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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A NOITE INTEIRA / Mary Higgins Clark
A NOITE INTEIRA / Mary Higgins Clark

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A NOITE INTEIRA

 

Faltavam vinte e dois dias para o Natal, mas este ano Lenny estava a fazer as suas compras de Natal mais cedo. Com a certeza absoluta de que ninguém sabia que se encontrava ali, e tão imóvel e silencioso que quase não conseguia ouvir-se a respirar, observou do confessionário as rondas de monsenhor Ferris a fechar a igreja para a noite. Com um sorriso desdenhoso, Lenny esperou impacientemente até as portas laterais serem verificadas e as luzes do santuário apagadas. Encolheu-se quando viu o monsenhor voltar-se para descer a nave lateral, o que significava que passaria junto do confessionário. Praguejou em silêncio quando uma tábua do chão chiou dentro do confessionário. Através de uma fenda na cortina, viu o sacerdote parar e inclinar a cabeça como se estivesse a escutar para ver se ouvia outro som.

 

Mas depois, como se estivesse satisfeito, monsenhor Ferris retomou o seu caminho para as traseiras da igreja. Passados alguns instantes, a luz no vestíbulo foi apagada e uma porta foi aberta e fechada. Lenny permitiu-se soltar um suspiro audível estava sozinho na igreja de São Clemente, na Rua 103 Oeste, em Manhattan.

 

Sondra parou no limiar de uma moradia em frente da igreja. O edifício estava em obras e o andaime temporário ao nível da rua ocultava-a da vista dos transeuntes. Queria certificar-se de que o monsenhor saía da igreja e estava na reitoria antes de deixar a bebé. Nos últimos dias, tinha ido a missas na igrej a de São Clemente e familiarizara-se com a rotina dele. Também sabia que, durante o Advento, naquele momento ele estaria a orientar o terço das sete horas.

 

Fraca devido à tensão e à fadiga do nascimento apenas algumas horas antes, com os seios inchados com o fluido que precedia o leite, inclinou-se contra a soleira da porta para se apoiar. Um gemido fraco vindo de dentro do seu casaco parcialmente abotoado levou-a a mexer os braços num movimento de embalar que é instintivo das mães.

 

Numa folha de papel branca, que deixaria com a bebé, tinha escrito tudo o que podia revelar em segurança:

 

Por favor, dê a minha filha para ser criada por uma família boa e carinhosa. O pai é de ascendência italiana; os meus avós nasceram na Irlanda. Nenhuma das famílias tem qualquer doença hereditária de que eu tenha conhecimento, por isso ela deve ser saudável. Amo-a, mas não posso cuidar dela. Se um dia ela perguntar por mim, mostrem-lhe este bilhete, por favor. Digam-lhe que as horas mais felizes da minha vida serão sempre aquelas em que a segurei nos meus braços depois de ela nascer. Pois nesses momentos fomos apenas as duas, sozinhas no mundo.

 

Sondra sentiu a garganta apertar-se quando avistou a figura alta e ligeiramente curvada do monsenhor a emergir da igrej a e a dirigir-se directamente para a reitoria adjacente. Tinha chegado o momento.

 

Comprara roupas de bebé e acessórios, incluindo um par de camisolas, uma camisa de dormir comprida, botinhas e um casaco com capuz, biberões, leite em pó e fraldas descartáveis. Tinha enrolado a bebé ao estilo dos índios norte-americanos, em dois cobertores e numa pesada manta de lã, mas, como a noite estava tão fria, no último instante tinha trazido também um saco de compras de papel castanho. Tinha lido algures que o papel era um bom isolante contra o frio. Não que a bebé fosse ficar muito tempo exposta ao ar gelado, é claro só até Sondra conseguir chegar a um telefone e telefonar para a reitoria.

 

Desabotoou lentamente o casaco, movendo a bebé apenas o necessário, lembrando-se de ter um cuidado especial com a cabeça da menina. O brilho ténue da luz da rua possibilitou-lhe ver claramente o rosto da criança recém-nascida.

 

Amo-te sussurrou Sondra com intensidade. E amar-te-ei sempre.

 

A bebé fitou-a, com os olhos completamente abertos pela primeira vez. Olhos castanhos fixaram olhos azuis, cabelos castanho-escuros tocaram a penugem de cabelos louros que se encaracolavam na pequena testa; lábios minúsculos franziram-se e mexeram-se, à procura do seio da mãe.

 

Sondra encostou a cabeça da bebé ao seu pescoço; deixou os lábios pousarem na face macia; a mão acariciou as costas e as pernas da recém-nascida. Depois, num gesto decidido, enfiou a figura minúscula no saco de compras, esticou a mão para o carrinho em segunda-mão que estava fechado a seu lado e prendeu a pega debaixo de um braço.

 

Esperou que diversas pessoas passassem pelo seu esconderijo e depois dirigiu-se apressadamente para o passeio e olhou para os dois lados da rua. Um quarteirão adiante, o tráfego estava parado num sinal vermelho, mas não viu transeuntes virem em qualquer das direcções.

 

Uma parede sólida de carros estacionados de ambos os lados da rua serviu de protecção a Sondra contra quaisquer olhares curiosos enquanto ela atravessava rapidamente a rua para a reitoria. Subiu os três degraus a correr para o patamar estreito e abriu o carrinho. Depois de accionar o travão, deitou a bebé confortavelmente sob a capota do carrinho e colocou a trouxa de roupas e biberões aos pés dela. Ajoelhou-se um instante e olhou uma última vez para a filha.

 

Adeus sussurrou. Depois, levantou-se e desceu os degraus a correr e dirigiu-se para a Avenida Columbus.

 

Faria um telefonema para a reitoria de uma cabina telefónica a dois quarteirões dali.

 

Lenny orgulhava-se de entrar e sair de uma igreja em menos de três minutos.

 

”É preciso ter cuidado com os alarmes silenciosos”, pensou ele enquanto abria a mochila e tirava uma lanterna. Manteve o feixe estreito apontado para o chão e começou a fazer rapidamente as suas rondas habituais. Em primeiro lugar, foi à caixa das esmolas para os pobres. Nos últimos tempos, os donativos tinham sido fracos, algures entre trinta e quarenta dólares.

 

As caixas de oferendas, por debaixo das velas votivas, revelaram-se as mais satisfatórias das últimas dez igrejas que ele tinha assaltado. Havia sete, colocadas a intervalos regulares diante das estátuas dos santos. Rapidamente, rebentou as fechaduras e tirou o dinheiro.

 

No último mês tinha vindo à missa aqui algumas vezes para estudar o local; observara que o sacerdote consagrava o pão e o vinho em cálices simples, por isso não se deu ao trabalho de arrombar o tabernáculo, pois não haveria lá nada de especial. De qualquer maneira, ficava contente por evitar fazer isso. Reconhecia que o par de anos que passara na catequese havia exercido algum efeito sobre ele, deixando-o pouco à vontade para fazer certas coisas. Sem dúvida que interferia quando se tratava de roubar igrejas.

 

Por outro lado, não tinha escrúpulos em sair com o tesouro que o trouxera ali em primeiro lugar, o cálice de prata com o diamante em forma de estrela na base. Pertencera a Joseph Santori, o sacerdote que fundara a paróquia de São Clemente há cem anos, e era o único tesouro que esta igreja histórica continha.

 

Um retrato de Santori estava pendurado por cima de um armário de mogno num recesso do lado direito do santuário. O armário era trabalhado, e a sua grelha fora concebida para proteger e ao mesmo tempo exibir o cálice. Depois de uma das missas a que tinha assistido, Lenny aproximara-se para ler a placa por debaixo do armário.

 

Aquando da sua ordenação em Roma, o padre, mais tarde bispo, Santori recebeu esta oferenda da condessa Maria Tomicelli.

 

Estava na família dela desde a época do começo do Cristianismo. Aos 45 anos, Joseph Santori foi consagrado bispo e designado para a Sé de Rochester. Depois de se reformar, aos

75 anos de idade, voltou para São Clemente, onde passou os últimos anos de vida a trabalhar entre os pobres e os idosos. A reputação de santidade do bispo Joseph Santori era tão conhecida que, depois do seu falecimento, foi assinada uma petição para pedir à Santa Sé que o considerasse para a beatificação, uma causa que ainda se mantém activa actualmente.

 

”O diamante renderá sem dúvida alguns dólares”, pensou Lenny enquanto empunhava o machado. Com dois golpes fortes, esmagou as dobradiças do armário. Abriu as portas com um puxão e pegou no cálice. Com receio de ter desencadeado um alarme silencioso, correu rapidamente para a porta lateral da igreja, destrancou-a e empurrou-a para a abrir, ansioso para sair dali.

 

Ao virar para oeste, em direcção à Avenida Columbus, o ar frio secou rapidamente o suor que lhe tinha coberto o rosto e as costas. Uma vez na avenida, sabia que poderia desaparecer no meio das multidões de pessoas que andavam às compras. Mas, ao passar pela reitoria, o uivo de uma sirene da Polícia a aproximar-se abalou-lhe a calma.

 

Viu dois casais a descer o quarteirão, na mesma direcção que ele, mas não se atreveu a começar a correr para os apanhar. Aquela atitude iria seguramente denunciá-lo. Depois, avistou o carrinho de bebé nos degraus da reitoria. Num instante estava a empurrá-lo pelo passeio. Aparentemente, não tinha nada a não ser um par de sacos de compras. Enfiou a mochila no fundo do carrinho e caminhou apressadamente para apanhar os casais que seguiam à sua frente. Depois de estar perto, caminhou tranquilamente atrás deles.

 

O carro da Polícia passou ruidosamente pelo grupo e travou a fundo à frente da igreja. Na Avenida Columbus, Lenny acelerou o passo, pois já não estava preocupado por poder ser detectado. Numa noite tão gelada, todos os transeuntes andavam apressados, ansiosos para chegarem aos seus destinos.

 

Limitar-se-ia a comportar-se como eles. Não havia motivo para alguém prestar atenção ao homem de altura mediana e rosto aguçado, com trinta e poucos anos, que usava um boné e um blusão preto, simples, e empurrava um carrinho de bebé barato e muito usado.

 

A cabina telefónica de onde Sondra tinha planeado telefonar estava a ser usada. Terrivelmente ansiosa devido à impaciência e já angustiada por causa da bebé que tinha abandonado, tentou decidir se interrompia a pessoa que estava a falar ao telefone, um homem com o uniforme de um guarda de segurança. Podia explicar que era uma emergência.

 

”Não posso fazer isso”, pensou, desesperada. ”Amanhã, se houver uma história nos jornais acerca da bebé, ele poderia lembrar-se de mim e contar à Polícia.”

 

Consternada, enfiou as mãos nos bolsos, à procura das moedas de que precisava e do papel onde tinha escrito o número da reitoria, desnecessário porque o sabia de cor.

 

Era dia 3 de Dezembro, e as luzes e as decorações de Natal já brilhavam nas montras das loj as e dos restaurantes ao longo da Avenida Columbus. Um casal de mãos dadas passou por Sondra, com os rostos radiantes enquanto sorriam um para o outro. A rapariga parecia ter cerca de 18 anos, a sua própria idade, pensou Sondra, embora ela se sentisse infinitamente mais velha e infinitamente afastada do ar de alegria sem preocupações que este casal exibia.

 

Estava a ficar mais frio. A bebé estaria bem agasalhada?, preocupou-se. Fechou os olhos por alguns instantes. ”Ó Deus, por favor faz com que este homem largue o telefone”, rezou. ”Preciso de fazer este telefonema agora.”

 

Um instante depois, ouviu o clique do auscultador a ser pousado. Sondra esperou até a pessoa se afastar alguns passos antes de agarrar no telefone, colocar as moedas e marcar o número.

 

Reitoria de São Clemente. A voz era a de um homem idoso. Tinha de ser o sacerdote de idade que ela vira na missa.

 

Por favor, posso falar com monsenhor Ferris? É urgente.

 

Eu sou o padre Dailey. Talvez possa ajudá-la. O monsenhor está na rua com a Polícia. Temos uma emergência.

 

Calmamente, Sondra desligou. Já tinham encontrado a bebé. Agora ela estava em segurança, e monsenhor Ferris cuidaria de tudo para que fosse colocada num bom lar.

 

Uma hora depois, Sondra estava no autocarro para Birmingham, Alabama, onde era estudante no departamento de Música da universidade, uma estudante de violino cujo talento surpreendente já a tinha destinado a um futuro brilhante nos palcos de concertos.

 

Só quando chegou ao apartamento da tia idosa é que Lenny ouviu o choro fraco da recém-nascida.

 

Espantado, espreitou para o carrinho. Viu o saco de compras começar a mexer-se e abriu-o rapidamente; olhou para o pequeno ocupante, chocado. Incrédulo, soltou o bilhete do cobertor, leu-o e esboçou uma exclamação.

 

Do quarto ao fundo do corredor estreito, a tia chamou:

 

És tu, Lenny? Não havia o menor sinal de boas-vindas na pergunta, proferida com um forte sotaque que traía as suas raízes italianas.

 

Sim, tia Lilly. Não podia simplesmente esconder a bebé. Tinha de encontrar uma saída. Que poderia dizer-lhe?

 

Lilly Maldonado percorreu o corredor até à sala de estar. Aos 74 anos, parecia e movimentava-se como alguém dez anos mais nova. Os cabelos, presos num carrapito apertado, ainda estavam generosamente salpicados de fios pretos; os olhos castanhos eram grandes e expressivos, e o corpo baixo e amplo movia-se com passos rápidos e seguros.

 

Juntamente com a mãe de Lenny, a sua irmã mais nova, tinha emigrado da Itália para os Estados Unidos pouco depois da segunda guerra mundial. Costureira habilidosa, casara com um alfaiate da sua aldeia natal na Toscânia e trabalhara ao lado dele na minúscula loja que possuíam no Upper West Side até à morte deste, cinco anos antes. Agora, trabalhava no apartamento ou ia a casa dos clientes dedicados, a quem cobrava uma ninharia para fazer fatos e alterações.

 

Mas, como os clientes costumavam dizer uns para os outros em tom jocoso, em troca dos preços baixos de Lilly eram obrigados a dispensar uma atenção considerável às suas histórias infindáveis sobre o problemático sobrinho Lenny.

 

De joelhos, com um monte de alfinetes a seu lado, os olhos alerta a medir cuidadosamente enquanto marcava a giz larguras e bainhas, Lilly suspirava e depois lançava-se na sua litania de queixas.

 

O meu sobrinho. Está sempre a dar comigo em doida. Problemático desde o dia em que nasceu. Quando estava na escola: nem queira saber. Preso. Esteve numa prisão para miúdos duas vezes. E isso endireitou-o? Não. Nunca consegue conservar um emprego. Por que não? A minha irmã, mãe dele, Deus tenha a sua alma em descanso, foi sempre demasiado branda com ele. É claro que eu o amo... afinal de contas, é da minha carne e do meu sangue... mas ele dá comigo em doida. O que eu tenho de aguentar, com ele a entrar a qualquer hora? De que é que ele vive, pergunto-lhe a si?

 

Mas agora, depois de rezar fervorosamente ao seu amado São Francisco de Assis, Lilly Maldonado tinha tomado uma decisão. Havia tentado tudo, e nada fizera diferença. Claramente, nada mudaria Lenny, por isso ia lavar as mãos e desinteressar-se dele de uma vez por todas.

 

A luz na entrada era fraca e ela estava tão decidida a fazer o seu discurso que não reparou imediatamente no carrinho de bebé atrás dele.

 

De braços cruzados, com a voz firme, Lilly disse:

 

Lenny, pediste-me para ficar algumas noites. Bem, isso foi há três semanas, e não te quero mais aqui. Arruma as tuas coisas e vai-te embora.

 

O tom alto e estridente de Lilly acordou o já inquieto recém-nascido, e o gemido fraco transformou-se em choro.

 

O que...? exclamou Lilly. Depois viu o carrinho de bebé. Num movimento rápido, empurrou o sobrinho para o lado e baixou os olhos para ele. Chocada, atirou: Que é que fizeste agora? Onde é que arranjaste aquela bebé?

 

Lenny pensou depressa. Não queria deixar este apartamento. Era um lugar perfeito para morar, e viver com a tia dava-lhe uma aura de respeitabilidade. Tinha lido o bilhete da mãe do bebé, por isso ocorreu-lhe rapidamente um plano.

 

É minha, tia Lilly. A mãe é uma rapariga por quem eu estava doido. Mas ela vai mudar-se para a Califórnia e quer dar a bebé para adopção. Eu não quero. Quero ficar com a menina.

 

O gemido era agora um grito exigente. Punhos minúsculos socavam o ar.

 

Lilly abriu a trouxa que estava aos pés da criança.

 

A bebé está com fome anunciou ela. Pelo menos a tua namorada mandou algum leite em pó. Abriu um dos biberões e estendeu-o para Lenny. Toma, aquece isto.

 

A expressão dela mudou quando desenrolou os cobertores da minúscula recém-nascida, pegou na menina e a embalou nos braços quentes e reconfortantes.

 

Linda, bella. Como pôde a tua mãe não te querer? Olhou para Lenny. Que nome é que lhe deram?

 

Lenny pensou no diamante em forma de estrela do cálice.

 

O nome dela é Star, tia Lilly.

 

Star murmurou Lilly Maldonado enquanto acalmava o bebé soluçante. Na Itália ter-lhe-íamos chamado Stellina. Significa ”pequena estrela”.

 

Com os olhos semicerrados, Lenny observou o laço que se estabelecia entre a recém-nascida e a mulher de idade. Ninguém andaria à procura da bebé, pensou. Não era como se a tivesse raptado, e, de qualquer maneira, se alguma vez se falasse alguma coisa acerca da miúda, ele teria o bilhete para provar que ela tinha sido abandonada. Sabia que a palavra para avó em italiano era nonna. Ao voltar-se e dirigir-se rapidamente para a cozinha para aquecer o biberão, Lenny disse para si mesmo com satisfação: ”Star, minha menina pequenina, arranjei-te um lar... e tu arranjaste uma nonna.”

 

         SETE ANOS DEPOIS

 

De sobrolho franzido, Willy Meehan sentou-se ao piano que a mulher, Alvirah, lhe tinha oferecido pelo sexagésimo segundo aniversário. Com profunda concentração, tentou ler as notas no Livro de John Thompson para Principiantes Maduros.

 

”Talvez fosse mais fácil se cantasse também”, pensou.

 

Dorme, minha criança, e que a paz esteja contigo começou.

 

”Willy tem uma voz tão boa”, pensou Alvirah ao entrar no aposento. ”A Noite Inteira é um dos cânticos de Natal que prefiro”, reflectiu enquanto olhava afectuosamente para aquele que era seu marido há mais de quarenta anos. De perfil, a sua semelhança com o falecido Tip O’Neill, o lendário presidente da Câmara dos Representantes, era ainda mais surpreendente do que quando olhado de frente, concluiu. Com os abundantes cabelos brancos, as feições marcadas, os olhos azuis, inteligentes, e o sorriso caloroso, Willy era muitas vezes alvo de olhares espantados de reconhecimento, embora já se tivessem passado vários anos desde a morte de O’Neill.

 

Agora, para os olhos apaixonados dela, ele parecia simplesmente esplêndido no fato azul-escuro que tinha vestido por respeito para com Bessie Durkin Maher, para cujo velório estavam prestes a sair. Alvirah tinha trocado com relutância o fato azul-marinho número doze que planeara vestir por um vestido preto que tinha um tamanho maior. Ela e Willy tinham acabado de regressar na noite anterior do cruzeiro às Caraíbas após o Dia de Acção de Graças, e a comida sumptuosa desferira um golpe mortal na sua dieta.

 

Deus mandar-te-á anjos da guarda cantou Willy enquanto tocava.

 

”O bom Senhor Deus mandou-nos realmente os seus anjos”, pensou Alvirah enquanto por não querer perturbar Willy caminhava em bicos de pés até à janela para desfrutar da vista arrebatadora para o Central Park.

 

Há pouco mais de dois anos, Alvirah, então mulher a dias, e Willy, canalizador, viviam em Jackson Heights, em Queens, no apartamento que haviam arrendado muitos anos antes, quando eram recém-casados. Ela estava cansada até aos ossos depois de um dia particularmente difícil em casa da Sr.a O’Keefe, que achava sempre que o seu dinheiro não era bem gasto se Alvirah não desviasse cada peça de mobília da casa quando aspirava. Mesmo assim, como faziam todas as sextas-feiras e sábados à noite, tinham-se sentado a ver televisão quando os números da lotaria foram anunciados à medida que as bolas saltavam para o seu lugar. Quase tinham tido um ataque cardíaco em conjunto quando, um após outro, os números deles, aqueles com que jogavam sempre, apareceram.

 

”E depois apercebemo-nos de que tínhamos ganho quarenta milhões de dólares”, pensou Alvirah, ainda incrédula perante aquela boa sorte.

 

”No entanto, não tivemos apenas sorte, fomos abençoados”, corrigiu-se a si mesma, enquanto absorvia a vista. Eram sete e um quarto, e o Central Park estava suavemente belo com neve acabada de cair que deixara uma camada de um branco-alvo nas árvores e nos campos. Ao longe, luzes de Natal festivas iluminavam a zona que rodeava a Tavern on the Green. Os faróis de carros e táxis formavam um rio móvel de claridade enquanto serpenteavam pelas ruas sinuosas. ”Noutro sítio qualquer, pareceriam apenas tráfego”, reflectiu ela. As carruagens puxadas por cavalos, que não via agora, mas sem dúvida estavam presentes no parque, faziam-na sempre lembrar-se das histórias que a mãe lhe contava acerca de crescer perto do Central Park na primeira parte do século. Igualmente, os patinadores que dançavam no Ringue Wollman recordavam-lhe os fins de tarde há muitos anos, quando ela patinara ao som de música de órgão em São Raimundo, no Bronx.

 

Depois de ganharem a lotaria, com a renda anual de dois milhões de dólares, menos os impostos, ela e Willy tinham-se mudado para este luxuoso apartamento. Viver em Central Park fora sempre uma das suas fantasias, e, para além do mais, o apartamento era um bom investimento. Porém, continuavam a conservar o velho apartamento arrendado em Jackson Heights, para a eventualidade de o Estado de Nova Iorque ir à falência e deixar de lhes pagar.

 

Mas, na verdade, Alvirah tinha feito bom uso da sua recente riqueza, doando bastante para caridade enquanto conseguia divertir-se imensamente. Para além disso, tivera algumas experiências memoráveis. Tinha ido para as Termas de Cypress Point, em Peeble Beach, e quase fora assassinada lá por causa do seu faro para notícias. A experiência revelou-se positiva quando se tornou colunista colaboradora do New York Globe, e, como uma coisa leva sempre a outra, com a ajuda do dispositivo gravador do seu alfinete de lapela em forma de sol, tinha resolvido diversos crimes, ganhando gradualmente a reputação de uma verdadeira detective, embora não deixasse de ser uma amadora, é claro.

 

A habilidade de Willy como canalizador era agora utilizada exclusivamente pela irmã mais velha, a irmã Cordelia, que cuidava dos pobres e dos idosos no Upper West Side de Manhattan. Mantinha Willy ocupado a reparar lava-loiças e casas de banho e a colocar aquecimentos nos apartamentos que tinha a seu cargo.

 

Antes de partirem no cruzeiro, Willy tinha feito horas extraordinárias a reparar o primeiro andar da loja de mobílias abandonada onde Cordelia tinha uma loja de roupas em segunda-mão. Chamada Apoio da Casa, era também um centro não oficial de tempos livres para crianças pequenas, do primeiro ao quinto ano, cujos pais estavam a trabalhar.

 

Sim, Alvirah tinha concluído que ter dinheiro era uma coisa boa, desde que uma pessoa nunca se esquecesse de como viver sem ele, uma coisa que ela e Willy pretendiam nunca fazer. ”É bom podermos ajudar outras pessoas”, pensou ela, ”mas, se perdêssemos até ao último tostão do dinheiro, continuaríamos felizes desde que estivéssemos juntos.”

 

A noite inteira concluiu Willy com um crescendo decisivo. Estás pronta para ir, querida? perguntou ele enquanto empurrava o banco do piano para trás.

 

Tudo pronto disse Alvirah enquanto se voltava para o olhar. Estavas óptimo. Tocas com imenso sentimento. Muitas pessoas limitam-se a tocar estas canções tão doces a correr.

 

Willy sorriu com benevolência. Embora lamentasse profundamente o momento em que mencionara casualmente a Alvirah que gostava de ter tido lições de piano quando era criança, percebeu que começava a sentir uma satisfação imensa sempre que conseguia tocar uma música sem se enganar uma única vez.

 

O motivo por que toquei tão lentamente é porque não conseguia ler as notas mais depressa brincou ele. De qualquer maneira, é melhor irmos andando.

 

A casa mortuária situava-se na Rua Noventa e Seis, logo à saída da Riverside Drive. Enquanto o táxi fazia o seu laborioso caminho para a parte alta da cidade, Alvirah pensava nas amigas Bessie e Kate Durkin. Conhecia Bessie e Kate há muitos anos. Kate trabalhara como vendedora no Macy’s e Bessie fora governanta interna de um juiz aposentado e da sua mulher doente.

 

Quando a mulher do juiz faleceu, Bessie tinha pedido a demissão, alegando que não poderia de forma alguma continuar sob o mesmo tecto que o juiz sem a presença de outra mulher.

 

Uma semana depois, o juiz Aloysius Maher tinha pedido a mão dela em casamento, por isso, após sessenta anos de virgindade, Bessie aceitara a oferta sem hesitar. Depois de casada, tinha-se instalado e fizera da moradia grande e bonita do juiz, no Upper West Side, a sua casa.

 

Ao cabo de mais de quarenta anos de casamento, e de um casamento abençoadamente feliz, Willy e Alvirah tinham chegado ao ponto em que tipicamente pensavam no mesmo assunto antes mesmo de o discutirem.

 

Bessie sabia exactamente o que estava a fazer quando abandonou o emprego comentou Willy, as palavras a encaixarem-se perfeitamente no pensamento que Alvirah não expressara por palavras. Ela sabia que, se não apanhasse o juiz antes de outra mulher pôr as garras nele, não teria qualquer hipótese. Tratou sempre aquela casa como se fosse sua, e ter de sair dela tê-la-ia destroçado.

 

Verdade, ela gostava mesmo da casa concordou Alvirah. E, para ser justa, ela manteve a sua parte do acordo. Era uma governanta maravilhosa e sabia cozinhar como um anjo. O juiz mal podia esperar para se sentar à mesa. Tens de admitir que ela o tratava com desvelo.

 

Willy nunca tinha sido fã de Bessie Durkin.

 

Ela sabia o que estava a fazer. O juiz só durou oito anos. Depois, Bessie ficou com a moradia e uma pensão, convidou Kate para ir viver com ela, e desde então Kate cuidou dela com desvelo.

 

Kate é uma santa concordou Alvirah, mas é claro que, agora que Bessie faleceu, a moradia será dela, e terá um rendimento. Deve ficar bem amparada.

 

Animada pelo seu próprio comentário optimista, espreitou pela janela.

 

Oh, Willy, não achas que as decorações de Natal em todas as montras estão um encanto? perguntou. É uma pena que Bessie tenha morrido tão próximo dos feriados; ela gostava tanto desta época.

 

Estamos apenas a quatro de Dezembro referiu Willy. Ela passou o dia de Acção de Graças.

 

É verdade concedeu Alvirah. Ainda bem que estivemos com ela. Lembras-te de como ela gostou do peru? Comeu tudo até ao fim.

