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A PRIMEIRA INVESTIGAÇÃO DE POIROT/Agatha Cristhie
A PRIMEIRA INVESTIGAÇÃO DE POIROT/Agatha Cristhie

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A PRIMEIRA INVESTIGAÇÃO DE POIROT

 

Vou   PARA   STYLES

Já se dissipou um pouco o intenso interesse despertado no público pelo que então se chamou «O Caso Styles». No entanto, em virtude da notoriedade a nível mundial de que foi alvo, tanto o meu amigo Poirot como a própria família da vítima me pediram que escrevesse um relato da história. Esperamos silenciar assim, eficazmente, os boatos sensacionalistas que ainda persistem.

 

Começarei por expor resumidamente as circunstâncias que conduziram ao meu relacionamento com o caso.

 

Na frente tinham-me dado como inválido e mandado regressar à pátria onde, após alguns meses num muito deprimente Lar de Convalescentes, me deram uma licença de um mês, antes de retomar o serviço. Como não tinha parentes chegados nem amigos, tentava decidir o que faria quando encontrei casualmente John Cavendish. Vira-o muito poucas vezes, nos últimos anos, e na realidade nunca o conhecera muito bem, em parte devido, certamente, ao facto de ele ter uns bons quinze anos mais do que eu, embora não aparentasse nada ser um homem de quarenta e cinco anos. Quando eu era rapaz, porém, estivera várias vezes em «Styles)», residência da mãe dele no Essex.

 

Conversámos um bom bocado acerca do passado e, no fim, ele convidou-me a ir passar a licença a «Styles».

 

A mãe ficará encantada por te voltar a ver, depois de todos estes anos acrescentou.

 

Ela está boa?

 

Oh, sim! Sabes, suponho, que voltou a casar?

 

Receio ter evidenciado a minha surpresa; com excessiva franqueza. Mrs. Cavendish, que casara com o pai de John, um viúvo com dois filhos, era, quando eu a conhecera, uma mulher interessante, de meia-idade. Agora não devia ter menos de setenta anos. Recordava-a como uma mulher com uma personalidade enérgica e autocrática, um tanto ou quanto inclinada para a notoriedade que provém da caridade e da vida social, com um fraco por inaugurar vendas de caridade e fazer, em suma, de Dona Benificência. Era, uma senhora muito generosa e dona de fortuna pessoal considerável.

 

A sua propriedade no campo, «STYLES Court», fora comprada por Mr. Cavendish no princípio da sua vida de casados. Ele vivera a tal ponto sob a a>scendência da mulher que, ao morrer, lhe deixara a propriedade, enquanto vivesse, assim como a maior parte do seu rendimento, procedimento francamente injusto para com os dois filhos. A madrasta destes, porém, fora sempre muito generosa com eles. Eram tão novos quando o pai casara com ela que sempre a tinham considerado sua verdadeira mãe.

 

Lawrence, o mais novo, fora um jovem frágil. Formara-se em medicina, mas depressa abandonara a profissão e ficara a viver em casa, entregue a ambições literárias, embora os seus versos nunca alcançassem assinalável êxito.

 

John trabalhara durante algum tempo como advogado, mas por fim desistira também e entregara-se à vida para ele mais agradável de nobre rural. Casara havia dois anos e levara a mulher para «Styles», embora eu desconfiasse de que teria preferido que a mãe lhe aumentasse a pensão, o que lhe permitiria ter casa sua. Mas Mrs. Cavendish era uma senhora que gostava de elaborar os seus próprios planos e esperava que os outros os aceitassem, e neste caso, ainda por cima, eram dela todas as vantagens, pois os cordões da bolsa estavam nas suas mãos.

 

John notou a minha surpresa perante a notícia do novo casamento da mãe e sorriu com certa amargura.

 

E foi logo escolher um grandíssimo salafrário! afirmou, furioso. Acredita, Hastings, está a tornar-nos a vida muito difícil. Quanto à Evie... Lembras-te da Evie?

 

Não.

 

Tens razão, parece-me que não é do teu tempo. É a dama de companhia da mãe e, por extensão, o seu pau para toda a colher. Fixe e boa mulher, a velha; Evie! Não é precisamente uma menina nem uma beldade, mas de toda a confiança.

 

Ias dizer

 

Ah, sim, o tal tipo! Apareceu vindo não se sabe de onde, a pretexto de que era segundo primo ou coisa parecida da Evie, embora ela não parecesse muito interessada em admitir o parentesco. Salta aos olhos que o indivíduo é um intruso absoluto, qualquer pessoa vê isso. Tem uma grande barba preta e usa botas de verniz esteja o tempo que estiver! Mas a mãe teve logo um fraco por ele, aceitou-o como secretário... Como sabes, anda sempre metida na direcção de cem sociedades...

 

Acenei afirmativamente.

 

Claro que a guerra transformou as cem em mil. O tipo tem-lhe sido muito útil nesse aspecto, a esse respeito não há duvida. Mas ficámos todos para morrer quando, há três meses, ela nos comunicou, de súbito, que estava noiva de Alfred! O indivíduo deve ser pelo menos vinte anos mais novo do que ela! É uma simples e descarada caça à fortuna... mas, enfim, ela é senhora de si própria, não está às ordens de ninguém, e casou com ele.

 

Deve ser, realmente, uma situação difícil para todos vocês.

 

Difícil? É infernal!

 

, Sucedeu assim que, três dias depois, me apeei do’ comboio em Styles St. Mary, uma absurda estaçãozinha aparentemente sem qualquer razão de existir, empoleirada no meio de campos verdes e azinhagas. John Cavendish esperava-me no cais e conduziu-me para o automóvel.


Ainda temos uma gota ou duas de gasolina, como vês observou. Principalmente graças às actividades da mãe.

 

A aldeia de Styles St. Mary ficava a cerca de três quilómetros da estaçãozinha e «Styles Court» mais ou menos quilómetro e meio do outro lado. Estava um dia sereno e quente de princípios de Julho. Ao olhar a região plana do Essex, tão verde e pacífica sob o sol da tarde, parecia quase impossível acreditar que, não muito longe, uma grande guerra seguia o seu curso determinado. Tive a sensação de que, de repente, fora parar a outro mundo. Quando transpusemos o portão da propriedade, John observou:

 

Receio que vás achar isto por aqui muito parado, Hastings.

 

Meu caro, é exactamente disso que preciso.

 

Enfim, é agradável, quando se quer levar uma vida ociosa. Treino com os voluntários duas vezes por semana e dou uma ajuda nas quintas. A minha mulher trabalha regularmente

 

«na terra». Levanta-se sempre às cinco da manhã para ordenhar e continua a trabalhar sem parar até à hora do almoço. Seria uma vida boa, bem vistas as coisas... se não fosse aquele tipo, Alfred Inglethorp! Parou, de repente, e viu as horas. Talvez sejam horas de ir buscar a Cynthia... Não, a esta hora já saiu do hospital.

 

Cynthia? Não é a tua mulher?

 

Não. A Cynthia é uma protegida da minha mãe, filha de uma antiga condiscípula dela, que casou com um solicitador má peça. Enfim, a pequena ficou órfã e sem nada. A minha mãe interveio e a Cynthia está connosco há quase dois anos. Trabalha no hospital da Cruz Vermelha de Tadminsler, a onze quilómetros de distância.

 

Quando disse as últimas palavras, parámos defronte da bela casa antiga. Uma senhora de grossa saia de tweed, que estava debruçada para um canteiro, endireitou-se, ao ouvir-nos aproximar.

 

Olá, Evie! Cá está o nosso herói ferido! Mr. Hastings , Miss Howard.

 

Miss Howard tinha um aperto de mão muito firme, quase


doloroso. Fiquei com a vaga impressão de uns olhos muito azuis num rosto bronzeado. Era uma mulher de aspecto agradável, cerca de quarenta anos e voz profunda, quase masculina nas suas intonações estentóreas, e tinha um corpo forte e quadrado, com pés a condizer enfiados em boas botas grossas. Não tardei a perceber que falava num estilo de certo modo telegráfico:

 

As ervas daninhas alastram como fogo. Impossível acompanhá-las. Acautele-se, tentarei aproveitá-lo.

 

Terei muito prazer em ser útil afirmei.

 

Nunca diga isso. Mais tarde arrependem-se sempre.

 

É uma cínica, Evie disse John, a rir. Onde se toma o chá, hoje? Lá dentro ou cá fora?

 

Fora. O dia está muito bonito para nos fecharmos em casa.

 

Venha daí, então; por hoje já jardinou o suficiente. «O trabalhador tem direito à sua paga», como sabe. Venha repousar e restaurar-se.

 

Bem respondeu Miss Howard, enquanto descalçava as luvas de jardinagem , sinto-me inclinada a concordar consigo.

 

Contornou a casa à nossa frente e conduziu-nos ao lugar onde o chá estava servido, à sombra de um grande sicómoro.

 

Levantou-se um vulto de uma das cadeiras-cesto e deu alguns passos na nossa direcção.

 

A minha mulher, Hastings apresentou John.

 

Nunca esquecerei a primeira vez que vi Mary Cavendish. O seu corpo alto e esbelto recortado na luz viva; a noção forte de fogo amodorrado que parecia encontrar expressão apenas naqueles maravilhosos olhos fulvos, naqueles olhos extraordinários, diferentes dos de qualquer mulher que jamais conheci; a intensa capacidade de serenidade que possuía, embora desse a impressão de ser um espírito bravio num corpo delicadamente civilizado todas essas coisas ficaram gravadas a fogo na minha memória. Jamais as esquecerei.

 

Cumprimentou-me com algumas palavras de agradáveis boas-vindas, em voz baixa e clara, e eu deixei-me cair numa das cadeiras, francamente satisfeito por ter aceitado o convite do John. Mrs. Cavendish serviu-me chá e as suas observações


serenas sublinharam a primeira impressão que me causara, isto é, que se tratava de uma mulher absolutamente fascinante. Uma pessoa que sabe ouvir e apreciar o que ouve é sempre estimulante, e eu dei comigo a descrever, de modo humorístico, alguns incidentes ocorridos no meu Lar de Convalescentes, de uma maneira que, disso me gabo, divertiu muito a minha anfitriã. Claro que o John, apesar de bom tipo, dificilmente se poderia considerar um bom conversador.

 

Nesse momento, uma voz de que me recordava bem soou, vinda da porta-janela aberta próxima:

 

Escreves então a princesa depois do chá, Alfred? Eu própria escreverei a Lady Tadminster para o segundo dia. Ou deveremos aguardar a resposta da princesa? Em caso de recusa, Lady Tadminster passaria para o primeiro dia e Mrs. Crosbie para o segundo. . Há também a duquesa, acerca da festa escolar.

 

Ouviu-se o murmúrio de uma voz masculina e, depois, de novo, a voz era de Mrs. Inglethorp:

 

Sim, com certeza, depois do chá está muito bem. És tão prestável, querido Alfred!

 

A porta-janela abriu-se um pouco mais e uma elegante senhora de cabelo branco e feições um tanto ou quanto autoritárias, saiu para o relvado. Seguiu-a um homem, com uma sugestão de deferência na atitude.

 

Mrs. Inglethorp cumprimentou-me efusivamente.

 

Que prazer voltar a vê-lo ao fim de tantos anos, Mr. Hastings! Alfred, querido: Mr. Hastings... o meu marido.

 

Olhei com certa curiosidade para o «Alfred, querido», que parecia realmente discrepante, ali. Não me admirei de John não gostar da sua barba, que era uma das mais compridas e das mais pretas que já vira. O indivíduo usava lunetas com aros de ouro e tinha umas feições curiosamente impassíveis. Pensei que poderia parecer natural num palco, mas estava estranhamente deslocado na vida real. Tinha voz profunda e untuosa. Colocou na minha a sua mão, que parecia de madeira, e disse: É um prazer, Mr. Hastings. Virou-se para a mulher e acrescentou: Minha querida Emily, acho que essa almofada está um pouco húmida.

 

Ela sorriu-lhe meigamente, enquanto ele substituía a almofada com todas as demonstrações do mais terno carinho Estranha cegueira da parte de uma mulher tão sensata!

 

A presença de Mr. Inglethorp pareceu provocar uma atmosfera de constrangimento e velada hostilidade entre os outros Sobretudo Miss Howard, não tentou sequer disfarçar os seus sentimentos, Mas Mrs. Inglethorp parecia não notar nada de especial. Dir-se-ia que a sua loquacidade, que recordava de outros tempos, não perdera nada ao longo daqueles anos em que não a vira. Falou quase incessantemente, em especial acerca da venda de caridade que estava a organizar e que seria inaugurada em breve. Recorreu uma vez por outra ao marido, por causa de dias ou datas, e a atitude atenta e atenciosa do indivíduo nunca se modificou. Senti desde o princípio uma antipatia funda e firme por ele, e gabo-me de as minhas primeiras impressões serem geralmente acertadas.

 

Pouco depois, Mrs. Inglethorp virou-se para dar certas instruções a Evelyn Howard, acerca de umas cartas, e o marido aproveitou a ocasião para se me dirigir, na sua voz meticulosa

 

Ser soldado é a sua profissão habitual, Mr. Hastings?

 

Não. Antes da guerra trabalhava na Lloyd’s.

 

E tenciona voltar para lá quando o conflito terminar?

 

Talvez. Ou volto ou começo totalmente de novo.

 

Mary Cavendish inclinou-se para a frente e perguntou-me

 

Que escolheria, realmente, como profissão se pudesse obedecer apenas à sua inclinação?

 

Bem, depende.

 

Não tem nenhum passatempo secreto? Diga-me, sente-se atraído para qualquer coisa? Toda a gente se sente, e em geral para algo absurdo.

 

Rir-se-ia de mím... , Mary Cavendish admitiu, a sorrir:                           ,

 

Talvez.

 

Bem, tive sempre o desejo secreto de ser detective!

 

Detective a sério, género Scotland Yard? Ou Sherlock Holmes?

 

Oh, Sherlock Holmes, claro! Mas, palavra, é uma coisa que me atrai tremendamente. Em tempos conheci um indivíduo na Bélgica, um detective muito famoso, e ele entusiasmou-me muitíssimo. Era um homenzinho maravilhoso, que costumava dizer ser todo o bom trabalho de detective uma simples questão de método. O meu sistema baseia-se no dele... embora, claro, eu tenha progredido mais. Era um homenzinho engraçado, um grande janota, mas extraordinariamente esperto.

 

Pessoalmente, gosto de uma boa história policial observou Miss Howard. Mas escrevem-se muitas tolices nesses livros. Criminosos desmascarados no último capítulo, toda a gente estupefacta   . No crime a sério sabe-se logo.

 

Tem havido um grande número de crimes que ficam por descobrir discordei.

 

Não me refiro à Polícia, mas às pessoas que estão envolvidas no assunto, à família. Não é possível enganá-las. Elas percebem logo.

 

Nesse caso perguntei, divertido , acha que se estivesse relacionada com um crime um assassínio, digamos seria capaz de identificar logo o assassino?

 

Claro que seria! Talvez não fosse capaz de o provar a uma quantidade de advogados, mas tenho a certeza de que eu saberia. Senti-lo-ia nas pontas dos dedos, se ele se aproximasse de mim.

 

Poderia ser uma «ela» observei.

 

Pois poderia. Mas o assassínio é um crime violento. Associo-o mais com o homem.

 

i No caso de envenenamento, não. A voz clara de Mrs. Cavendish surpreendeu-me. Ainda ontem o Dr. Baiuerv tein disse que, devido à ignorância geral, pela classe médica, dos venenos mais invulgares, havia provavelmente inúmeros casos de envenenamento que nem sequer levantavam suspeitas.

 

Mas que sinistra conversa, Mary! exclamou Mrs. Inglethorp. Até me arrepiou toda! Olhem, vem aí a Cynthia.

 

Uma rapariga nova, de uniforme das V. A. D., atravessou o relvado numa corrida leve.

 

Chegaste atrasada, Cynthia,! Mr. Hastings... Miss Murdoch. Cynthia Murdoch era uma jovem de ar fresco, cheia de vida

 

e energia. Tirou o bivaquezinho e eu admirei as grandes ondas soltas do seu cabelo arruivado e a pequenez e a brancura da mão que estendeu, a reclamar o seu chá. Se tivesse olhos e pestanas escuras seria uma autêntica beldade.

 

Sentou-se no chão ao lado de John e sorriu-me quando lhe estendi um prato de sanduíches.

 

Sente-se aqui na relva, ande convidou-me. É muito mais agradável.

 

Sentei-me obedientemente.

 

-Trabalha em Tadininster, não trabalha, Miss Murdoch?

 

Por mal dos meus pecados confirmou, a acenar com a cabeça.

 

O quê, arreliam-na? perguntei, a sorrir.

 

Gostava de vê-los atreverem-se a isso! replicou Cynthia, cheia de dignidade.

 

Tenho uma prima auxiliar de enfermeira e ela sente verdadeiro terror pelas enfermeiras.

 

Não me admiro. As enfermeiras são um terror, Mr. Hastings, são pura e simplesmente um terror! Nem faz ideia! Mas eu não estou em enfermagem, graças a Deus. Trabalho na farmácia’.

 

Quantas pessoas já envenenou? indaguei, a sorrir.  

 

Oh, centenas! respondeu-me, também a sorrir.

 

Cynthia, podes escrever-me uns apontamentos? perguntou Mrs. Inglethorp.

 

com certeza, tia Emily.

 

Levantou-se imediatamente e na sua atitude houve algo que me recordou encontrar-se ela ali numa situação de dependência, situação que Mrs. Inglethorp, apesar de bondosa, de modo geral, não lhe permitia esquecer.

 

A minha anfitriã virou-se para mim e informou:

 

O John mostra-lhe o seu quarto. O jantar é às sete e meia.

 

Há já algum tempo que abandonámos os jantares prolongados. Lady Tadminster, a mulher do nosso membro do Parlamento filha do falecido Lorde Abbotsbury, fez o mesmo. Concorda com a minha opinião de que devemos dar o exemplo da economia. Somos uma casa em guerra, aqui nada se desperdiça. Até o mais pequenino bocado de papel é guardado e enviado em sacas!

 

Manifestei o meu apreço por tal procedimento e John levou-me para dentro. Subimos a larga escada, que bifurcava para a esquerda e para a direita, a meio do caminho, para diferentes alas do edifício. O meu quarto ficava na ala esquerda e dava para o parque.

 

John deixou-me e, poucos minutos depois, vi-o da janela atravessar lentamente o relvado, de braço dado com Cynthia Murdoch. Ouvi Mrs. Inglethorp chamar, impacientemente: Cynthia!», e vi a rapariga estremecer e voltar para trás a Correr. No mesmo momento, um homem saiu da sombra de uma árvore e dirigiu-se lentamente na mesma direcção. Aparentava cerca de quarenta anos, era muito moreno e tinha rosto melancólico e rapado. Parecia dominado por qualquer emoção violenta. Levantou a cabeça para a minha janela, ao passar, e reconheci-o, embora ele tivesse mudado muito nos quinze anos decorridos desde que nos víramos pela última vez: era o irmão mais novo de John, Lawrence Cavendish. Que lhe teria provocado aquela singular expressão?

 

Afastei-o, porém, do pensamento e recomecei a meditar nos meus próprios problemas.

 

O serão decorreu agradavelmente e nessa noite sonhei com a enigmática Mary Cavendish.

 

A manhã seguinte nasceu luminosa e cheia de sol e eu sentia-me encantado com a perspectiva de umas maravilhosas férias.

 

Só vi Mrs. Cavendish à hora do almoço, e ela ofereceu-se para dar um passeio comigo. Passámos uma tarde encantadora nos bosques e regressámos a casa por volta das cinco horas.

 

Quando entrámos no grande átrio, John chamou-nos, com um sinal, à sala de fumo. Percebi logo pela sua cara que acontecera algo aborrecido. Seguimo-lo e ele fechou a porta, depois de entrarmos.

 

Sucedeu uma grande chatice, Mary. A Evie teve uma discussão com Alfred Inglethorp e vai-se embora.

 

A Evie? Vai-se embora?

 

John acenou com a cabeça, tristemente.

 

Sim. Imagina, foi ter com a mãe e... Olha, aí está ela própria.

 

Miss Howard entrou, de lábios firmemente cerrados e maleta na mão. Parecia agitada, decidida e ligeiramente na defensiva.

 

Pelo menos, disse o que tinha a dizer! explodiu.

 

Minha querida Evelyn, não pode ser verdade! exclamou Mrs. Cavendish.

 

Mas é, é verdade! confirmou a outra, a acenar com a cabeça, muito séria. Creio que disse à Emily umas coisas que não poderá esquecer nem perdoar tão cedo. Mas provavelmente não penetraram muito fundo, foram como água a escorrer pelas costas de um pato.   Disse-lhe sem rodeios: «A senhora é uma velha, Emily, e não há idiota pior do que, uma velha tonta. O homem é vinte anos mais novo do que você e não tenha ilusões quanto aos motivos por que casou consigo. Dinheiro! Pois bem, não lhe dê demasiado. O agricultor Raikes tem uma mulher jovem e muito bonita. Pergunte ao seu Alfred quanto tempo ele passa por lá.» Ficou furiosa, naturalmente, e eu continuei: vou avisá-la de uma coisa, quer lhe agrade, quer não: aquele homem de melhor grado a assassinaria na cama do que olharia para si! É má peça. Podem-me dizer o que quiser, mas lembre-se do que eu lhe disse: ele é má peça!»

 

Que respondeu ela?

 

«Querido Alfred»... «Queridíssimo Alfred»... «Calúnias venenosas»... «Mentiras perversas»... «Mulher perversa»... Acusar o seu «querido marido»!...repetiu Miss Howard, com uma careta muito expressiva. Quanto mais cedo eu saísse da casa dela, melhor. Por isso vou-me embora.

 

Mas não agora, pois não?

 

Já, neste momento!

 

Ficámos aparvalhados, a olhá-la. Por fim, verificando que não conseguia nada com as suas tentativas de persuasão, John Cavendish saiu da sala, para consultar o horário dos comboios. A mulher seguiu-o, a murmurar qualquer coisa acerca da necessidade de convencer Mrs. Inglethorp a reflectir.

 

Quamdo ela saiu da sala, o rosto de Miss Howard modificou-se. Inclinou-se ansiosamente para mim e disse:

 

O senhor é honesto, Mr. Hastings. Posso confiar em Si? Fiquei um pouco surpreendido. Ela pôs a mão no meu braço

 

e reduziu a voz quaise a um murmúrio:

 

Olhe por ela, Mr. Hastings. Minha pobre Bmily! São uns tubarões, todos eles. Oh, sei do que estou a falar! Não há um só que não esteja sem vintém e a tentar apanhar-lhe dinheiro! Protegi-a o mais que pude, mas agora que fui afastada do caminho hão-de pressioná-la, aproveitar-se dela.

 

Claro que farei tudo quanto puder, Miss Howard, mas estou certo de que a senhora fala assim sob a influência de uma grande agitação e nervosismo...

 

Ela interrompeu-me, a abanar lentamente o indicador:

 

Confie em mim, meu rapaz, pois ando neste mundo há> muito mais tempo do que você. Só lhe peço que conserve os olhos bem abertos. Então verá o que quero dizer.

 

Entrou pela janela a vibração do motor do automóvel e Miss Howard levantou-se e encaminhou-se para a porta. A voz de John soou, no exterior. com a mão no puxador da porta, Miss Howard virou a cabeça, por cima do ombro e recomendou-me:

 

Principalmente, Mr. Hastings, vigie o demónio: o marido dela!

 

Não houve tempo para mais mada. Miss Howard foi engolida por um grande coro de protestos e adeus. Os Inglethorps não apareceram.

 

Quando o automóvel arrancou, Mrs. Cavendish deixou, de súbito, o grupo e atravessou o caminho de carros, ao encontro de um homem alto e de barba que tudo indicava dirigir-se para a residência. As faces de Mary coraram quando estendeu a mão ao indivíduo.

 

Quem é? perguntei vivamente, pois o indivíduo inspirava-me uma desconfiança instintiva.

 

O Dr. Bauerstein respondeu John, concisamente.

 

E quem é o Dr. Bauerstein?

 

Está na aldeia a fazer uma cura de repouso, depois de um grave colapso nervoso. É um especialista londrino muito competente, creio que um dos maiores peritos em venenos.

 

E um grande amigo da Mary acrescentou a irreprimível Cynthia.

 

John Cavendish franziu a testa e mudou de assunto:

 

Vamos dar uma volta, Hastings- Esta história foi muitíssimo desagradável. A Evelyn teve sempre uma língua muito afiada, é verdade, mas não há em toda a Inglaterra amiga mais fiel do que ela.

 

Meteu pelo carreiro através do campo lavrado e fomos até à aldeia, passando pelos bosques que contornavam um dos lados da propriedade.

 

Ao transpormos um dos portões, no regresso a casa, uma mulher nova e bonita, de tipo cigano, que seguia na direcção oposta, inclinou a cabeça e sorriu.

 

Bonita rapariga observei, apreciadoramente.

 

É Mrs. Raikes respondeu John, cujo rosto endureceu.

 

Aquela que Miss Howard...?

 

Exactamente cortou   John, com  desnecessária   brusquidão.

 

Pensei na senhora idosa, de cabelos brancos, que morava naquela grande casa, e no rosto atrevido e cheio de vivacidade que acabava de nos sorrir, e senti percorrer-me um vago calafrio premonitório. Mas afastei tais pensamentos.

 

«Styles» é realmente uma maravilha disse a John

 

Sim, é uma bela propriedade concordou, a acenar melancolicamente com a cabeça. Será minha um dia... já deveria ser minha agora, por direita razão, se o meu pai tivesse feito um testamento decente. Se assim fosse, não estaria tão atrapalhado como estou.

 

Atrapalhado?

 

Meu caro Hastings, não me importo de te dizer que preciso desesperadamente de dinheiro e não sei que fazer.

 

O teu irmão não te pode ajudar?

 

O Lawrence? Gastou tudo quanto tinha a publicar maus versos em bonitas encadernações! Não, estamos ambos falidos. Devo dizer que a minha mãe foi sempre muitíssimo boa para nós... isto é, até agora. Desde que casou, claro... Calou-se, de testa franzida.

 

Senti pela primeira vez que, com a partida de Evelyn Howard, algo de indefinível abamdonara o ambiente. A sua presença dera uma impressão de segurança, mas agora essa segurança dissipara-se e a a atmosfera parecia carregada de suspeitas. Revi desagradavelmente o rosto- sinistro do Dr. Bauenstein- Encheune o espírito de uma suspeita vaga de tudo e todos. Tive, momentaneamente, a premonição de que se aproximava algo de mau.

 

 

16   E   17   DE   JULHO

Chegara a STYLES» no dia 5 de Julho. Agora vou falar dos acontecimentos de 16 e 17 desse mês. Para conveniência do leitor, recapitularei o que se passou nesses dias com a maior exactidão possível. Os incidentes foram posteriormente examinados no julgamento, por meio de longos e enfadonhos interrogatórios.

 

Uns dois dias depois da sua partida, recebi uma carta de Evelyn Howard a dizer-me que estava a trabalhar como auxiliar de enfermagem no grande hospital de Middlingham, uma cidade industrial a cerca de 25 quilómetros de distância, e a pedir-me que a informasse se Mrs. Inglethorp evidenciasse algum desejo de reconciliação.

 

A única nota discordante dos meus pacíficos dias era a extraordinária e, quanto a mim, inexplicável preferência de Mrs. Cavendish pela companhia do Dr- Bauerstem. Não faço a mínima ideia do que ela via no indivíduo, mas estava constantemente a convidá-lo lá para casa e dava muitas vezes longos passeios com ele. Devo confessar que por muito que me esforçasse não descobria o mínimo atractivo no doutor.

 

O 16 de Julho calhou numa segunda-feira. Foi um dia muito agitado. A famosa venda de caridade efectuara-se no sábado e naquela noite haveria uma festa, relacionada com a referida obra caritativa, na qual Mrs. Inglethorp recitaria um poema de guerra. Passámos todos uma manhã atarefadíssima a arranjar e decorar o salão municipal, onde a função se realizaria. Almoçámos tarde e passámos a tarde a descansar no jardim. Reparei que a atitude do John era diferente da habitual; parecia muito agitado e inquieto.

 

Depois do chá, Mrs- Inglethorp foi-se deitar a descansar, a fim de estar em forma para o esforço do serão, e eu desafiei Mary Cavendish para uma partida de ténis.

 

Cerca de um quarto para as sete, Mrs. Inglethorp avisou-nos de que nos atrasaríamos, visto o jantar ser mais cedo, naquele dia. Tivemos de andar depressa, para estarmos prontos a tempo, e antes de acabarmos de comer já o carro estava à espera, à porta’.

 

’O serão foi um grande êxito e a declamação de Mrs. Inglethorp tremendamente aplaudida. Representaram-se também alguns quadros, em que Cynthia participou. A jovem não regressou connosco, pois tinha sido convidada para uma ceia e passaria a noite com alguns amigos que tinham representado com ela.

 

Na manhã seguinte, Mrs. Inglethorp tomou o pequeno-almoço na cama, em virtude de estar muito fatigada. Mas cerca do meio-dia e meia hora apareceu, desembaraçada e activa como sempre, e levou-nos, ao Lawrence e a mim, a um almoço-

 

Tratava-se de um convite encantador de Mrs. Rolleston, a irmã de Lady Tadminster. Os Rollestons vieram com o Conquistador, são uma das nossas famílias mais antigas.

 

Mary escusara-se, a pretexto de que já tinha um compromisso com o Dr. Baiuerstein.

 

Foi um almoço agradável e, quando nos viemos embora’, Lawrence sugeriu que regressássemos por Tadminster, o que nos obrigava a um desvio de pouco mais de um quilómetro, apenas, e visitássemos Cynthia, na farmácia. Mrs. Inglethorp achou a ideia excelente, mas disse que tinha umas cartas para escrever e, por isso, nos deixaria lá e depois nós seguiríamos com Cynthia na charrete.

 

O porteiro do hospital deteve-nos, desconfiado, até Cynthia aparecer, muito severa e bonita na comprida bata branca, e se responsabilizar por nós. Levou-nos para o seu santuário e apresemtou-nos à colega, uma mulher cujo aspecto inspirava temor, mas que ela tratava alegremente por «Nibs».

 

Ena, tantos frascos! exclamei, enquanto os meus olhos percorriam a pequena sala- Sabe realmente o que está em todos eles?

 

Diga qualquer coisa original! pediu Cynthia, comicamente. Não vem aqui ninguém, absolutamente ninguém, que não diga isso. Estamos até a pensar em oferecer um prémio à primeira pessoa que não diga: «Ena, tantos frascos!» E sei que a seguir me vai perguntar: «Quantas pessoas já envenenou?»

 

Dei uma gargalhada e declarei-me culpado.

 

Se soubessem como é fatalmente fácil envenenar alguém por engano, não brincariam com o assunto. Vamos tomar chá! Temos uma quantidade de provisões de toda a espécie naquele armário. Não, Lawrence, esse é o armário dos venenos. No grande... esse mesmo.

 

Tomámos chá alegremente e depois ajudámos Cynthia a lavar a louça. Acabávamos de arrumar a última colher quando bateram à porta.. As feições de Cynthia e Nibs petrificaram-se, de súbito, numa expressão severa e grave.

 

Entre ordenou Cynthia, em tom brusco e profissional. Uma auxiliar de enfermeira muito nova e de ar assustado

 

entrou e estendeu um frasco a Nibs, que apontou para Cynthia, com um gesto vago, e observou, um pouco enigmaticamente:

 

Eu não estou realmente aqui, hoje.

 

Cynthia pegou no frasco e examinou-o com a severidade de um juiz.

 

Isto devia ter vindo esta manhã.

 

A Sr.” Enfermeira pede muita desculpa, mas esqueceu-se.

 

A Sr.” Enfermeira devia ler os regulamentos, que estão afixados do lado de fora da porta.

 

Deduzi pela expressão da jovem auxiliar não haver a mínima probabilidade de ela ter a coragem de repetir a mensagem à temida «Sr.” Enfermeira».

 

Agora só pode ser preparado amanhã declarou Cynthia.   Não lhe seria possível arranjar para esta noite?...

 

Bem, estamos muito cheias de trabalho, mas se tivermos tempo prepará-lo-emos prometeu Cynthia, em tom de quem faz um favor.

 

A rapariga saiu e Cynthia tirou imediatamente um boião da prateleira, encheu o frasco e colocou-o em cima da mesa, do lado de fora.

 

Ri-me.

 

Há que mamter a disciplina?

 

Exactamente- Venham à nossa varandinha, de onde se vêem todas as nossas enfermarias externas.

 

Segui Cynthia e a amiga e elas apontaram-me as diferentes enfermarias. Lawrence deixou-se ficar na sala, mas passados momentos Cynthia chamou-o, por cima do ombro, para se nos juntar. Depois viu as horas.

 

Não há mais nada que fazer, Nibs? perguntou.

 

Não.

 

Nesse caso, podemos fechar a loja e ir-nos embora. Naquela tarde fora-me dado ver Lawrence a uma luz muito

 

diferente. Comparado com o irmão, era uma pessoa dificílima de conhecer. Extraordinariamente tímido e reservado, era o contrário de John em quase todos os aspectos. No entanto, as suas maneiras tinham um certo encanto e eu imaginei que, se alguém o conseguisse conhecer bem, poderia ter-lhe uma afeição profunda. Sempre me parecera que a sua atitude para com Cynthia era muito constrangida e que ela tinha tendência para o evitar, mas naquela tarde mostraram-se ambos alegres e tagarelaram um com o outro como dois garotos.

 

Ao atravessarmos a aldeia, lembrei-me de que precisava de selos e, por isso, parámos nos Correios.

 

Quando saí, choquei com um homenzinho que ia a entrar.

 

Desviei-me e pedi desculpa, mas, nisto, com uma sonora exclamação, ele abraçouHme e beijou-me enternecidamente.

 

Mon ami Hastings! É realmente mon ami Hastings!

 

Poirot! exclamei.

 

Virei-me para a charrete e anunciei:

 

Acabo de ter um encontro muito agradável, Miss Cynthia! Este é o meu velho amigo, Monsieur Poirot, que não via há anos.

 

Nós conhecemos Monsieur Poirot redarguiu Cynthia, risonha. Mas não fazia ideia que fosse seu amigo.

 

É verdade, conheço Mademoiselle Cynthia confinmou Poirot, muito sério. É graças à caridade da boa Mrs. Inglethorp que estou aqui. E, como eu o olhasse interrogadoramente, explicou: Sim, meu amigo, ela teve a bondade de nos conceder hospitalidade, a mim e a sete compatriotas meus, refugiados da sua terra natal. Nós, belgas, recordá-la-emos sempre com gratidão.

 

Poirot era um homenzinho de aspecto extraordinário. Não devia medir mais de 1,60m de altura, mas tinha um porte cheio de dignidade. O formato da sua cabeça era exactamente o de um ovo e ele andava sempre com ela um nadinha inclinada para o lado. Usava um bigode muito espetado e muito marcial. A impecabilidade do seu trajar era quase inacreditável. Creio que um grão de pó lhe faria doer mais do que o ferimento de uma bala. Contudo, aquele homenzinho janota que, triste me foi verificá-lo, coxeava muito, o que não sucedera quando o conhecera, tinha sido no seu tempo um dos mais famosos membros da Polícia belga. Como detective, o seu faro era excepcional e ele acumulara triunfos ao deslindar alguns dos casos mais intrigantes da época.

 

Apontou-me a casinha onde morava com os outros belgas e eu prometi visitá-lo em breve. Depois tirou o chapéu a Cynthia, com um floreado, e nós partimos,

 

 

É um homenzinho simpático observou Cynthia. Não imaginava que o conhecesse.

 

Deram hospitalidade a uma celebridade sem o saberem afirmei.

 

Durante o restante trajecto falei-lhes das várias proezas e dos triunfos de Hercule Poirot.

 

Chegámos numa disposição muito alegre, mas ao entrarmos no vestíbulo, Mrs. Inglethorp saiu da sua saleta e pareceu-nos afogueada e transtornada.

 

Ah, são vocês! exclamou.

 

Aconteceu alguma coisa, tia Emily?perguntou Cynthia.

 

Claro que não! respondeu a anciã, bruscamente. Que querias que acontecesse? Depois, ao ver Dorcas, a criada de fora, entrar na sala de jantar, chamou-a e pediu-lhe que lhe levasse uns selos à saleta.

 

Sim, minha senhora. A velha criada hesitou e por fim perguntou, respeitosa: Não acha que seria melhor deitar-se? Tem um ar muito cansado.

 

Talvez tenhas razão, Dorcas... sim... não, agora, não. Preciso de escrever umas cartas a tempo de seguirem no conreio. Acendeste a lareira no meu quarto, como te disse?

 

Sim, minha senhora.

 

Deitar-me-ei logo depois do jantar.

 

Voltou para a saleta e Cynthia seguiu-a com o olhar.

 

Meu Deus, que terá acontecido? perguntou a Lawrence, Mas ele nem pareceu ouvi-la, pois, sem dizer palavra girou nos calcanhares e saiu de casa.

 

Sugeri uma rápida partida ’de ténis, antes do jamtar, e, como Cynthia concordou, fui a correr buscar a raquete ao quarto.

 

Mrs- Cavendish vinha a descer a escada. Pode ter sido impressão minha, mas parecenwne também estranha e perturbada.

 

Deu um bom passeio com o Dr. Bauerstein? perguntei, tentando falar no tom mais indiferente possível.

 

Não saí respondeu bruscamente. Onde está Mrs. Inglethorp?

 

Na saleta.

 

Vi a mão fechar-se-lhe no corrimão e, depois, pareceu-me que se enchia de coragem, como se decidisse enfrentar qualquer encontro difícil. Desceu rapidamente a escada, atravessou o vestíbulo, entrou na saleta e fechou a porta.

 

Quando corria para a quadra de ténis, poucos momentos depois, tive de passar pela janela da saleta, que estava aberta, e não pude deixar de ouvir um fragmento de diálogo. Mary Cavendish perguntava, no tom de voz de uma mulher que se dominava desesperadamente:

 

Não ma quer, então, mostrar? Ao que Mrs. Inglethorp respondeu:

 

Minha querida Mary, não tem nada a ver com esse assunto.

 

Então mostre-ma.

 

Já te disse que não é o que imaginas. Não te diz absolutamente respeito nenhum.

 

E Mary Cavendish redarguiu, com amargura crescente:

 

Claro, eu devia saber que a senhora o protegeria. Cynthia esperava por mim e, ao verme, informou:

 

Houve uma grande discussão! A Dorcas contou-me tudo.

 

Que tipo de discussão?

 

Entre a tia Emily e ele. Espero que ela lhe tenha descoberto o jogo, finalmente!

 

Então a Dorcas assistiu?

 

Qlaro que não! «Por coincidência estava perto da porta.» Mas foi uma zaragata das antigas! Gostaria de saber acerca de quê.

 

Pensei no rosto aciganado de Mrs. Raikes e nas advertências de Evelyn Howard, mas decidi sensatamente calar a boca, enquanto Cynthia esgotava todas as hipóteses possíveis e rematava, animada pela esperança:

 

A tia Emily mandá-lo-á embora e nunca mais lhe falaráEstava ansioso por falar com o John, mas ele parecia ter levado sumiço. Era evidente que sucedera algo muito importante naquela tarde. Tentei esquecer as poucas palavras que por minha vez também ouvira, ao passar, mas por muito que fizesse não consegui afastá-las por completo do pensamento. Que preocuparia Mary Cavendish em tudo aquilo?

 

Mr. Inglethorp estava na sala quando desci para jantar. O seu eterno rosto impassível e a sua estranha irrealidade surpreenderam-me mais uma vez.

 

Mrs. Inglethorp foi a última a descer. Ainda parecia agitada e durante a refeição reinou um silêncio um pouco constrangido. Inglethorp mostrouHse invulgarmente calado e sossegado. Por norma, rodeava a mulher de pequenas atenções, punha-lhe uma almofada nas costas da cadeira, enfim, desempenhava o papel do marido devotado. Mas naquela noite, não. Logo após o jantar, Mrs. Inglethorpe voltou para a sua saleta.

 

Manda-me lá o meu café, Mary pediu. Disponho apenas de cinco minutos, antes do correio.

 

Cynthia e eu sentámo-nos junto da janela aberta da sala e Mary serviu-nos lá o café. Também parecia enervada.

 

Querem a luz acesa ou gostam da penumbra? perguntou-nos. Levas o café a Mrs. Inglethorp, Cynthia? Eu vou deitá-lo.

 

Não se incomode, Mary interveio Inglethorp. Eu levo-o à Emily. Deitou o café e saiu da sala, segurando cuidadosamente a chávena.

 

Lawrence seguiu-o e Mrs. Cavendish sentou-se junto de nós.

 

Ficámos algum tempo calados, os três. Estava uma noite maravilhosa, quente e serena. Mrs. Cavendish abanava-se lentamente com uma folha de palmeira.

 

Está um calor quase excessivo murmurou. Vai haver trovoada.

 

Infelizmente, tais momentos harmoniosos não podem durar. O meu paraíso foi rudemente despedaçado pelo som de uma voz bem conhecida e profundamente detestada, no vestíbulo.

 

O Dr. Rauerstein! exclamou Cynthia. Que estranha hora para aparecer!

 

Olhei, ciumento, para Mary Cavendish, mas ela parecia absolutamente imperturbável e a palidez delicada das suas faces não mudou.

 

Poucos momentos depois, Alfred Inglethorp entrava com o doutor, o qual afirmava, a rir, que não se encontrava em estado de aparecer numa sala. E, na verdade, apresentava um espectáculo lamentável, todo ele coberto de lama seca.

 

Que andou a fazer, doutor? perguntou-lhe Mrs. Cavendish.

 

Devo apresentar as minhas desculpas insistiu o indivíduo. Não tencionava entrar, creiam, mas Mr. Inglethorp insistiu.

 

Bem, Bauerstein, parece em apuros observou John, que entrava na sala vindo do vestíbulo. Beba uma chávena de café e conte-nos em que andou metido.

 

Obrigado, aceito.

 

Riu-se, um pouco atrapalhado, ao explicar que descobrira uma espécie de feto muito rara, num lugar inacessível, e que ao esforçar-se por alcançá-lo, escorregara e fora parar ignominiosamente a um tanque próximo.

 

O sol secou-me depressa acrescentou , mas o meu aspecto está uma desgraça.

 

Nesse momento, Mrs. Inglethorp chamou Cynthia, do vestíbulo, e a jovem levantou-se e correu ao seu encontro.

 

Leva para cima a minha caixa da correspondência, sim, querida? Vou-me deitar.

 

A porta de acesso ao vestíbulo era larga. Eu levantara-me quando Cynthia se levantara, e John estava perto de mim Havia portamto três testemunhas que podiam jurar que Mrs. Inglethorp tinha a chávena do café na mão, ainda intacta

 

A presença do Dr. Bauerstein estragou-me por completo o serão. Parecia-me que o indivíduo nunca mais se ia embora’. Mas ele lá se levantou, por fim, e eu soltei um suspiro de alívio.

 

Acompanho-o a pé até à aldeia disse Mr. Inglethorp. Preciso de falar com o nosso agente acerca de umas contas da propriedade. Voltou-se para John e acrescentou: Não é necessário ficar ninguém levantado à minha espera; levo a chave do trinco.

 

A NOITE DA TRAGÉDIA

Para tornar esta parte da minha história mais clara junto a seguinte planta do primeiro andar de Styles:

 

 

Há aqui um esquema que não pode ser descrito de modo intelegível

 

O acesso aos quartos dos criados faz-se pela porta B. Estes não têm qualquer comunicação com a ala direita, onde ficavam os quartos dos Inglethorps.

 

Lawrence Cavendish acordou-me, creio que mo meio da noite. Segurava uma vela e a agitação do seu rosto disse-me logo que se passava algo muito grave.

 

Que aconteceu? perguntei, sentando-me na cama e tentando ordenar as ideias.

 

, Receamos que a minha mãe esteja muito doente. Parece estar com uma espécie de ataque qualquer. Infelizmente, aferrolhou-se por dentro.

 

Vou imediatamente.

 

Saltei da cama, enfiei um roupão e segui Lawrence pelo corredor, até à ala direita da casa.

 

John Cavendish reuniu-se-nos. Duas ou três criadas estavam paradas nas proximidades, cheias de nervosismo e medo. Lawrence virou-se para o irmão e perguntou-lhe:

 

Que te parece que devemos fazer?

 

Nunca a indecisão do seu carácter me parecera mais aparente.

 

John girou violentamente o puxador da porta de Mrs. Inglethorp, mas sem resultado. Era evidente que a porta estava fechada à chave ou aferrolhada do lado de dentro. Entretanto, toda a casa acordara. Do interior do quarto vinham os sons mais alarmantes. Era preciso fazer qualquer coisa, sem dúvida.

 

Tente entrar pelo quarto de Mr. Inglethorp sugeriu Dorcas. Oh, a pobre senhora!

