, cujos galhos mais baixos estavam muito acima do chão. As pontas de suas taças estavam ocultas pela massa de nuvens que avançava sobre o passo.

Os lobos seguiram o carro, movendo-se perto de seu caminho, mas não sobre ele mesmo. O carro virou uma curva e voltou para baixo. As árvores estavam já mais perto umas das outras e os arbustos eram mais espessos. Já estavam fora do campo visual das sentinelas.

Os lobos se aproximaram. Não fizeram nada ameaçador, mas avançaram para o carro sem ser vistos.

A nevada se fez mais abundante. Os pequenos flocos pareciam quase uma névoa.

Presa! O lobo cinza tinha sido um líder durante muito tempo, para não querer observar o que caçava. Apertou o passo, mantendo-se fora da vista de seus ocupantes. Assustava-lhe um pouco ser visto, mas ao se aproximar viu que não havia nada a temer dos homens.

Os quatro legionários estavam sentados na parte traseira, tentando jogar, o que não era fácil no carro que balançava, e bebendo generosa embora disimuladamente, de diversas jarras de barro e um grande barril de vinho que levavam consigo. Às vezes se interrompiam, o tempo suficiente para amaldiçoar o velho soldado que conduzia o carro.

Tratava-se de um centurião, assim chamado por estar ao comando de cem homens. Eram a espinha dorsal do exército romano. Muitos eram bastante duros para romper rochas a cabeçadas, mas não era o caso daquele homem.

Os legionários, que supostamente mandavam, faziam o que lhes dava vontade. Antes ele havia sido um magnífico guerreiro, mas já era um homem velho e seus soldados jovens e uma vez longe do acampamento, tratavam-no quase como os cavalos que puxavam do carro. É obvio que não se atreviam fazer o mesmo no acampamento. Havia muitos suboficiais que recordavam os bons tempos de Druso e teriam castigado rudemente qualquer insolência.

Druso guiava o carro, pensando em que os homens que o acompanhavam naquele dia eram uns estúpidos. Pessoalmente, ele se sentia incômodo e estava seguro de que alguém os vigiava. Não tinha completa certeza, mas havia detectado movimentos furtivos, pela extremidade do olho.

Hirax, um germano das tribos aliadas era o líder daquele pequeno grupo, quando se tratava de comportar mal e obviamente havia decidido aproveitar aquela breve saída para buscar lenha, como desculpa para se embebedar como um porco. Os outros três, Marco, Statilius e Scorpus o imitariam com toda probabilidade, pois não reuniam um bom cérebro entre todos. E uma vez sob os efeitos da bebida eram mais estúpidos que a média.

Druso comprovou sua espada, o que restava de um honorável guerreiro. Sempre a mantinha limpa e afiada.

Passaram em outra curva do caminho e Druso deteve o carro a margem de uma clareira. Ali, com o bom tempo, uma partida numerosa de homens havia destruído uma dúzia de árvores, cortando-as em seções prontas para serem carregadas nas carretas e levadas a fortaleza.

Druso estremeceu. Os soldados ficaram em pé, baixaram a parte traseira do carro e desceram, se aproximando da pilha de lenhos.

—Acendam um fogo – Disse Druso.

Os soldados o ignoraram.

—eu disse que acendam um fogo, filhos de puta! Façam agora mesmo! Ou do contrário, ele moveu a espada em sua bainha, não me incomodarei em levá-los ante um tribunal. Eu mesmo matarei os quatro. —ele cravou o olhar em seus homens e eles foram os primeiros em afastá-los.

A clareira estava cheio de galhos mortos sob a fina camada de neve. Só demoraram alguns momentos em acender uma boa fogueira junto ao carro. Logo, os soldados atacaram a pilha de lenha. Cada tronco devia ser descido do alto da pilha, colocado sobre suportes e serrilhado em pedaços menores que coubessem no carro.

Druso ficou sentado no carro. Já sabia o que estivera seguindo-os e se sentia melhor. Um dos lobos havia entrado na clareira, deixando um bom rastro na neve. Já tinha sido seguido por lobos em outras ocasiões, e sabia que provavelmente não atacariam, a menos que vissem algo que lhes desse vantagem... Uma muito boa vantagem.

Ele já havia os encontrado em campos de batalha durante sua juventude. Os romanos tinham suas próprias unidades médicas, mas tal cortesia não se aplicava a seus inimigos.

Às vezes, os gritos do campo de batalha duravam quase toda a noite. Os cavalos também caíam e em certas ocasiões era muito difícil saber se os gritos de agonia eram de um homem ou um de animal.

Druso usava um pesado manto, mas não a capa vermelha típica do oficial romano. Era um grosso manto marrom debruado e ornamentado com folhas de salgueiro de cor verde, que tinha comprado de uma mulher alguns anos atrás. Era muito quente. Ele o ajustou mais ao corpo.

Sua mente seguia lhe oferecendo imagens de sua juventude. Ele pensava que se tornaria mais duro com a idade, mas não aconteceu. Os horrores experimentados ao longo dos anos e pareciam lhe perturbar profundamente, mais que antes.

Afastou sua mente do passado com um suspiro. Seu período de serviço terminaria em poucos meses, por fim e para sempre. Reengajara duas vezes e eles lhe deviam uma boa soma em conceitos de pagamentos e bonificações. Já tinha usado parte de seus lucros para comprar uma pequena granja nas colinas perto de Terracina.

Eram dez acres de vinhas e oliveiras, suficiente para lhe dar uma boa vida se as mantivesse produzindo. Seu primo Festus faria o verdadeiro trabalho de cultivar e colher. Ele e seus filhos estariam mais que dispostos a isso em troca de se converterem em seus herdeiros.

Uma vez tivera uma esposa, mas ela e seus dois filhos, que ele não estava seguro de ser o pai de nenhum, haviam morrido enquanto César levava a cabo uma campanha na Britania. Tinha acreditado que aprenderia a deixar de ter saudades com o tempo, mas mais tarde descobriu que não era assim. À medida que envelhecia, desejava mais e mais sua companhia. Ela havia sido uma autêntica arpía, mas também divertida e extranhamente solícita quanto a sua saúde e comodidade. Sentia falta de suas constantes brincadeiras e seus afinados comentários sobre seus companheiros de armas.

E, surpreendentemente, sentia falta da menina, a que estava bastante seguro de que não era dele. Era de quem mais sentia saudades. Como sua mãe, ela sempre estava conversando e sorrindo. Falava em sua própria linguagem, antes mesmo de aprender a formar as palavras.

O menino havia sido menos interessante, mas calado, firme e esforçado desde que era muito pequeno. Possuía a pele olivácea, com o espesso cabelo encaracolado de um verdadeiro latino e mostrava sinais de que seria robusto e musculoso como seu pai.

Mas desde sua morte, a única família que lhe restara eram Festus e seus dois filhos. A granja já não lhe importava tanto, mas queria se sentar ao sol em sua própria colina e contemplar o mar de esmeralda e lapislázuli rompendo contra as rochas. A espuma era branca. Branca como a neve que estava caindo...

Druso voltou bruscamente para a realidade ao se dar conta de que o ruído da serra havia cessado. Abriu os olhos e viu o pequeno Scorpus afastando-se para as árvores.

—Aonde acredita que vai? — Ele grunhiu.

Hirax se inclinou sobre a serra.

— Ele quer urinar e dar uma cagada.

—Bem, vá atrás de uma árvore e não se afaste. Há lobos por aqui.

—Lobos! - Bufou Hirax. - E isso é uma boa razão para deixar que se suje todo com sua merda? Além disso, eu não vejo nenhum lobo.

—Não, e nem os verá. Não até que eles queiram que você os veja e então já será muito tarde.

Scorpus observou Hirax e o centurião com um olhar bastante nublado. Seu nariz era grande e vermelho e ele o esfregava vigorosamente com a mão, fazendo com que parecesse maior e mais vermelho ainda.

Hirax olhou para Druso. O veterano fechou os olhos e deixou cair o queixo sobre o peito.

—Velho pedorro inútil – Disse Hirax para si. - Vá onde queira, Scorpus.

O legionário começou a caminhar para um grupo de carvalhos a margem da clareira. Na realidade, não queria fazer suas necessidades, Havia outra jarra oculta sob seu manto e ele estava procurando um lugar tranqüilo para acabar de esvaziá-la... Algum lugar onde seus companheiros não pudessem vê-lo e reclamar sua parte.

Havia muito acebo e muérdago crescendo entre os carvalhos. O bosque era como uma grande casa. Uma casa ultraterrena. A névoa era tão baixa que as árvores estavam perdidas nela. A luz era brilhante, um difuso resplendor refletido da superfície da neve e nos galhos que se sobressaíam.

As folhas e frutas vermelhos do acebo brilhavam em contraste com a onipresente brancura. Os ramos de muérdago eram mais altos, com seus frutas de cor branco-cinzenta, como fantasmas de frutas do verão.

Para Scorpus, as plantas eram uma moléstia a mais. Cresciam tão perto umas das outras que lhe era difícil abrir passo entre elas. Os agudos espinhos das folhas de acebo arranhavam seus braços e as mãos, ao ponto de fazer com que sangrasse. Era como se tentassem impedir seu passo, de maneira consciente. Mas ele conseguiu atravessá-las.

Um pouco por diante dele sobressaía um dedo da montanha. Tratava-se de um monte de rochas cinza, úmidas pela neve e coroadas por um matagal de abedules, com sua fina casca apenas um pouco mais escura que a neve ao seu redor. Havia vários lugares resguardados onde podia se sentar e terminar de beber o vinho sem que o interrompessem.

E é obvio, os lobos o observavam. Estiveram lhe observando desde sua cobertura de acebo, no momento em que se encaminhara para as árvores. Para eles, um animal que renunciasse o amparo do rebanho devia estar doente ou gravemente incapacitado de alguma forma.

Scorpus não tinha nem um indício de que Ombro Branco estava apenas a algums metros atrás dele, flanqueado por Maeniel à direita e a mãe da alcatéia à esquerda.

Maeniel seguia tendo cuidado. Era aquela, o tipo de caça em que pensava Ombro Branco? E em tal caso, entendia o novo líder da alcatéia sobre as possíveis conseqüências em se matar um homem? Ao que parecia, outros lobos sentiam o mesmo, pois haviam ficado bastante atrás dos três.

Scorpus se deteve.

Os lobos o imitaram. Ombro Branco despiu os dentes em um silencioso grunhido. A mãe da alcatéia se chocou com ele, como lhe urgindo a avançar, mas o líder não respondeu, limitando a permanecer paralisado com expressão de ferocidade assassina.

Scorpus levantou a túnica e com um estremecimento, o ar que chegava a sua pele nua era muito frio, começou a urinar, segurando o membro com uma mão. O jorro que se afastava dele descrevendo um arco abriu um buraco bordeado de amarelo na neve.

Voc e não os matou, recordou Maeniel. Oh, não. Você não os matou, nem quando ficaram com sua caça. E sempre podia matar outra vez. Mas se sua pele fosse parte da capa de um homem, para se proteger do frio, já não poderia matar nunca. Quando chegaram para te roubar, a primeira coisa que fizeram suas mulheres foi fazer uma fogueira com tudo o que havia à mão. Depois, o grupo inteiro avançou com galhos acesos em uma mão e lanças endurecidas ao fogo em outra. Às vezes, uma alcatéia de lobos defendia seu território, mas sempre perdiam. No inverno era um desastre para a alcatéia, que seus membros mais fortes morresem tossindo com os pulmões atravessados por aqueles dardos de madeira ou em uma lenta agonia por causa da infecção, incapazes de comer por estarem estripados.

Não, aquelas criaturas não eram presas aceitáveis. Enfrentá-las, simplesmente saía muito caro. Na vitória ou na derrota, a alcatéia que tentava encontrava unicamente a ruína.

Quando Scorpus terminou de urinar, sacudiu o órgão e voltou a colocá-lo cuidadosamente sob a roupa. Depois tirou a jarra de barro debaixo do manto e a levou aos lábios.

A loba soltou um ganido.

O medo deixou Scorpus tão frio como o gelo. Ele se voltou, com o frasco ainda na mão e viu os três lobos a poucos passos dele.

Ombro Branco se lançou contra o soldado. Maeniel ficou atrás, como a mãe da alcatéia. Ela tinha cedido à presa e ambos sabiam.

O ombro de Maeniel se chocou contra a fêmea, enviando-a pelos ares de patas para cima.

Scorpus estrelou a jarra sobre a cabeça de Ombro Branco. Ela não era o bastante grande e pesada para fazer verdadeiro dano ou aturdir um lobo de seu tamanho, mas ao se romper, seu conteúdo derramou pelos olhos e o focinho de Ombro Branco.

Por uns instantes, o lobo ficou cego e preso em uma terrível dor. Um reflexo involuntário o tinha feito aspirar ao ácido vinho, por seu sensível focinho.

Scorpus correu. Correram como tinha feito ao se unir as legiões quinze anos atrás, em sua juventude. Correu como não pensava que pudesse correr ainda, como um rapaz de dezoito anos e notou ante ele uma fissura na rocha. Pensou, não. Depois esperou que fosse bastante estreita e profunda para que os lobos não pudessem lhe alcançar se conseguisse entrar nela. Não! Ele gritou, sabendo quase instintivamente que seria esbanjar seu fôlego.

Ombro Branco seguia no chão, tentando limpar seus olhos e seu focinho infrutuosamente. A loba voltou com o resto da alcatéia, aterrada pelo que estivera aponto de fazer.

Maeniel se lançou atrás de Scorpus, mas o atraso havia sido o suficiente. O legionário se meteu de lado na greta, tão profundamente como pôde.

Maeniel foi atrás dele, quase alcançando sua mão direita. O homem sim gritou então, mas seus dedos encontraram um pedaço de pau, um grosso pedaço de galho caído das árvores de acima. Ele o passou para a mão direita e quando o lobo cinza atacou pela segunda vez, ele golpeou-lhe na cabeça.

Maeniel cambaleou para trás, aturdido. Scorpus entrou mais na fissura, aferrando-se seu refúgio como um náufrago a um pedaço de madeira.

Até então, Maeniel e outros lobos já haviam compreendido que Scorpus não sairia dali. De fato, pela expressão de terror do legionário, ele parecia decidido ficar na fissura até a primavera.

Maeniel não estava disposto há perder mais tempo com ele, não naquele momento.

Ombro Branco tinha conseguido se liberar dos piores efeitos do vinho, embora de vez em quando seguisse choramingando e dando tapas com a pata no focinho.

Maeniel se fundiu com os carvalhos e o acebo, desvanecendo-se com outros lobos. Tinha que pensar e naquelas alturas já era bem melhor nisso que a maior parte de sua espécie.

Parecia-lhe que o melhor seria partir em seguida e voltar para as montanhas. Com sorte, os oficiais da guarnição romana não acreditariam na história que contaria aquele idiota que seguia na greta da rocha, sobretudo se a neve, que ainda estava caindo, cobrisse seus rastros. Mas Ombro Branco e sua fêmea não cediam e Maeniel compreendeu que eles pretendiam ficar ali até matá-lo.

Druso seguia dormitando sobre o alto assento do carro, ignorando a marcha de Scorpus. Finalmente, ele despertou quando os outros três legionários começaram a carregar troncos no veículo. Depois de bocejar, ele contou seus homens.

—Onde está Scorpus? — Ele perguntou a Hirax e Statilius.

Os dois soldados deixaram os troncos que estavam transportando e olharam ao redor.

- Diss eque ia urinar. - Explicou Statilius.

—E algum de vocês idiotas, sabe em que direção ele foi ou quanto se afastou?

Eles não sabiam. Nem Hirax se deu conta.

Alarmado, Druso desceu do carro e arrojou algo mais de lenha ao fogo. Comprovou sua espada, assegurando-se de que estivesse solta em sua bainha e saísse facilmente. Logo começou a andar em círculo pela clareira, procurando rastros.

Por fim encontrou umas poucas depressões, que atribuiu aos pés de Scorpus. Mas havia pouca umidade e a neve estava tão seca que não recolhia bem os rastros. Aquele frio polvillo que não deixava de cair e enchia em seguida qualquer buraco.

Druso pensou brevemente nos rastros e levantou o olhar. O céu estava coberto, com as nuvens tão baixas que as copas das árvores estavam envoltas em branco. Ele não podia ver muito a distancia, na nevada. Voltou a comprovar a espada em sua bainha... Em um gesto nervoso.

—Irei lhe buscar – Disse Hirax com seu espesso sotaque.

—Não, não! Não irá! — Replicou Druso. - Se algo o pegou aí fora, também pode pegar você.

Hirax fez uma obscena referência aos antepassados de seu centurião, e acusou de ser um covarde.

Druso não respondeu. Não a princípio. O único sinal de emoção que ele deu foi que seus olhos se abriram ligeiramente, pelo menos em parte porque ele se deu conta de que Marco e Statilius os olhavam com atenção. Sentiu que aquilo era o ataque final a sua minguante autoridade sobre a corte. Se permitisse que Hirax o afrontasse, seus homens tornariam sua vida tão impossível, que talvez acabasse tornando sobre sua própria espada antes que chegasse sua esperada licença e seu pagamento. Mas também aconteceria com toda certeza se deixasse se levar por Hirax, a um duelo à espada. Não era rival para o jovem soldado e a derrota seria humilhante.

—Muito bem. – Ele disse. - Não é uma prova de coragem Hirax, mas se quer convertê-la nisso, adiante. Sirva-se você mesmo. — Depois ele se voltou, com expressão de absoluta indiferença. - Atenção! — Ele gritou aos outros dois legionários. - Carreguem o carro. É tarde e acredito que esta neve três vezes maldita cai cada vez com mais força.

Os dois soldados obedeceram entre grunhidos.

Druso ignorou suas queixa, afastando-se até ficar ao lado dos cavalos.

Hirax desvaneceu no bosque.

Druso recordou novamente como as profundas e azuis águas se tornavam de cor esmeralda à medida que as ondas se aproximavam da costa. A última vez que tinha conseguido visitar o lugar havia subido pelos pronunciados pendentes, caminhando entre as parras até chegar a abandonada granja de pedra tão parecida com aquela em que havia nascido e fora criado. De dia ou de noite, no inverno ou no verão, o ar ali era fresco e puro. O vinho, repousado em uma caverna de pedra calcária perto da casa, podia se beber em poucos meses.

Quase podia cheirá-lo, saboreá-lo, inclusive naquele momento. Recordava-lhe ao ar, com a doce manjerona, o orégano e o tomilho crescendo silvestres nas ladeiras da colina.

Envolto em sua toga eele passara a noite a sós ali, com o suspiro do vento entre os pinheiros como única companhia. A lua de prata flutuava entre os galhos carregados de agulhas enquanto o embalava o distante som do mar.

Como e por que, em nome de todos os deuses esquecidos da Toscana, ele havia acabado naquele miserável bosque gelado, congelando o traseiro e se preocupando com os lobos?

Amaldiçoou Hirax. Que Fortuna o enviasse a Hades, esse bárbaro jactancioso, filho bastardo de um porco e o deixasse ali para que chorasse entre os fantasmas sem enterrar, com o passar do rio Estigio.

Ao seu lado, um dos cavalos elevou a cabeça, soprou ar e golpeou o chão com uma pata. Para aquelas feras de tiro, adestradas para permanecer tranqüilas, mesmoem meio a batalha, quando moviam máquinas, aquela conduta era quase o equivalente a histeria.

Sim, pensou Druso, os lobos andam soltos, mas pagava para ver se os escorregadios predadores cinza eram perigosos.

Hirax seguiu o rastro de Scorpus até o matagal de acebo, amaldiçoando-o ao longo de todo o caminho.

—Onde se terá metido esse piolho imbecil? — Ele murmurou. - Scorpus! Onde você está?

Seu grito reverberou no silêncio nevado, parecendo ricochetear sem direção entre as árvores.

—Scorpus! — Ele gritou novamente. - Bastardo. – Ele murmurou depois entredentes. Em duas ocasiões acreditou ter ouvido gritos lhe respondendo, mas soavam muito amortecidos e longínquos para estar seguro de que não era o eco de sua própria voz, devolvido pelo bosque gelado.

Então se fixou em algo escuro e semi enterrado na neve, no lado batido pelo vento, de uma árvore caída. Voltou-se e caminhou para lá. Sim, era a jarra de vinho de Scorpus. Ele se inclinou para recolhê-la e quando seus dedos se fecharam sobre ela, tentou erguer para vê-la com a luz. Que estranho, ele pensou ao se dar conta de que ela parecia ter um peso enorme sobre as costas... Logo não soube e nem pensou nada mais.

Maeniel observou os outros lobos enquanto eles limpavam os ossos de Hirax. Atuavam de maneira furtiva, rápida e extranhamente silenciosa. Compartilhavam as mesmas lembranças que ele e compreendiam igualmente que estavam fazendo algo proibido.

Druso e os dois legionários restantes avivaram o fogo na clareira. O centurião notou satisfeito que os dois homens estavam cada vez mais nervosos ante a demora de Hirax em voltar com Scorpus.

O carro já estava carregado de troncos dispostos para ser cortados em tamanhos manejáveis na fortaleza.

—Provavelmente estão se abraçando para se proteger do frio em alguma parte. - Disse Marco.

Statilius olhou ao céu, que parecia mais coberto ainda. As nuvens tinham descido e a luz era cada vez mais tênue. Todos sabiam que o curto dia invernal estava chegando ao seu fim. Não precisavam falar para saber que nenhum deles queria ficar preso no bosque depois do pôr-do-sol.

—Se algum de vocês quer ir ver se os encontra, tem minha permissão – Disse Druso quase com doçura. Logo subiu no carro e pegou as rédeas.

—Vai deixá-los, então? — Perguntou Marco.

—Não. Mas há uma forma melhor de procurar. Venham, usaremos o caminho.

O lobo cinza se afastou discretamente do lugar onde estavam se alimentando os outros, para voltar ao refúgio de Scorpus.

Nevava com mais força. Ele olhou o legionário através do véu de flocos.

O corpo de Scorpus estava encaixado na rocha, mas estava com a cabeça volta para o lobo. Seus olhos estavam parcialmente abertos e ele estava com as bochechas, o pescoço e o nariz cobertos por uma fina membrana de gelo. Em seu rosto havia ficado gravada uma expressão de mortal terror, mas seus olhos não se moviam e tampouco nenhuma outra parte de seu corpo.

Está morto, pensou o lobo cinza.

Os dois soldados olharam um ao outro.

—Não sei... — Balbuciou Marco.

—Bem, pois vá e olhe. Está somente a cinqüenta passos do caminho! — Druso soava completamente exasperado.

—Não! – Respondeu o legionário. Suas mãos se crisparam sobre um dos barrotes do carro. A insubordinação era algo rudemente castigado no exército romano.

—Vamos. – Disse Statilius. - Eu irei contigo.

Os dois homens desceram do carro, equipados com suas espadas. O bosque estava em silêncio, salvo pelo rangido da neve sob seus pés.

Druso observou como avançavam para os pontos negros perto das árvores.

Ao se aproximar, os soldados compreenderam que estavam olhando para um bando de corvos pousados na neve, que comiam alguma coisa. Então, justo antes que chegassem até elas, as aves elevaram o vôo com um forte ruído de asas.

Havia ossos espalhados pela neve, ossos vermelhos recém limpos da carne. Estavam desordenados e quebrados. Nenhum dos soldados foi capaz de identificar o animal ao qual pertenciam, até que Statilius viu algo que parecia um crânio médio enterrado na neve. Ele aproximou-se daquilo e alongou a mão. O osso estava frio e escorregadio. Ele tirou a espada para voltá-lo para ele, com a ponta e se encontrou olhando um crânio humano. Uma de suas conchas estava vazia, mas da outra um olho azul lhe contemplava. Ele ainda teve um instante para pensar que, efetivamente, haviam encontrado Hirax.

Desde algum lugar não muito longe, chegou um horrível grito.

O lobo cinza pensou em Scorpus. Antes havia sentido piedade pelo homem, mas se estava morto... Bem, os lobos tinham fome. Os restos mortais do legionário podiam ser destinados a um bom fim, pelo menos do ponto de vista de um lobo.

Então ele saltou, colocando suas garras dianteiras de ambos os lados da fissura em que se colocara Scorpus, fechou os dentes sobre sua túnica e o puxou para fora.

O corpo de Scorpus estava bem encaixado em seu refúgio e ele teve que usar força, arqueando o lombo uma vez e outra. Não aconteceu nada. O lobo soltou um grunhido, tudo o que podia fazer com a boca cheia de tecido e insistiu com todas suas forças.

Scorpus piscou, voltando para a vida no mesmo momento em que era tirado de seu santuário. Caiu sobre a neve, junto ao lobo e gritou. O som era um grito de desespero.

O homem que o lobo havia acreditado morto momentos antes cambaleou até ficar em pé e começou a golpeá-lo com suas mãos quase congeladas. O lobo se abaixou retrocedendo, mas Scorpus o acertou na cabeça. O lobo soltou um ganido.

Ao ouvir o grito, Marco saiu disparado de volta ao carro.

Os lobos saíram do arvoredo da mesma forma em que uma mancha se estende pela água. Eram silenciosos e mortíferos.

Marco foi derrubado e morto antes mesmo de saber o que havia lhe golpeado. Statilius já tinha a espada desembainhada, o que lhe salvou a vida... No momento. Ele cravou sua arma no corpo de Ombro Branco. O líder da alcatéia estava ocupado arrancando o rosto de Marco, mas a fêmea atacou Statilius e lhe rompeu as pernas. Ao cair, o legionário se golpeou na cabeça com um toco, abrindo o crânio.

Sentado no carro, Druso tinha visto morrer dois de seus homens em menos tempo do que se levara para espirrar, mas ele era um veterano e não perdeu a cabeça.

O caminho era estreito e o carro apontava na direção errada. Sua vida dependia dos cavalos. E ele fez com que eles corressem para se afastar da matança. O estreito caminho acabava no dedo de rocha no qual se refugiara Scorpus. Os dedos de Druso estavam crispados sobre as rédeas. O centurião deteve bruscamente os cavalos.

Havia uma clareira a sua direita. Ele zez com que os cavalos dessem a volta, para voltar para caminho na direção contrária. Tudo parecia se mover com lentidão glacial, mas Druso não se atreveu a reclamar mais rapidez dos aterrados cavalos. Um deles poderia cair e romper uma pata, o que não só significaria seu fim, mas também o do centurião.

O carro começou girar e pouco depois Druso pôde sentir pela tração dos cascos dos cavalos, que estavam de volta no caminho. Então o veículo oscilou ao prender uma das rodas traseiras em um sulco oculto pela neve.

Druso começou a se desesperar, mas se manteve firme, jogando seu peso para a esquerda, para rebater. No mesmo instante ele ouviu um grito fantasmagórico. Ao olhar para trás, ele viu Scorpus encarapitando-se no alto do carro, arrastando-se para ele sobre a carga de lenha. Depois do soldado, lhe perseguindo, corria o maior lobo que Druso já vira em sua vida.

Scorpus era uma visão horrível, com o rosto e a barba cobertos de gelo e todo tipo de porcaria congelada. Havia vomitado depois de ser açoitado até as pedras. Tinha a boca aberta, um orifício vermelho em suas geadas facções. Não deixou de uivar enquanto se arrastava até o Druso e começava A lhe sacudir.

Druso desembainhou sua espada e golpeou com punho e pomo, o rosto do legionário. Sentiu como lhe rompiam os dedos, mas o rosto de Scorpus fez o mesmo. O soldado emudeceu de repente, caindo do carro para o caminho coberto de neve.

Livre do peso de Scorpus, a roda saiu do sulco. Druso se sentou novamente inclinando-se agônicamente sobre sua mão quebrada, enquanto os cavalos corriam de volta para a fortaleza, tão rápido como podiam.

