Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A RAPARIGA DOS BOSQUES / Odette de Saint-Maurice
A RAPARIGA DOS BOSQUES / Odette de Saint-Maurice

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A RAPARIGA DOS BOSQUES

 

"Algures numa aldeia da região de Berry, em França, na segunda metade do século XVIII. Ê ao fim da tarde, na casa do velho Tio Brulet, enquanto ao longe, um sino repica e alegres crianças riem e cantam-".

MARITON - (num suspiro) Ora agora sim... começo a estar mais descansada, tio Brulet! com os 18 anos feitos o meu José já pode arranjar trabalho. Tenho cá na minha idéia que não há-de ser difícil, aí numa boa quinta? ...

TIO BRULET - (duvidoso) Não há-de ser difícil, Mariton?...

Mmm...

MARITON - Eu sei... eu sei porque é que o vizinho diz isso... Pois é, o meu rapaz deve pouco à esperteza!... Sai ao pai, o meu santo defunto que Deus haja, que não era capaz de ter duas idéias na mesma semana!... Mas que nem por isso deixou de ser um homem de bem e um trabalhador!

TIO BRULET - (pausadamente) Eu sei, eu sei!

MARITON - Em todo o caso é pouca sorte dele ter tão pouca cabeça... (como quem reflecte) E é que se uma pessoa assim não consegue ao menos fazer um bom casamento, as coisas vão-lhe de mal a pior!... O meu santo defunto, coitadinho, teve sorte... encontrou-me a mim!...

o vizinho diz isso... pouco à esperteza!...

(suspiro) Mas o meu José? ... Sei lá o que pode vir a ser dele!... De corpo, está um homem. Mas a cabeça... é aquilo que o vizinho vê... serve-lhe para pouco!

TIO BRULET - Com efeito...

MARITON - É por isso que eu, se conseguir amealhar uns cobres, sempre hei-de morrer mais descansada!

TIO BRULET - Ora! Quem fala em morrer? ... Uma mulher com pouco mais de trinta anos, aí mais louça que muitas raparigas!?...

MARITON - Trinta e seis, tio Brulet, trinta e seis. E depois o tempo passa depressa! E umas economias não fazem mal a ninguém!

TIO BRULET - Não... lá mal não fazem!

MARITON - E eu tenho bons braços para trabalhar! (suspira) com o filho praticamente já criado... então não hei-de aproveitar as forças e ver se arranjo alguma coisa, para a velhice... e para deixar ao José?...

TIO BRULET - (intrigado) Que diacho andarás tu a magicar, para me botares um discurso destes? ...

MARITON - (como quem receia algo mas tem de falar) Eu lhe digo, tio Brulet... (pausa) Eu lhe digo. (pausa) O estalajadeiro de Saint-Chartier precisa duma serviçal lá para casa...

TIO BRULET - Hein?...

MARITON - (mais rápida) Olhe que paga muito bem!... Trinta moedas de oiro por ano... e ainda quarto, comida, roupas... e as gorgetas, que devem andar aí pela metade da soldada!... (agora segura de si) Em dez anos, está a perceber, tio Brulet? - em dez anos faço uma fortuna! Fico garantida para o resto dos meus dias... (entristece de súbito) e deixo o meu pobre filho ao abrigo das necessidades! (a medo) Que acha, vizinho?

TIO BRULET -Acho que fazes mal. Que fazes muito mal!

MARITON - (reflectindo) Sim... eu compreendo. Eu compreendo. O tio Brulet tem medo... não é?... Uma mulher sozinha, numa estalagem mais freqüentada por homens que por qualquer outra gente... vê-se exposta a censuras, a maus juizos... e por melhor comportada que seja nunca se livra duma calúnia... eu sei! Paciência! (sorri, reagindo) Assim como assim, já perdi as esperanças de tornar a casar-me, por isso pouco me importa o que possam dizer de mim desde que eu tenha a consciência tranqüila. E depois, os desgostos que se sofrem por amor dos filhos não fazem doer!

TIO BRULET - Conforme.

MARITON - Como?

TIO BRULET - Não te lembras de que há coisas piores do que os desgostos? São as vergonhas... e essas sofrem-nas também os filhos!

MARITON - (indecisa) Sim... uma pessoa está sempre exposta, lá isso!... Todos os cuidados são poucos. E depois se a gente se zanga demais ou mostra má cara, os patrões não gostam...

TIO BRULET - (tomando calor) Ele até há estalajadeiros que procuram justamente uma criada bonita e de boa presença para atrair a freguesia!...

MARITON - (como se o não ouvisse) Em todo o caso pode ser-se amável e diligente no serviço sem se deixar ofender por ninguém!

TIO BRULET - (contrariado) Há olhares que ofendem mais que palavras, an? Devias pensar no que o teu filho sentirá um dia, quando perceber... E não te livras até de que ele assista a alguma cena desagradável. Brincadeiras de mau-gosto, gracejos...

MARITON - Oh, não! Ele é tão ingênuo, tão... simples!... Estou convencida de que mesmo que ouvisse não entendia!...

"No curral do tio Brulet, ao anoitecer, quando a jovem Brulette anda a tratar do gado"

BRULETTE-(aproximando-se, com passos leves) Zé"!... Estás a dormir ou quê, aí estendido em cima da palha?... Vamos, José, deixa-me tirar daí umas folhas para dar aos animais... anda!...

JOSÉ - (levantando-se) Leva o que tu quiseres e não me maces!... (afasta-se).

BRULETTE - (admirada) Onde é que tu vais com essa pressa toda?

JOSÉ - (a sair) Não tens nada com isso!

BRULETTE - (voltando-se para Tiennet, que a olha da porta) Tiennet... que é que ele terá?... Está com um ar ainda mais esquisito do que o costume!

TIENNET - (aproximando-se lentamente) Deve ter ouvido o que a Mariton disse ao teu avô.

BRULETTE - O que a Mariton disse? E que foi que a Mariton disse?

TIENNET - Que o ia pôr a servir numa quinta qualquer.

BRULETTE - Como é que sabes isso?

TIENNET - Sei.

BRULETTE - Deitaste-te a adivinhar, como de costume?

TIENNET - Não, senhora.

BRULETTE - Então?

TIENNET - Então... eu estava na tua cozinha a comer... e ouvi tudo. E ele naturalmente também ouviu! (zangado) Anda sempre metido pelos cantos, é bem feito!

BRULETTE - (repreensiva) Tiennet!...

TIENNET - Pronto, pronto, já se sabe que não se pode dizer nada do menino]...

BRULETTE - Bom, deixa-te de asneiras e explica lá o que foi que se passou.

TIENNET -Então... foi assim: a Mariton disse que o ia pôr a servir!

BRULETTE - Mas não há nada mais natural! Todos os rapazes começam a trabalhar logo que fazem os dezoito anos! E até muitas raparigas! Olha, eu. Se não fosse a única neta do meu avô, também tinha de ir servir e não me zangava por causa disso! Acho estúpido que o José se aborreça assim tanto...

TIENNET - Algum dia havias de achar aquilo que ele é!

BRULETTE - Mau! ...

TIENNET - (como que contra-vontade) Que a falar verdade... ele houve outra coisa ainda...

BRULETTE - Outra coisa? Que coisa? ...

TIENNET - Que coisa?... A... a tua Mariton vai servir para a estalagem de Saint-Chartier!...

"De novo em casa do tio Brulet"

BRULETTE - (quase a chorar) Mariton, Mariton, não é verdade, pois não?... Tu não vais deixar-nos, tu não vais para longe de mim?... Diz-me que não, Mariton!...

MARITON - Como é que tu soubeste, Brulette?...

BRULETTE - Não importa como é que soube... só importa que seja ou não seja assim! Responde-me, Mariton!... Ê verdade ou é mentira?

MARITON-(indecisa) Não sei bem... Ainda não está nada assente.

BRULETTE - (rompendo a chorar) Sabes, sim, está decidido... e fazes segredo de mim!... (chora)

MARITON -Bem... calculo que foi o teu primo quem te contou... É um rapaz curioso e mal-educado...

TIENNET - (da porta) Eu?...

MARITON - Curioso e mal-educado. Não tinhas que ouvir as conversas dos outros e muito menos repeti-las!... (resolvendo-se) Pois bem, minha querida Brulette... é verdade.

BRULETTE - (num gemido) Meu Deus

MARITON - E tu, filhinha, deves conformar-te com a minha partida, mostrando-te corajosa e razoável como cumpre a uma rapariga da tua idade!...

BRULETTE - (chorando sempre) Avô... meu avô... vai deixá-la ir-se embora daqui?

TIO BRULET -Eu não mando nela, Brulette!

BRULETTE - Mas, avô... quem é que vai tomar conta de si... e de mim?

MARITON -Tu própria.

BRULETTE -Eu?

MARITON -Tu! Já estás suficientemente crescida e preparada para saberes cumprir o teu dever! Anda cá, Brulette, senta-te aqui ao meu lado. Senta-te e ouve com atenção o que vou dizer-te. E oiça também o senhor, tio Brulet. E já agora ouve-me tu também, garoto indiscreto... que é para o repetires a quem quiseres!...

TIENNET - (obedece de orelha murcha) Oh, Mariton...?

MARITON - Se não fosse a amizade que devo a todos, há muito tempo já que eu estaria a pagar-lhes uma pensão para que me tomassem conta do José, enquanto eu noutro lado procuraria ganhar alguma coisa que se visse. Senti-me porém na obrigação, até hoje, de criar a Brulette... de ser para ela a mãe que lhe faltou era ela tão pequenina!...

BRULETTE - (baixinho, num soluço) Oh, Mariton!...

MARITON - As raparigas sentem mais a falta da mãe do que os rapazes, e até mais tarde. Foi por isso que fiquei! Mas o tempo passou... e tu, querida, estás uma mulherzinha!... Chegou para ti a hora de começares a ser útil! Ensinei-te o melhor que pude o serviço da casa... e acho que vais desempenhar-te muitíssimo bem das tuas obrigações. Sabes cozinhar, sabes lavar, sabes passar a ferro, sabes coser... sabes, enfim, tudo o que a mulher precisa para tratar duma família inteira, quanto mais dum velho avô ainda por cima pouco exigente!. (um tanto emocionada) Há-de ser para mim um motivo de orgulho ouvir gabar a minha Brulette, atilada e desembaraçada como a melhor das melhores, pois então!

BRULETTE - Oh, Mariton... mas ficamos tão sós! Vai ser tão triste!... (soluça) Tão triste!...

MARITON - (comovida) Vamos, rica... procura ter coragem... não me faças perder a pouca vontade que me resta!... É que se ficas triste sem mim... mais triste vou eu para longe, sem nenhum dos meus entes queridos! Tu ficas ao pé do teu avô, do teu primo, dos teus tios, e dos amigos que não te faltam...

Agora eu? ... Eu separo-me de ti, do tio Brulet, desse maroto do Tiennet... e do meu pobre José que vai para casa de estranhos... (soluça) Mas é o meu dever... e não posso deixar de cumpri-lo!

"Uma semana depois, pelos caminhos da floresta, de regresso da feira, ao entardecer em dia de chuva"

TIENNET - O pai acha que o José vai habituar-se ao trabalho?

O PAI ETIENNE -Que remédio tem ele, meu rapaz!

TIENNET - (após uma breve pausa) Custa muito ser boieiro?

O PAI ETIENNE - Não. Passam-se as tardes no campo, a olhar pelo gado.

TIENNET - Para ele, que é pasmado por natureza, não deve estar mal. Eu morria de aborrecimento!

O PAI ETIENNE - (ri)

TIENNET - (pouco depois) Como é que se chama a quinta para onde ele foi?

O PAI ETIENNE - Quinta de l'Aulnières e pertence ao tio Miguel. Queres saber mais alguma coisa?

TIENNET - Hum... (preocupado) Será boa pessoa, esse tio Miguel?

O PAI ETIENNE -É boa pessoa, é!... (outro tom) Tens medo que não trate bem o teu amigo?

TIENNET - (concordante) Mmmmmm...

O PAI ETIENNE - (rindo) Pois é!... Estás sempre a questionar com o lingrinhas do José... mas sentes-te morrer de medo só com

a idéia de que não seja tão bem tratado como tua prima que não sabia que mais finezas arranjar pala ele!... Foi criado que nem em cima de algodão e não presta para nada, cá na minha, por causa disso mesmo!...

Pausa.

TIENNET - (chamando) Pai? ...

O PAI ETIENNE -Que é, filho?

TIENNET - Como é que se chama a estalagem para onde a Mariton foi servir?

O PAI ETIENNE - Ó rapaz, não poderás pensar noutra coisa?

TIENNET - (atrapalhado) Desculpe, Pai.

Pausa.

O PAI ETIENNE - (pouco depois) Cabeça de Boi!

TIENNET - (assarapantado) O quê, pai?... O que é que disse?

O PAI ETIENNE - Cabeça de Boi.

TIENNET - Porque é que eu sou Cabeça de Boi, pai?

O PAI ETIENNE -Tu?... (desata a rir) Qual Cabeça de Boi, tu!... A Estalagem, creatura de Deus! A Estalagem para onde a Mariton foi servir é que se chama "Estalagem da Cabeça de Boi! "

TIENNET -Ah!...

Pausa.

O PAI ETIENNE - Estás cansado, Tiennet?

TIENNET -Não, pai.

O PAI ETIENNE- Mas

tanto na tua vida, hein? TIENNET -É verdade.

nunca andaste...

Pausa.

O PAI ETIENNE - Gostaste da feira?

TIENNET -Muito!

O PAI ETIENNE - Tens de aprender os usos, os costumes, os negócios... Um dia, quando herdares as nossas propriedades, precisas de te governar assim como eu - compras, vendes, vendes, compras...

TIENNET - O que é melhor, pai? Vender ou comprar?

O PAI ETIENNE - Comprar, rapaz, comprar!

TIENNET - Mas o pai hoje vendeu!...

O PAI ETIENNE - Vendi porque a burra não nos fazia jeito. E agora com o dinheiro dela compro uma vitela para criar, percebes?

TIENNET -O dinheiro... é à justa?

O PAI ETIENNE -Como? Quê?

TIENNET - Quero eu dizer na minha: não sobra nada?

O PAI ETIENNE - (rindo) Porquê?... Querias algum... se sobrasse?

TIENNET - Hum

O PAI ETIENNE - Para gastar... ou para guardar?

TIENNET - Gostava de ir fazer uma visita à Mariton... e levar a Brulette comigo. Mas sempre havia de fazer alguma despesa lá... na "Cabeça de Boi", para não parecer mal...

O PAI ETIENNE - (como quem está distraído a ver qualquer coisa). Eh... eh... que é aquilo?...

TIENNET -O quê, Pai?

O PAI ETTENNE - Eh... além, não vês?...

TIENNET - Onde, onde?...

O PAI ETIENNE - Além, no carreiro depois da encruzilhada!... Uma carroça atolada na lama... Oh, desgraçado do homem! Nem que ele sozinho conseguisse safá-la!...

TIENNET - (que percebe enfim o que ouve) Ah... é verdade!...

O PAI ETIENNE - (afastando-se a correr) Oh, desgraçado!... Corramos, Tiennet!... É dever de todo o bom cristão ajudar o seu semelhante!... Vamos!...

TIENNET - (seguindo o pai) Vamos, pai!... Vamos!...

"Instantes decorridos, na encruzilhada, os dois homens tentam realizar o que lhes é superior. A carroça, extremamente carregada, nem se mexe, enquanto o burrico que a puxa zurra lastimoso"

O GRANDE LENHADOR - Vai?

PAI ETIENNE - Vai...

PAI ETIENNE - Não se pode aliviar um pouco a carroça?...

O GRANDE LENHADOR - Espere... (afasta-se um pouco) Filha... vem cá...

TERÊNCIA - Sim, meu Pai.

PAI ETIENNE - (muito admirado, mas rindo) Eu não sabia que havia disso na sua mercadoria!... Bravo!... Que linda rapariga!...

O GRANDE LENHADOR - (simples) É minha filha. Esteve muito doente... Por isso vinha aí deitada, em cima do colchão da cama que lhe comprei na feira.

PAI ETIENNE - Doente? Que pena! Mas olhe que ninguém dirá!... Tem um belo ar!... É uma senhora!... (amável) Que idade?...

O GRANDE LENHADOR - Quantos anos lhe dá?...

PAI ETIENNE - Aí uns dezasseis? ...

O GRANDE LENHADOR - Ainda não fez quinze!

PAI ETIENNE - (marca o seu espanto).

O GRANDE LENHADOR - Cresceu muito depressa... é por isso que lhe fez mal, parece! Teve uns febrões, deixou de comer, emagreceu... (outro tom) Espera, filha, espera... deixa ver se arranjo sítio onde te pôr.

TERÊNCIA - (doce) Aqui no chão, meu Pai!

O GRANDE LENHADOR - Qual, filha, qual! O chão está ensopado pelo muito que choveu e tu não podes molhar os pés!

PAI ETIENNE - (solícito) Espere, companheiro, não se atrapalhe. Ali o meu rapaz, que é forte como uma árvore moça, pega nela enquanto nós ambos desatolamos a sua carroça.

O GRANDE LENHADOR -Mas a Terência pesa, não julgue que não!

PAI ETIENNE - Não importa. O Tiennet tem muita força, (chama) Anda cá, Tiennet. (espera que ele se aproxime) Pega aqui na menina...

TIENNET - Sim, meu Pai.

O GRANDE LENHADOR - (apreciativo) Também é um belo rapaz, o seu filho!

PAI ETIENNE - bom rapaz, sim senhor, bom rapaz, (outro tom) Vá, filho, estende os braços... isso...

Pausa.

TERÊNCIA - Desculpa maçar-te!... TIENNET - Não maças nada!...

"Recomeçam os esforços dos dois homens para desatolar a carroça."

TERÊNCIA- Era escusado estares a cansar-te por minha causa...

TIENNET - Não me cansas nada!

TERÊNCIA - Cansa! (ri) Os ossos também pesam!

TIENNET - Qual!...

TIENNET: Eu não sou assim muito jeitoso...

TERÊNCIA - Que idade tens ?

TIENNET - Vou fazer dezanove anos.

TERÊNCIA - Eu vou fazer quinze.

TIENNET - Mas és muito alta!

TERÊNCIA - Cresci de repente. O meu Pai diz que foi por isso que adoeci.

TIENNET - Donde és tu?

TERÊNCIA -Eu?... (ri) Dos bosques. E tu?

Tienet - (rindo) Das ervas!...

"A alegria dos dois homens pontua o bom resultado dos seus esforços.

O GRANDE LENHADOR -Apre! Custou mas foi!... (ri) Se não é o senhor acudir em meu auxílio, acho que nunca mais saía daqui!... Muito obrigado, amigo, an?

O PAI ETIENNE -Ora? ... Temos todos de ser uns para os outros!

O GRANDE LENHADOR - Pois sim, mas isso não tira nada ao grande favor que me fez!... Deus lhe pague!... (outro tom) E tu, Terência, já podes voltar para o teu colchãozinho!

TERÊNCIA - Sim, pai.

Pausa.

O GRANDE LENHADOR - Obrigado, meu rapaz, (afastando-se) Não sei se algum dia tornaremos a encontrar-nos... A minha vida é errante, hoje mais aqui, amanhã mais além...

O PAI ETIENNE - Nós vivemos em Nohant... Se passar por lá, é perguntar pelo Etienne...

O GRANDE LENHADOR - Então... até mais ver!...

O PAI ETIENNE -Até mais ver, e boa viagem!...

O GRANDE LENHADOR - Adeus, rapaz!

TIENNET -Boa viagem, senhor!

O PAI ETIENNE - E as melhoras para ti, pequena!

TERÊNCIA - (já distante) Muito agradecida!

O GRANDE LENHADOR -Até um dia, se Deus quiser!

O PAI ETIENNE - Até um dia, se Deus quiser.

"O grande Lenhador, afasta-se incitando o burrico a puxar a carroça pesada, enquanto o pai Etienne e o filho recomeçam a sua caminhada"

O PAI ETIENNE - Vamos nós também, Tiennet, que já se vai fazendo tarde para a ceia?

TIENNET - Vamos, Pai.

Pausa.

O PAI ETIENNE - A modos que ficaste pensativo? ...

TIENNET - É verdade, Pai.

O PAI ETIENNE -E pode saber-se porquê?

TIENNET - (após breve hesitação) Pode, Pai. É que até hoje eu sempre imaginei cá na minha que não havia rapariga mais bonita que a Brulette!... E esta pequena "dos bosques" como ela disse, a modos que ainda é mais linda que a minha prima!...

"Poucos dias decorridos, no terreiro da casa do tio Brulet, onde as galinhas se espanejam à entrada embora às vezes importunadas por uma espécie de cão de guarda"

TIENNET - (agastado)... & que sempre pensei, Brulette, que o José, agora que está a servir longe daqui, havia de deixar-nos em paz! Pois dia sim dia não, pronto, lá vem ele a correr visitar-te como se estivesse a dez metros de distância e não a dez quilômetros...

BRULETTE - (rindo) Não chega ainda, Tiennet, não chega!... Põe lá cinco e já é muito!

TIENNET -Tu achas graça a tudo!

BRULETTE - Acho graça ao que tem graça! (de súbito quase grave) Que há coisas a que não acho graça nenhuma!

TIENNET - (num desafio) Que coisas, se faz favor?

BRULETTE - Ai eu digo-te! Eu digo-te!... Por exemplo, não acho graça nenhuma a que tu tenhas tão mau coração que sejas capaz de abandonar o pobre do nosso amigo à troça dos outros, em vez de o defender quando o vês triste e infeliz!...

TIENNET -Ora!

BRULETTE - Ora, não! E se tornas a fazer o mesmo que há dois dias, quando deixaste que o Bertrand e o Rolando lhe chamassem corvo e sapo, sem os meteres na ordem, não te falo enquanto me lembrar... e olha que eu tenho boa memória!

TIENNET -Ah, ele é isso? ... Pois então adeusinhoí... Olha, vem lá adiante o teu predilecto e eu não estou para te aturar, nem a ti nem a ele!... Sempre aos segredinhos, sempre a falarem baixinho e a calarem-se mal a gente se chega!... (afasta-se) Adeusinho! Passa bem!...

Pausa.

BRULETTE - (pouco depois, num suspiro) Oh, meu Deus? ... O Tiennet não é mau rapaz! Porque é que ele não há-de compreender? Porquê?...

"E o José aproxima-se"

BRULETTE -(preocupado) Zé... o Tiennet está arreliado com a gente... Diz que nós andamos sempre aos segredinhos, a falar baixinho e a calarmo-nos mal ele se chega... Não achas que era melhor contar-lhe?

JOSÉ - Não.

BRULETTE - Mas alha que a opinião dele até podia ser útil.

JOSÉ - Não.

BRULETTE - Quem sabe? Talvez mais útil do que a minha.

JOSÉ - (resoluto e sombrio) Não, não e não! No meu caso, o Tiennet não sabe mais do que as tuas galinhas e os teus carneiros. E se tu lhe dizes uma palavra só que seja, eu nunca mais tenho confiança em ti!

BRULETTE - (num suspiro) Pronto, pronto, não se fala mais nisso! (outro tom) E então? Há alguma novidade?

JOSÉ - (cheio de reservas) Não.

BRULETTE - (magoada) Não queres dizer?

JOSÉ - Não há nada. Mas mesmo que houvesse, não dizia.

BRULETTE - Porquê?

JOSÉ - Porque não me apetece.

Pausa.

JOSÉ - Adeus.

BRULETTE -Já te vais embora?

JOSÉ - Já (a afastar-se) Nem devia ter vindo!

BRULETTE - (a detê-lo) José? ...

JOSÉ - (mais distante) Era escusado eu vir de tão longe só para te ver tão preocupada com o idiota do teu primo!...

Pausa.

BRULETTE - (em solilóquio) Oh, Senhor! Muito maçadores são estes dois!... Zanga-se o Tiennet por causa do Zé... zanga-se o Zé por causa do Tiennet!... Que arrelia!...

"o Tiennet regressa"

TIENNET - (aproxima-se) Aqueceu pouco o lugar hoje, o porco-espinho!

BRULETTE - (chocada) Tiennet!?... Agora és tu? ...

TIENNET - Estive à espreita, a ver quando é que ele se ia embora... Vinha com cara de poucos amigos!

BRULETTE - (decidida) Tiennet... eu quero pedir-te uma coisa.

TIENNET - Pede.

BRULETTE - Por favor, deixa de preocupar-te com o José e com os segredos dele.

TIENNET - (triunfante) Ah... o pequeno sempre tem segredos!

BRULETTE - Tem, mas não te dizem respeito.

TIENNET - E a ti, dizem?

BRULETTE - Também não.

TIENNET-(desconfiado) Também não?...

BRULETTE - Não. E se eu pudesse contar-te um poucochinho só que fosse, tu compreendias...

TIENNET - Então conta.

BRULETTE - Não, porque não tenho licença para o fazer, (persuasiva) Mas não te preocupes com o assunto, Tiennet! Dou-te a minha palavra que não tem importância!

TIENNET - Se não tivesse importância tu preocupavas-te assim tanto com ele?

BRULETTE - Tiennet... vê se entendes!...

TIENNET -Se entendo o quê?

BRULETTE - Lembra-te que o José é filho da mulher que me criou ainda com mais cuidados e mais carinhos do que o criou a ele!...

TIENNET - (reservado) Bom... se é da Mariton que tu gostas na pessoa do filho... quem me dera a mim tê-la por Mãe!... Valia mais que ser teu primo.

BRULETTE - (reagindo) Deixa-te de asneiras! Exactamente por seres meu primo não tens o direito de me dizer tolices como todos esses imbecis que me fazem a corte, percebes?...

TIENNET - (resmungo).

BRULETTE - (acalmando) Vá, Tiennet... não te zangues! E se queres ser gentil... peço-te - deixa o pobre José em paz! Olha que ele é bem digno de lástima.

TIENNET - Ora essa, porquê? Tem alguma doença que se pegue? Está tísico ou danado?

BRULETTE - (de súbito preocupada) Talvez seja pior, Tiennet.

TIENNET - Pior?

BRULETTE - (como quem diz algo de terrível) O José tornou-se um egoísta!. Percebes?...

TIENNET - (que não percebe nada) Há? ...

BRULETTE - Pois é!... Egoísta, egoísta, egoísta!...

TIENNET - (confrangido) Se eu tivesse sabido isso mais cedo, não te falava em nada... nem me aborrecia... nem coisa nenhuma. Coitado!

BRULETTE - (dramática) Não sei como não viste logo? ...

TIENNET - Eu? ...

BRULETTE - É uma coisa que se nota muito bem!

TIENNET - Mas como?

BRULETTE - Ora repara: a gente faz tudo por ele... e ele nunca se lembra nem sequer de dizer: obrigado!

TIENNET -Ah!...

BRULETTE-Qualquer coisinha o ofende... A brincadeira mais inofensiva, choca-o! Amua por tudo e por nada. E ainda há mais. Tudo aquilo que recebe, amizades, favores, carinhos, mimos... aceita-o como se lhe fosse mais que devido e não como um favor que ele recebe de Deus que tanto lhe dá e a quem ele tudo tem de agradecer!

TIENNET - E isso... é tudo por causa da tal moléstia?

BRULETTE - Tudo!

TIENNET - (penalizado) Oh!

BRULETTE - Não achas que é horrível ter o coração a estalar por causa de tanto egoísmo?

TIENNET -Acho!... (outro tom) E a Mariton sabe que ele sofre desse mal tão grande?

BRULETTE - Desconfio que sim.

TIENNET - Porque... porque é que não lhe falas nisso?

BRULETTE - Oh, Tiennet, não me atrevo! Não quero afligi-la!...

TIENNET - E... não tentas nada para o curar?

BRULETTE - Tenho feito tudo o que posso. Mas... sabes? Parece-me que não consigo nada senão aumentar os desgostos dele!

TIENNET - (como quem reflecte) A verdade é que nesse rapaz há qualquer coisa de estranho... Lembras-te da minha avó, Brulette?

BRULETTE - Qual delas?

TIENNET - A que adivinhava o futuro!

BRULETTE -A mãe do teu Pai?... Lembro-me perfeitamente.

TIENNET - Pois a minha avó costumava dizer que ele tinha a desgraça estampada no rosto.

BRULETTE - Credo!

TIENNET - Recordo-me muito bem de a ouvir contar que ele estava condenado a ser infeliz, ou a morrer muito novo, por causa duma linha que tem na testa.

BRULETTE - Na testa?

TIENNET - E a verdade é que sempre que o José se arrelia com alguém ou com alguma coisa, eu julgo ver a tal linha... embora nunca tenha descoberto o sítio dela, palavra!... (grave) E por isso... às vezes até sinto medo... e apetece-me poupá-lo a tudo...

BRULETTE - Pois é... agora me recordo também!... A tua avó dizia que os olhos muito claros, como os do José, vêm espíritos e não sei que mais coisas escondidas... (reage, tenta rir) Ora, eu não acredito em nada disso! (como quem quer convencer-se a si própria) Mas em nada, estás a ouvir, Tiennet?

TIENNET - (resmungo afirmativo).

BRULETTE - (como antes) Não há sinais! Só há o que Deus Nosso Senhor quer! (caindo um pouco) E depois... as pessoas podem viver muito tempo, mesmo sendo como ele é! No fim de contas, sabes uma coisa? Ele alivia o coração das penas que o carregam atormentando-nos a nós... e até é capaz de nos enterrar a todos só com o medo que nos mete a idéia de vê-lo desaparecer!

"Num dos caminhos da aldeia"

TIENNET - (vem de longe a chamar) Brulette!... Brulette!... Bru-let-te!...

BRULETTE - (detendo-se) Ui?...

TIENNET - Onde vais, Brulette?

BRULETTE - vou à missa, a Saint-Chartier.

TIENNET - E depois? Ficas para o baile?

BRULETTE - (pimpante) Tenciono.

TIENNET - Posso ir contigo?

BRULETTE -Não senhor.

TIENNET - Oh!... Porquê?

BRULETTE - Porque o meu avô não gosta que eu ande por aí acompanhada por um rancho de pretendentes!

TIENNET - Que disparate!... Eu não sou "um rancho de pretendentes", sou teu primo e, que saiba, nunca o teu avô te mandou afastar de mim!

BRULETTE - Pois mando eu que te afastes...

TIENNET -An?

BRULETTE - hoje, pelo menos!

TIENNET -Mas hoje, porquê?

BRULETTE - Olha, porque eu e o meu avô precisamos de ter uma grande conversa com o José que está lá em casa há que tempos para nos acompanhar à Missa.

TIENNET - (com súbita amargura) Bem... nesse caso ele vem pedir-te em casamento e tu e o tio Brulet não põem de parte a hipótese de o aceitar?

BRULETTE - És doido ou fazes-te, Tiennet?... Supor uma coisa dessas depois do que eu te disse acerca do José?

TIENNET - (embezerrado) Tu o que me disseste foi que ele sofria duma horrível doença que era capaz de lhe dar mais vida que a todos nós... e não vejo em que isso possa sossegar-me

BRULETTE - (espantada) Sossegar-te a que respeito?... A que doença te referes? Em que é que estás a pensar? (desatando a rir)

Oh, meu Deus! Desconfio bem que os homens são todos malucos!...

TIENNET - (meio indeciso) Nesse caso... posso... posso contar que dances comigo... algumas vezes?

BRULETTE - (sempre a rir) Algumas vezes... sim... mas só muito lá p'ra diante, que antes estou comprometida!...

TIENNET - com o José?

BRULETTE - com o José, Tiennet!?... Mas tu sabes tão bem como eu que o José não dança!...

"Ao cair dessa mesma tarde, no terreno da casinha de Jarvois, o guarda-florestal"

TIENNET - (aproximando-se) Olá, boa-tarde, Padrinho Jarvois! Então como vai essa saúde?

JARVOIS - (contente) Olá, Tiennet, boa-tarde! Ditosos olhos que te vêem!... Então a que devemos esta visita hoje?

TIENNET - O Padrinho desculpe... mas na verdade não foi só a amizade que me trouxe...

JARVOIS - Então, rapaz?

TIENNET - (um tanto hesitante) O Padrinho não viu passar por aqui o meu amigo José?

JARVOIS - (reflectindo) O José?... O filho da Mariton, aquela que está a servir na Estalagem da Cabeça de Boi?

TIENNET - Esse mesmo.

JARVOIS -Vi. Vi!... Passou por aqui há cerca duma hora... e por tal sinal até me perguntou se eu tinha visto por aqui algum almocreve...

TIENNET - E o Padrinho, que lhe respondeu?

JARVOIS - O que sabia... -que sim!

TIENNET - Sabe se ele foi procurá-lo?

JARVOIS - (que não quer responder) Isso? ...

TIENNET - (explicando) O Padrinho sabe... é que nós estivemos juntos na Estalagem... Éramos uns poucos, quisemos que o José bebesse uns copos connosco... ele bebeu... E como não está habituado e saiu de repente sem dizer água vai, a Mariton ficou em cuidados e eu vim por aí fora a ver se sabia dele.

JARVOIS - Acho que não há razões para se apoquentarem.

TIENNET - Não?

JARVOIS - Não. Ele vinha muito direito e eu não notei, nem nas suas palavras nem nas suas atitudes, qualquer perturbação, podes ficar descansado.

TIENNET -O Padrinho entende que...?

JARVOIS - é de quem sou, rapaz! Olha, a tua Madrinha não está em casa, foi vender leite como é costume a esta hora. Mas tu vais esperar e jantar com a gente.

TIENNET - Não pode ser, Padrinho...

JARVOIS - Qual não pode ser! A tua Madrinha punha-me aí o juízo a arder se eu te deixasse ir embora sem ela te ver!... Nada, nada! Entra e deixa-te de coisas! Demais que eu tenho aí um vinho... hummmmü! ...

TIENNET - Ó Padrinho, mas depois faz-se noite...

JARVOIS -E tens medo?... (ri) Um homem da tua idade, com medo?...

TIENNET - (embaraçado) Não é isso, Padrinho! É que eu nunca atravessei a floresta depois do sol pôr e...

JARVOIS - (cortando) Eu ensino-te o caminho, descansa!... Vais por uns atalhos que eu conheço e é um instante enquanto chegas a Nohant... e sem passar pela floresta.

"Noite fechada, na floresta, povoada por sombras, por rumores inexplicáveis, por medos infinitos... "

TIENNET - (assustadíssimo) Santo nome de Jesus!... Que serão estas sombras? Credo!... Deus me valha! Isto... são homens ou demônios?... Ou bichos?... Ai Nossa Senhora me acuda!...

" e uma flauta ao longe desafia aquela coruja que não se cala -"

TIENNET - (no auge do susto, tropeçando em qualquer coisa) Credo, que é isto?...

JOSÉ - (calmíssimo) Isto... sou eu!...

TIENNET - (apavorado) Santo nome de Maria!...

JOSÉ - Nem posso crer!... És tu, Tiennet?...

TIENNET- Sou eu.

JOSÉ - Que estás tu aqui a fazer a semelhante hora, quando nada se vê senão as estrelas do céu?...

TIENNET - E tu, José, tu?... Que é que fazes aqui, deitado no chão, an?

JOSÉ - Eu? Precisei de tratar duns assuntos e antes de voltar para o trabalho... resolvi descansar... Não tem nada de mal, pois não?

TIENNET -De mal?... Não!... Eu só não percebo é como não tens medo de estar até tão tarde num sítio tão triste e tão mal freqüentado.

JOSÉ - Mal freqüentado por quê e por quem?

TIENNET -Então... não viste? Não ouviste?...

JOSÉ - Não vi e não ouvi... o quê?

TIENNET - Eu cheguei aqui há poucos momentos... e não sonhei, an? - não sonhei

- vi!... Umas sombras negras, aos pulos, aos pulos... Só não percebi se eram homens, demônios... ou bichos!

JOSÉ - Ora, ora, ora!... Visses o que visses, não era nada de mal, garanto-te eu!...

TIENNET - E uma música ao mesmo tempo, assim - pi-pi-pi...?

JOSÉ - (num suspiro) A música nunca faz mal a ninguém, Tiennet!

TIENNET -Não?...?...

JOSÉ - Não! Mas se receias o que não conheces... olha, eu faço-te companhia até casa.

TIENNET -Vais comigo?

JOSÉ - vou contigo.

TIENNET -E não tens medo de perder-te?

JOSÉ - Eu não tenho medo de nada... a não ser duma coisa.

TIENNET - Que coisa?

JOSÉ - Ver as pessoas meterem o nariz onde não são chamadas!...

"Poucos dias depois, à noite, à porta da casa de Tiennet, que o José foi visitar"

TIENNET - (como quem já está a falar) E toda a gente sabe que tu, volta e meia, sais de casa e desapareces! Lá nas Aulnières julgam que tu vens visitar a Brulette... ou que vais ver a tua Mãe. A Brulette e a tua Mãe pensam que tu nunca sais das Aulnières senão ao domingo... E fala-se, por aí, fala-se... (de súbito escandalizado) Homem, não és capaz de estar quieto um bocadinho? Torces-te para a direita, torces-te para a esquerda...

JOSÉ - (imperioso) Schiu!...

TIENNET - (impaciente) Schiu, porquê?

JOSÉ - Deixa ouvir!...

Pausa.

TIENNET -Mas ouvir o quê?...

JOSÉ - (suspenso) Não ouves?... Não sentes?...

TIENNET - (perplexo) Eu?

JOSÉ - (explodindo) Mas serás tu surdo, por Deus?...

TIENNET - (calmissimo) Não oiço absolutamente nada!... Nem os pássaros!... Um silêncio absoluto!

JOSÉ- (ofegante) Qual silêncio!... Presta atenção!...

TIENNET - (num esforço) Sim... parece que sim... Há-de ser uma música qualquer... Parece que havia hoje uma boda em Berthenouse. Incomoda-te?...

JOSÉ - (suspenso) Ê o Carnat que está a tocar... É o Carnat... e mal... muito mal!...

TIENNET -Quê?... Tu achas que o Carnat toca mal?...

JOSÉ - com as mãos... não!... Mas com a idéia... sim!...

TIENNET -Que dizes?

JOSÉ - O pobre homem não é digno de ter uma flauta... A música é uma coisa sagrada, não se deve brincar com ela... nem estragá-la!... (arripiado) Escuta... escuta que desafinação!...

TIENNET - Mas eu não oiço nada!... Um som aqui, outro acolá...

JOSÉ -Pois é...

TIENNET - Como é que percebes, tu, que é o Carnat quem está a tocar, an?...

JOSÉ -Eu? ...

TIENNET - Cá para mim, flautas e gaitas de foles, tudo soa da mesma forma!...

JOSÉ - Então não és capaz de distinguir aquela que está certa daquela que está errada?

TIENNET - Bom... eu percebo quando estão a tocar a compasso e quando não estão... e também quando desafinam demais! (ri) Mas como não era capaz de fazer nem sequer o mesmo... não ligo!...

JOSÉ - Ah... pois é! Não ligas!

TIENNET - (picado) Acaso tu te julgas capaz de tocar melhor?

JOSÉ - (vago) Eu?... Eu não!... Mas há quem toque melhor do que o Carnat... Há quem conheça a verdade, toda a verdade contida na música...

TIENNET -Onde é que tu descobriste essas maravilhas? Onde estão esses talentos?

JOSÉ - (caindo em si) Onde estão?... Não sei!

TIENNET - Então?

JOSÉ - Não sei... mas há-os... há-os de certeza, tem de haver! O que é preciso é... procurá-los!... Nalgum sítio hão-de estar!...

TIENNET - (depois duma pausa de reflexão) José... acaso tu terás a idéia posta nas coisas da música?...

JOSÉ - Eu? ... que disparate!

TIENNET -Sim, dizes bem... que disparate! Nunca te ouvi ligar dois sons... foste sempre mudo como uma rocha!... Ainda me lembro duma vez, numa dessas flautas de cana que a gente faz, teres querido entoar não sei que cançonetas... (ri) E o que saiu, nem de perto nem de longe se parecia com qualquer uma dessas coisas que a gente canta por aí... (pausa para efeito) E essa agora de tu dizeres que o mestre Carnat não te contenta ainda mais me convence de que és completamente duro de ouvido!...

JOSÉ - (num suspiro) Sim, sim, Tiennet, deves ter muita razão! Só digo tolices e fazes bem em repreender-me! Sou parvo falando daquilo que não entendo! (outro tom) Boa-noite, Tiennet!

TIENNET - Boa-noite.

JOSÉ - Só te peço um favor...

TIENNET - Diz.

JOSÉ - Esquece o que me ouviste hoje... porque aquilo que eu disse não era aquilo que eu queria dizer... (suspira) Para outra vez é possível que eu seja capaz de te explicar melhor o que se passa.

BRULETT - (aproximando-se) É bem preciso é que todas estas histórias acabem!...

OS DOIS RAPAZES - Brulette?...

BRULETTE - Já basta de asneiras! E com minha concordância, os mistérios não vão mais longe!

JOSÉ - (infeliz) Estiveste a ouvir-nos, Brulette?

BRULETTE - O que eu estive a fazer não é da tua conta. Basta que percebas, duma vez para sempre, que já me sinto cansada de te ver passar por um lobisoomem aos olhos do meu primo!...

JOSÉ - Tens razão, Brulette. Porque também eu estou cansado de ser tido por feiticeiro quando não passo dum imbecil... dum louco... e inofensivo, ainda para mais!

BRULETTE - (condoída) Não, José, não! Tu não és um imbecil... nem louco... nem inofensivo!...

TIENNET -Nem inofensivo? ...

BRULETTE - Não passas dum teimoso... dum obstinado... e só por tua culpa é que as pessoas te julgam mal!... (outro tom) Tiennet... acreditas em mim, pois acreditas?

TIENNET - Acredito, sim, minha prima.

BRULETTE - Pois bem, então ouve. O que o José tem na cabeça não faz mal a ninguém... O que ele tem na cabeça é uma fantasia por causa da música... talvez pouco razoável, mas nada perigosa!

TIENNET - (simples) Foi o que me pareceu ainda há pouco... Mas onde diacho foi ele arranjar semelhante idéia? Um rapaz que nunca assobiou, sequer!... Quanto mais "musicar" seja o que for!...

BRULETTE - Espera, Tiennet, espera! Não te precipites, que podes ser injusto!

TIENNET - Injusto porquê?

BRULETTE - Porque não é verdade que o José seja incapaz de musicar.

TIENNET - (interjeição de incredulidade).

BRULETTE- (que se torna grave) Talvez tu penses, como a mãe dele e o meu avô, que o José tem o espírito fechado para tudo... que é incapaz de entender, de raciocinar... Pois eu digo-te que tu e o meu avô e a boa Mariton, estão todos errados! Ê certo que o José não consegue cantar. E não consegue cantar não porque lhe falte o fôlego... mas porque não faz da garganta aquilo que quere. E como ele não pertence ao número daquelas pessoas que acham bem tudo quanto fazem, o José prefere não utilizar a voz, que não lhe obedece. E por isso, naturalmente, desejou servir-se dum instrumento que cante por ele... um instrumento capaz de dar forma a tudo o que ele pensa... Por ter sido até agora privado dessa voz emprestada é que o nosso amigo vive sempre tão triste, tão pensativo, tão longe de todos nós que nos contentamos com o que temos!

JOSÉ - (lentamente, docemente) Sim... sim!... É precisamente como ela diz... tal qual!... Mas o que tu, Brulette, não explicaste... é que possuis uma voz que substitui a minha... uma voz doce, clara... que entoa tão bem os sons... que desde pequeno considero um favor de Deus o poder ouvir-te, hora a hora, dia a dia...

BRULETTE - (que tenta rir) Oh, José, que exagero! Agora! ... Canto qualquer coisa...

JOSÉ - Qualquer coisa? ...

BRULETTE - (volúbil) Por tal sinal que quando nós éramos pequenos muitas vezes nos zangávamos por causa disso... lembras-te?

TIENNET - (reservado) O que significa que o José mudou de gostos!...

BRULETTE -Não... não é bem assim... Eu explico-te. Quando eu era miúda, tinha a mania de imitar as outras que, como tu sabes, costumam cantar tudo o que ouvem em altos berros...

JOSÉ - (ri baixinho).

BRULETTE -E eu, escutando-as, só queria uma coisa - fazer-me notar gritando mais do que elas!...

TIENNET -E depois? Que mal havia nisso?

BRULETTE - Que mal havia? Havia o mal de eu dar cabo dos ouvidos do José que é sensível aos sons duma maneira que nem eu nem tu podemos imaginar! Aí tens porque ele se arreliava comigo.

TIENNET -E então agora?

BRULETTE - Agora... (um pouco confusa) agora canto um bocadinho melhor, canto baixinho...

JOSÉ (sonhador) Cantas muitas vezes, cantas tudo o que ouves... e é maravilhoso!...

BRULETTE - (tentando fugir ao clima) Ora, ora! Não é tão maravilhoso que não saias de repente de ao pé de mim quando eu julgo que estou a fazer um vistão e a cantar que nem um rouxinol!

JOSÉ - (vago) Tu não percebes...

BRULETTE - Percebo! (ri) Percebo que és um malcriado e se fosse outro e não tu o autor da gracinha eu ficava ofendida mas ofendida a sério! (suspira) Mas contigo não serve de nada uma pessoa agastar-se! (outro tom)

Sabes, Tiennet? É que ainda por cima ele volta um bocado depois como se não tivesse sido nada com ele!...

TIENNET - (com reserva) E até aposto que tu recomeças a cantar só para lhe ser agradável!...

BRULETTE - (rindo) Adivinhaste!...

TIENNET - Pois... nele até as coisas erradas te parecem certas!

BRULETTE - (após uma breve pausa, e muito grave) É que... o José não pode ser julgado como qualquer de nós.

TIENNET -Ah, não?

BRULETTE - Não!... Porque nem tu nem eu conhecemos certas verdades... verdades que ele vê, que ele entende... (suspira) Que eu, à força de viver com os seus sonhos, creio que acabarei por compreender aquilo que ele não sabe dizer, ou não se atreve, (respeitosamente) Eu vou tentar explicar-te, Tiennet. O José quer inventar ele próprio a sua música... e é que a inventa mesmo.

TIENNET -Quê?

BRULETTE - Ê como te digo! Conseguiu fazer uma flauta com um pedaço de cana... e toca não sei o quê porque ele nunca me deixa ouvi-lo. Mas toca!

TIENNET - Essa agora!

BRULETTE - Não me deixa a mim nem deixa ninguém!

TIENNET - (intrigadíssimo) Mas então?...

BRULETTE - Então, aos domingos, e com muita freqüência durante a noite enquanto estamos todos a dormir, vai por aí fora, pela floresta, para os recantos isolados... onde toca até se fartar! Quando lhe peço que toque para mim, responde-me que ainda não sabe o suficiente... mas que um dia, se chegar a conseguir o que deseja, então, sim, então me regalará com música - diz ele - como outra eu nunca ouvi...

JOSÉ - (baixo, com fervor) Nem tu nem ninguém!

TIENNET - (perplexo) Nesse caso... esses misteriosos passeios dele...?

BRULETTE -Não têm outra finalidade senão a que te expliquei! E se te expliquei tudo tão direitinho é porque precisamos da tua ajuda.

TIENNET - Precisam?

BRULETTE - (rectificando) Precisa o José.

TIENNET - Fala.

BRULETTE - O José, como tu sabes, até aqui entregou todas as suas soldadas à Mariton para que lhas guardasse.

TIENNET - Sim.

BRULETTE -Ora acontece que ele quer aplicar essas economias na compra duma gaita de foles para se fazer tocador de ofício.

TIENNET - (num imenso pasmo) Hein? Não pode ser!

JOSÉ - (mansamente) Porquê? É uma boa profissão, na qual se ganha muito dinheiro!

TIENNET - Mas acho um disparate! Primeiro, ser tocador é uma coisa que cansa o peito e tu, fisicamente, não prestas para nada! Andas aí corcovado que até mete aflição...

JOSÉ - (friamente) Qual é o segundo contra, se faz favor?

TIENNET - O segundo? O segundo, eu te digo. Para ser tocador não basta ter gaita de foles e talento. É preciso saber usar as duas coisas, ou seja, conhecer o instrumento... Cá na minha parece-me que ninguém nasce ensinado!

JOSÉ - E porque não hei-de aprender?

TIENNET -Tu?...

JOSÉ - Eu.

BRULETTE - É tudo uma questão de tempo e de paciência, (outro tom) Tu não sabes, Tiennet, que o filho de mestre Carnat também anda a estudar música com o único fito de vir a herdar o lugar do pai aqui na região?

TIENNET -Sei, sei. Toda a gente sabe. E é claro como água que o lugar vai ser para ele... São ricos, influentes... Ao passo que tu, José, não tens nem dinheiro que chegue para comprar a gaita de foles, nem professor para te ensinar, nem amigos que confiem em ti bastante para apoiarem as tuas pretensões...

JOSÉ - Mas tenho as minhas idéias! E quero pô-las em música!

BRULETTE - Uma coisa é querer, outra poder... Eu sei, eu sei que tu tens música lá dentro de ti... eu sei que ouves música em toda a parte - nas árvores, nos ribeirinhos...

- eu sei!

JOSÉ - Mas não acreditas em mim com verdadeira fé, Brulette!

BRULETTE - Não é nada disso! Só tenho medo... medo... Tanto medo, José!

JOSÉ -Mas medo de quê, Brulette?

BRULETTE - Escuta, José, escuta... Eu vou tentar dizer-te o que penso...

JOSÉ - (suspenso) Diz...

BRULETTE - Eu sei, eu sei que tu não gostas de ouvir conselhos de ninguém... mas a verdade é que os que são teus amigos e sabem do que se passa, como eu e agora o Tiennet, têm a obrigação de pelo menos te apontar os perigos que corres.

JOSÉ - (manso) Que perigos, Brulette?

BRULETTE - (num suspiro) Olha... um está na decepção que podes sofrer se não fores capaz de fazer com que uma gaita de foles, ou mesmo uma flauta, consigam traduzir o que o vento e a água e o sol e a lua te murmura ao ouvido.

JOSÉ -E mais?

BRULETTE - Mais?... Ora vejamos: supõe que te tornas realmente num grande músico. Os outros tocadores da região hão-de fazer tudo para te impedir de exercer! Dar-te-ão desgostos, criar-te-ão dificuldades umas atrás das outras como aliás é costume deles para impedirem que um concorrente possa vir a fazer-lhes sombra... Não olham a nada para defenderem os lucros e a gloríola!... Conheces muito bem os seus hábitos!... Os que estão... estão!... - e têm lá entre eles não sei que compromissos, mas o certo é que se defendem uns aos outros e vêem todos com os mesmos maus olhos o que tenta forçar passagem pelo meio deles!... (mais persuasiva) Olha, José, a tua mãe que lá na estalagem os ouve tantas vezes falar, já meios bêbados, chora de desgosto só de pensar que venhas a fazer parte duma gente no fim de contas tão pouco de fiar!...

JOSÉ -Pouco de fiar porquê, Brulette?

BRULETTE - Ora, ora, ora! São grosseiros e maus; brigões e gastadores. São vingativos e tolos com as mulheres... Enfim, umas pessoas pouco recomendáveis.

JOSÉ - Donde o teu desejo de que eu não me pareça com eles?

BRULETTE - Sim, José! Não gostava nada que te parecesses com eles! E por isso te peço, em meu nome... e no da tua mãe... que penses bem antes de tomar uma decisão.

JOSÉ - Está pensado, Brulette.

TIENNET - Até aposto que sai tolice!... Nunca foste capaz de fazer as coisas como as outras pessoas.

JOSÉ - Talvez seja assim, Tiennet... e talvez eu tenha esse direito, (outro tom) De qualquer maneira, agradeço-te a ti, como agradeço à Brulette, o interesse que estes conselhos demonstram. Sei que só desejam o meu bem. Mas...

"Brulette e Tiennet suspiram"

JOSÉ - Mas o meu caminho está traçado.

"Brulette e Tienet voltam a suspirar"

JOSÉ - vou tentar... É preciso que eu tente. Uma coisa porém lhes prometo, (pausa para efeito) Quando for a hora... pedir-lhes-ei que me oiçam tocar... se eu puder comprar a minha gaita de foles! E se nessa altura vocês dois acharem que sirvo para alguma coisa, então é porque a minha música vale que eu sustente a maior das lutas por amor dela contra tudo e contra todos, (pausa) Se não... continuarei a cavar a terra e a entreter-me aos domingos com a minha flauta, sem tirar disso proveito... nem fazer sombra a ninguém!

"Em casa de Tiennet"

JOSÉ - (num suspiro, mas como quem vai dizer uma coisa de que está seguríssimo) Meu bom Tiennet... há precisamente um mês que tivemos aquela conversa acerca do meu futuro. Pois bem, chegou a hora de resolver. Chegou a hora de ser ouvido e julgado pelas duas únicas pessoas em que posso confiar - tu e a Brulette.

Pensei o seguinte: Aqui a tua casa fica bastante afastada do povoado e sei que os teus Pais devem partir amanhã em peregrinação a Santa Solange, para cumprirem uma promessa feita noutro dia, quando o teu irmão mais novo esteve doente, (outro tom) Avisei a Brulette que, se não fores contra, aqui estará amanhã depois de anoitecer.

TIENNET - Sozinha?

JOSÉ - Comigo!... Combinámos encontrarmos na encruzilhada dos três caminhos... donde viremos juntos.

TIENNET - E se o tio Brulet sabe?

JOSÉ - Mas o tio Brulet sabe! A tua prima não faz nada às escondidas!

TIENNET -Ah... bem...

JOSÉ - Às escondidas do avô, claro! Porque no que diz respeito às outras pessoas, olha que contamos contigo para que não conste nada do que vai passar-se, an? Mas nada!...

TIENNET -Está bem, homem.

JOSÉ - Dás-me a tua palavra?

TIENNET - Dou-te a minha palavra.

JOSÉ - Então... até amanhã.

TIENNET - Não te vás ainda embora, toma alguma coisa...

JOSÉ - Não, obrigado, (a afastar-se) A ansiedade que sinto atormenta-me tanto que o próprio ar que respiro parece que não tem lugar dentro de mim!

"No dia seguinte"

JOSÉ-(a medo) Então?...

BRULETTE - (baixo, suspensa) Toca mais um bocadinho!...

JOSÉ - Mais?... (pausa) Está bem.

"E José recomeça a tocar na sua flauta pobrezinha" TIENNET - (perplexo) É extraordinário! Extraordinário!... Como que pode ser isto?... Ná, é impossível que, sozinho, tenhas conseguido tanto! É impossível que não haja nisto tudo qualquer segredo que tu não contas!...

BRULETTE - (repreensiva) Tiennet!

TIENNET - (teimoso) Tem de haver um segredo. Há um segredo!

BRULETTE - Dizes isso, Tiennet, porque o Viret sapateiro imagina ter visto o José acompanhado por um gigante preto na clareira dos ulmeiros?

TIENNET - (vago) Não... não, nem sabia disso! Eu é que sei muito bem o que vi e ouvi certa noite na floresta.

BRULETTE - Sonhaste, com certeza, Tiennet

TIENNET - Não. Não sonhei.

JOSÉ - Que foi que tu viste? Que foi que tu viste, an?... Diz. Diz que não é coisa que me envergonhe! (pausa, depois mais efervescente). A criatura que viste é um amigo que por enquanto não posso apresentar a ninguém, percebes?... Quanto ao que ouviste... para te tirar quaisquer dúvidas, vais ouvi-lo outra vez!...

" José, desesperado, fantástico, recomeça a tocar"

TIENNET - (sucumbido) Santo Deus!... Onde é que tu foste aprender uma música destas?

Para que é que isto serve? Que queres tu dizer com uns sons tão esquisitos?...

JOSÉ - (numa imensa tensão nervosa) Não gostas? Não gostas? Tu não gostas?... (quase a gritar) Então mais vale acabar com tudo e quebrar a minha flauta...

TIENNET - (interrompendo-o) José, não grites que assustas a Brulette! Olha, coitadinha, ela até está a chorar!

JOSÉ - (suspenso) Brulette... é verdade... tu estás a chorar!... Brulette, diz-me!... Brulette... tu choras... de medo... de compaixão... ou de alegria?

BRULETTE - (fungando) Não sei... não sei... Só sei... que desde que tu começaste a tocar essa coisa... eu não pude deixar de chorar!...