 

De súbito, reparei que Alfred Inglethorp não estava connosco, que só ele não dera ainda sinal da sua presença. John abriu a porta do quarto» do indivíduo, que estava absolutamente às escuras. Mas Lawrence seguiu-o com a vela, a cuja luz fraca vimos que ninguém utilizara a cama nem havia quaisquer sinais de o quarto ter sido ocupado-

 

Fomos direitos à porta de comunicação, mas também estava fechada, ou aferrolhada, do outro lado. Que fazer?

 

Oh, meu querido senhor choramingou Dorcas, a torcer as mãos, que havemos de fazer?

 

Temos de tentar arrombar a porta, creio. Mas será difícil. Olhe, mande uma das criadas lá abaixo, acordar o Baily, e ele que vá imediatamente chamar o Dr. Wilkins. Entretanto, experimentaremos arrombar a porta. Um momento! Não há uma porta de acesso ao quarto de Miss Cynthia?

 

Há, sim, senhor, mas essa está sempre aferrolhada. Nunca

 

é aberta.

 

Bem, podíamos ver.

 

Correu rapidamente pelo corredor fora, para o quarto de Cynthia. Mary Cavendish já lá estava, a sacudir a rapariga que devia ter um sono extraordinariamente pesado e a tentar acordá-la

 

Voltou passados momentos.

 

Nada feito, também está aferrolhada. Temos de arrombar a porta. Creio que esta é um bocadinlho menos sólida do que a do corredor.

 

Tomámos balanço e investimos juntos. A porta era sólida e resistiu durante muito tempo aos nossos esforços, mas por fim sentimo-la ceder sob o nosso peso até que, estrondosamente,

 

se escancarou.

 

Entrámos todos de cambulhada, o Lawrence ainda a segurar a vela. Mrs. Inglethorp estava deitada na cama, com todo o corpo agitado por violentas convulsões, numa das quais devia ter derrubado a mesa-de-cabeceira. Quando entrámos, porém, os membros descontraíram-se-lhe e recaiu nas almofadas.

 

John atravessou o quarto e acendeu o gás- Depois virou-se para Annie, uma das criadas, e mandou-a buscar brande à sala de jantar. Em seguida aproximou-se da mãe, enquanto eu abria a porta que dava para o corredor.

 

Virei-me para Lawrence, para lhe dizer que talvez fosse melhor deixá-las, agora que já não necessitavam dos meus serviços, mas as palavras gelaram-me nos lábios. Nunca vira uma expressão tão terrível no rosto de qualquer homem. Estava lívido como a cal, a vela que segurava com mão trémula pingava cera para a carpete e os seus olhos, petrificados de terror ou de qualquer emoção semelhante, olhavam fixamente, por cima da minha cabeça, para um ponto na parede. Era como se tivesse visto qualquer coisa que o transformara em pedra. Segui instintivamente a direcção do seu olhar, mas não vi nada de estranho. As cinzas da lareira, ainda vagamente avermelhadas, e os ornamenttos afectados da prateleira da chaminé, pareceram-me absolutamente inofensivos.

 

A violência do ataque de Mrs. Inglethorp parecia diminuir e ainda conseguiu falar, em arrancos breves:

 

Estou melhor... foi muito rápido... estupidez a minha... fechar-nme cá dentro...

 

Projectou-se uma sombra na cama e, levantando a cabeça, vi Mary Cavendish parada junto da porta, com o braço à volta de Cynthia- Dava a impressão de estar a amparar a rapariga, que parecia absolutamente atordoada e diferente de si mesma. Tinha a cara muito corada e bocejava repetidamente.

 

Pobre Cynthia, está muito assustada disse Mrs. Cavendish, em voz baixa eclara.

 

Reparei que ela própria vestia a bata branca com a qual costumava trabalhar na quinta, o que significava que devia ser mais tarde do que eu pensara Coava-se pelas cortinas das janelas uma leve luminosidade e no relógio da chaminé eram quase cinco horas.

 

Um grito estrangulado, vindo da cama, assustou-me. Um novo acesso de dor torturava a infeliz senhora. As convulsões eram de uma violência terrível. Gerou-se confusão. Cercá-mo-la todos, incapazes de a ajudar ou de lhe aliviar o sofrimento. Uma derradeira convulsão ergueu-a da cama, até ela parecer repousar apenas na cabeça e nos calcanhares, enquanto todo o corpo se lhe arqueava de modo extraordinário. Em vão Mary e John tentaram fazê-la ingerir mais brande. O tempo voavaO corpo voltou a arquear-se daquela estranha maneira,

 

Nesse momento, o Dr. Bauerstein abriu autoritariamente caminho e entrou no quarto. Estacou um momento, a fitar a figura na cama, e no mesmo instante Mrs. Inglethorp gritou, em voz estrangulada e com os olhos fixos no médico:

 

Alfred... Alfred!... Depois recaiu, imóvel, na cama. com uma passada, o médico alcançou o leito e, agarrando nos braços de Mrs. Inglethorp, movimentou-os energicamente, aplicando-lhe aquilo que eu sabia ser respiração artificial. Deu algumas ordens breves e peremptórias às criadas- Um gesto imperioso da sua mão fez-nos recuar a todos para a porta. Observámo-lo, fascinados, embora eu creia que todos sabíamos, no nosso íntimo, que era demasiado tarde e que já nada podia ser feito. Pareceu-mi, pela expressão de Bauerstein, que ele também tinha poucas esperanças.

 

Por fim desistiu dos seus esforços, a abanar gravemente a cabeça. Nesse momento ouvimos passos, no exterior, e o Dr. Wilkins, médico particular de Mrs. Inglethorp, um homenzinho corpulento e atarantado, entrou no quarto.

 

Em poucas palavras, o Dr. Bauerstein explicou-lhe que ia a passar junto do portão quando o carro ia a sair e que correra para a residência o mais depressa que pudera, enquanto o automóvel ia buscar o Dr. Wilkins. Apontou, com um pequeno gesto, o vulto estendido na cama.

 

Mui...to triste, mui...to triste murmurou o Dr. Wilkins. Pobre senhora.! Fazia sempre mais do que devia... mais ao que devia... contrariamente aos meus conselhos. Eu avisei-a, o seu coração ’não estava nada forte. «Tenha calma», recomendei-lhe, «tenha calma e não abuse.» Mas não, o afã das obras de caridade era demasiado grande. A natureza revoltou-se. A na...tu...re…za ré...voltou-se.

 

Reparei que o Dr. Bauerstein observava o médico local de olhos semicerrados. E foi sem o desfitar que falou:

 

As convulsões revestiram-se de violência peculiar, Dr. Wilkins. Lamento que não tenha chegado a tempo de as observar. Eram de carácter... tetânico.

 

Ah! exclamou o Dr. Wilkins, sensatamente.

 

Gostaria de falar consigo em particular disse o Dr. Bauerstein, e acrescentou, voltando-se para John: Importa-se?

 

Claro que não.

 

Saímos todos para o corredor, deixando os dois médicos sozinhos, e eu ouvi a chave girar na fechadura.

 

Descemos a escada, devagar. Sentia-me violentamente excitado. Possuo um certo talento dedutivo e a atitude do Dr. Bauerstein desencadeara uma série de loucas suposições no meu espírito. Mary Cavendish pôs a mão no meu braço e perguntou:

 

Que se passa? Porque se mostrou o Dr. Bauerstein tão... estranho?

 

Quer saber o que penso?perguntei, fitando-a.

 

Quero.

 

Escute. Olhei em redor, certifiquei-me de que os outros estavam afastados, mas mesmo assim baixei a voz, ao dizer: Acho que ela foi envenenada! Tenho a certeza de que o Dr. Bauerstein suspeita disso.

 

O quê?! Mary encolheu-se contra a parede, com as pupilas muito dilatadas, e depois assustou-me, desatando subitamente a gritar: Não, não... isso não... isso não!

 

Afastou-se de mim e correu pela escada ’acima. Segui-a, com receio de que desmaiasse, e encontrei-a encostada ao corrimão, mortalmente pálida. Mandou-me embora com um gesto impaciente.

 

Não, não... deixe-me. Prefiro ficar sozinha. Deixe-me sossegada um minuto ou dois, volte para junto dos outros.

 

Obedeci-lhe, contrafeito. John e Lawrence estavam na sala e eu juntei-me a eles. Creio que exprimi o pensamento de todos quando quebrei, finalmente, o silêncio e perguntei:

 

Onde está Mr. Inglethorp?

 

John abanou a cabeça.

 

Não está em casa.

 

Os nossos olhos fitaram-se. Onde estava Alfred Inglethorp? A sua ausência era estranha e inexplicável. Lembrei-me das últimas palavras de Mrs- Inglethorp. Que ocultariam? Que mais poderia ela ter-nos dito, se tivesse tido tempo?

 

Finalmente ouvimos os médicos descer a escada. O Dr. Wilkins vinha com um ar importante e agitado e dir-se-ia tentar ocultar a exultação interior sob uma atitude de calma apropriada. O Dr. Bauerstein manteve-se em segundo plano, com o grave rosto barbudo imperturbável. O Dr. Wilkins foi o porta-voz de ambos, ao dirigir-se a John:


Mr. Cavendish, desejava o seu consentimento para, uma autópsia.

 

É necessário? perguntou John, muito sério, e um espasmo de dor perpassou-lhe pelo rosto.

 

Absolutamente respondeu o Dr. Bauerstein.

 

Quer dizer com isso...?

 

Quero dizer que, dadas as circunstâncias, nem o Dr. Wilkins nem eu poderíamos assinar uma certidão de óbito.

 

John baixou a cabeça.

 

Nesse caso, não tenho outro remédio senão autorizar.

 

Obrigado agradeceu, vivamente, o Dr. Wilkims. Tencionamos efectuá-la amanhã à noite, ou melhor, esta noite informou, a olhar para a luz do dia. Dadas as circunstâncias, receio que seja impossível evitar um inquérito. Estas formalidades são necessárias, mas peço-lhes que não se atormentem...

 

Seguiu-se uma pausa e, depois, o Dr. Bauerstein tirou duas chaves da algibeira e estendeu-as a John:

 

São as chaves dos dois quartos Fechei-os à chave e, na minha opinião, acho que os deviam conservar assim, por enquanto.

 

Os médicos foram-se embora.

 

Estivera a remoer uma ideia, mentalmente, e pareceu-me que chegara o momento de a expor. No entanto, tinha um certo receio de o fazer, pois sabia que o John tinha horror a qualquer tipo de publicidade e era uma espécie de optimista, que preferia não ir, nunca, ao encontro de aborrecimentos. Talvez fosse difícil convencê-lo do acerto do meu plano. Quanto a Lawrence, parecia-me que poderia contar com ele como aliado, em virtude de ser menos convencional e de possuir mais imaginação do que o irmão. Não me restavam dúvidas de que chegara o momento de falar:

 

John, vou pedir-te uma coisa.

 

O quê?

 

Lembras-te de eu falar do meu amigo Poirot, o detective belga que está cá?

 

Lembro.

 

Quero que me deixes chamá-lo... para investigar este caso.

 

O quê, agora? Antes da autópsia?

 

Sim. O tempo é uma vantagem, se... se houve crime.

 

Disparate! protestou   Lawrence,   furioso. Na minha opinião, é tudo uma confusão do Bauerstein! Não passou tal coisa pela cabeça do Wilkins enquanto o Bauerstein lá não lha meteu. Mas, como todos os especialistas, o Bauerstein não regula bem. Os venenos são o seu passatempo e por isso, claro, vê-os em toda a parte.

 

Confesso que fiquei surpreendido com a atitude do Lawrence, que só muito raramente manifestava’ veemência acerca de qualquer coisa.

 

John hesitou.

 

Não penso como tu, Lawrence declarou, por fim. Sinto-me inclinado a dar pulso livre ao Hastings, embora preferisse esperar um pouco. Não desejamos nenhum escândalo desnecessário.

 

Não, não! apressei-me a tranquilizá-lo. Não tenhas qualquer receio a esse respeito. O Poirot é a discrição em pessoa.

 

Nesse caso, muito bem, procede como entenderes. Deixo tudo nas tuas mãos... embora, se as coisas são como suspeito, o caso seja simples e claro. Deus me perdoe se estou a ser injusto!

 

Consultei o relógio. Seis horas. Decidi não perder tempo.

 

No entanto, concedi-me uma demora de cinco minutos, durante os quais bisbilhotei na biblioteca até encontrar um livro de medicina que descrevia o envenenamento pela estricnina.

 

POIROT   INVESTIGA

A casa ocupada pelos belgas na aldeia ficava muito perto dos portões do parque. Poupava-se tempo metendo por um estreito carreiro através da erva alta, que evitava os desvios do caminho de carros, todo às curvas. Fui, pois, por aí. Estava quase a chegar à casa do guarda quando atraiu a minha atenção o vulto de um homem a correr na minha direcção. Era Mr. Inglethorp. Onde estivera? Como pensaria explicar a sua ausência?

 

Dirigiu-se-me ansiosamente e exclamou:

 

Meu Deus, é horrível! A minha pobre mulher! Só agora tive conhecimento...

 

Onde esteve?

 

O Denby demorou-me, a noite passada, já era uma hora da manhã quando acabámos. Depois, ainda por cima, descobri que me esquecera da chave do trinco. Não quis acordar toda a gente e, por isso, o Denby cedeu-me uma cama.

 

Como soube a notícia?

 

O Wilkins acordou o Denby para lhe dizer. Minha pobre Emily! Tão abnegada, um carácter tão nobre... Abusou das forças.

 

Percorreu-me uma grande náusea. Que consumado hipócrita o indivíduo era!

 

Estou com pressa disse-lhe, grato por ele não me perguntar aonde ia.

 

Poucos minutos depois estava a bater à porta do «Leastway Cottage».

 

Como não obtivesse resposta, bati de novo, impacientemente. Abriu-se uma janela do andar de cima, cautelosamente, e Poirot em pessoa’ espreitou pela abertura.

 

Soltou uma exclamação de surpresa, ao ver-me. Em poucas e breves palavras relatei-lhe a tragédia ocorrida e disse-lhe que desejava a sua ajuda.

 

Espere, meu amigo. vou abrir-lhe a porta e contar-me-á tudo de novo enquanto eu me vestir.

 

Passados instantes destrancou a porta e eu acompanhei-o ao quarto, onde me instalou numa cadeira. Contei-lhe então a história toda, sem ocultar nada nem omitir quaisquer circunstâncias, por muito insignificantes que parecessem, enquanto ele se arranjava com todo o cuidado e esmero.

 

Contei-lhe como acordara, repeti-lhe as últimas palavras de Mrs. Inglethorp e pu-lo ao corrente da ausência do marido da vítima, da zaragata do dia anterior, do fragmento de conversa que ouvira por acaso entre Mary e a sogra, da anterior discussão entre Mrs. Inglethorp e Evelyn Howard e das insinuações desta ultima.

 

No entanto, não fui tão claro quanto desejaria, repeti-me diversas vezes e ocasionalmente tive de voltar atrás, para referir um ou outro pormenor que esquecera. Poirot sorriu-me, compreensivamente.

 

A mente está confusa, não é verdade? Não se apresse, mon ami. Está nervoso, agitado, o que é natural. Daqui a bocadinho, quando estivermos mais calmos, ordenaremos os factos, arrumá-los-emos muito bem arrumadinhos nos seus lugares próprios. Estudá-los-emos e rejeitaremos os que não interessarem. Poremos os importantes de um lado e os outros, os sem importância... puf! franziu a cara de querubim e soprou comicamente, prescindiremos deles.

 

Isso é muito bonito, mas como decidirá o que é importante e o que não é? É isso que me parece sempre difícil, a mim.

 

Poirot abanou a cabeça, energicamente, enquanto tratava do bigode com minucioso cuidado.

 

Mas não é. Voyons! Um facto conduz a outro, por isso continuamos.   O   seguinte também se ajusta? A   merveille! Óptimo! Podemos prosseguir. O factozinho seguinte...   não! Ah, é curioso! Falta qualquer coisa, não está presente um elo da cadeia. Examinamos. Procuramos. E o factozinho curioso, o pormenorzinho porventura insignificante que não se coaduna, pomo-lo aqui! Fez um gesto extravagante, com a mão. É significativo! É tremendo!

 

Sim...

 

Ah! Poirot agitou tão veementemente o polegar à minha frente que me encolhi. Acautele-se! Ai do detective que diz: «É muito insignificante... não tem importância. Não se conjuga. Não pensarei mais nele.» Esse é o caminho para a confusão! Tudo tem importância.

 

Bem sei, o senhor sempre me afirmou isso. Foi por tal motivo que lhe revelei todos os pormenores do caso, quer me parecessem relevantes, quer não.

 

E eu estou satisfeito consigo por tê-lo feito. Tem boa memória e revelou-me os factos fielmente. Da ordem pela qual se apresentam, não digo nada... é francamente deplorável! Mas dou desconto, você está transtornado. É a isso, aliás, que atribuo ter omitido um facto de extrema importância.

 

Qual?

 

Não me disse se Mrs. Inglethorp comeu bem a noite passada.

 

Fitei-o, pasmado. A guerra afectara, com certeza, o cérebro do homenzinho! Escovava cuidadosamente o casaco, antes de o vestir, e parecia completamente absorto na tarefa.

 

Não me lembro confessei. E, de resto, não vejo...

 

Não vê? Mas é de primordial importância!

 

Não compreendo porquê repliquei, um pouco abespinhado. Que me lembre, ela não comeu muito. Estava visivelmente transtornada e isso tirara-lhe o apetite, o que era natural.

 

38


Sim murmurou Poirot, pensativo, era natural. Abriu uma gaveta da qual tirou uma pequena pasta e depois virou-se para mim.

 

Estou pronto. Podemos seguir para a mansão e estudar o assunto in loco. Desculpe, mon ami, vestiu-se à pressa e tem a gravata à banda. Dê-me licença.

 

Endireitou-a, com um gesto hábil e lesto.

 

Ça y est! Já está! Podemos partir?

 

Percorremos a aldeia apressadamente e transpusemos o portão da propriedade. Poirot deteve-se um momento e olhou, pesaroso, para o enorme parque, ainda cintilante de orvalho.

 

Tão belo, tão belo! E pensar que a pobre família está mergulhada em sofrimento, prostrada pelo desgosto!

 

Olhou-me vivamente, enquanto falava, e eu tive consciência de que corava sob o seu olhar prolongado. A família estava prostrada pelo desgosto? O sofrimento causado pela morte de Mrs. Inglethorp era assim tão grande? Compreendi que havia na atmosfera’ como que uma carência emocional. A morta não tivera o dom de inspirar amor. O seu falecimento era um choque e uma angústia, mas ela não seria apaixonadamente chorada.

 

Poirot, que parecia ler-me os pensamentos, acenou gravemente com a cabeça.

 

Tem razão, não é como se existissem laços de sangue murmurou. Ela foi boa e generosa para os Cavendish, mas não era a sua verdadeira mãe. O sangue conta, lembre-se sempre disso, o sangue conta.

 

Poirot, gostaria que me dissesse porque quis saber se Mrs. Inglethorp comeu bem a noite passada. Tenho estado a pensar nisso, mas não consigo compreender como poderá esse pormenor ter alguma coisa a ver com o assunto.

 

Recomeçámos a andar e Poirot deixou passar um momento, antes de se decidir a responder:

 

Não me importo de lho dizer... embora, como sabe, não seja meu hábito explicar as coisas antes do fim. A presente suposição é que Mrs. Inglethorp morreu em consequência de envenenamento pela estricnina, presumivelmente administrada no café.

 

E então?

 

A que horas foi o café servido?

 

Cerca das oito horas.

 

Portanto, ela tê-lo-á bebido entre as oito e as oito e meia... nunca muito mais tarde, com certeza. Ora a estricnina é um veneno relativamente rápido. O seu efeito devia ter sido sentido pouco tempo depois, provavelmente no espaço de cerca de uma hora. No entanto, no caso de Mrs. Inglethorp, os sintomas só se manifestaram às cinco da manhã seguinte, ou seja, passadas nove horas! Mas uma refeição pesada, ingerida mais ou menos ao mesmo tempo que o veneno, poderia retardar-lhe os efeitos, embora dificilmente os conseguisse retardar tantas horas. É, contudo, uma possibilidade a ter em consideração. Mas, segundo diz, ela comeu muito pouco ao jantar, e apesar disso os sintomas só se manifestaram ao princípio da manhã seguinte! Curiosa circunstância, meu amigo. É possível que a autópsia revele qualquer coisa que a explique.   Entretanto, não a esqueça.

 

Quando nos aproximávamos da casa, John saiu e veio ao nosso encontro. Tinha um ar muito cansado e perturbado.

 

Um caso horrível, Monsieur Poirot. O Hastings explicou-lhe que desejamos evitar toda a publicidade?

 

Compreendo perfeitamente.

 

Já vê, por enquanto não passa de uma suspeita, não temos nada em que nos basear... ’

 

Precisamente. Trata-se apenas de uma precaução.

 

John virou-se para mim, ao mesmo tempo que tirava a cigarreira e acendia um cigarro. Sabes que o Inglethorp regressou?

 

Sei. Encontrei-o.

 

John atirou o fósforo para um canteiro adjacente, o que foi de mais para os sentimentos de Poirot: apanhou o fósforo e enterrou-o muito bem.

 

É muito difícil saber como tratá-lo.

 

Essa dificuldade não durará muito tempo declarou Poirot, calmamente.

 

John pareceu intrigado, sem compreender bem o alcance da enigmática frase. Estendeu-me as duas chaves que o Dr. Baiuerstein lhe dera.

 

Mostra a Monsieur Poirot tudo quanto ele quiser ver.

 

Os quartos estão fechados à chave? perguntou o detective.

 

O Dr. Bauerstein achou aconselhável... Poirot acenou com a cabeça, pensativamente.

 

O que significa que não tinha dúvidas.., Bem, isso simplifica as coisas, para nós.

 

Fomos juntos ao quarto da tragédia Para conveniência do leitor, segue-se um esquema do quarto e dos seus principais móveis.

 

Poirot fechou a porta à chave, pelo interior, e iniciou uma inspecção minuciosa do quarto. Saltava de um objecto para outro com a agilidade de um gafanhoto. Quanto a mim, deixei-me ficar junto da porta, receoso de obliterar quaisquer vestígios. Mas Poirot não pareceu grato com os meus cuidados

 

Que tem, meu amigo? Porque está aí parado como... como é que vocês dizem? ... ah, já sei, como um basbaque?

 

Expliquei-lhe que receava obliterar quaisquer pegadas.

 

Pegadas? Mas que ideia! Já esteve praticamente um exército neste quarto! Que pegadas poderíamos encontrar? Não, homem, venha ajudar-me na minha busca. vou largar aqui a minha pastinha, até precisar dela.

 

Colocou-a na mesinha redonda, junto da janela, mas foi mal pensado, pois o tampo da mesa estava solto, inclinou-se e a pasta foi parar ao chão.

 

En voilà une table exclamou o detective. Ah, meu amigo, pode-se viver numa grande casa e, apesar disso, não ter conforto nenhum!

 

Depois da sentençazinha moralista, voltou   ao trabalho.

 

Uma caixa de correspondência cor de púrpura, com uma chave na fechadura e colocada em cima da escrivaninha, prendeu-lhe a atenção durante algum tempo. Tirou a chave da fechadura e estendeu-ma, para que a observasse. Mas eu não lhe encontrei nada- de especial. Era uma chave vulgar, de tipo Yale, com um pedaço de arame torcido passado pelo buraco.

 

Em seguida examinou a porta que arrombáramos, certificando-se de que o ferrolho estivera realmente corrido. Depois dirigiu-se à porta oposta, que levava ao quarto de Cynthia. Também estava o ferrolho corrido, como eu declarara. No entanto, ele deu-se ao trabalho de correr o ferrolho e abri-la e fechá-la várias vezes, usando de extremo cuidado para não fazer barulho. De súbito, algo no ferrolho pareceu prender-lhe a atenção. Examinou tudo demoradamente e, ágil, tirou uma pinça da pasta e com ela recolheu qualquer partícula minúscula, que fechou cuidadosamente num pequeno sobrescrito.

 

Em cima da cómoda estava uma bandeja com uma lamparina de álcool, sobre a qual se encontrava um tachinho. No fundo deste via-se uma pequena quantidade de um líquido escuro e perto estavam uma chávena e um pires usados, mas vazios. Perguntei a mim mesmo como me escapara tudo aquilo antes. Ali estava um indício a não desperdiçar. Delicadamente, Poirot molhou o dedo no líquido escuro e provou. Fez uma careta.

 

Cacau... creio que com rum.

 

Dedicou em seguida a sua atenção aos objectos espalhados no chão, em consequência da queda da mesa-de-cabeceira Um candeeiro de leitura, alguns livros, fósforos, um molho de chaves e os fragmentos esmagados de uma chávena de café.

 

Ah, isto é curioso! exclamou.

 

Confesso que não vejo nada de particularmente curioso...

 

Não? Observe o candeeiro. O quebra-luz está partido em dois pontos, e os bocados encontram-se onde caíram. A chávena, no entanto, está completamente triturada, feita em pó.

 

Bem, suponho que alguém a pisou...

 

Exactamente aquiesceu Poirot, em voz estranha. Alguém a pisou.

 

Levantou-se e dirigiu-se devagar para a prateleira, da chaminé, onde parou a tocar distraidamente nos objectos ornamentais e a endireitá-los um tique seu, quando estava agitado.

 

Mon ami disse, finalmente, virando-se para mim, alguém pisou essa chávena, até a fazer em pó, e fê-lo quer porque a chávena contivera estricnina, quer e isso seria muito mais grave porque não contivera estricnina!

 

Não respondi. Estava intrigado, mas sabia que seria inútil pedir-lhe que explicasse. Passados momentos, Poirot arrancou-se aos seus pensamentos e recomeçou a investigar. Apanhou o molho das chaves do chão e, girando-as num dedo, acabou por escolher uma> muito brilhante, que experimentou na fechadura da caixa cor de púrpura. Servia e ele abriu a caixa, mas após um momento de hesitação fechou-a de novo à chave e guardou na algibeira o molho de chaves, assim como a que estivera primitivamente na fechadura da caixa.

 

Não tenho autoridade para mexer naqueles papéis. Mas é uma coisa que deve ser feita... imediatamente!

 

Depois examinou com muito cuidado as gavetas do lavatório. Ao atravessar o aposento na direcção da janela do lado esquerdo, uma nódoa redonda, quase invisível na carpete castanha-escura, pareceu despertar-lhe especial interesse. Ajoelhou e examinou-a minuciosamente, indo ao ponto de a cheirar.

 

Por fim deitou algumas gotas de cacau num tubinho e fechou-o com cuidado. A seguir tirou da algibeira um livrinho de apontamentos.

 

Encontrámos neste quarto disse, enquanto escrevia diligentemente seis pontos de interesse. Enumero-os, ou enumera-os você?

 

Oh, enumere-os o senhor! apressei-me a responder.

Muito bem. Um, uma chávena de café que foi triturada até ficar reduzida a pó; dois, uma caixa de correspondência com uma chave na fechadura; três, uma nódoa no chão...

 

Pode ter sido feita há algum tempo interrompi.

 

Não, pois ainda está perceptivelmente húmida e cheira a café. Quatro, um fragmento de qualquer tecido verde-escuro apenas um fio ou dois, mas reconhecível.

 

Ah! exclamei. Foi isso que fechou no sobrescrito?

 

Foi. Pode descobrir-se que pertence a um dos vestidos da própria Mrs. Inglethorp e, portanto, não tem importância. Veremos. Cinco, isto.’ com um gesto teatral, apontou para um grande pingo de estearina no chão, junto da escrivaninha. Ontem não devia cá estar, pois uma boa criada tê-lo-ia tirado, mal o visse, com um mata-borrão e um ferro quente. Uma vez, um dos meus melhores chapéus... Mas isso não interessa.

 

É muito provável que tenha sido feito ontem à noite. Estávamos todos muito agitados... Ou talvez a própria Mrs. Inglethorp tenha deixado cair a vela!

 

Trouxeram apenas uma vela quando entraram no quarto?

 

Sim, apenas uma. Era o Lawrence Cavendish quem a trazia., mas estava muito enervado. Pareceu ver qualquer coisa ali apontei para a prateleira da chaminé, qualquer coisa que o paralisou.

 

Isso é interessante afirmou Poirot, muito depressa. Sim, é sugestivo... enquanto falava, os seus olhos iam percorrendo toda a extensão da parede ... mas não foi a vela dele que largou este grande pingo, que como vê é branco, ao passo que a vela de Monsieur Lawrence, que ainda está em cima do toucador, é cor-de-rosa. Por outro lado, Mrs. Inglethorp não tinha nenhum castiçal no quarto, tinha apenas um candeeiro de leitura,

 

Então que deduz?

 

O meu amigo limitou-se a responder-me irritavelmente, aconselhando-me a utilizar as minhas próprias faculdades naturais.

 

E o sexto ponto? indaguei. Suponho que se trata da amostra de cacau.

 

Não respondeu Poirot, pensativamente. Podia ter, de facto, incluído isso nos seis pontos, mas não incluí. Por enquanto, guardarei segredo do sexto ponto.

 

Lançou um olhar rápido em redor da sala e declarou:

 

Não há mais nada a fazer aqui, creio, a não ser... olhou atenta e demoradamente para as cinzas apagadas da lareira. O fogo queima... e destrói. Mas, com sorte, talvez... Vejamos!

 

Ajoelhou-se, ágil, e começou a remexer nas cinzas com o máximo cuidado. De súbito, soltou uma exclamação abafada e pediu-me:

 

A pinça, Hastings!

 

Entreguei-lha sem demora e, com movimentos hábeis, ele extraiu das cinzas um bocadinho de papel meio chamuscado.

 

Aqui tem, mon ami! Que pensa’ disto?

 

Observei o fragmento, que reproduzo exactamente a seguir:

 

Senti-me intrigado. Era um papel grosso, muito diferente do papel de apontamentos vulgar... De súbito, tive uma ideia:

 

Poirot, é um bocado de um testamento!

 

Exactamente.

 

Não está surpreendido? admirei-me.

 

Não respondeu, em tom muito sério. Já o esperava. Entreguei-lhe o bocadinho de papel e vi-o guardá-lo na pasta,

 

com o mesmo cuidado metódico com que fazia tudo. No meu cérebro havia um verdadeiro turbilhão. Que complicação vinha a ser agora aquela do testamento? Quem o destruíra? A pessoa que deixara o pingo de estearina no chão? Sem dúvida. Mas como conseguira alguém entrar ali? Todas as portas estavam aferrolhadas por dentro...

 

Agora, meu amigo, podemos ir disse Poirot, desembaraçado. Gostaria de fazer algumas perguntas à criada de fora... chama-se Dorcas, não é?

 

Passámos pelo quarto de Alfred Inglethorp, no qual Poirot se demorou o tempo suficiente para um exame breve, mas que abarcou praticamente tudo. Saímos pela porta desse quarto, que fechámos à chave assim como fecháramos a do quarto de Mrs. Inglethorp.

 

Levei-o à saleta que ele mostrara o desejo de ver e fui eu próprio procurar Dorcas.

 

Quando voltei com ela, porém, a sala estava deserta,.

 

Poirot chamei-o , onde está?

 

Estou aqui, meu amigo.

 

Saíra pela porta-janela e estava parado, aparentemente absorto na admiração dos canteiros de flores de diversos formatos.

 

Admirável! murmurou. Admirável!   Que simetria! Repare naquele crescente... e naqueles losangos... A sua perfeição alegra os olhos. O espacejamento das plantas também está perfeito. Foi arranjado recentemente, não foi?

 

Sim, creio que estiveram aí a trabalhar ontem à tarde. Mas entre, a Dorcas está aqui.

 

Eh bien, eh bien! Não me negue um momento de satisfação visual!

 

Pois sim, mas este assunto é mais importante.

 

E como sabe que estas lindas begónias não têm igual importância?

 

Encolhi os ombros. Não valia a pena argumentar com ele quando optava por proceder assim.

 

Não concorda? Olhe que já têm acontecido coisas desse género. Mas, enfim, vamos lá interrogar a boa Dorcas.

 

A mulher estava parada na saleta, com as mãos cruzadas à frente do corpo e o cabelo grisalho vincado em ondas duras, sob a touca branca. Era o modelo autêntico de uma boa criada antiga.

 

Sentia uma leve desconfiança em relação a Poirot, mas ele não tardou a vencer-lhe as defesas e a cativá-la. Puxou uma cadeira para a frente e convidou:

 

Faça favor de se sentar, mademoiselle.

 

Obrigada, senhor. ’

 

Esteve muitos anos com a sua ama, não esteve?

 

Dez anos, senhor.

 

É muito tempo, e serviço muito leal. Era-lhe muito dedicada?, não era?

 

Ela foi uma boa senhora para mim.

 

Então não se importará de responder a algumas perguntas que lhe vou fazer com a aprovação de Mr. Cavendish.

 

Oh, com certeza!

 

Começarei por a interrogar acerca dos acontecimentos de” ontem à tarde. A sua ama teve uma discussão?

 

Teve, sim, senhor. Mas não sei se deva... Dorcas hesitou e calou-se.

 

Poirot fitou-a atentamente e explicou:

 

Minha boa Dorcas, é necessário que eu saiba todos os pormenores dessa discussão, o mais completamente possível. Não pense que vai trair os segredos da sua senhora. Ela morreu e nós precisamos de saber tudo, se queremos vingá-la. Nada a pode restituir à vida, mas, se houve crime, esperamos apresentar o assassino à justiça, para que pague o que fez.

 

Quanto a isso, ámen! exclamou Dorcas, veementemente.

 

E, sem nomear nomes, há um nesta casa que nenhum de nós pôde jamais suportar! Mau dia foi aquele em que ele escureceu pela primeira vez o limiar da porta!

 

Poirot esperou que a sua indignação serenasse e depois, voltando ao tom de voz normal, perguntou:

 

E quanto à discussão? Quando soube dela?

 

Bem, eu ia a passar no vestíbulo, ontem...

 

A que horas?

 

Não sei exactamente, mas ainda faltava muito para a hora do chá. Talvez fossem umas quatro horas, ou talvez fosse um bocadinho mais tarde. Mas, como dizia, eu ia a passar quando ouvi vozes muito altas e zangadas, aqui. Não pretendi escutar, exactamente, mas... enfim, parei. A porta estava fechada, mas a senhora falava alto e claramente e eu ouvi muito bem o que ela dizia: «Mentiste-me e enganaste-me», disse ela Não ouvi o que Mr. Inglethorp respondeu, pois ele falou muito mais baixo, mas ouvi o que ela disse a seguir: «Como te atreves? Mantive-te, vesti-te e alimentei-te! Deves-me tudo! E é assim que me pagas! Desonrando o nosso nome!» Mais uma vez não ouvi o que ele disse. E ela continuou: «Nada que possas dizer fará qualquer diferença. Vejo perfeitamente qual é o meu dever. Já tomei a minha decisão. Escusas de pensar que me deterá qualquer receio de publicidade, ou escândalo entre marido e mulher.» Pareceu-me então que iam sair e afastei-me muito depressa.

 

Tem a certeza de que foi a voz de Mr. Inglethorp que ouviu?

 

Oh, sim! De quem mais poderia ser?

 

Pois sim, e depois?

 

Passados momentos voltei ao vestíbulo, mas estava tudo sossegado. Às cinco horas Mrs. Inglethorp tocou a campainha e pediu-me que levasse uma chávena de chá sem nada de comer

 

à saleta. Estava com muito má cara e muito branca e transtornada. «Dorcas», disse-me, «sofri um grande abalo.» E eu respondi-lhe: «Lamento muito, minha senhora. Sentir-se-á melhorzinha depois de beber uma boa chávena de chá.» Ela tinha qualquer coisa na mão, não sei se era uma carta, se um bocado de papel, mas o que quer que era estava escrito e ela não tirava os olhos das letras, como se não pudesse acreditar no que lá dizia. Murmurou para consigo, como se se tivesse esquecido da minha presença: «Estas poucas palavras... e tudo mudou.» E depois disse-me: «Nunca acredites em nenhum homem, Dorcas, eles não o merecem!» Fui-lhe buscar uma boa chávena de chá forte e ela agradeceu-me e disse que se sentiria melhor depois de o beber. «Não sei que fazer, Dorcas», acrescentou«Escândalo entre marido e mulher é uma coisa terrível. Preferia ocultar tudo, se pudesse...» Mrs. Cavendish entrou nessa altura e, por isso, ela não disse mais nada.

 

Ainda tinha a carta, ou lá o que era, na mão? Tinha, sim, senhor.

 

Que lhe parece que ela lhe faria depois?

 

Bem, não sei, mas suponho que a fecharia naquela sua caixa encarnada.

 

Era aí que costumava guardar os papéis importantes?

 

>Era, sim, senhor. Trazia-a para baixo todas as manhãs e levava-a para cima todas as noites.

 

Quando foi que perdeu a chave da caixa?

 

Deu por falta dela ontem à hora do almoço e pediu-me que a procurasse muito bem. Ficou muito transtornada por a ter perdido.

 

Mas tinha outra chave, não tinha?

 

Oh, sim, tinha!

 

Dorcas olhava-o cheia de curiosidade e, para ser franco, eu também. Que conversa vinha a ser aquela acerca de uma chave perdida? Poirot sorriu.

 

Não é caso para grande admiração, Dorcas, pois o meu trabalho é saber coisas. É esta a chave perdida? Tirou da algibeira a chave que encontrara na fechadura da caixa da correspondênciai, no andar de cima.

 

Os olhos da criada pareceram querer saltar-lhe das órbitas.

 

É, sim, senhor, é essa mesma! Mas onde a encontrou? Procurei-a em toda a parte...

 

Compreende, ontem não estava no mesmo lugar onde estava hoje. Mudando de assunto: a sua senhora tinha um vestido verde escuro?

 

Dorcas ficou perplexa com a pergunta inesperada, mas respondeu: ,

 

Não, senhor. Tem a certeza absoluta?

 

Oh, sim, tenho!

 

Alguém cá de casa tem um vestido verde? Dorcas pensou um bocado, antes de responder:

 

Miss Cynthia tem um vestido de noite verde.

 

Verde-claro ou verde-escuro?

 

Verde-claro. É assim de uma espécie de «chiffon», como dizem.

 

Bem sei, mas não é isso que procuro. E mais ninguém tem nada verde?

 

Não, senhor... que eu saiba.

 

O rosto de Poirot não denunciava se ele estava decepcionado ou não. Limitou-se a observar:

 

Muito bem, deixemos isso e passemos adiante. Tem alguma razão para crer que a sua senhora podia ter tomado um pó para dormir, a noite passada?

 

A noite passada, não senhor. Sei que não tomou. Por que motivo é tão positiva a esse respeito?

 

Porque a caixa estava vazia. Ela tomou o último papelinho de pó há duas noites e não mandou preparar mais.

 

Tem a certeza?

 

Absoluta, senhor.

 

Então esse assunto está arrumado! A propósito, a sua senhora não lhe pediu que assinasse nenhum papel, ontem?

 

Que assinasse um papel? Não, senhor.

 

Quando Mr. Hastings e Mr. Lawrence chegaram, ontem à tarde, encontraram a sua senhora ocupada a escrever cartas. Suponho que não me sabe dar uma ideia dos destinatários dessas cartas?

 

Infelizmente, não. Ontem saí, à noitinha. Talvez a Annie lhe saiba dizer, embora ela seja uma rapariga descuidada, que não presta atenção a nada. Ontem à noite nem levou para dentro as chávenas do café. É o que acontece quando cá não estou, para tomar conta das coisas.

 

Já que não levaram as chávenas, Dorcas, deixe-as ficar mais um bocadinho, peço-lhe. Gostava de as examinar.

 

Muito bem, senhor.

 

A que horas saiu, ontem?

 

Cerca das seis da tarde,

 

Obrigado, Dorcas, não desejo perguntar-lhe mais nada. Levantou-se e foi até à janela Estive a admirar estes canteiros. A propósito, quantos jardineiros trabalham aqui?

 

Agora só três, senhor. Tínhamos cinco antes da guerra, quando estava tudo arranjado como deve estar em casa de um cavalheiro. Só queria que tivesse visto o jardim, então! Uma lindeza! Mas agora só temos o velho Manning e o rapaz, o William, além de uma- jardineira moderna, de calções e coisas assim. Ah, terríveis tempos estes!

 

Os bons tempos voltarão, Dorcas. Pelo menos assim esperamos. Agora importa-se de me mandar a Annie?

 

Sim, senhor, eu mando. Obrigada.

 

Como soube que Mrs. Inglethorp tomava pós para dormir? perguntei, cheio de curiosidade, quando Dorcas saiu. E como soube também da chave perdida e do duplicado?

 

Uma coisa de cada vez. Quanto aos pós para dormir, soube-o graças a isto... E mostrou-me, de súbito, uma caixinha de cartão, como as utilizadas pelos farmacêuticos para acondicionar os papelinhos de pó.

 

Onde a encontrou?

 

Na gaveta do lavatório do quarto de Mrs. Inglethorp. Era o «número seis» da minha relação.

 

Mas, como o último papelinho de pó foi tomado há dois dias, suponho que já não tem grande importância?

 

Provavelmente, não, mas não nota nada de especial nesta caixa? - Examinei-a atentamente, mas...

 

Não, confesso que não noto. Repare no rótulo.

 

Li o rótulo com todo o cuidado: «Tomar um papelinho à hora do deitar, se necessário. Mrs. Inglethorp.»

 

Continuo a não notar nada de especial.

 

Então não vê que não tem o nome do farmacêutico?

 

Ah! Tem razão, isso é estranho.

 

Já conheceu algum farmacêutico que mandasse uma caixa dessas sem o seu nome impresso?

 

Confesso que não.

 

Começava a ficar todo excitado, mas Poirot fez uma observação que foi como um balde de água fria para o meu entusiasmo:

 

A explicação é, no entanto, muito simples, por isso não fique intrigado, meu amigo.

 

Não tive tempo de responder, pois um estalido audível anunciou a aproximação de Annie, que era uma rapariga simpática e sadia e estava, visivelmente presa de intensa excitação, misturada com um certo gosto mórbido pela tragédia.

 

Poirot não esteve com rodeios e disse-lhe logo o que queria’, em tom prático e expedito:

 

Mandei-a chamar, Annie, porque pensei que me poderia dizer qualquer coisa acerca das cartas que Mrs. Inglethorp escreveu a noite passada. Quantas eram? E sabe dizer-me alguns dos nomes e moradas?

 

Annie pensou, antes de responder:

 

Eram quatro cartas. Uma para Miss Howard e outra para Mr. Wells, o advogado, e as outras duas... não me lembro... Ah, sim, uma era para Ross’s, o fornecedor de Tadminster. Da outra é que não me lembro mesmo.

 

Pense pediu o detective. Annie puxou em vão pela memória.

 

Lamento, senhor, mas apagou-se por completo. Creio que não devo ter reparado.

 

Não tem importância declarou Poirot, sem revelar o mínimo indício de decepção. Agora desejo interrogá-la acerca de outra coisa. No quarto de Mrs. Inglethorp está um tachinho com um resto de cacau. Ela tomava aquilo todas as noites?

 

Tomava, sim, senhor. Era levado para o seu quarto todos os dias, ao anoitecer, e ela aquecia-o durante a noite, quando lhe apetecia

 

O que era? Cacau simples?

 

Sim, senhor, feito com leite, uma colher de chá de açúcar e duas colheres de chá de rum.

 

Quem o levava para o quarto?

 

Eu. , - - -

 

Sempre?

 

Sim, senhor.

 

A que horas?    

 

Geralmente quando ia correr os reposteiros.

 

Levava-o, então, directamente da cozinha para o quarto?

 

Não, senhor. Não há muito espaço no fogão a gás e. por isso, a cozinheira fazia-o cedo, antes de cozinhar os vegetais para o jantar. Depois eu levava-o para cima e punha-o na mesinha junto da porta de correr, e mais tarde levava-o para o quarto da senhora,

 

A porta de correr fica na ala esquerda, não fica?

 

Fica, sim, senhor.

 

E a mesa fica deste lado da porta, ou do outro, do lado dos aposentos dos criados?

 

Fica deste lado.

 

A que horas levou, ontem, o cacau para cima?

Creio que seriam umas sete e um quarto.

 

E quando o levou para o quarto de Mrs. Inglethorp?

 

Cerca das oito horas, quando fui fechar as janelas. Mrs. Inglethorp subiu para se deitar antes de eu ter acabado.

 

Isso significa que, entre as sete e um quarto e as oito horas, o cacau esteve em cima da mesa da ala esquerda?


Esteve, sim, senhor confirmou Annie, que se tornava cada vez mais corada e, de súbito, explodiu:   se tinha sal, não fui eu que lho pus. Nem sequer me aproximei do cacau com sal

 

Porque pensa que havia sal no cacau?

 

Porque o vi no tabuleiro.

 

Viu sal no tabuleiro?