O lobo ficou em meio a nevada, junto ao corpo de Scorpus. Na realidade não quisera que o homem muriese.

A neve caía com mais força. O lobo se sacudiu para tirar os flocos acumulados sobre a pelagem e mediu Scorpus com o focinho. Sim, ele estava verdadeiramente morto. O corpo jazia de costas, com as pernas ligeiramente abertas e os braços em cruz. Estava branco, agora que a neve começava cobri-lo... Branco salvo pela úmida mancha vermelha onde antes era seu rosto.

O lobo gemeu brandamente, logo se voltou e trotou por entre as árvores até o lugar onde se alimentava o resto da alcatéia.

A fêmea estava junto a Ombro Branco. O lobo não havia morrido ainda, mas Maeniel pode notar que não demoraria. Suas patas se agitavam, fazendo ruído e empurrando neve em todas as direções.

A fêmea elevou a cabeça e uivou. O uivo de um lobo é sempre algo sinistro e aterrador, mas daquela vez foi mais inquietante que a maioria, pois mostrava iguais medidas de dor e pena.

Outros lobos não prestaram atenção e seguiram se alimentando de Marco e Statilius. Tal como havia saído às coisas, Hirax mal tinha sido um aperitivo.

Ante o olhar do lobo cinza, começou a se formar espuma na boca de Ombro Branco. A espuma se tornou mais espessa e depois vermelha. Maeniel supôs que a espada devia ter lhe atravessado os pulmões. Com uma última tosse, Ombro Branco deixou sua vida fluir.

Algumas palavras em linguagem humana se formaram no cérebro de Maeniel. Já deixei de ser simplesmente um lobo. Mas ele não formulou a seguinte pergunta lógica. Se não sou um lobo, o que sou? Perder sua identidade era aterrador. Não queria saber de nada mais.

Ombro Branco havia morrido. O sangue seguiu acumulando em torno de sua mandíbula por uns momentos mais, e logo parou.

A fêmea não se alimentou com o resto da alcatéia. Permaneceu em silêncio junto ao corpo do líder. Uma série de grunhidos nas cercanias anunciou a Maeniel que alguns dos outros lobos havia encontrado o cadáver de Scorpus.

O lobo cinza seguia afetado por sua súbita consciência, mas tinha responsabilidades. Com Ombro Branco morto, ele era novamente o líder da alcatéia e o mais forte.

Mordeu a fêmea em um ombro, ligeiramente, rompendo sua pele. Ela se revolveu com um estalo de fúria, grunhindo instintivamente.

Mas ele não cedeu. Manteve-se firme, com os dentes nus e olhando-a.

Os olhos da fêmea eram um forno de loucura, vermelho vivo, mas Maeniel viu que sua raiva cedia pouco a pouco e a prudência ia voltando para seu olhar. A fêmea retrocedeu.

O lobo cinza se voltou, afastando-se a trote do cenário da matança e seguindo o carro para a fortaleza. Quando havia percorrido o que lhe pareceu uma suficiente distancia, deteve-se com as orelhas erguidas, em alerta, à espera, ouvindo.

Druso chegou à fortaleza semi congelado, incoerente e gemendo pela dor de seus dedos quebrados. Ao recuperar a consciência, encontrou-se sob edifício com teto de palha, que passava por enfermaria da guarnição. Estava rodeado por seus amigos veteranos, suboficiais do exército romano.

Suas lembranças eram bastante completas e ele sabia que sua conduta não tinha sido honrosa, sobre tudo no final com o Scorpus. Teria conseguido lhe ajudar? Naquele momento, estava tão assustado com os lobos que teria feito o que fosse para escapar.

Bem, havia escapado. Estava ali e a salvo. Quente e a salvo. A granja na costa junto ao mar azul o chamava. Nada se interporia entre eles. Nada.

—O que ocorreu? — Perguntou alguém. - Esteve balbuciando algo sobre lobos.

Druso lambeu os lábios.

—Não. - Disse. - Não havia lobos. Esse bastardo do Hirax e os outros... Atacaram-me... Para desertar.

Sim, ele pensou. Isso servirá. Se o comandante descobrisse que tinha perdido de tal forma o controle de seus homens, que haviam virado presa dos lobos, poderia lhe culpar por não ter mantido a disciplina. Talvez perdesse o pagamento que receberia depois de deixar o exército, o dinheiro que necessitava para subsistir o resto de sua vida.

Quem podia culpá-lo se seus homens haviam conspirado para desertar, atacando-o e o deixando ferido? Não, ninguém o faria.

Ele era um herói. Compreendeu vagamente que estava sozinho. Seus amigos haviam saído, sem dúvida, para preparar uma partida de busca e prender os malditos desertores. Druso soltou um risinho e então despertou de todo, realmente assustado.

Talvez eles encontrassem os cadáveres. Seus olhos, muito abertos, cravaram-se na vela junto a sua cama, que se dissolvia em uma poça de cera fundida. Deuses! E se encontrassem os corpos?

Mas logo ele se deu conta de que não o fariam. Mesmo através das paredes podia se ouvir o vento que batia no edifício. Preparava-se uma tormenta lá fora. Entre os lobos, os corvos e a tormenta, ele compreendeu que não encontrariam nada.

O lobo estava no caminho. A neve caía com mais força e o céu se tornou mais escuro. Podia sentir as pisadas, em vez de ouví-las.

Voltou-se, trotando para a alcatéia, que já havia terminado de se alimentar. Deu um latido baixo e logo partiu colina acima, para as montanhas. Os lobos o seguiram.

Ao seu devido tempo chegou à partida de busca. Já havia escurecido então e a neve cobria os ossos. Nem Druso nem os lobos eram culpados.

O lobo cinza encontrou um lugar resguardado entre as rochas da velha avalanche, para passar a noite. Estava perto do lugar onde ele e Imona haviam estado juntos, o lugar onde ele ganhou seu amor. De certo modo, ela seguia ali. O musgo da clareira conservava o aroma de seu corpo.

Os lobos encontraram distintos lugares onde seproteger. Às vezes em grupos de dois ou três, mas o lobo cinza observou que a fêmea permanecia sozinha, como ele, que havia se enroscado no buraco da rocha onde ele e Imona haviam feito amor naquele longínquo dia do verão.

Em algum momento depois da meia-noite, ele se arrastou fora do oco entre as rochas. A tormenta de neve havia cessado. O céu estava espaçoso e as estrelas brilhavam como fragmentos de cristal no negrume. O ar era frio, mas tão frio que o lobo sentiu sua mordida através da pelagem.

Devagar, silenciosamente, ele visitou o lugar onde dormia cada membro da alcatéia. Todos estavam profundamente adormecidos, inclusive a fêmea, embora fosse a que parecesse mais inquieta. Às vezes, ela gemia em sonhos e suas patas se agitavam. Logo voltava para a escuridão, além da dor e o medo e relaxava com um suspiro.

A neve já tinha alcançado vários centimetros de altura. A superfície não estava gelada, ainda. Na manhã seguinte haveria uma ligeira camada e de noite serviria como caminho para os lobos. Poderiam correr sobre ela como gazelas, preparados para atacar criaturas maiores, como íbices, touros selvagens, eleve ou cervos tão incautos, para se aventurar em profundas gargantas e ficarem presos.

O inverno é um festim para os lobos. Nem os romanos se atreveriam a subir até ali.

Mas naquela noite a neve não estava dura e lhe custou se afastar. Por isso era tão tarde, quando chegou à morada de Mir.

Nada se movia no campo coberto de neve. Seus rastros, e só os seus, marcavam a fria superfície da neve virgem que cobria tudo em silêncio, brilhando com uma sobrenatural palidez sob o céu estrelado.

Mir despertou sem saber o que havia interrompiao seu sonho e encontrou seu inoportuno convidado descansando sobre um banco junto ao fogo, com a cabeça apoiada entre as patas. Seus olhos brilhavam com o opalescente olhar do caçador noturno. O lobo elevou a cabeça, lhe contemplando em aberto desafio.

Mir olhou para a porta. Estava fechada, com a barra em seu lugar. Nenhum verdadeiro lobo teria conseguido entrar.

O animal se ergueu até ficar sentado diante dele.

Mir estremeceu. A casa estava muito fria. O último lenho no fogo se acendeu com um estalo, iluminando o interior por um instante.

A mulher de Mir se levantou ao seu lado. Voltou-se para o ancião, segurandp-se nele quando viu o lobo.

Maeniel retrocedeu, começando a grunhir. Sombras se reuniram protetoras sobre o rosto da moça, sombras que só o lobo podia ver. Uma voz sussurrou brandamente da escuridão: - Ela, sozinha, vive.

Não, pensou o lobo. As palavras elevando em meio às imagens que enchiam seu cérebro. Já não sou um lobo. Seria fácil matá-lo. Um verdadeiro lobo teria feito rapidamente e sem duvidar, mas eu... Eu tenho que olhar esse homem. Olhar em seus olhos e procurar sinais de culpa, de desejo, de necessidade e de medo. Quero que fique assustado, como devia estar ela, porque certamente ela sabia o que iriam lhe fazer. Por que ficou com eles? Por que não fugiu comigo? Acaso preferiu morrer nas mãos dos de sua própria espécie, a viver comigo?

Então a moça que estava grudada em Mir começou a chorar, gemendo como um animal ferido.

A casa escureceu quando os restos do fogo se converteram em brasas.

Quando Mir ajustou sua visão à escuridão, viu que a casa estava vazia. O lobo havia partido.

 

                                                 Capítulo 11

Quando Lucius liberou Fio depois de sua volta a Roma, Fulvia sofreu um violento ataque de cólera.

—Ele me custou uma fortuna e farei que inteire! — Ela gritou.

—O que? – Respondeu seu irmão. - Acaso considera minha sobrevivência um nada? Odeio ter que lhe dizer minha doce irmãzinha, mas me alegro em estar vivo e considero que tenho direito a mostrar alguma gratidão ao homem que me salvou a vida.

—Estúpido bastardo... Sempre foi um estúpido bastardo. Teriamos conseguido fazer uma fortuna com ele. Começam a lhe considerar como o melhor físico de Roma. Agora chegam a ele, membros das primeiras famílias. Um terço das tarifas que teríamos cobrado por seus serviços é bastante para esse pequeno verme. Acredita que irá bem ganhando tudo isso. Eu tinha o olho em uma dessas grandes vilas ao longo da costa junto à Ostia. Poderia ter tirado bastante para... Aonde foi todo mundo? – Ela perguntou.

Lucius olhou ao seu redor. O esplêndido jardim estava vazio. Mmomentos antes, um jardineiro estivera cavando junto a uma das colunas que sustentavam o alpendre, preparando a terra para plantar algumas plantas de frutas. Agora só restavam as plantas, com as raízes mergulhadas em uma cuba de água. Passeio abaixo, dois dos cozinheiros estavam recolhendo romeiro para o frango do jantar e uma das donzelas arrancando figos de uma sobrecarregada figueira que dava sombra ao caminho. Mas também partiram.

—Minha irmã. Bem poucas pessoas querem estar perto de você quando está de mau humor. Por certo, não volte a insultar minha falecida mãe, da próxima vez que se sentir irada por algo que tenho feito, pelo menos se quer que Fio deva lavrar um bonito jogo novo de dentes de marfim para você. Não lance calúnias contra a virtude de Silvia.

Fulvia deu um passo para trás. Um mês antes não se incomodava, mas já não estava segura do que Lucius era capaz de fazer. Os assistentes do banho que ela pagava para cuidar seu irmão haviam dito que a ferida estava curada e que ele podia com facilidade nadar doze voltas na grande piscina do tepidarium. Ela começava a pensar que tinha feito muito bom negócio ao comprar Fio. Aquele grego fraco tinha tirade Lucius das portas da morte. Não estava segura de sentir alegria por isso.

—Sinto muito. Peço desculpas pelo que disse. Não queria insultá-la, mas a você. Por que fez algo tão extravagante e estúpido sem me consultar primeiro?

—Extravagante? Estúpido? Fulvia, não notou que somos ricos? Mais ricos que muitas famílias senatoriais.

—Sim, mas não seríamos por muito tempo se eu não passasse o tempo economizando, economizando, vigiando nossos gastos. Os homens não têm idéia do que custa manter as aparências entre as famílias nobres de Roma. Só os custos mensais desta casa...

—Economize isso gritou Lucius. Fulvia enfurecida o assustava, mas Fulvia se queixando e choramingando era exasperante.

Fulvia deu um passo atrás, suspirando. Mas Lucius não viu o brilho satisfeito em seus olhos.

—Acredito que o que parece, parece, mas... —Seu queixo se fechou com um estalo e ela seguiu falando entredentes. - Esse pequeno e gordurento grego deveria estar desejando oferecer uma porcentagem de seus lucros em troca do patrocínio e amparo de uma ilustre família.

—A verdade é que deveria, sim. - Respondeuseu irmão com ligeireza. - E em que ilustre família estava pensando?

Fulvia saiu do peristilo para suas luxuosas habitações.

Lucius se encolheu quando ouviu a porta ser fechada com violência. Ficou sentado e quieto por um momento e logo pegou uma bolsa que tinha ao lado, para espalhar algo de amadureço sobre as lajes diante dele. Duas pombas desceram rapidamente e começaram a bicá-lo. O sol lhe esquentava o pescoço e as costas, mas a manhã de outono havia sido fria, e a sombra resultava ainda muito fresca para ser cômoda.

Fio entrou e se sentou no banco junto a ele. Algumas pombas mais se uniram as duas primeiras.

— Ela soava um pouco zangada. – Se aventurou a dizer o físico.

—Ele sempre se zanga quando acredita que perdeu dinheiro.

—Oh. E estão em... É possível que a sua família falte...

Lucius o olhou com expressão de absoluta perplexidade e depois começou a rir.

—Não. – Ele disse quando pôde parar. - Guarde seu dinheiro. Envie-o a sua irmã, a empresaria. É o que esteve fazendo todo o tempo, não?

Fio se ruborizou, com aspecto ligeiramente culpado.

—O fato é que... — ele se deteve. - Você é mais observador do que eu pensava.

—Sim, não sou simplesmente outro caipira romano que acredita que porque tem algo pendurando entre as pernas e um avô proconsul, os deuses, romanos ou não, deram-lhe o direito de pisotear no resto da humanidade como lhe agradar.

Fio arqueou as sobrancelhas.

—Foi você quem disse, não eu.

—Por outra parte, — continuou Lucius, - não sou uma alma confiada. Quando ficou claro que ia me recuperar, não sabia se Fulvia tentaria suborná-lo para que fizesse alguma coisa... Assim mandei investigar você. Recebi um bonito relatório, que em resumidas contas diz que você se sacrificou para salvar sua família.

—Devo te dizer, meu senhor, que conheci muitas pessoas más, que amavam devotamente suas famílias.

—Quer me dizer com isso que não confie muito em você? —Perguntou Lucius.

—Nesta cidade, eu não confiaria muito em ninguém. – Respondeu o grego. - Uma vez você me perguntou se eu era propenso a intriga e eu te disse que não. Mas não tinha idéia dos níveis de complexidade que podia alcançar a intriga, até que conheci esta rainha das cidades. Acreditava que os gregos eram enganosos, mas somos como crianças, comparados com quem se senta em seu Senado.

Lucius gargalhou, jogando a cabeça para trás.

—No verão, — seguiu dizendo Fio, - as febres e a disenteria levam muitos cidadãos de seu pequeno jardim e no inverno, uma aterradora quantidade de congestões pulmonares chega estas as moradias. Mas no inverno ou no verão, com chuva ou com sol, com calor ou com frio, a política acaba com mais dos ricos e bem nascidos que qualquer praga. Simplesmente ser escolhido para formar parte desse augusto corpo parece uma sentença de morte em muitas famílias, e devo acrescentar que suas viúvas não são melhores.

—Foi ver Calpurnia hoje? — Perguntou Lucius.

—Sim.

—Mmmh...

—Exatamente – Disse Fio.

—Que tal uma partida?

—Não com seu jogo de dados, obrigado. Levou-me algum tempo descobrir que você é muito bom. Até então, havia me considerado um bom jogador.

—Deixarei que você jogue os dados. - Ofereceu Lucius.

Fio procurou sob sua túnica.

—Por acaso, resulta que tenho...

—Pergunto-me se você está a ponto de começar uma má jogada.

—É possível. – Disse Fio.

—Fulvia está planejando uma carreira no serviço público para mim. E isso começa pela eleição para o Senado.

—Em seu lugar, eu procuraria outra profissão. O que te pareceria a de gladiador? Provavelmente é mais segura.

—Eu estava cumprindo meu serviço militar como preparação para ser escolhido, quando me feriram. Já sabe, a carreira de um jovem romano de família nobre começa no exército e logo o Senado, seguido por uma atribuição em...

—Conheço os passos no caminho do poder. - Interrompeu Fio. - Passei em Roma o tempo suficiente. Também sei que cada um deles está cheio de dificuldades, perigos e enormes gastos.

Uma das pombas junto ao pé de Lucius lhe bicou o tornozelo.

—Estão lhe dizendo que já comeram todo o grão... E me ouça, quando te digo que os pássaros são muito mais fáceis de alimentar e vê-los contentes, que o povo romano, meu senhor.

Lucius deixou cair um pouco mais de grão nas lajes. As pombas se lançaram sobre a comida com mais velocidade do que teria considerado possível.

—E também são rápidas – Disse Fio.

- Meu coração não está nisso. Não quero ser outro Casio, sequer outro César.

—Então certamente morrerá. – Disse Fio. - Se não dedicar todo seu coração, seu intelecto e sua força a tal empenho, fracassará. Posso dizer que não é o bastante arteiro nem tem o suficiente medo histérico da morte, por não falar do puro sentido de cavalo requerido, para alcançar a vitória na arena política. Você... Escolherá a partida equivocada, converterá-se em uma moléstia ou pode se tornar uma carga para alguns dos maiores e mais sedentos de sangue, moradores desse charco senatorial. Vai se ver enfrentando algum crime que não terá estômago para cometer, E... Por isso... Perecerá.

Lucius pegou a bolsa de grãos quase vazia e jogou o restante sobre a crescente quantia de aves.

— Já deve ter dúzias delas.

—Justo isso. – Disse uma das donzelas da cozinha enquanto jogava uma rede sobre elas.

—Deixe-as em paz! — Gritou Lucius a desafortunada moça, ficando em pé de um salto.

A donzela retrocedeu, com aspecto realmente assustado.

—Mas que diferença há, — ela balbuciou, - se as apanho aqui para o cozinheiro ou as compro no mercado?

—Compre no mercado. - Rugiu Luciu. - Estas são minhas e não deixarei que ninguém as capture, enquanto estejam sob meu amparo.

A garota começou a chorar.

—Oh, deuses imortais! Dê-lhe um pouco de dinheiro, Fio.

—Como sempre meu senhor, eu ouço e obedeço. - Replicou o grego enquanto colocava um pouco de prata na mão da garota e em seguida lhe sussurrou amáveis palavras de consolo.

A donzela partiu enquanto Lucius liberava as pombas da rede. Fio se voltou para ele.

—Vou retornar a Grécia. Minha irmã se alegrará. Meu pai se alegrará. Nunca pensei que fosse dever de um físico ajudar um paciente a se suicidar e certamente, não saltando dentro de um poço de serpentes.

—Sente-se e fecha o bico. - Grunhiu Lucius. Fio obedeceu, mas o romano pensou que ainda era cedo, para que se calasse. - Muito bem, vamos supor que eu que refugue a política. O que resta então? E o que digo a minha irmã?

—Diga a minha senhora que tome um banho no rio Estigio.

Lucius riu novamente.

—Não é difícil, — seguiu o grego. - De fato, acredito que o ouvi dizer algo similar justo antes que partisse, enquanto estava escondido atrás de um oportuno cipreste. — Fio estremeceu. - Zeus me valha! Essa mulher me dá medo. Acredito que era algo sobre perder os dentes.

—Pensei que devia defender Silvia, minha mãe. Sua vida já era bastante difícil quando estava viva. Hortensus, meu pai, não a tratou bem. Aquele piolho de testículos a batia sempre que estava de mau humor. Era-lhe infiel, contudo menos com os olhos das fechaduras, se é que elas se salvaram. Lembro-me que Fulvia era a filha querida dele. Ele espreitava a pobre Silvia e informava a Hortensus todos os seus movimentos. Se minha mãe bebesse um pouco de mais em um jantar com algumas damas amigas delas, meu querido pai se inteirava graças a essa pequena doninha da Fulvia, e ameaçava a pobre mulher com o castigo tradicional.

—E que castigo era?

—A morte.

—A morte? — Gritou Fio. - Oh, os romanos tomam muito a sério os assuntos domésticos...

—Não! — Cortou-lhe Lucius. - Acha que meu pai se atreveria a ofender os nobres Claudios? Ela era de melhor berço que ele. Meu pai era só um cavalheiro. Todos os meus antepassados consulares são da família materna. Nunca a perdoou por isso. Isso, e provavelmente sua primeira esposa, a mãe da Fulvia, converteu sua vida em tal inferno e miséria para ele, que o velho vagabundo nunca voltou a confiar em uma mulher, qualquer que fosse. Não sei, mas acredito que eu gostaria de confiar em minha esposa. Diga-me, Fio, poderia aproveitar o matrimônio se encontrasse a mulher adequada?

—Estão pensando em mulheres? — Perguntou Fulvia.

Os dois homens deram um pulo. Fulvia estava atrás deles, com um brilho especulativo nos olhos. —Como você gosta das mulheres... Gordas, magras, altas, baixas, loiras, morenas, ruivas, de pele clara, de pele escura? Posso comprar uma da África ou Grécia, o que queira.

—Fulvia, não sou um touro, um semental e nem um cervo. Estas coisas requerem... São assuntos delicados.

—Você é impotente. - Asseverou Fulvia.

—Sabe? – Respondeu Lucius com calma. - É bem possível que eu seja.

Fulvia adotou a expressão de alguém que mordeu uma maçã e encontrou um verme.

—Nenhum de vós vale nada. – Ela murmurou entredentes. - Fio, ajude-o a se banhar e se vestir, se ele ainda necessita. Temos convidados para o jantar desta noite.

—Quem? — Perguntou Lucius.

—César e Cleopatra.

 

Dryas chegou ao lago onde Mir pensava que Imona se encontrara com o lobo pela primeira vez. É hora de começar, ela pensou enquanto tirava a roupa lentamente.

Ela achava repulsiva a idéia da sedução. Só tinha tido uma experiência sexual em toda sua vida e a lembrança era espantosa. Mas Dryas era acima de tudo uma caçadora e, como todo soldado, tinha sido adestrada para fazer o que precisasse para vencer. Preparar para a batalha era um assunto sério. Podia perder a vida facilmente se a criatura lobo descobrisse suas intenções.

Ela deixou cair a roupa perto da rocha onde Imona costumava a tomar o sol, saiu do amparo da pedra e se meteu no lago. Era outono e o frio atravessou seu corpo como uma faça quando entrou na água. Seguiu descendo. O lago parecia muito inocente quando sua cristalina superfície refletindo as cores do bosque, carmesim, amarelo, castanho e pardo. Era tudo o que restava de uma extinta fumarola vulcânica. Uma lembrança das colossais convulsões que haviam construído as montanhas, milênios atrás.

Tinha esperado chegar ao fundo e nadar, como em um lago convencional, mas se encontrou afundando mais e mais naquele negrume. Ali, no negrume de seu coração, restavam rastros do feroz inicio do lago. Sua forma era cônica. Dryas notou que as paredes estavam se aproximando cada vez mais e em que fazia mais frio à medida que descia, embora o sol esquentasse a superfície.

Dryas se voltou sobre suas costas, vendo uma capa de luz prateada. Sentia a água fria sobre sua pele, mas como em sua juventude, parecia ter um fogo interior que se movia ao longo de sua pele como um escudo invisível contra o frio líquido ao seu redor.

Saiu à superfície, consciente de que a calidez da água não duraria, e nadou de volta à rocha.

Sempre sabia quando a observavam e agora ela estava com a mesma sensação. Ele estava perto, sem duvida. Depois da desagradável aventura de Blaze, nem homens e nem mulheres freqüentavam o lago e Dryas estava segura de que os olhos que a observavam não eram de todo, humanos. Chegou à rocha aquecida pelo sol, estendeu os braços e saiu da água. Esta batalha é uma sedução, ela pensou. Logo se voltou e se deitou na pedra morna, nua.

Para Dryas, sua atração era só uma arma a mais. Não tinha sentido desejo em muito tempo, não havia se permitido. Até a morte de seu filho, tinha sido uma rainha e o corpo da rainha entre o povo pintado não pertencia a ela, mas à linhagem real. Não lhe permitia se entregar a um homem qualquer. Não. Devia ser alguém aceito pela Assembléia. Não só tinha que ter mostrado coragem na batalha, mas também sabedoria e moderação em sua conduta e ser puro de corpo e de sangue, sem estar manchado pela loucura ou a deformidade da carne. Ele e seu filho seriam candidatos à majestade. Certo, haveria outros. Muitas das grandes famílias teriam jovens entre seus membros, se o filho de Dryas fosse considerado não apto.

O fôlego ficou preso em sua garganta e ela jogou a lembrança para o lado. Não, eu estou aqui para amansar este assassino, mas se possível, para acabar com sua vida.

Ela se deu conta, de que sua memória estivera a ponto de lhe apresentar uma imagem de seu filho, tal como havia lhe visto pela última vez, antes que César invadisse a Ilha Branca. Se aceitasse a carga de tal lembrança, cederia à prostração da dor e ficaria inutilizada para qualquer outra coisa durante muito tempo.

Fique quieta, disse a voz em sua mente.

Os olhos de Dryas se abriram e a mulher viu as árvores no alto do penhasco.

Feche os olhos, sussurrou a voz que parecia estar a uma imensa distância. Assim poderei te falar. Eu a ajudarei-a pegar o lobo.

Os bosques outonais eram tão formosos... Os pinheiros sempre verdes contrastavam com a cor parda dos carvalhos e o ouro vermelho do tremo e o álamo. As folhas dos esbeltos abedules tinham caído e os pálidos troncos destacavam-se entre outros.

Dryas fechou os olhos.

—Devo capturar ao lobo. – Ela disse.

Agora ele está te observando, mas não virá a ti.

—Por que não? — Perguntou ela. Fechou fortemente os punhos, crispada pela frustração.

Não sei.

Então a presença desapareceu.

Dryas adormeceu.

O lobo a observava. Sim, ela era formosa e havia chegado ao lago sozinha, quase como se desejasse encontrar com ele.

Desenvolvi um gosto por elas, ele pensou. Do contrário, não estaria olhando-a. Formosa ou não, ela não mostra o toque do desejo. É como alguém afastado. É como Leão. A diferença é que ela não tem uma aura de morte ao seu redor, mas uma forma de gelo lavrada pelo vento e a chuva, ou uma nuvem em forma de montanha ou cabeça de lobo. Algo que engana ao olho para que acredite o que não é.

Ele descansou a cabeça sobre as patas dianteiras e também dormiu.

O frio despertou os dois. O sol havia desaparecido quase por completo além das árvores.

Dryas levantou se estirando e se aproximou de onde estava sua roupa. Estava se vestindo quando viu a sombra entre as árvores.

Uma sombra como a que havia visto no círculo de pedra. Uma sombra não projetada por algo mais. Ela ficou paralisada, mas não por medo, mas por cautela. Já havia se encontrado com elas antes, mas era a primeira vez que estava tão perto de uma; e podiam ser perigosas.

A voz falou novamente em sua mente. O lobo está aqui.

Dryas olhou ao seu redor e ela e viu o animal observando-a de uma saliência rochosa, do outro lado do lago.

Quer ele? Deve tomar a decisão. Quer?