 

E tudo o mais que estava à vista declarou Willy secamente. Aqui estamos nós.

 

No momento em que o táxi encostou ao passeio, um empregado da Casa Funerária Reading abriu-lhes a porta e, num tom discreto, disse-lhes que Bessie Durkin Maher estava a repousar na sala leste. O cheiro pesado e doce das flores pairava na atmosfera silenciosa enquanto eles percorriam calmamente o corredor.

 

Estes lugares provocam-me arrepios comentou Willy. Cheiram sempre a cravos podres.

 

Na sala leste, juntaram-se a um grupo de cerca de trinta enlutados, incluindo Vic e Linda Baker, o casal que arrendara o último andar da moradia de Bessie. Estavam junto ao topo do caixão, ao lado da irmã de Bessie, Kate, e, como se fossem da família, aceitavam as condolências com ela.

 

Que diabo é tudo aquilo? sussurrou Willy para Alvirah enquanto esperavam que chegasse a sua vez de falar com Kate.

 

Treze anos mais nova do que a sua formidável irmã, Kate era uma mulher magra de 75 anos, com uma cabeleira de cabelos grisalhos, curtos, e calorosos olhos azuis que estavam agora marejados de lágrimas.

 

”Foi oprimida pela irmã a vida inteira”, pensou Alvirah enquanto envolvia Kate nos braços.

 

Foi o melhor para ela, Kate disse com firmeza. Se a Bessie tivesse sobrevivido à trombose, teria ficado completamente inválida, e isso não era para ela.

 

Não concordou Kate, afastando uma lágrima. Ela não teria querido isso. Acho que pensei sempre em Bessie como minha irmã e minha mãe. Ela podia ser casmurra, mas tinha bom coração.

 

Vamos sentir imensa falta dela disse Alvirah enquanto Willy soltava um suspiro profundo atrás de si.

 

Enquanto Willy dava um abraço fraternal a Kate, Alvirah voltou-se para Vic Baker. O seu fato de luto era tão formal que Alvirah lembrou-se imediatamente de um dos personagens da família Addams. Baker, um homem entroncado com trinta e tal anos, com um rosto agarotado, cabelos castanho-escuros e astutos olhos azuis que pareciam de porcelana, usava um fato preto e gravata preta. A seu lado, a mulher, Linda, também vestida de preto, segurava um lenço-de-mão junto ao rosto.

 

”Sem dúvida, está a tentar espremer uma lágrima”, pensou Alvirah secamente. Tinha visto Vic e Linda pela primeira vez no dia de Acção de Graças. Consciente da saúde frágil da irmã, Kate convidara Alvirah e Willy, a irmã Cordelia, a irmã Maeve Marie e monsenhor Thomas Ferris, o pastor da igreja de São Clemente, que residia na reitoria a algumas portas de distância da moradia de Bessie, na Rua 103 Oeste, para partilharem o jantar do feriado com elas.

 

Vic e Linda tinham chegado quando eles tomavam o café, e Alvirah ficara com a sensação de que Kate tinha feito questão de não os convidar para ficarem para a sobremesa. ”Então qual será o objectivo deles ao comportarem-se como se fossem os maiores sofredores?”, perguntou Alvirah a si mesma enquanto rejeitava a aparente tristeza de Linda, considerando-a falsa.

 

”Muitas pessoas podem pensar que ela é bonita”, admitiu Alvirah enquanto observava as feições harmoniosas de Linda, ”mas eu detestaria deparar-me com o lado feio dela. Tem uma frieza no olhar em que não confio, e aquele penteado armado, com todas as madeixas de um louro-acobreado, é um horror.”

 

... como se fosse a minha própria mãe estava Linda a dizer, com a voz trémula.

 

É claro que Willy tinha ouvido o comentário e não pôde deixar de acrescentar o seu:

 

Vocês arrendaram aquele apartamento há menos de um ano, não é verdade? perguntou ele.

 

Sem esperar uma resposta, pegou no braço de Alvirah e puxou-a para o genuflexório.

 

Na morte como na vida, Bessie Durkin parecia estar a controlar a situação. Com o seu melhor vestido estampado e um colar de pérolas falsas que o juiz lhe oferecera no dia do casamento, o cabelo arranjado e penteado, Bessie tinha a expressão satisfeita de alguém que tivera o hábito bem sucedido de uma vida inteira a levar as pessoas a fazer as coisas como ela queria.

 

Mais tarde, quando Alvirah e Willy saíram, despediram-se de Kate, prometendo assistir à missa de corpo presente na igreja de São Clemente e ir no carro com ela para o cemitério.

 

A irmã Cordelia também vem disse-lhes Kate. Willy, tenho estado preocupada com ela esta semana em que vocês estiveram fora. Ela tem estado sob tanta tensão. Os inspectores da cidade estão a fazê-la passar um mau bocado por causa do Apoio da Casa.

 

Já estávamos à espera disso disse ele. Hoje telefonei, mas ela tinha saído e não me telefonou. Estava à espera de a ver aqui esta noite.

 

Kate olhou de relance para a sala e viu Linda Baker aproximar-se deles. Baixou a voz:

 

Pedi à irmã para ir lá a casa depois do funeral sussurrou ela. Também quero que venham, e o monsenhor estará lá.

 

Despediram-se, e, como Willy disse que precisava de apanhar ar para tirar o cheiro enjoativo das flores, concordaram em andar um pouco antes de mandar parar um táxi.

 

Reparaste como Linda Baker veio a correr quando nos viu a falar com Kate? perguntou Alvirah a Willy enquanto caminhavam de braço dado para a Avenida Columbus.

 

Claro que reparei. Tenho de dizer que havia alguma coisa naquela mulher que me incomodou. E agora também estou preocupado com Cordelia. Ela já não é nada nova, e acho que já teve mais do que a sua conta ao tentar tomar conta daqueles miúdos depois da escola.

 

Willy, eles só são mantidos quentes e em segurança até as mães poderem ir buscá-los depois de virem do trabalho. Como é que alguém pode estar contra isso?

 

A cidade pode. Quer se goste quer não, existem normas e regulamentos para se tomar conta de crianças. Pára, já estou farto deste ar frio. Aqui vem um táxi.

 

Quer se goste quer não, existem normas e regulamentos disse a irmã Cordelia no dia seguinte com um suspiro, enquanto repetia inconscientemente, sem tirar nem pôr, as palavras de Willy. Deram-me um prazo... dia um de Janeiro... e o inspector Pablo Torres disse-me que eu já estava a infringir todas as regras do livro para me dar tanto tempo.

 

Era uma hora, e depois da Missa de Corpo Presente Bessie Durkin tinha sido descida para o seu eterno descanso, ao lado de três gerações de Durkins, no Cemitério Calvary.

 

Willy e Alvirah, a irmã Cordelia e a sua assistente, a irmã Maeve Marie, que era uma antiga polícia do Departamento da Polícia de Nova Iorque com 29 anos, e monsenhor Thomas Ferris estavam à mesa na casa de Bessie, a saborear o presunto da Virgínia, salada de batata caseira e biscoitos secos preparados por Kate.

 

Alguém quer mais alguma coisa? perguntou Kate docilmente, antes de ocupar o seu lugar à mesa.

 

Senta-te, Kate ordenou Alvirah. Voltou-se para Cordelia. Quais são exactamente os problemas tão terríveis, Cordelia? perguntou.

 

Por alguns instantes, a expressão perturbada no rosto da freira de 70 anos desapareceu. Os olhos de Cordelia suavizaram-se quando olhou para a cunhada e sorriu.

 

É uma coisa que nem sequer tu podes resolver, Alvirah. Temos trinta e seis miúdos, com idades compreendidas entre os seis e os onze anos, que vêm para junto de nós depois da escola. Perguntei ao Pablo se ele preferia tê-los nas ruas. Perguntei-lhe o que estamos a fazer de errado. Damos-lhes um lanche. Conseguimos reunir alguns miúdos do liceu que são de confiança e que os ajudam a fazer os trabalhos de casa e brincam com eles. Temos sempre adultos voluntários na loja de roupas em segunda-mão, por isso há sempre vigilância suficiente. As mães ou os pais das crianças vão buscá-las às seis e meia. Não cobramos nada, é claro. As enfermeiras das escolas observaram todos os miúdos que nós recebemos. Nunca se queixaram de nada.

 

Cordelia suspirou e abanou a cabeça.

 

Sabemos que a propriedade está a ser vendida explicou a irmã Maeve, mas só daqui a um ano, no mínimo, é que teremos de sair. Arranjámos e pintámos há pouco o primeiro andar inteiro, onde os miúdos ficam quando lá estão, por isso não há um único bocado a descascar em lado nenhum. Mas, aparentemente, continua a ser um problema, porque dizem que a tinta de chumbo era usada há muitos anos. A Madre Superiora perguntou ao Pablo se ele tinha dado uma vista de olhos a alguns dos lugares onde estes miúdos vivem e comparado as condições dali com as da Apoio da Casa. Ele disse que não faz as normas. Disse que tem de haver duas saídas, e não podem incluir a saída de emergência.

 

A escada tem largura suficiente para cinco miúdos descerem juntos, mas eles não consideram isso. Podíamos continuar sem parar, Maeve interrompeu a irmã Cordelia. O que interessa é que em menos de quatro semanas teremos de fechar as portas ao programa Apoio da Casa, e, se algum daqueles miúdos aparecer, não temos outra alternativa a não ser mandá-lo para casa, para um apartamento vazio sem a menor segurança ou supervisão.

 

Quando Kate pegou no bule do chá, monsenhor Ferris esticou a mão para a chávena vazia.

 

Obrigado, sim, Kate. E creio que chegou o momento de partilharmos a nossa boa notícia com os outros.

 

Kate pareceu envergonhada.

 

E se contasse o senhor, por favor, monsenhor?

 

De boa vontade. A Bessie, Deus tenha a sua alma em descanso, apercebeu-se de que o fim estava a chegar, e no dia a seguir ao dia de Acção de Graças pediu-me que viesse cá a casa.

 

”Que a notícia seja o que eu penso”, rezou Alvirah em silêncio.

 

A compostura calma que era uma expressão habitual no rosto bondoso de monsenhor Ferris estava iluminada pelas novidades obviamente felizes que estava prestes a partilhar. Acariciou os cabelos prateados, que ainda estavam um pouco desgrenhados por causa do vento no serviço fúnebre, e depois sorriu.

 

A Bessie disse-me que, é claro, em testamento tinha deixado esta casa para a irmã, bem como uma pensão que garantiria o conforto da Kate, mas a Kate tinha-lhe indicado que gostaria de dar a casa à irmã Cordelia para o programa Apoio da Casa.

 

Valham-nos todos os santos! disse Cordelia fervorosamente. Oh, Kate.

 

Kate quereria ficar a viver no apartamento do terceiro andar que os Bakers ocupam agora. Com franqueza, Bessie não ficou muito entusiasmada com a ideia, mas sentiu que a decisão tinha de ser tomada por Kate, e pediu-me que me certificasse de que nada correria mal com todos os preparativos.

 

Vocês sabem que Bessie me tratou sempre como se eu não conseguisse encontrar o caminho até à loja disse Kate afectuosamente.

 

Eu disse a Bessie que, com a reitoria apenas a três portas de distância, não haveria problema em dar uma olhada a tudo, embora também lhe tenha dito que Kate é muito capaz de tratar dos seus assuntos explicou o monsenhor.

 

Vou adorar ter a Apoio da Casa aqui disse Kate. Quis oferecer-me como voluntária para ajudar desde que a abriste, Cordelia, mas a Bessie precisava de mim.

 

Monsenhor Ferris levantou-se, a sorrir enquanto observava a notícia a registar-se no rosto da irmã Cordelia.

 

Eu acreditei sempre que a previdência devia ser considerada uma virtude cardeal anunciou ele. Por acaso, tenho uma garrafa de champanhe a refrescar no balde de gelo. Acho que é apropriado fazermos um brinde às irmãs Durkin, Bessie e Kate.

 

”É uma notícia tão maravilhosa. Então por que é que eu estou tão preocupada?”, perguntou Alvirah a si mesma. ”Por que é que tenho a certeza de que alguma coisa vai correr mal?” Mentalmente, examinou as possibilidades de uma forma muito semelhante à que utilizaria a língua para procurar a fonte de uma dor de dentes. Só levou um instante a encontrar a fonte da sua preocupação: os Bakers.

 

Tens a certeza de que consegues pôr os Bakers fora, Kate? perguntou ela. Hoje em dia é tão fácil as pessoas livrarem-se de inquilinos.

 

Tenho a certeza absoluta disse Kate com firmeza. O arrendamento é por um ano, e acaba em Janeiro. Existe uma cláusula específica que diz que a renovação depende unicamente do proprietário. Lembras-te de como tivemos aquele rapaz que era maníaco por exercício físico? Pelo menos uma vez por semana deixava cair um peso, e sempre a meio da noite. Bessie tinha a certeza de que a casa iria ceder. Sabes como ela adorava este lugar. Depois de, por fim, se ver livre dele, ela acrescentou essa cláusula ao arrendamento para os novos arrendatários.

 

Parece que pensaste em tudo observou Willy.

 

Lamento muito ter de lhes dizer que têm de se mudar, mas, para falar com franqueza... vou ficar aliviada quando eles saírem disse Kate. Vic Baker está sempre no meio do caminho, à procura de coisas para arranjar pela casa toda. Até parece que é dono de tudo.

 

Quando saíram, uma hora depois, Willy e Alvirah acompanharam monsenhor Ferris até à porta da reitoria. O céu já nublado estava agora completamente carregado de nuvens. O vento tinha-se tornado cortante e o frio agreste e húmido penetrava até aos ossos.

 

Prevê-se um Inverno longo disse Alvirah. Imaginam ter de dizer àquelas crianças daqui a algumas semanas que não podem ir para a Apoio da Casa, onde estão em segurança e quentes e confortáveis?

 

Era uma pergunta retórica, é claro, e mesmo enquanto a fazia Alvirah só estava a ouvir parcialmente. A sua atenção estava mais virada para a rua, onde uma mulher jovem em fato-de-treino estava de pé, a olhar para a reitoria.

 

Monsenhor Tom disse ela. Repare naquela mulher. Não acha que há alguma coisa estranha na forma como está simplesmente ali parada?

 

Ele acenou afirmativamente.

 

Vi-a lá ontem, e esta manhã estava na primeira missa. Apanhei-a antes de ela sair e perguntei-lhe se podia ajudá-la de alguma forma. Ela limitou-se a abanar a cabeça e quase saiu a correr. Se tem um problema que quer discutir comigo, acho que terei de a deixar aproximar-se.

 

Willy pousou uma mão controladora no braço de Alvirah.

 

Não te esqueças de que nos esperam na Apoio da Casa para ajudar Cordelia com o ensaio para o espectáculo de Natal recordou-lhe ele.

 

Queres dizer com isso que não me devo meter na vida dos outros. Bem, suponho que tens razão disse Alvirah alegremente.

 

Olhou uma vez mais para o outro lado da rua. A jovem afastava-se rapidamente, em direcção a oeste. Alvirah franziu os olhos para ver bem o seu perfil clássico, ao mesmo tempo que admirava o porte familiar.

 

Parece-me conhecida disse ela terminantemente. Vou ter de me concentrar.

 

”Estão a falar de mim”, pensou Sondra enquanto se afastava rapidamente. A moradia defronte da qual tinha parado já não estava em obras, como antes. Hoje não havia andaime para a esconder enquanto ela decidia o que fazer.

 

Mas que podia ela fazer? Certamente, não poderia ter de volta aquele momento de há sete anos quando atravessara a rua, abrira o carrinho de bebé e deixara a sua bebé na soleira da reitoria. Se pudesse. ”Se pudesse”, pensou. Depois: ”Bom Deus, para onde posso voltar-me? Que lhe aconteceu? Quem ficou com a minha pequenina?” Lutou para afastar as lágrimas.

 

Um táxi com a luz acesa parou no meio do tráfego. Levantou a mão para fazer sinal ao motorista.

 

Para o Wyndham, na Cinquenta e Oito Oeste, entre a Quinta e a Sexta disse ao entrar para o banco de trás.

 

É a sua primeira visita a Nova Iorque? perguntou o motorista.

 

Não.

 

”Mas não venho cá há sete anos”, pensou. A primeira visita acontecera quando tinha 12 anos e o avô a tinha trazido de Chicago para um concerto de Midori no Carnegie Hall. Depois disso, trouxera-a duas vezes. ”Um dia tocarás naquele palco”, prometera-lhe solenemente. ”Tu tens o dom. Podes ser tão famosa como ela.”

 

Violinista cujas mãos tinham sido limitadas pela artrite, interrompendo-lhe precocemente a carreira, o avô ganhava a vida como professor e crítico de música. ”E apoiou-me”, pensou Sondra com tristeza... ”quando tinha 60 anos, recebeu-me.”

 

Ela tinha apenas 10 anos quando os pais tinham falecido num acidente. ”O avô dedicou-se a mim, ensinou-me tudo o que sabia sobre música”, lembrou a si mesma. ”E usou todo o dinheiro que lhe sobrava para me levar a ouvir os grandes violinistas.”

 

O seu talento proporcionara-lhe uma bolsa de estudo para a Universidade de Birmingham, e fora ali, na Primavera do seu ano de caloira, que conhecera Anthony del Torre, um pianista que estava de visita à universidade para dar um concerto. O que se seguira nunca deveria ter acontecido.

 

”Como poderia eu ter dito ao avô que me tinha envolvido com um homem que sabia que era casado?”, perguntou a si mesma agora. ”Não podia ter ficado com a bebé. Não havia dinheiro para pagar a uma pessoa que ajudasse. Tinha anos de estudo à minha frente. E, se lhe tivesse contado o que acontecera, ter-lhe-ia destroçado o ccoração.”

 

À medida que o táxi abria caminho pelo tráfego lento, Sondra recordou aqueles tempos difíceis. Pensou em como tinha poupado dinheiro para vir a Nova Iorque, recordou-se de ter ido para um hotel barato no dia 30 de Novembro, de comprar roupas de bebé e fraldas, os biberões e o leite em pó e o carrinho de bebé. Tinha localizado o hospital mais próximo do hotel e planeara ir para as urgências quando entrasse em trabalho de parto. É claro que teria de dar um nome e uma morada falsos. Mas a bebé viera tão depressa no dia 3 de Dezembro; não houvera tempo para ir para o hospital.

 

No início da gravidez tinha decidido que Nova Iorque era onde deixaria a bebé. Adorava a cidade. Desde a primeira visita ali com o avô, sabia que um dia viveria em Manhattan. Tinha-se sentido imediatamente em casa ali. Naquela primeira visita, o avô levara-a a São Clemente, a igreja que frequentara quando era garoto. ”Sempre que queria um favor especial, ajoelhava-me no genuflexório perto do retrato do bispo Santori e do seu cálice”, disse-lhe ele. ”Deles, recebi sempre consolo. Fui lá quando me apercebi de que não havia esperança para os dedos hirtos, Sondra. Foi a altura em que estive mais perto do desespero.”

 

Nos diversos dias antes de a bebé nascer, Sondra entrara e saíra sorrateiramente de São Clemente; tinha-se ajoelhado sempre naquele genuflexório. Observara o sacerdote; vira a bondade no rosto de monsenhor Ferris e sabia que podia confiar nele para encontrar um bom lar para a bebé.

 

”Onde está a minha bebé agora?”, pensou Sondra, desesperada. Estava em agonia desde o dia anterior. Logo que chegara ao hotel, tinha telefonado para a reitoria e dissera que era repórter e que estava a investigar a história da bebé que fora deixada junto à porta da reitoria no dia 3 de Dezembro, sete anos antes.

 

A surpresa na voz da secretária avisara-a do que estava para vir.

 

Uma bebé deixada na igrej a de São Clemente?! Lamento, mas está equivocada. Estou aqui há vinte anos e nunca aconteceu nada desse género.

 

O táxi virou para Central Park Sul. ”Eu, acordada, costumava sonhar que talvez as pessoas que tinham adoptado a bebé andassem a passeá-la aqui no carrinho, pelo parque”, pensou Sondra, ”onde a bebé podia ver os cavalos e as carruagens.”

 

Ao fim da tarde do dia anterior tinha ido à biblioteca pública e pedira o microfilme dos jornais de Nova Iorque do dia 4 de Dezembro de há sete anos. Naquele dia, a única referência feita a São Clemente era um artigo acerca de um roubo ocorrido naquela igreja, relatando que o cálice do bispo Santori, o pastor que fundara aquela igreja e a quem muitos dos devotos rezavam, fora roubado.

 

”Provavelmente, era por isso que a Polícia lá estava quando eu telefonei naquela noite; era por isso que o monsenhor estava na rua”, pensou Sondra, cada vez mais angustiada. ”E eu acreditei que era porque tinham encontrado a bebé.”

 

Então, quem tinha levado a bebé? Deixara-a num saco de compras de papel para que ficasse mais quente. Talvez alguns miúdos tivessem passado e empurrado o carrinho de bebé e o tivessem abandonado, sem sequer perceberem que estava lá uma criança. E se a bebé tivesse morrido de frio?

 

”Eu teria ido para a prisão”, pensou Sondra. ”Que é que isso teria feito ao avô? Ele está sempre a dizer-me que todos os sacrifícios que fez ao longo de todos estes anos valeram a pena devido ao que eu me tornei. Ele tem tanto orgulho por eu ir dar um concerto em Carnegie Hall no dia 23 de Dezembro. Foi sempre o sonho dele... primeiro para si próprio, depois para mim.”

 

A festa de caridade recheada de celebridades apresentá-la-ia aos críticos de Nova Iorque. Yo-Yo Ma, Plácido Domingo, Kathleen Battle, Emanuel Ax e a brilhante jovem violinista Sondra Lewis eram as atracções principais. Ela ainda tinha dificuldade em acreditar.

 

Chegámos, menina disse o motorista num tom de voz irritado. Atordoada, Sondra percebeu que a irritação do homem se devia ao facto de já lhe ter dito aquilo uma vez.

 

Oh, desculpe. O taxímetro marcava 3 dólares e 40 cêntimos. Ela procurou na carteira uma nota de cinco dólares. Deixe ficar assim disse ela. Abriu a porta e preparou-se para sair.

 

Não acredito que queira realmente dar-me uma gorjeta de quarenta e cinco dólares, menina.

 

Sondra olhou para a nota de cinquenta dólares que o motorista do táxi lhe estendia.

 

Oh, obrigada gaguejou ela.

 

É um grande erro, senhora. A sua sorte é que eu não me aproveito de mulheres bonitas.

 

Enquanto trocava a nota de cinquenta por uma nota de cinco dólares, pensou: ”É uma pena não ter estado por perto quando troquei a minha bebé pela opinião favorável do meu avô e pela minha própria hipótese de sucesso.”

 

Quando chegaram ao edifício na Avenida de Amesterdão anteriormente o Empório de Mobílias Goldsmith e Filho, que agora albergava a loja de roupas em segunda-mão da irmã Cordelia, Alvirah e Willy foram directamente para o primeiro andar.

 

Eram quatro horas da tarde e as crianças que vinham regularmente para a Apoio da Casa para aproveitar as facilidades após a escola estavam sentadas no chão com as pernas cruzadas, à volta da irmã Maeve Marie. A grande área tinha sido transformada numa espécie de auditório claro e alegre. O linóleo desbotado fora polido ao ponto de até as pranchas de madeira por debaixo dos espaços gastos brilharem.

 

As paredes estavam pintadas de amarelo-forte e decoradas com desenhos e recortes feitos pelas crianças. Radiadores antiquados assobiavam e faziam ruídos surdos, mas, graças a Willy e à sua habilidade quase mágica para reparar o irreparável, não havia dúvidas quanto ao calor que geravam.

 

Hoje é um dia muito especial estava a dizer a irmã Maeve Marie. Vamos começar a ensaiar para o nosso espectáculo de Natal.

 

Willy e Alvirah deslizaram para bancos perto da escada e observaram afectuosamente. Voluntária regular na Apoio da Casa, Alvirah era a responsável pela festa que se seguiria ao espectáculo, e Willy faria de Pai Natal.

 

Os olhos expectantes e vivos das crianças estavam presos na irmã Maeve Marie enquanto esta explicava:

 

Hoje vamos começar a aprender canções de Natal e de Chanukah que cantaremos no espectáculo. Depois vamos estudar as nossas deixas.

 

Não é maravilhoso Cordelia e Maeve terem o cuidado de que todos tenham um papel com falas? sussurrou Alvirah.

 

Toda a gente? Bem, esperemos que seja um papel com falas curtas replicou Willy.

 

Alvirah sorriu.

 

Não estás a falar a sério.

 

Queres apostar?

 

Chiu. Deu-lhe uma pancadinha na mão enquanto a irmã Maeve Marie lia os nomes das crianças que seriam escolhidas para dizer a história do Chanukah. Rachel, Barry, Sheila...

 

Cordelia apareceu vinda do andar inferior e, com o olhar treinado, observou as crianças. Ao ver que estava a instalar-se confusão, dirigiu-se a Jerry, o irrequieto menino de 7 anos que estava a beliscar o rapazinho com 6 anos que se encontrava sentado ao seu lado.

 

Bateu-lhe levemente.

 

Continua com isso e arranjo outro São José avisou ela, e depois voltou-se e foi para junto de Alvirah e Willy. Quando voltei havia outra mensagem de Pablo Torres disse. Tinha ido interceder a nosso favor, e acredito sinceramente que deu o seu melhor, mas diz que não conseguiu prorrogar o prazo para manter este lugar aberto. Creio que ficou tão feliz como eu ao ouvir falar na casa de Bessie. Ele conhece o quarteirão e disse que não vai haver problema nenhum para transferirmos o nosso centro para lá. Até poderemos receber mais miúdos.

 

Uma das voluntárias das vendas de roupa da loja subiu as escadas a correr.

 

Irmã, Kate Durkin está ao telefone e pede para falar com a senhora. Depressa; ela está a chorar convulsivamente.

 

1 Festa judaica das luzes, que comemora a purificação do Templo em 165 a. C. (N. da T.)

 

Não restavam quaisquer vestígios do almoço festivo que tinham digerido apenas algumas horas antes. Mas uma vez mais Willy, Alvirah, monsenhor Ferris e a irmã Cordelia sentaram-se à mesma mesa onde tinham comido mais cedo naquele mesmo dia. Kate estava com eles, a chorar baixinho.

 

Falei com os Bakers há uma hora contou ela. Disse-lhes que ia entregar a casa à Apoio da Casa e que não podia renovar-lhes o arrendamento.

 

E dizes que eles apareceram com um novo testamento? - perguntou Willy, incrédulo.

 

Sim. Disseram que Bessie tinha mudado de ideias, que não estava nem um pouco contente com a perspectiva de ter a casa destruída por um bando de miúdos. Também me disseram que ela tinha dito que as reparações que Vic fez e a pintura que ele fez mostravam que eles manteriam a casa num estado impecável, exactamente como ela queria. Sabem o quanto ela gostava desta casa.

 

”Ela casou com o juiz para ficar com ela”, pensou Alvirah secamente.

 

Quando é que ela o assinou?

 

Há apenas alguns dias, a 30 de Novembro.

 

Ela mostrou-me o testamento anterior quando eu vim visitá-la no dia 27 de Novembro disse monsenhor Ferris.

 

Na altura, pareceu-me bastante feliz com ele. Foi quando me pediu que me certificasse de que Kate ficava no apartamento depois de transferir a casa para o programa da Apoio da Casa.

