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A PEDRA DA VIDA / Edith Pargeter
A PEDRA DA VIDA / Edith Pargeter

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A PEDRA DA VIDA

Primeira Parte

 

MARCAS DO PAÍS DE GALES - 1200

NA sua descida eterna, o anjo, de asas arqueadas e com os pés esguios bem estendidos, abria as palmas das mãos para a luz fulgurante. A sua cabeça delicada e juvenil, de longos cabelos loiros desalinhados pelo voo e ainda trementes após a jornada, inclinava-se num gesto solene de humildade. A vibração cintilante das suas enormes asas pairava imutavelmente no ar surpreso, para todo o sempre apaziguadora mas nunca apaziguada. Os seus olhos, semicerrados para se furtarem àquele brilho insuportável, libertavam também eles um esplendor insustentável e o seu rosto tinha a mesma tensão e a mesma intensidade que o seu corpo, capturado para todo o sempre no instante em que - do tronco aos quadris, das coxas ao peito dos pés - todas as suas forças se concentravam na descida, retesando-lhe os tendões prateados que estremeciam sob o desalinho estático das vestes douradas. O anjo tocava a terra com os seus pés esguios, nus e bem desenhados e a terra soltava um grito estridente, e o ar trémulo vibrava, qual corda de violino, esticada sob o arco da sua queda do céu.

Na sombra, por cima do anjo, o criador inclinou a cabeça sobre a sua obra e viu que a obra era boa.

Numa manhã fresca, poucos dias depois da Páscoa, Ebrard veio buscá-los a Shrewsbury. Vinha escoltado por três pajens armados, para satisfação do seu orgulho, e ostentava com brilho e garbo os atavios do seu recente título de cavaleiro, como se de novas vestes se tratasse. Os dois esperavam-no junto à casa da guarda e saudaram-no com todo o respeito, quando ele desmontou: Harry com um beijo fraterno, Adam com uma vénia profunda. E o abade Hugh de Lacy aproximou-se, a coxear, por entre a azáfama do enorme pátio, para abençoar a partida da comitiva. Na sua juventude, Hugh de Lacy ficara aleijado da perna esquerda, depois de, numa certa caçada, um javali ferido o ter derrubado e à sua montada, e a humidade primaveril provocava-lhe sempre dores no sítio onde os ossos fracturados haviam soldado tortos. Nos seus tempos, caçara javalis, lobos e veados, nem sempre com a devida licença; mas isso fora antes de, com os olhos postos na mitra, ter coberto a cabeça com o capuz do hábito.

Agarrando-os pelos ombros, o abade fê-los voltarem-se para si e disse:

- Bem, meus filhos, estais no bom caminho para vos tornardes homens. Conservai-vos fiéis ao que haveis aprendido connosco, fazei bom uso desses ensinamentos nas posições que sereis chamados a ocupar e tudo correrá bem. Sabeis ambos Latim e Francês, não é assim?

- Sim, padre.

- E também tendes alguns conhecimentos de música e algum talento para os usar?

- Sim, padre.

- E, quanto aos vossos dotes para talhar a madeira e a pedra, temos bons motivos para estarmos satisfeitos, pois eles enriqueceram a nossa casa.

Talvez fosse melhor não se alongar muito naquele ponto. Harry iria sentir amargamente a falta dos seus cinzéis e escopros: não havia necessidade de lho lembrar. Apesar disso, Hugh de Lacy não conseguiu reprimir um sorriso de prazer ao pensar no pequeno anjo de madeira que adornava o altar da Virgem. Tinha quinze polegadas de altura e uma fronte igual à do seu criador, com as mesmas sobrancelhas arqueadas, os mesmos olhos luminosos, de um brilho semioculto, o mesmo rosto alongado e ardente. Quer queira quer não, quando lança mãos à sua primeira obra, todo o artista acaba por a criar à sua imagem. Deus fez o homem à Sua imagem; Harry estava em boa companhia. Atormentado pela semelhança mas incapaz de identificar a origem de tal desconforto, o subprior nunca gostara daquele anjo. Sem dúvida que, para a sua mente metódica, só os demónios e nunca os ministros de Deus podiam ser tão bruscos e terríveis.

- Todos esses dotes são dádivas de Deus e, como tal, deverão ser fielmente utilizados e apreciados. Confio em que a vossa sabedoria nos assuntos do espírito seja igualmente boa e, acima de tudo, em que nunca vos afasteis desses ensinamentos.

- Sim, padre - responderam, em uníssono, o rapaz moreno e o rapaz louro.

Um e outro escutavam-no só com um ouvido e Hugh de Lacy sabia que assim era. Haveria algum rapaz de quinze anos capaz de prestar atenção a sermões, no dia em que ia abandonar a escola?

Estavam diante dele, lado a lado: Harry de cabelo escuro, magro e baixo, de queixo voluntarioso, maçãs do rosto salientes e a boca firme e ousada da sua linhagem; Adam, louro, de tez clara, um palmo mais alto que o seu senhor, olhos azuis e alegres, num rosto aberto como uma flor. O abade reparou nas mãos enlaçadas, a coberto dos corpos de ambos, e nas trocas furtivas de olhares, tão eloquentes que entre eles quase não havia necessidade de palavras. Separá-los, nem que fosse por uma hora, seria o mesmo que rasgar uma só carne. Não obstante, um deles era filho de um servo artífice e o outro um parente afastado do famoso conde, fundador da casa, que jazia sob uma pesada lápide na capela da Virgem, retornando ao pó envolto na túnica de São Hugo.

Os Talvace de Sleapford eram descendentes de um meio-irmão bastardo da primeira esposa do Conde Roger, que ligara o seu ao destino do conde quando da invasão de Inglaterra e que, mais tarde, se estabelecera num confortável castelo do senhorio de Montgomery, com o estatuto de cavaleiro, direitos de caça sobre a parte da floresta que lhe cabia e uma esposa saxónica, a quem duas aldeias prestavam homenagem e que lhe proporcionava uma certa margem de segurança. A família ainda se orgulhava de, geração após geração, perpetuar o rosto e o nome daquele antepassado e não se poupava a cuidados ao enumerar, passo a passo, todos os seus laços de parentesco com os senhores de Belesme, Ponthieu e Alençon.

Ebrard herdara o nome mas o rosto coubera a Harry. Só o diferenciavam os olhos, tantas vezes velados pela cortina espessa das pestanas e tão assombrosamente brilhantes quando os erguia. As pestanas e as sobrancelhas eram quase pretas mas, quando fitavam alguém, os olhos tinham uma tonalidade entre o azul e o verde como o alto mar e eram semeados de pontos luminosos cinzentos e dourados, irrequietos e versáteis. Eram os olhos da jovem sem dote, que viera da Bretanha e dera à luz o fundador da sua linhagem.

- Obedece ao teu irmão mais velho, como é devido, Harry. Serve-o com lealdade, quando ocupares o teu lugar, e estarás a cumprir o teu dever.

- Sim, padre - respondeu Harry, pacientemente.

A Primavera e o século estavam no início e a manhã radiosa parecia feita para novos começos. E, justiça lhe fosse feita, Harry mostrara ter algum sentido da solenidade do dia, pois apresentara-se tão bem lavado e penteado, com a sua melhor cota tão bem escovada, que Ebrard quase não reconhecera nele o diabrete renitente, que, cinco anos antes, fora enviado para a abadia de Shrewsbury, com o traseiro a arder das vergastadas mas trazendo pela mão o seu irmão de leite: a dupla recompensa pelas lágrimas que vertera e pela teimosia que demonstrara. Eudo fora bem tolo por deixá-lo levar a sua avante mas, antes e depois dele, quantos homens mais sensatos não haviam incorrido no mesmo erro, por mera exaustão?

- E tu, Adam, trabalha com zelo na tua arte e nunca ponhas em dúvida que Deus preza tanto o pedreiro honesto como o cavaleiro honrado ou o escrivão sábio, pois os Seus misteres são incontáveis.

Se calhar, haveria sido melhor não acentuar tanto a diferença entre os dois; afinal, isso só poderia levar Harry a apegar-se com maior teimosia ao irmão de leite. O abade passou a mão pelo rosto magro de feições patrícias, desejando do fundo do coração que nunca houvessem deixado o rapaz andar à vontade pelo pátio dos Boteler, onde descobrira a habilidade das suas mãos e a audácia da sua imaginação. A partir daquele dia, o jovem estava destinado a ter a seu cargo os registos do feudo de Sleapford, a exigir o pagamento das rendas devidas pelos feudatários de seu pai, a velar por que os servos não se furtassem às corveias - três dias semanais de trabalho gratuito, em tempo normal, ou cinco, na época das colheitas - a controlar o pagamento de merchets heriots1 e talhas. Que mais se poderia fazer por um segundo filho, nascido num domínio demasiado pequeno para valer a pena dividi-lo? Pelo menos, tinha recebido uma educação, julgada desnecessária para o herdeiro de seu pai, que mal sabia escrever o seu aristocrático nome. Se não havia título de cavaleiro para Harry, também não havia Latim para Ebrard.

 

1 Tributo pago pelo feudatário ao senhor da terra, pelo casamento de cada uma das suas filhas. (N. da T.)

2 Imposto de transmissão, a pagar pelos camponeses por morte do servo-rendeiro. Em geral, a melhor cabeça de gado ou uma das alfaias. (N. da T.)

 

- E com isto termino! Sei que tendes bom senso. Mas lembrai-vos de que tendes aqui um amigo, a quem podereis recorrer, seja quando for, em caso de necessidade. E vós, Ebrard, sede bom e paciente com estes dois jovens que levais a vosso cargo. A autoridade tem as suas obrigações.

Ebrard inclinou a cabeça, loira como o linho, sob a mão estendida. Herdara a tez pálida e levemente rosada e a ossatura fina da mãe e, aos dezanove anos, já media seis pés de altura. Ainda se sentia pouco à vontade no seu estatuto de cavaleiro, a que acedera poucos meses antes. Hugh de Lacy ainda se lembrava da cerimónia, no salão do castelo de Shrewsbury, pelo Natal, e da estrondosa gargalhada que irrompera das filas do fundo, onde se encontravam os jovens do séquito, no momento em que, ao pôr-se de pé, pálido e exaltado, Ebrard tropeçara na orla do manto e por pouco não se estendera ao comprido aos pés do castelão do rei. Por sorte, Sir Eudo Talvace não havia identificado o riso do filho mais novo mas o mesmo não acontecera com o abade nem com o pobre Ebrard, que abandonara o salão, de rosto corado que nem uma papoila. Corriam rumores de que o seu primeiro acto como cavaleiro havia sido espancar devidamente o irmão - e não sem algum fundamento. Aqueles dois estavam permanentemente desavindos. No momento do reencontro, não escapara ao abade a expressão gélida dos olhos azuis, que haviam medido Harry de alto a baixo, na expectativa de um desafio, nem o modo agressivo como o rapaz erguera de imediato o queixo para olhar de frente para o irmão mais velho. Perguntava a si próprio o que surgira primeiro, se o desafio ou a expectativa. Não havia inimizade em tudo aquilo. Um e outro ficariam atónitos, se alguém pusesse em dúvida o amor que cada um deles nutria pelo outro, como é devido entre irmãos. O azeite e a água não nutrem rancor um pelo outro. Todavia, o mais certo era os dois não chegarem a Sleapford sem terem passado a vias de facto.

- Deus vos acompanhe, meus filhos. Desejo-vos a mais agradável das viagens. E, quando vierem a Shrewsbury, espero ter-vos à minha mesa.

Harry montava a cavalo sem o aprumo do irmão mas o seu à-vontade calmo e distraído suplantava a elegância rígida e estudada de Ebrard. É por não haver aprendido a arte das armas, pensou o abade, observando-os. Para Harry, um cavalo é um meio cómodo de viajar de um lado a outro. Não se sente nada exaltado por montar a cavalo e cair dele abaixo não lhe causará mais humilhação do que a qualquer jornaleiro. Para Ebrard, um cavalo era o símbolo da sua posição. Cair da montada rebaixá-lo-ia aos seus próprios olhos; o que seria uma queda desastrosa.

Hugh de Lacy ficou a vê-los cruzar o portão: Ebrard adiante, Harry e Adam atrás, já a rir e a cochichar, Com o seu sorriso pronto, os cabelos cor de palha e uma sólida nuca morena, que o capuz caído sobre os ombros deixava a descoberto, o filho do servo era o mais belo dos três. Para já não falar da sua natureza, tão radiosa e cândida como o seu rosto. Não era de admirar que Harry se apegasse tanto a ele.

O tempo acabará por resolver tudo, disse o abade para consigo. Todavia, o pensamento não o confortou. O tempo bem poderia haver já separado sem dor os dois rapazes mas a verdade era que apenas havia contribuído para os aproximar ainda mais. Porque não haveria a esposa de Eudo de ser tão robusta como a de Boteler, capaz de aleitar o seu próprio filho?, interrogava-se, exasperado, enquanto se encaminhava para o claustro. E, mais tarde, porque fora Eudo tão tolo? A altura de os separar sem atritos passara havia muito, quando os dois haviam aprendido a montar a cavalo ou mesmo a correr, mas o velho andava demasiado ocupado com o seu herdeiro para se dar conta de que era preciso cuidar do filho mais novo. Se, ao menos uma vez, enquanto ainda era tempo, houvesse olhado para Harry com os olhos de um pai e, mau grado as lágrimas e os ataques de cólera, houvesse mandado com ele outro criado, e não Adam, sabe Deus quantos dos problemas que estavam para vir não haveria poupado a si próprio e ao rapaz.

Ou então, já que haviam sido feitas para se amarem, contra tudo e contra todos, porque não haviam aquelas duas jovens criaturas nascidas como irmãos verdadeiros, igualmente predestinados ao ofício de pedreiro? Como? E ambos homens não livres?

O que é a liberdade?, meditava o abade, voltando-se para lançar um último olhar aos gémeos que não eram gémeos. Diga-me quem souber qual daqueles dois é o servo e qual o homem livre.

Passaram pelo moinho, onde o escoadouro do tanque da abadia se lançava no regato, no ponto onde este fazia uma curva, para depois galgar de um salto os últimos metros que o separavam do rio. Sobre a ponte de pedra, iam e vinham pesadas carroças que se arrastavam penosamente entre o moinho e a cidade. A abadia detinha, para os seus moinhos, o monopólio de moagem de toda a vila e o prior velava por que esses direitos não fossem infringidos, pois rendiam mais dinheiro do que todas as outras rendas daquela margem do rio.

O caudal do Severn ia alto mas as águas azul-prateadas e de um castanho-acinzentado, nas zonas sobre as quais a vegetação das margens lançava a sua sombra, corriam placidamente sob o céu sem nuvens. Nas últimas vinte e quatro horas, o nível descera três pés e a enchente da Primavera já estava a passar. Para lá da ponte, erguia-se a colina de Shrewsbury, duplamente cingida pelas águas do rio e pela muralha e, à direita, no local onde o rio deixava a descoberto um istmo de terra, a enorme e pesada silhueta do castelo do Conde Roger dominava o promontório, e o denteado das ameias das suas torres parecia roer o céu. Entre o castelo e a ponte, toda a encosta exterior à muralha estava coberta pelos socalcos das vinhas da abadia. Nodosas e escuras, cheias de rebentos por desabrochar, as vinhas mais pareciam espinheiros.

- Tu e o teu anjo! - comentou alegremente Adam, quando iam virar para Sul, atravessando a ponte sobre o regato. - Que tem o anjo de especial? Se pudesses, eras bem capaz de o roubar, penso eu. Só falas do anjo e não dizes nada sobre o resto do trabalho. Não gostas dos capitéis que talhaste?

- Não são maus mas não passam de cópias. Bem, não são exactamente cópias. Lembras-te dos desenhos do mestre Robert, de Canterbury? Foi neles que eu pensei, quando fiz os meus desenhos. Não copiei os dele mas também não criei nada de novo. Só me dei conta disso depois de os içarem para os respectivos lugares. Podiam ter sido feitos por qualquer pessoa.

- Ah, estás a ser demasiado exigente! Não sabes que todos os homens que talham a pedra se servem daquilo que outros já talharam? Será que tudo aquilo que tu fazes precisa de ser original? É verdade que conseguiste fazer uma coisa realmente nova com a quintana, na última Terça-feira Gorda - acrescentou Adam, com malícia. - Aquilo foi mesmo uma coisa única! Nunca vi ninguém levar tantas na cabeça num terreiro de jogos...

Não fora o primeiro - e por certo não seria o último - desaire espectacular de Harry no domínio das actividades viris e a desonra sofrida não deixara ressentimentos mas, ouvir aquilo, fê-lo sentir-se na obrigação de estender o braço, agarrar Adam pelo pescoço e puxá-lo, fazendo-o desequilibrar-se. Para não cair, Adam segurou-se ao arção da sela com uma das mãos e, com o outro braço, rodeou a cintura de Harry. Os dois rapazes lutaram em equilíbrio precário, rindo, ofegantes. Habituados àquelas tropelias, os cavalos alinharam-se flanco com flanco e pararam, resfolegando baixinho. Tal como Adam, os animais aceitavam sem compreender. Adam recuperou o equilíbrio sobre a sela e tentou erguer o adversário, mais leve, do cavalo, mas Harry enfiou os dedos da mão livre por baixo da túnica castanha, chegou às costelas que esta cobria e fez cócegas até Adam se contorcer, morto de riso e sem forças.

- Não! Pára, Harry! Ainda me fazes cair!

- Claro que te faço cair. E não vou ter piedade! Pede-me perdão! Pedes ou não pedes?

Ebrard, que se voltara para trás na sela, gritou-lhes, em tom peremptório, que parassem com aquelas parvoíces e seguissem em frente. Era tal o desagrado que vibrava na sua voz que os dois se afastaram de imediato. Mesmo àquela distância, era visível o franzir de sobrolho colérico de Ebrard. À pressa, os dois rapazes conseguiram assumir um certo ar de compostura e esporearam as montadas para se juntarem a ele, mas não deixaram de trocar ameaças nem de rir.

Ebrard estava à espera deles, com um olhar irado e a boca contorcida num ricto de cólera.

- Pelo amor de Deus! Será que tendes de estar sempre a brincar? Não tivestes já tempo suficiente para vos divertirdes? Antes de completar quinze anos, já eu ia no meu segundo ano ao serviço de FitzAlan e toda a gente esperava que me portasse como um homem e não como um garoto de sete ou oito anos. E era bom que tu, jovem Harry, aprendesses como é, porque os anos de boa vida junto dos frades já acabaram. Pergunto a mim próprio por que foi que o nosso pai te deixou ficar lá tantos anos, a perder tempo com tão pouco proveito. Ouvi falar dos teus trabalhos em pedra e em madeira e das tuas outras excentricidades. Até ouvi qualquer coisa acerca dos teus versos mas não ouvi nada acerca de teres levado a cabo nada de sensato. Pensas que o pai te mandou para a escola, poupando-te aos rigores da vida de um homem, para andares a brigar que nem um cachorrinho rafeiro e para te divertires a esculpir madeira?

- Eis um belo sermão, só por causa de uns minutos de brincadeira! - respondeu Harry, com o rosto calmo e em tom conciliatório, inclinando-se humildemente. - Juro-te que o meu Latim não fica a dever nada ao do velho Edric e que sei contar suficientemente bem para meter na ordem aqueles que nos devem dinheiro. Não desperdicei o tempo todo.

- É difícil acreditar que hajas adquirido tantos conhecimentos, já que, por esta altura, ainda não te livraste dos modos infantis. Não abona nada a teu favor, nem a favor dos teus mestres, ver um Talvace em folguedos, no meio da estrada, como se fosse um camponês. E tu, jovem Adam, deixa-me que te aconselhe a não lhe fazeres tão prontamente a vontade. Tomas demasiadas liberdades com essas tuas mãos.

Enquanto falava, Ebrard fez estalar o pequeno chicote de montar, cuja extremidade bateu ao de leve nas costas da mão com que Adam segurava as rédeas. Era mais um gesto do que um golpe e só a surpresa levou Adam a colocar a outra mão sobre a que fora atingida. Foi Harry quem reagiu, retendo a respiração, foi Harry quem empalideceu de raiva e mergulhou para a frente sobre a sela, como se quisesse atirar-se à garganta do irmão. Ebrard encontrava-se entre os seus dois pupilos e Adam nem sequer podia agarrar a manga do braço estendido de Harry ou dar-lhe um pontapé na canela para o chamar à razão. Inclinou-se para a frente, de sobrolho franzido e a abanar veementemente a cabeça, tentando evitar a explosão iminente. Por alguns instantes, ficaram os três muito juntos e a tensão era tal que os cavalos se mostraram agitados. Depois, tudo acabou de repente.

Harry baixou as mãos e endireitou-se sobre a sela. Os contornos da sua boca e das suas narinas estavam lívidos, o seu queixo parecia de pedra e, por alguns segundos, não se atreveu a descerrar os dentes, com medo do que poderia sair-lhe boca fora. Depois, engoliu os resíduos amargos da raiva e disse com uma calma penosa:

- É injusto! Fui eu que me atirei a ele. Ele só se agarrou a mim para não cair.

- Não duvido de que fosses tu a começar. Mas já é tempo de ele dar mostras de algum bom senso, já que tu não tens nenhum. Permites-lhe demasiadas familiaridades e ele pensa que pode fazer tudo. Será melhor não deixares o nosso pai perceber quão pouco te prezas, nem ver-te fazer figura de tolo, a brincar assim com o Adam.

Ebrard esporeou o cavalo, afastou-se dos dois e avançou um pouco, antes de dizer, por cima do ombro:

- E agora, vamos embora! Estamos a perder tempo.

Adam, que havia muito aprendera a conformar-se com aquelas tempestades passageiras, aguardou com resignação que Harry provocasse o destino, gritando uma última tirada furiosa contra o irmão mais velho, e espantou-se por não ouvir nem mais uma palavra. Era realmente uma novidade Harry estar a aprender a ter juízo suficiente para ficar de boca calada. Em silêncio, os dois rapazes aproximaram-se um do outro, em busca de conforto, e cavalgaram lado a lado, esmagados por uma humilhação que, todavia, ambos consideravam desproporcional ao que a motivara. Adam sentia no próprio coração o peso da cólera amarga de Harry. Por que seria que ele dava sempre tanta importância a coisas tão insignificantes?

Um ano antes, Adam tê-lo-ia sacudido, agarrando-o pelo ombro, sem pensar duas vezes, e ter-lhe-ia dito sem rodeios que não fosse parvo. Agora, com uma timidez que não lhe era habitual, estendeu a mão para tocar no ombro de Harry mas, de olhos postos nas costas tensas de Ebrard, hesitou e retirou-a antes de os seus dedos terem aflorado a manga de tecido grosseiro. Já havia sido chamado à atenção por tomar demasiadas liberdades e a última coisa que queria era dar a Ebrard a mais ínfima razão para insistir em tal acusação.

Pelo canto do olho, Harry viu o gesto esboçado por Adam e, num movimento brusco mas silencioso, voltou-se, agarrou a mão que se afastava e segurou-a com firmeza, com mais firmeza ainda quando Adam esticou a cabeça na direcção de Ebrard, num gesto de advertência, e tentou libertar-se da mão que segurava a sua. A marca do chicote, uma mera língua vermelha serpenteante, já quase não se via mas Harry contemplava-a como se fosse uma ferida mortal e recusava-se a soltar a mão de Adam.

A meio da tarde, perto da pedreira de Rotesay, uma carroça puxada por uma parelha de cavalos subia lentamente da pedreira para a estrada, carregada de pedra cinzento-pombo. A lama, de um cinzento igual ao da pedra, que se descolava das ferraduras, chegava quase ao eixo das rodas e, ao fazer a curva, com a ajuda de golpes de ombros a cada roda, a carroça rangeu penosamente até chegar por fim a solo mais firme, com um forte ruído de sucção. Ebrard abrandou o andamento para a deixar passar e, no momento em que os dois rapazes chegaram junto dela, a carroça saía da sombra das árvores para a luz. Iluminada pelo sol, a pedra soltava chispas de um dourado claro e cremoso, como um halo que rodeava a sua delicada superfície cinzenta.

O rosto de Harry iluminou-se ao mesmo tempo que ela e o jovem puxou pela manga de Adam, esquecendo todas as decisões que tomara quanto a ser discreto.

- Olha! Alguma vez viste uma cor tão bonita? Era com uma pedra assim que eu gostava de construir! Imagina uma igreja feita com uma pedra como esta. Imagina essa igreja num dia de Primavera, num dia meio soalheiro, meio enevoado, a mudar de aspecto como o rosto de uma mulher, diferente a cada instante que passa. A despertar de novo para a vida, todas as manhãs.

- É uma boa pedra - reconheceu Adam, estudando-a com o olhar do artesão, como teria feito o seu pai. - E é fácil de trabalhar. Não é muito difícil de talhar mas, apesar disso, é dura. Dizem que resiste ao tempo, como o granito. Há outra pedreira com uma pedra parecida com esta. Tem um acesso mais fácil mas não é segura, porque fica muito perto da fronteira de Gales. Fui lá uma vez, com o meu pai, e lembro-me do jogo da luz sobre a superfície de corte. Parecia uma mina de sol.

- Uma pedreira tão grande como esta?

- Três vezes maior.

- Não te esqueças dela, para quando construirmos a nossa igreja. Vou precisar de um grande fornecimento - disse Harry, cravando os dedos no braço de Adam e sacudindo-o com gestos febris. - Agora já sei... ou começo a saber... qual a forma que quero dar a essa igreja.

Não ia ser como a igreja da abadia, pensou Harry, rejeitando pela primeira vez, de forma consciente, aquele esplendor pesado, de um peso a que não se podia escapar. Aqueles grandes arcos de abóbada atraíam os olhos para o alto mas, depois, obrigavam-nos a baixar de novo, como se seguissem a trajectória de uma pedra. Uma igreja não devia dar a sensação de ser um túmulo fechado nem parecer uma paisagem imóvel, carregada de gelos eternos.

- Sabes, Adam, em que estive eu a pensar esta manhã, na Capela da Virgem? Estive a pensar que, se dependesse de mim, tirava de lá o túmulo do Conde Roger. Parei a olhar para ele e fiquei muito irritado. Ali está aquele túmulo, num sítio onde o espaço devia ser aberto, para as linhas das naves laterais levarem as pessoas direitinhas ao altar...

- Ao altar... e ao teu anjo! - interrompeu Adam, num tom alegre.

- Deixa o meu anjo em paz. Estou a falar a sério! As linhas dos arcos deviam limitar uma nuvem de luz. Mas, em vez disso, ali onde deveria haver espaço, onde deveria haver luz, está aquela coisa horrenda que mais parece entulho, aquela coisa sombria. Eu tirava dali aquele túmulo, sem a mínima hesitação.

- Ainda bem que não falaste nisso. Até o padre Hugh ia ficar chocado.

Adam ultrapassou a parelha de cavalos, que avançava lentamente, e continuou a falar em voz baixa, porque Ebrard, mais susceptível do que o abade a um tal sacrilégio, seguia apenas a alguns passos de distância.

- Lembras-te de, uma vez, teres dito a mesma coisa ao subprior, a propósito do crucifixo que está por cima do jubéu do coro? Disseste que estragava as linhas do telhado e que devia ser tirado dali. Meu Deus! A vontade dele foi estragar as tuas linhas!

- Fui demasiado sincero mas tinha razão. E também nunca desdisse o que havia dito.

Harry olhou para trás. Era um olhar que acariciava com paixão as faces lisas da pedra cor de mel. Depois, acrescentou:

- Ah, Adam, do que eu preciso é de pedra! A madeira é bonita mas a pedra é melhor! A pedra é o melhor que há!

 

Depois de um dia interminável e escaldante no campo, na ceifa, o ar quente que circulava naquele recanto do salão fazia sono e Harry cabeceava sobre os registos do senhorio.

«Na aldeia de Sleapford há 28 servos e no lugar de Teyne 13, cada um deles com uma jeira de campo. Sleapford tem 12 servos semilivres e Teyne tem 5, cada um deles com meia jeira de campo. Os servos trabalham 3 dias por semana até à festa de São Pedro e 5 dias dali em diante e até ao São Miguel, os servos semilivres na proporção dos seus benefícios. Sleapford tem 14 rendeiros e Teyne tem 5...»

Harry sabia quase tudo aquilo de cor: do número de porcos, carneiros e juntas de bois que havia na granja do castelo, às mais míseras rendas das courelas das colinas sobranceiras a Teyne, desbravadas por segundos filhos empreendedores que, tal como o próprio Harry, não tinham qualquer herança à sua espera. Voltar a copiar tudo aquilo era uma perda de tempo, pensou Harry, pois as listas datavam de alguns anos atrás e ele poderia facilmente escrever um registo actualizado. Mas não era boa política dar mostras de conhecer bem demais os assuntos do pai, nem o número dos seus aforados e servos. Por isso, Harry copiou tudo, laboriosamente e sem perder o bom humor: deixámos congratular-se por ele estar a aprender o ofício. Dentro de alguns minutos, já não haveria luz e poderia sair dali. E o dia havia sido tão bonito. Bastava-lhe fechar os olhos para rever o dourado intenso das espigas de trigo ainda por colher, suavemente inclinadas sobre o imenso campo banhado pelo sol, separadas por faixas de terra em pousio, verdes e poeirentas, e a tonalidade pálida do restolho eriçado, onde o grão já havia sido ceifado e recolhido pelas carroças. E para rever o rosto corado e a figura bronzeada de Adam, descalço, a substituir o pai na corveia, assobiando e rindo, enquanto manejava a foice. Ainda sentia nos calcanhares as picadas do restolho fresco, enquanto ia rememorando o voo lânguido das borboletas por entre a palha e, nas faixas de terra em pousio, queimadas pelo sol, as pequenas joaninhas, vermelhas e pretas, esvoaçando em bandos, como flores agitadas pela brisa, e as ervilhacas e morriões escarlates, descoloridos pela poeira dourada do Verão. Ainda sentia na boca o gosto da cerveja acabada de fazer e, nas narinas, o odor subtil do grão morno.

O velho Edric, escrivão ao serviço do pai de Harry havia trinta anos, lançou uma vista de olhos, abanou a cabeça e fez um trejeito, ao ver a caligrafia redonda e infantil do seu discípulo. Estava a chegar ao fim a primeira semana de Harry com os registos do senhorio e seria o mestre e não o discípulo quem teria de responder pela exactidão dos números perante o seu senhor.

- Há aqui um erro, Harry. Incluístes Lambert entre os servos que trabalharam hoje no campo perto do prado. Ele não esteve lá, que eu bem dei pela sua ausência.

O diabo do homem!, pensou Harry, que sabia perfeitamente que Lambert passara o dia com os seus dois galgos e o arco, enquanto todos os outros homens do condado se afadigavam na ceifa. Não havia mês melhor do que Agosto para a caça furtiva.

- Claro que esteve lá! Não o vimos passar com uma carroça carregada de feno, quando voltava do campo? Por certo que vos lembrais.

- Era Leofric quem conduzia os bois - replicou o velho, embora parcialmente abalado pela convicção de Harry.

- Eram dois homens, senhor. Lambert vinha atrás? a cantar, com o aguilhão. Não é possível que não vos lembreis!

Com algum espanto, Harry percebeu que marcara um ponto. Seria possível que o tonto do velho já duvidasse da própria memória?

- Vamos deixar como está - acrescentou rapidamente Harry, ao ver a silhueta corpulenta do pai, a descer pesadamente a escada do solar. - Amanhã de manhã, peço ao intendente que confirme aquilo que escrevi ou que me corrija, se for caso disso. Mas vereis que não me enganei.

Tratava-se de um subterfúgio, do qual se sentia envergonhado, mas não podia denunciar Lambert aos guardas-florestais. Tinha de sair, de manhã bem cedo, para dizer a Lambert e ao intendente que contassem a mesma história. Mas ia obrigar o culpado a prometer que cumpriria honestamente a sua corveia até ao fim da ceifa. Era o mínimo que se podia pedir a alguém que conseguira pôr na salga pelo menos uma peça de caça grossa.

- Está bem! Vamos então deixar como está. Mas não vos esqueçais de tratar do caso de manhã. Cometestes muito poucos erros, é forçoso reconhecê-lo.

E, graças a Deus, Edric fechou os registos, no momento em que Sir Eudo descia lentamente os últimos degraus e se dirigia para eles, com o seu andar pesado. Vinha acompanhado por Ebrard, um Ebrard de rosto vermelho até à marca do gorro, por haver apanhado demasiado sol, e o cabelo loiro quase branco. Passara a tarde toda fora de casa, a treinar um esmerilhão, fazendo-o voar preso a uma corrente, que ainda trazia enrolada à volta da mão enluvada. Com ele, entrou na sala um halo quente de alegria e um cheiro a estábulo e a cavalariça.

Sir Eudo puxou um escabelo com o pé e sentou-se, com um grande suspiro de satisfação de um homem forte, a envelhecer mas cheio de saúde.

- Então? Como se tem portado o nosso escrivão?

- Tem feito progressos, Sir Eudo, bastantes progressos. Esta semana, ocupou-se dos registos sozinho, sem ajuda, e, tirando a caligrafia, quase não há erros a apontar-lhe. Mas isso não é nada que o tempo e a prática não possam melhorar.

- Então, ele faz bem as contas - disse Sir Eudo, com rudeza, coçando a densa barba grisalha com os dedos ásperos.

O som que produziu fez lembrar a Harry o ruído que as solas dos seus sapatos haviam produzido ao assentar no restolho.

- Pouco me importa que a caligrafia dele seja a mais ilegível que alguma vez se viu num pergaminho.

Por cima dos pêlos hirsutos que lhe cobriam as faces, Sir Eudo fitou o filho mais novo com uns olhos penetrantes, ligeiramente avermelhados por causa da cerveja e do vinho, ligeiramente comprimidos por papos de gordura provocados pela boa vida e pela idade, mas muito vivos e sagazes.

- Diz lá, Harry, há alguma coisa que requeira a minha atenção? O Walter Wace voltou a mandar o filho idiota fazer a corveia em vez dele? Mando-lhe arrancar a pele, se ele volta a fazer isso, nem que seja só uma vez. Afinal, o homem tem quatro rapagões que são bons da cabeça.

- Não, senhor, mandou o Michael. Em minha opinião, é o melhor dos quatro. De qualquer modo, não podia mandar o Nicholas porque o coitado está doente. Como sabeis, sempre foi uma criatura frágil...

- Só sei que ele não trabalha - atalhou Sir Eudo vivamente. - Não há intendente que o faça mexer as pernas.

- Em meu entender, senhor, o Nicholas é doente desde que nasceu e é uma vergonha o Walter mandá-lo trabalhar no campo.

Harry pegou nos registos e abriu-os, a fim de ganhar tempo para reprimir o tremor que se apossara da sua voz, ao falar do jovem idiota dócil, que nunca se queixava. Wace ficaria contente se Nicholas morresse, libertando-o de mais uma boca para alimentar e de um par de mãos inúteis. Mas, quando tinha quatro anos e brincava nos campos com Adam, Harry aprendera dessa mesma boca os nomes das flores que cresciam entre as ervas. E também haviam sido as mãos de Nicholas que, docemente, o haviam afastado do riacho e da barreira. Harry franziu o sobrolho sem desviar os olhos dos registos e, lentamente, porque se tratava de uma oportunidade e era preciso avaliar rapidamente como a aproveitar melhor, disse:

- Há poucas coisas que requeiram os vossos cuidados, meu pai. A primeira diz respeito à renda de Thomas Harnett, que ainda está em dívida. Lembrais-vos que ele teve um acidente e não tem podido cuidar do seu ofício. Até acedestes a esperar algum tempo. Ele ainda não pagou mas se...

- Mas se! - repetiu Ebrard, num tom arrastado. - «Mas se» para quê? Se não pagar, é dono de um belo cavalo que servirá muito bem para saldar a dívida. Para que é que um homem que faz rodas quer um animal como aquele?

- Com vossa licença, senhor... eu não o penhoraria. Penso que ficareis a ganhar, se lhe concederdes mais dois meses. A mulher e a filha dele matam-se a trabalhar, semeando e gradando os seus parcos acres, e conseguiram a melhor seara dos últimos anos. Ainda está no campo. Se o privardes do cavalo - acrescentou Harry, tentando não se mostrar triunfante antes de tempo - elas demorarão mais tempo na ceifa e quem sabe quantos dias irá durar este bom tempo? Eles podem perder tudo e vós a renda que vos devem... pois Thomas será um rendeiro menos útil, se ficar sem o cavalo.

O velho cavaleiro observou-o atentamente mas Harry manteve os olhos fixos nos registos e o rosto inexpressivo. Sir Eudo resmungou e endireitou a manga da cota sobre o braço gordo.

- Está bem. Não vou apertar o cerco até eles acabarem a colheita. Concedemos-lhe mais dois meses. Que mais?

- Há uma dívida em suspenso de Giles, de Teyne, que, este ano, não pagou o seu tributo em ovos, pela Páscoa, nem os dois xelins pela festa de São Pedro.

- E nunca pagará - declarou Ebrard - nem que lhe penhoreis todos os tristes haveres que tem no casebre. Passa o tempo todo a beber e a pescar. A sua jeira não produziria um penny, se fosse ele a trabalhá-la. É o filho que faz o melhor que pode para tirar de lá alguma coisa. Ele veio trabalhar na ceifa?

- O Giles? Não! Mandou o pobre Wat em seu lugar. O infeliz quase desfalecia de cansaço, porque trabalhou até ao cair da noite na terra de seu pai, depois de ter trabalhado nas nossas. E, esta noite vai ser o mesmo, que eu bem sei. Posso falar com o intendente, pai, para mandar o rapaz para casa, se ele voltar amanhã? Ainda nem tem catorze anos. Temos motivo legal para o recusar, por não cumprir as condições, pois ainda não tem idade.

- E deixar que o Giles não cumpra os seus deveres? Nem pensar nisso, rapaz! Que conversa tola vem a ser essa?

- Não, senhor, não era isso que eu queria dizer. Assim, o Giles seria legalmente responsável pelas suas próprias faltas. Acusai-o a ele, despojai-o do que ele tenha de seu...

- Ele não tem nada de valor e tu sabes isso. É mais escorregadio do que um peixe na água. Nunca conseguiria recuperar o que me deve.

- Tem bom corpo e um sorriso descarado - observou Ebrard. - São atributos de peso. Vendei-o. Ou oferecei-o ao Oratório, se não houver quem o compre. Só tereis a ganhar se vos virdes livre dele.

- Dele e da sua terra? Sem ela, podes crer que não me ficariam gratos.

- Se me permitis, Sir Eudo - interveio o velho Edric - aconselhar-vos-ia a vender antes o jovem Wat. É um rapaz inteligente, de boa constituição, e a abadia de Shrewsbury ficaria contente por o receber e treinar para a sua companhia de arqueiros. E não se punha a questão da terra, porque ele não tem terras. A venda pode ser feita, mal o rapaz complete os catorze anos. Obteríeis um bom preço por ele e os monges dariam o dinheiro por bem empregue. E isso ajudaria a formar o carácter do rapaz. Depois, poderíeis obrigar o Giles a trabalhar e, se ele não viesse, poderíeis exigir justiça, pois já não teria ninguém a quem mandar em seu lugar.

Sir Eudo atirou para trás a cabeça grisalha, redonda como uma bola, e, voltado para o tecto manchado de rumo, soltou uma gargalhada atroadora.

- Bem pensado, velhote. É isso mesmo que vou fazer. Toma nota, Harry, toma nota!

Harry ficou a olhar para o pai, de olhos muito abertos, numa expressão de espanto.

- Vendê-lo? Vender o Wat? E... a mãe dele? Não podeis fazer isso, meu pai! Destroçaríeis o coração dela.

Harry pensara que tudo iria correr bem mas, afinal, as coisas estavam a correr da pior maneira possível. Nem o rapaz nem a mãe se importariam, se, como castigo pelas suas faltas, o seu senhor mandasse para a prisão aquele pai e marido inútil. Pensara que isso seria o pior que poderia acontecer e, agora, Edric - logo o Edric! - sugeria aquela terrível alternativa. «Vender!...» A palavra ficara-lhe atravessada na garganta. Harry revia a imagem do rapaz, sonolento, a esfregar os olhos com as costas da mão que segurava a foice, e revia-se a si próprio, debruçando-se sobre o ombro nu e tirando-lhe a foice da mão. «Vai para aquela meda, arranja um canto tranquilo e dorme. Estás a ouvir? Não tenhas medo, eu acordo-te ao meio-dia, para almoçares.» O feno era uma cama mais confortável do que a que Wat tinha em casa. E raramente se regalava com tanto pão, cerveja e carne de porco. «Vender o Wat!» Quantas vezes ouvira dizer, sem prestar atenção, que essas coisas aconteciam!

- Por amor de Deus, rapaz, o que é que estás para aí a dizer? Porque não hei-de ceder um dos meus servos à abadia, se me apetecer fazê-lo? Tenho ou não tenho esse direito?

- Sim, meu pai, eu sei que tendes. E também sei que o fazeis para bem de Wat. Mas...

Mas vender Wat! Como quem vende uma peça de tecido, um alqueire de farinha ou um pedaço de carne na loja do talhante. A transacção era feita do mesmo modo: recebia-se o dinheiro e entregava-se a mercadoria.

- Mas, mas, mas... - A cor subira às faces de Sir Eudo, que começara a gritar. - Há alguma coisa que te ofenda, Harry? O garoto vai ficar melhor ou não? Não vai comer melhor do que jamais comeu e a horas certas? Não vai ter boas vestes com que se cobrir? Não vai ser melhor tratado do que em casa? Diz lá!

- Sim, meu pai, é verdade. Mas o que vai ser da mãe, sem ele?

- Se gosta dele, vai agradecer a Deus e a mim por o termos afastado do pai.

Provavelmente, também era verdade: a mãe gostava muito do Wat e iria pensar, em primeiro lugar, na vida que o esperava e que lhe proporcionaria mais segurança, melhor alimentação, melhores roupas... e a palavra «vender» não lhe ficaria atravessada na garganta. Mas Harry não conseguia engoli-la, embora não fosse capaz de dizer exactamente por que motivo, de repente, tal palavra lhe repugnava e o ofendia. Não disse mais nada. Ele próprio tinha consciência de estar a portar-se como um pateta. Olhou para as mãos, crispadas sobre o registo. A direita havia segurado a foice, quando a tirara das mãos do rapaz. As duas mãos tinham estado assentes no cabo da foice, lado a lado, como duas folhas de erva, queimadas pelo sol, agitadas pelo movimento constante da vida, porque, nem mesmo na imobilidade, a vida é inerte. Uma mão podia ser vendida, a outra não. Uma era livre, a outra não. Adam!...

- Tendes razão, senhor - disse, em voz baixa. - Sou novato nisto, peço-vos que me perdoeis.

Mas, apesar da comida, da cama limpa, das roupas, da gentileza e de tudo o mais, Wat não quereria ir, protestou interiormente. Iria chorar toda a noite, na véspera da partida. Insensatamente. Mas, por não ser livre, não terá ele o direito a ser insensato?

- Tens muito que aprender, Harry - disse Sir Eudo, em voz rouca, recuperando a calma quase tão rapidamente como perdera as estribeiras. - Este assunto está resolvido. Que mais temos?

- O Arnulf quer casar a filha.

Esta era a questão mais delicada de todas mas, agora, demasiado perturbado para dar provas de subtileza, Harry só foi capaz de lançar estas palavras, ousadamente, e de ficar à espera de uma solução feliz.

- Verdade? Bem... poderá casá-la, se tiver posses para pagar o merchet por ela.

- Ele está a passar por algumas dificuldades, meu pai, e pede-vos que adieis a cobrança de uma parte do merchet, até poder pagar-vos, depois da colheita. E, como vos cabe a vós fixar o montante e ele sempre vos tem servido bem, permito-me pedir-vos que baixeis a soma tanto quanto for razoável.

- És muito desembaraçado a interceder por ele. Espero que sejas igualmente diligente nos assuntos do teu irmão, quando estiveres ao seu serviço. Mas o Arnulf é um bom homem, há que reconhecê-lo, qual das filhas é que ele quer casar?

- A mais velha, meu pai. Hawis.

- O quê, a rapariga que tece os panos para a nossa mãe?! - exclamou Ebrard, afastando com o pé dois cachorros galgos, que estavam a brincar e a rebolar-se no chão. - Faríeis bem em decidir a seu contento, meu pai. Se for caso disso, ela reembolsará a dívida com boas peças de lã e a mãe ficará feliz por lhe dar satisfação.

Assolado por uma onda de gratidão que nem tentou compreender, Harry lançou-lhe um olhar surpreendido.

- Sim. Hawis é a tecelã, senhor. Foi ela quem teceu a roupa que trazeis vestida.

- Nesse caso, por uma rapariga tão prestimosa... Espera um momento, nada de pressas! Quem é o noivo? É um dos nossos homens?

Agora é que não havia como escapar. Se queria continuar a fingir inocência e distanciação, só lhe restava responder rapidamente a esta pergunta, que teria gostado de evitar. Tão calmamente quanto foi capaz, Harry replicou:

- Não, senhor. O noivo é de Hunyate. Chama-se Stephen Mort-main. O Arnulf diz que ele é um homem sério e trabalhador e que será um bom marido para a Hawis.

- Hunyate? - Um brilho calculista iluminou os olhos vivos e pequenos de Sir Eudo. - Então, é um homem de le Tourneur, não é?

Olhando fixamente para os registos, Harry susteve a respiração. Está calado agora e deixa-o pensar nisso, para ele não se atravessar no caminho daqueles dois. Até seria capaz de privar a mãe dos seus vestidos, para presentear Sir Roger le Tourneur com uma tecelã experiente. A mulher de um servo acompanha o marido e ele já está a imaginar a esposa de Sir Roger cativada pelos tecidos de Hawis, a pedir ao marido que se entenda com o vizinho e estabeleça com ele laços de amizade.

Sir Eudo passara dois anos a tentar persuadir o seu velho rival e inimigo a juntar forças consigo para erguer uma paliçada à volta dos domínios de ambos, para protecção contra as crescentes incursões dos Galeses de Powis. E, durante dois anos, Sir Roger havia resistido, recusando-se a discutir a questão. As suas florestas situavam-se num terreno mais elevado e menos vulnerável do que o suave vale de Sleapford, razão pela qual Sir Eudo precisava tanto da sua boa vontade. A transferência de Hawis, uma serva de grande valor, poderia alterar a situação. Fingindo estar mergulhado na aridez dos seus números, Harry continuou calado, coberto de suores frios, atento aos resmungos do pai.

- Estás surdo, rapaz? - rugiu o irascível velho cavaleiro. - Responde à minha pergunta. É um homem de le Tourneur?

- Perdoai-me, meu pai, pois fui negligente. Esqueci-me de anotar esse pormenor e não tenho a certeza...

- Harry, Harry! - O velho Edric debruçou-se sobre a mesa e

tocou-lhe levemente no braço. - Haver-vos-eis esquecido? Nós falámos do assunto e eu disse-vos. - Lançou um olhar apaziguador ao seu senhor e acrescentou, suavemente: - Ele teve um dia de trabalho duro, Sir Eudo. E não está a fazer justiça a si próprio, pois tomou nota desse aspecto.

Se pudesse alcançá-lo, Harry ter-lhe-ia dado um pontapé por baixo da mesa. Mas era demasiado tarde. O velho tonto já havia deitado cá para fora a verdade:

- Stephen Mortmain é um homem livre.

- Livre? Ele é livre?

Lançando um rugido terrível, Sir Eudo pôs-se lentamente de pé, agarrou no queixo de Harry e ergueu-lhe a cabeça, com um gesto violento.

- O que andas tu a tramar, meu malandro? Ousas tentar enganar-me? Sabias muito bem que ele era um homem livre! Sabias, não sabias?

Soltou brutalmente o queixo de Harry e, à guisa de advertência, desfechou-lhe uma pancada no ouvido que quase o fez cair do assento.

- Volta a tentar enganar-me e vais ver o que te acontece - acrescentou.

- Pai, eu não queria... Ainda me sinto um pouco confuso. Este trabalho é novo para mim...

- Está bem, deixemos isso. Mas ouve bem, Harry, não te armes em esperto comigo, senão arrependes-te. No interesse de quem é que julgas que te encarreguei das contas do senhorio? No meu ou no dos outros?

- Penso, senhor, que não deveria haver conflito - respondeu Harry, em tom sombrio. - Um senhor e os seus homens deveriam formar um todo e ter os mesmos interesses. Se estiverem satisfeitos e forem bem tratados, os vossos homens ser-vos-ão de maior valor e servir-vos-ão de melhor grado.

- Falas como um padre e, ainda por cima, como um padre tolo. É melhor ficares calado até daqui a uns anos, quando já tiveres ganho juízo. Deixa os julgamentos comigo. De ti, só quero contas certas. Certas, ouviste?! E nada de malabarismos com a verdade e a mentira. Agora, estamos esclarecidos! Esse Stephen é um homem livre, não é?

E quer privar-me de um dos meus bens mais preciosos... Sim, porque nove em dez juizes estarão dispostos a jurar que, pelo casamento, um homem livre toma livre a mulher e a sua descendência. E o Arnulf quer que eu aceite o roubo da minha serva, baixando o preço do seu merchet! É isso? Não, por Deus! Eu cedê-la-ia, de bom grado, a le Tourneur. Mas deixar que ela se nos escape? Nem pensar. A menos que o Amulf me pague muito bem. O preço é trinta xelins e bem me pode agradecer por eu não pedir mais. Podes dizer-lhe isto!

- Mas, meu pai, ele só tem dois terços de uma jeira de campo, não tem filhos homens e tem duas raparigas e a avó delas para alimentar! Onde é que ele vai arranjar trinta xelins ou mesmo vinte? Nem mesmo que vendesse tudo quanto tem, poderia arranjar tal quantia.

- Então, a filha fica por casar. Já fiz o meu preço por ela e terá de pagá-lo. Está dito!

- Permiti-me, meu pai... e não vos zangueis.

A raiva que sentia era tão grande que Harry quase não conseguia falar. A voz saiu-lhe rouca e entrecortada pelo nó que tinha na garganta. Se lhe suplicar e falar com bons modos, talvez consiga convencê-lo, pensou, desesperado. Ele não é assim tão duro, nem deliberadamente injusto.

- Se soubésseis, meu pai, a grande ternura que eles têm um pelo outro...

Ebrard afastou os pés e soltou uma enorme gargalhada. O berro rouco que saiu da garganta do velho cavaleiro tanto podia ser uma risada como uma explosão de raiva. Fosse o que fosse, assustou os dois cachorros galgos, que correram para a porta. Harry sentiu que a coragem lhe fugia mas, apesar da palidez do rosto e da expressão mortificada, ansiosa, aguentou-se firme.

- Uma grande ternura, diz o fedelho! Que raio tem a ternura a ver com o casamento, meu palerma? O dever dela é aceitar o marido que o seu pai e o seu senhor acharem por bem destinar-lhe. Mais nada. E, agora, não quero ouvir mais tolices.

- Mas, meu pai, há outra coisa...

- Basta, já disse!

- A Hawis está grávida! - gritou Harry, a tremer e muito vermelho.

Pelo menos, conseguira acabar com as gargalhadas. O pai e o irmão voltaram-se para ele, fitando-o de boca aberta, num espanto caricato.

- Santo Deus! - exclamou Sir Eudo, em voz entrecortada. - Onde foi que ouviste essa conversa? Quem te ouvir, há-de dizer que te levaram para a cama com eles! Nunca me chegou aos ouvidos nenhum relato tão completo daquilo que se passa nos meus domínios! Como foi que soubeste isso?

- O Harry fica a saber de tudo em casa dos Boteler - disse Ebrard, com desprezo. - Anda sempre por lá, com a família e com os amigos deles. Não sabíeis, senhor? Passa mais tempo lá do que connosco e, na maior parte das vezes, a mão dele empunha uma pico-la e não uma caneta. Esteve lá esta manhã, ainda antes de o orvalho da noite ter secado.

- É verdade, Harry?

- Só lá estive meia hora e foi ao vosso serviço, senhor. A parede do celeiro grande e o pilar do portão precisam de ser reparados. Falei-vos disso há uma semana. Fui lá para conversar com o Boteler acerca do assunto.

Harry pensara bem na resposta e, se fosse preciso, tinha já preparada outra desculpa, pronta a ser servida, com a mesma facilidade. A necessidade levara-o a uma duplicidade de que nem se dava conta.

- Foi o Arnulf quem me falou da Hawis. Estava muito aflito. Eles fizeram o que fizeram porque sabiam que o Arnulf tinha medo de vos pedir permissão para a casar... Como não podia pagar, tentou desencorajá-los.

- E, então, tentaram levar-me à certa, hem? Pensaram que o velho tonto se ia comover e que a entregava ao rapaz, por piedade? Mas cometeram o maior erro da vida deles!

- Não, meu pai, eles pensaram que, assim, obrigavam o Arnulf a apresentar-vos o pedido. Confiavam na vossa generosidade, se ele falasse convosco.

- Eu resolvo os meus assuntos com justiça. Já disse qual era o meu preço. O Arnulf pode pagar ou desistir da ideia. Não vou mudar de opinião. E não há mais nada a dizer.

- Mas a Hawis vai ter o bebé e toda a gente lhe vai chamar nomes...

- Devia ter pensado nisso antes. Serei eu quem tem de lhe tirar as castanhas do lume? Não, não quero ouvir mais nada. Nem mais uma palavra.

- Não podeis ser tão duro com ela, meu pai...

- Nem mais uma palavra, disse eu! - rugiu o pai, dando um murro na mesa.