Na realidade, Dryas não queria voltar a entregar seu corpo a ninguém, pensou que podia ir, mudar seu destino e abandonar sua busca inútil para voltar com sua gente na Ilha Branca. Voltar para a Ilha das Mulheres. Seu coração ansiava. O silêncio quebrado somente pelas vozes de suas irmãs ou o grito das gaivotas na costa. Dali, poderia partir em sua última viagem e não voltar, não por muito tempo. Podia limpar sua dor e beber das águas do rio do eterno esquecimento.

Seu coração ansiava. Mas ela tinha um dever.

—Enfrentarei a garra da águia, a garganta do lobo. Não importa o sofrimento, não entregarei minha alma ao sono até que meu sangue se derrame pelos ferimentos da batalha e minha cabeça se separe de meu corpo. Nem abandonarei meu cacique ou meu dever, viva ou morta, até que tenha completado meu caminho e tenha alcançado a vitória. Isto é o que pedi e isto é o que entrego.

Olhos brilharam no rosto da sombra. Se quer ter o lobo, faça uma oferta.

Dryas procurou entre suas roupas até encontrar o broche em forma de papoula. Elevou o adorno e o jogou na água, onde ele desapareceu.

O desejo físico entrou em seu corpo como a água molhando um tecido, deixando-a tão frouxa como o linho molhado. Caiu para trás, com as pernas fracas pela compulsão, abertas sobre as agulhas de pinheiro. Seus olhos procuraram o lobo no crepúsculo, mas não o encontraram.

Em seu lugar foi um homem que se aproximou com a segurança do grande assassino. Em alguns instantes, estava inclinando sobre ela.

 

                                           Capítulo 12

Ele estava iluminado pelo brilho do crepúsculo sobre as árvores às suas costas. Longos raios de cores rosa e ouro que apontavam cada vez mais para cima, à medida que o sol desvanecia atrás da montanha.

Dryas tentou se afastar da escura figura que se elevava sobre ela, mas suas mãos escorregaram sobre o tapete de agulhas de pinheiro.

Quase descuidadamente, ele se inclinou para sustentá-la com um braço. Dryas compreendeu o quanto imensamente forte ele era ao ver a facilidade com que a levantou.

Aproximou-a de seu corpo.

—Faz frio – ele disse. - Deixa que eu a esquente.

Ela se encontrou gentilmente pressionada contra o homem. Ele estava quente. O contato com sua carne era como experimentar uma conflagração.

Dryas compreendeu aterrada que o joelho direito do homem estava entre suas pernas, elevando e abrindo-as.

—Não! — Ela abriu a boca, espalmando as mãos em seu peito. - Não... Não.

—O que acontece? Não me deseja? Sabia que estava aqui. Eu sei, posso dizer que cheira a desejo. Não é diferente entre nós. Mesmo o aroma se parece muito. Não entendo. Se não me desejava, para que vieste? Por que não ficaste escondida na cabana do velho com a... Com a garota louca? —ele sujeitou Dryas com as mãos. - Venha. Imona estava assustada a princípio, mas em seguida se deu conta de que eu não lhe faria mal.

Imona! Dryas voltou a se debater, tentando recuperar o controle. Um momento depois estava em pé, correndo colina acima, para o escuro bosque. Podia se mover em silencio nas sombras. Eram negras e tão espessas como o veludo, mas descobriu que não podia escapar dele. Não, sequer por um instante. Embora o ar fosse frio, ela viu o tênue brilho das estrelas sobre a úmida pele do homem.

Ele a abraçou, lhe beijando o pescoço. Logo elevou seu abundante cabelo e lhe fez peritas cócegas em sua garganta e orelhas.

O arrepio se estendeu pela pele de Dryas enquanto um calafrio de pura luxúria percorriao seu corpo.

Ele sorriu e logo voltou a beijá-la, colocando a língua entre seus lábios e selando os lábios abertos de Dryas com os seus.

Ela se encontrou recordando aquela boca no crepúsculo... Firme, cálida, inquisitiva. Aproximou-se do calor dele como uma traça da chama.

Quero morrer nesse fogo, ela pensou. Mas não, morrer não era a palavra que procurava. E então recordou que morrer era como se chamava às vezes, aquele prazer definitivo... Uma espécie de morte. Quando o brilho final das chamas do desejo queima todo o resto, é como a morte.

Não, se alguém fosse morrer ali, não devia ser ela. Deixou-se cair contra ele, como se estivesse rendida por completo. Pode sentir como seus braços se fechavam em torno de seu corpo. O desejo daquele prazer esplêndido, daquela ardente delícia, correu como um escuro fogo por suas veias.

E então, de repente, ela viu o rosto de seu filho... As pupilas nubladas, mas com as íris ainda verdes e claras como a água de mar à luz do sol. Mas ele estava morto, entregue à mão da escuridão. Com um estranho olhar de compreensão nos olhos e os lábios abertos como se fosse falar, mostrando os pequenos dentes de uma criança de sete ou oito anos... Alto! E então chegou a sujeira e o horror, como tinha ocorrido quando viu seu filho e soube que havia morrido. Ele e outras crianças entre os quais jazia. Não restava nada a não ser escuridão.

 

Lucius não necessitava a ajuda de Fio. A casa estava lotada de criados... Escravos e libertos e mulheres pertencentes a sua família. Sobretudo Fulvia.

Os dois jovens que o atendiam eram escravos, recém comprados de uma das escolas de gladiadores de César e, portanto salvos de morrer na arena em alguma festividade.

Estavam muito contentes de ter escapado daquele destino e caído em uma vida cômoda e Lucius estava bastante seguro de que lhes haviam dado instruções para que o mantivessem alegre a qualquer custo. Além daquilo, não fazia ilusão sobre sua lealdade. Informariam Fulvia.

Ele achava intrigante o fato de que Fulvia controlasse todos os escravos da casa. Como havia acontecido? Quando ele partiu para assumir seu primeiro comando nas legiões, Fulvia não dominava o serviço até aquele ponto. Mas pouco a pouco, com o passar dos anos, as mulheres que restavam a Silvia e aos libertos de seu pai foram sendo substituídos por servidores que não reconheciam outra autoridade que a de Fulvia. Sua irmã era uma perita em escolher indivíduos como aqueles dois jovens, que sabiam que suas vidas dependiam somente da boa vontade de sua ama.

Fulvia nem sequer precisaria se incomodar em ordenar uma simples execução doméstica. Bastaria devolve-los ao seu lugar de procedência, explicando que seus serviços não haviam sido satisfatórios e o lanista se asseguraria de que morresem no seguinte combate.

O mesmo acontecia com as duas gregas que se ocupavam de sua câmara sob a direção de Fio. As duas seguiam sendo belas e tinham sido favoritas de Fulvia em algum momento, mas embora não tivessem mais de vinte e sete ou vinte e oito anos, já eram um pouco maiores para sua profissão original. Não sobreviveriam muito tempo nos insalubres bordéis amontoados junto ao Tiber. Trinta ou quarenta homens cada noite podiam acabar com a saúde da maioria das mulheres em poucos anos. Nenhuma das duas era muito brilhante e nem muito fortes e ambas eram torpes, então possuiam verdadeiro terror de Fulvia.

Lucius estava rodeado. Contemplou sua imagem em um comprido espelho. Sim, era um espelho, com a superfície de cristal e o dorso prateado. Certo, o reflexo estava um pouco distorcido e um braço parecia mais comprido que o outro, mas definitivamente era ele. Estava tão polido como uma noiva ou, como lhe sugeriu uma sinistra metáfora, um touro para o sacrifício: cabelo encaracolado, chifres pintados de ouro, recém banhado, barbeado e perfumado. Suspirou. Seus dois criados seguiam revoando ao seu redor. Ele levantou o olhar para ver se possuía chifres para dourar.

—Não faça isso, meu senhor. – Disse um dos jovens. - Danificará seu penteado e o divino Julho...

—O divino Julho! — Estalou Lucius. - O Senado concordou em lhe outorgar honras divinas? Quer dizer que não lhe basta ser o primeiro homem de Roma, pai deste país, cônsul vitalício e qualquer outra coisa que seus secuaces do senado possam imaginar, agora também quer ser um deus?

Os dois jovens, ocupados em arrumar as dobras de sua toga, permaneceram imutáveis. Pelo menos Fio sorriu, pensou Lucius, de forma bastante autocompasiva.

Seu dormitório era outra fonte de conflito entre ele e sua irmã. Ela queria que ele se transladasse para a parte nova da vila, maior e luxuosa, mas ele se sentia vinculado à casa de sua adolescência. Fulvia considerava seu desejo de intimidade uma das mais desagradáveis excentricidades que faziam dele um inadequado herdeiro da fortuna Basilia.

Ela vivia no que Lucius considerava miséria recoberta de ouro, com dois secretários. Firminius era um deles, cinco assistentes de vestuário, dois criadas pessoais, três donzelas para todos os serviços e várias pequenas preciosidades. Nenhuma delas fora da adolescência, dispostas a pular com ela cada vez que se sentisse amorosa. Fulvia dormia em solitário esplendor entre lençóis de seda, em uma cama feita de aromática madeira de limoeiro e coberta de brocados.

Firminius dispunha de aposentos próprios muito perto, mas outros dormiam em círculos concêntricos ao redor de seu luxuoso leito. Quando Lucius visitava sua irmã, sempre podia dizer quem gozava e quem não de seus favores, pela proximidade de seu lugar de perto da cama.

Lucius não tinha um verdadeiro emprego para o serviço em sua casa. As mulheres que cuidavam dele junto com Fio e seus dois assistentes pessoais tinham aposentos próximas. A Fulvia parecia escandaloso que as dependências de seu irmão, em um canto da casa, não fossem um pouco maior que a de suas criadas.

Mas ele gostava. Para começar era fresca no verão. Duas altas e estreitas janelas perto do teto estavam cobertas por pesadas grades de ferro. Davam a um canteiro de ervas sombreada por ciprestes. Uma clarabóia de cristal no teto admitia muita luz durante o dia e as janelas perto do teto deixavam o ar fresco do jardirm entrar. No inverno, as janelas ficavam fechadas e era fácil esquentar a estadia com um braseiro.

Sua cama era estreita, com um colchão de plumas e lençóis de linho. O espelho era o único luxo da casa. Tratava-se de um presente de sua mãe, mas Lucius sempre tinha pensado que Hortensus se animara a presentear-lhe, porque comercializavam com aqueles artigos. Dizer que seu pai olhava muito o sestercio seria uma expressão muito caridosa. Inclusive era provável que o hábito de beber de Silvia, que suas insuficientementes veladas ameaças de morte não haviam conseguido corrigir, incomodasse-lhe mais, porque ela preferia procurar o esquecimento com a ajuda do caro vinho de falerno, que com os vinhos mais baratos guardados perto da cozinha.

Bem, seu pai havia sido recompensado por sua obcecada busca do todo-poderoso denario, seus dois infelizes matrimônios por interesse econômico e sua obsessão por economizar em cada compra. Em certos círculos o conheciam como Hortensus-nunca-aceite. Seus àvaros costumes deram como resultado, que deixasse uma grande fortuna depois de sua morte.

Agora, Fulvia estava estendendo o império. E aqueles convidados para jantar estavam em posição de torná-la mais rica.

A luz que entrava pela clarabóia era cada vez mais tênue. Os dois jovens queriam seguir com as dobras de sua toga, mas Lucius pensou que já havia sido feito todo o possível para melhorar seu aspecto e que seguir insistindo seria uma necessidade.

Ele mostrava muito bem os efeitos de uma longa enfermidade. Estava fraco e pálido e ainda se ressentia um pouco do lado esquerdo. A enorme cicatriz deixada pelo ferimento repuxava os grandes músculos de suas nádegas e sua coxa.

Ele saiu sem se incomodar em fechar com chave a porta de sua casa. Para que se incomodar? Se algum ladrão encontrasse algo de valor ali, por ele podia levar. Reuniu-se com sua irmã junto ao grande triclínio perto da porta principal. Não tinha visto o salão de jantar para grandes ocasiões completamente iluminado, desde que era um moço e seu aspecto o impressionou.

O piso estava decorado com o mosaico de um jardim, um jardim verde organizado como se os leitos margeassem a estadia. As telas que formavam as plantas verdes e as flores eram de malaquita e as pétalas eram feitas com pedras semipreciosas de cabujão. Ametista para a púrpura, hematitas para o vermelho e citrinas para o amarelo. A imagem parecia saltar do piso aos olhos.

As paredes de puro mármore branco davam uma aparência de severidade, mas cada painel estava decorado com ônix e porfiria violeta.

O pálido violeta da porfiria era realçado pelos leitos ornamentados com o mais brilhante veludo púrpura, que jamais vira. A casa estava brilhantemente iluminada por abajures com pendentes de bronze, todas vaiando em seu esforço por afastar a noite.

Ele ficou em pé, contemplando tudo, atônito.

—Agora sei o que matou o pai. – ele disse, rompendo a rir.

Fulvia, resplandecente com sua gaze branca sobre seda da mesma cor, com bordados de ouro, respondeu sem mover os lábios.

—Nada de piadas vergonhosas, nada de histórias sobre suas façanhas com putas. Não conte como foi ferido nem onde tem a cicatriz, nem fale de seus vulgares amigos romanos ou militares. Não, nunca, sob nenhuma circunstância me envergonhe ante este casal. Se o fizer, eu o matarei.

Lucius não o duvidou nem por um momento. Abriu a boca, mas não chegou a dizer nada, porque naquele momento ouviram um ruído de movimento na rua... Um ruído militar, de pés calçados com botas, para ser exatos.

—Já estão aqui! — Lucius sussurrou por fim.

—Sim. – Disse Fulvia.

Lucius descobriu que estava com a boca seca. O mais perto que havia estado do homem mais famoso de seu tempo era de um busto no átrio de uma das irmãs de sua mãe. O busto de um homem jovem e belo. As cores com os quais estava pintado o mostravam com cabelos ligeiramente encaracolados e claros e penetrantes olhos cor de avelã, boca carnuda, mas firme e queixo forte. O famoso perfil era o de uma águia inteligente, fera e dominante, mas justa. O epítome de tudo o que Roma contribuía ao mundo e a razão pela qual os deuses haviam escolhido para que governasse.

E tudo aquilo estava a ponto de entrar pela porta principal.

Em um torvelinho de tecidos, Fulvia correu ao átrio para receber seus convidados. Acorrentado em seu posto habitual e tão assustado com sua ama, como todos os demais escravos, o porteiro chegou antes... E então, o ruído de correntes anunciou a entrada do homem mais importante do mundo.

Lucius sentiu um estranho peso no estômago. Como é possível que esteja com dispepsia, se não comi nada desde esta manhã? Tenho que perguntar a Fio... Mas então se deu conta de que era medo.

Um soldado entrou primeiro, inclinando-se ante Fulvia. Ele carregava uma tocha que iluminava a velha entrada e outros dois o seguiam.

O resplendor cegou Lucius por um instante, mas depois notou que não usavam uniforme de desfile, mas a couraça regulamentar dos legionários. Casco de couro reforçado com bronze, couraça de couro endurecido, musleras com rebites de metal e perneiras. Os três olhavam cautelosamente ao seu redor.

A vila Basilia, como quase todas as casas da época, era uma mistura de cômodos velhos e novos. A entrada era uma das partes mais velhas. Ninguém sabia com certeza quando a construíram, provavelmente como uma casa rural antes que a cidade a envolvesse. Seus inquilinos tinham sido famílias plebéias dedicadas ao cultivo de videiras, oliveiras e o sob trigo que não chegava a superar o joelho de um homem alto, vivendo do suor de sua testa em uma colina além dos muros.

A porta era muito pesada, de velha madeira de carvalho reforçada com ferro. A primeira casa era um átrio com um lago cheio da água que caía do telhado e que assegurava o fornecimento de toda a família. As mesmas estrelas seguiam brilhando através da abertura no telhado, mas mais à frente podia se ver um magnífico peristilo brilhantemente iluminado.

Cleopatra entrou antes que César no átrio. A princípio parecia somente uma sombra. Fulvia a saudou com o mais parecido a uma reverência que Lucius já vira, mas depois ficou em pé, abraçando a rainha e ambas se beijaram como duas velhas amigas.

O porteiro se inclinou tanto, que quase tocou o solo com a testa.

E ele atravessou a soleira. Também pareceu uma sombra, até ter deixado atrás o lago. Fulvia e a rainha egípcia o pegaram pelas mãos, uma de cada lado, e o levaram a luz.

Lucius retrocedeu rapidamente para sair de seu caminho e notou pela primeira vez o homem em carne e osso.

Era velho.

Foi o primeiro pensamento de Lucius. Ele envelheceu. E assim era. Estava levando a mão de Fulvia aos lábios enquanto dedicava um elogio. Algo nada vulgar. Ele comparava Fulvia com uma Vênus de Praxiteles que havia visto na Grécia e da qual havia carregado uma cópia. A estátua seria enviada a Roma para adornar seu peristilo, quando ele se estabelecesse por fim.

Ser comparada com a deusa titular da casa de César era uma grande honra. Lucius se perguntou com irreverência quanto lhe estaria custando o elogio a Fulvia, mas logo pensou que ela era a digna filha de seu pai e não faria nada sem a esperança de obter um substancioso benefício.

Por fim, o velho com o rosto de César se voltou para ele. Sim, era velho e os anos não tinham sido amáveis com o conquistador. Seus lábios, antes cheios e sensuais, pareciam ter se consumido e não se viam cor rosa, mas pálidos à luz das tochas. As aristocráticas e elevadas maçãs do rosto e o nariz afilado como uma espada seguia presentes, mas as bochechas estavam fundas. O nariz sobressaía de maneira imperial, mas parecia mais fino; a pele amarelada se esticava sobre os ossos. Seu pescoço, para dizer sinceramente, parecia pertencer a um galo velho. A pele solta descia frouxamente do queixo até a metade da garganta e seu pomo de adão era bem visível por baixo daquele ponto. Sim, ele era velho e os sabujos do tempo lhe seguiam o rastro muito de perto.

—Acredito que seja seu irmão - Disse o grande homem, lhe oferecendo sua mão.

Lucius a tomou e se surpreendeu ao notar que se ruborizava violentamente.

A mão era cálida e seca. A voz que levava suas legiões a atos de inimaginável valor e açoitava o Senado como um látego, seguia sendo formosa. – Acredito, - ele continuou - que recentemente foi traiçoeiramente ferido pelo inimigo durante uma patrulha.

O bastardo é um gênio na arte de se dirigir aos homens, pensou Lucius. Já me tem encurralado e logo me arrastará em triunfo para que o adore junto ao resto de seus seguidores. Ele teve a sagacidade de se inteirar de como e onde fui ferido e a habilidade de fazer com que um oficial estúpido e descuidado que conseguiu ser apunhalado pelas costas soasse como um herói. Cuide sua língua e expressa sua avaliação.

Lucius nunca conseguiria recordar o que disse, mas deve ter sido satisfatório, por que ganhou um sorriso de César. Mas pode notar claramente que o sorriso que aparecera nos lábios do grande homem não se estendera a seus olhos pardos, que pareciam tão frios e distantes como sempre. Tudo isto é habitual para ele, pensou. Pergunto-me por que estará aqui.

Em efeito, depois dos cumprimentos, ele foi deixado de lado e César dirigiu novamente sua atenção a Fulvia.

Alguns legionários entraram atrás de César. O último colocou uma tocha perto da guarita do porteiro e ficou com as costas contra a porta. Outros se desdobraram pelo peristilo, comprovando pessoalmente todas as entradas e ordenando aos serventes curiosos que voltassem para seus postos. Não demoraram muito em tirar do recinto, todos os que não tivessem algo a fazer na cozinha ou na sala de jantar.

—Muito eficazes. - Comentou Fulvia.

—Sim. – Disse brandamente Cleopatra. - Mas se trata de mercenários hispanos. São meus guardas, não os dele.

—Suplico-te, César, que cuide de si mesmo. - Suspirou Fulvia. - São tantos os que como eu, dependem de ti...

César sorriu.

—Não preciso me preocupar. Há muitos outros que cuidam disso em meu lugar. — Ele entrou o primeiro no triclínio, seguido pelas duas mulheres e Lucius fechando a marcha.

Lucius olhou para Cleopatra. Não, ela não era bela, mas possuia algo que nunca tinha visto antes... Uma mulher equiparável a César.

Alta e esbelta, sua pele mostrava um toque do tom âmbar, herança de seus antepassados egípcios. Em outros aspectos ela parecia mais grega que outra coisa, com seu cabelo claro como o mel de outono. Lucius estava seguro de que devia ter sido bem ungido e clareado, pois brilhava como o de uma moça.

A princípio lhe pareceu que ela era puro ossos, mas então compreendeu que Cleopatra pertencia a um tipo físico completamente distinto dos das mulheres latinas. Os quadris amplos e os seios abundantes não eram para ela. Seus quadris não eram largos. Seu ventre estava entre elas como uma pérola em uma taça. Era de tronco comprido, que se elevava até seios altos e pequenos, mas de formas tão perfeitas que Lucius soube que estavam nus sob a proteção do tecido. A túnica de seda que usava era pelo menos tão reveladora como a de Fulvia. De fato, ele estava seguro de que ela não usava absolutamente nada sob aquele objeto tão suave como um lenço.

Sim, seu queixo era pontiagudo e seu nariz revelava sua ascendência semita, mas seus olhos eram puramente gregos, clros e de longos cílios. Recordavam os do Alexandre, que tinha visto em retratos, estátuas e pinturas. Certamente todos aqueles macedonios eram aparentados uns com os outros, admitissem eles a relação ou não.

Fulvia estava verde de inveja. Cleopatra era maior que ela e havia tido um filho, mas conseguia de alguma forma, ter melhor aspecto que ela e a maior parte das mulheres romanas. Se a rainha egípcia chegasse aos setenta anos, certamente seguiria fazendo com que a maioria das mulheres latinas parecesse gordas e desalinhadas ao seu lado.

—Minha senhora! – Disse Lucius. - Antes deste encontro eu pensava que os poetas se mostraram excessivos em seus elogios para convosco. Mas agora que a vejo, sei que inclusive os versos de Homero nos quais elogiava a deusa de Cipriano seriam insuficientes para descrever a beleza de sua pessoa ou o encanto de suas maneiras.

Cleopatra sorriu para César e logo dirigiu um olhar para Lucius que quase fez com que seus joelhos tremessem.

—A mãe de minha casa era Vênus e me destinou a mais formosa de suas filhas. - Disse César. Ele e Cleopatra se aproximaram de um dos leitos, para recostar juntos.

Lucius pegou um divã e Fulvia outro.

Sua irmã usava jóias o bastante para pagar uma nova legião a César. Braceletes, brincos e braceletes de ouro e tantos anéis que comer lhe estava sendo difícil.

Vários vinhos chegaram à mesa e foram oferecidos a César, os tintos saiam diretamente de jarras de barro e os brancos eram esfriados em neve. Ele rechaçou vários e só aceitou três, para compartilhá-los com a rainha.

—Que formosa sala. – Disse Cleopatra quando César começou a saborear o vinho.

—Desenhada e construída por meu pai, como as partes mais modernas da vila. – Respondeu Fulvia, dirigindo um olhar de aviso a seuirmão.

Lucius fez todo o possível para não captar o olhar de Fulvia e parecer inocente.

—Mas sem dúvida, - Disse com ligeireza, — a rainha do Egito está acostumada a lugares mais luxuosos. Ouvi dizer que o palácio de Alexandria é...

—Um labirinto inútil. – O interrompeu Cleopatra. - Muitos ambientes são magníficos, outros estão enfeitiçados por grandes e sangrentas lendas de meus antepassados, mas não encontro em nenhum outro lugar a comodidade e a lassidão criada pelos habitantes de Roma. Estas vilas são muito adequadas para o clima de sua grande cidade.

Lucius soltou um risinho.

—Muitas começaram como granjas e casas rurais, rodeadas de campos, albergando cavalos, mulas e gado junto às pessoas.

A rainha sorriu. Uma risada grave e gutural que acariciou Lucius em muitos lugares. Ele se viu desejando fazer com que ela risse novamente.

—O que temos aqui. – Disse Cleopatra. - Um historiador, um antiquário ou...

Fulvia interveio. - Sabe muito bem que, por mais formosas que sejam algumas partes da casa, esta vila mostra suas origens comerciais de forma um mais óbvia para mim. Estava de olho sobre uma vila no Baiae, mas meus planos ao dispor descuidadamente de uma propriedade muito valiosa estão calmos. Mas, — ela suspirou, - o que pode fazer uma pobre mulher quando se encontra ante a oposição dos homens de sua família... Salvo obedecer?

—Minha pobre amiga, - disse a rainha em tom de zombeteira simpatia, - eu não me preocuparia se estivesse em seu lugar. Estou segura de que encontrará muitas vilas a sua disposição depois do jantar desta noite. — Ela riu novamente.

César baixou o olhar para taça de vinho de ouro com pérolas engastadas que estava sustentando e se uniu a risada.

—Ah, a família Basilia... Sei que não receberei nada salvo o melhor em sua casa.

Os escravos chegaram com o primeiro prato, para degustação naquele instante, servindo primeiro ao poderoso casal recostado em frente à Lucius.

A noite era fresca e as portas que davam ao jardim iluminado por tochas estavam parcialmente abertas, mas Lucius descobriu que podia cheirar os homens e mulheres que serviam o jantar, mesmo acima do aroma de estragão, presunto, pêra, maçã, ameixa e marmelo.

César, Cleopatra e Fulvia inspiravam um terror mortal aos escravos. Um deles era a garota a qual ele havia afastado que por causa de suas pombas mascote. Era bonita e ele gostava porque cantava ao trabalhar e tinha uma bonita voz. Mas naquele momento estava cheia de medo.

Lucius descobriu que já não tinha apetite e que Cleopatra tinha deixado de lhe parecer formosa. Devo estar me tornando louco. O ferimento deve ter afetado meu cérebro, ele pensou. Por que deveria me preocupar pelo que esta gente pense ou sinta?

Mas quando a garota começou a lhe servir vinho e a jarra de ouro que sustentava golpeou a margem de sua taça, Lucius se sentiu alarmado. Parecia como se ela estivesse a ponto de se deprimir.

Estendeu a mão para pegar a mão da moça, que pareceu se despertar com um sobressalto. A cor alagou sua face e seus lábios se abriram.

Fulvia se fixou neles, apertando os lábios com raiva.

—Pode me conseguir um pouco de alface, escarola e castanhas e trazer um pouco desse azeite que compramos ontem? — Perguntou Lucius À garota.

César e Cleopatra se serviram de melão com vinagre e um azeite especial com um pouco de pimenta.

—Se soubesse que você queria salada, eu teria ordenado ao cozinheiro que te preparasse uma, querido irmão. – Disse Fulvia.

—Oh, prefiro prepará-la eu mesmo. Deveria provar uma. A mistura de castanhas, escarola e nozes com azeite e um pouco de sal é maravilhosa.

A moça voltou com tudo o que ele havia pedido, sobre uma bandeja de ouro nada menos e Lucius o misturou tudo pessoalmente.

Os dois ilustres convidados sentiram curiosidade e provaram do prato.

—Meu médico diz que as verduras, o azeite e as nozes são a melhor forma de despertar os apetites de seus pacientes. - Explicou Lucius.

—Acredito que eu gosto disso. – Disse César. - O médico é Fio, é obvio. Trata os dores de cabeça de minha mulher e tem feito maravilhas a respeito. Para acalmá-las, quero dizer.

Lucius, que estava seguro de ter a sua frente à pior dor de cabeça da Calpurnia, assentiu meigamente.

Os escravos limparam a gustação, servindo em seu lugar vinho branco e um pão feito com pinhões e queijo.