 

Vi, sim, senhor. Parecia sal grosso de cozinha. Não reparei quando levei o tabuleiro para cima, mas quando voltei para o levar para o quarto da senhora vi-o logo. Suponho que devia tê-lo levado outra vez para baixo e pedido à cozinheira que fizesse outro, mas estava com pressa, por via da Dorcas ter saído, e pensei que talvez o sal tivesse caído apenas no tabuleiro e não houvesse nenhum no cacau. Por isso sacudido com o avental e levei-o para o quarto da senhora.

 

Sentia uma grande dificuldade em dominar a minha excitação. Sem saber, Annie fornecera-nos um indício importante. Como abriria a boca de espanto se soubesse que o seu «sal grosso de cozinha» era estricnina, um dos venenos mais letais que a humanidade conhecia! Maraivilhei-me com a calma de Poirot, cujo autodomínio era espantoso. Aguardei impacientemente a sua pergunta seguinte, mas ela decepcionou-me:

 

Quando entrou no quarto de Mrs. Inglethorp a porta de acesso ao quarto de Miss Cynthia tinha o ferrolho corrido?

 

Tinha, sim! Tem sempre. Nunca é aberta.

 

E a porta de comunicação com o quarto de Mr. Inglethorp? Reparou se também tinha o ferrolho corrido?

 

Annie hesitou.

 

Não sei dizer ao certo. Estava fechada, mas não sei se o ferrolho estava corrido ou não.

 

Quando saiu do quarto Mrs. Inglethorp aferrolhou a porta, atrás de si?

 

Nessa altura, não, mas creio que a aferrolhou depois.


Geralmente fecha-a à noite. Refiro-me à porta que dá para o corredor.

 

Quando ontem arrumou o quarto reparou se havia alguma estearina no chão?

 

Estearina? Oh, não, senhor! Mrs. Inglethorp não usava vela, tinha só um candeeiro de leitura.

 

Nesse caso, se houvesse um grande pingo de estearina no chão, tem a certeza de que o veria?

 

Tenho, sim, senhor. E tê-lo-ia tirado logo com um pedaço de mata-borrão e um ferro quente.

 

Poirot repetiu a pergunta que fizera a Dorcas:

 

A sua senhora tinha algum vestido verde?

- Não, senhor.

 

Nem uma mantilha, ou uma capa, ou como se chama? um casaco desportivo?

 

Verde, não.

 

Nem alguém cá de casa? Annie pensou, antes de responder:

 

Não, senhor.

 

Tem a certeza?

 

Absoluta.

 

Bien! Não desejo mais nada, muito obrigado.

 

Annie saiu da sala, com uma gargalhadinha nervosa’. A minha agitação contida explodiu:

 

Felicito-o, Poirot! Que grande descoberta!

 

Grande descoberta o quê?

 

Bem, que era o cacau e não o café que estava envenenado. Isso explica tudo! Claro que só produziu efeito de manhãzinha, visto o cacau só ter sido bebido no meio da noite.

 

Pensa então que o cacau note bem o que digo, Hastings, o cacau continha estricnina?

 

Claro! Que outra coisa poderia ser o sal espalhado no tabuleiro?

 

Poderia ser sal respondeu Poirot, placidamente.


Encolhi os ombros. Se estava decidido a levar as coisas assim, não valia a pena discutir com ele. Passou-me pela ideia, não pela primeira vez, que o pobre Poirot estava a envelhecer, e intimamente achei uma sorte que estivesse associado a uma pessoa de mentalidade mais receptiva.

 

Não está satisfeito comigo, mon ami?perguntou, a observarnme de olhos cintilantes.

 

Meu caro Poirot, não me incumbe impor-lhe as minhas ideias respondi friamente. O senhor tem o direito de ter uma opinião própria, assim como eu também o tenho.

 

Aí está um sentimento muito admirável declarou, enquanto se levantava, ágil. Bem, já vi o que tinha a ver nesta sala. A propósito, de quem é aquela escrivaninha mais pequena, ali ao canto?

 

-De Mr. Inglethorp.

 

Ah! Tentou levantar-lhe a tampa fechada à chave. Mas talvez uma das chaves de Mrs. Inglethorp a abra... Experimentou várias, enfiando-as e girando-as com mão prática, e por fim exclamou, contente: Voilà!  Não é a chave própria, mas vai abri-la num instante. Levantou a tampa da escrivaninha e passou uma rápida vista de olhos pelos papéis muito bem arrumados; para minha surpresa, porém, não os examinou e limitou-se a dizer aprovadoramente, enquanto fechava de novo o móvel: Decididamente, este Mr. Inglethorp é um homem de método!

 

Um «homem de método» era, na escala qualificativa de Poirot, o maior elogio que se podia fazer a qualquer indivíduo.

 

Mais uma vez achei que o meu amigo já não era o que fora, ao ouvi-lo discorrer, desconexamente:

 

Não havia selos na escrivaninha dele, mas podia ter havido, hem, mon ami? Podia ter havido, não podia? Percorreu o aposento com o olhar e acrescentou: Esta saleta não tem mais nada a dizer-nos e não rendeu muito... Só isto!

 

Tirou da algibeira um sobrescrito amarrotado e atirou-mo.


Era um documento muito curioso, um velho sobrescrito simples, um pouco sujo e com algumas palavras rabiscadas, aparentemente ao acaso, as quais reproduzo a seguir:

 

eu seja possuidora

ele seja possuidora

posuidora

***

estas palavras encontram-se manuscritas no texto

Nota do digitalizador

 

«NÃO É ESTRICNINA, Pois NÃO?»

 

Onde encontrou isso? perguntei a Poirot, cheio de curiosidade.

 

No cesto dos papéis. Reconhece a letra?

 

Reconheço, é de Mrs. Inglethorp. Mas que significa? Poirot encolheu os ombros-

 

Não lhe sei dizer... mas é sugestivo.

 

Uma ideia louca atravessou-me o cérebro. Seria possível que Mrs. Inglethorp não estivesse boa da cabeça? Teria querido escrever «possuidora» ou... «possessa»? Ter-se-ia apoderado dela alguma ideia fantástica de posse demoníaca? E, sendo assim, não seria também possível que tivesse posto fim à vida?

 

Ia a expor semelhante teoria a Poirot quando as palavras dele me desviaram de tal curso de pensamento:

 

Venha, vamos examinar as chávenas do café!

 

Meu caro Poirot, para que demónio servirá isso, agora que sabemos que foi o cacau...?

 

Oh, lá là Esse maldito cacau! exclamou Poirot, ironicamente.

 

Riu-se, com aparente boa disposição, e levantou as mãos numa atitude de fingido desespero, que não pude deixar de considerar de péssimo gosto.

 

De qualquer modo acrescentei, com crescente frieza , como Mrs. Inglethorp levou o café para cima, para o quarto.

 

Não compreendo o que espera encontrar, a não ser que considere possível descobrirmos um pacote de estricnina no tabuleiro do café! Poirot recuperou imediatamente a seriedade.

 

Então, então, meu amigo, ne vous fâchez pás! (1) pediu, enfiando o braço no meu. Permita que me interesse por chávenas de café e eu prometo respeitar o seu cacau. Combinado?

 

Falou de uma maneira tão engraçada que não pude deixar de rir. E, claro, lá fomos juntos à sala, onde as chávenas do café e o tabuleiro continuavam como os deixáramos na véspera.

 

Poirot pediu-me que recapitulasse a cena da noite anterior, enquanto escutava atentamente e confirmava a posição das várias chávenas.

 

Mrs. Cavendish estava, portanto, junto do tabuleiro e deitava o café. Muito bem. Depois foi até à janela, onde você estava sentado com Mademoiselle Cynthia. Sim, senhor, aqui estão as três chávenas. E a que está na prateleira da chaminé, ainda meia, deve ser a de Mr. Lawrence Cavendish. E a do tabuleiro?

 

É a do John Cavendish. Vi-o pô-la lá.

 

Óptimo. Uma, duas, três, quatro, cinco... mas onde está, então, a chávena de Mr. Inglethorp?

 

Ele não bebe café.

 

Nesse caso, está certo. um momento, meu amigo.

 

com infinito cuidado, tirou uma gota ou duas de café do fundo de cada chávena, e meteu-as em tubinhos separados, depois de provar o conteúdo de cada chávena. A sua fisionomia sofreu uma curiosa modificação, assumiu uma expressão que só posso classificar como meio-perplexa, meioaliviada.

 

Bien! exclamou,   por fim. É evidente! Tinha uma ideia, mas está visto que estava enganado. Sim, estava completamente enganado. No entanto, é estranho... Mas deixemos isso!

(1)   Não se zangue! (N. da T.)


E, com um encolher de ombros característico, afastou do espírito o que quer que o preocupava. Eu poderia ter-lhe dito desde o princípio que a sua ideia fixa acerca do café só poderia conduzi-lo a um beco sem saída, mas dominei-me. No fim de contas, embora estivesse velho, Poirot fora um grande homem, no seu tempo.

 

O pequenoalmoço está pronto disse John Cavendish, vindo do vestíbulo. Faz-nos companhia. Monsieur Poirot?

 

O detective aquiesceu. Observei John, que já regressara quase ao seu estado normal. O choque dos acontecimentos da noite anterior tinha-o transtornado temporariamente, mas a sua «quanimidade habitual levara a melhor e a sua atitude regressara praticamente ao habitual. Era um homem possuidor de muito pouca imaginação, em vivo contraste com o irmão, que talvez a tivesse em excesso.

 

Desde manhãzinha que John estivera a trabalhar, a enviar telegramas um dos primeiros fora para Evelym Howard, a redigir notícias para os jornais e, de um modo geral, a ocupar-se dos tristes deveres decorrentes de um falecimento.

 

Permite que pergunte como caminham as coisas? inquiriu. As suas investigações indicam que a minha mãe faleceu de morte natural ou... ou devemos preparar-nos para o pior?

 

Creio, Mr. Cavendish, que não deveriam acalentar falsas esperanças respondeu Poirot, em tom grave. Sabe dizer-me quais são as diversas opiniões dos outros membros da família?

 

O meu irmão está convencido de que estamos a fazer muito barulho por nada Diz que tudo indica ter-se tratado de um simples caso de ataque cardíaco.

 

Diz, hem? Isso é muito interessante, muito interessante... murmurou Poirot, em tom suave. E Mrs. Cavendish?

 

Uma leve nuvem ensombrou o rosto de John, que respondeu:

 

Não faço a mínima ideia da opinião da minha mulher acerca do assunto.

 

A resposta provocou um constrangimento momentâneo, um silêncio pesado que John quebrou ao perguntar, com leve esforço:

 

Já lhe disse que Mr. Inglethorp regressou, não disse? Poirot acenou afirmativamente.

 

É uma situação desagradável para todos nós. Claro que temos de o tratar como de costume... mas, com os diabos, o estômago revolta-se se pensamos que temos de nos sentar à mesa com um possível assassino!

 

Poirot acenou de novo com a cabeça, desta vez compreensivamente.

 

Compreendo perfeitamente. É uma situação muito difícil para si, Mr. Cavendish- Permita-me uma pergunta: O motivo de Mr. Inglethorp não ter regressado ontem à noite foi, suponho, o esquecimento da chave do trinco?

 

Foi, sim.

 

Tem a certeza, creio, de que a chave do trinco foi de facto esquecida, de que, no fim de contas, ele não a levou?

 

Não faço a mínima ideia, não me passou pela cabeça verificar. Essa chave está sempre na gaveta do vestíbulo. vou ver se lá está...

 

Mas Poirot levantou a mão e disse-lhe, a sorrir:

 

Não, não, Mr. Cavendish, agora é demasiado tarde. Tenho a certeza de que lá a encontraria. Se Mr. Inglethorp a levou, já teve tempo mais do que suficiente para lá a pôr.

 

Mas pensa...

 

Não penso nada- Se alguém tivesse, por acaso, aberto a gaveta esta manhã, antes do regresso dele, e lá visse a chave, isso constituiria um ponto valioso a seu favor, mais nada.

 

John pareceu   perplexo e Poirot   tranquilizouo, em tom suave:

 

Não se preocupe. Garanto-lhe que não há necessidade disso. E agora, já que quer ser tão amável, vamos então ao pequeno-almoço.

 

Estavam todos reunidos na sala de jantar. Dadas as circunstâncias, não formávamos, naturalmente, um grupo alegre.


A reacção a um grande abalo é sempre desagradável, e eu creio que estávamos ’todos sob essa influência. Acho que o decoro e a boa educação ordenavam que o nosso comportamento fosse o mais possível o habitual, mas eu não pude deixar de perguntar a mim mesmo se era realmente muito difícil aparentar aquele autodomínio. Não havia olhos avermelhados nem quaisquer sinais de alguém se ter entregado- secretamente à dor. Pareceu-me estar certa a minha opinião de que a Dorcas era a pessoa mais afectada pelo lado pessoal da tragédia.

 

Passo por cima de Alfred Inglethorp, claro, o qual desempenhou o papel do viúvo enlutado de uma maneira que considerei repugnante na sua hipocrisia. Saberia que suspeitávamos dele? Não podia, com certeza, estar alheio a tal facto, por muito que o ocultássemos. Sentiria algum medo secreto ou estaria confiante, certo de que o seu crime ficaria impune? A atmosfera de suspeita devia adverti-lo, sem dúvida, de que já era um homem marcado...

 

Mas suspeitariam todos dele? E Mrs. Cavendish? Observei-a, sentada à cabeceira da mesa, graciosa, serena, enigmática. O vestido cinzento de tom suave, com os folhos brancos dos punhos a cair para as mãos esbeltas, tornava-a muito bonita. Quando ela queria, porém, aquele rosto belo tornava-se esfíngico na sua imperscrutabilidade. Estava muito calada, quase não descerrava os lábios, mas apesar disso senti que, estranhamente, a grande força da sua personalidade nos dominava a todos.

 

E a pequena Cynthia? Suspeitaria? Parecia muito fatigada e doente, com uma lentidão e uma languidez de gestos deveras acentuada. Perguntei-lhe se não se sentia bem e ela respondeu, francamente:

 

Não, tenho a mais estúpida das dores de cabeça.

 

Outra chávena de café, mademoiselle?-ofereceu Poirot, solícito. Reanimá-la-á. Não há nada que se lhe compare, para lê mal de tête- Levantou-se, célere, e pegou-lhe na chávena.

 

Sem açúcar disse Cynthia, ao vê-lo pegar na pinça.


Sem açúcar? Prescinde dele em tempo de guerra, hem?

 

Não, nunca adoço o café.

 

Sacrév murmurou Poirot, baixinho, enquanto lhe levava a chávena cheia.

 

Só eu o ouvi e, ao olhar curiosamente para o homenzinho, reparei que no seu rosto se estampara uma expressão de contida excitação e que os seus olhos estavam verdes como os de um gato. Vira ou ouvira qualquer coisa que o afectava profundamente... mas o quê? Não costumo considerar-me obtuso, mas confesso que nada fora do vulgar atraíra a minha atenção.

 

Passados instantes, a porta abriu-se e Dorcas disse a John:

 

Mr. Wells deseja vê-lo.

 

O nome, lembrei-me, era o do advogado a quem Mrs. Inglethorp escrevera na véspera.

 

John levantou-se imediatamente e disse à criada:

 

Leve-o para o meu gabinete. Depois virou-se para nós e informou: É o advogado da minha mãe. E acrescentou, mais baixo: E é também o juiz de instrução... Querem vir comigo?

 

Aceitámos o convite e saímos com ele da sala. John. ia à frente e eu aproveitei a oportunidade para perguntar baixinho a Poirot:

 

Haverá, então, inquérito?

 

O detective acenou com a cabeça, distraidamente. Estava tão absorto nos seus pensamentos que me despertou curiosidade.

 

Que se passa? Não ouviu o que lhe disse.

 

Tem razão, meu amigo. Estou muito preocupado.

 

Porquê?

 

Porque Mademoiselle Cynthia não adoça o café.

 

O quê?! Não é capaz de falar a sério? ’

 

Mas eu estou a falar a sério, creia. Há qualquer coisa que não compreendo1 O meu instinto não se enganara.

 

Que instinto?

 

O instinto que me levou a examinar as chávenas do café. Caluda, não se fala mais disso agora!


Entrámos no gabinete atrás de John; que fechou a portaMr. Wells era um homem simpático de meia-idade, olhos

 

vivos e típica boca de advogado. John apresentou-nos e explicou

 

a razão da nossa presença.

 

Como deve compreender, Wells, tudo isto é rigorosamente privado acrescentou. Continuamos esperançados em que se verifique não haver necessidade de investigação de espécie nenhuma.

 

com certeza,, com certeza murmurou Mr. Wells, apaziguadoramente. Gostaria que fosse possível poupar-lhes o sofrimento e a publicidade de um inquérito, mas, claro, sem certidão de óbito é impossível.

 

Sim, suponho que sim.

 

Tipo inteligente, o Bauerstein. Parece-me que é uma grande autoridade em toxicologia.

 

Sim?murmurou John, com uma certa rigidez de atitude, e depois perguntou, hesitante: Teremos de comparecer como testemunhas... quero dizer, todos nós?

 

Você terá, claro, e... Mr. Inglethorp.

 

Seguiu-se uma pequena pausa, antes de o advogado acrescentar, de novo no seu tom apaziguador:

 

Quaisquer outros depoimentos serão meramente confirmatórios, uma simples questão de forma.

 

Compreendo.

 

A leve expressão de alívio que perpassou pelo rosto de John deixou-me intrigado, pois não via motivo nenhum para que se sentisse aliviado.

 

Se não tiver nada a opor prosseguiu Mr. Wells , pensei na sexta-feira. Haverá tempo suficiente para o médico apresentar o relatório da autópsia. Fazem-na esta noite, não é?

 

É.

 

Está então de acordo com o dia?

 

Perfeitamente.

 

Escusado seria dizer-lhe, meu caro Cavendish, que lamento este trágico acontecimento.


Não nos pode dar uma ajuda na solução do mistério, monsieur? perguntou Poirot, que falava pela primeira vez desde que entráramos no aposento.

 

Eu?

 

Sim. ConstouHnos que Mis. Inglethorp lhe escreveu, ontem. Deve ter recebido a carta esta manhã.

 

Recebi, mas não contém qualquer informação. É apenas um bilhete a pedir-me para a visitar esta manhã, pois desejava a minha opinião acerca de um assunto de grande importância.

 

Não lhe deu a entender do que se tratava?

 

Infelizmente, não.

 

É pena murmurou John.

 

Uma grande pena concordou Poirot, gravemente. Passados alguns momentos de silêncio, durante os quais o meu amigo pareceu absorto nos seus pensamentos, voltou-se de novo para o advogado:

 

Há uma coisa que gostaria de lhe perguntar, Mr. Wells... isto é, se não for contra a ética profissional. Por morte de Mrs. Inglethorp, quem herdaria o seu dinheiro?

 

O advogado hesitou um momento, antes de responder:

 

O assunto será muito em breve do conhecimento público, por isso, se Mr. Cavendish não se opõe...

 

De modo nenhum! declarou John.

 

Nesse caso, não vejo motivo nenhum para não responder à sua pergunta. De acordo com o seu último testamento, datado de Agosto do ano passado, depois de diversos pequenos legados às criadas, etc., Mrs. Inglethorp deixava toda a sua fortuna ao enteado, Mr. John Cavendish.

 

Isso não era desculpe a pergunta, Mr. Cavendish , não era muito injusto para o outro enteado, Mr. Lawrence Cavendish?

 

Não, não creio. Nos termos do testamento do pai de ambos, enquanto John herdava a propriedade, Lawrence herdava, por morte da madrasta, uma considerável importância em dinheiro. Mrs. Inglethorp legava o seu dinheiro ao enteado mais velho por saber que ele teria de manter «Styles». Era, quanto a mim, uma partilha muito justa e equitativa, Poirot acenou com a cabeça, pensativamente.

 

Compreendo. Mas, segundo a vossa lei inglesa, esse testamento ficou automaticamente revogado quando Mrs. Inglethorp voltou a casar, não é verdade?

 

Como eu ia acrescentar, Monsieur Poirot, esse documento é agora nulo e sem valor.

 

Poirot pareceu reflectir um momento, e depois perguntou:

 

Mrs. Inglethorp tinha conhecimento desse facto?

 

Não sei, devia ter.

 

Tinha afirmou John, inesperadamente. Ainda ontem falámos da questão de os testamentos serem revogados pelo casamento.

 

Ah! Mais uma pergunta, Mr. Wells. Disse, há pouco, «o seu último testamento». Isso significa que Mrs. Inglethorp fizera vários outros, anteriores?

 

Ela fazia, em média, um testamento novo por ano respondeu Mr. Wells, imperturbável. Era propensa a mudar de ideias quanto às suas disposições testamentárias e beneficiava ora um, ora outro membro da família.

 

Supondo sugeriu Poirot que, sem seu conhecimento, Mr. Wells, ela fizera um novo testamento a favor de alguém que não era, em nenhum sentido do termo, membro da família digamos, por exemplo, a favor de Miss Howard. Ficaria surpreendido?

 

Absolutamente nada.

 

Ah! exclamou Poirot, e pareceu ter esgotado as perguntas.

 

Aproximei-me mais dele, enquanto John e o advogado falavam de passar em revista os papéis de Mrs. Inglethorp.

 

Pensa que Mrs. Inglethorp fez um testamento deixando o dinheiro todo a Miss Howard? perguntei em voz baixa, com certa curiosidade.

 

Não respondeu-me Poirot, a sorrir.

 

Então porque perguntou?

 

John Cavendish virara-se para o detective e perguntava-lhe:

 

Quer vir connosco, Monsieur Poirot? Vamos dar uma vista de olhos aos papéis da minha mãe. Mr. Inglethorp mostrou-se disposto a deixar isso inteiramente ao cuidado de Mr. Wells e de mim próprio.

 

O que simplifica muito as coisas murmurou o advogado. Tecnicamente, claro, tinha o direito... não concluiu a frase.

 

Começaremos pela escrivaninha da saleta explicou John e depois iremos ao quarto. Ela guardava os seus papéis mais importantes numa caixa de correspondência vermelha., que devemos revistar com todo o cuidado.

 

Sim concordou o advogado , pois é muito possível que exista um testamento posterior ao que se encontra em meu poder.

 

um testamento posterior declarou Poirot.

 

O quê?! perguntaram John e o advogado, a fitarem-no cheios de espanto.

 

Ou melhor corrigiu o meu amigo, imperturbável, houve.

 

Que quer dizer? Houve? Onde está?

 

Queimado!

 

Queimado?

 

Sim. Olhe...Tirou da algibeira o fragmento chamuscado que encontráramos na lareira do quarto de Mrs. Inglethorp e entregou-o ao advogado, enquanto lhe explicava resumidamente quando e onde o encontrara.

 

É possível que se trate de um testamento antigo, não?

 

Não creio. Na realidade, tenho quase a certeza de que foi feito ontem à tarde.

 

O quê? Impossível! discordaram simultaneamente os dois homens.

 

Se permitir que chame o seu jardineiro, provar-lho-ei disse Poirot a John.

 

com certeza que permito... mas não vejo...


O detective levantou a mão e interrompeu-o:

 

Faça o que lhe peço. Depois perguntará tudo quanto quiser.

 

Muito bem. aquiesceu John, e tocou a campainha. Dorcas apareceu, passados momentos.

 

Dorcas, diga ao Manning que venha aqui falar comigo.

 

Sim, senhor.

 

A criada retirou-se e nós esperámos, num silêncio tenso. Poirot, o único que parecia completamente à vontade, sacudiu o pó de um canto esquecido da estante.

 

O ranger de botas cardadas, no saibro, anunciou que Manning se aproximava. John olhou interrogadoramente para Poirot, que acenou com a cabeça.

 

Entre, Manning pediu John. Quero falar consigo. Manning transpôs hesitantemente a porta-janela e parou o

 

mais perto dela que pôde, a torcer o boné nas mãos. Tinha as costas muito curvadas, embora não devesse ser tão velho quanto parecia, e os seus olhos vivos e inteligentes não condiziam com a sua maneira de falar lenta e cautelosa.

 

Manning disse-lhe John , este senhor vai-te fazer umas perguntas, a que desejo respondas.

 

Sissenhor tartamudeou o jardineiro.

 

Poirot aproximou-se dele, em passo lesto, e os olhos de Manning mediram-no com leve desdém.

 

Ontem à tarde esteve a plantar um canteiro de begónias do lado sul da casa, não esteve, Manning?

 

Sissenhor, eu e o Willum.

 

E Mrs. Inglethorp chegou à janela e chamou-os, não é verdade?

 

Chamou, sim.

 

Diga-me, por palavras suas, exactamente o que aconteceu depois.

 

Bem, foi pouca coisa. Ela disse apenas ao Willum que montasse na bicicleta, e fosse à aldeia comprar um impresso de testamento, ou coisa parecida... não sei exactamente o quê. Ela escreveu num papel o que era.


E então?

 

Então ele foi.

 

E que aconteceu a seguir?

 

Continuámos com as begónias.

 

Mrs. Inglethorp não os voltou a chamar?

 

Sissenhor, a mim e ao Willum.

 

E depois?

 

i Mandou-nos entrar e assinar os nossos nomes no fim de um papel comprido, debaixo de onde ela tinha assinado.

 

Viu alguma coisa do que estava escrito por cima da assinatura dela,? perguntou Poirot, vivamente.

 

Não senhor, estava um bocado de mata-borrão por cima dessa parte.

 

E assinou onde ela lhe disse?

 

Sissenhor, primeiro eu e depois o Willum.

 

Que fez ela ao papel?

 

Bem, meteu-o num sobrescrito comprido e depois numa caixa vermelha, que estava em cima da secretária.

 

Que horas eram quando o chamou pela primeira vez?

 

Diria que umas quatro, mais ou menos.

 

Não terá sido antes? Cerca das três e meia, por exemplo? Não, senhor, não me parece. É mais provável que tenha

 

sido um bocadinho depois das quatro, e não antes.

 

Obrigado, Manning, não desejo mais nada agradeceu Poirot, em tom agradável.

 

O jardineiro olhou para o patrão, que acenou com a cabeça» e o homem levou o indicador à testa, enquanto murmurava qualquer coisa, e saiu às arrecuas, por onde entrara.

 

Olhámos todos uns para os outros.

 

Meu Deus! exclamou John. Que extraordinária coincidência!

 

Coincidência porquê?

 

Bem, que coincidência a minha mãe ter feito testamento no próprio dia da sua morte!

 

Mr. Wells pigarreou e observou, secamente:

 

Tem assim tanto a certeza de que se tratou de coinci-

 

-dência, Cavendish?

 

Que quer dizer?

 

Segundo me disse, a sua mãe teve uma discussão violenta com... com alguém, ontem à tarde...

 

Que quer dizer? repetiu John, desta vez muito pálido e com uma tremura na voz.

 

Em consequência dessa discussão, a sua mãe fez um novo testamento, súbita e apressadamente, um testamento cujo conteúdo nunca conheceremos. Ela não disse a ninguém quais eram as cláusulas do documento. Esta manhã ter-me-ia, sem dúvida, consultado acerca do assunto... mas não teve possibilidade disso. O testamento desapareceu e ela levará o seu segredo consigo, para a sepultura. Receio muito, Cavendish, que não se trate de nenhuma coincidência. Estou certo de que concorda com a minha opinião de que os factos são muito sugestivos, não concorda. Monsieur Poirot?

 

Sugestivos ou não interveio John , estamos muito gratos a Monsieur Poirot por ter revelado esse assunto. Se não fosse ele, nunca teríamos conhecimento de que tal testamento fora feito. Permite que lhe pergunte o que o levou a suspeitar do facto?

 

Um velho sobrescrito com algumas palavras rabiscadas e um canteiro de begónias recém-plantadas respondeu o detective, sorridente.

 

Creio que John teria insistido nas perguntas, mas nesse momento ouviu-se o ruído de um motor de automóvel e virámo-nos todos para a janela, enquanto o veículo passava.

 

Evie! exclamou John. Dê-me licença, Mr. Wells pediu, e dirigiu-se apressadamente para o vestíbulo.

 

Poirot olhou-me interrogadoramente.

 

Miss Howard expliquei.

 

Ah, agrada-me que tenha vindo! É uma mulher com cabeça, e também com coração, Hastings... embora o bom Deus não lhe tenha dado beleza nenhuma.

 

Segui   o   exemplo   de   John   e   fui   ao   vestíbulo,   onde Miss Howard tentava libertar-se da volumosa massa de véus que lhe cobriam a cabeça. Quando os seus olhos se fitaram em mim, senti uma súbita punhalada de remorso. Aquela mulher avisara-me tão veementemente e eu não fizera caso das suas advertências! com que rapidez, e até com que desdém, as expulsara do espírito! Agora que fora provado, de modo tão trágico, que ela tinha razão, sentia»me envergonhado. Oh, ela conhecera Alfred Inglethorp muito bem! Perguntei a mim mesmo se a tragédia teria ocorrido se ela tivesse permanecido em «Styles», ou se o indivíduo teria receado os seus olhos vigilantes.

 

Senti-me aliviado quando me apertou a mão com aquela força quase dolorosa de que me lembrava tão bem. Os olhos que fitaram os meus exprimiam tristeza, mas não censura. Percebi, pela vermelhidão das suas pálpebras, que chorara, e muito, mas a sua atitude brusca não se modificara em nada.

 

Parti assim que recebi o telegrama, tinha acabado de estar de serviço nocturno. Aluguei o automóvel. Era a maneira mais rápida de cá chegar.

 

Comeu alguma coisa esta manhã, Evie? perguntou John.

 

Não.

 

Já calculava. Venha, ainda não levantaram a mesa do pequeno-almoço. Virou-se para mim e acrescentou: Olha por ela, sim, Hastings? Wells está à minha espera. Oh, Monsieur Poirot! Está a ajudar-nos, Evie.

 

Miss Howard apertou a mão a Poirot, mas olhou desconfiadamente para John, por cima do ombro, e perguntou-lhe:

 

A ajudar-nos? Que quer isso dizer?

 

Está a ajudar-nos a investigar.

 

Não há nada que investigar. Já o prenderam?

 

Já prenderam quem?

 

Quem? Alfred Inglethorp, quem havia de ser?

 

-Minha querida Evie, tenha cuidado. O Lawrence pensa que a minha mãe morreu em consequência de um colapso cardíaco.

 

É um idiota, o Lawrence! Claro que Alfred Inglethorp assassinou a pobre Emily... como eu sempre lhes disse que aconteceria.

 

Não grite tanto, Evie. Seja o que for que pensemos ou suspeitemos, é melhor falar o menos possível, por enquanto. O inquérito só se realiza na sexta-feira.

 

Ora bolas! explodiu Miss Howard, e soltou um rugido verdadeiramente magnífico. Vocês perderam todos o juízo! Nessa altura já o indivíduo estará fora do país. Se tiver uma ponta de senso, não ficará aqui à espera, docilmente, que o enforquem.

 

John Cavendish olhou-a, sem saber que dizer.

 

Eu sei o que se passa! disse-lhe ela, em tom acusador. Andou a dar ouvidos aos médicos, e não devia. Que sabem eles? Absolutamente nada... ou apenas o suficiente para serem perigosos! Eu sei do que falo... o meu pai era médico. Esse homenzinho, o Wilkins, deve ser o maior idiota que jamais vi! Ataque cardíaco! Estou mesmo a ver que foi isso que ele disse. Qualquer pessoa com um bocado de juízo compreenderia logo que o marido a envenenara. Eu sempre disse que ele a assassinaria na cama, coitadinha. E assim fez! E você não faz mais do que murmurar idiotices acerca de «ataque cardíaco» e «inquérito na sexta>feira». Devia ter vergonha de si mesmo, John Cavendish!

 

Que quer que eu faça? perguntou John, incapaz de conter um leve sorriso. com os demónios, Evie, não posso agarrá-lo pelo cangote e levá-lo à esquadra!

 

Mas devia fazer qualquer coisa. Descobrir como a envenenou. Ele é um malandro muito sabido. Apostava que pôs papéis de matar moscas de molho... Pergunte à cozinheira se deu por falta de alguns.

 

Pensei, nesse momento, que acolher Miss Howard e Alfred Inglethorp debaixo do mesmo tecto, e manter a paz entre eles, devia ser uma tarefa hercúlea, e não invejei o John. Percebi, pela expressão do seu rosto, que ele avaliava perfeitamente a dificuldade que a situação apresentava. De momento, porém, optou por refugiar-se na retirada e saiu precipitadamente do aposento.

 

Dorcas trouxe chá acabado de fazer. Quando ela saiu, Poirot abandonou a janela, onde estivera parado, e sentou-se defronte de Miss Howard.

 

Desejo pedir-lhe uma coisa, mademoiselle declarou, em tom muito grave.

 

Pois peça! replicou Evie, olhando-o com certa antipatia.

 

Desejo poder contar com a sua ajuda.

 

Ajudá-lo-ei com prazer a enforcar Alfred respondeu, brusca. Embora o enforcamento seja bom de mais para ele. Deveria ser arrastado e esquartejado, como nos bons tempos!

 

Nesse caso, estamos de acordo, pois eu também desejo que o criminoso seja enforcado declarou Poirot.

 

Alfred Inglethorp? Ele ou outro.

 

Não há outro nenhum. A pobre Emily só foi assassinada quando ele entrou em cena. Não digo que não estivesse rodeada de tubarões... estava. Mas esses só queriam a sua bolsa; a sua vida estava em segurança. Mas apareceu Alfred Inglethorp... e em dois meses, pronto!

 

Acredite, Miss Howard, se Mr. Inglethorp for o criminoso, não me escapará afirmou Poirot, com firmeza. Juro pela minha honra que o enforcarei tão alto como Ama!

 

Estou a gostar mais de o ouvir declarou Miss Howard, entusiasticamente.

 

Mas tenho de lhe pedir que confie em mim. A sua ajuda pode ser-me muito valiosa, e eu explico-lhe porquê: porque, em toda esta casa de luto, os seus foram os únicos olhos que choraram.

 

Se quer dizer que gostava dela... sim, gostava. Sabe, a Emily era uma velha egoísta, à sua maneira. Muito generosa, sem dúvida’, mas queria sempre a retribuição. Nunca deixava as pessoas esquecerem o que fizera por elas .. e assim perdia o amor. Mas não julgue que se apercebia, disso, pensava nisso ou sentia a falta de amor. Pelo menos eu espero que não. Quanto a mim, encontrava-me numa situação diferente. Pus as minhas condições, logo do princípio: «Valho, para si, tantas libras por ano. Muito bem, mas nem um dinheiro para além disso, nem um par de luvas, nem um bilhete para o teatro.» Ela não compreendia e às vezes ficava muito ofendida. Dizia que eu era estupidamente orgulhosa. Não se tratava disso, mas não lho podia explicar. Fosse como fosse, conservava o respeito por mim mesma. Assim, do grupo todo, era a única que me podia dar ao luxo de gostar dela. Velava por ela, protegia-a de todos, mas depois apareceu um patife de língua melada e lá se foram todos os meus anos de devoção por água abaixo! Poirot acenou com a cabeça, compreensivamente.

 

Compreendo,   mademoiselle, compreendo o que sente. É muito natural. Pensa que somos mornos, que nos falta fogo e energia... mas, acredite-me, não é assim.

 

Nesse momento, John meteu a cabeça pela fresta da porta e convidou-nos aos dois a ir ao quarto de Mrs. Inglethorp, pois ele e Mr. Wells já tinham acabado de passar revista à escrivãninha da saleta.

 

Enquanto subíamos a escada, John olhou para trás, para a porta da sala de jantar, e baixou a voz para perguntar:

 

Que vai acontecer quando aqueles dois se encontrarem? Abanei a cabeça, sem saber que responder.

 

Disse à Mary que fizesse os possíveis por mantê-los afastados.

 

Acha que o conseguirá?

 

Só Deus sabe. Há uma coisa que talvez ajude: o Inglethorp não terá muito interesse em se encontrar com ela.

 

Ainda tem as chaves, não tem, Poirot? perguntei, quando chegámos à porta do quarto fechado à chave.

 

John aceitou a chave que o detective lhe estendeu, abriu a porta e entrámos. O advogado foi direito à escrivaninha e John seguiu-o.

 

Creio que a minha mãe guardava a maior parte dos seus papéis importantes nesta caixa de correspondência.


Poirot tirou da algibeira o pequeno molho de chaves e disse:

 

Dêem-me licença. Fechei-a à chave, por precaução, esta manhã.

 

Mas agora não está fechada à chave.

 

Impossível!

 

Veja convidou John, e levantou a tampa da caixa, enquanto falava.

 

Milles tonnerres! (1) praguejou Poirot, estupefacto. E eu... e eu com ambas as chaves na algibeira! Atirou-se à caixa,, mas de súbito imobilizou-se e exclamou: En voilà une affaire! (2) Esta fechadura foi forçada!

 

O quê?

 

O detective depôs de novo a caixa na escrivaninha.

 

Mas quem a forçou? E para quê? Quando? A porta estava fechada à chave, não estava? Estas perguntas foram feitas por nós todos, desconexamente.

 

Poirot respondeu-lhes categoricamente, quase maquinalmente:

 

Quem? Essa é a questão. Para quê? Ah, se eu soubesse! Quando? Desde que estive aqui, há uma hora. Quanto à porta estar fechada à chave, trata-se de uma fechadura muito banal, que provavelmente pode ser aberta por qualquer das chaves das outras portas do corredor.

 

Olhámos uns para os outros, estupidamente. Poirot aproximara-se da prateleira da chaminé. Apesar de calmo, no exterior, reparei que as suas mãos, que endireitavam com gesto maquinal, pela força do hábito, os vasinhos de torcidas de papel para acender velas, tremiam violentamente.

 

Vejamos o que se deve ter passado disse, por fim. Havia qualquer coisa na caixa, qualquer prova, talvez em si mesma insignificante, mas apesar disso capaz de relacionar o assassino com o crime. Era vital para ele destruí-la antes de ser encontrada e compreendido o seu significado. Portanto, correu

 

(1) com mil raios! (N. da T.) ’

 

(2)   Bonito serviço! (N. da T.)


o risco o grande risco, note-se de vir aqui. Como encontrasse a caixa fechada, foi obrigado a forçá-la, denunciando assim a sua presença. Para que corresse tal risco, devia tratar-se de algo de grande importância.

 

Mas o quê?

 

Ah, isso não sei! replicou Poirot, sem poder conter um gesto de cólera, Um documento qualquer, sem dúvida, provavelmente o bocado de papel que a Dorcas viu na mão de Mrs. Inglethorp, ontem à tarde. E eua cólera extravazou de novo, incontida, o grande animal que sou, eu não desconfiei de nada! Comportei-me como um imbecil! Nunca devia ter deixado a caixa aqui, devia tê-la levado comigo. Ah, três vezes burro! E agora a prova foi-se! Está destruída... Mas estará mesmo destruída? Não haverá ainda uma possibilidade?... Devemos procurar em toda a parte...

 

Saiu do quarto como um louco e eu segui-o assim que me consegui refazer um pouco do espanto. Mas quando cheguei ao cimo da escada já ele desaparecera.

 

Mary Cavendish estava parada no ponto onde a escada bifurcava, a olhar para baixo, para o vestíbulo, na direcção em que ele desaparecera.

 

Que aconteceu ao seu extraordinário amiguinho, Mr. Hastings? Acaba de passar por mim como um touro enlouquecido.

 

Está muito transtornado com qualquer coisa respondi, atrapalhado, pois não sabia se Poirot desejava que eu revelasse o sucedido.

 

começar a esboçar-se um leve sorriso na boca expressiva de Mrs. Cavendish e tentei mudar de conversa, perguntando:

 

Eles ainda não se encontraram, pois não?

 

Eles, quem?

 

Mr. Inglethorp e Miss Howard.

 

Fitou-me de modo deveras desconcertante e perguntou, por

 

sua vez:

 

Acha que seria uma tragédia assim tão grande se se encontrassem?

 

E a senhora, não acha?inquiri, aparvalhado.


Não respondeu-me, com o seu sorriso sereno. Gostava de assistir a uma boa explosão. Limparia o ar. De momento, pensamos todos muito e dizemos pouco.

 

O John não compartilha a sua opinião. Está ansioso por evitar que se encontrem.

 

Ora, o John!

 

Houve qualquer coisa no seu tom que me fez explodir,

 

O velho John é um excelente tipo!

 

Observou-me um momento, com curiosidade, e depois disse, para minha grande surpresa

:   É leal ao seu amigo. Gosto de si por isso.

 

Não é também minha amiga?

 

Sou uma amiga muito má.

 

Porque diz isso?

 

Porque é verdade. Sou encantadora para os meus amigos, num dia, e no outro esqueço-os por completo.

 

Não sei que bicho me mordeu, mas senti-me abespinhado e repliquei, estupidamente e com muito mau gosto:

 

No entanto, parece invariavelmente encantadora! com o Dr. Bauerstein!

 

Arrependi-me logo das minhas palavras. O rosto dela endureceu e eu tive a impressão de que uma cortina de aço descia e ocultava a verdadeira mulher. Sem uma palavra, virou-me costas e subiu a escada, muito hirta, e eu fiquei parado como um idiota, a segui-la com o olhar, embasbacado.

 

Arrancou-me à basbaquice uma grande gritaria, no vestíbulo. Era Poirot que gritava e barafustava. Senti-me vexado ao pensar que a minha diplomacia fora em vão. O homenzinho parecia estar a desabafar com toda a gente, procedimento cuja sensatez me parecia duvidosa. Foi-me mais uma vez impossível não lamentar que o meu amigo fosse tão propenso a perder a cabeça num momento de excitação. Desci rapidamente a escada e, ao ver-me, Poirot acalmou-se quase imediatamente. Afastei-me um pouco com ele e perguntei-lhe:

 

Acha isto sensato, meu caro? Não deseja, com certeza, que toda a casa tome conhecimento da ocorrência? Está, na verdade, a fazer o jogo do criminoso.

 

Acha que sim, Hastings?

 

-   Tenho a certeza.

 

Bem, meu amigo, deixar-me-ei guiar por si.

 

Óptimo. Embora,, infelizmente, já seja um pouco tarde para isso.

 

Tem razão.

 

Pareceu-me tão abatido e envergonhado que tive pena dele, embora continuasse a considerar a minha admoestação justa e sensata.

 

Bem, vamo-nos embora, mon ami disse-me, por fim.

 

Já acabou o que tinha a fazer aqui?

 

De momento, já. Acompanha-me a pé até à aldeia? De boa vontade.

 

Poirot pegou na sua pequena pasta e saímos pela porta-janela da sala. Cynthia Murdoch vinha a entrar e Poirot afastou-se, para lhe dar passagem.

 

Dê-me só um minutinho de atenção, mademoiselle, por favor.

 

Pois sim.

 

Alguma vez preparou remédios para Mrs. Inglethorp? Alastrou pela cara da rapariga um leve rubor, enquanto ela

 

respondia, constrangida:

 

Não.

 

Só os papelinhos de pó? O rubor acentuou-se:

 

Ah, sim, preparei-lhe uma vez uns papelinhos de um pó para dormir!

 

Estes? perguntou Poirot, mostrando-lhe a caixa vazia que contivera os papelinhos de pó.

 

Cynthia acenou afirmativamente.

 

Sabe dizer-me o que era? Sulfonal? Veronal? Não. Eram brometos.

 

Muito obrigado, mademoiselle, e bons dias.

 

Enquanto nos afastávamos, a passo rápido, da casa olheí-o diversas vezes. Reparara frequentemente que, quando alguma coisa o excitava, os seus olhos se tornavam verdes como os de um gato. Naquela altura brilhavam como esmeraldas.

 

Meu amigo disse, por fim, tenho uma ideiazinha, uma ideia muito estranha e, provavelmente, impossível. E, no entanto, ajusta-se...

 

Encolhi os ombros. Pessoalmente, pensava que Poirot era demasiado atreito àquelas ideias fantásticas. Naquele caso, a verdade parecia-me demasiado simples e aparente.

 

Era então essa a explicação do rótulo em branco da caixa observei. Muito   simples,   como o senhor tinha dito. Admira-me, francamente, que não me tenha ocorrido...

 

Mas Poirot pareceu não me ouvir e disse, inclinando o polegar na direcção de «Styles»:

 

Descobriram mais uma coisa, là-bas. Mr. Wells disse-me, enquanto subíamos a escada.

 

Que foi?

 

Fechado à chave na escrivaninha da saleta, encontraram um testamento de Mrs. Inglethorp, com data anterior ao seu casamento, no qual deixava a fortuna a Alfred Inglethorp. Deve ter sido feito na altura em que ficaram noivos. Foi uma grande surpresa para Wells... e para John Cavendish também. Estava feito num daqueles impressos próprios e testemunhado por duas criadas... mas não pela Dorcas.

 

Mr. Inglethorp sabia?

 

Ele diz que não.

 

Devemos aceitar isso com uma certa reserva declarei, céptico. Todos esses testamentos me parecem muito confusos. Diga-me uma coisa: como o ajudaram aquelas palavras rabiscadas no sobrescrito a deduzir que ela fez um testamento, ontem à tarde?

 

Poirot sorriu.