Harry recuou e calou-se. O velho cavaleiro fítou-o até ele baixar os olhos e se sentar, em silêncio mas não submisso, com as pestanas negras projectando sombras sobre as suas faces.

- Assim está melhor!

Sir Eudo ficou de pé, dominando o filho, estudando-o com uma irritação cada vez menor e um espanto cada vez maior, e até com uma ponta de ternura, de que Harry não se apercebeu. Sir Eudo casara pela segunda vez, já com certa idade, a fim de conseguir um herdeiro e, uma vez atingido esse objectivo, centrara todos os pensamentos e todo o afecto em Ebrard. Harry entrara neste mundo de uma forma sub-reptícia, quase sem Sir Eudo dar por ele, excepto na altura em que a mãe contraíra uma grande febre e ele fora afastado e entregue aos cuidados de uma ama de leite. Por isso, o pai ficava por vezes surpreendido ao enfrentar aquele rosto ardente e aquele espírito obstinado, estranhamente familiares mas que, ao mesmo tempo, não conseguia reconhecer.

- Tem passado demasiado tempo fechado, Edric. Deixa-o voar - resmungou Sir Eudo, olhando por cima da cabeça inclinada do jovem, para o escrivão. Depois, num tom mais brusco, acrescentou, dirigindo-se a Harry: - Desaparece, rapaz! Por hoje, já chega de escritas. E, amanhã, tens um dia de folga, longe dos livros. Vá lá, vai-te embora! Vai ter com a tua mãe.

No vão da janela do solar, a luz ténue do entardecer, tingida de reflexos verde-pálidos, iluminava o rosto redondo e juvenil de Lady Talvace, sem pôr a descoberto qualquer ruga e sem lançar sobre ele qualquer sombra. Lady Talvace pusera de lado o bordado em que às vezes se ocupava, quando não havia mais nenhuma distracção. A visita de um dos filhos, de qualquer deles, era uma diversão bem mais agradável.

- A vós, ele ouvir-vos-á, mãe. Temos de fazer qualquer coisa para os ajudar, minha querida mãe. A única mulher que o Stephen quer é a Hawis e a Hawis quer casar com ele. Eu falei com ela, mãe. Conheço-a bem. Ela tomava conta do Adam e de mim, de vez em quando, quando éramos pequenos. Se soubésseis como se sente infeliz!

Harry sentara-se num escabelo, aos pés da mãe, tomara a mão dela entre as suas e despejara toda a história. Com a mão livre, branca e macia, que começava a ficar papuda, a mãe acariciava-lhe os cabelos, a testa e as faces.

- O teu pai é um homem justo, Harry. Não exige mais do que o que lhe é devido. Não penses que és mais sensato que ele. Porque é que o fazes zangar tanto? És muito teimoso!

A voz da mãe, melodiosa e indistinta como a leve brisa de uma noite de Verão, passou da reprimenda à carícia. Tal como a brisa, aquela voz soprava sobre ele uma doçura que, todavia, se lhe escapava por entre os dedos. Harry voltou-se e rodeou a cintura da mãe com os braços, aninhando-se contra o seu peito. O prazer sensual que aquelas manifestações de ternura lhe provocavam conseguia sempre libertar Harry da timidez; só com ela conseguia ser expansivo.

- Não é de propósito - disse ele, numa voz abafada pelo brocado do seu brial. - Eu tento não ser.

- Então, porque o contrarias dessa maneira? Não será teimosia tentar dizer-lhe o que fazer com aquilo que é dele? Sinceramente, tenho pena da rapariga mas foi ela quem fez a cama onde se há-de deitar. Nesse aspecto, Sir Eudo não lhe fez mal algum. Ela poderá casar-se, se o preço for pago.

- Mas eles não podem pagar esse preço! O pai fixou um preço muito alto porque sabe que eles não vão poder pagar.

- Tem cuidado com o que dizes, Harry! Tens um espírito muito rebelde. Ousas acusar o teu pai de ser injusto?

- Oh, mãe, eu não disse que ele era injusto. Eu sei que tem esse direito mas isso é muito cruel para eles... para a Hawis e para o Stephen...

- É o que manda a lei, não é?

- É, sim. Eu sei...

Harry não conseguia fazer-lhe ver o fosso que, aos seus olhos, existia entre lei e justiça e sentia que os seus argumentos eram inúteis. Por isso, recorreu às lisonjas da carne, esfregando o rosto contra o peito da mãe, beijando-lhe a curva do pescoço, onde o brial terminava num enfeite bordado a ouro.

- Por favor, minha mãe, intercedei por eles! Pensai como será terrível a vida da Hawis, se tiver um filho e não puder casar! Se ela não tivesse o talento que tem, o pai tê-la-ia deixado partir por alguns xelins. Dez, no máximo... eles talvez conseguissem pagar dez xelins. Mas trinta! Oh, mãe, tendes que falar com ele! Nem posso pensar no que lhe vai acontecer!

- Mas que criança tão tonta! Claro que o teu pai pediu um preço por ela, porque a Hawis tem valor. Como pensas tu que se fazem as trocas de todos os dias? Será que alguém baixa o preço, quando a mercadoria é valiosa? Realmente, meu pobre filho, tens umas ideias muito infantis nessa tua cabeça.

- Ela não é uma mercadoria - argumentou Harry, furioso, erguendo a cabeça para lhe lançar um olhar sombrio. - É uma mulher. É a Hawis. Ri, chora e canta, tal como vós. Se eu lhe fizesse isto, doía-lhe, como vos dói a vós...

Num acesso brusco de despeito, Harry beliscou-lhe o braço com mais força do que tencionara. Lady Talvace soltou um pequeno grito de surpresa e deu-lhe uma sonora bofetada na cara.

- Como te atreves? Grande patife! Foste longe demais!

As bofetadas que ela lhe dava de vez em quando também tinham algo de sensual e eram tão excitantes e comoventes como as suas carícias. A tremer e a gaguejar, Harry agarrou-lhe na mão.

- Perdoai, minha mãe! Eu não queria fazer isto... Perdão... Perdão! Escondeu o rosto no colo dela e, consciente de que deitara tudo a perder, verteu algumas lágrimas de remorso e confusão. Lady Talvace colocou-lhe as mãos sobre os ombros e embalou-o docemente, aplaudindo por igual a crueldade e os remorsos de Harry, satisfeita como uma gata ronronante.

- Vamos lá, Harry, vamos lá! Porque te preocupas tanto com a Hawis? O que representa ela para ti, para te atormentares tanto e atormentares toda a gente, por causa dela?

Lady Talvace sentiu Harry estremecer sob as carícias das suas mãos e, de súbito, foi assolada pelo receio de, afinal, poder não ser ela a causadora daquele sofrimento intenso. Agarrou-o pelos ombros e ergueu-lhe o rosto, para o fitar nos olhos.

- Porque estás tão ansioso por a ver casada, Harry? Que te importa a ti que o filho dela tenha um pai? Olha para mim!

Harry estava já a olhar para ela, de olhos muito abertos, absolutamente espantado, sem perceber onde a mãe queria chegar.

- Diz-me a verdade, Harry! - insistiu Lady Talvace. - Não tenhas medo. Não vou zangar-me contigo. Essas coisas resolvem-se. Mas é preciso que me contes a verdade.

- Não percebo - respondeu Harry, de boca aberta e, agora, francamente assustado. - Eu disse a verdade. Contei-vos tudo quanto sei.

- Contaste mesmo tudo, Harry? Penso que não. Metes-te com essa rapariga, não foi? É de ti que ela está grávida? É por isso que insistes tanto?

- Mãe! Não! - exclamou Harry, desatando a rir. Mas, de repente, ficou muito corado e, profundamente ofendido, recuou para escapar às mãos da mãe. - Não! Como podeis pensar tal coisa?

Hawis tinha vinte anos e, já nos tempos em que tomava conta dos filhos de Alison Boteler, era, aos olhos de Harry, uma mulher adulta, de outra geração. Nessa altura, nem sequer gostava muito de Hawis, porque ela cumpria os seus deveres de uma maneira conscienciosa, que ele considerava tirânica, embora lhe houvesse perdoado isso havia muito. Mas vivera tão perto dela, achara tão natural a sua companhia, que a sugestão da mãe o ofendia profundamente.

- Eu nunca... - acrescentou, num tom rígido. - Nem a Hawis nem ninguém.

- Pobre querido! Estás ofendido! - exclamou Lady Talvace, rindo por o ver corar até à raiz dos cabelos. - Não te zangues comigo por te ter julgado mal, Harry. A verdade é que estou contente por não teres esse peso na consciência. Mas acredita que, um dia, essas coisas podem acontecer, mesmo a um senhor modesto como tu. Todavia, se andei tão longe da verdade, porque é tão importante para ti que ela case com o tal Stephen?

- É só porque, se eles foram suficientemente corajosos para... para nos fazerem frente a todos... acho que têm direito... direito a casar, a ter um filho...

- O teu pai nunca privaria ninguém dos direitos que a lei concede.

- Ah, a lei! - suspirou Harry, poisando, sobre os joelhos da mãe, o rosto, no qual ainda se viam as marcas dos dedos. - Ajudai-os, minha mãe! Se lhe pedirdes, ele deixa-a ir.

- Não, Harry, eu não posso interferir. Compete ao teu pai agir como lhe parecer melhor. É errado da tua parte duvidares dele - insistiu Lady Talvace, afastando-lhe os cabelos negros da testa e deixando a descoberto as pálpebras, pesadas de fadiga. - Fizeram-te trabalhar demais. Não admira que estejas tão cansado e nervoso. Devias ir para a cama.

- Sim, mãe - respondeu Harry, voz neutra, erguendo-se lentamente.

- Não terás dado uma importância excessiva a este problema? - acrescentou Lady Talvace, emocionada, ao estender o rosto para receber um beijo de despedida. - Além disso, se ficássemos sem a Hawis, quem iria tecer a lã e fazer os meus vestidos?

A torre de menagem do castelo de Sleapford, construída quarenta anos depois do solar, era baixa, atarracada, feita de pedra e encimada por uma atalaia com seteiras. Até Ebrard ter partido para se colocar ao serviço de FitzAlan, os dois irmãos tinham dormido na divisão superior, sob o telhado ameado. Ao regressar, quase cavaleiro e muito sensível à sua dignidade emergente, Ebrard pedira e obtivera permissão para ocupar um dos quartos pequenos que davam para o pátio do castelo. Sem identificar a origem da sua alegria ou, pelo menos, sem a admitir sequer perante si próprio, Harry recordava esse dia como um dos marcos decisivos e mais radiosos da sua vida.

Sozinho no quarto hexagonal de paredes rasgadas por seteiras, estendendo os dedos dos pés e das mãos a toda a largura e comprimento do leito de palha estaladiça, era senhor do seu reino, que povoava ao sabor da sua imaginação. A noite, contemplava as colinas do País de Gales e pensava nos alertas e nas incursões do passado, e naquelas que não deixariam de vir de Gwenwynwyn, devastando a fronteira como fogo ateado em pasto seco, de um extremo a outro de Powis; imaginava o jovem príncipe de Gwynedd, Llewellyn, que, a Norte, se erguia como um cometa flamejante, até inflamar o castelo de Mold e alertar Chester para a existência de um novo e formidável inimigo.

Por causa daqueles vizinhos inquietantes, havia sempre uma sentinela na atalaia, no alto da torre de menagem. E, a despeito da vastidão do vale que se estendia diante de si como uma taça prateada, a sentinela passava a maior parte das horas de vigia de olhos fixos no País de Gales. Harry demorara poucas semanas a descobrir que era fácil descer as escadas, de sapatos na mão, dar a volta ao antigo fosso, sempre encostado às muralhas, e escapar-se para o lado inglês, enquanto a sentinela vigiava conscienciosamente as colinas galesas. A torre tinha uma escada exterior até ao solo, o que tornava pouco provável que alguém que estivesse dentro de casa o visse ou ouvisse. E o risco de o guarda escolher o momento errado para se voltar para aquele lado da casa, surpreendendo-o em flagrante enquanto ele erguia a barra de madeira, apenas servia para dar mais sabor àquelas expedições nocturnas. Tal nunca tinha acontecido e Harry não utilizava muito esta liberdade, para não abusar da sorte.

Aqui e ali, na aldeia adormecida, um cão sobressaltava-se e ladrava mas Harry sabia os nomes de todos eles e os cães acalmavam-se ao ouvir a sua voz. A oficina do mestre canteiro situava-se no outro extremo da rua sinuosa e as suas traseiras ficavam quase ocultas por um pequeno bosque de bétulas. A casa era constituída apenas por uma câmara subterrânea, uma divisão térrea e uma mansarda no telhado, com uma janela de veneziana na empena. Era na mansarda que, nos seus leitos de palha e fetos secos, dormiam os três rapazes da família. Harry só teve que assobiar junto à empena e Adam apareceu logo à janela, que ficava sempre aberta nas suaves noites de Verão. Num ápice, Adam balouçou-se para fora e saltou, caindo sobre a erva.

Os dois foram esconder-se no pequeno bosque, deitando-se de bruços no chão, coberto de erva tépida de cheiro adocicado.

- Amanhã não trabalho, Adam. Consegues convencer o Ranald a ir à ceifa em vez de ti, para poderes vir comigo? Tenho uma coisa para fazer.

- Eu vou - respondeu Adam, sem hesitar. - Onde é que vamos?

- A Hunyate. Mas temos de fazer um desvio, porque ninguém pode saber que lá vou. Levamos os arcos e atravessamos o nosso bosque, até chegarmos aos campos descobertos por trás do moinho. Já devem ter cortado o restolho e vai haver muitas lebres e muitos coelhos fora das tocas. Apanhamos alguns, escondemo-los no bosque e, na volta, trazemo-los. É o que toda a gente espera que façamos, quando temos um dia livre.

- Para chegar a Hunyate, indo por aí, temos de atravessar terras de le Tourneur - observou Adam, indeciso.

Adam nunca havia caçado um veado mas, como todos os outros rapazes da aldeia, sentia-se solidário com aqueles que se entregavam àquele jogo perigoso e receava aproximar-se dos terrenos de caça do couteiro real.

- Isso não é crime. Nós não queremos a caça dele. E vamos manter-nos fora das vistas. Mas temos de ir por esse caminho, porque ninguém me pode ver partir a caminho de Hunyate.

- Porquê? O que é que vais fazer, Harry?

Harry aproximou-se mais dele e contou-lhe. Com o queixo apoiado na mão cerrada, Adam escutou-o de olhos muito abertos.

- Qual é a tua ideia?

- Vou dizer a Stephen Mortmain quais são as intenções do meu pai» antes do Arnulf saber delas. Não posso fazer mais nada. Não posso agir contra o meu pai mas o Stephen tem o direito de saber. Depois, cabe-lhe a ele agir e depressa.

- Mas que pode ele fazer? Se não puder ajudar o Arnulf a arranjar o dinheiro do merchet... e como é que ele pode?

- Ele tem um ofício que pode exercer em qualquer lado e não tem de abandonar nenhum pedaço de terra, pois ainda vive em casa do pai. Eu sei o que faria, se estivesse no lugar do Stephen. Ia buscar a Hawis, pela calada da noite, e levava-a para uma vila franca, onde um bom sapateiro pode arranjar mais trabalho do que aquele que consegue fazer e ligar-se como oficial a um mestre honesto. E casava-me lá com ela. Acho que ele é homem para fazer isso mesmo e que ela é mulher para o acompanhar. O Stephen é um homem livre e ninguém pode persegui-lo. Por causa de uma serva, o meu pai não vai fazer o mesmo alarido que faria por causa de um servo. Se eles conseguirem sair de Sleapford sem problemas, podem instalar-se onde quiserem. E se não conseguirem ir muito longe, antes de a caçada começar... ora, os Galeses também usam sapatos.

- Nem todos - objectou o Adam. - O Andrew Miller diz que, quando da última invasão, vai para dois anos...

- E quem é que se importa com o que diz o Andrew Miller? Quem o ouvir, pensará que assistiu a todas as incursões ocorridas na fronteira dos seis condados, nos últimos dois anos. E toda a gente sabe que ele foge, mal ouve ladrar um cão. Tenho de lá ir, Adam. Venho ter contigo de manhã, às oito horas, mas deixamos os cavalos ao cuidado de Wilfred, no moinho, e fazemos o resto do caminho a pé. E nada de cães. Não entro com um cão nos terrenos de caça do couteiro real, nem mesmo levando o animal pela trela. Mas não te esqueças do arco. Vais ver que vamos divertir-nos.

Adam pôs-se de pé e sacudiu os pedaços de erva seca que se tinham pegado às ceroulas de linho grosseiro, a única peça de vestuário que trazia vestida. Colocado na vertical, contra a porta da câmara subterrânea, com as pegas para cima, o carro de mão de seu pai servir-lhe-ia de escada para se içar até ao peitoril da janela. Ali, os irmãos estariam a postos para lhe estender os braços, ajudando-o a entrar na mansarda. Era um serviço que prestavam muitas vezes uns aos outros. Adam já estava empoleirado no carrinho mas voltou-se e desceu outra vez, precipitadamente.

- Harry...

Harry parou e olhou para trás.

- O que é?

- Se o teu pai descobre que meteste essa ideia na cabeça de Stephen...

- Quem disse que eu lhe ia meter alguma ideia na cabeça? Ele fará o que achar melhor.

- Pensas que sou parvo? Conheço-te muito bem e não consegues enganar-me. Se ele descobre, Harry, é capaz de te matar.

- Ele não vai descobrir. Nem sequer vai saber que fui a Hunyate.

- Não podes ter a certeza. Alguma coisa pode correr mal. Amanhã, vais para os campos ceifados, caçar as tuas lebres, e eu vou a Hunyate.

- Não! - gritou Harry, num tom seco. - Sou eu quem faz os meus recados. Até hesitei em te pedir que fosses comigo. Se alguma coisa correr mal, não te esqueças de que fui eu que te levei a caçar coelhos! Se alguém te perguntar alguma coisa acerca de Stephen Mortmain ou de Hunyate, tu não sabes de nada. Nunca te falei dele, nem de ir a Hunyate.

- Se vais começar a afirmar a tua superioridade, não digo mais nada. Mas, Harry, ao menos pensaste... a tua mãe não seria capaz de o convencer?

As sobrancelhas dos Talvace franziram-se num trejeito terrível e o nariz dos Talvace cheirou o ar, com as narinas a latejar.

- A minha mãe pode ter as suas simpatias pessoais mas não pode fazer outra coisa que não seja apoiar o meu pai. É o dever dela.

Dito isto, Harry deu meia volta e afastou-se, com as pernas a tremer, antes de Adam ter tido tempo de pronunciar mais uma palavra, de protesto ou de desculpa. Podia ter sido uma coisa ou outra mas a vergonha impediu Harry de parar para ouvir. Em qualquer dos casos, teria perdido a compostura e começado a chorar.

Odiava-se a si mesmo por aquilo que acabara de dizer. Teve vontade de voltar para trás, lançar-se nos braços abertos de Adam e gritar: «É mentira! Eu pedi-lhe mas ela não quis ajudar. Nem sequer se rala.» Em vez disso, apressou o passo, para fugir àquela recordação que o envergonhava. E, quando chegou à estrada, desatou a correr. Mas não conseguiu escapar ao sentimento de desolação.

 

EMBORA ATRAVESSADO POR VÁRIOS CAMINHOS VICINAIS, pelos quais, desde que não infringissem a lei florestal, os habitantes locais podiam circular à vontade, o couto privado de caça de Sir Roger le Tourneur - o decano dos quatro couteiros reais do condado - era vedado e bem vigiado. Os Talvace beneficiavam do direito a caçar raposas, lobos, lebres, coelhos, texugos e gatos-bravos, nos seus próprios terrenos, mas só podiam caçar veados com uma licença especial. Todavia, a parcela da floresta real destinada a le Tourneur fora-lhe atribuída com plenos direitos. Na sua coutada, os cervos e as corças não pertenciam ao rei mas a Sir Roger, que, ali, gozava de poderes iguais aos detidos pelo monarca no resto do território, quanto ao julgamento dos prevaricadores. O ónus do seu cargo era, para ele, um fardo tão pesado que o couteiro real se recusava a ser juiz em causa própria, preferindo geralmente submeter as queixas que tivesse ao tribunal especial das florestas, em vez de decidir castigos sumários no seu próprio foro. O que, contudo, não o impedia de exigir o total cumprimento das penas. Era respeitado mas odiado e, se não fosse couteiro real, talvez até tivesse sido possível as pessoas gostarem dele. Mas quem poderia sentir simpatia por um couteiro real?

Adam enterrava alegremente os pés nas camadas de folhas tenras e estaladiças, acumuladas ao longo dos anos.

- Não há dúvida que ele cuida bem das suas florestas! - exclamou. - Estas parcelas estão cheias

de caça. Viste aquele veado que fugiu de nós, além, no meio das faias? A noite passada, mal se fez escuro, o Lambert levou um veado para casa. Jura que também feriu uma corça mas, depois, não conseguiu encontrá-la.

Adam ajeitou a correia da besta que levava ao ombro e estendeu a mão para afastar um ramo da cara.

Fora um dia igual aos da infância de ambos. Tinham subido até ao farol, nas colinas de Hunyate, onde os pequenos carneiros de pêlo raso pastavam entre os tufos de ervas, de urzes e das últimas campainhas que oscilavam sobre os caules verdes e delicados. Depois de terem comido pão com toucinho e algumas maçãs de Verão, estendidos sobre o musgo aquecido pelo sol - que tinha o cheiro da infância e dos fornos do pão - tomaram banho e nadaram no lago protegido pela colina. Em seguida, deitaram-se, nus, ao sol, na margem coberta de erva, até os raios intensos do sol da tarde serem substituídos pelos dourados raios suaves do fim da tarde. Saciados de Verão, de bem-estar e de alegria, retomaram então sem pressas o caminho de casa, para ir buscar os cavalos e os coelhos que tinham caçado e deixado à guarda do filho do moleiro, em Teyne.

- Achas que eles se vão embora? - perguntou Adam, de súbito.

- Vão.

Harry tinha a certeza. O rosto largo e ponderado de Stephen iluminara-se, como que por magia, quando a semente caíra no seu espírito e Harry sentira-a germinar e expandir-se: era a explosão da tensão que limitara e tolhera Stephen.

- Achas que vão esta noite?

- Não sei. E é melhor não sabermos. É menos uma coisa que talvez possamos ser obrigados a negar. E não te esqueças, Adam, nem uma palavra acerca do sítio onde estivemos, senão eles podem ser apanhados.

- Não é preciso dizeres isso - respondeu Adam, de olhos postos no caminho verdejante, salpicado pelos raios de sol que se filtravam entre as folhas das árvores.

Tinham abandonado o caminho mais frequentado, para chegarem à cerca, a Sleapford e à ceia, pelo caminho mais curto. Naquela zona, a vegetação era mais densa e o silêncio e a escuridão fechavam-se sobre eles, verdes e sombrios, atraindo a noite. Inúmeros sons povoavam a floresta: batidas de asas, patas em fuga. Mas a soma de todos estes sons continuava a ser o silêncio. Adam começou a assobiar mas as notas perdiam-se naquela quietude opressiva.

De súbito, ouviu-se um som, mais fraco que todos os outros mas que o silêncio não conseguiu abafar. Era quase inaudível mas de uma intensidade tão lúgubre que os dois se detiveram instantaneamente, agarrando-se um ao outro.

- O que foi isto, Deus nos valha? Ouviste? É um animal... ou um homem ferido. Ouve!

Quase imperceptível, distante, incrivelmente triste e desesperado, tanto podia ser um gemido humano como o bramido de um animal, demasiado fraco para se poder levantar ou gritar. Vinha do fundo do bosque, do lado esquerdo. Adam correu na direcção do som, antes de este se extinguir. Por cima do ombro, enquanto afastava alguns espinhos com a mão, Adam disse, numa voz entrecortada:

- É um animal ferido... uma corça, parece-me. Será que ele esteve aqui? Ele não disse onde matou o veado.

- Não vás! - exclamou Harry, agarrando-o, tomado de viva agitação. - Não lhe mexas!

Mas Adam nem sequer o ouviu. O próprio Harry não parou: avançou, às cegas, guiado pelo gemido dilacerante, sem prestar atenção ao barulho que ambos faziam.

Foram dar a uma pequena clareira, atapetada de turfa e rodeada por densa vegetação de arbustos: um muro verde que palpitava levemente, enquanto tudo o resto se mantinha imóvel. Com passos lentos e cautelosos, Adam aproximou-se, mergulhou os braços entre os arbustos, afastando os ramos e perscrutando a escuridão. Diante dos seus olhos surgiu uma massa esbranquiçada e manchada, como o tapete de ervas da clareira, que suspirou fracamente. Na cabeça de um branco prateado, os enormes olhos do animal, dilatados pelo terror e pelo desespero, pareciam ainda maiores. Na curva do flanco, perto do ventre prateado, via-se a extremidade de uma flecha. Pelos flancos delicados e pelas patas dobradas escorriam fios de sangue. Harry sentiu-se agoniado devido ao cheiro do sangue e ao zunido irritante das moscas.

- A corça do Lambert! - sussurrou Adam, em voz trémula. - Meu Deus! Deve ter sido atacada... se calhar, por uma raposa... e estava demasiado fraca para... - Estendeu a mão para trás, sem sequer olhar, e acrescentou: - Dá-me a tua faca. Depressa! A tua faca!

Com dedos trémulos, Harry retirou a faca de mato da bainha e colocou-a na mão estendida. Suave e lentamente, Adam poisou a mão esquerda no focinho manchado de sangue, fazendo-a deslizar devagar, até cobrir os olhos dilatados pela angústia. Com a ponta da lâmina, procurou o sítio adequado. Era uma coisa que nunca fizera mas era preciso fazê-la na perfeição. Só viu o ligeiro estremecimento que percorreu a pelagem manchada, só sentiu o sobressalto convulsivo do corpo dilacerado e, finalmente, a imobilidade total. Não ouviu nada. Inclinado sobre o seu ombro, Harry estava tão cego e surdo como ele. Bruscamente, junto deles, à volta deles, como se se tivesse levantado um vento forte, os ramos estalaram. De entre as árvores, uma voz gritou:

- De pé! Saiam daí! Apareçam! Estão cercados!

E, mais perto, mesmo por cima de ambos, outra voz atroou os ares:

- Apanhados em flagrante! Agarrem-nos!

Harry sentiu o chão tremer sob as patas do cavalo e, tomado de pânico, deu meia volta, erguendo instintivamente os braços, para proteger a cabeça, O chicote enrolou-se-lhe à volta da cabeça e dos braços, atirando-o para trás, contra Adam. Às apalpadelas, procurou o braço do amigo, gritando:

- Foge!

Na breve visão que dele teve, o rosto de Adam era o espelho pálido da incredulidade, não denotando ainda medo. Conservava a faca na mão. O sangue escorrera-lhe pelo pulso e começava a pingar-lhe da manga.

- Com a boca na botija! - vociferou o cavaleiro, de chicote na mão, descendo do cavalo.

Os guardas-florestais a pé - dois, três, meia dúzia - saíram de entre os arbustos e ocuparam a clareira. Umas mãos enormes ergueram brutalmente Harry e prenderam-lhe as mãos atrás das costas. Sem pensar, levado pela raiva e pelo terror, Harry debateu-se e conseguiu libertar-se. Uma réstia de lucidez fez-lhe ver que era impossível escaparem ambos e não era preciso pensar muito para saber qual dos dois se encontrava em situação mais desesperada.

- Foge! Vai para casa! - gritou a Adam, que o fitou atónito.

E, dizendo isto, atirou-se ao cavaleiro alto. O rosto contra o qual lançou os punhos não passava de uma mancha esbatida: barba e sobrancelhas escuras, pele clara, sem identidade. A despeito dos seus esforços, não conseguiu atingir-lhe nem a cabeça nem a garganta. O homem deu um passo rápido para o lado, agarrou-o por um braço e fê-lo rodopiar, atirando-o ao chão, sobre a erva, o rosto contra a terra, e colocou-lhe um pé em cima das omoplatas. O chicote estalou contra as pernas de Harry.

- Como ousas? Vais pagar caro por isto!

Harry cobriu o rosto com um braço e cerrou os dentes, tentando ao mesmo tempo voltar a cabeça, para ver se Adam aproveitara a oportunidade. O golpe seguinte deixou-lhe um vergão vermelho no queixo e no pescoço e arrancou-lhe um gemido de dor.

Foi aquele golpe que fez sair Adam do aturdimento em que mergulhara. Viu Harry caído por terra, a tentar escapar ao chicote. Com um grito de raiva, libertou-se das mãos que o agarravam e atirou-se, qual fúria, ao cavaleiro. Ainda tinha a faca na mão, embora se tivesse esquecido de que a segurava. A força do seu peso atingiu o homem no ombro e de lado, fazendo-o desequilibrar-se. Os dois rolaram sobre a erva, enquanto Adam esmurrava com toda a força o rosto barbudo. A lâmina da faca atravessou o pelote e a manga e atingiu o braço. Então, dois guardas-florestais agarraram Adam por baixo dos braços e levantaram-no do chão. Dois outros ergueram Harry, que arquejava e soluçava, e seguraram-no com firmeza.

O silêncio instalou-se tão subitamente como o caos se estabelecera. O cavaleiro alto pôs-se de pé, apertando a manga rasgada sobre o golpe no braço e, com uma deliberação fria e aterradora, limpou o delgado fio de sangue com a ponta dos dedos. O rosto que voltou para os dois jovens - um rosto comprido e marcado pelas agruras do tempo, com nariz de falcão - era inconfundível, agora que eram obrigados a olhá-lo de frente. Ao contrário do que inicialmente haviam pensado, não se tratava de um dos guardas-florestais a cavalo - o que já seria bastante grave - mas do próprio couteiro real, Sir Roger le Tourneur, em toda a temível majestade do seu cargo.

Sir Roger uniu os lábios da ferida, afastou com um esgar de impaciência o guarda que tentara ajudá-lo e apontou para os arbustos.

- De que estais à espera? Tirai o animal dali, para eu ver o que foi que eles mataram.

Dois homens foram buscar a carcaça mutilada da corça, deixando duas marcas de sangue fresco sobre a erva.

- Tem uma flecha de besta enterrada no corpo, Sir Roger... e foi atacada por um cão. Juro que me pareceu ouvir um animal fugir daqui, quando estes dois se aproximaram. Tem um golpe recente na garganta... e não precisamos de procurar a faca que o deu.

- Está coberta de sangue - disse um dos homens que seguravam o trémulo Adam, apresentando a faca que lhe haviam arrancado da mão.

Com a língua, Harry humedeceu os lábios secos e declarou, em voz rouca:

- Não fomos nós que lhe demos caça.

- Afirmas isso? E também não lhe cortastes a garganta? Estais os dois cobertos de sangue e a faca estava na mão do teu amigo! Mas claro que não lhe fizestes mal nenhum!

- Nós acabámos de a matar...

- Fui eu quem a matou - disse Adam, em voz embargada.

-... mas não fomos nós quem a caçou. Ouvimo-la gemer e encontrámo-la parcialmente devorada. Que mais poderíamos fazer, senão acabar com o sofrimento dela?

- Isso é o que dizem todos os caçadores furtivos apanhados em flagrante. E foi com o mesmo espírito de caridade que tentastes fazer-me o mesmo? Conforme ides ficar a saber, agredir o couteiro real é uma ofensa muito grave. Haveis de lamentar não terdes de responder apenas pela morte de uma corça.

- Nós não sabíamos! - exclamou Harry, olhando, primeiro, para o rosto branco como a cal e inexpressivo de Adam e, em seguida, para as gotas de sangue que secavam lentamente nos dedos de Sir Roger. - A culpa foi minha! Fui eu quem perdeu a cabeça! Ele só quis ajudar-me.

- Com uma faca!? Terás de apresentar esses argumentos ao tribunal e não a mim.

- Esqueci-me de que tinha a faca - sussurrou Adam. - Peço perdão, senhor, não sabia que éreis vós.

- E que importância teria se soubesses? Tal como não permito que me maltratem, também não permito que maltratem nenhum dos meus homens, nem mesmo o mais humilde. Os vossos nomes!

A tristeza e o desespero deixaram os dois jovens sem fala, incapazes de enfrentar as consequências do que pudessem dizer.

- Os vossos nomes, disse eu! - insistiu Sir Roger. - Falai!

O couteiro real tirara um lenço do interior da cota e estava a colocá-lo, com uma só mão, à volta do braço e sobre a ferida. A seguir, baixou a cabeça e apertou o nó, puxando-o com os enormes dentes brancos, que se cravaram com força no tecido. Concluída a operação e como não houvesse ainda obtido resposta, fez girar ostensivamente na mão o cabo do chicote.

- Falais ou quereis que vos obrigue a falar pela força?

- Com a vossa permissão, Sir Roger - interveio um dos guardas-florestais, empurrando Harry um passo em frente. - Creio que este jovem é filho de Sir Eudo Talvace, de Sleapford. O mais novo, aquele que voltou de Shrewsbury pela Páscoa.

- O quê? Um Talvace?! - exclamou Sir Roger, com as sobrancelhas pretas franzidas sobre os olhos ferozes. - Chega aqui, rapaz, para eu te ver bem.

Os guardas empurraram Harry para junto de Sir Roger, que o obrigou a voltar-se de frente para a luz.

- Que Deus lhe valha, se tiveres razão! - rugiu, erguendo o rosto do jovem. - Está escrito na cara dele. Fala, rapaz. És ou não um Talvace?

Harry confessou a sua linhagem, como um criminoso que confessa um roubo ou um crime.

- Sendo assim, a tua culpa é ainda maior. O que diz o teu pai destas tuas tropelias?

- O meu pai não sabe de nada, senhor. Ele...

- Não penses que eu julgava que um Talvace fosse capaz de mandar o próprio filho caçar furtivamente no couto de um vizinho, em plena luz do dia.

- Não estávamos a caçar furtivamente, senhor. Juro que não estávamos. íamos a passar pela floresta, quando ouvimos a corça gemer e...

- E isto? Trazes isto contigo pelo prazer de sentir o seu peso? - ironizou Sir Roger, arrancando a besta dos ombros de Harry e colocando-lha diante do nariz. - E isto? É para palitares os dentes? - acrescentou, exibindo a aljava cheia de flechas e a faca ensanguentada. - Costumas passear armado até aos dentes?

- Passámos a manhã nos campos ceifados, a caçar coelhos e lebres, e...

- E a tarde na minha floresta, a perseguir os meus veados.

- Não, senhor. Juro que não foi isso! Vede, ela perdeu sangue durante horas e estava ali deitada, entre os arbustos, havia tanto tempo que o sangue já está seco e escuro. E juro-vos por tudo que nós entrámos na floresta há menos de uma hora.

- Então, onde foi que estiveram? Fala! Explica-te! Se não estiveram nas minhas terras, onde foi que estiveram até há uma hora atrás? Se estiveram noutro lugar a tratar de algum assunto, deve haver alguém que possa testemunhar a vosso favor.

Harry contemplava a cova que acabara de abrir debaixo dos seus pés e o abismo parecia-lhe tenebroso e intransponível. Não podia dizer onde haviam passado o dia sem suscitar a curiosidade de Sir Eudo, mal lhe chegasse aos ouvidos a palavra Hunyate, como não deixaria de acontecer antes de a noite acabar. E, então, o Stephen bem podia dizer adeus à possibilidade de fugir de Sleapford com a sua Hawis. Não, uma tal traição era impensável. E, mesmo que pudessem contar uma parte da verdade, sem correr esse risco, quem senão Stephen, a quem nunca poderiam recorrer, estaria em condições de confirmar o que eles afirmavam? Não se haviam cruzado com ninguém e ninguém os vira, nas colinas cobertas de urzes, que eram pertença dos seus antepassados e onde pastavam os carneiros. Devido ao carácter secreto da sua missão, depois de passarem pelo moinho, haviam tomado todas as precauções para não serem notados. E, agora, diante dos seus pés, abria-se um enorme abismo e não havia maneira de justificarem como haviam passado aquele período de tempo. Harry abriu a boca, dando voltas desesperadas à cabeça, tentando descobrir qualquer coisa para dizer, sem trair ninguém, tentando lembrar-se de qualquer destino susceptível de atrair dois rapazes, num dia de folga, e até onde fosse preciso ir por aquele caminho.

- Se não és capaz de mentir mais depressa do que isso - resmungou Sir Roger - é melhor nem tentares. Haveis passado aqui a maior parte do dia e perseguido a corça. Depois, havei-la perdido de vista por algumas horas e voltastes a encontrá-la no pior momento para ambos. Admiti-o! Juro por Deus, que farei melhor opinião de vós se, para o melhor e para o pior, assumirdes a responsabilidade pelos vossos actos. Esta atitude não é digna de um Talvace. Suponho que, a seguir, ides dizer-me quem disparou contra a pobre corça, uma vez que insistis em que não fostes vós.

Isso era outra coisa que eles não podiam dizer, embora soubessem a resposta. Mais valia serem chicoteados do que denunciarem Lambert. Para onde quer que se voltassem, erguia-se um muro de silêncio e a única coisa que podiam fazer era continuarem calados e sofrerem as consequências.

- Levai-os para o castelo - ordenou Sir Roger, num tom abrupto, agarrando nas rédeas do cavalo com a mão válida. - Eu sigo adiante para tratar esta ferida. E, por minha fé, irei ver o que se pode fazer entre vizinhos para resolver este deplorável incidente. Oxalá tivesse diante de mim outro que não um filho de Talvace.

Dito isto, o couteiro real saltou para a sela, meteu a mão e o antebraço esquerdo no plastrão da cota e acrescentou:

- Mantende-os afastados um do outro, pelo caminho, senão eles inventam uma mentira e arranjam uma história perfeita, antes de os levardes até mim.

Com estas palavras, cravou as esporas no cavalo e, baixando a cabeça, para escapar aos ramos das árvores, mergulhou na obscuridade esverdeada e desapareceu. Um momento depois, ouvia-se o martelar das ferraduras, quando Sir Roger chegou ao caminho e se lançou a galope. Demasiado abatidos para olharem um para o outro, os dois jovens começaram a caminhar, ladeados pelos guardas, mudos de desespero.

Ao fim DA tarde, à hora da amena luz dourada do entardecer, imediatamente antes de o sol de se pôr, o pequeno grupo entrou no pátio do castelo de Sleapford. Espantada por ver o filho mais novo do seu senhor chegar sob escolta, descomposto, de cabeça baixa e ostentando na nuca e nas faces marcas de chicotadas, a sentinela de guarda ao portão ordenou imediatamente a um arqueiro que fosse a correr prevenir Sir Eudo. Entretanto, com ar circunspecto, foi deixando entrar os visitantes, retardando o seu avanço com prudentes cortesias, até o senhor da casa, que abandonara apressadamente a mesa da ceia, sair correndo pela porta do salão, ainda a compor o pelote. Ebrard vinha colado aos seus calcanhares, morto de curiosidade e pronto a eriçar-se para defender o seu nome. Metade do pessoal da casa sentiu a tensão que pairava no ar e saiu discretamente da copa, das cavalariças, da cozinha e da armaria, para ver o guarda-florestal desmontar do cavalo e descobrir-se.

Atrás dele, dois dos seus subordinados, também a cavalo, transportavam ignominiosamente os dois jovens diante de si, no arção da sela. Desmontaram depois do primeiro guarda e ajudaram os rapazes a descer, sem brusquidão. Os cativos já haviam sido suficientemente maltratados, quando do encontro inicial, e, desde então, os tormentos da espera e da angústia haviam-lhes infligido sofrimento bastante para inspirar uma ligeira ponta de simpatia entre os seus captores. Haviam estado retidos por duas horas nas celas da guarda, perto da torre de vigia de Sir Roger, separados e sob vigilância constante, enquanto Sir Roger pensava na melhor maneira de resolver o problema e ditava ao escrivão a carta dirigida ao seu vizinho, que o guarda se preparava agora para entregar. Ninguém dissera aos dois jovens o que estava escrito na carta, ninguém se dispusera a oferecer-lhes o menor conforto quanto ao destino que os esperava. E ninguém lhes dera nada para comer, o que, no estado inicial de aturdimento e resignação a que se encontravam reduzidos, havia sido coisa de pouca monta mas que acabara por se transformar gradualmente na maior das torturas, porque, criminosos ou não, os dois tinham apenas quinze anos e não comiam nada desde o meio-dia. A coragem e a dignidade haver-se-iam manifestado mais facilmente, se não estivessem tão esfaimados. Agora, encontravam-se de pé, lado a lado, seguindo com os olhos, em silêncio, a carta do couteiro real, que passava de mão em mão.

O próprio facto de serem imediatamente mandados para casa, para o seu pai e senhor, encorajava-os e, ao mesmo tempo, deprimia-os. Talvez aquilo quisesse dizer que Sir Roger não tencionava apresentar queixa ao tribunal - não por amizade por Sir Eudo mas por solidariedade de classe e por relutância em sujeitar-se, e ao seu vizinho, ao desprezo da plebe. Se fosse possível resolver o litígio em privado, talvez Sir Eudo se mostrasse menos implacável e, com o tempo, a tempestade amainaria. Os dois jovens sentiram-se tentados a pensar que assim seria, até se lembrarem dos outros motivos de cólera e de suspeita, de que Harry iria ser alvo, antes de a semana terminar. Na melhor das hipóteses, as próximas horas seriam de grande desconforto.

Harry e Adam observaram os guardas-florestais, que apresentavam os dois arcos, as flechas, a faca de mato e a bainha desta. Só uma vez trocaram um olhar de desalento, prometendo um ao outro guardar silêncio e aguentar as consequências. Sir Eudo, que sabia ler mas não era muito dado às letras, decifrava laboriosamente a missiva de Sir Roger. A tormenta estava prestes a rebentar.

Harry pensara que o seu coração não poderia ficar mais apertado mas este quase lhe saltou do peito, quando o pai avançou para ele, de rosto muito vermelho e com a carta na mão.

- Muito bonito, não haja dúvida, mestre Harry! Arranjastes um belo sarilho para vós, para mim e, pior ainda, para esse vosso amigo. Espero que saibas que deitaste a perder dois anos de trabalho meu. E peço a Deus que te dê coragem para pagares pelos teus erros. Arrastar o meu nome pela lama! Era isso que querias? Caçar os veados do meu vizinho, sem autorização dele nem minha, e arrastar para a perdição esse infeliz? Vais pagar por isto, estás a ouvir? E bem caro!

Harry conhecia bem demais os sinais: maçãs do rosto cor de púrpura, olhos quase ocultos pelas pálpebras inchadas e vermelhas, que mais pareciam duas chispas a arder em fogo lento, o punho grosso crispado com tanta força sobre o pergaminho que as veias quase pareciam saltar. Ficou à espera de ser atirado ao chão e, aterrorizado, fechou os olhos por um instante. Não temia a dor nem a violência -pelo menos, não as temia mais do que qualquer ser humano sensato -mas tinha um medo terrível da cólera de seu pai. Tudo aquilo era demasiado parecido com as suas próprias emoções, tudo aquilo abalava profunda e brutalmente as raízes da sua vida que, um dia, acabaria por cortar.

- Juro-vos, meu pai, que não caçámos a corça - disse, em voz trémula. - Juro-vos por minha honra! Se agimos irreflectidamente... e sei que assim foi, porque estávamos assustados... lamento sinceramente. Mas não caçámos nem ferimos a corça.

Fora um milagre ter conseguido fazer-se ouvir até ao fim mas talvez isso só tivesse acontecido porque Sir Eudo não fora capaz de controlar a fúria a tempo de falar e de lhe cortar a palavra. Na verdade, o pai nem o ouviu; aliás, nunca o ouvira.

- Não a caçaram! Não a caçaram! Mas meia dúzia de guardas-florestais e o próprio couteiro real viram o teu amigo cortar-lhe o pescoço! A tua faca está ou não está manchada de sangue? Estás a dizer-me que sou cego ou que não tenho olfacto? O que andáveis vós a fazer lá, com os arcos às costas? Não a caçaram! Não sabes que Sir Roger podia apresentar queixa contra ti, só por teres contigo o arco? Dois anos gastos a tentar estabelecer a paz e tu deitas tudo a perder com uma loucura destas! Não caçaram a corça! Lê, lê aquilo que ele escreveu! Falas da corça, como se fosse só essa a prova da tua ruindade! Se calhar, não ergueste a mão contra o couteiro real? Sabes que, se ele quisesse, podia privar-te da liberdade só por essa ofensa? Lê e vê bem os danos irreparáveis que provocaste!

Por entre o aturdimento em que mergulhara, Harry deu consigo a ler, estupidamente, mal apreendendo as palavras e o seu significado. Todavia, a carta era bem directa.

«Ao nobre Sir Eudo Talvace, Cavaleiro, senhor de Sleapford, com respeito:

«Entrego nas vossas mãos estes vossos dois homens, apanhados hoje, nos meus terrenos de caça, armados e em flagrante delito de matar uma corça, na presença de seis dos meus guardas-florestais, tendo todos eles testemunhado a matança da dita corça, antes atingida por uma flecha de besta. Por cortesia e por ter a ofensa sido cometida contra caça minha e não contra caça de Sua Majestade o Rei, envio-vos os culpados e desejo que os trateis de acordo com o meu julgamento daquilo que é justo e, na verdade, clemente. Se assim consentirdes, e por consideração para com o nobre título de cavaleiro, que tão caro nos é, proponho-me não apresentar perante o tribunal florestal as acusações a que o vosso filho e o vosso servo se expuseram abertamente e face às quais, dada a natureza do caso, não têm defesa.

«No tocante ao assunto da corça, dado que o acto foi, assim o digo, cometido em meu prejuízo e não em prejuízo de Sua Majestade o Rei, posso e vou remir a severidade da lei, que, como bem sabeis, condenaria o vosso filho a uma multa ruinosa e o seu amigo a ser açoitado até à morte. Dar-me-ei por satisfeito se lhes inculcardes pela força o bom senso e o respeito pela propriedade alheia, que há muito deveriam haver-lhes sido ensinados por mãos mais capazes.

«No tocante às agressões contra a minha pessoa, cometidas por um e por outro e testemunhadas por seis homens, penso que os culpados não as negarão e posso e vou perdoá-las enquanto afrontas pessoais; mas, enquanto afrontas contra o meu cargo, não tenho o direito de o fazer e, por dever para com os meus pares oficiais de Sua Majestade o Rei, nas suas florestas, não me resta outra escolha que não seja exigir justiça. O ataque levado a cabo pelo vosso filho, que agiu desarmado e sob o efeito da surpresa inicial, poderá encontrar reparação na severidade do seu castigo por motivo da corça. Mas o do jovem Boteler, havendo sido perpetrado com uma faca e com perigo para a minha vida, embora pela graça de Deus a faca só haja atingido o meu braço, não poderá encontrar reparação do mesmo modo. Se me comunicardes a vossa aquiescência pelo portador desta carta, os meus homens assistir-vos-ão amanhã na aplicação da pena que a lei exige, sendo o rapaz de idade e servo, a saber, a amputação da sua mão direita. Até então, considero-vos responsável pela entrega da sua pessoa.

«Se este meu julgamento não for a vosso contento, apresentarei todas as acusações perante o tribunal, como é devido, e assegurar-me-ei de que os dois acusados serão presentes ao tribunal, quando isso for requerido...»

O tom que o couteiro real usara para se dirigir a seu pai fez Harry corar de vergonha, antes de se ter apercebido do alcance da ameaça que Pesava sobre Adam. Mesmo indo a julgamento, como era livre e nobre, o máximo que lhe poderia acontecer seria a aplicação de uma multa e, na pior das hipóteses, a perda da liberdade. Mas Adam não tinha liberdade para perder e seria privado de uma coisa que mesmo os que não eram livres possuíam. Harry sempre tivera conhecimento destes artigos teóricos da lei, destes artifícios distintivos entre um culpado e outro. Como lhe teria sido possível imaginar o terror em que aqueles o lançariam, quando deixassem de ser teóricos?

Ergueu os olhos da carta amarrotada que tinha entre as mãos e, fitando o pai, gritou:

- Não! Não podeis, meu pai, não deveis! Deixai-o ir a tribunal! Deixai-o acusar-nos! Nós matámos a corça mas foi só porque ela já estava mortalmente ferida. Mas não por nós. Podemos justificar-nos e vão ter de acreditar em nós. É esta a verdade, meu pai! Deixai-o ir a tribunal, suplico-vos!

- Deixo-o ir a tribunal para ver o meu nome arrastado pela lama? És tolo. Para pagar uma multa por ti e pôr em risco a vida de Adam, além da sua mão? Em que é que isso poderia ajudá-lo? Não sabes ler? Não entendes? Sabes muito bem que a pena que ele propõe é leve, e a tua mais leve do que mereces.

- A minha mão? - murmurou Adam, terrivelmente pálido, fitan-do-os com um olhar aterrado.

Olhou em volta, como um animal perseguido e o guarda-florestal que se encontrava ao seu lado agarrou-o com força pelo braço.

- Mas eu também lhe bati! - protestou Harry. - Eu bati-lhe primeiro! O Adam só o atacou depois, para me defender.

- Com uma faca?

- Foi azar ele ter a faca na mão. Não era sua intenção usá-la. E não sabia que era Sir Roger. Fui eu quem lhe bateu primeiro. Eu...

- Achas que ajudas o Adam, se fizeres com que também te cortem a mão? Não há mais nada a dizer! Arranjaste um belo sarilho para todos nós. Temos que dar graças por conseguirmos sair dele por tão pouco.

Sir Eudo deu meia volta e, a grandes passadas, dirigiu-se aos guar-das-florestais, que aguardavam a sua resposta.

- Agradecei ao vosso senhor a sua gentileza e dizei-lhe que estou de acordo com o seu julgamento e cuidarei de que seja devidamente aplicado. Os seus oficiais podem vir amanhã, à hora que lhes aprouver.

Dito isto, com um gesto, confiou Adam aos seus arqueiros, que haviam observado tudo, murmurando entre si. Aquela ordem, estes rodearam o jovem e agarraram-no quase docemente. Os seus rostos estavam sérios e os seus olhos não tinham expressão. Quando lhe tocaram, Adam estremeceu e tentou em vão libertar-se, olhando de um para o outro, aterrorizado, sem emitir qualquer som. Os arqueiros seguraram-no com firmeza, enquanto os guardas-florestais se retiravam, mas quase pareciam recear que ele se quebrasse nas suas mãos.

- Amarrai-o - ordenou Sir Eudo. - E, por amor de Deus, vamos acabar com isto.

Antes de Harry ter tempo de movimentar as pernas dormentes, os arqueiros haviam arrancado a túnica de Adam e haviam-no prendido às argolas de ferro do pelourinho. As mãos queimadas do sol - amanhã, teria apenas uma - estavam presas muito acima, porque as argolas haviam sido feitas para adultos e, apesar de ser bastante alto, Adam ainda não era um homem. Agora, deixara de se debater. De que serviria? Até nisto havia diferenças; até nos castigos havia hierarquias. Para Harry, o direito a sofrer em privado, sem cerimoniais; para Adam a obrigação de sofrer, com pompa e circunstância, a violação pública da sua beleza e da sua integridade pessoal.

Com os olhos toldados pelas lágrimas, Harry lançou-se aos pés do pai e agarrou-lhe a mão, soluçando:

- Não, meu pai, suplico-vos! Imploro-vos! Eu reconhecer-me-ei culpado, farei tudo, farei qualquer coisa. Mas não os deixeis cortar a mão de Adam. Batei-me, castigai-me como melhor entenderdes, mas não o mutileis! Oh, meu pai, pelo amor de Deus, deixai que sejamos tratados de igual modo. Somos os dois culpados do mesmo agravo. O mesmo! É injusto!

- Queres que os servos sejam tratados como homens livres, idiota? Não será a audácia dele mais monstruosa que a tua? E a lei - rugiu Sir Eudo, repelindo-o. - Levanta-te, rapaz, não me envergonhes. Vai para dentro! Estás a ouvir? Vai para casa!

- É uma lei infame - gritou Harry, cedendo a uma crise de choro incontrolável. - A lei não devia ser assim! É injusto!

O velho cavaleiro bateu-lhe violentamente na cabeça mas Harry continuou a agarrar-lhe a mão. Quando o pai conseguiu libertar-se e tentou afastar-se, Harry deixou-se cair no chão, com o rosto por terra, sacudido pelos soluços, rodeou-lhe os tornozelos com os braços, murmurando súplicas e acusações inarticuladas. Com um berro de fúria, o velho senhor agarrou-o pelo colarinho e levantou-o, obrigando-o a pôr-se de pé.

- Diabos levem o rapaz! És capaz de te calar? Estás a envergonhar-me. Ebrard! Ebrard, tira este louco imbecil da minha frente. Até me dá náuseas. Fecha-o nas cavalariças, até isto estar resolvido.

Ebrard não se fez rogar e arrastou consigo o irmão, experimentando o mesmo sentimento de alívio, mesclado de uma vaga compaixão e de um desdém e desprezo infinitos, que o pai experimentou quando os viu afastarem-se. Tanta confusão despropositada por causa de um servo e, para mais, um servo que merecia ser castigado. A rudeza com que Ebrard tratou o irmão era reflexo do embaraço e da vergonha que sentia por causa dele. Nunca um Talvace se entregara a uma exibição tão degradante. A que parente obscuro e distante fora Harry buscar aquele sangue ruim? Ebrard prendeu cuidadosamente os braços do irmão atrás das costas e empurrou-o para as cavalariças, onde os falcões, agitados, saltavam nos poleiros e gritavam. Mal lhe soltou as mãos, Harry voltou-se e correu para a porta, tentando libertar-se. Ebrard teve de se esforçar bastante para fechar a porta atrás de si e colocar a tranca no seu lugar; e, mesmo depois disso, Harry continuou a bater freneticamente no painel de madeira, gritando que nem uma rapariga histérica que queria ser libertado.