JOSÉ - (anelante) Brulette... Brulette, tenta explicar-me, por favor. Pensaste nalguma coisa, enquanto me ouviste?...

BRULETTE - Pensei!... Lá pensar... pensei.

JOSÉ - E em que pensaste, minha querida Brulette?

BRULETTE - Em tantas coisas... que não sou capaz de dizer...

JOSÉ - Uma só!... Uma só que seja, vamos! (torna-se imperioso) Vamos!...

BRULETTE - (submissa) Ao certo, certo... não pensei em nada... Mas é como se na minha cabeça passassem imagens de outros tempos, de quando nós éramos pequenos... (pausa) Nem me lembrava que tu estavas a tocar, embora eu te ouvisse muito bem. Parecia-me que era no tempo em que nós vivíamos juntos com a tua Mãe... e eu senti-me levada contigo por um grande vento que nos passeava ora sobre os trigos maduros, ora sobre as árvores, ora sobre os riachos... É isso! E eu via os prados, e os bosques, e as fontes, tudo cheio de flores e de avezinhas... (cada vez mais risonha) E também via a tua mãe e o meu avô sentados à lareira conversando de coisas que eu não ouvia... E via-te a ti de joelhos ao pé da tua cama a rezar as orações da noite... E depois tudo se tornou numa espécie de nevoeiro dentro de mim e foi então que principiei a chorar!... JOSÉ - (gravemente, com íntima felicidade) Obrigado, Brulette. Era em tudo isso que eu queria dizer com a minha música. Deus te pague! Agora sei que não sou louco e que pode haver uma verdade tanto no que se ouve como no que se vê. (numa exaltação crescente) Sim!... Sim, sim!... Sou capaz de falar sem ser com palavras! Sou capaz de dizer o que sinto e o que sonho com este simples pedaço de cana!... Brulette... isto... esta flauta sem valor nenhum... conta coisas como qualquer pessoa... e sabe amar tudo como o melhor dos corações... Vive! Vive, Brulette, existe!... (a chorar e a rir) E agora, José - José, o louco, José o idiota, José o inútil! - podes continuar a ser para toda a gente louco, idiota e inútil. (pausa e depois dum soluço, com estranha serenidade) Agora sei que posso ser mais forte, mais consciente e mais feliz do que ninguém!

"Neste preciso instante, longe, estranhamente, retinem guizos"

TIENNET -Que é isto?

JOSÉ - (com estranha inflexão) Isto? ...

TIENNET - (imdignando-se) José... há na tua música mais do que tu ousas confessar. Não foi sozinho que aprendeste o que sabes... e está lá fora o teu mestre que mesmo contra tua vontade te responde. Vamos, manda-o embora!

JOSÉ - (vago) An?...

TIENNET - (cujo medo lhe dá novas forças) Manda-o embora!... É visita que não me agrada de certeza! Manda-o embora antes que eu perca a paciência e lhe tire a vontade de rondar a minha casa. Estás a ouvir?...

JOSÉ - (submisso, a afastar-se) Está bem, está bem, eu vou... Brulette. Eu acredito nos espíritos malignos... e nas almas do outro mundo... mas não os temo! Eles não fazem outro mal que não seja assustar os verdadeiros cristãos. Mas a gente deve vencer o receio... deve combater a impressão que sente... (cheio de medo agora) Brulette... diz comigo uma oração... e faz o sinal da cruz... (rápido) Pelo sinal da da Santa Cruz

Pausa.

BRULETTE - (temerosa, chama) Tiennet? ...

TIENNET -Hein?

BRULETTE - E o José?

TIENNET -O José o quê?

BRULETTE - O José? ... Se ele está num caminho errado... não será preciso ajudá-lo a sair dele?

JOSÉ - (da porta) Então, Tiennet? Ainda estás muito assustado?

TIENNET-(agastado) O que eu estou não é contigo, (outro tom) Olha lá... que é isso?...

JOSÉ - (vago) Isto?...

TIENNET - (num sobressalto) Eh... não te aproximes sem dizer o que é esse enorme embrulho que aí trazes!...

JOSÉ - (aproximando-se) Nada de mal, Tiennet, nada de mal!...

BRULETTE - (também intimidada) Que é isso, José?

JOSÉ - (com infinita doçura) Isto... é um presente do bom Deus, minha Brulette! Um presente que chega na hora própria!... Vê!... E vê tu também, Tiennet! Eu desembrulho...

BRULETTE (espantados) Ah!

TIENNET BRULETTE -Uma gaita de foles!

JOSÉ - (doido de alegria) A minha gaita de foles, enfim! A minha linda, maravilhosa gaita de foles!... Vê, Brulette! Vê, Tiennet! Vejam, vejam ambos!... Olhem aqui a parte de baixo, toda em pau de cerejeira negro!... E o comprimento do duplo bordão?... E as incrustações de chumbo que parecem de prata?... Que pele, macia... e tão bem trabalhada! (delirante) Finalmente! Finalmente, posso começar ...

BRULETTE - Visto isso, José, estás decidido?...

JOSÉ - Sim, sim, sim! Serei tocador... quando souber tocar!... (entristece um pouco) Mas daqui até lá crescerá ainda o trigo nos campos e cairão as folhas quem sabe quantas vezes? ... (reage) Mas não pensemos nisto, meus amigos. Pensemos, sim... que um dia serei tocador... (ri) e sem quaisquer ligações com o diabo!...

TIENNET - (ainda desconfiado) Mas olha lá, José. Quem te trouxe aqui a tua gaita de foles?

JOSÉ - Um homem que nada tem de demônio nem de feiticeiro, talvez um tanto ou quanto rude por causa da profissão que exerce... mas que não faz mal a ninguém! (ri) No entanto, Tiennet, não te aconselho a passar muito perto dele com mas intenções...

TIENNET - Tantos segredos, tantos mistérios

JOSÉ - Não são meus os mistérios, nem me dizem respeito!

TIENNET - Podias muito bem contar-nos...

JOSÉ - Não tenho nada que contar a não ser isto: o meu amigo é um bom homem, sensato e generoso! Era ele que estava comigo na floresta de Saint-Chartier, naquela noite em que tropeçaste em mim depois de ouvires tocar... como não é fácil que tornes a ouvir! "Ê que o meu amigo também é Mestre Tocador!...

TIENNET - (admiradíssimo) Que é que tu estás a dizer?... Esse misterioso indivíduo que andava contigo naquela noite e que veio ainda agora aí... também é Mestre Tocador?

JOSÉ - É Mestre Tocador, sim. E embora não exerça a profissão, toca melhor do que todos aqueles que tu ouviste até hoje! Nem tu nem a Brulette fazem a mais pequena idéia! E depois é bondoso, generoso... Foi ele que ao perceber que eu não comprava uma gaita de foles por falta de dinheiro, me ajudou a consegui-la.

TIENNET - De que maneira?

JOSÉ - Aceitando um sinal e dispondo-se a esperar o resto do pagamento o tempo que for preciso.

TIENNET - Não estou a perceber.

JOSÉ - Então vou explicar-me melhor. Este instrumento que tu aqui vês custa oitenta moedas de oiro...

TIENNET - Oitenta libras?

JOSÉ - Isso mesmo.

TIENNET - Mas isso não ganhas tu num ano!

JOSÉ - Pois não. E na altura em que a coisa foi tratada entre mim e o meu amigo, eu só tinha um terço da importância. E vai ele e disse-me: se tens confiança em mim entrega-me esse dinheiro para as primeiras despesas e eu arranjo-te a melhor gaita de foles que tu possas imaginar. Daqui por uns três meses venho trazer-tá... e depois serei eu que esperarei que tu possas acabar de pagar-me à medida que fores ganhando. E eu... tive confiança nele! Entreguei-lhe as minhas economias... e fiquei à espera. Não havia testemunhas do nosso contrato... eu não o conhecia de parte nenhuma... podia enganar-me à vontade se quisesse... Passaram os três meses... e aqui está a gaita de foles, a mais bela de quantas vi até hoje!... (outro tom) Já vocês percebem agora porque é que eu lhes garanto que o meu amigo é um homem bondoso e generoso?

TIENNET - (ainda reticente) Nada disso explica o facto de ele vir ter contigo a minha casa! Como é que sabia que estavas aqui?

JOSÉ - Da maneira mais simples! Ia a passar a caminho da aldeia, ouviu o som da flauta, calculou que não podia ser outra pessoa a tocar assim... e aproximou-se certo de que eu iria ter com ele mal ouvisse o Clarim...

TIENNET -O Clarim?

JOSÉ - Sim, é o nome que ele dá ao cavalo, àquele que traz os guizos...

TIENNET -Ah! ...

BRULETTE - José... só há uma coisa que eu não entendo.

JOSÉ - Talvez eu seja capaz de te explicar.

BRULETTE - José... se o teu amigo é uma pessoa de bem, porque é que não o convidaste a entrar?

TIENNET -A Brulette tem toda a razão! Devias tê-lo convidado! Descansava, bebia um copo com a gente... Bastava eu saber que ele era um homem de palavra para o receber como te recebo a ti próprio - com toda a amizade, com toda a franqueza!

JOSÉ - (indeciso) Sim... sim... Mas... sabes... o meu amigo não é uma criatura como as outras.

BRULETTE ( Não é...?

TIENNET JOSÉ - Não. Tem os seus hábitos, as suas idéias... (resolvendo-se) E não me perguntem mais nada porque mais nada posso dizer.

BRULETTE - (inquieta) José... acaso o teu amigo precisa de se esconder das pessoas honestas? Há motivos para ele fugir assim e só andar de noite, oculto pelas trevas?... José, esse homem fez com certeza alguma coisa que não devia e isso é pior que tudo! (quase a chorar) Parece-me que antes queria que ele fosse um feiticeiro... do que, sei lá, um ladrão, um...

JOSÉ - Basta, Brulette, basta! Deixa-te de fantasias!

BRULETTE -Mas...

JOSÉ - Amanhã explico-te tudo. Hoje, ponto final no assunto!

BRULETTE - Mas não vês que fico apoquentada a pensar o pior?

JOSÉ - (de súbito com frieza) Pois pensa o que te apetecer! (outro tom) E agora vamos, que está a ser meia-noite. Levo-te a casa e deixo à tua guarda, escondida, a minha gaita de foles. Não quero que ninguém saiba que a tenho.

TIENNET - Então para que te serve, se não tencionas tocar nela?

JOSÉ - Tenciono tocar nela, mas não aqui na nossa terra nem por enquanto! A hora de dar que falar de mim ainda não chegou, (outro tom) Vamos, Brulette?

BRULETTE - Vamos, José. Boa-noite, Tiennet, até amanhã se Deus quiser, (afastam-se)

TIENNET - (seguindo-os) Eu vou com vocês até lá fora! Está uma noite tão bonita!

JOSÉ - Era melhor deitares-te!...

TIENNET - Qual!... Apetece-me apanhar ar...

"E na noite escura, Tiennet vê os amigos afastarem-se. De súbito, porém, alguma coisa acontece de estranho... "

TIENNET - (baixo, suspenso) Que é isto?... Outra vez os guizos? (pausa) Santo Deus... e andam coisas lá adiante nas nossas terras... Mau... ou eu me engano muito ou... Essa agora? ... Mas aquilo se não são cavalos são... Espera!... Mulas!... As mulas dum almocreve!... (furioso) As mulas do patife dum almocreve que andam a pastar naquilo que é nosso!... (a afastar-se para longe, em corrida) Esperem, esperem que eu já vos arranjo...

"E de súbito um enorme cão surge, ladrando e investindo furiosamente"

TIENNET - (afiníssimo, em luta) Para trás, cão!... Para trás, cão... eh, eh... Açudam, que este malvado mata-me!...

JOSÉ - (vinda de longe, a gritar e imperioso) Está quieto, Satanás!... Olha que somos amigos! Satanás... aí, Satanás!... Vai-te embora, Satanás!

"O cão obedece, afasta-se, mal acredita na salvação... "

Tiennet ainda

JOSÉ - (ofegante) Foi por Deus! Foi por Deus eu ter voltado para trás!... Deu-me um palpite, por causa da tua idéia de querer apanhar ar!...

TIENNET - (furioso) Ah! ... Então tu pretendias realmente que eu não saísse de casa?

JOSÉ - Tu não devias sair de casa!...

TIENNET - Pois só pena tenho de não ter trazido a minha espingarda!

JOSÉ - Oh! Isso então seria o melhor de tudo!

TIENNET - Meia-dúzia de tiros e acabava-se o mistério!

JOSÉ - Ou acabavas tu, idiota!

TIENNET - Idiota, eu?

JOSÉ - Idiota, sim! Idiota! Se eu não tivesse pensado isto mesmo e não viesse ver o que se passava, a estas horas podias estar morto, que o Satanás era o primeiro e depois vinham os outros todos!

TIENNET -E que é lá isso do Satanás e os outros todos?

JOSÉ - Homem, os cães do almocreve, do meu amigo!

TIENNET - Ah... o teu amigo é que é o dono dessas malvadas mulas que estão a dar cabo dos meus campos?...

JOSÉ -A dar cabo?

TIENNET -Sim! Olha lá para diante!... Vê!... Vê!... E eu por ora ainda nem posso imaginar os estragos!... Mas faço idéia! Porque não é só o que elas comem, é o que estragam! Levantam-se, deitam-se, rebolam-se... Hum?... E achas que não devo fazer nada? Que devo consentir? Que devo deixar, para ser agradável ao teu amigo?

JOSÉ - (após uma pausa de reflexão) Lamento, Tiennet. Mas não há nada a fazer.

TIENNET - (cada vez mais exaltado) Não há?... Ai garanto-te que há, tem de haver! E se tu não queres falar ao teu amigo, entender-me-ei eu com ele, a bem ou a mal!... Há-de pagar-me os prejuízos, pois então!

JOSÉ - (a tentar detê-lo) Tiennet... Tiennet, escuta... Tu não conheces a vida dos almocreves... tu não sabes nada deles, para pretenderes travar-te de razões com um...

TIENNET - Eu não quero travar-me de razões, quero sim guardar aquilo que é meu!

JOSÉ-(no mesmo tom)Tiennet... repara... Esta foi a primeira vez que aconteceu semelhante coisa!... O meu amigo nunca passou por aqui, talvez nunca mais passe! O caminho do João Huriel não é este. Em geral desce dos bosques do Bourbon... vai direito a Meillant e Èpinasse... donde passa para a floresta de Cheurre. Foi por mero acaso que o conheci em Saint-Chartier, onde ele estava a pernoitar antes de seguir para Saint-Aout... Ele vai levar carvão para as forjas de Ardentes... e fez agora este desvio de algumas léguas só para me servir, percebes?...

TIENNET - E como foi para te servir, achas muito bem que eu deixe as mulas dele estragarem à vontade aquilo que me pertence?

JOSÉ - (cheio de paciência) Tiennet, os almocreves estão habituados, ao longo dos caminhos que percorrem, quase sempre pelo meio dos bosques, a que os seus animais pastem à vontade sem prejudicar ninguém. E o Huriel nem sequer se lembrou de que aqui, nos nossos campos de trigo, podia ser diferente.

TIENNET - (obstinado) Qual não se lembrou! Não se importou. Não quis saber disso para nada! (torna-se depreciativo) Pff, almocreves Eu sei muito bem o que são almocreves! Tenho ouvido contar... Olha, o meu Padrinho Jarvois, o guarda-florestal... tu sabes quem é! ... Conhece-os bem!

JOSÉ - (irônico) Ah, sim?

TIENNET - Sempre me disse que tivesse cuidado com essa gente.

JOSÉ - E porquê, se faz favor?

TIENNET - Ora porquê? ... Porque são uns selvagens, uns brutos, uns desavergonhados, uns bandidos, capazes de matarem um homem com a mesma indiferença com que matam um coelho!

JOSÉ -Ah, sim?

TIENNET - E ainda mais! Julgam todos, como o teu amigo não sei quê...

JOSÉ - (fleugmático) João Huriel.

TIENNET-(sem ligar)) que têm o direito de sustentar os seus animais à custa dos outros! E se nós, os camponeses, não concordamos e tratamos de defender o que nos pertence e eles não são capazes de resistir cara a cara - porque ainda por cima são traiçoeiros! vingam-se das piores maneiras.

JOSÉ - Que maneiras?

TIENNET - Por artes mágicas matam-nos os gados... incendeiam-nos as casas...

JOSÉ -Mais nada?

TIENNET -E achas pouco?

JOSÉ - Não, acho muito! E por isso mesmo deves compreender que não vale a pena, por um pequeno prejuizo, atrair sobre ti ou sobre qualquer um de nós uma calamidade!

TIENNET - Então... queres que me cale?

JOSÉ - Eu falo-lhe por ti, está bem?

TIENNET - (duvidoso) Tu?

JOSÉ - (gravemente) Ouve, Tiennet. Eu vou ficar o resto da noite a tomar conta dos animais do Huriel. Os cães já me conhecem, obedecem-me sem dificuldade. Aliás desde que eu não largue o Clarim, as mulas não se afastam. Onde ouvirem os guizos, é onde elas pastam...

TIENNET -E o teu amigo, onde é que está?

JOSÉ - A dormir aí em qualquer canto, à luz das estrelas, como de costume.

TIENNET - Pois, em vez de olhar pelos animais!

JOSÉ - Ele confia nos cães!...

TIENNET -Ele confia, ele confia! Ele não se preocupa, diz antes! O mal que fizerem não é para ele...

JOSÉ - Tiennet, repito-te o que te disse há bocado. O Huriel é uma excelente pessoa...

TIENNET - Faço idéia!

JOSÉ - Podes fazer. E quando eu lhe contar o que sucedeu, ele vai ficar desolado.

TIENNET - Agradecido pela mágoa!... Preferia que me pagasse.

JOSÉ - Tiennet... aconselho-te conformação.

TIENNET - E se eu me queixar à justiça...

JOSÉ - (interrompendo-o, com severidade) Tiennet... não desafies o João Huriel!... Não és mais rico nem mais pobre com o que as mulas te comeram...

TIENNET - Comeram e estragaram!

JOSÉ - Faz como entenderes. Mas ter um almocreve por inimigo não é realmente grande coisa... Sabes o que te digo? Desafiar a cólera deles é quase tão perigoso como desafiar a dos patrões, (outro tom) Vai, vai para casa e tenta dormir. El melhor para todos!

"E Tiennet regresa a casa... "

TIENNET - (a entrar) Hein...? Quê? (furioso) Mas que pouca vergonha vem a ser esta?...

HURIEL - (sereníssimo) Boa-noite!

TIENNET - (aproximando-se) com que então é mesmo você, an...? Veio meter-se na boca do lobo!... Fez muito bem, que lhe quero dizer duas palavrinhas.

HURIEL - Três, se desejar! (com ironia) Ê incrível! Não tem em casa uma simples tenaz com que se pegue numa brasa!...

TIENNET - Não há tenazes mas há mãos para meterem na ordem os insolentes como você!...

HURIEL -Ohü... Não me diga que está zangado por eu ter entrado aqui sem licença? ... Custa-me a crer!... Além disso eu bati... mas ninguém me respondeu.

TIENNET - Que está a fazer?

HURIEL - Vim acender o meu cachimbo!... Bati para pedir lume, que é uma coisa que não se recusa a ninguém, já se sabe! Quando percebi que não havia gente em casa, experimentei o fecho da porta que abriu imediatamente. E eu, como não vinha para roubar, entrei! Entrei... vi que havia brasas na lareira, procurei uma tenaz que não achei... mas com um pauzito consegui o que queria - acender o meu cachimbo, ocupação que terminava precisamente quando o meu amigo apareceu! E pronto, eis tudo! Se quiser desculpar, desculpe, (num tom que se torna ameaçador) Se não quiser desculpar... estou às suas ordens!

TIENNET - (após uma breve pausa) Bom... o mal não está nisso.

HURIEL -Então?...

TIENNET - Vamos conversar...

HURIEL -Pronto!

TIENNET - Deixe-se estar sentado, por enquanto. Eu também me sento.

Pausa.

TIENNET - (depois dum pigarreio) Ora bem... se não estou em erro, você é almocreve e chama-se João Huriel?

HURIEL - E você é lavrador e chama-se Étienne Depardieu - vulgarmente tratado por Tiennet?

TIENNET - Quem foi que lhe disse o meu nome?

HURIEL - A mesma pessoa que lhe disse o meu - o nosso amigo José Picot.

TIENNET - Hum... (pausa e com certo espanto) Julgava-o mais velho...

HURIEL - Tenho vinte e quatro anos. O José vai nos dezanove e você fez há pouco! (ri)

TIENNET - Mas que bem informado que está!

HURIEL -Como vê!?...

TIENNET - Ê pena que não tenha procurado saber outras coisas de muito interesse...

HURIEL - Que coisas?

TIENNET - Esta, por exemplo. Em terras como a nossa, a minha, torna-se perigoso deixar andar os animais à solta. Quem o faz sujeita-se a graves conseqüências.

HURIEL - (após uma breve pausa) Que é que quer dizer com isso?

TIENNET - Quero dizer que as suas mulas deram cabo do que não é seu e os seus malvados cães iam dando cabo de mim!... Por isso não se queixe dos resultados.

HURIEL (irado) Livre-se de que tenha acontecido alguma coisa às minhas mulas ou aos meus cães! Livre-se!...

TIENNET - Não aconteceu... mas podia ter acontecido, se o nosso amigo José não tivesse aparecido tão depressa! E era uma desgraça!...

HURIEL -Para si!

TIENNET - (colérico também) Ah, sim? É tudo o que você tem a dizer? As suas mulas estragaram-me um campo de trigo, dão-me um prejuízo dos diabos... e você ainda me ameaça? Ah, não, isto não pode ficar assim! Ou você me dá satisfações e me paga o que eu entender que me é devido, ou...

HURIEL -Ou quê?...

TIENNET - Ou nós vamos pleitear segundo os direitos e os costumes do Berry, que são, julgo eu, os mesmos que os de Bourbon, quando se escolhem os punhos como advogados!...

HURIEL - Isso significa que o mais forte é o que tem razão?

TIENNET -Isso!

HURIEL - Acho bem. Vale mais que meter a justiça alheia nas nossas vidas... quando as pessoas são leais!

TIENNET - Vamos lá para fora?

HURIEL - Vamos. A luta corpo a corpo não me assusta... mas sempre lhe quero dizer uma coisa. Eu sou muito maior e mais forte que você... an?... Não seria melhor entendermo-nos como amigos?

TIENNET - (arrogante) Tem medo?

HURIEL - (após breve pausa) Quais são as regras?

TIENNET - Proibidos os golpes traiçoeiros... Quem se atrever a servir-se de pedra ou de pau, é por todos considerado como um assassino.

HURIEL - Bem... estou ao seu dispor!... (afasta-se) Devo dizer-lhe que não estou interessado em magoá-lo... mas isto numa briga a gente esquenta-se e às tantas não é senhor de si! Por isso dou-lhe um conselho - se eu for violento demais, renda-se que é melhor para nós dois...

"E depois de luta violenta e leal, exaustos, ambos regressam ao lar de Tiennet"

HURIEL -Bf f!... (pausa) Apre!...

TIENNET - (geme surdamente).

HURIEL - Muito magoado?

TIENNET - Nunca vi lutar como você!...

HURIEL - E não me empreguei a fundo, nem pensar! (ri de súbito) Se fosse a sério, partia-te... (outro tom) Olha lá, não te importas que te trate por tu, pois não?

TIENNET - Até gosto!

HURIEL - Está bem. Então fica assente... para mim e para ti... an?... (pausa e depois ri) Amachuquei-te deveras!...

TIENNET -Apre! ... (ri) O chão é duro... e dei cada trambulhão!

HURIEL - Se queres desforra...

TIENNET - Nada, nada! Chegou! (outro tom) Não que eu tenha medo, an?...

HURIEL - Eu sei.

TIENNET - Mas é que você... tu, foste um tipo às direitas... Desististe de lutar quando viste que eu estava à tua mercê. Foi bonito! O José bem me dizia que és um homem generoso...

HURIEL - Ora deixa lá isso e tratemos de coisas mais importantes... (preocupado) Oh, diacho! Estás a ficar com um olho negro. É melhor pôr-te aí um pacho...

TIENNET - Nada, nada, não tem importância nenhuma. Isto já passa.

HURIEL - (cheio de franqueza) Queres ser meu amigo, Tiennet?

TIENNET -Pois que dúvida? Claro que quero!

HURIEL - Dá-me a tua mão... assim... an?... Amigos do coração!...

TIENNET - Amigos do coração!

HURIEL - Óptimo! E agora, Tiennet, peço-te desculpa de ter entrado na tua casa sem licença.

TIENNET - O assunto ficou arrumado, Huriel! Não tornes a falar nele, pelo menos nesse tom.

HURIEL - Mas é que tu tinhas razão! Como tens muita razão no que diz respeito aos estragos que as minhas mulas devem ter feito nos teus campos. Mas logo, assim que o sol nascer, vamos deitar contas ao teu prejuizo, que to quero pagar com a mesma lisura! com que bati...

TIENNET -Está fixe!

HURIEL - E agora, para selar a nossa combinação, se quiseres regalar-me com um copo de vinho...

TIENNET - Homem, os copos que te apetecerem! (vai buscar a garrafa e os copos) E então que há aí um branco especial da colheita de há dois anos...

HURIEL - Vamos a ele!...

TIENNET - (servindo o vinho) tua saúde!...

HURIEL - tua!... (bebe) E à nossa amizade!...

TIENNET - À nossa amizade! (bebe) Então... diz o José que tu tocas muito bem?

HURIEL - Parece que sim...

TIENNET - Gostas de música?

HURIEL - Imenso!

TIENNET - Eu também gosto.

HURIEL - Mas gostas de quê?

TIENNET - De música.

HURIEL - Que espécie de música?

TIENNET - Ora que espécie? ... A que conheço, a que oiço tocada pelos nossos Mestres Tocadores...

HURIEL - Os vossos Mestres Tocadores, os vossos Mestres Tocadores!... Eles sabem lá o que é música!... Tocam, tocam como calha, sempre as mesmas árias, estafadas e estropiadas ainda por cima... Não têm inspiração... não têm largueza... nem admira!

TIENNET - Mas não admira porquê?

HURIEL -Porquê? Porque a gente das planícies é uma raça de caracóis, aspirando sempre o mesmo vento e sugando sempre a mesma erva. Uma raça que julga que o mundo acaba nas colinas azuladas que fecham num círculo o céu que a cobre... e por cima e para além das quais se estendem as minhas florestas.

(cada vez mais grave e profundo, arrastado pelas suas próprias palavras) Digo-te, Tiennet, que é aí que na verdade o mundo começa... e que tu podias caminhar a passo largo dias e dias, noites e noites, antes de transpor esses imensos bosques ao pé dos quais os vossos não passam duns quadrados de madeira ramalhuda...

TIENNET -E depois de chegar ao limite desses bosques?...

HURIEL - Depois?... Depois há outra vez montanhas, e florestas de árvores imensas... os grandes e belos pinheiros do Auvergne, desconhecidos aqui entre vocês... (noutro tom) Mas para que hei-de estar a falar-te do que tu nunca hás-de ver? O Berrichão, bem sabes, é uma pedra que salta dum sulco para outro... voltando ao primeiro mal a charrua que a atirou ao segundo acaba de passar. Respira um ar pesado, gosta de calma, não tem curiosidades... Adora o dinheiro mas não para o gastar... E não consegue ter tanto como desejaria porque não tem nem coragem nem espírito de iniciativa.

TIENNET - Dizes isso por mim, Huriel?

HURIEL - Por ti?... Não sei se serás diferente em certa medida.

TIENNET - Pelo menos não me faltou coragem!...

HURIEL - (rindo) Ah sim, lá isso é verdade! Mas foi para defender os teus bens, não para os adquirir... Ao passo que nós, montanheses, obrigados a viver por aqui e por acolá como a própria casa, temos de saber conquistar pela manha ou pela força aquilo que porventura de bom grado ninguém nos daria!

TIENNET - Sim... mas não te parece que essa não é uma maneira muito decente de ter seja o que for?... Conseguir as coisas por manha ou por força... a mim dá-me a idéia de roubo... de coisa pouco limpa... Ora diz, amigo Huriel- não achas melhor ser menos rico mas andar de cabeça levantada, sem nada que pese na nossa consciência?... Uma fortuna mal conquistada não deve dar grande proveito...

HURIEL - Uma fortuna mal conquistada?... E que vem a ser uma fortuna mal conquistada? Ora vejamos, Tiennet. Tu deves ter, suponho, a exemplo dos demais proprietários da região, aí uns vinte carneiros, umas duas ou três cabras, um burrico... talvez um boi... Se por acaso, ou inadvertência, eles se escapam dos teus campos e vão pastar nos dum vizinho, corres a oferecer-lhe uma reparação ou tratas de evitar que a coisa conste? E se os guardas aparecerem entretanto e te ameaçarem com a justiça... não lhes rogas pela pele, não?

TIENNET - (a mudar de assunto) Eu não quero discutir contigo essa maneira de ver as coisas... E depois nada disto tem que ver com o assunto da música, que era aquele de que estávamos a falar!...

HURIEL - Ah, sim, pois é... tens razão!... A música! ... As belas canções dos bosques, dos largos horizontes, dos espíritos livres e fortes!... Curioso!... Muito curioso mesmo.

TIENNET -Hum?...

HURIEL - Vocês têm aqui uma pessoa que a sente... que a sabe... que a recebe!

TIENNET - (a medo) O José?

HURIEL -Sim, o José! O José... é ave de vôos altos... não se parece contigo!

TIENNET - A modos que estás a desfazer em mim!

HURIEL - Não, não!... A um pardal não se pede senão que seja um pardal. E tu... o que és hoje, sê-lo-ás daqui a cinqüenta anos!

TIENNET-(picado) E qual o mal?

HURIEL - Nenhum. Nenhum!... Pelo contrário! Os que te estimarem hoje, estimar-te-ão sempre! Mas o José... o José é outra coisa!... Não se contenta, como tu e os teus conterrâneos, com uma boa cama, um bom prato de assado, um bom fato... Não!... Ele parece-se connosco! Tudo, menos viver enterrado em comodidades! Para dormir, basta-nos um leito de folhas secas... Para comer, um prato de caldo e um pedaço de pão... Nada nos prende em parte alguma! Construímos uma cabana se tencionamos demorar-nos num sítio, mas não nos ralamos nada de dormir ao relento mesmo que seja feito de neve o nosso colchão!...

TIENNET - (num arrepio) Brrr!... Que frio!...

HURIEL - (rindo) Pois é, é isso mesmo! Vocês estão presos ao chão por uma infinidade de coisas que não têm interesse nenhum!... Olha para a tua casa, hein?... Que maravilha! Cheia como um ovo!... Mesas, cadeiras, loiças finas, chávenas de porcelana, um grande fogão, um armário... Tudo perfeitamente dispensável! Mas vocês gostam assim! Em cada refeição gastam pelo menos uma hora... Depois de comer, descansam outra hora... E quando resolvem trabalhar, acham tudo um grande sacrifício!... (ri) E ao domingo? Ao domingo, comendo e bebendo como se fazer uma digestão difícil fosse um grande divertimento; dançando até já não poderem com as pernas e namorando não por amor mas por obrigação, ficam tão cansados que em vez de arranjarem novas forças para mais uma semana de vida, acham que o melhor de tudo é dormir!... Bfff!...

TIENNET - (vai protestar).

HURIEL - Não protestes, não protestes, Tiennet! Eu sei o que estou a dizer! Vocês, por muito agarrados ao bem-estar, só criam necessidades... e por viverem bem demais morrem sem saber o que seja viver!...

TIENNET - Ora, ora, ora!... E vocês, vivem?

HURIEL - Nós? Eu já te explicarei...

TIENNET - (interrompendo) Olha que não me refiro aos teus conterrâneos, à gente lá de cima, do Bourbon! Falo de ti... de ti e dos outros almocreves como tu! Que vida vem a ser a vossa? A tua?

HURIEL -A minha?

TIENNET -Sim!... Estás aqui sentado diante de mim, a beber, a conversar... a fumar o teu cachimbo... mas isso chega-te?... Fartas-te de trabalhar, ganhas com certeza muito dinheiro... e depois? Que te fica, an?... Privas-te de tudo; gastas a tua mocidade assim, numa labuta constante. E num dia, daqui por vinte anos, descobres que não tens nada - nem casa, nem mulher, nem filhos... E então ou te resignas a acabar como um bicho... ou gastas o que tens para conseguir remendar o que já não tem conserto...

HURIEL - Eu te digo, Tiennet... Isso, para um pardal, não está mal raciocinado, não senhor! Mas... a verdade é que tu não foste capaz de ver o que tenho dentro de mim!... Escuta... eu não posso vir a acabar como um bicho porque não sou um bicho - sou um Homem! E como qualquer Homem, tenho as minhas ambições e as minhas idéias... e os meus gostos pessoais, claro! Olha, este... conversar, por exemplo! Gosto imenso de conversar! E porque raramente converso, quando posso falar como hoje, tiro disso um prazer enorme! E comer? Eu aprecio aquilo que é Bom! E porque em geral não passo do caldo e do pão de centeio, quando como uma refeição variada e bem feita dá-me uma destas satisfações ...

E o mesmo é para a dança! Passam-se meses que nem sei que tal coisa existe! Mas se um dia calha... oh, Tiennet - que então não há homem mais feliz do que eu!... E se me dá na cabeça cortejar uma rapariga e ela me dá atenção... eu sei de certeza que o faz porque eu lhe agrado e não porque levei meses a andar atrás dela e ela me prefere porque tem esperanças de me obrigar a aturá-la a vida inteira...

TIENNET - Mas então?

HURIEL - Então?... (torna-se sonhador) Então... eu nunca penso no futuro. Mas sei... sei, percebes? - que um dia hei-de encontrar o amor... e então casar-me-ei!... Mas garanto-te que não com uma dessas raparigas rubicundas que fazem os vossos encantos!... A minha bela há-de ser branca e delgada como os ulmeiros jovens... e doce... e graciosa... e esperta... e compreensiva... e mais bonita que nenhuma! Tão bonita que todos gostem dela e ela não goste senão de mim!... (ri, e levanta-se, a mudar totalmente o clima) Bom, Tiennet, está a amanhecer... vou-me embora. Antes porém vamos aos teus campos avaliar os estragos para te pagar como cumpre.

TIENNET - (num bocejo) Vamos lá...

HURIEL - (rindo) Estás com sono, hein?

TIENNET - Mmmmmm

HURIEL - Isto foi uma noitada para ti!... (a afastar-se) Olha, eu gostei de conversar contigo, percebes?... E quando menos o esperares, apareço-te aí só pelo prazer de dar um abraço a um amigo!...

"No terreiro da aldeia, onde raparigas e rapazes dançam animadamente ao som da gaita de foles, tocada por um jovem, o filho Carnat"

BRULETTE - (aproximando-se a chamar) Tiennet! Tiennet!...

TIENNET -Eh, Brulette? ... Olá!

BRULETTE - Tiennet, ando há que tempos à tua procura...

TIENNET - Porquê? Faltou-te algum par? Não acredito!...

BRULETTE - Deixa-te de graças. O que tenho para te dizer agora é sério.

TIENNET - Hum?

BRULETTE - Tiennet... ontem à noite... enquanto eu estava na fonte... o José foi lá a casa.

TIENNET - Não é caso raro, que me conste

BRULETTE - E se me ouvisses em vez de estares com brincadeiras? (alto tom) Foi lá a casa... contou ao meu avô que se tinha despedido das Aulières, disse-lhe adeus... e foi-se embora levando a gaita de foles!... E agora ninguém sabe dele! Estou farta de perguntar a uns e a outros se o viram... e nada!...

TIENNET - A Mariton com certeza que sabe...

BRULETTE -A Mariton? Coitada! Ela mal podia acreditar-me, quando eu lho disse, há bocado!

TIENNET - Foste à procura dele?

BRULETTE - Pois fui! E ela ficou numa aflição que ainda mais aumentou a minha!... Valha-nos Deus, Tiennet! Que é que se teria metido na cabeça daquele rapaz? Para onde é que ele iria?

TIENNET - Por umas coisas que lhe ouvi há tempos, pareceu-me que ele andava a magicar alguma!...

BRULETTE - E agora? Que havemos de fazer?... Estou tão apoquentada, Tiennet, tão apoquentada!

TIENNET - (com súbita reserva) Faz-te muita falta... é, Brulette?

BRULETTE -Eu sou muito amiga dele, bem sabes!... Estou habituada à sua companhia... e ultimamente... até à sua música!... Estranho!

TIENNET - Será possível que essa coisa das cantigas ao som da flauta tenha assim tanta importância para ti?... Julgava-te mais razoável

BRULETTE - Não me parece que gostar de música seja um motivo de censura!

TIENNET - Não é... lá ser não é! Mas acho que tens muito ouvido para certas coisas e muito pouco para outras!

BRULETTE - Que queres dizer na tua, an?

TIENNET - Quero dizer que dás muita atenção ao José... e muito pouca a mim!

BRULETTE -A ti?... Mas porque é que hei-de dar-te muita atenção, a ti?

TIENNET - Porque... porque... porque...

BRULETTE - Fala por uma vez!

TIENNET - Brulette, mas quando é que tu quererás compreender que morro de amor por ti?...

BRULETTE - (retraindo-se) Tu que dizes?

TIENNET - A verdade! Amo-te, percebes? Amo-te e sofro por ti, porque não sei o que hei-de esperar sequer! (ansioso) Brulette... responde-me!

Diz-me se um dia o meu amor encontrará eco no teu coração!...

BRULETTE - Mas será possível que desta vez estejas a falar a sério?

TIENNET - Brulette, eu sempre te falei a sério... o mais a sério possível... mesmo quando o receio de te desagradar me obrigava a dar às minhas palavras um tom de gracejo... (pausa e depois, numa suspensão) Brulette?...

BRULETTE - (lentamente, como quem saboreia as palavras) Sendo assim, explica-me o teu amor.

TIENNET - An?

BRULETTE - Sim, diz-me como e porque gostas de mim. Só depois te responderei.

TIENNET - (para quem o que ela pede é difícil de mais) Oh, Brulette... mas tu sabes muito bem!

BRULETTE -Não sei... e quero saber!

TIENNET - Eu... eu bem... eu desde pequeno que te quero... sempre te quis! Acho-te a mais bonita, a mais gentil, a mais simpática, a melhor de todas, pronto!

BRULETTE - Há imensos rapazes que me dizem isso todos os domingos, pelo menos... Não encontro nada de extraordinário nessa tua forma de ver-me.

TIENNET -Brulette... vivo a pensar em ti... a esperar as horas em que vamos estar juntos... e sofro quando percebo que ouves precisamente os outros a quererem prender-te o coração...

BRULETTE -Oh, o meu coração não é fácil de apanhar, descansa!

TIENNET - É por isso que me sinto morrer de desgosto!

BRULETTE - (explodindo de riso) Morrer, tu?... Oh, morrer, Tiennet!... Ninguém dirá!...

Com tão bom aspecto!... É que nem sequer te atrofiou, o sofrimento! Desenvolveste-te lindamente, estás um latagão com óptimo parecer... (ri) Se morres... é de excesso de saúde, com certeza!

TIENNET - (embezerrado) Ê a isto que tu chamas falar a sério?

BRULETTE - (deixando de rir) Sim, Tiennet, chamo a isto falar a sério! Ê que eu nunca serei capaz de gostar senão dum homem para quem seja a única!

TIENNET - A única? ...

BRULETTE - Um homem em cujo coração só eu caiba. Um homem que nunca tenha andado atrás doutra... nem perdido tempo com baboseiras... Um homem que só tenha olhos para me ver, a mim!

TIENNET - (animando-se) Oh, Brulette, então hás-de acabar por me preferir, estou certo disso, porque só eu estou nessas condições!

BRULETTE -Só tu?...

TIENNET-Só eu! Sim, porque lá quanto a isso nem o José me faz sombra. É certo que ele não olhou nunca para outra rapariga, mas a verdade é que também não deve ter grande interesse em olhar para ti visto que se foi embora sem dizer água vai nem deixar a direcção.

BRULETTE - (vivamente) Deixa o José em paz, valeu?... O assunto é comigo e com ele, só. (outro tom) Quanto a nunca teres andado atrás doutra... é mentira.

TIENNET - Mentira? ...

BRULETTE - Mentira! O ano passado quase todas as noites ias à fonte procurar a Silvana...

TIENNET -A Silvana? ...

BRULETTE - (sem se deter) E quando os bailes da Primavera começaram, parecias

um tonto atrás da Bonina... Houve dois domingos em que não dançaste comigo uma única vez! Na, na, na, não arranjes desculpas! Julgavas que eu não dava por isso? Dei!

TIENNET - (mortificado) Brulette... peço-te que compreendas!... Um rapaz pode fazer certas asneiras sem que o seu coração tome parte nelas... São coisas da idade... coisas que uma rapariga como tu não percebe e...

BRULETTE - (interrompendo-o) Sendo assim, juras-me que nunca, mas nunca, o teu coração palpitou por outra que não eu?... Mas olha, Tiennet, que é uma jura sagrada o que te peço? ...

TIENNET -Uma jura sagrada?

BRULETTE - (séria) Tem cuidado com o que vais dizer! Tens de jurar-me em nome de Deus que nunca viste outra rapariga que te parecesse superior a mim! (Pausa) Então? (pausa)

Vejo que hesitas, Tiennet. Ainda bem, meu primo! A verdade só te engrandece na minha opinião. Se fosses capaz de mentir-me, desprezar-te-ia.

TIENNET - (muito sério) Brulette... visto desejares um juramento tão grave... é preciso que eu desça ao fundo da minha consciência... (outro tom) Houve uma rapariga que me pareceu superior a ti.

BRULETTE -Onde? Quando?

TIENNET - Foi há bastante tempo... bastante! Tínhamos ido à feira, o meu Pai e eu. No regresso, encontrámos uma carrocinha atolada na lama dum atalho. O meu Pai foi ajudar o lenhador que a conduzia. Foi preciso descarregar a carroça... e eu tive de pegar numa garota... - era quase uma garota! - que vinha doente. Esteve ao meu colo enquanto os homens tiraram a carroça da sua situação crítica. E fiquei maravilhado com ela! Era linda e tinha um ar de boa... Parecia uma imagem!... Foi a única rapariga que até hoje me pareceu valer mais que tu. "

BRULETTE - Onde vive essa rapariga? Como se chama?

TIENNET -Não sei, Brulette.

BRULETTE - Não sabes?

TIENNET - Nem o meu Pai nem eu lhes perguntámos nada. À despedida só dissemos uns para outros "até um dia, se Deus quiser". E foi tudo. Quando às vezes penso nela, dou-Lhe apenas o nome, dentro de mim "A rapariga dos bosques". E isto... isto posso jurar-to em nome de Deus!

BRULETTE - Não é preciso mais nada, Tiennet.

TIENNET -E então?...

BRULETTE - Contaste-me uma coisa linda, de que eu não te julgaria capaz. E obrigaste-me, por isso mesmo, a tomar a sério o que eu não queria que passasse duma brincadeira.

TIENNET - (suspenso) Brulette? ...

BRULETTE - A sinceridade com que me falaste, manda que te pague na mesma moeda, (pausa) Tiennet... tu conheces-me bem e sabes que sou vaidosa, frívola... e que não há nada melhor para mim do que dançar e folgar com dezenas de admiradores que fazem tudo o que eu quero. Mas o casamento para mim

- talvez por isso mesmo! - aparece como uma recompensa suprema, um bem sagrado que nos dá tudo mas que tudo nos merece em troca! Mais - merece e exige Tenho dezoito anos... sei que sou ainda muito nova... mas também sei que estou em boa idade para começar a pensar no futuro. No meu e no dos meus amigos

- e não há dúvida que tu és um dos maiores que tenho. A tua felicidade interessa-me imenso, Tiennet. Mas eu não ta posso dar. TIENNET - Brulette? ...

"No terreiro da aldeia, onde a música cessou, raparigas e rapazes, presos duma animação estranha, agitam-se e vibram com algo de insólito que Brulette e Tiennet não tardarão em notar"

BRULETTE - Não posso, Tiennet. Pessoalmente... entendes? Não sou rapariga que te convenha! Tu precisas duma companheira simples, de gostos modestos, sem ambições... uma rapariga para quem tu tenhas o valor que tens.

TIENNET - Queres dizer na tua... que não te sirvo?

BRULETTE - A culpa deve ser minha, Tiennet! Adoro a liberdade... não me interessa nada o estado de casada, as obrigações... os deveres!... E depois, a verdade é que o meu coração não sabe o que seja isso de amor!...

TIENNET -Não sabe? ...

BRULETTE - Não, Tiennet, não sabe!

TIENNET -Então... e o José?

BRULETTE - Sou apenas muito, muito amiga dele! Como sou muito, muito tua amiga! Mas só amiga!

TIENNET - Visto isso... a tua resposta, é não?

BRULETTE - (com doçura) Tem de ser não. Peço-te, primo!... Não penses mais em mim... como namorada! Não queiras casar comigo! Não estragues a nossa camaradagem!

Como amigo, tens o teu lugar ao meu lado, sempre!... Se voltares a insistir, agora que te falei a sério, então... com grande pena minha, serei obrigada a afastar-te de mim.

TIENNET - (num suspiro) Bem...

BRULETTE - (que notou enfim a efervescência reinante, muda de assunto) Tiennet... repara!... Que será que está a passar-se? O filho do Carnat deixou de tocar... e estão todos parece que exaltados...

TIENNET - (desinteressado) Vai além o Henrique. Se queres pergunta-se o que há...

BRULETTE - Acho melhor irmos até lá... Ficamos logo a saber!...

TIENNET - Já estás farta da minha presença? ...

BRULETTE - (numa repreensão sentida) Tiennet? ...

TIENNET - (vencido por completo) Vamos, Brulette.

"E ambos se integram na confusão reinante"

BRULETTE - (rindo, no meio de tudo) Mas que é isto? Que se passa? Que barulho é este?

O FILHO CARNAT - (de longe) Ê indecente o que querem fazer!... Aparece um desconhecido e estão todos dispostos a ouvi-lo a ele e a porem-me a mim de parte, quando o meu Pai me encarregou hoje de o substituir!...

1ª RAPARIGA- (esganiçada) Mas tu tocas muito mal, Carnat!...

1º RAPAZ- (alto) É um sarilho, não se consegue dançar nada com jeito!

1ª RAPARIGA- Ou tu não acertas com a gente, ou a gente não acerta contigo!

"E todos riem, divertidos"

2ª RAPARIGA- E depois desafinas que é um horror!

O FILHO CARNAT - (mesmo plano) Mas vocês ainda não pararam de dançar!...

1º RAPAZ- Tínhamos de aproveitar o dinheiro que pagámos ao teu pai, que faz tudo para te impingir, até isto! Mandar-te em vez de vir!

O FILHO CARNAT - (furioso) Estás a insultar o meu Pai, ou quê?

BRULETTE- (baixo e rápida) Oh, Tiennet, isto ainda dá sarilho!...

TIENNET - E é que não consigo perceber porque é que eles não querem que ele continui a tocar, se até agora remediou!...

BRULETTE - Espera... acho que está além, no meio dum grupo, outro tocador!

TIENNET - Outro tocador?... Quem será? HURIEL - (longe, tonitroante) Eh, gente! Não se aflijam que não há-de correr sangue!... Eu sou livre de dar o que entendo e quando entendo! E como vocês todos estão a ser levados por um aprendiz... agora vão ser arrastados por um Mestre!...

"Risadas e palmas"

TIENNET - (assombrado, reconhecendo a voz) Mas é o Huriel! Ê com certeza o Huriel!...

BRULETTE - Quem, quem?

HURIEL - (como antes) Tenho muito prazer em regalá-los com a minha música, oferecida, an?... vou tocar de graça!... E como é de graça, acho que ninguém tem o direito de se queixar! (jovial ao máximo) Meus Senhores... escolham pares!...

"alegria e regozijo"

TIENNET - Meu Deus! Mas é que é ele mesmo!...

BRULETTE - Quem, Tiennet?

HURIEL - (como antes) Tomem os seus lugares!... Vamos!...

O FILHO CARNAT - (furibwndo) Isto não fica assim!... É que vou buscar o meu Pai nem que seja ao inferno!...

HURIEL -Estão todos a postos?... Pois agora... é dançar que a música chegou!...

"E João Huriel principia a tocar, a tocar duma forma tal que todos são arrastados para uma alegria esfuziante, contagiosa"

BRULETTE - Vamos dançar, Tiennet?...

TIENNET - Vamos! (ri) Palavra que isto foi coisa que eu nunca pensei. Dançar ao som da gaita de foles tocada pelo João Huriel.

BRULETTE - Mas afinal quem é esse João Huriel? Estou farta de te perguntar e tu não me respondes!

"E agora, no meio de aplausos ensurdecedores, é Mestre Carnat quem surge a defender o que julga serem os seus direitos"

MESTRE CARNAT - (por sobre o tumulto) Então, vocês todos, os sem-vergonha, como se fossem uns pindéricos, aceitaram música de graça! Precisam de esmolas, precisam?

1º RAPAZ- Pelo menos "precisávamos" a tocar, Mestre Carnat!

MESTRE CARNAT -Não lhes bastava o meu filho, não?

2º RAPAZ - O seu filho tem de aprender a tocar, Mestre Carnat!

1ª RAPARIGA- Olhe, ele que aproveite o novo tocador! Que o oiça que é para saber como tem de fazer!

"Todos riem, zombando"

BRULETTE - (baixo, inquieta) Estou com medo que isto acabe mal, Tiennet!

TIENNET - Não te aflijas, Brulette! O João Huriel chega para eles...

MESTRE CARNAT - (furibundo) O meu filho não precisa de lições de ninguém, estão a perceber-me? E esse tocador dum raio, que não se sabe quem é nem donde vem, que desapareça daqui antes que a música de graça que ele deu lhe saia muito cara!...

"asswada"

1º RAPAZ-Eh, Mestre Carnat, isso é que é ser invejoso, hein? ...

TODOS - Invejoso, invejoso!...

MESTRE CARNAT - Eu já lhes dou a inveja!... (para João Huriel) Eh, Mestre tocador duma figa, vamos lá a saber... tem licença para tocar? Pagou a patente?

HURIEL - (avançando calmamente para ele) Mestre Carnat... - Bom, devo dizer que sei o seu nome pois o ouvi a todos os seus conterrâneos! Mestre Carnat - eu não estou ao par dos usos e costumes aqui desta terra... Contudo já viajei o bastante para conhecer a lei... E em parte alguma, na França, os artistas pagam patente! Tocar, é um direito!

"E agora todos ouvem atentos"

MESTRE CARNAT - Que é lá isso de artistas?

HURIEL - Essa agora? Artistas! Nós, os músicos, os tocadores!... Não percebe?

MESTRE CARNAT - Adiante!... Que história vem a ser essa do direito de tocar, an?

HURIEL - Não é história nenhuma, é a verdade apenas! Sou livre de tocar onde eu quiser sem pagar foro ao rei de França!

MESTRE CARNAT -Eu sei isso!

HURIEL - Então?

MESTRE CARNAT -Eu sei isso. Mas você, pelos vistos, é que não sabe que aqui, na nossa terra, e em todas as terras vinte léguas redor, os tocadores pagam uma licença ao corpo de menestréis para poderem exercer. E prestam provas antes de receberem os seus diplomas, está a perceber?

HURIEL - Sim... eu estou ao facto do assunto! E sei perfeitamente o que se embolsa... ou desembolsa, nessas tais provas... Por isso não os aconselho a experimentarem comigo... aliás, não tenho nada a ver com as vossas exigências! Não sou tocador profissional e não pretendo nada desta terra... nem das outras terras vinte léguas ao redor, entende? Toco por gosto onde e quando me apetece... e isto, fique sabendo, Mestre Carnat, não pode impedi-lo ... E já agora, tome nota do seguinte. Fui recebido Mestre em exame público... a sério...

hein? Não precisei dos favores de ninguém e muito menos das... das tais provas... Eu sou realmente um tocador em toda a parte... enquanto que o senhor e os seus confrades não passam daqui!...

"É? todos aplaudem".

BRULETTE - (sufocada) Espantoso! Nunca ouvi ninguém falar assim!...

2º RAPAZ - (entusiasmado) Bravo!... Bravo! Bonita figura, Mestre!

1º RAPAZ- Que rica ensinadela para o Carnat!...

1ª RAPARIGA- (delirante) Toque mais, senhor, toque mais!

2º RAPAZ- (rindo) O Carnat perdeu o pio!...

1º RAPAZ- Venha beber um copo com a gente, Mestre!...

TODOS -Toque! Toque!

HURIEL - (a dominar o tumulto) Amigos... amigos... amigos!... Amigos... desculpem... mas agora não toco mais!

"Desapontamento geral".

HURIEL - Desculpem e não levem a mal. Mas... (ri) é que eu também queria dançar!

Aplausos gerais".

HURIEL - Mestre Carnat... façamos as pazes está bem? Pegue na gaita de foles... tome o meu lugar... e toque para mim, hum?... Valeu?...

MESTRE CARNAT - Agora?...

HURIEL - Já lhe disse o que tinha a dizer.

MESTRE CARNAT- E já ofenderam o meu filho o suficiente...

HURIEL -Mestre?...

TODOS -(de vários planos) Toque, Carnat, toque!... Toque!.

MESTRE CARNAT - (condescendendo) Ninguém o merece... mas enfim...

TIENNET - (pasmado) Este Huriel! Este Huriel!...

"E mestre Carnat toca e a festa recomeça"

HURIEL - (admirando Brulette) Meu caro Tiennet... vejo contigo a mais linda rapariga que até hoje me foi dado contemplar! Dás-me licença que a minha primeira dança seja com a tua amiguinha?...

TIENNET - (picado) A minha amiguinha é. a Brulette!... Acaso este nome te diz alguma coisa?

HURIEL -Brulette?... Bru-let-te? ... Parece que esse nome não me é estranho!... (outro tom) Será acaso por muitas vezes o ouvir citar pelo meu amigo José Picot?

TIENNET - Creio que sim.

BRULETTE - (num súbito alvoroço) Senhor... senhor...?

HURIEL - João Huriel, para a servir!

BRULETTE - (aceitando) senhor João Huriel... já que fala em José... por acaso sabe o que é feito dele?

HURIEL - O que é feito dele? Não percebo!

TIENNET - (simples) O José desapareceu ontem e ninguém sabe para onde foi, o que me preocupa muito, a mim, à mãe dele... e aqui à Brulette.

HURIEL - Talvez à Brulette mais que a ninguém.

BRULETTE - Como?

HURIEL - (outro tom) Brulette... quer realmente saber dele?

BRULETTE - Decerto.

HURIEL - Bom... nesse caso, digo-lhe. O José está tão longe... que nestes tempos mais próximos não devem pensar em vê-lo.

BRULETTE -Ah!

HURIEL - Fica muito triste com a notícia, Brulette?

BRULETTE - Bastante.

HURIEL - (com súbita reserva) O José não me disse que tinha uma noiva tão linda...

BRULETTE - (altivamente) Mas eu não sou noiva do José! Nem do José nem de ninguém ...

HURIEL - Ah!... (numa súbita explosão) Então, Brulette... vamos dançar... (ri) vamos dançar e depois conversamos!...

"E a festa prossegue, no meio da maior animação, Brulette procura deixar de dançar, enquanto Huriel resista"

HURIEL -Não, Brulette, não!... Não pode deixar-me assim... a não ser que esteja a morrer de saudades por um ingrato que não teve pena de abandonar a mais linda rapariga que existe ao cimo da terra!

BRULETTE - (rindo) É que estou cansada! A sério!...

HURIEL - (lastimosamente) Quer ver-se livre de mim!

BRULETTE -Oh não, João!

HURIEL -Não?

BRULETTE - Não.

HURIEL - Meu Deus! Não dito dessa maneira... e com uma expressão dessas nuns olhos... Jesus! - nuns olhos capazes de fazerem perder a cabeça a um santo!...

BRULETTE - (entre risonha e grave) João? ...

"E de súbito, os sinos da igreja cantam as Trindades"

HURIEL - O toque das Trindades!... (outro tom, imperioso, gritante) Mestre Carnat... não toque mais! Não toque mais! Cale-se a música! Calem-se todos!

