Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A RAINHA DAS TERRAS DA LUZ / Inês Botelho
A RAINHA DAS TERRAS DA LUZ / Inês Botelho

 

 

                                                                                                                                   

 

 

 

 

 

Passaram-se seis anos desde que Iruvienne se tornou Rainha das Terras da Luz. Aran regressa das Terras Brancas e com ele vem o príncipe Legonon. Tudo parece correr bem, até que Iruvienne volta a sonhar com a aranha e o homem com cabelos como serpentes... Porque terá voltado esta Visão? E qual o seu significado? Estará a resposta a este mistério algures nas Terras do Norte?

Chegou a altura de Iruvienne viver a aventura que sempre desejou.

Mas será que ela está preparada para o que vai encontrar?...

 

 

 

 

                         PREFÁCIO

- Um novo paradigma o regresso dos arquétipos

"Ajuda a Natureza e coopera com ela; e a Natureza ter- te-á como um dos seus criadores e tornar-se-á obediente. E perante ti abrirá, de par em par os portais das suas secretas câmaras, e desvendará ao teu olhar os tesouros escondidos nasprofundezas do seu seio puro e virgem. Imaculada pela mão da matéria, ela mostra os seus tesouros apenas ao olho do Espírito, o olho que nunca se fecha, o olho para o qual não existe véu em todos os seus reinos.

 

A VOZ DO Silêncio [ Livro sagrado tibetano divulgado no Ocidente por H. P. Blavauky]

"Aprendemos mais coisas nafloresta do que nos livros; as flores e os rochedos ensinar vos-ão coisas que não conseguirieis ouvir noutro lugar i...

       BERNARDO [ Epístola CVI]

 

A trilogia O Ceptro de Aerzis de Inês Botelho constitui um fenómeno literário de rara beleza. Os vocábulos harmonizam-se numa fluidez integrada num ritmo musical que envolve o leitor sensível numa atmosfera de ternura, culto ao belo, à amizade, à espiritualidade da Natureza, ao imaginário profundo da alma. São os sonhos cristalinos de umajovem expressos através da arte da escrita. A sua interioridade misteriosa, a sua solidão criativa, transformaram-se num laboratório alquímico onde a inspiração inicial foi tomando forma, ganhando vida, e se plasmou nesta trilogia de imaginário arquetípico. Escrever, num período de dois anos e meio, dos quinze aos dezoito anos, estas quase nove centenas de páginas que constituem O Ceptro de Aerzis com toda a riqueza literária, filosófica e criativa que Lhe estão imanentes, é, de facto, um prodígio, só explicável, a meu ver, pela teoria platónica das reminiscências, ou seja, as recordações intuitivas que a alma tem de vivências muito longínquas no tempo. Dito de uma forma menos élfica (risos) e mais humana: trata-se de um dom inato, que já nasce com a pessoa - lembremo-nos do caso de Mozart.

E é muito interessante constatar que não é caso único. Desde há uns anos a esta parte, estão a surgir em todo o mundo ocidental - Portugal incluído - jovens escritores a publicar obras de boa qualidade literária inspiradas neste ambiente de imaginário céltico, nórdico e de outras tradições pré-cristãs, mormente indo-europeias. Mais, algumas dessas obras têm tido um êxito invulgar, como é o caso d' O Ceptro de Aerzis, no quadro do panorama editorial português, e d'A Trilogia da Herança de Christopher Paolini, a nível internacional - curiosamente, Paolini também começou a escrever a sua trilogia aos quinze anos. Esta sincronicidade constitui um fenómeno sociológico que merecia melhor atenção dos sociólogos e dos filósofos e a devida constatação da crítica literária, porém, já desde há muito que a opinião publicada se está afastando da opinião pública. Mas este fenómeno está integrado noutro mais vasto que está a causar uma grande mudança de mentalidades em certos sectores das sociedades contemporâneas. Trata-se de uma reacção profunda ao materialismo redutor e racionalista e à mensagem anquilosada das religiões estabelecidas. O positivismo, no século XIX, prometeu o paraíso na Terra para o ano 2000. Resolveram-se muitas questões relativas à vida exterior dos humanos, houve uma evolução positiva em muitos campos, mas a interioridade foi olvidada causando aquele mesmo vazio sentido por Ailura, a jornalista de sucesso que não reparava nas coisas simples e profundas da Natureza. De alguma forma, como afirmou o antropólogo Fernand Schwarz, os intelectuais tornaram-se os sacerdotes da nova "religião materialista" que hoje já está em claro declínio, embora ainda domine grande parte do poder cultural, académico e mediático. Hodiernamente, é tragicómico verificar a sua incapacidade para compreender o novo paradigma de regresso dos arquétipos espirituais. O seu tempo histórico - o seupadrão diria Inês Botelho - acabou, por isso, tem algum sentido o polémico artigo escrito por Rodrigo de Sá-Nogueira Saraiva e publicado no Expresso que se intitula precisamente O Fim dos Intelectuais. assinale-se, no entanto, que este docente universitário se refere ao ciclo em terminus mas não ao novo paradigma. Por outro lado, já Fernando Pessoa, com a sua intuição peculiar tinha escrito com clareza: "Afirmamos e afirmaremos sempre que o homem que não consegue ver na Natureza, a expressão original, o grande depósito dopensamento humano é intelectualmente um desesperado". Curiosamente, são alguns desses "intelectuais desesperados" que se crêem especialistas da obra deste magno poeta lusitano.

Este período de charneira da história, de fim de um ciclo e início de outro, foi designado pelo físico-filósofo Fritoj Capra como o ponto de mutação.

Não podemos escamotear que desta reacção ao materialismo da sociedade consumista irromperam muitas formas de patologias do sagrado - seitas sem escrúpulos, esoterismo light, materialismo espiritual, etc. - mas não é dessa área sociológica que nos estamos a ocupar, nem é aí que situamos o fenómeno literário onde se insere O Ceptro de Aerzis. Referimo-nos sim àquela importante minoria do mundo ocidental que num movimento de regresso às origens procura alimentar o vazio da sua alma de uma

forma séria, com verdadeira alegria interior, e resgatar o entusiasmo natural pelas coisas simples e profundas. Para começar esse caminho, ouçamos o conselho de Elianor a Ailura: "Aprende a acalmar o teu espírito, a amar a simplicidade, para mais tarde te poderes deslumbrar com o magnificente. Respeita tudo e todos os que te rodeiam. Segue os teus instintos, mas não esqueças a razão por completo. Acredita no teu coração, mesmo que a cabeça te diga que não é possivel. Ama. E, acima de tudo, sê verdadeira contigo própria. " Na verdade, todo o ser humano é, como Ailura, um "filho dos mundos". Dizia Platão, "vós sois deuses, mas vos haveis esquecido" e Jesus recordou o salmo bíblico

(82, 6) "vós sois deuses" (João, X, 34).

O grande orientalista e filósofo Henry Corbin propôs a recuperação da visão tripartida do universo: um mundo físico (tem forma e matéria), um mundo imaginal (tem forma mas é imaterial) e o mundo das ideias puras (não tem forma nem matéria). Esta ideia da existência de um mundo intermédio entre o espiritual sem-forma e o físico, a que designou como mundus imaginalis, foi-lhe inspirada pelo conceito de alam-al-mital dos neoplatónicos persas da tradição iraniana. Para estes, a existência desse mundo imaginal é tão evidente como para nós a do mundo fisico, pois, segundo esta tradição, em certos estados modificados de consciência estes filósofos-místicos, muitos deles sufistas, conseguiriam ter consciência real desse mundo imaginalis'. Nos nossos dias esta cosmovisão proposta por Corbin é aceite por muito investigadores na área da antropologia da religião e do imaginário, tais como, por exemplo, Gilbert Durand e Fernand Schwarzi"'. Nesta perspectiva, o ser humano integral, tem dois tipos de vida que devem comunicar entre si, a vida exterior relacionada com o mundo físico e a vida imaginal, interior; é um "filho dos mundos".

Quer isto dizer que o "mundo élfico" de Inês Botelho talvez seja mais real do que poderemos pensar. Por outro lado, a crença nos espíritos da Natureza era praticamente comum a todas as culturas antigas, e não só as célticas e nórdicas. Só tardiamente, os Romanos ouviram a fatídica sentença: "o grande Pã morreu".

Talvez só tenha adormecido...

E a advertência de Shakespeare, em Hamlet, continua muito actual: "Existem mais coisas no Céu e na Terra, Horácio, do que sonha a vossa filosofia". Tanto é assim, que, actualmente, certos sectores da ciência aceitam a possibilidade da existência de mundos paralelos que coexistam no mesmo espaço que o nosso mundo físico mas noutras dimensões da Natureza. O astrofisico Jacques Vallee confirmou-me pessoalmente que essa é uma teoria possível para compreender o fenómeno dos ovnis, que, assim, seriam manifestações desses mundos paralelos.

Na obra de Inês Botelho salientaria três esteios que me parece marcarem profundamente a sua criatividade: a ecologia profunda, o carácterfilosófico e os mistérios. Todos eles resultam da confluência da sua investigação em diversos níveis, da sua capacidade de reflexão e da inspiração misteriosa do seu génio, que é o fundamento essencial de todo o verdadeiro amado das Musas.

 

               ECOLOGIA PROFUNDA

O amor, respeito e fascínio pela Natureza e suas formas de vida percorre toda a trilogia. Renasce no leitor sensível o velho e mágico sentimento da sacralidade da Natureza. Esse sentimento é o fundamento da ecologia profunda. Não se trata, numa visão antropo-autista, de preservar o ambiente somente para usufruto dos humanos - a Natureza vista como um objecto -, mas sim de um real amor pelas formas de vida da Natureza tanto no âmbito do visível como do invisível. A religião popular portuguesa manteve fortes remanescências desta relação espiritual com a Natureza e, como afirmou Francisco da Cunha Leão, "um panteísmo literário aflora a cada passo" na tradição literária do nosso país. Teixeira de Pascoaes, um dos que Fernando Pessoa denominou transcendentalismo panteista, deu testemunho da sua experiência mágica na Serra do Marão: "Houve um momento da minha vida em que estremeci, diante da paisagem, como se ela própria houvesse estremecido. em que as pedras e os montes me falaram. E fiquei a ser esse instante. Aquele relâmpago fixou-se no meu espírito.

São várias as culturas antigas que consideravam a escrita como um efeito da decadência espiritual dos humanos. Citemos o exemplo dos druidas que a proibiam e do Egipto antigo onde, de alguma forma, o deus Thot como inventor da escrita, era considerado um deus maldito, porque com este novo instrumento os humanos começaram a perder a capacidade de ler directamente no Livro da Natureza. Segundo certas tradições, os humanos, nesse tempo em que liam directamente no Livro da Natureza, conheciam o nome verdadeiro de cada coisa, a língua oculta. O Lissanin, cujas palavras entram em contacto directo com a alma das coisas, recorda, inevitavelmente, estas tradições.

As escritas mais antigas da humanidade eram ideogramáticas e estavam muito directamente associadas ao Livro da Natureza. Cada ideograma era uma manifestação directa - e tinha uma ligação invisível e ressonante - da ideia-viva que exprimia. É o caso das antigas runas. E, ainda hoje, a língua chinesa tem uma natureza ideogramática. O reputado cientista japonês Masaru Emoto tem realizado uma investigação notável sobre o carácter vivo e mental da água. Ao fotografar os cristais que a água forma quando congelada, descobriu e demonstrou que as moléculas de água são afectadas pelos nossos sentimentos, pensamentos e palavras.

Emoto também descobriu que, no processo de descongelamento, estes cristais geram uma forma semelhante ao caracter chinês que representa a água.

 

             CARACTER FILOSÓFICO

Todo o verdadeiro escritor é um filósofo por natureza. Na arte da escrita surgem naturalmente as grandes questões da vida e da morte. Inês Botelho não as escamoteia, reflecte sobre elas, e transmite ao leitor alguns dos seus pensamentos sobre elas, sempre num quadro assente no bom senso e na natural fluidez do

texto. A questão do destino e da dicotomia livre-arbítrio versus fatalismo é abordada por diversas vezes. A meu ver, Ailura, logo no volume I, responde de forma simples e sábia a esta questão: "... não acredito [no destino]. Acredito apenas que determinadas coisas têm de acontecer e que nos épermitido traçar o nosso percurso dentro desse grande e universal caminho traçado no começo dos tempos. " (p. 199). De forma sintética estão inscritos nesta afirmação os conceitos de dharma (lei, caminho) e de karma (lei de acção e reacção) da sabedoria oriental.

As questões do bem e do mal e da harmonia oculta que rege o cosmos também são focadas. Neste volume III, Animus refere-se a estas duas questões: "Alguns eram espíritos enganadores, amigos da mentira, outros, verdadeiramente loucos. Os homens não hesitariam em classificá- los como maléficos, mas não é assim que nós os vemos. Eles fazem parte de umfrágil equilíbrio e de um todo harmonioso. Ajudam a manter a estabilidade entre a sabedoria e a loucura, o racional e o instintivo, e até entre o bem e o mal. Não são, de forma alguma, malévolos. Mas são Espíritos confusos e toldam-nos os sentidos, não nos deixando ver de forma clara. " (p. 188)

 

             OS MISTÉRIOS

"Iniciados nos mais sagrados de todos os mistérios, purificando-nos tornamo-nosjustos e santos com sabedoria. "

       PLATãO [ Fedro, 250c]

O termo mistérios é empregue amiúde por Inês Botelho em sintonia com o seu significado tradicional, ou seja, esotérico e iniciático. Neste volume III adquire uma intensidade especial já que nele decorre a iniciação de Iruvienne, a única personagem d'O Ceptro de Aerzis que atinge o baptismo de fogo e é "Estrela de vIda", ou seja, adquire o poder interno próprio daquele que se vence a si próprio pelo despertar da energia ígnea do espírito. O ceptro de Aerzis só adquire todo o seu poder quando portado por uma Estrela de Vida que é, no âmbito da tradição esotérica, um símbolo do herói solar realizado. Os pitagóricos iniciavam as suas cartas desenhando uma estrela de cinco pontas.

N'A Rainha das Terras da Luz - da Luz- - toda a trama da trilogia atinge o seu clímax naquele momento tão especial que dá sentido a todo o percurso anterior de Iruvienne. Todo o cosmos fica suspenso aguardando o desenlace desse instante, que me recorda, inevitavelmente, a luta entre Teseu e o Minotauro no labirinto de Creta. Teseu, o herói solar, porta um machado duplo, como o de Balein, chega ao centro do labirinto (ou de si próprio) ajudado por Ariadne e inicia a luta decisiva contra a sua sombra interior: ou vence (ilumina, cosmisa) ou é vencido por ela, ficando seu escravo. Este mito do labirinto, de significado muito profundo, era representado em certas cerimónias mistéricas do mundo greco-latino.

Ao visitar, muito recentemente, alguns dos lugares sagrados da Grécia antiga, pude confirmar e sentir que os mistérios constituíram a estrutura invisível do mundo clássico. As escolas de mistérios que estavam associadas aos templos dos lugares sagrados orientavam a iniciação dos candidatos e provocavam através das suas cerimónias o despertar da alma para as realidades superiores do espírito. O que é a revelação - ou desvelação - de um mistério? É a vivência real do que a consciência conhecia apenas no âmbito intelectual. Segundo Téon de Esmirna, os mistérios maiores culminavam com a epopteia, ou seja, a visão perfeita do mundo divino. São várias as tradições com referências à faculdade que os grandes iniciados adquiriam de desligar os corpos subtis do físico, "viajar em espírito" e regressar vivos ao corpo terrestre;

precisamente o poder que Iruvienne adquire com a iniciação do fogo. Plutarco, sacerdote do Templo de Apolo em Delfos e um dos autores consagrados do mundo clássico, descreveu uma parte da experiência viva da grande iniciação: "Neste mundo (a alma não tem conhecimento, salvo quando chega ao transe da morte. Então, sofre uma experiência como a daqueles que participam nas grandes iniciações. Por isso se parecem, tanto apalavra com a obra (tEevtav a morrer e teEBa iniciar-se ), como uma acção com a outra. Primeiro, o vaguear sem rumo, os circuitos fatigantes e os percursos na obscuridade com a suspeita de que nunca terãofim e logo, antes de chegar ao próprio término, todos os terrores, estremecimentos, tremores, suor e confusão. Mas daí sai-se ao encontro de uma luz admirável e é-se acolhido em lugares puros e pradarias, repletas de sons e danças e da solenidade das palavras sacras e visões santas. Uma vez saciado de tudo isso ejá iniciado, regressa-se livre e caminha-se liberto; coroado, celebra os mistérios e, na companhia de homens santos e puros, vê dali a turba não iniciada e impura dos seres vivos, no meio da lama e das trevas, pisando-se e empurrando-se uns aos outros, persistindo no medo da morte em comunhão com os malvados, por falta defé nos bens dali. "

As mulheres tiveram um papel activo nos mistérios e no serviço religioso de todo o mundo indo-europeu, onde também estão incluídas as culturas célticas e nórdicas. Isso lembra-me que n'O Ceptro de Aerzis os mistérios são essencialmente protagonizados no feminino. As três protagonistas principais, que dão o título a cada um dos volumes, são mulheres. Este renascer do interesse e do imaginário da espiritualidade no feminino é também uma marca do novo paradigma. No mundo indo-europeu, antropologicamente, é contra natura afastar a mulher do ofício religioso. Tanto assim é que, por exemplo, em Portugal ela é claramente oficiante nos ritos da religiosidade popular.

Finalizo como comecei: este é um romance de rara beleza. Num mundo onde impera, na maior parte das vezes, a desarmonia, a fealdade, a cacofonia, ler a obra desta jovem escritora - a

verdadeira filha dos mundos! -, onde o culto da Natureza, das coisas simples e profundas da vida, da amizade - que amizade tão pura aquela entre Iruvienne e Aran -, da harmonia, envolve o leitor com ternura, é uma fonte de esperança num mundo novo e melhor.

Talvez um dia se realize a profecia de Fernando Pessoa e consigamos encontrar o caminho para as "Índias espirituais".

Boa "viagem", leitor!

Paulo Alexandre Loução

Lisboa, 29. 08. 2005 paulo LouÇão, esquilo.

 

               O REGRESSO DE ARAN

Iruvienne descia, calmamente, a escada de pedra trabalhada que se enrolava em torno do tronco da majestosa árvore onde fora construído o seu eluan. Tudo estava calmo e silencioso. Apenas as folhas se agitavam, levemente, ao sabor da brisa, e os grossos ramos das árvores milenares escondiam algumas tímidas flores primaveris. Estava frio e, naquela noite, Omnirion era apenas iluminada pelo brilho das estrelas no céu e a luz bruxuleante das velas nas candeias de vidros tenuemente azulados. Iruvienne tocou o chão de erva verde, ainda coberto por algumas folhas secas esquecidas pelo vento, olhou à sua volta e, de repente, desatou a correr como uma criancinha em direcção ao Palácio do Ouro e do Verde.

Tinham-se passado mais de seis anos desde que Iruvienne se tornara Rainha das Terras da Luz e ela tinha agora trinta e quatro anos. O seu povo amava-a e ela descobrira que, como rainha, não precisava de perder toda a sua independência. Reinava no Mundo uma paz serena, apenas perturbada por algumas memórias e receios que os Elfos e as Fadas não conseguiam evitar, bem como, para Iruvienne, alguns sonhos demasiado inquietantes para poderem ser, calmamente, deixados no subconsciente. Mas, desta vez, os seus sonhos tinham sido belos e reconfortantes. Aran estava a regressar das Terras Brancas e, se tudo corresse bem, estaria em Omnirion a meio da manhã.

Pouco tempo depois de Galaduinne e Athilya terem partido para Brumívium, Iruvienne falara a Aran do pedido que a mãe lhe fizera. Mas, embora ele tivesse concordado que deviam tentar saber se o Povo Branco realmente existia, a ideia da partida fora adiada, sem que nenhum dos dois voltasse a falar no assunto. Até que um dia, mais ou menos há um ano e meio atrás, Aran tinha acordado Iruvienne a meio da noite, vestido com roupas quentes de viagem, a espada a pender-lhe do cinto e uma mochila às costas. Tinha-lhe dado um beijo na testa e, sem qualquer explicação, dissera-lhe que ia partir para o Norte, em busca do Povo Branco. Iruvienne limitara-se a sorrir e a acompanhá-lo à saída de Omnirion. Mas, enquanto via Aran a afastar-se por entre as árvores, desejou poder partir com ele numa verdadeira aventura. E, agora, ele estava de volta e ia contar-lhe tudo o que vira e aprendera. Ia dizer-Lhe que novas espécies de plantas e animais descobrira e se, efectivamente, o Povo Branco existia ou pelo contrário, não passava de uma lenda há muito tempo sem qualquer razão de ser. No seu sonho, Aran era seguido por mais alguém, uma figura indefinível, uma sombra, mas também uma

presença inegável. Talvez fosse um elfo de cabelos loiros e olhos profundamente azuis como se dizia que eram todos os do Povo Branco. Mas ela não podia ter a certeza disso!...

O dia amanheceu claro e radioso, como se o sol primaveril se quisesse impor, definitivamente, sobre o tímido e fraco sol de Inverno. Algumas flores desabrocharam, revelando as suas deslumbrantes cores, as árvores agitaram os ramos, exibindo as suas bonitas e brilhantes folhas verdes e os pássaros cantaram enquanto Omnirion despertava.

Iruvienne não conseguiu dormir mais e, por isso, quando as suas damas de companhia entraram no quarto, já ela tinha tomado banho e estava a retirar do armário um vestido leve e esvoaçante, que se coadunava muito bem com a estação em que estavam. O vestido era branco bordado com delicadas linhas cor-de-rosa que formavam bonitas flores. As suas mangas alargavam ligeiramente desde o meio do braço, revelando uma outra manga, igualmente branca, mas justa, e a sua saia era tão comprida e esvoaçante que criava a ilusão de que o vestido tinha uma cauda. As suas damas de honor pentearam-Lhe os longuíssimos cabelos e fizeram-lhe algumas tranças que uniram e prenderam, com fitas cor-de-rosa claro, num bonito penteado.

A manhã avançou muito lentamente, ou, pelo menos, assim pareceu a Iruvienne. Ielahad, seu amigo e conselheiro, tentou interessá-la por algumas cartas celestes, mas Iruvienne já divagava por terras criadas na sua própria mente, que ela povoava com estranhas plantas e animais e pelas quais imaginava Aran a caminhar com as suas vestes de caminhante, já muito sujas e gastas, e a comprida espada à cinta. Imaginava-o a viver aventuras fantásticas a conhecer tudo o que era desconhecido e que eles outrora tinham desejado descobrir juntos. Não percebia por que só agora quando Aran estava a regressar, tinha começado a imaginar tudo o que ele poderia ter visto e vivido. Durante quase um ano não se preocupara com isso, limitara-se a assumir que, quando ele voltasse, lhe contaria tudo. Mas agora, que faltava tão pouco para isso acontecer, ela sentia-se impaciente. Estava tão curiosa que não conseguia esperar para saber o que se tinha realmente passado e por isso, imaginava-o.

- Devias parar com isso - disse Ielahad ao fim de algum tempo, já cansado de estar a falar sobre a posição das estrelas no céu, para alguém que divagava por terras inexistentes.

- Parar com quê? - perguntou Iruvienne, distraidamente.

- Parar de tentar imaginar o que poderá ter acontecido a Aran. Sabes, perfeitamente, que muito raramente aquilo que imaginamos corresponde à realidade. E tu tens uma imaginação tão fértil que eu desconfio que o que tu imaginas seja sequer possível.

Iruvienne riu suavemente, como uma criancinha.

- Sabes que dizem o mesmo às crianças humanas que imaginam que nós somos reais, não sabes, Ielahad?

- Sei - respondeu o elfo com um ligeiro encolher de ombros. - Mas é um pouco diferente, não te parece?

- Hum... É. Sem dúvida que é. Mas, tal como elas, também eu estou apenas a sonhar. E sonhar é tão bom!... - disse Iruvienne abrindo os braços e rodopiando pela enorme biblioteca, sempre a rir.

Ielahad soltou um pequeno suspiro.

- Hoje a nossa Rainha acordou com a disposição de uma criança.

Iruvienne parou de rodopiar e ficou a olhá-lo com uma expressão muito doce e um leve sorriso.

- Não - disse por fim. - A vossa Rainha, hoje, está apenas muito contente. Mas é verdade que, por vezes, eu tenho o temperamento de uma inocente e alegre criança. Tal como todos os Elfos e Fadas. E tu, lelahad, devias saber isso muito bem, pois és um sábio.

- Sou, de facto. Mas não o sou mais do que tu. Iruvienne soltou uma gargalhada.

- Agora és tu quem se comporta como uma criança. Uma criança travessa que gosta de ironizar sobre as outras pessoas.

lelahad sorriu.

- Talvez. Mas também podes ser tu que não queres ver o que todos os outros vêem - disse, e Iruvienne ficou novamente séria.

- Tentar fazer o que é melhor para o meu povo não é sabedoria. É amor - respondeu. - Tudo o que faço é movido pelo meu amor a algo. Vocês é que confundem amor com sabedoria.

- Não. Tu é que lhes dás o mesmo nome.

- Ora, Lelahad. Amor e sabedoria nunca foram sinónimos.

- Claro que não. Excepto no teu caso.

Iruvienne caminhou lentamente até uma das janelas da biblioteca e ficou a olhar para o interior de Caladmiron. Lelahad voltou a observar as cartas celestes, silenciosamente.

Durante toda a sua vida, Iruvienne nunca gostara, e continuava a não gostar, que lhe chamassem sábia. E, no entanto, sabia que o era. Mas a palavra parecia tão desapropriada para si! Tão fora de contexto. Como uma lindíssima e delicada flor no meio de um ramo de flores silvestres. Não! Não era bem isso. Era mais como se a sabedoria fosse uma parte tão inata e intrínseca do seu ser que parecia estranho classificá-la. Como se, ao atribuir-lhe um nome, ela se tornasse perigosamente palpável, tão real e comum que desaparecia no meio da banalidade.

Iruvienne abriu a janela de par em par e inclinou-se para a frente. O vento batia-Lhe na cara, afastando-lhe os cabelos e envolvendo-a toda na sua frescura. E, de repente, sentiu-se livre, completamente livre de dúvidas ou preocupações.

- Engraçado como certas coisas levam tanto tempo a descobrir quando são tão simples - disse ainda inclinada para o exterior e de olhos fechados. - São como todas as charadas - respondeu lelahad. - Parecem extremamente complicadas, até que as resolvemos e vemos como são simples. - E depois - continuou Iruvienne, como se ele não tivesse falado -, tudo parece mais nítido e, sem nos apercebermos disso, o problema desapareceu. - Fechou a janela e caminhou até junto do amigo. - O que é que estavas a dizer sobre a posição das estrelas durante a Primavera? Lelahad levantou as sobrancelhas e olhou-a com um ar simultaneamente admirado e divertido.

- O vento hoje deve ser bom conselheiro ou um exímio orador, pois conseguiu fazer com que a nossa Rainha deixasse de divagar pelo irreal - observou.

Iruvienne sorriu e sentou-se, calmamente, em frente às cartas. lelahad continuou com o discurso que tinha interrompido. Mas, passado pouco tempo, Linuase, uma das damas de companhia de Iruvienne, interrompeu-os.

- Senhora, Aran entrou na cidade e vem acompanhado por um elfo muito alto e de aspecto um pouco diferente do que é habitual - disse ela. - Talvez seja um dos do Povo Branco.

Lelahad olhou Linuase com uma expressão mais séria, mas Iruvienne limitou-se a levantar e a caminhar devagar até ela.

- Então, talvez seja melhor eu colocar a coroa. Podes ajudar-me a fazê-lo sem estragar o penteado? - perguntou Iruvienne.

- Claro, Senhora - respondeu a fada. E as duas abandonaram a biblioteca, deixando lelahad entregue aos seus pensamentos.

Linuase colocou, cuidadosamente, a coroa na cabeça de Iruvienne, ocultando parte dela com o penteado, de forma que apenas a zona onde os diamantes estavam incrustados fosse visível. Depois, desceram até à sala do trono onde Lelahad as esperava, acompanhado pelas outras duas damas de companhia. Iruvienne sentou-se no trono e elas imitaram-na, sentando-se nuns bancos de braços que estavam colocados um pouco afastados do trono. Lelahad permaneceu de pé ao lado de Iruvienne.

As portas do salão abriram-se e Aran entrou, acompanhado por um elfo de cabelos loiros platinados e pele extremamente branca. Aran trazia vestidas as mesmas roupas com que partira e, tal como Iruvienne imaginara, estavam velhas e surradas. A espada caía da sua cinta em direcção ao chão, quase tocando-o, mas a mochila desaparecera. Provavelmente, ele deixara-a já pousada em algum canto do palácio. O elfo trajava em tons de verde e castanho escuros. O seu rosto era belo e formado por linhas bem definidas, mas a sua expressão era séria e impenetrável.

Aproximaram-se ambos do trono e curvaram-se numa pequena vénia.

- Senhora - disse Aran, e Iruvienne não conseguiu evitar um ligeiro sorriso, - tal como a vossa mãe suspeitava, o Povo Branco existe. Este é Legonon, filho de Adhar, o rei elfo das Terras Brancas.

Legonon aproximou-se mais e curvou-se profundamente. Quando se ergueu fitou Iruvienne nos olhos, durante alguns momentos, e ela pôde ver que eles eram de um azul-escuro profundo e electrizante, ligeiramente arroxeado, que brilhava intensamente.

- É uma honra e um prazer conhecer finalmente Iruvienne, Rainha das Terras da Luz, de quem tenho ouvido falar tanto e tão bem - disse e a sua voz soou profunda, cheia e agradável como o som do vento a rolar por entre as cavidades de um búzio.

Iruvienne sorriu, quase como uma criança envergonhada.

- É também para mim uma honra conhecer o príncipe de um povo de que sempre ouvi falar, mas que nunca, nem mesmo em sonhos, tinha visto - respondeu e olhou para as suas damas de companhia. - Linuase, poderias arranjar um quarto para o nosso convidado?

- Com certeza, Senhora - respondeu ela, flectindo ligeiramente os joelhos e abandonando o salão.

- Modeia, Eleni, poderiam organizar uma festa para logo à noite, numa clareira que vos pareça adequada? Penso que o tempo estará agradável.

- Claro, Senhora - disseram as duas em uníssono e saíram por uma porta lateral.

Iruvienne virou-se para lelahad.

- Terei todo o prazer em mostrar ao príncipe Legnnon o palácio e Omnirion - disse Lelahad e Iruvienne sorriu-lhe.

- Obrigada, lelahad.

Legonon saiu com Lelahad e Iruvienne e Aran ficaram sozinhos na sala do trono.

- Bem, Senhora, deveis estar à espera que vos conte tudo o que vi - disse Aran.

- Mas é claro! - respondeu Iruvienne, levantando-se do trono e correndo em direcção ao amigo. Aran agarrou-a, rodopiou com ela pelo salão, e os dois riram como se fossem ainda as crianças de dez anos que acabavam de cair numa poça de lama, durante um dos seus treinos.

- Oh, pequenina, tive tantas saudades tuas!

- Também eu - respondeu Iruvienne, abraçando-o com mais força e encostando a cabeça ao peito dele. - Aran...

- Sim, pequenina?

- Estás a precisar de um banho.

Aran soltou uma grande gargalhada que ressoou pelas paredes da sala do trono.

- Tens razão - respondeu ele. - A viagem foi longa, já que a fizemos a pé e devagar, para que Legonon fosse conhecendo Caladmiron, e como não tomamos banho desde que saímos de Nirilnege, a grande e única cidade do Povo Branco, e temos dormido quase sempre ao relento, confesso que devo cheirar mesmo muito mal. Mas também tenho a certeza de que não sou o único. Ele deve cheirar tão mal quanto eu. O que é... estranhamente agradável.

- Bem - disse Iruvienne, enquanto se ria, - ao menos, podiam ter-se lavado um pouco no Enyel.

- Lavámos a cara e o cabelo - respondeu, prontamente Aran.

Iruvienne soltou um pequeno suspiro.

- Ganhaste. Dou-me por vencida - disse, resignadamente, e Aran inclinou a cabeça ligeiramente para a esquerda e esboçou o princípio de um dos seus sorrisos torcidos. - Mas agora, por favor, vai tomar um banho.

- Claro, pequenina - disse ele suavemente. - Vou só buscar a minha mochila, e depois subimos os dois até ao meu quarto para eu tomar um banho e te começar a contar tudo o que vi e aprendi nestes últimos meses.

Saíram os dois do salão, foram buscar a mochila de Aran que ficara encostada a um canto da entrada do palácio e subiram, silenciosamente, até ao quarto dele.

O quarto era uma divisão relativamente pequena que o próprio Aran decorara aquando da reconstrução de Omnirion. Encostada a uma parede estava uma cama de solteiro, com uma colcha branca bordada com finos ramos cinzentos de folhas verdes, que se entrelaçavam uns nos outros. Em frente aos pés da cama, e encostada à parede da janela, havia uma estante repleta de livros. E à direita, no canto formado pela parede da janela e a parede oposta à da cama, encontrava-se uma secretária sempre coberta por mapas e diversos papéis de apontamentos sobre plantas medicinais. No centro do quarto não havia nada para além do chão de vitrais. A janela era grande e, naquele dia, as ventanas estavam abertas, fazendo com que entrasse um vento fresco e agradável no quarto.

Aran pousou a mochila aos pés da cama e olhou à sua volta, com o ar de quem regressa a casa. Depois abriu uma porta do outro lado do quarto e entrou na casa de banho. Encheu a banheira com água quente e um pouco de água fria dos jarros pousados na prateleira ao fundo da banheira, despiu-se e entrou dentro de água. Iruvienne sentou-se no chão e apoiou os braços na borda da banheira.

- Conta-me tudo.

- Tudo? - perguntou Aran, enquanto se ensaboava. - Isso vai levar muito tempo.

- Não faz mal - respondeu Iruvienne. - Temos as noites, as madrugadas e todo o tempo em que as Terras da Luz não precisarem de mim.

Aran fez um ligeiro barulho com a garganta, como se estivesse a engolir um bocado de comida grande de mais, e assentiu, ligeiramente, com a cabeça.

- O que achaste de Legonon? - perguntou inesperadamente.

- Que queres dizer com isso? - perguntou, por sua vez, Iruvienne que tinha ficado completamente admirada com a pergunta. Mas, de repente, olhou Aran nos olhos e compreendeu. Inspirou profundamente e soltou o ar devagarinho, como se estivesse a pensar. - Ele é muito bonito. Mas tu sabes que isso tem pouco valor para mim.

- Eu sei, pequenina. Mas não viste mais nada?

- Não. É impossível ler seja o que for nele. A expressão dele é séria e digna, mas tão fria; tão desprovida de emoções!...

Aran sorriu.

- Eu achei o mesmo quando o conheci. Depois, à medida que nos tornávamos amigos, fui mudando de opinião. Contei-lhe algumas coisas sobre nós, sobre os nossos treinos e a nossa infância. E ele contou-me partes da sua vida. A mãe morreu pouco tempo depois de ele nascer, o que fez com que fosse criado, essencialmente, pelo pai e entre os seus guerreiros e conselheiros. Talvez por isso ele pareça tão inexpressivo. Mas, Iruvienne, Legonon é um guerreiro fantástico. Tão bom quanto nós. - Iruvienne sorriu. - Tenho a certeza de que vocês se vão dar muito bem.

- Talvez - respondeu Iruvienne. - Mas agora conta-me o que fizeste, o que viste - pediu, impacientemente.

Aran inclinou-se para a frente e tocou na ponta do nariz de Iruvienne com um dedo ensaboado.

- Calma, pequenina. Há muito para contar e, tal como tu queres ouvir tudo, também eu quero contar tudo. Por isso, dá-me tempo para organizar as ideias.

Iruvienne passou a ponta do nariz por água e ficou a olhar Aran com doçura. Estava tão feliz por ele estar de volta, tão alegre e eufórica que se sentia até demasiado infantil. Mas naquele dia não queria pensar. Daquela vez, tinha o direito de se comportar de forma tola e rir demasiado alto. Aran estava de volta e tudo parecia estar novamente nos seus devidos lugares. E, de repente, sentiu-se absurdamente segura, como se com Aran a seu lado nada pudesse correr mal.

- Lá, tudo é branco - começou Aran. - O chão está sempre coberto de neve e a temperatura fora de casa é muito baixa. Há grandes árvores, na sua maioria cedros e pinheiros de forma triangular e, quando neva, os seus ramos ficam cobertos por uma camada de neve branca e brilhante. Muitos dos animais também têm plumagens ou pelagens esbranquiçadas. Os bufos, por exemplo, têm uma plumagem branca salpicada de preto, pelo que lhes dão o nome de bufos-brancos. Este tipo de plumagem serve-lhes de camuflagem e, como é muito espessa, mantém-nos quentes. Também existem animais cuja pelagem não é branca, como os veados-vermelhos e as martas. É claro que fiz desenhos, para que tudo ficasse registado e pudesse ser posteriormente arquivado na biblioteca, mas tenho de os melhorar e passar a limpo.

As martas são animais com cerca de cinquenta centímetros, membros fortes, patas largas...

E Aran continuou a descrever vários dos animais que vira, a forma das folhas das diversas árvores, as suas margens (inteiras, serrilhadas, fendidas, palmatilobadas) e se a sua implantação era séssil ou imaginante. Falou ainda de algumas novas plantas curativas que descobrira e das suas propriedades. Iruvienne ouvia-o avidamente, ao mesmo tempo que imaginava tudo o que ele lhe descrevia.

- As Terras Brancas são muito diferentes das Terras da Luz - disse Aran, ao fim de algum tempo, enquanto saía do banho e se enrolava numa toalha branca que estava ali perto, - mas não são menos belas. São talvez um pouco mais monótonas e, aparentemente, com menos vida. Há menos flores e as cores das paisagens não são tão vistosas, mas, mesmo assim, é tudo tão belo e magnífico que é impossível não se ficar deslumbrado.

Iruvienne continuava sentada no chão de vitral, os pulsos estavam apoiados nos joelhos e as mãos pendiam em direcção ao chão. Aran olhou para ela e sorriu.

- Em que é que estás a pensar Iruvienne, Rainha das Terras da Luz e Dama de Caladmiron?

Iruvienne abafou uma gargalhada e inspirou e expirou calmamente e sempre com um sorriso nos lábios.

- Estava a pensar que talvez devesse visitar o Rei Adhar e conhecer as Terras Brancas.

- Viver uma aventura nossa - disse Aran com um ligeiro aceno de cabeça como quem compreende tudo o que foi dito e o que ficou por dizer.

- Sim - disse Iruvienne, e fez uma pequena pausa. - A nossa aventura. Para vermos tudo o que nunca foi visto e conhecermos tudo o que é desconhecido.

Durante algum tempo nenhum dos dois falou. Aran

começou a vestir-se e Iruvienne observou- o.

- Só que, às vezes, as aventuras trazem-nos surpresas com

que não contávamos e mostram-nos coisas que não queríamos ver - disse Aran. - Às vezes, os seus perigos estão para além de tropeçar numa ravina e escorregar por entre silvas e pedregulhos até ao sopé da montanha.

 

                          A FESTA

Tal como Iruvienne previra, o dia tornou-se agradavelmente quente e, mesmo quando começou a declinar para dar lugar à noite, a temperatura manteve-se aprazível. E, assim, o povo de Omnirion trabalhou alegremente durante toda a tarde para que, à noite, pudesse cantar, dançar e comer pratos leves e de sabores frescos.

Nas cozinhas, fizeram-se diversos pãezinhos, alguns de passas e outros de nozes, várias saladas com diferentes tipos de cogumelos, frutas e legumes, das quais umas eram temperadas com iguarias, ou até salpicadas com um pouco de vinho, e outras eram deixadas ao natural; e abriram-se muitas compotas e geleias que foram colocadas em tacinhas de loiça branca com pequeníssimas folhas verdes pintadas. Entretanto, foram-se preparando as sobremesas: diversas tartes dos mais variados frutos e com recheios de diferentes tipos, bolos de cenoura polvilhados com canela e açúcar, bolos de mel com nozes e avelãs moídas e enfeitados com uvas, bolos de massa feita com ovos, farinha, açúcar e grandes cubos de maçã, bolos de laranja regados com sumo de laranj a, peras bêbadas e diversas frutas cozidas com mel ou geleia. Num outro canto da cozinha, confeccionavam-se os pratos principais. fez-se um rato com cogumelos.

Para alem de carne na púcara e laranjinha, arroz, celga e carne de pato cozida e desfiada, bem como uma espécie de tarte, recheada com uma massa feita de ovos e leite onde se misturaram bocadinhos de presunto e cebola, e que foi, posteriormente, coberta com queijo derretido. Por fim, encheram-se várias jarras de vidro trabalhado com água, hidromel, diversos néctares e vinhos branco e tinto. Muito do vinho tinto foi enriquecido das mais diversas formas: fervido e, posteriormente, misturado com especiarias, simplesmente diluído em água, perfumado com ervas aromáticas, ou ainda aquecido e misturado com canela.

Os Elfos e as Fadas que não estavam a trabalhar nas cozinhas, encarregaram-se de preparar a clareira escolhida para a festa. Transportaram várias mesas enormes de madeira clara que, como a clareira era relativamente grande, colocaram ao fundo e dispuseram em forma de U", para que todos se pudessem ver e houvesse ainda um grande espaço livre para dançar. As mesas não foram cobertas com toalhas, mas foram enfeitadas com inúmeras folhas secas e flores naturais, bem como com castiçais de ferro trabalhado, cada um com três velas brancas onde fora esculpido o símbolo das Terras da Luz. De seguida, levaram as cadeiras, feitas a partir da mesma madeira clara das mesas. As suas costas eram altas e abertas em diversas arcadas de vários tamanhos que se entrelaçavam umas nas outras. Não havia nenhuma cadeira de costas mais altas ou com um desenho diferente para Iruvienne.

Enquanto alguns dos Elfos e Fadas dispunham as cadeiras à volta das mesas, de forma a que as cabeceiras e a parte interior do "U" ficassem livres, os outros organizaram as cadeiras dos músicos, do outro lado da clareira. Por fim, colocaram vários candelabros de pé alto, cada um com sete velas iguais às das mesas, à volta de toda a clareira, para que ficasse bem iluminada durante toda a noite.

Iruvienne e Aran decidiram aproveitar a tarde para conversar e começar a organizar os apontamentos dele. Por isso, foram até à sala onde se guardavam os vários tipos de plantas medicinais e preparavam as diversas infusões e unguentos.

A sala ficava nas traseiras do palácio e era verdadeiramente enorme. No exterior, um pequeno caminho relvado separava as traseiras do palácio da zona arborizada, para a qual se subia por três escadinhas de pedra branca. Cinco portadas de vidro davam acesso à floresta. Nenhuma delas tinha cortinas, para que o sol entrasse livremente, e, no entanto, devido a uma certa humidade e às imponentes árvores que dificultavam a passagem do sol, o ambiente era, geralmente, fresco e pouco luminoso. As paredes estavam recobertas de prateleiras com vários frasquinhos de múltiplos feitios, cada um com o seu rótulo, e inúmeras plantas secas ou a secar. Além disso, algumas heras tinham conseguido encontrar um caminho para o interior da sala e tinham-se espalhado pelas paredes. criando um intrincado e indistinto desenho de linhas e folhas em tons de verde. Encostada a uma das paredes laterais, havia uma estante de madeira escura e lisa, onde estavam arrumados diversos livros sobre plantas, a sua aplicação e uso. Na parede oposta, estava um enorme lar com uma vara, de onde pendiam cinco caldeirões, quatro pequenos e um grande. Ao lado do lar, guardavam-se vários toros de lenha empilhados e um cesto repleto de pinhas e gravetos. Na parede da porta, havia um balcão de trabalho, com algumas gavetas, nas quais se guardavam vários utensílios de jardinagem e facas de lâminas grossas, finas, longas e curtas, para cortar as plantas das mais diversas formas. Ao lado do balcão, estava um lavatório com um jarro de água, para lavar as mãos, e um cabide onde se penduravam os panos e as toalhas. Três grandes mesas, da mesma madeira da estante, cada uma com dois bancos corridos, um de cada lado, completavam a mobília do compartimento.

Naquele dia, as portadas estavam todas abertas, o que permitia que uma brisa suave remexesse as plantas secas, fazendo-as colidir e sussurrar. No exterior, ouvia-se o chilrear cristalino dos pássaros e sentia-se no ar o cheiro das folhas e da terra húmida. Todo o ambiente era sereno e bucólico.

A mesa central estava coberta com os cadernos e folhas dispersas onde Aran fizera os seus apontamentos e esboços. Iruvienne e Aran tinham começado por numerar os diversos cadernos, de modo a que tivessem uma ordem lógica, o que demorara algum tempo, uma vez que era necessário ler, pelo menos, algumas passagens. Por fim, Aran sentara-se num dos bancos da mesa central, a redesenhar um bufo-branco, de asas abertas, com lápis de carvão, enquanto Iruvienne permanecia de pé, a espreitar por cima do ombro dele, tentando imaginar o animal vivo e a sobrevoar uma floresta esbranquiçada.

As portas de madeira, trabalhadas com relevos de ramos, carregados de diversas folhas, abriram-se e Lelahad entrou na sala, seguido por Legonon, que também parecia já ter tomado um banho.

- Príncipe Legonon - disse Iruvienne -, por favor, junte-se a nós. - Legonon fez um pequeno gesto com a cabeça em sinal de agradecimento e assentimento. - Lelahad.

- Tenho muito a fazer - disse lelahad. - Por isso, se me desculparem, retiro-me.

- Claro - disse Iruvienne, com um pequeno sorriso. Lelahad saiu da sala, fechando as portas atrás de si, e Legonon aproximou-se de Iruvienne e Aran.

- O bico dos bufos não é bem assim - observou.

Aran olhou-o com uma expressão de admiração divertida e entregou-lhe o lápis de carvão. Legonon sentou-se e, após um momento de reflexão, começou a refazer o bico da ave. Aran ficou a observá-lo, de braços cruzados e com a mesma expressão. Por trás dos ombros deles, Iruvienne continuava a espreitar o desenho, um sorriso de compreensão matreira a iluminar-lhe o rosto.

- Está, sem dúvida, muito melhor agora - disse Legonon, levantando o seu trabalho e contemplando-o. - Não achas, Aran?

- Sim, sim - respondeu Aran, excessivamente depressa e com um tom de gozo.

- Aran - repreendeu, suavemente, Iruvienne -, o príncipe Legonon, certamente, conhece melhor do que tu os animais das Terras Brancas.

- Não duvido disso - respondeu Aran. - Só não vejo diferenças significativas entre o desenho de Legonon e o meu. Mas talvez sejam apenas os meus olhos humanos que não são suficientemente apurados.

Legonon baixou a cabeça e sorriu, jocoso.

- Tontinho - sussurrou Iruvienne ao ouvido de Aran.

- Está a tornar-se tarde e eu tenho de me arranjar. Com licença - disse, abandonando a sala.

Aran e Legonon desataram a rir, ambos extremamente divertidos.

À entrada do palácio, Iruvienne esperava, na companhia de Eleni, Linuase e Modeia, que Lelahad, Aran e Legonon chegassem, para irem todos juntos até à clareira onde decorreria a festa.

Tinha uma enorme vontade de se sentar no chão e estender as pernas, mas sabia que não era boa ideia. De certeza que amarrotaria o vestido e, além disso, era uma atitude completamente incorrecta por parte de uma rainha. Por isso, continuou de pé, com as mãos cruzadas sobre o ventre e as pernas a movimentarem-se, imperceptivelmente, por baixo das saias. O vestido, feito a partir de um tecido verde, leve, brilhante e, completamente, transparente, era de gola alta e tinha um decote em "V". As mangas eram compridas e justas, e a saia tinha uma pequena cauda de cerca de trinta centímetros. Por baixo do vestido verde, entrevia-se um vestido branco pérola, sem mangas e com um decote redondo e extremamente largo. O seu cabelo fora afastado da cara e preso, na parte de trás da cabeça, com pequenas anilhas de ouro amarelo, trabalhado com minúsculos desenhos. E, como toque final, Iruvienne colocara na cabeça o diadema que Athilya lhe dera.

Finalmente, Aran, Legonon e Lelahad chegaram. Lelahad trajava de bege e vermelho-escuro, Aran em tons de cinza, e Legonon num azul- claro-arroxeado, naturalmente brilhante, que realçava a cor espantosa dos seus olhos.

- Vamos - disse, suavemente, Iruvienne, e o pequeno grupo dirigiu- se para o local da festa.

Quando lá chegaram, já todos os habitantes de Omnirion os esperavam. Iruvienne sentou-se na cadeira central da mesa que formava a base do "U", com Aran do seu lado direito, Legonon do esquerdo e lelahad ao lado de Aran. E, com um ligeiro aceno de cabeça, deu ordem para que começasse a festa. Como a comida já tinha sido toda distribuída pelas mesas, tudo o que o povo de Omnirion teve de fazer foi servir-se do que queria, enquanto conversavam uns com os outros.

Legonon manteve-se silencioso durante a maior parte do banquete, mas, por vezes, motivado pelo relato que Aran continuava a fazer a Iruvienne, falava um pouco sobre Nirilnege e as Terras Brancas.

- O nome que damos ao nosso país é Horrizonege - explicava ele, enquanto se servia de pandlê -, o que, na vossa língua, significa horizonte branco. E, embora alguns de nós saibam falar a vossa língua, temos a nossa própria língua, o Ielvnege, ou seja, o Élfico Branco.

- Nós também temos uma outra língua, o Lissanin - disse Iruvienne -, mas muito poucos a sabem falar. Além disso, as palavras ditas em Lissanin têm um significado profundo, são uma espécie de magia ancestral, que deve ser usada com cuidado.

Legonon olhou-a com a sua expressão séria e impenetrável.

- São muitos os segredos do Povo da Luz que o meu povo esqueceu, mas também nós guardamos ainda alguns desses segredos ancestrais.

O banquete decorreu calmamente e depressa só ficaram em cima das mesas alguns restos de sobremesas e bebidas. Quando todos pareciam satisfeitos, os músicos pegaram nos seus instrumentos e começaram a tocar.

Aran levantou-se e, pegando na mão de Iruvienne, levou-a até ao centro do improvisado salão de baile. A música era calma e Aran começou por andar à volta de Iruvienne, roçando as mãos pelos ombros dela. Então, quando um dos músicos deu uma forte pancada no tambor e Aran já estava à sua frente, Iruvienne bateu no chão com o pé direito, deu um pequeno salto e começou uma dança saltitante a que, Aran se juntou. A música tornou-se cada vez mais rápida e, quando o pífaro iniciou uma passagem alegre e vertiginosa, Iruvienne avançou para Aran, sempre em passinhos saltitantes. Ele agarrou-a pela cintura, elevou-a do chão e rodopiou com ela. Iruvienne inclinou a cabeça para trás, sorriu e tentou acalmar um pouco a respiração. Mas, rapidamente, estava outra vez no chão a saltitar ao som daquela música frenética, ao mesmo tempo que contornava Aran com movimentos largos dos seus braços ou os agitava e ondulava à sua frente. Encostado a uma árvore, Legonon observava-os com um sorriso calmo e praticamente invisível a bailar-lhe nos lábios.

Por fim, a música parou. Aran e Iruvienne, ainda um pouco ofegantes, cumprimentaram-se com um ligeiro aceno de cabeça, e de imediato os músicos começaram a tocar uma jig muito antiga. A música fora escrita no tempo em que os Povos Sábios conviviam frequentemente com os Homens, mas ninguém sabia ao certo por quem. No entanto, a melodia era alegre e fazia lembrar paisagens frescas e montanhosas, cobertas de verde. O Povo da Luz conhecia-a muito bem e não tardou a que os Elfos, as Fadas e os Duendes invadissem todos os espaços livres da clareira e começassem a dançar. Os Elfos e as Fadas dançavam todos juntos, girando uns por entre os outros, mas os Duendes tinham formado um grande círculo e dançavam por cima das cabeças deles. Os Gnomos, pouco dados às subtilezas da dança, preferiram continuar sentados e acabar com as sobremesas, enquanto faziam cálculos mentais de tudo o que tinha sido gasto para tornar aquela festa possível.

Durante toda a noite houve música. Foram tocadas várias reels e jigs, mas também músicas élficas, de sons suaves e cristalinos, que eles dançaram com gestos largos e harmoniosos, como se fosse o próprio Ar que os fizesse mover. Eleni, a mais nova das damas de companhia de Iruvienne, convidou Legonon para dançar, afastando-o, finalmente, da árvore a que ele se encostara. Iruvienne viu-os no meio da multidão de dançarinos e sorriu-lhes. Eleni pareceu ficar envergonhada e corou, mas Legonon, baixando um pouco a cabeça, cumprimentou Iruvienne.

- Devias ter sido tu a convidá-lo - disse Aran, enquanto lhe agarrava a mão direita e girava à volta dela.

Iruvienne olhou-o, atrapalhada. Era verdade que devia ter convidado Legonon, logo depois de dançar com Aran, mas a música era inebriante e ela deixara-se contagiar pelos seus ritmos e melodias. Enfim, esquecera-se. E, além disso, havia algo nela que a fazia achar estranho convidá-lo para dançar. "Que idiotice! Sou Rainha das Terras da Luz, o mais natural é convidar o meu hóspede para dançar", pensou. Por isso, quando aquela música acabou, aproximou-se de Eleni e Legonon. A elfo fez uma

pequena vénia e afastou-se, ainda visivelmente corada.

- Já o devia ter convidado para dançar, mas só agora me apercebi da minha falta - disse Iruvienne.

- Não faz mal - respondeu Legonon. - A música é um apelo irresistível, principalmente para os mais novos.

Iruvienne olhou-o com um sorriso e uma expressão intrigada.

- Aran disse-me a sua idade e, embora ainda seja novo, posso considerar- me, pelo menos, um pouco mais velho. - E, como ela continuava com uma cara estranha, acrescentou, com um ligeiro sorriso: - Tenho cem anos.

Iruvienne estava um pouco aborrecida. Aran não devia ter dito a sua idade, principalmente a alguém que, até há bem pouco tempo, ela desconhecia totalmente. E, de repente, sorriu. Aquele era o tipo de ninharia com que a sua avó Ailura teria ficado extremamente irritada.

- Não devia ter feito este comentário - disse Legonon, arrancando Iruvienne aos seus pensamentos. - Até porque a música é, também para mim, um convite irrecusável.

- Fiquei apenas admirada - mentiu Iruvienne. - Dançamos?

Legonon estendeu-lhe a mão esquerda, mas Iruvienne afastou-a, abanando ligeiramente a cabeça.

- Não é assim - disse.

- Lamento, mas não conheço estas danças - respondeu Legonon.

- Não faz mal, eu ensino-lhe. Cruze as mãos atrás das costas e observe os meus pés. - Levantou ligeiramente as saias para que ele os visse, e começou a executar, muito lentamente, um passo simples. Legonon imitou-a. - Muito bem, aprendeu depressa.

- Obrigado. E os braços?

- É melhor ficarem para outra altura - respondeu. - Agora é só deixar-se levar pela música.

Iruvienne acelerou o passo e começou a mover os braços. Legonon não teve dificuldades em acompanhá-la e, passado pouco tempo, também ele agitava os braços ao som da música.

Aran estava deitado na relva da margem esquerda do Enyel, perto da ponte de pedra branca. Começava a amanhecer e, embora os habitantes de Omnirion há muito se tivessem começado a retirar para as suas casas, ainda lhe chegava o som de um pífaro. A melodia era calma e um pouco triste, como se o seu tocador se estivesse a despedir.

- Estou cansada - disse a voz de Iruvienne, atrás de si.

- Já se foram todos deitar?

- Já - respondeu Iruvienne, sentando-se ao lado dele e esticando as pernas. - Só faltamos nós - e ficaram os dois em silêncio.

A festa fora agradável, cansativa, mas agradável. Quando todos acordassem, os vestígios da festa teriam de ser limpos e arrumados e Iruvienne regressaria aos seus deveres de rainha. Mas, até lá, ainda tinha tempo para saber mais algumas coisas sobre a viagem de Aran:

- Fala-me das árvores de Horrizonege - pediu. Aran não respondeu. Tinha os olhos fechados, a boca estava, ligeiramente entreaberta, e respirava lentamente. Adormecera.

Na clareira, o tocador de pífaro terminara a sua música. Iruvienne encostou a cabeça ao peito de Aran, inspirou profundamente e também ela adormeceu.

 

                 DE VOLTA A BRUMÍVIUM

Presa entre os ramos de uma grande árvore, brilhava uma perfeita teia de aranha, coberta com pequeninas gotas de orvalho. Bem no centro, onde a rede de fios era mais densa, estava a aranha. As patas arqueadas, de riscas amarelas e pretas, afundavam o corpo amarelo, realçando-o e dando a todo o animal um ar estranho e inquietante.

Iruvienne temia-a, mas tinha também uma irracional vontade de lhe tocar. Esticou o braço. A aranha continuava muito quieta, como se também ela esperasse o contacto. Iruvienne aproximou o indicador e tocou-Lhe no corpo peludo. Imediatamente, a aranha saltou-lhe para a mão e ficou tudo escuro. Iruvienne estava encurralada.

O animal continuava a trepar pelo seu braço, empurrando-lhe a pele com as patas peludas e desagradáveis. Então, de repente, a aranha desapareceu e, muito ao longe, Iruvienne ouviu um riso gelado e extremamente familiar.

Iruvienne acordou de repente, mas manteve os olhos fechados. Todo o seu corpo tremia e era percorrido por um infindável número de pequenos formigueiros que lhe pareciam aranhas a caminhar sobre a sua pele. Estava assustada, mas sabia que tudo aquilo era absurdamente patético. Fora um sonho, uma Visão, com os seus significados ocultos e intrincados. Não se ia converter, subitamente, em realidade. Zangada consigo mesma, abriu os olhos, atirou os lençóis para trás e levantou-se.

Olhou à sua volta, sem saber muito bem o que fazer. Na parede da porta, em frente à cama, encontrava-se o toucador com o banquinho rectangular, forrado a tecido bege com bordados dourados, e o espelho abobadado fixo à parede. Ao lado do toucador, a grande lareira estava apagada e vazia. Em cima da mesa de trabalho, o seu livro de registos repousava com o tinteiro

e a elegante pena ao lado. A pequena estante de livros estava mergulhada nas sombras e, na parede ao seu lado, as três grandes arcadas, com portas de vidro, que davam acesso à varanda, estavam ainda cobertas pelos véus vermelho-escuros. Do outro lado do quarto, uma das portas do armário ficara entreaberta e o grande espelho de corpo inteiro, com o caixilho de madeira trabalhado, devolvia-lhe o seu reflexo mal iluminado. Todo o quarto estava mergulhado no mais profundo silêncio e ela achava que era ainda demasiado cedo para alterar isso, mas a verdade é que continuava nervosa. Tinha de se acalmar.

Avançou até à arcada central, afastou os véus, abriu as portas de vidro e saiu para o exterior.

O dia começava a amanhecer. O céu, de um azul ainda forte e carregado, era rasgado por algumas riscas brancas os pássaros chilreavam suavemente e corria uma leve brisa. Omnirion continuava, profundamente, adormecida.

Iruvienne sentou-se no banco de pedra branca e respirou pausadamente. Sentia-se muito melhor ali. A brisa ajudava-a a acalmar-se e a clarificar as ideias. Há muito tempo que não sonhava com aranhas ou com o homem dos cabelos como serpentes, mas a mensagem do sonho continuava a ser a mesma. No entanto, muito mais importante do que perceber o significado do sonho era saber porque voltara a tê-lo. Ninguém sabia ao certo se Morgriff morrera no confronto com Galaduinne e Valindra, mas também ninguém tinha provas do contrário. Os sonhos traziam-lhe, por vezes, imagens de uma grande batalha onde ela própria combatia. Mas isso podia não significar nada. A Visão também gostava de brincar e, nas suas brincadeiras, misturava o passado com o presente, o presente com o futuro, mostrando-lhe algo que não fazia qualquer sentido. Quanto ao homem dos cabelos como serpentes, não passava de uma figura sinistra que assombrava os seus sonhos e, no entanto, tinha a certeza de que ele era real, que matara o seu pai e que continuava vivo. Talvez ele tivesse decidido continuar a demanda de Morgriff, e, por isso, os sonhos tinham-na avisado. Mas tudo aquilo era pura especulação.

Fechou os olhos. Continuava completamente desorientada. Precisava de falar com alguém que fosse mais experiente do que ela.

Levantou-se e entrou no quarto. Calçou as pantufas, que tinham ficado esquecidas ao lado da espaçosa cama de casal, pegou no roupão e saiu para ir ter com Aran.

Percorreu os corredores desertos, ainda perdida nos seus pensamentos. Fora uma noite confusa que a deixara com uma desagradável dor de cabeça e a estranha sensação de que algo se preparava para desabar. Parou, abriu a porta do quarto de Aran e fechou-a, cuidadosamente, atrás de si.

Ele ainda dormia. O quarto estava exactamente como o tinham deixado nessa noite. Os papéis com desenhos de plantas e paisagens das Terras Brancas permaneciam alinhados no chão, seguros por pequenas pedras, e a grande espada dele estava encostada aos pés da cama.

- Aran. - chamou Iruvienne, aproximando-se da cama.

Ele estremeceu, ligeiramente, e entreabriu os olhos.

- Pequenina! O que se passa?

- Voltei a sonhar com o homem dos cabelos como serpentes.

- Viste outra vez a morte do teu pai? - perguntou Aran sentando-se na cama.

- Não. Só a parte da aranha - respondeu Iruvienne, sentando-se ao lado dele. - Acho que há uma razão qualquer para ter voltado a ter o sonho. - Aran olhou-a com uma expressão extremamente séria e grave -, mas posso estar enganada.

- É pouco provável - disse Aran, num tom circunspecto.

- Parece que a tua mãe tinha razão. Aquilo não foi o fim.

Iruvienne inspirou profundamente.

- Tenho de falar com ela.

Aran virou a cabeça, de repente, e olhou-a com uma expressão um pouco mais serena.

- Vamos visitar a tua mãe a Névila? - perguntou, e havia uma ligeira ansiedade na sua voz.

Iruvienne olhou-o e sorriu docemente, mas muito divertida.

- Sim - respondeu -, vamos ver Athilya. - Aran retribuiu-lhe o sorriso. - Pensei que podíamos levar Legonon connosco. Passávamos por Rizan e, assim, ele ficava a conhecer Caladmiron um pouco melhor e tinha a oportunidade de visitar Brumívium.

- Acho que é uma boa ideia - concordou Aran. Legonon já estava em Omnirion há dez dias e a verdade era que ele e Iruvienne se estavam a dar muito bem. Nos tempos livres de Iruvienne, ele costumava ajudá-los a organizar os apontamentos de Aran e, por vezes, passeavam os três pela floresta. Além disso, Legonon e Aran tinham decidido aperFeiçoar as suas técnicas de combate, lutando um com o outro, à semelhança do que Iruvienne e Aran faziam nos seus treinos.

- Tenho de me ir arranj ar - disse Iruvienne, levantando-se.

- Preciso de falar com Lelahad sobre a nossa ida a Névila e tenho de convidar Legonon para a viagem.

- Se quiseres, eu posso falar com Legonon.

- Não, é melhor ser eu. É mais correcto - disse Iruvienne e saiu do quarto.

Legonon aceitou, gentilmente e com um entusiasmo moderado, a proposta de Iruvienne. Tudo nele parecia ser calmo e discreto, sem os exageros e vivacidade desenfreada que, por vezes a assolavam.

Depois de falar com Legonon, Iruvienne procurou lelahad. Como era habitual, ele estava na biblioteca.

- Receio não poder ajudar-te nessa questão – disse ele, quando Iruvienne acabou de lhe contar o seu sonho e o problema que ele lhe colocara -, mas penso que Galaduinne é, efectivamente, a pessoa indicada para o fazer. De qualquer forma, terei todo o gosto em substituir-te enquanto estiveres fora. Como, aliás, sempre faço.

- Obrigada, lelahad - disse Iruvienne, dando-lhe um beijo na face e saindo da biblioteca para escrever à mãe.

Pediu a Modeia para chamar Kirin e sentou-se em frente à mesa de trabalho. Pegou numa folha limpa, molhou a pena no tinteiro e começou a escrever.

Em Caladmiron os dias correm calmamente e o Povo da Luz é feliz. Legonon revelou-se mais gentil do que eu imaginava, embora a sua expressão continue a ser, geralmente, impenetrável. Ele tem-me contado muitas coisas acerca do seu país e os apontamentos de Aran começam a ficar organizados. No entanto, eu estou preocupada. A Visão trouxe-me um sonho que já não tinha há alguns anos, mas que continua a perturbar-me de forma inacreditável. Além disso, julgo que há uma razão qualquer para o voltar a ter. Preciso de falar contigo acerca disso, por isso vou visitar-te. Aran e Legonon vão comigo; assim poderás falar com Legonon e ele conhecerá um pouco mais do nosso país. Devemos chegar dentro de, mais ou menos, cinco dias.

Beijos para todas as sacerdotisas, mas especialmente para ti, Athilya e Namali.

Releu a carta. Parecia-lhe bem. Não era muito explícita para que, na eventualidade remota de Morgriff (ou o homem dos cabelos como serpentes) a interceptar, não se percebesse muito bem a que é que ela se referia e, no entanto, era suficientemente clara para Galaduinne a perceber. Dobrou a carta e lacrou-a, usando um sinete com a divisa das Terras da Luz.

Bateram, levemente, à porta do quarto. Iruvienne levantou-se e entreabriu a porta, deixando Kirin passar. O duende pousou em cima da mesa e olhou para a carta.

- Devo entregá-la à sua mãe?

- Sim - respondeu Iruvienne. - Agradecia que a entregasses o mais rápido possível.

- Com certeza, Rainha.

Kirin pegou na carta e preparou-se para sair.

- Mais uma coisa, Kirin - disse Iruvienne. - Assim que entregares a carta estás livre durante duas semanas.

- Tem a certeza, Rainha? - perguntou o duende com um tom, simultaneamente, servil e ansioso.

- Tenho, Kirin - respondeu Iruvienne. - A carta não vai ter resposta e eu tenho de me ausentar durante alguns dias. Por isso, tal como disse, assim que entregares a carta podes fazer o que quiseres.

- Obrigado, Rainha - disse o duende, saindo por uma das portas abertas que davam para a varanda.

Aran foi à cozinha e pediu uma série de pãezinhos, bolos de mel, biscoitos, peixe fumado, carne salgada e uma enorme variedade de frutas. Além disso, encheu quatro grandes cantis com água que guardou, juntamente com as outras provisões, nos alforges dos cavalos. Iruvienne atou, à parte de trás do selim de cada um dos cavalos, uma manta de viagem e conseguiu encontrar entre as coisas do pai, uma antiga capa de viagem verde-escura, que Legonon poderia usar.

Aran e Legonon usavam as mesmas roupas com que tinham chegado a Omnirion e que, felizmente, já tinham sido lavadas. O elfo tinha ainda vestido a capa que Iruvienne lhe emprestara. Ela escolhera uma túnica verde-clara, bordada a fio branco-pérola, umas calças justas da mesma cor da túnica e umas botas de cano alto pretas, um tanto ou quanto velhas. Por cima, usava uma capa de viagem verde-seco-clara.

Montaram os três nos cavalos. Iruvienne levava o seu cavalo de pêlo liso castanho-claro, ligeiramente dourado: Dourial. Aran montava Rergo, o seu cavalo castanho-escuro, e Legonon Alioth, o cavalo branco de Lelahad.

- Espero-vos dentro de mais ou menos duas semanas - disse lelahad. - Boa viagem.

- Obrigada, Lelahad. Até breve - disse Iruvienne e incitou o seu cavalo a avançar.

Aran sorriu a Lelahad e seguiu atrás dela. Legonon inclinou, respeitosamente, a cabeça e juntou- se-lhes.

O dia estava, especialmente, aprazível. A temperatura já não ostentava o rigor do Inverno, mas também ainda não era suficientemente quente para se tornar incómoda. O Sol brilhava por entre os ramos das altas árvores milenares, cujas copas ensombravam o caminho de pedrinhas claras que ligava Omnirion e Rizan. O vento corria, suavemente, fazendo a Natureza sussurrar.

E os pássaros ensaiavam os seus cantos nupciais. Era um dia de viagem de Omnirion até Rizan e, como a manhã já ia alta quando tinham deixado Omnirion, só deviam chegar ao seu destino já de noite. Mas não tinha importância. Iruvienne conhecia muito bem a região e, além disso, um seu primo afastado vivia lá. De certeza que, mesmo chegando inesperadamente e de noite, seriam muito bem recebidos.

Os três companheiros seguiam lado a lado pela estrada. A espada de Aran pendia-lhe da cintura e abanava com os movimentos do cavalo. Iruvienne sabia por que ele a trouxera, mas esperava que os receios do amigo fossem infundados. "Infelizmente, fui eu quem Lhos criou", pensou, tristemente. Legonon também levava a sua adaga, de lâmina comprida, presa à cinta, mas a adaga de Iruvienne ia, como sempre, presa à perna direita e oculta pela bota.

Aran apercebeu-se de que Iruvienne estava a ficar, novamente, pensativa e melancólica. Não gostava de a ver assim.

- Iruvienne - chamou -, fala-nos de Rizan.

Legonon olhou-a com uma expressão levemente expectante e Iruvienne sorriu. Não havia grande coisa para dizer. A parte mais bela e intrigante de Rizan era as suas árvores. Os troncos delas eram grossíssimos e extremamente altos. Tão altos que pareciam perder-se no céu, muito antes de ser possível ver a copa. As folhas eram de um verde muito escuro e, devido à altura das árvores, as copas entrelaçavam-se umas nas outras, quase ocultando o céu. Por isso, Rizan era um lugar escuro e húmido. Uma espécie de Brumívium em miniatura, com pouca chuva e muito mais quente. Mas o que fazia de Rizan uma terra única eram as raízes das árvores. Tão fortes e grossas como os troncos, elas pareciam eclodir da terra, retorcendo-se e estendendo-se pelo solo como se fossem enormes dedos enrugados e tensos, prontos para agarrar quem deles se aproximasse. De facto, havia muito para ver, muito onde o olhar podia descansar e deliciar-se, mas muito pouco para contar.

- É melhor o príncipe Legonon ver com os seus próprios olhos - disse, por fim. - Rizan é um lugar para ser visto. As palavras ditas vão ficar sempre muito aquém da realidade. - Parou Dourial, com algumas palavras sussurradas, e desmontou. - Talvez fosse melhor comermos qualquer coisa.

Saíram da estrada, deixaram os cavalos entretidos com algumas jovens e tenras folhas e instalaram-se a comer à sombra de uma grande árvore anciã.

Rapidamente, Aran e Legonon embrenharam-se numa conversa sobre as semelhanças dos pinheiros das Terras da Luz e das Terras Brancas. Iruvienne ficou a ouvi-los, enquanto mordiscava uma maçã. Gostava de estar assim, ao ar livre, com o vento a roçar-lhe na cara e os pensamentos a flutuarem indefinidamente na cabeça. Era bom, de vez em quando, estar apenas a ouvir uma conversa simples e alegre, sem ter de se preocupar com os significados ocultos e misteriosos que os sonhos encerravam. Olhou para cima. Os ramos da velha árvore pareciam formar um qualquer desenho estranho e, no entanto, remotamente familiar. Uma espécie de "X" com um chapéu. Iruvienne tinha a certeza de que conhecia aquilo, mas também estava certa que não o estudara. E, contudo. Ele chamava-a; uma voz ancestral, vinda das profundezas da terra e do começo dos tempos. O seu significado estava preso algures dentro dela. Tentou soltá-lo. Onde é que já o vira? Nalgum sonho? Talvez, mas não era daí que o conhecia. Nalgum livro? Uma língua ancestral, ainda mais antiga que o Lissanin? Uma língua esquecida? Teria sido o pai que Lhe falara naquele desenho? Sentiu um brilhozinho de conhecimento a oscilar. Onde? Num recanto perdido da sua memória? Não sabia. Tentou agarrá-lo, mas era demasiado tarde. Desaparecera. Era estranho, mas parecia-Lhe que ele se evaporara quando ela tomara consciência dele. Olhou com mais atenção para o desenho formado pelos galhos. Concentrou-se, tentando recuperar o vislumbre que tivera.

- Iruvienne.

Agora não.

- Iruvienne.

Ela desviou o olhar do desenho, como se tivesse acabado de acordar. Aran olhava-a com uma cara ligeiramente preocupada, mas não perguntou fosse o que fosse.

- É melhor irmos, ou vamos atrasar-nos muito - disse ele.

- Sim, claro - concordou Iruvienne, ainda meio presa naquela atmosfera de sonho e incógnita que acabara de a envolver.

Montaram nos cavalos e começaram a dirigir-se de novo para a estrada. Iruvienne ainda olhou uma última vez para o desenho da árvore, mas a oportunidade passara. Legonon também olhava para a forma dos galhos e pareceu a Iruvienne que lhe bailava no rosto um sorrisinho de compreensão.

A viagem decorreu calmamente, sem qualquer tipo de contratempos, e Iruvienne resolveu esquecer o que tinha acontecido. Não sabia a resposta e tinha já muito com que se preocupar.

A meio da tarde, pararam, novamente, para comerem alguns biscoitos e beberem um pouco de água, e continuaram a viagem.

Cavalgaram ainda durante muito tempo, até que, por fim, quando a noite já caíra e as estrelas começavam a brilhar no céu, avistaram as primeiras árvores de Rizan. Iruvienne não conseguiu evitar olhar para Legonon. Mas, embora ele olhasse à sua volta, a sua expressão mantinha-se inalterada e ele apenas lhe dirigiu um pequeno sorriso. Aran conhecia a região, apesar de não a conhecer tão bem quanto Iruvienne que lá ia quase desde que nascera, mas, mesmo assim, olhava para as árvores com admiração e encanto. Havia qualquer coisa ali que ecoava na sua memória. Uma voz assustadora de velha que ressoava pelas paredes de uma sala da qual ele não se lembrava. Por vezes, quase entrevia as cavidades de uma boca desdentada a contar histórias aterradoras e sentia o medo dessas noites escuras e difusas. Era, certamente, uma recordação dos tempos em que ainda vivia no Mundo dos humanos, porque, às vezes, vislumbrava-se, escondido nas sombras e agarrado aos joelhos, tentando ao mesmo tempo ouvir e não ouvir o que a velha dizia. Mas, na altura, era muito pequeno. Provavelmente, ouvia as histórias às escondidas, como todas as crianças que se levantam de noite para espiar o mundo inacessível de todos aqueles que têm autorização para ficarem mais algum tempo acordados.

Iruvienne saiu da estrada e guiou- os, durante algum tempo por entre as tortuosas raízes das árvores. Conseguiam ouvir, já muito perto deles, o suave e fresco gorgolejar do Luive. Dourial parou, hesitante, na margem do rio, mas Iruvienne incitou-o a prosseguir e atravessou o rio até à outra margem. Legonon e Aran imitaram-na. Ela cavalgou ainda um pouco mais para a direita e, finalmente, parou.

À frente deles, estava uma casa de madeira que fora construída à volta do largo tronco de uma das árvores. A casa era térrea e tinha várias janelinhas emolduradas por trepadeiras floridas. Uma escada de corda caía, algures de entre a folhagem, para o telhado. Olhando para cima, Aran entreviu por entre as folhas, uma plataforma de madeira construída, tal como a casa, à volta de toda a árvore e sobre os seus ramos. A escada estava, sem dúvida, presa à plataforma.