O vinho estremeceu os sentidos de Lucius. Nunca havia provado nada assim. Era sutil, fragrante e embriagador ao mesmo tempo. Acima do ombro de César, entre as sombras do jardim, ele pode ver Fio e Cellarius, ambos com um triunfante sorriso.

—Ah! - Sussurrou César. - Incomparável. Querida, considero minha boa relação com sua família a melhor das fortunas.

Fulvia sorriu, oferecendo um brinde com o vinho.

—Por nosso contínuo êxito.

Os escravos serviram logo a mensa prema. A comida era das mais variadas. Eles podiam escolher entre cinco ou seis pratos, incluindo um assado de javali com molho de ameixas secas, um exótico guisado de carne de vaca com cogumelos, fígado à churrasqueira envolto em omento; um leitãozinho assado inteiro e aromatizado com pimenta, frutas, arruda e azeite de oliva; e um cabrito precoce, com um molho de ameixas, vinho, alho e azeite.

—De raça partia. - Comentou César. - É uma indireta, minha querida filha de Hortensus?

—São os partianos, os seguintes em seu cardápio, César? — Perguntou-lhe Fulvia enquanto ele e a rainha se serviam de pequenas porções da tenra carne.

—Não sei. – Respondeu César. - Se pudesse conseguir denheiro o suficiente...

—Nem há necessidade de perguntar, César – Disse sua anfitriã com galhardia.

—Não. – Respondeu ele. - Devo a filha de seu pai uma grande soma e não fui capaz de devolver ainda.

—Não é preciso. – Disse Fulvia. - O que proponho nos tornará mais ricos do que possamos sonhar.

—Do que se trata?

—Vinho. - Explicou Fulvia. - A Galia é um grande país de vinhedos.

—O quê?

—Eu, sei. - Disse ela, meneando a cabeça. - Mas cacei muito por aí e te asseguro de que com os investimentos adequados podem se conseguir um benefício de vinte por um. Não, mais de vinte. Cinqüenta por um.

Lucius estava a ponto de voltar a rir quando viu que César levava a sério.

—O que quer? Quanta terra? Quantos homens?

—Aceito sua generosidade. – Respondeu Fulvia. - Tenho estudos preparados em meu estudio. Todas as guerras geram escravos e não importa de onde venham, minha gente os pode adestrá-los.

—Acredito que seja um plano completamente louco, mas aprendi a respeitar seu julgamento. Depois, tanto você como seu pai tiveram a coragem de apostar em mim.

—Há outra coisa que eu gostaria de te pedir, - Assinalou Fulvia com um sorriso bobo.

—O que?

—Não é para mim, mas para meu irmão. Antes de partir para Partia, rogo-te que o atribua um comando em seu exército. Converta-lhe em um de seus legados, se for possível.

César dirigiu um opaco olhar a Lucius.

—Acredito que seja o último homem de sua linhagem, não? Seria uma pena que a notável família Basilia se extinguisse.

Lucius esperou que o medo, o abjeto terror, na realidade, não se refletisse em seu rosto. A última coisa que queria naquele momento era outro compromisso militar. Perguntou se inclusive, se o mais formidável soldado não sentiria desejos de voltar para casa.

Mas estava olhando para alguém que acabava de pôr fim a uma guerra brutal e já estava disposto a partir para outra: o mesmo César.

Lucius não era o único em observar: César e Cleopatra o contemplavam com expressão um tanto divertida.

Cleopatra salvou a embaraçosa situação: - Não sei se um homem que está se recuperando de um ferimento quase mortal vai querer pensar em um imediato retorno ao combate. Seu ferimento foi quase mortal, verdade?

—Sim, quase mortal e muito doloroso por um tempo, quase um ano.

—Sim. – Disse César. - E um legado dever poder levar a cabo seus deveres e ser o bastante forte para levar as ordens entregues por seu oficial ao comando. Em qualquer caso, as preocupações sobre novas campanhas terão que esperar até o próximo verão... Quando o Senado tiver terminado de me honrar.

Cleopatra riu ante a ironia daquela última frase.

—E são honras muito gratificantes. – Disse Lucius.

—Ah, se eu pudesse estar seguro de que são outorgados com sinceridade por verdadeiros amigos... – Respondeu César, usando novamente a ironia.

—Alguns o admiram sinceramente. Marco Antonio, por exemplo.

César e Cleopatra riram outra vez, trocando olhares de perfeita compreensão.

—Outro dia me encontrei no Foro com um centurião, um veterano de minhas campanhas na Galia. Só lhe restou uma perna, mas foi tão recompensado que não precisa mendigar. Vive com seu neto como convidado de honra. É como deveria ser para todos os velhos servidores do estado, mas com freqüência não é assim. O outro dia me encontrei com um que estava mendigando. Teve vergonha e tentou evitar que eu o visse, mas eu já havia lhe reconhecido e mandado meus criados que o levassem para mim. Parece-me que se perdeu com as mulheres e a bebida... Mas... —César se voltou para a Cleopatra. - Perdi o fio do que estava dizendo.

Ela o olhou sombriamente.

—Acredito que falava do primeiro soldado, querido.

—Oh, sim. Falamos um momento como dois velhos amigos, e logo ele se aproximou tanto como pôde. Tive que baixar a cabeça para ouvir o que queria me dizer. Ele sussurrou: Vigie suas costas, César. Vigie suas costas.

—Provavelmente um dos melhores conselhos que pode receber alguém. – Disse Lucius com total convicção.

César e Cleopatra rugiram de riso ao mesmo tempo. César seguiu gargalhando até que as lágrimas desceram por sua face, mas logo recuperou o controle.

—Parece que os divirto. – Disse Lucius rigidamente. - Não posso, a não ser...

César ficou sério.

—Oh, é verdade. A gente não pode, a não ser se preocupar dado o nível de fidelidade dos amigos e até dos parentes entre nossos antecessores e considerando as mortes dos Gracos e o assassinato de Clodio e outros amigos e meus associados. Para não falar do destino de pessoas tão valiosas, como o genro de Cicero, morto nas mãos de seu próprio sogro.

—Não exatamente em suas mãos. - Demarcou Cleopatra.

—Não, nosso modelo de senadores se limitou a levá-lo até o verdugo e ficar ao lado como testemunha enquanto era decapitado... Ou foi pendurado... Ali mesmo. Considera uma prova de sua integridade estar disposto a sacrificar seus parentes mais próximos e apreciados, pelo estado. Mas não se preocupe, meu querido moço. Não sou tão tolo como pareço e é perigoso me tomar por tal.

Algo nas últimas palavras de César provocou um arrepio em Lucius.

Cleopatra dirigiu a César um olhar de advertência. Ele está planejando algo, pensou Lucius. De repente, sentiu-se como se os quatro não estivessem sozinhos na casa. Havia fantasmas com eles e se apinhavam sobre o casal a sua frente.

A luz do abajur se refletiu nos olhos de Cleopatra. Ela tinha tido um irmão... Verdade? E César... Pelo menos um par de legiões de amigos e inimigos havia morrido lhe amaldiçoando.

Lucius se sentia enjoado. Recordou algo e a lembrança encontrou sua voz antes que ele pudesse pensar se devia dizer.

—O homem que me apunhalou usou minha própria espada para fazê-lo. Tirou-a de sua bainha com a mão esquerda porque lhe tinham cortado a direita. Ele não tinha a mão direita.

O leito de Fulvia estava junto ao dele e Lucius pode sentir como sua irmã cravava as unhas em seu ombro.

—Está louco? — Ela sussurrou. - Ficou completamente louco? O maior senhor de Roma é um convidado...

—E um convidado muito satisfeito. - Interrompeu César. - Agora, você havia me prometido uma surpresa. Uma surpresa emocionante. Vejamo-la.

—Eu... Eu... — Balbuciou Lucius.

—Não. – Disse César enquanto se levantava e era imitado pelos outros. - Não se desculpe. Você é um valente jovem que esteve muito perto da morte e isso o marcou. Marca a todos. De formas diferentes, certo, mas marca a todos.

Precedidos por soldados com tochas, eles caminharam pelo labiríntico complexo de edifícios, velhos e novos, que formavam a vila Basilia.

Lucius passou da vergonha à mortificação e daí ao desgosto. Então já estava se perguntando o que teria pensado sua irmã, pois caminhavam em direção a um velho armazém nos limites de sua propriedade, usado em outros tempos para guardar vinho.

Se etiveram ante uma soleira de tijolos de terracota. Por um momento, foi como se estivessem olhando para o interior de uma caverna. Uma tocha brilhou na escuridão, diante deles.

—Olhem! – Disse Fulvia.

Seus olhos, surpreendidos pela repentina claridade, demoraram um pouco em adaptar a ela. Quando sua visão esclareceu, Lucius compreendeu que se encontrava em uma arena, em uma versão em miniatura da que havia do outro lado da cidade, onde se celebravam os combates de gladiadores.

—Meu presente para ti, César. — Fulvia fez um gesto empolado, indicando a seu convidado que devia se sentar em uma das elegantes cadeiras de mármore sobre um estrado que dominava o pequeno espaço circular coberto de arena no centro.

César jogou para trás a cabeça, com uma gargalhada.

—Que maravilhosamente apropriado. Não posso lhe agradecer o bastante – ele disse beijando a mão de Fulvia. Cleopatra sorriu por sua vez, olhando-o com adoração.

Lucius observou que alguns dos criados, entre eles Fio, estavam acendendo tochas nas paredes que rodeavam a arena.

Salvo os assentos ocupados por César, Cleopatra e Fulvia, não havia cadeiras na estadia. E sim, círculos concêntricos de degraus de mármore levavam até a porta.

As cadeiras possuiam cômodas almofadas de todas as cores e formas. César se relaxou sobre sua cópia da cadeira de um cônsul. Os soldados ocuparam seus postos ao longo das paredes.

Fio fez um imperioso gesto e dois serventes levaram uma cadeira de madeira com almofadas, colocando-a no degrau superior do anfiteatro. Lucius se sentou nela e pode sentir, mais que notar, que Fio se aproximava até ficar em pé atrás dele.

Sem mais demora, Fulvia estalou os dedos.

Os gladiadores entraram por passagens sob o nível do piso, subindo por um curto lance de degraus de tijolo. Eram dois. Lucius reconheceu imediatamente um deles: tinha o rosto marcado em sua parte direita por uma linha em um corte diagonal, do alto da orelha até quase seus lábios. Era famoso: suas aparições na arena se tornaram incomuns, e o pagava muito bem por lutar.

Ele se tornou conhecido em um desafio no qual enfrentou sucessivamente a dez oponentes, não só derrotando todos, mas também matando três deles e deixando outros dois tão feridos, que morreram pouco depois. Dizia que o lanista daquela época o odiava e estava decidido vê-lo morrer... Mas seu ódio se viu igualado pelo amor da multidão no final do combate e o tumulto que se originou ante o anúncio de que o obrigariam a lutar outra vez. Ele foi tão violento, que ele lhe concedeu a liberdade naquele mesmo instante e com o tempo, se converteu em um homem rico.

Só vestia o calção ou subligaculum e um singelo casco de legionário, de couro cozido e reforçado com bronze. Sua espada era uma versão mais brilhante da arma regulamentar dos legionários, a chamada espada hispana.

Seguia-lhe um homem mais jovem, vestido e armado da mesma forma.

—Gordus – Disse César com satisfação. - Nunca o vi brigar. É obvio, tinha ouvido falar dele. E quem não?

Gordus, o homem da cicatriz, levou o punho da espada até os lábios, com a lâmina para cima e saudou os ocupantes do estrado. O homem mais jovem se inclinou e os dois se viraram até ficar frente a frente. Não demorou em ouvir o som do aço contra o aço.

A princípio, Gordus parecia quase passivo, negligente ante os ataques do outro. O jovem era muito bom. Para o experiente olho de Lucius, estivera a ponto de ferir seu oponente em duas ocasiões. Atuava agressivamente, seu aço um torvelinho de fogo à luz da tocha.

Gordus não parecia mover sua arma, mas bloqueava cada um dos ataques sem dificuldade, sem a menor aparência de tensão.

A princípio, o gladiador mais jovem se limitou a apunhalar. Parecia forte, e era. Lucius o teria temido como oponente, mas sua força não parecia importar Gordus.

Quando o jovem viu que não chegava a parte alguma, deu uns passos para trás, demonstrando ter algo mais que força bruta. Atacou novamente, mas com inteligência, se aproximando com um golpe cortante baixo e logo apunhalando para afastar o braço de Gordus e deixá-lo exposto ao golpe definitivo. Mas não o obteve.

O jogo de pés de Gordus era extraordinário e ele não se deixava desviar o bastante. O jovem retrocedeu novamente. Embora a noite fosse fria, ele suava profusamente.

Lucius estava seguro de que Gordus passaria ao ataque, pressionando seu adversário. Mas não foi assim. O veterano gladiador aguardou que o outro recuperasse o fôlego, andando lentamente ao seu redor, com a ponta de sua espada para baixo.

A respiração do jovem se acalmou e ambos os gladiadores se travaram novamente. O jovem mostrou grande habilidade e sangue-frio. Lucius nunca tinha visto tal habilidade com a espada curta, nem nos acampamentos das legiões.

Mas, como antes, Gordus bloqueou todos os ataques. Embora lhe custasse um pouco mais, com um pé adiantado no solo, detendo a espada de seu oponente quase antes que iniciasse o golpe.

O final chegou de forma rápida e inesperada. O jovem golpeou com força e Gordus não bloqueou, mas deu um passo para trás. O golpe falhou e antes que o jovem pudesse recuperar sua guarda, a espada de Gordus entrou, só a ponta, em seu braço direito, afundando entre os dois ossos do antebraço.

Lucius rilhou os dentes, estremecendo, quando o fio da espada arranhou o osso.

O jovem retrocedeu, e seus dedos cobertos de sangue deixaram cair à espada. O sangue vermelho sobre o punho da arma salpicou a brancura da arena.

Lucius ouviu o suspiro de Fio às suas costas. O físico grego baixou os quatro degraus até a arena. Não se perguntaria pela sorte do derrotado. Era somente um combate de exibição.

Fio examinou o braço do jovem, que sustentava a mão ensangüentada com a outra mão. Com um olhar de recriminação a Gordus, o físico levou a jovem para as escadas sob os assentos.

César se inclinou sobre o corrimão do estrado para falar em voz baixa com Gordus. O gladiador ouvia suas palavras, assentindo e fazendo lacônicos comentários de vez em quando enquanto limpava sua arma com um guardanapo.

Alguns dos escravos que haviam servido o jantar levaram vinho em uma jarra de cristal e pasteizinhos doces de vários tipos em uma bandeja.

Lucius, um pouco enjoado pelo vinho e a excitação, declinou seguir bebendo. Ouviu um risinho feminino em algum lugar sob o solo.

César, Cleopatra e Fulvia se serviram de vinho e bolos. A rainha egípcia e sua irmã trocavam sussurros cabeça com cabeça, enquanto César seguia falando com Gordus. Lucius olhou o sangue secando sobre a arena e sentiu náuseas.

Um escravo, que Lucius reconheceu como um dos jardineiros chegou para rastelar a arena.

Ouviu-se novamente os risinhos e então quase vacilando, uma pequena figura entrou na arena vestida com o subligaculum.

Lucius esqueceu seu estômago. A menos que estivesse ficando louco, tratava-se de uma mulher vestida como um gladiador.

 

                                                Capítulo 13

Dryas despertou no chão, estendida em meio a um bosque. Rolu sobre as costas, vendo o dossel de árvores sobre sua cabeça e sentindo as folhas e brotos apertados contra sua pele. Deu conta de que estava nua. Tentou se levantar, mas caiu para trás e ficou olhando o gigante dos bosques que estava junto a seu ombro.

Era a árvore maior que tinha visto em sua vida. Enquanto seu olhar seguia o tronco para o céu, ela notou que os galhos possuíam agulhas e abacaxis. Era algum tipo de conífera e nem a árvore maior da região. Perto havia outras maiores.

Conseguiu ficar de joelhos de alguma forma, com sua mente surpresa pelo que estava vendo. Havia estado em vários bosques, mas nunca tinha visto nada igual. A menor daquelas árvores deixava miúdo qualquer outra que teria visto em Alvorada ou em outro lugar. O solo não estava coberto de vegetação, mas de musgo e samambaias.

Sentiu algo pegajoso em suas mãos e seu estômago. Estava ferida? Morta? O lobo havia advertido seu propósito e lhe abrira a garganta?

—Não! — Ela gritou e a palavra se perdeu no silêncio do bosque. O momento de medo passou e Dryas forçou sua mente a se adaptar ao presente. Fitou suas mãos e o solo sob ela e estremeceu. Devia ter vomitado ao perder a consciência. Ficou em pé e viu água. Saía da terra perto de onde estivera estendida em meio a um verdadeiro tapete de musgo verde. O solo formava um ligeiro pendente. Dryas avançou cambaleando até chegar à fonte. A água saía a jorros da terra, formando um riacho cujo leito rochoso estava quase oculto sob o musgo e as samambaias. Havia mais de um tipo de musgo desde a delicada superfície sobre as rochas e os galhos secos, até a espessa cobertura, quase similar à pelagem das raízes das árvores e a parte inferior dos troncos. As samambaias variavam entre os pequenos círculos de cor vermelha escura sobre quase invisíveis ramos negros, até as folhas verde oliva em forma de ponta de flecha.

Ela ficou de joelhos para lavar o rosto, as mãos e o corpo. Onde estava?

Ao se levantar descobriu que a árvore mais próxima a ela estava junto a um escarpado e que ela estava olhando além de seu tronco, para um profundo vale sumido na névoa.

O sol começava a sair ao longe. Meio oculto pela névoa, ele brilhava como uma moeda de ouro enviando seus raios através das nuvens.

Enquanto Dryas observava, o vento do amanhecer começou a se elevar, devagar a princípio, só um fôlego sobre sua pele nua, mas tornando-se logo cada vez mais forte, afastando as úmidas sombras.

Ela descobriu que estava ajoelhada na ladeira de uma grande montanha, mais alta inclusive que as que tinha visto naquela parte da Galia. Dominava outras colinas e montanhas mais velhas e baixas e cobertas de verde, que se estendiam além do alcance de sua vista.

Inspirou profundamente. O ar parecia pedir profundas respirações, mais fresco que a água e com a fragrância do cedro e o pinheiro. Pedia ser inspirado para lhe encher os pulmões com a energia de sua pura essência, para consumir a dor enraizada em seu coração e levar a paz e o esquecimento eternos.

Recordou novamente o rosto de seu filho, com os olhos abertos e as pupilas nubladas cravados nos seus e também a consciência , negra como o abismo, de que apesar de todo o seu adestramento, sua visão, sua sabedoria e inclusive seu amor, tinha escolhido errado e chegara muito tarde.

—Não! — Ela gritou.

Então viu que estava de joelhos junto ao lago, à alvorada. Os pinheiros ao seu redor eram árvores normais e o sol não se elevara ainda. A luz era cinza e Mir estava em pé diante dela, com uma camisa branca sobre o braço. Ele parecia surpreso, e os joelhos lhe doíam como se tivesse caído de alguma outra parte e aterrissado diante dele.

De fato, como descobriu mais tarde, assim tinha acontecido.

Ele entregou-lhe a camisa.

—Não vai apanhar-lhe.

Dryas vestiu a camisa pela cabeça, levantou-se e olhou para o homem. Recordou-se que tinha sido uma rainha.

—Quem é Imona? O que lhe aconteceu e por quê? E quero a verdade, nada de mentiras ou evasivas.

Mir assentiu, deixando que seu olhar vagasse sobre as montanhas. O sol começava a iluminar os picos cobertos de neve.

—Imona. – Murmurou ele. - Imona. Imona é uma mulher que morreu... Imona está em... Não, não na terra. Ela está onde não é nem terra e nem água, nem de dia ou noite, nem faz frio ou calor...

—Sim. - Repôs Dryas. - Entendo-o. Mas me diga quem era era... Por que.

—Venha. - Disse ele. - Não a minha casa, porque a... Minha mulher está lá. Subamos para as árvores. Tenho um pouco de pão, queijo e um pouco de cerveja. Comerá e eu contarei tudo o que queira saber. É uma longa história. Longa e bastante triste.

Já era quase meio-dia quando Mir terminou sua história. Dryas estava muito cansada. O ancião partiu e Dryas, vestida unicamente com a camisa, retornou ao lago para recuperar sua roupa.

Não encontrou seus objetos como havia deixado, mas espalhados, como se ele tivesse inspecionado-os depois que ela partiu para o estranho lugar no qual havia estado. Havia rastros de lobo na terra branda e úmida perto da água. Ela estava agitada e precisava dormir. Imediatamente, antes de qualquer outra coisa.

Decidiu que voltaria para o mesmo prado de montanha que havia investigado antes. Ficou contemplando por um momento o lago iluminado pelo sol. Se eu for, ele me seguirá e eu o levarei até as pedras eretas.

Oh, mas estava cansada. Ela inclinou a cabeça, perguntando-se como poderia encontrar as forças... Para fazer o que devia.

Olhou a água iluminada pelo sol. Podia ver mais abaixo.

Havia formas que se moviam, elevando-se da perpétua escuridão do fundo, para chegar sem não mover as aletas até o nível esquentado pelo sol, sob a superfície.

Uma ave aquática grasnou junto à borda. Uma rã saltou à água e Dryas pôde ver a silhueta de longas patas, com a cabeça se sobressaindo da água enquanto o anfíbio atravessava o lago.

Ela notou pela extremidade do olho que algo lançava brilhos do alto da rocha junto à borda. Ao se aproximar, viu que erao seu broche em forma de papoula. Estava segura de tê-lo jogado na água na noite anterior.

Subiu até a rocha e recolheu o broche, sopesando-o na mão. Sim, havia jogado na água. Recordava como ele tinha salpicado. Que estranho! Era quase como se lhe pedisse escolher novamente. Vacilou, esgotada e deprimida.

A rã chegou ao centro do lago. Ela não tinha visto a escura silhueta sob ela, a escura silhueta com mandíbulas como tesouras e longos dentes afiados como facas. Não mais do que tinha visto seu filho. Não mais do que Dryas tinha visto o que lhe perseguia no bosque, até que o apanhou. Havia chegado muito tarde.

A rã deve ver ou sentir alguma coisa, ela pensou, pois começou a se mover freneticamente em ziguezague, procurando fugir. Quase sem que Dryas se desse conta, o broche voou de sua mão para a água. O peixe se movia muito rápido, mas quase pareceu que vacilava por um momento. O broche caiu à água junto à rã e tendo que escolher entre dois, um escuro e o outro brilhante, o mortífero lúcio se decidiu pelo brilhante.

As mandíbulas se fecharam sobre o broche e o peixe desapareceu com seu prêmio nas profundezas.

E a rã seguiu nadando até se perder entre as sombras que cobriam o outro lado do lago.

 

César pareceu assombrado ao ver entrar na arena uma moça vestida como um gladiador.

Lucius passou a mão pelo rosto. Pelas tetas molhadas em mel da rainha dos mortos! Era uma das mascotes sexuais de Fluvia. Chamava-se Melisa e não devia ter mais de quatorze ou dezesseis anos.

Mesmo o subligaculum favorecia a moça. Na maioria dos homens, tinha manchas de suor e mais de um pelo suspeito saindo da virilha. Melisa o levava em torno da cintura, com uma ponta passando decorosamente entre suas pernas e acima da cintura, de forma que ele pendurasse sedutoramente entre suas coxas.

Por um momento, Lucius pensou que ela estava nua da cintura para cima, mas logo compreendeu que se equivocara. A moça usava uma regata de fina cota de malha de prata, que chegava justo abaixo de seus seios. Muito fina. Podia se notar as sombras dos mamilos através dela.

A espada que levava o deixou surpreso. Era uma das armas de César banhadas em prata e lançava brilho à luz das tochas. Estava muito afiada.

Outra das mascotes sexuais de Fulvia, chamada Vella, entrou na arena. Era morena e Melisa loira. No mais eram do mesmo peso e tamanho e estavam vestidas quase iguais.

Uniram suas mãos e se inclinaram ante os ocupantes do estrado.

César rompeu a rir, se voltou e sussurrou algo ao ouvido de Cleopatra, enquanto lhe soprava na orelha e lhe mordia o lóbulo. César sorriu novamente e voltou sua atenção para as duas moças com um sorriso de indulgência.

As garotas iniciaram o que teria conseguido chamar um duelo e depois dos primeiros movimentos foi evidente que tinham recebido algum adestramento.

Gordus seguia na arena. Havia cruzado os braços e se apoiava sobre a metade inferior do estrado.

A loira Melisa era a mais agressiva das duas. Tinha mais alcance e começou a perseguir sua oponente pela arena.

Naquele momento, Gordus se interpôs e separou às lutadoras, elevando suas espadas com uma vara de bronze e marfim. As moças se afastaram, com a morena lançando olhares furiosos à loira.

Gordus se voltou para o estrado.

—Declaro já uma vencedora, César?

—Não, ainda não. – Respondeu César. Parecia muito divertido.

—Oh, não – Disse Fulvia. - Que voltem a se enfrentar pelo menos outra vez. Mas deixem que recuperem o fôlego. Nenhuma delas é muito aficionada a se exercitar na palestra e se esgotam com rapidez.

Gordus entregou toalhas e vinho aguado para as duas moças.

Os olhos de César as devoravam. Certamente era um espetáculo excitante.

Era difícil dizer qual das duas era mais atraente, mas Lucius estava mais interessado na morena. O exercício tinha levado rubor à sua face, seu queixo e sua testa e uma ligeira camada de suor lubrificava sua cremosa pele. O escuro cabelo estava ligeiramente encaracolado e pegava-se ao seu rosto, a testa e a nuca em suaves caracóis.

A cota de malha que perfilava seus seios deixava seu liso e ligeiramente musculoso abdômen nu. O tecido de seu calção era vermelho e combinava à perfeição com sua pele olivácea.

Lucius se alegrou por estar usando a toga. Havia conseguido convencer sua irmã de seus piores temores sobre sua dignidade, mas seu traiçoeiro corpo estava o assinalando naquele momento, como um mentiroso. Além disso, já estava planejando como transferir a atração do brinquedo sexual de sua irmã, das mulheres aos homens e dos homens em geral, a ele mesmo.

Fulvia não merecia ficar com toda a diversão. Ele não só tinha direito a sua parte da herança familiar, mas também à influência, o luxo e o poder. Deixara se prender por Fulvia durante muito tempo.

Mas devia ser cuidadoso. Aquela noite havia lhe seguido o jogo ficando como um tolo diante de César. Diziam muitas coisas feias e desagradáveis de César e o mais provável era que todas fossem certas, mas ninguém havia dito jamais que ele traísse a quem o ajudava e confiava nele. Ele devolvia as ofensas com interesses e faria o mesmo, por favores e lealdade.

Naquele momento, César deixou cair seu guardanapo e o combate, se pudesse se chamar assim começou novamente.

Lucius se entreteve observando o jogo de luzes e sombras causadas pela vacilante luz das tochas sobre as curvas algo menos que atléticas da moça morena.

Melisa começava a desenvolver o que para Lucius era um feio rubor, enquanto que Vella transpirava mais livremente e sua pele estava brunida pelo suor. Agora ela estava contra-atacando, sem se deixar intimidar como à princípio.

Quando chegaram à margem da arena, as duas escravas se travaram, as espadas cruzadas enquanto se empurravam com as mãos livres.

Gordus se moveu para elas.

—Não! — Gritou César. - Que não parem. Acredito que seu sangue esquentou e agora lutam de verdade.

Evidentemente ele tinha razão, pois Melisa estendeu de repente uma mão para pegar o mamilo de Vella e o retorceu rudemente.

A morena gritou. Separaram-se, frente a frente em meio à arena.

Lágrimas de raiva fluíam dos olhos de Vella enquanto ela tocava o seio cuidadosamente.