1º RAPAZ- (de longe) Que há?

1ª RAPARIGA-Que aconteceu?...

HURIEL - É o toque das Trindades! Pare a música, Carnat!...

VOZES - Pára a música! Pára a música!

"E a música cessa"

MESTRE CARNAT -Que é que temos? VOZES -São as Trindades! São as Trindades!

"Os sinos povoam o ar e as almas de suavidade, de misticismo"

HURIEL - (para toda a gente) Todos de joelhos... todos de joelhos!... Oremos, meus amigos! Oremos! Agradeçamos ao bom Deus o dia que foi servido de nos dar a viver!...

"Na tarde calma, as orações sobem ao céu, ao ritmo do badalar suavíssimo"

HURIEL - Queridos amigos... chegou a hora de eu me ir embora. Antes, porém, quero agradecer-lhes a maneira como me receberam. Foram extraordinários e estou-lhes muito agradecido. Muito. Nem sabem quanto!... Obrigado a todos! E até outro dia, se Deus quiser.

2º RAPAZ- Já vai deixar-nos?...

HURIEL - Já devia ter ido!... Mas podem gabar-se de me haverem feito, pela primeira vez na vida, esquecer os deveres... por uma gota de felicidade!... (pausa para efeito) Uma gota de felicidade tão grande que sou capaz de voltar para ver se ela existe de facto... ou se não passa duma ilusão!...

"Na noite deste dia quando Brulette vai à fonte"

BRULETTE - (impressionada) Oh, Tiennet... esse Huriel é muito amável... muito!... Mas é também muito audacioso... Muito!

TIENNET - Brulette? ...

BRULETTE -An?

TIENNET - Brulette se ele te ofendeu nalguma coisa, estou pronto a dar-lhe uma lição!

BRULETTE -Oh, não!... (pausa) Ê melhor esquecer aqueles que nos deixam.

TIENNET - Dizes isso por causa do José? ...

BRULETTE -Do José?... Oh, não!...

TIENNET - Então?

BRULETTE - Nada, nada.

BRULETTE - (pouco depois) Tiennet? ...

TIENNET -An?

BRULETTE -Tiennet... quem é ele realmente?

TIENNET -Já sabes que se chama João Huriel!

BRULETTE - Não é isso.

TIENNET - Então?

BRULETTE - Quero saber... o que faz!

TIENNET -O que faz? Olha, é almocreve.

BRULETTE - (incrédula) Não! ...

TIENNET -Sim! ...

BRULETTE - Anda de terra em terra... a vender coisas?

TIENNET -Anda de terra em terra, ou melhor, de floresta em floresta, a levar carvão!

BRULETTE - Carvão! Que horror! (reage e ri) Então deve andar sempre todo mascarado!

TIENNET - Tal qual! Quando o conheci, metia medo.

BRULETTE - Palavra?

TIENNET - Palavra.

BRULETTE - Mas hoje ele estava de ponto em branco!

TIENNET - Tinha-se lavado e vestido convenientemente.

BRULETTE - (Sonhadora) É um belo rapaz.

TIENNET - Achas?

BRULETTE -Boa figura... lindos olhos e um sorriso!...

TIENNET - (despeitado) Já agora diz e um fôlego!...

BRULETTE - E tens razão!... Toca maravilhosamente ...

TIENNET -Bonito!... (fulo) Não me digas que esse diabo negro te enfeitiçou!

BRULETTE - (cada vez mais sonhadora) Não sei... mas gostei de conhecê-lo!... Para te ser franca... nunca tinha visto um rapaz tão simpático em dias de vida!...

"Alguns dias mais tarde, em casa do tio Brulet"

TIENNET - (da porta) Brulette? ...

BRULETTE -És tu, Tiennet?

TIENNET -Sim, sou eu...

BRULETTE - (vaga) Queres alguma coisa?

TIENNET - (aproximando-se, perplexo) Eu?... Eu? ... Mas... tu não mandaste chamar-me?

BRULETTE -Ah... é verdade! (pausa) Senta-te. Senta-te!

"Tiennet obedece"

BRULETTE - Desculpa, Tiennet. Estava distraída. E além disso... (resoluta) Bem, sabes o que é?

TIENNET - Não.

BRULETTE - Recebi carta do José.

TIENNET - Outra?

BRULETTE -Não... Não é outra!

TIENNET - Então?...

BRULETTE - A carta não é dele.

a carta é dele... mas

que foi uma pessoa (pausa para efeito)

TIENNET -Mau!

BRULETTE- Bom... a carta é dele... mas não escrita por ele!

TIENNET - Então?... BRULETTE - Julgo que foi uma pessoa amiga que a mandou... (pausa para efeito) Parece que o José está muito doente. TIENNET - Muito doente? com quê? BRULETTE - Não explica. Ou melhor, diz aqui que se trata duma febre de primavera... e que não devemos afligir-nos por causa disto. TIENNET - (após uma pausa) Há quanto tempo é que o José se foi embora?

BRULETTE - Então... passou o verão, passou o outono, passou o inverno... começou a primavera... Ao certo, certo, não sei. Talvez uns oito meses?

TIENNET - Talvez.

BRULETTE -A verdade é que o tempo não conta, Tiennet. O que conta agora...

TIENNET - É a doença do nosso amigo, eu sei!

BRULETTE - Sim, é a doença do José. Se tu soubesses quanto estou preocupada!

TIENNET - Mas se a carta garante que não tem gravidade, a tal doença!?

BRULETTE - (suspensa) Tiennet?...

TIENNET -Sim?...

BRULETTE - Tiennet... é que eu tive um sonho.

TIENNET -Um sonho?

BRULETTE - Um sonho horrível!... (cada vez mais trêmula) Tiennet... há-de haver uma semana... sonhei com... o João Huriel.

TIENNET - Com o almocreve? A que propósito?

BRULETTE - Ele estava a entrar aqui... Trazia a gaita de foles do José debaixo do braço... e vinha anunciar-nos a morte dele.

TIENNET - A morte dele...?

BRULETTE - Desde aí... fiquei triste como a noite! E tão arrependida, tão arrependida de nunca ter respondido ao nosso pobre amigo.

TIENNET - Mas respondido para onde, se tu não sabes onde é que ele está? ... (de súbito aterrado) Santo nome de Deus! ...

BRULETTE - (pasmada) Que é que tu tens, Tiennet? Estás pálido... e a tremer!...

TIENNET - (dês falecido) Olha... olha, Brulette! Além, pela janela!...

BRULETTE - Jesus!...

HURIEL - (à janela) Boa-noite!... Dão-me licença que entre?...

BRULETTE - (assombrada) João!...

TIENNET - (numa resolução) vou abrir-te a porta... espera aí!

BRULETTE - (baixinho) Nossa Senhora se compadeça de mim!...

"E João Huriel entra em casa do tio Brulet"

HURIEL - (da porta) Posso? BRULETTE - Entre!... HURIEL - (aproximando-se) Boa-noite!

BRULETTE - (num cicio) Boa-noite. HURIEL - Receio vir incomodar... BRULETTE - Não, nada. Sente-se...

HURIEL - Obrigado, (senta-se)

BRULETTE - (suspensa) João... ele... morreu?

HURIEL -Quem?... O José?... Não.

TIENNET - Mas está muito mal?

HURIEL - Bastante.

BRULETTE - Foi por isso que veio?

HURIEL - Foi por isso que vim.

BRULETTE -Diga... diga tudo. Seja o que for, diga.

HURIEL - Direi... quando o dono da casa estiver presente. É com ele que devo falar.

BRULETTE - Refere-se ao meu avô?

HURIEL - Julgo que sim. Quero que me conheça e que as minhas palavras sejam por ele aceites como a expressão duma verdade absoluta.

BRULETTE - O meu avô anda lá fora a regar a horta... mas o Tiennet vai chamá-lo num instante...

HURIEL - Brulette... sabe que eu esperava que me recebesse com... com maior agrado, com outra satisfação?...

BRULETTE - Quando um dos meus amigos de infância está com certeza às portas da morte?... Oh, João nunca imaginei que tivesse de mim uma tão fraca opinião!...

"Então Brulet acorre açodadamente a ouvir o que querem dizer... "

TIO BRULET - O meu amigo veio então de longe propositadamente para falar comigo acerca do José Picot que, segundo acaba de me dizer aqui o Tiennet, está muito doente?

HURIEL - Assim mesmo.

TIO BRULET - Pois sente-se, sente-se e conte o que tiver a contar!

"Sentam-se todos"

TIO BRULET - Deseja comer ou beber alguma coisa?

HURIEL - Mais logo, talvez. Agora queria, antes de mais nada, apresentar-me como deve ser... para que o senhor... para que todos, aqui, saibam até que ponto devem fazer fé nas minhas palavras.

TIO BRULET - Diga.

HURIEL - Chamo-me João Huriel e sou almocreve de profissão. O meu Pai é Sebastião Huriel, a quem chamam "O grande Lenhador"... tocador de nomeada e muito estimado nos bosques de Bourbon... (outro tom) Eu sei que, para conquistar mais facilmente a confiança das pessoas, devia andar vestido doutra maneira, arranjado como aliás posso... Mas os almocreves costumam...

TIO BRULET - (interrompendo) Os costumes dos almocreves conheço-os eu!... E são maus ou bons segundo quem os pratica!... Já sou velho, meu rapaz, não ando no mundo por ver andar os outros! Além disso, quando era novo, viajei bastante... e lidei com muitos almocreves. Sei perfeitamente que são jogadores, bêbados, devassos, ladrões...

HURIEL - (rindo) Nem todos, senhor Brulet, nem todos!...

TIENNET - (acudindo) O Huriel é boa pessoa, digo-lhe eu que...

TIO BRULET - (interrompendo-o) Tá-tá, tá, aqui o senhor João Huriel não precisa de defensores, tem boca para falar, hein?...

HURIEL - Obrigado por estar disposto a considerar que não serei nem jogador, nem bêbado, nem devasso, nem ladrão...

TIO BRULET - Hum!... Hum!... Está bem... mas é almocreve... e anda mal vestido e enfarruscado por gosto, o que acho um péssimo hábito! Um hábito antigo... generalizado entre todos os da sua profissão só para que possam confundir-se uns com os outros. É de propósito, eu sei. Como andam andrajosos e sujos são parecidos e nunca ninguém sabe, se aparecer alguma queixa contra um, qual foi ao certo o autor da tratantada!...

HURIEL - (ri)

TIO BRULET - bom... mas não deixa de ser bonito ver que há homens assim unidos, todos sujeitos a uma lei de fraternidade pouco vulgar. Mas daí a inspirarem confiança aos outros vai uma grande distância!...

Eu cá por mim, digo-lhe: almocreve na minha família, não queria! Se me aparecesse aí algum a fazer olhos bonitos à minha Brulette, corria logo com ele!

BRULETTE - (de 2º plano, encavacada) Oh, avô!...

TIO BRULET - (num esforço) Corria logo com ele!...

HURIEL - (com certa doçura) Não vale a pena estar a preocupar-se com um caso tão pouco provável... Os almocreves não costumam andar pelos povoados a fazer visitas...

TIO BRULET -Mas o senhor está aqui!

HURIEL - (grave) E isso que tem, senhor Brulet?... Eu não disse uma única palavra que permita a quem quer que seja supor-me um homem livre... Posso ser casado, não é verdade?... (pausa) A minha visita a esta casa foi determinada apenas, senhor Brulet, pela muita amizade que dedico ao José Picot...

BRULETTE - (atalhando) Acho mesmo que não deve perder mais tempo a falar de coisas sem interesse!

HURIEL - De coisas sem interesse?...

BRULETTE - Sem interesse... comparadas com a nossa ansiedade em relação ao José!

HURIEL - (numa súbita reserva) Desculpe... tem imensa razão. O José está muito doente... tão doente que eu resolvi procurar a causadora do seu mal a fim de perguntar-lhe:

- Quer ir curá-lo?...

TIO BRULET -Que história vem a ser essa?... Como é que a minha neta pode curar o José, se não sabe nada de medicinas?

HURIEL - Senhor Brulet... se eu ousei falar de mim antes de falar do José... foi porque tinha de abordar certos assuntos bastante delicados... que decerto não seriam bem aceites sem preparação... Agora, se me julgam digno de crédito, tomarei a liberdade de expor aquilo que penso.

BRULETTE - Explique-se, senhor João Huriel. Não se acanhe! É-me completamente indiferente o que julgue de mim.

HURIEL - De si, formosa Brulette, não julgo senão bem... Não é com certeza por culpa sua que o José a ama... e se você lhe corresponde no mais íntimo do seu coração, ninguém de certo irá censurá-la...

BRULETTE -E depois?

HURIEL - Depois? ... Bom, antes do "depois" quero que saibam como vão as coisas entre mim e ele desde que o persuadi a ir aprender na minha terra essa música que o entolece.

TIO BRULET -Não sei se você lhe teria prestado um bom serviço. Se ele queria estudar música, que a estudasse aqui, sem afligir nem desgostar ninguém.

HURIEL - Ele disse-me - e eu percebi que era verdade! - que os outros tocadores da região não o suportariam.

TIO BRULET - Oh!? ...

HURIEL - Mas, além disso, havia um outro motivo que me obrigava a animá-lo a partir.

BRULETTE - Qual?

HURIEL - (com um sorriso amargo) É que a música, a verdadeira música, é uma erva selvagem que não se dá bem nestas terras cultivadas... Eu não sei dizer-lhes porquê... mas é assim! Cresce melhor entre o tojo... e a giesta... e o rosmaninho... nas sombras dos bosques... nas profundezas das ravinas... Nasce nas alturas, renovando-se como as flores na primavera... E de lá sai para toda a parte... a encher as terras incapazes de a criarem! (mais profundo) É de lá que vêm todas as belas coisas que os outros tocadores executam... Mas como estes são preguiçosos ou avarentos e os povos que os ouvem pouco exigentes, capazes de se contentarem sempre com o mesmo, eles não cuidam de se enriquecer buscando novos regalos. Vão até nós uma vez e bebem na fonte o que podem, dando-se por satisfeitos para a vida toda. E sabem o que acontece? Estragam as nossas velhas árias, deturpam-nas... e não se preocupam nem em corrigi-las nem em aprender outras que vão surgindo!... (pausa para efeito) Foi por isso que eu animei o José a ir comigo... Um rapaz com as qualidades dele, naquela fonte imensa, pode ir mais longe que todos os outros... pode encher toda a terra de França com a mais bela música do mundo!

TIO BRULET - Está muito bem, senhor Huriel. Até aí percebo eu! Mas... e depois?

HURIEL - (que não responde directamente) É com o meu Pai que o José está a aprender. O meu Pai que o ensina e cuida dele como se fosse também seu filho. O meu Pai, para quem os instrumentos de música não têm segredos e que nas horas de descanso, quando pára na sua dura faina, enche os bosques com os sons mais bonitos que é possível ouvir... como eu nunca tinha ouvido antes de conhecer o José.

TIENNET - (atalhando) Desculpa, Huriel. Mas não te parece que chegou a altura de explicar o que se passa realmente com o José? Anunciaste-nos a sua moléstia... e nunca mais disseste nada a esse respeito. Estamos num sobressalto crescente!

HURIEL - Tens razão, Tiennet. Eu digo já. (outro tom) A vida, lá em cima, nas montanhas, não é tão doce e cômoda como aqui, já se vê. E o José, conquanto rodeado dos maiores cuidados, cansou-se talvez na ânsia de aprender o mais depressa possível a tocar como deve ser. Soprar nas nossas gaitas de foles de maneira a encher os sacos que são enormes, como sabem, e a obter na justa regulação do ar os sons mais bonitos, com a medida que devem ter, é muito fatigante. (suspira) E o José começou a ter febre... a tossir... e a cuspir sangue!

BRULETTE - Jesus!...

TIENNET - O meu Pai percebeu logo o que ele tinha e tratou de cuidar dele imediatamente. Proibiu-o de tocar e pô-lo em repouso absoluto.

TIO BRULET -E daí?

HURIEL - Bom... o resultado foi ele melhorar por um lado e piorar por outro. Deixou de tossir e de cuspir vermelho... mas em contrapartida caiu num estado de tristeza, de desinteresse por tudo, que nos faz temer pela vida dele!

TIO BRULET - Está assim tão mal, o rapaz?

HURIEL - Eu andei por fora cerca dum mês. Voltei a casa há oito dias... e custou-me a reconhecer o José, de tão magro e desfigurado! Quis animá-lo, convencê-lo a dar um passeiozinho, a ver se lhe abria o apetite... Não conseguiu pôr-se de pé!...

BRULETTE - Oh, meu Deus!

HURIEL - E ainda me assustei mais quando percebi que ele está disposto a deixar-se morrer!

TIENNET - A deixar-se morrer?

HURIEL - Foi ele próprio que mo disse, com as lágrimas nos olhos.

BRULETTE - (anelante) Que lhe disse ele, João?

HURIEL - Mais ou menos isto: - Estou muito mal, vou acabar longe da minha mãe, dos meus amigos e daquela a quem tanto desejava mostrar que valho alguma coisa... Era preferível que o teu Pai não alongasse a minha agonia proibindo-me de tocar... A música ajudava-me a suportar as saudades que sinto... (outro tom) Não chore, Brulette!... Não chore... Ainda não está tudo perdido.

BRULETTE -Não está...?...

HURIEL - Não. Deixe-me falar até o fim, valeu?...

BRULETTE - (num cicio) Sim...

HURIEL - (prosseguindo) Quando percebi a angústia dele, falei com o meu Pai que em tudo concordou comigo, e fui à vila mais próxima buscar um médico.

TIENNET -E qual foi a opinião do médico?

HURIEL - O médico observou-o cuidadosamente e no final disse que a maior doença dele não estava no peito, mas na cabeça!

TIO BRULET -Na cabeça?

HURIEL - Excessos de imaginação... a fazer duma coisa relativamente simples um caso gravíssimo! Ou seja: o José estava cansado e fraco, deve ter apanhado alguma ponta de ar, veio-lhe a febre, a tosse... e cuspiu o tal sangue. Mas o mal passou. O que não passou foi a fraqueza e o convencimento que ele arranjou de estar às portas da morte. Todos sabem que o José não é um rapaz como os outros. Tem uma maneira de ser diferente, uma sensibilidade esquisita... E isto meteu-lhe aquele desalento lá dentro, tão grande que não consegue livrar-se dele e reagir.

Por isso o médico aconselhou, além do repouso, distracção! E como distracção é uma coisa que nós lá nos nossos bosques não podíamos dar-lhe - ou melhor - nós não podíamos dar-lhe a única distracção capaz de lhe valer... resolvi trazê-lo para aqui!

BRULETTE - (suspensa) Então... onde é que ele está? Se o trouxe, onde o deixou?

HURIEL - Um momento, Brulette, não se precipite! Eu apenas disse que resolvi trazê-lo!...

BRULETTE - (que percebe) Ah!

HURIEL - Perguntei-lhe se queria vir, disse que sim. Arranjei uma mula com uma espécie de maça para ele vir deitado... Ao fim do primeiro dia de viagem... teve um ataque de tosse... e sangue! Assustou-se ele... e assustei-me eu! Se me morria no caminho? - pensei. E voltei para trás!

TIO BRULET - Entendo que procedeu muito bem, senhor Huriel! Se lhe acontecia alguma coisa, que responsabilidade!

HURIEL - Confesso-lhe que não tive medo por mim... mas por ele, a quem os movimentos da montada pareciam fazer sofrer atrozmente.

E foi depois disso que o meu Pai me aconselhou a vir aqui buscar alguém de família, alguém capaz de distraí-lo ou de lhe restituir a coragem bastante para recomeçar a viver... tenha ou não tenha forças suficientes para voltar a tocar.

TIENNET - E foi por isso que decidiste vir ter com a Brulette?

HURIEL - Eu não decidi... foi ele que decidiu! (pausa) O meu Pai falou comigo diante dele, julgando-o adormecido. E então o José suplicou, sentando-se na cama - coisa que já não acontecia há que tempos: - "Brulette!... Se for possível... se ela quiser... se o tio Brulet deixar... tragam a Brulette"...

"longe um cão uiva plangentemente"

HURIEL - E por isso vim... e por isso aqui estou! Agora... o senhor Brulet dirá o que se deve fazer.

BRULETTE - (como quem desperta dum sonho) Senhor João Huriel... o meu avô não pode negar uma coisa dessas... Portanto, irei.

HURIEL - Ê o seu coração que assim o determina, Brulette?

BRULETTE - É o meu coração que o manda, sim. (outro tom) Não, eu não sou noiva do José... nem sua prometida, sequer. Não há nada entre nós... nada a não ser o mais importante de tudo. Foi a mãe dele que me amamentou e me criou! (numa reacção) E não percebo, senhor João Huriel, porque é que afirma tão categoricamente que o José está apaixonado por mim! Acaso o meu amigo de infância o encarregou de me falar em nome dele?

HURIEL - Encarregado ou não, procedi como melhor me pareceu. Trata-se de ajudar alguém que sofre!

BRULETTE - Não receia levar essa ajuda longe demais?

HURIEL - Não percebo onde quer chegar.

BRULETTE - Se o José não lhe disse que me tinha amor... porque parte do princípio que ele o sente?

HURIEL - Porque há coisas que não permitem dúvidas!

BRULETTE - Que coisas?

HURIEL - Quer que lhas diga?

BRULETTE - Decerto.

HURIEL - O José não fala senão em si. É por si que deseja triunfar. É para si que quer ser o maior tocador francês. El com saudades suas que definha. Basta-lhe?

BRULETTE - Basta. No entanto, penso que o amor do José é mais por ele próprio que por mim... Mas nem por isso deixarei de fazer o que estiver ao meu alcance. E se o meu avô achar bem, vou falar com a Mariton para lhe contar o que se passa e saber se ela quer ir comigo vê-lo.

TIO BRULET - (atalhando) Ah, não, não vale a pena falar com a Mariton!...

BRULETTE - Não?

TIO BRULET - Não. Acho que nem deves contar-lhe nada por enquanto. Vais afligi-la sem necessidade,

BRULETTE - Mas, avô?

TIO BRULET - Por motivos que eu conheço, sei que a Mariton neste momento não pode fazer nada pelo José. Por isso acho melhor evitar apoquentá-la mais...

BRULETTE -Mas então, como há-de ser?

TIO BRULET - vou eu contigo, filha, vou eu contigo!

BRULETTE - E se ele estiver muito mal, avô?

TIO BRULET -Nessa altura escrevemos à Mariton para ela, custe o que custar, ir ver o filho pela última vez.

HURIEL - Espero em Deus que não há-de ser preciso.

TIO BRULET - Trata-se pois de partir o mais depressa possível.

HURIEL - Se quiserem dar-me a honra de aceitar a minha companhia, vamos pelos atalhos que eu conheço como os meus dedos e chegamos lá em dois dias.

TIO BRULET - É uma boa idéia!... (outro tom) Brulette, arranja a ceia, filha...

BRULETTE - Sim, avô. (afasta-se, a obedecer)

TIO BRULET - Vamos comer, Huriel, e combinar as nossas coisas.

HURIEL - Sim senhor.

TIO BRULET - (rindo) E agora, amigo Huriel, vou dizer-lhe que não é para mim um desconhecido. Deixei-o falar... para formar a minha opinião a seu respeito...

HURIEL -Como?

TIO BRULET - Ê que em tempos que já lá vão dei-me muito bem com o seu Pai, com o Sebastião Huriel!...

"e enquanto ceiam, a conversa decorre mansamente"

HURIEL - (pasmado) Então o senhor Brulet conhece o meu Pai?

TIO BRULET - Conheci-o, conheci-o... quando ambos éramos rapazes!

HURIEL - Tem graça! Lembro-me agora perfeitamente de ouvir o meu Pai dizer, certa vez em que o José falou no nome da Brulette, que tinha tido um amigo chamado Brulet!... (ri) Era então o senhor?

TIO BRULET - Era eu! Já lá vão uns quarenta anos, talvez... Andei a rachar lenha durante uns tempos na floresta de Saint-Amand... e um dos meus companheiros chamava-se Sebastião Huriel. E tocava que era uma maravilha!...

HURIEL - Aprendeu muito novo!...

TIO BRULET - Recordo-me tão bem dele!... Era um tipo alto, vigoroso, bem parecido, simpático e generoso... (outro tom) Está bem conservado?

HURIEL - Muito bem! (ri) Há quem diga que parece meu irmão... (contente) Mas é espantoso, um encontro assim!...

TIO BRULET - O mundo é pequeno, meu rapaz!... (outro tom) Assim que você se apresentou, eu calculei que não podia ser senão o filho do meu velho amigo... mas quis ouvi-lo. Deixei-o falar para ver se o filho se parecia com o Pai!

HURIEL - Espero não o ter desiludido.

TIO BRULET -Não desiludiu! Por isso é que está aqui sentado, à minha mesa!... Vamos, sirva-se à sua vontade. É comer enquanto houver! (outro tom) Brulette, deita vinho ao Huriel... (novo tom) Não te importas que te trate por tu, não?

HURIEL - Agradeço-lhe, senhor Brulet.

TIO BRULET - Tio Brulet, tio Brulet para toda a gente e para ti também.

BRULETTE - (serve o vinho) Mais?

HURIEL - Está muito bem assim, Brulette! Já chega, obrigado.

TIO BRULET - Então e quando partimos? Amanhã de manhãzinha?

TIENNET - (chamando) Tio Brulet?...

TIO BRULET - Que temos, Tiennet?

TIENNET - Tio Brulet... sabe no que estou a pensar?

TIO BRULET - Não! Não mo disseste... e eu não adivinho!

TIENNET -Tio Brulet... tenho receio de que a viagem lhe faça mal!

TIO BRULET -A mim?

TIENNET - Ê muito longe... os caminhos são maus... é capaz de se cansar demais!

TIO BRULET - Não digo que não, já estou velho para andanças. Mas quem há-de acompanhar a Brulette?

TIENNET -Eu, se o tio não vir nisso qualquer inconveniente!

TIO BRULET -Tu? ...

BRULETTE - Por acaso acho boa idéia!... Eu também tenho medo que o avô não se sinta bem...

TIO BRULET - Hum? ...

HURIEL - A mim, pessoalmente, a idéia parece-me excelente! Nós três desembaraçamo-nos mais depressa, sempre temos melhores pernas! E quanto à Brulette, não estará mal acompanhada. Tenho uma irmã, mais ou menos da idade dela, que ficará encantada se lhe puder fazer as honras da sua cabana!

TIENNET - Cabana?

HURIEL - (rindo) Não lhes oculto que nós, nos bosques onde vivemos, não temos casas de pedra e cal!...

TIENNET - Então?

HURIEL - Então cada qual constrói a sua habitação com ramos secos e folhagem... Não te recordas de eu te ter dito, quando nos conhecemos, que não sabíamos o que fosse esse conforto sem o qual vocês aqui não podem passar?

TIENNET - Recordo. Mas mesmo assim pensei...

HURIEL- que eu não dizia a verdade? Pois era a verdade! As nossas camas são no chão, sobre folhas secas...

TIO BRULET- (rindo) Nada cômodas para a minha idade, nada cômodas!... Por isso mesmo a idéia do Tiennet não me desagrada!...

TIENNET - Quer que eu vá em seu lugar?...

TIO BRULET - Sabes... é que o corpo já me pede descanso... E além disso, suponham que eu adoecia?... Na, a prudência manda-me que fique. Para mais a Brulette vai muito bem entregue ao primo... e também a ti, Huriel!

HURIEL - (agradece)

TIO BRULET - Já se sabe que conto contigo para ajudares o Tiennet a defendê-la de todos os perigos!

HURIEL - Pode ficar descansado, tio Brulet! (grotesco) Hei-de fazer os possíveis para não me deixar morrer... que é para que nem por cima do meu cadáver possa haver quem seja capaz de atingir a sua neta!

"Em plena floresta, subindo para as montanhas"

BRULETTE - (apreciadora) Isto aqui é bonito deveras!... Que agradável que está!

HURIEL - (contente) Não é? Então não tive razão em não querer almoçar na estalagem da Ronda?

BRULETTE - Acho que sim!

HURIEL - E ainda não viu o que eu trago ali no cesto!... (afastando-se para ir buscar o cesto ao dorso do cavalo) Tenho a impressão de que a Brulette é capaz de gostar dum cabrito que ali vem... (de longe) E duns pães feitos pela minha irmã que no fim de quinze dias ainda são melhores do que ao saírem do forno! (outro tom) Eh, quieto, Clarim! Deixa tirar o cesto... (aproxima-se) E de nozes, gosta?

BRULETTE - O meu avô quando vai às feiras costuma sempre trazer-me. Gosto muito!...

HURIEL - Óptimo, óptimo!... (pausa) Pronto, aqui está o cesto... Eu arranjo tudo num instante. só ir lavar as mãos além, no ribeirinho... (afasta-se)

BRULETTE - (respirando fundo, regaladamente) Mmmmm... que bom que aqui está!... E que bem que cheira! (ri) Nunca me tinha afastado tanto de casa!...

HURIEL - (de longe) A água está uma maravilha!... Nem apetece tirar as mãos cá de dentro!

" E Brulette ri num trinado que se liga bem com o chilrear da passarada -"

HURIEL - (aproximando-se) Uma delícia ...

BRULETTE - (irônica) Ninguém dirá. HURIEL -O quê?

BRULETTE - Ninguém dirá!... Se a água estava assim tão boa, porque é que não lavou a cara?...

HURIEL -Eu?

BRULETTE - Sim! Ao menos para eu ver se é a mesma do tocador que fez as nossas delícias na festa de São João!...

HURIEL - (reservado) Ah, não!... É bom que se vá habituando à minha cara de todos os dias...

BRULETTE - Habituando para quê?

HURIEL - como que sufocado de súbito) Tem razão... Habituar-se, para quê? Uma rapariga como a Brulette nunca pode ter interesse em se habituar à cara paga dum almocreve... (reage) Motivo de sobra para eu não ter de lavar a cara só para lhe ser agradável!

BRULETTE - (picada) Não se trata de me ser ou não agradável!

HURIEL -Então?

BRULETTE - Não percebe que o mau aspecto dum companheiro é o suficiente para tirar o apetite a alguém?

HURIEL - Ah... não tinha pensado nisso! Mas não faz mal. Como não quero impedi-la de comer uma boa refeição, deixo-a aqui muito bem acompanhada pelo seu primo... e vou lá para diante, para o pé da água...

BRULETTE - (tentando detê-lo) Mas... eu estava a brincar!

HURIEL - A brincar se dizem muitas verdades que importa conhecer. Não se aflija. Eu não costumo incomodar-me com tais ninharias. Coma, coma sossegada. Quando acabar, se quiser pode dormir um bocado. É a hora do calor e não nos convém ir apanhá-lo por aí acima. (outro tom) Conto, Tiennet, que veles o sono da nossa princesa...

TIENNET - De certo, (outro tom) E tu?

HURIEL - Eu, quando for preciso, cá estarei... (afasta-se) Até já.

BRULETTE - Oh, meu Deus! Parece-me que o ofendi!...

TIENNET - Ele é assim, não te preocupes. Deixa-o lá. Come e dorme descansada que ele, quando lhe passar a telha, volta!

"Duas horas volvidas, na tarde quente que as sombras das árvores adoçam ao lado de

Tiennet adormecido"

HURIEL, -(sentando-se) Pff!... Que bem que ele tomou conta de si, Brulette! Não haja dúvida! Valeu a pena eu recomendar-lhe que a guardasse de todos os perigos!

BRULETTE - Não havia perigos. Eu estive sempre acordada.

HURIEL - Porquê?

BRULETTE - Ora porquê? ... Naturalmente porque não consegui adormecer.

HURIEL - Aborrecida?

BRULETTE - Preocupada.

HURIEL - com quê?

BRULETTE - (num suspiro) com várias coisas.

HURIEL - (indeciso) Brulette... dá-me licença que lhe faça uma pergunta?

BRULETTE - Diga.

HURIEL - Que espécie de conduta tenciona manter junto do nosso amigo José?

BRULETTE - (após uma breve pausa) Interessa-lhe assim tanto sabê-lo?

HURIEL - Se não interessasse, não falaria no assunto.

BRULETTE - Antes de responder, explique-me a sua idéia...

HURIEL - Nada mais simples. Sou muito dedicado ao José... e nunca perdoaria a mim mesmo levá-la até junto dele se a Brulette tencionasse iludi-lo.

BRULETTE - Iludi-lo? Mas iludi-lo como?

HURIEL - Fazendo-o crer em sentimentos falsos!

BRULETTE - (reservada) Senhor João Huriel... os meus sentimentos são comigo e com a minha consciência. Creio que não lhe devo mais explicações!

HURIEL -Mas...

BRULETTE - (atalhando) Eu já me meti na sua vida, por acaso?... Já lhe perguntei com que direito faz a corte a uma rapariga sendo casado?

HURIEL -Casado?... Mas... está a falar comigo?

BRULETTE - Pois estou.

HURIEL - Julga-me casado?

BRULETTE - Não foi você mesmo que o disse ao meu avô, quando ele, supondo que ia pedir-me em casamento, tratou de o repelir?

HURIEL -Não, Brulette. Eu o que disse ao seu avô, se bem me recordo, foi que não tinha pronunciado uma única palavra que permitisse a quem quer que fosse julgar-me um homem livre...

BRULETTE - (sufocada) Mas lembro-me muito bem que o senhor perguntou assim "Posso ser casado, não é verdade"?...

HURIEL - (docemente) Não passava duma hipótese... (pausa) Talvez um dia me compreenda, Brulette... e perceba que não sou homem para desejar uma mulher sem que esta primeiro me tenha dado o coração...

BRULETTE - (bruscamente) Deixemos isso que não tem agora qualquer importância.

HURIEL - Foi a Brulette que abordou o assunto...

BRULETTE - Basta.

HURIEL - Prefere responder ao que lhe perguntei há pouco? Tenciona enganar o José e tentar salvá-lo com demonstrações dum afecto que não corresponde aos seus verdadeiros sentimentos?

BRULETTE - O que tenciono fazer diz-me respeito a mim!

HURIEL - (gravemente) Brulette... não seja má! Repare que não estou a interrogá-la por curiosidade... ou indiscrição. Não!... Interesso-me realmente, e muito, pelo José. Mas no fundo... talvez eu tenha motivos particulares para desejar saber se o seu coração está livre... ou se não ama o José porque gosta doutro.

BRULETTE -Que outro?

HURIEL - Talvez do seu primo, tão serenamente adormecido aí ao seu lado...

BRULETTE - (reagindo) Pois nada saberá, senhor almocreve! Sou senhora do meu coração e não lhe devo a si nenhumas explicações... nem mesmo que namore uma dúzia de rapazes ao mesmo tempo! Por isso agradeço-Lhe que não torne a procurar saber o que não é da sua conta!...

TIENNET - (num bocejo, a despertar) Oh... oh... olha!... Adormeci!... Imagina! O Huriel já aqui está!... Dormi durante muito tempo?

BRULETTE - (ainda muito mal disposta) Bastante!

TIENNET - Então já é tarde?...

HURIEL - (num tom preocupado) Se não é tarde ainda são pelo menos horas e mais que horas de nos pormos de novo a caminho. Vejo do lado do nascente umas nuvens que não me pressagiam nada de Bom.

TIENNET - Oh... está uma tarde tão bonita!...

HURIEL - O que não quer dizer que de repente não desabe em cima de nós uma trovoada de se lhe tirar o chapéu. Acontece muito, nesta região. E o ar está pesado, quente... Vamos embora, vamos embora não haja alguma surpresa! Convém-nos passar a ribeira Joyeuse antes que anoiteça...

"E as nuvens descem sobre a floresta e uma brusca tempestade de verão desaba"

HURIEL - Eu não lhes disse?... Vejam como em pouco mais de duas horas o tempo se transtornou, hein?

TIENNET - A trovoada não tarda a passar... Já se vê o azul do céu, além...

HURIEL - Pois é, estas tempestades são assim, súbitas e violentas... (ri) O tempo, aqui, parece-se comigo! Uma cólera terrível, e dez minutos depois está tudo tão bonito como se nada tivesse acontecido!

BRULETE - Tão bonito é como quem diz! Estamos todos encharcados!

HURIEL - Em parando a chuva acende-se uma boa fogueira e secamo-nos num instante. A dez metros deste atalho há uma clareira óptima para tratarmos disso.

TIENNET - Mas tu não disseste que devíamos passar a ribeira não sei de quê antes do anoitecer?

HURIEL - Disse, Tiennet, mas não contava que o temporal viesse tão depressa. Atrasámo-nos e agora acho melhor passarmos a noite do lado de cá.

TIENNET -Ao ar livre?

HURIEL - Ao ar livre! Arranja-se uma cama suspensa entre duas árvores para a Brulette, com uns troncos e umas mantas, e nós descansamos à vez. (outro tom) Espero que a Brulette não se importe...

BRULETTE - Absolutamente nada.

TIENNET - Eu preferia passar para o lado de lá e procurar abrigo em qualquer sítio. Não há-de haver por aí uma estalagem, ou mesmo uma casa onde a gente possa albergar-se?

HURIEL - Há... mas eu é que não me arrisco, com esta escuridão, a atravessar a ribeira. De mais a mais que... (outro tom) Estão a ouvir a torrente?... Olhem como ela canta!... E amanhã vamos ter de procurar um vau lá mais acima... muito mais acima, mesmo ...

BRULETTE - Acho que tem toda a razão! Fala a Providência pela sua voz...

HURIEL - Ou a experiência!...

BRULETTE - Vamos então instalar-nos?

HURIEL - Instalar-nos e comer, que vocês devem estar a cair de fraqueza!... A caminho! A clareira fica além... (a afastar-se para tomar as rédeas do cavalo) Eh, Clarim... já falta pouco para te aliviares da tua carga... Ali o teu amigo Tiennet trata de ti... enquanto eu me ocupo da minha amiga Brulette... (ri) se é que ela não se importa que eu a considere como tal...

BRULETTE - (seguindo-o) Não me importo nada, desde que o senhor João Huriel mereça a minha amizade!

HURIEL - E que fazer para tal, formosa

BRULETTE - (numa franca risada) Por agora, acender a fogueira depressa que principiei a tremer com frio!

" E a noite caiu. E ao longe perdem-se os últimos trovões. Envolve-os, numa surda cantilena, o rolar da torrente da ribeira engrossada pelas chuvas"

HURIEL - Então, Brulette, que tal se sente?

BRULETTE - Muito bem, senhor João Huriel! Comi òptimamente, estou confortável nesta cama suspensa...

TIENNET -E frio, não tens?...

BRULETTE - Não, Tiennet. O lume secou-me as roupas e esta manta que o João me deu é quentíssima. Está-se bem, aqui!

TIENNET -Estará...

HURIEL - Parece que não concordas, Tiennet?...

TIENNET - (nada entusiasmado) Confesso que gosto mais de me sentir entre gente... Não aprecio muito a solidão, o descampado...

BRULETTE - (rindo) Nem dormir ao ar livre...

TIENNET - Ê isso mesmo!

HURIEL - (rindo) Oh, homem de pouca imaginação! Como podes tu não apreciar todas as maravilhas que te rodeiam? ... Quantas vezes não é mais bela a lua do que uma lâmpada de estanho, an?... Que luz magnífica!... E esta fogueira aqui aos nossos pés?... Não achas bem mais agradável do que o lume numa chaminé? E o perfume dos pinheiros que nos cercam, não será bem melhor para os nossos pulmões do que o cheiro duma cozinha fechada?... Vê, homem, vê... Olha os braços das árvores estendidos para nós como se quisessem proteger-nos! Solidão, disseste tu? Qual solidão!... Estamos tão perto de Deus!... E depois... oh, Tiennet! - a verdade é que as pessoas não nascem para viverem fechadas em cubículos, longe da mãe natureza... Não! Ê um erro, criar muros que nos isolem do frio, da chuva, do sol, de tudo o que foi feito por Deus! Tão Bom, uma criatura sentir-se forte e completa entre os elementos!... Tão Bom, estar em contacto com as coisas que não dependem de nós e sentir-se a gente forte, alegre, tranqüila...

É que nunca o homem é tão homem como quando a sua consciência lhe diz que ele é o único ser da criação capaz de observar toda a beleza da obra divina!... (de repente cala-se. Pausa. E, em seguida, imperioso) Schiu!...

TIENNET -Que é?

HURIEL -Schiu! ...

"Ao perto, distingue o vozear de homens e o tropel de animais, aproximando-se"

HURIEL - (baixo) Não façam barulho!

BRULETTE - Mas...

HURIEL - Por favor... calem-se! (pausa e aborrecido) O guizo do Clarim vai atraiçoar-nos!...

TIENNET - (baixo também) Mas que há, Huriel?

HURIEL - Vem aí um grupo de almocreves.

TIENNET -E depois? Que é que tem?

HURIEL - Não tem nada, mas prefiro que não nos vejam... O pior é que o Clarim pressente companhia, está a saudar as mulas e não conseguiremos passar despercebidos!

TIENNET - Ê perigoso?...

HURIEL - Não convém que vejam a Brulette.

BRULETTE - (baixinho, assustada) Jesus!

HURIEL - (resoluto) Bom, o melhor é eu ir ter com eles e ver se evito que se aproximem. A Brulette que não se mexa. (outro tom) Está a ouvir, Brulette? Deixe-se estar quieta, deitada... para não darem por si.

"As vozes dos homens tornam-se nítidas"

HURIEL - (a afastar-se, exuberante) Oé, amigos!... Então para onde vão vocês a esta hora?...

1º HOMEM - (ainda distante) Alto aí!... Quem vem lá?

HURIEL - Sou eu, o João Huriel!...

"Grande alarido"

2º HOMEM - (pelo meio do alarido) Eh, Huriel!...

MALZAC - Olha quem ele é!...

1º HOMEM - Então que fazes por aqui?...

"E mantidos à distância por Huriel, todos conversam animadamente, enquanto, baixinho, Brulette e Tiennet desvairam"

TIENNET - Brulette...

BRULETTE -An?...

TIENNET - Brulette... tenho medo!...

BRULETTE - Também eu.

TIENNET - Se tu não estivesses aqui, eu era homem para eles todos. Mas assim, contigo...

BRULETTE - Pois é... O João será capaz de os afastar, ou de os deter, pelo menos?

TIENNET - Sei lá!... Eu, cá na minha, achava melhor fugir...

BRULETTE - Fugir? ...

TIENNET - Sim... ias esconder-te aí em qualquer sítio... e eu depois vinha para o pé do Huriel e ajudá-lo, se fosse preciso.

BRULETTE - Não sei! O João mandou-me estar quieta...

TIENNET - (inquieto deveras) Mas eles estão a aproximar-se e é impossível que não dêem por ti!

BRULETTE - (assustadíssima) Pois é... realmente... acho melhor fugirmos!

TIENNET - Então anda... vá!... BRULETTE - Pronto!...

"E no momento em que Brulette salta da sua cama suspensa, os almocreves avistam-na"

TODOS - (em tumulto) Uma Mulher! Uma Mulher!...

HURIEL - (aflitíssimo) Brulette!...

TIENNET - (enraivecido, defrontando os almocreves) O primeiro que avançar... quebro-lhe a cabeça!...

TODOS - (assuada).

HURIEL - (avançando) Cuidado, Tiennet! Não é assim!... (tenta dominar o alarido) Amigos... amigos, então?... Oiçam-me por favor!... Deixem-me falar!...

1º HOMEM - Eh... deixem o Huriel explicar a presença desta beldade nos bosques!...

"As risadas dos almocreves sobrepõem-se às palavras com que Huriel procura afastá-los

de Brulette"

2º HOMEM - Étua mãe ou tua filha?... HURIEL - (positivo) Ê minha noiva!

"Agora o tumulto decresce, faz-se sussurro"

VOZES - (incrédulas) Tua noiva? ...

HURIEL - Minha noiva, irmã do meu amigo Étienne, mais conhecido por Tiennet, que lhes apresento...

1º HOMEM - Se é tua noiva e irmã desse... que está aqui a fazer a esta hora?

HURIEL - Seguimos viagem para o Bourbon, onde vou apresentá-la à minha família...

2º HOMEM - Se ele é isso... pedimos desculpa de incomodar. Não sabíamos. Pensámos outra coisa e...

HURIEL - E eu juro diante de Deus que mais fácil será matarem-me do que ofender a minha noiva com uma só palavra...

MALZAC - Olha que a tua morte tinha uma importância!... Cá por mim não se me dava abrir uma cova para te enterrar!... (ri) As árvores e as pedras não têm boca para dizer o que vêem!...

VOZES - (numa censura) Eh, Malzac!...

1º HOMEM - Cala-te, Malzac! Nunca mais há-de perder a mania das brigas!...

MALZAC - (rindo sempre, grosseiro) Quando se briga para se conseguir alguma coisa... vale a pena!... Essa beldade não me desagrada!... (risinho) Olha lá, menina, não queres trocar Huriel por mim antes que haja morte de homem?...

TIENNET - (enfurecido) Eu liquido este malvado!...

MALZAC - Um passo em frente e avéns-te comigo!...

BRULETTE - (tremula mas cheia de dignidade) Homens sem coração... homens sem coração, mandem calar esse companheiro que assim se atreve a insultar-me depois de saber que sou uma rapariga digna de todo o respeito! Por favor... peço-lhes que o mandem calar... e que sigam todos o seu caminho... ou então que se afastem para me deixar seguir o meu... guardada, como estou pelo meu irmão e pelo meu noivo!...

1º HOMEM - (rude) Vamos embora, companheiros.

TODOS - Vamos embora!...

MALZAC - Ah! Vocês deixam-se intimidar por uma borboleta?... Pff!... Que homens!...

1º HOMEM - Basta de conversas, Malzac! Toca a andar!

TODOS -Andar!...

2º HOMEM - (a afastar-se) Boa-noite, Huriel!

HURIEL - Boa-noite!

TODOS - Boa-noite!...

1º HOMEM - E boa-viagem!

VÁRIOS - (longe) Felicidades!...

HURIEL - **116 (alto, para longe) Obrigado!...

"Os almocreves continuam enfim o seu caminho"

BRULETTE - ("baixo, arfando) Jesus... que ainda não estou em mim!... É que não ganhei para o susto!...

HURIEL - Isto era bem escusado, Brulette!

BRULETTE - Como?...

HURIEL - (colérico) Isto era bem escusado! E agradeço-lhe muito que daqui em diante oiça aquilo que eu lhe digo!

BRULETTE - Mas...

HURIEL - Eu não tinha recomendado que não se mexesse?

TIENNET - Estás convencido de que eles não davam pela Brulette se ela não resolvesse fugir?

HURIEL - É natural que não dessem!

BRULETTE - É natural mas não certo!... Podiam instalar-se, ficar ao pé de si... e que adiantava? À mais pequena coisa percebiam a minha presença e ainda podia ser pior!

HURIEL - Pior? Mas, Brulette, não aconteceu nada de mal?

BRULETTE - Nada de mal? Então o senhor faz-me passar por sua noiva, compromete-me aos olhos desses homens... e atreve-se a dizer que não aconteceu nada de mal?...

HURIEL - (após uma breve pausa) Brulette... desculpe-me! Na primeira ocasião arranjarei forma de acabar com uma hipótese que tanto a ofende.

BRULETTE - Como?

HURIEL - Os noivados, rompem-se!... E eu tratarei de proceder de modo que lhe assista toda a razão para me pôr à margem! com licença, Brulette...

BRULETTE - Onde vai?

HURIEL - (a afastar-se) Vigiar por aí, a fim de evitar novas surpresas...

BRULETTE - (suspensa) Tiennet?...

TIENNET -Hum?

BRULETTE - Tiennet... parece-me que fui injusta! Já é a segunda vez que ofendo o João... e sem ter razão!...

"E os três jovens chegam ao seu destino"

HURIEL - E pronto, meus amigos, eis-nos!

BRULETTE - É aqui que você vive, João?

HURIEL - Aqui mesmo, Brulette! (ri) Estas cabanas são os nossos palácios... menos do que você merecia encontrar, evidentemente, mas o mais que temos para oferecer!... Além, aquela maior é onde vivo com o meu Pai.

TIENNET - Cabem os dois lá dentro?...

HURIEL - com os pés de fora... (ri) A outra ao lado é a residência de verão do nosso amigo José... Um momento! Esperem aqui que eu vou prepará-lo para a vossa chegada. Não convém que lhe apareçam de repente. A emoção pode fazer-lhe mal.

BRULETTE - Tem muita razão, João. Vá, vá, nós esperamos aqui.

"E enquanto Huriel se afasta, Brulette respira deleitada o ar fresco e puro da floresta"

BRULETTE - (baixo) Que paz!... Que bem que se está aqui... Curioso! A gente, na aldeia, não imagina nada do que se passa longe dos nossos hábitos do dia-a-dia!... E afinal, a vida está espalhada por toda a parte, tão importante como aquela que julgamos ser a melhor de todas!...

TIENNET - (indiferente ao que ela diz) Olha lá vem o Huriel...

HURIEL - (aproximando-se) O José não está.

BRULETTE - Jesus? ...

HURIEL - Não se assuste, Brulette! Tem lá as coisas todas dele... incluindo a gaita de foles.

TIENNET - Mas então?

HURIEL - Então deve ter melhorado e naturalmente foi com o meu Pai para o trabalho. Vocês ficam aqui a descansar enquanto eu vou à procura deles.

BRULETTE - (com vivacidade) Nós vamos consigo.

HURIEL - (rindo) Não me diga que tem medo de ficar aqui?...

BRULETTE - Não é isso...

HURIEL - (sem ligar à interrupção) Nos nossos domínios não há que ter receio de nada, Brulette! Os lenhadores são boas pessoas e não, como os almocreves, enviados do diabo...

BRULETTE - (insistindo) Mas não é isso! Palavra que não é!

HURIEL - Então? ...

BRULETTE - (cuja voz se embarga aos poucos) fi que... não sou tão optimista como você, João!

HURIEL -An?...

BRULETTE - O facto de o José não estar em casa... aflige-me.

HURIEL - (grave) Porquê?

BRULETTE - Quem sabe se ele... se ele não está morto... e enterrado?...

HURIEL - (num tom de súbito terror) Não... não creio, Brulette! Mas então... então... venha... venha!... Vamos, vamos todos saber o que se passa!...

"E conduzidos por Huriel, Brulette e Tiennet chegam à clareira onde os lenhadores abatem as grandes árvores. E a rapariga é a primeira a avistar o José, sentado num tronco, José que, ao ouvir-lhe a voz, ao vê-la, se ergue como para receber a própria vida"

BRULETTE - (num grito de júbilo e emoção) José!

JOSÉ - Brulette! An, Brulette? ...

BRULETTE - Oh José!... (assusta-se) José!... Jesus, que ele cai!

"E de emoção, perdidas as forças, José desmaia"

O GRANDE LENHADOR - (acorrendo) Que vem a ser isto, rapaz?...

HURIEL - Somos nós, Pai!... Ou melhor... é ela, a Brulette!...

BRULETTE - (numa aflição) Tiennet, porque é que o José caiu assim?

TIENNET - Foi de comoção, certamente. E tu senta-te, senta-te aqui no chão não vás cair também. Estás mais branca do que o linho!...

BRULETTE -Mas... e o José? ...

TIENNET - O José já ali vem, nos braços do Huriel... e nos daquele homenzarrão grisalho que há-de sem dúvida ser o pai do Huriel, o tal Grande Lenhador...

HURIEL - (poisando José aos pés de Brulette) Uff!... Ele é magro mas pesa!...

O GRANDE LENHADOR - Então, rapaz, que é isso? Volta a ti, anda!... Vá, então... olha que estás a assustar a tua amiguinha!...

BRULETTE - (anelante) José... José, acorda! Olha que sou eu, a Brulette!

JOSÉ - (num cicio) Bru. lette?...

O GRANDE LENHADOR -Ora até que enfim que já abre a boca... (outro tom) Huriel, vai além buscar o meu frasco de aguardente para lhe dar uma gota que o ajude a animar-se.

HURIEL - (obedecendo) Sim, meu Pai.

JOSÉ - (como num imenso espanto) Brulette? ... Brulette... tu aqui?... Brulette... estou vivo... ou morto no paraíso... com um anjo piedoso a adoçar as minhas penas?...

BRULETTE - (tentando vencer a emoção) Estás vivo e bem vivo, José... e sou eu que estou aqui e olha que de anjo tenho pouco...

HURIEL - (aproxinmando-se) Pronto, Pai... Aqui tem a aguardente.

O GRANDE LENHADOR - Vá, José, bebe uma pinga disto, anda... - obriga-o a beber. Então? Como vai isso?

JOSÉ - Melhor... obrigado. Muito obrigado! Brulette!

O GRANDE LENHADOR -Ora com que então esta é que é a bela Brulette por quem o nosso José se estava a deixar morrer de saudades, an? E com certeza que o mocetão que a acompanha não é outro senão o valente Tiennet que o meu filho tanto me tem gabado.

JOSÉ - (em surdina) Tiennet... desculpa... mas nem sequer te falei!

TIENNET - Ora, deixa lá isso!... (outro tom) Sim senhor, senhor Huriel, sou o Tiennet. embora cá na minha não mereça grandes elogios da parte do Huriel! Se eu sou valente, então que será ele? ...

O GRANDE LENHADOR - (bem disposto) Oh, oh, oh! Para já, não gosto que me chamem "senhor Huriel!" O Huriel ficou aí para o rapaz. Eu habituei-me a ser para toda a gente o "Grande Lenhador" e quase que já não dou por outro nome! (outro tom) Ora então sejam os dois muito bem-vindos às nossas florestas! Não vão encontrar aqui o pão branco e macio nem as finas saladas a que estão habituados, mas em contrapartida não lhes faltarão amigos sinceros sempre dispostos a servi-los com o que for possível arranjar!

BRULETTE - Muito agradecida por tudo, Grande Lenhador! E muito agradecida também por tudo o que fez pelo nosso José...

O GRANDE LENHADOR - Ah... o José!... O que eu fiz nada foi... e pouco valeu!...

JOSÉ - (débil ainda) Foi muito... e valeu tudo!... Sem este grande amigo, eu já não seria deste mundo, Brulette!

O GRANDE LENHADOR - Ora, ora, ora! Se não aparecesse este lindo "doutor" de saias... havia de valer de muito a minha boa vontade! (outro tom, galante e apreciador) E é que é bonita de verdade, a cachopa!... Bonita!... Alma e corpo da melhor qualidade... sem defeito, vê-se-lhe nos olhos!

BRULETTE - (confusa) Oh, Senhor!...

O GRANDE LENHADOR - À fé de quem sou que até hoje sempre pensei que não havia rapariga mais bonita do que a nossa Terência! Pois agora, se me dissessem para eu escolher entre as duas a mais formosa... desistia!... Não sei, não sei qual delas será mais linda, mais perfeita, (outro tom) Vamos, Brulette, não se acanhe de ser bela... nem tire disso uma vaidade vã. Aquele que tão bem modela as criaturas deste mundo não a consultou e a menina não tem nada a ver com a obra do Criador! O que importa e lhe diz respeito tanto a si como a qualquer outra pessoa, é não estragar o que está feito! Ora eu atrevia-me a jurar que a Brulette é daquelas que respeita a mão de Deus sabendo respeitar-se a si própria, (pausa para efeito) Bom, agrada-me uma rapariga que seja sã do coração e direita de espírito... Estou contente por vê-la aqui. Já a conhecia muito bem pelas descrições do José. Ele não exagerou. Trate portanto de estar à vontade e de reconfortar este pobre rapaz que precisava de si tanto como a terra seca pela estiagem precisa de chuva! Quanto ao resto e para tudo quanto necessitar faça de conta que sou seu Pai, an?...

BRULETTE - (comovida e feliz) Oh, senhor... meu bom amigo. Eu só tenho uma maneira de lhe agradecer! Dá-me licença que lhe dê um beijo?... (beija-o)

O GRANDE LENHADOR - (radiante) Estamos quites nas amabilidades... Aliás eu fui sincero... e espero que esta beleza também o tenha sido!

BRULETTE - (rindo) Fui sim, Grande Lenhador!

O GRANDE LENHADOR -Ora bem... tenho de ir continuar o meu trabalho. Se vocês trazem fome, meus filhos, ali no meu alforge há provisões. Não são coisas finas, mas servem.