Desmontaram e Iruvienne bateu à porta da frente. Um elfo, de cabelos castanho-arruivados e vestido, simplesmente, com umas calças e uma camisa de colarinho alto, abriu-Lhes a porta.

- Iruvienne! - perguntou, após um momento de hesitação. Ela sorriu, docemente. - Que surpresa. E que honra.

Por favor, entrem.

- Obrigada, Landlar - disse Iruvienne.

Landlar afastou-se para lhes dar passagem e, quando já estavam todos dentro de casa, fechou a porta.

- Este é o príncipe Legonon, filho do rei das Terras Brancas, Adhar - apresentou Iruvienne. - Penso que já conheces Aran.

- Sim, já o tinha visto. Mas, na altura, ele não passava de um rapazito.

Landlar levou-os, através dos vários compartimentos, até à cozinha. Todo o interior da casa tinha o aspecto de uma gigantesca biblioteca ou sala de estudo, completamente, desarrumada. Havia livros velhos e de encadernações grossas, papéis dispersos, mapas plantas e alguns instrumentos esquisitos espalhados por toda a parte. A casa parecia não ter qualquer tipo de decoração, para além daquelas amostras de conhecimento, já muito usadas. A verdade é que se parecia com tudo, menos com a casa de um elfo.

- Continuas a viver sozinho! - observou Iruvienne, quando chegaram à cozinha.

- Sim. E não é costume receber visitas, muito menos da nossa Rainha.

- Da tua prima - corrigiu Iruvienne.

- Sim, da minha pequena prima - concordou Landlar, com um sorriso suave, indicando-lhes a grande mesa de madeira rectangular. - Sentem-se. Fiz uma tarte hoje de manhã e ainda há um pouco de peixe cozido com legumes.

Legonon olhava-o com uma expressão levemente surpreendida.

- A culinária é uma das muitas formas de sabedoria príncipe Legonon - disse Landlar, com um sorriso calmo e compreensivo. - De facto, é uma das mais antigas. E é também um exercício de criatividade e sensibilidade a que muito poucos têm acesso. Cozer umas batatas ou enfiar uma carne no forno, todos conseguem. Mas cozinhar. - sorriu novamente - só alguns são

capazes.

Serviu-lhes um pouco do peixe e presenteou-os com uma enorme e intocada tarte de massa dourada. Iruvienne comeu, com gosto. Landlar sempre se dedicara aos subtis e hábeis prazeres culinários. Preferia os pratos mais simples aos requintados e exuberantes, mas gostava de lhes dar um toque seu. Um ingrediente especial, ou um pequeno segredo na sua preparação eram suficientes para transformar a mais desenxabida das receitas num prato digno do mais luxuoso dos salões.

Quando todos pareciam satisfeitos, Landlar conduziu-os até à zona dos quartos. Legonon ficou no quarto contíguo ao de Landlar, Aran num pequeno quarto que apanhava uma parte do tronco da árvore, e Iruvienne no quarto onde os seus pais costumavam ficar, quando visitavam o primo.

- Sinto muito a falta do teu pai - disse Landlar, enquanto acendia uma vela no quarto de Iruvienne. - Ele foi o meu mestre, durante muitos anos, até que Ailura e Edínmtor lhe pediram que desse lições à tua mãe.

- Eu sei - respondeu Iruvienne, e havia na sua voz uma gotinha de tristeza.

- Iruvienne, estou velho. - Disse ele, surpreendentemente.

Ela olhou para o rosto jovem de Landlar, iluminado pela luz amarelada e bruxuleante da vela. Estavam os dois sozinhos e ela parecia ficar mais cansada a cada momento que passava. Sempre recordara o primo como uma pessoa alegre e jovial. Um elfo sábio e estranho, mais parecido com a imagem humana do sábio velho e ligeiramente tolo, encerrado na sua torre. Fechou os olhos. Porque continuavam a confundi-la? Porque insistiam em confrontá-la com situações que não conseguia compreender?

Landlar sorriu.

- Tens de ter calma, Iruvienne. As respostas estão todas dentro de ti. Sempre estiveram. - Iruvienne abriu os olhos. Não sabia porquê, mas começava a sentir-se, novamente, confiante.

- Se te estou a dizer que estou velho, é porque penso que já não viverei muito mais. É o ciclo que a Natureza nos impõe.

Nascemos, crescemos e, por fim, morremos. Simples e lógico, como tudo na Natureza.

No entanto, há uma razão para ter dito isto. Não é fácil falarmos da morte daqueles de quem gostávamos e que nos eram tão próximos, e eu também não gosto de falar da morte de Ogueimion. Mas, Iruvienne, fi-lo porque tenho de te fazer compreender algo. Algo que o teu pai gostaria que soubesses.

- O quê? - perguntou Iruvienne, e a sua voz não era mais do que um sussurro.

- Eu sei que é difícil, mas tenta não pensar na morte dele com ódio. Lembra-te que Ogueimion está sempre contigo, que continua a velar por ti e a ver-te crescer. Não odeies nada. O ódio faz-nos mal, impede-nos de ver as coisas com clareza e não nos deixa ser felizes.

Iruvienne sentiu os olhos a ficarem pesados e húmidos.

- Eu vi-o morrer - disse, numa voz trémula e estrangulada.

- Vi-o tantas vezes. tantas. Mas não disse nada. Era muito pequena, quis acreditar que estava errada, que estava a ter um pesadelo e não uma Visão.

- Aconteceu, Iruvienne. Não te podes culpar por isso. Galaduinne também o tinha visto e Ogueimion sabia-o. É estranho e estúpido dizer que tinha de acontecer. E, no entanto, se não ouvires as palavras, se te limitares a sentir, sabes que, pelo menos, uma parte é verdade. Só não deixes que a morte e o ódio guiem a tua vida. Já foi há mais de vinte anos. Não digo que não

chores, que não fiques triste, mas continua a viver. Iruvienne fechou os olhos e respirou calma e profundamente durante muito tempo. Quando, por fim, abriu os olhos, estava a sorrir.

- Desde que o meu pai morreu que aprendi a viver mais, cada vez mais. Gosto da vida, e sei que ele preferia que eu corresse e risse, do que passasse o tempo a chorar a sua morte. Mas, mesmo assim, às vezes, ainda fico triste e choro um bocadinho - o seu sorriso alargou-se -, o que é natural. Quanto ao ódio que poderia ter a Morgriff, não te preocupes. Não lhe perdoei nada do que ele fez ao meu povo ou ao meu pai, mas também não vou perder o meu tempo a odiá-lo. Além disso, não gosto desse sentimento.

Landlar olhou-a com admiração e um pequeno sorriso.

- Subestimei-te, pequena prima. Boa noite.

- Boa noite - respondeu Iruvienne, e Landlar saiu do quarto.

Iruvienne deitou-se e apagou a vela. Fora um longo dia. O seu corpo estava cansado e a sua mente também. Parecia que tudo e todos a queriam avisar de algo, que todos viam nela uma espécie de predestinação invisível. E isso. Bem, era estranho, complicado, mas sentia-se, simultaneamente, confiante e insegura. Sorriu para o escuro. Estava demasiado cansada. Fechou os olhos e adormeceu.

O corredor era escuro, silencioso e infinitamente longo. Iruvienne percorria-o, lentamente, olhando para as paredes, à procura de uma saída, de um quadro ou de qualquer outra coisa que lhe desse uma pista sobre que lugar era aquele. Mas tudo o que via eram estranhos archotes de luzes avermelhadas. E o corredor continuava sempre, sempre, sem nunca mudar e sem chegar a parte alguma.

Então, de repente, pareceu-lhe ver, ao longe, um vulto recortado nas sombras. Começou a correr, na tentativa de o alcançar, mas quanto mais corria, mais longe o vulto parecia ficar. Por fim, parou, exausta e ofegante. O corredor estava novamente, deserto. Não havia nada ali. E, subitamente, alguém a agarrou pela cintura e a atirou para um qualquer buraco, ainda mais escuro e sombrio que o corredor.

Enquanto caía, Iruvienne viu-o. Tinha os braços erguidos, a pele do seu rosto era, desagradavelmente, pálida e os seus cabelos estavam entrançados em longas e largas tranças, que se assemelhavam a serpentes.

Iruvienne acordou, abruptamente, e sentou-se na cama.

Decididamente, aquele dia insistia em confrontá-la com os mais variados enigmas e recordar-lhe situações das quais não gostava, minimamente, de se lembrar. Muito bem. Ia ignorar tudo aquilo. Voltou a deitar-se, virou-se de lado e fechou os olhos.

Desde pequena que a Visão teimava em incomodá-la, e ela sempre achara aquilo muito desagradável. Era verdade que, com o tempo, os seus sonhos se tinham tornado mais claros e calmos, mas mesmo assim. Sabia que a Visão era um dom, mas era também um fardo tão pesado!. Iruvienne suspirou, longamente. Não conseguia, simplesmente, ignorar aquilo. Era uma elfo; aprendera a confiar nos seus sonhos e instintos. Não podia fingir que eles não existiam ou não tinham qualquer significado só porque eles a incomodavam.

Levantou-se, enfiou as botas, pôs a capa de viagem e saiu do quarto.

Pensara ir até ao quarto de Aran, para conversarem um pouco, mas havia uma aragem fresca no corredor, vinda algures do tecto, que a aliciava. Era como se a noite a chamasse e, de repente, preferiu o conforto da Natureza ao do amigo.

Caminhou ao longo do corredor, procurando a origem daquela brisa nocturna. A casa estava silenciosa e adormecida, mas continuava a parecer cheia de vida. Por fim, Iruvienne deparou-se com uma larga escada de madeira que ocupava quase todo o corredor. A escada terminava num alçapão que se encontrava entreaberto. Subiu os degraus, abriu completamente o alçapão e saiu para o exterior. Estava no telhado e, mesmo à sua frente, encontrava-se a escada de corda. Iruvienne subiu-a, até que chegou à plataforma.

A plataforma era larga e lisa, sem qualquer espécie de cerca a protegê- la, e tinha como único adorno um estranho instrumento de madeira. O instrumento, encavalitado num tripé do mesmo tipo de madeira, estava estrategicamente colocado, de forma a apontar para o céu por entre a folhagem das árvores, e parecia ser uma espécie de sistema de lentes. Iruvienne curvou-se um pouco e espreitou através da primeira lente. O que viu deixou-a espantada. Conseguia ver as estrelas ampliadas, e até alguns outros corpos celestes, não visíveis à vista desarmada. Já tinha ouvido falar daqueles instrumentos e sabia que eles eram muito usados no Mundo dos Homens, mas jamais esperara encontrar um nas Terras da Luz, e muito menos em Rizan.

- Verdadeiramente impressionante, não é? - perguntou uma voz profunda, vinda do seu lado direito.

Iruvienne virou-se. Legonon estava sentado, de pernas cruzzadas, num canto da plataforma, voltado para o interior da floresta. Ainda não despira as roupas de viagem e tinha apoiado nas pernas um bloco rectangular onde parecia estar a desenhar.

- Sim. É fantástico - concordou Iruvienne, enquanto se sentava ao lado dele.

Legonon continuou a desenhar, olhando, alternadamente para a floresta e para o desenho.

- Posso ver? - perguntou Iruvienne, ao fim de algum tempo.

- Podes, claro.

Iruvienne ficou a olhá-lo, admirada, durante alguns segundos, mas depois sorriu e aceitou o caderno que ele lhe estendia.

- Peço desculpa.

- Não faz mal - cortou Iruvienne. - Sou muito mais nova do que tu e sempre achei que os títulos não valem nada sem as acções. Afinal, não somos mais do que simples pessoas que tiveram a sorte, ou o azar, de nascer na família real. E a verdade é que quando me tornei rainha, não tinha a mínima vontade de o ser. Tudo o que queria era continuar a correr pelas florestas, em treinos com Aran. Tinha tanto, tanto medo de perder a minha liberdade! - Iruvienne sorriu e olhou-o, directamente, nos olhos.

- Aprendi muito nestes últimos anos. Aprendi que há sempre uma solução e que gosto de ser rainha. Não pelo poder que isso me traz, que só me trouxe responsabilidades e preocupações que nunca desejei, mas pela possibilidade de poder ajudar o meu povo que sempre me protegeu e acarinhou.

De facto, não sou muito mais do que uma criança travessa e, por vezes, espanta-me a confiança que o meu povo tem em mim. Ainda tenho tanto para aprender!

- Penso que devias confiar mais em ti mesma.

Iruvienne olhou-o durante muito tempo. Não estava aborrecida com o comentário dele, nem o achara atrevido. Preferia até aquele ambiente mais informal às convenções a que, normalmente, os seus títulos obrigavam. O que se passava era. uma coisa estranha que ela não conseguia identificar e, muito menos nomear.

- Não é que eu não confie em mim - disse, finalmente.

- Só que dantes era tudo muito mais simples. Antes era só eu e Aran. Agora sou eu, Aran e todo o Povo da Luz, todo um país. As consequências dos meus actos já não recaem só sobre mim.

- Todos nós somos obrigados a crescer. Todos temos de mudar e, às vezes, isso acontece quando menos esperávamos e na altura em que menos nos convinha. Mas é mesmo assim. Não há nada a fazer. Nem mesmo os Elfos podem mudar isso.

Iruvienne sorriu, novamente, e o seu sorriso era muito doce. Legonon parecia ela a falar, quando não estava preocupada com o seu povo. E, além disso, ele tinha, finalmente, abandonado um pouco a sua atitude impenetrável.

Olhou para o bloco que tinha nas mãos. O desenho mostrava um esboço a carvão da paisagem que se via dali. Estava muito bem desenhado.

- Um dos poucos talentos que herdei da minha mãe - disse Legonon. - Muitos são feitos de memória. Fixo a imagem e vou-me lembrando dela à medida que desenho. Mas gosto muito mais de desenhar quando estou a ver o modelo. É mais fácil, capto mais pormenores e o contacto com a Natureza é, infinitamente, mais agradável.

E, pela primeira vez, Legonon sorriu. Não era um sorriso comedido e educado, mas sim um verdadeiro sorriso que Lhe iluminou o rosto todo e o tornou, incrivelmente, doce. Iruvienne e Legonon ficaram ainda mais algum tempo sentados na plataforma, a conversar sobre alguns dos desenhos que Legonon fizera daquela curta viagem, até que Iruvienne se levantou.

- Estou muito cansada - disse, reprimindo um bocejo.

- Tenho de me ir deitar.

- Claro. Boa noite, Iruvienne.

- Boa noite, Legonon - respondeu regressando ao quarto. O resto dessa noite foi tranquilo e os sonhos de Iruvienne foram calmos e repousantes, sem qualquer significado oculto.

Na manhã seguinte, todos se levantaram tarde. E, tal como Landlar observou, a hora era mais propícia a um almoço, do que a um pequeno-almoço. Por isso, todos tiveram direito a um pequeno-almoço reforçado. Quando acabaram, arranjaram os cavalos e prepararam-se para partir.

- Adeus, Landlar. E obrigada por tudo - disse Iruvienne, já montada no seu cavalo.

- Adeus, Iruvienne - disse Landlar. - Boa viagem, e lembra-te de que, muitas vezes, a resposta a um problema é mais simples do que parece.

Aran e Legonon despediram-se do elfo, e os três partiram em direcção à Floresta das Brumas. Demoraram ainda três dias a chegar e a viagem foi longa e cansativa. Na primeira noite dormiram dentro das fronteiras de Caladmiron, mas na noite seguinte já dormiram em Brumívium. E, quando o terceiro dia começava a declinar, chegaram a Névila. Como era habitual" chovia torrencialmente.

Iruvienne desmontou e Legonon e Aran imitaram-na. Namali descia, apressadamente, as escadas da entrada, seguida por três sacerdotisas que se encarregaram dos cavalos.

- Entrem - disse Namali. - Vocês estão a precisar de um banho quente e de roupas secas. Sinceramente, Iruvienne parecem uns pintos molhados. - Iruvienne reprimiu uma risada e Namali abanou, ligeiramente, a cabeça. - Vou mandar alguém preparar os banhos para vocês os dois e Iruvienne vem comigo até à casa de banho.

- Obrigada, Namali, mas eu preciso de falar com a minha mãe, imediatamente. - E como Namali fez uma cara de desaprovação, acrescentou: - Mas uma toalha seca era bem-vinda.

Namali sorriu, divertida.

- Pareces-te cada vez mais com a tua mãe - observou, e foi a vez de Iruvienne sorrir.

Aran e Legonon afastaram-se para tomarem banho e Iruvienne seguiu Namali até à zona das salas onde as Conhecedoras do Crepúsculo tinham aulas. Namali bateu a uma das portas e abriu-a, afastando-se para deixar Iruvienne passar. Para sua surpresa, a mãe estava sentada a conversar com Dwarler.

- Oooh! Dama Iruvienne! Quero dizer, Rainha Iruvienne.

Ainda me é difícil imaginá-la como rainha. Mas, vá lá, suponho que tinha de ser e, pronto, foi. Coisas da vida, coisas da vida.

É assim mesmo. - Virou-se, novamente, para Galaduinne.

- Bem, está na altura de eu me pôr a andar, que ainda é um bom bocado até Monterar. - Parou por alguns segundos e inclinou o tronco, ligeiramente, para trás, como se tivesse acabado de ser surpreendido. - Olhem, rimei!

Galaduinne, Iruvienne e Namali sorriram gentilmente.

- Porque não fica connosco esta noite? - perguntou Galaduinne. - Gostaríamos muito de tê-lo cá.

- Não, não. Isso é que não pode ser. Prometi que estava em casa para jantar e agora tem de ser. Além disso, sentia- me mal aqui dentro, no meio de todas estas Senhoras tão elegantes. Sou demasiado rude para os seus salões, Dama Galaduinne. Ia destoar como. como um bocado de xisto no meio de pedras preciosas. Não. Vou para Monterar que é onde eu pertenço.

- Mas a viagem a pé ainda é longa e está a chover muito - disse Galaduinne.

- Não faz mal. Tenho boas pernas e uma chuvinha na cabeça nunca fez mal a ninguém. Se me constipar, constipei. Fico de cama e logo se há-de curar. Pronto - disse, batendo com as mãos gorduchas no tampo da mesa e saltando da cadeira. - Agora vou mesmo. Vamos embora que prà frente é que é o caminho.

- Ao menos, deixe que uma das sacerdotisas o leve num dos cavalos - pediu Galaduinne.

Dwarler pareceu ponderar a sugestão durante alguns, breves, segundos.

- Muito bem. Não gosto de cavalos, são muito grandes para mim, mas é capaz de ser uma boa ideia. E também não posso dizer que não a tudo. Por isso, se não incomodar muito agradecia.

- Não incomoda absolutamente nada. E, além disso, veio aqui para nos ajudar.

- Bem, bem. Não é exactamente assim. O problema é de todos. Ajudei-vos e ajudei os meus. Conto-lhe o que sei e deixo os pensamentos complicados para quem está habituado. Temos de nos ajudar uns aos outros. - O anão fez um ruído esquisito com a garganta, como se estivesse a resmungar sem falar. - Estou sempre a perder-me no meio das conversas. Muito complicado. Em Monterar somos todos assim, mas aqui. Aqui é chato, fica mal. Bem, vamos lá embora. Adeus, Dama Galaduinne; adeus, Dama Iruvienne, e muito gosto em vê-la. Até um dia destes - disse Dwarler e saiu da sala.

- Namali, por favor, pede a uma das sacerdotisas mais novas, que saiba montar bem, para o levar. E explica-lhe o caminho. Temo que Dwarler a confunda com as suas explicações.

- Não te preocupes - respondeu Namali, prestes a rir às gargalhadas.

A elfo afastou-se, e Iruvienne fechou a porta.

- Estás completamente encharcada - disse Galaduinne, com um leve tom de repreensão.

- Não te preocupes, Galaduinne. Namali vai trazer-me uma toalha seca.

- Devias mudar de roupa. Essa está demasiado molhada.

- Podemos acender a lareira e eu seco-a. Mas agora tenho de falar contigo.

Galaduinne suspirou suavemente, dando a entender que aquela solução não era inteiramente do seu agrado, mas que teria de servir.

- Então conta-me tudo.

Athilya recebera as roupas de Conhecedora da Noite há um ano e, desde então, dedicava-se a escutar todos os pequenos apelos da Natureza. Sabia que não tinha as capacidades da irmã ou mesmo as da mãe. Afinal, tinha quase trinta e três anos e a Visão nunca a visitara. Mas, mesmo assim, não desistia de procurar os significados ocultos das pequenas e dissimuladas pistas que a Natureza espalhava, e continuava a esforçar-se por ver e compreender para além do visível.

Quando, há seis anos, decidira regressar com a mãe a Brumívium, pensava apenas em aumentar os seus conhecimentos em continuar a sua busca pelo saber e tornar-se uma sábia, tal como o seu pai. Mas, à medida que o tempo passava, começou a sentir que havia algo mais; como se também ela estivesse a ser preparada para uma determinada tarefa. Por isso, parecera- lhe lógico tentar compreender melhor os mistérios. Por vezes sentava-se em cima de um dos pedregulhos que existiam perto da nascente do Enyel e fechava os olhos. Então, os seus sentidos apuravam-se, sentia-se calma e começava a passar para um estado de clarividência. Mas nunca conseguira chegar até ao fim. Faltava sempre um bocadinho e, por mais que se esforçasse, era incapaz de o atingir.

Naquele dia, estava entretida a ajudar algumas das sacerdotisas que sabiam mais sobre plantas. Gostava de fazer aquele trabalho de secar, cortar e preparar as diversas folhas para os unguentos e as infusões. Ao seu lado, Cleia tagarelava, deliciadamente, sobre uma qualquer infusão especial de que Namali lhe falara.

- É extremamente perigosa - dizia ela -, e provoca tonturas e náuseas. Mas é capaz de aumentar a Visão e, quem já a tem muito desenvolvida, consegue controlá-la. Parece que, antigamente, os Humanos a utilizavam frequentemente.

- Mm. - fez Athilya, distraidamente.

- Não devias falar tão despreocupadamente sobre essa poção - disse Namali, atrás delas.

- Oh, desculpe. Mas fiquei tão entusiasmada com o que nos contou.

- Então ainda bem que não vos disse como prepará-la ou desconfio que amanhã estariam todas maldispostas e com a cabeça cheia de Visões que não deveriam ter tido - disse, divertidamente, Namali.

Cleia corou e baixou a cabeça, desviando a sua atenção para o caule que devia estar a cortar. Sempre adorara estudar as propriedades das plantas e, agora que era uma Conhecedora da

Noite, via à sua frente a incrível possibilidade de aprender os seus mil e um segredos. Durante a manhã, juntamente com as outras Conhecedoras da Noite que queriam aprender mais sobre plantas, costumava ouvir o que as sacerdotisas mais experientes tinham para contar. Namali e Galaduinne eram oradoras frequentes. De tarde, cuidava das árvores da floresta, ajudava a fazer os remédios e preparava as diversas plantas secas para serem utilizadas. E à noite, conversava com Athilya e as outras sacerdotisas que tinham chegado a Névila mais ou menos ao mesmo tempo que elas. Era dez anos mais velha do que Athilya, mas parecia vinte anos mais nova. Os seus vestidos estavam, frequentemente, cobertos de terra ou sujos com seiva e, quando não estava a cuidar das plantas, adorava desfiar longas e leves conversas sobre elas. Enfim, era o que se chamava uma criança grande o que, de vez em quando, era um alívio para Athilya. Com Cleia era sempre possível relaxar e ela tinha, invariavelmente, um chá calmante pronto para oferecer, juntamente com uma qualquer conversa despreocupada.

Namali já estava a afastar-se quando, de repente, se virou para trás.

- Ah, é verdade! Iruvienne já chegou - disse ela. - Mas é melhor esperares um bocadinho, Athilya. Ela está a falar com a vossa mãe e pareceu-me que era importante. Com certeza só a vês ao jantar.

E afastou-se em direcção ao armário onde guardavam, devidamente etiquetados, os vários ingredientes para as preparações.

Athilya continuou a trabalhar. Tinha saudades da irmã. Embora se correspondessem e, de vez em quando, Iruvienne visitasse Névila, a verdade é que, raramente, se viam. No entanto, sabia que aquela vinda da irmã não era uma simples visita e, por isso, resolveu não interromper a conversa dela com Galaduinne. Cleia retomara a sua tagarelice e voltara a esquecer o trabalho que era suposto estar a fazer. A pequena e afiada faca ficara suspensa alguns centímetros acima do tampo da mesa, e a sua mão esquerda ainda segurava, decididamente, o caule. Mas só o seu corpo estava compenetrado no trabalho, porque, como sempre, a sua cabeça divagava pelos extraordinários conhecimentos que adquirira naquele dia.

- Acabas isto por mim? - perguntou, de repente, Athilya. Cleia parecia admirada, como se só agora se tivesse dado conta de que tinha, efectivamente, um interlocutor.

- Claro. - disse, um tanto ou quanto insegura.

- Obrigada - respondeu Athilya, afastando-se em direcção à porta.

Acabara de se lembrar de uma coisa.

O andar dos quartos estava perfeitamente silencioso. Àquela hora, todas as sacerdotisas estavam a acabar os seus trabalhos, a tomar banho ou, simplesmente, a prepararem-se para jantar. Apenas se ouvia o sussurrar do vestido de Athilya a roçar o chão de granito. Ela caminhava, lentamente, não muito certa do que estava a fazer.

Parou e bateu à porta do antigo quarto de Aran. Mas quem abriu a porta foi um elfo de olhos muito azuis e cabelo loiro, quase branco.

- Oh!. Estava à procura de outra pessoa. mas devo ter-me enganado no quarto - gaguejou Athilya, olhando, rapidamente, à sua volta para verificar se se tinha enganado.

- Não. Espere - disse o elfo, quando ela já se preparava para ir embora. - De quem estava à procura?

- De um velho amigo que deve ter chegado com a minha irmã. O nome dele é Aran.

- Então não se enganou. Este é o quarto dele. Estávamos só a conversar. Por favor, entre - disse, enquanto se afastava para a deixar passar.

Athilya entrou e Aran, que estava sentado no parapeito

da janela, levantou-se rapidamente.

- Athilya! Pensámos que fosse Iruvienne. - Aran olhou para o elfo que continuava a segurar a porta aberta. - Desculpa, Legonon. Esta é a irmã de Iruvienne, de quem já te tinha falado. Athilya, este é Legonon, o príncipe das Terras Brancas.

Legonon inclinou, profundamente, a cabeça.

- É uma honra conhecê-la - disse.

- Para mim também - respondeu Athilya. - Recebemos a carta de Iruvienne em que ela nos falava de si e do pouco que sabe do seu país, mas será, sem dúvida, mais agradável ouvi-lo falar sobre as Terras Brancas.

- Obrigado. E agora, com a vossa licença, deixo-vos - disse Legonon, saindo e fechando a porta atrás de si. Athilya aproximou-se de Aran.

- É bom voltar a ver-te - disse ele. - Confesso que já tinha saudades.

Mas Athilya não respondeu. Em vez disso, aproximou-se ainda mais dele, tapou-lhe a boca com o indicador direito e beijou-o nos lábios. Aran pensou, por um brevíssimo segundo, que aquilo estava tudo errado, mas os seus olhos já se estavam a fechar e os seus braços rodeavam o corpo fino e curvilíneo dela apertando-a contra si. Não a queria largar nunca mais. Sentia os dedos dela a percorrerem habilmente a sua cara, a delinearem a cicatriz da face direita e a revolverem-lhe os cabelos. Aquilo era tão bom, tão doce!. Não. Não a podia largar, não seria capaz de pôr fim àquilo. Mas não foi preciso. Athilya separou os seus lábios dos dele e Aran deixou-a escorregar por entre os braços soltando-a.

- Por que fizeste isso? - perguntou, ainda meio atordoado. Athilya não sabia. Não era aquilo que tinha pensado fazer. Não era. Ou seria? Desde pequeno que Aran gostava dela, mas ela. Na verdade, nunca pensara em semelhante. Aran fora sempre uma figura carinhosa e engraçada no meio da sua vida invulgar. E uma figura que estivera ausente durante grande parte dessa vida! Mas, contudo. jamais o esquecera. Tinha de reconhecer que, às vezes, sonhava com ele, e esses sonhos eram agradáveis e deleitosos.

Parou de pensar. Não podia ser. E, no entanto, sabia que era verdade. Inconscientemente, estivera a pensar fazer aquilo desde que pedira a Cleia para acabar de cortar a raíz. Fechou os olhos, sorriu e voltou a abri-los.

- É melhor eu descer - disse, calmamente. - O jantar deve estar quase pronto e eu ainda queria cumprimentar Iruvienne antes de entrarmos para o refeitório. É melhor avisares o príncipe Legonon e descerem também.

E saiu do quarto, muito suavemente, sem olhar para trás e deixando Aran parado a meio do quarto, completamente estupefacto.

Enquanto se afastava do quarto de Aran, Athilya ouviu passos apressados atrás de si. Virou-se e esperou. Era Siena, a sua melhor amiga que, tal como ela, decidira aprofundar os mistérios.

- Athilya. - chamou, e a sua voz era dura.

- O que foi? - perguntou, jovialmente, Athilya. – Só estou a descer para ir jantar.

- Então vamos.

E Siena continuou a caminhar. Athilya seguiu-a, com um ligeiro encolher de ombros.

- Não devias ter feito aquilo - disse a amiga, quando já estavam bastante longe do quarto de Aran.

- Não devia ter feito o quê? - perguntou Athilya, admirada.

- Beijá-lo.

Athilya sentiu o seu coração a parar. Como é que ela sabia?

- Vi-te a entrar no quarto dele e Siena parecia atrapalhada. - Bem, ouvi.

Athilya franziu as sobrancelhas.

- Ouviste? Como é que tu ouviste um beijo?

- Estava suficientemente próxima da porta - disse Siena, num suspiro. - Já suspeitava pelo silêncio. Não era muito natural. Depois, ouvi-vos a separarem-se e quando ele fez aquela pergunta tive a certeza. De qualquer forma, não é essa a questão. O que interessa é que não o devias ter feito.

- Não fiz nada de mal.

- Tu és uma sacerdotisa.

- E então? - perguntou Athilya, levemente aborrecida.

- Não há nada que o proíba.

- Mesmo assim, não acho bem. Além disso, ele é humano.

- A minha bisavó também era humana. Não vejo qual é

o problema.

- Athilya. - Siena parou, de repente. - Gostas dele?

Quero dizer, ama-lo?

Sim, era exactamente isso. Amava- o. Mas Athilya não disse nada, limitou- se a sorrir.

 

         OS CONSELHOS DE GALADUINNE

Iruvienne contara à mãe os seus sonhos, as suas dúvidas e receios, e a conversa que tivera com Landlar. E durante todo o tempo, Galaduinne manteve-se séria e serena, mas extremamente atenta a cada palavra da filha.

- Tem calma, Iruvienne - disse, por fim. - Seja o que for que tiver de vir, virá, independentemente do que possas fazer. De facto, tudo o que fizeres acabará sempre por provocar aquilo que tu queres evitar. É uma lei muito antiga que até os Homens parece já terem compreendido.

Iruvienne deixou sair o ar, lentamente.

- Queres dizer que já foi tudo decidido há muito tempo atrás? Que, para o bem ou para o mal, o fim está determinado?

- perguntou Iruvienne, sem ter bem a certeza de estar a compreender o que a mãe lhe queria dizer.

- Oh, não. Ainda há muito a decidir, muito que só dependerá das acções daqueles que vivem. O fim está muito longe de estar decidido, Iruvienne. - Galaduinne passou-lhe ternamente, uma mão pelo rosto. - Ainda és tão nova! Há tanta coisa que ainda não sabes. Mas não te aflijas. Está tudo dentro de ti: o conhecimento, a força, a sabedoria. - Sorriu. - Eu já fui assim. Queria ter a resposta para todas as questões, para todos os problemas. Mas isso é impossível. Temos de ir passo a passo, decidindo como nos parece melhor na altura, ponderando o que sabemos e o que supomos, o que vimos e o que sentimos. E, por fim, chegaremos a uma conclusão; ao fim de um caminho e ao começo de outro. Pode não ser o que esperávamos ou o que queríamos, mas é uma das muitas possibilidades e é a que temos. A partir daí, reiniciamos o ciclo. É sempre assim. As próprias forças do Mundo, aquelas que nem nós podemos prever totalmente, agem assim. Nós criamos as situações, embora involuntariamente, e elas os padrões que nos levarão a um determinado fim, o qual também é fruto daquilo que fazemos. Na maior parte do tempo, elas são meros espectadores, embora, às vezes, também criem os seus próprios padrões que, de certo modo, acabarão por nos condicionar.

Pelo que tu me disseste, penso que um desses padrões está prestes a ser desencadeado. Haverá coisas que têm de ser feitas, outras que têm de ser vividas, e todas elas preparar-te-ão para o que quer que seja que tens de fazer. Mas não te preocupes. Terás muito que decidir, muito que só acontecerá por tua causa.

Somos muito mais livres do que julgamos. No fim, perceberás que tudo aconteceu por tua culpa. ou graças a ti. Muitos outros contribuirão para esse fim, pois tudo o que fazemos envolve-nos e aos que nos rodeiam. E o mesmo acontece com eles. Mas o papel daqueles que estão acima de nós é, de facto, muito diminuto.

Queiramos ou não, somos inteiramente responsáveis pelo que nos acontece. E nenhuma magia ou poder vai mudar isso.

Iruvienne ficou algum tempo parada, as sobrancelhas ligeiramente franzidas. Sentia-se perto da resposta, sentia que tudo aquilo era muito mais simples do que parecia, mas sentia-se também infinitamente longe de uma conclusão certa. Olhou para a lareira acesa. As suas roupas secavam, penduradas nas costas de uma cadeira, em frente à lareira e ela tinha ainda nas mãos a toalha que Namali lhe trouxera. Enquanto conversava com Galaduinne, enfiara, despreocupadamente, um vestido que Namali lhe estendera, mas só agora reparava que era um dos vestidos da mãe. Sorriu; ocorrera-lhe uma ideia curiosa e engraçada.

- O que foi? - perguntou Galaduinne.

- Estava a pensar que, afinal, não somos muito diferentes dos Homens.

Galaduinne soltou uma gargalhada cristalina.

- Não. De facto, não. Somos, enfim. mais poderosos. Compreendemos os sinais e as pistas ocultas, estamos mais ligados à Natureza, é muito raro desistirmos e, como vivemos muito mais tempo, somos muito mais sábios. Mas nos nossos jogos, somos quase tão incapazes quanto eles.

E as duas riram a grandes gargalhadas.

- Mãe. - chamou Iruvienne, parando, abruptamente, de rir, mas conservando um inegável sorriso. - As profecias realizam-se sempre. É uma velha lei. Mas se tanto depende daquilo que poderemos ou não fazer, como sabemos que elas se concretizarão?

Galaduinne olhou, ligeiramente, para o lado direito e sorriu, quase imperceptivelmente.

- As profecias - disse, finalmente - são um pouco estranhas. Uma vez, há algum tempo atrás, Valindra disse-me que elas precisavam de uma pequena ajuda. De um pequeno empurrão, talvez. Uma profecia é sempre algo vaga e, por isso, é impossível ter a certeza de alguns pormenores, que, contudo, são extremamente importantes. E, assim, ela pode aplicar-se a várias pessoas, em várias alturas. Por isso, os padrões repetem-se constantemente, até que alguém tome as decisões certas para os completar de forma correcta; ou seja, que alguém tome as decisões que levam ao fim de que a profecia fala. Mais uma vez, tudo depende de nós.

Iruvienne assentiu, levemente, com a cabeça.

- O destino existe, mas somos nós que o fazemos ou aceitamos.

- Exactamente - concordou Galaduinne. - Mas não te esqueças daquilo que te disse depois de ter defrontado Morgriff.

Iruvienne fechou os olhos e sorriu, docemente. Era impossível esquecer-se das palavras da mãe, mas começava a sentir-se confiante. Estranhamente, essa ideia não a incomodava. De facto, era espantoso como praticamente não lhe dava importância. O que tivesse de vir viria, e ela estaria preparada.

- Muito bem, Iruvienne - disse Galaduinne. - É isso mesmo. Lembra-te de quem és. Confia em ti mesma. E jamais te esqueças que transportas em ti a essência do teu povo.

A porta abriu-se e revelou uma figura esbelta, de cabelos cor-de-fogo e narizito pequeno e arrebitado.

- Athilya!. - disse, entusiasticamente, Iruvienne, levantando-se e correndo para abraçar a irmã.

Athilya abraçou-a, carinhosamente, mas Iruvienne sentiu que havia nela algo de errado. Uma espécie de insegurança nervosa, como se Athilya receasse revelar o que não devia ou não

queria.

- O que se passa? - perguntou Iruvienne, com um ligeiro franzir de sobrancelhas e um sorriso jocoso.

- Oh!. Nada de especial. Foi a Siena que me arreliou.

- Iruvienne fez uma cara de dúvida. - A sério. Está tudo bem.

Vamos jantar?

- Vamos - disse Galaduinne, fazendo um pequeno gesto com as mãos, de forma a indicar a porta aberta. E as três saíram para o refeitório, onde uma pequena multidão de sacerdotisas se começava a juntar.

O jantar foi agradável e simples, exactamente igual aos muitos jantares que Iruvienne ali fizera na sua juventude. Não houve qualquer festa ou celebração especial em honra de Legonon, apenas uma pequena troca de lugares. Iruvienne sentou-se à direita de Galaduinne e Legonon à esquerda, Aran ficou, como sempre, ao lado de Iruvienne e Athilya conservou o seu lugar habitual numa das mesas laterais, entre Siena e Cleia. As outras sacerdotisas redistribuíram-se, ágil e rapidamente, pelos restantes lugares. Galaduinne conversou sobre muitas coisas com Legonon, contando-lhe pequenas histórias de Névila e Brumívium, mas omitindo as mais importantes e interessantes.

- Existem muitos mistérios nesta floresta - disse ela. Mas todos eles devem ser descobertos no seu devido tempo e com uma certa preparação. No entanto, certas crianças traquinas, têm tendência para os descobrirem por simples curiosidade e espírito aventureiro.

Iruvienne deu por si a corar e a baixar a cabeça em direcção ao prato. Ao seu lado, Aran esboçou um dos seus sorrisos torcidos, enquanto comia uma garfada de arroz.

Quando acabaram de jantar, Galaduinne despediu-se deles e afastou-se com Namali, em direcção à saída de Névila.

Iruvienne, Aran e Legonon caminharam, silenciosamente, até aos quartos.

Iruvienne observava Aran. Ele estava diferente, já o notara ao jantar, mas não dissera nada na altura. Não ali, com toda a gente a observá-los. No entanto, tinha uma ideia do que se passava. Uma ideia que não era, de todo, desagradável.

- Boa noite - disse Legonon, quando chegaram aos quartos.

- Boa noite - responderam em uníssono Iruvienne e Aran.

Legonon entrou no quarto, fechando a porta atrás de si, e Aran preparou-se para dar um beijo de boas-noites a Iruvienne, mas ela impediu-o.

- Preciso de falar contigo - disse, docemente.

Aran franziu a testa, mas ela sorriu e empurrou-o, delicadamente, para dentro do quarto dele.

- O que é que aconteceu? - perguntou, com um ligeiro sorriso a espreitar timidamente. Ele continuou calado. A sua expressão mais comprometida do que aborrecida. - Aran... Vais dizer-me ou vou ter que adivinhar? - Iruvienne esperou um pouco, mas ele não disse nada. - Muito bem. Tu e Athilya beijaram-se, não foi?

Aran olhou para o lado e sentou-se no parapeito da janela. Iruvienne sentou-se ao seu lado.

- Foi - disse, por fim. - Mas não tive qualquer intenção de o fazer.

- Aran, meu grandessíssimo tolo - explodiu Iruvienne e sinceramente, não vos compreendo. Estão os dois preocupadíssimos porque fizeram uma coisa que querem fazer há anos!

- Iruvienne - repreendeu Aran. - Ela é uma sacerdotisa e além disso, eu não passo de um humano.

Iruvienne encolheu os ombros.

- De facto, és humano. Mas sempre foste tão correcto como um elfo. Aliás, continuo a dizer que devias ter sido meu irmão... E, agora, talvez venhas a ser - acrescentou com um grande sorriso. - Quanto à minha irmã ser uma sacerdotisa, não vejo qual seja o problema. Nada o proíbe! De facto, nada diz que uma sacerdotisa não possa casar e ter filhos. Basta pensar em Galaduinne.

- É um pouco diferente.

- Sim, é verdade. Mas há uma primeira vez para todos os casos.

- Vou morrer muito antes dela.

- Aran - cortou Iruvienne - não cries problemas onde não os há! Limita-te a ser feliz.

Ele teve um dos seus sorrisos torcidos e envolveu-Lhe os ombros com um dos braços, chegando-a para si.

- Infelizmente, pequenina, não depende só de mim - e como Iruvienne já se estava a soltar, preparando-se para o repreender, acrescentou - Não vou desistir, nem perder a esperança, só que também tenho de pensar na felicidade da tua irmã.

Iruvienne não disse nada. Achava que eles os dois estavam a complicar de mais, mas compreendia o que Aran quisera dizer e respeitava-o. Talvez, com o tempo, tudo se resolvesse.

Aran beijou-a nos cabelos e largou-a.

- É melhor deitares-te. Foi uma longa viagem e tens andado muito preocupada.

- Mm... - fez Iruvienne, já com os olhos fechados e sem se desencostar dele.

- Vamos, pequenina. Levanta-te - disse ele, empurrando-a suavemente.

Iruvienne levantou-se, relutantemente. Tinha gostado de poder adormecer ali, com o amigo a segurá-la e a protegê-la. Parecia-lhe sempre que, com Aran por perto, nada de mal lhe podia acontecer. Mas, naquele dia, não podia ficar com ele. Estavam os dois cansados e doridos. Precisavam de uma boa cama, onde pudessem dormir confortável e espaçosamente.

- Boa noite, Aran.

- Boa noite, pequenina.

- Sonha com Athilya - acrescentou, brincalhonamente e saiu do quarto.

Aran sorriu. Isso seria bastante aprazível.

Os dias em Brumívium passaram chuvosa e calmamente e, embora o tempo parecesse correr a uma velocidade mais rápida do que seria normal, os dias permitiam-lhes fazer de tudo um pouco. E, às vezes, quando se iam deitar, tinham a sensação que a manhã fora há muito tempo atrás, numa outra vida, talvez. Havia sempre tanto para fazer, tanto para conhecer e reexplorar! De facto, viviam cada dia com uma intensidade eufórica, como se, de repente, tivessem voltado a ser crianças e não houvesse nada mais importante do que viver cada segundo ao máximo, aproveitar cada pequeno prazer ou experiência como se fosse o último.

Passearam pela floresta e mostraram a Legonon cada recanto, cada pequeno esconderijo, que tantas vezes tinham utilizado. Nadaram nas águas geladas da lagoa da gruta e visitaram Llwarler, que presenteou Legonon com umas lindíssimas turmalinas malva e hessonites. Aran pediu um par de espadas emprestadas às sacerdotisas guerreiras e os três perderam-se em longos e exaustivos treinos, por entre as árvores de Brumívium.

Por vezes, Iruvienne não os acompanhava, ficava sentada nalgum tronco de árvore a espreitá-los por entre a folhagem. Gostava de ficar assim, a receber a chuva e o vento na cara, e a sentir tudo o que a rodeava. Enquanto Aran e Legonon brandiam entusiasticamente, as espadas, Iruvienne perdia-se algures entre o seu retinir e o som da chuva. E, então, sentia-os. Ar, Água, Terra e Fogo formando um só ser, interligando tudo e todos numa trama única e indestrutível. Eram eles que mantinham o equilíbrio, que asseguravam os ciclos e alimentavam a Natureza. Sozinhos, eram entidades poderosas e estranhas; unidos, eram indestrutíveis e estavam por toda a parte, criando o belo e o feio, o bom e o mau.

Iruvienne não precisava de lhes falar, não queria sequer ouvi-los; bastava-Lhe senti-los a rodearem-na, a ligarem-na no meio dos fios daquela gigantesca trama. E, aos poucos, Iruvienne recuperou a calma, a sabedoria e a juventude que tanto a caracterizavam.

Tinham-se passado cinco dias desde a chegada a Brumívium, quando Galaduinne a chamou. Iruvienne seguiu a mãe silenciosamente, por entre os corredores do castelo, até chegarem ao quarto da Senhora da Noite e das Brumas. Galaduinne sentou-se na borda da cama e Iruvienne à sua frente, no banco do toucador.

- Pensei muito no que me contaste - disse Galaduinne -, e os sonhos têm-me mostrado algumas coisas interessantes, embora nada de muito explícito. No entanto, penso que há uma coisa que devias fazer. - Iruvienne manteve-se calada. - Pode soar estranho, mas algo me diz que é importante. Um instinto materno, talvez.

- Galaduinne fez uma pequena pausa e olhou para a filha. Aquilo teria consequências, grandes consequências, mas tinha de ser.

- Iruvienne, acho que devias visitar o rei Adhar.

Iruvienne continuou a olhar para a mãe, mas não estava, exactamente, ali. Perdera-se, um pouco, nos seus pensamentos e reflexões.

Uma viagem até às Terras Brancas era uma grande aventura. Uma aventura que ela sempre quisera fazer e que, de facto, propusera a Aran. Mas era também uma viagem longuíssima e cansativa. Além disso, Aran parecera querer adverti-la contra um qualquer perigo esquisito e oculto. E, no entanto, mais do que querer, Iruvienne sabia que devia ir, independentemente dos perigos.

Assentiu, ligeiramente, com a cabeça.

- Já tinha falado nisso a Aran. Queria viver a minha aventura - disse, com um pequeno sorriso matreiro. Galaduinne olhou, ligeiramente, para cima e sorriu. - Mas, agora, há mais qualquer coisa. Algo que me diz que devo ir.

- Então vai. Vive a tua aventura, diverte-te e aprende tudo o que tiverem para te ensinar. E se, ao fim de algum tempo, não tiver acontecido algo de relevante, regressa a Caladmiron e e esquece tudo o que eu te disse.

Iruvienne largou uma risada abafada.

- E volto a esperar que algo aconteça. - disse, como se fosse uma menina bem comportada que decorara bem a lição que a professora lhe ensinara.

Galaduinne sorriu e encolheu os ombros.

- Tenho de avisar Aran e Legonon. Há preparativos a fazer e muito a explicar e decidir - levantou-se e abriu a porta.

- Iruvienne - chamou Galaduinne, quando ela já ia a sair. Iruvienne voltou-se para trás, com um ligeiro sorriso nos lábios.

- Talvez seja melhor levares mais roupa desta vez. Sugiro que leves duas roupas de viagem, uma vestida e outra na mochila. E também alguns dos teus vestidos mais quentes e um vestido de baile, mesmo que seja muito fresco. Além disso, devias levar o diadema que Athilya te deu.

- Muito bem, levarei tudo o que tu disseste e também uma capa bonita e quente - concordou Iruvienne.

E saiu do quarto, ainda a sorrir.

Galaduinne ficou algum tempo a olhar para a porta fechada. Todas as mães gostam de conservar os filhos sob a sua protecção, mas chega um dia em que eles têm de continuar sozinhos, em que os perigos surgem e eles têm de ser capazes de ultrapassá-los. Galaduinne sabia que Iruvienne crescera, já não era nenhuma criança. De facto, tinha a impressão que, em parte, a infância da filha se perdera há muito. Talvez na altura em que as Visões tinham chegado, ou quando Ogueimion morrera. E, mesmo assim, ela ainda conservava alguma dessa alegria tão característica dos tempos da infância em que tudo é simples e os perigos e as preocupações são ainda uma coisa estranha do mundo dos adultos. Mas, de qualquer forma, Iruvienne era uma mulher adulta. Afinal, era Rainha das Terras da Luz. E, no entanto, Galaduinne gostaria de a poder conservar durante mais algum tempo sob o seu manto protector e invisível de mãe. Mas não podia ser. Era uma sacerdotisa; era a Senhora da Noite e das Brumas, e podia ver os caminhos a avançar, a fecharem-se e a conduzirem a uma única via. Iruvienne teria de seguir o seu próprio caminho.

 

                       A VIAGEM

Iruvienne foi rápida a arrumar as suas coisas e a despedir-se das várias sacerdotisas. Queria regressar o mais cedo possível a Omnirion. Sabia que os preparativos para a viagem até às Terras Brancas seriam muitos e, provavelmente, demorados. Além disso, Legonon insistira em que seria melhor fazer a viagem durante a Primavera. E, assim, quando os primeiros raios de sol começaram a iluminar o dia, partiram em direcção a Omnirion.

Apesar de terem alguma pressa, a viagem foi calma e agradável. Os dias já estavam quentes e havia no ar uma miríade de cheiros, provenientes das flores que desabrochavam. O Enyel espraiava-se pelo leito, ondulando suavemente. E os pássaros esvoaçavam, alegremente, ensaiando voos ousados e acrobacias estonteantes.

Quando, a meio do terceiro dia de viagem, chegaram a Omnirion, Lelahad esperava-os à entrada do palácio. E, embora ele não tenha dito nada, Iruvienne compreendeu que ele Lhe queria falar. As suas feições estavam calmas, mas havia nos seus olhos uma certa expressão preocupada e pensativa que lhe dizia que algo se passava. Por isso, desmontou do cavalo, entregou as rédeas a Aran e aproximou-se de lelahad.

- O que viste? - perguntou, docemente. Lelahad teve uma espécie de sorriso triste.

- Nada - respondeu. - Mas recebi uma mensagem de Galianar que me preocupou.

- Conta-me - disse Iruvienne num tom que, apesar de continuar doce, ganhou a autoridade de uma rainha.

Caminharam em silêncio até à biblioteca, onde poderiam conversar sossegadamente e sem serem incomodados.

- A mensagem que Galianar me enviou, falava de algo que Galaduinne lhe contara acerca de uma conversa que ela teve, recentemente, com Dwarler, Senhor dos Anões - explicou ele, enquanto deambulava pela biblioteca à procura de um bom lugar para se sentarem. - Ela não te quis dizer nada, para não te preocupar, mas eu acho que devias saber.

- Eu vi Dwarler, quando cheguei a Névila, mas não fiz qualquer pergunta a Galaduinne. Percebi que ela não me queria contar.

Lelahad sorriu com uma expressão de velho sábio que vê coisas que mais ninguém parece ver e que, contudo, são incrivelmente óbvias.

- Galaduinne é tua mãe - disse ele. - Preocupa-se

contigo. E tu estavas muito aflita e cansada. É natural que ela não te quisesse preocupar ainda mais. - Sentou-se, finalmente, e apoiou as mãos nos joelhos. - Além disso, Dwarler é um anão, e os Anões são conhecidos por misturarem tudo. Por isso, porque havia Galaduinne de te preocupar com algo que pode não ter qualquer significado?

Iruvienne pensou em perguntar-lhe por que estava ele a fazê-lo, mas preferiu outro tipo de comentário.

- Os Anões são muito mais espertos do que aparentam. Ficarias surpreendido se os conhecesses melhor.

Lelahad soltou um pequeno suspiro.

- Desculpa-me - disse -, mas receio não conseguir fugir à ideia habitual que os Povos Sábios têm dos Anões. De qualquer forma, julgo que devias saber o que ele contou a Galaduinne. Mesmo sendo bastante vago. - Lelahad olhou para ela e sorriu, como a dizer-lhe que não devia preocupar-se de mais. - A questão é, de facto, muito simples. Tal como sabes, os túneis dos Anões são enormes e prolongam-se até depois da Floresta Queimada. O que se passou foi que, um dia, Dwarler e o filho mais velho decidiram ir até ao fim do último túnel, que fica numa das primeiras montanhas daquela a que eles chamam Terra Negra.

- Lelahad fez um pequeno trejeito que era um misto de repulsa e medo. - E, então, ouviram uns barulhos esquisitos. Segundo Dwarler, algo parecido com pés a marchar e metais a chocarem.

- Os Magdul - interrompeu Iruvienne.

- Sim, exactamente. Foi o que Galaduinne, Galianar e eu pensámos. Mas não podemos ter a certeza. Dwarler não contou mais nada e, como é evidente, nem ele nem o filho se aventuraram a sair do túnel para ver o que se passava. Além disso, não se pode confiar totalmente nos ouvidos de dois anões que estão dentro de um túnel escavado no interior de uma montanha. - Iruvienne olhou-o com uma expressão, ligeiramente, zangada e reprovadora.

- Só estou a dizer que podia ser outra coisa qualquer.

Iruvienne fechou os olhos e expirou lenta e pensativamente.

- Não era. Tenho a certeza de que eram os Magdul a treinar, ou algo parecido com isso. E o que me preocupa é exactamente isso. É normal que eles andem pelas suas terras, mas é estranho que estejam a treinar-se para combater.

- Acho que não te deves preocupar muito. Os Magdul têm prazer em destruir. Suponho que, para isso, precisem de algum treino e umas técnicas rudimentares de combate. É pouco provável que se estejam a preparar para uma guerra - disse lelahad, mas havia qualquer coisa na sua voz que traía as suas palavras.

Aran e Legonon estenderam, sobre uma das grandes mesas da biblioteca, uma folha de papel e, depois de marcarem uma rosa-dos-ventos, começaram a desenhar um mapa rudimentar da zona das Heniunel que tinham atravessado. Durante muito tempo, limitaram-se a olhar para a folha e a discutir o que tinham visto nos vários caminhos que tinham percorrido e qual a melhor maneira de o desenhar. Mas, por fim, pegaram nos lápis e começaram a traçar as primeiras linhas. Quando terminaram, o mapa mostrava uma série de caminhos possíveis e pequenas indicações como "local bom para pernoitar" ou "este caminho é escorregadio".

Enquanto Aran e Legonon desenhavam o mapa, Iruvien falou, longamente, com Lelahad. Deixou-lhe indicações de tudo o que era necessário fazer com alguma urgência e das medidas a tomar se, subitamente, Momiran atacasse. Gostaria de ter falado com ele sobre o turbilhão de ideias que a assolavam, mas ele parecia achar que esse era um problema que ela tinha de resolver sozinha. Assim, mal ela acabou, levantou-se com um pequeno sorriso.

- Não te aflijas - disse ele. - Sei muito bem tudo o que devo fazer. Quanto aos problemas que nos atormentam, o melhor é deixá-los a repousar. As respostas acabarão por surgir. E agora, começa a arrumar as tuas coisas que eu vou até às cozinhas dar as instruções necessárias.

Iruvienne sorriu, mas continuava preocupada. Por mais que tentasse, aquela sensação nunca a abandonava totalmente, como se se tratasse de um pequeno aviso, uma lembrança de um qualquer perigo eminente. Sentia que lhe faltava uma peça qualquer para compreender todo o problema e o conseguir resolver. Mas o que faltava, isso ela não sabia. Teria de esperar. Mais cedo ou mais tarde, a resposta surgiria.

Nas cozinhas, fizeram-se pãezinhos, bolos e biscoitos, embrulharam-se diversas carnes e peixes, salgados ou fumados, e acondicionaram-se várias frutas. Os cantis foram limpos e cheios, novamente, com água fresca do Enyel. Linuase, Modeia e Eleni remendaram as enormes mochilas de Iruvienne, Aran e Legonon. Iruvienne falou com o povo de Omnirion e com todos os representantes das pequenas comunidades de Caladmiron e explicou- Lhes por que decidira viajar. E, por fim, tudo ficou pronto para partirem.

Na última noite, Iruvienne não dormiu muito. Aran e Legonon quiseram rever, novamente, o caminho que iam seguir. E, quando finalmente acabaram, Iruvienne ainda esteve a arrumar na sua mochila a caixa com o diadema que Athilya lhe dera, um par de botins castanhos e umas sabrinas vermelhas, o vestido de baile que escolhera e que era, de facto, muito fresco, cinco vestidos quentes de veludo, uma capa com capuz, de veludo castanho-claro-dourado com bordados avermelhados, uma túnica simples, umas calças de viagem, uma estranha e imperfeita camisola, que, pouco tempo antes de morrer, Ailura se entretivera a tricotar, e duas mantas de viagem bem quentes. Agora, enquanto Eleni a acordava e tentava convencê-la a levantar-se, Linuase e Modeia cobriam tudo aquilo com os pequenos embrulhos de comida.

Iruvienne levantou-se, ainda meio ensonada, e vestiu, calmamente, a túnica vermelho-escura, com pequenas e rodopiantes linhas castanhas bordadas, as calças de tecido aveludado verde-escuro e o casaco do mesmo tecido que tinha bordados nos braços ramos castanhos e curvilíneos. As roupas que escolhera eram não só quentes, mas também práticas e elegantes.

Seriam suficientemente apropriadas para chegar a Nirilnege. Sentou-se na borda da cama e calçou as botas de cano alto castanhas que, estranhamente, apertavam atrás. Quando acabou, Eleni penteou-lhe o cabelo. Fez-lhe quatro tranças, que pareciam raios de sol, e prendeu tudo num enorme rabo-de-cavalo que atou com uma fita da mesma cor da túnica. Enquanto Ele trabalhava, Iruvienne murmurava pequenas palavras em Lissanin para que o cabelo ficasse bem preso e só se desfizesse se ela própria o soltasse.

- Pronto, terminei - disse Eleni, com uma pontinha de orgulho na voz.

- Obrigada.

Iruvienne levantou-se, cingiu o cinto em que Fucolem estava afivelada, e vestiu a sua nova capa castanho-escura. Era uma capa bonita e prática, feita a partir de um tecido grosso, mas leve, que tinha um corte curioso, pois para além do habitual capuz, ostentava também umas mangas largas e compridas que ondulavam ligeiramente. Linuase ergueu, com algum esforço, a mochila e ajudou Iruvienne a pô-la aos ombros.

- Acho que não nos esquecemos de nada - disse Modeia estendendo-lhe as luvas de pele castanha.

- Acho que não - respondeu Iruvienne e, contudo, tinha a sensação que lhe faltava alguma coisa.

Percorreu o quarto com os olhos, à procura de alguma pista. Mas, aparentemente, tudo estava nos seus devidos lugares. Não havia nada em cima da cama ou pousado no chão, à espera de ser arrumado na mochila. Nada que parecesse deslocado. Encaminhou-se para a porta, estendeu a mão em direcção ao puxador e, então, parou. Já sabia o que lhe faltava. Voltou para trás, abriu uma caixinha que estava em cima do toucador e tirou de lá de dentro um frágil anel de ouro onde, alojada entre duas minúsculas folhas de filigrana, brilhava a opala de fogo que Davarler lhe dera. Não sabia bem porquê, mas desde que a mãe lhe entregara aquela pequena obra de arte, ele tornara-se uma espécie de símbolo. Como se dissesse quem ela era. Não podia ir para a sua aventura sem o levar. Enfiou-o no dedo anelar da mão esquerda e, com todo o cuidado para não o estragar, calçou as luvas.

- Agora já estou pronta - disse, e as três saíram do quarto.

Caminharam, descontraidamente, até à entrada do palácio, onde Aran, Legonon e lelahad as esperavam.

- O Povo de Omnirion está todo lá fora, à espera - disse Lelahad. - Querem despedir-se. - Iruvienne sorriu. Ia ter saudades, mas uma aventura era assim mesmo. Algumas coisas tinham de ficar. - E eu também quero desejar-te boa viagem. - Lelahad sorriu.

- É desnecessário dizer-te tudo isto, mas fico mais descansado se o fizer. Por isso, digo-te para teres cuidado. Para não te precipitares, mas ouvires sempre os teus instintos. E, acima de tudo, para seguires sempre em frente. Por mais estranho que o caminho pareça, se achares que é por ali que deves ir, não hesites.

- Eu sei - respondeu Iruvienne com um grande sorriso e um ligeiro tom matreiro, como quem vê muito para além do que é visível. - Os caminhos seguem sempre em frente. Não se pode voltar atrás, por muito que gostássemos. Além disso, acho que perdi o medo. Vou continuar, e o que tiver de vir, que venha. Eu darei o meu melhor para estar à altura do que surgir Independentemente do que seja.

Lelehad sorriu, gentilmente, e abanou um pouco a cabeça em sinal de que compreendera. Por mais que a conhecesse, ela nunca deixaria de o surpreender. Por vezes, não parecia mais que uma criança, mas, então, algo mudava e ela tornava-se sábia, uma rainha de Elfos e Fadas, em todo o seu esplendor, mistério e encanto.

- Boa viagem, Iruvienne. Mantém-te o mais afastada possível do perigo - disse ele, e beijou-a nos cabelos.

As portas abriram-se e eles saíram. Enquanto percorriam lentamente, as ruas da cidade, o Povo de Omnirion observava-os e inclinava, ligeiramente, a cabeça à sua passagem. Havia em todo aquele cortejo de despedida um ar solene e ocorreu a Iruvienne que parecia mais que eles caminhavam em direcção aos seus destinos do que em direcção a Nirilnege. Por fim, saíram da cidade e embrenharam-se na floresta. À sua frente, estendia-se toda uma série de aventurosas possibilidades.

A viagem foi, tal como Iruvienne pensara, extremamente longa e cansativa. Mas, afinal, atravessar as Heniunel sempre fora um grande obstáculo. Tão grande que o Povo da Luz preferira limitar-se a Caladmiron, Brumívium e Ranthlin.

Nirilnege ficava, segundo um mapa que Legonon rabiscara relativamente próxima da costa e, assim, o caminho mais curto seguia pela orla ocidental das Heniunel, e passava muito perto de Nielirian. No entanto, decidiram não visitar Galianar, pois perderiam mais tempo e a Primavera avançava rapidamente. Ao início, as montanhas estavam recobertas de árvores e era necessário avançar pelo terreno inclinado num trajecto ziguezagueante e com muito cuidado para não escorregar na terra solta ou tropeçar nalgum ramo caído. As árvores proporcionavam-lhes uma certa protecção e um ou outro fruto ou semente. Por vezes, um deles colhia algumas folhas de uma planta com propriedades medicinais específicas e guardava-as entre as suas coisas. Noutras alturas, montavam uma pequena armadilha para apanharem um qualquer animal que passasse, despreocupadamente, por ali e, depois, assavam-no num espeto improvisado. Iruvienne não gostava muito daquilo e, nessas alturas, geralmente comia pouco. No entanto, sabia que deviam poupar os mantimentos que levavam. À medida que subiam, o ar tornava-se mais fresco e os ramos das árvores mais carregados de líquenes. Em Caladmiron, as árvores ostentavam líquenes planos ou pequenos tufos fofos, de várias cores e feitios. Mas ali, os líquenes eram sempre do mesmo verde-seco-claro e eram tão grandes e frondosos que, por vezes, recobriam todo o tronco e ramos das árvores, pendendo em direcção ao chão, como se fossem longas e finíssimas folhas. Durante essa primeira parte da viagem, dormiram nos ramos das árvores, com as copas a servirem-lhes de tecto, ou sobre a protecção de uma pequena abóbada criada por alguma enorme e ramificada raíz. Mas, quanto mais subiam, menos árvores encontravam e, rapidamente, tudo o que viam eram enormes pedregulhos ou fragas, envolvidos por um mar de luxuriantes arbustos selvagens. Então, tinham de dormir no chão, à mercê dos ventos e de todo o frio que a noite trouxesse. Nessas noites, procuravam a protecção de algum penedo, cobriam-se com mais uma manta e dormiam muito próximos uns dos outros, para não sentirem tanto o frio. Iruvienne e Aran estavam habi tuados a dormir ao relento, mas, mesmo assim, Iruvienne tinha certeza de que nunca tivera tanto frio em toda a sua vida. Leg non parecia não se importar tanto. Mas, é claro, ele vinha de terra onde estava sempre tudo nevado.

Num desses dias, passaram pela carcaça de um velho e deslocado carvalho que secara. O tronco vazio, de um cinzento muito ligeiramente acastanhado, servia de vaso a um novo e vigoroso carvalho de ramos delgados, mas verdejantes folhas.

Aran e Legonon trocaram um olhar cúmplice e sorriram.

- O que se passa? - perguntou Iruvienne, com um tom de divertimento.

- Há uma pequena gruta aqui perto - respondeu Aran.

- Descobrimo-la quando íamos para Omnirion. Esta noite, Iruvienne, vamos poder dormir um pouco mais quentes. Anda - disse, com um dos seus sorrisos torcidos, e começou a andar. Iruvienne seguiu-os, igualmente ansiosa.

A gruta não era muito funda, mas era suficientemente grande para os abrigar do frio do exterior. Encostaram as mochilas ao fundo da gruta, estenderam as mantas no chão e, com os ramos secos que Legonon cortara do velho carvalho, acenderam, perto deles, uma pequena fogueira resguardada por alguns calhaus irregulares. O fogo projectava as suas sombras na parede rochosa e irregular da gruta e, quem só visse as sombras, diria que eles eram enormes e fantasmagóricos gigantes. Iruvienne sentia aquele lugar inóspito e selvagem a entrar dentro de si. Podia ouvir a voz rude das pedras e o sussurrar da vegetação. Aquilo não era em nada semelhante às montanhas de Brumívium. Uma floresta, onde quer que estivesse, era sempre uma floresta; estava habituada à vida, a ser habitada e percorrida por seres mais ou menos conhecidos, e a sua voz seria sempre suave e amena. Mas aquele lugar, perdido no meio das Heniunel?... Aquele era um lugar onde raramente alguém chegava. Os únicos animais que ali viviam eram grandes aves caçadoras, alguns insectos, cobras e outros tipos de rastejantes. Havia pouco lugar para os animais mais frágeis. Só os mais fortes conseguiam sobreviver. De facto, a mensagem era muito clara. Tudo aquilo era selvagem e não queria ser incomodado.

Passem, mas não fiquem.

- Nhar parnarias. - murmurou Iruvienne.

Legonon olhou-a, completamente admirado. Era estranho! conhecia aquela língua, nunca a ouvira antes e, no entanto...

Não ficaremos.

Sentira-se tão perto do seu significado! Quase percebera o que ela dissera. Aran não olhou para Iruvienne, limitou-se a sorrir.

- Vamos comer qualquer coisa? - perguntou, abrindo a sua própria mochila.

- Sim - respondeu Iruvienne, abandonando o ar ligeiramente ausente com que estivera até ali. - É uma óptima ideia. Comer um pouco e depois dormir uma boa noite de sono, bem abrigados do vento.

Legonon ainda a olhava com uma expressão estranha no rosto; como se a verdade tivesse estado muito próxima de si, mas o tivesse abandonado no momento mais importante. Iruvienne sorriu-lhe, um pouco desafiadoramente, mas ele não Lhe perguntou nada.

Comeram um pouco de carne, pão e biscoitos, enquanto conversavam e, aos poucos, o Sol completou a sua trajectória, dando lugar à escuridão da noite. Então, o cansaço e a fadiga tomaram conta deles. Assim, arrumaram a comida nas mochilas, fecharam-nas firmemente, não fosse algum bicharoco sentir o cheiro dos alimentos e encontrar o caminho até ao interior das mochilas, encostaram-nas, novamente, ao fundo da gruta e deitaram-se. A fogueira continuou acesa e eles ficaram a ver o fogo a consumir, lentamente, os ramos. Mas, quando já só havia cinzas no chão da gruta e a única luz que restava era a das estrelas e a da Lua, apenas Iruvienne continuava acordada. Aran bocejou várias vezes até que, por fim, caíra num sono pesado. Legonon ficara ainda muito tempo acordado, os olhos fixos no fogo sem no entanto o verem, e a mente muito longe dali, mas também ele acabara por adormecer.

Iruvienne virou-se de lado e aconchegou a manta

ao corpo. As pedras estavam silenciosas, a vegetação e a terra dormiam, dando lugar às actividades misteriosas dos seus habitantes nocturnos. Tudo parecia calmo. Fechou os olhos, devagar, e adormeceu.

Na manhã seguinte, quando Aran e Legonon acordaram, encontraram-na de pé, à entrada da gruta. O seu corpo estava extremamente direito, os braços um pouco abertos, a cabeça ligeiramente inclinada para trás e os olhos fechados. Aran não podia ter reparado, mas Legonon viu as orelhas pontiagudas de Iruvienne a agitarem-se, imperceptivelmente, como se estivesse a ouvir algo com extrema atenção.

- Bom dia - disse Iruvienne, alegremente. - Gosto deste lugar. É completamente livre; não tem preocupações e, para ele, o Mundo é, efectivamente, imutável. - Abriu os olhos e sorriu.

- Podia vir aqui e sentir-me totalmente selvagem, sem problemas e sem nada em que pensar, totalmente livre de raciocínios complicados.

- Talvez - murmurou Aran.

- Sentava-me aqui e ficava, simplesmente, a sentir o vento enquanto via a Natureza e ouvia a sua voz milenar.

- Ah... - fez Aran. - Mas, então, continuarias a ser tu. Iruvienne sorriu, abriu a sua mochila, agarrou num bolo de mel e numa maçã e sentou-se no chão a mordiscar ora um, ora outro. Legonon e Aran sentaram-se ao seu lado e começaram também a comer. Quando acabaram, arrumaram tudo nas mochilas, puseram-nas às costas e partiram. Antes de sair da gruta, Iruvienne murmurou algumas palavras de agradecimento em Lissanin, tal como fazia sempre que se preparavam para reiniciar a viagem.

E a viagem continuou; sempre a subir e cada vez mais difícil e cansativa. As árvores tinham desaparecido, a vegetação começava a rarear e as pedras eram cada vez maiores e mais escarpadas. O frio também continuava a aumentar. Aran já vestira tudo o que podia e até Legonon se agasalhara mais. Iruvienne vestiu a camisola que Ailura fizera com lã descolorada e pouco tratada. O formato da gola, os pontos e padrões estranhamente modernos para aquele Mundo e o trabalho desajeitado de Ailura provocaram uma certa admiração tanto em Legonon como em Aran. Em Legonon porque nunca vira algo parecido e em Aran porque não imaginara que Iruvienne trouxesse aquela camisola trapalhona. Assim, a camisola acabou por fazer com que Iruvienne contasse a história de Ailura. E esse dia de viagem tornou-se mais agradável e divertido.

Continuaram a subir as Heniunel até que, por fim, tudo o que viam era um enorme manto branco pontuado por uma ou outra parte de um penedo rochoso que a neve não conseguira ocultar. Ao início, Legonon parecia contente, talvez aquilo Lhe lembrasse a sua terra. Mas, ao fim de alguns dias, também ele ficou calado e sério, os olhos sempre ligeiramente semicerrados, para se protegerem dos ventos furiosos que assolavam aqueles picos brancos. Aran caminhava cabisbaixo e de ombros curvados, numa tentativa de se proteger do vento e, talvez, ficar um pouco mais quente. Iruvienne continuava com o seu porte altivo, as costas muito direitas, os braços caídos ao longo do corpo a oscilarem suavemente, e a cabeça erguida, sempre a olhar em frente. No entanto, não se sentia especialmente confortável. O capuz teimava em cair-lhe para as costas, os seus olhos estavam continuamente semicerrados, tinha muito frio e sentia-se, insuportavelmente, suja. De facto, o que mais queria era um bom banho quente. Jamais se sentira tão imunda! Nem mesmo quando dormira no chão enlameado de Brumívium se sentira assim. E, contudo, sabia que o seu aspecto não era tão mau como nessas alturas.

Durante a perigosa travessia dessas montanhas escarpadas e ventosas, os três amigos falaram pouco. Aran seguia calado, sem nunca se queixar. Continuava a ser aquele guarda silencioso e discreto, sempre pronto para a amparar se ela se desequilibrasse. Legonon entoava, frequentemente, melodias das Terras Brancas, numa voz baixa, mas sempre grossa e profunda. Às vezes, parecia que a sua voz se misturava com o próprio vento e nem Aran, nem Iruvienne sabiam ao certo quem estava a cantar: se Legonon, se o vento, ou se ambos. Iruvienne ouvia a voz das coisas, da Natureza, e escutava com atenção todos os pequenos ruídos que a cercavam: aqueles que os humanos conseguiam ouvir e os que até ela tinha dificuldade em perceber. E os seus olhos estavam sempre atentos, captando todos os pormenores que a rodeavam, lendo todos os sinais, para tentar saber se ainda faltaria muito e se, no dia seguinte, o tempo estaria melhor ou pior do que no anterior.

Por fim, as montanhas pareceram mudar um pouco e as suas vozes tornaram-se mais calmas. Ainda ostentavam todo aquele manto brilhante que reflectia a luz solar, mas os ventos tinham amainado, todas elas tinham uma forma mais arredondada, os declives das encostas eram mais suaves e as rochas já não eram escarpadas e perigosamente pontiagudas, mas lisas e redondas, ideais para se sentar a descansar. E, então, Legonon olhou para o sopé da montanha que estavam a descer e nasceu-lhe no rosto um leve sorriso de contentamento e antecipação. Iruvienne olhou-o com uma pequena expressão inquiridora e Aran aproximou-se para ver melhor.

- Vem, Iruvienne - disse Legonon. - Vê com os teus próprios olhos.

Iruvienne não podia acreditar. Já teriam chegado a Nirilnege? Não, não podia ser. Legonon dissera-lhe que Nirilnege ficava no meio de uma floresta situada num enorme planalto. Era demasiado cedo, demasiado abrupto. Mas ele estava tão contente... Aproximou-se deles e espreitou também.

Poucos metros à frente deles, estendia- se uma enorme lagoa fusiforme de águas azul-escuras seguida por um planalto tão liso e branco que quase parecia um lago gigante de águas brilhantes. Construída a poucos metros da margem da lagoa, estava uma casinha de troncos. Da imperceptível chaminé da casa saía um fumo convidativo.

Iruvienne não conseguia compreender. Por que estavam os dois com aqueles sorrisinhos cúmplices? Sentiu-se tolamente furiosa. Apetecia-lhe atirar Aran ao chão e fazê-lo rebolar até que ele lhe explicasse o que se estava a passar. Mas antes que tivesse tempo para fazer fosse o que fosse, já os dois estavam a descer a encosta e ela teve de os seguir. À medida que desciam, Iruvienn começou a aperceber-se de uma canoa encostada a uma das paredes da casa e de um vulto, acocorado na margem do lago, que observava, atentamente, uma coisa qualquer. - Lensyn - chamou, alegremente, Legonon, quando estavam a chegar ao sopé da montanha.

A figura esguia que estava junto da margem levantou-se, olhou para trás e sorriu.

- Legonon - disse, claramente, e com igual entusiasmo.

- Não te esperava tão cedo. E muito menos acompanhado.

- Inclinou a cabeça, muito ligeiramente, para o lado esquerdo.

- Aran! Bela surpresa. Queres mais umas lições de arco, é isso? E trouxeste companhia. Bem-vinda, Dama...

- Iruvienne - completou ela, inclinando, ligeiramente, a cabeça e sorrindo.

- Perdoai-me, Rainha - desculpou-se o elfo que ficara, subitamente, muito atrapalhado -, mas como deveis compreender não esperava a vossa visita. De facto, só contava com o príncipe Legonon.

- Por mim, estais perdoado - disse Iruvienne. - Devo confessar que estou completamente confusa. Não percebo nada do que se está a passar.

Olhou para Aran com uma expressão muito calma, mas extremamente inquiridora.

- Desculpa-me, Iruvienne - disse Legonon. - A culpa é toda minha. Devia ter-te explicado o que se passava, lá em cima. Vou tentar redimir-me. - Fez uma pequeníssima pausa. - Para começar, isto não é Nirilnege. Mas, é claro, isso já tu deves ter percebido. Lensyn é um grande amigo meu, desde que somos pequenos. - Lensyn inclinou um pouco a cabeça, como que a confirmar. - E foi a ele que coube a ingrata tarefa de ficar aqui à minha espera. Amanhã de manhã, passaremos para o outro lado da lagoa e, em pouco tempo, estaremos em Nirilnege.