Finalmente, esgotado, deixou-se cair de joelhos junto à porta e assim ficou por alguns momentos, com as mãos a tapar os ouvidos. Mesmo assim, os gritos de dor de Adam chegavam até ele.

Ao primeiro grito, pareceu-lhe que, dentro de si, se quebrava qualquer coisa que sempre refreara e da qual ficava agora eternamente liberto. Não sabia, contudo, se tal ruptura o conduziria à liberdade ou ao exílio. Qualquer que viesse a ser o resultado futuro, naquele momento, esse corte apenas o fez mergulhar numa desolação mais forte do que as sensações de frio extremo e de trevas que alguma vez experimentara. E tudo o que lhe era familiar passou a ser seu inimigo. O único desejo que sentia era destruir tudo quanto se encontrava ao alcance dos seus olhos e das suas mãos, tudo quanto o havia traído e rejeitado. Do alto do poleiro, o esmerilhão de Ebrard, um jovem falcão a que ainda faltava algum treino, gritava que nem um gato assanhado e girava a cabeça encapuçada, fitando-o sem ver. A ideia de o matar passou-lhe pela cabeça mas, no íntimo, sabia que não teria coragem. Mas não lhe faltou afoiteza para destruir os capuzes, as correias, os poleiros, os chicotes, a bela gaiola que Ebrard estava a fazer para os pintarroxos da mãe e todas as coisas materiais que, em certo sentido, haviam sido suas.

Com uma calma mais desvairada do que o próprio desvario fez o melhor que pôde para esmagar, torcer e rasgar tudo quanto lhe veio à mão. As aves piavam e guinchavam mas Harry não lhes tocou. Quando, finalmente, Ebrard voltou para o libertar daquela prisão, o chão estava juncado de luvas rasgadas, arreios retalhados e, de adaga em punho, Harry fazia em pedaços as correias de couro trabalhado usadas para prender os falcões. Devido à penumbra que reinava no interior, Ebrard não se apercebeu de imediato dos pormenores do caos e avançou confíadamente sobre tiras de couro e fragmentos de outros materiais. Quando se deu conta do que pisava, soltou um urro de raiva e agarrou o irmão por um ombro. Voltando-se para enfrentar o assalto, Harry atirou-se que nem uma fúria ao rosto irado que se inclinava sobre ele. Adam usara a faca involuntariamente. Harry empunhou-a intencionalmente, lançando todo o seu peso atrás dela, sem se preocupar com as consequências.

- Ah! Como ousas? - disse Ebrard, interceptando o punho que avançava para si e torcendo-o sem piedade. - Querias ferir-me, malvado? Atacar o próprio irmão! Vou ensinar-te boas maneiras.

A adaga tombou por terra e Harry caiu logo a seguir, atingido por um soco num ouvido. Mas a lição de Ebrard não produziu qualquer efeito. Harry não estava em condições de aprender fosse o que fosse mas o irmão mais velho deu o melhor de si para lhe fazer apreciar a enormidade que era declarar guerra aos seus. Quando Harry renunciou àquele combate desigual, deixando de reagir aos golpes, estes cessaram de imediato. Verdade se diga que, embora ofendido, Ebrard teve pena daquela criatura que não conseguia entender. Debruçou-se sobre Harry, franziu o sobrolho perante aquela figura suja e encolhida que, agora, parecia tão pequena e indefesa mas que, todavia, conservava uma estranha reserva de obstinação e desafio.

- Levanta-te! Eu não te bato mais... levanta-te! O nosso pai quer falar contigo. Apressa-te e porta-te com humildade, se é que te resta algum juízo. Não há necessidade de piorares as coisas.

Com alguma dificuldade, Harry pôs-se de pé e sacudiu-se, sem dizer palavra. Iria ter com o pai, embora já nada tivesse a dizer-lhe nem a pedir-lhe. Estava tudo acabado.

A sua passagem pela entrada suscitou uma vaga de curiosidade e simpatia, não isenta de uma certa excitação. Os homens de armas interromperam os jogos de dados, enquanto ele abria caminho entre os cães que brincavam por perto e subia as escadas. Não olhou para ninguém. Pouco tempo antes, a simpatia condoída deles havê-lo-ia irritado mas, agora, nada tinha já importância.

- Limpa a cara - sussurrou Ebrard, quando chegaram junto da porta. - A nossa mãe não pode ver-te assim.

Ebrard estendeu o lenço a Harry e ficou à espera de que ele limpasse a mistura de pó e lágrimas que lhe manchava o rosto. Por instantes, um impulso de afecto e pesar fê-lo estremecer. Mas o sentimento não durou muito.

Sir Eudo passeava-se de um lado para o outro, com as mãos, que mal se viam sob as mangas largas do pelote, cruzadas atrás das costas. Lady Talvace estava sentada numa cadeira de costas direitas, a cerca de uma jarda do marido, a fim de lhe poder tocar gentilmente no braço, se houvesse necessidade de o refrear.

- Aqui está ele - anunciou Ebrard, fechando a porta e empurrando Harry para junto do pai. Em seguida, colocou a adaga em cima da mesa e acrescentou: - Levantou a faca contra mim e destruiu várias coisas nas cavalariças. Eu devia ter ficado com ele.

Aquelas palavras aliviaram o coração de Harry de um leve resíduo de pesar que ainda experimentava. Endireitou as costas e encarou os seus juizes. Causava dó ver aquele rosto infeliz, ainda sujo e marcado por vestígios de lágrimas, no qual se lia contudo uma expressão de calma glacial.

- Levantou a faca contra ti? Agrediu o próprio irmão? Aí está uma coisa que não vamos esquecer - ameaçou o velho cavaleiro, em tom sombrio, fixando os olhos raiados de sangue no filho mais novo. - Anda cá! Aproxima-te! Estás mais calmo ou não? Já recuperaste o juízo? Atacaste o teu irmão, não foi?... Uma coisa que nem um selvagem faria. Vais pedir-lhe perdão imediatamente, antes de pagares pelo resto dos teus agravos. De joelhos! De joelhos, disse eu!

Harry não se moveu.

- Ordenei-te que pedisses perdão ao teu irmão. Imediatamente! Harry abanou ligeiramente a cabeça, sem pestanejar, sem sequer

olhar na direcção de Ebrard. A bofetada que o pai lhe deu deitou-o por terra. A seguir, foi arrastado e obrigado a ajoelhar-se diante do irmão, que assistira a este acesso de violência com uma expressão embaraçada e aflita. Harry ergueu para ele os olhos semiocultos pelos cabelos em desordem mas manteve firmemente cerrados os lábios feridos e não disse palavra.

- Ele deixou-se levar pela cólera - interveio Ebrard. - Não sabia o que fazia. Deixai-o, meu pai.

Num acesso de raiva impotente, Sir Eudo largou Harry, que ficou caído no chão, e afastou-se. Lady Talvace levantou-se da cadeira e poisou as mãos bonitas e roliças nos ombros do filho mais novo.

- Vá lá, Harry, não estás a ser razoável - sussurrou a voz suave e acariciadora, junto aos ouvidos do jovem. - Errar é humano mas persistir no erro é tolice. Conheço esse teu temperamento e sei que pensas que estamos todos contra ti. Mas não é verdade. Basta que sejas um filho obediente, que aceites o castigo que te foi dado e expies a tua rebeldia. Depois disso, tudo será perdoado.

Ternamente, fê-lo levantar-se e, com o braço à volta dos ombros de Harry, afastou-lhe o cabelo da testa e limpou-lhe as gotas de sangue de uma ferida por baixo de um dos olhos. Aparentemente, aquilo que ela pedia era o mesmo que o pai lhe pedira: a diferença residia no facto de a mãe ter uma maneira mais insinuante de apresentar o seu pedido. Harry escutou-a, experimentando um vago prazer e, ao mesmo tempo, uma dor aguda e dilacerante. Todavia, a comoção não o levou a render-se nem fez desaparecer a revolta.

- Agora, sei que vais ser o meu filho querido e pedir perdão de tua livre vontade. Deste-nos um grande desgosto, causaste-nos muitos problemas e caíste em desgraça. Mas uma palavra bastará para seres perdoado. Vá. Vai ter primeiro com o teu pai, a quem ofendeste profundamente. Vai ter com ele, Harry, diz-lhe que estás arrependido dos teus erros e pede-lhe perdão - murmurou Lady Talvace, em tom persuasivo. - Não é muito difícil, eu ajudo-te. São só algumas palavras e as pazes ficarão feitas.

Naquele último momento, a proposta parecia realmente tentadora. Harry estava cansado, esfaimado e dorido e tinha ainda de pagar a sua parte pela morte da corça; seria tão simples render-se à vontade da família, dizer as poucas palavras mágicas que lhe valeriam ser readmitido nas suas fileiras - nas quais pelo menos já sabia o que de pior poderia acontecer-lhe - e ter apenas de obedecer, sem pensar mais.

- Faz isso, Harry, e mostra boa vontade. Depois, poderás comer a tua ceia e, quem sabe, talvez até escapar à punição, se prometeres emendar-te.

Com medo de se deixar convencer a ajoelhar e a pedir perdão, Harry afastou-se dela, com um movimento violento. Se fizesse o que ela pedia, perderia a honra, a dignidade e até aquela triste liberdade recém-conquistada.

- Não posso! - gritou, endireitando as costas, num gesto de desafio. - Não lamento coisa nenhuma! Não tenho nada de que pedir desculpa, excepto por não ter a coragem de cortar também a minha mão direita. Não lamento haver dito que a lei era infame e injusta, porque é verdade.

- Vedes, senhora? - disse sombriamente Sir Eudo. - Perdeis o vosso tempo com ele. Não há nada a fazer com alguém que não cede à razão, a não ser vergá-lo pela força. E, juro por Deus, que tratarei de que assim seja. Temos tempo que baste para isso.

- Não sejais demasiado duro com ele, Eudo!

- Demasiado duro? Não teremos antes sido demasiado brandos, durante demasiado tempo? E qual foi o resultado? Juro que não o reconheço como meu filho. Mas vamos remediar isso - ameaçou lugubremente Sir Eudo, parando diante de Harry e fulminando-o com o olhar. - Vamos ver quem manda e quem dá as ordens aqui. Não voltas a entrar aqui nem no salão, nem voltas a comer, até recobrares o juízo e pedires mercê, de joelhos. Vai para o teu quarto e não saias de lá até eu te mandar chamar. Vai. Desaparece da minha vista! E despe-te! - acrescentou, entre dentes.

Dito isto, empurrou brutalmente Harry em direcção à porta.

Em resposta às suas orações e ao seu desejo, Lady Talvace foi ter com ele. Harry já não receava a sua presença: afastara-se tanto de todos eles, incluindo dela, que a mãe já não conseguiria fazê-lo voltar atrás. Ainda podia magoá-lo ou encantá-lo mas já não tinha poder para o levar a mudar de intenções, nem mesmo parcialmente. Agora, precisava dela por um motivo bem diferente: de todos eles, era a única pessoa que ele podia ter esperança de influenciar.

Harry estava deitado, despido, na cama, quando ela levantou o trinco da porta e a abriu suavemente. Conhecia de cor os seus gestos, os seus passos, e ergueu a cabeça de sobre os braços em que a apoiara, para ver avançar o vulto da mãe, ainda mergulhado na sombra. Voltou-se, sentou-se, com um esgar de dor a cada movimento, e puxou até à cintura a coberta de pele.

- Mãe!

- Harry! Meu pobre filho! Tão teimoso e mau! Oh, será que posso tocar-te sem te magoar? Porque deixaste que isto acontecesse? Eu tentei ajudar-te, juro que tentei. Mas tu não queres que te ajudem! Querias ser espancado? Quem te visse ir tão longe como foste, provocando a cólera do teu pai, diria que era isso que querias. Mas ele ama-te, Harry. Bastava não o encolerizares tanto. Trouxe um unguento para te aliviar as dores. Deixa-me ver as feridas. Deita-te outra vez... ah, eu ajudo-te a voltares-te.

- Não é assim tão mau, minha mãe - disse Harry, sentindo cair-lhe no rosto as lágrimas fáceis e cintilantes dela, que brotavam e secavam, como a chuva da Primavera.

- Ai, como ele foi cruel! Pobre Harry, pobre criança! Agora não te mexas. É o meu unguento de ervas. É fresco e ajuda a sarar. Bastavam umas simples palavras para teres sido poupado a isto! Oh! Quase me apetecia bater-te também, por seres tão estúpido! Sentes-te mais aliviado?

- É maravilhoso, minha mãe - respondeu Harry.

O unguento era fresco, cheirava bem e até o ardor que provocava nos seus ombros magoados era agradável.

- Mãe?

- Sim?

- O Adam está pior que eu?

Lady Talvace demorou algum tempo a responder. Descobriu-lhe as ancas e continuou a aplicar suavemente o unguento.

- Não sei. Não estive lá - respondeu, por fim. - Agora, tens de comer qualquer coisa e tentar dormir. Trouxe-te bolos de cevada e pão. Mas olha que o teu pai não pode saber de nada.

- Deram de comer ao Adam? Ele não comeu nada depois do meio-dia.

- Deram - respondeu Lady Talvace, após uma breve hesitação. - Mandei um criado levar-lhe um bocado de pão e carne.

Não acrescentou que, quando o guarda fora ver como ele estava, Adam ainda não tocara em nada e estava deitado com o rosto enterrado na palha, quase inconsciente.

- Por isso, suponho que não irás recusar-te a comer! Oh, Harry! Porquê tamanha obstinação? Será culpa tua as penas que a lei estipula serem mais pesadas para ele do que para ti?

- O que ele fez foi o mesmo que eu fiz e quem começou fui eu. Devíeis ter visto como ele correu para me socorrer...

- Farei o que estiver ao meu alcance para o ajudar - prometeu ela, com algum desgosto, embora não profundo. - Não irá faltar-lhe um tecto e um trabalho simples, próprio para...

Lady Talvace não concluiu a frase mas Harry adivinhou o resto: próprio para um maneta.

- Deram-lhe uma cama, minha mãe?

- Pára com isso! - disse ela, zangada. - Recuso-me a jogar este Jogo contigo, por mais tempo. Queres que vá às cavalariças cuidar dele, em vez de cuidar de ti? Talvez queiras que eu atravesse todo o pátio do castelo, às escuras, para lhe levar vinho...

- Ah, então, puseram-no na cavalariça vazia, do lado da liça - perguntou Harry, com o rosto enterrado na almofada, para ocultar o tremor da voz.

Estava a reunir avidamente os indícios que ela deixara escapar: a cavalariça, do lado da liça, o caminho às escuras.

- O pai não receia deixá-lo num estábulo que não tem ferrolho? Com uma simples barra de madeira de seis polegadas entre ele e a liberdade? Espero que o Adam ainda seja capaz de rastejar, se não conseguir andar. Mas de certeza que ele colocou pelo menos meia dúzia de homens de armas a guardá-lo... um criminoso tão perigoso!

- Harry, se continuares a falar do teu pai com tanto ressentimento, vou-me embora. Começo a perceber como é que o levaste a tratar-te desta maneira. Não, claro que o rapaz não está guardado. Ninguém vai abrir-lhe a porta. E mesmo que alguém o fizesse, ele não está em condições de... - Mordeu os lábios, confusa, ao sentir Harry estremecer e conter um grito. - Desculpa, magoei-te!

Na verdade, magoara-o, e muito, mas não fisicamente. Harry enterrou mais o rosto na almofada e conteve as lágrimas que talvez pudessem ter desarmado o pai, se as houvesse derramado por si próprio. Lady Talvace inclinou-se sobre ele e beijou-o na orelha. Harry voltou-se, passou-lhe um braço à volta do pescoço e puxou-a para si.

- Então, então, Harry. Isso vai passar! Amanhã de manhã, vais sentir-te melhor.

Harry girou sobre si mesmo e enlaçou-a com força, com os dois braços.

- Sim, minha mãe, amanhã, sentir-me-ei melhor - disse, esforçando-se por conter as lágrimas. - Agora, acho que vou dormir.

- Queres que fique um bocadinho contigo?

- Não, minha mãe, também precisais de descansar. Eu vou dormir, prometo.

- E, amanhã, não vais provocar o teu pai outra vez, pois não?

- Não lhe direi uma palavra que não deva, minha mãe. Oh, mãe, não penseis mal de mim, por favor.

Harry chorava. Desejava que ela se fosse embora e, todavia, não suportava a ideia de a deixar partir. Beijou-lhe a face tépida, afastou os braços do pescoço dela quase bruscamente e, com um grande suspiro, voltou a deixar-se cair sobre a almofada. Quando a mãe se debruçou sobre ele, para lhe perscrutar o rosto, semicerrou as pálpebras e começou a respirar profundamente, como se o sono estivesse já a apossar-se dele. Satisfeita, Lady Talvace beijou-o na testa, afastou-se com a vela na mão e fechou docemente a porta atrás de si.

Mal a mãe saiu, Harry voltou a abrir os olhos. Estavam brilhantes, secos e bem despertos. Esperou alguns segundos, sem se mexer, para o caso de ela voltar. Em seguida, com movimentos cautelosos e desajeitados, saltou da cama e começou a vestir-se.

O seu pai retirara e levara consigo a cavilha de ferro que abria o trinco da porta, para esta só poder ser aberta do lado de fora. Mas não era a primeira vez que Harry ficava fechado e havia muito que arranjara maneira de se precaver contra tais eventualidades. O ferreiro da aldeia fizera-lhe outra cavilha, mais pequena e mais leve, que podia ser usada dos dois lados. Depois de se vestir, uma operação que lhe levou mais tempo do que o habitual - porque cada movimento e o próprio contacto das roupas eram dolorosos - foi buscar o seu tesouro, ao esconderijo entre a palha da cama e inseriu-o no buraco da porta. O pesado ferrolho foi levantado e Harry abriu a porta com cautela, parando depois à escuta. Nada. O eco dos passos do guarda na atalaia não chegava até ali e, lá em baixo, nada se movia. Harry levava consigo apenas as roupas que tinha vestidas, mais um manto e todo o seu dinheiro, que era bastante pouco. Horas antes, lembrara-se de que, graças a Deus, os cavalos haviam ficado no cercado do moinho. Tanto o cavalo cinzento que costumava montar como o poldro que emprestara a Adam eram seus e não de seu pai, e as duas montadas estariam frescas e prontas a cavalgar.

Fechou a porta e, sem ruído, voltou a pôr o ferrolho no lugar. Em seguida, retirou a cavilha Matthew Smith, o ferreiro, nunca suspeitara ter-lhe fornecido um instrumento ilegal) e guardou-a no bolso. Deixá-la ali bastaria para lançar a matilha atrás de si e não sabia se a sentinela teria recebido ordens para vigiar o seu quarto. Harry tinha a certeza de que, de manhã, o pai seria o primeiro a visitá-lo no seu retiro. Depois de haver dormido sobre o assunto, Sir Eudo iria lamentar ter dado largas à sua cólera daquela maneira e estaria disposto a mostrar-se clemente e paciente para com o filho obstinado. Mas acabaria por lhe voltar a bater. Só que o filho não estaria lá para ser acarinhado nem espancado, nem nessa manhã nem em mais nenhuma outra.

Harry não sabia que horas eram mas pensava que já devia passar da meia-noite. A mãe não haveria ousado ir ter com ele antes de o pai estar a dormir profundamente. Ademais, a Lua, em quarto crescente, já quase não se via e, quando se escapou pela escada exterior e poisou os pés no solo tépido e seco do pátio, a única luz a recear era a luz das estrelas. A sombra do muro serviu-lhe de protecção, até chegar ao extremo mais afastado da entrada. A partir daí, era preciso atravessar terreno descoberto, para chegar até onde ficavam os alpendres, armarias, cavalariças e arrecadações construídos ao abrigo do pano da muralha. Harry encheu-se de coragem, atravessou o pátio a correr, pelo lado mais estreito, e deixou-se cair sob o alpendre da casa do frecheiro. A noite continuava calma, indiferente. Ao cabo de alguns instantes, Harry ergueu-se e avançou, de abrigo em abrigo, até chegar ao canto mais remoto da liça, perto da poterna.

A prisão de Adam não ficava longe e estava às escuras. O silêncio que por ali reinava encorajou-o a pensar que a sua mãe dissera a verdade e que o cativo não estava guardado. Ninguém, nem mesmo Adam, havia posto a hipótese de alguém o ir salvar.

Harry encostou o ombro à pesada trave de carvalho que trancava a porta, levantou-a e, com toda a cautela, voltou a colocá-la no encaixe. Em seguida, abriu a porta, esgueirou-se para o interior e voltou a fechá-la.

- Adam! - sussurrou, conservando-se imóvel até os seus olhos se habituarem à escuridão.

A única resposta que obteve foi um restolhar na palha. Foi avançando com prudência, tacteando o solo com os pés, sentindo a cada passo as batidas tumultuosas do coração.

- Adam... Sou eu, Harry!

No chão, um volume esbranquiçado moveu-se ligeiramente e voltou a ouvir-se o restolhar da palha. Harry poisou no chão os sapatos e o manto enrolado e continuou a avançar de joelhos, procurando com as mãos a extremidade do monte de palha, que ocupava metade do estábulo. Os seus dedos encontraram um pé que, num movimento violento, o empurrou para trás e desapareceu. Harry voltou a procurá-lo, murmurando promessas e palavras de conforto, sem saber bem o que dizia. Encontrou um braço nu, um corpo deitado de bruços, uma cabeça que se afastou, com determinação. Alguém, talvez um dos arqueiros que haviam odiado a tarefa que lhes coubera, colocara um pano embebido em água fresca nas costas do jovem, mas, quando Harry lhe tocou inadvertidamente, o pano estava quente e, por baixo dele, a carne escaldava, febril.

- Adam! - repetiu Harry, deitando-se ao lado dele sobre a palha. Abanou-lhe suavemente o braço, tendo o cuidado de escolher um sítio em que não o magoasse, e aproximou a face da cabeça que se afastava dele. - Sou eu: Harry. Não queres falar comigo? Como é que te sentes? Consegues levantar-te e andar, se eu te ajudar? Oh, Adam, olha para mim! Estás a assustar-me! Não me conheces?

Harry começou a tremer e a chorar, continuando a murmurar palavras inarticuladas, por entre os soluços convulsivos. Finalmente, Adam voltou-se e deu-lhe um murro.

- Afasta-te de mim! - disse, numa voz fraca mas cheia de raiva. - Nunca devia ter confiado na amizade de um Talvace.

- Vim ter contigo logo que pude, Adam...

- Para quê? - perguntou Adam, amargamente. - Eu não sou da tua família nem da tua estirpe. Volta para junto dos teus!

Harry aproximou-se mais, segurou entre as mãos o punho que o ameaçava e encostou-o ao coração, vertendo sobre ele lágrimas desesperadas.

- Já estou junto dos meus. Não me mandes embora! Eu não volto para aquela casa, Adam. Vou contigo, para longe daqui. Temos de nos apressar! Consegues levantar-te? Apoia-te em mim! Tenta! Põe o braço à volta do meu pescoço.

Adam ergueu a cabeça e, desconfiado, perscrutou a obscuridade.

- O que queres dizer? É verdade? Deixas-me ir embora?

- Eu vou contigo. Vamos partir juntos. Ninguém irá privar-te da mão, Adam. E quem quiser fazê-lo deixa de ser da minha família. Agarra-te a mim e vê se consegues pôr-te de pé e andar. Só temos que dar alguns passos, para sair daqui. Depois, podes descansar um pouco, enquanto eu vou buscar os cavalos. Graças a Deus, deixámo-los no moinho. Senão, não conseguiria levá-los daqui, sem ninguém dar por isso. E, a pé, não íamos muito longe.

- A minha mãe - murmurou Adam, rebentando em lágrimas de alívio e esperança mas, também, de desespero e remorso. - O desgosto que ela vai ter...

- Daqui a um dia ou dois, ela vai ouvir dizer que fugimos e ficará a saber que estamos juntos. Anda, põe o braço à volta do meu pescoço e segura-te a mim... apoia o teu peso em mim. A tua mãe saberá que ainda tens a mão e perceberá o que nos levou a partir. E vai perceber que vamos ficar sempre juntos. Estás a ver que és capaz? - acrescentou Harry, com o rosto ainda molhado de lágrimas e a tremer de ansiedade, enquanto ia ajudando Adam a pôr-se de pé. - A tua cota está aqui? E o teu capuz? Vou enrolá-lo junto com o meu manto. Não precisas dele agora. Consegues aguentar a cota?

O pano estava colado ao sangue das feridas que cobria. Harry vestiu-lhe a camisa e a cota por cima do pano, estremecendo de cada vez que Adam estremecia. Mas este regressava lentamente à vida e recomeçava a acreditar: afastou-se ligeiramente do braço que o apoiava e conseguiu manter-se de pé sozinho.

- Para onde vamos? Para onde poderemos ir?

- Para Shrewsbury, ter com o padre Hugh. Ele não nos entregará e ficamos lá escondidos até poderes viajar. Consegues cavalgar até lá, esta noite?

- E a tua família, Harry? - objectou Adam, estremecendo.

- Qual família? O meu pai é mestre canteiro e a minha mãe... - começou Harry, interrompendo-se de seguida, pois era um terreno demasiado perigoso, que queria evitar. - Tu sempre foste um irmão para mim e, agora, os teus irmãos são também os meus. Não volto atrás. Mesmo que tu não fosses, eu ia-me embora. Vamos, fica perto de mim e segura-te a mim, se quiseres. É só um bocadinho. Só até à poterna. Se levássemos o barco, eles viam-nos. É pena.

- Desculpa ter-te batido, Harry... Lamento muito...

- Não penses mais nisso. Não me importo. Sei bem aquilo por que passaste. Vamos, devagar...

Abriu a porta e deslizou, pelo espaço exíguo, sempre com uma mão estendida para trás, pronta a segurar Adam, se este vacilasse.

- Põe-te atrás de mim e agarra-te às minhas costas.

- Eu consigo andar, A sério que consigo. Chiu!

Agora, apesar da fraqueza e da dor, Adam estava na plena posse das suas faculdades. Avançou ansiosamente para a frescura da noite e as suas passadas foram-se tornando mais firmes. A escuridão fechava-se sobre eles. O grande arco da poterna ocultava-os dos olhares estranhos. Harry retirou a barra da cancela e os pés deles pisaram a erva do prado. Dali até ao bosque que ladeava a margem do rio a distância não era grande e a muralha da praça-forte dava-lhes cobertura. Foi com prudência que respiraram a primeira lufada do ar de uma liberdade que sabiam ser precária. E foi com impaciência que, de braço dado, começaram a dirigir-se para o abrigo das árvores.

 

Pelas sete da manhã, quando o sino tocava a Primeira Hora, na casa da guarda da abadia, o porteiro laico ouviu o martelar de ferraduras que se aproximavam pela estrada poeirenta e reparou que havia algo de estranho nas passadas dos cavalos que, ora caminhavam num passo hesitante, ora paravam, como que sem rumo, até pararem junto ao portão. Foi ver quem seriam os cavaleiros e deparou com dois rapazes, um deles caído sobre a sela como quem está prestes a desmaiar, o outro a segurá-lo com uma das mãos. Forçados a compensar e estabilizar as suas cargas precárias a cada desequilíbrio no peso, os cavalos, companheiros de longa data, avançavam flanco com flanco, num andamento paciente e cuidadoso. O segundo rapaz não estava em muito melhor estado que o seu amigo. Parecia ter sido capaz de chegar onde queria mas, agora, faltavam-lhe as forças para ajudar o companheiro a desmontar.

Sem fazer perguntas, o porteiro contornou os cavalos, que se mostravam um pouco nervosos, e retirou cautelosamente da sela o rapaz desmaiado, pegando-lhe ao colo como se fosse um bebé. Através da túnica, da camisa e do pano enrijecido que cobria as feridas do jovem, sentiu e adivinhou as crostas de sangue seco.

- Espera um momento - disse ao segundo rapaz, que, com movimentos rígidos e dolorosos, tentava libertar os pés dos estribos. - Eu ajudo-te a descer. Não te mexas.

Depois de haver depositado o fardo na sua própria cama, na casa da guarda, voltou atrás e agarrou o segundo rapaz pelas axilas, como quem pega numa criança, para o descer do cavalo. Quando o pôs no chão, as pernas entorpecidas não aguentaram o peso do corpo e o rapaz teve de se agarrar ao braço forte do porteiro. Foi então que Harry ergueu o rosto: um rosto que o porteiro reconheceu.

- Master Talvace? O que aconteceu? Que fazeis aqui e num tal estado? Segurai-vos ao meu braço e entremos. - Embora não lhe tivesse olhado para o rosto, o porteiro sabia agora quem devia ser o outro rapaz. - Que vos aconteceu? Haveis sido atacados? Onde tínheis a cabeça, para vos meterdes assim à estrada de noite, com tantos salteadores que há por esses caminhos da fronteira?

- Não foram salteadores de estrada - respondeu Harry, com um sorriso constrangido. - Fomos feridos num lugar bem diferente. Preciso ver o abade, Edmund, mal ele me possa receber.

- E vê-lo-eis, quando ele puder. Mas só depois do capítulo. De qualquer modo, pelo aspecto que ambos apresentais, bem precisais de repouso. O jovem Adam está... mais gravemente ferido do que parece ou está apenas desmaiado? - Debruçou-se sobre o corpo inanimado, para lhe ouvir a respiração, agora mais regular, e sorriu, tranquilizado. - Ah, que bom é ser jovem! Ainda agora estava desmaiado mas, mal chegou à cama, ficou a dormir. Não há nada que lhe possa fazer melhor.

- O Adam aguentou-se na sela que nem um valente, até chegarmos ao vau - explicou Harry, numa voz que tremia de exaustão. - Depois, começou a ficar sem forças e tivemos que abrandar a marcha. A passo, sentia menos dores. Durante a última milha, não sei como consegui segurá-lo na sela. Nem a mim, aliás. Por favor, Edmund, cuidai de que tratem dos cavalos. Eu não seria capaz de lhes tirar as selas, nem que a minha vida dependesse disso. Quase não me posso mexer. Sem vós, haver-me-ia deixado cair da sela para desmontar... não poderia ser de outra maneira.

- Alguém irá tratar dos vossos cavalos. Mas, antes, vou procurar o irmão enfermeiro e cuidar de que este aqui e vós sejais metidos na cama. Depois de haverdes dormido, haverá tempo para vos perguntar o que vos levou a errar por essas estradas, em plena noite e neste estado. Ficai junto dele até eu voltar.

Mas nada teria conseguido afastar Harry da cabeceira de Adam. Só iria permitir-se perdê-lo de vista, quando se encontrassem num lugar seguro ou a muitas milhas de distância do couteiro real. Lutando para conservar abertas as pálpebras que sentia pesadas, Harry sentou-se de olhos fixos no rosto sujo e cansado de Adam, que o sono natural ia tornando menos tenso. E assim ficou até ao momento em que o frade enfermeiro chegou a correr, acompanhado por dois dos seus ajudantes, e fez seguir os dois rapazes para um dos cubículos exíguos, frescos e limpos da enfermaria. Harry lançou-se numa explicação complicada a que ninguém deu ouvidos e que, em breve, se transformou em murmúrios incoerentes, para depois dar lugar ao silêncio. Foi com gratidão que deixou que cuidassem dele, que o despissem, o lavassem e lhe metessem na boca leite morno e pão, como se fosse um bebé. Quando o deitaram, de bruços, numa cama dura mas perfumada, o seu último pensamento semiconsciente foi que, graças a Deus, Adam dormia tão profundamente que não sentia as dores, enquanto, com toda a paciência, os frades cortavam e descolavam das suas costas o pano de linho e lhe punham pensos sobre as feridas. Quando acordasse, sentiria algum bem-estar e veria que se encontrava num oásis de segurança. Com os olhos rasos de lágrimas de gratidão, Harry acabou por adormecer também, deixando para trás o sofrimento próprio, a última chaga aberta pela sua vida anterior, que chegara ao fim.

Na sala de visitas dos aposentos privados do abade, o monge enfermeiro relatava a chegada dos dois jovens. Hugh de Lacy afastou de si a pena e o tinteiro, fazendo-os deslizar sobre a mesa encerada, e deixou-se estar sentado por longos instantes, olhando pela janela, para o seu jardim murado, húmido e radioso na frescura da manhã.

- Tão cedo! - disse. E, com um suspiro, acrescentou: - Pobre Harry! - Afastou a cadeira e pôs-se de pé. - Vou convosco ver esses malandros, irmão Denis.

- Estão a dormir profundamente, padre. Era de dormir que mais precisavam. Foram barbaramente espancados.

O irmão enfermeiro era velho e bondoso e não aprovava sequer a disciplina dura que o subprior impunha a noviços e alunos.

- Não vamos incomodá-los - disse o abade. - Mas tenho de ver com os meus próprios olhos.

Já que tinha entre mãos uma mediação difícil, o melhor era estar na posse de todos os factos. Hugh de Lacy não atribuía grande importância à indignação do irmão Denis mas, mesmo assim, antevia algumas possibilidades terríveis. Harry sabia bem demais provocar a cólera, um defeito péssimo nos jovens, que tão poucos meios de defesa possuem.

O abade atravessou o vasto pátio, a coxear atrás do monge enfermeiro, e entrou na cela onde os dois rapazes dormiam, em duas camas estreitas, encostadas uma à outra.

- O Harry pediu para as pormos assim - explicou o irmão Denis. - Foi a única maneira de o convencermos a afastar-se um pouco de Adam, enquanto lhe tratávamos das feridas. Achei melhor fazer-lhe a vontade. Não iria sossegar, se o amigo ficasse longe do alcance da sua mão e a pobre criança precisa de descansar.

De rosto corado e lábios húmidos, Harry estava deitado, com um braço nu estendido sobre a cama de Adam e os dedos encurvados, perto do pulso bronzeado do seu irmão de leite. O irmão Denis ergueu a coberta, pondo a descoberto as costas de Harry e, ao fim de alguns instantes, voltou a tapá-lo, com delicadeza.

- O outro ainda está pior - anunciou.

As costas de Adam estavam cobertas por uma compressa embebida num cozimento de serpentária e centáurea, para refrescar e sarar as chagas abertas. O jovem estava semideitado sobre o ventre, numa posição desconfortável, mas dormia tão profundamente que nem se mexeu nem a sua respiração profunda e pesada se alterou, quando o irmão enfermeiro levantou uma ponta do tecido, para mostrar a carne sulcada de vergões vermelhos.

- Não sei como conseguiram cavalgar tamanha distância num tal estado. Os movimentos, o cansaço e o roçar das roupas agravaram os seus males mas, graças a Deus, ambos são rapazes fortes e saudáveis e alguns dias de cuidados apropriados vão pô-los bons.

- Seja como for - comentou o abade, mirando-os de sobrolho franzido e olhar sombrio - isto mostra um certo grau de desespero. Está visto que não fugiram para escapar a isto. De que terão fugido?

Com todo o cuidado, o irmão enfermeiro voltou a pôr a compressa no seu lugar e abanou a cabeça, assolado por um mau pressentimento.

- Não haveriam sido pior tratados, se fossem malfeitores condenados. Que delito tão grave poderiam ter cometido dois rapazes tão jovens? Não os interrogámos, é claro, mas parece evidente que o senhor de Sleapford ignora que eles vieram refugiar-se aqui. Não dei qualquer passo para o avisar. Harry pediu para se avistar convosco, padre, e eu achei por bem esperar que vós estudásseis o assunto, antes de fazer fosse o que fosse.

- Fostes sensato, Denis. Penso que podemos considerar que, se andarem à procura deles, as buscas serão feitas perto de casa, pelo menos por um dia ou dois. Já que Eudo não pode ignorar - acrescentou secamente - que eles não estão em estado de viajar para muito longe.

- Quando as buscas forem alargadas, vamos ser o primeiro refúgio em que eles irão pensar - observou o irmão Denis. - Mas só virão aqui, depois de haverem passado a pente fino o vale e os bosques. Isso deverá dar-nos dois ou três dias de tréguas.

- Ainda bem! Assim, disporei de tempo para averiguar o que está por trás desta fuga. Quando o Harry despertar, depois de haver comido e de estar com o espírito desanuviado, mandai-o ter comigo. Se ele dormir até amanhã, deixai-o dormir. Até lá, deverão deixar-nos em paz. E ninguém pode estar à espera de que eu dê uma informação que ainda não possuo, pois não?

Uma mosca poisou no rosto febril de Harry e Hugh de Lacy inclinou-se para a enxotar. Assustado, o rapaz estremeceu e soltou um grito ténue mas não acordou. Depois, por um instante, a sua mão tacteou desajeitadamente mas encontrou apenas o colchão fresco. As suas pálpebras agitaram-se, a sua boca formou o nome de Adam mas o som que se ouviu foi um pequeno gemido animal. Então, Hugh de Lacy pegou-lhe na mão e colocou os dedos trementes sobre o pulso de Adam. Estes fecharam-se avidamente e, depois, ficaram quietos. Harry suspirou e continuou a dormir, já tranquilo.

O abade regressou aos seus aposentos com o coração apertado. Na pele macia do pulso, tão afectuosamente estreitado, tinha visto uma marca circular azul, já a esbater-se: a marca deixada pelo aro de ferro do poste de flagelação.

Harry bateu à porta da sala do abade no dia seguinte, à hora da primeira missa da manhã, quando os servos, os camponeses e os leigos se encontravam na igreja e, no pátio, reinava o silêncio. Não tinha medo do abade mas sentia uma espécie de agitação, reminiscência dos dias em que, em raras ocasiões, fora ali mandado para ouvir uma reprimenda mais solene do que habitualmente, pelos seus pecados infantis. Desconcertava-o experimentar o mesmo sentimento, agora que não duvidava estar inocente de qualquer falta. Por vezes, nos velhos tempos, entrara ali com a mesma convicção e saíra submisso, à beira das lágrimas, arrependido de pecados que acabara de admitir haver cometido. Algo que o padre Hugh conseguia sem sequer ter de erguer a voz. Quando o abade o mandou entrar, obedeceu quase com timidez. O abade afastou-se da sua mesa de trabalho, junto à janela, e sorriu-lhe. Mas a sua testa franzida indicava uma certa ansiedade.

- Entra, Harry. Tomaste o pequeno-almoço?

- Sim, padre. Obrigado - respondeu Harry, avançando para beijar a mão que Hugh de Lacy lhe estendia. - Quis vir ver-vos quando acordei, na noite passada, mas o irmão Denis disse que era muito tarde e que estáveis ocupado. Foi negligência da minha parte, haver gozado da vossa hospitalidade por um dia inteiro, sem vir apresentar-vos os meus respeitos, mas...

- Não digas mais nada, Harry. Eu sei que estavas muito cansado e fico contente por haveres dormido. Como está o Adam, esta manhã? Não se levantou, espero.

- Ainda não. Mas o irmão Denis disse que talvez ele possa levantar-se por um bocadinho, durante a manhã. Está muito melhor - disse, olhando hesitante para o rosto calmo do abade, antes de, um pouco embaraçado, acrescentar: - Não sei se sabe, padre...

- Eu fui ver-vos, enquanto dormiam - esclareceu o abade. - Senta-te aqui ao pé de mim e conta-me o que te trouxe até cá, num tal estado.

Harry puxou a cadeira baixa que Hugh de Lacy lhe indicara e sentou-se ao alcance da mão comprida, delgada e musculada, que repousava sobre os joelhos cruzados.

- O Adam e eu viemos em busca da vossa protecção, padre Hugh. Quando me fui embora, dissestes que podia vir ter convosco, a qualquer momento, em caso de necessidade, e que continuaríeis a ser meu amigo. Neste momento, é grande a precisão que temos da vossa amizade, padre.

- Foi o que eu pensei, meu filho. Conta-me a tua história.

- Anteontem, tive um dia de folga do meu trabalho nos registos e o Adam e eu pegámos nas nossas bestas e fomos caçar lebres e coelhos, nos campos acabados de ceifar. Como sabeis, há sempre muitos, quando eles começam a sair das tocas, a fugir aos ceifeiros. Quando já havíamos apanhado muitos e estávamos fartos daquilo, fomos até ao moinho e deixámos lá os cavalos. Depois, entrámos na floresta a pé. É a coutada de caça de Sir Roger le Tourneur. Andámos fora de casa todo o dia e, ao entardecer, quando voltávamos pela floresta...

Até então, Harry falara devagar, tacteando o caminho, para evitar qualquer menção de Hunyate e do encargo secreto que lá os levara. O relato parecia bastante completo. Harry foi ganhando cada vez mais confiança e contou o resto da história, sem mentir, nem mesmo acerca do ataque de furor histérico, nas cavalariças, do qual não se orgulhava. A voz tornou-se-lhe colérica, ao comunicar o desgosto apaixonado que sentira perante a injustiça da sentença a que Adam fora condenado. O abade ouviu-o até ao fim, num silêncio cortês mas com uma expressão grave. Era pior do que receara.

- E, então, libertaste Adam da prisão e trouxeste-o para aqui.

- Sabia que a Igreja não podia deixar de o proteger contra a injustiça.

- Injustiça! Gostas muito dessa palavra, não gostas, Harry? Não te zangues comigo, meu querido filho, nem te apresses a concluir que estou a retirar-te o apoio da minha amizade, mas preciso de te fazer algumas perguntas: as perguntas que tu não fizeste a ti próprio.

Harry ergueu vivamente a cabeça e a luz do sol reflectida, vinda do jardim, provocou reflexos dourados naqueles seus olhos desconcertantes.

- Responder-lhes-ei se puder, padre.

- Para começar, imagina que és um dos couteiros do rei. Tu e os teus guardas encontram dois jovens, armados com bestas (o que, só por si, é um crime punível, dentro da floresta) e que estão a cortar a cabeça a uma corça ferida. Os rapazes afirmam que não foram eles que lhe deram caça, que a encontraram já ferida e quiseram acabar com o seu sofrimento. Em apoio do que afirmam, dizem que só haviam entrado na floresta uma hora antes e que é óbvio que a corça, ferida num flanco pelo disparo de uma besta, estava a perder sangue havia já várias horas. Mas não indicam nenhuma testemunha que ateste que eles estiveram noutro lado qualquer, durante essas horas, nem querem dizer eles mesmos onde foram. Dizei-me, couteiro real, acreditaríeis neles ou nos vossos próprios olhos?

- Eu sei que as suspeitas eram razoáveis. Mas juro-vos, como lhe jurei a ele, que nós não caçámos aquela corça.

- E eu aceito a tua palavra sem hesitações. Só que eu posso fazer isso e Sir Roger não pode. Ele ocupa um cargo de confiança e de responsabilidade, que o obriga a proceder de acordo com as provas.

- Eu disse que era uma suspeita razoável, padre. Mas nós fomos condenados e castigados sem julgamento!

- Haveis sido encontrados numa coutada privada. Embora tenha por costume remeter para o tribunal especial todos os casos (e isso prova que ele é dotado de um carácter escrupuloso), Sir Roger não é obrigado a fazê-lo. Podia julgar-vos no tribunal do seu próprio senhorio e ser juiz em causa própria. Estaria apenas a exercer os seus direitos. Pensas que, deste modo, a vossa sorte seria melhor?

- Pelo menos, dar-nos-ia tempo para encontrar testemunhas que nos houvessem visto...

Harry interrompeu-se mesmo a tempo e olhou para cima, com um

olhar carregado de dúvidas e perplexidade.

- Não estou a tentar estender-te uma armadilha, meu filho. Mas, se puderes contar-me aquilo que não podias contar-lhe a ele, onde foi que estivestes nesse dia, muito bem. Senão...

- Não posso, padre, porque não é um segredo meu e é importante para outra pessoa que eu não traia esse segredo. Mas em breve, daqui a uns dias, já terei liberdade para falar.

- É uma grande pena mas não se pode dizer que seja culpa de Sir Roger, nem do teu pai. Vejamos: tu negas haver caçado a corça mas admites que as circunstâncias tornam razoável que sejas acusado. E não há dúvida que, em tribunal, perante tais provas, seríeis condenados. Estás de acordo comigo, Harry?

- Sim, padre - admitiu o jovem, contra vontade mas honestamente.

- Passemos agora à segunda acusação, a de que agrediste Sir Roger. Negas essa acusação?

- Não, padre. Eu agredi-o. Estava assustado e sabia que nunca iriam acreditar em nós. Mas não sabia que ele era...

- A ignorância não constitui defesa. E negas que o Adam também o atacou?

- Atacou. Mas foi porque...

- Atacou. E receio que o motivo não sirva de desculpa para o crime. Ambos vos dais como culpados dessa acusação. Então, de que te queixas?

Harry ergueu vivamente a cabeça.

- Não vos compreendo, padre. Eles iam cortar a mão do Adam!

- Harry, Harry... quando é que vais aprender a aceitar as realidades? Conheces a lei tão bem como eu. Admites haver cometido um crime que a lei considera da maior gravidade. E qual é a pena que a lei prevê para quem use de violência contra o couteiro real?

- «Se for um homem livre, perderá a liberdade e todos os seus bens.»

- E se for um servo?

- «... perderá a mão direita.» Sim, mas...

- Nada de mas! Acabaste de ler a sentença, se o Adam houvesse sido presente ao tribunal especial. Que ajuda poderias prestar-lhe se, por ele perder a mão, tu perdesses a liberdade? E também sabes quais seriam as penas para a acusação referente à corça, se a acusação houvesse sido levada a tribunal... que Deus proteja os inocentes de tais acusações, mas Ele sabe que, por vezes, isso acontece. Para ti, que és livre e nobre, a pena seria uma pesada multa. Mas, para o Adam, que é servo, seria a morte, sob a lâmina do carrasco. E dizes tu que o couteiro real não mostrou clemência, ao comutar a pena numa flagelação? Não só não exerceu todos os seus direitos como, para vos poupar, se desviou do caminho que lhe estava traçado. Ainda assim, queixas-te dele.

Harry levantara-se e estava de pé, a tremer, junto à cadeira do abade.

- Estais a dizer-me que está certo cortarem a mão do Adam?

- Aquilo que eu penso sobre o que é certo ou errado não tem nada a ver com o assunto. Estou a dizer-te que é legal.

- Legal! - exclamou o jovem, com um movimento impetuoso do queixo e um trejeito de desdém nos lábios. - Insistis em falar de legalidade mas eu estou a falar de justiça. Poderá ser legal ele não me privar da liberdade, se lhe aprouver, e não poupar a mão do Adam. Mas não é justo, mesmo que se concorde com a lei. E eu não concordo! É uma lei iníqua, pois faz distinção entre uma mão e outra mão. E falais-me em aceitar as realidades? Se tivésseis diante de vós a minha mão e a mão de Adam, decepadas, saberíeis dizer qual delas era livre e qual não o era? Que respeito posso eu ter por uma lei que afirma que há diferenças numa questão em que eu sei que as não há?

- Portanto - disse o abade, num tom suave - a conclusão é que tu ousas opor o teu julgamento pessoal à lei deste país.

- Padre, não será uma dádiva de Deus eu ter um espírito e a faculdade de formar aquilo a que chamais um julgamento? Deverei enterrá-lo e deixar que apodreça? Por amor de Deus! Não será meu dever usá-lo com consciência, o melhor que souber?

- Foram umas belas palavras, Harry! Deixa-me dizer-te que a lei é um compromisso, um expediente, o melhor que se pode fazer com o material de que dispomos, e está sempre inacabada. Mas foram espíritos humanos... perdoa-me... mais velhos, mais sensatos e mais elevados que o teu que a fizeram, e penso que ninguém, dos que participaram na sua elaboração, alguma vez dirá que a lei não pode ser melhorada. Estás certo ao reclamar, quando pensas que ela não cumpre a sua finalidade, que é a da justiça, mas deves cuidar de não pensar que as tuas críticas são sempre justificadas. Há sem dúvida algumas leis que são más - embora, para ser franco, não me pareça que esta seja uma delas - e, a seu tempo, serão mudadas. Mas, enquanto a lei é como é, estamos ambos sujeitos a ela e temos de nos conformar. O remédio para

lei má não é calcá-la aos pés.

- Que mais podíamos nós fazer, padre? Daqui a um ano ou dois ou dez, esta pena, que eu considero indigna, pode já não existir. Mas o Adam haveria ficado sem a mão, ontem, se eu não o houvesse libertado e trazido até aqui. - Com a respiração agitada, Harry observou o rosto calmo e triste do abade e os seus olhos verdes abriram-se muito, de horror. - Estou a ver! É uma das realidades que estais disposto a aceitar. Mas eu não estou. Nunca! - exclamou, antes de acrescentar, num tom monocórdico e frio, que atingiu os ouvidos do abade como se fosse chuva gelada: - Que tencionais fazer? Entregar-nos?

- Senta-te e ouve-me, Harry. És demasiado impaciente.

- Tenho razões para o ser. Estou apenas a um passo do machado do carrasco - replicou Harry, no mesmo tom de voz.

Todavia, sentou-se obedientemente e ficou à espera, com uma expressão circunspecta.

- Não vou entregar-vos, Harry, porque tu farás com que isso não seja necessário. Não! Deixa-me falar. Cometeste uma falta, ao fugires, e essa falta, meu querido filho, por mais compreensível que seja, terá de ser expiada. Não posso nem quero apoiar a revolta de um filho contra o pai, nem a fuga de um servo que quer escapar ao seu senhor. Estou sujeito à lei e tenho deveres para com as autoridades. Posso e vou intervir a teu favor. Tentarei convencer Sir Roger a estender a sua clemência a Adam, poupando-lhe a mão, e o teu pai a perdoar a tua rebelião contra ele. Mas, se eles não desistirem dos seus direitos, não posso esconder a Sir Eudo o seu filho e o seu servo, nem impedi-lo de aplicar a ambos o castigo devido. Vou usar toda a minha eloquência e toda a arte que conheço para pedir por ambos, Harry. Mas com uma condição: que aceiteis submeter-vos e vos entregueis voluntariamente, que confieis na compaixão de Sir Eudo.

- Agradeço-vos mas já experimentei a compaixão do meu pai - disse Harry, pondo-se de pé. - Pensei que podia confiar na vossa.

- Tens de me ouvir, meu filho, e de confiar em que irei usar de toda a minha influência em vosso favor. Mas não posso fazer nada, se te mostrares revoltado. A lei é lei e é preciso respeitá-la. A autoridade do teu pai é sagrada e não posso ajudar-te a escapar-lhe.

O jovem afastou-se ligeiramente, os olhos verde-mar fixos no rosto do abade. Toda a cordialidade que lhe fora transmitida quando Harry entrara na sala havia desaparecido, recolhera-se para o interior daquele corpo erecto e expectante, deixando Hugh de Lacy a tremer de frio, à luz do sol. Esperava uma explosão que não se dera. Harry havia esgotado as lágrimas e as súplicas. Nem a lei nem a Igreja protegiam os fracos. Só lhe restava arranjar maneira de deixar de ser fraco, para poder proteger-se a si mesmo e aos seus.

- Não quero discutir convosco, padre. Só sei que tenho razão e vós não e continuarei a tê-la enquanto for vivo. Nunca mais vos pedirei nada. Rogo-vos que não intercedais por mim, eu resolverei isto sozinho. Agora, se haveis dito tudo quanto havia para dizer...

Harry aguardou que o abade lhe desse licença para sair. Com a boca contraída, formando uma linha recta que mais parecia o fio de uma espada, e as narinas frementes, era um perfeito Talvace, com um tal aspecto de homem feito que o abade procurou em vão o rapaz a quem dera as boas-vindas ainda não havia muito.

Hugh de Lacy levantou-se da cadeira e aproximou-se da janela, de costas para a sala. Deixou-se ficar ali por um longo momento, de olhos semicerrados por causa do sol, a tentar compreender o receio e a ansiedade que lhe inspirava aquele ser ardente que deixava a sua flâmula ao sabor de um vento irresistível. Que poderia ser feito para o controlar? Que poderia ser feito para deter a flecha já lançada, para apagar a chama que subia? Não queres discutir comigo! Se tu soubesses, meu pobre filho!, pensou. É a mim que a tempestade ameaça, não a ti.

- Dais-me permissão para me retirar? - perguntou a voz fria, que continha em si toda a herança que Harry renegava, toda a dureza e toda a arrogância dos Belesme, dos Ponthieu, dos Alençon.

- Por amor de Deus e para o teu próprio bem, Harry, dobra a espinha, antes que seja a vida a dobrar-ta ou a arrancar-te a cabeça de cima dos ombros. É impossível viver tu como queres. Mais cedo ou mais tarde, todos os homens precisam de ceder, sejam reis ou papas, todos os seres humanos precisam de recuar, de vez em quando, para se manterem de pé e poderem respirar. Aprende a ser humilde enquanto é tempo, antes que a vida te inflija golpes mais duros do que aqueles que sofreste. Inclina-te agora e verás que é menos difícil e menos humilhante do que pensas. Não serás só tu a pôr-te de joelhos, Harry, pois eu suplicarei contigo. E juro-te que hei-de arranjar maneira de obter o perdão para o Adam, nem que tenha de seguir o teu pai e Roger le Tourneur, de joelhos, por todo o domínio...

Hugh de Lacy calou-se, ao sentir que, nas suas costas, o gabinete ficara mais frio. Voltou-se e viu a porta fechada. Os passos de Harry soavam já distantes, sobre as lajes do corredor. Depois, qual vaga ascendente, o silêncio instalou-se.