TIENNET - Obrigado, Grande Lenhador, mas comemos ainda há pouco tempo.

O GRANDE LENHADOR - Belo, belo, belo! (outro tom) Agora deixo-os. O José e a Brulette querem conversar, penso eu... Quanto a ti, Huriel, acho que deves ir dizer à Terência que são horas de tratar da ceia e dos alojamentos.

HURIEL -Sim, meu Pai.

O GRANDE LENHADOR -Até logo, meus filhos! Quando chegar a noite, fico por vossa conta e podem mandar em mim! ( a afastar-se) Até logo!

TODOS -Até logo!...

BRULETTE - (como que a medo) Senhor João Huriel... quem é a Terência?

HURIEL - (após uma pausa) É minha irmã.

HURIEL - O meu Pai exagerou comparando a formusura dela com a sua Brulette. No entanto, há uma coisa muito verdadeira na semelhança. A Terência também é uma rapariga extraordinária. Podia viver numa aldeia qualquer onde nada lhe faltasse... e prefere acompanhar o meu Pai na dura existência que ele leva!

BRULETTE - Onde estará ela, João?... Gostava de a conhecer quanto antes!...

HURIEL - Não sei... não sei por onde andará e até me espanto muito que não tenha vindo ao nosso encontro, (outro tom) Já a viste hoje, José?

JOSÉ - Vi-a pela manhã. Por sinal que estava muito queixosa.

HURIEL - Queixosa? ...

JOSÉ - com dores de cabeça!

HURIEL -Ê estranho! A Terência nunca se queixa de nada... (preocupado) Desculpem, amigos... vou ver se a encontro.

"Em plena floresta"

TERÊNCIA - Não vou, não vou e não vou! HURIEL - Mas, Terência... TERÊNCIA - Ê escusado insistires, Huriel! Não me nego a arranjar-lhes a ceia e as camas... mas escusas de me pedir o que quer que seja além disto.

HURIEL - Oh, Terência, mas parece mal não ires recebê-los!... Não está certo que lhes mostres o teu mau humor.

TERÊNCIA - Eu não estou de mau humor!

HURIEL- Então que é isso?

TERÊNCIA - Está bem, admite que estou. Não sou obrigada a escondê-lo, só para ser agradável a umas pessoas que não conheço... e não quero conhecer!

HURIEL - Terência... mas não podes proceder dessa maneira! A Brulette está ansiosa por falar contigo...

TERÊNCIA - (irônica) Faço idéia!

HURIEL -Tens de fazer! É natural que uma rapariga como ela deseje a companhia doutra rapariga!

TERÊNCIA - Uma rapariga como ela só pode desejar a companhia doutra rapariga se tiver mau coração!

HURIEL - (perplexo) Terência? ...

TERÊNCIA - Além disso, eu não tenho interesse nenhum em ocupar-me dela. E ninguém me encarregou de lhe servir de bobo...

HURIEL - Terência!?...

TERÊNCIA - Faço-lhe a comida e arranjo-lhe a cama. Parece-me bastante... e nem tu nem ninguém tem o direito de me exigir o que quer que seja mais. Percebes?

HURIEL - Nem percebo nem concordo com a tua atitude. A Brulette está à tua espera. Que lhe hei-de eu dizer?

TERÊNCIA -O que tu quiseres! Não tenho satisfações a dar-lhe.

HURIEL - Terência... que é que tu tens contra a Brulette?

TERÉNCIA - Nada. Mas não estou disposta a aturar uma estranha.

HURIEL - (docemente) Mais agora... mais logo... és obrigada a conhecê-la! Não podes evitá-lo!...

TERÉNCIA - Pois sim... mas quanto mais tarde, melhor!

"Na clareira das cabanas, à hora do crepúsculo"

O GRANDE LENHADOR - (bem disposto) Santo Deus!... Já alguém teria conhecido rapariga mais arisca do que a minha Terência? ... Palavra que nunca pensei!... (chama) Terência! Terência!... Anda cá, filha!... (pausa) Isso, não vem! É melhor deixá-la!

BRULETTE - Eu gostava muito de ir ajudá-la a preparar a ceia... Se me dessem licença? ...

O GRANDE LENHADOR -Vá, vá, Brulette! Vá... e veja se a cativa! Aquela marota é mais agreste do que eu supunha... Será de não estar habituada a conviver?

BRULETTE - com licença... (afasta-se)

O GRANDE LENHADOR - Palavra que não percebo a atitude da minha Terência!... Nunca pensei que ela fosse igual às outras!

HURIEL -Igual em quê, meu Pai?

O GRANDE LENHADOR - Ó filho, as raparigas são complicadas... e a menos tola de todas não suporta a presença duma rival mais bela... Tenho a impressão de que a tua irmã está cheia de ciúme...

BRULETTE -Sua irmã?

JOSÉ - Uma linda rapariga mais ou menos da tua idade, Brulette!

HURIEL - (com estranha inflexão) Ciúme? ... Não, Pai, não creio!

O GRANDE LENHADOR -Então?

HURIEL - (pensativo) Pelo menos, não é ciúme da beleza da Brulette!

O GRANDE LENHADOR -Mas então?

HURIEL - Tenho a impressão de que sei porque é que ela está assim... mas acho preferível não nos metermos no assunto!

"É noite na floresta e acaba-se a ceia"

O GRANDE LENHADOR -Ora bem, meus filhos... falemos agora de coisas sérias (pausa para efeito) Amanhã é outro dia e acho que devemos decidir ainda hoje o que for melhor para todos, (pausa) Entendo que a presença da Brulette vai ser necessária por muito tempo, até que se complete a obra que veio aqui fazer, (pausa) O José precisa da companhia dela... e acho que a Brulette o sabe melhor que ninguém. Portanto, pergunto: podem ficar connosco até eu dar o José por curado?

BRULETTE - (simples) Eu, por mim, fico. Mas o Tiennet é quem decide.

TIENNET -Eu?... Mas eu faço o que a Brulette quiser. O que ela resolver está resolvido.

BRULETTE - Sendo assim... e antes de decidir seja o que for... tenho de pôr as minhas condições.

HURIEL - Condições? ...

O GRANDE LENHADOR - Oiçamos as condições!

BRULETTE - (primeiro embaraçada e depois afoitando-se) As minhas... as nossas condições... visto o meu primo estar de acordo

Com o que eu resolver, são as seguintes. Só cá podemos ficar se nos garantirem que não farão qualquer despesa por nossa causa.

O GRANDE LENHADOR -Como?

BRULETTE - Sim, deixar-nos-ão, a mim e ao Tiennet, a inteira liberdade de vivermos à nossa custa.

TIENNET - Muito bem!

O GRANDE LENHADOR - Olhem o disparate!

HURIEL - Não, meu Pai. Não é disparate.

O GRANDE LENHADOR -Quê? Que dizes?

HURIEL - Digo que se o receio de nos serem pesados os obrigar a irem-se embora mais depressa, acho preferível renunciarmos ao prazer de os obsequiar.

O GRANDE LENHADOR - (percebendo-o) Ah!...

HURIEL - Há apenas uma coisa que desejo lembrar à Brulette e ao Tiennet. É que tanto o meu Pai como eu ganhamos o suficiente para, com o maior gosto, recebermos os nossos amigos honrando-os com o que de melhor tivermos!

O GRANDE LENHADOR - É assim mesmo, filho.

BRULETTE - Agradeço muito... e compreendo que o senhor Huriel diz a verdade. Mas eu e o meu Primo não podemos aceitar!

HURIEL - Pronto... fiquem e procedam como entenderem! Aliás, eu, por mim, deixo-os à vontade. Vou-me embora daqui já amanhã...

BRULETTE -Embora... para onde?

HURIEL - Para o bosque de la Roche, carregar as minhas mulas... Estão à minha espera, em La Croze. Mas antes de me pôr a caminho, venho aqui dizer-lhes adeus descansem!

"Na manhã seguinte"

BRULETTE - Tiennet? ... Tiennet! ...

TIENNET - (distante) Estou aqui, Brulette, a acabar de enfeitar esta lenha como me pediu o Grande Lenhador!

BRULETTE - Vem cá, Tiennet. Preciso de falar contigo num instante.

TIENNET - (igual) Lá vou... (e aproxima-se). Que há, Brulette?

BRULETTE - Quero falar contigo.

TIENNET - Diz.

BRULETTE - Tiennet... tenho a impressão de que a Terência nos detesta!

TIENNET -Oh! Porquê?

BRULETTE - Eu te digo. Esta noite dormi com ela, não é?

TIENNET - E depois, que tem isso?

BRULETTE -Tem que... tem que... Olha, tem que ela procedeu como se em vez de mim tivesse ao lado um porco espinho!

TIENNET - Que tolice!

BRULETTE - Qual tolice!... Imagina só que não me disse uma única palavra.

TIENNET -Será de poucas falas...

BRULETTE -Eu ainda não acabei!

TIENNET - Então?

BRULETTE - Como estava muito cansada, adormeci assim que me deitei. A meio da noite, porém, acordei... e só te digo que ela chorava que cortava o coração.

TIENNET - Chorava? ...

BRULETTE -Mas a bom chorar!... E gemia, baixinho, como se estivessem a fazer-Lhe mal... Uma aflição!...

TIENNET - Essa agora? ...

BRULETTE - Tiennet...

TIENNET - Achas que devemos ir-nos embora?

BRULETTE - Não será preciso tanto!

TIENNET - Então?

BRULETTE - O melhor será construirmos uma cabana para nós dois...

TIENNET - Acho bem.

BRULETTE - Arranjamos a cabana, tu vais à aldeia mais próxima comprar duas camas, umas roupas e mais umas coisas indispensáveis... e pronto!...

TIENNET - Está bem, Brulette, seja como tu queres. Mas olha lá... o Grande Lenhador não irá ofender-se?

BRULETTE - Pois é... também já pensei nisso!

TIENNET - Pode ser que a Terência tenha qualquer motivo particular para estar triste.

BRULETTE - Pois pode. Lá isso, pode.

TIENNET - Talvez não seja nada contigo.

BRULETTE - Realmente...

TIENNET - Curioso! Essa rapariga não me é estranha!... Tenho a impressão de já a ter visto!...

BRULETTE - Em sonhos?...

TIENNET - Em sonhos?... Ia jurar que não! (outro tom) Olha, olha... lá vem ela... com um ar tão triste... mas tão bondoso! Brulette, procura ter paciência ao menos por mais um dia ou dois, está bem?

BRULETTE - Está bem, seja! Mas confesso-te que não me agrada sentir-me indesejável ...

TERÊNCIA - (aproximando-se) Desculpe vir incomodá-la, Brulette, mas são horas de acordar o José. Não gosta nada que o deixemos dormir até tarde, porque depois, na noite seguinte, não tem sono.

BRULETTE - Mas se é a Terência que costuma chamá-lo, porque não o fez hoje também? Eu não estou ao corrente dos seus hábitos!

TERÊNCIA - (secamente) Não, não... essas coisas agora são consigo... visto que foi para isso que você veio. Ê da maneira que eu descanso!...

BRULETTE - (irônica) Pobre José!

TERÊNCIA - Como?

BRULETTE - Pobre José, disse eu. Estou a ver que a presença dele só causa transtornos e que mais vale levá-lo para a nossa terra quanto antes.

TERÊNCIA - (picada) Como quiserem. Isso não é nada comigo!

TIENNET - Vocês dão-me licença que dê a minha opinião? Acho que devem ir as duas chamar o José! Amigo não empata amigo... e a alegria que ele há-de sentir ao ver a Brulette aposto que não será suficiente para o compensar da falta da Terência... Ele é um sentimental e há-de imaginar que na verdade não tem feito senão aborrecer quem até agora tão bem o tratou...

TERÊNCIA - (dominando-se) Vamos então, Brulette, eu acompanho-a.

"No interior da cabana onde vive o José"

TERÊNCIA - (a aproximar-se) Pronto... o caldinho.

JOSÉ -Ih, tanto!

BRULETTE - Qual tanto! Precisas de comer!

JOSÉ - Obrigado, Terência. (começa a comer). Está Bom!...

TERÊNCIA - Se quiser mais, há.

JOSÉ - Não, mais não!... (ri) Mas parece que tinha fome, sabem?

BRULETTE - E dormiste bem?

JOSÉ - Como há muito não dormia. Dum sono só!...

BRULETTE - Bravo!...

JOSÉ - Devo estar muito melhor! Sinto-me outro!...

BRULETTE - Não admira nada! Da maneira como tens sido tratado.

JOSÉ - Sim... da maneira como tenho sido tratado!... É que não me tem faltado nada Brulette! Nem o meu Mestre se poupou às despesas... nem esta querida irmã que eu aqui tenho às fadigas por minha causa!... Sim... que a Terência tem sido uma verdadeira irmã para mim! Um anjo da guarda!... O segundo anjo da guarda que encontrei no meu caminho...

TERÊNCIA - (rude) Que tolice!

JOSÉ - Tolice, não!... É tal qual como eu digo. O segundo anjo da guarda, (enternece-se) O primeiro foi a Brulette... a Brulette, que tanto me amparou quando eu não passava dum garoto desprezível e infeliz a quem ninguém ligava importância!... Depois, veio a Terência cuidar do meu corpo enfermo, ajudar-me a vencer a morte que tantas vezes rondou por aqui... Ah, não... nunca agradecerei tudo o que lhes devo, nunca! Vocês as duas são incomparáveis!... Sabem o que eu digo? Não existe terceira como vocês! E no dia das recompensas finais, Deus há-de ter guardadas lá no céu as mais belas coroas: para a Brulette,

a rosa do Berry, e para a Terência Huriel, a branca flor dos bosques...

TERÊNCIA - (agora docemente) Mais um bocadinho de caldo, José?...

JOSÉ - Não, não, obrigado. Logo, logo ao almoço! Agora vou levantar-me, arranjar-me e dar um passeio! Apetece-me apanhar ar!...

BRULETTE -É bom sinal, José. Voltam as forças e com elas a saúde!

TIENNET-(da porta) Posso entrar?...

JOSÉ - Entra, Tiennet, entra!...

TIENNET - (aproximando-se) Então? Isso vai melhor?

JOSÉ - Estou quase Bom!...

TIENNET - Ora eu... trago novidades!

BRULETTE -Novidades? (ri) Já sabes abater uma árvore?...

TIENNET -Não se trata disso por enquanto.

BRULETTE - Então?

TIENNET - As minhas novidades dizem respeito à Terência.

TERÊNCIA - A mim?

TIENNET -A si. (outro tom) Brulette, lembras-te de eu te ter dito há pouco que a Terência não me era estranha?...

BRULETTE - Lembro-me. Eu até te perguntei se a tinhas visto em sonhos!

TIENNET -Pois!.

BRULETTE -E então?

TIENNET - Então a verdade é que eu conhecia mesmo a Terência!

TERÊNCIA -Conhecia-me? De onde?

TIENNET - Estive lá fora a conversar com o Grande Lenhador e foi ele que me reconheceu!

JOSÉ -Que história!...

TIENNET - Aqui há uns anos, o meu Pai e eu, ao regressarmos a casa duma feira onde fôramos, encontrámos no bosque uma carroça atolada na lama... E enquanto o meu Pai ajudava o homem que a conduzia a soltá-la, eu fui encarregado de tomar conta duma rapariguinha doente... Era a Terência!...

BRULETTE - (com vivacidade extrema) Espera!... A tal rapariga que...?... Ah!... (larga a rir)

TIENNET - (desagradado) Não percebo onde está a graça, Brulette?...

TERÊNCIA - (sem ligar ao riso) Curioso!... Recordo-me perfeitamente... Sim... sim, é você mesmo! Estive que tempos ao seu colo, não foi?...

TIENNET -Isso!

JOSÉ - Ora vejam como o mundo é pequeno!

TIENNET - É verdade, quem diria que assim havíamos de tornar a encontrar-nos?...

BRULETTE - (dominando o riso) Pois muito folgo que vocês dois sejam amigos velhos! Isso vai com certeza facilitar muito as coisas!

TERÊNCIA - (friamente) Que coisas?

BRULETTE - Meu Deus, que coisas hão-de ser?... A convivência entre nós!

JOSÉ - E se as meninas agora saíssem, para me deixarem levantar?

BRULETTE - Acho muito bem! (outro tom) Vamos, Terência?

TERÊNCIA - Vamos.

TIENNET - Eu fico a ajudar o José...

"Em plena floresta"

BRULETTE - Terência... enquanto esperamos pelo José e pelo Tiennet eu queria aproveitar e falar consigo.

TERÊNCIA - Acerca de quê?

BRULETTE -Eu lhe digo. (outro tom) Terência, não posso passar os dias de braços cruzados! - Não sou uma pessoa activa por aí além, nem estou habituada a grandes tarefas... mas na verdade também não costumo passar os dias a olhar para as moscas. Por isso, Terência, peço-lhe o favor de me deixar ajudá-la no que for necessário. Pode contar comigo para tudo. Se precisar de sair, é só explicar-me o que há a fazer em casa. Se ficar em casa, mande, que eu obedeço!

TERÊNCIA - Agradecida, mas não quero que se preocupe com coisa nenhuma. Eu chego perfeitamente para o serviço e não gosto que se metam nas minhas ocupações... (corrigindo a excessiva rudeza) com certeza porque desde pequena assim me acostumei.

BRULETTE - (pacientíssima) Mas não vê, Terência, que, desocupada, vou morrer de aborrecimento?

TERÊNCIA-(escarninha) A Brulette?... Oh!... Não creio! Pelo contrário, parece-me que não lhe faltará com que se entreter! (muda de tom e rápida, como quem, quer acabar depressa o que tem para dizer) E agora sou eu que também quero aproveitar para falar consigo.

BRULETTE - Diga.

TERÊNCIA - Pode contar com a minha discrição.

BRULETTE - Como?

TERÊNCIA - Compreendo perfeitamente que a Brulette e ele queiram estar à vontade...

e por isso descansem que não os importunarei. Se quiserem ficar em casa, eu saio. Se quiserem ir passear, eu fico em casa.

BRULETTE - (lentamente) Esse ele... refere-se ao nosso amigo José?

TERÊNCIA - Claro!...

BRULETTE - Mas está completamente enganada a nosso respeito!... (pausa) Nós não temos segredos!...

TERÊNCIA - (atrapalhada) Mas...

BRULETTE - (firme) E a alegria que sentimos em estar juntos, só pode ser acrescida pela sua companhia... a não ser que a Terência tenha outra que prefira à nossa!

TERÊNCIA - Eu...?

JOSÉ - (a distância) Estou pronto, Brulette! Vamos passear?...

TERÊNCIA - (irônica) Ouve-o?... Vão passear!...

BRULETTE - (com súbita reserva) Está bem, Terência... eu vou. Mas as coisas não são como pensa e eu hei-de provar-lho! (afasta-se, ao encontro de José).

"E ambos se perdem pelos atalhos, conversando".

TIENNET - (aproximando-se de Terência) Dá-me licença que fique a fazer-lhe companhia?...

TERÊNCIA - (numa explosão) Não! Não e não!... Vá-se embora. Vá-se embora!... Pois ainda não percebeu que não gosto nada que me macem?

TIENNET - (comprometido) Terência... será possível que a Brulette tenha razão... e que você nos deteste?

TERÊNCIA - (surdamente) A Brulette disse isso?... Ela disse?... (violenta) Pois bem, sim, detesto-os!...

TIENNET -Mas porquê? Que mal lhe fizemos?

TERÊNCIA - (num rebentar de soluços) Deram cabo do meu sossego... e eu... eu detesto que me façam perguntas e que se metam na minha vida!... (e foge num desafogo de lágrimas).

TIENNET - (assarapantado e amargo, vendo-a afastar-se) E por causa desta imagem que trouxe tantos anos atravessada no coração arrisquei eu a minha doce Brulette!... Realmente, valeu a pena!...

"Numa clareira, pouco depois".

JOSÉ - (atônito, numa reacção de todo o seu ser) Não!... Não, Brulette!... Não!...

BRULETTE - (simples) Queiras ou não queiras, José, é como te digo. Essa rapariga está apaixonada por ti!

JOSÉ - (sucumbido) Meu Deus! Que novas desgraças me esperam? ...

BRULETTE - Essa agora? ... Pois tu consideras o amor da Terência uma desgraça?

JOSÉ - com certeza.

BRULETTE - Mas porquê?

JOSÉ - És tu quem mo pergunta? Tu?... (espera uma resposta que não vem) Pois tu não sabes que eu não posso corresponder aos sentimentos dela?

BRULETTE - Bem, sendo assim... é deixá-la! Ela acabará por te esquecer.

JOSÉ - (agitado) Eu não sei se ela acabará por esquecer-me. O que sei é que eu, se, por ignorância ou falta de senso, tornar infeliz a filha do Grande Lenhador, a irmã de Huriel, a virgem dos bosques que tanto rezou por mim e quase me salvou a vida, nunca a mim próprio o perdoaria!

BRULETTE - (docemente) José... nunca pensaste que a amizade dela podia transformar-se em amor?

JOSÉ - Não, Brulette, nunca.

BRULETTE - É estranho.

JOSÉ - Estranho porquê? Acaso não estou habituado, desde pequeno, a receber atenções constantes da tua parte por exemplo? E a grande estima que tu me tens testemunhado nunca me tornou pretensioso ao ponto de eu supor que... (suspende-se)

BRULETTE - (após uma pausa) Sim... pois é. Qualquer pessoa pode iludir-se acerca dos sentimentos que se dão ou se recebem... Eu próprio imaginei uma coisa muito diferente, acerca de ti e dessa pobre Terência... Mas sabes?... Estou agora a pensar que talvez ela nem sequer ainda pressinta o que venha a ser o verdadeiro amor! Talvez isto não passe duma ilusão a embalá-la enquanto não chega aquele que Deus lhe houver destinado.

JOSÉ - (perturbado) De qualquer maneira... de qualquer maneira e seja como for, tenho de me ir embora daqui!

BRULETTE -Nós viemos para te levar conosco assim que tiveres forças para fazer a viagem.

JOSÉ - Forças... para a viagem?... Mas eu não preciso de forças para a viagem!... Eu quero forças, sim... mas forças para ser um grande músico!

BRULETTE - José?...

JOSÉ - (num crescendo de enervamento) Não, Brulette, não penses que eu volto lá para baixo... Nunca!... Nunca antes de prestar provas no alto Bourbon... e de ser recebido Mestre Tocador!... Nunca antes!...

Tiennet vai ao encontro de Terência, que chora abraçada ao tronco duma velha árvore".

TIENNET - (aproximando-se) Terência... Terência... não chore assim!... Olhe... não se aflija mais por nossa causa! Uma vez que não gosta de nós, pronto, acabou-se!... Tenha paciência só por mais um dia ou dois! Logo já eu falo com a minha prima e...

TERÊNCIA - (numa reacção) Fala com a Brulette... para quê?

TIENNET - Ora para que há-de ser?... Para combinarmos o nosso regresso. Vamo-nos embora... e depois o José, assim que estiver completamente curado, vai ter connosco!

TERÊNCIA (de dentes cerrados) "É o que vocês querem. Ê o que vocês desejam. Levá-lo daqui! Não pensam noutra coisa!...

TIENNET - (aparvalhado de todo) Nós?...

TERÊNCIA -Vocês... você... ela!...

TIENNET - Valha-me Deus, Terência, mas ninguém pensava nisso, juro-lho! Nós vínhamos muitíssimo bem dispostos, tencionávamos estar aqui o tempo que fosse necessário... Só não queríamos tornarmo-nos pesados! De resto, não havia nem prazos marcados nem quaisquer outras intenções reservadas. Esta manhã é que a Brulette me contou a maneira como a Terência se tinha conduzido para com ela...

TERÊNCIA - A Brulette contou-lhe? ... Se ela não havia de contar!... Se ela não havia de intrigar!... Ah, mas não, não!... Se ela julga que me há-de ainda fazer pior do que já fez... e envergonhar-me... e proceder de maneira a que todos me detestem mais do que já me detestam... eu desapareço, eu fujo, eu deixo tudo e nunca mais ninguém sabe de mim! (rompe em soluços) vou... vou morrer por aí, sozinha... em qualquer recanto da floresta...

TIENNET - (assombrado) Terência... eu não posso acreditar que tenha nascido injusta!... Terência, diga-me: porque é que odeia a Brulette?...

TERÊNCIA - (a tremer) Porque é que eu odeio a Brulette?... Mas... mas eu não a odeio...

TIENNET - Odeia, sim, Terência! E odeia porque não a conhece bem. Se conhecesse, estimá-la-ia...

TERÊNCIA - (que aos poucos se torna mais firme) Não... não... nunca! Quem não a conhece é você, Tiennet!

TIENNET -Eu?...

TERÊNCIA - Eu... eu sei tudo acerca dela! Tudo!... Fiz muitas, muitas perguntas ao José... e até mesmo ao meu irmão... e sei que ela é ingrata e falsa! Uma leviana! Uma leviana, percebe?... Uma leviana que todas as pessoas de caracter deviam detestar!

TIENNET - (estupefacto) Terência... como pode fazer uma acusação dessas? Em que se fundamenta?

TERÊNCIA - (numa explosão) Em que me fundamento? Eu digo-lhe! Eu digo-lhe! (pausa para efeito) Só aqui... aqui... há três rapazes que gostam dela e dos quais ela faz troça!...

TIENNET - Troça?...

TERÊNCIA - (prosseguindo) O José que morre por ela, o meu irmão que procura defender-se... e você que está a tentar curar-se...

Acaso pretende fazer-me acreditar que ela não percebe tudo?... Ou que tem uma preferência por algum, ao menos? Não, não tem! Ela não lamenta o José, ela não se interessa pelo meu irmão, ela não o estima a si! Os tormentos que faz passar divertem-na e, como lá na terra dela tem mais de cinqüenta pretendentes, pretende viver para todos e para nenhum! E no que lhe diz respeito a si, Tiennet, pouco me importa que sofra ou deixe de sofrer. Mal o conheço. Mas o meu irmão?... O meu irmão que devido à sua profissão tem tão pouco tempo para estar connosco e agora se foi embora daqui só para não ser obrigado a suportar a convivência dela? ... E o José, o José tão doente e tão infeliz? Ah, não, não, é demais! Essa Brulette é uma peste e eu detesto-a, detesto-a, detesto-a! Sim, detesto-a! E agora já você sabe porquê! (outro tom, transtornada ante Brulette parada a dois passos) Brulette!?...

BRULETTE - (numa voz sem timbre) Terência... foi... foi cruel... mas... talvez tenha razão nas suas acusações e eu merecesse ouvir tudo isso!

TIENNET - (desolado) Oh, Brulette, não te aflijas... a Terência julga-te pelas aparências... e ignorar a tua bondade, a pureza dos teus sentimentos, o...

BRULETTE - (cortando) Deixa, Tiennet, deixa, por favor... o assunto é entre nós duas... e eu prefiro saber a razão da hostilidade da Terência. Acho preferível.

TERÊNCIA - (digníssima) Lamento-a, Brulette. Deve ter-lhe sido imensamente penoso o haver-me escutado.

BRULETTE - Peço desculpa... mas eu vinha à sua procura... ouvi o meu nome... parei...

TERÊNCIA - Em sua consciência... pensa que sou injusta?

BRULETTE -Se de facto me considera uma rapariga mal intencionada... sim, é injusta, Terência!

TERÊNCIA - Nega que tenha tido uma conduta falsa?

BRULETTE - Falsa em que sentido?

TERÊNCIA - Brulette... eu sou uma selvagem, uma rapariga dos bosques, sem instrução nem conhecimentos do mundo. Só sei o que penso e o que sinto... e na minha maneira de ser considero a mentira criminosa.

BRULETTE - Parece-lhe então que eu vivo na mentira?

TERÊNCIA - Pois que outro nome hei-de dar àquilo que você faz?

BRULETTE - Mas que faço eu, afinal?

TERÊNCIA - Vive a despertar o interesse dos rapazes, com a única intenção de conquistar o amor deles para depois se divertir a repeli-los!

BRULETTE -Não!... Juro-lhe! Não com o Tiennet, não com o João... não com o José!

TERÊNCIA - O José... o José é aquele que mais sofre! Ele adora-a, Brulette! Ele adora-a... e você não tem o direito de magoar mais aquele pobre coração! (apaixonadamente) Tenha piedade dele, Brulette!... Olhe que ele não suporta muito mais... E depois merece-a... merece-a, percebe? Ê a melhor das criaturas que eu conheço! Inteligente, bondoso, dedicado... Ah, Brulette, peço-lhe... não continue a fazê-lo sofrer!... Case com ele!

BRULETTE -Mas...

TERÊNCIA - Case com ele antes que seja tarde demais! Case com ele!... (numa ameaça profunda) Porque se ele morre de desgosto por sua causa eu amaldiçoá-la-ei!... (soluça)

BRULETTE - (que se torna serena num imenso alívio) Bem... bem... agora é a minha vez de falar. Olhe para mim, Terência. Olhe-me nos olhos... bem a direito, vá... A sincera e leal rapariga que abomina a mentira precisa de ter a coragem bastante para encarar a verdade! (pausa para efeito) Terência, você ama o José! (pausa) - E é por isso que me detesta... e que me encontra tantos defeitos. Não, não desvie as pupilas, Terência! O que você sente a corroê-la... a amargurá-la... a desesperá-la... chama-se ciúme, (outro tom) E agora oiça: eu nunca fiz nada para seduzir o José, nunca! E ninguém mais do que eu lamenta esse malfadado amor, ao qual não posso corresponder. Sou tão amiga do José como do Tiennet. Conheço-os desde sempre, para mim são dois irmãos muito queridos... nada mais que dois irmãos. E se eu soubesse o que se estava aqui a passar, juro-lhe que não teria vindo por mais que o José quisesse fazer-me acreditar que a minha presença era indispensável!

TERÊNCIA - (com firmeza) Acabou?

BRULETTE -Que mais posso dizer-lhe?

TERÊNCIA - Então oiça. Engana-se se imagina que a acusei por ciúme. E que esse ciúme nasce dum amor oculto...

BRULETTE - Vai negar que gosta do José?

TERÊNCIA - Não, não vou negar. Gosto dele. Gosto muito dele... mas não com esse amor que julga! Porque se eu o amasse realmente teria orgulho bastante para o esconder de todos... Nunca desceria a disputar-lho, entende? Nunca! Gosto do José, mas gosto dele com uma amizade leal e desinteressada que me leva a defendê-lo contra tudo e contra todos! (pausa) Portanto... se é também assim que você gosta dele... sejamos aliadas! Estou disposta a reconhecer o erro dos meus juizos a seu respeito e também os seus direitos a ocupar-se da felicidade e do bem-estar do José. Conhece-o há muito mais tempo do que eu, é natural que assim aconteça. Mas...

BRULETTE - Mas?

TERÊNCIA - O José ama-a e contra este facto não podemos nada. Ou melhor - não posso eu. Você pode tudo! E há-de cumprir o seu dever.

BRULETTE - O meu dever?

TERÊNCIA - O seu dever.

BRULETTE - Mas qual é o meu dever?

TERÊNCIA - Casar com ele.

BRULETTE -Mas eu não posso...

TERÊNCIA -Tem de poder, Brulette. A ventura do José é mais importante que a de todos nós. Basta ele ser um doente... uma criatura sem forças para resistir aos grandes desgostos! Se me promete, por amizade, sacrificar-se pelo José, conte comigo. De contrário... não posso ver em si senão uma inimiga!

BRULETTE - Diga o que disser, Terência, sou forçada a repetir-lhe que você está apaixonada e cheia de ciúme! E isso alegra-me, porque assim posso ir-me embora descansada. Sei que você fará tudo por ele e que há-de ajudá-lo a esquecer-me!

TERÊNCIA - (revoltada) Você é muito má! Muito pior do que eu a supunha!

BRULETTE -Eu? ...

TERÊNCIA - Insiste em ofender-me e humilhar-me! Não é capaz de entender um sentimento nobre e generoso. Percebo-a. Percebo-a!...

Convém-lhe insistir nesse ponto... que é para ir convencer o José... e falar-lhe de mim...

BRULETTE - (suspensa) Terência? ...

TERÊNCIA - (sem se deter, cada vez mais arrebatada)... e conseguir que esse rapaz que só me deve respeito e gratidão passe a desprezar-me e a escarnecer-me!

TIENNET - (intervindo) Oh Terência, oh Terência, está a ir longe demais! Nem a Brulette é capaz das acções que lhe atribui nem o José de reagir duma tal maneira mesmo que viesse a saber...

BRULETTE - (atalhando) Por favor, Tiennet... não digas nada! A Terência não te acredita... e a tua defesa em meu favor só pode prejudicar-me aos olhos dela! Deixa que eu procure explicar-me... (outro tom) Terência... quer tentar reflectir?... Quer tentar compreender-me, sem reserva nem má vontade?

TERÊNCIA - Diga.

BRULETTE - Terência... eu nunca namorei ninguém, conquanto na verdade muitos rapazes me façam a corte e isso me divirta. Mas, com o José... as coisas são completamente diferentes.

TERÊNCIA - Diferentes como?

BRULETTE - É que o amor do José não me interessa... mas não pelo facto de eu não o amar.

TERÊNCIA - Então?

BRULETTE - Conheço o José desde sempre. Sei que ele vive muito dentro de si próprio, tanto que cheguei a considerá-lo um egoista... É uma pessoa que se preocupa mais com ele do que com os outros. Tudo tem de acontecer como ele deseja e da forma como a ele convém. Por mais que ele goste de mim – é dele que na verdade gosta para que o seu Eu fique satisfeito... E mesmo assim isto não lhe bastaria nunca!

TERÊNCIA - Oh! Como se atreve?

BRULETTE - Escute, Terência, escute até ao fim! No coração do José existe uma rival...

TERÊNCIA -Uma rival?...

BRULETTE - Uma rival mais importante que eu, mais importante que você. Uma rival que ele há-de preferir sempre a tudo - a mim, a si... à mulher, se um dia vier a tê-la, aos filhos, à casa... (pausa para efeito) Sempre pensei que era assim... mas ainda há bocado tive a certeza mais completa, quando falei com ele. Essa rival, contra a qual ninguém pode nada, Terência, é a Música!

TERÊNCIA - (impressionada) Sim... já tenho pensado nisso algumas vezes.

BRULETTE - (triunfante) Já?...

TERÊNCIA - Ele é como o meu Pai. A música domina-os duma tal forma que tudo o mais perde importância para eles. (outro tom) Mas a verdade é que nem por isso o meu Pai deixou de ser extremoso por nós e de nos criar com redobrada ternura, visto que ficámos sem Mãe ainda muito pequeninos.

BRULETTE - Estimo sabê-lo, por si, Terência! Talvez o exemplo do seu Pai torne o José digno de si.

TERÊNCIA -E porque não de si?

BRULETTE - (numa censura) Terência? ...

TERÊNCIA - Deus sabe que nada peço para mim... e muito menos quando rezo pelo José. A minha sorte, seja ela qual tiver de ser, não me preocupa. Acredite que dou àqueles que estimo tudo quanto posso sem esperar nada em troca.

BRULETTTE - Nesse caso há qualquer coisa que me excede... e eu não valho nada ao pé de si, Terência. Isso são sentimentos duma santa e não duma pessoa vulgar!

TERÊNCIA - Oh, uma santa! Coitada de mim!

BRULETTE -Se você, amando, nada espera em troca, é o contrário de mim... porque eu espero tudo, tudo, tudo, daqueles de quem gosto... e muito mais ainda daquele que um dia vier a amar. Acho-a extraordinária, sabe, Terência? (mais reflectida) E depois... talvez você não esteja realmente apaixonada pelo José, como eu pensei, (reage) Seja porém como for, agora só lhe peço uma coisa - ensine-me a melhor maneira de lidar com ele!

TERÊNCIA - (indecisa) Mas, Brulette, eu não sei...

BRULETTE - Escute, Terência, por favor! Eu não acredito que, se lhe tirar toda a esperança no que me diz respeito, lhe vou vibrar um golpe de morte. Não!... Tenho a certeza de que ele é capaz de resistir. Mas a verdade é que o José tem estado muito doente e há que ter cuidado com ele... (suspira) Ah, meu Deus, Terência, quem me dera que você compreendesse a minha situação!... Ora repare... não sou assim tão inconseqüente como pensa! Se o fosse e, tendo lá na terra, segundo você diz, mais de cinqüenta pretendentes, para que havia de vir meter-me no meio destes bosques onde só encontro apoquentações e arrelias, an?... Não acha que valho um bocadinho mais do que pareço...?

TIENNET- (cortando a frase) Meninas... olhem quem além vem!...

BRULETTE - (num sobressalto) João!...

TERÊNCIA - O meu irmão!...

HURIEL - (aproximando-se) Ora vivam! Muito folgo em vê-los em amena conversa!...

BRULETTE - (surdamente) bom dia.

TERÊNCIA -Tu por aqui, já, Huriel?

HURIEL - É verdade, vim por aí abaixo...

TERÊNCIA - Tinhas que fazer?

HURIEL - Hum... ter que fazer não é bem o termo...

TERÊNCIA - Então... foram saudades?

HURIEL - (bonacheirão) Oh! ... Bem... (notando o ar contrafeito de todos) Aconteceu alguma coisa, aqui?... O José piorou?

TIENNET - Não!... Felizmente, não.

HURIEL - Ah, antes isso! É que eu tenho uma idéia, sabem?

BRULETTE - Uma idéia?

HURIEL - Estive a pensar que precisamos de fazer as honras dos nossos bosques aos amigos que nos visitam! Precisamos de distraí-los e ao mesmo tempo de lhes mostrar que nas horas vagas também sabemos divertir-nos!

TERÊNCIA - (reservada} Mas que é que tu estás a pensar, João?

HURIEL - Em dar uma festa!

BRULETTE -Uma festa? ... Oh, João!...

HURIEL - Fica contente?

TERÊNCIA - Tudo quanto seja pândega, já se sabe, alegra a Brulette!

HURIEL - (que estranha) Como?

BRULETTE - Realmente, gosto de dançar! E nas nossas idades, faz bem esquecer os problemas, as preocupações... Dá-nos mais vontade de continuar!...

HURIEL -Isso é verdade! E as festas, entre nós, porque são raras, tornam-se uma fonte de alegrias da qual as pessoas durante muitos meses ficam a saborear o gosto! (ri) Portanto já sabem... Depois de amanhã, domingo... um grande baile na floresta! E agora vou-me a organizá-lo! (a afastar se) Trata-se de fazer os convites... (ri) e de arranjar música!... Até amanhã de manhã! hora... cá estarei!

"Em plena festa na floresta, entre danças e cantares, chegam os almocreves"

TODOS OS HOMENS - (aproximando-se) De beber! Dêem-me de beber!...

1º HOMEM - Queremos vinho!...

2º HOMEM -Vinho para todos!

1º HOMEM -Isto é boda, ou quê?

O GRANDE LENHADOR - (entre a sua, gente) Não é boda, mas é festa! E se pedirem doutra maneira, temos muito gosto em repartir convosco o que temos.

MALZAC - (arrogante) Como é que se pede, ó velhote?... Sem a boca, não sei!...

O GRANDE LENHADOR -E a palavra "favor", a sua boca não é capaz de dizê-la?...

MALZAC - Ah, pelos vistos as pessoas aqui são muito finas!... (ri) E pouco generosas!...

1º HOMEM - Eh, Malzac, vamo-nos daqui! Na verdade, a festa e a baptizado não se deve ir sem ser convidado... e nós não fomos convidados. Aparecemos!...

O GRANDE LENHADOR - Temos muito prazer em que fiquem, como amigos!

BRULETTE - (baixinho, assustada) Tiennet... são os almocreves que nós encontrámos à vinda para cá...

TIENNET - (baixo) Schiu...

MALZAC - Ora asim é que é falar, Grande Lenhador! Custou, mas foi!...

1º HOMEM - Não, Malzac, não!... (outro tom) Desculpem a intrusão... e divirtam-se à vontade! Boa tarde!

MALZAC - (impedindo o afastamento dos almocreves) Não, Archignat, não! Eu não sou tão acomodativo como tu! Passo a vida pelos bosques, estüpidamente, não hei-de perder a ocasião de me distrair o meu pedaço. Quero dançar!... (aproxima-se) Há por aqui belas raparigas, com certeza que uma não repelirá o pobre do Malzac... (e pelo meio dos pares imobilizados pelo assombro e pelo descontentamento, vai espalhando as reacções de desagrado) Tu, minha linda?... Não!... E tu, galante? Também não?... Bem, tu com certeza não te vais esquivar... (outro tom) Ah... espera ou eu me engano muito ou eu já te vi, preciosa!... Olá se vi!... Eras tu a rapariga daquela noite... a noiva do Huriel... e a irmã deste não sei quê... Oh, para dançar contigo vale a pena dizer a tal palavra favor... (ri, insultuosamente) Os senhores fazem favor de permitir que eu dance com esta beldade?...

HURIEL e TIENNET - (ao mesmo tempo e avançando ambos a defender Brulette) Não!...

MALZAC - Não, porquê? Isso é contra as leis da hospitalidade!

TIENNET - Não percebo em que te devemos seja o que for! Não és dos nossos!

HURIEL - (ameaçador) Vai-te daqui, Malzac. Vai-te daqui quanto antes!

MALZAC - Isso! Não vou! Não vou sem que esta linda me dê o gosto de ser meu par.

BRULETTE - Então pode ficar aí até amanhã à espera, porque a festa acaba mas eu consigo não danço!...

MALZAC- Veremos!... Nem que eu tenha de te ganhar... comigo danças com certeza!...

TIENNET- Mas isto é um verdadeiro insulto! Um insulto que não pode ficar assim!...

MALZAC - (num desafio) Quem quer lutar comigo? O prêmio é o direito de dançar com esta esquiva donzela!... Então?... Têm medo? Os valentões acham que não vale a pena?... (ri, grosseiro) Então, Huriel... a tua noiva não vale que arrisques a pele por causa dela?... Queres que te chame medroso e poltrão? ... (gargalha) Ah, Ah, ah... Huriel, o mais valente dos almocreves do Alto Bourbon, recusa-se a lutar com medo de perder a noiva! (gargalha)

HURIEL - (colérico, mal conseguindo dominar-se e sobrepor-se às reacções de todos os lenhadores) Basta... basta!... Todos sabem que eu não tenho medo de nada... mas não vou lutar contigo por um motivo tão ridículo como este! vou, sim, dar-te uma lição, porque és um miserável, um insolente, um malandro cheio das piores intenções e mereces a maior das sovas que até hoje apanhaste!...

TIENNET - (no meio do tumulto) Huriel, por favor, deixa-me esse gosto a mim...

O GRANDE LENHADOR - (dominando o tumulto, tonitroante) Silêncio!... Silêncio!... Afastem-se todos... cedam o lugar! Cedam o lugar!... Deixem-nos regular os nossos assuntos Todos podem e devem assistir, mas não têm voz na matéria.

1º HOMEM - (desesperado) Uma luta por causa disto!... Grande Lenhador, acha que vale a pena?...

O GRANDE LENHADOR -Foi um dos vossos que a provocou. Agora é tarde para recuar. Um dos nossos aceita o desafio... (imperioso, enquanto todos lhe obedecem) Vamos!

Almocreves dum lado... lenhadores do outro! Malzac... dois passos em frente!... Huriel... dois passos em frente!... (pausa para efeito) Lutam corpo a corpo... ou à paulada?...

MALZAC - (irado) Luta de morte!...

BRULETTE - Jesus!...

O GRANDE LENHADOR - (com certo custo e no meio do pânico geral) Bem... seja! Archignat, dê-lhes os bordões... Atenção... O primeiro a cair tem o direito de pedir mercê. Se lhe for recusada... deverá continuar até ao fim!

TIENNET- Mas é horrível, isto!... Não se devia consentir!...

O GRANDE LENHADOR - Eu disse que ninguém pode ter voz na matéria!... Os nossos usos e costumes dizem-nos respeito a nós e a mais ninguém!...

1º HOMEM -Pronto!...

O GRANDE LENHADOR -Atenção!... A postos?...

HURIEL - A postos!

BRULETTE - (baixinho) Santo nome de Deus, acudi, meu Jesus!...

O GRANDE LENHADOR -Um... dois... três... Comecem!...

"E a terrível luta, impiedosa, fatal, desenrola-se no meio da expectativa de todos, até que um dos contendores tomba"

BRULETTE - Meu Deus!... Foi o Malzac que caiu!...

HURIEL - (ofegante) Malzac... caiste!... Pedes mercê... ou continuamos?... (pausa) Malzac... Três vezes te chamei!... Malzac!... Malzac!... Malzac!...

O GRANDE LENHADOR - (pouco depois e sonoramente) Malzac perdeu a partida! Façam o que devem os que devem fazer o que é preciso que seja feito!...

"Nessa mesma noite, na cabana do Grande Lenhador"

O GRANDE LENHADOR - (como quem tenta reagir e convencer) Mas afinal porque é que estão assim? Não há motivos!... (pausa para efeito) Não há motivos, repito!... Vejamos o que se passou! Um mau homem, um péssimo homem, recebeu uma grande lição, a lição que merecia, afinal! Digo-lhes que a merecia, estão a ouvir? Era um homem conhecido em toda a parte pelas suas más acções! Talvez vocês não saibam, vocês, os da planície- sim, que a Terência conhece a história!

- que esse Malzac tinha aqui há tempos abandonado a mulher que morreu de desgosto e miséria! Há muito que ele desonrava o grupo dos almocreves!... Acho disparate estarmos todos nesta tristeza só porque um rapaz honesto como o meu filho lhe deu uma boa tareia!... (mais docemente) Brulette... filha, porque é que está a chorar, an? Tem asim tanta pena do vencido? (torna-se grave) Brulette... não acha que o Huriel fez bem em desagravá-la?... Brulette, não podia ser doutra maneira! Não foi o meu filho que desafiou o Malzac. Foi o Malzac que o desafiou a ele! Não podia ser doutra forma! Brulette... preferia que a sorte fosse adversa ao Huriel?... Eu não estou contente por o Huriel ter levado a melhor... e escapado!... Não! A razão da minha alegria é outra! Entre um homem justo e um mau cristão, nós não podemos hesitar! A escolha tem de ser a favor do homem justo! Se o Huriel fosse o mau cristão, eu não choraria por ele... ainda que fosse o meu sangue que corresse com o sangue dele! Por isso, meus filhos, peço-lhes... agradeçam a Deus que resolveu pelo melhor... e peçam-lhe que em tudo, como isto, seja por todos nós!

"Um pouco mais tarde, na cabana de Terêncía"

TERÊNCIA - (com doçura) Vamos, Brulette, vamos! Não chore mais! Faça por dormir. As lágrimas não servem para nada!...

BRULETTE - (soluçando) Mas... mas...

TERÊNCIA - Brulette, por favor, domine-se. Eu tenho de lá ir. Ê preciso, entende?... O meu Pai não sabe que ele está ferido e não deve suspeitá-lo!

BRULETTE - Mas não seria melhor que... que ele também fosse?...

TERÊNCIA - Não, Brulette. Isso só serviria para o comprometer sem vantagens.

BRULETTE -E a Terência... não corre perigo?

TERÊNCIA - Não. Eu, não.

BRULETTE - Tenho medo... medo! Pode ir encontrar-se no meio dos almocreves... é horrível!... (reage) Terência, deixe-me ir consigo, ao menos! Afinal de contas fui eu, embora sem querer, a causadora da luta! Chamávamos o Tiennet e...

TERÊNCIA - (atalhando) Não, Brulette, não! Nem você, nem o Tiennet! Oiça. Os almocreves são capazes de aceitar o desaparecimento do Malzac como justo. Mas também podem tirar desforço num estranho... e o Tiennet não lhes merece qualquer espécie de consideração, percebe? Vá, deixe-o dormir descansado. Merece o sossego!

BRULETTE -Mas eu...?

TERÊNCIA - Você seria mal recebida naquele meio. Ninguém a conhece. Ao passo que a mim todos respeitam há muito tempo.

BRULETTE - Está bem... está bem, pronto! (quase infantil) Mas você pensa que eles ainda estão próximos? O seu Pai disse que eles se iriam embora o mais depressa possível!...

TERÊNCIA - Os almocreves nunca abandonam os seus. Devem, pelo menos, tratar dos feridos... E se eu já não os encontrar, ficarei descansada. Será o sinal de que os ferimentos do Huriel não eram de molde a impedi-lo de seguir viagem...

BRULETTE - Você chegou a ver... os ferimentos do seu irmão?

TERÊNCIA - (hesitante) Não... não se via nada. Quando lhe falei... ele garantiu-me que não havia nada de grave. Mas...

BRULETTE - Mas?...

TERÊNCIA - Tenho aqui o lenço com que lhe enxuguei o rosto que eu julgava encharcado em suor... Tome... Veja!

BRULETTE -Jesus! Ê sangue!...

TERÊNCIA - Sim, é sangue, (pausa) Quando nós chegámos aqui a casa e eu vi... foi-me difícil esconder a aflição ao meu Pai, que está tão apoquentado, e do José... que podia não resistir ao golpe!... (outro tom) Dê-me o lenço, Brulette! Hei-de lavá-lo no primeiro riacho que encontrar.

BRULETTE - (suspensa) Terência... deixe-me ficar com ele!... Eu escondo-o bem escondido ...

TERÊNCIA -Não pode ser, Brulette.

BRULETTE - (infeliz) Porquê?

TERÊNCIA - Porque é perigoso! Bem vê, se os homens de justiça tiverem qualquer rebate de que houve aqui luta de morte, vêm meter o nariz em tudo, vasculhar, virar as coisas do avesso... Eles até as pessoas revistam! Ah, Brulette, não sabe como eles nos perseguem de há um tempo a esta parte!

BRULETTE - Perseguem?

TERÊNCIA - Perseguem, sim. Querem obrigar-nos a renunciar aos nossos costumes... como se isso fosse preciso para que eles não acabem aos poucos, naturalmente, infelizmente!

BRULETTE - Infelizmente? ... Terência... pois não será de desejar que costumes tão perigosos como o dessa luta de morte a que hoje assistimos acabem e acabem quanto antes?

TERÊNCIA -Sim... é. Mas a mal... não conseguem nada! A violência gera a violência... e as coisas importantes não se resolvem! Nós somos muito orgulhosos, muito independentes. Não gostamos que nos obriguem a coisa alguma. Nem sequer a renunciar ao mal!... Percebe?... (suspira) Não... não sabe! Vocês, gente da planície, são simples, acomodatícios... aceitam as coisas sem revolta, naturalmente... Mas aqui entre nós não é assim! Habituada a defender-se dos lobos e de outros animais ferozes, a gente dos bosques luta contra tudo o que procure dominar a sua vontade, forçá-la ao que não quer (pausa) Foi por isso que o meu irmão reagiu contra o desgraçado do Malzac!... (outro tom) E contudo não há ninguém melhor do que o João, mais pacífico, mais bondoso!... Mas ceder a uma exigência que ele sentia injusta, isso nunca!...

BRULETTE - (rompendo a chorar) De qualquer forma... a culpada de tudo fui eu!... Se não fosse eu... nada se teria passado!... Oh, não, nunca me perdoarei de ter provocado tamanhã desgraça!... (soluça) Você e seu Pai, Terência, deviam expulsar-me!...

TERÊNCIA - (bondosa) Vamos, Brulette, vamos, sossegue, não se atormente assim! As coisas passaram-se como Deus quis e ninguém tem o direito de queixar-se! (outro tom) Brulette... quero dizer-lhe uma coisa... Agora... sim, agora conheço-a... e sei que é digna de estima! Oiça... procure dormir, está bem? Tenho a certeza de que lhe hei-de trazer boas notícias... (sorri) Penso que o meu irmão nem sentirá as dores dos seus ferimentos... se você me der licença que eu lhe diga o quanto tem chorado por ele!... (pausa) Quer dar-me um beijo?... (beijam-se). Talvez eu não me demore muito... Até logo, sim? Durma em paz!...

BRULETTE - (anelante) Não poderei dormir, Terência!... vou ficar a pedir a Deus que a ajude... até vê-la regressar!...

"Altas horas da noite, no bosque cerrado, longe de tudo e de todos"

FREI NICOLAU - Bem, meu filho, bem... por agora nada mais há a fazer. A cruz de madeira já lá está no lugar dela... e só resta pedir a Deus que lhe perdoe os seus pecados e dê paz à sua alma!

HURIEL - (impressionadíssimo) Quando penso, Frei Nicolau, que há tão poucos dias ele me ameaçou dizendo que não se lhe dava abrir uma cova para me enterrar!... Ê como se o estivesse a ouvir ainda... "As árvores e as pedras não têm boca para dizer o que vêem"... (com imensa amargura) As árvores e as pedras não têm boca para dizer o que vêem!... Ê verdade!...

FREI NICOLAU -Pois é, Huriel, pois é... as árvores e as pedras não falam... mas falam as pessoas quase sempre mais do que devem e eu não tinha interesse em que viesse a saber-se que passei a noite aqui nos bosques...

HURIEL - Que importância pode isso ter para si, Frei Nicolau? As coisas são tão facilmente explicáveis... Um almocreve sofreu um desastre, ficou ferido... o Irmão tratou dele e graças aos seus cuidados o acidente não terá conseqüências funestas... Ninguém censurará um acto de caridade!...

FREI NICOLAU - (indeciso) Hum... sim... (outro tom) Mas resta saber se o acidente não terá conseqüências graves!...

HURIEL -Como?

FREI NICOLAU - Essa brecha na sua cabeça não me agrada nada! Ê profunda e larga... receio que surja alguma complicação.

HURIEL - (num suspiro) Há-de ser o que Deus quiser!...

FREI NICOLAU -Sim, há-de ser o que Deus quiser! Mas o que Deus quer com certeza é que tome cuidado consigo. Lave todos os dias a ferida em água corrente, não se esqueça, e traga a cabeça sempre ligada, para se defender das poeiras. Se tiver febre, trate de procurar uma pessoa entendida...

HURIEL - (que ouve um qualquer e indistinto barulho, como de folhas pisadas) Que é isto?...

FREI NICOLAU - Isto, o quê?...

HURIEL - Nada... deve ter sido impressão... (outro tom) São horas de se ir embora, Frei Nicolau. Obrigado por tudo...

FREI NICOLAU - Meu filho... vai deixar-me partir sem se confessar?

HURIEL - Eu? Confessar-me?

FREI NICOLAU - Tratei do seu corpo, que estava doente e precisava de cuidados. Mas... e a sua alma?... Creio que ela está bem necessitada de cuidados! Confesse-se, meu filho, e eu lhe darei a absolvição...

HURIEL - Não pode ser, Frei Nicolau... eu não a mereço, não sou digno dela antes de me penitenciar! Pequei mortalmente, meu Irmão... e não me sinto digno de me ajoelhar diante de si... mas peço-lhe um grande favor, se deseja ajudar-me... Faça rezar muitas missas por mim... por mim e por todos aqueles que se deixam arrebatar pela ira.

FREI NICOLAU - Escute, João Huriel... escute e peça a Deus perdão do seu orgulho! Porque nós somos todos pecadores e só Ele é um Juiz inteiramente justo. Só Ele, o Supremo Senhor de todas as coisas, tem o direito de condenar ou perdoar!... Vamos, meu filho, desista dessa idéia de ir entregar-se a quem não pode ajuizar das ordens de Deus!...

HURIEL - Frei Nicolau, se eu não expiar duramente, nunca mais terei o direito à paz da minha consciência!

FREI NICOLAU -Mas meteu-se-lhe uma idéia errada na cabeça! O que houve... não foi de modo nenhum um crime! Deu-se uma luta, ancestralmente permitida por homens de bem que sempre a acharam não só legal como necessária... A luta decorreu diante de testemunhas e todos sabem que um dos dois estava condenado...

Porque não pensa que a decisão coube à vontade suprema?...

HURIEL - Porque Deus não permite tamanhãs atrocidades!...

FREI NICOLAU -E quem é você, João Huriel, para discutir o que Deus quer ou não quer?...

HURIEL - (com súbita violência, ouvindo mais nítido o rumor suspeito) Quem anda aí?...

TIENNET - (distante) Sou eu, João!

HURIEL - Tiennet?...

TIENNET - (avançando lentamente) Sou eu... e peço desculpa de vir assim...

HURIEL - (estupefacto e- desagradado) Tiennet... como vieste aqui ter? Seguiste-me?...