- Claro, claro - disse Lensyn. - Mas isso será só depois de vocês terem tomado um banho quente, e de termos todos comido uma refeição quente e dormido uma bela noite de sono. - Abriu os braços num gesto largo, como que a agarrá-los a todos.

Por isso, vão indo para dentro, enquanto eu tento pescar o jantar. Enquanto os três amigos entravam na casinha de madeira Lensyn regressou à borda do lago e retomou a sua posição ao lado da delgada cana de pesca. As águas do grande lago estavam paradas, o vento não soprava, e não se via qualquer vulto escuro a deslizar debaixo de água, prestes a morder o isco. Teria de esperar calmamente que algo acontecesse. Afinal, pescar sempre fora um jogo de paciência.

Olhou por uns instantes para a planície branca que se estendia à frente do lago e concentrou-se uma vez mais na ponta da cana apoiada num graveto em forquilha. Então, subitamente, a cana vergou e lensyn apressou-se a agarrá-la. Debaixo de água, o peixe deu um forte safanão, tentando libertar-se. O elfo baixou a cana, deixando-o nadar um pouco, e aproximou-se tanto da margem que quase entrou dentro do lago. Voltou a levantar a cana e recuou. Agora, tudo o que tinha a fazer era cansar o peixe. Repetiu os movimentos várias vezes até que, por fim, a tensão no fio da cana aliviou. Rapidamente, lensyn puxou a cana e agarrou o fio. Presa no anzol estava uma grande e reluzente carpa.

A casinha tinha três divisões. A maior, para a qual dava a porta de entrada, servia de cozinha e sala de estar. Ao lado dela, uma estreita porta abobadada escondia a casa de banho.

por cima de tudo isto, havia uma grande plataforma de madeira que formava uma espécie de segundo andar e servia de quarto de dormir. A decoração era frugal e limitava-se ao estritamente necessário. Contudo, era óbvio que Lensyn tomara todas as precauções para tornar aquele lugar o mais agradável possível.

Havia pequenos livros e cadernos empilhados em cima da grande mesa de jantar e, encostado a um dos cantos, estava um lindíssimo e forte arco de madeira clara, com elegantes e estilizadas linhas esculpidas e cuidadosamente pintadas a castanho-escuro. Ao lado do arco, repousava uma aljava de pele resistente e bem curtida, repleta de setas. E, por todo o lado, havia pequenos sinais de que a casa estava bem cuidada: as janelas limpas, as camas feitas, a cozinha arrumada, os frascos dos ingredientes colocados por uma determinada ordem.

lensyn indicou a casa de banho a Iruvienne e, enquanto ela se deliciava com um longo banho quente, montou em cima da plataforma, com a ajuda de Aran e Legonon, duas camas improvisadas.

Quando todos tinham tomado banho, lensyn começou a temperar a carpa e a inventar uma espécie de pasta, para acompanhar, feita a partir dos pães e da fruta que sobrara da viagem. Legonon ficou a ajudá-lo e Iruvienne e Aran remendaram e lavaram as roupas sujas pela longa travessia que, depois, penduraram na lareira para secarem. Lensyn entalou o peixe numa grelha própria para o efeito e, pacientemente, grelhou-o nas brasas da lareira. Legonon sentou-se, de pernas cruzadas, ao seu lado. Iruvienne e Aran ficaram um pouco mais atrás, sentados em frente à mesa. lensyn e Legonon tagarelavam na sua língua. Era uma língua suave, de sons cristalinos e melodiosos. Iruvienne notava algumas semelhanças entre o lelvnege e a sua língua, algumas palavras com a mesma origem, e, ao início, tentou seguir a conversa, mas rapidamente se perdeu. Por isso, ficou a observar Aran a limpar a espada. Não queria ter nada na cabeça. Estava cansada, cansada de mais até para pensar. Tudo o que queria era comer e dormir. Mais nada.

- Desculpe a pergunta - disse, inesperadamente, Lensyn -, mas Legonon estava a contar-me que é uma guerreira muito hábil e eu queria saber se é boa com o arco.

Iruvienne sorriu.

- A minha pontaria não é má - respondeu. - E sou suficientemente boa para segurar no arco direito e acertar no alvo. Mas sou muito melhor com a espada e a adaga.

Lensyn não disse nada e voltou a olhar para o peixe que estava a grelhar.

- Os Elfos sempre foram exímios arqueiros - continuou Iruvienne - e seria verdadeiramente estranho se um de nós não conseguisse pegar num arco e atirar convenientemente. Mas, mesmo assim, há entre nós aqueles que se distinguem pela sua destreza e rapidez. Eu não sou, certamente, um desses.

- Mas lensyn é - disse Aran.

O elfo virou-se e olhou Iruvienne com os seus olhos azul-escuros. O seu rosto tinha uma expressão um pouco infantil e sonhadora.

- Não sei se sou um desses Elfos, mas gostaria de ser.

- Ora - resmungou Legonon - se tu não és um desses Elfos, então ninguém é. Além disso, sabes, perfeitamente, que és o melhor. Pelo menos em Nirilnege. Ainda há pouco tempo te oferecias para dar mais aulas a Aran!

Lensyn parecia cada vez mais atrapalhado. Olhava, nervosamente, para Legonon e a sua pele muito branca começava a ganhar um tom rosado. Concentrou-se novamente na carpa. Legonon sorriu-lhes, virou-se para o amigo e murmurou-lhe qualquer coisa em Ielvnege. lensyn sussurrou-lhe uma resposta e afastou com um gesto rápido os cabelos loiros que Lhe caíam para o rosto e levantou- se.

- Está pronto - declarou, enquanto passava o peixe para uma travessa e o rodeava com a pasta. - Vamos comer!

Legonon sentou-se à mesa, pegou no jarro de vinho e serviu-se. lensyn começou a cortar a carpa.

- Senhora... - disse, estendendo-lhe um prato já servido.

- Obrigada - agradeceu Iruvienne.

O jantar foi agradável. Comeram calmamente, enquanto conversavam sobre Caladmiron e os costumes do Povo da Luz.

lensyn começara a perder a vergonha e ouvia, avidamente, cada palavra de Iruvienne e Aran, tentando aprender um pouco mais alimentando a sua discreta ânsia de saber.

Quando terminaram, lavaram e arrumaram a louça puseram mais lenha na lareira, fecharam as portadas das janelas e deitaram-se. Lensyn e Legonon insistiram para ficarem nas camas improvisadas e Aran e Iruvienne ficaram nas outras duas. Aran adormeceu imediatamente, mas Iruvienne ainda ficou algum tempo acordada. Ao seu lado, conseguia ouvir Legonon e Lensyn a falarem em Ielvnege. Pareciam os dois muito contentes.

- Iruvienne... - chamou Legonon.

- Sim.

- Amanhã chegaremos a minha casa e, desta vez, vou ser eu a mostrar a minha terra. Vais ver como tudo lá é bonito.

Iruvienne sorriu no escuro.

- Lá, tudo é extremamente bonito - corrigiu lensyn, com uma voz ensonada. Iruvienne ouviu-o a virar-se. - Sim... amanhã, quando o dia estiver a terminar, chegaremos a Nirilnege.

 

                           NIRILNEGE

Na manhã seguinte, cada um comeu um bolo acompanhado por alguns frutos secos que lensyn guardava numa tacinha de vidro. Depois, vestiram as roupas lavadas que, durante a noite, tinham secado, guardaram as outras nas mochilas, desfizeram as camas, enfiaram os lençóis na grande mochila de lensyn, embrulharam a comida que restava e distribuíram-na pelas quatro mochilas. O elfo prendeu o arco e a aljava às costas, guardou na mochila os livros e os cadernos onde rabiscava os seus poemas, e saíram de casa. Enquanto lensyn levava Iruvienne para a outra margem da lagoa, Aran e Legonon trancaram a porta de entrada com uma grande e grossa tábua de madeira. A canoa atravessou a lagoa mais quatro vezes até que, por fim, estavam todos do outro lado, com as respectivas mochilas às costas. Deixaram a canoa, virada ao contrário, na margem da lagoa, e continuaram.

A parte final da viagem foi muito fácil, pelo menos comparada com o início. O terreno ora subia ligeiramente ora descia um pouco, até que, por fim, a inclinação se tornava mais acentuada e uma nova encosta começava. Desceram-na calmamente. Ao longe começava a ser visível uma grande floresta de árvores altas, que se estendia por um enorme planalto branco: Horrizonege. Quando atingiram o sopé da montanha e começaram a caminhar pelo planalto, em direcção à floresta, as Heniunel tinham, finalmente, ficado para trás.

Ao início, Iruvienne pensou que já não estariam muito longe da floresta, mas a neve a brilhar era enganadora e, por mais que avançassem, a distância parecia ser sempre a mesma.

Legonon e Lensyn caminhavam com um ânimo especial. Afinal eles viviam em Nirilnege e regressar a casa é sempre bom. Aran caminhava com passadas largas e vigorosas, mas com a cabeça e os ombros a agitarem-se, de vez em quando, como que para expulsar o cansaço. Ele era forte e os longos treinos da infância e da juventude tinham-no tornado extremamente resistente. No entanto, qualquer humano, mesmo Aran, tinha de estar exausto ao fim da travessia das Heniunel. Ele ia precisar de uns dias de repouso e Iruvienne obrigá-lo-ia, docemente, à inactividade física quase total. Ele não ia ficar nada contente.

Por fim, a distância que os separava da floresta encurtou e Iruvienne pôde ouvir o sussurrar das folhas das árvores. O som era um pouco diferente do das árvores de Caladmiron, mas, mesmo assim, era perfeitamente deleitante. E quando, finalmente entraram na floresta, Iruvienne não conseguiu resistir a esticar uma mão e roçá-la pelas folhas.

O interior da floresta era frio, mas o ar não tinha aquela sensação de frescura gelada que se sentia em Brumívium. Ali, o ar era, simplesmente, frio. Um frio que Lhe roçava, agradavelmente a pele macia e lisa do rosto e lhe rodeava o corpo, tentando infiltrar-se nas suas roupas. As árvores eram altas, imponentes e pacíficas, sem o mistério e encanto que tanto caracterizavam as árvores de Caladmiron e Brumívium. Claro que encerravam os seus próprios segredos, como qualquer árvore, mas não tinham aquela aura mágica de quem já viu muita coisa e conhece as respostas para muitas perguntas complicadas. E, no entanto, com a sua presença tranquila e imponente, também elas impunham respeito. O chão estava coberto com uma fina camada de neve excepto em alguns sítios onde, acidentalmente, a neve derretera.

Ouvia-se um som suave e tranquilizante de água a ondular; talvez um rio que corria, calmamente, para o mar. E havia no ar um cheiro levemente adocicado.

O sol começou a pôr-se, mas Legonon e Lensyn continuaram a guiá-los por um caminho que, sem dúvida, tinha sido percorrido muitas vezes. Aran levantou os ombros, deu um puxão à capa para a

frente e rodou a cabeça. Iruvienne aproximou-se dele.

- Achas que falta muito? - perguntou.

- Não - respondeu ele, e a sua voz soou cansada e pesada.

- Ouves este som, muito baixinho, de água a correr? É o Ion, o rio que atravessa a floresta. Há outros riachos por aqui, mas são irrelevantes. É difícil pescar seja o que for neles e, na maior parte do ano, estão gelados. Por isso, o Ion é o mais importante. Nirilnege fica um poúco antes dele. Ainda chegamos de dia.

- Iruvienne continuou. a andar. - Pequenina... Eu estou bem.

- Hum, hum...

Aran sorriu e fez questão de ultrapassá-la. Iruvienne acelerou o passo e os dois iniciaram uma pequena e discreta competição, tal como faziam quando eram pequenos. E, então, passado pouco tempo, as árvores pareceram desaparecer para darem lugar a uma enorme e estranha construção de madeira. Bem no centro, havia uma grande escadaria, ladeada por altos archotes já acesos, que conduzia a duas gigantescas portadas com estranhas inscrições. Iruvienne tinha a sensação de que já vira aqueles desenhos antes, mas não sabia onde. A construção tinha um tecto extremamente inclinado e três andares, para além da provável cave, por baixo do andar da porta de entrada. As janelas eram altas e redondas em cima, com pequenos vidros presos num caixilho de madeira que se cruzava, formando pequenos quadrados. Nos andares superiores, havia algumas varandas e, por vezes, janelas mais estreitas e pequenas, de vidros habilmente pintados. A madeira fora trabalhada com alguns desenhos de árvores e flores, e havia fumo a sair de várias chaminés.

- Bem-vinda a Nirilnege - disse Legonon, virando-se para Iruvienne. - Sei que o nosso palácio não é tão aberto para a Natureza como o vosso, mas, mesmo assim, espero que gostes e que te sintas bem aqui.

Iruvienne sorriu. Era verdade que aquele palácio era muito mais fechado e compacto do que ela estava habituada, mas não deixava de haver ali qualquer coisa de élfico, qualquer coisa de extremo respeito e contacto com a Natureza.

- Tenho a certeza de que vou adorar - respondeu.

Legonon inclinou ligeiramente a cabeça e, por uns brevíssimos segundos, teve um sorriso que Lhe iluminou o rosto todo.

- Então, entremos - disse, começando a subir as escadas.

As grandes portas de madeira abriram-se e eles entraram.

No interior estava muito mais quente, talvez por causa dos archotes que ardiam pendurados nas paredes ou, simplesmente, porque era um lugar habitado. A decoração era muito simples. Para além de uma fita daqueles estranhos desenhos, que percorria todo o hall de entrada, havia apenas dois estandartes, com bandeiras iguais, a ladearem o arco que dava acesso ao resto do palácio. As bandeiras eram longas, estreitas e brancas. Junto ao mastro tinham um complexo desenho de linhas douradas intricadas que formavam uma espécie de estrela com uma árvore dentro: o símbolo de Nirilnege. O resto das bandeiras estava salpicado com finos e elegantes ramos de pinheiro.

Dois guardas de longos cabelos loiros fecharam as portas.

- Senhores, Senhora... - disse um deles, inclinando-se profundamente - estávamos à vossa espera.

- Um dos vigias viu-vos a entrar na floresta e enviou-nos

uma mensagem - disse o outro.

- O Rei aguarda-vos - disse o primeiro.

- Obrigado - respondeu Legonon, tirando a mochila e encostando-a a uma das paredes. Como Aran e Lensyn estavam a fazer a mesma coisa, Iruvienne tirou também a mochila e deixou-a ao lado das outras. - Sigam-me.

Legonon guiou-os através de um largo corredor, ao longo do qual continuava aquela intrigante fita de inscrições.

Iruvienne observou-as com todo o cuidado, tentando acordar algo na sua memória. Mas avia uns que quase pareciam um "I", outros que eram, distintamente, um "R", alguns que eram uma espécie de dois "XX" um em cima do outro, vários que lembravam um "T", outros que se assemelhavam a um "X" com um chapéu... Um "X" com um chapéu! A viagem para Rizan, o desenho que os ramos da árvore formavam, o sorriso de Legonon e a voz do pai, há muito tempo, quando ela era ainda uma criança. E, então, percebeu. Sabia o que eram aqueles desenhos. E não eram desenhos, mas sim caracteres. Caracteres rúnicos. Antigamente, no tempo em que os Povos Sábios conviviam com os Homens, os humanos chamavam-lhes runas das terras élficas, talvez pressentindo o mistério e a magia de que elas se revestem. Mas, de facto, não tinham sido os Elfos e as Fadas a inventá-las. Elas tinham surgido no início dos tempos, ninguém sabia muito bem como, e eram infinitamente anteriores a eles. Era verdade que, durante muito tempo, eles tinham-nas usado; os Homens diziam até que os Elfos e as Fadas brincavam com as runas. Mas os significados mais profundos daquela língua sagrada e ancestral não lhes pertenciam. Só a Natureza sabia tudo o que elas exprimiam, porque, afinal, elas eram quase uma linguagem sua. A cada runa correspondia uma letra e, às vezes, havia mais do que uma runa para a mesma letra; mas, para além disso, cada runa tinha o seu próprio significado, que se alterava, subtilmente, conforme as situações. As runas eram uma linguagem lindíssima, ainda mais deslumbrante que o Lissanin, embora com capacidades totalmente diferentes. Durante muito tempo, os sábios tinham-nas usado, mas, lenta e inexplicavelmente, tinham caído no esquecimento e só muito poucos se lembravam delas.

Pararam. Estavam em frente a duas portas fechadas onde duas grandes runas sobressaíam, claramente. Legonon aproximou-se de Iruvienne.

- Tal como te disse no dia do baile - sussurrou ele - nós também sabemos alguns dos antigos segredos. Fiquei muito admirado quando não vi uma única runa em Omnirion, e pensei que as tivessem esquecido. Mas, depois, vi a tua expressão quando aquela árvore, a caminho de Rizan, nos mostrou uma runa e percebi que, pelo menos alguns de vocês, ainda têm uma ideia do que elas são. - Sorriu, ligeiramente. - Não te disse o que era, porque achei que devias descobrir sozinha.

- Legonon... - chamou Lensyn - O teu pai está à nossa espera.

- Eu sei - respondeu ele e inclinou-se, ligeiramente, sobre Iruvienne. - Aqui, cada sala tem uma fita de runas a toda a volta e cada fita conta uma história. Talvez, um dia destes, possamos sentar-nos, calmamente, a decifrá-las.

Iruvienne sorriu. Legonon virou-se, abriu as portas e eles entraram.

A sala do trono era grande e circular. Havia três filas de cadeiras de costas altas de cada um dos lados e, ao fundo, em cima de um estrado baixo, estavam duas cadeiras de braços. À frente delas, encontrava-se o trono de madeira, ricamente trabalhado. Quando eles entraram, o Rei e os dois elfos que se sentavam atrás dele, levantaram-se imediatamente. Adhar usava, sobre os cabelos de um loiro extremamente claro, uma coroa de ouro branco rendada que, na frente, ostentava o símbolo de Nirilnege. O seu rosto era agradável e bem definido por traços firmes, mas mais ternos que os do filho. Os seus olhos azuis brilhavam com o conhecimento de muitos anos e, apesar de ele parecer contente, tinham uma expressão um pouco triste. Iruvienne conhecia aquele olhar. Era parecido com o de Galaduinne, desde que Ogueimion morrera.

O pequeno grupo parou, com Legonon na frente. O elfo inclinou o tronco, respeitosamente, e afastou-se para o seu lado esquerdo, de forma a deixar Iruvienne passar. Ela deu um passo em frente e inclinou a cabeça, em sinal de respeito e reconhecimento.

- Bem-vinda, Rainha Iruvienne - disse Adhar, cortesmente, descendo do estrado. - Estamos muito felizes com a sua visita.

- E eu estou muito contente por aqui estar - respondeu Iruvienne. - É, para mim, uma honra. Vocês jamais foram esquecidos por nós, mas não sabíamos se tinham chegado ao vosso destino ou se tinham morrido no caminho. Fiquei contente por saber que encontraram um lugar seguro.

- Sim, é um lugar bonito e seguro, dentro das possibilidades. Também temos os nossos pequenos confrontos e problemas, mas, felizmente, nada que se assemelhe à sombra que, segundo os nossos relatos mais antigos, vive nas vossas terras.

- É, de facto, uma sombra terrível e caprichosa que continua a ensombrar os nossos dias. Mas não quero falar dela, nem trazer a sua memória para aqui. Não tenciono falar da dor que ela nos tem causado. Não é esse o meu objectivo.

- Claro que não. Mas será que me é permitido perguntar qual é o seu objectivo?

Iruvienne sorriu.

- Estais em vossa casa e, por isso, tendes todo o direito de me perguntar qual a razão da minha inesperada visita.

Adhar olhou-a, docilmente, com um ar um pouco paternal.

- Claro que tenho - disse, suavemente. - Mas também eu sou um elfo e sei ver muito para além do que é visível. Eu também compreendo certos... mistérios, Rainha. E sei que, algumas perguntas, não devem ser postas.

- É verdade. Mas, mesmo assim, responderei à vossa questão. Vim porque queria conhecer Nirilnege, porque quero saber mais e acho que devemos ver tudo. Quanto mais conhecemos, mais sabemos e podemos decidir e actuar com mais sabedoria. No entanto, devo confessar que também venho à procura de respostas.

- Respostas? - admirou-se Adhar. - Não sei que tipo de respostas procurais, mas parece-me difícil que as encontreis aqui.

- De facto - disse Iruvienne -, nem eu própria sei bem qual é a pergunta. Estou apenas à espera que algo aconteça.

Quando chegar o momento, se alguma vez chegar, saberei.

- Muito bem. Então peço apenas que, quando esse momento chegar, não hesiteis em procurar a minha ajuda.

Dá-la-ei de bom grado, pois algo me diz que o que procurais está ligado à sombra de que falávamos e que o resultado final nos ultrapassará aos dois em muito, apesar de irmos sofrer as suas consequências directamente. - Obrigada - disse Iruvienne, inclinando, profundamente a cabeça. - Sou nova e não tenho a sabedoria daqueles que já viveram muito. No entanto, pressinto em vós um dom especial.

- Não - disse o Rei, com uma pequena risada abafada.

- Não é nada de tão especial. Apenas um pouco de perspicácia élfica. - Ergueu um pouco a cabeça e olhou para trás de Iruvienne.

- Bem-vindo, Aran. É sempre um prazer ver-te por cá. E tu também és muito bem-vindo, lensyn. - Olhou, novamente, para Irovienne. - Penso que devia organizar uma grande festa, mas não para já. Vejo que estão todos muito cansados e, sem dúvida precisam de três ou quatro dias para descansar. Por isso, o melhor é irem tomar um banho e, daqui a pouco, encontramo-nos, outra vez, para um jantar sossegado. Tenho a certeza de que Legonon e Lensyn vão adorar acompanhar Aran até ao quarto dele. Eluade...

- chamou, virando a cabeça ligeiramente para trás. Uma rapariga alta, de cabelos louros e olhos azul-escuros, extremamente parecida com lensyn, saiu das sombras, por trás do estrado. - Tens a amabilidade de levar a Rainha Iruvienne até ao quarto que preparámos para ela e de ajudá-la a arranjar-se?

- Claro, meu Rei - respondeu ela.

- Muito obrigado, Eluade - disse Adhar.

A rapariga dirigiu-se para a porta e o pequeno grupo acompanhou-a.

- Até já, maninha - disse lensyn, dando-lhe um beijo nos cabelos, quando já tinham saído da sala do trono e subido uma das escadas que dava acesso aos andares superiores.

- Até já - murmurou Eluade, sorrindo.

Os rapazes afastaram-se e Iruvienne seguiu a elfo.

O palácio era, verdadeiramente, gigantesco. O que era natural, pois, afinal, todo o Povo Branco vivia ali. Assim, os dois andares de cima destinavam-se, exclusivamente, aos quartos e a maioria dos aposentos tinha proporções consideráveis. A enorme sala de jantar, à qual se seguia um grandioso e descomunal salão de baile, a biblioteca, as salas de estar e as de trabalhar situavam-se todas no andar térreo. Na cave, ficavam as cozinhas e os armazéns.

O palácio formava os contornos de um quadrado, que delimitava um grande pátio branco interior. Espalhados pelo pátio estavam vários banquinhos de madeira e, perto de um dos cantos, havia uma casinha octogonal, com altas janelas de vidrinhos quadrangulares a servirem de paredes, que proporcionava um clima mais quente e protegido para o crescimento de determinadas plantas, a maioria delas com fins medicinais. Segundo Legonon, era um pouco apertada, mas não deixava de ser muito agradável.

Nos primeiros dias, enquanto Legonon, Lensyn e, por vezes Eluade levavam Iruvienne para conhecer um pouco da floresta Aran ficava naquela cidade-palácio, entretido a redesenhar e

aperfeiçoar o mapa das Heniunel. Mas, assim que recuperou as forças, juntou-se-lhes. Então, treparam às árvores para lhes conhecer a forma e os seus pequenos segredos, apanharam as pinhas caídas e levaram-nas para Nirilnege, onde Lhes tirariam os pinhões, sentaram-se num ramo forte, muito quietos e calados, a espiar alguma ave que fazia o seu ninho ou se preparava para caçar algum animal incauto. Iruvienne reconhecia, frequentemente muitos dos desenhos e histórias de Aran, mas era completamente diferente estar ali e presenciar todo aquele ambiente suave e pacífico. Por vezes, parecia-lhe que aquele era um lugar estático.

As estações e os anos passariam e ele ficaria sempre igual. Talvez fosse a neve, com o seu frio, que o conservava assim.

- Pensas de mais, pequenina - sussurrou-Lhe Aran, uma vez que estavam sentados entre os ramos de um pinheiro, a observar as deambulações de uma jovem marta.

Iruvienne deslizou do ramo em que estava sentada, desceu da árvore e baixou-se. Aran seguiu-a.

- Pequenina!

Iruvienne virou-se, de repente, e atirou-lhe uma bola de neve.

- Não vale - resmungou Aran. - Apanhaste-me desprevenido.

- Oh! - brincou Iruvienne. - A culpa é tua.

Legonon e Lensyn emergiram do interior da árvore.

- O que se passa? - perguntou lensyn. - Ah! Uma guerra de bolas de neve - acrescentou ao reparar nos restos de neve espalhados na capa de Aran. Olhou para Legonon com um sorriso maroto. - Fazemos equipas?

Legonon encolheu os ombros e começou a juntar a neve à sua frente, até fazer uma bola redonda e firme.

- Acho que não vale a pena - respondeu, por fim. - É cada um por si.

Um segundo depois, lensyn recebia uma bola de neve, mesmo no meio da cara. E, rapidamente, todos atiravam bolas mais ou menos perfeitas, uns aos outros. Legonon preparava-se para bombardear Aran quando apanhou com uma na nuca. Girou, rapidamente, sobre si mesmo e lançou a bola, com uma pontaria incrível. Só se apercebeu de quem era o seu opositor quando a bola já voara da sua mão.

- Pai! - disse ele, com um fiozinho de voz abafada, ao mesmo tempo que Adhar levava com a bola.

O Rei limpou a cara com a mão e sorriu.

- Alguém vos viu e foi avisar-me. De facto, estava bastante preocupado. Parece que considerou o vosso comportamento pouco adequado. - Adhar encolheu os ombros. - Eu achei que era uma óptima ideia. - Baixou-se e começou a fazer uma nova bola. - Estranho como alguns do nosso próprio povo perdem tão facilmente a alegria das crianças. Só porque crescemos e temos responsabilidades, isso não quer dizer que, de vez em quando, não brinquemos como crianças. Mas algumas pessoas têm uma dificuldade incrível em perceber isto. - Levantou-se, com duas bolas nas mãos. - Importam-se de terem mais um jogador? Iruvienne sorriu. Adhar gostava de conversar com ela enquanto caminhavam pela floresta. Não eram conversas longas e enfadonhas de duas pessoas com responsabilidades idênticas, nem conversas sobre os costumes dos seus povos. Adhar parecia achar esses assuntos muito pouco interessantes, principalmente para um passeio. Isso eram conversas para os salões. Ao ar livre, falava-se do que era lógico falar: das pedras, das árvores, dos rios e das suas vozes e mensagens. Conversa élfica, dizia ele. Muito pouco interessante para o resto do Mundo, mas vital para eles. Sem a Natureza, o que seriam os Elfos? Figuras patéticas sem qualquer razão para existirem. Iruvienne gostava de o ouvir. Ele era um pouco como o seu pai: um sábio discreto e divertido, que preferia ensinar ou, apenas, cavaquear sobre o conhecimento da Natureza, em vez de sobre os grandes tratados e livros. Tudo isso era importante, mas podia ficar para depois, para quando não se pudesse sair ou se estivesse especialmente disposto a esse tipo de

conversas.

- Não há equipas - disse ela. - É cada um por si.

- Muito bem. Já percebi as regras - disse Adhar, e uma grande bola de neve voou em direcção a Iruvienne.

A lareira de pedra do quarto de Iruvienne estava acesa e ela caminhava pelo quarto, enrolada numa toalha e com os enormes cabelos, que quase lhe chegavam à cintura, a pingarem água para o chão. Acabara de tomar banho e estava à procura do pente, para desenriçar o cabelo. Remexeu nos objectos que estavam espalhados pelo toucador e, por fim, encontrou o seu pente de osso, com pequenos motivos florais esculpidos. Abriu as cortinas da janela que dava para a varanda e ficava entre a cama e a lareira, estendeu uma toalha em cima da cama e começou a desenriçar a sua farta cabeleira. Aquilo era um trabalho complicado, porque o cabelo estava cheio de pequeníssimos nós que o vento e o banho tinham criado. Quando, finalmente, acabou, enxugou os cabelos com a toalha já muito molhada e sentou-se de costas para a lareira.

Naquele dia, mesmo com as cortinas abertas e a lareira acesa, estava muito escuro dentro do quarto. O Verão ia, mais ou menos a meio, mas em Nirilnege continuava a fazer frio e os dias tinham- se tornado cinzentos e chuvosos. Aquele era, apenas, um desses dias. O céu estava de um cinzento muito escuro e brilhante, uma espécie de enorme mar prateado-negro; a chuva caía ininterruptamente e, às vezes, uma luz azulada ou violeta rasgava o céu e, passados alguns segundos, ouvia- se o forte ribombar de um trovão. Por vezes, as gotas eram mais grossas e uma súbita rajada de vento forte atirava-as contra as vidraças das janelas, mas, geralmente, a chuva limitava-se a cair como uma miríade de estreitos e ininterruptos fios de água, em direcção à neve que ia, lentamente, derretendo.

Iruvienne enlaçou os joelhos com os braços, fechou os olhos e ficou a ouvir os sons ora fortes ora suaves daquela composição desenfreada. Sempre adorara tempestades.

O som pesado de alguém a bater na madeira arrancou-a do meio daquele concerto. Virou a cabeça e apoiou-a nos joelhos.

- Entre - disse com uma voz um pouco alienada, e a porta à sua frente abriu-se. Eluade entrou, vestida de branco e com os longos cabelos loiros a caírem-lhe, livremente, pelas costas. Ao princípio não disse nada. Ficara surpreendida ao ver Iruvienne assim: uma figura delicada e, ao mesmo tempo, majestosa, encolhida sobre si mesma e embrulhada numa toalha branca, com a luz quente e bruxuleante da lareira a iluminá-la.

- O que foi? - perguntou Iruvienne, no mesmo tom.

- Vim ajudar-te a arranjares-te. - Eluade fechou a porta e sentou-se no banquinho do toucador que estava encostado à parede à direita da porta, ao lado de uma mesinha com um jarro de flores. - Pensei entrançar-te o cabelo, mas é melhor vestires-te primeiro.

Iruvienne endireitou as costas e levou uma mão ao cabelo.

- Acho que ele ainda está demasiado molhado para fazer penteados. Tinha esperança que o calor da lareira o secasse relativamente depressa, mas parece que ele está comprido de mais para isso.

Eluade encolheu os ombros.

- Tens um cabelo lindíssimo, mas, é evidente, nem sempre é fácil tratar dele.

Iruvienne sorriu-lhe e encolheu, também, os ombros. Eluade não era propriamente uma amiga, mas tinham-se tornado suficientemente próximas para dispensarem os "você" e falarem despreocupadamente, dos mais variados assuntos. Eluade adorava ouvi-la contar histórias, principalmente humanas. O Povo Branco nunca saíra de Horrizonege e Aran fora o primeiro humano que eles tinham visto. Por isso, queriam ouvir sempre mais coisas sobre o Mundo dos Homens, que lhes parecia completamente estranho e bizarro. Assim, Iruvienne desfiava todas as histórias de encantar que Ailura lhe contara. Eluade achava imensa piada à maneira como os humanos retratavam os Elfos e as Fadas e, ao longo da história, soltava vários risinhos divertidos, mas não conseguia negar que aquelas histórias tinham algo de apelativo e encantador. Talvez porque faziam as crianças sonhar.

- Já te contei aquela sobre uma menina que é transformada em cisne?

- Não - respondeu Eluade, sentando-se à frente dela, com os olhos azul-escuros a brilharem de antecipação. - Conta.

E Iruvienne contou. Quando acabou, passou a mão pelos

cabelos e sorriu.

- Estão a ficar secos - disse, levantando-se

Pegou no vestido escarlate que usara no dia da sua coroação, e que fora cuidadosamente estendido em cima da cama, e vestiu-o. Depois, abriu a caixa onde estava guardado o seu diadema, tirou-o e pousou-o sobre os cabelos ainda húmidos.

- Não, não, não - disse rapidamente Eluade. - Disse que ia fazer-te tranças e vou mesmo. Senta-te.

Iruvienne sentou-se e Eluade penteou-Lhe, novamente, os cabelos. Então, separou seis madeixas, três de cada lado da cabeça, e entrançou-as em seis tranças finas que uniu na nuca com uma fitinha vermelha. Pegou no diadema e, com todo o cuidado, colocou-o na cabeça de Iruvienne.

- Ficou bem - disse, com um pequeno sorriso. E era verdade. As tranças pareciam um prolongamento do diadema e, como afastavam os cabelos da cara de Iruvienne permitiam que todo o seu rosto se visse, o que realçava as suas delicadas orelhas pontiagudas. Bateram de novo à porta e Aran entrou.

- Estás pronta?

- Estou - respondeu Iruvienne, levantando-se e olhando-o com um pequeno sorriso nos lábios.

Aran usava um fato preto, com umas calças justas e uma túnica de meia gola, que caía quase até aos joelhos e era cingida por um cinto bem apertado. As calças eram lisas, mas na túnica tinham sido bordadas, com uma linha azul-escura brilhante linhas curvilíneas, finas e pequenas.

- Eu ainda tenho de acabar de me arranjar, por isso encontramo-nos lá em baixo - disse Eluade.

- Está bem. Até já e obrigada. Eluade saiu, fechando a porta.

- Vamos? - perguntou Aran, oferecendo-lhe o braço. Iruvienne pegou no pequeno anel que estava pousado em cima da mesinha de cabeceira e aceitou o braço de Aran.

- Vamos.

Desceram até à entrada da sala de jantar onde uma pequena multidão se começava a reunir. Iruvienne e Aran passaram, de braço dado, por um corredor que as pessoas formavam, à medida que eles avançavam. Ao fundo do corredor improvisado, Legonon e Adhar esperavam-nos. Legonon envergava umas calças e uma camisa de um branco-azulado luzente. A camisa, onde sobressaíam linhas prateadas, tinha uma pequena gola alta aberta e umas mangas que alargavam, ligeiramente. Por cima, Legonon tinha vestido um casaco comprido, de tecido aveludado azul-escuro, que ele usava aberto. O seu cabelo fora, parcialmente, apanhado numa trança que caía sobre o resto do cabelo e na sua testa brilhava uma pequena e fina coroa de prata. Adhar trajava um fato idêntico ao do filho, mas as calças e a camisa eram beges com bordados verdes e o casaco, que ele mantinha apertado, era de um lindíssimo verde-escuro. O Rei tinha a coroa de Nirilnege pousada sobre os cabelos, nos quais se notavam três tranças finas.

- Se não te importas, Aran, eu acompanho Iruvienne até ao seu lugar - disse Adhar.

Aran inclinou a cabeça e Iruvienne pousou a sua mão sobre a de Adhar. As portas abriram-se e, com Iruvienne e o Rei à frente, Aran e todo o Povo Branco entraram na sala de jantar.

Enquanto comiam, três flautistas exploravam melodias suaves e graciosas. Iruvienne sentou-se, como sempre, à esquerda do Rei e Legonon à direita. Aran ocupou o seu lugar habitual ao lado de Iruvienne, mas fora da cabeceira da mesa. O jantar foi um pouco mais requintado do que era costume e havia mais pratos. No entanto, tudo desapareceu rapidamente.

- Todos nós gostamos da perspectiva de uma noite a dançar - comentou o Rei, para Iruvienne. - É melhor não os fazermos esperar mais.

Levantou-se, puxou a cadeira de Iruvienne para trás e ofereceu-lhe, novamente, a mão. Assim que eles ficaram, os dois de pé, todos se levantaram e prepararam para os seguir. Dois pajens abriram as portas e eles passaram para o salão de baile.

O salão tinha portadas de vidro a todo o comprimento, todas elas sem cortinas e enfeitadas com grinaldas de folhas e pequenas flores brancas. Entre as portadas havia sempre um grande archote de ferro, aceso, e do tecto pendiam quatro gigantescos pratos de ferro onde ardiam fogos. Ao fundo do salão estavam as cadeiras para os músicos e, ao lado dos músicos, encostado a um canto, estava o trono do Rei.

Adhar largou a mão de Iruvienne, inclinou, levemente, a cabeça e dirigiu-se para o trono. Quando lá chegou, fez um pequeno sinal com a cabeça, a dar ordem aos músicos para começarem, e sentou-se. Os músicos pegaram nos instrumentos e começaram a tocar. A música era bonita e alegre e depressa todos dançavam à volta de Iruvienne. Ela reconhecia algumas sonoridades e ritmos, mas a melodia era-lhe totalmente desconhecida e ela não fazia ideia de como dançar aquilo. Olhou à sua volta, na esperança de encontrar Aran, mas deparou-se com o rosto calmo de Legonon.

- Acho que Aran se habituou às nossas músicas quando cá esteve e, se não me engano, ele deve uma dança a Eluade.

- Sorriu. A cada dia que passava, Iruvienne achava o seu rosto menos impenetrável. Olhou para Adhar, sentado no seu trono, a olhar, distraidamente, para os músicos. - O meu pai não dança - explicou Legonon -, pelo menos desde que a minha mãe morreu.

- Voltou a sorrir. - Queres dançar?

- Não sei como se dança esta música - murmurou Iruvienne.

- Não faz mal - disse Legonon, e Iruvienne notou que ele sorria como se estivesse à espera que ela dissesse aquilo. - Eu ensino-te. Basta que te deixes levar pela música. Do resto, trato eu.

Legonon estendeu-lhe a mão esquerda e ela agarrou-a. Então, a mão dele escorregou até à cinta de Iruvienne e ele encostou-a a si. Iruvienne apoiou a sua mão esquerda no ombro direito dele, Legonon sorriu novamente e, um segundo depois, estavam os dois a dançar com toda a multidão. Iruvienne viu Aran a dançar com Eluade. Ele dançava bem, mas olhava frequentemente para os pés, a certificar-se de que fazia os passos correctamente. Ao fim da segunda música, Iruvienne já conseguia dançar com muito mais à-vontade e olhou para Legonon com uma expressão que era um misto de alegria e desafio. Dançaram ainda mais cinco músicas até que Legonon se dirigiu a uma das portadas e a abriu. Lá de fora chegou um ar gelado.

- Espera aqui - disse Legonon. - Já venho. Fechou a portada e, sem dizer mais uma palavra desapareceu no meio da multidão. Iruvienne esperou por ele, ao lado da porta, sem saber muito bem o que estava a fazer ali.

Mas, poucos minutos depois, Legonon estava de volta. Trazia nos braços um casaco de pele avermelhada, onde brilhavam pequenos e artísticos desenhos bordados a fio de ouro, e que tinha uma tira de bonito pêlo bege nas mangas, gola e orla.

- Era da minha mãe - disse ele, entregando-lho. – É bastante quente.

Iruvienne vestiu o casaco, que era forrado com o pêlo bege e lhe ficava um pouco abaixo dos joelhos. Legonon voltou a abrir a portada, o frio fez-se sentir outra vez, mas ninguém pareceu notar, e saíram os dois para o pátio. Caminharam um pouco até que, por fim, se sentaram num banquinho perto da casa octogonal.

- Vês aquela estrela ali em cima? - perguntou Legonon, apontando para uma estrela pequenina e brilhante, que não parecia ter nada de muito especial: a Estrela Polar, a primeira estrela da cauda da Ursa Menor. - É a estrela que está representada no nosso símbolo e, para nós, tem um significado muito especial. Lembro-me da minha mãe me contar uma história, quando eu era muito pequeno, uma história que me foi contada muitas vezes depois, uma história simples: a história do meu povo. – Legonon olhou para Iruvienne, e os seus olhos tinham um brilho muito especial. - Começa como todas as histórias antigas começam, e não fala de grandes heróis ou de feitos incríveis. Mas, mesmo assim, gostava de te a contar.

Iruvienne não respondeu, limitou-se a sorrir.

- Há muitos anos atrás - começou Legonon, com os olhos fixos no céu -, quando os Elfos ainda eram novos, alguns dos do nosso Povo decidiram aventurar-se pelas Heniunel. Supunham que a viagem era perigosa, mas o desejo de aventura e, em parte o medo, impeliam-nos a avançar. Queriam conhecer o que se estendia para lá daqueles picos sempre nevados e, por outro lado, não gostavam da ideia de ficarem num lugar onde pressentiam uma sombra a ameaçá-los. Por isso, foram falar com Nessya, a mais doce dos Filhos dos Elementos. - Olhou para Iruvienne.

- Podia explicar-te o que eram os filhos dos Elementos, mas isso, é claro, já tu sabes. - Voltou a olhar para o céu. - Nessya disse-lhes que eles eram livres de fazerem o que quisessem, mas, se pretendiam efectivamente ir, deviam atravessar as Heniunel pela falda ocidental e seguirem sempre para Norte. Durante o dia, as sombras indicar-lhes-iam a posição do Norte e, de noite, deviam seguir esta estrela. Ela mostrar- lhes-ia um lugar seguro para viverem. E os Elfos assim fizeram.

Numa manhã sem nada de especial, partiram em direcção ao Norte, para aquela que seria a viagem mais difícil de todas as suas vidas. - Olhou, novamente, para Iruvienne. - A viagem foi longa, perigosa e difícil, tal como nós sabemos, até que, finalmente, numa noite clara e fria, chegaram a um grande planalto nevado. Tinham seguido a estrela e, tal como Nessya lhes dissera, lá estava a sua futura casa: uma enorme e bonita floresta onde poderiam viver e formar as suas famílias. Mas as provações ainda não tinham acabado. Era preciso construir um abrigo seguro e quente que os protegesse da tempestuosidade do clima. E, assim, nasceu Nirilnege. Com o tempo, as famílias cresceram e eles habituaram-se àquela nova terra. De facto, tornaram-se parecidos com ela. Os seus cabelos loiros ficaram mais claros, as suas peles mais brancas e os seus olhos mais azuis, como o mar. E o seu símbolo passou a ser uma estrela com uma árvore dentro: a estrela que os guiara até à floresta que era a sua nova casa e uma árvore dessa floresta. - A voz de Legonon tremeu e ele parou de falar. Durante alguns segundos, continuou a olhar para a estrela, mas, por fim, voltou a olhar para Iruvienne. - O meu povo tem muitas histórias, a maioria delas sobre as runas, mas, por alguma razão, esta sempre foi a minha preferida. Não é uma história grande ou especialmente bonita e, mesmo assim, é a que eu mais gosto. Talvez porque fala de quem eu sou: um filho da aventura e do medo. Medo de algo que não conheço, nem sei o que é.

Enquanto falava, Legonon baixara os olhos para a neve semiderretida à volta dos seus pés. Iruvienne não dissera nada. A história era, de facto, simples. Chegava até a ser banal. Mas era a história do nascimento de um povo, e isso era sempre importante. Contudo, Legonon tinha razão. Em parte, o Povo Branco fugira. Mas não seria melhor viver assim, sem conhecer aquela sombra e sem ter perdido um pai por causa de um megalómano mimado?

- Quando estive em Omnirion - continuou Legonon - percebi que tínhamos perdido algo. Vi a dor bem no fundo dos vossos olhos, mas vi também algo que nunca tinha visto antes. Vi grandeza, altivez e calma perante tudo o que vos aparece. Vi-vos a cantar e a dançar em perfeita harmonia e felicidade, apesar de tudo o que têm vivido. E, de cada vez que olho para ti, noto uma força mais profunda, vinda dos próprios Elementos. E acho que perdemos algo.

- Somos, apenas, diferentes - respondeu Iruvienne.

- Temos experiências distintas e, por isso, não enfrentamos as situações da mesma forma. Todos fizemos uma escolha, que teve resultados e consequências. O truque está em aceitar o que nos aparece e usá-lo a nosso favor.

A sombra de que falas chama-se Morgriff e, se ainda estiver vivo, é o último filho dos Elementos, pois matou os outros três. - Legonon não respondeu; já suspeitava que algo parecido teria acontecido. - Ele tem-nos ameaçado desde sempre e eu sei o mal que pode fazer ao meu povo. O seu maior desejo é ser senhor de todas as nossas terras, nem que para isso tenha de se tornar rei de um mundo morto. Quando eu era pequena, ele invadiu Omnirion e nós tivemos de fugir. Alguns ficaram para trás, entre eles o meu pai. Foram todos mortos. Eu tinha visto a morte do meu pai em sonhos e, durante muito tempo, culpei-me por não a ter impedido. Mas, mesmo assim, jamais tive medo de Morgriff. De facto, nenhum de nós alguma vez o temeu. Estamos, simplesmente, cansados. - Sorriu. - Sabes, sempre o achei um bocado tolo. Ele devia saber que tudo, absolutamente tudo o que nasce, morre. Mesmo ele. - Encolheu os ombros. - Não sei se ele morreu, ou se continua vivo; mas de uma coisa estou certa: a história ainda não terminou. Mais cedo ou mais tarde, o fim chegará e quando isso acontecer, nós daremos o nosso melhor.

Legonon ficou calado, a brincar com as mãos. Não sabia o que havia de dizer. Tinha a desconfortável sensação de que jamais conseguiria compreender o Povo da Luz totalmente.

Olhou para Iruvienne. Ela tinha as costas muito direitas, a cabeça ligeiramente levantada, a olhar para o céu, e uma expressão calma e sorridente no rosto de feições simultaneamente delicadas e fortes. Legonon olhou para as suas próprias mãos e depois para as dela. Ela tinha no dedo anelar da mão esquerda um pequeno anel, absolutamente perfeito. Parecia quase um prolongamento do seu dedo, como se fizesse parte dela.

Uns brilhozinhos fugazes começaram a rasgar o céu.

Iruvienne desviou os olhos das estrelas e prestou mais atenção àquelas rápidas cintilações acinzentadas. Ia começar a chover novamente. Mas, então, percebeu que aquilo não era chuva, mas minúsculos flocos de neve, tão leves e enrolados como a penugem de uma ave bebé.

- Está a nevar - disse, alegremente.

Legonon olhou para o céu e franziu as sobrancelhas loiras.

- Conheço este tipo de neve - disse ele. - Não tarda muito, transforma-se num nevão. Vai ficar tudo branco outra vez.

- Olhou para ela e encolheu os ombros. - É o costume. Anda - disse, levantando-se e estendendo-lhe a mão direita. - É melhor abrigarmo-nos.

Legonon abriu uma das portas de vidro da casa octogonal e entraram. O interior da casinha estava repleto de vasos e plantas por todos os lados. Os únicos espaços livres eram a entrada daquela porta e um pequeno círculo no meio da casa.

Tudo o resto parecia uma grande amálgama de plantas. Contudo, era um lugar agradável e quente, por isso, eles tiraram os casacos e pousaram-nos no chão.

- Iruvienne... - chamou Legonon. - Lembras-te da runa que a árvore nos mostrou, a caminho de Rizan?

- Sim.

- Era uma runa de destino. É uma runa muito engraçada, porque diz que estamos destinados a viver certas coisas, mas que se percebermos que o futuro nos pertence, que são as nossas acções que o determinam e que nada está, realmente, premeditado, então o destino deixa de existir... - sorriu - e tudo corre como devia.

Riram os dois.

- A minha mãe disse-me uma coisa parecida - lembrou-se Iruvienne. - E eu respondi-lhe que o destino existe, mas somos nós que o aceitamos. Não deixa de ser verdade, mas talvez fosse mais correcto dizer que fazemos o nosso próprio destino, porque quando tomamos as nossas decisões, pensando por nós próprios, sabemos que, mesmo voltando atrás, decidiríamos sempre da mesma maneira. E, assim, formamos o nosso destino.

Legonon fechou os olhos e sorriu.

- As questões do destino são extremamente complicadas. Porque grande parte delas só existem nas nossas cabeças, não passam de pura ilusão, mas há uma pequeníssima parte que compete a forças externas. E é, exactamente, essa parte que nos aflige e nos dá a volta à cabeça.

Voltaram a rir e sentaram-se no chão, com as costas muito direitas e as pernas encolhidas, para caberem os dois no estreito espaço livre da entrada.

- O problema - respondeu Iruvienne -, é que algumas coisas não podem ser explicadas, apenas compreendidas. E se os Elfos e as Fadas conseguem perceber isso, os outros povos têm

imensa dificuldade em aceitar o próprio conceito.

Legonon suspirou e ergueu as sobrancelhas, como que a concordar, embora achando que a situação era um pouco estranha. Passaram o resto da noite a conversar sobre alguns dos ensinamentos que tinham aprendido quando eram crianças e Iruvienne contou-lhe a história do seu povo.

- É feita de acontecimentos importantes e alguns actos heróicos - disse Iruvienne quando, finalmente, terminou. - Mas é também muito mais triste do que a vossa. Quando o meu avô a contava, os seus olhos ensombravam-se e ganhavam uma melancolia tão profunda que, às vezes, eu ficava triste só de olhar para ele.

Todo o meu povo parece ver em mim algo diferente e especial, uma esperança, tal como viam na minha avó Ailura. Gostava muito que eles tivessem razão.

Olharam para o exterior. No salão de baile as pessoas começavam a retirar-se, e alguns dos archotes de ferro já tinham sido apagados.

- É melhor voltarmos - disse Legonon.

- Acho que tens razão - concordou Iruvienne, levantando-se e vestindo o casaco.

Legonon vestiu o seu casaco e regressaram ao salão de baile. Lá dentro, Aran esperava por Iruvienne e, quando ela se aproximou, ele teve um dos seus sorrisos torcidos.

O Sol infiltrava-se por entre as copas das árvores, fazendo brilhar as folhas vermelhas e douradas que cobriam o chão. Estava tudo silencioso e Iruvienne caminhava, descontraidamente, por

entre as árvores de Caladmiron. Mas, de repente, sem saber bem porquê, agarrou o ramo de uma árvore e escondeu-se no meio da folhagem mais alta. Um som forte de pés a baterem pesadamente contra o chão aproximava-se e, menos de um segundo depois, um enorme exército de Magdul passava perto da árvore em que ela estava escondida.

Sem que tivesse tempo para fazer fosse o que fosse, Iruvienne viu-se a avançar, a uma velocidade estonteante, em direcção ao Norte. Em pouco tempo estava nas Terras Brancas e aquele enorme manto branco continuava a correr, rapidamente, por baixo dos seus pés, até que, finalmente, parou. À sua frente erguia-se, no meio de uma imensidão nevada, um gigantesco castelo de gelo e, por trás dele, via-se o azul do mar.

Iruvienne teve aquela sensação vertiginosa de estar a ser mandada de volta e acordou. Lentamente, certificando-se de que o sonho tinha, realmente, acabado, abriu os olhos. O quarto estava mergulhado numa obscuridade suave, a que a luz das brasas na lareira dava um ar aconchegante. Levantou- se, abriu as cortinas e ficou a olhar para o exterior. Estava completamente acordada, todos os seus sentidos despertos e tão apurados como sempre.

O que significava aquela Visão? Que os Magdul caminhavam, livremente, pelas Terras da Luz? Não. Aquela era uma Visão do futuro, de um futuro possível. Ainda havia algo que podia ser feito para o impedir. A Visão mostrara-lhe uma possibilidade. Era evidente que não fora específica, como sempre, mas era o suficiente. O resto dependia de si.

Calçou umas pantufas de pele forrada, vestiu o casaco de pele avermelhada que Legonon Lhe emprestara e saiu. Percorreu o longo corredor rápida e silenciosamente até que chegou ao quarto de Aran e, sem bater à porta, entrou.

Ele dormia sossegada e profundamente. A longa espada estava encostada a um canto, perto da cama e, pousadas em cima de uma cadeira, repousavam, impecavelmente dobradas, as roupas que ele usara no baile. Iruvienne aproximou-se da cama, ajoelhou-se e pousou-lhe uma mão esguia no ombro.

- Aran... - chamou, suavemente. Ele estremeceu um pouco, mas não acordou. - Aran...

- Sim... - respondeu-lhe uma voz pastosa e sonolenta.

- Acorda. Preciso de um mapa.

Aran entreabriu os olhos e espreitou por baixo das pálpebras semicerradas. Todo o seu corpo parecia cansado e era evidente que ele queria dormir. Mas, mesmo assim, ergueu um pouco o tronco e apoiou-se no braço direito.

- Um mapa de onde, pequenina? - perguntou com uma voz mais firme, mas com os olhos, novamente, fechados.

- Um mapa das Terras Brancas. De Horrizonege. Aran abriu, subitamente, os olhos cinzentos e ficou a observar Iruvienne com uma expressão desconfiada e pensativa.

- O que procuras, Iruvienne?

- Uma Visão. Algo fantástico e impressionante, quase impossível. Um castelo de gelo.

Aran suspirou, levantou a mão direita e, com o polegar e o indicador, pressionou os olhos, tentando ficar um pouco mais acordado. Atirou os cobertores para trás e sentou-se na cama, ainda a esfregar os olhos.

- Não tenho nenhum mapa destas terras, nem conheço um castelo como esse. No entanto, se tu achas que é importante, o melhor é falarmos com Legonon. - Levantou-se, calçou as botas de viagem e pegou na sua velha e grossa capa. - Vamos.

O quarto de Legonon era o último daquele corredor e a porta estava meio oculta pela sombra da outra parede. Aran deu duas pancadas secas na porta e esperaram.

Ouviram-se uns barulhos leves e apressados, uma luz amarelada brilhou no interior, expandindo um pouco da claridade para o corredor e, alguns segundos depois, Legonon abriu a porta. Tinha vestido, por cima das calças e da túnica larga de dormir, o casaco azul que usara essa noite, no baile. Os seus cabelos loiro-claros estavam um pouco desalinhados, mas os seus olhos não revelavam qualquer cansaço ou sonolência.

- O que se passa? - perguntou, com uma voz onde se notava uma ligeira preocupação.

- Precisamos de um mapa de Horrizonege - respondeu Aran.

- Entrem.

Iruvienne e Aran passaram por Legonon e ele fechou a porta.

O quarto era enorme. A meio, estava a cama de casal com um dossel azul-claro, e em frente uma janela, tapada por uma cortina fina e esvoaçante, da mesma cor do dossel, que tinha dois reposteiros de veludo branco, com pequenos bordados azul-escuros, um de cada lado. Na parede em frente à porta, estava uma grande lareira de pedra, onde dançava um pequeno fogo e de cada lado da lareira, uma estante repleta de livros e tubos de papel enrolado. Junto à testeira da cama havia uma mesinha de cabeceira, onde repousava o bloco de desenhos de Legonon. Perto da porta, na parede da janela, que tinha ainda duas janelinhas de vidros pintados, uma de cada lado da janela, encontrava-se uma escrivaninha, com uma cadeira almofadada de costas altas. Do outro lado, encostada à parede, havia uma enorme mesa de madeira, onde estavam, apenas, dois candelabros.

Legonon foi até às estantes, pegou num grande rolo de papel, abriu-o em cima da mesa e prendeu- o nas extremidades superiores com os candelabros. Foi até à escrivaninha e tirou de dentro de uma das gavetas um pauzinho longo e fino. Aproximou a ponta do pau do fogo da lareira, deixou-a começar a arder e acendeu as velas.

- De que é que estão à procura? - perguntou, enquanto soprava e abanava o pau, parcialmente queimado, para o apagar.

- De um castelo de gelo - respondeu Iruvienne, observando, atentamente, o mapa.

Legonon olhou-a, completamente admirado.

- Sim... - acabou por dizer. - Suponho que seja possível, mas nunca vi, nem ouvi falar de algum. Não vais encontrar nada nesse mapa.

Iruvienne não respondeu. Não estava à espera de ver o castelo desenhado algures no mapa. Sabia que seria um pouco mais complicado. Ia implicar algum esforço, algumas modificações e sacrifícios. Mas, pelo menos, já sabia o que fazer. Já não estava confusa e desorientada como em Caladmiron. Ainda tinha algumas perguntas sem resposta, mas via o caminho à sua frente com toda a clareza. Estava prestes a iniciar uma viagem em que não poderia voltar atrás. Sorriu. Estava prestes a criar o seu destino... a aceitá-lo.

- Falta aqui qualquer coisa - disse, apontando para a parte superior do mapa. - Estas terras não podem acabar assim: numa linha tão recta e sem mar à frente.

- E não acabam - respondeu Legonon. - Só que nunca fomos para além dessa linha. Não sabemos o que lá há. - Olhou para Iruvienne. Os cabelos caíam-lhe, delicadamente, para a cara, tinha a mão esquerda apoiada na mesa e percorria o mapa com o indicador da direita, como se procurasse qualquer coisa.

- Tens alguma indicação de onde deves procurar?

- É um lugar totalmente nevado e sem árvores. Provavelmente muito mais frio do que Nirilnege, senão o castelo derretia.

- Aqui - disse Aran, apontando uma saliência gorda do desenho. - Deve ter as características que descreveste.

Iruvienne olhou, atentamente, para a região que ele apontava. Aran tinha razão: parecia corresponder ao que ela vira.

E, no entanto...

- É um lugar frio? - perguntou a Legonon.

- É - respondeu ele. - Mas essa ideia não me agrada.

- Indicou uma floresta que havia antes da saliência que Aran propusera. - Porque nos obriga a passar por Niril âm'uol.

Os Lumuol

Apesar de todos os avisos de Legonon, relativamente ao perigo que era atravessarem aquela região, Adhar acabou por decidir ajudá-los. Dera a sua palavra e tencionava cumpri-la.

Contudo, não os deixaria ir sozinhos; procuraria dois voluntários que os acompanhassem e protegessem nessa perigosa aventura.

Legonon ofereceu-se, prontamente, e lensyn, com um suspiro e um ligeiro encolher de ombros, voluntariou-se a seguir. O Rei iria ainda emprestar-lhes três trenós, puxados por cães de pêlo às manchas brancas e cinzento-escuras, e olhos de um azul- claro extremamente brilhante, que Iruvienne já vira a passear pela floresta. Nos trenós, levariam os mantimentos e várias mantas de pêlo.

Assim que tudo ficou combinado, o Povo Branco atarefou-se com todos os preparativos necessários à viagem. E, rapidamente, estavam prontos para partir.

Iruvienne estava sentada em cima da cama, com as pernas cruzadas, e brincava mecanicamente com o pente de osso. Aran observava-a, encostado à janela, com os braços cruzados e a cabeça ligeiramente inclinada para a direita. Encostada ao fundo da cama, estava a mochila de Iruvienne, com todas as suas coisas. Tinham decidido levar as mochilas, pois não sabiam o que iriam encontrar, nem o que teriam de fazer a seguir.

- É melhor deitares-te, pequenina - aconselhou Aran.

- Amanhã temos de nos levantar cedo e desconfio que a viagem vai ser cheia de surpresas.

Iruvienne sorriu, mas o seu sorriso era um misto de tristeza e ausência, como se ela não o estivesse bem a ouvir, e a parte que ouvira lhe criasse alguma espécie de receio.

- Aran... Quero pedir-te um favor.

- O quê, pequenina?

- Cortas-me o cabelo?

Aran arregalou os olhos e prendeu uma gargalhada.

- Posso saber porquê? - perguntou, simultaneamente admirado e divertido.

Iruvienne encolheu os ombros.

- O meu cabelo sempre foi pesado, e está comprido de mais. Enfim, é tudo menos prático.

- Eu podia prender-to. Tu sabes o que fazer para ele não se soltar.

- Sim, mas preciso de uma solução mais confortável para uma viagem. Além disso, um cabelo do tamanho do meu torna-se muito pouco prático durante uma luta, e eu receio termos algumas à nossa espera. - Sorriu, como se fosse uma criancinha travessa que acabara de descobrir a sua próxima marotice. - Tinha pensado num corte parecido com o teu.

Aran olhou para o chão e fez um ruído estrangulado.

- O que se passa? - perguntou Iruvienne, a rir.

- Não sei porquê - disse Aran -, mas a única coisa que me vem à cabeça é que a tua irmã não vai gostar nada desta ideia.

Iruvienne sorriu, o seu peito começou a agitar-se com uma centena de gargalhadas contidas e, por fim, não aguentou mais e riu muito alto. Aran esperou, pacientemente, que ela acabasse.

- Eu sei por que é que só te vem isso à cabeça - disse Iruvienne, ainda com um grande sorriso -, mas agora o assunto é outro. Quero que me cortes o cabelo e ponto final. - Levantou-se continuou a sorrir e inclinou a cabeça um pouco para a esquerda.

- E se te recusares, ordeno-to como tua Rainha - disse, num tom de completa brincadeira. Enlaçou-lhe o pescoço com os braços e deu-lhe um beijo muito leve na cicatriz. - Não te preocupes, Aran. Eu assumo todas as responsabilidades pelos meus actos, como sempre fiz. E, além disso, quem tiver tempo para se preocupar com o que eu fiz ao meu cabelo, é porque não merece ser ouvido. Athilya não vai gostar muito, mas também não vai estar a perder tempo a preocupar-se com isso. Aran suspirou e torceu, literalmente, o nariz.

- Se fosses um rapaz, ou qualquer outra rapariga - disse ele -, já te teria obrigado a cortar esse cabelo há imenso tempo. Mas tu és Iruvienne, Dama de Caladmiron e Rainha das Terras da Luz...

- Oh, Aran, o cabelo volta a crescer - disse, numa voz muito suave. Largou-o e sentou-se em frente ao toucador.

- Corta-o, ou vou ter de ser eu a fazê-lo e, então, é que vai ficar verdadeiramente horroroso e toda a gente vai comentar.

Aran soltou uma gargalhada forte.

- Encontraste o argumento perfeito, pequenina. Convenceste-me.

Penteou-Lhe os cabelos, pegou na sua adaga de longa lâmina fina e aguçada e começou a cortar. Os cabelos sedosos de Iruvienne foram caindo para o chão que, aos poucos, ficou salpicado de fios de cabelo castanho-escuros, castanho-claros e acobreados. E, por fim, os cabelos de Iruvienne batiam-lhe nos ombros e caíam, dois ou três centímetros, para as costas. À frente, estavam um pouco mais curtos e todo o seu cabelo parecia mais ondulado. Iruvienne olhou para o espelho. Não via grandes diferenças. A imagem reflectida no espelho continuava a ser a sua, apenas era mais óbvia uma certa rebeldia.

Distribuíram os embrulhos de comida, os cantis de água as mochilas, as mantas e os saquinhos com as folhas secas, unguentos e infusões por dois dos trenós. Legonon e lensyn guiariam esses trenós, enquanto Aran, que os aprendera a dirigir enquanto estivera, pela primeira vez, em Nirilnege, conduziria o outro, onde Iruvienne iria sentada, com Fucolem ao seu lado e os restantes embrulhos aos pés. Aran levava a sua espada à cinta, Lensyn o arco e a aljava presos às costas e Legonon uma adaga de lâmina ligeiramente curva no cinto e uma espada estreita e não muito longa a tiracolo. A espada e a adaga de Legonon tinham, ambas, runas desenhadas nas lâminas.

Adhar dera a Iruvienne e Aran roupas feitas pelo Povo Branco. As de Aran eram simples e de tons escuros, tal como ele gostava. Consistiam numas calças e numa camisa verde-escuras numa camisola de lã acinzentada, numas botas cinzentas, forradas a pêlo, e num casaco de pele, também cinzento. As de Iruvienne, todas em tons de branco, eram um pouco mais requintadas. As calças eram de um tecido brilhante e aveludado. A camisa fora bordada com linhas curvas, de um vermelho-vivo, que se prolongavam para o colarinho, um pouco alto e arredondado. Por cima da camisa, ela usava uma camisola com motivos encordoados e, por fora, um casaco de pele e pêlo branco-sujo, com capuz, que lhe ficava ligeiramente acima dos joelhos. Adhar oferecera-lhe ainda umas luvas e umas botas de cano alto, da mesma pele e pêlo do casaco. Legonon também trajava em tons de branco, mas o seu casaco e as suas botas eram de pele castanha. lensyn usava roupas beges e casaco e botas castanhas.

Um pequeno grupo esperava, à entrada do palácio, para se despedir deles. Adhar exibia um modesto sorriso, não muito apropriado para a ocasião, e Eluade mantinha-se, discretamente, atrás dos conselheiros de Adhar. Lensyn acenou na direcção dos pais, que lhe retribuíram o sorriso, e, depois, na da irmã, mas Eluade continuou a olhá-lo com uma expressão triste e ausente.

- Espero que descubra aquilo que procura, Rainha Iruvienne

- disse Adhar. - E que esteja de volta muito em breve, salva e segura.

- Seria maravilhoso regressar a Nirilnege - respondeu Iruvienne -, mas receio que não será isso que vai acontecer. Mesmo assim, é meu desejo voltar e repetir todos os momentos agradáveis que aqui vivi.

O Rei fechou os olhos e acenou, levemente, com a cabeça.

- Pai... - disse Legonon, avançando até Adhar e abraçando-o.

Adhar sussurrou-lhe qualquer coisa na sua língua e, por um brevíssimo momento, o corpo de Legonon ficou rígido.

- As palavras que te disse eram de esperança, não de tristeza e trevas - disse o Rei, sorrindo a Legonon.

lensyn e Aran curvaram-se, respeitosamente, e os quatro dirigiram-se para os trenós. Aran testou, novamente, as cordas que seguravam as cargas, Lensyn verificou as correias dos cães, Iruvienne olhou à sua volta, certificando-se de que levavam tudo, e Legonon afagou o pêlo de todos os cães, murmurando-lhes palavras em lelvnege. Iruvienne sentou-se no trenó e Lensyn, Aran e Legonon tomaram os seus lugares como condutores.

- Rainha Iruvienne... - chamou Adhar. Iruvienne virou a cabeça na direcção do Rei que se aproximava do trenó. Adhar baixou-se, para que só ela o ouvisse e, numa voz extremamente baixa, disse-lhe: - Não tenho o direito, nem devo, impedir-te de fazeres o que achas melhor. Mas peço-te que tenhas o máximo cuidado. Temo que os perigos que vais ter de enfrentar estejam muito para além daqueles que Legonon receia.

Iruvienne sorriu, timidamente. Também ela via muitos perigos no caminho que escolhera, mas não havia outra hipótese.

Teria de os enfrentar, independentemente do que eles fossem.

Adhar beijou-a na testa.

- Vai, então - disse ele. - E que as bênçãos dos Elfos de Nirilnege te acompanhem sempre.

Legonon, Aran e lensyn disseram uma palavra de

comando, os cães começaram a andar, as correias esticaram e os trenós deslizaram pela neve, afastando-se de Nirilnege. Iruvienne olhou para trás, para a figura cada vez mais pequena de Adhar. Não podia ter a certeza, mas sentia que havia uma possibilidade de voltar a Nirilnege e rever Adhar. Tudo iria depender do que fizesse daí em diante.

Iruvienne puxou o capuz para a cabeça e aconchegou a gola de pêlo ao pescoço. Tinham saído da floresta há algumas horas e, sem a protecção das árvores, o frio fazia-se sentir com muito mais intensidade. Olhou para o céu. Não havia nuvens mas também não se via um risquinho de azul. O céu estava totalmente cinzento-claro, como se aquela fosse a sua cor natural. Fechou os olhos e deixou-se embalar pelo suave deslizar do trenó. Não adormeceu, limitou-se a cair até aquele lugar onde os sonhos e a realidade se misturam, quase indistintamente.

Um dos cães ladrou, arrancando-a bruscamente do seu estado de sonolência, e eles pararam. Iruvienne abriu lentamente os olhos. Do seu lado esquerdo estava a superfície gelada de um lago, que parecia perder-se na linha do horizonte. Mas, talvez, fosse só uma ilusão. Legonon e Lensyn também tinham parado e os cães já se tinham deitado na neve, com as cabeças entre as patas dianteiras e os olhos semicerrados.

- Vamos almoçar aqui - disse Legonon, tirando a espada e pousando-a na neve. - E não se aproximem muito do lago. Nesta época o gelo está frágil e as águas são fundas e geladas.

lensyn pousou o arco e a aljava junto da espada de Legonon e alimentou os cães, fazendo uma festinha na cabeça de cada um deles. Aran acendeu uma pequena fogueira e Iruvienne ajudou Legonon com a comida.

- Ao anoitecer, devemos chegar a Niril âm'uol - disse Legonon -, o que nos vai obrigar a dormir lá, já esta noite. Não sei como, mas vamos ter de encontrar um lugar seguro para pernoitar.

- Hum, hum... - fez Lensyn.

Iruvienne e Aran não disseram nada. Legonon já se referira, repetidas vezes, aos perigos de Niril âm'uol, mas ainda não explicara que perigos eram esses. Talvez ele receasse que ao nomeá-los eles surgissem mais facilmente. O mal não deve ser nomeado para não ser atraído, costumava dizer Edínmtor. Era provável que fosse verdade.

Comeram calmamente. A neve à volta da fogueira começava a derreter, por causa do calor do fogo, criando uma pequena poça de água em redor da madeira que ia ardendo. Os cães pareciam já ter descansado o suficiente e, embora presos pelas correias, saltavam, corriam um pouco e ladravam uns aos outros. Por vezes, envolviam-se em pequenas lutas, abocanhando-se e arranhando-se. Legonon e lensyn sorriam; estavam habituados àquelas brincadeiras.

- Não são muito diferentes das crianças pequenas: só querem brincar - comentou Lensyn. - Mas voltemos ao nosso assunto. As árvores e as grutas não são seguras, e não consigo lembrar- me doutro sítio onde possamos dormir, dentro de uma floresta.

- O melhor - disse Iruvienne - é escolhermos uma gruta e montarmos um sistema de vigília.

- Sim - concordou Aran -, é o melhor que temos a fazer. Assim, se o perigo for físico, estaremos sempre mais ou menos prontos para o enfrentar.

Legonon cruzou os braços e soltou um grande suspiro.

- É, de facto, o melhor que temos a fazer - disse ele. - Mas está longe de ser a solução ideal, porque, embora o perigo seja físico, é também...

Mas Legonon não acabou a frase. Os cães que puxavam o trenó de lensyn tinham-se entusiasmado com a brincadeira e corriam já pelo lago gelado.

- Malditos cães - resmungou Lensyn, levantando-se e chamando-os com pequenas palavras em Ielvnege.

Os cães viraram-se, com as línguas de fora, as caudas a abanarem, e as orelhitas espetadas a ouvirem a voz do dono. lensyn acocorou-se na margem do lago, estendeu o braço direito, com a mão aberta, e voltou a chamá-los. Mas os cães pareciam, de repente, muito relutantes em voltar. Lensyn chamou-os, pacientemente, mais três vezes, mas eles não se mexeram. O elfo levantou-se, suspirou profundamente, e calcou o gelo, decididamente. Alguns cães tinham começado a ganir, aterrorizados, e um deles ladrou. Iruvienne viu Lensyn resmungar qualquer coisa e continuar a avançar. O cão ladrou novamente.

- Lensyn, NÃO - berrou Legonon.

Ouviu-se um ligeiro estalido, lensyn parou, já muito perto dos cães, olhou para os amigos com um misto de surpresa e terror, e o gelo quebrou.

Legonon levantou-se e correu a buscar uma corda. Iruvienne precipitou-se para o lago, mas uma mão rápida de Aran agarrou-lhe o braço.

- Não, pequenina - disse ele baixinho. - É demasiado tarde. Olha.

Lensyn estava agarrado a uma placa de gelo, fazendo-lhes sinais lentos e asténicos para que não se aproximassem. A sua pele começava a ganhar um tom azulado, os seus lábios estavam arroxeados e era notório o enorme esforço que ele fazia para não verem os seus dentes a bater. Legonon atirou-Lhe a corda, mas falhou. Voltou a tentar, mas a corda caiu novamente na água. Legonon puxou-a; começava a ficar dura, por causa da água gelada. Lensyn sorriu, enquanto tentava, sem sucesso, controlar os tremores, e gritou, numa voz débil e entrecortada, qualquer coisa na sua língua. Legonon susteve a respiração, abanou lentamente a cabeça, e lensyn largou a placa de gelo. Rapidamente, o seu corpo afundou-se nas águas geladas do lago, e juntou-se aos corpos dos cães afogados e ao trenó, carregado de comida e mantas, no fundo do lago.

Legonon levantou-se. Os seus olhos azul-arroxeados estavam fixos na placa de gelo que, um segundo antes, o amigo segurara. Iruvienne aproximou-se e tocou-lhe numa mão flácida. Ele não reagiu. Todo ele estava imóvel e apático, os olhos vazios e as lágrimas a escorrerem, silenciosamente, pelo rosto branco.

Aran e Iruvienne arrumaram as coisas, apagaram a fogueira e construíram um pequeno caim, com alguns, poucos, seixos que conseguiram desencantar na margem do lago. No cimo do caim cravaram uma das setas de Lensyn. Iruvienne disse algumas palavras em Lissanin, entoou uma melodia muito antiga sobre a amizade e, também ela, deixou escapar uma lágrima.

- Legonon - chamou Aran numa voz forte e firme, mas ele não respondeu. - Legonon.

O elfo pareceu despertar do seu transe, inspirou profunda e silenciosamente, limpou a cara com a ponta dos dedos e caminhou na direcção deles.

- Obrigado - disse, enquanto pegava na sua espada e ajustava o cinto onde ela estava afivelada. Olhou à sua volta, agarrou na aljava e no arco de Lensyn, que Aran guardara no trenó, e prendeu-os às costas. - Vamos.

Iruvienne voltou a sentar-se no trenó e Aran e Legonon incitaram os cães a avançar. Lentamente, aquele trágico lago ficou para trás.

O dia começava a declinar quando, por fim, chegaram à entrada de Niril âm'uol. Aparentemente, a floresta não tinha nada de especial. De facto, era bastante parecida com a floresta onde ficava Nirilnege. Legonon e Aran pararam os trenós.

- É melhor seguires a pé, Iruvienne - disse Legonon e, estranhamente, a sua voz estava calma e natural. - Não queria nada que isso acontecesse, mas podemos sofrer um ataque a qualquer momento e temos de estar preparados.

Iruvienne assentiu com a cabeça, levantou-se e colocou o cinto onde estava Fucolem, por cima do casaco de pele. Aran e Legonon fizeram umas festas aos cães e murmuraram-Lhes uma ordem, que Iruvienne não percebeu. Legonon olhou para o interior da floresta com um olhar duro, como que a avisá-la que estava preparado para a enfrentar, e começou a andar, ao lado dos cães. Aran seguiu-o, também com os cães a puxarem o trenó ao seu lado. Iruvienne ficou algum tempo parada, a olhar para as árvores que agitavam, lenta e despreocupadamente, os ramos, como que a dizer-lhe que era seguro entrar. Fechou os olhos, inspirou profundamente e caminhou em direcção ao interior da floresta.

Havia uma música suave no ar de Niril âm'uol, uma espécie de calmo ulular contínuo, pontuado por leves tilintares. As folhas das árvores chocavam umas com as outras, um pouco mais barulhentamente do que seria normal. Mas, mesmo assim, Iruvienne não achava a floresta perigosa. Misteriosa talvez, mas não perigosa. E, lentamente, deixou-se ficar para trás. As árvores pareciam chamá-la, silenciosamente, como se lhe quisessem mostrar alguma coisa. Eram, sem dúvida, muito velhas e tinham o porte de quem vira e sabia o suficiente para não se preocupar com o futuro.