 

Mon ami, já alguma vez lhe aconteceu, ao escrever uma carta, ter de parar por não saber a ortografia de determinada palavra?

 

Já, muitas vezes. Suponho que acontece a toda a gente.


Exactamente. E, num caso desses, nunca tentou escrever a palavra uma ou duas vezes na beira do mata-borrão, ou num bocado de papel, para ver se lhe parecia bem? Foi isso o que Mrs. Inglethorp fez. Deve ter reparado que a palavra possuidora» aparece as duas primeiras vezes apenas com um «s» e depois com dois, ou seja, correctamente. Para se certificar, experimentou-a ainda em uma frase: «eu seja possuidora». Que me disse isso? Disse-me que Mrs. Inglethorp escrevera a palavra «possuidora», nessa tarde, e como tinha fresco na memória o fragmento de papel encontrado na, lareira, a possibilidade da redacção de um testamento (documento em que é quase certo aparecer essa palavra) acudiu-me imediatamente ao espírito. Tal possibilidade foi confirmada por uma circunstância verificada posteriormente: devido à confusão geral, a saleta não tinha sido varrida, esta manhã, e junto da escrivaninha viam-se alguns vestígios de barro castanho e terra. O tempo tem estado excelente, há alguns dias, e umas botas normais não deixariam um depósito tão evidente.

 

Fui até à janela e vi logo que os canteiros das begónias tinham sido plantados de novo. A terra dos canteiros era exactamente igual à deixada: no chão da saleta. Além disso, soube por si que as begónias tinham sido plantadas ontem à tarde. Não me restaram dúvidas de que um, ou talvez ambos os jardineiros pois havia dois jogos de pegadas nos canteiros, tinham entrado na saleta. Se Mrs. Inglethorp tivesse desejado apenas falar com eles, o mais natural seria ir ela até à janela e não ser necessário eles entrarem na saleta. Fiquei, assim, convencido de que fizera um testamento novo e chamara os dois jardineiros para reconhecerem a sua assinatura. Os acontecimentos provaram que a minha suposição estava certa.»

 

Muito engenhoso não pude deixar de admitir. Devo confessar que as conclusões que, pessoalmente, tinha tirado dessas poucas palavras rabiscadas estavam inteiramente erradas.

 

Dá excessiva rédea solta à imaginação afirmou, a sorrir. A imaginação é uma boa serva e uma má ama. A explicaçãomais simples é sempre a mais provável.


Outra coisa: como soube que a chave da caixa da correspondência se perdera?

 

Não sabia, foi um palpite que bateu certo. Deve ter reparado que a chave tinha um pedaço de arame torcido, passado pelo buraco, o que me sugeriu imediatamente que podia ter sido arrancada de uma frágil argola de chaves. Ora, se tivesse sido perdida e achada, Mrs. Inglethorp tê-la-ia logo juntado de novo às outras; mas no seu molho de chaves eu encontrei uma chave muito nova e muito brilhante, sem dúvida um duplicado, o que me sugeriu a hipótese de ter sido outra pessoa qualquer que inserira a chave original na fechadura da caixa.

 

Sim, Alfred Inglethorp, sem dúvida. Poirot olhou-me com curiosidade e perguntou:

 

Está assim tão certo da sua culpabilidade?

 

Naturalmente! Cada nova circunstância parece estabelecer mais claramente a sua culpa.

 

Pelo contrário discordou Poirot, muito calmo, há vários pontos a favor dele.

 

Ora, ora!

 

Há, sim.

 

Só vejo um.

 

Qual?

 

O facto de não estar em casa a noite passada.

 

Mau tiro, como vocês, ingleses, dizem! Escolheu o único ponto que, na minha opinião, aponta contra ele.

 

Porquê?

 

Porque Mr. Inglethorp, se soubesse que a mulher seria envenenada a noite passada, teria com certeza arranjado as coisas de maneira a estar ausente de casa. O seu pretexto foi improvisado, salta aos olhos que foi. Isso deixa-nos duas possibilidades: ou ele sabia o que ia acontecer, ou tinha uma razão pessoal para se ausentar.

 

E essa razão era... ? perguntei, céptico.

 

Poirot encolheu os ombros.

 

Como quer que saiba? Desonrosa devia ser, com certeza.


Acho que Mr. Inglethorp é um salafrário, mas isso não faz forçosamente dele um assassino. Abanei a cabeça, nada convencido.

 

Não concordamos, hem? murmurou Poirot. Bem, deixemos isso. O tempo mostrará qual de nós tem razão. Vejamos agora outros aspectos do caso. Que pensa do facto de todas as portas do quarto terem o ferrolho corrido, do lado de dentro?

 

Bem...Pensei, um momento. Devemos encarar esse pormenor logicamente.

 

Sem dúvida.

 

As portas tinham os ferrolhos corridos os nossos próprios olhos no-lo disseram, mas a presença do pingo de estearina, no chão, e a destruição do testamento provam que, durante a noite, alguém entrou no quarto. Concorda, até aqui?

 

Perfeitamente. Exposto com admirável clareza. Prossiga. Bem continuei, encorajado, como a pessoa que lá entrou não o fez pela janela, nem por meios miraculosos, segue-se que a porta deve ter sido aberta do interior pela própria Mrs. Inglethorp. Isso reforça a convicção de que a pessoa em causa foi o marido. Ela abriria, naturalmente, a> porta ao próprio marido. Poirot abanou a cabeça.

 

Porque havia de abrir? Correra o ferrolho da porta de comunicação com o seu quarto procedimento muito estranho da sua parte e tivera uma discussão muito violenta com ele nessa mesma tarde. Não, o marido seria a última pessoa a quem ela abriria a porta.

 

Mas concorda em que a porta deve ter sido aberta pela própria Mrs. Inglethorp?

 

Há outra possibilidade. Ela pode ter-se esquecido de correr o ferrolho da porta do corredor, quando se deitou, e ter-se levantado mais tarde, já quase de manhã, para o correr.

 

Poirot, essa é, seriamente, a sua opinião?

 

Não digo que seja, mas podia ter sido assim. Mas vejamos outra coisa: que pensa do fragmento de conversa que ouviu entre Mrs. Cavendish e a sogra?


Já me tinha esquecido disso respondi, pensativo. Continua a parecer-me enigmático. Parece-me incrível que uma mulher como Mrs. Cavendish, orgulhosa e reservada ao máximo, se intrometesse tão violentamente numa coisa que, como é óbvio, não lhe dizia respeito.

 

Nem mais! Parece-me um procedimento surpreendente numa mulher com a sua educação.

 

É sem dúvida curioso concordei. No entanto, não tem importância e não é necessário tomá-lo em consideração.

 

Que lhe tenho eu dito sempre? perguntou o meu amigo, com um gemido de exaspero. Tem de se tomar tudo em consideração. Se o facto não se ajusta à teoria, abandone-se a teoria.

 

Bem, veremosredargui, espicaçado.

 

Pois veremos.

 

Chegáramos a Leastways Cottage» e Poirot levou-me para o primeiro andar, para o seu quarto. Ofereceu-me um dos minúsculos cigarros russos que fumava de vez em quando. Deu-me vontade de rir verificar que guardava cuidadosamente os fósforos gastos numa jarrinha chinesa. A minha irritação momentânea desapareceu.

 

Poirot colocara as cadeiras de ambos defronte da janela aberta, de onde se via a rua da aldeia, e pela qual entrava o ar tépido e agradável, íamos ter um dia quente.

 

De súbito, prendeu-me a atenção um jovem que descia apressadamente a rua, em grandes passadas. O que me pareceu extraordinário foi a expressão do seu rosto, uma curiosa mistura de terror e agitação.

 

Olhe, Poirot!

 

O detective inclinou-se para a frente e exclamou:

 

Tiens! É Mr. Mace, da farmácia, e dirige-se para cá.

 

O jovem parou diante do «Leastways Cottage» e, após hesitar um momento, bateu à porta, com força.

 

Um minutinho disse-lhe Poirot, da janela. Desço já. Fazendo-me sinal para o seguir, correu pela escada abaixo e

 

abriu a porta. Mr. Mace começou imediatamente a falar.


Oh, Mr. Poirot, desculpe incomodá-lo, mas ouvi dizer que acaba de chegar da mansão...

 

Acabamos, sim.

 

O rapaz humedeceu os lábios secos. Percorriam-lhe o rosto espasmos curiosos.

 

Toda a aldeia- fala da morte tão inesperada de Mrs. Inglethorp, diz-se...   baixou cautelosamente a voz e perguntou: Foi veneno?

 

O rosto de Poirot manteve-se sereno e impassível.

 

Só os médicos nos poderão esclarecer a esse respeito, Mr. Mace.

 

Sim, com certeza... O jovem hesitou, mas depois não pôde conter a agitação, agarrou Poirot por um braço e reduziu a voz a um murmúrio:Diga>-me só uma coisa, Mr. Poirot: não foi... não foi estricnina?

 

Mal ouvi o que o detective lhe respondeu, mas foi sem dúvida qualquer coisa cuja natureza não o comprometeria. O rapaz foi-se embora e, ao fechar a porta, os olhos de Poirot cruza-

 

ram-se com os meus.

 

Sim, ele terá declarações a prestar no inquérito disse-me, a acenar gravemente com a cabeça.

 

Subimos a escada, devagar. Abri a boca, mas Poirot deteve-me com um gesto da mão.

 

Agora não, mon ami, agora não. Preciso de reflectir. Reina uma! certa desordem no meu cérebro, o que não está bem.

 

Esteve cerca de dez minutos sentado num silêncio total e perfeitamente imóvel, tirando alguns movimentos expressivos das sobrancelhas, enquanto os seus olhos se tornavam cada vez mais verdes. Por fim, soltou um grande suspiro.

 

Pronto, o mau momento já lá vai. Agora está tudo arrumado e classificado. Não devemos permitir a confusão, nunca. O caso ainda não está claro, evidentemente que não, pois é muitíssimo complicado. Intriga-me, intriga-me a mim, Hercule Poirot! Há dois factos significativos.

 

Quais são eles?


O primeiro é o estado do tempo, ontem. Isso é muito importante.

 

Mas esteve um dia maravilhoso! Está a mangar comigo, Poirot!

 

De modo nenhum. O termómetro marcou 27 graus centígrados à sombra. Não se esqueça disso, meu amigo, pois é a chave de toda a charada!

 

E o segundo?

 

O segundo é o facto importante de Monsieur Inglethorp usar vestuário muito peculiar, ter barba preta e usar óculos.

 

Poirot, não posso acreditar que esteja a falar a sério.

 

Falo absolutamente a sério, meu amigo.

 

Mas é infantil!

 

Não. É muito importante.

 

Supondo que o júri do inquérito emite um veredicto de assassínio intencional contra Alfred Inglethorp. Que acontecerá então às suas teorias?

 

Não ficariam abaladas pelo facto de doze homens estúpidos terem cometido um erro! Mas isso não acontecerá. Por um lado, um júri de tribunal de província não sente inclinação para assumir responsabilidades dessas, tanto mais que Mr. Inglethorp se encontra praticamente na posição do senhor local. Por outro acrescentou placidamente, eu não o permitiria!

 

Você não o permitiria?

 

Não.

 

Olhei para o extraordinário homenzinho, sentindo-me simultaneamente irritado e divertido. Mostrava-se tão tremendamente seguro de si mesmo! Acenou devagarinho com a cabeça’, como se lesse os meus pensamentos, e exclamou:

 

Oh, sim, mon ami, faria precisamente o que disse. Levantou-se, pôs a mão no meu ombro, a sua fisionomia modificou-se por completo e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. Em tudo isto, penso na pobre Mrs. Inglethorp, que está morta. Não era extraordinariamente amada, pois não... Mas foi muito boa para nós, belgas, e estou em dívida para com ela.

 

Tentei interrompê-lo, mas ele prosseguiu:

 

Deixe-me dizer-lhe uma coisa, Hastings: ela nunca me perdoaria se eu deixasse Alfred Inglethorp, o seu marido, ser preso agora, agora que uma palavra minha podia salvá-lo!

 

O   INQUÉRITO

Nos dias que precederam o inquérito, Poirot foi infatigável. Fechou-se duas vezes com Mr. Wells, em grande conversa e deu também longos passeios pelo campo. Senti-me um pouco magoado por não me fazer confidências, tanto mais que eu não imaginava onde ele queria chegar.

 

Acudiu-me a ideia de que talvez tivesse andado a investigar na quinta de Raikes. Por isso, como não o encontrei em casa quando passei por «Leastways Cottage» na quarta-feira à tardinha, dirigi-me para a quinta pelos campos, na esperança de o encontrar. Mas não vi nem sombra dele e hesitei em ir mesmo até à quinta propriamente dita. Quando regressava, encontrei um rústico idoso, que me perguntou, a rir manhosamente:

 

É da mansão, não é?

 

Sou. Procuro um amigo meu, que julguei tivesse vindo para estes lados.

 

Um tipo baixinho, que mexe muito as mãos enquanto fala? Um desses belgas da aldeia?

 

Sim! confirmei, ansioso. Ele esteve, então, aqui?

 

Ah, esteve, esteve! E mais do que uma vez. É seu amigo, hem? Ah, os senhores da mansão saíram-me umas boas prendas! E riu-se mais cinicamente ainda.

 

Porquê? Os senhores da mansão vêm cá muitas vezes? perguntei, esforçando-me por aparentar a maior naturalidade possível.

 

Piscou-me o olho, sabidamente.

 

Um vem, mister. Não menciono nomes, claro. E é um cavalheiro muito liberal!... Oh, muito obrigado!

 

Afastei-me depressa. Evelyn Howard tivera, afinal, razão, e eu senti profunda repugnância ao pensar na liberalidade de Alfred Inglethorp com o dinheiro de outra mulher. A cigana picante estivera na base do crime, ou tratar-se-ia do motivo ainda mais vil do dinheiro? Provavelmente era <uma judiciosa mistura de ambas as coisas.

 

Em determinada altura, Poirot pareceu-me possesso de curiosa obsessão. Disse-me uma ou duas vezes estar convencido de que a Dorcas se enganara ao calcular o tempo da discussão, e observou-lhe repetidamente que ela devia ter ouvido as vozes às quatro e meia e não às quatro horas-

 

Mas a mulher mamtinha-se inabalável. Decorrera uma boa hora, ou talvez mais, entre a altura em que ouvira as vozes e as cinco horas, hora a que levara o chá à patroa.

 

O inquérito efectuou-se na sexta-feira no «Stylites Arms», na aldeia. Poirot e eu sentámo-nos ao lado um do outro, pois não tínhamos sido convocados para depor.

 

Procedeu-se aos preliminares. O júri viu o corpo e John Cavendish identificou-o.

 

Interrogado a seguir, John contou como acordara, às primeiras horas da manhã, e as circunstâncias da morte da mãe.

 

Seguiu-se o depoimento médico. Fez-se um grande silêncio e os olhares fixaram-se todos no famoso especialista londrino, que se ’sabia ser uma das maiores autoridades no campo da toxicologia.

 

Em breves palavras, referiu o resultado da autópsia: liberto da fraseologia médica e dos aspectos técnicos, resumia-se ao facto de Mrs. Inglethorp ter morrido em consequência de envenenamento por estricnina- A julgar pela quantidade encontrada, não devia ter ingerido menos de três quartos de um grão de estricnina e era até provável que tivesse ingerido um grão ou pouco mais.


Poderá ter ingerido o veneno por acidente? perguntou o juiz de instrução.

 

Acho a hipótese muito pouco provável. A estricnina não é utilizada para fins domésticos, ao contrário de alguns venenos, e há restrições à sua venda.

 

No exame que efectuou alguma coisa lhe permitiu determinar como foi o veneno administrado?

 

Não.

 

Chegou a «Styles» antes do Dr. Wilkins, creio?

 

Cheguei, de facto. Encontrei o automóvel à saída do portão da mansão e dirigi-me para a residência o mais depressa que pude.

 

Queira fazer o favor de nos relatar exactamente o que se passou a seguir.

 

Entrei no quarto de Mrs. Inglethorp, que nesse momento estava com uma convulsão tetânica típica. Virou-se para mim e disse, arquejante: «Alfred... Alfred!...»

 

A estricnina podia ter sido administrada no café, após o jantar, café que lhe foi levado pelo marido?

 

Talvez, mas a estricnina é uma droga de acção relativamente rápida. Os sintomas aparecem cerca de uma a duas horas após a ingestão. Em certas circunstâncias, o efeito é retardado, mas nenhuma dessas circunstâncias se parece ter verificado no caso presente. Presumo que Mrs. Inglethorp bebeu o café, depois do jantar, cerca das oito horas da noite, ao passo que os sintomas só se manifestaram nas primeiras horas da manhã, o que sugere ter a droga sido ingerida muito mais tarde.

 

Mrs. Inglethorp tinha o hábito de tomar uma chávena de cacau no meio da noite. A estricnina poderia ter sido administrada no cacau?

 

Não. Colhi pessoalmente uma amostra do cacau que restava no tacho e mandei-o analisar. Não continha estricnina.

 

Ouvi Poirot rir baixinho, a meu lado, e perguntei-lhe num sussurro:

 

Como sabia?


Preste atenção - Devo dizer prosseguia o especialista que teria ficado muitíssimo surpreendido se o resultado da análise tivesse sido diferente.

 

Porquê?

 

Simplesmente porque a estricnína tem um gosto muito amargo. Consegue-se detectar numa solução de 1 por 70000 só é possível disfarçá-la com uma substância de gosto muito forte. O cacau não conseguiria disfarçá-la.

 

Um membro do júri quis saber se a mesma objecção se aplicava ao café.

 

Não. O café também tem um gosto amargo, que provavelmente disfarçaria o da esttricnina.

 

Considera então mais provável que a droga tenha siddo administrada no café, mas que, por qualquer razão desconhecida, a sua acção foi retardada?

 

Sim, mas como a chávena estava completamente desfeita não houve possibilidade nenhuma de analisar o seu conteúdo.

 

Terminou assim o depoimento do Dr. Bauerstein, que o Dr. Wilkins corroborou em todos os pontos. Interrogado quanto à possibilidade de suicídio, repudiou-ai inteiramente. A falecida, declamou, tinha o coração fraco, mas tirando isso gozava de perfeita saúde e era de disposição alegre e equilibrada. Seria uma das últimas pessoas a acabar com a própria vida

 

Lawrence Cavendish foi ouvido a seguir. As suas declarações não se revestiram da mínima importância, pois foram uma mera repetição das feitas pelo irmão. No entanto, quando se ia a afastar, parou e disse, hesitante:

 

Gostaria de apresentar uma sugestão, se mo permitem. Olhou, suplicante, para o juiz de instrução, que respondeu, brusco:

 

com certeza, Mr. Cavendish. Estamos aqui para descobrir a verdade e agradecemos tudo quanto possa conduzir a uma maior elucidação.

 

Trata-se apenas de uma ideia minha explicou Lawrence.


Claro que posso estar enganado, mas continua a parecer-me que a morte da minha mãe pode ser justificada por meios naturais.

 

Como chegou a essa conclusão, Mr. Cavendish?

 

Na altura da sua morte e durante algum tempo antes, a minha mãe tomava un tónico contendo estricnina.

 

Ah! exclamou o juiz de instrução.

 

Os membros do júri levantaram a cabeça, interessados.

 

Suponho continuou Lawrence que tem havido casos em que o efeito cumulativo de uma droga, administrada durante algum tempo, acabou por causar a morte. Não será também possível que ela tenha tomado uma dose excessiva de medicamento, por acidente?

 

É a primeira vez que ouvimos dizer que a falecida andava a tomar estricnina, ao tempo da morte. Ficamos-lhe muito obrigados, Mr. Cavendish.

 

Chamado de inovo, para se pronunciar sobre o assunto, o Dr. Wilkins ridicularizou a ideia.

 

O que Mr. Cavendish sugere é absolutamente impossível. Qualquer médico lhes diria o nnesmo. A estricnina é, em certo sentido, um veneno cumulativo, mas seria impossível que redundasse em morte súbita, desta maneira. Teria de haver um longo período de sintomas crónicos, que atrairiam imediatamente a minha atenção. Toda a ideia é absurda.

 

E a segunda sugestão? A possibilidade de, inadvertidamente, Mrs. Inglethorp haver tomado uma dose excessiva!?

 

Três, ou aité mesmo quatro doses, não provocariam a morte. Mrs. Inglethorp mandava sempre preparar uma grande quantidade de remédio de cada vez, visto ser cliente do Coot’s, de Tadmiinster. Precisaria de tomar quase o frasco todo para justificar   a   quantidade   de   estricnina   encontrada   na   autópsia.

 

Acha então que não devemos considerar o tónico como instrumental, em qualquer sentido, na causa da morte?


Evidentemente que não. A suposição é ridícula.

 

O mesmo jurado que interrompera antes alvitrou a possibilidade de o farmacêutico que preparara o remédio Se ter enganado.

 

Isso é sempre possível, claro admitiu o médico,

 

Mas Dorcas, que depôs a seguir, anulou até ’mesmo essa possibilidade: o remédio não tinha sido feito recentemente. Pelo contrário, Mrs. Inglethorp tomara a última dose no dia da morte.

 

Portanto, a questão do tónico acabou por ser abandonada e o juiz de instrução prosseguiu com a sua tarefa. Depois de Dorcas lhe explicar que fora acordada pelo toque violento da campainha da ama, e que a seguir acordara toda a gente, o juiz abordou a discussão da tarde anterior.

 

O depoimento de Dorcas a esse respeito foi substancialmente o que Poirot e eu já ouvíramos da sua boca, e por isso não vou repeti-lo aqui.

 

A testemunha seguinte foi Mary Cavendish. Manteve-se muito direita e falou em voz clara, baixa e perfeitamente calma. Em resposta a uma pergunta do juiz, disse-lhe que o despertador a acordara às quatro e meia da manhã, como de costume, e que se estava a vestir quando a assustara o barulho da queda de algo pesado.

 

Seria a mesa-de-cabeceira? sugeriu o juiz.

 

Abri a porta e escutei prosseguiu Mary. Poucos minutos depois, tocou uma campainha, violentamente. A Dorcas apareceu a correr e acordou o meu marido, e dirigimo-nos todos   para   o   quarto da   minha   sogra,   mas   estava   fechado. ..

 

O juiz de instrução interrompeu-a:

 

Creio que não vale a pena incomodá-la com essa parte. Já sabemos tudo quanto é possível saber dos acontecimentos subsequentes. Agradecia-lhe no entanto que nos contasse tudo quanto ouviu da discussão da véspera.


 

- Eu?

Havia uma ténue nota de insolência na sua voz- Levantou a mão e endireitou o folho de renda do decote, virando um bocadinho a cabeça, ao fazê-lo. E, de repente, a ideia atravessou-me o espírito: «Está a ganhar tempo!»

 

Sim. Consta-me que estava sentada a ler no banco que fica do lado de fora da grande janela da saleta respondeu o juiz de instrução, em tom firme. É verdade, não é?

 

Aquilo era novidade para mim e, olhando de soslaio para Poirot, pareceu-me que também era novidade para ele.

 

Seguiu-se uma pequenina pausa, uma brevíssima! hesitação, antes de ela responder:

 

É, sim, é verdade.

 

E a janela da saleta estava aberta, não estava?

 

O seu rosto tornowse, sem dúvida, um nadinha mais pálido, quando respondeu:

 

Estava.

 

Então -não pode ter deixado de ouvir as vozes que soaram no interior, tanto mais que a cólera as tornava mais altas do que habitualmente. Deviam ser até muito mais audíveis do lugar onde a senhora estava do que no vestíbulo.

 

Possivelmente.

 

Queira repetir o que ouviu da discussão.

 

Francamente, não me lembro de ter ouvido nada.

 

Pretende dizer que não ouviu vozes?

 

Oh, sim, ouvi as vozes! Mas não ouvi o que diziam. Alastrou-lhe pelo pescoço um leve rubor. Não tenho o hábito de escutar conversas particulares.

 

O juiz insistiu:

 

Não se lembra de nada? De nada, Mrs. Cavendish? Nem de uma palavra ou uma frase solta, que lhe tivesse dado a entender que se tratava de uma conversa particular?

 

Mrs. Cavendish pareceu reflectir, embora exteriormente continuasse a aparentar a mesma calma.

 

Sim, lembro. Mrs. Inglethorp disse qualquer coisa... não me recordo exactamente o quê... acerca de provocar escândalo entre marido e mulher.

 

Ah! o juiz recostou-se na cadeira, satisfeito. isso corresponde ao que a criada Dorcas ouviu- Desculpe, Mrs. Cavendish, apesar de reconhecer que se tratava de uma conversa particular, não se afastou? Permaneceu onde estava?

 

Captei a cintilação momentânea dos seus olhos fulvos, quando levantou a cabeça. Tive a certeza de que, naquele momento, Mary Cavendish seria capaz de fazer em fanicos o advogadozinho e as suas insinuações, mas foi calmamente que respondeu:

 

Não. Sentia-me muito confortável onde estava e fixei a atenção no livro.

 

É tudo quanto nos sabe dizer?

 

É.

 

O interrogatório terminou, embora eu duvidasse que o juiz tivesse ficado inteiramente satisfeito. Creio que suspeitava de que Mary Cavendish poderia ter dito mais, se quisesse.

 

Seguidamente foi chamada a caixeira Amy Hill, que declarou ter vendido um impresso de testamento na tarde de 17 a William Earl, segundo jardineiro de «Styles».

 

Sucederam-lhe William Earl e Manning, que declararam terem assinado um documento, como testemunhas. Manning fixou a hora nas quatro e meia, aproximadamente, e William foi de parecer que tinha sido muito mais cedo.

 

Seguiu-se Cynthia Murdoch, que tinha pouco que dizer. Não soubera de nada da tragédia até ser acordada por Mrs. Cavendish.

 

Não ouviu a mesa cair?

 

Não. Estava ferrada no sono. O juiz de instrução sorriu.

 

A consciência tranquila torna o sono pesado comentou. Obrigado, Miss Murdoch, não desejo mais nada.

 

Miss Howard.


Miss Howard apresentou a carta que Mrs. Inglethorp lhe escrevera na tarde do dia 17. Poirot e eu já a víramos, claro. Não acrescentava nada ao nosso conhecimento da tragédia Segue-se um facsimile:

Styles Court, 17 de Julho

Minha querida Evelyn:

Não podemos enterrar o machado de guerra? Tem-me sido difícil perdoar as coisas que disseste contra o meu querido marido, mas estou velha e sou muito tua amiga.

Afectuosamente,

Emily Inglethorp

 

Foi entregue aos jurados, que a observaram atentamente.

 

Creio que não nos ajuda muito comentou o juiz de instrução, suspirando. Não contém nenhuma menção de qualquer dos acontecimentos daquela tarde.

 

Pois para mim é clara como água declamou Miss Howard, secamente. Mostra perfeitamente que a minha pobre amiga acabava de descobrir que tinham feito dela idiota.

 

Na carta não diz nada de semelhante salientou o juiz.

 

Não diz porque a Emily nunca foi capaz de dar o braço a torcer. Mas eu conhecia-a. Queria que voltasse, mas não admitiria que eu tivera razão. Preferia os rodeios, como muita gente- Pessoalmente, não acredito que dêem resultado.

 

  1. Wells esboçou um leve sorriso, no que foi imitado por diversos membros do júri. Não me restaram dúvidas de que a personalidade de Miss Howard era do conhecimento público.

 

De qualquer modo, toda esta patacoada é uma grande perda de tempo continuou a mulher, percorrendo o júri com um olhar desdenhoso. Conversa... conversa... conversa! Quando afinal sabemos perfeitamente...

 

O juiz interrompeu-a, muito inquieto:

 

Obrigado, Miss Howard, não desejo mais nada. Desconfio que Mr. Wells soltou um suspiro de alívio quando a viu pelas costas.

 

Chegou então a altura da sensação do dia: o juiz de instrução chamou Albert Mace, ajudante de farmacêutico.

 

Tratava-se do nosso jovem pálido e agitado. Em resposta às perguntas que o magistrado lhe fez, respondeu que era farmacêutico habilitado, mas que trabalhava havia pouco tempo na farmácia em questão em virtude de o ajudante anterior ter sido chamado para o serviço militar

 

Concluídos os preliminares, o juiz de instrução passou ao que interessava:

 

Mr.   Mace,   vendeu recentemente estricnina   a   alguma pessoa não autorizada?

 

Vendi, sim, senhor.

 

Quando foi isso?

 

Segunda-feira passada, à noite.

 

Segunda-feira? Não terá sido terça-feira? Não, senhor. Foi na segumda-feira, 16. Sabe dizernnos a quem a vendeu?

 

O silêncio era tão grande que se ouviria cair um alfinete.

 

Sei, sim, senhor. Foi a Mr. Inglethorp.

 

Todos os olhares se viraram simultaneamente para o lugar onde Alfred Inglethorp estava sentado, impassível e carrancudo. Estremeceu levemente, quando as palavras acusadoras saíram dos lábios do rapaz, e cheguei a pensar que fosse levantar-se da cadeira; mas permaneceu sentado, embora se lhe estampasse no rosto uma expressão de espanto muito convincente.

 

Tem a certeza do que diz? perguntou o magistrado, severamente.

 

Absoluta, excelência.

 

É seu hábito vender estricnina indiscriminadamente, ao balcão?

 

O pobre rapaz esmoreceu visivelmente, ao ver o franzir de cenho do juiz.

 

Oh, não, claro que não! Mas tratando-se de Mr. Inglethorp, da mansão, pensei que não fazia mal... Ele disse que era para envenenar um cão.

 

Compreendi intimamente o jovem. Tentar agradar «à mansão» fazia parte da natureza humana, em especial quando isso podia levar o cliente a trocar o Coot’s pela farmácia local.

 

Não é costume quem compra veneno assinar um livro?

 

É, e Mr. Inglethorp assinou-o. Tem o livro consigo?

 

Tenho, sim.

 

O livro foi apresentado e, com algumas palavras de severa censura, o juiz mandou embora o pobre Mr- Mace.

 

Em seguida, no meio de grande silêncio, foi chamado Alfred Inglethorp. Perguntei a mim mesmo se ele teria consciência do apertar do laço à roda do pescoço.

 

O juiz foi direito ao assunto, sem rodeios:

 

Ao fim da tarde da última segunda-feira comprou estricnina com o intuito de envenenar um cão?

 

Inglethorp respondeu, com absoluta calma:

 

Não, não comprei. Não existe nenhum cão em «Styles», a não ser um cão pastor, que está de perfeita saúde.

 

Nega absolutamente ter comprado estricnina a Albert Mace, na segundahfeira passada’?

 

Nego.

 

Também nega absolutamente isto?


O juiz estendeu-lhe o registo no qual estava a sua assinatura.

 

Claro que nego. A letra é muito diferente da minha, como vou demonstrar.

 

Tirou um velho sobrescrito da algibeira, escreveu o nome e entregou o sobrescrito aos jurados. A letra era, de facto, inteiramente diferente.

 

Como explica, então, o depoimento de Mr- Mace?

 

Mr. Mass deve-se ter enganado.

 

O juiz hesitou um momento, antes de perguntar:

 

Mr. Inglethorp, por uma simples questão de forma, importa-se de nos dizer onde esteve no fim da tarde de segunda-feira, 16 de julho?

 

Francamente.., não me lembro.

 

Isso é absurdo, Mr. Inglethorp! afirmou o juiz, ríspido.

 

Pense melhor. Inglethorp abanou a cabeça.

 

Não lhe sei dizer. Tenho uma vaga ideia de que estive fora de casa, a andar...

 

Em que direcção?

 

Não me lembro, realmente.

 

Esteve na companhia de alguém? insistiu o juiz, em tom mais grave.

 

Não.

 

Encontrou alguém, no seu passeio?

 

Não.

 

É pena comentou o magistrado, secamente. Devo deduzir, então, que se recusa a. dizer onde estava na altura em que Mr. Mace o reconheceu positivamente, como tendo ido à sua farmácia comprar estricnina? ,

 

Se quer ver as coisas desse modo...

 

Tenha cuidado, Mr. Inglethorp.

 

Sacré!            murmurou Poirot, que se mexia nervosamente.

 

Este imbecil quererá ser preso?

Inglethorp estava, de facto, a criar má impressão. Os seus débeis desmentidos nem uma criança teriam convencido. Mas o juiz de instrução passou ao ponto seguinte e Poirot soltou um profundo suspiro de alívio.

 

Discutiu com a sua mulher na terça-feira à tarde?

 

Perdão, foi mal informado. Não tive discussão nenhuma com a minha querida mulher, toda essa história é absolutamente falsa. Estive a tarde inteira ausente de casa.-

 

Pode indicar alguém que o testemunhe?

 

Tem a minha palavra redarguiu Inglethorp, altivamente. O juiz não se deu ao trabalho de lhe responder.

 

Há duas testemunhas dispostas a jurar que ouviram a sua disputa com Mrs. Inglethorp.

 

Essas testemunhas estão enganadas.

 

Senti-me perplexo. O indivíduo falava com uma confiança e uma calma tão grandes que quase abalava as minhas convicções. Olhei para Poirot e não compreendi a expressão exultante do seu rosto. Estaria finalmente convencido da culpabilidade de Alfred Inglethorp?

 

Mr.   Inglethorp,   ouviu   repetir nesta   sala   as   últimas palavras da sua mulher, antes de morrer. Tem alguma explicação para elas?

 

Por certo que sim.

 

Sim?

 

Parece-me muito simples. O quarto estava mal iluminado, o Dr. Bauerstein é mais ou menos da minha altura e constituição e, como eu, usa barba. Àquela luz e sofrendo como sofria, a minha pobre mulher confundiu-o comigo.

 

Ah! exclamou   Poirot,   baixinho. É uma ideia,   de facto, é uma ideia!

 

Acha que é verdade? Perguntei-lhe, também baixinho.

 

Não direi tanto, mas não há dúvida de que é uma sugestão muito engenhosa.

 

Interpretaram ais últimas palavras da minha mulher como uma acusação prosseguiu Inglethorp , quando na realidade elas eram um apelo.

 

O juiz pensou, uns momentos, antes de continuar:


Creio, Mr. inglethorp, que foi o senhor mesmo quem deitou o café e o levou à sua mulher, nessa noite?

 

Deitei, de facto, o café, mas não lho levei. Tencionava levar-lho, mas informaram-me de que estava um amigo à porta do vestíbulo e, por isso, pus a chávena do café em cima da mesa do vestíbulo. Quando voltei passados minutos já lá não estava.

 

A declaração podia ou não ser verdadeira, mas não me pareceu que melhorasse muito as coisas, para Inglethorp. De qualquer modo, ele tivera tempo mais do que suficiente para deitar o veneno no café.

 

Nessa altura, Poirot deurme uma cotoveladinha e apontou dois homens sentados ao lado um do outro, perto da porta. Um era um homenzinho baixo e moreno, com cara de furão, e o outro era alto e louro.

 

Interroguei o meu amigo, mudamente, e ele aproximou os lábios do meu ouvido e perguntou:

 

Sabe quem é aquele homenzinho? Abanei a cabeça.

 

É o detective inspector James Japp, da Scotland Yard: Jimmy Japp. O outro tipo também é da Scotland Yard. As coisas estão a andar muito depressa, meu amigo.

 

Olhei com atenção para os dois homens, que não tinham nada de polícias. Nunca me teria passado pela cabeça que fossem personalidades oficiais.

 

Ainda estava a olhar para eles quando a leitura do veredicto desviou a minha atenção:

 

Homicídio voluntário perpetrado por pessoa ou pessoas desconhecidas.

 

POIROT PAGA AS SUAS   DÍVIDAS

Quando saímos do «Stylites Arms». Poirot chamou-me à parte, com uma pequena pressão do braço. Compreendi o que pretendia: esperava os homens da Scotland Yard.

 

Eles saíram momentos depois e o meu amigo avançou imediatamente e abordou o mais baixo:

 

Receio que não se lembre de mim, inspector Japp.

 

Oh, Mr. Poirot! exclamou o inspector, e acrescentou, virandoHse para o outro homem: Já me ouviu falar de Mr. Poirot, não ouviu? Em 1904 trabalhámos juntos, ele e eu: o caso de falsificação Abercrombie, lembra-se? Ele foi apanhado em Bruxelas. Ah, aquilo é que eram tempos, musierl E lembra-se do «barão» Aliara? Que grande safado! Conseguiu escapar às garras de metade da Polícia da Europa, mas nós filámo-lo em Antuérpia..   graças aqui a Mr. Poirot.

 

Aproximei-me mais, enquanto o inspector desfiava aquelas recordações agradáveis, e fui apresentado a Japp, que por sua vez nos apresentou aos dois ao seu companheiro, o superintendente Summerhaye.

 

Quase não preciso de lhes perguntar o que fazem aqui, cavalheiros...observou Poirot.

 

Japp piscou um olho, manhosamente-

 

Claro que não! É um caso muito claro, quanto a mim.


Discordo de si, a esse respeito declarou Poirot, gravememte.

 

Oh, deixe-se disso! exclamou Suimmerhaye, descerrando os lábios pela primeira vez. Todo o caso é claro como água, o homem foi apanhado, por assim dizer, com a boca na botija. Palavra, não Compreendo como pôde ser tão estúpido!

 

Mas Japp olhava atentamente para Poirot e disse, risonho:

 

Sustenha o fogo, Suimimerhaye! Eu e aqui o musier já nos conhecemos e eu não aceitaria a opinião de nenhum homem tão depressa como aceito a dele. Ou me engano muito, ou tem qualquer coisa na manga. Não é verdade, musier?

 

Poirot sorriu.

 

Bem... tirei certas conclusões.

 

Summerhaye continuava com um ar muito céptico, mas Japp observava o meu amigo perscrutadoramente.

 

Até agora, só vimos o caso do exterior disse Japp. Nesse aspecto, a Yard está em desvantagem num caso destes, em que o assassínio só é admitido, por assim dizer, depois do inquérito. Tem muita importância estar no local logo às primeiras, e nisso Mr. Poirot levou-nos a dianteira. Nós nem agora cá estaríamos se não fosse a presença aqui de um médico inteligente, que nos informou por intermédio do juiz de instrução. Mas o senhor esteve no local desde o princípio e é possível que tenha «colhido uns indiciozinhos. A julgar pelo que ficou demonstrado no inquérito, Mr. Inglethorp assassinou a mulher, tão certo como eu estar aqui, e se outro, que não o senhor, insinuasse o contrário, eu rir-me-ia na sua cara. Confesso que fiquei surpreendido por os jurados não terem dado logo um veredicto de homicídio voluntário contra ele. Creio, aliás, que o teriam dado se não fosse o juiz, que me pareceu detê-los.

 

Talvez, no entanto, você tenha um mandado de captura contra ele na algibeira.. insinuou Poirot.

 

Foi como se um postigo de impenetrável oficialidade se fechasse e velasse o rosto expressivo de Japp, que redarguiu secamente:

 

Talvez tenha, e talvez não.

 

Poirot fitou-o, pensativo, e confessou:

 

Tenho um grande empenho em que ele não seja preso, Messieurs.

 

Assim parece comentou Summerhaye, sarcástico. Mas Japp olhava Poirot com cómica perplexidade.

 

Não pode ir um bocadinho mais longe, Mr. Poirot? Uma piscadela de olho tem tanto valor como um aceno de cabeça’... da sua parte. O senhor esteve no local e, como sabe, a Yard não deseja cometer erros.

 

Foi exactamente o que pensei redarguiu Poirot, a acenar, muito grave, com a cabeça. Bem, digo-lhe o seguinte: utilize o seu mandado e prenda Mr. Inglethorp, mas não ganhará nadíssima com isso: a acusação contra ele será imediatamente anulada! Comme ça! e estalou ’os dedos, expressivamente.

 

O rosto de Japp tornou-se sério, ao passo que Summerhaye soltava uma espécie de grunhido incrédulo.

 

Quanto a mim, estava literalmente parvo de espanto. Só conseguia chegar a uma conclusão: Poirot estava doido.

 

Japp tirara um lenço e enxugava a testa, devagarinho.

 

Não me atrevo, Mr. Poirot. Eu aceitaria a sua palavra, mas há outros acima’ de mim que quereriam saber por que diabo procedera assim. Não me pode dar mais qualquer coisa em que me basear?

 

Poirot pensou, antes de responder:

 

Sim, pode ser. Admito que não o desejo, é como forçar a mão. Preferia ’trabalhar no escuro, por enquanto, mas o que você disse é muito justo. A palavra de um polícia belga, cujo tempo já lá vai, não é suficiente! E Alfred Inglethorp não deve ser preso. Jurei isso mesmo, como aqui o meu amigo Hastings sabe. Vejamos portanto, meu bom Japp... Seguem imediatamente para «Styles»?

 

Dentro de meia hora, mais ou menos. Primeiro vamos falar com o juiz de instrução e com o médico.


Óptimo. Chame-me, de passagem. É a última casa da aldeia. Irei consigo. Em «Styles» Mr. Inglethorp dar-lhe-á (ou, se ele se recusar, o que é possível, dar-lhe-ei eu) provas que o convencerão de que a acusação contra ele não se aguenta de pé. Combinado?

 

Combinado! aceitou Japp, bem disposto. E, em nome da Yard, creia que ’lhe estou muito grato, embora confesse que, de momento, não vejo nenhuma possível falha nos indícios contra ele. No entanto, você foi sempre um prodígio! Até já, musier.

 

Os dois detectives afastaram-se, Summerhaye a sorrir incredulamente.

 

Então, meu amigo, que lhe parece? perguntou -Poirot, exuberante, antes que eu tivesse tempo de abrir a boca. Mon Dieu, passei maus momentos naquela audiência! Não me passou pela cabeça que o indivíduo pudesse ser tão obstinado ao ponto de se recusar a dizer fosse o que fosse. Decididamente, foi «ma política de imbecil, a sua.

 

Hum... há outras explicações além da de imbecilidade. Se aquilo de que o acusaram é verdade, como se poderia defender a não ser pelo silêncio?

 

Ora essa, de mil e uma engenhosas maneiras! exclamou o meu amigo. Suponhamos que fui eu que cometi este assassínio: ocorrem-me sete histórias muito plausíveis, e muito mais convincentes do que as teimosas negações de Mr. Inglethorp!

 

Não pude deixar de rir.

 

Meu caro Poirot, tenho a certeza de que é capaz de inventar setenta, em vez de sete! Mas, a sério, e apesar do que o ouvi dizer aos detectives, não é possível que continue a acreditar na possibilidade da inocência de Alfred Inglethorp, pois não?

 

Porque hei-de acreditar menos agora do que atrás? Nada mudou.

 

Mas os indícios apresentados são tão concludentes...


Sim, são demasiado concludentes.

 

   Transpusemos a cancela do «Leastways Cottage» e subimos a escada que já se me tornara familiar.

 

Sim, sim, demasiado concludentes continuou   Poirot, como se falasse sozinho. Os indícios autênticos são geralmente vagos e insatisfatórios... são indícios- Têm de ser estudados, escolhidos... Mas aqui é tudo claro e nítido. Não, meu amigo, estes indícios foram inteligentemente fabricados... tão inteligentemente que acabaram por se virar contra o objectivo pretendido.

 

Como chegou a essa conclusão?

 

Cheguei a esta conclusão porque, enquanto os indícios contra ele eram vagos e intangíveis, tornava-se difícil contestá-los. Mas, na ânsia de desviar de si as suspeitas, o criminoso apertou tanto a rede que um golpe bastará para libertar o Inglethorp.

 

Fiquei calado. Passado um minuto ou dois, Poirot continuou:

 

Encaremos o assunto do seguinte modo: Temos um homem que, digamos, decide envenenar a mulher. É um homem que tem vivido de expedientes, ao que consta, e presumivelmente, portanto, tem uma certa inteligência. Não é parvo nenhum. Muito bem. Como procede ele, para pôr em prática a decisão tomada? Vai temerariamente ao farmacêutico da aldeia e compra estricnina, no seu próprio nome, inventando para tal uma história acerca de um cão, uma história que inevitavelmente se verificará ser absurda. Não utiliza o veneno nessa noite: espera até ter uma violenta discussão com a mulher, uma história de que toda a gente da casa toma conhecimento e que, naturalmente, ainda mais suspeito o torna. Não prepara nenhuma defesa, nem a sombra de um alibi, embora saiba que o ajudante do farmacêutico terá por força de revelar os factos. Ora adeus, não me peça para acreditar que é possível algum homem ser tão idiota! Só um doido que quisesse suicidar-se levando a que o enforcassem procederia assim!

 

No entanto, não vejo...

 

Nem eu. Repito-lhe, mon ami, que me intriga. A mim, Hercule Poirot!

 

Mas se o julga inocente, como explica que tenha comprado a estricnina?

 

Muito simplesmente: não a comprou!

 

Mas o Mace reconheceu-o!

 

Perdão, o Mace viu um homem de barba preta como Mr. Inglethorp, usando óculos como os de Mr. Inglethorp e vestindo roupas como as de Mr. Inglethorp, que são muito características. Não podia reconhecer um homem que provavelmente ainda só vira de longe, pois, como se deve lembrar, o rapaz estava, na aldeia havia uns quinze dias apenas e Mrs. Inglethorp comprava os seus produtos farmacêuticos principalmente no COOt’A, de Tadminster.