TIENNET -Não, não, nada disso... Eu te conto como as coisas se passaram. Não podia dormir, estava sentado cá fora... e de repente vi a tua irmã sair da cabana e correr para a floresta.

HURIEL - A Terência?

TIENNET - Logo a seguir apareceu a Brulette... e eu percebi que ela estava a chorar. Fui ter com ela... perguntei-lhe o que havia... e quando ela me contou que a Terência tinha vindo à tua procura, tive tanto medo do que lhe pudesse acontecer que vim atrás sem pensar em mais nada... Vim atrás é como quem diz! Não consegui encontrá-la... andei por aí às voltas... até que ouvi vozes e me aproximei. Como não percebia quem falava, tratei de me certificar se era gente de bem ou de mal...

HURIEL - Isso quer dizer que escutaste a minha conversa aqui com Frei Nicolau?

TIENNET - Só o fim.

HURIEL - O bastante para compreender, o que se passa?

TIENNET - Creio que sim... (outro tom) O bastante para achar que Frei Nicolau tem toda a razão... e que tu não deves cometer loucuras que só causariam desgraças sem nada remediar. O teu Pai e a tua irmã morreriam de dor... e os homens de bem condenar-te-iam, porque seria como se lhes negasses o direito de vingarem um insulto com o próprio sangue. Nós já não lutámos corpo a corpo, os dois?

HURIEL - (lentamente) Nada disso... nada disso me tranqüiliza. Deus não quer que se mate!

TIENNET - E que uma pessoa se deixe matar, quer?... (pausa) João, tu não mataste por livre vontade, por mau instinto, pelo simples desejo de malfazer...

HURIEL - Não... não!... Isso é verdade

- não!... Quando o Malzac caiu, esperava que pedisse mercê e tudo terminaria ali! Mas ele... não se levantou, não disse mais nada!

TIENNET -E tu, que culpas tens?... An?...

HURIEL - De qualquer maneira, eu...

FREI NICOLAU-(intervindo) O meu filho vai aceitar como suprema expiação o seu desgosto pelo que sucedeu... e entrega o resto a Deus Nosso Senhor! Que Ele o castigue se entender!

HURIEL - (após uma breve pausa) Obrigado por tudo, meu Irmão. Foi Deus que o mandou, certamente, passar hoje por este bosque... Siga o seu caminho... e bem haja por tudo.

FREI NICOLAU - Até outro dia, João Huriel. Diz-me o coração que não passará muito tempo sem que tornemos a ver-nos... Boa noite... E descansem os dois... Merecem-no!...

HURIEL - Boa noite. TIENNET - Santas noites.

"o bom frade desaparece na noite... "

HURIEL - Meu caro Tiennet... és um bom amigo e um excelente rapaz!

TIENNET - Oh, eu? ... Porquê?

HURIEL - Foste sincero no que me disseste, eu sei... e com essa sinceridade ajudaste-me extraordinariamente!

TIENNET - Mais do que o Frei Nicolau?

HURIEL - Não... não é bem assim! Não me ajudaste mais do que ele...

TIENNET - Então?

HURIEL - Então fizeste com que eu o entendesse... e percebesse até que ponto ele tinha razão! Deus é de facto o supremo juiz... o único capaz de tomar as decisões convenientes... porque ê também o único que sabe como são as coisas... o único que as conhece para além de todas as aparências. O único que não precisa de testemunhas nem de inquéritos para saber a verdade. O único que lê nas almas e que por isso mesmo sabe que eu não desejava matar ninguém quando aceitei essa luta terrível!... (suspira) Os homens não deviam guerrear-se, Tiennet, nem lutar. Mas o homem que foge a um desafio é por todos considerado como um cobarde!... Entre nós, gente do campo, uma luta de morte com paus tem o mesmo sentido que entre os fidalgos um duelo à espada... Trata-se de defender a própria honra!... (mais lentamente) Se eu me negasse a bater-me com ele... os da minha igualha sentir-se-iam no direito de me cuspirem em cima... Podia até ser expulso da confraria dos almocreves!... E a verdade é que o Malzac me provocava... até eu ceder, como cedi! (cada vez com mais dificuldade) Tu ainda não sabes tudo...

TIENNET - Que é que eu não sei, Huriel?

HURIEL - Ontem à tarde, quando eu andava a tratar da minha vida sossegadamente, a comprar carvão para um novo frete, o Malzac apareceu-me... a dizer coisas medonhas de Brulette... e a ameaçar-me de morte se eu não lhe cedesse o meu lugar na vida dessa rapariga que, dizia ele, não podia ser senão uma sem-vergonha para andar àquela hora connosco nos bosques...

TIENNET - Ah, o malvado!... Que se eu soubesse isso, quem o mandava para o outro mundo não eras tu, não!...

HURIEL - Cala-te!... Não posso ouvir-te falar assim!...

TIENNET - E tu, que lhe respondeste?

HURIEL - Apenas que se tinha um resto de dignidade viesse repetir-me uma tamanhã injúria diante de quem pudesse testemunhar o mais leal dos combates de desagravo... Foi o que sucedeu. O resultado... já tu o sabes!

TIENNET -Sei-o!... Sei-o, sim! Sei-o... como sei muitas outras coisas!

HURIEL - Que coisas?

TIENNET - Por exemplo... o teu amor por minha prima!...

HURIEL - Bem... se tu sabes que eu amo a Brulette mais do que a tudo na vida... sabes tanto como eu... mas não sabes mais nada com certeza... porque eu nada espero dela!...

TIENNET -Nada esperas? Porquê?

HURIEL - Porque sei o tormento que punge o coração do José por causa da Brulette!

TIENNET -Ah!... É então por ele que desistes?...

HURIEL -Sim, desisto... e por quanto se passou deixarei de ser almocreve!

TIENNET - (estupefacto) Deixarás de ser almocreve?

HURIEL - Sim. Tudo o que sucedeu desgostou-me desta vida. Assim que tiver cumprido determinados compromissos que assumi, retirar-me-ei da confraria.

TIENNET -E depois? Que é que fazes?

HURIEL - Hei-de conseguir arranjar uma ocupação mais sossegada, mais discreta, não te parece?

TIENNET - (após uma breve pausa) Posso dar essa novidade a Brulette?

HURIEL -Não!

TIENNET - Não porquê?

HURIEL - Porque não quero que a Brulette tenha boa opinião de mim...

TIENNET - Essa agora? ...

HURIEL - (com certo custo) A não ser...

TIENNET -Diz, Huriel! Diz!...

HURIEL - A não ser que o José consiga esquecê-la completamente!...

TIENNET - Preocupas-te assim tanto com ele?

HURIEL - O mais possível!... Estimo-o como se fosse meu irmão! Ouvi-lhe as confidencias e conheço os seus desalentos... Atraiçoá-lo seria muito pior do que tudo o que já tenho a pesar-me na consciência!

TIENNET - (calmíssimo) Creio que estás a exagerar, João. A Brulette não quer o José para nada... e mais vale talvez desenganá-lo quanto antes!

HURIEL - Não penses nisso, Tiennet! O José não suportaria!

TIENNET - Quem sabe? ... Aliás, eu conheço uma pessoa capaz de torná-lo completamente feliz... A Brulette já pouco mais pode fazer por ele. Ao passo que a...

HURIEL - (atalhando) Tiennet... deixemos isso, está bem? As nossas vidas, como aliás todas as coisas, dependem da vontade de Deus!

TIENNET - Mas...

HURIEL - (prosseguindo) Na nossa família, não há ninguém capaz de tentar construir a própria felicidade à custa dos outros!

TIENNET - Bem... se pensas assim...

HURIEL - Penso... penso isto e muitas outras coisas. Ê por isso que me vou embora daqui.

TIENNET - Vejo que não vale a pena insistir. Estás absolutamente decidido!

HURIEL - Pois estou!... E só há agora uma coisa que desejo pedir-te, (pausa) Não contes nada do que se passou nem à Brulette nem ao José. Não lhes contes que o Malzac morreu... (pausa para efeito) Quando esse desgraçado caiu, só o meu Pai, a Terência e o Archignat sabiam que ele nunca mais se levantaria!... Os outros ficaram na dúvida...

TIENNET - A propósito de Terência, que será feito dela?

HURIEL - Procurou-me com certeza no acampamento dos almocreves e, não me encontrando, voltou para casa... Uma rapariga como ela nunca vai além do que deve! (gravemente) Somos da mesma raça! Procuramos sempre agir da melhor maneira. É por isso... que eu desisto completamente da Brulette! Quero que ela me esqueça!... Sim, quero que ela me esqueça mas que não tenha medo de mim ou que me odeie!...

TIENNET - Penso que ela nunca te esquecerá, João... Arriscaste a vida para a defender!...

HURIEL - A minha vida vale pouco demais num caso destes!

TIENNET - Talvez só tu penses assim!... Olha, eu, se houver ensejo para tal, não deixarei de reconhecer o extraordinário mérito da tua conduta!

HURIEL - Vamos, Tiennet... não leves tão longe o teu altruísmo!

TIENNET - O meu ai...?

HURIEL - No fim de contas, tu não me conheces! Nem sequer fiz fosse o que fosse para merecer a tua amizade!... Pelo contrário, só te tenho prejudicado.

TIENNET -Tu?

HURIEL - Eu, Tiennet... é que eu sei que tu também amas a Brulette!

TIENNET-(serenamente) E depois?

HURIEL - Depois? ... Bom... nós somos três... três pretendentes! E cumpre-nos não só compreender a nossa posição... como aceitar galhardamente a possível escolha dum desconhecido que a Brulette está no seu pleno direito de preferir, (outro tom) O que eu desejo agora, Tiennet, é que nós três, suceda o que suceder, possamos ser amigos pela vida fora!...

TIENNET - Está tudo muito bem, excepto uma coisa.

HURIEL - Que coisa?

TIENNET - Eu já não pertenço à ordem dos pretendentes de Brulette!

HURIEL -Não? ...

TIENNET -Não!...

HURIEL -Porquê?

TIENNET - Oh... eu fui sempre o menos entusiasta de todos... E agora sinto-me tão calmo como se nunca tivesse pensado nela!...

HURIEL-E eu repito: - Porquê?

TIENNET - Porque conheço o segredo do coração da minha prima.

HURIEL - Conheces?

TIENNET - Conheço e acho que ela fez uma boa escolha, o que muito me alegra! (outro tom) João... está a romper a madrugada...

HURIEL - Ê verdade.

TIENNET - Se realmente queres partir... são horas...

HURIEL - Sim, são horas. Vou-me embora.

TIENNET - Pois que Deus vá contigo e te ajude a esquecer esta noite de pesadelo!... Boa viagem, Huriel!

HURIEL - Obrigado por tudo...

TIENNET - Quando voltaremos a ver-te?

HURIEL - Quando eu me sentir digno da felicidade de que me despeço indo para longe de todos vós!...

"Na floresta, ao amanhecer"

TERÊNCIA - (avistando Tiennet) Olá, bom-dia, Tiennet!... Então já a pé?...

TIENNET - (aproximando-se) Oh, estou a pé há muito tempo! Acordei cedíssimo e andei a passear por aí...

TERÊNCIA - (com súbita reserva) Ah! ...

TIENNET - (simulando despreocupação) E a Brulette, que é dela?

TERÊNCIA - Ficou a acabar de se arranjar, não demora com certeza. São horas do pequeno almoço! Tenho aqui leite de ovelha, fresquíssimo... e pão com presunto, Gosta?

TIENNET - Gosto imenso.

TERÊNCIA - Se quiser ovos, também há... (outro tom) Olhe, aí vem o José!...

TIENNET - (para longe) Viva, dorminhoco, até que enfim apareces!...

TERÊNCIA - E não foi preciso acordá-lo!... Grandes progressos!...

JOSÉ - (aproximando-se) Vivam!

TERÊNCIA - Olá, José, bom-dia!... Então como te sentes?

TIENNET - Estás com óptimo aspecto!...

JOSÉ -Achas?...

TIENNET -Acho!...

JOSÉ - Pois olha que não dormi quase nada.

TERÊNCIA - (contrafeita) Não dormiste? ...

JOSÉ - Acordei muito cedo... Sentia-me agitado e ao mesmo tempo com uma vontade de me levantar que nem imaginam! (outro tom) Será por ter deixado de ter febre?

TIENNET - Já não tens febre?

JOSÉ - Creio que não! Pelo menos não a sinto!

TERÊNCIA - Deixa ver se estás quente!... (verifica) Não... nada! Fresquíssimo!...

TIENNET - Ora demos graças a Deus, que o nosso doentinho está quase Bom!... É uma alegria, an?...

JOSÉ - (estranhadamente) Uma alegria!... Uma alegria! (outro tom) Que é feito do Huriel?... Já tiveram notícias dele?...

TERÊNCIA -Já, já! Está bem e partiu para o Chambérat.

JOSÉ - E o "outro?...

TERÊNCIA - Do "outro"... não sei nada de positivo.

JOSÉ - E tu, Tiennet?

TIENNET - Eu?... Eu também não!...

TERÊNCIA - (com súbita doçura) José... posso pedir-te um favor?... Faz os possíveis para esquecer tudo o que se passou? Fazes?

JOSÉ - Esquecer?... (numa agitação gradual e crescente) Esquecer!... É difícil, esquecer ...

TERÊNCIA - Difícil porquê?

JOSÉ - Porque... porque foi extraordinário o que eu senti ao ver aquele terrível combate entre homens que no fundo nem sequer tinham verdadeiras razões para se odiarem! Não é que eu condene o ajuste de contas... Não! Quando existem motivos, devem resolver-se assim, frente a frente, sem a intervenção de estranhos... Mas...

TERÊNCIA - (suspensa) Mas...?

JOSÉ - Nunca tinha visto uma tal coisa... Quando principiaram, julguei que não podia assistir até ao fim... e que ia perder os sentidos como qualquer fraca mulher. - Mas depois aconteceu como se o sangue me fervesse dentro do coração... e um calor intenso invadiu-me dos pés à cabeça... Todo eu ardia!... Quando o outro caiu... tive uma vertigem! E se não me dominasse com todas as minhas forças, creio que correria para o Huriel a cantar vitória!... Custou-me a perceber que a morte estava ali a dois passos de nós... e que eu devia chorar em vez de rir!...

TERÊNCIA - (assustada) José? ...

JOSÉ - Quando por fim compreendi o que se passava de facto... vim-me embora! Todo o corpo me doía... como se a luta tivesse sido comigo...

TERÊNCIA - (docemente) José... peço-te outra vez: faz por esquecer tudo isso!... São coisas tão tristes!... Só nos faz mal pensarmos nelas!

JOSÉ - Parece-te? (outro tom) Não sei... não sei se só faz mal pensar!... E sonhar?...

TERÊNCIA - Como?

JOSÉ - Sonhar... faz mal ou bem?...

TERÊNCIA - Que queres dizer com isso?

JOSÉ - É que eu sonhei... sonhei sempre até acordar como já contei, agitado e cheio de vontade de me levantar! Que estranho sonho!... Via o João diante de mim todo resplandecente de luz e culpando-me da minha doença como se se tratasse duma cobardia do meu espírito. Era como se ele me quisesse dizer: - "Repara, José... eu sou um homem e tu não passas duma criança!... Tu tremes de febre enquanto eu exponho a vida sem medo de nada! Tu não serves para coisa alguma, e eu sou útil tanto para mim como para os meus semelhantes!" - (mais calmo) E então pareceu-me ouvir uma grande música, que me inundou com novas forças, forças que nunca possuí... Creio que deixei de estar doente. Creio que vou poder partir... Quero ir à terra, ver os amigos, beijar a minha Mãe... e depois viajar, aprender até conseguir ser aquilo que devo!

TERÊNCIA - (desfalecida) Esperas então encontrar melhor mestre que o meu Pai... e melhores amigos do que nós?

JOSÉ - Não... não... não é nada disso, Terência!...

TERÊNCIA - Percebo... estás farto de nós!

JOSÉ - Não sejas injusta, Terência, nem digas coisas que não deves! Sabes perfeitamente que nem estou farto de vocês nem em parte alguma tenho melhores amigos e um Mestre como o Grande Lenhador!

TERÊNCIA - Então?

JOSÉ - Então... senti saudades!... Já não vejo a minha Mãe há tanto tempo!

TERÊNCIA - Pois se te lembras de insistir nessa idéia, receio bem que as forças te atraiçoem e morras pelo caminho sem chegar a vê-la!

JOSÉ - (resignamdo-se) Está bem, Terência... tens razão! Não se fala mais nisso!... (outro tom) Se me quiseres dar alguma coisa para tomar, agradeço-te. Parece que tenho fome...

TERÊNCIA - (hesitante) José? ...

JOSÉ -Diz, Terência?...

TERÊNCIA - José... desculpa!... Tu... tu tens razão, (pausa) Vai sendo tempo de regressares à tua terra... Aliás também nós, dentro de duas semanas, devemos partir para outro lugar. Como sabes, o meu Pai assim que termina o trabalho num sítio, vai principiar de novo onde o contratam. Ouvi-o dizer ao João que íamos agora para Saint-Sévere... onde parece que há enormes árvores para abater.

JOSÉ - (suspensa) Terência?...

TERÊNCIA -Diz?...

JOSÉ - (sorrindo) E se eu morro no caminho?

TERÊNCIA - Não morres... (com esforço) Tu já estás Bom, graças a Deus! Por isso... creio que podemos fazer os possíveis para sermos felizes durante os poucos dias que ainda vamos ter para estar juntos... sem pensar em nada que nos entristeça... ou nos cause preocupações, (mais baixo) Nem mesmo na hipótese de nunca mais nos tornarmos a ver!...

"À noite, na clareira, diante das cabanas dos lenhadores, o Grande Lenhador, rodeado pelos quatro jovens, prepara a inevitável separação".

O GRANDE LENHADOR - Pois é assim, meus filhos. Nunca ninguém sabe o tempo que tem para viver. Deus manda e a nossa obrigação reside em aceitar simplesmente o que Ele determina, sem discutir nem investigar a sua Vontade e a sua Razão!... Ora pois, chegou a hora de nos separarmos... separemo-nos! Separemo-nos contentes por nos termos conhecido e pelos dias que passámos juntos. Espero que tu, José, leves de mim e dos meus filhos tão boas recordações como as que eu guardarei de ti e dos teus amigos Brulette e Tiennet. E nunca te esqueças de que ensinar-te música foi para mim uma das maiores alegrias de toda a vida. Só lamento a doença que te fez perder tanto tempo... Bom, eu não pretendo dizer que teria feito de ti um sábio!... Sei perfeitamente que existem nas cidades cavalheiros e damas que tocam em instrumentos que nós não conhecemos e que lêem árias escritas em papel tal como se fossem palavras escritas em livros... Eu pouco percebo disso... Mas o pouco que conhecia, expliquei-te! Tens pelo menos uma idéia do que são claves, compassos e notas... Se quiseres aprender mais aconselho-te a ires procurar mestre numa grande cidade onde os violinistas te ensinarão o minuete e a contradança... mas não sei se isto te servirá de alguma coisa, a não ser que queiras abandonar a tua situação de camponês...

JOSÉ - (emocionado) Oh, não! Deus me livre!...

O GRANDE LENHADOR -Ora bem... se precisares de mim, estou sempre ao teu dispor!

O que eu queria era conduzir-te suavemente... ajudar-te a conseguir uma ascensão perfeita sem quebra de fôlego nem hesitação nos dedos... Sim, que no que diz respeito às idéias, não há nada a ensinar-te. Tens as tuas que são de muito boa qualidade! Eu também tenho as minhas e já sabes que estão à tua disposição... Mas como o que tu queres principalmente é compor, acho muito bem que viajes e procures comparar o que vires numa terra com o que vires noutra... Aconselho-te a ir ao Auvergne e ao Forez a fim de conheceres a beleza dum mundo que te é desconhecido. Deves estabelecer um paralelo, aprofundar tudo... e perceber a melhor orientação que te convém seguir... E chegado a este ponto, quero dar-te a minha última lição... Uma lição que não deves esquecer... (outro tom) Escuta, José. A música tem dois tons... a que os entendidos chamam maior e menor... mas que eu, cá na minha linguagem, classifico de modo claro e modo confuso. Se quiseres, podes apelidá-los de modo do céu azul e modo do céu cinzento... ou ainda modo da força e da alegria e modo da tristeza e do sonho. Podes procurar até amanhã sem parar, nunca encontrarás o fim das oposições que existem entre os dois modos...

Ora escuta... (e pegando na gaita de foles, exemplifica, num improviso).

O GRANDE LENHADOR - Este é o tom maior... o tom em que a planície canta...

E este... (de novo improvisa) este, meu filho, é o tom menor, o que canta as montanhas ... Se tu nunca tivesses saído da tua terra todas as tuas idéias seriam postas em música no modo claro e luminoso, cor do céu azul - o tom maior! Agora, ao voltar para lá, verás o partido que um espírito como o teu pode tirar do aproveitamento dos dois modos, que não são mais um do que outro mas que se completam para enriquecer a música essa música que tu amas e tanto desejas servir. Aliás eu sei que há tudo a esperar de ti. Ninguém te fará sombra! Os tocadores lá de baixo, não sabem servir-se do tom menor... É por isso que a música deles acaba por parecer desconsolada, sem colorido... Não sabem obter efeitos!... Esses efeitos, vieste tu encontrá-los aqui e a tua alma enriqueceu-se tanto que há agora uma imensidade de coisas novas para tu dizeres...

JOSÉ - (comovido) Por muito novas que sejam e muito belas, nunca farei nada mais bonito do que a sua última composição, essa que me tocou pouco depois da Brulette chegar... Aquela que se chama, creio, "A Canção do Rouxinol"...

O GRANDE LENHADOR - Ah!...

JOSÉ - Posso pedir-lhe que ma toque outra vez?...

O GRANDE LENHADOR - Oh!

BRULETTE - Toque, Grande Lenhador!

TERÊNCIA - Toque, meu Pai!

BRULETTE - Eu gostava tanto de o ouvir!...

O GRANDE LENHADOR -Bem... está bem. Eu toco! Mas antes, então, dir-lhes-ei o que é que ela conta para poderem compreendê-la. A minha Canção descreve a história duma rapariga cortejada por três galantes... Ela não sabia por qual havia de decidir-se. O primeiro gostava muito dela mas não ousava declarar-se-lhe. O segundo pensava que dando-lhe ordens a convenceria quando quisesse. E o terceiro, esse então só esperava ensejo para lhe pedir que fosse dele... E entretanto, o Rouxinol cantava, cantava... - (e toca maravilhosamente a Canção do Rouxinol...)

"E pouco antes de cada qual se recolher para a última noite passada em conjunto na floresta"

TIENNET - (suspira longamente)

TERÊNCIA - (baixinho) Está a suspirar, Tiennet?

TIENNET - Foi sem querer...

TERÊNCIA - Acredito. Foi sem querer!. Os seus sentimentos são mais fortes do que a sua vontade.

TIENNET - Os meus sentimentos?

TERÊNCIA - Sim, sim... eu compreendo-o perfeitamente! Perfeitamente! Você gosta da Brulette e tem medo que...

TIENNET - Sim, Terência, eu gosto de Brulette, mas sem suspiros de amor nem receios do que ela venha a decidir! Compreendi a tempo que de nada me servia amá-la!

TERÊNCIA - Que Bom, Tiennet, conseguir governar os sentimentos com a razão!...

TIENNET - Eu preferia governá-los com o coração como você, Terência...

TERÊNCIA-(confusa) Como eu?

TIENNET - Foi preciso eu vê-la cuidar do José nestes últimos dias para perceber o que nos disse, a mim e à Brulette... a respeito de se poder ser feliz dando ventura à pessoa amada e sem nada pedir nem esperar... E quero confessar-lhe uma coisa, Terência: não há com certeza no mundo rapariga mais maravilhosa do que você!

TERÊNCIA - (comovida) Obrigada por todo o bem que pensa de mim! Mas peço-lhe, por isso mesmo, que me acredite, Tiennet... Eu não amo o José!... Gosto dele como se fosse meu irmão... ou meu filho!... Mais nada!...

TIENNET - (suspenso) Terência? ...

TERÊNCIA - Mais nada, Tiennet! Isso a que chamam amor, isso que, por exemplo, o meu irmão sente pela Brulette, esse desejo de agradar e um não sei quê que faz com que a pessoa julgue que morre longe do objecto dos seus sonhos... não sei ainda o que seja!... Portanto, já vê que não tenho tanto mérito como aquele que me atribui... (outro tom) Já é tarde, Tiennet. São horas de nos recolhermos, como a nossa família... Que amanhã, logo pela manhãzinha muito cedo, temos de dizer-nos adeus...

TIENNET - Ou até à vista, não é verdade?

TERÊNCIA - Há-de ser como Deus quiser!...

"De regresso à aldeia"

TIENNET - Estamos quase a chegar, an Brulette?

BRULETTE - verdade, Tiennet.

BRULETTE - Que coisa estranha!

TIENNET - O quê? Que é que é estranho?

BRULETTE - Tudo!... À medida que nos vamos aproximando de casa, acho tudo tão diferente, tão feio!

TIENNET -Feio?

BRULETTE - Feio... quase mesquinho! As árvores, muito pequenas... A terra, muito amarela... As águas paradas, mudas... Lá em cima tudo é grande, verde, rumoroso! (suspira) Engraçado!

TIENNET - Bom... dizes engraçado e suspiras? Não percebo!

BRULETTE - É que estava a pensar numa coisa... (pausa para efeito) Eu, antes de sair daqui, nunca poderia acreditar que me fosse possível viver três dias no meio dos bosques, quanto mais um mês! ... E hoje parece-me que era capaz de lá ficar para sempre e que me sentiria tão feliz como a Terência se lá tivesse comigo o meu Avô. (outro tom) Tu, não?

TIENNET - bom... eu lá gostar gostar verdadeiramente, acho que não gostava. Mas se fosse preciso também não morria por causa disso! (ri) Queres que seja franco? Prefiro uma ortiga da nossa terra às grandes árvores da terra dos outros! (mais sério) É verdade, sim, Brulette... o coração salta-me de alegria dentro do peito à vista destas pedras e destes arbustos que me são familiares. Creio bem que daqui a nada, quando avistar o sino da torre da nossa igreja, até lhe tiro o chapéu para a cumprimentar!

BRULETTE - (a rir) Bom... (outro tom) E tu, José?... Tu que estás ausente há mais dum ano, não te sentes feliz?

JOSÉ - (vagamente) Como?

BRULETTE - Pergunto-te se não estás contente por voltar à nossa terra?

JOSÉ -Ah... não sei!...

BRULETTE - Não sabes?

JOSÉ - Para ser sincero, devo confessar-te que nem sequer pensei que estávamos quase em casa. Tenho vindo todo o caminho a tentar lembrar-me da Canção do Rouxinol, do Grande Lenhador. Queria tocá-la... mas há uma volta que me escapa...

BRULETTE - É capaz de ser aqui...

"E Brulette trauteia uma passagem da famosa Canção"

JOSÉ- (maravilhado) Oh! E é mesmo! É mesmo isso! (tenta repetir o que ouviu e não consegue bem) Canta outra vez, Brulette, canta!

BRULETTE - Espera lá, então canto a canção toda, prefiro! (e canta)

JOSÉ- (entusiasmado) Ê extraordinário! Extraordinário! Que ouvido que tu tens! E que voz!...

BRULETTE - (sonhadora) Gostava de me casar com um homem que cantasse tão bem como tocasse!...

JOSÉ -Oh... isso!... é difícil! Tu sabes, o esforço que se faz para obter um fôlego suficiente como tocador, dá cabo da voz! Não conheço ninguém que faça as duas coisas, a não ser o Grande Lenhador...

BRULETTE - (sem pensar no que vai dizer) E o filho!...

JOSÉ - (a custo) Ah... o filho. Pois é.

"Ao longe, um sino repica"

TIENNET - Escutem... O sino da nossa igreja!... Já se ouve lindamente!... Mais meia hora de caminho e estamos em casa!...

JOSÉ - (com reserva) Estou a pensar na Canção do Rouxinol!... Tenho a impressão de que o Grande Lenhador a compôs a pensar em três rapazes que ele conhece muito bem. (pausa) "O que gosta muito mas não ousa declarar-se"... "O que pensa que dando ordens a convence quando quiser"... "E o que só espera o ensejo de lhe pedir que seja dele..." (pausa) Só não consigo perceber bem qual é a classificação!... (outro tom) Brulette... achas que será verdade?... A rapariga só espera que ele lhe peça?...

BRULETTE - (impaciente) Oh, sei lá, sei lá!... Que é que eu tenho a ver com os assuntos das canções dos outros?... An?...

JOSÉ - Brulette, não te faças desentendida! Eu preciso tanto de ter a certeza, tanto!...

BRULETTE - E eu preciso que tenhas boa memória!...

JOSÉ - (indeciso) Boa memória?... Para quê?

BRULETTE - (num rompante) Olha, para obteres um grande êxito ao pé das raparigas da nossa terra a tocar-lhes essa canção que está a dar-te volta ao juízo!... (afastam-se) Vamos depressa... Estamos a chegar!... Já se vêem os primeiros telhados da aldeia!...

"Em casa ao tio Brulet"

TIO BRULET - Ora até que enfim, até que enfim!... Já cá me tardavam deveras!...

BRULETTE - (rindo) Foi muito difícil passar todo este tempo sem mim, avôzinho?

TIO BRULET - Custou alguma coisa, custou! O que me conformava era pensar que o meu sacrifício ajudava a uma boa acção... uma boa acção que pelos vistos resultou em cheio, dado que vocês me garantem que o nosso José está completamente Bom!

TIENNET - O tio Brulet amanhã vai ver com os seus olhos! Ele prometeu vir visitá-lo antes do almoço.

TIO BRULET - Podia ter passado por aqui hoje!

BRULET - Disse que se viesse cá se demorava com certeza... e não se lhe pode levar a mal que estivesse desejoso de abraçar a mãe!

TIO BRULET - Sim... isso é verdade!

FREI NICOLAU - (da porta) Ora santas noites nesta casa!... Dão-me licença que entre?...

TIENNET - (estupefacto) Frei Nicolau!... Que faz aqui? ...

TIO BRULET - (natural) Entre, entre, meu irmão! A casa é pobre mas está sempre aberta para os amigos que chegam! E se bem que o não conheça, como amigo o considero uma vez que me procura...

FREI NICOLAU - (aproximando-se) Como amigo venho e buscando amigos. Estou bem em casa de Antônio Brulet... não é verdade?

TIO BRULET -Sou eu próprio.

FREI NICOLAU - E esta menina não pode ser outra senão a Brulette, tão conhecida por suas grandes qualidades?...

BRULETTE - Sim, sou eu a Brulette.

TIENNET - (espantadíssimo) Frei Nicolau... que está aqui a fazer?... Como veio aqui parar?

FREI NICOLAU - (com certo desagrado) Donde me conhece, meu filho, para estar assim a dirigir-me perguntas a que eu não sei responder?

TIENNET - Frei Nicolau, não se lembra de mim, daquela noite, aqui há dias, quando...?

FREI NICOLAU - (reconhecendo-o enfim) Ah, Bom, Bom, Bom, já sei, agora me recordo, sim!... Pronto, pronto!

TIENNET - (inquieto) Frei Nicolau... acaso traz notícias... alguma comissão?...

FREI NICOLAU - Para si, meu filho, nada!...

BRULETTE - Frei Nicolau... - visto ser este o nome que o meu primo Tiennet lhe dá posso pedir-lhe o favor de explicar tudo isto que não entendo? Porque é que conhece o Tiennet? Porque está aqui na minha casa?

FREI NICOLAU - À primeira pergunta deve responder o seu amigo como achar conveniente... se achar conveniente.

TIENNET - bom... foi o Frei Nicolau quem tratou o João Huriel naquela noite...

BRULETTE -Ah!...

TIENNET -Isto basta, creio!

BRULETTE - Sim...

TIO BRULET - Reforço agora a segunda pergunta do meu sobrinho Tiennet, Frei Nicolau. Porque nos procura?...

FREI NICOLAU - Porque me mandaram vir pedir-vos uma grande esmola!... Vejam o que trago aqui...

BRULETTE - Dentro deste cesto?

FREI NICOLAU - Dentro deste cesto (e destapa o grande cesto)

TIO BRULET - ( (estupefactos) Oh!... TIENNET BRULETTE - Uma criança!...

FREI NICOLAU -Um pobre menino sem ninguém que venho entregar à vossa caridade.

TIO BRULET - Mas...?

BRULETTE - Mas...?

FREI NICOLAU - Não tendo ninguém, este menino tem tudo. Pai, mãe e fortuna... Mas razões especiais e muito fortes impedem que seja criado no meio onde nasceu!... Passou as primeiras semanas de vida entregue a uma criatura que nunca o tratou como devia! Por isso aqueles que lhe deram o ser me encarregaram de vir pedir-lhes que tomem conta dele.

O TIO BRULET (Mas...? BRULETTE FREI NICOLAU -Não será um encargo para ninguém, porque de seis em seis meses virei pontualmente entregar a pensão para o seu sustento e mais coisas necessárias. O nome do pequenino é Carlos. O resto pertence a um segredo que não posso desvendar.

BRULETTE - Mas, Frei Nicolau... uma criança destas... precisa de muitos cuidados, dá muitos trabalhos...

FREI NICOLAU - A mãe, que não pode tê-la com ela, sabe que nada lhe faltará ao pé de si, menina Brulette.

BRULETTE - Oh, meu Deus, mas eu não percebo nada de crianças!

FREI NICOLAU - Para vosso inteiro descanso, fica já paga a pensão do primeiro ano... (entrega um saco com moedas) Está aqui e é mais do que suficiente.

TIO BRULET -Essa agora? ... Mas seja como for isto é uma violência e eu posso não estar de acordo com o que pretendem impor-me!...

FREI NICOLAU - Senhor Brulet... estou autorizado a revelar-lhe, a si e a sua neta, certos pormenores que devem levá-lo a aceitar o encargo... Podemos falar em particular?

TIO BRULET - (indeciso) Ah? ... (depois) com certeza... Vamos, (e penetram no interior da casa)

TIENNET - (pasmado) Esta agora!... Uma coisa assim!

BRULETTE - (olhando o bebê) Coitadinho ...

TIENNET - Hum?...

BRULETTE - Coitadinho do menino!... Como ele dorme!... (enternecida) Como ele dorme descansado... sem imaginar que está em jogo o seu destino!...

"Alguns momentos decorridos"

TIO BRULET - (na continuação duma conversa já iniciada) E assim, na posse dum segredo que não me pertence e que jurei em nome de Deus não divulgar nem à hora da minha morte, declaro que aceitei o encargo de criar o menino! Tu, Brulette, servir-lhe-às de mãe, como se teu fosse! Não lhe negarás nem carinhos nem cuidados... Confio-te este menino e espero que o tornes feliz.

BRULETTE - Bem, meu avô... está bem! Farei o melhor que for capaz, (outro tom) Só é pena uma coisa.

TIO BRULET -Que coisa?

BRULETTE -Ele ser tão feio!...

TIO BRULET -Feio?...

BRULETTE - Muito feio! Ora repare...

TIO BRULET - Sim... lá bonito não é. Mas talvez seja por estar a dormir!

BRULETTE -Talvez... (perplexa) Avô... será preciso acordá-lo para lhe dar de comer?

TIO BRULET - Não sei...

BRULETTE -Que é que tu achas, Tiennet?

TIENNET - (rindo, embatucado) Sei lá! Eu de miúdos não percebo nada!

BRULETTE - Nem eu... e isso é o que mais me aflige agora!...

"Em casa de Tiennet, na manhã seguinte"

TIENNET - Apre! É que nem aqueceste o lugar, José!...

JOSÉ - Então, já abracei a minha Mãe, já matei saudades... posso continuar a viver como me convém, não achas?

TIENNET - E vais-te embora sem ir dar um abraço ao tio Brulet?

JOSÉ - Mas venho de lá agora!

TIENNET - Ah, vens de lá agora!...

JOSÉ - Ficámos despedidos... Só faltas tu! Vai um abraço... e até à vista, hein, Tiennet?

TIENNET - (suspirando) Não percebo. Não percebo porque é que te queres ir embora com essa pressa toda!

JOSÉ - Não percebes? Então eu explico-te. Não vim para ficar.

TIENNET - Então?

JOSÉ-Vim... porque desejava deixar o bosque, lá em cima... não me agradava continuar entre aquela gente.

TIENNET - (pasmado) Tu... tu chamas "aquela gente" aos amigos que nos substituíram junto de ti?... Mas é inacreditável!

JOSÉ - (com rudeza) Cada um tem a sua forma de pensar e não deve satisfações a ninguém!

TIENNET - (com reserva) Ah, se ele é isso...

JOSÉ - (mudando de tom) Bom, aliás "aquela gente" foi maneira de dizer...

TIENNET - Está bem, está bem.

JOSÉ - (como quem vai desabafar) Escuta, Tiennet...

TIENNET - Diz.

JOSÉ - Tu sabes... há coisas, e razões, que mais vale não contar a ninguém... E depois... ontem, quando viemos, fizeste muito mal em dar-me a entender que eu não tinha nada a esperar da Brulette.

TIENNET - Eu? ... Mas eu não te disse nada, tu estás a sonhar!... E não te disse nada porque também nunca me falaste nesse assunto

JOSÉ - (reflectindo) Pois é... pois é e fiz mal em não te abrir o meu coração! Mas que queres? Eu, de mim, já tenho certa dificuldade em falar... e então se os assuntos são importantes e me dizem respeito... não sou quase capaz de dizer seja o que for!... Enfim, a desgraça é minha! Vivo dominado por uma idéia única... e mal me chega aos lábios recolho-a sem querer... mas recolho-a e fico com ela a magoar-me cá dentro... (pausa para efeito) No entanto... vou fazer um esforço... um grande esforço para te explicar... para te explicar isto sobre o que talvez nunca mais me oiças uma única palavra! (toma fôlego) Tiennet... eu amo a Brulette. (pausa) Amo-a e sei que não sou amado. Amo-a desde sempre... desde criança. Já estou acostumado à minha mágoa! Porque a verdade é que nunca percebi que lhe agradasse... e sempre tenho vivido com a crença de que ela não podia ligar-me importância.

TIENNET - (positivo) Nesse caso já devias estar habituado.

JOSÉ - E estava... antes.

TIENNET - Antes? Antes de quê?

JOSÉ - Antes dela ir ter comigo ao Bourbon! (num súbito anelo) Sim... porque ela que assim foi ter comigo sem olhar a nada... é porque afinal não me considera tão pouco como eu julgava... pelo contrário! E fica sabendo, Tiennet, foi isso o que me deu coragem para viver! Foi isso o que me salvou!

TIENNET- (na expectativa) Bem... e depois?

JOSÉ - Depois? ... Depois compreendi que havia lá alguém por quem a Brulette se interessava muito mais do que por mim!

TIENNET - Não sei absolutamente nada a esse respeito. Mas admitindo que tal tenha acontecido...

JOSÉ - (firme) Aconteceu.

TIENNET - Seja. Pensando que assim aconteceu... julgo que a pessoa em questão nada fez digno das tuas censuras?...

JOSÉ - Ê verdade. Tanto mais que o João Huriel, sabendo, como sabe, que não pode casar com ela enquanto pertencer à confraria dos almocreves, fez o que devia tratando de afastar-se, (outro tom). É isto, precisamente, o que me anima e dá novas esperanças.

TIENNET - Novas esperanças?

JOSÉ - Sim... Tenho possibilidades, se não perder tempo, de voltar a apresentar-me diante dela mais digno do seu amor que nenhum?

TIENNET -Como?

JOSÉ - Por enquanto nada sou e nada valho! Estou igual ao que fui no passado!... Há qualquer coisa no ar e nas palavras das pessoas que dir-se-ia estar a repetir-me constantemente "És um doente, feio, magro, triste... não vales nada!... Como podes pretender que haja quem se interesse por ti?...

TIENNET - Ora, ora, ora!...

JOSÉ - (obstinado) Sim, Tiennet, sim! Eu sei o que digo! Olha, a minha própria mãe, quando me viu, até parece que teve medo de mim! E depois desatou a chorar... e era mais de pena do que de alegria! E há bocado... o próprio tio Brulet... o próprio tio Brulet não me fez festa nenhuma! Brulette... essa, então... eu ia jurar que o que queria era ver-me pelas costas! (reage) Não, não, Tiennet, não me digas que tudo isto é fruto da minha imaginação doentia... Não!... Aliás, eu, como todas as pessoas que falam pouco, observo muito... (suspira) A minha hora ainda não chegou. Tenho de ir-me embora e quanto mais depressa melhor.

TIENNET -Vê o que vais fazer, José! As tuas forças ainda são poucas... Não vás meter-nos em trabalhos e aflições sem necessidade, an?...

JOSÉ - Está descansado, Tiennet. Desta vez as forças não me faltarão! Garanto-te que não torno a adoecer. Queres que eu te diga o que descobri? Os corpos fracos, aos quais Deus não concedeu grandes recursos, contêm uma força de vontade que em certos casos vale mais que a muita saúde dos outros!... (num crescendo de efervescência) Eu não estava a exagerar quando te contei a ti e aos outros, lá no bosque, aquilo que senti durante o combate do João Huriel com o Malzac... É verdade!... Foi a partir desse momento que qualquer coisa se manifestou dentro de mim com uma força permanente que me repete sem cessar "Reage... torna-te também um Homem... porque enquanto o não fores não contas para ninguém!" E aqui tens: quero ser um Homem! Quero vencer a minha própria constituição... e ao mesmo tempo todos aqueles que me disputam o amor da Brulette!

TIENNET - Bom... (pausa) E... e se ela se decide por alguém antes de tu voltares?

JOSÉ - Se ela se decide?... (irônico) Por ti?...

TIENNET - (com vivacidade) Oh, não, José, não!... Eu já desisti completamente, acredita!

JOSÉ - Sim, desististe e fizeste bem, porque vocês dois nunca poderiam entender-se. Não têm os mesmos gostos, nem as mesmas opiniões, nem a mesma maneira de ver as coisas... Fizeste muito bem!...

TIENNET - Eu estou portanto fora de causa. Mas a verdade é que há aí rapazes que não são para deitar fora e...

JOSÉ - (peremptório, senhor de si) Oh, não! Não!... A Brulette não pode casar-se senão comigo... (mais surdamente) ou com o João Huriel!

"Dias depois"

BRULETTE -É uma verdadeira tortura para mim, Tiennet! Nunca sei se faço bem, se faço mal... Sempre que o Carlinhos chora ignoro se ele chora porque lhe apetece ou porque lhe falta alguma coisa... Percebes?

TIENNET - Percebo!

BRULETTE - (pesarosa) Sinto-me tão mal jeitosa, tão inútil, diante do que afinal deve ser tão simples!... Mas tenho desculpa, pois não tenho, Tiennet? Eu nunca lidei de perto com crianças, nem mesmo com quem as tivesse! E contudo... sinto-me envergonhada por não me ter interessado por estes assuntos! Má cabeça!...

TIENNET- Não digas isso, Brulette.

BRULETTE - Não? ...

TIENNET - Tu não podias prever... e estou certo de que um dia, quando pensasses a sério em casar, havias de aprender com tempo!

BRULETTE -Sim... talvez!

TIENNET - E a verdade é que tu não nasceste para ama-seca! E eu não percebo porque é que o teu avô te obrigou a tomar conta de semelhante encargo só para receber mais umas tantas moedas no fim do ano!...

BRULETTE - Lá isso... falas assim porque és rico! (outro tom) Já pensaste, Tiennet, que eu não tenho dote?

TIENNET -Ora!

BRULETTE - (mais grave) Talvez, no fundo, seja o medo da miséria o que mais me tem afastado do casamento.

TIENNET - O medo da miséria? Que disparate! O medo da miséria, tu, tão pretendida pelos rapazes mais ricos da terra? ...

BRULETTE - Sim, pois é... São atraídos pela minha beleza. Mas... e depois?

TIENNET -Depois?

BRULETTE - Sim, depois? Quando nada restar da frecura da minha pele, nem do brilho dos meus olhos... posso perfeitamente ouvir amargas censuras por não possuir senão qualidades físicas!... Aquelas que mais depressa passam!... Começo a pensar que preferia ser melhor cá dentro de mim... ter encantos que só acabassem com a morte...

TIENNET - (reagindo) Credo, Brulette? Falar em morrer aos vinte anos é um pecado...

BRULETTE -Talvez... Mas olha que não saber aproveitar os vinte anos, é outro!... (de súbito, ouvindo Carlinhos chorar, suspira) Bom, deixa-me lá ir ver o que é que ele quer... Pobre menino!... Faz-me uma pena!

TIENNET -Pena porquê? Não lhe falta nada!...

BRULETTE - Não é por isso...

TIENNET - Então?...

BRULETTE - Sabes... acho-o digno de lástima... porque me parece que ninguém neste mundo o desejou!...

"E a aldeia principia na coscovilhice, a comentar os factos"

1ª MULHER - Diga, diga, tia Lamouche.

2ª MULHER - Conte, conte, tia Lamouche.

SENHORA LAMOUCHE - Pois é, minhas filhas, pois é. Aquilo, lá em casa deles, vai de vento em popa!

1ª MULHER- ( Oh!.

2ª MULHER SENHORA LAMOUCHE -Foi a fortuna que lhes entrou pela porta dentro!...

1ª MULHER- ( Ah!

2ª MULHER SENHORA LAMOUCHE - Sim, vocês estão a ver que o tio Brulet não ia aceitar um encargo daqueles sem grande conveniência!...

1ª MULHER- ( Claro, claro!...

2ª MULHER SENHORA LAMOUCHE - E então para a Brulette se sacrificar pela criança ao ponto de quase nem sair de casa!...

190

1ª MULHER - ( Pois, pois!.

2ª MULHER SENHORA LAMOUCHE -Eu estive lá ontem!...

1ª MULHER - E conseguiu saber?...

SENHORA LAMOUCHE - Bom, eles não se explicaram claramente... Mas percebe-se, percebe-se! .

2ª MULHER - A criança... será de alguém daqui da região?

SENHORA LAMOUCHE -Na!... A criança veio de longe...

1ª MULHER -Acha?...

SENHORA LAMOUCHE - Não acho... tenho a certeza! E mais ainda. Não vem de gente da nossa igualha!

" 2ª MULHER - Olhe que isso ainda ontem eu dizia à Miquelina - a criança tem todo o ar de menino fino!...

1ª MULHER - Bom... ele assim muito bonito... não é!...

2ª MULHER - Ora essa, a finura das pessoas não é pela boniteza que se vê!...

1ª MULHER-Mas então?...

SENHORA LAMOUCHE -Cá na minha, estou como a Georgette! O miúdo tem ar!

1ª MULHER -Ar de quê?

SENHORA LAMOUCHE -De filho de príncipe!

1ª MULHER - (De filho de príncipe?...

2ª MULHERSENHORA LAMOUCHE - Pois, pois!. O cesto, a toalha de renda que eu vi com os meus olhos, as moedas de oiro... e o frade metido neste assunto!... Se não for filho de príncipe, de conde é com certeza!

1ª MULHER - Que sorte que eles tiveram em ser escolhidos para tomarem conta da criança, an?...

1ª MULHER - Bom, também é verdade que a merecem!...

2ª MULHER - Ah, sim, não há melhor pessoa que o tio Brulet!

1ª MULHER - E a Brulette é um amor de rapariga!

2ª MULHER - Um amor de rapariga!...

SENHORA LAMOUCHE -Ah, sim, um amor de rapariga!

"Algumas semanas volvidas"

TIENNET- Então, Brulette, continuas a não ter notícias?

BRULETTE - Nenhumas, Tiennet, absolutamente nenhumas! (suspira) É como se tivessem morrido todos!

TIENNET - Credo!...

BRULETTE - Mas não achas estranho, tantas semanas sem uma só carta, de nenhum deles?

TIENNET - Eu acho! Também escrevi à Terência e ao Grande Lenhador... e nada!...

BRULETTE - Paciência, que se há-de fazer! Esqueceram-se de nós... A vida é assim, cheia de surpresas e de desgostos.

TIENNET - (num surdo apelo) Brulette?...

BRULETTE - Diz, Tiennet.

TIENNET - Brulette, isto não pode continuar assim.

BRULETTE - Isto o quê?

TIENNET - Isto!... Tu não sais, tu não vais a lado nenhum, passas os dias aqui fechada... Não sei já há quantos domingos não vais ao baile... Hoje tens de ir comigo!

BRULETTE- Hoje?... Sim... eu gostava... sempre distraía...

TIENNET - Então não há que hesitar! Arranja-te e vamos!

BRULETTE - (lastimosa) Mas não posso!

TIENNET - Não podes porquê?

BRULETTE - Não tenho a quem deixar o Carlinhos!

TIENNET -Ah, pois é, o Carlinhos... Então, e o teu avô?...

BRULETTE -O avô foi visitar aí uns campos onde tem estado a trabalhar, avisou-me de que devia voltar bastante tarde...

TIENNET - (perplexo) Ah... sendo assim... (reage) Mas que maçada esta, também! Estás feita escrava do miúdo!

BRULETTE - Isso é verdade... (reflecte) A não ser que?...

TIENNET - Que... o quê...

BRULETE - Que eu fosse ali adiante pedir à tia Lamouche que me ficasse esta tarde com ele...

TIENNET -Era uma boa idéia!...

BRULETTE - Parece-te?

TIENNET -Claro!...

BRULETTE - Está bem, pois sim... só por um bocadinho, não há-de ter mal... Eu vou saber se ela está em casa e se pode fazer-me esse favor...

"Pouco depois"

BRULETTE - (vindo a correr) A tia Lamouche está em casa... e diz que sim, que me fica com o Carlinhos... que posso ir completamente descansada que ela toma conta dele tão bem como eu!...

TIENNET - (radiante, a rir) Pois então, Brulette... toca a esquecer mágoas e a ver se ainda sabes dançar!...

"E algumas horas mais tarde, diante da casa da senhora Lamouche, dentro da qual o pequenino Carlos chora desesperadamente, Brulette e Tiennet vivem um momento difícil"

BRULETTE - (a chamar) Tia Lamouche!... Tia Lamouche! Tia Lamouche, abra!... Tia Lamouche, sou eu, a Brulette!... (bate à porta desesperadamente) Oh, tia Lamouche!... (soluça) Oh, tia Lamouche!... (soluça) Oh, meu Deus, mas porque é que o Carlinhos chora desta maneira!? (chama) Ti-a-Lamouche!...

TIENNET - Oh, Brulette, é impossível que ela não nos oiça, se estiver em casa!... (grita) Tiaaaaaaaa... Laaaaamouche!... (bate à porta)

BRULETTE - (suspensa) Tiennet... tu... tu disseste... "se estiver em casa? "...

TIENNET - Claro!...

BRULETTE -Tu... tu achas possível... que... que ela tenha deixado o Carlinhos sozinho?...

TIENNET -Eu sei lá! Há pessoas capazes de tudo!...

BRULETTE - (doida de aflição) Jesus, o meu Carlinhos!... (rompe em soluços) Oh, meu Deus, para que foi que eu saí, para quê?... (chora) Oh, Tiennet, como é que há-de ser isto?... Jesus, o que ele chora!... Quem sabe se lhe aconteceu alguma coisa!...

TIENNET - Pelo menos fome e sede é capaz de ter, o pobrezinho!...

BRULETTE - (irada) Malvada criatura!... Deixa que me há-de ouvir, vai saber quem eu sou... Se isto se faz!...

TIENNET - (a sossegá-la) Está bem, Brulette, tu depois dizes-lhe o que entenderes. Mas agora o que importa é resolver o caso... Precisamos de entrar lá dentro, seja de que maneira for!...

BRULETTE - Mas como, como?...

TIENNET - Espera, eu vou dar a volta à casa, talvez haja alguma janela mal fechada...

BRULETTE - Está bem, vai ver, vai...

BRULETTE - (chamando alto mas com doçura, enquanto Tiennet procura o que não encontra) Carlinhos! Carlinhos, sou eu... Sou eu, Carlinhos, não tenhas medo!... Oh, meu queridinho, que maldade tão grande!... Eu prometo-te que a tia Lamouche vai pagar caro o que te fez...

TIENNET - (regressando) Nada, Brulette! Está tudo bem fechado!...

BRULETTE - Mas então, como há-de ser? Não podemos deixar assim o menino até que essa miserável se digne aparecer!... Deus sabe há quanto tempo ele estará a chorar!...

TIENNET - Pois então, Brulette, não podemos hesitar! Arromba-se uma janela e pronto!...

BRULETTE - Tu... és capaz disso?

TIENNET -Se eu sou?... Espera... espera!... (e sem uma hesitação, atira-se de encontro a uma janela que despedaça).

"Dias depois, os comentários das coscuviLheiras são bem diversos".

SENHORA LAMOUCHE - Ê como eu lhes digo!... Talvez até ainda seja mais do que eu digo!...

1ª MULHER - MULHER, Oh!...

SENHORA LAMOUCHE - Agora, imaginem! - passa por mim e vira-me a cara!... Francamente, acham que seja razão? ...

1ª MULHER - Mas ela fará isso por causa da tia Lamouche naquele dia ter deixado o miúdo sozinho em casa?

SENHORA LAMOUCHE - Eu sei lá, filha, eu sei lá!... O disparate foi tão grande!... O que ela me disse, Jesus! Quando eu afinal só tinha saído para ir buscar leite para o pequeno, que é um verdadeiro desalmado a comer!

2ª MULHER - Bom, eu, cá na minha, se tivesse deixado um filho entregue a uma pessoa e ela o abandonasse em casa sem ninguém talvez não gostasse!...

SENHORA LAMOUCHE - (triunfante) Ora aí está!...

1ª MULHER( An?

2ª MULHERSENHORA LAMOUCHE - "Se você tivesse deixado um filho..." Pois... Foi aí que eu comecei a perceber tudo!... Aquela indignação não me pareceu natural... E os carinhos, os beijos, as lágrimas, agarrada à criança! ... Quando eu vi aquilo, disse cá comigo: - Mariana Lamouche, olha que o miúdo é tanto filho dum príncipe como tu!... Isto não passou tudo duma grande aldrabice!...

1ª MULHER - (ávida) Pois a tia Lamouche pensa que o garoto seja filho... dela?...

TIA LAMOUCHE - Olha o espanto!... Vejam lá não desbote a virtude da "rosa de Nohant", como lhe chamavam os rapazes a quem ela aliás sempre deu sorte...

2ª MULHER- Sim, lá muito ajuizada, a Brulette nunca foi!

TIA LAMOUCHE - Pois, pois, pois!... É isso mesmo!

1ª MULHER - Mas, ó tia Lamouche, como é que...?...

SENHORA LAMOUCHE - Ó menina, olha que não era difícil! Então ela não esteve aquele tempo todo fora, com o primo?...

1ª MULHER - Mas o que se disse por aí é que ela tinha ido tratar do José, que estava às portas da morte.

2ª MULHER - A própria mãe dele, a Mariton, foi quem mo contou!

SENHORA LAMOUCHE - Ora, ora!... Alguma coisa havia de inventar para justificar a demora dela, então não?...

1ª MULHER( Realmente...

2ª MULHER1ª MULHER - Nesse caso... quem será o Pai?... O próprio Tiennet?...

2ª MULHER - O primo?... Sabe-se lá? ... Vêem-se tantas coisas!

SENHORA LAMOUCHE -Na... cá na minha, o pai não é o Tiennet...

1ª MULHER( Então?

2ª MULHER SENHORA LAMOUCHE - Ela a quem deu sempre mais confiança, foi ao José...

1ª MULHER - O pateta alegre do José? ... Oh!...

2ª MULHER - Ê verdade que ele veio com ela... mas não demorou nada... Desapareceu!...

SENHORA LAMOUCHE - (com um risinho) Pudera! Aquilo fugiu com medo de ser obrigado a casar!...

1ª MULHER - É capaz de ser isso mesmo!...

2ª MULHER - Sim, senhora, a tia Lamouche é esperta, não se deixa enganar...

SENHORA LAMOUCHE - Claro!... Eu, assim que vi o miúdo, pensei logo que ali havia tramóia. Mas agora não tenho a menor dúvida! O pequeno é filho dela!...