E, de repente, algo mudou. A música parou, os ramos das árvores não se agitavam, mas ela conseguia ouvir um rápido abanar de folhas. Legonon estacou imediatamente, as orelhas pontiagudas a estremecerem, imperceptivelmente. Os cães espetaram as orelhas, apoiaram-se nas quatro patas abertas e exibiram os dentes aguçados. Aran deitou um olhar rápido aos cães e parou, com a mão a agarrar o cabo da espada. O barulho continuava, cada vez mais rápido e próximo. Ouviu-se um ligeiro inspirar e um corpo magro e peludo surgiu no ar, pronto para cair sobre Iruvienne. Fucolem foi rapidamente desembainhada e a sua lâmina brilhou, pronta para desferir um golpe mortal. Mas antes que o animal estivesse ao seu alcance, uma seta veloz voou pelo ar, atingindo-o no coração. A criatura caiu desamparada no chão, com os olhos negros esbugalhados.

- Lumuol - disse Legonon. - Homens- lobo. Preparem-se! este não estava sozinho; nunca estão.

Ajustou duas setas à corda do arco e a sua expressão ficou séria e concentrada. Aran desembainhou a espada e agarrou numa adaga de lâmina longa e grossa que usava presa no cinto.

Iruvienne olhou, rapidamente, para a figura que jazia ao seu lado. Tinha o corpo coberto de pêlo branco, mas as suas formas eram claramente humanas. Os dedos das mãos e dos pés ostentavam umas unhas longas e grossas, amarelecidas pelo tempo: uma espécie de garras. O nariz era um pouco mais largo e desenvolvido do que seria normal, e os dentes pareciam muito aguçados. Só o peito, a barriga e as palmas das mãos e dos pés não tinham pêlo. Era uma criatura selvagem com forma de Homem: um Homem-lobo, um lumuol.

Os cães ladraram, furiosamente, as folhas agitaram-se cada vez com mais força. Iruvienne, Aran e Legonon ficaram atentos a todos os pequenos sinais. E, em menos de um minuto, quinze lumuol apareceram por entre a folhagem, a caminharem a quatro. Os seus olhos negros brilhavam, as narinas estavam dilatadas e os dentes arreganhados. Os cães continuavam a ladrar, numa atitude muito semelhante à dos Homens-lobo. Iruvienne podia sentir uma certa tensão no ar: o momento em que os adversários se medem e preparam para combater. Os lumuol tinham formado um círculo irregular, um pouco como uma alcateia pronta para atacar, e fechavam-no, lentamente.

- Estão a encurralar-nos - avisou Aran com um esgar. Legonon girou, devagar, sobre si mesmo, com a corda do arco retesada e, subitamente, largou-a. As duas flechas voaram, certeiras e mortais, em direcção a um grande lumuol, que caiu com um som abafado no chão nevado. Os outros catorze olharam para o corpo morto e começaram a rosnar, ao mesmo tempo que esgravatavam o solo nevado com as unhas.

- O que é que fizeste? - perguntou Aran, numa voz ríspida.

- Matei o chefe - respondeu, calmamente, Legonon. Os lumuol pareciam ter atingido a sua fúria máxima. Um deles baixou o tronco e correu, como se fosse um verdadeiro lobo, em direcção a Legonon. O elfo disparou outra das suas flechas e o lumuol parou, abruptamente, a corrida. Então, os restantes lançaram-se furiosamente contra eles.

Iruvienne levantou Fucolem e, com um gesto rápido, cortou a garganta de um dos lumuol que se atirara contra ela. Girou, baixou-se e enterrou a espada na barriga do que a atacava. Empurrou-o com o braço e colocou a espada em

riste. Um gigantesco lumuol apoiou-se nas pernas, rosnou e lançou os braços para a apanhar. A elfo deu uma volta e, com um gesto forte, deixou cair a espada sobre o corpo enorme do Homem-lobo. A cabeça dele saltou e caiu no chão. Iruvienne desviou a cara. Sempre se treinara na arte de guerrear e já matara algumas criaturas, mas não daquela forma. De certo modo, não estava preparada para arrancar uma cabeça.

- Iruvienne - berrou Aran.

Ela virou-se, com um movimento largo de espada e viu o sangue a jorrar da barriga de outro dos lumuol. Recuou um pouco e voltou a posicionar Fucolem. Outro lumuol deitou-lhe um olhar selvagem e louco e, com a respiração entrecortada, correu na direcção dela. Iruvienne ergueu a espada, pronta para desferir o seu golpe, mas o lumuol foi mais rápido. Atirou-a ao chão e cravou na neve as enormes garras das mãos, uma de cada lado da sua cabeça. Iruvienne estendeu o braço, tentando encontrar Fucolem que, com a queda, se soltara das suas mãos. Mas a espada estava demasiado longe. O Homem- lobo fechou os olhos, aproximou a sua cabeça da dela e cheirou-a, deleitosamente. Iruvienne percebeu que havia qualquer coisa em si de que ele gostava. Não sabia o quê, mas também não interessava. Rapidamente, levantou a perna e deu-lhe uma joelhada certeira. O Lumuol caiu ao lado dela, encolhido, e ganiu aflitivamente. Iruvienne levantou-se e correu a apanhar a espada, mas não conseguiu. O lumuol olhou-a, furiosamente, e atirou-se novamente sobre ela, desta vez decidido a matá-la. Iruvienne agarrou-lhe o pescoço com a mão esquerda, tentando afastar-lhe a cabeça, enquanto se debatia para soltar as pernas. Ao mesmo tempo que se esforçava para manter aqueles dentes longe do seu pescoço, conseguiu soltar a perna direita do meio das do Homem- lobo, e agarrou o cabo da adaga que trazia sempre escondida na bota. Com um movimento rápido e preciso, cravou a adaga nas costas do lumuol. Um trejeito de surpresa trespassou-lhe o rosto e o seu corpo caiu, pesadamente, sobre o dela. Iruvienne empurrou o corpo dele para o lado, levantou-se, retirou a adaga do corpo morto e apanhou Fucolem. Enterrou as armas na neve, para as limpar um pouco do sangue que as manchava, e só então se apercebeu que o seu casaco branco- sujo estava completamente manchado com sangue dos Homens-lobo.

À sua frente, jaziam vários Lumuol. Legonon estava debruçado sobre o que parecia ser o último vivo, mas... Onde estava Aran? Iruvienne sentiu o seu coração a dar um salto dentro do peito, parecia que Lho estavam a arrancar. A única coisa de que conseguia ter noção, era a sensação estranha que tinha na barriga. Como se, de repente, ela tivesse encolhido e subido, quase como se fosse percorrida por um enorme calafrio.

Os seus olhos correram, preocupada e ansiosamente, todo aquele improvisado campo de batalha, na tentativa de encontrar Aran. E, então, viu-o. Uma figura escura, caída de costas sobre a neve. Correu na sua direcção e ajoelhou- se ao seu lado. Com a respiração contida, tirou uma das luvas e apoiou dois dedos sobre o pescoço dele, de forma a sentir a pulsação da carótida. Aran estava vivo. A pulsação era fraca e espaçada, mas notava-se.

- Aran... - chamou docemente, passando-lhe uma mão pela cara.

Ele não respondeu, nem se mexeu. Limitou-se a continuar de olhos fechados, o rosto extremamente branco e pálido. Iruvienne olhou para o corpo dele. Do lado direito do peito eram visíveis quatro cortes de garras, suficientemente eficazes para lhe terem cortado a roupa. Iruvienne desapertou-lhe o casaco, levantou-lhe a camisola e desabotoou-lhe a camisa. A pele estava cortada e o sangue escorria pelas fendas dos golpes. Iruvienne tocou nos cortes, com a ponta dos dedos, e examinou, cuidadosamente, a ferida. Não percebia. O golpe não era profundo, podia ser doloroso, mas não era o suficiente para o deixar naquele estado. O corte que dera origem à cicatriz da cara fora muito mais profundo do que aquele e Aran não desmaiara, con tinuara a lutar e a protegê-la. Aquele golpe quádruplo não era o suficiente para o derrubar. Mas, então, porque jazia ele no chão, tão completamente indefeso? Iruvienne obrigou-se a respirar devagar e a acalmar-se. Tinha de pensar friamente. De certeza que havia qualquer coisa a fazer. Ele não estava morto, nem ia morrer. Recusava-se a deixá-lo morrer. Não podia chorar agora, tinha de fazer, rapidamente, alguma coisa útil.

Legonon afastou-lhe, suavemente, a mão do golpe de Aran, e observou-o com os seus próprios dedos. Iruvienne olhou, miseravelmente, para a figura do elfo, ajoelhado do outro lado de Aran.

A carne à volta da ferida começava a inchar e a ganhar um tom não só avermelhado, mas também púrpura.

- Os Lumuol impregnam as garras com veneno – disse Legonon e Iruvienne sentiu o corpo a gelar. Ele olhou-a e sorriu, docemente. - Aran teve sorte, parte do veneno deve ter-se perdido na neve. Mas, mesmo assim, ele está em perigo. Vou precisar da tua ajuda, Iruvienne.

Ela assentiu com a cabeça. Legonon agarrou-lhe a mão e, gentilmente, obrigou-a a levantar-se. Iruvienne sentiu-se completamente perdida, como se todo o seu mundo estivesse prestes a desabar. Queria chorar, mas, por outro lado, tinha tanto medo de o fazer! Olhou à sua volta, para os dezasseis corpos que jaziam na neve, meio ensopada de sangue vermelho.

- O que vamos fazer com eles? - perguntou, debilmente.

- Deixá-los. Se acendêssemos uma fogueira, muito provavelmente só iríamos atrair mais lumuol. Enterrá-los demoraria demasiado tempo e, agora, o nosso dever é para com os vivos.

Não me agrada deixá-los assim. Afinal, eles também são criaturas o vivas que merecem respeito. Mas há um tempo para tudo.

- O que queres que faça?

- Ajuda-me a deitar Aran no teu lugar. Temos de procurar um refúgio abrigado, onde nos possamos encarregar dele.

Iruvienne não respondeu. Baixou-se e passou uma mão pelo rosto lívido do amigo.

- Vai ficar tudo bem - murmurou.

Legonon levantou o tronco de Aran e Iruvienne as pernas. E, juntos, levaram-no até aos trenós, onde os cães esperavam em silêncio. Miraculosamente, nenhum deles ficara ferido. Deitaram Aran e cobriram-no com uma manta de pele grossa. Iruvienne arrumou a espada e a adaga de Aran, que jaziam perto do local onde ele caíra. Legonon afagou o pescoço dos cães e murmurou-lhes algumas palavras em Ielvnege. Quando eles la tiram entusiasticamente, ele fez-Lhes umas festinhas no cimo das cabeças.

- Caminha normalmente ao lado deles - disse Legonon, segurando-Lhe o rosto delicado com a mão direita e olhando-a com os seus incríveis olhos, como se receasse que ela não conseguisse compreendê-lo. - Não precisas de te preocupar. Eles seguem-te.

Iruvienne agitou ligeiramente a cabeça, em sinal de que compreendera. O Sol já se pusera e, rapidamente, a noite chegaria. Tinham de se apressar. Legonon colocou-se ao lado dos cães que puxavam o outro trenó, e começaram a caminhar, à procura de um lugar seguro.

Aran rodopiava no meio da escuridão, com a espada a brilhar nas mãos, como se estivesse a atingir inimigos invisíveis.

As sacerdotisas caminhavam, calma e alegremente, por entre as árvores de Brumívium, preparando-se para as aulas e as observações nocturnas. Começava a anoitecer, mas ainda havia no ar uma claridade azulada.

Estava tudo novamente escuro; só Aran era visível. Ele continuava a lutar, baixando-se e esquivando-se a golpes que só ele parecia ver. A espada cruzava o ar com uma velocidade e uma força incríveis. De vez em quando, via-se um brilho vermelho na sua lâmina. E, de repente, uma sombra cobriu-o. Com os dentes arreganhados e um movimento furioso, Aran cravou a adaga no pescoço da sombra, que desapareceu imediatamente. Aran começou a respirar com dificuldade, a espada e a adaga caíram por terra, os seus olhos fecharam-se e também ele caiu. No seu peito viam-se quatro golpes de garras aguçadas.

Athilya acordou, sobressaltada. O que fora aquilo? Teria sido... Não. Não podia ser. Ela jamais tivera uma Visão e Aran estava nas Terras Brancas com Iruvienne. Não andava envolvido em batalhas e, muito menos, estava morto. Não podia estar. Não podia. Fora só um pesadelo. Mas tudo em si lhe dizia que não.

Tudo lhe berrava que aquilo acontecera e que Aran precisava dela.

Sentou-se na cama, fechou os olhos e deixou que uma lágrima quente lhe escorresse pela face. Lá fora, caía uma chuva miudinha. Tinha de fazer alguma coisa. O que dissera Cleia sobre uma infusão com particularidades fantásticas de que Namali lhes falara? Que aumentava a Visão e, no caso dos videntes mais experientes, a permitia controlar? Sim, era isso. Lembrava-se de Cleia ter mencionado algumas contra-indicações. Mas isso não interessava. Tinha de encontrar essa poção. Parecera-lhe que Namali não gostava muito que ela fosse usada, mas de certeza que tinha alguma preparada para uma emergência. Talvez a guardasse no seu armário privado, na sala das plantas.

Levantou-se, calçou as pantufas e deslizou, quase como uma figura furtiva, até à ampla sala, repleta de plantas. Fechou, cuidadosa e silenciosamente, a porta. Tivera sorte; Siena não a encontrara. Nem queria pensar no que ela lhe diria se a descobrisse.

Com passos rápidos e decididos, caminhou até ao pequeno armário de portas vidradas onde Namali guardava as suas preciosas e intrigantes poções. Puxou uma das portas. Estava fechada. Abriu uma das gavetas onde guardavam os instrumentos de trabalho e tirou uma pequena faca de lâmina fina e estreita.

Introduziu a ponta na fechadura e, com um pequeno movimento preciso, a porta abriu-se. Aquele era um dos muitos truques que Iruvienne lhe ensinara. Uma maneira de explorar o que não era suposto descobrir. Sempre criticara a irmã por causa dessas aventuras traquinas, mas daquela vez tinha de lhe agradecer.

Percorreu as prateleiras mal iluminadas com olhos atentos e perscrutadores. Estava à procura de uma infusão transparente, com um leve tom de rosa. Afastou alguns dos frascos das prateleiras e leu as etiquetas de todos, mas nenhum era o que ela pretendia. Continuou, insistentemente, a procurar.

Por favor! por favor.

Os seus dedos tocaram num frasquinho minúsculo. Rodou-o à procura da etiqueta, mas não a encontrou. Aparentemente, o frasco nunca tivera uma. Tirou-lhe a tampa e cheirou o conteúdo. Parecia plantas secas perfumadas. Com o coração a bater aceleradamente, aproximou-se de uma das janelas. O líquido transparente tinha uma tonalidade rosada. Era aquele.

Com um empurrão fechou a porta do armário e regressou rapidamente ao quarto.

Assim que lá chegou, destapou o frasco e pousou a tampa em cima do toucador. Não sabia que quantidade devia tomar, Cleia nunca lhe falara nessa parte, por isso, engoliu o líquido todo e pousou o frasquinho vazio ao lado da tampa.

Quase imediatamente sentiu a barriga a contrair-se e o seu corpo a ser percorrido por um milhão de suores frios. Passou a mão pela testa encharcada e cambaleou em direcção à cama, mas caiu desamparada, antes de lá conseguir chegar. Deixou-se ficar estendida no chão. As paredes do quarto ondulavam como as águas de um rio agitado. Ia vomitar ou, pior ainda, desmaiar.

Não podia ser; tinha de conseguir ver o que queria. Fechou os olhos. A cabeça latejava-lhe e a sensação de enjoo continuava a aumentar, até se tornar insuportável. Era melhor abrir os olhos.

Lentamente, entreabriu-os e arrastou-se até à cama. Agarrou os lençóis e ergueu o tronco, de forma a ficar sentada. O quarto continuava a ondular e parecia-lhe que vários espíritos esfumados caminhavam à sua volta.

Sentiu-se horrorizada. Não estava preparada para aquilo, não tinha forças suficientes e não sabia o que fazer. O suor continuava a escorrer-lhe pelo corpo trémulo e já todo molhado, a camisa de noite estava encharcada e colava-se-lhe ao corpo, aumentando o calor que sentia, e a sensação de enjoo intensificava-se cada vez mais, até pontos que ela não imaginara serem possíveis.

Aran. Agora... Por favor!

Não aconteceu nada. Athilya encostou a cabeça aos lençóis a que se agarrava com todas as suas forças. Sentia-se perdida, a sua respiração era ofegante e os seus olhos começavam a ficar pesados das lágrimas que ela tentava conter. Tinha de se acalmar.

Tentou respirar fundo. Aran precisava dela, precisava da sua ajuda. Voltou a fechar os olhos e abriu-os, novamente.

Levantou a cabeça, fazendo esforço para controlar a respiração. Tentou abstrair-se das formas indistintas e esvoaçantes que a rodeavam e concentrou-se em pequenas sensações. No vento, na sua cara, no som do Enyel perto da nascente, nas brumas a roçarem a sua pele. E, muito lentamente, sentiu-se mergulhar num estado de clarividência.

Aran. Agora.

Aquelas figuras estranhas começaram a desaparecer e as paredes do quarto diminuíram a ondulação até que pararam completamente. Então, umas nuvens de fumo apareceram ao seu lado e foram ganhando forma e cor. Tudo aquilo tinha o aspecto de uma das histórias fantasmagóricas do Mundo dos Homens que, por vezes, Ailura contava. Progressivamente, Athilya viu surgir o corpo ajoelhado da irmã, que parecia estar a falar, depois o do príncipe Legonon e, por fim, o de Aran, estendido no chão, o rosto extremamente pálido e todo ele muito longe do seu corpo, como se vagueasse por lugares desconhecidos e distantes onde não é normal os vivos chegarem.

Athilya rastejou, desajeitadamente, até ele, passando quase através da figura de Legonon. O corpo de fumo do elfo agitou-se, dissipando-se um pouco, e voltou a formar-se. Athilya pousou a sua mão delgada e elegante na testa de Aran e sorriu.

- Aran...

Ele não reagiu. Mas, afinal, como poderia reagir? Aquilo era uma Visão e ele nem sequer estava, minimamente, consciente.

Athilya fechou os olhos e abriu-os, rapidamente. Tinha medo que a Visão desaparecesse. Inspirou profundamente e preparou-se para o que tinha de fazer.

- Aran, mis olastu. Is vwerim Athilya. Carerim etnaver' - Acariciou-lhe o rosto sem cor e sentiu as lágrimas a precipitarem-se. - Parna aveis. Nhar mis nalyessim. 2 - Sorriu, docemente. - Is nie thylerim. Etnave. 3

Ele estremeceu e levantou, ligeiramente, a mão direita, como se a quisesse agarrar. Athilya sorriu e deixou que os seus lábios roçassem os dele. Aran ainda não acordara, mas já não errava por aqueles caminhos obscuros e perigosos. Quase conseguia sentir.

Aran, ouve-me. Eu sou Athilya. Tens de voltar! Fica comigo. Não me abandones. Eu amo-te. Volta!

A respiração dele e parecia-lhe que as faces pálidas começavam a ganhar um tom rosado. Ele ia ficar bem.

Olhou para a irmã. Iruvienne olhava directamente para o sítio onde ela deveria estar, e tinha um sorrisinho discreto no rosto cansado. Talvez Iruvienne conseguisse aperceber-se da sua presença, o que não era assim tão estranho.

Athilya rastejou novamente até à cama e fechou os olhos. Conseguira. Ajudara Aran e tivera uma Visão. Não fora uma Visão pelos sonhos, como as da mãe e da irmã. Mas, talvez, as suas Visões fossem um pouco diferentes. Respirou profundamente. Estava muito cansada e continuava a transpirar. Tudo o que queria era adormecer e tomar um longo banho de manhã.

Quando abriu os olhos, aqueles corpos tinham-se esfumado, mas já novas nuvens de fumo surgiam à sua frente, formando silhuetas que ela não conhecia. E, toda a noite, a Visão mostrou-lhe coisas que ela não compreendia, nem queria, exactamente, ver. Mas esses eram os efeitos da infusão que tomara.

 

             O MISTÉRIO DE NIRIL ÂM'UOL

Iruvienne estendeu duas mantas, uma por cima da outra, no chão de pedra da caverna. Depois, ajudou Legonon a deitar Aran nas mantas. Ele continuava inconsciente, a pele de uma palidez violácea impossível, que a barba e os cabelos negros pareciam realçar, e o corpo cada vez mais rígido e gelado.

Iruvienne tentava acalmar-se, convencer-se a si mesma de que tudo ia ficar bem. Mas as lágrimas insistiam em assaltá-la e ela debatia-se para as conter.

Legonon juntou alguns ramos que apanhara e começou a acender uma fogueira, enquanto Iruvienne se debruçava sobre Aran, lhe afastava os cabelos ondulados da cara e murmurava algumas palavras de chamamento em Lissanin. Os cães aninharam-se perto do fogo, com as cabeças baixas e os olhos tristes semicerrados. Também para eles fora um dia cansativo.

- Temos de lhe tirar o casaco, a camisola e a camisa – disse Legonon, tirando da mochila um almofariz. - E mantém-lhe as pernas quentes.

Baixou a cabeça e concentrou-se no seu trabalho. Deixou cair algumas folhas secas, finas e enroladas, dentro do almofariz e triturou-as. A seguir, juntou-lhes água e mexeu tudo até fazer uma papa esverdeada. Iruvienne cobriu as pernas de Aran com uma manta, enrolou outra que lhe pôs por baixo da cabeça como almofada e começou a tirar-lhe a roupa.

A ferida inchara, as artérias e veias tinham dilatado raiando de forma horrorosa a pele de um branco leitoso, e os rebordos da pele cortada tinham começado a secar, ganhando o desagradável aspecto de pele velha a morrer. Na profundidade dos cortes, entrevia-se um vermelho demasiado escuro, do sangue coagulado. Legonon lavou as mãos, ajoelhou-se perto de Aran e apalpou-lhe a ferida com os dedos longos. A sua expressão era séria, mas não impenetrável. Ele estava visivelmente preocupado.

Passou um pano húmido pela ferida, de modo a limpar o sangue seco e, com dedos ágeis, espalhou a pasta verde que fizera, no interior dos cortes e à volta deles. Lentamente, a pasta espalhada no peito desapareceu e a das feridas tornou-se esbranquiçada, até que ficou de um branco ligeiramente esverdeado. Então, Legonon comprimiu a ferida, empurrando a pele. A pasta começou a sair e, atrás dela, veio um pus de cor amarela que, lentamente, deu lugar a um líquido esbranquiçado. O elfo repetiu a operação mais duas vezes até sair sangue vivo e, por fim, untou o peito de Aran com uma outra pasta que trazia dentro de uma latinha. Ergueu o tronco e soltou um longo suspiro.

- Tirei tanto veneno quanto consegui, mas o sangue dele absorveu algum que eu já não consigo tirar. Agora, o melhor que temos a fazer é coser a ferida.

Iruvienne assentiu com a cabeça e olhou, tristemente para o amigo. Podiam tratar-lhe das feridas do corpo, mas ele já mergulhara num lugar de onde os unguentos e as infusões não o podiam resgatar. Essa tarefa competia-lhe a ela.

Levantou-se, abriu a mochila de Aran e pesquisou o interior com uma das mãos. Agarrou numa bolsa de pele relativamente pequena e de forma rectangular, pousou-a junto do amigo, lavou as mãos e tirou de dentro da bolsa uma faquinha de lâmina pequena e fina. Passou-a pelo fogo e ajoelhou-se, novamente, ao lado de Aran. Legonon sentou-se e ficou a observá-la. Iruvienne raspou os bordos das feridas, para os avivar, e colocou no leito de cada corte uma linha de fibras vegetais, suficientemente longa para sair do golpe e que ajudaria a ferida a drenar. Depois, com uma linha mais fina, coseu as feridas, com pontos estreitos e miudinhos, tendo o cuidado de deixar uma pequena região por coser, por onde saía a linha de drenagem. Aran nem sequer estremeceu.

Estava tão longe que já não sentia as dores do seu corpo.

Iruvienne levantou-se, para limpar as mãos e Legonon preparou- se para ficar de vigília enquanto ela dormia. Mas Iruvienne não tencionava ir já dormir. Voltou a ajoelhar-se e passou um pano húmido pela cara de Aran.

- Agora - disse numa voz suave -, tenho de o chamar. Legonon olhou para ela, com uma expressão um pouco admirada, mas não a contestou.

- Is vwerim Iruvienne, Aran. Surim ersin, aveie. - A sua voz tornara-se mais profunda e as palavras saíam, ao mesmo tempo, mais seguidas e fluidas. - Ntzar nie manarim aterser Etnave. Parna ersin. Nhar manassim.

Legonon sobressaltou-se e Iruvienne desviou a sua.

Eu sou Iruvienne, Aran. Estou aqui, contigo. Não te vou deixar. Volta. Fica aqui. Não vás.

Atenção. O elfo olhava à sua volta, como se pressentisse uma presença invisível. Iruvienne perscrutou a gruta, lentamente, e deteve-se perto da cabeça de Aran. Sorriu, tinha percebido o que estava a acontecer.

- Nhar nalyessim essd ati thylerim. Carerim parnar - disse, suavemente.

Durante um segundo, nada aconteceu e, então, Aran estremeceu e levantou ligeiramente a mão direita, os dedos esticados, como se tentassem tocar em algo. Iruvienne olhou novamente para o lugar junto da cabeça de Aran e sorriu, enigmaticamente. Legonon não compreendeu aquele sorriso, mas ela tinha a certeza de que Athilya o percebera.

A respiração de Aran era agora visível e notoriamente tranquila. A pele ganhava, lentamente, um tom mais rosado e natural, o seu corpo perdera a rigidez e ele começava a tremer de frio. Iruvienne vestiu-lhe, rapidamente, a camisa e tapou-o com uma manta grossa.

- Nhar nie niriassirz - disse, deitando-se ao lado do amigo e fazendo- lhe pequenas festas no rosto. - Hiriridm. Manarim parnar ely cali.

A cabeça de Aran descaiu, um pouco, para o lado. Ele dormia profundamente. Iruvienne beijou-o nos cabelos, levantou- se e vestiu o casaco de pele que entretanto tirara.

Legonon reavivara a fogueira e estava sentado em frente a ela, a olhar com olhos longínquos para o fogo. Iruvienne sentou-se ao seu lado.

- Estás bem? - perguntou, timidamente.

O elfo soltou o ar, muito lentamente.

- Vou ficar - respondeu por fim, e sorriu, tristemente.

' Não abandones os que amas. Tens de ficar. Não te preocupes. Regressaste. Vai ficar tudo bem.

- Ele disse-me que eu tinha de continuar, que não podia ter medo de ser feliz. Lensyn era o meu melhor amigo. Crescemos juntos, ajudando- nos e apoiando-nos um ao outro. Ele estava sempre lá, quando mais ninguém estava. Depois da minha mãe morrer, o meu pai e os conselheiros dele tentaram dedicar-me todo o tempo possível. Mas eles não podiam estar permanentemente comigo. Há sempre coisas a fazer, assuntos a tratar. Agora sei disso, mas, na altura, não era bem isso que eu achava. - Sorriu novamente.

- Era demasiado pequeno. Não compreendia por que é que ela morrera. E, de facto, também não queria. Aprendi a fechar-me, a não deixar que me compreendessem. É claro que com o meu pai não funcionava. Às vezes, deixava-me pensar que sim, mas ele via tudo. Adhar vê muito mais do que se supõe. lensyn também me percebia muito bem, e foi ele quem me fez ultrapassar aquela situação. Por vezes, fazendo-me ouvir o que meu pai me tentava explicar; noutras alturas, ajudando-me a soltar a minha fúria. É difícil perder um amigo como Lensyn. Mas tu sabes o que eu quero dizer. Aran esteve tão perto de se perder que não sei como foi possível salvá-lo!

Iruvienne manteve-se em silêncio. Por mais que tentasse não conseguia encontrar uma única palavra para dizer. Perder um amigo era terrível. Não havia palavras que pudessem consolar essa dor. Se Aran tivesse morrido, Iruvienne não sabia o que teria acontecido. Talvez a dor e o sofrimento fossem tão grandes que a sua alma se tivesse, simplesmente, soltado.

- Iruvienne... - Ela olhou-o com um pequeno sorriso.

- Que língua era aquela que estavas a falar? Já ta ouvi antes, quando dormimos naquela gruta perto do carvalho oco, e das duas vezes senti as palavras a entrarem dentro de mim. Mas o seu significado fugiu-me sempre. Ela soltou uma pequena risada.

- Isso é extremamente natural. A língua que estava a falar era o Lissanin, a nossa língua sagrada. Já te falei dela. As palavras ditas em Lissanin entram dentro das pessoas a quem se dirigem e o seu significado envolve-as. Algo dito em Lissanin é uma certeza e uma forma de falar com aqueles que não compreendem a nossa língua quotidiana ou, por alguma razão, não nos conseguem ouvir; como era o caso de Aran. Quando se fala em Lissanin, pode-se ordenar que chova ou que uma planta acelere o seu crescimento, pode-se invocar os Elementos ou falar com as pedras e as árvores. O Lissanin é um pouco como as runas: ancestral e mágico.

Quando me ouviste a falar em Lissanin pela primeira vez estava a falar com a Natureza. Desta vez, tentava resgatar Aran do lugar onde ele se perdera. - Sorriu, encolhendo os ombros. Estava muito cansada, mas sentia- se leve. Aran estava salvo. - Às vezes, esqueço-me que ele é humano e que pode ser um pouco tolo. Ele preocupa-se com coisas que só lhe deviam trazer alegria e esquece-se que a maioria dos problemas do dia-a-dia se resolvem por si mesmos. - Olhou para Legonon e sorriu- lhe. - É normal que quase compreendas o significado das palavras ditas em Lissanin.

Geralmente, só as pessoas a quem se dirigem as palavras podem percebê-las, mas os Elfos e as Fadas são um pouco diferentes. Um Elfo ou uma Fada que não saiba falar o Lissanin, sente na mesma as palavras dentro de si. No entanto, o seu significado vai sempre escapar-lhe. É quase como tentar agarrar o ar: foge por entre os

dedos. Talvez, um dia, eu te possa ensinar a falar Lissanin.

- Não - respondeu Legonon, com um sorriso. - Essas subtilezas pertencem-te e aos que são parecidos contigo. Eu não consigo entrar nesse círculo.

- Talvez estejas enganado.

Legonon não respondeu. Fechou os olhos e continuou a sorrir.

- Tu viste algo, quando estavas a chamar Aran, não viste? - perguntou, calmamente.

Iruvienne baixou os olhos.

- Não consigo, exactamente, ver. Mas sei que eles estão lá, sei o lugar preciso onde eles estão e por que vieram. Às vezes, parece-me que eles falam comigo. É uma espécie de Visão acordada - olhou para ele -, só que esta é real, está a acontecer e eu estou a vivê-la.

Legonon virou, subitamente, a cara e os seus olhos fantásticos encontraram os dela.

- É essa a diferença. Eu só os consigo pressentir, tu percebe- los.

Legonon susteve a respiração e tocou-lhe, levemente, no rosto. Então, a sua mão deslizou pela face de Iruvienne, emoldurando-lhe a orelha pontiaguda e segurando-lhe a cabeça. Iruvienne sabia o que ele ia fazer, mas não tinha a menor intenção de o impedir. Legonon inclinou-se, fechou os olhos e acariciou os lábios dela com os seus. Iruvienne sentiu-se parar no tempo, não tinha sequer consciência da sua respiração. Os seus olhos fecharam-se e ela enlaçou-o com os braços. O beijo tornou-se mais forte e ela sentiu os lábios dele a abrirem-se e os seus a corresponderem, de forma adorável, ao movimento. Era como se nada existisse para além deles os dois. Sentia-se envolvida por uma sensação de alegria extrema, de uma perfeição que jamais julgara possível. Tudo o que sabia era que não queria que aquele momento acabasse, queria que os astros e o tempo parassem, ficassem suspensos no ar e ela vivesse eternamente aqueles momentos idílicos. Quando, finalmente, os seus lábios se separaram e eles abriram os olhos, não tiveram coragem de se largarem. Legonon sorriu-lhe de uma forma incrivelmente terna e encostou a sua testa à dela, de forma a que a ponta dos seus narizes se tocavam. E Iruvienne deu por si a sorrir, infantilmente. Ele respirou apressada e silenciosamente, várias vezes, até que conseguiu acalmar- se. Ia dizer qualquer coisa.

- Não fales - pediu Iruvienne, num sussurro, e beijou-o. Legonon percorreu- lhe o corpo com as mãos grandes e elegantes, sentindo todas as formas curvilíneas de Iruvienne. Separou os seus lábios dos dela e, sem abrir os olhos, roçou a sua

face pela dela. Era impossível separarem-se. Era impensável. Aran fez um barulho esquisito com a garganta.

- Pequenina... - chamou, debilmente.

Iruvienne beijou Legonon, levemente, e levantou-se. Ele deixou a sua mão escorregar pela dela, lentamente, até que Iruvienne ficou demasiado longe para se tocarem.

- Está tudo bem, Aran - disse Iruvienne, deitando-se ao seu lado.

- O que é que se passou? Lembro-me do Lumuol a atacar-me... dum corte... Acho que o matei, mas depois perdi os sentidos e deambulei por lugares estranhos de que não me consigo lembrar.

A voz dele soava cansada e o seu discurso era interrompido e entrecortado, porque ele precisava de respirar e retomar o fôlego.

- Não fales - disse Iruvienne, baixinho. - Tens de descansar. Dorme. Eu fico aqui ao teu lado.

Aran fechou os olhos e adormeceu imediatamente.

Legonon aproximou-se, com uma manta grossa nas mãos.

- Dorme - murmurou, enquanto a cobria. - Eu fico de vigia e depois acordo-te.

Iruvienne pestanejou, lentamente, em sinal de que concordava. Subitamente, deu-se conta de como estava cansada. Mal conseguia manter os olhos abertos. Legonon acariciou-lhe o rosto e beijou-a, ao de leve, nos lábios. Iruvienne seguiu-o com o olhar, enquanto ele se afastava em direcção à fogueira que se começava a apagar. Os cães dormiam, aninhados dos dois lados do fogo. Iruvienne fechou os olhos e, um segundo depois adormeceu.

Iruvienne estava sentada de pernas cruzadas, com Fucolem apoiada nos joelhos e as costas encostadas à parede rochosa da gruta. A fogueira apagara-se enquanto ela dormia e Legonon decidira não voltar a acendê-la, para não atrair mais Lumuol. Por isso, a única luz que havia dentro da gruta era a luz escassa e azulada da noite. Aran dormia profundamente. O seu peito subia e descia, tranquilamente, a boca estava ligeiramente aberta, e os cabelos caíam-lhe para o rosto. Em frente a ele, Legonon dormia virado para a parede. Iruvienne sorriu. Fora um dia muito longo, talvez demasiado longo, mas o seu fim fora tão alegre e doce que toda a tristeza quase desaparecera!

Passou os dedos, distraidamente, pela lâmina da espada e agarrou o cabo com a mão direita. Estava tudo calmo e silencioso. A gruta não era muito funda, mas era suficientemente grande para os abrigar do frio do exterior. Um dos grupos de cães dormia aninhado ao seu lado e o outro à sua frente. Iruvienne conseguia ouvir o lento agitar dos ramos das árvores e uma brisa suave a roçar as folhas. A música recomeçara, mas, desta vez, era um pouco diferente. Era mais alegre, mais rápida e eufórica, como se anunciasse a chegada de alguém. E, ao mesmo tempo, tinha uma melodia misteriosa e encantada, quase surreal. Chegavam-lhe pequenas notas de inquietação e impaciência que, estranhamente, pareciam vir da parede do fundo da gruta. Algumas notas, mais calmas e conscientes, estabeleciam um diálogo com as outras, como se estivessem a mandá-las calar. As esbeltas orelhas pontiagudas de Iruvienne estremeceram, repentinamente, e ela segurou melhor o cabo da espada. Estava a ser observada. A luz nocturna diminuiu, muito ligeiramente, e com um movimento célere e gracioso, Iruvienne levantou-se com a espada em riste.

- Não vais precisar disso, Nalamin - disse uma voz suave e melodiosa, como o som da halua.

Iruvienne pressentiu uma luz ténue azul-clara a surgir atrás de si e ouviu Legonon levantar-se, rápida e agilmente.

- Está tudo bem - sussurrou Iruvienne, guardando a espada e virando-se, completamente, para a entrada da gruta.

- Quem sois?

A sombra avançou levemente e, então, Iruvienne viu-o. Um corpo imaterial, completamente transparente e delicadamente azulado: um Espírito, como ela jamais vira ou pressentira. Ouviu o som levíssimo da respiração admirada de Legonon e depois, o rápido ajoelhar do elfo.

- Não podes perceber as palavras da minha língua - disse o Espírito na sua voz musical e calma - embora, talvez, percebas como nos sentimos. Mas não é esse o poder da música? - inclinou a cabeça para a frente e os seus lábios formaram um sorriso quase imperceptível. - O meu nome não pode ser expressado na tua língua ou em qualquer outra que tenha sido inventada por seres de carne. No entanto, uma língua antiga e morta dos humanos parece-me adequada. Por isso, sou Animus.

- Chamaste-me... Nalamin - disse Iruvienne, ainda a sussurrar. - Conheço as palavras e o seu significado, mas não sei por que me deste esse nome.

- Tudo será dito e explicado no seu devido tempo

- respondeu o Espírito e desviou a sua atenção para Legonon. - Podes levantar-te. Não somos deuses, embora muitas vezes tenhamos sido olhados como tal.

A luz azul-clara aumentou de intensidade e o Espírito deslizou até à parede rochosa. Iruvienne e Legonon observaram-no completamente estupefactos. Progressivamente, a luz infiltrou-se pelas minúsculas e imperceptíveis fendas da rocha, até que cobriu toda a parede com uma luz branco-azulada. Aran franziu as pálpebras e expeliu o ar com um som abafado. Iruvienne correu até ele e ajoelhou-se.

- O que se passa? - perguntou ele, entreabrindo os olhos.

- Está tudo cheio de luz!

Iruvienne sorriu e soltou uma pequena risada abafada.

- Uma coisa extraordinária, Aran. Perfeitamente extraordinária.

Com uma careta de esforço e cansaço, Aran ergueu o tronco e olhou para o Espírito. Ao início, franziu as sobrancelhas, sem compreender o que se estava a passar, mas, por fim, também ele exibia uma expressão admirada e maravilhada. Os cães tinham, igualmente, acordado e cheiravam o ar, freneticamente. Alguns levantaram-se, apoiando-se nas quatro patas e esticando a cabeça, prontos para ladrar, mas não o fizeram.

A luz brilhou, por um segundo, com mais intensidade e, subitamente, extinguiu-se. A parede do fundo da gruta desaparecera, dando lugar a um longo corredor, iluminado por luzes azuladas. Espalhados pelo corredor, estavam uma centena de Espíritos como Animus. Os seus corpos azulados, esguios e altos, pareciam cobertos com uma roupa qualquer que lhes escondia a nudez, e misturavam-se, indistintamente, com o ar, perdendo-se no meio dele. Nas suas órbitas viam-se pequeníssimos pontos azuis brilhantes, e as suas cabeças eram calvas. A forma aparentemente humana, aparentemente élfica, parecia ser um mero acaso.

Animus emitiu uma série de sons na sua voz musical, formando uma pequena melodia, à qual dois Espíritos responderam, deslizando na direcção deles, passando-os e parando junto dos cães. Os cães saltaram, tentando farejá-los e, à medida que os Espíritos lhes acariciavam o pescoço e murmuravam algumas notas apenas para os seus ouvidos, eles acalmaram-se.

- Eles ficam com os cães e guardam as vossas coisas - explicou Animus com a sua voz agradável. - Por isso, podem vir comigo. - Olhou tranquilizadoramente para Iruvienne. Cuidaremos do teu amigo humano, Nalamin, se tiveres a bondade de o trazer. - Sorriu, quase maliciosamente. - Teríamos todo o gosto em o transportar, mas não temos matéria... apenas espírito. Ele cairia através do nosso corpo.

Aran cerrou os dentes e levantou-se, mas o resultado foi desastroso e Iruvienne teve de o segurar, para ele não cair. Os Espíritos sorriram, divertidos.

- O corpo, a matéria... são tão frágeis - comentou Animus. Aran não respondeu. Estava demasiado fraco e, mesmo que não estivesse, não se teria atrevido a argumentar contra uma criatura tão etérea e da qual só conseguia ver um corpo desfocado, com uma forma remotamente humana.

Iruvienne pegou-lhe no braço direito e apoiou-o nos seus ombros, e Legonon fez o mesmo com o braço esquerdo. Os Espíritos começavam a afastar-se, com movimentos rápidos e ondulantes, em direcção à floresta, e apenas seis deles, de rostos sorridentes, ficaram parados a meio do corredor. Animus deslizou até eles e Iruvienne, Aran e Legonon acompanharam-no.

A Estrela De Vida

Os Espíritos deslizavam, altivamente, pelo corredor, seguidos por Iruvienne, Legonon e Aran. Legonon apoiava as costas de Aran com a mão direita e os seus dedos tocavam, como que por acaso, nos de Iruvienne. Numa outra altura qualquer, Aran teria, com certeza, reparado nesse pequeno pormenor, ou no brilho disfarçado dos olhos de Iruvienne, ou ainda no suave e invulgar sorriso que Legonon não conseguia evitar. Mas não naquela noite. Naquela noite, o seu corpo estava dorido e ele sentia-se incrivelmente cansado. Toda a sua atenção se concentrava na complicada tarefa de arrastar um pé a seguir ao outro e conseguir andar.

Animus parou, voltando-se para eles.

- Agora, Nalamin - entoou a sua voz melodiosa -, nós temos de seguir um caminho diferente, e os teus amigos devem continuar ou esperar aqui por ti. Não podem vir connosco, porque o que te vou dizer é apenas para tu ouvires. Sugiro que eles continuem. O teu amigo humano está gravemente ferido e, embora vocês tenham sido hábeis a curar o corpo e a resgatar o espírito, há certas dores que poderiam não ser sofridas e um tempo de inacção que não tem de ser vivido. Nós sabemos o que fazer para ultrapassar esses incómodos.

Aran levantou um pouco a cabeça e olhou para Iruvienne.

- Vai, pequenina. Nós continuamos com eles. Ficar melhor dava-me algum jeito - disse ele, numa voz abafada e arrastada. Sorriu. - Tu conheces-me. Não gosto de ficar parado por imposição.

Iruvienne sorriu e largou-lhe o braço. Aran apoiou-se completamente em Legonon, mas o elfo não pareceu importar-se.

- Vemo-nos... - começou Iruvienne, mas hesitou.

- Quando tiver de ser - respondeu Legonon e, por um pequeníssimo instante, os seus olhos ficaram presos nos dela.

Animus pareceu sorrir e voltou-se para a parede direita, onde começava um corredor arredondado, mais estreito e escuro. O Espírito esperou que Iruvienne passasse e seguiu atrás dela, deixando Aran e Legonon com os outros Espíritos.

O corredor era muito inclinado e parecia descer sempre até uma luzinha azul que se via muito ao fundo. Ao início, Animus manteve-se calado, mas a sua voz musical não tardou a ecoar pelas paredes de pedra bruta e irregular.

- A forma como tu olhas para ele é... - interrompeu-se, como se procurasse as palavras certas, e havia na sua voz uma melodia nostálgica. - Não creio que conheça as palavras na tua língua que definam o que vejo. Mas posso dizê-lo na minha.

E a sua voz ergueu-se numa frase melódica, simultaneamente calma e eufórica, suave e encantada, que deixou Iruvienne maravilhada. O Espírito tinha conseguido dizer tudo, numa harmonia plena e perfeita. Tinha falado de toda a alegria que invadira Iruvienne e de toda a tristeza que, no entanto, a assaltava e preocupava.

- Pensei que te referias a Aran - disse Iruvienne, numa voz quase sussurrada e que parecia envergonhada -, mas vejo que estavas a falar de Legonon.

- Para nós, o mais pequeno dos sinais é suficiente. A nossa sensibilidade é muito mais apurada do que a do mais sensível dos humanos. - Animus sorriu. - Compreendo o sentimento, embora jamais o tenha experimentado, mas a parte carnal, todos esses rituais dos beijos e dos abraços... Não consigo percebê-los. Porque se importam tanto com isso?

- Porque essa é a nossa Natureza - respondeu Iruvienne.

- A vossa é o espírito e a nossa é uma mistura das duas. Animus pareceu considerar a resposta durante alguns segundos.

- Sim, creio que é uma boa explicação. - O Espírito olhou para Iruvienne. - Tens alguma pergunta que me queiras pôr, Nalamin!

Iruvienne teve vontade de rir alto, mas apenas sorriu, timidamente.

- Tenho tantas perguntas que demoraria uma manhã inteira para as fazer a todas. No entanto, aquilo em que estava a pensar não passa de simples curiosidade. É apenas o meu espírito travesso e aventureiro a fazer-se notar.

- Mesmo assim, de que se trata?

Iruvienne olhou para Animus, que parara em frente a uma passagem em arco, tapada por um cortinado azul.

- Perguntava-me se entre vós há Espíritos fêmea e Espíritos macho.

Esperou pela resposta, como uma criancinha que tem medo das consequências da sua própria pergunta. Animus olhava distraidamente para o arco trabalhado na pedra virgem.

- Engraçado - disse, por fim - nunca tinha pensado nisso. Sei a resposta, claro, mas jamais me preocupara com essa questão.

- Olhou para Iruvienne. - Somos andróginos. Nem fêmeas, nem machos. Uma mistura de ambos sem, no entanto, sermos algum dos dois. De facto, limitamo-nos a ser indefinidos. Estamos algures entre uns e outros. Os Espíritos não se reproduzem, por isso, não temos essa necessidade dos sexos como os seres carnais. Mais uma vez, tudo se deve à enorme e, contudo, subtil diferença entre a matéria e o espírito. - Os seus lábios agitaram-se e o Espírito riu.

O seu riso era diferente de todos os que Iruvienne ouvira antes. Era uma escala descendente, de sons curtos e repicados. - Uma pergunta aparentemente tola, com uma resposta muito séria.

Iruvienne sorriu e Animus afastou a cortina azul, para ela poder passar. Atrás da cortina escondia-se um quarto em tons de azul. A sala era grande e tinha várias daquelas luzes azuladas espalhadas pela parede. Em frente à entrada, estava uma cama de solteiro grande, com dossel e, do lado esquerdo da cama, um toucador de banco baixo e uma secretária. Do outro lado, havia uma lareira esculpida na rocha, uma banheira artesanal, com uma toalha pendurada na borda, e uma bacia e um jarro para lavar a cara. Todo o quarto parecia a Iruvienne um pouco deslocado, como se não fizesse, exactamente, parte daquela gruta de Espíritos e segredos. Por outro lado, o mobiliário tinha um certo ar rústico; parecia feito por um qualquer viajante, não muito dotado nas artes de carpintaria, que descobrira, por acaso, aquele lugar e decidira ficar.

- As respostas surgirão com o tempo, Nalamin. Por favor, senta- te - disse, indicando-lhe o banco do toucador. Iruvienne sentou-se e Animus pareceu diminuir de tamanho, mas continuou a pairar diante dela. - A história que te vou contar, não é nem triste, nem alegre, e muito menos fala das aventuras ou feitos heróicos dos que viveram, pois é anterior a todos eles. Esta é a primeira das histórias. É uma história de verdade e de começo que, tenho a certeza, jamais ouviste. Mas comecemos pelo princípio, como é natural.

Existem muitos tipos de Espíritos e nenhum deles é unicamente bom ou mau. Apenas faz o que Lhe foi destinado. Os primeiros surgiram quando o Mundo foi criado e fazem parte do que ele tem de mais antigo. São aquilo a que vocês, e até nós, chamamos a voz da Natureza. Os seus corpos imateriais fundiram-se com o das árvores, das pedras, dos rios, das flores, até que formaram um só ser, indissociável e uno. Depois deles muitos outros vieram. Nós fomos uns dos primeiros. - Animus parou um pouco e olhou para um ponto indistinto, por cima da cabeça de Iruvienne, como se estivesse a recordar algo. - Houve um tempo, Nalamin, em que nós ainda percorríamos todo este Mundo. Nessa altura, muitos Espíritos surgiram, e nem todos eles eram aquilo que esperávamos ou estávamos habituados. - Olhou novamente para ela. - Para nós, tudo tem música. Conhecemos as pessoas e os Espíritos pela sua música. E alguns desses Espíritos que surgiram tinham uma música que nós jamais tínhamos ouvido. Era uma música violenta, guerreira, daquela que faz o sangue dos corpos ferver, a cabeça zumbir e os sentidos perderem parte das suas capacidades, obrigando os corpos a avançar, loucamente, para alguma luta irracional. A seguir a esses, apareceram muitos idênticos. Alguns eram Espíritos enganadores, amigos da mentira, outros, verdadeiramente loucos. Os Homens não hesitariam em classificá-los como maléficos, mas não é assim que nós os vemos. Eles fazem parte de um frágil equilíbrio e de um todo harmonioso. Ajudam a manter a estabilidade entre a sabedoria e a loucura, o racional e o instintivo, e até entre o bem e o mal. Não são, de forma alguma, malévolos. Mas são Espíritos confusos e toldam-nos os sentidos, não nos deixando ver de forma clara. Por isso, retirámo-nos para aqui, onde havia poucos Espíritos para além dos da Natureza, e dedicámo-nos às nossas observações.

- Falaste de vários tipos de Espíritos - disse Iruvienne.

- Mas, afinal, que tipo de Espíritos são vocês?

- Somos Espíritos da verdade, uns dos poucos que são visíveis aos olhos materiais. Observamos e reflectimos sobre o que vemos. Sabemos o significado dos sinais e conhecemos os caminhos, mas raramente interferimos. Tu és uma excepção, uma excepção muito especial. - Animus sorriu, docemente. - Tiveste um dia muito longo, Nalamin. Nós vimos. No entanto, ainda não podes voltar a dormir. Lamento, mas tenho de te exigir toda a tua atenção. Tens a teu cargo muito mais do que imaginas.

- Iruvienne assentiu com a cabeça, evitando fechar os olhos, e os lábios de Animus curvaram-se, discretamente, como se ele tivesse ficado satisfeito. - Perdi-me um pouco na minha história. Peço-te que me desculpes, tentarei ser mais conciso. De qualquer forma, o que te estive a dizer era importante.

Os Espíritos também vão aprendendo, e uma das nossas tarefas foi saber todas as línguas dos seres de matéria. Contudo no princípio, só conhecíamos a nossa, e toda ela era feita de sons e melodias musicais, excepto uma pequena palavra, que não conseguíamos compreender: Nalamin. Durante muito tempo, a sua presença intrigou-nos e incomodou-nos. Saímos das tuas terras, e ela continuou lá, misteriosa e inacessível. Foi então que, depois do aparecimento dos filhos dos Elementos, vocês surgiram. Claro que vos observámos, e claro que aprendemos todas as vossas línguas. E, assim, descobrimos o significado daquela palavra, mas continuamos sem perceber a sua importância. Os anos foram passando, e nós vimos os acontecimentos a precipitarem-se e os caminhos a definirem-se. Morgriff construía o seu reino de terror, cada vez mais depressa, e vocês continuavam sem conseguir fazer aquilo a que estavam destinados. Nenhum Elfo ou Fada fora capaz de compreender, totalmente, a sua natureza. E, então, Nessya e Aerzis morreram, e Valindra desapareceu. Não havia ninguém para vos orientar. Ninguém para vos mostrar como atingir a vossa outra face. Durante algum tempo, ainda tivemos esperança que Valindra o fizesse. Mas ela estava tão amargurada, tão desiludida com os Elfos e as Fadas! Por mais que quisesse, jamais seria capaz de o mostrar devidamente. Teriam de ser vocês a descobri-lo, sozinhos. E, só então, compreendemos toda a importância daquela palavra, todos os seus significados e consequências. Nalamin: a Estrela de Vida. Ela seria a professora, mas, acima de tudo, a Guardiã.

Animus parou a sua longa e melodiosa história. Iruvienne continuava a olhar para ele, de olhos fixos naqueles dois pontos brilhantes azuis e com as costas extremamente direitas e as mãos a repousarem nas pernas. Sem dúvida que o discurso do Espírito fora interessante, e a sua maravilhosa voz tornava-o agradável.

Mas Iruvienne não percebera muito bem qual era o seu objectivo. Não encontrara ali nenhuma resposta para as suas perguntas e conseguira ficar ainda mais confusa. Inspirou profundamente e soltou o ar, devagar, pelo nariz.

- Talvez o cansaço me tolde a compreensão – disse pausadamente -, mas receio não ter compreendido totalmente a história que me contou.

O Espírito flutuou até ela e prendeu os seus olhos minúsculos nos olhos castanhos e brilhantes de Iruvienne. Sorriu e roçou-Lhe a cara com uma das suas longas e imateriais mãos azuladas. Iruvienne pensou que era como se o ar e a água a acariciassem simultaneamente.

- Coloca-me todas as tuas questões agora, Nalamin - disse ele. - Em breve as tuas dúvidas terão desaparecido.

- Como sabes que Valindra estava zangada e desiludida connosco? Observaste-a?

- Sim, claro - respondeu Animus e, mais uma vez, a música da sua voz indicava que ele estava a lembrar-se de algo.

- Mas esta foi uma observação muito directa. Valindra atravessou as montanhas a que vocês dão o nome de Heniunel e errou por estas terras nevadas durante muito tempo. Não tencionava pedir ajuda aos Elfos daqui, nem a qualquer outra criatura. Ela era extremamente orgulhosa, tal como vieste a descobrir. Mas, um dia, encontrámo-la e trouxemo-la para esta gruta. Durante algum tempo, ela entreteve-se a construir estas e outras mobílias, com alguma, pequena, ajuda nossa. - Iruvienne sorriu. Sempre respeitara Valindra, mas era muito estranho imaginá-la a dedicar-se à carpintaria. - O quarto em que estamos foi onde ela viveu. Demos-lhe um novo nome, na mesma língua em que dizemos os nossos às criaturas materiais. Chamámos-lhe Lunam. E, lentamente, ela acalmou-se. Passou muitas horas e dias a reflectir, perdida nos seus pensamentos. O seu coração estava cheio de feridas difíceis de sarar. Curámos as que pudemos, mas muitas ficaram. Ela continuava a achar-vos pouco importantes a não ser como peças dos seus jogos, e odiava, profundamente, Morgriff. Um dia, despediu-se e partiu. O resto da história já tu conheces. - Parou durante uns momentos; parecia quase triste.

- Ela compreendia muitos mistérios, mas só mesmo no fim é que percebeu a verdade que lhe tentámos mostrar.

Iruvienne esperou algum tempo antes de colocar outra questão. O que Animus acabara de lhe contar explicava muitos dos acontecimentos que tinha vivido em Brumívium, na sua juventude. Explicava o estranho nome que Valindra adoptara, as suas enigmáticas respostas quanto a ter estado escondida durante todos aqueles milénios no Norte e, de certo modo, as longas e invulgares aulas que dava a Galaduinne. Fechou os olhos. Estava tão cansada! Os seus olhos tornavam-se cada vez mais pesados, a sua capacidade de concentração parecia diminuir a cada momento que passava e tinha uma gigantesca vontade de dormir. Durante alguns segundos não pensou em absolutamente nada, e

foi quase como se tivesse adormecido. Abriu os olhos e sorriu ligeiramente.

- Falaste na nossa verdadeira natureza. Mas, afinal, qual é ela? - perguntou, por fim. - E o que é, realmente, a Nalamin?

Animus sorriu abertamente. Parecia muito contente.

- Essas são, efectivamente, as perguntas importantes.

Aquelas que não podem ficar sem resposta. - Os seus pequenos olhos brilhantes prendiam os de Iruvienne, como que para ter a certeza de que ela não adormecia. - Disseste-me que a vossa natureza é uma mistura entre espírito e matéria. Tinhas razão. Os Homens possuem-nas em proporções incrivelmente semelhantes o que lhes permite compreender certas subtilezas, mas os torna cegos a outras. Os Duendes e os Gnomos, nisso, são muito semelhantes aos humanos. E a maioria dos restantes animais têm mais matéria do que espírito. Mas vocês são diferentes. Vocês são mais sábios, vêem o que poucos conseguem ver. E tudo isso se deve a uma pequena diferença: têm quase mais espírito do que matéria. Quase, porque não funciona, exactamente, assim. É como se fossem constituídos por duas partes diferentes que são unas durante alguns anos. Depois, a matéria morre e o espíritocontinua.

- Eu sei isso - disse Iruvienne, como se fosse uma criancinha e Animus sorriu.

- Claro que sabes. O que tu não sabes é que vocês podem passar da matéria para o espírito e do espírito, novamente, para a matéria, enquanto estão vivos. E, quando o conseguirem fazer, vão ficar surpreendidos com o que os vossos olhos vêem.

Iruvienne não conseguiu dizer nada. Não sabia se estava espantada se, pelo contrário, sempre o soubera. Simplesmente, não sabia o que pensar, sentir ou dizer. O Espírito voltou a sorrir.

- Mas, para fazer isso - disse ele -, é preciso coragem. Alguns, como Valindra e Morgriff, acharam que vocês tinham declinado, que tinham perdido as forças e o poder ou que nunca os tinham tido. Eles não podiam compreender, mas nós sabemos que tinha de ser assim. Vocês precisavam da pessoa certa. Alguém que conseguisse fazer essa viagem e a ensinasse a outros. Essa pessoa é Nalamin. És tu.

- Eu! Mas eu sou tão inconstante... Porque não Athilya ou Galaduinne?

- Porque tu, tal como elas já te disseram muitas vezes, transportas em ti a essência do teu povo - respondeu, calmamente, o Espírito. A sua voz repicava, ligeiramente, como o início de um hino de anunciação. - A tua música fala de uma criança brincalhona e travessa, de uma guerreira astuta e ágil, e de uma mulher corajosa e sábia. A tua música fala de uma rainha de Elfos e Fadas. És tão capaz de tomar a mais sábia das decisões, como de correr montes e vales, amares aquele que escolheste ou travares a mais perigosa das lutas com a espada. Tu és Nalamin, porque é em ti que a estrela brilha. Tu és a Estrela de Vida, a Guardiã. Iruvienne levantou-se e caminhou, lentamente, até ao jarro com água. Molhou as pontas dos dedos e remexeu a água fria e suave, descrevendo pequenos círculos. Talvez devesse estar a sentir alguma coisa especial, talvez a sua cabeça devesse estar a ser assaltada por um turbilhão de ideias e perguntas. Mas, a verdade, é que ela se sentia mais oca do que uma concha vazia. Simplesmente, estava demasiado cansada. Passou os dedos molhados pela cara, pestanejou várias vezes e focou a sua atenção, novamente, no que estava a acontecer. Virou-se para Animus. O Espírito sorria, mas ela sentia-se incapaz de o fazer.

- O que queres dizer com a Guardiã"? - perguntou pausada e calmamente.

Animus sorriu, ainda mais abertamente. Era óbvio que a conversa se direccionava cada vez mais para o que ele queria.

- Acima de tudo, ela é a Estrela de Vida, alguém que transporta em si todos os aspectos e fases da vida, e que os interliga de forma sábia e coerente. Assim, os Elfos e as Fadas estão ligados à Natureza, mas com a Guardiã é diferente. Ela e a Natureza estão interligadas. De certo modo, a Natureza depende dela.

- Espera - interrompeu Iruvienne. - Como é que isso pode ser se a Nalamin jamais existiu antes e a Natureza sempre existiu?

- É muito simples. Para começar, eu disse de certo modo".

E, além disso, quando a Nalamin se revelar, a Natureza passará a contar com alguém que a pode proteger. Não te preocupes, não é muito diferente do que o teu povo já faz. Só que tu poderás não só ouvir a Natureza, mas também ser ouvida por ela. As tuas opiniões serão tidas em conta e os teus conselhos apreciados, porque serás um pouco como nós. Em parte, terás de observar e analisar o que vês. É uma tarefa cansativa, porque o teu corpo não está muito preparado para isso. Terás de dormir mais, e o teu sono será desprotegido, pois estarás mergulhada no mais fundo de ti.

- Isso significa que deixarei de ter a Visão?

- Não. A Visão continuará a aparecer, como até agora; mas o teu sono será profundo e não vais ter a mínima consciência do que se passa à tua volta. Não saberás se estás em segurança ou em perigo. Lamento, mas essa tua capacidade de guerreira desaparecerá. Vais estar demasiado cansada para isso.

No entanto, terás outros para guardar o teu sono. Digamos que terás o teu próprio guardião, alguém que se preocupe contigo e seja suficientemente hábil para ficar de vigia durante o sono.

- Iruvienne fixou os olhos num ponto qualquer perdido no ar e deixou que toda aquela informação se acomodasse dentro de si.

- Nalamin... Todas essas capacidades virão sozinhas, depois de teres conseguido ser Espírito e, outra vez, matéria. Não terás de as aprender. Elas são-te inatas, apenas ainda não as descobriste.

De facto, alguns outros que ensinares terão também essas capacidades. Tu serás a professora, mas, quando morreres, alguém te substituirá. Talvez venhas a descobrir que alguns filhos de quem passou a prova, conseguem passar de uma face para a outra sem qualquer ajuda. Depois de tu conseguires, todos os caminhos ficarão, finalmente, correctos. És especial pelas tuas capacidades, mas, principalmente, por ires ser a primeira. - Sorriu novamente.

- Sabes, Nalamin, nós pensamos muito para além da eventual e iminente queda deste Mundo. - Iruvienne olhou-o, simultaneamente estupefacta, alarmada e ansiosa. - Não, Nalamin. Não quero dizer que Morgriff será derrotado. Quero dizer que nós pensamos no que irá acontecer se ele o for.

Iruvienne assentiu com a cabeça e fechou os olhos. Fora aquela passagem a Espírito e, novamente, a matéria que Valindra tentara ensinar à sua mãe. Falhara por uma única razão: estava a ensinar a pessoa errada. A respiração de Iruvienne tornou-se mais profunda, mas continuava a ser suave e ligeira, pelo que o Espírito mal notou a alteração. Mais uma vez, tudo se resumia a si. Àquela predestinação invisível que todos pareciam ver; à estrela de que Galaduinne falara. Havia uma pequeníssima parte de si que achava tudo aquilo ridículo, talvez a sua parte humana. Os Povos Sábios sabiam libertar o espírito, mas era impossível passar a Espírito sem perder definitivamente o corpo. No entanto, o resto do seu ser sabia que, por mais estranho que parecesse, era a verdade. Sorriu. Queria tanto deitar-se! Tinha tanto sono...

Uma pequena melòdia interrogativa ergueu-se no ar, do outro lado do cortinado, e Animus respondeu-lhe com a mesma melodia, que, desta vez, tinha uma expressão de resposta. Iruvienne abriu os olhos e deparou-se com outro Espírito, em tudo idêntico a Animus, que trazia nas delicadas mãos uma camisa de noite azul-clara.

- Pensei que não conseguiam segurar na matéria! - admirou-se Iruvienne.

Animus soltou uma das suas gargalhadas musicais.

- Sim, de certo modo é verdade. Mas há algumas excepções

como a cortina. E esta camisa é feita de algo mais do que matéria. Verás o que quero dizer quando a vestires. E, por favor, considera-a um presente. Podes deixar as tuas roupas em cima

do banco do toucador. Arranjaremos uma maneira de as lavar de todo esse sangue de Homem-lobo. - Animus deslizou até ela com

um sorriso nos lábios finos. - Dorme, Nalamin. Os teus amigos estão bem e em segurança, e não te preocupes com as revelações desta noite. Na altura certa farás o que deves. E se não o fizeres é porque o erro foi nosso. Mas isso não vai acontecer.

Iruvienne abafou uma gargalhada e o seu rosto iluminou-se com um grande sorriso, como se ela fosse uma aprendiz descuidada em frente ao seu mestre. Estava tão habituada a que as pessoas lhe contassem coisas extremamente importantes e, depois, lhe pedissem para as esquecer, que já achava piada a toda a situação.

- Ah! - exclamou Animus com uma pequena nota repicada. - Quase me esquecia de te perguntar uma coisa.

- Iruvienne esperou, enquanto despia o casaco e o pousava. – O que te trouxe até Niril âm'uol, Nalamin? Há sempre qualquer coisa que precipita os acontecimentos.

- Tive uma Visão - respondeu Iruvienne. - Ela mostrou-me um castelo de gelo, num promontório coberto de neve, de onde se via o mar. Aran viu no mapa uma saliência depois desta floresta onde me pareceu que o castelo poderia estar. Por isso viemos.

- Há, de facto, um local aqui com as características que descreveste, mas que, infelizmente, são bastante vagas e podem levar a muitos lugares diferentes. O castelo que procuras não fica aqui, mas muito para Norte. Têm algum mapa convosco?

- Sim, mas não mostra todas as terras a Norte. O Povo Branco nunca lá foi.

- Claro, compreendo. É um lugar inóspito e pouco apetecível. De resto, foi por isso mesmo que o castelo lá foi construído. O povo que lá vive não quer visitas. Mas talvez agradeçam a tua. Amanhã dou-vos um mapa completo destas terras. Agora, tens de dormir, antes que a exaustão vença, completamente, tanto o teu corpo como o teu espírito.

Iruvienne voltou a sorrir.

- Neste momento, é tudo o que eu desejo - respondeu, honestamente. Animus e o outro Espírito prepararam-se para sair. - Animus... Esqueci-me de fazer uma pergunta e sei que, provavelmente, não a devia fazer. Mas mesmo assim fá-la-ei. Como é que posso passar a Espírito, sem perder o corpo?

Animus sorriu enigmaticamente.

- Quando falares com o Fogo saberás. Boa noite, Iruvienne Nalamin.

E os dois Espíritos saíram, deixando-a sozinha. Iruvienne despiu-se, vestiu a camisa de noite que deslizou, suavemente, pelo seu corpo e lhe enlaçou as formas femininas, aconchegando-a, e deitou-se. O colchão era fofo, dando-lhe a sensação de que o seu corpo flutuava no ar, e Iruvienne desconfiou que havia nele algo de imaterial. Mas estava demasiado fatigada para se preocupar com o que quer que fosse. Por isso, fechou os olhos e adormeceu imediatamente.

 

                 O POVO AMALDIÇOADO

Quando Iruvienne, finalmente, acordou, não sabia se dormira cinco horas, um dia ou até vários. Mas sentia-se bem e, de algum modo, habituara-se àquela estranha ideia de ser a Nalamin. Talvez, afinal, sempre o tivesse sabido.

Afastou os lençóis e levantou-se. As roupas que Adhar lhe dera continuavam pousadas em cima do banco do toucador, mas tinham sido lavadas e os tecidos pareciam, uma vez mais, novos. Aqueceu um pouco de água na lareira, que fora acesa enquanto ela dormia, despejou-a na banheira e lavou-se. Assim que acabou, limpou-se, rapidamente, com a toalha que pendia da borda da banheira e vestiu-se. Forçou as pequenas gavetas perras do toucador até que, por fim, encontrou um pente de osso amarelado, com que penteou os cabelos molhados.

Animus entrou, acompanhado por Legonon e Aran, quando Iruvienne estava sentada no chão, de costas para a lareira, a tentar que o seu farto cabelo secasse. Aran trazia numa mão uma grande folha de pergaminho dobrada em quatro.

- Bom dia, Nalamin - disse o Espírito.

- Bom dia - respondeu Iruvienne.

- Como vês - continuou Animus - o teu amigo humano recuperou mais depressa do que seria normal, mesmo que tivesses usado todos os conhecimentos da medicina élfica. - Aproximou-se um pouco mais de Iruvienne. - Expliquei-lhes parte da nossa conversa, mas receio que muita coisa tenha ficado por dizer e que eles terão de compreender esta nova situação, lentamente, à medida que o tempo for passando. O teu amigo humano traz com ele o mapa que te prometi. Talvez seja melhor abrirem-no e observarem-no antes de partirem.

- Claro - concordou Iruvienne, ao mesmo tempo que Aran estendia o mapa no chão:

Debruçaram-se os três sobre a carta, enquanto Animus os observava, pairando um pouco acima do chão. O pergaminho era muito grosso e não revelava quaisquer sinais de ser antigo. Podia muito bem ter sido feito naquela noite. Todos os territórios das Terras Brancas estavam ali representados numa tinta azul brilhante. E umas letras elegantemente desenhadas com uma

tinta idêntica, mas azul-escura, indicavam o nome dos diversos lugares. As figuras, é claro, não se moviam e, contudo, o brilho daquela tinta criava a sensação de que as árvores se agitavam ao vento e as águas dos rios e lagoas ondulavam, pachorrentamente.

Havia um desenho quadrangular que indicava o enorme palácio de Nirilnege, umas casinhas pequeninas e circulares na zona norte de Niril âm'uol, onde os lumuol viviam, e, no ponto mais a Norte do mapa, desenhado sobre um promontório que parecia formar uma discreta península, um castelo com um leve ar de fortaleza.

- É para aqui que deves ir, Nalamin - disse Animus, apontando o desenho do castelo com um dos seus longos e esguios dedos afunilados. O seu dedo moveu-se até às casinhas circulares.

- E evitem passar por esta zona. Este é o território dos Lumuol e qualquer incursão por estes lados seria pura loucura, independentemente de todas as vossas capacidades. Eles são controlados por... músicas mais violentas. - A voz do Espírito estremeceu e ele deixou escapar uma curta melodia de irritabilidade e desdém. Talvez os Lumuol ouvissem as vozes de alguns desses Espíritos confusos. Animus apercebeu-se da pequena música da sua voz e sorriu. Assim que o fez, a melodia cessou, imediatamente. - Sugiro que saiam da floresta e continuem em campo aberto. Talvez seja mais cansativo, mas é mais seguro.

- Certamente - respondeu Aran, com os olhos presos no mapa.

Iruvienne inclinou, ligeiramente, a cabeça e espreitou o rosto do amigo. Apesar da sua resposta, Aran tinha o ar de quem detestara a ideia.

- É uma boa ideia - concordou Legonon, e a sua voz forte e, ao mesmo tempo, suave pareceu erguer-se acima da musicalidade do Espírito. - Mas vamos precisar de mais mantimentos. Perdemos alguns quando lensyn caiu no lago e os que temos jamais chegarão para a viagem de ida e volta.

- Tens razão - disse Animus, com umas notas de desafio dissimuladas na voz, enquanto o observava com os seus minúsculos olhos brilhantes. Legonon aguentou o olhar, deixando que o Espírito o avaliasse tão profundamente quanto queria. Por um momento, sentiu-se uma certa tensão no ar. Mas, então, Animus sorriu e o ambiente tornou-se, uma vez mais, calmo e melodioso.

- Já juntamos mais algumas provisões às que tinham nas mochilas. Não deve ser suficiente para toda a viagem de regresso, mas no castelo, certamente, dar-vos-ão mais. - A sua figura pareceu crescer, como se se estivesse a levantar, e o Espírito olhou para Iruvienne. - Despeço-me agora, Nalamin. A nossa ajuda, a nossa interferência com os seres corpóreos deste Mundo, acaba aqui. No entanto, enviarei Vocis, um dos nossos, para as tuas terras. Não era necessário fazê-lo, pois daqui vemos tudo. Mas julgo que a sua voz irá ser necessária lá e ele gosta da perspectiva de regressar. - Sorriu, e o seu sorriso era quase triste. - Desde que estou contigo, Nalamin, que me tenho apercebido de como os nossos sentimentos são parecidos com os dos seres materiais. És de facto, uma excelente professora.

Iruvienne baixou os olhos, um pouco envergonhada. Já aceitara a ideia de ser a Estrela de Vida, mas não deixava de ser uma ideia estranha.

Animus afastou a cortina e ficou à espera. Aran dobrou, rapidamente, o mapa, levantaram-se e passaram o cortinado. Enquanto subiam o corredor pouco iluminado, o Espírito aproximou-se de Iruvienne e inclinou-se, para que só ela conseguisse ouvir a sua voz.

- Escolheste bem, Nalamin. Ele jamais poderá passar a prova, mas estará sempre ao teu lado para te ajudar.

Iruvienne não respondeu. Não havia nada para dizer. Animus olhou em frente, pareceu sorrir e deslizou por entre eles. Tinham chegado, novamente, ao corredor principal. O Espírito colocou-se à frente dos três companheiros e inclinou profundamente, a cabeça.

- Adeus. Foi uma honra recebê-los. Não vos acompanho pois tenho muito para observar e o caminho é simples, basta seguirem em frente até chegarem à gruta de onde vieram. Encontrarão os vossos haveres onde os deixaram. Boa sorte para todos, especialmente para ti, Nalamin.

E, sem mais uma palavra, deslizou na direcção oposta, confundindo- se com as luzes das paredes. Iruvienne, Aran e Legonon olharam-se e sorriram. Aran inclinou a cabeça para trás e inspirou, enchendo o peito e distendendo os ombros.

- Vamos? - perguntou, enquanto soltava o ar.

Iruvienne olhou à sua volta, sorriu e começou a andar Legonon contemplou-a, durante alguns instantes, com olhos doces e um sorriso suave, sem se aperceber que Aran o observava. E, por fim, também eles caminharam em direcção à gruta.

Quando lá chegaram, encontraram os cães de língua de fora e cauda a abanar. Alguns deles soltaram pequenos latidos de contentamento, outros saltaram ou deitaram-se, à espera de algumas festas. Legonon afagou-lhes os pescoços, ao mesmo tempo que lhes dizia algumas palavras em lelvnege.

As luzes azuis do corredor brilharam, subitamente, e Iruvienne virou-se para trás. O clarão azulado erguera-se novamente, cobrindo todo o grande buraco onde antes estivera a a parede rochosa. E, quando desapareceu, a parede estava outra vez no seu lugar, como se nunca de lá tivesse saído. Aran pousou uma mão sobre a rocha, e afagou-a com os dedos encurvados, como que a certificar-se de que era real. Iruvienne observou-o, até que, por fim, ele se afastou da parede e começaram a arrumar as mantas que jaziam amarrotadas no chão da gruta. Enquanto trabalhava, Iruvienne sentiu-se a ficar mais leve, como se os problemas se tivessem perdido na travessia do túnel e ficado retidos junto dos Espíritos. Não precisava de se preocupar. Pelo menos para já. Sorriu e, sem se aperceber, começou a entoar uma melodia simples que Ogueimion Lhe cantava quando ela era muito pequena.

- O que se passa, pequenina?

- Nada - respondeu Iruvienne, numa voz muito baixa e despreocupada. - Sinto-me, apenas, aliviada. Lá dentro o ar estava sobrecarregado de informação e de destino. Aqui estou melhor. Consigo sentir o ar fresco da floresta. - Sorriu e encolheu os ombros, enquanto dobrava uma das mantas de pele. - Eu sou assim. Preciso de sentir as árvores e as planícies. Não nasci para ficar fechada dentro de grutas muito tempo. Principalmente quando se estão a discutir assuntos importantes. - Arrumou a manta no trenó e começou a atar as correias. - Sabes, Aran, os Espíritos não compreendem muito bem que mesmo os Elfos e as Fadas têm o espírito ligado à matéria. Não percebem que, a certa altura, nos cansamos e já não conseguimos ouvir e discutir certos assuntos. Mas essa é a Natureza deles.

