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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A PROCURA / Lyn Stone
A PROCURA / Lyn Stone

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

         Costa ocidental da Escócia, 1340.

Ao desembarcar, Henri Gillet pensou que a sua chegada à beira-mar não apaziguava em nada a amargura da sua primeira derrota. Arrastou as suas longas pernas pela água, que lhe chegava até às coxas, e gritou por cima do ombro:

- Paga a esse homem, Ev.

O escudeiro atirou uma pequena bolsa de moedas ao pescador e avançou pela água gelada até onde o esperava Henri, na orla coberta de rochas.

- Onde estamos, senhor? - perguntou, a tremer de frio.

Embora se esforçasse para que a sua voz soasse tranquila, Henri sabia que certamente o rapaz temia o que os aguardava. E para dizer a verdade, a ele acontecia-lhe o mesmo, embora não pelas mesmas razões.

Necessitava de chegar a um lugar seguro para que o rapaz pudesse ter possibilidades de sobreviver. E no momento não estava certo de o conseguir. Colocava com tranquilidade um pé à frente do outro e procurava combater a dor. Depois de tudo, a ferida aberta exactamente abaixo das costelas doía menos que a ferida do coração. Tinha perdido tudo.

Se morresse, teria que dar contas a Deus. E se vivesse, a seu pai. Para ele não havia muitas diferenças. Não porque esperasse dureza em nenhum dos casos, já que ambos o tinham tratado com benevolência até ao momento e voltariam a fazê-lo. E isso seria muito pior que qualquer castigo que pudesse infligir-se. A derrota era, na verdade, um amargor desagradável.

Ele não a tinha causado. Pelo contrário, tinha feito todo o possível para a impedir. E no entanto, sentia-se de algum modo responsável por perder o que lhe tinham confiado. As vidas dos que o tinham seguido quando os chamaram à guerra. Tinham-se afogado todos excepto o jovem Everand.

 

 

 

 

- Conheço este terreno, não estamos perdidos - tranquilizou o escudeiro. Sentiu uma ponta de culpa por ter arrastado aquele jovem para tão longe do seu lar, em Sarcelles, para lutar contra os ingleses. E tinha estado quase a acabar numa sepultura marinha quando o seu barco se afundou perto da costa de Portsmouth. O rapaz de catorze anos alargava o passo para não ficar para trás e mostrava-se ainda tão desejoso de servir o seu amo como um cãozinho. Henri moveu a cabeça perante o entusiasmo da juventude.

- Deveria descansar, milorde. A vossa ferida preocupa-me - o escudeiro não disse que Henri tinha começado a cambalear e dava mostras de fraqueza. E este pensou que Everand Mercier era a personificação da compaixão e da lealdade. Por isso tinha escolhido o rapaz, o filho mais jovem de um falecido mercador de roupa, para o servir. Sabia que um dia seria um bom cavaleiro, apesar da sua estatura.

- Penso que há uma aldeia não muito longe, costa acima - disse. - Pararemos lá e enviaremos recado à minha família.

- Restam-nos poucas moedas para pagar a alguém que faça isso, milorde - informou Everand. - Não teria que cruzar quase toda a Escócia?

Henri deteve-se e tirou a corrente de prata que levava em torno do pescoço. Tirou também o anel que levava no dedo e entregou ambas as jóias ao escudeiro.

- Se a morte se apoderar de mim, usa a corrente para pagar a alguém que nos leve de carro até ao castelo Baincroft, em Midlothian. O barão de lá, lorde Robert MacBain, avisará o meu pai e ocupar-se-á do teu futuro.

Everand não discutiu nem se incomodou em argumentar que era impossível que morresse; sabia que podia acontecer. Limitou-se a assentir com a cabeça.

- E o anel, milorde? - perguntou.

Henri sorriu e colocou uma mão no ombro do rapaz.

- O anel é para ti. Dirás a lorde Robert e a meu pai que és meu filho.

Everand corou e riu com incredulidade.

- Eu, milorde? Olhe bem para mim! Sou tão ruivo como vós sois moreno. Além disso, jamais acreditariam que tivésseis tido alguém assim, mesmo que fôsseis mais velho. E não o sois - acrescentou com secura. - Duvido que sejais... suficientemente velho.

- Suficientemente velho? - riu Henri, que sentia a cabeça leve como ar. Ev conseguia arrancar-lhe sempre uma gargalhada, mesmo na hora mais inoportuna.

Embora soubesse que a noite ainda estava longe, a paisagem parecia escurecer e tremer contra o horizonte. Henri deixou-se cair de joelhos e sentou-se nos calcanhares.

- Di-lo de qualquer forma. Lorde MacBain

aceitará. És um irmão para mim, embora não partilhemos vínculos de sangue.

- Mas, senhor, não posso enganar a vossa família e fazer-lhes pensar que sou vosso bastardo - argumentou Ev.

- Claro que não. Jamais penses que eu te pediria que renegasses a tua legitimidade, Ev, nem o bom homem que te criou. Mas é minha intenção adoptar-te aqui e agora, se tu não tiveres nada que objectar. Embora nunca possas ser herdeiro do meu título, herdarás uma parte da minha riqueza pessoal. Tu merece-la, por tudo o que fizeste por mim.

- Nesse caso, obrigado, senhor. Sois muito generoso.

Henri respirou com força.

- Temo que tenhas razão numa coisa, Ev. Acho que se impõe um descanso - tocou nas costas e sentiu a humidade pegajosa. Pensou que, depois de dias assim, devia estar já quase sem sangue.

Deu aquilo que temia que pudesse ser a sua última ordem:

- Vai procurar na aldeia e consegue um carro, Ev. Eu vou esperar aqui.

Tombou sobre o lado bom e observou Everand a correr costa acima em busca de ajuda. Quando o rapaz se converteu num ponto distante, Henri cochichou uma prece, fechou os

olhos e deu as boas-vindas ao sono. Pelo tempo que durasse.

- Desaparece daqui e deixa-me em paz!

Apesar da curiosidade que sentia pelo rapaz que levava meia hora a atormentá-la, lana não estava disposta a ter com ele uma missão de misericórdia. Estivera todo o dia a preparar-se para deixar Whitethistle e não tinha tempo para aquilo.

Colocou a faixa onde dormia a menina numa posição mais cómoda nas costas, baixou o balde até ao fundo do poço e esperou que enchesse. Se lavasse a roupa nesse momento, secaria antes que caísse a noite e poderia sair da aldeia antes de amanhecer.

A compaixão pelo rapaz fê-la falar enquanto tirava o balde de água:

- Acho que há uma curandeira a uma légua a norte daqui. Diz-lhe que vá contigo.

- Tendes que vir vós - insistiu o rapaz, mudando com impaciência o peso de um pé para o outro. - Até agora, fostes a única pessoa que vi que entende o que digo. O vosso marido também fala a minha língua? Eu explicar-lhe-ei o que se passa para que a deixe vir. Ficará contente com a nossa recompensa, não?

- Eu não tenho marido - disse ela. - Nem tenho tempo a perder com um vagabundo ferido. E agora sai daqui - levantou o balde e voltou-se para se ir embora.

- Não somos vagabundos, juro. Sir Henri morrerá se não lhe levo ajuda. Por favor.

lana sabia que era certo que ali ninguém falava francês. E embora o rapaz conseguisse fazer-se entender, ninguém confiaria nele. E que mulher no seu juízo perfeito o seguiria por uma praia deserta onde podia ter amigos maiores à espera para a violarem?

No entanto, podia ver por si mesma que o rapaz não era um mendigo nem parecia um bandido. A sua roupa, apesar de estar enrugada e rota, tinha uma fineza desconhecida por aquelas bandas.

O seu discurso indicava uma certa educação e as suas acções eram gentis. Não duvidava de que era o que afirmava ser, o escudeiro de um cavaleiro.

Deixou o balde de água no chão e olhou para ele com os braços na cintura. Preocupava-a pensar que podia salvar alguém com uns momentos do seu tempo e um punhado de ervas e não o fazer.

- A que distância deixaste esse teu amo?

- Próximo daqui - assegurou-lhe o rapaz, lana sabia que mentia. Via-o nos seus olhos.

Olhou-o com dureza.

- Está bem - corrigiu ele, envergonhado. - A duas horas de caminho.

- Duas horas? - lana levantou as mãos para o céu. - Porquê eu? Que te faz pensar que eu saiba algo de curas?

O escudeiro colocou as mãos nas ancas e adoptou um ar de superioridade.

- Muitas damas aprendem essa arte, não? De que outro modo iam cuidar das pessoas a seu cargo? Por favor, senhora. Não lho pediria se não estivesse tão mal. Pagarei bem.

A mulher olhou para ele com astúcia.

- Tu chamas-me dama. Se achas que sou uma dama, por que pensas que necessito da tua moeda?

O rapaz olhou-a de cima a baixo com ar especulador.

- O vosso comportamento e a vossa forma de falar traem a vossa origem, embora o vosso vestido seja pouco melhor do que o de uma camponesa - observou.

Olhou para as casas de ramos e barro que havia perto dali.

- E viveis aqui. Eu diria que a fortuna vos foi adversa. Embora não por culpa vossa, estou certo - apressou-se a acrescentar.

As suas últimas palavras deixavam transparecer as suas dúvidas a esse respeito, e evitou olhar ou mencionar a menina adormecida. Ela tinha-lhe dito que não tinha marido. Certamente pensava que se tinha desonrado com um homem e a sua família a tinha deixado entregue à sua sorte por causa dele. E lana admitiu que, embora se enganasse no motivo, não andava muito distante das consequências.

- Sir Henri e eu recompensamos as boas acções, asseguro-lhe.

Se conseguisse algumas moedas, seria mais fácil sair daquela maldita aldeia onde a tinha deixado Newell devido à sua rebeldia. E já fazia dias que pensava que qualquer lugar excepto o inferno seria preferível a Whitethistle. Embora não tivesse para onde ir nem como chegar lá, o desespero empurrava-a a ir-se embora já.

Sabia que, se não o fizesse, teria que renunciar à pequena Tam. Newell jamais lhe permitiria ficar com ela e nenhum dos aldeões a ajudaria. Talvez Deus tivesse enviado aquele rapaz para lhe dar os meios para fugir.

- Quanto me darás? - perguntou, tentando não parecer avarenta.

O rapaz tirou uma corrente de prata fina do interior do colete e mostrou-lha.

- Isto - disse de má vontade. - Era para financiar a nossa viagem ao Este, mas suponho que não nos servirá de nada se sir Henri morrer da sua ferida. Cure-o e será vossa.

lana abriu muito os olhos ao contemplar aquele tesouro. Podia separar facilmente os elos e manter a Tam e a si mesma durante meses. Tomou uma decisão rápida.

- Antes temos que voltar à minha cabana para ir buscar as minhas coisas. Disseste que a sua ferida é um corte?

O rapaz olhou-a, aliviado.

- Sim. Embora ele diga que não é muito profunda, não deixa de sangrar há quase uma semana. A perda de sangue e a febre debilitaram-no, mas não tem o fedor de quem está a apodrecer - fez uma careta. - Ainda.

lana anuiu com a cabeça e caminhou até à sua cabana. Por sorte, nenhum dos aldeões andava por ali. Os homens estavam ocupados com a pesca e as mulheres, a preparar o comer dessa hora do dia. Até os mais jovens tinham alguma tarefa. E ela preferia que ninguém a visse ir-se embora com aquele desconhecido.

Não demoraria muito a reunir os seus artigos de costura e algumas coisas que não podia deixar para trás. Tam acordou quando entravam, por isso, tirou-a do atilho e deu-lhe a comer o último pedaço de pão e o último leite. Depositou-a num alguidar de barro e o rapaz apressou-se a sair da cabana e esperar lá fora.

- Isso, isso, tesouro - cochichou. - Esta é a minha Thomasina. É uma rapariga estupenda, não é? - Lavou-a com um pano e a água que acabava de tirar do poço e pôs-lhe um vestido de linho limpo.

Os olhos castanhos da menina olhavam-na com tal confiança que lana sentiu que os seus se enchiam de lágrimas. Passou a mão pelos caracóis escuros de Tam.

- Se de mim dependesse, ninguém nos separava - assegurou-lhe. - Já perdeste demasiado nestes últimos meses, e eu também. Agora vamos lá, querida - colocou a menina magra no tecido que a segurava antes e pendurou-a às costas. A sua carga tinha-se convertido num autêntico consolo para ela nas duas últimas semanas, algo de calor no seu frio isolamento.

A sua mãe tinha morrido de tosse convulsa, não sem antes lhe suplicar que levasse a menina e a ajudasse a sobreviver. A pequena Tam estava também à beira da morte, mas de fome, não da doença que tinha levado a sua mãe.

A única coisa que lana sabia delas era o nome de baptismo da menina e que a mãe se tinha visto obrigada a deixar a aldeia uns meses antes. Encontrou as duas no bosque quando recolhia ervas. Nenhum dos aldeões falava da mãe e evitavam a menina como se tivesse lepra.

A menina não causava mais incómodo que a leveza do seu peso nas costas. Comia quando lhe dava algo, aliviava-se quando lana a ajudava e não chorava nunca. A julgar pelos seus dentes, devia ter uns dois anos, embora pelo seu tamanho aparentasse ter metade, e não andava. A primeira noite, quando lana a tomou nos seus braços, a menina levantou uma mão, tocou-lhe na face e lançou um gemido, como uma gatinha. Sim, Tam era agora sua.

Levantou os olhos e viu o rapaz entrar de novo na cabana.

- Farinha de aveia - murmurou. Tomou o saco que continha a sua provisão. - E uísque - passou a garrafa ao escudeiro. O álcool serviria tão bem como qualquer medicamento que pudesse pedir aos vizinhos.

Ali ninguém apreciava muito as ervas que lana usava para tratar feridas e doenças. Confiavam mais em partes de animais e nos velhos remédios druidas. E no bosque abundavam coisas melhores. lana meteu no saco o que achava que ia precisar. A velha curandeira de Ochney tinha sido uma boa professora, embora lana tivesse gostado de poder permanecer ali depois da infância para ter aprendido mais com ela.

Colocou a pouca roupa que possuía dentro do seu xaile e atou as pontas. Depois de coser a ferida daquele cavaleiro, iria imediatamente para Ayr, o maior porto mais próximo. Os elos de prata da corrente serviriam para pagar uma passagem no primeiro barco que saísse da Escócia. Talvez para a ilha de Eire. Tinha ouvido dizer que era um lugar bonito de habitantes amigáveis.

Era-lhe igual qual fosse o destino, desde que fosse longe dali. Se o seu irmão descobrisse que o seu exílio não lhe tinha ensinado a lição e feito mudar de ideia sobre casar com Douglas Sturrock, lana não duvidava de que recorreria a medidas mais drásticas. Tinha-a avisado que não desejava ter que ganhar a sua aquiescência à base de pancada. Mal sabia ele o pouco efeito que isso teria. Como se, por lhe bater uma vez, pudesse fazê-la aceitar uma vida inteira de pancadaria! Newell tinha menos cérebro que um sapo. As coisas que a sua esposa lhe tinha contado dele sugeriam que se tinha tornado quase tão mesquinho como tinha sido o seu próprio marido. A lana custava-lhe a acreditar, mas as suas acções davam força às palavras de Dorothea.

Casar-se com Sturrock era tão prometedor como o seu primeiro casamento. lana talvez pudesse sobreviver, se Newell forçasse o casamento, mas a pequena Tam não conseguiria. A órfã indefesa seria abandonada e morreria sozinha e agora lana tinha um modo de evitar isso, uma possibilidade de ambas poderem salvar-se.

Essa ideia fez-lhe apertar o passo até que o rapaz teve que correr para não ficar para trás.

- E dizes que houve uma batalha em Portsmouth?

- perguntou ela com curiosidade. - Os franceses já invadiram a Inglaterra? Onde está essa cidade?

- Na costa sul, senhora. Tínhamos deitado fogo ao lugar e voltávamos para casa quando o barco começou a meter água. Fizemos sinais ao mais próximo dos nossos barcos, mas não respondeu. O barco voltou-se de lado e muitos caíram borda fora. Depressa se afundou como uma rocha.

Fez uma pausa para respirar fundo.

- Sir Henri foi atingido por um mastro partido - continuou. - Caiu sobre ele quando soltava os barris atados na coberta. Pensávamos que todos os usariam para flutuar, embora não víssemos mais ninguém a fazê-lo. Pensamos que morreram os trinta homens, que só nos salvámos nós.

lana moveu a cabeça e estalou a língua com simpatia. Não percebia nada de política, mas parecia-lhe uma pena que morresse tanta gente por causa nenhuma.

A Escócia sempre tinha estado do lado dos franceses, claro. O rei David tinha procurado asilo em França quando Bailliol, amigo do rei inglês, usurpou a coroa escocesa.

Ali, no território ocidental, pouco importava quem governava. A vida continuava como sempre. Mas ela ir-se-ia embora dali antes que terminasse o dia e forjaria o seu próprio destino no mundo.

No castelo de Ochney, ninguém sabia onde tinha ido. Newell chegaria dentro de três dias para lhe perguntar se estava disposta a render-se no que se referia ao casamento.

A ideia de que descobriria o seu misterioso desaparecimento fê-la sorrir de satisfação.

Já caminhava há algum tempo quando Everand a ultrapassou a correr.

-Ali! Ali está! Venha depressa, senhora! Rápido!

lana observou-o a ajoelhar-se ao lado do seu amo e colocar com ternura a cabeça do homem nos seus joelhos. Aproximou-se deles e observou o ferido.

Não era um homem de meia-idade, como tinha imaginado. Calculou que tivesse uns trinta anos, talvez mais, mas não muito. Era um homem grande, moreno e atraente. A perda de sangue explicava a palidez doentia da sua pele debaixo da barba curta e espessa. Um lado da sua cabeleira de caracóis morenos estava cheia de areia. Parecia inconsciente, ou talvez já tivesse morrido.

- Afasta-te - disse ao escudeiro, ao ajoelhar-se. Desatou o tecido das costas e deitou a menina na areia a seu lado. - Cuida da menina - acrescentou.

Afastou a roupa empapada em sangue e começou a tirar o tecido que cobria o tronco do homem.

- Deus tenha misericórdia! - murmurou ao ver a ferida. Voltou a falar com o rapaz: - Traz lenha e faz uma fogueira. Parece que estaremos aqui um bom bocado - embora soubesse que seria mais inteligente ir-se embora, não podia abandonar aquele cavaleiro nem descurar os seus cuidados.

O ferido abriu os olhos, mas estava claro que não via bem, provavelmente pela febre.

- Levai o rapaz a Baincroft. Tereis o que quereis - murmurou no idioma dela.

- E deixá-lo aqui assim? - perguntou ela com secura. - Não acredito que o vosso escudeiro permitisse.

O ferido pestanejou com força e levantou os lábios numa careta de dor, ou talvez num sorriso.

- Não, suponho que não - sussurrou. Tinha pouco sotaque, mas lana não tinha dúvidas de que era francês. - Obrigado pela vossa... ajuda - fechou os olhos, lana riu sem humor.

- Talvez devêsseis guardar a vossa gratidão, senhor. Estou a ponto de vos causar mais dor do que haveis já suportado.

Quando o rapaz voltou com a lenha, lana fez fogo com a pederneira e a corda e depois tirou uma tigela de metal dos seus pertences e estendeu-a ao escudeiro.

- Enche-a com água do mar.

Então sentou-se à espera, com a silenciosa Tam abraçada às suas costas.

Henri lutava para manter os olhos fixos no rosto da mulher que trabalhava com ele e que lhe tinha já tirado a túnica e lavado o corpo com a água do mar que lhe tinha levado Ev.

O ardor da limpeza preocupava-o pouco mais que a dor constante que suportava há dias. Ela olhou-o na cara e Henri conseguiu sorrir, sabendo que assim o acharia corajoso e estóico. Alegrava-se que uma mulher tão bela pensasse isso dele, quando a verdade era que se encontrava já meio morto e habituado à agonia do moribundo. Mas partiria sem queixas nem lamentos.

Ela levantou um recipiente pequeno e deitou um líquido sobre a ferida. O ardor intenso que lhe causou arrancou-lhe um gemido.

- Sentiu isto, eh? - murmurou ela. - Pois ainda será pior.

Henri apertou os dentes para conter as blasfémias que tinham estado a ponto de lhe sair da boca. Não gostava nada das palavras da mulher.

Ela aproximou a garrafa com o mesmo líquido dos seus lábios e ordenou-lhe que bebesse. Fê-lo uma vez e soube de imediato que se tratava da famosa aguardente dos escoceses. Queimava na garganta quase tanto como na ferida, mas tinha-a provado antes e sabia que o faria ficar tonto, que lhe causaria uma bebedeira da qual talvez não acordasse nunca.

- Demorará uns momentos a afectar os vossos sentidos - disse ela. Deixou a garrafa ao lado e tirou uma agulha das suas coisas. Passou um fio pelo buraco.

- Meu Deus! - murmurou ele. - Pensais coser-me com uma agulha e cânhamo?

- Sim, e alegre-se - disse ela, - embora não ainda - acrescentou.

A languidez causada pelo álcool começava a envolvê-lo no seu quente invólucro. O sol já se punha no horizonte. Via os últimos raios a bailar sobre as ondas. Perguntou-se se voltaria a vê-lo nascer, mas não importava.

- Fazei o que desejardes, senhora. Os seus olhos fecharam-se sozinhos, embora tivesse a vaga esperança de morrer a olhar para os belos traços daquela mulher. Abriu-os com esforço para ver se tinha imaginado a sua beleza. Era real.

Era estranho encontrar alguém assim naquelas terras. Embora nos seus tempos tivesse visto uma boa parte da Escócia, nunca tinha chegado tão a oeste. Por alguma razão, pensava que só havia donzelas altas e louras, de cabelo sem brilho e extremidades avultadas e fortes. Raça viking combinada com o fero espírito guerreiro dos antigos.

Mas essa mulher parecia quase delicada, de movimentos tão graciosos como os de um ruminante ágil. A sua pele parecia leite fresco a reflectir a luz do fogo. Cada vez que os seus olhos se encontravam, brilhavam faíscas nas suas íris. Como teria gostado de a ver nua! Imaginava o seu cabelo suave, sedoso e comprido até à cintura, embora o levasse tão bem tapado que nem sequer podia adivinhar a sua cor. Escuro, certamente, como as suas sobrancelhas.

Voltou a cabeça e viu Ev sentado com as pernas cruzadas ao lado do fogo. No seu colo estava uma criatura pequenina, magra, etérea, que o olhava com curiosidade com olhos do tamanho de nozes. Uma menina? De onde tinha saído?

Parecia irreal, com olhos de velha, boca franzida e um corpo minúsculo. Ao vê-la, dava vontade de a abraçar e protegê-la. Everand pareceu ler-lhe o pensamento e apertou-a contra si. O acto do rapaz reconfortou Henri como nenhuma outra coisa teria podido fazê-lo nesse momento. Pensou uma vez mais que um dia seria um bom cavaleiro.

Olhou de novo para a mulher e perguntou-se se as duas seriam produto da sua imaginação.

Pensou que a febre lhe turvava o cérebro, produzindo-lhe visões de esperança e desespero. A esperança parecia-lhe mais real, mais sã, e decidiu prender-se a ela.

Deixou cair as pálpebras uma vez mais, tentando reter aquela imagem enquanto a mente funcionava. Não lhe parecia má ideia entrar no esquecimento com aquela visão na cabeça.

De repente, levantou um braço e lançou um grito.

-Meu Deus!

A mulher afastou-se com rapidez do braço levantado, com a agulha na mão.

- Tendes que estar quieto - disse com firmeza.

Henri acompanhou o fio tenso com os olhos e viu que estava unido à sua pele. Se não estava a morrer já, ela certamente o mataria no acto.

- Eu seguro-o - ouviu dizer Everand com voz profunda, como se fosse um homem adulto e forte como um carvalho.

Esteve a ponto de se deixar rir ao pensar no pequeno Ev a tentar mantê-lo imóvel. Levantou a garrafa e bebeu o líquido que prometia alívio para aquela tortura. Já estava bêbedo, mas não o suficiente.

- Adiante - disse à sua curandeira. - Everand ajudar-me-á. Tem mais força do que faz pensar o seu tamanho.

Sabia que devia permanecer imóvel ou exporia Ev ao ridículo. Pelo menos um dos dois devia conservar certa dignidade à frente da sua encantadora benfeitora e Henri sabia que já tinha perdido a sua.

- Terminei - anunciou ela por fim.

Henri saboreou o sangue que tinha na boca por ter mordido o interior da bochecha. Voltou a cabeça e cuspiu quando Ev lhe soltou os braços.

Viu de novo a menina que tinha imaginado antes. Estava sentada na areia, a chupar um dedo em silêncio e com os seus olhos grandes e tristes fixos nele, a chorar para dentro sem ruído e sem lágrimas. Seria um espírito que esperava a libertação da sua alma?

A mulher aproximou-lhe um pano húmido e frio da cara e moveu-o com gentileza enquanto falava:

- Agora deveis dormir. Voltarei rapidamente com uma cama e levar-vos-ei para algum refúgio. É provável que chova esta noite.

- Viverei? - perguntou ele. Duvidava de que ela pudesse salvá-lo. A febre tinha começado há dois dias e piorava à medida que passavam as horas. Agora fazia-lhe ver crianças fantasmas e pensar que a morte podia ser bem-vinda, depois de tudo.

A mulher não vacilou em mostrar-se sincera.

- Tudo é possível - disse. - Eu fiz tudo o que podia. O resto depende de Deus e de vós.

Henri tomou-lhe a mão e apertou-lhe os dedos com toda a força de que foi capaz.

Ela olhou para ele, indecisa, e a sua expressão tornou-se resignada.

- Não, não o farei. O vosso escudeiro prometeu-me a corrente de prata em troca de cuidar de vós.

- Vivo ou morto. Essa tinha que ser a oferta disse Henri com voz pastosa. - Tereis que me deixar em casa do meu irmão... de um modo ou de outro - viu que parecia à beira de protestar. É muita prata para uns quantos pontos e um trago de álcool. Sede justa.

A mulher pensou um momento nas suas palavras e logo anuiu com a cabeça. Meteu os seus instrumentos na bolsa e atou o cordão que a fechava.

- Se viverdes, cuidarei de vós até que possais estar só. Se não recuperardes, transportar-vos-ei até ao lugar aonde desejais ir. O vosso escudeiro mostrar-me-á o caminho, não?

Henri ouviu o som do protesto que Ev emitiu e voltou-se para ele, embora falasse também em benefício da mulher:

- Ide para Este e cruzai o precipício de Clyde. Quando passardes pelas colinas do lado mais ventoso, perguntai pela direcção para Baincroft ou o castelo de Trouville.

- Assim faremos - declarou ela. Soltou-lhe a mão e levantou-se.

- Um momento, senhora - murmurou Henri.

- Quero saber o vosso nome.

Ela olhou para ele.

- lana de Ayr - disse, depois de uma breve vacilação.

- Uma mulher livre? - perguntou ele, embora não pensasse retirar a sua oferta se não o fosse. Só queria saber se a perseguiria algum senhor feudal maluco empenhado em recuperar a sua curadora.

- Livre? - perguntou ela, confusa. Então, nos seus olhos acendeu-se uma luz. - Sim, sou livre como um pássaro. E tenho intenções de continuar a sê-lo toda a minha vida. Levar-vos-ei a esse lugar chamado Baincroft e a vossa família recompensar-me-á dando-me trabalho lá.

Henri, que sabia já que deixava Everand em mãos capazes, rendeu-se ao seu sono febril.

 

lana pediu ao escudeiro que cuidasse de Tam e perdeu-se na noite. Tinha-o avisado que o destino do seu amo dependia do modo como cuidasse da menina. A sua predisposição a fazê-lo surpreendeu-a e fê-la sentir-se culpada pela sua mentira. Odiava mentir.

Mas não tinha mentido ao dizer ao cavaleiro que era livre. A sua oferta tinha-lhe devolvido a liberdade e ele não tinha que saber que a sua liberdade era recente. Estava certa de que podia mantê-lo com vida ! e confiava em poder consegui-lo. A ferida não era profunda nem estava infectada. No entanto, a perda de sangue e a febre podiam levá-lo, a menos que lhe desse ervas e o mantivesse quente e seco por uns dias antes de tentar viajar.

Desde logo, seria mais vantajoso para ela não chegar a casa do irmão do ferido com um cadáver.

Além disso, gostava de Everand, que cuidava do seu amo e era bom com Tam, e não queria vê-lo sofrer.

Não era possível levar o homem para a sua cabana na aldeia, já que podiam descobrir. E se soubesse que tinha um homem em sua casa, o seu irmão faria algo mais do que bater-lhe. Por outro lado, se permanecessem ali até que o cavaleiro pudesse viajar, Newell alcançá-los-ia. Só dispunham de três dias para irem para o mais longe que pudessem.

O melhor seria irem para uma gruta próxima, e ela conhecia uma que podia servir. Era o lugar para onde tinha pensado esconder-se com Tam até que o seu irmão abandonasse a busca. O problema era levar para lá o cavaleiro. Não podia andar e ela não tinha animais que o transportassem. O seu único recurso era procurar um.

Ou por que não três? Se os roubasse, o castigo seria o mesmo por um que por três. Só podiam enforcá-la uma vez. Além disso, não gostava da ideia de atravessar a Escócia com Tam pendurada nas costas e puxar o cavaleiro numa padiola com a única ajuda de um rapaz.

A aldeia mais próxima de Whitethistle estava pelo menos a duas léguas. Conhecia-a bem, já que ficava dentro das propriedades do seu falecido marido, o velho demente que a única coisa que lhe deu antes de morrer foram dois anos de miséria.

A família dele tirou-lhe todas as suas jóias e ficou também com o seu dote. Do seu ponto de vista, os seus enteados, fruto do casamento anterior do velho, estavam em dívida com ela por ter suportado o seu pai sem protestar. E decerto que havia três animais para montar em algum dos estábulos.

Subiu a saia e acelerou o passo. Se ia converter-se numa ladra, seria melhor fazê-lo antes que se impusesse o bom senso.

Henri abriu os olhos no meio da escuridão. Não havia lua, não havia nada. Por um momento, julgou que a morte tinha acabado com tudo excepto com a dor, sempre presente. Então, percebeu que estava num sítio fechado, ao ar livre, e ouviu perto o ressonar quase inaudível de Everand, misturado com o suave relincho, mais longínquo, de um cavalo. Estaria num estábulo?

- Ev? - sussurrou. Uma mão fria tocou-lhe na testa. A mulher.

Inalou o seu aroma a ervas e à essência própria do seu sexo.

- Onde estamos? - perguntou.

- Numa caverna - respondeu ela, com voz melodiosa e consoladora. Aproximou-lhe algo dos lábios. - Mastigue isto. Ajudá-lo-á a descansar e a baixar a febre.

Henri aceitou a erva, que era amarga, mas tendo em conta que ela lhe tinha cosido a ferida e o tinha salvo, devia-lhe pelo menos aquela demonstração de confiança. Mastigou por um momento e cuspiu os restos amargos.

- De manhã vamo-nos embora - disse.

- Que impaciente! - riu ela. - Temo que demore pelo menos mais um dia antes que possa montar, meu bom senhor.

- Viajei por toda a Inglaterra em pior estado. E acho que uns dias a cavalo não me matariam agora.

- Como desejardes, senhor - disse ela com suavidade. - Mas agora tendes que dormir.

- Henri - sussurrou ele. Apalpou em busca da mão dela até que a encontrou e apertou-lhe os dedos. - O meu nome é Henri.

Compreendeu que devia ter mais febre do que pensava para se mostrar tão informal com uma mulher. Nem sequer as suas amantes o chamavam pelo seu nome de baptismo, e nunca tinha tentado nada parecido. Não obstante, ela parecia acreditar que era um simples cavaleiro. A maioria do tempo, ele preferia ser um cavaleiro entre muitos e não o herdeiro da dinastia Trouville. Permitia-lhe mais liberdade e camaradagem.

- Eu sou lana - disse ela.

- Eu lembro-me. lana - repetiu ele, para experimentar o som do nome na sua boca. - E suponho que o seu pai se chamasse lan.

- O meu avô - disse ela.

- Eu conheço um lan - disse ele. - E é um desavergonhado.

A mulher deixou-se rir.

- Agora descansai... Henri - aconselhou-lhe com suavidade.

A sua dor tinha adormecido um pouco e o frio da palma dela parecia levar-lhe parte do seu calor.

- Mágico - sorriu ele na escuridão. Escutou, e pareceu-lhe ouvir os batimentos do

coração dela, ou talvez fossem os seus. Um cavalo relinchou outra vez e Ev emitiu um som de protesto como resposta a um sonho. Pela primeira vez em semanas, Henri sentia-se suficientemente seguro e bem para abraçar o sono sem pensar na morte.

- Os cavalos são vossos, senhora? - perguntou Everand. Acariciou o pescoço do mais pequeno, uma égua nervosa.

- Agora sim - respondeu lana.

O rapaz sorriu. ?

- Roubaste-los, não foi? Soube-o quando voltastes com eles. Matastes alguém por eles?

- Claro - brincou ela, enrugando o nariz. Segurava com força a soga atada ao cavalo maior, deixando-lhe espaço suficiente para baixar o pescoço e beber do ribeiro. - A verdade é que deixei um elo de prata como pagamento.

Tocou com a sua mão livre no saquinho atado à sua cintura, onde levava a corrente, e desfrutou do seu tilintar.

- Na hora da verdade, descobri que não podia roubar.

- Assim sim - disse Ev com ar de sabedoria. Uma alma honrada. Admiro isso numa mulher.

A sua repentina transformação de menino em cavalheiro condescendente divertia lana, a quem custava a conter o riso.

- Quantos anos tens, Everand?

- Catorze primaveras. E vós, senhora?

- Não devias perguntar isso a uma mulher. Tenho vinte e dois.

O rapaz fez-se surpreendido.

- Juro por todos os santos que não vos teria dado mais de dezassete. Levais muito bem os vossos anos.

lana não pode conter a sua alegria.

- Um lisonjeador. Admiro isso num homem declarou, devolvendo-lhe o cumprimento. - E agora vem, temos que guardar os animais na gruta antes que alguém passe e nos veja com eles. Não gostaria de ser pendurada numa corda.

- Mas pagastes mais do que valem! - protestou ele. - Que tendes a recear?

lana puxava já o cavalo maior em direcção à gruta. .

- Sim, mas não fiz um acordo com os seus donos; pode ser que eles não queiram vender. agora apressa-te; o teu amo deve estar quase a acordar e perguntar-se-á onde estamos. ?

Everand encheu o balde de madeira que lana tinha tirado do estábulo dos cavalos e seguiu-a, com ele numa mão e a soga da égua na outra.

- Vinte e dois, eh? Dissestes que não tendes marido. Nunca quisestes casar, senhora? - perguntou, sem mencionar ainda a existência de Tam, que agora se pendurava nas costas de lana.

- Não, nunca quis casar-me, mas fi-lo de qualquer maneira - disse ela, friamente, pouco disposta a contar a sua história de horror. Se o seu amo e ele conhecessem os planos do seu irmão, talvez a deixassem para trás para evitar problemas. - O meu marido morreu o ano passado e não quero falar mais dele.

- Está bem - disse o rapaz. - E assim foi como ficastes pobre. Lamento. Devíeis voltar a casar, desta vez com alguém que possa cuidar do vosso futuro. E do da vossa filha - acrescentou.

- Isso não é assunto teu - disse lana. - Não fales disso ou dar-te-ei uma bofetada.

- Oh, uma mulher temperamental - comentou ele com a sua voz adulta. - Também gosto disso em si.

lana virou a cabeça e guardou silêncio.

Tinha escolhido bem o seu esconderijo. A gruta estendia-se pelas profundezas da colina e a sua abertura era suficientemente grande para fazer passar os cavalos. O interior abria-se e oferecia espaço suficiente para os animais. Por uma passagem estreita chegava-se a uma câmara com metade do tamanho da primeira, mas onde as quatro pessoas podiam dormir sem se magoarem.

Não se tinha atrevido a fazer fogo. Se houvesse um buraco que fizesse de chaminé, alguém podia ver o fumo. E se não houvesse, asfixiavam.

A única luz da câmara de dormir vinha de um lampião que tinha trazido da cabana. Não sabia como substituiria o azeite quando terminasse, mas tinha-o deixado aceso para que o cavaleiro não acordasse sozinho na escuridão.

- Água, bagas e aveia - anunciou a Everand e ao homem, que se tinha sentado contra a parede da gruta. - Hoje tendes que vos conformar com isso.

O cavaleiro olhou para Tam, que lana sentia em cima do seu ombro direito. Não disse nada, mas parecia aliviado e confuso ao mesmo tempo. lana sentiu que Tam fazia uma bola nas suas costas para se esconder.

- Por que não podemos comprar comida? perguntou o escudeiro. - Vós tendes a prata e a vossa aldeia está próxima.

lana suspirou. Como explicar-lhes que devia esconder-se sem lhes dar os verdadeiros motivos? Se na verdade era uma mulher livre, quem a ia impedir de se abastecer para a viagem de um modo adequado?

O acordo era que levaria o cavaleiro a Baincroft em troca da prata. Se não quisessem envolver-se com uma mulher fugida, cujo irmão podia sentir-se inclinado a castigá-los a todos se os apanhasse, ver-se-ia obrigada a renunciar à valiosa empresa e ficar para trás. E então Newell encontrá-la-ia, teria que se casar e Tan morreria quando a separassem dela.

Começou a repartir a comida enquanto pensava se devia mentir. Podia vender os cavalos e seguir o seu caminho sozinha. Mas sem dúvida que os donos os procurariam, acreditando que quem os tinha levado tentaria vendê-los. As mulheres não faziam esse tipo de acordos. Ela chamaria a atenção e recordá-la-iam fácilmente.

Newell seguir-lhe-ia o rasto sem problemas. Não, tinha que continuar com aquele cavaleiro e o seu escudeiro, viajar com eles para se proteger e fazê-lo em segredo. O seu irmão procuraria uma mulher sozinha.

Os dois homens observavam-na, esperando a sua resposta. Optou por contar uma meia verdade e apelar à inclinação cavalheiresca de proteger os fracos.

- Há um homem cruel que quer que me case. Se desaparecer, talvez esqueça que existo. Mas se souber que tenho prata, é tão avarento que pode continuar a seguir-me até ao fim do mundo.

De qualquer maneira, o seu irmão bem podia fazer isso. E Douglas Sturrock também. Ainda não sabia o que lhe tinha prometido Newell para que concordasse com o casamento. Tinha já perdido a sua juventude e a sua beleza e Duncan não lhe tinha deixado nada, nem sequer as terras do seu dote.

Nem o cavalheiro nem o seu escudeiro disseram nada. Limitaram-se a observá-la, à espera que continuasse.

- Por isso vos trouxe para aqui em vez de vos levar para a minha choça - acrescentou. - Esse homem consideraria vossa presença um insulto. E não quero que me casem à força com um homem que nos maltrataria a mim e à menina. E também não quero que sofram por minha causa. Por isso, temos que nos esconder.

O cavaleiro apoiou-se melhor contra a parede.

- Esse homem de quem falais não vos forçou; ainda. E eu sei que a lei daqui proíbe casar uma mulher contra a sua vontade. - Sim, é certo - disse ela. - Mas há muitos modos de forçar a vontade de alguém, principalmente a de uma mulher.

- Alguns homens não são bons com as suas esposas, isso é certo - fez uma pausa. - Mas por que vos preocupa a menina? Não acredito que esse homem se arrisque a incorrer na ira da família do vosso esposo fazendo-lhe mal. Uma guerra de clãs não é nenhuma brincadeira, segundo sei.

- A menina não é do meu marido - disse ela, sem dar mais explicações.

- Ah, compreende - assentiu o cavaleiro, e não disse mais nada.

- De quem é? - perguntou o rapaz. Lana apertou os lábios e desviou o olhar.

- Thomasina é minha - disse, em tom de desafio.

- Que teríeis feito se não tivéssemos chegado e vos oferecêssemos um meio de fugir? - inquiriu o cavaleiro.

lana encolheu os ombros e fez uma careta.  

- Suponho que acabaria por me render. Everand soltou uma gargalhada.

- Pois! Quando as serpentes regressarem a Eire.

- Que queres dizer com isso, Ev? - perguntou o seu amo.

O escudeiro olhou para ele e disse com voz condescendente:

- Esta mulher enterrou um marido, suportou viver entre camponeses e desafiou as boas maneiras ao dormir no campo com dois homens. Também roubou três cavalos. Achais que uma mulher tão corajosa ficaria à espera que um homem abusasse dela? Parece-me que não.

lana viu que Henri reprimia um sorriso.

- Com dois homens no campo? - repetiu. Eu diria que para isso é preciso ter muita coragem. Como tu dizes, parece uma mulher corajosa. Agora come as bagas, Ev, e controla a tua mente e a tua língua.

O rapaz obedeceu, com a expressão de quem adivinhava todas as respostas necessárias quando nenhum outro dos presentes era suficientemente esperto para isso.

- Pareceis muito melhor, senhor - observou lana, desesperada por mudar de assunto. - Como está a ferida?

Henri tocou na ligadura, na qual não havia sangue fresco.

- Dorida, mas a curar-se. Sinto-me muito mais forte depois de ter dormido tanto. E obrigado de novo pelo vosso cuidado e por acederdes a acompanhar-nos.

A mulher deitou a aveia numa caçarola de metal e acrescentou água para a amolecer.

- Necessitarei de algo mais que prata como recompensa por cuidar de vós durante a viagem!

- disse. - Quero um emprego nesse lugar. Deveis falar a meu favor com esse senhor de Baincroft que é vosso irmão.

- Na realidade, não temos laços de sangue, salvo que temos uma meia-irmã em comum. Os nossos pais viúvos casaram-se quando ambos éramos rapazinhos e depressa criámos um vínculo tão inquebrável como o do parentesco. Robert acolher-vos-á em Baincroft, se é esse o ? vosso desejo.

lana pensou que, se conseguisse chegar ao outro extremo da Escócia, tudo correria bem. Newell não se lembraria de procurar tão longe. Mas os elos da corrente não durariam eternamente.

- Tendes que me prometer esse trabalho, senhor, porque não terei outro modo de subsistência uma vez que tenha terminado a prata que me deste.

Henri pareceu ofendido por lhe exigir a sua palavra.

- Dou-vos a minha palavra de que pedirei ao meu irmão que vos arranje um sítio. Contudo, talvez ele já tenha uma curandeira em casa. Se assim for, juro que eu mesmo olharei por vós.

- A troco de que serviços? - perguntou ela, com medo de adivinhar. O irmão dele era um lorde, o que implicava que ele devia ser mais jovem e tentava fazer fortuna a lutar pelos franceses. Alguém assim não entregaria o seu dinheiro por caridade e ela não pensava prostituir-se por ele.

Everand sorriu, mas o amo pôs-lhe uma mão no braço para o impedir de falar.

- Os serviços que vós quiserdes oferecer disse. - Mostrei-me disposto a empenhar a vossa honra com olhares, palavras ou actos?

lana não estava disposta a deixar-se convencer pela sua indignação. Os homens, nobres ou não, não eram de fiar.

- Não, não o haveis feito. No entanto, não estais em condições de me insultar assim neste momento. Como vou saber o que esperais de mim quando estiverdes curado? Devo deixar claro desde o princípio que não estarei obrigada a nenhum homem, seja cavaleiro ou aldeão. Procurai-me trabalho de natureza honrada, senhor, ou ver-me-ei obrigada a declarar quem sois e será a vossa honra que se mancha, não a minha.

Viu de imediato que o tinha enfurecido e compreendeu que tinha ido demasiado longe. Desesperada, tentou acalmá-lo.

- Suplico-lhe que não vos ofendais, sir... Henri. Uma mulher que carece de defensor tem que usar todos os meios de que dispõe para...

- Deixai-vos de palavras mansas! - grunhiu ele. - Não tenho nenhum designio sobre a vossa pessoa, senhora, e vejo que sois uma dama. Ou, pelo menos, foste-lo noutros tempos. Ficai tranquila, não tendes nada a recear de mim.

- E do garoto? - indagou, apontando para Everand, que levantou a cabeça e olhou-a com incredulidade.

A Henri tremiam-lhe os lábios, como se reprimisse uma gargalhada. De seguida, falou com ? solenidade:

- Everand não abusará de vós. O meu filho faz o que eu lhe peço.

- Filho? - perguntaram Everand e ela ao mesmo tempo.

- Filho - repetiu Henri, olhando para o rapaz.

- Disse-te que te adoptava. Levas o meu brasão. Por que duvidas de mim?

- Bom, agora não ides morrer - comentou o rapaz.

- Melhor. Não ficarás órfão duas vezes no espaço de um ano.