 

Bessie deixou-me um rendimento, e, de acordo com o novo testamento, tenho autorização para viver no apartamento da moradia dos Bakers, sem pagar renda. Como se eu ficasse aqui com aquelas pessoas! As lágrimas corriam agora livremente pelo rosto de Kate. Não posso acreditar que Bessie me fez uma coisa destas. Deixar esta casa a estranhos como aquelas pessoas. Ela sabia que eu não gostava dos Bakers. E arranjar um apartamento noutro lado qualquer é impossível. Vocês sabem como são os preços em Manhattan.

 

”Kate está assustada e está zangada e está magoada”, pensou Alvirah. ”Mas pior ainda...” Olhou para o outro lado da mesa e pensou que, pela primeira vez desde que a conhecia, Cordelia parecia ter a idade que realmente tinha.

 

Captou o olhar da cunhada e disse:

 

Cordelia, nós vamos pensar em alguma coisa para manter a Apoio da Casa em funcionamento, prometo-te.

 

Cordelia abanou a cabeça.

 

Não em menos de quatro semanas disse ela. Não, a menos que a era dos milagres não tenha acabado.

 

Monsenhor Ferris tinha estado a analisar atentamente a cópia do testamento que Vic Baker apresentara a Kate.

 

Pela minha experiência, parece absolutamente legítimo comentou. Foi escrito no papel de carta de Bessie, nós sabemos que ela escrevia bem à máquina, e aquela é seguramente a assinatura dela. Dê uma vista de olhos, Alvirah.

 

Alvirah passou os olhos pela página e meia e depois releu-a cuidadosamente.

 

Não há dúvida de que parece da Bessie admitiu. Escuta, Willy. ”Uma casa é como um filho, e quando uma pessoa se aproxima do fim torna-se importante entregar essa casa à protecção daqueles que cuidem dela da forma mais adequada. Não posso sentir-me bem sabendo que a presença diária de muitas crianças pequenas mudará completamente a aparência e o carácter da casa prístina pela qual me sacrifiquei tanto.”

 

Ela está a referir-se ao facto de se ter casado com o juiz Maher? perguntou Willy. Ele até não era má pessoa.

 

Alvirah encolheu os ombros e continuou a ler.

 

Portanto, deixo a minha casa a Victor e a Linda Baker, que cuidarão dela de uma forma adequada à sua qualidade distinta.

 

Qualidade distinta, não há dúvida! escarneceu ela ao pousar o testamento em cima da mesa. Que poderia ser mais distinto do que dar uma ajuda às crianças? Voltou-se para o monsenhor. Quem testemunhou este papel miserável?

 

Dois dos amigos dos Bakers respondeu monsenhor Ferris. Vamos arranjar um advogado, é claro, apenas para saber se podemos fazer alguma coisa, mas não há dúvida de que me parece legítimo.

 

Willy tinha estado a observar Alvirah durante os últimos minutos.

 

As células do teu cérebro estão a trabalhar, querida. Vê-se disse ele.

 

Claro que estão reconheceu Alvirah enquanto levava a mão ao alfinete de lapela com a forma de um sol e ligava o microfone.

 

Este testamento pode parecer de Bessie de muitas maneiras, mas, Kate, alguma vez a ouviste usar a palavra ”prístina”?

 

Não, não tenho ideia disse Kate lentamente.

 

Que género de coisas é que ela dizia quando falava sobre a casa? perguntou Alvirah, continuando o seu exame ao novo testamento.

 

Oh, tu conheces a Bessie. Gabava-se de que se podia comer uma refeição de sete pratos no chão... esse género de coisas.

 

Exactamente disse Alvirah. Sei que parece mau, mas todos os ossos do meu corpo me dizem que este testamento é falso. E, Kate, Cordelia... prometo-vos que, se houver uma forma de o provar, eu vou descobri-la. Estou a tratar do assunto!

 

A irmã Maeve Marie tinha ficado na Apoio da Casa e continuara o ensaio para o espectáculo de Natal, embora no íntimo evocasse o pior cenário possível para explicar por que é que a irmã Cordelia, Willy e Alvirah tinham saído a toda a pressa para ver Kate Durkin.

 

”Alguma coisa correu mal, e Kate está perturbadíssima”, fora tudo o que Cordelia tivera tempo de dizer antes de sair.

 

Seria possível que Kate tivesse sido assaltada ou atacada?, perguntou Maeve Marie para si mesma. Sabia que por vezes os criminosos procuravam os obituários nos jornais e assaltavam a casa do falecido quando pensavam que os familiares enlutados se encontravam no funeral. A própria Maeve Marie já tinha sido polícia na cidade de Nova Iorque e tinha quatro irmãos polícias, por isso pensou instantaneamente em potencial actividade criminosa.

 

Todas as crianças da Apoio da Casa tinham recebido os seus papéis para o espectáculo, e tinham-lhes dito para ensaiarem as suas falas em casa. A história do Chanukah seria recitada no princípio do espectáculo, imediatamente seguida pela canção Chanukah.

 

A seguir viria a cena na qual era lido o decreto de César Augusto, a proclamar um recenseamento e a ordenar a todas as pessoas que se dirigissem para a aldeia dos seus antepassados para serem registadas.

 

A peça tinha sido escrita por Cordelia e Alvirah, e Maeve Marie elogiara-as ao incluir tantos papéis com falas naquela primeira cena. Os miúdos tinham adorado aquilo. Para além disso, as deixas eram ao mesmo tempo simples e conhecidas.

 

”Mas a aldeia do meu pai fica tão longe.”

 

”É uma viagem tão longa, e não há ninguém para cuidar das crianças.

”Temos de encontrar alguém, porque nada é mais importante do que as nossas crianças estarem em segurança.”

 

Cordelia tinha confessado que estava a tomar algumas liberdades em relação a determinadas partes do diálogo, mas convidara os inspectores de alojamento para o espectáculo e queria ter a certeza de que lhes fazia chegar a mensagem: Nada é mais importante do que as nossas crianças estarem em segurança.

 

As únicas crianças a quem não tinham sido atribuídas falas ao acaso eram os três reis magos, os pastores, a Virgem Maria e São José. Os que tinham sido escolhidos para esses papéis eram os melhores cantores do grupo e conduziriam o cântico na cena do estábulo.

 

Jerry Nunez, o mais reguila entre as crianças mais pequenas, seria São José, e Stellina Centino, uma menina estranhamente calma, de 7 anos, era Maria.

 

Stellina e Jerry viviam no mesmo prédio, e a mãe de Jerry ia buscar as duas crianças ao fim do dia.

 

A mãe de Stellina partiu para a Califórnia quando ela era bebé explicara a Sr.a Nunez às freiras. E o pai dela está muitas vezes fora. Ela foi criada pela tia-avó, Lilly, mas ultimamente Lilly tem estado muitas vezes doente, pobre mulher. E preocupa-se tanto. Não fazem ideia do quanto ela se preocupa com Stellina. Diz: ”Gracie, tenho oitenta e dois anos; tenho de conseguir viver mais dez anos para poder criá-la. É essa a minha oração.

”Stellina é uma criança tão bonita”, pensou Maeve enquanto esboçava o quadro final do espectáculo. Os cabelos louro-escuros encaracolados que estavam presos na nuca por um gorro caíam-lhe pelas costas. A sua compleição de porcelana era realçada pelos olhos castanho-escuros, emoldurados por pestanas pretas.

 

Jerry, que não era capaz de estar quieto, começou a fazer caretas para um dos pastores. Antes de Maeve Marie ter hipótese de o repreender, Stellina disse:

 

Jerry, quando és São José, tens de ser muito bom.

 

Está bem concordou Jerry imediatamente, e assumiu uma postura gelada, de um decoro quase exagerado.

 

O coro de anjos vai começar a cantar, os pastores vêem os anjos e escutam, e tu, Tommy, apontas para eles e... depois o que é que dizes? perguntou a irmã Maeve Marie.

 

Eu digo ”Diabos, os anjos infernais cantam” sugeriu o pequeno Tommy, de apenas 6 anos.

 

A irmã Maeve Marie esforçou-se para não sorrir. ”Não nos levem para a Estação da Pensilvânia”, pensou ela... ”Era o que os meus irmãos costumavam dizer-me para dizer.” Em casa, Tommy tinha um irmão mais velho que tinha a mania que era esperto; o mais certo era ele ter estado a ensaiar o irmão mais novo.

 

Tommy, tens de aprender como deve ser, e se não prestares atenção não podes ser o chefe dos pastores disse ela com firmeza.

 

O ensaio terminou às seis horas. Enquanto cumprimentava as crianças pelos seus desempenhos, Maeve Marie concluiu que, para uma primeira tentativa, não tinha corrido nada mal. E o melhor é que os miúdos estavam a gostar.

 

Ela também tinha gostado, embora o prazer que sentia ao ver as crianças aprenderem os seus papéis estivesse misturado com a preocupação e a sensação crescente de mal-estar: Onde estava Cordelia, e que é que correra mal?

 

Enquanto ajudava a procurar blusões e luvas e cachecóis, Maeve reparou que, como era costume, Stellina tinha pendurado cuidadosamente o seu blusão azul de Inverno de confecção impecável, que, segundo a menina explicara com orgulho, a nonna fizera para ela.

 

Às seis e meia, todas as crianças com excepção de Jerry e Stellina tinham ido para casa, depois de a maior parte ter esperado por um adulto ou um irmão mais velho que os acompanhasse. Às sete e um quarto, a irmã Maeve Marie trouxe os dois para baixo, para a loja de roupas em segunda-mão, que agora estava fechada. Cinco minutos depois, Gracie Nunez entrou esbaforida.

 

O meu patrão disse ela, a rolar os olhos. Tínhamos de terminar algumas saias. Duas das raparigas não apareceram.

 

Se tivesse dito que tinha dois miúdos para cuidar, teria ficado sem emprego. Deus a abençoe, irmã. Não faz ideia do que significa para mim saber que os miúdos estão em segurança convosco. Jerry, diz boa noite e obrigado à irmã. Stellina não precisava de que a avisassem.

 

Boa noite, irmã disse ela em voz baixa. E muito obrigada. Depois, com um sorriso, acrescentou: A avó está muito contente por eu ser a Virgem Maria. Ouve-me a recitar as minhas falas todas as noites, e quando está a ouvir chama-me Madonna.

 

Maeve olhou para a porta atrás deles e começou a apagar as luzes rapidamente. Pensou que Cordelia estava ainda com Kate Durkin ou parara para visitar alguma das companheiras mais velhas. Suspirou, preocupada com o género de notícia que lhe daria quando chegasse a casa.

 

Quando vestia o casaco, ouviu bater à janela da frente. Voltou-se para ver o rosto de um homem que aparentava ter quarenta e tal anos, com as feições iluminadas pela luz da rua. Maeve olhou para ele com uma sensação intuitiva de desassossego característica de uma ex-polícia.

 

Irmã, a minha menina ainda está cá? Estou a referir-me a Stellina Centino disse ele.

 

O pai de Stellina! Maeve dirigiu-se rapidamente para a porta e abriu-a. Com distanciamento profissional, estudou o homem de rosto magro e desconfiou de imediato da sua vaga beleza e da expressão tímida.

 

Lamento, Sr. Centino disse com frieza, não estávamos à sua espera. Stellina foi para casa com a Sr.a Nunez, como sempre.

 

Oh, sim, está bem disse Lenny Centino. Esqueci-me. O meu trabalho obriga-me a estar muito tempo fora da cidade. Muito bem, irmã. Voltaremos a ver-nos na próxima semana. Estou a pensar vir buscá-la algumas noites. Levá-la a jantar e talvez até ao cinema. Quero dar um prazer a Star. Estou orgulhoso dela. Está a transformar-se numa miúda muito bonita.

 

Deve orgulhar-se. Ela é uma criança linda em todos os aspectos disse Maeve Marie bruscamente. Deixou-se ficar parada à porta a vê-lo afastar-se. Sentiu alguma coisa perturbadora e inquietante naquele homem.

 

Ainda terrivelmente preocupada com a irmã Cordelia, verificou uma última vez as instalações, ligou o sistema de segurança e foi a pé para casa no meio da poeira de neve que prometia transformar-se noutra forte tempestade.

 

Encontrou a irmã Cordelia com a irmã Bernadette e a irmã Catherine, duas freiras idosas, aposentadas, que partilhavam o seu apartamento-convento.

 

Maeve, confesso que estou cansada até à alma disse Cordelia, e depois começou a contar-lhe a história do testamento novo deixado por Bessie Durkin Maher.

 

Imediatamente desconfiada, Maeve fez perguntas acerca do novo documento:

 

Para além da utilização da palavra ”prístina”, há mais alguma coisa que sugira que o testamento é falso?

 

Cordelia sorriu com ar triste.

 

Apenas o instinto de Alvirah disse.

 

A irmã Bernadette, que faria 90 anos no próximo aniversário, tinha estado a abanar a cabeça numa poltrona.

 

O instinto de Alvirah e uma coisa que o Senhor nos disse, Cordelia disse ela. Todas vocês sabem a que me refiro.

 

Sorrindo ao ver as expressões intrigadas de todas, ela murmurou:

 

”Ajudai as crianças e vireis para junto de mim.” Não creio que Bessie se tivesse esquecido disso, por muito orgulho que tivesse na casa.

 

Stellina guardava a chave do apartamento num bolso do casaco que tinha fecho. A nonna tinha-lha dado, mas fizera-a prometer que nunca contaria a ninguém que a tinha ali. Agora utilizava-a sempre quando chegava a casa para que a nonna não tivesse de se levantar se estivesse a descansar.

 

Dantes, quando chegava a casa depois da escola, encontrava a nonna a coser no pequeno quarto onde o pai dormia sempre que estava em casa. Então bebiam leite e comiam bolachas, e, se a nonna tinha roupas para entregar ou alguém a quem tinha de fazer uma bainha ou um vestido novo, Stellina acompanhava a tia-avó e ajudava-a a carregar os sacos e caixas para as casas das senhoras.

 

Mas ultimamente a nonna ia muito à clínica, e era por isso que a Sr.a Nunez sugerira que Stellina devia ir para a Apoio da Casa todos os dias depois da escola.

 

Algumas noites, se a nonna se sentia bem, Stellina chegava a casa e encontrava-a na cozinha, o jantar a cozinhar no fogão e o apartamento inundado pelo cheiro bom e quente de molho para massa. Mas esta noite encontrou a nonna deitada na cama, com os olhos fechados. No entanto, Stellina viu que ela não estava a dormir, porque os seus lábios moviam-se. ”Provavelmente está a rezar”, pensou Stellina. A nonna rezava muito.

 

Stellina inclinou-se para lhe dar um beijo.

 

Já cheguei, nonna.

 

A nonna abriu os olhos e suspirou.

 

Estava tão preocupada. O teu papá veio cá a casa. Disse que ia à Apoio da Casa. Disse que queria ir sair contigo. Eu não quero que saias com ele. Se ele aparecer lá alguma vez, a perguntar por ti, diz que a nonna quer que venhas para casa com a Sr.a Nunez.

 

O papá está em casa? perguntou Stellina, esforçando-se por esconder a perturbação que sentira ao ouvir a novidade. Não diria nem sequer à nonna que lamentava que ele tivesse reaparecido, mas lamentava. Sempre que o pai estava em casa, ele e a nonna discutiam muito. E Stellina também não gostava de sair com ele, porque por vezes visitavam pessoas e ele também discutia com elas. Às vezes as pessoas davam-lhe dinheiro e ele discutia por causa disso, dizendo normalmente que alguma coisa que ele lhes tinha dado valia muito mais do que o dinheiro que recebera.

 

A nonna apoiou-se no cotovelo, sentou-se e depois saiu da cama muito lentamente.

 

Deves estar com fome, cara. Vem. Vou fazer-te o jantar. Stellina estendeu o braço para ajudar a nonna a equilibrar-se enquanto esta se levantava.

 

És uma menina tão boa murmurou a nonna enquanto se encaminhava para a cozinha.

 

Stellina estava com fome, e a massa da nonna era sempre muito boa, mas esta noite foi difícil comer devido à preocupação que sentia pela tia-avó. A nonna parecia tão perturbada, e tinha a respiração acelerada, como se tivesse estado a correr.

 

O clique da fechadura da porta da frente disse-lhes que o papá tinha chegado a casa. A nonna começou imediatamente a franzir o sobrolho, e a boca de Stellina ficou seca. Sabia que em breve haveria uma discussão.

 

Lenny veio para a cozinha, correu para Stellina e pegou nela ao colo. Rodopiou com ela e beijou-a.

 

Star, filha disse ele. Senti a tua falta. Stellina tentou soltar-se. Ele estava a magoá-la.

 

Põe-na no chão, seu animal! gritou a nonna. Sai daqui! Mantém-te longe daqui! Não és bem-vindo! Vai-te embora! Deixa-nos em paz!

 

Lenny não demonstrou a sua raiva habitual. Limitou-se a sorrir.

 

Tia Lilly, talvez eu vá embora para sempre, mas se isso acontecer levo a Star comigo. Nem a senhora nem ninguém poderá impedir-me. Não se esqueça, eu sou o pai dela.

 

Depois, girou sobre os calcanhares e saiu, batendo com a porta atrás de si. Stellina percebeu que a nonna estava a tremer e que tinha gotas de suor na testa.

 

Nonna, nonna, está tudo bem disse ela. Ele não me vai levar daqui.

 

A nonna começou a chorar.

 

Stellina disse ela, se alguma vez eu adoecer e não puder ficar aqui contigo, não deves nunca ir com o teu pai. Peço à Sr.a Nunez para tomar conta de ti. Mas promete-me que nunca irás com ele. Ele não é um homem bom. Mete-se em sarilhos.

 

Enquanto tentava consolá-la, Stellina ouviu a tia-avó sussurrar:

 

Ele é o pai. Ele é o tutor. Bom Deus, bom Deus, que é que posso fazer?

 

Stellina perguntou a si mesma por que é que a sua nonna estava a chorar.

 

Como era habitual quando estava a tentar resolver um possível crime, Alvirah não dormiu o sono dos justos. Desde o momento em que ela e Willy apagaram a luz, a seguir ao noticiário das onze horas, a que tinham assistido na cama, Alvirah estava inquieta. Passou as seis horas seguintes a dormitar, com o sono leve repleto de sonhos vagos e inquietantes; depois acordou sobressaltada.

 

Por fim, às cinco e meia, decidiu ter pena de Willy, que tinha murmurado frequentemente durante o sono: ”Estás bem, querida?”, levantou-se, vestiu o seu robe favorito de chenille, prendeu o alfinete de lapela com o microfone minúsculo escondido, pegou na caneta e no bloco de apontamentos no qual mantinha o registo das investigações em curso, fez uma chávena de chá, instalou-se na pequena mesa de jantar com vista para o Central Park, ligou o microfone do alfinete e começou a pensar em voz alta.

 

Não me espanta muito que Bessie, que foi sempre uma verdadeira agarrada e uma chata em relação à casa, a tivesse deixado a pessoas que pensava que cuidariam dela de uma certa forma. Quero dizer, não é como se estivesse a correr com a irmã. Afinal de contas, ela garantiu que Kate ficaria com o apartamento do andar de cima, que, no fundo, é onde ela tinha pensado viver quando doasse a posse da moradia à Apoio da Casa.

 

O queixo de Alvirah espetou-se inconscientemente enquanto ela continuava.

 

Se bem me lembro, Bessie nunca gostou muito de crianças. Na verdade, recordo-me de que, quando alguém lhe perguntava se ela lamentava não ter tido uma família, ela respondia:

 

”Pessoas com filhos e pessoas sem filhos sentem pena umas das outras.”

 

Alvirah fez uma curta pausa, a pensar no quanto ela e Willy teriam adorado ter uma família. Agora, os netos teriam provavelmente a idade dos miúdos que vira ontem na Apoio da Casa. Abanou a cabeça. Bom, não importava. ”Não estava escrito”, pensou rispidamente.

 

Então vamos presumir continuou ela que Bessie ficou realmente preocupada com a perspectiva de ter miúdos a correr pela sua preciosa casa e a deixar dedadas nas paredes e arranhões nas madeiras, e, é claro, tomou consciência de que a mobília que polira desde que fora trabalhar para o juiz e a mulher há cinquenta anos seria substituída por parafernália de crianças.

 

Alvirah lembrou-se de verificar o microfone e carregou nos botões PARAR, REBOBINAR E TOCAR e escutou a gravação durante alguns momentos.

 

”Funciona”, disse para si mesma, satisfeita, ”e parece que a minha cabeça está a funcionar a todo o vapor. E está mesmo!”, decidiu.

 

Aclarou a garganta e recomeçou a récita indignada.

 

Nesse caso, a única pista verdadeira que temos até ao momento para mostrar que este novo testamento pode ser falso é que jamais alguém ouviu Bessie usar a palavra ”prístina”.

 

Pegou na caneta e procurou a primeira secção não usada do bloco de notas de folhas soltas, aquela que se seguia ao ”Caso da morte de Trinky Callahan”. No cimo da página, escreveu: ”O caso do testamento de Bessie”, e depois introduziu o primeiro item da sua investigação: ”Utilização da palavra ’prístina’”.

 

Alvirah começou então a escrever depressa. Testemunhas do testamento: Quem eram elas? Quais os seus antecedentes? Tempo: O testamento foi assinado no dia 30 de Novembro. Kate conhecia as testemunhas? Que teria pensado que se passava se estivesse em casa e as pessoas tivessem pedido para ver Bessie?

 

”Agora estou a usar a velha massa cinzenta”, pensou Alvirah. Recentemente, tinha andado a reler os livros de Hercule Poirot, escritos por Agatha Christie. Enquanto trabalhava nos crimes que ajudara a resolver, tinha-se esforçado por seguir o seu método de raciocínio dedutivo.

 

Ao fazer o último registo no seu plano de acção, Alvirah olhou para o relógio: sete e meia e decidiu que eram horas de fechar o bloco de apontamentos e desligar o microfone. Willy acordaria dali a pouco, e queria ter o pequeno-almoço pronto para ele.

 

”Depois, ainda hoje vou ter de me sentar sozinha com Kate para analisar estas questões com ela”, pensou.

 

Inesperadamente, ocorreu-lhe outra ideia e ligou de novo o microfone. Desde que escrevera aquele primeiro artigo para o New York Globe acerca da sua visita às Termas de Cypress Point, depois de ter ganho a lotaria, ela e o editor do jornal, Charley Evans, tinham-se tornado bons amigos. Ele podia mandar investigar a vida de Vic e Linda Baker imediatamente.

 

As pequenas células cinzentas estão mesmo a acordar anunciou ela. Chegou o momento de pôr os investigadores do Globe a desenterrar os podres dos Bakers. Aposto que esta não é a primeira vez que aquele par de vigaristas dá um golpe.

 

A missa das sete horas da manhã na igreja de São Clemente era frequentada habitualmente por cerca de trinta pessoas, essencialmente paroquianos idosos e reformados. Mas agora era a época do Advento, e o número de pessoas que estavam a assistir era pelo menos o dobro desse número. Na sua breve homilia, monsenhor Ferris falou acerca do Advento como a época da espera.

 

Estamos na época em que antecipamos o nascimento do Salvador disse ele. Antecipamos o momento, em Belém, em que Maria olhou pela primeira vez para o seu filho recém-nascido.

 

Um pequeno soluço vindo da congregação, perto do retrato do bispo Santori, prendeu a sua atenção. A jovem bonita em quem já havia reparado antes, do outro lado da rua defronte da reitoria, estava ali sentada. Tinha o rosto enterrado nas mãos, e os ombros estremeciam. ”Tenho de a fazer falar comigo”, pensou ele, mas depois viu-a enfiar a mão na bolsa, pôr uns óculos escuros, esgueirar-se pela nave lateral e sair.

 

Às nove e meia, Kate Durkin começou a observar todas as coisas que tinham ficado no quarto da falecida irmã. Decidiu que seria uma pena de bradar aos céus deixar as roupas de Bessie penduradas no roupeiro quando tantas pessoas precisavam de alguma coisa para vestir.

 

A cama de quatro colunas que Bessie partilhara durante oito anos com o juiz Aloysius Maher, e de onde tinha partido para o Criador, parecia de certa forma estar a censurá-la em silêncio enquanto ela tirava vestidos e casacos do roupeiro. Reparou que algumas das peças tinham pelo menos vinte anos. ”Bessie estava sempre a dizer-me que não valia a pena dá-los, porque talvez eu pudesse usá-los um dia”, pensou Kate. ”O que, aparentemente, ela não notou é que eu teria de alargar dez centímetros para qualquer um deles me servir. Surpreende-me que não os tenha deixado também a Linda Baker”, pensou amargamente.

 

A recordação das revelações inesperadas do dia anterior e o testamento-surpresa fizeram os olhos de Kate encherem-se de lágrimas. Enquanto afastava impacientemente uma lágrima, passou os olhos pela secretária de Bessie e a máquina de escrever captou-lhe a atenção. Pareceu-lhe que havia alguma coisa de que devia lembrar-se, mas o que seria?

 

Porém, não teve tempo para reflectir sobre o que poderia ter accionado o seu subconsciente; ouviu um som atrás de si, voltou-se e viu Vic e Kate parados à porta.

 

Oh, Kate disse Linda docemente. Ainda bem que está a tirar as coisas de Bessie do quarto para podermos ocupá-lo.

 

A campainha do andar de baixo tocou.

 

Eu vou abrir anunciou Vic Baker.

 

”Ainda não vão tomar conta de tudo”, disse Kate para si mesma enquanto o seguia rapidamente para o andar de baixo.

 

Um momento depois, Kate viu a figura bem-vinda de Alvirah nos degraus da entrada e ouviu-a perguntar:

 

Kate Durkin, a senhora da casa, está nestas instalações prístinas?

 

Lenny tinha voltado para o apartamento à meia-noite e fora em bicos de pés para o seu quarto de onde tinham sido tiradas quase todas as roupas que Lilly estava a arranjar e deitara-se.

 

Quando acordou, às nove horas da manhã seguinte, ficou surpreendido ao ouvir o som de vozes no outro quarto, e depois lembrou-se de que era sábado e Star não tinha escola.

 

Também significava que a tia Lilly provavelmente ainda estava na cama, se não tivesse ido à missa. Nunca mais tinha sido a mesma desde a queda grave no Verão passado. Ela tinha tentado fazê-lo acreditar que estava bem, mas ele ouvira-a dizer a uma vizinha que o médico pensava que o desmaio tinha sido provocado por uma pequena trombose. O que quer que o tivesse provocado, não restavam dúvidas de que vira uma grande diferença em Lilly desde a última vez que ali estivera, em Setembro.

 

Dissera-lhe que tinha estado na Florida, a trabalhar para uma empresa de entregas. Ela respondera que estava feliz por saber que ele tinha um emprego certo e que não precisava de se preocupar com Stellina. ”Claro, eu não preciso de me preocupar com Star”, pensou. ”A tia Lilly ficaria felicíssima se eu não voltasse a aparecer aqui.”

 

”Bom, parte do que lhe disse é verdade”, pensou ele enquanto pegava num cigarro. ”Eu fiz entregas. Entregas de pequenos pacotes que fazem as pessoas felizes. Mas estava a ficar muito arriscado manter-me naquela zona, por isso pensei em voltar para Nova Iorque, arranjar uns biscates e conhecer melhor a Star. Não passo de um pai solteiro, simpático e preocupado, a viver num edifício respeitável com uma tia velha”, pensou. ”E isso é bom, porque, desta forma, quando Lilly fechar os olhos de uma vez por todas, Star e eu poderemos por fim conhecer-nos verdadeiramente bem. Quem sabe? Talvez até consiga pô-la a trabalhar para mim.”