Aran conteve uma gargalhada, abanou a cabeça e ajudou-a a atar as correias.

- Está tudo pronto? - perguntou Legonon que acabara de colocar as suas armas e continuava a observar Iruvienne com um brilho no olhar.

- Está - respondeu ela, com um sorriso mais suave e carinhoso que Aran não deixou de notar.

- Então vamos - disse o elfo.

Fizeram uma festa na cabeça dos cães, tomaram as suas posições e partiram.

A travessia das Terras Brancas foi longa e monótona. A planície nevada estendia-se, constantemente, à frente deles, tão lisa e branca que o brilho do Sol reflectido na neve Lhes feria os olhos. De vez em quando, passavam por um enorme monólito escuro ou pela superfície gelada de um rio ou lagoa. Mas pouco mais havia para ver. As árvores apareciam ocasionalmente, estranhamente deslocadas no meio daquele deserto nevado, e eram poucos os animais que viviam num terreno tão exposto. Além disso, o frio aumentava à medida que eles se aventuravam em direcção ao Norte, tornando a viagem ainda mais difícil e desagradável.

- Achas que falta muito? - perguntou Aran, esfregando os braços e soltando vaporadas de ar condensado.

Iruvienne avivou a fogueira e olhou para Norte. À sua frente estendia-se ainda aquele infindável manto branco, mas parecia-lhe ver algo diferente, muito ao longe. Uma espécie de pontinho brilhante, que se erguia acima do nível da neve.

- Talvez não - respondeu, por fim, sentando-se em cima da manta, ao lado do amigo. Agarrou as pernas dobradas com os braços e apoiou o queixo nos joelhos. Os seus olhos estavam um pouco ausentes, tal como acontecia desde que tinham deixado a gruta dos Espíritos. - Mas não posso ter a certeza. Desde que saímos de Niril âm'uol, tudo o que consigo ver é este gigantesco tapete de neve que não me permite ter noção de nada. Por mais que avancemos, parece que estamos sempre no mesmo lugar. A verdade é que estamos tão perdidos com mapa, como sem ele. Não há nenhum ponto de referência, seja onde for, que nos indique onde estamos. Podemos chegar ao castelo hoje ou daqui a um mês. É, simplesmente, impossível saber quando o vamos encontrar.

Encolheu os ombros e ficou a olhar para Legonon que estava a acordar os cães e a alimentá-los. Todos eles tinham, mais uma vez, dormido em cima das mantas de pele que se limitavam a dissimular, de forma muito ténue, o gelo da neve. Além disso, estavam separados do ar frio e cortante apenas por uma grande manta de peles, apoiada num pau com um topo plano e rectangular, próprio para o efeito, e fixa ao chão com alguns montículos de neve, que formava uma tenda demasiado estreita para a partilharem à vontade com os cães. Mas não havia outra hipótese. Aran tinha o corpo entorpecido, a cara meio queimada pelo sol invernal, os lábios um pouco gretados e a ponta do nariz vermelha e esfolada, devido aos frequentes espirros. A ferida curara, com uma rapidez pouco natural, mas o seu corpo ressentia-se por causa do frio, e Iruvienne começava a ficar preocupada. Por vezes, duvidava da sua decisão de encontrar aquele castelo. Mas, nesses dias, a Visão mostrava-lhe incessantemente imagens do castelo, e ela sabia que tinha de continuar.

- Não te devias preocupar comigo, pequenina - disse Aran, numa voz meio rouca. - Eu sou muito pouco relevante nesta história.

Iruvienne sorriu, como quem evita rir.

- O que tu dizes ou pensas, Aran, não é necessariamente a verdade. E sabes muito bem que és importante para mim. Sem ti, não conseguiria continuar.

- Isso não é verdade, pequenina. Se me acontecesse alguma coisa tu terias sempre Legonon. - Iruvienne fitou-o, calmamente, e foi a vez de Aran sorrir e encolher os ombros.

- É bastante óbvio, pequenina. Pelo menos para mim. Vocês não conseguem desviar os olhos um do outro. E, depois, há qualquer coisa que vos une. Algo que não consigo ver ou definir, mas que se sente perfeitamente. Uma espécie de ligação!

- Sim - disse Iruvienne numa voz muito suave e baixa.

- Uma ligação parecida com a tua e a de Athilya.

Aran ficou, de repente, muito interessado na neve à volta dos seus pés e, durante algum tempo, não falou.

- Algo do género - resmungou, por fim, e remeteu-se outra vez ao silêncio.

Iruvienne olhou para a fogueira. As chamas vermelhas e amarelas ondulavam, dançando ao seu próprio ritmo uma dança fascinante e elegante que a cativava de forma curiosa. Tirou uma das luvas, aproximou a mão do fogo e sentiu as chamas a dirigirem-se, suavemente, para ela, quase a chamá-la. Havia algo em si que queria entrar dentro do fogo e dançar com ele. Mexeu a mão e as chamas acompanharam-na, como se se sentissem hipnotizadas por ela. Se quisesse... Se quisesse poderia escorregar para dentro do fogo e dançar com ele. O seu corpo inclinou-se para a frente, sem que ela se apercebesse. Estava demasiado longe e só muito vagamente tinha consciência do que a rodeava. Sentiu um pequeno formigueiro e o calor das chamas nas pontas dos dedos. Se quisesse...

- Pequenina! - chamou a voz rouca de Aran e imediatamente, Iruvienne saiu daquele lugar onde a inconsciência começa. Durante alguns segundos, Aran observou-a com um ar desconfiado, tentando perceber o que acontecera, mas acabou por desistir. - O que se passa, Iruvienne? Estás triste, preocupada e, de vez em quando, não consegues evitar ficar cansada. E não é só a viagem que te cansa. Até eu consigo ver isso.

Iruvienne soltou um suspiro suave e fechou os olhos.

- Eu sempre quis ser uma guerreira. Tu sabes disso. Não tencionava tornar-me rainha; de certo modo, nem sequer queria crescer. Se tivesse podido passar a minha vida a patrulhar as Terras da Luz, teria sido feliz. Viver na Natureza e sentir a aventura sempre perto de mim ter-me-ia bastado. Mas eu também sabia que não seria assim. Por mais que possa construir o meu próprio destino, há certas coisas que me cabem a mim fazer, e apenas a mim. Não posso exigir aos outros que se encarreguem das minhas responsabilidades. - Olhou Aran directamente nos olhos cinzento-azulados e, desta vez, não sorria. A sua expressão era séria e repleta da gravidade de que se revestem os rostos élficos, quando falam de assuntos vitais. Todo o seu porte era altivo e decidido. Se não a conhecesse tão bem, Aran teria ficado surpreendido. - Saber que sou Nalamin foi estranho, mas não foi uma surpresa. Explicou e confirmou tanta coisa que, desde que recomeçámos a viagem, sinto que as respostas estão, finalmente, a surgir. Só que não são respostas pacíficas, Aran. Implicam tanto sofrimento, tantas mudanças... Mesmo que consigamos vencer Morgriff, o nosso Mundo jamais será o mesmo. Para já, algumas coisas não passam de ideias, meras suposições. Não são, ainda verdadeiras respostas. Mas se estiverem correctas... Eu não desejei isto, Aran. Sabia que era provável, mas não queria que se tornasse real.

Calou-se, desviando o olhar, e pela primeira vez Aran sentiu-a a vacilar. Ela não tinha a certeza do caminho, parecia até que... Não, não podia ser. Aran estendeu uma mão e segurou-Lhe, ternamente, no rosto delicado e decidido. Legonon ainda alimentava os cães. Gentilmente, obrigou-a a olhá-lo e presenteou-a com um dos seus sorrisos torcidos que, embora fosse desapropriado, pareceu acalmá-la um pouco.

- Há ainda muito tempo, pequenina. Um dia pode durar uma eternidade e o amanhã, às vezes, traz-nos algo que não esperávamos.

Iruvienne soltou uma risada abafada e triste.

- Não preciso de mais surpresas, Aran. De facto, começo até a receá-las.

Aran chegou-a para si e aproximou-Lhe a cabeça da sua.

- Não digas isso - sussurrou, e havia na sua voz um tom de pedido, como se ele precisasse que ela soubesse sempre o que fazer. - Tu não és assim. Tu vês muito longe, para além do que é terreno, e guias-me por caminhos invisíveis.

- Eu tenho medo do caminho, Aran. Tenho medo por ti e por Legonon. - Olhou rapidamente para Legonon, que estava quase a terminar a sua tarefa. Não queria que ele a ouvisse. Aproximou-se ainda mais de Aran e a sua voz tornou-se, extraordinariamente baixa. - Se eu estiver certa, terei de fazer coisas para as quais desconheço as consequências e, se falhar... Não posso ter a certeza, Aran. Ainda não vejo nada disto com clareza, mas parece-me que se falhar os caminhos serão todos de dor e escuridão. E, talvez, Morgriff não seja o único responsável por isso. Mas mais do que medo pelo meu povo e pelo Mundo, eu receio por vós. Temo arrastar-vos para uma morte inútil, de que só eu serei culpada. Tu és meu amigo e sei que me seguirás sempre, mas se morreres por minha causa... É horrível matarmos o nosso melhor amigo. É um crime hediondo. - Aran não conseguia falar. Talvez o frio Lhe tivesse congelado a boca, incapacitando-o de dizer fosse o que fosse. Iruvienne olhou de relance para Legonon.

Ele estava a fazer festas aos cães. Tinha acabado de Lhes dar de comer. Tinha de se apressar. - O amor dele é maraviLhoso, Aran. Tão pleno que chego a temer estar, simplesmente, a sonhar. Tentei não me apaixonar, ou deixar que ele se apercebesse disso, mas não consegui evitá-lo. E, agora, isto ainda o vai destruir. Nós estamos ligados. Se eu morrer...

- Chiu - disse Aran, tapando-Lhe a boca com o dedo indicador. - Não chores, pequenina. Tens de te acalmar; e não te preocupes. À nossa maneira, também nós somos fortes. Faz o que tiveres e achares que deves fazer. O que vier depois, logo se verá.

Iruvienne respirou, pausadamente, ao mesmo tempo que fechava os oLhos. Estava, realmente, muito cansada. O seu corpo precisava de descansar, mas a sua mente estava exausta. Todas aquelas dúvidas e preocupações tinham-na, lentamente, esgotado. Precisava realmente de se acalmar. Soltou um grande suspiro e oLhou novamente para Legonon, que se mantinha, propositadamente, de costas, a afagar os cães.

- Tudo é tão simples quando somos apenas nós - desabafou, numa voz saturada, mas que começava a ficar outra vez confiante.

- Claro, pequenina - concordou Aran, com um dos seus sorrisos. - Quando as nossas acções têm consequências, praticamente, apenas para nós, tudo é muito mais fácil. Só que isso é uma das regalias reservadas às crianças.

Iruvienne sorriu, com ar divertido.

- É por isso que eu não queria crescer - disse, num tom sussurrado e brincalhão.

E os dois amigos romperam a rir, enquanto Legonon se aproximava.

O dia passou lentamente, mas aquele pequeno ponto foi-se aproximando deles, até que, a meio da tarde, conseguiram ver os contornos do castelo. Tinham-se desviado um pouco da rota certa e a pequena península estava mais para a direita do que eles esperavam. No entanto, chegariam ao castelo, o mais tardar, ao fim do dia. Legonon e Aran deram uma ordem aos cães e os trenós escorregaram pela neve fofa, em direcção à península.

Enquanto deslizavam, três ursos brincalhões passaram por eles. O seu pêlo era branco e brilhante. Parecia até ter um leve tom dourado. Dois eram, apesar do seu porte imponente, ainda muito jovens, não mais do que pequenos bebés com algumas semanas. A mãe seguia-os, empurrando-os gentilmente com o focinho, mas eles ficavam sempre para trás, guerreando-se, divertidamente, e rolando pela neve. Então, a mãe juntava-se à brincadeira e com o seu enorme e pesado corpo obrigava-os a avançar, mostrando-lhes como ainda eram pequenos. Quando os trenós passaram por eles, fê- los parar e colocou-se à sua frente, numa atitude protectora e defensiva. Contudo, deixou os três amigos passarem, sem mais do que um olhar cauteloso e intimidante. Se não estivesse ainda a pensar em todas as ideias e suposições que a atormentavam, talvez Iruvienne tivesse dito algumas palavras em Lissanin, ou olhado a ursa directamente nos olhos negros, para lhe mostrar que não havia perigo. Mas a sua mente continuava perdida naquelas respostas estranhas e inquietantes. De facto, apenas muito levemente teve consciência da presença dos ursos e das suas brincadeiras traquinas e despreocupadas.

A tarde correu rapidamente, ao mesmo tempo que as formas difusas e algo curiosas do castelo se aproximavam cada vez mais deles. E, por fim, quando o Sol se aproximava do ocaso, espraiando os seus raios alaranjados e dourados pela neve incrivelmente branca, o castelo de gelo revelou-se em toda a sua magnificência. Tinha algumas parecenças com os castelos medievais dos Homens, mas as torres eram mais redondas e finas, não havia muralhas ou fosso para o proteger, e todo ele tinha um ar mais delicado e elegante do que seria normal num castelo humano. De facto, havia na sua arquitectura alguma da elegância do Palácio do Ouro e do Verde. Mas era, sem dúvida, muito mais misterioso, muito mais irreal. Parecia, verdadeiramente, saído de algum conto de fadas. Por trás dele, entrevia-se um mar muito azul e frio, onde, a espaços, se vislumbravam alguns icebergues escarpados.

Iruvienne tirou a manta de pele que a cobria, levantou-se do trenó e aproximou-se da porta. Legonon e Aran seguiram-na. Toda a superfície gelada do castelo era lisa e opaca, sem qualquer tipo de inscrição ou adomo. As janelas eram quase todas pequenas e, em muitos casos, pouco visíveis. As grandes portas de entrada não tinham maçanetas para serem abertas ou algum sistema de ferros que as pudesse abrir pelo interior. Eram, simplesmente, dois bocados recortados de um enorme bloco de gelo opaco. Iruvienne esticou uma mão para as portas, tocou-lhes com a ponta dos dedos e sentiu a mão a escorregar, facilmente, pelo gelo. As suas luvas ficaram com pequenas manchas de água nas pontas dos dedos. Como seria possível manter aquele castelo de gelo sem jamais derreter? E como conseguiria alguém viver lá dentro? Um castelo de gelo não lhe parecia um bom sítio para se proteger do frio, cozinhar ou encontrar um lugar quente onde dormir. Porque se teria alguém lembrado de fazer um castelo de gelo?

Bateu à porta, mas o som foi abafado por uma rabanada de vento que lhe atirou o capuz para trás e lhe revoltou os cabelos. Olhou para Aran, sem saber muito bem o que devia fazer, mas o amigo encolheu os ombros e ela resolveu voltar a bater à porta. Primeiro, nada aconteceu, mas depois as portas deslizaram suave e silenciosamente, deixando-os passar para um pequeno vestíbulo. Dos lados havia duas escadas de gelo polido e transparente, que subiam em direcção aos andares superiores, e em frente encontravam-se mais duas enormes portas de gelo opaco. O castelo estava mergulhado no mais profundo dos silêncios e parecia completamente deserto. No entanto, Iruvienne sabia que isso não era verdade. Se o castelo tivesse sido abandonado, eles não poderiam ter entrado. As portas fecharam-se atrás deles, com um ligeiro som abafado, deixando os cães a latir aflitivamente lá fora. Imediatamente, as portas em frente abriram-se, revelando um longo salão de paredes opacas, adornado por várias colunas redondas de gelo transparente. Entre as colunas estavam grandes candelabros de pé alto, cada um com sete velas acesas. Ao fundo do salão, três degraus baixos e compridos davam acesso a uma plataforma, igualmente de gelo transparente. E, em cima da plataforma, encontrava-se uma única e imponente cadeira de gelo opaco trabalhado, onde uma velha estava sentada. A mulher tinha um porte altivo e usava um bonito vestido cor de vinho. Os seus cabelos de madeixas cinzentas e brancas estavam orgulhosamente apanhados no cimo da cabeça e caíam-lhe em elegantes cachos pelas costas. O rosto, toldado por uma miríade de rugas, que pareciam cobrir-Lhe todo o corpo, era severo. Os lábios encarquilhados formavam uma linha rígida e, contudo, os seus olhos, de um azul- claro gelado, não tinham qualquer expressão. Estavam, apenas, vazios de vida.

Iruvienne, Aran e Legonon aproximaram-se calma e lentamente das escadas. Os seus portes eram dignos, mas sem qualquer ar de superioridade. Legonon e Aran pararam um pouco atrás de Iruvienne e curvaram-se, profundamente. Iruvienne inclinou respeitosamente a cabeça.

- Sou Iruvienne Nalamin, Rainha das Terras da Luz e Dama de Caladmiron - disse, numa voz suave e clara.

Não houve qualquer resposta. A velha continuou a olhar em frente e eles mantiveram-se curvados, sem saberem o que fazer. E, então, ela pareceu reparar neles.

- SAIAM DO MEU SALÃO - berrou, numa voz cavernosa e rouca, sempre a olhar em frente, como se fosse cega e não os conseguisse ver. - SAIAM DO MEU CASTELO.

Iruvienne deu um passo em frente.

- SAIAM...

- Por favor...

- SAIAM.

- Cala-te, velha louca - disse uma voz grossa e calma vinda da direita.

Um velho de vestes azuladas surgira por uma porta dissimulada na parede do lado direito e aproximava-se deles, com um sorriso nos lábios finos e descoloridos. Também ele tinha a pele rendada pelas rugas, e os seus longos cabelos e barba eram tão brancos quanto a neve do exterior. A velha rodou, arrogantemente, a cabeça para ele.

- Não te permito que entres neste salão - disse rispidamente. - Aqui não há lugar para traidores e fracos. Sai.

- Como queiras - respondeu o velho, num tom de

indiferença, dirigindo-se novamente para a porta, e fazendo-lhes sinal para que o seguissem.

A mulher observou-os com um olhar repleto de ódio e amargura, mas não se levantou, nem voltou a falar.

- Não lhe liguem - disse o homem, enquanto os conduzia por entre uma série de corredores labirínticos. - Não passa de uma velha tola a quem já ninguém dá importância. - Parou, bruscamente, e virou-se para eles com uma expressão extremamente grave.

- Os velhos devem ter cuidado com o que dizem, mas os novos devem estar atentos aos caminhos que escolhem. E ela sempre se esqueceu disso. Venham. Vamos procurar uma sala sossegada. Há muita coisa que tem de ser explicada.

E continuou a andar por aqueles corredores de gelo muito mais quentes do que seria de esperar e iluminados por velas em castiçais de ferro. O castelo parecia ter acordado de repente. Várias pessoas vestidas com mantos ou túnicas longas passeavam-se pelos corredores, conversando entre si. Muitas tinham a pele moldada por uma quantidade incontável de rugas e apoiavam-se em longos bastões. Os seus rostos não eram nem tristes, nem alegres, apenas cansados. O castelo era todo feito de gelo, na sua maioria opaco, e não evidenciava qualquer sinal de alguma vez ter derretido ou estar prestes a derreter. Ao longo dos corredores havia várias portas, algumas com desenhos em relevo. Mas esses eram os únicos enfeites do castelo. Tudo o resto parecia um enorme e sólido bloco de gelo de onde, por acaso, surgira um castelo.

Finalmente, o velho parou e tocou ao de leve na porta à sua frente, que deslizou e se abriu, e olhou-os com um sorriso divertido.

- Bastante prático, não - perguntou, entrando na salinha onde quatro cadeiras de gelo tinham sido dispostas à volta de uma mesa repleta de iguarias, impossíveis de serem encontradas num lugar tão isolado e gelado como aquele. - Senta- te à minha frente - disse ele, com um gesto para Iruvienne.

Ela sorriu e, delicadamente, sentou- se na cadeira de gelo. Estranhamente, o gelo não estava frio ou húmido. De facto, era como se se estivesse a sentar numa qualquer cadeira almofadada, recoberta com veludo. Legonon sentou-se calmamente numa das cadeiras ao lado de Iruvienne, mas Aran hesitou durante alguns segundos. Fitou a cadeira com ar desconfiado, olhou à sua volta para o velho, Iruvienne e Legonon, sentados nas cadeiras de gelo, como se todos eles tivessem ficado, subitamente, doidos e, por fim, com um olhar esbugalhado e um longo suspiro, sentou-se na cadeira de gelo quente. E, quando o fez, não conseguiu evitar uma expressão de surpresa. Olhou, outra vez, à sua volta, completamente admirado, e fixou o olhar do velho.

- Ah, ah! - fez subitamente o velho, como quem conhece a resposta muito simples para uma pergunta complicada, e mostrou a Aran um dedo ossudo e enrugado. - Estás a pensar porque é que o gelo não derrete e não é frio. Ou, talvez, como é que pode estar tão quente aqui dentro. - Sorriu, brincalhonamente. - Eu sei, mas não te vou dizer. É um segredo de feiticeiro.

Iruvienne, que até então estivera a olhar o amigo de forma divertida e sorridente, virou-se rapidamente, e prendeu o olhar no velho. Ele voltou-se, calmamente, e encarou-a com uma expressão pacífica.

- Tantas perguntas, Nalamin!... - Desviou o olhar dela e suspirou, fitando o tecto com olhos sonhadores. - A minha história passou-se há muitos milhares de anos atrás - disse, rodando a cabeça, novamente, para ela - e é longa, mas irá preencher os buracos do puzzle que tens vindo a construir. Se tiverem tempo, posso contá-la.

- Temos todo o tempo de que precisar - respondeu Iruvienne. - Por favor, conte-nos a sua história.

O velho assentiu várias vezes com a cabeça, enquanto olhava para o chão de gelo com olhos baços.

- Se tens qualquer coisa a dizer, jovem príncipe, deves dizê-lo - recomendou, sem desviar os olhos do chão.

Legonon teve um ligeiro sobressalto, mas recompôs-se imediatamente.

- Deixámos os cães e as nossas coisas lá fora - disse pausadamente - e, como está frio, preocupo-me com eles. Além disso, os animais daqui são grandes e fortes. Se quiserem, é-lhes bastante fácil matarem os cães.

- Não te preocupes - respondeu o velho, numa voz distante e ainda a olhar para o chão. - Os mais novos de entre nós já descobriram os vossos cães e estão a tratar deles. Ficaram todos bastante entusiasmados por puderem ver, finalmente, um cão ao vivo. Até agora tudo o que conseguiram ver foi desenhos ou, no melhor dos casos, algum velho cão empalhado. - Fez uma pausa e olhou para Legonon. - Quanto às vossas coisas, os mais velhos já as guardaram num lugar seguro. Como vês, não precisas de te preocupar. - Olhou para Iruvienne e sorriu. - Também tu te devias acalmar. As pessoas não são escolhidas para uma determinada tarefa por acaso. Mas não me cabe a mim ou a algum dos meus dizer-te o que deves fazer. Há muito que perdemos esse direito. - Fitou, calmamente, cada um dos seus ouvintes. - Vocês estão muito cansados. Deviam comer qualquer coisa. - Olhou divertidamente para Aran que se enterrara na cadeira, com os olhos semicerrados virados, estrategicamente, para Iruvienne. Era óbvio que estava extremamente envergonhado. - Podem comer à vontade. A comida é bastante vulgar e, se por acaso, alguma dela for um pouco mais... anormal, podem ter a certeza de que não vos fará mal. Por isso, por favor, comam alguma coisa. Quanto a mim, há muito tempo que comecei a perder essa necessidade.

Iruvienne, Aran e Legonon serviram- se de uns biscoitos doces, ligeiramente pegajosos, e pegaram nos copos de vinho que estavam à sua frente. O velho observou-os com um ar cansado, mas, quando eles começaram a comer, ergueu a cabeça e sorriu, avaliadoramente.

- Assim está melhor. - Olhou directamente para Iruvienne, com os olhos a brilhar. - A história que estão prestes a ouvir jamais foi contada e nem os Povos Sábios a conhecem. Aconteceu há milhares de anos atrás, pouco depois dos filhos dos Elementos surgirem, numa altura em que este Mundo era muito jovem e os Elfos, as Fadas, os Duendes e os Gnomos ainda dormiam nas profundezas da terra e da água. Tudo começou com o aparecimento do meu povo: os Feiticeiros. Eu, Erldin, fui um dos primeiros e, na altura, um dos mais poderosos. - Aran teve um pequeno trejeito de espanto, mas disfarçou rapidamente. - Aquela velha louca que vocês encontraram no salão de entrada foi a primeira e era, sem dúvida, a mais poderosa. O seu nome é Guindenlin. Em tempos, fomos muito unidos e éramos, mais ou menos, o rei e a rainha dos Feiticeiros. Embora, é claro, nunca tenha chegado a haver essa espécie de hierarquia entre feiticeiros. Digamos que éramos mais os chefes do Conselho e, por isso, éramos respeitados e considerados. Mas tudo isso acabou por mudar.

No início, não houve problemas. Ajudámos os filhos dos Elementos a construir Omnirion e eles ajudaram-nos com a nossa casa. De facto, eu e Aerzis dávamo-nos bastante bem. Ele era simpático e compartilhava comigo os seus conhecimentos. Guindenlin, devo confessar, dava-se bastante melhor com Valindra. Realmente, foi ela quem apresentou Morgriff a Guindenlin. Nessa altura, Nessya falou comigo e avisou-me dos perigos de uma eventual relação entre Guindenlin e Morgriff. Mas eu não quis acreditar no que ela dizia. Julgava que Guindenlin me amava e, talvez no princípio, tenha sido verdade. No fundo, sou tão culpado pelo que aconteceu quanto Guindenlin.

"Morgriff e ela começaram a ver-se cada vez mais. Passeavam juntos, conversavam, riam. E, lentamente, eu percebi que ela já não gostava de mim. Por isso, afastei-me. Não fui tolo ao ponto de ter uma crise de ciúmes e me insurgir contra Morgriff. Não era assim tão estúpido.

Foi mais ou menos por essa altura, que as discussões entre Aerzis e Morgriffse agravaram e, por mais de uma vez, Guindenlin apoiou Morgriff. Por fim, ele convenceu-a a ajudá-lo nos seus planos e a construir Morniran. Seguiu-o sempre, aquela grande tola. Nunca percebeu onde se estava a meter. Ele elogiava-a abraçava-a, falava como se realmente a amasse e, lentamente Guindenlin ensinou-lhe tudo quanto sabia, transformando-o numa espécie de feiticeiro. - Sorriu, tristemente. - Até lhe deu um bastão. Aerzis tinha conseguido esse tipo de poder por mérito próprio, mas Morgriff, que jamais o devia ter tido teve de enganar e mentir para o obter. Essa sempre foi uma das grandes diferenças entre eles. Com o passar do tempo Guindenlin mudou-se para Morniran e passou a viver com ele. Vi-os uma ou outra vez, a passearem de braço dado, como se fossem reis do Mundo. Ela estava demasiado cega para perceber o que se estava a passar, mas eu não. Podia ver todo o enorme jogo de Morgriff a desenrolar-se com uma calma terrível e fria. Ele não estava só a aprender com Guindenlin; estava, lentamente, a sugar-lhe todo o seu poder, tornando-a totalmente dependente dele. Tenho de reconhecer que foi muito esperto. E, por fim, Morgriff preparou as últimas jogadas. Sem qualquer dificuldade, persuadiu Guindenlin a ajudá-lo a começar um enorme fogo que queimasse todo este Mundo, pelo menos os territórios a Sul das Heniunel. Então, eles poderiam reinar juntos. E aquela louca acreditou. Reuniu o Conselho e, com todas as fantásticas capacidades que ainda lhe restavam, jogou um jogo tão sujo como o de Morgriff. Enganou quase todos os feiticeiros, levando-os a ajudá-la a atear o fogo. Eu e alguns outros, suficientemente poderosos para fugirmos aos ardis de Guindenlin, revoltamo-nos contra ela. De pouco nos valeu. Ela chamou-nos cobardes e traidores e, com a ajuda dos outros feiticeiros, aprisionou- nos, para que não pudéssemos avisar Aerzis, Nessya e Valindra. O fogo foi ateado e correu veloz por entre as árvores de Brumívium, queimando toda a vida que encontrava à sua frente. Felizmente, Aerzis, Valindra e Nessya conseguiram travá-lo. - A sua voz firme e clara tremeu um pouco, tornando-se mais triste e cansada. - E, então, Aerzis amaldiçoou- nos a jamais morrermos até que tivéssemos compensado o mal que causáramos. É escusado dizer que ainda não o fizemos. Basta olhar para mim: velho, enrugado, exausto, mas, mesmo assim, vivo. Tenho milhares de anos, mas continuo vivo. Foi uma maldição terrível. Os nossos filhos nasceram, depois os filhos deles e sempre assim.

Mas todos eles estavam amaldiçoados. Cresceram, envelheceram, o corpo tornou-se fraco e encarquilhado, uma prisão para a alma, e continuaram a viver, tal como todos nós. É horrível estar vivo sem viver. Já não consigo dormir, deixei de ter vontade; a comida perdeu o sabor e, a verdade, é que deixei de precisar dela. Os meus sentidos tornaram-se fracos: os meus olhos vêem mal, a minha pele perdeu a sensibilidade. Estou vivo, mas perdi todos os prazeres da Vida. Acho que cheguei até a cansar-me deles. E não há um único dia em que não anseie pela morte. Vejo os animais morrerem e invejo-os por terem essa afortunada capacidade.

- Inclinou-se para a frente e fixou os olhos de Iruvienne com um olhar duro. - A eternidade é a maior das maldições, Iruvienne Nalamin. É aquela altura em que tudo o que havia de belo na Vida passa a ser uma simples e cansativa rotina, no nosso caso agravada pelas condições deteriorantes do nosso corpo. Tudo o que quero é morrer e, se as minhas capacidades não tiverem desaparecido totalmente, ao ponto de me estarem a atraiçoar, sei que me vais ajudar a consegui-lo.

Erldin recostou-se na cadeira de gelo e fechou os olhos azul- claros. Parecia tão velho e frágil, mas também tão calmo! Passou os dedos magros e artríticos pela longa barba branca, ao mesmo tempo que soltava, lentamente, o ar. Os seus lábios, dissimulados no meio das rugas da pele macilenta do rosto, formaram uma pequena linha curva.

- Às vezes - disse baixinho -, quando fecho os olhos e a minha mente se esvazia, imagino que morri. Mas há sempre aquela desagradável certeza de que isso não acontecerá. - Abriu os olhos e sorriu mais abertamente. - Bem, a minha história ainda não acabou e estes desejos de um velho cansado pouco vos importam. - Aran moveu-se, para o contradizer, mas Iruvienne e Legonon mantiveram-se quietos. - É verdade, jovem humano; sei por experiência própria que os novos não querem ouvir falar mal da vida. É normal. Falta-vos ver e experimentar tanta coisa! Ainda não sabem como a vida custa e cansa. E espero que nunca venham a saber. - Endireitou o tronco e fez um barulho com a garganta, como se se estivesse a espreguiçar. - Quando Aerzis nos amaldiçoou, nós também não sabíamos. Lembro-me que alguns se riram da maldição. Guindenlin chegou até a abençoá-la. Mas Morgriff percebeu todo o alcance do que Aerzis fizera e, quando Guindenlin o procurou para se atirar nos seus braços, rejeitou-a.

Afinal, de que lhe servia um corpo que só tinha poder por estar agarrado ao seu e que, em breve, deixaria de provocar qualquer prazer? Mas nem mesmo então Gúindenlin conseguiu ter a atitude correcta. Recusou-se a pedir qualquer ajuda a quem quer que fosse e, juntamente com todos os outros feiticeiros, refugiou-se no nosso castelo, que antes repousara, tranquilamente, numa bela floresta e, agora, fazia parte de um lugar maldito. Durante algum tempo, permanecemos assim: escondidos de tudo e todos sem, no entanto, o estarmos. E eu e os meus companheiros continuámos encarcerados. Até que, por fim, o poder de Guindenlin se esgotou completamente, e os outros feiticeiros despertaram da cegueira a que ela os obrigara. Então, libertaram-nos e nomearam-me Mestre Supremo do Conselho. Assim, eu poderia remediar o que ela fizera.

Quando a encontrei, fechada no quarto, ela ainda

estava, relativamente, lúcida. Mas a amargura já a envolvera. Guindenlin, aquela feiticeira fantástica por quem me apaixonara, perdera-se para sempre.

"Reuni o Conselho e sugeri que se arrumassem todos os nossos haveres e se abandonasse o castelo. Depois de terem percebido as consequências dos actos de Guindenlin, ninguém me perguntou sequer porquê. Limitaram-se a concordar e a cumprir o que eu tinha proposto, com uma confiança que me espantou. Envolvemos o castelo em feitiços que o preservariam melhor do lento degradar imposto pelo tempo, talvez porque tínhamos esperança de algum dia regressarmos. Agora, sei que não o faremos. Deixei uma pequena mensagem a Aerzis, pedindo-lhe desculpa por tudo e aceitando o destino que ele nos ditara. Não foi uma atitude normal, mas devia-lho, em nome da amizade que ele sempre me dera. E, assim, atravessámos as Heninunel e continuámos sempre para Norte, até que a terra acabou e não havia maneira de prosseguir. Então, aqui, onde seria difícil encontrarem-nos, construímos este castelo e nele temos vivido desde esses trágicos tempos. Mas, pelo menos numa coisa, não falhei. Depois de tudo o que se passara, não queria estar naquelas terras quando os Povos Sábios despertassem, não tinha esse direito. E, ao menos isso, consegui.

Quanto a Guindenlin, enlouqueceu durante a viagem como, de resto, acabaria sempre por acontecer. E, agora, da grande feiticeira de outrora só resta o que vocês viram: uma velha louca e orgulhosa, confinada ao seu salão onde ninguém entra e com quem já ninguém se importa. Ela sabe o que fez, e isso atormenta-a. Mas, ao mesmo tempo, nega-se furiosamente a aceitá-lo. Só ela e eu nos lembramos de quem ela foi, em tempos. Num tempo em que vocês ainda não tinham acordado e o mal podia ter sido evitado. Mas isso está muito longe... Demasiado longe. - Erldin encostou-se, novamente, às costas da cadeira e soltou um grande suspiro. - Alguns de nós, quando as portas entre este Mundo e o dos Homens se abriram, fugiram para lá. E ainda por lá devem andar, escondidos no meio de uma sociedade que os esqueceu ou que já não acredita neles. Somos, de facto, um povo amaldiçoado. Talvez isso um dia mude.

Fechou os olhos e, com uma expressão de deleite, deixou o corpo velho e mirrado reclinar-se na cadeira de gelo.

 

                     A ARANHA

Iruvienne, Aran e Legonon ficaram sentados, a olhar uns para os outros, sem saberem muito bem o que fazer, até que a porta se abriu e uma rapariga de longos cabelos lisos e pretos entrou. Vinha vestida com uma túnica azul, justa e longa, e um manto azul-claro, com pequenos bordados pretos. O velho abriu os olhos e sorriu ao ver a jovem.

- Isarmia... - A rapariga sorriu, de forma despachada.

- Que bom ver-te. Deixa-me apresentar-te os meus pacientes ouvintes. - Virou-se ligeiramente para eles. - Esta é Iruvienne Nalamim, Rainha das Terras da Luz, o príncipe Legonon, de Nirilnege, e Aran, um humano que parece deslocado no meio deste grupo, mas está longe de o estar. - Olhou para os três amigos.

- Esta é Isarmia, uma parente muito afastada e talentosa, que vai ter o prazer de conduzir a Rainha Iruvienne até aos aposentos que, espero, foram preparados para ela. - Isarmia olhou para Erldin, como quem não gosta minimamente da ideia, mas ele encarou-a com um olhar severo. - Ora, Isarmia, não sejas irritante. Qual é o mal de a levares? - Isarmia fitou-o, furiosamente, e abriu a boca para protestar. Mas arrependeu-se, acabando por forçar um sorriso. - Linda menina. Os jogos e brincadeiras infantis podem ficar para outra altura. E, agora, vocês os dois façam o favor de virem comigo.

Com um pequeno som de esforço, levantou- se, recusando o braço que Isarmia lhe oferecia, e tocou ao de leve na porta, para a abrir. Iruvienne, Aran e Legonon levantaram-se, prontos para sair. Erldin fez um aceno com a cabeça, indicando a Legonon e Aran que o seguissem e os dois amigos apressaram-se a obedecer. Aran passou por Iruvienne com uma expressão que oscilava entre o respeito e o divertimento e que a fez ter vontade de rir. Legonon não olhou para ela, mas roçou-lhe os dedos, delicadamente, pela mão e Iruvienne sentiu a pele a ficar mais quente e a ser percorrida por um formigueiro agradável.

Quando os três saíram, Isarmia olhou para Iruvienne, sorriu e encolheu os ombros.

- Erldin é um velho sábio adorável, mas vai sempre pelo caminho mais longo. Eu prefiro os atalhos. - Caminhou até à parede esquerda e, virando-se para Iruvienne, sorriu-lhe com ar brincalhão. - Anda, vou mostrar-te alguns segredos.

E premiu a parede com os dedos numa posição específica e num determinado sítio. O gelo tremeu e, como se estivesse, repentinamente, a derreter, caiu em direcção ao chão, parecendo

as águas de uma cascata. Isarmia passou através do buraco, e Iruvienne seguiu-a, com um sorriso discreto nos lábios. Tinha a sensação de que se ia dar muito bem com aquela feiticeira. Atrás delas, o gelo reconstituiu-se, voltando a formar a parede.

Iruvienne corria por entre as árvores de Caladmiron, a grande velocidade. Podia ouvir ao longe os sons de uma batalha: o metal a chocar contra metal, os gritos abafados e as respirações ofegantes. Correu ainda mais depressa, a uma velocidade pouco natural. Tinha de se apressar, as Terras da Luz estavam em perigo. Passou por cima de ramos partidos, galgou várias poças de água, ultrapassou zonas recobertas por grandes fetos luxuriantes, atravessou o Enyel. E, finalmente, conseguiu ver Lelahad a combater um grande Magdul. Desembainhou a espada e lançou- se sobre o primeiro Magdul que lhe apareceu. Ao mesmo tempo que Fucolem embatia contra o metal da arma tosca do Magdul, a batalha mudou de cenário.

Já não estava nas Terras da Luz, mas sim num local desolado e meio desértico que a escuridão de uma noite surgida do nada não deixava perceber totalmente. À sua volta a batalha continuava a decorrer, mas transformara-se num autêntico massacre. Iruvienne conseguia ver o Povo da Luz a cair à sua volta. lelahad tombara perto de si. Um pouco mais longe, Landlar jazia no chão, igualmente morto. Aran perdeu a espada e um dos Magdul golpeou-o no peito, matando-o. Iruvienne soltou um grande grito surdo e olhou à sua volta, em desespero, à procura de ajuda. Mas tudo o que viu foi Legonon a ser cruelmente abatido. Então, deixou de se conseguir mexer, como se fortes mãos a estivessem a prender ao solo. Morgriff aproximava-se, caminhando lentamente na sua direcção, com ar triunfante e o Ceptro nas mãos. E, por fim, também ela levou uma pancada na cabeça e caiu.

Iruvienne sentiu-se a regressar da Visão. A cabeça doía-lhe e latejava como se tivesse, de facto, levado uma pancada. Sentia as faces quentes e húmidas das lágrimas que lhe escorriam silenciosamente pelo rosto ebúrneo. E o seu corpo, percorrido por um enorme e contínuo torpor, recusava-se a mexer como se estivesse amarrado à cama de gelo confortável, coberta por lençóis macios. Inspirou, profunda e silenciosamente, e experimentou virar a cabeça. Era fácil. E, só então, se apercebeu da presença de mais alguém dentro do quarto. E não era nem Legonon, nem Aran. Rapidamente, abriu os olhos e ergueu o tronco, ao mesmo tempo que esticava o braço para agarrar qualquer coisa com que pudesse bater no intruso. Mas deparou-se com o olhar azulado de Isarmia.

A jovem feiticeira estava sentada na borda da cama, com um olhar sério e preocupado. Tinha ainda vestidas as mesmas roupas que usava quando a tinha levado até ali. Aparentemente, ainda não se tinha deitado.

- O que se passa? - perguntou. - Estás a chorar. Iruvienne fechou os olhos e limpou as lágrimas com a ponta dos dedos.

- A Visão trouxe-me imagens terríveis... Piores que as do mais horrendo dos pesadelos. - Endireitou as costas e olhou a direito para Isarmia. - O meu povo está em perigo. Tenho de regressar.

- Isso é verdade - respondeu a feiticeira e Iruvienne olhou-a, de algum modo surpreendida. - O Conselho reuniu de emergência, porque Erldin teve uma suspeita. Estivemos a analisá-la e chegámos à conclusão de que estava certa. As Terras da Luz estão em perigo. Tens de regressar imediatamente.

Iruvienne observou, atentamente, o olhar de Isarmia. O quarto estava completamente escuro e, mesmo para os olhos de Iruvienne, pouco mais era visível do que a silhueta da rapariga e alguns contornos da mobília. No entanto, Iruvienne via os olhos de Isarmia, suficientemente bem para a avaliar. Ela conhecia a história, mas não a compreendia na totalidade. Não sabia quem, nem o que era a Nalamin. Mas, provavelmente, nenhum deles sabia. Era até presumível que jamais tivessem ouvido falar dela. E, contudo, também Erldin fora capaz de ver nela um brilho especial; a tal Estrela de Vida. Mesmo que não soubesse bem o que era.

- Bem - disse Isarmia, continuando a encará-la com todo o à- vontade -, os Mestres do Conselho, pediram-me que te levasse até eles. Querem falar directamente contigo. Por isso, se quiseres aceitar a sugestão de uma feiticeira que sempre gostou mais de brincar do que de falar de assuntos sérios, é melhor desencantares na tua mochila um vestido qualquer, suficientemente apropriado para te apresentares em frente a eles. Convém acrescentar que o vais fazer como Rainha e que vais ser a primeira pessoa não feiticeira a ser admitida no Conselho. Nem mesmo nos tempos de Guindenlin alguém que não fosse do nosso povo lá entrou; nem mesmo Morgriff.

Iruvienne deslizou para fora da cama e, sem mesmo acender uma vela, começoù a remexer dentro da mochila. Por fim, tirou de lá um vestido de veludo vermelho-dourado, com delicadas linhas bordadas a fio de ouro. Vestiu-o, calçou as sabrinas vermelhas e começou a desenriçar o cabelo. Isarmia aproximou-se com uma vela de chama azulada, numa palmatória, que pousou no chão, e fez-lhe quatro tranças finas, duas de cada lado da cabeça, que uniu na nuca.

- Vamos - declarou, pegando na asinha da palmatória e levantando-se.

Iruvienne seguiu-a através dos corredores de gelo, desertos e escuros, até que Isarmia parou em frente a duas gigantescas portas. No gelo fora gravada, em caracteres bem definidos e elegantes, a seguinte inscrição:

O poder reside nas nossas mentes".

Isarmia caminhou em direcção às duas portas e, sem sequer lhes tocar, elas abriram-se, revelando uma enorme sala redonda. A sala era uma espécie de anfiteatro descomunal, com cadeiras de gelo a recobrirem a parede circular, desde o chão até ao tecto. Em frente à porta, as filas bem ordenadas de cadeiras eram interrompidas por uma tribuna, estrategicamente colocada, de forma a que todos a pudessem ver, e onde sete dos mais velhos feiticeiros se sentavam em magníficos cadeirões. Erldin presidia, claramente, ao Conselho, sentando-se no cadeirão central, o qual era um pouco maior do que os outros seis. A jovem feiticeira levou Iruvienne até um pequeno círculo, no meio da sala, e subiu umas escadinhas de gelo, regressando ao seu lugar na quarta fila.

Iruvienne olhou calmamente os sete Mestres e inclinou a cabeça, profunda e respeitosamente. Os Mestres levantaram-se e toda a assembleia de Feiticeiros os imitou. Então, lentamente curvaram-se perante ela.

- Saudamos e honramos Iruvienne Nalamin, Rainha das Terras da Luz - disse o Mestre da ponta da esquerda -, pois cremos que é a nossa última esperança de quebrarmos a maldição.

- No entanto - continuou o segundo da direita -, não há ainda razões para celebrar. A hora é negra e perigosa. Uma sombra aproxima-se das suas terras, crescendo a grande velocidade.

- Quem ou o que é essa sombra não sabemos - disse o terceiro da esquerda -, pois estamos muito longe e a sua força é grande e tolda- nos o olhar e a mente com um véu escuro. Mas, sem dúvida, arrasta consigo a destruição, o sofrimento e a morte.

Se vencer, não serão só as suas terras a serem subjugadas.

- Das tuas acções e decisões depende o futuro do Mundo - disse o da ponta da direita, que tinha o rosto rendado por rugas severas e desconfiadas. - Esperamos que compreendas isso.

Iruvienne ia responder-lhe, mas Erldin deu um passo em frente, erguendo a mão direita. Imediatamente, os outros Mestres se calaram e toda a assembleia se sentou, deixando-o sozinho em pé.

- Não te estamos a exigir nada. Não temos sequer esse direito. - A sua voz era calma, mas a sua expressão estava séria. Iruvienne viu o Mestre da direita a resmungar qualquer coisa indecifrável, mas ninguém pareceu prestar-lhe atenção.

- Queremos apenas avisar-te do perigo que se aproxima. Infelizmente, não temos a certeza do que é esse perigo, embora ele seja, seguramente, real. O nosso primeiro impulso, claro, é pensar que se trata de Morgriff. Mas há qualquer coisa que está diferente. A presença que sentimos e que emana dessa sombra não é exactamente igual à que emanava do Morgriff que conhecemos. E, como os tempos são de perigo e precaução, não falaremos insensatamente. Não queremos causar mais danos do que já causámos.

Contudo, é nosso dever avisar-te que deves regressar imediatamente às tuas terras. - Erldin inclinou-se e olhou-a directamente nos olhos. - Não te desvies do teu caminho, Iruvienne Nalamin. Pára apenas para descansar e, aqueles que te atrasarem, deixa-os para trás. O tempo urge. Tens de regressar o mais cedo possível. Não podes perder tempo seja com o que for; por muito que isso te doa. Lembra-te: numa guerra há sempre perdas e sacrifícios. É o preço que todos temos de pagar pela vitória e a liberdade. - A sua expressão tornou-se mais fechada e triste. - Mas receio que também tu já o tenhas descoberto.

Durante alguns segundos ninguém falou. Iruvienne sentira o seu corpo a gelar de medo. As mãos estavam húmidas e frias e ela parecia petrificada no meio do pequeno círculo formado pelo gigantesco anfiteatro. As palavras de Erldin tinham- na assustado mais do que seria de esperar. Fechou os olhos, tentando que a assembleia não percebesse como estava triste e aflita.

Que Aran, Legonon e Athilya não morram. Que eles vivam, mesmo que eu tenha de morrer!

O frio gelado que o medo lhe provocara começava a desaparecer. Acariciou, imperceptivelmente, as pontas dos dedos que estavam novamente quentes. Tinha de se manter calma e ter confiança. O que Erldin dissera não lhe era desconhecido e ela teria a força suficiente para continuar, acontecesse o que acontecesse. Mesmo que... Não interessava. O que tivesse de fazer fá-lo-ia. Tinha a certeza. Abriu os olhos e sorriu, confiantemente, ao velho feiticeiro.

- Agradeço-te as tuas palavras, Erldin, Mestre Supremo do Conselho - disse, num tom firme e suave. - Elas confirmam o que a Visão me mostrou e também algumas das minhas dúvidas e receios. Por isso, tal como me aconselhaste, partirei quanto antes. Se possível, hoje ao amanhecer.

Erldin assentiu com a cabeça e sentou-se, lenta e pesadamente, na cadeira. Estava exausto. O segundo Mestre da esquerda levantou-se. Tinha um rosto agradável e bonito, apesar de enrugado pelo tempo. Dir- se-ia que a maldição passara por ele, deixando apenas as marcas do tempo gravadas na pele, pois ele não parecia cansado como os outros Mestres, nem ostentava uma certa amargura, como o Mestre da ponta da direita. Talvez fosse mais novo do que os outros. E, de facto, sorriu-lhe jovialmente.

- Os Mestres do Conselho agradecem-te a tua visita inesperada, Iruvienne Nalamin, Rainha das Terras da Luz

- disse ele. - Nas nossas cozinhas estão a acabar de ser feitos mantimentos que vos chegarão para a vossa viagem de regresso e que não se deteriorarão com o tempo. Preparámos também algumas plantas medicinais que poderão ser úteis no tratamento de pequenos ferimentos que eventualmente possam sofrer durante a viagem. E, se o permitirdes, enviaremos a minha neta Isarmia para vos acompanhar. Ela será a nossa representante junto do teu povo e sobre ela recairá a tarefa de corrigir os nossos erros do passado. Gostaríamos de enviar mais do nosso povo convosco, mas a maioria de nós está demasiado velho para fazer a viagem de regresso e gente a mais serviria apenas para vos atrasar, o que não corresponde, de forma alguma, ao nosso desejo.

- Será um prazer ser acompanhada na minha viagem pela sua neta Isarmia -respondeu Iruvienne. - E obrigada pelos cuidados que me dispensaram e aos meus dois companheiros.

- Foi uma honra.

E, uma vez mais, todo o Conselho se levantou e curvou perante Iruvienne.

Isarmia desceu as escadinhas de gelo, juntou-se a Iruvienne e as duas saíram da sala do Conselho. Mas os Feiticeiros ficaram ainda algum tempo a meditar em todos os pequenos sinais que Iruvienne trouxera consigo. O fim aproximava-se, só lhes restava saber se poderiam morrer ou se teriam de continuar a viver.

Quando Iruvienne, Aran, Legonon e Isarmia começaram a arrumar os vários pacotes e mantas nos trenós, a neve estava ainda coberta por umas réstias de noite e alguns farrapos de bruma, mas o céu exibia um azul-claro carregado, sem nuvens onde se erguia um sol pálido e frio. Enquanto trabalhavam, nenhum deles falou. Isarmia, de certo modo, assistira a tudo e sabia o que acontecera. Aran conhecia Iruvienne demasiado bem para precisar de perguntar o que se estava a passar. Bastava-lhe observá-la. Havia sempre pequenos sinais: um porte mais altivo e decidido, um vigor tenuemente deselegante nos seus gestos, um olhar mais firme, uma expressão mais séria e pensativa do que era normal. E Legonon não tinha sequer de olhar. Sem que tivessem trocado uma única palavra, ele compreendera toda a situação. Mas, claro, ele e Iruvienne estavam ligados. Podia senti-la, estar dentro dos seus pensamentos, chegar até às portas dos seus segredos mais bem escondidos. Assim, mesmo sem terem tido a Visão de Iruvienne, entendiam-na e sabiam que algo terrível a atormentava. Os cães, contudo, eram diferentes. Alguns estavam ainda deitados na neve fofa, o seu pêlo a confundir-se com as brumas, os olhos semicerrados e remelosos; os outros saltavam de contentamento, soltando pequenos latidos alegres. E, de vez em quando, Legonon dirigia-lhes um olhar simpático e fazia-Lhes algumas festas.

Erldin e o avô de Isarmia chegaram quando eles apertavam as correias que prendiam todos os embrulhos, mochilas e mantas aos trenós. O avô de Isarmia trazia debaixo do braço um rolo de pano grosso cinzento-azulado e Erldin segurava uma capa azul-escura. Isarmia levantou a cabeça e olhou, espantada, para os dois velhos. Erldin soltou uma grande gargalhada que se perdeu pela planície nevada.

- Os jovens ficam sempre muito surpreendidos com as coisas mais óbvias, principalmente quando elas lhes dizem respeito.

- Comentou, ainda visivelmente divertido, o que fez com que Isarmia desviasse o olhar para o lado. - Então, Isarmia! Já não és assim tão nova; e sempre foste muito talentosa. Atrevo-me até a dizer que, um dia, serás melhor do que Guindenlin alguma vez foi. Além disso, é natural que recebas a tua capa e o teu bastão agora que vais partir numa missão tão especial e importante. - Sorriu, como os velhos sábios sorriem aos seus aprendizes. - Dantes haveria um grande ritual, mas é, geralmente, uma autêntica perda de tempo. Não precisamos de complicar o que é simples.

E com estas palavras estendeu a Isarmia a capa. A feiticeira colocou-a, cuidadosamente, por cima dos ombros e apertou o alfinete de prata trabalhada que a cingia ao pescoço. Erldin virou-se para o outro Mestre, que lhe estendeu o embrulho, e, com movimentos lentos, destapou- o. Lá dentro encontrava-se um lindíssimo bastão branco, que formava no topo uma oval artisticamente rendada, onde estava alojada uma pedra negra brilhante, muito provavelmente uma turmalina. Erldin sorriu e entregou o bastão a Isarmia. Os dedos da feiticeira acariciaram a madeira bem polida do bastão e, por um segundo, os seus olhos prenderam- se na pedra negra. Deixara de ser uma aprendiz. Segurando o bastão com a mão esquerda, apoiou-o no chão nevado e inclinou-se perante os dois Mestres, ao mesmo tempo que fazia um gesto largo com o braço direito. Erldin e o seu avô sorriram, desejaram-lhes mais uma vez boa viagem e afastaram-se.

Isarmia ficou um pouco a observá-los, o bastão fixo no chão e a capa a ondular à sua volta, deixando entrever as botas de cano alto pretas, com atilhos laterais. Talvez lhe faltasse o chapéu pontiagudo a que os humanos tanto se referiam, mas parecia, sem dúvida, repleta de magia, mistério e poder. Enfim, era uma feiticeira. Voltou-se para Aran, Iruvienne e Legonon, sorriu-lhes e, com o bastão ligeiramente levantado, foi ter com eles. Sem uma palavra, sentou-se no antigo lugar de Iruvienne, no trenó de Aran, e com um cuidado extremo guardou o bastão ao seu lado. Iruvienne sentou-se no trenó de Legonon, tal como Aran sugerira quando, uma hora antes, tinham começado a arranjar os trenós para partirem. Aran e Legonon colocaram-se nos seus lugares, incitaram os cães a avançar, e partiram em direcção às Heniunel.

A viagem foi longa, mas pareceu a Iruvienne que a fizeram mais depressa do que antes. No entanto, talvez fosse apenas impressão sua, pois durante toda a viagem os seus olhos perderam-se na paisagem, sem terem realmente noção do que viam. Legonon sentia-a muito longe, num estado profundo, de certo modo difuso e enublado, que ele sabia o que era, mas não conseguia compreender. Às vezes, ela estava, simplesmente, a dormir acordada. Não pensava, nem tinha verdadeira consciência do que quer que fosse. Limitava-se a sentir o ar, o frio e, de vez em quando, os flocos de neve a roçarem-lhe o rosto.

E, então, num dia em que as nuvens estavam negras e carregadas, prontas a soltarem uma tempestade de neve, chegaram à orla das Heniunel.

Legonon ergueu os seus fantásticos olhos azul-escuro-arroxeados para o céu e olhou-o, demoradamente. Havia alguma tristeza no seu olhar, mas também alegria. Então, calmamente, saiu do seu trenó e começou a soltar os cães. Aran fez um movimento na direcção do elfo, mas Iruvienne já se levantara e aproximava dele, por isso, Aran manteve-se no seu lugar e fez sinal a Isarmia para que permanecesse sentada no trenó.

- O que estás a fazer? - perguntou Iruvienne, numa voz suave, mas preocupada, agachando-se ao seu lado.

- A soltar os cães. Vou mandá-los regressar a Nirilnege - respondeu, serenamente, Legonon. - Não podemos atravessar as Heniunel com os trenós e a viagem seria demasiado esgotante para os cães. Acabariam por morrer. A melhor solução é regressarem. Eles sabem o caminho. - Olhou-a ternamente, e teve um daqueles sorrisos muito doces que só Iruvienne conhecia. - Não te vou deixar - sussurrou. - Jamais o conseguiria fazer.

Iruvienne sorriu também. E foi como se ficasse mais leve, mais calma. Legonon renunciara ao seu povo e ao seu lar por ela. Iam ficar juntos e ele estaria sempre presente quando precisasse dele, independentemente do que o futuro lhes reservasse. Legonon era o seu guardião. O guardião da Guardiã.

- E Adhar? - perguntou, ainda completamente enlaçada naquele estado de alegria profunda que a fazia sentir-se elevada.

Legonon conteve uma risada, acabando por soltar o ar pelo nariz.

- O meu pai vai compreender. Ele percebeu há muito tempo o que se passava. Talvez até antes de nós. Julgo que só o surpreenderia se regressasse a Nirilnege. E, além disso, não vou partir definitivamente. Quando essa sombra que te preocupa tiver deixado as Terras da Luz e tu estiveres, realmente, em segurança, eu volto a Nirilnege para lhes contar o que aconteceu a Lensyn, justificar-me e despedir-me. - Voltou a sorrir e acariciou- lhe o rosto suave. - E, um dia, podemos trazer os nossos filhos para visitarem o meu pai.

Beijou-a com uma suavidade e uma leveza incríveis e continuou a soltar os cães. Iruvienne voltou para junto de Aran e Isarmia.

- Temos de distribuir a comida e as mantas pelas mochilas - disse ao amigo. - O que não pudermos levar fica aqui com os trenós.

Aran limitou-se a assentir com a cabeça e, com a ajuda de Isarmia, redistribuíram a comida e algumas das mantas pelas quatro mochilas. Quando acabou de soltar os cães, Legonon falou com cada um deles em Ielvnege, mas principalmente com os dois líderes, aos quais prendeu duas coleiras, cada uma com um canudo, onde estava guardado um recado para Adhar e os seus conselheiros. Os cães tinham as línguas de fora e os rabitos a abanarem, enquanto o ouviam. Era como se estivessem extremamente contentes por regressarem a casa. E assim que Legonon terminou as suas instruções, lamberam-lhe afectuosamente a palma da mão, deitaram um olhar alegre aos outros três e partiram em direcção a Nirilnege.

Legonon e Aran encaixaram os trenós um no outro, o melhor que puderam, e encostaram-nos a uma rocha negra e arredondada que emergia do solo nevado, ali perto. Talvez a madeira resistisse o suficiente para, um dia, alguém os reutilizar. Os quatro viajantes pegaram nas suas armas e mochilas, puseram-nas às costas e olharam, respeitosamente, as altas e escarpadas montanhas que se erguiam à sua frente. Pequenas penas de neve precipitavam-se em direcção a eles, aliviando as nuvens cinzentas. Em breve, a tempestade começaria. Legonon pousou um pé no terreno inclinado e, sem o menor esforço, iniciou a sua escalada. Iruvienne e Aran trocaram um olhar, sorriram e seguiram-no. Isarmia olhou ainda durante muito tempo para a imensidão branca que se estendia para norte. Vira imagens em livros de enormes florestas onde o chão era coberto por fetos e outras plantas rasteiras; lugares onde era raro nevar. Mas jamais saíra daquela terra nevada. Como seria o resto do Mundo? O que iria encontrar para lá daquela cordilheira? Agarrou firmemente no bastão, puxou o capuz da capa para a cabeça e apressou-se a alcançar os seus companheiros.

Iruvienne era muito pequena e corria desenfreadamente por entre as árvores de Caladmiron, como se estivesse a jogar um jogo em que tinha de ser muito rápida. Mais rápida do que era possível. À sua volta as folhas velhas caíam, ao mesmo tempo que as novas nasciam. Mas também estas caíam, dando lugar a outras novas que, imediatamente, secavam e abandonavam os ramos. E o ciclo repetia-se, consecutiva e velozmente, ao mesmo tempo que Iruvienne corria, cada vez mais depressa, por entre as velhas árvores. Então, por fim, as folhas permaneceram nos ramos, agitando-se, suavemente, ao ritmo da brisa; e ela já não era uma rapariguinha marota, mas uma elfo sábia, com um porte distinto, digno da sua condição de rainha.

À sua frente estavam Ailura e Galaduinne, de mãos dadas. Avançou, pausadamente, até elas. Mas Caladmiron desaparecera, dando lugar a uma terra sem árvores e de solo cinzento, onde a figura de Morgriff se impunha assustadoramente. O seu rosto, embora meio oculto pela escuridão, estava visivelmente desfigurado e ele exibia uma expressão sarcástica. Ailura e Galaduinne caminharam até ela e as três uniram as mãos. Mãe, filha e neta viraram-se para Morgriff. Ele olhou-as como se fossem meros obstáculos a eliminar, teve um sorriso maldoso e, então, desapareceu.

Lentamente, a Visão abandonou-a e Iruvienne regressou à realidade. O seu corpo tremia, mas não tinha a certeza se era por causa do que vira ou se era, simplesmente, frio. Podia ouvir a manta com que tinham tapado a entrada da caverna e que estava precariamente presa a dois bocados de madeira velha, enfiados nuns buracos que tinham escavado na rocha por cima da entrada, a ser sacudida pelo vento. Os braços de Legonon ainda a envolviam e, quando abriu os olhos, deparou-se com o seu olhar brilhante. Ele afastou-lhe, ternamente, os cabelos da cara, mas a sua expressão estava séria e preocupada.

- O que se passa? - perguntou Iruvienne, num sussurro para não acordar Aran que dormia ao lado de Legonon, enrolado sobre si próprio.

Legonon estreitou-a mais e, por um segundo, fechou os olhos, como se estivesse demasiado cansado. Ao lado de Iruvienne, Isarmia estremeceu, mas continuou a dormir.

- Queria poder ajudar-te - murmurou Legonon, abrindo os olhos -, tomar a meu cargo algumas das tuas responsabilidades... Compartilhar o teu destino. Mas não consigo. A verdade, Iruvienne, é que não passo de um guerreiro élfico com algum jeito para o desenho. E tu... Tu és tão etérea e sábia que eu receio ter cometido um erro ao mostrar-te o quanto te amo. - Sorriu docemente, quase como se estivesse a rir. - Às vezes, quando olho para ti, também eu vejo uma estrela a brilhar, e sei que jamais poderei ser como tu. Estou demasiado longe.

Iruvienne acariciou-Lhe o rosto com uma das mãos esguias e beijou-o, ao de leve.

- Não preciso de um sábio que me guie no meu caminho, Legonon - sussurrou suavemente. - Preciso de alguém que me apanhe quando eu cair e me guarde enquanto eu não o puder fazer. Animus avisou-me que, por vezes, vou ficar muito cansada, tão cansada que serei incapaz de prestar atenção ao que me rodeia. E, nessas alturas, tu terás de ser o meu guardião. - Uma rabanada de vento atirou a cortina improvisada para trás, deixando o ar frio entrar, e ela encostou-se mais a Legonon. - Só preciso que estejas ao meu lado.

E como se tudo ainda fizesse parte da mesma frase, da mesma conversa, beijaram-se, calma e profundamente. Quando se separaram, ambos sorriam, carinhosamente. Durante algum tempo ficaram os dois a olhar um para o outro, incapazes de falar ou de se separarem, até que Iruvienne soltou uma risadinha divertida pelo nariz.

- O que foi? - perguntou Legonon, numa voz que era um misto de surpresa e divertimento.

Iruvienne abanou ligeiramente a cabeça.

- Nada de especial - respondeu. Mas Legonon continuava a olhá-la, à espera de uma resposta e Iruvienne acabou por sorrir, com ar travesso. - Estava a pensar que até as tuas pestanas são loiras.

O elfo conteve uma gargalhada, fechou os olhos e inclinou a cabeça para baixo. Iruvienne olhou para a manta de peles, que ondulava ao sabor do vento tempestuoso, ainda com um sorriso nos lábios. Efectivamente, fora um comentário muito tolo.

Fechou os olhos e deixou-se deslizar para aquele estado de semi-inconsciência que antecede os sonhos. Conseguia ainda ouvir a voz cava e longínqua de Legonon a dizer-lhe que devia dormir. Calmamente, deixou-se embalar pelos movimentos ternos e suaves da mão dele no seu rosto. E, por fim, adormeceu.

A travessia das Heniunel foi mais longa e perigosa do que da primeira vez, pois não conheciam o caminho, nem tinham qualquer mapa que lhes desse uma ideia do percurso que deviam seguir. Além disso, o tempo tornara-se mais impiedoso com o Outono, o que os atrasava e, como os dias estavam mais pequenos, tinham de procurar abrigo para passarem a noite mais cedo do que antes. Mas, por fim, a neve e as plantas rasteiras desapareceram, dando lugar às florestas luxuriantes que recobriam as montanhas das Heniunel da zona de Brumívium.

Isarmia olhava à sua volta, fascinada com toda aquela vegetação verdejante. Aran e Iruvienne pareciam ter ganho um novo ânimo. E até Legonon estava mais contente com a presença calmante das árvores. À medida que desciam, as árvores tornavam-se mais frequentes e altas, com os troncos salpicados por líquenes de forma circular, menos frondosos que os das árvores a grande altitude. O frio diminuía e, lentamente, as brumas começavam a lamber o solo, ocultando-o. E, finalmente, num dia em que chovia torrencialmente e eles tinham de caminhar com cuidado para não escorregarem ou serem levados numa enxurrada, Iruvienne e Aran reconheceram as árvores e as pedras que os rodeavam. Aran aninhou-se e explorou com a mão esquerda a terra, completamente oculta pelas brumas.

- O que se passa? - perguntou Isarmia, aproximando-se com Legonon dos dois amigos.

Legonon trocou um olhar rápido com Iruvienne, e Aran levantou-se, calmamente, estendendo a mão aberta onde repousavam três folhinhas de relva de um verde muito claro e brilhante, como só existe em Brumívium.

- Chegámos - respondeu Iruvienne, sorrindo ao amigo.

O dia amanhecera cinzento e brumoso, envolto numa atmosfera mágica e irreal. Era um daqueles dias em que o Mundo muda e as lendas nascem.

Iruvienne caminhava com ar sério e pensativo, por entre a névoa prateada e ondulante. Usava um vestido de veludo vermelho- acastanhado, bordado com fio de ouro no decote largo e nos ombros. O corte era simples, mas extremamente elegante realçando-lhe as formas curvilíneas e bem definidas do corpo. Por cima do vestido, tinha a sua capa castanho-escura de reflexos dourados e capuz largo. Legonon seguia a seu lado, vestido com um fato azul-escuro, coberto por uma capa com mangas, de um azul tão escuro que quase parecia preto. As brumas avançavam contra eles, roçando-lhes a pele e envolvendo-os de tal forma que eles pareciam completar todo aquele misterioso cenário. As árvores, ocultas por aquelas brumas altas e espessas, só se tornavam visíveis quando estavam prestes a chocar contra elas. Mas Iruvienne conhecia a floresta muito bem e desviava-se de todos os obstáculos, muito antes de eles serem visíveis.

Tinham passado os dois últimos dias a descansar, sobre o olhar vigilante de Galaduinne. Iruvienne contara-lhe tudo o que se passara na sua viagem e falara com ela tanto quanto a mãe lhe permitira. Aran caíra de exaustão em cima da cama e só acordara a meio da tarde do segundo dia e, desde então, ele e Athilya tinham desaparecido. Isarmia dormira quase todo o primeiro dia, mas, assim que acordara, dedicara-se a acompanhar as Conhecedoras da Noite, observando-as nas suas várias tarefas. Legonon ficara sempre com Iruvienne, obrigando-a, gentilmente, a descansar, ou vigiando-a quando ela se recusava a repousar e insistia em falar com a mãe. Por vezes, era Iruvienne quem lhe guardava o sono ou, no meio de carícias suaves e frenéticas, lhe ordenava que descansasse e não se preocupasse com ela.

As brumas pareciam agora mais finas e esfiapadas, como réstias de nuvens, deixando ver as grandes árvores de troncos grossos e folhas verde-escuras que delimitavam a pequeníssima clareira onde tinham desembocado. Iruvienne conhecia muito bem aquela clareira. Fora ali que, alguns anos antes, se defrontara com os Nennalm. Estavam muito próximos da fronteira nordeste de Brumívium.

Iruvienne ficou parada a meio da pequena clareira. Era engraçado e estranho ter chegado ali, exactamente um dia antes de partir para Omnirion, onde prepararia a batalha contra Morniran. Legonon afastou-se em direcção a uma árvore que se erguia muito perto deles, e ficou parado a observar atentamente qualquer coisa que Iruvienne não conseguia ver.

- O que estás a ver? - perguntou, aproximando-se.

Legonon afastou-se e, então, Iruvienne viu-a. No meio dos ramos verdejantes da árvore, uma grande teia de aranha ovalada brilhava, repleta de gotas de orvalho que a expunham no meio daquela luminosidade prateada. Mesmo no meio, agarrada aos delicados fios da teia, estava uma aranha de corpo amarelo peludo, com patas às riscas amarelas e pretas, tal como na sua Visão.

- Já vi algumas aranhas - disse Legonon -, mas nunca uma tão grande e estranha quanto esta. - Olhou para trás, onde Iruvienne se mantinha, cautelosamente, afastada da árvore. – O que se passa?

- Um medo antigo.

Legonon olhou-a com um ar ligeiramente divertido.

- Não sabia que tinhas medo de aranhas - disse, com um sorrisinho nos lábios.

- Nem eu sei se tenho - respondeu Iruvienne, os olhos fixos no corpo segmentado e arredondado da aranha, sem que os conseguisse desviar. Não a queria ver, mas tinha medo que, se deixasse de olhar, a aranha se escapulisse e acabasse por aterrar, de repente, em cima de si. - Mas desta tenho. Há muitos anos que ela assombra as minhas Visões e, sempre que aparece, eu acabo prisioneira dele. Da mesma criatura que matou o meu pai.

Legonon franziu as sobrancelhas, sem compreender totalmente. Iruvienne estava verdadeiramente assustada. E não era um medo infantil de simples irritação pelo corpo peculiar das aranhas. Era algo antigo, que se prendia com o passado e o futuro de Iruvienne. Aproximou-se dela, sorriu-lhe ternamente e abraçou-a, impedindo-a de ver a aranha.

- Ela não te pode magoar - disse, numa voz tão suave quanto a própria brisa. - Não precisas de ter medo.

- Aquela não é uma aranha normal, Legonon - disse Iruvienne, tentando escapar ao abraço dele para a poder vigiar.

Legonon obrigou-a, gentilmente, a olhar para ele e acariciou-lhe os lábios com os seus.

- Vem - disse, agarrando-lhe na mão direita. – Quero mostrar-te uma coisa.

E, devagar, levou-a até à árvore onde a aranha construíra a sua teia e parou muito perto dos ramos que a sustentavam. Colocou-se por trás de Iruvienne, enlaçou- lhe a cintura com o braço esquerdo, cobriu a mão direita dela com a sua e fechou-a, de forma a que o indicador ficasse esticado. Então, lentamente, esticou-lhe o braço em direcção à aranha. Podia sentir o corpo de Iruvienne a tremer, ligeiramente, de encontro ao seu.

- Está tudo bem - murmurou. - Ela é inofensiva.

Os seus braços continuaram a subir, em direcção à aranha até que, por fim, os seus dedos tocaram-lhe no corpo peludo e esquisito. A aranha tremelicou na teia, ameaçando cair, e imediatamente Iruvienne retraiu-se contra o corpo de Legonon, soltando a mão e recolhendo-a rapidamente de encontro ao peito. Fechou os olhos e voltou a abri-los. A aranha escapulira-se para o interior da copa da árvore, mas a teia ainda oscilava com movimentos bruscos. Iruvienne soltou um suspiro de alívio, girou sobre si própria e, sorrindo, abraçou-se a Legonon. Ficaram assim durante algum tempo: abraçados um ao outro, de olhos fechados, incapazes de se mexerem, tendo apenas uma leve noção dos fios de bruma a roçarem-lhes a pele. E Iruvienne ficou mais calma.

Um súbito agitar de folhas arrancou-os daquele doce torpor. Havia qualquer coisa estranha no meio das brumas; podiam senti-lo. Como se olhos furtivos os observassem. E, sem mesmo o perceber, Iruvienne teve a certeza do que era. Instintivamente, separou-se de Legonon, levantou as saias do vestido e desembainhou a adaga que trazia dissimulada no botim. Imediatamente, umas formas verdes com manchas negras saltaram sobre eles. Iruvienne cortou a garganta ao primeiro Nennalm, quando ele ainda voava sobre ela. Legonon observou-a, estupefacto, mas não demorou mais de um segundo a lançar-se sobre as desgraçadas criaturas. Os Nennalm pontapearam-no e golpearam-no vigorosamente, sem, no entanto, tirarem os olhos de Iruvienne. Legonon esmurrou uma das criaturas na cara e, enquanto ela se desequilibrava, arrancou-lhe a faca tosca. Sem parar um segundo, matou os três Nennalm que ainda o atacavam, ignorou o outro que jazia no chão, tentando levantar-se, apesar do forte murro que levara na cara, e correu a ajudar Iruvienne. Ela já matara, com a sua adaga, três dos quinze Nennalm que a atacavam, e rebolava pelo chão, lutando com os doze que restavam. Legonon matou quatro dos que estavam no topo e, com um pontapé vigoroso, Iruvienne libertou-se, levantando-se.

Os elfos encostaram as costas um ao outro e observaram os seus oponentes que, estranhamente, tinham parado de investir. Restavam oito, sem contar com o que Legonon esmurrara e que ainda se contorcia pelo chão, tentando levantar-se.

- O que são eles? - perguntou Legonon.

- Nennalm. Sem alma - respondeu Iruvienne. - Vivem apenas para cumprir a missão que Lhes deram quando os criaram e farão os possíveis e os impossíveis para a cumprir.

Legonon observou-a pelo canto do olho, com ar preocupado.

- Então por que é que pararam?

Iruvienne olhou à sua volta. O vento mudara, arrastando as brumas, que antes cobriam Névila, para a parte Este de Brumívium. E elas envolviam-nos já no seu manto de fumo prateado. Por entre os movimentos ondulantes das brumas, Iruvienne viu os Nennalm a agruparem-se.

- Vão atacar-nos - avisou.

Os oito Nennalm correram, cambaleantemente, na direcção deles, derrubando-os. Iruvienne enterrou a adaga na barriga do Nennalm que caíra sobre si e tentou libertar-se do peso das criaturas, mas não conseguiu. Elas tinham-se deitado sobre ela, imobilizando-a com os seus corpos. Um dos Nennalm agarrou- lhe o pulso direito e, com olhos vazios e uma expressão apática, bateu com ele no chão. Iruvienne soltou um pequeno grito de dor quando o seu pulso chocou, com toda a força, contra a raíz de uma árvore, obrigando-a a largar a adaga. O Nennalm atou-lhe, mecanicamente, os pulsos com uma das cordas grossas e irregulares que trazia amarradas à cinta. Legonon, que perdera a faca ao cair, deu três joelhadas consecutivas na barriga do Nennalm que aterrara em cima dele. A criatura não gemeu , mas foi percorrida por uma náusea que a obrigou a soltá-lo. Rapidamente, o elfo soltou um dos braços e agarrou novamente a faca. Com um movimento célere e frio cortou o pescoço ao outro Nennalm que o prendia e levantou-se, decidido a libertar Iruvienne e acabar de uma vez com todas aquelas criaturas vivas, mas sem vida. No entanto, sentiu os pés a pararem e, um segundo depois, estava estendido no chão. O Nennalm a quem ele dera as joelhadas e que lhe prendia, firme e determinadamente, os tornozelos soltou um grito sem expressão. Legonon procurou a faca, que entretanto voltara a perder, sem jamais desviar os olhos do rosto esbelto de Iruvienne, mesmo em frente ao seu. Mas antes que conseguisse encontrar a arma, o Nennalm que ele esmurrara deu-lhe um golpe seco na cabeça com o cabo da faca tosca e ele perdeu os sentidos.