Everand sentou-se mais direito. Olhou para o brasão de ouro que levava no dedo indicador.

- Não estou acostumado a tudo isto. Mil perdões, senhor... pai.

- Aceites. E agora promete a esta dama que protegerás o seu corpo e a sua virtude para que não suspeite que tramas nada de mal contra ela.

Everand olhou para lana e ajoelhou-se diante dela.

- Prometo. Não tendes nada a temer, senhora.

- A minha eterna gratidão, Everand - disse ela, comovida pelo seu gesto.

- Então está decidido - anunciou Everand. Voltou a sentar-se ao lado de sir Henri e agarrou num punhado de bagas. - De qualquer modo, eu não posso forçar as raparigas contra a sua vontade.

Henri teve um ataque de tosse e lana riu sem dissimulações. Everand pôs-se a mastigar as suas bagas e sorriu.

lana pensou que o destino tinha sido amável em enviar-lhe aqueles dois. Na realidade, não temia o cavaleiro.

No seu estado, podia fugir facilmente dele, e certamente que quando estivesse curado também. Era tão alto que duvidava que pudesse ser muito ágil.

Além disso, gostava do rapaz, apesar da sua impertinência. E não era suficientemente crescido para ser um perigo real.

Embora admitisse que achava Henri atraente e possuidor de um génio envolvente, não tinha intenções de lhe outorgar os seus favores nem agora nem no futuro.

O seu diabólico marido, James Duncan, tinha-lhe tirado as vontades de viver com um homem tanto no sagrado matrimónio como qualquer outro modo. Mas não havia necessidade de se preocupar.

Henri passou a tarde entre experimentar por momentos a sua força e logo a descansar do esforço. A febre tinha-o abandonado pela manhã e não voltou até ao anoitecer. lana não pareceu preocupar-se muito, mas voltou a dar-lhe ervas, como na noite anterior.

Embora quisesse fazer-lhe muitas perguntas sobre a sua vida na aldeia e da razão por que estava ali, Henri conteve-se. Também não exigiu conhecer a paternidade da menina. Se era sua filha bastarda, isso explicaria por que tinha perdido a protecção da sua família e a do falecido esposo; seria, sem dúvida, motivo suficiente para explicar o seu alojamento e pobreza. Disse-se que não queria sabê-lo. Não queria vê-la senão como uma dama.

Tinha-o salvo e era o mínimo que lhe devia, apesar de todas as desonras que pudesse ter feito.

Não podia reprovar os seus cuidados, já que se mostrava muito prestável; por vezes até demasiado.

- Detesto esta casca - protestou, quando ela insistiu em que mastigasse.

- O salgueiro baixa a febre e reduz a dor - explicou ela. - Juro que é milagroso o modo como estais a curar-vos.

Tinha que admitir que se sentia melhor do que nunca, desde que o barco se afundara.

- Que mais tendes para me curar?

- Amanhã espero encontrar mil-em-rama para aliviar mais a dor - passou-lhe uma tigela de madeira cheia de água. - Bebei isto quando terfminardes a casca. «

- Eu também tenho que dormir? - perguntou Everand, queixoso. - Não estou ferido.

- Sim - sorriu ela. - Todos temos que descansar se queremos partir cedo.

Antes do amanhecer, saíram para a escuridão de fora da gruta e começaram a viagem. Henri tentava ignorar a dor nas costas, que piorava com o movimento do cavalo baio que o transportava. lana tinha-os avisado que viajariam em silêncio, mas ele não entendia porquê. A essas horas não havia ninguém por ali. Todas as pessoas com bom senso ainda dormiam.

A lua, pequena, apenas iluminava o suficiente para evitar que chocassem com as árvores e desapareceria de todo na hora mais escura prévia ao nascer do sol. E então teriam que viajar com as mãos à frente da cara para evitarem os ramos baixos.

- Acreditais que o seu pretendente a seguirá quando descobrir a sua fuga? - sussurrou Ev atrás dele. - Não estamos precisamente armados para uma luta.

Henri voltou-se um pouco para responder.

- É provável que a siga. Eu também o faria. É uma mulher bonita.

A gargalhada de Everand arrancou-lhe um sorriso. O rapaz fazia pouco tempo que tinha começado a mostrar interesse por mulheres, mas tinha-o feito com força.

- E que faremos se nos alcançar? - perguntou.

- Lutaremos com ele, para que ela possa fugir com a menina. Eu tenho a minha adaga e tu tens a tua.

- A minha não é mais comprida que uma navalha de cozinha - grunhiu Everand.

- Mas tu sabes usá-la bem, e não apenas na mesa - lembrou-lhe Henri. - Uma folha é uma folha, Ev. Não esqueças o teu treino.

- Silêncio! - ordenou a mulher. - Ou vão ouvir da costa.

Henri pensou se o teria ouvido dizer que era bonita. Era mais que isso. Além de beleza, possuía força e vontade. E tinha demonstrado ter muitos recursos para uma mulher. Alegrava-se de poder ajudá-la, porque temia o que podia ter acontecido se tivesse continuado a viver ali sem protecção. Claro, quando tudo aquilo acabasse, pensava ocupar-se de que tivesse tudo o que necessitava para viver com comodidade.

Devia-lhe a vida. Certamente teria morrido se ela não tivesse parado a hemorragia da ferida e a febre.

Quem era na realidade? Suspeitava que tinha nascido em berço de ouro. Nenhum servo, poucos homens livres e quase nenhuma mulher falavam um francês tão bom. Tinha tido tutores, e durante bastante tempo.

Os seus modos imperiais indicavam que tinha ocupado uma posição de poder, uma posição suficientemente importante para esperar obediência quando emitia uma ordem. Isso apoiava a sua história do marido falecido, um marido nobre cuja casa ela dirigira.

Por outro lado, podia ter sido cantora ou actriz, fazendo parte de um grupo de farsantes que observavam o comportamento dos nobres e aprendiam a copiá-lo. Viajavam muito, o que podia explicar o seu francês. Ou podia ter sido amante de um nobre que a tivesse cultivado e logo a tivesse expulso ao deixá-la grávida.

Henri sabia que talvez nunca descobrisse a verdade, já que, depois do que tinha feito por ele, lhe devia o direito a guardar os seus segredos; mas não podia evitar a curiosidade.

Fazia meses que não montava a cavalo, porque tinha passado esse tempo no mar. Além da incomodidade crescente da sua ferida, os músculos começavam a protestar pelo esforço.

Deixou de se importar com quem era lana ou que mentiras lhe contara. Só queria que anunciasse um descanso para não ter que lho pedir por compaixão. De todos os modos, já não lhe restava muito orgulho.

O murmúrio do ribeiro que seguiam desde que saíram da gruta atraía-o com força. Que maravilhoso seria atirar-se à água fria! Ainda não tinha lavado o sal do mar do seu corpo e da sua roupa.

- Temos que descansar e dar de beber aos cavalos - declarou quando já não podia suportar mais.

lana voltou-se e olhou-o com preocupação.

- Estais a sangrar?

- Não - respondeu ele. Passou uma perna pelo lombo do cavalo e desmontou antes que ela pudesse protestar. As suas traidoras pernas cederam e teve que se agarrar à crina do animal.

Notou com satisfação que ela tinha o mesmo problema. Embora, obviamente, soubesse montar, estava claro que fazia tempo que não o fazia.

- Devias ter roubado também as selas disse-lhe com um sorriso.

Ev correu a tomar as rédeas do cavalo baio de Henri.

- Pelo menos trouxe as rédeas, senhor - disse, saindo em defensa dela. - Senão, teríamos que as fazer com ervas.

- Por aqui - ordenou ela. Coxeando um pouco, certamente devido ao peso da menina, conduziu a sua égua através das árvores até a uma pequena clareira ao lado do ribeiro. - Descansaremos um momento.

Por que tinha tanta pressa? Outro mistério por resolver. Mesmo que o homem que queria a sua mão em casamento existisse de verdade e fosse suficientemente tenaz para lhe seguir o rasto, demoraria a descobrir que tinha escapado. Só tinha desaparecido uma noite e metade de um dia.

Olhou por entre as árvores. Era exactamente antes do meio-dia.

- Devemos esperar até que o sol não esteja exactamente em cima de nós - aconselhou. - Ou podemos errar o caminho.

- Oh, muito bem - anuiu ela, de má vontade.

- Sentai-vos. Vou dividir o almoço.

Desatou o tecido que levava à volta dos ombros e deixou na erva a menina, que permaneceu imóvel, como um ruminante que se protegia com a sua imobilidade.

Henri observou-a por um momento e estendeu-lhe o seu dedo.

- Tens nome? - perguntou com suavidade.

- Chama-se Thomasina. Tam - informou lana. - E não fala.

- Está doente? - perguntou ele, preocupado com as suas extremidades magras e o seu ventre grande. - Come bem?

- Sim - disse lana secamente.

Henri ficou sem saber se a afirmação era para a primeira pergunta ou para a segunda.

- Bom, Tam - disse com suavidade, e ofereceu-lhe a mão com a palma para cima. - És um espírito muito gentil.

A menina abriu os lábios como se quisesse dizer algo. Rapidamente, inclinou a cabeça e meteu o dedo na boca.

Henri gostava de crianças, embora tivesse visto poucas desde o nascimento da sua irmã, há dezasseis anos atrás. E Tam não se parecia nada com Alys. Se bem se lembrava, a sua irmã necessitava continuamente de três amas para que não se escapasse para todo o lado. Recordava também os terríveis gritos que lançava quando não conseguia o que queria. A lembrança fê-lo sorrir.

lana passou-lhe a sua parte do almoço sobre uma folha comprida.

Aveia e bagas outra vez, e em menor quantidade que na véspera.

- Penso que posso pescar algo - ofereceu-se.

- Com o quê? - perguntou ela, cortante. – E se conseguísseis esse milagre, comeríamos o peixe cru? Não podemos arriscar-nos a fazer uma fogueira.

- Por que não? - perguntou Ev.

- Porque... porque alguém poderia ver o fumo e vir averiguar quem somos e o que fazemos aqui. Ou que levassem esses cavalos e, se os donos não encontraram ou não quiseram aceitar a prata que lhes deixei como troca, tomar-nos-iam a todos por ladrões.

Henri sabia que esse não era o motivo. Mas era certo que temia que alguém os perseguisse.

- Eu ocupar-me-ei do vosso pretendente se vos chatear - assegurou-lhe.

Ela deixou-se rir; era evidente que não confiava naquela possibilidade e Henri, que não se lembrava de alguém ter duvidado nunca do seu poder, zangou-se.

Tirou a adaga comprida da bota de pele e arqueou o sobrolho.

- Ninguém a maneja melhor, senhora - disse Ev.

lana empalideceu ao vê-la. Muitos tinham feito o mesmo diante dela, por razões diferentes e mais urgentes.

No entanto, não demorou a recuperar-se.

- Essa arma não servirá de nada contra a sua espada - avisou. - E disseram-me que a maneja bem.

Espada? Nesse caso, o homem que a perseguia era cavaleiro ou nobre. Isso não o surpreendeu.

- Ainda não experimentei a derrota nas mãos de nenhum homem - declarou. Só nas mãos dos elementos, do mar.

Devolveu a adaga à bota e pensou nos homens que tinham morrido ao seu serviço. Um pequeno calor reconfortante apoiou-se na sua anca esquerda. Uns dedos minúsculos tocaram-lhe na mão que descansava na coxa.

- Tam? - sussurrou.

Baixou os olhos. Olhou para a mãe, para ver se lhe importava, e viu que tinha lágrimas nos olhos. No entanto, sorria. Não tinha sentido, mas poucas coisas o tinham impressionado mais desde que zarpara de França.

Depois de um momento, lana agarrou na menina e sentou-a no seu colo. Henri observou-as a comer como se fossem duas criaturas estranhas que tivessem encontrado no bosque.

- Surpreende-me que alguém possa gostar disto - comentou quando Tam terminou de comer. Olhou para a sua porção de comida, Odeio aveia - murmurou. - É a única coisa que não gosto na Escócia. Toda a gente come aveia. Mastigar estes grãos dá-me vontade de relinchar e bater com os pés.

Para sua surpresa, lana desatou a rir.

- Fazei o que vos disse. Acrescentai-lhe água

- aconselhou-lhe.

Henri olhou Para o grão com o sobrolho franzido.

- Para fazer cola? Sou da opinião de que se cola às paredes do estômago das pessoas para que não o sintam vazio. E o único objectivo dessa pasta - agachou-se e bebeu água do ribeiro. - Juntemos-lhe um pouco de barro e algumas sanguessugas e temos um verdadeiro festim.

Encheu a boca e mastigou com determinação e verdadeiro desgosto.

lana riu como uma menina e tapou a boca com uma mão. Os seus olhos brilhavam de alegria, uns olhos castanhos lindíssimos, da cor da melhor cerveja. e igualmente embriagadores.

Henri gostava do seu riso. Produzia-lhe algo estranho por dentro, como se lhe aliviasse o coração.

Quanto tempo fazia que não se divertia com uma mulher? Muito tempo. Sorriu e esqueceu por completo as suas dores e o sabor da aveia.

Então notou que Ev olhava para Lana e para ele com o sobrolho franzido. O rapaz abandonou as rédeas dos dois cavalos que bebiam na beira do rio e correu para o bosque.

Henri adivinhou que o assediava o velho monstro de olhos verdes. A questão era saber se sentia ciúmes das suas intenções em relação a lana ou do contrário.

Como tinha sido Ev a encontrá-la, talvez imaginasse que tinha mais direitos sobre ela. Era uma mulher bonita e Ev acabava de descobrir a alegria de ter alguém próximo.

Por outro lado, o rapaz tinha ocupado um lugar importante na vida de Henri nos últimos meses. Primeiro mantendo-o com vida nas horríveis batalhas no mar e logo ajudando-o a sobreviver depois do naufrágio. E isso tinha criado um vínculo entre eles que tinha impulsionado Henri a considerá-lo como seu filho.

Fosse como fosse, aquele não era momento de permitir fricções entre os três. Tinham muito caminho -para percorrerem juntos.

lana alegrava-se de que Tam tivesse começado a mover-se em vez de ficar quieta onde a deixavam. Falava a favor do cavaleiro, Henri, que não tivesse desprezado o interesse da menina por ele. Mesmo assim, a jovem não achava que a tolerasse muito mais tempo.

Depois de comer e descansar um momento, ordenou que montassem e retomassem o caminho, viajando para Este seguindo o rio. Dispor de uma fonte de água eliminava a necessidade de a levarem consigo e, quanto menos peso levassem os animais, mais depressa podiam viajar. Ela não sabia quanto tempo demorariam a chegar ao tal lugar chamado Baincroft.

- Olhai, há fumo aí à frente - anunciou Everand. Via-se claramente várias colunas a elevarem-se sobre as árvores.

- Uma aldeia - comentou o cavaleiro, embora ainda não se vissem choças. - Podemos passar lá a noite.

- Não - protestou lana. Não queria que ninguém os visse. Newell podia perguntar por ela ali e averiguar assim o caminho que tinha seguido. - Não podemos. Certamente receiam os estranhos, e mais ainda pessoas como vós.

- Porquê? - perguntou ele, com ar quase ofendido.

- Para começar, sois estrangeiro, e é evidente que não sois uma pessoa comum.

Henri olhou-a.

- Mas poderíamos encontrar leite para a menina e comida para todos. Não podemos sobreviver com bagas o resto da viagem e a aveia quase já terminou, não?

lana não podia negá-lo. Eles podiam suportar a fome, se fosse preciso, mas a menina tinha que se alimentar.

- Sim, bem, não vos deixais ver. Irei sozinha à aldeia e pedirei o que me puderem dar.

- Levai a menina - sugeriu-lhe Everand. Assim não vos negarão nada. Parece a ponto de morrer de fome.

lana teve que reconhecer que era verdade. E isso apesar do muito que tinha melhorado desde a morte da sua mãe. Partia-lhe o coração pensar no que poderia ter sido dela.

- Ocupai-vos dos animais - disse, ao desmontar. - Irei à frente a pé para ver o que posso encontrar.

Os homens obedeceram, embora sir Henri não parecesse satisfeito. Sabia que se devia mais ao facto de ter sido ela a dar a ordem do que à acção em si. Não parecia um homem acostumado a acatar ordens, sobretudo de uma mulher.

- Tende cuidado - avisou. - Chamai se a incomodarem.

E que pensaria poder fazer se isso acontecesse? Correr em seu auxílio? A verdade é que cambaleava quando punha os pés no chão. lana aproximou-se para lhe tocar na cara.

Henri sorriu como se se tratasse de uma carícia.

- Não tendes muita febre - disse ela. - Deitai-vos à beira da água e que o Ev vos leve água. A casca está nessa bolsa - estendeu-lhe a bolsa que continha os pedaços de casca de salgueiro e ele pegou-lhe com uma careta.

lana afastou-se pelo bosque em direcção ao fumo. Uma vez fora da vista dos outros, ajoelhou-se no chão e tirou a corrente de prata da bolsa que levava à cintura. Com a sua navalha pequena, uma pedra grande e muito esforço, separou outro elo da corrente. Escondeu o resto do tesouro e levou o elo na mão.

Os aldeões observaram-na com receio; só apelando à sua misericórdia conseguiu que enchessem um saco com pão duro, algum queijo e mais aveia. A sua história de ter ficado viúva fazia pouco tempo com uma menina doente não suscitava muita compaixão. Só quando mostrou a prata acederam a dar-lhe também um odre cheio do leite de cabra.

Quando um dos mais velhos a olhou com avareza, inventou a história de que tinha encontrado o elo entre as coisas do seu marido e o tinha guardado para o caso de se ver desesperada.

Quando teve as provisões, meteu-se no bosque na direcção contrária onde a esperavam Henri e o escudeiro. Rodeou a aldeia andando depressa e parando por vezes para ver se a seguiam.

- Algum êxito? - perguntou Ev ao vê-la.

- Sim - mostrou o saco pesado de comida e o odre de leite. - Foram generosos.

- Não digais nada - disse Henri com expressão cómica. - Mais aveia?

Ela riu.

- Onde está a vossa roupa, senhor? Ides morrer de frio.

Henri puxou a pequena manta de lã de lana contra o seu corpo.

- Limpe-se e seque-se nos arbustos - disse ela.

- Livre de sal e de suor... igual a mim, graças a Deus.

lana esforçou-se para não olhar para os músculos sólidos dos seus ombros, peito e pernas. Nunca tinha visto um homem tão bem-feito.

O cabelo do escudeiro estava tão molhado como o do seu amo. E o mesmo sucedia com os seus calções e camisa, embora pelo menos os levasse postos..

- Sois dois tontos! - exclamou ela. - Se ficardes doentes e morrerdes, não me culpais a mim.

- Estamos no Verão e faz calor - argumentou Henri. - E pela primeira vez em muito tempo, sinto-me fresco.

- E a vossa ferida?

- Tirei a ligadura. Não há sangue e os vossos pontos parecem bem firmes. Olhai - abriu a manta para lhos mostrar.

lana apressou-se a afastar os olhos, mas não sem antes ver que levava umas ceroulas com as quais cobria as suas partes íntimas. Invadiu-a uma certa decepção e recriminou-se por sentir tanta curiosidade pelo corpo de um homem.

Embora se tivesse convertido num bom amigo, não tinha motivos para pensar nessa parte da sua anatomia.

- Cobri-vos até que tenha tempo de reparar os danos que decerto haveis causado - grunhiu. Tratá-lo como um menino parecia-lhe a melhor defesa contra a atracção que lhe produzia.

Everand ajudou-a a deixar a comida e a bebida e os três sentaram-se a comer próximo da água.

lana tirou Tam das costas, moveu os ombros cansados e suspirou aliviada. Henri agarrou na menina e colocou-a no seu colo.

- Tens fome, querida? - perguntou. - Queres que te dê de comer?

- Eu dou - disse lana.

Henri olhou-a com preocupação.

- Não, parece-me que não. Vós tendes que descansar. Como ides cuidar de nós se ficardes esgotada?

Olhou para o escudeiro.

- Ev, faz uma fogueira pequena e prepara o peixe.

- Peixe! - exclamou ela. - Como haveis...?

- Fazendo-lhes cócegas - respondeu ele, a brincar. - Se ficar suficientemente quieto, é fácil.

Ela moveu a cabeça, mas apressou-se a tirar a pedra a Everand.

- Não desejo ouvir histórias tontas. E disse-lhes que não podemos fazer fogo.

Henri tirou-lhe a pedra e a corda da mão e devolveu-as ao escudeiro.

- Podeis descansar, banhar-vos ou fazer o que quiserdes - disse com firmeza, - mas vamos ter fogo e comida como é devido. Decidi-o.

lana olhou para ele fixamente. Idiota! Olhou-o com raiva.

Ele ignorou-a e voltou a sua atenção para o saco de comida.

- Que damos ao nosso duende? Sopas de leite, eh? Soa bem? - perguntou à menina.

Tam olhou para ele com os olhos muito abertos. Levantou uma mão vacilante e tocou-lhe no peito. Parecia embruxada pelo enorme cavaleiro, lana pensou que não tinha nada de estranho. Se ela não conhecesse tão bem a verdadeira natureza dos homens, podia ter sentido o mesmo.

Mas ele era só um homem, e era ainda mais dominante que os outros. Não tinha motivos para o odiar, e não o odiava, mas tinha boas razões para negar a fascinação que lhe produzia. E se fosse esperta, recuperaria o quanto antes o papel de chefe dessa expedição. De outro modo, encontrar-se-ia a obedecer às suas ordens como mais um escudeiro.

Viu o rapaz colocar o peixe nas pedras que tinha posto à volta da pequena fogueira. Quanto tempo fazia que não comia algo preparado por outra pessoa? Mais de um mês, supunha.

E embora não quisesse admiti-lo, não gostava de cozinhar para si mesma. O seu irmão tinha acertado ao dizer que lhe seria difícil desenvencilhar-se sozinha. Tinha tido que aprender a fazê-lo e não tinha sido fácil. Depois de passar a vida a deixar que a servissem, desfrutava pouco das tarefas de limpeza, de lavar e cozinhar. Ainda assim, preferia isso a ser propriedade de um homem que tinha poder de vida e morte sobre ela. Duncan tinha-lhe dado criadas suficientes para que conservasse as mãos suaves e as costas direitas, mas tinha estado a ponto de a matar por duas vezes.

Sem pensar no que fazia, preparou uma tigela de leite e cortou um pedaço de pão. Deitou os pedaços no leite e começou a dá-los a Tam. A menina, sentada no colo do cavaleiro, preparava o corpo para a comida.

- Come como um passarinho, não é? - sorriu sir Henri... - Pergunto-me quando tentará voar.

lana sorriu à menina.

- Quando estiver preparada. Agora já pode manter-se de pé por uns momentos com ajuda. E ontem à noite gatinhou até onde eu estava sentada. Isso é muito mais do que teria feito há uns dias.

Tirou a menina do colo dele e pô-la de pé, sustendo-a assim. Tam aguentou um momento e logo as suas pernas cederam. lana abraçou-a e elogiou-a pelo esforço.

- O que é que lhe aconteceu? - perguntou sir Henri.

- Não sei - respondeu ela com sinceridade. Pensava que podia ser falta de comida adequada e que a tinham levado sempre às costas em vez de lhe ensinar a andar. Podia ser outra coisa, uma doença de nascimento ou uma mistura de medo e má nutrição. Mas acho que está a melhorar.

Henri parecia triste e esperançado. Por que lhe importava se a menina melhorava ou não? Tinha visto homens reagir com indiferença à morte das suas filhas. Apesar da sua intenção de o evitar, o seu coração começava a apreciar aquele cavalheiro gentil que olhava com preocupação para a filha de uma serva.

Sorriu e viu que a expressão dele mudava num instante.

- Vem aí alguém - anunciou num sussurro. Ficai onde estais e não vos movais. Ev, arrasta-te até a esses arbustos da direita e tem a tua adaga preparada, filho.

Antes que lana pudesse reagir, o cavaleiro desapareceu em silêncio entre os arbustos da esquerda, depois de ter deixado no chão o cobertor que levava.

Ficou sozinha, com Tam ao colo e o peixe a grelhar devagar na pequena fogueira. Abandonada.

O ruído de alguém que se aproximava, o estalar das folhas debaixo dos seus pés, levou-a a agir. Fez a única coisa que lhe ocorreu: colocou Tam sobre a manta, agarrou numa pedra do tamanho do seu punho e foi em direcção ao intruso.

 

lana estava em pé, de costas para o ribeiro, com os pés separados e a esconder Tam com a saia. Fosse animal ou homem que se aproximava, estava disposta a abrir-lhe a cabeça se se atrevesse a incomodá-las. Inspirou fundo e conteve o alento.

- Eh, aqui, Woad! Bem te disse que iria para a água.

O homem diligente da aldeia apareceu entre o matagal e sorriu com uma boca desdentada. Era enorme, o estômago dobrava-se sobre a cintura e as suas pernas pareciam troncos de árvores. lana não se lembrava dele tão grande.

Outro homem, tão magro que parecia uma sombra do seu companheiro, seguia-o.

O maior pôs os braços na cintura e arqueou as sobrancelhas com ar ameaçador.

- Queremos o resto dessa prata, rapariga. Passa-a para cá.

lana abanou a cabeça.

- Se não tens mais prata, veremos que outra coisa podes oferecer-nos por nos teres incomodado. Tens tesouros debaixo da saia, tens?

- Não obterão nada de mim - declarou ela. Onde raio estava agora o cavaleiro? Henri talvez não pudesse protegê-la, mas ao menos podia ter-lhe deixado a sua adaga. Levantou a pedra; teria que se conformar com ela.

O mais magro aproximou-se mais e olhou para a pedra com desprezo.

De repente, o mato por detrás dos dois homens adquiriu vida. Henri e Everand apareceram com as adagas empunhadas.

Os seus gritos de raiva espantaram os pássaros e os cavalos. lana quase caiu em cima de Tam. Agachou-se rapidamente, agarrou na menina e escondeu-se com ela atrás da árvore mais próxima.

Observou a cena com a boca aberta. O aço cortava o couro e o tecido como se fossem manteiga. As duas lâminas estavam em todas as partes ao mesmo tempo, sem pausa.

Quando se deu conta, os dois ladrões estavam nus como o dia em que nasceram, gemendo e tapando com as mãos o que consideravam as suas partes mais preciosas.

lana tremia devido ao riso e ao alívio.

Henri, vestido só com as ceroulas, ameaçava o peito do maior com a ponta da adaga. O aldeão parecia uma verdadeira besta, com os ombros e as costas cobertos de pêlos pretos.

- A vossa pele seria um bom tapete - observou Henri com um grunhido ameaçador. Traçou um caminho fino com a adaga sobre o coração do outro e limpou a lâmina na sua barba.

- Mas seriam precisos anos para lhe tirar o fedor.

- Por favor, senhor - suplicou o grandalhão. Não queríamos fazer mal. Deixai-nos ir embora e não voltaremos.

Henri voltou-se para Everand.

- Que dizes, amigo meu? Matamo-los aqui ou deixamo-los ir e perseguimo-los? Apetece-te uma caçada? - anuiu com a cabeça, para dar a Everand uma pista do que esperava, já que o rapaz só entendia francês.

Everand, que apoiava a sua lâmina debaixo do queixo do mais magro, anuiu com a cabeça.

- Vinte passos de vantagem, pois. Dá-nos uma boa caçaria e será uma morte limpa. Se começarem a chorar e a gemer, esfolo-vos vivos. Sabem contar?

- Sim - gemeu o grandalhão, com os olhos arregalados de medo.

- Pois começa a correr enquanto eu conto até três! Um... dois... três - gritou Henri. Lançou um grito de guerra que qualquer escocês das Terras Altas invejaria e Everand lançou-se através do matagal atrás dos aldeões a gritar como um possesso.

lana ajoelhou-se no chão; ria com tanta vontade que lhe doía a barriga. Tam aconchegava-se a ela como uma gatinha assustada.

Henri encolheu-se ao seu lado com um sorriso amplo.

- Assumo que estais bem.

- Sim, muito bem - custava-lhe a respirar. Como raios haveis feito isso?

- É só um jogo - disse ele com modéstia. - Brinca-se melhor com espadas, mas não nos saímos nada mal.

- Sem dúvida. Não deixaram de correr um momento.

Henri levantou-se e estendeu-lhe a mão. A lana custou-lhe a afastar a vista dos seus músculos cobertos de suor.

O riso dele fez-lhe saber que tinha notado a sua fascinação. Fechou os olhos e riu-se por dentro. Ignorou a mão que ele lhe estendia.

Quando se atreveu a olhar de novo, Henri tinha-se retirado da beira da água e entrava no ribeiro de costas para ela. lana olhou de imediato para as suas nádegas, quase todas descobertas.

- Oh, meu Deus! - exclamou, admirada.

- Sim? - Henri olhou-a por cima do ombro. O que foi?

A jovem fez uma careta. Que foi? Luxúria. Luxúria simples e franca. E devia envergonhar-se de si mesma e sentir terror pelo que pensava. Nem sequer a promessa do paraíso podia impulsioná-la a desejar um homem. Isso seria a sua destruição.

- Nada - disse, ainda sem alento. - Ia rezar uma prece.

- Rezai uma por mim - implorou-lhe ele com uma voz divertida.

E mergulhou na água.

Nos dois dias seguintes, Henri seguiu quase sempre as instruções de lana e, quando protestava, ela dava-lhe razão. Era evidente que ela tinha viajado pouco, já que pressionava demasiado os cavalos e, enquanto durava o leite de Tam, esquecia-se de procurar comida a menos que lho recordassem.

Entrava sempre sozinha nas aldeias que passavam e comprava pão, algum queijo e outro saco da maldita aveia.

De vez em quando, parava a égua, desmontava e desaparecia um momento no bosque. Ao princípio, Henri pensava que respondia a alguma chamada da natureza, mas por vezes voltava com plantas que metia na sua bolsa de tecido. Depois, quando paravam para descansar, pedia-lhe que tomasse as plantas de uma forma ou outra ou fazia uma pasta com as folhas e aplicava-lha na ferida. Parecia muito capaz no seu trabalho, pois ele sentia-se cada dia melhor. A febre tinha desaparecido por completo e só tinha dor quando fazia movimentos bruscos.

Cada vez que o tocava ou sentia os seus olhos sobre ele, tornava maliciosos os seus pensamentos pouco galantes. Quanto mais se curava o seu corpo e se libertava da dor, mais o assaltava o seu desejo por ela.

Devia a vida a essa mulher. Podia oferecer-lhe o insulto da sedução? Certo que era viúva e tinha a sua honra intacta, ou pelo menos era o que ela dizia. Havia momentos em que ele acreditava, mas logo pensava na sua filha. Como tinha tido Tam sem esquecer a decência pelo menos uma vez na vida? Supunha que podiam tê-la forçado, mas procurava afastar aquele pensamento abominável, porque preferia pensar que tinha ido voluntariamente com um homem em vez de sofrer algo assim.

Embora sentisse que a punha nervosa, isso não desalentava o seu desejo. Desejava-a tanto que lhe doía.

Everand não tinha tardado a ocupar o espaço que Henri tinha posto entre a mulher e ele.

O falatório constante e o cavalheirismo exagerado do rapaz irritavam-no. A ele, que sempre tinha sido indulgente com os escudeiros jovens e os seus impulsos amorosos, e que não tinha sido nunca ciumento, nem sequer da sua esposa infiel.

- Quanto falta para que cheguemos a Baincroft, senhor? - perguntou Ev.

Henri encolheu os ombros.

- Sei quanto demora a viagem desde Odun, nas Terras Altas, até Baincroft. O meu irmão foi lá buscar a sua prometida o ano passado e disse-me quanto tempo tinha demorado. A julgar pela sua viagem e pelos mapas que estudei faz tempo, acho que temos de percorrer metade dessa distância. Depende do tempo que demorarmos a cruzar até Clyde. A passagem pelas colinas mais distantes será mais lenta. Três dias mais, suponho. Talvez quatro.

- Há um barco a norte de Largsmuth - informou lana. - Chegaremos antes da noite.

- Haveis viajado antes por aqui?

- Sim - confessou ela. - Embora nunca tenha ido mais a Este de Largsmuth.

Henri guardou silêncio, pensando se podia interrogá-la sobre a sua vida e o que a tinha levado até à aldeia onde a encontrou Ev. Até ao momento, ela não tinha acolhido bem as suas curiosidades e tinha-se limitado a ignorar as suas perguntas.

- Devia viver próximo de Clyde quando estava casada - comentou, de modo casual.

- Não - respondeu ela, sem olhar para ele.

- Então em criança, lana ficou em silêncio.

Henri sorriu para si. Acabava de encaixar mais uma peça do quebra-cabeças. Ela não era lana de Ayr, como tinha dito. Ayr era uma cidade costeira próxima de onde tinham tocado terra. E o seu lugar de infância estava próximo da Cordilheira Clyde. Não o tinha negado. E sabia que o nome de baptismo do seu avô era lan. Quando chegasse a Baincroft, indagaria se alguém conhecia um nobre chamado lan que vivia perto das montanhas Clyde.

Não sabia porque é que lhe parecia tão importante descobrir quem era. Talvez porque a desejasse muito e quisesse saber se estava disponível. Tentou afastar aqueles pensamentos indignos.

- Quanto custa passar Largsmuth? - perguntou.

- Um xelim, acho. O meu ir... Não me lembro do preço exacto - corrigiu.

Henri sorriu. Outro deslize. Estava certo de que tinha estado a ponto de referir o seu irmão.

Se o seu irmão a tinha acompanhado na encruzilhada, certamente era porque a escoltava a algum sítio; provavelmente levava-a ao seu futuro marido. As mulheres tinham poucos motivos além desse para sair de casa. Então, era provável que tivesse percorrido esse caminho ao contrário para se casar. Dizia que o seu marido tinha morrido. Por que não a tinha ido procurar a sua família se tinha ficado viúva e pobre?

Parecia que, quanto mais respostas obtinha de lana, mais perguntas apareciam.

lana temia aquela parte da viagem. Se tivesse dependido dela, não se teria arriscado a passar próximo de Largsmuth; teria apanhado o barco na costa ocidental e viajado para algum lugar desconhecido. Embora fosse improvável que alguém por ali a reconhecesse como irmã de Newell, podia acontecer. Ele tinha muitos amigos na zona que a tinham conhecido em menina. E apesar de tudo o que tinha passado, não tinha mudado tanto de aspecto, salvo por estar mais alta.

Sir Henri viajava à frente quando cruzaram a cidade. lana mantinha a cabeça inclinada e olhava para a direita e a esquerda, embora por sorte só visse desconhecidos.

Largsmuth era uma mistura estranha de edifícios, alguns de adobe e palha, outros de madeira. À frente destes últimos havia mesas largas com mercadorias.

- Vejo uma pousada ali à frente - anunciou sir Henri. - Passaremos a noite aqui - olhou-a. - E compraremos roupa nova nessas lojas. Não devemos chegar a casa do meu irmão com aspecto de mendigos.

Everand aclarou a garganta.

- Senhor, não temos nenhuma moeda. O cavaleiro sorriu com confiança.

- A senhora lana emprestar-nos-á alguma prata da corrente e devolver-lha-emos quando chegarmos a Baincroft.

- Não - negou ela com a cabeça. - Eu digo que não passemos a noite aqui nem gastemos a minha prata em tolices, senhor.

O sorriso dele desapareceu.

- Negais-me isto, senhora? Não vos tinha por mesquinha. Não acreditais que vos recompensarei? Recordo-lhe que salvámos a vossa prata dos ladrões. Se não fosse assim, já não a teríeis.

Nisso tinha razão. lana olhou à sua volta e não viu nenhum rosto conhecido. Seria assim tão mau descansar os ossos numa cama de plumas para variar?

Encontrar-se com alguém que a reconhecesse preocupava-a tanto como gastar a prata. Uma vez que tivesse o quarto na pousada, não teria por que sair. Sir Henri podia comprar o que necessitavam.

- Muito bem - anuiu de má vontade, - vamos para a pousada.

Henri assim fez.

- Leva os cavalos por essa rua- ordenou a Everand; apontando para o espaço entre a pousada e um posto de um mercador de tecidos. Acho que haverá um estábulo na parte detrás. Ocupa-te tu mesmo dos animais, porque não me fio de que os estranhos os tratem como é devido.

Voltou-se para lana e esperou. A jovem suspirou e abriu a bolsa que continha a corrente, que depositou na sua mão.

- Obrigado - sorriu ele. - Devolver-vo-la-ei poucos segundos depois, tinha separado vários elos com a lâmina da sua navalha.

A lana deu-lhe uma pontada no coração quando ele guardou a bolsa em vez de lha devolver. Restava menos de metade da corrente.

- Segui-me, senhora - disse ele. - Na taberna é certo que haverá rufiões.

lana fez o que lhe pedia, já que nunca tinha estado numa pousada e não sabia o que podia esperar lá dentro.

Quando passaram a porta, viu vários homens reunidos em redor de um banco que lhes chegava até ao peito. Riam e bebiam, já meios bêbedos.

Sir Henri cumprimentou-os amavelmente com um movimento de cabeça e dirigiu-se ao taberneiro.

- Procuramos quartos - disse.

- Só necessita de um - replicou o proprietário barbudo. - É grande e podem dormir os quatro. Duas camas.

Henri olhou para lana.

- Um, pois.

Avisou-a com um olhar que não protestasse, embora ela não tivesse intenções disso. Preferia estar acompanhada e um quarto custaria menos que dois.

Fez uma careta quando ele estendeu dois elos de prata; um teria bastado.

- Queremos quarto para uma noite, almoço suficiente para nos alimentarmos durante três dias de viagem, leite para a menina e palha para os cavalos. Traga-nos também três baldes de água quente quando puder aquecê-la - não tinha baixado a mão depois de entregar a prata. - E quero três marcos cambiados.

Dois dos homens do banco deixaram de beber para observar o acordo com o estalajadeiro. Este desatou a rir.

- Estais a brincar!

- Nada disso - declarou Henri com suavidade, mas muito sério. - Três marcos, nem um a menos. Ou procuramos quarto noutra parte.

O estalajadeiro voltou-se e cuspiu no chão. Meteu a mão numa bolsa que levava à cintura e tirou três moedas, que deixou na mão de Henri.

- Ah, bem, os tempos são difíceis.

Henri esperou um momento, levantou as sobrancelhas num gesto de desafio para os homens que o olhavam e seguiu o estalajadeiro escadas acima.

lana seguiu-o de perto. Aquele sítio dava-lhe medo e os homens pareciam perigosos.

Everand não demorou a reunir-se com eles.

- A palha está bem, senhor - informou. - Eu dei de comer aos cavalos.

- Mais logo vais lá vê-los - instruiu-o o seu amo. - Por agora, fica aqui com a senhora lana e Thomasina enquanto eu vou fazer os outros recados. Tranca a porta e não a abras até que oiças a minha voz. Regressarei antes que enviem alguém com o almoço e a água para nos lavarmos.

- Como desejais - disse Everand, - pai acrescentou.

Henri sorriu, pôs-lhe uma mão no ombro e apertou-o um momento. Saiu da estalagem e o escudeiro correu a pesada tranca que trancava a porta e olhou para lana com os braços cruzados.

- Não tendes nada a temer, senhora. Proteger-vos-ei com a minha vida. E à vossa filha também, claro.

- Alegra-nos muito contar com a tua protecção - disse ela, muito séria. - E agradecemos-te.

Ev afastou-se da porta e foi sentar-se na cama onde dormia Tam. Afastou uma madeixa de cabelo da cara da menina.

- Não se parece convosco.

- Não - admitiu lana.

- Eu tinha uma irmã - disse ele com suavidade. Vacilou um momento. - Morreu juntamente com a minha mãe.

A lana encolheu-se-lhe o coração.

- Lamento muito, Everand. E depois também ? morreu o teu pai?

O rapaz anuiu. Demorou um momento a falar.

- Acredito que estava cheio de pena e queria morrer. Os meus irmãos tinham-se ido embora e a minha mãe e a minha irmã tinham morrido. Só lhe restava eu. Quando lorde Henri veio um dia comprar tecido para um fato novo, o meu pai suplicou-lhe que me oferecesse emprego.

Levantou o olhar e sorriu com tristeza.

- Devíeis ter ouvido as coisas boas que o meu pai disse de mim quando lhe pediu isso, senhora. Eram mentiras, claro, mas sir Henri aceitou-as como verdades. Eu neguei-me a deixar a minha casa até que o meu pai desse o seu último suspiro. Então, o meu novo amo veio buscar-me e fez-me seu escudeiro.

- E agora, seu filho - acrescentou ela; sentou-se ao seu lado e cobriu-lhe a mão com a sua.

- Aposto que tanto o teu velho pai como o novo estão orgulhosos de ti, o pai do céu e aquele que dirige a tua vida aqui.

Ev encolheu os ombros com modéstia.

- Rezo para que seja verdade, embora por vezes tenha pensamentos indignos - olhou-a por entre as pestanas. - E, tal como a vossa pobre Thomasina, não cresci tudo o que devia.

O impulso de consolar aquele rapaz sem mãe foi mais forte que ela. Abraçou-o e beijou-lhe a testa.

- Consola-te, Everand. O meu irmão foi muito pequeno até que completou os dezasseis anos e depois cresceu quase tanto como sir Henri.

- Não pode ser verdade! - exclamou Ev. Olhou-a, esperançado. - Pensais que comigo acontecerá o mesmo?

- Já veremos - deu-lhe uma palmadinha na cara. - E se não acontecer, não importa. São os feitos que fazem o homem, Everand. Não te esqueças disso nunca. Os teus actos falarão por ti, não o teu tamanho nem a tua riqueza.

O rapaz baixou a cabeça, pensativo.

- Foi o que disse sir Henri. Suponho que devo acreditar.

Alguém bateu à porta e Everand saltou da cama com as mãos no cabo da navalha.

- Trago-vos a comida - declarou um homem.

- Não é o estalajadeiro - sussurrou lana.

- Voltai mais tarde - ordenou Everand em voz alta. - Deve ser um desses rufiões, que acha que nos pode roubar - sussurrou a lana.

Depois de uns momentos de silêncio, algo pesado golpeou a porta. A fechadura tremeu.

- Misericórdia, quer partir a porta! - exclamou lana.

- Pegai no penico e colocai-vos de um lado da porta - disse-lhe o rapaz. - Se entrar, apontai-lhe à cabeça. Eu rematarei com a minha navalha.

O homem voltou a pontapear a porta. lana agarrou no pesado penico de barro e colocou-se no seu posto. Everand tirou a sua navalha e adoptou uma posição de luta.

A porta cedeu ao terceiro golpe e caiu no quarto. lana bateu com todas as suas forças com o penico.

O rufião, atordoado, permaneceu onde estava, com a sua arma pronta para atacar.

Everand lançou a sua navalha e levantou uma cadeira de braços, que lançou também. A lâmina cravou-se no peito do rufião, que a agarrou com a mão esquerda exactamente no momento em ? que a cadeira lhe dava na cabeça. Caiu no chão desmaiado e a adaga que levava escapou-lhe da mão e caiu no canto com um ruído metálico.

Everand e lana permaneceram por um momento imóveis, sem reagir. Então, o escudeiro sorriu e encolheu os ombros.

- Conseguimos.

- Achas que está morto? - perguntou ela. Everand aproximou-se do homem e deu-lhe com a bota. Não se moveu.

Ajoelharam-se e tiraram o rufião de cima da porta caída para o deitarem de costas. Everand recuperou a sua navalha, que limpou na roupa suja do vilão.

lana procurou-lhe o pulso na veia do pescoço e não o encontrou. Da ferida do peito saía sangue. Se não o movessem, acabariam com um charco de sangue no chão.

- Acho que o matámos. Que fazemos agora?

- perguntou ela.

Everand pôs-se de pé e assomou-se ao corredor.

Ao que parecia, o ruído da luta não tinha chamado a atenção. Ou talvez aquele tipo de ocorrência fosse tão habitual que passava desapercebido.

O escudeiro observou o rufia e suspirou com força.

- Podemos levantá-lo o suficiente para o atirarmos pela janela? - perguntou.

- Acho que sim - respondeu lana. - É bastante grande, mas somos dois.

- Vamos despachar isto. Estou certo que o estalajadeiro não gostaria nada.

lana tinha a mesma opinião. Mesmo que pudessem provar que o homem queria roubá-los, coisa que não podiam, teriam que permanecer ali até que houvesse uma averiguação sobre a sua morte. E não queria pensar no que podia acontecer-lhes, já que não podiam provar que o homem queria fazer-lhes mal.

Arrastaram o homem até à janela que dava para a parte traseira do edifício e, com grande esforço, conseguiram introduzir a metade superior do seu corpo e empurraram-no até que caiu no chão, entre a estalagem e as quadras.

- Achas que alguém descobrirá que o atirámos por esta janela? - sussurrou ela.