 

Reflectiu sobre a situação enquanto fumava o cigarro até à beata, esmagou-o numa bandeja com artigos de costura e depois resolveu acender outro para acalmar os nervos antes de ter de enfrentar a tia Lilly.

 

Mesmo quando Star era bebé e ele a levava a passear no carrinho, Lilly ficava sempre desconfiada. Lenny sorriu ao recordar todas as coisas boas que tinha conseguido entregar enquanto as pessoas sorriam e tagarelavam para o seu bonito bebé. Mas, quando chegava a casa, Lilly massacrava-o sistematicamente com perguntas. ”Para onde foste passear? Para onde é que a levaste? Os cobertores dela cheiram a fumo. Se a levaste a um bar, mato-te.” Andava sempre a chateá-lo.

 

No entanto, sabia que tinha de ser cuidadoso e não deixar a tia Lilly preocupada com a menina. Só lhe faltava que a tia Lilly metesse alguma ideia maluca na cabeça, como tentar encontrar a mãe de Star, a sua suposta namorada que tinha ido para a Califórnia.

 

Por intermédio de alguns dos seus conhecimentos, conseguira arranjar uma certidão de nascimento falsa para Star. A carta presa ao cobertor dizia que ela era de ascendência irlandesa e italiana, o que funcionara às mil maravilhas. ”Eu sou italiano e a mãe dela era irlandesa”, decidira Lenny, e dissera ao seu contacto para registar o nome da mãe como sendo Rose O’Grady. Pensara numa canção acerca de Rosie O’Grady, de que gostava quando era mais novo. Lembrou-se de que um miúdo irlandês da sua turma costumava cantá-la.

 

”Lilly teria um trabalho dos diabos para conseguir encontrar uma Rose O’Grady na Califórnia”, pensou Lenny... ”é um nome vulgar e um Estado muito grande...” Mas qualquer género de investigação era um sarilho potencial, e ele não ia permitir que isso acontecesse. Teria de começar a comportar-se mais como um pai preocupado se queria acalmar Lilly.

 

Depois de bocejar, de se espreguiçar, de coçar a omoplata e de empurrar para trás os cabelos lisos, escuros, Lenny levantou-se da cama. Vestiu umas calças de ganga, enfiou os pés nuns ténis, lembrou-se de vestir uma T-shirt e depois percorreu o corredor até ao quarto da tia.

 

A porta estava aberta e viu que, tal como esperava, Lilly estava recostada na cama. O quarto estava limpo mas atravancado, com a caminha estreita de Star entalada entre a cama e a parede.

 

Parou à porta. Star estava de costas voltadas para ele e Lilly escutava-a a recitar as falas do seu papel no espectáculo de Natal. Lilly não tinha reparado nele, por isso deixou-se ficar quieto enquanto Star, sentada de pernas cruzadas em cima da cama, com as costas direitas como uma vareta, os cabelos louro-escuros encaracolados a sair da fita, disse:

 

Oh, José, não importa que não nos tenham aceite na estalagem. O estábulo proporcionar-nos-á abrigo, e a criança não quer esperar mais para vir para junto de nós.

 

Bella, bella, Madonna disse Lilly. A Virgem Abençoada vai ficar muito contente por seres tu a representar a sua figura. Suspirou e apertou as mãos de Stellina. E hoje vou começar a coser uma túnica branca e um véu azul para ti, para usares no espectáculo, Stellina cara...

 

”Lilly tem aspecto de quem devia estar num hospital”, pensou Lenny, alarmado. Ela tinha a pele cinzenta, e reparou que tinha gotas de transpiração na testa. Preparava-se para lhe perguntar como se sentia, mas parou e franziu o sobrolho ao olhar para o cimo da cómoda. Estava coberta de relíquias religiosas e de estátuas da Sagrada Família e de São Francisco de Assis. Estava habituado àquelas imagens ela fora sempre super-religiosa, mas ainda lamentava que anos antes Lilly tivesse encontrado o cálice de prata de onde ele arrancara o diamante.

 

Na época, os jornais tinham feito um alarde enorme por causa do roubo, pois o cálice que tinha sido furtado pertencera a um bispo famoso. Ele percebera que não teria sido inteligente tentar contrabandeá-lo naquela altura; era um risco demasiado grande para ganhar os poucos dólares que a venda poderia render-lhe. Ao invés disso, escondera-o no fundo do roupeiro, com a ideia de se livrar dele em alguma ocasião, como por exemplo quando estivesse noutra cidade.

 

Fora então que Lilly tivera um dos seus ataques de limpezas e o encontrara, dissera que parecia um cálice, por isso ele inventara rapidamente uma história estúpida acerca de como pertencera à mãe de Star, Rose. Dissera a Lilly que o tio dela, um padre, lho tinha deixado quando falecera. Depois disso, é claro que Lilly o polira tanto que a prata reluzia como nova e o colocara junto das suas estátuas.

 

”Oh, bem, fê-la ficar feliz”, pensou Lenny, e o facto de não ter podido contrabandeá-lo naquela época provavelmente tinha-o livrado de se meter em sarilhos. No entanto, era mais do que certo que ninguém andava à procura dele agora, e perguntou a si mesmo quanto lhe renderia. Pelo menos Liliy não tinha encontrado o bilhete que fora pregado ao cobertor de Star. Tinha-o guardado bem guardado para o caso de alguém questionar de onde ela tinha vindo e ele ter de provar que não a tinha raptado.

 

Enfiara o bilhete numa fenda entre a prateleira de cima e a parede do roupeiro. Lilly nunca conseguiria lá chegar, mesmo quando usava um espanador de pó para limpar a prateleira.

 

Com um encolher de ombros, Lenny voltou-se e foi à cozinha ver o que havia no frigorífico e na despensa para o pequeno-almoço. ”Que miséria”, pensou. Obviamente, Lilly não tinha feito compras nos últimos tempos. Fez uma lista de coisas que eram precisas, pegou no blusão e voltou para o quarto dela.

 

Desta vez entrou no quarto com um grande ”Bom dia, como estão as minhas raparigas?”. Solicitamente, perguntou a Lilly como se sentia, recomendou a Star que fizesse os trabalhos de casa e anunciou que ia às compras.

 

Depois de ele ter recitado a lista de coisas que pretendia comprar, Lilly olhou para ele, desconfiada, mas depois cedeu e acrescentou alguns artigos.

 

Lá fora o ar estava gélido, e ele lamentou não ter posto o boné. Decidiu que primeiro iria ao café e tomaria um pequeno-almoço decente. Enquanto lá estivesse, faria um telefonema para avisar as fontes locais de que estava novamente disponível para lhes fazer recados, e estava confiante de que eles gostariam de saber a novidade.

 

”E, depois de a tia Lilly estar fora de cena, poderei integrar Star no meu negócio”, pensou Lenny. ”Ela vai ser uma grande sócia para mim... quem diria?”

 

”Sim, a trabalhar lado a lado, Star e o seu paizinho vão ter um negócio de entregas muito próspero”, prometeu a si mesmo.

 

Sondra sentiu os olhos do monsenhor a seguirem-na quando fugiu da igreja. Esforçando-se por disfarçar os soluços, correu até ao hotel. Depois de estar no quarto, tomou um duche, pediu café e em seguida pôs panos molhados nos olhos inchados. ”Tenho de parar de chorar”, disse para si mesma ferozmente. ”Tenho de parar de chorar!” O concerto era tão importante, e ela tinha de estar preparada.

 

Às nove horas tinha marcação no estúdio arrendado em Carnegie Hall, onde iria ensaiar durante cinco horas. Tinha de se controlar. Sabia que estava em baixo de forma desde o dia anterior, distraída, sem conseguir chegar perto do seu nível normal.

 

”Mas como posso pensar noutra coisa a não ser na bebé?”, era uma pergunta que Sondra não conseguia deixar de fazer a si mesma. ”Que aconteceu à minha menina?” Ao longo dos últimos sete anos, tinha-a imaginado a viver com um casal maravilhoso que talvez não tivesse um filho natural e que a amava e idolatrava. Mas agora não fazia ideia de onde poderia encontrá-la nem sequer se ela tinha sido encontrada.

 

Olhou-se ao espelho. ”Que horror!”, pensou. Tinha o rosto manchado e os olhos inchados. Chegou à conclusão de que não podia fazer mais nada em relação aos olhos, mas os dedos longos e delicados moveram-se rapidamente enquanto espalhava base pelo rosto para esconder os vestígios das lágrimas.

 

”Esta tarde vou passar novamente pela reitoria”, decidiu. Pelo menos aquele pensamento agiu como um calmante. Fora o último lugar onde vira a sua bebé, e sentia-se perto dela quando lá estava. E, quando rezava para o retrato do bispo Santori, parecia descer sobre ela um pouco daquela mesma paz que o avô lhe dissera sentir quando rezava ali muitos anos antes. A sua oração não era para ter a bebé de volta. ”Não tenho o direito de pedir isso”, pensou. ”Dá-me apenas uma forma de saber que ela está em segurança e que é amada. É tudo o que peço.

Tinha trazido um jornal da paróquia de São Clemente, e tirara-o do bolso do blusão do fato-de-treino. Sim, viu que havia uma missa às cinco horas. Iria a essa missa, mas chegaria um pouco atrasada. Dessa forma, o monsenhor não teria a oportunidade de tentar falar com ela. Depois, sairia discretamente antes de o serviço terminar.

 

Enquanto torcia os cabelos louro-escuros, apanhando-os na nuca, perguntou a si mesma se a bebé teria crescido a parecer-se ao menos um pouco com ela.

 

À frente de um bule de chá e de uma generosa fatia do bolo seco de Kate, que-se-desfazia-na-boca, Alvirah começou a elaborar um plano de acção com o objectivo de salvar a casa das garras dos Bakers.

 

Não é horrível pensar que temos de manter a voz baixa na nossa própria casa? perguntou Kate. Aqueles dois andam sempre metidos em todo o lado. Pouco antes de chegares, o meu coração quase parou quando me voltei e vi os dois a observarem-me. Foi por isso que agora fechei a porta. Depois olhou de relance para a cópia do testamento da irmã e suspirou. No entanto, acho que não posso fazer nada em relação a isso. Eles parecem ter tudo a favor deles.

 

Isso é o que vamos ver disse Alvirah com firmeza enquanto ligava o microfone do seu alfinete de lapela em forma de sol. Tenho um monte de perguntas para te fazer, por isso é melhor começarmos. Ora bem, o monsenhor veio visitar-te na sexta-feira, dia 27. Disse que não tinha dúvida nenhuma de que Bessie te deixaria a casa, embora soubesse que ela estava infeliz com a perspectiva de ter miúdos a dar cabo dela.

 

Kate acenou afirmativamente. Os seus suaves olhos azuis aumentados por óculos grandes, redondos estavam pensativos.

 

Tu conheces Bessie disse ela. Era tão determinada, e queixou-se imenso de como nada seria o mesmo aqui com um bando de miúdos a correr por todo o lado. Mas recordo-me de que depois riu levemente e disse: ”Bom, pelo menos eu não estarei cá para limpar depois de eles se irem embora... esse vai ser o teu trabalho, Kate.”

 

Isso foi na sexta-feira, dia 27, certo? perguntou Alvirah.

 

Como é que Bessie esteve durante o fim-de-semana?

 

Cansada. O coração estava a fraquejar, e ela sabia. Obrigou-me a tirar do roupeiro o vestido azul e a mandá-lo passar a ferro. Depois disse-me que quando chegasse a sua hora eu tinha de lhe pôr as pérolas. Disse que não eram valiosas, mas era a única jóia que o juiz jamais lhe oferecera, para além da aliança de casamento, é claro, e que não valia a pena deixar nenhuma delas a ninguém. Depois disse: ”Sabes, Kate, Aloysius era realmente um homem bom. Se me tivesse casado com ele quando era jovem, provavelmente teria tido uma família minha e não teria tido oportunidade de me tornar tão esquisita em relação a riscos e dedadas.

 

Isso foi no sábado? perguntou Alvirah.

 

Na verdade, no domingo.

 

Depois, na segunda-feira, supostamente assinou o testamento novo diante de testemunhas. Ouviste-a escrever à máquina antes disso? Que é que pensaste quando as testemunhas entraram para a assinatura?

 

Eu nunca os vi replicou Kate, a abanar a cabeça. Sabes como me ofereço sempre para ajudar algumas horas no hospital nas tardes de domingo e de segunda-feira. Bessie nem sequer quis ouvir dizer que eu não ia. Parecia bastante bem quando saí... estava sentada no andar de baixo, na saleta, na sua cadeira preferida, a ver televisão. Lembro-me de que disse que ficaria muito satisfeita por se ver livre de mim durante algumas horas. Que estava a sentir-se bem e farta de me ver preocupada.

 

E onde é que ela estava quando chegaste a casa?

 

Ora, ainda estava na saleta, a ver uma das suas telenovelas.

 

Está bem. Agora, o que quero fazer a seguir é falar com aquelas duas testemunhas. Alvirah estudou a última página do testamento. Fazes alguma ideia de quem são?

 

Nunca ouvi falar neles replicou Kate.

 

Bem, pretendo ir visitá-los. A morada deles está aqui, por baixo das assinaturas. James e Eileen Gordon, na Setenta e Nove Oeste. Alvirah levantou os olhos quando Vic Baker abriu a porta da sala de jantar sem bater.

 

Estão a tomar um chazinho? perguntou ele com uma jovialidade forçada.

 

Estávamos disse Alvirah.

 

Só queria dizer-vos que vamos sair para comer qualquer coisa, mas quando voltarmos teremos muito prazer em ajudá-la a trazer as roupas da querida Bessie para baixo.

 

Nós vamos cuidar bem das coisas de Bessie disse-lhe Alvirah. Não precisa de se preocupar com nada.

 

A expressão alegre desapareceu do rosto de Vic Baker.

 

 

Por acaso, ouvi o que acabou de dizer acerca de falar com as testemunhas. Sr.a Meehan disse ele bruscamente. Terei o maior prazer em dar-lhe o número do telefone deles. Vai ver que são pessoas extremamente responsáveis. Procurou no bolso. Por acaso, tenho o cartão deles.

 

Baker entregou o cartão a Alvirah, depois virou-se e saiu, atirando com a porta atrás de si com toda a força. As duas mulheres voltaram-se e observaram a porta a abrir-se lentamente.

 

Não fica fechada esclareceu Kate. Ele é um daqueles fulanos habilidosos que gosta de se gabar, e obviamente impressionou Bessie. A verdade é que sabe usar um pincel, mas não mais do que isso. Apontou para a porta. Reparaste que ele não rodou o puxador quando entrou? Empurrou a porta para a abrir. Ela estava muito justa, por isso ele tirou-lhe um bocado. Agora nem sequer fecha. Aconteceu a mesma coisa na saleta... essa porta passou a ser basculante. Fungou.

 

Alvirah só estava a escutá-la parcialmente. Estava a observar o cartão que Vic Baker lhe dera.

 

É um cartão profissional disse ela. Os Gordons têm uma agência imobiliária. Que me dizes disto?

 

Ele pode não saber reparar portas, mas não há dúvida de que sabe fazer um testamento disse Alvirah a Willy no fim daquela tarde, quando ele chegou a casa e a encontrou sentada de forma abatida na sala de estar do apartamento. Jim e Eileen Gordon parecem-me pessoas de bem.

 

Como é que eles foram testemunhas do testamento?

 

Segundo eles, quase por acaso. Parece que Vic Baker tem andado a ver moradias e condomínios desde que se mudou para cá, há praticamente um ano. Dizem que saíram com ele algumas vezes, para ver casas. Ele tinha um encontro com eles às três horas, no dia 30, para ver uma casa qualquer na Rua Oitenta e Um e, enquanto lá estavam, aparentemente, Linda telefonou-lhe para o telefone celular. Disse-lhe que Bessie não estava a sentir-se bem e que precisava de testemunhas para assinar o novo testamento. Vic pediu aos Gordons se não se importavam. Então os Gordons acompanharam-no e... agora vem a parte mais perturbadora... eles dizem que Vie e Bessie quase desmaiaram quando Bessie lhes leu o testamento antes de o assinar.

 

Se os Gordons andavam a mostrar casas a Baker, devem ter verificado a situação financeira dele disse Willy. Perguntaste sobre isso?

 

Eles informaram-se. Por muito incrível que pareça, os Bakers estão bem de vida. Tentou esboçar um sorriso. Cordelia manteve-te ocupado hoje?

 

Quase não tive tempo de respirar. Rebentou um cano na loja de roupas em segunda-mão e só o consegui arranjar depois de desligar a torneira de segurança geral. Foi bom ser sábado e não haver miúdos lá em cima.

 

Bom, dentro de pouco tempo isso não será um problema

 

disse Alvirah com um suspiro. E, a menos que as minhas células cinzentas desencantem alguma coisa que me escapa, essas crianças deixarão de ter um lugar para estar. Levantou a mão e rodou o microfone do alfinete de lapela. Com destreza, rebobinou a última parte da cassete e depois carregou no botão PLAY.

 

A voz agradável de Eileen Gordon era clara e fácil de compreender.

 

A última coisa que a Sr.a Maher disse foi que agora morreria em paz, sabendo que a sua casa se manteria prístina.

 

Aposto que aquela miserável palavra ”prístina” é a chave

 

disse Alvirah enquanto a expressão de abatimento lhe abandonava o rosto. Qual é a expressão que o monsenhor usa sempre que suspeita de alguma coisa?

 

”Algo está podre no reino da Dinamarca” replicou Willy. É isso que queres dizer?

 

Isso mesmo. No entanto, neste caso, creio que há alguma coisa podre no Upper West Side disse Alvirah. E vou continuar a fazer visitas aos Gordons e a conversar com eles até descobrir o que é. Acho que eles são boas pessoas, mas mesmo assim é coincidência a mais eles serem testemunhas. Talvez sejam muito bons actores, e eu estou a cair na treta deles.

 

Por falar em treta disse Willy, vamos jantar cedo. Estou esfomeado.

 

Iam a sair a porta às seis e meia quando monsenhor Ferris telefonou.

 

Kate veio à missa disse ele. Contou-me que Alvirah foi falar com as testemunhas. Como correu a conversa?

 

Alvirah fez-lhe um breve resumo e assegurou-lhe que não ia desistir. Depois, antes de se despedir, acrescentou:

 

Aquela jovem que vimos ontem esteve novamente aí?

 

Hoje veio cá duas vezes. Esta manhã veio à missa e depois saiu durante o sermão. Parecia estar muito perturbada com alguma coisa. Depois, avistei-a na missa das cinco horas, mas também não tive ocasião de falar com ela. Alvirah disse-me que achava que ela lhe parecia conhecida. Tem alguma ideia de quem é ou de onde a poderá ter visto antes? Eu gostava muito de tentar ajudá-la.

 

Tenho andado a dar voltas à cabeça, mas até agora não consegui lembrar-me replicou Alvirah, infeliz. Mas dê-me tempo. O que se passa é que tenho a certeza de já ter visto a fotografia dela em algum lado, mas não consigo lembrar-me onde.

 

Duas horas mais tarde, quando ela e Willy passavam por Carnegie Hall a caminho de casa depois do jantar, ela parou no meio de uma frase e apontou.

 

Willy, olha. É aquela rapariga.

 

Um cartaz numa vitrina a anunciar o concerto de Natal incluía fotografias dos artistas que iriam tocar, e entre eles contavam-se Plácido Domingo, Kathleen Battle, Yo-Yo Ma, Emanuel Ax e Sondra Lewis.

 

Alvirah e Willy aproximaram-se para ler a legenda por debaixo da fotografia de Sondra Lewis. Até mesmo nesta fotografia ela tinha os olhos tristes e não sorria.

 

Por que estaria uma rapariga prestes a tocar pela primeira vez no Carnegie Hall tão infeliz? perguntou Willy, extremamente intrigado.

 

Obviamente, tem alguma coisa a ver com São Clemente disse-lhe Alvirah. E também pretendo descobrir tudo o que se passa com ela.

 

Quando era muito pequenina, Stellina tinha perguntado à nonna por que é que não tinha uma mãe como as outras crianças. A nonna respondera que a mãe de Stellina a tinha deixado com o pai porque quando ela nascera a mãe tinha ficado muito doente e tivera de partir para a Califórnia para tentar ficar melhor. A nonna dissera que a mãe ficara muito triste por ter de a deixar, que prometera voltar para vê-la se ficasse melhor. Mas a nonna também disse a Stellina que isso poderia nunca acontecer e que, pessoalmente, acreditava que Deus tinha chamado a mãe de Stellina para o Céu.

 

Depois, quando Stellina ia entrar para o jardim infantil, a nonna tinha-lhe mostrado o cálice de prata que encontrara no roupeiro do pai e explicara que o tio da mãe, um sacerdote, o tinha dado à mãe de Stellina e que ela o deixara para Stellina. A nonna explicara que o cálice tinha sido usado para celebrar a missa e que estava abençoado de uma forma muito especial.

 

O cálice tornou-se um talismã para Stellina, e por vezes, quando estava prestes a adormecer e estava a pensar na mãe, a desejar muito poder vê-la, pedia à nonna se podia pegar nele.

 

Na altura, a nonna brincava com ela por causa disso.

 

Os bebés deixam as fraldas de estimação, Stellina. Agora que já és uma menina crescida e que vais para a escola, decides que precisas de uma tinha ela dito. Mas sorria sempre e nunca impedia que Stellina pegasse no cálice. Umas vezes em inglês, outras em italiano, e frequentemente numa mistura das duas línguas, reconfortava esta menina maravilhosa, a única dádiva com que o sobrinho inútil a presenteara. ”Ah, bambina”, sussurrava a nonna, ”vou cuidar sempre de ti.”

 

Stellina não contava à avó que quando entrelaçava os dedos em volta do cálice era como se conseguisse sentir as mãos da mãe ainda a segurá-lo.

 

No domingo à tarde, enquanto observava a nonna a coser o véu azul que iria usar no espectáculo, Stellina teve uma ideia. Perguntaria à nonna se podia levar o cálice para a festa e fingir que, no papel de Virgem Maria, estava a dá-lo ao bebé Jesus.

 

A nonna protestou.

 

Oh, não, Stellina. Pode perder-se, e para além do mais a Virgem Maria não tinha prata para dar ao bebé Jesus. Não estaria certo.

 

Stellina não insistiu, mas sabia que tinha de encontrar uma forma de convencer a nonna a deixá-la levar o cálice para o estábulo. Sabia exactamente a oração que diria quando o levasse para lá: ”Se a minha mãe ainda está doente, por favor fá-la ficar boa, e por favor, por favor, pede-lhe para me visitar só uma vez.”

 

Na Vigésima Quarta Esquadra de Polícia de Manhattan, o detective Joe Tracy ficou muito interessado ao saber que Lenny Centino tinha voltado a aparecer. Recordava-se de Lenny de uma investigação em que estivera envolvido alguns anos antes. Não tinha conseguido ligá-lo directamente ao crime, que envolvera venda de droga a menores, mas tinha a certeza de que Lenny era um dos culpados.

 

O parceiro de Tracy sublinhara que o cadastro de Lenny tinha apenas coisas sem importância apenas alguns assaltos por arrombamento, coisas de arraia-miúda, mas Tracy estava convencido de que isso era apenas porque Lenny não tinha sido apanhado.

 

É claro que ele cumpriu algum tempo de prisão declarou Tracy, detenção juvenil há vinte e cinco anos, cadastro eliminado, mas na minha opinião isso só serviu para ele aprender truques novos para o seu ofício. Foi detido algumas vezes, mas nunca acusado formalmente. Nunca conseguimos relacioná-lo com alguma coisa concreta, mas eu tive sempre a certeza de que ele andava a distribuir drogas a miúdos de liceu. Lembro-me de o ver a empurrar a filha no carrinho de bebé por toda a zona ocidental. Mais tarde, ouvi dizer que a miúda era apenas um disfarce... que ele escondia o material no carrinho de bebé, mesmo ao pé da criança.

 

Tracy atirou a pasta fina de Lenny Centino para cima da secretária.

 

Muito bem, agora que ele está de volta vou mantê-lo debaixo de olho. Se o vir com aquela menina, talvez o prenda. Ele vai acabar por cometer um erro, e quando isso acontecer pretendo estar presente.

 

Na segunda-feira de manhã, quando Alvirah e Willy estavam a tomar o pequeno-almoço, ela atendeu o telefone e ficou encantada ao ouvir a voz agradável do seu editor, Charley Evans, anunciar que, embora nunca tivessem sido condenados, Vic e Linda Baker eram sem dúvida falsificadores de categoria.

 

Espere um segundo interrompeu ela. Quero gravar tudo para não me esquecer de uma única palavra. Correu para o quarto, pegou no alfinete de lapela em forma de sol, ligou o microfone e voltou apressadamente. Muito bem, Charley, pode falar disse enquanto encostava o microfone ao telefone.

 

Os Bakers têm o hábito de cair sobre pessoas idosas com bens disse Chaley. O caso mais recente deu-se em Charleston, o ano passado, onde ficaram amigos de um homem de idade que valia alguns milhões de dólares. Aparentemente, na altura, o velhote estava zangado com a filha, furioso por causa do fulano com quem ela tinha casado, mas nunca deu a entender que pretendia deserdá-la. De acordo com testemunhas, esses dois vigaristas não pararam de lhe encher os ouvidos com histórias acerca da filha e como ela mal podia esperar para pôr as mãos no dinheiro dele. Adivinhe o que aconteceu?

 

Apareceram com um novo testamento sugeriu Alvirah.

 

Acertou. O velhote deixou à filha alguns dólares e as jóias da mãe. Tudo o resto foi para os Bakers. Eles foram suficientemente espertos para não ficar com todo, percebe? Isso teria sido mais fácil de contestar.

 

E quanto às testemunhas do testamento? perguntou Alvirah.

 

Cidadãos irrepreensíveis, todos eles.

 

É o que eu esperava disse ela com um suspiro.

 

Encontrei mais dois ou três casos semelhantes nos últimos dez anos, mas já percebeu a ideia. Todos os testamentos foram contestados, mas de todas as vezes os Bakers ganharam facilmente.

 

Pois desta vez não vão conseguir declarou Alvirah.

 

Espero que não, para bem da sua amiga, mas vou dar-lhe um conselho gratuito: diga-lhe para ir ao Tribunal de Homologações, na Rua Chambers, 31, e preencher um documento de intenção de contestar devido a influência indevida. De outro modo, o testamento pode ser homologado num espaço de tempo que poderá ir de alguns dias a alguns meses, dependendo do juiz. Se ela entregar o documento, pelo menos estará a atrasar a transferência dos bens. Quem é o executor?

 

Vic Baker.

 

Eles pensaram em tudo comentou Chaley. Muito bem, Alvirah, se precisar de ajuda pode contar comigo, e não se esqueça... quero uma coluna sobre isto.

 

Pode ter a certeza de que vai ter uma, e já tenho o título

- disse Alvirah. - Escreva: ”DESMASCARAR OS CANALHAS”.

 

Charley riu-se.

 

Ao ataque, Alvirah. Aposto tudo em si.

 

Enquanto tomavam a terceira chávena de chá, Alvirah contou a conversa a Willy.

 

Ora, querida admoestou-a Willy, o teu queixo está espetado dez centímetros. Sei que vais fazer tudo o que estiver ao teu alcance, mas tens de me prometer que não vais correr perigo. Estou a ficar demasiado velho para me preocupar com coisas como seres empurrada de varandas ou afogada em banheiras.