- LEGONON - berrou Iruvienne, sentindo as lágrimas a molharem- lhe os olhos.

Os dois Nennalm levantaram-se, ainda vacilantes, e ajudaram os outros cinco, que entretanto tinham atado os tornozelos de Iruvienne, a levarem-na para a Floresta Queimada. Aí, um grupo de Magdul, liderados por um homem de pele extremamente pálida e cabelos pretos entrançados que lembravam serpentes, esperavam-na com negros corcéis.

Por cima da teia da aranha amarela, os ramos da árvore formavam uma runa de destino. Mas ninguém reparou.

 

                         O SENTINELA

Aran estava sentado num ramo alto de uma das árvores perto da nascente do Enyel, com as costas apoiadas no tronco rugoso e os olhos fechados. As brumas dissimulavam a sua figura humana, vestida em tons escuros, ligeiramente deslocada naquela floresta de sacerdotisas élficas. Inspirou, profundamente e com um certo deleite, o ar frio da manhã e o canto esquerdo da sua boca ergueu-se, ligeiramente, iluminando-Lhe o rosto num dos seus sorrisos. Conseguia ainda sentir os braços finos e brancos de Athilya a rodearem-lhe o pescoço, os seus beijos suaves e delicados a roçarem-lhe o rosto, prendendo-se um pouco mais nos seus lábios, a sua cabeça ruiva docemente adormecida sobre o seu peito. Desta vez fora diferente. Não tinha sido aquela surpresa avassaladora que nenhum deles conseguia ainda definir ou explicar. Ao início tinham falado muito, mal se tocando, como se tivessem medo que tudo não passasse de um sonho do qual podiam acordar a qualquer momento. E, lentamente, as suas mãos tinham-se unido, percorrido os braços um do outro, até chegarem aos rostos. Athilya tinha-lhe acariciado o rosto queimado pelo sol e marcado por pequenas feridas e cicatrizes, ignorando a barba, tão anormal naquele Mundo. Aran tocara-lhe na face, muito fina e delicada, com dedos cuidadosos, como se receasse que as suas mãos calejadas a pudessem magoar ou que ela não fosse mais espessa do que o ar e se dissipasse ao seu toque. Então, tinham aflorado a pele um do outro com pequenos beijos, ao início tímidos, depois mais ousados, quase voluptuosos. E passaram grande parte da noite assim: beijando-se, explorando os corpos um do outro com pequenos gestos delicados e indecisos, num amor ainda inocente, mas completamente maravilhoso; até que, por fim, tinham adormecido no chão brumoso da floresta, ainda muito juntos, com as velhas árvores de Brumívium a observá-los. Aran soltou o ar devagar. Fora uma tarde e uma noite mágicas.

Uma súbita rabanada de vento agitou os ramos da árvore, atirando as folhas umas contra as outras, e começando a levar as brumas para Este. A floresta estava ainda completamente silenciosa, o que preocupava Aran. Havia sempre barulho. Pequenos bicharocos rastejavam por entre a vegetação, aves esvoaçavam de um ramo para o outro, animais fugiam aos predadores que os tentavam caçar. Mas não naquele dia. Aran fechou os olhos, tentando apurar os seus sentidos e ouvir algum, pequeno, ruído. E, então, um grito de mulher, forte e aflitivo, cortou o ar, ao mesmo tempo que um bando de pequenas aves levantava voo, precipitadamente.

Aran saltou do ramo, aterrou desequilibrado no chão oculto pelas brumas e correu a uma velocidade desenfreada por entre as árvores, chocando contra os seus troncos, escorregando nalguma zona mais molhada, mas sempre sem parar. Sabia a quem pertencia aquele grito, mesmo sem o ter ouvido bem, mesmo sem ter percebido as palavras. Tantas vezes a tinha ouvido contar aquela Visão!... Tantas... Não podia parar. Desembainhou a espada, cerrou os dentes e correu ainda mais depressa. Tinha de a ajudar. Mas quando chegou à pequena clareira, perto da fronteira nordeste de Brumívium, Iruvienne tinha desaparecido.

Recusando-se a desistir, continuou até sair de Brumívium e chegar à Floresta Queimada. Para além das enormes e pesadas pegadas dos Magdul e dos rastos, já bastante apagados, dos Nennalm, havia marcas de vários cascos de cavalos espalhadas, desordenadamente, pelo chão de terra queimada. Aran observou-as, atentamente. As marcas agrupavam-se numa grande concentração, relativamente circular, que acabava por convergir numa linha irregular que seguia para Este, muito provavelmente para Morniran, e onde se distinguiam algumas pegadas mais recentes do que outras. Junto ao rasto circular, a terra queimada estava impregnada de sangue viscoso e havia ossos atirados por entre as árvores, alguns ainda com carne agarrada. Perto de alguns dos ossos, Aran reconheceu as facas de lâmina dupla e grossa que os Nennalm usavam. Felizmente, não havia sinais de Iruvienne ter sido vítima daquele terrível massacre; o que, de facto, era lógico. Sem dúvida; tinham-na levado para Morniran e estavam já demasiado longe do seu alcance.

Triste, ofegante e com a espada a pender-lhe impotentemente das mãos, regressou à pequena clareira. As brumas começavam a dissipar-se, revelando alguns indícios de luta: umas gotas de sangue na relva verde e na terra, uns cortes desajeitados nos troncos das árvores, treze corpos de Nennalm mortos caídos pelo chão e, perto de uma das árvores, o corpo imóvel de Legonon. Aran correu para o amigo, largando a espada. As suas roupas tinham pequenos cortes e, nalguns sítios, manchas de sangue de Nennalm, mas não havia sinais de feridas graves. Rodou-lhe o corpo, virando-o para cima, e sentiu-lhe a respiração lenta, mas vigorosa. Estava vivo. Vivo e desmaiado. Infelizmente, tudo o que Aran podia fazer era esperar que ele acordasse. Com uma certa irritação, levantou-se e começou a juntar os cadáveres dos Nennalm numa pilha, para depois as sacerdotisas os queimarem. Trabalhou mecanicamente, amaldiçoando-se por aqueles minutos que estava a perder e concebendo, mentalmente, a melhor estratégia a seguir na perseguição dos raptores de Iruvienne. Mas, por fim, Legonon acordou.

O elfo cerrou os olhos e sentou-se, não conseguindo evitar levar uma mão à cabeça. Ainda se sentia um pouco atordoado, quase enjoado, mas a lembrança daquelas criaturas a amarrarem Iruvienne acordou nele uma fúria irracional.

- pg

- Estás bem. er untou Aran, ao seu lado. E, só então, Legonon se apercebeu da presença do amigo.

- Estou - respondeu firmemente, piscando os olhos várias vezes para despertar completamente.

- Achas que consegues andar?

Legonon pôs-se de pé, mas não respondeu. Podia sentir o espírito forte e decidido de Iruvienne, recusando-se a mostrar medo ou a vacilar perante os seus raptores. E, sem saber muito bem porquê, uma onda de tristeza e raiva invadiu-o, obrigando-o a cerrar os lábios para não perder o controlo.

- Acalma-te - disse Aran, apanhando a espada e voltando a embainhá-la.

O ceptro de Aerzis 3 - A Rainha das Terras da Luz.

Por um segundo, Legonon fulminou-o com o olhar, como se ele fosse parvo ou insensível, mas rapidamente baixou os olhos.

- Desculpa-me... - murmurou envergonhado. Aran abanou a cabeça.

- Está tudo bem, Legonon - disse, batendo-Lhe amigavelmente no ombro e começando a andar. - Consegues encontrar as cozinhas de Névila?

O elfo olhou-o, sem o perceber totalmente.

- Sim - respondeu, por fim.

- Óptimo. Vamos precisar de mantimentos - explicou Aran, caminhando em direcção a Névila. - Enquanto eu vou buscar as armas e falo com Galaduinne, tu vais até às cozinhas e arranjas mantimentos para três pessoas. Procura também Isarmia. Vamos precisar da ajuda dela.

E, num passo acelerado, os dois amigos caminharam decidida e vigorosamente para o castelo.

O homem dos cabelos como serpentes olhou, com um pequeno sorriso de escárnio, para o corpo de Iruvienne, pateticamente levado aos ombros dos Nennalm, e aproximou-se. Os Nennalm pousaram-na no chão, desataram-lhe os tornozelos e, imediatamente, ficaram parados, a olhar um qualquer ponto indistinto do chão, como se não fossem mais do que meras estátuas de expressão vazia e triste.

- Estão bastante mais eficazes do que antes, não estão? - perguntou o homem dos cabelos como serpentes, numa voz fria e desagradável, mas Iruvienne não respondeu. O seu porte era altivo e sublime, o rosto sério e decidido, sem quaisquer vestígios de fúria ou medo. De facto, estava completamente sereno. – És parecida com o teu pai. - Fez um pequeno gesto com a cabeça e dois Magdul pegaram nela, montando-a no cavalo. - As cordas das mãos ficam. Estamos com pressa e eu não te quero a provocar atrasos. - Montou o seu cavalo, aproximou-se do de Iruvienne e agarrou-lhe nas rédeas. - Desta vez preparámo-los melhor - disse, fazendo um gesto na direcção do pequeno grupo de apáticos Nennalm. - Não queríamos falhas. Infelizmente, os Nennalm só conseguem encaixar uma ordem naquelas estúpidas cabeças, o que faz destes uns perfeitos inúteis.

Aquele que parecia ser o capitão dos Magdul caminhou, com passadas largas, até ao grupo de Nennalm, agarrou na espada tosca que trazia presa à cinta e decepou a cabeça do primeiro. Os outros Nennalm não se mexeram, mas, provavelmente, nem tinham visto o que se passara. E, mesmo que tivessem, continuariam como estavam, incapazes de perceber o significado daquilo. O Magdul soltou um rugido animalesco a que os outros responderam correndo para o pequeno grupo de Nennalm indefesos. E, no meio de uma gritaria selvagem, mataram-nos um a um, com uma brutalidade e uma satisfação que deixaram Iruvienne horrorizada. No entanto, manteve o seu porte, não deixando transparecer o nojo e a tristeza que a tinham invadido.

- Eles ainda têm uns assuntos a tratar com os Nennalm - disse o homem, maldosamente. - Mas nós vamos indo. Morgriff

espera-nos... Rainha.

Morgriff estava, então, vivo.

O homem dos cabelos como serpentes esporeou o seu cavalo, com algumas palavras incitou o de Iruvienne a avançar, e a longa viagem até Momiran começou.

Enquanto Legonon escolhia os mantimentos, Aran falou com Galaduinne.

- Pede ajuda a Dwarler - disse ela, mantendo uma calma e uma sensatez extraordinárias. - Os túneis dos anões são longos e chegam até meio daquela a que eles chamam a Terra Negra. Será mais rápido se seguires por lá.

- Mas, assim, iremos a pé - disse Aran, numa voz baixa e admirada, ligeiramente reprovadora sem, no entanto, ousar contradizer Galaduinne -; e eles têm cavalos. Jamais os alcançaremos.

- Eu sei, Aran. Mas há uma coisa que deves compreender. Iruvienne tem... um destino a que não pode fugir. - Os seus olhos fugiram para a esquerda e, por uns breves segundos, o seu olhar perdeu-se em algo que Aran não conseguia ver. - Esta notícia gela-me e entristece-me tanto quanto a ti e, contudo, eu sabia que ela acabaria por vir. Iruvienne escolheu um caminho há muito tempo, mesmo antes de o perceber. Tudo isto faz parte desse caminho. - Sorriu, tristemente. - Não me interpretes mal, Aran. Quero Iruvienne de volta, sã e salva, tão depressa quanto possível. Mas há coisas que têm de acontecer e que lutarão contra nós se as tentarmos impedir. Faz tudo parte do mesmo padrão.

Além disso, pensas mesmo que teriam qualquer hipótese contra um bando de Magdul bem armados e em campo praticamente aberto? A fúria não é boa conselheira, Aran, e se pensares um pouco, rapidamente chegarás à conclusão que segui-los a cavalo seria um autêntico disparate. Acabariam por ser chacinados muito antes de se conseguirem aproximar.

Aran não conseguiu responder. Por mais que tentasse por mais que quisesse, era incapaz de compreender. Pelo menos naquele momento. Galaduinne levantou-lhe a cabeça com uma mão branca e fina, sorrindo-lhe. Mas já não era um sorriso unicamente seu. Era um sorriso da Senhora da Noite e das Brumas, sábia e poderosa, conhecedora daquilo que é visível e do que não é.

- No entanto, Aran, ela vai precisar que a resgates, e depressa. Os acontecimentos vão precipitar-se e todo o tempo será precioso.

- E como conseguiremos entrar em Morniran? Nem sequer conhecemos a maneira como foi feita. É pura loucura.

- A maioria dos actos que fazem história nascem da mais pura das loucuras, Aran, Homem de Caladmiron. - Voltou a sorrir. - Não te preocupes. Encontrarás uma maneira. E, agora vai. Não há tempo a perder. Eu convocarei as tropas e prepararei a batalha.

Sem saber muito bem o que fazer, Aran saiu do quarto e foi buscar as armas. Acreditar em Iruvienne era fácil. Mas pedirem-lhe que acreditasse que não devia partir a cavalo rapidamente, no encalço dos raptores da amiga!... Ele era humano. Não percebia nada daquelas questões delicadas ou naquele momento, não queria perceber.

Prendeu uma adaga de lâmina longa e dupla e uma faca de mato ao cinto da espada, ajustou os braçais de couro negro escondeu um pequeno punhal no da direita e, agarrando numa velha capa preta de viagem, foi buscar as armas do elfo. Quando chegou às cozinhas, Legonon e Isarmia tinham esvaziado as mochilas, deixando apenas as plantas curativas, os unguentos, as infusões e algumas mantas, e estavam a guardar os mantimentos que tinham arranjado. Isarmia usava as mesmas roupas da viagem e o seu bastão repousava, apoiado num dos cantos da cozinha.

Legonon também tinha vestida a mesma roupa com que Aran o encontrara desmaiado na clareira, mas usava umas perneiras e uns braçais justos de couro acinzentado onde brilhavam elegantes linhas bordadas a azul-prateado.

- A conselho de Galaduinne, vamos pedir ajuda a Dwarler e seguir pelos túneis dos anões - disse Aran, numa voz meio resmungada, entregando o arco, a aljava repleta de flechas, a adaga de lâmina encurvada e a espada curta a Legonon.

- Talvez a Senhora da Noite e das Brumas tenha uma boa razão para te ter dado esse conselho - comentou Isarmia fechando a sua mochila e pondo-a aos ombros.

Legonon ajustou a mochila às costas e, com alguma dificuldade, prendeu por cima dela a aljava e o arco. Afivelou a bainha da espada ao cinto e entregou a Isarmia a adaga.

- Obrigada, mas não preciso. O meu bastão chega-me.

- É melhor ficares com ela - disse Legonon e Aran reparou que a sua expressão se tinha tornado novamente séria e impenetrável. - Pode acontecer um imprevisto e vires a precisar dela. - Isarmia hesitou um pouco, mas acabou por aceitar a adaga que o elfo lhe estendia. - Se Galaduinne acha que devemos ir pelos túneis dos anões, então é por aí que eu vou - olhou para Aran, com um ligeiro ar cúmplice -, mesmo que pense que seria mais rápido ir a cavalo.

Saíram de Névila por uma das portas das traseiras e depararam com Galaduinne e Athilya, já montadas a cavalo, a segurarem as rédeas de três outros, prontos a serem montados.

- Acompanhamo-vos até à entrada de Monterar - disse Galaduinne e, um segundo depois, partiam os cinco a galope, em direcção à entrada da montanha.

Iruvienne agarrava-se, com as mãos atadas, à sela do cavalo. Os pulsos doíam-lhe e ardiam-Lhe, por causa das cordas apertadas, tinha o corpo dorido das noites mal dormidas e da longa e incessante cavalgada, e estava cansada e esfomeada.

Desde aquele dia em Brumívium, tudo o que comia eram uns pães desenxabidos, acompanhados por umas fatias de queijo rançoso e uma bebida fortemente alcoólica que, frequentemente, ela preferia não beber. Há dez dias que cavalgavam sob o comando imperioso do homem dos cabelos como serpentes. Tinham demorado sete dias para atravessarem a Floresta Queimada, e essa viagem fora extremamente dolorosa para Iruvienne. As árvores falavam-lhe do fogo terrível que as consumira, numa voz gritada, como se estivessem ainda a arder, ou, então, contavam-lhe como eram belas e viçosas antes do incêndio e, nessas alturas, as suas vozes eram tão tristes, tão melancólicas e nostálgicas que Iruvienne se sentia ainda mais angustiada. A terra chorava os filhos que perdera recordando como eles cresciam saudáveis, e lamentava numa voz triste e fraca a sua fertilidade perdida. E os leitos dos rios, secos e gretados, perguntavam-lhe, desesperadamente, por que tinha a água fugido e se algum dia regressaria para os saciar. Às vezes Iruvienne desejava não as conseguir ouvir, mas aquelas vozes eram demasiado ancestrais para os Povos Sábios as ignorarem. E assim fora ficando cada vez mais esgotada. Quando, por fim, passaram a fronteira da Floresta Queimada, as vozes cessaram por completo, pois ali não havia qualquer vida, para além da que Morgriff criava e que não tinha nada de belo ou louvável. O solo estava coberto por uma camada espessa de leves e pequeníssimas cinzas negras e avermelhadas que esvoaçavam constantemente, picando-Lhes a pele e infiltrando-se no meio dos cabelos e no interior das roupas. Antes de entrarem na serra de montanhas arredondadas que protegia e encobria Morniran, Iruvienne viu, de relance, um forte em ruínas onde, provavelmente, os Feiticeiros tinham morado, milhares de anos atrás. E a viagem continuou, por entre os vales estreitos das montanhas, que formavam um caminho ziguezagueante até Morniran.

Os cavalos negros pararam, bafejantes e com as patas a tremelicarem, perante uma imponente montanha, recoberta de cinzas mais avermelhadas. O Sol já se tinha posto, mas ainda havia no ar uma luminosidade alaranjada que incendiava as montanhas, como se o fogo jamais tivesse sido extinto. O homem dos cabelos como serpentes desmontou, atirou a capa negra para trás dos ombros e ficou de pé, diante da montanha, com os braços abertos à sua frente como se estivesse à espera de ser abraçado.

- Ontertis, amopiro; lorisos guirritr wrasser' - disse ele, numa voz autoritária e orgulhosa.

Iruvienne não percebeu as palavras, pois jamais as ouvira antes, mas, imediatamente, a montanha pareceu abanar-se e as cinzas começaram a cair, revelando umas gigantescas portas de rocha negra, trabalhada em relevos geométricos, que se abriram, lenta e pesadamente. O homem dos cabelos como serpentes agarrou nas rédeas do seu cavalo e do que transportava Iruvienne e obrigou-os a entrar. Atrás deles, os Magdul soltaram uma série

 

'Abre-te, montanha; os gloriosos vão passar.

 

de grunhidos alegres e seguiram-nos.

Assim que entraram, as portas começaram a fechar-se, deixando-os num longo corredor, apenas iluminado com archotes de chamas avermelhadas. O homem dos cabelos como serpentes olhou-a com um sorriso sarcástico.

- Vamos. Estão à nossa espera e é indelicado fazer as pessoas esperar. - Encarou os eufóricos Magdul com um ar carrancudo e firme. - Podem ir. Mas não se esqueçam de cuidar dos cavalos, e bem. Eles são preciosos, vocês são... - sorriu, com um divertimento maldoso - substituíveis.

Os Magdul agarraram, hesitantemente, nas rédeas dos cavalos e, com uma delicadeza patética, conduziram-nos pelo longo corredor, desaparecendo rapidamente na escuridão. Durante algum tempo, o homem olhou-os com uma expressão de superioridade, que parecia deliciá-lo, mas acabou por agarrar num braço de Iruvienne e, com um puxão desnecessário, obrigou-a a avançar.

As paredes do corredor eram lisas e escuras, feitas da mesma rocha das portas, à qual se tinham acabado por misturar algumas cinzas, que contribuíam para o seu ar tenebroso. A longa e interminável parede era interrompida apenas duas vezes, por dois buracos altos, cada um deles com uma escada que se perdia na escuridão. No primeiro, a escada descia mas, no outro, subia, desviava para a direita e continuava a subir. Iruvienne e o homem dos cabelos como serpentes continuaram a percorrer o longo corredor até que, por fim, uma luz azulada, raiada por alguns restos de laranja, entrou, timidamente, no túnel, mostrando-lhes o grande arco onde o corredor terminava. Um vulto alto e esguio, recortado na luminosidade crepuscular, esperava-os um pouco depois do túnel. E, quando desembocaram no pátio, murado por altas e escarpadas muralhas, Iruvienne reconheceu Morgriff. Ele estava vestido de forma simples: apenas uma túnica preta comprida e larga, com bordados cinzentos, umas calças e umas botas de cano alto também pretas, e luvas de couro negro; mas havia algo na sua figura verdadeiramente imponente. O seu rosto estava meio oculto pelas sombras do capuz do manto, igualmente negro, e ele segurava na mão direita o seu bastão.

- Bom trabalho, Rasptar - disse Morgriff.

- Obrigado, Mestre - respondeu o homem dos cabelos como serpentes.

Sem esperar, Iruvienne avançou para Morgriff, com uma altivez quase etérea, a capa e o vestido sujos a ondular à sua volta, de forma adorável. Apesar de estar triste e exausta, não havia dúvida de que era a Rainha das Terras da Luz.

- Bem-vinda, Rainha Iruvienne - disse Morgriff, tirando de dentro das roupas uma pequena faca com que cortou as cordas que atavam os pulsos de Iruvienne. As cordas escorregaram para o chão, levantando uma pequena nuvem de cinzas. - Já não precisas delas. - Examinou atentamente os pulsos dela e ergueu o olhar para Rasptar. - Os teus Nennalm fizeram um trabalho deficiente. Usaram demasiada força ao atarem as cordas. Os pulsos da Rainha estão não só esfolados, mas rasgados. E há sangue fresco nas feridas.

Morgriff parecia quase zangado e, atrás de si, Iruvienne sentiu uma certa atrapalhação por parte de Rasptar.

- Desculpe-me, Mestre - disse ele ao fim de algum tempo. Morgriff demorou o olhar um pouco mais no seu servo e ia continuar, quando Iruvienne o impediu.

- Deixemo-nos disto, Morgriff - cortou ela, numa voz perfeitamente autoritária que fez com que os poucos Magdul que trabalhavam no pátio levantassem a cabeça para os observar.

- Atacas-me dentro de Brumívium, magoas aqueles que amo, trazes-me como prisioneira até Momiran e, agora, tratas-me como se fosse uma convidada! Afinal, o que pretendes?

- Para já, apenas conversar - respondeu ele, numa voz calma, quase agradável, tirando o capuz.

E, só então, Iruvienne viu como Morgriff estava diferente. O seu rosto, outrora belo e jovem, estava desfigurado por enormes queimaduras que se prolongavam pelo pescoço e, muito provavelmente, por todo o corpo. Parte do seu couro cabeludo tinha ardido de tal forma que o cabelo nunca mais crescera, e a sua orelha direita fora amputada. Do lado esquerdo, uma enorme queimadura impedia-o de abrir o olho totalmente, parte do nariz parecia ter-se unido à face direita, e até os seus lábios apresentavam pequenas queimaduras. O seu aspecto era tão horrendo que, por um instante, Iruvienne assustou-se.

Morgriff teve um pequeno sorriso, talvez o primeiro em que não havia nada de maldoso, e olhou para os Magdul que os observavam.

- Voltem ao trabalho - gritou autoritariamente. - Nada disto vos interessa, escumalha. - Imediatamente, os Magdul desviaram a sua atenção e continuaram o que estavam a fazer. - Vamos passear? - perguntou, numa voz que podia passar por gentil, estendendo um braço a Iruvienne, que ela não aceitou. - Estou a tratar-te como uma igual, Iruvienne, o que é raro. Podias esquecer as nossas divergências durante algum tempo e acompanhar-me. Iruvienne sentiu uma onda de irritação e ultraje a invadi-la, mas expulsou-a, rapidamente. Precisava de estar calma e pensar claramente. Deu o braço a Morgriff e deixou-se guiar por ele, como se toda aquela confiança fosse normal. Rasptar seguiu-os a uma distância conveniente.

- Lamento que esta terra te cause tanta tristeza e desolação - disse Morgriff, conduzindo-a através de umas escadas estreitas e sem protecção, até ao adarve. - Eu não tenho essa vossa capacidade de ouvir a Natureza, mas também nunca senti a sua falta.

- É natural, Morgriff- observou, calmamente, Iruvienne.

- Não te preocupas com ela. Não queres saber se vive ou morre. De facto, acho até que a preferes morta. É estranho, mas às vezes penso que a receias.

Iruvienne esperava uma resposta ríspida ou irónica, mas não foi isso que aconteceu.

- Nem sempre foi assim - disse Morgriff, e havia na sua voz uma nostalgia bem disfarçada. - Houve uma altura em que eu gostava da Natureza tanto quanto vocês. Mas isso foi há muito tempo, quando eu e os meus irmãos chegámos a este Mundo. - Parou, o rosto queimado virado para as montanhas que encobriam a sua fortaleza. - Vocês vêem-me como um louco megalómano, sedento de poder. - Sorriu, com uma certa malícia.

- É uma maneira de pôr as coisas, embora eu preferisse que me vissem como uma figura extremamente poderosa, que deve ser respeitada e obedecida, talvez até venerada. Mas essa é uma ideia que vocês têm muita dificuldade em aceitar. É pena; tornaria tudo muito mais simples e fácil. Todos estes anos de guerra e sofrimento são perfeitamente desnecessários...

- Desde que nos submetêssemos à tua vontade e à tua influência - completou Iruvienne, com a voz ainda calma, mas modelada por um certo tom irónico. - É uma ideia interessante mas vais ter de nos perdoar por não a aceitarmos.

Morgriff olhou-a com um sorriso de admiração divertida.

- Bravo, Iruvienne. Provaste-me que sabes ser sarcástica.

- Lamento se foi isso que te pareceu. Não era essa a minha intenção. E, por favor, compreende que não é para mim uma honra ser admirada por ti.

- Eu compreendo isso bastante bem, Iruvienne. No entanto, devias sentir- te honrada. - Voltou a olhar para as desoladas montanhas cobertas de cinzas. - Houve um tempo em que eu corri por entre as árvores de Caladmiron tão feliz como se fosse um Elfo ou uma Fada. Nessas alturas, Nessya acompanhava-me e era frequente perdermo-nos em brincadeiras infantis. Por mais que te pareça inconcebível, eu gostava deles. Nessya era a minha bonita irmãzinha. - Olhou para Iruvienne.

- Podes não acreditar, mas não tive qualquer prazer ou satisfação em matá-la. Fi-lo porque ela insistiu em se atravessar no meu caminho. Valindra era diferente. Não tinha tempo para as brincadeiras inocentes de Nessya. Desde o princípio que ela se apercebeu do nosso enorme poder e das suas potencialidades. Eu fui um pouco mais lento. Falar com Valindra era maravilhoso. Ela compreendia o que eu queria dizer e, ao início, ajudou-me. No entanto, tal como se provou no fim, éramos suficientemente diferentes para não acabarmos do mesmo lado. Mesmo assim, tive pena de a perder. Aerzis... bem, Aerzis era o meu irmão mais velho, demasiado sábio e perfeito para nos podermos dar bem. Gostava dele, acho até que cheguei a admirá-lo, mas ele irritava-me tanto com a sua calma e justiça! Pobre coitado, passou a vida a servir em vez de ser servido. De certo modo, a culpa de tudo isto é dele.

- Isso é um bocado covarde, não te parece? – perguntou Iruvienne, com uma pontinha de exasperação na voz. - Mas, claro, culpar Aerzis pelos teus actos é uma saída fácil.

- Estou apenas a dar-te uma perspectiva diferente dos acontecimentos. Não tenho quaisquer remorsos do que fiz - começava a notar-se na voz de Morgriff uma certa fúria -, por isso não preciso de atirar as culpas para cima de ninguém. Só digo que, em vez de o venerarem, talvez devessem começar a pensar nas consequências que os actos dele tiveram.

E, durante algum tempo, ficou calado, os olhos semicerrados e os lábios franzidos, tentando controlar- se. Iruvienne fechou os olhos por um segundo. Sentia-se cada vez mais cansada, quase à beira da exaustão total, mas manteve o seu porte, obrigando-se a permanecer calma, segura e alerta. Morgriff ainda lhe segurava o braço e Iruvienne descobriu, completamente surpreendida, que havia uma certa delicadeza no gesto. Rasptar observava-os, perto das escadas que tinham subido. Dali de cima via-se bem aquela terra devastada e assolada por ventos constantes que enrodilhavam as cinzas, fazendo-as girar sobre si mesmas, até formarem pequenas nuvens terrestres, ou, então, abandonando-as num lugar qualquer onde elas se voltavam a amontoar. A noite já caíra, mas ainda se conseguiam ver as ondulações suaves do mar a rebentarem de encontro às íngremes encostas, arrastando consigo algumas das cinzas. E Iruvienne pensou que até ali, no meio de todo aquele medo e dor, havia beleza. Uma beleza sofrida, mas, mesmo assim, bela. À frente deles, bem no meio do pátio murado, erguia- se, brutalmente, uma enorme construção cónica de ferro, aço e pedra, que era o coração de Morniran. Ali, dentro daquele edifício de aspecto tenebroso, trabalhado para parecer horrivelmente escarpado, como uma montanha de picos agrestes desenrolavam-se as atrocidades de Morgriff.

- Continuamos o nosso passeio? - perguntou Morgriff numa voz novamente calma que não deixava de ter algo de agradável.

- Não vejo porque não.

Morgriff conduziu-a até uma ponte de pedra, trabalhada rudemente com desenhos geométricos, que a embruteciam, e rematada por incrustações metálicas agressivas e geralmente pontiagudas, que unia o adarve a uma porta do edifício cónico também ela construída naquele estilo sinistro e desagradável da ponte. O interior do baluarte estava iluminado pelas mesmas chamas avermelhadas do corredor, que brilhavam reflectidas nos metais das paredes ou na superfície polida de algumas rochas, e toda a sua arquitectura seguia a mesma linha caótica e opressiva do exterior. Iruvienne sentiu-se como uma verdadeira prisioneira.

Ali dentro não havia o mais pequeno vestígio de luz natural ou de qualquer tipo de luz clara que iluminasse, devidamente o ambiente. Tudo permanecia oculto na mais profunda das obscuridades. Era um lugar tenebroso, onde seria fácil intimidar os que não estavam habituados àquele negrume. E, lentamente Iruvienne sentiu-se a sufocar. Morgriff conduzia-a através dos corredores bafientos, apoiando, de vez em quando, o bastão no chão.

- No início, revoltei-me contra os meus irmãos porque não estava disposto a entregar este Mundo a uns seres não merecedores como vocês. De tudo quanto sabíamos acerca dos Elfos e das Fadas nada me provava que tivessem mais direito a governar este Mundo do que nós. E já nem sequer falo dos Duendes e dos Gnomos. Esses são criaturas insignificantes, sem o menor interesse para o Mundo ou seja para quem for, que vocês souberam subjugar de forma bastante sábia. Aqueles idiotas nem perceberam o que lhes aconteceu.

- Não foi isso que nós fizemos - retorquiu Iruvienne, fazendo um grande esforço para manter a voz calma e controlada.

- Como queiras - disse, despreocupadamente, Morgriff.

- De qualquer forma, a verdade é que, até tu nasceres, nunca houve um único Elfo ou Fada digno de liderar este Mundo. Iruvienne olhou-o discretamente, tentando decifrar algo no rosto de Morgriff que traísse os seus pensamentos, mas ele manteve-se impenetrável. - Por isso, sempre considerei que o mais justo era sermos nós a governar. E como os meus irmãos preferiam servir-vos, eu governaria sozinho.

- Custasse o que custasse, não é Morgriff? - perguntou Iruvienne, numa voz suave, mas acutilante. - Mesmo que tivesses de te limitar a ser rei de um Mundo morto.

Morgriff olhou, quase sonhadoramente, para o tecto.

- Se for esse o preço a pagar... - Olhou para Iruvienne e encolheu, tranquilamente, os ombros. - Posso sempre criar novos seres. Seres à medida da minha imaginação.

- Uma visão bastante assustadora - comentou Iruvienne, e Morgriff soltou uma grande gargalhada, verdadeiramente divertida.

- Não há dúvida de que és uma elfo, minha querida Iruvienne. - Ela fechou os olhos, por um segundo, tentando manter a paciência. Morgriff sorriu, maliciosamente. - Vejo que não consigo mudar a tua opinião acerca de mim. É pena. Talvez num outro dia, com mais tempo. - Suspirou, com alguma leveza, e olhou para o caminho que terminava em duas gigantescas portas. - É engraçado como a vida tem certas ironias. Se Aerzis nunca tivesse feito o Ceptro, eu jamais me teria apercebido da importância do espírito. De cada vez que o Ceptro me fez... desaparecer, extinguiu o meu corpo, a minha matéria, deixando apenas o espírito. E, de cada vez, eu tive de a reconstituir. Claro que desta vez foi mais difícil. Graças a Valindra, o meu corpo está irremediavelmente alterado. Mas foi por causa de todo esse doloroso processo que eu percebi a importância do espírito. Por mais que a matéria sej a destruída, mesmo que eu perca a capacidade de a restaurar, o espírito fica. Se eu conseguir abandonar a matéria, conservando-a viva, e soltar o espírito para onde eu quiser, posso ascender à mais perfeita das imortalidades. Chegarei onde quiser, verei tudo o que é possível ver e o que não é, conseguirei controlar tudo e todos. Serei imparável e imbatível. Tão perfeito quanto um deus. A matéria pode degradar-se, mas eu continuarei vivo e activo. É uma visão ideal. Tudo o que tenho de fazer é manter o meu corpo suficientemente bem conservado para poder continuar vivo. E, para isso, basta preocupar-me com os órgãos vitais. Que me interessará se todo o meu corpo estiver queimado, carcomido por feridas e pej ado de pústulas O meu espírito continuará tão vigoroso como sempre foi. É tudo o que me interessa. - Parou abruptamente, acabando com aquele devaneio aterrorizador. O seu rosto ostentava a mesma expressão trocista e maldosa que Iruvienne lhe conhecia desde criança. - Claro que, para isso, tenho de aprender muito. Mas, em todos estes anos, as minhas pesquisas revelaram-se sempre insuficientes. Por isso, fui obrigado a admitir que preciso de uma espécie de professor. E é aí que tu entras.

Largou o braço de Iruvienne e rodou os puxadores, abrindo as portas. Estendeu o braço para que ela o pudesse agarrar, e juntos entraram numa enorme sala circular, com um alto pé-direito, bastante mais iluminada do que o resto da tenebrosa construção. As paredes eram recobertas por estantes de rocha negra e luzidia, onde estavam arrumados vários livros papéis e estranhos instrumentos. Ao fundo da sala, em cima de um balcão de trabalho com algumas prateleiras, repousavam vários frascos, cheios de misteriosos líquidos e massas, geralmente de tons escuros. No centro, estava uma grande mesa rectangular, com duas cadeiras, uma de cada lado, onde tinham sido deixados vários rascunhos e apontamentos, num caos aparente. Em frente à porta de entrada, havia um grande arco que dava acesso a uma varanda interior e, do lado esquerdo, uma porta mais pequena que se encontrava fechada.

- Atrás daquela porta fica o meu quarto - disse Morgriff-, mas desconfio que isso não te interessa.

- De facto.

Morgriffsorriu, com um estranho misto de compreensão e malícia. O cansaço de Iruvienne começava a ser visível. Levou-a lentamente, até à varanda interior.

- Como vês, também eu passo grande parte do meu tempo a estudar e a aprofundar os meus conhecimentos - dizia ele, indicando, com um gesto largo, a mesa e as estantes. - De certo modo, podes considerar-me um sábio. Mas é claro que tu não queres fazer isso: E, no entanto, algumas das minhas pesquisas são bastante morosas. Implicam muitas tentativas falhadas até conseguir chegar ao resultado certo. Os Nennalm eram uma ideia antiga, que levou muitos anos a aperfeiçoar e que, devo confessar foi particularmente trabalhosa. Mas vê por ti mesma.

Morgriff afastou-se e Iruvienne aproximou-se, hesitantemente, da amurada da varanda. Diante de si, abria-se uma gigantesca cratera com vários patamares, ligados por pontes metálicas a um enorme centro também de metal, onde grandes taças rochosas, repletas de um líquido preto-esverdeado e viscoso, estavam encaixadas. No fundo da cratera, entreviam-se vários Nennalm de braços caídos e cabeça baixa, virados para uma porta que só era perceptível pela diminuta luz que entrava pelas suas fendas. Os patamares, espalhados por toda a cratera, estavam cobertos com uma mistura fofa de penas e musgo, sobre a qual repousavam vários ovos transparentes, que alojavam débeis formas algures entre os Homens e os Anfíbios. Eram futuros Nennalm.

Perfeitamente horrorizada, Iruvienne viu-os rebolarem dentro dos ovos, pontapeando o seu invólucro gelatinoso e fazendo até pequenas expressões dengosas. Vê-los já totalmente apáticos e sem alma fora um choque. Mas vê-los ali, ainda cheios de vida a desenvolverem-se dentro dos ovos só para lhes ser retirada a alma era ainda mais desconcertante e medonho. Como é que Morgriff conseguia fazer uma atrocidade daquelas? Os Magdul atarefavam-se, de um lado para o outro das pontes, a buscar os

ovos na fase final do desenvolvimento, carregavam-nos até ao centro metálico, depositavam-nos cuidadosamente um em cada taça, e ficavam à espera. Então, o líquido começava a borbulhar agitando-se como se fosse uma qualquer entidade esfomeada e progressivamente penetrava dentro dos ovos, até os encher completamente. Ficava lá dentro algum tempo, movendo-se num redemoinho viscoso, repleto de reflexos multicolores, até que, por fim, deslizava novamente para dentro da taça. O grande ovo rachava, o invólucro dissolvia-se no líquido e o Nennalm caía lá dentro. Um Magdul puxava-o para o exterior, limpava-o, desajeitadamente, com um pano velho caído ao lado da taça e carregava-o grosseiramente até uma grande plataforma onde um grupo de Nennalm esperava as instruções de Morgriff. Depois, ia buscar outro ovo e todo aquele abominável processo recomeçava.

- Quando aqueles que estão na plataforma receberem as minhas ordens, vão juntar-se aos que já estão lá em baixo - explicou Morgriff, inclinando-se sobre Iruvienne e, mais do que nunca, ela sentiu-se repugnada e enojada. - Em breve o meu exército de Nennalm estará completo. Aqueles ali em baixo - disse Morgriff, apontando para o nível mais inferior de plataformas -, estarão prontos em pouco mais de um mês e, então, atacaremos o teu povo. O maior ataque alguma vez visto. E, sem ti, o Povo da Luz não conseguirá resistir muito tempo. Mesmo que tentem usar o Ceptro, não há entre eles ninguém suficientemente poderoso para me travar definitivamente. Podem atrasar o inevitável, mas, mais cedo ou mais tarde, eu acabarei por vencer.

Por isso te trouxe até aqui: para ficares segura e não magoares ninguém. Quando tudo isto estiver acabado e eu tiver o Ceptro em segurança comigo, serás livre e, então, teremos toda a tua vida para aprendermos a respeitar-nos e a compreender-nos. Serão, sem dúvida, dias interessantes. - Iruvienne sentiu as lágrimas a queimarem-lhe, perigosamente, os olhos e, sem que Morgriff se apercebesse, cerrou os dentes. - Mas, por agora, ainda precisamos de falar de algumas coisas. Vem, afastemo-nos desta visão tão perturbadora para os teus olhos élficos - disse Morgriff, com uma delicadeza, um tanto ou quanto cínica. E, cansada demais para resistir, Iruvienne resignou-se a acompanhá-lo e aceitou o braço que, mais uma vez, ele lhe oferecia. Morgriff sentou-a numa das cadeiras em frente à mesa, foi buscar a outra cadeira e sentou-se ao lado dela, soltando um longo suspiro doloroso. - Foi este o resultado do confronto com a tua mãe e Valindra - disse, recostando-se, cuidadosamente, na cadeira. - As queimaduras torturam-me o corpo, impedindo-me de fazer esforços prolongados. - Olhou para ela e soltou uma pequena e abafada gargalhada amarga. - Vês no que a minha matéria se transformou? Fui belo é verdade. Belo e elegante como um Elfo. Mas tudo isso passou. Neste momento, o meu corpo não passa de um tormento doloroso que nem sequer caminhar devidamente me deixa. - E, inesperadamente, passou-lhe uma mão enluvada pelo rosto, num gesto que tinha bastantes semelhanças com as carícias de Legonon.

- Gostaria muito que te juntasses a mim...

- Mas sabes que eu jamais o farei - cortou Iruvienne, afastando a cara.

- Sei - concordou Morgriff, e a sua expressão tornou-se novamente sarcástica e desagradável. - Tu nunca me apoiarias e, mesmo que, por métodos que nem eu consigo imaginar, eu te obrigasse, jamais te resignarias. Tentarias, constantemente destruir-me e isso, minha querida Iruvienne, eu não posso permitir. Acabaria por ter de te matar o que seria, verdadeiramente, uma pena. Além disso, subjugar um poder como o teu seria impossível. Tudo o que conseguiria era destruí-lo e, então, todos os meus planos cairiam, definitivamente. - Aproximou a sua cara da dela, de tal forma que Iruvienne conseguia sentir a sua respiração. – A verdade, Iruvienne, é que preciso de ti. Durante toda a minha existência, esperei para ver os Elfos e as Fadas tornarem-se como tu és e como ainda virás a ser. Isso ter-me-ia mostrado que, talvez, Aerzis estivesse certo. Mas eles nunca conseguiram tornar-se naquilo que podem ser. E então vieste tu. Suficientemente poderosa, suficientemente avassaladora para eu te respeitar e admirar. Tu és uma rainha digna desse nome.

Afastou, finalmente, a sua cara da dela e olhou-a intensamente. Iruvienne sentia-se muito próxima do desespero. Porque é que ele a admirava? Não queria ser admirada por Morgriff, nem sequer respeitada. Porque é que ele não a desprezava? Seria tão mais fácil encarar toda aquela situação! Tudo o que se estava a passar naquela noite se assemelhava a uma repetição da história de Guindenlin e contudo... Não. Morgriffjamais era sincero. Não podia ser. Ele continuava a olhá-la como se... Só Legonon tinha esse direito. Iruvienne levantou-se repentinamente, ficando de pé a olhar para Morgriff, o porte ainda extremamente altivo e o rosto mais sério e determinado do que alguma vez antes. Morgriff olhou-a, admirado, durante alguns segundos e, por fim, baixou a cabeça.

- Juntos teríamos sido mais do que imbatíveis, Iruvienne.

- Fez uma pequena pausa, como se estivesse cansado de mais para continuar. - Mas isso agora não interessa.

- Então, se já acabámos a nossa conversa e o nosso passeio agradecia que me levasses até à minha cela - disse Iruvienne num tom completamente firme. - Suponho que é essa a tua ideia de me manter em segurança.

Morgriff olhou-a com uma expressão mordaz.

- A escolha foi tua, Iruvienne. Rasptar - chamou numa voz mais alta e forte, e o homem dos cabelos como serpentes entrou na sala. Aparentemente estivera do outro lado das gigantescas portas à espera de ser chamado. - Leva a Rainha Iruvienne até à sua cela e certifica-te de que ela é alimentada convenientemente. Não quero vir a saber que lhe levas parte das rações dos Magdul ou dos Nennalm. E dá-lhe também algumas ligaduras para ela ligar os pulsos.

- Sim, Mestre.

Iruvienne não esperou que Rasptar a fosse buscar. Caminhou elegantemente, passando por ele com uma indiferença altiva, e esperou-o no meio das portas abertas. Rasptar agarrou-lhe

num braço, sorrindo com um ar divertido e maléfico, e deu um passo em frente.

- Esperem - disse Morgriff, levantando-se, ainda com alguma dificuldade.

Rasptar estacou, imediatamente, com uma expressão dissimuladamente preocupada. Morgriff avançou até eles, pegou na mão de Iruvienne com uma estranha delicadeza, e tirou-Lhe do dedo o anel com a opala de fogo que Dwarler lhe dera.

- Uma recordação do que poderia ter sido - disse, e afastou-se em direcção à varanda interior.

Sem perder tempo, Rasptar arrastou Iruvienne pelo corredor, deixando os aposentos de Morgriff para trás. Passado pouco tempo, enveredaram por uma escada em caracol, encoberta pela escuridão e por parte de uma parede rochosa, que após várias voltas os conduziu a uma porta lateral, a qual dava para o exterior do baluarte. Rasptar fê-la atravessar o pátio e grande parte do longo corredor que tinham usado para entrarem em Morniran, até que entrou no buraco cuja escada descia em direcção ao subsolo. Ao longo da descida, passaram por várias portas aferrolhadas, mas Rasptar continuou sempre. Quando estavam mesmo a chegar ao fim da escadaria, ele agarrou num dos raros archotes que iluminavam o caminho e conduziu-a através de um estreito corredor, sem qualquer tipo de iluminação, que terminava numa portinhola de madeira grossa e compacta, sem a mínima abertura.

- Bem-vinda aos seus aposentos, Rainha - troçou ele, largando-lhe o braço para abrir o grande ferrolho que fechava a porta.

O archote iluminou, por uns escassos segundos, as paredes de terra da cela e Iruvienne foi empurrada lá para dentro. Enquanto caía no chão, ouviu a porta a ser trancada e os passos do homem dos cabelos como serpentes a afastarem-se pelo corredor. Tudo acontecera como nos seus sonhos.

Iruvienne levantou-se, mas bateu com a cabeça no tecto provocando uma pequena derrocada de terra. Instintivamente, agachou-se, protegendo a cabeça com os braços. Esperou até que os últimos grãos de terra caíssem e, então, esticou o braço, tacteando com os dedos, para ver até onde se podia erguer. O tecto era muito baixo, seria impossível ficar de pé ali dentro, mas talvez se conseguisse sentar. Cuidadosamente, sempre com o braço erguido para controlar a altura, sentou-se, com as costas apoiadas a um canto da pequena cela e as pernas estendidas. Fechou os olhos, tentando clarificar as ideias e pensar logicamente, mas os pulsos doíam-lhe e o seu corpo tremia de frio e exaustão. Além disso, estava presa. Tudo o que podia fazer era esperar que Aran, Legonon e Isarmia a viessem resgatar. Encolheu as pernas, cobriu os pés com a saia do vestido sujo, tapou a cabeça com o capuz e enrolou-se na capa. Lentamente, os seus olhos fecharam-se e Iruvienne caiu num sono agitado e irregular.

Há mais de vinte dias que percorriam os infindáveis e labirínticos túneis dos anões, num passo acelerado, muito perto da corrida, que os esgotava. Paravam apenas o tempo necessário para engolirem a comida e dormirem algumas horas de sono pouco repousante. Antes de adormecer, Aran ainda se amaldiçoava por não ter sido mais rápido a chegar à clareira e por ter aceite o conselho de Galaduinne, mas não dizia nada. Legonon tinha ganho uma expressão mísera de cansaço, tristeza e preocupação quase insuportáveis, como se, subitamente, uma sombra se tivesse abatido sobre ele. Mas, claro, ele estava ligado a Iruvienne, sentia tudo o que ela sentia e sabia, exactamente, o que se passava com ela. Dwarler estava sempre exausto e, quando eles lhe autorizavam que parasse, tudo o que conseguia fazer era comer e respirar ofegantemente até adormecer. E Isarmia continuava a segurar, firmemente, o bastão, fitando o vazio com olhos pensadores e parecendo pronta a dar uma resposta ríspida a quem quer que questionasse o conselho de Galaduinne. E, mesmo relutantemente, Aran acabava por lhe dar razão. Se os tivessem seguido a cavalo, os Magdul tinham-nos abatido com setas mais ou menos certeiras e jamais conseguiriam libertar Iruvienne.

- Acabou-se - suspirou esbaforidamente o anão, atirando-se para o chão e segurando o abdómen com as mãos rechonchudas.

- Não aguento mais. Não consigo dar nem mais um passo. Aran acercou-se de Dwarler, contendo um gesto de exasperação.

- Não pode desistir agora, Mestre Dwarler - disse, apoiando uma mão no ombro do anão. - Precisamos de si para nos guiar por estes túneis, ou facilmente nos perderemos.

- Eu sei, eu sei, meu rapaz. Mas não consigo. Se me volto a levantar caio de vez. Este ritmo maluco não dá para os anões e, além disso, não sou novo. Se reparares bem, vês que a minha barba já é grisalha.

Aran ouviu Isarmia a bater, impacientemente, com a ponta dos dedos no bastão e olhou para Legonon, como que à espera de um conselho. O elfo encostara-se à parede rochosa do túnel, com os olhos fechados e as sobrancelhas loiras franzidas, e demorou ainda algum tempo a aperceber-se do olhar de Aran.

- Não nos podemos atrasar - disse na sua voz profunda e por um instante, os seus olhos fugiram para outro lugar. - Ela está demasiado fraca.

Aran cerrou os maxilares e olhou gravemente para o corredor que se estendia à frente deles. Sem que alguém tivesse dito fosse o que fosse, ele tornara-se por unanimidade o líder daquele pequeno grupo de salvadores e competia-lhe agora decidir o que deviam fazer. Isarmia ajoelhara-se ao lado de Dwarler e examinava-o atentamente.

- Ele não pode, efectivamente, continuar - disse ela, olhando de lado para Aran, como que à espera de uma reacção. - O corpo dele já não suporta esforços deste género, o que, provavelmente, se deve a um elevado índice de ociosidade.

Dwarler olhou para o lado com uma expressão de culpa infantil.

- Sabem como é... - titubeou ele. - A vida em Monterar é boa, mas não há muito exercício para alguém como eu. Alguém tem de fazer as contas, não é? - e lançou uma gargalhada atrapalhada.

- Eu levo-o ao colo, Mestre Dwarler - decidiu Aran.

- Aah, não - cortou o anão, com a palma da mão direita virada para eles, como que a afastar a ideia de Aran. - Isso é que não pode ser, meu rapaz. Não sofro de invalidez e, de mais a mais, sou demasiado pesado para vocês me transportarem. Ainda perdiam mais tempo.

- Mas sem um guia jamais conseguiremos encontrar o caminho para sairmos dos túneis!

- Eu guio-vos - disse uma voz forte e vigorosa por trás deles. Aran voltou-se para trás. Uma pequena figura entroncada e robusta emergia das sombras com passos cuidadosamente leves e silenciosos.

- Eu guio-vos - insistiu o jovem anão. E, por entre a farta barba castanha, Aran reconheceu as feições decididas de Balein.

- Segui-vos desde que entraram em Monterar e sei o que se passa. O meu pai está cansado, mas eu sou um guerreiro e as minhas pernas estão frescas e prontas a correr. Além disso, ninguém conhece estes túneis meLhor do que eu. Passei toda a minha infância a treinar aqui para me tornar um guerreiro. Era o único lugar onde me deixavam em paz e onde não tinha de ouvir as estúpidas troças daqueles anões veLhos e malcheirosos, tão gordos que nem sequer conseguem levantar bem os braços.

- Balein? - Dwarler continuava a oLhar para o fiLho, completamente admirado. - Como é que não te ouvimos durante todo o caminho?

- Eu sou um guerreiro - respondeu teimosamente. – Sei como ser silencioso quando quero.

- Balelas. Nenhum anão consegue ser silencioso. Somos demasiado pesados - justificou Dwarler, como quem desculpa um fiLho pequeno e tolo.

- Mas eu consigo - frisou Balein. - Tenho vinte e sete anos e sou um guerreiro. Além disso, desde pequeno que espio os treinos dos nossos guerreiros. Tive de aprender a ser silencioso.

Aran ainda olhava para o jovem anão, completamente incrédulo. Não o tinham visto nas suas últimas visitas a Monterar e não havia dúvida que o pequeno Balein de outrora crescera. O anão tinha um ar levemente carrancudo, a expressão era firme e decidida e o seu corpo, embora tivesse a constituição rechonchuda do pai, não tinha nada de gordo. Um enorme machado de duas lâminas pendia-lhe do pesado cinto de cabedal, adornado com algumas incrustações de ferro, onde também estava presa uma elegante adaga: a adaga que Iruvienne lhe dera.

- Parabéns, Balein. Tornaste-te num guerreiro – elogiou Aran.

- Obrigado, Senhor Aran. Mas agora é melhor irmos. A Dama Iruvienne está em perigo.

- Concordo com ele - disse Legonon. - Se o mestre Dwarler fica bem aqui sozinho é melhor continuarmos. Acredita em mim, Aran. O tempo urge.

- Vão, vão - encorajou Dwarler. - Eu fico bem. Um longo descanso e depois um bom jantar e fico como novo. Sigam o Balein. Se ele diz que vos consegue guiar é porque é verdade. Afinal, ele é meu filho e um filho meu... Bem, bem, vão lá. Não se percam com a minha tagarelice.

O jovem guerreiro, que até então tinha estado a olhar para Legonon com um ar pouco simpático, virou-se para o pai, com uma expressão de felicidade a iluminar-lhe o rosto.

- Vamos então - decidiu Aran. - Balein, indica-nos o caminho.

O anão apressou-se a passar-lhe à frente e, rapidamente, desapareceram os quatro na escuridão do longo túnel, deixando Dwarler sozinho, com uma mão a pressionar o estômago e ainda muito ofegante. Durante pelo menos mais um dia, Balein guiou-os num ritmo frenético e incansável através dos vários túneis, parcamente iluminados, até que, finalmente, o túnel em que seguiam terminou abruptamente. Do lado direito havia duas grandes portas de rocha vulcânica escura com cristais azuis, mais pequenas do que as da entrada da montanha, mas igualmente imponentes. Balein apoiou uma das fortes mãos rechonchudas na junção das duas portas e murmurou na sua língua qualquer coisa indecifrável. As portas fizeram um barulho esquisito, como se estivessem a gemer, tentaram abrir-se, mas falharam, voltando à mesma posição.

- Ora bolas - resmungou Balein. - Estão perras. Nunca foram abertas, depois é o que dá. Nem sei para que é que as fizeram. Aqui, todos os anões morrem de medo só de pensar no que estará para além destas portas. Viver dentro da montanha é bom, mas tornou alguns de nós demasiado molengões.

Voltou a apoiar a mão na fenda entre as portas, repetiu as palavras de ordem e, quando as portas tentaram, novamente, abrir-se, atirou-se com toda a força contra elas, empurrando-as.

Aran e Legonon comprimiram-se contra as compactas portas e fizeram força, para que elas se descerrassem. Lentamente, as portas rangeram e começaram a rolar na terra. Legonon, Aran e Balein afastaram-se rapidamente, para não caírem, e ficaram à espera. Isarmia observava as portas a moverem-se pesadamente, com um olhar ansioso e expectante. Uma luminosidade intensamente amarela começava a aparecer por entre a abertura das portas. Balein aproximou-se da saída e foi apanhado por um desmoronamento de cinzas negras.

- O que é isto? - perguntou com um misto de irritação e admiração, sacudindo a barba e observando as cinzas espalhadas pelos seus dedos.

- Cinzas - respondeu Isarmia, passando-lhe à frente.

- Toda esta terra está coberta de cinzas. Não vais encontrar mais nada para além delas. A não ser, talvez, umas rochas meio descobertas. As cinzas cobriram tudo, mas suponho que os ventos já as tenham afastado de algumas coisas.

Legonon saiu para o exterior e olhou, tristemente, à sua volta.

- Esta terra está completamente morta - disse numa voz apagada. - Já nem sequer as rochas têm voz. Foi tudo irremediavelmente destruído. - Olhou para Isarmia com uma expressão séria, onde se entrevia uma certa mágoa. - A vida não voltará a brotar desta terra.

Isarmia enfrentou o olhar dele durante algum tempo, mas acabou por virar a cara para o lado.

- Lamento - respondeu e voltou-se para Legonon, fixando-o firmemente nos olhos. - No entanto, não fui responsável por isto e o meu povo há muito que é castigado pelos seus crimes.

- Acabem com isso - cortou Aran, saindo do túnel com os olhos semicerrados por causa da mudança súbita de luz.

- A partir de agora estamos em território inimigo e podemos ser apanhados a qualquer momento. Não quero ouvir nada mais forte do que um sussurro. Estamos todos cansados e tristes, mas tentem não discutir. - Virou-se para Legonon. - Isarmia não teve culpa do que aconteceu aqui - olhou para a feiticeira - e Legonon não estava, propriamente, a acusar-te ou a alguém do teu povo. E este assunto morre aqui. Todos sabemos o que se passou e, melhor ou pior, todos conseguimos ver as suas consequências. Não há necessidade de dizer seja o que for.

Durante alguns segundos só se ouviu o uivar do vento a enrodilhar as cinzas que, depois, atirava contra eles.

- Bem - disse Balein, tentando obrigar a sua voz forte a sussurrar -, é melhor continuarmos.

Aran encarou o anão e curvou-se, profundamente.

- Obrigado pela tua ajuda, Balein. Estamos-te muito gratos.

- Não têm nada que agradecer. E agora vamos. Estamos a perder tempo.

Aran sorriu, compreensivamente, e baixou os olhos para o anão.

- Balein, tu não vens connosco - disse com alguma simpatia, mas o anão parecia completamente indignado. - Pelas descrições que li desta terra a sua travessia vai ser penosa e nós temos de a fazer tão depressa quanto as nossas pernas nos permitirem. Seria uma jornada demasiado esgotante para ti. Principalmente porque depois temos de regressar ao mesmo ritmo.

- Eu sou um guerreiro, tal como tu - resmungou Balein.

- Aguentei até agora e vou continuar a aguentar.

- Um guerreiro conhece os seus próprios limites - disse Aran, pousando-lhe uma mão amigável no ombro. - Não precisas de fazer o que não consegues só para provares que és bom naquilo

que fazes.

- Estás a dizer isso porque não queres que eu vá.

- Não. Estou a dizer isto porque é verdade. Além disso, precisamos que esperes por nós aqui para nos abrires esta entrada e nos guiares de volta à saída de Brumívium.

O anão pareceu considerar durante algum tempo o que Aran dissera e acabou por acenar, resignadamente, com a cabeça. Aran juntou-se a Legonon e Isarmia e, sem uma palavra, desapareceram no caminho ziguezagueante formado pelas montanhas.

O dia passou rapidamente, mas a caminhada foi longa e extenuante. O Sol outonal brilhava radiosamente sem, contudo, conseguir alegrar o ambiente. O chão e as montanhas cobertas de cinzas escuras, misturadas com algumas avermelhadas, tornavam a paisagem tão tenebrosamente desértica que até a luz solar parecia realçar a tristeza daquele lugar. E quando, subitamente, as nuvens cobriram o Sol e começou a chover foi ainda pior. Era como se toda a terra chorasse o seu destino.

- Este lugar é insuportável - queixou-se Legonon, olhando para os movimentos rápidos das nuvens, novamente brancas, a percorrerem o céu nocturno. - Está cheio de dor, mas foi mergulhado na mais profunda das apatias. É um silêncio terrível. Quase preferia ouvi-lo berrar de mágoa e sofrimento.

Estavam sentados no sopé de uma das montanhas, com as costas apoiadas de encontro ao terreno levemente inclinado e os capuzes das capas postos, para se protegerem dos fortes ventos e da pequena tempestade de cinzas que eles tinham desencadeado. Durante muito tempo, Isarmia observara taciturnamente as cinzas que se estendiam à sua volta, mas acabara por fechar os olhos e adormecer, deixando Aran e Legonon entregues à sua conversa murmurada. Legonon tinha os braços cruzados sobre o peito e Aran segurava a espada embainhada, com uma mão pousada no cabo.

- Não consigo perceber como é que não ouvimos o Balein a aproximar-se - comentou Aran. - Afinal, Dwarler tem razão; eles não primam por serem silenciosos.

- Estamos todos demasiado cansados - respondeu o elfo.

- Isso tolda-nos os sentidos.

- Sim, é verdade, mas mesmo assim... Os Elfos têm os sentidos mais apurados do que os humanos, pelo menos tu devias tê-lo ouvido.

Legonon sorriu amargamente.

- As minhas capacidades estão bastante esmorecidas, Aran. Desde que saímos de Brumívium que não me consigo concentrar em muito mais do que no estado de Iruvienne. Sinto-a a todos os segundos. De certo modo, compartilho tudo o que ela está a viver e ela tudo o que eu vivo. - Olhou, uma vez mais, para o céu a mover-se a grande velocidade. A noite

estava fresca e clara, e havia no ar uma tal quietude que quase se sentia uma pequena tranquilidade. - É um processo bastante complicado, mas creio que, de uma forma muito simples, posso dizer que damos parte das nossas energias um ao outro.

- Gostava de estar ligado a ela dessa forma.

- Não, não gostavas. Eu não posso saber as situações que ela está a viver, mas sei o que ela está a sentir enquanto as vive. Claro que quando tudo está bem é uma sensação maravilhosa. Não precisamos de palavras para nos compreendermos e é como se fôssemos, realmente, um só. Mas agora... Eu sinto toda a tristeza que tu sentes, Aran, mas é ainda pior. Saber como ela está não deixa de ser um alívio e, contudo... é terrível. Tenho tentado ajudá-la, mas ela está demasiado fraca. Sinto-a cada vez mais a definhar e a afastar-se para um lugar onde eu não a posso alcançar.

- Percebo o que queres dizer. Como muitas coisas na vida, a vossa ligação é uma dádiva incrível, mas também um fardo, por vezes, demasiado pesado. Talvez tenhas razão; não gostava de sentir o que tu sentes. Creio que não o suportaria.

Aran olhou para o caminho que seguia por entre as montanhas. Quanto tempo faltaria para chegarem a Morniran? E como a encontrariam? De certo Morgriff protegera-a bem. Talvez tivesse até feito uma espécie qualquer de feitiço que os impedisse de a verem. Não tinha problema. Isarmia estava com eles. Ela saberia encontrar Morniran.

- É melhor dormirmos um pouco - disse, voltando a olhar para Legonon. - Amanhã devemos ter um dia tão esgotante quanto este.

- Para mim a noite não me trará qualquer descanso - respondeu Legonon. - Não tenho a Visão, mas quando adormeço a minha mente fantasia sobre Iruvienne e as imagens nunca são alegres. Eu fico de guarda, enquanto vocês dormem.

- Obrigado - agradeceu Aran, bocejando e cruzando os braços no peito, com a espada no meio deles. - Eu acordo antes de amanhecer para que, de qualquer forma, tu durmas um pouco.

Fechou os olhos e adormeceu. Legonon olhou para o céu, tentando apreciar a beleza escondida daquele lugar. E, então, algo mudou. Iruvienne mergulhara num estado profundo a que ele não conseguia ascender, mas estava, indubitavelmente, bem.

Iruvienne perdera a noção do tempo. Os seus sonhos eram sempre caóticos e misturavam-se com a realidade, impedindo-a de ter a certeza se estava acordada ou a dormir. Por vezes, ouvia canções tristes, longos lamentos élficos sobre a sua prisão. Mas não sabia se os estava de facto a ouvir, se eram Visões do que se passava ou iria passar, ou se, simplesmente, eram fruto da sua mente confusa e cansada. Lentamente, deixara-se vencer pela exaustão e, então, o medo e a tristeza tinham-na assolado. A morte do pai assombrava-a irracionalmente, e imagens de uma vida ao lado de Morgriff intrometiam-se nos seus sonhos. Queria encostar a cabeça ao peito de Aran e chorar descontroladamente para, depois, ser presenteada com um dos sorrisos torcidos do amigo. Queria os braços de Legonon a rodearem-na, expulsando toda a tristeza, todo aquele horroroso medo que Lhe gelava ainda mais o corpo. Queria os beijos suaves dele, isolando-a do Mundo, como uma capa protectora. O seu corpo doía-lhe e, ultimamente, já nem sequer se conseguia levantar, limitando-se a ficar estendida no chão, arrastando debilmente as pernas, para impedir que os músculos se atrofiassem. Rasptar levara-lhe algumas ligaduras com que ela atara os pulsos, mas as ligaduras tinham ficado sujas e começavam a libertar um cheiro pouco agradável. Uma vez por dia, ele abria a porta da cela e atirava-lhe um prato de carne fria, com um naco de pão meio recesso, e um copo a transbordar de uma qualquer bebida de cheiro intenso e desagradável que Iruvienne se obrigava a engolir de um só trago, para nem sequer lhe sentir o sabor. A carne era gordurosa e dura, por isso, há muito que Iruvienne se alimentava apenas com aquele pão pouco apetitoso, o que, irremediavelmente, lhe enfraquecera o corpo.

O ferrolho da porta foi corrido e Iruvienne abriu os olhos, com alguma dificuldade. Um segundo depois, Rasptar abria a porta. Baixou os olhos para Iruvienne e, com uma superioridade arrogante, lançou-lhe um olhar cínico. Mais do que nunca Iruvienne teve consciência do seu estado miserável e vulnerável.

Rasptar curvou-se para apanhar o prato do dia anterior e deixar o daquele dia, e saiu da minúscula cela. - Com sua licença, Rainha - gozou ele, trancando a porta e deixando-a novamente sozinha no meio da escuridão.

Iruvienne esticou o braço, agarrou no bocado de pão e lentamente, comeu-o. Odiava estar atirada para ali, demasiado fraca para conseguir reagir às provocações de Rasptar. De certo

modo, detestava-o mais do que detestava Morgriff. Sentia- se incapaz, inútil, e isso irritava-a, deixando-a ainda mais desesperada.

Acabou de comer o pão e humedeceu os lábios. Estavam tão secos!

Cuidadosamente, ergueu o tronco e molhou dois dedos na bebida.

Tinha um toque suave e escorregadio, muito diferente do seu cheiro pestilento. Iruvienne continuava a achá-la extremamente desagradável, mas precisava de hidratar os lábios com qualquer coisa. Molhou outra vez os dedos no líquido e passou-os pela boca. Imediatamente, a sua pele absorveu o líquido. Precisava de algo mais resistente. Puxou o prato para si e esfregou os dedos na gordura fria que escorrera da carne. Com movimentos delicados, espalhou a gordura pelos lábios e esfregou as mãos com a que sobrara. O cheiro não era exactamente aprazível, mas pelo menos já não sentia a pele tão seca. Deixou-se cair no chão e começou a brincar com a terra, traçando pequenas linhas circulares.

Tinha de combater aquela inactividade. Não se podia deixar abater daquela maneira. Era uma elfo e os Elfos jamais perdem a esperança. Aran e Legonon viriam salvá-la. Tinha a certeza.

E, sem se aperceber, escorregou para o mundo das recordações e perdeu-se na lembrança do primeiro beijo de Legonon.

Passou muito tempo até que Iruvienne despertasse daquele sonho acordado, mas, quando o fez, sentia-se melhor, mais capaz de agir e lutar. Tinha de avisar o seu povo do ataque iminente que Morgriff estava a preparar. Mas como? Se ao menos conseguisse fazer o que Animus dissera... Se conseguisse passar a Espírito... Mas não fazia a mínima ideia de como fazê-lo.

Fechou os olhos e respirou calmamente. Tinha de passar àquele estado mais profundo da Visão, àquele estado de clarividência onde tudo se tornava mais simples e claro. Talvez aí encontrasse a resposta para o que precisava de fazer. Lentamente, sentiu-se escorregar para esse estado. Estava mais calma, mais atenta ao que não era visível. Tinha ainda consciência do seu corpo dorido, mas, estranhamente, ele parecia recordar-se mais das doces carícias de Legonon. Continuava a sentir os dedos a brincarem suavemente com a terra revolvida e, sem se aperceber, esgravatou a terra e enterrou-os.

- Muito bem, filha - disse a voz ancestral da Terra

escorrega para o meu ventre.

- Dral

- Sim, minha filha. Até aqui eu estou. Nós estamos em toda a parte. Pensaste realmente que estavas sozinha? - Iruvienne sentiu a Terra a acariciar-lhe os dedos com os gestos ternos de uma mãe. - Nós estamos sempre vigilantes. Sempre à vossa espera. Agora vem. Deixa-me levar-te ao que és. Iruvienne sentia ainda o corpo a ser percorrido por aquele calor esquisito e reconfortante, que a memória de Legonon tinha provocado. E uma parte de si queria continuar agarrada àquela sensação, mas a outra já escorregava através dos seus dedos para o colo aconchegante da Terra.

- Bem-vinda, Iruvienne Nalamin, a primeira a chegar tão longe - elogiou a Terra, e havia na sua voz um certo orgulho materno.

Iruvienne olhou à sua volta. Estava no meio da mais compacta terra, um lugar onde seria impossível respirar ou sequer entrar e, contudo, ela conseguia. Os seus dedos ainda estavam agarrados à sua matéria, dando-lhe uma certa confiança e apoio. Temia o que aconteceria se os largasse. Provavelmente morreria, o Espírito definitivamente separado da matéria. Não os podia largar. Precisava daquele elo, daquela segurança.

- Chegaste muito longe, filha - continuou a voz suave e velha da Terra -, mas a viagem ainda não terminou. Para poderes ser o que realmente és, tens de chegar até ao Fogo. Vamos, não tenhas medo, larga esse elo físico. Não precisas dele.

Iruvienne fechou os olhos, ou pelo menos julgou que os tinha fechado. Não estava preparada para aquilo. Tinha demasiado medo.

- Vamos, minha querida. Tu consegues - encorajou a Terra.

- Vê até onde já chegaste! Solta o elo, liberta-te completamente. Não há nada a recear.

E, então, Iruvienne largou a sua própria mão. Imediatamente, caiu através da Terra e só parou no magma suave e ardente que corria lentamente muito abaixo do subsolo. Iruvienne acariciou, um tanto ou quanto receosa, o magma borbulhante que a atravessava em grandes ondas pastosas. Era uma sensação tão estranha estar ali! Estava completamente livre, totalmente solta da matéria, mas conseguia sentir o seu corpo muito lá em cima, muito longe, debilmente estendido no chão da cela. Continuava unida a ele. Se quisesse, poderia regressar rapidamente para o seu interior. Conseguira. Passara a Espírito sem perder a matéria.

- Parabéns, Iruvienne - disse a voz forte e viva do Fogo.

- Agora és, verdadeiramente, a Estrela de Vida. Por favor, acom panha-me um pouco. - Iruvienne não respondeu, mas deixou que o Fogo a levasse no meio do seu magma. - Tenho estado à tua espera, Nalamin, quase desde que os Elfos e as Fadas acordaram, mas não sabia quando chegarias. Como vês, nós também não detemos a chave para todos os mistérios. Há tanta coisa que nos está oculta! O Mundo ganhou vida e cria os seus próprios padrões e caminhos. De certa forma, nós tornamo-nos meros observadores e guias. O que é perfeitamente natural. Com o tempo tudo muda e os papéis que desempenhamos alteram-se.

- Nada é imutável.

- Exactamente, Iruvienne. Afinal, tu própria alteraste uma pequena regra. Vocês falavam com o Ar, a Água e até a Terra. Mas jamais comigo. Embora todos os Elementos possuam a eterna dualidade entre o bem e o mal, só eu realço o meu aspecto negativo. Suponho que essa seja uma das razões por que raramente procuram o meu saber. Mas, claro, mesmo os que o procuram nunca o encontraram, porque eu vivo sempre em lugares quase inacessíveis e, simplesmente, eles não estavam preparados para cá chegarem. Nenhum deles tinha o teu destino; nenhum deles podia ter cá vindo. - O Fogo afundou-a no magma e Iruvienne sentiu-se, completamente, envolvida por aquele manto ardente.

- Talvez estejas à espera que eu te faça uma revelação fantástica, talvez até que te explique como funciona o Ceptro. Mas isso não vai acontecer. O Ceptro é uma criação de Aerzis, da qual só ele conhecia o segredo. Infelizmente não te posso ajudar. Contudo, acredito que, quando chegar o devido momento, tu descobrirás como usá-lo. Quanto a mim, quero apenas dizer-te que nós, os Elementos, estaremos sempre prontos para te receber. A viagem que acabaste de fazer deve-se, em grande parte, a uma simples passagem da tua matéria para nós, e ver-te, ainda viva, no meio de nós, deixar-nos-á sempre muito felizes. Mas tem cuidado, Iruvienne. Os Espíritos dos vivos não são invisíveis a todos os olhos. Enquanto não morreres, todos os Elfos e Fadas poderão ver-te, mesmo neste estado. Agora, tu és um Espírito bastante parecido com os que encontraste no Norte. Claro que tens as tuas próprias características, mas aos olhos das várias raças és extremamente parecida com eles, talvez um pouco mais colorida.

- O Fogo acariciou-lhe a face com movimentos suaves do magma ardente. - Um dia, quando morreres, tudo será diferente, e apenas aqueles que têm o teu dom conseguirão ver-te. Mas isso será uma outra aventura. E agora vai, Iruvienne Nalamin, faz o que queres ou o que tens de fazer.

- Obrigada - disse Iruvienne, e só então reparou que a sua voz tinha o som de todas as coisas belas do Mundo.

O Fogo sacudiu-a no meio de si, rindo com vontade.

- Há muitas coisas que vais descobrir, Iruvienne. O Mundo é uma enorme aventura e, para ti, as revelações jamais vão acabar. A partir desta viagem nada será igual; de certo modo, tudo estará diferente.

O Fogo ainda a agitava, como se contivesse um riso alegre e orgulhoso. Iruvienne sorriu-lhe, igualmente divertida com qualquer coisa que não sabia definir, fez-lhe uma vénia e subiu rapidamente, rasgando o magma e a terra. Sentiu-se a largar a Terra e a passar para o Ar, com uma fluidez e uma leveza que ela própria não julgara serem possíveis. Olhou à sua volta. Desembocara exactamente em frente à montanha onde estava oculta a entrada para Morniran. Julgara estar muito mais longe daquele lugar, mas a ondulação do magma era lenta e enganadora e, provavelmente, tinha calculado mal as distâncias. Subiu no ar nocturno, contemplando a sua nova forma. Podia ver um longo rasto transparente dourado, onde brilhavam pontinhos vermelhos, e que se confundia com o ar. Esticou um braço nu e admirou aquela nova pele lisa e dourada. Passou as mãos pelo rosto imaterial, tão suave como os braços, e pelo cabelo farto que ondulava à sua volta à medida que ela se mexia. Olhou para o seu corpo, tapado por uma espécie de vestido sem mangas que se confundia com a sua nova pele, de tal modo que nem ela conseguia saber o que era vestido e o que era pele. Rodou sobre si mesma, sentindo-se envolvida pelo corpo escorregadio e aprazível do Ar. Flutuou por entre as nuvens, atravessando-as com as mãos, levantou as cinzas no seu voo desenfreado por entre as montanhas e, finalmente, viu-os. Três pequenas figuras, muito lá em baixo, aninhadas contra a encosta de uma das montanhas. Desceu suavemente até eles e observou-os, deliciadamente. Isarmia estava acordada e olhava atentamente para o caminho, com o bastão seguro na mão esquerda, pronto para ser usado.

A Feiticeira olhou-a durante algum tempo, apercebendo-se de uma presença, mas incapaz de a ver. No entanto, inclinou a cabeça, respeitosamente. Aran dormia profundamente, com a espada agarrada ao peito e as sobrancelhas ligeiramente franzidas. Legonon também dormia, e o seu belo rosto estava marcado por traços de cansaço e preocupação. Iruvienne aproximou-se dele, quase incapaz de respirar. Mesmo sem matéria, sentiu uma enorme doçura a percorrê-la.