"E a aldeia em peso acredita, repete, difama. Toda a gente culpa, toda a gente afirma que o pequeno é filho dela... E Tiennet, que escuta as vozes impiedosas, assusta-se, aflige-se"

TIENNET - (preocupado) Mas não pode ser, Brulette, não pode ser! Isto assim não tem jeito nenhum! Estás a sacrificar-te sem necessidade! Amanhã tem paciência, mas hás-de ir ao casamento da minha prima! Até parecia mal, se não fosses!

BRULETTE - (docemente) Tiennet... a vida modificou-se muito, para mim! Tenho deveres que procuro cumprir o melhor possível... e palavra que não desejo mais nada!...

TIENNET - Não acredito que tu renuncies sem sacrifício a coisas que eram tão importantes para ti! Se já tivesses cinqüenta anos, vá que não vá... Mas ainda nem sequer fizeste os vinte e um! Co'os diachos, uma pessoa não se modifica assim tanto dum dia para o outro!

BRULETTE - Não foi dum dia para o outro! Levou meses!

TIENNET - (enchendo-se de coragem para dizer algo) Brulette, eu...

BRULETTE - Diz.

TIENNET - Brulette... não acho nada bem que continuis a sacrificar-te por uma criança que não te é nada! vou falar a sério com o tio Brulet e hei-de convencê-lo a acabar com esta situação.

BRULETTE - Não...

TIENNET -Sim!

BRULETTE - O avô não volta com a palavra atrás.

TIENNET - Brulette... se o teu avô não fizer o que deve...

BRULETTE - O que deve?...

TIENNET - (sem ligar à interrupção)... eu próprio irei à procura do Frei Nicolau, conto-lhe o que se passa e tenho a certeza de que ele há-de ser o primeiro a vir aqui buscar esse garoto para o ir entregar a outra gente.

BRULETTE - Pobre Tiennet!...

TIENNET - Hum? ...

BRULETTE -Tu falas assim porque não sabes, não percebes...

TIENNET -Que é que eu não sei? Que é que eu não percebo?

BRULETTE - Os meus deveres para com essa criança!

TIENNET - Deveres?

BRULETTE - E além dos deveres que não conheces... há ainda outra coisa. Gosto muito do Carlinhos!...

TIENNET - (retraído, surdamente) Gostas muito do Carlinhos?... com um amor lá de dentro? Bem profundo?

BRULETTE - (contentíssima) Sim, com um amor cá de dentro. Bem profundo.

TIENNET -Ah!

BRULETTE - (que estranha a interjeição) Tiennet? ... Tiennet... há alguma coisa de estranho em gostar muito, muito, duma criança?

TIENNET - Bem... é conforme.

BRULETTE - (sempre cheia de sinceridade e puresa) Não, não é conforme! Seja ela quem for, venha donde vier, aconteça o que acontecer, a criança tem direito ao amor mais absoluto!... Tu não viste há poucos instantes o Carlinhos a dormir?

TIENNET - (contrafeito) Vi... e depois?

BRULETTE - Tão pequenino... tão frágil... tão dependente... Quem se atreveria a fazer-lhe mal?... Ou apenas a desinteressar-se dele? Não tem culpa de nada, precisa de tudo!... (sorri) Às vezes estou a olhar para o Carlinhos e penso cá comigo: Um filho consegue ser ainda mais tirânico do que um marido!

TIENNET - (estranhamente) Um filho?...

BRULETTE - (que não liga) Torna-se tirânico à força de necessitar... Exige, porque nada pede!... (reage) E não pode dizer-se que seja uma grande companhia! Cansa, esgota, só dá trabalhos e preocupações... Mas que se há-de fazer? É assim! E só sendo assim as coisas são como devem!

TIENNET - As coisas são como devem? ...

BRULETTE - Eu não sabia nada disto... aprendi-o à minha custa. E é tudo a obra de Deus, que inventou esta espécie de milagre!

TIENNET - Que milagre?

BRULETTE - Qualquer criança, todas as crianças, feias ou bonitas, não importa, podem ser mordidas por um lobo ou espezinhadas por uma cabra... mas só receberão amor e ternura da mulher, de todas as mulheres...

TIENNET - (encadeando) A não ser que essa mulher seja a tia Lamouche!...

BRULETTE -Oh, a tia Lamouche! Coitada! No fim de contas só serviu para me chamar à realidade... O Carlinhos tem de passar à frente dos meus próprios interesses. Primeiro está ele!... (outro tom) E é por isso que amanhã não posso ir ao casamento da Rosa Maria!... Devo ficar a tomar conta do meu menino... portanto, ficarei!...

TIENNET - (a custo, mas decidido) Não, Brulette.

BRULETTE - Como?

TIENNET - Eu disse que não! Não consinto que te sacrifiques a esse ponto.

BRULETTE - Mas eu não me importo...

TIENNET - (interrompendo-a) Importas-te, sim! E se não te importas tu, importo-me eu!

BRULETTE - Mas...

TIENNET - Não há mas nem meio mas! Haja o que houver, custe o que custar, vais comigo ao casamento da Rosa Maria e acabou-se!

BRULETTE - (rindo) Oh, Tiennet, tu...

TIENNET - (interrompendo) Eu, a minha irmã que também vai connosco, e até a própria noiva, se for preciso, todos tomamos conta do Carlinhos para tu teres o direito de te lembrares de que és solteira e livre!

BRULETTE - (a deixar-se convencer) Ah... levar o Carlinhos? Isso é uma idéia!...

TIENNET - E ponto final no assunto! Em sendo nove horas da manhã passo por aqui a buscar-te.

BRULETTE - (sensibilizada) Oh, Tiennet... és um amor de rapaz!...

TIENNET - (num suspiro) Pois é... serei... mas não o suficiente para ocupar junto de ti o lugar que tanto tenho desejado!

BRULETTE - Tiennet? ...

TIENNET - Está bem, está bem, pronto! Já aqui não está quem falou! (resoluto) E agora vou-me embora que ainda tenho de ir fazer um recado ao meu Pai. Até amanhã, Brulette.

BRULETTE - Até amanhã, meu querido primo.

"no dia seguinte, enquanto a boda é toda uma festa imensa"

CARLOTA - Estás preocupado, Tiennet?...

TIENNET - Não, minha irmã.

CARLOTA - Estás, (pausa) É por causa da Brulette?

TIENNET - É.

CARLOTA - Isso quer dizer que dás ouvidos às más-línguas?

TIENNET - Não é dar ouvidos, Carlota. É... é ver!

CARLOTA -Mas que é que tu vês?

TIENNET - O que ê que eu vejo?... Olha para ela, acolá!...

CARLOTA - Sim, e depois, que tem?...

TIENNET - Que tem? Desde que chegou aqui ainda não fez outra coisa senão ocupar-se do miúdo!

CARLOTA -E achas mal?

TIENNET - Assim, acho!

CARLOTA - Assim? ... Assim, como?

TIENNET - Ela almoçou connosco, ela não quer ir dançar, tudo para estar ali sentada a tomar conta do garoto, a dar-lhe de comer!... Ê demais, palavra! Assim, não admira que as pessoas falem!... Até eu penso...

CARLOTA - (detendo-o) Tiennet!?... (pausa) Não, meu irmão... se pensas, não deves ...

TIENNET -Mas...

CARLOTA - Parece-me preferível procurares uma certeza!

TIENNET - Como?

CARLOTA - Explica-lhe o que tens dentro do teu coração!

TIENNET - Não consigo.

CARLOTA - Não consegues, porquê?

TIENNET - Porque... porque... Bem, olha, eu estou daqui a vê-la e só tenho idéias más dentro da minha cabeça! Apetece-me... sei lá o quê? ... Chegar ao pé dela e dizer-lhe: minha querida Brulette, gosto muito de ti e estou pronto a tudo para te salvar das bocas do mundo... incluindo a casar contigo e a servir de pai a esse maroto que veio estragar a tua vida... "

CARLOTA - (irônica) Muito bem... E depois?

TIENNET - Depois? ... (outro tom, desolado, cansado) Depois... aproximo-me... olho-a de frente... fito aqueles olhos tão bonitos e tão leais... e não sou capaz de articular uma única palavra!

CARLOTA - Claro que não ... E não são os lindos olhos dela que te detêm, não! O que te cala, o que te impede de dizer coisas irreparáveis, por mais generosas que se te afigurem, é que no fundo de ti mesmo tu sabes perfeitamente que ela está inocente! (pausa para, efeito) Peço-te, meu querido irmão!... Não oiças essas vozes maldizentes... Observa, tenta compreender... (ri) E para mais repara numa coisa!...

TIENNET - Que coisa?...

CARLOTA - Não te parece que uma rapariga tão linda como a nossa prima havia de ter um filho mais engraçadinho do que o Carlinhos que é a criança mais feia que eu conheço?...

TIENNET -Oh!...

CARLOTA - (rindo mais) O miúdo parece-se tanto com a Brulette como uma batata se parece com uma rosa...

TIENNET - (ri de súbito, com ela).

CARLOTA - (deixando de rir) A Brulette está a mostrar-se uma rapariga extraordinária, uma escrava do dever, seja ele qual for, e nós não temos nada com isso! Sossega o teu coração e trata de meter na ordem os que ousarem falar-te dela.

TIENNET - Ah, isso, com certeza!...

CARLOTA - E agora vai buscar a Brulette. Obriga-a a ir dançar contigo.

TIENNET - Ela não vai...

CARLOTA - Vai!... Diz-lhe que me traga o Carlinhos que eu tomo conta dele!

"Pouco depois"

TIENNET - Então já te queres ir embora, Brulette?

BRULETTE - Já, Tiennet, já. Estou cansada...

TIENNET - Sem dançar?

BRULETTE - Desabituei-me, sabes? Parece que já não acho a mesma graça... Vem, primo!... Prefiro ir sentar-me a conversar contigo, sossegadamente...

TIENNET -Está bem, vamos.

"E vão-se afastando para a pás dos campos"

BRULETTE - Tenho imenso calor. E sede!

TIENNET - Queres que vá buscar-te um copo de cidra?

BRULETTE - Não, não! Água, água fresquinha! Podíamos ir até à fonte, não é longe daqui...

TIENNET - É boa idéia. Deve estar Bom, ao pé da fonte!

BRULETTE - (após uma breve pausa) Eu nem sei como hei-de agradecer-te tudo isto, Tiennet!

TIENNET -Isto o quê?

BRULETTE - A tua amizade por mim... a tua dedicação!... Nunca pensei que fosses tão meu amigo!

TIENNET -Ora, ora, ora...

BRULETTE -Se não fosses tu... nem sei como havia de ser!

TIENNET -Mas...

BRULETTE - (sem o deixar falar) Dantes, como eu não parava quieta e havia sempre gente e mais gente à minha beira, eu não chegava a aperceber-me do que tu valias como companheiro. Agora, é diferente... Agora eu sei o que devo esperar das pessoas...

TIENNET - Mas, Brulette, eu...

BRULETTE - (prosseguindo)... É o que posso esperar de ti! És um óptimo rapaz!... E contudo... talvez não esteja a ser útil para mim a tua presença constante!

TIENNET -Mas...?...

BRULETTE - Depois, custa-me mais!

TIENNET - Depois? Depois quando? Depois o quê?... Palavra que não te percebo!

BRULETTE - (simples) Custa-me a passar sem ti.

TIENNET - Mas porque é que tu hás-de passar sem mim?

BRULETTE - (com meiguice) Porque assim deverá ser!... Mais dia menos dia tu casas-te... e a tua mulher pode ver-me com maus olhos, como tantas outras, e não querer dar-se comigo nem que tu te dês...

TIENNET - (interdito) Essa agora? ... Essa agora!... Mas eu não me caso e...

BRULETTE - (noutro tom) Espera, Tiennet... espera!... Deixa-me beber um bocadinho de água... (vai beber e volta) Então, não te casas?... Casas, Tiennet... precisas de te casar. Toda a gente deve casar! É preciso um lar, família... Não há nada mais belo nem mais importante do que o amor que se dá e recebe na graça de ter um filho!...

TIENNET -Ah! ...

BRULETTE - Senta-te ao meu lado, Tiennet! (respira fundo) Está-se bem, aqui!

TIENNET - (entrando no assunto) Brulette!...

BRULETTE -An?

TIENNET-Brulette... se tu pensas assim... porque é que não te casas, tu?

BRULETTE - Eu?... Parece que deixei passar a minha hora!

TIENNET - Ou então a tua hora ainda não chegou! E digo-te que é o que me parece mais certo.

BRULETTE - Porquê?

TIENNET -Porquê? Porque tu dantes não tomavas a vida a sério! Agora pensas doutra maneira, perdeste o gosto pelos divertimentos, aprendeste a tratar de crianças... E ao mesmo tempo estás mais bonita que nunca! (sorri) Sabes o que é que me lembras?... Um dia de primavera muito seco sobre o qual desabou uma chuvada e se abre em flores e perfumes? ...

BRULETTE - (sensibilizada) Oh, Tiennet!

TIENNET - Eu não digo estas coisas para te ser agradável, de maneira que podes acreditar-me, an? E depois fica-te bem, esse arzinho melancólico com que andas desde há uns tempos... Fazes-me lembrar a Terência, muito pálida sempre, com uma beleza de santa... uma beleza que vem de dentro, do coração... As vezes ponho-me a olhar para ti e a pensar: para se ter transformado assim tanto, das duas uma: a minha prima ou se tornou devota... ou está apaixonada!

"É? muito ao longe, enquanto eles conversam, principia a ouvir-se uma gaita de foles"

BRULETTE -Não me fales assim, Tiennet. Não me fales assim! Não, não... não é nada disso, infelizmente! Estou mudada, bem sei... mas as razões são outras.

TIENNET - Outras?

BRULETTE - Conheço as preocupações da vida sem encontrar para elas o amparo nem do amor com a sua doçura... nem da religião com a sua força!

TIENNET - (gogó de emoção) Mas que preocupações?... Tens assim tantos desgostos... ou um desgosto tão grande que valha por muitos?

BRULETTE - Oh, nada que tenha uma importância por aí além, não!... (suspira) Mas enfim... confesso-te que sinto, pelo menos, a falta de qualquer coisa... olha, não talvez do que foi mas sim do que podia ter sido!

TIENNET - Vejamos, Brulette... porque é que não me contas tudo?

BRULETTE - Tudo?...

TIENNET - Sabes perfeitamente que podes ter em mim a mais absoluta das confianças... sem temer nem o meu ciúme nem a minha reprovação. Fala! Diz-me o que se passa...

BRULETTE - (num tom completamente diverso, suspensa) Ouve!

TIENNET - (atônito) An?...

BRULETTE - Ouve!... (pausa para efeito) Música!... Música!...

TIENNET - (simplório) Que é que isso tem de extraordinário? Foi o Mestre Carnat que recomeçou a tocar!

BRULETTE - (caindo em si) Sim... deve ser isso! Tens razão. Sou completamente tola, desculpa.

TIENNET - Pensaste que... que fosse um deles?...

BRULETTE - (com custo) Talvez.

TIENNET - Qual? O José... ou o Huriel?

BRULETTE - Não sei... não sei!

TIENNET - Brulette? ...

BRULETTE - Diz.

TIENNET -Brulette... de qual deles é que tu gostas?

BRULETTE - Eu?...

TIENNET - Sim, qual é o teu preferido? O José? O Huriel?

BRULETTE - Não, o José não...

TIENNET - Então é o João?

BRULETTE - (docemente) Como queres tu que eu pense numa pessoa que sem dúvida nunca se preocupou comigo?

TIENNET - Nesse caso? ...

BRULETTE - Nesse caso? ...

TIENNET - (resoluto) Como é que o Carlinhos...

BRULETTE - (interrompendo-o, agitadíssima) Tiennet... agora eu tenho a certeza! Não é o Carnat que está a tocar!... Ora presta atenção... anda!...

TIENNET -Hum...

BRULETTE - Tenho a certeza, repito-te! Não é uma ária conhecida, sequer!

TIENNET - Então talvez seja o José!

BRULETTE -Não acredito! O José ainda não toca assim...

TIENNET - Queres que eu vá ver?...

BRULETTE - Não... não... não!... (a dominar-se) Deixa lá... não vale a pena. Seja quem for... se não nos procura é porque não quer... é porque não tem interesse nisso!...

TERÊNCIA - (surgindo por detrás da porta) Isso é o que tu julgas, Brulette!

BRULETTE e TIENNET - (soltam ambos um gritinho de espanto)

BRULETTE - Terência!...

TIENNET - Terência? ...

TERÊNCIA - (aproximando-se à rir) Eu própria!...

BRULETTE - Oh, Terência, que alegria em ver-te!

TERÊNCIA -E a minha! Nem tu imaginas! Estou tão contente por estar aqui!... (e abraça Tiennet e beija Brulette, efusivamente)

TIENNET - Palavra que isto me parece um sonho!...

TERÊNCIA - E que sonho!...

BRULETTE - (suspensa) Não vieste sozinha, claro? ...

TERÊNCIA - (rindo) Oh, não!

TIENNET - Nesse caso... é realmente o João que está a tocar?...

TERÊNCIA - É.

TIENNET - Bem dizia a Brulette!

TERÊNCIA - Oh! Será possível que tenhas reconhecido o som, a esta distância?

BRULETTE - (simples) Reconheci.

TERÊNCIA - É extraordinário!

TIENNET - (em resposta a Terência) Quando as pessoas não esquecem as suas amizades, é assim!

BRULETTE - Já o mesmo não se dirá dos que encontram os amigos por acaso...

TERÊNCIA - (rindo) Isso é comigo?

BRULETTE -Contigo... com o João... e naturalmente até com o Grande Lenhador! Talvez passassem por aqui sem nos dizer adeus, sequer...

TERÊNCIA - Nós não estamos aqui de passagem! Estamos para ficar!... (ri) Ah, Brulette, que agora a injusta não sou eu, és tu!...

BRULETTE - Então... com demora?

TERÊNCIA -É verdade! E logo à tardinha tencionámos ir fazer-te, a ti e ao Tiennet, uma grande surpresa.

BRULETTE - (suspensa) Iam visitar-nos?

TERÊNCIA - Claro!...

BRULETTE - (num imenso alívio) Oh!...

TERÊNCIA - Simplesmente, pelos vistos, o destino trocou-nos as voltas... Tenho a certeza de que se o João adivinhasse não saía daqui.

TIENNET - Onde é que vocês estão instalados? Que é que vieram para aqui fazer? Estou cheio de curiosidade!

TERÊNCIA - (rindo) Uma curiosidade que não pode ser satisfeita assim duma só vez! É muita coisa junta!... Para já quero que saibam que pela primeira vez desde que me conheço estou instalada dentro duma verdadeira casa...

BRULETTE - Duma verdadeira casa?...

TERÊNCIA-E que casa!... Um casarão!... (outro tom) Vocês conhecem o castelo de Chassin?

TIENNET - Quem é que não conhece o velho castelo?... Está a cair aos pedaços... Foi abandonado há imenso tempo, dizem que os últimos donos morreram sem descendência e agora não se sabe a quem pertence.

TERÊNCIA -Sabe... visto que o meu Pai foi autorizado a habitar um dos lados que se encontra perfeitamente em condições de servir, enquanto estiver a abater os grandes carvalhos da mata que o cerca!

TIENNET - Vão deitar abaixo a mata?

TERÊNCIA - Sim, o meu Pai e o meu irmão.

BRULETTE - O João?... Então... e a vida dele?...

TERÊNCIA - (ri) Se vocês me fazem perguntas, eu perco-me no que estou a dizer! As coisas têm de ser conduzidas com método. São muitas novidades!

TIENNET -E algumas sensacionais?

TERÊNCIA - Todas sensacionais!...

BRULETTE - Para que é que vão deitar abaixo as nossas árvores?

TERÊNCIA- Eu não sei bem... mas parece que a pessoa que as comprou vai vendê-las para fazer barcos...

TIENNET - (num tom completamente diferente) A mais sensacional das novidades... sabes qual é, Terência?

TERÊNCIA -Ah... voltaste atrás?

TIENNET - Voltei... tive de voltar, porque estou assombrado a olhá-la!

TERÊNCIA-(rindo) O quê? Tu estás a olhar a tal novidade?...

TIENNET - Pois estou... estou a vê-la... e a admirá-la!...

TERÊNCIA - Bravo! Posso saber de que se trata?

TIENNET -Podes!... A novidade... és tu própria!

TERÊNCIA -Eu? (ri)

TIENNET - (fascinado) Tu, Terência!... Tens um olhar alegre, desanuviado... um ar de pessoa despreocupada... tão diferente de quando te conheci! Tão diferente que olha... eu, que nunca me atrevi a tratar-te por tu... hoje, sem saber como, falei-te como sempre falo à minha prima... E tu respondeste-me no mesmo tom!

TERÊNCIA -Por que não?...

TIENNET - Ê como se te tivesses tornado mais nossa, mais à nossa maneira... ou então como se um grande peso tivesse saído do teu coração.

TERÊNCIA - (agora séria) Sim... talvez seja isso mesmo. Um grande peso saiu de cima do meu coração!... (ri-se) E agora... se vocês dois viessem comigo para a minha casa, an? Já tenho as coisas em ordem, posso fazer-lhes as honras do castelo... Tenho a certeza de que o João, quando chegar, fica doido de alegria!...

BRULETTE - Eu gostava imenso... mas precisava de ir ver o Carlinhos e saber como está...

TIENNET -Ora, o Carlinhos! Está muito bem, entregue à minha irmã, não precisas de te preocupar com ele!

TERÊNCIA - Quem é o Carlinhos?

TIENNET - Ah... quem é o Carlinhos...? (pausa) Pois... quem é o Carlinhos? ... (reage) Um miúdo encantador, de quem a Brulette gosta muito!

TERÊNCIA - (com súbita reserva) Teu filho, Tiennet?

TIENNET - (explodindo em riso) Meu filho?... Já agora... era só o que faltava!... Não, Terência... que idéia!

TERÊNCIA - Então... podias ter casado!

TIENNET - Vim solteiro lá de cima dos teus bosques... e querias que já tivesse um filho daquele tamanho?

TERÊNCIA - (aliviada) Não sei... não" conheço o... o Carlinhos!

TIENNET - Logo vais vê-lo, descansa! (ri) E entretanto, fica sabendo que continuo solteiro... solteiríssimo... à espera de encontrar quem me queira!...

TERÊNCIA-(maliciosa) O que talvez não seja muito difícil...

TIENNET - (cheia de intenção) Terência?...

TERÊNCIA - (rindo) Bom, havemos de voltar a falar neste assunto. Por agora... espero que se levantem para me acompanhar! Vamos?

BRULETTE - (inquieta) E o Carlinhos?... Não posso abusar da boa vontade da tua irmã, Tiennet! Ele custa muito a aturar e quando não me vê arma cada berrata...

TIENNET - Ó menina, pronto, se é essa a dificuldade, vai-se buscar o Carlinhos e leva-se connosco! O castelo de Chassin é grande... com certeza que há lugar para ele!

TERÊNCIA - (rindo) Claro! Há lugar para todos! (a afastar se já) Toca a ir buscar esse famoso Carlinhos!

"Pouco depois, no interior do velho castelo de Chassin"

TERÊNCIA - (sempre animadíssima) E pronto, meus queridos amigos, aqui têm o meu castelo!... (ri) Quem diria, an? Quem diria que eu, a pobre rapariga dos bosques que nunca viveu senão em cabanas de madeira e colmo, havia de habitar um castelo?... Aqui... é o meu quarto... Além o do meu Pai... e o do João fica ao fundo deste corredor!... Temos cozinha... (ri) Bom, a cozinha serve-nos também de sala e é lá que vamos cear todos juntos, se vocês me derem o prazer de ficar conosco!

TIENNET - Eu, por mim, aceito e agradeço, Terência. Agora a Brulette não sei, por causa do menino...

TERÊNCIA - E que é que tem o menino, Tiennet? Ele já come sopa, com certeza!

BRULETTE - Come, sim, Terência... Mas... não avisei o meu avô e ele pode ficar em cuidado! (e acarinha Carlinhos que não cessa de choramingar)

TIENNET -Qual fica em cuidado! Pensa que te estavas a divertir e portanto que resolveste ir mais tarde para casa...

TERÊNCIA - E se for preciso manda-se lá alguém a avisar, pronto! Vamos para a cozinha?... (outro tom) Sempre a rabujar, Carlinhos! Oh, Deus, que és muito resmungão!

BRULETTE- Deve ter sono, coitadinho.

TERÊNCIA - Vai deitá-lo na minha cama...

TIENNET - É boa idéia.

BRULETTE - Pois sim... vocês vão indo enquanto eu fico a adormecê-lo. Já lá apareço.

"Na cozinha do castelo, pouco depois"

TIENNET - (radiante) Há coisas mais inesperadas! Palavra que se hoje de manhãzinha alguém me dissesse que isto ia acontecer, eu não acreditava!

TERÊNCIA -E estás muito contrariado com o facto?

TIENNET - Oh, Terência! Isso não se diz nem a brincar!... (ri) Eu não caibo em mim, de contente! Ver o Grande Lenhador, ver o João... (noutro tom) ver-te, a ti!... (pausa) Que eu acho-te uma diferença... uma diferença qualquer!

TERÊNCIA - (rindo) Para melhor ou para pior?

TIENNET -Para melhor, se for possível!

TERÊNCIA - (aproximando-se) Ai, o que será?... Explica, Tiennet, explica!...

TIENNET - Não sei... não sei assim muito bem...

BRULETTE - (a entrar) Tenho a impressão de que eu sou capaz de dizer!

TERÊNCIA - Também notas alguma coisa de mudado, em mim?

BRULETTE - Também!

TERÊNCIA - (ri)

BRULETTE - (simples) É isso.

TERÊNCIA-An?

BRULETTE - Ê isso mesmo. Ris!...

TERÊNCIA -Ah!

TIENNET -. (contente) Sim senhora, a Brulette tem toda a razão, é isso, tal e qual! Eu nunca te tinha ouvido rir, nunca!

TERÊNCIA - (que aos poucos assume uma certa gravidade) Ah... pois é... vocês conheceram-me numa fase muito má... péssima!... Nem parecia eu... Sim, que no fundo não tenho nada de melancólica, nem de rabugenta, nem de antipática, não! Mas... (detém-se e afasta-se) Um momento, vou voltar o nosso cabrito antes que se queime... Foi bem bom eu ter comprado hoje este cabritinho para o jantar! Até parece que adivinhava que vocês cá vinham...

TIENNET - (aspirando o ar, guloso) E cheira bem!...

TERÊNCIA - (aproximando-se, sempre a falar) Enquanto conversamos, não te importas de me ajudar a descascar umas batatas, Brulette?

BRULETTE - com certeza, tudo o que for preciso.

TIENNET - (alvoroçado) Eu também posso ajudar!

TERÊNCIA - (rindo) Tu podes estar quieto! Os homens não percebem nada destas coisas! Só servem para comer.

TIENNET - Oh!

TERÊNCIA - Uma vez o João ofereceu-se para descascar batatas também... e nem queiram saber! ... A batata ia toda agarrada à casca!...

"riem todos"

TERÊNCIA - (natural) Pronto... as batatas... e a caçoila... Pega esta faca, Brulette. Deve cortar bem.

BRULETTE - Pois sim...

TERÊNCIA - (decidindo-se) Pois, voltando ao assunto... torno a dizer que vocês me conheceram no pior momento da minha vida. Eu... eu nem me sentia eu! E... e a verdade é que lhes devo uma explicação...

BRULETTE - Pelo amor de Deus, não nos deves nada!

TERÊNCIA - Devo. Devo e não hei-de fugir-lhe. Pelo contrário! Vocês tinham muita razão quando pensavam que eu estava apaixonada pelo José! Bom... (sorri) apaixonada não será bem o termo, quando não, não me passava tão depressa! Mas... embeiçada! Sim, embeiçada... e de que maneira! (séria) Todas as coisas têm uma razão de ser... e a minha dedicação pelo José estava absolutamente justificada. Quando ele foi para junto de nós, era um pobre rapaz triste, doente, com um ar tão abandonado que metia dó. Eu comecei a tratá-lo... como se ele fosse meu filho! Julgava-o sincero, desinteressado, generoso... E ele aceitava todos os meus cuidados como se na verdade dependesse inteiramente de mim! Como podia eu supor que a maior parte da sua amargura, da sua fraqueza, provinha do amor que lhe enchia o coração... o amor por outra?

BRULETTE - (suspensa) Terência?

TERÊNCIA - (proseguindo) Nunca foi capaz de me dizer nada. Por mais que eu perguntasse, limitava-se a falar nos seus sonhos de música... e às vezes queixava-se com saudades da mãe...

BRULETTE - Reconheço que ele procedeu muito mal para contigo, Terência.

TERÊNCIA - (sóbria) Sim, muito mal. Porque se ele me tem revelado toda a verdade, eu própria viria procurar-te e pedir-te que fosses tomar conta dele... e nunca te receberia como recebi... nem faria a teu respeito os maus juízos que fiz e de que tanto me tenho arrependido...

BRULETTE - (docemente) Oh, Terência, mas já passou tudo, nada disso tem qualquer importância...

TERÊNCIA - Sim... graças a Deus, perdeu a que tinha! Perdeu-a quando compreendi que mal que eu empregava a minha aflição! O desencanto foi imenso... e comecei a ver a realidade. O José não merecia nem sequer o conceito que eu formava dele.

BRULETTE -Ca querer defendê-lo) Oh, Terência!

TERÊNCIA - (reforçando) Não merecia, Brulette! Eu tenho qualidades bastante para lhe inspirar respeito... Creio mesmo que tudo o que fiz por ele era digno dum pouco de gratidão de estima! A indiferença absoluta com que ele nos deixou... mostrou-me que nem eu nem afinal nenhum dos meus contávamos para ele! Nem uma palavra, nem uma linha de recordação... nada!

TIENNET -Não teria podido, Terência! Ele, quando veio, demorou-se não chegou a vinte e quatro horas... e partiu sem dizer água vai. Ninguém sabe onde está, ninguém recebeu quaisquer notícias... Já vês que não foi só connosco que ele procedeu mal. Foi igual para todos, até para a Mãe...

TERÊNCIA - Dizes isso porque não sabes tudo o que se passou.

TIENNET - Tudo? Que tudo?

TERÊNCIA - O José, quando daqui partiu, voltou lá acima...

BRULETTE - Voltou?

TERÊNCIA - de noite, no escuro, como um ladrão!... Eu não podia dormir... nunca mais tinha podido dormir, vi-o e ouvi-o... (pausa para efeito) Esteve na cabana dele...

TIENNET -Mas que foi ele lá fazer?

TERÊNCIA - Buscar roupas e uma flauta nova que o meu Pai lhe tinha feito.

TIENNET - Ah!...

TERÊNCIA - E asim como chegou... assim desapareceu... sem ao menos ir dar um abraço ao meu Pai que tanto o ajudou!

TIENNET - Pobre Terência!...

TERÊNCIA - Oh, não! A mim não me lamentes, Tiennet! Porque foi a cura total, percebes? Olha, senti um tamanho desprezo, uma tamanhã revolta, que me virei na cama e adormeci como uma santa, sem preocupações nem cuidados! (ri) E foi a partir dessa noite que não só passei a dormir lindamente, como recomecei a rir e a sentir-me outra vez uma rapariga normal!...

BRULETTE - (sucumbida) Parece impossível o José ter sido capaz duma acção dessas! Nunca imaginei!...

TIENNET - Bom, talvez haja alguma explicação.

BRULETTE - (indignada, ) Que explicação, Tiennet?...

TIENNET -Sei lá? ... Talvez no fundo ele tivesse medo de se deixar enfeitiçar pelos encantos da Terência e acabasse por cometer alguma acção condenável!...

TERÊNCIA - (reagindo, entre dolorosa e altiva) Tiennet! Tiennet? ... Queres dizer com isso... que o José receou que eu... que eu o perseguisse, que eu fosse capaz de andar atrás dele como uma rapariga sem-vergonha?...

TIENNET - (atrapalhado) Não, não, não é nada disso, é...

TERÊNCIA- Não digas mais nada, meu amigo, se não queres reabrir uma ferida que já tinha deixado de sangrar... No fundo, deves ter razão. Foi isso mesmo que o José temeu! E, temendo-o, dirigiu-me o maior dos insultos! Julgou-me capaz duma acção indigna. Supôs-me destituída de orgulho e de dignidade... E isso foi o pior de tudo.

TIENNET -Mas...

BRULETTE - Olha, o Carlinhos, ali! (avistando Carlinhos de gatas, à entrada da cozinha, vai pegar-lhe) Meu Deus, não dormiu nada, vai ficar rabugento o resto do dia!... Então, meu amorzinho, então? Venha cá à sua Mamã, venha cá!...

TIENNET - (resmungando) "Mamã, mamã"... É idiota ensinar o miúdo a tratá-la por mamã... (para Brulette) Não arranjas outro nome para ele te dar?...

BRULETTE - Para quê, outro nome? Este é o que ele pode dizer melhor! Ê o que ele entende... o mais natural de todos...

TIENNET - (arreliado) O mais natural quando é natural!...

TERÊNCIA - (interrompendo) Vocês... querem ouvir o resto?

BRULETTE - (com doçura) Terência... achas que vale a pena continuarmos a falar do José?

TERÊNCIA - É que eu ainda não contei tudo!

TIENNET -Não?

BRULETTE - Ainda há mais?

TERÉNCIA - Pois há. (pausa para efeito) Encontrámo-nos com ele há pouco mais duma semana.

TIENNET - ( Onde?

BRULETTE -(

TERÉNCIA -Na floresta de Montaigu!

BRULETTE -E como é que ele está?

TERÉNCIA - De saúde, bem. Aliás vocês não tardarão em verificá-lo.

TIENNET - Que dizes, Terência? O José veio com vocês?

TERÊNCIA - Veio. Anda com o meu Pai, a tratar das coisas para ser recebido Mestre Tocador...

BRULETTE - Pois esse ingrato ousou voltar a aceitar os préstimos do Grande Lenhador... depois do que fez?

TERÊNCIA - Bom, primeiro, quando nos viu, ele ficou muito atrapalhado... Mas como nenhum de nós lhe mostrou nem má cara nem qualquer espécie de ressentimento, começou a estar mais à vontade... e lá contou os seus projectos.

BRULETTE - E pediu ao teu Pai que o auxiliasse?

TERÊNCIA - Não, ele não pediu. O meu Pai é que se ofereceu! Aquilo é muito difícil, muito complicado, vocês sabem? A confraria dos tocadores tem uns costumes, segredos e não sei mais o quê... que torna a admissão dum novo tocador muito problemática... Percebem? Por isso o meu Pai, que gosta muito dele e o acha um grande músico, resolveu ajudá-lo.

TIENNET - Não há dúvida de que tem um coração de oiro, o Grande Lenhador!... (outro tom) E tu também, Terência.

TERÊNCIA - Oh, eu!?... Eu não... (ri) Vocês querem saber?

BRULETTE - Mais, ainda?

TERÊNCIA - O principal. A certa altura, já no caminho para aqui, o José veio ter comigo e aventurou-se a falar-me, perguntando-me se eu ainda estava muito ofendida com ele.

BRULETTE -E tu?

TERÊNCIA - Eu disse-lhe que não, que já lhe tinha perdoado tudo... e que só desejava que ele fosse muito feliz casando contigo.

BRULETTE - Comigo? Que tolice!... E ele, que te respondeu?

TERÊNCIA - Ele limitou-se a pedir-me que não lhe falasse mais em ti... porque tu deixaste completamente de lhe interessar.

TIENNET -Boa!... Só me faltava ouvir uma dessas!

TERÊNCIA - Ai, ainda vais ouvir melhor!

BRULETTE - Melhor?

TERÊNCIA - Imaginem que logo a seguir contou-me que pouco antes estivera a falar com o meu Pai e com o João... para lhes pedir a minha mão!

TIENNET ( (cheios de confusão) Para pedir a...?

TERÊNCIA - Tal qual! Confessou que desejava casar comigo. Garantiu que convencera tanto o meu Pai como o meu irmão de que tu já não contavas para ele... e que só desejava ser recebido Mestre Tocador para ter uma profissão e poder desposar-me.

TIENNET- (ansioso) E tu, Terência?

TERÊNCIA - Eu disse-lhe que não!

BRULETTE - Porquê, Terência? Se ele tem o coração livre... - e graças a Deus que

se curou expontâneamente daquela mania por mim! -talvez pudesses ser feliz junto dele!

TERÊNCIA - Não, Brulette. Eu comecei por te explicar que o José deixou de contar para mim no momento em que o desprezo matou o amor!... Coisas destas não tem conserto! Acabou! E é por isso que rio, despreocupada, como antes de vocês me conhecerem... Tenho o meu coração livre e tranqüilo!

BRULETTE - Coitado do José! Talvez tenha comprendido agora o que perdeu...

TERÊNCIA - Não... não creio! Há qualquer coisa por detrás da atitude dele que me parece confusa, estranha... Não é amor o que ele sente por mim, não! Deu-me a impressão de... duma espécie de despeito... duma espécie de raiva surda... (reage e outro tom) Bom, vocês agora já sabem tudo e também que vão vê-lo não tarda.

"Distante, ouve-se uma voz masculina, ainda indistinta, chamando "Terência! Terência! "

TERÊNCIA - (encadeando com o que disse) Aliás... é capaz de ser ele que aí vem a chamar-me!

BRULETTE - (com emoção incontida) Não... não é a voz dele!... Ê o João!...

TERÊNCIA - (desatando a rir) Meu Deus, Brulette, que ouvido!... É que é mesmo o João!...

HURIEL - (aproximando-se) Terência! Terência!... Terência (detém-se, parado à entrada da porta, avistando quem está) Meu Deus! Que vejo eu? ... (avança num impulso de alegria imensa) Brulette!... (pára, qualquer coisa de terrível o detém) Brulette?

BRULETTE - (simplesmente feliz) Oh, João, que Bom, tornar a vê-lo!...

"TIENNET saúda HURIEL efusivamente. Mas algo se passa, que Terência vai acusar"

TIENNET - Oh, homem, que alegria estarmos juntos outra vez!

HURIEL - (como um indivíduo que levou uma pancada) Bru... lette? ...

TERÊNCIA -João... que é que tu tens? Estás tão pálido... e coberto de suores frios!... Tu não estás bem!... Senta-te, senta-te depressa... Que é que aconteceu?...

HURIEL - (tentando reagir) Nada... nada... não é nada!... Estou... estou perfeitamente... mas perfeitamente... Foi a alegria... a surpresa... a emoção... (depois, bruscamente) Brulette, quem é essa criança?...

BRULETTE-(puríssima) fi o Carlinhos!...

TERÊNCIA - (natural) É um menino de quem a Brulette e o avô tomaram conta!

HURIEL - Ah!... (com imenso alívio) Ah! (desata a rir quase convulsivamente) Ah, sim... sim!... Pois claro!... Pois claro!... (domina-se) Desculpem, não façam caso... estou comovido, que é que querem? Os homens não são de ferro!... (outro tom) Brulette, vamos até lá abaixo? A festa do casamento está no seu auge e convidaram-me para lá ficar. Mas eu tinha pressa de a ir ver... e vinha pedir a ceia à Terência... Agora... (ri) Bom, agora já não preciso de mais nada!... vamos dançar, Brulette?...

TIENNET - Duvido que ela vá, João! Esta rapariga tornou-se muito ajuizada, deixou de ir a festas... já não se interessa por essas coisas...

HURIEL -A sério, Brulette?

BRULETTE - A sério, João!... (ri) Mas consigo... consigo vou!...

TIENNET - (a rir) Ah, sim? Então comigo é que te aborreces de dançar?... Está boa, essa!...

BRULETTE - (sem ligar) Tiennet... Tu e a Terência ficam aqui a conversar... e tomam conta do Carlinhos, está bem? ...

TERÊNCIA - Tomo, com certeza.

Para ires com o João, até já deixas o teu "Ai Jesus"...

BRULETTE - Ê só por um bocadinho... (outro tom) Está bem, Carlinhos? Vai ficar um bocadinho sem a mamã?

HURIEL - (de novo suspenso) "Mamã"?... (outro tom) mamã... porquê?

BRULETTE - (enternecida) Fazia-me tanta pena que uma coisinha deste tamanho não pudesse pronunciar a mais linda palavra que há no mundo!... (suspira) Eu, que nem sequer conheci a minha mãe, sei avaliar a falta que faz dizer... mamã!... (sorri) Foi por isso que o ensinei e faço tudo para que ele não sofra demais a ausência do primeiro amor da vida...

HURIEL - (comovido) Ah... bem... (reage) Vamos agora, Brulette?...

BRULETTE -Então... até logo, Terência. Até logo, Tiennet.

OS DOIS - Até logo.

BRULETTE - (suspensa) Vocês, por favor.

TERÊNCIA - (percebendo-a) Vai descansada. Eu tomo conta do menino como deve ser!

"Em plena festa, a aldeia acusa"

BRULETTE - (cansada) Oh, meu Deus, deve ser de ter perdido o hábito... vejo tudo a andar à roda!... (ri) Tive a impressão de que se o João não me segurasse com tanta força, eu caía!

1º RAPAZ- (aproximando-se) Brulette, queres dançar comigo?

BRULETTE - Não, obrigada, Luciano. vou sentar-me a descansar... (outro tom) Arranja-me qualquer coisa para beber, João?

HURIEL - com certeza. vou ali buscar, àquela mesa além... (afasta-se)

2º RAPAZ - (chamando) Brulette, queres vir dançar comigo?

BRULETTE - Não, Afonso, muito obrigada. Não danço.

2º RAPAZ - Não danças? Como é isso arranjado? Ainda agora te vi a dançar com o tocador!...

BRULETTE - O que quer dizer que dancei... eis tudo!

2º RAPAZ - Estás comprometida com ele?

BRULETTE - E tu que tens com isso?

2º RAPAZ - Ah... ainda te fazes esquiva, beldade? Julgas-te nos tempos passados?

1º RAPAZ- (aproximando-se) Não percas tempo, Afonso! As vinhas vindimadas não nos interessam!...

BRULETTE -O quê? Que dizem vocês?...

1º RAPAZ- (ri) Vamos, Afonso! Ela é muito inocente, não sabe nada de nada!... (e afastam-se ambos a rir)

BRULETTE - (só, numa angústia crescente) Oh, meu Deus! Oh, meu Deus! Mas... isto que significa?...

HURIEL - (aproximando-se) Pronto, Brulette! Vinho do mais fresco que arranjei... (detém-se e preocupado) Brulette?... Que aconteceu? Está a chorar?

BRULETTE -Não... não... não é nada, João. Não se apoquente por minha causa! Não foi nada...

HURIEL - Ah, lá isso... passou-se alguma coisa!

BRULETTE - Não, não, asseguro-lhe! (tenta rir) Obrigada pelo vinho... (bebe) Olhe, sente-se aqui ao meu lado... vamos conversar, está bem?

HURIEL -Está bem...

BRULETTE - João... conte-me coisas... fale-me de si!

HURIEL - De mim? Não a aborreço, se falar de mim?

BRULETTE - (sincera) Oh, não! Sabe perfeitamente que tudo o que lhe diz respeito me interessa!

HURIEL - Bom... vamos por partes, então! (pausa para efeito) Primeiro... deixei de ser almocreve...

BRULETTE - Deixou de ser almocreve?... Porquê?

HURIEL - (sorrindo) Isso é uma segunda razão... uma segunda razão que justifica a que eu lhe comuniquei em primeiro lugar (pausa) Brulette... lembra-se daquela noite da luta com o desgraçado Malzac?...

BRULETTE - Lembro-me perfeitamente!... Tantas vezes penso nisso... no perigo a que o João se expôs por minha causa...

HURIEL - (reflectindo) O perigo que corri foi o menos importante de tudo! As conseqüências, Brulette, as conseqüências é que foram graves.

BRULETTE - Nunca soube ao certo o que se passou...

HURIEL - Bom... como você de certo percebeu... o Malzac tinha caído para sempre...

BRULETTE - Sim...

1º RAPAZ- (passando) Há pessoas com imensa sorte! Acabam sempre por governar-se...

HURIEL - Eu fiquei transtornado. Naqueles primeiros dias, enquanto o ferimento que tinha na testa não cicatrizou, deixei-me andar pelos bosques, sem saber se havia de obedecer aos conselhos do frade que me tinha tratado... um tal Frei Nicolau...

BRULETTE - Conheço-o muito bem. Às vezes aparece por aí...

HURIEL - Ah! (prossegue) Pois eu não sabia se devia fazer o que ele me dizia, ou seja, esquecer o que se passara... ou apresentar-me à justiça dos homens.

BRULETTE - (respondendo a Huriel) justiça? Que horror? À justiça porquê? Você bateu-se por mim em legítima defesa!

HURIEL - Sim, mas a minha consciência é que não aceitava a explicação! E vai, decidi-me a voltar à presença de Frei Nicolau, a quem pedi licença para me entregar à prisão.

BRULETTE -E ele?

HURIEL - Ele não deixou! Disse-me que os homens haviam criado a pena de morte que era um crime aos olhos de Deus e que eu ia atrair o castigo do Senhor sobre várias almas quando estava naturalmente absolvido dado que não matara voluntariamente...

UM RAPAZ e UMA RAPARIGA - (passam a rir, troçando)

BBRULETTE -E então?

HURIEL - Então mandou-me ao abade do convento dele ordenando-me que lhe falasse com o coração nas mãos. Obedeci, claro. O abade ouviu-me... e levou-me ao senhor de Montluçon... O bispo escutou atentamente a minha história e perguntou-me: Meu filho... está verdadeiramente arrependido do que fez?...

2ª RAPARIGA- (aproximando-se e parando) Olá, Brulette! Então como está o teu menino?

BRULETTE - Está muito bem, agradecida, Lucília.

2ª RAPARIGA- (igual) Pois folgo muito em ver-te por aqui! Julgávamos que já tinhas desistido da vida de solteira! (ri) Adeus... diverte-te...

HURIEL - (recomeçando, com certo custo) Eu, claro, respondi a Sua Eminência que sim, que estava arrependido do fundo do coração, e então Sua Eminência disse-me: "Meu filho, quero que se confesse a mim como se confessaria a Deus Todo Poderoso"... Confessei-me... e Sua Eminência deu-me a absolvição, pedindo-me que nunca mais me inquietasse com escrúpulos, mas que fizesse penitência e aceitasse como a maior de todas abandonar a confraria dos almocreves, que são tidos por homens sem fé e de usos contrários às leis do céu e da terra...

BRULETTE - Foi então por isso que você deixou de ser almocreve?

1º RAPAZ- (aproximando-se) Então, Mestre João Huriel, hoje não quer tocar na festa?...

HURIEL - (para o rapaz) Hoje não me apetece.

1º RAPAZ- (rindo) Pois olhe que mais valia vir divertir-se connosco do que estar a fazer-nos rir!... (afasta-se a rir)

HURIEL - (crispado) Brulette... que quer isto dizer?

BRULETTE - Não sei, João! Acho-os a todos hoje tão estranhos!... (num suspiro) Talvez seja por não conviver com essa gente há muito tempo já... mas a verdade é que me parecem diferentes... (outro tom) Mas não respondeu ao que lhe perguntei, João. Foi então por isso que deixou de ser almocreve?

HURIEL - (contrafeito preocupado) Sim... foi. Foi! Decidi-me a ajudar o meu Pai, a seguir a profissão dele. Vendi as mulas...

BRULETTE -E o Clarim? Também o vendeu?

HURIEL - (amenizado) Não, o Clarim conservei-o para o nosso serviço!

BRULETTE - Pois não imagina como fico satisfeita com tudo isso, João! Gosto tanto que tenha deixado de ser almocreve! É uma vida falsa, desassossegada.

2º RAPAZ - (aproximando-se) Eh, Mestre João Huriel... venha beber um copo! Estão todos a reclamá-lo, lá em baixo...

HURIEL - Obrigado, amigo. Mas estou acompanhado e...

2º RAPAZ - (igual e rindo) Ora deixe-se disso! A Brulette já não se perde sozinha...

Pausa.

BRULETTE - (serenamente) Vá, João, vá... Eu vou indo para o castelo... Aproveito para ajudar a Terência e alivio-a do encargo de tomar conta do Carlinhos... Ela já deve estar cansada.

HURIEL - (como quem leva uma chicotada) Ah... pois... pois! Está bem, vá!...

BRULETTE - (admirada com o tom) Mas?...

HURIEL - Vá, vá... Acho bem que vá.

BRULETTE - Fica aborrecido, João?

HURIEL - Eu? Isso sim! Quem passou tanto tempo longe de si, pode perfeitamente continuar a passar!...

"Na cozinha do castelo, umpoucomais tarde"

TIENNET - Mas não pode ser, Terência, também não pode ser! Nem oito nem oitenta! Sempre aqui fechada a trabalhar, acho demais! Logo, no fim da ceia, vais comigo ao baile, está bem?

TERÊNCIA - Não, Tiennet, está mal... Eu não gosto de dançar!...

TIENNET - Mas porquê?

TERÊNCIA - Acho uma coisa disparatada e inútil!

TIENNET -Oh!...

TERÊNCIA - E depois, não sei falar com os rapazes que não conheço. Eles só dizem idiotices... e eu, que sou incapaz de responder-Lhes no mesmo tom, sinto-me completamente estúpida!

TIENNET -Mas comigo é diferente. Eu não te digo idiotices... E tu conversas que é uma maravilha!

TERÊNCIA - (rindo) Mas, para conversar contigo não precisamos de dançar. Estamos aqui sossegados, é muito mais agradável!

TIENNET - (còmicamente desesperado) Meu Deus, esta rapariga é difícil de convencer...

TERÊNCIA - (rindo) Muito! (numa brusca mutação de tom) Jesus, João? ... Não te ouvi entrar! Mas... que há?... Estás outra vez como hoje de tarde... li vido... e a tremer?...

HURIEL - (aproximando-se e numa voz rouca, sincopada) Tiennet... quero falar contigo!

TIENNET - Estou às tuas ordens!

TERÊNCIA - (séria) Devo retirar-me?

HURIEL - Não. Não! Infelizmente, parece que não é segredo!

TIENNET -Diz o que tiveres a dizer, João.

HURIEL - Tiennet... a quem pertence o miúdo?

TIENNET -Qual miúdo?

HURIEL - Qual miúdo há-de ser? O da Brulette! O tal Carlinhos!... (pausa) Tiennet! Lá em baixo... primeiro veladamente... depois às claras... não ouvi falar senão nisto! Apontam a Brulette a dedo... garantem que sim... que o miúdo é mesmo filho dela... e escarnecem-na, riem-se...

TERÊNCIA - (surdamente) Jesus!

HURIEL -Em nome de Deus, Tiennet... Responde-me... A quem pertence o miúdo?

TIENNET - Em nome de Deus, João, juro-te que não sei!

HURIEL - (grave, lentamente) Tiennet... tu és um rapaz honesto, sempre te considerei como tal... por isso te peço que respondas com toda a sinceridade!...

TIENNET - Conta comigo, Huriel! O que eu souber, digo-te.

HURIEL - Admites a hipótese do pequeno... ser filho "dela"?

TIENNET - Não.

HURIEL -Mas não, porquê?

TIENNET - Porque estou certo de que a Brulette nunca me ocultaria uma coisa dessas.

HURIEL - Não suspeitas quem sejam os pais do miúdo?

TIENNET - Não.

HURIEL - E ela... sabê-lo-à?

TIENNET - Julgo que sim, que o tio Brulet deve ter contado a verdade. Mas é escusado perguntar-lhe, que ela não abre a boca sobre este assunto!

Pausa.

HURIEL - A Brulette terá conhecimento do que se diz?...

TIENNET - Não faço idéia.

HURIEL - É que está tudo cheio...

TIENNET - Eu sei!

HURIEL - Não te parece que ela é demasiado esperta para não perceber?...

TERÊNCIA - (um pouco retraída) Custa-me a crer que a Brulette admita uma hipótese que mancha a sua honra... sem fazer tudo para a desmentir, para provar a toda a gente a sua inocência...

TIENNET - Eu, cá na minha, parece-me que a Brulette é e está de tal modo inocente no meio disto que nem lhe passa pela cabeça que as pessoas sejam capazes de pensar semelhante coisa.

HURIEL - (com repentino alivio) Sim... sim... é que deve ser isso mesmo!... É que deve ser isso mesmo... (ri) e nós... e eu... Pff!... Que loucura, admitir uma tal idéia! Que vergonha! Pois claro que é impossível! Impossível!

TERÊNCIA - (docemente) Sim, impossível!... E pasmo que só agora o compreendas, meu irmão. Porque pensar mal da Brulette... é o mesmo que pensar mal de mim!...

HURIEL - Pois é, minha querida Terência, tens toda a razão... Mas tu sabes, tanto ouvi, tanto ouvi!... E depois, o que ouvi juntou-se

Com umas idéias... umas palavras que já me tinham dito... e tudo isso deu lugar a uma dúvida torturante, um horror!...

TIENNET - (intrigado) Palavras que te tinham dito? Pois alguém se atreveu a falar mal de Brulette?

HURIEL - (infeliz) - Olhem, eu conto, acho melhor contar como foi que é para vocês saberem e perceberem... (pausa para efeito) O José, vocês sabem?...

TIENNET - (cortando, indignado) O José... ousou dizer alguma coisa contra a Brulette, ele, que devia beijar o chão que ela pisa, tanto lhe deve?

TERÊNCIA - (grave) Tiennet, deixa o meu irmão explicar o que se passou, está bem?

HURIEL - (recomeçando) O José não falou contra a Brulette. Puxou conversa... e, o mais naturalmente possível, foi-me dizendo que se tinha desinteressado dela. Perguntei-lhe se isso era naturalmente verdade e se a Brulette já não contava, para ele. E vai então, num repente, o José agarrou-me num braço e perguntou-me: "Tu... tu estás realmente decidido a fazer a corte àquela que eu tanto amei!" Disse-lhe que sim, claro, uma vez que ele se afastava de tal maneira que até pedira a Terência em casamento, (noutro tom) O José ouviu-me, reflectiu... e de repente voltou-se para mim e disse-me mais ou menos isto: "Meu amigo, creio que te atraiçoaria se não te contasse o que se passa... "

TIENNET -É que até tenho medo!...

HURIEL - Eu também tive medo... mas limitei-me a dizer-lhe. "Fala". Vocês, porém, conhecem-no bem.

TERÊNCIA - Muito bem.

HURIEL - Então o José começou com evasivas, a falar da Brulette, que ela não era aquela rapariga que ele imaginava, que ele tinha tido um enorme desgosto quando ao chegar de fora ia precisamente pedir-lhe que esperasse por ele...

TIENNET - Mas a Brulette não o queria!

HURIEL - (sem se deter) e que havia uma prova bem viva de que ela não merecia o nosso amor e por isso mesmo me avisava, dada a amizade que havia entre nós, mas que eu, evidentemente, era livre de proceder como entendesse!... E, dito isto, virou-me as costas e desapareceu! Quando tornámos a estar juntos, não consegui arrancar-lhe uma única palavra. É claro que atribuí tudo ao seu espírito doentio, àquela maneira de ser que todos nós conhecemos... Mas agora...

TIENNET - Agora julgas que a prova real do que ele te disse... é o Carlinhos? Se pensas isso, João, não é a Brulette que não te merece... és tu que não mereces a Brulette!

TERÊNCIA - (com enorme dignidade) Tiennet... o meu irmão tem razão.

TIENNET - Como?

TERÊNCIA - Custe o que custar, é preciso conhecer a verdade! Somos uma família muito digna. O meu Pai nunca aceitaria que a mínima sombra desonrasse o nosso nome.

TIENNET - Terência? ...

TERÊNCIA - Há que saber!... Há que saber! Estás a ouvir João? Há que saber!...

HURIEL - (vagamente) Para quê?

TERÊNCIA - Para quê?...

HURIEL - Sim, para quê? ... Eu amo-a!...

TERÊNCIA - (aterrada) João? ...

HURIEL - Eu amo-a! Amo-a contra tudo e contra todos! Amo-a do fundo do meu coração!... Amo-a tanto... de tal maneira... que mesmo que a verdade fosse... fosse o Carlinhos, eu continuava a querer casar com ela!

TERÊNCIA- (cheia de altivez) João... tu eras capaz de desposar uma rapariga desonrada? Então e o nosso Pai? E eu?...