Atordoado como se tivesse levado um soco, Harry, de coração destroçado, avançava pela penumbra do corredor. Quando chegou ao ar livre e o sol matinal lhe bateu no rosto, envolvendo-o, como se fosse uma mão quente, ao mesmo tempo que as cores e a luminosidade pareciam emitir o som de címbalos e repicavam como sinos à sua volta, por entre o burburinho da azáfama que reinava no pátio, Harry teve a impressão de estar a ser vítima de uma ironia cruel, de uma ilusão de Verão, de vida, de alegria. Passado este primeiro impacto, abriu caminho por entre os servos da abadia, que discutiam e riam, enquanto se preparavam para o dia de trabalho nos campos, por entre os mendigos, que apanhavam sol, por baixo do muro do átrio das esmolas, por entre os mercadores, que esperavam o momento de, antes do capítulo, discutir com o prior os preços das panelas, dos tecidos, do gado e das tábuas de madeira, por entre os rendeiros livres, que tinham vindo pagar os seus tributos ou apresentar as suas queixas e, mau grado seu, sentiu-se reconfortado; apesar do forte sentimento de ofensa e de traição, os seus sentidos abriram-se avidamente, sorvendo e apreciando tudo o que o rodeava. A despeito do facto de o abade o ter desamparado, o mundo fervilhava de actividade, era belo e variado, e Harry não conseguia impedir-se de tirar prazer desse mundo.

Todavia, a situação era desesperada. Agora, estavam entregues a si próprios. «Aprende a ser humilde enquanto é tempo...» Haviam sido aquelas as últimas palavras do abade a chegar-lhe aos ouvidos. Muito bem, pensou. Ser humilde e aceitar o sofrimento e o castigo próprios, talvez. Mas que direito tenho eu, que direito tem ele, a considerar a humildade uma virtude, quando é o Adam quem vai sofrer? Isso é humildade barata. Bem, pensou Harry, agora só podemos contar um com o outro. Tanto melhor: agora, mais ninguém poderá desiludir-nos.

Parou por um instante, a observar os viajantes da casa de hóspedes que se preparavam para se fazerem à estrada. Dois bufarinheiros, um jogral andrajoso e um latoeiro itinerante, com as ferramentas do ofício às costas. Mais adiante, um cavaleiro muito jovem, talvez tão jovem como Ebrard, belo e petulante, na sua cota ornada de brocado, mais curta do que mandava o costume, para deixar a descoberto as pernas bem torneadas, calçadas com umas botas de montar de bom corte. Para exibir as suas habilidades de cavaleiro, o jovem segurava as rédeas bem curtas e com firmeza, obrigando o alazão a arquear o pescoço e a dar pequenos passos de dança. Harry sentiu a tentação fugaz de dar uma palmada na barriga luzidia do animal, para o fazer acelerar o passo, mas resistiu com valentia. Havia amadurecido, ou pelo menos assim pensava, desde o dia em que se deleitara com os desaires de Ebrard, nas festas de Natal, no castelo de Shrewsbury. Agora, estava abaixo da sua dignidade atentar publicamente contra a dignidade de outrem, ainda que para responder a uma provocação. No entanto, não seria capaz de garantir por muito tempo o seu bom comportamento, no que dizia respeito àquele jovem cavaleiro enfatuado. Este obrigara a montada a erguer-se sobre as patas traseiras, num rodopio desnecessário, obrigando dois mercadores idosos e o jogral a afastarem-se precipitadamente do seu caminho. As pessoas que usavam as esporas para exibir os seus talentos de cavaleiro, num pátio cheio de gente, mereciam ser espicaçadas.

Uma menina de dez ou onze anos, que estava a atirar uma bola de trapos de cores vivas contra a parede do refeitório, largou o brinquedo e comprimiu-se contra a esquina de um pilar, para escapar às ferraduras do cavalo. Harry agarrou a criança com um braço e afastou-a do canto a que ele se encostara, pondo-a a salvo, enquanto o cavaleiro saía do pátio à desfilada. A bola da menina rolara para baixo de uma carroça, parada junto à parede do refeitório. Harry foi buscá-la e atirou-a à criança, sorrindo.

- Os tolos que montam a cavalo precisam de muito espaço - disse.

A menina apertou a bola contra o peito e, pensativa, fitou Harry com os seus grandes olhos escuros, estranhamente graves e decididos. Usava uma cota de linho azul e, por cima desta, um brial às flores. Os pés, calçados com uns sapatos pontiagudos de pano azul e formalmente alinhados um com o outro, espreitavam por baixo da saia. As duas tranças curtas, de cabelo preto, haviam sido enfeitadas com um fio dourado. A sua boca fazia lembrar pétalas de rosa.

- Eu não tenho medo de cavalos - disse ela, num tom condescendente. - Nós temos quinze cavalos, além dos que são montados pelos arqueiros.

- Sois muito afortunados - replicou Harry, impressionado. - Eu só tenho dois.

Ela inclinou ligeiramente a cabeça e observou-o, sob as pestanas compridas, enquanto, negligentemente, um dos seus pés ia descrevendo pequenos círculos sobre a terra. Estava prestes a tornar-se mulher e ele era um rapaz bonito.

- Mas eu viajo na carroça, porque os cavalos são altos demais para mim - acrescentou ela. - Em casa, tenho um mais pequeno. Mostrais-me os vossos cavalos, se eu vos mostrar os nossos?

- Mostraria, de bom grado - respondeu Harry, preocupado com outras coisas. - Mas tenho um amigo que está doente e tenho de ir vê-lo à enfermaria.

- Então, mais logo! - disse a rapariguinha, quando ele já ia a afastar-se. - Ainda vamos ficar aqui bastante tempo, para carregar e atrelar os cavalos. Volta depois, rapaz!

- Está bem - respondeu Harry por cima do ombro, rindo.

E seguiu o seu caminho, por entre os servos apressados, que iam e vinham entre a casa de hóspedes e a carroça que os aguardava, transportando fardos de tecidos. Uma segunda carroça estava a ser retirada à mão do pátio da cavalariça e, atrás dela, vinham os cavalos, repousados, recém-saídos das baias. Harry parou de repente e voltou-se para o lado de onde vinha o som, lembrando-se bruscamente do pouco tempo de que dispunha para tirar Adam daquele lugar, que se tornara perigoso para eles, e de que as duas montadas eram preciosas, pois representavam o seu único meio de evasão. De súbito, sentiu um desejo imperioso de ir ver os cavalos e um medo irracional de não os encontrar. Atravessou o pátio a correr e começou a procurar em todas as baias.

Não estavam lá! Não havia dúvida: Harry inspeccionou os estábulos de uma ponta à outra e voltou à porta mas nem o seu cavalo cinzento malhado, nem o cavalo castanho e corpulento que Adam montara, estavam à vista. Quando se convenceu do seu desaparecimento, correu, furioso, para a casa da guarda, para pedir explicações a Edmund. Porém, mal dera dez passos, parou de repente. Não precisava de fazer perguntas para saber em que pátio, privado e fechado, eles se encontravam. Deu meia volta para se dirigir aos aposentos do abade e confrontá-lo directamente. O padre Hugh não perdera tempo a tomar medidas para impedir os fugitivos de se escaparem mais uma vez. A última traição. E como era lógica!

Mas de que lhe serviria ir desafiá-lo e reclamar os seus bens? Era evidente que os cavalos estavam escondidos; como poderia obrigá-lo a entregar-lhos? Não, não seria assim que poderia resolver o problema. Se revelasse a sua cólera ao abade, todos os seus movimentos passariam a ser vigiados. Bem podia dizer adeus a qualquer esperança de tirar Adam dali. Não, não podia aproximar-se do abade nem da casa da guarda, nem fazer nada que os levasse a desconfiar de que estava a preparar um novo plano de fuga. Era preciso partir sem aviso, em segredo. Mas como?

Harry abrandara o passo e encontrava-se de novo junto da casa de hóspedes. Agora, havia três carroças à espera. As primeiras, já carregadas, estavam cobertas por um tecido grosseiro embebido em pez, como protecção contra a chuva. Na frente da terceira, coberta por uma tela de protecção idêntica, via-se um assento coberto de almofadas. A cobertura, aberta à frente e atrás, era apenas uma espécie de toldo, preso a estacas de madeira. A carroça era convenientemente alta e funda e, se a carga fosse de tecidos, seria bastante confortável para quem nela se deitasse. Os olhos de Harry começaram a brilhar, iluminados por reflexos dourados.

- Estas são as nossas carroças - disse uma voz insinuante, por trás dele.

A menina da bola também tinha uma boneca, uma pequena cópia, em madeira, de si própria, inclusive nos sapatos azuis. Observava Harry, a coberto das suas pestanas compridas e, quando ele lhe sorriu, sorriu também e acrescentou:

- E estes são os nossos cavalos.

- Deveis ser muito rica, para possuirdes tantos cavalos - disse Harry, em tom respeitoso. - E todos esses fardos de tecidos. Para onde é que vai isto tudo?

- Para minha casa - respondeu ela, como se isso fosse evidente.

- E onde é a vossa casa?

- Em Londres. O meu pai tem lá uma loja e vem a Shrewsbury uma vez por ano, para comprar tecidos de lã a todos os tecelões da fronteira e aos tecelões galeses. E agora vamos levar o que comprámos para Londres mas venderemos alguns fardos pelo caminho. O meu pai diz que são tecidos de boa qualidade, como tudo o que vem do norte. O meu pai também diz que os mercadores que vendem a lã em bruto podem vangloriar-se à vontade mas o negócio do futuro é o dos tecidos acabados. Nós só vendemos peças de tecido. E vós, o que é que vendeis?

- Nada, por enquanto - respondeu Harry. - Quando partis? Percorreis muitas milhas de caminho por dia?

- Estaremos prontos dentro de uma hora. Às vezes, no Verão, fazemos mais de vinte milhas num dia. É o que vamos fazer hoje, pois a estrada é boa. O que é que faz o vosso pai?

Era inútil revelar o seu nome e a sua condição: já eram por demais conhecidos.

- É pedreiro.

- E vós? Também ides ser pedreiro?

Apesar de todos os seus olhares de esguelha, dos gestos ao mesmo tempo ingénuos e ousados com que tentava captar a atenção dele, a voz da rapariguinha era fresca e cândida. Os seus lábios formavam os contornos de um botão de rosa mas o seu rosto redondo tinha a plenitude da flor já desabrochada. Harry olhou para ela e sorriu-lhe.

- Sim - respondeu. - Claro que vou. É uma boa ideia. Sois uma menina muito inteligente.

- Quereis jogar à bola comigo? - propôs ela, encorajada por este sucesso e agitando convidativamente diante dele a bola colorida, ao mesmo tempo que executava um pequeno passo de dança.

- Gostaria muito mas preciso de cumprir alguns deveres antes de poder brincar. Talvez consiga cumpri-los antes da vossa partida.

- Então, ides voltar? - perguntou ela, com o rosto ligeiramente triste mas com os olhos cheios de esperança.

- Voltarei, se me despachar a tempo.

De testa franzida e com os pequenos dentes brancos a mordiscar pensativamente a ponta de uma das tranças, ela ficou a vê-lo afastar-se. Sem desviar os olhos da silhueta cada vez mais distante de Harry, ergueu o braço por cima da parte lateral da carroça e deixou cair lá para dentro a boneca e a bola. Aqueles brinquedos já não lhe interessavam.

Harry entrou na enfermaria e foi procurar o irmão Denis, que se preparava para assistir à segunda missa e ao capítulo que se seguiria. Abordou-o de cabeça baixa e com uma expressão desconsolada.

- Irmão enfermeiro, se o Adam puder levantar-se e vestir-se, gostaria que ele fosse comigo à igreja, depois da missa. Importais-vos? Enquanto tudo está calmo, durante o capítulo, queria rezar... - disse, baixando os olhos por instantes e comprimindo os lábios. -... por um desfecho feliz para os nossos infortúnios.

Se vê-lo submisso lhes desse uns instantes de prazer, não iria privá-los dessa satisfação. Sentir-se-iam mais inclinados a deixá-lo em paz, durante o capítulo, uma meia hora vital em que se sabia onde estavam todos os frades, restando apenas os servos laicos para observar os seus movimentos.

Contudo, sentiu-se estremecer de vergonha, quando, em vez de lhe lançar um olhar apressado e de lhe fazer inúmeras recomendações, o irmão Denis lhe colocou afectuosamente as mãos sobre os ombros e o beijou na testa.

- Deus te abençoe, Harry! Eu também rezei por ti. Não te preocupes, que hás-de alcançar o perdão. Mas não bastará irem à capela da enfermaria?

- Não. Queria pedir à Virgem Santa que intercedesse por nós. Ofereci-lhe o meu anjo e tenho uma predilecção especial pelo seu altar.

- Muito bem. Ninguém te perturbará. Eu falarei com o irmão prior. O coração dele encher-se-á de alegria. Cuida de que o Adam não fique demasiado tempo ajoelhado. Depois, deixa-o sentar-se ao sol, no jardim.

Gentil, solícito e feliz, aquele pai de tantos filhos adoptivos - do mais jovem dos discípulos que sofria de uma dor de dentes, aos idosos que, ao morrer, voltavam a ser crianças - lançou um olhar pleno de amor ao seu reino limpo e austero, antes de sair para assistir à missa. Não era de espantar os noviços fingirem muitas vezes estar doentes, para poderem entregar-se durante algum tempo aos seus cuidados e furtar-se à mão de ferro do subprior. Cheio de saudades da sua terra e sentindo-se sozinho, um rapaz muito jovem chegara mesmo a comer bagas venenosas, para garantir uma longa permanência sob a protecção do irmão enfermeiro, e nunca lamentara os sofrimentos que esse seu gesto lhe causara. Depois de o seu doente se encontrar restabelecido, o irmão Denis cuidou de que ele não fosse punido, embora ninguém duvidasse de que a história de um erro não intencional, contada pelo velho frade, não passava de piedosa ficção. Dizia-se que o irmão Denis sentia cruelmente a falta dos seus doentes, quando estes o deixavam. Seguindo-o com um olhar triste, enquanto ele se afastava, Harry perguntou a si mesmo se o irmão Denis também iria chorar a sua partida, a partida de um paciente pouco merecedor embora não ingrato.

Com as feridas cobertas por um novo penso e o estômago confortavelmente cheio, Adam estava na cama, a assobiar, com o queixo assente nos pulsos, para apanhar no rosto os raios de sol que entravam pela janela da cela. Os dedos dos seus pés descalços batiam no colchão, ao ritmo da música. Tinha os olhos fechados, por causa da luminosidade. Pelas suas pálpebras alongadas e pelos seus traços estendia-se um sorriso de satisfação. O medo desaparecera e as dores que ainda sentia não o perturbavam. A sua confiança no abade era tão absoluta como fora a de Harry, uma hora antes.

Harry sentou-se na beira da cama.

- Levanta-te e veste-te. Tens permissão do irmão Denis para ir comigo a igreja, depois da missa, para rezarmos por um desfecho feliz para os nossos infortúnios.

Espantado, Adam abriu um dos seus olhos azuis e preparou-se para dar uma resposta trocista. Mas, muito rapidamente, ergueu a outra pálpebra, para olhar com mais atenção, e viu confirmada a sua impressão de que não era altura para brincadeiras. Sentou-se, num movimento decidido, e estendeu os pés para o chão, fitando Harry com um olhar intenso e ansioso.

- O que aconteceu? O que disse o abade? - perguntou em voz baixa, para o caso de algum dos irmãos enfermeiros se encontrar por perto.

- Vais saber tudo mais tarde. Apressa-te! Eu ajudo-te a vestir. Como é que te sentes? Consegues andar sem teres dores?

- Sinto-me bem. Só tenho os movimentos um pouco presos, como se fosse um velho. Preciso de exercício.

Adam experimentou pôr-se de pé e enfiou a camisa pela cabeça. Com toda a cautela, Harry fê-la deslizar sobre a teia de vergões, que estavam a passar do vermelho-escuro para o azul-vivo. As feridas abertas já haviam começado a cicatrizar e a pele de Adam estava limpa como uma flor mas as piores encontravam-se cobertas apenas por uma fina película e poderiam voltar a abrir facilmente.

- Estás com dores? Dói muito? Consegues aguentar?

- Aguento, sim, e muito bem! Fui tratado durante um dia e uma noite, que mais se pode pedir? Se vamos para longe - acrescentou Adam, falando baixinho - é melhor não te esqueceres do teu manto.

- Bem pensado!

Harry sentia-se imensamente grato pela cumplicidade existente entre os dois, que dava tanto peso às palavras e, ao mesmo tempo, lhes permitia poupá-las.

- Ainda não aguento bem o contacto com os tecidos ásperos - disse Adam, sorrindo para Harry. - E faz frio na igreja, para quem esteve antes ao sol. Emprestas-me o teu manto para eu pôr sobre os ombros?

Harry enrolou os capuzes de ambos e a túnica de Adam numa trouxa bem apertada, que ocultou sob a sua cota larga, debaixo do braço, apertada contra o flanco. Foi nesse braço que Adam se apoiou, enquanto os dois saíam lentamente e atravessavam o pátio principal, em direcção à igreja. O manto comprido de Harry, demasiado grosso para ser escondido da mesma maneira, pendia dos ombros de Adam, preso ao pescoço por uma corrente. Quando chegaram ao pórtico, ele embrulhou-se nele.

- Onde é que vamos realmente? - perguntou Adam, num murmúrio, a coberto do último cântico da missa.

- Daqui para fora. Eles querem obrigar-nos a entregarmo-nos.

- O padre Hugh? - perguntou Adam, num arquejo inquieto.

- Foi ele mesmo quem mo disse. Devo ajoelhar-me e submeter-me à vontade do meu pai, para teu bem e para o meu. Se eu me humilhar e pedir perdão, ele intercede por nós.

- Tempo perdido! - murmurou Adam, estremecendo, de olhos muito abertos na penumbra da nave.

- É o que eu penso.

A missa estava a acabar. Por trás deles, na parte da igreja reservada aos fiéis das proximidades, alguns aldeãos retiravam-se em silêncio. Os irmãos saíam em fila pela porta do claustro, em direcção ao capítulo. Os dois jovens permaneceram nos seus lugares, ajoelhados lado a lado, até ficarem sozinhos e a porta do claustro se fechar suavemente pela última vez.

- Vigia a porta da sacristia - pediu Harry, erguendo-se de um salto.

- O que é que vais fazer?

Apesar da pergunta, Adam levantou-se rapidamente e foi postar-se ao lado de uma enorme coluna, perto do pórtico. Harry dirigira-se à caixa das esmolas. Adam ouviu a madeira estalar e partir-se e lançou-lhe um olhar horrorizado.

- Pelo amor de Deus! O que estás tu a fazer?

- A tentar recuperar o que puder do valor dos meus bens.

A adaga de Harry, idêntica à que Ebrard lhe confiscara duas noites antes, fez saltar a tampa da caixa, sem a estragar. As moedas tilintaram por breves instantes nos seus dedos.

- Nada que se pareça com o que eles valem. Vamos ver se a outra está melhor,

- Harry, isso é um sacrilégio! - exclamou Adam, a tremer.

- O abade que me leve a tribunal por causa disto e eu acuso-o de me ter roubado os cavalos. Que direito tinha ele de os confiscar? Não lhe devo nada.

Harry introduziu a lâmina sob a tampa da segunda caixa e levantou-a com força. As dobradiças cederam. Harry despejou a caixa e contou cuidadosamente as moedas que tirara. Depois, voltou a encaixar as dobradiças e colocou-a no seu lugar, de modo a que quem passasse não desse por que ela fora violada.

- Onze xelins e sete pence... Ainda fica a dever-me dinheiro.

- Harry, um pobre diabo qualquer vai ser acusado disto e mandado para a prisão.

- Claro que não! - exclamou Harry, revoltado com a ideia. - Vou deixar uma mensagem ao senhor abade, para ele saber quem deve procurar, se quiser recuperar as esmolas. Não vou deixar ninguém pagar por aquilo que eu fiz.

Agarrou Adam pelo braço e conduziu-o para o claustro ocidental. Num dos nichos que rodeavam o jardim interior, onde o sol batia durante toda a manhã, encontraria por certo um trabalho de cópia, ali deixado por alguém, à espera do regresso do copista. Na verdade, havia três mesas com pena e tinteiro. Harry apoderou-se do mais pequeno pedaço de pergaminho que encontrou, do qual havia sido imperfeitamente apagado um texto anterior e escreveu a toda a pressa:

«Ao senhor abade Hugh de Lacy, com todo o respeito.

«Uma vez que Vossa Senhoria achou por bem confiscar os meus cavalos, impedindo-me assim de fazer uso deles, ao qual apenas eu tenho direito, fui forçado a conceder-me um empréstimo de onze xelins e sete pence pertencentes a Vossa Senhoria e que reconheço pela presente. A soma é inferior ao valor dos meus animais mas sou obrigado a deixá-los como garantia. Encarrego Vossa Senhoria de cuidar bem deles, pois chegará o dia em que o vosso dinheiro será pago na totalidade e os cavalos serão reclamados.

«No que se refere à delicada questão da sua propriedade, fique Vossa Senhoria ciente de que esses cavalos são indiscutivelmente propriedade minha e não do meu pai, do meu irmão ou de quem quer que seja e, caso venham a ser entregues a alguém que não eu, exigirei o seu pagamento por inteiro.

«Que Vossa Senhoria continue de boa saúde, até a minha dívida e o vosso compromisso serem liquidados, são os votos do mais humilde dos vossos servos,

Henry Talvace»

- A tua insolência vai deixá-lo sem fala - comentou Adam, lendo por cima do ombro de Harry, dividido entre o horror e a admiração.

- Não creio - respondeu Harry, recordando-se do que acontecera entre os dois, nessa manhã. - Senta-te aqui ao sol e espera por mim. Não me demoro. E dá-me o meu manto.

Enrolou o manto debaixo do braço e voltou a entrar na igreja, a correr. Colocou o pergaminho numa das caixas de esmolas vazias. Depois, dirigiu-se ao altar da Virgem.

No altar, a pequena chama vermelha da lamparina lançava a cor da vida sobre o rosto expressivo do anjo. Harry ajoelhou-se nos degraus, erguendo os olhos para a antiga Virgem de pedra, cujos traços gastos e corpo volumoso continuavam a parecer-lhe de uma beleza monumental. Algumas vezes, quando se sentia muito infeliz, sonhara sentar-se no seu colo em busca de conforto.

- Perdoai-me, Virgem Santa, por vos tirar o presente que vos dei e ficai tranquila, pois ele Vos será restituído um dia. Mas Vós sabeis quanto preciso dele, visto que não possuo outra obra minha que possa mostrar. Só o levo de empréstimo, até voltar. Não vos zangueis comigo, Virgem Santa! Ajudai-me a servir-me bem dele.

Não havia tempo para mais. Harry subiu os degraus e apoderou-se do anjo. Aquele ser luminoso voltou-se impetuosamente na sua mão e abraçou-o com os frágeis braços abertos. Harry embrulhou-o no manto e correu, segurando-o ternamente debaixo do braço. Mal saiu do claustro, Adam levantou-se do banco de pedra, nervoso, de olhos esbugalhados.

- O que é isso? O que foi que fizeste? Isto vai acabar mal, Harry.

- Chiu! Despacha-te! Depois conto-te.

Pelo menos desta vez, Adam não fizera nada. Se acontecesse o pior e as carroças já houvessem partido, se fossem novamente capturados, pelo menos podia ter a certeza de que as sanções recairiam sobre quem as merecia. Sempre era melhor ser ladrão do que vestir-lhe a pele. Desta vez, Harry sabia perfeitamente qual era a sua situação face à lei. Desta vez, não se queixaria, se a lei lhe exigisse o pagamento total da sua dívida, pois contraíra-a em plena consciência.

As três carroças ainda lá se encontravam, quando os dois saíram cautelosamente do claustro para o pátio principal, e os cavalos estavam a ser atrelados à carroça da frente. Harry esgueirou-se para o vão amplo da porta do refeitório, arrastando Adam atrás de si, e ficou a observar, na sombra, enquanto os cavalos eram colocados nos seus lugares, com palavras de incitamento e estalidos de línguas. Todos os olhos estavam postos nos animais e os servos laicos e os cães haviam-se aproximado, para ver. Um homem alto e corpulento dava ordens aos seus homens, numa voz forte, viva e alegre, com a desenvoltura adquirida pela longa prática. A terceira carroça, com uma cobertura lançada sobre os fardos de tecido, estava junto à porta do refeitório, com a parte de trás aberta, a menos de três jardas do local onde se encontravam os dois rapazes, semiocultos pela sua carga volumosa.

- Depressa! - sussurrou Harry. - Sobe para a carroça e esconde-te.

Sem sequer fazer uma expressão de espanto, Adam saltou para a carroça e desapareceu sob a carga móvel, agitada por breves instantes por movimentos convulsivos. Sem se mexer, Harry esperou que os movimentos cessassem e, depois, ergueu o anjo embrulhado e deixou-o cair no canto traseiro da carroça. Os quatro cavalos já haviam sido atrelados e lançavam-se para a frente, sob os arneses, puxando a primeira carroça na direcção da casa da guarda, onde ficaria à espera das outras. O pequeno grupo de arqueiros e cavalariços recuou placidamente, enquanto eram trazidos mais quatro cavalos. Harry aproveitou o momento em que os cavalos voltavam a ser o centro das atenções e saltou para dentro da carroça.

Por baixo da tela grossa, estava calor e cheirava a fibras vegetais e a lã tecida. Harry pegou no anjo e, afastando os fardos, arranjou-lhe um esconderijo. Muito perto, Adam respirava lenta e penosamente, enquanto arredava alguns fardos, para arranjar espaço para si. Harry afastou o rolo que pesava sobre as costas do seu irmão de leite e puxou-o com cuidado para junto de si. Os dois ficaram deitados lado a lado, a tremer, cheios de calor e, momentos depois, Harry puxou alguns fardos para cima de ambos, empilhando-os sobre os seus corpos. Em seguida, ficaram imóveis, a transpirar, quase sufocados mas perfeitamente escondidos.

Cerca de três minutos mais tarde, Sir Eudo Talvace em pessoa entrava, a cavalo, pelo portão, com Ebrard ao seu lado e quatro arqueiros de Sleapford atrás, e exigia uma audiência imediata com Sua Senhoria o abade.

O capítulo ainda não terminara, quando um servo laico foi dar a notícia ao abade. Este fechou o livro e arredou a cadeira para trás mas continuou sentado, a ponderar. Não os esperava tão cedo. Ainda bem que já havia falado com o rapaz.

- Muito bem - disse, por fim. - Mandai-os entrar. Depois, ide procurar Harry e trazei-o aqui. Mas atenção: só o Harry! Mantende o outro fora de vista, até eu o mandar chamar. Dizei ao irmão enfermeiro que essa é a minha vontade. E o Harry vem directamente ter comigo, entendeis? Que ninguém lhe ponha a mão.

- Sim, padre.

O mensageiro dirigiu-se com toda a calma à enfermaria e, daí, não menos placidamente, à igreja. Mesmo quando não os encontrou ali, não pensou que houvesse nada de mal e voltou à enfermaria, para o caso de eles haverem regressado pelos claustros. Não podiam estar longe. O servo sabia, como toda a gente, desde essa manhã, que o guar-da-portão recebera ordens para mandar vigiar o portão e para colocar um servo junto à porta lateral da igreja, com ordem para os trazer de volta, se tentassem sair. Era só uma questão de os encontrar. Foi da casa da guarda ao jardim, do lago aos estábulos, do prado à casa de hóspedes e, de novo, à enfermaria, agora mais depressa e a transpirar, porque o abade não gostava que o fizessem esperar. O irmão Denis foi ao seu encontro, junto à porta, com uma expressão ansiosa, quase acusatória.

- O manto do Harry desapareceu. Para que é que ele precisava do manto? O que terá sido feito deles?

Estava na hora de comunicar o desaparecimento. O irmão Denis mandou embora o servo e encarregou-se ele mesmo da missão. A expressão do seu rosto, ao entrar na sala do abade, silenciando as vozes que, momentos antes, se haviam erguido encolerizadas, era uma acusação a todos os presentes. «Vós havei-los levado ao desespero e tereis de responder pelas consequências», parecia dizer, indignada.

Em vez disso, o irmão Denis disse:

- Lamento ter de vos dizer, padre, mas o Harry desapareceu e não conseguimos encontrá-lo. Procurámos os dois por toda a parte mas eles desapareceram.

- Desapareceram? Como podem ter desaparecido? Havia guardas no portão.

O abade perdera o sangue frio, pois Sir Eudo não estava com disposição para ceder perante quem quer que fosse, nem para tratar com indulgência um rapaz que lhe causara tantos aborrecimentos.

- Seja como for, desapareceram. Mandei meia dúzia de homens procurá-los para os lados do regato e do lago - disse o irmão Denis, com uma dureza que nunca demonstrara em toda a sua vida de homem bom e calmo. - E pedi aos moleiros para estarem atentos, para os lados da represa.

- Podeis poupar-vos a esse trabalho - interveio Sir Eudo, de rosto muito corado. - O meu filho não é rapaz para se deitar a afogar.

Mas a sua própria cólera era a medida do seu embaraço e Ebrard não se mostrava muito mais à vontade.

- Esses patifes estão escondidos num sítio qualquer. Se me derdes permissão, Hugh, eu faço-os sair do buraco num instante. Se o portão está guardado, não podem estar longe. E, quer seja direito vosso quer meu, é preciso encontrá-los.

- Havemos de encontrá-los - replicou o abade, em tom sombrio. - Ouvi-me bem, Eudo: enquanto estiverem nos nossos domínios, eles estão à minha responsabilidade e é a mim que devem ser entregues, quando forem encontrados. Até termos reflectido, com as cabeças mais frias, acerca do que lhes vai acontecer. Concordais? Então, emprestai-me os vossos quatro arqueiros e vós, irmão Denis, cuidai de nos arranjar meia dúzia de homens de confiança. Vamos procurar em todos os cantos desta casa, edifício por edifício, de alto a baixo.

- E, antes do mais, fechai as portas e não deixeis ninguém sair - rugiu Sir Eudo, lançando um olhar irado ao irmão Denis, que já se encontrava de costas, para se retirar. - Não quero que aquele fedelho desapareça, nem que seja preciso procurar debaixo das pedras.

E saiu a passadas largas da sala do abade, qual nuvem de tempestade, prestes a explodir em relâmpagos, dirigindo-se pessoalmente ao portão, para se assegurar de que este era bem fechado.

O abade seguiu-o, a coxear mais do que era habitual, como lhe acontecia sempre que se encolerizava. Aquele rapaz era impossível. Ninguém conseguia ajudá-lo. A conversa acerca do lago e da represa não enganara Hugh de Lacy. Harry era um sobrevivente nato. Mas, não sendo morrer, não havia muito que ele pudesse fazer para vencer aquela batalha. E quem seria capaz de imaginar que nova loucura poderia ele haver já cometido?

Os ecos do burburinho junto ao portão penetravam através do espesso manto de tecidos, na carroça coberta. A transpirar de medo, Harry apurou o ouvido. Não via nada, senão um fiozinho de ar e luz, que se filtrava lá à frente, entre as peças de tecido. Esticando o pescoço o mais que lhe era possível, conseguia ver, por essa estreita abertura, um pedaço irregular de céu azul, um canto do telhado da esmolaria e, de vez em quando, a sombra projectada pela passagem próxima de um vulto, que obscurecia a luz dourada. Estava alguém a subir para o assento almofadado, na dianteira da carroça.

Tudo o resto eram apenas sons, entre os quais se distinguia a voz troante do seu pai, a exigir que fechassem os portões. Ao ouvir novamente aquela voz ribombante, o sangue gelou-se-lhe nas veias. O terror e o desespero eram tão grandes que o tornaram incapaz de reconhecer qualquer outra coisa. Era uma nova forma de terror, não pelo castigo que o esperava, nem mesmo já pela mão de Adam, mas simplesmente pelo medo de ser arrastado e confinado ao círculo de pedra que até então fora a sua vida e que, por fim se quebrara, libertando-o. Dos olhos brotaram-lhe lágrimas de impotência.

- Rapazes? - gritou a voz possante que comandara a atrelagem dos cavalos. - Não temos connosco rapazes nenhuns, a não ser os que vedes ali, a cavalo. E cuidai, senhorias, de não perturbar a minha filha, que está lá atrás, ou eu dou-vos os rapazes! Despachai-vos a ver, já que precisais de ver. Desperdiçai o vosso tempo como vos aprouver mas não tenteis fazer-me perder o meu. Espera-me uma longa jornada.

Pouco habituado a ser interpelado naquele tom, Sir Eudo rugiu o desafio que seria de esperar:

- Por certo não sabeis quem eu sou!

- Por aquilo que ouvi, deveis ser Sir Eudo Talvace. Não receeis pois a vossa fama precedeu-vos. Eu sou um comerciante reputado e não me cabe importar-me com quem sois. Ide, vede dentro da carroça e sede breve. E cuidai de não estragar os meus fardos de tecido ou irei perante a justiça reclamar de vós o que eles valem.

Tudo isto havia sido dito com tanto bom humor que o efeito das palavras era ainda mais espantoso. Não obstante, na sua inocência, o mercador estava a atirá-los para o fogo ao qual eles haviam tentado desesperadamente escapar. Agora, faltavam apenas escassos minutos e seriam caçados que nem ratos.

A sombra passou diante do pequeno espaço iluminado, uma vez e outra, parecendo abafar o som ao mesmo tempo que ocultava a luz, de tal modo que as vozes estridentes, as batidas das ferraduras dos cavalos e o ruído provocado pelos arqueiros que subiam para a primeira carroça se interrompiam à sua passagem. Harry esticou o pescoço e viu uma coisa redonda, de cores vivas, a dançar no ar. Depois, duas mãos pequeninas, que se erguiam para a apanhar e voltavam a lançá-la ao ar.

- Aqui não, Sir Eudo...

- Não vos havia dito que estáveis a perder o vosso tempo? Não há quaisquer fugitivos nas minhas carroças. Estivemos a carregá-las e havê-los-íamos visto.

- Vejam também as outras carroças! Não duvido de vós, mercador. Mas com a vossa permissão...

Harry aproximou o mais que pôde da abertura os lábios trémulos e, numa voz rouca, murmurou:

- Menina!

A rapariguinha teve um sobressalto e atirou mal a bola, que caiu para trás do assento e rolou entre os fardos de tecido. Ao tentar recuperá-la, empurrou-a para mais longe e a bola escorregou para perto da cara de Harry. A menina tocou na face quente e fremente e soltou um grito quase inaudível. Teria retirado a mão, se Harry não a houvesse agarrado com firmeza. Naquelas trevas sufocantes, Harry pôde ver aqueles grandes olhos negros, redondos como luas, surpresos, aqueles lábios abertos de espanto, o rosto sobressaltado. Inclinando-se para olhar mais de perto, ela vislumbrou as faces coradas de Harry, as gotas de suor por cima dos lábios dele, os olhos verde-azulados, inquietos, que imploravam o seu silêncio e a sua piedade. E reconheceu-o. Por um instante, continuou inclinada sobre ele, quase sem respirar, e, com uma astúcia instintiva, mais cruel ainda por ele não se aperceber de tal crueldade, Harry levou aos lábios aquela mão pequenina.

Por breves segundos, ela não se mexeu. Depois, retirou a mão e levou um dedo aos lábios, indicando-lhe que não falasse. Os olhos dela brilhavam e os lábios entreabertos comprimiram-se num trejeito decidido. Após um último olhar conspirativo, vibrante de excitação, a rapariguinha arrumou as suas almofadas, de forma a tapar a abertura acima das cabeças deles, por onde a luz entrava. Em seguida, esticou o pano que cobria as almofadas, colocou-lhe por cima o tapete de pele sobre o qual estivera sentada, fez com ele uma cama para a boneca e, puxando o pano de linho que usava como véu serviu-se dele como coberta. Quando os arqueiros se aproximaram da terceira carroça, a rapariguinha estava debruçada sobre as peças de tecido, com a saia bem estendida à sua volta, e embalava a boneca, com a mão pequena e gorducha, entoando em voz baixa uma canção de embalar.

- Com a vossa permissão, jovem senhora... - disse um dos arqueiros, sorrindo.

Poisou o pé na protecção da roda, para meter o braço entre os fardos de tecido, colocados na traseira da carroça.

A rapariguinha parou de cantar e fitou-o com os olhos muito abertos, defendendo o seu lugar como uma princesa ultrajada e colocando um braço protector sobre a boneca.

- Que quereis? Não podeis vir aqui. Fazeis demasiado barulho.

- Estás aí há muito tempo, pequena? - perguntou delicadamente o arqueiro. - Viste os dois rapazes que nós procuramos? Se algum estranho tentasse subir para a tua carroça, tu dizias ao teu pai, não

dizias?

- Dizia - respondeu ela, lançando-lhe um olhar desconfiado e sentando-se muito direita. - E é o que farei, se não vos fordes embora. Eu não vi rapazes nenhuns. Ninguém me importunou, até agora, ou teria chamado o meu pai. Não deixo ninguém tocar nas mercadorias do meu pai. Sou eu que tomo conta desta carroça.

Dito isto, esticou o lábio inferior e, quando o segundo arqueiro apoiou uma perna na carroça para pesquisar melhor por entre o amontoado de fardos, ela abriu a boca em flor e lançou um grito indignado:

- Pai! Eles estão a roubar os nossos tecidos! Pai!

A mão investigadora tocou na manga de Harry. Mas aquilo que a mão tocou era apenas tecido e tecido era aquilo que o seu dono esperava encontrar. Um instante depois, perante a fúria possessiva da criança, o homem retirava apressadamente a mão e o mercador aproximava-se, com passadas decididas, para ver o que estava a perturbar a filha.

- Ora, deixa estar - disse o primeiro arqueiro, saltando para o chão. - Como podiam eles estar aqui, com uma menina deste calibre a tomar conta da carroça? De certeza que ela teria feito vir a casa abaixo, se eles houvessem tocado, com um dedo que fosse, nas suas peças de tecido.

As vozes afastaram-se. Harry e Adam ouviram a gargalhada sonora e calorosa do mercador.

- Assim é que é, filha! E agora, senhorias, se já estais seguros de que não escondemos os vossos fugitivos, vamos pôr-nos a caminho.

Numa voz clara, ainda que trémula de irritação, Hugh de Lacy ordenou:

- Abri o portão!

As ferraduras bateram no pavimento, as rodas gemeram quando começaram a avançar. Poucos minutos depois, quando as carroças deram a volta para a direita, Harry e Adam perceberam que haviam acabado de passar o portão e se encontravam na estrada.

 

Um pedaço de céu azul surgiu por cima da escuridão sufocante que os envolvia.

- Eh! Rapazes! - sussurrou a vozinha. - Agora podeis sair de debaixo das peças. Mas deixai-vos estar debaixo da cobertura, para o caso de alguém vir ver se está tudo bem na carroça. Eu aviso-vos, se houver perigo.

Depois de se encontrarem a uma boa distância dos portões do mosteiro, a rapariguinha retirara a boneca e voltara a ocupar o seu lugar, na parte da frente da carroça. A última esquina dos muros do mosteiro ficara já para trás e a silhueta alta de Shrewsbury, uma colina encimada por uma coroa e rodeada de um fosso prateado, começava lentamente a esbater-se, diluindo-se no verde das planícies alagadiças que a rodeavam.

Foi com prazer que Harry e Adam se içaram do buraco sufocante, entre as peças de lã, para se instalarem por cima delas, ainda arquejantes, cobertos de suor e a tremer. Harry ergueu a cobertura de lona com o braço e ajudou Adam a arranjar uma posição confortável, antes de se estender ao seu lado. Duas ou três feridas das suas costas tinham voltado a abrir, manchando de sangue a sua camisa. Nenhum destes laboriosos movimentos escapou ao olhar vivo e inteligente da rapariguinha, que reparou também na solicitude de Harry.

- Ele está ferido! - exclamou, indignada. - Quem foi que lhe bateu? - E, abrindo muito os olhos, sem esperar pela resposta, acrescentou: - Foi por isso que vos escondestes daquele homem velho e zangado? Mas eu ouvi-o dizer que era pai de um de vós!

- É meu pai - respondeu Harry, limpando o suor do rosto e inspirando com força o ar puro.

- E meu senhor - explicou Adam, que agora, tranquilizado, deixava o corpo descontrair-se.

Pela abertura arqueada da carroça, os dois jovens observavam com cautela o balançar dos cavalos e o movimento regular das rodas da carroça da frente. Ao lado dos cavalos, iam dois homens, um deles com um chicote ao ombro, a oscilar. Outros quatro, em bons cavalos, caminhavam sem pressa ao lado do comboio, prontos a picarem os cavalos de trás ou da frente, em caso de necessidade. O mercador seguia à cabeça do grupo e via-se a pluma do seu chapéu, a dançar ao lado da primeira carroça.

- Eu nunca fugiria do meu pai - disse a rapariguinha, observando os dois rapazes tão atentamente como estes estudavam o mundo de liberdade e maravilhas que se abria diante deles. - Deveis ter feito qualquer coisa muito má para ele ficar tão zangado.

Os seus grandes olhos ardiam de curiosidade mas ela não queria fazer-lhes perguntas. Tinha ganho a confiança deles e estava à espera de que eles lha provassem.

- Juro por minha honra - disse Harry - que não fizemos nada que possa levar-vos a lamentar ter-nos ajudado a escapar à captura. Aliás, ainda não vos agradecemos e não há palavras para o fazer como convém. Se não tivésseis sido a menina mais ousada e mais inteligente que há sobre a face da terra, teríamos por certo sido arrancados do nosso esconderijo e arrastados à força para Sleapford, onde seríamos submetidos a um julgamento ainda pior que o primeiro. O meu amigo Adam iria perder a mão e eu seria enclausurado, espancado e deixado à fome, até me ajoelhar e pedir perdão. Jovem senhora, o meu nome é Harry Talvace e serei vosso fiel servidor enquanto for vivo. E o mesmo posso dizer pelo meu irmão de leite, Adam Boteler. Quereis dizer-nos o vosso nome?

- Gilleis Otley. O meu pai, Nicholas Otley, é magistrado municipal de Londres - respondeu ela, com orgulho notório.

- Pois bem, menina Gilleis, vós tendes, mais do que ninguém, o direito de conhecer os nossos maus actos e de julgardes por vós mesma se estais arrependida por nos haverdes ajudado.

Harry instalou-se mais confortavelmente sobre as peças de lã, assentou nelas os braços e apoiou o rosto nas mãos. Em seguida, em voz baixa, para evitar ser ouvido por algum dos homens da escolta que passasse por perto, contou-lhe toda a história, incluindo o encontro secreto com Stephen Mortmain, em Hunyate.

- Meu Deus! - exclamou Adam, erguendo a cabeça ao ouvir aquele nome. - Tenho estado tão preocupado com a minha sorte que me esqueci deles. Mas uma coisa é certa, Harry: arranjámos maneira de o Stephen e a Hawis saírem sãos e salvos do senhorio. Com todo o burburinho que tem havido por nossa causa, eles bem podiam ter-se casado e saído de Sleapford, em plena luz do dia, que ninguém dava por eles. Toda a gente andava à nossa procura. Enquanto não nos perderem por completo o rasto, não irão persegui-los.

- Também já pensei nisso. A esta hora, de certeza que o Stephen e a Hawis já estão longe e em segurança. Afinal, talvez os nossos sofrimentos não hajam sido em vão.

- Eu preferia que houvessem sido menos duros - reconheceu Adam, com um sorriso triste. - Mas não lhes quero mal por me terem custado umas vergastadas nas costas.

A sua mágoa desapareceu antes mesmo de Shrewsbury ter deixado de se avistar. De olhos fixos na vasta extensão verde da estrada, na qual as marcas das ferraduras formavam manchas de um verde mais escuro sobre o orvalho que começava a secar, e na silhueta do Wrekin, que se estendia contra o céu como um animal adormecido ao sol, começou a assobiar baixinho, o que era sinal de bem-estar.

Harry retomou a história no ponto onde a interrompera. Só hesitou quando chegou ao incidente com as caixas das esmolas. Não sentia vergonha pelo que fizera mas aquela criança podia ter escrúpulos supersticiosos quanto a um tal comportamento e ele não queria prejudicar a sua defesa nem ofendê-la. Era fácil omitir aquela confissão perigosa e dizer simplesmente que tinham utilizado a igreja para passarem em segurança pelos claustros e chegarem às carroças. Foi essa a versão que contou, não sem um incómodo sentimento de humilhação perante tal logro e não sem corar quando, no fim da narrativa, enfrentou o olhar vivo e inteligente da rapariguinha.

- Eu também teria fugido! - exclamou ela, estremecendo ao olhar para a sua mão direita, pequena e infantil. - Tive medo daquele velho... gritava tanto. Se ele viesse revistar a minha carroça, eu gritava. Foi muito cruel convosco.

Agora que - embora um pouco prematuramente - o terror da derrota e de ser capturado se dissipara, Harry sentiu o desejo fugaz de defender o pai. Afinal, era preciso fazer justiça tanto àqueles que impunham a lei como àqueles que a transgrediam, ainda que sem intenção.

- O meu pai ficaria horrorizado, se vos ouvisse dizer isso. Ele não faz por mal mas tem muito mau feitio... e bem tentaram meter-me na cabeça que a lei estava do lado dele. A lei! Juro-vos que estou contente por lhe havermos escapado.

- Que ides fazer agora? - perguntou Gilleis, que era dotada de um espírito prático.

- Para começar, pôr a maior distância possível entre nós e Sleapford. Depois, procurar trabalho junto de um pedreiro e continuar a aprender a nossa arte. Já possuímos boas bases, pois ajudámos o pai do Adam, desde que tivemos idade para pegar em ferramentas. Não seremos trabalhadores improdutivos. Se trabalharmos durante um ano e um dia num burgo franco, o Adam passará a ser um homem livre. Depois disso, o meu pai não poderá obrigá-lo a voltar, mesmo que o encontre.

- O melhor seria virdes conosco para Londres - disse a rapariguinha, vivamente, segurando nas mãos as duas fortes tranças de cabelo preto. - Londres é o melhor lugar para alguém se esconder, porque é a cidade maior e mais animada do país e os bons artesãos são sempre bem-vindos.

Harry e Adam descansavam lado a lado, com a cobertura puxada para cima dos ombros, espreitando a fita poeirenta e direita da estrada, por cima da barreira de almofadas. Sentiam-se livres como o vento, por, juntamente com a vida que deixavam para trás, se terem despojado do peso que lhes caíra em cima. A torre quadrada e atarracada da igreja de Atcham surgiu-lhes diante dos olhos, rodeada pelos tectos baixos das casas da aldeia. Mais além, no céu azul pálido que acompanhava a estrada, apresentavam-se-lhes outras perspectivas convidativas e, ao fundo dela, qual emanação de um sonho, a cidade fabulosa, com a grande torre do rei Guilherme, na extremidade leste, as fortalezas de Baynard e Montfichet, a ocidente, e, no meio, as muralhas de Londres, rasgadas por sete portas duplas e encimadas por torreões na fachada norte. Viam o Tamisa, pejado de navios, os subúrbios fervilhantes de agitação, estendendo-se em parques e jardins, fora das muralhas, até ao palácio real de Westminster, na margem do rio. Viam uma cidade, grande e poderosa, com raízes como se fosse uma árvore e na qual, durante todo o ano, floresciam profusamente novas casas, novas igrejas, novas lojas e mansões para os seus habitantes, cada vez mais numerosos. Haveria melhor lugar para um pedreiro?

- Nós temos dinheiro - disse Harry. - Não é muito mas é o suficiente para pagar a nossa viagem. Credes que o vosso pai acederia, se nos apresentássemos perante ele esta noite e lhe pedíssemos que nos deixasse viajar com ele para Sul? Podemos trabalhar, se ele quiser. Sabemos lidar com cavalos e somos fortes.

Gilleis abanou a cabeça, numa negativa categórica.

- Não, esta noite não. É demasiado cedo e podíeis ser mandados para trás. Vou explicar-vos o que deveis fazer. É muito simples. Esta noite, vamos ficar na casa de hóspedes da abadia de Lilleshall, em Dunnington. É demasiado perto de Shrewsbury e o abade pode já saber da vossa fuga. Mas eu trago-vos de comer e vós dormireis nos bosques. Claro que poderíeis dormir aqui, na carroça, pois não vai ser descarregada e não vamos vender nada antes de chegarmos a St. Albans. Mas se mandassem procurar-vos...

- Tendes razão - aprovou Harry. - Ainda estamos demasiado perto de casa para corrermos riscos. Os bosques servirão muito bem.

- Mas, amanhã, vireis ter connosco, não vireis? - perguntou Gilleis, olhando-o com ansiedade. - Eu estarei à espera e ajudar-vos-ei... esta noite, mostrar-vos-ei onde devereis esperar pelas carroças, no bosque logo a seguir a Dunnington. E, amanhã à noite, dormiremos em Lichfield. Penso que, então, já não haverá perigo e podereis encontrarmos com o meu pai. Não precisais de lhe dizer quem sois. Ireis ter com ele à noite, como se fosseis rapazes da aldeia e dir-lhe-eis que quereis ir para Londres, procurar trabalho junto de um mestre. E será melhor arranjardes outro nome.

Ao ver o modo como eles a fitavam e, depois, olhavam um para o outro, de olhos muito brilhantes e as faces agitadas por um riso incontrolável, Gilleis afastou-se um pouco deles, como que assaltada por uma dúvida súbita. Uma parte daquele riso era de pura alegria por se verem livres e a caminho de uma vida nova mas, na verdade, ele devia-se principalmente ao espanto maravilhado que lhes provocavam a ousadia e o engenho daquela rapariguinha tão nova.

- De que vos rides? Que foi que eu disse?

- Oh, Gilleis, Gilleis, quantos anos tendes? - perguntou Harry, morto de riso.

- Dez anos... quase onze - respondeu ela, endireitando as costas e mordendo o lábio inferior, para dissimular o despeito.

- E como foi que, em dez anos apenas, aprendestes a ser astuta como a raposa? Tendes assim tanta prática de conspirações? Enganais o vosso pai com frequência?

- Ah, estou a ver que a cidade é um bom sítio para aprender artimanhas - brincou Adam, por trás das mãos que lhe cobriam o rosto. - Na nossa terra, nós somos uns anjinhos, comparados com ela.

Um som abafado fez Harry levantar a cabeça e apagou-lhe o sorriso do rosto. Gilleis voltara-lhes as costas. Tinha as mãos crispadas sobre o rebordo da carroça, a cabeça deitada sobre elas e as duas tranças pretas, curtas e grossas, caídas, uma para cada lado da curva delicada da nuca macia e pálida. Sob a cota azul e a túnica às flores, os pequenos ombros dela subiam e desciam em silêncio.

- Gilleis! - chamou Harry, subitamente envergonhado e consternado. - Senhora!

Ela não reagiu. Esquecendo a prudência, Harry avançou o corpo, para passar o braço por cima da barreira de almofadas e lhe pôr a mão sobre os ombros, tentando fazê-la voltar-se para ele.

- Sou um miserável bruto sem maneiras e era muito bem feito, se me désseis uma bofetada. Deus me perdoe por me haver rido de vós mas, na verdade, não queria ofender-vos. Não quereis voltar a olhar paramim? Estou envergonhado! Perdoai-me, peço-vos!

- Deixai-me! Não gosto de vós! - disse ela, empurrando-o.

- E tendes toda a razão, pois eu também não gosto de mim. Tenho muito a aprender.

- Eu só queria ajudar-vos - disse Gilleis, entre soluços. - Eu não engano o meu pai! Nunca, nunca, nunca! Foi por vossa causa que disse mentiras e serei castigada por isso. E, em paga, vós troçais de mim. Nunca tinha feito nada assim antes. Foi tudo por vossa causa.

- E eu não o mereço. Nem o Adam nem eu merecemos os trabalhos que vos temos dado. Mas ninguém teria nunca a coragem de vos castigar, mesmo que dissésseis mais mentiras do que ervas há numa pradaria. Além disso, não mentistes! Dissestes que ninguém vos havia incomodado... e, bem, nós não estamos a incomodar-vos, pois não? Dissestes que chamaríeis o vosso pai, se alguém subisse para a carroça... e assim haveríeis feito... mas não nos vistes subir, pois não? Onde é que está a mentira?

- E dizes tu que tens muito a aprender - comentou Adam, ainda sacudido pelo riso reprimido. - Aprendes depressa!

Gilleis parara de chorar e ouvia-o com atenção mas recusava-se a olhar para ele. Harry tentou fazê-la virar-se mas ela resistiu-lhe obstinadamente, continuando de rosto voltado.

- Vá lá, se vos recusais a perdoar-me, chamai os arqueiros e mandai-me de volta para Shrewsbury. Ou terei de ser eu próprio a entregar-me, para vos provar que lamento haver sido desagradável?

- Não há dúvida que, quando se trata de artimanhas, é difícil escolher entre vós dois - observou Adam, em tom de admiração.

Mas Adam poderia ser irónico à vontade, porque Gilleis não o escutava. Ouvira apenas a oferta desonesta de Harry e, voltando-se para ele com os olhos a soltar chispas, o rosto contraído de raiva, bateu-lhe com o punho fechado.

- Baixai-vos! Escondei-vos, depressa! A ponte!

Harry largou-a e recuou docilmente para o esconderijo. Gilleis continuou a dar-lhe murros, até ele ter puxado a cobertura para cima da cabeça e desaparecer de vista. Gilleis teve prazer em bater-lhe, porque ele a tinha magoado e ela já era suficientemente mulher para se vingar. Mas nunca o teria traído, expondo-o a outros maus-tratos que não os seus.