- Legononn... - chamou, numa voz sussurrada e suave beijando-o ao de leve nos lábios e afastando-se, rapidamente, para que ele não a visse.

O elfo acordou abruptamente, e olhou à sua volta com os olhos semicerrados. Tinha a certeza de que ouvira Iruvienne a chamá-lo, mas como? Seria possível que ela... Sorriu. Talvez fosse.

- O que se passa? - perguntou Isarmia, com uma ligeira desconfiança.

- Nada - respondeu Legonon, fechando os olhos, sem conseguir evitar um pequeno sorriso. - Está tudo bem. Queres que te renda?

- Não, obrigada. Já descansei o suficiente por hoje.

- Sorriu-lhe amigavelmente. - Dorme descansado. Eu fico de guarda e se Aran acordar mando-o dormir outra vez.

Legonon quase se riu. Aran prometera rendê-lo, mas estava tão cansado que nunca mais acordara, e acabara por ser Isarmia a ficar de guarda.

- Obrigado.

Voltou a cruzar as mãos sobre o peito e adormeceu.

Iruvienne continuou a esvoaçar pelo ar, rapidamente.

Abandonou aquela terra devastada, atravessou a Floresta Queimada, tão depressa que as vozes das árvores, da terra e dos leitos dos rios se misturaram, tornando-se incompreensíveis, e entrou no território sagrado de Brumívium. Deslizou por entre as altas árvores, em direcção a Névila, mas algo estava diferente.

Iruvienne conhecia aquéla floresta tão bem que não precisava de ver o caminho para chegar onde queria. Sabia de cor os mais ínfimos obstáculos, todas as pequenas surpresas que a floresta podia apresentar e, contudo, conseguia ver ali algo que jamais fora capaz de ver. Uma miríade de Espíritos, ainda mais ténues do que o seu, flutuavam pelo céu e por entre as árvores. Iruvienne avistou a forma branca e delicada de Mianon, coberta de pontinhos prateados, a voar até à nascente do Enyel. E viu ainda muitos outros rostos conhecidos de sacerdotisas que tinham morrido enquanto ela vivera naquela floresta brumosa, mas não parou para falar com elas. Tinha de avisar Galaduinne do ataque. Não

podia perder tempo. Ergueu-se no ar e deixou-se transportar pelo vento até à janela do quarto da mãe. Sem qualquer dificuldade, atravessou o vidro e entrou no quarto. O fogo ondeava na lareira, espalhando a sua luz bruxuleante pelas paredes, e Galaduinne dormia tranquilamente, guardada por uma forma acobreada, que usava umas calças imateriais que se difundiam no ar. Iruvienne aproximou-se, hesitantemente. Tinha a estranha sensação de que aquela figura... Seria possível?

- Boa noite, Iruvienne - disse a voz de Ogueimion e i o pai virou o rosto para ela, esticando-lhe um dos seus braços transparentes e sorrindo-lhe. - Vem cá, pequena folha travessa. Iruvienne sorriu, como uma criancinha pequena, e atirou-se de encontro ao pai. Estava tão contente. Ogueimion abraçou-a e afagou-lhe os cabelos. Era uma sensação tão estranha! Iruvienne conseguia sentir a ternura das carícias do pai, mas não tinha aquela sensação táctil dos corpos a tocarem-se. Era como se houvesse gestos sem, no entanto, haver.

- É estranho, não é? - perguntou o pai.

Sim - respondeu Iruvienne infantilmente. Mesmo estando limitada àquele contacto irreal não se conseguia separar do pai. De repente, sentia-se completamente desprotegida, como se fosse ainda muito pequena.

- Quando tocamos em alguém com corpo - explicou, calmamente, o pai - para eles é como se fosse o ar, a água, a terra ou até o fogo a tocarem-lhe. Mas para nós, tocar em alguém ou tocarmo-nos entre nós... - Sorriu paternalmente sem, contudo, conseguir evitar um pequeno sorrisinho de sábio. - Bem, nós somos apenas alma, apenas espírito e só conseguimos sentir sentimentos. - Beijou-a na testa e olhou para Galaduinne. - Os sonhos dela têm sido agitados. A Visão assalta-a constantemente, impedindo-me de a tranquilizar. E ela precisa tanto de saber que estás bem. Acho que o melhor é seres tu a falar com ela.

Iruvienne assentiu com a cabeça e, instintivamente, deslizou para o corpo da mãe.

Tudo girava a grande velocidade à sua volta, como imagens confusas de várias memórias misturadas. O ambiente era sempre negro e obscuro, mas havia ligeiras mudanças. Primeiro uma floresta arruinada, depois um campo coberto de cinzas, a seguir uma pesada porta que se fechava, extinguindo qualquer luz que pudesse restar. E a sequência repetia-se continuamente, a uma velocidade estonteante que misturava as imagens numa enorme amálgama difusa. Às vezes, havia pequenas diferenças: a porta não se fechava, a floresta aparecia resplandecente e viçosa. Mas tudo isso era difícil de captar. Iruvienne sentia as imagens quase a colidirem consigo, numa luta violenta, como se a quisessem expulsar daquela Visão de Galaduinne. Tinha de parar a Visão, ou não conseguiria falar com a mãe. Tentou dar um passo em frente, mas não conseguiu. A Visão criara uma espécie de parede que a impedia de avançar, deixando-lhe apenas a triste hipótese de abandonar o corpo da mãe. Mas isso ela não faria. Abstraiu-se das imagens e concentrou-se. Tinha de as expulsar.

Eu sou Iruvienne Nalamin e preciso de falar com Galaduinne. Afastem-se. Deixem-me passar!

A Visão hesitou um segundo e, aproveitando a oportunidade, Iruvienne deu um passo em frente. Imediatamente, as imagens pareceram retroceder e encaixar-se numa nova, como se fossem peças de um puzzle. Tudo estava sereno e, rapidamente, Iruvienne reconheceu Galaduinne sentada na margem da lagoa da gruta, com as pernas viradas para a entrada, os olhos fechados e os dedos mergulhados na lagoa, remexendo as águas. Irùvienne aproximou-se, cuidadosamente, e ajoelhou-se diante dela.

- Mãe... - chamou, como se tivesse medo de a acordar. Galaduinne abriu, rapidamente, os olhos, mas em vez de alegre parecia aflita e triste.

- Iruvienne... Tu... Não pode ser, não o senti.

- Está tudo bem, mãe - disse Iruvienne, abraçando-a.

- Estou viva. O meu corpo está fraco, mas o meu Espírito é tão vigoroso como dantes. - Separou-se da mãe e olhou-a, com um grande sorriso a iluminar-lhe o rosto. - Consegui. Fiz o que Animus me tinha dito que eu podia fazer. Sou Espírito e matéria ao mesmo tempo, e posso separá-los quando quiser.

Galaduinne olhou-a, profundamente. Recuperara a sua calma e sabedoria, e a Senhora da Noite e das Brumas começava a emergir por entre a preocupação materna. Levantou-Lhe a cabeça com uma das mãos esguias e sorriu-lhe.

- Sempre houve em ti uma estrela. - Recolheu a mão e deixou- a repousar no regaço. - Mas diz-me, Iruvienne, o que queres de mim? Tenho a certeza de que não fizeste toda esta viagem só para me mostrares as tuas capacidades.

- De facto, não - concordou Iruvienne, com um pequeno sorriso. - Morgriff prepara um gigantesco ataque às Terras da Luz.

É preciso reunir todas as nossas forças, ou seremos completamente dizimados. E, mesmo assim, não sei o que poderá acontecer. Ele tem tantos Nennalm com ordens para nos matarem a todos... E os Magdul estão ansiosos por um massacre destes. Além disso comigo encerrada dentro de Morniran...

- Aran, Legonon e Isarmia devem estar a chegar para te resgatar.

- Sim, eu sei. Mas achas que eles vão conseguir entrar lá dentro? Aquilo está apinhado de Magdul. E eles jamais vão descobrir a entrada.

- Se aqueles três não conseguirem entrar em Morniran ninguém consegue. Mas fica tranquila. Tenho a certeza de que eles encontrarão uma forma de entrar e te salvar. Em breve estarás em segurança e suficientemente forte para usares o Ceptro contra Morgriff.

- Há ainda mais uma coisa. Enquanto me levavam para Morniran, vi uma fortaleza em ruínas, mesmo depois da fronteira da Floresta Queimada e antes de começarem as montanhas que ocultam o castelo de Morgriff. Podíamos usá-la como base para a nossa defesa. Um confronto que não ultrapassasse as fronteiras da Floresta Queimada seria muitíssimo melhor.

- Sim, tens toda a razão. Aliás, já mandei as primeiras tropas para lá. - Sorriu ao ver a expressão espantada da filha. - Tu não és a única a ter a Visão; também a mim os sonhos me dão indicações do que devo fazer e, tal como tu, eu tento segui-las. O que foi, Iruvienne?

Estás desapontada por não me trazeres nenhuma novidade?

- Suponho que sim - respondeu, com um pequeno encolher de ombros.

- Mas não devias. Fizeste algo que, até agora, ninguém fora capaz de fazer. Devias estar contente e orgulhosa. Além disso, talvez ainda nos possas ajudar. Fazes alguma ideia de quanto tempo dispomos até que Morgriff nos ataque?

- Não sei... Perdi a noção do tempo. Nem sequer sei quanto tempo passou desde que os Nennalm me raptaram.

- Um mês - disse Galaduinne, e havia alguma esperança na sua voz.

- Então penso que já não temos muito tempo. Duas, três semanas no máximo.

- Em menos de uma semana as tropas estarão todas reunidas no forte, prontas para que tu as lideres. Eu não irei. O meu lugar é em Brumívium. Fiz uma escolha e devo aceitá-la totalmente. Se perdermos esta batalha, Iruvienne, o Mundo cairá. Mas eu manterei Brumívium de pé até que todas as forças me abandonem. E, enquanto os Povos Sábios tiverem uma réstia das suas antigas capacidades, Morgriff não entrará nos lugares sagrados. Pelo menos isso posso prometer-te. - Segurou-lhe o rosto com a mão direita. - Estou tão contente por estares aqui, tão viva e bela como sempre!... Para mim, ver-te aqui nos meus sonhos é como se te visse em qualquer outro dia à luz do Sol. Mas, um dia, gostaria de ver o teu Espírito. - Iruvienne sorriu, um pouco atrapalhada. - Agora, é melhor ires. Os meus dias têm sido longos e cansativos, e as noites trazem-me sempre sonhos inquietantes. Mas talvez agora consiga dormir melhor. Vai lá, Iruvienne. E não sejas teimosa. Se Aran e Legonon te mandarem descansar, lembra-te que eles estão apenas a pensar no que é melhor para ti e obedece-lhes, por muito que te custe. Vais precisar de recobrar as forças depressa, para estar pronta para a batalha.

- Eu sei, Galaduinne.

- Então espero não vir a saber que foste uma paciente complicada. E acredita que eu saberei.

Iruvienne sorriu jovialmente, deu-lhe um beijo na testa e abandonou o seu corpo. Galaduinne saiu rapidamente daquela Visão, mas não acordou. Sentiu-se regressar a um estado mais superficial, um estado livre de Visões, e a mergulhar, imediatamente, num sono calmo e profundo.

- Muito bem, Iruvienne - elogiou Ogueimion, vendo-a reaparecer ao seu lado. - Fizeste tudo o que tinha de ser feito. Talvez agora seja melhor preocupares-te com o teu corpo. Não ia gostar nada de te ver sempre ao meu lado. - Ergueu-se da cama e ficou a flutuar a alguns centímetros do chão. - Quanto a mim, vou tranquilizar a tua irmã. - Beijou-a nos cabelos e atravessou a porta do quarto, desaparecendo.

Iruvienne olhou durante algum tempo para o fogo da lareira. Era apenas uma sombra do que fora: pequeno, mirrado e débil, mas ainda inegavelmente irresistível. As chamas contorciam-se freneticamente, parecendo por um lado estarem a continuar a sua dança e, por outro, lutarem para não se apagarem. O Fogo chamava-a, convidava-a a dançar no meio das suas chamas crepitantes. Era um apelo alucinante, difícil de recusar. Iruvienne aproximou o rosto do fogo e as pequenas chamas lamberam-lhe as faces. Era tão bom! Lentamente, deixou-se enlaçar por elas e, sem se aperceber, escorregou para dentro do fogo. As chamas levaram-na de um lado para o outro, rodando-a e fazendo-a seguir os seus movimentos irregulares e serpenteantes. Iruvienne tinha uma leve consciência de que diminuíra de tamanho e que estava tão leve e fina quanto as próprias chamas, mas não se preocupou. Toda ela estava envolvida por aquele calor ardente e pela deliciosa sensação de dançar com o fogo, como se fosse una com ele. Não queria ter de parar. E, a certa altura, também ela se retorcia, para que o fogo não se extinguisse. Mas, inevitavelmente, ele tornou-se cada vez mais fraco, até que, simplesmente, se extinguiu. Iruvienne voltou ao seu tamanho natural e olhou para o quarto, subitamente escuro e frio. Galaduinne dormia tranquilamente, virada para o toucador, com os cabelos a escorregarem-lhe para a cara e as mãos delgadas suavemente pousadas sobre os lençóis. Não tinha mais nada a fazer ali. Chegara a hora de regressar à sua cela em Morniran e preocupar-se com o estado precário da sua matéria.

Atravessou a janela e voou por entre as árvores, vendo as formas translúcidas dos Espíritos a divagarem por entre uma cortina de chuva que o Sol matinal fazia brilhar. Brumívium guardava aquele seu ar frio, sereno e imutável, repleto de mistérios e sabedoria, inabalável até pelas forças mortíferas de Morgriff. Iruvienne saiu da Floresta das Brumas e elevou-se acima das nuvens, ainda escuras e carregadas de chuva. Lá em cima, o céu era de um azul extremamente claro, tão brilhante que o corpo dourado e vermelho de Iruvienne não passava de uma mera anomalia, pouco interessante e sem qualquer tipo de beleza significativa.

Atravessou os céus rapidamente, deixando que o ar lhe cortasse o corpo imaterial, e, por fim, desceu a pique e embrenhou-se na terra, soltando algumas cinzas do solo ainda meio molhado.

Iruvienne tencionava voltar ao seu corpo e forçar-se a comer qualquer coisa para além do pão, mas, quando rasgava a terra no seu voo desenfreado, desembocou numa gigantesca caverna brilhante, completamente cativante. A caverna era recoberta por colossais rochas mineralizadas, que cintilavam no meio da escuridão, e por todo o lado havia estalagmites e estalactites, que se uniam formando pilares, uns mais grossos, outros mais finos, que definiam estranhos compartimentos. Iruvienne flutuou por entre as rochas, descobrindo cavidades ocultas e até outros dois subníveis. No mais inferior, uma grande bacia rochosa recebia a água de um curso de água subterrâneo, criando um enorme lago interior. Havia no ar um frio húmido muito parecido com o de Brumívium e Iruvienne perdeu-se a explorar aquele fantástico lugar que, mesmo escondido naquela terra de medo e dor, irradiava uma paz silenciosa.

Aran, Legonon e Isarmia corriam por entre o sinuoso caminho formado pelas montanhas. O Sol já ia alto, queimando aquela terra já totalmente queimada e ofuscando-lhes os olhos. O ar era frio e cortante, e o vento continuava a fustigar as cinzas, atirando-as de um lado para o outro. Aran tinha o capuz posto e protegia os olhos com uma mão, Isarmia também cortava o ar com um braço estendido, e Legonon seguia como se nada se passasse. Isarmia talvez não tivesse notado a diferença na expressão impenetrável de Legonon, mas Aran não deixara de reparar que as feições do elfo estavam mais suaves e tranquilas, e isso sossegara-o também a ele. Algo de bom devia ter acontecido a Iruvienne.

No fim do dia, quando o Sol se punha novamente num clarão de incêndio, o caminho, até ali mais ou menos recto, curvou para a direita e, subitamente, Isarmia parou. Conhecia aquele lugar. Nunca ali estivera, mas conhecia-o das histórias de Erldin. Era a entrada para Morniran. A entrada que Guindenlin ajudara a construir e que só um iniciado nas artes da feitiçaria poderia abrir.

- O que se passa? - perguntou Aran, olhando-a com alguma antecipação e suspeita.

Isarmia não respondeu. Com movimentos lentos, estendeu o braço esquerdo, de forma a que o bastão ficasse voltado para a montanha, numa posição oblíqua. Sabia o que tinha de fazer. Lembrava- se muito bem de tudo o que Erldin e o avô lhe tinham ensinado.

- Ontertls, amopiro' - pronunciou, claramente, e a pedra negra do bastão começou a brilhar, emitindo uma luz leitosa -, urr osst anchiam aisec

A montanha estremeceu, provocando um pequeno dilúvio de cinzas e, enquanto Aran e Legonon se aproximavam, as portas de Morniran tornaram-se visíveis. Pachorrentamente, como se estivessem demasiado cansadas e velhas para se moverem, as portas abriram-se, deixando-os passar. Isarmia entrou, sem um momento de hesitação, mas Aran e Legonon não estavam tão confiantes. Aran desembainhou a espada, Legonon ajustou uma flecha à corda, e só depois seguiram Isarmia. Quando as portas se fecharam totalmente, e eles já caminhavam pelo corredor, as luzes dos archotes apagaram-se subitamente, abandunando-os numa completa escuridão.

- Morgriff deve ter-se preparado para uma entrada destas - disse Aran por entre dentes, agarrando melhor o cabo da espada

 

' Abre-te, montanha para nós teus antigos mestres.

 

e pondo-se em posição de ataque.

Legonon estirou, lentamente, a corda do arco e olhou desconfiadamente à sua volta. Conseguia ouvir uma respiração profunda e o som de passos pesados a aproximarem-se, tentando caminhar silenciosamente. Isarmia levantou o bastão.

- Luit' - ordenou.

Os archotes reacenderam-se, dando-Lhes um pequeno vislumbre do corredor, mas não demoraram mais de um segundo a reapagarem-se. No entanto, foi o suficiente para Legonon franzir as sobrancelhas e ficar ainda mais atento. Não conseguira ver bem, mas o que vira não o tranquilizara.

- Luit- disse novamente Isarmia, batendo com o bastão no chão.

As luzes tremeluziram nos archotes e aguentaram-se durante alguns segundos, os suficientes para que todos eles vissem uma forma colossal a aproximar-se. Aran ajeitou a espada, de forma a poder arremessá-la contra o coração da criatura. Legonon ajustou outra flecha à corda e ergueu o arco, pronto a disparar duas setas certeiras ao pescoço do monstro.

- O que estão a fazer? - perguntou Isarmia, visivelmente furiosa. - Enlouqueceram? - Legonon e Aran fitaram-na na escuridão, sem perceberem. - Aquilo é um Sentinela: uma criatura que nós criámos há milhões de anos atrás. Eu tinha a certeza que encontraria um aqui. Este é, provavelmente, o único vivo, e vocês querem matá-lo?

- Parece-me que a situação o exige - respondeu Legonon e não deixava de haver um certo sarcasmo na sua voz.

- Idiota - atirou Isarmia. - Ele não é mais perigoso do que um dos teus cães.

 

' Luz.

 

- Que sugeres então que se faça? - perguntou Aran, começando a perder a paciência. - A mim parece-me que ele é tudo menos inofensivo.

- A intenção é exactamente essa. Mas, no fundo, ele é completamente afável. Não se preocupem. Eu falo com ele. Estou certa que reconhecerá a voz de uma feiticeira.

Aran e Legonon guardaram as armas e esperaram pacientemente atrás de Isarmia. O Sentinela estava agora tão perto que eles podiam sentir o seu bafo rouco a afastar-lhes os cabelos das caras. Os passos pararam e, então, tudo se passou extremamente depressa. Ao mesmo tempo que os archotes se reacendiam, o Sentinela ergueu uma catana tosca, proporcional ao seu tamanho descomunal e pronta a ceifá-los, e Isarmia levantou o bastão.

- Pára - disse ela como se estivesse, de facto, a falar com um cãozinho, mas o Sentinela continuava com o braço levantado, preparado para os matar. - Nós não somos o inimigo. Não estamos aqui para magoar ninguém. Só viemos buscar uma amiga nossa.

O Sentinela soltou um rugido abafado e a catana desceu perigosamente em direcção a Isarmia. Legonon fez um movimento rápido para apanhar uma seta, mas Isarmia levantou o bastão, fazendo-o chocar com a catana e parando-a. Por isso, o elfo deixou as setas na aljava e continuou a observar.

- Ouve-me, por favor - pediu Isarmia, fazendo um grande esforço para impedir o avanço da catana. - Eu sou uma feiticeira.

E, estranhamente, o Sentinela desistiu de a matar. Com movimentos pouco ágeis, afastou a catana do bastão, que tinha agora um pequeno corte na madeira branca, baixou o braço e acocorou-se em frente a Isarmia. Só então eles perceberam bem a sua fisionomia. O seu corpo humanóide, totalmente musculado, tinha uma cor castanha, levemente rosada, onde sobressaíam umas unhas grossas e amareladas. Algumas zonas estavam cobertas por pêlos escuros, mais ou menos espessos, que, contudo, não conseguiam esconder a sua nudez. E a cabeça, esquisitamente deslocada no meio daquele conjunto, assemelhava-se a uma caveira de carneiro, com uns lindíssimos cornos recurvos, onde ainda restavam dois olhos escuros e esbugalhados, que raramente se moviam.

- Estás tão diferente do que é suposto seres... - disse Isarmia, afagando-Lhe a cabeça. - Perdeste a noção do certo e do errado, do bem e do mal. Temos de tratar disso.

Aproximou o bastão da enorme cara do Sentinela e murmurou pausada e cuidadosamente umas palavras mágicas. Enquanto Isarmia falava, a pedra iluminou-se e ele viu o seu rosto reflectido na superfície polida da pedra negra. Por um segundo, os seus olhos ficaram azuis-escuros e pequenas luzes brancas brilhavam neles. Depois, voltaram à sua cor negra. Isarmia sorriu.

- Agora, leva-me até às masmorras. O Sentinela levantou-se e, num caminhar arrastado, avançou ao longo do corredor. Legonon, Aran e Isarmia seguiram-no.

 

                   O ULTIMO REDUTO

- Mentiroso - disse uma voz profunda e cheia que, apesar de muito fraca, ecoou pelas paredes da caverna.

Iruvienne estacou o seu voo deslizante por entre as reentrâncias da caverna e, por um milésimo de segundo, ficou confusa, sem perceber o que se estava a passar, sem ter sequer a certeza se ouvira alguma coisa ou se simplesmente imaginara. E, então, a voz de Legonon encheu-a e o seu Espírito foi sugado para o interior do seu corpo.

Estremeceu ligeiramente, como se acabasse de acordar de um longo sonho hipnotizante. O seu corpo estava quente por dentro, mas gelado por fora, e parecia-lhe impossível que conseguisse voltar a mexer-se. Abrir os olhos era impensável, seria demasiado cansativo. Os seus dedos continuavam enterrados na terra, e havia ainda um ligeiro e persistente formigueiro a acariciar-lhes as pontas. Lentamente, sem grande vontade, soltou a mão da terra e deixou-a cair ao lado da cara. Havia um cheiro a comida fresca perto de si. Provavelmente, Rasptar já lhe mudara o prato, mas Iruvienne era incapaz de fazer qualquer movimento. As forças pareciam tê-la abandonado definitivamente.

- Mentiroso - repetiu Legonon numa voz forte e irada, e Iruvienne ouviu a terra da parede do corredor a ser esgravatada e a precipitar-se para o chão.

- Já te disse que ela está morta - disse a voz fria e cruel de Rasptar, com uma calma e um deleite insuportáveis. - Morreu assim que eu a atirei lá para dentro.

Iruvienne ouviu Rasptar a ser ainda mais comprimido contra a parede e, de repente, Legonon soltou um pequeno gemido de dor. Imediatamente, um som de passos apressados a fugirem afastou-se pelo corredor. Ouviu-se o ligeiro retinir do metal a ser desembainhado e alguém correu no encalço do fugitivo.

A fechadura foi forçada e a porta da minúscula cela abriu-se com estrondo. Mesmo com os olhos fechados, Iruvienne sentiu a luz a irromper por todos os cantos da sua prisão. Alguém se deteve a meio da entrada, tapando um pouco a luz, e Iruvienne ousou abrir debilmente os olhos. Aran estava parado na ombreira da porta, a menos de dois passos dela, ainda com a espada na mão direita e uma expressão de tristeza, preocupação e ódio a desfigurar-lhe o rosto. Por trás dele, Isarmia segurava um archote que revelava a sua completa incredulidade perante toda a situação. Iruvienne entreabriu a boca. Queria tranquilizá-los, dizer-lhes que não estava tão mal quanto parecia. E, só então, se apercebeu de como a sua boca estava seca e amarga.

- Não fales, pequenina - aconselhou Aran, ajoelhando-se ao seu lado e erguendo-a, como se ela não fosse mais pesada do que uma folha.

Iruvienne encostou a cabeça ao peito do amigo, agarrou-lhe frouxamente as roupas e voltou a fechar os olhos. Era tão bom senti-lo ali, a protegê-la. Aran não deixaria que nada de mal lhe acontecesse. Ia correr tudo bem. Estava segura.

Aran saiu da cela e, com Iruvienne deitada no seu colo, seguiu Isarmia ao longo do corredor. Ainda não tinham avançado muito quando ouviram passos rápidos a descerem as escadas e a aproximarem-se deles. Aran e Isarmia estacaram, trocaram um olhar rápido e ficaram os dois à espera, com os olhos fixos no fundo do corredor. Iruvienne também se apercebeu dos passos, mas estava demasiado exausta, tão perto da inconsciência que já não conseguia confiar nos seus sentidos. Lentamente, os contornos de um vulto alto e esguio recortaram-se na escuridão e Legonon surgiu do meio das sombras.

- Estás bem? - perguntou Aran.

- Estou - respondeu, amargamente, o elfo. - Isto não passa de um arranhão insignificante.

Aran não perguntou mais nada. Sabia muito bem o que acontecera a Rasptar. E se não tivesse sido Legonon a fazê-lo, teria sido ele.

O elfo olhou ternamente para Iruvienne e, com um gesto suave e delicado, afastou-lhe os cabelos do rosto pálido. Ela estremeceu, reconhecendo-o, e soltou o ar devagar, como se estivesse a esvaziar-se, definitivamente, de todo o medo e tristeza. Cuidadosamente, Aran passou-a para o colo de Legonon e foi buscar o archote que Isarmia segurava. Iruvienne sentiu o cheiro de Legonon a envolvê-la, os cabelos dele a roçarem-lhe a cara em pequenos gestos deliciosos, a suave carícia de um beijo doce pousado na sua testa, e, pela primeira vez em muitos dias, caiu num sono profundo, livre de preocupações e sonhos confusos e aterradores.

Seguida de perto por Aran, Legonon e o Sentinela, Isarmia percorreu o longo corredor e, aproximando-se da entrada de Morniran, repetiu os mesmos gestos e palavras que usara antes para abrir as portas. Lentamente, as portas chocaram uma com a outra, obrigando a montanha a uma espécie de sacudidela, e começaram a arrastar a terra, abrindo-se. Aran, Legonon e Isarmia apressaram-se a sair para a noite, parcamente iluminada por uma Lua encoberta por nuvens altas, mas foram retidos por um gemido triste do Sentinela, parado no limiar da porta, parecendo completamente vulnerável. Isarmia voltou para trás e parou diante do Sentinela. A enorme criatura ajoelhou-se, pesadamente, à frente dela e, baixando a cabeça, soltou outro daqueles gemidos de animal ferido.

- Tens de ficar aqui - disse a feiticeira, acariciando-Lhe a cabeça ossuda. - Preciso que fiques aqui e não deixes que ninguém saia. Retém-nos o mais que puderes. Consegues fazer isso? - O Sentinela emitiu um som rouco, indicando que faria como ela pedia, mas havia na sua postura um certo ar triste e desapontado. - Muito bem. - Isarmia fez-lhe outra festa atrás da cabeça e afastou-se. - Vamos, volta para dentro - encorajou ela, como se se dirigisse a uma criança pequena. - Deixa as portas fecharem-se.

O Sentinela levantou-se, com alguma dificuldade, olhou-a durante algum tempo e, erguendo novamente a catana, entrou no longo corredor. Imediatamente, com uma rapidez estranha e precipitada, as portas fecharam-se, num estrondo que ecoou na noite. As cinzas tremeram e derraparam pela encosta da montanha, encobrindo, uma vez mais, as portas.

- Vamos embora - disse Aran quando, finalmente, o som se extinguiu. - Morgriff não vai demorar muito a descobrir o que se passou e, em breve, teremos uma patrulha de Magdul no nosso encalço. Temos de chegar ao túnel dos Anões o mais rápido possível.

- Vamos então - concordou Legonon, segurando melhor em Iruvienne.

E, num passo rápido, afastaram-se pelo caminho formado pelas montanhas. Isarmia ficou ainda algum tempo a fitar a montanha. Todo aquele lugar tresandava a magia mal usada.

Pensou no Sentinela, tão indefeso apesar da sua gigantesca estatura, a ter de lutar sozinho contra todas as tenebrosas criaturas que podiam ser fabricadas ali dentro. Não o voltaria a ver. Ele tombaria a tentar cumprir o que ela lhe mandara fazer. Mais uma morte de que só os Feiticeiros seriam culpados. Agarrou o bastão com mais força, como que para restaurar a sua confiança, e correu para se juntar aos dois companheiros.

Quando o dia começava a nascer e já estavam muito perto da montanha em que Balein os esperava, Legonon parou abruptamente e Aran aproximou-se dele, cuidadosa e silenciosamente.

- Vem aí uma patrulha a cavalo - murmurou Legonon virando-se para Aran. - Seis, sete cavalos. Não mais.

Aran assentiu com a cabeça e olhou à sua volta. Não havia grande espaço para uma luta e, além disso, um deles tinha de segurar Iruvienne. Numa luta corpo a corpo talvez conseguissem vencer, mas contra cavaleiros, provavelmente bem armados, seria extremamente complicado. À frente deles, o caminho curvava ligeiramente para a esquerda, o que talvez lhes permitisse fazer uma emboscada. O melhor era matarem tantos quantos pudessem antes de eles se aproximarem o suficiente para os combater.

- Leva Iruvienne contigo e escolhe um lugar de onde os possas atingir com as tuas flechas - disse a Legonon. - Se puderes, mata-os a todos. Se não conseguires, eu e Isarmia estaremos à espera deles. A partir daí, tu preocupas-te apenas em proteger Iruvienne. E se vires que nós não temos hipóteses foges com ela assim que te surgir uma oportunidade.

Legonon anuiu com a cabeça e foi, rapidamente, escolher a sua posição. Aran explicou o plano a Isarmia e os dois colocaram-se no meio do caminho, ele com a espada erguida, e ela com o bastão apontado para a frente. Legonon pousou delicadamente Iruvienne, deu- lhe um beijo na face e armou o arco.

O trotar dos cavalos era cada vez mais audível e finalmente, quatro figuras elegantes e altas, cobertas por capas negras com um capuz que lhes escondia o rosto, dobraram a curva, montadas em esbeltos corcéis. Três deles seguravam as rédeas de três cavalos sem cavaleiro. Aparentemente, nenhum deles vinha armado.

- Não atire, príncipe Legonon - disse o que vinha à frente, erguendo uma mão em sinal de paz e imobilizando o cavalo.

Legonon susteve a seta, mas não baixou o arco. E, então o cavaleiro tirou o capuz.

- lelahad! - admirou-se Aran, e o elfo sorriu.

- Exactamente. Galaduinne recomendou-me que vos procurasse para estes lados e vos levasse rapidamente para o forte.

- Para o forte? - perguntou Legonon, aproximando-se com Iruvienne nos braços.

lelahad não lhe respondeu. Os seus olhos estavam fixos no corpo adormecido de Iruvienne, e foi Isarmia quem acabou por lhe responder.

- Deve ser a antiga casa do meu povo - disse ela. – Estou correcta, Senhor?

- Provavelmente - respondeu Lelahad com os olhos ainda presos na figura enfraquecida da sua Rainha -, mas não posso ter a certeza. Galaduinne não se demorou a dar-me explicações. Não havia tempo para isso. - Olhou para Isarmia. - Talvez me possa esclarecer quando lá chegarmos e a Rainha Iruvienne estiver em segurança. Parece-me que se passou muita coisa que eu desconheço desde que a Rainha Iruvienne, o príncipe Legonon e O Senhor Aran partiram de Omnirion. Mas tudo isso tem de ficar para outra altura. Agora, é melhor irmos. Temo que em breve estejam à vossa procura.

- Tens razão - concordou Aran -, é melhor apressarmo-nos.

Quanto tempo é que achas que vamos demorar a chegar a esse forte, Lelahad?

- Cerca de dois dias.

- Muito bem. Tenho de avisar o filho mais novo de Mestre Dwarler do que se está a passar e depois vou ter convosco.

Levo um dos cavalos comigo e, se não vos apanhar no caminho encontramo-nos no forte. Diz-me só onde é que ele fica.

- Segue sempre este caminho - explicou lelahad - e quando saíres do meio das montanhas, olha para a tua direita. O forte é bastante visível, mesmo estando praticamente em ruínas.

Aran assentiu com a cabeça, agarrou as rédeas do cavalo que outro dos elfos lhe estendia e montou.

- Toma bem conta de Iruvienne, Legonon - disse ele.

- Até breve.

E partiu a galope. Isarmia montou com alguma dificuldade o grande cavalo que um dos elfos lhe trouxe, e demorou ainda algum tempo a conseguir equilibrar-se na sela. Legonon deixou que lelahad segurasse Iruvienne e, com movimentos ágeis, subiu para o cavalo que estava livre. Cuidadosamente, lelahad ajudou-o a sentar Iruvienne à sua frente, virada de lado, de forma a que ela pudesse repousar a cabeça no seu peito, e estendeu-lhe um cantil com uma bebida nutritiva. Legonon espalhou um pouco pelos lábios de Iruvienne e deixou que a pele absorvesse o líquido. Repetiu o gesto três vezes e, por fim, entregou o cantil a Lelahad.

O elfo puxou o capuz novamente para a cabeça e montou no seu próprio cavalo. Sem uma palavra, o grupo partiu para Oeste, em direcção ao forte abandonado, onde a batalha estava a ser preparada.

Nos primeiros dias, Iruvienne praticamente só dormiu.

Namali esfregava-lhe o corpo com loções hidratantes, ao mesmo tempo que o mexia, para exercitar os músculos. E, quando Iruvienne conseguia ficar acordada durante alguns minutos, obrigava-a a ingerir pequenos bocados de carne, pão e fruta. Legonon retirara da mochila uma caixinha de madeira onde estavam cuidadosamente guardadas umas folhas verde-escuras, cobertas na página inferior por uma espécie de pelinho branco. Com a ajuda de Namali, tinha-as triturado até lhes extrair o líquido, ao qual adicionara algumas gotas de essência de artemísia, de forma a criar uma bebida de sabor suave e calmante. E, naqueles momentos em que Iruvienne despertava para logo a seguir recair num sono profundo, o elfo mantinha-a acordada com palavras doces, ao mesmo tempo que a fazia engolir a infusão. Por vezes, Aran ajudava-os, mas tinha pouco tempo para isso. lelahad pedira-lhe para ele organizar as tropas enquanto Iruvienne não o pudesse fazer, e isso ocupava-o quase todo o dia e toda a noite. Os Elfos e as Fadas sentiam-se incomodados pelo silêncio apático daquela terra e olhavam ansiosamente para a tenda de Iruvienne, sem saberem o que esperar. Aran tentava tranquilizá-los, mas alguns mal o conheciam e não conseguiam aceitar, facilmente, a palavra de um humano; e os outros viam-no quase tão inseguro quanto eles próprios. Tudo o que podiam fazer era ter esperança e aguardar que algo acontecesse. Até lá, faziam-se flechas, limpavam-se e afiavam-se as armas, preparavam-se curativos e infusões, que poderiam vir a ser precisos, e erguiam-se mais tendas à medida que as tropas chegavam.

O velho forte estava apinhado de Elfos, Fadas e até alguns Gnomos. Parecia que só os Duendes, as crianças e algumas mulheres não tinham respondido ao chamamento de Galaduinne. As sacerdotisas guerreiras estavam todas ali e tinham trazido consigo muitas das sacerdotisas que sabiam mais sobre plantas e que, claro, eram lideradas por Namali. Isarmia tinha alguns conhecimentos sobre as propriedades das plantas curativas e, por isso, juntara-se às sacerdotisas. No interior do forte, junto às muralhas, havia umas casinhas de pedra, já bastante arruinadas pelo tempo, mas que serviam perfeitamente para guardar as plantas e montar umas mesas de trabalho para preparar os medicamentos. E, com a ajuda de alguns feitiços de Isarmia, tinham-nas tornado suficientemente seguras para poderem alojar umas camas onde deitariam os feridos e os tratariam. A torre de menagem do forte estava completamente degradada. O tecto caíra, arrastando consigo algumas das pedras que formavam os compartimentos superiores e todo o seu interior parecia demasiado devastado e perigoso para poder ser habitado. Por isso, grande parte do terreiro fora ocupada por gigantescas tendas, nas quais as tropas eram alojadas.

Quando o último grupo de guerreiros chegou, um gnomo de ar austero e ligeiramente carrancudo informou prontamente Aran de que o exército era constituído por sete mil seiscentos e um elementos, sem contar com a Rainha Iruvienne e as sacerdotisas curandeiras. Aran agradeceu ao gnomo, ainda admirado com a rapidez de cálculo dele, e olhou à sua volta. Por todo o acampamento havia estandartes onde ondulavam as bandeiras de Caladmiron e Brumívium, as espadas ou adagas pendiam dos cintos de todos os guerreiros e guerreiras, junto das várias tendas havia aljavas repletas de flechas e, um pouco por todo o lado, ardiam fogos em braseiros altos. Aran subiu uma das escadinhas de degraus arredondados pelo tempo, que davam acesso ao largo adarve, e olhou para as montanhas que encobriam Morniran. Estava tudo calmo, as actividades de Morgriffpareciam adormecidas e quase se podia julgar que não haveria guerra. Mas Aran sabia que não seria assim. Aquilo não passava de uma paz aparente. Lelahad dissera-lhe que Galaduinne fora informada por Iruvienne de que um exército de Nennalm estava a ser feito para os atacar e, embora nenhum deles conseguisse ter a certeza de como Iruvienne conseguira falar com Galaduinne, ambos confiavam nelas. A guerra chegaria até eles, brutal e decisiva.

E, então, numa manhã como todas as outras, Iruvienne acordou.

A exaustão do corpo debilitado e o cansaço tinham-na mergulhado no mais profundo de si mesma, levando-a para sonos sem sonhos, onde tudo era escuro e monótono, mas extremamente repousante. E, lentamente, ela deixara a escuridão abraçá-la, envolvendo-a no seu manto aconchegante. Esteve assim quase uma semana, divagando por entre os recantos daquela espécie de vazio, os olhos demasiado pesados para os conseguir abrir. De vez em quando, tinha uma leve noção da presença de Legonon ao seu lado e retinha-se um pouco mais num estado de semi-consciência, mas aquele vazio ainda a chamava e ela voltava sempre a cair nele, deixando que a fadiga do corpo e da mente se esvaísse. E, por fim, acordou, tão simplesmente como se se tivesse deitado no dia anterior e estivesse apenas a levantar-se de manhã. Sentiu-se a despertar, rodou a cabeça, sobre a almofada, para a direita e abriu os olhos devagar. Legonon estava debruçado sobre ela, os olhos azul-escuros, ligeiramente arroxeados, a brilharem intensamente e o rosto aberto num sorriso terno e acolhedor.

- Bom dia - disse ele na sua voz profunda, como se, de facto, tivessem acabado de acordar numa qualquer manhã, sem que nada de especial se tivesse passado ou fosse passar.

- Bom dia - respondeu Iruvienne, sorrindo e fazendo tenção de se levantar.

- Com calma - aconselhou Legonon, agarrando-Lhe os ombros com um braço e obrigando-a a erguer o tronco devagar.

- Estiveste muito tempo a dormir e, embora o teu corpo esteja reabilitado, tens de começar lentamente, ou não poderás combater na batalha.

- Eu sei - concordou Iruvienne, experimentando mexer as pernas e olhando à sua volta.

A tenda, feita de um tecido branco, leve e resistente, era suficientemente grande para ser agradável e cómoda e, contudo, toda a decoração era simples e prática. A sua cama não era mais do que um grande conjunto de almofadas, lençóis e mantas, cuidadosamente distribuídas. Perto da abertura da tenda, havia um pequeno monte de almofadas em tons de verde e vermelho, dispostas de forma a que ela se pudesse sentar confortavelmente. A única mobília era uma mesinha rectangular, estreita e baixa, onde estavam pousados quatro frasquinhos, com líquidos de várias cores, um copo alto, onde ainda se viam os restos de uma bebida esverdeada, e alguma comida. Junto à sua cama, estava encostado um saco grande, provavelmente cheio com roupa sua, o cinto onde estava presa Fucolem, resguardada dentro da sua bainha, e as suas botas castanhas com atacadores atrás.

Iruvienne atirou o lençol e a manta que a cobriam para trás e, apoiando-se numa mão de Legonon, levantou-se. Ao início as suas pernas tremeram um pouco, mas ela estava segura de que não cairia e, lentamente, com passos ainda hesitantes e inseguros, avançou até ao saco. Desapertou os cordões que o fechavam, vasculhou um pouco as roupas que estavam lá dentro e acabou por tirar umas calças de um castanho-dourado e uma túnica da mesma cor, onde tinham sido bordadas discretas e elegantes linhas vermelhas. Tirou a camisa de noite, vestiu as roupas e calçou as botas. Voltou a procurar dentro do saco e, por fim, encontrou um pequeno pente de madeira com que, pacientemente, desenriçou os cabelos. Legonon observava-a atentamente, pronto para a obrigar a deitar-se se ela se desequilibrasse ou parecesse ainda demasiado fraca para estar de pé. Mas a verdade é que Iruvienne se movimentava com a mesma agilidade e segurança de sempre. Aparentemente, ela recuperara as forças.

- Não te preocupes - disse Iruvienne, guardando o pente e virando-se para ele. - Eu sei que ainda tenho de ter cuidado e podes estar certo de que não vou exagerar. Mas agora há certas coisas que tenho de fazer. Estamos a preparar uma guerra e eu tenho responsabilidades para com o meu povo que não posso esquecer. Além disso, quero ter uma palavra a dizer sobre a estratégia que vamos usar. Portanto, preciso de estudar o forte e o terreno que nos rodeia, para depois me reunir com os vários capitães. Sabes onde está Aran?

- Não - respondeu Legonon, numa voz muito baixa, e puxou-a para si.

Rodeou-lhe a cintura com o braço direito, estreitando-a ainda mais contra si, e com a mão esquerda afastou-Lhe dois cabelos rebeldes que tinham escorregado para a testa. Iruvienne fechou os olhos e esperou ansiosamente. O seu corpo era percorrido por um frenesim estranho e aconchegante, tão expectante quanto ela. Legonon fechou também os olhos, aproximou o seu rosto do dela, parou um instante, sentindo-o já muito próximo do seu, e, calmamente, beijou-a. Iruvienne deixou-se estar assim algum tempo, sem pensar, alienada do Mundo e das suas responsabilidades, mas, por fim, obrigou-se a afastar-se de Legonon.

- Tenho de ir - disse num sussurro quase inaudível, tentando prolongar um pouco mais a suavidade daquele momento.

Legonon assentiu com a cabeça e largou-a, deixando-a afastar-se. Iruvienne apertou o cinto onde Fucolem estava presa e ia arredar a cortina que tapava a entrada da tenda quando Aran a abriu.

- Pequenina! - admirou-se Aran que vinha a olhar para o chão e quase chocara com ela.

Iruvienne sorriu, jovialmente, e abraçou-o, mas Aran embora ostentasse um dos seus sorrisos torcidos, afastou-a.

- O que fazes com Fucolem à cinta? - perguntou, com uma certa preocupação na voz. - Estou contente por estares bem, mas não devias começar já a cansares-te.

- Pois não - disse Namali, entrando na tenda. - Mas tu és exactamente como a tua mãe. Nunca ouves nada do que te dizem.

- Isso não é verdade - replicou Iruvienne, sem conseguir evitar que um grande sorriso Lhe iluminasse o rosto. Estava tão contente de os ver ali! - Mas explica-me, Namali, como é que te encontro aqui?

Namali encolheu os ombros como se já fosse natural aparecer em lugares onde não era suposto estar.

- Eu vim para cuidar de todos aqueles que ficarem doentes ou feridos - explicou a elfo. - E, claro, para tratar de ti. Galaduinne não deixaria que mais ninguém o fizesse, e ambas sabíamos que estarias demasiado mal para que Aran te conseguisse curar.

- Estou contente por te ter aqui, Namali - disse Iruvienne.

- E eu ficaria muito contente se tu me obedecesses. Mas já sei que isso não vai acontecer. Vais querer encarregar-te de tudo o que é preciso fazer, mesmo daquilo que outros podem fazer, e vais esquecer-te de descansar.

- Hum... talvez. Mas desconfio que, se o fizer, tu, Aran e Legonon vão obrigar-me a relembrar essa parte. - Sorriu e soltou uma pequena risada abafada. - Prometi à minha mãe que seria uma boa paciente e vou sê-lo, Namali. Quero estar plenamente restabelecida para combater e sei que, para isso, vou ter de fazer menos do que gostaria. No entanto, não posso ignorar alguns dos meus deveres. E, agora, por muito que fiques aborrecida comigo, vou ter de tratar de alguns. Podes vir comigo e vigiar-me, se quiseres.

- Não - respondeu Namali, com a sua alegria habitual. Acho que não é preciso. Tenho a certeza de que Legonon e Aran se encarregarão de fazer isso por mim. Eu tenho de preparar alguns unguentos e infusões. - Virou-se para Aran. - Se precisarem de mim, sabem onde me encontrar.

- Claro - disse Aran. - Obrigado.

Namali saiu da tenda e Iruvienne olhou para Aran e Legonon. Lentamente, o seu porte altivo e decidido começava a reaparecer.

- Onde está Isarmia? - perguntou, um pouco admirada por não a ver ali.

- Deve estar numa das casinhas, junto às muralhas, a ajudar as sacerdotisas que estão a preparar os remédios - respondeu Legonon.

- Então passamos por lá a buscá-la. Vamos - disse ela, e embora a sua voz fosse suave havia nela um certo tom inflexível.

- O tempo está a passar depressa e há ainda muito a fazer. Aran assentiu com a cabeça e os três saíram da tenda.

A noite estava fria e calma. O vento corria suavemente, agitando-lhes os cabelos e fazendo o frio embater contra os seus rostos. As cinzas esvoaçavam rente ao solo, como se fossem fumo a emanar da terra. E um nevoeiro ligeiro ensombrava o ar.

Iruvienne estava de pé no adarve, junto às velhas ameias do forte. Aran, Legonon, Isarmia e Lelahad estavam ao seu lado. Galianar não viera. Permanecera em Nieliran e, se eles falhassem, seria de lá que organizaria os derradeiros grupos de resistência, juntamente com Galaduinne. Iruvienne usava umas calças de um tecido aveludado castanho, as suas botas castanhas de apertar atrás, uma camisa vermelha, muito escura, de colarinho alto, levemente arredondado, onde se vislumbravam, bordadas a fio de ouro, delicadas linhas recurvas, uma resistente cota de malha a cobrir a camisa e, por cima, um casaco castanho-avermelhado, quase até aos joelhos, de mangas que abriam ligeiramente. Dentro do casaco, num bolso feito especialmente para ele, estava o Ceptro que, entretanto, Lelahad lhe entregara. Fucolem pendia- lhe da cinta, ainda embainhada, e o gracioso cabo da sua adaga espreitava da borda do cano da bota direita. Alguns Elfos e Fadas usavam couraças que se assemelhavam a grandes folhas douradas, sobrepostas umas às outras, e elegantes elmos que Lhes cingiam as cabeças como se fossem galhos recurvos de uma árvore milenar. Mas a maioria preferira as cotas de malha que lhes permitiam uma maior liberdade de movimentos. Isarmia não usava qualquer tipo de protecção e a única arma que trazia era a adaga que Legonon Lhe dera. Para ela, o bastão era suficiente. Do lado direito de Iruvienne, Aran testava a corda do seu arco olhando para os vários cestos apinhados de setas que tinham sido dispostos ao longo daquela parte do adarve, mais virada para Morniran. Do outro lado de Iruvienne, Legonon segurava firmemente o arco de Lensyn. O seu porte era tão altivo quanto o de Iruvienne, a sua expressão tornara-se outra vez impenetrável, os olhos estavam fixos nas montanhas por onde surgiria o inimigo e todo o seu corpo tinha a aparência de estar pronto a saltar para a batalha.

Naquela primeira linha de defesa, só Iruvienne e Isarmia não tinham arcos. Isarmia porque nem sequer sabia como usar um e Iruvienne porque comandaria a ofensiva. Como sempre, os arqueiros tentariam dizimar o maior número possível de Magdul, antes que eles se pudessem aproximar o suficiente para os atacarem. Por trás deles, ainda em cima do grande adarve, havia uma segunda linha de defesa, constituída por alguns espadachins que defenderiam o forte se as barreiras fossem quebradas e os Nennalm e os Magdul conseguissem passar as muralhas. As tendas tinham sido desmontadas e arrumadas, juntamente com todo o seu recheio, para que o restante exército se pudesse agrupar no terreiro. Quando Iruvienne lhes desse sinal, eles sairiam pelas portadas de trás e organizar-se-iam em frente ao que restasse do exército de Morgriff. Os Gnomos, armados com espadas curtas, constituiriam a primeira linha de ataque. Na segunda linha ficariam a maioria dos Elfos e Fadas, a pé, e todos eles com longas e elegantes espadas ou, por vezes, estranhas armas como a que Liduvine usara, há muitos anos, na outra grande batalha. Cerca de oitocentos cavaleiros formariam a terceira linha de ataque. Eutel, o jovem e destemido capitão de Agnan que liderava o exército concentrado no terreiro, olhava, calmamente, para o céu encoberto daquela noite, como se, subitamente, ele o tivesse inspirado. Dentro dos casebres, nos quais se tinham aberto passagens de modo a que estivessem em comunicação uns com os outros, Namali obrigava-se a preparar ligaduras e poções recusando-se a pensar sequer nos horrores que, em breve, veria. À sua volta, as sacerdotisas tentavam também distrair-se com o trabalho. Cleia estendia e alisava os lençóis por cima dos montes de palha e almofadas que teriam de servir como camas e repetia mentalmente todas as recomendações que Namali lhes fizera nos últimos dias.

Por todo o lado, o ar transbordava de ansiedade e antecipação. Todos sabiam que aquela batalha resultaria em inúmeras perdas e muito sofrimento, mas os anos tinham-se acumulado, arrastando a sombra de Morgriff com eles e impedindo-os de viverem, realmente, em paz. Estavam cansados de lutar. Tudo o que alguma vez tinham feito para acabar com aquela ameaça falhara sempre. Mas agora seria diferente. Para o bem ou para o mal, a história terminaria naquela noite.

Um som de pés a marcharem pesadamente ergueu-se na noite e Iruvienne agarrou o cabo de Fucolem, pronta a ordenar o início do ataque. Mas havia qualquer coisa de errado. Os vultos que ela entrevia por entre o caminho formado pelas montanhas eram pequenos e robustos, e marchavam organizadamente. Não tinham nada da grande e corpulenta estatura dos Magdul, ou do caminhar desequilibrado dos Nennalm. E, à medida que eles se aproximavam, batendo os pés com força de encontro ao solo e levantando pequenas nuvens de cinzas, Iruvienne reconheceu os rostos redondos e barbudos dos Anões. Deviam ser cerca de novecentos, todos bem armados com dois ou três machados de lâmina grossa e enfiados em pesadas armaduras, todas elas intensamente trabalhadas num estilo demasiado forte e rude para o gosto dos Elfos e das Fadas.

- Não atirem - disse Iruvienne e esperou que os Anões se aproximassem da muralha do forte.

Qualquer ajuda era sempre bem-vinda, mas ela não queria arrastar os Anões para os problemas dos da sua espécie. Não podia permitir que Dwarler arriscasse a vida do seu povo só porque a achava simpática.

Os Anões estacaram a alguns metros da muralha e Dwarler deu cinco passos em frente, erguendo, com alguma dificuldade, a cabeça.

- Rainha Iruvienne - disse ele, numa voz forte e roufenha que se prolongou na noite - estamos aqui para ajudar e não aceitamos ser mandados embora. O Balein, que está ali atrás, avisou-me a mim e ao Dwaler do que se ia passar e, como é claro, nós não podíamos ficar de braços cruzados. Por isso, desenferrujámos os machados e as armaduras e cá estamos nós. E não diga que é perigoso porque isto diz-nos respeito a todos e voltar para trás é que não voltamos. Ouviu bem? - perguntou em tom brincalhão. - Não me faça valer da minha idade, hem! Agora diga-nos lá para onde quer que vamos e preparemo-nos para dar a esse senhor uma lição que não o voltará a tirar da imundice daquela fortaleza dele.

Iruvienne olhou durante alguns instantes para o mestre anão. À sua volta, os Elfos e Fadas observavam estupefactos aquela pequena figura, sem saberem muito bem se deviam rir ou admirá-lo. Iruvienne voltou-se para Aran e ele ergueu as sobrancelhas, como quem encolhe os ombros.

- Abram as portas - disse Iruvienne virando-se para os que estavam no terreiro e olhando, novamente, para o exército anão. - Entre, Mestre Dwarler, e seja bem-vindo. A vossa ajuda chega em boa hora.

Desceu uma das escadas e avançou até ao lugar onde Éutel já recebia os Anões. Aparentemente, o jovem capitão não tinha qualquer preconceito contra eles. Rapidamente, explicaram a Dwarler e Dwafer o plano e, depois de discutirem com eles a melhor solução, integraram-nos no meio dos Gnomos. A verdade é que nem os Gnomos, nem os Anões ficaram muito contentes, mas suportar-se-iam. Pelo menos naquela noite. Iruvienne e Éutel trocaram mais algumas impressões sobre a batalha que se aproximava e Iruvienne regressou ao seu lugar.

Tudo continuava silencioso. Não se viam quaisquer formas a avançarem naquela ou em qualquer outra direcção. Mas eles sabiam que o exército de Morniran estava a chegar. O batedor que tinham enviado para vigiar o forte de Morgriff regressara naquela manhã, avisando-os que as portas de Morniran se tinham aberto, despejando um negro exército de Nennalm, Magdul e Trolls, liderados por uma figura disforme que só podia ser o próprio Morgriff. A batalha aconteceria naquela noite, cerca de um mês depois de Iruvienne ter chegado a Morniran. Tal como Morgriff prometera.

Subitamente, Iruvienne começou a cantar num sussurro claro e melodioso, uma antiga música élfica, escrita milhares de anos antes, especialmente para aquela noite.

 

Niod olastussim.

Aler, Lha, Dral, Iad Niod eldiu anel naui onagd et nedlum.

Iod aminerim aiss Yelva Etper ilhi niod dantuarim.

Perissd elvwad, issd lanlwad, issd vhardeld et iss amin Per ely ess ati elarim laniele aess Ondel.

Peressd Onmdelid et ess thyles, Anel naui erberand et etelo, Niod eldiu.

Aler Lha, Dral et Iad Olastussim ess iemoe delina.

Iss dantual endoiel manarim isimner.

 

Ao início, ninguém ousou falar. Limitaram-se a deixar que o significado das palavras daquela canção ancestral, que já todos tinham ouvido, os envolvesse, lembrando-lhes a beleza do Mundo e todas as razões por que se batiam. Não havia ódio na música e também eles não o deviam sentir. E, por fim, os Elfos e as Fadas acompanharam-na. Não o fizeram em Lissanin, mas mesmo assim, a melodia encheu a noite.

 

' Ouçam-nos.

Ar Água, Terra e Fogo Ajudai-nos nesta noite de trevas e escuridão. Nós vivemos na Natureza E por ela nos batemos.

Pelas florestas, as árvores, as montanhas e a vida. Por tudo o que há de belo no Mundo.

Pelos Povos e o Amor

Nesta noite de brumas e esperança, Ajudai-nos.

Ar Água, Terra e Fogo, Ouçam o nosso apelo.

A batalha final vai começar

 

As suas vozes suaves e cheias continuaram a cantar, embora já todos conseguissem ouvir, ao longe, a marcha de ritmo desorganizado e frenético do exército de Morniran.

Pelas montanhas, as montanhas, as montanhas.

Entoavam os Anões, repetidamente, batendo sempre com os pés.

A música continuou, cada vez mais forte e empolgante, deixando-os ao mesmo tempo calmos e cientes da responsabilidade que tinham naquela noite. O destino do Mundo seria decidido ali, provavelmente em poucas horas. Era sempre assim. Todas as grandes questões, pelas quais se passa anos a lutar, acabam sempre por se resolver num espaço de tempo absurdamente pequeno.

Morgriff apareceu por entre as montanhas, seguido por um exército descomunal, do qual eles nem sequer conseguiam ver o fim. Abruptamente, todas as vozes se calaram.

- Iss dantualendoielmanarim isimner- murmurou Iruvienne e, com um movimento rápido, desembainhou Fucolem, erguendo-a no ar.

A lâmina da espada brilhou no meio da escuridão e, por um segundo, Iruvienne contemplou os desenhos que Aran mandara gravar nela. Os arqueiros ajustaram as setas às cordas, retesaram os arcos, escolheram os seus alvos e esperaram as ordens da sua Rainha.

- ATIRAR - ordenou Iruvienne e uma chuva de setas abateu-se sobre os Magdul que formavam a primeira linha de ataque.

Muitos desses Magdul caíram mortos, mas os outros passaram-lhes por cima e continuaram a seguir Morgriff que quando ouvira as setas, erguera o bastão e, facilmente, as afastara. O seu negro alazão parara um momento, mas ele esporeou-o e o cavalo avançou sem hesitar.

- ATIRAR - berrou novamente Iruvienne, baixando a espada, e uma nova chuva de setas caiu sobre as fileiras de Morniran.

Os Magdul cobriam-se com os escudos, tentando proteger-se, mas os Elfos e as Fadas viam bem, mesmo na mais cerrada das noites, e descobriam sempre qualquer espaço no meio da parede de escudos, pelo qual as setas podiam passar e atingi-los. Os Povos Sábios dispararam ainda mais três vezes até que os Magdul ficaram suficientemente próximos para que as suas flechas, engalanadas com penas negras, os conseguissem alcançar. Iruvienne viu, com horror e tristeza, os primeiros Elfos e Fadas a caírem, mas manteve-se firmemente no seu lugar e continuou a comandar a ofensiva. E, à medida que o exército de Morniran se aproximava, eles foram-se apercebendo do gigantesco número de criaturas que Morgriff conseguira criar. Para além da fila que eles atacavam, havia ainda mais três. Uma segunda, composta por todos os Nennalm que Iruvienne vira em Morniran e que se mantinham cabisbaixos e perfeitamente apáticos, uma terceira, onde um número descomunal de Magdul se acotovelava impacientemente, e uma última em que os Trolls seguiam, arrastando as suas maças de madeira e ferro atrás de si:

Quando Morgriff parou em frente ao seu exército e ergueu um braço, fazendo-o imobilizar-se, Iruvienne voltou-se

rapidamente para trás.

- ÉUTEL - chamou. - Avancem.

O som claro e cheio das trompas élficas sobrepôs-se ao silvar das flechas e, ao som das batidas ritmadas dos tambores dos Anões, Éutel avançou com o seu exército para a batalha. Rapidamente, dispuseram-se nas três filas de ataque. O jovem capitão desembainhou a espada e todos o imitaram.

- Esperem o meu sinal - comandou Éutel.

Os Magdul desviaram a sua atenção do cimo das muralhas e dispararam contra eles. Alguns Gnomos, Anões e até Elfos tombaram, mas os outros mantiveram-se firmemente nas suas posições. Por vezes, as setas roçavam-lhes os rostos, abrindo-lhes a pele e fazendo o sangue brotar. E, mesmo assim, eles não se mexiam. Por fim, Morgriff levantou uma mão, gritou qualquer coisa numa língua desconhecida e precipitou a mão em direcção ao chão. Imediatamente, o que restava da primeira fila de Magdul e todos os Nennalm correram na direcção deles. Do cimo das muralhas, Iruvienne continuava a comandar os arqueiros e muitos foram os Nennalm e os Magdul que tombaram no meio da sua correria desenfreada. Éutel ainda retinha a sua espada apontada para o céu, esperando o momento ideal para atacar. Não queria um choque demasiado frontal das tropas. A sua ideia era colher os soldados de Morniran quando eles tentassem penetrar na primeira fila. No meio dos assustados Gnomos, os Anões ferviam de impaciência, agitando os machados nas mãos e soltando pequenos rugidos roufenhos, como se fossem animais enfurecidos que alguém detinha. O metal grosso e rude das armas de Morniran foi erguido no ar e, nos últimos dois metros, os Nennalm correram ainda mais, ultrapassaram os Magdul e atiraram-se loucamente contra os Anões e Gnomos.

- AGORA - berrou Éutel esticando a espada para a frente. - À carga.

Os Anões ergueram os machados e tolheram muitos dos Nennalm quando estes caíam por cima deles. Os Gnomos, contudo, atrapalharam-se com as suas próprias espadas e não foram muito mais do que uma chacina fácil e divertida para os Magdul. Com uma fúria calma, os primeiros Elfos e Fadas avançaram para eles, ergueram as espadas e obrigaram-nos a uma luta mais justa e equilibrada. Os Nennalm continuavam a debater-se com os Anões, tentando chegar até aos Povos Sábios. Balein cravou o machado no peito de um deles e, com um movimento estranhamente ágil para um anão, rodou o braço esquerdo para trás cortando, com a adaga que Iruvienne lhe dera, a garganta de outro. Por entre a escuridão e a imensidão de guerreiros que o rodeavam, conseguiu vislumbrar o olhar aprovador e orgulhoso do irmão. Virou-se e, ainda mais animado com a sua primeira batalha, continuou a combater. Dwafer desviou o olhar da figura robusta do irmão e concentrou-se na batalha. A um metro e meio de si, Dwarler tentava esquivar-se a um enorme Magdul, mas estava demasiado velho e gordo para aquelas lutas. Facilmente, o Magdul atirou-o ao chão, pousou-lhe um pé em cima do peito e debruçou-se sobre ele. Dwarler esbracejou, tentando levantar-se, mas a pesada armadura prendia-o ao chão e ele arquejava sob o seu peso. Ainda atirou o machado contra uma das pernas do Magdul, mas o seu braço estava dormente e o machado escorregou-lhe da mão, limitando-se a cortar uma fatia de carne da perna da criatura. O Magdul lançou um grito de dor para o ar e curvou-se sobre o anão, apertando-lhe o pescoço. Dwarler agarrou os braços dele e, num último esforço, tentou libertar-se. Foi assim que Dwafer o viu e, sem perder tempo, precipitou-se na direcção do pai, atirando machadadas contra as pernas dos inimigos. Enquanto corria, soltou o segundo machado do cinto e, mal se aproximou do Magdul, cortou-lhe as pernas com um gesto largo do machado da mão direita e cravou-lhe o outro nas costas. O Magdul caiu com estrondo sobre Dwarler. Dwafer arrancou o machado das costas da criatura e atirou o corpo mutilado para o lado. Estatelada no chão, a figura rechonchuda de Dwarler jazia com os olhos esbugalhados virados para o céu nocturno. Dwafer caiu de joelhos ao lado do pai e soltou um grande grito que fez parar os que lutavam à sua volta.

- Lutem - berrou. - Lutem pelo Senhor dos Anões que foi morto. E que ninguém se atreva a conspurcar o seu corpo. Ele há-de jazer debaixo da montanha.

Avivados pelo ódio e pela fúria, os Anões atiraram-se contra os seus opositores, ainda com mais força e determinação. Dwafer e Balein, que entretanto se lhe juntara, defenderam o corpo do pai até que quatro fadas, vestidas com as cores de Brumívium, se aproximaram. As fadas abriram as suas asas translúcidas e brilhantes, e levaram o corpo do mestre anão para o interior do forte.

Éutel observava atentamente a batalha, segurando as rédeas do cavalo com uma mão e agarrando a espada com outra. À sua frente, Elfos, Fadas e Anões batiam-se com uma coragem e uma determinação inabaláveis, derrubando aos poucos o inimigo. Mas aqueles dois batalhões de Magdul e Trolls, que esperavam atrás de Morgriff, inquietavam-no. Morgriff continuava a retê-las, sem se preocupar com o número de soldados que estava a perder. O que teria ele em mente? Éutel olhou para o cimo das muralhas.

Iruvienne ordenara aos arqueiros que parassem de disparar e transportassem os feridos e os mortos para as casinhas de pedra, onde as sacerdotisas os esperavam. Mas Éutel podia vê-la a lançar rápidas olhadelas ao resto do exército de Morniran. Também ela estava aflita e, talvez, até impaciente.

Iruvienne desceu rapidamente as escadas e correu até ao casebre onde Namali se encontrava.

- Como estão as coisas por aqui? - perguntou olhando para os Elfos e Fadas que jaziam, no limiar da consciência, deitados sobre as camas improvisadas.

- Tão bem e tão mal quanto seria de esperar - respondeu Namali, afastando uma madeixa de cabelos soltos da cara e debruçando-se sobre o corpo inanimado de uma elfo. - Se tivermos a calma e a atenção necessárias, a maioria vai conseguir sobreviver. Mas alguns não resistirão. Estão demasiado feridos ou fracos para serem salvos. De qualquer forma, faremos o nosso melhor para lhes aliviarmos as dores. - Ergueu, lentamente, o rosto para Iruvienne, e a sua expressão era séria e triste. - Quanto ao mestre Dwarler... era demasiado tarde para o conseguirmos ajudar. Estrangularam-no, Iruvienne. Nem toda a medicina de ambos os Mundos o poderia ter salvo. Estava morto ainda antes de cá chegar. Lamento.

Iruvienne assentiu com a cabeça, lançou um olhar de relance à cama onde repousava o corpo do anão e saiu do casebre. À sua volta, os feridos eram transportados em braços, os mortos estendidos no chão e, só de vez em quando, cobertos com um lençol. Do outro lado da muralha chegavam os sons do metal a chocar e de berros rudes e guerreiros. Iruvienne fechou os olhos, apoiou uma mão contra os blocos de pedra das muralhas e sentiu o frio da noite a gelar-lhe a pele. Não queria pensar, não queria ver.

- Iruvienne - gritou Aran, fazendo-a despertar daquele momento de pausa. - Vamos ser atacados.

Iruvienne galgou os degraus da escada, correu até às ameias e debruçou-se. A batalha alastrara-se por toda aquela planície queimada e a segunda fila de Magdul avançava em direcção ao forte, transportando umas escadas suficientemente longas para alcançarem o topo das muralhas. Atrás deles, os Trolls arrastavam-se pesadamente, atirando as mocas de madeira, cada uma com duas tiras de ferro repletas de enormes picos pontiagudos, contra tudo o que lhes aparecesse à frente. Iam tentar invadir o forte e, se possível, derrubar as muralhas.

- Tentem matá-los - disse Iruvienne, virando-se para os arqueiros. - Não desistam até que todas as setas se tenham esgotado. Depois, usem as adagas e combatam-nos. Se os Trolls se conseguirem aproximar, fujam daqui e avisem as sacerdotisas.

- Olhou para os espadachins. - Vocês dividam-se em dois grupos. Um fica aqui e o outro vem comigo. Vamos atacá-los por trás e fazer tudo para impedir que os Trolls se aproximem. Aran, Legonon, preciso da vossa ajuda. Lelahad, quero que fiques aqui a orientar a defesa. Isarmia...

- Eu fico - cortou a feiticeira. - Tenho assuntos a tratar. Iruvienne anuiu com a cabeça, desembainhou a espada e, seguida por Legonon, Aran e parte dos espadachins, desceu as escadas. O grupo de guerreiros abriu as pesadas portas de metal das traseiras do forte e saiu, fechando-as atrás de si. Rapidamente, a batalha envolveu-os, atirando-os de um lado para o outro e separando- os.

Isarmia esgueirou-se até ao terreiro e aproximou-se da torre de menagem. À luz difusa e sombria daquela noite de guerra, a torre parecia ainda mais destruída e tinha até qualquer coisa de tenebroso. Isarmia deu um pontapé à porta de madeira velha e carcomida pelo tempo, escancarando-a. Pontapeou-a novamente e a porta foi projectada para trás, deixando cair uma tábua já meio solta. Isarmia entrou e, cuidadosamente, subiu as escadas. A torre, mesmo destruída pelo tempo, era enorme e imponente, embora não tão bela como o castelo de gelo que o seu povo construíra nas terras geladas do Norte. Algumas das pedras dos degraus estavam meio soltas e tremiam quando ela as calcava, as paredes pareciam ranger, ameaçando, constantemente, ruir. Mas, mesmo assim, Isarmia continuou, até que, finalmente, chegou ao último andar, completamente exposto ao ar. As paredes de pedra, que faziam a divisão entre os vários compartimentos, ainda eram visíveis, mas de algumas restava muito pouco. Isarmia avançou lentamente, testando as pedras antes de apoiar os pés nelas e tentando não pensar muito na vulnerabilidade daquela estrutura. E, por fim, ficou parada no centro da torre, com os braços abertos, erguidos obliquamente para o céu, e o bastão na mão esquerda.

- Falfer forg'u. Deiurt kont iurz akrrin hantru' - soltou ao ar.

A pedra do bastão brilhou e pequenas fitas de fogo amarelo, enroladas sobre si mesmas, surgiram no ar e abateram-se sobre os Magdul, os Trolls e os Nennalm.

Morgriff viu as suas tropas a serem mortas por aquela espécie de flechas de fogo sobrenatural e olhou, um pouco surpreendido, para cima. Conhecia aquele tipo de coisa, mas era estranho encontrá-la ali. Percorreu o céu com os oLhos e

' Cai, fogo. Mata os que foram criados nas trevas.

 

não demorou muito a descobrir a figura de Isarmia, no cimo da torre, a repetir incessantemente o feitiço. Sorriu. Não esperara voltar a ver alguém do povo dos Feiticeiros. Aquilo era, sem dúvida muito interessante.

Iruvienne também olhara para o céu nocturno, subitamente iluminado por aquelas pequenas serpentes de fogo, mas, rapidamente, tivera de se concentrar na batalha. Os Magdul e os Nennalm surgiam de todos os lados, indiferentes a qualquer ameaça às suas vidas. Os Nennalm tinham as ordens de Morgriff para cumprir e os Magdul estavam apenas interessados em matar e destruir. Iruvienne retirou a adaga da bota, segurou-a na mão esquerda e, com Fucolem em riste na mão direita, tentou abrir caminho por entre os dois exércitos e chegar até aos Trolls. Um Magdul tapou-lhe o caminho, levantou a sua espada tosca e com uma expressão de desdém, precipitou-a contra Iruvienne. Rapidamente, Iruvienne reteve o golpe com a espada e enterrou a adaga no pescoço do Magdul. Ele esbugalhou os olhos, teve um soluço estrangulado e abateu-se sob o seu próprio peso. Iruvienne inclinou- se para a esquerda, desviando-se do golpe de outro Magdul, ao mesmo tempo que lhe cortava a barriga com Fucolem. Caiu sobre a mão esquerda e, com um movimento rápido da perna direita, derrubou outro Magdul. Levantou-se e espetou-lhe a espada no peito. Os Trolls continuavam a aproximar-se das muralhas. Tirou a espada do peito do Magdul morto e continuou a avançar, parando, por vezes, para matar um Nennalm ou um Magdul que se entrepunha no seu caminho. Perto de si, Aran encaminhava-se também para os Trolls, cortando membros e atirando murros à cara dos inimigos.

Legonon rodopiava sobre si mesmo, matando os adversários com uma agilidade impressionante, mas também com uma certa frieza. E, lentamente, os três aproximaram-se uns dos outros.

Aran guardou a faca que estivera a usar e apanhou um estandarte das Terras da Luz que, no meio do fervor da batalha, caíra. O mastro tinha uma ponta de metal aguçado, tal como uma boa lança.

- Legonon - chamou, atirando-lhe o estandarte. - Lança-o ao pescoço daquele Troll que se aproxima da muralha.

O elfo segurou melhor no estandarte e, com um pequeno impulso do corpo, arremessou-o contra o pescoço do Troll cravando-o numa das artérias salientes da criatura. O Troll cambaleou por um momento e caiu desamparado no chão. Por um segundo, os Elfos e as Fadas que estavam perto deles pararam de combater e ficaram a olhar para o Troll morto.

- Procurem setas, arcos e tudo o que possa servir como lança - ordenou Iruvienne. - Vamos enviá-los para a escuridão definitiva. - Virou-se para Legonon e Aran, e a sua voz não era mais do que um leve sussurro. - Se não os conseguirmos deter, eles vão arrasar as muralhas e tudo o que encontrarem pela frente. Não teremos qualquer sítio para nos refugiarmos, nem um lugar seguro para cuidar dos feridos e moribundos. Aconteça o que acontecer o forte tem de ser preservado.

- Não te preocupes - respondeu Aran. - O forte não cairá. Nós certificar-nos-emos disso. E agora vai fazer o que tens a fazer, pequenina. Esta guerra dura há demasiados anos.

Iruvienne fechou os olhos por uma fracção de segundo e sorriu.

- Foi um acaso teres nascido humano - disse ela, ao mesmo tempo que se virava para as suas tropas. - Obedeçam a Aran e Legonon. As ordens deles são as minhas ordens.

E já se afastava quando alguém lhe agarrou o braço retendo-a.

- Tem cuidado, Iruvienne - murmurou-lhe Legonon. - Não tenho o direito de te pedir que não faças o que estás prestes a fazer. Mas, por favor, não abraces a morte se a vida ainda te chamar.

Iruvienne acariciou-lhe a mão com as pontas dos dedos e, sem uma palavra, desapareceu no meio da confusão. Legonon ficou um instante a olhar difusamente para a amálgama de soldados e espadas que se misturavam com a noite e, por fim, também ele se concentrou na batalha.

Os Trolls avançavam no seu passo lento e pesadão, espetando os inimigos nos picos das suas mocas e aproximando-se, inexoravelmente, das muralhas do forte. Mas Iruvienne já praticamente não lhes ligava. O seu pensamento estava fixo no confronto que se seguiria e, sem querer, sentiu o peso da responsabilidade a cair sobre si, mais pesado do que a maça de qualquer Troll. Quase maquinalmente, esquivou-se ao golpe desajeitado de um Nennalm e cortou-lhe o pescoço. Um grande e corpu lento Magdul investiu sobre ela, atirando-a ao chão. Iruvienne caiu sobre o corpo morto do Nennalm, afastou o golpe do Magdul com um movimento rápido e seco da espada, rolou no chão e voltou a erguer-se. A criatura deu uma pequena corrida na sua direcção, mas Iruvienne estava preparada. Esperou por ela com a espada em riste e, desviando-se no último momento, decepou-a.

A uns dois metros de si, um gigantesco e aparvalhado Troll aproximava-se, agitando perigosamente a sua maça. Iruvienne viu a figura pequena e robusta de um anão a aproximar-se do Troll e, com uma coragem extraordinária e estúpida, cravar-lhe o machado no pé esquerdo. O Troll soltou um grande e bruto rugido de dor e, como se o anão fosse um insecto irritante, acertou-lhe com a moca, projectando-o através do ar. O anão aterrou com estrondo, mesmo à beira de Iruvienne.