HURIEL - (docemente) E a Brulette?...

TERÊNCIA - (tomando fôlego) Meu irmão... ouve. Eu não acuso Brulette. Eu nem sequer acredito nas insinuações do José... Mas é preciso, num caso como este, que a Brulette prove que se conserva digna de ti. (outro tom) Tiennet, ela ficou lá dentro a dar de comer ao Carlinhos. Por favor, vai chamá-la, vai dizer-Lhe que o meu irmão precisa de falar com ela.

HURIEL - Não, Tiennet, não quero que vás! Se a Brulette está, como do fundo do meu coração o acredito, tão inocente como a Terência, não podemos injuriá-la com perguntas... antes de, pelo menos, eu me ter comprometido com ela, prometendo-lhe casamento.

TERÊNCIA - Mas, João...

HURIEL - (detendo-a) Minha querida irmã, é preciso que te lembres duma coisa. Se a Brulette acaso cometeu uma falta... eu cometi um crime! Se o amor a levou a pôr um filho no mundo... eu mandei um homem para debaixo da terra! Ela pode ser digna de mim... eu é que talvez não seja digno de ninguém!

TIENNET - (regouga protestos)

TERÊNCIA - (emocionada) Oh, meu irmão, meu irmão, por favor... não... não fales assim!...

HURIEL - Está bem... se não queres, não falo!... Mas olha que não penso noutra coisa... e por muito que eu sofra... seja o que for... sinto sempre que nunca será o bastante para expiar!... (sai, num rompante)

TERÊNCIA - (baixinho) Santo Deus... como ele sofre, ainda!

TIENNET - (suspenso, chama) Terência... Terência? ...

TERÊNCIA - (vaga) Hum?...

TIENNET - E supondo que a criança fosse mesmo dela?... Tu serias capaz de transformar uma infelicidade num pecado mortal?

TERÊNCIA - É preciso que compreendas uma coisa muito importante, Tiennet. Eu não incriminaria nem a infelicidade... nem mesmo a falta! Mas também nunca perdoaria uma mentira e as conseqüências que dessa mentira pudesssem resultar, percebes? Se a tua prima chegasse ao pé de nós e nos contasse, lealmente, o que se houvesse passado, eu não só lhe abriria os braços a pedir-lhe que esquecesse tudo como seria a primeira a desejar que o nosso nome fosse livrá-la de opróbios e dificuldades. Mas... mas... (respira fundo) mas se ela - desculpa dizer-to, Tiennet, que eu bem sei quanto a estimas! - se ela na verdade errou e continua a portar-se como uma rapariga com direito à admiração de toda a gente... uma rapariga digna do meu irmão... oh, não, isso não lhe perdôo, nunca!... Percebeste-me bem, Tiennet?

TIENNET - Muito bem, Terência.

TERÊNCIA - (tentando dominar-se) Tens alguma coisa a alegar em defesa da tua prima?

TIENNET - Talvez.

TERÊNCIA - Talvez?

TIENNET -Sim, talvez.

TERÊNCIA - (súplice) Tiennet... se sabes seja o que for... diz-mo! Não penses que eu não estimo a Brulette. Gosto dela, sim, gosto dela profundamente. Acredita que me dói o coração só de pensar... mas não posso, entendes? Não posso! Eu sou aquela rapariga dos bosques que tu muito bem conheces... selvagem, rude, mas profundamente leal!... Eu não tenho contemplações comigo mesma, bem o sabes... Como posso tê-la com os outros?

TIENNET - (como numa inspiração) Terência...?

TERÊNCIA -Sim? ...

TIENNET - Terência... a única coisa que eu sei... e sei porque diz respeito à pessoa sobre a qual já ouvi recair certas suspeitas... é... é...

TERÊNCIA - Diz.

TIENNET - Bom... há por aí quem afirme que o miúdo é filho do José.

TERÊNCIA - Do José?

TIENNET - (sóbrio) Do José.

TERÊNCIA - Mas então?...

TIENNET -Então... eu penso que o José tem tanto a ver com a criança como o João. E a verdade é que também, a não ser eu, mais ninguém conviveu tanto com a minha prima como eles, disso tenho a certeza ao ponto de não me importar de pôr as mãos no fogo se fosse preciso!

TERÊNCIA -Tiennet... há qualquer coisa por detrás disto que nem tu nem eu podemos adivinhar o que seja! Tenhamos calma... Começo a ver que a Brulette está de facto tão inocente como eu no meio de toda esta embrulhada. Mas como das bocas do mundo ninguém a livra, acho que devemos proceder cautelosamente até o momento de saber o que se passa e de esclarecer todos os que estiverem tão enganados... que a nós próprios nos iam convencendo do pior!... (outro tom) Escuta, Tiennet. Eu vou para o pé da Brulette e pedir-lhe que me ajude a acabar a ceia... que aliás está quase pronta... e tu, por favor, vai procurar o João, que ele saiu daqui num tal estado que eu não exagero nada se te disser que estou bastante assustada... (suspira) É que se ele se lembra de começar a beber... tudo o que não tem importância pode chegar longe demais!

"E bastante mais tarde, depois de inutilmente procurar João Huriel, Tiennet encontra-se com a sua própria irmã, a quem conta as suas aflições"

CARLOTA - Não te apoquentes mais por causa do teu amigo João Huriel, meu irmão. Eu sei onde ele está. Eu sei o que se passa.

TIENNET -Tu, Carlota? Tu, minha querida irmã?

CARLOTA - Eu, Tiennet! E só te peço uma coisa - fica descansado, que eu trato de tudo!...

"E Carlota vai ao encontro de João Huriel, abancando numa mesa afastada, a beber"

CARLOTA- (aproximando-se, zombeteira) Ora com que então, senhor Huriel, parece que está muito interessado na minha prima Brulette? Pelo menos é o que oiço dizer... E, pelo visto, não só tenciona encarregar-se do futuro dela... como também aceitar o passado!...

HURIEL - Como diz, minha senhora?...

CARLOTA - Pode tratar-me por Carlota. Sou irmã do Tiennet!

HURIEL - Pois... Carlota... agradecia-lhe que se explicasse...

CARLOTA - Ora essa, porque não?... (ri) Você é um rapaz simpático, bondoso, atilado... É natural que ao amar uma rapariga como a Brulette goste de tudo o que lhe diga respeito, sem explicações!...

HURIEL - (secamente) Creio que ninguém ama por partes! Ou se gosta de tudo, ou não se gosta de nada!

CARLOTA - Oh, claro, claro, claro!... (ri) E no caso da minha prima, não só é preciso gostar de tudo como gostar desinteressadamente! Sim, que pelo dinheiro ninguém lá ia!... Coitada dela! Feitas bem as contas, não tem onde cair morta!

HURIEL - Não sou interesseiro...

CARLOTA - Ainda bem! É uma sorte para a Brulette!... Coitadita!... Tem muitas qualidades!... (ri) Agora, a todas as outras, junta a de levar para o futuro lar uma criança já meia criada... É uma vantagem!

HURIEL - (após uma breve pausa) Acha?...

CARLOTA - Se acho!... Tanto mais que o pai do Carlinhos há-de saber cumprir o seu dever...

HURIEL - (com uma dor dominada) Sim... o pai do Carlinhos... e eu também... porque não haverá outro pai senão eu tanto para o menino que já existe como para todos os outros que Deus mandar a este mundo!

CARLOTA - (felicíssima, radiosa, descobrindo o. seu jogo) Bravo, João Huriel, que era isso mesmo o que eu queria ouvir!... Bravo! Por essas belas palavras, por essa nobre atitude, merece saber o mais depressa possível aquilo que eu tenho para lhe dizer!... Ora escute... (e diz-lhe algo num segredo)

HURIEL - (num alívio crescente) Oh!... Oh... Oh? ... Sim, sim... (e ri perdidamente)

CARLOTA - (rindo com ele) Amigo João Huriel... eu, que nunca bebo... vou beber consigo... à saúde do pai do Carlinhos!... (serve-se e serve-o)

HURIEL -(radiante) Toque!...

CARLOTA - (acabando de beber) Olhe, João Huriel... ali vem o meu irmão!... (chama) Anda, Tiennet, anda festejar connosco um grande acontecimento!...

TIENNET - (aproximando-se) Que acontecimento? ...

CARLOTA - (baixo, rápida) Schiu, Huriel! Lembre-se de que é segredo...

HURIEL - (igual) Esteja descansada!...

TIENNET - Então?...

HURIEL - (rindo) Então?... Olha, só te digo que a tua irmã é a melhor das pessoas que até hoje encontrei!... (ri) Deu-me agora um vinho... um vinho como nunca bebi nenhum!...

TIENNET - Foi só o que ela te deu?...

HURIEL -Não!...

TIENNET - Eu logo vi...

HURIEL - (sério) Deu-me a chave da felicidade! Ah, Tiennet, que é como se as portas do céu se tivessem aberto para mim!...

"Noite cerrada, na floresta"

O GRANDE LENHADOR - Desculpe, amigo... Conheço ainda muito mal estes sítios... por isso e com esta noite tão escura não sei se tomei o atalho que devia para chegar ao castelo de Chassin... Ê capaz de me dizer se vou bem?...

TIENNET - (atônito e radiante) Grande Lenhador!... Ê mesmo o Senhor?...

O GRANDE LENHADOR - Tiennet?... Será possível?...

TIENNET-É possível, sim. Sou eu próprio!... Eu, que tenho estado a apanhar ar e a admirar as estrelas!...

O GRANDE LENHADOR - Ó rapaz, que alegria sinto em encontrar-te!... Ele sempre há cada coisa mais inesperada... e mais feliz!... (abraçam-se)

O GRANDE LENHADOR -Mas que surpresa ...

TIENNET - (rindo) Para mim, a surpresa não é assim tão grande como isso!... Passei a tarde com a Terência... sabia que o senhor havia de chegar para a ceia!...

O GRANDE LENHADOR - Estiveste com a minha filha? Sério?...

TIENNET -Sério!... Encontrámo-nos... e temos estado juntos! E estou às suas ordens para o conduzir até ao Castelo, onde lhe asseguro que tem uma rica ceia à sua espera!...

O GRANDE LENHADOR - (radiante) Pois vamos, rapaz, vamos! Tratemos de nos reconfortar... que depois tenho muito que falar contigo!

TIENNET - Estou às suas ordens, Grande Lenhador!

O GRANDE LENHADOR -Sim... sim, acredito! Tu és um bom rapaz! Tenho a impressão de que, tirando o meu João, não haverá segundo como tu!...

"Pouco depois, na grande cozinha do Castelo"

O GRANDE LENHADOR - Não percebo!... Não percebo nada! Porque seria que o José não veio jantar depois de me ter prometido que não faltava?

TERÊNCIA - O pai bem sabe o caso que se pode fazer das promessas do José...

O GRANDE LENHADOR - Ora se tu não havias de estar contra ele!... (ri) Até me faz lembrar um velho ditado que diz "quem desdenha... ".

TERÊNCIA - Por favor, Pai, não brinque acerca disto! É um assunto que me aborrece.

O GRANDE LENHADOR - Pronto, pronto! (outro tom) Dá-me daí mais um pedaço de cabrito. Está excelente!...

TERÊNCIA - (servindo) Mais um bocadinho, Brulette?

BRULETTE - Não, Terência, muito obrigada!

TERÊNCIA - Não comeste quase nada.

BRULETTE - Tenho pouca vontade!...

O GRANDE LENHADOR - Estás tão pálida, menina! Não te sentes bem?

BRULETTE - Dói-me a cabeça, bastante.

TERÊNCIA - (rápida) Então vais-te deitar. A minha cama está pronta e tu podes ir dormir já, que isso talvez passe. Deve ser cansaço... e emoção.

BRULETTE - Sim, talvez... (tenta resistir) Mas era melhor eu regressar a casa, por causa do meu avô...

HURIEL - Eu vou lá avisá-lo de que tu ficas connosco.

BRULETTE - Mas não o assuste, João! Se ele pensa que estou doente, fica numa aflição!

HURIEL - Está bem, não lhe digo nada! Conto-lhe só que a minha irmã não a dispensou para a Brulette a ajudar a pôr a casa em ordem...

TERÊNCIA - (rindo) Isso, não te esqueças de convencer o senhor Brulet de que eu sou uma mandriona!...

HURIEL - Está bem... (a afastar-se) Lá para a meia-noite estou de volta. Mas não se apoquentem se eu me demorar. Posso passar pelo baile e se houver alguma rapariga jeitosa, deixar-me tentar... (o riso perde-se longe)

TERÊNCIA - (admirada) Que seria que lhe aconteceu? Há muito tempo que não o via tão alegre!... (outro tom) Vamos, Brulette?

BRULETTE -Mas é uma maçada, Terência!... Se o Carlinhos acorda

TERÊNCIA - Deixa o Carlinhos em paz. Se ele acordar, eu cá estou para tratar dele... (já distante) Vamos?

BRULETTE - (cedendo) Vamos... (afasta-se também) Boa-noite, Tiennet.

TIENNET - (responde)

BRULETTE - Boa-noite, Grande Lenhador.

O GRANDE LENHADOR - Boa-noite, Brulette.

O GRANDE LENHADOR - (depois de as ver desaparecer e de súbito sombrio) Está diferente esta rapariga!... É que nem parece a mesma!... Tiennet... que se passa com ela?

TIENNET - (embaraçado) Que se passa... como?

O GRANDE LENHADOR - (grave) Quero que sejas sincero comigo, estás a ouvir?

TIENNET - Sim, senhor, mas? ...

O GRANDE LENHADOR - O que é que há realmente com o tal miúdo?

TIENNET - (desolado) Também já sabe?

O GRANDE LENHADOR -Sei o que o José me disse.

TIENNET - (de súbito colérico) Ah, o José outra vez? Sempre o José a intrigar, a envenenar...

O GRANDE LENHADOR - Cala-te, Tiennet! Não podemos censurar uma pessoa que nos avisa por amizade...

TIENNET - Está convencido de que é por (amizade que ele o faz?

O GRANDE LENHADOR - Estou.

TIENNET - Já o mesmo não pensam os seus filhos.

O GRANDE LENHADOR -Os meus filhos têm razões particulares, um e outro, para ajuizar mal de tudo o que o José possa fazer ou dizer. Eu, porém, devo estudar as coisas a frio e não me deixar levar por impressões... Além de que sei mais do que eles.

TIENNET - Está certo disso, Grande Lenhador?

O GRANDE LENHADOR - Certíssimo.

TIENNET - Então porque é que me interroga?

O GRANDE LENHADOR - Porque tenho a obrigação de procurar a verdade absoluta!

TIENNET - Que foi o que o José lhe disse, Grande Lenhador?

O GRANDE LENHADOR - Bom... o José começou por me contar que tinha recebido uma carta daqui da terra que o deixara muito mortificado... e devido a essa carta me avisava de que eu faria muito bem se vigiasse o João de modo a evitar que este cometesse uma asneira que a todos nos encheria de Vergonha. É claro que eu quis ler a carta.

TIENNET - Era anônima?

O GRANDE LENHADOR - Não. Era do Carnat, do Mestre Carnat.

TIENNET -Do Mestre Carnat... a que propósito?

O GRANDE LENHADOR - A propósito de responder, visto que o José escreveu para cá a requerer as provas definitivas que lhe permitirão não só exercer a sua profissão onde quer que seja mas também ser aceite mestre tocador.

TIENNET - O José sempre quer fazer o Grande Concurso? Já desistiu do do Alto Bourbon?

O GRANDE LENHADOR -Não desistiu, (outro tom) mas quer fazer este primeiro. Ora precisamente a certa altura da carta o Carnat diz-lhe, com imensa velhacaria e depois de lhe afirmar que sim, que estava pronto a aceitá-lo, que ele "certamente devia gostar de saber que vira a Brulette ainda na véspera e que tanto ela como o menino se encontravam de perfeita saúde!

TIENNET - (fulo) Malandro!

O GRANDE LENHADOR - Bom... a mim quis-me parecer que aquilo era uma maldadezinha, uma insinuação a tentar impedir que o José tivesse vontade de cá vir.

TIENNET -E devia ser isso mesmo!...

O GRANDE LENHADOR - Pois sim, mas o José é que não pensa como nós! E quando soube que na realidade a Brulette tem uma criança em casa... perdeu completamente a cabeça, percebes?

TIENNET - Percebo.

O GRANDE LENHADOR - E ainda tu não o viste como eu vi... e não assististe!... Apareceu-me, quando eu andava a medir as árvores e a preparar o meu trabalho, num estado indescritível.

Ele chorava, ele gritava, ele amaldiçoava a Brulette e a vida... Dizia-me que tinha tido a certeza, que vira a criança com os seus próprios olhos e que já não lhe restavam quaisquer dúvidas...

TIENNET - E o senhor, meu bom amigo, também acreditou?

O GRANDE LENHADOR -Eu não posso pensar mal de Brulette, que julgo tão boa rapariga como a Terência. Mas o que eu não posso pensar é uma coisa... e a realidade outra! Ora... custe o que custar, preciso de conhecer essa realidade, não só por mim e pelos meus filhos... mas pelo próprio José, que deixei mergulhado numa dor capaz de dar cabo dele.

TIENNET - Mas o José não pediu a Terência em casamento?

O GRANDE LENHADOR - Pediu. Reconheço porém que só o fez para tentar esquivar-se a este amor que o escraviza. É que ele gosta muito da Brulette... e por mais que faça, ou por mais que haja, não consegue esquecê-la. (suspira) Quando um homem se apaixona por uma mulher... faz coisas inverosímeis. Tanto pode tomar atitudes descontroladas, como o José, como fazer o que eu fiz...

TIENNET - (suspensa) O que o senhor fez?...

O GRANDE LENHADOR - (pensativo, saudoso, um tanto romanesco) Sim... eu. Eu, que amei a mãe dos meus filhos mais do que o dinheiro, mais do que o talento, mais do que o prazer e a gloríola... Por ela deixei o que para mim era o mais importante de tudo! (outro tom) E o João... o João também! Ele gostava de ser almocreve! Pois abandonou a profissão por causa da Brulette!

TIENNET - (perplexo) Mas, Grande Lenhador, não seria antes por causa "daquilo"...? A Terência contou-me tudo...

O GRANDE LENHADOR - Isso é o que ele diz, mas não o que ele sente! A verdade é que deixou a vida que tinha, por causa dela. E isso preocupa-me! Se na realidade existe qualquer coisa contra a pequena, como é que há-de ser? Por isso te pedi que fosses sincero comigo. Sabes o que se passa com ela?

TIENNET - Ao certo certo, não! Mas digo-lhe, Grande Lenhador, que estou convencido de que não é nada que possa envergonhar ninguém.

O GRANDE LENHADOR - (vago) Sim...

TIENNET - Eu cá na minha acho que o José fazia melhor se, antes de falar, tratasse de investigar as coisas a fundo. Toda a gente pode ter o direito de suspeitar da minha prima... mas ele não. Ele não!...

O GRANDE LENHADOR -Tu sabes... o José não é uma pessoa igual às outras! Não reage como nós... Tem uma maneira de ser muito especial! (sorri) São coisas que um talento acima do vulgar explicam... Criaturas daquelas, são raras. Digo-te eu: nascem marcadas pelo dedo de Deus e não podemos exigir-lhes que pensem e reajam como os outros!

TIENNET - (simplório) Mas o Huriel toca muitíssimo bem, talvez ainda melhor do que o José, e porta-se à altura, não faz fitas e não...

O GRANDE LENHADOR - (interrompendo) É diferente...

TIENNET - Diferente?

O GRANDE LENHADOR - Sim, diferente! Eu sei que o meu filho tem talento... basta dizer que foi aprovado como mestre tocador aos dezoito anos! Mas há uma grande diferença, Tiennet, entre os que executam e os que inventam! Existem os que, graças aos dedos hábeis e à memória exacta, transmitem a toda a gente, muito agradàvelmente, aquilo que aprenderam. O meu rapaz está neste caso. Mas há os outros... os que não se contentam com o que lhes ensinam e seguem sempre em frente, sem se deterem, buscando novas formas, novas expressões... e oferecendo a todos o dom de quanto vão descobrindo, de quanto vão criando... O José pertence a este número, muito limitado. E é por isso que eu te digo que ele vai ser mais do que um simples menestrel de aldeia. Sim. O José há-de ser imitado e seguido como um verdadeiro Mestre!...

TIENNET - (estonteado) Acaso pensa que ele possa ser tão grande como o Senhor! O GRANDE LENHADOR - (doloroso) Como eu?... Pobre Tiennet, não sabes o que estás a dizer! Como eu...? Mas eu não sou ninguém... Podia ser, podia... se me tivesse dado todo inteiro e sem quaisquer partilhas, à música! Sim... eu ia longe... longe... se fosse apenas menestrel, como tanto o desejei durante a mocidade! Que não é a tocar durante dias e dias seguidos, só com os dedos, para ganhar dinheiro hoje aqui amanhã acolá, que o verdadeiro talento se desenvolve. Não!... Isso só serve para embotar o espírito e cansar os dedos! Mas enfim, para uma pessoa que seja livre, há maneira de viver a tocar sem dar cabo da alma...

TIENNET - Não percebo!...

O GRANDE LENHADOR-Qualquer festarola rende duas ou três moedas... Um indivíduo frugal, sem responsabilidades, toca duas vezes por semana durante uma tarde e ganha para o resto dos dias que já pode viver à sua maneira, divagando, viajando, observando, improvisando... (suspira) Era isto o que o José devia fazer, para chegar onde quer. Era isto o que eu podia ter feito!...

TIENNET -E não o fez, porquê?

O GRANDE LENHADOR - (tornando-se grave) Porquê? Ora porquê? ... Porque me enamorei e a mãe dos meus queridos filhos não queria ser a mulher dum tocador sem eira nem beira, um vadio a andar hoje por aqui, amanhã por ali, numa vida quase sempre airada... (num suspiro) Foi por isso. Casei... fiquei-me a trabalhar como lenhador! E digo-te que enquanto ela viveu, nunca lastimei ter abandonado a minha vocação. Para mim, o amor foi a mais bela de todas as músicas!... Depois enviuvei. Enviuvei muito cedo! E então dediquei-me a criar a Terência e o João... como criei, (sorri) E nas horas vagas, tocava... e ia ensinando o rapaz a tocar! (suspira) Já sou velho, Tiennet. Dentro de dias faço os sessenta anos. Pois bem: - asim que eu vir os meus filhos casados, felizes e entregues cada qual ao seu destino... largo o machado e vou-me por aí em busca da convivência dos anjos... até que a idade me entorpeça e obrigue a voltar consolado de música ao lar da família!...

TIENNET - (estupefacto) Quer ir tocar... por esse mundo?

O GRANDE LENHADOR - Quero! Quero viver para mim, livremente, segundo o meu verdadeiro gosto... (ri, ingenuamente) Ê que também já estou cansado de cortar árvores!... Cansado e desgostoso!... Talvez tu não saibas, Tiennet, quanto eu amo essas amigas de toda a vida... Amigas fiéis e desinteressadas que tantas coisas tão belas me contaram no rumorejar da sua folhagem e no desabar dos seus corpos mortos... mortos por mim!... Já basta... (outro tom) Estás a sorrir, Tiennet?...

TIENNET - (embaraçado) Não... não!

O GRANDE LENHADOR - Deves tentar compreender! Deves tentar compreender. Há muito tempo que eu não vejo tombar um velho carvalho... ou um jovem ulmeiro... sem tremer de piedade ou temor, como assassino das obras de Deus! Ah! quanto me tarda passear à sombra das árvores que não voltarão a repelir-me como um ingrato... e que enfim me contarão segredos de que até agora não fui digno!... (outro tom) Tu já deves ter pensado, Tiennet, que nos afastamos do assunto principal da nossa conversa... mas olha que não, olha que não!... Talvez tu agora possas comprender melhor o que se passa com o José! O José... que talvez não consiga nunca tornar uma mulher feliz... que talvez nunca seja feliz por uma mulher...

TIENNET -Mas, a Brulette? ...

O GRANDE LENHADOR -Sim... a Brulette... Pois é! A Brulette... se ela vivesse inteiramente deslumbrada por ele!

TIENNET -Como?

O GRANDE LENHADOR - Conheço bem o pobre rapaz... e sei que ele precisa mais de elogios e incitamentos do que de amizade. Sabes porque é que ele se apaixonou pela tua prima, sabes? (pausa) Ê que a Brulette foi a primeira pessoa que o ouviu e o incitou a dedicar-se à música! (pausa) E sabes porque é que ele não foi capaz de se interessar pela Terência?... É que a minha filha exigia mais dedicação que talento... e tratava-o mais como um filho do que como um homem genial... Sim, Tiennet, sim!... Olha que eu li no coração do José, percebo-o inteiramente! O que ele queria era poder um dia deslumbrar a Brulette, rainha de beleza e de graça entre todas as outras... Vencedor, levando-a pelo braço, ele resplandeceria duplamente. Mas... a aura da Brulette murchou! com culpas ou sem elas, a pequena perdeu o lugar que tinha... e deixou de constituir o supremo sonho dele... e o João não era pessoa para desistir assim...

TIENNET - E então, Grande Lenhador?

O GRANDE LENHADOR - Então, quando ele me veio com aqueles avisos, eu dei-lhe a entender que o João talvez não se importasse de aceitar determinadas responsabilidades, desde que se convencesse da pureza moral da Brulette, pureza de que eu próprio não tardaria em buscar as provas suficientes.

TIENNET -E ele?

O GRANDE LENHADOR - Ficou de tal maneira que estou convencido de que há-de fazer tudo para disputar a Brulette ao João!

TIENNET - Mas é louco!... Completamente louco!...

O GRANDE LENHADOR -É um desgraçado, Tiennet. E, como todos os desgraçados... capaz de praticar os piores erros! Se eu te disser que neste momento temo tanto por ele como por nós... não te minto!...

TIENNET - (ouvindo ao longe súbitos gritos) Santo Deus?... Que será isto?...

BRULETTE - (distante numa aflição) Socorro!... Acudam!... Socorro!...

O GRANDE LENHADOR - (com afastamento rápido, a acudir) É a voz da Brulette!... É a Brulette que pede socorro! Santo nome de Deus, oxalá os meus receios não se confirmem ainda mais cedo do que eu previa!...

"E Brulette surge no limiar da cozinha, desfeita em pranto"

BRULETTE - (entre soluços) Eu... eu... eu estava a... a dormir... a dormir!... E nisto... não sei como... acordei!... Foi como se o meu coração visse, pressentisse... soubesse... Sentei-me na cama e vi que ao pé da janela estava um homem... um homem... um homem no meu quarto!

O GRANDE LENHADOR - (tenta acalmá-la, sem resultado)

BRULETTE - (animando-se) A princípio, não percebi quem era... tive um medo horrível... nem sei o que pensei! Só sei que gritei!... E foi nisto que reconheci o José!... O José que veio direito a mim e me tapou a boca com a mão... ao mesmo tempo que me perguntava... (soluça) Que me perguntava... (chora)

TIENNET - (irado contra José) Que te perguntava ele, Brulette?

JOSÉ - Ai... eu digo... não vale a pena tanta fita por coisa tão pouca! O que eu lhe perguntei foi "-desde quando te assustas tanto à simples vista dum homem, minha pomba? "...

TIENNET - Parece impossível!...

JOSÉ - (cínico) Impossível, porquê?... Tenho suficiente confiança com a Brulette para... para gracejar com ela, não?

O GRANDE LENHADOR - Creio bem que não estavas a gracejar, José.

TIENNET - E que explicação dás tu ao facto de lhe teres tapado a boca?...

JOSÉ - Não sei... foi um movimento irreflectido. Talvez me tivesse assustado também. Podiam ouvi-la e tomar-me por algum malfeitor.

TIENNET - E se te tomassem por algum malfeitor, talvez tivessem razão!

JOSÉ - (irônico) Ah, sim?

TIENNET - Pois como explicas tu essa entrada, noite fechada, numa casa que não é tua e num quarto que te devia estar vedado por princípio?

JOSÉ - Pensei que a Brulette gostasse de me ver mal abrisse os olhos... Se me enganei, peço desculpa!

BRULETTE - (que aos poucos deixa de chorar) Não sei... não sei em que te mereço este insulto, José. Não sei o que fiz, ou o que haja, para que te tenhas atrevido a proceder duma forma tão ignóbil!

JOSÉ - Oh, inocente donzela!...

BRULETTE - (principiando a indignar-se, a acordar para o desassombro da atitude que não tardará em tomar) José... creio bem que... que não me engano ao pensar que não existe em mim, ou à minha volta, o que quer que seja capaz de autorizar os teus modos, as tuas palavras. Na verdade... és tu que estás outra pessoa! És tu que estás modificado! Sim, porque aquele José que eu conheci, aquele José de quem eu sou amiga desde sempre, nunca se atreveria nem a falar-me... nem a olhar-me da maneira como... como tu me falas e olhas!...

JOSÉ - (sempre escarninho) Sim, é natural que tenhas razão. Deixei de ter ilusões, percebes? Ou melhor, deixei de ser idiota!...

BRULETTE - (implorando) Grande Lenhador... meu bom amigo ajuda-me, sim?... Ajude-me a perceber! Não é o meu querido José que está aqui, pois não? Este homem horrível que tem a figura dele, os olhos dele, a voz dele... não passa dum desconhecido... Mande-o embora, Grande Lenhador, por favor... mande-o embora!...

O GRANDE LENHADOR - (severo) Ouves, José?... Ou te arrependes da forma como procedeste... e esperas que a Brulette seja capaz de perdoar-te... ou agradeço-te que te retires imediatamente, esperando que eu te procure para termos uma conversa de homem para homem.

JOSÉ - (que de súbito cai num desalento tão grande como a má impressão causada) Não são capazes então de perceber que... que um sofrimento insuportável... pode obrigar uma pessoa a fazer tudo pelo pior, tudo ao contrário do que deve e no fundo deseja?... (outro tom) Brulette... perdoa-me!

BRULETTE - Mas, José...

JOSÉ - (impedindo-a de falar) Brulette... eu não posso mais!... Eu sei que fiz mal... mas entrei sem qualquer má intenção! O demônio fez com que eu, pela porta aberta, te visse adormecida... linda como os anjos!...

TIENNET - (irônico) De onde se deduz que os anjos também podem incitar ao pecado, não?

O GRANDE LENHADOR - (severo) Não digas tolices, Tiennet! Não agraves as coisas!

TIENNET - Desculpe, Grande Lenhador, mas esse indivíduo faz perder a paciência...

O GRANDE LENHADOR - Este indivíduo, o teu amigo José - amigo de infância! - está a tentar explicar-se. Temos de o ouvir até ao fim! (outro tom) Continua, rapaz...

JOSÉ - (extremamente fatigado) Não sei o que senti... Raiva, ciúme, despeito, desespero ... Qualquer coisa de terrível que me obrigou a entrar! E olhava-te, Brulette, olhava-te a pensar "porque será que sou tão desgraçado que ela não me quer"... -quando acordaste e gritaste!... E nesse momento, quando me julguei odiado por ti ao ponto de te inspirar um medo de que na verdade não me sentia merecedor, nesse momento... - nesse momento creio que se me mandassem acabar contigo, só para terminar tamanhã angústia, eu obedecia sem hesitar...

BRULETTE - (aterrada) José? ...

JOSÉ - (sem se deter)... nem que fosse para em seguida morrer de dor!...

TIENNET - (com imenso esforço) José... bem, José... eu nem sei o que hei-de dizer! A verdade é que a Brulette teve razão quando te achou tão diferente do que foste que mal podia reconhecer-te...

JOSÉ - (reagindo) Não foi bem isso que ela disse...

TIENNET - Mais importante do que o que ela disse é tudo quanto fica! (pausa) A verdade é que as pessoas sabem como se separam e não como se encontram... Não deves portanto estranhar, tu, se também eu estiver modificado! Sim... fui sempre paciente e benévolo, defendendo-te, a ti, dos que te julgavam mal, e consolando-te nos teus desgostos, por mais incompreensíveis que me parecessem... Agora, porém, tornei-me muito susceptível... e não gosto nada que as pessoas da minha família sejam desconsideradas.

O GRANDE LENHADOR - (prudentíssimo) Tiennet... então?...

JOSÉ - (rindo, desagradável, sarcástico) Ah, sim?... com que então... és tu?... Eu devia logo ter suspeitado, diante das tuas atenções, das tuas amabilidades... Era tudo para me tapar os olhos, an?...

BRULETTE - (altiva) Que é que tu queres dizer com isso, José?...

JOSÉ - Aquilo que digo, precisamente! Entre primos, tudo deve afigurar-se natural, não?... (ri)

BRULETTE- (cheia de dignidade) José... que nova doidice te ataca para poderes ver qualquer coisa digno de censura entre mim e o Tiennet?... (pausa para efeito e mais dolorida) Só posso admitir a tua atitude... se a febre... ou o vinho... te tiverem perturbado a ponto de não saberes o que dizes. (pausa) José... que é feito do respeito que me deves? Que é feito da amizade que eu julguei merecer-te?

JOSÉ - (caindo em si de novo) Desculpa, Brulette. Desculpa!... São os meus nervos, que me atraiçoam! Mas enfim, não pensava ofender-te tanto.

BRULETTE - Não pensavas?...

JOSÉ - Não! É daquelas coisas, talvez eu agisse levianamente, mas a verdade é que não esperava uma tal reacção!... Não passava tudo duma brincadeira...

BRULETTE - Duma brincadeira? ...

JOSÉ-(tentando rir) Amanhã... amanhã continua a festa do casamento da Rosa Maria... Só te peço uma coisa, Brulette, para acabar de vez com todos os mal-entendidos. É que ponhas de parte todos os teus pretendentes... e me aceites como par da primeira à última música!...

BRULETTE - (sorrindo) Que eu ponha de parte todos os meus pretendentes?... Vejo que continuas completamente enganado a meu respeito, José.

JOSÉ - (interdito) Como?

BRULETTE - Eu já não tenho pretendentes, meu amigo!... Modifiquei-me muito... perdi o gosto pela dança...

JOSÉ -Que dizes?

BRULETTE - Digo a verdade!... (sorri) Mas amanhã, se for preciso e para te mostrar que sou capaz de esquecer esta noite e tudo o que o que nela se passou... para só recordar o José, o mais querido amigo da minha infância... sou capacíssima de dançar dia e noite e sempre com o mesmo par... - tu U!...

HURIEL - (da porta) Se eu estiver de acordo!...

TODOS -Como?...

HURIEL - (avançando lentamente) Se eu estiver de acordo!

JOSÉ - (reagindo) Mas...

O GRANDE LENHADOR - (atalhando) Bom, Bom, Bom, já não são horas de discutir seja o que for! Precisamos todos de dormir, de descansar... Amanhã, com as idéias frescas, trataremos de esclarecer todas as dúvidas.

HURIEL - Perdão, meu Pai, mas acho melhor explicarmo-nos já hoje. Podemos depois dormir mais descansados... (outro tom) Terência, não estejas a olhar para nós com um ar tão assustado!... Que diacho, isto não é morte de homem!... Pelo contrário! Eu, por mim, espero que daqui saia a vida... a vida com todos os seus direitos!... (outro tom) Espera, vai buscar uma garrafa de vinho. Quero beber com o José... beber à nossa felicidade... e à felicidade de todos aqueles que amamos!...

TERÊNCIA - (assustada) Santo nome de Deus!...

HURIEL - Vamos, minha irmã... o vinho!...

O GRANDE LENHADOR - (assustado também) João, meu filho, mais valia que fôssemos repousar...

HURIEL - Não! (pausa) Não!... (outro tom) Desculpe, meu Pai... mas tem de ser hoje!

Tem de ser hoje... O José precisa de reconhecer o quanto está a ser injusto!... Mas ele não pode deixar de sê-lo... pelo menos enquanto não despejar tudo o que tem lá dentro... (violento) Vamos, desabafa!... Desabafa sem medo! Diz o que tens a dizer, que eu estou pronto a responder-te.

TERÊNCIA - (tímida) Aqui está o vinho...

HURIEL - Dá-nos copos... (servindo) Para ti... Para mim... (outro tom) Queres, Tiennet?

TIENNET -Não!

HURIEL -O pai?

O GRANDE LENHADOR - Não. E oiçam, filhos... Eu não gosto disto!... Não se deve misturar o vinho de Deus com o vinho do diabo! João... não bebas! E tu, José, vê se percebes o mal que estás a fazer!...

JOSÉ - Eu? O mal?... Mas que mal?... (ri) Palavra que não percebo... Tenho a impressão de que estão todos fora do seu normal!...

O GRANDE LENHADOR - (violento) Basta!... Basta!... Basta!... Isto agora começa a ser demais.

HURIEL - Mas, se me dá licença...

O GRANDE LENHADOR -Não te dou licença para coisa nenhuma! (chama) Brulette...

BRULETTE - Sim, Grande Lenhador?...

O GRANDE LENHADOR -Tu... e a Terência...

TERÊNCIA -Sim, meu Pai.

O GRANDE LENHADOR - Vão-se embora daqui, as duas. Vão dormir. São horas e mais que horas. Deixem-nos sós.

BRULETTE e TERÊNCIA - Sim

TERÊNCIA - (sufocada) Boa-noite... (pausa) Vamos, Brulette?

BRULETTE - Vamos, Terência... Boa-noite!...

O GRANDE LENHADOR - (depois que elas saem) Bom... e agora que estamos sós, podemos falar à vontade, (pausa) Vejamos, José...

JOSÉ -Eu?...

O GRANDE LENHADOR -Tu. Tu! Tu que menosprezaste no teu coração a mulher que devias adorar... cometeste um erro que o bom Deus não pode perdoar-te!

JOSÉ -Mas...

O GRANDE LENHADOR - Eu sei, eu sei que nem sempre depende da vontade própria confiar naqueles de quem se gosta, ou desconfiar... Seja porém como for, quando sem provas se deixa de acreditar em alguém cai-se num erro irreparável! Foi o que sucedeu contigo! Desconfiaste... erraste... tens de sofrer as conseqüências disso!

JOSÉ - Mas porquê, mestre?

O GRANDE LENHADOR - Porque ela nunca to perdoará!

JOSÉ - Mas... mas como é que ela sabe o que eu não lhe disse?

O GRANDE LENHADOR -Não disseste?... Então a tua atitude... e as tuas palavras não foram suficientemente elucidativas? Não?...

JOSÉ - (sucumbindo) A Brulette há-de compreender... e perdoar...

O GRANDE LENHADOR - O que se passou, talvez. Mas... e o que está para vir?

JOSÉ - O que está para vir?

O GRANDE LENHADOR -Claro! É que uma dúvida nunca vem só, meu rapaz. A primeira, passa... Mas depois, um dia, quando mal te precatares, surge uma segunda que mau grado teu te saltará da boca às primeiras palavras que ouses dizer...

TIENNET - Tenho a impressão de que em relação à Brulette, tu, José, já disseste tudo o que tinhas a dizer... Ela não é pessoa para voltar a perder tempo contigo!

JOSÉ - (arrogantemente) Isso é uma coisa que só diz respeito a nós ambos! Quem sabe?... Talvez dependa tudo duma oportunidade... (pausa) Estou agora mesmo a recordar-me daquela canção do Grande Lenhador... a Canção do Rouxinol... (ri, superior) Talvez eu seja o que há-de pedir...

HURIEL - (rudemente) E talvez haja quem peça com mais direitos do que tu!...

JOSÉ - (respirando fundo) Bem... muito bem!... Se ele é assim... vai tu pedir... em palavras... e eu vou pedir em música!... Hum?... Que tal?... Não vale a pena haver mais hesitações... mais querelas! Acaba-se tudo por uma vez! Estamos ambos diante duma casa que só tem uma porta... tu bates dum lado... e eu bato doutro!

HURIEL - (fazendo por dominar-se) Bem... muito bem... aceito... mas com uma condição.

JOSÉ -Qual?...

HURIEL - Nada de traições!... Eu falo... e tu... tocas!... com seriedade. com lisura. com coragem...

JOSÉ - Creio que nunca lidei contigo senão assim... (outro tom, comovido) Mestre... meu Mestre querido... é preciso que saiba...

O GRANDE LENHADOR -O quê?...

JOSÉ - Se há dias... quando lhe pedi em casamento a sua filha, essa rapariga extraordinária, sem igual pela honestidade e pela bondade, me tivesse aceitado... eu dedicar-me-ia inteiramente a amá-la, sem idéias ocultas, sem traição... Creio que alguns males se teriam evitado. A Terência, porém, não me achou digno dela... Por isso me julgo livre de me voltar para outra direcção...

HURIEL - (desesperado) Uma direcção que me deste o direito de seguir e agora me disputas!...

JOSÉ - (caído) Pois é... pois é! Agi como um louco... um louco que quer e não quer ao mesmo tempo... (desesperado) Mas que culpa tenho de que sejam ainda mais loucos do que eu?... Tão loucos que me aceitaram? ... (num gemido) Tem de desculpar tudo isto, Grande Lenhador. Eu sinto que não estou bom da cabeça...

O GRANDE LENHADOR - (apoquentado) Mas eu não penso mais em nada, meu querido José...

JOSÉ - E tu, João?... Tu... podes perdoar-me?

HURIEL - (reservado) Queres que eu esqueça tudo isto... sem condições?

JOSÉ - Quero que esqueças tudo isto... desistindo da Brulette.

HURIEL -Eu?...

TIENNET - Olha lá, José, de que servia agora o João desistir? A Brulette sabe que tu pediste a Terência em casamento ainda não há oito dias...

JOSÉ - (concentrado) Então... então... acham que estou perdido? (num desespero que vai ao desnorteamento) Acham que estou perdido?... que nada vale a pena, que eu perdi a Brulette?... (a afastar-se) Ah, Bom... então mais vale que tudo acabe, que tudo termine para mim... (lá longe) Mas antes... oh... antes, antes, hei-de arriscar tudo por tudo... e não se sabe ainda quem dirá a última palavra!... Adeus!... Ou melhor: até breve!... Não tarda que oiçam falar de mim! - (desaparece)

HURIEL - (baixinho) Jesus!... Que coração tão duro!...

O GRANDE LENHADOR - (docemente) Não, meu filho... Diz antes: que coração tão infeliz!...

"No dia seguinte, no bosque do castelo"

TIENNET - Ou eu me engano muito... ou é o José que está a tocar! Ih, que raio de música esta! Até arrepia!... (vai-se aproximando do lugar donde vem o som) É mesmo ele, claro!... Não podia deixar de ser... Parece que a flauta está a chorar! Apre! Cai-me cada som cá dentro como se fosse uma lágrima!... (outro tom) bom dia, José!

JOSÉ - (deixando de tocar) bom dia, Tiennet.

TIENNET-Então... como vai isso?

JOSÉ - Mal.

TIENNET - (tentando disfarçar) Mal?... Então não estás contente?

JOSÉ - Achas que tenho razão para estar contente?

TIENNET - Parece-me que sim! Já sei que foste admitido ao Grande Concurso... e que prestas provas depois de amanhã!

JOSÉ - E isso parece-te bastante para eu me sentir feliz?

TIENNET - Então não é o teu grande sonho, a tua maior ambição, ser recebido Mestre Tocador?

JOSÉ - Sim... era! Agora, tanto me faz.

TIENNET -Disparate! Olha "tanto te faz! "... Vai ser uma coisa explêndida!

JOSÉ - Perfeitamente inútil! (amargo) Que vou eu fazer com o meu êxito, não me dirás?

TIENNET -Vais vivê-lo, ora essa!

JOSÉ - Sozinho... como um cão vàdio?

TIENNET - Sozinho com a tua música! Não há nada de que tu mais gostes.

JOSÉ - A minha música, sem ela, não tem razão de existir! (pausa) Foi um horror, o que se passou ontem! Andei por aí a vaguear a noite inteira... Não sei como não acabei comigo!

TIENNET - (numa censura) José? ...

JOSÉ - Não sei como será possível viver sem a Brulette o resto dos meus dias... Portei-me indecentemente e ela tem toda a razão se nunca mais olhar direito para mim. Porque haja o que houver, seja o que for... eu não tinha o direito... não tinha!...

TIENNET - Ó homem, a Brulette é muitíssimo tua amiga, amanhã já nem se lembra do que se passou, acredita! Tenho a certeza de que ela vai assistir ao teu concurso!

JOSÉ - (numa esperança) Ela disse-te?...

TIENNET - Ela não me disse, mas eu conheço-a muito bem e sei que não guarda rancores a ninguém, (suspira) É uma boa rapariga, a Brulette! Tenho a impressão de que, a não ser a Terência, não há outra como ela!

JOSÉ - (numa louca esperança) Se fosse possível!... (mais forte) Se fosse possível!... Se eu conseguisse!...

TIENNET - Se conseguisses o quê?...

JOSÉ - A única coisa porque vale a pena lutar!... Reconquistá-la!...

TIENNET - Cuidado, José, não voltes ao mesmo!... Além disso, como queres reconquistar uma coisa que nunca te pertenceu?... Porque não te rendes à evidência, como eu me rendi? A Brulette só gosta de nós como irmãos...

JOSÉ - Quem sabe? ... Se eu tocar... se eu tocar como nunca ninguém o fez... talvez ela compreenda que eu valho mais do que o "outro"...

TIENNET -O outro... é o João Huriel?

JOSÉ - Há mais algum, ainda?

TIENNET - Não, José, não há. Mas não é por haver ou deixar de haver que eu faço esta observação.

JOSÉ -Então?

TIENNET - Então... o João merece-te todo o respeito, não podes falar dele tratando-o pelo "outro"...

JOSÉ - Que respeito é que ele me merece, se se atravessou no meu caminho? Foi ele que me roubou o coração da Brulette!

TIENNET - Olha, ele não te roubou coisa nenhuma nem se atravessou no teu caminho! Mais - ele só se candidatou de verdade ao lugar que desejava quando tu próprio lhe fizeste notar que o deixavas vazio.

JOSÉ - (enraivecido) Ele aproveitou-se da situação, foi o que foi! É de boa boca, tudo lhe serve...

TIENNET - Basta, José! Se voltas ao mesmo, não quero ouvir-te nem uma só palavra mais! Não tens razão no que dizes e ainda por cima acusas...

JOSÉ - Pois não hei-de acusar, se vejo?

TIENNET-Que é que tu vês, an?... Uma criança?... E depois? Que é que isso prova?...

JOSÉ - Que é que isso prova?...

TIENNET -Sim! E ainda por cima só escutas metade do que se diz... Deste atenção às insinuações desse maroto do Carnat... e recusaste-te pelos vistos a procurar outras fontes de informação!

JOSÉ-Para quê, ouvir de todas as bocas a mesma afirmativa?

TIENNET - Talvez ouvisses o nome daquele que se aponta como presumível pai do suposto filho da minha prima.

JOSÉ - (a tremer) o nome? ...

TIENNET - Sim, o nome. O teu!...

JOSÉ - (dêsfalecendo) O meu?... (reage) Mas é uma refinada mentira!...

TIENNET - Pois aí tens a aparência da verdade com que insultaste a tua amiga de infância. E agora que sabes tudo, adeus, até amanhã.

JOSÉ - (num alvoroço) Espera, Tiennet...

TIENNET - Não espero coisa nenhuma! Passa bem! Depois de amanhã lá estaremos todos na estalagem da Cabeça do Boi, para te aplaudir... (a afastar-se) Desejo que daqui até lá seremos o bastante para meteres os outros todos num chinelo!... (perde-se na distância)

JOSÉ - (baixinho) Meu Deus... oh, meu Deus!... Tenho de falar com ela... tenho de saber... é preciso que eu saiba!... Custe o que custar, ela tem de dizer-me!

"Horas depois, no castelo"

BRULETTE - (transtornada) Como? O quê?... Que foi que tu me perguntaste?... Por favor... eu... eu não devo ter ouvido bem!... Repete a tua pergunta, anda! Repete, José!...

JOSÉ - Sim, Brulette, repito... Quero que me digas se és a mãe do Carlitos! Peço-te que sejas franca... porque em troca eu sou capaz de perdoar-te e...

BRULETTE - (com desespero) A mãe do Carlinhos?... Eu, a mãe do Carlinhos! Então... era isso?... Foi por isso?... (outro tom) Onde foste tu buscar uma tal hipótese? Onde?...

JOSÉ - Por aí... toda a gente fala.

BRULETTE - (num grito) Jesus? ... Jesus... pois há quem pense?... Há quem julgue?...

JOSÉ - Repara que estás com protestos... mas não me respondes!

BRULETTE -Cala-te! Cala-te!... (rompe em soluços) Imaginarem uma coisa dessas... E tu acreditares ao ponto de... Deus do céu tenha misericórdia de mim! ... Mas então... as pessoas supõem? Toda a gente, dizes tu?... E o João, também? E a Terência? E o Grande Lenhador?...

O GRANDE LENHADOR - (aproximando-se) Não, Brulette, eu não!... Nem a Terência. Nem o João. Só o espírito doentio do José pode insistir numa coisa que já se lhe provou que é inteiramente falsa. Não chores, Brulette, não chores, filha.

BRULETTE - (chorando) O José... o José que devia ser o primeiro a defender-me... a livrar-me das calúnias!... O José, que eu considerava como um irmão... ser capaz de acreditar em tamanhã mentira!...

O GRANDE LENHADOR - (severo) Estás a ré ver-te na tua obra, José?... Não tens vergonha?... Pede-lhe perdão de joelhos, vá...

JOSÉ - Não.

O GRANDE LENHADOR - Não?...

JOSÉ - Ela que me perdoe se puder e quiser... Eu, se me sentir culpado, só de mim receberei a absolvição.

JOSÉ - Mais vale que me odeies, Brulette. Mais vale que tudo acabe de vez...

BRULETTE - (sucumbida) Meu pobre José...

JOSÉ - Não, não quero que me lamentes. Não sou digno de inspirar piedade a ninguém.

O GRANDE LENHADOR - Que orgulho tão a despropósito, meu filho!... Vamos, cai em ti... reconhece os teus erros... e aceita a nossa amizade sem manchas. Vá... se a Brulette te desculpa tudo...

BRULETTE - Desculpo...

O GRANDE LENHADOR-... esqueçamos este incidente... e falemos apenas... do teu concurso.

JOSÉ - Não! Não mereço nada... sou um miserável.

BRULETTE - (docemente) José... meu querido irmão... dá-me um beijo e não falemos mais em nada disto... sim?

JOSÉ - (sacudido) A minha mãe está à minha espera. vou almoçar com ela (a afastar-se) Adeus.

BRULETTE - (tentando detê-lo) José...

JOSÉ -Que é?

BRULETTE - Não contes à Mariton nada do que se passou entre nós... nem lhe fales das tuas desconfianças a meu respeito.

JOSÉ -Porquê?

BRULETTE - (de súbito embaraçada) Porque... Porque... porque seria para ela um enorme desgosto! (vendo-o ir-se embora, desolada) E nem sequer me respondeu!...

O GRANDE LENHADOR - (bondosamente) Não estejas a afligir-te mais, Brulette! Deixa lá o José... Tu sabes que ele não é uma pessoa igual às outras. Tem os seus momentos de loucura... e se não dá a mão à palmatória com facilidade... isso talvez signifique que ele sofre mais com a acusação da sua consciência do que com as nossas censuras. Vamos, Brulette, enxuga os olhos. Basta de lágrimas... Olha, queres que eu te diga uma coisa? Cada vez te admiro e respeito mais. Ficas satisfeita?

BRULETTE - (a tremer) Muito... muito, Grande Lenhador. Muito!

O GRANDE LENHADOR - Então vamos lá a falar do que é agora o mais importante de tudo!

BRULETTE - (suspensa) O mais importante?

O GRANDE LENHADOR - Quero que nos autorizes, a mim e ao meu filho, já se sabe, a ir hoje, depois do almoço, pedir-te em casamento ao teu avô e marcar a data da boda...

BRULETTE - (que ora ri ora chora) Oh, Grande Lenhador!... Oh, meu bom amigo... que Deus lhe pague! Mas... mas não pode ser!

O GRANDE LENHADOR - Não pode ser?

BRULETTE - Não... eu não posso casar com o João...

O GRANDE LENHADOR -Não podes?

BRULETTE -Nem devo.

O GRANDE LENHADOR-Essa agora? ... Mas porquê?

BRULETTE - (cada vez mais serena) Oiça-me, por favor... e procure entender-me. Ontem... se me tivesse feito essa mesma proposta, eu acolhê-la-ia de braços abertos, doida de felicidade. Hoje... hoje tudo se modificou.

Tornou-se tarde demais... ou então talvez seja ainda muito cedo...

O GRANDE LENHADOR- Não percebo!...

BRULETTE - Percebe, Grande Lenhador... vai já perceber! Agora que eu sei o que se passa e diz de mim tenho vergonha de aceitar a mão do mais honesto dos homens!

O GRANDE LENHADOR -Brulette? ...

BRULETTE - Eu sei que o mereço... como sei que ele acredita em mim. Mas não posso provar ao mundo que sou digna dele e por isso mesmo cumpre-me sacrificar-me. Não tenho o direito de levar em dote apenas uma má reputação! Não percebo como pude ser acusada tão facilmente do que, se as pessoas quisessem pensar antes de falar, não tem nem sequer visos de realidade. Nada fiz que justifique uma coisa assim... Gostava de dançar, gostava de me divertir... mas nunca ninguém me conheceu um namorado a sério! E é curioso! Hoje que eu me supunha melhor, mais competente, mais sensata, mais responsável... desaba sobre mim uma suspeita que eu nunca imaginaria possível! Seja porém como for... só uma coisa me resta fazer. Não casar com o João.

O GRANDE LENHADOR - (comovido) Admirável rapariga!... Ê essa então a tua última palavra?

BRULETTE - Sim, Grande Lenhador.

O GRANDE LENHADOR - Pois bem... agora vou eu comunicar-te o que decido... e exijo que aceites os direitos da minha idade e da minha experiência, (outro tom) Querida Brulette... não posso pedir-te ao teu avô depois do almoço... nem sequer espero que o João chegue para me acompanhar. vou imediatamente procurar o senhor Brulet... e quando vier para almoçar já hei-de trazer marcado o dia do casamento.

"Ao fim da tarde, na cozinha, do castelo"

HURIEL - Pois eu não estou nada descansado em relação ao concurso! O José tem procedido muito mal, porque em toda a parte, alto e bom som, repete que não há ninguém que toque como ele e que ainda está por nascer aquele que seria capaz de se atrever a reprová-lo...

O GRANDE LENHADOR - Bom... ele toca como ninguém, isso é verdade!...

HURIEL - Pois toca... mas devia calar-se muito calado e deixar que a ocasião de prová-lo chegasse sem estar a enfurecer os Mestres Tocadores! Eles não o toleram... e é capaz de haver algum sarilho!...

BRULETTE -O filho do Carnat também se apresenta desta vez?

HURIEL - O filho do Carnat e o filho do Véret!

O GRANDE LENHADOR - Sim, não me admiro nada que as coisas tomem mau aspecto.

HURIEL - E já não me refiro às provas legais ... O meu receio é...

FREI NICOLAU - (da porta) Dão-me licença?...

HURIEL e BRULETTE - (espantados) Frei Nicolau? ...

FREI NICOLAU - (avançando) Santas tardes para todos!... Venho da casa da Brulette, onde o senhor Brulet me disse que a encontrava aqui... junto do noivo e da sua nova família... Alegro-me imenso que se sintam todos felizes, porque são merecedores uns e outros das bênçãos do Senhor!...

HURIEL - (suspenso) Frei Nicolau... não sabia que conhecia a Brulette!...

FREI NICOLAU - (rindo, bondoso) Oh, o meu bom filho sabe muita coisa... mas não sabe tudo!...

TERÊNCIA - (com rumor) Sente-se, frei Nicolau. Há-de vir cansado e decerto com vontade de comer.

FREI NICOLAU - Não, não, minha filha, não... O senhor Brulet teve a caridade de repartir comigo a sua merenda. Agradeço apenas um copo de água...

TERÊNCIA - com certeza! vou já servi-lo!

FREI NICOLAU - Ora Deus seja louvado que me permite concluir o que há mais dum ano principiei!... (outro tom) Sei que tem sido extraordinariamente dedicada ao Carlinhos, Brulette...

HURIEL - (suspenso) Pois também o conhece?...

FREI NICOLAU - Se o conheço, João Huriel?... Fui eu que o entreguei à guarda desta santa menina... E hoje volto para o levar.