Na sua ânsia de a acalmar, Harry esquecera-se por completo da travessia do rio em Atchani. A primeira carroça avançava ruidosamente sobre os arcos de pedra inacabados da ponte, onde o cobrador do abade de Lilleshall recebia as portagens. Havia sempre pessoas que paravam ali para conversar e eram frequentes as disputas sobre a portagem cobrada às carroças carregadas, pois os tributos cobrados pelo abade eram motivo habitual de queixas dos aldeãos e de muitos viajantes regulares. Por seu turno, o abade afirmava que as taxas não lhe traziam proveito e serviam apenas para financiar a conclusão das obras da ponte. Os queixosos replicavam que o último arco não passava de uma estrutura provisória de madeira, que estava assim havia um ano ou mais e que ninguém lhe tinha posto a mão, apesar de, entretanto, todas as carroças carregadas que por ali passavam terem pago um xelim e as descarregadas meio xelim. Diziam abertamente que as portagens eram aplicadas na construção de belos anexos novos da abadia de Lilleshall e não na ponte. Mas que outra coisa seria de esperar daqueles estrangeiros vindos de Dorchester?

Na penumbra do seu esconderijo, os dois rapazes mantinham-se atentos aos ruídos da travessia da ponte: o gemido diferente das rodas ao passarem de terra firme para o primeiro arco de pedra; o som surdo vindo lá de baixo; o murmúrio da corrente baixa de Verão contra os pilares; depois, a paragem que, por terem a respiração suspensa, devido a uma última tensão do medo, lhes pareceu ter durado horas. Os cavalos pateavam e abanavam a cabeça para sacudir as moscas, vozes animadas trocavam os habituais boatos ouvidos no mercado de Shrewsbury por novas sobre o tráfego na estrada, as moedas mudavam de mãos. Os cavalariços davam estalidos com a língua, as ferraduras martelavam na madeira, produzindo um som cavo, e depois voltaram a bater na estrada poeirenta. Já tinham passado. Pouco depois, a via, longa, direita, impetuosa, aberta pelos Romanos, abria-se diante deles.

- Gilleis!

Harry ergueu a cobertura e assomou a cabeça.

- Ainda não! - murmurou ela, entre dentes.

E empurrou-o com a mão, com tanta força que ele percebeu que ainda estava zangada. Mas, antes que ela o retirasse, Harry agarrou-lhe o pulso e puxou-o para si, para baixo da cobertura. Pouco demorou até os pequenos dedos crispados se distenderem e se abandonarem confiantemente aos seus. Harry voltou-se de costas e, sorrindo, encostou ao rosto a mão de Gilleis.

 

Nicholas Otley jantara bem e ainda estava à mesa, diante de uma cerveja, na pequena sala de hóspedes, quando os dois rapazes se apresentaram diante dele, de chapéu na mão, para formular o seu pedido. Foi Adam quem falou, pois era ele quem podia, com mais confiança, proclamar a sua filiação e os conhecimentos da sua arte. Bastava-lhe mencionar uma aldeia daquele distrito e lembrar-se de que o seu nome de família era Lestrange, e não Boteler. Quanto ao resto, não precisava de ter cuidado com a língua. Sem hesitações, enumerou as qualidades que herdara do pai e as modestas obras em que o auxiliara, na aldeia. Além da sua sedução natural, Adam era o mais alto dos dois e parecia mais velho, embora houvesse apenas um dia de diferença nas respectivas datas de nascimento. Já que eram irmãos, quem devia falar era o mais velho.

- E o meu irmão Harry também é um bom talhador, tanto em madeira como em pedra. Eu sei do ofício mas ele é melhor do que eu. Tencionamos viajar para Londres, senhor, e continuar a aprender o nosso ofício lá. Se acederdes a deixar-nos seguir viagem convosco, ficaremos muitíssimo gratos. Trabalharemos de bom grado para vós, durante a viagem, se houver trabalho para nós. E, se tiverdes mãos que bastem e não vos pudermos ser úteis, pagaremos pela protecção de irmos convosco. É uma longa viagem para se fazer sozinho e dizem que as estradas não são seguras, nem mesmo a grande estrada do rei. Nunca fomos tão longe como Londres.

O mercador fitava-os com os seus olhos negros e alegres, quase iguais aos da filha. Era um homem alto, de perto de cinquenta anos, no auge da vida e de um vigor tal que cada um dos seus movimentos denotava uma clara violência controlada e cada deslocação da sua cabeça ou mudança de expressão era rápida e viva como o voo de um pássaro. Nicholas Otley cofiou a barba castanha bem aparada e estendeu as pernas compridas. Gilleis, que já fora mandada para a cama por duas vezes, esgueirou-se para o seu lado, enquanto ele observava os dois rapazes, e passou-lhe o braço à volta do pescoço. Ele sorriu, sem olhar para ela, e rodeou-lhe a cintura com um braço, para a puxar para si. Era a sua única filha e a sua mulher morrera, ao dá-la à luz.

- Não te disse já que fosses para a cama, minha querida? Nós vamos ter uma conversa de homens e já são horas de as crianças se irem deitar. - Mas Gilleis encostou-se mais a ele, sem mostrar intenção de se ir embora, e o braço dele apertou-a carinhosamente. - Diz-me lá, minha pomba, que pensas tu destes dois rapazes? Achas que devem ir connosco até Londres?

- Se isso vos agradar, meu pai - respondeu ela, com modéstia, olhando para os dois como se os visse pela primeira vez. Sagaz, fixou o olhar por mais tempo em Adam. - Quererem ir para Londres abona a favor deles.

Otley desatou a rir e apertou-a contra si, porque ela repetira as suas próprias palavras e ambos sabiam que ele gostava que o fizesse.

- Estou a ver que eles não te desagradam. Aproximai-vos, rapazes. Deixai-me ver-vos lado a lado. Irmãos, não é? Tu, o mais velho... Como é que te chamas... Adam?

Adam concordou, sem faltar à verdade, mas aumentou para um ano a diferença de idades.

- E qual de vós é parecido com a vossa mãe? Nunca vi irmãos tão diferentes.

- A minha mãe é loira - interveio Harry, sem mentir.

- E o teu pai?

O sorriso do mercador endurecera e os seus olhos alegres estreitaram-se um pouco. Harry devia ter ficado calado.

- O meu pai morreu - respondeu, um pouco depressa demais, empalidecendo ao som das próprias palavras.

- Uma perda bem súbita! A mim, pareceu-me bem vivo, ontem... na abadia de Shrewsbury.

Com uma expressão de incompreensão total estampada nos rostos, de sobrolhos franzidos como se tentassem adivinhar o que queria ele dizer, os dois fitaram-no fixamente, embora a tremer por dentro.

- Não vos entendo, senhor - começou Adam, lentamente.

- Entendes muito bem, rapazinho. Nunca me mintas. Eu cheiro as mentiras à distância. Anda cá!

Quando Adam se aproximou, hesitante, o mercador inclinou-se para a frente, assentou-lhe uma das suas mãos enormes sobre o ombro e, de repente, enterrou-lhe os dedos firmes nas costas. Adam estremeceu, quase sem poder respirar, e torceu-se para escapar à dor. Otley desviou a mão para o braço do rapaz e, suavemente, afastou-o de si.

- Desculpa, Adam, foi uma grande maldade. Mas, antes de mentires a um homem que tem senso na cabeça, devias ter-te lembrado que as marcas que te identificam ainda não desapareceram. Toda a gente que veio de Shrewsbury conhece a tua história e sabe o teu nome... mestre Lestrange!

A sua voz era dura mas não irada e olhava-os com uma expressão tão pensativa que eles voltaram a ganhar alento.

- Não devíeis tê-lo magoado - censurou Gilleis. - Não creio que eles sejam maus rapazes.

- Não vou fazer-lhe mal, minha pomba, não tenhas medo. Só queria obter resposta para uma pergunta e já a tenho. E, quanto a ti, meu passarinho, vai já para a cama e deixa-me resolver o assunto à minha maneira. Vá, não estou a brincar! A correr!

Fê-la dar meia volta, empurrou-a docemente para a porta e deu-lhe uma palmadinha no traseiro, para ela tomar balanço. E, fosse por saber que o terceiro aviso era para ser obedecido ou por ter percebido pelo tom de voz dele que a sua presença já não era necessária, Gilleis começou mesmo a correr, não sem lançar um último sorriso rápido aos dois rapazes, antes de fechar a porta.

- Bem. Agora que nos livrámos das mulheres, venham sentar-se aqui, ao pé de mim e comecem a contar tudo outra vez, desde o princípio. Quem sois e o que quereis de mim. Viestes à casa de hóspedes, à minha procura. Aqui estou eu. Sede claros, agora.

Harry e Adam contaram-lhe tudo o que já tinham contado à filha. Que mais havia a fazer com um homem daqueles? Contudo, havia uma dificuldade a resolver: iam ter de acabar a história no momento em que ainda se encontravam cativos dentro dos muros da abadia, pois não podiam implicar a rapariguinha. Além disso, seria má política confessar que tinham utilizado aquele homem autoritário para dar cobertura à sua ruga, mesmo sem a cumplicidade da sua filha. Os homens com experiência do mundo e com uma boa opinião acerca de si próprios não aceitam de bom grado ser enganados.

- Conseguimos fugir e seguir-vos até aqui, como vedes - explicou Adam, torneando audaciosamente o obstáculo. - E se nos deixardes aproveitar da vossa companhia até Londres, vereis que as nossas intenções são honestas.

Sustendo a respiração, esperaram que Otley tentasse esclarecer uma questão acerca da qual não deixaria de sentir curiosidade. Mas este manteve-se em silêncio, pensativo, a olhar ora para um ora para o outro, com uma ligeira prega no canto da boca, por baixo da barba castanha, e um brilho calmo no olhar. No entanto, após esta pausa para reflexão, respondeu-lhes num tom grave.

- Eu sou magistrado municipal em Londres e vou todas as segun-das-feiras ao Tribunal de Husting assistir a processos. Como homem de leis, tenho de agir em conformidade com os julgamentos dos tribunais, tal como sua senhoria o abade. Mas nenhum tribunal pronunciou qualquer julgamento, nem mesmo o tribunal senhorial de le Tourneur, e, em meu entender, a sua decisão não obriga ninguém. E o julgamento de um único homem, que é também o queixoso, e não duvido que ele tenha querido dar provas de uma indulgência severa, isenta de malícia. Mas, para mim, isso não é boa justiça. Não foi apresentada qualquer acusação contra vós. Ninguém, a não ser o homem que é pai de um de vós e amo do outro, tem o direito de vos perseguir, e a lei não me obriga a apoiá-lo. Podeis dar graças, jovens, por não haverdes deparado com um membro da nobreza. Se eu fosse um cavaleiro, mandar-vos-ia para o vosso destino... os nobres apoiam-se uns aos outros. Mas sou um mercador, nascido para fazer comércio, e com muito orgulho. Conheço muito bem o valor de uma mão, para querer cortá-la e mutilá-la, que nem um aprendiz de carniceiro. Conserva as tuas duas mãos, com a minha bênção, e faz bom uso delas. O mundo ficará melhor, se assim for.

Otley levantara-se da cadeira e passeava pela sala, em longas passadas enérgicas. Então, parou diante de Harry e mirou-o da cabeça aos pés.

- Quanto a ti, rebento de boas famílias, gosto de ti por haveres apoiado o teu amigo com tanta firmeza. E, ainda mais, por haveres tido a coragem e a inteligência de escolher um ofício e de quereres firmar-te nos teus próprios pés, se na verdade tencionas segui-lo. Tencionas mesmo? E tens habilidade?

- Tenho sim, senhor. Tudo quanto o Adam vos disse há pouco é verdade. Só que eu sou apenas seu irmão de leite. A mãe dele amamentou-nos e o pai dele ensinou-nos aos dois. Sei manejar o macete, o cinzel e o escopro desde os oito ou nove anos. É certo que, em Sleapford, não tivemos muitas oportunidades de esculpir mas trabalhámos na oficina de corte de pedra e ajudámos a construir muralhas, torres de vigia e tudo quanto era preciso no domínio. E, em Shrewsbury, fizemos amizade com o mestre Robert, que trabalha na igreja e, depois de lhe mostrarmos o que sabíamos fazer, ele deixou-nos trabalhar sob as suas ordens. Ajudámos a talhar a balaustrada e eu também esculpi dois capitéis para a capela da enfermaria.

Arrebatado pelo ardor das próprias palavras e a tremer de dúvida quanto à sensatez de confiar tão completamente na discrição daquele homem, Harry pôs-se de pé, antes de prosseguir:

- Trouxe comigo um dos meus trabalhos, para mostrar o que sou capaz de fazer. Não havia nada do Adam que pudéssemos trazer mas dou-vos a minha palavra de que ele sabe do ofício tanto como eu, pois fizemos tudo juntos. Posso mostrar-vos?

- Por certo. Deixa-me ver o que és capaz de fazer.

Harry atravessou a correr o pátio das cavalariças e retirou ternamente o anjo do seu esconderijo. Levou-o consigo e colocou-o em cima da mesa. Dois dias e uma noite na carroça não tinham obscurecido o brilho selvagem do anjo. Com os cabelos dourados a flutuar ao vento, as asas radiosas arqueadas e a vibrar de tensão, o anjo iluminava a mesa com um feixe de luz de origem indefinida. A sua volta, o ar da sala retinia como uma campainha de ouro. Para ele, nada significava inclinar a cabeça e abrir os braços delicados diante de um mercador de Londres.

Otley soltou uma exclamação de surpresa e prazer e estendeu as mãos para aquele ser cintilante.

- Foste tu que o fizeste? É mesmo uma obra tua? Não é uma cópia de nenhuma grande obra conhecida? Dás-me licença? - perguntou o mercador, pegando no anjo e fazendo-o voltear nas suas mãos, olhando, maravilhado, para aquele rosto esguio e orgulhoso. - Tem um cinzelado que eu não esperava. Podes acreditar que há muitas igrejas e abadias que gostariam de to comprar. Estás a ser sincero, rapaz? Não há aqui a mão do teu mestre?

- Fui eu quem o fez, do princípio ao fim. De tudo quanto fiz, é dele que mais gosto. Pensais que me servirá junto de um mestre? É de madeira mas não podia trazer uma pedra e não tenho esboços meus. Tenho muito a aprender, no trabalho da pedra, mas posso e vou aprender. Quero aprender.

- O desejo de aprender é o melhor dos mestres. Não o percas. Se te servirá junto de um mestre? Sem dúvida nenhuma e na perfeição. Estive em Canterbury e vi obras muito louvadas que não igualavam esta. Devias ir para uma das grandes catedrais, jovem Talvace, e aprender o teu ofício com os melhores da tua arte, pois tens tudo quanto é preciso.

Os dois rapazes tinham-se aproximado de Nicholas Otley, um de cada lado, mortos de ansiedade.

- Levar-nos-eis? Oh, era capaz de atravessar a Europa para encontrar um tal mestre e tais obras! O mestre Robert mostrou-nos alguns desenhos da nova catedral de Canterbury. E ouvi dizer que, no País de Gales, estão a construir belos edifícios. As vezes, o padre Hugh falava dessas coisas connosco.

- E em França, senhor... sabeis alguma coisa do que se faz em França? O mestre Robert falou-nos da reconstrução de Chartres, após o incêndio que a destruiu. E, em Paris...

- Ah, França! - exclamou Nicholas Otley, voltando a poisar o anjo sobre a mesa. - Sobre a França, deveis falar com o mestre do meu barco.

- Também fazeis comércio com a França? - perguntou Adam, de olhos muito abertos.

- Faço. E também com Colónia, no Reno, e, de vez em quando, também com as cidades flamengas, embora estas não comprem tecidos, pois fornecem toda a Europa de magníficas mercadorias. As suas tapeçarias, os seus veludos e os seus bordados são os mais sumptuosos que se pode encontrar deste lado do mundo mas, para fazer roupa que nos resguarde do frio, não há nada melhor que os bons tecidos de lã ingleses e galeses. Os grandes senhores do Staple pensam que o grande negócio é a lã em bruto mas acreditem em mim, rapazes, ainda havemos de fazer nome graças aos bons tecidos ingleses.

- Mas - observou Harry - com os conflitos que nos opõem ao rei de França, os navios que lá acostam para comerciar devem pagar taxas pesadas.

- Assim é. É aquilo a que se pode chamar negociar com o inimigo. E Deus sabe que nenhum capitão pode dizer se vai depositar a sua carga num porto amigo ou inimigo, pois, de um dia para o outro, o porto amigo da véspera passa a ser porto inimigo. Mas lançar um imposto e recebê-lo são duas acções distintas e nenhum rei, nem os seus oficiais, podem estar em todo o lado. Quanto à França, até agora, não temos tido problemas lá. No dia da Ascensão, o Rei João, o Rei Filipe e o jovem duque da Bretanha firmaram um tratado. Vamos ver se dura! Com os reis, quem é pode ter a certeza? Eu posso fechar um negócio com um mercador francês e, como homens honrados, ambos respeitaremos o acordado. Com um príncipe, eu exigiria garantias. E, com um barão, exigiria o dinheiro adiantado.

- E já estivestes em França? - perguntaram os dois rapazes, com os olhos a brilhar.

- Aí uma dúzia de vezes. Mas, agora, é um sobrinho meu quem trata dos meus negócios em França.

- E vistes Paris? Vistes Notre-Dame?

- E St. Denis?

- E Chartres?

- Há três anos, estive em Paris. Também vi Chartres, mas antes do fogo. E, em Bourges, estão a construir uma catedral, tão grande como nunca se viu. Com uma altura... é preciso estar debaixo das abóbadas para se conseguir ver como é alta. As próprias naves laterais são tão altas como as nossas galerias do coro... - disse Otley, desenhando a altura com o dedo, em cima da mesa, perante o olhar fascinado dos dois rapazes. - E na Normandia estão a construir por todo o lado. As igrejas aparecem numa noite, como as ervas da Primavera, como cogumelos.

Harry e Adam tinham esquecido tudo o que ficara para trás. Os irmãos mais novos, pelos quais Adam tinha vertido algumas lágrimas, em segredo, durante a noite. A mãe, cuja imagem terna, bela e tola povoava os sonhos agitados de Harry. A dor, a cólera e o medo, a estranha viagem que tinham feito na companhia de uma criança e que representara a passagem das últimas fronteiras das suas próprias infâncias. Tudo isto se lhes varreu do espírito. Sentados à mesa com Otley, sob os olhos coruscantes do anjo, faziam perguntas atrás de perguntas. Quando Otley reparou que a luz começava a extinguir-se e se lembrou de que, no dia seguinte, a partida seria bem cedo, Harry, com o rosto febril, de expressão distante, e os olhos a brilhar, caíra já num silêncio inspirado.

- Haveis-me feito falar até depois de o sol se pôr! Para a cama, os dois. Amanhã, temos uma distância maior a percorrer e precisamos levantar-nos com a alvorada. Ide ter com os meus homens à sala grande, rapazes. Conduzir-vos-emos até Londres, sãos e salvos. Procurai o meu feitor, Peter Crowe, e dizei-lhe que ides connosco na viagem.

Depois de, já no limiar da porta, Harry e Adam terem murmurado os seus agradecimentos, Otley acrescentou, em tom jovial:

- Se os meus ajudantes começarem com brincadeiras convosco... eles são um bando de homens saudáveis e gostam de pôr à prova os recém-chegados... aguentai o embate e defendei-vos o melhor que puderdes. Não é por mal que brincam com os novos.

Os dois jovens prometeram não levar a mal. O conselho destinava-se claramente a Harry, pois Otley tinha a certeza de que, devido à resistência, ao bom humor e à capacidade de recuperação que lhe tinham sido ensinados pela dura escola da vida, o filho do vilão saberia desenvencilhar-se de qualquer situação desagradável. Mas, da parte do filho de um cavaleiro, era de recear que o hábito dos privilégios, a dignidade e o sangue quente complicassem o processo de iniciação.

Harry e Adam trocaram um sorriso cúmplice. Desde a mais tenra infância, Harry combatera em pé de igualdade com todos os rapazes da aldeia, sem pensar em exigir respeito nem em ser poupado. Quando Ebrard descobrira a sua total falta de contenção e tentara incutir-lhe um pouco de consciência de classe, já era demasiado tarde.

- Boa-noite, honestos pedreiros!

- Boa-noite, senhor!

Quando atravessavam o pátio, em direcção à divisão onde os comuns estavam alojados, Harry agarrou no braço de Adam. A luz do crepúsculo, os seus olhos brilhantes tinham tonalidades amarelas.

- Já tomei uma decisão, Adam! Decidi ir para França!

TODOS OS anos, no Verão, Nicholas Otley fazia a mesma viagem, para comprar os panos de lã tecidos durante o longo Inverno. Os seus homens iam de Shrewsbury às zonas montanhosas e traziam os fardos até ao entreposto da vila nos dorsos dos cavalos. Mas, naquela grande estrada romana, era mais simples, embora mais lento, transportar as mercadorias em carroças. O cortejo era mais compacto, as preciosas fazendas estavam mais protegidas contra as intempéries e a defesa era mais fácil, em caso de ataque. Watling Street estava sob a jurisdição do poder real e os crimes nela cometidos ficavam sob a alçada dos oficiais do rei mas o controlo que estes exerciam era escasso e havia homens sem lei por todo o lado. Nicholas Otley dispunha de um pequeno mas corajoso exército próprio, preferindo precaver-se a confiar na lei.

Desde Peter Crowe, o feitor, ao mais jovem dos arqueiros - que afirmava ter dezasseis anos - todos os elementos deste exército eram bem-dispostos e animosos. Os dois recém-chegados foram integrados sem rancores ou invejas mas, como quaisquer novatos, os irmãos Lestrange tiveram que passar por algumas provas antes de serem aceites. O mais velho mostrou ter um temperamento tão radioso como o seu rosto e punhos tão prontos como as suas gargalhadas. E o mais novo, embora não fosse tão bom com os punhos, aguentou as grosserias e os encontrões com grande valentia e sem qualquer má-vontade. Assim, os dois foram admitidos na confraria logo na primeira noite e, quando adormeceram sobre as esteiras que cobriam o chão da sala, já eram seus membros de pleno direito, dando-se por contentes com as poucas nódoas negras que isso lhes tinha custado.

Tinham aquilo que queriam. Tal como os seus companheiros, davam de comer e de beber aos cavalos, tratavam deles, limpavam os arreios, faziam recados a mestre Otley, preparavam flechas e, quando a estrada era má, ajudavam a empurrar as rodas das carroças. A noite, juntavam-se alegremente aos cavalariços e condutores das juntas de animais, ouviam as histórias do Peter, lutavam com os rapazes, jogavam às damas e ao gamão quando faltavam parceiros e cantavam com os arqueiros. Tinham-lhes arranjado um lugar de bom grado e eles esforçavam-se, de alma e coração, por o ocupar dignamente. Nunca nas suas vidas tinham sido tão felizes.

Ao quarto dia, embora um pouco a medo, por recearem que os outros pensassem que estavam a querer dar nas vistas, começaram a participar mais activamente nos serões. Encorajado por uma observação lisonjeira de Peter acerca da doçura da voz de Adam nos coros, Harry disse que o seu irmão cantava bem e que sabia muitas canções em Latim e em Inglês. Tomado por uma timidez pouco habitual, Adam protestou que não estava à altura e tentou furtar-se aos louvores mas, quando os outros insistiram em que cantasse, vingou-se, dizendo que estava acostumado a cantar acompanhado pelo irmão e que Harry sabia tocar muito bem cítara e alaúde. Um dos jovens arqueiros tinha uma cítara, que manejava sem muita arte, facto que confessava de boa vontade. Atirou-a directamente a Harry, por cima das cabeças dos companheiros, e este não teve outro remédio senão pegar nela. Nem um nem outro tinham como escapar.

Em voz baixa e ansiosa, conferenciaram por momentos, enquanto Harry afinava a cítara, trocando recriminações acaloradas mas quase inaudíveis. Mas estavam imensamente felizes. Adam corara que nem uma menina, Harry estava pálido e tenso. Começaram por uma das canções seculares que, incrivelmente, tinham aprendido, fora das aulas, com o irmão Anselm, o jovem chefe do coro de Shrewsbury, sobre quem o demónio dos prazeres terrenos ainda tinha algum poder. Primeiro a medo, depois com maior segurança, levado pelo seu talento, Adam cantou:

«Suscipe flos florem,

quiaflos designant amorem. Illo deflore

nimio sum captus amore. Hunc florem, Flora

dulcíssima, semper odora...»

Debruçado sobre a cítara, com uma expressão grave no rosto, os cabelos caídos sobre a testa, Harry voltou a cabeça para o exterior do círculo de ouvintes, para se concentrar melhor, e, por acaso, começou a olhar fixamente, sem a ver, para uma das grandes janelas abertas para o exterior, para o suave crepúsculo de Verão. Quando tocou o último acorde e emergiu do nevoeiro da concentração, a janela em ogiva materializou-se subitamente perante os seus olhos, sob a forma de um espaço verde-claro, um espaço que não se encontrava vazio. Sobre o rebordo de pedra, estavam dois braços redondos, cruzados, e, pousado sobre eles, um queixo com uma covinha. Gilleis tinha o capuz do manto sobre a cabeça e o cabelo solto, sem tranças, para dormir, coisa que, aliás, deveria estar a fazer havia pelo menos duas horas.

Harry virou-se para os companheiros e recebeu com surpresa as suas felicitações. Mas o seu olhar voltou a afastar-se. Entregou a cítara ao dono e pediu desculpa.

- Um momento... Eu volto já. Esqueci-me de fazer uma coisa.

Sem ruído, franqueou a porta, seguiu ao longo da parede em bicos de pés e saltou sobre Gilleis sem lhe dar tempo a reagir. Ela estava descalça sobre a relva húmida e, quando ele saltou, soltou um gritinho de alarme e escapou-lhe entre os dedos como se fosse uma enguia e começou a correr. Harry apanhou-a ao fim de alguns passos e segurou-a, a tremer, entre os braços.

- Que fazes aqui, Gilleis? E sem sapatos! Que diria o teu pai, se te visse a andar por aí descalça, a estas horas? Volta já para a cama! Depressa!

Ela fitou-o, a coberto do capuz, com os grandes olhos brilhantes. O seu peito delicado ergueu-se.

- Deixa-me! Não sou obrigada a fazer o que tu dizes! Tu não és meu pai!

- Tens sorte por não ser - replicou Harry, com a expressão mais severa que conseguiu arranjar. - Se fosse, minha menina, ias para a cama com uma bela palmada. E, se te constipasses por andares descalça, obrigava-te a beber o remédio mais horrível que houvesse. Vai lá, antes de mais alguém te ver.

- Pois vou apanhar uma constipação! - ameaçou ela, começando subitamente a chorar. - Vou ficar doente. Tu não te importas! Já não brincas comigo! Nunca me deixas ajudar-te. Não cantas para mim...

Demasiado atordoado para responder de forma inteligente, Harry protestou debilmente que não estivera a cantar mas a tocar. Mas ela não quis saber de tão frágil argumento e chorou ainda mais, tentando em vão empurrá-lo e puxando o manto para tapar a cara. Harry inclinou-se, passou-lhe um braço por baixo dos joelhos, pegou-lhe ao colo e sentou-se com ela, sobre a base saliente de um dos pilares de pedra.

- Como podes dizer tais coisas, Gilleis? Sabes muito bem que me importo contigo! Se tivesse tempo, brincava contigo. Tu sabes que, agora, tenho de trabalhar para ganhar o meu sustento. Dei-te o meu anjo, para tomares conta dele, não dei? Teria feito isso, se não gostasse de ti e não confiasse em ti? Mas o teu pai contratou-me e tenho de fazer o meu trabalho. Já não tenho tempo para brincadeiras de crianças.

- Tu não queres! - soluçou ela, sobre o seu ombro. - E eu não sou uma criança! Ainda agora, não estavas a trabalhar. Andas sempre a dizer «quando acabar o meu trabalho...» mas, quando acabas, não vens...

Crianças!, pensou ele, suspirando, com uma ternura exasperada. Um homem nunca sabe como lidar com elas. Anda sempre atrás de mim. Não tem companheiros da idade dela e parece-me que o Adam e eu somos os mais novos que ela conhece. Abraçou-a com mais força e embalou-a docemente, sobre os joelhos, murmurando palavras de conforto para dentro do capuz dela.

- Anda lá... se fores uma menina bonita, arranjo um pedaço de madeira e faço o teu retrato, antes de chegarmos a Londres. E toco para ti, e o Adam canta. Não chores, minha querida! Chiu! Ainda me arranjas problemas por estar aqui contigo, de noite.

Mas, quanto mais ele a consolava e mimava, como se ela fosse um bebé, mais desconsoladamente ela chorava. Os seus cabelos pretos, lisos e sedosos, provocavam-lhe comichão no nariz e faziam-no fungar. O papel de pai começava a cansá-lo e, apesar de gostar muito dela, se fosse mesmo sua filha ter-lhe-ia dado uma palmada. Todavia, pouco à vontade, recordou-se da espera dentro dos muros de Shrewsbury e da saia dela, estendida para tapar o esconderijo dele. Com esta lembrança, todos os impulsos de impaciência foram suplantados por um sentimento que excedia a gratidão.

- Gilleis, meu passarinho, vou levar-te até à tua porta e tens de ir direitinha para a cama, está bem? O que vamos fazer, se ficares doente? Toda a gente vai ficar muito triste e eu mais do que todos os outros, porque me sentirei culpado.

Harry pôs-se de pé, segurando cautelosamente o seu fardo. Ela era pequena para a idade e pesava pouco mas ele também não tinha ainda a força adulta de Adam e não teria podido com um peso maior.

- Vais deixar-me cair - disse Gilleis, pela primeira vez numa voz não embargada pelo choro.

Estaria ela a troçar dele? Seriam soluços ou gargalhadas, o que os fazia tremer a ambos? Harry não teria sido capaz de jurar.

- Não vou, não. Ainda não és assim tão crescida.

Com passadas decididas, atravessou o pátio e levou-a sem dificuldade até à escada principal. Entre os seus braços nus, por baixo das pregas do grande manto, o corpo de Gilleis era macio e fresco. Talvez se sentisse envergonhada por ter sido apanhada vestida daquela maneira. Este aspecto da personalidade dela não o perturbou: tratou-a com um respeito cheio de tacto, segurando-a tão reverentemente como se ela fosse uma princesa, coberta de ouro.

Quando Harry a poisou com toda a cautela diante da porta, Gilleis voltou-se e passou-lhe os braços à volta do pescoço, encostando a face macia à dele. Cheirava a infância, ao calor do Verão depois do pôr-do-sol e a erva húmida.

- Vais mesmo fazer o meu retrato? Prometes?

- Prometo. Se fores deitar-te já.

- Começas amanhã?

Se assim tiver de ser! Isso deixar-lhe-ia as últimas horas do serão para se divertir com os seus companheiros. Mas porque não havia ele de ter mais dez anos e barba no queixo? Se assim fosse, ela iria aborrecer outro qualquer, que não ele, a dizer que queria brincar.

- Só se fores para a cama agora mesmo! Sem mais conversas! - respondeu, beijando-a na testa e empurrando-a suavemente para as escadas. - Isso. Até amanhã.

No momento em que ela punha o pé no primeiro degrau, Harry deu-lhe uma pequena palmada bem disposta no traseiro redondo, para a apressar.

Foi um grande erro de cálculo da sua parte, conforme ela lhe provou, voltando-se para ele que nem uma fúria e esmurrando-o com toda a força. O pequeno punho duro de Gilleis atingiu-o na maçã do rosto e forçou-o a recuar, absolutamente espantado.

- Não te atrevas! Não te atrevas!

Os seus olhos, secos e cheios de uma tristeza desesperada, fulminavam-no. Por trás do desgosto e do ultraje daquela criança, espreitava uma mulher sem defesas mas Harry não soube reconhecer aquilo que via.

- Gilleis, que fiz eu? Juro que não queria...

Ela voltou-lhe as costas, correu pelas escadas acima e desapareceu. A esfregar a face, imerso na maior confusão, Harry regressou lentamente para junto dos seus companheiros. Pensava ter ultrapassado o limite das liberdades que só eram permitidas ao pai dela. E, claro, como todas as raparigas, Gilleis queria comer o bolo e ficar com ele, queria permitir-se todas as familiaridades que lhe aprouvesse com ele, mas ofendia-se com qualquer familiaridade dele para com ela. Todavia, não queria ofendê-la por nada deste mundo, se soubesse como evitar as armadilhas. Mas, no que dizia respeito às raparigas, não havia regras nem lei. Um homem tinha de aceitar os riscos e de estar preparado para, num momento, ser convidado a fazer um gesto e, no momento seguinte, ver-se metido em trabalhos por ter feito esse mesmo gesto.

Faria as pazes com ela na manhã seguinte e selá-las-ia esculpindo o retrato que lhe prometera. Dentro de uma semana, estariam em Londres. Na altura em que entrou de novo na sala comum, Harry estava pronto a rir-se de si mesmo e de Gilleis e, quando voltaram a entregar-lhe a cítara, com um pedido de uma canção para acompanhar a bebida, já se esquecera dela.

Na última noite da viagem, na casa de hóspedes da abadia de St. Albans, enquanto davam cor à imagem de Gilleis, expuseram a mestre Otley o seu projecto de irem para França. Tinham pensado esperar até chegarem a Londres mas, encantado com aquela miniatura de nove polegadas, o mercador mal podia esperar para ver o retrato da filha colorido com o rosa das suas faces e o preto dos seus cabelos e pedira tintas a um dos monges, para o trabalho poder ser feito de imediato. Até tinham oferecido a Harry uma mesa, num canto do claustro, onde a luz era melhor e batia até mais tarde, para ele poder trabalhar em paz, se é que se podia falar de paz, pois Adam estava inclinado sobre um dos seus ombros e mestre Otley sobre o outro, ambos imersos em admiração. Quando se aproximavam demasiado, Harry não dizia nada mas parava de pintar e erguia para eles o seu olhar feroz de Talvace, paciente mas aborrecido, e os dois afastavam-se respeitosamente para lhe dar espaço.

Durante as sessões de pose, Gilleis comportara-se como se nunca tivesse vertido uma lágrima diante dele, nem nunca lhe tivesse batido, nem partilhado com ele momentos menos formais. E fora nessa atitude de rigidez digna e cerimoniosa que ele esculpira a sua imagem: uma figurinha hirta, com as mãos pudicamente cruzadas e a cabeça erguida, altiva. Harry achava aquela pose engraçada mas teve o bom senso de não o demonstrar.

- O Adam e eu estivemos a pensar, mestre Otley. Lembrais-vos de vos termos feito muitas perguntas acerca da construção de igrejas em França? - começou Harry, enquanto traçava a curva de uma sobrancelha preta e delicada, tensa como um arco e ligeiramente franzida numa expressão sonhadora, que se estendia a todo o rosto.

Harry tivera todo o cuidado em reproduzir aquela expressão distante e altiva mas nunca se dera ao trabalho de a analisar. Se tivesse olhado mais atentamente para a miniatura, teria começado a perceber o modelo.

- Estivemos a pensar que o melhor a fazer era ir para França. Ouviu Gilleis mexer-se e ergueu os olhos, irritado. Ela virara a

cara, entreabrindo os lábios, e o jogo de luz sobre os seus olhos grandes perdera-se.

- Está quieta! - disparou, aborrecido.

Levantando-se, pegou-lhe no queixo e voltou a pôr-lhe o rosto na posição anterior, sem brusquidão mas também sem gentileza.

- Fica assim e não te mexas.

Gilleis manteve a pose, sem se queixar. Quando se lembrava, com surpresa e remorso, que ela não era um modelo, ali colocado por um mestre, mas uma criança viva e, para mais, uma criança de quem gostava muito, espantava-se por ela não ter desatado a chorar uma dúzia de vezes em cada tarde. Mas, na maior parte das vezes, só se lembrava disso depois de ela já ter ido para a cama e era já demasiado tarde para apaziguar a sua consciência, elogiando-a.

- É um passo arriscado - observou Nicholas Otley. - Falais Francês?

- Bastante bem, e o Adam melhor que eu. Por aí, não haverá dificuldades. E, senhor, temos boas razões. Londres é longe da nossa terra e uma boa cidade para alguém se esconder mas, enquanto estivermos em Inglaterra, o Adam correrá sempre alguns riscos. Mesmo num burgo franco, mesmo em Londres, só será um homem livre depois de haver passado um ano e um dia. Sabe-se de muitos fugitivos que foram apanhados quando pouco faltava para ter passado um ano e alguns até foram ilegalmente capturados depois desse prazo, quando já eram homens livres. E foi-lhes muito difícil furtarem-se à companhia dos seus senhores para poderem levar o caso a tribunal. Numa aldeia, ser-lhe-ia impossível escapar à sessão do tribunal de condado. Conheceis estas coisas melhor do que nós. Não será melhor ir para França? Por certo que, lá, poderemos entrar ao serviço de um dos grandes mestres canteiros e aprender o nosso ofício tão bem como em Inglaterra.

O mercador, que estava a ver as feições da filha a despontar, quais estrelas, do pincel carregado de cor manejado por uma mão hábil, sorriu disfarçadamente.

- O raciocínio está bem apresentado mas penso que o desejo se antecipou à razão. É inútil tentares esconder-me o teu desejo, rapaz. No teu lugar e com a tua idade, atravessaria o mar como uma flecha. O meu barco parte mal esteja carregado e abastecido. Quereis fazer a travessia a bordo dele? Vai partir para o Havre pela rota mais longa. O Havre é uma boa praça de negócios com Paris e com a Bretanha... agora que o jovem duque se reconciliou com o tio, há bons negócios a fazer ali.

- Poderemos trabalhar a bordo para pagar a nossa passagem? - perguntou Harry, retocando a curva de uma boca firme e suave, e surpreendido por ver nela uma tal expressão de tristeza.

- Já a ganharam em terra firme - respondeu o mercador. - Não tenho nenhum motivo para lamentar o nosso trato. Porque não também sobre o mar? Todavia, pode acontecer que vos sintais menos animados, quando sentirdes o mar a mexer-se por baixo dos vossos pés. Mas penso que devereis tentar.

Harry desviou o olhar da sua obra e Adam ficou mudo, quase sem poder respirar, com os olhos a brilhar de excitação.

- Podemos realmente fazer a travessia no vosso barco? Se não estivermos em condições de trabalhar, poderemos pagar a nossa passagem...

- Não tereis de pagar nada. Guardai o vosso dinheiro para o resto de viagem, rapazes. Escondei-o bem e tende sempre a adaga à mão. E quando me tiveres dito qual é o teu preço, por esta pequena maravilha...

- Não! - disse Harry, prontamente. - Isto é um presente, que prometi à menina Gilleis. Que é uma senhora bem estranha! Na última hora nem abriu a boca.

Lançou um olhar trocista a Gilleis, à espera de ver o frémito de um sorriso, rapidamente reprimido, aflorar-lhe às faces e aos lábios. Mas ela não falou nem se moveu, não pestanejou sequer. Também não baixou os seus grandes olhos escuros, que se encontravam fielmente pousados nele.

- Um presente digno de uma princesa - disse Nicholas Otley. - Quando a deixares falar, ela agradecer-te-á como deve ser. Se mostrares ao teu mestre aquilo que és capaz de fazer em apenas cinco dias, ele dar-te-á o justo valor. Assim sendo, está decidido. Vindes connosco e ficais a trabalhar para mim, até à partida do Rose of Northfleet. Depois, seguireis nele, com a minha bênção, e ireis tentar fortuna no estrangeiro.

- Ficamos muito felizes por beneficiar da vossa generosidade, como até agora beneficiámos da vossa magnanimidade. Nunca a esqueceremos. - E, endireitando as costas, acrescentou: - Como temos tempo, acabo a pintura mais tarde. A luz já começou a declinar e é difícil trabalhar a madeira, enquanto o rosto não estiver seco. Além disso, creio que a Gilleis está muito cansada.

Não era esta a palavra que tinha em mente mas aquela que procurava não lhe ocorria. Os grandes olhos dela, tudo quanto nela havia de eloquente naquele fim de tarde expressava-se numa linguagem desconhecida, que perturbava a alegria e o entusiasmo de Harry.

- Descansa, Gilleis, continuamos noutro dia.

- Vem ver, minha pombinha - disse-lhe o pai. - Vem ver como estás bonita.

Gilleis levantou-se do seu lugar para ir ver a sua imagem, olhando-a com a mesma expressão pensativa e insondável, que apresentara ao artista, enquanto estivera sentada, em silêncio. Era uma imagem linda. O rosto acabado de pintar transformara-se sob o pincel, perdera a sua inocência doce e confiante, agora oculta sob uma reserva nova e tocante. Havia nele alguma melancolia mas, também, uma certa autoconfiança. Era aquilo que Harry vira nela naquele fim de tarde e, enquanto durou o trabalho na estatueta, continuaria a sentir-se intrigado e furioso por não ser capaz de perceber aquilo que tão fielmente retratara.

- Então? Não tens nada a dizer?

- Eu sei o que é - disse Harry. - A culpa é minha. Obriguei-a a estar calada durante tanto tempo que ela se esqueceu de como se fala.

- Nesse caso, deixa estar. Amanhã, vai falar até nos deixar surdos, como de costume.

- Eu falava, se tivesse alguma coisa para dizer - interrompeu Gilleis.

- Ah, assim está melhor. Afinal, não perdeu a língua. Agradece ao Harry este presente maravilhoso, e fá-lo como deve ser.

- Só se estiveres a gostar - disse Harry, arrumando as tintas e os pincéis.

A avaliar por aquele silêncio obstinado, ela não gostava e Harry tinha a certeza de que, para Gilleis, a imagem representaria apenas a recordação de longas horas fastidiosas de pose, de reparos e de chamadas de atenção. Conseguira estragar até mesmo o presente que lhe oferecera.

- Devias gostar, minha menina, pois ele fez do esquilinho engraçado que tu és uma verdadeira beldade. Dá um beijo ao Harry e deseja-lhe boa-noite.

Obediente, Gilleis ergueu o rosto, aflorou-lhe a face com a boca silenciosa e, quando Harry abriu os braços para a abraçar, rodeou-lhe o pescoço com as mãos e entrelaçou delicadamente entre os dedos os espessos caracóis, que lhe nasciam em remoinhos na nuca. A boca dela era fresca, macia e firme. Não voltou a beijá-lo, depois de ele a beijar, recebendo o beijo com um gesto de real condescendência. Mas os seus dedos, que puxavam suavemente os cabelos dele, não tinham o mesmo distanciamento desdenhoso. Quando ela se afastou, Harry teve dificuldade em acreditar, perante a serenidade do seu rosto, que as mãos pertenciam à mesma pessoa. Aquilo que ela gostaria de ter feito, pensou, era puxar-lhe os cabelos com quantas forças tinha, como paga pela falta de consideração dele durante todas aquelas noites. Mas, diante do pai, aquilo era a única coisa que podia fazer, sem que este reparasse.

Desolado, ficou a vê-la abandonar-se confiantemente nos braços de Adam e dar-lhe um beijo sonoro, beijar o pai e ir-se embora para a cama com uma docilidade pouco habitual, sem sequer olhar para trás.

Os raros pensamentos não consagrados ao seu futuro em França foram para Gilleis e para lamentar a falta de tacto de que dera provas para com ela, levando-a a detestá-lo tanto.

Na obscuridade, enrolado em bandas de feltro, na trouxa de Harry, o anjo voou para o Havre. As bandas destinavam-se a proteger-lhe as cores da salinidade e a preservar os seus braços abertos contra os movimentos irregulares da travessia. Tal como a criatura cintilante e invisível no interior da crisálida, o anjo dormia e sonhava e o meio sorriso da sua boca ardente tornava belo e terrível o seu rosto oculto. Havia nele admiração, selvajaria, um conhecimento secreto de tudo quanto fora, de tudo quanto era e de tudo quanto estava para vir.

No seu sonho, o anjo via tudo o que se passava à sua volta, nada escapava à inteligência penetrante dos seus olhos de madeira: Gilleis com a mão crispada sobre o rebordo do barquinho que balançava sob a proa do navio e a outra mão agarrada à cintura do pai; o grande movimento do cais de Londres; os telhados das casas, pontiagudos que nem agulhas, rasgando o céu nacarado de Setembro, como dentes desiguais; os dois rapazes semiébrios de excitação, quase doentes de impaciência, que voltavam as costas à Torre de Londres, estendendo o olhar ao longo do rio, em direcção ao futuro, em direcção ao mar, em direcção ao sonho da vida; um rochedo, uma árvore, uma mata, uma floresta de pedra. Viu o beijo frio e apressado na boca oferecida da rapariguinha, o abraço rápido, a jovialidade do jovem ao inclinar a cabeça, enquanto ela lhe pendurava ao pescoço uma medalha da Virgem. E viu a rapariguinha a acenar, a acenar sempre, no barquinho que a levava de regresso a terra com o pai, a acenar muito depois de os dois rapazes se terem esquecido dela, arrebatados pela curiosidade acerca do navio e da sua tripulação, acerca dos aprestos, de todos aqueles cheiros novos, impregnados de sal, daquela vida trepidante.

Mais tarde, quando a maré e o vento tinham já arrastado o Rose of Northfleet para o mar aberto, e o grande estuário se ia tornando cada vez mais largo, transformando-se num mar ainda maior, sulcado por vagas ornadas de espuma branca que saltavam como cavalos, o anjo viu o seu criador reduzido a uma desgraça vergonhosa, debruçado sobre a amurada, agitado por convulsões incontroláveis, enquanto Adam, maravilhado, feliz que nem um passarinho e incapaz de sentir outra coisa que não fosse encantamento face àquele balançar absurdo, o amparava e o reconfortava afectuosamente, dividido entre o riso e a preocupação.

Incessantemente agitado, nas trevas macias que o rodeavam, o anjo continuava a sorrir, imune à piedade. As mãos que enxugavam as lágrimas de fraqueza e que, a tremer, limpavam o suor frio da testa pegajosa e os restos de vomitado dos lábios arroxeados, eram as mãos que o tinham feito tal como ele era. Eram mais e menos do que ele, mais vulneráveis e imensamente mais maravilhosas.

Algures, para além das águas, para além do enjoo infame e das desilusões da experiência, uma fantasia dourada crescia e florescia, ainda imaculada, uma árvore de pedra tão alta como o céu, miraculosamente coberta o ano inteiro de folhas novas e exuberantes de adoração, de aspiração e de conhecimento.

 

PARIS - 1209

A casa da rue des Psautiers, dotada de dois frontões, era um pouco maior do que as casas vizinhas. Ao lado, uma porta guarnecida de cravos levava directamente ao pátio da cavalariça. O telhado de águas bastante inclinadas projectava sobre a rua as sombras profundas dos seus beirais, que mais pareciam sobrancelhas gigantescas e deixavam na penumbra a porta de entrada. Numa janela do andar superior, brilhava uma luz, filtrada por uma cortina.

Enquanto a casa pertencera a Claudien Guiscard, um viúvo rico de certa idade, que negociava em perfumes, pratas, jóias, tapetes e outras mercadorias vindas do Oriente através de Veneza, ninguém que passasse por aquela rua pacata alguma vez se detivera a olhar para ela. Mas, agora que o mercador morrera e deixara a casa à amante, tudo era diferente. A rue des Psautiers era muito movimentada. Acorriam ali dúzias de jovens, esperançados em atrair o olhar da nova proprietária e em fazer-se ouvir por ela, conquistando assim o acesso àquele quarto iluminado. Os velhos não acalentavam tais expectativas mas nem por isso deixavam de se desviar do seu caminho e de passar por aquela via tranquila, apenas na esperança de a verem de relance, à janela, ou de se cruzarem com ela, quando entrava ou saía acompanhada da criada. Constava que o parente mais próximo de Claudien, um primo em segundo grau, tencionava recorrer à justiça para despojar a cortesã do seu legado. Mas a interessada, diziam ainda os rumores, não se teria deixado impressionar pela ameaça e, fosse como fosse, nada fizera para pôr termo ao escândalo que se gerara à volta da sua pessoa. Depois da morte do amante, muita gente pensara que ela se apressaria a vender os bens, enquanto ainda era seus, e a regressar a Veneza, de onde Claudien a trouxera. Em vez disso, ela instalara-se confortavelmente na casa, recebendo as visitas com luxos de duquesa e concedendo os seus favores mais íntimos a quem lhe agradava, mesmo que o eleito não tivesse vintém, e rejeitando quem não lhe agradasse, mesmo que fosse de sangue real e trouxesse os bolsos cheios de ouro. Ela fazia furor. Sabia cantar e tocar, dar réplica aos versos dos poetas e discutir filosofia com escolásticos. Para além do Italiano, a sua língua materna, falava Latim, Francês e, até, um pouco de Inglês - pelo menos, era o que se dizia. Levava a vida despretensiosa e digna de uma viúva aristocrata mas tinha a liberdade e a inteligência de uma hetera ateniense. E o curioso desdém que demonstrava pelos atractivos do dinheiro - talvez por já ter que bastasse - dava arrebatadoras esperanças a jovens que, de outro modo, não teriam ousado pôr os olhos em alguém tão requisitado. Por conseguinte, quase todas as noites, reuniam-se à sua porta homens de todas as condições sociais.

Naquela noite especial de fins de Abril, convergiram ao mesmo tempo em direcção à casa dois grupos, vindos das duas extremidades da rue des Psautiers. Do lado norte, a cavalo, escoltado por um servo e por uma pequena banda de músicos equipados com os seus instrumentos, vinha um jovem nobre da família de Breauté, bem trajado e consciente do seu valor. Do lado sul, caminhando a toda a largura da rua, com os braços por cima dos ombros uns dos outros, vinham quatro homens, a cantar uma adaptação escandalosa de um cântico de Sigebert dedicado às mártires virgens, com a sua panóplia de nomes femininos sonantes; eram eles Adam Lestrange, o pedreiro inglês e os seus três acólitos endiabrados da mansarda da ruelle des Guenilles. À direita, o seu irmão, à esquerda Elie da Provença, com um rosto de menino de coro e a impudência de rapaz das ruas, e, ao lado deste, o taciturno estudante Apollon, com o alaúde ao ombro. Apresentavam-se poderosamente armados para a liça: a bela voz e a bela figura de Adam, os novos versos de Harry e, para acompanhar os versos, uma melodia de Pierre Abelard, repescada pela boa memória bretã de Apollon. Havia dois anos que os quatro davam um notável contributo para as canções que se ouviam pelas ruas de Paris.

Atrás deles, arrastados pela adaptação musical, pelo magnetismo da rue des Psautiers e pela perspectiva de uma boa paródia, vinham uns doze estudantes acabados de sair da taberna de Nestor, toldados pelo vinho e desejosos de assistir a uma disputa leal.

Apollon foi o primeiro a avistar o cavaleiro, o seu servo e os seus músicos. Abrindo a boca de pasmo perante tamanha panóplia de instrumentos, saltou por cima do último verso da canção e gritou:

- Inimigo à vista! Deus do céu! Eles trouxeram uma orquestra completa! Serão todos candidatos ao paraíso?

- Um rival! - exclamou Adam alegremente. - Era de um estímulo assim que eu estava a precisar! Em frente!

Retirou um braço de cima do ombro de Harry e o outro de cima do ombro de Elie e correu que nem uma flecha para a porta da casa. Os amigos foram atrás dele, encorajados pelo grupo que os seguia. Menos rápido a reagir à situação, o cavaleiro cravou as esporas na montada com um ligeiro atraso e parou bruscamente, com grande aparato de faíscas, junto ao primeiro degrau da entrada da porta de Madonna Benedetta, no momento exacto em que Adam ali punha o pé e abria os braços para lhe barrar a entrada.

- Para trás, rapaz! - disse de Breauté, com a confiança que lhe dava a sua nobreza, mas ainda de bom-humor. - Não sabes reconhecer os que te são superiores?

Adam colocou-se com firmeza no segundo degrau e agitou um dedo, num gesto de reprimenda.

- Vamos lá, senhor, vamos lá. Não sabeis que aqui não há superiores nem inferiores, só há quem agrada e quem não agrada à dama? Foi por um triz mas cheguei aqui antes de vós. Mostrai que sois bom perdedor e tentai a vossa sorte noutra noite. Eu vou insistir nos meus direitos.

- E eu mando-te para o diabo, antes que o consigas! - respondeu de Breauté, em tom acalorado, aproximando o cavalo, na esperança de intimidar aquele jovem insolente e de o obrigar a afastar-se.

Mas Elie fez estalar os dedos por baixo das narinas do belo animal, que, espantado, recuou bruscamente duas ou três jardas, com as ferraduras a resvalar sobre as pedras do pavimento, produzindo um ruído metálico. Se havia uma mulher na divisão iluminada, não tardaria a dar-se conta do burburinho que se gerara por baixo da sua janela. Mesmo que já se encontrasse a dormir, agora devia estar completamente acordada.

Por instantes em desequilíbrio, o cavaleiro recompôs-se com um acesso de cólera e fez estalar o chicote sobre a cabeça de Elie. Mas o jovem desviou-se, conseguindo esquivar-se, ao mesmo tempo que Apollon erguia a mão, num gesto apaziguador, e gritava:

- Esperai! Tende calma! Quereis cair nas boas graças de Madonna Benedetta, lançando-vos numa rixa por baixo das suas janelas? Credes que ela não é capaz de fazer a sua própria escolha? E algum de nós terá coragem de pôr em causa essa escolha? Tendes medo de competir lealmente, canção contra canção?

Os estudantes haviam-se aproximado alegremente dos dois grupos e deram os braços, formando um semicírculo à volta da soleira da porta. Acolheram a sugestão de Apollon com gritos de entusiasmo, antevendo um belo divertimento, quer o pacto fosse ou não respeitado.

- Canção por canção! Tiremos à sorte quem é o primeiro e deixemos que cada um prove os seus dotes.

- Se a dama mostrar preferência por um deles, o outro retirar-se-á sem ressentimentos. Estais de acordo?