 

Então pensa...

 

Mon ami, lembra-se dos dois pontos que sublinhei? Deixe o primeiro, por enquanto. Qual era o segundo?

 

O facto importante de Alfred Inglethorp usar vestuário peculiar, barba preta e óculos citei.

 

Exactamente. Agora suponha que alguém desejava fazer-se passar por John ou Lawrence Cavendish. Seria fácil?

 

Não respondi, pensativo. Claro que um actor-... ” Mas Poirot interrompeu-me, implacável:

- E não seria fácil porquê’ Eu digo-lhe, meu amigo: porque usam ambos a cara rapada. Para conseguir passar por um desses dois homens, em pleno dia, era necessário ser um actor de génio e ter uma certa semelhança facial. Mas no caso de Alfred Inglethorp tudo isso muda: a roupa, a barba e os óculos que lhe ocultam os olhos são os pontos salientes do seu aspecto pessoal. Qual é o primeiro instinto do criminoso? Desviar as suspeitas de si mesmo, não é verdade? E qual a melhor maneira de o conseguir? Fazendo-as incidir noutra pessoa qualquer. Neste caso, havia um homem feito de encomenda, como se costuma dizer. Estava toda a gente predisposta a acreditar na culpa de Mr. Inglethorp. Sabia, por assim dizer, de antemão que ele seria suspeito, mas para que tal fosse uma certeza seria necessário ter qualquer prova tangível... como a compra do veneno. Isso, dada a aparência peculiar de Mr. Inglethorp, não era difícil. Lembre-se de que o jovem Mace numca tinha falado com Mr. Inglethorp. Como poderia duvidar de que o homem com a sua roupa, a sua barba e os seus óculos não era Alfred Inglethorp?

 

É possível que tenha sido assim admiti, fascinado com a eloquência de Poirot. Mas, se foi, porque não diz ele onde estava na segunda-feira às seis da tarde?

 

Ah, sim, porquê?! exclamou Poirot, um pouco mais calmo. Se fosse preso, provavelmente falaria, mas eu não quero que se chegue a isso. Preciso de fazê-lo ver a gravidade da sua situação. Claro que há algo de desonroso atrás do seu silêncio. Mesmo que não tenha matado a mulher, é um salafrário e tem qualquer coisa< a esconder, independentemente do assassínio.

 

Que poderá ser? perguntei, como se falasse comigo, momentaneamente conquistado pela opinião de Poirot, embora ainda agarrado à ténue convicção de que a dedução óbvia era a correcta.

 

Não adivinha? indagou Poirot, sorrindo.

 

Não. E você?

 

Oh, sim! Tive uma ideiazinha, há uns tempos... e bateu certa.

 

Não me disse nada queixei-me, em tom de censura. Poirot abriu as mãos, como quem pede desculpa:

 

Perdoe, mon ami, mas você não se mostrava precisamente sympathique. Acrescentou,   muito   sério: Diga-me,   compreende agora que ele não deve ser preso?

 

Talvez... respondi   ambiguamente,   pois na   verdade era-me indiferente o destino de Alfred Inglethorp e achava que um bom susto não lhe faria mal nenhum.

 

Poirot, que me observara com atenção, soltou um suspiro e mudou de assunto:

 

Diga-«me cá, meu amigo, tirando Mr. Inglethorp, qe lhe pareceram os depoimentos feitos no inquérito?

 

Correu tudo praticamente como eu esperava.

 

Não aconteceu nada que lhe parecesse peculiar?

 

Os meus pensamentos voaram para Mary Cavendish e por isso, limitei-me a responder:

 

Em que sentido?

 

Bem, o depoimento de Mr. Lawrence Cavendish, por exemplo.

 

Senti-me aliviado.

 

Ah, o Lawrence! Não, não creio. Foi sempre um tipo nervoso.

 

Não achou estranha a sua sugestão de que a mãe podia ter sido envenenada acidentalmente, por meio do (tónico que andava a tomar... hem?

 

Não, não posso dizer que tenha achado estranho. Os médicos ridicularizaram a ideia, claro, mas pareceu-me uma sugestão natural, da parte de um leigo.

 

Mas Monsieur Lawrence não é um leigo! Você mesmo me disse que ele estudou medicina e se formou.

 

Sim, é verdade, não tinha pensado nisso! exclamei, francamente surpreendido. É, de facto, estranho.

 

Desde o princípio que o comportamento dele tem sido peculiar declarou Poirot, a acenar com a cabeça. De toda a casa, só ele estava apto a reconhecer os sintomas do envenenamento pela estricnina, e no entanto verificamos que é ele o único a defender empenhadamente a teoria da morte resultante de causas naturais. Se fosse Monsieur John, ainda compreenderia, pois não tem conhecimentos técnicos e é por natureza falho de imaginação. Mas Monsieur Lawrence... não! E agora, hoje, apresenta uma sugestão que ele próprio devia saber que era ridícula. Há aí alimento para meditação, mon ami!

 

É tudo muito confuso admiti.

 

Há também Mrs. Cavendish continuou Poirot. É outra que não disse tudo quanto sabe! Que lhe pareceu a sua atitude?

 

Não sei como interpretá-la. Parece inconcebível que proteja Alfred Inglethorp, mas no entanto é isso que parece estar a fazer.

 

Poirot acenou com a cabeça, pensativamente.

 

Sim, é estranho. Uma coisa é certa: ela ouviu muito mais da tal «conversa privada» do que pretende admitir.

 

E, contudo, é a última pessoa que alguém acusaria de espreitar ou escutar!

 

Exactamente. Mas o seu depoimento demonstrouHme uma coisa: cometi um erro e a Dorcas tinha razão. A discussão verificou-se mais cedo, cerca das quatro horas da tarde, como ela sempre disse.

 

Olhei-o, curiosamente. Numca compreendera a sua insistência naquele ponto.

 

Sim, hoje sucederam muitas coisas peculiares... continuou Poirot. Por exemplo, que andava o Dr. Bauerstein; a fazer, levantado e vestido, àquela hora da manhã? Acho surpreendente que ninguém tenha feito comentários a esse facto.

 

Creio que ele sofre de insónias informei, sem muita convicção.

 

O que é uma explicação muito boa ou muito má. Serve para tudo e não explica nada. Não perderei de vista o nosso inteligente Dr. Bauerstein.

 

Encontrou mais alguns defeitos nos depoimentos? perguntei, sarcástico.

 

Mon ami, quando verificar que as pessoas mentem, fique atento! Respondeu-me o detective, muito sério Ou estou muito enganado, ou hoje, no inquérito, só uma pessoa», no máximo duas, disseram a verdade sem reservas nem subterfúgios.

 

Não exagere, Poirot! Não cito o Lawrence nem Mrs. Cavendish, mais o John... e Miss Howard, esses com certeza disseram a verdade, não acha?

 

Ambos, meu amigo? Um, admito, mas os dois...

 

As suas palavras causaram-me um choque desagradável

 

O depoimento de Miss Howard, apesar de não se revestir de importância, fora feito tão clara e firmemente que nunca me passara pela cabeça duvidar da sua sinceridade. No entanto, tinha um grande respeito pela sagacidade de Poirot excepto nas ocasiões em que ele se mostrava, como eu costumava dizer, «estupidamente cabeçudo».

 

Pensa realmente assim? Miss Howard pareceu-me sempre tão essencialmentte sincera... quase desagradavelmente sincera, até...

 

Poirot lançou-me um olhar curioso, que não consegui compreender. Deu a impressão de que ia falar, mas desistiu.

 

E Miss Murdoch também continuei. Não há nada de mentiroso nela.

 

Pois não. No entamto, é estranho que não tenha ouvido barulho nenhum, apesar de dormir no aposento contíguo, ao passo que Mrs. Cavendish, na outra ala do edifício, ouviu perfeitamente a mesa cair.

 

Bem, ela é nova e tem o sono pesado...

 

Ah, sem dúvida! Deve ser uma dorminhoca famosa!

 

Não gostei do tom da sua voz, mas naquele momento bateram à porta, com força, e nós fomos ver à janela e verificámos que os dois detectives estavam à nossa espera.

 

Poirot pegou no chapéu, deu uma torcidela feroz ao bigode e, sacudindo meticulosamente um imaginário grão de poeira da manga, fez-<me sinal para descer à sua frente. Reunimo-nos aos detectives e partimos para «Styles».

 

Creio que o aparecimento dos dois homens da Scotland Yard constituiu um grande abalo especialmente para o John, embora, naturalmente, depois de ouvir o veredicto soubesse que tall seria apenas uma questão de tempo. No entanto, a presença dos detectives fê-lo tomar mais consciência da verdade do que tudo quanto até então acontecera.

 

Poirot conversara em voz baixa com Japp, no caminho, e foi o inspector que pediu que reunissem na sala a gente da casa, menos a criadagem. Compreendi o que isso significava: chegara o momento de Poirot provar o que dissera.

 

Pessoalmente, não me sentia optimista. Poirot podia ter excelentes razões para acreditar na inocência de Inglethorp, mas um homem como Summerhaye exigiria provas tamgíveis, e eu duvidava que o meu amigo as pudesse apresentar.

 

Pouco depois encontrávamo-nos todos reunidos na sala, cuja porta Japp fechou. Solícito e cortês, Poirot dispôs cadeiras para todos. Os homens da Scotland Yard eram o alvo de todos os olhares. Creio que compreendíamos pela primeira vez que o sucedido não fora um sonho mau, um pesadelo, e sim uma reaiidade tangível. Lêramos notícias de coisas ’semelhantes, mas agora éramos nós próprios actores do drama. No dia seguinte, os jornais de toda a Inglaterra espalhariam a notícia, com grandes cabeçalhos:

 

«MISTERIOSA TRAGÉDIA   NO   ESSEX» «SENHORA RICA ENVENENADA»

 

Haveria fotografias de «Styles» e instantâneos da família a sair do inquérito» o fotógrafo da aldeia não estivera de braços cruzados! Enfim, coisas acerca das quais lêramos centos de vezes mas coisas que costumavam acontecer aos outros e não a nós. E agora, naquela casa, tinha sido cometido um assassínio. Diante de nós estavam «os detectives encarregados da investigação). A conhecida fraseologia da gíria policial passou-me rapidamente pelo espírito, enquanto Poirot não iniciou os trabalhos.

 

Creio que ficaram todos um pouco surpreendidos por ser ele e não um dos detectives policiais a tomar a iniciativa.

 

Mesdames e messieurs disse Poirot, fazendo uma vénia, como se fosse uma celebridade prestes a proferir um discurso , pedi-lhes que se reunissem todos aqui com um certo objectivo, um objectivo que diz respeito a Mr. Alfred Inglethorp.

 

Inglethorp encontrava-se um pouco   isolado creio que, inconscientemente, tinham todos afastado um pouco as cadeiras da sua e estremeceu levemente quando Poirot pronunciou o seu nome.

 

Mr. Inglethorp disse o detective, dirigindo-se-lhe directamente , abateuHse sobre esta casa uma sombra muito negra, a sombra do assassínio.

 

Inglethorp abanou tristemente a cabeça.

 

Minha pobre mulher! Pobre Emily! É terrível.

 

Não creio, monsieur, que tenha a noção exacta de quanto poderá ser terrível... para si. E, como o outro parecesse não compreender, acrescentou: Mr. Inglethorp, corre um perigo muito grande.

 

Os dois detectives mexiam-se, agitados. Vi pairar nos lábios de Summierhaye a advertência oficial: «Tudo quanto disser poderá ser utilizado como prova contra si-» Mas Poirot prosseguiu:

 

Compreende agora, monsieur! Não. Que quer dizer?

 

Quero dizer que é suspeito de ter envenenado a sua mulher respondeu o detective, pronunciando bem as palavras.

 

Os outros soltaram uma pequena exclamação abafada>, ao ouvirem a acusação clara.

 

Meu Deus! exclamou Inglethorp, soerguendo-se na cadeira Que ideia monstruosa! Eu... envenenar a minha querida Emily!

 

Não creio continuou Poirot, a observá-lo atentamente que tenha plena consciência da natureza desfavorável, para si, do seu depoimento no inquérito. Mr. Ingletthorp, sabendo agora o que acabo de lhe dizer, continua a recusar-se a dizer onde estava às seis horas da tarde de segunda-feira?

 

Alfred Inglethorp deixou-se cair na cadeira, com um gemido, e ocultou o rosto nas mãos. Poirot aproximou-se e parou diante dele.

 

Fale! ordenou, ameaçador.

 

Inglethorp levantou a cabeça com dificuldade, e abanou-a lenta e deliberadamente.

Não falará?

 

Não. Não acredito que possa haver alguém tão monstruoso ao ponto de me acusar do que diz.

 

Poirot acenou com a cabeça, pensativamente, como un homem cuja decisão está tomada.

 

Soit! disse. Nesse caso, tenho de falar por si.

 

Alfred Inglethorp levantou-se, de um pulo.

 

O senhor? Como pode falar? Não sabe .. calou-se, bruscamente.

 

Poirot voltou-se para nós:

 

Mesdames et messieurs, vou falar! Escutem! Eu, Hercule Poirot, afirmo que o homem que entrou na farmácia e comprou a estricnina, às seis horas da tarde de segunda-feira, não era Mr. Imglethorp, pois às seis horas desse dia Mr. Inglethorp acompanhava Mrs. Raikes a casa dela, vindos de uma quinta vizinha. Posso apresentar nada menos de cinco testemunhas que juram tê-los visto juntos, quer às seis horas quer pouco depois, e, como devem saber, a «Abbey Farm», onde Mrs. Raikes vive, fica pelo menos a três quilómetros de distância da aldeia. Não podem restar dúvidas absolutamente nenhumas quanto à validade do alibi!

 

NOVAS   SUSPEITAS

Seguiu-se um momento de espanto e silêncio. Japp, que era o menos surpreendido de todos nós, foi o primeiro a falar:

 

Palavra, Mr. Poirot, você é único! Essas testemunhas a que aludiu são fixes, suponho?

 

Voilà! Preparei uma lista delas, com nomes e moradas. Deve procurá-las, evidentemente, mas verificará que está tudo em ordem.

 

Tenho a certeza disso. Japp baixou a voz e acrescentou:

 

Estou-lhe muito grato. Se o prendêssemos tinhamos arranjado um grande sarilho. Virowse para Inglethorp e perguntou:

 

Se me permite, porque não disse o senhor mesmo tudo isto no inquérito?

 

Eu explico-lhe porquê interveio Poirot. Correu um certo boato...

 

Um boato muito perverso e absolutamente falso! interrompeu Alfred Inglethorp, em voz agitada.

 

Mr. Inglethorp não desejava reanimar nenhum escândalo no momento presente. Não é verdade?

 

Inteiramente verdade. com a minha pobre Emily ainda por sepultar, não admira, creio, que eu não desejasse que surgissem mais boatos falsos.

 

Aqui entre nós, meu caro senhor, eu preferiria dar origem a toda a espécie de boatos a ser preso por homicídio observou Japp, E ouso pensar que a sua pobre senhora teria sido da mesma opinião. Se não fosse Mr. Poirot, teria sido mesmo preso, tão certo como dois e dois serem quatro!

 

Fui estúpido, sem dúvida murmurou Inglethorp, mas não imagina como tenho sido perseguido e caluniado e lançou um olhar irritado a Evelyn Howard.

 

Japp voltou-se, bruscamente, para John e disse-lhe:

 

Agora gostaria de ver o quarto da vítima, por favor, e depois conversarei um pouco com as criadas. Não se incomode, Mr- Poirot indicar-me-á o caminho.

 

Quando iam a sair da sala, Poirot virou-se e fez-me sinal para os acompanhar. Depois de subirmos a escada, agarromme num braço e afastou-se um pouco comigo.

 

Vá depressa para a outra ala, Hastings. Espere ali, deste lado daquela porta com o reposteiro grosso. Não saia de lá até eu voltar recomendou-me e depois girou rapidamente nos calcanhares e juntou-se aos detectives.

 

Obedecendo às suas instruções, postei-me junto da porta do reposteiro, perguntando a mim mesmo que demónio ocultaria semelhante (recomendação. Porque me deixara ali de guarda? Olhei pensativamente ao longo do corredor, à minha frente. De súbito, tive uma ideia: com excepção do quarto de Cynthia Murdoch, todos os quartos ficavam naquela ala esquerda. Teria isso alguma coisa a ver com o caso? Deveria comunicar a Poirot quem chegara ou partira? Deixei-me ficar fielmente no meu posto. Os minutos passaram e não apareceu ninguém nem aconteceu nada.

 

Deviam ter decorrido uns bons vinte minutos quamdo Poirot voltou.

 

Não saíu daí?

 

Não, tenho estado aqui especado como um penedo. Não aconteceu nada.

 

Ah! Estava satisfeito ou decepcionado? Não viu absolutamente nada?

 

Não


Mas provavelmente ouviu alguma coisa? Um grande estrondo, hem, mon ami?

 

Não.

 

Será possível? Ah, envergonho-me de mim próprio! Geralmente não sou> desastrado, mas... Fiz apenas um leve gesto (eu conhecia os gestos de Poirot) com a mão esquerda e, pimba, a mesa-de-cabeceira virou-se!

 

Pareceu tão infamtilmente envergonhado e desanimado que me apressei a consolá-lo:

 

Que importância tem isso, meu velho? O triunfo que obteve lá em baixo excitou-o... Palavra, foi uma surpresa para todos nós! Essa história do Inglethorp com Mrs. Raikes deve ter mais que se lhe diga do que pensávamos, para o levar a calar a boca tão persistentemente. Que vai fazer agora? Onde estão os tipos da Scotland Yard?

 

Foram lá abaixo ouvir as criadas. Mostrei-lhes todos os indícios que recolhemos. Estou decepcionado com o Japp: não tem método nenhum!

 

Olhe! exclamei, olhando pela janela. Vem aí o Dr. Bauerstein. Creio que tem razão acerca do indivíduo, Poirot. Não gosto dele.

 

O doutor é inteligente observou Poirot, pensativo.

 

Oh, inteligentíssimo! Confesso que me senti muito contente ao ver o estado em que se apresentou na terça-feira. Não imagina o espectáculo! E contei a aventura do doutor. Parecia um autêntico espantalho, coberto de lama da cabeça aos pés!

 

VÍUHO, então?

 

Pois vi. Claro que ele não queria entrar (foi logo depois do jantar), mas Mr. Inglethorp insistiu.

 

O quê? perguntou Poirot, e agarrou-me violentamente pelos ombros. O Dr. Bauerstein esteve aqui na terça-feira à noite? Aqui? E você não me tinha dito nada! Porque não me disse nada? Porquê?

 

Parecia absolutamente frenético.


Meu caro Poirot, não me passou pela cabeça que lhe pudesse interessar! Ignorava que tivesse alguma importância-

 

Importância? Tem a máxima importância! O Dr. Bauerstein esteve então aqui na noite de terça-feira... na noite do crime! Não está a ver, Hastings? Isso modifica tudo!

 

Nunca o vira tão perturbado. Largou-me, endireitou maquinalmente um par de castiçais e continuou a murmurar, como se falasse sozinho:

 

Sim, modifica tudo... tudo!

 

De súbito, pareceu tomar uma decisão:

 

Allons! Temos de agir imediatamente. Onde está Mr. Cavendish?

 

John estava na sala de fumo e Poirot foi imediatamente ter com ele:

 

Mr. Cavendish, tenho um assunto importante a tratar em Tadminster. Uma nova pista. Posso servir-me do seu carro?

 

com certeza. Já? Se puder ser.

 

John tocou uma campainha e pediu que trouxessem o carro. Dez minutos depois atravessámos o parque, direitos à estrada para Tadminster.

 

Agora talvez se digne dizer-me a que vem tudo isto, Poirot observei, resignadamente.

 

Bem, mon ami, uma grande parte poderá deduzir sozinho. Compreende por certo que, uma vez Mr. Inglethorp afastado da suspeita que sobre ele caía, toda a situação se modifica muito, Emcontramo-nos perante um problema inteiramente novo. Agora sabemos que uma pessoa não comprou o veneno, libertámo-nos das pistas forjadas e temos de prestar atenção às verdadeiras. Certfiquei-me de que toda a gente lá de casa, com excepção de Mrs. Cavendish, que estava a jogar ténis consigo,   podia ter-se feito passar por Mr.   Inglethorp, na segunda-feira à noite. Temos também a declaração deste de que pôs a chávena do café em cima da mesa do vestíbuloNinguém ligou muita importância a isso, no inquérito, mas agora revesten-se de um significado muito diferente. Temos de descobrir quem acabou por levar esse café a Mrs. Inglethorp, ou quem passou pelo vestíbulo enquanto ele lá estava. Segundo o que você me contou, só podemos ter a certeza de que duas pessoas não se aproximaram do café: Mrs. Cavendish e Mademoiselle Cynthia.

 

Sim, é verdade confirmei, com uma extraordinária leveza de coração: não era possível suspeitar de Mary Cavendish.

 

Ao ilibar Alfred Inglethorp continuou Poirot fui obrigado a mostrar o meu jogo mais cedo do que pretendia. Enquanto fosse possível pensar que eu o trazia sob vigilância, o criminoso estaria à vontade, desprevenido... Agora será cuidadoso... sim, agora será duplamente cuidadoso. Voltou-se bruscamente para mim e perguntomne: Diga-me uma coisa, Hastings, pessoalmente, não suspeita de ninguém?

 

Hesitei. Para ser franco, passara-me duas ou três vezes pela cabeça naquela manhã, uma ideia que me parecia louca e extravagante. Repudiara-a, por absurda, mas ela persistia-

 

Não se pode dizer que seja uma suspeita mummurei. É uma coisa tão estúpida!

 

Fale, ande encorajou-me Poirot. Diga o que tem a dizer sem receio. Devemos sempre prestar atenção aos nossos instintos.

 

Bem, é absurdo, claro, mas suspeito que Miss Howard não disse tudo quanto sabe!

 

Miss Howard?

 

Sim... vai-se rir...

 

De modo nenhum. Porque haveria de me rir?

 

Não posso deixar de pensar continuei, atabalhoadamente que de certo modo a excluímos dos suspeitos apenas porque ela se encontrava ausente. No entanto estava apenas a vinte e cinco quilómetros de distância, um carro percorreria esse trajecto em meia hora. Podemos dizer positivamente que ela se encontrava ausente de «Styles» na noite do assassínio?

 

Podemos, mew amigo, podemos declarou Poirot, inesperadamente. Uma das primeiras coisas que fiz foi telefonar para o hospital onde ela trabalhava.

 

E então?

 

E então soube que Miss Howard esteve de serviço na tarde de terça-feira e que, em virtude da chegada inesperada de uma leva de feridos e doentes, ela se ofereceu para ficar também de serviço nocturno, o que foi aceite com gratidão Essa dúvida está esclarecida.

 

Ah! exclamei, e tentei parecer imperturbável. Na verdade, foi a sua extraordinária veemência contra Inglethorp que me levou a suspeitar dela. Não posso deixar de ter a impressão de que Miss Howard seria capaz de tudo para o prejudicar... e acudiu-me a ideia de que talvez ela soubesse alguma coisa acerca da destruição do testamento. Poderá ter queimado o anterior, feito a favor dele. Tem uma má vontade tão grande contra o indivíduo!

 

Acha então que não é natural a veemência dela contra ele?

 

Acho. É tão violenta! Até me tenho perguntado se estará no seu juízo perfeito, a esse respeito.

 

Poirot abanou a cabeça, energicamente.

 

Não, não, está a seguir o caminho errado! Não há em Miss Howard nenhuma debilidade mental nem nenhuma degeneração. Ela é um excelente espécime de um bem equilibrado conjunto inglês de carne e músculo. É a sanidade em pessoa.

 

No entanto, o seu ódio por Inglethorp parece quase uma mania. A minha ideia (uma ideia muito ridícula, sem dúvida) era que ela tencionava envenená-lo e que, não se sabe como, quem acabara por ingerir o veneno fora Mrs. Inglethorp, por engano. Mas confesso que não vejo como isso poderia ter sido feito. É tudo extremamente absurdo e ridículo, como já disse.

 

Contudo, tem razão numa coisa: é sempre sensato suspeitarmos de toda a gente até podermos provar logicamente, e para nossa satisfação, a inocência dos suspeitos. Agora vejamos que razões se opõem a que Miss Howard tenha envenenado deliberadamente Mrs. Inglethorp?

 

Bem, era-lhe muito dedicada!

 

Ora, ora! protestou Poirot, irritado. Argumenta como uma criança. Se Miss Howard fosse capaz de envenenar a velhota, seria igualmente capaz de simular dedicação. Temos de procurar outra coisa. Tem toda a razão quando diz que a veemência dela contra Alfred Inglethorp é demasiado violenta para ser natural mas engana-se na dedução que extrai desse facto. Já extraí as minhas próprias deduções, que julgo serem correctas, mas não falo delas, por ora. Fez <uma pausa e depois acrescentou: Segundo a minha maneira de pensar, há uma objecção insuperável à possibilidade de Miss Howard ser a assassina.

 

Qual?

 

A morte de Mrs. Inglethorp não poderia beneficiar de modo algum Miss Howard. Como sabe, não há assassínio sem motivo.

 

Pensei um bocado.

 

Mrs. Inglethorp não podia ter feito um testamento a favor dela?

 

Poirot abanou a cabeça.

 

Mas o senhor mesmo sugeriu essa possibilidade a Mr. Wells!

 

Tive uma razão para isso redarguiu Poirot, a sorrir. Não queria mencionar o nome da pessoa que tinha, realmente, no pensamento. Como Miss Howard ocupava uma posição muito semelhante, preferi usar o nome dela.

 

No entanto, Mrs. Inglethorp podia, tê-lo feito. Aquele testamento, redigido na tarde anterior à noite da sua morte...

 

Mas Poirot voltou a abanar a cabeça tão energicamente que me calei.

 

Não, meu amigo. Tenho certas ideiazinhas próprias quanto a esse testamento. Há uma coisa que lhe posso garantir: não foi feito a favor de Miss Howard.

 

Aceitei a sua palavra, embora não compreendesse como ele podia ser tão positivo àquele respeito.

 

Bem, nesse caso, ilibemos Miss Howard resignei-me, a suspirar Aliás, se cheguei a suspeitar dela foi por sua culpa. O que disse acerca do seu depoimento no inquérito é que me deu corda...

 

Que disse eu acerca do depoimento dela? perguntou o meu amigo, intrigado.

 

Não se lembra? Quamdo eu disse que ela e John Cavendish estavam acima de suspeitas?

 

Ah, sim! Pareceu um pouco confuso, mas refez-se depressa. A propósito, Hastings, queria que me fizesse uma coisa.

 

Às ordens. De que se trata?

 

Quamdo estiver a sós com Lawrence Cavendish, diga-lhe o seguinte, da minha parte: «Tenho <um recado para si do Poirot: encontre a outra chávena de café e poderá ficar em paz!» Nada mais, nada menos.

 

Encontre a outra chávena de café e poderá ficar em paz repeti, deveras mistificado. É assim?

 

Excelente.

 

Mas que significa?

 

Ah, deixo ao seu cuidado descobri-lo! Tem acesso aos factos. Dê-lhe o meu recado e veja o que ele diz.

 

Muito bem... mas é tudo muitíssimo misterioso. Acabávamos de entrar em Tadminster e Poirot conduziu o carro para o Laboratório de Análises Químicas. Apeou-se, lesto, e entrou. Voltou decorridos poucos minultos.

 

Pronto, já fiz tudo o que precisava.

 

Que foi ali fazer? perguntei, cheio de curiosidade.

 

Deixar uma coisa para análise.

 

Pois sim, mas o quê?

 

A amostra de cacau que tirei do tachinho, no quarto.

 

Mas já   tinha sido analisado!exclamei, estupefacto.

 

O Dr. Bauerstein mandou-o analisar e o senhor riu-se da possibilidade de o cacau conter estricnina.

 

Sei que o Dr. Bauerstein o mandou analisar redarguiu Poirot, calmamente.

 

E então?

 

E então apetece-me analisá-lo outra vez, mais nada.

 

Não lhe consegui arrancar nem mais uma palavra acerca do assunto.

 

Tal procedimento de Poirot, a respeito do cacau, intrigou-me deveras. PaireciaHme não ter pés nem cabeça. No entanto, a minha confiança nele, que a certa altura se desvanecera» refizera-se por completo desde que a sua convicção na inocência de Alfred Inglethorp fora tão triunfantemente demonstrada.

 

O funeral de Mrs. Inglethorp realizou-se no dia seguinte, e na segunda-feira, quando desci para um pequeno-almoço tardio, John chamourme de parte e informou-me de que Mr. Inglethorp partia naquela manhã e se ia instalar no «Stylites Arms», até completar os seus planos.

 

É um grande alívio pensar que ele se vai embora, Hastings

 

acrescentou o meu amigo, com toda a franqueza. Anteriormente, quando pensávamos que tinha sido ele, era desagradável, mas diabos me levem se não é ainda pior agora, com todos nós a semtirmo-nos culpados de termos sido tão injustos com o tipo! A verdade é que o traíamos abominavelmente, embora, claro, as coisas parecessem feias, contra ele. Ninguém nos pode censurar por termos tirado as conclusões que tirámos... No entanto, a verdade é que estávamos enganados e agora temos a sensação desagradável de que devíamos pedir desculpa... o que é difícil, visto não gostarmos mais dele do que gostávamos antes. É tudo muito aborrecido! Estou-lhe grato por ter tido o tacto de resolver ir-se embora. Ainda bem que a minha mãe não lhe poderia deixar «Styles», mesmo que quisesse! Não poderia tolerar que o indivíduo ficasse aqui a pôr e a dispor. Pode ficar com o dinheiro dela, que lhe sirva de proveito.

 

Conseguirás manter a propriedade?

 

Oh, conseguirei! Há os direitos sucessórios a pagar, claro, mas herdo a propriedade com metade do dinheiro do meu pai e, além disso, o Lawrence ficará connosco, por enquanto, e assim haverá também a sua parte. Ao princípio teremos dificuldades, sem dúvida, porque, como te disse, estou em apuros, financeiramente.   No entanto,   os credores agora esperarão.

 

Devido ao alívio geral causado pela iminente partida de Inglethorp, aquele pequeno-almoço foi o mais agradável, desde a tragédia. Cynthia, cuja juvenil disposição era naturalmente alegre, voltara a ser a rapariga bonita e bem disposta que eu conhecera, e todos nós com excepção de Lawrence, que parecia inalteravelmente tristonho e nervoso sentíamos uma alegria serena, perante a perspectiva de um futuro novo e esperançoso.

 

Claro que os jornais pareciam não falar noutra coisa senão na tragédia. Cabeçalhos sensacionalistas, biografias de todos os membros da família, insinuações subtis e a habitual treta da pista que a Polícia estava a seguir. Nada nos era poupado. A guerra parecera estagnar, momentaneamente, e os jornais aproveitavam-se avidamente daquele crime cometido num meio social elevado. «O Misterioso Caso de ”Styles”» era o assunto do momento.

 

Naturalmente, tornava-se muito aborrecido para os Cavendish. A casa estava constantemente cercada de repórteres, aos quais era recusada a entrada, mas que continuavam na aldeia e nas imediações, de máquina fotográfica preparada, na esperança de apanharem desprevenido algum membro da família. Vivíamos todos sob a luz forte da publicidade. Os homens da Scotland Yard iam e vinhaim e examinavam e interrogavam, com olhos de lince e língua muda. Não fazíamos a mínima ideia das conclusões a que tinham chegado, se é que tinham chegado a algumas. Seguiam alguma pista, ou o caso permaneceria no rol dos crimes não deslindados?

 

Depois do pequeno-almoço, a Dorcas veio ter comigo, misteriosamente, e perguntou-me se me podia dizer umas palavrinhas.

 

com certeza. De que se trata?

 

Apenas do seguinte: vê hoje o cavalheiro belga? Acenei afirmativamente. Lembra-se de ele me ter perguntado, com tanto interesse, se a senhora ou qualquer outra pessoa tinha um vestido verde?

 

Sim, sim, lembro-me. Descobriu algum? despertara-me a curiosidade.

 

Não, não descobri. Mas depois disso lembrei-me daquilo a que os jovens senhores para Dorcas, John e Lawrence ainda eram os «jovens senhores» chamam a «arca das máscaras». Está no sótão da frente, é uma grande arca cheia de roupas velhas, vestidos de fantasia e sei lá que mais. Lembrei-me de que talvez houvesse um vestido verde entre as outras coisas. Por isso, se fizer o favor de dizer ao cavalheiro belga...

 

Dir-lhe-ei, Dorcas prometi.

 

Muito obrigada. Ele é um senhor muito simpático, absolutamente diferente dos dois detectives de Londres, que andam para aí a meter o nariz e a fazer perguntas. Geralmente não gosto de estrangeiros, mas pelo que os jornais dizem já percebi que estes corajosos belgas não são como os estrangeiros comuns, não há dúvida que ele é um senhor de muito bonitas falas!

 

Querida Dorcas! Ao vê-la ali parada, com o rosto franco voltado para mim, pensei que era um belo exemplo da criada à moda antiga, que estava a desaparecer tão depressa.

 

Achei que o melhor seria ir à aldeia sem perda de tempo e procurar Poirot. Encontrei-o a meio do caminho, pois dirigia-se para a mansão, e transmiti-lhe o recado da Dorcas.

 

Ah, excelente Dorcas! Examinaremos a arca, embora... não interessa, examiná-la-emos imediatamente.

 

Entrámos em casa por uma das portas-janelas. Não estava ninguém no vestíbulo e seguimos directamente para o sótão.

 

Lá estava a arca, uma bela arca antiga toda cravejada de pregos de latão e a abarrotar de toda a espécie de vestuário imaginável.

 

Poirot atirou tudo para o chão, com pouca ou nenhuma cerimónia Havia um ou dois tecidos verdes de tonalidades diferentes, mas ele abanou a cabeça e recusou-os. Parecia um pouco apático, como se não esperasse grandes resultados da busca. De súbito, soltou uma exclamação.

 

Olhe!

 

O que é?

 

A arca estava quase vazia e, no fundo, encontrava-se uma magnífica barba preta.

 

Oh! exclamou Poirot, virando e revirando-a nas mãos, a examiná-la com atenção. Oh! É nova. Sim, inteiramente nova.

 

Após ligeira hesitação, repô-la na arca, pôs-lhe todas as outras coisas em cima, como antes, e desceu rapidamente a escada.

 

Fomos direitos à copa, onde encontrámos Dorcas a dar brilho às pratas.

 

Poirot deu-lhe os bons-dias com toda a cortesia e disse:

 

Estivemos a dar uma volta à arca, Dorcas. Estou-lhe muito grato por ter falado dela. Há lá uma bela colecção de trajos?

 

Usam-nos muitas vezes?

 

Bem, hoje em dia, nem por isso, embora de tempos a tempos tenhamos aquilo a que os jovens senhores chamam «uma noite festiva». E às vezes é bem divertido! Mr. Lawrence é maravilhoso. Muito cómico! Nunca me esquecerei da noite em que apareceu cá em baixo vestido de «Chá da Pérsia», creio que foi assim que ele disse .. uma espécie de rei do Oriente. Trazia na mão uma grande faca de cortar papel e disse-me «Olha, Dorcas, muito respeitinho! Esta é a minha cimitarra especialmente afiada e se me desagradares ficas sem cabeça num instantinho!» Miss Cynthia vestiu-se daquilo que chamam Apache, ou coisa assim um degolador afrancesado, segundo me pareceu. Que espectáculo! Ninguém acreditaria que uma menina tão bonita pudesse ficar com aquele aspecto de rufião Ninguém a conheceria.

 

Esses serões devem ter sido muito divertidos admitiu Poirot, bem disposto. Suponho que Mr. Lawrence usou aquela excelente barba preta que está na arca, quando fez de Xá da Pérsia?

 

Usava realmente uma barbaconfirmou Dorcas» sorrindo. E eu que o diga, pois pediu-me dois novelos da minha lã preta para a fazer! De longe, parecia perfeitamente natural! Não sabia que havia uma barba lá em cima. Devem-na ter arranjado ultimamente, com certeza. Sei que havia uma peruca ruiva, isso sei, mas nada mais no capítulo de cabelo. Costumavam usar principalmente rolhas queimadas, embora seja muito difícil de tirar, depois. Miss Cynthia mascarou-se de preto, uma vez, e teve um trabalhão!

 

A Dorcas não sabe nada acerca da barba preta observou Poirot, pensativo, quando voltámos ao vestíbulo.

 

Acha que é a tal? perguntei, ansioso.

 

Acho. Reparou que tinha sido aparada?

 

Não.

 

Pois foi. Apararam-na exactamente no formato da barba de Mr. Inglethorp. Encontrei até um ou dois pêlos cortados. Este caso é muito complicado, Hastings.

 

Quem a terá posto na arca?

 

Alguém com uma boa dose de inteligência observou o meu amigo, secamente. Já reparou que escolheu, para a esconder, o único lugar da casa onde não seria notada? É inteligente, sem dúvida. Mas nós temos de ser mais inteligentes, temos de ser tão inteligentes que nem suspeite de que somos inteligentes!

 

Aquiesci.

 

Nesse aspecto, mon ami, poderá ser-me muito útil. Fiquei satisfeito com o cumprimento. Havia ocasiões em que me parecia que Poirot não me apreciava pelo meu devido valor.

 

Sim acrescentou,   a fitar-me pensativamente,   será inestimável.

 

Era lisonjeador, sem dúvida, mas as suas palavras seguintes já não me agradaram tanto.

 

Preciso de ter um aliado dentro de casa.

Tem-me a mim! protestei.

 

Pois tenho, mas não chega.

 

Senti-me magoado, e demonstrei-o. Poirot apressou-se a explicar o sentido das suas palavras:

 

Não compreendeu o que quis dizer! Todos sabem que trabalha comigo, e eu preciso de alguém que não esteja relacionado connosco em sentido nenhum.

 

Ah, compreendo! Que diz do John?

 

Não, não me parece que sirva...

 

É um excelente tipo, mas talvez não seja muito brilhante, de intelecto... murmurei, pensativo.

 

Vem aí Miss Howard disse Poirot, de súbito. É ela a pessoa indicada! Mas eu estou no seu livro negro, desde que ilibei Mr. Inglethorp... No entanto, não perdemos nada por tentar.

 

Miss Howard acedeu ao pedido de uns momentos de conversa, que Poirot lhe fez, com um seco e breve aceno de cabeça.

 

Entrámos numa pequena sala e o detective fechou a porta.

 

De que se trata, Monsieur Poirot? perguntou Evie, impaciente. Desembuche, que tenho que fazer.

 

Lembra-se, mademoiselle, de uma vez lhe ter pedido que me ajudasse?

 

Lembro, sim. E eu respondi-lhe que o ajudaria com prazer... a enforcar Alfred Inglethorp.

 

Ah! exclamou Poirot, e fitou-a muito sério. Vou-lhe fazer uma pergunta, Miss Howard, e peço-lhe que me responda com toda a verdade.

 

Nunca minto.

 

Trata-se do seguinte: ainda acredita que Mrs. Inglethorp foi assassinada pelo marido?

 

Que quer dizer? Não julgue que as suas bonitas explicações me influenciaram, por muito pouco que fosse! Admito que não foi ele que comprou a estricnina na farmácia. E depois? É muito capaz de ter usado papel mata-moscas molhado, como eu lhe disse logo no princípio!

 

Isso contém arsénico, e não estricnina lembrou Poirot, suavemente.

 

Que importância tem? O arsénico teria liquidado a pobre Emily tão bem como a estricnina. Se estou convencida de que foi ele, não quero saber para nada como fez o que fez.

 

Exactamente: se está convencida de que foi ele murmurou o detective, com toda a calma. vou fazer a pergunta de outro modo: alguma vez acreditou, lá bem no fundo do seu coração, que Mrs. Inglethorp foi envenenada pelo marido?

 

Meu Deus! exclamou Miss Howard. Não disse sempre que aquele homem era um patife? Não disse sempre que ele a assassinaria na cama? Não o odiei sempre como veneno?

 

Exactamente. Isso coaduna-se com a minha ideiazinha.

 

Que ideiazinha?

 

- Miss Howard, lembra-se de uma conversa havida no dia da chegada do meu amigo? Ele repetiu-ma e houve uma frase sua que me impressionou muito. Lembra-se de dizer que se houvesse um crime e uma pessoa a quem amasse fosse assassinada, tinha a certeza de que saberia instintivamente quem fora o criminoso, mesmo que fosse absolutamente incapaz de o provar?

 

Sim, lembro-me de dizer isso. E continuo a acreditar que assim seria. Julga que é uma tolice, não?

 

De modo nenhum.

 

No entanto, não liga a mínima importância ao meu instinto contra Alfred Inglethorp.

 

Pois não declarou Poirot, secamente. E não ligo porque o seu instinto não é contra Mr. Inglethorp.

 

O quê?!

 

A senhora deseja acreditar que ele cometeu o crime. Julga-o capaz de o cometer. Mas o seu instinto diz-lhe que ele não o cometeu. E diz-lhe ainda mais... Deseja que prossiga?

 

Ela olhava-o, fascinada, e fez um pequeno gesto afirmativo com a mão.

 

Quer que lhe diga porque se tem mostrado tão veementemente contra Mr. Inglethorp? Porque se tem esforçado por acreditar naquilo que deseja acreditar. É por tentar afogar e asfixiar o seu instinto, que lhe diz outro nome...

 

Não, não, não! gritou Miss Howard, desesperadamente, levantando e agitando as mãos. Não o diga! Oh, não o diga Não é verdade! Não pode ser verdade. Não sei o que me meteu na cabeça uma ideia tão louca, tão horrível!

 

Tenho razão, não tenho? perguntou Poirot.

 

Tem. Deve ser bruxo, para ter adivinhado... Mas não pode ser, é demasiado monstruoso, é impossível... Foi com certeza Alfred Inglethorp!

 

Poirot abanou a cabeça, gravemente.

 

Não me pergunte nada, pois não lhe responderei continuou Miss Howard. Não admito que tenha sido assim, nem sequer comigo mesma. Devo estar louca, para pensar em semelhante coisa.

 

Poirot acenou com a cabeça, satisfeito.

 

Não lhe perguntarei nada. Basta-me saber que é como pensava. E eu... eu também tenho um instinto. Vamos trabalhar juntos para um fim comum.

 

Não me peça que o ajude, porque não o ajudarei. Não levantaria um dedo para... para...

 

Ajudar-me-á, mal-grado seu. Não lhe peço nada... mas a senhora será minha aliada. Não poderá evitá-lo. Fará a única coisa que quero que faça.

 

Que coisa?    ’

 

Vigiará!

 

Evelyn Howard inclinou a cabeça.

 

Sim, não posso deixar de fazer isso. Estou sempre atenta, vigilante... sempre na esperança de verificar que estou enganada.

 

Se estivermos enganados, muito bem. Ninguém ficará mais contente do que eu. E se estivermos certos? De que lado se colocará se estivermos certos, Miss Howard?

 

Não sei, não sei...

 

Ora, vamos!

 

Poder-se-ia abafar...

 

Não se deve abafar nada.

 

Mas a própria Emily...

 

Miss Howard, isso é indigno de si! interrompeu-a Poirot, gravemente.

 

De súbito, ela levantou a cabeça e disse, muito calma:

 

Tem razão, não foi Evelyn Howard que falou. Ergueu ainda mais a cabeça, altivamente. A Evelyn Howard é esta. E está do lado da justiça! Custe o que custar! E, ditas tais palavras, saiu com passo firme da sala.

 

Ali vai uma aliada muito valiosa comentou Poirot, seguindo-a com o olhar. Aquela mulher, Hastings, além de coração tem miolos.

 

Não respondi.

 

O instinto é uma coisa maravilhosa murmurou, como se falasse consigo. Não pode ser explicado nem ignorado.

 

Você e Miss Howard parecem saber do que falam observei, friamente. Talvez não se aperceba de que eu continuo às escuras.

 

Sério? Isso é verdade, mon ami?

 

É. Esclareça-mi, sim? Poirot observou-me atentamente, um momento ou dois. Em

seguida, para minha grande surpresa, abanou decididamente a cabeça.

 

Não, meu amigo.

 

Oh, mas porquê?!

 

Dois chegam para um segredo.

 

Bem, considero muito injusto ocultar-me factos.

 

Não estou a ocultar-lhe factos. Todos os factos que conheço são também do seu conhecimento. Pode extrair deles as suas próprias conclusões. Desta vez é uma questão de ideias.

 

Mesmo assim, seria interessante saber...

 

< Poirot olhou-me, muito sério, e voltou a abanar a cabeça.

 

Compreende, você não tem instintos.

 

Há pouco, disse que precisava de inteligência

 

As duas coisas andam muitas vezes juntas comentou, enigmaticamente.

 

A observação pareceu-me de uma irrelevância tão absoluta que nem me dei ao trabalho de responder. Mas decidi que, se fizesse algumas descobertas interessantes e importantes e fá-las-ia, com certeza, as guardaria para mim e o surpreenderia com o resultado final.