- Não acho que ninguém nos tenha visto - assegurou-lhe Ev. - Com sorte, quando o descobrirem pensarão que o terão atacado na rua.

Começou a colocar a porta no seu sítio e a jovem correu a ajudá-lo. Entre os dois, conseguiram pô-la na vertical. Embora não tivessem maneira de a segurar, pelo menos oferecia-lhes alguma intimidade. E caso se aproximasse mais alguém, bateria em vez de entrar directamente.

- Haverá sangue do lado de fora da porta? perguntou ela.

Ev deu-lhe uma palmadinha no braço.

- Não temais. Não havia muito. O pior é o charco próximo da janela, onde o levantámos.

- Eu encarrego-me disso - declarou ela. Tirou os panos que levava consigo para usar como vendas e limpou tudo o que pôde. A madeira estava tão suja depois de anos de uso que as manchas que ficavam mal chamavam a atenção.

Por sorte, a pequena Tam tinha passado todo o incidente a dormir. lana pensou que, no conjunto, as coisas podiam ter corrido muito pior.

- O penico foi muito boa ideia, Ev - disse, com voz menos firme do que gostava.

- A sério? - perguntou ele com orgulho.

- Sim. E a tua pontaria com a navalha é incrível. Parabéns.

- Sir Henri diz que sou um rapaz com recursos - ajudou-a a apanhar os bocados do penico que cobriam o chão e a juntá-los sobre a manta pequena que ela tinha estendido no chão. Disse-mo muitas vezes.

lana suspirou.

- E sobre a humildade não te disse nada? - inquiriu.

Ev inclinou a cabeça para um lado e pensou um momento. - não que eu tenha ouvido.

lana não teve problemas em acreditar. Quando acabaram a sua tarefa, juntaram os extremos da manta e levaram-na até à janela. Acabavam de lançar o seu conteúdo à rua quando bateram com força à porta.

A porta caiu no quarto com um golpe. lana deu um salto e Ev chamou-lhe a atenção.

Henri estava de pé no umbral, com o punho levantado, e olhava com a boca aberta para a porta caída.

 

Henri entrou no quarto e deixou a um lado as coisas que tinha comprado.

- Que raio é isto? O que é que aconteceu com a porta?

- Tivemos um visitante não desejado, senhor

- anunciou Everand com arrogância, - mas conseguimos fazer-lhe as honras sem vós - apontou para a janela.

Henri atravessou o quarto e assomou-se. Na rua jazia um homem imóvel. Outro ajoelhou-se sobre ele. Teria saltado o ferido pela janela?

- Fez-vos alguma coisa? - perguntou. Olhava ainda para o intruso, que o outro homem tinha começado a arrastar.

- Em absoluto - disse lana. - Embora receie que tenhamos partido o urinol.

- É uma boa arma, senhor - anunciou Everand com orgulho. - E a senhora maneja-a bem.

lana anuiu, aceitando o cumprimento. Henri olhou-os, incrédulo.

- Golpeaste-lo e saltou pela janela? lana e Everand entreolharam-se.

- Não o deixámos entrar e deitou a porta abaixo - explicou ela. - Eu golpeei-o e Everand cravou-lhe a navalha no coração e lançou-lhe a cadeira à cabeça. Nós os dois atirámo-lo pela janela.

Henry olhou para a adaga desconhecida abandonada no canto do quarto. Um calafrio percorreu-lhe o corpo, e abanou a cabeça.

- Quereis dizer que... que podia ter...?

- Sim - anuiu ela. - Mas não importa. Já passou. E acho que devíamos sair daqui o quanto antes.

- Sim, isso seria o melhor - murmurou Henri. lana tinha razão. Ferido como estava e sem todas as suas forças, só podia defender-se contra vilões ineptos, não contra a lei escocesa. E de certeza que aquilo teria repercussões.

- Isto não me agrada nada - grunhiu. Everand sentiu-se ofendido.

- Usei a minha lâmina como vós me ensinastes. E a senhora lana foi muito corajosa. Não acho que...

- Não estou a censurar-vos - Henri respirou fundo. - Está morto, não?

- Sim - disse lana, que se mostrava mais ? - amedrontada agora que tinha passado a adrenalina do encontro. - Acho que já estava morto quando o atirámos pela janela. Henri passeava pelo quarto, pensativo.

 

- Era daqui. Vi-o a beber com os outros quando chegámos. Não veio o estalajadeiro nem enviou ninguém para investigar o ruído?

- Não veio ninguém, senhor - respondeu Everand. - Achais que o estalajadeiro podia saber que o seu amigo vinha roubar-nos?

Henri anuiu.

- É provável. Pelo que ele sabe, podemos ser viajantes franceses de quem ninguém sentirá falta se desaparecermos. E é o melhor que podemos fazer depois de termos matado um dos seus. Pode ser que não acreditem que tínhamos bons motivos.

- Sim, eu pensei o mesmo - anuiu lana. Henri agarrou na adaga comprida do rufia, na

trouxa de roupa que tinha comprado e em dois dos sacos.

- Rápido, Ev, traz o resto. lana, trazei a menina. Vamo-nos embora antes que dêem o alarme.

- Enforcar-me-iam, senhor? - perguntou Ev.

- Depois de tudo, esse homem queria atacar-nos.

- Sir Henri tem razão, Ev. Não ficaremos para averiguar - disse lana, que já pendurava a menina às costas.

Tam tinha acordado, mas estava calada, como sempre. Henri teria jurado que os seus olhos enormes expressavam medo. Sorriu-lhe com doçura.

- Bem, vamos - disse com suavidade. Desceram devagar as escadas. O estalajadeiro

não estava, embora houvesse outros homens a beber canecas de cerveja e a discutirem entre si.

Saíram com naturalidade e dirigiram-se às quadras, que estavam desertas excepto pelos seus cavalos.

Minutos depois, afastavam-se da estalagem a passo lento para não chamarem a atenção. Aproximava-se a noite e as lojas estavam a fechar. Havia menos pessoas na rua que antes e Henri confiava que a sua partida não se notasse pelo menos até que estivessem longe.

- Por onde se vai para o barco, senhora? perguntou a lana.

Ela indicou com a mão e o cavaleiro pôs o cavalo a trote e foram até lá. Henri esperava que o encarregado do barco quisesse fazer uma viagem mais, apesar da proximidade do pôr-do-sol. Não lhe agradava ter que recorrer à força.

Bem podia acontecer que o incidente não tivesse consequências. Talvez enterrassem o rufia e o esquecessem de seguida, mas Henri recordava quão preocupado parecia o homem ajoelhado sobre ele. Se o estalajadeiro conhecia as intenções do vilão e encontrasse rastos de sangue no quarto que lhes tinha alugado, podiam tentar apanhá-los.

Os escoceses gostavam da vingança mesmo entre si. E não desaproveitariam aquela oportunidade de a fazer contra três pessoas de fora.

lana observava Henri a negociar com o barqueiro de uma distância segura. Mais prata mudou de mão... Demasiada para o seu gosto. Quando chegassem ao seu destino, voltaria a estar na pobreza. Mas isso não lhe importava se o comparasse com a ideia de enfrentar uma acusação de assassinato.

Quando Henri lhe fez um sinal, aproximou-se e desmontou ao seu lado. Levaram os cavalos para a jangada grande, que oscilava perigosamente com a corrente. O rio parecia mais agitado que a última vez que o tinha atravessado.

O seu irmão tinha-lhe dito que a ria se estreitava e se tornava mais superficial naquele lugar, e por isso tinham situado ali a balsa.

À luz do crepúsculo, a outra margem não parecia muito longe. Dava a impressão de que podia atravessar-se a nado se houvesse menos corrente e a água não estivesse tão fria.

O barco era uma jangada larga e plana, com laterais que chegavam quase até aos ombros, construída para transportar carga e cavalos, além de pessoas. Dois barqueiros ocupavam-se do leme e outros dois manejavam os remos compridos para impulsionar o barco. Com os três animais e as sete pessoas, a jangada parecia atestada.

lana estremeceu. Não gostava de barcos. Os movimentos da água marcavam-na. As velas não estavam ainda desfraldadas, e os homens do remo empurravam com força para chegar a águas mais profundas.

Acabavam de começar a viagem quando Tam começou a mover-se um pouco nas suas costas, sinal evidente de que necessitava de sair de imediato. lana ajoelhou-se e Everand correu para o seu lado e tirou-lhe a menina.

- Bendito sejas - sorriu a mulher. Agarrou na menina nos braços e pôs-se de pé com ela apoiada nos seus ombros. Os movimentos do barco faziam com que cambaleasse, pelo que se encostou à amurada. - Podes ir buscar-me o seu penico? - perguntou.

De repente, o cavalo baio relinchou e cambaleou para um lado, movendo os pacotes. Everand, que estava ajoelhado, caiu para trás contra lana e acertou nos ombros de Tam, que saiu desamparada por cima da amurada.

lana gritou. Henri, que sem dúvida tinha visto o sucedido, lançou-se à água. Os homens dos remos detiveram-se. Everand tentou também lançar-se à água, mas lana deteve-o agarrando-o com ambas as mãos.

- Senhor! - gritou o rapaz, a lutar para se soltar. - Afogar-se-á, senhora. Deixai-me ir.

lana agarrou-se a ele e empurrou-o contra o chão do barco.

- Não podes salvar os dois. Fica quieto - gritou.

Um dos homens do remo aproximou-se com cuidado do ponto onde tinha mergulhado Henri, inclinou-se e estendeu a mão. A jangada balançou, mas permaneceu no seu sítio. lana fechou os olhos e rezou em silêncio. Ev soluçava como uma criança. Os minutos pareciam horas.

- Aqui! - gritou o homem do remo. Agarre-se! É isso. Passai-me a pequena.

lana soltou Everand e acudiu a ajudar. Um instante depois, o homem do remo colocava-lhe uma empapada Tam nos braços e voltava para o seu posto para lançar uma corda e gritar instruções a Henri.

A menina tremia com violência e lana abraçou-a e tentou secá-la com o seu vestido.

O barco balançou uma vez mais quando Henri subiu pela amurada com a ajuda do homem do remo e de Everand. Aterrou de golpe na coberta e gatinhou imediatamente em direcção a ela.

- Está viva? - perguntou.

A menina, em resposta, lançou um grito que acabou num tom forte.

- Graças... a... Deus - murmurou Henri. Deixou-se cair no chão.

- Trata dele, Everand - ordenou lana, com a voz embargada de lágrimas de alívio. - Ocupa-te do teu pai.

O homem do remo voltou para o seu posto e Everand procurou o pacote com a manta de lã e envolveu Henri com ela.

A jovem sentou-se no chão, com as costas apoiadas na amurada, e continuou a abraçar Tam, que parecia ter ganhado vida com o acidente. Debatia-se e gritava como qualquer outro menino que tivesse passado por águas geladas. Lana tirou-lhe a camisa de dormir molhada que levava e envolveu-a no tecido suave que usava para a transportar às costas. Cochichou-lhe palavras tranquilizadoras e Tam não tardou a acalmar-se e a chupar ritmicamente os seus dedinhos frios.

lana suspirou. Milagrosamente, estavam todos a salvo. Pelo menos de momento.

- Como está? - perguntou a Everand.

- Vivo - respondeu Henri, que lutou por se sentar e apertou a manta contra o seu corpo.

- Congelado. Thomasina?

lana beijou os caracóis pegados à cabeça da menina e apoiou a cara onde a tinha beijado.  

- Está a aquecer. Ouviste-la? Chorou. O cavaleiro soltou uma gargalhada.

- Aposto que a ouviram chorar até em Paris. Everand riu e depois voltou a chorar com força. Henri abraçou-o.

- Vamos, dá-me calor, filho. Acho que tu e eu vamos ter que nos afastar da água; não nos tem trazido muita sorte, não é? - murmurou.

A sua voz, cheia de afecto, encontrou eco no interior de lana. Uma ânsia desoladora apoderou-se dela. Pensou se Henri poderia também salvá-la de se afogar, no caso de ela se atrever a deixá-lo tentar.

Quando desembarcaram, Henri entregou mais um elo de prata e agradeceu ao homem dos remos por tê-lo ajudado a salvar a menina. Sabia que ele teria sobrevivido, mas duvidava que pudesse ter subido a menina a bordo sem ajuda.

Encontrá-la na água já tinha sido uma sorte. Se não fosse pela sua camisola de dormir larga e branca, sabia que certamente não a teria visto.

Sentia-se como se tivesse nadado metade do rio. O tronco doía-lhe terrivelmente e a cabeça parecia a ponto de explodir. E tinha mais frio que nunca na sua vida. Teria, que acampar nalgum lugar próximo; sabia que não era o único que necessitava de descansar.

Ajudou a montar lana, que levava Tam atada à frente, para a aquecer melhor contra os seus seios. A pobrezinha tinha por fim adormecido depois de chorar durante a maior parte da encruzilhada. Henri deu-lhe uma palmadinha nas nádegas por cima do tecido e sorriu para lana.

- Pode ser que nunca mais queira tomar banho depois desta aventura.

Ela devolveu-lhe um sorriso.

- Aposto que não.

- Parece que o susto lhe soltou a língua - observou ele. - Sempre foi tão calada? - Esfregou as costas da menina com gentileza.

lana não respondeu à sua pergunta; só olhou para Everand.

- O vosso escudeiro necessita de dormir, senhor, e depressa estará muito escuro. Montai e procuraremos um refugio.

Henri anuiu com a cabeça, triste por ela sentir necessidade de se mostrar tão silenciosa sobre a sua filha. O feito de Tam ter sido concebida fora do leito conjugal explicava que se negasse a falar muito dela; devido a isso, tinha-se visto obrigada a viver assim.

As mulheres podiam ser executadas legalmente por infidelidade, embora não costumasse ser assim, sobretudo se a traição ao marido não tinha sido voluntária. Por norma, se as expulsavam de casa, desapareciam num convento ou simplesmente faziam-se à vida para sobreviverem como pudessem. O mesmo podia acontecer a uma mulher nobre que tivesse um filho sem estar casada ou prometida.

Henri pedia no seu interior que a lana não lhe tivesse ocorrido nada disso, mas não podia imaginar nenhuma outra razão para as suas circunstâncias.

Dizia que tinha estado casada, mas, de algum modo, não parecia completamente acordada para os prazeres possíveis entre um homem e uma mulher. Desejava, mas temia esse desejo. Perguntou-se se teria inventado o marido, mas, se assim fosse, por que não inventara também que Tam era filha da dita união?

Negou-se a continuar com o quebra-cabeças, porque estava esgotado.

- Temos que passar essas montanhas, senhor?

- perguntou Everand, apontando para a cordilheira de Carrick Hills.

- Iremos para norte - respondeu Henri, onde não são tão empinadas, embora demoremos mais.

- Não! - exclamou lana. - Não iremos para Norte.

Henri olhou-a.

- Porquê?

- Porque... porque eu não quero. Henri não discutiu. Também não anuiu.

- Pararemos nesse prado, próximo das árvores. Amanhã decidiremos o caminho.

Suspeitava que não queria viajar para norte por medo de encontrar algum conhecido. Estava certo de que era isso.

Acamparam entre o refúgio das árvores.

- Faz uma fogueira, Ev - disse o cavaleiro. Vós, senhora, se tiverdes força, procurai a roupa que comprei para mim em Largsmuth. Também há uma roupa para a Thomasina. Everand e vós podeis reservar as vossas até à nossa chegada a Baincroft, se quiserdes, mas Tam e eu temos que nos secar antes de adoecermos.

- Haveis comprado coisas para nós? - perguntou ela, que parecia pouco satisfeita. - Não necessitávamos.

- Encontrei uma esposa de mercador disposta a vender coisas. Estava a fazer um vestido infantil e perguntei-lhe se tinha outro que pudesse vender-me - explicou-lhe ele. - E já vos disse que substituirei a prata que gastar.

Pareceu-lhe ver que ela fazia uma careta.

- Duvidais de mim? - perguntou.

lana não respondeu, mas deixou a menina sobre a erva e foi fazer o que lhe pediam. Lançou a camisa e os calções dele ao chão, a seus pés, e vestiu rapidamente a menina. Tam encolheu-se sobre o tecido em que a transportava, meteu o dedo na boca e fechou os olhos.

- Bom, que esperais? - perguntou lana. - Tirai essa roupa molhada e eu terminarei isto.

- Muito bem.

Henri afastou-se com a roupa seca e vestiu-a, lamentando não poder reservá-la para a sua chegada a Baincroft em vez de ter que dormir com ela várias noites.

Afastou o cabelo da testa e prendeu-o atrás das orelhas. A barba tinha-lhe crescido, e de certeza que tinha um aspecto terrível. No dia seguinte afiaria a sua navalha e barbear-se-ia. Rob não deixaria nunca de gozar com ele se aparecesse em casa com o aspecto de besta que tinha nesse momento.

Baincroft parecia-lhe nesse momento o seu lar, apesar de possuir mansões muito mais ricas na sua terra natal. Embora tivesse já catorze anos quando chegou à Escócia, aquele foi o primeiro lar de verdade que conheceu.

Sim, o breve exílio do seu pai resultou ser uma bênção para os dois. Lady Anne converteu-se na mãe que Henri não tinha tido e o seu filho, em seu irmão. Aqueles dias passados em Baincroft como parte de uma família tinham sido os mais felizes da sua vida.

Custou-lhe muito a ir-se embora e cumprir com o seu dever para com a França quando chegou o momento. Mas os vassalos do seu pai necessitavam de um senhor. E agora ia voltar ao seio da família.

Pensou em lana, que não podia conhecer uma alegria assim. A sua família podia estar nesse momento mais próxima inclusive que a dele, mas ela temia encontrar-se com algum parente por acidente, ou ao menos era a impressão que dava.

Teria que viver num lugar estranho, sem amigos, sem conhecer ninguém excepto Everand e ele. E estava claro que não confiava nele.

Avançou para a fogueira e viu que Everand tinha adormecido na erva ao lado. Tam dormia também envolta no tecido.

lana observou-o a aproximar-se.

- Tendes fome? - perguntou.

- Muita - confessou ele. Sentou-se ao seu lado e aceitou o que lhe ofereceu. - Ah, queijo! Posso construir um arco e caçar algo amanhã. Poderíamos descansar aqui um dia.

- Não, eu prefiro continuar - disse ela com firmeza. - E quero que viajemos através das colinas, não para norte.

Henri não respondeu de seguida. Terminou de comer e bebeu a água que ela tinha trazido do rio.

- Bem, que dizeis? - perguntou lana. ? O cavaleiro suspirou. - O caminho pelas colinas é mais curto, mas seria difícil e teríamos que fazer grande parte a pé. Não vejo que ganhemos tempo.

- Pelo menos não nos encontrarão, se os da cidade enviarem alguém atrás de nós.

Henri olhou-a nos olhos.

- E vós teríeis menos possibilidades de vos encontrardes com a vossa família, que vive a norte daqui, não é?

lana olhou para ele, surpreendida.

- Deixai esse assunto, senhor. Não é assunto vosso.

- Há alguma esperança de poderdes reconciliar-vos com eles? - perguntou ele com gentileza.

- Nenhuma - declarou ela. Levantou-se para se afastar.

- lana, esperai! - Seguiu-a e pôs-lhe uma mão no ombro. Baixou a cabeça e roçou-lhe na cara com os lábios. A sua pele era muito suave e doce. - Perdoai-me, não pretendia arrancar-vos segredos.

- Não? - Ela afastou-se e olhou para ele, furiosa. - A vida é minha, ouvistes? Minha, e comprada a um preço muito alto. Se não aceitais isso, separamo-nos aqui e agora. Nenhum homem voltará a forçar-me a nada.

- Alto! - exclamou ele. - Quando tentei eu forçar-vos a algo?

Ela abanou a cabeça, cruzou os braços e encolheu os ombros, onde ele a tinha tocado. Henri sabia que não a tinha segurado com força.

- Temeis-me? - perguntou com suavidade. - Por favor, não o façais. Eu jamais vos faria mal nem por palavras nem por actos - aproximou-se de novo e agarrou-lhe o rosto entre as mãos. Juro-vos.

lana afastou-se com rapidez.

- Não tenho medo - disse.

Mas tinha. Henri detectava-o na sua voz e nos seus actos. Tanto a aterrorizava o seu contacto? Tanto a tinha maltratado algum homem que os tomava a todos por iguais?

Talvez nunca o soubesse.

- Admiro-vos - disse, mudando de táctica. Desejava ganhar a sua confiança. - Poucas mulheres teriam podido sobreviver como vós haveis feito. Não sei o que haveis suportado antes de nos conhecerdes, mas só esta viagem teria feito desmaiar muitas.

- Eu nunca desmaio - murmurou com a cabeça baixa.

- Nem recorreis a faniquitos, graças a Deus - disse ele, e riu ao ver que o olhava com fúria. - O último arrebato não conta. Não era mais que uma forte defesa da vossa intimidade.

lana forçou um sorriso e anuiu com a cabeça.

Henri compadeceu-se dela. Necessitava de descansar. Depois teria tempo para indagar os mistérios do seu passado.

- Deveis dormir - sugeriu, - e eu, também.

Amanhã será árduo passar por essas montanhas.

- As montanhas - anuiu ela.

Sorriu-lhe com gratidão e, como tinha conseguido devolver-lhe o bom humor, Henri atreveu-se a pedir-lhe um favor.

- Tam tem o tecido de lã e Ev, a manta - disse com suavidade. - Quereis dormir a meu lado para nos darmos calor?

lana pôs-se tensa como se a tivessem esbofeteado.

- Não dormirei ao lado de homem nenhum! exclamou. - Por razão alguma.

 

lana esperava que se zangasse ou se risse dela. Os homens não costumavam acreditar que uma mulher se lhes negava e, quando o faziam, enfureciam-se até ao ponto de se tornarem violentos. Mas Henri não gozou com ela nem a ameaçou. Limitou-se a observá-la com uma expressão de compaixão.

- Como desejardes - disse com suavidade. Inclinou a cabeça num gesto de derrota. Peço-vos perdão se vos ofendi, mas só estava a pensar em combater o frio da noite.

lana aceitou as suas desculpas com uma inclinação de cabeça e retirou-se para o lugar onde dormia Tam.

Henri confundira-a. Nunca tinha conhecido um homem como ele. Nem uma única vez o tinha visto realmente furioso. Até quando cortava a roupa do ladrão no bosque, havia uma nota de humor nas suas ameaças. E quando adoptava um tom cortante com Everand ou com ela, estava claro que o fazia por medo de que lhes acontecesse algo.

A atracção que lhe produzia assustava-a. Nesse momento da sua vida, a única coisa que lhe faltava era sucumbir à luxúria. Ela, que sabia muito bem onde as palavras podiam levar uma rapariga. Se não tivesse cuidado, podia acabar a mendigar para ela e duas crianças.

- Que durmais bem, senhora - sussurrou ele do outro lado da fogueira.

- Igualmente - respondeu ela. - Obrigada acrescentou depois de um momento de vacilação.

Confiava que compreendesse que a sua gratidão ia mais além do desejo de que dormisse bem. Acreditava já que não a forçaria de modo nenhum; era mais de si mesma que não se fiava para dormir ao seu lado na procura de calor.

Algo em Henri a atraía com uma insistência que lhe era quase impossível negar. Ele era amável e galante e parecia interessar-se sinceramente pelas outras pessoas. Sabia bem que o que a atraía nele era algo mais que o seu corpo grande. Embora tivesse que admitir que isso também contava...

Suspirou e surpreendeu-se a pensar como seria o amor com um homem como ele. A sua experiência como esposa não lhe tinha oferecido nenhum prazer e sim muita dor. Sabia instintivamente que com Henri seria diferente. Mas diferente como?

Parecia gentil, mas a paixão torná-lo-ia brusco? As exigências do seu corpo torná-lo-iam agressivo como aconteceu ao seu esposo e como dizia a esposa de Newell que aconteceu no seu casamento? Henri far-lhe-ia mal ou dar-lhe-ia o prazer com que tinha sonhado noutro tempo que podia dar-lhe um homem?

Sentia muita curiosidade, mas não podia permitir-se ceder a ela. Fazê-lo implicava renunciar à sua independência. Se permitisse que Henri a possuísse, haveria mais consequências além da possibilidade de engendrar um filho. Tornar-se-ia responsável por ela, gostasse ou não. Era esse tipo de homem.

Ditar-lhe-ia onde tinha que viver e todos os movimentos que podia fazer. Não teria poder de decisão sobre a sua vida. E isso era algo que lana não podia permitir depois do breve período de liberdade que tinha conhecido como viúva.

Apoiou a cabeça no braço, acomodou-se em torno de Tam e tentou ignorar o frio que podia ter evitado aceitando a oferta de Henri. Quando por fim adormeceu, sonhou com ele, e na sua fantasia ambos encaixavam perfeitamente em corpo e alma.

Não havia amo nem ama, nem luta pela autonomia. Só o prazer de dar e receber e, depois, um calor e um consolo que a levavam a não querer acordar.

Henri empurrou Ev com a ponta da bota e sussurrou:

- Acorda, dorminhoco. Vai à procura de água enquanto eu atiço o lume. Olha o que eu encontrei.

O escudeiro abriu um olho e olhou para ele. De seguida, acordou com um sorriso. -Ovos!

- Chiu! Desfrutaremos deles e da perdiz que no-los ofereceu. Quero acordar a nossa dama com o cheiro de pássaro assado. Despacha-te se tens fome.

O rapaz obedeceu e Henri dispôs-se a preparar a comida. Primeiro afiou uma extremidade de um comprido ramo de carvalho verde que tinha apanhado e cravou dois ramos em forma de garfo no chão. Em cima deles colocou o primeiro. Depois depenou o pássaro e tirou-lhe as tripas.

Aquilo lembrou-lhe a sua infância em Baincroft, quando Rob e ele iam caçar durante dias inteiros. Assim aprenderam muitas coisas que não se relacionavam geralmente com os filhos da nobreza como, por exemplo, cozinhar e fazer armas com o que pudessem encontrar. Por vezes consideravam-se cruzados obrigados a viver da terra e outras vezes, eram foragidos que fugiam da justiça ou cavaleiros errantes em busca do Santo Graal.

Olhou com ternura para a mulher e para a menina adormecidas, contente de ter agora a capacidade de lhes oferecer algo tão simples como uma comida decente.

A receosa lana certamente suspeitaria que queria seduzi-la com a comida. Sorriu e pôs a assar a perdiz enquanto cantarolava para si. Sentou-se à espera que Ev voltasse com a água para cozer os ovos.

Olhou de novo para lana e para a comprida trança dourada que tão raramente via. Durante a noite, tinha-lhe soltado o gorro com cuidado só para ter aquele prazer quando o sol nascesse. Até os débeis raios do amanhecer lhe davam um brilho de que desfrutava imensamente.

A cor do seu cabelo continuava a surpreendê-lo. Devia ser do mesmo tom que os seus olhos e sobrancelhas; no entanto, possuía a tonalidade do ouro. Henri moveu a cabeça, a sorrir. A cada hora que passava, desejava-a mais.

O seu delicado aroma e a lembrança do contacto das suas mãos quando lhe tratava da ferida atormentavam-no constantemente. O mistério do seu passado acrescentava-lhe ainda mais encanto. Adoráveis mistérios!

Claro, jamais poderia casar-se com ela. Se alguma vez voltasse a casar-se, teria que ser com a filha de um nobre francês. Era o que se esperava dele. Mas se lana chegasse a amá-lo, não via nada de vergonhoso num presente de coração.

Desde logo, não seria mais censurada publicamente que quando teve a sua filha. Podia levá-la para França e mantê-la no luxo, dar-lhe o melhor que podia oferecer a vida. Reconheceria Tam como filha como pensava fazer com Everand. A filha de um futuro conde, bastarda ou não, casar-se-ia bem quando chegasse o momento.

Ah, se a vida já era maravilhosa, melhoraria ainda mais. Se ganhasse a confiança de lana, fá-la-ia admitir o desejo que lia nos seus olhos e seria sua. Valia a pena esperar. E depois ela já não teria que se preocupar mais com o que seria da sua filha e dela. Ele cuidaria de ambas.

lana não queria abrir os olhos. Tinha sonhado com festas a que fazia meses que não ia. O maravilhoso odor perdurava e impregnava o ar à sua volta. Esticou os braços e respirou fundo antes que o acordar expulsasse o imaginário.

- Bom dia, senhora - cumprimentou-a sir Henri.

Ela pestanejou e então viu o que ele fazia.

- Bendito sejais, haveis encontrado comida de verdade! - Aproximou-se da fogueira para saborear melhor o delicioso aroma.

- Olhai - sussurrou ele, olhando para um ponto atrás dela.

lana voltou-se e viu Tam, que se aproximava deles de gatas pela erva. Emitia pequenos grunhidos de frustração quando tropeçava e perdia o equilíbrio.

lana soltou uma gargalhada de alegria e abriu os braços. Ao olhar para Henri, viu a sua expressão de orgulho, como se fosse o responsável por aquilo. E de certo modo, talvez fosse assim. Se lana não se tivesse afastado da menina com a perspectiva daquela comida, Tam talvez não se tivesse dado ao trabalho para provar a sua habilidade. A sua queda ao rio parecia tê-la acordado.

- Sim, rapidamente - lana agarrou-a pelos braços e recompensou-a com um beijo. - És uma menina encantadora. Muito corajosa.

- E terá o seu prémio - disse Everand, sentado no lado oposto da fogueira. Apontou para uma pequena malga que lana tinha levado consigo para misturar ervas nos carvões ardentes e ela viu que continha três ovos de perdiz cobertos de água.

- Vi uma família de viajantes quando fui buscar a água - disse o rapaz. - Falaram-me, mas não entendi o que diziam, lana olhou para Henri.

- Essas pessoas falarão desse encontro disse. - E se forem para Largsmuth e o mencionarem?

Deixou Tam no chão e começou a recolher as suas coisas.

- Temos que ir antes que nos encontrem. Henri permaneceu onde estava.

- Estou de acordo que devemos ir rapidamente, mas não agora mesmo. Mesmo que façam o que temeis, demorarão algum tempo a chegar ao barco e atravessar o rio. Até lá, e supondo que se encontrem com alguém que nos procure, já estaremos nas montanhas. Não temais. De certeza que temos tempo de comer.

lana queria afastar-se dali o quanto antes. Mal pôde apreciar a comida. Só quando montaram e estavam já a uma boa distância das margens do Clyde, começou a respirar com calma.

Preocupava-se tanto com que os encontrassem e obrigassem a regressar a Largsmuth como com as consequências da morte do homem. O seu irmão Newell desempenhava as funções de juiz em assuntos importantes e temia que a cidade estivesse dentro da sua jurisdição.

Viajaram todo o dia e só pararam para descansar os cavalos e atender rapidamente às suas próprias necessidades. lana suspeitava que Henri só queria chegar a casa do seu irmão o quanto antes possível. Não parecia preocupar-se nada com a possibilidade de alguém de Largsmuth os seguir.

- O percurso é duro, mas eu tentei avisar-vos - disse-lhe Henri.

Tinham tido que desmontar para subir uma encosta especialmente inclinada. O cavalo de Everand escorregou e esteve a ponto de cair antes de recuperar o equilíbrio.

Quando a escuridão os impediu de prosseguir viagem, pararam para passar a noite e continuaram ao amanhecer. De novo lana sonhou com prazer e calor, mas os seus sonhos não a confortavam nada e acordou com uma vaga insatisfação.

Levantou-se de mau humor. Durante a viagem, teve motivos para apreciar a época em que Tam não protestava. Agora a menina queixava-se e chorava de modo regular e, além disso, mexia-se no pano como um peixe no anzol.

lana achava que tinha ganhado peso. Comia mais que nunca. Ou talvez fosse porque já não ficava imóvel como uma marioneta sem vida.

Henri ofereceu-se várias vezes para a aliviar da sua carga e ela acabou por aceitar. Sempre que trocavam a menina, as suas mãos roçavam-se. Inclusive, uma vez ele atreveu-se a colocar as mãos nos ombros de lana e massajou-lhe os músculos doloridos. A deliciosa sensação fê-la suspirar e desejar mais.

A meio do segundo dia, Henri puxou-a pelas rédeas da sua égua.

- Já deixámos o pior para trás - anunciou, lana viu que já só havia pequenas colinas diante deles.

- Onde estamos? - perguntou. - Sabeis? Henri anuiu com a cabeça e pôs o cavalo a passo.

- Estou quase certo de que Kelso fica a umas léguas para sul. Baincroff está a noroeste, a meio dia de cavalo, segundo os meus cálculos.

- Não devíamos seguir um caminho traçado até a uma aldeia e perguntar o caminho? - inquiriu lana.

- Quando o terreno se aplanar, saberei onde estamos.

lana respirou com força e abanou a cabeça.

- Já sabia. Estamos perdidos.

- Não é verdade - protestou ele. - Eu nunca me perco.

lana reprimiu um sorriso.

- Não? Pois chegaste ao lado oposto da Escócia ao que queríeis ir.

Henri cerrou os dentes.

- Há uma excelente razão para...

- Ali, senhor! - interrompeu Everand. – Vejo fumo, demasiado para uma fogueira no campo. Vamos até lá?

Ao longe elevavam-se umas colunas cinzentas pouco visíveis.

- Está bem - grunhiu Henri. - Temos poucas provisões e há que encontrar leite para a Thomasina.

Avançaram a trote em direcção a sudeste. Tam começou a tagarelar, fascinada ao que parece com o modo como se balançava o cavalo. O som arrancou uma gargalhada a Ev e acabou com o receio de lana. Mas foi o sorriso de Henri que fez com que se lhe acelerasse o coração.

A aldeia fervia de actividade. Parecia bastante próspera, em comparação com os lugares que tinham visto pelo caminho. As mulheres dançavam à volta do poço comum e as crianças corriam atrás umas das outras numa espécie de jogo. As pessoas não vestiam farrapos nem pareciam desnutridas. As casas viam-se em bom estado e os animais pareciam bem alimentados.

Henri parou à frente de um homem de barba cinzenta que afiava um pau sentado à frente de uma das cabanas mais novas.

- Como se chama este lugar? - perguntou.

- É Tharlstane - disse o homem. Henri desmontou.

- Queremos comprar comida, se tiverdes. Temos prata.

O velho deixou de lado a navalha e o bocado de madeira, limpou as mãos na túnica de lã e pôs-se em pé.

- Marta! - gritou pela porta aberta da casa. Uma mulher de cara redonda mostrou a cabeça.

- Sim? Que se passa, avô?

- Temos hóspedes. Ordenha a cabra - ordenou o velho. Olhou para Henri. - Desmontai e vinde para dentro.

Henri ajudou a lana a desmontar e Everand levou os cavalos para a parte de trás da cabana para os atar ali e evitar que deixassem os seus excrementos à frente da cabana.

- Sou Abel Sanquhar - disse o velho. Olhou para Henri. - E vós sois parente de Trouville, não é?

- Sim. Conheceis o meu pai? - Henri baixou a cabeça para evitar bater na parte de cima da porta.

- Sim, o conde é bem conhecido por aqui. Os meus rapazes e eu ajudámo-lo a ampliar a sua casa há uns anos. Eu fiz de carpinteiro. Sentai-vos, senhora - ordenou a lana.

Aproximou-se de um armário do qual tirou várias tigelas e colheres de madeira.

Na mesa havia uma fornada fresca de pão. lana ficou com água na boca com o odor do estufado que se cozinhava no fogo. O velho Abel colocou metade de um queijo redondo ao lado do pão.

- A que distância está Baincroft? - perguntou Henri. Tirou Tam dos braços de lana e sentou-se no banco com ela nos joelhos. A menina pôs os bracinhos na mesa e olhou com curiosidade para o seu anfitrião, como se também esperasse a resposta.

- A meio dia de cavalo - respondeu o homem.

- Tendes acordo com MacBain?

- É meu irmão - respondeu Henri com um sorriso.

- Chama-lo assim, é? Também conhecia o seu pai - disse Abel com uma careta. - Uma alma boa, sim senhor. O seu pobre filho tornou-se surdo por sua culpa.

- Não é surdo - disse Henri entre dentes. Lorde Robert é um homem excelente. Não pode ouvir bem devido a uma febre que teve, mas asseguro-vos que não lhe aconteceu nada mais.

- Hum. Surdo, pois - Abel abanou a cabeça. Serviu estufado em três tigelas e colocou-as à frente dos seus hóspedes.

lana pensou como seria trabalhar para um homem como o irmão de Henri. Se o pobre senhor não podia ouvir, como falaria com ele? Nunca tinha conhecido ninguém que sofresse de surdez. Mas Henri tinha dito que não podia ouvir «bem».

Decidiu que devia lembrar-se de falar alto na sua presença.

Afastou aqueles pensamentos e concentrou-se no estufado de carne fresca com rábanos e ervas. Uma maravilha.

Entrou a rapariga com um balde de madeira cheio de leite.

- É a minha única neta, Marta. Chama-se assim pela sua mãe, que Deus a tenha na sua glória.

A rapariga deixou o leite no chão e fez-lhes uma vénia com um sorriso tímido.

Henri cumprimentou-a com uma inclinação de cabeça e indicou lana com o queixo.

- Lady lana de Ayr.

- Vossa esposa? - perguntou Abel.

- Não - Henri olhou para Ev. - Este é o meu filho e escudeiro, Everand.

Abel ignorou essa apresentação.

- É vossa prometida?

- Não - respondeu Henri, impaciente.

O velho olhou para Tam e franziu o sobrolho.

- E de quem é a menina?

- Thomasina pertence a lady lana - disse Henri. - A dama é viúva.

lana podia ver que o velho acreditava que Tam também era de Henri. Este mantinha a menina protegida, como um pai amoroso. Tinha-lhe dado uma colher de madeira para brincar e balançava-a nos seus joelhos.

O velho lançou a lana um olhar desaprovador. Olhou para a sua mão, que não levava anel. Uma dama, casada ou viúva, teria tido pelo menos que marcar o seu status.

- Bem, comei e ide embora - grunhiu. Everand, que não captava a crescente tensão,

atacou o estufado com ânsia. Marta cortou um pedaço de pão, deixou-o ao lado do seu prato e começou a cortar queijo para todos.

- Se vos ofende a nossa presença, comeremos noutra parte, Sanquhar - avisou Henri com expressão sombria.

Abel lançou um olhar de desdém a lana.

- Não recebereis melhor recepção em nenhuma outra parte - disse. E depois dessa frase, deixou-os e voltou para fora.

Henri franziu o sobrolho.

- Vamos? - perguntou com suavidade a lana. Esta sorriu para ocultar a sua perturbação.

- Creio que não. Certamente está certo sobre a recepção. Faremos o que nos disse: comeremos e iremos embora.

- Não tendes que vos preocupar - disse-lhe ele. - Em Baincroft as pessoas não nos tratarão assim.

- A nós? - perguntou ela. - É a mim que censuram. Abel Sanquhar acha que Tam é bastarda e eu, uma mulher perdida. Vós também o pensais.

Henri mastigou um pedaço de queijo antes de responder.

- Vós dissestes que não era do vosso esposo. Que outra coisa posso deduzir senão que é vossa filha?

lana encolheu os ombros; custava-lhe a conter o seu desagrado. No entanto, ele tinha razão. Não lhe tinha dado motivos para pensar outra coisa, embora isso não impedisse que a chateasse que a julgasse assim.

- Pensai o que quiserdes, senhor, mas a verdade é que encontrei Tam no bosque.

- Sim, claro - anuiu ele com cortesia.

Não perguntou nada e ela sabia que seria inútil explicar-lhe o ocorrido. Henri não acreditaria na verdade, ninguém acreditaria.

- Isto impedir-me-á de encontrar trabalho quando chegarmos ao nosso destino? - perguntou.

Henri vacilou um instante antes de responder.

- Não devia impedir.

lana pensou que não devia, mas certamente que o faria.

 

Henri deu a Abel Sanquhar uma das moedas que tinha pedido ao estalajadeiro em Largsmuth. Era demasiado para o que tinham almoçado, mas não tinha nada mais pequeno.

Carregaram os seus pertences nos cavalos e saíram da aldeia em fila indiana. Os aldeões olhavam-nos com curiosidade ao passar. Henri alegrou-se de deixar para trás aquele sítio.

Não sabia por que o tinham enfurecido as palavras do velho sobre lana. Não deveria afectá-lo tanto que a criticassem por ter uma filha bastarda.

Se estava casada quando a concebeu, era evidente que tinha traído o seu marido do mesmo modo que Justine, a sua mulher, o tinha traído a ele. E ele sim, teve coisas que dizer nesse momento.

Os franceses resolviam melhor esses assuntos, a menos que fossem a parte afectada. Os escoceses eram puritanos e estritos quando não os afectavam directamente também.

Henri decidiu que devia levar lana para França, onde encontraria menos condenação para a sua situação.

Justine, desde logo, não tinha sofrido tanto quando traiu os seus votos. Se não tivesse morrido, levando para a cova o filho de Émile, Henri continuaria casado com ela e teria o menino por herdeiro. O certo era que já pensava pouco nisso e desejava poder esquecê-lo por completo.

Custava-lhe a acreditar que lana tivesse cometido adultério. Era mais provável que nunca se tivesse casado. Se o tivesse feito, certamente levaria o anel do seu marido, nem que fosse só pela protecção que lhe ofereceria.

Não agia como uma viúva, mas como uma donzela não acostumada aos homens.

Supunha que tivesse sido seduzida, certamente só uma vez, por algum vilão que fizera acreditar que tinha o casamento em mente. Isso explicaria o seu receio a voltar a tornar-se íntima de alguém embora sentisse desejo. E Henri sabia que ela o desejava. Tinha tido demasiadas amantes para não reconhecer aquele fogo nos seus olhos.

- Não será uma inconveniência para a casa do vosso irmão que cheguemos tarde esta noite? perguntou lana, tirando-o dos seus pensamentos.

- Estamos tão perto que gostaria de continuar, mas acho que devemos acampar esta noite - respondeu ele. Virou-se de costas com ar ausente.

- A ferida dói-vos? - perguntou ela.

- Muito pouco - sorriu ele. - Só quando me viro de certo modo. Mais alguns dias e estará como nova. Cuidastes muito bem de mim, agradeço-vos de novo.

Ela anuiu.

- Recordai-vos disso quando me recomendardes.

- Não o esquecerei nunca - assegurou-lhe ele. Calculou que tinham mais duas horas de luz

solar. Demorariam o dobro a chegar a Baincroft se o velho tivesse dito a verdade. Henri não desejava apresentar-se às portas de Baincroft quando todos se preparavam para se deitar. Não os esperavam e, como lana tinha observado, seria inconveniente.

O terreno que percorriam nesse momento era bastante plano e fácil. Essa parte da Escócia parecia mais civilizada e acolhedora. Henri sempre tinha gostado daquele lugar verde, com os seus campos de feno, os seus carvalhos, pinheiros altos e flores silvestres.

- Quereis que me adiante pela manhã e anuncie a vossa chegada, senhor? - perguntou Everand. - Ali entender-me-iam, não é?

- O administrador, Thomas de Brus, fala francês, embora o meu irmão e a sua esposa não. Acho que é melhor que cheguemos juntos - respondeu Henri.

Adiantou o seu cavalo. Precisava de tempo para pensar no que diria a Rob e Main sobre lana. Podia dizer-lhe que era viúva e deixar que assumissem que Tam era filha do seu marido. Mas quereriam saber, já que era evidente que se tratava de uma dama, por que estava sozinha com a menina.

Raios! Ele também gostaria de saber.

Um marido nobre teria deixado as coisas previstas para ela antes da sua morte e, se assim não fosse, a sua família teria voltado a acolhê-la. Ou não tinha tido marido, ou tinha-o traído e a sua família tinha-a renegado. Não parecia haver outra explicação.

Confiava que o facto de lhe ter salvo a vida bastasse para fazer com que a acolhessem bem. Mas os dois eram escoceses de nascimento e educação e talvez adoptassem a mesma atitude crítica que Abel Sanquhar.

De um modo ou de outro, Henri sabia que era improvável que lhe oferecessem emprego como ele tinha prometido. Mas isso podia trabalhar a seu favor. Assim ela teria um motivo excelente para aceder aos seus desejos e colocar-se debaixo da sua protecção. Que outra coisa podia fazer?

Everand caminhava ao lado de lana e parecia tão pouco desejoso como ela de chegar ao castelo cheio de desconhecidos.

- Não sei o que pensar do irmão do meu senhor - sussurrou. - E suponho que a vós vos acontece o mesmo, senhora.

Embora não tivesse feito comentários a esse respeito, lana sabia que o rapaz não compartilhava da desaprovação do velho da aldeia.

- Lorde e lady MacBain não me receberão de braços abertos - disse. - E não tinha pensado nisso até que esse velho me fez dar conta disso.

- É verdade que encontrastes a menina no bosque? - perguntou Ev abertamente.

lana anuiu com um sorriso.