- Sim! - rugiram os espectadores, encantados, aproximando-se mais um pouco para ouvirem melhor.

Ao depararem com um ajuntamento tão barulhento, os passeantes inofensivos que seguiam pela rue des Psautiers começaram por abrandar o passo mas, depois, acabaram por parar, para ver o que acontecia a seguir; e, assim, o círculo triplicou e havia quem tivesse de espreitar por cima dos ombros dos que se encontravam à frente. Nos últimos tempos, algumas pessoas haviam adquirido o hábito de passar pela casa de Madonna Benedetta, à noite, na expectativa de uma qualquer diversão.

Os músicos sorriam, com o desdém de profissionais, perante a perspectiva de medir forças com aquele bando de estudantes e artífices. O seu senhor não tinha nada a temer. E este pensava claramente o mesmo, pois baixara o chicote e ria. Tal como Adam, fora buscar coragem e inspiração à bebida e, até esse momento, esta deixara-o bem-disposto.

- Está assente! Se a dama decidir a teu favor, eu retiro-me e deixo-te entregue à tua felicidade. Mas terás de fazer o mesmo, se for eu o escolhido.

- De bom grado - respondeu Adam. - E farei ainda mais: dou-vos a precedência. Fazei a vossa serenata e nós não interferiremos.

- Bem apostado! - sussurrou Harry ao ouvido de Adam. - Nenhuma mulher neste mundo iria dizer sim ao primeiro sem ter escutado o segundo... e quem canta depois fica mais no ouvido.

- Silêncio, rapazes! Silêncio! Sede justos com ambos! - pediu Adam, que, num tom ansioso, acrescentou baixinho: - Começo com a canção nova ou canto primeiro outra coisa?

- A nova! Tens de dar tudo por tudo! - aconselhou Apollon, em voz baixa.

Tentando pôr ordem na desorganizada turba, os estudantes que os rodeavam exortavam toda a gente a calar-se mas estavam a encontrar sérias dificuldades em impor o silêncio uns aos outros. Por fim, ao cabo de alguns instantes, os últimos murmúrios dissolveram-se nas sombras e os músicos, juntando-se na base dos degraus, afinaram os instrumentos e entoaram uma melodia conhecida.

«Ai pudera eu lilases vos ofertar, ou fora esta a época das rosas...»

- Lá voltamos nós ao velho Fortunatus - sussurrou Elie, com desdém. - Colher violetas para Radegunde. Pelo amor de Deus! O que é feito dos autores modernos?

- Chiu! Deixa o homem cantar.

Elie calou-se com um suspiro de protesto e ouviu a actuação até ao fim, como os seus companheiros, dedicando-lhe uma atenção crítica não isenta de prazer, apesar do arcaísmo da canção. De Breauté pagara aos músicos e, por conseguinte, não tomou parte activa na serenata. Conhecia decerto as suas capacidades melhor que ninguém e nem todos os homens podem ter boa voz. Mas já que era forçado a comprar talentos, pelo menos o seu dinheiro estava a ser bem merecido. O cantador tinha um belo timbre de voz e cantava bem e os músicos sabiam do seu ofício. A cavalo, no meio da rua, de Breauté tinha os olhos fixos na janela, por trás da qual tremeluzia a chama de uma vela, agitada pela brisa fresca da noite. A cortina ondulava languidamente e, de vez em quando, o cavaleiro ficava tenso, expectante, na esperança de ver aparecer um belo rosto sorridente. As violetas de Fortunatus chegaram até Radegunde mas Madonna Benedetta continuava sem se mostrar.

- Pouca sorte, amigo! - compadeceram-se os estudantes, em tom animado. - Os falcões fêmeas nunca respondem ao primeiro chamado.

- Oiçamos o que o outro é capaz de fazer.

- Ela está lá - disse alguém, de olhos postos na janela. - Vi passar uma sombra. Ela observa-vos, jovens, não estais a desperdiçar o fôlego.

- Um augúrio! - exclamou um jovem da terceira fila, que esticara o pescoço e havia reconhecido o tocador de alaúde. - Ele tem o próprio Apoio a tocar para ele.

- Não é justo! - proclamou outro. - Que hipóteses tem o outro pobre diabo contra os deuses?

- A menos que se chame Marsyas! - gritou uma voz, ao fundo, provocando uma tempestade de gargalhadas.

- Acabai com a barulheira e deixai que Apolo se faça ouvir, antes que ele aguce a faca contra vós.

Embora ainda mortos de riso, calaram-se de bom grado e Apollon lançou-se suavemente na melodia esquecida de Abelardo. Um dos ouvintes, captando um eco de qualquer coisa que não lhe era totalmente desconhecida, deitou a cabeça para trás e parou de rir. Aqui e ali, algumas cabeças marcavam o ritmo. Sabiam reconhecer uma boa melodia quando a ouviam e, agora, conservavam-se em silêncio. De Breauté foi forçado a olhar para eles e franziu o sobrolho ao ver que o público ali presente fora cativado: receava que o mesmo houvesse acontecido com o outro público, invisível.

Adam cantava e a sua voz ecoava entre as fachadas salientes, com uma tonalidade fresca e alegre e, ao mesmo tempo, dorida:

Ora, que chegado é, o mês de Maio Sob o vosso manto de árvore em flor, Eu oro e ponho a alma a nu, cheio de dor. E, todavia, ver-me vós não quereis.

Ora que a seiva da Primavera goteja E o veado volteia na dança do amor, Eu grito o vosso nome e choro, com ardor. E, todavia, ouvir vós não quereis.

Sob os vossos ramos de folhas protectoras, O coelho vai escavando a toca devagar E em vosso colo as aves tecem ninhos a cantar. E, todavia, alegrar-me não quereis.

Mas, quando o ramo estremecer...

Por trás da janela, a cortina tremeu. Adam viu-a tremer e, por um instante, a sua voz tremeu com ela, antes de voltar a ganhar ímpeto e prosseguir alegremente até ao fim:

Mas, quando o ramo estremecer E o ardor do Verão for já passado.

Então, serei eu, nu e desprezado, Quem ireis por fim amar e receber.

E quando o Outono de ocre vos tingir, Vós, árvore do céu, de radiosas ramadas Deixai cair vossas maças douradas E inclinai os vossos seios sobre mim.

Após um momento de silêncio e de quietude, ouviu-se um murmúrio crescente e, finalmente, um grito de triunfo:

- Olhai, senhores, a lua já brilha!

Por trás da cortina, aparecera uma mão, estendida para fora da janela. A multidão viu um braço branco e redondo, que a manga larga debruada a pele deixava a descoberto até ao cotovelo, e viu os dedos deixarem cair qualquer coisa, na direcção das mãos abertas de Adam. Incitado pelo grito de protesto do seu senhor, um dos músicos correu para a interceptar mas Adam apoderara-se dela e não fazia tenções de a largar. Os estudantes batiam com os pés e gritavam.

- Violetas! As mesmas que o vosso séquito atirou há instantes para a janela da dama! Ofereceu-mas. Aqui tendes a resposta!

- A decisão foi tomada! - gritava o coro de estudantes. - Ide para casa, homem, ela já escolheu!

O vinho que de Breauté ingerira azedou-se-lhe no estômago. Furioso, hesitou por um momento. Sob a sela, o cavalo agitava-se, nervoso. A mão desapareceu e a janela ficou tão imóvel e impenetrável como antes.

- Ela não disse uma palavra. Como sabes que as flores eram para ti? Podiam ser para mim.

Ouviram-se gritos de indignação mas o sangue subira à cabeça de de Breauté e este não queria ceder.

- O combinado foi canção por canção, até ela nos dizer quem escolheu! - gritou, fazendo sinal aos músicos para tocarem de novo.

Ao tumulto começou a sobrepor-se uma melodia bem conhecida de todos os menestréis de Paris.

- Deixa-te ficar diante da porta - intimou Harry, avançando, furioso, para Adam e agarrando-o pelo braço. - Penso que ela vai abrir a porta, quando estiver farta disto.

- Larga-me! - resmungou Adam, libertando-se. - Se ele se aproximar demais, faço-o cair do poleiro. Que grande intrujão!

Os amigos agarraram-no, colocando-se à frente dele, junto à porta, e tentavam acalmá-lo.

- Que queres tu do homem, grande imbecil? A dama é tua. Deixa o homem connosco.

Apesar de indignados, os espectadores tinham-se calado, para ouvirem a música. A canção era muito conhecida e, afinal, não tinham nada a ver com aquela disputa. Estavam ali para se divertirem e, talvez, para atiçar um pouco o fogo, se este ameaçasse apagar-se demasiado depressa.

- Esta canção é francamente insípida - comentou Harry, apurando o ouvido. - Vejamos se somos capazes de a melhorar um pouco. Empresta-me o alaúde, Apollon!

Os seus olhos tinham um brilho amarelado e, quando se debruçou sobre as cordas do instrumento para apanhar a melodia em voo, o seu rosto apresentava um sorriso ávido e felino. Já não havia nada a fazer quanto aos primeiros versos mas sempre podia tentar animar os restantes.

Em todo o seu esplendor, já chega o Verão, O zénite do ano.

Em breve os gelos do Inverno render-se-ão A ardente espada de Febo,

Mas eu, que por vós de lágrimas mancho o chão, Eu, que por vós mil mágoas amargo, estarei aqui...

Foi este o momento escolhido por Harry para soltar um acorde brutal, seguido do martelar seco dos dedos sobre a madeira. Depois, numa voz mais potente e penetrante do que a de Adam, ainda que menos melodiosa, atirou:

Enquanto os menestréis a quem paguei vos molestam Com palavras de amor em segunda mão.

O público explodiu em gritos de alegria. De adaga em punho, o escudeiro de de Breauté galgou os degraus e lançou-se sobre o alaúde mas Apollon e Élie interpuseram-se entre ele e Harry, agarrando o atacante e dominando-o. Lívido de raiva, de Breauté voltou a esporear o cavalo mas um dos estudantes deitou a mão às rédeas e pendurou-se nelas com todo o seu peso. Atarantados, os músicos redobraram de esforços, soprando e dedilhando os seus instrumentos, numa tentativa de abafar o burburinho. O cantor rugiu:

Oh, clemente fonte do mais puro gozo, Derramai as doces graças do vosso peito...

Neste ponto, a voz do cantor cedeu ao esforço, enrouqueceu e o homem ficou reduzido ao silêncio. Então, fez-se ouvir o grito triunfante de Harry, pungente como o travo das maçãs ácidas:

...Sobre alguém no cantar mais talentoso E mais digno de ser acolhido em vosso leito.

Os que se encontravam mais próximos aplaudiram com uma onda de «vivas!» e os que estavam mais distantes exigiram que alguém lhes dissesse o que fora dito, queixando-se de que não tinham ouvido. Vaga após vaga, os versos foram repetidos até chegarem aos espectadores mais afastados, que davam saltos para tentar ver a cena. As gargalhadas alastraram em ondas cada vez mais amplas, ressoando contra os frontões como um imenso trovão. Mais acima, flutuou no ar de Paris a mais límpida, a mais cândida das pérolas de alegria. Saíra da janela de Madonna Benedetta, qual chuva de pétalas amarelas de uma rosa, tombando lentamente como um raio de luz.

Toda a gente olhou para cima mas não havia ninguém à janela. E, enquanto os olhares se dirigiam para o alto, ern baixo, a porta foi suavemente destrancada e aberta. Adam ouviu o ruído, voltou-se de repente e, pela frincha da porta, viu o rosto de uma rapariga e uma mão a tactear em busca da sua, para o puxar para dentro. Ao ver o paraíso abrir-se diante de si, Adam, estupefacto, ficou imóvel, até que Harry, atirando o alaúde para as mãos solícitas de Apollon, agarrou o atordoado conquistador pelos ombros e o empurrou para dentro da casa. A porta fechou-se rapidamente e a tranca voltou a ser posta no lugar, com um estalido.

Demasiado ocupado a equilibrar-se na sela para reparar que a porta havia sido aberta, de Breauté ouviu o estalido e, lançando um olhar alarmado naquela direcção, viu que o seu rival desaparecera. Era mais do que aquilo que o seu orgulho era capaz de suportar. Com um grito de raiva, lançou o chicote contra o estudante que se agarrara às rédeas do seu cavalo. O animal, que foi o mais atingido pelo golpe, pois o rapaz escondera-se por baixo dele, relinchou e empinou-se, obrigando a primeira fila de espectadores a recuar de um salto, caindo nos braços dos seus camaradas. O jovem que se agarrara às rédeas foi projectado como se fosse um simples gatinho e, com um movimento ágil, igualmente felino, caiu, rolou sobre si mesmo para escapar às ferraduras e foi ajudado a levantar-se pelos companheiros. Liberto do peso que o detinha e quase tendo perdido o controlo da montada, de Breauté foi impelido na direcção dos degraus.

Os músicos abraçaram-se aos instrumentos e desviaram-se, empurrando-se freneticamente uns aos outros. Élie afastou-se dos degraus para um lado e Apollon, protegendo ciosamente o alaúde, para o outro. Encurralado contra a porta, Harry ergueu um dos braços, para proteger a cabeça dos golpes do chicote, e, estendendo o outro tanto quanto pôde, conseguiu agarrar a ponta deste e puxá-lo com força, fazendo assim desequilibrar o cavaleiro. Queria apenas desarmar o assaltante mas o cabo do chicote tinha uma argola, presa à volta do pulso enluvado de de Breauté: homem e arma saltaram por cima do pescoço do cavalo. Harry foi derrubado pelo corpo que caiu em voo sobre ele e, esmagado sob o peso do inimigo, rolou pelos degraus, aturdido, caindo ambos a um palmo das ferraduras que batiam furiosamente no pavimento, até que, por fim, Élie conseguiu agarrar nas rédeas e desviar o animal, que tremia e resfolegava. Assim que Élie o afastou da multidão, o cavalo libertou-se dele, sacudindo a cabeça como teria feito para se livrar de um pedaço de espuma no freio, e lançou-se a galope a caminho da cavalariça. Levado pelo seu espírito prático, Élie não perdeu tempo com um problema que não podia resolver. Pôs-se de pé, tacteou rapidamente as equimoses e correu para junto do amontoado de corpos que ocupava toda a largura da rue des Psautiers, soltando gritos, gargalhadas e pragas.

Os cidadãos mais sensatos apressaram-se a afastar-se da peleja. Os estudantes lançaram-se nela, com gritos de regozijo, tomaram o primeiro partido que se lhes apresentou e distribuíram golpes à esquerda e à direita. Havia meses que não deparavam com uma rixa tão satisfatória e na qual toda a gente podia participar. Era preciso aproveitar.

Os próprios músicos, apanhados no meio dos combatentes, desistiram da ideia de fugir e lançaram-se, com unhas e dentes, em socorro do seu senhor. Como não havia esperança de saírem de uma tal barafunda com os instrumentos intactos, usaram-nos como armas, na esperança de que de Breauté os substituiria, uma vez que estavam ao seu serviço e haviam sido sacrificados pela sua causa. Elie apanhou com uma flauta na cabeça, que o fez voltar a sentar-se brutalmente no chão. Apollon, que protegia o seu precioso alaúde com o próprio corpo, pois não tinha nenhum senhor que lhe comprasse outro, foi derrubado por uma viola e sentiu estalar as ilhargas delicadas do instrumento, com uma dor quase igual à que teria experimentado se o seu precioso alaúde houvesse sofrido algum dano. Só depois de as suas mãos carinhosas se haverem assegurado de que este continuava intacto, teve tempo para se dar conta da tempestade musical que sobrevoava a sua maltratada cabeça. O ventre redondo de uma cítara, arremessada intencionalmente à cabeça de Harry, quando este rolava sobre si mesmo para se libertar do adversário, falhou o alvo por uma unha negra e foi quebrar-se como se fosse um ovo contra o degrau de pedra. Harry lançou-se sobre ela, empunhou o braço frágil do instrumento e, tirando partido da vantagem de se encontrar em cima dos degraus, assentou um pé no peito do músico e empurrou-o contra o amontoado oscilante de corpos. Arranjara uma arma mesmo a tempo. De Breauté estava de pé e desembainhara a espada.

- Ferro! - gritou alguém.

Aqueles que puderam fazê-lo recuaram, pois de Breauté estava tomado de uma tal raiva que ficar ao alcance dele era um risco que nem mesmo os espíritos incautos queriam correr. De Breauté saltou sobre Harry. Em vez de tentar desviar o golpe, o jovem avançou deliberada-mente a cítara quebrada em direcção à espada, que se cravou nela tão profundamente que a sua ponta fendeu a caixa de ressonância e aflorou os dedos de Harry. Este fez girar o braço do instrumento numa volta completa e de Breauté gritou, ao mesmo tempo que largava a arma para não ficar com o pulso partido. Harry soltou um grito de triunfo e ergueu cítara e espada acima da cabeça, com a intenção de atirar ambas para longe, por cima das cabeças da multidão. Mas, nesse momento, ouviu-se um grito estridente, vindo do lado norte da rue des Psautiers. Todos os estudantes ergueram as cabeças e, por um instante incrivelmente breve, ficaram paralisados.

- Salve-se quem puder! - bradou Apollon. - A guarda.

E aquela massa aparentemente inextrincável desemaranhou-se como que por milagre e, como as súbitas rajadas de vento, dispersou em todas as direcções que não fossem o norte. O ruído dos pés que corriam ressoava como uma súbita chuvada.

Elie deu um salto, tentando alcançar o cimo do muro que rodeava o pátio da cavalariça de Guiscard, conseguiu içar-se até lá à custa de fortes estalidos dos joelhos e dos pés e desapareceu do outro lado. Apollon mergulhou numa estreita viela entre duas casas e, tapando o nariz, patinhou ao longo do esgoto malcheiroso até à rue du Lapin, onde se encontrou a salvo. Harry largou a cítara trespassada e desceu as escadas de um salto, para seguir Apollon, mas os músicos, protegidos pela nobreza do seu amo e vendo ali uma boa oportunidade de conquistarem as boas graças daquele, agora que a sorte se voltara a seu favor, lançaram-se sobre o fugitivo como um só homem, atiraram-no ao chão e imobilizaram-no.

Quando Harry conseguiu recuperar o fôlego, cortado pelo ataque dos músicos, estes haviam-no posto de pé diante do preboste, a quem explicavam com volubilidade que a rixa era obra de Harry, que este e os seus amigos haviam molestado o seu amo, perfeitamente inocente, interrompendo-lhe a serenata com as suas trovas licenciosas, fazendo-o cair do cavalo, atacando o seu servo e desencadeando uma desordem, na qual a canalha de estudantes do bairro se apressara a tomar parte.

A narrativa deixou Harry de olhos esbugalhados.

- Juro pelo que há de mais sagrado que começo a ter respeito por mim próprio - disse. - Quem os ouvir há-de dizer que eu sou o demónio em pessoa.

Um dos aguazis deu-lhe uma palmada leve na boca com as costas da mão, para lhe ensinar a ficar calado até ser convidado a falar. Harry pôs de lado a ligeira dor, sem ressentimentos, e olhou em volta, para a rua deserta, de repente tão calma. Toda a gente se pusera a salvo, menos ele. Não fora os instrumentos espalhados e a espada, ainda cravada no coração da cítara, e nada indicava a peleja que ali se travara.

De cenho franzido do alto do seu esbelto cavalo malhado, o preboste também observava o campo de batalha, lamentando não haver adiado o assalto à rua até ter postado uma segunda força do lado Sul, para apanhar na rede uma parte daquele bando de estudantes que o atormentavam a toda a hora. Mas se o houvesse feito, metade destes teria invocado privilégios clericais e os seus mestres ou cónegos acabariam por livrá-los de sarilhos. Bom, pelo menos desta vez, não havia cadáveres nem feridos.

- Confirmais tudo o que foi dito, meu senhor de Breauté? Reconheceis este indivíduo como sendo um dos principais culpados?

- Foi o mais impudente de todos - respondeu de Breauté, quase sem fôlego, fulminando com o olhar o seu servo, que lhe escovava o fato. - Foi ele quem me derrubou do cavalo.

Nada disse sobre o papel de Adam em toda a história. Talvez por generosidade mas, mais provavelmente, pensou Harry, porque admitir a derrota faria dele motivo de escárnio.

- Então, tratante, que tens a dizer? Fizeste cair do cavalo este fidalgo?

- Fiz - admitiu Harry. - Depois de ele me haver ameaçado com o chicote. Confesso que fui melhor sucedido do que esperava: só queria o chicote e apanhei também o homem. Fiquei mais surpreendido do que ele. Ademais, ele caiu-me em cima.

- Querias o chicote, não era? - perguntou o preboste, com um sorriso ameaçador. - Podemos fazer-te a vontade. Para começar, que te trouxe aqui, a semear a desordem, a cantar canções obscenas numa via pública e a importunar um fidalgo honesto? Faço tenção de impor a ordem nesta cidade e tu e os da tua laia ides aprender à vossa custa.

- Não nego a luta mas, em todas as lutas, há dois campos e dificilmente se poderá dizer que eu derrotei os dois campos, desarmado. Esse honesto fidalgo fez um acordo e recusou-se a cumpri-lo, depois de haver perdido. Foi então que chegámos a vias de facto. Prendei-o também e julgai-nos com equidade. Ademais - acrescentou Harry, num tom animado - tendes mais possibilidades de lhe cobrar uma boa multa do que a mim, pois gastei todo o meu dinheiro ao pagar o jantar.

- Mesmo que tivesses uma fortuna, jovem, ias ter de passar uma noite à sombra, para refrescares as ideias. Não te fará mal nenhum seres castigado, por uma vez. A menos que apresentes testemunhas que confirmem a tua versão dos acontecimentos desta noite.

Na verdade, havia duas testemunhas ao alcance da voz mas incomodá-las seria quase uma blasfémia. Lá no alto, a luz do quarto fora apagada. Harry sorriu e abanou a cabeça. Uma noite dura para si mesmo, por uma noite doce para Adam, era uma troca justa.

- Já que me prometestes uma cama, como poderia eu ser mal-educado ao ponto de me recusar a ocupá-la? A vossa casa de hóspedes não recusa guarida a ninguém, nem mesmo a um vagus.

- Tens um sotaque que não é de Paris - observou o preboste, de cenho franzido e coçando o nariz marcado pela varíola. - Como é que te chamas? És estudante ou és mesmo um vagus?

- Não sou estudante mas tenho autorização para assistir a aulas, quando os meus deveres o permitem. Sois capaz de guardar um segredo, senhor preboste? O meu nome é Golias, mestre da Ordo Vagorum, mas estou em Paris incógnito e não deveis dizer nada a ninguém.

- Fazei-o pagar por isto - disse o preboste.

Mas o tom da sua voz era tão tolerante que os aguazis se limitaram a dar-lhe uma ou duas palmadas nas orelhas com as suas pesadas luvas de couro.

- Se pretendes declarar a condição de eclesiástico, fá-lo agora, perante testemunhas - disse secamente o preboste.

Harry sacudiu os caracóis castanhos, num gesto de indignação.

- Isto parece-vos uma tonsura?

- Já vi algumas tonsuras aparecerem misteriosamente, mesmo em celas subterrâneas. Não quero correr riscos.

- Eu estrangularia quem tentasse rapar-me o cabelo, mesmo que fosse para escapar da prisão - afirmou Harry, com ar decidido.

- Levai-o - ordenou o preboste. - Vamos ver se, amanhã de manhã, já está disposto a responder às nossas perguntas.

E, dito isto, o preboste soltou as rédeas, dirigiu um breve aceno de cabeça a de Breauté e afastou-se a trote pela rue des Psautiers. Harry, agarrado com firmeza pelos dois braços e incitado a apressar o passo, com uma palmada ocasional nas costas, seguiu filosoficamente atrás dele. Era azar ter de servir de bode expiatório mas podia ter acontecido a qualquer um deles e, afinal, a noite valera a pena. Não tinha de que se queixar.

A euforia provocada pelo vinho e pela acção durou metade da noite, apesar de haver dito aos aguazis, num tom mais desgostoso do que colérico, o que pensava da cela exígua, húmida e malcheirosa onde o haviam instalado. Ao que eles replicaram, não sem razão, que devia agradecer-lhes por lhe haverem dado uma cela no rés-do-chão e com janela, pequena sem dúvida, com barras e a uma boa altura, mas que não deixava de ser uma janela e que dava para o exterior. Podiam muito bem tê-lo atirado para uma cela subterrânea e sem luz. Castigaram-no pela sua insolência mas sem maldade, quase como se estivessem a brincar e, depois, deixaram-no em paz. Até os aguazis nutrem uma certa simpatia inconfessada por qualquer homem que fique alegre por causa da bebida. Aliás, não se deram ao trabalho de perguntar a si mesmos até que ponto era o vinho o responsável por tal alegria e qual a parte que cabia ao prazer da luta.

Quando ficou sozinho, Harry foi, às apalpadelas, até ao banco de pedra gelada e sentou-se. Lá no alto, pela janela, avistavam-se algumas estrelas. Embora carregado de certos odores desagradáveis, o ar era respirável. Os aguazis tinham razão: havia bons motivos para se considerar um homem de sorte. Se estivessem de mau humor, haver-lhe-iam partido a cabeça, atirando-o depois para um dos tais buracos fedorentos da cave, onde um homem não pode nem estar de pé nem deitar-se ao comprido.

O problema mais grave era como passar o tempo e acalmar a exuberância, pois estava demasiado excitado para conseguir dormir. Procurou uma posição mais confortável e, ao fazê-lo, descobriu algumas nódoas negras de que não se dera conta. Em seguida, começou a passar em revista o seu repertório de canções pouco recomendáveis, de início não muito alto, só para ver quanto tempo tardariam eles a achar que era necessário fazê-lo calar e, depois, empolgado por haver conseguido terminar a primeira sem sequer ouvir uma ameaça, o mais alto que pôde. Sempre de ouvido atento a um eventual ruído de passos e de olhos postos na porta, qual miúdo traquinas que quer ver até onde pode levar a provocação, ia já a meio de uma balada sobre uma certa abadessa que levava uma vida privada notoriamente fora das normas, quando a chave rodou na fechadura e um feixe de luz trespassou as trevas. Harry calou-se. Lamentava e, ao mesmo tempo, exultava com a sua ousadia e ficou à espera para ver se levara a bravata demasiado longe. Mas quem rodara a chave e empunhava a lanterna era apenas o ajudante do preboste, um personagem de rosto afilado, envergando uma capa de académico e com a cabeça coberta por um capacete.

- Vim dizer-vos qual o montante em que foi fixada a vossa multa - anunciou, poisando a lanterna num tamborete de madeira, no canto da cela, e indicando ao carcereiro que se retirasse e fechasse a porta.

- Podeis poupar-vos a tal pena - respondeu Harry, assentando os pés no chão para poder sentar-se. - Seja ela qual for, não tenho com que pagá-la.

Enquanto dizia isto, Harry observou a cela com interesse. Mal tivera oportunidade de a examinar, quando o haviam atirado para lá e aquele interlúdio de luz e companhia era bem-vindo. Até então, não se dera conta de que havia um tamborete, aliás, um tamborete grande e sólido, com um tampo tão espesso como o de uma mesa de refeitório. Nem de que os percevejos não eram a sua única companhia. As paredes que o rodeavam estavam cobertas de rabiscos deixados pelos seus antecessores: queixas, pragas, obscenidades e, também, algumas reflexões interessantes sobre a família do preboste, gravadas na pedra, por cima do banco, com a ajuda de uma faca ou de uma unha.

- Então, podeis apodrecer aqui, meu amigo. Mas é meu dever dar-vos conta do julgamento do preboste. O preço da vossa liberdade foi fixado em doze libras parisis1. Se pagardes a multa, podereis sair em liberdade, pela manhã. Caso contrário, podeis escrever uma carta a alguém que possa arranjar-vos esse montante. Deveis ter amigos dispostos a fazer algo em vosso favor.

- Os meus amigos são tão ricos como eu. Mesmo que juntássemos todas as nossas moedas, teríeis tantas possibilidades de receber doze libras como de ser levado para o céu em vida.

- O problema é vosso e não meu. Mas, enquanto a multa não for liquidada, ireis continuar aqui. Não tendes nada de vosso?

Harry remexeu nos bolsos e desenterrou algumas moedas de pouco valor: tudo quanto sobrara da alegre festa na taberna de Nestor. A busca fê-lo descobrir outra coisa, que lhe deu grande prazer, pois esquecera-se de que a trazia consigo e se os aguazis houvessem sido mais minuciosos, ao revistá-lo, não poderiam haver deixado de a encontrar e de lha retirar, tal como o haviam despojado da adaga. A sua pequena faca de bolso, dentro do velho estojo, estava presa ao cinto das meias, por baixo da túnica, e passara despercebida. Com todo o cuidado, manteve-a fora da vista, com medo de que o descuido fosse reparado. O contacto dos dedos com a faca, o modo como esta se lhe ajustava à palma da mão encheram-no de confiança e conforto.

- Isso não basta para vos libertar - admitiu o ajudante do preboste, com um sorriso azedo. - Mas permitir-vos-á, pelo menos, comprar um pedaço de pão, um pedaço de queijo e um copo de vinho barato, se quiserdes comer. Não me compete oferecer-vos estes serviços, nem bons conselhos, mas fornecer-vos-ei algum alimento, se estiverdes disposto a pagar.

Harry estava prestes a aceitar a proposta, quando o contacto da faca contra o corpo e a visão da boa madeira escura e sólida do tamborete lhe provocaram uma fome bem diferente e um anseio maior do que a vontade de comer. Fez tilintar as moedas na mão, com um sorriso de prazer.

- Vou dizer-vos o que gostaria de obter, se estiverdes disposto a ajudar-me. Oh, juro que não se trata de nada que possa ir contra a vossa

 

1 Moeda cunhada em Paris. (N. da T.)

 

consciência. Uma luz! Uma vela... uma vela grande e não o resto de uma das vossas... ou uma lanterna emprestada por uma noite. Que dizeis? Tenho aqui que baste para pagar por isso e para um pequeno suplemento pela vossa bondade.

- Que gosto mais estranho! - comentou o ajudante, franzindo o sobrolho. - Querer ver um lugar tão mal-cheiroso. Mas, se é esse o vosso desejo, não vejo que possa haver algum mal. Ficai com esta lanterna. Está cheia e arderá toda a noite. E se, de manhã, quiserdes mandar uma mensagem a algum lado, farei com que ela seja entregue. Não me agradeçais! E a única maneira que temos de vermos algum dinheiro vosso. Vós, os ratos esfaimados das escolas, nunca tendes com que pagar a cama.

- A vossa hospedaria cobra preços tão elevados que me parece que bem podeis mandar atirar-nos o tal pão e o tal queijo - replicou Harry, sorrindo. - E, por minha fé, só beneficiarei a causa dos meus companheiros de infortúnio, se lutar por isso. Se não me derem comida, vou pôr-me a cantar, até que o façam e ninguém conseguirá dormir esta noite.

- É uma forma de encarar o problema - concordou o ajudante, num tom seco. - Todavia, a verdade é que o preboste dorme longe do alcance da vossa voz, mesmo que gritásseis. E os aguazis estão a jogar aos dados e ainda não querem ir dormir, pois, de outro modo, já vos haveriam feito calar. Não tenho a mesma opinião que vós acerca das vossas probabilidades. Diria antes que, se não acabardes com a barulheira, eles não tardarão a aparecer, munidos de paus e correntes, para lhe pôr termo.

- Não digais mais. Estou convencido! Deixai-me apenas a lanterna e eu ficarei mudo que nem um túmulo.

Harry separou-se das suas últimas moedas, sem a mínima pena. E, quando ficou só, quando o carcereiro trancou a porta e se afastou com o ajudante do preboste, poisou a lanterna no banco de pedra e ergueu o tamborete para o observar mais de perto.

O tampo, com umas sete ou oito polegadas de espessura, ultrapassava dos dois lados as pernas toscamente talhadas e formava um belo bloco de madeira. Harry passou-lhe o dedo por cima. A superfície estava luzidia e macia, de tanto uso. Para aproveitar ao máximo a luz, sentou-se no chão nojento, com as costas apoiadas no banco de pedra e a lanterna a brilhar sobre o ombro esquerdo, quase ao nível do tamborete que segurava entre os joelhos. Quando o voltou de lado, para a luz, imaginou de imediato o perfil rude, a destacar-se como um demónio esculpido num cadeiral de igreja. Pegou na faca e o cabo aninhou-se-lhe na palma da mão, como o focinho de um cão fiel, ansioso por um pouco de exercício.

Harry não dormiu durante toda a noite e nunca o preboste teve um prisioneiro mais sossegado e mais feliz.

 

De madrugada, caminhando como que envolto numa nuvem rósea de contentamento, Adam voltou à ruelle des Guenilles e subiu as escadas para o sótão, a cantar baixinho e a desapertar o cinto da sua melhor cota. Ao som dos seus passos, Elie abriu a porta e correu ao seu encontro,

- Estava à tua espera... o Apollon não podia perder a aula das seis. Eles levaram o Harry, Adam!

- Eles quem? - perguntou Adam, perdido nas suas recordações e lento a avaliar a dimensão do desastre. - O que estás a dizer, homem?

- O preboste e os oficiais dele. Não ouviste o alerta? Ah, pois, suponho que não! Eles apareceram pouco depois de haveres entrado na casa. Nós fugimos e toda a gente conseguiu escapar menos o Harry. Prenderam-no por perturbação da ordem e o de Breauté e os seus homens acusaram-no de ser o mentor. Os guardas levaram-no e meteram-no na prisão do preboste. Como vamos nós tirá-lo de lá? Não temos nenhum objecto de valor para empenhar e, se eu pedir dinheiro ao meu pai antes de chegar a altura de receber a próxima mesada, o mais certo é ele mandar-me voltar para casa, para lhe apresentar contas. Vai tirar-me da escola e pôr-me a trabalhar para ele. Da última vez que teve de me pagar uma fiança, jurou que não voltaria a ser indulgente. O que vamos nós fazer?

Adam pegou-lhe o braço, fê-lo entrar no quarto, despiu a cota e vestiu a túnica de trabalho, enquanto disparava uma chuva de perguntas sobre o pobre Elie, que estava pálido e tinha os olhos encovados.

- Como foi que soubeste tudo isso? Ele mandou algum recado?

- Ouvi-os, quando eles o levaram. Estava escondido no pátio da cavalariça da Madonna Benedetta.

- O quê? Tu soubeste que iam prendê-lo? Porque não correste logo a avisar-me, meu grande palhaço?

Élie deitou as mãos à cabeça dolorida e ergueu os olhos para o céu.

- Tem juízo, homem. Pensas mesmo que eu podia fazer isso? Estás a ver-me a bater à porta? «As minhas mais humildes desculpas a Madonna Benedetta mas preciso de lhe roubar o meu amigo, porque o irmão dele foi levado pela guarda!» Aliás, eu não sabia para onde o iam levar e segui-os para ficar a saber.

- Trataram-no mal? E ele? Conseguiu ter tento na língua?

- Eles estavam de bom humor e levaram as coisas quase a brincar. Mas sabes como é o Harry... quando o preboste lhe perguntou o nome, ele respondeu que se chamava Golias... e isso não caiu bem!

- É mesmo dele! - exclamou Adam, endireitando a túnica, morto de ansiedade. - Nunca soube ter tento. Quando o apanhar cá fora, vou dizer-lhe das boas. Golias, vejam só! E ele sabe bem que, nos tempos que correm, tem havido problemas com vagabundos! Já que tinha de dizer uma piada na altura errada, precisava de ser logo a mais provocadora de todas? Vá lá, continua. Que fizeste a seguir?

- Voltei aqui, à procura do Apollon. Ele faz melhor figura que eu, quando é preciso enfrentar as autoridades. Foi à prisão e discutiu com eles, chegou até a ameaçá-los com todos os cónegos de Notre-Dame. Mas os guardas não o soltaram e nem deixaram o Apollon vê-lo. Querem doze libras parisis para o libertarem. O Apollon tentou negociar... sabes que ele consegue dar a ideia de que tem umas tantas libras no bolso, mesmo quando não tem uma única moeda. Mas não conseguiu convencê-los. São doze libras ou não teremos o Harry. O que vamos nós fazer? Entre todos, até ao princípio do mês, não conseguimos juntar nem duas libras. O Apollon disse que, se conseguíssemos arranjar o resto, podia empenhar o alaúde.

Ao evocar este sacrifício supremo, cujo valor bem conhecia, Élie apresentava a expressão assustada de uma criança. Adam também o sabia e, impulsivamente, voltou-se para o amigo e deu-lhe um abraço rápido.

- Não vamos destroçar o coração de Apolion. O caso não é assim tão grave. Vou declarar-me culpado perante o velho Bertrand. Vai ficar furioso mas há-de preferir pagar a deixar na prisão o seu melhor escultor e ficar sem ele, nem que seja só por um dia. Ele vai fazer-me pagar isto bem caro, e ao Harry também, quando for solto, mas não importa. Vai dormir, agora - aconselhou, empurrando Élie para a cama. -Pareces um fantasma. Não deves ter dormido durante toda a noite.

- E tu? - perguntou Élie, interessado, com o olhar subitamente iluminado.

Adam dirigiu-lhe um sorriso breve e preocupado, guardando para mais tarde qualquer resposta que pudesse haver-lhe ocorrido. Não tinha tempo nem disposição para brincadeiras, até Harry estar de novo em liberdade.

Num passo apressado, dirigiu-se a Tile de la Cité e, quando ao chegar ao recinto de Notre-Dame, foi procurar mestre Bertrand, nas oficinas, coladas como lapas à base da nova fachada oeste. Ainda era cedo mas o velho mestre canteiro chegava muitas vezes ao estaleiro antes dos seus homens, pronto a dar-lhes pressa, mesmo quando estes apareciam antes da hora. Todavia, nessa manhã. Adam procurou-o em vão, sempre à espera de o ver surgir, e acabou por ter de confiar a busca ao rapaz que fazia a limpeza e os recados. Só passada uma hora o aprendiz lhe assobiou da base do andaime. Adam desceu pelas cordas suspensas das tábuas laterais de suporte, enterradas junto à base da torre oeste.

- Ele chegou agora mesmo - disse o aprendiz. - Veio com o Cónego d'Espérance e com outro homem. É uma pessoa importante mas não é um homem da igreja. Parece um fidalgo. Não pensas ir incomodá-los enquanto ele cá estiver, pois não?

- A necessidade a isso me obriga - respondeu Adam. - Se me fizerem em pedaços, varre-os com cuidado, junta-os todos e entrega-os ao Harry, para ele me fazer um enterro cristão.

Passou apressadamente a mão pelos cabelos loiros, despenteados pelo vento que soprava sobre o andaime, sacudiu as mangas cobertas de pó e aproximou-se das três figuras que se encontravam no meio do recinto, a olhar para os portais oeste,

- Com vossa licença, mestre Bertrand...

O mestre canteiro era uma figura venerável, com barbas como as de um patriarca e consciente da sua dignidade imponente. Lançou a Adam um olhar reprovador e, com a um gesto impaciente da mão, indicou-lhe que se afastasse.

- Noutra altura! Não vês que estou ocupado?

- Vejo, sim, e peço-vos perdão mas é urgente e penso que querereis ouvir imediatamente o que tenho para dizer. É sobre o meu irmão.

Não tivestes ocasião de dar por isso mas ele não está aqui, hoje, nem estará até arranjarmos doze libras para o libertar. Para ser franco, mestre Bertrand, o Harry está na prisão e o preboste não o deixa sair por menos.

- Está onde!? - vociferou Mestre Bertrand.

O cónego d'Espérance e o estranho haviam-se afastado alguns passos e conversavam em voz baixa mas dificilmente poderiam deixar de ouvir o rugido de mestre Bertrand.

- Na prisão - repetiu Adam, pouco à vontade. - Foi preso ontem à noite, depois de uma zaragata na rue des Psautiers. Éramos uns trinta e ele não cometeu nenhum acto mais repreensível do que qualquer de nós mas teve o azar de ser o único a ser apanhado. Peço desculpa, mas a verdade é que foi mais culpa minha do que dele. Mas foi assim. Se tiverdes a generosidade de nos adiantar o dinheiro, poderíamos conseguir que o libertassem de imediato.

Adam susteve a respiração e ficou à espera de uma explosão de cólera. Mas esta não se deu. Não sem alguma dificuldade, mestre Bertrand engoliu a bílis.

- Eu e o senhor, mestre Lestrange - anunciou, numa voz baixa e estrangulada pelo esforço de manter a compostura - vamos ter uma conversa sobre este assunto, mais tarde. E também vou dizer duas palavras ao patife do teu irmão, quando voltar a vê-lo. Ele não merece que eu lhe adiante nem um soldo, pois não tem a esperteza nem a virtude suficientes para não se meter em sarilhos. Mas sabe que eu estou com pressa e aproveita-se... aproveita-se disso! Um dia destes, puxa demais a corda e vai arrepender-se.

- Não me lembro de ele alguma vez ter ido parar à prisão - objectou Adam. - O dinheiro será considerado como um adiantamento, mestre Bertrand, e podereis deduzi-lo da nossa paga, até vos reembolsarmos da totalidade. Lamento haver sido eu o causador da sua má sorte mas faço questão de não deixar que o Harry volte a pagar por minha causa. É tudo quanto posso dizer.

- Era difícil alguém com um pingo de vergonha dizer menos do que disseste. Como foi que vos envolvestes numa rixa? Não tendes discernimento? Precisais de frequentar os bairros pior afamados da cidade? - perguntou mestre Bertrand, antes de, controlando-se a custo, acrescentar em intenção do Cónego d'Espérance: - Vossa Reverência ouviu este rapaz? Não deveis espantar-vos por eu não cumprir prazos, quando estes velhacos me pregam partidas destas! O senhor Henry Lestrange foi preso pela guarda, numa rixa, e, dentro de algumas semanas, estareis a perguntar-me por que motivo o Calvário não está pronto, como prometi. Nos tempos que correm, não há artífices de confiança. Parece que, quanto mais dotados são, piores patifes se revelam. Assim convidado a tomar parte na discussão, o cónego dirigiu ao mestre canteiro um sorriso apaziguador e, num tom brando, disse:

- Vejamos... parece-me que os seus serviços vos têm sido proveitosos. Não é o primeiro jovem a dar um mau passo.

Arrancando-se bruscamente à contemplação dos novos portais, o desconhecido aproximou-se deles e, numa voz clara e bem timbrada, que rasgou o ar com a sonoridade de um sino, perguntou:

- Foi Lestrange que dissestes? Não era dele que estávamos a falar, ainda agora?

Adam voltou-se vivamente na direcção daquela voz. A falar de Harry? Porque estariam a falar de Harry?

- Esse mesmo - esclareceu o cónego. - Ou seja, aquele de que falávamos está na prisão. Este é o irmão dele.

- Ouvi falar muito de ambos, pela própria boca dos vossos mestres - disse a voz sonora. - Disseram-me que éreis ingleses.

- Assim é, senhor.

- Os naturais do mesmo país devem apoiar-se uns aos outros, em terras estranhas - observou o desconhecido, com um meio sorriso. - Eu também sou inglês. Gostaria muito de ouvir a história da vossa aventura nocturna, se o mestre Bertrand vos dispensar por algum tempo, para a contardes. E, claro - acrescentou, ao ver que as faces de Adam se tornavam rosadas, perante a ideia de contar como acabara a noite para ele - se a história não for demasiado profana para os ouvidos do Cónego d'Espérance.

O sorriso que acompanhou estas palavras fez-lhe erguer um dos cantos da boca, amarga e expressiva, mas o resto do seu rosto manteve-se quase imóvel.

- Podeis omitir as passagens inconvenientes - disse friamente, ao fim de um bocado.

Apesar de ter sido apresentado como uma sugestão, o pedido não deixava de ser uma ordem. Aquele homem estava habituado a mandar e devia ser raro alguém desobedecer-lhe. Adam deu consigo a narrar a história da serenata a Madonna Benedetta, sem qualquer embaraço e até com um certo prazer, enquanto ia observando o desconhecido.

E valia a pena observá-lo. Era um homem alto, magro, elegante, devia ter uns quarenta e cinco anos e estava muito bem vestido, com cores sóbrias. Mantinha bem direita a cabeça, harmoniosamente assente num pescoço que fazia lembrar uma coluna antiga, e a arrogância impressa em cada uma das suas linhas nascera com ele. Tinha os cabelos cortados à maneira antiga, a direito e com uma franja, mas a sua testa era tão alta que o corte não a fazia parecer mais pequena. As sobrancelhas, de um castanho mais escuro que o cabelo, eram compridas e rectilíneas e quase se juntavam por cima do nariz direito e comprido. Os seus olhos, profundamente cavados e sublinhados pelas olheiras, fixavam sem cessar tudo o que o rodeava, inquisitivos, perscrutadores, avaliando, dissecando, captando com uma inteligência ávida tudo quanto se lhes apresentava. Eram uns olhos perturbadores, sem ilusões mas ardentes, calmos mas plenos de uma raiva secreta, brilhantes mas melancólicos. E eram belos. O seu rosto, recém-barbeado, tinha um tom tisnado, uma tonalidade que por certo não adquiria em França nem em Inglaterra, que afirmava ser o seu país. Enquanto o observava, Adam perguntou a si mesmo por onde teria ele andado. Naquele clima, o tom dourado daquelas maçãs do rosto e daqueles maxilares sem rugas não tardaria a empalidecer, até desaparecer por completo, apesar de o Verão que se aproximava o poder preservar por mais algum tempo.

Usava um pelote comprido de um tecido castanho avermelhado, com mangas amplas e capuz debruados a pele, e quando moveu a mão direita bronzeada, dois anéis lançaram reflexos dourados e púrpura. Quando andava, a saia do pelote, aberta até à cintura, deixava a descoberto umas pernas elegantes, cobertas quase até ao joelho por umas botas altas, de couro macio e feitio exótico. Tal como o tom da sua pele, tudo o que envergava vinha de um qualquer lugar muito a oriente de Paris.

Adam interrogava-se sobre se, perante uma tal audiência, seria sensato recitar palavra por palavra as improvisações de Harry mas, quando instado a fazê-lo, obedeceu, evitando habilmente o olhar do cónego. Pela segunda vez, os versos de Harry fizeram sucesso. O cónego manteve o seu sorriso severo e comedido mas, por um fugaz instante, os seus olhos brilharam. O desconhecido atirou a cabeça para trás e riu a bom rir.

- Ah, mestre Bertrand, estou a ver que não me contastes nem metade. Tendes a trabalhar sob as vossas ordens um homem de múltiplos talentos. Então e depois?

- Então, a porta abriu-se e deixaram-me entrar - prosseguiu Adam. - Depois, parece ter-se gerado uma zaragata, na rua, embora eu não possa dizer exactamente como tudo começou, pois só soube o que se havia passado esta manhã, quando voltei para casa. Graças a Deus, ninguém ficou ferido e só o Harry foi preso. Por isso, não percebo que mal haveria em o libertar, nem vejo em que é que isso poderia prejudicar a ordem pública. Mas eles não o soltam, se a multa não for paga.

- Pareceis ambos crianças irresponsáveis - observou mestre Bertrand. - A minha vontade era deixá-lo deitado na cama que ele próprio fez, por um dia ou dois, para lhe dar uma lição, mas isso só seria justo se tu recebesses o mesmo castigo. Por isso, o melhor é tirá-lo de lá.

- Visitar os presos é um acto de caridade - disse o desconhecido, com um leve sorriso. - Agradar-me-ia ir eu mesmo libertar esse jovem talentoso. Cedeis-me o seu irmão por uma hora, para me levar até lá? Mandá-lo-ei de volta, logo que seja possível.

Mais uma vez, usou as palavras corteses de alguém que pede um favor mas empregou-as com a calma de quem exige o cumprimento de um dever, tão óbvio que ninguém ousaria questioná-lo.

- Sois demasiado clemente para com estes dois jovens insolentes, senhor. Mas levai-o, se vos apraz.

Está aliviado por não ter de entrar em despesas mas não está nada contente com o interesse deste desconhecido, pensou Adam. Os mestres podem reconhecer os méritos dos seus discípulos, e até admiti-los no seu foro interior, mas não apreciam nada serem suplantados por eles. E Adam não era o único a afirmar que Harry havia suplantado o seu mestre: era sabido que outros, que não enfermavam do mesmo compreensível preconceito, haviam expressado idêntica opinião.

- É muita generosidade vossa, senhor, para com duas pessoas que não conheceis. Mas não sei como poderemos saldar tal dívida.

- Não haverá dívida alguma.

Como um único relâmpago num céu coberto de nuvens, um lampejo momentâneo de contrariedade passou pelos olhos fascinantes do desconhecido. Depois, emergiu de detrás das nuvens e recomeçou a rir.

- Aquilo que quereis dizer é que vós não me conheceis. Sois difícil na escolha dos vossos benfeitores, não sois? Mas penso que as minhas credenciais vos agradarão. Ouvi dizer que nascestes nas marcas de Gales. Eu também. Se conheceis Mormesnil, Erington, Fleace ou Parfois, também me conheceis. O meu nome é Ralf Isambard. Estais satisfeito?

- Senhor! - exclamou Adam, abalado ao ouvir aquele nome que, nas marcas, tinha peso igual ao dos nomes de FitzAlan ou FitzWarin.

- Então vamos, não deixemos o vosso irmão na prisão por mais tempo. Virão ambos ter convosco dentro de uma hora, mestre Bertrand.

Com a brusquidão que caracterizava todos os seus gestos e a graça que velava a crueza da sua arrogância e a despojava do que nela havia de ultrajante, afastou-se deles a grandes passadas, abrindo caminho por entre os homens e as pilhas de materiais de construção que enchiam o estaleiro. A saia do seu pelote esvoaçava, as estranhas botas rasgavam a poeira. Atrás dele, Adam não conseguia tirar os olhos daquela cabeça descoberta, de cabelos curtos e encaracolados, puxados para trás, deixando à vista umas orelhas quase perfeitas e, sob os caracóis fartos, o formato delicado do crânio, do qual a luz do sol matinal iluminava todas as saliências e deixava na sombra todas as reentrâncias. Quando lhe puser a vista em cima, o Harry vai sentir um enorme desejo de esculpir em pedra esta cabeça, pensava Adam. Daria um terrível santo guerreiro. Ou um demónio magnífico!

Quando o dia nasceu, Harry, havia muito acostumado a ser poupado com as velas, apagou a lanterna, preferindo a luz natural que se filtrava pela pequena janela com barras, colocou o tamborete em cima do banco de pedra e continuou a sua obra, ajoelhado sobre o chão duro e irregular da cela. Estava tão absorvido no seu trabalho que não sentia fome nem fadiga.

Durante as primeiras horas, se tivesse ouvido a chave rodar na fechadura, teria encostado o tamborete à parede e ter-se-ia sentado nele, fazendo desaparecer a faca num ápice. Naquele momento, porém, se ouviu qualquer coisa, foi muito ao longe. Não reagiu e nem sequer voltou a cabeça. Continuou simplesmente a esculpir com deleite a curva de uma boca grossa, rodeada por uma barba hirsuta. Ouviu passos atrás de si, os passos de alguém que entrava na cela, mas não lhes prestou a mínima atenção. O seu rosto cheio de concentração, um pouco inclinado para deixar toda a luz incidir sobre a sua obra, tinha a expressão do rosto de uma criança absorta numa brincadeira ou de um devoto em oração. Só tomou consciência de que não se encontrava sozinho quando uma sombra se atravessou entre ele e a janela. E, mesmo então, só parou por um segundo, sem voltar a cabeça.

- Afastai-vos da luz! - disse, em tom imperioso.

A sombra afastou-se de imediato mas, um segundo mais tarde, o seu lugar foi ocupado por uma outra sombra, mais imponente.

- Santo Deus! - exclamou o preboste. - És mesmo um demónio insolente!

Numa atitude ameaçadora, avançou um passo e deparou com a cabeça esculpida, que emergia do tampo do tamborete. Teve um sobressalto, ao reconhecer aquelas sobrancelhas franzidas, aquele nariz grande marcado pela varíola, aquele queixo saliente e barbudo. Com um urro de raiva, ergueu o bastão e desferiu um golpe forte na mão que manejava a faca.

O impacto da pancada, o grito de dor e cólera de Harry e o tilintar da faca ao cair no chão, pareceu acontecer tudo ao mesmo tempo. Harry girou sobre os joelhos e atirou-se ao chão, de barriga para baixo, esticando o corpo para recuperar a faca com a mão esquerda, pois não conseguia mexer a direita. O preboste voltou a erguer o bastão para desferir novo golpe. A sombra alta e esguia, que se encontrava junto à porta, movimentou-se mais depressa e com maior determinação do que qualquer dos dois.

Os dedos esticados de Harry tocaram no cabo da faca no momento exacto em que, com um movimento seco mas silencioso, um pé se abatia sobre a lâmina. Por entre o nevoeiro de dor e cólera, a atenção de Harry concentrou-se, com uma clareza grotesca, naquela bota como nunca vira igual, a não ser uma vez, em Caen, nuns desenhos feitos por um pedreiro que acompanhara Ricardo nas Cruzadas e deixara dois dedos da mão esquerda em Acra, decepados pela espada de um sarraceno. O couro trabalhado da bota era maleável como um tecido, a ponta revirada formava uma espécie de bico tosco e a parte superior tinha lavrado um motivo delicado de losangos. O olhar de Harry seguiu os contornos de uma perna alta e musculada, vestida com umas meias castanho escuras elegantemente cortadas, e subiu até às ancas estreitas, rodeadas por um cinto dourado que servia de suporte a duas adagas cravejadas de pedras preciosas, ao tronco seco e enérgico e a um rosto escuro como o bronze. Uma mão tão tisnada como o rosto agarrara o pulso do preboste em pleno voo e, agora, afastava o pulso e a arma, num gesto violento de proibição.