 

Os Bakers não são do tipo de pessoas que fazem coisas desse género disse Alvirah, sem dar muita importância às palavras dele. Não são violentos, apenas subservientes. Que é que Cordelia arranjou para ti hoje?

 

Apoio da Casa disse Willy, a abanar a cabeça. Sabes, querida, tenho de concordar com os inspectores. Aquele lugar está a cair aos pedaços. Em relação às reparações, pouco se pode fazer, é como se se usasse pastilha elástica e cola Elmer’s. Depois disso, é preciso chamar a maquinaria pesada. Mas, de qualquer maneira, também vou estudar uma hora de piano. A Cordelia ouviu-me martelar A Noite Inteira quando fui lá reparar aquela fuga ontem, e agora decidiu incluir aquele cântico no encerramento do espectáculo e quer que eu toque. Tem uma ideia maluca de que, ao integrar-me no espectáculo, os miúdos verão que se pode aprender alguma coisa nova em qualquer idade.

 

Isso é maravilhoso! disse Alvirah, com o rosto brilhante.

 

Bem, eu acho que é uma ideia horrível disse Willy, mas os miúdos não são críticos, e os pais só vão estar interessados nos próprios filhos, por isso talvez ninguém repare em mim... Afinal de contas, que é que tu andas a tramar?

 

Vou visitar Kate. Sabes como é. Quando alguém morre, toda a gente aparece durante alguns dias, e depois do funeral a pessoa que ficou acorda e apercebe-se de que nunca mais vai ver aquele rosto nem ouvir aquela voz. É então que os amigos são verdadeiramente necessários, e ainda mais no caso de Kate, pois tem de suportar aqueles vigaristas ao mesmo tempo que sente a falta de Bessie. E depois de a ver vou fazer uma visita ao monsenhor Tom para lhe dizer que sei quem é a jovem que tem andado em São Clemente.

 

Com a sua eficiência habitual, Alvirah arrumou a cozinha, fez a cama, tomou um duche e depois vestiu-se, escolhendo um dos fatos saia-casaco simples mas elegantes que a sua amiga, a baronesa Min von Schreiber, a ajudara a escolher na última viagem que Min fizera ao Leste. Como Min afirmava constantemente, se deixada sozinha Alvirah gravitava para estilos e cores extremamente inadequados, uma opinião que Alvirah aceitava humildemente.

 

Quando se preparava para sair, parou o bastante para escutar Willy ao piano, a treinar A Noite Inteira. Orgulhosa, reparou que ele estava a tocar cada vez melhor. Os seus lábios formaram as palavras em silêncio enquanto ele cantava os versos. O verso ”Eu mantenho a minha vigília de amor” pareceu-lhe quase uma oração. ”Bem, vou manter uma vigília por ti, Kate”, pensou.

 

Ao chegar a casa, ficou chocada ao encontrar uma Kate calma mas resoluta, que anunciou que, após pensar muito, tinha decidido encontrar outro lugar para viver, nem que fosse apenas um quarto mobilado. Disse que se Bessie queria que os Bakers ficassem com a casa, então que assim fosse. As intenções de Bessie tinham sido claras, e deixara a Kate apenas o usofruto do apartamento e uma renda.

 

Mas eu não posso viver na mesma casa que estas pessoas, Alvirah disse Kate. Sempre que penso em Bessie, doente como estava, sentada à secretária e a escrever aquele testamento e depois a certificar-se de que arranjava testemunhas para virem cá a casa quando tinha a certeza de que eu estaria fora... bem, sinto uma dor tão grande que é como se estivesse a ser espetada com uma faca.

 

Acabas de me lembrar de uma coisa em que eu não tinha pensado, Kate. O testamento foi assinado na segunda-feira passada, dia 30 de Novembro, certo? Mas estava datado de 28 de Novembro.

 

Exactamente. Foi um dia depois de Bessie ter dito ao monsenhor que não gostava da ideia de transformar a casa num centro para crianças. O que quer dizer que, mesmo quando estava a brincar comigo sobre o assunto durante o fim-de-semana, a dizer que o problema de lidar com todas aquelas crianças ia ser meu, estava sentada àquela máquina de escrever enquanto eu saía.

 

Estiveste muitas vezes fora no fim-de-semana passado? perguntou Alvirah.

 

Só saí para ir à missa da manhã no sábado e no domingo. Mas Bessie escrevia muito depressa à máquina. Sabes bem como ela tinha orgulho nisso. Podia ter dactilografado aquele testamento em vinte minutos.

 

Oh, Kate! exclamou Alvirah. Sentia o coração apertado enquanto contemplava a velha amiga.

 

Kate parecia ter perdido todo o espírito lutador. Tinha os ombros afundados num sinal de derrota, e a faísca que dava uma força resistente ao seu pequeno corpo parecia ter-se extinguido. Alvirah sabia que não valeria a pena argumentar com ela ela tinha tomado uma decisão. O melhor que podia fazer era ganhar tempo.

 

Faz-me só um favor, Kate pediu ela. Tenho andado a fazer uns telefonemas para obter informações sobre os Bakers. Já descobri que são vigaristas conhecidos. Só nunca foram presos... ainda! Dá-me até ao Natal para provar que Bessie não escreveu aquele testamento, e, embora pareça que o assinou, aposto que se o fez nunca soube o que estava a assinar.

 

Os olhos de Kate abriram-se muito.

 

Oh, Alvirah, não há forma de provar isso.

 

Há, sim disse Alvirah com uma confiança que não sentia. E já sei por onde começar. Depois de falar com monsenhor Tom, vou à agência imobiliária de James e de Eileen Gordon dizer-lhes que ando à procura de um condomínio. Aqueles dois vão ver-me imensas vezes nas próximas semanas. Talvez façam parte do esquema dos Bakers, ou talvez lhes tenha sido atirada areia para os olhos, mas, seja como for, vou descobrir qual das hipóteses está correcta.

 

Lenny Centino tinha conseguido manter-se fora da prisão por não ser demasiado ganancioso. As entregas de drogas que fazia eram insignificantes e sem grande frequência, por isso, com excepção de ter atraído a indesejável atenção do detective Joe Tracy, nunca estava muito alto na lista de qualquer agente da Polícia. Para além do mais, nunca tinha vendido drogas, limitava-se a entregá-las, o que, se fosse apanhado, implicaria uma sentença mais leve. As drogas tinham sido pagas antes, por isso também nunca tinha coisa alguma a ver com o dinheiro. Entre traficantes e consumidores, tinha ganho a reputação de ser de confiança e de nunca roubar a mercadoria, por isso era muito requisitado.

 

No entanto, como gostava de limitar o envolvimento com o sempre perigoso tráfico de droga, Lenny trabalhava esporadicamente para uma loja de vinhos conhecida. Ao fazer entregas para eles, podia observar os apartamentos das pessoas. Era um ladrão dotado atacava sempre quando tinha a certeza de que as pessoas estavam fora e nunca se preocupava com mais nada a não ser jóias e dinheiro.

 

A sua carreira serôdia e muito satisfatória de roubar caixas de esmolas e caixas de oferendas de velas votivas terminara com o roubo em São Clemente. O alarme silencioso e o rapto involuntário de Star tinham-no feito perceber que estava a chegar demasiado perto do abismo. Agora até as igrejas pequenas estavam a ficar suficientemente refinadas para colocar alarmes silenciosos.

 

Fora por isso que, com confiança na sua habilidade para sobreviver, tinha feito saber aos seus contactos que estava de volta à cidade e uma vez mais disponível. Enquanto tomava umas cervejas na segunda-feira à tarde, tinha-se gabado do que estivera a fazer desde Setembro, a ajudar a pôr em marcha uma vigarice de uma empresa de computadores falsa. O que Lenny não sabia é que um polícia a trabalhar sob disfarce se tinha infiltrado no grupo onde ele estava a gabar-se e, quando o polícia preenchera o relatório na esquadra, o detective Tracy tinha-o lido e agora mandara vigiar Lenny, o que incluía uma escuta telefónica. O que a Polícia não sabia é que Lenny temia uma situação desse género e tinha uma fuga planeada. Tinha algum dinheiro do último trabalho, juntamente com uma identidade falsa e um esconderijo preparado no México. Mas, desde que voltara para Nova Iorque, Lenny tinha acrescentado outro elemento ao cenário da fuga. Era óbvio que a tia Lilly estava a morrer. Ele gostava verdadeiramente de Star, e ela fora sempre uma mais-valia para a sua operação. Ela era igualmente o seu amuleto de boa sorte, portanto tinha decidido que se tivesse de sair do país levá-la-ia consigo.

 

E como dizia muitas vezes para si mesmo: ”Eu sou o papá dela, e não estaria certo abandoná-la.”

 

Não falada, mas talvez ainda mais pertinente, era a certeza de Lenny de que não era provável que um homem a viajar com uma menina parecesse um bandido a fugir de alguém.

 

Sondra tinha prometido que não voltaria a aproximar-se de São Clemente. ”Se o avô não viesse assistir ao concerto, eu iria à Polícia agora mesmo”, pensou. ”Não posso continuar a viver assim. Se alguém encontrou a bebé naqueles poucos minutos e leu o bilhete e decidiu ficar com a menina e ela está a ser criada em Nova Iorque, então pode existir uma certidão de nascimento falsa. Teria sido bastante fácil para qualquer pessoa dizer que a bebé tinha nascido em casa. Naquele hotel, ninguém soube que eu dei à luz... nunca tive uma única dor.”

 

Toda a dor viera depois, reflectiu enquanto permanecia acordada no domingo à noite. Quando a alvorada começou a romper, adormeceu finalmente. Depois de dormir apenas algumas horas, acordou com uma dor de cabeça terrível.

 

Com indiferença, levantou-se e vestiu o fato de treino. ”Talvez uma corrida acabe com a dor de cabeça”, decidiu. ”Hoje tenho de conseguir concentrar-me no ensaio. Fiz tantas coisas mal... não quero acrescentar à lista da ruína o concerto para o avô.

Tinha prometido a si mesma que hoje ficaria em Central Park, mas quando se aproximou da extremidade norte do parque os seus pés viraram para oeste. Minutos depois, estava defronte da igreja de São Clemente, do outro lado da rua, a recordar uma vez mais o momento em que segurara a sua bebé pela última vez.

 

Tinha aquecido um pouco e a rua estava mais movimentada, por isso percebeu que não deveria ficar parada para não correr o risco de chamar a atenção sobre si. A neve que fora de um branco-árctico na quinta-feira estava agora quase completamente derretida, e os sedimentos que restavam estavam cobertos de fuligem.

 

”Naquela noite estava muito frio”, recordou, ”e a neve nas bermas da estrada estava coberta por uma camada de gelo. Aquele carrinho de bebé em segunda-mão tinha uma mancha de lado. Eu esfreguei o interior, mas estava tão terrivelmente imundo que detestei deitar lá a bebé até mesmo por um minuto. Alguém no hotel tinha deitado fora o saco de compras que usei para uma protecção extra. Lembro-me de que tinha o logotipo da Sloan’s. Comprei os biberões e o leite em pó na farmácia Duane Reade.”

 

Sondra sentiu um toque no ombro. Sobressaltada, voltou-se para ver o rosto preocupado de uma mulher um pouco gorducha e ruiva com cerca de 60 anos.

 

Você precisa de ajuda, Sondra disse Alvirah suavemente. E sou eu que vou ajudá-la.

 

Apanharam um táxi para Central Park Sul. Uma vez no apartamento, Alvirah fez um bule de chá e colocou pão na torradeira.

 

Aposto que ainda não comeu nada hoje disse ela.

 

Uma vez mais à beira das lágrimas, Sondra acenou afirmativamente em sinal de concordância. Sentia uma espécie de irrealidade, misturada com uma grande sensação de alívio. Agora, que estava neste apartamento estranho com esta mulher desconhecida, sentia-se bem.

 

Sabia que ia contar a Alvirah Meehan sobre o bebé, e sentia apenas pela presença de Alvirah que esta arranjaria uma forma de a ajudar.

 

Vinte minutos depois, Alvirah disse-lhe com firmeza: Agora escute, Sondra, a primeira coisa que tem de fazer é parar de se martirizar. Isso aconteceu há sete anos; você era uma garota. Não tinha mãe. Sentiu-se responsável pelo seu avô. Teve a sua bebé sozinha, mas planeou tudo e planeou bem. Tinha roupas e biberões e leite em pó preparados, e poupou todos os tostões para que a bebé pudesse nascer em Nova Iorque porque sabia que um dia queria viver aqui. Vestiu a recém-nascida e pô-la, confortável e quente e em segurança, num carrinho de bebé à porta da reitoria da igreja. Tinha escolhido a igreja que salvara o seu avô quando ele soube que a artrite lhe estava a roubar o dom que tinha como violinista. Telefonou para a reitoria menos de cinco minutos depois, e pensou que a bebé tinha sido encontrada por alguém de lá.

 

Sim disse Sondra, mas suponha que alguns miúdos empurraram o carrinho de bebé por brincadeira. Suponha que a bebé morreu gelada, e quando alguém a encontrou não quis ser responsabilizado... suponha...

 

Suponha que umas pessoas boas a encontraram e ela é agora a luz das vidas delas disse Alvirah com uma convicção que não sentia. ”Pessoas boas teriam chamado a Polícia e depois tentado adoptá-la”, pensou. ”Não teriam mantido o assunto em segredo durante todos estes anos.”

 

Não posso pedir mais do que isso disse Sondra. Não mereço mais do que isso, porque não sei...

 

Você merece muito mais do que pensa. Dê algum valor a si mesma disse-lhe Alvirah com dureza. Agora tem de continuar a ensaiar violino e espantar os melómanos de Nova Iorque. Deixe o trabalho de detective comigo. Depois, espontaneamente, acrescentou: Sondra, tem consciência de como é bonita quando sorri? Tem de sorrir mais vezes, está a ouvir?

 

Enquanto bebiam outra chávena de chá, a pouco e pouco, fez Sondra falar.

 

Consegue imaginar o que foi para o meu pobre avô, que vivia sozinho, crítico de música e professor de violino, ver-se de repente com uma criança de dez anos para criar? perguntou Sondra com um sorriso a bailar-lhe nos lábios. Ele tinha um apartamento muito bonito de quatro assoalhadas num bom edifício no lago Michigan, em Chicago, mas mesmo assim era minúsculo, e ele não podia comprar um maior.

 

Que é que ele fez quando você se mudou? perguntou Alvirah.

 

Mudou a vida toda por minha causa. Transformou o estúdio num quarto e deu-me o quarto grande. Sempre que ia para fora, contratava alguém para vir tomar conta de mim e para cozinhar. Devo acrescentar que o avô adorava sair com os amigos para jantar, e, é claro, ia a muitos concertos. Havia muitas coisas que ele gostava de fazer e das quais desistiu por minha causa.

 

Está novamente a ter-se em pouca conta disse Alvirah, interrompendo. Aposto que, antes de ir viver com ele, ele se sentia sozinho. Aposto que gostou muito de a ter com ele.

 

O sorriso de Sondra alargou-se.

 

Talvez, mas o reverso de me ter como companhia foi uma perda enorme de liberdade, uma perda de todos os pequenos luxos que tinha tido. O sorriso extinguiu-se. Acho que de certa forma o compensei. Sow uma boa executante, uma boa violinista.

 

Bingo! disse Alvirah. Finalmente está a dizer uma coisa boa acerca de si mesma.

 

Sondra riu-se.

 

Sabe, Alvirah, a senhora é muito eloquente.

 

É o que o meu editor diz concordou Alvirah. Muito bem, estou a perceber o que aconteceu. A Sondra sentiu a responsabilidade de ser bem sucedida, ganhou a bolsa de estudos, conheceu uma pessoa atraente e dotada, tinha acabado de fazer dezoito anos e apaixonou-se por ele. Provavelmente, ele disse-lhe que estava louco por si, e, encaremos as coisas como elas são, você estava vulnerável. Não tinha mãe nem pai, nem irmãos e irmãs. Ao invés disso, tinha um avô que naquela época estava a começar a ficar doente. Acertei?

 

Sim.

 

O resto já sabemos. Vamos saltar para o presente. Ninguém tão bonito e talentoso como você vive num vazio. Tem namorado?

 

Não.

 

Uma resposta rápida de mais, Sondra, o que significa que tem um. Quem é ele?

 

Seguiu-se um silêncio prolongado.

 

Gary Willis. Faz parte do Conselho da Orquestra Sinfónica de Chicago disse Sondra com relutância. Tem trinta e quatro anos, oito anos mais velho que eu, muito bem sucedido, muito bonito, muito simpático e quer casar comigo.

 

Até aqui, tudo bem declarou Alvirah. E a Sondra não gosta dele?

 

Podia gostar. Mas não estou preparada para o casamento. Neste momento, sou um poço de emoções... estou consciente disso. Tenho receio de, se me casar, nunca conseguir olhar o meu filho no rosto sem saber que deixei a irmã dele dentro de um saco de compras ao frio. Gary tem sido muito paciente e compreensivo comigo. Vai conhecê-lo. Ele vai trazer o meu avô para o concerto.

 

Apenas pelo que me disse, já gosto dele disse Alvirah.

 

E não se esqueça de que hoje em dia noventa por cento das mulheres têm de conciliar maridos ou famílias com as carreiras. Eu sei que foi isso que fiz.

 

Sondra observou o apartamento mobilado com gosto e contemplou a vista espectacular de Central Park.

 

Que é que Alvirah faz?

 

Actualmente, a minha carreira é vencedora de lotaria, solucionadora de problemas e colunista convidada do New York Globe. Até há três anos era uma mulher-a-dias espectacular.

 

A risada de Sondra indicou que ela não sabia bem se devia acreditar ou tomar o que ela dissera como uma piada, mas Alvirah não entrou em mais pormenores. ”Mais tarde teremos tempo de sobra para a história da minha vida”, pensou.

 

Levantaram-se ao mesmo tempo.

 

Tenho de ir ensaiar disse Sondra. Hoje chega um ensaiador que tem uma tal reputação que músicos como eu sentem arrepios na espinha.

 

Bom, vá e dê tudo o que tem para dar disse Alvirah.

 

Eu vou pensar numa forma de tentar encontrar o rasto dessa bebé sem ninguém saber quem está a fazê-lo. Telefono-lhe todos os dias, prometo.

 

Alvirah, o avô e Gary chegam na semana antes do concerto. Eu sei que o avô vai querer ir a São Clemente. Vai ficar tristíssimo quando souber que o cálice do bispo Santori desapareceu. Mas, no caso de encontrarmos monsenhor Ferris quando lá estivermos, não se importa de falar com ele primeiro para lhe contar a conversa que tivemos e para lhe pedir que não conte ao avô que eu tenho andado muito na igreja?

 

Eu trato de tudo disse Alvirah imediatamente.

 

Ao atravessarem a sala de estar, Sondra parou junto ao piano, onde o Livro de John Thompson para Iniciados Maduros se encontrava na prateleira, aberto em A Noite Inteira.

 

Parou e tocou a melodia com uma mão.

 

Tinha-me esquecido completamente desta canção; é encantadora, não é? Sem esperar por uma resposta, tocou-a de novo e cantou em voz baixa: Dorme, meu menino, que a paz esteja contigo, A noite inteira; Anjos da Guarda o Senhor mandará, A noite inteira.

 

Calou-se.

 

Não deixa de ser apropriada, não é, Alvirah? A voz falhou-lhe. Espero que a minha bebé tenha encontrado um anjo da guarda naquela noite. De repente, pareceu que ia chorar.

 

Eu telefono-lhe prometeu Alvirah enquanto Sondra saía à pressa.

 

Já não precisas mais de mim, Cordelia? perguntou Willy, cansado. As duas sanitas estão a funcionar, mas sugiro que digas aos miúdos para não atirarem montes de papel higiénico lá para dentro. Pensem naqueles canos como se estivessem num lar de terceira-idade. Que é precisamente onde eu sinto que devia estar neste momento acrescentou com um suspiro.

 

Disparate replicou a irmã Cordelia rispidamente. Ainda és um homem novo, William. Espera até teres a minha idade. Os irmãos tinham uma diferença de dez anos.

 

No dia em que tiveres cem anos, Cordelia, continuarás a ter mais energia que um foguetão disse Willy.

 

Por falar em energia, eu devo assistir a um ensaio do espectáculo. Vem comigo, vamos para cima. Daqui a pouco os miúdos vão para casa disse a irmã Cordelia agarrando Willy por um braço e empurrando-o para as escadas.

 

Eram seis e um quarto, e o ensaio do espectáculo estava no auge. Tinham chegado à última cena, no estábulo. Uma Stellina de rosto solene estava ajoelhada diante de um Jerry Nunez de olhos felizes, debruçada sobre o cobertor dobrado que substituía o berço do Cristo bebé.

 

Os reis magos, liderados por José Diaz, aproximavam-se pela esquerda, e os pastores vinham da direita.

 

Mais devagar, todos vocês ordenou a irmã Cordelia. Levantou, e depois baixou, as mãos. Um passo de cada vez, e não empurrem. Jerry, mantém os olhos baixos. Deves estar a olhar para o bebé, não para os pastores.

 

Willy, toca a canção de encerramento disse ela.

 

Deixei a pauta em casa, Cordelia. Não pensei ficar aqui tanto tempo.

 

Bem, então canta-a. Deus abençoou-te com uma bela voz. Começa a cantar muito baixinho, como fazes quando estás ao piano, e depois aumenta o volume. As crianças vão juntar-se a ti, começando com Stellina e Jerry, depois os reis magos e os pastores e por fim o coro.

 

Willy sabia perfeitamente que não adiantava discutir com a irmã.

 

Dorme, meu filho começou.

 

José, se pregares uma rasteira a Denny penduro-te no estendal a secar disse a irmã Cordelia, interrompendo. Podes seguir, recomeça, Willy.

 

Quando chegou a ”Anjos da Guarda Deus te mandará”, Stelinna e Jerry entraram. As suas vozes jovens, doces e verdadeiras combinaram com o tenor de Willy quando cantaram juntos os dois versos seguintes.

 

”Que voz maravilhosa que aquela miúda tem”, pensou Willy enquanto escutava Stellina. ”Aposto que tem um timbre perfeito.” Observou os olhos castanhos, solenes, da menina. ”Uma criança com sete anos não devia ter um ar tão triste”, pensou enquanto os reis magos e os pastores, e depois todos os alunos, se juntavam à música: ”De mansinho avançam as horas da noite, Colina e vale mergulhados no sono, E eu mantendo a minha vigília amorosa, A noite inteira.”

 

No fim, Willy, a irmã Cordelia, a irmã Maeve Marie e as várias voluntárias aplaudiram vigorosamente.

 

Sejam tão bons daqui a duas semanas no espectáculo, e ficaremos felizes disse Cordelia às crianças. Agora vistam os casacos e ponham os chapéus e não os baralhem todos. Os vossos pais vêm buscar-vos, e não devemos fazê-los esperar. Estiveram a trabalhar o dia inteiro e estão cansados. Voltou-se para Willy. E devo acrescentar que eu também estou - disse.

 

Sinto-me bem ao saber que também tu tens alguns limites

 

disse Willy. Muito bem, já que passei aqui tanto tempo, posso muito bem ficar mais um pouco e ajudar-vos a limpar.

 

Vinte minutos depois, ele e as duas freiras estavam à porta, à espera de que a Sr.a Nunez viesse buscar Stellina e Jerry. Quando ela chegou, sem fôlego e contrita, eles não a deixaram desculpar-se.

 

A irmã Cordelia puxou-a para um lado.

 

Como está a tia-avó de Stellina? perguntou.

 

Nada bem sussurrou a Sr.a Nunez, a abanar a cabeça.

 

Aposto que antes de a semana acabar vai ter de ir para o hospital. Benzeu-se rapidamente. Bem, pelo menos o pai voltou. Já é alguma coisa, suponho. Fungou, como se quisesse deixar clara a pouca fé que depositava no pai de Stellina.

 

Depois de a Sr.a Nunez e as crianças saírem, a irmã Cordelia disse:

 

Aquela pobre criança. A mãe abandonou-a quando ela era recém-nascida. Vai perder a tia-avó que a criou e parece que o pai não aparece muito. Pelo que sei, não vale um tostão furado.

 

Vale menos do que isso declarou a irmã Maeve Marie.

 

Na sexta-feira à tarde veio buscar Stellina depois de ela já ter saído. Pareceu-me um pouco duvidoso, por isso fiz algumas investigações acerca dele junto dos rapazes da esquadra.

 

Continua com uma mão no trabalho antigo, detective? - perguntou Willy.

 

Não faz mal nenhum. Segundo os rumores, parece que o Sr. Centino pode estar a meter-se em grandes sarilhos.

 

O que significa que aquela criança encantadora pode acabar num lar acolhimento, ou numa série de lares de acolhimento disse a irmã Cordelia tristemente. E dentro de algumas semanas já nem sequer poderemos continuar a tomar conta dela. Suspirou. Muito bem, já chega. Vai para casa, Willy. Foste óptimo e podes vir buscar o cheque no final da semana.

 

Muito engraçadinha. Ele sorriu, aceitando a piada do costume. Depois de saírem do edifício, ficaram juntos no passeio durante alguns instantes. Vocês as duas bebam um copo de vinho e descansem disse Willy. Eu levava-vos a jantar fora, mas não falo com Alvirah desde que ela telefonou ao meio-dia a dizer que ia à caça de condomínios, por isso não faço ideia de quando vamos comer.

 

Cordelia ficou espantada.

 

Estás a brincar. Pensei que vocês adoravam a casa onde vivem. Ora, Alvirah disse sempre que teria de ser arrastada para fora daquele apartamento. Não me digas que ela está a pensar realmente em comprar outro.

 

É claro que não garantiu-lhe Willy. Está apenas a investigar aquele casal da agência imobiliária que foi testemunha de Bessie a assinar o testamento. Ela espera que, se sair bastante com um ou com o outro, poderá descobrir que houve alguma coisa suspeita naquele testemunho. E agora vou andando, mas vocês fizeram um trabalho estupendo. Aquele espectáculo vai ficar uma maravilha. Deviam convidar o presidente da Câmara... ele que veja o que vocês estão a fazer.

 

O cumprimento não contribuiu em nada para alegrar os rostos preocupados das duas freiras, e quando chegou a casa Willy encontrou uma Alvirah igualmente preocupada à sua espera.

 

Dei cabo dos pés a ver condomínios com Eileen Gordon disse ela.

 

Descobriste alguma coisa?

 

Sim, ela é uma pessoa encantadora, e apostaria a minha vida em como não tiraria uma gota de água que não lhe pertencesse, mesmo que estivesse a morrer de sede.

 

Então isso quer dizer que provavelmente os Bakers enganaram-na a ela e ao marido disse Willy, num tom prático.

 

Sim, mas eu esperava tanto que eles também fossem vigaristas. É mais fácil apanhar vigaristas do que convencer pessoas inocentes de que foram enganadas disse Alvirah com um suspiro.

 

A associação de monsenhor Ferris com a igreja de São Clemente começara quarenta anos antes, quando era um sacerdote recém-ordenado. Sete anos depois tinha sido transferido para uma paróquia no Bronx; depois disso, fora designado para a equipa do cardeal no escritório da catedral. Há dez anos, voltara para São Clemente na qualidade de pastor, e era ali que esperava passar o resto da sua vida activa. No íntimo, reconhecia que São Clemente era o lar do seu coração; tinha muito orgulho na igreja na sua história e na posição importante que ocupava na comunidade. O único incidente que manchara o seu domínio, e que ainda o preocupava passados sete anos, era o roubo do cálice do bispo Santori.