- Sim. A sua mãe estava a morrer e Tam ia pelo mesmo caminho. Prometi-lhe que cuidava dela, e fi-lo. Agora é minha filha, Everand, tal como tu és filho de sir Henri.

- Tendes que contar tudo ao meu senhor disse o rapaz. - De certeza que acreditará em vós. É admirável o que fizestes pela pequena.

lana abanou a cabeça.

- Não, não acreditará na minha palavra tão facilmente como tu. Pensará que inventei essa história para me livrar do desprezo. Não temas, amigo meu; tudo correrá bem.

- Eu casarei convosco e serei o pai de Tam declarou Everand. - Quando ganhar altura e peso, parecerei ter a vossa idade. Ninguém duvidará de vós depois disso.

lana aclarou a garganta para reprimir o riso. Não queria que pensasse que gozava com a sua proposta.

- Agradeço-te, mas tu tens ainda muito que fazer na tua vida para carregares com uma família. Teremos que nos arranjar sozinhas. Podes considerar-te tio honorário de Tam, se quiseres. Seria bom para ela ter um parente como tu.

- Ajudar-vos-ei a cuidar dela enquanto estivermos aqui - aceitou o rapaz. - Mas recordai que, se vos sentirdes incomodada em Baincroft e mudardes de ideias, a minha oferta continua de pé.

lana anuiu com um sorriso e agradeceu-lhe. Não lhe serviria como marido, mas se alguma vez tivesse um filho, gostaria que fosse exactamente igual a ele.

Certamente ficaria com parte da prata, mas não lhe duraria muito. Necessitava de trabalhar.

Quando estava a ponto de anoitecer, Henri puxou as rédeas do seu cavalo e esperou que o alcançassem.

- Este é um lugar tão bom como outro qualquer para dormir - anunciou. - O rio leva água e podemos lavar-nos pela manhã.

lana esperou que a ajudassem a desmontar. Doíam-lhe as costas do peso da menina. Henri susteve-a, com as mãos ainda na cintura dela, enquanto Everand desatava Tam.

A jovem observou o escudeiro a levar a menina num braço e tomar as rédeas dos cavalos com a outra mão. Afastou-se a cantar.

Fez menção de se afastar, mas os dedos de Henri impediram-na. Olhou-a muito sério.

- Temos que falar do que nos espera. Não deixei de pensar nisso desde que saímos da aldeia. Vinde sentar-vos debaixo daquele olmo.

Acomodaram-se sobre a erva e Henri observou-a. A sua anca direita roçava a esquerda de lana. Tomou-lhe a mão e ela desejou que se sentasse mais longe para poder pensar com clareza. A sua proximidade perturbava-a.

- Não me ocorre outro modo de dizer isto sem ser directo. Quero oferecer-vos a minha protecção - declarou ele.

- Que surpresa! - exclamou ela, com ironia. O vosso escudeiro foi ainda mais galante. Propôs-me casamento. Os franceses são tão apaixonados que têm que se declarar a todas as mulheres que conhecem?

- Não posso casar-me convosco - declarou ele, sério.

- Eu sei. Isto não era uma indirecta. Não me casaria convosco mesmo que me suplicasse - tentou retirar a mão, mas ele segurou-lha com firmeza. E também não serei vossa rameira. Soltai-me.

Henri assim fez e afastou o cabelo do rosto. Suspirou.

- Malditos sejam os escoceses! Tudo tem que ser bom ou mau?

lana riu.

- Tudo é bom ou mau. Neste caso, ambas as coisas são más. Já vos disse que não pertenço a homem nenhum. E falava a sério. - Viu o olhar de desespero dele e tentou explicar-se: - Não posso aceitar a vossa oferta, mas suponho que devo agradecer-vos por ela.

- Não é suficiente para vós - disse ele com resignação.

- Pelo contrário, é demasiado - argumentou ela. - Se o vosso irmão não quiser que sirva como curandeira em Baincroft, encontrarei outro lugar onde viver. Se isso acontecer, devolver-me-eis a prata que me prometestes e esquecereis que existo. Não vos sintais responsável por mim, está bem?

Henri abanou a cabeça.

- Como evitá-lo? Devo-vos a vida. Desejo-vos mais do que desejei outra mulher. Aprecio a vossa filha. E esperais que apague tudo isto da minha mente?

- Sim, espero - uma das coisas que tinha dito sobrepunha-se a todas as outras. - Desejais-me mais que a ninguém? - perguntou com incredulidade.

- Tão cega estais que não vedes o que me fazeis? - perguntou ele. - Não sentis o meu desejo quando me deito atrás de vós todas as noites?

- Quando o quê? - perguntou ela, tensa.

- Sim, tenho-vos abraçado, e não finjais não ter notado. Por acaso, não vos ouvi suspirar e murmurar de prazer enquanto fingíeis dormir? No entanto, não fiz nada que pudesse ofender-vos. Nada - afastou-se dela, como desgustado consigo mesmo pela sua contenção. - Não, tenho-vos tratado com muito respeito, sem me importar com o que haveis feito antes.

- Antes? - perguntou ela, entre dentes. - Eu nunca fiz nada de que pudesse envergonhar-me!

Henri fez uma careta.

- Não, suponho que justificais cada vez que haveis estado com um homem com o qual não estáveis casada. Chamais-lhe amor, eh? - Inclinou-se e olhou-a de cima a baixo como se desejasse cuspi-la. - Embora não queirais ficar comigo e chamar-lhe assim, eh? Não, suspeito que haveis terminado com tais tolices. Pois bem, eu também. Que Deus me guarde das mulheres apaixonadas. Tive bastantes para durar toda a vida.

lana pôs-se de pé de um salto e olhou para ele com as mãos na cintura.

- Eu nunca estive com um homem com o qual não estivesse casada. Como vos atreveis a insultar-me...!

Henri imitou a sua postura.

- Atrevo-me porque sei muito bem que nenhum homem vos desejaria na pobreza sem uma boa razão. E nenhuma família expulsaria uma filha nascida nobre a menos que tivesse um motivo. Eu nem sequer fiz isso à minha esposa quando...

- Santo céu! Tendes esposa? - gritou ela. - E haveis-me pedido...?

- Que fôsseis minha amante? Sim. A minha esposa está morta.

- Mataste-la? -quis saber ela.

- Claro que não. Que tipo de homem pensais que sou?

- Um homem de cabeça oca?

- E de corpo igualmente oco graças às vossas provocações.

- Senhor? - perguntou Everand. - Pai? acrescentou com desespero.

Henri olhou-o de má vontade.

- O que é que é tão importante para nos interromperes assim? - perguntou.

- Não deveis insultar a senhora lana, senhor. Não fez nada de mal.

Henri respirou fundo várias vezes para controlar o seu génio. Quando por fim falou, a sua voz soou perfeitamente normal.

- Claro, tens razão - vacilou. Respirou fundo outra vez. - As minhas sinceras desculpas, senhora lana.

- Aceites - respondeu ela com desdém, e tomou Tam nos braços.

- Já quase escureceu por completo, Ev, faz uma fogueira - ordenou Henri com calma. - E fá-la bem longe da água. Não queremos que nos incomodem as criaturas nocturnas que vierem beber.

- Falando de criaturas nocturnas - disse lana quando se aproximou de Everand, - não voltais a aproximar-vos de mim quando durmo.

Henri respirou com força e esfregou o pescoço com a mão.

- Antes não falava a sério, senhora.

- Eu sim - replicou ela. - Muito a sério. Henri encolheu os ombros e ela sentiu vontade de lhe dar um pontapé no traseiro.

Henri obedeceu às suas ordens e dormiu toda a noite separado dela. Lamentava as suas palavras e sabia que perder as estribeiras não tinha ajudado nada a sua causa. No entanto, ela rapidamente se daria conta de que não tinha remédio senão aceitar a sua oferta.

Não desejava forçá-la a uma aliança, mas também não podia deixá-la sozinha com a menina num meio estranho. Rob ocupar-se-ia delas, encarregar-se-ia de que não lhes faltasse comida nem um refúgio, mas Henri duvidava de que lana aceitasse caridade de alguém, sobretudo se fosse combinada com desdém. E mesmo que nem Rob nem Main, a sua esposa, a desdenhassem, outros em Baincroft fá-lo-iam se suspeitassem que tinha dado à luz uma filha ilegítima. Assim eram as coisas.

Levantaram-se antecipadamente, puseram-se o mais apresentáveis possível e partiram para as duas horas finais da sua viagem. Henri procurou não se fixar no modo como o tom âmbar do vestido de lana que lhe tinha comprado em Largsmuth ressaltava o brilho dourado do seu cabelo e fazia reluzir a sua pele. Mas fixou-se e teve que morder a língua para não dizer nada.

Ev disse-lhe que estava linda e ganhou um sorriso. Henri ignorou-os e apertou os dentes com força.

Por fim, avistaram as torres de Baincroft. O coração de Henri começou a bater com força, como acontecia sempre que chegava ali.

Recordava a primeira vez, quando não pôde comparar o lugar com as propriedades francesas que possuía o seu pai e os palácios reais onde tinha vivido como filho do conselheiro do rei. Mas não demorou a descobrir que Baincroft era mais rico em calor e harmonia que os ditos palácios.

- As portas estão abertas - observou Everand.

- Isso é normal, senhor?

- Sim - sorriu Henri. - Este é um lugar pacífico. Nessas torres há olhos muito atentos, pendentes de qualquer perigo. Podes apostar que já nos viram.

Everand suspirou.

- É uma pena que não tenhamos as vossas cores para que saibam quem se aproxima.

- Rapidamente me reconhecerão. O estandarte do meu irmão ondula ao vento, o que significa que está em casa.

lana guardava silêncio e parecia muito receosa, como se temesse a sua chegada. Henri sentiu-se impulsionado a tranquilizá-la.

- Não temais, sereis bem-vinda. Continuaram a avançar em silêncio até que um cavaleiro saiu pelas portas e galopou até eles. Rob, sem dúvida. Henri deitou para trás a cabeça, levantou os braços num gesto de rendição e desmontou para o esperar.

O seu irmão saltou para o chão sem esperar que o seu alazão parasse totalmente.

- Henri, seu sem-vergonha! - gritou com o rosto corado de alegria.

Henri abraçou-o encantado e ambos deram palmadas fortes nas costas um ao outro.

Quando bateram o suficiente, Rob afastou-se, com o braço ainda no ombro de Henri, e olhou interrogativamente na direcção da qual tinham chegado.

Henri e o irmão quase nunca necessitavam de palavras para comunicarem, o que era uma sorte, já que Rob não ouvia e falava o menos possível. E apesar dos anos passados juntos, continuava a custar-lhe a ler o sotaque francês de Henri nos lábios, pelo que desde pequenos que comunicavam com gestos e expressões faciais, a menos que houvesse outras pessoas presentes que não os entendessem.

Nesse momento, Henri optou por ignorar aquela cortesia a favor da rapidez e começou a fazer sinais rápidos com os dedos.

- Ferido? - perguntou Rob em voz alta. As suas mãos grandes apertaram os ombros de Henri e a preocupação escureceu o seu rosto.

Henri apontou para as costas, inclinou a cabeça e encolheu os ombros, como dando a entender que não tinha importância. Apontou com uma mão para lana, que continuava a cavalo.

- Esta é a senhora lana... de Ayr, e a sua filha, Thomasina; Lana o meu irmão, lorde Robert.

Rob aproximou-se da égua e inclinou a cabeça.

- Bem-vinda, senhora - disse com voz grave e sem inflexões. Sorriu para Tam, que se assomava por cima do ombro da jovem.

- Milorde - murmurou lana.

Henri riu. Era um erro comum nas pessoas pensar que, se falassem mais alto, Rob poderia ouvi-las. Não era assim, porque torciam a boca e isso fazia com que fosse mais difícil ler nos lábios.

Quando foi evidente que ela não pensava acrescentar nada mais, Rob voltou-se para Everand, que estava de pé ao lado do seu cavalo e torcia as rédeas na mão.

- Escudeiro? - perguntou.

- Meu filho - anunciou Henri. - Everand. Rob franziu o sobrolho, sinal de que não tinha captado a entoação desconhecida do nome.

- É esclareceu Henri, fazendo ambas as letras com os dedos. - O meu filho Ev.

Os olhos cinzentos do conde observaram um momento o jovem, fixando-se ao que parece na cor clara do rapaz e na sua estatura baixa. Olhou para Henri.

- É meu - declarou este.

Robert estendeu o braço a Everand sem mais vacilações.

- Sobrinho - disse com aceitação.

Henri traduziu-lhe a palavra e o rapaz aceitou a oferta com uma inclinação de cabeça e uma gargalhada de alívio. Rob bateu-lhe no ombro com afecto e esteve a ponto de o atirar ao chão.

- Tens que comer mais - disse. Montou no seu cavalo e fez-lhes sinal para que o seguissem até ao castelo.

- O meu irmão não pode ouvir-nos - disse Henri. - No entanto, pode ver as vossas palavras, e as vossas, lana, entendê-las-á sem problemas, lana, pois sois escocesa. Falai sempre de modo que possa ver-vos os lábios e fazendo-o com normalidade, sem gritar nem exagerar. E recordai que vê mais que muita gente. Se não tiverdes cuidado, ler-vos-á também o pensamento.

- Uma ideia pouco atraente - murmurou ela. Henri soltou uma gargalhada.

- Nem imaginais quanto! Às vezes, parece que é bruxo.

Os olhos muito abertos de lana indicavam que o tinha levado a sério. Voltou a rir.

- Era uma brincadeira. Rob é bastante humano, embora seja um homem com muitos talentos. O maior de todos é a sua capacidade para julgar o coração das pessoas. Se o vosso coração é sincero, podeis confiar-lhe a vida sem medo.

Ela não disse mais nada e Henri desejou ter podido esquecer o seu problema e desfrutar sem entraves do encontro com Rob, Main e os dois sobrinhos que já não via há um ano. No dia seguinte, levaria Ev para o norte para fazer uma visita aos seus pais e à sua irmã.

Mas podia deixar lana ali? Talvez não, mas também não podia levá-la. O seu pai faria ainda mais perguntas sobre ela que Rob. Talvez o melhor fosse atrasar a viagem alguns dias, até que visse como a tratavam as pessoas de Baincroft e se aceitava a caridade de Rob e Main.

Sabia que queria trabalhar e tinha-lhe prometido que o faria, mas tinha as suas dúvidas a esse respeito. Uma coisa era que uma dama se ocupasse da saúde na casa do seu esposo e outra muito distinta era que um senhor contratasse uma dama para essa tarefa.

E sabendo que lana era de berço nobre, Rob certamente não lhe ofereceria uma posição paga nem como curandeira nem como nenhuma outra coisa. Consideraria humilhante para ela que tivesse que ganhar a vida. O seu juramento de cavaleiro obrigava-o perante Deus a ajudar e proteger uma dama. Nada nesse juramento falava de lhe oferecer emprego.

No momento, parecia que ela tinha duas opções: viver da generosidade de Rob e Main, supondo que estes não questionariam muito o nascimento de Tam, ou converter-se em sua amante. Claro, ela podia pensar que podia ir mendigar para comer, mas Henri não o permitiria. Isso não era uma opção.

Se pudesse, persuadi-la-ia para que fosse sua amante, embora isso implicasse sair da Escócia de seguida. Nem Rob nem o seu pai tolerariam que a sua amante vivesse debaixo do seu tecto. Além disso, não gostariam que Henri fizesse isso, nem sequer tendo em conta a indiscrição passada de lana.

Tudo aquilo lhe produzia sentimentos ambivalentes que não conseguia aclarar. Desejava-a desesperadamente, mas não podia casar-se com ela por várias razões. Ela não tinha dote nem vínculo com nenhuma casa real, como ele. Nem sequer era francesa. E ao que parecia tinha dado à luz uma filha ilegítima. E se aceitasse a sua proposta e se convertesse em sua amante, seria um anátema para a sua família e jamais seria bem-vinda a essa parte da sua vida.

Olhou-a e doeu-lhe o coração tanto por ela como por si mesmo. Que egoísta era! O seu desejo insatisfeito não era nada comparado com o dilema dela, que montava com as costas muito rectas e com o porte de uma rainha.

- Eu estarei ao vosso lado - disse-lhe. - Confiai em mim.

lana olhou para ele com o sobrolho franzido.

- O dia em que confiar num homem será o dia em que me enterrarão.

Henri não soube o que responder. Parecia evidente que os homens não se tinham portado muito bem com ela, quem quer que fossem.

 

lana permitiu que Henri a ajudasse a desmontar e as mãos dele demoraram-se na sua cintura mais tempo do que de costume. O calor das suas palmas e dedos parecia algo deliberado para lhe dar ânimo. O seu olhar confirmava que era essa a sua intenção, e ela não queria que a soltasse.

Quando o fez, sentiu-se só e vulnerável entre estranhos. As nuvens cobriram rapidamente o castelo e sentiu uma gota de chuva, seguida de outra. Soou um trovão à distância. Um augúrio de coisas por vir?

Olhou para Henri à procura de algum sinal de consolo, mas ele tinha a atenção fixa no seu anfitrião.

A dama que tinha saído ao seu encontro e esperava com paciência trazia pela mão duas crianças tão parecidas como duas ervilhas da mesma vagem.

Henri escoltou lana até ela e apresentou-as.

- Lady Main de Baincroft, a senhora lana... de Ayr - o seu tom indicava que não acreditava nem por um momento que fosse quem dizia, mas isso lana já o sabia.

- Cumprimentos - disse a dama, e olhou com curiosidade para o ombro de lana.

Tam baixou a cabeça e escondeu-se atrás das costas da jovem.

Henri aproximou-se para beijar a cara da sua anfitriã.

- Alegro-me muito de te ver - disse. Ajoelhou-se e abraçou as crianças.

- Harry e Ned! Venham cá, seus desavergonhados!

Tomou-os nos braços e deu umas voltas com eles antes de os depositar de novo no chão. Os rapazes gritaram de prazer e pediram mais, mas o seu pai fez-lhes um sinal e afastaram-se a correr e a rir. Henri olhou-os também a rir.

Lady Main olhou para Henri, esperando sem dúvida que explicasse a sua presença e a dos seus acompanhantes. Este assim fez.

- Quero que conheça o meu filho Everand começou.

A mulher, depois de uma pequena vacilação, tomou a mão do rapaz e sorriu-lhe.

- Que rapaz tão ataviado, Henri! Everand, estamos felizes de te ter aqui - olhou para Henri de novo com ar interrogativo.

- Fiquei ferido depois de uma batalha no mar na costa sul de Inglaterra - disse ele. - Everand e eu conseguimos um barco e chegámos à costa oeste. A senhora lana salvou-me a vida e, se não fosse ela, teria morrido da ferida.

Main estendeu uma mão preocupada até ele. Henri agarrou-a entre a sua.

- Estou bem, irmã. A senhora lana acedeu a acompanhar-me aqui a troco da prata que tinha e a possibilidade de começar uma vida nova entre a tua gente.

- Estamos em dívida convosco, pois a vida do senhor Henri é preciosa para nós. Sois curandeira? - perguntou lady Main.

- Conheço os medicamentos, ajudei a nascer duas crianças e sei coser uma ferida - respondeu. - Admito que nunca fui aprendiz de ninguém, mas estudei muito a arte de curar. Também devo dizer que não aprovo os velhos remédios de conjuros e de curar os doentes com partes de animais e objectos raros.

Lady Main soltou uma gargalhada.

- Sois sincera, eh? Aplaudo-vos por isso, mas temo que já tenhamos uma curandeira em casa, uma que o meu marido não se atreve a despedir, já que sou eu. A mulher que serve os pais do meu marido ensinou-me tudo o que sei.

A lana deu-lhe um baque no coração. Lady Main olhou com carinho para o seu esposo.

- Mas atrevo-me a dizer que encontraremos algo que possais fazer em vez de assistir os doentes. Vinde comigo e mostrar-vos-ei os vossos aposentos. Deveis estar cansada com esse peso às costas. Devíamos saber algo sobre ela?

lana olhou para Henri, que se limitou a esperar a sua resposta. Olhou para o seu anfitrião nos olhos.

- Encontrei esta menina e a sua mãe no bosque perto da minha casa faz uns dois meses. Antes de morrer, a mulher suplicou-me que salvasse a sua filha. A menina chama-se Thomasina, Tam. Adoptei-a porque não tenho mais ninguém que cuide dela.

O olhar de compreensão de lady Main fez-lhe ter esperanças de que a sua explicação lhe tivesse parecido mais plausível que a Henri.

- Vinde, vamos entrar - disse lady Main. Estendeu-lhe a mão. - Vai chover - olhou para o seu esposo. - Rob, ocupa-te da comodidade de Henri. Sei que quereis falar em privado.

Um grito de surpresa atraiu a atenção de todos para o vestíbulo. lana olhou com a boca aberta para uma mulher pequena e morena que corria para abraçar Henri. Este respondeu ao abraço com um entusiasmo que fez com que lana apertasse os dentes. Rezou para que fosse a sua irmã.

- Henri! Alegro-me muito de te ver. Recebeste as minhas cartas? Vieste buscar-me?

Ele olhava para ela, confuso, mas continuava a sorrir amplamente.

- Cartas?

A mulher deixou cair a cabeça para trás e olhou-o com olhos brilhantes.

- Escrevi-te duas vezes. Sinto muito não te ter visto as duas últimas vezes que aqui estiveste. Rob não me disse que vinhas e estava com a avó. Sentiste saudades minhas?

Henri anuiu.

- Claro que sim, Jehannie. É um prazer ver-te, como sempre.

Lady Main franziu o sobrolho, lorde Robert reprimia o riso e a confusão de Henri parecia aumentar. A mulher abraçou-o de novo.

- Que maravilha que estejas por fim aqui! Rezei para que viesses e vieste.

Lady Main agarrou lana pelo braço e falou em voz alta:

- Senhora lana, esta é a senhora Jehan de Brus, irmã do nosso administrador, sir Thomas.

A mulher sorriu-lhe, mas não soltou Henri. Pelo contrário, aproximou-se ainda mais dele, como que reclamando a sua posse.

- Bem-vindo a Baincroft - disse. Fechou os olhos, suspirou de prazer e esfregou o rosto contra a camisa de Henri. Lady Main arfou.

- Vinde, deixemo-los aqui, se o que querem é empaparem-se - murmurou.

A chuva era cada vez mais forte. lana lançou uma última olhadela ao casal e seguiu lady Main escadas acima.

- Falais como as gentes das Terras Altas disse a sua anfitriã quando entraram no vestíbulo.

- Sim, eu sei - respondeu ela com uma gargalhada. - Não é fácil ocultar este sotaque, de modo que já nem sequer tento. O meu marido não podia entender nem uma palavra quando nos conhecemos. Claro, já remediámos isso - terminou com um riso tímido.

- Claro - lana não acrescentou mais nada, porque não sabia se era cortês falar da surdez do conde.

Permaneceram só um momento no vestíbulo, o tempo suficiente para que lady Main chamasse uma das donzelas e lhe ordenasse que subissem com água quente.

Era um vestíbulo impressionante, com paredes brancas decoradas com tapetes e pinturas. Havia móveis sólidos de carvalho e o odor agradável a lilás impregnava o ar. Grupos de velas aromáticas nos cantos escuros ajudavam no seu trabalho a luz que entrava pelas janelas. Lorde Robert devia ser muito próspero.

lana não queria comparar aquilo com a penúria que tinha conhecido ao lado de Duncan, com as suas pedras por vestir e o intenso odor a ovelha que lhe dava dor de cabeça. Aquilo recordava-lhe mais a sua vida de menina num lugar relativamente cómodo no castelo Ochney.

Lady Main levou-a escadas acima até a uma câmara pequena situada no piso seguinte. Uma vez lá, lana sentou-se num leito coberto de ricas peles e do qual pendiam cortinas de damasco, e tirou Tam das costas.

- Ah, olhai para isto! - sorriu lady Main. - A pobrezinha não tem carne sobre os ossos, não é?

- tomou-a nos braços. - Pois a partir de hoje terás sempre um prato cheio de carne, linda.

Sentou-se com ela nos braços ao lado de lana. Esta viu que tinha os olhos cheios de lágrimas.

- Estava ainda pior quando a encontrastes, não é? - perguntou.

- Sim - respondeu lana. - Não emitia qualquer som e só há alguns dias começou a mexer-se. Está a melhorar rapidamente.

- Como é que estais sozinha? - perguntou lady Main rapidamente. - Por que não podeis pedir à vossa família que vos ajude neste acto de caridade? Recusaram-se a honrar a vossa promessa à mãe?

lana suspirou.

- Não - era evidente que a lady Main não lhe importava fazer perguntas e não se contentaria com evasivas. Parecia uma mulher amável, e talvez compreendesse o seu problema.- Que vos parece que se case uma mulher contra a sua vontade? Duas vezes?

Main fez uma careta.

- Uma prática abominável. E acho que ilegal. Mas sei que mesmo assim se faz.

- A minha família não sabe nada de Tam. Deixei-os semanas antes de a encontrar.

- Posso perguntar porquê? Tem a ver com um casamento?

lana decidiu contar-lhe a verdade. Não tinha muito a perder. Para que a devolvessem ao seu irmão, teriam que saber o seu nome, e não pensava dizê-lo.

- Já me casaram uma vez com um homem que elogiou o meu pai. Quando fiquei viúva, o meu pai já tinha morrido. O meu irmão queria casar-me de novo com outro homem igualmente velho e malvado. Graças a Deus que a mulher do meu irmão me avisou a tempo! Quando o meu irmão tentou forçar-me ao enlace, neguei-me.

- E pôs-vos fora de casa? - perguntou lady Main, horrorizada.

- Pôs, para me dar uma lição. Quando Everand me abordou, vivia numa pequena aldeia. Vi a oportunidade de me ir embora com sir Henri e com ele, e assim fiz. Sir Henri prometeu perguntar a vosso esposo se me permitiria trabalhar e viver aqui. Decerto que não sabia que vós também sois curandeira. Receio que não saiba fazer muitas coisas mais.

Lady Main pensou um momento. Deitou Tam na cama e apontou-lhe para o queixo.

- Ambas são bem-vindas aqui. Se tivésseis deixado morrer Henri, teria sido uma tragédia para a nossa família e amigos. Nunca poderemos recompensar-vos o bastante por isso.

- Não aceitarei caridade - avisou-a lana.

- Eu sei. Por agora considerai-vos uma visita. Mais tarde decidiremos juntos o que podeis fazer para ganhar a vossa subsistência, sim?

- Sim - anuiu lana, aliviada pela compreensão da outra.

- Posso perguntar-vos de onde sois e o nome dessa família que vos tem tratado assim?

lana afastou o olhar dos olhos azuis da outra.

- Prefiro não o dizer.

- Henri sabe de tudo isto?

- Não, não me fio nos homens. Nem sequer nele. Tentaria remediar o assunto, mas só conseguiria piorá-lo.

- Entendo- lady Main estendeu-lhe Tam. Deixar-vos-ei descansar e tratar da pequena. Vinde mais tarde à sala; falaremos mais e veremos o que têm os homens a dizer sobre o assunto - lana apresentou sinais de protestar. - Isto já foi demasiado longe para que o enfrenteis sozinha. Falaremos quando estiverdes pronta.

- Será um prazer - murmurou lana.

Mas não era verdade. Não tinha nenhum desejo de compartilhar os seus problemas com Henri e desconhecidos, por medo de onde a pudessem levar. Certamente de volta a Newell. E desde logo, não queria ver aquela mulher esfregar-se de novo nos braços de Henri.

Main fez uma careta e sorriu.

- Henri alegrar-se-á, vereis. Deus sabe que nunca o vi tão calado e educado. Não é próprio dele. Por norma, comporta-se pior que Rob e os meus filhos; é tudo algazarra e ruído.

- Sir Henri? - perguntou lana, incrédula.

- Vejo que está muito apegado a vós.

- Não! - protestou lana.- Pelo menos, não a mim.

Lady Main sorriu com malícia e saiu do quarto com uma gargalhada.

- Está a brincar comigo - disse lana a Tam, que a olhava em silêncio com um sorriso quase imperceptível.

Um momento depois de ter dado banho à menina, lana meteu-se na água quente para se limpar do pó do caminho. Afundou-se na água perfumada até à cabeça e desfrutou daquele prazer que não tinha desde que tinha saído de casa do seu irmão.

- Perdoai a minha intrusão - disse uma voz suave.

lana abriu os olhos, sobressaltada.

- Senhora Jehan? Que fazeis aqui?

A mulher aproximou-se, olhou para Tam, que dormia, e sentou-se no baú aos pés da cama.

- Venho desculpar-me pela minha falta de educação quando haveis chegado - disse com doçura. Afastou o cabelo moreno da cara. - Estava tão contente de ver Henri que não podia pensar em mais nada.

- Eu reparei - disse lana.

- Conhecei-lo muito bem? - perguntou Jehan.- Além de lhe terdes salvo a vida, coisa que devo agradecer-vos.

- Conheço-o muito pouco - disse lana de má vontade.- Temos viajado juntos com o seu escudeiro e prometeu-me um emprego. Nada mais.

A mulher pôs-se de pé e aproximou-se para observar a chuva pela janela.

- Henri e eu crescemos juntos, sabíeis? Necessita que cuidem dele, e é minha intenção fazê-lo.

- Como sua esposa - adivinhou lana.

- Sim. Disse que não voltaria a casar-se, mas as suas razões não significam muito para mim.

Uma vez que o convença de que não me importa não ter filhos, acho que se alegrará.

- Não ter filhos? - perguntou lana. Sentia curiosidade. Henri não parecia muito contente com as atenções dessa mulher. Podia ser que a desejasse, mas não se atrevesse a decepcioná-la?

- Sim, não pode ter um herdeiro - disse Jehan com tristeza. - Casou-se muito jovem com uma nobre francesa. Ela não ficou grávida em seis anos e acabaram por se resignar a que não podia conceber. Logo depois, começou a inchar. Henri descobriu que tinha arranjado um amante e que esperava um filho dele.

- Oh, não! - exclamou lana. Podia bem imaginar a dor pela traição da sua esposa e a decepção de que o filho não era seu.

- Oh, sim - anuiu Jehan com tristeza. - E como Henri é tão bom, não a repudiou como merecia; não, manteve-a a seu lado, disposto a continuar com a farsa até ao fim. Teria reconhecido o menino e teria perdoado à esposa, mas morreram os dois no parto.

- Que trágico para todos! - sussurrou lana, com o olhar fixo na água.

Jehan afastou-se da janela e pôs as mãos na cintura.

- Assim, já vedes. Henri sabe que não pode engendrar um herdeiro ou tê-lo-ia feito naqueles primeiros anos. A sua esposa não era estéril.

Como consequência, disse que é provável que não volte a casar-se.

- Mas vós quereis fazê-lo mudar de ideia adivinhou lana.- Amais Henri?

- Claro que sim. Sempre fomos amigos. Precisa de mim - semicerrou os olhos para a observar. - Queria saber como estão as coisas entre ele e vós. Vi como vos haveis olhado antes e...

lana abanou a cabeça.

- Não sou nada para ele, nem ele para mim. Desejo-vos toda a felicidade do mundo se tiverdes sorte na vossa missão.

- Obrigada - agradeceu Jehan. - Eu também vos desejo que encontreis o que procurais.

lana esperou que a outra saísse para mergulhar mais na água. Desejava poder ficar ali e não ter que enfrentar a sua nova vida. Uma vida sem Henri. Mas também teria sido assim mesmo sem conhecer as intenções de Jehan.

Henri sentia-se melhor que nunca no último mês. Limpo, barbeado, penteado e vestido com uma das túnicas de Rob, tinha-se sentado comodamente numa das poltronas colocadas ao lado da lareira enquanto a chuva açoitava sem misericórdia as janelas.

Pelo menos, Jehan não estava ali. E ele esperava que tardasse a voltar.

A rapariga parecia ter-se empenhado em consegui-lo, agora que Rob se tinha casado. O seu irmão e ele tinham falado disso antes que Main se reunisse a eles.

Jehan tinha sido educada desde a infância para se converter em esposa de Rob. Tinham sido criados todos juntos, Rob, Henri, Jehan e o seu irmão, Thomas de Brus. De repente, a avó de Jehan quebrou o compromisso e deu como desculpa a surdez de Rob. Quando Jehan descobriu que o contrato tinha sido anulado, era já tarde demais. Rob tinha ido à procura de outra esposa nas Terras Altas e amava-a com paixão.

Agora, Jehan devia pensar que Henri cumpriria o destino do seu irmão. E a simples ideia dava-lhe calafrios. Jehan era bonita, sim, mas tão selvagem e imprevisível como um falcão por treinar. Estremeceu ao pensar no caos que podia causar como condessa.

Supunha que, se quisesse, um casamento entre eles não fosse impossível. Embora ela não fosse francesa, era aparentada com Robert, o que era o mesmo que dizer com a realeza, mas esse era o único ponto a seu favor no que lhe dizia respeito. Teria que falar com ela com clareza quanto antes.

A sala tinha uma temperatura agradável que o adormecia enquanto seguia vagamente a conversa entre Main e Rob. Os graciosos movimentos das mãos dela eram quase demasiado rápidos para permitir seguir os sinais. Os de Rob eram breves e directos.

Henri pensou que era sempre assim. As mulheres tinham demasiado a dizer e tardavam muito a dizê-lo. Os homens tinham sorte de meter uma palavra aqui e acolá. Mesmo assim, queria a Main como a uma irmã. Era divertida, irreverente e completamente ignorante dos seus encantos. Nesse último aspecto, parecia-se com lana, que também não parecia dar-se conta do seu atractivo. Gostava disso numa mulher, sobretudo depois de suportar a presença na corte de tantas grandes belezas que conheciam os seus encantos e os usavam de um modo desavergonhado. Jehan também não era contra fazer isso. De facto, estava a tentar fazê-lo nesse momento. Teria que fazer algo a esse respeito.

Enquanto olhava, Main apertou o pescoço com três dedos e o sinal de curador chamou a atenção de Henri, que começou a escutar o que dizia.

- Enviarás alguém averiguar quem é - os sinais de Main eram cortantes e exigentes.

Rob franziu o sobrolho.

- Isso não é assunto nosso. Seja qual for o seu nome, salvou o meu irmão e pode ficar. Dá-lhe algo a coser e pagar-lhe-emos por isso.

Main abanou a cabeça com veemência.

- Não! Não podes empregá-la; é uma dama. Henri levantou uma mão para interromper.

Ambos o olharam.

- Envia Thomas, se podes prescindir dele sugeriu. - Acho que lana é de perto de Largsmuth; pode ser que se tenha casado com alguém próximo de Ayr, se é que se casou.

Rob apertou os lábios.

- Vi o teu rosto quando ela falava. Achas que mente sobre a menina.

Henri encolheu os ombros. Sabia que não podia enganar Rob.

- Nega que a menina seja do seu marido e agora diz que a encontrou no bosque. lana é uma mulher nobre, mas vivia numa cabana com a menina. O que achas?

Rob apertou os lábios e passeou um momento pela sala com a cabeça baixa, sumido nos seus pensamentos.

- Thomas averiguará - disse em voz alta.

- Pode ser - declarou Main, com os braços cruzados num gesto de desafio.- É muito possível que tenha encontrado a menina. E a mim disse-me que o irmão queria obrigá-la a um casamento contra a sua vontade. Acho que a pôs fora de casa porque recusou.

Henri abanou a cabeça.

- Uma mulher nobre é demasiado valiosa para ser atirada para a rua. Quebrar-se-ia uma aliança, e o irmão podia zangar-se, mas certamente que lhe proporia outra aliança mais do seu agrado. Não tem sentido repudiá-la.

- Talvez ele não tenha sentido comum - sugeriu Main, cortante.

Henri não queria perguntar, mas necessitava de saber a verdade.

- Mente, Rob?

Este encolheu os ombros.

- Ou mente ou mantém uma verdade oculta. Não sei qual das duas coisas.

- É o mesmo - murmurou Henri, decepcionado.

- Não, não é o mesmo - Rob aproximou-se dele e deu-lhe uma palmadinha no ombro.

Para Henri, parecia o mesmo.

- Não quer dizer quem é a sua família, e estou certo de que não nasceu em Ayr.

Rob sorriu.

- Então é o seu nome que oculta, e talvez tenha bons motivos para isso. O resto da história pode ser verdade. Porque é que é tão importante para ti? Queres casar-te com essa mulher?

- Casar-me com ela? Céus, não! - declarou Henri.

A expressão do seu irmão indicou-lhe que a sua negativa era inútil; não podia ocultar-lhe nada.

- Tu sabes que não é possível - acrescentou.

Rob levantou uma mão, como se fosse objectar algo.

- Interrompo? - perguntou lana da porta. Henri viu que levava a mesma roupa com que

tinha chegado, o vestido cor de âmbar que ele lhe tinha comprado. Tinha lavado a cara e tinha o cabelo húmido e atado numa trança grossa à volta da cabeça, com a forma de uma coroa dourada brilhante.

As suas servas de França vestiam-se melhor que ela, mas nenhuma possuía o porte principesco de lana. E ninguém podia tomá-la por outra coisa a não ser por uma dama. Pensou que estava muito bonita na sua simplicidade.

- Entrai, entrai - Main apontou uma cadeira.

- Se estais de acordo, pedirei à jovem Jonnet que cuide da pequena enquanto comemos. É uma boa rapariga. Falta muito pouco para o almoço, de modo que a reunião sobre o vosso futuro pode esperar.

lana olhou para Henri e baixou o olhar para o chão.

- Sois muito amável, lady Main.

Henri notou que Main parecia mais contida que antes com lana e isso preocupou-o. Arrependeu-se de ter insistido em conhecer a opinião do seu irmão sobre a sua sinceridade, uma opinião que todos os que conheciam bem Rob valorizavam.

Pensou que rapidamente teria que levar lana para outra parte, onde ninguém soubesse nem se importasse com quem tinha estado casada nem se tinha mentido.

No entanto, antes descobriria tudo o que pudesse sobre ela. Simplesmente teria que permanecer em Baincroft até que Thomas de Brus, o administrador e amigo de Rob, tivesse levado a cabo as suas pesquisas. Depois poderia ir.

lana converter-se-ia em sua amante e ele protegê-la-ia sem se importar com o que quer que fosse que tivesse feito. E ambos teriam que se conformar com isso.

 

lana comeu com eles. Lady Main tinha-a convencido a permitir que uma das donzelas se ocupasse de Tam lá em cima. Apesar de lhe doerem ainda os ombros do peso da menina, desejava a sua companhia. Sentia-se muito só, apesar da multidão que se tinha reunido na sala para comer.

A única coisa boa de tudo aquilo era que Jehan, por sorte, não estava presente. lana disse para si que a sua repulsa por ela não tinha nada a ver com Henri, mas sim com o modo calculista e agressivo como pensava conseguir marido, como se ele não tivesse opinião sobre o assunto. Lorde Robert sorria com frequência e olhava-a com curiosidade pouco dissimulada, embora não lhe tivesse dito nada desde o primeiro cumprimento. Tinha uma expressão inteligente e era bastante atractivo, de um modo diferente de Henri. Embora falasse menos, parecia mais aberto que o cavaleiro moreno que a tinha levado ali.

Henri, sentado próximo dela, parecia tão calado como preocupado. Main falava com um e com outro, num esforço para preencher o silêncio incómodo que tinha sido, sem dúvida, provocado pela presença de lana.

Esta olhou para Everand, que não dizia nada, já que falava apenas francês. Como estava sentado numa mesa mais baixa, com outros dois escudeiros e vários outros membros do castelo, não podia contar nem com Henri nem com ela para que o incluíssem na conversa.

- Onde está o administrador que mencionastes? - perguntou a Henri.

Este ofereceu-lhe um copo de vinho e ela recusou com a cabeça.

- Por que perguntais?

- Por nada. Só pensei que Everand se sentiria mais cómodo se tivesse mais alguém com quem pudesse falar. Parece bastante perdido.

Henri observou-o e encolheu os ombros.

- Sobreviverá. Gostaria que pudéssemos ficar tempo suficiente para que aprendesse a língua.

lana olhou para ele.

- Ir-vos-eis embora em breve?

- Sim - anuiu ele. - Embora deva ver os meus pais e a minha irmã antes de voltar a França.

- Oh! - exclamou ela, decepcionada. Embora gostasse de lady Main e de lorde Robert, não os conhecia muito bem. E tinha pensado que Henri e Everand estariam ali até que se habituasse à sua nova morada. Supondo, claro, que aquele viesse a ser o seu lar. - Talvez haja algum trabalho para mim na propriedade do vosso pai - sugeriu. - Os vossos pais necessitam de uma curandeira?

- Não - disse ele, cortante. - Já têm uma, que é muito eficiente. Não servirá de nada levar-vos lá.

lana não disse nada. O resto do almoço passou com rapidez. Pediu licença quando lhe foi possível e regressou aos seus aposentos para continuar a cuidar de Tam. E a pensar.

Que faria se lhe pedissem que se ir embora quando Henri partisse? Não tinha para onde ir. Não podia instalar-se numa aldeia estranha nem na propriedade de outro senhor feudal sem que alguém a recomendasse.

Imaginou com horror um futuro a percorrer caminhos, arrastando com ela a pobre Tam e mendigando para sobreviverem.

- Deus, livrai-nos disso - murmurou.

Henri não notou, nem nesse dia nem no seguinte, que as pessoas se dirigissem com desprezo a lana ou à menina. Claro, os membros do castelo seguiam o exemplo da sua senhora, e Main esforçava-se para a incluir em todas as actividades diárias.

As duas mulheres estavam sempre juntas, e uma delas costumava levar Tam na anca. Henri ficava aliviado ao ver que a menina parecia cada dia mais animada.

Cada vez que a pequena olhava para ele com os seus grandes olhos escuros, sentia o impulso de a tomar nos braços. Mas mantinha a distância, sabedor de que seria mais inteligente não formar um vínculo demasiado forte com ela. Nem com lana, já que também teria gostado de a abraçar, embora de outro modo.

Ao que parece, tinha-se preocupado sem motivo com o modo como a aceitariam ali. Sabia que a sua decepção era indigna dele. Não a obrigariam a deixar Baincroft e não tinha licença para a fazer sua amante e levá-la. E isso era algo que lamentava muito.

Main tinha-lhe dado um vestido de acordo com a sua posição social. E o tecido, azul-escuro e bordado com folhas e flores delicadas, assentava-lhe muito bem. A lã suave pegava-se às suas curvas de tal modo que Henri se sentia frustrado. Embora não levasse jóias, não necessitava delas; ela já era uma pedra preciosa.

- Fala com ela - disse-lhe Rob. Estavam sentados diante do tabuleiro de xadrez e viam as damas a brincar com as crianças

do outro lado da sala. - Sabes que queres fazê-lo.

Henri não lhe fez caso e moveu um peão e, como consequência, sacrificou a rainha. Embora ainda faltassem mais movimentos, sabia que já tinha perdido essa partida, como aconteceu com a anterior.

- Terrível - murmurou Rob.

- Desde logo - admitiu Henri. - Vou para a cama.

Rob pôs-se a rir e moveu a cabeça. Um dos escudeiros chegou a correr da entrada e deteve-se sem alento diante deles.

- Lorde Rob, vem aí o vosso pai - disse. Acaba de cruzar a porta. Parece muito alterado.

Rob e Henri levantaram-se de imediato e correram juntos até à porta. Era quase de noite e, embora fossem apenas umas quantas léguas até ao castelo de Trouville, o caminho era traiçoeiro pela noite.

Antes que tivessem tempo de cruzar a sala, entrou o conde de Trouville, com o seu rosto bonito convertido numa máscara de desespero e o pó do caminho misturado com um rasto de lágrimas.

- Pai! - gritou Henri.

Trouville deteve-se, com os olhos muito abertos e apertando o peito com as mãos. Rob e Henri correram para ele, porque parecia estar a ponto de cair. Uns soluços solitários foram a única coisa que quebrou o silêncio durante um momento.

Logo, Trouville abraçou Henri como se quisesse esmagá-lo.

- O que foi? Alguém está doente?

- Incrível! - sussurrou o seu pai.

O coração de Henri quase parou. Sempre tinha visto o seu pai sereno até no meio de um desastre.

- É a mamã? Alys?

- Tu! Disseram-nos... - fechou os olhos com força, respirou fundo e estremeceu. - O rei enviou Duquesne para me dizer que... o teu barco tinha naufragado. Disse que se tinham afogado todos - os seus olhos encheram-se de novo de lágrimas. - Mas estás vivo.

Henri abraçou-o com mais intensidade que nunca na sua vida. Jamais o tinha visto chorar nem abandonar daquele modo a sua reserva. Doeu-lhe vê-lo reduzido àquele estado por sua causa.

- O que aconteceu ao barco é verdade. E aos homens. Não pude salvá-los, pai.