 

Há ocasiões em que temos o dever de nos impor.

 

  1. BAUERSTEIN

Ainda não tivera oportunidade de transmitir o recado de Poirot a Lawrence. Mas, ao sair para o relvado, a moer ressentimentos contra a arrogância do meu amigo, vi Lawrence na quadra de croquete, a bater desconsoladamente duas bolas muito antigas, com um bastão ainda mais antigo.

 

Pareceu-me que a oportunidade era boa para me desincumbir da missão que me fora confiada. Caso contrário, o próprio Poirot seria capaz de me libertar dela. É verdade que não percebia bem o seu significado, mas estava convencido de que, pela resposta de Lawrence, e talvez com um interrogatoriozinho inteligente da minha parte, não tardaria a compreender. Fui, pois, ter com ele.

 

Tenho andado à tua procura menti.

 

Sim?

 

Sim. Tenho um recado para ti, do Poirot.

 

Sim?

 

Disse-me que aguardasse uma ocasião em que estivesse a sós contigo expliquei, baixando significativamente a voz e observando-o atentamente pelo canto do olho; sempre fui muito bom naquilo a que suponho, chamam, criar ambiente.

 

Então?

 

Não houvera qualquer mudança de expressão no rosto moreno e melancólico. Ele faria alguma ideia do que estava prestes a dizer-lhe?

 

Eis o «recado... Baixei ainda mais a voz e repeti a frase de Poirot: «Encontre a outra chávena de café e poderá ficar em paz.»

 

Que diabo quer ele dizer com isso? perguntou Lawrence, fitamdo-me com um espanto absolutamente sincero.

 

Não sabes?

 

Não fasço a mínima ideia. E tu? Fui obrigado a abanar a cabeça. Que outra chávena de café?

 

Não sei.

 

Se está interessado em chávenas de café seria melhor perguntar à Dorcas ou a uma das criadas. É trabalho delas e não meu. Não sei nada acerca de chávenas de café, a não ser que temos algumas que nunca usamos e que são um autêntico sonho. Worcester antigo. Não és conhecedor, pois não, Hastings?

 

Abanei outra vez a cabeça.

 

Não sabes o que perdes. Uma peça verdadeiramente perfeita de antiga porcelana é puro deleite para os dedos, e até para os olhos.

 

Bem, que digo ao Poirot?

 

Diz-lhe que não sei a que se refere. É chinês para mim. Está bem.

 

Dirigia-me de novo para casa quando ele me chamou, de súbito.

 

Como era o fim da frase? Repete-a, sim?

 

«Encontre a outra chávena de café e poderá ficar em paz.» Tens a certeza de que não sabes o que significa? perguntei, ansioso.

 

Não respondeu, pensativo. Não sei...   e quem me dera saber.

 

O gongo soou, dentro de casa, e entrámos juntos. John convidara Poirot para almoçar e o detective já estava sentado à mesa.

 

Por consentimento tácito, ninguém se referiu à tragédia. Falámos da guerra e de outros assuntos. No entanto, depois de servido o queijo e biscoitos e de Dorcas sair da sala, Poirot inclinou-se, de súbito, para Mrs. Cavendish e disse-lhe:

 

Perdoe, minha senhora, recordar coisas desagradáveis, mas tenho uma ideiazinha as «ideiazinhas» de Poirot estavam a tornar-se proverbiais e gostaria de lhe fazer uma ou duas perguntas.

 

A mim? com certeza.

 

É muito amável, minha senhora. O que desejo perguntar é o seguinte: a porta de comunicação entre o quarto de Mrs. Inglethorp e o de Mademoiselle Cynthia estava aferrolhada?

 

Decerto que estava aferrolhada respondeu Mary Cavendish, muito surpreendida. Eu disse-o no inquérito.

 

Estava aferrolhada? repetiu Poirot.

Estava afirmou, perplexa.

 

O que quero saber é se tem a certeza de que estava aferrolhada e não apenas fechada à chave, compreende?

 

Ah, compreendo! Não, não sei. Disse que estava aferrolhada para significar que estava fechada e eu não pude abri-la. Creio, no entanto, que se verificou estarem todas as portas aferrolhadas por dentro.

 

No entanto, pela parte que lhe respeita, a porta também podia estar apenas fechada à chave?

 

Sim, sem dúvida.

 

Pessoalmente, não reparou, quando entrou no quarto de Mrs. Inglethorp, se essa porta estava aferrolhada ou não?

 

Creio .. creio que estava.

 

Mas não viu?

 

Não... nem olhei.

 

Mas eu vi interrompeu Lawrence, de súbito. Reparei, por acaso, que estava aferrolhada.

 

Isso arruma a questão disse Poirot, e pareceu desanimado.

 

Não pude deixar de sentir contentamento por, daquela vez, uma das suas «ideiazinhas» ter dado em nada.

 

Depois do almoço, Poirot pediu-me que o acompanhasse a casa, ao que acedi friamente.

 

Está aborrecido, não é verdade? perguntou, inquieto, ao atravessarmos o parque.

 

De modo nenhum respondi secamente.

 

Ainda bem. Isso tira-me um grande peso do espírito. Não fora essa a minha intenção. Esperara que ele reparasse

 

na frieza da minha atitude. No entanto, o fervor das suas palavras apaziguou o meu justo desagrado. Senti-me degelar.

 

Dei o seu recado ao Lawrence.

 

E que disse ele? Picou muito intrigado?

 

Ficou. Tenho a certeza absoluta de que não fez ideia nenhuma do que você queria dizer.

 

Esperara que se mostrasse decepcionado, mas, para minha surpresa, declarou que esperara isso mesmo e que estava muito contente. O orgulho impediu-me de fazer perguntas.

 

Poirot mudou de assunto:

 

Mademoiselle Cynthia não esteve presente ao almoço. Porquê?

 

Voltou ao hospital. Recomeçou a trabalhar.

 

Ah, é uma raparíguinha trabalhadeira! E bonita, também. Lembra-me quadros que vi em Itália. Gostaria muito de ver a sua farmácia. Acha que ela ma mostraria?

 

Tenho a certeza de que ficaria encantada. É um lugarzinho interessante.

 

Ela trabalha lá todos os dias?

 

Tem as quartas-feiras livres e ao sábado regressa à hora do almoço. São essas as suas folgas.

 

Não me esquecerei. As mulheres estão a fazer um grande trabalho, hoje em dia, e Mademoiselle Cynthia é inteligente . Oh sim, essa pequenina tem cabeça!

 

Creio que ficou aprovada num exame muito rigoroso.

 

Sem dúvida. No fim de contas, trata-se de um trabalho de muita responsabilidade. Suponho que têm lá venenos muito fortes?

 

Têm, sim. Ela mostrou-no-los. Estão num armariozinho fechado à chave. Precisam de ter muito cuidado. Tiram sempre a chave, antes de saírem da sala.

 

com certeza. Esse armário fica perto da janela?

 

Não, fica precisamente do outro lado. Porquê? Poirot encolheu os ombros.

 

Curiosidade, mais nada. Quer entrar? perguntou, pois chegáramos ao chalé.

 

Não. Acho que volto para trás, desta vez pelos bosques, pelo caminho mais longo.

 

Os bosques à volta de «Styles» eram muito belos. Depois de um passeio através do parque, era agradável caminhar vagarosamente por entre o arvoredo fresco. Soprava uma brisa que quase não se sentia e a própria chilreada dos pássaros era suave e abafada. Andei um bocado e, por fim, deixei-me cair aos pés de uma grande bétula. Os meus pensamentos em relação à espécie humana eram bondosos e amáveis. Até perdoei ao Poirot a sua absurda mania de guardar segredo de tudo. Estava, em suma, em paz com o mundo. Bocejei.

 

Pensei no crime e pareceu-me uma coisa muito irreal e muito distante.

 

Bocejei de novo.

 

Provavelmente, pensei, não teria havido crime nenhum. Claro, era tudo um pesadelo. O que acontecera, na realidade, fora que Lawrence assassinara Alfred Inglethorp com um bastão de croquete. Mas era absurdo da parte do John fazer tanto escarcéu por causa disso e andar por ali a gritar: «Já te disse que não consinto!»

 

Acordei, sobressaltado.

 

Compreendi imediatamente que me encontrava numa situação muito delicada, pois a cerca de quatro metros de distância John e Mary Cavendish estavam parados um defronte do outro e discutiam. Era evidente que se encontravam absolutamente alheios à minha presença próxima, pois antes que me pudesse mexer ou falar John repetiu as palavras que me tinham arrancado ao sonho:

 

Já te disse, Mary, que não o consinto! A voz de Mary redarguiu, fria e líquida:

 

Tens algum direito de criticar as minhas acções?

 

Será a conversa da aldeia! A minha mãe ainda só foi enterrada no sábado e já tu andas por aí a divertir-te com o indivíduo.

 

Ah! exclamou ela, encolhendo os ombros. Se são só os mexericos da aldeia que te importam...

 

Mas não são! Estou farto de ver o tipo por aí... Além disso, é um judeu polaco.

 

Uns laivos de sangue judaico não são uma coisa má. Fermentam fitou-o e acrescentou, com a maior clareza a estóica estupidez do inglês normal.

 

Fogo nos olhos e gelo na voz. Não me surpreendeu que o sangue subisse à cara de John numa onda escarlate.

 

Mary!

 

Que é? O tom de voz não mudou.

 

Deverei deduzir das tuas palavras que continuarás a encontrar-te com o Bauerstein contra os meus desejos expressos? O tom suplicante desaparecera da voz de John.

 

Se me apetecer.

 

Desafias-me?

 

Não, mas nego-te o direito de criticares as minhas acções. Não terás tu amigos que devam merecer a minha desaprovação?

 

John recuou um passo. A cor sumiu-se-lhe lentamente da cara.

 

Que queres dizer? perguntou, em voz pouco firme.

 

Estás a ver? Estás a ver, não estás, que não tens direito nenhum de me dar ordens quanto à escolha dos meus amigos?

 

John olhou-a, suplicante, com uma expressão magoada no rosto.

 

Não tenho direito nenhum? Não tenho direito nenhum. Mary? Estendeu as mãos para ela. Mary...

 

Pareceu-me, por momentos, que ela ia ceder. O seu rosto assumiu uma expressão mais suave .. Mas. de súbito, virou-lhe as costas, quase violentamente, e afirmou:

 

Nenhum!

 

Afastava-se já, mas John alcançou-a num salto e agarrou-lhe num braço.

 

Mary a sua voz tornara-se muito calma, estás apaixonada por esse tipo, pelo Bauerstein?

 

Ela hesitou de novo, mas, logo a seguir, estampou-se-lhe no rosto uma estranha expressão, velha como os montes, mas com um não-sei-quê de eternamente jovem. Uma esfinge egípcia poderia ter sorrido assim.

 

Libertou-se calmamente da mão dele e falou por cima do ombro:

 

Talvez e afastou-se depressa, deixando John parado, como se tivesse sido transformado em pedra.

 

Aproximei-me ostensivamente, pisando, de propósito, alguns ramos secos, para anunciar a minha presença. John virou-se e, felizmente, pensou que eu acabava de chegar.

 

Olá, Hastings! Conduziste o homenzinho em segurança ao seu chalé? É um indivíduo muito singular! Mas terá realmente algum valor?

 

Foi considerado   um   dos melhores detectives do seu tempo.

 

Bem, nesse caso suponho que deve prestar para alguma coisa. No entanto, que mundo podre, este!

 

Achas?

 

Meu Deus, acho! Para começar, esta terrível história. Homens da Scotland Yard a entrarem e a saírem lá de casa como bonecos de uma caixa de surpresas! Nunca sei onde vão aparecer a seguir. Cabeçalhos sensacionalistas em todos os jornais do país! Diabos levem os jornalistas! Imagina que esta manhã estava uma enorme multidão embasbacada ao portão! É como se tratasse de uma espécie de câmara de horrores da Madame Tussaud, que se pode ver de graça! Enfurece, não achas?

 

Anima-te, John! Não pode durar sempre.

 

Achas que não? Mas pode durar tempo suficiente para nunca mais sermos capazes de andar de cabeça levantada.

 

De modo nenhum, de modo nenhum! Estás a tornar-te mórbido a respeito desse assunto.

 

Ser seguido por estúpidos jornalistas e olhado, embasbacadamente, por idiotas de cara de lua, é suficiente para tornar um homem mórbido! Mas há pior do que isso.

 

O quê?

 

Já alguma vez pensaste, Hastings para mim é um pesadelo , quem foi? Às vezes não posso deixar de pensar que se tratou de um acidente porque... porque... quem poderia ter feito uma coisa daquelas? Agora que o Inglethorp foi ilibado, não há mais ninguém; isto é, não há mais ninguém... tirando um de nós.

 

Sim, aquilo devia ser realmente um pesadelo para qualquer homem! Um de nós? com certeza, a não ser...

 

Passou-me uma ideia nova pela cabeça. Estudei-a, rapidamente, e a luz pareceu aumentar. O procedimento misterioso de Poirot, as suas insinuações... tudo se ajustava. Como era estúpido não ter pensado naquela possibilidade há mais tempo E que alívio para todos nós!

 

Não, John, não foi um de nós. Como poderia ser?

 

Bem sei, mas, mesmo assim, quem mais há?

 

Não és capaz de fazer uma ideia?

 

Não.

 

Olhei cautelosamente à minha volta e baixei a voz:

 

O Dr. Baiuerstein! segredei.

 

Impossível!

 

De modo nenhum.

 

Mas que interesse poderia ele ter na morte da minha mãe?

 

Isso não sei confessei. Mas digo-te uma coisa: o Poirot pensa nele.

 

O Poirot? Pensa? Como sabes?

 

Contei-lhe a intensa excitação do detective quando soubera que o Dr. Bauerstein estivera em «Styles» na noite fatal, e acrescentei:

 

Ele disse duas vezes: «Isso modifica tudo.» Depois disso, tenho andado a pensar... Sabes que o Inglethorp disse que pôs a chávena do café na mesa do vestíbulo, não sabes? Bem, foi precisamente nessa altura que o Bauerstein chegou. Não teria sido possível que, quando Inglethorp atravessou com ele o vestíbulo, o doutor deitasse qualquer coisa no café, de passagem?

 

Hum... Teria sido muito arriscado. Sim, mas possível.

 

Além disso, como poderia ele saber que era o café dela? Não, meu velho, não creio que pegue.

 

Mas eu lembrara-me de outra coisa:

 

Tens razão, não foi assim que o fez. Escuta... E falei-lhe, então, da amostra de cacau que Poirot mandara analisar.

 

John interrompeu-me, exactamente como eu interrompera Poirot:

 

Ouve lá, mas o Bauerstein não o tinha já mandado analisar?

 

Aí é que está, aí é que está! Eu também não tinha percebido, até agora. Bauerstein mandou-o analisar, é precisamente isso! Se foi ele o assassino, nada mais simples do que substituir o cacau por outro absolutamente inofensivo e mandar este para análise. E, claro, não encontrariam estricnina nenhuma! Mas ninguém se lembraria de suspeitar do Bauerstein, ou pensaria em recolher outra amostra ninguém a não ser Poirot, claro! acrescentei, com tardio reconhecimento.

 

Pois sim, e o tal gosto amargo que o cacau não disfarça?

 

Bem, a esse respeito temos apenas a palavra dele. E há outras possibilidades. Todos o consideram um dos maiores toxicólogos do mundo...

 

Um dos maiores quê? Diz lá isso outra vez.

 

Praticamente, ninguém sabe mais acerca de venenos do que ele expliquei.-A minha ideia é a seguinte: talvez o tipo tenha descoberto algum processo de tornar a estricnina insípida. E também é possível que não tenha sequer sido estricnina, mas sim qualquer droga obscura de que ninguém ouviu falar e que produz os mesmos sintomas.

 

Sim, talvez isso fosse possível... Mas, escuta, como poderia ele deitá-la no cacau? Isso não foi no andar de baixo?

 

Não, não foi admiti, relutante.

 

E, de súbito, pensei numa possibilidade horrível. Desejei de todo o coração que o John não pensasse no mesmo. Olhei-o de soslaio. Estava de testa franzida, intrigado, e eu soltei um grande suspiro de alívio, pois a terrível ideia que me ocorrera fora a seguinte: o Dr. Bauerstein podia ter tido um cúmplice.

 

Mas não podia ser, com certeza! Uma mulher tão bonita como Mary Cavendish não podia ser assassina! No entanto, algumas mulheres bonitas tinham ficado famosas como envenenadoras...

 

E, de repente, lembrei-me daquela primeira conversa durante o chá, no dia da minha chegada, e do brilho dos olhos dela quando dissera que o veneno era uma arma feminina. E como se mostrara agitada ao anoitecer daquela fatal terça-feira! Teria Mrs. Inglethorp descoberto que existia qualquer coisa entre ela e Bauerstein e ameaçado dizer ao John? Teria sido para impedir essa denúncia que o crime fora cometido?

 

Depois lembrei-me da enigmática conversa entre Poirot e Evelyn Howard. Seria a isso que se quereriam referir? Seria essa a monstruosa possibilidade em que Evelyn tentara não acreditar?

 

Sim, tudo se ajustava.

 

Não admirava que Miss Howard tivesse sugerido que se «abafasse» o caso. Agora compreendia a frase que ela deixara por completar: «A própria Emily...» E no meu coração concordei com ela. Mrs. Inglethorp não teria preferido ficar por vingar a que tão terrível desonra manchasse o nome dos Cavendish?

 

Há ainda outra coisa disse John, de repente, e o som inesperado da sua voz fez-me estremecer, com um sentimento de culpa. Há uma coisa que me faz duvidar da possibilidade de ser verdade o que dizes.

 

O quê? perguntei, grato por ele se ter desviado do assunto relacionado com o modo como o veneno poderia ter sido deitado no cacau.

 

’O facto de o Bauerstein ter exigido uma autópsia. Não precisava de o ter feito; o Wilkins de bom grado deixaria o caso passar como doença cardíaca.

 

Sim, mas não sabemos...redargui, duvidoso. Talvez ele pensasse que, no fim de contas, assim seria mais seguro. Alguém poderia começar a falar, depois do funeral, e o Ministério do Interior era capaz de ordenar a exumação... Descobrir-se-ia tudo e ele encontrar-se-ia numa situação perigosa, pois ninguém acreditaria que um homem com a sua reputação se tivesse deixado enganar ao ponto de considerar a morte resultante de doença cardíaca.

 

Sim, é possível admitiu John. No entanto, raios me partam se imagino que motivos poderia ele ter!

 

Tremi.

 

Escuta, eu posso estar redondamente enganado. E lembra-te de que te estou a dizer tudo isto confidencialmente.

 

Oh, claro, escusado seria dizê-lo!

 

Tínhamos ido andando, enquanto conversávamos, e chegáramos à cancelinha que dava para o jardim. Ouvimos vozes próximas, pois o chá estava servido debaixo do sicómoro, como no dia da minha chegada.

 

Cynthia voltara do hospital e eu coloquei a minha cadeira ao lado dela e disse-lhe que Poirot gostaria de visitar a farmácia..

 

Oh, terei muito prazer em vê-lo lá! Pode ir tomar chá comigo, um dia. Combinarei com ele, quando o vir. É um homenzinho tão querido! Mas estranho... Outro dia fez-me tirar o broche do laço e pô-lo de novo, porque estava torto.

 

Isso é uma mania dele expliquei, a rir.

 

Também acho.

 

Permanecemos calados um minuto ou dois e em seguida, depois de olhar na direcção de Mary Cavendish, Cynthia baixou a voz e disse:

 

Mr. Hastings, gostava de falar consigo depois do chá. O olhar que lançou a Mary deu-me que pensar. Pareceu-me

 

que existia muito pouca simpatia entre as duas. Pela primeira vez perguntei a mim mesmo qual seria agora o futuro da rapariga. Mrs. Inglethorp não deixara nada estipulado em relação a ela, mas eu supunha que John e Mary insistiriam provavelmente em que continuasse a viver com eles pelo menos até ao fim da guerra. Sabia que o John gostava muito dela e teria pena de a ver partir.

 

John, que entrara em casa, reapareceu. O seu rosto afável apresentava uma expressão de cólera rara nele.

 

Malditos detectives!   Não consigo compreender o que procuram! Estiveram em todas as divisões da casa, virando tudo de pernas para o ar. É de mais! Suponho que se aproveitaram do facto de estarmos todos ausentes. Hei-de dizer umas coisas ao tal japp, quando o vir!

 

Raça de bisbilhoteiros! resmungou Miss Howard. Lawrence opinou que os tipos tinham de fingir que faziam alguma, coisa.

 

Mary Cavendish não disse nada.

 

Depois do chá, convidei Cynthia para um passeio e fomos juntos para os bosques.

 

Então? perguntei, assim que a folhagem nos protegeu de olhos curiosos.

 

Cynthia’ suspirou, sentou-se no chão e tirou o chapéu. A luz solar que se coava pelos ramos transformou-lhe o cabelo ruivo em ouro tremeluzente.

 

Mr. Hastings, o senhor é sempre muito amável e sabe muitas coisas.

 

Nesse momento tive consciência de que Cynthia era realmente uma rapariga muito encantadora. Muito mais encantadora do que Mary, que nunca dizia coisas daquele género! Então? repeti, benignamente, ao vê-la hesitar.

 

Quero pedir-lhe conselho: que hei-de fazer?

 

Que há-de fazer?

 

Sim. A tia Emily disse-me sempre que pensaria em mim, no seu testamento. Creio que se esqueceu ou que não imaginou que morreria .   enfim, de qualquer maneira, não me deixou nada! E eu não sei que fazer. Acha que me devia ir embora imediatamente?

 

Céus, não! Tenho a certeza de que eles não se querem separar de si.

 

Cynthia hesitou um momento, a arrancar ervinhas com as mãos pequenas.

 

Mrs. Cavendish quer afirmou, por fim. Odeia-me.

 

Odeia-a? perguntei, espantado.

 

Sim. Não sei porquê, mas não me pode suportar. E ele também, não.

 

Quanto a isso, sei que está enganada afirmei, convencido. Pelo contrário, o John é muito seu amigo.

 

Oh, sim, o John! Mas eu referia-me ao Lawrence. Claro que não me importo que o Lawrence ’me odeie ou não... No entanto, é horrível quando ninguém gosta de nós, não é?

 

Mas eles gostam, minha querida Cynthia! exclamei, sincero. Tenho a certeza de que está enganada. Olhe, há o John, e Miss Howard...

 

Sim, creio que o John gosta de mim e, claro, apesar dos seus modos bruscos, a Evie não faria mal a uma mosca. Mas o Lawrence nunca me fala, se o pode evitar, e a Mary só com dificuldade consegue ser delicada comigo. Quer que a Evie fique, anda a pedir-lho, mas a mim não me quer e... e eu não sei que fazer.

 

Ignoro o que me deu. Talvez fosse por causa da sua. beleza, ao vê-la ali sentada com o sol a cintilar-lhe na cabeça,; talvez fosse a sensação de alívio por encontrar alguém que, obviamente, não podia ter nada a ver com a tragédia, ou talvez fosse apenas sincera compaixão pela sua juventude e solidão. Fosse pelo que fosse, inclinei-me para ela, peguei-lhe na mão pequenina e disse-lhi, desajeitadamente:

 

Case comigo, Cynthia.

 

Sem o saber, descobrira um excelente remédio para as suas lágrimas. Cynthia endireitou-se bruscamente, retirou a mão da minha e ordenou, com certa aspereza:

 

Não seja pateta!

 

Fiquei um bocadinho aborrecido.

 

Não estou a ser pateta, estou a pedir-lhe que me dê a honra de ser minha mulher.

 

Para minha grande surpresa, Cynthia desatou a rir e chamou-me «um querido engraçado».

 

É muitíssimo amável da sua parte declarou , mas sabe bem que não o deseja.

 

Desejo, sim. Tenho...

 

Deixe lá o que tem. Não quer realmente casar comigo... e eu também não quero casar consigo.

 

Bem, isso resolve a questão, claro declarei, friamente. Mas não vejo motivo nenhum para se rir. Não há nada de cómico num pedido de casamento.

 

Não, de facto, não há. Talvez alguém o aceite, para a próxima. Adeus, animou-me muito!

 

E, com uma última e incontrolável gargalhada, desapareceu entre o arvoredo.

 

Ao recordar o que se passara durante o breve encontro, pareceurme muito pouco satisfatório.

 

De súbito, lembrei-me de ir à aldeia e procurar Bauerstein. Alguém devia manter o indivíduo debaixo de olho. Ao mesmo tempo, seria sensato dissipar quaisquer suspeitas que ele porventura tivesse quanto à possibilidade de ser suspeito. Lembrei-me de que Poirot confiara na minha diplomacia. Dirigi-me, por isso, para a casinha em cuja janela havia um cartão com a palavra «Apartamentos», e onde sabia que ele morava, e bati à porta.

 

Atendeu-me uma velha.

 

Boas tardes cumprimentei, sorridente. O Dr- Bauerstein está?

 

Fitou-me, admirada, e perguntou:

 

Não sabe?

 

Não sei o quê?

 

O que lhe aconteceu.

 

Que foi que lhe aconteceu?

 

Levaram-no.

 

Levaram-no? Morreu?

 

Não. A Polícia levou-o.

 

-A Polícia!exclamei, aparvalhado. >Quer dizer que o prenderam?      

 

Isso mesmo, e .

Não quis ouvir mais nada, desatei a correr, para ir procurar Poirot.

 

A   PRISÃO

Para minha grande contrariedade, Poirot não estava em casa e o belga idoso que me atendeu disse-me parecer-lhe que ele fora a Londres.

 

Fiquei estupefacto. Que demónio teria ido fazer a Londres? Teria sido uma decisão súbita da sua parte, ou já teria resolvido que ia lá quando se despedira de mim, algumas horas antes?

 

Regressei, aborrecido, a «Styles». com Poirot ausente, não sabia bem como proceder- Teria ele previsto aquela prisão? Teria mesmo, seguindo todas as probabilidades, sido o causador dela? Não encontrei respostas para tais perguntas. Mas, entretanto, que deveria fazer? Deveria anunciar a prisão abertamente, em ((Styles», ou não? Embora nem comigo mesmo o admitisse, Mary Cavendish pesava na minha decisão. Seria um abalo terrível para ela? De momento, afastei em absoluto toda a suspeita relacionada com ela. Não podia estar implicada, pois se estivesse com certeza teria ouvido algumas insinuações a esse respeito.

 

Claro que não seria possível ocultar-lhe permanentemente a prisão do Dr. Bauerstein, que viria anunciada em todos os jornais do dia seguinte. No entanto, custava-me ser eu a dá-la. Se pudesse contactar com Poirot, ter-lhe-ia pedido conselho. Que demónio lhe dera para ir a Londres tão inesperadamente?

 

Mal-grado meu, porém, a minha opinião acerca da sua sagacidade reforçara-se incomensuravelmente. Jamais me teria lembrado de suspeitar do doutor se Poirot não me tivesse metido a ideia na cabeça. Sim, decididamente o homenzinho era muito esperto!

 

Depois de reflectir um bocado, resolvi contar o sucedido a John e deixar ao seu critério tornar a novidade pública ou não, conforme achasse conveniente-

 

Soltou um assobio prodigioso, quando lhe dei a notícia.

 

com a breca, tinhas razão, afinal! E eu que não pude acreditar, na ocasião!

 

É surpreendente, de facto, até nos habituarmos à ideia e vermos como tudo se ajusta bem. Que vamos fazer, agora? Claro que amanhã será do conhecimento geral...

 

John pensou um bocado, antes de responder:

 

Mesmo assim, não digamos nada, por enquanto. Não há necessidade disso, pois em breve se saberá, como disseste.

 

Mas, para minha grande surpresa, quando na manhã seguinte desci do quarto, cedo, e abri ansiosamemte o jornal, não encontrei uma única palavra acerca da prisão! Havia uma coluna só de conversa para entreter, acerca do «Envenenamento de ”Styles”», nada mais. Era inexplicável, mas eu supus que, por qualquer razão, Japp desejava ocultar o facto aos jornais. Isso preocupouHme um pouco, pois sugeria a possibilidade de mais prisões.

 

Depois do pequeno-almoço, resolvi ir à aldeia ver se Poirot já regressara. Antes de ter tempo de partir, porém, um rosto bem conhecido bloqueou uma das janelas e uma voz também bem conhecida cumprimentou:

 

Bon jour, mon ami!

 

Poirot! exclamei, aliviado, e, agarrando-lhe ambas as mãos, puxei-o para dentro de casa. Nunca fiquei tão contente por ver uma pessoa! Escute, não disse nada a ninguém, a não ser ao John. Fiz bem?

 

Meu amigo, não sei de que está a falar.

 

Da prisão do Dr. Bauerstein, claro! respondi, impaciente.

 

Quer dizer que o Dr. Bauerstein, foi preso? Não sabia?

 

Não fazia a mínima ideia. E, após uma pausa: No entanto, não me surpreende. No fim de contas, estamos apenas a uns sete quilómetros da costa.

 

Da costa? repeti, intrigado. Que tem isso a ver com o caso?

 

É óbvio, com certeza! replicou o detective, encolhendo os ombros.

 

Para mim, não é. Serei muito obtuso, mas não vejo que relação pode a proximidade da costa ter com o assassínio de Mrs. Imglethorp.

 

Não tem absolutamente nada, sem dúvida concordou Poirot, sorrindo. Mas nós estávamos a falar da prisão de Mr. Bauerstein.

 

Bem, ele foi preso por causa do assassínio de Mrs. Inglethorp,..

 

O quê?! perguntou Poirot, aparentemente com sincero espanto. O Dr. Bauerstein foi preso por causa do assassínio de Mrs. Inglethorp?

 

Sim.

 

Impossível! Isso seria uma grandíssima farsa! Quem lho disse, meu amigo?

 

Bem, ninguém mo disse, exactamente... Mas ele foi presoSim, é muito provável que tenha sido preso. Mas porespionagem, mon ami.

 

Espionagem? pergumtei, engasgado.

 

Precisamente.

 

Não foi por envenenar Mrs. Inglethorp?

 

Só se o nosso amigo Japp perdeu por completo o juízo respondeu Poirot, placidamente.

 

Mas... mas eu julgava que você pensava o mesmo...  

 

Poirot envolveu-me num olhar que exprimia surpreendida comiseração e a sua noção do total absurdo de tal ideia.

 

Quer dizer perguntei, adaptando-me lentamente à nova ideia que o Dr. Bauerstein é espião?

 

Poirot acenou afirmativamente.

 

Nunca tinha suspeitado, meu amigo?

 

Nunca sequer me passou tal coisa pela cabeça.

 

Não achou estranho que um famoso médico londrino se viesse enterrar numa pequena aldeia como esta e tivesse o hábito de passear por aií a todas as horas da noite, completamente vestido?

 

Não confesseiNunca pensei em tal coisa.

 

Ele é, ’naturalmente, alemão pelo nascimento informou Poirot, pensativo ; embora exerça clínica neste país há tanto tempo que todos o consideram inglês. Naturalizou-se há cerca de quinze amos. É um homem muito inteligente... judeu, claro.

 

O canalha! exclamei, indignado.

 

De modo nenhum. É, pelo contrário, um patriota. Pense no que se arrisca a perder. Pessoalmente, admiro-o.

 

Mas eu não podia ver o assunto do modo filosófico adoptado por Poirot e acrescentei, cada vez mais indignado:

 

E tem sido com esse indivíduo que Mrs. Cavendish tem passeado por aí fora, por toda a parte!

 

Sim, calculo que ele a considerou muito útil. Enquanto a mexeriquice se entretinha a unir-lhes os nomes, quaisquer outros entretenimentos do doutor passavam despercebidos.

 

Acha então que ele nunca se interessou realmente por ela? perguntei ansiosamente, porventura demasiado ansiosamente, dadas as circunstâncias.

 

Qlaro que não o posso afirmar, mas... Quer saber a minha opinião pessoal, Hastings?

 

Quero.

 

Bem, é a seguinte: Mrs. Cavendish não se interessa nem um bocadinho, nem nunca se interessou, pelo Dr. Bauerstein!

 

- Pensa, realmente isso? indaguei, sem conseguir disfarçar

 

-Tenho a certeza de que é assim. E vou-lhe dizer porquê.

 

Diga!

 

Porque ela se interessa por outra pessoa, mon ami.

 

Ah!

 

Que quereria ele dizer? Mal-grado meu, alastrou-me pelo corpo um calor agradável. Não sou vaidoso, no que toca. a mulheres, mas lembrei-me de certos indícios, em que mal pensara na altura, talvez, mas que sem dúvida pareciam indicar...

 

A entrada súbita de Miss Howard interrompeu os meus agradáveis pensamentos. Olhou rapidamente à sua volta, para se certificar de que não estava mais ninguém na sala, e entregou muito depressa a Poirot uma velha folha de papel pardo, enquanto murmurava as seguintes e enigmáticas palavras:

 

Em cima do guarda-fato.

 

E saiu da sala, com a pressa com que entrara.

 

Poirot desdobrou o papel, cheio de interesse, e soltou uma exclamação de prazer. Estendeu-o em cima da mesa e chamou-me:

 

Venha cá, Hastings, e diga-me uma coisa: que inicial é esta, «J.» ou «L»?

 

Era uma folha de papel de tamanho médio e um bocado suja de pó, como se tivesse estado abandonada em qualquer lado durante algum tempo. Mas o que atraíaa a atenção de Poirot era o rótulo que, ao cimo, tinha o cabeçalho impresso de Messrs. Parksom’s, os famosos costureiros teatrais, e estava endereçado a « (a inicial em questão) Cavendish, Esq., ”Styles Court”, Styles St. Mary, Essex.»

 

-Pode ser «T.» ou pode ser «L.» opinei, depois de a estudar um momento. Não é, com certeza, «J.».

 

Óptimo disse Poirot, e voltou a dobrar o papel. Sou da sua opinião. Pode ter a certeza de que é um «L.»!

 

De que se trata? indaguei, curioso. É importamte?

 

Moderadamente. Confirma uma suposição minha. Depois de deduzir a possibilidade da sua existência, encarreguei Miss Howard de a procurar e, como vê, os seus esforços foram coroados de êxito.

 

Que quis ela dizer com «em cima do guarda-fato»?

 

Quis dizer que encontrou o papel em cima de um guarda-fato.

 

Estranho lugar para guardar uma folha de papel pardo!

 

De modo nenhum. A parte de cima dos gwarda-fatos é um excelente lugar para pôr folhas de papel de embrulho e caixas de cartão. Eu próprio o tenho feito- Desde que fique tudo bem arrumadinho, ’não ofende a vista.

 

Poirot, já formou uma opinião acerca deste crime? perguntei, preocupado.

 

Já... isto é, creio saber como foi cometido.

 

Ah!

 

Infelizmente, não tenho nenhuma prova além da minha dedução, a não ser... com súbita energia, agarrou-me num braço e arrastou-me pelo corredor abaixo, chamando em francês, tão grande era a sua excitação: Mademoiselle Dorcas, Mademoiselle Dorcas, un moment, s’il vous plait!

 

Dorcas, assustada com o rebuliço, saiu apressadamente da copa.

 

Minha boa Dorcas, acabo de ter uma ideia, uma ideia’ zinha! Se estiver certa, que magnífica oportunidade! Na segunda-feira’ (não me refiro à terça-feira, Dorcas, mas sim à segunda-feira, ao dia anterior à tragédia), na segunda-feira, aconteceu alguma coisa’ à campainha de Mrs. Inglethorp?

 

Dorcas fitou-o, muito surpreendida.

 

E é que aconteceu mesmo! Agora que fala nisso, lembrome de que aconteceu. Só não percebo como o senhor soube. Um rato, ou coisa parecida, deve ter roído o fio. O homem veio e consertou tudo na terça-feira de manhã.

 

Poirot regressou à sala à minha frente, depois de soltar um longo suspiro de extasiado contentamento.

 

Sabe, não devíamos exigir provas externas, a razão deveria bastar. Mas a carne é fraca e é um consolo descobrir que seguimos a pista certa. Ah, meu amigo, sinto-me como um gigante repousado! Corro, salto!

 

E, juntamdo o gesto à palavra, correu e saltou, numa cabriolice louca, na extensão de relvado existente do lado de fora da comprida janela.

 

Que está o seu extraordinário amiguinho a fazer? perguntou uma voz atrás de mim e, ao virar-me, encontrei Mary Cavendish a meu lado. Sorrimos ambos. Que se passa?

 

Francamente, não lhe sei dizer. Ele perguntou à Dorcas qualquer coisa acerca de uma campainha e ficou tão contente com a resposta que desatou a retouçar como vê!

 

Mary riu-se.

 

Que ridículo! Vai transpor o portão... Já não volta cá hoje?

 

Ignoro. Desisti de tentar adivinhar o que fará.

 

Acha que ele é completamente louco, Mr. Hastings?

 

Confesso que não sei. Às vezes tenho a certeza de que é doido varrido, mas depois, precisamente quando parece mais louco, descubro que existe método na sua loucura.

 

Compreendo.

 

Apesar do riso, Mary tinha um ar pensativo, naquela manhã. Parecia grave, quase triste.

 

Pareceu-me que seria boa oportunidade para a sondar acerca de Cynthia, Comecei com muito tacto julguei, mas ela não tardou a interromper-me, autoritária:

 

É um excelente advogado, não me restam dúvidas, mas neste caso desperdiça por completo os seus talentos, Mr. Hastings- A Cynthia não corre o mínimo risco de encontrar qualquer hostilidade da minha parte.

 

Tartamudeei estupidamente esperar que não pensasse que eu. Mas ela interrompeu-me de novo e as suas palavras foram tão inesperadas que expulsaram por completo Cynthia e as suas preocupações do meu pensamento:

 

Mr. Hastings, acha que eu e o meu marido somos felizes juntos?

 

Fiquei perturbadíssimo e murmurei qualquer coisa no sentido de que não me cabia pensar semelhante coisa.

 

Bem, quer Lhe caiba, quer não, declaro-lhe que não somos felizes.

 

Não disse nada, pois compreendi que ela ainda não acabara.

 

Começou a andar de um lado para o outro, devagar, com a cabeça um pouco inclinada e o corpo esbelto e flexível a oscilar suavemente, enquanto caminhava. De súbito, parou e fitou-me.

 

Não sabe nada a meu respeito, pois não? De onde vim, quem era antes de casar com o John, nada, na realidade? Pois vou-lhe dizer, vou transformá-lo em padre confessor. Creio que é bondoso... melhor, tenho a certeza de que é bondoso.

 

Não sei porquê, não senti a satisfação que seria natural aquelas palavras causarem-me. Lembrei-me de que Cynthia começara as suas confidências de um modo muito semelhante. Além disso, a ideia que se tem de um padre confessor é de um homem idoso; não é papel para um jovem.

 

O meu pai era inglês, mas a minha mãe era russa.

 

Ah! Agora compreendo...

 

Agora compreende o quê?

 

A sugestão de algo estrangeiro, diferente, que sempre me pareceu envolvê-la.

 

Creio que a minha mãe era muito bela. Digo creio porque não a conheci. Morreu quando eu era muito pequena. Suponho que a sua morte resultou de uma tragédia qualquer, que tomou uma dose excessiva de um remédio para dormir, por engano. Fosse como fosse, o meu pai ficou com o coração despedaçado. Pouco depois entrou para. o Serviço Consular e eu passei a acompanhá-lo sempre, para onde quer que fosse. Aos vinte e três anos estivera em quase todo o mundo. Era uma vida esplêndida, que eu adorava.

 

Sorriu e inclinou a cabeça para trás. Parecia reviver mentalmente aqueles tempos felizes.

 

Depois o meu pai morreu e deixou-me muito mal, financeiramente. Tive de ir viver com umas tias velhas, no Yorkshire. Tentou em vão conter um estremecimento. Compreender-me-á, creio, se lhe disser que era uma vida terrível para uma rapariga criada como eu fora. A mesquinhez, a monotonia de semelhante viver quase me enlouquecera. Calou-se, por momentos, e por fim acrescentou, em tom diferente: E depois conheci John Cavendish.

 

Sim?

 

Como deve calcular, do ponto de vista das minhas tias era um excelente casamento para mim. Posso no entanto afirmar, sinceramente, que não foi esse facto que me influenciou. Não. Para mim, ele foi simplesmente uma maneira de escapar à insuportável monotonia da minha vida.

 

Não disse nada e ela prosseguiu, após nova pausa.

 

Não me interprete mal: fui inteiramente franca com ele. Disse-lhe, e era verdade, que gostava muito dele e que esperava vir a gostar ainda mais, mas que não estava, de modo nenhum, «apaixonada» por ele, como se costuma dizer. John declarou que isso lhe bastava... e casámos.

 

Ficou silenciosa durante muito tempo, com uma rugazinha na testa. Parecia estar a rever, atentamente, esse tempo passado.

 

Creio... tenho a certeza de que, ao princípio, ele gostou de mim. Suponho, porém, que não éramos feitos um para o outro. Afastánmonos quase imediatamente. Não é lisonjeador para o meu orgulho, mas é verdade) cansouHse de mim muito depressa. Devo ter emitido um murmúrio de discordância, pois ela acrescentou, em tom muito firme: Oh, sim, camsou-se! Não que isso importe agora... agora que chegou o momento de os nossos caminhos se separarem.

 

Que quer dizer?

 

Quero dizer que não ficarei em «Styles» respondeu calmamente.

 

A senhora e o John não continuarão a viver aqui?

 

O John poderá continuar, mas eu não.

 

Vai deixá-lo?

 

Vou.

 

Mas porquê? Nova pausa prolongada.

 

Talvez porque... porque quero ser livre!

 

E, ao ouvi-la falar, tive uma súbita visão de espaços largos, florestas virgens, terras desabitadas... e compreendi o que a liberdade devia significar para uma natureza como a de Mary Cavendish. Por momentos pareceu-me vê-la como realmente era, uma criatura selvagem e orgulhosa que a civilização não conseguira domar, uma espécie de tímido pássaro dos montes.

 

Não imagina, não pode imaginar, como este odioso lugar tem sido uma prisão para mim!

 

Compreendo, mas... não faça nada precipitado, temerário.

 

Oh, temerário!o tom da sua voz troçava da minha prudência.

 

E, de súbito, dei comigo a dizer uma coisa que me deu ganas de arrancar a própria língua:

 

Sabe que o Dr. Bauerstein foi preso?

 

Acto contínuo, cobriu-lhe o rosto uma frieza que lhe apagou toda a expressão, como uma máscara.

 

O John teve a amabilidade de me dar a notícia esta manhã. Que pensa do caso?

 

Que penso de quê?

 

Da prisão.

 

Que quer que pense? Aparentemente, é un espião alemão. Pelo menos foi o que o jardineiro disse ao John.

 

O seu rosto e a sua voz tinham-se tornado absolutamente frios e inexpressivos. Interessava-se por ele ou não se interessava?

 

Afastou-se uns passos e tocou numa das jarras de flores-

 

Estão murchas. Tenho de as substituir. Importa-se de se afastar?... Obrigada, Mr. Hastings.

 

Saiu» calmamente pela janela, passando-me pela frente, e inclinou ao de leve a cabeça, a despedir-se.

 

Não, não se interessava com certeza por Bauerstein. Nenhuma mulher poderia desempenhar o seu papel com uma indiferença tão gelada,

 

Poirot não apareceu na manhã seguinte e os homens da Scotland Yard também não deram sinais de vida.

 

Mas à hora do almoço chegou uma nova prova ou melhor, falta de prova. Tentáramos em vão localizar o destinatário da quarta carta, que Mrs. Inglethorp escrevera na tarde que precedera a sua morte. Perante a inutilidade dos nossos esforços» tínhamos abandonado a questão, na esperança de que o enigma se deslindasse por si próprio-, um dia. E foi precisamente o que aconteceu, sob a forma de uma carta chegada, no segundo correio, de uma firma de editores franceses, acusando a recepção do cheque de Mrs. Inglethorp e lamentando terem sido incapazes de encontrar determinada série de canções folclóricas russas. Perdeu-se, portanto, a última esperança de desvendar o mistério por intermédio da correspondência da própria Mrs. Inglethorp, na tarde fatal.

 

Pouco antes do chá, resolvi ir transmitir a Poirot a nova decepção, mas descobri, contrariado, que ele saíra» mais uma vez.

 

Vol’tou a Londres?

 

-Oh, não, monsieur! Meteu-se apenas no comboio para Tadminster, «para ver a farmácia de uma jovem», segundodisse.

 

Grande idiota! exclamei, sem me conter. Eu disse-lhe que a quarta-feira era o único dia em que ela. Lá não estava! Peça-lhe que nos visite amanhã de manhã, sim?

 

com certeza, monsieur. Mas, no dia seguinte, de Poirot nem sinais. Comecei a irritar-me. Não havia dúvida de que nos estava a tratar com muita arrogância.

 

Depois do almoço, Lawrence chamou-me de parte e perguntou-me se ia visitá-lo.