 

”Culpo-me a mim próprio porque aconteceu no meu turno”, dizia a padres amigos que sabiam até que ponto ele sentia a perda. ”Tinha havido avisos sobre uma série de assaltos a igrejas, mas nós não tínhamos prestado atenção suficiente. Claro que tínhamos alarmes nas janelas e nas portas, mas não chegou. Devíamos ter instalado um detector de movimento. Falámos sobre o assunto, mas nunca tomámos uma decisão.

E, embora o armário que continha o cálice do bispo tivesse sido equipado com um alarme silencioso, naquela situação o dispositivo tinha-se tornado inútil. Quando a Polícia chegara, o ladrão e o cálice já tinham desaparecido.

 

A perda afectava sempre monsenhor Tom com uma intensidade especial na época do Natal, porque fora durante o Advento que o cálice tinha desaparecido. E, embora ele e os paroquianos rezassem constantemente pela sua volta, as orações eram especialmente fervorosas nesta altura do ano.

 

Alguns santos já nasceram santos e não são feitos santos Tom Ferris acreditava nisso. Acreditara sempre que nascem com uma bondade interior que torna a sua presença sentida, seja em que circunstância for. Tinha conhecido o bispo Santori perto do fim da vida deste, depois de ele se ter retirado dos deveres oficiais. O bispo vivera em São Clemente até à sua morte.

 

Ferris reflectiu que o homem tinha uma aura de santidade; a mesma aura que rodeara o cardeal Cooke.

 

Na segunda-feira à noite, quando começou a trancar a igreja, o monsenhor passou pelo confessionário. ”O ladrão que roubou o cálice tinha de estar ali escondido”, pensou. ”Se o que ele queria era o diamante do cálice, só posso rezar para que o cálice não tenha sido deitado para um contentor de lixo.”

 

O monsenhor não acreditava verdadeiramente que o cálice tivesse sido destruído. De facto, recentemente tinha sido invadido pelo pensamento fantasioso de que o roubo fora efectuado porque o cálice era necessário noutro sítio, que, exilado de São Clemente, que era a sua casa, estava a desempenhar uma missão mais grandiosa.

 

Ao sair da igreja e trancar a porta atrás de si, deu por si a olhar automaticamente para o outro lado da rua, para ver se a jovem mulher misteriosa estava lá de novo hoje. Quando viu que não estava, sentiu pena por alguns instantes; estava com esperança de que ela voltasse. Tinha tido muitas vezes a experiência de pessoas a rondar as proximidades, relutantes para se confessarem a ele e que por fim arranjavam coragem e se aproximavam. ”Monsenhor, preciso de ajuda”, era como começavam normalmente.

 

A governanta tinha-lhe deixado o jantar no forno. O seu coadjutor tinha ido passar a noite fora, por isso Tom Ferris teve o prazer de ler sem interrupção enquanto comeu a refeição simples e bebericou um copo de vinho. Depois de terminar, limpou cuidadosamente os pratos e colocou-os na máquina de lavar loiça, recordando com algum divertimento os velhos tempos em que o pastor normalmente conhecido entre os seus seis ou sete coadjutores como ”o patrão” reinava como monarca absoluto e a reitoria tinha uma governanta que sabia cozinhar comidas de sonho e fazia alegremente, e servia, deliciosas refeições três vezes por dia.

 

Foi quando estava a tomar o café que a parte tranquila do seu serão terminou com um telefonema de Alvirah.

 

Monsenhor Tom disse ela, tenho uma amiga com um problema, e, embora ache que talvez tenha encontrado uma solução, preciso de falar com o senhor sobre o assunto. É que estou a escrever uma coluna acerca de uma rapariga que, há sete anos, deu à luz e deixou a sua bebé recém-nascida no patamar de uma reitoria. Fez uma pausa. E estou a contar-lhe isto porque foi na sua reitoria.

 

Isso nunca aconteceu, Alvirah!

 

Aconteceu sim, mas o senhor nunca soube de nada. Eu estou convencida de que aconteceu de verdade. De qualquer maneira, o que interessa é que o meu editor vai colocar a história na primeira página, e como temos de proteger a identidade da mãe queremos que os telefonemas sejam direccionados para si, porque, afinal de contas, foi na sua reitoria. Vou oferecer uma grande recompensa por informações sobre o bebé. O senhor só precisa de atender os telefonemas que forem feitos.

 

Mais devagar, Alvirah.

 

Não posso. Este é o momento perfeito para este tipo de história ser conhecido. Para começo de conversa, as pessoas prestam mais atenção a este género de histórias de interesse humano na altura do Natal, e para além disso a criança fez sete anos a semana passada. Estou a escrever o artigo neste preciso momento e preciso de saber se posso usar o seu nome como intermediário.

 

Primeiro, gostaria de ler o que escreveu disse ele cautelosamente.

 

Claro que sim. Apreciamos muito a sua colaboração, e lamento ter de me impor desta forma, mas com o artigo e a recompensa vamos seguramente receber muita atenção. Esperamos do fundo do coração localizar a menina, e pensamos que, se não dissermos quem é a mãe, nenhum moralista tentará fazer dela um exemplo e mandá-la prender por abandono ou abuso de menores. A questão é a seguinte: é melhor o senhor não saber quem ela é?

 

Deixe-me reflectir sobre isso disse ele.

 

Para mim não constitui um problema replicou Alvirah. Se for interrogada, posso alegar sigilo jornalístico.

 

”Existe uma maneira de eu não poder ser obrigado a revelar a identidade dela”, pensou Ferris, ”mas o segredo da confissão não pode ser utilizado por conveniência.

Espere um pouco, Alvirah. Disse que isso aconteceu há praticamente sete anos. Está a falar da noite em que o cálice foi roubado? Foi nessa altura que o bebé foi deixado?

 

Sim, aparentemente foi. Quando a mãe telefonou para a reitoria, atendeu um padre idoso. Ela pediu para falar consigo, e ele disse-lhe que a Polícia estava lá por causa de uma grande confusão e que o senhor estava lá fora com os polícias. Ela pensou que o senhor já tinha encontrado a bebé.

 

Ele tomou uma decisão.

 

Escreva a sua história, Alvirah. Eu ajudo-a. Monsenhor Ferris desligou o telefone com uma sensação de assombro. Seria possível que a pessoa que roubara a bebé tivesse visto o ladrão a sair da igreja e fosse capaz de fornecer por fim uma pista sobre a sua identidade? Ao ajudar esta mãe infeliz, o monsenhor podia conseguir também encontrar uma resposta para a dúvida que tanto o perturbava e que era a de saber o que tinha acontecido ao cálice.

 

Sempre que entrava no quarto de Bessie, não restavam quaisquer dúvidas na mente de Kate Durkin de que algo estava levemente fora do sítio, mas continuava a não perceber o que era. Exasperada com a sensação incómoda, rezou por fim a Santo António para que a ajudasse a descobrir algo de cujo paradeiro ela não conseguia recordar-se. Durante a oração admitiu ao santo que normalmente lhe pedia ajuda para algo tangível, como os óculos ou a sua única jóia ”boa”, o anel com um diamante minúsculo num engaste Tifany que fora o anel de noivado da mãe.

 

Dessa vez, Santo António levara duas semanas para a ajudar a lembrar-se de que o tinha escondido num frasco de aspirinas vazio quando ela e Bessie tinham ido fazer um passeio a Williamsburg numa excursão para cidadãos seniores.

 

”Sabes, Santo António”, explicou ela enquanto guardava roupa interior primorosamente dobrada numa caixa vazia em cima da cama, ”eu acredito que Alvirah pode ter razão e que é possível que os Bakers possam ter enganado Bessie e ter-me roubado esta casa. Claro que não sei ao certo se ela tem razão, mas estou preocupada porque de cada vez que entro neste quarto e olho para a escrivaninha com a velha máquina de escrever de Bessie soa uma campainha de aviso na minha cabeça.

Kate viu uma malha num par de collants dobrados.

 

Pobre Bessie disse em voz alta. Quase não conseguia ver, mas não me deixou levá-la ao oculista para comprar uns óculos novos. Disse que era um desperdício de dinheiro comprá-los quando provavelmente não chegaria ao Natal.

 

”Bem, tinha razão”, pensou Kate com um suspiro enquanto abria a gaveta seguinte e tirava as camisas de noite de flanela que tinham sido o uniforme de dormir de Bessie.

 

Céus murmurou ela, a pobre Bessie deve ter guardado esta sem reparar que a tinha usado. Abanou a cabeça enquanto passava a mão pela linha de pó-de-arroz na gola rendada de uma camisa de dormir cor-de-rosa com flores. Vou lavá-la antes de a guardar murmurou. Bessie teria gostado.

 

Abanou a cabeça. ”Não, na verdade não estou surpreendida por ela a ter experimentado e depois despido”, disse para si mesma. ”Ela nunca gostou da renda. Dizia que lhe arranhava o pescoço. O que me surpreende é que a tenha vestido.”

 

Ainda tinha a camisa de dormir na mão quando um som a fez voltar-se. Uma vez mais, Vic Baker estava à porta, a observá-la.

 

Estou a preparar as coisas da minha irmã para serem mandadas para instituições de caridade disse asperamente. A menos que você e a sua mulher também exijam as camisas de dormir dela.

 

Sem responder, Vic foi-se embora. ”Aquele homem assusta-me”, pensou Kate. ”Tem alguma coisa sinistra. Vou gostar de sair daqui.”

 

Nessa noite foi à máquina de lavar roupa e ficou surpreendida ao constatar que a camisa de dormir cor-de-rosa às flores não estava na pequena pilha de roupa para lavar que ela tinha reunido e deixado ali.

 

”Devo estar a ficar maluca”, pensou Kate. ”Juraria que a trouxe para baixo. Oh, afinal devo tê-la guardado. Agora tenho de procurar em todas aquelas malditas caixas até a encontrar.”

 

Na sexta-feira, dia 11 de Dezembro, a história de Alvirah acerca da bebé deixada à porta da reitoria de São Clemente sete anos antes apareceu na primeira página do New York Globe. Praticamente no minuto em que os jornais chegaram às bancas, começaram a chover telefonemas no número especial da reitoria que monsenhor Ferris tinha mandado instalar apressadamente.

 

A sua secretária de há muitos anos atendia os telefonemas, anunciando que estava a gravar todas as conversas, e passava ao monsenhor aquelas que pareciam mais prováveis de merecer um maior aprofundamento. Porém, quando telefonou a Alvirah na segunda-feira de manhã, o monsenhor parecia cabisbaixo.

 

Das mais de duzentas chamadas que recebemos até agora, não há uma única que mereça qualquer crédito disse ele. Infelizmente, muitas são de pessoas indignadas a dizer que não sentem a menor pena de uma pessoa que deixou um recém-nascido ao frio, mesmo que fosse apenas por alguns minutos.

 

A Polícia apareceu? perguntou Alvirah.

 

Veio a Organização de Apoio à Criança, e acredite que o funcionário que falou comigo não estava nada contente. A única coisa que podemos estabelecer é que não existe qualquer registo de um recém-nascido desconhecido ter sido encontrado morto ou abandonado em Nova Iorque naquela altura.

 

Acho que já é alguma coisa disse Alvirah com um suspiro. Estou tão desapontada por isto não ter levado a algum lado. E pensei que era uma ideia tão boa.

 

Também eu concordou monsenhor Ferris. Como é que está a mãe? A propósito, já calculo que deve ser aquela jovem que andou por aqui tantas vezes a semana passada.

 

Mas ainda pode responder com honestidade que não sabe quem ela é, não pode? perguntou Alvirah com alguma preocupação. Como sempre, estava a gravar a conversa, não fosse o monsenhor dizer alguma coisa que lhe escapasse à primeira.

 

Não precisa de desligar o seu microfone, Alvirah. Não sei quem ela é, e não quero saber. A propósito, que história é esta que ouvi acerca de andar à procura de um apartamento?

 

Tenho os pés numa desgraça de tanto andar admitiu Alvirah. Os dois Gordons são boas pessoas, mas, monsenhor Tom, devo dizer-lhe que, embora possam ser bons vendedores de propriedades, não são as pessoas mais inteligentes que Deus já pôs ao cimo da terra. Aposto que podem levá-lo a um cubículo acanhado e depois dizerem-lhe que é uma casa encantadora, e a parte mais louca é que eles acreditam. E depois ficam excitadíssimos quando o senhor lhes diz que ao invés do milhão e duzentos mil que o dono pede, pode comprá-la por apenas novecentos mil dólares.

 

Os vendedores de imobiliário têm de mostrar entusiasmo em relação aos sítios que mostram, Alvirah disse monsenhor Ferris calmamente. Em alguns círculos, é conhecido como optimismo.

 

No caso deles, tente visão limitada retorquiu Alvirah. De qualquer maneira, vou sair com Eileen para ver um sítio que ela diz ter uma vista espectacular do Central Park. Mal posso esperar. Depois disso, vou visitar Kate para tentar animá-la.

 

Quem me dera que conseguisse. Ela passa o tempo todo a ler a cópia do testamento de Bessie e a descobrir uma maneira nova de ferir os seus sentimentos. A última é que a assinatura de Bessie foi escrita com tanta força que a caneta quase furou o papel. ”É como se ela estivesse ansiosa para dar a casa a estranhos”, disse-me ela.

 

Depois de desligar, Alvirah ficou sentada durante vinte minutos, perdida em pensamentos. Por fim, vestiu o casaco, pôs o chapéu e foi para a varanda.

 

O vento fustigou-lhe o rosto e ela tremeu, embora estivesse bem agasalhada. ”Sou um fracasso”, disse para si mesma. ”Pensei que estava a fazer um favor a Sondra... agora ela está cheia de esperança, e para nada. Vai ficar ainda mais destroçada. O avô e o namorado chegam amanhã, e ela tem de manter as aparências à frente deles e também de ensaiar para o concerto do dia 23.”

 

”E também dei a Kate alguma esperança de encontrar uma maneira de desmascarar este novo testamento, mas, depois de ver praticamente todos os apartamentos que estão vazios no West Side, a única coisa certa que descobri é que Jim e Eileen são pessoas decentes que devem ter sorte em relação às vendas, porque não há dúvida de que não escutam quando uma pessoa lhes diz o que quer ver.

 

Até agora, nada admitiu tristemente Kate quando foi visitá-la. Mas, como eu sempre digo, as coisas só acabam no fim.

 

Oh, Alvirah disse Kate. Eu acho que acabou. O que me perturba é que me sinto como se estivesse a viver numa montanha russa emocional. Não consigo parar de pensar em Bessie naquela última segunda-feira quando a deixei aqui sentada, a ver os programas dela... sabes bem o quanto ela gostava de One Life to Live e do Serviço de Urgência... e de os comentar, a falar a mil à hora, a contar-me tudo sobre cada personagem, e como estavam sempre a fazer coisas terríveis uns aos outros. E durante todo esse tempo estava a planear fazer-me uma coisa terrível.

 

Nessa noite, Alvirah teve um dos ataques de insónia de que sofria quando estava a deslindar crimes. Por fim, à uma da manhã desistiu, foi para a cozinha, fez chá e rebobinou a cassete até ao princípio.

 

”Hercule Poirot”, pensou. ”Pensa como ele!” Às sete, quando Willy saiu do quarto a esfregar os olhos, encontrou uma detective triunfante.

 

Willy, talvez tenha encontrado o fio da meada anunciou ela com um sorriso excitado. Começa com a assinatura de Bessie no testamento. Não se pode ver grande coisa numa cópia. Esta manhã vou até ao tribunal de homologações para ver bem o original. Nunca se sabe o que poderei encontrar.

 

Se houver alguma coisa para encontrar, tu encontras, querida disse Willy com voz sonolenta. Aposto todo o meu dinheiro em ti.

 

Tinham-lhe proposto uma coisa grande um trabalho maior do que qualquer dos que já fizera, maior até do que o golpe da empresa de computadores fantasma. Não era o seu estilo usual, mas Lenny decidiu correr o risco um grande pagamento, e ficaria bem durante alguns anos. Para além do mais, tinha decidido que chegara a altura de partir para o México, especialmente agora que a mãe de Star estava na cidade e andava à procura dela.

 

A história no New York Globe tinha-o assustado verdadeiramente. Descrevia tudo sobre a forma como Star fora deixada nos degraus da reitoria; estavam ali todos os pormenores. E se um dos vizinhos coscuvilheiros do prédio começasse a fazer contas pelos dedos e se lembrasse de que tinha sido há precisamente sete anos que ele chegara com a filha recém-nascida; aquilo perturbava Lenny profundamente. E quem sabia? Alguém podia até recordar-se do carrinho de bebé surrado com a mancha de lado.

 

Até se tinha falado imenso no caso em alguns dos debates radiofónicos. Dom Imus em especial tinha falado no assunto até à exaustão. Convidara o comissário da Polícia para o seu programa, e o comissário dissera que se a pessoa ou pessoas que tinham levado o bebé fossem encontradas poderiam ser acusadas de rapto e ver-se confrontadas com a possibilidade de uma grande pena de prisão.

 

”Quando uma pessoa encontra um objecto valioso que não lhe pertence, embora não saiba quem é o dono, deve entregá-lo”, dissera o comissário. ”É a lei. E que coisa pode ser mais valiosa do que uma criança recém-nascida?”

 

Ele e Imus tinham falado sobre o bilhete, que fora citado palavra por palavra no artigo. ”O facto de a mãe querer um bom lar para a filha não significa apenas qualquer lar”, dissera o comissário. ”Aquela criança ficou a cargo da cidade quando a mãe a abandonou, e falando em nome da cidade digo que a queremos de volta. Espero que, se alguém tiver sequer uma suspeita de quem essa criança pode ser, esse alguém telefone imediatamente. Garanto que ninguém saberá quem fez o telefonema, e a recompensa será entregue sem publicidade.”

 

Lenny apercebeu-se de mais uma coisa naquela terça-feira de manhã enquanto deitava açúcar e leite quente numa chávena de café forte que ia levar à tia Lilly. A saúde da tia tinha piorado nos últimos dias quase não tinha saído da cama e ele sabia que, se ela fosse para o hospital e falasse sobre Star a alguém, as assistentes sociais viriam ao apartamento ver como ela estava.

 

Quando chegou ao quarto de Lilly, ela tinha os olhos fechados, mas abriu-os quando escutou os passos dele.

 

Não me sinto bem, Lenny disse ela, mas sei que se for ao médico eles me mandam para o hospital. Quero poder ver Stellina a representar o papel de Virgem Maria na festa, por isso quero esperar um pouco antes de ir. Mas quando for para o hospital quero que a deixes ficar com Gracie Nunez até eu voltar. Prometes?

 

Lenny sabia que o espectáculo seria na segunda-feira seguinte à tarde, no dia 21; era igualmente o dia do seu grande trabalho. Também sabia que não havia a mínima hipótese de Lilly conseguir ir ao espectáculo, mas se ela pudesse aguentar tanto tempo antes de ir para o hospital seria uma maravilha para ele. Depois de o trabalho estar feito, ele obrigaria Lilly a ir para o hospital, e depois de ela estar definitivamente fora do caminho ele e Star partiriam, provavelmente à meia-noite. ”Ela é a minha estrela da sorte”, pensou Lenny, ”e tenho de a manter comigo.”

 

Pousou cuidadosamente a chávena de café na mesa-de-cabeceira ao lado da cama.

 

Eu vou cuidar bem da senhora, tia Lilly prometeu ele. Stellina vai ficar destroçada se a senhora não puder pelo menos vê-la com aquela roupa tão bonita que fez para ela. E concordo que quando a tia for para o hospital seria boa ideia ela ficar com a Sr.a Nunez até a senhora voltar. Eu preciso de trabalhar, e não quero que ela fique aqui sozinha.

 

Lilly ficou pateticamente agradecida.

 

Grazie, Lenny, grazie murmurou, e fez-lhe uma festa na mão.

 

A túnica branca e o véu azul estavam num cabide no varão ao lado da cómoda. Enquanto a observava, uma rabanada de vento da janela ligeiramente aberta fez o véu voar, e ele viu-o desviar-se para a direita e tocar no cálice que estava na secretária.

 

”Outro aviso”, pensou Lenny. O facto de a Polícia ter estado em São Clemente sete anos antes por causa do roubo na igreja tinha sido proeminentemente mencionado no artigo do Globe. A história do cálice, e até mesmo uma fotografia do mesmo, constituíra um artigo de fundo noutra página do jornal.

 

Lenny teria gostado de agarrar no cálice e livrar-se dele, mas sabia que não podia correr esse risco. Se ele desaparecesse, Lilly ia fazer uma fita dos diabos, e Star contaria a todos os seus amigos.

 

Não, o cálice também tinha de esperar. Mas só por agora. Quando ele e Star fugissem, por fim, havia uma coisa que ele sabia ao certo: aquele cálice ia acabar no fundo do Rio Grande.

 

Sondra já não suportava ler um jornal ou ligar a televisão ou ouvir rádio. A história de Alvirah acerca da bebé tinha desencadeado um furor tão grande nos órgãos de comunicação social que a fazia encolher-se de vergonha.

 

Na segunda-feira à noite tinha procurado na bolsa e encontrara o frasco ainda fechado de comprimidos para dormir que o médico lhe tinha receitado para quando ela tivesse um dos seus ocasionais acessos de insónia. Ela nunca tinha tomado nenhum, preferindo aguentar a ceder à tentação de usar algo que considerava uma muleta. Mas na segunda-feira soube que não tinha escolha. Simplesmente, precisava de dormir um pouco.

 

Quando acordou às oito da manhã de terça-feira, porém, tinha as faces molhadas de lágrimas, e lembrou-se de que nos seus sonhos vagos e perturbados tinha estado a chorar. Zonza e desorientada, conseguiu por fim sentar-se e, por tentativas, tirar os pés da cama.

 

Durante vários segundos, o quarto de hotel pareceu girar à sua volta, e as cortinas floridas misturaram-se com o tecido às riscas do sofá num caleidoscópio de cor. ”Teria sido preferível ter ficado acordada a noite inteira... ou então ter engolido todos os comprimidos do frasco”, pensou fugazmente. Mas depois abanou a cabeça. ”Não sou assim tão cobarde”, disse para si mesma.

 

Um duche quente, prolongado, com a água a salpicar-lhe o rosto e a encharcar-lhe os cabelos, ajudou a restaurar algum sentido de perspectiva. Vestiu um roupão turco, enrolou os cabelos numa toalha e obrigou-se a pedir ovos mexidos e torradas com o sumo e café do costume.

 

”O avô e Gary chegam esta noite”, lembrou a si mesma. ”Se me virem assim, não vão parar de perguntar qual é o problema até eu me ir abaixo e lhes contar a história toda. Hoje tenho de ensaiar bem. E tenho de ensaiar especialmente bem amanhã, quando o avô estiver a escutar. Tenho de tocar de forma a que ele sinta que todos os anos que passou a ensinar-me e a sacrificar-se por mim valeram a pena.

 

Sondra levantou-se e dirigiu-se para a janela. ”Hoje é terça-feira, dia 15 de Dezembro”, pensou, enquanto olhava para a rua, já confusa com o tráfego citadino e com os transeuntes que seguiam apressadamente para o trabalho.

 

O concerto é na próxima quarta-feira disse em voz alta. ”No dia seguinte é Véspera de Natal... é quando devemos voltar para Chicago”, pensou. ”Só que eu não vou. Ao invés disso, vou tocar à campainha da reitoria de São Clemente, uma coisa que devia ter feito há sete anos em vez de correr dois quarteirões até um telefone. Vou contar a monsenhor Ferris que sou a mãe da bebé e depois peço-lhe que chame a Polícia. Não consigo viver com esta culpa nem mais um dia.”

 

Às dez horas da manhã de terça-feira, Henry Brown, um escriturário do Tribunal de Homologações na Rua Chambers, na Baixa de Manhattan, ergueu os olhos e disse ”Bom dia” a uma senhora com cerca de 60 anos e um olhar determinado, com cabelos ruivos e um queixo um pouco proeminente. Henry era um bom juiz da natureza humana e reparou nas linhas de sorriso à volta da boca da mulher e nos pés de galinha à volta dos olhos. Sabia que eram sinais de uma disposição agradável e que a irritação que via no rosto dela provavelmente era apenas momentânea.

 

Pensou que a tinha percebido: devia ser uma parente descontente que quereria examinar o testamento de um familiar que a tinha deserdado.

 

Rapidamente ficou a saber que estava certo em relação ao desejo de ver um testamento, mas a mulher não era da família.

 

Chamo-me Alvirah Meehan explicou Alvirah. Segundo sei, os testamentos em homologação são documentos públicos e eu tenho o direito de examinar um em especial, se assim o decidir.

 

Tem toda a razão disse Henry num tom agradável. Mas é claro que terá de o fazer na presença de um membro do pessoal.

 

Não me importa que todo o Governo da cidade esteja pendurado no meu ombro disse Alvirah bruscamente, mas depois acalmou-se. Afinal de contas, não era culpa deste prestável escriturário que quanto mais perto estava de ver o testamento verdadeiro de Bessie mais excitada se sentisse.

 

Quinze minutos mais tarde, Henry Brown colocou-se ao lado dela, enquanto ela estudava o documento.

 

Novamente aquela palavra balbuciou ela.

 

Como?

 

É que a palavra ”prístina” não pára de me incomodar. Sabe, eu juraria que a senhora que escreveu este testamento nunca usou aquela palavra em todos os seus oitenta e oito anos.

 

Oh, ficaria surpreendida se soubesse o quão literárias algumas pessoas ficam quando escrevem os seus testamentos disse Henry de maneira prestável. Claro que aparecem com algumas preciosidades, erros como ”inegligente” ou ”reiterar novamente”. Fez uma pausa, e depois acrescentou: Porém, devo dizer que prístina é nova. Nunca tinha visto essa palavra ser usada antes.

 

Alvirah tinha desligado quando ouvira a opinião desanimadora de que podia ser considerado habitual inserir algumas palavras desconhecidas e talvez pomposas num testamento.

 

Ora, que é isto? perguntou ela. Quero dizer, olhe para esta última página. O testamento já está assinado.

 

É conhecida como a cláusula de atestação explicou Henry. Nos termos da lei do Estado de Nova Iorque, as testemunhas têm de completar esta página. Atesta que testemunharam a assinatura do testamento, e a testadora, neste caso, a Sr.a Bessie Durkin Maher, também tem de a assinar. Na essência, é uma reconfirmação do testemunho do testamento. Sem isso, as testemunhas teriam de ir a tribunal na altura da homologação, e, claro, nos casos em que os testamentos estão retidos durante anos, as testemunhas podem ter-se mudado ou morrido.

 

Repare bem nisto ordenou Alvirah, erguendo duas folhas de papel. A assinatura de Bessie no testamento e depois aqui... como é que lhe chamou?... cláusula de atestação. Está a ver ali? A tinta é diferente. Mas tinham de ser assinadas ao mesmo tempo, certo?

 

Henry Brown estudou as duas assinaturas.

 

Definitivamente, são dois tons diferentes de tinta azul

 

disse ele. Mas talvez a sua amiga Bessie tivesse decidido que a sua assinatura no testamento, embora totalmente legível, fora escrita com tinta bastante clara, por isso simplesmente trocou de caneta. Não há nada de ilegal nisso. As testemunhas assinaram com a mesma caneta observou ele.

 

Uma das assinaturas de Bessie é firme, a outra incerta. Também é possível que tenha assinado estes documentos em duas ocasiões diferentes disse Alvirah.