- Mas tu sobreviveste. Graças a Deus - Trouville recuperou parte da sua compostura e afastou-se para o ver bem. - Não sofreste nenhum ferimento, filho?

- Sim, mas estou a recuperar-me. Vinde sentar-vos, meu pai.

Olhou para Rob, que tinha uma expressão de pânico absoluto. Henri sentia o mesmo. Os dois temiam que Trouville morresse de um ataque de coração ali mesmo. Estava tão pálido! Tinha sido sempre tão forte que nunca se abalava, mas naquele momento parecia tão humano e mortal como os outros.

Henri e Rob seguraram-no cada um por um braço até que o tivessem sentado em frente ao fogo.

Main aproximou-se também deles. lana mantinha-se afastada, com Tam nos braços e esforçando-se para manter os gémeos quietos. Até Ned e Harry franziam o sobrolho ao ver o seu querido avô tão pálido e alterado.

Rob pôs-lhe na mão a caneca de cerveja que bebia antes de chegar.

- Bebei - ordenou-lhe.

O conde obedeceu e emitiu um suspiro quando terminou. Passou uma mão pelo cabelo acinzentado e alvoroçado pelo vento.

- Deus misericordioso. Que noite! - agarrou de novo o braço de Henri, como se necessitasse do contacto para se assegurar de que era real.

Logo pareceu recordar-se de algo e olhou para Main.

- Filha, envia Thomas de imediato. Anne e Alys estão doentes de dor e têm que saber que Henri ainda vive.

A mulher anuiu. Thomas estava fora, a indagar sobre os segredos de lana nos arredores de Largsmuth, mas enviaria alguém no seu lugar.

Henri ajoelhou-se ao lado do seu pai.

- Sinto-me muito mal por ter causado tanta angústia - disse. - Pensava ir ver-vos amanhã. Se soubesse que tínheis recebido essas notícias de França, teria ido logo. Duquesne chegou hoje?

- Sim, há pouco mais de três horas. Custou-me um pouco a acalmar a tua mãe antes de sair para informar Rob e Main - engoliu saliva com força e sacudiu a cabeça como se quisesse despejá-la. - Tinha que ver Rob - procurou a mão deste sem olhar e logo fez o mesmo com a de Henri e apertou as duas contra o peito. Meus filhos - sussurrou com a cabeça baixa.

Os olhos de Henri encheram-se de lágrimas. Sempre tinha sabido que o seu pai o amava, mas ver a prova disso era quase demasiado para ele.

Olhou para lana e viu que o rosto dela também estava húmido e que mordia o lábio inferior.

Os gémeos soltaram-se dela e correram para Trouville. Este soltou Henri e Rob e subiu os pequenos para o seu colo.

- Harry, Ned - grunhiu. - Já está tudo bem. Não vos assusteis.

Uns minutos depois, voltou a ser o conde firme e sereno de sempre. Todos suspiraram de alívio.

Main tinha voltado, depois de enviar um mensageiro a Trouville.

- Ficais aqui esta noite, pai - anunciou. - Não admito objecções.

O seu sogro anuiu com a cabeça.

- Traz-me vinho, se for possível - pediu. - E algo para comer.

Main correu a obedecer e Trouville começou a fixar-se no que o rodeava. Olhou para lana e Henri soube que esperava que a apresentasse.

- O meu pai, o conde de Trouville - disse. Fez intenção de se aproximar. - A senhora lana. Ela coseu a minha ferida e tirou-me a febre, meu pai. Se não fosse por ela, teria morrido.

Trouville deixou os netos no chão e pôs-se em pé.

- Tudo o que desejardes, só tendes que pedir e será vosso - disse a lana com suavidade. - De onde sois, senhora?

- Sou do Oeste, milorde. De uma aldeia próxima da costa. O escudeiro do vosso filho contratou-me para cuidar do seu amo e pagou-me com prata. Não me deveis nada.

Henri viu que o seu pai piscava os olhos com curiosidade.

- Por que estais aqui?

lana corou e baixou os olhos.

- O vosso filho não estava totalmente bem quando partimos. Além disso, vim para trabalhar aqui. Isso foi parte do acordo, milorde.

- Trabalhar? A vossa família empobreceu? Eu enviar-lhes-ei uma fortuna - declarou o velho com firmeza. - Levar-vos-ei pessoalmente e mostrar-lhes-ei o meu agradecimento pelo grande serviço que prestastes a meu filho. O que quer que Henri vos tenha dado não é suficiente e não permitirei que trabalheis enquanto eu tiver uma moeda para vos dar.

- Mas trabalhar é o que desejo, milorde disse ela, que tremia visivelmente. - Não necessito de nada mais.

- Insisto em recompensar a vossa amabilidade. Não tendes ideia de como estou agradecido...

Henri não pôde suportar mais.

- Pai, deixai estar isso por agora. Temos muito que falar e faz-se tarde.

O seu pai observou-o de cima a baixo, como quando era criança e se portava mal.

- Acreditas que isto não é importante, filho? Esta mulher salvou-te a vida. Tu arrancaste-a da sua família e fizeste-a cruzar o país contigo. Olha, até tem uma menina - olhou para lana. - É vossa filha, não é verdade?

- Sim, milorde, pertence-me - respondeu ela com desafio.

- Nesse caso, devemos reunir esta dama à sua família e recompensá-los como é devido pela sua ausência, Henri. É o correcto. E bem, quem são?

Por um momento, ninguém disse nada. lana foi a primeira a falar.

- Os meus pais estão mortos, milorde. E o meu marido, também.

- Quem é o vosso senhor?

- Não pertenço a nenhum - disse ela, com os ombros tensos.

- Então, segundo todos os direitos, o rei deveria...

- Pai, suplico-vos, deixai esse assunto até amanhã. Não vedes que a perturbas com tantas perguntas? Agora estamos todos cansados - disse com gentileza. - Agradecerás o seu esforço amanhã.

Trouville observou o seu filho por um momento e depois lana.

- Muito bem - anuiu por fim. - Amanhã, lana fez-lhe uma vénia e saiu com tanta

pressa que não teve tempo de lhe dar as boas-noites.

Trouville voltou a sentar-se, com os olhos fixos no jantar que Main tinha colocado em cima do tabuleiro de xadrez, perto dele. Henri sabia que não via a bandeja de prata nem o seu conteúdo; como a todos, confundia-o a renitência de lana em dar o nome da sua família.

- Não vos dirá, senhor. Thomas foi indagar explicou.

- É viúva - comentou o seu pai. Tinha colocado um cotovelo no braço do seu cadeirão e arranhava o queixo, pensativo. - Tem outra família

- declarou. - E por alguma outra razão, teme que o descubramos.

- Confiou a Main que queriam casá-la contra a sua vontade e que a expulsaram de casa por se negar - disse Henri. - Não quer dizer de onde veio, mas averiguarei a verdade sobre ela. Decidi enviar Thomas para fazer uma investigação.

O seu pai observou-o com atenção.

- E porque é que queres saber a verdade? Suponho que seja algo mais que curiosidade.

Henri não fugiu à pergunta.

- Porque me importa o que lhe aconteceu antes e o que lhe possa acontecer quando a deixar aqui. Tal como vós, quero assegurar o seu bem-estar.

O seu pai olhou à sua volta e viu que Main e Rob estavam ocupados a tranquilizar as crianças. Baixou a voz para que não o ouvissem.

- Desejas essa mulher, não é verdade? - Sim.

- Eu receava isso.

Henri olhou para a porta pela qual lana tinha saído apenas há uns momentos atrás com a menina nos braços. Embora Trouville se tivesse casado com uma escocesa viúva, isso foi depois de ter desposado uma francesa e ter um herdeiro. E antes tinha tomado outras duas esposas francesas, que morreram. Tinha cumprido o seu dever com a coroa e Henri devia fazer o mesmo.

- Não receais nada, pai. Sei o que se espera de mim como vosso sucessor. Embora confesse que sinto tentações de me esquecer de tudo e fazer o que me agrada, deveis saber que não será assim. A minha próxima esposa será tão francesa como a última, para que, se por algum milagre houver um herdeiro, possam incluí-lo na linha de sucessão.

O seu pai não respondeu. Henri viu que sorria, mas o seu sorriso podia ser tanto de orgulho pela obediência do filho como de simples alívio porque o seu herdeiro vivia. Se Henri albergava alguma esperança de que lhe desse a sua bênção para fazer o que quisesse, isso não aconteceu.

lana odiava toda a forma de cobardia, mas na manhã seguinte não pôde fazer mais nada senão entregar-se a ela. Depois de se levantar e vestir-se, decidiu que alegaria fadiga e permaneceria nos seus aposentos para evitar o pai de Henri.

Aquele homem era incansável. E temia o que podia revelar se voltasse a interrogá-la como na noite anterior.

Imaginava qual seria a resposta de Newell se um conde francês se apresentasse à sua porta com presentes. O seu irmão aceitá-los-ia, claro, mas também iria procurá-la com a esperança de obter ainda mais riqueza do que com o homem com quem queria casá-la. Dorothea tinha-lhe contado o quanto beneficiaria o seu irmão da aliança com Sturrock e que tinha jurado obrigar lana a casar. Foi então que ela jurou que não voltariam a vendê-la como um objecto.

Muito depois de terem almoçado e da donzela ter levado os restos do almoço, Tam brincava ao seu lado deitada na cama.

O sol que entrava pela janela aquecia a divisão. A donzela tinha deixado a porta aberta e ouviam-se risos lá em baixo, na sala. Parecia um modo agradável de passar o dia. Estavam sozinhas e não estavam.

Os dedinhos da menina tocaram no rico bordado da manga de lana. Esta sorriu e deu-lhe um beijo na cabeça, contente por agora se interessar por tudo o que acontecia à sua volta.

- Não importa o que aconteça no futuro, o teu bem-estar será a prioridade - sussurrou-lhe. Pode ser que eu já não vá ter uma boa vida, mas tu não deves sofrer por isso. Nenhum homem te comprará como se fosses um adorno - acariciou-lhe a fonte com um dedo. - Um dia serás forte. Mais forte que eu.

E como lhe ensinaria a sê-lo? Escondendo-se naquele leito emprestado, aceitando a compaixão de uma família que não conhecia?

- Claro que não - disse em voz alta. - Devo enfrentar o que tiver que ser. Tomar as minhas próprias decisões. Se os MacBain não me empregarem, exigirei a sir Henri que me dê outra coisa em troca. Um homem como ele tem que conhecer muitas famílias ricas e alguma delas necessitará dos serviços de uma curandeira.

Com aquela ideia, saltou da cama.

- Vamos descer - disse à menina. - O conde de Trouville pode interrogar-me até que se canse - declarou com firmeza. - Mas não responderei ao que não quiser. Não é o meu senhor e, com a ajuda de Deus, não descobrirá quem o é.

- O é - murmurou Tam.

Lana ficou imóvel. Inclinou-se sobre a cama.

-Falaste!

Tam pestanejou. lana abraçou-a com força.

-Ah, espera até que Henri saiba. Vai ficar tão...

- Tão quê? - perguntou uma voz profunda do umbral.

lana correu até ele.

- Disse duas palavras - contou-lhe excitada. Duas.

- Tuas - imitou-a Tam.

Henri abraçou a menina e soltou uma gargalhada.

- Tens uma palavra para mim, para Henri?

- Henri - repetiu Tam.

- É injusto! - protestou lana, rindo. - Aprendeu antes o teu nome e eu é que sou a sua mamã.

- Mamã - repetiu a menina.

- Um dia maravilhoso! - exclamou lana. - A nossa Tam pode falar.

A nossa Tam? Porque tinha dito isso? A menina era só sua. No entanto, Henri tinha sido o responsável indirecto por começar a gatinhar e certamente tinha direito a participar naquele grande feito.

Sorriu sem reservas.

- Sois uma mãe estupenda - elogiou-a ele. Thomasina é uma menina muito afortunada.

lana baixou a cabeça.

- Obrigada - sussurrou.

- Vim ver se descansastes o suficiente e se quereis descer para comer connosco. E queria falar-vos em privado antes.

lana pôs-se tensa.

- Procurar-me-eis emprego noutro lado. Não há nada mais a dizer - declarou.

Henri suspirou.

- Pensei nisso toda a noite. Se quiserdes acompanhar-me a França, prometo-vos que tereis a posição que mereceis.

- E já imaginastes que posição será essa, senhor - bufou ela. - Devo declinar.

- Entendestes-me mal. Desposar-vos-ia se pudesse, mas sou herdeiro de Trouville, com tudo o que isso implica. Estamos relacionados com o trono de França e vejo-me obrigado a...

- Não, fostes vós quem entendeu mal - interrompeu-o ela, com calma. - Mesmo que fosseis livre para me desposar, jamais aceitaria. Nenhum homem voltará a dizer-me o que devo e não devo fazer. A única coisa que quero é que honreis a vossa promessa de me encontrar emprego. Isso é pedir muito?

Henri franziu o sobrolho.

- Obviamente, mais do que pensais. Nenhuma mulher é livre de seguir um rumo próprio. Todas, desde a princesa até à serva mais baixa, estão sujeitas ao arbítrio do seu senhor. Só uma rainha sem rei pode ter a liberdade que vós pedis. E, apesar da vossa aparência, não sois rainha.

- Não pertenço a nenhum amo.

- Pois tendes um - replicou ele. - Nalguma parte, tendes um.

- Mas não sois vós - lembrou-lhe ela. - Tanto vos perturba que uma mulher possa marcar o seu próprio rumo? Não é que peça esse direito para todas, mas adopto-o para mim. Já o fiz - endireitou os ombros e levantou o queixo. - Se recusais fazer o que me prometestes, continuarei o meu caminho.

- Já veremos - estendeu-lhe Tam. - Pensai, lana. Eu não vos forçarei de modo nenhum. Tendes a minha palavra nisso.

- Não, a menos que pensais que é para o meu bem - aclarou ela, - então não duvidareis em fazê-lo, não é verdade?

Henri olhou-a nos olhos durante um longo momento antes de se voltar e sair. lana tomou a sua atitude como uma resposta afirmativa.

Talvez se interessasse por ela, mas jamais lhe daria liberdade de tomar as suas próprias decisões. Se aceitasse a sua protecção, a palavra dele seria lei. E ela não só cederia o controlo sobre a sua vida, como também teria que suportar uma posição ainda mais baixa que a de uma esposa.

O seu desejo por ele podia levá-la a ceder a sua independência se não tivesse cuidado. Se ele insistisse um pouco mais ou se a beijasse, podia acabar por se render apesar da sua determinação.

- Como é preocupante isto! - murmurou, abraçando-se à menina.

- Isto - anuiu Tam.

 

Baincroft era um castelo movimentado, sem muito espaço para intimidades, a menos que se permanecesse no andar de cima, nos seus aposentos de dormir. Henri necessitava de uns momentos a sós para pensar antes de se reunir com o seu pai e com Rob, por isso dirigiu-se a um pequeno quarto do vestíbulo que se usava às vezes para que visitantes pouco importantes passassem a noite e deixou-se cair sobre as peles que cobriam o banco de pedra.

Nunca tinha considerado pouco nobre ouvir às escondidas. Tinha-o feito desde menino e esse costume tinha sido de grande ajuda em determinadas ocasiões.

Os conluios e intrigas da corte francesa faziam com que fosse imperativo estar bem informado.

Às vezes, invejava a capacidade de Rob de ler os lábios a partir do outro extremo da sala. Mas agora não necessitava dessa habilidade, porque não podia ver as pessoas que falavam.

- Eu não acho que seja uma boa mãe - dizia a donzela Glenys. - Viste a pobre bastarda? De certeza que a fez passar fome durante meses, com a esperança de que morresse.

Henri esteve a ponto de sair do seu esconderijo para bater à descarada, mas recordou que aquela não era a sua gente mas a de Rob.

Além disso, necessitava de ouvir a resposta para saber se a opinião da donzela era isolada.

- Tem cuidado com o que dizes se não queres acabar a pastar caracóis - avisou-lhe a outra mulher, Aiden. - Não é assunto teu o que fazem os teus senhores.

- Ela não é melhor que eu - protestou Glenys, com calor, quando passavam à frente do sítio onde se escondia Henri. - A roupa comum que trazia marcava-a como o que é. E a falta de jóias. Não leva nem um anel no dedo. Ontem à noite falávamos disso.

- Pode ser que lho tenham roubado ou que o tenha perdido - disse a outra mulher. - Continuo a dizer que a nós não nos interessa se esteve ou não casada.

Pararam para substituir as velas da parede. Henri não podia já ver as suas sombras no chão, mas ouvia claramente as suas vozes.

- Quer ser curandeira. Não serei eu a tomar as suas ervas, asseguro-te - comentou Glenys.

- Eu também não - anuiu Aiden. - Uma coisa é calar e não chatear a lady Main e outra, deixar que a rameira de sir Henri te cure as doenças. Cá entre nós, acho que o embruxou.

Glenys resmungou.

- Não me digas! Tu achas que faz conjuros?

- Poções, mais provavelmente - declarou a outra. - Confessou a lady Main que conhece as ervas. Não é próprio do nosso Henri perseguir assim um rabo de saias. Alguma vez o viste fazê-lo?

- Por mim nunca mostrou nenhum interesse admitiu Glenys com uma gargalhada.

Henri apertou os punhos com força. As vozes das servas foram-se afastando pouco a pouco e deixou de entender o que diziam.

Pelo menos agora sabia de onde soprava o vento. Tal como temia, Rob e Main podiam possuir o coração da sua gente, mas não podiam controlar as suas crenças. E talvez o seu irmão e cunhada também sucumbissem a essas crenças quando ele se tivesse ido embora.

Recordou com horror a vez em que a nova esposa do seu pai, a mulher que Henri amava agora como mãe, fora acusada de envenenar Trouville. E necessitou de um milagre e muitas maquinações para a salvar.

Não podia suportar pensar que lana pudesse sofrer uma acusação similar, mas se a deixasse ali, tudo era possível. A bruxaria era uma acusação tão grave como o assassinato.

Se um dia ajudasse Main a curar e administrasse uma erva que não desse resultado, teria que sofrer as consequências. E ele não estaria ali para a salvar.

Era preciso, pois, que a convencesse para que se fosse embora com ele.

Saiu do pequeno quarto com intenções de a encontrar e começar a tarefa de persuasão. Não teve que ir longe. Viu-a de seguida.

lana saía detrás da pedra que suportava as escadas com uma mão nos lábios e os olhos muito abertos e cheios de lágrimas. Henri compreendeu que tinha ouvido tudo.

Aproximou-se dela.

- Ouvistes - comentou.

- Sim - sussurrou ela.

- Onde está Thomasina?

- Está na sala com lady Main e as crianças. Eu estava... a explorar.

- E haveis descoberto mais do que queríeis murmurou ele.

lana endireitou-se.

- Um conhecimento necessário, sem dúvida.

- Vireis comigo quando me for embora - declarou ele.

Levantou uma mão para lhe tocar, mas ela afastou-se.

- Não, não irei.

- Não podeis permanecer aqui. Existe o perigo de que...

- Sou muito consciente do perigo - informou-lhe ela. - Irei para outra parte.

- Sim? E onde será isso? - perguntou ele. Para um convento? Talvez não sejais bem-vinda se não levardes dote suficiente. Levareis um anel de corda para passardes por esposa de um camponês ou levareis um de metal que indique a vossa verdadeira posição? Em qualquer dos casos tereis que servir algum homem. Com o formosa que sois...

- Silêncio! - gritou ela. Voltou-se. - Deixai-me em paz!

A sua voz partiu-se e ele abraçou-a por trás e beijou-lhe a cabeça inclinada.

- Por favor. Deixai-me cuidar de vós.

lana afastou-se dele e deu vários passos antes de se voltar para ele. Olhou à sua volta para ver se alguém tinha visto abraço.

- Vós alimentais as suas suposições de propósito, sir Henri. Quereis que me marquem como a uma rameira? É essa a vossa intenção? Pensais que então aceitarei sê-lo? Pois não o sou e nunca o serei.

Henri respirou com exasperação.

- Eu sei que não sois nenhuma rameira, lana. Escutai-me - suplicou-lhe. - Não podeis ficar aqui e não podeis ir sozinha com Tam. Eu procurar-vos-ei um sítio. Comprar-vos-ei um anel e jurarei que estivestes casada com um amigo meu. Se tiver que mentir para vos deixar bem instalada, mentirei em abundância. Bastará isso?

lana abanou a cabeça, mas não disse nada. Henri estendeu-lhe a mão.

- Vinde, apresentemos o assunto a meu pai. Espera-me com Rob na sala de contas. Se não me confiardes o vosso futuro, talvez o confieis a ele.

lana agarrou de má vontade a mão que lhe oferecia.

Henri notou que tremia e tragava saliva. Abriu a boca para dizer algo, mas dela não saiu nenhuma palavra. Henri inclinou-se para espantar os seus medos com um beijo.

- Estás aí - disse a voz profunda do seu pai. Trouville tinha-se cansado de esperar e tinha ido procurá-lo. Henri não reparou no olhar que lançou às suas mãos unidas.

lana afastou-se e juntou as mãos com tal força que os seus dedos ficaram brancos.

- Ah, encontraste lana. Querida, estou a preparar a vossa recompensa - assegurou-lhe. Mandei vir de casa uma verdadeira caravana de presentes para a vossa família e pôr-nos-emos em marcha quando tiverdes descansado da vossa última viagem. Como está a vossa filha? Levarei uma aia que cuide dela pelo caminho, claro.

lana fez uma vénia, voltou-se e correu escadas acima sem dizer uma palavra.

Trouville suspirou e arqueou as sobrancelhas.

- Presumo que não tiveste êxito a descobrir as suas origens.

- Pai, quereis deixá-la tranquila? Está tão aflita pelas suas circunstâncias que não pode pensar com clareza. Devo ir atrás dela.

Trouville segurou-o pelo braço.

- Não, não o farás.

- Estará a chorar. Tenho que a convencer...

- Não! - disse o seu pai, e respirou fundo e baixou a voz. - Não se abalará, Henri. Quer fugir. Vi a sua intenção tão claramente como se mo tivesse dito com palavras.

Henri obrigou-se a relaxar e permaneceu no sítio.

- Suponho que não querereis que isso aconteça, pai. Eu não posso permiti-lo.

Trouville franziu o sobrolho.

- Há uma razão pela qual se recusa a dar-nos o seu verdadeiro nome, Henri, e tenho que saber qual é. Uma vez que confesse porquê, poderemos ajudá-la a resolvê-lo. Sim, quer vá sozinha pelos caminhos ou para França contigo, nunca saberemos o que tanto a assusta. Pode ser que seja o que ela diz, que ache que o irmão a desposará se voltar para ele. Suponho que sabes que eu posso dissuadi-lo. Não achas que lhe devemos dar paz de espírito e a reconciliação com a sua família?

- Eu acho que nem sequer vós podereis conseguir isso - disse Henri. - Thomasina não é filha legítima do seu marido. Isso ela admitiu. Eu acho que a repudiaram por vergonha, pai.

Trouville apoiou-se na parede de pedra e cruzou os tornozelos.

- Não acreditas nela depois do que confessou a Main?

Henri encolheu os ombros, apoiou uma mão na pedra e apoiou a nuca na outra. Doía-lhe a cabeça pela falta de sono e preocupações.

- Pode ser que achem que não alcança o padrão da sua família e a considerem desonrada.

O seu pai sorriu.

- Então porque é que não a aceitou a tua amável oferta? Se o que dizes é verdade, que teria a perder?

Henri endireitou-se.

- Quer liberdade para fazer o que desejar, não responder perante homem nenhum.

Trouville soltou uma gargalhada.

- Todas querem isso, filho - declarou quando se acalmou. - E umas quantas conseguem-no. Suspeito que ela também o conseguirá, seja qual for o resultado disto. Deve ter muita força de vontade para ter sobrevivido até agora.

- Dizei-me o que tenho que fazer, pai.

- Dar-lhe tempo. Retê-la aqui até que Thomas volte. E se não tiver descoberto nada, sugiro que não desistamos de lhe arrancar a verdade.

- Subestimai-la. Jamais nos dirá. O seu pai abanou a cabeça.

- Está escondida e não tem para onde voltar, Henri. Odeio pressioná-la assim, mas é o único modo de chegar ao fundo da questão e poder resolver a sua situação.

- E se não pudermos ajudá-la? Sugeris que a lancemos ao mundo como fez o seu irmão?

Trouville olhou para ele durante um momento.

- Claro que não. Dar-lhe-emos a liberdade que deseja e os meios para a manter onde se fixar.

- Verá isso como caridade e não o aceitará. Eu já lho ofereci.

- Pois parece-me bem que não o faça, Henri, porque acho que merece mais.

- E que mais achais que necessita, pai?

- Alguém que a queira, claro. Uma família. Um marido. Um pai para a sua filha. Necessita disso querendo ou não. Todos precisamos disso - Trouville olhou para ele nos olhos. - Não achas?

Henri não podia suportar pensar em lana casada com outro homem. Não podia, pois, responder a seu pai nem para assentir nem para dissentir.

- Henri?

- Desculpai-me. Tenho que avisar os guardas de que lana não deve passar a porta sob nenhuma circunstância se não for acompanhada.

- Muito bem - murmurou Trouville. - Vai, então.

O primeiro impulso de lana quando chegou ao seu quarto foi fazer uma trouxa com os seus pobres pertences, recolher Tam na sala e partir a toda a pressa. Henri e o pai acabariam por enlouquecê-la se ficasse.

De facto, já tinha estado a ponto de dizer que Newell não só se mostraria encantado com a riqueza que ela tinha ganho, como também se alegraria de a recuperar para voltar a vendê-la como a uma égua.

Queria perguntar se consideravam isso uma recompensa justa por ter salvo a vida a sir Henri, mas deu-se conta, antes de falar, que aqueles dois homens não o considerariam um destino ofensivo para ela. Achariam bastante justo, tudo o que uma mulher deveria desejar.

Se pelo menos tivesse os restos da corrente de prata, poderia partir por sua conta, mas Henri tinha-se esquecido de lha devolver. Dar-lha-ia se lha pedisse? Certamente que não. Lembrar-lhe-ia que em nenhum outro lugar estaria melhor que ali. E por desgraça era verdade.

Restavam-lhe duas opções. Podia fugir e arriscar-se a ficar presa de algum desconhecido ou podia aceitar a oferta de Henri e converter-se em sua amante.

Sentou-se na poltrona do seu quarto e apoiou a cabeça nas mãos. Estava melhor na aldeia, pobre como os ratos e livre de ir e vir à sua vontade. Mas não teria podido permanecer muito mais tempo lá. Newell teria ido rapidamente à sua procura.

Endireitou-se na poltrona. Que podia fazer?

- Senhora? - perguntou uma voz suave da porta.

Era Everand.

- Entra - convidou-o. Por que não? Todos os outros tinham tido algo a dizer. Teria ido ali em nome de Henri?. - Senta-te e aconselha-me sem oscilar.

- Aconselhar-vos? - repetiu o rapaz. - Em quê?

- No que quiserdes. Parece que uma mulher não tem mente própria e há que guiá-la como a uma menina pequena. Não espero menos de ti do que dos outros homens.

Everand riu e sentou-se em frente dela.

- Suponho que estejais a brincar. Eu ainda não sou um homem - confessou. - E vós tendes mente própria, sim.

lana suspirou e fechou os olhos.

- Se continuares assim, expulsar-te-ão das suas fileiras para sempre, rapaz. Tem cuidado onde deixas cair essas pérolas de sabedoria.

- Vim contar-vos uma coisa. O pai quer adoptar-me legalmente. E o conde reconheceu-me como neto esta manhã - disse. - É algo honorário, já que não sou um Trouville de sangue e não posso ter títulos, mas está bem que me aceite. Parece um bom homem, muito parecido com o meu senhor Henri.

- Oh, muito - anuiu ela. - Por desgraça.

Ev aclarou a garganta e olhou para a lareira vazia.

- Há outra razão pela qual vim - sussurrou. Algo que deveis saber.

lana respirou com força.

- Já sei.

Everand olhou-a com preocupação.

- Que acham que sou vosso filho e do meu senhor?

lana pôs-se de pé de um salto.

- O quê?

- Eu sei - continuou Ev. - Sois muito jovem para me ter concebido, mas eles não sabem a nossa idade, senhora. Eu aparento menos da que tenho e vós, bom, seria difícil adivinhar vossa idade. Muitas mulheres parecem mais jovens do que são quando levam uma vida sem trabalhos. E eles acham que vós a haveis levado - acrescentou. - Como amante de sir Henri.

lana começou a passear pelo quarto; a cada passo que dava, a sua fúria crescia.

- Como se atrevem...!

- À frente dos condes não se atrevem. Eu sei-o por Jean Louis, um pajem que veio da corte com a senhora Jehan e que fala francês.

- A senhora Jehan disse-lhe essa mentira? quis saber lana, alarmada de que fosse capaz de contar falsidades. Merecia que lhe arrancassem os olhos por isso.

- Não sei se foi ela - admitiu Ev. - Creio que pode tê-lo ouvido noutra parte. Diz que compreende bastante bem os servos. Em qualquer caso, já não é nenhum segredo. No castelo não se fala de outra coisa, pelo menos entre os serviçais. Dizem que o meu senhor me engendrou convosco há anos e a Tam, muito depois. Acho que a senhora Jehan pensa que embarcaremos todos para França e não gostou que tivesse trazido a sua amante e o seu serviçal para viver entre eles, mesmo que seja por pouco tempo. Parece-lhe uma falta de respeito para com lorde Rob e lady Main.

- Isto é absurdo! - lana enterrou o rosto nas mãos. - Asseguro-te, Ev, que quero perder de vista este lugar. Hoje. Agora mesmo.

O rapaz abanou a cabeça e puxou o tecido da sua capa.

- Impossível. Ouvi sir Henri dizer a seu pai que não permitirá que a minha senhora se vá embora. Temo que estejais cativa aqui, senhora. Oxalá pudesse ajudar!

lana suspirou.

- Cativa?

Como era possível? Como podia Henri fazer-lhe isso? Mas a culpa era sua, por lhe ter salvo a vida... embora tivesse que admitir que teria feito o mesmo se soubesse o que a esperava.

Teria salvo a vida a Henri, mas não teria ido para ali com ele. Teria ficado para a enfrentar o seu irmão. Com Newell tinha pelo menos uma pequena possibilidade de conservar a sua honra e o respeito que merecia.

- Ev, queres descer e procurar Tam? - perguntou. - E diz ao teu senhor que desejo falar com ele.

- Aceitareis agora a sua oferta? - perguntou o rapaz.

lana sentiu que um frio repentino a percorria por completo.

- Não aceitarei nada desse homem nem em troca do céu.

- Então aceitai de mim - suplicou ele. – Eu desposar-vos-ei. Já vos ofereci, mas brincastes com o pedido. O meu verdadeiro pai deixou-me o que tinha, de modo que não dependo de sir Henri. Casai comigo e...

- Oh, Ev! - lana comoveu-se ao ver o seu empenho em ajudá-la. Estendeu uma mão e tocou-lhe na cara. - Querido rapaz.

- Não digais que não. Eu amar-vos-ei - declarou ele. - Eu quero-vos.

- Meu querido. Eu também te quero - disse ela com sinceridade. - Mas essa não é a solução. Já tínhamos falado disto e os dois sabemos que não poderia ser. Mas agradeço-te de todo o coração que sejas tão bom e queiras salvar-me.

Ev lançou-lhe um olhar estranho que ela não soube interpretar e saiu do quarto.

lana não se lembrava de ter vivido na vida um momento mais triste que aquele. Nem sequer as sovas que suportava durante o casamento a tinham feito sentir-se tão derrotada e sem esperança.

Até Everand se dava conta de quão terrível era a sua situação.

 

- Oh, estais aí, pai - disse Everand, quando se aproximou.

Henri notou que o rapaz enfatizava a palavra pai e tinha um tom de sarcasmo na voz. Mas talvez se enganasse, já que sabia que estava encantado que o considerasse seu filho.

- Estou aqui - disse.

- Pensei que talvez tivésseis ido sem mim.

- Impossível - sorriu Henri. - Quem ia tirar o brilho à minha nova cota de malha? Só vim ver os cavaleiros. Procuravas-me?

- Para vos dar uma mensagem. Lady lana espera-vos no seu quarto.

Henri perguntava-se se seria inteligente atender ao seu chamado.

- Com que humor está? - perguntou. Ev afastou os olhos.

- Preocupada.

Henri perguntou-se até que ponto estaria Everand ao corrente dos mexericos, já que não falava a língua dos servos dali.

- Tu também pareces preocupado com algo. Queres falar disso? - perguntou.

- Acho que não. Já se disse o suficiente - argumentou o rapaz. - E outro tanto foi ouvido.

- Correcto. Bem, encarrega-te da égua, está bem? Parece nervosa. Eu vou tentar acalmar outra fêmea.

Ev imitou um som de desgosto e olhou para ele, ultrajado.

- Comparais uma dama com um cavalo, senhor? Jamais teria esperado isso de vós!

Henri riu e deu-lhe uma palmada no ombro.

- Controla o teu temperamento, filho. Não falava a sério. Só queria dizer que o sexo fraco por vezes faz uma montanha de um grão de areia.

- Um grão de areia, senhor? - repetiu Ev entre dentes.

- Bem, admito que tem motivos para estar preocupada, mas não é o fim do mundo. Remediaremos a situação, já verás.

Everand aproximou-se mais e semicerrou os olhos.

- Quanto me deixou o meu pai, senhor? Henri franziu o sobrolho, surpreendido pela aparente mudança de assunto.

- Teria que examinar os documentos e calcular o valor de alguns investimentos para te dar uma cifra exacta. Porquê?

- Mil libras? Henri anuiu.

- Várias. Precisas de dinheiro, Ev? Fizeste alguma aposta?

- A maior aposta de todas, senhor. Penso usar mil libras para pagar o preço da minha noiva.

Henri riu.

- Não achas que te apressas um pouco? Ainda não tiveste a tua primeira mulher e já planeias casar-te? Diz-me, quem te conquistou?

Everand parecia muito sério.

- Tenho idade para isso e vou casar-me com lady lana. Já lho propus.

Henri ficou sério num instante.

- Fizeste o quê?

- E ela não recusou.

- Então está louca! - exclamou Henri. - Não podeis casar-vos, e ela sabe-o. Além da diferença de idade, ela é uma dama e tu és filho de um mercador.

- Estais enganado. Agora sou filho da casa de Trouville - lembrou-lhe Everand.

Henri olhou para ele com fúria.

- Não o permitirei.

- Por que não? - o rapaz fez uma careta. Claro que isso já eu sei. Querei-la para vós. Não o suficiente para vos casardes com ela, mas o bastante para a iludirdes como um reles vilão.

Henri estremeceu com o impulso de o esbofetear. Como se atrevia aquele ingrato a falar assim com ele, o homem que lhe tinha oferecido tudo?

- Esqueceste a tua lealdade para comigo? perguntou.

- Pelo contrário, senhor. Proponho-me a salvar a vossa honra tanto como a dela.

Henri lutava por falar sem gritar. Respirou fundo com força.

- E a quem pagarias o preço da noiva? Ela já disse o nome da sua família?

Ev sorriu.

- Não, mas vamos sabê-lo quando o espião do vosso irmão regressar, não é? E a mim não me importa as notícias que traga, nem o que ela tenha feito. Não afectará em nada a minha decisão.

Henri sabia que devia afastar-se dali antes de fazer algo que o seu recém-adquirido filho não esquecesse nunca. Cruzou o pátio sem dizer palavra e subiu as escadas que levavam ao vestíbulo.

- Quer falar comigo, eh? - murmurou entre dentes. - Pois eu também tenho algo a dizer-lhe.

Estava a ponto de subir as escadas quando Jehan o chamou do outro lado do vestíbulo. Henri, que não estava com humor para se entreter, cumprimentou-a com a mão e seguiu o seu caminho.

Ela alcançou-o no terceiro lance de escadas e agarrou-se ao seu cotovelo, ao que parece com intenções de o acompanhar.

- Que queres de mim? - perguntou Henri. Diz depressa, porque tenho um assunto entre mãos que não pode esperar.

A jovem olhou para ele com os olhos muito abertos.

- Oh, quem vos alterou tanto? Uma dama? disse a brincar.

- Deixa-me - avisou ele, e tentou soltar-se. Vai chatear o Rob.

No mesmo instante, lamentou as suas palavras, porque ela pareceu ferida. Retrocedeu sem dizer nada e começou a afastar-se.

Henri tocou-lhe no ombro para a deter.

- Jehannie, espera. Não queria dizer isso.

- Sim, querias - murmurou ela com tristeza.

Henri agarrou-a pelos ombros. Que acontecera para a tratar assim? Jehan tinha sido sua amiga desde o primeiro dia em que chegou a Baincroft em pequeno. Era verdade que costumava meter-se com ele, mas ela era assim; fazia isso com todas as pessoas.

Agora tinha crescido e já não era a menina travessa de antes. Mas apesar de se ter tornado formosa, Henrí ainda tinha dificuldade em vê-la como mulher.

- Olha, estou preocupado com outra coisa -. confessou. - Não estás a chorar, ou estás?

Estava. Lágrimas grossas rolavam pelas suas bochechas.

- Por que me fazes isto? - perguntou ele, com um suspiro de derrota. - Sabes que nunca pude suportar lágrimas.

Jehan soluçou.

- Primeiro Robbie e, agora, também tu me abandonas.

Henri abraçou-a e deu-lhe umas palmadinhas nas costas.

- Calada. Rob não te abandonou. Se ainda não reparaste, vives em sua casa. E o meu regresso a França não se pode considerar um abandono. Estava previsto desde o dia em que nasci, e tu sempre o soubeste. Além disso, Rob e eu não somos os teus únicos amigos.

Jehan olhou para ele nos olhos.

- Eu esperava que me viesses buscar quando Rob se casou com Main, nem que fosse só para me consolares.

- Vamos, diz-me que não estás com ciúmes da esposa do Rob. Se é assim, que fazes aqui? franziu o sobrolho. - Não pensarás causar-lhe problemas depois de tanto tempo, não é? Já se casaram há muitos anos.

A jovem baixou a cabeça até apoiar a testa no peito dele. Henri teve que se esforçar para ouvir as suas palavras.

- Claro que não! Gosto de Main como se fosse uma irmã e ela é muito melhor esposa do que eu teria sido. Mas não posso casar com nenhum dos desconhecidos que o meu avô me propõe. Necessito de um homem em quem possa confiar. Alguém forte, honrado e bom. Alguém como tu.

- Jehannie, esse homem não serei eu, apesar do muito que te aprecio - disse Henri com firmeza. Afastou-a de si.

Jehan tocou-lhe na cara.

- Porque não és livre para te casares por amor?

Henri segurou-lhe as mãos para que as mantivesse quietas.

- Tu não me amas, gatinha.

- Podia amar - disse ela em voz baixa. Mordeu o lábio inferior e olhou para ele nos olhos. Pode ser que não seja francesa, mas a minha relação com Robert de Bruce é real; aproxima-se mais de uma coroa do que imaginas. Conviríamos um ao outro.

- Matar-nos-íamos um ao outro - declarou ele, com sinceridade.

Soltou-lhe as mãos e ela, logo a seguir, pôs-se em bicos de pés, pôs-lhe os braços à volta do pescoço e beijou-o na boca. Não como uma amiga de infância, mas sim como uma mulher sedutora.

O gesto apanhou-o tão desprevenido que ficou imóvel, sem alento, com os braços estendidos.

Esteve quase a afastá-la com um empurrão, mas recordou-se no último momento por que fazia ela aquilo. Pôs-lhe as mãos nos ombros e separou-se com gentileza.

-Jehannie...

- Não pareis por mim - disse uma voz suave das escadas acima deles.

Maldição! lana.

Henri nem sequer tentou explicar por que estava nas escadas com Jehan nos seus braços. A expressão de lana era indescritível, mas sabia o que pensava.

Há muito pouco tempo que lhe tinha pedido que aceitasse a sua protecção e fosse com ele e agora parecia que já cortejava outra mulher.

Jehan tinha o seu sorriso de gata. Qualquer coisa que ele dissesse naquele momento soaria a falso ou a ridículo. Henri desceu as poucas escadas que o separavam do vestíbulo e afastou-se dali devagar e com toda a dignidade de que foi capaz.

Só quando estava fora recordou por que tinha ido ali em primeiro lugar: lana contemplava a ideia de se casar com Everand e, agora, Jehan parecia empenhada em levar avante o seu plano ridículo.

Como é que a vida se tinha tornado tão complicada? E como podia resolver tudo aquilo?

lana pensou que Jehan parecia muito satisfeita consigo mesma. Talvez mudasse de ideia se soubesse da prodigalidade com que Henri entregava os seus beijos.

- Faríeis bem em correr atrás dele - aconselhou-lhe, - porque pode ser que vá procurar a donzela mais próxima para terminar o que vós começastes.

A outra soltou uma gargalhada.

- Henri? Não me parece. Um homem como ele é tão constante como o dia é comprido.

- Só se contardes as horas do dia como minutos - replicou lana.

Jehan encolheu os ombros e pegou-lhe na mão.

- Vinde, vamos reunir-nos com Main na sala. Mandou-me procurar-vos - tomou-lhe o braço e sorriu-lhe. - Quero que saibais que não acredito no que dizem.

lana olhou-a, surpreendida.

- Sei que Henri não engendrou nenhuma criança na sua juventude - continuou a outra. E que também não é o pai da vossa filha.

- E como é que sabeis isso com certeza? - replicou lana.

- Simples - declarou Jehan. - Vós não sois o tipo de mulher com a qual ele se teria deitado. E mesmo que o fôsseis - acrescentou, - já vos disse que ele não pode engendrar filhos ou tê-los-ia engendrado com a sua esposa. Sei essa história por Rob e Main.

- Eles contaram-vos? - lana não podia imaginar os MacBain a falar com alguém sobre os assuntos privados do casamento de Henri.

- Claro que não. Mas por vezes esquecem-se que sei ler os signos das mãos. É muito conveniente quando se trata de conhecer segredos. Devíeis aprender, se tendes intenções de permanecer algum tempo aqui.

- Isso é abominável! Não devíeis fazê-lo. Jehan riu.

- Eu quase nunca faço o que devia. Seria uma vida muito aborrecida - suspirou e soltou lana ao aproximar-se da porta do salão. - Não receeis nada. Quando o meu irmão voltar e nos disser quem sois, saberemos como ajudar-vos a sair deste problema.

lana deteve-se e agarrou-a pelo braço.

- Que quereis dizer?

A expressão de Jehan era de pura inocência.

- Thomas foi a Largsmuth investigar sobre a vossa família. Regressará em breve.

lana por pouco não desmaiou; sentia-se doente e destroçada. Newell chegaria com aquele homem que tinham enviado para descobrir quem era. E não lhe permitiriam sair de Baincroft antes; Henri tinha-se encarregado disso.

Entrou na sala, ultrajada.

- Lady Main, insisto em que me digais por que razão estou prisioneira em vossa casa quando não fiz nada de mal.

A condessa levantou os olhos de onde estava sentada e olhou-a, surpreendida. lana esperava a sua resposta.

- Prisioneira? De que estais a falar e por que estais tão zangada?

- Porque não me permitem partir - lana apontou para Jehan com um braço. - O seu irmão foi informar o meu do meu paradeiro. Sabeis o que acontecerá depois? - perguntou. - O meu irmão levar-me-á com ele para me forçar ao casamento de que vos falei. E não me permitirá conservar esta menina, disso podeis estar certa. Perderei Thomasina pela curiosidade de outros. Ainda perguntais por que estou zangada?

Olhou para Jehan, que parecia também contrita. Talvez pudesse aproveitar a sua culpa.

- Ajudar-me-eis a escapar pelo bem da menina? Por favor.

As duas mulheres pareciam quase dispostas a fazê-lo. Lady Main abriu a boca para falar, mas no vestíbulo ressoaram vozes de homens e passos que a distraíram. Pôs-se em pé, deu a lana a menina e correu até à porta.

- Que agitação é essa?

Jehan aproximou-se também do umbral e deu um salto.

- Quem é esse que acompanha Rob, Henri e Trouville? Oh, viste-lo bem?

lana olhou para o desconhecido por cima dos ombros das outras, um homem alto e atraente que parecia bastante imperioso ataviado com uma cota completa e uma túnica vermelha brilhante que luzia um brasão bordado.

- Não devemos negar-lhe a hospitalidade do vosso castelo, Main - disse Jehan com um riso de excitação. - Deixai que o faça sentir-se bem-vindo. E sem acrescentar mais nada, saiu para o vestíbulo com passos animados.

Main seguiu-a. lana fechava a fila com Tam nos braços. Fosse quem fosse, pelo menos o visitante não era Newell.

Henri fez as apresentações quando se aproximaram.