- Se lhe partistes a mão!... - rugiu Isambard.

Os seus dentes brancos rangeram e a ameaça ficou em suspenso. Estupefacto, Harry levantou-se e, apertando com firmeza a mão dorida com a mão esquerda, para ajudar a passar a dor, ficou a olhar, espantado, para aquele desconhecido com modos de grande senhor. Isambard, que tinha a luz a seu favor, viu diante de si um jovem de vinte e quatro ou vinte e cinco anos, magro, de cabelos castanhos, sujos, coberto de poeira e contusões resultantes da zaragata da noite anterior, envergando uma túnica de tecido castanho grosseiro, com a gola puída e toda suja devido à noite passada naquela cela infecta. Que haveria nele para captar a tal ponto a sua atenção? O rapaz poderia muito bem ser um simples poeta goliardo, um desses gyrovagus que andavam de terra em terra, de patrono em patrono, ou um escrivão em fuga após tentativas frustradas de pequenas trapaças. Na verdade, era isso mesmo que o preboste pensava. Todavia, tal conclusão era desmentida pelo rosto ardente, esquivo como uma espada, tenaz como o de um animal em perseguição da sua presa, animado por um desejo insaciável, face ao qual tudo o mais poderia ser sacrificado. Duas noites atrás, segurando no anjo de madeira, o Cónego d'Espérance dissera: «Vereis por vós mesmo onde foi ele buscar este rosto.» Aos onze anos de idade, quando o semblante infantil não poderia deixar de ser apenas uma premonição desta intensidade de expressão, ele profetizara aquilo em que se tornaria.

- Agora, já podeis apanhar a faca - disse Isambard, afastando o pé. - Guardai-a: não precisais de uma arma e parece-me que o busto está terminado. Se tentásseis aperfeiçoá-lo, acabaríeis por vos arrepender.

- É provável que venha a arrepender-me, mesmo deixando-o como está - respondeu Harry, guardando a faca no estojo e dirigindo um sorriso forçado ao preboste, que contemplava o seu busto, respirando ruidosamente.

- Dá-te por feliz por a tua multa já haver sido paga e por não estares mais nas minhas mãos, rapaz - disse o preboste em tom sombrio. - Se tivesse visto o que fizeste antes de aceitar o dinheiro, ias ter de pagar isto bem pago, com a tua própria pele. Se voltar a deitar-te a mão, ponho-te a ferros, numa cela subterrânea. Logo veremos que desvario serás capaz de lá fazer. Que o mau negócio que fizestes, senhor, vos traga grandes alegrias.

- Por minha parte, estou satisfeito - replicou secamente Isambard.

Durante alguns minutos, manteve-se em silêncio, mudando duas vezes de posição de forma a permitir que a luz incidisse na cabeça esculpida. De súbito, o seu sorriso peculiar abriu-se num sorriso rasgado.

- Julgo que estais a ser bem ingrato. Este jovem tornou-vos imortal. O retrato não contém maldade, nem mesmo malícia. Quanto ao talento do artista, vede se sois capaz de encontrar outro homem capaz de fazer uma tal obra-prima, à luz de uma lanterna e apenas com uma faca de bolso. Se o encontrardes, saudá-lo-ei tão calorosamente como saúdo este. Mas, se lamentais separar-vos dele por tão pouco, podereis ganhar mais. Eu não regatearei o preço. E, aqui entre nós, o tamborete render-vos-á bom dinheiro, se o apresentardes no sítio certo. Não seremos avarentos quanto à conta pela noite que ele aqui passou.

Isambard voltou-se para Harry, que o observava mudo de espanto, enquanto ia friccionando os dedos dormentes.

- Ele causou-vos dano?

- Penso que não. Não está nada partido. Só não poderei fazer grandes movimentos, por alguns dias.

Os seus olhos, verdes como o mar sob a luz do sol que entrava pela pequena janela, brilhavam, exprimindo interrogações para as quais não obtinha resposta.

- Estava à espera que mestre Bertrand mandasse pagar a minha multa. Não compreendo, senhor, como foi que vos empenhastes por mim e não gosto de pensar que vos custei tanto dinheiro. Porque fazeis isto?

- Digamos que é um capricho. Eu estava com o Cónego d'Espérance e com o mestre Bertrand, quando o vosso irmão lhes foi contar o vosso infortúnio e, por isso, vim com ele, para vos libertar. Ele está lá fora, à vossa espera, e eu prometi a mestre Bertrand que ambos estariam de volta ao trabalho dentro de uma hora. Despedi-vos! - acrescentou Isambard, com um meio sorriso, no tom de quem se dirige a uma criança.

Harry abriu a boca para fazer mais perguntas mas, sentindo-se impotente, voltou a fechá-la. Olhou para o preboste, depois para o retrato carrancudo e vigoroso e sorriu. Era o sorriso travesso e doce que surgia no seu rosto apenas nos momentos de lassidão que se seguiam à conclusão de uma obra.

- Separemo-nos como amigos, senhor preboste! Reconheço que comecei isto por despeito mas juro que o terminei com toda a honestidade. Se me devíeis algo por ele, já me pagastes - disse, com uma leve sombra de acusação no seu sorriso, ao indicar a mão inchada, que começava a ficar negra. - Sem ressentimentos?

- Põe-te a andar daqui! - resmungou o preboste. - E não voltes a aparecer-me pela frente, manhoso.

Todavia, a admiração de Isambard pela escultura e, mais ainda, o punhado de moedas que recebera, haviam-no desarmado. Foi com algo bastante próximo de um sorriso que os levou até ao estreito pátio da prisão e fechou a porta depois de eles terem saído.

Harry ergueu alegremente o rosto para o sol e respirou fundo, de súbito consciente da fome e do cansaço.

- Não comestes nem dormistes - observou Isambard, com sentido prático. - Estareis em estado de trabalhar? Duvido que, hoje, possais manter-vos em cima de um andaime.

- Não haverá qualquer problema. Tenho de ir e receber uma reprimenda mas penso que, depois disso, mestre Bertrand me dirá para ir dormir. Permitis-me que vos agradeça mais uma vez, senhor? E dir-me-eis o nome daquele a quem devo a liberdade? Fiquei demasiado confuso para ser bem-educado. O vosso aparecimento foi tão inesperado!

- Não me fizestes qualquer agravo - tranquilizou-o o seu salvador, em tom sombrio. - O meu nome é Ralf Isambard de Parfois... somos ambos da mesma região. Considerai-me como um vizinho. Agora, preciso deixar-vos. Mas se estiverdes livre esta noite, vinde ter comigo às oito, pois há um assunto que quero expor-vos. Estou alojado na Maison d'Estivet.

- Irei - prometeu Harry. - E muito vos agradeço.

Adam estava na rua, de rosto abatido, à espera. Quando viu Harry, o sol voltou a brilhar.

- Cruzadas! - exclamou Isambard, inclinando um pouco o copo de ouro, entre as duas mãos compridas e mirando-o com um sorriso amargo. - Nunca fujais de nada que vos repugne, para ir em busca de uma causa pura, no outro lado do mundo. Eu empunhei a cruz porque estava farto das querelas e dos acordos à volta dos reinos terrenos... quando o rei João firmou a paz com Filipe, uma paz que lhe custou Evreux e muitas outras boas cidades, e lhe prestou vassalagem pela Bretanha, fiquei exasperado. E quando João se aliou a Llewellyn, assegurando-lhe todas as suas conquistas... a ele, que incendiou Fleace durante a marcha para Mold e exterminou a minha guarnição até ao último homem... foi a gota que fez transbordar o copo. O galês passou a ser homem lígio do meu rei, seu genro e amigo do peito. Portanto, abandonei a Inglaterra e empunhei a cruz, na esperança de um combate que firmasse o chão debaixo dos meus pés. Devia ter menos de quarenta anos, Harry! Agora sou mais sensato. Partimos para o Santo Sepulcro mas não fomos além do Rialto.

Do outro lado da enorme mesa que os separava, Harry olhava-o sem compreender.

- Mas, senhor, vós tomastes Constantinopla...

- É uma figura de estilo, jovem! Qualquer lugar onde se juntem dois venezianos é o Rialto e qualquer estrangeiro que cometa a imprudência de se aventurar nesse lugar deve conservar uma mão na bolsa e a outra na espada. Sim, nós tomámos Constantinopla. Uma cidade cristã à cabeça de um império cristão! Uma estranha conquista para cruzados, se pensarmos bem nisso! Conquistámo-la a um príncipe bastante capaz que, por sua vez, a tomara ao seu irmão incompetente e enclausurara esse louco, antes que ele pudesse conduzir o país à ruína.

- É verdade que ele o cegou? - perguntou Harry.

- É verdade - respondeu Isambard, com indiferença. - Mas outros houve que fizeram o mesmo ou pior, sem terem de sofrer guerras santas, pregadas contra eles por outros príncipes da mesma fé e que, Deus bem o sabe, não cometeram feitos menores. Assim, voltámos a pôr o tolo no seu trono periclitante e, em menos de um ano, o seu povo ingrato fartou-se dele... dele e do intriguista do filho. Este dava-se bem com os Venezianos mas os Gregos não queriam nada com ele, o que lhes custou o segundo cerco de Constantinopla e uma segunda conquista. Nós não podíamos fazer mais nada senão colocar no trono um imperador nosso e mantê-lo lá pela força. Foi o mais próximo que chegámos da Cidade Santa! O rito latino voltou a ser celebrado em Santa Sofia mas os Gregos continuam de olhos postos nos seus prelados no exílio. Quem tirou proveito de tudo isto senão Veneza? Aquilo que eles queriam não era milagres e, sim, mercadejar e nisso foram bem sucedidos. Os Venezianos controlam todas as cidades do Império Romano.

«Sabeis, Harry, o que me trouxe de volta? Outro tratado, semelhante àquele que me fez partir. Sentindo-se ameaçado... e Deus sabe que tem bons motivos para isso... o nosso imperador latino, o campeão da Cristandade no Oriente, aliou-se ao sultão muçulmano da Dácia contra os cristãos gregos de Niceia! Coisa de pouca monta mas que me deu volta ao estômago, depois de tudo quanto já havia engolido. É um belo final, não pensais assim?

- Fazeis-me sentir que fui afortunado por haver empenhado todos os meus esforços na madeira e na pedra e não nos assuntos dos homens respondeu Harry. - Todavia, o homem é o único material de que dispomos, se quisermos que o mundo venha a ser melhor. E penso que, tanto na nossa terra como no Oriente, não haveis encontrado apenas motivos de repulsa. Se não entre príncipes e doges, pelo menos entre o comum dos mortais.

Inclinando bruscamente a cabeça para trás, Isambard despejou o copo de um trago e poisou-o na mesa.

- Cuidais que assim foi? Emprestai-me os vossos olhos para olhar a Inglaterra que me espera. Que irei eu encontrar lá? Que espécie de sociedade irei descobrir, quando voltar?

Perante tal desafio, Harry apelou às suas recordações e sentiu-se envergonhado ao concluir que, ao longo dos nove anos que haviam passado desde que partira, pouco pensara em Inglaterra ou tentara saber o que por lá se passava.

- Uma sociedade muito desmoralizada e onde reina grande perturbação - admitiu, com pesar. - Sabeis por certo que a Inglaterra foi alvo de interdição papal. Há um litígio sobre quem deverá ser o novo arcebispo de Canterbury... os bispos e os monges entraram em conflito e o rei João tomou o partido dos bispos, e apoiou Nonvich, mas o Papa recusou-se a confirmar a escolha e quer impor o cardeal Langdon. Ou então não haverá arcebispo. Ora o rei não quer ouvir falar de Langdon e a discórdia instalou-se. Mas vós, por certo, conheceis melhor a situação do que eu. Quase tudo quanto era inglês, aqui em França, foi-se... o Maine, a Turena, a Normandia...

- Foram-se! - exclamou Isambard, com uma gargalhada breve e dura. - Falais como eu me lembro de falar com a vossa idade... e Deus sabe que não devia censurar-vos por tal! Mas nada se foi, jovem. A Normandia está onde sempre esteve e o mesmo se passa com o Maine e a Turena. O que aconteceu foi o reconhecimento de uma realidade. Esses condados ficam em solo francês, sempre ficaram e aí continuarão para sempre, a menos que Deus faça o milagre de os levar para o outro lado do mar. O que digo deixa-vos de boca aberta? O vosso exílio voluntário tem sido melhor sucedido do que o meu pois, caso contrário, haver-vos-ia forçado a olhar para trás e a reconsiderar. Eu meditei muito, lá no Oriente, e vi que estava errado, ao culpar o rei por haver cedido Evreux. Mais sensato seria ele haver fixado as suas condições, quando ainda podia fazê-lo, e haver-se separado tranquilamente daquilo que, desde então, teria de abandonar pela força. Sabeis o que causou a ruína da minha família e de muitas outras, nos últimos cento e cinquenta anos? Foi tentar montar dois cavalos ao mesmo tempo. É mais que tempo de decidirmos se queremos ser normandos ou ingleses, pois não se pode ser uma coisa e outra. Não sei porque precisei de ir até Constantinopla para descobrir que era inglês.

Isambard levantou-se da cadeira de espaldar alto e, inquieto, começou a andar de um lado para o outro, entre as paredes cobertas de tapeçarias. Os seus passos firmes faziam estremecer a luz das velas. Os olhos de Harry seguiam-no atentamente e este perguntava a si mesmo qual seria a finalidade de tudo aquilo. O que poderia querer dele um homem como aquele, que não pudesse ser pedido sem tais preâmbulos? Porque seria ele merecedor das confidências de Ralf Isambard, senhor de Mormesnil, Erington, Fleace e Parfois, nas marcas de Gales, de uma dúzia de outros feudos no Norte e no Sudoeste de Inglaterra e só Deus sabia de quantos mais na Bretanha, Gasconha, Maine, Poitou e Anjou?

- Vim há poucos dias da Bretanha, onde fui desfazer-me de um dos meus dois cavalos - recomeçou Isambard, detendo-se bruscamente diante de Harry, como se tivesse lido os seus pensamentos. - Eu sou inglês, Harry, mas o meu filho mais velho é francês até à medula. Surpreendo-vos? Não sabíeis que tenho filhos? É verdade, tenho filhos! O mais velho tem mais ou menos a vossa idade. Casei-me aos dezassete anos e fiquei viúvo aos vinte e cinco. Não me recordo de alguma vez haver lamentado seriamente qualquer um desses acontecimentos. A partir de agora, Gilles será o senhor de todos os feudos que eu possuía em França, até à mais ínfima parcela de terra, e de bom grado prestará homenagem ao rei Filipe. E eu vou regressar a Inglaterra e, por todos os domínios que lá possuo, prestarei homenagem ao rei João, e defendê-los-ei com a minha vida. Uma montada de cada vez é suficiente para qualquer homem. Resolvi o meu dilema. E João procederia com acerto se resolvesse o seu da mesma maneira e se sentasse firmemente no trono de Inglaterra, dedicando todos os seus pensamentos e todos os seus esforços a torná-la forte e próspera, a ligá-la a si de forma indissolúvel, contra todos os pretendentes. Mas não será capaz de o fazer. Mesmo que o desejasse e visse que era necessário, não ousaria. Sabeis porquê? Porque os seus súbditos... não falo sequer de nós, que lhe estamos mais próximos, mas desses simples mortais de que faláveis há pouco... porque os seus súbditos o fariam em pedaços!

Isambard soltou uma breve gargalhada rouca, aproximou-se da janela, afastou as cortinas, para contemplar o céu cinzento pérola, a lua nascente e a silhueta sumptuosa de Notre-Dame que, flutuando naquela luz cinzenta prateada, se erguia acima dos telhados e que o brilho reflectido do Sena fazia estremecer como se fosse a chama de uma vela.

- O vinho está diante de vós, Harry.

- Muito obrigado - respondeu este, sem lhe tocar.

Isambard virou subitamente a cabeça e encontrou o olhar brilhante e franco do jovem. Os olhos de Harry não fugiram aos seus nem reduziram a intensidade com que o fitavam.

- Estais a perguntar-vos se serei sempre assim tão falador. A verdade é que desejo ser honesto convosco, mestre Lestrange. Antes que respondais sim ou não a algo que quero propor-vos, desejava que me conhecêsseis um pouco, por vós mesmo e não por terceiros.

- Sei que fostes cortês e generoso comigo - disse Harry. - É tudo quanto me importa saber.

- Estais a ser tolo, pois posso ser muito mais que isso.

- E que sabeis vós de mim? - prosseguiu Harry, calorosamente. - Apenas que me fostes buscar à cadeia do preboste, que possuo algum talento para esculpir, que levo o meu trabalho em grande conta e que sou irremediavelmente teimoso e rebelde. Por certo, mestre Bertrand não deixou no ar qualquer dúvida quanto a isso.

- Pensais, na verdade, que é assim que ele fala de vós? Estais a subestimá-lo. Oh, é verdade que tem ciúmes das vossas capacidades, é fácil de ver, e que vos descreve como um rapaz obstinado e voluntarioso e como juiz severo e arrogante do trabalho dos outros. Mas também diz que sois o discípulo mais talentoso que já teve. Foi ele, e não o Cónego d'Espérance, quem me disse que tendes génio.

Ao ver Harry corar até às orelhas de espanto e prazer, Isambard sorriu, desta vez quase com alegria.

- Ele disse realmente isso de mim?

- E muito mais. Coisas boas e más. Mas, no respeitante às vossas qualidades em todos os domínios da vossa arte, só disse coisas excelentes. Há quanto tempo trabalhais com ele?

- Há quase quatro anos. Não pensava que ele me tivesse em tão alta estima - respondeu Harry, atordoado. - Nunca me mostrou isso.

- E antes?

- Ficámos um pouco mais de quatro anos em Caen, a trabalhar com o mestre William, na construção da abadia de Saint-Etienne. É um bom mestre, a quem é difícil agradar. Não tolerava obras feitas à pressa e exigia sempre o melhor de nós.

- E antes disso? Bem, na verdade, antes disso, devíeis ser ainda uma criança.

- Quando chegámos de Inglaterra, passámos alguns meses em Lisieux. Não vou dizer que aprendemos muito, ali, a não ser a sermos rápidos e a obedecer às ordens. Fiquei contente por poder ir para Caen, em menos de um ano.

- Vejo que deveis ter trazido bases sólidas de Inglaterra. Quem foi o vosso mestre lá? Deve ter-vos aceitado quando éreis ainda muito novo.

- O pai do Adam - respondeu Harry, sem pensar.

Desejou ter mordido a língua. Em nove anos, não se traíra uma única vez mas, agora, era demasiado tarde para retirar o que dissera. Todavia, apesar de ter lançado um breve olhar perspicaz ao seu convidado, Isambard não deu mostras de querer interrogá-lo sobre o parentesco.

- Era o canteiro da aldeia e tinha alguma prática de trabalho no senhorio - prosseguiu Harry, aproveitando a trégua. - Eu não era filho dele mas ele educou-me juntamente com os seus três filhos.

- Então, começastes pela prática e não pela prancha de desenho. É a melhor escola e estou satisfeito com o que vi do vosso trabalho - disse Isambard, pegando no jarro para encher os dois copos.

Agarrou no seu e recomeçou a andar de um lado para o outro.

- O assunto é o seguinte: tenciono construir uma igreja ao lado do meu castelo de Parfois. Já empreendi esta obra antes mas não cheguei a lado algum. Conheceis Parfois? O nome vem do velho berço da minha família, na Normandia.

- Conheço - respondeu Harry.

Recordava-se da grande muralha cinzenta, que se erguia acima do afloramento rochoso e ondulava ao longo da colina como uma serpente em movimento. E das duas torres de vigia, que emergiam sobre um fosso que era uma fissura natural na rocha, com quarenta pés de profundidade. Só vira Parfois duas vezes na vida, em cavalgadas para Noroeste do condado, com Ebrard, para comprar cavalos. Mas era uma visão inesquecível.

- Então, conheceis os perigos. Nesses tempos, éramos alvo de incursões galesas quase diárias, umas de Powis, outras de Gwynedd, e, embora eles fossem espertos demais para atacarem Parfois, o estaleiro da igreja ficava fora das muralhas e eles achavam divertido roubar os materiais e assustar os meus pedreiros. Não sei porque terá o destino posto no meu caminho homens tão temerosos. Uns após outros, os meus mestres pedreiros tomaram medo e abandonaram-me. Desfiz-me de três deles, arrasei aquilo que haviam feito e parti para a minha Cruzada. Mas, agora, quero retomar o projecto e vê-lo terminado. Visitei todas as grandes obras de Paris, em busca de um mestre a meu gosto. Penso que o encontrei.

Harry pôs-se de pé, a tremer.

- Ofereço-vos esse trabalho - prosseguiu Isambard. - Ofereço-vos um local virgem, inteira liberdade e dinheiro suficiente para todas as vossas necessidades. Disporeis de todos os materiais, de todos os homens, de todos os instrumentos de que necessiteis. Mas com uma condição: jurar-me que ficareis até a obra estar terminada, apesar da ameaça que são Llewellyn e todos os seus homens.

No rosto ávido do jovem, que o desejo tomara pálido como cinza sob a pele tisnada, os olhos brilhavam como topázios. Foi num murmúrio rouco que conseguiu dizer:

- Aceito ejuro!

Isambard atravessou a sala e postou-se diante dele, observando-lhe o rosto com uns olhos que não sorriam.

- Não tendes dúvidas. Sabeis do que sois capaz.

Não era uma pergunta. Isambard estava a ler naquele rosto e o que lia maravilhava-o.

- Quando podereis partir para Parfois? Tenho alguns assuntos a tratar em França, que é melhor concluir agora, enquanto ainda disponho do salvo-conduto da Cruz, mas, dentro de três ou quatro semanas, partirei de Calais. Gostaria que fosseis comigo.

- Isso dependerá de mestre Bertrand. Tenho de acabar o Calvário que comecei. - Agora, Harry recuperara o controlo da voz e esta tinha um tom firme e ardente. - Isso representa cerca de um mês de trabalho. Depois, se mestre Bertrand consentir em me libertar, como julgo que fará, irei convosco com todo o prazer. Só há uma coisa que quero pedir-vos: autorização para levar o meu irmão.

- Por certo que podeis levá-lo! Já vos disse que podeis escolher quem quiserdes. Se quereis pôr mais algumas condições, apresentai-as agora, antes de vos comprometerdes.

- Então, ouso pedir-vos que prometais só me despedir por um motivo: o de o trabalho que eu fizer não ser suficientemente bom.

- E, quanto a esse motivo, vós não experimentais nenhum receio - observou Isambard, espantado com a paixão e a segurança daquele jovem e com o enorme orgulho que fazia brilhar aqueles olhos verdes.

- Nenhum! Em Chartres, em Caen, em Bourges, vi as maravilhas e a força da criação de outros homens e ansiei por uma criação minha. Tudo quanto aprendi, enquanto labutava para cumprir os desígnios de outros homens, foi alimento para a obra que tenho dentro de mim. Tenho-a comigo há muito e há muito que venho pensando no assunto, desejando poder deixá-la ver a luz do sol. Se vo-la oferecer, não ficareis decepcionado.

- Acredito em vós, do fundo do coração.

- Há uma certa pedreira, senhor, onde posso ir buscar a pedra que quero, a pedra que eu sempre quis. - Harry falava em voz empolgada, que evocava alegremente uma recordação que o encantava. - É uma pedra de um cinzento delicado, com um grão pálido de âmbar, que solta reflexos dourados, quando lhe bate a luz do sol. A única dificuldade é que a pedreira fica muito perto da fronteira galesa.

- Não importa. Dar-vos-ei guardas suficientes e licença para vos abastecerdes na pedreira, enquanto durar a obra.

- Se enviardes correios para Inglaterra antes de partirmos, gostaria de mandar uma lista dos materiais de que vamos precisar de imediato. Poupar-nos-á tempo, quando chegarmos. Estacas e cordas para a abertura dos alicerces, correias de couro e madeira para os andaimes, tapumes, madeira para cimbres, chumbo, vidro... e transporte para tudo isto. Poderemos ganhar um ano, se aproveitarmos o Verão para reunir os materiais, pois passaremos o Inverno debaixo de telha, a talhar pedra, seja a tivermos no estaleiro. Podereis garantir-me carroças e animais de tracção suficientes?

- Tereis tudo quanto pedirdes. O meu intendente cuidará de que todas as vossas ordens sejam cumpridas, antes da nossa chegada.

- Que tipo de terreno irei encontrar?

- Rocha, já nivelada pelos vossos antecessores. Mas talvez necessiteis de nivelar uma área maior. Depende do vosso projecto.

- Excelente. Assentaremos as sapatas da alvenaria em rocha sólida. Não há melhores alicerces e poucos ou nenhuns ajustamentos teremos de fazer.

- Vejo que não tendes medo das incursões dos galeses - disse Isambard, sorrindo. - Não dissestes nem uma palavra sobre isso.

- Eu nasci naquela região da fronteira. As incursões dos galeses faziam parte da nossa vida. Nem mesmo todos os exércitos do rei Filipe me fariam voltar as costas a uma missão como a que me oferecestes, quanto mais um punhado de galeses selvagens. Prometo dar-vos o melhor de mim - acrescentou, com um enorme sorriso e erguendo subitamente o copo. - E dou-vos a minha palavra que não partirei antes de a igreja estar terminada. Brindemos a isso!

- E eu não vos privarei de todo o apoio que vos prometi, antes de ela estar terminada. Assim o juro.

Harry já levara o copo aos lábios e Isambard erguera já o seu, quando, de súbito, a mão que ostentava os anéis fez um gesto violento.

- Esperai! - exclamou, em tom duro. - Está tudo a ser aceite com demasiada facilidade e com demasiado ânimo leve para meu gosto.

Dito isto, poisou o copo na mesa e, em longas passadas nervosas, encaminhou-se para a janela e agarrou com força as cortinas, com os dedos secos e musculados. Sem voltar a cabeça, prosseguiu, num tom mais brando mas com grande solenidade:

- Devíeis ir para casa e dormir sobre este assunto, Harry Lestrange. Eu dei voz às vossas aspirações mais profundas e arrastei-vos comigo, mas Deus sabe que não deveria haver procedido assim. Foi mal feito ter-vos dito tudo de repente, logo hoje, quando a vossa gratidão ainda é recente, e tendo vós os olhos a fechar-se de sono. Quando me dais a vossa palavra, estais a dá-la a um homem duro, a alguém que não terá piedade, se não a cumprirdes. Prometo-vos todo o meu apoio, desde que façais jogo franco comigo, e a mais cruel intransigência, se me decepcionardes, por mais perdoável que seja a vossa falta. Sou como sou, não posso ser outro e, se entrardes ao meu serviço, tereis de vos submeter a mim, tal como eu sou. Não jureis nada esta noite! Voltai para vossa casa, pensai bem e vinde ter comigo amanhã.

- Não, meu senhor! - exclamou Harry, em voz forte e alegre. - A minha decisão está tomada. Pelo prémio que me propondes, seguir-vos-ia, mesmo que fôsseis o demónio em pessoa. Dou-vos a minha palavra, neste preciso momento.

Isambard afastara-se da janela e observava-o, de sobrolho franzido, numa expressão de vago espanto e desagrado, pois não estava acostumado a que lhe dissessem «não» de uma forma tão directa. Mas, no interior das órbitas profundas, os seus olhos mantiveram-se arrogantes e severos, enquanto Harry inclinava a cabeça para trás, despejava o copo e o poisava em cima da mesa.

- Estou ao vosso serviço, senhor. Juro pelo coração que me bate no peito, que me manterei ao vosso serviço e não procurarei o de mais ninguém, até a vossa igreja estar acabada. E, se vos enganar, podereis arrancar do meu peito este mesmo coração.

Seguiu-se um longo silêncio e, depois, Isambard aproximou-se lentamente da mesa, bebeu o conteúdo do seu copo e poisou-o suavemente ao lado do outro.

- Assim seja - concluiu.

 

Os vulgares boatos de Paris levaram o relato dos encantos e das audácias de Madonna Benedetta Foscari aos ouvidos de Isambard que, embora pouco dado a seguir modas, sentiu despertar a curiosidade. Um dia, no fim de uma longa conversa a três sobre as cartas e as requisições a enviar antecipadamente para Inglaterra, Isambard disse a Adam:

- Ouvi dizer que ela foi trazida como trofeu da Cruzada. Agrada-me a ideia de Veneza ter, afinal, perdido alguma coisa... uma perda que compensa tudo quanto acabou por ganhar, se é verdade o que se diz sobre essa senhora. Parece que, nos negócios que fez no Adriático, o velho Guiscard teve olhos para outras coisas, além do comércio. A senhora é tão deslumbrante como dizem?

- Ainda mais - garantiu Adam, sorrindo, sem sombra de desgosto ao recordar a única noite em que ela lhe concedera os seus favores.

Na verdade, obtivera mais do que alguma vez esperara, pois ela continuava a recebê-lo, algumas noites, pelo simples prazer de cantar com ele.

- E vós, Harry... também vos contais entre os seus admiradores?

- Dela só vi uma mão e um braço, senhor - respondeu Harry, com uma expressão ausente, debruçado sobre as suas listas de materiais. - E, quanto a mim, eram iguais a quaisquer outros.

- Nunca a vistes, depois do elevado preço que pagastes pelo privilégio? Isso tem de ser reparado! Tendes de nos apresentar a essa beldade sem par, Adam.

A ordem fora dada despreocupadamente, talvez mesmo por graça, mas, conforme diria Adam, quando regressaram à mansarda da ruelle des Guenilles, com um homem como Isambard, a prudência aconselhava obediência, mesmo tratando-se de uma brincadeira.

- É mais sensato fazer-lhe a vontade - comentou Apollon. - Conheço a sua reputação. Ele tem um feudo não muito longe da minha casa. Dizem que é um homem temível, que não se deve contrariá-lo e que é impiedoso com os seus servidores.

- Podes dizer o que te aprouver - respondeu Adam, sem se deixar impressionar. - Até hoje, ele tem-se mostrado bastante justo para connosco e não há dúvida que sabe escolher um mestre canteiro.

Harry não se encontrava presente e, por conseguinte, podia ser louvado.

- Seja como for - prosseguiu - estamos comprometidos com ele, para o bem e para o mal. E se ele quer divertir-se, nestas semanas, enquanto espera por nós, vou fazer-lhe a vontade e proporcionar-lhe pelo menos essa oportunidade.

- Fico muito ofendido por ires fazer por ele algo que ainda não te ofereceste para fazer por mim - disse Elie, erguendo os olhos dos livros e fitando-o reprovadoramente. - Somos amigos do peito e tu estás prestes a partir.

- É pouco provável que, um dia, venhas a dispor de meios que te permitam pagar-me ou mandar-me chicotear, meu amigo. Se assim fosse, satisfaria o teu desejo. Tens o caminho livre, depois de eu e o meu senhor deixarmos Paris. E sempre te dará tempo para cresceres um pouco - acrescentou Adam, brandamente, e cometendo a imprudência de tocar no cabelo de Elie, que enquanto estudava, ia torcendo os caracóis arruivados entre os dedos nervosos.

Com um gesto brusco, Elie fechou o livro e atirou-se alegremente ao amigo, baixando-se para lhe agarrar os joelhos com um braço, fazendo-o cair no chão. Sem desviar os olhos da corda do alaúde que, com todo o cuidado, tentava afinar, Apollon afastou-se do caminho de ambos, deixando-lhes espaço para se rebolarem pelo chão do quarto.

Em breve, pensou com tristeza, teria de procurar dois novos companheiros adequados para ocuparem as camas que Adam e Harry iriam deixar vagas. Mas não ia ser fácil substituir aqueles dois.

Na vez seguinte em que se apresentaram na Maison d'Estivet, Adam era portador de um convite.

- Madonna Benedetta Foscari envia-vos cumprimentos e convida-vos a beber um copo de vinho na sua companhia, amanhã às oito da noite, em sua casa. - E, sorrindo, acrescentou: - Ela forçou-me a contar-lhe a história toda e pede-vos que leveis convosco o «vosso petulante escultor». Foram estas as suas palavras. Na verdade, penso que pouco do que se passou naquela noite lhe terá escapado.

Isambard soltou uma gargalhada, com tal despreocupação que Harry ficou persuadido de que ele nunca encarara seriamente a hipótese de o desejo que expressara ser levado ao pé da letra. Não obstante, os assuntos que precisava de tratar em França estavam já resolvidos e o seu espírito, impaciente pelo regresso ao seu país, não se dava bem com a espera e a inacção. Talvez a mulher que servira de distracção a toda Paris pudesse ser para ele a diversão de uma noite.

- A dama é muito gentil - disse. - Teremos muito gosto em aceder ao seu convite.

- Que diabo te deu para me envolveres nisto? - perguntou Harry, sem qualquer gratidão, quando ficou a sós com Adam. - Preciso de acabar o traçado da minha janela leste e, agora, só me resta acompanhar Isambard e perder uma noite.

Foi neste estado de espírito que se apresentaram, com Adam, em casa de Madonna Benedetta Foscari: um com uma vaga curiosidade, o outro abertamente desagradado por haver sido afastado do seu trabalho, que, para ele, era mais interessante do que qualquer mulher ao cimo da Terra. Um Adam confiante levou-os à presença dela, ao quarto do piso superior, de onde ela deixara cair as violetas que haviam anunciado os seus breves mas graciosos favores. Os belos lucros dos negócios de mestre Guiscard com Veneza haviam guarnecido as paredes da casa com tapeçarias orientais e coberto o chão de tapetes e peles trabalhadas. Havia almofadas nos assentos, a cobertura da mesa era de damasco e os copos de vidro fino e brilhante. E a mulher que se ergueu do assento perto da janela e atravessou a sala para os receber tinha o porte de uma abadessa.

- Sede bem-vindo à minha humilde morada, senhor de Parfois.

- Sois muito bondosa, senhora, pois, não sendo eu merecedor das vossas atenções, tenho grande precisão da vossa indulgência, já que em breve irei roubar-vos o vosso menestrel.

- Foi o que ele me disse - aquiesceu ela, estendendo-lhe a mão. De que estaria Isambard à espera, para os seus olhos perscrutarem

aquele rosto com tamanho e tão intenso interesse? As cortesãs mais nobres e mais caras deviam ter sido sempre sensíveis aos recursos inesgotáveis da sua bolsa mas, a avaliar pelo enorme volume da bagagem que trouxera consigo do Oriente, ele preferira comprar espadas magnificamente temperadas, animais exóticos, esculturas refinadas, jóias bárbaras e relíquias de santos. Ademais, ele viera até ali a convite dela, por cortesia e movido por uma curiosidade que nem sequer era muito profunda. Não obstante, os olhos dele ficaram presos aos dela e o seu rosto apresentava a gravidade e a paixão que habitualmente manifestava quando contemplava obras de arte, intransigente na sua apreciação, acutilante nas críticas, rejeitando tudo quanto não fosse único. E ela não foi rejeitada.

- E vós - acrescentou Benedetta, dirigindo-se a Harry - sois aquele que quis melhorar “Dum estas inchoatur”.

Harry esperara ouvir uma voz quente, sensual, plena de artifícios mas a voz dela era límpida e franca como a de uma criança, tão límpida que parecia espantosamente alta na sala silenciosa. O timbre era baixo e a sonoridade era a da prata, não a do ouro.

- Terminastes de uma forma bastante brutal - acrescentou ela.

- Eu sei - admitiu Harry, um tanto desconcertado e sem saber se deveria sentir-se um pouco ofendido ou rir-se de si próprio. - Estava a lutar contra alguém mais forte que eu. E por certo haveis reparado que não sou o Adam.

~ Não, vós não sois nenhum Adam - disse Benedetta.

- Todavia, vós haveis rido.

Por que estranhos poderes conseguia ela cativar o espírito mais reticente, um espírito que de bom grado teria mantido a sua reserva na presença dela e que, num silêncio feliz, teria continuado a pensar na curva precisa de um arco e não no desenho subtil do rosto dela? Tudo nela era, pelo que tinha de inesperado, tão provocador como a sua voz cândida e franca, que não pendia para a lisonja. Esperava-se dela que fosse doce e extravagante. Seria infantilidade esperar que uma cortesã assim fosse? A mulher que se encontrava diante de si era altiva e inacessível como um homem, abordável como um homem. Harry esperara não encontrar nela nada digno de admiração, além de um corpo que teria forçosamente de ser belo. Mas eis que ali estava ele a interrogar-se, quase com angústia, sobre o enigma representado pelo espírito e pela mente daquela mulher e a olhar para o celebrado e resplandecente invólucro de carne que lhe servia de morada.

Tinha precisamente a mesma altura que ele, ou seja, uma altura média para um homem mas invulgar numa mulher. Os olhos de ambos cruzavam-se ao mesmo nível, atentos, perscrutadores, igualmente intensos. Ela tinha o porte imponente de uma torre, grande e nobre, e movimentava-se com uma graciosidade vigorosa que, docilmente, se conformava com o espaço confinado, limitado por aquelas paredes, mas que, não obstante, sugeria que os domínios da sua liberdade eram os grandes espaços, a imensidade. Adam preparara-o para os cabelos ruivos escuros, com reflexos carmim e de um brilho ardente, e a sua descrição fora por demais completa. Mas ninguém lhe dissera nada sobre a brancura radiosa da testa alta, sob a coroa dos cabelos, nem acerca da garganta, sobre a qual os caracóis do cabelo lançavam reflexos que a faziam brilhar como um límpido copo de vinho. Ninguém o avisara de que, sob a linha direita das sobrancelhas, os olhos dela eram tão afastados, nem assim tão rasgados, num desenho preciso, e de um cinzento puro, que a penumbra tingia ligeiramente de violeta. O queixo talvez fosse demasiado arredondado para corresponder aos cânones da beleza e a boca demasiado carnuda, embora maravilhosamente desenhada, num modelo antigo de curvas bem delineadas e resolutas. O corpo e o rosto eram os de uma mulher mas o olhar que se cruzava com o de Harry era o olhar de um homem, seu oposto e seu igual. Harry sentiu o coração e o espírito atraídos pelos dela, embora o sangue e o corpo se mantivessem serenos.

- E a vossa canção? - prosseguiu Benedetta, deslocando-se, num movimento decidido, para os guiar para os assentos dispostos para os receber. - O Adam disse-me que era obra vossa. Decerto terá aberto outras portas além da minha.

- Que eu saiba não. Quando a ofereci ao Adam, renunciei aos meus direitos sobre ela.

- E eu só a cantei duas vezes - interveio Adam. - E, de ambas, para vós. Não a oferecerei a mais ninguém.

Adam mostrava-se à vontade naquela casa: à maneira de um primo ou de outro parente e aceitava com bom humor esse estatuto. Depois de todos se sentarem, assumiu o papel de escanção, enquanto observava com curiosidade o rosto de Isambard. Agradava-lhe ver que a beleza que o ofuscara também cegava outros.

- Ainda não ouvi essa canção - disse Isambard, sem desviar os olhos de Benedetta, com o seu característico meio sorriso a erguer-lhe os cantos dos lábios. - E ele não fez nenhuma para mim.

- Nem para mim - esclareceu Benedetta calmamente. - Aquela foi feita para o irmão e a paixão que descreve é puramente espiritual.

Seja como for, é uma bela canção. Por certo que o Adam não se recusará a cantá-la para nós. Pegai na minha cítara ou no alaúde, se preferirdes.

- Ele não tem mão para isso - disse Harry, estendendo a sua para o instrumento. - Eu toco.

Afastando a cadeira da mesa, debruçou-se ternamente sobre a cítara, para a afinar. Depois, como os braços da cadeira lhe dificultassem os movimentos, levantou-se e foi sentar-se num tamborete, perto da janela. A melodia brotou sob os seus dedos, suave, lamentosa, sussurrante. O perfil imperioso de Isambard, recortado contra a luz da vela e reflectido nos copos que se encontravam sobre a mesa, apresentava uma rigidez quase irreal, como se sustivesse a respiração, como se se houvesse transformado em pedra, como a máscara de mármore que trouxera da Grécia, um fragmento quebrado de um belo deus.

Adam cantava numa voz fresca semelhante ao canto da cotovia, sem vestígios da nostalgia do amor que a canção sugeria. Ela tem razão, pensou Harry. A paixão é puramente espiritual. Não obstante, era uma bela canção.

Mas, quando o ramo estremecer E o ardor do Verão forja passado, Então, serei eu, nu e desprezado, Quem ireis por fim amar e receber.

E quando o Outono de ocre vos tingir, Vós, árvore do céu, de radiosas ramadas Deixai cair vossas maçãs douradas E inclinai os vossos seios sobre mim.

De súbito, Harry sentiu nas palmas das mãos o calor do Verão dos amantes e a nota final saiu-lhe dos dedos fora de tom. O calor subiu-lhe do corpo para o rosto. Não era por causa dos seios dela: podia olhar para eles sem emoção ou, se não sem emoção, sem se perturbar. Não a desejava. A presença dela tornava-o maior, a beleza dela encantava-o, junto dela sentia-se em paz, como se se encontrasse junto de um homem da mesma envergadura que ele. Mas havia nela vislumbres de outras mulheres, algumas com quem se cruzara só uma vez, outras que ainda nunca vira, outras que conhecera, abandonara e esquecera sem se dar conta. Aquilo que ela era ou podia ser para tantos outros homens, outra mulher viria a ser para ele. Ela era a esperança dessa plenitude, a promessa, a quase certeza e era, também, o anúncio da terrível perda que ele sofreria, se deixasse escapar a maré da Primavera. Harry deixou correr os dedos trementes sobre as ilhargas da cítara, cuja madeira polida era fresca e suave sob as palmas quentes das suas mãos. Porque se sentia de súbito tão dolorosamente consciente dos seus sentidos, como se o próprio desejo fosse algo que se pudesse desejar?

- Tocais bastante bem - felicitou Isambard. - E tendes uma bela maneira de lidar com os versos. Estou a ver que descobri uma Fénix.

- Não tenho praticado muito - respondeu Harry. - Não toquei muito bem. Mas é uma bela melodia. Já que, na outra noite, estraguei Dum estas inchoatur, quereis ouvi-la hoje, sem alterações da minha lavra?

Insensível à inquietação que reinava na sala, Adam cantou. Como devia ser bom e agradável ser como Adam e viver tão bem com o presente, como se futuro e passado não existissem na realidade!

- É a mesma métrica - disse Benedetta. - A verdade é que o senhor de Breauté nunca foi um pretendente muito original. Pediu emprestada não apenas a canção mas também a interpretação e nem sequer agradeceu aos cantores.

- Uma vez que havia pago a representação, por certo a considerou como propriedade sua - observou Isambard.

- Tal como Paulus, com os seus poemas - disse Benedetta. - E, vendo um lampejo de divertimento brilhar nos olhos dele, acrescentou: - Espanta-vos que eu seja capaz de vos acompanhar nas obras de Marcial? Por eu ser uma mulher? Ou por ser o género de mulher que sou? Estarei enganada ou pensáveis nestes versos:

«Carmina Paulus emit, recitai sua carmina Paulus. Nam quod emas possis lure vocare tuum.»

Como poderemos traduzi-los para o vosso Inglês materno?

«Paulus paga os versos que lê em nome de Paulus. Porque não há-de o comprador exigir aquilo que comprou.»

- Marcial é um autor árido para uma mulher - comentou Isambard. - E nós somos menos generosos do que deveríamos na educação das nossas mulheres. Não vos deve desagradar apresentardes-vos como uma excepção.

- Eu tinha dois irmãos dotados e aprendi ao mesmo tempo que eles. Não foi uma escolha planeada: aconteceu. Eu era curiosa e segui-os passo a passo, quase sem eles se darem conta. Preferiríeis que eu vos cantasse algo de Catulo, do nosso Catulo... o estrangeiro do Norte? Esse, sim, é um poeta próprio para as mulheres! Uma vez, íui a Sirmio. As oliveiras, o lago e o longo braço de terra estão tal qual como ele os deixou.

Benedetta pegara no alaúde e levara-o consigo para o assento almofadado, incrustado no vão da janela. Os seus dedos compridos eram rápidos e impetuosos sobre as cordas, hábeis mas desatentos. Entre a cascata de notas, Harry ouviu, aqui e ali, ranger uma corda, como se ela tivesse o espírito distante daquilo que fazia e deixasse as mãos agir sozinhas.

«Ille mi par esse deo videtur, Ille, sifas est, super are divos, Qui sedens adversus identidem te

Spectat et audit Dulce ridentem...»

- ...embora ele tenha ido buscar isto a Safo, incluindo a métrica. Conheceis o Pervigilium Veneris, escrito para a festa nocturna da deusa, em Hybla, na Sicília? É muito bonito, dentro do género.

«Cras amet qui nunquam amavit, quique

amavit cras amet! LHa cantai, nos tacemus. Quando ver

venit meum? Quando fiam ceu chelidon ut tacere desinam?...»

- «Ela canta e nós ficamos mudos. Quando virá a Primavera? Quando serei eu como a andorinha, não mais condenada ao silêncio?» Uma versão curiosa, que faz de Procne, a andorinha, aquela que canta e de Filomela a que não tem voz. Muitos estudiosos têm especulado sobre o significado desta troca mas eu penso que ele era humano e que se tratou simplesmente de um engano.

«Que continue a amar quem ama! Que quem não ama

aprenda a amar! A aridez de outrora o amanhã vai arredar.»

Benedetta passou os dedos sobre as cordas com violência e, de súbito, silenciou-as sob a palma da mão.

- Estou convencido - disse Isambard, lançando-lhe um sorriso sombrio, por cima do copo de vinho. - É inútil continuardes a aturdir-me. Sois tão erudita quanto bela. E, na verdade, se fordes por diante nos clássicos, deixar-me-eis para trás. Falai-me antes de vós e eu renunciarei a Vénus. Celebrarei com alegria o Pervigilium Benedettae.

Sem dizer palavra, Harry embalava a cítara. O seu maior desejo era estar longe dali. Aqueles dois não tinham precisão dele nem de Adam para travarem aquele duelo de versos de amor e citações latinas, como dois eruditos enfadonhos, cada um deles a tentar ultrapassar o outro. Todavia, não era capaz de acreditar que ela estivesse a exibir seriamente os seus conhecimentos. Havia algo na voz e nos modos dela que zombava dos seus próprios floreados. Parecia mais uma mulher relendo as velhas cartas de um amor juvenil e extinto, numa voz terna e irónica, antes de as rasgar e lançar, sem remorsos, no lume. Uma pequena pira, para pôr termo a uma fase, uma loucura, um tempo perdido. Um fogo para queimar as ervas daninhas de um campo prestes a ser de novo semeado e a dar novos frutos.

Agora, os dois falavam animadamente e com inteligência de Veneza e do Oriente, da Cruzada e das suas consequências, das cortes e dos mercados e dos delicados problemas dos reis. Benedetta abandonou o alaúde em cima das almofadas e encaminhou-se para a mesa para servir mais vinho mas Adam adiantou-se-lhe, encheu os copos e ofereceu doces aos presentes. Harry permitiu ao seu espírito retirar-se para o seu próprio mundo onde, naquele momento, deveria estar a manejar os seus lápis e outros instrumentos, fazendo novos desenhos para juntar aos que já havia terminado.

Sabia com exactidão aquilo que queria, havia quase sete anos que trabalhava mentalmente nisso e a configuração do terreno de Parfois só viria alterar pequenos pormenores. Faltava-lhe ainda ver a área de que poderia dispor mas nem a beleza nem o esplendor exigem grandes dimensões. Aquilo que desejava era luz, luz e espaço, a pedra a brotar das fundações em direcção à cúpula, como uma árvore que vai crescendo do solo. Nada de opressão, de obscuridade, nada de colunas grossas e pesadas nem de tectos rebaixados com o peso esmagador da culpa. Na sua mente, a estrutura era clara. Nada de absidíolos: em vez disso, um remate quadrado a Leste, para obter uma parede inteira de luz a abater-se sobre o altar-mor. Transeptos baixos e sólidos, naves laterais majestosas, clerestório alto e todo envidraçado, sobre um trifório pouco profundo. A fachada ocidental, dotada de um portal imponente e profundo, encimado por uma enorme janela recuada, em silharia, através da qual, durante todo o dia, a luz poderia desenhar harpejos sobre cordas de pedra, dando ao ar acinzentado do norte o brilho e a transparência do ar cintilante do sul. Sobre a fachada ocidental, duas torres menores, estreitando-se em delicados dedos de pedra. Sobre o transepto, a torre principal, como na Normandia, ligando todo o edifício, enraizando-o de forma inabalável na terra e elevando-o a direito, consigo, em direcção ao céu. Era naquela tensão que residia o sentido da vida e, a par da luz, o que Harry mais desejava era essa tensão - a dualidade da carne e do espírito, do humano e do divino - a tensão do Homem no seu caminho até Deus. Uma torre nobre, alta, terminada em ponta, com as suas longas superfícies tão subtilmente estriadas e moldadas que, a cada hora do dia, a luz poderia dar-lhe mil formas diferentes de majestade e beleza. Imutabilidade e mudança, diversidade e unicidade, naquela pedra cinzenta e dourada, que brilhava na sua memória como uma... como havia sido a frase de Adam?... uma mina de sol. Não há crescimento nem fecundidade, apenas elevação, nos opostos irmanados que são a escuridão e a luz, a terra e o céu. Os meus pés são raízes na terra, a minha fronte tende para o sol. A torre ancorará à rocha a minha igreja e fará dela uma firme seta de luz, apontada para o céu.

No interior, três naves; não de linhas austeras, direitas, do solo à abóbada e, evidentemente, sem esses capitéis coríntios adulterados, que me deixam tão frustrado. Triviais como ornamentos e inúteis como pontos de paragem do olhar que se eleva... não, decididamente não. Capitéis com vida, como as flores, os animais, os homens, tudo quanto nasce da terra e se ergue para o sol. Capitéis que emergirão vigorosamente dos pilares e se erguerão para as alturas, impelindo o ábaco tão alto quanto possível, estirando-se para sustentar a abóbada, como árvores em crescimento. Não uma linha simples mas um único impulso ininterrupto, uma emanação de energia e de fé, tenso como a corda de um arco e tão estável como a curva do arco-íris.

Onde há dúvida ou instabilidade não há beleza. A sensação de desequilíbrio é a morte da arte.

Erguida pelo vento, a cabeleira daquela mulher poderia sustentar um arco sobre as suas enormes tranças. Como as chamas oscilantes a que tanto se assemelhava. Ou como a rebentação de uma vaga. Tudo quanto sobe, tudo o que se alonga e exulta, um braço e uma mão estendidos para o ábaco» a cauda arqueada de um esquilo, uma criança que salta, uma folha de feto a desenrolar-se, a haste trepadora de uma videira, todas as folhagens que se voltam para o sol. E o orgulho desmesurado do meu senhor, essa presença quase visível que ele gera à sua volta, como a sombra que projecta neste momento, ao debruçar-se sobre as velas.

Na Maison d'Estivet, todos os membros da sua comitiva têm medo dele e até os seus cinco escudeiros, três dos quais de sangue tão nobre como o dele, o receiam. Porquê? Não vejo nele nada assim tão aterrador.

Para além de todos aqueles seres em ascensão, também anjos em queda, como o meu primeiro anjo, com os cabelos e as vestes a esvoaçar ao sabor da aragem provocada pelo próprio voo. Ele podia servir de modelo para um demónio em ascensão ou para um anjo em queda. Ou talvez para ambos. Tem uma bela cabeça.

A mulher fez um movimento com a mão e com o braço, que chamou a atenção de Harry para ela. Que haveria nela que se cravava tão profundamente nas cordas da sua memória, arrancando-lhes ecos havia muito esquecidos? Todos os seus gestos evocavam reminiscências de beleza, como se integrasse em si todas as mulheres que ele conhecera ou vira ao longo de toda a vida. A textura e a suavidade da sua pele recordavam-lhe a mãe. Sentia que já ouvira aquela voz, havia muito, muito tempo atrás, longe dali, uma voz límpida, cândida, directa, como os olhos dela. E aqueles olhos afastados. De uma têmpora à outra, a face tinha uma largura quase idêntica ao comprimento, entre a testa e o queixo. Quais são as verdadeiras proporções da beleza? Em que reside a beleza?... naquilo que está à vista ou naquilo que nos ocorre quando olhamos para ela? E poderão as duas ser transpostas em simultâneo para a pedra?

Tenho de fazer o retrato dela, antes de partirmos, se ela me deixar, pensou Harry. Gostava de saber onde já ouvi esta voz. Quem me dera saber o que tem de tão comovente, porque me parece mais recordá-la do que ouvi-la, como se, quando ela fala, estivesse a ouvir outra pessoa, pronunciando palavras que ela nunca disse.

- Harry! - chamou Adam, alegremente, tocando-lhe no cotovelo. - Adormeceste? A Madonna Benedetta está a falar contigo.

Harry emergiu dos seus pensamentos, ergueu a cabeça e os seus olhos cruzaram-se com aqueles olhos cinzentos, tão grandes e tão límpidos que lhe pareceu ver a sua própria imagem reflectida neles. Fora nesse momento, enquanto ela falava com ele sem que a ouvisse, que Harry reconheceu a qualidade que aquela voz tinha para si: a sinceridade intimidante de uma criança, uma inocência ousada e impiedosa. Havia muito tempo, uma criança falara-lhe assim. Havia tanto, tanto tempo que não pensava em Gilleis.

Abriu a boca para pedir desculpa pela distracção mas, quando ia começar a falar, a expressão de Isambard deixou-o sem voz. Quando ela não estava a olhar para ele, os olhos rodeados de sombras de Isambard brilhavam ao contemplá-la. Na máscara dourada que era o seu rosto, espelhou-se por instantes o fulgor cru do desejo. Depois, as pálpebras pesadas fecharam-se, ocultando aquele fogo, e a cabeça de bronze ensombrou-se.