—Isso é uma armadilha. – Ela soluçou. - Se supõe que não devíamos tentar de verdade...

—Oh, deixe de choramingar! — Cortou Fulvia. – Você prometeu nos oferecer um bom espetáculo. Agora, faça-o.

César deu uma palmada.

—Mais uma coisa. Mil sestercios para a vencedora e sua liberdade.

Fulvia riu.

—César, isto não é uma batalha de verdade.

—Agora é. - Disse ele.

E estava certo. Durante pelo menos meia dúzia de movimentos, cada uma delas manteve as duas mãos sobre o punho de sua espada. As duas escravas se lançaram uma contra a outra, e o anfiteatro se encheu com o fragor do aço sobre o aço, enquanto trocavam ferozes punhaladas.

Lucius sentiu que seu desejo desvanecia. Pensou que deveria fazer algo para deter aquilo, mas César e Cleopatra observavam com avidez.

As duas moças estavam molhadas em suor. A umidade pegava–se a seus cabelos e fazia com que lhes caísse sobre o rosto.

Lucius sabia mais de assuntos práticos de batalha que o resto. Mesmo César possuía outros que lutavam por ele. As duas escravas não demorariam em ficar cegadas quando o suor entrasse em seus olhos. Além disso, nenhuma delas tinha o mínimo de amparo dos gladiadores normais... Um escudo, um casco, uma couraça...

Lucius se debateu ante a idéia de ficar em pé. Tinha que descer na arena e deter aquilo. Então sentiu uma mão sobre seu ombro, lhe obrigando a seguir sentado e ele notou que Fio havia retornado e estava atrás dele.

Vella foi primeira em ficar cega. Com Lucius havia acontecido o mesmo em certa ocasião e ele sabia o quão indefeso fazia sentir aquilo. Além de não ver nada, certamente estaria doendo muito, com os olhos ardendo como se algo os queimasse.

Melisa, que tampouco estava em boa forma, bloqueou a espada de Vella e a tirou da mão. A lâmina saiu girando até cair a margem da arena com um ruído metálico.

Mas agora Melisa estava cega e Vella tinha conseguido limpar os olhos.

Lucius soltou um suspiro de alívio.

César ria, mas Cleopatra estava pálida pelo desgosto e Fulvia parecia molesta.

Vella soltou um grito, carregou contra Melisa, cega e de costas e a pegou pelo cabelo.

Melisa gritou, tentando rechaçar sua atacante... Com a espada. A arma entrou com facilidade no corpo de Vella, como uma faca cortando a manteiga, até ficar a três polegadas do punho.

Vella baixou o olhar inexpresivamente para a espada em seu corpo. Elevou as mãos para pegar o punho, mas não parecia se atrever a fazê-lo.

—Minhas pernas. – Ela disse. De fato, estava sem forças, pois a moça caiu brandamente sobre seus joelhos. Seus olhos já estavam vazios então. Lucius notou que por alguma razão, ela voltava à cabeça para ele. Ela caiu para um lado ainda de joelhos e um fino de sangue saiu do canto de sua boca para cair sobre a arena. Ela tentou respirar várias vezes. Suas pernas se estiraram estremecendo por um instante e relaxando depois, com os joelhos ligeiramente flexionados. Estava morta. A cor desapareceu de seu rosto, deixando uma cerúlea e amarelada palidez.

Lucius estava doente de horror. Melisa gritava. Fio tinha descido até arena, para se ajoelhar por um momento junto à Vella. Não precisou confirmar o que já sabia. Depois, ele e Gordus pegaram Melisa e saíram do anfiteatro. Lucius pôde seguir ouvindo seus gritos durante uns instantes. Logo se converteram em soluço e finalmente emudeceram.

O jardineiro que tinha rastelado a arena entrou e olhou o cadáver. O sangue seguia saindo pela terrível ferida do torso. O homem parecia confuso, mas Gordus se uniu a ele e o gladiador sabia o que fazer com os mortos.

Pegaram o corpo de Vella pelas pernas e as axilas. A cabeça da garota estava contra o estômago de Gordus. Juntos, eles tiraram-na dali e depois o jardineiro voltou com seu rastelo.

Só então olhou Lucius para sua irmã, César e Cleopatra. Fulvia parecia um pouco pálida, mas César sorria para a rainha, enquanto conversavam em voz baixa, como amantes.

As duas víboras reais sequer se alteraram.

 

                                           Capítulo 14

Dryas vestiu roupa limpa, uma túnica branca sem bordados e as soltas meias de um cavaleiro, mas deixou seu cavalo e sua bagagem na casa de Mir. Antes de partir, falou em voz baixa com a garota que Mir dizia ser sua mulher. Naquela ocasião não pôde lhe tirar nenhuma palavra, embora houvesse algumas lágrimas. Dryas se alegrou em vê-las e esperou que a garota encontrasse a paz e se possível, a cura.

Antes de partir para a montanha, ela falou com Mir. O ancião assentiu quando ela lhe falou sobre as lágrimas.

—Ela morrerá agora. - Disse.

Dryas ficou atônita.

—Como morrerá?

—Morrerá. - Repetiu Mir.

Dryas olhou para a garota. Ela havia feito uma coroa azul de aster silvestre e dançava entre os girassóis, cantando uma canção para ela mesma.

—Está seguro? — Perguntou. A sabedoria de um homem como Mir não podia ser tomada como leviana.

—Sim, já vi esse olhar antes. Só estava esperando que você viesse. Agora, ela já pode ir com os outros. Já viveu e sofreu o bastante. Pegue o lobo e o leve para caçar César. Ele será uma presa digna de tal fera.

Dryas assentiu e empreendeu o caminho até a montanha.

O crepúsculo já estava perto quando ela chegou ao prado.

A sombra a esperava. A voz falou em sua mente. Ele é uma poderosa criatura e não poderá lhe conquistar sem ajuda. O que planeja não é suficiente. Prenda-o. Tem o poder, tem a vontade. Prenda-o. Ou é seguro que um dos dois morrerá!

Dryas não se incomodou em perguntar qual dos dois, mas talvez nem o espírito soubesse com certeza. Na Ilha das Mulheres, suas companheiras estudantes tinham debatido a capacidade de Dryas e os seus, de procurar o transe e saber em certas ocasiões qual seria o resultado de um curso de ação. Seriam os resultados desses ritos, mais precisos que os do azar? Havia seres que estavam além do mundo, com maior capacidade de conhecer o destino?

Sua professora, Lyssa, acreditava que sim.

—O conhecimento é um. – Ela lhe havia dito. - A capacidade de predizer o futuro está arraigada em nosso conhecimento do passado e o presente. Caso estejam atentos... Uma hipótese com que outros não estão de acordo... Esses seres de além mundo estão em melhor posição para determinar as virtudes e defeitos da humanidade em conjunto e os pontos fortes e fracos de homens e mulheres. Então o conhecimento do passado e o presente podem ser mais amplo e profundo do que nós poderíamos alcançar. Por isso consideramos prudente consultá-los em momentos de dúvida e seu conselho deveria ser sopesado e meditado. Uma sabedoria como a que nos oferecem, embora não seja perfeita, não pode ser leviana. Dryas sorriu. O que desapaixonada, lógica e objetiva havia sido Lyssa. Mas era possível ser tudo aquilo e ao mesmo tempo estar muito equivocada

A sombra seguia ali. Dryas podia ver que a escuridão em que estava não se devia a nada visível para seus olhos.

Advertia, mas não ordenava e ela não precisava pedir sua permissão para nada. A carga da escolha era dela. Ela, e somente ela devia fixar seu curso de ação e se ater as conseqüências, para o bem ou para o mal. De certo modo, toda sua vida tinha sido uma preparação para aquele momento.

A sombra estava em silêncio e não voltaria A falar.

Dryas se voltou e caminhou para seu leito. A coisa estava em um pequeno saco de couro macio. Ela esvaziou o saco em sua mão e quando sentiu os frios elos sobre sua pele, foi como se tivesse colocado a mão sem querer sobre algo fervendo. Uma vasilha que parecia estar fria embora tivesse sido esquentada ao fogo, em um calor suficiente para lhe queimar a carne até o osso.

Ela sentiu a agulhada de dor atravessando seu corpo e sua mente, como se sua perda tivesse acontecido uns dias antes, uma semana, um mês. A sensação de perda penetrou em sua mente como uma agonia de dor. Uma dor quase mortal passou sobre ela como uma onda.

Mas sua dor datava de muito tempo atrás e também como uma monstruosa onda, não pôde arrastá-la as profundezas. Dryas se manteve firme no refúgio do agora, até que o sofrimento amorteceu graças ao tempo e a distância.

Era estranho. Como algo tão formoso pudesse ser a fonte de tanta dor.

Brilhava no crepúsculo com brilhos metálicos, uma corrente de ouro seguindo um desenho de folhas, flores e frutas de fresno. Bem, as folhas eram de ouro, as flores de marfim e os frutos de granada.

A árvore estava representada em suas folhas, suas flores e seus frutos e Dryas pensou, como fazia sempre, que o colar fora elaborado com habilidade mais que humana. Elevou-o de forma que captasse os últimos raios do sol e lhe pareceu ter fogo, neve e sol misturados em sua mão.

Era proibido fazer algo assim, porque aquilo podia capturar o espírito do fresno em seu interior ou pelo menos parte da vida da árvore. Podia capturar parte da vida de qualquer criatura e aquilo era o que Dryas queria que acontecesse.

Fui provada, ela pensou. Fui provada e não encontrada desejosa. Ela inclinou a cabeça como aceitando o jugo, passou a corrente pelo pescoço.

Nunca se esperou que uma mulher mortal o usasse. Não podia ver a sombra. Ela estava entre as árvores que a contemplavam da ladeira.

Sentiu que o desejo crescia como na noite anterior. Compreendeu que era o fogo da criação, uma cascata de luz que iluminava o mundo como outro sol, varrendo tudo ante ela como fazia o vento quando eleva as ondas, até as faze-las romper em um espectro de cinza, azul, jade, esmeralda e, por fim, branco... Branco como as flores do salgueiro e o fresno na primavera.

 

Os dois escravos pessoais despertaram Lucius pouco depois da alvorada. Ele pensou em amaldiçoá-los, mas sabia que eles não se aventuraram sem ordens estritas de Fulvia e que, se expressasse seu desgosto e voltasse a se arrastar sob as mantas, sua irmã adotaria algum curso de ação realmente venenoso. Não. Mais valia descobrir o que Fulvia havia pensado.

Elevou o índice e o polegar deixando um pequeno espaço entre eles. – Vocês estão isto a leilão.

Os escravos aceitaram a ameaça com equanimidade. Bem, tampouco ele havia esperado que se encolhessem de medo.

Um deles lhe entregou uma folha de papel. Lucius piscou os olhos, mas não conseguia ler as palavras. Esfregou-os e por fim compreendeu que sustentava um fragmento de um dos mais duros discursos do Cicero sobre a Catilina. Contemplou-o, intrigado.

—Nnnh? — Perguntou.

—Dentro – Disse um dos escravos.

Ele havia pensado chamar o casal Castor e Pólux, mas ainda não estava claro quem era Castor e quem era Pólux. Nem estava seguro de qual dos dois havia falado.

Desdobrou o papel. No interior estava escrito um convite. Ele pode captar as palavras suficientes para estar seguro, mas pelo resto a mensagem lhe resultava ininteligível.

—Nnnh - Disse.

—É do senhor Marco Antonio. Gostaria de lhe convidar para tomar o café da manhã.

—Dsunar – Disse Lucius entredentes. - Deyunar. — Ele começava a se aproximar da palavra, mas decidiu que devia deter aquilo antes de se afundar na mais completa e irrevogável idiotice. - Tragam Fi. – Ele grunhiu.

Obedeceram-lhe.

Fio entrou em sua casa, com um aspecto tão viçoso como o de uma manhã de abril. Lucius lhe deu a nota.

—Tragam para meu senhor roupa limpa, sua toga e um pouco de água quente. - Disse o grego a Castor... Ou era Pólux? Não sabia, mas os dois desapareceram e aquilo pareceu reconfortante.

—Mmmh... – Disse Fio, acariciando-a queixo. - Acredito que o pedido de sua irmã a César já deu seu fruto.

—Como sabia isso?

—Porque, como todos outros criados da casa, escravos e livres, eu estava na cozinha, ouvindo avidamente cada uma das palavras que pronunciavam.

—Tolices. A cozinha é muito pequena. Não caberiam todos ali.

—Você se surpreenderia de quanta gente é capaz de se apertar em um espaço reduzido, se todos colaboram. Além disso, sempre restam o telhado e o jardim.

Castor e Pólux voltaram nesse momento com o pedido de Fio, pondo fim a conversa.

—Deseja um banho, senhor? — Perguntou um deles.

—Por que, em nome do traseiro do Caronte, eu deveria me banhar a esta hora da manhã? Antonio não notará se vou gotejando perfume ou cheirando como uma latrina repleta.

E Antonio não notou.

Quando chegaram a sua casa, o porteiro lhes franqueou o passo sem dificuldade. Um dos libertos de Antonio estava no jardim, dispondo uma mesa para o café da manhã.

Lucius perguntou por Antonio e o homem voltou o olhar para eles.

—Meu senhor está no tepidanum - Disse.

Antonio estava sentado em uma nuvem de vapor, bebendo algo de aroma repulsivo em uma taça de prata. Ele gemeu audivelmente quando abriram a porta e o sol lhe deu nos olhos. Era um homem grande e arrumado, embora começasse a engordar muito. Seu cabelo era negro e muito encaracolado na cabeça e no resto de seu corpo.

Ele observou Fio como alguém que estivesse se afogando olharia para quem lhe atirasse uma tábua de salvação.

—Resisto em agradecer algum deus esta manhã, — ele murmurou, - mas me alegro em vê-lo, Fio.

Ele passeou seu olhar injetado de sangue em Lucius, como se ele fosse algo que acabasse de sair se arrastando debaixo de uma pedra.

—Conheço-o? E se não, o que quer? Mais vale que seja algo importante ou ganhará uma viagem a Tullianum.

—Oh, sim me conhece. – Disse Lucius. - Mas não sei se lembra da mim. Quanto você se recorda de toda a gente que conhece?

Antonio começou a rir, mas logo se engasgou, vomitando por cima da margem da banheira de mármore em que se encontrava.

—Oh, oooh, ooooh. Não me faça rir. Dói muito. Meu crânio vai partir pela metade e os miolos me sairão pelos olhos, cairão na água quente e eu ficarei livre das misérias. Por favor, por favor, por favor... – ele disse estendendo um braço para o céu. - Deixem que aconteça, deuses imortais. - Logo ele acrescentou: - Esse bastardo do César lamentará. Não. Correção. César nunca lamenta nada. A resposta a sua pergunta é provavelmente uma pessoa de cada dez.

Naquele momento, Fio entrou novamente na estadia. Lucius não havia cuidado sua saída. Ele carregava um copo de cristal bastante escuro, decorado com espirais de ouro e uma toalha enrolada. Colocou a toalha sobre a cabeça de Antonio, como se fosse uma coroa, e lhe entregou o copo.

—Beba isso devagar.

Fio afastou a taça de prata que Antonio havia estado bebendo. Cheirava a vinho azedo, mais vinagre que vinho, chamado pósea, elaborado para os escravos de imóveis rústicos e era considerado como um remédio supremo contra a ressaca.

Antonio saboreou cautelosamente o conteúdo do copo.

—Ahhh! – Ele suspirou, entrando mais na água. - Fio, eu nunca sei o que há em suas poções, mas não importa. Poderia me envenenar a qualquer momento.

Lucius encontrou um par de tamboretes e os levou para a margem da banheira. Ele e Fio se sentaram para seguir conversando com Antonio.

—Hortelã, vinho branco, valeriana e um toque de ópio para a dor de cabeça – Disse Fio. - Não é nenhum segredo. A hortelã assenta o estômago, o vinho branco cura a ressaca, a valeriana acalma os nervos e o ópio já te expliquei para que

—Suponho que na toalha tem neve, não? – Disse Antonio.

Fio assentiu.

—Ainda restava algo da festa de ontem à noite.

—Já está de volta ao mundo, não? – Disse Lucius animosamente. - A última vez que nos vimos, acredito que havia perdido o favor de seu nobre amigo. César e você não se falavam. O que aconteceu?

—O que aconteceu para causar o desgosto ou para solucioná-lo?

—Ambas as coisas.

—Não acredito que responda a isso. – Disse Antonio. - Talvez no futuro, quando o conhecer melhor.

—Mmmh... – Disse Lucius.

Antonio gritou deu uns golpes no chão.

—A água está esfriando e quero mais vapor. Diga a esses filhos de cães vagabundos que deixem de sovar as donzelas da cozinha e joguem mais combustível no forno ou lhes arrancarei a pele a tiras, antes do meio-dia. —Ele voltou a segurar a cabeça. - Oh, Oh, Oh. — Ele tirou a toalha e a deu a Fio. - Mais neve! — Antonio rugiu.

Fio espremeu a toalha, o que diluiu não uma, mas várias poças de uma desagradável substância.

Naquele momento, Antonio contribuiu com outra entrega do mesmo material, e logo esvaziou o copo e gritou ao grego: - E traz também mais remedio para a ressaca!

Lucius, quase compulsivamente pulcro, achou surpreendente o lugar dos banhos de Antonio. Sim, era luxuoso, com mármore branco, negro e amarelo. O piso era decorado com um mosaico de ondas nas mesmas cores, rodeando a negra banheira de mármore em que flutuava Antonio, bastante grande para inundar um cavalo. Mas o lugar era um desastre. Havia toalhas de linho, esponjas de todos os tamanhos, frascos de perfume, jarras de óleos, pentes, escovas, pinças e demais objetos espalhados por toda a parte. Para não mencionar as pegajosas poças de vinho, vômito e a comida atirada pelo chão.

—Eu disse, - gritou Antonio com todas suas forças, - que a água está esfriando! Não me façam sair para...

Naquele momento, uns spots de mármore negro em forma de flor vaiaram nas paredes e o vapor começou a sair por suas aberturas, enchendo a estadia de névoa. No mesmo instante, uma estátua de mármore negro de uma beleza núbia, vestida de marfim e bronze começou a jogar água na banheira, com a jarra que tinha na mão.

—Ahhh... —Antonio se afastou para trás, relaxando. Tinha uma terrina de nozes junto à mão. Pegou algumas e começou a quebrá-las com o polegar. - César me despertou à alvorada com uma lista de coisas que quer que eu faça hoje. Não entendo como pode agüentar esse ritmo. Se eu tentasse, morria de esgotamento antes das calendas do mês que vem. Vai a casa dessa puta ptolo... Dessa rainha egípcia... E a transa. Logo vai para a sua casa, onde tem que demonstrar a Calpurnia que ainda estão casados. Depois vem aqui com a primeira luz do dia, trazendo uma lista de tudo o que quer que faça. E diz a mim, que levante! Que não durma até o meio-dia! E que faça todo isso! Ou me arrisco a lhe desgostar. Sorri-me com uma careta que mostra seus dentes afiados e parte para o Senado. Tivemos uma festa ontem à noite. Fulvia, minha esposa, não a sua irmã, pegou um látego. Parece que me animei, mas que logo não pude parar. O vinho provoca isso às vezes e um látego é sempre. Mas aqui estou ao amanhecer. Dói-me o traseiro, tenho o estômago revolto, meu crânio quer se partir em mil pedaços e César vem me dizer que o coloque no Senado...

—Não. – Disse Lucius obstinadamente. - Não tenho intenção de...

—Não discuta comigo! - Rugiu Antonio. - Não a menos que de verdade queira uma casa no Tullianum. Já veremos o que se consegue uma semana a pão e água nesse buraco. É claro que cantará outra canção.

Lucius suspirou.

—Eu também apostaria isso. De acordo, mas não tente me convencer de que faz isso pela bondade de seu coração. Diga-me o que o que quer de verdade.

— Direi, se você fechar o bico e deixar de me interromper. O que ele quer é que espione os outros senadores.

Lucius ficou em pé tão rapidamente que derrubou o tamborete que estava sentado, fazendo com que ele ressoasse sobre o piso de mármore.

—Você... Você! Pode ser que não seja um patrício como você e seus amigos llambe traseiros, mas...

Fio entrou naquele momento com outra toalha e uma segunda taça.

Antonio golpeou a água com o punho. Como gesto carecia de força, ele pegou a terrina de nozes que estava junto ao cotovelo e o jogou na cabeça de Lucius.

A terrina era uma pesada peça de pedra. Sua margem abriu um corte de umas três polegadas na testa de Lucius, que começou a sangrar profusamente em poucos instantes.

Lucius viu estrelas. Não só estrelas, mas também cometas e talvez umas quantas luas pequenas. Ele cambaleou, e por uns momentos seus joelhos pareceram fraquejar.

Fio o segurou pelo braço e voltou o tamborete em seu lugar com um pé e ajudou ao jovem a sentar. Pressionou a toalha cheia de neve sobre o corte e entregou a taça com o remédio contra a ressaca para Antonio, que o bebeu de um gole.

—Posso perguntar o que aconteceu? — Perguntou o grego com calma.

—Sim, pode perguntar. - Replicou Lucius.

Antonio saiu da banheira e vestiu uma bata com um buraco no centro, pela cabeça. Explicou a Fio o pedido de César.

Fio dirigiu um olhar de simpatia para Lucius.

—O homem é... Quem e o que é. Não há mais que isso, meu senhor.

Lucius olhou venenosamente para o grego, afastando a toalha da testa.

—Silêncio! — Rugiu Antonio. - Calem-se antes que cometam traição e eu tenha que informar! Seu homem não é néscio e tem razão. Não há mais que isso. E, além disso... – Antonio disse rilhando os dentes. - Quando tiver passado alguns meses entre essa turma de mentirosos, ladrões, concusionarios, putas, cretinos, contistas, idiotas, enrabados, valentões, sanguessugas, parasitas, adúlteros, alcoviteiros, chantagistas, extorquistas, assassinos e... Esqueci-me de algo? Ah, sim, serpentes... Quando tiver passado um tempo entre eles estará desejando derramar toda sua raiva e frustração em meu atento ouvido. — Antonio levantou um dedo. - Me acredite, César tem montes de espiões e não tem que me dizer nada que não queira dizer. Sua irmã estará contente... E, por certo, me disseram que é uma arpía pior inclusive que minha esposa. Eu tomaria cuidado com ela... E César sairá logo para Partia, então você poderá fazer o que quiser. Ouviu-me?

Os lábios de Lucius estavam rígidos de raiva, mas ele conseguiu para responder.

—Sim.

—Estupendo. – Disse Antonio esfregando-as mãos. - Já me sinto melhor. O que diria de umas poucas horas na palestra e logo um almoço? —Ele deu tapinhas nas costas de Lucius. - Meu cozinheiro está preparando porco selvagem. – Ele acrescentou animadamente. - E minha esposa estará fora da cidade. Fique para jantar comigo. Lembvra-se de nosso primeiro encontro? Estava sentado tomando vinho com aquela pequena bailarina da Alexandria. Lembra, a que tinha dois grandes aros de ouro nos mamilos. Recorda a sugestão que fez?

Lucius recordava e se ruborizou um pouco.

—Assombroso! - Continuou Antonio. - Me surpreendeu. Imagine o quanto me surpreendeu.

—De fato, – Disse Fio, - é difícil imaginar

Antonio olhou seriamente para Fio por um instante.

—Em todo caso, quanto a aquela… Noite...

—Acredito que na realidade já tinha quase amanhecido. —Interrompeu Lucius.

—Sim. Quanto àquela noite, minha memória se torna um tanto nebulosa.

—Pensei que podia ser assim. – Disse Lucius. - Não sabia que alguem fosse capaz de beber tanto vinho e continuar em pé.

—Sim, sim, mas o que eu quero saber é se chegamos a... Pôr em prática a sugestão.

—Não acredito que responda isso. – Disse Lucius. - Talvez no futuro, quando o conhecer melhor. Então lhe direi isso, mas não agora.

—Agora! – Respondeu Antonio. - Vejo que me foi devolvido limpamente. Bom, procurei isso.

—É uma bonita casa. — Comentou Lucius, aproveitando a desculpa para afastar o olhar de seu anfitrião. Necessitava de uma.

—Lixo. Faz com que me sinta bilioso. Bem, tudo o que tem a fazer no Senado é manter a boca fechada e os olhos e ouvidos abertos. Entre e sente se encontrar um lugar livre. Senão, se apóie na parede.

—Tudo o que faz o Senado é sonhar novas honras para César. —Grunhiu Lucius.

—Sim, César o deixou bem arrumado. Não sabe nada de política?

—Parece que não.

—Bem, moço. Os membros do corpo legislativo são indefesos até que conseguem formar facções, as conspirações, camarilhas, grupos, associações ou, em outras palavras, encontram companheiros de crime. O que fez César foi acrescentar trezentos membros ao Senado, todos os quais lhe deviam sua classe. Assim o único que pode fazer nossa tribo criminal nativa, os patrícios, é sentar e falar... E não que não sejam perigosos quando fazem isso. Mas nenhuma facção é o bastante grande para derrotar em uma votação, trezentos novos membros, não é preciso que diga que todos são leais a César. Então, são bastante inofensivos. César tirou as presas da víbora.

—Sim, mas elas podem crescer novamente.

—Ainda não. – Respondeu Antonio com expressão velada. - Vá ao Senado e deixe sua irmã feliz. Não me dê mais trabalho.

Dito isto, Antonio saiu da estadia.

 

Dryas voltou para prado e se sentou em silêncio, contemplando do alto como a noite reclamava o mundo para si. A sombra da montanha se estendia sobre a planície, cobrindo colinas, bosques, vilas e pastos.

Seu povo e os romanos eram indistinguíveis por causa da distância no tempo e o espaço.

À medida que o sol descia, seus últimos raios apontavam mais alto, engolir o mundo nas sombras e iluminando as alturas com sua luz dourada. A larga, suave e resplandecente vegetação verde nos prados ao seu redor se agitava e lhe sussurrava sob o vento do crepúsculo. As altas folhas acariciavam seus tornozelos, suas pantorrilhas e suas coxas.

Devo amar o lobo, ao lobo homem, da mesma forma em que a vegetação ama a terra sobre a qual cresce e o vento de outono que a beija e lhe dá brilho.

Devo lhe ensinar a voltar seu fogo para mim. Não como queimou os campos de trigo de quem o culpou pela morte de Imona, masme dando o fogo do desejo que une a frutífera terra ao sol que extrai dela as diversas formas que constituem o reino da vida. A árvore que se inclina adorando o sol. A alta e branca cevada, o trigo amarelo, as hortas adornadas com a multidão de flores que se convertem em maçãs, pêras, ameixas e aveludados pêssegos. As flores dos ermos elevam seus rostos para jurar fidelidade ao sol de dia e a lua de noite.

O fogo da tormenta que atravessa o céu lançando seu golpe sobre a terra, para benzer eternamente o instrumento do sacrifício que chama o fogo dos deuses e o coloca nas mãos do homem.

Ela pegou seu anel de ferro e avivou o fogo com ramos secos caídos entre a vegetação.

O sol flutuou por um momento à margem do mundo e logo desceu na escuridão. Quando o resplendor laranja e verde do crepúsculo desvaneceu do horizonte, as miríades de estrelas olharam da noite para Dryas, em pé em sua solidão.

Ela tirou a camisa, arrojando-a as chamas. O fogo se avivou, iluminando sua carne enquanto permanecia em orgulhosa nudez entre a noite e as estrelas.

Ele virá? Ela se perguntou e levou à mão a corrente de ouro em seu pescoço, fechando-a sobre as folhas de ouro.

Uma blasfêmia. Aquilo era uma blasfêmia.