- Sir Ambrose, apresento-vos Lady Main, a esposa de Lorde Robert, a senhora Jehan de Brus e a senhora lana de Ayr.

As três mulheres fizeram uma pequena reverência.

- Milady - sir Ambrose correspondeu com uma inclinação de cabeça e desviou os olhos para lana, coisa que a surpreendeu, porque Jehan estava mais próxima e era mais bonita que ela. Além disso, embora a cortesia exigisse que dedicasse toda a sua atenção à anfitriã, apenas olhava para as outras duas. - Ayr? Isso é na costa, não é? - perguntou.

- Sim, senhor.

- Próximo de Whitethistle, se não me engano, lana ficou em silêncio. Não queria pensar que Newell o tivesse enviado ali. Mas por que outro motivo iria mencionar aquela aldeia? Observou-o com mais atenção. Havia algo nele que lhe parecia familiar, mas não sabia o que era.

- Que vos trás a Baincroft, senhor? - perguntou lady Main, como para mudar de conversa.

- Procuro uma dama - respondeu ele com voz profunda.

lana sentiu um baque no coração, que começou a bater com rapidez. Tinha ido à sua procura.

- E haveis encontrado três! - anunciou Jehan com alegria. Agarrou-se ao seu braço. - Vinde descansar, senhor. Tomai um pouco de vinho. Quando tiverdes descansado, levar-vos-ei para um aposento e preparar-vos-emos um banho. É meu dever pô-lo cómodo - disse com ar sedutor.

O cavaleiro olhou-a com curiosidade.

- Vosso dever?

Jehan moveu as pestanas com subtileza e lana agradeceu-lhe no seu interior por distrair o recém-chegado. Gostaria de se afastar dali, mas Henri agarrou-lhe o braço com firmeza e conduziu-a à mesa aonde se dirigiam os outros.

- Tenho que ir - sussurrou ela.

- Ficai - declarou ele. - Este homem veio à vossa procura e quero saber porquê.

- Não deixeis que me levem - suplicou-lhe lana, sem poder evitá-lo. - Por favor.

- Desejais a minha protecção? - perguntou ele.

- Sim - respondeu ela, que estava disposta a fazer qualquer coisa para não regressar para a casa de Newell. Ao menos Henri deixava-a ficar com Tam.

- Então sede sincera comigo por uma vez. Sois uma esposa fugida? - perguntou ele entre dentes.

- Não, juro-vos. Eu disse-vos que o meu marido morreu, e é verdade.

Continuaram a andar atrás dos outros para que não os ouvissem.

- É evidente que não conheceis este cavaleiro - sussurrou ele.

- Não o conheço, mas temo que tenha vindo em vez de outro.

- O homem que quer casar convosco? Há um contrato?

- Eu neguei-me a assiná-lo. Não voltarei a casar-me. Jamais.

- E Everand? Destes-lhe a entender...

- Poupai-me das vossas graçolas, por favor. Neste momento, estou muito assustada - tentou soltar-se de novo, sem conseguir.

- Não temais - disse ele. - Sois minha.

- Eu não sou vossa! - protestou ela. - Não pertenço a nenhum homem. Mas desejo a vossa ajuda nisto. Ajudai-me e ficais livre de qualquer promessa que me tenhais feito. Guardai o que resta da vossa prata e eu desaparecerei.

- Para morrerdes de fome? Não me parece.

- Por favor! - implorou lana.

- Devo negar-me para vosso bem - sorriu ele.

lana renunciou a continuar a tentar. Já o convenceria mais tarde de que a deixasse ir embora. No momento talvez fosse melhor dar-lhe uma vitória aparente. Depois de tudo, dependia da sua boa vontade.

Quando todos estavam sentados à volta da mesa, preparada com rapidez, beberam vinho, queijo e várias carnes que as donzelas e dois pajens serviram.

Jehan, que se tinha adjudicado o papel de distrair o hóspede, contou-lhe histórias divertidas das cortes francesas e inglesas, onde tinha vivido a maior parte dos seis últimos anos com o seu avô.

lana tinha que admitir que sabia atrair a atenção. Sir Ambrose passou de olhá-la com indiferença para parecer encantado com ela em meia hora, embora continuasse a enviar olhares de curiosidade em direcção a lana.

Sempre que o fazia, Henri inclinava-se, acariciava o queixo de Tam e sorria para lana com tal doçura que ela quase desejava que não estivesse a interpretar um papel.

Rapidamente, terminou o almoço e Jehan conduziu o cavaleiro escadas acima para lhe mostrar os seus aposentos.

- Já o tem a comer na sua mão - comentou Henri. - O pobre homem já quase se esqueceu de porque é que veio aqui.

- Espero que sim. Por certo, os vossos olhos estão a tornar-se verdes - observou lana.

Henri riu.

- Achais-me ciumento?

- Sim, tendo em conta como a beijastes antes. Não me pareceis um homem que esteja disposto a partilhar facilmente, mas, por outro lado, eu não sou um bom juiz de homens.

Henri abanou a cabeça.

- Eu não partilho nada. Jehan não é minha amante nem nunca o foi.

- Pensa casar-se convosco - declarou lana. Suponho que vos quer.

- Sim - admitiu ele. - E eu quero-a a ela - vacilou e pareceu que ia acrescentar algo mais, mas afastou os olhos e guardou silêncio.

lana viu a sua expressão longínqua e tocou-lhe no braço com compaixão.

- Que triste para os dois! Jehan também não lhe convém, não é?

Também não? Por que havia dito isso? Quase parecia que lamentava não poder ser candidata ao casamento com ele.

Henri sorriu.

- Está aparentada com a realeza escocesa e seria um bom partido para quase qualquer nobre. Mas não para mim.

-Oh!

lana compreendeu que se considerava o problema. Jehan tinha dito que não podia engendrar filhos. Que nobre da sua parte não se casar com a mulher que amava sabendo que não podia dar-lhe filhos!

Mas não podia dizer que ela lamentava. A verdade era que não queria vê-los casados por muito que se amassem.

Henri agarrou Tam e aconchegou a menina adormecida contra o seu peito.

- Eu levo-a para cima. Vós necessitais de um descanso.

- Sem dúvida - disse ela com suavidade, mas sabia que a chegada de sir Ambrose a impediria de descansar.

No entanto, pelo menos não tinha já que se preocupar com o regresso do administrador com a informação sobre a sua vida anterior. Que importava isso? Enquanto sir Ambrose estivesse a descansar, contaria tudo sobre si aos outros.

Mas agora encontrava-se debaixo da protecção de Henri e este não permitiria que a devolvessem a Newell. Além disso, se já estava desonrada, o cavaleiro não vacilaria em deixá-la ali. Newell ficaria furioso, mas não a quereria de volta quando ouvisse a informação do cavaleiro. Henri, no entanto, esperava algo, e ela sabia muito bem o que era.

Olhou por um instante para o seu perfil enquanto subiam as escadas. Que aspecto tão forte e formidável tinha e que gentil podia ser por vezes! Como nesse momento com Tam, por exemplo.

A ideia de se converter em sua amante devia tê-la perturbado muito mais do que a perturbava, mas o que importava isso? Todos pensavam que já era sua. E, certamente, ser sua amante uma temporada oferecer-lhe-ia mais liberdade no futuro do que converter-se em esposa de qualquer homem.

 

Henri deixou a menina adormecida na cama, no quarto de lana.

- Ainda parece muito frágil, embora tenha engordado um pouco desde que nos conhecemos disse.

- Pensais assim? - perguntou lana, esperançada. - Temia que fosse só o meu desejo de que assim fosse que me fazia pensar isso. É difícil julgar, já que estou sempre com ela. Não parece pesar mais.

Henri sorriu.

- Estou de acordo. Voltou a falar desde que disse o meu nome?

- Umas quantas palavras, e faz mais ruído que antes. Preocupo-me muito com a sua saúde.

Henri observou-a a acariciar o cabelo da menina.

- Veremos o que diz o melhor médico de França - prometeu-lhe. - Talvez o médico do rei. Dentro de pouco tempo, estará tão gorda e barulhenta como qualquer outra criança.

- Faríeis isso por ela? - perguntou lana. Porquê? - fez um trejeito. - Mas que estupidez perguntar isso! Sei que sois bondoso por natureza, mas também sei que esperais algo em troca de tanta generosidade.

- Oh, lana! - suspirou ele. Tomou-lhe a mão. O que fazia parecia-lhe pior que nunca. Uma coisa era desejá-la com força, e outra fazê-la sua em troca de lhe oferecer refúgio para a sua filha e para ela. Apesar do que ela tivesse feito, o caminho que lhe oferecia tinha que percorrê-lo livremente.

- Descansai enquanto Tam dorme - aconselhou-a. Soltou-a e voltou-se para se ir embora. Falaremos disso mais tarde.

- Henri? -Sim?

- Obrigada pelo que fizestes. Por fazerdes acreditar sir Ambrose... bom, já sabeis, que tínheis direito sobre Tam e sobre mim.

- E tenho - disse ele, lutando com a sua consciência. - E que Deus ajude o homem que tentar mudar isso.

Sempre podia instalá-la nalgum sítio e procurar que não lhe faltasse nada, mas sabia que ela não aceitaria, que insistiria nalgum tipo de troca em vez de caridade, mesmo que isso implicasse partilhar a sua cama. Depois de tudo, era a única coisa que tinha para lhe oferecer.

Algo no seu coração não lhe permitia deixá-la assim, como se lhe estivesse a cravar uma estaca no coração. Aproximou-se dela.

- lana, não posso suportar que vos sintais privada da vossa honra em relação a este assunto.

Ela sorriu com tristeza.

- Mas fareis o que tiverdes de fazer. Para o meu próprio bem, claro.

- E o meu - disse ele com suavidade. Tomou-lhe o rosto entre as mãos, baixou a boca e beijou-a. Os lábios dela responderam um pouco, mas não se abriram num gesto de convite quando ele roçou a língua neles. Henri tentou conformar-se com o que lhe dava, sabedor de que era pouco inteligente provocar o que não podia acontecer a meio do dia e com uma menina presente.

Mas excitou-se de todos os modos. O aroma doce de lana envolveu-o de um modo insidioso, incitando-o a respirá-lo, como se fosse da sua essência, e não do ar que a transportava, do que necessitava para viver.

- Henri - sussurrou ela.

Ele desceu as mãos pela curva do pescoço até que as palmas descansaram nos seios dela. Desatou os laços que atavam o vestido ao corpete e beijou-a com paixão para impedir os seus protestos, e ela aceitou a sua invasão com uma facilidade surpreendente. O seu sabor delicioso privava-o de toda a razão, mas não se importava com isso.

Gemeu de prazer e deslizou as mãos pela abertura do vestido, que chegava até às ancas. Não era estranho que os sacerdotes chamassem a essa moda as portas do inferno. Tinha a impressão de ir directo ao fogo. Sentiu o calor da pele dela através da camisa, tocou na sua cintura esbelta, na curva gentil das suas nádegas, que encaixavam perfeitamente nas suas mãos, e apertou-as.

lana pegou-se mais a ele, com os braços à volta do seu pescoço e os dedos pequenos a moverem-se, nervosos, pelas suas costas. O som que emitia a sua garganta quando se beijavam alimentava a névoa de desejo escarlate que a envolvia.

Henri, que não podia esperar nem mais um momento para sentir a prova do desejo dela, deslizou uma mão entre os seus corpos e tocou-lhe intimamente através do tecido fino.

Ela afastou-se de repente, quebrando o laço que os envolvia.

- Não posso! - exclamou. - Não posso! Empurrou-o com um braço e Henri tomou-lhe a mão que o afastara e levou-a aos lábios.

Beijou-lhe a palma com fervor, com os olhos fechados e o coração a bater com força no peito.

Tinha interpretado mal a sua resposta? O seu desejo por ela fazia-o imaginar que ela o desejava do mesmo modo? Permaneceu um pouco assim, combatendo a necessidade imperiosa de a possuir nesse instante. Jamais uma mulher o tinha afectado tanto para o fazer esquecer onde estava e qual seria o resultado de copular ali.

Quando falou, a sua voz soou impregnada de decepção.

- Viríeis esta noite até mim se vos pedisse? Ela pareceu vacilar um instante. Logo respirou fundo.

- Não mo pedis - disse-lhe. Era quase uma súplica. - Não aqui, em casa do vosso irmão. Parece... pior que em qualquer outro sítio.

- Pior?

Aquilo dizia tudo, não? A sua união seria má em qualquer sítio, mas pior ali. A raiva começou a substituir a frustração. Soltou a mão com brusquidão e fez-lhe uma inclinação de cabeça.

- Muito bem. Vemo-nos esta tarde. Não vos alarmais se me mostrar tão pendente de vós como antes. Considerai as consequências se parecer que terminei convosco antes que o nosso hóspede parta.

- Já as considerei - assegurou-lhe ela, já mais firme e com os olhos brilhantes de indignação. - E acredito que já vos agradeci. Se quiserdes que acuda ao vosso leito, eu escolherei o momento e o lugar. Permitir-me-eis tomar essa decisão, se tiverdes algum sentido de justiça.

Henri levantou-lhe um dos punhos e beijou-lho.

- Sou sempre justo, mas, como saber se escolhereis um momento no qual seja demasiado tarde para não fazer nada? Poderia ser dentro de anos.

- Assim fala um menino que não está habituado a que lhe neguem coisas - acusou-o ela.

Henri reprimiu uma maldição. Embora lhe custasse a admitir, ela tinha razão. Há quanto não lhe negavam o que se propunha ter? Por isso a desejava tanto? Encolheu os ombros.

- Ganhastes. Não posso discutir isso. lana mordeu os lábios, a tentar reprimir um sorriso. O riso brilhou nos seus olhos e fez-lhe tremer os ombros.

Henri riu-se também de si mesmo e ela imitou-o. Incapaz de evitar, ele abraçou-a.

- Ides fazer com que fique louco. Tende cuidado, porque um louco não dançará ao som do vosso instrumento.

Ela deitou para trás a cabeça e observou-o.

- Não posso imaginar-me a fazer isso com ninguém.

Henri surpreendeu-a com um beijo apaixonado. Como ela tinha as defesas em baixo, respondeu com uma intensidade que ele não esperava e que fez com que lhe custasse muito a separar-se e sair dali. As suas intenções tinham sido apenas deixá-la com mais desejo.

Tentou acalmar o seu desejo por ela, pensando noutras qualidades suas que não tivessem nada a ver com essa. Era uma mãe maravilhosa e possuía uma natureza carinhosa.

O modo como cuidou dele, um desconhecido, dizia muito a seu favor. E tinha ganho completamente a lealdade de Everand.

Sim, tinha todas as qualidades que um homem podia procurar numa esposa. E ele estava quase a desperdiçar todos esses atributos fazendo-a sua amante. Aquilo não estava bem e sabia-o.

Sir Ambrose uniu-se à companhia do salão pouco depois de Henri regressar dos aposentos de lana.

Jehan parecia tão calma e serena como Main, o que era pouco habitual nela, a menos que planeasse algo. E Henri julgou reconhecer o brilho astuto dos seus olhos.

- Irei directo ao assunto, já que não tenho tempo a perder - declarou sir Ambrose.

- Fazei-o - aconselhou-o Rob. - Nós também temos coisas que fazer.

Henri sabia que o seu irmão podia brincar como um cachorro quando lhe apetecia. Ou ser tão imperioso como o seu pai se a ocasião o requeria. Nesse momento, optou por imitar a atitude do visitante, que era algo pomposa e altiva.

Henri não gostava do visitante, e não só porque tivesse ido à procura de lana, mas também porque se mostrava quase grosseiro na sua pressa de cumprir o seu objectivo.

Na sua opinião, um convidado que não conservasse as formas inerentes às visitas entre nobres não merecia que o acolhessem. Não tolerava a descortesia em alguém que devia ser mais bem-educado.

Mas se sir Ambrose tinha tanta pressa, melhor. Assim livrar-se-iam antes da sua companhia.

- Dissestes que procurais uma dama - comentou. - Que vos fez vir procurar aqui?

- Procuro lady lana ?- declarou o outro com brusquidão. - Não é de Ayr, como vós dizeis, mas sim de Ochney, e depois de Dunsmor, onde foi viúva de James Duncan, o senhor desse lugar. Lorde Newell prometeu-ma e vim buscá-la.

Por fim o mistério estava resolvido. Henri inclinou-se para trás na sua cadeira e inclinou a cabeça para observar o cavaleiro um momento antes de falar.

- Embora seja certo que lana não seja um nome comum, a nossa senhora lana não parece conhecer-vos. Talvez vos tenhais enganado no lugar.

Sir Ambrose moveu a cabeça.

- O seu irmão nunca nos apresentou, mas é ela. Segui-a até a um lugar a sul daqui e a gente de lá assegurou-me que se dirigia para Baincroft.

- A sério? - perguntou Henri com um sorriso frio.

- Sim. O seu irmão, Lorde Newell Hamilton, deu-me permissão para procurar a dama viúva na aldeia de Whitethistle. Quando cheguei para a levar, tinha-se ido embora.

- Ah! E onde tínheis que a encontrar, sir Ambrose? - perguntou Henri com cortesia. - Era hóspede de algum nobre por ali? Ou residia ainda com a família do seu falecido marido?

O cavaleiro moveu a cabeça e pareceu envergonhado pela pergunta. Em vez de responder, continuou com a sua história.

- Como já disse, tinha-se ido embora quando cheguei. Arranjou de algum modo uma corrente de prata e pagou com os seus elos a sua viagem pela Escócia, e por isso deixou um rasto fácil de seguir. Em Largsmuth, descobri que a acompanhava um estrangeiro e os dois filhos deste. Ali disseram-me que esses viajantes tinham assassinado um homem numa das estalagens, chamando assim a atenção sobre eles.

- As autoridades procuram esses viajantes? perguntou Henri com um ar de estudada indiferença.

Ambrose olhou para ele com astúcia.

- A vítima era um conhecido ladrão e a sua morte não causou muito alvoroço. O estalajadeiro limitou-se a observar que o homem que certamente o tinha apunhalado era estrangeiro. Francês, creio que disse.

- Há muitos franceses na Escócia nestes tempos que correm - declarou Main.

Ambrose anuiu com a cabeça.

- Sim, mas parece que este e a senhora lana pararam numa aldeia não muito longe dali e ele foi reconhecido. Pagou provisões com elos da mesma corrente - o cavaleiro inclinou-se para a frente. - Esse homem, senhor, creio que sois vós. A menos que haja aqui outro que responda pelo nome de Henri Gillet, herdeiro de Trouville e irmão do senhor de Baincroft.

- Só estou eu - admitiu Henri.

Observou que os outros seguiam a conversa com atenção. Assim, não podia reclamar lana como sua, como teria feito se aquela entrevista fosse privada.

- Repito que a dama não vos conhece - prosseguiu. - Quereis que entreguemos uma mulher ao cuidado de um estranho, senhor?

- Vai ser minha esposa e fugiu ao seu dever. Que vos importa a vós quem se ocupe dela? Que é para vós?

Henri pensou que aquilo era muito difícil. Procurou não mostrar nenhuma emoção.

- A dama e a sua filha são...

- A sua filha? - interrompeu-o Ambrose. Que filha?

- A sua filha, senhor - explicou Henri. - A que tinha nos braços quando a vistes. Hoje foi o vosso primeiro encontro, não?

Sir Ambrose fechou a boca, olhou à sua volta e baixou o olhar um momento para o chão, entre os seus pés. Quando o ergueu, Henri viu confusão nos seus olhos e uma chispa de raiva.

- Lorde Newell não mencionou filha nenhuma. Quantos anos tem?

- Quase dois, creio eu.

- Impossível! Ela não teve filhos com James Duncan. Isso eu sei.

- Ninguém disse que os tinha - disse Henri. Observou a reacção no rosto do outro. Ambrose pôs-se de cor escarlate e guardou silêncio.

- Bem! - exclamou Jehan. - A nossa lana é a mulher errada, sir Ambrose. A que vós procurais não tem filhos e a nossa, sim.

O cavaleiro olhou-a com o sobrolho franzido e os punhos apertados.

O sorriso de Jehan não se alterou nem um pouco.

- Deveis ficar aqui uns dias para vos consolardes. A vossa futura esposa voou como um pássaro assustado e não deseja que a encontrem.

- Oh, encontrá-la-ei, não vos confundais grunhiu Ambrose.

Jehan pôs-lhe uma mão no punho num gesto de consolo.

- Oh, senhor! Não me digais que receberíeis uma esposa que desdenha o estado de casada. De certeza que não preferiríeis uma noiva desejosa?

Ambrose emitiu um grunhido que podia indicar tanto aquiescência como frustração.

Jehan levantou-se do seu banco e puxou-o pelo cotovelo para que se levantasse também.

- Senhor, a vossa decepção parte-me o coração. Vinde, passearemos pelos jardins, onde tudo é silêncio. Necessitais de tempo para pensar nisto e recuperar-vos.

- Necessito de beber algo - murmurou ele.

- E fá-lo-eis - Jehan olhou para Main, que lhe estendeu o cálice meio cheio que Trouville segurava. Jehan pô-lo na mão do cavaleiro e ele esvaziou-o num instante e foi com ela como um menino obediente.

Todos observaram o casal até que saíram pela porta.

Main pôs-se a rir. Rob e Trouville sorriram e Henri respirou aliviado. Aquilo não tinha terminado. Sir Ambrose não era nenhum tonto, embora talvez se sentisse como um naquele momento.

Sabia bem que lana era a mulher que buscava, mas a história da menina tinha-o feito perder entusiasmo com o casamento. E Jehan certamente tirar-lhe-ia por completo a ideia da cabeça. Henri não sabia por que razão parecia tão decidida a ajudar na causa de lana, mas não havia dúvida de que assim era.

- Poderia salvar o seu orgulho se dissesse que lana é a dama errada e se fosse embora de imediato - disse Trouville, que fez um gesto a uma das donzelas para que lhe levasse outro copo.

- Não creio que nos minta e que minta a si mesmo para salvar o seu orgulho - observou Henri. - Já, vistes como narrou abertamente as circunstâncias. Quando sair daqui, irá ver lorde Newell. O verdadeiro contratempo está aí.

Rob anuiu com a cabeça.

- Ambrose é honesto. Gosto disso. Todos olharam para ele com incredulidade.

- Gosto disso - repetiu Rob, como se alguém tivesse discutido o assunto, coisa que ninguém fez. - E Jehannie também.

Main deu-lhe uma cotovelada para lhe chamar a atenção, lançou-lhe um olhar astuto e fez um sinal com as mãos, um sinal de bonito. Rob enrugou o nariz e pôs-se a rir.

Todos pensaram o mesmo. Jehan parecia ter-se proposto a conquistar o cavaleiro. E se assim fosse, a menos que ele tivesse uma vontade de ferro, seria seu.

Se isso acontecesse, resolveria vários problemas de uma vez. Ambrose teria Jehan. E lana ficaria livre para fazer o que quisesse. Sempre que o seu irmão aprovasse o que decidira fazer. A verdadeira complicação estava ali. Ela tinha um senhor e devia obedecer-lhe.

- Newell Hamilton. Conhecei-lo, pai? - perguntou.

- Hamilton - Trouville pensou um momento.

- Conhecia um lorde chamado Malcolm Hamilton. Acho que tu também chegaste a vê-lo. Lembras-te do contingente de escoceses que viajou para Paris com o jovem David Bruce?

- Vagamente - disse Henri. - Isso foi há anos. E suponho que esse Newell deva ser o seu herdeiro. De for assim, talvez lana esteja bem aparentada, afinal. Quase todos os homens que acompanharam o jovem Bruce ao exílio estavam aparentados com a família.

Aquilo causava-lhe sentimentos contraditórios. Não podia ter lana como amante se era parente de um rei dos escoceses, mas podia casar-se com ela.

Um olhar para o seu pai afogou aquela esperança. Trouville negou devagar com a cabeça, como se já tivesse considerado aquele pensamento e o tivesse afastado.

Maldição!

A força da sua decepção surpreendeu-o. Não sofria só por não poder tê-la na sua cama, mas também porque desejava de verdade tê-la na sua vida, em todos os aspectos.

Nesse instante, deu-se conta de que era inútil negar que a amava profundamente. Já não lhe importava o seu passado nem o que tivesse feito, se tinha encontrado Tam ou se a tinha concebido ela. Gostava das duas e nada mais importava.

Consciente da futilidade de explicar tudo isso ao seu pai, afastou a cadeira e foi-se embora para estar sozinho com a sua angústia. O único lugar onde poderia encontrar solidão era fora de Baincroft. Iria montar a cavalo.

lana colocou uma das peles da cama no chão, deitou Tam nela e as duas brincaram um pouco fazendo rodar um novelo de lã brilhante.

Tam já gatinhava depressa quando lhe apetecia, lana observou-a, disposta a ajudá-la se tropeçasse.

Uma chamada à porta distraiu-a do jogo.

- Entre - disse.

- Senhora, concedeis-me um momento do vosso tempo? - perguntou Trouville.

lana olhou para ele, surpreendida. O conde aproximou-se e sentou-se com as pernas cruzadas sobre a pele. Fez sinal para que o imitasse.

- Não estaria mais cómodo no cadeirão, senhor? - perguntou ela.

O homem sorriu.

- Sem dúvida, mas aqui não estou mal olhou um pouco para Tam antes de falar. - Não se parece convosco, senhora.

lana suspirou, derrotada. Ninguém acreditaria nela nunca?

- Com o devido respeito, milorde, ela não saiu do meu corpo, por isso, por que ia parecer-se comigo?

Trouville pegou em Tam e sentou-a no seu regaço.

- Gosto de crianças - disse. - Só tenho dois filhos vivos, Henri e Alys. Perdi dois filhos no parto. Ainda choro por eles.

- Que triste! Deveis estar muito orgulhoso de Henri, é um bom homem - comentou ela.

- Os médicos disseram-me que não viveria para ver o seu segundo dia - confiou o velho, mas já viu mais de três décadas. A vossa filha esteve doente?

- Estava quase morta de fome quando a encontrei. Agradeci a Deus pelo facto de a sua mãe não a ter contagiado com a sua doença, ou também não teria podido salvá-la - levantou o queixo e pestanejou, vendo a sua palavra posta em dúvida.

- Acredito em vós, não receeis - Trouville pegou no novelo de lã e colocou-o nas mãos de Tam.

- Por que viestes, milorde? - perguntou lana com suavidade.

- Interrogar-vos, claro. Deveis dizer-me o que desejais. O que vos faria mais feliz. Tenho uma dívida para convosco e gostaria de a pagar.

lana suspirou.

- Quero ter poder para escolher o que nos acontecerá a Thomasina e a mim.

- Concedido - disse ele.

- O quê? - lana pôs-se a rir. - Como podeis oferecer-me isso se não sabeis nada de mim?

- Pelo contrário, sei tudo de vós.

- Não é possível.

- É, sim. Tendes plena liberdade para declarar o que quereis e eu farei com que aconteça. O cavaleiro que veio procurá-la? Farei com que se vá embora - sorriu e estalou os dedos. - O vosso irmão insistiu em resolver o vosso futuro? Comprá-lo-ei - inclinou-se para ela como para contar um segredo. - Quereis livrar-vos para sempre da companhia de Henri? Considerai-o expulso para os recantos mais longínquos de França, lana soltou uma gargalhada.

- Agora está claro, milorde. Temeis que apanhe Henri de algum modo.

- Se estivésseis livre de todos esses homens que querem brincar com o vosso futuro - continuou ele, sem fazer caso das palavras dela, - que faríeis?

- Já vos disse. Quero...

- Não repitais todos esses disparates abstractos sobre escolher o vosso caminho e fazer a vossa vontade. Sede específica. Decidi exactamente aonde quereis ir e que quereis fazer com a vossa vida quando chegardes lá. E as vossas razões para isso.

A sua pergunta deixou-a atónita, em grande parte porque não lhe ocorreu uma resposta.

- Pressupondes muitas coisas, milorde - disse.

- Quero a vossa resposta, e não mintais. - Eu nunca...

- A vossa resposta. Agora! - insistiu ele com determinação.

lana queria afastar-se dele. Embora não lhe tocasse, tinha a impressão de que não a soltava.

- Não sei - disse entre dentes. As lágrimas rodavam pela sua cara. Era certo que não sabia.

- É uma revelação, não é? - perguntou ele com gentileza. - Minha querida menina, se não sabeis o que quereis, é muito pouco possível que o obtenhais. Não o reconheceríeis mesmo que caísse aos vossos pés.

Estendeu a mão e secou-lhe uma lágrima com o polegar.

- Amais o meu filho?

lana tapou a boca com a mão. Não ousava admiti-lo nem negá-lo, porque estava muito insegura.

Apreciava muito Henri e admirava-o. Sabia que tinha tido ciúmes quando o viu a beijar Jehan e que o desejava com paixão. Mas ele ameaçava engoli-la com a sua força, convertê-la no que não queria ser e apanhá-la dentro da sua vontade.

Trouville anuiu.

- Não vos entregueis a ele - aconselhou-a. Não o façais.

lana anuiu por sua vez, certa de poder cumprir aquela promessa.

Trouville depositou Tam no chão e pôs-se de pé com uma agilidade imprópria da sua idade, lana aceitou a sua mão e levantou-se também. Ele parecia preocupado.

- Tereis muito em que pensar, pequena. Deixar-vos-ei só.

lana apertou-lhe a mão.

- Obrigada, monsieur lê comte - disse em francês.

- A vossa pronúncia é perfeita - elogiou-a ele.

- Obrigada - lana encolheu os ombros. - A minha mãe era de Avinhão. Antes da sua morte, falava quase sempre francês.

O conde lançou-lhe um olhar estranho.

- A vossa mãe era francesa? E o pai dela?

- Eustace de Ribemont - disse com indiferença lana, que nunca tinha conhecido o seu avô; o seu nome era a única coisa que sabia dele.

- Os deuses sorriem-nos - sussurrou Trouville para si. Beijou-lhe a mão e voltou-se para a porta.

lana observou-o a sair, surpreendida.

 

Trouville podia meter medo a uma rocha sem levantar a voz. No entanto, Henri não tinha motivos para temer o confronto com o seu pai; só temia a decepção que lhe causaria com a decisão que tinha tomado. Não o encontrou no salão e saiu à sua procura.

- Henri! - gritou-lhe Rob da porta do depósito de armas.

O seu irmão estava apoiado na dobradiça e o seu pai examinava uma flecha sentado num banco na parte de fora.

- Aposto que nunca usaste uma - comentou Henri.

Trouville levantou os olhos e sorriu.

- Não é arma para um cavaleiro, mas a construção é excelente, e pode ser muito útil caso sitiem ou ataquem Baincroft. Ao contrário de uma espada, isto pode ser usado por todos.

Henri olhou para Rob. Baincroft só tinha sofrido dois ataques que ele se lembrasse, e nenhum deles tinha representado uma séria ameaça.

- Esperas problemas? - perguntou. Rob negou com a cabeça.

- Mera precaução.

Trouville levantou a cara para ele.

- Deixa-nos, Rob. O teu irmão apareceu com um problema.

Rob sorriu para Henri e afastou-se sem protestar.

- Tens o sobrolho muito franzido, filho apontou o conde.

Henri sentou-se a seu lado no banco.

- Vou casar com lana, pai. Nada do que digais me fará mudar de ideias.

Houve um longo silêncio. Depois, Trouville falou como se não o tivesse ouvido:

- A construção desta flecha é tão boa que jámais poderia considerá-la inferior a uma lâmina nobre. Ainda que os da nossa casta não devam usá-la, penso provar o seu valor... extra-oficialmente, é claro - estendeu a corda com força e enganchou-a no seu lugar.

Henri olhou-o, mas a atenção de Trouville continuava fixa na arma.

- Não vou provar o valor de lana convertendo-a em minha amante, se é isso que sugeris. Vale mais do que eu.

O seu pai levantou os olhos devagar.

- Na verdade? Vale o futuro título de conde se o rei não aprovar a vossa escolha? Vale renunciar à possibilidade de chegar um dia à coroa?

- Quantos há à minha frente? - disse Henri. Dezasseis? Incluindo o rei de Inglaterra e os seus herdeiros.

- Quinze - corrigiu o seu pai. - Sem contar comigo. Faz só doze anos, havia quarenta e dois à frente dos Capetian. Se os Valois continuarem a defender a lei sálica, que elimina as mulheres, o número reduz para nove - encolheu os ombros. - A filha de um simples barão escocês jamais poderia ser rainha de França, nem os seus filhos reis.

- Sobrestimais a minha ambição pela coroa, pai. Preferiria mudar-me para a Irlanda e cuidar de ovelhas - disse, e encolheu os ombros. - Casar-me-ei com ela.

- Talvez ela tenha outros planos.

- Pois mudá-los-ei. Dais-nos a vossa bênção? O seu pai deixou com cuidado a besta no banco, entre eles, e pôs-se de pé.

Deu uns passos e depois voltou-se para ele.

- Se perdesses a tua espada no meio de uma batalha e encontrasses uma destas, usá-la-ias ainda que os teus camaradas nobres pudessem acusar-te de teres quebrado uma longa tradição e usado uma arma indigna de ti?

Henri passou um dedo pelo carvalho talhado.

- Preferiríeis que a ignorasse, mesmo sendo a única coisa que podia salvar-me a vida?

- Esperaria que, se te encontrasses nessa situação, não deixasses o campo para vires perguntar-me.

- Confundis-vos, pai. Não venho pedir-vos permissão, só vos informo do que penso fazer.

- És um homem. Faz o que deves, Henri, e responde só a ti mesmo - e Trouville afastou-se sem mais.

Henri pôs-se de pé, agarrou na besta e deu alguns passos para a deixar no armário das armas juntamente com as demais.

- Não, por Deus! - disse em voz alta. - Ficarei com ela.

Decidiu que aprenderia a usá-la melhor do que ninguém, e pobre do homem que ousasse criticar a sua decisão.

- Uma lição sobre armas? - perguntou Rob, que apareceu ao seu lado quando Henri entrou no vestíbulo.

- Não viste? - perguntou este, surpreendido.

- Sim, uma lição.

- Casa-te com ela - disse-lhe Rob por sinais.

- Main gosta dela.

- Oh, bom, é uma razão excelente - murmurou Henri, sombrio.

- Ele vinha a sorrir - disse Rob em voz alta. Henri deteve-se e agarrou-lhe pelo braço.

- A sorrir? Tens a certeza? Agora mesmo?

- Absoluta - assegurou-lhe o seu irmão. Aprova-o.

- Então por que...? Claro. Quer que esteja certo, que saiba se me caso com lana por agradecimento ou por me ter salvo a vida - riu e bateu nas costas de Rob. - Que faria eu sem ti, irmãozinho?

Sem esperar resposta, correu escadas acima para dar a notícia a lana.

lana tinha lavado a cara e tinha-se penteado. Margery, a donzela mais jovem, tinha ido buscar Tam e prometera dar-lhe de comer no quarto de brincar com os gémeos. lana tinha começado a fazer as tranças quando bateram à porta.

- Entrai.

Henri entrou, sorridente.

- Venho falar convosco - disse.

lana apontou uma cadeira e continuou com a sua tarefa. Ele sentou-se e observou-a.

- Bem, que tendes a dizer? - perguntou ela.

- Decidi que devemos casar-nos.

lana manteve os olhos na trança até que chegou ao final; depois olhou para ele.

- Decidistes - repetiu.

O sorriso dele vacilou um pouco.

- Deixai-me pô-lo de outro modo. Decidi perguntar-vos se quereis casar comigo.

- Melhor, mas devo recusar - dividiu o resto do cabelo e começou a entrançá-lo com fúria apesar de lhe tremerem as mãos.

- Deveis dizer que sim - argumentou ele. Ao piedoso sir Ambrose Sturrock não lhe importará. Ainda que tenho visto que vos encontrava mais formosa do que esperava, mudará de ideia sobre o contrato de casamento.

- Contrato de casamento? A que vos referis? perguntou ela. - Eu achava que só tinha vindo a pedido do meu irmão. Douglas Starruck, o homem com quem Newell quer casar-me, é tão velho como o meu primeiro marido. A esposa de Newell disse-mo várias vezes, porque o conhece bem. Não disse nada de nenhum sir Ambrose.

- Este cavaleiro deve ser seu filho. Talvez tenhais entendido mal. Mas não vos casareis com ele por muito jovem e atraente que seja. Advirto-vos que não o permitirei ainda que...

- Não, jamais me casaria com ele.

- Melhor. A estas alturas, estará já bastante encantado com Jehan. Quanto ao nosso casamento, o meu pai não protestará. Já falei com ele. E estou certo de que o vosso irmão também não o impedirá.

- Eu protesto - disse ela. Henri respirou fundo.

- Compreendo as vossas razões - disse com voz calma, - mas quero tranquilizar-vos. Nunca encontraríeis outro marido que vos desse mais liberdade do que eu. Prometo-vos por minha honra.

lana lamentava ter que ferir assim o orgulho dele, mas devia mostrar-se sincera.

- Não me casarei com mais ninguém. Acreditai em mim quando vos digo que o casamento não é para mim.

- Tão mal vos tratou o vosso esposo que não confiais em ninguém? Não vedes que eu jamais poderia fazer-vos mal nem insultar-vos? - colocou-se de lado na cadeira e olhou pela janela. Insultais-me ao comparar-me com ele. Como era?

- Muito diferente de vós em todos os aspectos - admitiu ela. - Ainda que não fosse feio, Duncan tinha o dobro da vossa idade. Era mesquinho, mal sorria e não gostava de ninguém, e de mim menos do que ninguém.

- Bem, pois aí o tendes. Eu sou jovem, de bom temperamento, tenho todos os dentes e sou o menino mimado deste castelo. Que mais poderíeis pedir?

lana sorriu com tristeza.

- Henri, eu tenho-vos muito apreço. Admitirei também que vos desejo, porque já o sabeis. Mas sois como James Duncan em todos os sentidos que importam. Encarregar-vos-eis de tudo e de todos. Não podeis evitá-lo, porque está na vossa natureza. Pensai-o bem. Gostaríeis que alguém controlasse todos os vossos movimentos e vos castigasse severamente quando fizésseis a vossa vontade ou expressásseis os vossos pensamentos?

Henri olhou-a com fúria, mas o seu tom de voz manteve-se calmo.

- Não gostaria, é claro. E como minha esposa, poderíeis fazer o que vos apetecesse, dentro do razoável. Mas fizésseis o que fizésseis, eu jamais vos castigaria. Nisso deveis acreditar.

- Porque é que devo acreditar? Não me casarei convosco, Henri Gillet, sob nenhuma circunstância. E faço-o tanto pelo vosso bem como pelo meu.

- Aposto que sempre quisestes dizer essas palavras, eh? - Henri colocou o cotovelo no braço do cadeirão e apoiou o queixo na mão. Parecia ter superado a fúria e mostrava-se calmo e determinado.

lana tentou ignorá-lo enquanto atava as tranças em redor da cabeça, formando uma coroa, e colocava os ganchos no seu lugar.

- E se vos suplicar? - perguntou ele. - Nunca me ajoelhei diante de nenhuma mulher. Vós seríeis a primeira. Pensai em como poderíeis presumir disso. Toda a família... não, toda a França e todos os que me conhecem ficariam atónitos perante o vosso poder.

lana não pôde reprimir um sorriso. Moveu a cabeça.

- Não, suplico-vos que me deixeis em paz.

- A minha resposta é não, e sempre o será assegurou-lhe ele. - Estamos destinados a repetir esta conversa uma e outra vez até que cedais.

- Nesse caso, escoltai-me até ao salão para que possa recuperar as forças, porque estou faminta - pôs-se de pé e ofereceu-lhe a mão.

Henri tomou-a na sua e apertou-lhe os dedos.

- Poderia deixar-vos sem comer - disse com ligeireza, quando saíam para a escada.

- Já tentaram. Não serviu de nada. Henri apertou-lhe mais a mão.

- Juro que isto era só uma brincadeira. Vós sabeis que eu não poderia...

- Sei-o muito bem. Podeis deixar o assunto por agora, por favor?

- De acordo - assentiu ele. - Mas assumo que isso implica que me permitireis continuar depois da comida.

lana sabia que o faria. Insistiria uma e outra vez até que acabasse por acreditar na sua palavra; depois confiava que pudesse continuar a ser seu amigo. Tinha que o convencer de que aquilo não era uma afronta pessoal, mas uma decisão que tinha tomado e pensava cumprir.

Não podia esquecer a história de Dorothea sobre como tinha mudado o seu irmão depois do casamento. O poder absoluto que tinham os homens sobre as mulheres acabava por distorcer a sua mente. Quem ia imaginar que Newell, tão terno noutros tempos, acabaria por maltratar a pobre Dorothea durante anos?

Graças a Deus, a sua cunhada tinha tido a bondade de se confessar e adverti-la de que Douglas Sturrock faria o mesmo. Uma vez avisada, lana negou-se a escutar Newell cada vez que puxava o assunto. Acontecesse o que acontecesse, não teria outro casamento no seu futuro.

Henri ocultou a sua preocupação e manteve um ar calmo durante o jantar.

- Mais vinho, querida? - perguntou a lana, oferecendo-lhe o cálice que compartilhavam. Pôs-lho na mão e roçou-lhe os dedos no processo. Seguiu com um olhar intenso o percurso do copo até aos lábios dela.

lana corou, mas não deu mostras de que a incomodassem aquelas atenções. Henri confiava que os dois davam uma imagem externa de um casal em completo acordo.

- Terminai-o vós, porque não me atrevo a beber mais - comentou ela, deixando o copo próximo da mão dele.

- Eu também não - respondeu ele, - porque há acordos importantes a decidir.

Estavam no último prato da refeição e sir Ambrose parecia ainda estar sob o feitiço de Jehan, que o tratava com uma mesura e gentileza desconhecidas para os seus amigos. Jehan costumava ser tempestuosa por natureza e bastante faladora. Mas essa noite não se mostrava assim.

Naquele momento, Ambrose comia literalmente da sua mão os pequenos pastéis de amêndoas que acompanhavam as ginjas da sobremesa. Ela ria suavemente quando ele lhe roçava os dedos com os lábios. Henri pensou que, se ainda não eram amantes, não demorariam a sê-lo.

Perguntou-se se Jehan apreciava de verdade o cavaleiro ou se simplesmente se divertia com ele. Em qualquer caso, não podia agradecer-lhe mais pelo que fazia.

Se o cavaleiro tivesse continuado a insistir nos direitos outorgados pelo irmão de lana, Henri ter-se-ia visto obrigado a desafiá-lo em duelo. Talvez ainda o fizesse, mas já não parecia necessário. Ambrose ignorava lana de forma cortês desde que tinha descoberto que tinha uma filha.

- Vejo que lorde Trouville se foi embora - comentou lana com Main.

- Sim, mas assegurou-nos que voltará com lady Anne e Alys dentro de uns dias.

- Estou desejoso que vos conheçam a Tam e a vós - adicionou Henri, decidido a reclamar a sua atenção. - Estou certo que as encantareis.

lana limitou-se a abanar a cabeça como se negasse o seu optimismo.

Depois disso, Main levou o peso da conversa e presenteou toda a gente com histórias sobre as últimas façanhas dos gémeos. Os meninos não estavam presentes porque tinham um convidado. Consciente de que nem todos os adultos apreciavam a presença de meninos ruidosos de quatro anos, tinha pedido que lhes dessem de jantar na sala de jogos junto a Thomasina.

O som de uma saudação próxima da porta afastou a atenção de todos da comida.

- Quem vem, Henri? - perguntou lana. O interpelado franziu o sobrolho.

- Sir Thomas, o administrador e velho amigo de todos. Suponho que regressa depois de ter descoberto o vosso passado. Não temais - apressou-se a acrescentar, -já não pode dizer-nos muito que não saibamos. As suas notícias não alterarão nada.

- Não me preocupa o que diga - sussurrou

ela. - Só os problemas que pode ter trazido de volta consigo.

Rob fez sinais a Thomas para que se dirigisse ao salão. Pôs-se de pé, ofereceu a mão a Main e despediu assim os comensais. Fez sinais a lana e Henri de que o seguissem e abriu a marcha para o salão desde o vestíbulo, longe dos olhos e ouvidos dos serviçais.

Por desgraça, sir Ambrose e Jehan também os acompanharam. Henri preferia não contar com a sua presença até ter avaliado a informação de Thomas.

Este foi directo ao assunto.

- A dama é irmã e vassala do barão Hamilton de Ochney, que se apresentará aqui amanhã anunciou.

lana respirou com força e apertou o braço de Henri. Estava claro que temia o seu irmão.

Henri pensou que talvez o seu medo tivesse fundamento. O seu irmão tinha a lei do seu lado e praticamente podia fazer o que quisesse com ela. Ainda que a lei estabelecesse claramente que não podia casá-la sem o seu consentimento, casamentos desses ocorriam com frequência, forçados por um ou outro meio.