 

Oh, isso seria ilegal.

 

Eu não poderia estar mais de acordo!

 

Bem, se acabou, Sr.a Meehan... Henry não terminou a frase.

 

Alvirah sorriu-lhe.

 

Não, lamento mas ainda não acabei. Não faz ideia de como lhe estou grata por me conceder todo este tempo, mas sei que não quer que haja um erro judiciário.

 

Henry sorriu educadamente. ”Toda a gente que é excluída de um testamento grita que há um erro judiciário”, pensou ele filosoficamente.

 

Repare, Henry continuou Alvirah. Posso chamar-lhe Henry, não é verdade? E o Henry devia tratar-me por Alvirah. Sem esperar para ver se Henry aceitava esta elevação do conhecimento de ambos, Alvirah disse: Bessie jura que esta foi a sua última vontade. Eu juro que isto é falso. Para além do mais, onde é que Bessie aprendeu que tinha de dactilografar esta cláusula de atestação? Explique-me isso.

 

Bem, ela pode ter pedido a alguém que lha dactilografasse, ou alguém pode ter-lhe dado uma cópia da minuta disse Henry pacientemente. Agora, Sr.a Meehan, quero dizer, Alvirah... começou ele.

 

Está bem disse Alvirah, interrompendo-o. Sei que não é prova, mas estas assinaturas parecem diferentes, e eu aposto que Bessie não assinou estes documentos ao mesmo tempo. Pegou bruscamente nas suas coisas. Muito bem, Henry, obrigada disse ela, saindo apressadamente, como uma mulher que tinha uma missão.

 

Alvirah foi directamente para a Agência Imobiliária de James e Eileen Gordon. Tinha marcação para ver mais um apartamento, este em Central Park Oeste e descrito por Eileen Gordon como sendo ”uma pechincha por dois milhões”.

 

Enquanto fingia estar interessada no lugar e ouvir Eileen soltar uma vez mais exclamações sobre a bonita vista embora a vista fosse de certa forma limitada, uma vez que o apartamento se situava no primeiro andar e dava directamente para as árvores, Alvirah conseguiu levar a conversa para a assinatura do testamento de Bessie.

 

Oh, sim, a doce senhora assinou os dois documentos disse Eileen, e os seus olhos redondos abriram-se muito quando sorriu a recordar. Tenho a certeza disso. Mas era óbvio que estava a ficar muito cansada. Creio que foi por isso que a segunda assinatura ficou bastante torta na linha. Se mudou de caneta, não dei por isso. A verdade é que talvez eu estivesse a observar o aposento. A casa está em condições quase perfeitas. Quero dizer, algumas coisas, como a porta da sala de estar, precisam de ser arranjadas, mas isso não é nada. Da forma como os preços estão agora, podia vender aquela casa por três milhões com a maior das facilidades.

 

”Por uma vez, acho que tens razão”, pensou Alvirah enquanto, completamente desencorajada, desligava o microfone do alfinete de lapela com a forma de um sol.

 

Aquele Lenny Centino é mais esperto do que parece disse Roberto Pagano, o detective a trabalhar sob disfarce, ao chefe, Joe Tracy, na quarta-feira à noite quando se encontraram num lugar previamente combinado. Desde aquela primeira vez que o conheci, ainda não abriu a boca uma única vez para falar sobre as entregas que fez para a empresa de computadores falsa... ou outra coisa qualquer que pudéssemos usar para o apanhar. Se não tivessem sido algumas cervejas a soltar-lhe a língua, não acredito que tivesse dito alguma coisa naquela primeira vez.

 

E seria facílimo para um advogado esperto livrá-lo de quaisquer acusações disse Joe, preocupado. É por isso que não paro de fazer figas para que ele não desista do trabalho de segunda-feira à noite.

 

Não me parece que o faça disse Pagano, seguro. Se o meu palpite estiver certo, Lenny está a preparar-se para dar o salto. Creio que ele sabe que actualmente as coisas estão a ficar perigosas para os traficantes no Upper West Side. Ele quer dar o golpe na segunda-feira à noite, e depois aposto contigo em como vai desaparecer durante muito tempo.

 

Durante muito tempo, talvez, mas não para onde ele pensa que vai, espero replicou Tracy. Claro que se Lenny avançar com o trabalho vamos apanhá-lo com as mãos na massa. Mas supõe que ele se enerva e desaparece debaixo dos nossos olhos? Isso fez Tracy lembrar-se de mais alguma coisa. Nestas últimas tardes, ele tem ido buscar a filha ao centro Apoio da Casa. Por que será que de repente se está a tornar tão bom pai?

 

Talvez queira apenas certificar-se de que ela não se esquece dele depois de ele fugir declarou Pagano com um encolher de ombros. Não consigo imaginá-lo a deixar-se sobrecarregar com uma miúda de sete anos. Acho que tens razão concordou Tracy.

 

O ensaio geral do espectáculo estava marcado para sexta-feira à tarde, e Lenny tinha feito questão de assistir, explicando às irmãs Cordelia e Maeve Marie que, uma vez que estaria a trabalhar às quatro da tarde de segunda-feira, altura em que a representação teria lugar, não queria perder a única oportunidade de ver a filha a representar o papel de Virgem Maria.

 

Com todo o seu cinismo num sorriso insinuante, Lenny explicou que a nonna de Stellina estava muito, muito doente, mas que ele estaria sempre presente para cuidar da sua menina.

 

Somos tu e eu contra o mundo, não é, Star? perguntou ele, afagando os cabelos que caíam pelos ombros da menina.

 

Até terei de aprender a pentear essa tua bonita cabeleira.

 

Sorriu de novo para as freiras. A nonna já não consegue prender bem a fita.

 

As mulheres acenaram afirmativamente, mas as suas expressões eram gélidas. Depois, a irmã Cordelia voltou-lhe as costas e bateu palmas.

 

Muito bem, crianças, ocupem os vossos lugares para o ensaio geral. Oh, aí estás tu, Willy. Estava com receio de que te tivesses esquecido de nós.

 

Willy e Alvirah vinham a subir as escadas, e no rosto de Willy estampava-se um sorriso de resignação.

 

Cordelia, falta uma semana para o Natal. Acredites ou não, tive de fazer algumas compras.

 

E eu saí pela última vez com os Gordons disse Alvirah.

 

Hoje, eles praticamente correram comigo. Disseram que sentiram que eu ainda não estava preparada para comprar, e deram-me os nomes de alguns colegas a quem poderia telefonar se quisesse continuar a procurar um apartamento para o resto da vida.

 

Então temos de aceitar que o bom Deus não quer que continuemos este trabalho depois do dia 1 de Janeiro declarou Cordelia. E não deves culpar-te, Alvirah. Não deixaste pedra sobre pedra para tentar provar que o testamento de Bessie era falso. Afastou-se bruscamente. Agora vamos começar o ensaio. Voltou-se de novo para Alvirah, baixou a voz e acenou a cabeça quase imperceptivelmente em direcção a Lenny. Aquele fulano é o pai de Stellina. Senta-te ao lado dele. Ele está a tentar causar boa impressão, por isso sei que falará contigo. Vê o que achas dele. Eu penso que ele está a tramar alguma.

 

A irmã Cordelia estava certa. Lenny falou realmente ao longo de todo o ensaio, e só interrompeu a história de como desistira de um bom emprego no Midwest porque sentia imensas saudades de Star mas não podia afastá-la da tia de que tanto gostava para soltar exclamações ruidosas e estranhamente impróprias sobre como as crianças eram amorosas. Durante as suas divagações, falou a Alvirah na bonita irlandesa com quem tinha casado e que fora a mãe de Star.

 

Chamava-se Rose O’Grady. Gostávamos imenso de dançar juntos. Eu pedia ao conjunto para tocar Sweet Rosie O’Grady quando saíamos, e cantava-lhe ao ouvido.

 

Que é que lhe aconteceu? perguntou Alvirah.

 

É uma coisa que não conto a muita gente. Teve uma depressão pós-parto tão grave que tivemos de a hospitalizar. Depois... Aqui a voz de Lenny quebrou e extinguiu-se. Não a vigiaram com cuidado. As últimas palavras foram proferidas num sussurro dramático.

 

”Suicídio”, pensou Alvirah.

 

Oh, lamento muito disse ela com sinceridade.

 

A nonna contou a Star que a mamã dela estava doente e que teve de ir para muito longe, e que provavelmente nunca mais voltaríamos a vê-la. Acho que se calhar devíamos ter-lhe contado logo que a mãe tinha morrido, mas a nonna está sempre a dizer que ainda é cedo explicou Lenny, contente por ter pintado a cena tão bem.

 

Houve um pequeno contratempo no ensaio quando Rajid, o terceiro rei mago, deixou cair o frasco que supostamente continha a mirra.

 

Não faz mal, Rajid disse a irmã Cordelia quando viu que os olhos do menino se enchiam de lágrimas, e a irmã Maeve Marie entrou para apanhar os cacos. Foi apenas um pequeno acidente. Não foi um grande problema. Continuem, todos vocês.

 

Willy foi para o piano. Chegara o momento da cena final da peça.

 

Dorme, meu menino, que a paz esteja contigo. Tocou e cantou suavemente.

 

Ajoelhados junto ao berço, que estava agora no seu lugar, Stellina e Jerry ergueram os olhos.

 

Anjos de guarda Deus te mandará cantaram, com as suas vozes jovens e doces e verdadeiras.

 

É uma canção bonita disse Lenny. Faz-me lembrar...

- Chiu!

 

”Santo Deus, será que ele não consegue estar calado sequer para ouvir a própria filha?”, pensou Alvirah agora tão irritada que se tivesse fita adesiva à mão lhe teria colado a boca. Reparou que os olhos de Stellina tinham chispado para ele quando ele falara, mas depois se tinham afastado, como se ela tivesse ficado embaraçada.

 

”Ela é suficientemente esperta para perceber que o pai é um idiota”, pensou Alvirah. ”Pobre criança. Na verdade, hoje ela parece um pouco desarranjada. Tem os cabelos emaranhados; normalmente, estão tão bem amarrados.”

 

”Desarranjada, mas mesmo assim bonita”, pensou: os cabelos louros, encaracolados, quase pela cintura, uma compleição clara e olhos castanhos, grandes. ”A sua expressão é quase adulta de tanta tristeza”, pensou Alvirah. ”Por que é que alguns miúdos têm uma vida tão difícil?”

 

Lenny aplaudiu ruidosamente quando o ensaio terminou.

 

Bestial! gritou. Realmente muito bom! Star, o teu pai está orgulhoso de ti!

 

Stellina corou e afastou-se, desviando os olhos.

 

O teu pai está orgulhoso de ti imitou Jerry enquanto se levantava. És uma Virgem Maria pequenina tão boa, ha, ha, ha.

 

Ainda não é tarde de mais para arranjar outro São José avisou-o a irmã Cordelia, batendo-lhe com um dedo na cabeça. Não se esqueçam de levar os fatos para a escola na segunda-feira, crianças. Depois vestem-se aqui.

 

Eu vou buscar Star à escola e levo-a para casa para se vestir disse Lenny a Alvirah. A nonna dela não pode vir ao espectáculo, mas quer vê-la vestida. Depois tenho de ir trabalhar.

 

Alvirah acenou afirmativamente, absorta, com a atenção centrada em Cordelia enquanto esta juntava os presentes que os reis magos deviam apresentar. ”Os chocolates embrulhados em papel dourado parecem mesmo oferendas de ouro verdadeiro”, pensou. A taça pintada que Cordelia trouxera do convento para o incenso revelara-se uma bonita oferta. ”Vou arranjar outro frasco para substituir o que Rajid deixou cair”, pensou. Depois reparou que Stellina dera a mão a Cordelia e levara a freira para um canto.

 

Aos segredinhos? observou Lenny, e na sua voz notou-se um tom de alarme.

 

Oh, duvido disse Alvirah rapidamente. Eu sei que Stellina tem pedido à irmã Cordelia e à irmã Maeve Marie para rezarem pela sua nonna.

 

Oh, sim disse Lenny alguns momentos depois. Deve ser isso que ela está a fazer.

 

Satisfeito com a impressão que pensava ter causado no ensaio, Lenny saiu com Stellina, explicando a quem o quisesse ouvir que ia levá-la a jantar fora.

 

Agora, que a nonna não pode preocupar-se com as refeições, acho que terei de comprar um livro de receitas foi o comentário que fez ao sair.

 

A caminho do McDonald’s, perguntou a Star se tinha pedido à irmã para rezar pela nonna quando a puxara para um canto.

 

Peço isso à irmã todos os dias disse Stellina calmamente. Instintivamente, soube que o pai poderia não gostar do que ela tinha pedido realmente à irmã... que, se a nonna a deixasse trazer o cálice de prata que tinha pertencido ao tio da mãe, Rajid podia levá-lo para o estábulo, em substituição do frasco que tinha partido?

 

Para seu deleite, a irmã tinha dito que podia ser. Star tinha a certeza de que, se implorasse à nonna, esta dar-lhe-ia autorização para o trazer. ”E quando Rajid o pousar junto ao berço, eu vou rezar para que, se a minha mãe ainda não foi para o Céu, me venha ver apenas uma vez.”

 

Era um desejo e uma esperança que agora se tinham tornado quase uma necessidade constante, urgente. Mas uma fé que estava a tornar-se cada vez mais forte parecia prometer a Star que, se o cálice fosse dado de presente ao Menino Jesus, as suas orações seriam atendidas.

 

A mãe viria realmente para ela, por fim.

 

Peter Lewis, o avô de Sondra, chegou na quarta-feira à tarde. Para ela, foi simultaneamente um alívio e uma decepção que Gary não o tivesse acompanhado.

 

Ele vem para o concerto disse o avô, mas está muito ocupado e não conseguiu tirar uns dias. Para além do mais, acho que é suficientemente astuto para saber que, nos dias que antecedem um grande concerto, é melhor deixar a artista sozinha com a sua música e com o mínimo de distracções possível.

 

Sondra sabia o que o avô estava a insinuar. Gary Willis amava a música com uma paixão profunda e compreendia as tensões inerentes à vida de um artista.

 

Ainda bem que ele esperou disse ela, mas estou encantada por o senhor estar aqui. O avô está com um aspecto espectacular.

 

Era um prazer inesperado para ela o facto de o avô estar com um aspecto tão bom. Embora os sinais de artrite fossem sempre visíveis nos pulsos e nos dedos inchados, o bypass triplo tinha trazido de volta a cor ao rosto dele e vigor à sua aparência coisas que ela temera que ele tivesse perdido com a idade e a doença.

 

Quando lhe disse o quão saudável ele parecia para a idade que tinha, ele respondeu:

 

Obrigado, Sondra, mas hoje em dia setenta e cinco anos é considerado apenas o começo do envelhecimento. Um fornecimento de sangue sem obstruções ao coração faz maravilhas, embora eu espere que seja uma coisa que nunca precises de constatar por ti própria.

 

”Pelo menos”, pensou Sondra, num esforço para retirar algum consolo da situação, ”o avô parece suficientemente forte para aguentar quando eu lhe contar sobre a bebé e o que vou fazer depois do concerto.” Mas esse simples pensamento fê-la empalidecer.

 

E tu estás magra e pareces perturbada disse-lhe ele secamente. Tens algum problema, ou são apenas os nervos habituais da actuação? Se for esse o caso, estou desapontado. Pensei que te tinha curado disso.

 

Ela tinha fugido à pergunta.

 

Avô, trata-se do Carnegie Hall tinha-lhe dito. É diferente.

 

Depois ele tinha passado a quinta e a sexta-feira a rever velhos amigos, enquanto ela ensaiava com o professor de Nova Iorque.

 

Na sexta-feira à noite, ao jantar, ele falou na visita que fizera a São Clemente e de ter sabido que o cálice do bispo Santori havia sido roubado.

 

Aparentemente, nessa mesma noite, um bebé foi abandonado lá disse ele enquanto lia a ementa, absorvido, como sempre, na tarefa que tinha em mãos. Parece que foi tema de um artigo recente num jornal. Fez uma pausa. Linguado de Dover grelhado e uma salada anunciou, e depois olhou directamente para ela, intrigado. Quando eu te trago ao Lê Cirque 2000, pelo menos tem a delicadeza de parecer interessada na ementa.

 

No dia seguinte, quando ele foi ouvi-la ensaiar, ela leu desapontamento nos seus olhos. Estava a ensaiar uma sonata de Beethoven, e, embora soubesse que estava a tocar de uma forma tecnicamente perfeita, também estava consciente de que não havia paixão nem fogo na sua música. E soube que o avô também tinha percebido isso.

 

Depois de ela terminar, ele encolheu os ombros.

 

A tua técnica é maravilhosa; não pode apontar-se-lhe qualquer defeito. Mas tu negaste sempre alguma coisa de ti à tua música. Porquê, não sei. Agora estás a negar tudo. Olhou para ela severamente. Mantém-te assim, Sondra, e aparecerás e desaparecerás imediatamente do maior palco de concertos, assim! Estalou os dedos. Qual é o problema?

 

Foges de um homem que te ama e que eu acredito que tu também amas. Ressentes-te comigo. Não sei porquê, mas estou consciente disso há anos. Nada te comove?

 

Com um encolher de ombros de pesar e resignação, ele voltou-se e começou a dirigir-se para a saída do estúdio.

 

Eu sou a mãe da bebé que foi abandonada em São Clemente gritou-lhe ela, e as palavras ficaram a pairar no ar.

 

Ele parou e voltou-se, com uma expressão incrédula, mas com um olhar de profunda preocupação nos olhos.

 

Com pouca expressividade no rosto e na voz, Sondra contou-lhe tudo, e as palavras saíram em torrente.

 

Depois de terminar, seguiu-se um silêncio prolongado. Por fim, ele acenou afirmativamente.

 

Então é isso. E vejo que, de certa forma, me culpas por a teres abandonado. Talvez tenhas razão e talvez não. Não importa. Moveremos céus e terra para a encontrar. Vamos contar a Gary; ele tem recursos enormes à sua disposição. E, se ele não compreender, então não te merece. Agora pegou no violino de Sondra e pousou-lho nas mãos. Agora toca com todo o teu coração para a criança que procuras.

 

Sondra aconchegou o violino debaixo do queixo e pegou no arco. Na sua mente, conseguia ver a filha. Mas teria os cabelos loiros como os seus, ou seriam como os do pai... sedosos, escuros? Os olhos... ainda seriam azuis ou castanhos como os seus, ou cor de avelã-escuros como os do pai? Era um homem que ela conhecera por tão pouco tempo, e por quem afinal de contas nem sentira nada, mas fora o pai da sua filha. ”Ela será como eu”, decidiu Sondra. ”Será igual a mimm quando tinha a idade dela.”

 

”Agora tem sete anos; deve ter música na alma”, reflectiu enquanto pousava o arco nas cordas. ”Ainda foge de mim, mas vejo-a à distância. Oiço-lhe os passos. Sinto a sua presença. Ela sente que a quero.” Esquecendo o avô, Sondra começou a tocar.

 

”Nunca lhe dei um nome”, pensou. ”Como é que a teria chamado? Que nome lhe dou no meu coração?” Procurou a resposta enquanto tocava, mas não conseguiu encontrá-la.

 

Quando as últimas notas vogaram para o silêncio, após uma pausa prolongada, o avô acenou afirmativamente.

 

Agora estás a tornar-te uma verdadeira executante. Ainda te retrais, mas isto foi uma melhoria infinita. Vão pedir-te que faças um encore. Que é que escolheste?

 

Sondra não sabia qual seria a sua resposta até se ouvir dizer:

 

Uma simples canção de Natal disse-lhe. A Noite Inteira.

 

Na segunda-feira de manhã, Alvirah e Willy foram à missa a São Clemente. Kate Durkin também estava a assistir e insistiu para que fossem tomar café a sua casa.

 

Quando chegaram, os Bakers iam a sair.

 

Linda e eu vamos comprar os jornais da manhã disse Vic jovialmente. Tentamos sempre resolver o quebra-cabeças do Times de domingo.

 

Conheci um fulano que se vangloriava de o fazer todas as semanas, mas, quando alguém foi verificar, descobriu-se que ele estava a fazer batota e usava calão para preencher os espaços em branco disse Willy. Amigo seu, talvez?

 

O sorriso de Baker gelou. Linda encolheu os ombros e puxou-lhe pela manga.

 

Vamos, querido implorou.

 

Vejo que ele tirou a gravata preta observou Willy enquanto os contemplava a descer a rua de braço dado.

 

É um espanto ela não partir o pescoço por causa daqueles saltos altos observou Alvirah. Há pedaços de gelo por todo o passeio.

 

Ela não vai cair, podes acreditar em mim disse Kate. É profissional naquelas coisas... usa-os sempre. Kate rodou a chave na fechadura e abriu a porta. Entrem. Aquele vento trespassa-nos.

 

Vamos tomar café na saleta disse ela enquanto despiam os casacos. Acendi a lareira esta manhã, e está acolhedora. Aos domingos, depois da missa, Bessie adorava sentar-se na saleta a tomar café e a comer o meu bolo acabado de fazer.

 

Kate não deixou Alvirah ajudá-la a preparar as coisas.

 

O que são algumas chávenas e pratos? Tu tens andado de um lado para o outro por minha causa a semana inteira. Vai sentar-te.

 

Eu gostei sempre desta sala comentou Willy ao sentar-se na funda cadeira de couro que fora o objecto adorado do juiz Aloysius Maher, cujo retrato em toga ainda olhava benignamente para eles do alto da parede, sobre a lareira.

 

É uma sala maravilhosa concordou Alvirah. Já não se fazem estes tectos altos e estas pedras esculpidas. Repara nos pormenores das janelas. É trabalho artesanal. Não consigo suportar a ideia de que Kate não vai poder desfrutar de tudo isto para o resto da vida. Olhou em volta e depois suspirou. Bom, acho que Bessie não se vai importar se eu me sentar na sua cadeira preferida. Parece que ainda a estou a ver aqui sentada, com os pés na almofada, a ver os seus programas de televisão... E ai de quem a interrompesse durante One Life to Live e Serviço de Urgência. E depois que faz quando está prestes a exalar o último suspiro? Esgueira-se lá para cima quando Kate não está a ver, e apenas para a expulsar desta casa. Ora, isso quer dizer que ela perdeu pelo menos um dos seus programas no último dia que passou na terra.

 

Talvez no céu haja uma revista com os resumos das telenovelas e ela se tenha posto a par do que aconteceu sugeriu Willy.

 

Kate entrou com uma bandeja, que pousou sobre a mesa de apoio.

 

Oh, Willy disse ela, não te importas de fechar a porta? O ”querido” e a ”fofa” devem estar a chegar com os jornais, e não quero que venham incomodar-nos.

 

Com todo o prazer, Kate disse Willy com um gemido quando se levantou.

 

Como os Bakers foram mencionados, inevitavelmente o assunto do testamento foi abordado. Num gesto reflexo, Alvirah ligou o microfone no seu alfinete com a forma de um sol.

 

Bessie escrevia sempre com a caneta do juiz, e nunca usou tinta azul nela disse Kate quando Alvirah falou sobre as diferentes tonalidades de tinta azul no testamento e na cláusula de atestação. Mas, afinal de contas, ela fez imensas coisas doidas durante aqueles últimos dias.

 

E quanto à máquina de escrever? perguntou Alvirah.

 

Pareceu-me que ela tinha dito alguma coisa acerca dela no dia de Acção de Graças.

 

Não tenho a certeza murmurou Kate.

 

Muito bem. Até que ponto é que ela via mal? inquiriu Alvirah.

 

Tinha lentes bifocais; tu sabes isso. Mas a graduação das lentes de ver ao pé precisava de ser aumentada. Se não segurasse uma coisa junto ao rosto, tinha dificuldade em perceber o que era. Pode ter assinado aqueles documentos a pensar que estava a assinar uma encomenda de tinta ou verniz ou ferramentas disse Kate. Eu estava aqui uma vez quando Vic Baker lhe trouxe um recibo de uma entrega para ela assinar. Deu-lhe a caneta dele.

 

Nada disso te ajudará em tribunal observou Willy. Eu andaria quilómetros para comer uma fatia desse teu bolo, Kate.

 

Kate sorriu.

 

Não precisas de fazer isso... temos imenso aqui mesmo. Bessie também adorava. Disse-me que, mesmo depois de partir, eu devia cortar uma fatia para ela e pô-la nesta sala aos domingos de manhã. Disse que me assombraria se eu me esquecesse.

 

”E lá vêm os Bakers”, pensou Alvirah. No átrio ouviu-se o clique da porta da rua.

 

Os herdeiros estão de volta murmurou, e depois observou, consternada, a porta da saleta a abrir-se e Vic e Linda a sorrirem para eles.

 

O lanche das onze disse Vic no tom jovial de sempre.

 

É o que lhe chamam em Inglaterra quando fazem uma pausa para comer alguma coisa durante a manhã. É sempre por volta das onze horas. Deu um passo para o interior da saleta. Meu Deus, esse bolo parece fantástico, Kate.

 

Está fantástico disse Alvirah secamente. O senhor não arranjou aquela porta para Bessie, Sr. Baker?

 

Por acaso, arranjei.

 

É por isso que abre com tanta facilidade?

 

Precisa de ser um pouco mais ajustada. Claramente pouco à vontade com a conversa, ele voltou-se para sair. Bem, vou tentar a minha sorte com o quebra-cabeças.

 

Esperaram até o som dos passos pesados de Vic e do toquetoque bamboleado dos saltos de Linda deixarem de se ouvir.

 

É impossível insultar aquele tipo, não é? observou Willy.

 

É mais do que isso disse Kate. Ele está curioso para saber o que estamos a dizer. Graças a Deus que já estou quase a acabar de tirar as coisas de Bessie do quarto. Ele nunca sai de lá quando eu lá estou. Franziu o sobrolho. Sabes, Alvirah, por falar na máquina de escrever, a barra de espaços também precisa de ser reparada. A menos que se dactilografe muito devagar, ela está sempre a saltar. Acabo de me lembrar. Tenho estado a olhar para a máquina de escrever no quarto de Bessie, a tentar lembrar-me do que ela disse no dia de Acção de Graças.

 

Alvirah engoliu o último golo de café e declinou com muita pena a oferta de uma segunda fatia de bolo.

 

Deixa-me dar uma vista de olhos àquela máquina de escrever disse ela.

 

Havia algumas folhas de papel liso na secretária de Bessie. Alvirah inseriu uma no rolo da máquina de escrever e começou a dactilografar. O rolo saltava vários espaços sempre que ela tocava na barra de espaços, forçando-a a usar constantemente a tecla de recuo.

 

Há quanto tempo é que está assim?

 

Pelo menos desde o dia de Acção de Graças.

 

O que significa que ou Bessie dactilografou isto antes do dia de Acção de Graças... o que teria significado que estava a mentir com quantos dentes tinha ao monsenhor quando ele a visitou no dia a seguir ao dia de Acção de Graças... ou então dactilografou-o durante o fim-de-semana, literalmente uma palavra de cada vez. Quem está a enganar quem?

 

Mas isso não constitui prova, querida recordou-lhe Willy. Olhou para a pilha de caixas encostadas à parede do quarto de Bessie. Kate, queres ajuda para as caixas?

 

Ainda não. Há mais uma coisa para guardar, mas não consigo encontrá-la. Pus uma das camisas de dormir de flanela, cor-de-rosa às flores, de Bessie para lavar, e agora desapareceu. Tinha uma linha de pó compacto, e eu não queria dá-la suja. Baixou a voz e olhou furtivamente sobre o ombro. Sabem, se Linda Baker não se vestisse como uma corista, eu juraria que Vic a tinha tirado para ela. Que me dizem disto?