Ninguém tinha direito de fazer uma coisa assim e incluir nela todas as partes e os estágios da vida de uma árvore, fazendo com que compartilhasse o universo humano. Ali, entre as folhas, as flores e os frutos, podia sentir as escuras raízes secretas retorcendo-se no esquema formado pelo artista. A árvore era parte da terra e da Gaia. A terra formava a árvore. Incluir tudo no círculo era perigoso. Seu povo não costumava fazer, deixando sempre algo fora ou rompendo o círculo em alguns pontos, mesmo em uma fortaleza ou uma coroa.

Ele virá? Porque agora a decisão era dela. Eu já havia escolhido.

Então ouviu um movimento na vegetação e logo dois fortes braços masculinos se fecharam em torno dela. Dryas s estremeceu por um instante e logo se entregou ao corpo forte e quente que havia atrás dela.

Ele a beijou na orelha e a garganta.

—Você gosta disto? — Ele perguntou inocentemente. - Imona gostava.

—Sim. - Disse ela, prescindindo de fazer comentários sobre o fato dele falar de uma mulher enquanto estava com outra nos braços. Não, pensou. Ele não é ainda um homem. Devo convertê-lo em um... Esta noite.

As mãos dele percorreram seu corpo, procurando, sondando, explorando e enfim, acariciando.

—Parece igual a ela. A primeira vez, não cheguei a... Ou seja, a saber, seu nome; a segunda soube que era Imona. Só tive duas de vocês. São todas assim?

—Sim. – Respondeu Dryas e logo emitiu um pequeno som. A exploração de Maeniel se tornara mais intima, e ela descobriu eletrificada, alguns dos lugares que ele estava investigando.

—O que quer dizer isso? É uma palavra? Acreditei que sabia muitas palavras, mas nunca tinha ouvido essa... Antes.

—Não. Não é uma palavra, mas uma indicação de prazer.

Então, muito brandamente, ela se voltou.

Dryas se sentiu assustada pela primeira vez. Havia uma fascinante e formosa inocência em seu rosto. E, por um instante, ela sentiu o prazer e a culpa de um saqueador que enche as mãos de fruta proibida e indefesa. Mas não. Não havia sensação de roubo. Era como se ele fosse a noiva virginal e temerosa, mas ao mesmo tempo ofegante e ela o noivo encarregado de iniciá-la no mistério e também, a crueldade, da criação.

Mas então ele a beijou, apertando seu corpo contra o dela e a ilusão desvaneceu. Ele era um macho completo e premente e por um momento, Dryas se tornou um animal, tão livre de responsabilidades como unicamente pode ser um animal. Já tinha deixado para trás o ponto sem retorno.

Dryas tinha estendido um cobertor limpo de linho junto ao fogo, coberto com a manta que usava para dormir. Ele a levou para lá, dizendo:

—Sim. Imona e nós gostávamos de nos deitar sobre algo. Dizia que o solo era muito frio onde nos reuníamos.

Ele fez com que ela retrocedesse até ficar sobre a manta.

—Posso te tocar, posso te cheirar. — Ele a afastou para trás sobre seu braço e enterrou o rosto entre seus seios. - Agora quero te saborear.

Dryas ficou em pé, e ele se ajoelhou ante ela, separando suas coxas com as mãos.

—Que sabor tenho?

—O seu mesmo, somente - Disse ele.

Ele fez algo, Dryas não soube o que, que a fez abrira boca e enroscar os dedos entre seu cabelo, como se o urgisse a seguir.

- Mas o sabor é o teu. A primeira não sabia como Imona, nem você como ela.

—Então, as mulheres são vinho, com distintos sabores em cada taça? — Perguntou Dryas.

Mas ele não respondeu. Estava... Ocupado. Um instante mais tarde, também estava ela, quando seu sexo começou a pulsar no compasso de seu coração.

Ela se encontrou estendida entre seus braços sem saber bem como tinha chegado até ali.

—Ontem à noite você desapareceu. Como posso te reter aqui? —Perguntou ele.

—Não sei. Tente.

Ele trocou de postura e Dryas descobriu que as pulsações de seu corpo aumentavam. Mas o batimento do coração era delicioso, tão delicioso que ela acreditou que devia ser proibido. Já não podia resistir. Não mais do que teria conseguido resistir a um riacho que a sugasse. Queria mais daquele prazer e ia consegui-lo. Ele entrou em seu corpo como uma espada em uma bainha quente e suave, penetrando-a cada vez mais profundamente, até que ela soube que se tornaria insuportável.

A inundação de puro prazer tomou sua vontade, seu intelecto e por fim, sua consciência.

Os reflexos, as costas arqueadas, os dedos crispados e o grito final não estavam sob seu controle mais do que estava à extinção de seu ser em um abismo de rendição. É o poder da criação. Dryas soube por fim e por mais que lutemos, somos todos seus escravos.

Não soube quanto tempo havia dormido em seus braços, mas ao despertar pôde notar pela posição das estrelas, que quase havia amanhecido.

Junto a ela não havia um homem, mas um lobo. Era um gigante, inclusive para se tratar de um lobo de montanha e ela soube que se limitou a brincar com Blaze. Nenhum homem teria conseguido enfrentar aquela criatura.

A corrente que usava a pescoço se moveu, fazendo um suave ruído tilintante. Uma das orelhas do lobo se moveu para trás e ela soube que mesmo dormindo ele era capaz de perceber os sons.

Por um instante sentiu medo, mas depois o desprezou como algo indigno de uma caçadora. Em um duelo terá que prevalecer ou morrer. Aceitar a alternativa é uma condição para iniciá-lo. Ninguém que estava disposto a se unir à batalha teme a morte.

Ele podia matá-la. A castração seria algo mais amável que o que planejava Dryas.

O fogo cintilou por um momento na brisa e logo ficou reduzido a brasas. O lobo seguia dormindo, sonhando, com o focinho entre as patas.

A escuridão envolvia Dryas como algo vivo. Ela ouvia a voz no vento... Ou talvez fosse o vento. Ela não é só a mãe da terra, mas também a rainha dos ventos. Não se entretenha. Não tem muito tempo.

Dryas ficou em pé. Teria jurado que só afastou a vista do lobo por um instante, mas quando voltou a olhar, ele era novamente um homem.

O vento negro vaiou sobre a vegetação. Dryas caminhou para a escada invisível que levava ao círculo de pedra que dominava o vale. As folhas e a vegetação estavam revoltas como o cabelo de uma criança adormecida.

Formou-se gelo sobre suas bordas durante a noite e Dryas queimou os pés enquanto se aproximava dos buracos na pedra que levavam a... Que estranho, ela pensou. Não tem nome, mas todo mundo sabe do que fala quando se refere isso.

Ele a alcançou a meio caminho, através do prado.

—Volte. Deve ter frio. Volte e eu a esquentarei.

Sua voz era como veludo, seus lábios de seda.

Dryas pensou em todas as histórias que tinha ouvido de mulheres que traíam os homens. Afinal de contas eles eram fáceis de enganar, mas se aproveitar daquela esplêndida inocência era algo mais cruel do que Dryas teria imaginado jamais. Suas professoras lhe tinham pedido o máximo. Absoluta sinceridade e a coragem de entregar sua própria vida se fosse necessário, sem queixa e nem vacilações.

O que pensariam de seus atos dessa noite? Mas Dryas era consciente de que, como ela, teriam comparado na balança com a segurança do povo de Mir, aceitando a opção contra a vontade.

Mas também teriam acreditado em lhe dar o direito de escolha.

—Tenho bebida lá encima - Disse ela. - Nos esquentará.

O vento negro deixou de soprar e foi como se toda a terra se classe.

—O amanhecer está perto – Respondeu ele. - Me diga onde está. Observei-a escalar até lá, na outra vez. Subirei e pegarei. Eu não gosto desse lugar, nem de seu aspectoe nem de seu aroma. Se cair, você morrerá sobre as rochas.

—O mesmo acontecerá com você.

—Não. Eu posso voltar da margem da morte. Tenho esse poder. O que não me mate imediatamente não me fará nenhum dano. Não sou um lobo.

—Nem tampouco um homem. — Ela o beijou novamente, apertando o corpo contra o dele, rodeando seus quadris com as pernas como se pedisse seu calor.

—Não. E não quero ser. De todas as feras sob o céu, vocês são as mais cruéis, malignas e desumanas. Não respeitam nada em sua ira. Um lobo compreende a raiva. Mas vocês não matam para viver, mas por simples conveniência.

Ela beijou-lhe outra vez, passando as mãos por seu corpo.

—Se tanto nos despreza, por que assume nossa forma?

—Porque me tentam as... Mulheres. As mulheres e o poder.

—Então venha comigo. Venha beber hidromel. Deixei junto ao círculo de pedra.

—Bebi vinho, mas não conheço o hidromel.

—Pois então venha comigo. - Disse ela com voz tão sutil como quando a serpente falou com Eva. - Não me deseja outra vez?

—Sim – Respondeu ele. - Sim e sim e mais sim. Um por cada noite e todas as que te puder convencer para se entregar a mim.

—Venha. Ensinarei-te magia e encantamento. Venha provar o amor perfeito e eterno.

—Não. – Disse Maeniel. - Perfeito e eterno é muito pedir para... Alguma coisa.

Ele retrocedeu. Um lobo uivou ao longe e ele se voltou, ouvindo.

—Estão lhe chamando?

—Não. - Disse ele, meneando a cabeça. - É... Eles não têm nomes... Estou tentando achar uma forma de lhe explicar isso. Tem o focinho manchado de branco, quatro garras na garra dianteira esquerda e dentes muito gastos. Está me dizendo onde se resguardarão hoje quando o sol estiver alto. Por que me pergunta essas coisas? Imona nunca perguntava.

—Acredito que ela não queria saber muito a respeito de seu amante.

—Não. – Respondeu ele. - Não acredito que quisesse.

Ouviram outro coro de uivos. Para surpresa de Dryas, ele respondeu. Ela nunca teria imaginado que a garganta humana fosse capaz de emitir aquele som.

Olhou-o interrogativamente.

—Imona teria ficado louca de medo.

—Eu não sou Imona. - Replicou Dryas. - O que lhe disseram?

—Nada. Só eram saudações corteses. Agora seja sensata e venha comigo.

—Não. - Disse Dryas, voltando para a margem do prado. - Quero receber ao sol e tenho frio. O hidromel me esquentará.

Ele a contemplou quando se afastava durante alguns momentos, logo encolheu os ombros e a seguiu através da vegetação. Por um instante, Dryas temeu ter perdido, mas seu ouvido era bastante agudo para detectar o sussurro de seus passos sobre a vegetação coberta de geada. Chegou à margem do prado e estava em busca do primeiro buraco na pedra, quando ele ficou à suas costas, pegou-lhe a mão e a levou até lá.

—Você vê bem na escuridão, - ela comentou.

—Sou um lobo. Faço muitas coisas melhor que um homem. São uma espécie torpe... Seus talentos são orientados em outra direção.

Ela não se sentiu insultada. Maeniel tinha expusera um fato, de forma neutra. Compreendeu que ele simplesmente estava dizendo a verdade tal como a via.

Subiram juntos.

Embaixo, o prado parecia um pouco resguardado, mas era como a primeira vez que Dryas havia subido. O vento parecia soprar quase que constantemente.

Mas ela tinha deixado outra manta, que envolvia uma jarra de barro. Era surpreendentemente pesada por causa da geada que havia tanto fora, como em seu interior. A tampa também servia como taça.

Dryas ficou de joelhos, serviu um pouco de hidromel na taça e o saboreou. Estava com o estômago vazio e a bebida fez com que ela estremecesse.

Na primavera, as flores da montanha chegam sem cessar. Primeiro, as terras baixas se enchem de cerejas e maçãs silvestres e logo frutas domésticas como, pêssego, cereja, amêndoa, trevo e marmelo começam a estender seu manto branco, vermelho e amarelo.

Mas há outros brotos mais sinistros. O beleño de cor laranja, a branca e fantasmática papoula... E, nas sombras, a beladona de cor azul e ouro, que espalha seus primeiros casulos entre a lavanda ainda verde, oculta pela vegetação.

Logo o carvalho, o fresno e o haja ficam salpicados de flores, que pulverizam seu pólen aos ventos da primavera, que levam também o do muérdago e da chave, a atalhos de outros mundos.

As abelhas não as distinguem. Algumas coisas se perdem. Algumas se perderão, pensou Dryas. Pois só a ordem de Mir e Blaze sabiam quando compilar o mel e como preparar a bebida e nenhum de seus membros tinha um verdadeiro sucessor. Levariam aquele segredo para a tumba.

Dryas bebeu, observando aquela misteriosa e gentil inocência no rosto de Maeniel, que provou um gole.

—Sabe bem. – Ele disse, e bebeu um pouco mais, até esvaziar a jarra sem se dar conta.

Dryas beijou brandamente as últimas gotas que restava em seus lábios.

Ele elevou a mão para tocar seu seio e um ansia selvagem despertou nela. Desejava-o. Queria que ele varresse sua consciência e sua vontade, como havia feito a primeira vez. Mas soube com uma profunda tristeza que não poderia fazero. Dryas estava amaldiçoada pelo que havia feito e pelo que se dispunha a fazer.

Ele se mostrava mais exigente e pressuroso e Dryas compreendeu que o hidromel havia feito seu trabalho. Era o quanto podia fazer para evitar que ele a obrigasse a se estender no chão naquele mesmo instante, mas conseguiu levá-lo até a pedra plaina no centro do círculo.

Uma vez ali, estendida sobre aquele lugar reservado aos mortos, sentiu-se assustada e seu desejo começou desvanecer. Notou-os ao seu redor, em cada abertura do círculo. Pôde vê-los claramente por um instante, logo ondularam como um reflexo sobre a água, quando um inseto ou um peixe agitam a superfície e a imagem do céu e das árvores voaram em um milhão de fragmentos.

Uma mulher vestida com tosco tecido caseiro de cor marrom segurava uma criança pela mão. Haviam tirado os olhos dos dois com um ferro vermelho. Viu um jovem guerreiro, com sua barba só penugem sobre a pálida pele e com os olhos fechados, com lágrimas nas bochechas, uma perna convertida em uma massa de sangue e uma franja vermelha através da garganta. Tinham-lhe cortado sua garganta enquanto jazia indefeso. Outra mulher, sem rosto, com uma savana rodeada em torno de seu corpo, tentando ocultar o fato que seu crânio estava esmagado e que haviam rachado seu pescoço como o de um cervo.

São sombras, ela pensou.

Levantou o olhar e se concentrou no rosto de Maeniel. O vento começava a impulsionar nuvens pelos bordass da clareira. Dryas podia ver sob o vapor, com um esbranquiçado resplendor, os mortos se unindo as nuvens e desaparecendo.

Maeniel lhe separou as pernas com o joelho. Um instante depois, ela sentiu uma punhalada de dor e compreendeu que não havia estado pronta para sua invasão. Logo se perguntou se tinha sido o correto, pois a ligeira dor era vivificante e esclarecia sua mente confusa. Foi atraída à deliciosa contemplação da excitação da carne sobre a carne. É como estar em um balanço, subindo cada vez mais alto, ela pensou.

Oh! Como descrever aquela sensação, mesmo a si mesmo ou inclusive recordá-la? Mais alto. Que não pare. O mais alto possível.

Justo então, os raios de sol derramaram sua luz dourada sobre a névoa. Ela estudou seu rosto, concentrado e formoso sobre o dela e seu corpo ficou preso a adoração, a submissão e uma definitiva consciência de paz absoluta junto ao de Maeniel.

 

Fio e Lucius ficaram sozinhos e em silêncio, no banheiro do Antonio.

—Eu gostaria... – Disse Lucius, elevando um punho crispado.

Fio lhe pôs uma mão no ombro.

—Não. — A palavra foi o mais parecido a uma ordem que Lucius lhe teria ouvido pronunciar. - Não! — Ele repetiu, dessa vez em tom mais suplicante. - Não! Não diante de mim. Antonio dizia a verdade ao falar de traição. E sente-se. O corte de sua testa está sangrando outra vez.

Lucius se deixou sentar em um dos tamboretes junto à banheira.

—Deixa que eu coloque uma bandagem limpa. —Fio pegou a pesada terrina de nozes, limpou-a e a encheu da água quente que seguia saindo da jarra da estátua. Em um canto da estadia havia uma pilha de toalhas limpas. Pegou duas delas e limpou o rosto de Lucius com uma e rasgou a outra em tiras. - Antes de conversarmos me deixe dar uma olhada nisso.

Fio saiu do banheiro e voltou um momento depois com um copo, que estendeu a Lucius.

—Beba!

—Preparaste você?

—Claro! Não precisa perguntar.

Lucius obedeceu.

—Agora, - Disse Fio—, acredito que estamos realmente sozinhos.

—Como posso sair disto?

—Não pode. Quando eu disse «não há mais», queria dizer exatamente isso. Mas pode desenvolver uma longa enfermidade, paludismo ou febres tercianas. Vá em um dia e no seguinte use um tecido ao redor do pescoço e diga a todo mundo, incluindo sua irmã, que sente calafrios. Eu te encobrirei, dizendo que acredito que está com febre. Poderá passar várias semanas deitado em um divã de veludo na biblioteca, lendo... O que gostar.                           — E quando já tiver passado semanas...

—Pensarei em algo. Mas esta manhã queria vê-lo para falar de um assunto muito importante. A moça, Vella... Seu amante...

—Ela tinha um amante?

—Sim, mas não um homem, mas a mulher da cozinha. A que você pediu a salada. — Fio passou os dedos pelo cabelo. - Essa garota está muito alterada. Disse... Ela pronunciou algumas ameaça.

—Oh, não. Não a deixaria sozinha, verdade? Onde está Fulvia?

—Tranqüilize-se. A garota está dormindo e outros escravos cuidam dela. Temem o castigo previsto para todos os escravos, se um deles mata seu dono. Cada homem, mulher e criança pertencente à família, seriam executadas. A perspectiva de uma matança os horroriza. Acabariam com a garota eles mesmos se ela se mostrasse muito violenta. Mas sua irmã está bastante segura. Saiu para visitar a rainha egípcia.

—E se encontra na bendita ignorância do fato de que alguém quer lhe arrancar o coração, se é que tem um.

—Efetivamente. Queria interceder ante você, pela escrava. Ou pelo menos tentar...

Lucius meneou a cabeça, apertando as pálpebras. Doía-lhe a fronte.

—Não é qualquer, seja quem for, é imprescindível para alguém mais?

—Quase sempre. – Disse Fio tristemente.

—Traga-a para o pretor. Conhece alguém que queira ficar com ela?

—Está seguro de que quer que seja para o pretor e não para carnifex?

—Ainda lembro os tempos em que uma casa nobre podia assegurar a lealdade de seus serventes sem necessidade de chamar um verdugo, um torturador. Não! Não deixarei que meu lar fique desonrado por um indivíduo assim nem por seus atos. Não! Já foi bastante horrível ontem à noite. Não quero mais sangue nas mãos de minha família. Tire essa garota de minha casa. Não! Não quero que seja executada. Não! Deixe-a livre. Diga-lhe que parta e não volte nunca para para a vila Basilia. Sabe de alguém que possa acolhê-la?

—Há uma mulher que...

—Não! Não! Não! Não me diga. Não quero saber. Simplesmente desfaça-se dela... E se assegure de que Fulvia nunca chegue a se inteirar do assunto. Pôde dormir ontem à noite?

—Não. – Disse Fio, meneando a cabeça.

—Bem, pois volte para casa e dorme um pouco.

—Não posso. – Respondeu o grego. - Tenho que ver Gordus e me assegurar de que seu filho...

—O outro gladiador era o filho dele?

—Sim. Chama-se Martinus.

—Por que lutaram, por todos os deuses?

—O moço admira seu pai como a um herói e quer seguir seus passos.

—Oh! E Gordus pretendia desanimá-lo.

—Isso. O deixará aleijado se preciso, para lhe manter longe da arena. E não posso lhe culpar. Acredito que se fosse meu filho...

—Se fosse seu filho, teria-o educado para que fosse mais sensato. O que se leva Fulvia com essa... Com essa rameira egípcia?

—Não sei, e eu gostaria. Firminius está com ela, e está claro que sua irmã planeja algo.

—Bem, vamos liberar essa garota antes que minha querida irmã retorne. Tercianas ou cuartanas?

—O que?

—Sua memória é pior que a minha. Que tipo de enfermidade quer que eu contraia?

—Febres tercianas. São menos sérias. Tampouco queremos renovar as esperanças de sua irmã, certo? E, por certo, o que lhes sugeriu a bailarina?

—Não importa. Não gostaria de saber.

—Não gostaria?

—Não.

 

Quando Maeniel despertou, Dryas estava sentada à margem da pedra, arrumando o cabelo.

O vale estava sumido na névoa. Era tão espessa que ocultava inclusive o prado.

Ele levantou até ficar sentado, sabendo que não havia dormido muito tempo e se resguardou os olhos da luz com a mão. Doía-lhe a cabeça. Não estava familiarizado com a ressaca. Tentou chamar o lobo e ficou apavorado ao ver que não podia.

Dryas seguiu ali, vestida só com o colar e seu cabelo trancado.

Seus olhos se encontraram e Maeniel soube que conservava seus sentidos de lobo. Disseram-lhe que havia homens no prado. Ouviu o ruído de grilhões. Perguntou por que não o haviam matado. Os ossos da montanha não estavam muito abaixo de seus pés e ele pegou uma pedra, mas então voltou a cruzar seu olhar com o de Dryas.

Seus olhos eram de cor azul escura, não como a água ou o céu, mas como o lapislázuli ou a safira. Era como o das frutas que tinha provado ao atravessar o rio em sua tentativa de resgatar Imona. Um sabor azul, um aroma azul. Os olhos se voltaram como poços e as pupilas negras se dilataram como as de um falcão olhando ao longe ou à escuridão, para pegar sua presa. Ou como a asa de um corvo cobrindo ensangüentados restos de carne.

Sim, ele pensou. Matei quando não devia.

Recordava-os como a gente do fogo, quando sua espécie, a do lobo, encontrou-os pela primeira vez como caçadores na planície gelada. Pobres coisas. A princípio eram somente carniceiros, dos restos gelados deixados pelos lobos cinza, sua espécie; os amarelos, felinos e similares; e os pardos, os ursos gigantes.

Eram fracos. Talvez fosse sua debilidade o que os tornava fortes. Havia desespero em seus gritos e nos golpes de seus paus e pedras contra seus rivais.

Sim, uma alcatéia que contra-atacasse podia acabar com outra, mas eles sempre matavam a dois ou mesmo três. Cegavam aos amarelos com o fogo e freqüentemente lhes tiravam os olhos com paus afiados, deixando que vagassem agonizantes e mortos de fome porque não podiam ver.

Os pardos, os ursos, foram os que mais os mantiveram a raia. Mesmo depois, todos na tundra e no bosque gelado os temiam. Mas também eles caíram, apesar de sua grande força, porque eram solitários e passavam dormindo os meses escuros. Sua mente de lobo não tinha conceito do tempo passado entre o começo da batalha e seu final. Ninguém contava então os dias, os meses, os anos nem os milênios e nem marcava os breves verões e nem os momentos em que o gelo retrocedia e o mundo era mais amável.

O frio e a escuridão sempre voltavam. Morriam sob as presas dos lobos. Morriam pelas enfermidades, tremendo, com suas vidas se consumindo durante as amargas noites, em lugares que o fogo não podia lhes proteger do frio e do vento assassino. Os felinos levavam seus filhos quando as fêmeas deixavam que se afastassem muito do grupo. E o urso gigante disputava suas cavernas.

Cem vezes caíram, mil vezes. Tantas vezes, que teria levado uma vida simplesmente para contar suas derrotas, mas nunca se rendiam. E foi aquele espírito intrépido o que levou aos lobos a ficar junto às poucas mulheres que tentavam salvar suas vidas e as de seus filhos, e a esquentar seus corpos.

Eles haviam esquecido aquelas coisas e governavam onde antes eram proscritos, até entre os assassinos. Mas sua carne, toda ela, recordava, cada gota de sangue em suas veias, até o último átomo de seus ossos.

Viu tudo aquilo nos olhos de Dryas. Como cada um deles estava formado para o desejo, e, como cada um deles, também para o assassinato.

Caiu na escuridão que viu neles e se deixou arrastar.

 

                                                     Capítulo 15

O inverno avançou e o frio se tornou mais intenso. As geleiras baixaram das alturas, enviando seus mensageiros de neve aos vales. Os rios gelaram, salvo o lago junto ao qual se reuniam os lobos. A alcatéia o buscou ali por um tempo, lhe chamando e fazendo com que suas vozes ressoassem entre as montanhas. Mas ele não respondeu e nem voltou com eles. Então, finalmente, como fazem feras e homens, esqueceram-no.

Apareceu outro líder e a alcatéia seguiu como até então. Os dias se tornaram mais e mais curtos e as luzes do norte cintilaram sobre as montanhas. Os lobos corriam como sombras demoníacas sobre a crosta gelada, prosperando entre a desolação invernal. Enquanto todas as demais feras lutavam com a fome, o frio e inclusive a sede ao congelar os rios e arroios, eles tomaram seu tributo. Os jovens nunca chegariam a ver a primavera, os que começavam a envelhecer e os que haviam sido forte, mas estavam debilitados pela fome.

Mesmo os romanos evitavam sair de sua fortaleza no vale, pois os dias eram muito curtos e o frio muito intenso. Então os poderosos predadores prateados vagavam livremente pelos profundos vales sob o sol e sob as estrelas.

Dryas ficou com Mir e sua mulher.

—Ninguém pode recordar um inverno tão duro. Mesmo eu, que sou mais velho que a maioria, teria problemas para lembrar.

Dryas estava sentada à mesa, dando colheradas de sopa à moça. A esposa de Mir esquecia às vezes que estava comendo e Dryas tinha que lhe tocar os lábios com a colher de madeira, para lhe lembrar de colocar a comida na boca e engolir.

—É muito paciente. - Disse Mir.

Dryas assentiu, continuando com sua tarefa.

—E não só com ela. Acredita que ele voltará por aqui?

—Não sei. – Respondeu Dryas. - Sei por que tenho feito o que devia tentar.

—Talvez devêssemos matá-lo.

- Eu queria. Tentei.

E assim era. Dryas recordava o momento em que haviam voltado com o lobo cinza, acorrentando-o no estábulo onde Dryas deixava seu cavalo. Maeniel não havia falado. Sendo lobo, ele se comportou como um homem... E agora que era um homem para sempre, pelo menos enquanto Dryas o tivesse na corrente, parecia mais um lobo.

Não havia se oposto a vestir roupas. Sabia que a pele humana era frágil e o corpo humano perdia temperatura rapidamente. Acorrentaram suas pernas a uma argola na parede, deixando-o alguns metros de espaço. Algo que ele não fazia era sujar seu leito. O tamanho da corrente lhe permitia visitar uma latrina entre as vegetaçãos.

Mas era perigoso se aproximar dele. Um dos homens de Mir se aproximou muito e o pobre desventurado ficou fora de combate para o resto do inverno, com as costelas e um braço quebrados.

Depois daquilo, a comida lhe era servida sobre um pedaço de casca que empurravam até ele com um pau seguro por forquilhas. Às vezes ele a comia, outras vezes não.

Ninguém sabia qual havia sido o golpe definitivo para Dryas e Mir. O ancião tentou envenenar Maeniel, misturando ópio nas sobras de comida e nas verduras que davam ao lobo cada tarde.

—Esperava que ele simplesmente dormisse para não despertar jamais - Disse Mir.

Mas foi a pequena e demente esposa de Mir que comeu a mistura. Não sabiam que era a única que o lobo tolerava que se aproximasse. Não sabiam que ela se reunia a ele todos os dias em sua caverna improvisada. Ela comeu a comida e nem Dryas ou Mir souberam até que ele começou a golpear a parede, desfazendo-a a murros.