 

Não, creio que não. Ele que venha cá, se nos quiser ver.

 

Ah! exclamou Lawrence, que me pareceu hesitante; havia na sua atitude algo de nervoso e excitado, que despertou A minha curiosidade.

 

Que se passa? Não me importo de ir visitá-lo se aconteceu alguma coisa especial.

 

Não é nada de importância, mas... enfim, se fores diz-lhe...’baixou a voz, que ficou quase reduzida a um murmúrio .. .dize-lhe que creio ter encontrado a outma chávena de café!

 

Já quase me esquecera daquele enigmático recado de Poirot, mas as palavras de Lawrence reavivaram-me a curiosidade.

 

Ele, porém, não me quis dizer mais nada e eu achei que o melhor seria deixar-me de orgulhos e ir novamente procurar Poirot a «Leastways Cottage».

 

Desta vez fui recebido com um sorriso: Monsieur Poirot estava em casa. Queria subir? Subi.

 

Poirot estava sentado à mesa, com a cabeça apoiada nas mãos. Levantou-se bruscamente, ao ouvir-me entrar.

 

Que se passa? indaguei,   solícito. Espero que não esteja doente?

 

Não, não estou doente. Mas tento decidir uma questão de grande importância.

 

Se deve apanhar o criminoso ou não? indaguei, jocosamente.

 

Mas, para grande surpresa minha, acenou com a cabeça, muito grave.

 

«Falar ou não falar», como o vosso grande Shakespeare diz, «eis a questão.»

 

Não me dei ao trabalho de corrigir a citação.

 

Não fala a sério, pois não?

 

Falo o mais a sério possível, pois está em jogo a mais séria de todas as coisas.

 

O quê?

 

A felicidade de uma mulher, mon ami respondeu», com a mesma gravidade. Não soube que dizer.

 

Chegou o momento prosseguiu, pensativo , e não sei que fazer. Não sei que fazer porque a jogada é muito elevada. Ninguém a não ser eu, Hercule Poirot, se arriscaria a fazê-la! E bateu orgulhosamente no peito.

 

Depois de aguardar alguns momentos respeitosamente, para não estragar o efeito das suas palavras, transmiti-lhe o recado de Lawrence.

 

Aih, então ele encontrou a outra chávena! Ainda bem. É mais inteligente do que parece, esse seu carrancudo Monsieur Lawrence!

 

Por mim, não tinha em grande conta a inteligência de Lawrence, mas nem pensei em contradizê-lo- Preferi chamá-lo à pedra por se ter esquecido do que lhe dissera quanto aos dias de folga de Cymthia.

 

É verdade, tenho uma cabeça de peneira. No entanto, a outra jovem foi muito amável. Teve pena da minha decepção e mostrou-me tudo, com a maior das gentilezas.

 

Ainda bem, irá tomar chá com a Cynthia noutro dia. Falei da carta recebida.

 

É pena declarou. Sempre tive esperanças nessa carta. Mas estava escrito que não seria assim... Este caso tem de ser todo deslindado do interior. Bateu na testa- Por estas celulazinhas cinzentas. «É com elas, como vocês dizem por cá. E, inesperadamente, perguntou-me: Percebe alguma coisa de impressões digitais, meu amigo?

 

Não respondi, surpreendido. Sei que não há duas impressões digitais iguais, mas a minha ciência chega aí e pára.

 

Exactamente.

 

Abriu uma gavetinha e tirou algumas fotografias que pôs em cima da mesa.

 

Numerei-as 1, 2 e 3. Quer fazer o favor de mas descrever?

 

Estudei as fotografias com atenção.

 

Verifico que estão todas muito ampliadas- Creio que a fotografia n.º 1 representa as impressões digitais do polegar e do indicador de um (homem; a nº 2, de uma senhora: ao muito mais pequenas e diferentes em todos os aspectos; a n.º 3... fiquei uns momentos calado...parece-me uma confusão de impressões digitais, mas aqui estão repetidas, muito nitidamente, as da n.º 1.

 

Sobrepostas às outras.

 

Sim.

 

Reconhece-as sem hesitação?

 

Oh, sim! São idênticas.

 

Poirot acenou com a cabeça, pegou nas fotografias e voltou a fechá-las na gaveta.

 

Suponho que, como de costume, não me vai explicar nada?

 

Pelo contrário! As impressões digitais da fotografia n.º 1 são as de Monsieur Lawrence; as da n.º 2, de Mademoiselle Cynthia. Não são importantes, obtive-as apenas para fins de comparação. A fotografia n.° 3 é um pouco mais complicada.

 

Sim?

 

Está, como verificou, muitíssimo ampliada, Deve ter reparado numa espécie de obscuridade, através de toda a foto. Não lhe vou descrever o aparelho especial, o pó, etc., que utilizei. É um processo conhecido da Polícia e, graças a ele, pode-se obter uma fotografia de impressões digitais em qualquer objecto, num espaço de tempo muito breve. Meu amigo, agora que viu as impressões digitais, resta dizer-lhe em que objecto especial foram deixadas.

 

Continue. Estou cheio de curiosidade.

 

Eh bien, a fotografia n.° 3 representa a superfície muito ampliada de um pequeno frasco existente no armário dos venenos da   farmácia  do Hospital da   Cruz   Vermelha   de Tadminster.

 

Meu Deus! Mas que fazem as impressões digitais do Lawrence Cavendish nesse armário? Não se aproximou dele no dia em que lá estivemos!

 

Oh, aproximou-se, sim!

 

Impossível! Estivemos sempre todos juntos.

 

Não, meu amigo, houve um momento em que não estiveram todos juntos, houve um momento em que não podem ter estado todos juntos, pois de contrário não teria sido necessário chamar Monsieur Lawrence, para se lhes juntar na varanda.

 

Esquecera-me disso admiti. Mas foi apenas um momento...

 

Que chegou.

 

Que chegou para quê?

 

O sorriso de Poirot tornou-se assaz enigmático.

 

Chegou para um cavalheiro que em tempos estudara medicina satisfazer ,uma< curiosidade e um interesse-muito naturais.

 

Os nossos olhos encontraram-se. A expressão dos de Poirot era agradavelmente vaga. Levantou-se, a cantarolar, e eu observei-o, desconfiado.

 

Poirot, que continha o dito frasquinho?

 

O detective olhou pela janela, ainda a cantarolar, e respondeu, por cima do ombro:

 

Hidrocloreto de estricnina.

 

Céus! exclamei,   mas sem surpresa; esperara aquela resposta.

 

Utilizam o hidrocloreto de estricnina puro muito pouco, só ocasionalmente, em comprimidos. O mais utilizado na maioria dos medicamentos é a solução oficial: Hidrocloreto de estricnina líquido. Por isso as impressões digitais se mantiveram intactas desde então até agora.

 

Como conseguiu tirar a fotografia?

 

Deixei cair o chapéu da varanda explicou, com toda a simplicidade. Não eram autorizados visitantes lá em baixo, àquela hora, e por isso, a despeito das minhas muitas desculpas, a colega de Miss Cynthia teve de mo ir buscar-

 

Sabia então o que ia encontrar?

 

De modo algum, de modo algum! Deduzira apenas, pela história que você me contara, que teria sido possível a Monsieur Lawrence mexer no armário dos venenos. A possibilidade tinha de ser confirmada ou eliminada.

 

Poirot, o seu ar ligeiro não me engana. Trata-se de uma descoberta muito importante.

 

Não sei, confesso. Mas há uma coisa que me surpreende, como por certo o surpreende a si.

 

O que é?

 

Enfim, há demasiada estricnina neste caso. É a terceira vez que se nos depara. Havia estricnina no tónico de Mrs. Inglethorp e Mace vendeu estricnina ao balcão, em Styles St. Mary. E agora temos mais estricnina, manipulada por uma pessoa da casa. É perturbador, causa confusão, e como você sabe eu não gosto de confusões.

 

Antes que tivesse tempo de responder, um dos outros belgas abriu a porta’, enfiou a cabeça pela fresta e informou:

 

Está lá em baixo uma senhora a perguntar por si, Mr. Hastings.

 

Uma senhora?

 

Desci apressadamente a escada estreita e Poirot seguiurme. Mary Cavendish esperava, à entrada.

 

Fui visitar uma mulher idosa, da aldeia explicou , e como o Lawrence me disse que tinha vindo ver Monsieur Poirot, lembrei-me de passar por cá.

 

Ah, madame, cheguei a pensar que me vinha dar a honra de uma visita! Lamentou-se Poirot.

 

Virei cá um dia se me convidar prometeu-lhe Mary, sorrindo.

 

Muito bem. Se precisar de um padre confessor, madame Mary estremeceu ligeiramente , lembre-se que o Tio Poirot está sempre às suas ordens.

 

Ela fitou-o, por momentos, como se procurasse descobrir nas suas palavras algum significado mais profundo. Depois virou bruscamente as costas.

 

Não quer acompanhar-nos também, Monsieur Poirot?

 

Encantado, minha senhora.

 

Mary falou rápida e febrilmente, durante todo o caminho para «Styles». Tive a impressão de que tentava esquivar-se ao olhar do detective.

 

O tempo mudara e o vento cortante era quase outonal na sua agressividade. Mary itremeu um pouco e abotoou o casaco preto desportivo- Ao passar através das árvores, a ventania produzia um som triste, que lembrava um gigante a suspirar.

 

Quamdo chegámos à porta principal de «Styles» tivemos logo o pressentimento de que acontecera alguma coisa.

 

Dorcas, a chorar e a torcer as mãos, correu ao nosso encontro. Reparei que as outras criadas estavam reunidas, ao fundo, todas olhos e ouvidos.

 

Oh, minha senhora! Oh, minha senhora! Não sei como dizer-lhe...

 

Que aconteceu, Dorcas?perguntei, impaciente. Diga- -nos imediatamente!

 

Foram aqueles malvados detectives. Prenderam-no... prenderam Mr. Cavendish!

 

Prenderam Lawrence? perguntei, estupefacto.

 

Vi uma estranha expressão nos olhos de Dorcas, que me respondeu:

 

Não, senhor, não foi Mr. Lawrence... Foi Mr. John. Mary, que estava atrás de mim, soltou um grito rouco e

 

caiu-me em cima. Quando me voltei, para a amparar, encontrei o olhar serenamente triunfante de Poiirot.

 

O   LIBELO   DA   ACUSAÇÃO

O julgamento de John Cavendish, acusado de assassinar a madrasta, efectuou-se dois meses depois. Pouco direi das semanas que decorreram entre a sua prisão e o julgamento, mas toda a minha admiração e toda a minha simpatia foram, francamente, para Mary Cavendish. Colocou-se apaixonadamente ao lado do marido, desdenhando da simples ideia da sua culpabilidade, e lutou por ele com unhas e dentes.

 

Manifestei a minha admiração por ela a Poirot, que acenou com a cabeça, pensativo.

 

Sim, é uma daquelas mulheres que mostram o melhor de si mesmas na adversidade, que põem a descoberto tudo quanto há nelas de mais terno e verdadeiro. O seu orgulho e o seu ciúme...

 

O seu ciúme?

 

Sim. Não reparou que é uma mulher extraordinariamente ciumenta? Como ia dizendo, o seu orgulho e o seu ciúme foram postos de parte- Agora só pensa no marido e no terrível destino que paira sobre ele.

 

Poirot falava com muito sentimento e eu olhei-o com atenção, lembrado daquela última tarde em que ele dissera tentar decidir se deveria falar ou não. Dada a sua ternura pela «felicidade de uma mulher», senti-me grato por lhe ter sido poupada a decisão.

 

Ainda hoje me custa a crer confessei. Pensei até ao último momento que tinha sido o Lawrence.

 

Eu sei que pensou redarguiu, sorrindo.

 

Mas o John, o meu velho amigo John...

 

Todo o ’assassino é provavelmente um velho amigo de alguém observou, filosoficamente. Não se deve misturar sentimento com razão.

 

Acho que me devia ter dado a entender...

 

Mon ami, italvez não o tenha feito precisamente por ele ser o seu velho amigo.

 

Sentiime desconcertado com a resposta e lembrei-me da pressa que ’tivera em comunicar ao John o que supunha ser a opinião de Poirot acerca de Bauerstein A propósito, este tinha sido ilibado da acusação feita contra ele. No entanto, apesar de, dessa vez, ter sido mais esperto do que os acusadores e de não ser possível provar que cometera actos de espionagem, as suas asas tinham ficado muito aparadas.

 

Perguntei a Poirot se lhe parecia que John seria condenado. Para minha surpresa respondeu que, pelo contrário, era muitíssimo provável que fosse absolvido.

 

Mas, Poirot...

 

Oh, meu amigo, não lhe tenho dito desde o princípio que não disponho de provas nenhumas?! Uma coisa é saber que um homem é culpado e outra muito diferente é provar que o é. E, neste caso, até os indícios são pouquíssimos. É esse o mal. Eu, Hercule Poirot, sei, mas falta>-me o último elo da cadeia. E se não o encontrar... Abanou preocupadamente a cabeça.

 

Quando começou a suspeitar de John Cavendish? perguntei-lhe, passados momentos.

 

Você não suspeitou dele?

 

Não.

 

Nem depois daquele fragmento de conversa que ouviu entre Mrs. Cavendish e a sogra e da subsequente falta de franqueza da primeira no inquérito?

 

Não.

 

Não somou dois e dois e não chegou à conclusão de que, se não tinha sido Alfred Inglethorp que discutira com a mulher (e ele negou-o veementemente no inquérito, como se deve lembrar), fora com certeza Lawrence ou John Cavendish? Se tivesse sido Lawrence, a conduta de Mary Cavendish continuaria a ser inexplicável, mas se, pelo contrário, tivesse sido John, estava tudo explicado, naturalmente.

 

Foi então o John que discutiu com a mãe, naquela tarde?

 

Exactamente.

 

E o senhor soube-o, desde o princípio?

 

Com certeza. Só podia ser essa a explicação do comportamento de Mrs. Cavendish.

 

E mesmo assim acha que ele será absolvido?

 

Claro que sim respondeu, encolhendo os ombros. Na pronúncia ouviremos o libelo da acusação, mas segundo todas as probabilidades os advogados de John aconselhá-lo-ão a reservar a defesa. Essa ouvi-la-emos no julgamento. E... a propósito, quero recomendar-lhe uma coisa, meu amigo. Não devo aparecer no processo.

 

O quê?

 

Oficialmente, não tenho nada a ver com o assunto. Devo permanecer nos bastidores até encontrar o tal último elo da minha cadeia. Mrs. Cavendish deve pensar que estou a trabalhar para o marido e não contra ele.

 

Mas isso é fazer jogo um bocado baixo! protestei.

 

De modo nenhum. Estamos a lidar com um indivíduo muito inteligente e sem escrúpulos e devemos utilizar todos os meios ao nosso alcance... caso contrário, escapa-se-nos por entre os dedos. Foi por isso que tive o cuidado de permanecer na sombra. Todas as descobertas foram feitas pelo Japp e será ele que receberá todo o crédito. Se for chamado a depor sorriu, encantado, será provavelmente como testemunha de defesa.

 

Quase não podia acreditar nos meus ouvidos!

 

Estará inteiramente en règle garantiu-me Poirot. Por estranho que pareça, posso fazer um depoimento que demolirá uma das alegações da acusação.

 

Qual?

 

A que se refere à destruição do testamento. John Cavendish não destruiu esse testamento.

 

Poirot acertou em cheio, como profeta. Não entrarei em pormenores no tocante à pronúncia, pois isso implicaria muitas repetições enfadonhas. Limitar-me-ei a dizer que John Cavendish reservou a sua defesa e foi pronunciado para julgamento.

 

Em Setembro estávamos todos em Londres. Mary alugou uma casa em Kensington e Poirot foi incluído na família.

 

Quanto a mim, tinham-me colocado no Ministério da Guerra e, por isso, podia vê-los com frequência.

 

À medida que as semanas passavam, o estado dos nervos de Poirot piorava. O tal «último elo» de que falara continuava a não aparecer. Intimamente, eu desejava que tal situação se mantivesse, pois que felicidade poderia restar a Mary se John não fosse absolvido?

 

Em 15 de Setembro, John Cavendish compareceu perante o tribunal, no Old Bailey, acusado de «Assassínio voluntário de Emily Agnes Inglethorp», e declarou-se «Inocente».

 

Sir Ernest Heavywether, o famoso advogado, fora encarregado de o defender.

 

Mr. Philips, o acusador, iniciou as alegações.

 

O assassínio, declarou, fora premeditado e executado a sangue-frio. Tratara-se, nem mais nem menos, do envenenamento deliberado de uma mulher afectuosa e confiante pelo seu enteado, para o qual ela fora mais do que uma mãe. Mantivera-o desde a infância. Ele e a mulher viviam em «Styles Court» rodeados de todo o conforto e dos seus cuidados e atenções. Ela fora a sua boa e generosa benfeitora.

 

Tencionava chamar testemunhas, as quais provariam que o acusado, libertino e esbanjador, se encontrava em grandes apuros financeiros, além de ter um romance com uma certa Mrs. Raikes, mulher de um lavrador vizinho. Isso chegara ao conhecimento da madrasta, que o chamara à pedra na tarde anterior à sua morte, e seguira-se uma discussão, parte da qual fora ouvida. No dia anterior, o acusado adquirira estricnina na farmácia da aldeia, usando um disfarce pelo meio do qual esperava lançar a suspeita do crime sobre outro homem: o marido de Mrs. Inglethorp, de quem tinha grande inveja. Felizmente, Mr. Inglethorp pudera apresentar um álibi irrebatível.

 

Na tarde de 17 de Julho, continuou o acusador, logo após a discussão com o filho, Mrs. Inglethorp fizera um novo testamento. Este testamento fora encontrado destruído na lareira do seu quarto, na manhã seguinte, mas haviam-se encontrado indícios que mostravam ter sido redigido a favor do marido. A falecida já fizera um testamento a seu favor antes do casamento, mas e aqui Mr. Philips agitou expressivamente o indicador o acusado não tinha conhecimento disso. O que levara a falecida a fazer novo testamento, com o anterior ainda válido, não sabia. Tratava-se de uma senhora idosa e talvez se tivesse esquecido do anterior; ou e isso parecia-lhe mais provável talvez pensasse que esse testamento teria sido revogado pelo casamento, visto ter-se falado desse assunto. As senhoras nem sempre eram muito versadas em conhecimentos jurídicos. Mrs. inglethorp fizera, havia cerca de um ano, testamento a favor do acusado. Mr. Philips chamaria testemunhas que demonstrariam ter sido o acusado quem acabara por dar o café à madrasta, na noite fatal. Mais tarde, procurara introduzir-se no quarto dela e fora sem dúvida nessa ocasião que encontrara oportunidade para destruir o testamento que, tanto quanto julgava saber, tornaria válido o feito a seu favor.

 

O acusado fora preso em consequência da descoberta no seu quarto, pelo detective inspector Japp um investigador muito brilhante, de um frasco de estricnina idêntico ao que fora vendido na farmácia da aldeia ao suposto Mr. Inglethorp, na véspera do assassínio. Competiria ao júri decidir se tais factos incriminadores constituíam ou não prova inequívoca da culpa do acusado.

 

E, insinuando subtilmente ser inimaginável que o júri não decidisse assim, Mr. Philips sentou-se e enxugou a testa.

 

As primeiras testemunhas da acusação foram praticamente as que tinham deposto no inquérito, começando-se mais uma vez pelo depoimento médico.

 

Sir Ernest Heavywther, famoso em toda a Inglaterra pelo modo pouco escrupuloso como intimidava as testemunhas, fez apenas duas perguntas:

 

Presumo, Dr. Bauerstein, que a estricnina, como droga, actua rapidamente?

 

É verdade.

 

E que o doutor não sabe explicar a demora verificada neste caso?

 

É verdade.

 

Obrigado.

 

Mr. Mace identificou o frasco que o advogado lhe estendeu como sendo o vendido por ele a «Mr. Inglethorp». Pressionado pelo advogado, admitiu que só conhecia Mr. Inglethorp de vista; nunca falara com ele. A testemunha não foi interrogada pela defesa.

 

Alfred Inglethorp «também foi chamado e negou ter adquirido o veneno. Negou igualmente ter discutido com a mulher. Várias testemunhas comprovaram a verdade de tais afirmações.

 

Os jardineiros testemunharam quanto a terem assinado o testamento e depois foi a vez da Dorcas.

 

Fiel ao seu «jovem senhor», negou insistentemente que pudesse ter sido a voz de John que ouvira e afirmou resolutamente, apesar de todas as provas em contrário, que fora Mr. Inglethorp que estivera na saleta com a sua ama. Um sorriso muito triste perpassou pelo rosto do acusado, que sabia muito bem quanto a sua corajosa defesa era inútil, pois o seu advogado não tencionava negar aquele pormenor. Claro que não foi possível chamar Mrs. Cavendish para depor contra o marido.

 

Depois de várias perguntas acerca de outros assuntos, Mr. Philips inquiriu:

 

Lembra-se de, no mês de Junho passado, ter chegado um embrulho do Parkson’s para Mr. Lawrence Cavendish?

 

Dorcas abanou a cabeça.

 

Não me lembro. Pode ter chegado, mas Mr. Lawrence esteve ausente de casa durante parte do mês de Julho.

 

Que fariam no caso de chegar uma encomenda para ele durante a> sua ausência?

 

Ou seria posta no seu quarto ou reenviada, para onde ele se encontrava.

 

Por si?

 

Não, senhor. Eu deixá-la-ia na mesa do vestíbulo. Miss Howard é que se encarregaria disso.

 

Chamada Evelyn Howard, e depois de interrogada acerca de outros assuntos, o advogado fez-lhe a pergunta acerca da encomenda.

 

Não me lembro. Chegavam muitas encomendas. Não me posso lembrar de uma em especial.

 

Não sabe se foi reenviada para o País de Gales, onde se encontrava Mr. Cavendish, ou se foi posta no quarto dele?

 

Não creio que lhe tenha sido enviada. Se tivesse, deveria lembrar-me.

 

Supondo que   chegara   uma encomenda endereçada   a Mr. Lawrence Cavendish e que depois essa encomenda desaparecia. Notaria a sua ausência?

 

Creio que não. Pensaria que alguém tomara conta dela.

 

Creio, Miss Howard, que foi a senhora que encontrou esta folha de papel pardo? Mostrou’ o mesmo papel sujo de pó que Poirot e eu examináramos na salinha de «Styles».

 

Fui, sim.

 

Porque a procurou?

 

O detective belga que investigava o caso pediu-me que a procurasse.

 

Onde acabou por encontrá-la?

 

Em cima de... de um guarda-fato.

 

   Em cima do guarda-fato do acusado?

 

Creio... creio que sim.

 

Não foi a senhora que a encontrou?

 

Fui.

 

Então deve saber onde a encontrou.

 

Foi em cima do guarda-fato do acusado.

 

Assim está melhor.

 

Um empregado do Tarkson’s, Costureiros Teatrais, declarou que, em 29 de Junho, tinham fornecido uma barba preta a Mr. L. Cavendish, como lhes fora pedido. A encomenda tinha sido feita por carta, a qual incluía um vale de correio. Não, não tinha guardado a carta. Todas as transacções eram registadas nos seus livros. Tinham enviado a barba, como lhes fora indicado, a «L. Cavendish, Esq., ”Styles Court”.»

 

Sir Ernest Heavywether levantou-se, imponente:

 

De onde foi a carta escrita?

 

De «Styles Court».

 

Da mesma morada para onde enviaram a. encomenda?

 

Sim.

 

E a carta seguiu daqui?  

 

Sim.

 

Heavywether caiu<-lhe em cima como uma ave de rapina:

 

Como sabe?

 

Não... não compreendo.

 

Como sabe que a carta era proveniente de Styles? Viu o carimbo do correio?

 

Não... mas...

 

Ah, não viu o carimbo do correio! E no entanto afirma confiantemente que proveio de Styles. Na realidade, o carimbo do correio podia ser de outro lado qualquer?

 

Po.. .podia.

 

Na realidade, a carta, embora escrita em papel timbrado, podia ter sido enviada de qualquer lado? Do País de Gales, por exemplo?

 

A testemunha admitiu que poderia ter sido, de facto, assim, e Sir Ernest declarou-se satisfeito.

 

Elizabeth Wells, segunda criada em «Styles», declarou que, depois de se ter deitado, se lembrara de que correra o ferrolho da porta principal, em vez de a ter deixado no trinco como Mr. Inglethorp lhe pedira. Descera, por isso, ao andar de baixo, a fim de emendar o erro. Ao ouvir um ligeiro ruído na ala ocidental, espreitara pelo corredor e vira Mr. John Cavendish a bater à porta de Mrs. Inglethorp.

 

Sir Ernest Heavyweather não teve dificuldades com ela: sob o fogo impiedoso das suas perguntas, a mulher contradisse-se irremediavelmente e Sir Ernest voltou a sentar-se, com um sorriso de satisfação estampado no rosto.

 

Depois do testemunho de Annie quanto ao pingo de estearina no chão e a ter visto o acusado levar o café para a saleta, o julgamento foi adiado para o dia seguinte.

 

Quando íamos para casa, Mary Cavendish queixou-se amargamente do advogado de acusação.

 

Aquele homem odioso! Que rede estendeu à volta do meu pobre John! Como torceu cada pequenino facto até o fazer

 

Qparecer o que não é!

 

Bem, amanhã as coisas passar-se-ão ao contrário disse-!he, tentando consolá-la.

 

Sim admitiu, pensativa, mas depois baixou a voz e acrescentou: Mr. Hastings, não pensa .. certamente não podia ter sido o Lawrence... Oh, não, não podia ser!

 

Mas eu próprio estava intrigado e assim que me encontrei a sós com Poirot perguntei-lhe se percebia aonde Sir Ernest queria chegar.

 

Ah, Sir Ernest é um homem muito inteligente! exclamou, apreciadoramente.

 

Acha que ele considera o Lawrence culpado?

 

Não penso que ele considere seja o que for ou se preocupe seja com o que for! O que ele pretende é criar tal confusão no espírito dos jurados que as suas opiniões se dividam quanto a qual dos irmãos cometeu o crime. Pretende demonstrar que existem tantos indícios contra Lawrence como contra John... e desconfio muito que o conseguirá.

 

Quando o julgamento recomeçou, a primeira testemunha a ser chamada foi o detective-inspector Japp, que depôs sucinta e brevemente. Depois de relatar os primeiros acontecimentos, prosseguiu:

 

Baseando-nos em informações recebidas, o superintendente Summerhaye e eu revistámos o quarto do acusado, durante uma sua ausência   temporária de casa.   Na cómoda, escondidos debaixo de algumas peças de roupa interior, encontrámos: primeiro,’umas lunetas de aros de ouro semelhantes às usadas por Mr. Inglethorp as lunetas foram apresentadas; segundo, este frasco.

 

O frasco já fora identificado pelo ajudante de farmacêutico: era um frasquinho de vidro azul contendo ainda alguns grãos de um pó branco cristalino e dizendo, no rótulo: «Hidrocloreto de estricnina. VENENO.»

 

Uma nova prova descoberta pelos detectives, depois da pronúncia, fora um bocado de mata-borrão comprido e quase novo. Tinha sido encontrado no livro de cheques de Mrs. Inglethorp e, com o auxílio de um espelho, fora possível ler claramente as palavras: «... tudo de que eu seja possuidora ao morrer deixo-o ao meu querido marido, Alfred Ing...». Isto demonstrava, sem sombra de dúvida, que o testamento destruído fora feito a favor do marido da falecida, Japp apresentou então o fragmento de papel chamuscado encontrado na lareira, e isso, juntamente com a barba encontrada no sótão, completou as provas que tinha a apresentar.

 

Mas faltava o contra-interrogatório de Sir Ernest.

 

Em que dia, revistou o quarto do acusado?

 

Na terça-feira, 24 de Julho.

 

Exactamente uma semana depois da tragédia?  

 

Sim.

 

Disse que encontrou esses dois objectos na cómoda. A gaveta não estava fechada à chave?

 

Não.

 

Não achou estranho que um homem que cometera um crime deixasse as provas do seu acto numa gaveta aberta, para que qualquer as pudesse encontrar?

 

Talvez lá as tivesse metido apressadamente.

 

Mas o senhor acaba de dizer que tinha decorrido uma semana inteira desde o crime. Ele teria tido tempo mais do que suficiente para tirar esses objectos da gaveta e destruí-los.

 

Talvez.

 

Não há talvez nem meio talvez. Teria ou não teria tempo suficiente para tirar os objectos da gaveta e destruí-los?

 

Teria,

 

A pilha de roupa interior sob a qual os objectos estavam escondidos era pesada ou leve?

 

Pesadota.

 

Por outras palavras,   tratavam de roupa interior de Inverno. Obviamente, não seria provável que o acusado mexesse nessa gaveta?

 

Talvez não.

 

Faça favor de responder à minha pergunta: Seria provável que, na semana mais quente de um Verão quente, o acusado fosse mexer numa gaveta que continha roupa interior de inverno? Sim ou não?

 

Não.

 

Nesse caso, não é possível que os objectos em questão lá tenham sido postos por uma terceira pessoa e que o acusado estivesse inteiramente alheio à sua presença?

 

Não me parece provável.

 

Mas é possível?

 

É.

 

Não desejo mais nada.

 

Seguiram-se mais declarações. Declarações quanto às dificuldades financeiras em que o acusado se encontrava em fins de Julho. Declarações quanto à sua intriga com Mrs. Raikes pobre Mary, deve ter sido duro de ouvir, a uma mulher com o seu orgulho! Evelyn Howard tivera razão nas suas acusações, embora a sua animosidade contra Alfred Inglethorp a tivesse levado a tirar a conclusão errada de que era ele a pessoa em causa.

 

Depois Lawrence Cavendish foi chamado a depor. Em voz baixa, e em resposta às perguntas de Mr. Philip, negou ter encomendado fosse o que fosse ao Parkson’s, em junho. Na realidade, em 29 de Junho estava ausente, no País de Gales.

 

O queixo de Sir Ernest esticou-se, acto contínuo, agressivamente:

 

Nega ter encomendado uma barba preta ao Parkson’s, em 29 de Junho?

 

Nego.

 

Ah! No caso de acontecer alguma coisa ao seu irmão, quem herdará «Styles Court»?

 

A brutalidade da pergunta fez corar o rosto pálido de Lawrence. O juiz emitiu um leve murmúrio de desaprovação e o acusado inclinou-se para a frente, irritado.

 

Mas Heavywether não se importou nada com a cólera do seu constituinte e exigiu:

 

Responda à minha pergunta, por favor.

 

Creio que serei eu respondeu Lawrence, em voz baixa.

 

Que quer dizer com o «creio»? O seu, irmão não tem filhos. Seria o senhor que herdaria, não seria?

 

Seria.

 

Ah, assim está melhor! exclamou o advogado de defesa, com feroz satisfação. E também herdaria uma boa maquia em dinheiro, não herdaria?

 

Francamente, Sir Ernest, essas perguntas não são relevantes protestou o juiz.

 

Sir Ernest inclinou-se e, como já disparara a seta venenosa, prosseguiu:

 

Creio que na terça-feira, 17 de Julho, foi com um convidado da casa visitar a farmácia do Hospital da Cruz Vermelha de Tadminster?

 

Fui.

 

Enquanto esteve sozinho, durante alguns segundos, abriu o armário dos venenos e examinou alguns dos frascos?

 

É... é possível que o tenha feito.

 

Digo-lhe que o fez.

 

Fiz.

 

A pergunta seguinte foi quase atirada com violência.

 

Examinou algum frasco em particular?

 

Creio que não.

Tenha cuidado, Mr. Cavendish. Estou a referir-Me a um frasquinho de hidrocloreto de estricnina.

 

Lawrence tornara-se esverdeado.

 

Não,.. não... tenho a certeza de que não examinei.

 

Então como explica que tenha deixado nele, inequivocamente, as suas impressões digitais?

 

A atitude agressiva do advogado revelava-se muito eficaz contra uma pessoa nervosa.

 

Suponho... suponho que devo ter pegado no frasco.

 

Eu também suponho que pegou! Retirou algum do conteúdo do mesmo?

 

Não!

 

Então porque lhe pegou?

 

Estudei   para   médico,   em   tempos.   Essas   coisas interessam-me, naturalmente.

 

Ah! Então os venenos «interessam-lhe, naturalmente»,, não interessam? No entanto, esperou pela oportunidade de ficar sozinho para satisfazer esse seu «interesse».

 

Foi puro acaso. Se os outros estivessem presentes, podia ter procedido exactamente do mesmo modo.

 

Mas os outros não estavam presentes, pois não?

Não, mas...

 

Na realidade, durante toda a tarde, só esteve sozinho uns dois minutos, e logo sucedeu repito, logo sucedeu ser durante esses dois minutos que evidenciou o seu «interesse natural» pelo hidrocloreto de estricnina?

 

Lawrence tartamudeou, lamentavelmente:

 

Eu... eu...

 

com rosto satisfeito e expressivo, Sir Ernest declarou:

 

Não tenho mais nada a perguntar-lhe, Mr. Cavendish.

 

O seu interrogatório causara grande excitação no tribunal. As cabeças de muitas mulheres bem vestidas, presentes na sala, reuniram-se a cochichar, e os seus murmúrios tornaram-se tão audíveis que o juiz ameaçou, irritado, mandar evacuar a sala se não houvesse imediatamente silêncio.

 

Pouco mais faltava. Os peritos calígrafos foram convidados a dar a sua opinião acerca da assinatura de Alfred Inglethorp no registo de venenos da farmácia. Foram unânimes em, afirmar que não se tratava da letra dele e disseram parecer-lhes que poderia ser a letra disfarçada do acusado. Contra-interrogados, admitiram que poderia tratar-se da letra do acusado habilmente forjada.

 

O discurso de Sir Ernest Heavywether, ao iniciar as alegações da defesa, não foi longo, mas teve a apoiá-lo toda a força da sua altitude enfática. Nunca, em toda a sua longa experiência, se lhe deparara, afirmou, uma acusação de assassínio baseada em tão fracas provas. Provas que, além de inteiramente circunstanciais tinham na sua maioria sido refutadas. Que pegassem nos testemunhos ouvidos e os joeirassem imparcialmente. O frasco da estricnina fora encontrado numa gaveta do quarto do acusado. Essa gaveta -não estava fechada, como salientara, e portanto afirmava não haver nada que provasse ter sido o acusado quem lá escondera o veneno. Tratava-se, na verdade, de uma perversa e criminosa tentativa da parte de qualquer terceira pessoa para atribuir o assassínio ao seu constituinte. A acusação fora incapaz de apresentar uma sombra de prova que confirmasse a sua alegação de que fora o acusado quem encomendara a barba preta ao Tarksorís. A discussão travada entre Cavendish e a madrasta era francamente admitida pela defesa, mas tanto essa discussão como as dificuldades financeiras do acusado tinham sido grosseiramente exageradas.

 

O seu ilustre amigo Sir Ernest inclinou descuidadamente a cabeça na direcção de Mr. Philips declarara que se o acusado estivesse inocente, teria explicado no inquérito que tinha sido ele, e não Mr. Inglethorp, o participante da referida discussão. Sir Ernest achava que os factos não tinham sido correctamente apresentados. O que acontecera, na realidade, fora o seguinte ao regressar a casa na terça-feira à tarde, o acusado fora informado de que houvera uma violenta discussão entre Mr. e Mrs. Inglethorp. Não lhe passara pela cabeça que alguém pudesse ter confundido a sua voz com a de Mr. Inglethorp e deduzira, naturalmente, que a madrasta travara duas discussões, nesse dia.

 

A acusação alegava que na segund’a-feira, 16 de Julho, o acusado entrara na farmácia da aldeia, disfarçado de Mr. Inglethorp. Em vez disso, a essa hora, Cavendish encontrava-se num local solitário chamado Mansion’s Spineey, aonde fora convocado por um bilhete anónimo, redigido em termos chantagísticos e ameaçando revelar certos assuntos à sua mulher se ele não satisfizesse as exigências que lhe eram feitas. O acusado dirigira-se para o local indicado e, depois de esperar em vão durante meia hora, regressara a casa Infelizmente, não encontrara ninguém nem à ida nem à volta e, assim, não havia nenhuma testemunha que pudesse confirmar a verdade das suas afirmações. Mas felizmente conservara o bilhete, que seria apresentado como prova.

 

Quanto às afirmações relacionadas com a destruição do testamento, o acusado praticara advocacia, em tempos, e estava perfeitamente ao corrente de que o testamento feito em seu favor um ano atrás fora automaticamente revogado pelo novo casamento da sua madrasta. Apresentaria provas demonstrativas de quem destruíra, de facto, o testamento, e era possível que isso abrisse uma perspectiva inteiramente nova.

 

Finalmente, chamava a atenção do júri para o facto de existirem indícios contra outras pessoas além de John Cavendish; chamava a sua atenção para o facto de os indícios contra Mr. Lawrence Cavendish serem tão fortes, se não mais fortes, do que os existentes contra o irmão.

 

Agora chamava o acusado.

 

John desembaraçou-se bem no lugar das testemunhas. Sob a direcção hábil de Sir Ernest, contou a sua história com credibilidade. O bilhete anónimo que recebera foi apresentado e entregue ao júri, para exame. A prontidão com que admitiu as suas dificuldades financeiras e a discussão com a madrasta, reforçaram a credibilidade das suas negações. Ao terminar o inteirogatório, disse:

 

Gostaria de esclarecer uma coisa. Repudio e desaprovo absolutamente as insinuações de Sir Ernest Heavywether contra o meu irmão. Fstou convencido de que ele não teve mais a ver com o crime do que eu.

 

Sir Ernest limitou-se a sorrir e notou, com um olhar penetrante, que o protesto de John produzira’ uma impressão muito favorável no júri.

 

Seguiu-se o interrogatório da acusação:

 

Disse que nunca lhe passou pela cabeça que as testemunhas ouvidas no inquérito tivessem confundido a sua voz com a de Mr. Inglethorp. Não acha isso muito surpreendente?

 

Não, não acho. Disseram-me que houvera uma discussão entre a minha mãe e Mr. Inglethorp, e não me oconreu que não se tratasse disso.

 

Nem quando a criada, Dorcas, repetiu certos fragmentos da conversa, fragmentos que deve ter identificado?

 

Não os identifiquei.

 

Deve ter uma memória muito má!

 

Não, mas estávamos ambos irritados e creio termos dito mais do que tencionávamos. Prestei muito pouca atenção às palavras que a minhha mãe disse.

 

O grunhido incrédulo de Mr. Philips foi um triunfo de perícia forense. Passou ao assunto do bilhete:

 

Apresentou este bilhete muito oportunamente. Não acha nada de familiar na< caligrafia?

 

Que eu saiba, não.

 

Não lhe parece que tem uma acentuada (Semelhança com a sua própria letra... descuidadamente disfarçada?

 

Não, não me parece.

 

Digo-lhe que é a sua própria letra.

 

Não é?

 

Digo-lhe que, desejoso de arranjar um álibi, engendrou a ideia de um encontro fictício e assaz incrível e escreveu este bilhete, a fim de confirmar as suas próprias declarações!

 

Não escrevi.

 

Não é um facto que, à hora em que alega ter estado à espera num sítio isolado e pouco frequentado, estava na realidade na farmácia de Styles St. Mary, onde comprou estricnina em nome de Alfred Inglethorp?

 

Não, isso é mentira.

 

Digo-lhe que, vestindo um fato de Mr.   Inglethorp e usando uma barba aparada para se assemelhar à dele, esteve na farmácia e assinou o registo em nome de Mr. Inglethorp!

 

Isso é absolutamente falso.

 

Nesse caso, deixo à consideração do júri a extraordinária similaridade da letra do bilhete e do registo com a sua declarou Mr. Philips e sentou-se com o ar de um homem que cumprira o seu dever, mas se sentia horrorizado com tão deliberado perjúrio.

 

Em seguida, como já era tarde, o julgamento foi adiado para segunda-feira.

 

Reparei que Poirot parecia profundamente desencorajado. Tinha entre os olhos uma rugazinha que eu conhecia muito bem.

 

Que se passa, Poirot?

 

Ah, mon ami, as coisas estão a correr mal, mal! Mal-grado meu, o coração deu-me um pulo de alívio. Era provável, evidentemente, que John Cavendish fosse absolvido. Quando chegámos a casa, o meu amigo recusou a oferta de chá feita por Mary.

 

Não, minha senihora, obrigado. vou para o meu quarto. Acompanhei-o. Sempre de testa franzida, foi à secretária e tirou um baralho de cartas de paciências. Depois puxou uma cadeira para a mesa e, com grande espanto meu, começou a construir casas de cartas!

 

O queixo pendeu-mi, involuntariamente, e ele declarou, logo:

 

Não, mon ami, não estou na segunda infância! Tento apenas acalmar os nervos. Este passatempo exige firmeza de dedos, e a firmeza de dedos exige firmeza cerebral... coisa de que nunca precisei mais do que neste momento-

 

Mas qual é, afinal, o problema?

 

Poirot demoliu o edifício cuidadosamente construído com um grande murro na mesa.

 

O problema, mon ami, é que sou capaz de construir casas de cartas com sete andares, mas não sou capaz - murro - de encontrar - murro - aquele último elo de que lhe falei!

 

Como não soube bem que responder, fiquei calado e ele recomeçou a construir nova casa, enquanto ia falando aos arrancos.

 

Faz-se... assim! Colocando... uma carta... em cima da outra... com precisão matemática!

 

Vi a casa subir sob as suas mãos, andar por andar. Poirot nunca hesitava. Parecia, na realidade, um truque de prestidigitação.

 

Tem a mão muito firme observei. Creio que só lha vi tremer uma vez.

 

Numa ocasião em que estava furioso, sem dúvida declarou, placidamente.

 

Foi mesmo, estava furiosíssimo. Lembra-se? Foi quando descobriu que a fechadura da caixa da correspondência de Mrs. Inglethorp tinha sido forçada. Parou junto da chaminé, a endireitar, como é seu costume, as coisas que estavam em cima da prateleira, e a sua mão tremia como varas verdes) Devo dizer...

 

Calei-me, de súbito, pois Poirot soltara um grito rouco e inarticulado e arrasara mais uma vez a casa de cartas. Depois, cobrindo os olhos com as mãos, balançou-se para a frente e para trás, aparentemente tomado da mais viva amgústia.

 

Céus, Poirot, que aconteceu? perguntei, preocupado. Está doente?

 

Não, não! respondeu, ofegante. Mas... mas... tive uma ideia!

 

Ah! exclamei, aliviadíssimo. Uma das suas «ideiazinhas»?

 

Ah, ma foi, não! Desta vez é uma ideia gigantesca Estupenda! E foi você, você, meu amigo, que ma deu!

 

De repente, abraçou-me, beijou-me ruidosamente em ambas as faces e, sem me dar tempo a refazernme da surpresa, saiu desarvorado do quarto.

 

Mary Cavendish entrou nesse momento.

 

Que aconteceu a Monsieur Poirot? Passou por mim como um furacão, a gritar: Uma garagem! Pelo amor de Deus mdique-mne uma garagem, madame! E, sem esperar que eu respondesse, saíu para a rua.

 

Corri para a janela- Era verdade, lá ia ele a correr pela rua abaixo, sem chapéu e a gesticular. Virei-me para Mary e disse-lhe, com um gesto de desespero:

 

Não tardará a ser detido por um polícia. Olhe, vai virar a esquina!

 

Os nossos olhos encontraram-se e fitámo-nos, impotentes.

 

Mas que lhe terá acontecido?

 

Não sei respondi, a abanar a cabeça. Estava a construir casas de cartas e, de repente, disse que tinha uma ideia e abalou como a senhora viu.

 

Bem, espero que volte antes do jantar.

 

Mas a noite caiu sem que Poirot tivesse regressado.

 

O   ULTIMO  ELO

A brusca partida de Poirot intrigara-nos muito, a todos, A manhã de domingo passou, e ele sem voltar. Cerca das três da Tarde, porém, um furioso e prolongado buzinar atraiu-nos à janela. Poirot descia de um automóvel, na companhia de Japp e Sumimerhaye- O homenzinho parecia transfigurado, irradiava uma absurda complacência, Inclinou-se, com exagerado respeito, diante de Mary Cavendish.

 

Madame, autoriza-mne a efectuar uma pequena reunião no salon? É necessário que estejam todos presentes.

 

Mary sorriu tristemente e respondeu-lhe:

 

Sabe muito bem, Monsieur Poirot, que tem carte blanche em todos os sentidos.

 

É excessivamente amável, minha senhora.

 

Sempre a sorrir, Poirot conduziu-nos para a sala e foi puxando cadeiras para a frente, enquanto falava:

 

Miss Howard, aqui. Mademoiselle Cynthia. Monsieur Lawrence. A boa Dorcas. E a Annie- Bienl Temos de aguardar uns minutos, até Mr. Inglethorp chegar. Mandei-lhe um bilhete.

 

Miss Howard levamtou-se imediatamente do lugar que lhe fora destinado e exclamou:

 

Se esse homem entra nesta casa, eu saio!