BRULETTE- (num gemido) Para o levar? Porquê, Frei Nicolau?

FREI NICOLAU - Ora porque há-de ser, minha filha? ... Porque os pais estão à espera dele!

BRULETTE -Jesus! O meu Carlinhos...

TIENNET - (suspenso) Frei Nicolau... quem são os pais dessa criança, afinal?

FREI NICOLAU - (sereno) Ainda não posso dizê-lo... Mas descansem, na hora própria vão sabê-lo todos!...

"Na Estalagem da Cabeça do Boi, a abarrotar de gente curiosa e ávida de renovação, no dia seguinte, à tarde"

1ª RAPARIGA- Olhem, olhem, olhem, lá vem ela...

2ª RAPARIGA -E que desplante, an?... Pelo braço do João Huriel!... Como se fosse uma rapariguinha com os mesmos direitos que nós!...

1ª RAPARIGA- Ela nunca teve vergonha! "Atirou-se" sempre de cabeça aos melhores rapazes e continua!...

2ª MULHER - Deixem lá, pequenas, não se consumam!... Um rapaz como aquele não se deixa levar em cantigas por mais manhosa que seja quem lhas cante!

1º RAPAZ- (rindo) Apre, que vocês são más!... A rapariga pode ter feito a sua asneira mas, co"os diachos, reabilitar-se, e ninguém tem nada com isso!...

1ª RAPARIGA - Ora, ora, mas pelo menos, enquanto não estiver reabilitada, como tu dizes, podia estar em casa sossegada e não andar por aí a pavonear-se.

2ª MULHER - Lá isso também é natural que ela venha assistir ao concurso do José!...

SENHORA LAMOUCHE - Eu cá no lugar dela só queria é que não dessem por mim!... Vejam lá se morria de desgosto por não ouvir o pateta alegre do José!

1º RAPAZ- (rindo) Ó tia Lamouche, então... ela não podia deixar de estar presente!... Se as coisas são como se afiguram...

2ª RAPARIGA- Se são como se afiguram? Se são como são, queres tu dizer!... Quem é que é parvo?...

SENHORA LAMOUCHE - Eu o que ainda acho pior de tudo não é ela andar com esse tal Huriel! O rapaz está no seu direito de gostar do dote que ela tem para oferecer... O que a mim me parece muito mal é que a família dele ande a fazer estas figuras! Que diacho, o velho tem bom ar!... E até a rapariguita, parece ser sossegada.

1ª RAPARIGA- Uma seresma, é o que ela é! Está aí há não sei quantos dias e nunca veio ao baile sequer...

2ª RAPARIGA- Talvez não goste de dançar.

1ª RAPARIGA- Ora quem é que não gosta de dançar, na nossa idade?... Aquilo é para se dar ares!...

1º RAPAZ- Essa gente dos bosques tem uma maneira de ser muito especial!...

2ª MULHER - Olhem para aquilo! Lá estão todos sentados... e a Mariton de roda deles...

1ª RAPARIGA- Então, há-de estar contente!... Aquilo se calhar ela gostava que o filho casasse com a Brulette...

SENHORA LAMOUCHE - (escandalizada) Ah!... Oh!...

TODOS -Que foi?...

SENHORA LAMOUCHE - Era só o que me faltava ver!... Mas que sociedade!

2ª MULHER - Já estou a perceber tudo! Olhem... é o tio Brulet que lá vem... mais o Etienne, o pai do Tiennet...

TODOS - (reconhecem-nos)

2ª RAPARIGA- Não me digam que vão para a mesa dos montanheses!...

SENHORA LAMOUCHE - Claro que vão... olha!...

1ª RAPARIGA- Santo nome de Deus, é que até custa a crer que haja tanta falta de vergonha!...

2ª MULHER - Parece incrível! Dá vontade de deixar de os conhecer a todos!...

1º RAPAZ- Pfff!... E ainda vocês não viram o melhor!

TODOS - O melhor?

1º RAPAZ- Reparem lá para o fundo da casa... por baixo da tabuleta!...

2ª RAPARIGA - Qual tabuleta?...

1º RAPAZ- Ó menina, aquela onde está escrito o nome da casa, não vês?... "Estalagem da Cabeça de Boi... "

2ª RAPARIGA - Ah, sim, sim!... (outro tom) Ah... o miúdo da Brulette!

TODAS - (riem)

2ª MULHER -Ora! Ele podia lá faltar à festa!...

1ª RAPARIGA- Mas eu, o que acho mais espantoso, é que seja o Benoit quem o tem ao colo!...

SENHORA LAMOUCHE - Então, ele tem de agradar aos clientes...

2ª RAPARIGA- (rindo com os outros) A gente sempre vê coisas!...

VOZES - (efervescentes) Os tocadores! Os tocadores! Lá vêm os tocadores!... Olhem os tocadores a entrar!...

1ª RAPARIGA- Olhem, o Carnat!

2ª RAPARIGA - E o Arcignat! E o Jaubert!

1º RAPAZ- Todos com um ar muito sério!...

2ª MULHER - Pudera, não! Isto vai ser uma coisa renhida!

SENHORA LAMOUCHE - Vocês acreditam no José Picot?...

2ª RAPARIGA- Vamos a ver...

VOZES - (impondo silêncio) Schiu!... Schiu!...

SENHORA LAMOUCHE - Schiu!... Schiu!...

MESTRE CARNAT - (dominando o tumulto, vigorosamente) Senhoras e senhores... todos sabem que estamos aqui reunidos para aceitar as provas que Dinis Vèret, Luciano Carnat e José Picot nos vão prestar das suas qualidades e dos conhecimentos para poderem qualquer deles desempenhar a contento de todos, a profissão de TOCADORES, sendo reconhecidos como Mestres! O júri está presente e disposto a ouvir e a julgar como lhe compete! Podemos portanto começar... se ninguém tiver qualquer observação a fazer-nos...

O GRANDE LENHADOR - (de longe) Eu e o meu filho temos que dizer!

MESTRE CARNAT - Fale!

O GRANDE LENHADOR - Desejamos pertencer ao júri!...

MESTRE CARNAT - com que direito?

O GRANDE LENHADOR - com o direito que nos assiste por sermos Mestres reconhecidos em toda a França e sustentarmos contra os direitos do Luciano Carnat e de Dinis Vèret que têm os seus representantes sentados nessa mesa os direitos do José Picot que os senhores talvez julgassem completamente à vossa mercê!... (mal conseguindo que o oiçam, tanto cresceram risos e comentários) Como sabe, Mestre Carnat, as nossas leis dão-nos o poder de exigirmos o que estou a pedir!...

MESTRE CARNAT - (fulo) Silêncio! Silêncio, por favor!... Calem-se todos! (outro tom) Ninguém precisa de exigir o que tem o direito de pedir!... Estamos de boa fé para julgar os três novos tocadores... Tomem portanto lugar nesta mesa! (no meio de aplausos gerais) Meus Senhores... vamos começar!... A ordem é a seguinte: Primeiro, toca Luciano Carnat. Depois, Dinis Vèret. E finalmente, José Picot!...

"E depois das provas"

VOZES - (entusiasmadas) Bravo! Bravo!...

1ª RAPARIGA- Bravo, José Picot, bravo!...

2ª MULHER - Ele é realmente um espanto!...

1º RAPAZ- Palavra que nunca ouvi tocar tão bem!...

2ª RAPARIGA -É que se ele não fosse aceite Mestre era uma destas injustiças!...

TODOS -Bravo!... Bravo!...

MARITON - (comovidíssima) Oh, meu querido filho... meu querido filho... Eu... eu nem sei o que diga!... Estou... estou tão contente... tão orgulhosa...

JOSÉ - É melhor não dar largas à sua alegria antes de saber o resultado...

MARITON - Mas o resultado não pode ser senão aquele que se espera!...

JOSÉ - (céptico) Vamos ver, minha mãe, vamos ver...

VOZES - (arrebatadas) Lá vem o júri... Aí vem o júri!... Schiu!... Schiu!...

MESTRE CARNAT - (ocupando de novo o seu lugar) Senhoras e senhores... (espera que o tumulto decresça) Senhoras e senhores... depois de ajuizar detalhadamente o que ouvimos, estamos prontos a tornar pública a nossa decisão, (pausa para efeito) Concorrente Luciano Carnat... depois do exame às tuas qualidades e aptidões... declaramos que ainda te consideramos demasiado inexperiente para exercer a profissão de Mestre Tocador... Desejamos que continues a estudar afim de que um próximo concurso te possa ser favorável... Não te desgostes, porque às vezes não são os que principiam mais cedo os que chegam mais longe. Concorrente Dinis Vèret... não há classificação para dar-te... visto que desististe a meio da prova. (E agora no meio dum silêncio quase total) Quanto a ti, José Picot, e sem exclusão de qualquer voz, foste aceite Mestre Tocador de primeira classe!...

TODOS - (entre aplausos redobrados) Parabéns, José!... parabéns!...

JOSÉ - (alto para todos e altivamente) Muito agradecido! Finalmente... chegou a minha hora!

MESTRE CARNAT - (dominando o vozear, que decresce) Um momento! Um momento ainda!... (pausa e chama) José Picot!... José Picot... sabes perfeitamente que, para pertenceres à nossa confraria, não basta saber tocar um instrumento da melhor maneira! Há ainda algumas provas a prestar...

JOSÉ - (com desprezo) Bem sei.

MESTRE CARNAT - Não só terás de responder a determinadas perguntas concernentes ao exercício da nossa profissão como de aceitar certos compromissos sem os quais nunca terás lugar entre nós. Sujeitas-te aos nossos costumes?

JOSÉ - Evidentemente que sim!

MESTRE CARNAT -Juras por tua honra não fugir no último momento às obrigações impostas e aceites?...

MARITON - (baixo, rápido), Ó filho, vê no que te metes Dizem coisas horríveis dessas provas...

JOSÉ - (baixo, rápido) Cale-se, minha Mãe! (alto, com dignidade) Oiça, Mestre Carnat. Embora eu saiba perfeitamente que essas famosas provas não têm nada a ver com a música propriamente dita, juro por minha honra sujeitar-me a todas elas!...

MESTRE CARNAT - Muito bem, José Picot. Sendo assim, logo, às 9 horas da noite, ao pé da torre da igreja, estará um dos nossos para te conduzir até onde te esperamos! Mas lembra-te de que a vergonha será contigo se te lembrares de levar guardiões ou espias...

JOSÉ - Esteja descansado que vou só! (entre sussurros de aprovação) E o meu diploma, quando mo entregam?

MESTRE CARNAT -Está pronto amanhã!... (outro tom) Boa tarde a todos... Passem muito bem! (sai)

MARITON - (baixinho) Não gosto nada disto... Não gosto nada disto...

TIENNET - (baixinho) Nem eu, Mariton! Mas não se aflija que eu vou estar vigilante!...

1ª RAPARIGA- (a aproximar-se) Dá-me licença, Mariton? Quero dar-lhe os parabéns... a si... ao José... e à Brulette também!...

MARITON - Muito agradecida... Muito agradecida!...

JOSÉ - (agradece também).

2ª RAPARIGA- Eu também quero felicitá-los a todos e desejar as maiores felicidades!... Há-de ser uma grande alegria... principalmente aqui para a Brulette que sempre ajudou tanto o José... (ri) Muitos parabéns!

JOSÉ - Obrigado.

MARITON - Obrigada pequena, muito obrigada! (outro tom, mais baixo) Dão-me os parabéns... sem saberem como tenho o coração pesado!...

TIENNET- Não se apoquente, Mariton! Vai ver que tudo corre bem!

MARITON - Mas é que não é só por isso...

TIENNET - Não?...

MARITON - Tu não sabes, Tiennet, tu não sabes! A vida tem cada problema!...

2ª MULHER - (aproximando-se) Dás-me licença, Mariton? Venho apresentar-te os meus cumprimentos e dizer-te que estou muito contente com o êxito do teu filho...

MARITON - Agradecida!

2ª MULHER - Espero que ele, agora, tome a vida a sério e cumpra o seu dever... que é para acabar com tanto falatório...

MARITON -Como?

2ª MULHER -Tu bem me entendes, Mariton... Já vai sendo tempo de terminar com este escândalo!...

MARITON - (aturdida) Hein? Quê?

SENHORA LAMOUCHE - A Francina tem razão! Agora, que tem a sua situação definida, o José pode perfeitamente cumprir o seu dever.

JOSÉ - O meu dever?

MARITON - Mas qual dever, tia Lamouche?

SENHORA LAMOUCHE - (com um risinho) Bom... eu compreendo que isto custe à Mariton, uma pessoa tão honesta, tão séria...

1º RAPAZ- (rindo) Ó tia Lamouche, não lhe parece que está a perder o seu tempo? Isto cada um come do que gosta e é andar!

1ª RAPARIGA - Ao cabo e ao resto que é que nós temos com o caso, an?...

2ª MULHER - Se lhes agrada assim, bom proveito...

2ª RAPARIGA- (rindo) De mais a mais que o miúdo sempre se vai criando...

MARITON -Ah!... Ah? ... Ah! ... (de súbito, a impor-se aos risos e comentários) Ó gente sem vergonha!... Ó criaturas malvadas, que a mim tinham-me prevenido e eu não acreditava!... Então ele é isso? Ele é isso? ... Vocês todos falam do que não sabem afirmando o que não devem? ... As vossas línguas do demônio atreveram-se contra a bondade, à pureza, o sacrifício? (num apelo) Benoit!... Benoit... vem cá, meu homem, vem depressa!...

TIENNET - (tenta detê-la, em vão).

MARITON - (igual) Vem... e traz o Carlinhos!... Traz o menino, meu homem!... (num soluço) Eu tencionava dizer tudo amanhã... amanhã ou depois, com toda a calma!... Mas já que é assim, já que é assim... oiçam... oiçam, oiçam todos... e aprendam a calar-se, línguas venenosas... línguas de gente que só sabe fazer mal. Quando me disseram o que por aí se inventara, quando eu percebi que se atreviam a caluniar a mais generosa das raparigas... eu mal ousava acreditar! Mesmo depois de ter tomado a decisão que tomei com o meu marido...

TODOS - (num longo espanto) Marido?

JOSÉ - (sufocado) Marido, minha Mãe?

MARITON-(sem ligar à interrupção)... mesmo depois eu ainda pensava que não podia ser verdade! Só agora, só agora é que eu percebi... e dou graças a Deus por já ter o Carlinhos comigo...

TODOS - (como anteriormente) O Carlinhos?...

JOSÉ - Mas que é que a mãe tem a ver com o Carlinhos?

MARITON - (a responder-lhe) Que é que eu tenho?... Que é que eu tenho? Tudo!...

FREI NICOLAU (aproximando-se vigoroso) Mariton... veja o que vai dizer, minha filha!...

MARITON - (num soluço) Ah, Frei Nicolau, ainda bem que aparece!... Ainda bem, que é para testemunhar em nome de Deus que aquilo que eu digo é a verdade e só a verdade!... Uma verdade conhecida e guardada em segredo por aqueles que souberam ser meus amigos: o tio Brulet... e esta pobre e querida Brulette tão injustamente caluniada! A todos quero contar agora essa mesma verdade... Pouco tempo depois de eu vir aqui para a Estalagem da Cabeça de Boi... eu e o Pedro Benoit casámo-nos!

TODOS - (manifestam o seu espanto).

JOSÉ - (interdito) Mãe?...

MARITON - Frei Nicolau, que é segundo primo do meu marido, acompanhou-nos à igreja onde ligámos o nosso destino (vendo o marido que se aproximou) Ah... tu estás aqui, Pedro...? (com alívio) Então explica, explica tu a razão porque decidimos conservar o nosso casamento secreto!...

BENOIT -Sim, mulher, sim... Sim, chegou a hora de revelar o que achámos conveniente que fosse só nosso até hoje... e creio que no fim de contas ninguém tem nada com a nossa vida!... (outro tom, vibrante) E nem que eu tivesse de fechar a estalagem por falta de freguesia, nada agora podia impedir-me de dizer o que penso! Gente de má fé... gente que só pensa o mal... como se atreveram a falar duma rapariga que só lhes devia merecer respeito? A criança que atribuíram a Brulette a criança que ela criou com a maior dedicação, é nossa, é minha e da Mariton, filha legítima nascida do nosso casamento. Ê Carlos Benoit, herdeiro do meu nome e de todos os meus bens!...

JOSÉ - (a rebentar de cólera) E porque razão mantiveram secretas até agora coisas tão importantes?...

BENOIT - Olha, José, eu não sou obrigado a dar contas do que faço ou não faço, nem a ti nem a ninguém! Mas como nisto tudo não há nada que me envergonhe, o que já não sucede a outras pessoas, apetece-me explicar exactamente como os actos se desenrolaram. Primeiro, gostei da Mariton... e parece que ela também não me viu com maus olhos... E é claro, como ambos somos pessoas honestas, quisemo-nos para o bom fim. Fomos aqui com o meu primo Nicolau ao convento dele, onde o bom do abade nos casou.

JOSÉ - E porque é que não mo comunicaram?

BENOIT - Porquê? Porque não nos convinha!

JOSÉ - Essa agora!...

BENOIT - Quando principiei o meu negócio, fi-lo com fundos emprestados pelo filho do meu irmão Joaquim, muito rico, como todos sabem, pela herança do Pai e da Mãe, tão rico que não sabia quanto tinha, mas também muito avarento.

JOSÉ - Continuo a não perceber!

FREI NICOLAU - Tem calma, rapaz, que já vais entender tudo!

BENOIT - Mas o meu sobrinho contava ser o meu herdeiro... e se soubesse que eu me casava era capaz de exigir o pagamento total das dívidas dum dia para o outro, o que me arruinaria por completo, visto que eu não podia senão ir satisfazendo os meus compromissos aos poucos. Devo dizer que foi precisamente o facto de ter na passada semana liquidado tudo com ele que nos decidiu a tornar público o nosso casamento e a apresentar o nosso herdeiro...

JOSÉ - (furioso) Claro! Claro! Os seus interesses à frente de tudo!...

BENOIT - Os meus interesses são também os da tua Mãe e os do teu irmãozinho!

JOSÉ -E a Brulette?... A Brulette, continuavam a sacrificá-la? Os interesses da Brulette não eram mais importantes que tudo?

BENOIT - Nunca nos passou pela cabeça que a Brulette pudesse sofrer com uma coisa que se nos afigurava tão simples! Entregar-Lhe o nosso filho pareceu-nos natural, acredita!

JOSÉ - Mas porque é que não me contaram a verdade?

MARITON - Olha, meu filho, tive medo que não gostasses e fizesses algum disparate... Queria que tomasses carreira direita na vida!...

JOSÉ -Mas...

MARITON - Se soubesses do nascimento do Carlinhos podias não acreditar que eu estava realmente casada, podias não compreender a necessidade que nós tínhamos de manter secreto o nosso matrimônio... És orgulhoso e ciumento... e depois andavas naquele desespero por causa da música...

JOSÉ - Sim... pensaram em tudo isso, menos no que pudesse acontecer à Brulette!...

BRULETTE - (serena) Mas não me aconteceu nada, José! Eu tinha a minha consciência tranqüila!... Além disso, tudo o que eu fizesse pela Mariton era pouco para lhe agradecer quanto ela fez por mim! Serviu-me de mãe... criou-me até eu ser uma mulher... e eu só me ocupei do Carlinhos durante ano e meio!...

MARITON - (comovida) Querida, querida Brulette! És a melhor rapariga do mundo... e eu... eu... publicamente quero dizer-te que... (soluça) olha, que te peço muita desculpa de ter permitido que sofresses tanto por minha causa!

BRULETTE - Oh, Mariton... mas nada tem importância quando a gente sabe que está a cumprir um dever que o nosso coração reconhece ...

JOSÉ - (desesperado) És boa... és muito boa, Brulette!... Eu... eu não devo prestar para nada... porque quando penso que por culpa da minha mãe pude julgar que tu...

BRULETTE - (dignamente) Por culpa da tua Mãe, não, José! Por tua culpa, diz antes! Porque me conhecias e foste capaz de pensar como pensaram os que não me conheciam!

"E aos poucos, a estalagem vai-se agora despovoando".

JOSÉ - (com desespero) Quando penso que te perdi por causa disto...

BRULETTE - (cheia de firmeza) Mas que teimosia, José!... Porque é que não hás-de reconhecer que não se perde o que nunca se teve?...

BENOIT - (bonacheirão) José... basta de problemas, rapaz! Tudo está bem quando acaba bem...

JOSÉ - (amargamente) Posso perguntar-Lhe o que é que acaba bem na sua opinião, senhor Benoit?...

BENOIT - E se me tratasses por Pai, an?

JOSÉ - Por Pai?... Pai?... Pai do outro filho da minha mãe!...

MARITON - (num soluço) José? ... Vês?... Vês como eu tinha razão? ... Estás cheio de ciúmes... e sem motivo! O Carlinhos tem o seu lugar, tu tens o teu...

BENOIT -E o teu é ao pé de nós, José! Somos a tua família e eu, embora sempre tenha convivido muito pouco contigo, estimo-te e desejo muito que venhas viver aqui, na melhor das harmonias. A tua mãe, José, é uma mulher cheia de boas qualidades, digna de todo o teu respeito e de toda a tua amizade! Sei que a sua maior ambição era ter-te aqui a viver... Aliás, foi para garantir o teu futuro, sabes isso muito bem, que ela aceitou vir trabalhar nesta estalagem de que hoje é tão dona como eu. Por tudo isto, rapaz, é só tu quereres e tens aqui o teu lugar! Podes trabalhar ao meu lado, pago-te o teu ordenado e asseguro-te uma comparticipação nos lucros. E nas horas vagas tocas para teu prazer, sem precisar de pensar em ganhar dinheiro com a música... Hein?...

MARITON - (suspensa) Aceitas, meu filho?

JOSÉ - Não, minha mãe.

Mariton - Não?

JOSÉ - Agradeço a generosidade do... do meu padrasto... mas não posso renunciar a seguir a minha carreira.

MARITON -Oh, José! Eu seria tão feliz se ficasses connosco.

JOSÉ - (com amargura) A mãe não precisa de mim para ser feliz... Tem o seu marido... tem o Carlinhos...

MARITON -Filho? ...

JOSÉ - Virei visitá-la uma vez por outra, descanse. Virei visitar todos.

MARITON - Mas que necessidade tens tu de andar a correr mundo?

JOSÉ -A necessidade de cumprir o meu destino!...

"Ao princípio da noite deste longo dia".

BENOIT - (inquieto) Então, Tiennet?

TIENNET - Então, senhor Benoit, está quase na hora...

BENOIT - É o diacho!... Sempre esperei que as lágrimas da mãe e as minhas propostas o levassem a desistir!

TIENNET - Bom, a verdade é que não convinha, agora... Se ele não fosse às provas, ficava desclassificado. De qualquer maneira, era mostrar medo!

BENOIT - Pois era... (reage) E depois, co'os diachos, olhe que medo também eu tenho, an?...

TIENNET - (com esforço) Medo... temos nós todos! O Grande Lenhador está preocupadíssimo!

BENOIT - Mas em que diabo consistirão as tais provas?

TIENNET - O Huriel diz que normalmente não passam dumas partidas inofensivas, em que a serenidade e a resistência de nervos do concorrente são postas à prova.

BENOIT - Sendo assim?...

TIENNET -Pois é... mas neste caso as coisas tomam outro aspecto!... Sente-se... adivinha-se que se vai passar qualquer coisa!

BENOIT - Bom, esperemos que possamos chegar a tempo!

BENOIT - (ouvindo abrir a porta da rua) Ah... és tu, Nicolau?

FREI NICOLAU - (aproximando-se) Sou.

BENOIT -Então?...

FREI NICOLAU - O José foi para lá agora.

TIENNET - Isso quer dizer que não devemos perder tempo.

FREI NICOLAU - Ainda não é tarde.

BENOIT - (suspirando) Sempre estou para ver em que trabalhos vamos meter-nos!

TIENNET - Eu continuo na minha. O senhor não devia ir!

BENOIT - Tinha graça! O Grande Lenhador tem mais vinte anos do que eu e vai... e eu ficava em casa!

TIENNET - Não é uma questão de idade... é uma questão de conveniência! O Lenhador tem os filhos criados... e o senhor tem um filho para criar!

BENOIT - Ora, ora, rapaz! Boa desculpa, para quem quiser sentir-se cobarde!... Na... hei-de ir nem que me rachem a cabeça!...

FREI NICOLAU - (seráfico) Ficarei aqui a rezar para que nenhum mal aconteça aos que estão do lado da justiça!...

HURIEL - ("assobia, da porta, a despertar as atenções).

TIENNET ( Então?... BENOIT HURIEL - Vamos?...

TIENNET - Conseguiste?

HURIEL - Consegui. São uns doze...

BENOIT -Tch, tch, tch, tch, tch!...

TIENNET -Uns doze?...

HURIEL - Estão todos embuçados na esquina do cemitério que confina com a torre da igreja... Há uma portazita baixa, no meio das silvas.

BENOIT - Como é que souberam?...

HURIEL - Vimos! Dois deles tomaram a dianteira e desapareceram por ali dentro...

TIENNET -Onde é que ela irá dar?

HURIEL - Isso... não faço a mínima idéia! (outro tom) Despachemo-nos, an?... O meu Pai ficou a tomar conta, para ter a certeza de que é por ali que o José também vai entrar...

BENOIT - Temos de ter todo o cuidado para ele não perceber que o vamos seguir...

HURIEL - Bom, aliás fica assente desde já que não interviremos senão em caso de absoluta necessidade. Pode não se passar nada de grave e a nossa intervenção redundar em prejuizo do José! Aqueles Carnat são terríveis e não se ensaiavam nada para envergonhar o José publicamente, negando-lhe o diploma com razões que tomariam a aparência de válidas.

BENOIT TIENNET Está bem, está bem...

BENOIT - Vamos lá, então!

FREI NICOLAU - Vão, meus filhos, vão... Oxalá tudo corra bem!

OS TRÊS HOMENS - (a afastarem-se) Vamos, vamos...

BENOIT -Até logo, Nicolau!

TIENNET - (igual) Até logo, Frei Nicolau!

HURIEL - (igual) Não se esqueça de rezar por nós! Precisamos muito da protecção divina!...

FREI NICOLAU - (em solilóquio, depois da porta fechar) Sim... precisam mesmo muito que Nosso Senhor lhes mande um guardião especial... (pausa para efeito) E a verdade é que se Deus não o quisesse... eu não teria descoberto aquilo que descobri!

"Nos longos corredores subterrâneos que ninguém sabe onde irão dar"

TIENNET - (em surdina) Apre!... O diacho do subterrâneo nunca mais acaba!

HURIEL -Ai!...

TODOS - (num sobressalto, mas sempre baixinho) Que foi?

HURIEL - Dei com a cabeça na rocha.

BENOIT - Pffff!...

O GRANDE LENHADOR - Vocês já repararam que isto vai sempre a descer?...

TIENNET - Pois vai!...

BENOIT - Tenho a impressão de que devemos andar por baixo dos mortos...

TODOS -Hein?...

BENOIT - Quero eu dizer, cá na minha que este subterrâneo passa por baixo do cemitério!

TIENNET - Ê capaz disso.

O GRANDE LENHADOR -Não se ouve nada!...

HURIEL - O Pai tem a certeza de que é por aqui?

O GRANDE LENHADOR - Pelo menos, o caminho por onde eles desapareceram foi o mesmo que nós tomámos...

BENOIT - Pois é... mas havia outro corredor.

O GRANDE LENHADOR - O outro corredor era a subir... e não acredito que eles fossem para a superfície. Ouvi-os falar na "cova... "

HURIEL - Dá-me a impressão de que este subterrâneo deve ter ligações com o castelo...

TIENNET - Também já pensei o mesmo!

BENOIT - Tinha graça, se nós em vez de irmos desembocar no sítio onde eles estão fôssemos sair ao pé das nossas mulheres!

HURIEL - Não tinha graça nenhuma, que o José precisa de nós e eu sinto-me cada vez mais inquieto!

BENOIT - Lá isso... também eu!

TIENNET - (chamando) Senhor Benoit...

BENOIT - (sobressaltado) Ouviste alguma coisa?

TIENNET - Não é isso.

BENOIT -Então?

TIENNET - Porque é que disse "as nossas mulheres"?

BENOIT - (que não percebe a intenção da pergunta) Então porque há-de ser? Elas não estão juntas no castelo, a ver se conseguem ter menos medo ajudando-se umas às outras?

TIENNET -Mas quais elas?

BENOIT - Ora quais? ... A Mariton, a Brulette e a Terência...

TIENNET - Mas elas não são nossas! Só a Mariton é que...

HURIEL -Schiu!...

HURIEL - (cada vez mais baixo) Ouvem?...

TODOS -O quê?...

HURIEL -Schiu!...

"Muito de longe e vago, vem agora o vozear que prenuncia gente que só faz um rítmico e alucinante pom. pom. pom. pom. pom "

O GRANDE LENHADOR - Devem ser eles!...

O GRANDE LENHADOR -São eles, com certeza!

TIENNET - Pelo tocar, dir-se-ia uma centena de homens!

O GRANDE LENHADOR -É do eco.

BENOIT - Será melhor apagar o archote...

HURIEL - Apague, Senhor Benoit.

BENOIT - (Obedecendo) Pronto.

TIENNET - E agora?

HURIEL - Além... além há um clarão, vêem?...

BENOIT - Pois! A nossa luz é que não nos deixava ver...

TIENNET - Vamos...

O GRANDE LENHADOR - Mas com muito cuidado, an?...

"Enquanto eles progridem, num avanço cauteloso, o toar soturno das vozes torna-se assustador"

HURIEL - (cada vez mais perto) Cuidado... Estamos mais perto!...

TIENNET - Olhem!...

O GRANDE LENHADOR - (baixo) A cova!...

BENOIT -Ih, que horror!...

HURIEL - Eu não disse? São mesmo os subterrâneos do castelo!... Isto é uma das masmorras!...

"E todos se detêm espreitando a cena de fantasmagoria"

TIENNET - Apre! Que quadro!...

HURIEL - Ao que os homens são capazes de descer!... Disfarçarem-se de diabos!...

BENOIT - Eu confesso que mesmo sabendo quem eles são... morria de medo se ali estivesse!...

HURIEL - Pois o José parece calmíssimo!...

O GRANDE LENHADOR - Valente rapaz!... Sentado com um ar indiferente de quem não liga ao que se passa...

TIENNET- Schiu... Esperem, estão todos a mudar de lugares...

HURIEL - para criarem maior espectativa...

BENOIT - E este pom. pom continua?... Põe uma pessoa maluca!...

OS HOMENS DA COVA - (e num berro medonho) Lá vem o diabo chefe!... Hú-ú-úúú...

O GRANDE LENHADOR - Cuidado... Agora é que vai principiar a função...

TIENNET - Felizmente que desta abertura se vê sem ser visto!...

HURIEL - Quando for a altura de saltar lá para baixo é que são elas!... São para aí três metros...

TIENNET - Mas será mesmo preciso?...

HURIEL - Infelizmente, penso que sim.

BENOIT - Já repararam que mesmo em frente de nós há outra abertura... e que está lá um vulto qualquer?...

TIENNET -A abertura vejo... mas o vulto... não!...

BENOIT -Não?... Ê verdade... não! Pois eu ia jurar...

HURIEL - Schiu!... Entrou o Diabo Chefe! Coberto de guizos!...

TIENNET - Os outros calaram-se! com certeza ele vai falar!...

MESTRE CARNAT - (disfarçado de diabo diante de José) José Picot... José Picot... josé Picot... TIENNET - (baixinho) Olhem quem ele é! O Mestre Carnat!... Conheço-lhe a voz!

JOSÉ - (cálmíssimo) Fala!

MESTRE CARNAT - Ainda estás a tempo de {Desistir! Se queres comprometer-te a ir mostrar os teus talentos tão longe daqui que nem sequer oiçamos falar de ti, eu e todos os meus diabos passamos-te salvo conduto e podes ir-te sem conhecer a nossa força!

JOSÉ - Se é isso o que vocês pretendem, podem perder as esperanças!... Não consegue nada de mim!...

MESTRE CARNAT -Tem cuidado!... JOSÉ - Conhecem-me muito mal se imaginam que são capazes de me obrigarem a desistir Nunca, ouvem bem, nunca?...

O GRANDE LENHADOR- (baixinho) Boa resposta!...

MESTRE CARNAT - (encadeando) com

Que então não tens medo do inferno?... Pois

digo-te que, sem minha licença, não tornarás a tocar!

JOSÉ -Ah, não?

MESTRE CARNAT - Sou o rei dos músicos!... E ou me vendes a tua alma... ou...

JOSÉ - E para que é que uma súcia de diabos tão idiotas como vocês todos precisam da alma dum músico como eu?...

TODOS OS DIABOS - Hú. hú. hú

HURIEL - Aproxima-se o pior!...

O GRANDE LENHADOR - E o rapaz não arrepia caminho!

TIENNET - Nunca julguei que ele fosse tão corajoso!...

MESTRE CARNAT - Vê bem o que estás a dizer!... Ou não sabes que só não cede ao diabo o que é mais forte do que ele?

JOSÉ - Sei... sei que ou se mata o diabo... ou se morre nas garras dele!...

MESTRE CARNAT -Nesse caso... estás disposto a bater-te?.

JOSÉ -Contigo?... Estou!

MESTRE CARNAT - O rei não luta! Manda lutar!...

JOSÉ -Manda?...

MESTRE CARNAT - Está ali o meu representante... É com ele que vais ajustar contas!

TODOS "OS DIABOS" - Hú. ú. ú!...

HURIEL - Que monstro é aquele?...

TIENNET - Pelo tamanho, deve ser o Fratin, que é o mais vigoroso e o mais moço dos tocadores da região.

BENOIT - Claro, o Carnat não se atreve... É velho demais para lutar com o meu enteado.

O GRANDE LENHADOR -São uns malvados! Oporem ao desgraçado do José um gigante daqueles...

HURIEL - E ainda por cima com o fato crivado de pontas de aço, ou de ferro, sei lá bem...

MESTRE CARNAT - (como sempre) José Picot, ainda estás interessado na luta ou preferes desistir?

JOSÉ - (agora enraivecido) Nem que eu seja aqui feito em pedaços... nunca desistirei!...

MESTRE CARNAT - Pois muito bem... lutem!...

"E a luta terrível principia, com a mais tremenda desvantagem para José, que não tarda em ferir-se nas pontas de aço do fato do adversário"

HURIEL - Ele vai cair...

O GRANDE LENHADOR - E eu vou saltar!...

HURIEL - Cuidado, Pai!...

O GRANDE LENHADOR - Entrem quando virem que é preciso!... (e salta para o interior da cova)

MESTRE CARNAT - (vendo quem chega) Que é isto?... (num berro) Quem nos atraiçoou? ... Vergonha para ti, José Picot, que te fizeste proteger contra o que estava combinado!... Fratin, bate!

O GRANDE LENHADOR -Alto aí, que não estou só!... E fiquem sabendo que não há vergonha nenhuma para o José Picot! Não pediu nem desejou socorro de ninguém! Eu e os meus é que pressentimos que tu, Carnat, e os teus apaniguados, não recuariam diante dum crime!...

MESTRE CARNAT - Como é que?...

O GRANDE LENHADOR - Como é que sei que te meteste na pele do que és? Que diabo tão estúpido me saiste!... As tuas intenções estavam bem à vista!...

TODOS - (manifestam-se com ameaças)

O GRANDE LENHADOR - Malvados homens que não hesitavam em dar cabo duma vida em flor, uma vida que sozinha vale a de vocês todos!... Cobardes!... (noutro tom) Cessa a luta, José!...

JOSÉ - (dèbilmente) Não!

O GRANDE LENHADOR -Tu não vês que não podes competir com esse patife? Como queres tu, de calça e camisa tão finas, lutar com um traidor coberto de pontas que são autênticos punhais?...

MESTRE CARNAT - Quem luta com o diabo sujeita-se às suas manhas.

O GRANDE LENHADOR -Basta!... Não vêem que o pobre rapaz está coberto de sangue?

MESTRE CARNAT -Ele aceitou, tem de ir até ao fim!...

O GRANDE LENHADOR - Só lhe tornam a tocar se passarem por cima do meu corpo!

MESTRE CARNAT - A eles, rapazes!...

O GRANDE LENHADOR - A mim, Huriel!...

"Com a entrada dos amigos de José, trava-se uma verdadeira batalha, que só vai cessar com o inesperado aparecimento de Frei Nicolau, no ponto oposto àquele porque saltaram os primeiros"

FREI NICOLAU - (tonitroante) Aguentem-se rapazes!... Está a chegar a ajuda do Céu!... (com impulso) VA DE RETRO, SATANÁS!... (e dezenas e dezenas de asas caiem sobre os espavoriãos)

TODOS OS DIABOS - (sem atinarem com a origem do espantoso acontecimento) Anjos!... Anjos!...

MESTRE CARNAT - (transtornado) Asas!... Asas!... Fujamos, que são dezenas!...

TODOS OS DIABOS - (a caírem) Fujamos! Fujamos!... (e num tumulto, somem-se)

O GRANDE LENHADOR - (agora numa aflição, debruçado para os dois rapazes cobertos de sangue e inanimados) Santo nome de Deus... José!... Tiennet!... José, volta a ti!. - Tiennet... oh, Tiennet... mas que enorme brecha na tua cabeça! Isto é um horror. É preciso salvá-los! É preciso acudir-lhes! João, meu filho, arranja maneira de os tirarmos daqui! - (cada vez mais angustiado) Benoit, por favor precisamos de acudir à estes desgraçados rapazes!

HURIEL - (calmo) Não se aflija, meu Pai. Frei Nicolau trata deles e...

O GRANDE LENHADOR - (num espanto que se torna sobressalto) Frei Nicolau?... Frei Nicolau!... Sim, é Frei Nicolau? ... Mas... mas... eu... eu nem via... nem percebia! O Irmão, aqui?...

FREI NICOLAU - Eu!...

O GRANDE LENHADOR - Mas... ó Deus! (ri) mas então foi mesmo o socorro do Céu que nos chegou!...

FREI NICOLAU - (sem perder o ar seráfico) Parece-lhe, amigo?

O GRANDE LENHADOR - Acudir-nos assim, tem qualquer coisa de milagroso! E depois... salvar os nossos rapazes... (ansioso) Serão graves, os ferimentos deles? Nenhum dá acordo de si!... (furioso) Os malvados!... Éramos cinco contra doze!...

FREI NICOLAU -Eu vi!...

O GRANDE LENHADOR - Viu?... Então sabia que havia pouco a esperar?... (outro tom) Mas, agora pergunto: como é que?...

FREI NICOLAU - (modesto) Como é que eu apareci no momento exacto? Desde o princípio que eu estava além no posto de atalaia!...

BENOIT - Eu não disse que tinha visto um vulto na abertura, diante de nós, do outro lado da cova?

FREI NICOLAU - Sim, é natural que dessem por mim quando cheguei e espreitei cá para baixo...

HURIEL - Em todo o caso, Frei Nicolau, eu também não consigo perceber como é que...

FREI NICOLAU - Como é que descobri o caminho para aqui?... Em criança, meu filho,

brinquei muito por estes sítios... Muito! O Pedro Benoit há-de lembrar-se!...

BENOIT - Quê? Não me digas que aquele caminho da fonte...?

FREI NICOLAU - Digo, digo, digo!... Tal como todos os caminhos vão dar a Roma... assim todos os subterrâneos da terra vêm dar aqui!

BENOIT - Eu nunca estive nesta masmorra!...

FREI NICOLAU - Tens de admitir que eu tenha querido guardar só para mim o meu tesouro...

BENOIT -Qual tesouro?

FREI NICOLAU-(rindo baixinho) Um dia, Pedro... encontrei uma caixa cheia de asas de anjos...

TODOS - O quê?

FREI NICOLAU-... Essas asas de anjos que eu atirei sobre os diabos... e que os fizeram fugir a sete pés!...

HURIEL - Santo nome de Deus! Que história incrível!...

O GRANDE LENHADOR - Uma história para nos fazer rir daqui a algum tempo... Que, por agora o que é preciso...

FREI NICOLAU - O que é preciso é tratar dos feridos!... Vamos, tu, Pedro, mais o João... arranjem aí com esses paus e as vossas capas uma padiola para levar um dos rapazes...

BENOIT - E o outro?

FREI NICOLAU - O outro levamo-lo eu e aqui o Grande Lenhador.

HURIEL - Mas não temos com que arranjar senão a cama para transportar um...

FREI NICOLAU -Temos!... Eu rasgo um pedaço do meu hábito!...

GRANDE LENHADOR - (suspenso) Frei Nicolau?...

FREI NICOLAU - (submisso) Será mais um pecado para eu confessar!... A mascarada... o sacrilégio... (cheio de sinceridade) Estou certo que Deus Nosso Senhor me há-de perdoar tudo isto!... Ele sabe que no meu coração só há boas intenções!...

"Alguns dias decorridos, no castelo de Chassin"

TIENNET - (ouvindo passos que se aproximam e num mal contido alvoroça) Terência, finalmente!...

TERÊNCIA - (Aproximando-se a rir) Jesus!... Quem te ouvisse agora cuidaria que me demorei imenso!

TIENNET - Uma eternidade!

TERÊNCIA - O tempo de encher o cântaro na fonte e voltar! Queres água fresca?...

TIENNET -Só tenho sede da tua companhia ...

TERÊNCIA - (rindo) Quem tal diria? ...

TIENNET - Creio que se percebe...

TERÊNCIA - (a mudar de assunto) Sabes quem te mandou um beijo?

TIENNET -A Brulette? (ri) A Brulette será capaz de desfalcar o João, por pouco que seja?

TERÊNCIA - (rindo) Não, não foi a Brulette. Foi a tua irmã, a Carlota.

TIENNET - Ah, por isso te demoraste! Estiveram a conversar!

TERÊNCIA - Ela prometeu vir logo visitar-te.

TIENNET -E daqui até logo?

TERÊNCIA - (que não percebe) Hum?...

TIENNET - Daqui até logo... o meu beijo?

TERÊNCIA - Jesus, que impaciente rapaz! Isso foi da pancada que te deram na cabeça?

TIENNET - (que se torna suplicante) Terência... achas que sou impaciente? Todos estes dias, sempre à espera, sempre à espera que me dês uma resposta definitiva!...

TERÊNCIA - Sincera? ...

TIENNET - Sincera, com certeza.

TERÊNCIA - Para isso... eu tinha de compreender o que se passava dentro da tua alma, não é verdade?

TIENNET - E... ainda... não?...

TERÊNCIA - Tiennet... tu estás bem, bem certo, da tua afeição por mim?

TIENNET -Afeição? Chamas assim, tão simplesmente, afeição a um amor que vai durar toda a vida?

TERÊNCIA - As pessoas às vezes enganam-se...

TIENNET - Dizes isso... por ti?

TERÊNCIA - Não, Tiennet. Agora não estou enganada!

TIENNET - (que entende o sentido da frase e numa emoção crescente) Terência... Terência?... Jesus, meu Deus! Tenho o paraíso na alma!... Só me apetece rir, cantar e dançar.

TERÊNCIA - (docemente) E depois desmaiar outra vez, como ontem quando quiseste pôr-te de pé contra todas as recomendações do nosso bom Frei Nicolau!...

TIENNET - Terência, sou o homem mais feliz do mundo!

TERÊNCIA - Então deixa-te estar quieto que é para amanhã poderes levantar-te um bocadinho.

TIENNET - (suspenso) Amanhã?... Amanhã, levantar-me?... Terência, estás com um ar misterioso... Que se passa?

TERÊNCIA - (ri)

TIENNET - Ah, claro, claro, estiveste com a Carlota, ela é o correio das novidades cá da terra! Sabe sempre tudo! (outro tom) Ê que ainda estou para descobrir como foi que ela teve conhecimento do caso do Carlinhos...

TERÊNCIA - Não acho que faça cismar assim tanto como isso... Ela e a Mariton são tão amigas!...

TIENNET - Ah... é verdade! Tens razão (ri) Não me ocorrera... (outro tom) Anda cá, Terência, conta-me o que há! Não vês que estou doentinho?...

TERÊNCIA - Estás doentinho para o que te convém! Mas está bem, eu digo-te!... Fomos convidados para ir a um grande jantar que a Mariton e o marido oferecem lá na estalagem... um jantar com duas finalidades. Primeira - anunciar os próximos casamentos da Brulette e do João.

TIENNET - (emocionado) Tu disseste... "os próximos casamentos"... Da Brulette e do João tu dirias "o próximo casamento"... Querida, querida Terência, será possível... que tu... que tu aceites ser minha mulher?

TERÊNCIA - Bom... se de facto eu me chamo Terência... e tu Tiennet... e não há por aí segundo parzinho de enamorados com os nossos nomes... o outro casamento que vai ser anunciado deve ser o nosso!

TIENNET -Oh, Terência! Oh, Terência ... Que feliz que eu me sinto!

TERÊNCIA - Que feliz que tu mereces ser!... É que, tirante o meu irmão, não há outro como tu, tão Bom, tão sincero, tão leal...

TIENNET-... Nem nem o José?

TERÊNCIA - Pobre José! Chama-se àquilo ser um vencedor vencido! (outro tom) Vai-se embora, sabes?

TIENNET - Vai-se embora?

TERÊNCIA - É a outra finalidade do jantar da Mariton: a despedida do José.

TIENNET- Mas para onde vai ele, Terência?

"E no dia seguinte, na Estalagem da Cabeça do Boi"

JOSÉ - (num discurso para toda a família reunida) Para onde vou, minha mãe, meus amigos? Por aí fora, ao acaso, para onde os meus passos me levarem... servindo o único amor que ninguém foi capaz de me tirar - a música!... Custou-me doenças, dores, mágoas sem fim... sangue... mas pertence-me! Está comigo e comigo ficará até ao fim dos meus dias! Está comigo para nunca mais me deixar!

MARITON - (chorosa) Quando voltarás a visitar-nos, meu filho?...

JOSÉ - Quando, minha Mãe?... Talvez um dia... talvez nunca mais!

MARITON -Jesus? ...

JOSÉ - Amanhã, antes que o sol nasça, partirei.

BRULETTE - Não esperas ao menos para assistir aos nossos casamentos?

JOSÉ - Não mereço participar da vossa felicidade!

HURIEL - Não digas isso, José!

JOSÉ - Digo o que sinto... e ainda direi mais alguma coisa! (outro tom) Peço à minha amiga de infância que me perdoe as ofensas que tem de mim!...

BRULETTE - (quase a chorar) Oh, José? ... Mas... mas eu não me lembro de nada...

JOSÉ - (prosseguindo) Peço à Terência, que me tratou como uma irmã, que me desculpe não ter compreendido mais cedo todo o bem que lhe devo...

TERÊNCIA - Oh, José!

JOSÉ - (igual) E um grande obrigado ao Tiennet, ao João, ao tio Brulet... ao Pai Etienne... e especialmente ao Grande Lenhador que fez de mim o que sem ele eu nunca seria!...

O GRANDE LENHADOR - (comovido) E é que nem sei se procedi mal ou bem!...

JOSÉ - Não se interrogue, meu Amigo! As pessoas são para aquilo que nascem! Obrigado porque me ajudou a ser eu próprio... em vez do infeliz que nunca seria nada se não fosse apenas isto! (outro tom) Quanto a si, Pedro Benoit, meu bom Padrasto... digo-lhe que graças a si vou inteiramente descansado. Deixo a minha mãe bem entregue. E desejo-lhe tanta felicidade... que lhe peço uma coisa: faça tudo para evitar que o Carlinhos se apaixone pelo mais infernal e mais maravilhoso dos amores - a música!...

O GRANDE LENHADOR - É que tens mesmo razão, José! Não há nada que mais escravize um homem do que essa fantasia de sons em que a gente deixa falar o coração!

JOSÉ - E agora... acabou-se o assunto! Daqui até final deste jantar em que estamos todos reunidos como uma só família, não se fala mais em coisas tristes. Só se pensa agora no casamento dos nossos queridos amigos... a quem desejo as maiores venturas!

BRULETTE - Mas tu, José, tu...?

JOSÉ - Repito que não quero que contem comigo para nada! (outro tom) Quando eu era pequeno, sei que se dizia que eu tinha a desgraça estampada no rosto...

TIENNET - (assuntado) José? ...

JOSÉ - (sereno) Não se aflijam... nem chorem por mim. O meu destino tem de cumprir-se. Por isso... só lhes peço uma coisa... esqueçam-me. Esqueçam-me!...

O GRANDE LENHADOR - (numa súbita reacção) Ora bem... estou a pensar numa coisa!...

HURIEL ( Que coisa, Pai? TERÊNCIA - O GRANDE LENHADOR - Os meus filhos já não precisam de mim! Dentro de dias estão casados, com as suas vidas organizadas... tenho a certeza de que procedendo da melhor forma para tornarem felizes os seus companheiros!... Sim, nunca se esqueçam de que a verdadeira felicidade é aquela que resulta da felicidade que se dá, an?...

TODOS - (riem)

O GRANDE LENHADOR -E enquanto vocês ficam a construir os respectivos ninhos... eu vou seguir o exemplo do José...

TODOS - O exemplo do José?

JOSÉ - O meu exemplo?

O GRANDE LENHADOR - Vou-me também por esses caminhos fora a musicar segundo o meu gosto há tanto tempo contido!... (ri) Resisti até hoje a esse grande amor...

TERÊNCIA - (interrompendo-o, amuada) E agora que está velhote é que decide ir atrás dele?...

O GRANDE LENHADOR - (a rir) Oh, minha querida Terência, então não sabes que mais vale tarde do que nunca?...

TODOS - (riem)

HURIEL - Vá, pai, vá!... Acho que sim, que deve satisfazer o seu gosto pessoal. Tem esse direito. Diga-me só uma coisa, para meu descanso. Não vai demorar-se tempo demais, não?...

O GRANDE LENHADOR - Bom... não contem comigo senão quando eu for preciso para entreter os netos!

"E uns dois anos volvidos, no castelo de Chassin onde os dois jovens casais ficaram a viver"

HURIEL - (transtornado) É então tudo o que resta dele, essa gaita de foles despedaçada que o Pai aí tem?...

O GRANDE LENHADOR - Isto... e a recordação que viverá enquanto nós vivermos!

TERÊNCIA - (num soluço) Pobre rapaz!...

TIENNET - (impressionadíssimo, ) Ê que ele parecia mesmo pressentir um fim destes!...

O GRANDE LENHADOR - Um fim que talvez pudesse ter sido evitado, quem sabe!?... (ouvindo-se uma criança chorar) Terência, o teu filhinho está a chorar!?... Que é que ele quer?

TERÊNCIA - Não é o meu filho, Pai. É a menina da Brulette! Anda rabugenta por causa dos dentinhos...

O GRANDE LENHADOR - (enternecido) Coitadinha!...

HURIEL - (noutro tom) O Pai faz alguma idéia de como tivesse sido?

O GRANDE LENHADOR - Eu?... Bom, eu te digo, filho. Quando pela última vez encontrei o José, lá nos píncaros das montanhas, achei-o muito mudado...

BRULETTE -Mas mudado como, Pai?

O GRANDE LENHADOR - Olha, filha, cada vez mais soberbo e intratável... Tão soberbo e intratável que cheguei a pensar se eu lhe teria feito mal quando só lhe desejava bem!

BRULETTE - Não entendo.

O GRANDE LENHADOR - à força de lhe incutir confiança no talento que lhe reconhecia, fiz nascer nele uma sede de triunfo que nada conseguia aplacar...

BRULETTE - Se o Pai se considera culpado por isso... eu não sou menos responsável! Desde pequena que o animava, que o ajudava... Nunca fiz nada para o desviar daquela paixão, antes pelo contrário!

TIENNET -Que disparate! Nenhum de vocês tem nada com o mau feitio dele...

O GRANDE LENHADOR - Sim... e foi esse mau feitio, exacerbado ao máximo, que o matou.

HURIEL - Mas o Pai pensa que...?

O GRANDE LENHADOR - Eu só penso o que sei, João! O José estava insuportável de orgulho... E tu sabes que lá para cima, os tocadores são ainda mais ciosos dos seus direitos do que os daqui... não por inveja, mas por amor próprio. Ofereceram-lhe aquele almoço a que eu também assisti com todo o gosto... e o José não fez outra coisa senão ofendê-los com a sua arrogância! Quando o deixei, nessa tarde, sentia-me inquieto... Mas não fiquei com ele porque... porque...

TERÊNCIA ( Porque...? BRULETTE O GRANDE LENHADOR - Os rapazes tinham-me pedido que tocasse... e o José... Bom, o José deu-me a impressão de que... de que se aborrecia ouvindo-me...

HURIEL -Pai? ... Será possível?

O GRANDE LENHADOR - Eu já te disse que ele estava mudado!... (outro tom) Na manhã seguinte soube que fora encontrada à beira duma ravina uma gaita de foles toda despedaçada. Deu-me um baque no coração. Fui ver... A gaita de foles era esta! O José estava lá no fundo...

BRULETTE - (num soluço) Oh, meu querido e infeliz amigo!

TERÊNCIA - (baixinho) Paz à sua alma!...

O GRANDE LENHADOR - (pouco depois) É claro que não se podia acusar ninguém... É tão fácil cair num barranco, principalmente quando não se conhece bem aquela região!

TIENNET - Mas o facto de se ter achado a gaita de foles neste estado não podia provar que... que não fora um simples desastre?

O GRANDE LENHADOR - Bem se vê que não sabes nada do que por lá se passa. Aquilo são terras sem lei, - onde a justiça tem medo dos homens e os homens só receiam o diabo! Para mais existe uma lenda que serve de explicação para tudo o que acontece de mal aos tocadores.

BRULETTE - Que lenda, Pai?

O GRANDE LENHADOR - Eu te digo, Brulette. Conta-se por lá que ninguém pode ser músico sem ter vendido a alma ao diabo. E se um dia o músico desagrada ao seu senhor, o diabo vem, pega na gaita de foles e destroça-a, dá cabo dela nas costas do infeliz até este pagar o que deve, entregando-lhe a vida.

TERÊNCIA - Santo nome de Deus!...

HURIEL - Está visto que, diante duma tal explicação, não há nada a fazer.

O GRANDE LENHADOR - Nada. Absolutamente nada.

BRULETTE - (chorosa) E agora?... Como é que há-de ser... com a Mariton?

O GRANDE LENHADOR - Eu vou levar-Lhe... tudo o que resta do filho.

BRULETTE - Coitadinha!

O GRANDE LENHADOR -O marido e o Carlinhos ajudá-la-ão a conformar-se.

TERÊNCIA-("a tremer) E o Pai?...

O GRANDE LENHADOR -Eu? Eu o quê, Terência?...

TERÊNCIA - Sim... fica connosco... ou vai continuar com a sua música?

O GRANDE LENHADOR -Eu? Mas nada me impede de tocar aqui, pois não?

TERÊNCIA -Não!

O GRANDE LENHADOR - Aliás eu trago algum dinheiro comigo...

TIENNET - O Pai não nos fala em dinheiro, não?...

O GRANDE LENHADOR - (a sorrir) Eu ouvi dizer que vocês estavam a construir uma boa casa de pedra e cal, para deixarem o castelo...

TIENNET -Ê verdade...

O GRANDE LENHADOR - Está muito bem! Pois então um destes dias vamos à feira que eu quero ajudar a mobilá-la...

HURIEL - O Pai não fala em ajudas, está bem? O Pai fica ao pé de nós só para descansar e mais nada!...

O GRANDE LENHADOR - (malicioso) Só para descansar e mais nada?... Que desilusão!...

BRULETTE - Desilusão, porquê?

O GRANDE LENHADOR -É que eu julgava que vocês me deixariam pelo menos cumprir a promessa que fiz quando parti...

TIENNET - Promessa?...

O GRANDE LENHADOR - (rindo) Então eu não lhes disse que vinha quando fosse preciso para entreter os netos? ...

TODOS-(rindo numa compreensão) Ah!...

O GRANDE LENHADOR - Pois cá estou eu!... (enternecido) E palavra de honra que não deve haver maior felicidade para um velho músico do que tocar as suas últimas canções para os filhos dos seus filhos!...

 

                                                                                Odette de Saint-Maurice  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"