 

Naquela tarde, enquanto Willy assistia ao jogo dos Giants com os Steelers na televisão, Alvirah sentou-se à mesa da sala de jantar e ouviu uma vez mais todas as conversas gravadas que tinha reunido sobre o testamento e a casa de Bessie. À medida que ouvia, ia tomando notas e o sobrolho franzia-se quando ouvia certos comentários.

 

O jogo estava empatado e já ia no quarto quarto de hora quando ela gritou:

 

Acho que descobri! Willy, Willy, escuta-me. Terias chamado a Bessie ”Querida, doce velha rapariga”?

 

Willy não tirou os olhos do ecrã.

 

Não. Nunca. Nem no melhor dia da vida dela.

 

É claro que não. Porque ela não era uma querida, doce velha rapariga. Era uma velha rapariga dura, teimosa e mal humorada. Mas é isso mesmo. Depois de todas aquelas voltas com os Gordons, por fim percebo o que aconteceu sentada aqui em casa.

 

Embora os Giants tivessem marcado um ponto e estivessem na linha dos três metros dos Steelers, Willy prestou toda a atenção a Alvirah.

 

Que é que percebeste, querida?

 

Os Gordons nunca puseram os olhos em Bessie disse Alvirah, triunfante. Testemunharam outra pessoa qualquer a assinar aquele testamento. Vic e Linda introduziram lá em casa uma dupla enquanto Bessie estava a ver os seus programas.

 

Duas horas depois, Alvirah e Willy chegaram à casa de Kate com Jim e Eileen Gordon a reboque. Já tinham alertado monsenhor Ferris e as irmãs Cordelia e Maeve Marie para que estivessem lá, e encontraram-nos sentados na saleta com uma Kate igualmente espantada.

 

Que se passa, Alvirah? perguntou Cordelia.

 

Vão ver. Os herdeiros vão juntar-se a nós, não é verdade? perguntou Alvirah.

 

Os Bakers? replicou Kate. Sim, eu disse-lhes que tu vinhas e que disseste ter uma surpresa para eles.

 

Maravilhoso. Já conheces estas pessoas simpáticas, não conheces, Kate? Jim e Eileen Gordon testemunharam... ou pensaram que tinham testemunhado... Bessie a assinar o testamento.

 

Pensaram que tinham testemunhado? disse o monsenhor.

 

Exactamente. Agora, Eileen, conte-nos o que aconteceu quando vieram cá naquele dia pediu Alvirah.

 

Eileen Gordon, com uma expressão ansiosa no rosto agradável, disse:

 

Bem, se se lembram, nós tínhamos saído com o Sr. Baker, para lhe mostrar um duplex simplesmente maravilhoso na Oitenta e Um Oeste, mesmo em frente ao museu. É um dos melhores edifícios na...

 

Eileen disse Alvirah, a lutar para controlar a irritação, fale-nos sobre o testemunho do testamento.

 

Oh, sim, bem, a Sr.a Baker tinha telefonado, e, quando chegámos aqui com o Sr. Baker, a Sr.a Baker pediu-nos para entrarmos sem fazer barulho. Disse que na saleta estava uma senhora de idade que não gostava de ser incomodada quando estava a ver os seus programas. A porta estava fechada, por isso subimos em bicos de pés as escadas para o quarto, onde a Sr.a Maher nos esperava.

 

Senhora de idade na saleta! explodiu Kate. Era Bessie!

 

Então quem estava no quarto? perguntou monsenhor Ferris.

 

Ouviram os Bakers a descer as escadas.

 

E se perguntássemos a Vic? sugeriu Alvirah quando o casal entrou na saleta. Vic, quem era a senhora a quem vocês vestiram a camisa de dormir cor-de-rosa às flores de Bessie? Uma actriz? Outra vigarista que também fez parte do golpe? Baker abriu a boca para falar, mas Alvirah não lhe deu hipótese. Tenho fotografias de Bessie que foram tiradas aqui há apenas algumas semanas, no dia de Acção de Graças... grandes planos bonitos, nítidos. Entregou as fotografias aos Gordons. Digam-lhes o que me disseram a mim.

 

Não temos dúvidas de que não é a senhora que estava na cama e que assinou aquele testamento disse Jim Gordon, a olhar para as fotografias.

 

Sim, há parecenças, mas esta não é a senhora concordou Eileen Gordon enquanto abanava vigorosamente a cabeça.

 

Conte-nos o resto, Eileen sugeriu Alvirah.

 

Quando viemos para baixo, a porta da saleta tinha-se aberto de par em par e vimos uma senhora de idade sentada naquela cadeira. Eileen apontou para a cadeira de Bessie. Ela não virou a cabeça, mas vi-a de perfil... ela era sem qualquer dúvida a senhora nas fotografias de Alvirah do dia de Acção de Graças.

 

Que mais precisa de ouvir, Vic, meu velho rapaz? perguntou Willy. Amanhã de manhã, Kate vai entrar com um pedido de contestação do testamento, os Gordons vão contar a sua história e dou-vos alguns dias antes de serem acusados, seus vigaristas.

 

Creio que chegou o momento de partirmos disse Vic Baker num tom agradável mas baixo. Devido a este mal-entendido vamos partir imediatamente, Kate. Vem, Linda. Vamos fazer as malas sem demora.

 

Vão e não voltem. Espero que vão para a prisão disse Alvirah enquanto eles saíam.

 

Disse-me para trazer champanhe disse monsenhor para Alvirah alguns minutos depois, quando estavam na sala de jantar e ele tirava a rolha da garrafa. Agora percebo porquê.

 

A irmã Cordelia e Kate estavam ambas apenas a começar a compreender o que tudo aquilo significava.

 

Agora nunca terei de deixar a minha casa balbuciou Kate.

 

E eu não terei de abandonar as minhas crianças exultou a irmã Cordelia. Deus seja louvado.

 

E Alvirah disse Maeve Marie, e ergueu a taça. Durante alguns instantes, uma sombra desceu sobre o rosto de monsenhor Ferris.

 

Agora era bom que conseguíssemos que ficasse tudo bem com aquela bebé perdida e recuperássemos o cálice roubado do bispo, Alvirah.

 

Como Alvirah diz sempre: ”As coisas só acabam no fim” disse Willy, orgulhoso. E, como eu sempre digo, aposto todo o meu dinheiro nela.

 

Tal como prometera, na segunda-feira à tarde Lenny foi buscar Stellina à escola.

 

Star disse ele apressadamente, a nonna acabou de ter um pequeno ataque e o médico foi lá a casa. Mandaram chamar uma ambulância. É possível que ela tenha de ficar no hospital durante algum tempo, mas vai ficar bem. Prometo-te.

 

Tem a certeza? perguntou Stellina, a olhar atentamente para os olhos dele.

 

Podes crer.

 

Stellina correu à frente, e quando virou a esquina viu uma maca a ser empurrada do apartamento deles, pelo passeio, na direcção de uma ambulância que estava à espera. Com o coração aos pulos, correu para ela.

 

Nonna, nonna gritou enquanto alcançava a adorada tia-avó.

 

Lilly Maldonado tentou sorrir.

 

Stellina, o meu coração não está muito bem, mas eles vão pô-lo melhor e depois volto. Agora tens de ir lavar as mãos e o rosto e pentear os cabelos e vestir a roupa de Virgem Maria. Não podes atrasar-te para a representação. E esta noite, depois do espectáculo, o teu papá vai levar algumas das tuas roupas para casa da Sr.a Nunez; vais dormir em casa dela até eu voltar.

 

Stellina sussurrou:

 

Nonna, Rajid, um dos reis magos, partiu o frasco que devia conter a mirra. Por favor, por favor, posso levar o cálice da minha mãe para ele transportar na peça? Era um cálice sagrado. A senhora disse-me que pertenceu ao tio dela, um padre. Por favor, eu vou cuidar muito bem dele. Prometo.

 

Temos de ir, pequenina disse o maqueiro, a apertar o braço de Stellina, a tentar afastá-la da maca. Podes visitar a tua nonna no Hospital de São Lucas. É na Rua 113, não longe daqui.

 

Os olhos de Stellina encheram-se de lágrimas.

 

Tenho uma oração que sei que vai tornar-se realidade se eu levar o meu cálice, nonna. Por favor, diga que posso.

 

Qual é a tua oração, bambina? A voz de Lilly estava pesada porque os sedativos que a equipa de emergência lhe administrara começavam a fazer efeito.

 

Que a minha mãe volte disse a menina, e as lágrimas começaram a correr-lhe pelas faces.

 

Ah, Stellina, bambina, se ao menos ela voltasse antes de eu morrer. Sim, sim, leva o cálice, mas não deixes o teu pai ver. Ele pode não deixar.

 

Oh, nonna, obrigada. Amanhã vou vê-la, prometo. Momentos depois, a ambulância afastou-se com a sirene ligada.

 

Temos de nos despachar, Star avisou Lenny.

 

A Apoio da Casa estava festivamente decorada com uma árvore de Natal e fitas verdes entrançadas. Durante o fim-de-semana, alguns voluntários tinham construído uma plataforma num canto da grande sala do primeiro andar para dar o efeito de um palco. Outro voluntário tinha pendurado antigos reposteiros de veludo de ambos os lados da plataforma. Cadeiras desmontáveis tinham sido trazidas para o público, e os pais e irmãos e amigos das crianças que entravam na peça começavam agora a entrar alegremente na sala.

 

Alvirah tinha chegado cedo para ajudar Cordelia e Maeve a vestir as crianças para a peça. Através de ameaças veladas, a irmã Cordelia conseguiu manter uma ordem razoável entre os excitados actores. Às quatro e dez, quando já estavam a ficar todos nervosos por causa dela, Stellina chegou.

 

Alvirah deu-lhe imediatamente a mão.

 

Atua nonna viu-te com esse fato? perguntou enquanto endireitava o véu azul sobre a farta cabeleira de cabelos louro-escuros de Stellina.

 

Não. Levaram-na para o hospital numa ambulância disse Stellina em voz baixa. O papá prometeu levar-me a visitá-la. Ela vai ficar melhor, Sr.a Meehan?

 

Oh, espero que sim, querida. Mas nós vamos ajudar a tomar conta de ti enquanto ela estiver ausente. Sabes como tivemos receio de ter de fechar a Apoio da Casa? Bom, agora, graças a um milagre, podemos mantê-la aberta... e isso quer dizer que te veremos todos os dias depois da escola.

 

Stellina sorriu tristemente.

 

Oh, fico muito contente. Sou feliz aqui.

 

Agora corre para ali e ocupa o teu lugar com São José. Queres que segure nesse saco? Alvirah esticou a mão para pegar no saco de plástico que Stellina apertava com força.

 

Não, obrigada. Tenho de dar o meu cálice a Rajid para ele levar. A irmã Cordelia disse que eu podia trazê-lo. Obrigada, Sr.a Meehan.

 

Enquanto ela corria para o local onde as outras crianças estavam reunidas, Alvirah ficou a observá-la. ”Que é que se passa com aquela criança? Faz-me lembrar alguém... mas quem?”, perguntou a si mesma enquanto ia para o seu lugar.

 

As luzes diminuíram. O espectáculo de Natal ia começar.

 

”Simplesmente maravilhoso!”, foi o comentário geral quando as últimas notas de A Noite Inteira se desvaneceram e os aplausos começaram. Máquinas fotográficas dispararam por toda a sala enquanto os pais agiam para preservar o momento. De repente, Alvirah puxou a manga da irmã Maeve Marie.

 

Maeve, quero que tires uma fotografia em grande-plano de Stellina disse ela. Ou melhor, diversos grandes-planos dela.

 

Claro, Alvirah concordou Maeve. Foi uma Virgem Maria perfeita. Quando cantou, vieram-me as lágrimas aos olhos. Pôs tanto sentimento nas palavras.

 

Pois pôs. Tem música na alma.

 

Um pensamento desvairado, louco, que começava a tornar-se uma certeza, tinha entrado na cabeça de Alvirah, mas ela não queria admiti-lo nem para si própria. ”Podemos começar por verificar a certidão de nascimento”, pensou, ”mas, oh, meu Deus, será possível?”

 

Tirei algumas fotografias muito boas dela disse Maeve alguns minutos depois, a segurar cuidadosamente as fotografias instantâneas que tinha tirado. Vão ficar mais nítidas quando acabarem de revelar. E tenho uma muito engraçada dela com Rajid. Ele está a devolver-lhe a taça de prata.

 

”A taça de prata? Não! O cálice!”, pensou Alvirah. ”Podes estar enganada”, avisou-se a si mesma. ”Podes estar a entusiasmar-te. Mas pelo menos uma coisa pode ser provada imediatamente.”

 

Se tens mais rolo, por favor tira alguns grandes-planos daquela taça, Maeve pediu Alvirah. Pede a Stellina que a segure para ti.

 

Vem, Alvirah chamou Willy. Tens de me entregar os presentes para oferecer às crianças.

 

Maeve, tira esses grandes-planos e fica com eles até mos dares ordenou Alvirah. Nunca largues as fotografias.

 

Apressou-se a ir para junto de Willy. Os presentes estavam sobre uma mesa atrás de si.

 

Muito bem, Pai Natal, este é para José anunciou ela calorosamente, e o rapaz estendeu as mãos, ansioso.

 

Willy colocou um braço à volta dele.

 

Espera um pouco, José. A irmã Maeve vem já tirar-nos uma fotografia.

 

Alvirah estava desesperada para sair dali, para poder esclarecer as suas suspeitas, mas era mais fácil acabar de ajudar Willy com os presentes do que arranjar outra pessoa para o fazer.

 

Entretanto, Cordelia e os seus voluntários estavam atarefados a distribuir doces e refrigerantes, embora algumas pessoas tivessem começado a sair. Com grande consternação, Alvirah viu que a Sr.a Nunez estava prestes a sair com José e Stellina a reboque.

 

Quando a chamou, Grace aproximou-se.

 

Para onde vai levar Stellina? perguntou Alvirah.

 

Por agora, vou deixá-la em casa explicou Grace. O pai dela vai levá-la para minha casa esta noite.Diz que primeiro quer jantar com ela, depois de sair do trabalho. Tenho de ir a casa da minha irmã, onde vou demorar algum tempo, mas ele disse-me que vai chegar cedo a casa. Ela sabe fechar a porta à chave, não sabes, Stellina?

 

Sei, sim. Oh, espero que ele saiba como está a nonna disse Stellina ansiosamente.

 

Dez minutos depois, todos os presentes tinham sido entregues e todas as fotografias estavam tiradas. Alvirah correu para a irmã Maeve Marie e pegou nas fotografias instantâneas. Depois agarrou no casaco.

 

Que se passa? perguntou Willy com a voz abafada pela ondulada barba de Pai Natal.

 

Tenho de mostrar umas fotografias a monsenhor Tom disse ela por cima do ombro. Vai lá ter comigo.

 

Disseram a Alvirah que o monsenhor tinha saído mas era esperado em breve. A rezar para que o tempo passasse depressa, ela esperou na sala-de-estar da reitoria, a andar de um lado para o outro. Willy e o monsenhor chegaram ao mesmo tempo, meia hora depois. O monsenhor vinha a sorrir.

 

Que surpresa tão agradável disse alegremente. Alvirah não desperdiçou palavras. Estendeu-lhe as fotografias.

 

Veja estas fotografias, monsenhor Tom.

 

Ele observou a fotografia de Stellina a pegar no cálice que Rajid lhe estendia durante a peça, depois olhou para o grande-plano que Maeve Marie fizera apenas do cálice.

 

Alvirah disse ele em voz baixa, sabe o que é isto?

 

Creio que sim. É o cálice do bispo Santori. E sabe quem penso que essa menina é?

 

Ele esperou.

 

Acho que é a bebé que foi deixada à porta da sua reitoria na noite em que o cálice foi roubado.

 

Grace Nunez acompanhou Stellina até à porta do apartamento que esta partilhava com a nonna e o pai. Observou como uma mãe enquanto a menina entrava, depois escutou enquanto ela trancava a fechadura dupla.

 

Até logo, querida disse do corredor, e depois foi-se embora, confiante de que Stellina nunca abriria a porta a ninguém a não ser ao pai.

 

O interior do apartamento estava silencioso e escuro; Stellina notou imediatamente a diferença. Sem a nonna, parecia estranho e solitário. Andou por todo o apartamento a acender as luzes, na esperança de alegrar o espaço. Ao entrar no quarto da nonna começou a tirar o fato de Virgem Maria, mas depois parou. A nonna tinha desejado vê-la com aquela roupa, e ela esperava que o pai a levasse ao hospital.

 

Tirou o cálice de prata do saco e sentou-se na ponta da cama. Segurar o cálice fê-la sentir-se menos sozinha. Anonna nunca tinha estado fora quando ela chegava a casa, nem uma única vez.

 

Às sete horas, Stellina ouviu passos a correr pelas escadas acima e pelo corredor. ”Não pode ser o papá”, pensou. ”Ele nunca corre.”

 

Mas depois ele estava aos murros à porta.

 

Abre a porta, Star! Abre a porta! gritou ele freneticamente.

 

Logo que ouviu o clique das trancas, Lenny rodou o manipulo e atirou-se para dentro do apartamento. Tinha sido um esquema! Tinha sido tudo uma armadilha! ”Ele devia ter sabido”, disse para si mesmo, furioso. O horrível tipo novo do grupo era um polícia disfarçado. Lenny tinha conseguido escapar por uma unha-negra quando percebera o que estava a passar-se, mas não tinha qualquer dúvida de que naquele preciso instante estavam a passar o Forte Lee a pente fino à sua procura, e daí a alguns minutos viriam procurá-lo em casa. No entanto, tinha de correr o risco de passar por lá os documentos de identificação falsos e todo o dinheiro que tinha estavam na mala que ele tinha feito e deixado ali naquela tarde.

 

Correu para o quarto e tirou a mala de debaixo da cama. Stellina seguiu-o e ficou parada à porta, a observar. Lenny voltou-se para olhar para ela e viu que ela tinha o cálice na mão. ”Bem, aquilo era bom”, pensou. Queria-o fora daquela casa, e quanto mais depressa melhor.

 

Vem, Star, vamos ordenou ele. Vamos pôr-nos a andar daqui para fora. Não tentes trazer nada a não ser o teu cálice. Sabia que provavelmente era doido por levar a miúda agora que a Polícia andava atrás dele, mas ela era o seu amuleto de boa sorte... a sua estrela da sorte.

 

Leva-me a ver a nonna, papá?

 

Mais tarde, talvez amanhã. Já te disse para vires. Temos de ir. pegou-lhe na mão e dirigiu-se para o corredor, a puxá-la atrás de si.

 

Stellina apertou o cálice de prata enquanto tropeçava ao tentar acompanhar o andar do pai. Sem fecharem a porta atrás deles, correram pelas escadas abaixo um lance, dois lances, três lances, e ela lutava para não cair.

 

No último patamar antes do átrio, Lenny parou abruptamente e ficou a escutar. ”Até agora, nada”, pensou, sentindo um momento de alívio. Só precisava de mais um minuto e estariam no carro que ele conseguira roubar, e depois estava livre.

 

Ia a meio do átrio quando a porta exterior se abriu abruptamente. Lenny segurou Star à sua frente e fingiu que pegava numa arma.

 

Disparam sobre mim e ela é quem leva o tiro gritou ele, sem convicção.

 

Joe Tracy estava à frente do esquadrão. Não estava disposto a arriscar a vida de uma criança, por muito fraca que soasse a ameaça.

 

Todos para trás! ordenou cautelosamente. Deixem-no ir.

 

O carro que Lenny tinha roubado estava a apenas alguns passos da frente do edifício. Os polícias observaram, impotentes, enquanto ele arrastava Star para o veículo, abria a porta do condutor e atirava a mala lá para dentro.

 

Entra e rasteja para o outro lado disse-lhe ele num tom de urgência. Sabia que nunca lhe faria mal, mas com sorte os polícias não faziam a menor ideia.

 

Star obedeceu, mas quando Lenny entrou e fechou a sua porta soltou-lhe a mão para girar a chave na ignição. Num momento de inspiração, ela abriu a porta do passageiro e saltou para fora do carro. Agarrada ao cálice, com o véu a voar atrás de si, correu pela rua enquanto os polícias cercavam o carro.

 

Dez minutos depois, Alvirah, Willy e monsenhor Ferris chegaram e encontraram Lenny algemado e sentado num carro-patrulha. Subiram as escadas para o apartamento e souberam que Stellina e o cálice tinham desaparecido.

 

Na sala-de-estar do apartamento onde Stellina tinha vivido nos últimos sete anos, contaram a Joe Tracy sobre o cálice e sobre a suspeita de que Stellina era a bebé desaparecida de São Clemente.

 

Um dos polícias saiu do quarto de Lenny.

 

Dá uma olhada nisto, Joe. Encontrei-o escondido entre a prateleira e a parede, dentro do armário.

 

Joe leu o bilhete amarrotado e depois estendeu-o a Alvirah.

 

Ela é a recém-nascida desaparecida, Sr.a aMeehan disse ele. Isto é a confirmação. É o bilhete que a mãe pregou ao cobertor.

 

Tenho de fazer um telefonema disse Alvirah com um suspiro de alívio. Mas só quero fazê-lo quando Stellina for encontrada...

 

Estamos a passar a cidade a pente fino à procura dela disse Tracy quando o seu telefone celular tocou. Escutou por alguns momentos e depois esboçou um sorriso radiante. Pode fazer o seu telefonema disse para Alvirah. Apequena Virgem Maria foi apanhada enquanto tentava ir a pé até ao Hospital de São Lucas para ver a sua nonna. Falou para o telefone. Levem-na lá ordenou. Vamos ter com vocês ao hospital. Voltou-se para Alvirah, que tinha pegado no telefone que se encontrava num aparador. Presumo que está a tentar entrar em contacto com a mãe da criança.

 

Estou, sim.

 

”Deus queira que Sondra esteja no hotel”, rezou Alvirah.

 

A Sr.a Lewis deixou recado de que está a jantar no restaurante com o avô disse o recepcionista. Quer que entre em contacto com ela?

 

Quando Sondra atendeu, Alvirah disse:

 

Apanhe um táxi o mais depressa possível e vá para o Hospital de São Lucas.

 

O detective Tracy tirou-lhe o telefone da mão.

 

Esqueça o táxi. Vou mandar um carro-patrulha buscá-la, minha senhora. Há uma menina que tenho a certeza de que quer ver.

 

Quarenta minutos depois, Alvirah, Willy, monsenhor Ferris e Joe Tracy encontraram-se com Sondra e com o avô do lado de fora do quarto de Lilly na unidade de cardíacos do hospital.

 

Ela está ali dentro com a mulher que a criou sussurrou Alvirah. Ainda não lhe dissemos nada. Você é que vai ter de lhe contar.

 

Pálida e a tremer, Sondra abriu a porta.

 

Stellina estava aos pés da cama, de lado para eles. A luz suave parecia aureolar os cabelos dourados, brilhantes, que se soltavam por debaixo do véu azul.

 

Nonna, estou tão contente por se sentir melhor estava ela a dizer. Um polícia simpático trouxe-me aqui. Eu queria que a senhora me visse com o meu vestido tão bonito. E como vê cuidei muito bem do cálice da minha mãe. Ergueu o cálice de prata. Usámo-lo na peça, e eu fiz a minha oração... para que a minha mãe volte. Acha que Deus vai mandá-la para mim?

 

Com um soluço, Sondra atravessou o quarto até junto da filha, ajoelhou-se ao lado dela e abraçou-a.

 

No corredor, Alvirah fechou a porta.

 

Existem alguns momentos que não devem ser partilhados disse com firmeza. Por vezes é suficiente saber que, se acreditarmos com força suficiente e durante tempo suficiente, os nossos desejos podem tornar-se realidade.

 

Duas noites mais tarde, no dia 23 de Dezembro, uma audiência que esgotava a capacidade de Carnegie Hall reuniu-se para o concerto de gala onde tocariam músicos de excepção no panorama musical mundial e que seria a estreia em Nova Iorque da brilhante jovem violinista Sondra Lewis.

 

Num camarote central de primeira, Alvirah e Willy estavam sentados com Stellina; o avô de Sondra; o namorado desta, Gary Willis; monsenhor Ferris; a irmã Cordelia; a irmã Maeve Marie e Kate Durkin.

 

Stellina, alvo de incontáveis olhares curiosos, estava sentada na primeira fila, com os olhos castanhos a cintilar de prazer, ditosamente inconsciente da comoção que estava a causar.

 

Durante dois dias, os jornais da cidade tinham contado a história da mãe e filha reunidas e da descoberta do cálice bem-amado. Era uma história de interesse humano maravilhosa e especialmente apropriada para a época do Natal.

 

Os artigos tinham incluído fotografias de Sondra e Stellina, e como Alvirah dizia:

 

Até um cego pode ver que Stellina é um clone da mãe. Não posso acreditar que não reparei mais cedo.

 

Quando questionado sobre a hipótese de processar Sondra por abandono, o procurador do Ministério Público tinha dito:

 

Seria preciso ser mais maquiavélico do que os meus inimigos pensam que eu sou para acusar aquela jovem. Ela cometeu um erro por não tocar à campainha da reitoria ao invés de correr para um telefone? Sim, cometeu. Será que ela, na altura uma miúda de dezoito anos, fez todos os possíveis para encontrar um bom lar para o seu bebé? Eu estou plenamente convencido de que sim.

 

Ao que o presidente da Câmara respondera:

 

Se ele a tivesse acusado, eu ter-lhe-ia transformado a vida num inferno.

 

Uma onda de aplausos começou quando o maestro entrou no palco. A intensidade das luzes da sala diminuiu, e teve início um serão de música excelente.

 

Alvirah, esplêndida num vestido de noite de veludo verde, pegou na mão de Willy.

 

Uma hora depois, Sondra apareceu no palco e recebeu aplausos estrondosos. Monsenhor Ferris inclinou-se para a frente e sussurrou:

 

Como Willy diria, conseguiu uma vez mais, Alvirah... e nunca esquecerei que foi graças a si que recuperei o cálice do bispo. É uma pena o diamante ter-se perdido, mas o importante é o cálice.

 

Acho que quem merece os louros é Willy sussurrou por sua vez Alvirah. Se a pauta de A Noite Inteira não estivesse aberta no piano, Sondra não teria tocado e cantado a melodia. Foi isso que me fez começar a pensar; depois, quando Stellina a cantou na peça, tive a certeza.

 

Sondra ergueu o arco e recostaram-se para escutar.

 

Olha para aquela criança murmurou Alvirah para Willy, a apontar para Stellina.

 

Claramente, a menina estava deslumbrada com o desempenho da mãe. O rosto de Stellina resplandecia de assombro.

 

Quando chegou o momento do encore e Sondra começou a tocar A Noite Inteira, olhou para o camarote onde a filha estava sentada. Audível apenas para as pessoas que estavam sentadas à sua volta, Stellina começou a cantar. Ninguém podia duvidar de que mãe e filha estavam a tocar e a cantar uma para a outra. Para elas, não existia mais ninguém no mundo.

 

As últimas notas desvaneceram-se e ouviu-se um sussurro. Depois, Willy inclinou-se e murmurou:

 

Alvirah, querida, foi uma pena eu não ter trazido a minha pauta. Não lhes tinha feito mal nenhum um pequeno acompanhamento ao piano. Que te parece?

 

                                                                                Mary Higgins Clark  

 

                      

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