A febre da partida instalara-se havia muito tempo na ruelle des Guenilles e na Maison d'Estivet mas só mais tarde chegou às oficinas fervilhantes de actividade, poeirentas e populosas de Notre-Dame, onde revelou uma sucessão de curiosos objectos pessoais havia muito esquecidos. No canto de uma arca, para onde fora por certo atirado havia mais de um ano, Harry encontrou o velho bornal de pano, no qual, nove anos antes, trouxera de Inglaterra a sua pouca bagagem. Pegou nele e sacudiu-lhe o pó, subitamente comovido ao olhar para trás e recordar, com afecto e curiosidade, o rapazinho que o transportara consigo. Bem no fundo do bornal, os seus dedos descobriram algo que parecia uma moeda mas, quando o tirou para fora, reconheceu a medalha, quase lisa de tanto uso, com a imagem da Virgem e do Menino gravada na face. Ainda estava presa ao fio de ouro que Gilleis lhe pusera ao pescoço, no barco de transbordo, antes de ele subir para bordo do Rose ofNorthfleet. Na altura, não prestara muita atenção mas, agora, via que era um dos fios de ouro com que ela costumava enfeitar as tranças curtas e pretas. Com a medalha na mão, Harry foi subitamente assaltado por uma onda de nostalgia que lhe encheu os olhos de lágrimas. Quantos anos teria ela agora? Dezanove! Uma mulher! Continuaria a acompanhar o pai nas suas viagens aos Midlands para comprar tecidos? Era pouco provável, pensou: agora, devia estar a governar a casa de Londres e ter outras responsabilidades. Até podia estar casada e a governar a casa de outro homem. Tentou, em vão, imaginá-la como mulher adulta. A memória devolvia-lhe persistentemente a imagem da menina encantadora, de olhos grandes, boca em flor e espessas tranças pretas, curtas e espetadas. Chorara porque ele nunca arranjava tempo para brincar com ela. Lembrava-se de, sentado no rebordo de pedra da janela da casa de hóspedes, lhe haver pegado ao colo e tentado confortá-la, resistindo à tentação de a sacudir. Depois de tudo quanto ela fizera por ele e por Adam, bem podia ter arranjado algum tempo para estar com ela, pensou, cheio de remorsos.

Nem sequer reconhecera ou dera o devido valor ao fio de ouro dos seus cabelos.

Harry segurava ainda a medalha, quando um dos aprendizes foi chamá-lo.

- Está lá fora uma pessoa à vossa procura, mestre Henry.

- À minha procura? O que é que ele quer?

- Não é ele, é ela - corrigiu o rapaz, não permitindo que lhe chegasse aos lábios o sorriso que lhe brilhava nos olhos. - Cuidei que era melhor não lhe perguntar o que queria... Fiz bem?

- É um bom princípio - respondeu Harry, fazendo menção de lhe puxar a orelha pelo descaramento, ao que o rapaz fingiu esquivar-se.

- É bonita?

Sem necessidade de palavras, as sobrancelhas arqueadas e os olhos revirados informaram-no de que assim era. Todavia, as únicas visitas que Harry podia prever eram as da governanta do cónego ou da criada de mestre Bertrand. Por isso, ficou atónito, quando saiu da oficina e deparou com Madonna Benedetta que, segurando sobre o braço a saia do seu brial, avançava sozinha por entre as pilhas de pedras, esplendidamente incongruente e com total à vontade. Ela viu-o e foi ao seu encontro. Os seus passos eram tão directos quanto a sua voz.

- Desejais falar-me, senhora? Estou ao vosso dispor.

- Não deveria interromper o vosso trabalho - disse ela, naquela voz clara que, agora, evocava em Harry um eco pleno de significado.

- Mas não o farei por muito tempo. Todavia, dentro em breve, não disporei de novas oportunidades de falar convosco, pois soube por Lorde Isambard que partireis de Paris com ele, daqui a duas semanas. Não é verdade?

- Assim é. Estamos quase prontos. O mestre Bertrand teve a bondade de nos libertar dos nossos compromissos, a mim e ao Adam, e quanto mais depressa chegarmos a Inglaterra, melhor será, pois não posso concluir os meus planos sem ver o terreno. Perdoai-me por não poder proporcionar-vos maior privacidade nem oferecer-vos com que vos refrescardes...

- Não é necessário - respondeu ela, com simplicidade. - Mas gostaria muito que me mostrásseis o vosso Calvário. Ainda não vi nenhuma obra vossa.

- De bom grado! Sabeis que está acabado? - perguntou, enquanto a conduzia até à oficina, sob o alpendre deserto e silencioso. - O meu senhor Isambard manteve-vos informada? Penso que... vos visitou várias vezes.

- Com efeito - respondeu ela, com uma ponta de ironia na voz mas, também, com uma certa secura.

E, após uns instantes de silêncio, durante os quais nem sequer olhou para as figuras de pedra, acrescentou:

- Mas vós não.

Harry não sabia o que responder àquele reparo e, por um momento, ficou calado, tentando desesperadamente adivinhar o que pretenderia ela.

- Eu era... esperado? - perguntou por fim, num tom hesitante.

- Esperado? Não, isso não. Não me deveis nada. Digamos antes que eu desejava a vossa visita.

Voltou-lhe as costas e caminhou lentamente à volta do Calvário. O seu olhar inteligente e perspicaz poisou sobre o Cristo morto, um peso suspenso das mãos perfuradas, tendo, de um lado, a Virgem e São João e, do outro, as Santas Mulheres, figuras imóveis e dolorosas, terrivelmente reservadas, cada uma delas um poço de solidão, fechado a qualquer forma de consolo. Tocavam-se umas às outras mas mantinham-se irrevogavelmente separadas.

- Então, visto que não fostes ter comigo, vim eu ter convosco - acrescentou Benedetta, sem interromper a contemplação sonhadora. - Não de propósito para ver isto mas, de qualquer modo, estou contente por o haver visto. Como foi que aprendestes a compreender tão bem o sofrimento? Esse saber é fruto da vossa experiência ou deve-se a um esforço da vontade e da imaginação? A maior parte dos Cristos esboçam apenas o gesto simbólico dos moribundos. O vosso passou pelo longo processo de uma execução cruel.

- Terei exagerado? - perguntou Harry, com verdadeira ansiedade.

- Não. É assim que deve ter sido. Estou certa de que Ele não foi poupado a nada. E vós deixastes que Ele conservasse a integridade do Seu espírito. Está tudo lá, para ser visto, mas Ele não nos agride com a Sua dor. Somos livres de escolher se queremos ver ou se passamos ao lado. Foi horrível mas Ele suportou tudo. Não há lugar para a piedade.

- Reconfortais-me - disse Harry. - Mesmo que não haja sido essa a vossa intenção. Mas não é verdade que eu compreenda o sofrimento. Aqui, tentei explicar a mim próprio como pode um homem passar por tamanha agonia e continuar a ser um homem. Morto, talvez, mas intacto.

- Foi isso que Ele conseguiu.

- Se assim for, então, pelo menos, fui bem sucedido. Mas eu sofri apenas em imaginação e continuo sem saber se seria capaz de suportar o suplício da carne e manter-me incólume. A imaginação não basta. Talvez aqueles que nunca tentaram imaginá-la suportem melhor a prova da dor.

- É natural recearmos as nossas fraquezas humanas mas não é bom pensarmos muito nisso antes de a questão se pôr - disse Benedetta. - Se não podemos imaginar plenamente a dor, também não podemos imaginar a totalidade dos recursos de que dispomos para a enfrentar e superar. Pensais na verdade que poderíeis haver insuflado nesta escultura algo de que carecêsseis?

Harry sorriu.

- É uma questão artística muito complicada e não estou habilitado para a debater.

Durante mais alguns minutos, Benedetta continuou a observar o Calvário. Do alto, por cima das suas cabeças, através das passadeiras dos andaimes, chegava-lhe o som das vozes distantes dos pedreiros.

- As pessoas não vão gostar - opinou, abanando a cabeça. - Não são convidadas a fazer parte da cena e isso não lhes agradará. A última coisa que querem é ser desafiadas a pensar.

De súbito, desviou os olhos da escultura e voltou-se para o fitar de frente.

- Harry!

Usara o seu nome próprio com uma familiaridade e uma autoridade que Harry supôs terem origem no facto de ter ouvido Isambard utilizá-lo livremente.

- Deveis saber, Harry, que género de vida hei levado, dispondo de mim mesma e dos meus bens como me apeteceu, aceitando o que me era oferecido, quando me apetecia, e dando, quando me agradava dar. Não me envergonho disso e não defendo o que não precisa de ser defendido. Não vejo nada de desonroso em uma pessoa dispor a seu bel-prazer daquilo que lhe pertence. E, até agora, fui inteiramente dona de mim própria. Mas passa a ser desonroso delapidar essa riqueza, quando ela deixa de nos pertencer. Desde a noite em que fostes a minha casa com o vosso senhor, Harry, a minha porta passou a estar fechada à noite e a minha cama solitária. Não voltarei a entregar a outros homens aquilo que deixou de ser meu e passou a ser de um único homem.

Benedetta aproximara-se e sondava, com um olhar cândido e orgulhoso, o rosto perturbado que se encontrava diante de si. Harry não compreendia. Pensava que ela estava a falar de Isambard e perguntava-se que precisão teria ela de um confidente como ele, se de facto era isso que pretendia.

- Seja o que for que queirais pedir-me, senhora... - começou, num tom hesitante.

- Não vou pedir-vos nada. Estou a oferecer-vos uma coisa... eu mesma. Eu, por inteiro, para ser vossa sem reservas, vossa para sempre. Se me quiserdes, ser-vos-ei fiel enquanto viver, nunca mais conhecerei outro homem nem amarei mais ninguém. Se não me quiserdes, dizei-mo claramente, pois sou merecedora da vossa franqueza, e não voltarei a incomodar-vos com o meu amor.

Harry ficou atónito, sem fala, a olhar para ela de boca aberta. Sentia-se incapaz de pensar. Madonna Benedetta estava por certo a troçar dele. E ficou furioso por ela o fazer naquela voz clara e franca, naquela voz de criança, tão doce para os seus ouvidos. Apertada na mão esquerda, a medalha de prata já gasta quase lhe cortava a palma da mão.

- Não posso acreditar nisto! - explodiu, abanando a cabeça, num gesto incontrolado de cólera. - Só me vistes uma vez, não sabeis nada de mim.

- Sei tudo quanto preciso de saber e mais do que pensais. O curso da minha vida mudou, no momento em que entrastes na minha casa. Mesmo antes de vos ver, a vossa voz já perturbara a minha paz. O Adam é o Adam - acrescentou, com o vislumbre de um sorriso a brilhar-lhe fugazmente no olhar - e nenhuma mulher teria a coragem de o magoar. Mas foi a vós que eu abri a porta.

Podia ter estendido a mão e tocado nele mas não o fez. Era a Harry que cabia aceitá-la ou rejeitá-la.

- Conheço-me - prosseguiu. - Sei que não posso voltar atrás. No momento em que vos vi, o meu coração prendeu-se a vós e há demasiado tempo que sou dona do meu coração para agora o questionar e deixar de confiar nele. Cuidais que sou uma mulher capaz de se enganar a si própria? Ou sem experiência? Não escolhi amar-vos. Quem, senão um tolo, alguma vez escolhe amar? Mas a verdade é o que é e eu reconheço-a. Nem vós podereis mudá-la. Ainda que me rejeiteis, não podeis negar-me o direito de vos amar. Amar-vos-ei enquanto respirar, quer vós queirais ou não, quer eu queira ou não. Sei reconhecer o absoluto, quando deparo com ele, e sou uma mulher prática, uma mulher que não perde tempo a lutar contra Deus.

Viu a dúvida e a tristeza ensombrar o rosto dele, viu até vestígios de uma insegurança infantil e a sua expressão suavizou-se, num sorriso simultaneamente terno e irónico.

- Não receeis. Não vim suplicar. Vim para vos dar aquilo que é vosso mas, se não o quiserdes, levá-lo-ei de volta. Não me deveis nada. Nada vos peço, a não ser talvez a graça da vossa confiança, e que faleis verdade, como eu falei verdade. Olhai para mim e dizei o que tendes a dizer. Vereis que respeito a minha promessa.

Harry levantou a cabeça e encarou-a de frente. Havia, realmente, considerado o tipo de evasivas a que um homem podia recorrer para se furtar a uma situação tão estranha: uns fracos protestos de respeito e admiração, destinados a mandá-la embora apaziguada, sem lhe fazer quaisquer promessas, até ser salvo pela partida para Inglaterra. Mas pô-las de lado, pois ela merecia melhor do que isso. Ao encontrar os seus olhos plenos de orgulho e coragem, voltou a sentir, violentamente, o prazer que experimentara aquando do primeiro encontro, por estar na sua presença e reconhecer nela um ser igual. Nada do que dissesse ou fizesse poderia alterar esse equilíbrio. Devia-lhe a verdade, a ela e a si próprio. E foi com verdade que disse:

- Não vos amo. Deus sabe que seria o mais feliz dos homens, se o destino me houvesse levado a amar-vos. Mas tal não aconteceu. Agradeço-vos, do fundo do meu coração, a magnificência da oferta que me fizestes mas não posso aceitá-la. Não vou fingir uma paixão que não sinto. Não vos amo nem vos desejo.

Benedetta não baixou os olhos e a expressão do seu rosto não se alterou. Ficou em silêncio por instantes, contendo a dor, as mãos imóveis cruzadas sobre o peito, e viu os olhos claros de Harry suavizarem-se, sob a testa ensombrada. Ao negar-se-lhe, ele dera-lhe um pedaço do seu coração. Harry sentiu esse pedaço passar de si para ela e ficou aliviado e feliz por a generosidade não vir apenas da parte dela.

- Não me enganei a vosso respeito - disse ela, ao cabo de um longo momento, numa voz doce e estranhamente satisfeita. – Pelo menos, ao fim de tantos anos de liberdade, coloquei demasiado alto as minhas exigências. Peço-vos que volteis a ser generoso na vossa honestidade e me digais com franqueza se vos sou totalmente indiferente. Se for esse o caso, livrar-vos-eis de mim para sempre.

Harry ergueu a cabeça, num movimento brusco, e a luz iluminou os seus olhos espantosamente verdes. Algumas palavras apenas, pensou, palavras difíceis de pronunciar e mais difíceis ainda de ouvir, e ambos seremos livres. Ela ficará livre de mim para sempre, e eu dela, pois o seu espírito e o seu coração não poderão manter-se frios para toda a vida e, dada a natureza do ser humano, um dia há-de esquecer-me. Só preciso de a ferir agora e ambos ficaremos libertos. Mas, quando abriu os lábios, as palavras não saíram. Não podia fazê-lo. Essa mentira era tão desprezível quanto a outra. Entre ele e Benedetta, as mentiras eram indignas e inconcebíveis.

- Só uma pedra poderia sentir indiferença por vós - disse. - A vossa beleza encanta-me, presto homenagem ao vosso espírito e admiro a vossa coragem. Gosto muito de vós, Madonna Benedetta, mais do que muito. Não finjo aquilo que não sinto nem nego aquilo que sinto. Se houvesse agradado a Deus que vos amasse, considerar-me-ia o mais feliz dos homens e, só de contar com a vossa fé e com a vossa confiança, considero-me abençoado.

Então, ela tocou-lhe, por um instante: apenas o aflorar dos dedos sobre o peito dele, num gesto indescritívelmente eloquente de gratidão e aceitação.

- Ouvir isso faz de mim uma mulher rica - disse. - Não voltarei a falar-vos de amor, a menos que o desejeis. Juro, todavia, que aquilo que vos pertence será sempre vosso e, se um dia o desejardes, bastará que me chameis e eu irei... só tendes de estender a mão e eu entregar-vos-ei tudo aquilo que é vosso. Agora, vou-me embora. Não, permiti que me separe de vós aqui e parta sozinha. E não receeis haver-me magoado ou feito algum mal. Sois tal como eu desejava que fôsseis e sinto-me feliz por vos amar.

Ditas estas palavras, num dos seus gestos amplos e magníficos, Benedetta voltou a agarrar na orla do brial e a lançá-la sobre o braço e teria passado por ele, de cabeça erguida e com um sorriso nos lábios, se Harry não lhe tivesse estendido a mão, o que a fez parar e, por breves instantes, colocar a sua sobre a mão dele.

- Meu doce amigo! - disse ela, retirando os dedos antes que ele os beijasse.

Depois afastou-se e ele ficou a segui-la com os olhos. A partir daquele momento, Harry não poderia jamais fugir de Benedetta, nem esta dele. Nem mesmo o talismã que apertava com força na mão poderia libertá-los. Tal como nunca haveria de sentir desejo por ela nem de recuperar o pedaço do seu coração que ela levara consigo.

 

- HÁ anos em que O Verão é lindo em Parfois - disse Isambard, acariciando a cabeça do cão, com a mão em que usava os anéis, e de olhos fixos no copo de vinho, com um vago sorriso evocativo. - Apesar das chuvas, pode ser muito bonito. É uma boa região para se montar a cavalo e rica em caça. Em tempos, cacei lá lobos e javalis mas, agora, estão a tornar-se raros, mesmo nas marcas.

- Ansiais por voltar para casa - observou Benedetta. - Percebe-se na vossa voz. É evidente que amais a vossa Inglaterra.

- Ao fim de tantos anos a enganar-me a mim próprio, acreditando ser dono de muitas casas, acabei por descobrir onde fica o meu lar. Demasiado tarde, pois é um lar sem família - acrescentou, com um sorriso melancólico. - O meu filho Gilles vai continuar aqui, em França, como sempre preferiu e, agora, tem a seu cargo os domínios que eram meus, o que não vai deixar-lhe tempo para me visitar... mesmo que a política do rei Filipe não dificultasse a livre circulação entre a França e a Inglaterra. E o mais novo, William, está ao serviço de FitzPeter, o conde de Essex, e só ocasionalmente vai a casa, para abastecer a bolsa. Porque não? O que tenho de meu em Inglaterra, um dia será dele. O William é muito parecido com a mãe e nunca gostou de Parfois. É demasiado isolado para seu gosto. A corte do rei agrada-lhe mais do que a minha. Pode bem acontecer que, mesmo lá, eu só vá ter decepções.

- Exigis demais - disse ela. - Os homens, os países, as causas decepcionam-vos porque esperais demasiado deles.

- Talvez seja verdade - admitiu ele, com indiferença. - Sou como sou. Hajam sido os meus companheiros a dar-me de menos ou haja sido eu a afastá-los, a verdade é que começo a sentir-me terrivelmente só. E, por vezes, experimento uma enorme necessidade de alguém que não vá desaparecer.

Benedetta voltou-se para ele, olhando-o do outro lado da sala. Isambard estava sentado numa cadeira grande de espaldar alto, inclinado sobre um dos braços e com o queixo apoiado na palma da mão. A luz vacilante da vela iluminava-lhe as têmporas tisnadas, as maçãs do rosto e os contornos, belos e descarnados, do queixo. Um homem de contrastes, feito de brilho e escuridão. Nas suas cavernas sombrias, os seus belos olhos castanho avermelhados, semelhantes a goivos escuros, fulguravam ao contemplar o rosto dela. Trazia ao pescoço um colar de pedras polidas, não talhadas e incrustadas em ouro. Como o seu senhor e amigo rei João, Isambard gostava de jóias e dedicava grandes cuidados à sua pessoa. E, tal como os seus companheiros cruzados, copiara alguns dos refinamentos dos inimigos muçulmanos. Mas nenhum luxo poderia atenuar tanta energia ardente. Até os prazeres que se permitia eram meras pedras de amolar para o seu espírito e as diversões ocasionais um simples meio de exercitar e testar o corpo, quando não se apresentavam ocupações mais violentas. Benedetta pressentia que ele desgastava os seus companheiros da mesma forma que desgastava os sapatos e se enfurecia com a sua falta de resistência. E talvez também as suas mulheres, embora duvidasse que Isambard fosse homem para procurar assiduamente companhias femininas. Um casamento de conveniência com uma mulher nove anos mais velha, que morrera cedo e o deixara livre, jovem, mais rico que nunca e, por certo pouco desgostoso. Demasiado bem-parecido para que lhe faltassem amores, caso deles tivesse precisão, demasiado transbordante de juventude e de energia, demasiado complexo, para dedicar às amantes uma parte excessiva do seu tempo e do seu vigor.

- Vinde comigo para Inglaterra - disse Isambard.

Ela ficou calada por tanto tempo que ele se impacientou e se agitou na cadeira. Afastou dos joelhos a cabeça do cão e agarrou-se com força aos braços trabalhados da cadeira. Tinha o condão de transformar num trono qualquer assento onde se instalasse.

- Porque não me respondeis? Por certo não vos surpreendi. Deveis saber que vos quero, que vos quero desde o momento em que vos vi. Não é meu costume pronunciar muitas palavras, quando sei que posso ser entendido com poucas. Vinde comigo para Parfois, onde levareis uma existência nobre e sereis honrosamente servida. Partilharei convosco tudo quanto me pertence e rodear-vos-ei de amor e de adoração. Respondei-me!

- Pergunto a mim mesma se haveis pensado bem no que estais a propor-me - respondeu docemente Benedetta. - Agora, que confessais haver adquirido o gosto pelo que é permanente, serei eu a pessoa indicada para partilhar a vossa vida? Parece-vos que a constância seja algo que concedo aos meus amantes? Pensava que o que dizem de mim fosse mais fiel à realidade.

- Não é próprio de vós jogar com as palavras - comentou Isambard, franzindo o sobrolho. - Levais sempre a bom termo o que iniciais e sabei-lo muito bem. Não prometeis nada mais, quando concedeis apenas um prazer fugaz. Eu quero mais de vós. Vinde comigo e não mais terei outra mulher senão vós. Sereis minha amante e minha igual.

- Tentais-me. Aprecio-vos e sinto prazer na vossa companhia, meu senhor. E o que me sugeris tem muitos atractivos. Mas há coisas a meu respeito que vós não sabeis. Se tivésseis vindo ter comigo como os outros, em busca apenas dos prazeres de uma noite e disposto a pagar por isso, nunca seria necessário ficardes a sabê-las.

- Se me contive até agora, não atribuais essa contenção à frieza ou à castidade - cortou Isambard, num tom frio. - Quero o vosso corpo, a vossa alma e o vosso coração ou nada. Não suportaria ter-vos nos meus braços por uma noite e ver-me incluído na longa lista dos tolos que julgam ter-vos possuído. Quero uma consorte para os meus dias e as minhas noites, uma companheira digna da minha condição.

- O que dizeis obriga-me, ainda mais, a tornar bem claro o que posso e o que não posso dar-vos.

Benedetta levantou-se bruscamente da mesa e atravessou a sala, para puxar a tapeçaria que cobria a porta, como se aquela noite de Maio tivesse, de súbito, arrefecido. Ao passar por ele, a sua saia comprida produziu um suave rumor, como o das folhas do Outono, e deixou no ar um ligeiro perfume. Isambard seguiu-a com o olhar e viu-a imobilizar-se junto à porta, com a mão ainda crispada na tapeçaria. Na penumbra, a coroa dos cabelos dela parecia mais escura.

- Sabei, meu senhor, que amei, e ainda amo, um homem. Nunca foi meu e não penso que alguma vez venha a sê-lo, neste mundo. Digo com pesar que ele nunca me amou nem desejou. Todavia, foi a esse homem que dei aquele amor que só se pode dar uma vez na vida e, se é isso que quereis de mim, parti e esquecei-me. O meu coração não me pertence e não pode pois ser dado a ninguém. O que resta é a mulher que tendes diante de vós. Não sou mulher para morrer por uma paixão não correspondida, embora me sinta mais pobre por aquilo que perdi. Respeito-vos e sois merecedor do meu apreço, possuo um espírito que pode servir-vos bem e sou dona de um corpo que sou livre de vos entregar, se assim o entender... e tenho um enorme desejo de viver. Se me quiserdes nestas condições, poderemos chegar a acordo. Mas não quero ser desonesta convosco, fingindo ser aquilo que não sou.

Isambard abandonara a cadeira, afastando o cão, com um movimento brusco do pé. Lentamente, aproximou-se dela. As linhas contraídas do seu rosto denotavam cólera e ciúme mas, nos seus olhos, havia uma expressão calculista e, também, uma espécie de ternura, cega e quente, que se filtrava através das guardas do seu orgulho. Benedetta largou a tapeçaria e, passo a passo, foi ao encontro dele, com um sorriso triste nos lábios. Os seus olhos, porém, estavam límpidos como espelhos, nos quais ele viu reflectido o seu rosto insaciável.

- Não posso acreditar! Eu quero-vos por inteiro!

- E impossível. O melhor de mim não está comigo. Por isso, adeus, senhor!

- Não! Esperai!

Isambard agarrou-a pelos ombros e segurou-a com força. Ela sentiu-o tremer, tamanho era o seu orgulho, tamanha a sua raiva: queria tudo ou nada e, não obstante, não conseguia afastar-se dela.

Benedetta recusava-se a influenciá-lo, pois isso poria em causa a sua honra. Sustentou com firmeza o seu olhar esfaimado e, do fundo da sua própria experiência, brotou um pouco de verdadeira compaixão por ele.

- Ele ainda vive... esse homem de quem falastes? - perguntou Isambard, em voz rouca.

- Ainda.

- Aqui, em França? Ou foi antes, em Veneza?

- Contei-vos tudo quanto precisais de saber acerca dele - respondeu ela. - Mais não direi.

Os dedos compridos de Isambard magoavam-lhe os ombros, puxavam-na contra o peito. Ela nunca estivera em Inglaterra, o fantasma não poderia segui-la até lá, até um país diferente. E ele iria estar sempre junto dela, usando todo o poder de persuasão do seu corpo e da sua adoração por ela, um corpo vivo e um amor presente contra um sonho que se desvanecia. Ela não poderia viver durante muito tempo no passado, era demasiado inteligente, demasiado honesta, demasiado cheia de vida. Com tantas coisas novas à sua volta, todas elas proporcionadas por ele, acabaria por chegar a amá-lo,

- Sim. Vinde! - murmurou ele, encostando de súbito a face magra aos cabelos dela. - Vinde comigo! Ainda assim, vinde! Se soubésseis como preciso...

- Esperai! Ouvi o que tenho a propor-vos, antes de vos comprometerdes - aconselhou Benedetta, apoiando as mãos no peito dele para o afastar de si. - Se ainda o desejardes, irei convosco. Ligar-me-ei a vós, e apenas a vós, com toda a boa fé e lealdade, até um de nós pôr termo a esse pacto, aberta e justamente. Este será, então, nulo e de nenhum efeito. Se fordes vós a rejeitar-me, resignar-me-ei sem me queixar. E, se for eu a abandonar-vos, devereis fazer outro tanto. Mas posso jurar-vos que jamais vos abandonarei, a não ser para seguir aquele que amo mais do que a própria vida. E, se isso acontecer... - acrescentou com um sorriso amargo - e Deus sabe que é improvável que alguma vez aconteça... devereis dizer-me «Que Deus vos ajude!» e não «Maldita sejais!», pois irei por certo pagar na íntegra tudo quanto possa dever-vos.

- Então, aceito-vos - declarou Isambard, em voz sufocada. - Aceito-vos nos termos que propusestes e guardar-vos-ei contra o mundo inteiro.

Dito isto, puxou-a para si, enlaçou-a com força entre os braços e os seus lábios beijaram-lhe o rosto, murmurando sobre a face dela. O outro, o inimigo, o homem do passado nunca viria incomodá-los. Não passava de uma sombra imaterial, uma pobre criatura que, na altura, não tivera a coragem de a amar e que, agora, mesmo que recuperasse a razão, não teria ânimo para a procurar. O mar, o silêncio e a indiferença mantê-lo-iam longe dela. E, mesmo que a encontrasse... uma hipótese pouco provável... ele era mortal e podia morrer. Um espírito tão fraco não daria muita luta.

- Ficai comigo! - murmurou Isambard, junto ao pescoço dela. - Ficai comigo, por amor de Deus!

- Até que a morte ou ele nos separem - respondeu Benedetta. - Ou que vós mesmo me dispenseis.

Surpreendera-se um pouco a si própria: ela, nascida numa família de argutos mercadores marítimos sem pretensões à nobreza, sentia-se mais solidamente subjugada pelas subtilezas da honra do que pelos braços de Isambard ou por todos os recursos do seu poder.

Ele mergulhou a mão nos caracóis do cabelo dela e começou a soltar os ganchos de osso que os prendiam, até os cabelos lhe caírem sobre os ombros, numa cascata de madeixas escuras e brilhantes, que se interpunha entre o rosto erguido dela e a boca dele. Benedetta beijou-o resolutamente, destilando gota a gota no coração o instrumento do seu poder e a condição do seu préstimo, sem experimentar medo ou desgosto pelo que acabara de fazer.

Harry atravessou o pátio da Maison d'Estivet, abrindo caminho por entre os servos, os animais de carga e os fardos atados com cordas, por entre a azáfama ruidosa dos preparativos para a partida. A fachada inclinada da casa, raiada altemadamente pelos fracos raios de sol e pelas ténues sombras das nuvens, abrigava, sob os seus beirais, o conteúdo do quarto de dormir e do guarda-roupa de Lorde Ralf Isambard - ou seja, a carga mais preciosa - que estava prestes a ser carregado. Cansados, três dos seus escudeiros supervisionavam o trabalho dos carregadores, suando sangue, por temor de ver cair alguns grãos de poeira sobre as sedas e peles do seu senhor. A bagagem mais pesada e menos preciosa fora enviada, dias antes, em carroças, para Calais mas aqueles últimos e mais ciosamente guardados haveres iam ser transportados por animais de carga, que seguiriam com lorde Isambard e com a sua comitiva. A coluna de animais partia naquela manhã e os cavaleiros à tarde, para uma primeira etapa fácil, a caminho do porto. Depois, restaria apenas a travessia por mar, breve mas terrível, segundo a recordação de Harry.

Adam, algo debilitado por uma última noite tumultuosa com Apollon e Élie, na taberna de Nestor, já havia partido, com os instrumentos de trabalho, os numerosos desenhos de Harry e o fiel companheiro das andanças de ambos, o anjo de madeira. As cores do anjo estavam já um pouco esbatidas devido a tantas mudanças. Fora hóspede de três grandes igrejas e conquistara a admiração de muitos críticos autorizados, entre os quais era de destacar o seu último anfitrião, o cónego d'Espérance. Agora, também ele ia a caminho de casa. Era parte de uma dívida de honra que já tardava em ser saldada.

Uma meia dúzia de cães, que corriam entre os cavalos e os homens afadigados eram, alternadamente, injuriados, espezinhados e espancados. A maior parte deles ia ser deixada em Paris mas os três cães de caça do Oriente embarcariam para Inglaterra depois do dono, e -segundo Harry ficara a saber pelo mais novo dos escudeiros - seriam oferecidos ao rei João. Os seus corpos eram alongados como os dos galgos, as suas cabeças esguias eram altivas como a do próprio Saladino, e tinham orelhas e flancos compridos e peludos. A acreditar no que dizia Walter Langholme, eram capazes de correr mais do que leopardos e, também, de os vencer, no seu próprio terreno. Costumavam deambular, com ar desconfiado, pelas salas da Maison d'Estivet, delicados, arrogantes, nervosos mas pouco intimidados, objectos de terror e admiração. O mais temido era o cão-lobo da Arábia, que era a alegria de Isambard. Dizia-se que fora treinado para obedecer a um único senhor e que, a uma ordem deste, seria capaz de matar um homem ou um leopardo. Era sempre visto preso pela trela, segura por Isambard ou pelo seu treinador, um grego cristão da Dácia, que fora comprado com o cão. Mais ninguém podia dar-lhe ordens, pois o animal conhecia os seus direitos e só se inclinava perante o dono ou o representante deste.

Além destes animais, havia também falcões e uma pequena ave canora verde e dourada, numa gaiola de filigrana, destinada à rainha. Dois pequenos cofres dourados com embutidos continham fragmentos dos ossos de Santo Estêvão e uma madeixa de cabelos ruivos de Santa Maria Madalena, que esta teria arrancado durante as horas de trevas sobrenaturais, no Calvário. Mas o mais precioso era um frasco de ametista, contendo água do rio Jordão, benzida pela primeira vez pelo último prelado cristão de Jerusalém, antes de o santo reino haver caído nas mãos de Saladino, e pela segunda vez pelo Papa, em Roma. Dizia-se que já fizera vários milagres e era uma oferenda principesca, destinada à catedral de Gloucester. Era transportado numa sacola de couro trabalhado, presa por tiras de couro a uma das selas de carga e vigiada com o maior zelo.

Ao aproximar-se da porta, Harry ouviu a voz de Isambard ressoar numa violenta explosão de cólera. Lá de dentro, saiu precipitadamente um criado, de olhos desorbitados de medo e com a marca escarlate de um chicote na face e no queixo. Atrás do criado, com um pouco mais de dignidade mas com igual pressa de se afastar do seu senhor, vinha de Guichet, o mais velho dos cavaleiros, corado até à raiz dos cabelos e com uma fúria que por certo não tardaria muito a descarregar sobre um dos seus subalternos. Quando se cruzou com Harry junto à porta, ergueu as sobrancelhas e abanou a cabeça, num gesto de impotência, mas não se deteve para dar explicações. Foi Langholme quem, com um gesto significativo da cabeça na direcção da casa, lhe confiou, a meia voz:

- Mantende-vos longe dele. Vem aí tempestade.

- Que foi que o pôs em tal estado? - perguntou Harry, que, por nunca ter tido de a enfrentar, tinha dificuldade em levar muito a sério a tempestade.

- Ninharias. Um dos seus falcões sírios morreu, ninguém sabe porquê. E, agora, o cavalo que estava destinado à senhora começou a coxear. Mais uma contrariedade e alguém vai pagar por tudo.

- A senhora? Qual senhora?

- Ora, a bela dama veneziana! Quem mais havia de ser?

- Madonna Benedetta? - perguntou Harry, incrédulo.

- Não sabíeis? Já há três dias que está aqui, com ele. Onde haveis estado escondido, para não vos encontrardes ao corrente? Ela vendeu a casa do velho Guiscard e vai ser a rainha de Parfois.

A primeira reacção de Harry foi recear pela sua tranquilidade pessoal. Depois, pôs de lado a ideia com desdém, atribuindo-a a vaidade da sua parte. Se Madonna Benedetta tinha conquistado o senhor de Parfois, não era por certo para perder tempo com o canteiro que trabalhava para ele, nem para agradecer que este lhe fizesse lembrar que ela se lhe oferecera. Não, não havia nada a temer. Ela iria desempenhar o seu papel de castelã, com uma altivez distante, para o impedir de ter ideias erradas acerca do que se passara entre ambos.

Uma vez concluído este raciocínio sensato, Harry sentiu vergonha e repulsa pela sua própria estupidez. Ela não era uma pessoa desse tipo. Estava a mentir a si próprio e a ser injusto para com ela. Madonna Benedetta fazia tudo de olhos bem abertos e com convicção. Aquilo que lhe dissera mantinha-se. Não iria voltar atrás nem estava arrependida.

Era por sua causa que ela ia para Inglaterra! Não sabia com que intuito mas sabia que a decisão se relacionava consigo.

- Estive fora de Paris até ontem à noite, ao serviço de lorde Isambard - explicou Harry. - Não ouvi falar em nada. Ela está lá dentro com ele?

- Está. E ele vai escolher outra montada para ela. Deus tenha dó dos pobres cavalariços, se lorde Isambard não encontrar aquilo que quer. Se eu pudesse, fugia para o outro extremo de Paris. Já vi as suas explosões de cólera e sei bem que podem ser fatais.

Harry fez uma expressão de dúvida, perante um tal exagero.

- O quê? Em Paris? E com tantos homens da lei ao alcance da voz?

- Cuidais que a Justiça se preocupa com aquilo que o senhor de Parfois faz dos seus servos? Ou mesmo dos seus homens livres? Para todos os que lhe devem homenagem, a lei é ele. É ele quem faz a alta, a média e a baixa justiça. Uma vez, em Flint, houve um xerife1 que

 

1 Xerife do condado: grande proprietário que, até ao fim do período anglo-saxónico, administrava as receitas da Coroa. Após a conquista normanda, o xerife passou a ser um oficial da corte, nomeado pelo soberano. Procedia à colecta das rendas reais, publicava e executava as ordens do rei e administrava a justiça. Poderá dizer-se que este «bailio do rei» é, em certa medida, o equivalente inglês do almoxarife (administrador ou feitor das propriedades da casa real; funcionário superior da casa real, encarregado da cobrança de rendas e taxas) português. (N. da T.)

 

tentou opor-se-lhe - contou Langholme com simplicidade. - Acabou por perder o cargo e os bens. E deixai que vos diga que, depois disso, a lei perdeu muita força, nas marcas. Não o afronteis. Ah, lá vêm ambos!

O pessoal não estava ainda acostumado à nova senhora. Quando ela apareceu à porta, houve agitação, ouviram-se sussurros e, dissimuladamente, todos os olhos se fixaram nela. Depois, quando Isambard apareceu ao seu lado, todos os olhares se desviaram rapidamente e todas as mãos, um pouco trémulas sob o olhar severo do seu senhor, se aplicaram diligentemente em apertar cordas e ajustar cargas.

Por mais distinta e desconcertante que a situação fosse, Harry deveria ter-se apercebido de que Benedetta ia ser a senhora de todos eles. Movimentava-se pelo pátio apinhado, com a sua calma imperial, indiferente ao assalto sub-reptício de todos aqueles olhares. Quando os seus olhos se cruzaram com os de Harry, saudou-o com uma calma cortês, com que saudaria qualquer dos servidores mais considerados do seu senhor. Usava um simples fato de montar e os cabelos ruivos estavam ocultos por um toucado branco. Harry via pela primeira vez os contornos puros e firmes do seu rosto, sem ter a distraí-lo o esplendor avermelhado da farta cabeleira ruiva. A austeridade monástica do vestuário acentuava a expressão de força e confiança do seu rosto, da qual estava ausente qualquer medo do mundo.

Vestido da cabeça aos pés de castanho e dourado escuro, Isambard segurava à altura da anca a trela curta do lobo da Arábia. A pelagem do cão tinha uma tonalidade semelhante à da pele tisnada do dono e, como esta, um brilho dourado. Durante o curto instante em que ambos se detiveram, mais pareciam uma estátua de bronze e, quando se moviam, faziam lembrar metal em fusão. A cabeça do cão, com maxilares de mastim, chegava à altura da cintura do homem. Tinha um focinho horrendo mas um porte magnífico: o seu corpo enorme deslocava-se sem ruído, sem esforço, ondulando de uma forma que indicava uma força controlada. A visão de todos aqueles homens que se desviavam furtivamente à sua passagem arrancou a Isambard um sorriso amargo, que foi apenas um clarão de mau agoiro a sair da nuvem que lhe ensombrava o rosto. Ainda trazia na mão enluvada o chicote com que atingira a face do cavalariço e era evidente que voltaria a servir-se dele contra qualquer um dos seus criados ou escudeiros que o irritasse, incluindo de Guichet.

- Ah, voltastes - disse, ao ver Harry. - Sabeis avaliar um cavalo?

- Não, senhor. Quanto muito, serei um avaliador medíocre.

- Não importa. Acompanhai-nos. Devo ser o senhor pior servido e pior equipado de toda a cristandade. Espero que hajas dado melhor conta do vosso recado do que Despard, quando tratou da compra dos meus cavalos. Todas as contas foram pagas?

- Os recibos estão nas mãos do vosso escrivão, meu senhor.

- Óptimo. Pelo menos, não vamos deixar dívidas. Também haveis um temor mortal deste animal, como todos os outros?

- Suponho que foi treinado para esse fim - respondeu Harry. - Não podeis queixar-vos de um tal sucesso.

Quando se colocou ao lado do cão, pôde admirar os contornos dos músculos alongados, sob a pelagem sedosa, com um prazer que, pelo menos, compensava a inquietação.

A fiada de estábulos ocupava por completo um dos muros do pátio. Benedetta estava sentada sobre a apeadeira e Isambard fazia desfilar os cavalos, um a um, diante dela, encontrando defeitos em todos eles. Os dois infelizes escudeiros, que haviam sido mandados à frente para Paris para alugar a casa e encher os estábulos antes da sua chegada, suavam copiosamente e ouviam com humildade, enquanto Isambard denegria o seu trabalho. No entender de Harry, os cavalos eram bastante bons. Contudo, Isambard fixara as suas atenções na égua árabe, que agora coxeava. Era indiscutivelmente um belo animal mas os outros não o eram menos, desde que a dama fosse capaz de os montar. Harry tinha curiosidade em saber se Benedetta montaria tão bem a cavalo como fazia a maior parte das coisas. Vê-la numa sela seria uma revelação.

- O preto é a melhor destas tristes montadas - decidiu Isambard. - Ide buscá-lo e dai-lhe espaço para o vermos andar.

- O preto? - perguntou de Guichet, hesitante. - É uma montada difícil para qualquer cavaleiro, meu senhor. E a senhora...

- Ide buscá-lo, já disse! - cortou Isambard, com um brilho perigoso nos olhos encovados. - Cuidais que lhe vou dar uma dessas pilecas que vós recomendais?

Avançando a grandes passadas, pegou ele mesmo na cabeçada, trouxe o animal para o meio do pátio e fê-lo andar em círculo à sua volta. Pela primeira vez, o seu rosto mostrava algum prazer. Benedetta, que continuava sentada na apeadeira, observava-o, impassível, com um ligeiro sorriso nos lábios. O animal era demasiado grande para ela e demasiado nervoso, pensou Harry, irritado, e era uma iniquidade da parte de Isambard deixá-lo ali sozinho, no meio dos criados afadigados e dos animais de carga inquietos. Um carregamento caiu e as peles espalharam-se sobre o empedrado poeirento. Um dos póneis espantou-se. O cão, cuja trela Isambard confiara ao tratador grego, eriçou o pêlo dourado e começou a ganir de excitação contida.

- Segurai-o - ordenou Isambard. - Quero vê-lo andar mais. De Guichet agarrou timidamente na cabeçada e, sentindo uma mão

menos firme, o cavalo enervou-se com a presença do cão, em parte por verdadeira inquietação, em parte devido à sua vivacidade natural, lançou-se para trás a relinchar e, empinando-se, arrastou consigo o escudeiro, até chegar à fila dos cavalos de carga, que se espantaram, soltando relinchos de alarme. Com as orelhas lançadas para trás e de olhos desorbitados, o mais fogoso dos animais da fila começou a ladear, em passos curtos, tensos e ritmados e, na ânsia de escapar às ferraduras do cavalo preto, fez saltar as rédeas das mãos do criado que as segurava. A carga resvalou sobre o seu dorso, um dos cestos caiu ao chão e de dentro dele saltaram jóias e brocados. Tentando evitar o desastre, o servo atirou-se ao chão ao mesmo tempo, de braços abertos, procurando salvar o que podia ser salvo. Ao sentir as patas enredadas entre as sedas, o animal entrou em pânico, começou a escoicear à esquerda e à direita e pisou a bolsa de couro que continha o frasco com água do Jordão.

Apesar do clamor dos cavalos e dos gritos dos homens, o ruído fraco mas terrível do cristal a ser quebrado sobrepôs-se a todos os outros sons e chegou claramente aos ouvidos de toda a gente. Com uma mistura de pragas e falinhas mansas, de Guichet conseguiu acalmar o cavalo preto e afastou-se com ele. Apanhado e seguro por um cavalariço, o animal de carga continuava a tremer e a suar. Entre as pedras empoeiradas do pátio, escorria lentamente um líquido, que deixou apenas uma marca escura e húmida.

Então, por instantes, reinou um silêncio de consternação. Finalmente, do fundo da garganta de Isambard saiu um som estranho, grave e abafado, que mais parecia o eco terrível e amplificado do rosnar ávido do cão. Ao mesmo tempo, o criado que se encontrava no meio dos detritos, lançou um grito rouco, de terror.

- Piedade, meu senhor! Não pude fazer nada!

O rosto tisnado pelo sol, petrificado numa imobilidade assustadora, contemplava em silêncio a relíquia espezinhada e o homem caído no chão. Depois, num movimento repentino, Isambard debruçou-se, soltou a argola de latão da coleira do cão e, passando-lhe a mão sobre os pêlos eriçados, empurrou-o selvaticamente na direcção do desgraçado caído por terra, murmurando algumas palavras junto à orelha erguida do animal, numa língua bárbara. Árabe, Grego ou qualquer outra língua estranha, não havia necessidade de tradução.

Harry soltou um grito abafado de protesto e fez menção de avançar mas, agarrando-o por trás, pelos braços, Langholme obrigou-o a recuar e segurou-o obstinadamente, quando ele tentou libertar-se.

- Quieto, grande louco! Ou quereis ser o próximo? - murmurou junto ao ouvido de Harry.

O cão estava preparado para matar. Mal ouviu a ordem, saltou que nem um artífice diligente. Agachando-se sobre as enormes patas, tomou balanço e saltou, num movimento ágil e magnífico. No pátio, ecoaram gritos e estabeleceu-se a confusão: homens e animais de carga procuravam abrigo mas em vão. O homem caído no chão conseguira levantar-se e lançava olhares assustados à sua volta. Começou a correr como um louco, mas com absoluta determinação, em direcção a Madonna Benedetta, que não se erguera da apeadeira onde estava sentada.

Lançou-se aos pés dela, agarrou-se aos seus tornozelos e encostou o rosto molhado de lágrimas aos seus pés. Num gesto rápido, Madonna Benedetta agarrou ao mesmo tempo nas orlas do vestido e do manto e cobriu-o com eles. A ponta lastrada do manto bateu no focinho do cão, no momento em que este se lançava silenciosamente sobre a sua presa, e fê-lo recuar um ou dois passos, escorregando sobre o empedrado gasto. Benedetta deixou-se ficar sentada, imóvel, com o braço direito sobre os ombros do servo, agitados pelos soluços, calma mas atenta, de olhos fixos no cão. Pressentindo que não podia, sem riscos, ultrapassar aquele limite, mas relutante em abdicar da sua vítima, o animal começou a andar à volta de Madonna Benedetta, de cabeça baixa, focinho a espumar, os olhos cor de âmbar fixos nela, indeciso.

Num segundo, poderia ter-se decidido. Mas um segundo foi quanto bastou para Isambard, pálido sob o tom tisnado da pele, dar um salto em frente e, com um terrível golpe de chicote, afastar de Benedetta o focinho que avançava para ela. Quando, mudo de raiva e de medo, se debruçou sobre ela, Benedetta ergueu o rosto e, com um sorriso quase imperceptível, disse, em voz doce:

- Sim, meu senhor, chamai o vosso cão. Está a pisar o meu vestido.

Com a garganta apertada devido ao medo terrível que tivera por ela e à cólera que sentia contra ela, numa agonia de ódio e amor, Isambard não foi capaz de dizer palavra. Ficou parado junto dela, num silêncio doloroso, enquanto o grego avançava furtivamente, prendia o cão e, recuando depois passo a passo, quase sem respirar, o levava consigo para longe dali. Em silêncio, Langholme afrouxou o aperto sobre os braços de Harry e, também em silêncio, Harry afastou-se dele, inspirando profundamente o ar carregado de tempestade, sem nisso encontrar qualquer alívio. Enquanto a tensão entre os dois seres que se fitavam não abrandava, todos se moveram devagar e sem ruído.

Os lábios de Isambard, contraídos e cinzentos, distenderam-se lentamente e o sangue voltou a afluir-lhe ao rosto, sob a pele lisa das faces. Sob as pálpebras pesadas, os seus olhos coruscantes escureceram. Benedetta sustentou-lhes o brilho duro, até a angústia se dissipar e a respiração se tornar regular e tranquila, apesar das narinas ainda dilatadas.

- Dai-me este servo, meu senhor, se não o quereis mais - disse ela, num tom natural, como se nada se tivesse passado. - De certo que, de vez em quando, irei precisar de ter um homem ao meu serviço.

A resposta tardou algum tempo. Por fim, com um movimento brusco de todo o seu corpo, ele ergueu-se e disse, em voz baixa:

- É vosso.

Em seguida, voltou-lhe as costas e afastou-se em direcção à casa. Homens, cães e animais de carga afastaram-se precipitadamente à sua passagem.

Madonna Benedetta esperou até o ver desaparecer e, então, com um ligeiro gesto de cabeça e um olhar em volta, mandou escuteiros, cavalariços e carregadores voltarem aos respectivos afazeres. Depois, afastou o manto e a saia que cobriam o homem prostrado e fitou-o, com uma expressão subitamente grave e pensativa. Imóvel, o homem tinha as mãos agarradas aos tornozelos dela e o rosto comprimido contra os seus sapatos.

- Levanta-te - disse ela gentilmente. - Ele foi-se embora. Agora, ninguém te fará mal. És meu.

O homem ergueu o rosto sujo e exangue. Mordera os lábios com tanta força que, na sua barba curta, havia gotas de sangue. O alívio que se seguira ao medo deixara-o esgotado e estava demasiado fraco para se mexer. Harry, que não se sentira dispensado pelo olhar de Benedetta, aproximou-se para ajudar o homem a erguer-se.

- Eras servo dele? És francês?

- Inglês, senhora minha. - A sua voz era fraca e sem expressão. - De Fleace, no Flintshire.

- Como te chamas?

- John o Frecheiro.

- Pois bem, John o Frecheiro, agora, já não és seu servo. És livre e serás o meu homem lígio1. Não penso recorrer aos teus talentos de frecheiro mas quem sabe, talvez um dia venha a precisar de ti.

- Ser-vos-ei sempre fiel - respondeu ele, em voz entrecortada, baixando-se para beijar a orla do manto dela. - Pertencer-vos-ei de corpo e alma, enquanto viver, senhora minha.

- Agora, vai lavar a cara. E mantém-te fora da vista do meu senhor por algum tempo. Estando ao meu serviço, não tens nada a temer de Lorde Isambard mas é melhor não lhe avivar a memória.

Depois de o homem se afastar a cambalear, Benedetta levantou-se. O seu olhar cruzou-se com o de Harry e ela sorriu, com uma expressão quase confusa. Não havia constrangimentos entre eles. O à-vontade que sentia junto dela espantou-o e, ao mesmo tempo, tranquilizou-o. Como pudera pensar, por um momento que fosse, que ela iria persegui-lo com o amor que ele rejeitara? Com ela, o amor teria de ser um campo de acção, não uma necessidade. Quer perdesse quer conquistasse o mundo, ela seria sempre um ser uno. Ela era a sua própria fortaleza e o seu próprio santuário.

- As pessoas tomam atitudes destas quase por acidente - disse Benedetta. - Agora, sinto-me um tanto ridícula.

- Haveis arriscado a vossa vida - argumentou ele, observando-a com gravidade.

- Não creio. A verdade é que nasci com algumas incapacidades. Uma delas é ser completamente incapaz de ter medo de cães, mesmo quando devia. E até o mais feroz dos animais se sente desconcertado quando não provoca medo, Além disso, vistes que, quando quer, o meu senhor é capaz de agir bem depressa. Antes de conseguir ferrar os dentes no meu manto, o cão seria trespassado por uma espada. Não que, na altura, haja pensado em tudo isto - admitiu. - Todavia, por vezes, o acto é também o pensamento. Fosse como fosse, não podia mexer-me porque o pobre homem estava agarrado aos meus pés.

- Não foi isso que vos conteve - observou Harry. E, após um curto silêncio, acrescentou: - Tende cuidado convosco! Com um homem como ele nunca é demais ter cuidado.

 

1A expressão «homem lígio» indica, aqui, uma dependência exclusiva. (N. da T.)

 

- O conselho é bom para mim mas também é bom para vós - respondeu ela, fitando-o com um olhar penetrante. Depois, o seu olhar tornou-se menos duro e, com um sorriso triste, acrescentou: - Ele surpreendeu-vos. Lamento. Quanto a mim, já sabia que nada é pior, ou melhor, do que ultrapassar os limites que ele estabeleceu. Excepto, evidentemente, faltar à palavra dada, que é o único pecado mortal. - Sacudindo a poeira do manto, Benedetta olhou na direcção da casa. - Harry, pedi a Bertrand de Guichet que escolha um cavalo para mim. Não é preciso ser uma montada para damas. Eu sei montar. Agora, tenho de entrar e fazer as pazes.

Dito isto, afastou-se, no seu passo altivo e esplêndido, sem olhar para trás uma única vez. Todavia, voltara a despertar em Harry a última e a mais tocante das memórias insuportavelmente deliciosas que ela parecia estar sempre a reavivar. Harry reviu o gesto audaz da mão dela lançando a orla da saia sobre o fugitivo. Depois, a mão ficou mais pequena e transformou-se na mão gorducha de uma criança, estendendo destemidamente a roda da saia, para ocultar dois rapazinhos aos seus perseguidores. Harry foi assolado por uma tal vaga de ternura que os olhos se lhe encheram de lágrimas. Esta era a dádiva que Benedetta lhe fizera: a descoberta do laço que o unia a Gilleis.

Abriu o espírito ao amor sem opor qualquer resistência e o amor invadiu-o, enchendo-o de uma felicidade doce e pungente, mais esmagadora do que a dor. O seu corpo e o seu espírito ansiavam por ela. E essa ânsia era tão desmesurada como longo e inocente fora o esquecimento. Tenho de te encontrar, Gilleis, vou encontrar-te, gritou-lhe ele, silenciosamente. Oh, Gilleis, meu amor, espera por mim. Estou quase a chegar!

Era tempo e mais que tempo de Harry regressar ao seu país.

 

                                                                                            CONTINUA  

 

                      

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