Encontraram à garota se retorcendo, tentando respirar. Custou mais de uma noite e um dia eliminar a droga de seu corpo, mas seu aspecto não melhorou por isso. Ela se negava a comer, e às vezes sequer dormia.

Cada noite Dryas levava sua comida ao lobo. Empurrava-a até ele com o pau e logo se sentava sobre a pilha de lenha ao extremo do estábulo, para tentar falar com ele.

Ele a ignorava se negando a falar ou a reconhecer sua presença. Nunca fitava seus olhos. Já lhe tinham apressado uma vez e recordava seu poder.

Havia uma janela no extremo do estábulo, parcialmente obstruída. Através dela e da porta, tão baixa que tinha que se abaixar, o lobo podia ver os bosques invernais assolados pelo vento.

Os galhos nus das árvores se elevavam como braços esqueléticos contra um céu nublado. Nos dias mais claros era possível ver as cúpulas nevadas cobertas por um manto de árvores, pinheiros e abetos, como panos de fundo de névoa, neve, e às vezes, antes de fazer muito frio, longos véus de chuva.

Maeniel recordaria para sempre aqueles primeiros dias de cativeiro, como os piores de sua vida, negando-se a revisitá-los na memória ou na imaginação. Sentia que parte de sua vida havia ficado destruída... E assim era. Nunca soubera antes que alguma criatura, homem ou fera, pudesse sofrer tanto ou submergir tão profundamente no desespero.

Só em sonhos ele era livre. Só em sonhos podia recuperar sua pelagem cinza e vagar novamente com seus amigos. Conheceu a culpa de ter sido seduzido pela cálida e tenra carne representada por Dryas e sentia um arrependimento tão profundo que esteve a ponto de ficar louco.

Mas chegava a mulher de Mir. Encontrava-a aconchegada ao seu lado em busca de calor e se movia sobre os trapos que formavam seu leito, deixando o pequeno corpo entre o dele e a parede. A garota raras vezes deixava de se mover quando dormia. Era como se tivesse que reviver alguma longa, trágica, insoportavel e dolorosa historia em sua mente, uma e outra vez.

Às vezes, quando ela gemia ou gritava, Maeniel podia ver as sombras adotando formas no negrume, cuidando dela. Parecia que, fosse o que fosse o que via a jovem em seus sonhos, invocava aos mortos para que pudessem compartilhar sua dor.

Mir se preocupava com ela.

—Acredita que ele poderia... — ele não terminou a frase, pois a idéia era muito horrível.

—Não. - Disse Dryas. - Não acredito. Pelo que descobri ao lhe pegar, que ele precisa notar certos sinais para... Dar seu amor a uma mulher. Ela tem que desejá-lo, por sua vez. Essa pequena tem tais feridas que nem sequer acredito possível que ela fosse capaz de se aproximar dele como mulher. Além disso, o que poderia fazer a respeito? Acorrentá-la como a ele? Encerrá-la como está ele?

Mir não respondeu. Devia ter lhe matado. Sentia-se como se dissesse com freqüência, mas o que fazia em tais ocasiões era pensar.

Então Dryas ia cada dia sentar sobre um tronco de carvalho que havia demonstrado ser muito forte mesmo para a tocha e o arado e tentava chegar até ele. Depois de um tempo, lhe esgotaram as palavras e os dois passavam o tempo, sentados em silêncio. Aceitando o vasto abismo entre eles. Às vezes se unia também a garota louca e compartilhava sua comida com os dois enquanto contemplavam o crepúsculo.

Ele sabia, mas ela estivera muito atarefada toda sua vida para se dar conta, que cada crepúsculo era o mesmo e de uma vez, diferente. Dryas os via aparecer e desaparecer e descobriu que cada dia eles apresentavam alguma nova beleza para a mente e o espírito humanos... Ou talvez para a mente e o espírito de qualquer ser vivo.

Depois das primeiras vezes que viu a esposa de Mir aproximar do lobo, deixou de se preocupar com ela. Dava-lhe a sensação de que ele a tratava como a um lobinho sem desmamar, informal, mas protetoramente. A garota não era nenhuma ameaça para ele, nem para nenhuma criatura maior que um camundongo ou um lagarto.

Quando a moça pegava coisas vivas e tentava jogá-las panela, Dryas as tirava com suavidade. Mas então ela cozinhava agulhas de pinheiro, folhas mortas, paus e ramos quebrados, velhos ossos abandonados no bosque, e de vez em quando chifres de alce ou de cervo.

Dryas esvaziava e limpava periodicamente a panela, lavava as roupas e lençóis de Mir e fazia o mesmo pela garota. Os dias nos quais fazia bastante calor para deixar que se secassem ao sol deixava-as sobre galhos e arbustos. Cozinhava e caçava. Era mortífera com a lança e o dardo e conseguia carne suficiente para os quatro.

Em um dos dias mais frios, escuros e curtos do inverno, o lobo tentou matar Dryas.

Ela cortava troncos todos os dias para o fogo. Um dia, um pesado pedaço de fresno rodou pelo chão até ficar ao alcance de Maeniel, que o pegou e o ocultou sob seu leito. Dryas estava muito ocupada com suas diversas tarefas para se dar conta. O inverno era duro. O céu estivera coberto uma semana e se podia cheirar a neve no ar. Dryas parou um momento antes de entrar no estábulo e viu as pesadas nuvens cinza sobre o passo. Suas bordas tinham toques de corrosa, por causa do moribundo fogo dos últimos raios do sol.

Ela entrou no estábulo, deixando a bandeja de casca no chão e foi pegar o pau com forquilhas.

A madeira saiu voando da escuridão, com toda a força que tinha conseguido lhe dar o lobo.

Maeniel tinha calculado friamente qual seria a melhor forma de matá-la. Atirar-lhe na cabeça? Não. O pedaço de pau pesava muito e ele podia falhar. Os segredos da batalha humana eram um livro fechado para ele. Nunca tinha praticado o lançamento de nada e não queria arriscar a perder a única oportunidade de devolver a Dryas toda a dor que ela lhe tinha causado.

As pernas? Tinha observado que, diferente dos lobos, os humanos não dependiam exclusivamente dos pés. Já os vira sobreviver às terríveis feridas nas pernas... Feridas que teriam condenado um lobo a morrer em questão de dias ou mesmo de horas.

Não, as pernas não eram boa idéia, mas seu torso era esbelto, quase frágil. Ele se sentiu envergonhado pela lembrança do quanto tinha desejado a estreita cintura e os macios seios. Se conseguisse lhe romper as costelas e fazer com que perfurassem os pulmões, ela morreria como tinha morrido Ombro Branco pelo gladio do soldado romano.

A madeira acertou totalmente o peito de Dryas, lhe rompendo duas costelas e machucando outras seis. Fez com que ela caísse sobre a pilha de lenhos e que batesse com a testa cobre o tronco de carvalho que usava como assento. Mas ela não ficou inconsciente, sequer aturdida.

Dryas levava sua espada. Quase nunca se separava dela, nem quando estava enfrascada em tarefas mundanas como cozinhar ou cuidar da casa. Ela a desembainhou imediatamente e avançou para ele, sentindo que sua mente cedia sob as cargas do ódio e da raiva.

Ele permaneceu ereto ante ela, vestido com a túnica que havia feito a partir de uma gasta manta. O aborrecimento passou de seu rosto para a mente da mulher.

Sob a última luz do dia, a lâmina da espada riscou um resplandecente arco no ar. Dryas pretendia lhe cortar a garganta.

Mas a pequena esposa de Mir estava na porta e viu o sangue no rosto de Dryas e a expressão assassina no de Maeniel. E gritou. Um grito de tal dor e medo que devia ser ouvido para poder acreditar. O som atravessou o crânio de Dryas como uma lança atravessa o couro brando. Ela desviou o golpe de sua espada, que feriu o lobo no peito, deixando um corte de seis polegadas em sua carne e sua túnica. Dryas perdeu o equilíbrio e caiu, golpeando o solo enlameado com a mão direita.

Custou várias horas tranqüilizar a esposa de Mir. No fim, tiveram que recorrer ao ópio. Nem a valeriana nem ou a salvia conseguiam eliminar a agitação e o terror da moça. Quando ela adormeceu por fim entre hipidos, e sua respiração começou a se tranqüilizar, Mir e Dryas se sentaram para conversar. Bem, Mir falou e Dryas chorou.

—Isto me supera. - Disse Mir. - Já não sei o que fazer. Sim, acredito que matá-lo seria um engano, mas também acredito que no final não teremos mais opções. Considere a alternativa.Deixá-lo solto pelo mundo como o que é: metade homem e metade fera.

—Não poderia ser um lobo. Como uma mariposa no tecido de uma aranha, ele está preso na forma de um homem. Converti algo que uma vez teve certa beleza em si mesmo, em um monstro. E o deixei aleijado para sempre. A única forma de reparar é tentar lhe ensinar a aproveitar o melhor possível sua escravização, a sua metade humana.

—Não. Não pode repará-lo, se isso é o que quer Dryas. Entrevados raras vezes saem adiante. Preso para sempre na forma de um homem, ele seria tão perigoso como um lobo... Ou talvez mais. Poderia se converter em um salteador. Pergunte-se se meu pobre povo, já arruinado pelos impostos dos romanos, merece ser acossado por ele. Já o vi o suficiente para ter muito medo dele. Até como homem, é majestosamente forte e rápido. Uma vez que aprender o uso das armas, qualquer pessoa que enfrentar a sua espada estaria em um perigo mortal... Como ele estaria embora fosse desarmado.

—Não é tão forte como era quando o capturei. Está perdendo peso. Não come às vezes tampouco dorme. Ainda não estamos na metade do inverno. Sua esposa piora cada dia e cheguei a acreditar que ele é agora o único a mantém viva. Não, Mir. Eu estou segura de que teremos que cavar duas tumbas antes da primavera.

O ancião se afastou para trás em sua cadeira, cobrindo o rosto com as mãos. Logo as deixou cair sobre a mesa.

—Sou contra deixar que este maligno conto se desenvolva por si mesmo. Levo anos ouvindo histórias parecidas desde minha juventude. Os gregos as colecionam: Edipo, Jasón e Medea, Agamenón... Sentem uma estranha avaliação por essas repulsivas narrações. Sabe como terminarão as histórias desde o começo. Esperam que alguém entregue uma misericordiosa taça de veneno ao vidente Tiresias. Ou que Medea mostre alguma compaixão por seus próprios filhos. Ou que Orestes e Electra se conformem deixando que sejam os deuses quem castigue o assassinato de seu pai enquanto eles seguem tranqüilamente com suas vidas. Mas não, não o fazem. Nenhum deles o faz. E a situação em que estamos não me permite albergar esperanças para nenhum de nós.

Dryas não entendeu grande coisa.

—Nunca ouvi essas histórias.

—Bem, querida, se seguir com seus planos, vamos passar juntos algum tempo. Então começarei a lhe contar isso e quando por fim disser que isto é uma causa perdida, faça-me saber e tentarei te ajudar a pôr fim com dignidade para ti e para nosso teimoso lobo. Mas, por ora, faça o que quer. Não acredito que nenhum deles possa viver... Nem minha mulher e nem o lobo. Mas se tiver que se esgotar em uma luta inútil, acredito que tenha conseguido escolher alguma pior.

 

Lucius odiava ter que admitir, mas César e Marco Antonio tinham razão e ele e Fio se equivocavam.

Encontrou o Senado absolutamente fascinante. Não agradável, seguro, cômodo, e nem de todo compreensível, mas, apesar de tudo, fascinante.

Como Antonio se incomodou em lhe explicar, César estava com o domínio do Senado. Em teoria, os patrícios sobreviventes teriam conseguido controlar a nova legislação, mas aos olhos de Lucius pareciam ter perdido seus ânimos. Ou talvez houvesse muitas rixas entre eles, mesmo naquele momento em que um homem que não se incomodava em ocultar seu desprezo por eles os golpeava firmemente nos dedos. A estratificação que tinha lugar por causa das presunções de todos os interessados tampouco ajudava a devolver a ordem a qual tinha sido um corpo distinto e influente.

Mas fosse como fosse, Lucius se sentiu muito entretido enquanto tentava descobrir seu próprio nível. Os altivos patrícios desdenhavam inclusive à maioria das velhas famílias plebéias, quase igual, de proeminentes sociais. Os plebeus, por sua vez, olhavam com desprezo quem considerava estrangeiros, como recentes senadores da Galia, Grécia, África e alguns estados latinos, tentando pretender que não existiam.

Conversar e fazer planos. Assim havia descrito Antonio e era uma descrição bastante fiel. Reuniam-se sobre a terceira hora, conversando e fazendo intrigas até que chegasse César ou seu representante. Naquele momento ele era ditador vitalício e o Senado se limitava precisamente para ouvir seus ditados: sua função era passar imediatamente e entusiásticamente qualquer nova lei ou decreto proposto por César. E, em suas poucas horas de ócio, lhe outorgar novas honras sem precedentes.

Lucius não demorou muito em descobrir que, embora a velha trupe governante odiasse César, naquele momento precisava do poder, para deter sua apropriação do estado romano.

—Se Antonio acreditar que vou descobrir algo que possa lhe ser útil, dos Gracos, os Escipiones ou qualquer outra de nossas honoráveis velhas famílias é por que seu cérebro não está bem. – ele disse a Fio. - Nenhum deles fala com os novos incorporados e temos sorte se dignarem reconhecer nossa existência. Ontem, Tilio Cimber me afastou do caminho ao atravessar a porta dos jardins em frente à Cúria. Acredito que, de ter chegado a cair, teria passado por cima de mim como se fosse um paralelepípedo.

—E você não fez nada? — Perguntou Fio.

—Sim. Acertei-lhe o joelho com uma de minhas velhas botas militares. Acredito que ele soube quem o tinha chutado e por que. Uma dessas pequenas vitórias das quais falávamos. E os novos senadores são muito interessantes. Já tenho sete convites para jantar. Esta noite, são dois gregos, Manilius e Felex. Conhecemo-nos ontem. Eles viram o que fiz a Cimber e gostaram.

Lucius estava esfregando as costelas doloridas, por causa da cotovelada de Cimber quando se aproximaram os dois gregos. Estava garoando e os jardins pareciam tristemente nus sob o frio do inverno. Todas as árvores salvo os pinheiros tinham perdido suas folhas e nenhum dos escravos públicos tinha saído para limpar os passeios entre os canteiros de flores, que estavam cobertos de úmidas folhas mortas.

—Bem feito. - Lhe disse um deles, e ambos se apresentaram.

—De onde os senhoressão? — Perguntou Lucius.

—Da Grécia. – Respondeu Manilius.

—Da África. – Disse Felex. - Na realidade da Alexandria, mas... César, ou alguém de seu enorme séquito decidiu que representaríamos a Grécia.

Manilius era um grego de aspecto convencional, com cabelo castanho e encaracolado e compleição pálida e delicada, ligeira, mas forte. Felex era negro, de pele de ébano, olhos escuros, cabelo curto e encaracolado, musculoso e com um rosto alegre e um esplêndido sorriso de marfim que contrastava com o escuro de sua pele.

—Grécia. - Repetiu Lucius. - Se não te ofender, Felex, digo que não parece…

Ambos os jovens riram.

—Sou africano. - Explicou Felex. - Meu pai se dedica a especulação, enviando animais selvagens aos jogos de Roma. Ganhou muito dinheiro e enviou-me a Alexandria para que recebesse uma educação liberal.

—Depois de um tempo, - contribuiu Manilius, - seu pai começou a pensar que sua educação estava sendo muito liberal e quis chamar de volta.

—Sim. – Disse Felex. - De fato, adquiri alguns hábitos na Alexandria que meu pai não aprovava absolutamente. De fato, sua desaprovação era tão forte que tive que escapar para não acabar virar comida de leões.

—Por sorte, sua mãe não era tão tediosamente curta de idéias como seu pai e conseguiu avisá-lo a tempo. Enquanto Felex se manter afastado, seu pai não causará nenhum problema e mesmo o permite atuar como agente comercial de sua família aqui em Roma.

—Sim. – Disse Felex. - E me pagam bastante bem. Recebo uma comissão por colocar os animais de meu pai aos fornecedores de César, quando se celebram os jogos.

—Então entrou no Senado – Disse Lucius.

Os dois jovens riram como mocinhas e Manilius levou a mão de seu amigo aos lábios, beijando-a meigamente. Felex lhe deu tapinhas na bochecha.

—Que doce. Querido meu.

—E o que faz você por César, Manilius? — Perguntou Lucius.

—Oh, especiarias. Sou um intermediário, sabe? Minha família se dedica a esse negocio desde antes da Guerra do Peloponeso.

—Oh, muito mais. – Disse Felex. - De muito antes. Desde a Guerra da Troya, pelo menos.

Ambos riram.

—Venha jantar conosco. – Disse Manilius e logo se voltou para Felex. - Imagine, querido. Um romano que nos dirigirá a palavra em público. Temos o mais encantador poeta, que esta noite nos fará uma leitura de sua última ode. Temos um cozinheiro estupendo e você pode escolher se quiser, um menino ou uma garota para a sobremesa.

—Temo que seja uma decepção para vocês. - Repôs Lucius. - Não sou patrício, embora minha mãe fosse. Ela se casou abaixo de sua posição. A família Basilia é só de cavalheiros.

—Estamos encantados conhecê-lo. – Disse Manilius. - O que é um cavalheiro?

—Nos é permitido trabalhar para ganhar dinheiro do comércio. Somos o tipo empresarial de Roma.

—Sinto-me alegre em te conhecer. – Disse Manilius. - Venha nos visitar.

—Talvez possamos comparar notas sobre nossas experiências no comércio. — Comentou Felex.

—Ou pode ser que te interesse alguma especiaria...

—Em qualquer caso, — explicou Lucius a Fio, - acredito que aceitarei seu convite esta noite.

—Provavelmente valha à pena cultivar a amizade desse casal. – Disse Fio.

—Você conhece todo mundo?

—Felex tem hemorroida.

—Felex? Eu teria apostado em Manilius. Talvez os soldados que se ocuparam de minha educação estavam equivocados. Sempre ouvi dizer que o que se faz de mulher é o que acaba com o traseiro ardido.

—Os soldados não deveriam falar tanto. - Comentou Fio. - Vejo pelo menos três deles, da guarda pessoal de Cleopatra toda semana e todos com o mesmo problema.

—Não me surpreende. Não podem se casar. Não que as normas proíbam, se é que se podem permitir uma esposa... Mas por regra geral, abaixo da classe de centurião não existe suficiente dinheiro e são transladas freqüentemente, para poder manter uma família. Isso deixa as putas locais, que revistam ser sujas e feias, isso se não estiverem bêbadas, doentes ou simplesmente perigosas. Pode se encontrar alguma jovenzinha de aspecto inocente, e aposto de cinco a um a que terá um rufião escondido em alguma parte, preparado para te cortar a garganta por uma moeda de cobre ou por suas botas e sua espada regulamentares. Então os soldados se arrumam entre eles com freqüência, e não posso lhes culpá-los por isso. Mas tampouco digo que me entusiasme a idéia de me unir outra vez ao exército. Por que deveria cultivar minha relação com esses dois? Não acredito que tenhamos muito em comum.

Fio sorriu tristemente.

—Primeiro, eles são tão inofensivos como os coelhos. Segundo, é verdade que muitos aristocratas não lhes dirigem a palavra na Cúria, mas o fazem nos banquetes que celebram. Quase todas as especiarias que chegam A Roma passam pelo armazém de Manilius, e César tem a Felex como uma espécie de mascote. Terceiro, os dois são uns fofoqueiros incorrigíveis. Estou seguro de que seriam capazes de descer de sua própria pira funerária para ouvir ou contar a última fofoca escandalosa protagonizada pelos magnatas de nossa bela cidade.

—Mmmh... Fio, César é...

—Não. E não repita essa velha mentira sobre o Rei Nicodemo em sua presença. Muitos dos quais o chateou com isso em sua juventude acabaram com um convite definitivo para visitar os Campos Elíseos, por cortesia do general mais distinto de Roma.

—Fio, e você...

—Não. Talvez teria conseguido tirar meu pai dos apuros mediante subornos, por não estar idiotizado por por uma encantadora coisnha chamada Roxana.

—Saiu cara, é?

—Sim. – Respondeu Fio, mal-humorado.

 

Dryas voltou para estábulo ao amanhecer. Encontrou Maeniel dormindo. Mir tinha razão em uma coisa: ele seguia mostrando uma força antinatural e um estranho tipo de poder. O corte de espada em seu peito já era somente uma linha vermelha e ela sabia que em umas horas também teria desaparecido.

Ele despertou enquanto o olhava.

—Tem algo mais escondido? — Perguntou ela com severidade.

—Não. — Ele respondeu. - Oxalá o tivesse. Tinha que ter apontado para sua cabeça, mas me deu medo de falhar.

Dryas com as costelas doloridas se aproximou do toco de carvalho, para sentar.

Maeniel observou que lhe custava respirar, e que era óbvio que estava dolorida.

—Pelo menos te machuquei e você recordará, a mim e a minha dor, durante muito tempo.

—Sim. - Disse ela. - Recordarei.

Ela se sentou ereta por um momento, mas era doloroso. Tentou olhar para ele, mas o lobo a evitou, sentando e olhando pela porta, para a luz de fora.

—Tiraste-me minha vida. Matar-me teria sido menos cruel.

—Não! – Respondeu ela. - E tampouco tirei sua vida, somente a metade. Tinha o dever de fazê-lo. Não podia te deixar correr como um lobo pelos bosques, matando a gente de Mir. Agora não pode assumir sua forma de lobo e terá que viver como um de nós.

- Disse a você que não queria ser um homem! — Ele gritou.

—Bem, pois agora não tem mais remédio! — Replicou Dryas.

Então ela sentiu um espasmo de dor em seu peito, como uma navalhada que a atormentou até que pôde apertar a mão sobre o ponto onde os ossos quebrados estavam se unindo novamente. A dor baixou a um nível passível.

—Pode estar orgulhoso de si mesmo, e com razão: pensarei muito em ti durante nas próximas semanas. Talvez inclusive durante o resto de minha vida, pois eu não gosto do que te fiz. Não queria destruir o lobo, mas ele era o mal menor. Minha ordem se responsabiliza pelo cuidado e o amparo de nosso povo. Por isso Mir mandou procurar Blaze, e por isso Blaze me pediu que viesse.

Ela observou Maeniel. Dessa vez, seus olhos se encontraram e ela pôde ver novamente neles, a formosa inocência primitiva da fera. Então inclinou a cabeça, sentindo-se derrotada pela absoluta segurança dele, por aquela independência de toda dúvida e complexidade.

—Dói-me e me doerá por um mês ou mais, mas suas feridas desaparecem em algumas horas. Eu choro durante anos, mas você apazigua sua dor com assassinatos e logo me reprova que te freie.

—Sim? E Imona? Que cuidado e amparo lhe deu?

—Imona tinha um dever. Tinha nascido para isso. Era uma mulher nobre, descendente de uma longa estirpe de reis. Em tempos mais felizes, não teria tido que dar sua vida. Mas uma catástrofe tinha caído sobre nosso povo e ela foi chamada ao sacrifício para que os romanos e seu César não cruzassem jamais o Anel. E nunca o farão. E eu também paguei um preço. Tive um filho, que teria sido rei, mas os romanos o mataram.

—Sua gente conta histórias de deuses, - disse o lobo com desprezo, - mas as histórias que contam são sobre vocês e seus temores. Eu sei o que caminha perto da imagem de madeira que apodrece no arvoredo sagrado do vale. Eu a vi... Pelo menos o que ela nos permite ver. Porque nós somos seus filhos e lhe rendemos solenidades há muito tempo. Às vezes, ela viaja conosco, e às vezes nos envia para proteger seus servidores. Por que ia reclamar a vida de Imona? Uma vida humana não é nada para... Eles. Têm intenções? Preocupam-se com os lobos ou os homens? Não posso dizer. Eu era o lobo então e ia ao arvoredo quando se oferecia um sacrifício de sangue. De sangue, mas não de morte. A bebida estava em terrinas de madeira sobre a vegetação. Eu era mais atrevido que o resto e bebi e senti o tato daquela que embriaga. Aquela em cujos sonhos vemos todos nossos desejos. Então me converteu em homem e me chamou Maeniel. E tomei uma mulher no arvoredo, uma das escolhidas, das que rendem seu sangue na primavera, quando a água, o sangue da terra, corre livremente e não esta encerrada no gelo, capturada dentro de uma fria pedra. — O lobo deixou de falar e se sentou entre a palha e os trapos de seu leito.

Dryas o olhou acusadoramente.

—Escolheu ser um homem e agora rechaça as responsabilidades que isso implica.

—Eu desejava à moça... Ou à mulher, o que fosse.

—Suponho que seria uma moça quando entrou no arvoredo e uma mulher quando saiu. – Respondeu Dryas com fúria, saindo do estábulo.

Maeniel se encontrou tremendo de medo. Havia dito seu nome a uma mulher que considerava uma feiticeira. E um nome era uma palavra de poder. E se ela o usava para lhe prender ainda mais? Mas nenhum de seus temores se materializou e nem Dryas voltou para estábulo.

Em seu lugar, a garota louca lhe levou comida na hora habitual. Também levava para ela, pois havia mais que suficiente para os dois. Uma terrina de pães recém assados, uma boa parte de carne de veado e um bolo de mel e maçãs secas. Os dois comeram bem. Maeniel desfrutava cada vez mais da comida. Os lobos não tinham nada parecido.

Observou a moça comer. Ela comia de maneira deliciosa. Suas mãos eram ainda formosas, elegantes de dedos longos, embora tivesse as unhas sujas e ruidas. Tinha boas maneiras, mastigando sempre com a boca fechada. A carne e as verduras estavam envoltos em pão e ela levava à boca sem que nada gotejasse sobre sua roupa. Sempre saía do estábulo ou da casa antes e depois das comidas, para lavar as mãos.

Dryas havia estado convincente sobre sua necessidade de aceitar a condição de humano, mas um olhar da jovem desfigurada voltou a lhe convencer de que não lhe interessava formar parte daquela viagem. Logo pensou que, se quisesse viver, talvez não tivesse opção.

 

Lucius achou a casa de Manilius e Felex decididamente grega. Não havia afrescos. As paredes eram de estuque decorado com uma base branca e uma larga franja vermelha a altura do ombro. Acima da franja, a parede era branca até chegar ao teto, sustentada por vigas de cedro.

Tudo na casa mostrava a mesma sóbria elegância. Das cadeiras, leitos e tamboretes esquisitamente lavrados até as estátuas que Lucius reconheceu como um peristilo de estilo muito romano. Só um grego rico podia se permitir uma casa romana. Havia cópias caras de originais gregos, de inapreciável valor.

O poeta ático fazia honra a sua reputação, parecendo um busto de Pericles. Lucius não pôde formar uma opinião sobre seu talento, já que ele declamava seus versos, é obvio, adequadamente acompanhado de uma cítara que tocava um jovem alto e com cara de cavalo, em um grego um pouco mais arcaico que o usado pelos helenos do momento.

O grego de Lucius era frouxo no melhor dos casos e o esforço de seguir uma ode em grego antigo supôs um desafio muito grande para suas limitadas habilidades. Então ele conversou com Fio ao dia seguinte.

—Diz que se chamava Dionisos? — Perguntou o físico. Logo estalou a língua. - Se for quem acredito que ser, seu verdadeiro nome é Septimio e o tocador de cítara é Priscus, seu cunhado. Septimio era um pedagogo, mas decidiu que o ensino não lhe dava dinheiro, então comprou uns quantos rolos de versos e se estabeleceu como poeta. É tão grego como você. Nasceu em Pistum. Mas Manilius e Felex são homens de negócios e estão completamente cegos pelas pretensões literárias desse contista.