E se Hamilton não aprovasse que se casasse com ele? E se as suas razões para a desposar com sir Ambrose fossem mais profundas do que a avareza ou a necessidade de uma aliança?

Rob indicou a todos que se sentassem e a maioria obedeceu e acomodou-se em bancos, banquinhos ou cadeiras. Henri sentou lana numa cadeira sem braços e permaneceu a seu lado, com uma mão no seu ombro.

- Continua - disse Rob para Thomas.

O administrador aclarou a garganta, olhou uma vez para lana e depois para Rob.

- Estive a fazer perguntas em Largsmuth, como me pedistes - disse, a fazer sinais com as mãos ao mesmo tempo que falava. - Numa questão de horas, dois homens abordaram-me na estalagem e fizeram-me acompanhá-los ao castelo de Ochney. Eles também andavam por ali à procura de notícias de lady lana. Tinha-os enviado sir Ambrose Sturrock para que informassem o seu irmão de que ela tinha desaparecido da aldeia de Whitethistle e que a tinham visto a viajar por Largsmuth.

- Ou seja, Hamilton está aqui - disse Rob.

- Viajámos juntos - afirmou Thomas. - Estava muito preocupado pelo paradeiro e o bem-estar da sua irmã.

Henri fez um som de desgosto.

- Pelo seu bem-estar, claro. Thomas encolheu os ombros.

- Uma vez convencido que a dama não corria perigo, sentiu-se muito aliviado. Insistiu em vir comigo, mas não queria impor a sua presença a esta hora da noite.

Os seus homens e ele acamparam no campo deste lado do ribeiro e aproximar-se-ão ao romper do dia. Se não estais de acordo, tenho que voltar para os informar.

- E se não quisermos recebê-los nem entregar-lhe lady lana? - perguntou Main com certa petulância.

Henri sabia que se tinha aliado lana no assunto de impedir um casamento forçado. Thomas suspirou.

- Acho que pode tentar levá-la à força. Parece muito decidido a isso.

Rob sorriu, possivelmente excitado pela possibilidade de uma escaramuça.

- Quantos homens?

- Quinze - respondeu Thomas. - Mas não há cavaleiros que montem com ele.

- Há um que o fará, porque é seu dever - declarou sir Ambrose com calma.

Ninguém teve que lhe perguntar quem era, ainda que não parecesse muito entusiasmado com a ideia. Henri lançou-lhe um olhar sombrio.

- Apoiareis Hamilton nessa luta quando não tendes desejo de desposar lana? Porquê?

Ambrose olhou-os com ar inocente.

- Porque dei a minha palavra de que a desposaria e grande parte da minha riqueza, para ter esse privilégio.

- Eu pagar-vos-ei isso várias vezes se vos desdisserdes.

- Nós apertámos a mão - argumentou Ambrose. - A palavra de um homem é sagrada e eu dei a minha. Não posso voltar atrás, ainda que ela não seja a dama honrada que ele jurou que era.

A mão de lana segurou a de Henri para evitar que esbofeteasse Ambrose. Era surpreendentemente forte. Ademais, estava o facto de que Henri tinha dado a entender a Ambrose que a menina era de lana. Isso foi a única coisa que acalmou a sua fúria.

- Não foi convosco que o meu irmão disse que queria casar-me, senhor. O esposo que me propôs foi Douglas Sturrock.

- Ao princípio considerou-se isso, mas o meu pai possivelmente não viverá muito tempo. E como não se tinha redigido um contrato formal, o vosso irmão abordou-me a mim, já que eventualmente herdaria o título. Pareceu-me o mais indicado, porque eu precisava de esposa e vós, de marido.

- Mas não tendes desejo de vos casardes comigo - declarou ela. - Nem eu convosco.

Ambrose afastou os olhos e mordeu o lábio, pouco disposto ao que parece a admitir a verdade daquelas palavras.

Henri notou que Jehan parecia atónita por uma vez na sua vida. Sem dúvida tinha contado com que Ambrose mudasse de ideias por sua causa. Estava pálida e calada e não se esforçava para ocultar o seu mal-estar.

 

- Vai ao seu encontro - ordenou Rob a Thomas. - Diz-lhes que venham.

- Rob! - protestou Main. - Agora não.

- Não - Rob deu-lhe uma palmadinha na mão que descansava no seu joelho. - Pela manhã.

Henri sabia que não tinham outra opção. Uma batalha não serviria de nada e podia custar vidas. Tinham que tentar negociar com Newell Hamilton. Se isso falhasse, pensariam noutra coisa.

- Rob tem razão, Main - disse. Dirigiu-se a lana: - Para vos desposar deve contar com o vosso consentimento. Se não assinastes nada nem consentistes verbalmente, não tendes com que vos preocupar. É a lei.

- Newell é a própria lei - murmurou ela. - Já o vereis. Não há nenhum homem mais teimoso do que ele.

- Aposto que é um atributo herdado – cochichou Henri. Olhou para Ambrose. - Falai-me de Hamilton. Tudo o que saibais sobre ele.

O cavaleiro aproximou-se mais de Jehan no banco que partilhavam. Era evidente que tentava consolá-la sem o demonstrar abertamente. Ela afastou-se; continuava a torcer as mãos e negava-se a olhar para quem quer que fosse. Ambrose rendeu-se e abraçou-a com um braço, atraindo-a para si.

- Newell parece duro - disse. - Conhecemo-nos em meninos, ainda que ele fosse um pouco mais velho. Então era quase demasiado brando. Já sabeis, falhava de propósito na caça, encolhia-se quando alguém matava um cão, essas coisas.

Henri assentiu.

- Mas já venceu isso?

- Talvez, ainda que me tenha pedido gentileza quando me enviou à procura de lady lana. Advertiu-me mais de uma vez que fosse paciente com a sua irmã.

- Paciente? - refilou a dama em questão, e levantou os olhos para o céu.

- Que vos fez exactamente, lana? - perguntou Henri.

Ela respirou fundo e olhou à sua volta. Todos os olhos estavam fixos nela.

- Estamos a tentar elaborar um plano; respondei - alentou-a Henri.

- Quando me recusei a aceitar o casamento, fechou-me no meu quarto. Depois negou-me toda a comida e bebida excepto pão e água - pensou um momento. - Quando depois de uns dias viu que não conseguia nada, ameaçou-me com tareia.

- Mas não cumpriu essa ameaça, não é?

- Não - admitiu ela. - Nunca me tocou. Em vez disso, ele e quatro dos seus homens levaram-me para Whitethistle e deixaram-me para que vivesse uma temporada na choça. Queriam ensinar-me o que enfrenta uma mulher só - suspirou com um encolher de ombros. - No entanto, Newell deixou um homem para me guardar para que não fugisse. Para ser justa, também lhe ouvi dizer que não devia passar fome. Deu-lhe umas moedas. Esse homem desapareceu no dia seguinte ao aparecimento de Newell e não voltei a vê-lo. Suspeito que aceitou a paga do meu irmão e foi gastá-la.

- E vós ficastes só sem protecção - comentou Henri, lutando para conter a sua fúria.

- Tinha planeado ir-me embora dali com Tam para viver como pudesse - continuou ela. - Então chegou Everand com a corrente de prata e pareceu que o destino me estendia a mão. Era um modo de escapar, e aproveitei-o.

Henri suspirou.

- É verdade. Quanto tempo passastes na aldeia a viver como uma mendiga?

- Pouco mais de um mês. Newell voltaria rapidamente para ver se tinha aprendido a lição. Eu tinha-lhe exigido que me deixasse seguir o meu caminho sozinha.

- E ele fê-lo - comentou Henri, que começava a compreender. Hamilton talvez tivesse querido ensinar-lhe uma lição, mas tinha deixado um homem para cuidar dela, o que significava que estimava a irmã. - Vós tínheis que vos dar conta do necessário que é para uma mulher ter um marido que cuide dela.

- Sim, mas eu desenvencilhei-me bastante bem. No entanto, Newell jamais admitirá que o fiz nem permitirá que volte a acontecer.

Henri pensou que nenhum homem compassivo o permitiria. Estremeceu ao pensar no que podia ter ocorrido ao chegar o Inverno. Ela podia ter morrido congelada na choça. No entanto, por estranha que parecesse a sua ideia de liberdade, compreendia o seu anseio por ela.

Henri, rodeado toda a sua vida de mulheres fortes, nunca tinha pensado muito nas que se viam sujeitas continuamente ao governo absoluto dos seus homens. Era a ordem natural das coisas, mas a maioria dos homens que conhecia utilizava a razão para lidar com as suas mulheres.

Qualquer homem sensato sabia o importante que era para a sua felicidade ter contente a sua mulher. Além disso, o correcto era tratar as mulheres com justiça e respeito. Ainda que nem todos os homens fizessem o correcto. Entendia a renúncia de Newell Hamilton a entregar a lana o controlo completo da sua vida. Mas casá-la com um desconhecido contra a sua vontade não era a resposta.

- Vistes algum sinal de maus-tratos por parte de Hamilton para com os habitantes do seu castelo? - perguntou a Thomas. - Alguma manifestação de crueldade?

- Nenhuma - respondeu o interpelado. - Ainda que só tenha estado lá uma tarde e uma noite.

- É possível, lana, que o vosso irmão pense no vosso bem e só tente vencer o vosso desgosto antinatural pelo casamento?

- Antinatural? - perguntou ela, olhando-o como se acabasse de ser objecto de um grave insulto. - Parece-vos antinatural que evite que me magoem e me ridicularizem?

- Vamos, vamos, dissestes que o vosso irmão nunca...

- Maltrata a sua própria esposa! Dorothea contou-me. Tal como o meu esposo me fazia a mim! Tal como ele me obrigava... - interrompeu-se ao dar-se conta de que todos a escutavam. Adoptou um tom de voz calmo e sem inflexões.

- Asseguro-vos que não voltarei a casar-me. Antes morta.

Main correu a abraçá-la.

- Acalmai-vos, querida. Não tereis que casar. Já sofrestes bastante. Maldito seja esse homem...

- Contastes ao vosso irmão o tratamento que vos tinha dado James Duncan? - insistiu Henri.

- Não quis escutar-me - sussurrou ela. - Não queria ouvir. Pensava que mentia. Duncan era sempre a amabilidade personificada quando Newell estava connosco - baixou a voz. - Antes acreditava que o meu irmão me amava. E antes do casamento também pensava que o meu esposo poderia amar-me. Que equivocada estava!

- Ofenderam-vos muito - assentiu Henri. lana via o irmão como um ogre que tinha visto como a vendiam uma vez e tinha querido fazer o mesmo sem pensar na sua felicidade ou bem-estar, mas talvez Newell simplesmente a considerasse uma irmã obstinada e voluntariosa que precisava da guia de um marido.

Ambas as opiniões podiam ter um pouco de verdade.

Henri decidiu que já era hora de descobrir.

- De acordo, escutai-me - levantou as mãos e tentou reprimir a sua fúria pelo defunto James Duncan, já que não tinha sentido perder tempo com isso naquele momento. - Estamos todos de acordo em que lana não deve ser obrigada a casar-se nem sir Ambrose, forçado a cumprir o seu acordo com Hamilton?

Assentiram todos excepto Ambrose, que franziu ainda mais o sobrolho e abanou a cabeça.

- Já vos disse que dei a minha palavra. Não posso voltar atrás e não o farei.

Henri pensou naquilo.

- E se Hamilton vos libertar do vosso acordo e inclusive insistir em que não vos caseis com ela? A vossa honra ficaria satisfeita assim?

Ambrose olhou para Jehan e colocou uma mão em cima das dela. Assentiu com a cabeça.

- Muito bem, pois. Estamos de acordo no objectivo - Henri sorriu a cada um dos presentes. - Escutai-me bem. Vamos converter-nos em actores...

Duas horas depois, saíram do salão, impacientes por pôr em marcha o plano. Henri lamentava não ter tido tempo essa noite para continuar a convencer lana de que se casasse com ele, mas sabia que isso era algo que devia adiar até que resolvessem o problema actual.

E nem sequer estava certo de ter sucesso. O problema era que tinha começado a ver o lado de lana; ela não tinha razões para acreditar que, uma vez que se casasse, o seu segundo marido a trataria melhor do que o primeiro.

- Que mente tão retorcida tendes! - disse-lhe ela enquanto subiam as escadas. - É uma pena que Ambrose não tenha querido tomar parte disto, mas não é fácil imaginá-lo a aprovar nenhum tipo de engano. Henri riu.

- Ambrose é um puritano aborrecedor. Pelo menos deu a sua palavra de não trair o nosso propósito. E cumpri-la-á.

Perguntou-se se o seu engano podia acabar com as suas esperanças de ganhar a confiança de lana. Tomou as mãos dela.

- Nunca vos disse uma mentira e nunca o farei. Não vos enganarei nem por palavras, actos, nem omissões. Por favor, acreditai.

lana sorriu e apertou-lhe as mãos, mas não respondeu.

O dia amanheceu limpo, sem assomo de nuvens. Quando lorde Newell Hamilton passou as portas, o sol brilhava com força.

Henri, Rob e sir Ambrose esperavam-no na escadaria.

Henri viu que se parecia com lana. Tinha o mesmo cabelo claro, a forma dos olhos e a pele clara, ainda que fosse um homem de constituição forte e muito mais alto do que a sua irmã.

Henri notou uma dureza nos seus olhos e na boca que parecia forçada, como se estivesse decidido a mostrar-se mais frio do que era. Isso pareceu-lhe um bom augúrio.

- Preparados? - perguntou aos demais.

Rob assentiu e Ambrose afastou o olhar.

Thomas tinha ido ao encontro do seu convidado e agora desmontava para fazer as apresentações.

Os homens de Newell tinham ido às barracas e ficariam por ali, atendidos pelos homens de Rob. Henri sabia que a cerveja fluiria livremente e que, a não ser que Hamilton desejasse fazer a viagem para casa só, não poderia partir antes do dia seguinte.

Newell declarou o seu propósito quando acabaram as apresentações.

- Vim procurar a minha irmã.

- Nós sabemos - respondeu Henri. - Sir Ambrose diz-nos que cedo haverá um casamento. Entrai e permiti-nos celebrá-lo convosco.

Newell olhou-o.

-Agradeço-vos, mas isso não será necessário.

- Tolices! - exclamou Henri. - Somos homens da mesma casta, Hamilton. Vinde beber um pouco. Não tem sentido sair a correr - baixou a voz e passou-lhe um braço pelos ombros.

- O vinho é francês, o melhor que se vê na Escócia, tendes a minha palavra.

- Ficai esta noite - convidou-o Rob, a sorrir. Conhecei a minha dama - acrescentou.

Henri e Rob riram. Ambrose ficou em silêncio.

O recém-chegado franziu o sobrolho, mas entrou com eles. Para dizer a verdade, o braço de Henri deixava-lhe pouca opção, a não ser que lutasse abertamente para se soltar.

O vestíbulo estava bastante fresco apesar de ser Verão. E nesse dia não tinham acendido a lareira.

- Maldita sejas! Mulher! - gritou Rob, o que fez dar um salto a Newell.

Main apareceu a correr do salão, encolhendo-se, aterrorizada.

- Sim, milorde? - perguntou.

Henri pensou que tinha exagerado no seu papel. O seu belo cabelo aparecia revolto por baixo do seu barrete sujo. O seu vestido, ainda que de tecido luxuoso, como correspondia ao seu status, parecia ter sido remendado várias vezes no último ano.

Rob levantou uma mão para apontar para a lareira. Main lançou um grito e encolheu-se como para evitar um golpe.

- Acende a maldita lareira! - ordenou ele entre dentes.

Ela correu a obedecer.

- Esposa das Terras Altas - explicou Henri a Newell num aparte. - Dizem que requerem mais lições do que a maioria.

Newell olhou para Main.

- Sua esposa? Mas eu pensava..

- Sim, eu sei. Parece uma rameira. Mas devíeis tê-la visto quando chegou. É uma pena que agora mal tenha tempo para cuidar do seu aspecto, mas foi ela que o procurou. Não é que Robbie esteja descontente com ela, claro que não. Mas teve que a domar.

- Domá-la? - repetiu Newell. Olhou para Main. - Parece que tem nódoas negras.

Henri assentiu com satisfação. Um pouco de cinza, açafrão e sumo de framboesas tinham criado nódoas negras muito credíveis na cara, no queixo e nos dois braços.

Jehan aproximou-se de Ambrose com uma jarra numa mão e quatro copos na outra.

- Olhai o que tenho para vós, meu bom cavaleiro - disse.

Para surpresa de Henri, Ambrose baixou a mão até ao traseiro de Jehan e ela afastou-se a rir e derramou um pouco de vinho na mesa, próximo do braço de Rob. Este deu-lhe um bofetão e ela lançou um grito, ainda que o golpe não tenha chegado a acertar-lhe.

- Vamos, Rob - disse Henri. - Essa é para o Ambrose; não a estragues.

Rob soltou uma gargalhada. Jehan aproximou-se para encher os copos.

- Ambrose? - perguntou Newell, arqueando as sobrancelhas.

Henri bebeu um copo e esvaziou-o diante de Newell.

- O pobre homem precisará de alguém que o distraia quando a vossa irmã estiver grávida.

Ambrose bebeu o seu copo e lançou um arroto prolongado.

- Hum, melhor do que tudo o que tenho provado, Newell.

- A mulher ou o vinho? - perguntou Henri com uma gargalhada. - Os dois, suponho.

O barão pôs-se de pé e olhou do alto para o cavaleiro.

- Ambrose, ides desposar a minha irmã - disse. - Tenho a vossa palavra.

- Já o disse, Hamilton - declarou Henri. Mas sede compreensivo. Um homem não pode arar sempre o mesmo campo sem esgotar a terra.

Ambrose afastou-se da mesa com uma careta de desgosto e pôs-se de pé. Saiu do vestíbulo e Jehan correu atrás dele e pendurou-se no seu braço.

- Onde está lana? - perguntou Newell.

- Main! - gritou Rob.

Ela correu de novo para ele e deteve-se fora do seu alcance.

- Onde está a rapariga?

- Trancada, senhor - disse ela com voz débil.

- Ordens de sir Ambrose.

Newell pareceu escandalizado.

- Que significa isto? Como se atreve ele a tratar assim a lana? Vai ser a sua esposa!

Henri encolheu os ombros.

- Vós dissestes-lhe que fosse procurá-la e ele assim fez. Mas ela não gosta de ficar onde a deixam e ele trancou-a, para não ter que a perseguir por todo o país - fez uma pausa. - Vós também o fizestes.

Newell olhou-o.

- Como sabeis disso?

- Ela gritou-o aos quatro ventos. A vossa irmã é muito temperamental. Pô-la a pão e água pode debilitá-la um pouco, mas se eu fosse Ambrose, pensaria duas vezes antes de a deixar sem a atar. E se saltar pela janela?

Newell olhou-o, horrorizado.

- Quero vê-la. Levai-me a ela - apertou os punhos. - E mais vale que não lhe tenhais feito nada.

Henri assentiu com simpatia.

- Qualquer homem odeia ver sofrer a sua mulher. Comigo passa-se o mesmo. Mas, tal como uma égua boa, tem que aprender quem é o amo. Uma vez que admita isso, Ambrose poderá ser mais brando.

- Santo céu! Estais todos loucos? - gritou Newell. Levantou as mãos no ar. - Estais a falar da minha irmã! Se Ambrose lhe fez algum mal, matá-lo-ei.

Rob suspirou com ar aborrecido.

- Main, acompanha-o - ordenou.

Ela retirou-se com uma reverência para as escadas.

- O seu irmão está furioso - disse Jehan, que tinha voltado ao vestíbulo. - Não devíamos subir com ele?

- Não - respondeu Henri. - Acho que ela pode arranjar-se sem nós. Main chamar-nos-á se precisar.

- O plano parece que funciona - disse Jehan.

- Não te parece?

Henri confiava em que assim fosse, mas faltava ver se Newell Hamilton reconheceria o seu comportamento ao vê-lo manifestar-se perante os outros. A ideia era mantê-lo ali até que admitisse os seus erros. Uma vez que o fizesse, talvez os irmãos pudessem reconciliar-se. E depois Henri pedir-lhe-ia a mão de lana.

Supondo, claro, que ela acedesse alguma vez a casar-se com ele.

lana ouviu vozes e passos que se aproximavam do pequeno aposento no qual jazia. Seria capaz de apelar à compaixão de Newell? Ia contra a sua natureza, de certeza, e sentia-se mais inclinada a magoá-lo do que a suplicar. No entanto, se o engano resolvesse o assunto, supunha que podia tentar.

Ouviu a chave na fechadura e abriu-se a pesada porta.

- lana? - disse Newell. Correu a ajoelhar-se a seu lado e tomou-lhe as mãos. - Não posso crer que te tenham tratado assim. É evidente que Ambrose não é o homem que eu pensava - afastou-lhe uma madeixa de cabelo da testa.

- Não me fez nada - respondeu ela debilmente. - Só me trancou aqui - fechou os olhos e suspirou. - Tu também o fizeste. Pelo menos nenhum dos dois me bateu, como fazia Duncan. E a minha cela não está por baixo das cozinhas, onde não há luz. Talvez este casamento que ordenas não seja tão mau como o anterior.

Levantou as pestanas e viu culpabilidade nos seus olhos. Por um momento, pareceu o irmão que tinha conhecido na sua juventude, o que a queria e protegia.

- É verdade que Duncan te batia? - sussurrou.

- Sim. Já to disse. Por isso queria evitar outro casamento.

- Mas Dorothea disse...

- Já sei o que tu pensas. Duncan era sempre bom quando estavas perto. Agora vê - soltou as suas mãos e olhou para a parede - Sei que não há escapatória.

Newell inclinou-se sobre ela, pôs-lhe uma mão no queixo e obrigou-a a olhá-lo.

- Não desesperes - suplicou-lhe. - Prometo que não permitirei que sejas sua. Irei dizer-lho agora mesmo.

- Dá igual - murmurou ela. - De certo que me encontras outro marido. Os homens são todos iguais; é-me igual que seja este.

- Não, isso não é verdade - respondeu ele com gentileza. - E quem diz que deves casar-te?

- Tu! - exclamou ela com calor, quase esquecendo a sua resolução de permanecer dócil e obediente. - Disseste-o tu.

- Mas Dorothea disse-me que precisavas de te casar - ele passou uma mão pelo cabelo e sentou-se nos calcanhares. - Quando voltaste a casa depois da morte de Duncan, disse-me que devia ser firme contigo. Disse que Sturrock era bastante bom para controlar as tuas frivolidades e...

- Dorothea? Ela sugeriu-te Sturrock?

- Sim. Eu achava-o muito velho, mas ela assegurou-me que era um senhor gentil e amável e que te trataria bem, como um pai noutro tempo a sua voz endureceu. - Mas tu revoltaste-te só porque tinha escolhido por ti.

- Eu não desejo casar-me com ninguém - corrigiu ela. - E disse-to.

Newell fez uma careta.

- A sério, lamento ter perdido as estribeiras. Não devia fechar-te nos teus aposentos, mas comportavas-te como uma menina. Dorothea assegurou-me...

- Esquece Dorothea! - exclamou ela, a ponto de o atacar. - Tu aplaudias o meu temperamento quando era menina! - recordou-lhe. - Por que tinha que mudar ao fazer-me mulher? Continuo a ser a mesma pessoa que tu alentavas a pensar por si mesma. Que te mudou a ti, Newell? Agora bates na tua mulher e ameaças-me a mim.

- Não sejas tola - disse ele. - Se lhe batesse, envenenar-me-ia a comida.

lana mal podia crer no que ouvia.

- Tu eras minha responsabilidade - prosseguiu ele. - O pai fez-me jurar que me ocuparia do teu bem-estar se alguma vez enviuvasses. Mas fazes sempre o contrário e não escutas o que te digo. Dorothea e eu pensámos que umas semanas em Whitethistle te fariam ver a razão. Foi uma ideia estúpida da minha parte.

- Ou seja, isso também foi ideia dela - adivinhou lana. - Sim, foste um tonto, irmão - assentiu. - Ainda o és. Ainda que duvide de que alguma vez compreendas até que ponto. Continuas decidido a casar-me com sir Ambrose? O seu irmão olhou-a nos olhos.

- Dorothea protestou quando decidi isso, mas é melhor opção do que o seu pai. Sim, acho que devias casar-te com ele - disse. - Não obstante, se te recusas a fazê-lo, também podes considerar a igreja. Eu dar-te-ei um dote, se quiseres entrar num convento.

lana não tinha nenhum desejo de se enterrar num convento.

- Não posso - declarou. - Não aceitariam a minha filha. E ainda que assim fosse...

- Filha? - perguntou ele com o corpo em tensão. - Estás grávida? De quem é? Exijo saber...

lana pôs-lhe uma mão no braço.

- É uma órfã, Newell. A mãe morreu e eu adoptei-a. Por favor, não...

- Uma órfã! Graças a Deus! - exclamou ele, demasiado aliviado para ouvir o resto.

- Por favor, escuta-me - disse lana. - Quero essa menina. Ela será a minha família. E um convento não é lugar para nós.

- As irmãs aceitar-vos-ão se lhes oferecer o suficiente...

lana estendeu-se na cama.

- Newell, escuta-me! Não irei! Não podes obrigar-me. Não aprendeste nada? Não me obrigarás ! - gritou.

Newell pôs-se em pé com as mãos na cintura.

- Que jogo tens entre mãos, lana?

Ela também se levantou e abandonou a sua atitude de mulher débil e necessitada.

- É inútil! Tens a cabeça tão dura como um tronco de carvalho, Newell. Juro-te...

- Basta! - ordenou ele, e levantou uma mão. Não te fizeram passar fome, não é?

Ela endireitou os ombros.

- Não. Nem sequer me puseram a pão e água como tu fizeste.

O seu irmão assentiu devagar com a cabeça.

- Entendo. Tudo isto - apontou para o quarto, - era para apelar à minha compaixão e fazer com que me sentisse culpado e cedesse diante de ti. Diz-me, como convenceste os homens a que te apoiassem na tua causa? Dorothea disse-me que és uma maquinadora. Que lhes prometeste?

- Nada! - declarou ela com calor. - E ao inferno com a tua preciosa Dorothea! Os meus amigos só queriam mostrar-te com o seu exemplo o mal que te tens portado com a tua irmã.

Newell apertou os lábios e abanou a cabeça, lana sabia que lutava por controlar a sua raiva e que ela devia fazer o mesmo ou acabariam por se lançar ao pescoço um do outro.

- Lorde MacBain planeou esta mentira? - Não.

- Ambrose?

lana sentiu-se encurralada.

- Não, não foi ele.

- O cavaleiro francês, então? Sim, é o que mais falou. Que tem ele a ver contigo?

lana afastou os olhos e negou-se a responder.

- Sois amantes? - perguntou Newell com os punhos apertados.

- Sir Henri trouxe-me para aqui desde Whitethistle.

O grunhido de raiva do seu irmão deixava claro que pensava que se tinha vendido pelo privilégio de sair da aldeia.

Para quê incomodar-se em explicar-lhe o ocorrido? Nenhuma negativa da sua parte o faria mudar de opinião. Ainda assim, tinha que tentar.

- Não somos amantes - disse.

- Esse francês está apaixonado por ti? - perguntou ele.

lana guardou silêncio. Não sabia como responder sinceramente a isso. Henri tinha decidido casar-se com ela, mas ela não estava certa de que isso tivesse algo a ver com amor. Portava-se de um modo muito possessivo com ela, mas isso não significava amor, só indicava posse. Tinha-o tolerado a Newell uma vez, e também ao seu falecido marido, porque não tinha tido escolha. Mas já não o faria mais.

-Diz! - disse ele.

Sentiu um forte impulso de o magoar.

- Revela-se protector comigo - gritou. - Eu não sei se ele considera isso amor, mas existe o perigo de que o confunda com isso. Há tão poucos homens que se incomodaram em preocupar-se com a minha segurança! Começando por ti!

Newell empalideceu.

- Eu preocupo-me contigo - insistiu. - Senão, não me importaria que continuasses só nem o que fizesses com a tua vida - a sua voz suavizou-se.

- Por favor, entende. Quero ver-te acomodada, contente.

lana virou-lhe as costas.

- Pois toma o preço da noiva e não voltes a pensar em mim. Volta para casa.

- Aceitarás casar-te com Ambrose, pois? perguntou ele, depois de uma pausa.

- Não aceito nada. Ocupar-me-ei do meu próprio destino - declarou ela.

- Já falámos disto antes - declarou ele. - Não vejo interesse em continuar.

lana ouviu os seus passos a sair do quarto. Tinha razão. Jamais estariam de acordo sobre aquele assunto.

No entanto, dessa vez tinha-lhe permitido falar mais do que das outras vezes. Talvez pensasse nas suas palavras e mudasse de decisão.

A porta fechou-se com suavidade. Então ouviu a chave girar na fechadura.

- Maldito sejas, Newell! - gritou. Correu até à porta e bateu nela com os punhos.

Sabia muito bem que Main regressaria dentro de momentos, mas doía-lhe terrivelmente que o seu próprio irmão a tratasse assim. Por que não podia entender quão traída se sentia?

 

Passou bastante tempo até que lana ouviu girar de novo a chave na fechadura. E a pessoa que entrou não era Main, mas Henri.

- O nosso engano não funcionou, lana - declarou.

Ela mexeu a cabeça.

- Eu sei. Foi culpa minha. As coisas iam bem e de repente pusemo-nos a discutir como sempre. Temo que o meu génio tenha estragado tudo.

- Sim, bom, acaba de sair e felicitou Ambrose por ser tão firme convosco. Pela sua maneira de falar, vi que tinha adivinhado o engano. Se vos serve de consolo, creio que no fundo se sente mal por serdes tão infeliz.

lana assentiu com a cabeça e sentou-se na cama com as mãos unidas no regaço.

- Força, ânimo! Agora insistirá em que Ambrose cumpra a sua palavra e case comigo, não é?

- Ambrose não precisará que insista muito. O imbecil crê que é esse o seu dever, ainda que qualquer um possa ver que vai contra o seu coração.

lana suspirou.

- Terei que ceder aos desejos de Newell ou sair daqui sem que ele saiba.

Henri foi sentar-se ao seu lado.

- Tendes outra opção - disse.

lana levantou os olhos ao céu e respirou fundo.

- Vejamos se adivinho. Posso casar-me convosco.

- Sim - sorriu ele.

- E credes que Newell o permitirá depois do modo como o enganastes?

- Deixou de me importar o que Newell pensa - replicou ele.

lana olhou-o e a necessidade que viu nos seus olhos manteve-a cativa. Durante o que pareceu um momento interminável, olhou directamente para o seu coração através dos seus olhos castanhos e viu a profundidade dos seus sentimentos. O seu fervor assustou-a, mas não pôde afastar a vista.

A boca dele aproximou-se mais e mais até que pôde sentir o seu hálito. Quando os seus lábios se encontraram, ela não pôde pensar noutra coisa senão no calor que atravessava o seu corpo. Henri estreitou-a contra si até que sentiu o seu peito duro contra os seios e as suas mãos grandes nas costas.

Os seus lábios encontraram-se e abriram-se para provar o prazer proibido que ela recordava tão bem.

lana subiu as mãos até ao rosto dele e deleitou-se na sensação da sua pele sob os dedos, o movimento dos seus músculos quando aprofundou o beijo, a suave carícia do seu cabelo quando roçava o dorso das mãos dela. Só então se deu conta de que já não estavam sentados, mas tombados na cama.

Henri jazia sobre ela e acariciava-lhe os ombros e os braços. Os seus dedos roçaram o pescoço feminino, a curva do ombro, os seios...

lana ansiava mais e ele deu-lho, adicionando a persuasão insistente da boca aos lugares que as mãos tinham visitado. Os seus lábios fecharam-se sobre um dos mamilos e ela lançou um grito, sem se importar com quem o ouvisse, ignorando tudo o que não fosse aquela maravilhosa sensação.

Henri voltou a beijá-la na boca com paixão ao mesmo tempo que lhe acariciava as pernas. lana colou-se mais a ele, mas ainda não o suficiente.

A atmosfera fresca da cela não fez nada para apagar o seu ardor, porque o calor dele enchia todos os seus sentidos. Sentiu que se apartava da metade superior do seu corpo e olhou-o. Henri baixou a mão até à sua cintura e começou a puxar o cós da sua túnica. lana acrescentou os seus esforços aos dele e, juntos, tiraram a roupa masculina. A camisa seguiu entre murmúrios de linho branco e suave.

O maior desejo de lana naquele momento era observar o jogo dos músculos dele sob a superfície quente e deslizante da sua pele.

A roupa dela tinha baixado até à cintura numa nuvem de tons de azul e açafrão. Ela baixou o vestido e a combinação pelas ancas e ele afastou-se para tirar as calças e os sapatos. Enfim, os olhos de lana puderam contemplar a força nua de Henri. A sua beleza deixou-a sem fôlego e admirada.

Tinha-o visto outras vezes, mas não sem as ceroulas. Agora não as tinha. Seria seu naquele curto espaço de tempo situado entre a quase liberdade e o dever.

Henri olhou-a com os lábios entreabertos. A luz da janela iluminava os seus ombros largos e braços fortes. lana baixou a vista até à parte da sua anatomia que seria parte dela. Deixou de pensar quando ele a penetrou, e sentiu uma sensação tão intensa que lançou um grito. O seu corpo estremeceu.

Ele começou a mover-se, retirando-se como se fosse negar-se e adiantando-se depois como se se rendesse. No seu interior, o desejo intensificou-se e lana sentiu que dava e recebia, e descobriu de repente que tinha o poder de lhe arrancar sons e a habilidade de controlar o seu ritmo. Um movimento sinuoso do seu corpo e ele perdeu o controlo.

Henri respirou com força e abandonou-se como ela não tinha visto fazer nunca a ninguém. Observou o seu rosto, fascinada, a cabeça deitada para trás, os olhos fechados e os dentes à mostra. A força dos seus movimentos inundou-a com uma tal mistura de sensações que a deixou atónita e indefesa.

Henri colocou-se de lado e abraçou-a com força para que continuassem juntos. Beijou-lhe a testa, o queixo, os lábios. Beijos suaves que eram mais murmúrios de paixão.

lana agarrou-se a ele com prazer e desolação, ambos resultado da verdade que acabava de descobrir. Amava Henri. Amava-o desde o princípio, e sabia que ele lhe correspondia.

Aquilo era muito pior do que tinha pensado.

- lana, amor meu...

- Por favor - tocou-lhe nos lábios com um dedo e pediu-lhe perdão com os olhos. - Isto não muda nada.

- Tem que o fazer - insistiu ele com veemência.

Ela suspirou.

- Durante anos, nem sequer fui uma pessoa, Henri. Era uma coisa que dependia da vontade de outros. Agora encontrei coragem e serei eu custe o que custar. Sei que não compreendeis isto e não voltarei a pedir-vos que o façais.

Henri soltou-a em silêncio, levantou-se e começou a vestir-se. Não se apressava e não parecia zangado. lana observava-o para guardar na memória a hora dourada que acabavam de viver. Teria gostado de poder tocá-lo, dizer-lhe que o amava e que lamentava não poder partilhar a sua vida com ele. Mas essas palavras dar-lhe-iam esperança, e não era essa a sua intenção.

Henri tinha feito com que se sentisse, não possuída, mas adorada.

Se ele pudesse entender como precisava de ser ela mesma e não a criatura de outra pessoa, talvez pudessem viver de algum modo como iguais. Mas ele era um homem e tinha que fazer exigências. Tinha que governar e possuir. Se lhe pedisse que alterasse a sua própria natureza, seria tão má como os homens que queriam mudá-la a ela.

Ele olhou-a por longos momentos antes de se ir embora. Depois saiu com calma e fechou a porta em silêncio. lana sentia tristeza, mas também alívio. Sabia que ele já não a pressionaria para que fizesse o que não queria. E isso fê-la chorar.

Henri tinha feito tudo o que podia para tentar que lana mudasse de ideias, mas ela mantinha-se firme. A única esperança que lhe restava de a fazer feliz era tirá-la do jugo do seu irmão. Ambrose seguiria adiante com os esponsais a não ser que os anulasse Hamilton. E este não parecia disposto a fazê-lo.

Desceu as escadas à procura de Rob.

- Pareces disposto a comer alguém - comentou Jehan. - Que se passa?

- Onde está Rob? - perguntou ele.

- No salão com os convidados - respondeu ela, andando a seu lado. - Juro que já deve estar decidido a expulsar-vos a todos do castelo e fechar as portas.

- Sem dúvida.

- Deitaste-te com ela? Henri deteve-se. -Raios!

Ela levantou os olhos ao céu.

- Oh, pelo amor de Deus, não ponhas esse ar francês e altaneiro! Cheiras a ela, por isso não te incomodes em negá-lo.

Henri agarrou-lhe um ombro.

- Não te metas nisto Jehan, advirto-te!

Ela, em lugar de se afastar assustada, pôs-lhe um dedo debaixo do nariz.

- Henri, eu amo Ambrose, pelo que isto também é problema meu. Não faz sentido que discutamos quando podíamos...

- Um momento! Discutir? - Henri bateu na testa com a outra mão. - É isso! Um duelo com Hamilton - beijou-a na testa, encantado com a ideia.

-Henri, não!

Ele mordeu o lábio inferior.

- Tendes razão. Com o seu irmão não. Com Ambrose. Sim, essa é a solução.

Deixou-a ali e correu à procura do cavaleiro. Um duelo podia ser um modo honrado de quebrar uma promessa. Newell não poderia objectar nada.

Jehan seguiu-o e tomou-lhe o braço.

- Não faças isso, suplico-te - pediu.

- Não lhe farei mal - prometeu-lhe ele.

- Dou-te a minha palavra. Viste-me mentir alguma vez?

Jehan ergueu as sobrancelhas.

- Quero dizer, sobre coisas importantes. Não podes questionar a minha honra. Se te digo que não lhe acontecerá nada, não lhe acontecerá nada.

- Prometes?

- Sim. Não tenho nada contra dele. Até gosto ele, ainda que seja um pouco...

- Cuidado, Henri. Ele desatou a rir.

- Não te preocupes. Vai ver lana, sim? Mas não lhe digas o que suspeitaste de nós nem menciones o duelo. Fala só de coisas mundanas para a acalmar, eh?

A mulher assentiu e voltou-se de má vontade para as escadas.

Henri entrou no salão com expressão feroz e dirigiu-se a Newell.

- Hamilton, quero casar-me com a vossa irmã - anunciou.

Os olhos de Newell endureceram-se.

- Receio que não, Gillet - replicou. - Está noiva - olhou para Ambrose. - Não é assim?

- Sim, tendes a minha palavra - respondeu este com firmeza.

- Já o vereis.

Henri já esperava aquilo. Olhou para Ambrose.

- Nesse caso, bater-vos-eis pela honra da sua mão, já que eu amo a dama. E já que vós sois o único que se interpõe no meu caminho, tenho que vos desafiar.

- Henri! - gritou Rob, e pôs-se em pé. - Não faças isso!

- Silêncio, irmão. Isto é assunto meu, não teu. Que dizeis, Ambrose?

O cavaleiro permanecia quieto, pouco ansioso de entrar numa justa. Não via que era o único modo de conseguir Jehan?

Henri apertou os dentes e abriu mais os olhos, tentando comunicar-se com ele em silêncio. Ambrose olhou-o como se tivesse perdido o juízo.

- Tenho razões para prometer lana a sir Ambrose - declarou Newell com calma. - E nenhuma para unir o meu nome ao de um cavaleiro francês. À parte disso, não me agradais, Gillet. E creio que podeis adivinhar porquê.

Sim, Henri podia adivinhá-lo. Sem dúvida, Newell tinha averiguado a sua parte no engano de antes. Quanto ao outro, compreendeu que não sabia que era o herdeiro do conde de Trouville. Sem dúvida ninguém lhe tinha falado da vasta riqueza e das propriedades que Trouville possuía em França.

Mas se presumisse disso nesse momento, pareceria que tentava comprar a mão de lana, o que, na essência, era também algo verdadeiro. E sabia que ela não lhe perdoaria nunca. Tinham-na vendido outras vezes e ele não cairia tão baixo.

Prosseguiria com o seu plano e tentaria ganhá-la num duelo fruto do amor. Com sorte, isso provar-lhe-ia que o seu amor era sincero. Pela sua experiência, sabia que não havia maior elogio para uma mulher do que ter um homem a lutar por ela.

- Vencerei, Hamilton - disse. - Quando terminar com Ambrose e vós a prometerdes a outro, acabarei também com ele. E assim continuarei até que só vos reste eu.

Newell Hamilton sorriu com astúcia.

- Ambrose não é um homem fácil de derrotar, Gillet. Eu vi-o lutar. Pode ser que o encontreis mais capaz do que pensais.

- Se isso for verdade, livrar-vos-eis de mim sorriu Henri por sua vez.

Mas sabia que Ambrose não ganharia. Se o fizesse, teria que seguir adiante com os esponsais e perder Jehan. E qualquer um podia ver que estavam apaixonados um pelo outro.

O único problema seria organizar a luta de maneira que durasse o suficiente para que Ambrose entregasse a sua espada e pedisse misericórdia sem parecer covarde.

Rob fazia-lhe sinais para que retirasse aquilo. Não era próprio dele que não tivesse adivinhado já as suas intenções. O seu próprio irmão pensava que Ambrose podia derrotá-lo?

- Aprovai o duelo, Hamilton. Tereis o preço da noiva aconteça o que acontecer. E aposto que sir Ambrose não vos retirará a sua amizade quando perder. Podereis continuar a contar com o seu apoio em assuntos políticos. Que dizeis?

Ambrose assentiu para indicar que estava de acordo com isso. Apertava os lábios e franzia o sobrolho.

Reinou um silêncio absoluto enquanto Newell considerava o assunto. Olhou várias vezes para Ambrose e Henri.

- Estais certo que quereis reafirmar o vosso direito a reclamar a minha irmã? - perguntou ao primeiro. - Ela vale isso para vós?

O cavaleiro fechou os olhos e suspirou.

- Dei a minha palavra de que a terei e a minha consciência exige-me fazer tudo o que for necessário para cumprir a minha promessa. Se dizeis que lutemos por ela, lutarei e acatarei a vontade de Deus.

Newell sorriu.

- Nesse caso, demonstrai a este atrevido francês como maneja a espada um escocês. Quero vê-lo de costas no pó com a vossa folha no pescoço.

- Não! - troou Rob. - Não o permitirei.

- Permitirás! - declarou Henri, e fez-lhe sinais com as mãos para que fingisse estar de acordo.

Rob continuava a mover a cabeça com preocupação. Henri pensou que não importava; explicar-lhe-ia tudo mais tarde.

Às vezes, Rob percebia as coisas de um modo erróneo.

Às vezes, mas muito raramente.

lana tinha terminado o seu ataque de pranto, tinha-se vestido e regressado aos seus aposentos. Alegrava-se de ter deixado a cela improvisada onde a tinha visitado Newell e tinha feito amor com Henri.

Estava de pé no meio do quarto, a pensar no ocorrido, quando se abriu a porta e entrou Jehan.

lana viu pela sua expressão que estava alterada. A mulher começou a passear pelo quarto, lançando-lhe olhares acusadores.

Ter-lhe-ia confessado Henri que tinham feito amor? Devia ser assim. Que outra coisa podia aborrecer tanto Jehan?

- Talvez devesse explicar-vos - disse. - Henri e eu não tínhamos planeado...

- Não o tínheis planeado! - replicou a outra. Henri é o rei dos planos grandiosos - virou-se com raiva. - Pensou que vos enxovalharia e depois obrigaria o vosso irmão a aceitá-lo.

- Não posso crer! - exclamou lana, mortificada. - Disse a Newell?

- Não, isso não. E supõe-se que não devo dizer-vos isto, mas fá-lo-ei. O vosso irmão acaba de dar o seu consentimento para que Henri e Ambrose lutem pela vossa mão - anunciou. - O botim será para o vencedor.

- Não posso crer que Newell aprove um duelo - respondeu lana. - Primeiro oferece-me a Ambrose como uma égua num leilão, e agora tenho que ser o prémio de um torneio? Oh, isso é dez vezes pior!

Jehan tinha lágrimas nos olhos.

- Um dos dois pode acabar mal, sabeis? E tudo por essa condenada honra - gritou. - Ao diabo com os cavaleiros e as suas loucuras.

lana queria consolá-la. Sabia que a preocupava que um dos dois acabasse ferido, mas também algo mais. Ambrose ia lutar pela mão de outra mulher. E tudo porque tinha dado a sua palavra a Newell. Não tinha assinado nada oficial, mas sentia-se obrigado.

Tomou Jehan pela mão e conduziu-a à cadeira ao lado do fogo.

- Vamos pensar no que podemos fazer disse.