 

Não, não! Poirot aproximou-se dela e falou-lhe em voz baixa

 

Por fim, Miss Howard voltou a sentar-se, resignada. Poucos minutos depois, chegou Alfred Inglethorp.

 

Quando todos ficaram reunidos e sentados, Poirot levantou-se, com o ar de um conferencista popular, e inclinou-se delicadamente diante da assistência.

 

Messieurs, mesdames, como sabem fui encarregado de investigar este caso por Monsieur John Cavendish. Examinei imediatamente o quarto da falecida, o qual, por conselho dos médicos, tinha sido fechado à chave e estava, consequentemente, tal qual como estivera aquando da tragédia. Encontrei: primeiro, um fragmento de tecido verde; segundo, uma nódoa ainda húmida na carpete, junto da janela; terceiro, uma caixa vazia de papelinhos de brometo.

 

«Começando pelo fragmento de tecido verde, encontrei-o preso no ferrolho da porta de comunicação entre o quarto de Mrs. Imglethorp e o contíguo, ocupado por Mademoiselle Cynthia. Entreguei o fragmento à Polícia, que não lhe atribuiu muita importância nem o reconheceu pelo que era: um fio de uma braçadeira verde dos serviços de terra.»

 

Houve uma ligeira agitação entre os presentes.

 

Em «Styles» só havia uma pessoa que trabalhava nos serviços de terra: Mrs. Cavendish. Portanto, deve ter sido ela que entrou no quarto da falecida pela porta de comunicação com o de Mademoiselle Cynthia.

 

Mas essa porta tinha o ferrolho corrido do lado de dentro! exclamei.

 

Quando eu examinei o quarto, tinha, de facto. Mas quanto ao primeiro momento só temos a palavra de Mrs. Cavendish a esse respeito, visto que foi ela que a experimentou e declarou que estava fechada. Na confusão que se seguiu não lhe deve ter faltado oportunidade para correr o ferrolho. Além disso, eu já tive ensejo de confirmar as minhas conjecturas. Para começar, o fragmento de tecido corresponde exactamente a um rasgãozinho na braçadeira de Mrs. Cavendish. Além disso, no inquérito, Mrs. Cavendish declarou ter ouvido, no seu quarto, a queda da mesa-de-cabeceira. Para verificar a veracidade dessa afirmação, coloquei o meu amigo, Monsieur Hastings, na ala esquerda do edifício, do lado de fora da porta do quarto de Mrs, Cavendish. Eu próprio, na companhia da Polícia, fui ao quarto da vítima e, enquanto lá, derrubei a mesa em questão, aparentemente por acaso, e verifiquei que, como aliás esperara, Monsieur Hastings não ouviu barulho nenhum. Isso confirmou a minha convicção de que Mrs. Cavendish não falara verdade quando declarara que estava a vestir-se no seu quarto, aquando da tragédia. Na realidade, eu estava convencido de que, longe de estar no seu quarto, Mrs. Cavendish estava no da falecida, quando foi dado o alarme.

 

Lancei um olhar rápido a Mary, que estava muito pálida, embora sorrisse.

 

Prosseguirei o meu raciocínio baseado nessa presunção: Mrs. Cavendish estava no quarto da sogra. Digamos que procurava qualquer coisa e ainda não a encontrara. De súbito, Mrs. Inglethorp acorda, presa de violento ataque. Estende o braço, derruba a mesa-de-cabeceira e depois puxa desesperadamente o cordão da campainha. Assustada, Mrs. Cavendish deixa cair a vela, cuja estearina se espalha na carpete. Apanha a vela e retira-se rapidamente para o quarto de Mademoiselle Cynthia, sem se esquecer de fechar a porta. Corre para o corredor, pois as criadas não a devem encontrar onde está. Mas é demasiado tarde! Já soam passos na galeria que liga as duas alas. Que fazer? Rápida, volta para o quarto da jovem e começa a sacudi-la, para a acordar. Acordadas em sobressalto, as restantes pessoas da casa metem pelo corredor e começam todas a bater à porta de Mrs. Inglethorp. Não ocorre a ninguém que Mrs. Cavendish não chegou com os outros, mas e isto é importante não encontrei ninguém que a tivesse visto vir da outra ala. Olhou para Mrs. Cavendish e perguntou-lhe: Estou certo, Madame?

 

Inteiramente certo, monsieur. Espero que creia que, se eu pensasse que beneficiaria o meu marido revelando esses factos, os teria revelado. Mas não me pareceu que pudessem ter qualquer influência na questão da sua culpa ou inocência.

 

Correcto, em certo sentido. Mas esse conhecimento libertou o meu espírito de muitas concepções erradas e permitiu-me ver outros factos no seu verdadeiro significado.

 

O testamento! exclamou Lawrence. Foi então você, Mary, que destruiu o testamento?

 

Ela abanou a cabeça. e Poirot imitou-a.

 

Não declarou   o   detective,   serenamente. Só   uma pessoa podia ter destruído esse testamento: a própria Mrs. Inglethorp!

 

Impossível! exclamei. Fizera-o nessa mesma tarde!

 

Apesar disso, mon ami, foi Mrs. Inglethorp que o destruiu. De nenhum outro modo se poderá explicar que, num dos dias mais quentes do ano, Mrs. Inglethorp ordenasse que lhe acendessem a lareira do quarto.

 

Abri a boca, pasmado. Que idiotas fôramos em não termos compreendido a incongruência daquela lareira acesa! Poirot continuou:

 

A temperatura desse dia, meus senhores, foi de 27 graus à sombra. Mas apesar disso Mrs. Inglethorp mandou acender a lareira. Porquê? Porque desejava destruir qualquer coisa e não sabia como consegui-lo de outra maneira. Como se devem lembrar, em consequência da economia de guerra adoptada em «Styles», não se deitava fora nenhum papel. Por isso, não havia maneira de destruir um documento grosso como um testamento. Assim que ouvi dizer que a lareira do quarto de Mrs. Inglethorp tinha sido acesa, concluí logo que deveria ter sido para destruir qualquer documento importante possivelmente um testamento. Por isso não me surpreendeu a descoberta, nas cinzas, do fragmento de papel chamuscado. Claro que, na altura, não sabia que o testamento em questão tinha sido feito nessa mesma tarde, e admito que, quando tomei conhecimento desse facto, laborei num grave erro. Deduzi que a decisão de Mrs. Inglethorp de destruir o testamento forai consequência directa da discussão que tivera nessa tarde e que, portanto, a discussão fora depois, e não antes, de ela fazer o testamento.

 

Estava enganado, como sabem, e fui obrigado a abandonar essa ideia. Encarei o problema de um novo ponto de vista. As quatro horas, Dorcas ouviu a sua patroa dizer, colérica: ”Escusas de pensar que me deterá qualquer receio de publicidade, ou escândalo entre marido e mulher” Conjecturei, e conjecturei bem, que essas palavras não tinham sido dirigidas ao seu marido e, sim, a Mr. John Cavendish. Às cinco horas uma hora depois ela empregou quase as mesmas palavras, mas numa perspectiva diferente, quando confessou a Dorcas: ”Não sei que fazer; o escândalo entre marido e mulher é uma coisa terrível.” Às quatro horas, estava colérica, mas completamente senhora de si. Às cinco, estava profundamente deprimida e aludiu a ter sofrido um grande abalo.

 

Vendo o assunto psicologicamente, tirei uma dedução que me pareceu correcta. O segundo ”escândalo” que ela mencionou não era o primeiro: respeitava a ela própria!

 

Reconstituamos. Às quatro horas, Mrs. Inglethorp discute com o filho e ameaça denunciá-lo à mulher que, diga-se de passagem, ouviu a maior parte da discussão. Às quatro e meia, em consequência de uma conversa acerca da validade dos testamentos, redige um testamento a favor do marido, que os dois jardineiros assinam como testemunhas. Às cinco horas, Dorcas encontra a sua senhora num estado de grande agitação, com um papel - ”uma carta”, pensa Dorcas na mão, e é nessa altura que ela lhe manda acender a lareira do seu quarto. Presumivelmente, portanto, entre as quatro e meia e as cinco horas aconteceu qualquer coisa que originou uma mudança completa dos seus sentimentos, pois ela mostra-se tão ansiosa por destruir o testamento como antes se mostrara por fazê-lo. Que foi esse qualquer coisa?

 

Tanto quanto sabemos, esteve completamente só durante essa meia hora. Ninguém entrou na saleta nem de lá saiu. Que terá então modificado a sua súbita mudança de sentimentos?

 

Claro que só é possível conjecturar, mas eu creio que a minha conjectura está certa. Mrs. Inglethorp não tinha selos na secretária sabemo-lo porque, mais tarde, ela pediu à Dorcas que lhe levasse alguns. No canto oposto da sala encontrava-se a escrivaninha do marido fechada à chave. Ela precisava de arranjar selos e, segundo a minha teoria, experimentou as suas chaves na escrivaninha do marido. Sei que uma delas servia, porque experimentei. Mrs. Inglethorp abriu, pois, a escrivaninha e, ao procurar os selos, encontrou outra coisa: o bocado de papel que Dorcas lhe viu na mão e que certamente nunca fora destinado aos olhos de Mrs. Inglethorp. Por outro lado, Mrs. Cavendish convenceu-se de que o bocado de papel a que a sogra se agarrava tão tenazmente era uma prova escrita da infidelidade do seu marido, John Cavendish. Pediu-o a Mrs, Inglethorp, a qual lhe afirmou, com toda a verdade, não ter nada a ver com semelhante assunto. Mrs. Cavendish não a acreditou. Pensou que Mrs. Inglethorp estava a proteger o enteado. Ora, Mrs. Cavendish é uma mulher muito resoluta e, atrás da sua máscara de reserva, tinha furiosos ciúmes do marido. Decidiu que deitaria a mão ao referido papel custasse o que custasse e o acaso ajudou-a nessa resolução: achou a chave da caixa da correspondência, de Mrs. Inglethorp, que se perdera nessa manhã. Sabia que a sogra costumava” guardar todos os papéis importantes nessa caixa.

 

Portanto, Mrs. Cavendish elaborou os seus planos, como só uma mulher levada ao desespero pelo ciúme elaboraria. Em dado momento dessa noite, abriu o ferrolho da porta de comunicação com o quarto de Mademoiselle Cynthia. É possível que lhe tenha aplicado óleo, pois eu experimentei-o e verifiquei que deslizava sem o mínimo ruído. Adiou a realização do seu projecto até às primeiras horas da manhã: assim seria mais seguro, visto as criadas estarem acostumadas a ouvi-La a pé a essa hora. Vestiu-se, com o uniforme do seu serviço, e passou silenciosamente pelo quarto de Mademoiselle Cynthia para o de Mrs. Inglethorp.

 

Fez uma pausa, que Cynthia aproveitou para dizer: Mas eu teria acordado se alguém passasse pelo meu quarto!

 

Se estivesse drogada, não. mademoiselle.

 

Drogada?

 

Mais, oui!

 

Dirigiu-se de novo a todos, colectivamente:

 

Como se devem lembrar, Mademoiselle Cynthia continuou a dormir, apesar de todo o tumulto e barulho do quarto ao lado. Isso sugeria duas possibilidades: ou o seu sono era fingido no que não acreditei ou tinha sido induzido por meios artificiais com a segunda ideia no espírito, exaiminei todas as chávenas de café cuidadosamente, não esquecendo que fora Mrs. Cavendish quem levara o café a Mademoiselle Cynthia,, na noite anterior. Colhi uma amostra de cada chávena e mandei-as analisar... sem qualquer resultado. Contara muito bem as chávenas, não fosse terem levado alguma. Mas não: tinham bebido café seis pessoas e estavam ali seis chávenas. Tive de admitir que me enganara.

 

Depois descobri-me culpado de um descuido muito grave: fora servido café a sete pessoas e não a seis. pois o Dr. Bauerstein passara por lá nessa noite. Isso modificou tudo, uma vez que passou a faltar uma chávena. As criadas não repararam em nada: Annie, que nessa noite levou o café para a sala, levou também sete chávenas, em virtude de ignorar que Mr. Inglethorp não bebia, ao passo que Dorcas, que as recolheu na manhã seguinte, encontrou seis, como de costume ou, rigorosamente falando, encontrou cinco, visto a sexta ter sido encontrada partida, no quarto de Mrs. Inglethorp.

 

Convenci-me de que a chávena em falta era a de Mademoiselle Cynthia, convicção que foi confirmada pelo facto de todas as chávenas encontradas conterem açúcar e Mademoiselle Cynthia nunca adoçar o café. A minha atenção foi atraída pela história de Annie acerca de ”sal” espalhado no tabuleiro do cacau que ela levava todas as noites para o quarto de Mrs. Inglethorp. Por isso recolhi uma amostra do cacau e mandei-o analisar.

 

Mas o Dr. Bauerstein já tinha feito isso! lembrou Lawrence.

 

Não tinha feito exactamente isso. O doutor pediu ao analista que verificasse se havia ou não estricnina no cacau. Não pediu que se determinasse, como eu pedi, a presença de um narcótico.

 

Um narcótico?

 

Sim. Está aqui o relatório da análise. Mrs. Cavendish administrou um narcótico sem perigo, mas eficaz, tanto a Mrs. Inglethorp como a Mademoiselle Cynthia. E é possível que, por causa disso, tenha passado um mauvais quart d’heure! Imaginem os seus sentimentos quando a sogra adoeceu, subitamente, e morreu, e logo a seguir se falou em veneno»! Julgara que a droga para dormir que administrara era absolutamente inofensiva, mas durante um terrível momento deve ter receado ser a culpada da morte da sogra. Tomada de pânico, desceu a escada a correr e apressou-se a esconder a chávena e o pires utilizados por Mademoiselle Cynthia numa grande jarra de latão, onde mais tarde Monsieur Lawrence a descobriu. Nos restos do cacau não se atreveu a tocar, pois eram muitos os olhos que a rodeavam. Façam ideia do seu alívio quando se mencionou a palavra «estricnina» e ela verificou que, no fim de contas, não era a autora da tragédia!

 

«Temos agora a explicação do facto de os sintomas de envenenamento por estricnina terem levado tanto tempo a manifestar-se: um narcótico tomado com estricnina retarda a acção do veneno durante algumas horas.»

 

Poirot calou-se e Mary olhou-o, enquanto a cor lhe subia lentamente ao rosto.

 

Tudo quanto disse é absolutamente verdade. Monsieur Poirot. Foi a hora mais horrível da minha vida, nunca a esquecerei. Mas o senhor é maravilhoso! Compreendo agora...

 

O que eu quis dizer quando lhe afirmei que se podia confessar ao tio Poirot, hem? Mas não confiou em mim....

 

Agora   compreendo   tudo murmurou   Lawrence.

 

O cacau com o narcótico, tomado por cima do café envenenado, justifica plenamente o atraso...

 

Exactamente. Mas estaria o café realmente envenenado? Aqui surge-nos uma pequena dificuldade, pois Mrs. Inglethorp não o chegou a beber.

 

O quê?! o grito de surpresa foi geral.

 

Pois não. Lembram-se de eu falar de uma nódoa na> carpete do quarto de Mrs. Inglethorp? Essa nódoa tinha algumas características peculiares. Ainda estava húmida e cheirava fortemente a café. Além disso, encontrei no meio do pêlo da carpete alguns estilhaçozinhos minúsculos de porcelana. compreendi sem dificuldade o que acontecera, pois menos de dois minutos antes colocara a minha pasta em cima da mesa, junto da janela, e a mesa inclinara-se e a pasta fora parar ao chão, precisamente ao mesmo sítio da> nódoa. Como eu, Mrs. Inglethorp pusera) lá a chávena do café, ao entrar no quarto, na véspera à noite, e a traidora da mesa pregara-lhe a mesma partida.

 

«O que aconteceu a seguir é mera conjectura da minha parte, mas creio que Mrs. Inglethorp apanhou a chávena partida e a colocou em cima da mesa-de-cabeceira. Necessitada de um estimulante qualquer, aqueceu o cacau e bebeuo logo. Agora surge-nos um novo problema. Sabemos que o cacau não continha estricnina e que o café não foi bebido. No entanto, a estricnina deve ter sido administrada entre as sete e as nove horas dessa noite. Que outro meio poderá ter sido utilizado, um meio tão adequado para disfarçar o gosto da estricnina que parece mentira ninguém tenha pensado nele? Poirot olhou em redor e depois respondeu, todo empertigado, à própria pergunta: O remédio!»

 

Quer dizer que o assassino introduziu a estricnina no tónico? perguntei.

 

Não havia necessidade de a introduzir, pois já lá estava, na composição! A estricnina que matou Mrs. Inglethorp era idêntica à receitada pelo Dr. Wilkins. Para que o compreendam, vou ler um extracto de um simposium que encontrei na farmácia do Hospital da Cruz Vermelha de Tadminster: «”A seguinte receita tornou-se famosa em livros de estudo:

 

Sulf.   Estricnina   ... Brometo de potássio

 

Aqua   ad

 

Fiat Mistura

 

  1. i

 

3VÍ

 

”Esta solução deposita em poucas horas a maior parte do sal de estricnina transformado num brometo insolúvel em cristais transparentes. Em Inglaterra, uma senhora perdeu a vida por tomar uma mistura semelhante: a estricnina precipitada acumulou-se no fundo do frasco e, ao tomar a última dose, ela ingeriu-a quase toda!”

 

Claro que não havia nenhum brometo na receita do Dr. Wilkins, mas devem lembrar-se de que mencionei uma caixa vazia, que contivera papelinhos de brometo. Um ou dois desses papelinhos despejados num frasco cheio de remédio precipitariam a estricnina, como o livro descreve, e fariam com que fosse toda tomada na última dose. Virão a saber, mais tarde, que a pessoa que geralmente deitava o remédio de Mrs. Inglethorp tinha sempre o cuidado de não agitar o frasco, para deixar o sedimento acumulado no fundo.

 

Desde o princípio que surgiram indícios de que a tragédia estava planeada para segunda-feira à noite. Nesse dia, o fio da campainha de Mrs. Inglethorp foi cortado e sabia-se que Mademoiselle Cynthia passaria a noite com pessoas amigas: desse modo, Mrs. Inglethorp estaria completamente só na ala direita, fora do alcance de qualquer socorro, e morreria, segundo todas as probabilidades, antes que se pudesse chamar o médico. Mas, na sua pressa de chegar a tempo à festa na aldeia, Mrs. Inglethorp esqueceu-se de tomar o remédio, e como no dia seguinte a-lmoçou fora de casa, a última e fatal dose foi tomada vinte e quatro horas mais tarde do que o assassino planeara.

 

E foi devido a esse atraso que a derradeira prova o último elo da cadeia se encontra agora, nas minhas mãos.

 

No meio da curiosidade e da agitação gerais, mostrou três tirinhas de papel.

 

Uma carta escrita pelo próprio punho do assassino, mes amis. Se fosse um bocadinho mais clara nos seus termos talvez Mrs. Inglethorp, advertida a tempo, tivesse escapado. Assim, ela compreendeu que estava em perigo, mas ficou sem saber a forma de que esse perigo se revestia.

 

Na sala reinava absoluto silêncio. Poirot reuniu as três tírinhas de papel e, pigarreando, leu:

 

Queridíssima Evelyn: Deves estar ansiosa por não teres recebido notícias. Não há novidade. Simplesmente, em vez de ter sido a noite passada será esta noite. Compreendes. Espera-nos uma boa vida uma vez a velha morta e afastada do caminho. Ninguém me poderá atribuir o crime. A tua ideia dos brometos foi um rasgo de génio! Mas temos de ser muito circunspectos. Um passo em falso...»

 

Poirot fez uma pausa e explicou:

 

A carta termina aqui, meus amigos. Não há dúvida de que o seu autor foi interrompido, assim como não podem haver dúvidas quanto à sua identidade. Todos nós conhecemos a sua caligrafia e...

 

Um rugido, quase un berro, quebrou o silêncio.

 

Seu demónio! Como a encontrou?

 

Caiu uma cadeira e Poirot desviou-se, agilmente. Um movimento rápido, da sua parte, e o seu atacante estatelou-se ao comprido.

 

Messieurs, mesdames disse Poirot, com um floreado, permitam que lhes apresente o assassino, Mr. Alfred Inglethorp!

 

POIROT   EXPLICA

Poirot, velho tratante, apetecia-me esganá-lo! afirmei. Que ideia foi essa de me enganar como me enganou?

 

Estávamos sentados na biblioteca, após diversos dias de grande agitação e azáfama. No quarto de baixo, John e Mary estavam de novo juntos, enquanto Alfred Inglethorp e Miss Howard se encontravam presos. Tinha, finalmente, Poirot só para mim e estava ansioso por satisfazer a minha curiosidade ainda ardente.

 

O detective deixou passar alguns momentos, antes de responder:

 

Eu não o enganei, mon ami. Quando muito, permiti que se enganasse.

 

Mas porquê?

 

Bem, é difícil de explicar. Compreende, meu amigo, tem uma natureza tão franca e um ar tão transparente que   enfim, é-lhe impossível ocultar os sentimentos! Se lhe tivesse dado a conhecer as minhas ideias, a primeira vez que você encontrasse Mr. Alfred Inglethorp o astuto cavalheiro teria, como se diz no seu expressivo idioma, «farejado um rato»! E então, bon jour, lá se iam as nossas esperanças de o apanhar!

 

Creio que possuo mais diplomacia do que me atribui.

 

Meu amigo, imploro-lhe que não se encolerize! O seu auxílio foi inestimável. A sua natureza extremamente bela é que me conteve.

 

Bem resmunguei, mas já um pouco apaziguado , continuo a achar que me podia ter dado um palpite, ao menos.

 

Mas eu dei, meu amigo, dei-lhe até vários! Não tenho culpa de que não os aceitasse. Alguma vez lhe disse que acreditava na culpabilidade de John Cavendish? Não lhe disse, pelo contrário, que ele seria quase com certeza absolvido?

 

Sim, mas...

 

E logo a seguir não falei da dificuldade de levar o assassino à justiça? Não compreendeu perfeitamente que estava a referir-me a duas pessoas inteiramente diferentes?

 

Não, não compreendi perfeitamente!

 

E ao princípio não lhe repeti várias vezes que não queria Mr. Inglethorp preso «agora»? Isso devia-lhe ter dado a entender qualquer coisa,

 

Quer dizer que suspeitou dele desde o princípio?

 

Sim. Para começar, fosse quem fosse que beneficiasse com a morte de Mrs. Inglethorp, quem beneficiaria mais seria o marido. Isso era evidente e inequívoco. Quando me ’levou a «Styles», no primeiro dia, eu não fazia a mínima ideia’ de como o crime fora cometido, mas pelo que sabia de Mr. Inglethorp calculava que seria muito difícil descobrir alguma coisa que o relacionasse com o assassínio. Quando cheguei, compreendi logo que fora Mrs. Inglethorp quem queimara o testamento e, a propósito, a esse respeito não se pode queixar, meu amigo, pois eu fiz os possíveis para que compreendesse o significado da lareira acesa no quarto em pleno Verão.

 

Sim, sim concordei, impaciente. Continue.

 

Como ia a dizer, meu amigo, a minha opinião quanto à culpabilidade de Mr. Inglethorp ficou muito abalada. Na realidade, eram tantos os indícios contra ele que me senti inclinado a pensar que não era o culpado.

 

Quando mudou de opinião?

 

Quando descobri que quantos mais esforços eu fazia para o ilibar, tantos mais ele fazia para ser preso. Depois, quando soube que Inglethorp não tinha nada a ver com Mrs. Raikes e que, na realidade, quem estava interessado por ela era John Cavendish, não me restaram dúvidas.

 

Mas porquê?

 

Simplesmente por isto: se fosse o Inglethorp que tivesse um romance com Mrs. Raikes, o seu silêncio seria perfeitamente compreensível. Mas quando descobri que toda a aldeia sabia que era o John quem se sentia atraído pela bonita mulher do lavrador, o silêncio de Inglethorp apresentou-se-me com um sentido completamente diferente. Era estupidez fingir que receava o escândalo, pois nenhum escândalo poderia ameaçá-lo. A sua atitude deu-me muitíssimo que pensar e acabei por ser forçado a chegar à conclusão de que Alfred Inglethorp queria ser preso. Eh bien, a partir desse momento decidi que não seria preso!

 

Espere um momento. Mas porque desejava ele ser preso?

 

Porque, mon ami, segundo a lei do seu país, um homem absolvido de um crime nunca mais poderá voltar a ser julgado por esse mesmo crime. Ah, a sua ideia era inteligente! Não há duvida de que é um homem de método. Sabia que, dada a sua situação, seria infalivelmente suspeito e, por isso, teve a inteligentíssima ideia de forjar uma série de indícios contra ele. Queria ser preso. Depois apresentaria o seu irrebatível álibi e, pronto, estava safo para o resto da vida!

 

Mas continuo a não compreender como poderia comprovar o seu álibi tendo ido, ao mesmo tempo, à farmácia...

 

Poirot fitou-me, surpreendido.

 

Será possível? Meu pobre amigo! Ainda não compreendeu que quem foi à farmácia foi Miss Howard?

 

Miss Howard?

 

com certeza, quem havia de ser? Foi-lhe muito fácil, de resto. Tem boa altura, voz profunda e máscula... e, além disso, lembre-se de que ela e o Inglethorp são primos e há uma semelhança distinta entre eles, principalmente no andar e no porte. Foi a coisa mais simples deste mundo- São uma parelha muito inteligente!

 

Ainda estou um pouco confuso quanto à ’história dos brometos.

 

Vou tentar reconstituir isso o melhor possível. Tenho a impressão de que Mrs Howard foi o cérebro da aventura. Lembra-se de ela ter dito, uma vez, que o pai era médico? É provável que ela lhe tenha servido de farmacêutica ou então que tenha arranjado a ideia num dos muitos livros que devem ter andado lá por casa quando Mademoiselle Cynthia andou a estudar para o seu exame. Fosse como fosse, sabia que a adição de um brometo e uma mistura contendo estricnina causaria a precipitação desta. Talvez a ideia lhe tenha acudido de súbito. Mrs. Inglethorp tinha uma caixa de papelinhos de brometo, que tomava ocasionalmente, à noite. Que poderia haver de mais fácil do que dissolver, à socapa, o conteúdo de um ou dois desses papelinhos no grande frasco de remédio de Mrs. Inglethorp, quando este chegou do Coot’s? O risco não era praticamente nenhum. A tragédia só se consumaria passados quinze dias. Se alguém visse qualquer deles a mexer no remédio, entretanto esquecer-se-ia. Miss Howard teria engendrado a discussão com Mrs. Inglethorp e partido. O lapso de tempo, e a sua ausência, afastariam qualquer suspeita. Sim, foi uma ideia inteligente! Se se tivessem contentado com isso, talvez o crime nunca Lhes pudesse ser atribuído. Mas ’não se sentiram satisfeitos, tentaram ser demasiado inteligentes... e isso perdeu-os.

 

Poirot aspirou o fumo do seu minúsculo cigarro, de ”olhos fixos no tecto.

 

Engendraram o plano de fazer incidir as suspeitas em John Cavendish, comprando estricnina >na farmácia da aldeia e assinando o registo com a letra dele.

 

Na segunda-feira, Mrs. Inglethorp tomaria a última dose do seu remédio. Portanto, na segunda-feira às seis horas, Alfred Inglethorp arranjou maneira de ser visto por diversas pessoas num ponto distante da aldeia. Previamente, Miss Howard inventara uma história a respeito dele e de Mrs. Raikes, para justificar o facto de ele se calar quanto ao seu paradeiro, depois. Às seis horas, disfarçada de Alfred Inglethorp, Miss Howard entrou na farmácia, e, com o pretexto do cão doente, conseguiu comprar a estricnina e assinou o nome de Alfred Inglethorp, com a letra de John Cavendish, que tivera o cuidado de estudar muito bem.

 

«Mas, como isso não serviria de nada se John (também apresentasse um álibi válido, escreveu-lhe um bilhete anónimo imitando mais uma vez. a sua letra que o levou a um lugar distante, onde seria muito pouco provável que alguém o visse.

 

«Até aqui, tudo corre bem. Miss Howard volta para Middlingham. Alfred Inglethorp regressa a ”Styles”. Nada o pode comprometer, em sentido nenhum, visto ser Miss Howard quem guarda a estricnina que aliás tem o único objectivo de lançar suspeitas sobre John Cavendish.

 

«Mas surge um contratempo: Mrs. Inglethorp não toma o remédio nessa noite. A campainha, avariada e a ausência de Cynthia arranjada por Inglethorp por intermédio da mulher são puro desperdício. E então... então ele comete o seu deslize.

 

Mrs. Inglethorp está ausente e ele senta-se a escrever à cúmplice, receoso de que ela tenha entrado em pânico, devido ao insucesso do seu plano. Talvez Mrs. Inglethorp tendo regressado mais cedo do que ele esperava. Surpreendido, e um pouco atrapalhado, apressa-se a fechar a escrivaninha à chave. Receia que, se ficar na sala, possa ter de a abrir outra vez e a mulher veja a carta, antes que possa escondê-la. Por isso sai e passeia pelos bosques, sem imaginar que Mrs. Inglethorp abrirá a escrivaninha e descobrirá o documento incriniinador.

 

«Mas foi isso que aconteceu, como sabemos. Mrs. Inglethorp lê a carta e toma conhecimento da perfídia do marido e de Evelyn Howard, embora, infelizmente, a frase acerca do brometo não aadvirta do que a espera. Sabe que corre perigo, mas ignora de onde virá esse perigo. Decide não dizer nada ao marido e escreve ao advogado, pedindo-lhe que a visite no dia seguinte. E decide também destruir imediatamente o testamento que acabara de fazer. Conserva a carta fatal.»

 

Foi, então, para recuperar essa carta que o marido forçou a fechadura da caixa da correspondência?

 

Foi, e pelo grande risco que correu podemos avaliar até que ponto tinha consciência da sua importância. Tirando essa carta, não havia absolutamente nada que o relacionasse com o crime.

 

Só há uma coisa que não compreendo: porque não a destruiu logo, assim que se apoderou dela?

 

Porque >não ousou correr o maior de todos os riscos: o de a conservar na sua pessoa.

 

Não percebo.

 

Veja as coisas do ponto de vista dele. Cheguei à conclusão de que ele só se pôde apoderar da carta em determinado período de cinco minutos: os cinco minutos imediatamente anteriores à nossa chegada à cena, pois antes disso a Aninie andou a limpar a escada e teria visto alguém que passasse, a caminho da ala direita. Imagine o que se passou! Ele entra no quarto, depois de abrir a porta com uma das outras chaves... são todas muito semelhantes. Corre para a caixa de correspondência. Está fechada e da chave nem sombras. É um golpe terrível para ele, pois significa que a sua presença no quarto não poderá ficar ignorada, como esperara. Mas compreende que tem de arriscar tudo para recuperar a maldita prova. Rápido, força a fechadura com um canivete e remexe os papéis até encontrar o que procura.

 

Mas vê-se perante um novo dilema: não ousa conservar o papel consigo. Podem vê-lo a sair do quarto, podem revistá-lo... Se o encontram com a carta, está perdido. Além disso, é provável que nesse instamte ouça também o ruído feito por Mr. Wells e por John a saírem da saleta. Tem de agir rapdamente. Onde poderá esconder o maldito papel? O conteúdo do cesto dos papéis não é deitado fora, além de que será com certeza revistado. Não pode destruir a carta e não ousa guardá-la. Olha em seu redor e vê... vê o quê, moa ami?

 

Abanei a cabeça.

 

Rasga a carta em tiras fininhas, num instante, torce-as e mete-as apressadamente entre as outras torcidas de papel que se encontram na jarra, em cima da prateleira da chaminé.

 

Não contive uma exclamação.

 

Ninguém se lembraria de procurar aí continuou Poirot. E ele poderá, com tempo e calma, voltar e destruir aquela única prova contra si.

 

Quer dizer que esteve sempre na jarra das torcidas do quarto de Mrs. Inglethorp, mesmo debaixo do nosso nariz?

 

Sim, meu amigo. Foi aí que descobri o meu «último elo», e a si devo a afortunada descoberta.

 

A mim?

 

Sim. Lembra-se de me dizer que a minha mão tremia, enquanto endireitava os ornamentos da prateleira?

 

Sim, mas não vejo...

 

Pois não, mas vi eu. Lembrei-me de que nessa mesma manhã, quando estivéramos juntos no quarto, eu endireitara todos os objectos da prateleira. Portanto, se já tinha endireitado não havia motivo ’nenhum para os endireitar de novo, a não ser que, entretanto, alguém lhes tivesse mexido.

 

Meu Deus, é essa então a explicação do seu extraordinário comportamento! Foi a correr a «Styles» e ainda lá a encontrou?

 

Exactamente. E foi uma corrida contra-relógio, creia.

 

Continuo a não compreender por que motivo o Inglethorp foi idiota ao ponto de a deixar estar onde estava, quando não lhe faltaram com certeza oportunidades para a destruir.

 

Ah, mas ele não teve oportunidades nenhumas! Eu encarreguei-me disso.

 

Você?

 

Sim. Lembra-se de me censurar por fazer confidências a toda’ a gente da casa, acerca do assunto?

 

Lembro.

 

Bem, meu amigo, eu tinha visto que só havia uma probabilidade. Ainda não estava certo se o Inglethorp era o criminoso ou não, mas deduzi que, se fosse, não teria o papel consigo e o deveria ter escondido em qualquer lado. Ao captar a compreensão e a simpatia de todos, pude evitar efectivamente que o destruísse. Já duvidava dele, e quando tornei o caso público consegui os serviços de uns dez detectives amadores, que não deixariam de o vigiar incessantemente. E ele, consciente dessa vigilância, não ousaria dar mais passo nenhum para destruir o documento. Foi, por isso, obrigado a abandonar a casa;, deixando-o na jarra das torcidas.

 

Mas Miss Howard teve, certamente, diversas oportunidades de o ajudar.

 

Pois teve, mas ela ignorava a existência do papel. De acordo com o que previamente tinham combinado, ela nunca falava a Alfred Inglethorp. Toda a gente devia julgar que eram inimigos mortais e enquanto John Cavendish não estivesse julgado e condenado nenhum deles se arriscaria a encontrar-se com o outro. Claro que ’mandei vigiar Mr. Inglethorp na esperança de que, mais cedo ou mais tarde, ele me conduziria ao esconderijo. Mas foi muito inteligente e não correu quaisquer riscos. O papel estava em segurança onde se encontrava; como ninguém se lembrara de lá procurar na primeira semana, não era provável que se lembrassem depois. E se não fosse a sua observação, talvez nunca tivéssemos conseguido levá-lo a julgamento.

 

Agora compreendo. Mas quando foi que começou! a suspeitar de Miss Howard?

 

Quando descobri que ela dissera uma mentira no inquérito acerca da carta que recebera de Mrs. Inglethorp. Mas como podia ter mentido? Viu a carta? Lembra-se do seu aspecto geral? Sim... mais ou menos.

 

Deve lembrar-se, portanto, de que Mrs. Inglethorp tinha uma caligrafia muito legível e deixava grandes espaços entre as palavras. Mas se reparar na data, ao alto da carta, verificará que a distância enttre «Styles Court» e «17» é muito diferente das outras. Está a perceber o que quero dizer?  

 

Não confessei, não estou.

Não vê que a carta não foi escrita em 17, mas sim em 7 de Julho, ou seja, no dia seguinte à partida de Miss Howard? O 1 foi posteriormente introduzido à frente do «7» para o transformar em «17».

 

Mas porquê?

 

Foi isso, exactamente o que perguntei a mim mesmo. Porque suprimiu Mrs. Howard a carta escrita em 17 e apresentou em seu lugar aquela que falsificou? Porque não queria mostrar a carta de 17, claro- Mas, mais uma vez, porquê? E surgiu imediatamente uma suspeita no meu espírito. Lembra-se de lhe ter dito que era sensato ter cautela com as pessoas que não diziam a verdade?

 

E, no entanto, depois disso, apresentou-me duas razões segundo as quais Miss Howard não podia ter cometido o crime! exclamei, indignado.

 

E eram muito boas razões! Durante muito tempo constituíram um obstáculo em que constantemente tropeçava, até que me lembrei de um facto muito importante: que ela e Alfred Inglethorp eram primos. Ela podia não ter cometido o crime sozinha, mas as razões que disso a impossibilitavam não a impediam de ser cúmplice. E depois havia o seu ódio excessivamente veemente! Ocultava uma emoção muito oposta. Existiai indubitavelmente um laço de paixão entre eles muito antes dele aparecer em «Styles». Já tinham engendrado o seu infame plano: ele casaria, com aquela velha rica mas muito pateta, induzi-la-ia a fazer testamento deixando-lhe o seu dinheiro e depois eles obteriam o que queriam mediante um crime inteligentemente concebido. Se tudo tivesse corrido conforme os seus planos, talvez partissem de Inglaterra e fossem viver juntos do dinheiro da sua pobre vítima. São uma parelha muito astuta e sem escrúpulos. Enquanto as suspeitas incidiam sobre ele, ela encarregava-se dos preparativos para um desenlace muito diferente. Chegou de Middlingham com todos os objectos comprometedores em seu poder e isenta de qualquer suspeita. Ninguém prestou atenção às suas idas e vindas, na casa. Escondeu o frasco da estricnina e os óculos na gaveta da cómoda do John. Pôs a barba na arca do sótão. E tratou de proceder de imodo que, mais cedo ou mais tarde, esses objectos incriminadores fossem encontrados.

 

Não compreendo porque tentaram deitar as culpas para cima do John. Ter-lhes-ia sido muito mais fácil fazer atribuir o crime ao Lawrence.

 

Sim, mas por mero acaso. Todas as provas contra ele surgiram por puro acaso, o que deve ter sido muito irritante para o par de conjurados.

 

A atitude dele foi muito infeliz observei, pensativo-

 

Pois foi. Claro que já compreendeu a que isso se deveu?

 

Não.

 

Então não percebeu que ele julgava que a culpada do crime era Mademoiselle Cynthia?

 

Não! exclamei, estupefacto. impossível!

 

De modo nenhum. Eu próprio estive quase a ter a mesma ideia. Era, aliás, o que tinha no espírito quando fiz aquela pergunta a Mr. Wells acerca do testamento. Havia os pós de brometo, que ela preparara!, e o facto de ela se mascarar de homem, como a Dorcas nos contou... Na realidade, existiam mais indícios contra ela do que contra qualquer outra pessoa.

 

Está a brincar, Poirot!

 

Não estou nada. Quer que lhe diga porque empalideceu Monsieur Lawrence tanto quando entrou no quarto da mãe, na noite fatal? Porque, enquanto a mãe jazia na cama, obviamente envenenada, ele viu, por cima do seu ombro, que o ferrolho da, porta de comunicação com o quarto de Mademoiselle Cynthia não estava corrido!

 

Mas ele declarou que o viu corrido!

 

Exacto confirmou o meu amigo, secamente. E foi precisamente isso que confirmou a minha suspeita de que não estava. Ele tentava proteger Mademoiselle Cynthia.

 

Mas porque havia de querer protegê-la?

 

Porque está apaixonado por ela. Ri-me.

 

A esse respeito, meu caro, está redondamente enganado! Sei que, ao contrário de a amar, antipatiza positivamente com ela.

 

Quem lhe disse isso, mon ami?

 

A própria Cynthia.

 

La pauvre petite! Ela estava preocupada com isso?

 

Disse que não lhe fazia diferença nenhuma.

 

Então fazia-lhe com certeza muita diferença. Elas são assim, lês femmes!

 

O que disse acerca do Lawrence constituiu uma grande surpresa para mim.

 

Mas porquê? Era evidentíssimo! Monsieur Lawrence não ficava com cara de mau todas as vezes que Mademoiselle Cynthia falava e ria com John? Metera-se-lhe naquela cabeça dura que a pequena estava apaixonada por Monsieur John Cavendish. Quando entrou no quarto da mãe e compreendeu que tinha sido envenenada, tirou a conclusão precipitada de que Mademoiselle Cynthia sabia o que se passava. Ficou desesperado. Primeiro esmagou a chávena do café debaixo dos pés, ao lembrar-se de que ela subira com a mãe na noite anterior. Assim, não haveria possibilidade nenhuma de analisar o que a chávena contivera. Daí em diante, defendeu obstinadamente, inutilmente, também, a teoria da «morte em consequência de causas naturais».

 

E a respeito da «outra chávena de café»?

 

Eu tinha quase a certeza de que fora Mis. Cavendish que a escondera, mas precisava de ter a certeza. Monsieur Lawrence não compreendeu o que eu queria dizer; mas, depois de pensar um bocado, chegou à conclusão de que, se conseguisse encontrar outra chávena de café em qualquer lado, o seu amor seria ilibado de suspeitas. E tinha toda a razão.

 

Mais uma coisa. Que significaram as últimas palavras de Mrs. Inglethorp?

 

Essas palavras eram, sem dúvida, uma acusação contra o marido.

 

Meu Deus, Poirot, creio que já explicámos tudo! exclamei, a suspirar. Alegra-me que tenha acabado tudo bem. Até o John e a mulher se reconciliaram.

 

Graças a mim. Que quer dizer?

 

Não compreende, meu caro amigo, que foi simples e unicamente o julgamento que os reuniu? Estava convencido de que John Cavendish ainda amava a mulher e que ela o amava, igualmente. Mas tinham-se afastado muito e tudo por causa de um mal-entendido. Ela casara com ele sem amor, e John sabia-o. É um ’homem sensitivo, à sua maneira, e não quis impor-se-lhe se ela não o queria!. Assim, à medida que ele se afastou-, o amor dela. foi despertando. Mas são ambos extraordinariamente orgulhosos e o orgulho separou-os inexoravelmente. Ele deixou-se arrastar para uma intriga com Mrs. Raikes e ela cultivou deliberadamente a amizade do Dr. Baoierstein. Lembra-se do dia da prisão de John Cavendish, em que me encontrou a tentar tomar uma importante decisão?

 

Lembro. Compreendi perfeitamente a sua angústia.

 

Perdoe, mon ami, mas não compreendeu! nada, O que tentava decidir era se devia ou não ilibar imediatamente John Cavendish. Podia tê-lo ilibado... embora isso pudesse vir a. significar a impossibilidade de castigar os verdadeiros criminosos. Estes estiveram absolutamente às escuras quanto à ’minha verdadeira atitude até ao último momento, o que em parte explica o meu êxito.

 

Quer dizer que podia ter evitado que o John Cavendis fosse levado a julgamento?

 

Sim, meu amigo. Mas decidi-me a favor da felicidade de uma mulher. Só o grande perigo por que passaram poderia ter voltado a unir aquelas duas almas orgulhosas.

 

Olhei-o, silencioso e cheio de espanto. O colossal desplante do homenzinho! Quem, a não ser Poirot seria capaz de pensar num julgamento por homicídio como o restaurador da felicidade conjugal?!

 

Adivinho os seus pensamentos, mon ami declarou, a sorrir. Ninguém, a não ser Hercule Poirot, teria tentado semelhante coisa! E faz mal em condenar tal procedimento, pois a felicidade de um homem e uma mulher é a coisa mais importante deste mundo!

 

As suas palavras recordaram-me acontecimentos anteriores. Lembrei-mi de Mary estendida no sofá, branca e exausta, a escutar, a escutar. A campainha tocara, em baixo, e ela estremecera e soerguera-se. Poirot abrira a porta e, ao ver os seus olhos angustiados, acenar brandamente com a cabeça «Sim, madame», dissera trouxe-lho de novo.» Desviara-se e eu saíra, e ao sair vira a expressão dos olhos de Mary, quando John Cavendish a apertara nos braços.

 

Talvez tenha razão, Poirot... Sim, é a coisa mais importante do mundo.

 

De súbito, bateram à porta e a cabeça de Cynthia espreitou pela abertura.

 

Eu... eu só...

 

Entre! convidei, levantando-me. Ela entrou, mas não se sentou.

 

Eu.... eu só queria dizer-lhes uma coisa...

 

Sim?

 

Cynthia mexeu nervosamente no cinto e, de súbito, exclamou:

 

São uns queridos!

 

Beijou-me primeiro a mim e depois a Poirot e saiu a correr da sala.

 

Que diabo significou isto? perguntei, surpreendido. Era muito agradável ser beijado por Cynthia, mas a publicidade do beijo estragava um pouco o prazer.

 

Significa que descobriu que Monsieur Lawrence não antipatiza tanto com ela como supunha respondeu o meu amigo, filosoficamente.

 

Mas...

 

Aí está ele.

 

Lawrence passou pela porta, nesse momento.

 

Monsieur Lawrence! chamou Poirot. Devemos felicitá-lo, não é verdade?

 

Lawrence corou e sorriu desajeitadamente. Um homem apaixonado oferece um triste espectáculo. Cynthia, porém, parecera encantadora.

 

Que se passa, mon ami?

 

Nada respondi tristemente. São duas mulheres deliciosas!

 

E nenhuma delas para si, hem? Não se importe. Console-se, meu amigo. Talvez voltemos a caçar juntos, quem sabe? E então...

 

                                                                                            Agatha Cristhie  

 

                      

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