Tinha a armadura desfeita e estava, sem dúvida, inconsciente. Um dos picos da maça acertara-lhe na couraça, abrindo-Lhe o peito, onde estavam enterrados alguns fragmentos da armadura. O sangue fluía, lentamente, da ferida e a cara rechonchuda do anão estava lívida. Iruvienne deitou uma olhadela ao Troll, que se agarrara ao pé como se fosse um bebé pequeno, aproximou-se do anão e, cuidadosamente, tirou-lhe o elmo. Para seu horror, descobriu o rosto de Balein. Com dedos trémulos, procurou-lhe a carótida. Ainda estava vivo, mas talvez não fosse por muito tempo. Levantou, com bastante dificuldade, o corpo pesado do jovem anão e, com ele nos braços, correu em direcção ao forte. Namali tinha de o salvar. Dwarler morrera; não podia deixar que Balein o seguisse. Esquivou-se aos vários golpes que lhe lançavam

e continuou sempre, sempre a correr.

- Nhar eniossim' - murmurava. - Nhar eniossim.

 

' Não morras.

 

             O SEGREDO DO CEPTRO

Galaduinne estava de pé na entrada de Névila, a cabeça erguida e os olhos bem abertos, como se esperasse ver algo. A sua capa azul-escura de sacerdotisa escondia-a no meio das sombras, misturando-a com a noite. As árvores agitavam-se bruscamente, as brumas deslizavam pelo chão e chovia torrencialmente. O vento forte e veloz salpicava-a com pequenas gotas de chuva e agitava-lhe, furiosamente, a capa. Era uma daquelas noites tempestuosas de sons fortes e encantados que Iruvienne tanto amava.

Junto a Blandulez, no coração de Névila e Brumívium, as sacerdotisas honravam os Elementos e entoavam cânticos à noite para que protegessem os Elfos e as Fadas na batalha daquela noite. Athilya estava com elas, os braços e a cabeça erguidos para o céu, recebendo a chuva na cara e abraçando o frio nocturno com os braços nus. As suas vozes elevavam-se no ar, enchendo a floresta e fazendo com que uma ou outra borboleta da lua surgisse do tronco branco e liso de Blandulez.

Galaduinne conseguia ouvi-las, mas não se lhes juntaria.

Meditara muito nos seus sonhos, principalmente nos mais recentes, e sabia o que tinha a fazer. Estava apenas um pouco receosa. A profecia tinha-lhe sido mostrada há já alguns anos, mas, de certo modo, recusara-se a compreendê-la. Durante muito tempo perdera-se a tentar fazer algo que não lhe competia e, agora que a altura certa se aproximava, os sonhos tinham-se tornado insistentes e era impossível ignorá-los. O seu caminho desviara-se, novamente, do que ela previra e esperara. Mas, desta vez, ela estava pronta para aceitar a mudança. Athilya ficaria triste, sem dúvida, mas acabaria por perceber. A cada dia que passava a sua filha mais nova turnava- se mais mulher, mais sábia e plena. As dúvidas estavam a dissipar- se e, se tudo corresse bem naquela noite, ela encontraria o seu caminho. E Iruvienne há muitos anos que, sem saber, se tornara na rainha e sábia que todos desejavam. Estava tudo pronto, todos os caminhos a avançarem na direcção certa. Só faltava ela. Deu um passo em frente, desceu as escadas da entrada de Névila e embrenhou-se na floresta.

Rapidamente, a chuva encharcou-a, mas Galaduinne continuou a subir até à nascente do Enyel. Gostava daquela sensação. O vestido molhado colara-se-lhe ao corpo, gelando-a lentamente, as brumas embrenhavam-se por entre as suas roupas, o vento atirava-lhe o cabelo para trás, sacudindo-o bruscamente, e os seus pés enterravam-se na terra húmida e fresca. Sentia-se maravilhosamente viva; una com a tempestade e a Natureza. Esticou uma mão, roçou-a pelas folhas pequenas e viçosas de uma velha árvore, e continuou a deslizar por entre aqueles caminhos que se tinham tornado tão familiares e tão queridos.

Um pouco mais à frente, junto aos pedregulhos onde as sacerdotisas se costumavam sentar, um brilhozinho branco-prateado esperava-a. Galaduinne parou a alguns passos da borboleta da lua e inclinou profundamente a cabeça. Aquela era a mesma borboleta que a recebera quando ela regressara a Brumívium. Com a ajuda do vento, a borboleta esvoaçou até ela. Galaduinne esticou o braço direito e estendeu o indicador, onde a borboleta pousou, delicadamente. Com a mão esquerda em concha a proteger a borboleta como se ela fosse a trémula chama de uma vela, Galaduinne aproximou a mão da cara.

- Obrigada por tudo - murmurou. - Adeus!

Deu um pequeno impulso à mão, e a borboleta largou o seu dedo. No entanto, seguiu-a como um tímido rasto de luz até que Galaduinne chegou à entrada da gruta onde se escondia a lagoa que, alguns anos antes, Namali lhe mostrara. A borboleta voou de regresso a Névila e Galaduinne fechou os olhos por um segundo. Fizera a sua escolha. Desapertou a capa, deixou-a cair no chão de relva verde, desceu as escadinhas que davam para o interior da gruta e, sem qualquer hesitação, entrou na lagoa.

As águas geladas da lagoa agitavam-se à sua volta, envolvendo-a nos seus movimentos ondulantes e, lentamente, tal como fizera tantas outras vezes, Galaduinne mergulhou nelas, até ficar completamente submersa. Mais uma vez, acariciou as águas suaves e deslizantes, suspensa algures entre a superfície e o fundo, já sem ter a certeza de onde se encontrava. Muito lá em cima, via o tecto escuro da gruta a ondular ao sabor das águas, enquanto o seu corpo se afundava serenamente. Era quase como se se estivesse a afogar. Mas não queria pensar nisso. Fechou os olhos e foi como se o resto do Mundo desaparecesse. Tudo o que conseguia sentir era os seus dedos a mexerem-se discretamente e a água a percorrê-la numa calma e quietude absolutas.

- Lha... - sussurrou.

- Está tudo bem, Galaduinne - respondeu a Água. - Agora estás pronta. As dúvidas, indecisões e medos acabaram. Esta é a tua última tarefa. Depois, poderás reencontrar-te com Ogueimion. Ele tem estado à tua espera. Vamos, Galaduinne. Flui para mim.

Galaduinne sorriu.

- Há uma parte de mim que não quer partir já - disse ela.

- Que teme abandonar os seus deveres e provocar acontecimentos indesejados.

- Queres saber o que vai acontecer?

- Quero.

- Os tempos mudarão. Mas não é o que acontece sempre?

Não sabes que nada é imutávél, minha pequena Galaduinne?

- perguntou a Água, acariciando-lhe o rosto. - Além disso, independentemente do que acontecer, tu vê-lo-ás sempre, pois os olhos dos Elfos e das Fadas jamais se fecham. Mas, agora, tens de ir. Terminaste o que tinhas de fazer aqui. A tua hora chegou.

Galaduinne sentia a Água a embalá-la, docemente. O seu corpo roçou no fundo rochoso e assentou, suavemente, sobre o limo. Estava quase sem ar. Tinha até uma leve noção de estar a sufocar. Precisava de respirar, mas Galaduinne não voltaria à superfície.

- Galaduinne - chamou, ternamente, a Água. - O tempo acabou.

- Eu sei.

E deixou que a Água entrasse dentro de si, levando-a para o meio das suas delicadas ondulações. Galaduinne escorregou por entre elas durante muito tempo, roçando a terra molhada e as fortes raízes das imponentes árvores de Brumívium, até que, por fim, saiu para o ar e voou em direcção a Iruvienne.

Alguns Magdul tinham conseguido passar as muralhas e abrir as portas traseiras, permitindo que mais soldados de Morniran penetrassem nas defesas do forte, o que transformara o seu interior num segundo campo de batalha. Por todo o lado havia corpos mutilados e rasgados, os moribundos agonizavam, esquecidos pelo chão, e os combates alastravam a uma velocidade incrível. Lelahad organizara um pequeno grupo de defesa aos casebres onde as sacerdotisas cuidavam dos feridos, mas os seus soldados eram continuamente atacados. E muitas das facas de cabo de anuliss das sacerdotisas estavam agora manchadas com o sangue negro dos Magdul. Namali corria de um lado para o outro, tentando acalmar as suas ajudantes e noviças ao mesmo tempo que tratava dos feridos. Lentamente, o caos instalava-se e os Povos Sábios viam a sombra de Morgriff a cobri-los.

Iruvienne correu por entre toda aquela confusão, esquivando-se habilmente aos golpes mais certeiros e sem dar importância aos cortes que lhe rasgavam a roupa e lhe abriam a pele. Todos eles eram superficiais, insignificantes. Nos seus braços, Balein continuava inconsciente, mas o seu abdómen retraía-se constantemente, soltando pequenos dilúvios de sangue que manchavam as mãos e as roupas de Iruvienne. Ele não aguentaria muito mais tempo. Estava a perder demasiado sangue.

- lelahad - berrou Iruvienne, aproximando-se da barreira em frente aos casebres -, deixa-me passar.

Os guerreiros afastaram-se, rapidamente, e Iruvienne entrou numa das casinhas. Deitou o anão na primeira cama vaga que encontrou e, com as mãos a escorrerem sangue, percorreu os casebres, num passo acelerado, tentando descobrir Namali. Não demorou muito a encontrá-la, inclinada sobre uma das sacerdotisas guerreiras, limpando-lhe uma ferida profunda junto ao ombro esquerdo, decerto feita por uma flecha.

- O que se passa, Iruvienne? - perguntou Namali, vendo-a aproximar-se.

- Balein, o filho mais novo do mestre Dwarler, foi gravemente ferido pela maça de um Troll - disse Iruvienne, e a sua voz não era muito mais do que um murmúrio trémulo. Namali ergueu a cabeça, com um certo ar de incredulidade. - Ele está a esvair-se em sangue, Namali. Não o deixes morrer, por favor... por favor.

Namali olhou um segundo para Iruvienne, lavou as mãos numa bacia com água que estava perto de si e limpou-as.

- Aínia, substitui-me - disse ela, afastando-se. - Leva-me até ele, Iruvienne.

Iruvienne conduziu Namali até à cama onde o anão jazia, ainda inconsciente. Namali debruçou-se sobre ele e tacteou-lhe a barriga com os dedos. A sua expressão era serena, mas as suas sobrancelhas loiras estavam ligeiramente franzidas, o que nunca acontecia com Namali.

- Vou precisar de ajuda - concluiu ela. - Tenho de tirar- Lhe a armadura e os fragmentos que entraram na barriga, o que provocará uma hemorragia ainda maior. Depois, a ferida tem de ser limpa e cosida. Mas nada disto nos garante que ele sobreviverá, Iruvienne.

- Eu sei. Peço-te apenas que dês o teu melhor.

- Com isso não precisas de te preocupar - respondeu Namali. - Agora, lava as mãos e volta para a batalha. És precisa lá fora. Nós já não nos aguentamos muito mais.

- Mandarei reforços para ajudar lelahad - garantiu Iruvienne.

Limpou as mãos, secou-as a uma toalha limpa e saiu para o exterior, com Fucolem em riste. Passou a linha de defesa criada por lelahad e, matando todos os inimigos que surgiam à sua frente, saiu do forte e correu até ao lugar onde Aran e Legonon estavam.

- O forte está a ser atacado - disse ao chegar junto deles.

- Os Magdul conseguiram entrar e somos já muito poucos lá dentro. Eles precisam de ajuda.

- Legonon, comanda o ataque aos Trolls - disse Aran, afastando-se com um grupo de guerreiros. - Eu trato do forte.

Iruvienne e Legonon trocaram um olhar rápido e Iruvienne embrenhou-se na batalha, desferindo golpes certeiros e abrindo caminho por entre a multidão de guerreiros. A batalha estendera-se por todo aquele campo incendiado, enchendo a noite de sons bruscos, rugidos furiosos e vozes abafadas e estranguladas. As cinzas estavam empapadas com o sangue de todos os povos que ali combatiam. E o chão fora coberto por um horroroso manto de mortos e mutilados, que definhavam à mercê das patadas desajeitadas e maldosas dos Magdul e dos Trolls, sem que a inconsciência os resgatasse à dor. Se Iruvienne tivesse podido parar e observar bem o cenário que a rodeava, não teria conseguido continuar. Mas, felizmente, o ardor da batalha também entrara dentro de si, impedindo-a de se aperceber totalmente de certas coisas. E, por isso, ela continuou, impelida pelos seus ideais e, talvez, por um outro sentimento mais obscuro de que os Elfos e as Fadas não se orgulhariam.

Foi assim, a avançar destemidamente por entre os dois exércitos, que Morgriff a viu. Calmamente, desceu do seu negro corcel e, com o bastão na mão direita, encaminhou-se para a batalha. Desembainhou a espada e, sem tirar os olhos de Iruvienne, matou indiscriminadamente todos os que lhe apareceram à frente, quer fossem Elfos, Fadas, Anões ou até Magdul e Nennalm. Os exércitos abriram-se, lentamente, para o deixarem passar e, por fim, Morgriff e Iruvienne ficaram frente a frente. Embainharam as espadas e Iruvienne tirou o Ceptro do bolso interior do casaco.

- PAREM - bradou Morgriff e, imediatamente, os Magdul, os Trolls e os Nennalm estacaram.

As Fadas, os Elfos e os Anões guardaram as suas armas e, rapidamente, os dois exércitos estavam concentrados à volta de Iruvienne e Morgriff. Os Nennalm esperavam, com os olhos apáticos fixos no chão, que Morgriff os mandasse combater novamente; os Magdul olhavam maldosamente à sua volta, com os dentes arreganhados, esperando que Morgriff lhes servisse uma deleitante carnificina; e os Trolls inclinavam as costas corcundas e as cabeças para a frente, sem conseguirem perceber o que se passava. Os Anões trocavam olhares interrogativos, também sem perceberem muito bem o que estava prestes a acontecer e qual a sua importância. Dwafer tinha uma vaga ideia do que tudo aquilo podia significar, mas não se perderia a explicar complicadas questões élficas ao seu povo, principalmente a meio de uma batalha que podia recomeçar a qualquer momento. Do cimo da torre, Isarmia observava atentamente Iruvienne e Morgriff. Os seus poderes talvez pudessem competir com os de Morgriff, mas ela sabia que aquele combate estava destinado a Iruvienne. Os Elfos e as Fadas olhavam para Iruvienne, os olhos repletos de reconhecimento e esperança, os troncos bem direitos e as cabeças erguidas, sobrepondo-se em magnificência a todos os outros povos. E Legonon e Aran distribuíam cotoveladas à multidão, tentando aproximar-se o mais possível deles. Sabiam que não tinham qualquer papel a desempenhar naquela parte da batalha mas se Iruvienne caísse estariam lá para a apanhar.

- É uma infelicidade encontrarmo-nos aqui, Iruvienne - disse Morgriff. - Tentei evitá-lo, mas não pude vencer a determinação idiota daquele teu trio de salvadores. E, agora, terei de lutar contigo, o que, provavelmente, te destruirá. Lamento. Confesso que tinha ainda alguma esperança que os acontecimentos tomassem outro rumo.

- Eles tomaram o rumo que tinham de tomar, Morgriff - respondeu, serenamente, Iruvienne. - Fizesses o que fizesses, os caminhos acabariam sempre por desembocar aqui. Talvez tenhas razão e eu morra neste confronto, ou talvez te enganes. A verdade é que não sei. Não consigo ter as tuas certezas, mas de uma coisa podes estar certo: não te entregarei o Ceptro.

- Seria deveras estranho se o fizesses - concordou Morgriff, numa voz incrivelmente resignada, onde ninguém conseguiu entrever qualquer maldade ou ironia. - Comecemos então. Adeus, Iruvienne.

Inclinou o bastão para ela. Por um segundo, o seu rosto manteve aquela expressão estranha e contemplativa, mas, por fim, o sarcasmo inundou-a e as feições queimadas de Morgriff distorceram-se num sorriso maldoso. Iruvienne estendeu os braços, o Ceptro bem seguro no meio das mãos, e fechou os olhos. Era curioso, mas sentia-se calma. O ritmo acelerado da batalha parecia estar a abandoná-la lentamente, deixando-a aperceber-se do que a rodeava. Podia ouvir a respiração rouca e soprada dos Magdul, alguns rugidos estúpidos dos Trolls e até Morgriff a murmurar rapidamente uma lengalenga de palavras incompreensíveis. Mas, acima de tudo, ouvia a voz rápida do vento a aproximar-se e afastar-se, roçando-lhe o rosto e agitando-Lhe

os cabelos. Uma espécie de lento chamamento. Uma evocação de tempos mais serenos, em que ela era pequena de mais para se preocupar com o futuro dos povos e todas as grandes questões lhe passavam, alegremente, ao lado. Como era bom correr descalça por entre as árvores de Caladmiron e sentir as águas do Enyel a encharcarem-lhe as roúpas, dificultando-lhe a travessia do rio! Quase podia ver esses momentos de felicidade plena e despreocupada que Morgriff insistia em destruir para sempre.

A esmeralda do Ceptro começou a brilhar, timidamente. E, então, Iruvienne sentiu-as. Dois Espíritos a voarem velozmente na sua direcção. Dois Espíritos que ela amava. Sorriu, ainda com os olhos fechados, e deslizou para o ar.

A cauda interminável do seu vestido dourado permanecia agarrada ao seu corpo, mantendo com ele um elo físico que o sustinha de pé. Iruvienne viu Legonon a olhar docemente para ela, o rosto repleto de compreensão. Aran também olhava para cima, mas tudo o que conseguia ver era um difuso brilho dourado-avermelhado, onde entrevia as formas da amiga. Alguns Elfos e Fadas tinham-se ajoelhado, as cabeças profundamente inclinadas em sinal de respeito. Os Anões, claro, não conseguiam ver absolutamente nada, mas percebiam que algo importante e magnífico acabara de acontecer. Iruvienne sorriu e olhou para cima. Mais ninguém os conseguia ver, mas, por cima dela, os Espíritos de Ailura e Galaduinne pairavam, suavemente.

Eram dois Espíritos de cores suaves e transparentes, leves e delicados, que a olhavam sorridentes. O Espírito de Ailura era dourado e estava salpicado de brilhantes pontos verdes, mas o de Galaduinne era de um prateado repleto de pequenos e intensos brilhos azul-escuros. Mesmo depois da morte, Galaduinne continuaria a usar as cores das sacerdotisas de Névila. Ailura e Galaduinne esvoaçaram até Iruvienne, e mãe filha e neta deram as mãos. Morgriff olhou à sua volta com um sorriso sarcástico e a pedra do seu bastão começou a brilhar, espalhando uma luz acinzentada pelo campo de batalha. De mãos dadas com Ailura e Galaduinne, Iruvienne regressou ao seu corpo. Sentiu a mãe e a avó a encherem o seu ser e a deslizarem pelos seus braços, até chegarem às pontas dos dedos e as três estarem a segurar o Ceptro. Então, os seus pensamentos e memórias misturaram-se e Iruvienne já não sabia se era ela ou Galaduinne quem corria por entre as árvores de Caladmiron, ou se eram os braços de Edínmtor ou Legonon que a recebiam. Foi estranho, mas sentiu todas as memórias mais alegres e doces das suas progenitoras. A mãe grávida de si, quase como se fosse ela quem transportasse o seu próprio feto, o primeiro beijo de Ailura e Edínmtor a aflorar-lhe os lábios, como se Legonon a beijasse. E, envolvida por todas aquelas recordações felizes, Iruvienne mergulhou também em todos os momentos belos da sua vida, mesmo aqueles que não tinham durado mais de um segundo. Já não conseguia sentir qualquer rancor, desespero ou tristeza. De facto, mal se lembrava de Morgriff. Tudo o que conseguia sentir era felicidade e alegria. Os seus risos de criança ecoavam-lhe na cabeça e as enormes árvores de Caladmiron e Brumívium misturavam-se, saudando-a com os movimentos suaves dos seus ramos.

E, subitamente, uma magnífica luz branca brotou do Ceptro, abafando a luz acinzentada do bastão de Morgriff e envolvendo toda aquela terra negra num enorme clarão luzidio.

Mas, desta vez, a luz do Ceptro era ligeiramente diferente. Por entre aquele branco, tão puro e brilhante que feria os olhos, cintilavam as folhas verdes das árvores das Terras da Luz e o chão da floresta coberto de folhas avermelhadas e douradas. Era como se, de repente, aquela terra de cinzas tivesse sido coberta pelas mais belas paisagens de Caladmiron.

Lentamente, a luz desapareceu, deixando os vários povos sozinhos no meio da noite. Morgriff jazia de costas no chão, o rosto queimado calmo e sereno, como se, por fim, tivesse compreendido a visão de Aerzis. Descobrira finalmente a paz. Talvez, um dia, se reencontrasse com os irmãos. Espalhados à sua volta, estavam os restos do seu bastão partido. Através dos olhos de Iruvienne, Ailura, Galaduinne e Iruvienne olharam um segundo para ele. Tinham conseguido. Depois de todos aqueles anos, tinham finalmente conseguido. Mas não era uma verdadeira vitória. Era apenas um fim e um novo começo. Sorriram, como se fossem uma só, e elevaram-se no ar.

Legonon apanhou o corpo de Iruvienne quando ele caía, precipitadamente, em direcção ao chão. A respiração dela era suave e inaudível, mas Legonon sabia que o Espírito de Iruvienne estava muito longe dali. Vira-a passar para o ar e afastar-se para lugares recônditos onde pequenas belezas se escondem dos olhos dos vivos. Pegou no Ceptro, guardou-o dentro das suas próprias roupas e, com Iruvienne nos braços, abriu caminho por entre a multidão. Para ele, a batalha tinha terminado. Agora, precisava de cuidar de Iruvienne.

Aran viu-o passar, mas não o seguiu. Sem que alguém precisasse de lho dizer, sabia que tinha de comandar o exército e acabar de vencer a batalha final. Alguns Elfos e Fadas tinham-se aproximado do corpo de Morgriff, para se certificarem de que ele estava, realmente, morto. A aurora começava a raiar, enchendo o campo de batalha com uma luz de um branco-azulado. Por todo o lado havia corpos caídos, mutilados e cobertos de sangue seco. O metal das armas brilhava aos primeiros raios de Sol, dando um ar quase sobrenatural a todo aquele caos sangrento. Uma ou outra bandeira ondulava, calmamente, ao vento. Os Trolls, surpreendidos por aquela luz matinal, correram em direcção às entranhas de Morniran, esmagando alguns guerreiros incautos que não se desviaram a tempo. Os Nennalm olhavam, aparvalhadamente, para o chão, ainda à espera que Morgriff os enviasse, outra vez, para o combate. E os Magdul fitavam, estúpida e furiosamente, os Povos Sábios.

- MIS OLASTll SSIM! - berrou Aran. E, completamente surpreendidos, todos os Elfos e Fadas, olharam para ele. - Lutem. A batalha ainda não terminou. Lutem pela vossa Rainha, por Brumívium e Caladmiron.

As Fadas e os Elfos desembainharam as espadas e adagas e, com um novo ânimo, lançaram-se sobre os Magdul. Isarmia

 

' Ouçam-me.

 

ergueu novamente o bastão e uma chuva de certeiras flechas de fogo caiu sobre o que restava do exército de Morniran. Dwafer agarrou os dois machados, um em cada mão, e soltou um grande grito rouco.

- Por Monterar, as montanhas e Dwarler, Senhor dos Anões.

E, ao som da sua voz, os Anões atiraram-se contra o inimigo.

Não demorou muito até que tudo estivesse acabado. Sem um líder que lhes guiasse a táctica de combate e movidos apenas pelo seu desejo de destruição, os Magdul foram rapidamente controlados e mortos, pois nenhum Elfo, Fada ou Anão se apiedou deles. Quando o último dos Magdul caiu, Aran olhou à sua volta. Só restavam os Nennalm, parados em diversos pontos do campo de batalha, como se fossem estranhas estátuas.

- É melhor matá-los, Aran - disse Éutel, aproximando-se dele. - De uma forma ou de outra já estão mortos. É escusado prolongar-lhes a agonia. - Aran anuiu com a cabeça. - Se quiseres, eu dou a ordem e certifico-me de que tudo é feito dignamente. Deves estar ansioso por saber como está a nossa Rainha.

Aran teve um dos seus sorrisos e olhou para o chão.

- Obrigado, Éutel - disse, batendo no ombro do jovem capitão e afastando-se em direcção ao forte, mais arruinado pela batalha do que pelo longo desgaste dos anos.

No interior do forte, lelahad dava ordens para que os corpos dos inimigos fossem empilhados e cremados, as suas cinzas para sempre misturadas com as daquela terra. Um outro grupo reunia os corpos dos Elfos, Anões, Gnomos e Fadas mortos durante a batalha final. Os corpos dos Anões seriam levados para Monterar e sepultados de acordo com os costumes do seu povo. Quanto aos Elfos, Gnomos e Fadas, seriam queimados numa grande pira, e as suas cinzas lançadas ao ar, ao som de belos e ancestrais cânticos. Com a ajuda de um pequeno grupo, Isarmia iniciara os trabalhos de reconstrução do forte. Enquanto os seus ajudantes carregavam e empilhavam pedras, refaziam alguns dos tectos e começavam a montar as tendas, Isarmia renovava os feitiços do forte, para que o tempo demorasse mais do que seria normal a degradá-lo. E, além desses feitiços antigos, acrescentou também alguns que sustiveram paredes quase a cair e deram uma ajuda dissimulada na reconstrução.

Aran passou por Isarmia e Lelahad, acenou-lhes com a cabeça e continuou até às casinhas onde as sacerdotisas ainda corriam de um lado para o outro. Namali estava, como sempre, atarefada com os ferimentos mais complicados.

- Namali - chamou Aran. - Sabe onde está Iruvienne?

Namali levantou a cabeça e havia uma certa irritação no seu olhar.

- Aqui tratam-se os moribundos, feridos e mutilados. E, tanto quanto me lembro, Iruvienne não se encaixa em nenhuma dessas categorias. Aquilo que ela tem não há qualquer remédio ou médico que cure, porque não tem cura e ela não está doente. Por isso, Aran, fazias melhor em procurá-la numa das tendas, lá fora - repreendeu ela. - Tenho a certeza de que o príncipe Legonon está a tomar muito bem conta dela.

- Claro, Namali. Desculpai-me.

Namali soltou um suspiro artificial e Aran afastou-se.

- Aran - chamou ela, virando-se para trás. – Quando Iruvienne acordar, diz-lhe que Balein vai ficar bem. Ele ainda dorme e, quando voltar a si, provavelmente vai estar zonzo e maldisposto. Mas vai ficar bem.

Aran assentiu com a cabeça, em sinal de que entregaria o recado, e saiu das casinhas. Olhou para o sítio onde as tendas estavam a ser remontadas. Mesmo no meio delas, estava a grande tenda branca de Iruvienne. E, então, quando Aran se encaminhava para ela, um grande estrondo ecoou por entre as montanhas. Legonon surgiu da tenda de Iruvienne e Aran subiu com ele ao adarve. Tudo o que viu foi uma rápida mancha brilhante e azulada a entrar no solo queimado.

- O que era aquilo? - perguntou ao amigo. Legonon sorriu.

- Um dos Espíritos que encontrámos no Norte. Suponho que era Vocis. - O elfo voltou a sorrir.

- O que foi, Legonon?

Ele fechou os olhos, voltou a abri-los e olhou para o horizonte.

- Vocês contaram-me a história das vossas terras, do Ceptro e da profecia, e parece-me que tudo se começa a encaixar. Animus disse-nos que a voz de Vocis talvez fosse precisa aqui.

Aran, acho que ele acabou de acordar algumas das vozes adormecidas desta terra.

Aran seguiu o olhar do elfo. Não conseguia ver nada, mas também não precisava. O ar estava repleto de mudança. Os ventos começavam a soprar em novas direcções, os caminhos alteravam-se, criando outros padrões, e o Mundo mudava discretamente. Muito longe deles, no meio das montanhas, Vocis fizera desabar parte do tecto da caverna que Iruvienne descobrira, criando-lhe uma entrada perfeita.

 

               O INÍCIO DA ERA DA LUZ

Iruvienne, Galaduinne e Ailura tinham-se embrenhado

no interior de Caladmiron, esquecidas do tempo e do Mundo, preocupadas apenas em contemplar toda a beleza da floresta. Deslizaram através das copas das árvores, deixando que as folhas enchessem os seus corpos imateriais, correram com os rios em direcção ao mar, deixaram que a luz crepuscular as banhasse. E, por fim, sentaram-se no grosso tronco de uma árvore que caíra e agora servia de ponte ao Osan. Naquela zona, a floresta era extremamente densa, e o Osan reflectia as cores das árvores e do limo que cobria o seu leito. As suas águas eram frescas e desciam em suaves quedas e gorgolejos até ao Enyel. Iruvienne debruçara-se e mergulhara os dedos no rio, sentindo as águas a atravessá-los. Era tão esquisito, mas, ao mesmo tempo, era tão maravilhoso! Uma brisa suave e fresca corria por entre as árvores e Ailura fechara os olhos, envolta naquela sensação perfeita do ar a cortar o seu Espírito. E Galaduinne olhava à sua volta, ainda pouco habituada à sua nova condição.

- É talvez melhor regressares, Iruvienne - disse Ailura, a sua voz misturando-se com a brisa. - Há muitos dias que divagamos pela floresta, e o teu corpo não está preparado para ausências tão prolongadas. Além disso, teremos muito tempo para falarmos e estarmos juntas.

- Ailura tem razão - concordou Galaduinne. - Há sensações estranhas e maravilhosas reservadas aos Espíritos, mas tu não precisas de as sentir agora. Terás muitas oportunidades para o fazer durante a tua vida, e toda a eternidade para as descobrir. Mas, por agora, é tempo de regressares. Tens responsabilidades que chamam por ti e pessoas que te esperam ansiosamente.

Iruvienne sorriu. Gostava de estar ali, gostava de todas as incríveis possibilidades que o seu Espírito lhe permitia. Mas não podia ficar ali para sempre. Esse tempo ainda não chegara. O Povo da Luz precisava de si e Aran e Legonon esperavam-na. Legonon!... Sempre que pensava nele sentia a sua matéria a chamá-la, atraindo o Espírito de novo para o corpo. Algo nela ansiava pelo rosto dele, pelas carícias delicadas que trocavam. Ailura tinha razão: chegara a hora de regressar. No meio da paz da Natureza, criavam-se novas forças. Uma outra Era começava e, como Rainha das Terras da Luz havia muito para Iruvienne organizar e interpretar. Levantou-se e ficou a pairar em frente a Galaduinne e Ailura. Olhuu-as durante algum tempo, com um grande sorriso a iluminar-lhe o rosto. Não precisavam de palavras. As despedidas tinham acabado, estariam sempre muito próximas umas das outras. E, agora, conheciam-se demasiado bem para precisarem de falar. Bastava-lhes olhar. Afinal, tinham compartilhado as suas experiências mais íntimas.

Eram uma espécie de ser único.

- Iruvienne - chamou Galaduinne. - Antes de ires, tenho um favor a pedir-te.

- Claro, mãe.

- Nestes últimos anos, eu fui a Senhora da Noite e das Brumas, mas jamais deixei de pertencer às Terras da Luz. Queria que se despedissem do meu corpo sem esquecer isso. Queimem-no, como fazemos aqui, e enterrem-no em Brumívium, como é costume das sacerdotisas.

- Certificar-me-ei de que tudo é feito como pediste - respondeu Iruvienne e afastou-se, voando velozmente através da floresta.

- E agora? - perguntou Galaduinne. - Para onde vamos?

- Para onde tu quiseres - respondeu Ailura.

Iruvienne acordou deitada na cama da Senhora da Noite e das Brumas. O antigo quarto de Galaduinne estava silencioso e sereno. Havia até uma certa frescura no ar, como se também ele acordasse para uma nova vida. Pela janela entrava uma luz cinzento-prateada que o invadia, serenamente. Lá fora a chuva batia delicadamente nos vidros da janela, lembrando ainda a tempestade nocturna. Iruvienne continuava de olhos fechados. Os cobertores pesavam-lhe sobre o corpo, fazendo-a sentir-se quente e aconchegada. Com cuidado, fechou uma das mãos. Era um pouco mais difícil do que supusera. Os seus ossos pareciam estar parcialmente soldados uns aos outros e, ao início, obrigá-los a mexer chegava a ser doloroso. Mas, ao fim de umas cinco vezes, a mão habituou-se ao movimento e a dor desapareceu. Calmamente, mexeu a outra mão, os braços, as pernas, até que se sentiu suficientemente preparada para mover o corpo todo. Virou-se para a janela e abriu os olhos.

Legonon permanecia de pé, em frente à janela, virado para o exterior. O seu porte era altivo e os cabelos loiro-platinados caíam-Lhe, suavemente, sobre a túnica azul-escura. Iruvienne não o chamou. Deixou-se ficar muito quieta no meio dos cobertores, a observá-lo como uma pequena espia inocente.

- Estiveste a dormir mais de uma semana - disse ele, num tom simultaneamente reprovador e brincalhão. - Muita coisa se passou entretanto... Rainha.

Iruvienne soltou um pequeno riso abafado e esticou um braço para ele.

- Então é melhor começares a contar-me o que aconteceu - disse, enquanto Legonon se aproximava e sentava na borda da cama. - Tenho muito a fazer e preciso de recuperar o tempo perdido.

Legonon fez-lhe uma festa no rosto, com as costas da mão.

- Precisas também de descansar. Não podes começar já a ocupar-te de tudo e todos. lelahad foi para Omnirion e está a tratar dos assuntos mais urgentes. Nós ficamos ainda mais três dias aqui e só depois regressamos à tua cidade. Desculpa-nos - acrescentou com um sorriso -, mas foi a única forma que eu e Aran encontrámos para te obrigar a descansar um pouco mais.

Iruvienne fechou os olhos e sorriu.

- Dei-vos a maisdifícil das tarefas. Obrigar-me a descansar é um trabalho árduo e cansativo. Sou demasiado impaciente para estar parada. A Natureza e o Mundo chamam por mim, e eu anseio por responder ao seu apelo. Não gosto de estar enfiada numa cama e, como raramente precisei de ficar, não me consigo resignar.

- Não precisas de te preocupar, Iruvienne. Nem eu, nem Aran te obrigaremos a ficar deitada. Poderás passear por Brumívium tanto quanto quiseres. Tudo o que queremos é manter-te afastada das preocupações e responsabilidades durante mais algum tempo. E, agora, vou contar-te o que se passou enquanto estiveste a dormir. - Passou-lhe uma mão pelos cabelos e sorriu. - A batalha durou ainda um pouco mais, mas eu não participei nela. Os Trolls fugiram assim que viram as primeiras luzes do dia. Aran e Éutel comandaram o exército e mataram todos os Magdul e Nennalm que ainda estavam vivos. E Lelahad encarregou-se de dar aos mortos, de ambos os lados, um funeral digno. Isarmia reconstruiu o forte, de tal forma que ninguém diria que ele passou por uma batalha. Está exactamente como estava quando o viste pela primeira vez. Bem, talvez não exactamente. Isarmia acrescentou-lhe alguns feitiços e, de facto, só a torre de menagem é que parece ter passado através da longa provação dos anos.

Quando os feridos já estavam tratados e suficientemente aptos para fazerem uma viagem, arrumámos as coisas e iniciámos a viagem de regresso. Os Anões despediram-se de nós e seguiram para Monterar através dos seus túneis. Com eles foi Balein, ainda deitado numa maca, mas já consciente e totalmente capaz de resmungar bem alto que não estava inválido e que não precisava de seguir daquela forma tão inadequada a um guerreiro.

- Os Anões são mesmo assim: adoráveis e resmungõescomentou Iruvienne, por entre risadas de divertimento e alegria.

- Fico muito contente que Balein esteja bem.

- Todos nós ficamos, Iruvienne. Se não fosse ele, eu Aran e Isarmia ter-nos-íamos perdido no meio dos túneis que os Anões escavaram nas montanhas e jamais chegaríamos a tempo de te resgatar. Por isso, Balein e os Anões têm todo o meu respeito e consideração. Além disso, a sua coragem em combate é inegável.

Iruvienne olhou para o lado. No meio do calor da batalha acabara por esquecer as imagens de morte e terror que a rodeavam. Tudo o que podia fazer era continuar a lutar, avançando sempre em frente. Mas, agora, as imagens voltavam, lentamente, a ficar nítidas. Tantas perdas, tanto sacrifício para atingir a liberdade! Só podia esperar que não tivesse sido tudo em vão. Olhou novamente para Legonon e sorriu- lhe.

- Continua a tua história - pediu.

O elfo olhou-a, com um pequeno sorriso, muito doce. Todos eles tinham dúvidas. As mortes tinham sido imensas e até o mais experiente dos guerreiros ficara impressionado com o cenário que a manhã revelara. Mas tudo isso passaria. O tempo encarregar-se-ia de dissipar todas as dúvidas e receios.

- Assim que chegámos a Brumívium - continuou Legonon - as sacerdotisas receberam-nos com uma triste notícia.

- A minha mãe morreu, eu sei - interrompeu Iruvienne.

- Estive com o Espírito dela até agora e falámos durante muito tempo. - Parou, subitamente. Ainda não se sentia preparada para explicar o que tinha acontecido na batalha. Nem a Legonon; talvez nem mesmo a Aran. - Ela pediu-me um último favor. Queria cumpri-lo.

Legonon assentiu com a cabeça.

- O funeral ainda não se realizou. Athilya queria esperar que tu acordasses, para que pudessem liderar juntas as cerimónias fúnebres. - Olhou para Iruvienne e sorriu, brincalhonamente.

- Esta história está a tornar-se longa de mais. É melhor acabá-la depressa.

- Sem dúvida. Eu prometo que não volto a interromper-te.

- Obrigado - disse ele, inclinando a cabeça e num tom tão solene que Iruvienne não conseguiu evitar rir. - lelahad e Éutel ficaram aqui apenas o tempo suficiente para prestarem as últimas homenagens a Galaduinne e continuaram a viagem até Caladmiron. Quanto a nós, temo-nos limitado a esperar que tu acordasses. Isarmia está sempre na companhia das sacerdotisas e Aran passa grande parte do tempo com a tua irmã.

Tanto quanto sabemos, Morniran continua de pé, mas Vocis ficou naquela terra queimada, a acordar as suas vozes ancestrais. Talvez, um dia, volte a haver vida ali. Não acredito que o solo se torne fértil ou que as cinzas desapareçam. Mas pode ser que algum povo ache aquela terra suficientemente agradável para lá viver. - Levantou-se e ofereceu-lhe uma mão. - Athilya deixou-te algumas roupas e pediu-me para te dizer que há algo junto a Blandulez que devias ver.

Iruvienne agarrou a mão dele, levantou-se e deu-lhe um beijo muito leve na face.

- Obrigada por tudo - murmurou, encostando o rosto ao dele. - Nie thylerim.

Legonon fechou os olhos, sentindo, finalmente, o significado das palavras em Lissanin a entrar dentro de si. Abraçou-a e deslizou o seu rosto pelo dela até que os seus lábios se encontraram e ambos se perderam naquele beijo capaz de

 

' Amo-te.

 

transportar em si toda a beleza e liberdade do Mundo.

Iruvienne percorria o túnel que dava acesso ao interior da montanha, sem fazer a mínima ideia do que ia encontrar. Aran e Athilya ainda não tinham aparecido e Iruvienne não tencionava incomodá-los com perguntas desnecessárias. Legonon preferira ficar no quarto da Senhora da Noite e das Brumas, a retocar alguns dos desenhos que fizera dela. Segundo ele, todos aqueles segredos e mistérios diziam respeito apenas a Iruvienne. Ele, tal como Aran, não se intrometeria nessas questões.

Havia uma ligeira corrente de ar dentro do túnel, grossas gotas de água pingavam do tecto, e um frio húmido passava através do vestido de veludo vermelho-escuro, com bordados castanhos que Iruvienne usava. Era a primeira vez que se aventurava por aquela parte do castelo. Na sua juventude, espiara com Aran os rituais das sacerdotisas e a Árvore Branca, mas nenhum deles se atrevera a descer àquele lugar sagrado. Por isso, era com um misto de receio e antecipação que Iruvienne se aproximava do fim do túnel. Era Rainha das Terras da Luz, mas a criança curiosa e travessa que fora jamais a abandonava.

Reteve-se um pouco no fim do túnel a contemplar a viçosa vegetação que, há milhares de anos, recobria o interior daquele vulcão, há muito inactivo. Procurou com o olhar o lugar, na borda da cratera, onde a vegetação criava um frondoso aglomerado de plantas, que tantas vezes lhes servira de esconderijo. Era engraçado lembrar-se desses tempos agora que a sua vida mudara definitivamente. E, finalmente, avançou para Blandulez.

Em frente à Árvore Branca, pousado delicadamente no chão de erva muito verde, estava um bonito caderno. Iruvienne pegou-lhe e observou-o durante algum tempo. A encadernação era acolchoada e coberta por um tecido acetinado de um branco brilhante com reflexos dourados. Na capa, bordada a fio de ouro, sobressaía uma curiosa montagem dos símbolos de Caladmiron e Brumívium, emoldurada por umas linhas douradas, simples e elegantes, que se entrelaçavam umas nas outras. Iruvienne abriu-o. As páginas de pergaminho amarelado, ainda um pouco coladas pelo tempo umas às outras, estavam todas escritas numa letra alta e inclinada, realçada pela cor negra da tinta. E a caligrafia era tão idêntica e definida que a pena parecia ter corrido ao longo das várias folhas do caderno num só dia. Todo ele se assemelhava aos cadernos de registos mantidos pelos reis e rainhas das Terras da Luz.

Iruvienne sentou-se no chão, evitando cruzar as pernas, e abriu o caderno na primeira página. Um perfume estranho, ligeiramente adocicado, emanava do pergaminho, fazendo-a recordar o líquido etéreo das maçãs de Blandulez. Calmamente, começou a ler.

Aqui está escrita a verdadeira história deste Mundo, desde que os Filhos dos Elementos apareceram nele, até à morte de Aerzis e Nessya. Que todos aqueles que a lerem não duvidem dela e saibam que todas as diferenças que encontrarem entre o que aqui está escrito e o que julgam saber, são devidas às mentiras que Lhes foram contadas.

Tudo começou com a formação deste Mundo e a vinda dos Filhos dos Elementos. Ao início, eles cumpriram as suas funções, sem as questionarem e acreditando nelas. Mas depressa os acontecimentos se alteraram e tomaram um rumo que jamais deviam ter tomado.

A história continuava por muitas páginas, falando de Aerzis, Valindra, Nessya e Morgriff, da vinda dos Feiticeiros, da construção de Omnirion e Névila, da revolta de Morgriff contra os seus irmãos e do aparecimento dos vários Povos. Alguns meses antes, Iruvienne teria ficado abismada com o que estava escrito naquele livro. Mas ela já descobrira a verdade e a história encerrada naquelas páginas não a surpreendeu. Foi apenas uma maneira agradável de relembrar tudo o que aprendera na sua enorme viagem.

As horas foram passando, arrastando a sombra de Iruvienne para diferentes posições e fazendo o dia avançar. De vez em quando, uma minúscula gota pingava da ponta de um feto e caía, tilintante, sobre uma pequena rocha encoberta pela vegetação luxuriante. Estava frio no interior da montanha, mas, embora as suas mãos estivessem húmidas da friagem, Iruvienne nem sequer o notava. A leitura absorvia-a, distanciando-a do Mundo. Era como recordar acontecimentos muito antigos, que ela jamais testemunhara, mas que, depois de tudo o que aprendera nos últimos tempos, quase parecia fazerem parte de um passado longínquo, lentamente abandonado na memória. E, por fim, chegou às últimas páginas.

A história está longe de ter terminado, mas o que virá a seguir outros irão ver e contar. Eu não tenho mais nada para dizer.

Consulto a Noite e a Lua, minhas conselheiras e amigas. Da sua escuridão e luz chega-me um canto profético. A Profecia de como a escuridão de Morgriffterminará forma-se rapidamente na minha mente. Sei-a, mas não tardarei a esquecê-la, como sempre acontece aos que profetizam. Escrevo aqui os seus versos para que, um dia, quando tudo terminar outros a possam saber tal como eu a profetizei. Ela encarregarse-á de se revelar àqueles que precisarem de a saber.

Longos serão os anos De sombra e receios Mas a hora chegará...

Sempre a Lua após o Sol, O dia a seguir à noite;

Lentamente ela aproxima-se.

Vem, filha de Raínhas, Detentora de mistérios, Traz contigo os Elementos. Plena, igual ao Ar

Calma, como a Água, Sábia, tal qual a Terra, Tão viva quanto o Fogo.

Nalamin, Estrela de vida Por todos reconhecida e amada Indica o caminho, deixa que outros te acompanhem.

Três é um número mágico, Perfeito de entre os perfeitos. No três tudo muda. tudo acontece.

Que este livro fique guardado dentro de Blandulez, a árvore Branca, até que MorgriffdesapareÇa para sempre e seja chegado o momento de todos saberem a verdade.

Valindra

Iruvienne fechou o livro e sorriu. A profecia cumprira-se, tal como Valindra previra. Deixaria a história do seu Mundo ali, sob a guarda serena das árvores ancestrais da Floresta das Brumas, onde as sacerdotisas ainda ouviam as vozes da noite e conheciam os mistérios da Lua. E todos os que a quisessem saber viriam até Brumívium, eterna morada de Valindra.

Levantou-se, com o pequeno caderno bem seguro entre as mãos. Uma chuva fina e débil caía, rapidamente, das nuvens escuras. Através da cratera, Iruvienne via as brumas a correrem rapidamente pelo solo, caindo um pouco para o interior da montanha. O verde viçoso da vegetação contrastava com o argênteo do ar, numa paz total e serena. E enquanto Iruvienne caminhava pelo túnel, a chuva batia num grande archote, perdido entre as montanhas, e ressaltava, fazendo-o brilhar.

Na noite do segundo dia, Aran e Legonon levaram aos ombros a padiola recoberta de flores onde Galaduinne repousava. Os seus olhos estavam serenamente fechados, os cabelos coroavam-lhe a cabeça, e as linhas prateadas do seu vestido brilhavam na noite, reflectindo o luar. As sacerdotisas, lideradas por Athilya, usavam os seus vestidos cerimoniais, Aran e Legonon trajavam de preto e Iruvienne fechava o cortejo vestida de azul e roxo.

Quando chegaram à zona das árvores de anuliss onde as sacerdotisas eram sepultadas, Aran e Legonon pousaram a padiola na pira de ramos e folhas que Iruvienne mandara construir. Athilya e Iruvienne cobriram a mãe com um véu azul-escuro e, cada uma com o seu archote, pegaram fogo aos ramos da pira.

A voz de Namali ergueu-se na noite e ela cantou sobre a amizade e a sabedoria de Galaduinne, sobre tudo o que ela fizera e como pertenceria, para sempre, às duas florestas. Iruvienne e Athilya ouviram-na, sem chorar, os olhos fixos nas cores fortes e vivas do fogo que incendiavam a noite. As chamas ondulavam, iluminando os rostos dos que circundavam a pira e oferecendo-lhes o seu calor. Uma chuva miudinha caía, insistentemente, mas o fogo só se apagou quando o corpo de Galaduinne ficou reduzido a cinzas. Então enquanto Athilya e Iruvienne entoavam um cântico sobre a vida dos Espíritos, as sacerdotisas recolheram as cinzas e enterraram-nas numa pequena sepultura coberta de flores brancas.

Apesar da sombra de Morgriff se ter extinto, as sacerdotisas regressaram a Névila, num cortejo lento e triste. Mas Namali, Iruvienne e Athilya ficaram toda a noite a guardar a sepultura de Galaduinne. Dissimulados nas sombras, Legonon e Aran esperaram, pacientemente, por elas.

A chuva era cada vez mais forte e depressa se transformou num dilúvio, que lhes encharcou as roupas e os cabelos. No entanto, nenhuma delas abandonou o túmulo. Iruvienne sentia-se bem ali, fundida com a noite, a cabeça a repousar, calmamente, dos acontecimentos vividos, organizando as ideias e vendo os Espíritos a deslizarem por entre as árvores. E Athilya e Namali, embora soubessem que aquilo não era uma verdadeira despedida, não conseguiam evitar um sentimento de perda e, até, uma certa preocupação. A Senhora da Noite e das Brumas morrera, e as borboletas da lua ainda não tinham escolhido uma nova Senhora.

Brumívium perdera a sua guia.

Pouco depois de Iruvienne, Aran e Legonon regressarem a Omnirion, o Povo da Luz organizou uma grande festa, no meio de Caladmiron, para dar as boas-vindas a Legonon e comemorar o início da nova Era: a Era da Luz. Durante dois dias montaram-se mesas, fizeram-se longas grinaldas de folhas e flores, enfeitou-se a clareira escolhida, cozinharam-se vários pratos e bolos, treinaram-se músicas alegres e de sonoridades encantadas. E, por fim, tudo ficou pronto.

Lentamente, à medida que o dia declinava e os fogaréus de pé alto eram acesos, o Povo da Luz juntou-se na grande clareira, toda enfeitada para a festa. Iruvienne chegou de braço dado a Legonon, com Aran do seu lado esquerdo e Isarmia do lado direito de Legonon. Aran levava uma roupa preta, com bordados prateados, num estilo élfico que se misturava com o das roupas medievais dos humanos. Isarmia usava um belo vestido azul-claro, bordado a fio azul-escuro, de mangas estreitas e saia rodada, que realçava o preto dos seus cabelos. Legonon vestia um fato de tecido branco-dourado, onde se vislumbravam

pequenas linhas recurvas bordadas a fio de ouro. E Iruvienne escolhera um vestido branco, de reflexos dourados, adornado com pequeníssimas contas vermelhas. A saia, feita de uma dezena de véus leves e esvoaçantes, ondulava à sua volta, tal como as mangas, muito largas, que deslizavam pelos seus braços.

Nos cabelos soltos, Iruvienne usava apenas uma coroa de flores e folhas. Landlar também lá estava, vestido com uma túnica e umas calças beges, adornadas com discretos bordados castanhos.

- Muito bem, pequena prima - disse ele, aproximando-se de Iruvienne. - Fizeste tudo como devia ser. Desculpa-me por não ter lutado a teu lado na batalha, mas, como tu sabes, as armas nunca foram o meu forte. Por isso, preferi ficar em casa a apresentar-me para combater e aumentar as tuas preocupações.

- Inclinou-se para ela e a sua voz tornou-se num pequeno murmúrio. - Tenho a certeza de que Ogueimion ficou muito orgulhoso de ti.

E afastou-se, misturando-se com a alegre multidão. Iruvienne não o voltou a ver. Nem nessa noite, nem em nenhuma outra. A não ser, por vezes, como um Espírito intrometido, desejoso de aumentar os seus conhecimentos, que seguia e espiava as mais minúsculas espécies animais.

Aran ensinava a Isarmia alguns passos, mas ela parecia um pouco hesitante em dançar. Provavelmente, não estava muito habituada. Iruvienne olhou para ela e sorriu. Os sonhos tinham-lhe mostrado imagens de um grande e magnífico funeral, junto ao castelo de gelo dos Feiticeiros. Isarmia conseguira quebrar a maldição que Aerzis lançara sobre o seu povo. Legonon agarrou uma das mãos de Iruvienne, puxando-a para si e sorrindo.

- Dançamos? - perguntou.

Iruvienne não lhe respondeu. Os músicos tinham começado a tocar uma jig, e Iruvienne, sentindo o ritmo da música a chamá-la, iniciou uma dança saltitante, repleta de passos rápidos e complicados. Legonon apanhou-lhe os braços no ar, entrelaçou os seus dedos nos dela e os dois perderam-se no meio da dança.

A música mudou, tornando-se mais calma, e eles continuaram a dançar por entre a multidão e as árvores que rodeavam a clareira. À sua volta, Iruvienne via os Espíritos a flutuarem por todos os espaços livres, dançando também. E, a certa altura, pareceu-lhe que Galaduinne, Ogueimion, Ailura e Edínmtor passaram, rapidamente, por eles.

A festa prolongou-se pela noite fora e o Sol já brilhava alto no céu quando, finalmente, os músicos pararam de tocar. Elfos, Fadas, Gnomos e Duendes dormiam um pouco por todo o lado: em cima de algum forte ramo, deitados no chão, ou simplesmente, encostados a um tronco. Aran há muito que trepara até um dos ramos mais altos de uma velha árvore e adormecera.

Isarmia afastara-se um pouco da clareira e descobrira um pequeno aglomerado de folhas, protegido pelas raízes a descoberto de uma árvore jovem, ideal para ela se deitar e descansar um pouco. Iruvienne e Legonon caminharam ainda durante algum tempo por entre as árvores de Caladmiron. Mas, por fim, também eles ficaram demasiado exaustos para continuar acordados. Por isso, subiram o tronco grosso e rugoso de uma imponente árvore, até que encontraram um ramo suficientemente largo e forte para os abrigar. Legonon sentou-se, com as costas apoiadas no tronco, e Iruvienne encostou a cabeça ao peito dele. Não demoraram muito a adormecer, os sonhos de um misturando-se com os do outro.

E, por fim, numa manhã dourada de Outono, Legonon e Isarmia regressaram a casa. Isarmia ficaria com o seu povo, pois decerto teria muito a fazer, agora que os mais velhos do Conselho tinham morrido. Talvez, um dia, os visitasse, ou eles a ela.

Legonon, contudo, iria apenas o tempo suficiente para explicar a Adhar e ao Povo Branco tudo o que se passara. Claro que ele e Iruvienne jamais deixariam de visitar Nirilnege, até por que, quando Adhar morresse, Legonon seria Rei e teria de assumir as suas responsabilidades. Mas tinham decidido ficar a viver nas Terras da Luz, onde Iruvienne seria sempre precisa.

Em Caladmiron, os dias sucediam-se pacificamente. Os Duendes voavam alegremente por todo o lado, organizando pequenos bailes nocturnos por cima das águas do Enyel, ou dedicando-se aos delicados e minuciosos trabalhos que só as suas minúsculas mãos conseguiam fazer. Os Gnomos, para além das suas habituais contagens, entretinham-se a escrever grandes tratados numéricos e estatísticos sobre a batalha e os milénios em que a ameaça de Morgriff ensombrara aquelas terras. E as Fadas e os Elfos gozavam, finalmente, da paz que tanto desejavam. Davam longos passeios, observavam a Natureza, liam algum livro antigo, calmamente sentados numa árvore ou num banco ao ar livre. Os guerreiros arrumaram as suas armas, tirando-as apenas para, de vez em quando, praticarem um pouco ou perseguirem algum Magdul que conseguira escapar à batalha e que, estupidamente, se aventurara por Caladmiron. Alguns sábios dedicaram-se a interpretar os pequenos sinais deixados um pouco por todo o lado. Mas, a verdade, é que havia pouco para ver e nenhum deles queria, realmente, preocupar-se com grandes e complicadas questões. Tal como eles, também o Mundo parecia querer descansar um pouco antes de retomar os seus ciclos e confundir os vários caminhos. Morniran ficara para trás, oculta no meio das montanhas e entregue ao seu longo ruminar de medo e trevas. Já ninguém se preocupava com o que lá poderia estar a acontecer. E, lentamente, votada ao esquecimento, ela afundou-se no seu próprio negrume, arrastando consigo os que ainda lá se escondiam. O tempo e a voz de Vocis encarregaram-se de destruir os feitiços que a protegiam e derrubar as suas paredes, misturando-a com as cinzas e lavando os restos da sua escuridão nas águas da chuva e do mar. As pedras e a terra recuperaram as suas vozes, os Espíritos voaram, pela primeira vez, para aquela terra de cinzas, e os Povos Sábios passaram a chamar-lhe Nascinzil.

Nesses primeiros tempos, depois de resolvidas as consequências nefastas da batalha, Iruvienne não tinha muito com que se preocupar. Por isso, ela e Aran decidiram fazer uma pequena viagem até à costa das Terras da Luz. Pegaram nas mochilas, selaram os cavalos e partiram.

Durante cerca de dois dias, cavalgaram como se não fossem mais do que dois guerreiros nas suas habituais patrulhas. Dormiram ao relento, deitados no chão e apenas com uma manta a separá-los do ar nocturno. Quando passaram por Aquilad, honraram Nessya, atirando pétalas de flores cor-de-rosa ao lago. E comeram bagas de frutas silvestres, arranhando o couro das luvas nos picos das plantas, e salpicando a roupa de sumo avermelhado. Levavam as espadas presas aos cintos, a penderem em direcção ao chão, embora soubessem que, provavelmente, não iriam sequer desembainhá-las. Mas, desde pequenos, tinham-se habituado a levá-las sempre que se aventuravam sozinhos pelas florestas e ambos gostavam de as sentir presas aos cintos, como se, de alguma forma, elas os identificassem.

Durante a maior parte da viagem, mantiveram-se na estrada de pedrinhas brancas que ligava Esqualem e Cereide a Omnirion. Mas, quando estavam a chegar a Cereide, desviaram para a direita, em direcção a uma praia que ali havia. Era um lugar curioso. Bastante frio, mas abrigado dos ventos e muito agradável. A floresta acabava, subitamente, numa ribanceira inclinada, dando lugar a uma praia de areias muito brancas e finas. Iruvienne fora lá apenas duas vezes, mas lembrava-se bem do cheiro a maresia e das roupas endurecidas pelo sal do ar marítimo.

Com cuidado, fizeram os cavalos descer a escorregadia ribanceira e, depois de os alimentarem, sentaram-se na areia, envolvidos nas suas capas. O Sol já se pusera, mas ainda havia no ar uma luminosidade azul-clara-acinzentada. O mar ia e vinha, escorregando pela areia em grossos murmúrios de ondas a espraiarem-se. Por vezes, arrastava consigo algas verde-escuras ou, então, sepultava na areia molhada pequenas conchas de mil e um tons de branco. O vento trazia consigo o cheiro a maresia e uma humidade salgada, que parecia depositar sobre a pele e os cabelos deles. Perto de Iruvienne, um jovem caranguejo corria apressado para a sua toca.

Aran levantou-se, subiu a ribanceira, enterrando os pés na areia e meio curvado para poder rapidamente apoiar uma mão no chão, e começou a procurar alguns ramos caídos, suficientemente secos para o fogo pegar. Iruvienne levantou-se também e ajudou-o a recolher os ramos e alguma caruma e fetos secos. Juntaram tudo e, enquanto Iruvienne deixava que o mar lhe molhasse as mãos, Aran acendeu uma pequena fogueira.

- Às vezes - disse ele -, olho para o mar e pergunto-me que segredos ele esconde a oeste das nossas costas. Ou como será viajar nas suas águas.

Iruvienne limpou as mãos à capa e foi aninhar-se junto do amigo, apoiando a cabeça no ombro dele.

- Isso, Aran, seria uma grande aventura. Mas, para já, eu não posso partir para uma viagem tão longa e perigosa. - Sorriu.

- No entanto... Navegar ao sabor das ondas e dos ventos, explorar o inexplorado, descobrir o que ainda ninguém conhece, isso seria verdadeiramente, uma grande aventura. Mas receio que, agora tenhamos mesmo de crescer e, por algum tempo, esquecer os nossos sonhos mais aventureiros.

- Eu sei, pequenina. Eu sei.

Olhou para o fogo, com os seus tons de vermelho que iluminavam o azul nocturno e davam uma tonalidade amarelada às suas peles. Tinha pensado durante muito tempo no que havia

de fazer e, por fim, chegara a uma conclusão. De certo modo custar-lhe-ia não estar sempre ao lado de Iruvienne. Mas, agora ela tinha Legonon e, sem dúvida, ele saberia cuidar dela.

- Quando regressarmos a Omnirion - começou Aran parto para Brumívium. Vou falar com Athilya. Já não faz sentido afastarmo-nos um do outro. Ambos sabemos disso. Não lhe pedirei que abandone Névila, mas, tanto quanto sei, não há nenhuma lei que proíba as sacerdotisas de casarem. Por isso, se ela quiser, ficarei a viver com ela. As sacerdotisas habituaram-se à minha presença quando lá vivemos com Galaduinne, e eu saberei ser-lhes útil e não me intrometer nos seus assuntos. Talvez no início lhes custe, mas tenho a certeza de que, com o passar do tempo, acabarão por aceitar-me.

- Tenho a certeza de que sim, Aran - respondeu Iruvienne.

- E fico contente por, finalmente, teres deixado de complicar o que é simples. Vocês gostam um do outro há tanto tempo que toda esta história começava a ser patética. - Aran teve um dos seus sorrisos torcidos. - Sim, eu sei que tu és humano e que, provavelmente, vais viver muito menos do que ela. Mas nada disso interessa, Aran. Nestas coisas, tudo o que importa é o que sentimos. E vocês há muito que se amam. Além disso - acrescentou, fechando os olhos e sorrindo -, tu vais, finalmente, ser meu irmão. Galaduinne tinha razão: tudo depende dos nossos actos e do que nos acontece. Quando escorregaste pelo espelho, Aran, mudaste o teu destino e também o meu e o de Athilya. De certo modo, ajudaste até a derrotar Morgriff.

Aran ficou calado durante um momento, o sorriso ainda a bailar-lhe nos lábios. Essa era uma ideia engraçada que, de facto, jamais lhe ocorrera. Talvez por que ainda não percebia muito bem todas essas questões. No entanto, não deixava de ser verdade que ajudara os Elfos e as Fadas a vencerem a batalha final. Sentia a cabeça de Iruvienne a pesar-lhe sobre o ombro e a leve respiração dela no seu pescoço. Pelo canto do olho, via uma das orelhas pontiagudas da amiga a espreitar por entre os cabelos. Qual seria a probabilidade de um outro humano ter uma elfo como melhor amiga e ser amado pela irmã dela? Sem dúvida, muito remota. Fora, de facto, extremamente afortunado.

- Pequenina?...

- O que foi, Aran? - perguntou ela, numa voz baixa, um pouco ensonada.

- Queres saber qual era o meu nome no Mundo dos Homens?

Iruvienne abriu os olhos e sentou-se muito direita em cima da areia. Olhou durante um instante para as pequenas ondas brancas do mar e, depois, sorriu.

- Não - respondeu, dando-se conta de que nada disso interessava.

Ele pertencia ao seu Mundo. Ao Mundo dos Elfos, Fadas, Gnomos, Duendes e Anões. E o seu nome era Aran, um nome próprio para um guerreiro élfico.

Deu-lhe um beijo na face e ficaram os dois a olhar para o mar, à luz bruxuleante da fogueira.

A noite caírá sobre Brumívium, escura e anormalmente brumosa, como se a Floresta estivesse a ser coberta por um manto impenetrável de brumas, afastando-se lentamente do Mundo. As folhas das árvores sussurravam ao vento, as pedras de Névila estavam geladas e, nas lareiras, ardiam fogos que pareciam igualmente frios. De vez em quando, entrevia-se por entre os fios de brumas um céu límpido, onde a Lua brilhava enigmaticamente. Não choveria naquela noite.

Desde que Galaduinne morrera, Elian ocupara-se das funções da Senhora da Noite e das Brumas, mas todas sabiam que ela não era a escolhida das borboletas da lua. De facto, as borboletas ainda não tinham escolhido ninguém e Brumívium perdia, cada vez mais, o seu rumo. Talvez fosse esse o seu destino, agora que Morgriff desaparecera definitivamente. Talvez a Floresta das Brumas estivesse fadada a desaparecer no meio das suas brumas, tal como acontecera com Avalon. Ou, talvez, as borboletas esperassem que algo acontecesse para, então, revelarem a sua decisão. A verdade é que ninguém sabia. Elian reunira as Conhecedoras da Noite que aprofundavam os mistérios e, juntas, tinham tentado ver alguma coisa. Mas nada Lhes fora mostrado. Assim, as sacerdotisas esperavam, pacientemente, que algo acontecesse. Namali dedicava-se às suas plantas e infusões. Elian subia frequentemente até à nascente do Enyel e passava as noites a tentar que a Visão lhe desvendasse algo. Mas era sempre em vão. E o quarto da Senhora da Noite e das Brumas continuava vazio, à espera que a nova Senhora o ocupasse.

Como em todas as outras noites, Cleia, Siena e Athilya conversavam, tranquilamente, no quarto de Athilya. Cleia estendera- se em frente à lareira, com o queixo e os braços apoiados numa almofada e uma expressão de aborrecimento no rosto. Siena sentara- se na borda da cama, os braços ligeiramente inclinados para trás, como se estivesse a segurar-se ao colchão. E Athilya tinha-se sentado no chão, de costas viradas para a lareira, os cabelos a caírem-lhe pelas costas, em delicadas ondas, e a luz do fogo a bater-lhes, realçando a sua cor acobreada.

- Estou cansada de toda esta inactividade - resmungava Cleia, sem tirar os olhos do fogo. - Parece que ficámos todas sem vontade de fazer seja o que for. Gostava que as borboletas se decidissem ou, então, que Brumívium caísse, definitivamente, no esquecimento.

- Ora, Cleia - interrompeu Siena -, estás a ser um pouco infantil. Eu não quero que Brumívium caia no esquecimento.

- Eu também não! - concordou Cleia. - Só que qualquer coisa é preferível a isto. Não sabemos o que fazer, nem o que esperar. Se devemos continuar aqui ou abandonar a floresta para sempre. Tudo o que fazemos é aguardar. E eu não quero esperar eternamente, até que acabe por me fundir com as pedras e ser, também, oculta pelas brumas, como se um qualquer feitiço tivesse caído sobre nós.

- Estás a exagerar - disse Siena, levantando-se e sentando-se em frente à lareira. - Nenhuma dessas tuas fantasias vai acontecer. Se, de facto, as brumas envolverem Brumívium e ela cair no esquecimento, nós continuaremos a ter muito que fazer. Quando algo desse género acontece, as passagens não ficam totalmente fechadas e há sempre alguém que consegue entrar. Nós teremos que acolher esses visitantes e ajudá-los. Além disso, mais do que nunca, seremos as guardiãs da floresta. Não teríamos essa existência triste e passiva que tu estavas a imaginar.

- Eu não disse, exactamente, isso - corrigiu Cleia. – Só não quero ficar para sempre à espera que algo aconteça.

- Nem eu... - respondeu Siena, os olhos fixos nas chamas. Athilya não disse nada. Estava preocupada com o futuro de Brumívium, mas não conseguia evitar pensar, constantemente, em Aran. Olhou para as duas amigas, com um pequeno sorriso. Estavam todas confusas, sem saberem o que fazer ou esperar. Virou-se e ficou também a olhar para o fogo. Das chamas crepitantes chegava-lhes, apenas, um calor fraco. E, então, algo mudou.

Por entre os tons amarelos e vermelhos do fogo, Athilya podia ver a imagem de um cavaleiro encapuzado a formar-se. O cavaleiro avançava, destemidamente, como se conhecesse a floresta muito bem e as brumas não o impedissem de saber o caminho que devia tomar. Estava sozinho e não demoraria muito a chegar à entrada de Névila.

Athilya levantou-se e a imagem desapareceu.

- O que se passa, Athilya? - perguntou Siena.

- Uma Visão - respondeu, agarrando na sua capa de sacerdotisa e saindo do quarto.

Rapidamente, desceu todos os lances de escadas até chegar à entrada do Castelo, abriu uma das portas da entrada e saiu para o exterior. Imediatamente, as brumas envolveram-na, ocultando-a de todos os olhos, mas Athilya continuou sempre em frente. Conhecia o caminho que o cavaleiro teria de seguir, e sabia onde esperá-lo.

Parou, no meio de duas árvores por onde passava o caminho ziguezagueante que levava a Névila, e ficou à espera, as suas orelhas pontiagudas despertas para o mais leve dos ruídos. Os seus cabelos ondulavam, suavemente, atrás de si e as brumas roçavam-lhe a pele. Tudo estava calmo, mergulhado num silêncio apenas interrompido pelo leve soprar do vento. E, por fim, Athilya ouviu o som dos cascos do cavalo a baterem no solo.

- Aran - chamou, numa voz alta que o vento transportou pela floresta.

O cavalo parou e ela ouviu-o a desmontar. As brumas dissipavam-se, lentamente, e Athilya até já conseguia ver o vulto dele a aproximar-se. Sorriu. Finalmente, sabia qual era a sua escolha.

Aran largou as rédeas do cavalo e, por um momento, olhou-a com uma tal expressão de incredulidade, que Athilya soltou uma gargalhada cristalina. Então, ele enlaçou-lhe a cintura com o braço direito, ao mesmo tempo que lhe tocava no rosto delicado com as pontas dos dedos, calejados pelos longos treinos com a espada, quase como se receasse magoá-la. Athilya ria, levemente, daquele súbito medo dele. E, finalmente Aran inclinou-se, Athilya rodeou-lhe a cabeça com os braços e deixaram-se divagar num longo beijo.

As brumas ainda os envolviam, mas já não eram mais do que pequenos farrapos espalhados pelo ar. Por entre as árvores milenares, um rápido e suave bater de asas aproximava-se deles, mas nem Aran, nem Athilya o ouviam. Estavam demasiado embrenhados um no outro. Então, as borboletas da lua envolveram-nos, rodeando-os de luz e, finalmente, eles ouviram a sua música. E Athilya riu, abraçando-se ainda mais a Aran e voltando a beijá-lo, completamente maravilhada com o que estava a acontecer.

 

         O REGISTO DE IRUVIENNE

Três de Maio, do sétimo ano da Era da Luz

Agora, que os anos correm calmamente e o Mundo traçou novos caminhos e padrões, eu percebo, finalmente, o que se passou. Vejo todos os meus passos a guiarem-me para um único caminho e uma única solução. Ignoro quantas outras possibilidades houve de a Profecia se cumprir ou o que Lhes faltou para acontecerem, mas sei que este era o meu destino. Fui eu própria que o escolhi. Não há mais nada que possa ser dito. As respostas a todas as outras perguntas deixá-las-ei para que cada um as descubra. Sei-as. Mesmo que, na altura, não me tenha apercebido, todo o meu ser se encheu com elas quando Galaduinne e Ailura entraram dentro de mim e passámos a ser uma só. Mas não as revelarei. O Ceptro foi sempre um objecto mágico, envolto em mistérios e incertezas, quase tão antigo e poderoso como o próprio Mundo. E assim permanecerá. Que cada um procure as respostas den tro de si e as guarde para sempre, como se fosse o mais precioso dos tesouros, pois certas coisas não podem, nem devem ser ditas. Apenas compreendidas.

Quando a Era da Sombra terminou e a Era da Luz comeÇou algumas coisas mudaram no Mundo visíveL. Vocis acordou muitas vozes ancestrais, profundamente adormecidas, e calou outras, que choravam e gritavam há demasiado tempo. Depois, regressou ao Norte, mas o que ele fez alterou para sempre os lugares queimados deste Mundo. Nascinzil é habitada por alguns pequenos animais, répteis e insectos na sua maioria, que se adaptam bem às condíções agrestes daquela terra. Além disso, os Anões conseguiram, finalmente, resolver os seus problemas de espaço. Um grupo, liderado por Balein, mudou-se para a caverna que eu descobri e onde, mais tarde, vocis criou uma abertura, ideal para eles entrarem. Foi necessário algum trabalho para fazer pequenas casas dentro da caverna, mas os Anões moldaram-nas com tanta dedicação e mestria que tudo ficou perfeito. Em Monterar Dwafer tornou-se Senhor dos Anões e o seu povo ainda labuta nas minas da montanha, ao som de cânticos de sons fortes e cheios, a que as vozes roufenhas dos Anões dão uma tonalidade muito especial. A Floresta queimada descansa, finalmente em paz, do seu longo tormento. Os répteis e insectos estenderam as suas tocas para lá e, por vezes, há até algum pássaro que pousa nos ramos queimados das árvores. Os rios continuam secos, e a terra infértíl, mas a chuva cria, frequentemente, pequenas poças. Não é, de facto, o final surpreendente e completamente feliz que os humanos esperariam que nós criássemos. Mas, mesmo assim, nós ficámos contentes. A Guerra deixou por todo o lado marcas e feridas que jamais sararão. Qualquer pequena alegria que possa nascer no que foi magoado será já um grande feito.

Por cima de mim, os ramos da árvore formam uma runa de princípios, e do alto ramo em que estou sentada a escrever vejo Lhianan, a minha filha, a correr por entre as árvores de Caladmiron. Ela, tal como eu, consegue ver os Espíritos que habitam o Mundo e, em toda a alegria dos seus cinco anos, adora correr atrás deles, tentando agarrá-los. Hoje, é o Espírito de Edínmtor que ela persegue entusiasticamente. Ele brinca com ela, fazendo-a pensar que está prestes a apanhá-lo e, então, o meu avô voa até algum ramo que ela não consegue alcançar e os risos de Lhianan enchem a Grande Floresta. Ailura espia-os, não muito longe de mim. Galaduinne e Ogueimion estão muito longe, percorrendo juntos o Mundo, explorando o que nunca viram enquanto eram vivos.

À minha frente, Legonon observa-me, calmamente, um pequeno sorriso a bailar-Lhe nos lábios. Ele está sempre vigilante, e obriga-me a descansar quando eu sou demasiado teimosa para admitir que estou exausta. Animus estava certo ele é o meu guardião e está sempre ao meu lado. Foi ele, não eu, quem mais teve de abandonar por causa do nosso amor. Adhar visitou-nos uma vez, pouco depois de Lhianan nascer E, um dia, também nós regressaremos a Nirilnege, tal como eu prometi.

Não consegui recuperar o anel com a opala de fogo que Dwarler me deu, mas no meu dedo brilha agora um outro anel. Um anel com três florzinhas de pequenas turmalinas rosa, rodeadas por sete minúsculas folhas feitas de peridotos, que Legonon me ofereceu. E, embora totalmente diferente do outro, este anel fala também de quem eu sou, como se fosse uma visão primaveril de mim, mais calma e serena. Um reflexo da mudança que o Mundo sofreu.

Aran ficou com Athilya em Brumivium e eu não me lembro de algum dia o ter visto tão feliz. Os anos passam e, curiosamente, ele não envelhece. O seu rosto tem algumas rugas, a pele está um pouco encarquilhada, mas nada mudou desde aquele día na praia, perto de Cereide. Talvez este Mundo tenha entrado dentro dele, tornando-o, lentamente, numa espécie de elfo humano. Espero que sim, pois a morte de Aran é ainda, para mim, algo impensável. A minha irmã é uma Senhora da Noite e das Brumas muito mais serena do que Galaduinne, mas não menos admirada. No inicio do Outono, eles terão o seu primeiro filho e, embora Athilya não o tenha visto, eu sei que será um rapaz. v-o, nos meus sonhos, a nadar com Lhianan nas águas frias da lagoa da gruta. Vamos frequentemente à Floresta das Brumas, pois eu e Aran não conseguimos estar muito tempo sem nos vermos. E, quando Athilya está ocupada com as sacerdotisas e Legonon brinca com Lhianan, perdemo-nos em longos treinos por entre as brumas e as árvores ancestrais da floresta da nossa juventude. Por agora, são essas as nossas aventuras, mas, quem sabe, talvez um dia, quando os nossos filhos tiverem crescido e Caladmiron e Brumivium já não precisarem de nós, eu e Aran construamos um belo barco e partamos pelo mar, com Athilya e Legonon, em direcção ao desconhecido. 

 

                                                                 Inês Botelho

 

 

              Voltar à “Trilogia"

 

 

                                         

O melhor da literatura para todos os gostos e idades