- Não há nada a fazer - gemeu a outra. - Escutei fora do salão e estão desejosos de o levar a cabo. Creio que é uma competição que vai muito além do prémio. Franceses contra escoceses.

lana lançou um resmungo.

- Creio que os três perderam o sentido comum. Eu pararei esta tolice, não temais.

- Demasiado tarde - suspirou Jehan.

- Bem, não me casarei com nenhum - assegurou lana. - Assim, não deveis temer que possais perder a Ambrose. Amai-lo, não é verdade?

- Acho que sim - confessou Jehan. - E vós amais Henri.

lana negou com a cabeça.

- Não, eu...

- Sim - insistiu a outra. - Menti-vos a vós mesma, se quereis, mas não me mintais a mim. Amai-lo e creio que devíeis casar-vos com ele. Fugi juntos. Os casamentos secretos são tão válidos como os outros; só precisais de um sacerdote. O meu pai é padre. E sei que se lho pedir...

- Não! - exclamou lana. - Não quero casar-me com homem nenhum. Porque é que ninguém pode entender?

- Não é natural - respondeu Jehan.

- Mas vós não o sabeis. Esperai até ver como é quando um homem tem domínio absoluto sobre vós.

Jehan olhou-a, compassiva.

- Oh, lana! Foi assim tão terrível? lana assentiu.

- Mas agora sou livre - sorriu. - E não voltarei a inclinar-me ante nenhum homem, já o vereis.

- Nesse caso, mais vale que lho digais antes que desembainhem as espadas pelo privilégio de ficar convosco.

- Irei agora mesmo. E prometo-vos que vão ouvir poucas e boas.

Jehan sorriu.

- Mas antes creio que devíeis atar bem os laços do vestido e pentear-vos, ou o vosso irmão quererá saber o que causou tal desalinho. Pode ser que decida que tem razões para vos casar em seguida.

 

lana encontrou Main, Robert, Everand e os gémeos reunidos em torno da lareira. Uma das donzelas mais jovens estava sentada perto com Tam no colo.

- Onde está sir Henri? - perguntou lana.

- Foi a Trouville - respondeu o lorde Rob, que contemplava o fogo.

Estava tão distraído que não tinha notado que os seus filhos praticavam nós com os cordões soltos das suas botas.

lana pensou que apanharia uma surpresa quando tentasse andar, mas ela tinha coisas mais importantes a fazer do que avisá-lo das traquinices dos seus filhos. Além disso, tinha tomado parte na tolice do duelo, por isso dar uma queda seria bem feito para ele.

- Quando voltará? - perguntou a Main, que estava muito séria.

- Esta noite ou amanhã pela manhã. Foi informar o seu pai do duelo - disse com aspereza.

lana endireitou os ombros.

- Eu não tive nada a ver com essa estupidez e tenho intenção de a parar se puder. O meu irmão continua aqui?

- Sim. Sir Ambrose e ele foram praticar no pátio de armas. A planear estratégias, suponho.

Everand levantou-se do seu lugar.

- No vosso lugar, eu não os interromperia, senhora. O tio Newell nunca...

- Tio Newell? - riu lana com incredulidade.

- Sim. O pai diz que o vosso irmão será meu tio quando vos casardes - moveu a cabeça e sorriu com doçura. - O pai e eu tivemos uma conversa.

- Também gostaria de ter uma conversa com ele - murmurou a jovem, e saiu à procura de Newell.

No pátio de armas, recebeu-a um verdadeiro espectáculo. Ambrose, o seu irmão, os homens deste e muitos de lorde Robert estavam nus até à cintura e brigavam entre si. Chocavam as espadas e gritos e risos enchiam o ar. Ela sentou-se nos degraus que desciam do vestíbulo e esperou que terminasse o treino.

Meia hora depois, começou uma chuvinha suave. Os homens continuaram a lutar, sem se deixarem amedrontar pelo clima. lana abandonou o seu posto nos degraus e voltou ao vestíbulo, onde encontrou lady Main a bordar.

- Falastes com ele? - perguntou-lhe.

- Não. Decidi esperar em vez de abrir passo entre as espadas.

Lorde Robert parecia mais sombrio que antes e os gémeos sentavam-se em banquinhos, olhando para a parede e movendo as pernas. lana lamentou ter perdido o incidente pelo qual tinham sido castigados e que sem dúvida estava relacionado com os cordões.

Sentou-se no chão, com a donzela, e tomou Tam nos braços. Os sorrisos da menina eram a única coisa que podia distraí-la um pouco dos seus problemas.

lana não tinha visto casais felizes em toda a sua vida. Nem sequer o seu pai tinha sido um homem fácil para a sua mãe. Ainda que não tivesse sido cruel com lana, a não ser ao casá-la com Duncan, ela sabia que tinha sido um homem teimoso, grosseiro às vezes e, com frequência, violento com os outros.

Depois Dorothea tinha-lhe confiado que Newell tinha convertido a sua vida num inferno.

Mas isso seria verdade? Quanto mais pensava nisso, mais duvidava da sinceridade da sua cunhada. Mas ainda que o seu irmão não a maltratasse, não se podia dizer que fossem um casal feliz.

lana acreditava que nenhum o era. Talvez com uma excepção. Olhou para os seus anfitriões.

Lady Main tagarelava com suavidade enquanto bordava. A julgar pela idade dos seus filhos, deviam estar casados há cinco ou seis anos. O mesmo número de anos que tinha passado ela com Duncan. Porque é que aquela mulher tinha escapado à servidão e às humilhações? Que magia empregava com o seu homem?

A surdez do seu senhor dava-lhe mais poder sobre ele do que possuíam outras mulheres? Era possível que precisasse tanto dela que se visse obrigado a mostrar-se amável e tê-la contente. Devia ser isso.

Continuou a observá-los enquanto Tam jogava com as franjas da extremidade do seu cinto. Ainda que lorde Robert devesse estar preocupado com o seu irmão e incomodado ainda pela travessura dos gémeos, parecia mais calmo. Sorria com carinho para a sua esposa e olhava para ela com devoção.

Lady Main levantou o olhar do bordado e os seus olhos pareceram transmitir uma mensagem muda. Pouco depois, levantaram-se em unissono, ordenaram à aia dos gémeos que não os perdesse de vista e pediram licença para se ausentarem a lana.

Esta adivinhou por que razão se retiravam para os aposentos a essa hora do dia. Antes que Henri lhe ensinasse os prazeres que se podia ter na cama, teria tido pena de Main. Agora sentia inveja.

Everand aproximou-se dela e tirou-lhe Tam do colo.

- Eu cuidarei da minha irmã, se tendes outras coisas para fazer.

- Irmã? - repetiu ela. - Ev, juro que tens demasiada fé nos planos de sir Henri. Asseguro-te que não penso casar-me com ele.

O rapaz encolheu os ombros e começou a fazer ruídos tontos com os lábios para distrair Tam.

lana pôs-se em pé.

- Como queiras. Quando se cansar de ti ou quando te cansares dela, trá-la aos meus aposentos. E se por casualidade sir Henri voltar hoje, diz-lhe que quero falar com ele de imediato.

Subiu as escadas com intenção de se deitar para ver se podia combater a dor de cabeça que começava a sentir. Sabia que nem Newell nem Ambrose lhe fariam nenhum caso ainda que falasse com eles. Um era demasiado renitente e o outro, demasiado estúpido. De todos os modos, tentaria.

Não entendia o que via Jehan em Ambrose além de um corpo forte e um rosto atraente. Talvez para ela isso fosse suficiente.

Pensou em Henri e desejou poder confiar nele, mas não se atrevia. Por que tinha que ver a união satisfeita de lorde Rob e lady Main nesse momento? Isso tinha-lhe dado uma esperança à qual não devia ceder de nenhum modo.

Ainda que admitisse que amava Henri, não podia arriscar-se a que ele também a traísse.

Henri não voltou naquele dia. lana passou muito tempo só com Tam, pensando em como devia abordar o assunto. Cada vez que descia ao vestíbulo, Newell não estava à vista. Sem dúvida que a evitava.

Encontrou-o na manhã seguinte com uma caneca de cerveja na mão. Estava só, além dos servos que colocavam bandejas de pães acabados de fazer, carnes frias e fruta na mesa longa do vestíbulo. Preparavam um verdadeiro festim e ela não teve que perguntar qual era o motivo. O duelo seria nesse dia.

A sua insónia da noite anterior tinha feito com que ficasse a dormir e com que perdesse a missa. Supunha que quase todos continuavam ainda na capela.

Colocou Tam na anca e aproximou-se de Newell.

Este olhou-a com curiosidade.

- Vá, vá, o vermelho assenta-te bem, irmã.

Creio que é uma cor de noiva. Temos que procurar flores para o cabelo quando te tivermos assegurado um noivo. A menina tira-te encanto, mas suponho que vai incluída no trato - tocou no queixo de Tam, que sorriu.

lana afastou-se com brusquidão. Não queria ver um lado amável do seu irmão naquele momento. Arrependia-se, além disso, de ter vestido o vestido que lhe tinha enviado Jehan.

- Não vejo sentido em falar de banalidades para matar o tempo - disse a Newell. - Além disso, não há muito tempo a perder. Creio que o duelo será hoje.

-Assim é.

lana suspirou. Não ganharia nada em zangar-se; era melhor usar a lógica.

Adoptou uma expressão implorante.

- Escuta-me, por favor. Tens que proibir esse combate estúpido entre Henri e Ambrose. Só servirá para provocar maus sentimentos e talvez um dos dois sofra danos irreparáveis.

- Então aceitarás a proposta de Ambrose? perguntou ele.

- Não. Já te disse muitas vezes que não o farei. E advirto-te que nada do que faças me obrigará a aceitá-lo.

- Eu sei. Não faz falta que vos caseis - encolheu os ombros e esvaziou a caneca de cerveja.

- Oh, Newell! Como posso agrade...?

- Simplesmente, entregar-te-ei ao que ganhar e ele poderá fazer o que quiser contigo. Todos os benefícios das tuas terras irão para ele como recompensa pelo incómodo.

- Terras? Que terras?

- O teu dote, claro - informou ele. - Ambrose levou uns quantos dos meus homens e tirou-o aos filhos de Duncan no dia em que foi procurar-te a Whitethistle. Devias estar-lhe agradecida.

- Porquê? Ele pensava que o benefício seria para ele.

Newell moveu uma mão no ar.

- Estou farto de tentar cuidar de ti e que não mo agradeças. Se ceder e permitir que voltes para casa sem te casares, Dorothea não me deixará em paz.

- Que queres dizer? Newell corou.

- Incomoda-a a tua presença, creio eu. Tu interferes com os seus deveres como senhora de Ochney.

- Não é verdade! - protestou lana. - Nunca o fiz. Mente, Newell.

Este levou uma mão à testa.

- Mas é minha esposa e tenho que manter a paz entre nós - suspirou. - Esses dois homens são bons partidos e para mim servirá qualquer dos dois. O que ganhar ter-te-á como pupila em vez de esposa, depois já serás problema seu, não meu.

A fúria impedia lana de falar. Mal podia respirar. Sabia que ele tinha tomado uma decisão e nada o faria mudar de ideia. E por muito que lhe custasse a ceder, sabia que só podia fazer uma coisa para deter aquela loucura.

- Prefiro ser uma esposa a uma pupila - murmurou. Respirou fundo. - Muito bem. Rendo-me.

- O quê? - perguntou o seu irmão, atónito.

- Sim. Escolho Henri. Suspende o duelo e casar-me-ei com ele. O que seja desde que pares esta loucura antes que alguém sofra algum dano.

Fez-se um longo silêncio.

- Não - Newell franziu o sobrolho. - Isso não pode ser.

- Por que não? É o que queres.

- Se tivesses escolhido Ambrose, podia ter aceite. Tem o direito sobre ti devido ao nosso acordo. O único motivo por que permiti este desafio a Gillet é que pensei que talvez sentisses algo por ele e ele por ti. Ele diz que te ama e Ambrose teve a galhardia de lhe oferecer esta oportunidade. Gillet é o que se mete, por isso não posso entregar-te a ele sem mais nem menos. Além disso, se o suspender agora, todos terão uma decepção.

- Todos não - assegurou-lhe ela.

Mas era inútil.

Deixou-o ali e foi à cozinha dar de comer a Tam e tentar pensar.

Deixou a menina numa das mesas que usavam para preparar comida e pegou num bolo de amêndoas. Deu um pedaço a Tam, tomou outro para si e mastigou, pensativa.

- Ides ver? - perguntou Jehan nas suas costas.

- Rob diz que Henri chegou e que começarão em menos de uma hora. E está muito preocupado.

- Lorde Robert? Sim, já o notei ontem. Por que pensais que está tão preocupado?

Jehan cruzou os braços.

- Não mo disse. Isto não me agrada, lana. Não deveria importar-lhe nada um combate de esgrima. Encantam-no os desafios.

- E o que é que pode tê-lo alterado? - lana serviu leite de cabra de uma jarra numa caneca e aproximou-a dos lábios ansiosos de Tam - Perguntastes a lady Main?

Jehan negou com a cabeça.

- Ainda não saiu da missa. Vamos esperá-la

no vestíbulo? - voltou-se para lá. - Oh, aqui está ela já. Main?

- Vão começar - anunciou esta.

- Tão cedo? - perguntou Jehan.

- Sim, e deveis sair.

lana levantou Tam e limpou as migalhas da sua boca.

- Suponho que sim - comentou. - Quererão ter o seu troféu à vista.

- Que fareis quando isto terminar? - perguntou Jehan.

- Felicitarei o vencedor e desejar-lhe-ei boa colheita. A única coisa que terá de mim serão as minhas terras.

- Um homem não pode ter as terras do vosso dote a não ser que se case convosco - assegurou-lhe Main.

- Os benefícios, então. É o mesmo - declarou lana.

Quando saíram, viu a multidão reunida no pátio de armas. Um murmúrio de excitação impregnava tudo. Lorde Robert separou-se dos outros e aproximou-se delas. Antes de chegar, começou a fazer sinais com as mãos. Main deu um salto e Jehan lançou um grito.

-Não!

- Que se passou? - perguntou lana, apertando Tam contra o seu peito.

Main voltou-se e agarrou-lhe um braço.

- Sir Ambrose pensa lutar para valer. Henri está convicto de que fingirá perder por causa de Jehan, mas não o fará. Rob temia isso, mas agora tem a certeza.

- Mas Ambrose não pode lutar até à morte.

Seria absurdo - argumentou lana. - Nem sequer ele é tão tonto.

Main emitiu um som exasperado.

- Não, mas pensai que Henri não está preparado. Pode ser que acabe ferido se não souber que este combate é a sério.

- Pois dizei-lho - ordenou lana. - Que sir Robert o advirta - apertou o passo até quase começar a correr. - Depressa, antes que comecem.

- Advertiram-no - disse Main. - Mas não quer acreditar. Está convicto de que Rob se engana e Ambrose só fingirá lutar.

- E como sabeis que não é assim? - perguntou lana. - Disse-o ele?

- Não, mas Rob sabe - gemeu Jehan. - Sabe sempre.

lana olhou-a.

- Ridículo! Ninguém pode ler a mente e o coração de outro.

- Rob sim - declarou Main. - Sempre pôde. lana olhou para Jehan, que chorava abertamente e assentiu com a cabeça.

A voz de Newell soou por cima dos ruídos dos homens, que faziam apostas e escolhiam o seu favorito.

- Lady lana, aproximai-vos.

- Lorde Newell, ide para o diabo! - gritou ela em resposta.

Lorde Robert tomou-a pelo cotovelo com gentileza para a escoltar.

Main tirou-lhe Tam e assentiu com a cabeça.

lana decidiu que seria melhor estar perto e poder ver o que ocorria. Talvez pudesse prever um desastre.

A multidão afastou-se para lhe dar passagem. Cedo esteve ao lado do seu irmão e pôde ver sir Henri e sir Ambrose em todo o seu esplendor. O primeiro vestia-se de negro e cor de prata, com um leão prateado no peito, possivelmente as cores e o lema dos Trouville. Em cima da túnica curta levava uma malha de prata e meias.

Ambrose levava também uma malha sobre a túnica escarlate que luzia um falcão bordado. Era o atavio que levava quando se apresentou em Baincroft. O escudo a combinar, que lana não tinha visto antes, parecia bastante impressionante.

O de Henri era menor e parecia mais usado. A lana preocupou-a também o capacete que levava, um recipiente cónico que terminava por baixo das orelhas e deixava todo o rosto a descoberto. Ia unido a uma malha que podia evitar que lhe cortassem a cabeça, mas não faria nada para prevenir um pescoço partido.

Ambrose, pelo contrário, não precisava de se preocupar com o seu pescoço, já que ia bem protegido. Levava um capacete grande, com ranhuras para os olhos e buracos para respirar à altura do nariz e da boca.

As duas espadas eram igualmente longas, e as duas folhas reflectiam o sol da manhã.

- Henri, cuidado! - gritou lana, sem poder evitá-lo.-Cuidado!

Ele olhou-a e levantou a sua espada. Inclinou a cabeça e sorriu.

Voltou depois a sua atenção para o cavaleiro mais velho que fazia de juiz do evento.

Este começou a ditar uma lista de condições com voz sonora. O ruído do pátio diminuiu, mas lana só ouviu as duas últimas regras.

- A vitória só é declarada por concessão do vencido ou por morte de um dos participantes. O vitorioso deve ter clemência do vencido ou pagará a multa de cinquenta marcos que prescreve alei.

Morte? lana sentiu que os seus joelhos fraquejavam. Um deles tinha que admitir a derrota ou morrer. O renitente Ambrose jamais pediria clemência. E Henri não cederia enquanto pudesse respirar.

Newell pôs-lhe uma mão no cotovelo.

- Não pensais que vão matar-se, irmã - murmurou. - Isto é um combate de esgrima e vê-se o mesmo em todos os torneios. A multa fá-los-á ir com cuidado.

- Tens a certeza?

- Claro que sim.

- Pára-os, Newell! - pediu-lhe ela.

- Demasiado tarde - disse ele. - Adiante! - gritou o juiz.

O súbito entrechocar do aço era ensurdecedor.

 

Henri, na sua qualidade de desafiador, foi o primeiro a golpear. Iludiu facilmente o primeiro golpe com a espada plana de Ambrose e saltou depois para trás para evitar outro nos joelhos. Admirou para si a velocidade e destreza de Ambrose.

Moveram-se em círculo, tentando cada um averiguar a intenção do outro. Henri tentou não sorrir. Gostava daquilo e sentia-lhe a falta. Adiantou-se e lançou a sua espada, de fios rombos, para o corpo do outro. O escudo de Ambrose parou-a, ao mesmo tempo que a sua folha golpeava o ombro de Henri. O aço chocou com a malha.

Henri franziu o sobrolho. Se a espada estivesse afiada, ter-lhe-ia cortado o braço. Flexionou os músculos e o outro atacou de novo.

Henri bloqueou o golpe e Ambrose lançou de ? imediato outro, que Henri bloqueou também. Compreendeu então que o outro estava a sério. Ou queria oferecer uma verdadeira demonstração de ataque rápido ou pretendia ganhar.

Henri deu um salto e lançou todo o seu peso num golpe que apanhou o fio da espada contrária e arrancou chispas ao aço.

- Menos pontos por isso, amigo - murmurou.

- Estraguei o fio - os fios, nos torneios, eram rombos de propósito e as pontas, planas, quase arredondadas, para limitar os danos.

Ambrose respondeu com um golpe audaz que quase partiu em dois o capacete de Henri. Este reajustou a sua posição e respondeu com prontidão com outro golpe parecido.

- Quereis uma lição - resmungou entre dentes, que esteve a ponto de perder quando a ponta da espada de Ambrose se acercou perigosamente da sua cara. - Bolas! - saltou para um lado e lançou um golpe à barriga da perna do outro.

O cavaleiro caiu com um golpe seco em cima de seu escudo azul, que se partiu pela metade. Em seu redor elevaram-se gritos de alento e silvos de desprezo.

Henri lançou ao chão o seu escudo, num gesto de jogo limpo que jamais teria tido num combate a sério.

Esperou que Ambrose se levantasse e comprovasse se não se tinha partido nenhum osso. Pensou que talvez fosse um erro, mas não queria terminar tão depressa ou todos adivinhariam que era um encontro fingido. E na verdade era-o.

Respirou fundo e preparou-se.

Levantaram as espadas em simultâneo para darem a entender que iam continuar.

- Não! - ouviu gritar lana. - Mais não!

Henri olhou na sua direcção e Ambrose lançou-se sobre ele como um viking louco empenhado na destruição total. Henri agachou-se e parou a espada do outro com a sua. Já não tinha dúvida. Aquilo era a sério. Aquele imbecil não tinha intenção de perder. Obviamente, a honra importava-lhe mais do que Jehan e do que nenhuma outra coisa.

Henri sabia que devia derrotá-lo pelo seu próprio bem, bem como o de todos os demais.

Atacou no mesmo instante, usando todas as lições de esgrima que tinha aprendido. Empregou-se a fundo em lançar golpes e em esquivá-los, em aproveitar a técnica de Ambrose contra ele, adivinhar os seus movimentos e antecipar-se a eles. Mas descobriu que tinha diante de si um oponente cuja mestria estava à altura da sua.

Lutaram até que os músculos do braço de Henri tremeram de esgotamento e as pernas estavam a ponto de ceder. Tentou um ataque por cima da cabeça, Ambrose parou-o e golpeou-o nas costelas.

Ficou sem alento. O grito de lana ressoou na sua cabeça. No momento em que a dor o fez cair de joelhos, viu um relâmpago de saias vermelhas. Ela corria para eles.

- Parai-a! - gritou Newell.

Daquela posição vulnerável, alçou a espada para bloquear, contorceu-se para evitar outro golpe e lançou um em arco, aproveitando a proximidade do cavaleiro.

Ambrose pôs a cabeça para trás mesmo a tempo de evitar o impacto, mas a ponta da espada de Henri entrou na ranhura do olho. Ouviu-se um grito geral.

Henri fez retroceder a sua espada e, com a mão livre, agarrou a arma de Ambrose mesmo por baixo do punho.

Desarmá-lo de uma posição de joelhos resultou mais difícil do que esperava, mas por fim arrancou-lhe a espada e atirou-a ao chão. Apertou os dentes contra a dor nas costelas e lutou para se pôr em pé.

Pôs uma mão no ombro de Ambrose.

- Estais bem? - perguntou. Compreendeu que o outro não podia ouvi-lo

com o capacete. Rob tinha corrido para o seu lado e, juntos, obrigaram Ambrose a sentar-se a seu lado.

O enganche do capacete estava amolgado e não era fácil soltá-lo. O golpe em que a espada tinha entrado pela ranhura do olho tinha-o retorcido de tal modo que agora se via por ali a orelha de Ambrose.

- Falai - repetiu. - Estais ferido?

- Não - respondeu a voz afogada do outro. - Estou encurralado.

Henri riu com alívio e indicou a Rob que se afastasse. Fez sinal a Newell para que se aproximasse, e este assim fez, levando lana pelo braço. A multidão guardou silêncio. Henri esperou de joelhos, respirando fundo e levando uma mão às costelas para tentar diminuir a dor. Rezou para poder permanecer em pé até que aquilo terminasse e se anunciasse o resultado.

Quando os irmãos chegaram ao seu lado, gritou ao cavaleiro sentado, que tentava compor o capacete:

- Senhor, estais desarmado e não podeis ver. Concedeis-me a vitória?

Ouviu-se um rosnado afogado.

- Mais alto, amigo meu.

- Sim - chegou a resposta. - Concedo.

- Obrigado - Henri olhou para Newell. - Aí o tendes, Hamilton. Rob ajudou Ambrose a incorporar-se e lêvou-o por entre a multidão.

O irmão de lana observou o seu amigo a deixar o campo e olhou depois para Henri com o rosto inexpressivo.

- O botim para o vencedor. Ela é vossa. Desejo-vos que desfruteis dela.

Soltou o pulso de lana e afastou-se com rapidez.

Ninguém se moveu nem disse nada. Henri viu que a multidão esperava a reacção de lana. Ele também a esperava. Incapaz de se levantar, virou-se de frente para ela de joelhos, como se fosse de propósito. Ela olhava-o de cima. Ele pestanejou e tentou focar o seu rosto.

- Oh, Henri! - suspirou ela. - Estais ferido - sussurrou.

- Sim - admitiu ele. - Mas... ganhei-vos - ela era sua e Henri sentia uma euforia que compensava a sua incomodidade. Fechou os olhos com força e o chão foi ao seu encontro.

- Ajudai-me! - gritou lana. Pôs-se de joelhos e tomou a cabeça de Henri nas suas mãos. Everand e quatro dos homens de Baincroft rodearam-na em seguida.

lana afastou-se do seu caminho para que pudessem levantá-lo e seguiu-os. Não se fixou no grupo montado do pátio até que os cavalos lhes cortaram o passo.

Os homens que levavam Henri tiveram que parar e deixá-lo no chão. Tinha os olhos abertos, mas não se sentou. lana ajoelhou-se ao seu lado e ele olhou para os recém-chegados por cima do ombro dela e sorriu.

Lorde Trouville desmontou com rapidez e agachou-se ao lado do filho.

- Por que não nos esperaste? - perguntou. Estás ferido?

- Mazelas - replicou Henri. - E não vos esperei porque temia que me detivésseis.

Trouville lançou uma maldição e pôs-se em pé. Fez sinais aos homens para que o levassem.

- Não - protestou Henri. - Dai-me a mão. Posso andar.

O pai tomou-lhe as mãos e ele levantou-se sem dobrar a cintura e com um gemido de dor.

- Obrigado.

- Não me agradeças ainda - advertiu-o Trouville. Fez sinal a dois dos seus homens. - Ajudai-o a entrar.

Seguraram Henri pelos ombros e começaram o tormento de o ajudarem a subir as escadas. Trouville olhou para lana. «

- Ganhou, não é verdade? - perguntou.

- Foi muito maltratado - replicou ela, com a vista fixa nas costas de Henri. - Mas sim, ganhou - ainda que não fosse sua intenção, na sua voz soava uma nota de orgulho.

- Agrada-vos que dois homens lutem por vós?

- perguntou o conde, cortante.

- Em absoluto. Fiz o que pude para o evitar. Perguntai ao meu irmão. Até me ofereci para casar com Henri se suspendesse o combate.

- E agora tendes que vos casar?

- Não - disse ela. - Newell dispôs-se a entregar-me como pupila.

Trouville assentiu com um suspiro.

- Certamente podeis contestar isso num tribunal. Mas não precisais do vosso irmão:

Henri tratar-vos-á bem.

lana não disse nada, porque não havia mais nada a dizer. Ainda que não gostasse do resultado de tudo aquilo, teria que o aceitar.

Na porta do salão, viram que tinham sentado Henri no cadeirão acolchoado de lorde Robert.

- Meg, examinai-o, por favor - pediu Trouville.

lana fixou-se pela primeira vez nas três mulheres que os tinham seguido e estavam agora ao lado de lady Main, que acabava de entregar Tam a uma das amas.

A mulher de vestido mais simples das três adiantou-se. lana fez menção de a seguir, mas Trouville deteve-a.

- Ficai aqui até que lady Margaret tenha visto as feridas. Agora permiti que vos apresente a minha condessa, lady Anne, e a nossa filha Alys - voltou-se para elas. - Ela é lana, a nova pupila de Henri e baronesa Duncan.

- Senhoras - murmurou lana, com uma reverência, ainda pendente de Henri. - Essa mulher é curandeira? - perguntou.

- A melhor - assegurou-lhe a condessa. lana alegrava-se de ouvir isso, mas não estava disposta a confiar por inteiro a ninguém o cuidado de Henri.

- Se me desculpais, quero ir ajudá-la.

- Não - declarou Trouville. - Henri tem que tirar a malha e despir-se para que lhe examinem os ferimentos. A vossa presença não seria decorosa.

lana viu que fechavam a porta do salão.

- Não seria decorosa? - perguntou, ultrajada.

- Já cuidei dele antes e vós bem o sabeis. Preferiríeis que o tivesse deixado morrer para salvar o decoro?

O conde lançou-lhe um olhar sombrio.

- Então era necessário; agora não.

lana esteve a ponto de o desafiar. Ele desafiou-a a tentar fazê-lo com o olhar.

- Milorde, compreendei, por favor - murmurou ela. - Quero vê-lo porque me sinto de algum modo responsável.

O conde não mudou a sua expressão sombria.

- Isso, querida, é porque o sois - entrou no salão.

- Deveis desculpá-lo - sorriu a condessa. - Quando se trata do bem-estar do seu herdeiro, não pode pensar noutra coisa.

- Sim, eu sei - suspirou lana com resignação.

- Quando veio aqui, ofereceu-me a lua por ter salvo Henri. Agora odeia-me por ser a causa disto.

- Odeia-vos? - riu lady Alys. - Não. O meu pai admira-vos. Disse-o.

- É verdade - assentiu a condessa. - Não obstante, incomoda-o bastante que qualquer mulher rejeite a oportunidade de ser esposa de Henri.

lana respirou fundo e moveu a cabeça.

- Não é Henri que eu rejeito; é qualquer homem.

- Eu sei - replicou a dama. - Eu uma vez senti o mesmo por Edouard - tomou-lhe a mão.

- Pensai no que é para vós estar a só um quarto de distância de Henri neste momento. No futuro, também curará outra pessoa as suas feridas e vós nem sequer o sabereis. Isso não vos preocupa? Não vos importa nada?

lana admitiu para si que lhe importava. Amava-o. Recordou quão perto da morte estava quando o conheceu.

Lady Anne tinha razão. Nos anos vindouros, talvez nunca soubesse quando sofria uma ferida na guerra ou nos torneios. Podia morrer se não tivesse ninguém competente a seu lado para cuidar dele. E ela não podia suportar a ideia de que morresse.

Main tomou-a pelo braço.

- Vinde, vamos tomar um copo de vinho e comer - propôs.

As quatro uniram-se às muitas outras pessoas que tinham entrado para dar conta da comida e bebida colocadas nas mesas.

Everand saiu a correr do salão, aproximou-se delas e sorriu de orelha a orelha.

- O meu pai mandou-me dizer-vos que poderá assistir ao banquete esta tarde. Lady Margaret declarou-o quase pronto para dançar.

- Banquete? - perguntou Main, com as sobrancelhas franzidas. - Ninguém me informou de que vou dar um banquete?!

As outras mulheres riram ante a sua consternação, lana viu que as notícias de Everand as tinham aliviado bastante. Por sua parte, quase se pôs de joelhos para dar graças a Deus.

A poderosa sensação de alívio, combinada com a recordação sempre presente da paixão entre Henri e ela, lançava outra luz sobre a sua determinação de ser livre. Por muito que lhe negasse qualquer vínculo com ela, fosse como tutor ou como marido, sabia perfeitamente que jamais seria livre de Henri.

Mas nem sequer isso podia fazer com que se rendesse por completo. Ainda não. Talvez nunca. A não ser que ele aceitasse as suas condições.

 

lana levou Tam para o salão de jogos e deixou-a ao cuidado da aia dos gémeos e das duas donzelas que a assistiam.

- Vinde - disse-lhe Jehan, agarrando-a pelo braço. - Nós, as damas, temos um conselho de guerra.

- Guerra? - perguntou lana. - Quem vamos desafiar?

- Os homens, é claro - sorriu a outra. - Quem mais? O orgulho de Ambrose está feito em fanicos e escondeu-se nas barracas, onde não me é permitido ir. Enviei-lhe um bilhete a dizer que deve comparecer logo ao banquete ou farei com que o atem como a um peru e mo entreguem. Sei que o imbecil está a pensar ir-se embora.

lana riu.

- Então de certeza que o faz. Não ireis dizer-lhe adeus?

Jehan abanou a cabeça.

- Não irá a parte nenhuma. Não partirá sem sua sela de montar, e eu escondi-a.

-Não!

- Sim. Sabia que quando lhe tirassem o capacete, sairia a correr para cuidar do seu orgulho ferido e apertar os dentes pela sua derrota. Pensava levar o seu cavalo, mas a besta não mo permitiu.

Reuniram-se com Main, lady Anne e Alys diante da lareira e aproximaram bancos para se sentarem.

lana sentia-se bem com a aceitação das outras.

Lady Anne agarrou-lhe uma mão.

- Henri está bem. O seu pai veio dizer-nos, lana sorriu.

- Fico contente. Se lhe acontecesse alguma coisa por minha causa, sentir-me-ia muito mal. Por favor, aceitai as minhas desculpas por tudo isto.

- Tolice - disse a dama. - Isto não é nem a metade da confusão que tivemos quando Rob reclamou Main.

- Suponho que agora sou só a pupila de Henri.

- Mais do que isso - interveio Alys, a irmã de Henri. - Aposto que quer que sejais a sua esposa.

Lady Anne olhou para lana com amabilidade.

- Não vos deixeis dominar por ele, querida. Admito que é um pouco teimoso. No entanto, está muito apaixonado por vós. Rob nunca se equivoca com essas coisas. Crê que sentis o mesmo por ele.

- O amor não é o problema - confessou lana. Main deu-lhe uma palmada.

- Vedes? Hoje temos algo mais a celebrar do que um tonto combate de esgrima. Vamos ter um casamento.

- Dois - corrigiu Jehan com um sorriso astuto.

- Um - argumentou lana. - A menos... As outras olharam-na expectantes.

- Não me casarei com Henri a não ser que aceda às minhas condições - disse.

- Fazeis bem - anunciou Alys. - Ponhai-lo no seu lugar desde o princípio.

- Quais são as vossas condições? - perguntou lady Anne. - Podemos ouvi-las?

lana negou com a cabeça.

- Acho que antes devo dizer-lhas a ele. É justo.

- Suponho que sim - admitiu Main. - No entanto - levantou um dedo, - acho que devíeis declará-las publicamente no banquete. Com tantas testemunhas, é impossível que haja mal-entendidos mais tarde.

- Mas como o farei? Não acho que mo peça.

- Encarregarei Rob que sugira a Henri que vos proponha casamento diante de todos. Indicar-lhe-emos que não podereis negar-vos publicamente sem uma razão e deveis admitir que não a tendes. Então, darei a entender que no fundo estais desejosa.

- Bom plano - assentiu lady Anne. - Mas sereis razoável nas vossas exigências, não é verdade? E aberta ao compromisso? Esse é o segredo de uma boa união, filha. Negociar e atingir compromissos.

- E amor - adicionou Jehan. - Não esqueçamos isso.

- E paixão - interveio Alys.

- Olhai, aí está Ambrose! - anunciou Main. Segurou Jehan pelo braço para a impedir de

correr para ele. O cavaleiro acabava de entrar na companhia de Newell.

Dirigiram-se directamente ao salão, onde estavam reunidos os outros homens.

- Suponho que veio fazer as pazes - adivinhou Main.

- Ou exigir que lhe devolvam a sua sela murmurou Jehan com uma gargalhada. - Tem uma cara muito estranha.

- Casar-vos-eis com ele? - perguntou Alys.  

- Claro. Quando lhe passar a cólera. Main começou a falar dos preparativos para o banquete e a conversa girou à volta de assuntos menos íntimos.

A Henri não lhe agradava arriscar-se a uma rejeição diante de todos. Não obstante, Rob tinha razão. lana sentir-se-ia mais inclinada a aceitar se tivesse espectadores. E uma vez que o fizesse, não poderia haver mais vacilações da sua parte. Rezou em silêncio para que não o rejeitasse.

Rob deu-lhe uma cotovelada e Henri olhou para as escadas.

lana parecia flutuar sobre elas. A luz das velas arrancava brilhos dourados ao seu cabelo. Levava um vestido decotado também dourado, com uma jóia âmbar ao pescoço.

Os seus olhos encontraram-se e ela sorriu. O coração de Henri quase parou.

- Respira - murmurou o seu pai, a rir.

Henri moveu a cabeça e devolveu-lhe o sorriso. Então, adiantou-se para tomar a mão de lana e escoltá-la à mesa.

A comida pareceu-lhe interminável. Não ia terminar nunca? Um prato sucedia outro e mais outro e parecia que nunca se acabavam.

Os seus pais, como convidados da mais alta casta, ocupavam o lugar de honra à mesa. Rob e Main estavam sentados à sua esquerda, seguidos de Jehan e Ambrose. Newell, como barão mais velho, sentava-se à sua direita, com lana ao lado. Ainda que Henri fosse a seguir, tinha ao outro lado a sua irmã Alys, que não parava de dizer tolices.

Como exigia a tradição, ele tinha que a alimentá-la. Partir-lhe o pão, cortar-lhe a carne e oferecer-lhe o seu copo.

À esquerda de Alys sentavam-se o padre Michael e lady Meg, os pais de Jehan.

Henri olhou para lana e viu que conversava com Newell. Não ouvia o que diziam, mas ao menos não pareciam estar a discutir.

Os músicos de Trouville e os dois que residiam em Baincroft tinham unido os seus talentos e adicionavam música suave ao ruído do banquete.

A Henri doía-lhe a cabeça e não podia com aquilo. E se lana dissesse que não?

Por fim levaram a fruta, as avelãs e os queijos. Everand encheu-lhe o copo de vinho doce, mas Henri sabia que não lhe cairia bem. Pediu no seu interior que Alys o esvaziasse inteiro, caísse bêbeda sobre a mesa e fechasse a boca.

- Henri? - chamou o seu pai. - Felicito-te pela tua vitória esta manhã. Bebamos pela tua força e ao teu digno oponente, sir Ambrose Sturrock - pôs-se em pé com o copo ao alto e esperou que os outros o imitassem. - À vossa saúde, senhores.

Todos beberam e permaneceram em pé.

- Pelo vencedor - disse Ambrose, como se esperava dele. - Por sir Henri Gillet de Trouville.

Este assentiu com a cabeça e devolveu a saudação.

- Interveio o destino - disse. - Não posso afirmar ser superior, só ter tido mais sorte. Deus queira que não tenha que enfrentar nunca mais um oponente tão bom como vós.

Todos beberam de novo. Era o momento ideal. Henri olhou para lana, tomou-lhe a mão e manteve-a entre as suas.

- Minha senhora e agora minha querida pupila, rogo-vos que escuteis a súplica de um pobre cavaleiro. Se me aceitardes, gostaria de me tornar vosso esposo.

Ela arqueou as sobrancelhas.

- Quereis ser minha esposa, lana? - acrescentou ele com ternura.

lana olhou em seu redor.

- Pode ser que sim - disse.

- Pode? - repetiu ele, sem saber que dizer. Tinha que lhe suplicar? Não o tinha feito já diante de Deus e de testemunhas? Que mais queria?

Ela olhou-o nos olhos.

- Senhor, se aceitardes as minhas condições diante desta companhia e jurardes cumpri-las toda a vida, acederei ao vosso desejo.

Henri sentiu algo parecido com fúria. Tentou controlá-la. Que ia exigir-lhe? Algo impossível, certamente. Tinha-lhe dito claramente que não desejava voltar a casar-se nunca. Agora cravava-lhe uma faca no coração.

- Ouçamo-las, pois - disse entre dentes.

- Três coisas - anunciou ela, no meio de um silêncio sepulcral. - Em primeiro lugar, nunca deveis bater-me, fazer-me passar fome nem fechar-me.

Henri respirou aliviado.

- Por minha alma que não o faria mesmo sem este juramento. Já devíeis sabê-lo.

Ela assentiu.

- E quero a vossa palavra de que residiremos no país do meu nascimento. Aqui na Escócia.

A Henri deu-lhe um baque no coração. Aquilo era impossível. O seu dever era viver em França e ela sabia-o. Não podia tê-la a não ser que renunciasse ao seu país. Era injusto e queria gritar-lhe que retirasse a sua condição, mas sabia que não o faria. Zangar-se-ia e usá-lo-ia como desculpa para o rejeitar.

Aclarou a garganta e pensou um momento.

- Sei que vós não respeitaríeis um senhor que abandonasse os que dependem dele, como a minha gente de França depende de mim. Em lugar da vossa condição, ofereço esta... passaremos três meses de todos os anos na Escócia. Que dizeis?

lana não se apressou a recusar nem a aceitar. Levantou o copo e bebeu um sorvo.

- Feito - disse quando voltou a baixá-lo.

- A vossa última condição, senhora? - perguntou Henri.

lana encolheu os ombros.

- Deveis prometer que nunca me contradireis, que me permitireis fazer o que quiser e dizer o que me apetecer sem nenhum tipo de restrições.

Uma admiração colectiva saiu das gargantas de todos os homens.

Henri disse-se que devia ir com cuidado. O seu futuro dependia da sua resposta nesse momento. Um simples «sim» e teria que esquecer a sua virilidade e converter-se no pau-mandado dela. Um «não» e perdê-la-ia para sempre.

Tomou-lhe a outra mão e apertou as duas entre as suas.

- Enquanto viver, juro que escutarei os vossos desejos, lana. Ouvirei as vossas palavras e pensamentos e considerá-los-ei com atenção. Não atropelarei as vossas decisões a não ser que tema pela vossa segurança e bem-estar ou os dos que estiverem ao nosso cuidado. Mas peço-vos que me concedais o mesmo favor.

- Um compromisso, senhor? - perguntou ela.

- Confiramo-nos um ao outro em todos os aspectos importantes. Eu valorizo o vosso bom senso e espero que vós valorizeis o meu.

Quero-vos tomar por esposa. Não fala isso da minha inteligência?

Ela respondeu com um sorriso.

- Então, aceitais-me como esposo e senhor? -Sim.

Henri apertou-lhe as mãos e atraiu-a para si. Voltou-se para o padre Michael e viu-o fazer o sinal da cruz.

- Está feito, estamos casados - anunciou. E beijou-a antes que ela pudesse protestar. O local encheu-se de vivas. Henri soltou uma gargalhada e voltou a beijá-la.

Temendo os seus protestos, tomou-a nos braços e levou-a pelas escadas até ao seu quarto.

- Já és minha - disse a meio do caminho. Sem noivados nem esperas.

lana bateu-lhe no ombro com o punho e pôs a cabeça para trás com uma gargalhada.

- Sois terrível. Já devia estar à espera.

- Não te importa? - perguntou ele. Ela beijou-o na cara.

- O sacerdote estava ali. Devia ter adivinhado. Só se precisava do nosso consentimento e de uma bênção.

Tinham chegado ao quarto. Henri abriu a porta com o pé e colocou-a no chão ao seu lado antes de a fechar. Voltou a tomá-la no colo e levou-a até ao enorme colchão de plumas.

Acariciou-lhe a cara com um dedo. Ela tinha renunciado ao seu sonho por ele. Que melhor presente podia fazer-lhe? Acariciou-lhe o cabelo e descansou a mão na curva esguia do seu pescoço.

- És tão formosa que, quando te vi esta noite, me custou a respirar. No entanto, a tua beleza não é o melhor de ti. É a tua bondade e a doçura da tua alma o que me atraem em ti.

Ela cobriu a mão dele com a sua.

- Obrigada por aceitares as minhas condições, Henri. Não te defraudarei.

Ele beijou-a com suavidade.

- Eu sei-o muito bem. Hoje ter-te-ia prometido qualquer coisa. Tudo o que o teu coração desejasse. Castelos em França? Tesouros em abundância? Tudo seria teu.

Viu com surpresa que os olhos dela brilhavam com regozijo.

- Obrigada! Que homem tão generoso sois! Se soubesse, teria pedido mais.

- Pede-o agora. Que mais desejas, minha querida? Faz uma lista.

lana encolheu os ombros.

- Oh, saúde, felicidade... e talvez prazeres inconfessáveis - levantou as sobrancelhas com uma expressão sedutora.

- Concedido, concedido e... oh, perdoa-me, continuas à espera dos prazeres inconfessáveis - acariciou-a com um olhar ardente. - Não esperes mais.

- Uma mulher deveria poder ter um filho próprio - continuou ele. - Não é justo.

- Oh, muito bem - lana pôs-lhe um dedo nos lábios. - Se insistes em ter mais filhos, dar-tos-ei. Depois de tudo, o compromisso é a chave de uma união feliz. Disse-mo a tua mãe - sorriu-lhe. - Podes esperar sete meses?

Henri arqueou as sobrancelhas.

-lana? Estás...?

- Sim, é verdade - declarou ela. - Queria fazer-te uma surpresa no dia do teu santo, mas não podia esperar nem um momento mais.

Depois de um beijo longo e apaixonado, Henri abraçou-a como se não quisesse soltá-la nunca.

- Jamais pensei que seria tão feliz - confessou.

lana atirou-lhe os braços ao pescoço.

- Bom, meu rapazinho feliz, não penses nem por um momento que agora estás livre do teu dever.

- Nunca era eu que pedia liberdade - respondeu ele. - Ainda a queres?

lana sorriu.

- Todos os meus desejos se tornaram realidade - sussurrou. - Todos, excepto o mais imediato.

E Henri procedeu então a cumprir esse também sem mais demora.

 

                                                                                Lyn Stone 

 

 

                      

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