—A comida era tão boa como prometeu Manilius.

—Sim. – Disse Fio. - Seria graças a Myrtus, a tia de Felex, que é a proprietária de várias casas de comida perto do Circo, dos banhos públicos e do Foro.

—Ah, já me pareceu notar uma abundância de companhia feminina muito pouco grega.

Assim tinha sido, e a princípio Lucius havia se sentido estranho. As mulheres eram todas bem vestidas e arrumadas e seu comportamento eram irrepreensíveis. Mas ao que parecia, só sabiam falar de roupas, jóias, de quem se tinha convertido na amante de algum homem rico, maquiagem ou como pintar o rosto e o corpo para seduzir. Que senador tinha surpreendido sua esposa com um gladiador ou que esposa tinha surpreendido seu senador com um gladiador. Roupas, jóias, dinheiro, que patrício havia descoberto sua esposa tratando com atenção seis de seus, porta litera. Que cavalheiro havia descoberto à sua tratando com atenção os oito. Que esposa havia surpreendido seu marido atendendo os clientes de um bordel que não empregava mulheres. Roupas, maquiagem, jóias e penteados. Todas recebiam conselho gratuito e conforme pareciade Manilius e Felex, junto com demonstrações do uso e abuso de albayalde, o Kohl e os ferros de frisar, para completar maquiagens fiscalizadas pelo perito em roupa feminina, o próprio Felex, bem secundado por seu modista e sua cabeleireira, donzelas belamente vestidas, como mulheres, mas que já estavam a algum tempo se barbeando.

Como nos lares romanos convencionais, as mulheres partiram logo e os homens ficavam com o vinho.

—Alguma delas deve ter incentivado, - lhe disse Felex. - São muito divertidas e te asseguro que muitas cairiam rendidas ante um menino tão rico e ajeitado como você. A menos que não sejam de seu gosto... —comentou Felex.

Os dois homens o olharam especulativamente. Houve um breve momento de silêncio e Lucius sentiu que devia se explicar melhor.

—Se conhecem Fio, sabem que era meu médico. Sofri umferimento muito ruim... — Não Precisou Lucius se explivar mais. Seus dois anfitriões se apressaram a se desculpar.

—Oh, não! Não diga nenhuma palavra mais, querido. Pelo amor do céu, não prestes atenção em nossas tolices. Somos os piores fofoqueiros de Roma, mas convidamos as damas somente por sua causa. – Disse Manilius com um encantador sorriso.

Felex deu um tapinha na mão de Manilius.

—Oh, pelos deuses! Deixa de agitar o arbusto. Cada uma dessas pequenas aves do paraíso pode ser capturada com um bonito par de pendentes.

—Acredito que as descreve como aves de qualquer tipo é um pouco excessivo. — Comentou Fio ao ouvir a narração de Lucius. - Se cair em suas garras, elas se ocupam do bico, isso é certo. Esperam que os homens se arruínem por elas.

Lucius riu.

—Não, não acredito que nenhuma delas me atraia o bastante para chegar tão longe. Mas não me teria oposto a uma queda, por ter temido que Fulvia se inteirasse.

—Meu senhor. – Disse Fio, adotando um tom forma. – O que, em nome dos deuses, tem Fulvia a ver com sua vida amorosa?

Eles caminhavam por uma estreita rua, para o Foro. Lucius olhou para trás. Castor e Pólux os seguiam a certa distancia.

—Crê que podem nos ouvir?

—Não, se falar em voz baixa. – Disse Fio.

—Acredito que Fulvia prefere se desfazer de mim. Como já te disse uma vez, uma bonita criança serviria perfeitamente a seus planos, e se alguma dessas profissionais ficasse grávida, ela não perderia tempo em vender minha descendência ao melhor postor. Que certamente seria minha querida irmã Fulvia Camila Basilia. E quanto acha que eu viveria depois disso?

Fio parecia afetado.

—O céu, e provavelmente os moradores de muitos outros lugares, sabe que os romanos e não poucos gregos são indiferentes ao destino da maioria dos não romanos, e inclusive ao dos tipos inferiores em riqueza e influência de sua própria república. Mas pelo geral, as pessoas apreciam os seus, e sente ao menos um pouco de amor e lealdade por eles. Em nome do céu, está falando de sua própria irmã.

—Fio, nunca pensei que teria que dizer isto, mas não seja ingênuo. O mais provável é que Fulvia me odeie e certamente eu não lhe tenho nenhum carinho. Recorde minha advertência sobre ela, no dia que nos conhecemos, justo depois que ela o ameaçasse crucificar.

—Sim, mas eu não sou seu irmão.

—Não acredito que isso tenha importância para ela. O que Fulvia quer é controlar por completo o dinheiro da família. E o único que se interpõe em seu caminho sou eu. De acordo com a lei, minha autoridade sobre a família é superior a dela...

Lucius se voltou tão bruscamente que Fio deu um salto; então viu que Castor e Pólux haviam se aproximado muito deles. Tinham os olhos brilhantes e ouviam com atenção.

—Tem algo a me dizer algum de vocês? — Perguntou Lucius em tom cortante.

—Não... Não — Eles balbuciaram uníssonos.

—Então voltem onde estavam. Nada do que tenho a dizer é para seus ouvidos. Eu não gosto dos bisbilhoteiros nem de espiões e se algum de vocês sabe como é um látego com pontas de chumbo, aprenderão em seguida a ficar surdos e mudos quando eu desejar.

Quando Lucius terminou de falar, os dois escravos já haviam se afstado para trás, mas ele se assegurou de que captassem as últimas palavras.

Fio não disse nada. Podia ser um homem livre, mas sabia que Lucius estava muito zangado. De fato, nunca o vira assim.

—Não me referia a ti. – Disse Lucius.

—Eu sei e agora entendo melhor o que queria dizer a respeito de.. Da outra coisa.

—Queria sua família?

—Sim. E sigo querendo-a. Não duvidei em me vender como escravo para proteger meu pai e minha irmã. A escravidão já é bastante difícil para um homem, mas para as mulheres e os anciões é um pesadelo. E por não ter sido por minha néscia imprevisão, teria conseguido pagar os subornos que exigia o governador provincial romano e salvar minha família, mas não tinha dinheiro suficiente.

—Bom, mas agora você é livre novamente e pode voltar...

—Não, não poderia. Ainda não. Talvez alguma vez, mas não agora. Além disso, aqui as coisas estão indo bem.

—Sim, mas não deixe que Fulvia roube uma porcentagem muito alta de seus lucros.

— Ela fica com um terço.

Lucius parou em seco.

—Isso é uma extorsão!

—Ssssh... — Fio levou um dedo aos lábios e olhou para Castor e Pólux. - Ela leva um terço dos benefícios dos que tem notícia. Já sabe que os gregos não são chamados de escorregadios àtoa. Aprendemos a regatear com os mercadors de Tiro e Sidón antes que Rómulo soubesse o que era a teta de uma loba. Posso cuidar de mim mesmo.

 

A moça voltou para passar a noite junto a Maeniel. Ela não se importava que ela dormisse ao seu lado e não agitava seu sangue mais do que teria feito um filhote de lobo.

Tinha que ter uma série de sinais para que seu corpo despertasse. Dryas o tinha entendido à perfeição.

Apesar das terríveis cicatrize que marcavam seu corpo e seu rosto, a garota era jovem e esquentava como um braseiro. Os filhotinhos de lobo faziam o mesmo e acostumado como ele estava a dormir entre os seus, sentia-se terrivelmente isolado e sozinho.

Choveria naquela noite e faria muito frio. Multos fatores comunicavam seus sentidos. A umidade, as nuvens baixas, o aroma e a direção do vento, as diminutas mudanças na pressão do ar que percebia nas orelhas. Ao anoitecer começou a soprar o vento, e ele pode sentir como se aproximava a tempestade, da mesma forma em que um humano ouvia passos e sabe que alguém se aproxima.

A garota correu para o interior do estábulo. Ele a recolheu, colocando-a entre seu próprio corpo e a parede, sobre uma pilha de palha coberta por uma velha manta. Ali ela estaria bem protegida. Poucos momentos depois, Maeniel dormiu. A moça despertou uma vez ao se levantar para ir a latrina.

Ela não voltou. Um homem teria pensado que ela simplesmente tinha voltado para a casa com Mir e Dryas, mas ele não era um homem. Não importava o que Dryas tentasse fazer, ele não dava nada por feito.

Levantou-se. A tormenta havia sido moderada, deixando só uma ligeira camada de neve sobre o prado, a casa de Mir e o estábulo. A lua estava no céu e sob sua pálida luz Maeniel pôde ver as pisadas da garota no prado e afastando-se para o bosque. Algo devia tê-la assustado.

Ele atravessou a porta lentamente, movendo-se em silêncio como só um lobo pode fazer, com especial cautela pela ruidosa corrente e a argola que o entorpecia.

Havia pouco vento. Voltou à cabeça até recebê-lo na face, diretamente nas fossas nasais. Era um aroma de homem, um soldado. A mistura de ferro, couro e fumaça de lenha característica dos legionários do acampamento romano. Não eram somente soldados se aproximando, mas também soldados que cheiravam ao ácido suor de homens nervosos, agressivos ou assustados. Para sua surpresa, Maeniel descobriu que tinha uma nova habilidade: podia contá-los, eram cinco dedos e um mais. Seis.

Inspirou profundamente, tentando controlar o medo que o aroma havia despertado instantaneamente em seu cérebro. Logo se recordou que enfrentava homens, não lobos e que não precisava se preocupar com a possibilidade de que o cheirassem.

Ao mesmo tempo, ficou totalmente imóvel para ouvir um ruído. Pisadas, um sussurro de movimento, algum animal ou humano caminhando na neve atrás dele.

 

Sete convites. Lucius já estava pela quinta. Era de um senador da Galia, ligeiramente mais romano que qualquer romano que tivesse conhecido.

Pareceu-lhe que era como jantar com Cartilha o Velho, salvo por que Ambórux era muito menos pegajoso. As damas se sentavam durante a comida, em lugar de se reclinar. Havia um tear bem visível na saída do átrio, revelando a indústria das damas da casa. Havia um altar junto a uma parede decorada com pinturas dos deuses domésticos.

Mas Ambórux não colocava as restrições de Cartilha, ao prazer da comida... Nem muito menos do vinho. Assim Lucius estava agradavelmente achispado quando deixou a casa dele, para se encaminhar à sua.

Como sempre Castor e Pólux estavam com ele, acompanhados nessa ocasião por um poderoso criado de Ambórux.

Os dois escravos foram adiante, com tochas nas mãos, e o criado fechava a marcha. Tinham deixado para trás as estreitas ruas do bairro residencial e estavam atalhando pelo Foro.

Tudo ficava deserto depois do anoitecer e a tochas só iluminavam lojas e edifícios públicos fechados. Normalmente, em uma área residencial a presença de seres humanos era patente pelas risadas, a música e o ruído das baixelas que saíam dos balcões e os muros dos jardins. Os romanos adoravam as visitas e os banquetes e era freqüente cruzar com grupos de convidados retornando de outros festins, adiantando-se uns aos outros na rua antes da hora em que as estradas ficavam reservadas aos carros de transporte de mercadorrias.

Mas ali no centro público de Roma, as ruas estavam tão vazias e silenciosas como a estrada cheia de tumbas no fora da cidade. Castor e Pólux pareciam nervosos, embora ambos estivessem armados.

O criado apertou o passo até chegar junto a Lucius.

—Quanto de meu idioma você fala? — Ele perguntou-lhe.

—Um pouco. Entendo-o, melhor que falo.

—Então eu falo. Bem. Estamos sendo seguidos, mas não penso em problemas.

—Por que não?

—Muito pequeno. Só pisadas leves.

—Se adiante e faça companhia esses dois – Disse Lucius, assinalando com um gesto os dois escravos. Logo, frouxando sua espada na bainha, entrou em um beco, atrás de umas bancas.

Muito bem, ele pensou. Castor e Pólux seguiam andando junto ao musculoso criado. Guardiões estupendos, ele pensou amargamente. Sequer haviam dado falta dele.

Nas legiões, Lucius tinha aprendido o quão fácil resultava se mover na escuridão sem ser visto. Tinha boa visão noturna e a maior parte do tempo, inclusive com a lua baixa era capaz de se mover guiando pelas estrelas.

A sombra de seu perseguidor apareceu na rua. Era o que havia esperado Lucius, que aquele personagem seguisse a luz da tocha sem se dar conta de que ele se separara do grupo. Sim, o criado estava certo. Tratava-se de um homem de pequena estatura ou uma mulher.

Lucios não viu nem ouviu ninguém mais. Quem quer que fosse levava algo na mão direita... Uma arma? Não. Ao ver a luz ele compreendeu que era uma lamparina.

Avançou e pegou a mulher pelo braço, puxando-a para o beco enquanto lhe arrebatava a luz.

Ela não gritou como Lucius pensara que faria. Limitou-se a abrir a boca até que ele elevou a luz e viu de quem se tratava.

—Oh! Assustaste-me. – Ela disse. - Não me reconhece?

Sim, ela conhecia-a. Era a garota da cozinha.

—Sinto muito, mas não cheguei a me inteirar de seu nome. A amante de Vella.

— Sou Lucrecia. Sua irmã me colocou esse nome quando comprou-nos. Depois de um tempo descobri que havia feito como uma brincadeira, me dando o nome de uma mulher fiel. Fiel até a morte. — Lágrimas brilharam repentinamente em seus olhos.

Lucius tirou o chapéu reagindo sem pensar ante aquela amostra de crueldade.

—Sssh! Não chore nem se envergonhe de seu nome. Pessoas que não tem honra não entendem e é sempre a primeira que ri dele. Lucrecia era uma pessoa nobre e honrada e seus atos lhe deram fama eterna.

Justo naquele momento, Castor e Pólux irromperam no beco com suas tochas.

Lucrecia afastou o rosto, cobrindo-o com seu manto.

Lucius olhou os dois escravos.

—Que meninos tão preparados. – Ele disse sarcasticamente. - Por fim se deram conta queeu não estava. Agora desapareçam e me esperem na rua. E sem ouvir, é obvio.

Castor e Pólux obedeceram. O criado abriu os braços, como perguntando e o que faço?

Lucius assentiu, movendo a cabeça em direção a Castor e Pólux, e depois levou a Lucrecia para as sombras.

—O que acontece? Necessita de algo? Dinheiro, talvez?

—Oh, não, não. Estou muito bem. – Ela sussurrou. - Eu não confiaria nesses dois.

—De quem, de Castor e Pólux?

—Não se chamam assim. - Disse ela. – Eles se chamam Fraco e Africano. Estavam entre os favoritos de sua irmã.

—Favoritos? O que é o que faziam? Dormir com....?

Ela negou violentamente com a cabeça.

—Não. Oh, não, não, não. Sua irmã é casta.

—Bem, então favoritos em que sentido?

Lucrecia parecia muito assustada e olhou ao seu redor como se temesse que alguém ouvisse suas palavras.

—Não vejo há ninguém. – Disse Lucius. - Deixe de tremer e me diga o que está acontecendo em minha casa. Por que são seus favoritos? Agora ninguém pode te fazer mal. Você é uma mulher livre, se Fio seguiu minhas instruções, você está a salvo da ira de minha irmã.

—Isso é mentira, e o senhor sabe. Os poderosos desta cidade fazem o que querem com os fracos e ninguém se atreve a se opor. Olhe César: todos o temem.

—Não é o pior de todos, - Respondeu Lucius, exasperado.

—Não, e por isso vão matá-lo. Já estão falando disso.

Lucius lhe pôs uma mão sobre a boca.

—Não quero ouvi-la e se souber algo desses planos, não fale deles a ninguém. Nem a sua mãe ou sua irmã, nem a sua amiga mais querida. Entende-me? — Ele tirou-lhe a mão da boca. - Agora, me diga o que pretende essa minha irmã.

—Mas não acredito que o assassinato tenha lugar. César já está tomando medidas para... — Explicou a garota para tentar tranqüilizá-lo, mas Lucius voltou lhe cobrir a boca.

—Pelos deuses da guerra, o caos e a destruição... Feche o boca, por favor.

Ela se tornou para trás, soluçando.

—Pare. Não posso respirar...

—Há gente nesta cidade que se ocupará de que não respire nunca mais se ouvir o que está dizendo.

A garota se apoiou na parede, com as mãos fechadas sobre o peito e os olhos fechados, tentando recuperar o controle em um esforço de vontade.

—Lucrecia, me fale dos favoritos de minha irmã.

—Não sei quais são as palavras educadas...

—Estupendo. Diga-me com as vulgares então. Sou um soldado e já as ouvi antes. Ouvi-as todas.

—Ela gosta de olhar as pessoas quando... Enquanto fazem o ato do desejo. Se... Excita assim.

Lucius suspirou.

—Ah, bom. Isso não é tão mau, mas casta não é a palavra que eu usaria para tal conduta.

—Oh, ela não intervém. Não, diz que sua castidade é importante para o futuro da família Basilia.

—Suponho que seja. E Fraco e Africano contribuem para o aspecto masculino dessas... Veladas?

—Sim.

—Está segura?

—Sim. - Repetiu ela e sua voz tremeu. - Eu estive ali. Divertiram-se muito comigo. Os homens me dão medo. —Lucrecia começou a chorar em silêncio, e logo se se voltou para soltar sua profunda e desesperado dor. - A participação não é voluntária – Ela disse com voz alterada pelas lágrimas.

—Vejamos se o entendi. Estiveste rondando por Roma durante a noite, colocando sua vida em perigo para me contar esse feio segredo de minha irmã... Embora, como você, deploro seus atos, há pouco que eu possa...

—Não! - Disse ela, secando-as lágrimas com seu escuro manto. - O que queria dizer é que Fio foi capturado. Estava em casa de Gordus, o gladiador. Ele havia ido lá para comprovar o ferimento de seu filho. A esposa de Gordus o acompanhou até o final da rua e encontraram soldados esperando ali. Márcia, a esposa de Gordus, tentou se opor, mas tiraram suas espadas e lhe disseram que voltasse para sua casa se soubesse o que era melhor para ela. Logo levaram Fio e ninguém tornou a vê-lo após.

 

Maeniel se escondeu e pôde cheirá-la. Era a esposa de Mir, a garota louca.

—Venha. – Ele sussurrou.

Ela obedeceu, correndo até ele. Maeniel a pegou e entrou no estábulo. A cadeia soou um pouco. Ele afastou a manta da palha e fez um sinal a garota. Compreendendo, ela se enterrou na palha, e Maeniel voltou a colocar a manta em seu lugar.

Depois elevou a cabeça e olhou pela janela. Havia quatro homens na clareira e dois mais junto à porta de Mir. Ele se debateu selvagem e inutilmente com o desejo de mudar de forma, e logo com o temor de chamar a atenção sobre si em seu indefeso estado. Mas depois fez o que sabia que devia fazer.

—Dryas! — ele rugiu.

Dryas despertou para ouvir seu nome. Sua espada estava em uma coluna da cama e ela a desembainhou justo quando o primeiro homem abria a porta de um chute. A mistura da luz de lua e do amanhecer recortava sua figura.

Dryas atravessou a estadia apressadamente e cravou a espada na garganta do homem, chutando logo o corpo para o homem que estava atrás. Os dois caíram ao chão, o primeiro agonizante. Dryas pôde ouvir o borbulhante rugido de seu último fôlego através da laringe cortada. O segundo homem o afastou para um lado, tentando desembainhar sua espada.

Ela apontou o melhor que pôde e cravou-lhe a espada na coxa, cortando as grandes artérias que enviavam sangue a perna e o pé. O homem deixou cair sua arma e se afastou tropeções, tentando deter o brilhante e vermelho fluxo arterial que lhe cobria as mãos e salpicava a neve.

Restavam quatro e estavam assustados com ela, mas Dryas sequer tinha conseguido pegar sua faca. Estava com uma camisola manchada de sangue e só tinha a espada. Sabia que estava condenada, a menos que fizesse algo para melhorar suas possibilidades.

Mir saiu cambaleando da casa.

Oh, não, pensou Dryas. Mas, pode ser que se distraiam.

—O que querem? — Gritou o ancião.

Os homens não se distraíram pela aparição de Mir e seguiram avançando. Um deles levava uma lança, o longo pilum romano e um escudo. Outros levavam espadas e escudos.

—Renda-se - Disse o homem da lança a Dryas. - É você que queremos. É boa, mas nós somos melhores. Superamos em número. Renda-se e deixaremos os outros em paz.

Não, pensou Dryas. Se jogaria sobre sua própria espada antes de se submeter a tal destino.

—O que? — Perguntou ela. - Não têm muitos putas no acampamento?

A luz era um pouco melhor e ela pôde ver que não eram legionários romanos. Suas armaduras eram de melhor qualidade. Couro endurecido com peitorais moldagens, grebas e distintivos metálicos, cascos emplumados com longos protetores nasais de estilo grego. Mercenários, ela pensou, e bem pagos. O da lança era o mais velho. Tinha o cabelo grisalho, como sua barba quadrada.

—Renda-se. – Ele repetiu em seu latim com sotaque. - Temos ordens de levá-la a Roma. E ordens estritas de não te fazer mal enquanto a levamos.

—Não acredito em você. - Sussurrou Dryas entredentes.

Barba Cinza fez um gesto a seus homens para que retrocedessem, e permaneceu em seu lugar, assinalando Dryas com sua lança.

—Peguem o velho e a louca – Ele disse a um de seus homens. - Você, - ele continuou sem deixar de apontar Dryas com a lança, - fique onde está. Se mover, esta lança sairá de teu peito antes que tenha dado dois passos. Quero te entregar ilesa a minha patroa, como ela ordenou, mas você matou dois de meus homens, e se tiver que fazê-lo, levarei sua cabeça para Roma. —Sorriu. - Sem o corpo, puta de luxo.

—Não. - Disse Mir. - Deixem minha esposa em paz... — Ele dobrou a cintura, tentando não gritar de dor quando o soldado lhe retorceu o braço.

Outro dos mercenários entrou na casa, enquanto o terceiro arrastava Mir para Dryas. Ouviram os ruídos de um violento registro na casa, com vasilhas e móveis sendo derrubados.

O soldado apareceu novamente ao pouco momento.

—Não está aqui. – Ele disse, se encaminhando para o estábulo antes de ter terminado de falar.

A garota saiu de um salto de seu esconderijo, surpreendendo Maeniel. O lobo estava olhando para a porta, mas esteve a ponto de pegar a garota quando passou ao seu lado. Só conseguiu ficar com a manga de seu vestudo na mão.

A jovem correu para a pilha de lenha do outro extremo do estábulo, chegando ali quando entrava o soldado.

—Não! — Gritou Maeniel, tentando lhe distrair. - Não!

Ele se lançou contra ele, mas a corrente do tornozelo o fez cair no chão.

O soldado só necessitou um instante para ver que Maeniel estava acorrenbtado e o desdenhou como inimigo. Pegou a garota, mas ela tinha já um bom pedaço de madeira, um galho de fresno de bom tamanho. Golpeou o mercenário no joelho e embora a madeira tenha ricocheteado, o golpe foi doloroso.

O soldado atravessou a jovem com sua espada, mas o galho seguiu rolando até Maeniel.

Sobre suas mãos e joelhos, o lobo se lançou sobre a madeira, mas a corrente voltou a dete-lo, lhe machucando o tornozelo e o pé. As pontas de seus dedos roçaram a madeira.

O soldado avançou para Maeniel, disposto a acabar também com ele. Parecia fácil. Seu inimigo estava no chão, acorrentado e sem armas.

Maeniel retrocedeu como se estivesse assustado.

O soldado se aproximou um pouco mais. Golpeou Maeniel com seu escudo e elevou a espada.

Maeniel esquivou o golpe, pegou ao homem pelos tornozelos e atirou para cima.

O mercenário caiu ao chão, batendo a cabeça. Mas usava elmo e o piso a era de terra. Ele amaldiçoou e chutou, tentando se liberar. O elmo fez um ruído apagado ao se afastar rolando.

Não restava já nada de humano no cérebro de Maeniel. Ele era todo um lobo furioso. Sujeitando ainda o soldado pelos tornozelos, o fez girar enquanto gritava, esparramando seus miolos pelas pranchas de carvalho das paredes.

O terrível grito do mercenário e o ruído do golpe distraíram por um instante ao homem da lança. Dryas passou a espada para a mão esquerda e saltou para a direita. Sentiu que a ponta da lança lhe roçava o estômago, rasgando sua camisola enquanto cortava a garganta do homem com a mão esquerda. Teve mais êxito de que esperava, e a cabeça do mercenário rodou pelo chão.

No estábulo, Maeniel recolheu a espada que tinha deixado cair o soldado. O pedaço de madeira já estava ao seu alcance. Ele colocou a corrente em cima dele e depois golpeou fortemente com a espada. O golpe destruiu a arma, mas também a corrente. Ele estava livre.

 

 

                                                                     CONTINUA

 

 

                                                 Capítulo 16

Famosas últimas palavras, pensou Lucius. Vou cuidar de mim mesmo. Ave, até que vale. Fio, você é um idiota. Em que havia se metido seu físico grego? Ele observou a garota.

—Estou preocupado por Fio, mas também por ti. Pode voltar para casa sem problemas?

—Bem, - disse a garota, - não quero te dizer nada que não queira ouvir, mas perto daqui há um lugar onde posso passar a noite. É uma loja que tenho que abrir pela manhã, então... — Ela mostrou um molho de chaves em seu cinturão. - Está só a alguns passos.

Ele assentiu.

—Bem. Afastarei Castor e Pólux. Não acredito que a tenham visto a cara, então não poderão contar nada a minha irmã. Mas espere até que nos tenhamos perdido de vista, e logo proteja.

Ela correu de volta a rua. Ao sair de entre as bancas pôde ouvir o criado conversando com... Já tinha esquecido seus nomes.

—Eu não gosto dele. - Dizia Castor ou Pólux. - Se lhe acontecer algo, a ama...

—O que? — Perguntou o criado. - Acham que é um bebê que necessita de panos? Ela é uma donzela de dama. Sua ama quer transar! Transar! Enviou-lhes mensagem para ir quando seu marido não está em casa. — Ele sorriu ante o próprio humor soez.

 

 

 

 

—Há dinheiro para você, se sabe nos dizer quem é a dama. – Disse um de dos malditos escravos.

Lucius se deteve na escuridão.

—Quanto dinheiro? — Perguntou o criado, interessado.

—Muito. - Foi à resposta.

—Quero ver antes.

—Você não sabe nada. — Havia um estudado desprezo no comentário.

O criado não mordeu a isca e voltou a rir.

Lucius saiu do beco, pondo fim à conversa.

—Se movam. – Disse a Castor e Pólux. - Eu gostaria de chegar em casa este ano. —Os escravos vadiaram. - Se Movam! — Ele gritou. - E levantem essas tochas. Quero ver meu caminho sem ter que pisar nos pés de vocês.

O criado ficou para trás. Lucius se encontrou sozinho, pensando furiosamente. O pior de tudo era que os libertos, maser cidadãos romanos, possuiam poucos direitos e havia uma dúzia de lugares onde Fio podia ter sido levado, incluindo o terrível Tullianum, o cárcere e lugar de execuções de Roma. Ele sentiu crescer sua raiva enquanto caminhava, lutando com a frustração que tinha sentido perante Antonio semanas atrás. A sensação de que, de alguma forma, era impotente para tomar as rédeas de sua própria vida.

Aquilo queria dizer que não gostaria que ninguém lhe traçasse o futuro. Nem sua própria família, nem César ou Antonio. Limitava-se a dar voltas sem rumo porque não sabia...

 

                                                                                                   

 

                                         

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